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BIOGRAFIA CRUZADA página sempre atuai de nossa historia.intelectual.

■Nesta-biografía cruzada, François Dosse, a partir


de arqu ¡vos inéditos eide tima, longá pesquisa

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9788536323701
EXPLORANDO GRANDES AUTORES
Conselho Editorial de Filosofía
Maria Carolina dos Santos Bocha (Presidente). Professora e Doutora em Filosofìa Contemporànea pela ESA/ Paris e UFRGS/Brasìì.
Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciencias Sociais (EHESS)/Paris.
Fernando José Rodrigues da Rocha, Doutor em Psicolinguistica Cognitiva pela Universidade Católica de Louvain, Bèlgica, com pós-
doutorados em Filosofìa ñas Universidades de Kassel, Alemanha, Carnegie Mellon, EUA, Católica de Louvain, Bèlgica, e Marne-la-Valle,
Franca, Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federai do Rio Grande do Sul.
Lia Levy; Professora Adjunta do Departamento de Filosofìa da Universidade Federai do Rio Grande do Sul. Doutora em Historia da
Filosofìa pela Universidade de Paris 1V-S orbo mie, Franca, Mestre em Filosofìa pela UFRj.
Néstor IMÌZ Joào Beck. Diretor de Desenvoìvìmento da Fimdapáo ULBRA.
Doutor em Teologia pelo Concordia Seminary de Saint Louis, Missouri, EUA, com pós-doutorado em Teolo gia Sistemática no Instituto
de Historia Europeia em Mainz, Alemanha,
Bacharel em Direito, Licenciado em Filosofìa.
Roberto Hofmeister Pich. Doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn, Alemanha. Professor do Programa de Pós-Gradua^ào em
Filosofia pela PUCRS.
Valerio Rohden. Doutor e livre-docente em Filosofìa pela Universidade Federai do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na
Universidade de Münster, Alemanha. Professor titular de Filosofìa na Universidade Luterana do Brasil.

D724g Dosse, François,


Gilles Deleuze e Félix Guattari : biografìa cruzada / François Dosse ; traduçâo:
Fatima Murad ; revisao tecnica: Maria Carolina dos Santos Rocha. - Porto Aiegre :
Artmed, 2010.
440 p. ; 25 cm + 1 encarte
ISBN 978-85-363-2370-1
1. Filosofì
a. 2. Gilles Deleuze
- Biografia. 3. Félix
Guattari -
Biografia. I.
Titolo.
CDU 101:929

Cataiogaçâo na publicaçâo: Ana Paula M, Magnus - CRB-10/Prov-Û09/10


FRANÇOIS DOSSE
Historiador, Professor do lUFM de Créteii, Université Paris XII

GILLES DELEUZE & FÉLIX


GUATTARI BIOGRAFIA CRUZADA

Traducào: ■;
Fatima Murad
Consultoria, supervisao e revisao tècnica desta edicao:
Maria Carolina dos Santos Rocha Professora e Doutora em Filosofìa Contemporànea pela ESA/Paris e UFRGS/Brasil
Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Cièncias Sociais (EHESS)/Paris

201
0
0701091615

Obra originalmente publicada sob o título Gilles Deleuze et Félix Guatarri: biographie croisée ISBN
978-2-7071-5295-4
© Editions La Découverte, Paris, France, 2007.

Capa: Tatiana Sperhacke Fotos da capa


© Raymond Depardon / Magnum Photos/Magnum Photos/Latinstock © Philippe Bouchon/AFP
Preparaçâo de original: Katia Michelle Lopes Aires
Editora Senior: Mônica Ballejo Canto
Editoraçâo eletrônica; Techbooks

UN&SP ASSIS - BiBUÛTECA j T O SSÎFÏCAipÆ)

Reservados todos os Bireitós de ptiblicapáo, em lingua portuguesa, á


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90040-340 - Porto Alegre - RS
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É proibida a duplicagáo ou reprodugáo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrónico,
mecánico, gravagáo, fotocopia, distribuipáo na Web e outros), sem permissao expressa da Editora.
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3665-1100 Fax: (11) 3667-1333
SAC 0800 703-3444
IMPRESSO NO BRASIL POINTED IN BRAZIL
Agradecí mentos

Agradeço a todos aqueles que generosa- mente me Bruno Guattari, Emmanuelle Guattari, Jean Guattari,
prestaram seu testemunho ao longo das entrevistas Alain et Danièle Guillerm, Nicole Guillet, Suzanne
realizadas entre 2000 e 2006. Essa contribuiçao foi Hême de Lacotte, Eugene Holland, Michel ïzard, Eleanor
essencial. Constituiu um dos materiais mais importantes Kaufman, Lawrence Kritzmann, Christina Kullberg, Da-
para a realiza- çâo desta biografia cruzada de Gilles vid Lapoujade, Claude Lemoine, jean-Louis Leutrat,
Deleuze e Félix Guattari. Sylvain Loiseau, Sylvère Lotringer, Yves Mabin,
Alfred Adler, Éric Alliez, Dudley Andrew, Bernard Norman Madarasz, Robert Maggiori, josée Manenti,
Andrieu, Manola Antonioli, Alain Aptelonan, Olivier Jean-Paul Manganaro, Patrice Maniglier, Michel Marié,
Apprill, Philippe Artières, Zafer Aracagôk, François Jean-Clet Martin, Hervé Maury, Philippe Mengue, Aain
Aubral, Danièle Auf- fray, Jacques Aumont, Kostas Ménil, Catherine Millot, Olivier Mongin, Pierre
Axelos, Alain Beaulieu, Raymond Bellour, Thomas Montebello, Liane Mozère, Lion Murard, Jean-Pierre
Béna- touil, Réda Bensmaïa, Denis Berger, Giuseppe Muyard, Stéphane Nadaud, Jean Narboni, Toni Negri,
Bianco, Pierre Blanchaud, Pascal Bonitzer, julian Bourg, Miguel Norambuena, Jean Oury, François Pain,
Christian Bourgois, Constantin Boundas, Christine Buci- Dominique Païni, Jo Panaget, Thierry Paquot, André de
Glucksmann, Bernard Cache, Michel Cartry, Pascal Souza Parente, Giorgio Passerone, Paul Patton, Florence
Chabot, Pierre-Antoine Chardel, Noëlle Châtelet, Jean Pétry, Richard Pinhas, Rafaël Pividal, Jean-Claude
Chesneaux, Michel Ciment, Pascale Criton, Andrew Polack, Matthieu Potte-Bonnev- ille, Daniel Price, John
Cutro-fello, Fanny Deleuze, Christian Descamps, Marc- Protevi, Olivier Quer- ouil, Anne Querrien, David
Alain Descamps, Jacques Donzelot, Jean-Marie Doublet, Rabouin, Jacques Rancière, François Regnault, Olivier
Jean-Claude Dumoncel, Élie During, Corinne Enaudeau, Revault dAllonnes, Judith Revel, Alain Roger, Jacob
Jean-Pierre Faye, Pierrette Fleutiaux, François Fourquet, Rogozinski, Suely Rolnik, Elisabeth Roudinesco, Jean-
Daniel Franco, Gérard Fromanger, Maurice de Michel Salanskis, Elias Sanbar, Anne Sauvagnagues,
Gandillac, Roger Gentis, Fernando Gonzales, Frédéric René Schérer, Dominique Seglard, Guillaume Sibertin-
Gros, Lawrence Grossberg, Blanc, Danielle
vi Agradecí mentos
Sivadon, Gerard Soulier, Hidenobu Suzuki, Je an Deleuze e Guattari”, do grupo de trabalho
^Baptiste Thierrée, Simon Tormey, Serge “Deleuze, Espinosa e as ciências s o ci ai s’, pa-
Toubiana, Michel Tournier, Michel Tubiana, trocinado pelo Centre d’Études en Rhétorique,
Guy Trastour, Kuniichi Uno, Janne Vahanen, Philosophie et Histoire des Idées (CERPHI) du-
Paul Veyne, Arnaud Villani, Tiziana Villani, j. rante o periodo 2005-2006.
MacGregor Wise, Frédéric Worms, Chris You- Agradeço igualmente a Emmanuelle Guattari
nès, Dork Zabunyan, François Zourabichvìli. por seu apoio desde a formulaçâo de meu projeto
Agradeço imensamente também a Virginie e a José Ruiz Funes por ter me facilitado o
Linhart por ter me passado as entrevistas que acesso ao acervo Guattari do IMEC.
realizou para sua pesquisa sobre a vida de Felix Agradeço também a Fanny Deleuze, Em-
Guattari, Eia me ofereceu gentilmente essa manuelle e Bruno Guattari por terem me passado
documentaçâo excepcional de entrevistas que e permitido que eu publicasse suas fotos
realizou ao longo do ano 2000: pessoais.
Éric Alliez, Raymond Bellour, Franco Be~ Agradeço, enfìm, mas com um sentimento
rardi Bifo, Denis Berger, jacky Berroyer, intenso de reconhecimento, àqueles a quem
Novella Bonelìi-Bassano, Jack Brière, Brìvette, confiei a àrdua tarefa de serem meus primei- ros
Michel Butel, Michel Cartry, Gaby Cohn-Bendit, leitores críticos e que me ajudaram a me- lhorar
Marie Depussé, Gisèle Donnardjean-Marie substancíalmente o manuscrito inicial. Sem
Doublet, Hélène Dupuy de tòme, Mony Elka'im, dúvida, devo multo a eles, tanto pelas inúmeras
Patrick Farbias, Jean-Pierre Faye, François correçôes como pelas precísóes e su- gestoes:
Fourquet, Gerard Fromanger, Gervaise Garnaud, Manola Antonioíi, Raymond Bellour, François
Sacha Goldman, Bruno Guattari, Emmanuelle Fourquet, Hugues Jallon, Thierry Paquot,
Guattari, Jean Guattari, Nicole Guillet, Tatiana Guillaume Sibertin-Blanc e Danielle Sivadon.
Ke~ cojevic, Jean-jacques Lebel, Sylvère Evidentemente, agradeço áquela que teve de
Lotringer, Pierre Manart, Lucien Martin, sacrificar momentaneamente suas próprias
Ramondo Matta, Ginette Michaud, pesquisas, pois suas qualidades de es-
Gian Marco Montesano, YannAbreviaçôestilista me sâo indispensáveis, Florence
Moulier-Boutang, Lion Murard, Toni Negri, Jean Dosse.
Oury, Pierre Pachet, François Pain,Jo Panaget, A : JJAbêcédaire de Gilles Deleuze (avec Claire
Jean-Claude Polack, Anne Querrien, Jacques Parnet), Pierre-André Boutrang, 1988.
Robin, Michel Rostain, Dominique Seglard, AH : Les Années d'hiver, Barrault, 1985.
Gérard Soulier, Isabelle Stengers, Mas- saki AO : Capitalisme et schizophrénie, t. 1 : IÎAnti-
Sugimura, Paul Virilio, Claude Vivien. OEdipe, Minuit, 1972.
Agradeço imensamente também ao meu B : Le Bergsonisme, PUF, 1966.
amigo Jean-Christoph e Goddard por ter-me
convidado a intervir em duas jomadas apaixo- CC ; Critique et clinique, Minuit, 1993.
nantes sobre 0 Anti-Édìpo que organi zou nos CH : Chaosmose, Galilée, 1992,
dias 2 e 3 de dezembro de 2005 na Universida- CZ : Cartographies schizoanalytiques, Galilée,
de de Poitiers. 1989.
Agradeço ainda a Anne Sauvagnargues e D : Dialogues, avec Claire Parnet, Flammarion,
Guillaume Sibertin-Blanc por terem me aceito e 1977; rééd, augmentée, Champs Flammarion,
m seu seminàrio "Leituras de Mil Platos de 1996.
DR : Différence et répétition, PUF, 1968, MP : Capitalisme et schizophrénie, t. 2 : Mille
ES : Empirisme et subjectivité, PUF, 1953. Plateaux, Minuit, 1980.
FB : Francis Bacon. Logique de la sensation, La NEL : Les Nouveaux Espaces de liberté (avec Toni
Différence, 1981,2 vol.; rééd. Seuil, 2002. Negri), éd. Dominique Bedou, 1985,
F : Foucault, Minuit, 1986. Nph ; Nietzsche et la philosophie, PUF, 1962.
ID : L’île déserte et autres textes. Textes et entretiens PS : Proust et les signes, PUF, 1964 ; rééd augmentée,
1953-1974, ed. David Lapoujade, Minuit, 2002. 1970.
IM : Cinéma 1. L’Image-mouvement, Minuit, PCK : La Philosophie critique de Kant, PUF, 1963.
1983. Pli: Le Pli. Leibniz et le baroque, Minuit, 1988.
IncM ; L’inconscient machinique, éd. Recherches, PP : Pourparlers, Minuit, 1990.
1979. PT : Psychanalyse et transversalité, Maspero, 1972,
IT : Cinéma 2. L'Image-temps, Minuit, 1985. rééd. La Découverte, 2003.
K : Kafka. Pour une littérature mineure, Minuit, 1975. Qph : Quest-ce que la philosophie ?, Minuit, 1991.
LS : Logique du sens, Minuit, 1969. RF: Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-
1995, éd. David Lapoujade, Minuit, 2003.
RM : La Révolution moléculaire, éd. Recherches, SPE ;Spinoza et le problème de l'expression, Mi-
1977. nuit, 1968.
SM : Présentation de Sacher-Masoch (joint à L. SPP :Spinoza, Philosophie pratique, PUF, 1981.
VON Sacher-Masoch, La Vénus à la fourrure), XE. Les Trois Écologies, Galilée, 1989.
Minuit, 1967.
Sumário
Prólogo........................................................................................................................................ 13

PARTE I DOBRAS: BIOGRAFÍAS PARALELAS


1 Félix Guattari: itineràrio psica-poiítico -1930-1964 ..................................................... 29
"Y'a bon Banania"................................................................................................................. 29
A cena traumática................................................................................................................. 31
Fim de guerra........................................................................................................................ 32
O engajamento trotzkista...................................................................................................... 35
Félix: um lacaniano precoce................................................................................................. 39
2 La Borde, entre mito e realidade.................................................................................. 44
A filiagáo da psicoterapia institucional................................................................................... 44
Um novo construtor: |ean Oury............................................................................................. 46
A invasáo dos "bárbaros"...................................................................................................... 50
3 A vida cotidiana em La Borde....................................................................................... 56
Multiplicidade de agenciamentos institucionais..................................................................... 56
O grupo de traballio de psicoterapia e de socioterapia institucionais....................................59
Transversalídade.............................................................................................................. . . 61
A familia Guattari e sua ruptura............................................................................................ 62
A prova por Lacan................................................................................................................. 67
As linhas de erráncia............................................................................................................ 68
4 A pesquisa crítica à prova da experiencia.................................................................... 72
A transdisciplinarídade em ato.............................................................................................. 72
Urna oposigao de esquerda.................................................................................................. 74
Em busca de um programa................................................................................................. 78
5 Gilíes Deleuze: o irmáo do herói.................................................................................. 82
As primeiras aprendizagens.................................................................................................. 83
Sumário

Um "novo Sartre".................................................................................................................. 84
A ilha Sasnt-Louis................................................................................................................. 89
Um despertador de vocaçôes filosóficas............................................................................... 91
6 A arte do retrato.......................................................................................................................... 9 7
Hume revisitado.................................................................................................................... 99
Urna fase de laténcia.......................................................................................................... 102
O íncontornável Kant.......................................................................................................... 107
Proust em busca de verdade.............................................................................................. 108
7 Nietzsche, Bergson, Espinosa: urna tríadepara urna filosofía vitalista.......................................113
Um dos très mestres da suspeita: Nietzsche...................................................................... 113
Bergson: o impulso vital...................................................................................................... 117
Um pensamento da afirmaçâo: Espinosa............................................................................ 122
8 O deieuzismo: urna ontoiogia da diferença.............................................................................. 131
Inverter o platonismo e o hegelianismo............................................................................... 131
A diferença por ela mesma................................................................................................. 132
O cogito rompido................................................................................................................. 136
A reabilîtaçâo dos vencidos................................................................................................ 138
A outra metafísica..............................................................................................................141
Como um peixe na água....................................................................................................147
9 Maio de 68: a ruptura instauradora............................................................................................ 147
Como um peixe na água..................................................................................................... 147
Deleuzé à escuta de 1968................................................................................................. 152
PARTE il DESDOBRES: BIOGRAFÍAS CRUZADAS

10 Fogo no psicanalismo................................................................................................................ 157


Lacan em Lyon com Delèuze.............................................................................................. 158
Lacan-Deleuze em situaçâo de proximidade...................................................................... 159
Um dispositivo de trabalho a duas vozes............................................................................ 163
Urna tentativa de antropología histórica............................................................................ 168
Para urna esquizoanálise.................................................................................................... 171
11 O Anti-Édipo.............................................................................................................................. 175
A linha de fuga que permite evitar o perigo do terrorismo.................................................175
Um sucesso editorial estrondoso........................................................................................ 176
Teses discutidas do lado dos analistas............................................................................. 177
Os apoios de Cirard, Lyotard, Foucault............................................................................... 180
O Anti-Édipo a distáncia................................................................................................... 183
12 A máquina contra a estrutura..................................................................................................... 189
Urna máquina de guerra contra o estruturaiismo................................................................189
Inverter o estruturaiismo pelas ciéncias humanas............................................................... 194
inverter a semiología estrutura!........................................................................................... 194
A esquizoanálise contra a psicanálise................................................................................. 197
Urna antropología política contra a antropologíaestrutural..................................................198
13 A literatura "menor" sob um oihar cruzado................................................................................. 202
"E um rizoma, urna toca".................................................................................................... 202
O acontecí mentó, Kafka ................................................................................................... 205
14 Mi! Piatòs: urna geofilosofia do político...................................................................................... 209
Lógicas espaciáis................................................................................................................ 214
O caso de um povo sem terra: o povo palestino.................................................................215
Urna pragmàtica politica em escala mundial....................................................................... 217
Sumario

15 0 CERFI em suas obras............................................................................................................. 223


Um grupo de pesquisa autogersdo..................................................................................... 224
Esclarecer as decisoes do Estado...................................................................................... 226
A arte do escándalo............................................................................................................ 227
Grandes sucessos editoriais............................................................................................... 229
À escuta dos atores............................................................................................................ 233
16 A "revolugáo molecular": Itáiia, Alemanha, Franga.................................................................... 237
O maio de 68 italiano: 1977.............................................................................................. 237
A reagao de Bolonha........................................................................................................... 241
A placa de chumbo na Alemanha........................................................................................ 243
Os anos de chumbo italianos.............................................................................................. 245
Do bobo da corte à liberagáo das ondas............................................................................. 248
17 Deleuze e Foucault: urna amizade filosófica.............................................................................. 254
A aventura do Grupo de Informagóes sobre as Prtsóes ....................................................256
O momento das fraturas...................................................................................................... 259
A Verdade........................................................................................................................... 262
Jogos de espelhos.............................................................................................................. 264
Dois filósofos do acontecimento.......................................................................................... 265
Deleuze, leitorde Foucault................................................................................................... 267
O desaparecí mento............................................................................................................ 268
18 Urna alternativa à psiquiatría?................................................................................................... 274
Antipsíquiatria..................................................................................................................... 274
A "Rede Alternativa à Psiquiatría"....................................................................................... 277
Acusagóes de pedofilia..................................................................................................... 278
Gourgas tomada de assalto................................................................................................ 280
A internacionalizagao da rede............................................................................................. 280
19 Deleuze em Vincennes.............................................................................................................. 284
O caldeirao de Vincennes................................................................................................... 284
Lutas internas..................................................................................................................... 286
Deleuze pedagogo.............................................................................................................. 291
20 1977: o ano de todos os combates............................................................................................ 298
O "fascismo da batata"........................................................................................................ 300
Os novos filósofos: "um trabalho de porco"........................................................................ 306

PARTE III SOBREDOBRAS: BIOGRAFÍAS PARALELAS


21 Guattari entre agáo cultural e ecologia...................................................................................... 313
As alamedas do poder....................................................................................................... .313
RelagÓes tumultuadas........................................................................................................ 315
A revolugáo ecológica....................................................................................................... 316
Caosmose........................................................................................................................... 320
O desmoronamento de um mundo: 1989........................................................................... 321
22 Deleuze vai ao cinema.............................................................................................................. 325
Um companheiro dos Cahiers du Cinema............................................................................... 325
Urna nova metafísica bergsoniana...................................................................................... 331
Crítica da semiología do cinema......................................................................................... 333
Os pioneiros do estudo cinefílico na unlversidade...............................................................335
O sismo de 1939-1945 ...................................................................................................... 337
Da imagem-movimento á *smagem-tempo.........................................................................338
O pensamento-imagem....................................................................................................... 340
23 Guattari e a estética ou a compensagao aos anos de invernó..................................................345
Sumário

Joséphine............................................................................................................................ 346
Ser escritor.......................................................................................................................... 348
24 Deleuze dialoga com a criaqáo................................................................................................. 354
Trabaihar com os artistas.................................................................................................... 354
Da música antes de qualquer coisa.................................................................................... 360
As dobras da imanéncia...................................................................................................... 365
25 Urna filosofía artista.................................................................................................................. 372
Filosofar é criar conceitos................................................................................................... 372
Afetos e perceptos.............................................................................................................. 375
Urna estética da vida.......................................................................................................... 376
26 Á conquista do Oeste................................................................................................................ 379
O passador Lotringer.......................................................................................................... 379
A admirapao americana...................................................................................................... 387
27 Sob todas as latitudes............................................................................................................... 392
Rumo ao extremo oeste...................................................................................................... 382
O turno universitario . . ...................................................................................................... 383
Urna térra de escolha: o japao............................................................................................ 393
O Brasil: térra de esperanzas.............................................................................................. 395
As fronteiras mexicanas...................................................................................................... 397
Um chileno escapa de Pinochet.......................................................................................... 398
Urna térra de escolha: a Italia............................................................................................. 399
28 Dois desaparecimientos............................................................................................................ 402
O amigo chorado................................................................................................................. 403
A falta de ar até a morte...................................................................................................... 405
29 Aobratrabaihando...................................................................................................................... 411
Os primelros comentadores: um desdobramento da obra.................................................411
A alternancia por urna nova gerapáo.................................................................................. 412
Urna nova radicalidade cultural e política............................................................................ 414
Críticas da crítica..............................................................................................................416
Um pensamento do maquíntco moderno........................................................................... 417
Urna atualidade crescente.................................................................................................. 420

Concíusáo................................................................................................................................. 425
índice........................................................................................................................................ 429
Prólogo

"Nós dois" ou o entre-dois

A quatro mâos. A obra de Gilíes Deleuze e creveu? Um ou o outro? Um e o outro? Como


Félix Guattari até hoje é um dilema. Quem es- foi possível desenvolver urna construçâo inte-
Sumario

lectual comum entre 1969 e 1991, para além de Polack, entáo presidente da Association Ge-
sensibilidades táo diferentes e estilos táo con- nérale des Étudiants en Médicíne de París. Pa-
trastantes? Como podem ter sido táo próximos ralelamente à e speci ali zaçao em psiquiatría,
sem jamais abandonar urna distância manifesta Muyard faz cursos de sociologia na Faculdade
no fato de se tratarem mutuamente por senhor? de Letras em Lyon. Entre outros, assiste com a
Como relatar essa aventura única por sua força maior paixáo aos cursos do filosofo Henry
propulsora e sua capacidade de fa- zer emergir Maldiney. Em 1965, Muyard torna-se vice-pre-
urna espécie de “terceiro homem”, fruto da sidente da Mutuelle Nationale des Étudiants de
uniâo dos dois autores? Parece difícil captar em France (MNEF) e participa ativamente da
seus escritos o que toca a cada um. Evocar um impìantagào dos Bureaux d’Aide Psychologi-
hipotético “terceiro homem” seria, sem dúvida, que Universitaires (BAPU). Encontra Guattari
um pouco apressado, na medida em que, ao pela primeira vez por ocasiào de um seminàrio
longo de sua aventura comum, um e outro da oposigào de esquerda que se realiza em
souberam preservar sua identidade e seguir um 1964 em Poissy e para o qual foi convidado
percurso singular. por Polack: “Recordo-me da impressao, eu
Em 1968, Gilles Deleuze e Félix Guattari diria fisiologica, que Guattari me causou de
evoluem em duas galáxias diferentes. Nada imedia- to - urna espécie de estado vibratorio
predestina seus dois mundos a se encontrar. De incrivel, corno um processo de conexao. 0
um lado, um filósofo reconhecido que já contato com eie aconteceu ali, e eu aderì mais
publicou boa parte de sua obra e, de outro, um ao movimento de energia do que à
militante que se move no campo da psi- personalidade, à pessoa. Sua inteligencia era
canálise e das ciencias sociais, administrador excepcional, o mesmo tipo de inteligència que
de urna clínica psiquiátrica e autor de alguns Lacan, urna energia lucife- riana. Lúcifer sendo
artigos. Mesmo que, sem cair em um finalismo o anjo da luz”2. Em 1966, Nicole Guillet pede a
histórico, se possam subscrever as palavras do Muyard que se instale em La Borde, onde
jornalista Robert Maggiori,1 que qualifica esse faltam médicos, para atender ao afluxo de
encontró de “predestinado” , como essas duas pensionistas. Ele se acomoda ali por um tempo
galáxias acabam entrando em contato? Como - fìcarà até 1972. Por seus enga- jamentos, sua
se verá, a explosäo de maio de 1968 foi um atividade profissional em La Borde, “Doc Mu”
momento de tal intensidade que possibi- ìitou faz parte pienamente do “bando de Félix”.
os encontros mais improvàveis. Primei- Quando era estudante em Lyon, Muyard
ramente, de forma mais prosaica, houve, no ouvira fatar dos cursos de Deleuze por seus co-
começo desse encontró, um intermediàrio, um legas entusiastas da faculdade de letras. Tendo
personagem mercuriano, subterráneo e mantido contatos em Lyon, eie vai para là de
fundamental: o doutor Jean-Pierre Muyard, que tempos em tempos, Em 1967, fica fascinado
trabalhava em La Borde - prova disso é a com a apresentapào que Deleuze publica de
dedicatória pessoal que Ihe escreve Félix Guat- Sacher-Masoch3. Os dois homens tornam- -se
tari na primeira obra comum, OAnti-Édipo: “A amigos, e Deleuze, desejoso de conhecer
Jean-Pierre, o verdadeiro culpado, o indutor, o melhor o mundo dos psicóticos, mantém um
iniciador desta empreitada perniciosa”. diàlogo permanente com Muyard: “Ele me diz:
Jean-Pierre Muyard estudou medicina em falo da psicose, da loucura, mas sem nenhum
Lyon no final dos anos 1950. Militante da ala conhecimento de dentro. Ao mesmo tempo, eie
esquerda da Union Nationale des Étudiants de era fobico em relagao aos loucos. Eie nào
France (UNEF), que se opôe ativamente â conseguirla ficar por urna hora em La
guerra da Argelia, ele se torna presidente da Borde”"1,
seçâo de Lyon em I960, Conhece Jean-Claude
Sumário

Em 1969, Muyard se cansa do ativismo de- devoçao geral por Lacan soam como um
senfilado que Guattari pro move em La Borde, desafio lançado ao filosofo. 0 encontra com
onde desfaz incessantemente os grupos Guattari oferecerà a Deleuze urna oportunidade
constituidos para formar outros: “Ele dependía magnífica de responder a isso.
daquilo que se dà hoje às crianpas hipe- rativas, No momento de seu encontra com Guattari,
um medicamento chamado Ritalina. Era Deleuze està em convalescença. Atacado de
preciso encontrar tìm meio -de acalmà-io. tuberculose, fora submetido um ano antes a
Contado, eie dizia ter5 vontade de eserever e urna cirurgia complicada - retiraram-lhe um
nào escrevia nunca” . Muyard pensa em um pulmào - que o levará a sofrer de urna insufi-
estratagema: decide apresentar Deleuze e ciencia respiratoria cronica até a morte. Debi-
Guattari. Em junho, ele embarca em seu carro litado, eie deve repousar por um ano, na calma,
Félix Guattari e François Fourquet e os conduz em Limousin. Contudo, a debilidade é também
a Saìnt-Léonard-de-Noblat, em Limousin. A urna abertura, como mostra Deleuze a propó-
seduçâo mutua é imediata. Guattari é inesgo- sito de Beckett10. Esse estado é propicio a um
tável nos temas que interessam a Deleuze, a encontró. Tanto mais que Deleuze està à beira
loucura, La Borde e Lacan - ele acaba de pre- de um outro precipicio do qual fala em O Abe-
parar urna exposiçâo inícialmente destinada à cedario: o alcoolismo. O encontró com Guatta-
Escola Freudiana de Paris sobre “Máquina e ri será essencial para eie superar esse impasse.
estmtura”6. Para sua demonstraçâo, retoma os Para prosseguir e apxofundar o diálogo ini-
conceítos lançados por Deleuze em Diferença ciado com Deleuze sobre a psiquiatría, Muyard
e Repetiçâo e em Lógica do Sentido. sugere promover um encontró de Deleuze e
Esse texto é importante. Até entâo, Guattari Guattari em Dhuizon, em um castelo alugado
estava na posiçâo de discípulo de Lacan e co- por Guattari, próximo a La Borde. É iá que o
meçava a se apresentar como um interlocutor, trio Gilles Deleuze, Jean-Pierre Muyard e Félix
desejando inclusive obter junto de seu mestre a Guattari debate o conteúdo da obra que vírá a
postura do parceiro privilegiado. A ambigui- ser 0 Anti-Édìpo. Urna carta de François
dade da atitude de Lacan em relaçâo a eie e a Fourquet ao seu amigo Gerard Laborde, datada
escolha feita por este último de privilegiar o de 19 de agosto de 1969, evoca a atmosfera
olà dos althusserianos-maoistas da Rue d’Ulm, que reina em Dhuizon: “O contexto aqui é
como Miller e Milner, colocam de fato Guattari còmico. A presen- ça de Deleuze em Dhuizon
na sombra: “Quando entrei em contato com desencadeou urna sèrie de fenómenos, e a meu
Deleuze em 1969, realmente aproveitei a opor- ver essa série vai se prolongar por muito
tunidade. Avancei na contestaçâo do ìacanis- tempo. Hà muita gente em Dhuizon: aíém de
mo em dois pontos: a triangulaçâo edipiana e o Félix e Arlette, hà Rostain, Liane, Hervé,
caràter reducionista de sua tese do significante. Muyard, Elda, etc. Toda essa gente se alvoroça
Pouco a pouco, todo o resto se esboroou como em torno de urna cena primitiva que se repete
um dente cariado, como um muro detonado”7. todas as manhâs: Félix e Deleuze criam,
De sua parte, Deleuze passa por urna virada intensamente, Deleuze toma notas, ajusta,
em sua obra. Depois de ter-se consagrado à critica, remete à história da filosofìa as pro-
historia da filosofìa, com Hume, Kant, Espi- duçôes de Félix Em suma, as coisas funcionam,
nosa, Nietzsche, ele acaba de publicar dois li- nâo sem deìxar alguns rastros de transtornos na
vras mais pessoais 8 em 1969: sua tese pequeña familia (na qual nos incluimos Ge-
Diferença e Repetiçâo e Lògica do Sentido'\ A neviève e eu), tanto mais que um dos pequeños
filosofìa é fortemente contestada na época pelo irmâos tem o privilegio de assistir ao combate
estru- turalismo e sua ala avançada, o dos deuses: Muyard, que históricamente este-
lacanísmo. O “psìcanalismo” ambiente e a ve na origem da relaçâo com Félix”13. Muyard
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aínda atua um pouco como mediador, antes de suscitante, dualidade15 ‘inconsciente pessoal/
se eclipsar: “Eu tinha cumprido minha tarefa, e inconsciente coletívó ”. Deleuze estima que
Mefisto se retira. Minha intuiçâo é que esse esses conceitos precisam ser submetidos a urna
nâo era mais meu lugar, embora Deleuze rives- elaborando teórica, e nao concorda com
se vontade de trabalhar comigo e me quisesse Guattari quando ele sustenta que a eferves-
presente nas sessôes, eu sentía que incomodava céncia em curso nao é o momento mais pro-
Félix. A operaçâo alquimica funcionou, e por picio; isso seria o mesmo que afirmar que “só
longo tempo”12. se pode escrever realmente quando as coisas
Antes de seu primeiro encontró, Deleuze e váo bem, em vez de ver na escrita um fator
Guattari tinham trocado aìgumas cartas, na modesto, mas ativo e eficaz, de se afastar um
primavera de 1969, em que testemunham a pouco da frente36 de batalha e de ficar melhor
amizade nascente. “Caro amigo, nem tenho por si mesmo” . Deleuze tenta convencer
palavras para lhe dizer o quanto fiquei tocado Guattari de que a hora chegou. Finalmente, “a
com a atenqào que o senhor teve a gentileza de outra soluçao, publicar17 os artigos como tais, é
dedicar aos diversos artigos que lhe enviei. desejável e a melhor” . Eia será Psicanálise e
Urna leitura lenta, muito minuciosa, de Lògica TransversaUdade,18publicado em 1972 e prefa-
do Sentido me leva a pensar que há urna espé- ciado porfi Deleuze .
cie de homología profunda de ‘ponto de vista’ Em l de junho de 1969, Guattari se abre
entre nós. Encontrà-lo quando isso for possivel com Deleuze sobre suas fraquezas e19as razôes
para o senhor constituí para mim um aconte- de sua “grande confusâo extremista” . Na base
cimiento já presente retroativamente a partir de dessa desordena de escrita, estaria urna falta de
varias origens”13, escreve Guattari em 5 de traballio, de leituras teóricas sustentadas e um
abril de 1969, revelando a Deleuze seu medo de cair de novo naquilo que foi dei- xado
bloqueio de escrita e sua incapacidade de para trás hà muito tempo. Seria preciso
atribuir a eia o tempo necessàrio, em razáo de acrescentar urna historia pessoal complicada,
suas ativida- des em La Borde. Em com um divorcio no horizonte, très filhos, a
contrapartida, eie tem a impressao de se clínica, os conflitos de todas 20as ordens, os
comunicar com Deleuze corno que por grupos militantes, a FGERI .., Quanto à
ultrassons com Lògica do Sentido. Em urna elaboraçao propriamente dita, para21 ele “os
carta anterior que enviou a um de seus ex- conceitos sâo instrumentais, truques” .
alunos, Ayala, Deleuze manifestou o interesse Logo após seu primeiro encontró de junho
que teria de reunir todos os textos que lhe de 1969, Deleuze escreve a Guattari para lhe
foram passados por Guattari. Félix permanece dar alguns esclarecimentos sobre a maneira de
cérico: “Será que tudó isso nào é urna especie encarar um trabalho comum: “Seria preciso
de bazofia, de vigarice?”14 evidentemente abandonar todas as fórmulas de
Pouco tempo depois, em maio de 1969, polidez, mas nao as formas de amizade que
Deleuze escreve a Guattari: “Eu também sinto permitem que um diga ao outro: o senhor está
que somos amigos antes de nos conhecermos. se iraindo, nâo estou entendendo, isso nâo está
Pepo perdáo também por insistir no seguiate bom... Seria preciso que Muyard participasse
ponto: é evidente que o senhor inventa e ma- plenamente dessa correspondéncia. Seria
neja alguns conceitos complexos muito novos e preciso, enfim, que22 nao houvesse urna
importantes, fabricados em articulagao com a regularidade forçada” . Deleuze retém de suas
pesquisa pràtica de La Borde - por exemplo, primeiras trocas que “as formas de psicose nâo
fantasia de grupo ou, entao, seu conceito de passam por urna triangulaçâo edipiana, pelo
transversalidade, que me parece ser de na- menos nâo necessariamente e nâo da maneira
tureza a suplantar a veìha, mas sempre res- como se diz. Isso é o essencial para comegar,
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ao que me parece... A gente nâo foge muito ao consciente nào era religioso, nào tinha nem
‘fami li ari smo’ da psicanálise, de papai- ‘lei’, nem ‘transgressào, e que isso era
mamâe (meu texto que o senhor leu permanece besteira... Muyard responderá que eu estava
absolutamente tributàrio dela)... Trata-se entâo exagerando, e que a lei e a transgressào, tais
de mostrar como na psicose, por exemplo, como emanam de Lacan, nao tém nada a ver
mecanismos socioeconómicos sâo capazes de com tudo isso. Com certeza eie tinha razao,
incidir diretamente no inconsciente. Isso nâo mas isso nào tem a menor importáncia, pois é
significa evidentemente que eles incidam toda a teoria do superego que me parece falsa,
corno tais (como mai s-val i a, taxa de lucro...), e toda a teoria da culpabilidade”24.
mas sim algo muito mais complicado, que o Essa carta, escrita pouco antes das longas
senhor aborda em outra ocasiao quando diz que sessoes de trabalho do mès de agosto de 1969,
os loucos nao fazem simpìesmente em Dhui2on, revela-nos que o principal alvo de
cosmogonia, mas também economia-politica 0 Anti-Édìpo, publicado très anos depois, jà
ou quando vê com Muyard urna relagào entre estava claro: a “triangulagào edipiana” e a
crise capitalista e crise esquizofrénica”23. redugào famìlìarista do discurso psicanalitico.
Ele acrescenta que a maneira como as Guattari responde muito ràpido a Gilles Deleu-
estruturas sociais incidem "diretamente” no ze, em 19 de julho, explicitando seu conceito
inconsciente psicòtico poderla ser captada de máquina que “expressa metonimicamente a
gragas aos dois conceitos de Félix Guattari “de máquina da sociedade industriai”25. Além
máquina e de antiprodugào”, que eie conhece disso, em 25 de julho envía a Deleuze algumas
muito mal ainda. Assim, Deleuze acompanha notas que já estabelecem um trago de equiva-
Guattari em sua critica do familiari smo: “A lènza entre o capitalismo e a esquizofrenia: “O
diregao aberta pelo senhor parece-me muito capitalismo é a esquizofrenia, ainda que a
rica pela seguinte razào: faz-se urna imagem sociedade-estrutura possa nào ter assumido a
moral do inconsciente, seja para dizer que o produgao de esquizo’26.”
inconsciente é imoral, criminal, etc., mesmo Sua relagào situa-se de insediato no ámago
que se acrescente que está muito beni assim, dos desaños teóricos. Provém de urna cum-
seja para dizer que a moral é inconsciente (su- plicidade amigáveí e intelectual imediata,
perego, lei, transgressào). Eu disse certa vez a Contudo, essa amizade jamais será fusional, e
Muyard que isso nào funcionava, e que o in- sempre se fcrataráo rigorosamente por senhor,
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 17

embora ambos utilizem com muita facilidade Oury viu essa mudanga como um “abandono”
o voce. Oriundos de dois mundos diferentes, um Guattari, onipresente na vida cotidiana de La
respeita o outro e sua rede de relaçoes em sua Borde, se desinveste para se consagrar ao tra-
diferença. A condiçao mesma do éxito de sua balho com Deleuze. É preciso inclusive que sua
empreitada intelectual comum passa pela companheira, Arlette Donati, leve seu aìmogo,
mobilizaçâo de tudo o que constitui a diferença pois ele nao se autoriza nenhuma pausa.
de suas personalidades, na ativaçâo daquilo que No essencial, o dispositivo de escrita de 0
contrasta e nâo na osmose artificial. Eles têm Anti-Édipo é constituido pelo envió de textos
uma concepçâo muito elevada da amiza- de: preparatorios escritos por Guattari, que Deleuze
“Eles mantinham essa distancia que janké- retrabalha e aprimora em vista da versào final;
lévitch chamava de ‘distância amativa’, que é “Deleuze dizia que Félix era o descobridor de
uma distância que nâo se fixa. Ao contràrio da diamantes e que eie era o talhador. Portanto, era
distância gnoseologica, a distância amativa preciso apenas que ìhe enviasse os textos tal
decorre de uma aproximaçâo/afastamento”27. como os escrevia30 para que ele os arranjasse, e foi
Com certeza, Guattari, pela angustia do face a o que ocorreu” . Sua realizagào comum passa,
face com Deleuze, e porque sempre funcionou portanto, mais pela troca de textos do que pelo
“em grupo”, clesejaria envolver seus amigos do diàlogo, ainda que eles estabeìegam uma reunì ào
CEREI78. A chegada de Deleuze a Dhuizon era a de trabalho se man al na casa de Deleuze na
oportunidade, o primeiro círculo do CERFI terga-feira à tarde, dia em que este ultimo dà aula
estava là, e tudo o que esperava era. participar, em Vincennes pela manha. Nos feriados é
Contudo, o testemunho de François Fourquet é Deleuze que vai ao encontró de Guattari, mas
muito claro, nâo foi o que aconteceu. Deleuze longe da loucura que ele nao suporta: “Um dia,
tem horror a discussoes de grupo nâo funda- estamos jantando em Dhuizon, Félix, Arlette
mentadas, e nao pode nem quer imaginar um Donati, Gilles e eu quando o telefone toca de La
trabalho que nâo seja a dois, no máximo a très. Borde, anunciando que um sujeito havia posto
A companheira de Guattari, Arlette Donati, fogo na capela do castelo e fúgido para os
transmitiu entao a Félix as reservas de Deleuze. bosques, Gilles empalidece, eu nao me mexo e
A elaboraçâo de seu primeiro livro será feita Félix pede ajuda para encontrar o sujeito. Gilles
sobretudo por via epistolar29. Esse dispositivo me diz nessa ocasiào: ‘Como voce pode suportar
pactuado de escrita tumultua a vida cotidiana de os esquizos?’. Ele nao conseguía suportar a visáo
Guattari, que precisa mergulhar em um trabalho de loucos”31.
solitàrio com o quai nâo está acostuma- do. Sobre seu trabalho comum, tanto Deleuze
Deleuze espera dele que se debruce em sua mesa quanto Guattari se explicaram multas vezes,
de trabalho desde que acorde, que ponha no expondo-se apenas parcialmente. Relatando sua
papel suas ideias (ele tem très no momento) e escrita a dois quando do langamento de O Anti-
que Ihe envie todos os dias, mesmo sem reler, o Édipo, Guattari esclarece: “Essa colabora- gào
produto de suas reflexôes em estado bruto. nao é o resultado de um simples encontró entre
Assim, eie submete Guattari a essa ascese que doís individuos, Além do concurso das
considera indispensável para superar seus pro- circunstáncias, houve também todo um contexto
blemas de escrita. Guattari adere pienamente ao político que nos conduziu a isso. Trata- va-se, na
jogo e se retira em seu escritorio, traba- lhando origem, nao tanto do compartilha- mento de um
como um condenado, Eie que passava o tempo saber, mas do acúmulo de nossas incertezas, e
dirigindo seus “bandos” encontra-se confinado mesmo de urna certa confusáo diante do rumo
na solidâo de seu gabinete'de trabalho todos os que tomaram os acontecimientos depois de maio
dias até as 16 horas. Só vai a La Borde no firn da de I968”32. Deleuze, por sua vez, comenta:
tarde, multo ràpido, e em geral està de volta a “Quanto à técnica desse livro, escrever a dois nao
Dhuizon antes da 18 horas. Jean causou nenhum problema particular, mas teve
urna fungào precisa que fomos percebendo plementaridade. Quanto a mim, sou mais propenso a
progressivamente. Urna coisa muito chocante em livros operanoes aventureiras, de comando conceituaf,
de psiquiatría ou mesmo de psieanálise é a dupìicidade digamos, de insergao em territorios estrangeiros. Já
que os 18
perpassa entre
François o que diz um suposto doente e o
Dosse Gilíes possui armas pesadas filosóficas, toda urna
que diz o terapeuta sobre o doente... Mas, curiosamente, intendencia bibliográfica... ”3\ Deleuze, que sempre teve
se tentamos superar essa duali- dade tradicional, era horror às discussóes que decorrerà, segundo ele, da
justamente porque escre- víamos a dois. Nenhum de nós troca estéril de opinióes, opòe a isso a pràtica de
era o louco, ne- nhum era o psiquiatra, eram necessários conversar, que, ao contràrio, instaura urna verdadeira
dois para desencadear um processo,.. O processo é o polèmica interna à enunciagáo. Seu diálogo decorre de
que chamamos de fluxó’33. urna verdadeira ascese: “Um fica calado quando o outro
Mais tarde, em 1991, por ocasiáo do lanciamento de fala, isto nao é apenas urna lei para se compreender,
O que é a filosofía?, Robert Maggiori tem urna longa para se ouvir, mas significa que um se coloca per-
entrevista com eles, mais urna oportunidade de se petuamente a servigo do outro”40. Mesmo que a ideia
explicarem sobre seu encontró e sobre sua colaboragao; apresentada por um parega absurda ao outro, a vocagao
“Meu encontró com Félix se deu sobre as questóes de do outro deve ser procurar seus fundamentos e nao a
psieanálise e de inconsciente. Félix me pro- porcionou discutir: “Se eu lhe dissesse que no centro da terra há
urna especie de campo novo, me fez descobrir urna área geleia de groselha, seu papel seria descobrir o que po-
nova, embora eu já tivesse falado de psieanálise antes, e derla comprovar tal ideia (se é que isso é urna ideia!)”4’,
era isso que lhe interessava em mim”34. Dessa troca nasce urna verdadeira “máquina de
Nos relatos sobre o encontró, o intermediàrio Jean- trabalho”, na qual é impossível saber o que vem de um
Pierre Muyard “desapareced’. Deleuze afirma: “Foi ou do outro.
Félix que velo me procurar”; Guattari confirma: “Eu O que importa, explica Deleuze, é a trans- formagáo
entáo é que fui procurá-lo, mas, em um segundo do “é” em “e”, nao no sentido de urna relagáo particular
momento, foi ele que me propós o trabalho comum"* e puramente conjuntiva, mas no sentido do
Ainda que per- manegam pouco loquazes sobre a envoívimento de toda urna sèrie de relagoes, O “e” é
elaboragao do manuscrito - um “segredo”, diz Deleuze atribuido à possibili- dade de criagao, à gagueira
-, eles sao mais prolixos sobre seu trabalho comuni. criadora, à mul- tiplicidade: “O E nao é nem um nem
Deleuze invoca a figura de Kleist para descrever o que outro, é sempre os dois, é a fronteira, há sempre urna
se passa com Guattari. FJabo- rar urna ideia falando fronteira, urna linha de fuga ou de fluxo, apenas nao se
passa pelo gaguejo, pela elipse, pelos sons pode vé-la, porque ela é menos per- ceptível No en
desarticulados - “nao somos nós que sabemos alguma tanto, é nessa linha de fuga que as coisas se passam, os
coisa, mas é antes de tudo um certo estado36 de nós...” - e devires se fazem, as re- volugóes se eshogam” 4'2. Isso
Deleuze afirma que “é mais fácil a dois” se pór nesse constituí o caráter absolutamente único de seus Üvros.
estado. Eles tem ao mesmo tempo sessóes oráis em que, Partir em busca de urna paternidade deste ou
ao final de urna decantando do diálogo, sao decididos daquele conceito é, como escreve Stéphane Nadaud,
os temas a trabalhar; em seguida, cada um se entrega ao “menosprezar um 44conceito essencial em seu trabaiho: o
trabalho de escrita de versóes sucessivas que circulam do agenciamento” . Todo o seu dispositivo de escrita
de um ao outro: “Cada um funciona como in- crustagáo consiste em establecer um agenciamento coletivo da
ou citagáo no texto do outro, mas, passando um enunciando, que é o verdadeiro pal dos conceitos
instante, nao, se sabe mais quem37 está citando quem. É inventados. Será que com isso ele dá origem a um
urna escrita com varia- góes” . Evidentemente, essa terceiro homem resultante da coalescén- cia dos dois,
elaborando comuni pressupòe urna comunìdade de ser, um Félix-Gilles, um “Guattareu- ze”, como satirizou o
de pensamento, de reatividade ao mundo: “A con- digao desenhista Lauzier? É o que se poderia pensar ao 1er as
para poder efetivamente trabaìbar a dois é a existencia seguintes pata- vras de Deleuze: “Nao colaboramos
de um fundo comum implicito, inexplicável, que nos como duas pessoas. Éramos mais como dois córregos
faz rir ou nos preocupar com as mesmas coisas, ficar que 44se juntam para formar ‘um terceiro que seríamos
desanimados ou entusiasmados com coisas análogas”38 nós” . Mas nao é assim, e já dissemos a que ponto eles
Guattari também lembra ao mesmo tempo as respeitaram urna certa distán- cia, conservaram sua
sessóes oráis e as trocas de versóes escritas. Seu diálogo diferenpa, preservaram sua singularidade tratando-se por
continua sendo o de duas pessoas de caráter bem senhor: “Há entre nos urna verdadeira política
oposto: “Somos muito diferentes um do outro, de modo dissensual, nao um culto, mas urna cultura de heteroge-
que os ritmos de adogáo de um tema ou de um conceito neidade, e que fez com que cada um de nós
sao diferentes. Mas há também, é claro, urna com- reconhecesse e aceitasse a singularidade do outro... Se
fazemos alguma coisa juntos é porque isso funciona, e entao a oportunidade de trabalhar juntos, da
porque somos levados por algo que está além de nós. contribuipáo mutua, do humor, de momentos de pura
Gilíes é meu amigo, nao meu companheiro”45. diversáo e mesmo, como diz seu amigo comum Gérard
A ideia desse agenciamento é fundamental para Fromanger,Gilles
“elesDeleuze
estavam& Félix
orgulhosos um do outro, e
Guattari 19

compreender a singularidade do dispositivo. Deleuze um se sentía honrado pelo outro, por ser ouvido pelo
explica isso ao seu tradutor japonés Kunüchi Uno: “A outro. Tinham urna confiança enorme um no outro,
enunciando nao remete a um sujeito. Nao há sujeito de eram como gèmeos nao idénticos que se completam.
enunciando, mas apenas agenciamento. Isso significa Nâo havia entre eles nenhuma inveja, nenhuma reserva
que, em um mesmo agenciamento, há procesaos de nas sessòes. A qualidade do que escreviam decorna
subjetivanáo que vao designar diversos46 sujei- tos, uns disso, dessa1 espécie de abertura total, de dádiva de
como imagens e outros como signos” . É, aliás, com confiança™ .
esse tradutor japonés, Uno, seu ex- -aluno que se tornou Juntos, formara um verdadeiro laboratòrio de
um amigo, que Deleuze se abre mais explícitamente experimentaçâo de conceitos em sua efficàcia graças ao
sobre as modalidades de seu trabaiho conjunto. Ele caràter transversal do procedimento. A contribuiçâo de
apresen- ta Guattari como urna “estreia” de grupo e faz Guattari a Deleuze terá sido sobretodo a de um sopro de
urna bela metáfora para expressar a natureza de sua oxigénio em um universo onde està rarefeito: “Sentia-se
ligando, a do encontró do mar que vai encalhar em urna que eie tìnha urna espécie de júbilo em encontrar Félix.
colina: “Seria preciso comparado [Félix] a um mar Quando se viam, tinha~se a impres- sâo de que eles
aparentemente sempre em movimento, com explosóes ficavam contentes de se encontrar. Contudo, nâo se
de luz o tempo todo. Ele pode saltar de urna atividade a viam muito, pois sabiam que as relaçôes humanas sâo
outra, dorme pouco, viaja, nao para. Ele nao se inter- frágeis™2.
rompe. Tem velocidades extraordinárias. Eu seria mais A diferença de personalidades de Guattari e Deleuze
como urna colína: mexo-me muito pouco, sou incapaz produz como que um motor em dois tempos: “Nunca
de tocar duas atividades, minhas ideias sao fixas, e os tivemos o mesmo ritmo. Félix me criticava por nao
raros movimentos que tenho sao interiores... Nós dois47 responder as cartas que me mandava: é que eu nunca
juntos, Félix e eu, daríamos um bom lutador japonés” . estava em condiçôes a tempo. Eu so conseguia fazer
Deleuze acrescenta: “Somente quando se olha Félix isso muito mais tarde, um ou dois meses depois, quando
mais de perto, percebe-se que ele é muito sozinho. Entre Félix já tinha passado adiante”53. Ao contràrio, no corpo
duas atividades, ou no meio de muita gente, ele pode a corpo das sessóes de trabalho, um instiga o outro em
mergulhar em urna grande solidad’48. Ele explica ao seu sua fortaleza até o esgotamento total das forças dos dois
amigo japonés a que ponto vé Guattari como um criador lutadores, até que o conceito discutido e disputado
de ideias de urna mobilidade e de urna inventi- vidade possa levantar vóo, sair de sua ganga, a partir de um
que encontrou raríssimas vezes: “Suas ideias sao trabalho de proliferaçâo, de dis- seminaçâo: “Para mim,
desenhos ou mesmo diagramas. A Félix tinha verdadeiros relámpagos, enquanto eu era
-v . urna espécie de para-raios, eu enfiava na terra para que
mim o que mteressa sao os conceitos . renascesse de outra 1 forma, e Félix retomava, etc., e
Com seu conceito de máquina e sua pro- posigáo de assim avançâvamos* .
substituí-lo á nopáo de estrutura, Guattari oferece a Em agosto de 1971, 0 Anti-Êdipo dá lugar a urna
Deleuze urna possível porta de saída do pensamento última e longa sessao de trabalho juntos, na baia de
estrutural, o que a Lógica do Sentido já procurava. Toulon, em Brusc-sur-Mer. As duas familias com os
Nesse plano, o da crítica de Tacan e de seu filhos alugam uma vila para aproveitar as alegrías da
“inconsciente es- truturado como urna linguagerri”, e no praia enquanto os dois homens prosseguiam suas
nivel da consciéncia política, Guattari está á frente de discussoes a portas fechadas. O texto é finalmente con-
seu amigo quando se encontram em 1969. Em- bora cluido em uma dat'â simbólica: ‘Ah! Quanta delicadeza
Deleuze esteja em vantagem na historia da filosofía, ele das coisas que nosso livro termine em um 31 de
reconhece em 1972 que estava atrasado em relapáo ao dezembro, a fim de fixar bem que os fins sâo os
amigo em alguns campos importantes. “Eu trabalhava eomeços. Esse trabalho está muito bonito, marcado por
na época únicamente nos conceitos, e ainda de forma sua força criadora de sua parte, e por meu esforço
multo tímida. Félix me falou do que ele já chamava de inventivo e oleoso”™.
máquinas desejantes: toda urna concepgáo teórica e Entretanto, no momento da publicaçâo da obra, em
prática do inconsciente-máquina, do inconsciente- março de 1972, Guattari atravessa um período difícil,
esquizofrenia. Por isso, tive a im- pressáo>,5Üde que ele é Percebe-se que o excesso de atividade e o esforço
que estava em vantagem sobre mim... . Criou-se titánico para realizar esse trabalho ameaçam levar a um
fenómeno de descompensaçâo, a um sentimento de forças externas para desfazer as formas convencionais.
vazio, A realizaçao nunca tem o mesmo valor que as Esse horizonte nómade será alcançado no segundo
mil e uma possibilidades da imagina- çâo e que a volume de Capitalismo e Esquizofrenia, publicado em
alegría 20permanente de uma cria- çâo prestes a se
François Dosse 1980: Mil PlatÓs.
consumar; "Vontade de me encolher, de voltar a ser Nesse meio tempo, Guattari encontrará sua
bem pequeño, de acabar com toda essa política de respiraçâo pessoal. Descobre em Kafka um universo
presença e de prestigio... A ponto de sentir6 raiva de que corresponde às suas angústias, ao desejo prolifero
Gilíes por ter me lançado nessa desventura”“ . Em seu de criaçao, urna desordem criativa parecida com a dele:
Journal a comparaçâo com a eficacia de um Deleuze “Há conjunçâo de duas máquinas: a máquina literaria da
parece pertorbá-lo: “Deleuze trabalha muito. Nao temos obra de Kafka e minha pròpria máquina, de Guattari”6".
efetivamente a mesma di- mensáo! Sou uma espécie de A escrita guattariana faz um desvio por Kafka para em
autodidata inveterado,57um artesao, um personagem à seguida voltar meíhor a Deleuze e realizar, no65 meio do
moda Julio Verne...” Sobretodo depois, quando o percurso, um livro sobre Kafka escrito a dois . É nessa
agenciamento é suspenso por algum tempo, como entre obra que Guattari e Deleuze elaboram a noçâo que
a cono lus ao de um livro e sua publicaçâo, Guattari se desenvolverâo mais tarde de “agenciamento coletivo de
permite expressar suas angústias pessoais: “Preservar enunciaçâo”: “Nâo acreditamos que a enunciaçâo possa
meu estilo, mi- nha maneira pròpria. Eu nâo me estar relacionada a um sujette 66desdobrado ou nao,
reconhecia verdaderamente no AO [0 Anti-Edipo). olivado ou nâo, reflexivo ou nâo” .
Preciso parar de correr atrás da imagem de Gilles e atrás A máquina se pôe em marcha novamente para Mil
do acabado, da perfeiçâo que ele pro- porcionou à Platos. O agenciamento torna-se o conceito nodal dessa
última possibilidade de livro”58. Urna súbita angùstia de nova publicaçâo. Contu- do, o dispositivo de escrita
ter sido devorado, de perda de identidade se apoderaram muda um poueo: “A composiçâo desse livro é muito
dele. “Ele tem sempre em vista a obra. E para ele mais complexa, os ámbitos tratados muito mais
[Gilles] tudo isso nâo passarla de notas, urna matèria variados, mas havíamos adquirido 6hábitos tais que um
prima que desaparece no agenciamento final. É por isso podia adivinhar aonde o outro ia” '. Tudo leva a crer
que me sinto um pouco sobrecodifi- cadopelo 0 Anti- que, a partir dessas trocas intensas iniciáis e da
Êdipo^. cumplicidade que resultou delas, a escrita de Mil Platos,
Deleuze, por sua vez, graças à colabora- çâo com embora também tenha dado margem a idas e vindas
Guattari, realiza o desejo manifestado já em Diferença entre as diversas versôes, foi realizada mais por urna
e Repetiçâo\ escrever um novo tipo de livro, de natureza elaboraçâo comum ao longo das sessdes de trabalho
experimental: ‘Aproxima-se o tempo em que nâo será oral.
mais possivel escrever um livro de filosofìa como se faz Com a publicaçâo de Mit Platos, em 1980, chega ao
ha muito tempo: Ah! O velho estilo...’ A busca de firn uma longa aventura iniciada em 1969: “Depois
novos melos de expressâo filosófica foi inaugurada por disso, Félix e eu precisávamos voltar a trabalhar cada
Nietzsche, e deve ser prosse- guida hoje em um do seu lado, para recuperar o fôlego. Mas estou
conformidade com a renovaçâo de algumas outras convencido de urna coisa, vamos68 trabalhar juntos de
artes"60. Como observa Arnaud Bouaniche61, quando novo”, escreve Deleuze em 1984 . Ele mergulha entâo
Deleuze fala sobre “O pensamento nomade” em Cerisy, no estudo do cinema, enquanto Guattari retoma com
no ámbito da década consagrada a Nietzsche, exatamen- mais força ainda seu ativismo cultural e político.
te no momento da publicaçâo de O Anti-Édipo, ele Entretanto, mais urna vez, sente a falta, o vazio, a
anuncia a intençâo de produzir urna nova estilística. A solidâo, a inquiétude, e se abre com o amigo, que o
propósito de Nietzsche, define o que poderia ser um tranquiliza: “Li muito sua carta onde diz que, nosso
novo tipo de livro que nao se conformarla aos códigos trabalho comum tendo esmorecido, já nâo sabe bem
tradicionais: “Os grandes instrumentos de codificaçâo já nem o que ele foi para o senhor, nem onde se encontra
sao condecidos.,. Sao condecidos très principáis: a lei, o hoje. Já eu vejo claramente. Creio que o senhor é um
contrato e a instituiçâo”62. Nietzsche resiste a todas prodigioso inventor de conceitos selva- gens. O que me
essas operaçôes de “codificaçâo” e se engaja em urna encantava tanto nos empiris- tas ingleses, era o senhor
tentativa sistemática de “deco- dificaçâo”. É assim que que tinha... De todo modo, acredito firmemente que
Deleuze e Guattari con- cebem seu trabalho de escrita: vamos voltar a trabalhar os dois"69. Nao sao meras
“Embaralhar todos os códigos nao é fácil, mesmo no palavras de consolo: quando Deleuze se engaja no ini-
nivel da escrita mais simples, e da linguagem”63. Os cio dos anos de 1980 em seus cursos sobre o cinema,
dois autores buscaráo o meio de escapar a qualquer nâo perde de vista o prosseguimen- to de um trabalho
forma de codificaçâo, deixando-se interpelar pelas com Guattari. Eie enuncia muito cedo o tema que se
tomará o título de sua última obra comum, publicada vem cornar urna sequência de criati- vidade conceìtual
em 1991,0 que é afilosofia?-. “Eis, portanto, meu de 20 anos de duraçào.
programa de trabalho para este ano. De um ìado, farei A tendência atual é suprimir o nome de Félix
cursos sobre cinema e pensamento. Farei isso em Guattari e manter apenas o de Deleuze. Contudo, O que
Gilles Deleuze & Félix Guattari 21

conexâo com o Bergson de Matèria e Memoria, que me é a filosofia? nao pode ser lido como um retorno à
parece um livro inesgotável. De outro lado, gostaria de "verdadeira” filosofìa por um Deleuze que teria se
continuar essa tabela de categorias que coincide com “desprendido” de seu amigo Félix. Tanto por conteúdo,
seu trabalho. E là o ponto centrai seria para mim a estilo, con- ceito lançado nessa obra, tudo contradiz a
busca de urna resposta bastante clara e simples a o que tese de um Deleuze que deve se “desguattarizar”. Nao
é a filosofìa? Dai duas perguntas de partida: 1 - Aquela se pode passar ao largo do dispositivo establecido pelos
que o senhor faria, imagino: por que chamar isso de dois autores, análogo áquele a que se referem em
categorías’? 0 que significami exatamente essas nogóes, Rizoma, da ramificaçâo, do agenciamento que se opera
conteúdo’, ‘expres- sao, ‘singularidade, etc. Peirce e entre a vespa e a orquídea: “A orquídea se
Whitehead fazem tabelas de categorías modernas: de desterritorializa formando urna imagem déla, um
que maneira evoluiu essa nopao de categoría?; 2 - decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa nessa
Depois, partindo-se das mais simples dessas categorías, imagem; porém, eia se desterritorializa tor- nando-se eia
conteúdo’ e expressáo? retomo minha pergunta: o que o propria urna pepa no aparelho de reproduçâo da
levou a conceder um aparente privilègio à expressào do orquídea; mas eia reterritorializa a orquídea ao
ponto de vista do agenciamento? Precisaría que me ex- transportar seu pólen... captura de código, mais-valia de
plicasse pacientemente... código, aumento de valencia, verdadeiro devir, devir-
Deleuze escreveu sozìnho 0 que é afilosofia? No vespa da orquídea, devir-orquidea da vespa”/5. Por que a
entanto, como diz Robert Maggiori a propòsito dessa vespa mantém urna relaçâo de ordem sexual com a
obra que considera essencial, “tem Guattari nela, mas orquídea, sabendo que, se de um lado há polinizaçâo, de
diluido no sentido da aspirina”71. Também ali, Guattari outro, o da vespa, nào ha- verá reproduçâo? Os
sugere, emenda, define novas pistas a partir do etologistas explicam que existe ai urna relaçâo entre
manuscrito enviado por Deleuze: "Ha um tema que eu dois régimes de códigos em urna evoluçâo paralela de
gostarìa de evocar: é o da oposipáo entre mistura e inte- duas especies. Essas duas espécies nâo têm nada a ver
rapáo... Sobre o cerebro que funciona sobre ele mesmo: urna com a outra, e no entanto há um ponto de encontró
ver Francisco Varela, os sistemas aufco- poiéticos... que transformará seu devir.
Falo um pouco disso em meu texto ‘Heterogénese Esse agenciamento só pode funcionar, pelo menos
maquínicá... A passagem estética é um cruzamento do para Deleuze, com a condiçâo de fechà-lo aos outros.
movimento do infinito do concetto e do movimento de Quando há risco de dis- persào para fora, Deleuze reage
finitude da funpáo, Há urna símulapáo do infinito, um prontamente para lembrar as regras, as condiçôes que
artificio finito do infinito que conduz a 72um ponto tlnha colocado de inicio. No céu sereno de sua amizade,
histérico conversivo o paradigma da criagao” . houve somente algumas pequeñas eleva- çôes de febre e
A amizade contou multo nessa coassina- tura. Na pequeñas tensoes. O respeito ao agenciamento foi o que
verdade, as contribuipòes de Guattari sao meramente motivou um cha- mado à ordem, em 1973, por parte de
margináis. A revista Chiméres publica, aliás, desde Deleuze, que nâo deseja se deixar levar em aventuras
1990, o que 73será a intro- dupáo da obra assinada apenas que nâo sao as suas. A divergência* provém do fato de
por Deleuze . Segundo Dominique Séglard, "O que é a que Deleuze e Michel Foucault sâo considerados pelo
filosofía? foi escrito somente por Gilles Deleuze, foi ele ministério do Equipamento como as duas autoridades
que me disse. Félix Guattari74 desejava coassiná-lo, mas inteiectuais competentes representantes do CERFI.
Deleuze nao quería muito” . Urna amiga próxima de Contudo, para Deleuze, está fora de cogitaçâo deixar
Félix Guattari, bastante preocupada com o estado que o associem ao CERFI: “Félix, ah Félix, querido
depressivo dele, convenceu-se de que a única maneira Félix, eu o estimo e nada de minha parte pode afetar
de salvá- -lo seria proporcionar-lhe um segundo folego, nossas relaçôes. Entâo vou Ihe relatar o que, em urna
fazendo com que participasse da preparapao final do iluminaçâo, me deixa preocupado exteriormente. Já Ihe
manuscrito. No veráo de 1991, eia decide telefonar para conteî há pouco tempo que, desde o inicio de nossa
Deleuze e Ihe pedir esse favor. O livro saìria em afeiçâo, eu tinha dito a Ariette: o que complicará as coi-
setembro. Deleuze aceita sem dificuldade, o que por si sas é que eu quero obter de Félix algo que ele nunca val
só diz muito sobre a força de sua relaçào de amizade, a querer me dar, e eie, me empurrar em algum lugar para
que vol- taremos mais adiante, mas há também urna onde eu jamais gostaria de ir. Desde o inicio, alias, o
coerência intelectual na dupla assinatura, pois essa obra senhor propuse- ra ampliar o trabaiho a dois, estender a
certos membros do CERFI. Eu disse que estava fora de 5. Ibid.
cogitaçâo de minha parte, e durante muito tempo nos 6. Félix GUATTARI, “Machine et structure", 1969, Change,
respeitamos plenamente: o senhor, 76minha solidâo, e eu, n, 12, Seuil, París, 1972: republicado em Psychanalyse et
suas coletìvidades, sem
22 François Dossetocar nisso’ . transversalité, Maspero, París, 1972; reed. La Découverte,
Essa amizade tao intensa é observada por todos os París, 2003, p. 240-248 (doravante citado PTJ; ver capítulo
próximos: “Raramente vi duas pes- soas se amarem e se “La machine contre la structure”.
estimarem de verdade como Gilles e Félix. Urna 7. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cloarec,
delegaçâo de con- fiança total entre eles. arquivos I.MEC, 27 de outubro de 1984,
Urna ligaçâo 8. Gilles DELEUZE, Différence et répétition, PUF, Paris,
intelectual e humana total, comovente” . Isso nao impe-
/7
1968 (doravante citado DR).
diu alguns momentos de esfriamento em suas relaçôes, 9. Gilles DELEUZE, Logique du sens, Minuit, Paris, 1969
em particular no final dos anos de 1980: “Senti as (doravante citado LS).
coisas mais frias faìando com um e falando com o 10. Gilles DELEUZE, posfácio a Samuel BECKETT, Quad,
outro. Falando com Félix de urna cois a que Gilles Minuit, Paris, 1999.
devia fazer, Félix me diz: ‘Ah, sim! Pobre veìhoF, e de 11. François Fourquet, carta a Gérard Laborde, 19 de agosto de
sua parte, 1969, divulgada por François Fourquet
12. Jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor.
ri\ . de R. T.: No original, différend. A expressâo usada por F. Dosse
T 13. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC, 5 de
parece aludir aquí ao conceito empregado por J, F. Lyotard, em que a abril de 1969.
compreensâo dos “différends” diz respeito à sutileza 14. Ibid.
psicológica, política ou diplomática que esposa a singularidade 15. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 13
da [...}, e em que a política, a arte, a escrita, filosófica sâo, de maio de 1969.
igualmente, maneira da escrita dos “différends", ou seja, do
aspecto irredutívei e irrepresentável daquilo que acontece entre duas 16. Ibid,
pessoas ou entre dois pareceres sîtua- çâo. Ver Blay, Michel (dit.): 17. Ibid.
Dictionnaire des Concepts Philosophiques. Larousse, CNRS 18. Félix GUATTARI, PT.
Éditions, Paris, p. 218,2006. 19. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC, lsde
Gilles: ‘Voce tem visto Félix, Marco?’ - ‘Sim - Ah, junho de 1969.
sim! Félix está bem, muito bem...’, uma súbita frieza”78. 20. FGERI Fédération des groupes d’étude et de recherches
Algo parece ter-se quebrado um pouco em relaçâo ao institutionnelles criada em 1965 por Guattari; ver capítulo,
seu primeiro período. Aos silencios mais longos que se “A FGERI e o CERFI à prova da experiência”.
instalam, aos encontros mais espaçados, acrescenta-se a 21. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC, Dde
consagraçâo, no final dos anos de 1980, de um Gilles junho de 1969.
Deleuze que alguns gostariam inclusive, como vimos, 22. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 16
de “desguattarizar”, de julho de 1969.
Contudo, quando da longa depressâo que Guattari 23. Ibid,
enfrenta nesses anos de invernó, Deleuze está lá, 24. Ibid.
presente: “Deleuze esgotado, sem fôlego, me liga para 25. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, de 19 de julho de
perguntar o que vou fazer esta noite. Respondo que vou 1969, passada por François Fourquet.
assistir à Copa da Europa de futebol, porque sou louco 26. Félix Guattari, algumas notas sobre o presidente Schreber,
por esporte. Deleuze me diz: ‘Vou a uma testa na casa enviadas a Gilles Deleuze em 25 de julho de 1969, arquivos
de Félix, é preciso estar perto dele. Fui para là... Félix IMEC.
completamente hierático, sentado no châo assistindo à 27. Robert Maggiori, entrevista com o autor,
TV, justamente a final do futebol, e ao seu lado Gilles 28. O CERFI é um grupo de pesquisa em ciencias sociais
que, sem dúvida, teria dado um dedo da mao para nao criado por Félix Guattari na segunda metade dos anos 1960
(Centre d'études, de recherches et de formation
estar ali, diante do futebol, nessa festa, ele para quem institutionnelles); ver capítulo “A FGERI e o CERFI à
estar com duas pessoas já era uma mu í tí dao”' 9. prova da experiência".
29. O que atesta o traballio de ordenaçâo dos escritos de Félix
Notas Guattari enviados a Gilles Deleuze para preparar O Anti-
Êdipo, realizado por Stéphane NADAUD, Écrits pour
1. Robert Maggiori, entrevista com o autor, DAnti-Œdipe, Lignes-Manifeste, Paris, 2004.
2. jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor. ’ 30. Ariette Donati, entrevista a Ève Cloarec, arquivos IMEC,
3. Gilíes DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Minuit, 25 de outubro de 1984.
París, 1967 (doravante citado SM). 31. Alain Aptekman, entrevista com o autor.
4. jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor,
32. Félix Guattari, “Deleuze e Guattari se expli- cam”, mesa 55. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, nâo datada, arquivos
redonda com François Châtelet, Pierre Clastres, Roger IMEC.
Dadoun, Serge Leclaire, Maurice Nadeau, Raphaël Pividal, 56. Félix GUATTARI, Journal, 13 de novembro de 1971;
Pierre Rose, NRP, n.Gilles
564, Janeiro
Deleuzede 2003, p. Guattari
& Félix 357. 23
Horace Torrubia, La Quinzaine littéraire, n. 143, 16-30 de 57. Félix GUATTARI, Journal, 6/10/1972; citado por Stéphane
junho de 1972; reproduzido em Gilles DELEUZE, L'île NADAUD, Écrits pour LAnti-Œdipe, op. cit., p. 490.
deserte et autres textes, Minuit, Paris, 2002, p. 301 58. Félix GUATTARI, Journal, 13/10/1972, ¿bld., p. 496.
(doravante citado ID). 59. Félix GUATTARI, Journal, 6/10/1972, ibid., p. 490-491.
33. Ibid, p. 304-305. 60. Gilles DELEUZE, DR, p. 4.
34. Gilles Deleuze, citado por Robert MAGGIORI, Libération, 61. Arnaud BOUÀNICHE, “Le mode d’écriture de LAnti-
12 de setembro de 199.1; reproduzido em Robert Œdipe-, littéralité et transversalìté”, co- municaçâo orai no
MAGGIORI, La Philosophie au jour le jour, Flammarion, ambito das oficinas do mes- trado de filosofia Bordeaux,
Paris, 1994, p. 374. Poitiers, Toulouse, organizadas por jean-Christophe
35. Ibid., p. 374-375. Goddard, Poitiers, 2 e 3 de dezembro de 2005. Ver Arnaud
36. Gilles Deleuze, ibid., p. 375. BOUANICHE, Gilles Deleuze, une introduction, Pocket-La
Découverte, Paris, 2007.
37. Gilles Deleuze, ibid., p. 375-376. 62. Gilles DELEUZE, "Pensée nomade” (1972), re- produzido
38. Gilles Deleuze, ibid., p. 376. em ID, p. 353.
39. Félix Guattari, ibid., p. 376. 63. Ibid., p. 354.
40. Gilles Deleuze, ibid., p. 376. 64. Félix GUATTARI, Journal, 14/10/1972; citado por
41. Gilles Deleuze, ibid., p. 377. Stéphane NADAUD, Écrits pour DAnti-Œdi- pe, op. cit., p.
42. Gilles DELEUZE, Cahiers du cinéma, n. 271, novembre 497.
1976; reproduzido em Gilles DELEUZE, Pourparlers, 65. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Kafka, Pour une
Minuit, 1990, p. 65 (doravante citado PP). littérature mineur, Minuit, Paris, 1975 (dora- vante citado
43. Stéphane NADAUD, Écrits pour IdAnti-Œdipe, op. cit., p. K).
12. 66. Ibid., p. 149.
44. Gilles Deleuze, Le Magazine littéraire, n, 257, setembro de 67. Gilles Deleuze, carta a Uno, “Comment nous avons travaillé
1988, entrevista com Raymond Bello ur e François Ewald; à deux”, 25 de julho de 1984, reproducida em RF, p. 220.
reproduzido em Gilles DELEUZE, PP, p. 187. 68. Ibid.
45. Félix Guattari, em Robert MAGGIORI, La Philosophie au 69. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, nâo datada (inicio dos
jour le jour, op. cit., p. 378. anos 1980), arquivos ÍMEC.
46. Gilles Deleuze, carta a Kuniichì Uno, 25 de outubro de 70. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, nao datada (com
1982; reproduzido em Gilles DELEUZE, Deux régimes de certeza 1981), arquivos IMEC.
fous, Minuit, Paris, 2003, p. 71. Robert Maggiori, entrevista com o autor.
1. 85 (doravante citado RF), 72. Félix Guattari, notas datilografas sobre "O que é a
47. Æ«i, p. 218. filosofía?”, arquivos IMEC.
48. Ibid., p. 218. 73. Gilles Deleuze, “Les conditions de la question: qu est-ce
49. Ibid., p. 219. que la philosophie?”, Chimères, n. 8, maio 1990, p. 123-132.
50. Gilles Deleuze, VArc, 1972, p. 47; reproduzido em Gilles 74. Dominique Ségiard, entrevista com o autor.
DELEUZE, PP, p. 24. 75. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, Minuit,
51. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Li- nhart. Paris, 1976, p. 29.
52. Jean-Pierre Faye, entrevista com Virginie Li- nhart. 76. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 24 de
53. Gilles Deleuze, carta a Kuniichi Uno, em RF, pp. 219-220. junho de 1973.
54. Ibid., p. 220. 77. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie Linhart.
78. Ibid.
79. Michel Butel, entrevista com Virginie Linhart.
1

Félix Guattari: itineràrio psica-


político - 1930-1964

“Pedrinho", como era particulares: a máe, pela


chamado em casa, nasceu literatura e por museus, e o
em 30 de margo de 1930, pai, que to- cava qualquer
sob o signo do número tres, pega ao piano sem jamais ter
cagula de urna fratría de tres lido urna partitura, pela
meninos: Jean, Paul e música. Entretanto, a maior
finalmente Pierre-Félix. Seu paixáo do pai de Guattari é o
destino intelectual nao está jogo. Intoxicado durante a
inscrito verdadei- ramente Grande Guerra, ele foi sub-
na heranga familiar, embora metido a urna trepanagáo, e
logo seja visto como um ser sua necessidade de iodo fez
estranho e surpreendente: com que escolhesse Monte
“Félix era o patinho na Cario como local de
ninhada de pintos”1, re- repouso. A.l.i póde dar livre
corda Jean, seu irmáo nove curso à sua paixâo e se
anos mais velho que dirigir ao cassino como ou-
cumpriu um pouco a fungáo tras se dirigem à fábrica,
de figura paterna, A familia para ganhar dinheiro.
é antes de tudo tradicional e
conservadora, mas concede
mais liberdade ao cagula, "Y'a bon Banania"
que pode assim adquirir urna Durante a guerra, o pai
independencia mais precoce de Félix simpatizara com um
que seus irmáos - o mais artesao já reputado, um tal
velho teve de entrar no de Pierre Lardet que havia
mundo do trabalho aos 17 descoberto na Nicaràgua, em
anos. Pierre-Félix, com 15 1912, urna bebida tâo
anos em 1945, verá se abrir saborosa que logo pensou
para ele o mundo da em importar para a Franga.
universidade grapas ao Essa bebida, que logo se
efeito do ánimo produzido tornará o famoso alimento
pela Libertagáo. matinal Banania, é composto
Embora nao sejam de farinha de banana, cereais
intelectuais, os pais de Félix triturados, cacau e agúcar.
tém suas paixoes
De volta a Paris, em 1914, corrida, trajes de grande
ele se langa na produçâo in- burgués, frequencia ao
dustrial e na difusao em Cassino de Paris... Quando
grande escala, com a um amigo o aconselha a
campanha “Ya bon Banania" entrar na bolsa de valores,
[É bom Banania], que ele decide criar urna
aproveita, desde 1915, sociedade anónima e
apopularidade dos soldados comprar urna fábrica de
senegaleses. Impulsionado chocolate em Épinay,
pela onda de seu produto, Entretanto, o negocio
Pierre Lardet enriquece rápi- malogra, e Lardet, quebrado,
do e se porta como grande acaba por declarar falencia,
senhor com seus cávalos de O processo
30 François Dosse

que se segue quase se transforma em drama nele sua decepgáo por nao haver rido uma füha.
quando o empresário arruinado tenta dar um tiro Pierre-Félix parece ter sido um menino muito
em pieno tribunal. tímido, recolhido em si mesmo, “quase
O pai de Félix Guattari assume o comando da feminino™.
fábrica da qual era administrador até entáo, mas Em 1952, quando aos 22 anos deixou o do-
decide abandonar tudo e criar carneiros no campo, micilio familiar para viver com sua companhei-
em um vilarejo da Orne, La Rapou- illère. ra, Micheline Kao, algumas casas adiante, na
Fracassa com os carneiros e se instala no Oise mesma rúa, Félix Guattari menciona em seu diàrio
para cuidar de coelhos angorás, muito na moda no um confitto entre Micbeline e sua máe, que revela
pós-guerra. É nesse período, rodeado de coelhos, o amor muito exclusivo desta última: “A
que nasce Pierre-Félix, em Ville- neuve-les- insistencia de minha máe em querer controlar
Sabions (hoje Villeneuve-le-Roi), ao lado de minhas noites me angustia... (deve-se observar
Méru. Em pouco tempo, com a crise e a que nessa questáo meu pai é espectador)”6. Pouco
modernizaçao da industria têxtil, a ativida- de tempo depois escreve: “Jamais ousei amar minha
tradicional de criaçâo de angorás naufraga, e os máe... Nao ter a coragem de amar sua máe é se
Guattari sâo obrigados a comer seus coelhos: condenar a permanecer sempre hesitante no limiar
“Meu pai2 nâo foi feito tampouco para criar da vida... Estou sempre retirado do mundo. Nao o
coelhos” , confirma Jean, o mais velho dos tres sinto, nao mergulho... Estou ao mesmo tempo
filhos. perfco demais e longe demais dos objetos
A familia retoma à regiâo de Paris. Após maternos,.. Isso me mata”', No mesmo diario,
todos esses dissabores, o inicio 1é difícil. Os escreve tres anos mais tarde: “Esse rigor que no
Guattari se instaiam em um HLM da Cité des raciocinio me dá uma grande firmeza lógica e que
Oiseaux, em Montrouge. 0 pai se lança aínda em em matèria de sentimento logo transformou em
outras pequeñas aventuras comerciáis sem futuro: rigidez esse espirito de sistema que faz com que
vende cafeteiras, depois batatas. Isso nâo é fora de meu pròprio sistema eu me sinta
suficiente para alimentar uma familia que se desamparado, desesperado, deteriorado, esse rigor
tornou numerosa. O pai de Guattari está no limite, me parece vir de minha máe. Eia está se mudando
é visto como suicida. Entretanto, em 1934, ele para Montoire. Recriminou-me por té-la deixado.
consegue tomar um empréstimo e reatar com a Temperamento exclusivo, Vem déla também, sem
atividade chocolatera criando urna nova dúvi- da, essa necessidade que tenho do clá...
sociedade, Mon-Bana. Instala a fábrica em La Tenho tanto dela, pois foi eia quem me deu a vida
Garenne-Colombes e se torna finalmente dono de - que historia!... Fui amoldado demais por eia, nao
uma pequeña empresa próspera que absorve todo havia mais coexistencia possível"8
seu tempo. Assim, é a esposa que se dedica 3à Uma das primeiras lembrangas de seu pai
familia, com “um sentido claro do sacrificio” . remonta a 1933 - Félix tem 3 anos, e o pai lhe
Natural da Córsega, Jeanne Paoli reatara com o comunica: “Preciso lhe dizer que a gente val
passa- do italiano de sua ilha casando-se aos 17 montar um negócio”. Essa frase, fruto do de-
anos com um Guattari, cuja familia era originària sespero do inicio dos anos de crise, marcada pela
da Bolonha: “Casaram-se em 1919. Ele era en- vontade imperiosa de sair déla, se tornará uma
táo herói da guerra, e foi portanto mais por espécie de principio de vida para o pequeño Félix,
admiraçâo por um garoto corno esse do que outra fortemente impressionado: “Acho que durante
coisa”4. toda minha vida montei negocios, golpes”9. O
Essa más, sensível ao mundo da criagáo ar- éxito dessa iniciativa teve efeitos colateraís sobre
tística e literária, teve urna, grande influencia o c aguí a: os país já nao tinham a mesma
sobre o filho cagula, particularmente ao profetar disponibiüdade, o pequeño Pierre-Félix logo se
1N. de THabitation á Loyer Moderé: conjunto habitacio- nal
sente abandonado. Deixa transparecer seu mal-
construido por urna, coletividade e destinado as pes- soas de estar sem poder expres- sá-lo, somatiza a tal ponto
baixa renda. '' que sua palidez e seu temperamento fechado
acabara preocupando os país. Bles sao orientados a temeroso, que deixa que tomem seus brinquedos,
consultar um médico, que prescreve urna temporada no dominado pelos irmaos e principalmente pelo do meio,
campo para reanimar o menino, “e, da noi- te para o dia, Paul, que fez dele sua vítima, transforma-se de súbito
eu, que era muito ligado a toda essa vida com meus em um verdadeiro chefe de bando: “Depois, como ainda
Gilles Deleuze & Félix Guattari 31

irmaos e tudo mais, me vi deportado na Normandia, nao era muito estimulante organizar um bando, eu tinha
separado10de tudo, na casa de urna avó um tanto quanto organizado o bando adverso”1“. Sua reputagáo em La
austera” . Manifestamente, Pierre-Félix aceita muito Garenne-Co- lombes logo se firmón: quando chegou a
mal essa separaqao, que vé como um dis- tanciamento hora de matriculá-lo no colégio do bairro, o díretor
vindo de urna mae que nao tem mais tempo para dedicar recusou, e a mae precisou procurar um esta-
a ele: “Eu chorava quando eles vinham me visitar e iam belecimento suficientemente distante para que o filho
embora. Estava infeliz como um cao”11. encontrasse um bem-aventurado anonimato.
Foi no colégio que Félix teve um encontró decisivo
com um personagem1 sem par e sem normas, discípulo
A cena traumática de Célestin Freinet , Fer~ nand Oury. Félix assiste as
É na casa dos avós, em Louviers, que se desenrola aulas desse profes- sor de ciencias naturais que se
urna cena traumática, e que sem dúvida está na origem tornará céle-
de urna mudanga radical de comportamento. Estamos
em 1939, Félix Guattari tem 9 anos. O avó Víctor,
segundo marido de sua avó, um antigo mineiro em
Montceau-les-Mines, tem o hábito de ouvir no rádio
urna serie sobre “O traidor de Stuttgart”. Para poder
ouvir seu programa favorito, ele leva o aparelho para o
banheiro e deixa a porta aberta: ‘Aos seus pés há urna
caixa de recortes: pequeñas bonecas de papel para as
quais confecciono vestidos, Vovó está com a cabega
completamente caída, apoiada nos joelhos, os bragos
pendurados. Será que está mexen- do nos meus
brinquedos? Tenho vontade de gritar alguma coisa!
Siléncio. Viro a cabega, lentamente - urna eternidade -
para a luz do aparelho de rádio. Estrondo assustador.
Caído no chao. Vovó grita. Congestáo”12. A avó chega,
apavorada, e corta as pontas das orelhas para tentar
reavivar o coragáo, depois coloca um jornal sobre a
cabega do marido para prote- gé-lo das moscas.
Esse contato brutal com a morte aos 9 anos foi
estruturante na personaíidade de Félix Guattari. Aos 54
anos, ele ainda esclarece que precisou de muito tempo
para se libertar desse trauma. Reagiu a ele com serias
crises de angustia, um sentimento agudo da finitude, da
fatuidade das pessoas e da futilidade das coisas: “Isso
me tomava como algo que escorria sobre mim, crises
terríveis de angustia que literalmente me deixavam
aterrado de ruedo”13. Para nao deixar a avó sozinha, os
país de Félix decidem manté-lo com ela por algum tem-
po, visto que ele já está cursando a escola em Louviers,
O sentimento de abandono redobra, agravado pela
angustia decorrente do desa- parecimento brutal do avó.
A avó acaba com- preendendo: “Ela me diz: lSim, vocé
tem medo de que isso acontega comigo também’” 14, e
decide ligar para os pais do menino, a fim de que 1N. de R. T.: Célestin Freí net (1896-1966), Pensador francés que
busquem o filho. desenvolveu urna pedagogía fundamentada em grupos de coopera^ âo a
Desde entáo, o jovem Félix muda radicalmente de serviço da expressâo livre de crianças e da forrnaçâo pessoal. Education
comportamento. Ele, o menino reservado, tímido, quase du Travail, de 1947, é uma de suas obras mais importantes.
32 François Dosse

bre no campo da pedagogía institucional16. O escreve em seu Diàrio em julho de 197.1 que, aos
primeiro contato é muito breve, pois ao cabo de 6 ou 7 anos, um mesmo pesadelo o atormentava
très semanas de aula, Fernand Oury desaparece, todas as noites durante um longo período: “Urna
preso pelos alemáes em 1943. Contado, a dama de negro. Eia se aproximava da cama. Eu
îembrança dessa passagem-relámpago é táo tinha muito medo, e isso me despertava. Nao
intensa que, ao saber na Libertagáo - Félix tem 15 queria voltar a dormir. Até que urna noite meu
anos na época - que Fernand Oury é um dos irmao me emprestou seu fuzil de ar comprimido
encarregados da coordenaçâo dos Albergues di- zendo que bastava atirar se eia voltasse. Eia
dajuventude (AJ), ele se inscreve ime- diatamente. nào voltou. Mas o que me surpreendeu mais,
Femando Oury desperta en táo Guattari para um lembro20 bem, é que eu nâo tinha carregado o
mundo que rompe com a rigidez que este percebe fuzil” . Essa dama de negro, personagem que dà
no olhar materno, um universo de sociabilidade nome ao romance de G. Leroux, evoca tam- bém
fraterna. Fica fascinado com a personaíidade e um personagem real, o da tia Emilia, irmà de seu
com o talento de pedagogo de Fernand Oury: pai, que perdeu o marido - do nome de Félix - nas
“Tive urna vonta- de enorme de ver Fernand. trincheiras de Verdun: “Mas é claro, é claro! 0
Comecei a gostar e a sentir saudades de sua armàrio, a dama de tafetà, a arma negra, a
maneira táo especial de encarar as coisas, a bruma artemisa, as armas do ego, a miseria dos anos de
misteriosa e quase poética que envolve as coisas 1930, meu pai tinha falido lançan- do-se, com o
quando se está em sua presenga”17. apoio dessa tia Emilia, na criaçâo de coelho
As redes de albergues da Libertagáo per- angorà.."21.
mitem aos adolescentes de familia modesta viajar
em ferias. Para o chele de bando em que
transformou Félix, os AJ sao sobretodo um meio Firn de guerra
de descobrir a convivéncia mista, depois de se
manter até entao confinado à fraterni- dade Na Libertagáo, a consciéncia política de
masculina. É numa dessas expedigóes que Guattari é precoce. Desde 1945, paralelamente à
condece um outro jovem Pierre: “Eu disse: ‘Nao aventura dos AJ, começa a militar no Partido
precisaí8me chamar de Pierre, basta me chamar de Comunista (PCF). Seu pai, antígo Cruz de Fogo
Félix”' . Esse segundo nome, que acabou por se nos anos 1930, que foi um gaullista convicto
impor, ele deve ao cunhado de seu pai, o tio Félix, durante a guerra, fica sabendo por amigos que seu
morto em Verdun. Esse tio, apaixonado pela filho vende L’Humanité na ponte da Estaçâo de
pintura e amigo de Vlaminck, deixou urna marca La Garenne-Colombes. Ele nâo gosta nem um
muito19 forte: “Era para mim um pouco o ideal do pouco disso. Paul, o irmâo do meio, tenta
ego” A reconstruçâo subjetiva e o mergulho no expressar a reprovaçâo familiar em forma de
mundo, após as ira- turas profissionais dos pais - a zombarla: “Leve l’Humidité [a Umi~ dade], ôrgâo
necessidade de estar sempre prestes a “montar um central do partido refrigerador!”, dizia ele pelos
negocio’' -ea morte espetacular do avó, se cantos.
realizam assim sob um nome que significa A atmosfera reinante nos AJ na época do pós-
satisfagáo, felicidade. guerra era particularmente intensa. E nesse meio,
Essa exigencia de satisfagáo imediata e essa nos saraus cotidianos, que muitos se iniciam como
vitalidade excepcional nasceram, por- tanto, da cantores - Francis Lemar- que, os irmáos Jacques,
tomada de consciéncia precoce da finitude, da os Barbus, Pierre Dudan - ou como atores - Yves
presenga nao fantasmática, mas bem real, da Robert. Outros recebem ali formaçâo como
morte. “Montar um negocio” torna-se a palavraíde agitadores culturáis, quadros políticos ou
ordem para conjurar as forças mortíferas e a sindicáis. Guattari tem entâo seus primeiros
angustia di an te de urna finitude sem remédio. encontros feministas: Annick, mais velha que ele,
Essa presenga da morte, o jovem Félix a conhece que o leva para sua casa. A mâe nâo gosta e o pôe
muito cedo, antes mesmo da morte do avó. Ele para fora sem qualquer formalidade.
Cilles Deleuze & Félix Guattari 33

O adolescente se lança na escrita. Desde 1944, descontente ao vè-lo instalar-se no outro extremo
sente necessidade de escrever historias, poemas, da rua em urna familia adotiva muito atenciosa
sonhos. Suas facilidades intelectuais sâo com eie:26 “0 pai Kao levava seu café da rnanha na
manifestas; “Eu tinha aprendido a escrever de um cama”! Os país de Félix se per- guntam, nao sem
único golpe, a 1er de um único golpeos garotos preocupagáo, se nao quise- ram se apropriar de
da classe tinham dificuldade, e eu lia multo seu filho. De sua parte, a familia Kao libera o
bem”22. Ele prossegue com sucesso seus estudos andar tèrreo para que o casal possa ficar à
no liceu Paul-Lapie de Courbe- voie, depois no vontade, Félix mandou buscar seu piano e sua
liceu Condorcet na série final do ensino médio biblioteca, sinaís de que estava se instalando de
onde obtém seu baccalauréat em filosofia- verdade. 0 pai de Micheline adota Félix como se
ciências em 1948. Apaixonado pela filosofía, fosse seu filho.
espera de seu professor - que considera excelente Essa reconstruqao afetiva ocorre em um ce-
- um sinal um encoraja- mento para empreender nário de grande tormento profìssional, Guattari
esse caminho, mas, nao obstante seus bons percebe com horror que o curso de farmácia o
resultados, permanece na incerteza, porque nâo é afasto u da atividade de escrita, que é para eie
capaz de pergun- tar a ele. Seu irmâo mais velho, urna respiralo existencial: “Descubro consternado
jean, consegue que ele entre, apesar de sua forte que nao sei mais escrever, que nao sei mais ler, e
dúvida, no curso de farmácia. Ele começa um copio livros para me pór novamente em contato
primei- ro estágio de farmácia em julho de 1948 com a escrita. Lembro de ter copiado um tivro
em Bécon-les-Bruyères, onde se aborrece profun- inteiro de Camus”26. A falta de diàlogo com seu
damente e é reprovado nos exames do primetro pai nào ajuda Félix a se orientar, mas eie està cada
ano. Sob o olhar vigilante do irmâo mais velho, vez mais convencido de que tomou o caminho
repete o ano, mas nâo adianta nada. Ele só deseja errado. Decide entao acabar com isso e se
urna coisa: ir embora e passar num concurso inscrever em filosofìa na Sorbonne. 0 pai de fato
público para garantir sua independencia nào tinha prestado atengáo ao tormento do filho
fmanceira, e planeja entâo fazer um concurso até o momento em que, após dois dias vagando,
parainspetor-júnior nos correios e telégrafos. Félix retorna ao lar e cruza com o pai, que está
Nesse meio tempo, pensa ter encontrado a varrendo a neve caída na frente de casa. Esse pai
alma gêmea em Micheline Kao, urna moça de até entáo mudo pergun- ta-lhe de sùbito: “Mas,
origem chinesa que conheceu aos 16 anos. Eles Pierre, por que voce quer largar o curso?’ Eu
sâo vizinhos na Rue de lAigle em La Garenne- digo: ’Porque eu nao gosto, nao tem nada a ver
Colombes. Encontram-se em 1946 por ocasiao de comigo.’ - Mas, o que é que vocè queria fazer?’,
urna “caravana” organizada por Fer- nand Oury, coisa que todo mundo já sabia há muito tempo. -
urna temporada de ferias nos Alpes em Aubier-le- -Eu queria fazer filosofìa.1 - ’Está certo, entao
Vieux: “Lembro-me de um menino que queria ter vocè tem que fazer filosofìa’”2'. Há claramente
ares de adulto. Ele fumava cachimbo”23. nesses anos um enfra- quecimento da imagem
Micheline Kao tem 14 anos, está antes de tudo paterna, embora Félix ainda diga no diàrio, em
intrigada com esse adolescente que lhe declara 1953, que sua estrutura moral está calcada na
amor eterno. Parece-lhe bem curioso, mas nâo imago paterna. Ele julga essa figura do pai “ao
sente nada além de amizade por ele. Segue-se um mesmo tempo moral-na- cionaìista, Cruz de Fogo,
longo período, até 1951, durante o qual fazem o nada de negocio com os alemàes, escuta dos
jogo do gato e do rato: “Eu nao o queria, mas ingleses, respeito familiar e, ao mesmo tempo,
depois, um belo día, acabe! cedendo, se é que se corroído pela liberda- de: melo termo, mentiroso,
pode dizer assim”24. espectador, jogador, comerciante, inteligencia"28.
Em 1951, decidem viver juntos na casa dos Nesse inicio dos anos de 1950, Guattari está
pais de Micheline Kao, um meio modesto de fortemente marcado pela figura de Sartre, a ponto
operários muito acolhedores. A familia de Félix de adotar a lingua sartriana em seu jornal, onde se
aceita sua salda, mas fica estarrecida e muito demarcam facilmente as temáticas
34 François Dosse

existencialistas: “Essa objetivagao (do tempo) púsculo da vida em 1990: “Para mim, Sartre é um
contribui por antítese para que possamos sentir 29o autor como Goethe ou Beethoven: ou se pega
tempo em nós, isto é, para desligá-lo do mundo” . tudo ou se larga tudo. Passe! quase quinze anos
É sobretudo a temática do tempo, do nada, da de minha vida sendo totalmente impregnado nâo
morte e da necessidade de superar uma angustia somente pelos escritos de Sartre, mas também por
mortífera que Ihe interessa, a ponto de praticar seus atos e gestos. Tudo o que eu possa ter dito ou
sobre si mesmo exercícios fenomenológicos - feito é evidentemente marcado por isso. Sua
como outros praticam os exercícios espirituais de leitura da nadificaçâo, da destotalizaçâo, que se
Inácio de Loyola - a firn de se conhecer melhor e torna em mim devir, des- territorializaçâo, sua
espantar a má fé: “Eu mergulhei. Vivi o que podía concepçâo da serialidade e do pràtico-inerte, que
ser uma angustia permanente. No trajeto, irrigariam em mim a noçao de grupo-sujeito, seu
encontrei o método, se é que existe um, para se enfcendimento da liberdade e o tipo de
ver inautèntico: enumerar, explicitar todos os engajamento e de respon- sabiìidade do
objetos dos quais a gente se torna sujeito intelectual que eie encarnava forarti em mim, se
involuntario... até que se produza urna espécie de nâo imperativos, pelo menos dados imediatos.
vazio. E mais fácil ser fenomenólogo para as Prefìro ter errado com ele do que ter acertado
coisas do que para as pessoas... O problema está com Raymond Aron’35.
em que o outro o vé, em que ele tem um ponto de É entre os jovens de suburbio dos AJ que
vista sintético sobre seu ser. Tudo depende da Félix, de temperamento mais anarquizante no
intencionalidade com que30o faz existir para ele... a inicio, embora membro do PCF, conhece mili-
luta sartriana continua” ; “Nao há tempo no tantes trotskistas em 1948 e se torna militante
mundo, nós o projetamos sobre o31 mundo. Dizer político do Partido Comunista Intemacionalista
que só entendí isso ontem à noite” . (PCI), seçâo francesa da IV Internacional que, na
Félix Guattari chega inclusive a comentar época, nada mais era que um pequeño círculo de
capítulos de O Ser e o Nada em seu diàrio. A pro- dissidentes comunistas considerado pelo PCF
pósito do capítulo “Da determinagáo como ne- como a referencia dos piores inimi-- gos da classe
gagáo” ele escreve: “O para-si constituí o mundo operária. Guattari passa a ser inclusive um dos
como totalidade. Ele nào é de modo nenhum o quatro responsáveis trotskistas; do grupo da
que é o ser. Essa totalizagáo é nada sobre o ser, regiáo parisiense dos ‘Ajistas”.
eia totaliza e retalha ao mesmo tempo. Nao con- Em La Garenne, há um grupo de jovens
sigo32fazer explodir a nogáo do todo, agarro-me a particularmente dinámico, o da fábrica His- pano-
ele” . Disso resulta um motivo existencia! que Suiza. A empresa é conceituada: produzi
por toda sua vida induzirá à busca desenfilada da
felicidade imediata na intensidade do momento
presente e dos envolvimientos que ele suscita: “ N. de T.: L’Être et le Néant.
“Séhti como^que uma necessidade de encontrar a automóveis suntuosos, Rolls-Royce à francesa,
felicidade.,. Mas nâo é no pas- sado nem no futuro assim como os motores que equiparami todos os
que se deve procurar esse consolo primàrio. É avioes da Grande Guerra. Para La Garen- ne,
preciso encontrá-lo no ser mais inmediatamente partilhada entre duas grandes empresas - Peugeot
presente. É preciso se fazer ser no mundo, dar ao e Hispano -, trata-se de um importante ceíeíro de
mundo a imagem da felicidade, por mais simples emprego, palco da classe operaría. É preciso dizer
que seja esse rosto, mais desprovido de qualquer que a empresa é dirigida pelo fìlho de Leon Bìum,
esperança”33; “Magnífico. Magnífico o EN {O Robert Bium, aberto, como o pai, ao diálogo e à
Ser e o Nada}*. Leio parágrafos que circundo inovagào social. Na Hispano, um militante
com làpis3í| verde e fico muito contente, isso me carismàtico, Raymond Petit, reúne os jovens em
desperta . torno de sí e logo se torna seu pai espiritual.
Essa admiraçâo por Sartre jamais será re- Consegue da diretoria e de seu comité de empresa
negada por Guattari, que escreve ainda no cre- a constituigáo de um Grupo de Jovens da Hispano
Cilles Deleuze & Félix Guattari 35

para possibi- litar aos jovens operarios viajar de diretamente no campo de meu ideal
ferias e usufruir de estagóes de esquí e da rede de revoiucionário”37.
AJ. Com um forte carisma, Raymond Petit Quando Félix se instala em La Borde, em
transmite seu entusiasmo, e esse ‘agitador” nao 1955, propôe a Roger Panaget que venha morar
deixa de suscitar uma certa desconfianga da em seu quarto na casa dos pais de Micheline Kao.
diregáo. Propóem-lhe que se tome membro Guattari adere ao Movímento Revolu- cionário da
permanente do comité de empresa para cuidar do Juventude (MRJ), que constituí na época a porta
lazer dos jovens da fábrica, Consciente dos riscos de entrada no PCI. Ele faz ali um estágio
de se distanciar de seu meio de origem, ele nao probatorio antes de ser entronizado entre os
pode recusar essa “promogào”. É gragas a esse eleitos da vanguarda proletaria. Contudo, sua
cargo de membro permanente que acaba con- adesáo ao trotskismo permanece “subterránea”: é
segrando que a Hispano seja aprimeira empresa a onda da infiltraçâo no seio dos movimentos
em 1950 a enviar seus jovens operários com comunistas oficiáis. Ele participa de uma série de
menos de 21 anos para o esquí ñas ferias de in- iniciativas, como a das “brigadas" que se dirigem
verno, concedendo-lhes inclusive uma terceira à lugoslávia para apoiar a experiéncia titista
semana de férias remuneradas. condenada na época pelas autoridades do PCF.
Félix, que foi responsável por uma “brigada de
trabaiho", encontra-se em 1949 cavando as bases
O engajamento trotskista da futura universidade de Zagreb com um grupo
Comunista libertario, Raymond Petit trava de jovens. Como militante responsável, confisca
uma guerra feroz contra todas as formas de dos voluntários recalcitrantes os bónus de ali-
aparelho burocrático, o que nao agrada os di- mentaçâo quando resistem a carregar pedras ou
rigentes do PCE Abandonado pelo partido, ele cavar trincheiras.
retoma à base e a seus colegas de oficina. Um de O jogo duplo que implicam a militáncia
seus amigos, o jovem Roger Panaget, que entrou trotskista e as boas relaçôes mantidas com os
na Hispano em 1947, organiza reunioes uma vez militantes comunistas do subúrbio a oeste de Paris
por semana para programar fins de semana e nem sempre é fácil. Na época da propaganda em
férias. Com o Grupo de Jovens, toma a iniciativa favor do apoio à experiencia realizada por Tito,
de promover visitas a museus, escaladas, saraus, em 1950, Félix e seu grupo de trotskistas sao
grupos de danga folclórica, espeleología, sessoes atacados pelo brago pesado do
de cineclube, idas ao teatro, círculos de estudo ou PCF. A investida dura urna noite interna, durante
aínda competigáo de voleibol: “Durante as a qual as batalhas sào bastante violentas. No
caravanas, as equipes dividiam o trabaiho: tarefa36 subùrbio, Guattari comega a ser visto no PCF
de cortar lenha, varrer ou descascar legumes... ” . corno um perigoso propagandista “ti- tìsta”.
Essa vida comimítária rompe as fronteiras Chegam a convocà-lo um dia para que explique
hierárquicas, e se estabelecem sólidas relaçôes de diante dos camaradas suas ativida- des anti-
amizade entre os rapazes e mogas do grupo. Partido. Teme-se o pior, e os compa- nheiros
O entusiasmo comunicativo de Panaget trotskistas de Félix tentam dissuadi-lo de ir a essa
permite a difusáo de tais atividades para alérn dos reuniáo onde existe muita chance de ele ser
limites da empresa Hispano, na medida em que o agredido. £ nessa época que o Ko- minforrrr
grupo se abre para outros jovens do bairro. A denuncia as “víboras lúbricas” do ti- tismo: Tito
experiéncia seduz Félix Guattari, que participa é considerado como um agente do imperialismo
das atividades do grupo e fica amigo de Raymond que teria instaurado urna dita- dura fascista. À
Petit e Roger Panaget. Petit representa entâo para véspera da convocagáo, Guattari aínda participa
Félix um modelo de engajamento: “Ontem à de um confronto violento em Paris, onde deveria
noite, com Raymond, ficou claro para mim o fato ocorrer urna reuniáo preparatoria ao envió de
de que meus estudos en- travam agora brigadas: “Estávamos cercados pelas Segóes da
Federagáo de París. Durante horas tínhamos sido
36 François Dosse

atingidos pelas ondas de assalto dos militantes do desorientado, ele escreverà em seu diàrio: “De
Partido... Na saída, fomos perseguidos no metro mìnha viagem à China, fìcou urna impressào de
por sta- linistas enfurecidos. Eu tinha sonho. Onde eu estava?41 Com quem? Que
acompanhado até em casa urna moga iugoslava personagem representei?” É por ocasìao de seu
que traba- lhava na Embaixada, Miléva, urna envoìvimento na assocíagáo das Amizades
morena de tirar o fólego”38. O companheiro Franco-Chinesas que Guattari conhece o his-
trotskista de Guattari, Paulo, é ferido durante o toriador sinólogo Jean Chesneaux, que na época
confronto e está com a cabega enfaixada. Ele fazia a aproximagáo entre os intelecto ais
quer acom- panhar Félix na sessào do dia franceses e os militantes do Partido Comunista
seguiate, que corre o risco de degenerar em Chinés (PCC).
confronto, mas este último o desaconselha, para Reorientando seu trabalho militante para a
nao acirrar os ánimos. Vai entao sozinho e dá um “célula filosofìa” do PCF na Sorbonne, Guattari
jeito de se safar gragas à sua reputagáo de ajista: sugere a Denis Berger, militante do PCI e
“Estava lá Poil de Carotte**, um cara dos Aj. Eu membro de sua secretaria política, langar logo
cheguei, a gente discutili, 39bateu boca, mas nao após o XX Congresso do PCUS, de 1956, um
houve nenhuma bofetada” . Sua popularidade bolefcim mimeografado: Tribune de Discussion.
junto aos grupos jovens o salvou de um serio A estratégia de infíltragáo atinge o limite: um
acertó de contas. desejo de se expressar se faz sentir de maneira
A familia política de Guattari cinde-se em premente e precisa ser difundido. A conjuntura
1951. entre a tendéncia Pablo-Franck, à qual ele do relatórío Kruchev favorece a formulagao de
acaba aderindo, que prega a infiltragáo no interior algumas questoes, mas aínda nao ehegou a hora
do PCF, e a tendéncia lambertista, que de propor urna organizagáo política alternativa.
É preciso aínda suscitar indagagòes e promover o
*N. de R. T,: A Kominform, criada em 1947 e extinta em 1956,
debate de ideías. Félix consegue a adesáo ao
era urna organizayáo para o intercambio de informa- gao e PCI, que na época nao passa de um grupelho de
experiencia entre os partidos comunistas. oitenta membros, dos futuros antropólogos
4
*N. del,: Poil de carotte: apelido que se dá as pessoas rui- vas Lucien Sebag, Michel Cartry e
{literalmente: pelo de cenourá). Alfred Adler, como também de Philippe Girard e
é hostil a ele. Félix, que se matricuíou em filo- de Anne Giannini Monnet (da familia de Jean
sofía na Sorbonne, nao pode entáo praticar a Monnet, o pai da Europa), entre outros. A di-
infíltragáo ali - ele é bastante condecido como fusâo da Tribune de Discussion ultrapassa rápi-
trotskista, Ao mesmo tempo em que cultiva as damente o meio estudantil da Sorbonne e ob- tém
redes militantes na Sorbonne, dedica-se ás a cauçao de dois intelectuais renomados: François
Amizades Franco-Chinesas. Nessa época, a es- Châtelet e Henri Lefebvre. Jean-Paul Sartre chega
peranga segue a tiracelo e sobe ao céu no Leste, inclusive a contribuir com essa iniciativa, e
e até no Extremo Oriente, desde a vitória de Mao figurará na lista de doadores com o nome de
em 1949. “HK” (de "Heidegger/Kierkegaard”) até 1958,
Raymond Petit, do grupo Hispano, foi um data em que deixará de contribuir, por considerar
dos primeiros a visitar essa nova China em 1953, que, com o fascismo às portas da França, é
Pouco depois, em 1954, urna delegagáo preciso, dali em diante, fazer uma frente comum
composta de cerca de 40 franceses - entre os com o aparelho do PCF.
quais Jean Eiffel, Kené Dumont, Michel Leiris, No outono de 1956, com a invasâo soviética
Claude Roy e dois estudantes -- vai para Pe- da Hungría, a urgencia de um discurso crítico no
quim. Félix é um dos viajantes; “Um día, ele me interior do movimento comunista se faz sentir
diz: 'Vocé pode me40levar ao Bourget amanhá? ainda mais. O grupo Tribune de Discussion
Vou para Pequím’” , recorda seti irmào Jean, aproxima-se de um outro pequeño círculo de
ainda sob efeito da surpresa. Sobre essa via- intelectuais comunistas que também fazem um
gem-relàmpago, simultaneamente seduzido e boletim, DÉtincelle [A Centelhaj. Há alguns
Cilles Deleuze & Félix Guattari 37

intelectuais conhecidos, como o filósofo Víctor PCI. Assim, A Via Comunista nâo é apenas um
Leduc Jean-Pierre Vernant, Yves Cachin (sobri- jornal, mas sim uma organizaçâo que surge nas
nho do fundador do PCF, Marcel Cachin), Jean fronteiras do trotskismo. O primeiro boletim
Bruhat, Anatole Kopp, assim como um núcleo coloca a questao: quem somos nós? O que
militante muito ativo no 11a Distrito em torno de queremos? Reposta: “Encontrar a Via Comunista
Gérard Spitzer, que se engajou aos 15 anos nos para o nosso país’43. Nascido em plena
FTP1, em 1943, e aderiu ao PCF desde a contestaçâo da guerra da Argélia, esse será o
Libertaçâo, Todos têm em comum urna crítica principal terreno de iuta a que se consagrará1 14A
radical do stalinismo e a denuncia das in- Via Comunista até 1962: “Primeiro a Argélia ' !,
suficiencias do engajamento do PCF contra a clama a 3â edi- çâo, no momento em que a crise
guerra da Argelia. Eles contestam sobretodo a argelina abala a IV República.
votaçao dos poderes especiáis, No dia 212 de O núcleo dirigente se reúne uma vez por
março de 1956, o secretário geral da SFIO , Guy semana. Guattari se investe ativamente na redaçâo
Mollet, que se tornou presidente do Conseille de artigos do jornal com o pseudónimo de Claude
após a vitória dos socialistas nas eleiçôes Arrieux. Em fevereiro de 1961, juntamente com
legislativas, decide pôr em votaçao a lei sobre os Claude Deville e Jean Labre, faz uma entrevista
“poderes especiáis” do exército, dando-Ihe uma com Sartre45, e se dedica sobretudo, nesse inicio
ampia autonomía de açao, A lei é votada pela dos anos de I960, a acompanhar de maneira
maioria dos grupos parlamentares, entre os quais crítica a evoluçâo do PCF. Consagra muitas
o grupo comunista. Na Hispano, rea- ge-se páginas à preparaçâo e à realizaçâo do XVI
imediatamente à decisâo de mobilizar os Congresso, denunciando a fìdelidade dele ao
convocados para a guerra da Argelia. A primei- ra stalinismo. Quanto ao Grupo Hispano, ele é
manifestaçâo de protesto é organizada por bastante comentado no jornal, mas com o nome
Raymond Petit, Roger Panaget, Raymond Le- de “Grupo Simca”, para nâo revelar o trabalho
vildier e Rrivette. Há um choque violento com as subterráneo de solapa- mento que se realiza ali
forças da ordem em Bois-Colombes, que é contra o aparelho stalinista. Guattari detém
mánchete do L’Humanité. A associaçâo dos dois inclusive as condiçôes de sobrevivência de A Via
grupos nâo dura muito, pois logo é denunciada Comunista, pois o essencial dos subsidios que
como um grupo trotskista pelo aparelho do PCF. sustentam o jornal vem da clínica de La Borde, da
A maioria dos militantes de L’Étincelle fica com quai é administrador nessa época46. No clima de
me do e volta a se enquadrar, com ex- ceçâo do mobilizaçâo contra a guerra da Argelia, A Via
grupo de Spitzer (Simon Blumenthal, Paul Comunista consegue rapidamente um grande
Calvez), que prossegue a aventura com os ex- número de contatos, em torno de 200 a 300: “Isso
integrantes da Tribune de Discussion. correspondía bem à maneira como Félix concebía
Desse agrupamento nasce um novo cader- no o trabalho. Nâo se conduz as pessoas com base
mimeografado, o Bulletin de l’Opposition em um programa, mas se fcrabalha com elas, A
Communiste, e ele recebe o nome de A Via atividade que desenvolvía em La Borde47o ajudava
Comunista em Janeiro de 1958. Denis Berger, diretamente, e ele começava a teorizar” . Tratava-
membro da secretaria política do PCI, trava uma se de constituir um grupo nao sectário; nao um
batalha com Pierre Franck para conven- cê-lo a partido clàssico, mas urna or- ganizaçâo
aceitar a existencia desse jornal agrega- dor que se concebida mais sobre o modelo do Grupo Jovens
pretende mais do que um simples holetim interno, da Hispano.
e que ele acha que deve ser vendido em banca. Très dirigentes de A Vía Comunista, Denis
Contudo, nâo consegue convencer a direçao do,a Berger, Gérard Spitzer e Roger Rey, dedicam-se
PCF “Fui expulso. Tinha aderido em 1950”‘ . mais específicamente ao trabalho clandestino de
Raymond Petit e Guattari decidem entao sair do apoio à luta de independência argelina. Como
1:;i N. de T.: Sigia de Section française de l'Internationale ou diretor da publicaçâo, Gérard Spitzer é condenado
2vrière. no final de 1959 por atentado contra a segurança
38 François Dosse

do Estado. Na prisâo, inicia urna greve de fome Sebag, Michel Cartry e Philippe Girard acabam
no dia 27 de fevereiro que prossegue até 20 de expulsos da Uniâo dos Estudantes Comunistas
março. So será libertado depois de dezoito meses, (UEC).
após urna ampia campanha de sensibilizaçâo feita Michel Cartry partilha com seu amigo do liceu
pelo jornal, que constituiu um comité de defesa Condorcet, Alfred Adler, o mesmo entusiasmo
presidido por Élie BloncourfiS. Por sua vez, Denis por Sartre: “Eu sairia completamente nu pela neve
Berger especiaìiza-se na preparaçâo de fugas. para ir buscar Les52Temps Modernes quando a
Derido peía DST1 em 5 de dezembro de 1958, fica revista era lançadâ’ . A aproxi- maçâo de Sartre
preso 10 dias -- nessa ocasiâo é informado de sua com os comunistas leva Alfred Adler a aderir ao
expulsào do PCI. Mais tarde, em fevereiro de PCF em 1953, junto com Michel Cartry, Pierre
1961, eie consegue organizar a fuga de seis Clastres e Lucien Sebag. É ainda Guattari que
mulheres das redes de ajuda à FLN do presidio induz Alfred Adler a tomar distância de Sartre
parisiense de Roquette. Entre 1958 e fevereiro de passando-lhe textos de Lacan: “A53 partir dai,
1965, A Via Comunista publica 49 números e comecei a mudar de lado” . Contudo,
conta com um público surpreendente para um politicamente, Adler ainda
jornal sem nenhum apoio institucional. Tâo logo é
lançado, o Manifeste dos 121 “sobre o diretto à
insubmissâo na guerra da Argelia” aparece em A
Via Comunista, que é imediata- mente
apreendida19.
Os dois polos de A Via Comunista situ- am-se
na Hispano (para o polo operário) e na Sorbonne
(para o polo estudantil). Guattari faz a ponte entre
esses dois mundos e consegue recrutar Michel
Cartry, que conhece por ocasiâo de um curso de
propedéutica em junho de 1952. Desde as
primeiras conversas nasce urna relaçao de
amizade. Michel Cartry logo estará ao lado de
Félix no grupo de filosofia do PCF que se reúne
na Rue de0 la Contrescarpe: “Félix nos iniciou em
Trotski”“ , Eles distribuent a Tribune de
Discussion nas caixas de cor reio de seus colegas,
escrevem com pseudónimos e provocam reaçoes
por parte dos militantes ortodoxos do Partido,
escandalizados com a existéncia de traidores da
causa da classe proletària: “Em urna das reunióes
da célula filosofía do Partido, alguém îançou:
‘Tem gente desleal entre nós’, e foi um de51 meus
melhores companheiros que disse isso” . No
inicio de suas atividades na Tribune de
Discussion, Michel Cartry nao sabe que Félix é
um militante trotskista organizado. Só após essa
primeíra experiência Félix Ihe propôe, a ele e a
Lucien Sebag, dar um passo adiante e aderir à IV
Internacional. Em 1958, ao denunciar no pàtio da
Sorbonne a votaçâo dos poderes especiáis, Lucien
1 N. de T.: Sigia de Direction de la Sécurité du Territoire.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 39

se considera como um auténtico comunista: próximo35. Entretanto, logo se dá a ruptura e em


“É claro que eu nao tinha um retrato de Stalin em seguida o desaparecimento em 1965. É preciso
casa”4. A virada data de 1956: Alfred Adler langa- dizer que alguns comeparam a debandar para o
se com seus companheiros na aventura de A Via maoismo sob o impulso de Simón Blumenthal e
Comunista, onde encontra també m os futuros de Benny Levy, enquanto outros fazem a apologia
escritores Pierre Pachet e Miehel Butel, e muitos de Ben Bella. De fato, desde 1961, podem ser
outros estudantes da Sorbon- ne pertencentes ao lidas em A Via Comunista as teses dos comunistas
“bando” de Guattari. Entre os adeptos de renome, chineses sobre a “coexistencia pacífica’59, mas é
o irmáo de Daniel Cohn-Bendit, Gaby, que sobretudo após a guerra da Argélia, em 1963, que
também é estudante de filosofía na Sorbonne em o jornal ad~ quire às vezes urna colorapao
1956. maoista e publica o programa político de 25
Companheiro de Gaby Cohn-Bendit e de pontos da direpáo do Partido Comunista Chines“
Pierre Pachet, Claude Vivien também é mem- bro Essa evolupào nào agrada Guattari, que se
do grupo da célula filosofía em 1956: “Era o concentra em seus artigos de 1964 sobre estu- dos
grupo mais extraordinário que tinha encontrado críticos do regime soviético, mas se sente cada vez
em minha vida"'”. Capula do grupo, ele participa mais distante da orientapao do jornal e acaba por
de todas as discussoes e da vida cole- tiva dessa abandoná-lo abruptamente: “Afas- tei-me61 de todos
célula que domina o Quartier Latín nessa época de do dia para a noite... Em 1964, cansei" . Ele nao
tensao com os grupos fascistas, sem contar as man será facilmente perdoado por isso, sobretudo por
i fes tapo es de oposipáo contra a guerra da Gérard Spitzer, que o condena por ter cortado os
Argéíia, Guattari adota com Claude Vivien o meios de subsistencia de A Via Comunista.
método testado com outros para convencé-lo a Quando Félix Guattari sente que urna instituipáo
romper com o stalinismo. Convida-o a passar um está se perpetuando, no vazio, na simples gestáo
fim de semana em La Borde: “Isso foi de seu pequeño capital cultural, ele nao hesita em
fundamental na minha vida. Vi os íoucos e me dei tomar a dianteira e encerrar suas atividades, para
conta 36de que eles nao eram muito diferentes de abrir outras pos- sibilidades fora dall. Em 1964, a
mim” . Como muitos, Claude Vivien, que foi hispírapao vem do movimento estudantil que se
para ficar dois dias, instala-se em La Borde, onde radicaliza.
vai trabalhar por quatro anos como monitor, ao
mesmo tempo em que prossegue o curso de
filosofía e as ati- vidades políticas. Participa do Félix: um lacaniano precoce
trabalho oposicionista com Tribuno de Nos anos de 1950, além de sua identidade de
Discussion. Félix o faz ler Trotsky e aderir a IV militante político, Guattari é visto como um
Internacional. Quando o PCF expulsa a célula especialista em teses lacanianas. Na Sorbonne,
filosofía e cria a UEC, em 1956, ele é secretário desperta profundo interesse, pois é conhecido por
da célula dissolvida. Adere a A Via Comunista ao difundir textos totalmente ignorados de Lacan.
lado de Guattari, de Gérard Spitzer, por quem tem Goza do prestigio de ser um teórico capaz de
grande estima57, de Denis Berger e do futuro entrar nesse pensamento muito obscuro para os
advogado Simón Blumenthal. neófitos e, ao mesmo tempo, de ter urna pràtica
Até 1962, A Via Comunista é urna alavan- ca junto ao mundo da loucura por suas atividades na
eficaz contra os males da guerra colonial na clínica de La Borde: “Nessa época da Sorbonne,
Argélia, mas, com os acordos de Evian, a hora é chamavam-me de ‘La- can’,.. Eu aborrecía todo
de desacelerapáo. Aínda restam alguns momentos mundo com Lacan”62.
de engajamento nesse local da Eue Geoffroy- 0 encontró entre o psiquiatra Jean Gury e
Saint-Hilaire, onde se reúne o Partido Félix Guattari foi decisivo nesse aspecto. Em
Revolucionário Socialista da Argélia de 1945, corno se recorda, Félix ainda usa calças
Mohammed Boudiaf, que está em contato entáo curtas, tem apenas 15 anos e é aluno de Fernand
com A Via Comunista e do qual Guattari se sente
Oury, que organiza entâo reuniôes fréquentés com seus os aprende de cor e os recita a quem quiser ouvir
grupos de jovens dos AJ. É nesse contexto que o irmao nesses anos de 1951 e
de Fernand, Jean, que está com 21 anos, encontra pela1952. Guattari assiste em 1953, no Collège de
primeira40vez o jovem Félix em la Garenne-Colombes Philosophie, na Rue de Rennes, a urna conferencia de
François Dosse

onde os dois residem. Quando Jean Oury vai para Saint- Lacan sobre Goethe. O fascínio pelo personagem é
Alban, as relaçôes com Félix sao temporariamente instantáneo. No final de 1954, Lacan o convida para
suspensas, Fernand, por sua vez, fica um pouco assistir ao seu seminàrio em Sainte-Anne. Ainda havia
desamparado diante da confusâo de Felix, e o aconselha pouca gente: “Eu era o primeiro nâo psiquiatra, nâo
a visitar seu irmào psiquiatra em dezembro de 1950. médico”65 a assistir ao seminàrio do mestre, que ainda
jean é responsável entao pela clinica de Saumery no nâo é entâo o must do parisíanismo. Na mesma época,
Loir-et-Cher: “Fernand me disse: ‘Acima de tudo, nâo Félix descobre um campo que explorará com particular
vá quebrá-lo em pedacinhos. Eie nào precisava de mim intensidade mais tarde, o da linguagem, O ano de 1953 é
para se reduzir a pedacinhos”63. Messa época, Guatarri também o do famoso discurso de Roma, no quai Lacan
entra no curso de farmacia, que o aborrece consagra a prevaléncia dos métodos lingüísticos para a
profundamente; em compensaçâo, está fascinado com a psícanálise. Mas Lacan nâo é para ele o único a ;
ativi- dade psiquiátrica de Jean Oury. introduzi-Io nessa questao: “Pela primeira vez . coloco o
Este último, em dezembro de 1950, aconselha Félix problema da linguagem. Passei a me interessar por ele a
enfaticamente a 1er Lacan e inclusive a mantê-lo a par partir de Lacan e de suas invectivas contra Blondel. A
das pesquisas deste, pois suas responsabilidades de partir de Izard e de seu amor pela poesia acima de tudo.
psiquiatra o absorvem demais, e o impedem de ir a A partir de Roudant, a quem expliquei o quanto come-
París. Seis anos mais velho que ele, Jean Oury ço a compreender agora seu projeto. 67 Nâo existe
desempenha junto a Félix Guattari o papel de pensamento sem encarnaçâo na linguagem’ .
confidente, novo substituto da figura paterna ausente. Além do interesse pelo funcionamento da lingua
Em seu diàrio, em 1952, Guattari menciona o que nesse momento em que a linguistica està virando
chama de “A linha JO” (jean Oury): “Nada de proteçâo, moda, existe nele a vontade de expressar, de fazer
deixar fazer desde que a pessoa nao se machuque obra, que é o tema mais recorrente e que o perseguirà
concretamente (corte e ferimento)... Para isso, é preciso por toda a !vida.
silêncio e pouca emo- tividade. Ser simples”^. Aos 26 No dia i" de setembro de 1953, eie escreve em seu
anos, Jean Oury já é um psiquiatra experiente. De suas diàrio em letras maiiisculas: “EU QUERO ESCREVBR
intermi- náveis discussóes, emergem alguns conselhos UM LÍVRO”, e no final do mès coloca-se a questâo de
de orientaçâo profissional. Jean Oury o apoia em seu saber qual poderla ser o conteúdo dele: “Escrever! Eu
desejo de abandonar os estudos de far- mácia e o quero escrever. Isso está se tornando uma necessidade
encoraja a entrar em um curso de filosofia. Faz a Félix imperiosa... Mas escrever o qué? Taivez comece pelas
algumas recomendaçoes de leitura a respeíto: além de minhas dificuldades de escrever... Posso fazer uma
Lacan, Sartre, Merleau-Ponty... Tal foi o papel literatura filosófica. Escrever sobre a morte, por
fundamental desempenhado por Jean Oury na vida de exemplo? Mas nâo li nada. E por muito tempo aínda,
Guattari e a força da relaçào que nascerà entre el es. nâo li nada sobre nada. As lembranças da infáncia? Sím,
Isso explica em grande parte o caráter indes- trutfvel evidentemente, mas elas só vém quando querem. É
da máquina bicéfala que constituirao em La Borde, preciso traba! hádas. CAVAR um primeiro buraco. Isso
mas que deverà enfrentar fortes tempestades. Guattari supoe um aprofundamento poético da situa- çâo. Tendo
faz a ponte entre Paris e a clínica de Jean Oury em excluido o poético e o filosófico, resta-me optar pelo
Saumery de mobi- lete: “A gente passava noites romanesco e pelo diàrio. O primeiro me assusta, o
inteiras discutm- do, com um lado pitoresco, sobre o segundo me aborrece. Poderla taivez fazer um romance
Rorschach. Compunha música concreta, gravava os no dia a día com eu, Micheline, JO. Uma moça ideal,
pássa- ros ou fazia aquilo que chamamos de ‘mente etc.? Alguma coisa que transmitìsse e cristalizasse
aquàtica, que consistía em pegar objetos e fazer frases aquilo que me prende. Escrever um livro fot o grande
em torno deles para estabelecer urna nova sintaxe”65. mito de minha juventude”68
Graças a Oury, Guattari descobre assim, de Guattari fala entáo a “lingua” lacaniana, escreve ao
maneira precoce em relaçâo ao resto do mundo seu guru, que lhe responde e su- gere ocasioes de
intelectual os textos de Lacan sobre a “fase do encontró, de discussoes. Por fim, acaba por se deitar em
espelho", sobre a “agressividade” e sobre a familia. seu diva, anteci- pando-se nisso a toda La Borde, a um
Esses escritos tém tal eféito sobre ele que aos poucos custo de 50 francos por sessâo, um bom dinheiro para a
época. Depois de convencer politicamente Claude
Viviene e de instalá-lo em La Borde, ele o leva ao 16. A pedagogia institucional foi elaborada por Fernand Gury,
seminario de Sainte-Anne em 1956: “Lá fiquei Seu objetivo era estabelecer regras de convivéncia dentro da
realmente bastante impres- : sionado, porque ouvi escola que favorecessem a tomada da palavra pelos alu- nos
alguém que se destoava totalmente dos professores da e a ajudaCilles
escolar em estrella
Deleuze colaboraçâo
& Félix Guattari entre professores
41 e
Sorbonne que eu conhecìa e que tinham sua alunos. Com essa pedago- già, Oury pretendía propor uma
importância; Vladimir Jankélévitch, jean Wahl, alternativa às escolas-casernas.
17. Félix Guattari, cadérne n, 3,14 de novembro de 1952,
Ferdinand Alquié. Fiquei seduzido, e depois foi Félix arquivos IMEC.
que me mandou para o divâ de Lacan” 69. Em 1954, a 18. Félix Guattari, entrevista autobiografica, arquivos IMEC.
atividade intelectual de Guattari é quase que 19. IbkL
exclusivamente consagrada a Lacan: Sou filósofo? Sou 20. Félix GUATTARI, “Journal 1971”, La NRF, outu- bro
apenas estudante de filosofia? Minha atividade destes 2002, n. 563, p. 220.
últimos tempos contém urna 0 marca de preocupaçâo 21. Ibid. IR de T,: Com a traduçâo, perde-se o en- cadeamento
filosófica: os cursos de Lacan"' fonético do original; “Mais oui, mais oui! l'armoire, la
Suas anotaçôes deixam transparecer um tema que Dame de moire, l’arme noire, l'armoise, les armes de moi, la
Guattari sistematizará mais tarde, mouise des années trente, mon père avait fait faillite en se
mas que já está presente nos cursos de Lacan de final de lançant, avec l’appui de cette tante Emilia, dans l’éievage
1954 e inicio de 1955, a noçâo de máquina: “0 sujeito du lapin angora...”]
como individuo-máquina tem manifestaçôes 22. Félix Guattari, entrevista com Ève Cioarec, arquivos
IMEC, 10 de julho de 19S4,
inconscientes que nâo poderiam ser reintroduzidas no 23. Micheline Guillet (Kao), entrevista com Ève Cioarec,
concreto sem um tratamento especial”7*; “Descartes: a arquivos IMEC, 20 de setembre de 1984.
máquina é o relojoeiro. Essas máquinas sâo 24. Ibid.
fundamentalmente humanas (Aragon saúda o 25. Jean Guattari, entrevista com Virginie Linhart.
relógio)...”72; “Se a máquina incorpora as formas 26. Félix Guattari, entrevista com Ève Cioarec, arquivos
degradadas do conhecimento, tal como o demònio de IMEC, 23 de agosto de 1984.
Maxwell, eia farà milagres. É ai que está a inversao da 27. Ibid., 10 de julho de 1984.
inversao da entropia”73. A temàtica maqu inica oposta à 28. Félix Guattari, caderno n. 4,1 de novembro de 1953,
estrutura será mais tarde um dos temas favoritos 4de Félix arquivos IMEC.
Guattari e, depois, da “dupla” Deleuze-G uattarí' . 29. Félix Guattari, caderno n. 1, Janeiro de 1951, arquivos
IMEC,
30. Félix Guattari, caderno n. 2, 4 de outubro de 1952, arquivos
Notas IMEC.
1. jean Guattari, entrevista corri o autor. 31. Ibid., 1952.
2. jean Guattari, entrevista coni Ève Cloarec, ar- quivos 32. Ibid., 8 de outubro de 1952.
IMEC, 15 de novembro de 1984, 33. Ibid, 13 de outubro de 1952.
3. Ibíd. 34. Ibid., 24 de outubro de 1952.
4. Ibid. 35. Félix GUATTARI, “Plutôt avoir tort avec lui", Libération,
5. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cloarec, 23-24 de junho de 1990.
arquivos IMEC. 36. Ouvriers face aux appareils, une experiénee de
6. Félix Guattari, caderno n. 3, 27 de novembro de 1952, militantisme chez Hispano-Suiza, Maspero, Paris, 1970, p.
arquivos IMEC. 39.
7. Ibid., 19 de dexembro de 1952. 37. Féüx Guattari, caderno n. 3,27 de novembro de 1952,
8. Félix Guattari, caderno n. 4, 13 de janeiro de 1955, arquivos IMEC.
arquivos IMEC. 38. Félix GUATTARI, “journal 1971”, 10-23 de se- tembro de
9. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cloarec, 1971, La Nouvelle Revuefinnçaise, n. 563, outubro de 2002,
arquivos IMEC. p. 349.
10. Ibid. 39. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cioarec,
11. Ibid. arquivos IMEC, 23 de agosto de
12. Félix GUATTARI, La Révolution moléculaire, Eneres, 1984.
Recherches, París, 1977, p, 11-12 (doravante citado KM). 40. jean Guattari, entrevista com Ève Cioarec, arquivos IMEC,
13. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cloarec, 15 de novembro de 1984.
arquivos IMEC. 41. Félix Guattari, caderno n. 4,26 de novembro de 1954,
14. Ibid. arquivos IMEC.
15. Ibid. 42. Denis Berger, entrevista com o autor.
43. La Voie communiste, n. 1, Janeiro de 1958, arquivos 50. Micheì Cartry, entrevista com o autor.
IMEC. 51. Ibid.
44. Título de La Voie communiste, n. 3, abril-maio de 1958, 52. Alfred Adler, entrevista com o autor.
42 François Dosse
arquivos BDIC. 53. Ibid.
45. La Voie communiste, n. 20, fevereiro de 1961, arquivos 54. Ibid.
BDIC. 55. Claude Vivien, entrevista com Virginie Linhart.
46. Ver capítulo 2. 56. Ibid.
47. Denis Berger, entrevista com o autor. 57. Gérard Spitzer tem a auréola de sea passado de resistente.
48. No dia 17 de março de i960, é enviado um telegrama ao Seu pai, médico judeu húngaro, foi deportado. Eie se
presidente da República, ao chanceler e ao ministro do engajou na Resistencia em Grenoble e foi responsável pelo
Exército pela libertaçâo de Gérard Spitzer, assinado por FTP de París em 1943, aos 15 anos de idade.
Elie Bloncourt, Claude Bourdet, Albert Chatelet, Gilles 58. Entrevista com Mohammed Boudiaf, La Voie communiste,
Martinet, Daniel Meyer, Marcel Prenant, Oreste Rosenfeld, n. 31, nov.-dez. de 1962, arquivos da BDIC.
Jean-Paul Sartre, Laurent Schwartz. Texto em La Voie 59. La Voie communiste, n. 23, jun.-jul de 1961, arquivos da
communiste, n. 12, abril de I960, arquivos BDIC. BDIC.
49. “Le Manifeste des 121", La Voie communiste, n. 16,
setembro de 1960. Primeirapubiicaçào do texto que se
pronuncia sobre a insubmissâo.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 43

60. La Voie communiste, n. 36, jun.-jul. eie 1963. 1953, arquivos IMEC.
61. Félix Guattari, entrevista com Ève Cloaree, arquivos 68. Ibid., fan de setembro de 1953.
IMEC, 10 de julho de 1984. 69. Claude Vivien, entrevista com Virginie Li- nhart.
62. Ibid. 70. Félix Guattari, caderno n. 4, 24 de maio de 1954,
63. jean OURY, //, donc, Matrices, Paris (1978), 1998, p. arquivos IMEC.
25. 71. Félix Guattari, “Cahier Lacan 1954-55”, ano- taçôes
64. Félix Guattari, caderno n. 2, 2 de outubro de de curso de 15 de dezembro de 1954, arquivos IMEC.
1952, arquivos IMEC. 72. Ibid., anotaçôes de 12 de Janeiro de 1955.
65. Jean Oury, entrevista com o autor. 73. Ibid., anotaçôes de 20 de Janeiro de 1955.
66. Félix Guattari, entrevista com Ève Cloaree, arquivos 74. Félix GUATTARI, “Machine et structure”, ex-
IMEC, 29 de agosto de 1984. posiçâo feita à Escola Freudiana de Paris, publicada
em Change, n. 12; republicado em Félix
67. Félix Guattari, caderno n. 3, 28 de março de GUATTARI,. PT, rééd., p. 240-248.

La Borde, entre mito e realidade

Um lugar mítico no campo, o castelo de La sáculo que, no inicio da aventura, abriga o


Borde abriga uma clínica psiquiátrica singular, na essencial do dispositivo clínico, com seus
qual se trata a loucura de maneira diferente. La gabinetes, a cozinha, os salôes, a enfermaría, a
Borde tornou-se ao longo do tempo uma utopia lavanderia e os quartos nos andares superiores. O
realizada - o movimento ali é testado e provado castelo é ladeado de alguns pavilhoes aos quais
em processo. Brecha na tradiçâo do está ligado. A certa distènda, urna estufa, urna
aprisionamento do mundo da loucura, a expe- horta e, mais adianto, no bosque, um centro de
riència realizada em piena Sologne, no Dépar- equitaçâo, galinheiros, chiqueiros. Ao lado do
tement du Loir-et-Cher, parece reatar com outras castelo, um cedro centenàrio se impóe, até ser
modalidades, pré-clínicas, da indisünçao de abatido mais tarde por uma tempesta- de, e um
loucos e de homens dotados de razáo, da pouco mais afrente um grande lago lembra que
normalidade e da patologia, sem com isso negar o estamos em Sologne. Nas proximidades, há uma
horizonte medicalizante necessàrio para sala de espetáculos que pode recebar uma centena
responder ao delirio psicotico. de pessoas e uma pequeña capela transformada
Mundo à parte, o navio labordiano navega no em biblioteca. Foi ali, na comuna de Cour-
espaço aberto de um vasto parque de 18 hectares Cheverny, na regido central, nâo longe de
em cujo centro despon ta o velho cas- telo de um Chambord e a 15 quilómetros de Blois, que
tomou corpo essa experiencia coleti- va que destinados aos alienados”. Pode-se considerá-la
pretendía reinventar o mundo, manten- do-se à como uma peça-chave da política de
parte de seus sobressaltos1. aprisionamento e do poder abusivo dos alienistas.
Contudo, ela pode ser vista também como uma
forma de proteçâo contra o arbitrio: “A lei de 38
A fiiiaçâo da psicoterapia era uma lei que, bem utilizada, permitía a defesa
institucional da pessoa ao mesmo tempo contra sua familia e
Na origem desse mundo à parte, uma lei da contra as usurpaçôes 2 das autoridades
primeira metade do sáculo XIX define era 1838 o administrativas municipais” .
estatuto jurídico dos “estabelecimentos públicos Um local memorável da renovaçao psiquiá-
trica, situado em Saint-Alban, em Lozère, e fún-
Cilles Deleuze & Félix Guattari 45

dado em 1921 pelo doutor Tissot, está na ori- lettura. Participou cedo de urna experiencia
gem da instituiçâo de La Borde. Urna mudança ¡novadora da Comunidade da Catalunha, e ali
radical da prátíca psiquiátrica se cristalizou no aprenden com o professor Mira e Lopés urna
fim da Segunda Guerra Mundial nesse hospital de organizagáo original dos servidos de saúde,
tipo particular, privilegiado pelo isolamen- to. A ampiamente inspirada na psiquiatría alema,
contestaçâo encontrará em Saint-Alban um de Quando Tosquelíes atravessa a fronteira francesa,
seus redutos prediletos, pois o hospital abrigou leva com ele urna obra, que se encarre- gará de
toda urna rede de resistentes durante a guerra. traduzir para o francés, do alemao Hermann
Foram acolhidos insubmissos e resistentes, como Simon, a propósito de sua experién- cia de
também alguns grandes intelec- tuais que Guttersloch, segundo a qual é preciso cuidar da
passaram urna temporada ali. Desde as reformas instituí gao psiquiátrica tanto quanto dos doentes,
de Pierre Balvet, que permitiram transformar os estimulando as atividades de traballio e de
exécutantes, que eram os enfer- meiros, em criagao de toda a comunidade hospìtalar'l
cuidadores legítimos, os doentes se beneficiam de As posigòes vanguardistas de Tosquelíes
urna humanizaçâo do funciona- mento asilar. encontram um quadro propicio no hospital de
Lucien Bonnafé, o novo diretor do hospital a Saint-Alban, grapas ao clima de efervescència
partir de 1942, comunista e chefe do maquis* da intelectual que se desenvolveu ali durante a
alta Lozère, permite aos doentes sair do recinto guerra. Esses psiquiatras sào quase todos da
do asilo e travar relaçôes com a populaçâo do mesma geragao; com menos de 30 anos, eles tèm
entorno. o mundo a reinventar. Com a iniciativa da criaqào
A chegada, em 1939, de urna forte perso- de um clube dos doentes do Hospital Saint-Alban,
nalidade, François Tosquelíes, mudou totalmente Tosquelíes encontra seu lugar em um trabalho
os hábitos. Esse psiquiatra catalâo foi responsável coletivo intenso que leva à criagao de urna
pelo serviço psiquiátrico do exér- cito sociedade erudita, chamada de Socie- dade do
republicano espanhol. Militante do POUM Gévaudan: “Para preparar um futuro feliz, falava-
(Partido Operário de Unificaçâo Marxista, de se da psiquiatría, tratava-se de rever de maneira
orientaçao trotskista), ele fugiu da Espanha crítica os 4conceitos de base e os tipos de agao
franquista, atravessando os Piríneus a pé até possiveis” . Em 1952, quando Bonnafé é
chegar ao campo de refugiados espanhóis de chamado para um cargo em Paris, Tosquelíes se
Sept-Fons. Informado por outro psiquiatra ca- toma médico-diretor do hospital.
talâo, Angels Vives, a respeito do confmamento O contexto global da Resistència, a espera das
de Tosquelíes nesse campo, Pierre Balvet, que remessas de armas por paraquedas, os
conhecia bem a reputaçâo desse “psiquiatra acolhimentos dos maquisards, os vínculos
vermelho”, vai libertá-Io e o leva para a clínica : construidos com a populagào vìzìnha: tudo isso
de Saint-Alban, para que ele contribua com sua faz do hospital de Saint-Alban um melo aberto
experiência e seu desejo de renovagao. que trabalha com os camponeses e com os
Tosquelíes se iniciara na psiquiatría aos 16 soldados do país e que se engaja naqui- lo que a
anos. Aos 24, quando os republicanos espanhóis Sociedade de Gévaudan quatifìcou de “geo-
tiveram de enfrentar o pronunciamiento do psiquiatria", isto é, a insergào da atividade
general Franco, ele já era médico psiquiatra fazia psiquiátrica nas tradigòes locáis. Esse meio
quatro anos no Instituto Pere Mata de montanhoso implica urna pràtica mèdica mi-
grante, que consiste em buscar os doentes em
suas casas e em assegurar o acompanhamento
de R. X: Lugar retirado, geralmente ñas montanhas ou Ras pós-cura no domicilio.
florestas, onde se agrupava a Resistencia armada durante a O elo entre o hospital e a Resistencia era tao
segunda guerra mudíai. Diz-se igualmente, de um grupo de
resistentes da Ocupando. Por extensáo, maquilará é aquele que orgànico que o recrutamento dos internos eslava
resistiu, na Ocupagáo, em um maquis. estreitamente ligado ás redes da Resistencia local.
Réus, onde se perpetuou durante um século urna O diretor, Lucien Bonnafé, orquestra essa
tradigáo fundada na atividade de centros de ativídade. Recebe Paul Eluard, que transforma
Saint-Alban em plataforma de edipào clandestina, assim Um novo construtor: Jean Oury
como importantes agentes de liga- gao da Resistencia, Jean Oury permanece em Saint-Alban até 1949,
entre os46 quais Georges Sadoul e Gastón Baissette. quando entâo é chamado para substituir, em Saumery,
Encontra seu seguidor no curso de medicina que faz em
François Dosse
um amigo de Tosquelles, Solanes, que partiu para
Toulouse, o filósofo Georges Canguilhem, entao assumir um hospital em Caracas. Assim, Oury chega a
comissário adjunto da República em Clermont-Ferrand: Loir-et-Cbair para um período que nao deveria durar
“Tudo isso teve um papel muito importante na aventura mais do que um mês e acaba se transformando em
de Saint-Alban, esse lado muito misturado à guerra, ao instalapao definitiva, até 1953.0 castelo do sáculo XVÏI
movimento da guerra em todos os sentidos: a resistencia de Saumery é entâo a única clínica psiquiátrica do
local, os maquis de Auvergne, com o monte Mouchet, a departamento. Essa clínica privada “praticamente nâo
resistencia intelectual, a edipao clandestina”3. Essa funcionava mais, e tinha apenas doze leítos”10. É lá, em
experiencia irá se revelar determinante na abertura de La Saumery, na clínica de La Source, que se forma a futura
Borde; segundo Jean Oury, constituirá seu “crisol", sua equipe de La Borde: “Sob muitos pontos de vista, os
“matriz”6. anos de 1950 a 1953, o período da11clínica de La Source,
No imédiato pós-guerra, numerosos jovens internos sao o ápice da historia labordiana” .
optam pelo Saint-Alban. Jean Oury chega lá em Nesse microcosmo, com um número muito limitado
setembro de71947, com toda urna gerapao que se forma de doentes, defme-se um certo estilo de vida coletiva.
nessa escola .0 contato com Tosquelles é imédiato. Oury “Tratava-se de um grupo bastante unido a partir de
é portador de um projeto que concebeu aos 1S anos, em pessoas que tinham se conhecido nos Albergues da
1942: constituir um grupo de trabalho entre colegas, Juventude ou no suburbio de origem de Oury - La
suficientemente libertàrio. Ele está impregnado, como Garenne-Colombes -, ao qual se juntaram alguns ami-
Guattari, da experiéncia de seu subùrbio de origem, a gos”12. Todas as pessoas das relapoes de Jean Oury
Garenne-Colombes, dos ÁJ, de movimento de jovens passam um tempo ali, para ajudar nos cuidados ou nas
muito ativos desde a Libertapáo. Nascido em 1924, Jean oficinas de animapao nos fins de semana ou durante as
Oury vem da camada popular: seu pai era po- lidor na ferias, constituindo urna verdadeira tribo: “Saumery éo
Hispano-Suiza, a grande e prestigiosa empresa de La periodo que chamei de ‘portas fechadas’”13. Em Sau-
Garenne. mery, Oury concebe sua pràtica psiquiátrica na linha de
Jean Oury chega a Saint-Alban com o texto de urna Saint-Alban: “A psiquiatría sem essa articulagào é misti
conferencia de Lacan do mès de maio de 1947 que se ficagao. Tosquelles fa- lava do heterogéneo polìcèntrico
tornará para ele a referencia mais importante ao longo e ao mesmo tempo do transdiscipllnar. Nao se pode
de seu percurso psiquiátrico. Ocorre que o psiquiatra Aj cuidar de alguém sem levar em conta1 seu traballio, sua
uriaguerra organizou com seu colega Georges infancia, sua situagào material" '1. Quando os
Daumézon e com o sociólogo Georges Gusdorf urna proprietários da clinica manifestaram a in- tengào de
sèrie de intervenpóes da Rué d’Ulm para dar con- retomà-la e se opuseram a todas as propostas de
tinuidade ao congresso de Bonnevaí de 1946, no qual organizando, Oury decidiu levar a experiència para
Lacan havia desenvolvido a tese da causalidade outro lugar.
psíquica: “Vi.desfilarem pessoas que falavam, até que Oury havia conseguido ampliar a estrutu- ra de
no mès de maio oupo um sujeito; digo a rnim mesmo: acolhimento para quarenta leitos, mas, isolado em
‘Enfim, aíguém inteligente; era Lacan, e isso Saumery, único responsável pelas questòes psiquiátricas
permanece”5. Essa conferencia determina sua vocapáo. de todo o departamento, ele fcambém tinha muita
Até entáo ele vacilava entre o curso de física-química e vontade de ir embora e de criar sua propria instituigao,
a psiquiatría: a voz/via de Lacan decídiu por ele. A oportunidade surgiu em abril de 1953, quando
Contudo, ainda demorará para estabelecer um contato descobriu que o castelo de La Borde, a dez quilómetros
pessoal com seu mestre; “Somente em outubro de 1953 dall, estava à venda. Ele o adquì- riu e levou consigo
é que o vejo em análise, e isso durou até 1980:27 anos!9 quase todos os doentes de Saumery e seus oito
À razâo de duas vezes por semana, pois sou incurável” . cuidadores. O estado do castelo era tal, na época, que
Jean Oury participa, assim, de toda a aventura lacaniana; nào encontrava comprador. Do castelo cercado de
a cisao de 1953, a fundapáo da Escola Freudiana de construgòes em ruina, apenas o tèrreo e um andar eram
Paris em 1964, e se ocupa durante quatro anos da ha- bitáveis. Além disso, La Borde era bastante iso-
comissao de adesáo, ao lado de Lacan, de Serge Leclaire ìado, pois o vilarejo mais próximo encontrava- -se a
e de Mustafa Safouan. quatro quilómetros, e a primeira cidade, a treze. Esse
nascimento é acompanhado de imediato de um
reconhecimento pelo meio psiquiátrico: desde 1954, os qual a Ioucura so comporta negatividade: “Eu
psiquiatras Louis Le Guillant, Évelyne Kestemberg e apresentava essa criagáo como urna especie de defesa
Georges Daumézon procuram discutir com Oury e lhe biológica: tentativa de reconstrugào do mundo, fungào
enviam seus doentes. de vicariància,.. ”17 Nessa& Félix
Gilles Deleuze
tese,Guattari
Oury estabelece
47
urna
Com a criagáo de La Borde, comega urna aventura conexào entre a fìssura provocada pela lesáo psíquica
nova e revoìucionària. Seu idealizador batiza a clinica do psicotico e urna autoprodugào: “0 pròprio18 delirio é
conferindo-lhe, com certa dose de humor, urna constituí produ- tivo... Eu falava de conaqao’ estética” .
gao dita do “ano I”, instaurada desde a abertura do Oury dirá que urna clínica nào deve ser confundida
estabelecì- mento, em abril de 1953. Essa carta com urna "industria de calvados”. O grupo terapèutico
fundadora instituí o principio comuni do coletivo de de La Borde deve se des- fazer do funcionalismo com
trabalho como grupo terapèutico segundo très principios suas segòes, suas especializagdes e sua hierarquizagào.
organizadores. O centralismo democrático assegura a Eie nào quer reproduzir o que se passa nos hospitais
preeminencia do grupo gestor e responde a um principio clássicos, que empregam ergoterapeutas ou
marxista-leninista aínda em voga nesse ano do socìoterapeutas fechados em sua especia- lidade e
desaparecimento do “pai dos povos”. O segundo separados do resto do pessoal, A re- voluqào deve ser
principio, que preve a precariedade dos estatutos, permanente all, assim como a reflexáo, que deve seguir
corresponde à utopia comunista segundo a qual toda passo a passo as iniciativas práticas para avahar sua
pessoa deve ser capaz de passar do trabalho manual ao possivel fecundidade.
trabalho intelectual e vice-versa: qualquer um na clínica Úma das questòes particularmente delicadas diz
pode ser convocado a passar da atividade de cuidados respeito à retribuigào salariai do traballio realizado em
médicos a tarefas de limpeza, de co- ordenagáo de La Borde. 0 principio de inicio adotado, bastante
oficinas de criagáo ou, ainda, de preparagáo de complexo, é o da defìnigao do salàrio em fungao de um
espetáculos. Um mecanismo de revezamento das tarefas coeficiente esta- belecido provisoriamente segundo urna
é sistematizado. O terceiro principio, antiburocrático, ponderalo de criterios ligados à difìculdade da tarefa e à
instituí urna organizagáo comunitària com a coletivi- sua capacidade terapèutica. Desde a criagào de La
zagáo das responsabilidades, das tarefas e dos salários. Borde, Oury implanta o Cìube da Clínica, baseado no
Sem se reivindicar um programa que posteriormente modelo de Saint-Alban: “0 primeiro gesto do doutor
terá um nome, o de “psicoterapia institucional”, já é Odin [trata-se na ver- dade de Jean Oury] foi procurar
possível demarcar todas as temáticas dessa corrente um lugar com cadeiras e urna mesa para vender
inovadora: "A permeabüidade dos espagos, a liberdade sabonetes19 ou cañetas esferogràfìcas, jogar cartas ou ler
de circular, a crítica dos papéis e das qualifica- gòes revistas” . Assim como em Saint-Alban, o objetivo era
profissionais, a plasticidade das instituí- gòes, a criar um espago social nào tributàrio das relagòes
necessidade de um clube terapèutico dos doentes”13. hierárquicas de poder, um lugar de trocas entre
Um texto pomposo define ironicamente essas cuidadores e doentes, monitores e enfermeiros, pessoal
orientagóes: “Ontologia para urna fenomenologia nao de servigo e médicos. Esse clube nào é nem um pouco
dedutiva”, com um subtítulo mais curto; “La menthe à marginai na vida da clinica. Ao contràrio, concede-se a
l'eau”’L Trata-se de se situar em urna postura criativa eie a melhor parte do castelo, o grande salào do tèrreo e
caminhos nao tragados da maneira mais inspirada, o pequeño salào contiguo. Abre- -se ali um bar onde se
deixando que o acaso e a espontaneidade ajam, como encontram bebidas sem àlcool, cigarro. Urna assembleia
teorizaram os surrealistas. Oury invoca nesse campo a geral deve ser realizada á'cada qtiinze dias para designar
influència de Lacan, mas também de Francis Ponge: a diregào e o presidente. No inicio da aventura, o
"Desviar o objeto é o procedimento de Francis Ponge. funcionamento da diregáo é permitido apenas aos
Fazer surgir aquilo que Lacan chama de Coisa. Lá se monitores, com a exclusáo dos doentes, mas as coisas
toca urna certa superficie, urna semàntica que se reporta mudarti quando se percebe que muitos doentes sao
diretamente ao acolhimento de psicóticos”16. plenamente capazes de as- sumir responsabilidades
Desde o inicio, além da paixáo por sua fun- gao de administrativas. Essa sociabilidade é mantída em La
terapeuta-psiquiatra, Oury tem o maior interesse pela Borde por urna profusao de comités de oficinas e de
criagáo, à qual consagra sua tése. Ao fazer a ligagáo reunióes de todo tipo. A diregáo do clube comanda ofi-
entre criativídade e lou- cura, ele pretende contestar a cinas que se ocupam do jornal dos internos, La Borde-
ideia segundo a Éclair, da atividade de pirogravura, do coral, do teatro
de marlonetes, etc. Eia tam- bém supervisiona a
e
N. de R, T,: Literalmente pode traduzir-se como “amenta na agua” ou tesouraria e dispoe, para isso, de autonomia financeira
“cha de menta’’ (hortela), e aponía para o torn irónico do subtítulo. em relagào à clínica: “Estabelece-se assim urna
estrutura 20formal, democrática, de representagao dos Guattari, já entáo chefe de bando, enfrenta com
internos” Para envolver todos os funcionários ñas determinagáo e poe em pràtica seus co- nhecimentos de
relagòes48 com os Dosse
doentes, decide-se implantar, sete judo para imobilizar se necessàrio qualquer veleidade
meses apósFrançois
a criagáo da clínica, urna co~ missáo de de violencia. Quanto aos funcionários, eles dispoem de
cardápios: fazer o cozinheiro sair da cozinha e, ao vários locáis de discussào para se expressar, e o diálogo
contràrio, fazer com que mais pessoas participem das ajuda a neutralizar os litigios e a recuperar a fluidez
atividades da cozinha ajuda a desenclausurar, a acabar necessària. Muito dìretivo, Guattari co- mega a
com as espe- cializagòes e a desencadear urna dinàmica acompanhar alguns doentes e se mos- : tra
de homogeneizagáo do grupo. particularmente intervencionista em face ¿aqueles que
Essa política voluntarista nao está isenta de se refugiam em seu leito, Ele os intima a sair do quarto
resistèncias e conflitos, pois atinge em chelo a e a se dedicar ás ati- vidades previstas na grade de
especializagào de cada um. As tensoes criadoras devem horario. Entre o seminàrio de Lacan que acompanha
suscitar urna atengáo constante à alterídade nesse lugar regularmente e o terreno labordiabo, Guattari adquire
onde a psicose interpela sempre de maneira diferente as uma verdadeira formagao psiquiátrica.
lógicas racionáis. As trocas comunitárias implantadas Guattari fiexibiliza seus métodos quando se
ñas instituigóes labordianas visam tirar os individuos encontra do outro lado do espelho na con- digáo de
do isolamento, arrancá-los de suas tentagóes mortíferas, paciente. Na verdade, em 1957 é enca- minhado por
romper com a compul- sáo de repetigáo, recriando Oury a Tosquelles, em Saint-Al- ban, para ficar
permanentemente novos grupos-sujeitos. O objetivo da internado por algum tempo a fim de escapar do servigo
aplicagáo dos principios dessa terapia institucional nao militar e da guerra da Argelia. Nessa ocasiáo, ele avalla
é tanto criar o relacional como tal, mas sim “de- o quanto pode ser insuportável para um paciente estar
senvolver novas formas de subjetividade”21. submetido a enfermeiros autoritários. Os debates desses
Félix Guattari mantém Jean Oury a par de suas anos de 1950 tratam da ínfluén- cia de Sartre e de suas
atividades políticas, sobretodo do seminàrio de Lacan, teses existenciaUstas. A discussáo com Oury sobre as
que ele acompanha regularmente desde os anos de relagoes entre médicos e enfermeiros é reveladora dessa
1950. Convidado a ir para La Borde, Félix instala-se ali preocupagáo de disfuncionalizar: “A perspectiva central
com sua;; companheira Micheline Kao em 1955. A é, portanto, exatamente o desaparecimiento de
divi-;; sao de competencias se modifica um pouco entre determinados papéis, de estereotipos: o mesmo deve ser
os dois amigos, Embora Guattari continue sendo o feito pelo louco e pelo médico ou pelo enfermeiro, para
preposto para as relagoes externas, ¡ncumbem-.no alcangar uma promogao de relagoes humanas que nao
também do cìube terapéutico da clínica e da mais conduzam automaticamente a papéis, a este-
organizagáo do trabalho. Com a instalagao de Guattari, reotipos"24. Em La Borde, os enfermeiros sao monitores
La Borde logo se torna uma “máquina bicéfala”. É essa sem jaleco branco, e náo se distinguerei dos doentes.
dupla de amigos que permitirá superar todas as pravas e Com humor, Oury inverte os valores estabelecidos
manter o rumo de urna insti fcuigáo que produz segundo os quais a internagáo de um louco se reveste
desequilibrios para enfraquecer suas bases e man ter-se de um ca- ráter definitivo. Ao contràrio, ele considera
receptiva ás inovagoes. os doentes como passageíros, ao passo que o corpo
Guattari é mais atraído pela aventura intelectual médico, este sim, é o elemento estável, enraizado e
encarnada pela experiencia labor- diana do que pelo crònico. Desde o inicio da aventura, e depois em Saint-
mundo da psicose: “É multo curioso, mas é verdade que Alban, encontra-se a intuigáo de que existe verdade no
eu nao estava muito interessado na loucura”22. Ao discurso do louco, Sem feticbízar o delirio, procura-se
contràrio, a atividade de organizador e de coordenador nele uma parte de criatividade à qual o olhar clínico
se adaptava perfeitamente ao militante político: “Eu deve estar atento, o que25 “foi chamado de dimensáo
tinha esse comportamento militante um pouco rígido transcendental do louco’ .
em face dos funcionários que estavam muito surpresos Guattari logo se incumbe pessoalmente de alguns
ao ver se introduzír uma disciplina de funcionamiento, doentes, como Jack Brière, que chega a La Borde em 29
um estilo de reunido, de controle das tarefas” 23. A vida de janeiro de 1959. É recebido por Guattari, que farà
cotidiana na clínica náo é de lato muito tranquila. Antes psicoterapia individual com ele e o acompanhará. até
da adogao dos neuroìépticos e da quimioterapia, os que deixe a clínica em 1967. O tratamento de Jack
conflitos com os doentes po- diam acabar em pugilato, Brière, às voltas com angustias fóbicas, é internamente
e nao era raro rece- ber uma caíeteira ou qualquer outro clàssico: “Félix Guattari náo falava. Eu deita- va em seu
utensilio na cabega, diva. Ele ñcava atrás e ouvia”26. jack Brière será durante
quatro anos presidente e tesoureiro da Assembleia Geral
dos internos. DìspÒe de uma efetiva autonomía lo a escrever urna peça de teatro, representada á medida
financeira, mantém o registro contábil, gere urna conta que ele escreve, que, com duraqao de quase urna hora, é
bancària em Blois e, por outro lado, se beneficia da apre- sentada na clínica com o título de Exoüque Oc-
generosidad© de Guattari, que Ihe ga- rante o dinheiro cident. O cineasta Jacques Baratier, seu amigo, que o
Gilles Deleuze & Félix Guattari 49

necessàrio para a compra de livros sobre a metalurgia, visita sempre em La Borde, lhe dedicará um belíssimo
sua paixâo, e que Ihe servirâo mais tarde quando fizer o filme em 2004, no qual Laurent Terzieff encarna o
curso do Conservatorio de Artes e Oficios, Jack Brière papel de jacques Besse, em grande parte escrito por ele
fica aturdido diante do ritmo de Guattari, que 2é mesmo, que dá respostas do tipo: “Nao procure a
apelidado por um cíe seus colegas de “Speedy Guatta” '. doenga atrás das palavras, mas o poeta”31.
Quando se pergunta a Jack Brière o que Guattari Ihe Para sair do duplo impasse dos grupos grandes
proporcionou, eie responde: “Viver. Ele estimulava as demais ou da mera relagáo dual entre cuidador e doente,
pessoas a realizar seu desejo e, quanto a mim, decide-se em La Borde criar pequeñas unidades:
encorajou-me a fazer escultura”28 “Tínhamos assim seis ou sete grupos com nomes
Entre os pacientes, existe um a quem Guattari é bizarros. Houve um, depois de321970, que foi chamado
particularmente apegado, grande artista, poeta e músico de grupo dos desarvorados’” Depois, passamos á
que aterrissou ali em 1955 e permaneceu até sua morte constitui- qao de unidades terapéuticas de base (UTB)
em 30 de maio de 1999: Jacques Besse, nascido em que tém como fungáo estar na medida certa para
1921, faz um curso mèdio brilhante e ingressa na classe conseguir modificar a consistencia subjetiva dos
preparatoria, estuda filosofia e se torna diretor musical pacientes. Essas unidades restritas de composigáo
da companhia de Charles Dullin em 1943. Na numérica variável, mistas, pois compreendem tanto
Libertaçâo, assina algumas músicas de filme para Yves internos como monitores, tornam-se entáo unidades
Allégret, Alain Resnais, e compôe um concerto para indivisíveis de quin- ze pessoas, cuja lei se impóe aos
piano. Em 1950, retomando sozinho a pé de urna individuos que sao seus membros. A UTB deve
viagem à Argelia, sua vida sofre urna re viravo Ita. funcionar como um lugar privilegiado do sujeito para
Vagueia entao de prisao em hospital psiquiátrico até que atenuar a dificuldade que o individuo sente de centrar
Oury e Guattari o acolhem em La Borde, abríndo-lhe as bem sua fala e seu comportamento. Por fim, essas UTB
colunas da revista Recherches, que publica alguns de tiveram o efeito perverso de suscitar um familiarismo
seus escritos'29. excessivo, reforjado nessas pequeñas unidades que tém
Regularmente, Jacques Besse tem vontade de sair da a tendén- cia a se fechar em si mesmas: “Lembro do
clínica e passear em Paris, fonte de inspiraçâo literaria: caso de um doente em 1971 que chega aquí e a gente
“Voltando mecánicamente para Saint-Germain-des- lhe diz: ‘Vocé vai para tal UTB’. No día seguíate ele
Prés, eu me pergunto corn que peso de Amor, com que velo me procurar dizendo: ‘Estou com problemas com
imposto de Amor que nâo seja o imposto de sangue, minha familia.33 Conseguí dinheiro para que fosse
deve- remos pagar a necessidade de todos os nossos embora daqui” .
atos prosaicos em face do Céu que nos convida, nos, o
mais absurdo dos povos, à mais poética das
Alianças!”30. Guattari Ihe dà urna nota de 500 francos A invasáo dos "bárbaros"
para que possa fazer um pas- seio, mas o dinheiro é Com a instala gao de Guattari em La Borde, há
gasto em bebida durante o dia, e no firn da tarde também a chegada do que Oury qualifica de
Jacques Brière é internado à força. É preciso muitas “invasores”, jovens estudantes militantes que, por
vezes buscá-lo no hospital psiquiátrico de Ville-Évrard recomendagao de seu amigo Félix, passam um tempo na
para trazê-lo de volta a La Borde. clínica para se confron-
Besse participa ativamente de todos os saraus
culturais.de La Borde, Consegue-se inclusive convenèe-
50 Francoís Dosse

tar com o mundo da Ìoucura. O papel desses se tornar monitora ali, vivendo dois anos na
“bárbaros”, como Oury os chama outras vezes, é clínica, onde nasce seu filho.
muìto importante, na medida em que a clinica O companheiro de colegio de Cartry, Alfred
cresce rapidamente - eia passa de 48 do e lites em Adler, também futuro antropólogo, vive a mes-
1955 para 90 em 1958. Esses "bárbaros” advèm ma experiencia fascinante de La Borde e na época
do mundo da cultura e da mili Lància política. Os considera Félix como seu “gura”. Esses
primeiros a chegar sao os filósofos do “bando de “bárbaros” sao chamados, aliás, de "soldadi- nhos
Félix”, que optam, quase todos, pelas cièncias de Guattari”. Buscando como tantos ou- tros
humanas: Luden Sebag, Michel Cartry, Alfred escapar da guerra, Alfred Adler apresenta seu
Adler, Claude Vivien e a futura psiquiatra Ginette dossié no Centro Hospitalar Universitário ao
Michaud. O local de encontró dos “bárbaros” doutor Lebocivi, que o encaminha á clínica
com Félix é a biblioteca da Sorbonne, lugar dirigida por um amigo de Guattari, Claude Je-
privilegiado de sociabilidade politica: o angirard, a urna dezena de quilómetros de La
bibliotecàrio Romeu, aìém de ser de grande ajuda Borde. Com isso, ele pode ir todos os dias a La
por seu saber enciclopédico, inicia os estudantes Borde, situada em Cour-Cheverny, e participar ao
de filosofía na política, con- duzindo-os na vía do lado de Guattari de todas as atividades. É ainda
engajamento comunista. Para Guattari, os em La Borde que Claude Vivien escreve seus
caminhos da renovagáo da müitáncia política primeiros textos sobre Freinet:36 "A gente dormía
passam por La Borde, onde ele convoca seu no castelo em saco de dormir” .
“bando” a se investir ñas ativi- dades da clínica. Quanto a Ginette Michaud, lanqa-se nos
Táo logo La Borde é criada, na primavera de cursos de medicina e de psicología, Para ela, La
1953, Michel Cartry é convidado para lá. Borde é decisiva nesse aspecto, onde se instalará
“Vivemos La Borde como urna grande utopia, como psicóloga: “O conceito de transver -
Lembro de Oury vindo nos buscar na estapáo de salidade fui eu que ínventei e 37transmití a Félix
Blois. Passamos urna noite interna em seu para que trabalhasse sobre ele” . Na época, Gi-
gabinete comentando Diàrio de um Sedutor de nette Michaud vive com Luden Sebag, jovem
Kierkegaard”3'1. O futuro antropólogo é incum- filósofo convertido á antropología e considerado
bido do acompanhamento de um jovem esqui- na época como potencial sucessor de Claude
zofrénico tratado por Guattari e que escreve Lévi-Stauss. Ele também se envolve em La Borde
poemas, tem um diàrio e assiste ao seminàrio de e leva para lá seu irmáo Robert Sebag, o brilhante
Lacan. Guattari o envia de tempos em tempos a matemático.
Paris e conta com seu amigo Cartry para recebe- Essa primeira “invasáo” dos bárbaros é se-
lo. guida de urna segunda onda, que corresponde ao
Chegadas as ferias universitárias, os “bár- fim da guerra da Argelia e á realocapao do
baros” se instalam temporariamente em La Borde investimento militante de Félix Guattari junto aos
e participara de todas as atividades da clínica. Sao estudantes nos meios sindicalizados da UNEF e
encarregados entáo da tipografìa, desta ou dos mutuários da MNEFL Os anos de 1960, após
daquela oficina de argila, de cerámica, e a independencia da Argelia e antes da explosáo
participam das reunióes em que estáo presentes de 1968, drenam um grande número de
médicos, enfermeìros e doentes: “A recusa de ver estudantes estagiários, muitos dos quais se
a Ìoucura como urna simples doen<;a e urna investem com urna verdadeira paixáo militante
maneira de ligá-la à pròpria aventura intelectual, ñas atividades da clínica. Para esses estudantes
em relapáo à linguagem, à poesìa. Tudo isso era animados por um ideal político, trata-se do duplo
verdaderamente35 novo. Nao se ouvia isso encontró com o mundo da psiquiatría e com urna
correntemente” . Quando Cartry opta pela utopia social realizada aqui e agora: “Cheguei a
antropologia, intensifica ain- da mais o contato La Borde num día de veráo. Acho que tinha 20
com La Borde, e sua mu- Iher, Christiane, decide anos. Era o fim da guerra, um amigo tinha saído
da prisáo, o tempo estava bonito... ”3il É assim
que a estudante de letras e futura escritora Marie
Cilles Deleuze & Félix Guattari 51

Depussé inicia o relato de seu primeiro contato Marie Depussé tem a dímensáo da perti-
com esse outro-mundo. Na época, cursa a Escola nencía analítica de Guattari principalmente
Normal Superior (ENS) em Sévres e regularmen- quando, num dia de grande abatimento, alimenta
te ouve Lacan com seu amigo, estudante de urna fantasía de autodestruipao. Seu desejo de
filosofía, que acabou de sair de tres meses de acabar com tudo é táo intenso que seu irmáo
prisáo por causa de urna manifestagáo contra a percebe e se abre com Guattari: “Um dia,
guerra da Argéiia. Tendo decidido festejar a estupefata, cruzo com Félix longe dos gabinetes
übertapáo no campo, eles foram para La Borde. A de La Borde e ele me diz: ‘Parece que vocé está
paixáo foi imediata: “Se fiquei em La Borde é com vontade de morrer. Entáo, eu quero lhe dizer
porque estava maravilhada pelos loucos, pela urna coisa: morraf E eu ri mui- to. Foi dito de tal
maneira como se cuidava deles5'39. Maríe Depussé forma, na hora certa, no crúzame nto certo. Eis
tornou-se entáo estagiária antes do tempo, pois como Félix trabalhava com um verdadeiro poder
em 1962, data de sua chegada, a funpáo aínda nao de terapeuta’42. Marie Depussé permanece,
existe. Depois de desembarcar em La Borde, portanto,3 em La Borde, e consagra duas obras á
Marie Depussé nunca mais partirá de verdade. clínica’ . Seu talento na escrita lhe vale corrigir
Ela intervém em urna reuniao a propósito de os textos de Guatta-; ri. Ela o dissuade a
um doente cuja violencia, para ser contida, parece prosseguir suas tentativas Accionáis: “Ele foi
exigir que se decida por urna série de multo obcecado por Joyce durante toda a vida.
eletrochoques - em La Borde assume-se tam- bém Ele chegou com Joyce e morreu com Joyce. Há
esse aspecto da psiquiatría, e, alias, sao muitos os murtas44 pessoas que foram destruidas por
internos que os solicitam reiteradamente para Joyce” . Em compensapáo, quando corrige seu
acalmar sua angustia. Ela expressa sua convicpao texto sobre a “transversal^ dade”, fica elevada
de que esse doente busca principalmente, com com a qualidade e densida- de da reflexáo.
suas atitudes provocadoras e violentas, instituir Pouco depois, em margo de 1963, o otro
um diálogo, urna escuta: “Félix veio em minha escritor, militante da UEC, dá seus primeiros
direpáo, sorriu e sem ro- deios me disse para passos em La Borde, Michel Butel. Sua irmá está
abandonar meus estudos, que meu futuro estava em mau estado psicológico, e seu amigó; Jean-
em La Borde... Nessa época, Félix dizia: ‘O Claude Polack o aconselha a Ievá-ia para;; se
mundo está em La Borde. Isso, em grande parte, consultar com Oury e Guattari. Michel Butel nao
era verdade”40. A proposta seduz e póe em dúvida espera muita coisa desse encontró e vai por dever
Marie Depussé, que divide seu tempo entre París, familiar, sem entusiasmo. Ele sofre de asma
onde segue seu curso na ENS até a conclusáo, e nessa época, e urna noite se vé pi estes a ter urna
La Borde, para onde vai todos os fms de semana grave crise enquanto está hospedado na clínica.
e participa das tarefas mais humildes: lavar loupa, Sai em busca dos medicamentos necessários
fazer fa- xina. Seu pai, arquiteto, constrói para ela quando chega Guattari: “E o encontró de minha
urna casa de madeirafmuito bonita no parque de vida, A gente começou a conversar. Ele tinha o
La Borde, que lhe dá um ponto de ancoragem. hábito de transformar sua vontade de conhecer as
Ela é fascinada por Oury, mas nao menos por pessoas de forma incrível, indo diretamente 4;>ao
Guattari, a quem vé como um incansável essencial, e era capaz de falar de tudo” ,
vendedor de esperanza, capaz de convencer o Guattari, dez anos mais vetho que ele, seduz
mais vacilante a se levantar. Essa tensáo utópica Butel pela amplitude de sua curiosidade
encontra seu momento de paz cotidianamente na intelectual. Logo encon- tram um terreno
hora do chá de tilia: “Que grapa há na comuna, o da reflexâo e da açao política. Nasce
imobilidade dos seres, em torno das mesas, desse encontró urna ami- zade que nao se
diante de urna xícara de chá, as 9 horas da noi- desfará. Butel faz vários está- gios em La Borde,
te, em La Borde. Nessa hora, eles sao escolhi- onde fíca encantado com a onipresença de seu
dos, Convivialidade silenciosa... Hora de sus- amigo Félix: “Em La Borde, ele era o Deus. Ele
pense, onde a pausa é interiorizada”41. estava sempre lá. Morava na época em urna
especie de anexo ao lado da clínica. Quando
52 Francoís Dosse

acontecía alguma catástrofe, mesmo que fosse às manifestamente dinamitara suas chances de
3 horas da manhá, se podia contar com ele. Ele chegar ao comando da UNEF.
conduzia reunioes extremamente cansativas. Era Esse estágio organizado pela mutual em La
a alma da clínica! Oury tinha o estatuto da figura Borde suscita o entusiasmo de Polack: “Foi amor
tutelar, mas16 era Félix quem tocava a máquina no à primeira vista, o primeiro lugar onde eu tinha a
cotidiano”' . Nessa segunda onda de “invasáo impressáo de que se fazía psiquiatría” 47. Polack
bárbara” chega também a La Borde urna volta à clínica para se reciclar e se instala ali para
personalidade importante da extrema esquerda de trabalhar como psiquiatra a partir de 1964,
Lyon, militante contestador da UEC, a estudante consagrando à clínica urna obra escrita junto com48
de letras Françoise Routier, que em sua sua companheira, a psiquiatra Danielle Sivadon
passagem subverte muitos hábitos já adquiridos Quando Polack descobre La Borde, ele está
pela instituiçao labordiana, o que nem sempre é ligado a toda urna série de líderes estudantis,
do agrado de Jean Oury. militantes sindicalistas e revolucionarios, aos
Um dos futuros pilares de La Borde, psiquia- quais relata sua nova paixáo, dizendo-lhes que lá
tra de profissáo, chega em 1963: Jean-Claude se encontra um “pequeño miope” incrível, com
Polack, que iniciou seus estudos de medicina em quem se discute noites in- teiras sobre tudo, a
1954, acaba de concluir o curso universitá- rio vida, a morte, o amor. Con- vida-os a ir lá o mais
em 1962, Interno em psiquiatría, é sobretodo um rápido possível e, enquan- to isso, organiza urna
líder estudantil de primeiro plano que em 1961 reunláo na casa de Marie Dépassé com Guattari.
dirigiu a seçao de medicina da UNEF, urna sólida É lá que se articula o projeto político de constituir
organizaçâo de 12 mil membros e urna “oposiçâo de esquerda”, que pretende se
particularmente radicalizada contra a guerra da dotar de um programa. 0 bando de Guattari
Argélia. Quando chega a La Borde, Polack : encontra-se em La Borde. Além de Michel Butel
acaba de sofrer um revés. Ele fora sondado para e jean-Claude Polack, estâo lá os futuros
se tornar o presidente da UNEF, e tudo levava a sociólogos Liane Mo- zère e Hervé Maury,
crer que sua eleiçâo seria urna formalidade, pois François Fourquet, assim como Pierre Aroutchev,
a corrente esquerdista que o apoiava, chamada de Georges Préli e alguns outros em 1965: “Eu tinha
“minoría”, era majoritária. Por ocasiao das entâo 2649 anos, e a gente estava apaixonado pelos
jomadas preparatorias para o congresso que se loucos” .
realiza em Talence, perguntou-se ao futuro Estagiários no verâo de 1965, alguns se
candidato à presidência quai seria seu programa à instalam em La Borde para trabalhar, como
frente da organizaçâo sindical e, diante de urna François Fourquet, a partir do outono de 1966:
píatela estupe fata, Polack pronti nciou um “Pedi para trabalhar em La Borde. Félix me olhou
discurso ultraesquerdista e agres- sivo, tomando muito surpreso e me disse: 'O que é que te
como modelo o sindicalismo dos bandos de prende? Voce tem um futuro como professor
estudantes extremamente violentos do Japao, os universitário*. Ele tinha razáo, tornei-me mais
famosos Zengakuren. Para evitar o pior, a tarde professor universitàrio”50 Urna es- pécie de
minoría teve de procurar outro candidato, mais imperativo empurra Fourquet para La Borde.
apresentável ao congresso. Polack Tendo concluido seu curso de ciéncias políticas,
ele está em condiçôes de colocar
53 François Dosse

suas competências a serviço da clínica, que se para impedir quaiquer forma de sedí-
debate com grandes dificuldades de ges- tâo. mentaçâo’’3'5.
Guattari fica feliz por poder passar a incumbencia Em 1966, vindo de Poitiers, François Pain,
a urna pessoa competente corno Fourquet. Trata- cunhado do psiquíatra Tony Lainé, chega a La
se de conseguir o repasse da Seguridade Social e Borde para um estágio de um més. Fica sete 1anos.
de racionalizar a gestao da clinica e de sua Muito jovem, recém saído do baccalauréat , ele
centena de pacientes, monitores, estagiários, se inscreve em medicina em Tours, para ficar
enfermeíros e médicos. François Fourquet dedica- próximo a La Borde, onde é colocado à
se, portanto, à ta- refa e passa os primeiros meses disposiçâo do educador-psiquiatra Fernand
trabalhando regularmente até as 22 horas para Deligny. Sua ligaçâo com Danielle Rouleau, eia
recuperar os dossiês perdidos e colocá-ios em também estudante, que abandonou a faculdade de
ordem. Sua vida nâo se limita à burocracia. Ele ciencias de Jussieu para fazer medicina, em
assume também funçôes de eniermeiro quando anàlise com Guattari, consagra sua inserçâo por
necessàrio, junto com sua esposa, Geneviève, um longo periodo no meio labordiano. Desde o
enfermeira profîssional na clínica: “Fiquei táo primeiro estágio, há entusiasmo entre os 50
apaixonado por La Borde que me apaixonei porJl membros de seu grupo vindos de toda a Franga
urna enfermeira, com a qual tive urna fí- lha” . para refazer o mundo todas as manhâs. Logo se
Fourquet também participa ativamente dos trava entre François Pain e Guattari urna relaçâo
diversos grupos e das oficinas. Entretanto é antes de intensa amizade que nâo se desfarà. Oury e
de tudo secretário administrativo, sob o comando Guattari encaminham François Pain para análise
de Guattari, até 1972. com Tosquelles, o pai espiritual da clínica: "A
Na mésma equipe, que se encontra no CERFI, certa altura, Tosquelles me interrompe depois de
está um amigo de Jean-Claude Polack, secretário cinco minutos em que eu estava deitado em seu
da UNEF em 1964, Michel Rostain, que também diva porque critiquei Oury e iniciou urna longa
descobre encantado La Borde em meados dos diatribe contra Félix. Ao final da sessao, ele me
anos de 1960. Para um intelectual do Quartier pergunta quanto me deve, e como já fa- zia várias
Latin que acabou de concluir o curso de filosofia, sessôes que eu nâo lhe pagava, respondí que isso
a íiberdade de expressâo reinante ali, a cobria minha divida”^.
preocupaçâo de aprofundar os pensamentos de
Marx, Freud, Lacan e a anco- ragem na realidade Notas
que pressupòe viver dentro da clínica constituem
o atrativo da travessia de urna experiéncia 1. Ver Anne-Marie NORGEU, Roger GENTIS, la
original. Professor de filosofía no ultimo ano do Borde: le château des chercheurs de sens?
ensino mèdio, Rostain nâo gosta da retina. Ele La vie quotidienne à la clinique
telefona para Félix, que o convida a passar um psychiatrique de La Borde, Érès, Paris, 2006.
tempo em La Borde, para trabalhar ali: “Ele me 2. François TOSQUELLES, em François FOUR-
QUET, Lion MURARD, Histoires de la
diz: vocé vem, mas vai trabalhar: vai lavar louça, psychiatrie de secteur, Recherches, Paris (1975),
conversar com os loucos, aprender a dar injeçôes, 1980,
fazer a guarda noturna, vender 52flores com os p. 22.
loucos e discutir o organograma” . Sua paixao é 3. Hermann SIMON, La Psychothérapie de l'asile,
tamanha que ele se instala em La Borde de 1966 a Société générale d’imprimerie et d’édition, Paris,
1973, vivendo de très meses até o ano inteiro na 1933.
clínica durante esse período. Na mesma época, 4. François TOSQUELLES, em Histoires de la
chega outro representante do “bando de Félix”, psychiatie de secteur, op. cit., p. 68.
amigo de François' Fourquet, com o qual prepara 5. Ibid., p. 72.
o diploma de ciéncias políticas; Lion Mu- rard,
que desembarca em 1966 em La Borde, ñca 1N. de R. T.: No original, "baccalauréat”. O primeiro dos graus
imiversitários outorgado por um diploma que marca o fini dos
imediafcamente seduzido por essa clínica, que estudos secundarios; diz-se também do exame que permite sua
trabalha no “descolamento da pessoa e da funçâo obtençào.
6. jean OURY, II, donc, op. cit., p. 73 28. ibid.
7. Jean Ayme, Robert Millón, Maurice Despinoy, Claude 29. Jacques Besse publica notadamente La Grande Pâques,
Poncin, Roger Gentis, Horace Torru- bia, etc. Belgfon, Paris, 1969.
8. Jean Oury, entrevista com o autor. 30. Ibid., p.Ciliés
93. Deleuze & Félix Guattari 54
9. Ibid. 31. Jacques BARATIER, Rien, Voilà l’ordre, 2004.
10. Jean OURY, em François FOURQUET, Lion MURARI), 32. jean Oury, entrevista com o autor.
Histoires de la psychiatrie de secteur, op. cit., p. 145, 33. Ibid.
11. Jean OURY (vulgo Odin), Histoires de La Borde, 34. Michel Cartry, entrevista com o autor.
Recherches, n. 21, mar.-abr. 1976, p. 35, 35. Michel Cartry, entrevista com Virginie Linhart.
12. Félix Guattari, “La Grille", exposiçâo feita no estágio de 36. Michel Cartry, entrevista com o autor.
formaçâo de La Borde, Janeiro de 1987, arquivos IMEC, 37. Ginette Michaud, entrevista com Virginie linhart.
13. jean Oury, entrevista com o autor. 38. Marie DEPUSSÉ, Dieu gît dans les détails, P.O.L., Paris,
14. Ibid. 1993, p. 9.
15. Histoires de La Borde, op. cit., p. 26. 39. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart.
16. Jean Oury, ibid., p. 31. 40. Marie DEPUSSÉ, em Jean OURY, Marie DEPUSSÉ, À
17. Jean Oury, “Créativité et folie”, transcriçâo de um debate quelle heure passe le train..., Cal- mann-Lévy, Paris,
com Félix Guattari, Io de junho de 1983, arquivos IMEC. 2003, p, 216-217.
18. Ver Jean OURY, Essai sur la conation esthétique, Le Pli, 41. Marie DEPUSSÉ, Dieu gît dans les détails, op. cit., p. 39.
2005. 42. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart.
19. Ginette MICHAUD, “La notion d’institution dans ses 43. Marie DEPUSSÉ, Dieu gît dans les détails, op. cit., 1993;
rapports avec la théorie moderne des groupes", D.E.S, 1958, jean OURY, Marie DEPUSSÉ,À quelle heure passe le
p. 89, citado em Histoires de La Borde, op. cit., p. 61. train..., op. cit., 2003.
20. jean-Claude POLACK, Danielle SIVADON-SA- BOURIN, 44. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart,
La Borde ou le droit à la folie, Cal- mann-Lévy, Paris, 1976, 45. Miche! Butel, entrevista com Virginie Linhart.
p. 41. 46. Ibid.
21. Félix Guattari, “La Grille”, exposiçâo feita no estágio de
formaçâo de La Borde, Janeiro de 1987, arquivos IMEC. 47. jean-Claude Polack, entrevista com o autor.
22. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cloarec, 48. Jean-Claude POLACK, Danieile SIVADON-SA- BOURIN,
arquivos IMEC, 29 de agosto de .1984. La Borde ou le droit à la folie, op. cit., prefacios de
23. Ibid. Félix Guattari e dejean Oury.
24. Félix GUATTARI, “Sur les rapports infir- miers-médicins ” 49. Liane Mozère, entrevista com o autor.
(1955), em PT, p. 11. 50. François Fourquet, entrevista com Virginie Linhart.
25. Jean Oury, ibid., p. 25. 51. François Fourquet, entrevista com o autor.
26. Jack Brière, entrevista com Virginie Linhart. 52. Michel Rostain, entrevista com Virginie Linhart
53. Lion Murard, entrevista com o autor.
27. Ibid. 54. François Pain, entrevista com o autor.
Entre esses diversos melos, os “indígenas” e d'Avray, onde se fica sabendo que em La Borde
os “bárbaros”, os cuidadores e os cuidados, a se desenvolve urna experiència interessante. Ele
circulagao é regulada no àmbito de incontá- veis chega no més de agosto de 1955, para um
reunióes na clínica. encontró com Oury, com
Toda ocasiáo é propiciaA vida cotidiana em La Borde a ideia de comprar um
para decidir urna nova. Entre elas, existe urna que castelo e criar um lugar semelhante à pràtica de
há muito tempo atua como instituí- gao: a La Borde: “Ele chegou aquí com urna magnífica
subcomissáo para a animagáo da jornada (SCAJ). Hispano-Sui-
Fundada em 1955, eia terá urna regularidade
metronomica até 1965. Essa reuniáo plenària
ocorre no grande salào, pontua a organiza a
atividade da jomada todos os dias após o jantar.

Multiplicidade de agenciamentos
institucionais
Desde sua chegada a La Borde, Guattari as-
sume a coordenagao das reunióes da SCAj, papel
delicado, pois elas tèm a fungao de passar
ínformagoes de todo tipo, de organizagáo de
atividades, mas também de desrecalque e de
exposigáo dos diversos litigios em curso. Para
esse mundo de doentes em ruptura, consistem
sobretodo na ocasiao de recriar urna sociali- dade
por melo da palavra, envolvendo-se em todas as
contendas sem gravidade: “Nao há dúvida para
mim:1de que esse é o1 motor da res- socializagáo
local dos doentes” . Como sugere Guattari, a
troca verbal nao tem como objeto um jogo de
poder ou de saber; eia é fundada em um arbitrio
da troca considerada como necessària para2
“ajudar o doente a escapar de si mesmo” .
Máquina de palavras vazias, o que se troca é da
ordem do imaginário, com o objetivo de realizar
urna melhor integragáo simbólica: “Essa reuniáo
cotidiana é urna es- pécie de3 escumadeira para
recolher o que fica boiando” . A SCAJ funciona
como urna imensa máquina de distribuir o
traballio com base no principio da mobilidade
máxima.
O desenvolvimento da clínica de La Borde é
tal que em 1957 se decide, à maneira das ordens
da Idade Mèdia, criar colonias e partir em missao.
A algumas centenas de metros dall, um amigo de
Jean Oury, Claude Jeangi- rard funda em La
Chesnaie urna nova clínica, implantada pelos
labordianos comandados por Guattari. Jeangirard
praticou a psiquiatría à Sainte-Anne, em Ville-
za. Era impressionante, pois Gévaudan, em torno de Tosquelles: “Já se discutía para
eu tinha vivido toda minha saber como desalienar os loucos, como evitar seu re-
infancia com urna Hispano- traimento, como chegar a servigos mistos. Nes- se
Suiza56 François Dosse
na cabega”'1. Oury ámbito, Balvet foi um precursor da liberaliza- gao da
consegue para eie, em no- psiquiatría”8. Aos 17 anos, Nicole Guillet conhece Jean
vembre, o beìissimo casteìo Oury quando ele chega a Lozère. Durante seu curso
de La Chesnaie, que precisa universitàrio, aproxima-se de Frantz Fanón e o leva a
de reforma, A equipe Saint-Alban para um encontró com Tosquelles:
labordiana é solicitada para “Lembro-me da primeira discussáo entre Tosquelles e
os trabalhos de organìzagào, Fanón na sala de minha máe: a questáo era saber se era
e a clínica abre as portas em imperativo9 que os enfermeiros tivessem diploma de
julho de 1956. formagao” . Nicole Guillet ainda nao havia terminado a
Embora seu modo de funcionamento seja similar ao residencia em Lyon quando recebeu urna chamada de
de La Borde, La Chesnaie està na origem de urna Oury, que lhe pediu para ajudar seu amigo Claude
inovagao importante: aquilo que se chamou de “grade”. Jeangirard a implantar um servigo de insulina em La
A técnica da grade, logo exportada para La Borde, onde Chesnaie. Eia vai para lá em novembre de 1956 e fica
desempe- nhará de imediato um papel motor, é na ver- até julho de 1957, quando os labordianos voìtam ao seu
dade urna pràtica importada pelos educadores que castelo de origem. Ainda nao há lugar ali para um
vieram restaurar a clínica de La Chesnaie. Eia responde mèdico em tempo integrai, mas Félix pede a Nicole
à necessidade de, com um número de voluntários Guiììet para ajudar na adminis- tragáo: “Félix gostava
insuficiente, dar conta de urna grande quantidade de muito disso, de deslocar as pessoas: que um mèdico
tarefas a realizar. A grade, que instituí entao um sistema trabalhasse na àrea administrativa. Os psicólogos, ele
de rodízio para determinadas atividades, se reveste do punha para lavar louga.., ”10.
caráter intangível de urna lei imposta a toda a Durante quase dez anos, Félix Guattari assume a
coletividade. Além disso, permite a integragao do organizagào do trabalho em La Borde adotando um
pessoal de servigos ao pessoal cuidador. Ás vezes, as sistema de eìiminagao de divisorias permanente: “A
relagoes sao tensas entre as duas clínicas irmás: “Foi a grade é urna tabela de dupla entrada que permite gerir
guerra dos botoes entre La Chesnaie e La Borde, e, coletivamente as atribuigòes individuáis em relagáo às
assim como ñas sociedades primitivas, houve raptos. tarefas. É urna espécie de instrumento de regulagem da
Eles queriam levar para lá urna enfermeira J da qual necessària desregulamentagao institucional”11. A
necessitavano Vieram raptá-la durante a noi te” . intengáo é igualizar as condigoes a partir do principio
Em desacordó com Jeangirard, que participa muito de polivalencia das tarefas. O metodo é autoritàrio, e
pouco das diversas reunioes da clínica, Oury decide todos esperam com ansie- dade para saber que fungáo
retirar suas tropas. No día 1~ de julho de 1957, os lhe foi atribuida pelo comité da grade; o resultado é
labordianos de La Chesnaie, retornam, Guattari sempre eficaz, mas nao isento de tensoes: “Eu estava motivado
à frente da clínica-mae. “Mas as coisas já nao podem ser por urna espécie de centralismo militante. Do mesmo
como antes6 em La Borde, como se nada tivesse modo que em urna organizagao política quando se
acontecido” , A partir de julho de 1957, realiza- -se urna decide ir colar cartazes no día seguíate”13, Alguns estáo
nova reuníáo diaria das 18 ás 19 horas, Essa reuniao felizes por se langar na experiencia de urna sociedade
logo se tomará o epicentro da vida labordiana e tratará que já superou a distingáo manuais/intelectuais, porém,
de aplicar o sistema de grade, que articulará duas entre o pessoal médico, sao muitos os que se dedi- cam
grandezas difíceis de pensar juntas: o afeto e a a contragosto aos trabalhos de faxina, enquanto que, do
atríbuigáo. Eia é preenchida primeiramente para cobrir lado do pessoal de servigo, alguns temem tocar na coisa
os buracos do horário, e as atividades sao assumidas médica.
segundo o querer de uns e de outros: “Um ver- dadeiro A grade, estabelecida para um mes, é conferida
mercado persa todas as noites. A gente chamava isso de diariamente. No diagrama aparecem em abscissa os
grade”', como em La Chesnaie. nomes dos empregados e em ordenada o horario da
Nicole Guillet sempre viveu em um ambiente jornada, e sobre essa base leem-se as atribuigoes:
psiquiátrico - seu pai era o tesoureiro do hospital “louga”, “faxina”, “galinheiro”, “vigilia”, “oficina de
psiquiátrico de Saint-Alban desde 1934. Já bem argila”, assim como as atribuigoes de mais longa
pequeña, aos 12 anos, elaescapa- va do oficio duragao. Ninguém escapa á grade, e para alguns ela en-
dominical, pois vivia em um meio familiar protestante carna, assim como seu chefe, o “gradista” supremo, a
praticante, para participar das reunioes da Sociedade do realizagáo da utopia. Para outros, é um rolo compressor
insuportável que esmaga os individuos e seus desejos que se tornou o dominio de seus numerosos gatos, em
em neme do in- teress'é comum. Além disso, a urna bagunga aromática.
distribuigáo do trabalho é, em geral, objeto de urna Um beloGilles
dia Deleuze
de abril de 1958, pouco antes do 13 de
sobreinter- pretagáo por aqueles que sao submetidos a maio, acontece o “golpe de Estado”, Guattari reassume
& Félix Guattari 57

ela e que veem nisso um meio de Guattari se agarrar a o comando da administra- gao, responsáve! pelas
tal ou qual ínibigao ou fobia para pó-la á prova: “As finanças, depois de despachar do dia para a noite a
decisoes do gradista sao entendidas como sen tengas”13. incapaz que reina- va ali: "Fui ao16encontró dessa boa
Ao longo dos anos, o sistema um pouco rígido é motivo mulher e lhe disse: isso já bastou” . Guattari se forma
de um número crescente de reprovagoes e cristaliza as para essa responsabiìidade na pràtica. No inicio, nâo
recusas: !A coisa degringola de todo lado. Monitores tem nenhuma formagào de gestor. Contu- do, aos 25
que querem lavar louga! Urna vigilante noturna que está anos, torna-se o verdadeiro diretor de urna grande
cansada de cumprir suas 12 horas a fio e que deseja que clínica que salvou da ruina. Ao examinar as contas,
a vigilia seja redu- zida a 5 horas! Urna faxineira que constata assombrado que La Borde tem um passivo a
assiste ao médico nos tratamentos e se safa.., e que descoberto de 30 milhoes de francos da época. Precisa,
retorna! Urna outra que leva doentes ao galinheiro! entáo, usar todo seu charme, e i sto nào lhe faltava, para
Urna lavadeira que1 monitora as insulinas! Está tudo de convencer o banqueiro de Blois, o senhor de Querotret,
cabega para baixo” '1. a lhe dar um crédito para poder honrar as dividas mais
Soma-se ás mudangas de atribuigoes impostas o urgentes da clínica.
problema da remuneragao e de seu cálculo. Logo se está Entre as numerosas insütuigoes geradas por La
balando de coeficiente de “aborrecí mentó”, certamen te Borde, a Rotunda figura como o pul- máo político da
difícil de calcular de maneira científica... Determinadas clínica. As pessoas se reúnem semanalmente nessa
atividades evoluem por si mesmas, como a de levar as antiga lavanderia para discutir política, para se informar
bandejas cqrh as refeigoes ao quarto dos doentes que sobre a atua- lidade por meio de urna revista. Nicole
nâo podem ou nao querem sair da cama. O pessoal de Guillet, que permanecerá como médica em La Borde até
servigo é encarregado de preparar as bandejas que 1974, cuida de vários comités: o comité de cozinha, o
devem ser levadas aos internos pelos monitores, que comité cultural, o comité de faxina e o comité de
pouco a pouco se esquecem de que isso faz parte de cardápio, o que supoe urna reu- niào por cìube e por
suas atribuigoes: “É entáo o pessoal de servigo que se semana: “Para o comité de cozinha, eu reunía os
incumbe, de fato, desse trabalho. Abandono de cozinheiros e todo o pessoal da cozinha, Raziamos os
bandejas, abandono de funçÔes”K>. cardápios, examinávamos os pedidos e as reclarnagóes.
Oury sugere entáo introduzir aquilo que chama de Para o comité de faxina, procurava-se que nào17 houvesse
um “tempero” nos mecanismos, à maneira do Cravo segregagao entre enfermeiros e faxf neiras” . A essas
Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach. Com o reunióes de comités especializados, acrescenta-se urna
desenvolvimento da clínica, Oury necessita de um reuniao plenària, chamada de “grande reuniao” ou
número cada vez maior de colaboradores. Em 1959, “grupo dos grupos”, que se realiza no firn de semana,
recorre áquela que se tornará, como secretária médica, sex- ta-feira à noíte, a propósito do trabalho geral da
um pilar fundamental do edificio e que faz parte da clínica. Comega por volta de 20h30 e raramente termina
familia espiritual: Brivette Buchanan. Eia advém do antes de 1 hora da madrugada: “É um grupo onde se
mesmo subùrbio que Oury, La Garenne-Colombes. Foi discute sobre a vida da clínica entre cuidadores e onde
lá que se conheceram ñas atividades dos Aj, ñas Félix introdu- zia o tempo todo linhas de fuga. Tratava-
caravanas operárias, no grupo jovem da empresa se ao mesmo tempo da lei da instituigáo e da aberturaÌS
Hispano-Suiza. Brivette Buchanan torna-se a de possibilidades. Tornar possível o im- possivel” .
companheira do líder da Hispano, Raymond Petit. Mais tarde, acrescentaram-se aínda reunióes teóricas em
Secretária médica no hospital Foch de Suresnes, pequeños grupos na sala de Oury, consagradas no
Brivette passa ferias em Saumery e participa atramente essencial a um comentário das teses de Lacan, e que se
da vida coletiva da clínica. Fica trabalhando em La torna- ram o seminàrio de Oury,
Borde até sua aposentadoria. Por sua vez, Félix Guattari e Nicole Guillet se
Em 1958, a clínica está à heira da faléncia. A encarregam do que chamam de “grande grupo”. Ele se
administraçâo é exercida de maneira desastrosa por urna reúne no gabinete que simboliza o poder médico, o de
certa senhora Fichaut que gasta sem controle, Oury, mas na ausencia dele, quarta-feira as 16 horas. É
abastecendo a clínica nos vare- jistas a preços mais a ocasiao de reunir os grandes doentes, aqueles que náo
altos. Excelente na arte de gastar, eia se mostra incapaz conseguem se envolver ñas conversas ou ñas diversas
de garantir a entrada de dinheiro e transforma sua sala, atividades propostas. Essa reuniao co- mega com o
silencio, e, no final, todos devem ter feito uso da Esses psiquiatras defìnem assim um campo teòrico e
paìavra. Com esse trabalho de psicoterapia de grupo nao pràtico que recebe o nome de “psico- terapia
diretivo,58 Guattari e Guillet conseguiram criar urna institucional”. Um dos principios fundamentáis é
necessidade, a ponto de os frequentadores, cerca de 15,
François Dosse
considerar que só se pode cuidar dos loucos em urna
i.nsis- tirem em saber a data do próximo “grande gru- instituigào que refietiu sobre seu pròprio modo de
po”. Embora La Borde seja profusa em grupos multo funcionamento. 0 segundo principio é que nao se trata a
efémeros, esse terá urna longevidade excepcional: psicose a partir de um suposto acesso direto a urna pa-
criado em fevereiro de 1961, aínda existe nos anos de tologìa estritamente individual e desconectada do social.
1970. Marie Depussé se recorda de ter assistido a urna Tomar a patologia como individuai reduz o tratamento a
dessas reunióes durante a qual, após um longo siléncio, urna interagáo simples entre deis individuos: o doente e
urna voz parecía expressar algo de essencial sobre o seu médico. Para a psicoterapia institucional, ao
horror do nascimento; em seguida, um silencio de contràrio, o tratamento passa pela invengáo de novos
chumbo recaía sobre o grupo, “e depois, cinco minutos agenciamentos e de conexoes sociais. As teses
adiante ou cinco metros adian- te, havia urna outra voz elaboradas no inicio dos anos 1960 sao o pro-
que saia da água e que nao parecía responder ao sentido longamiento da concepgáo sartriana do sujeito que deve
corrente da conversa ao tomar a palavra pela primeira se libertar da alienagáo para fazer surgir sua pròpria
vez, mas na verdade respondía. Entáo podía responder liberdade. A ideia langada pelo GTPSI é, por tanto,
ao nascimento pela fome,19 pela morte, era urna palavra fazer emergi r um grupo-su- jeito e desconstruir os
de ricochete inesperada” grupos assujeitados “que recebem sua lei de fora,
O grupo de trabalho de psicoterapia e diferentemente de ou- tros grupos, que pretenderà se
de socioterapia institucionais firmar a partir da adogao de urna lei interna”23.
As primeiras intervengoes de Guattari no GTPSI -
Em 1960, Jean Oury, juntamente com os psiquiatras no qual é praticamente o único nao psiquiatra - sao
Hélène Chaigneau, François Tos- quelles, Roger Gentis, moderadas e mais consensuáis. Rapidamente, porém,
que trabaiha no hospital psiquiátrico de Saint-Alban de eie assume um lugar importante, e suas intervengoes
1956 a 1964, Jean Ayme, um antigo trotskista que foi sào longas e fundamentadas, saindo das referèncias
secre- tário do sindicato dos psiquiatras hospitalares, e puramente psiquiátricas para abrir a reflexao a ou- tros
alguns outros, cria um grupo de reflexáo sobre a pràtica campos e à sociedade em geral No modo de
psiquiátrica: o Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de funcionamento do grupo, “a cumpìicidade Oary-Félix é
Socioterapia Institucionais (GTPSI). Retoma um projeto evidente, e muitas vezes seu hábito de discutir junto e
já antigo de Tosquelles que em 1965 quería criar urna de manejar os conceitos pega os outros participantes
especie de Partido Psiquiátrico Francés - mas a sigla despreparados. As discussôes revelam inspiraçôes
PPF, que lembrava o partido fascista de Jacques Doriot, súbitas de Oury e de Félix, estimulantes, e reaçoes um
náo era das mais felizes. tanto quanto intensas, cómicas, agressivas ou defensivas
Quando se constituí em 1960, esse grupo reúne da parte de uns ou de outros”24. Esse duo estará no
pouco mais de urna dezena de psiquiatras20, agregados centro da vida do grupo, e, segundo seu bom hábito, as
por Guattari a partir da quarta sessao em novembro de duas partes repartem implicitamente os papéis: Oury,
1961, e mais tarde psiquiatras de La Borde, corno jean- como especialista reconhecido em psiquiatría, utiliza as
CIaude Polack, René Bidault e Nicole Guillet Funcio- interven- çôes de Guattari para perturbar as sessoes,
nará até 1965, data da fundagào da Sociedade de tiradas das categorías ordinárias, e essas incursôes
Psicoterapia Institucional (SPI). O objetivo do GTPSI é selvagens sao assim testadas junto a outros membros,
"falar de psicoterapia institucional fora dos próprios antes que Oury recoloque as suges- tôes langadas nos
estabeìecimentos”21, limites do possível,
0 GTPSI tinha como hábito reunir-se duas vezes ao Guattari encontra no GTPSI a ocasìào de um
ano para um firn de semana de refle- xào, sempre em agenciamento de suas diversas filiaçôes políticas e
um hotel diferente. A secretà- ria de Oury, Brìvette psicanalíticas: ‘As reflexóes de Félix sao muito ‘labordi
Buchanan, encarregava-se de tomar notas de todas as anas’ em sua expressâo, £a- cilidade na réplica e na
discussoes. Esse grupo de reflexao objetivava definir a interpelaçâo, referên- cías numerosas às experiências da
singula- ridade de um círculo de psiquiatras que aceitara clínica em matèria de organizaçâo do trabalho, enerva-
determinados postulados próprios à sua disciplina e, mento em relaçao à prudência ambiente, e em seu
portanto, nao sào assimilàveis às diversas correntes da conteúdo aínda muito marcado por Lacan e pela
antìpsiquiatria”. linguistica estrutural”2“. De fato, durante essa primeira
metade dos anos de 1960, o trabalho teórico do GTPSI é
também muito influenciado pelo clima intelectual opera nos psicóticos e os mecanismos de discordancia
estrutura- Usta da época, que atribuí à linguistica o crescente que perpassam a sociedade, ele sistematiza a
papel de ciencia-piloto. As práticas promovidas fun- oposigao Gilles
entre os grupos-sujeitos e os grupos
damentara-se em geral ñas teses de Ferdinand Saussure, assujeitados paraDeleuze
afirmar& Félix
queGuattari
essa dupla
59
tentagao
Roman Jakobson e Nicolai Troubet- zkoy. Assim, a persegue todo grupo constituido. Guattari sugere
vontade de chegar à distinçâo das pessoas em relaçâo a substituir a nogáo multo vaga de transferencia
papéis instituidos e a funçôes nâo é apenas de institucional por um 30“coneeito novo: o de
inspiraçâo sartriana, mas também estruturalista, e transversalidade no grupo” Esse coneeito se opóe ao
pretende dar um prolongamento psiquiátrico às análises mesmo tempo ao eixo de verticalidade fundado em um
fonológicas da lingua. organograma com estrutura piramidal e a urna
É o momento em que o psiquiatra Claude Poncin concepgao de horizontahdade que consiste em justapor
lança em La Borde a noçâo de “si- tuemas”, que setores diferentes sem que se es- tabeíega urna relagáo
aproxima as relagóes intrains- titucionais e as relaçoes entre eles: “Enquanto as pessoas permanecem
entre fonemas. A intervençâo do Oury no GTPSI, em imobilizadas em si mes- mas, nao veem nada além de si
junho de 1960, demonstra que La Borde é estruturada mesmas”31. Um certo nivel de transversalidade permite
como urna combinagáo de fonemas, à ma- neira como dar inicio ao processo analítico de saída de si e de
Lacan afirma, na mesma época, que o inconsciente é deslocamento necessàrio no confronto com o grupo: “A
estruturado como urna linguagem. Ele distingue, transversalidade é o lugar do sujeito inconsciente do
portanto, as diversas unidades significantes da clínica de grupo, para além das leis objetivas 32em que se
La Borde e poe em evidencia certas articulagóes, como fundamenta. O suporte do desejo do grupo” .
aquela que liga o interior do castelo à unidade- La Borde é também um local altamente festivo. Um
lavanderia e à unidade-insulina, cujo estado de simbiose tempo importante da vida labor- diana é dedicado à
é tal que há o risco da ar- madilha da separagáo do organizagáo de festas, ce- rimónias, quermesses, que
conjunto da clínica - e portanto de isolamento: “Isso1 foi permitem sair do universo psiquiátrico, abrindo-o
denominado por um jogo de palavras de lingísiica ”26. ampiamente ao entorno. No inicio dos períodos de
“A gente dizia: Voce nao está na lavanderia, voce faz veráo, as quermesses anuais montadas sob o patrocinio
lingística e, no entanto, nao faz menos efetivamente da Federagáo de Ajuda à Saúde Mental - Cruz-Marinha
lavanderia”“'. Essa expressáo estruturalista, no entanto, - sao bastante difundidas e inclusive constituem as
nao implica urna adesáo total ao paradigma 28entáo reuniòes mais importantes do departamento.
hegemónico no campo das ciencias sociais , A Configuram a o cas i ño de representagoes teatrais em
psicoterapia institucional participa plenamente dessa que os doentes sao os atores. Em geral, iíustram um
efervescencia das ciéncias humanas, porém toma suas tema: “1900”, ‘A Bologne”, “A Revolugáo Francesa”,
distancias desde o inicio da orien- tagáo estrutural “Western”, “Cafés dangantes”, etc,
dominante. Eia nao pretende veicular a concepgao de O periodo mais intenso dessas animagóes culturáis
urna estrutura que se desenvolvería independentemente situa-se sobretudo antes de 1968. A clínica consegue
do sujeito e seria sobrevalorizada em relagáo a ele. envolver fortemente as comunidades vizinhas e até
organiza um “més cultural”, em que toda noite se
inventa urna nova animagáo em conjunto com a Casa de
Transversalidade Cultura de Blois. A vida da clínica se concentra na
O outro grande coneeito labordiano, desenvolvido longa preparagáo desses eventos. Confeccionam-se
particularmente por Félix Guattari em 1964 a partir de roupas, aprendem-se músicas e diálogos, percorre-se o
urna sugestáo de Ginette Michaud, é o coneeito de departamento para vender os bilhetes da tómbola em
transversalidade, Guattari consagra a ele sua que o vencedor pode ganhar um carro. Há inclusive
intervenpao diante do primeíro Congresso Internacional equipes que saem à noite para fixar cartazes informando
de Psico- drama realizado em Paris em 196429. A sobre as atividades previstas. A quermesse sobre ‘À
aborda- gem transversal tenta subverter as oposigóes Revoluçao Francesa” dei- xou lembranças muito fortes,
estruturais binárias e contribui para manter sempre em com todos os internos fantasiados de sans culottes
funcíonamento o dispositivo ma- quínico. Partindo de cantando La Carmagnole. Jean Renoir até apresenta ali
urna analogia entre o modo de desvio de sentido que se seu filme La Marseillaise. Nesse ano, quase 5 mil
pessoas convergem para La Borde, Na pre- feitura de
1N. de T.: No erigiría!, lingisüque, de lingerìe (lavanderia) e Blois até mesmo ressoava a ameaça: “Tous les
Unguistique (lingüística). bourgeois, on les pendraQuando da quermesse sobre o
,r
N. de T.: Verso da. ¿a Carmagnole : "Todos os burgueses, vamos
enforcá-los’? ■ ■■ tema da Sologne, os organizadores mandaram buscar
rabiolots (capadores no diaìeto da Sologne), contadores me disse: ‘Porque isso nâo é sèrio’”3”. No verao de
de historia, músicos com instrumentos antigos. Sob um 1971, o circo Bonjour de Thierrée e de Victoria Chaplin
capitel 60
de 3 mil lugares, Johnny Hailyday, o “ídolo dos ainda nâo havia sido criado oficialmente, mas eles
joven s”, François
en toa “Cábelos
Dosse
longos, ideias curtas”. No foram convidados por Jean Villar a apresentar seu
inverno, a clinica nào para, e organiza cerimônias para espetáculo no quadro do Festival de Avignon. Ao
as quais convida às vezes estrelas de primei.ro plano, retornar a La Borde, Thierrée sonha com Guattari
como Jacques Bref que esteve lá duas vezes. montando urna exposiçâo humana em que apresenta
La Borde é também o locai de nascimento de um casos sociais de todas as espécies ao ìnvés de animais.
circo, grapas ao encontró de Guattari com Jean-Baptiste
Thierrée, militante maoista que se apresenta sempre no
cabarè L'Écluse em Paris, no comepo do Boulevard A familia Guattari e sua ruptura
Saint-Michel, com um nùmero de magia. François Pain, A companheira de Guattari em 1955, Micheline
amigo de Gattari, assiste ao espetáculo e, entusiasmado, Kao, deixa a casa dos pais um pouco vacilante e
sugere que faça seu número em La Borde. Là conhece arrependida. Mesmo assim, eia tenta a experiencia e
Guattari, que ìhe pro- póe trabaìhar com eie. Thierrée trabalha em La Borde como secretária mèdica. 0 casal
vai entào a La Borde toda semana para passar dois dias vive em um quarti- nho embaixo da cozinha do castelo.
corn os internos e montar espetáculos. Assim como os Aìém de sua atividade oficial, Micheline Kao de dedica
outros, integra-se na vida cotidiana da clínica com a todas as atividades labordianas. Ela cuida
responsabilidades diversas. Em mau estado psicológico, principalmente de urna oficina de estenoda- tilografia
Thierrée é imediata- menfce curado por Guattari: que funciona bem; de tempos em tempos, incumbe-se
“Melhorei desde que conheci Félix. Ele teve das prescriçôes de insulina e faz algumas vigilias
indiretamente urna grande influéncia sobre minhas noturnas. Além disso, continua a datilografar os artigos
atividades33 por pensar que tudo o que se deseja é de Félix. É nessa época que Guattari se apega bastante a
possível” . um interno de La Borde totalmente recolhido em si
Na época, Thierrée acalenta o sonho de montar um mesmo, autista, e consegue que faça progresses por
circo de tipo novo. Encorajado pelo novo amigo, força de redobrar as tentativas e os ángulos de
encentra coragem para procurar personalidades que nâo abordagem. Comunica-se com ele, faz com que fale e
conhece. É assim que, certo dia, seus olhos se detém acaba conseguindo curá-lo clepois de ter dedicado
diante da fotografìa num jornal de urna das ñlhas de quase que exclusivamente a ele sua atençâo terapéutica.
Charles Chaplin, Victoria. Além de sua beleza, Jean- A promiscuidade da vida comunitária de La Borde
Baptiste descobre que eia gosta muito de circo, Thierrée fragiiiza o casal'ifi Depois de um ano, em 1956, eîes se
escreve para eia: “Eu nâo tinha o enderepo déla na separam, e Micheline Kao de.i- xa La Borde. Ê o fim de
Suípa. Simplesmente pus no envelope: Victoria urna longa ligaçâo. Ape- sar de tudo, Micheline e Félix
Chaplin. A carta chegou e um mes depois eia estava preservara seus vínculos de amizade. Inclusive, alguns
junto de mim”34. A se- quéncia é um verdadeiro conto meses mais tarde, alimentara o projeto efémero de
de fadas, e se realiza urna grande cerimònia de voltar a viver juntos. Félix procura um apartamento em
casamento em La Borde, em 15 de maio de 1971. A Paris e sugere a Micheline que res- tabeleçam sua vida
companhei- ra de Guattari entâo, Arlette Donati, é comum. No ano seguinte, em 1957, Micheline Kao
madri- nha de Victoria e Michel Rocard de Jean-Baptis- conhece o irmáo de Nicole Guillet, Pierre, com quem se
te Thierrée, militante do PSU. Esse casamento deixa casa. Quan- to a Félix, ele tem diñculdade de superar
Charles Chaplin desesperado, pois acaba de escrever um essa ruptura, a ponto de pensar e de es crever que sua
filme, The Break, no qual eia de- veria fazer o papel de companheira Micheline nâo quería continuar em La
urna mulher-pàssaro. Borde e lhe teria dado um uítimato: ou eu ou La Borde,
0 casal Thierrée-Chaplin cria urna anima- çâo provocando assim a ruptura. Quando Micheline Kao
particularmente intensa em La Borde com suas tendas, anuncia a Félix seu futuro casamento, a tristeza se
seus cavalos, suas feras, serpentes e animais de todo transforma em raiva: “Se voeê quer se 3casar, será
tipo, e os internos sâo convidados a participar dos comigo e com mais ninguém”, disse-lhe ele '. Apegada
espetáculos: “Tivemos alguns éxitos. Penso a Félix, hesitante, ela pede um tempo para pensar.
principalmente no caso de Claude Farcì, um catatònico. Nesse meio-tempo, Félix tem um encontró decisivo
Tive a ideia de fantasià-lo da cabepa aos pés, e nessa com aquela que se tomará sua esposa e com quem terá
situa- çâo eie fazìa tudo o que eu Ìhe solicitava. Eu Ìhe très filhos. Nicole Perdreau, jovem e bonita, acaba de
perguntava sempre: ‘Por que voeê se mexe quando está chegar a La Borde como monitora. Quando a conhece,
fantasiado?’ Ele nao respondía jamais, até que um dia
Félix está completamente perdido e deprimido: “Essa ruptura do casal, delega sua responsabilidade ao filho
moça era encantadora, era o que minha avó chamava de mais velho, Bruno: "Eu nao tenho tempo, vocé cuida de
urna pequeña Tanagra, urna jovem morena, um corpo tudo”4'*. Nos momentos em que o pai está presente em
bonito, fina, radiante, e a primeira vez que a vi com La Borde, Gilles
as crianças vivem em horarios defasados. 0
Deleuze & Félix Guattari 61

Félix aínda nao era sua mulher. Ele estava sentado um pai trabalha até tarde e se delta tarde, portanto as
pouco distraído com essa jovem encantadora com a crianças nunca jantam com os pais. Visto que Félix nâo
cabepa apoiada nos seus joelhos. Disse a mim mesma: é muito dado ás ferias, quando a esposa e os filhos
esse pequeño iSquatro-olhos, ele nao está aborrecido viajam, em geral para Sables-d’Glonne por um mes, ele
mesmo assim”' . os acompanha apenas por uma semana. Bruno nao
A familia de Nicole, de origem campone- sa, vive sofreu muito com essa ausencia, pois, como filho mais
em Tour-en-Sologne. Sua máe é arru- madeira e tem velho, sentía com forte intensidade a presença do pai,
urna forte queda pelo àlcool, e seu pai, antigo mecánico ainda que tâo fugaz. O mesmo nâo ocorreu com Stephen
e piloto de testes de avioes, foi vítima de um addente e Emmanuelle, atingidos em cheio pela ruptura entre os
que afundou sua caixa torácica. Em 1955, ele acaba de pais.
faíe- cer em decorrènda desse acídente, Solicita-se a Em 1967, uma jovem enfermeira de uma clínica
Félix que cuide de Nicole, urna incumbencia que será psiquiátrica de Marseille, Arlette Donati, vai estagiar
total e se transformará em casamento. Dessa uniáo em La Borde, por dez dias. Félix se apaixona à primeira
nascem sucessivamente Bruno, no dia 12 de dezembro vista: “Em 1967, uma moça de extrema beleza vem para
de 1958, Stephen, em 1961, e finalmente Emmanueile, La Borde. Chama-se Arlette. Trava-se uma relaçâo mui-
em 1964: “Nicole era muito frágil. Era adorável, mas to mais sèria desta vez, porque Arlette é uma
um passarinho. Ele a ajudou,¿1J a estruturou e lhe deu personaìidade extremamente rica”44. Bastante perdida,
prazer ca- sando-se com ela” . A partir da integrando nâo compreendendo muito bem onde mete os pés, eia é
de Nicole Perdreau a La Borde,0 quase toda a familia duramente criticada por Jean Oury: “Havia duchas
Perdreau desembarca na clínica“’ . comuns e lavabos comuns, de modo que todos iam lavar
Nicole Perdreau insfcala-se com Félix em urna as mâos e encontravam seu analista escovando os
pequeña acomodapao de tres pepas, e é muito exigente dentes..; Eu tinha feito duas ou très refle- xôes para
com a limpeza do lugar: “Havia urna unica porta, e atrás Oury, que me empurrou um monte de livros, mas
da porta as pantufas que a gente tinha de calpar se nao literalmente dizendo: ‘Và 1er, voce45 nâo passa de uma
quisesse ou- vir os berros de sua mulher”‘!!. Assim, idiota. Voce nâo entende nada!’” . Contado, Ailette
quando queriam ver Félix, seus amigos passavam pela Donati é apoíada por Guattari, que, num primeiro
janela para evitar a cerimònia das pantufas e o momento, nao Ihe desperta muito interesse. Quando re-
encontravam na pega minúscula que lhe servia de torna para Marseille, Félix nâo para de Ihe pedir que
escritorio. voltejeara Sologne.
Félix nao é um pai muito presente, na medida em Sua ligaqào com Arlette pouco a pouco leva Félix a
que divide seu tempo entre La Borde e Paris, onde romper com sua esposa Nicole. Quando Arlette retorna,
alugará um apartamento muito bonito e espaposo na eles so se veem em La Borde na ausencia de Nicole ou
Rué de Conde. Seu filho Bruno lembra que, aos 5 anos, em hotéìs das proximidades. Contudo, logo saem dessa
ia com máe à estapao de Blois todas as quintas-feiras situaqào provisoria. Cansada de “nomadizar” em toda a
buscar o pal, que na segunda-feira partía nova- mente Sologne de hotel em hotel, Arlette Donati vai à agencia
para París. Guattari tenta compensar suas ausencias com de turismo de Blois para conseguir uma casa.
urna grande atenpáo aos fílhos. Trazia para eles de París Procurando um locai de veraneio, eia encontra um
todo tipo de jogos educativos, Sobretudo, Félix ensina castelo magnifico e muito ampio que Félix pode alugar
desde muito cedo ao fìlho mais velho a leitura e o em parte e onde o casal vivera por sete anos, nào longe
cálculo mental: “Aos 4 anos e meio, eu sabia ler e de La Borde, em Dhuizon. Félix abandona sua esposa e
escrever, e aos426 anos, conhecia todas as tabuadas de o terreo de um galpáo de La Borde. Quanto a Arlette,
multiplicapáo” . Muito autoritàrio, Félix exige do filho sua situagào de amante oficial de Félix Ihe permite
Bruno, que tem apenas 6 anos, que mantenha um diàrio, integrar-se nas arivi- dades da clinica. Em Dhuizon,
o que causa ao filho um profundo embaraço - mas ele Félix mora em um espago ampio que Arlette organiza
tem de aceitar, pois o pai o tranca em um escritorio com mandando derrubar as paredes e concebendo um
um caderno a ser preenchido e um làpis. escritorio e quartos modernos e iluminados. Dhuizon
Contudo, absorvido por suas diversas ati- vidades, logo servirá de acolhida para o “bando” de Félix: seus
Félix logo nâo terá mais o tempo necessàrio para amigos do CERFI se hospe- dam regularmente ali em
dedicar aos filhos e se apoia em sua esposa. Após a uma casinha situada próxima ao castelo. Félix mantém
assim o projeto de construir um casal, mas desta vez nunca tinha tomado um banho de mar. Ele nao sabia
com Ariette: “Ingenuamente, eu pensava ter rompido sair para viajar, nao51sabia como devia comer, em que
para sempre com esse tipo de conju- galidade! Porém, là copo tinha de beber” .
estava eu de novo, e desta vez ainda por conveniència
62 François Dosse
Paralelamente á sua vida com Arlette, Félix se
pròpria”46. envolve em relagoes cada vez mais numerosas com as
Essa ruptura radical tem efeitos desastrosos para a mulheres. É encorajado por seu “tenente” em La Borde,
esposa e para os filhos de Félix. Nicole Perdreau tem de seu amigo psiquiatra Jean-Claude Polack, cuja fama de
se mudar, deixar a acomodagáo em La Borde, mas mulheren- go já é conhecida. Polack inclusive achava
continua tra- baldando na clinica. Eia se instala com os seu amigo Félix um pouco tímido nesse campo. Mas,
très filhos e toda a familia no conj unto habitacional de em contato com ele, torna-se um cortejador impenitente.
Blois: “Para nós, o mundo inteiro vem abaixo com a É preciso dizer que a época, em torno dos anos de 1967
separagáo dos pais. É uma catàstrofe ter- rivel. Ficamos e 1968, também favorece o questionamento de todas as
todos doentes. Stephen rói até as unhas dos pés. formas de familiarismo e coloca ao lado do futuro re-
Emmanuelle está chela47 de fungos na cabega. Para nós, é volucionário um outro modo de relagoes entre os sexos,
um horror completo” . Isso é agravado pelo fato de a mais livres, desembaraçadas dos constrangimentos
vida em La Borde ser mais idílica. Os filhos de Guattari moráis e dirigidas apenas ao desejo. O momento se
e os dos outros psiquiatras, como os filhos de Oury, presta, portanto, a urna libertinagem generalizada, e o
tinham uma vida comunitària. Podiam participar das certificado de bom revolucionário costuma ser avallado
inúmeras oficinas da clínica e assim se dedicar a pela capaeidade de romper. Nesse campo, Félix Guattari
atividades táo diversas quanto a marcenaría, a ceràmica, difícilmente encontrará um con- corrente perigoso.
o desenho, sem contar a relagao privilegiada com a Nesse clima em que se prega a uniao livre contra o
natureza e a alegría de construir ninhos para os pássaros. casamento, o intercámbio sexual generalizado, a
Súbitamente, as crianzas se veem divididas entre o liberaçâo das mulheres, chega-se inclusive a perseguir
conjunto habitacional com sua mae e o ñm de semana toda forma de casais muito estáveis. Oury langa um
em Dhuizon, onde se misturam a urna massa de amigos olhar crítico sobre essa prática de “kamikazes
que cercam seu pai e formam urna barreira. Quanto ao eróticos”52: “Esses kamikazes vinham de Dhuizon. Lá
pai, ainda nao é fácil para ele viver essa situagao: “As era seu posto de comando, e quando um casal se man-
crian gas foram embora. Impressao de falta. Foi a tinha depoís de cito dias, enviava-se um kamikaze para
primeira vez desde a separagáo que pude cuidar deles desmanchá-lo, porque o amor era capitalista. O poder
por um mes inteiro. Entre os tres, eles formam urna erótico também causou estragos, e, quando se aplica aos
personalidade coletivá’48. esquizofrénicos, isso se toma crime”'’8. Por iniciativa de
Ás dificuldades próprias ao desmorona- mento do Guattari, formou-se um grupo para perseguir casais que
círculo familiar acrescenta-se a con- denagao inapelável representavam a “terrível conjuga- lidade”04. Contudo, a
dos pais de Félix em rela- gáo aos seus filhos. O psiquiatra Danielle Siva- don, ao chegar a La Borde em
divorcio ainda nao é táo comum nesses anos de 1960, e 1972, consegue formar um casal com Jean-Claude
eles reprovam com rigor a ruptura que ele provocou. Polack, o que nao deixa de ser urna proeza: “Por pouco
Soma-se á reprovagáo moral dos país e dos irmáos o nossa vida foi salva. Tivemos um filho, mas éramos mal
fato de que Arlette Donati é muito mal aceita na familia vistos”55.
Guattari. Ela subverte os hábitos de Félix. Ele que Essa explosao da sexualidade nem sempre é do
nunca dera atengao á maneira de se vestir, que usava agrado de Arlette Donati, que constata com despeito
um pulóver em qualquer estaqáo, é induzido a se tornar que o casal que forma com Guattari fica a sós apenas na
mais elegante, e Arlette se aplica em vestido diferente: quinta-feira à noite em Dhuizon. Félix usa sua rede de
“Quan- do o conheci, parecía um velho, á parte seus amizade para se proteger, e seu grande amigo François
olhos. Estava vestido como um velho, cábelo cortado Pain é encarregado de se ocupar de Arlette durante sua
muito rente, com óculos grossos49 que deviam pesar urna ausência. No piano sentimental, assim como no plano
tonelada diante de seus olhos” . Arlette acha que Félix político, Guattari revela urna capaeidade de romper fora
sofre de numerosas inibigbes sob sua aparente do comum, que pode estar relacionada com sua angustia
facilidade com os outros: “É que ele se sentía pouco á de morte, sua rejeiçâo quase fobica de tudo o que
vontade, como r>0se nenhum prazer da vida pu- desse ou o pudesse estar ligado à compulsâo de repetiçâo,
tivesse tocado” Ela se surpreende, ela que adora o sol, remetendo por isso mesmo à fmitude, à morte, Para
ao ouvi-lo dizer que o sol provoca bolhas, e nao conjurar esse temor, precisava sempre apostar na
compreende como qualquer atividade esportiva e novidade, tentar novas experiencias, saltar para outra
corporal pode ser totalmente estranha a Félix: “Ele coisa ou outra pessoa.
A vida do casal Arlette-Félix está cada vez mais Cher. Chegam a Montoire - sinistra- mente conhecido
dividida entre a Rue de Conde em Paris de segunda- pelo famoso aperto de mao entre Pétain e Hitler - e se
feira a quinta-feira à tarde e Dhui- zon o resto do tempo. dìrigem à casa do primeiro notário. Ficam encantados
Em Paris, assim como em Dhuizon, o desfile de amigos com urna magnifica casa de pedra em melo a um vasto
Gilles Deleuze & Félix Guattari 63

é permanente, podendo chegar até 50 pessoas nos fins parque dominado por um grande cedro à beira do Loir,
de semana de tempo bom: “Félix habitava Dhuizon em onde se pode passear de canoa. Essa casa, onde os pais
urna estrutura que lembrava multo a corte de Luis XIV. de Félix permaneceráo por treze anos, fica bem
Ele tinha a primeira favorita, a segunda, a terceira, e próxima a La Borde e se torna um lugar privilegiado
havia acertos de contas impiedosos”56. Segundo Oury, para receber suas criangas e seus amigos, entre os quais
Dhuizon era o “jardim de Adonis”. O casal atravessa Jean Oury. Os pais tentam inclusive transferir a fábrica
sérios períodos de crise: ‘Arlette se apaixona por um Monbana para Montoire. Alugam durante seis meses a
sujeito de Aix-en-Provence que eu tinha co- nhecido parte desalivada da estagào da cidade, onde há agora
multo tempo antes em A Via Comunista. De insediato, apenas um trem por dia, mas o projeto nao dà certo.
eles fazem projetos de casamento... Tenho muita Essa aproximagào espacial com o mundo de Félix
difîculdade de aceitar essa historiar117 atesta a grande afeigáo que eie tem por sua máe. É claro
Félix estimula Arlette a continuar seus es- tudos, a que, publicamente, ele diz que a familia nao tem
se inscrever em psicologia em Paris - eia se torna sentido e zomba de Arlette, que convida seus pais para
psicoterapeuta. 0 casal nào consegue resistir muito Dhuizon. No entanto, de maneira significativa, quando
àproliferaçao de relaçoes e ao ambiente de liberaçâo sua máe morre em La Borde, em 1969, “ele náo parava
sexual que preside La Borde. Quanto a Arlette, é cada de dizer que estava órfáo: ‘Estou órfáo’, ficava repeti
vez mais difícil para eia tolerar a invasao constante. Eie rido”59.
se instala bem próximo de sua casa em Dhuizon, a urna A prova por Lacan
centena de metros dall, em um grande pavilhao, com A vida de La Borde é ritmada também peías
amigos. Além disso, continua vivendo na Rue de Conde seminários de Jacques Lacan. Como escreve com humor
em Paris, para onde só vai agora temporariamente. A Jean Oury, a quarta-feira é um dia mais morto em La
ruptura é brutal e difícil: "Depareì-me algumas vezes Borde que o domingo. Qual a razáo disso? Nada a ver
com essa experiència58de desordem em estado bruto, na com o dia de folga escolar, nao, é por culpa de Lacan.
separaçâo de Arlette” . Nesse dia é o seminàrio do Mestre: “Isso produzia em
De maneira geral, a chegada da segunda “invasao La Borde urna hemorragia de pessoal, de dinheiro. Com
bárbara" a La Borde com os estudan- tes contestadores Félix, a invasáo, com Lacan, a hemorragia... ”60. Vimos
da UNEF, em meados dos anos 1960, favorece a que o primeiro contato entre Oury e Tos- quelles
aceleraçâo das trocas nos casais e sua fragilizaçâo, ocorreu em tomo de um texto de Lacan. 0 choque foi
Michel Rostain, que se instala em La Borde em 1965, tamanho que Oury abandonou suas veleidades de fazer
vai morar com Félix,em Dhuizon a partir de 1969. Eie biologia e decidiu se orientar para a psiquiatría, e pouco
coabita ehtâo com' Arlette Donati, com a qual depois jà estava em Saint-Alban: “Tosquelles mandava
estabelece urna reìagào e, no momento da ruptura desta distribuir um texto aos internos: fazia-os ler a tese de
com Félix, vai com eia para o pavilhao em frente. Lacan e depois61 de um mès ìhes pergun- tava o que
Michel Rostain vivia até 1969 com urna ex-aluna do achavam dele” . Na época, Oury devora todos os
colegial, chamada Catherine, que por sua vez se escritos de Lacan e resolve assis- tir regularmente seu
apaixona por um dos grandes companheiros de Félix no seminario e fazer dele seu analista, o que nao é possível
CERFI, Lion Murard. Entretanto, Félix também man- realizar de ime- diato - a Lozère é multo longe de Paris.
tém urna relagao com essa mesma Catherine, enquanto Quando se instala em La Borde, seu sonho pode enfim
Michel Rostain se torna amante de Arlette Donati. se realizar. O horário da clínica torna-se entáo tributàrio
Guattari fez do combate contra o fami- liarismo um do famoso seminario parisiense de quarta-feira em
tema militante. Contudo, està longe de ser indiferente Saint-Anne e depois em Ulm, que Oury e toda a equipe
aos próprios pais, particularmente à mae, personagem de diregáo da clínica nao perdem por nada. Oury faz
nodal na construgáo de sua personalidade, Os pais' se rigorosamente anotapoes muito precisas, que serao
reaproximaram dele geograficamente em 1967. A màe objetos de trabalho para as reuniòes do GTPSI.
de Félix, com problemas oftalmológicos recorrentes, Oury torna-se um parceiro interessante para Lacan,
consulta regularmente os médicos de La Borde e por estar ligado a urna clínica psiquiátrica de renome,
simpatiza com Oury, que cuida dela como da pròpria vanguardista, que pode ser urna fonte de inspiragáo e de
màe. E durante essas visitas que o pai de Félix e seu prolongamiento clínico da abordagem lacaniana da
irmao Jean procuram urna casa de férias em Loìr-et-
psicose. De fato, toda a equipe clínica de La Borde pas- Scilicet? Lacan obriga o analisando a escolher sua
sa pelo diva de Lacan: “Toda vez que chegava alguém editora. Guattari tem de se dobrar à exigencia e procura
em La 64Borde, a primeira coisa que lhe diziam é que Barthes para Ihe pedir que desista da publicaqáo. Longe
deveria fazer urna análise e, naturalmente, com Lacan.
François Dosse
de cumprir sua promessa, Lacan procrastina e nào
Chegou-se a obrigar pessoas a abandonar seu analista e publica o texto, que acabará sendo aceito na revista de
se transferir para Lacan”62. Toda a abordagem da psi- jean-Pierre Faye, Changei em 1972.
cose por Oury é marcada pelos enslnamentos de Lacan,
aínda que ele nao se coloque como discípulo, mas sim
como alterego que costuma discutir dìretamente com As iinhas de erráncia
eie quando o leva de carro de sua casa de campo de Urna noite de 1965, um caminháo para diante do
Guitrancourt para Paris: “Tenho por essa pessoa um castelo de La Borde. Vem de Céven- nes com o
respeito absoluto, Nao mudei de opiniáo. Para mim, é o pequeño bando de Fernand Deligny, sua companheira, a
coeficiente de estabilidade que é absoluto”63. psicanalista Josée Manenti, ex-mulher de Michel
Visto que numerosos monitores de La Borde eram Durafour, com quem viveu doze anos, Yves, o menino
compelidos a fazer análise com Lacan se quisessem austista do filme leMoindre Ge$te>r\ Guy, um grande
continuar na clínica, toda semana saia um vagáo da enfer- meiro, e Marie-Rose. Náo tendo mais dinheiro
SNCF1 quase lotado da clínica para o diva de Lacan. nem onde se fixar, Fernand Deligny procura refugio em
Guattari aínda acreditava que foi a análise com Lacan La Borde para continuar cuidando de seus autistas.
que lhe permítiu expressar sua experiencia subjetiva. Oury os acolhe, aprova sua instalaban, mas esclarece
Contudo, a durapáo da análise é das mais variadas, as que é preciso que Guattari concorde. A pequeña equipe
vezes meia hora, mas geralmente tres ou quatro minutos espera entáo o dia inteiro pela chegada de Félix: “Ele
fracionados em duas ou très sessòes no mesmo dia, parou e olhou para mim; ‘Voce que é Josée Manenti? --
entrecortados de momentos intermináveis na sala de Sim - Vamos conversar.’ Surpreendeu-me logo de inicio
espera. Ás vezes, mediante pagamento, ele prolonga a sua vivacidade, sua inteligencia bri- Ihante, de tom
sessáo no carro, enquanto Guattari o leva para casa, na muito seco, e por trás de urna inerìvel gentileza, bem
Rué de 64Lille, após o seminàrio: “Isso faz parte da dissimulada, sua fragi- lidade, sua sensibilidade. Era
análise” , dirá Lacan. como urna forma de superposigáo”66. Em seguida,
Guattari participa da criapao da Escola Freudiana de desfcína-se urna oficina de desenlio a Deligny, e toda
Paris em 1964; associado à sua arrancada, é ele que sua equipe se instala em La Borde, onde se ocupa assim
sugere a publicapáo de urna “Carta” para tirar a Escola de psicóticos e sobretudo de autistas. Ao chegar,
de sua tendencia ao confinamento sectário. Guattari, Deligny já carrega toda urna historia de pràtica
considerado por Lacan como um jovem e brilhante terapèutica, Ele se inscreve em urna perspectiva
intelectual, espera se tornar um interlocutor privilegiado diferente daquela de Oury-Guatta- ri, mas igualmente
do guru da cena parisiense, mas constata desolado a inovadora, Sua viuda para La Borde nao é mero acaso,
ascensao de toda a corrente maoista em tomo de pois seti itinerario seguiu urna pista bastante similar, a
Jacques-Alain Miller. A concorrencia é acirrada. do subùrbio, dos Aj e da contestando dos poderes insti-
Em 1969, antes do rompimento definitivo, Lacan tucionais67.
lhe prega mais urna pepa, como é seu costume. Guattari No pós-guerra, Deligny constituiu a “Grande
escreveu um texto importante para ele, que tem um Cordée”, que foi a prímeira experiencia de cura
papel estratégico de resposta ao paradigma dominante ambulatorial, evitando assim a internaçâo psiquiátrica
do estrutora- lismo, “Máquina e estrutura”, que serviu de jovens com transtomo de caráter. A iniciativa surgiu
inicialmente de exposipáo destinada à Escola Freudiana de seu encentro com Huguette Dumoulin, antiga
de Paris. Nesse texto fundamental, Guattari retoma responsável nacional pelas Juventudes Comunistas e
categorías de análise da obra de Gilles Deleuze, militante ativa na rede de Aj: "Os locáis da Grande
Dìferenga e Repetigáo, lanpada em 1968, que se tomará Cordée - que tinha começado em um teatro, em
o suporte essencial de suas pri- meiras discussòes e de Montmartre - paredaña saguâo de estaçâo de trem, com
sua futura colaborapào. viajantes bizarros, que passavam da manha até a noite,
Roland Barthes aprecia bastante esse texto de Guattari e varias vezes por di a,68 nervosos, barulhentos, em urna
pede para publicá-io em Communications. Guattari fala demanda incessante” . Foi nés se meio comunitario de
sobre isso com Lacan no diva, e o mestre fica ajístas da regiâo parisiense, que transformavam seus
indignado: Como! Por que nao sua pròpria revísta, estágíos de férias em fa- lanstérios onde tudo era
coletivizado, que Fernand Deligny recrutou seus
1N. de T.: Société Nationale des Chemins de fer Français, educadores e animadores. Do mesmo modo que para La
Borde, o trabalho terapéutico pelas “curas livres” nâo de 1955 a 1956, depois para Allier de 1956 a 1959,
deixava de ter uma intençâo política na contes- taçâo Nesta data ele se muda para Cévennes, onde fica até
dos poderes existentes. Comunista, Deîig- ny recusava 1965. Huguette Dumoulin, com a qual ele tem duas
qualquer forma de proselitismo. Terapeuta, nâo quería filhas, e Josée Manenti o acompanham a partir de Paris.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 65

entrar na malha burocrática da incumbencia pelos Ê nesse universo pedregoso, em pleno desamparo, que
organismos de Segundado Social. Pedagogo, era muito ele se instala com josée Manenti. Levou para lá uma
crítico em face dos profissionais da educaçâo. criança autista profunda, Yves, que acompanhava desde
Deligny inventou toda uma linguagem poética para 1956. Deligny era deliberadamente um genial nâo
dar uma expressâo gráfica ao comportait! en to de seus conformista, distante de qualquer instituiçâo. Contudo,
jovens autistas, A criança que gira faz uma "auréola”; a negaçâo da instituiçâo e de suas leis próprías tem um
aquela que se balança faz uma “nuvem de balanço”. preço, e Deligny pagou à vista. Isso levou ao rápido
Após uma passagem pelo Vercors, em 1954, Deligny definhamento daquilo que a “Grande Cordée” poderia
com seu grupo parte sucessivamente para Haute-Loire ter criado.
Cilles Deleuze & Félix Guattari 66

Em .1965, é arruinada, sern nenhum recurso, guerra da Argelia. Félix simpatizou com ele em
que a pequeña tropa decoia do campo de La Borde.
Cevènnes para seguir em direçao de La Borde. Louis Ohrant instala-se com a mulher e os
Bem acolhido, Deligny trabalha por um bom très filhos em Gourgas, onde cuida da manu-
tempo no Loir-et-Cher: “Ele passava o día todo tençao, cultiva a terra e cria carneiros. Guattari
em 69sua oficina. Era muito bom para os doen- envía também seu amigo cineasta François Pain
tes” . Apesar de sua cumplicidade amigável, para ajudar Deligny a montar os quilómetros de
Josée Manenti tem um atrito com Guattari a filme rodado desde a Grande Cordée. Entretanto,
propósito do acompanhamento de um doente, e François Pain desiste muito rápido: “Deligny
nâo haverá mais acordo possível: “Ele [Félix] me quería que eu ficasse com ele, mas era urna vida
deu um1ultimato: ‘Ou você faz o que digo ou vai monástica que nâo me convinhá’73. Em Gourgas,
embora , e eu respondí: ‘É muito simples, eu vou Deligny se vé em um lugar de in- teratividade,
embora. Eu tinha relaçoes muito aberto aos quatro ventos, e isso o incomoda:
»*70

engraçadas com ele’ , Assim, Josée Manenti "Vou fazer 64 anos - é preciso dei- xar a cada
deixa La Borde e vai para Paris, onde pretende se tentativa um espaço próprio, pois é um verdadeiro
tornar psicanalista. Quanto a Deligny, ele caos ver essas pessoas táo dispares convidadas a
continuará trabalhando dois anos em La Borde na se juntar em um mesmo canto, ao passo que se a
“estufa” onde instala seu ateliê: “ele tinha horror distancia fosse respei- tada. elas se entenderiam
de grupos, urna verdadeira fobia. Fica- va no seu berri'74. A abertura de Gourgas a toda a extrema
canto là em baixo"71. Oury tem um enorme esquerda dá lugar assim a algumas situaçôes
apreço por ele e considera que seus escritos ubuescas*, por exem- plo, quando a organizaçâo
possuem grande valor poético: “Ele tem trotskista Aliança dos Jovens pelo Socialismo
expressoes magníficas como a sétima face do (AJS), em estágio de formaçâo política, decide
dado ou 72ainda o que sería dos dedos sem a repentinamente abandonar o local, pols seus
palma?”’ , Em Saint-Alban, seus escritos cons- dirigentes nâo su- portavam conviver com
tituíram as prímeiras publicaçôes da clínica. doentes mentais.
Após esses dois anos de trabalho em La Solicitado pelo educador Claude Sígala a
Borde, Deligny teve oportunidade de retornar ao abrir mais amplamente Gourgas para jovens em
Gard, onde Guattari adquiriu em 1967 urna ruptura escolar, Deligny se opóe. Contudo, per-
grande edificaçâo de muros espessos ao pé das manece na comuna de Monoblet com seus jovens
Cevènnes, em Gourgas, na comuna de Mo- autistas, mas a um quilómetro de Gourgas.
noblet, Essa casa serve inicialmente de lugar de As cartas que Deligny envia a Guattari tes-
descanso para os internos de La Borde. No pós- temunham a proximidade/distáncia em face de
1968, Gourgas torna-se um dos centros de suas posiçôes. A propósito de A Revolaçâo
confluencia do movimento contestatório. Local Molecular, publicado por Félix Guattari em 1977,
privilegiado de encontros e de estágios, que Deligny se diz chocado com o qualifi- cativo
acolhe pesquisadores do CERFI, servirá de retiro empregado a propósito de seus doentes: “Por que
para os militantes perseguidos pela justiça : após você se refere a débeis quando menciona aqui?
o Movimento de Maio - foí alugado por um Trata-se de crianças que se recusam a falar... ”75.
tempo para Jean-Luc Godard. Guattari propóe a Ao mesmo tempo, ele confessa ter ficado muito
Deligny instalar sua tropa em Gourgas. Para surpreso ao constatar o quanto ambos estao
administrar o local, Félix designa o antigo res- empenhados na mesma batalha. Evidentemente,
ponsável pelas Juventudes Comunistas de Blois, eles nâo tem os mes-
Louis Ohrant, vulgo Mimir. Personagem da mes-
ma estirpe que Raymond Petit da Híspano, esse : N. de R. T.: Digno do personagem do Urano grotesco “Le pére
S

operário de origem é um militante impar, que UBU’’ (O pai UBU), criado por A, jerry (Franca 1873-1907)
ficou preso dois anos por deserçâo durante a mos arroubos nem as mesmas simpatías, mas,
como diz Deügny com humor, “quaíquer coisa
serve para atormentar/fracassar o mundo, o NÓS
do mundo”76. A propósito da constataçâo final de urna 17. Nicolle Guillet, entrevista com o autor.
revoluçâo que se tornou molecular7', Deligny corrige: 18. Liane Mozère, entrevista com o autor.
“Se as ‘moléculas preten- diam ser particulares [de 19. Marie Depussé, entrevista com Virginie Li- nhart.
partículas], essa ‘re- voluçâo a que voce se refere nao 20. O núcleoGilles Deleuze & Félix Guattari 67
fundador do GTPSI é composto por François
teria chances de ocorrer”78, Deligny insiste sobre o
autismo dos jovens sob seus cuidados no Gard. Essa Tosquelles, Jean Oury, Roger Gentis, Horace Torrubia, Jean
palavra comporta por si só urna dimensao re- fratáría Ayme, Hélène Chaìgne- au, Philippe Koechlin, Robert
que Ihe agrada, pois refrata a lingua- gem: “O 79a- Million, Maurice Paiilot, Yves Racine, Jean Colemia, Michel
consciente nao se diz; nao é efeito da linguagem” , Baudry; varios outros psiquiatras se juntarào a esse grupo
rompendo assim com a con- cepçâo lacaniana de um inicial: Giséla Pankow, jean-Ciau- de Püllack, Denise
inconsciente estrutu- rado como linguagem, e Rothberg, Nicole Guillet (informaçôes passadas por Olivier
convergindo com as críticas formuladas por Guattari Apprill).
nesse campo. 21. Roger GENTIS, Un psychiatre dans le siècle, Érès, Paris,
Prevendo rodar um filme cuja historia se passa em 2005, p. 38.
Gourgas e que pretende realizar no outono de 1979, 22. Ver capítulo “Lima alternativa à psiquiatria?”
Deligny esbarra nos projetos de Guattari. Este, na 23. Félix GUATTARI, “Introduction à la psychothérapie
verdade, pretende ceder Gourgas, vender a quem fìzer a institutionnelle” (1962-1963), em PT, p. 42.
melhor oferta para atender às suas necessidades 24. Olivier Apprill, entrevista com o autor.
financeiras. Deligny fica ressentido e nao esconde isso, 25. Ibid.
e a situaçâo acaba levando à ruptura. Entre o desejo de 26. Histoires de La Borde, op.cit, p. 273,
um de preservar Gourgas como lugar aberto aos quatro 27. Félix Guattari, “La Grille”, exposiçâo feita no estágio de
ventos e o desejo do outro de levar ali urna vida de formaçâo de La Borde, Janeiro de 1987, arquivos do IMEC.
recluso, o acordo difícilmen te pode- ría durar mais de 28. Ver François DOSSE, Histoire du structuralisme, tomo 1,
dez anos: “O estilo de sua carta me surpreende um La Découverte, Paris, 1991; reed. col. “Biblio-Essais”, Livre
pouco. Se tivermos de continuar trocando cartas, eu de poche, Paris, 1995.
preferiría que fosse em outro tom... Nao vejo por que os 29. Félix GUATTARI, "La transversali te’ (1964), em PT, p.
internos de La Borde estariam impedidos de viver em 72-85.
Gourgas! Por qué? Em nome de qué?... Fique com sua 30. Ibid., p. 79.
ami- zade, Ela é realmente precària demais”80 31. Ibid.. p. 80.
32. Ibid., p. 84.
Notas 33. jean-Baptiste Thierré, entrevista com o autor.
34. Ibid
1. Félix GUATTARI, “La S.C.A.J. Messieurs-Da- mes”, em 35. Ibid.
Bulletin du personnel soignant des cliniques du Loir-et- 36. De um lado, Guattari tem urna relaçâo amorosa com a
Cher> n, 1,1957, reproduzido em PT, p. 36, companheira do psiquiatra jean- girard, Jacqueline Moulin,
2. ïbid. p. 37. depois com Ginette Michattd, e de outra, Micheline Kao tem
3. ïbid. p. 37. urna relaçâo amorosa com um psiquiatra argelino, Ben
4. jean Oury, entrevista com o autor. Milard.
5. ïbid 37. Micheline Guillet (Kao), entrevista com Ève Cio- arec,
6. Histoires de La Borde, op. cit., p. 133. arquivos IMEC, 20 de setembro de 1984.
7. Ibid., p. 142. 38. Marie Depussé, entrevista com Virginie U- nhart.
8. Nicole Guillet, entrevista com o autor. 39. Nicole Guillet, entrevista com o autor.
9. Ibid. 40. Sua mâe, Bérangère, vem trabalhar ali, sua irmâ Geneviève
se casa com o cozinheirto, René. Sua irma jeannìne se casa
10. Ibid. com Ettore Pellandíni, e o responsável pelas quermesses de
11. Félix Guattari, “La Grille”, exposiçâo feita no estágio de La Borde com a mulher do psiquiatra Bidault, Michelle.
formaçâo de La Borde, Janeiro de 1987, arquivos IMEC. 41. Marie DEPUSSÉ, em Jean OURY, Marie DEPUSSÉ., À
12. OSCAR (Félix Guattari), Histoires de La Borde, op. cit., p. quelle heure passe le train..., op. cit., p. 214.
226. 42. Bruno Guattari, entrevista com Virginie Li- nhart.
13. jean-Claude POLACK, Danielle SIVADON-SA- BOUR1N, 43. Ibid.
La Borde ou le droit à folie, op. cit., p. 44. Félix Guattari, entrevista com Ève Cloarec, arquivos IMEC,
40.
14. Histoires de La Borde, op. cit., p. 247, 29 de agosto de 1984.
15. Liane MOZÈRE, Le Printemps des crèches, L'FIarmattan, 45. Arlette Donati, entrevista com Ève Cìoarec, arquivos IMEC,
Paris, 1992, p. 109, 25 de outubro de 1984.
16. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève Cioarec, 46. Félix GUATTARI, “Journal 1971”, 25 de setembro de
arquivos IMEC, 29 de agosto de 1984. 1971, La Nouvelle Revue française, n. 564, Janeiro de 2003,
p. 336.
47. Bruno Guattari, entrevista com Virginie Li- nhart 66. josée Manenti, entrevista com o autor.
48. Félix GUATTARI, “Journal 1971”, 2 de setembro de 1971, 67. Nascido no suburbio de Lille em 1913, Fernand Deligny
La Nouvelle Revue française, n. 563, outubro de 2002, n. atua corno professor primàrio em Nogent, na reglâo
563,68p. François
336. Dosse parisiense, em 1936, e depois no instituto Médico-
49. Arlette Donati, entrevista com Ève Cloarec, arquivos IMEC, Pedagógico de Armentières. Em 1941, trabalha no hospital
25 de outubro de 1984. psiquiátrico de Armentières em um pavilhao onde vivem
50. Ibid. juntos jovens psicóticos e jovens delinquentes considerados
51. Ib id. irrecuperáveís.
52. jean Oury, entrevista com o autor. 68. Josée MANENTI, “Fernand Deligny...", Chimères, n. 30,
53. Ibid. primavera 1997, p. 104.
54. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. 69. Nicole Guillet, entrevista com o autor.
55. Ibid. 70. Josée Manenti, entrevista com o autor.
56. Marie Depussé, entrevista com Virginie U- nhart. 71. Jean Oury, entrevista com o autor.
57. Félix GUATTARI, “journal 1971”, 25 de setembro de 1971, 72. Ibid.
la Nouvelle Revue française, n, 564, Janeiro de 2003, p. 336. 73. François Pain, entrevista com o autor.
58. Félix Guattari, entrevista com Ève Cloarec, arquivos ÍMEC, 74. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos ÍMEC, 9
Io de outubro de 1984. de outubro de 1977.
59. Arlette Donati, entrevista com Ève Cloarec, arquivos IMEC, 75. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 31
25 de outubro de 1984. de outubro de 1977.
60. Jean OURY, emjean OURY, Marie DEPUSSÉ, À quelle 76. Ibid.
heure passe le train..., op. cit, p. 243. 77. Félix GUATTARI, La Révolution moléculaire,
61. Ibid., p. 247. Recherches, Paris, 1977.
62. Jean-Claude Polack, entrevista com o autor. 78. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 31
63. Jean OURY, em Jean OURY, Marie DEPUSSÉ, À quelle de outubro de 1977,
heure passe le train..., op. cit., p. 255. 79. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 9
64. Jacques Lacan, citado por Félix Guattari, ibid. de abril de 1978.
65. Le Moindre Geste, filme de Fernand Deligny, josée Manenti 80. Félix Guattari, carta a Fernand Deligny, arquivos IMEC,
e Jean-Pierre Daniel, realizaçâo de Nicolas Philibert, 2004. 1979.
4
A criagáo anos de 1970,
da Federagao obterá
de Grupos de subvençôes
Es- tudo e de substanciáis
Pesquisas r do Estado
Institucionais para financiar
(FGERI) por algumas pes-
Félix Guattari quisas de
em 1965 A pesquisa crítica à prova da experiência grande
marca nele urna verda- deira guiñada estratégica, amplitude nas áreas da saúde, da formaçâo, do
que deixa para trás A Via Comunista e suas equipamento, etc.
filiagoes trotskistas. O objetivo é converter o Para dar mais visibilidade a esses traba- lhos,
trabalho intelectual em um programa de pesquisa a FGERI publica urna nova revista cujo primeiro
nao académica. Trata-se de organizar, a partir das número sai em janeiro de 1966. Um ano antes, um
competéncias específicas de cada um dos grupos pequeño grupo em torno de Félix passou urna
autónomos constitutivos da federagao, a noite inteira pensando no título da nova revista.
circulagáo máxima de suas contribuigoes; a Michel Rutel propoe um nome a cada quinze
intengao é sub- verter os hábitos e as falsas minutos. Guy Tras- tour recorda de ter sugerido
certezas de toda disciplina constituida. no final, já um

A transdisciplinaridade em ato
A FGERI desenvolve o principio da trans-
versalidade1 enunciado por Guattari nos espa- gos
que tém em comum lidar com a instituí- gao:
psiquiatras, antropólogos, psicanalistas,
psicólogos, enfermeiros. O meio labordiano está
na miz desse projeto, ao qual se associam
educadores, professores primários e universi-
tários, urbanistas, arquitetos, economistas, co-
operantes, cineastas, etc. Em outubro de 1965, há
doze grupos federados, e todos tém como
referéncia a análise institucional inspirada na
pedagogía de Fernand Oury ou na psicoterapia de
François Tosquelles, que já receberam suas cartas
de nobreza. Essa federagao, muito fle- xível em
seu funcionamento, agrupa mais de cem
pesquisadores, e seu local de implantagáo mais
importante é, evidentemente, o meio psiquiátrico.
Sob o impulso de Guattari constitui-se um
organismo que terá grande ressonáncia no campo
das ciencias humanas-, o Centro de Estados, de
Pesquisas e de Formaçâo Institucionais (CERFI),
cujo objetivo é permitir à federagao “firmar
contratos de pesquisa com organismos públicos
ou privados sobre problemas suscetí- veis de2
estimular e de enriquecer o trabalho da FGERI” .
O CERFI, que conhecerá sua idade de ouro nos
pouco cansado, Recherchesi. Esse investigagóes promissoras que de imediato representam
é o título adotado, que se escapes, linhas de fuga nesse ambiente científico e
inscreve na continuidade da puramente con- ceitual, Embora essa orientagáo
70 François Dosse
revista conduzida por sua permanega marginal e a contracorrente das fascinagóes
esposa, Renée Tras- tour- do momento, a FGERI dispoe da aquisigao da reflexáo
Fenasse, codiretora da sobre a análise institucional que pretende conjugar as
revista da MNEF, Recherches Universit. contribuigóes do freudismo e do marxismo, e colocar a
aires, que entáo cederá seu libido no centro do processo de pesquisa, e nao mais na
lugar: a ancoragem nos meios penumbra, longe do verdadeiro saber erudito. Desde
estudantis é garantida e suas primeiras exposigóes apresentadas em 1966 na
claramente afirmada. A nova “comissao teórica” da FGERI, Guattari marca distáncia
revista será administrada e das posigóes althusserianas, entáo em plena onda,
dirigida no primeiro momento utilizando Lacan para elaborar melhor sua critica.
pela ex-companheira de Ele lembra a esses defensores do conceito pelo
Fernand Deligny, Josée conceito o sentido das realidades: "Existe um patamar
Manenti. O desejo manifestado aquém do qual náo se pode avangar na desrealizagáo da
pelos iniciadores da FGERI e historia; existe um realismo residual da historia; essa
por Félix Guattari é submeter reali- dade inexpugnável é o fato contingente que os
as grandes referéncias homens e ninguém mais fazem e faiam” 6. Para além da
tutelares, como Marx, Freud e filosofía da historia, essa crítica abre caminho a urna
Lénin, á prova da prática reconexáo entre a pesquisa, o saber e o terreno da
contemporánea, dos desafíos experiéncia, do vivido, das representagóes dos atores e
do presente e do estágio mais de sua palavra. Com isso, Guattari nao opóe um sujeito
avangado dos conhecimentos em pleno, senhor de si mesmo, ao “processo sem sujeito”
todos os campos das ciencias de Althusser; trata-se de um sujeito cíivado: “O sujeito
humanas: “A re- petigáo é a esquizofrénico, na verdade, ficará no segundo plano,
morte. Utilizar Marx ou Freud será o sujeito do inconsciente, chave oculta das
em forma de repetigáo é enunciagoes recalcadas... Essa subjetividade náo tem de
langar-se em urna espécie de prestar 7contas nem perante a lei, nem perante a
incensamento mortífero”4. A historia” ,
FGERI pretende promover a Guattari quer manter o objetivo de trans- formagáo
transdisciplinaridade, conce- revolucionária que sempre defen- deu, mas agora
bida náo como urna partiíha sustentado por urna reflexáo conduzida do interior da
de propietarios preocupados sociedade. Nao se trata mais de esperar a “grande
com suas delimitagóes noite”, mas de p repará-la mediante transformagóes
frontei- rigas, mas como efeti- vas das instituigoes. A FGERI, essencialmente
indagagao original sobre o composta de intelectuais, tem ligagóes tam- bém no
territorio das disciplinas mundo industrial, em particular com a prestigiada rede
para articular suas da Hispano comandada por Roger Panaget, que cria o
orientagoes de pesquisa “a Grupo de Estudos e de Pesquisa do Movimento
fim de que seus conceitos Operário (GERMO) ligado á FGERI. Outro grupo da
estejam em ‘oposigáo FGERI contri- bui desde 1965 para a difusao das teses
distintiva e náo se mantenham feministas, o Grupo das Boas Muflieres de Esquer- da
em estruturas antagonistas de (GROBOFEGA), combinando urna reflexáo histórica e
desconhecimento recíproco’0. etnológica e um engajamento específicamente feminino
Afirmar entre 1965 e 1966 o valor das pesquisas com agóes de luta pela contracepgáo livre e gratuita,
empíricas em ciencias humanas é singularmente pela liberdade de aborto e pela liberagáo sexual.
inovador e original em um contexto intelectual muito Encontram-se ali, entre outras, Nicole Guillet, as
“althusserizado”. É o grande momento do sucesso de sociólogas Liane Mozére e Anne Querrien, assim como
Ler o Capital e Para Marx, do retorno “a Marx” a escritora Annie Mignard e a futura psicanalista
seguindo as vias do “corte epistemológico”. Preconizar Brigitte Maugendre.
um desvio pelas práticas sociais e institucio- nais, assim Os prîmeiros números da revista Recherches dâo
como pela prova dos fatos, abre caminho a urna ideia da diversidade pretendida pela FGERI, assim
como de sua recusa de qualquer forma de centralizaçao. do lado da MNEF e da UNEE A si- tuapào universitària
O primeiro contém um artigo de Félix Guattari sobre a é marcada por um duplo processo de radicalizapao
psicoterapia institucional que revela o verda- deiro política comGilles
a guiñada à esquerda da UNEF em 1963 e
ponto de ancoragem dessa federaçâo, mas leem-se ali com a autono mizapao da UEC em relapào à diregáo do
Deleuze & Félix Guattari 71

também artigos vindos dos grupos “teatro”, PCF. Após a guerra da Argelia, que havia niobi- lizado
“arquitetura”, “economia”. O editorial do segundo fortemente o meio estudantil, a UNEF entra em pane. A
número afirma a recusa de encarnar urna corrente organizapào sindicai tinha um estudante a cada dois em
específica, ao contràrio das outras revistas desse tipo: suas fìleiras, mas um certo desencanto, a concorrència
“Nada de comité de redaçâo que determine a linha, que de um sindicato criado pelo governo gaullista e o can-
selecione os artígos. Nada de teorías nem de conceitos a sapo dos veteranos concorrerci para urna crise de
defender... Recherches é o órgáo de expressâo de todo esgotamento. Quando o congresso de Dijon abre as
grupo que trabalha em um setor do campo social portas na primavera de 1963, impóe-se um verdadeiro
orientado para a análise das instituiçôes nas quais cada aggiornamento. Os dirigentes da UNEF constatam
um está inserido e que aceita ser interpelado cons- desolados que sua organizapào só agrupa agora um
tantemente por outros grupos implantados em outros se estudante a cada quatro. É nesse contexto que emerge
tores”3. Náo existe um aparelho para gerir a FGERI, e urna nova gerapáo, bastante ativa e contestatória, vinda
seus diversos grupos tém apenas urna ocasiao efetiva de essencialmente das ñleiras da Federa- pao Geral dos
encontró durante o ano: as quermesses anuais organi- Estudantes de Letras (FGEL), presidida a partir de 1963
zadas em La Borde. Nem por isso a federaçâo promove por Jean-Lous Péni- nou, e da Associapáo Geral dos
urna forma de interdisciplinaridade “frouxa”. Ao Estudantes de Medicina (AGEMP), presidida por Jean-
contràrio, os pesquisadores sao solicitados para falar sua Claude Polack. Os porta-vozes dessas correntes con-
propria linguagem disciplinar sem concessâo à testatórias da esquerda sindical pregam urna
mundanidade ou à vulgarizaçâo. radicalizapao das lutas e consideran! que a UNEF nao
pode apresentar urna simples lista de reìvindicapòes,
mas deve integrá-la em urna crítica global da sociedade
Urna oposiçao de esquerda para defender um programa global da transformapáo.
Ao mesmo tempo em que se constituí a FGERI, Essa esquerda sindical é comandada por militantes da
instala-se, ainda em torno de Guattari, outra UEC, cuja autonomizapao em relapào ao PCF tem urna
organizaçâo política que cristaliza as novas forças ressonància crescente no meio estudantil, criando urna
recrutadas no meio estudantil: a Oposiçâo de Esquerda dinàmica particularmente entre os estudantes de letras e
(OG). Na verdade, os dois projetos sâo concebidos de medicina, os doís pilares da esquerda sindical.
como complementares: a OG é a ala de intervençâo Criada pela diregáo do Partido em 1958 para
política de profissionais que se reconhecem na rede da desmontar a célula filosofìa da Sorbonne, que se tornou
FGERI. A criaçao da OG é fruto de todo um traballio agitada e contestatória demais, a UEC é dirigida pelos
minucioso de “botôes de casaco”, como se dizia na chamados “italianos”, Alain Forner, Pierre Kahn, Jean
época, comandado por Guattari. Schalit, entre outros, que tém em comum mirar-se na
0 firn da guerra da Argelia em 1962 reforpa a Itália para encorajar a desestalinizapáo do Partido. Seu
atividade e a influencia de Guattari no meio estudantil jornal, Clarté, expressa esse desejo de re-
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 72

novagào abrindo espago para artigos menos Milbergue organiza urna reunido com o pessoaì
diretamente políticos, abordando a criagào de La Borde: Oury, Guattari e alguns outros
artística e o mundo intelectual. Podem ser lidos deixam o seminàrio de Lacan da Rue d’Ulm para
ali textos sobre Alain Resnais, Maurice B'éjart, se dirigir como vizinhos à sede da MNEF, na
Samuel Beckett, que rendem ao sema- nário urna9 Place du Panthéon. Um novo permanente,
ampia audiencia (25 mil exempìares vendidos) . recrutado corno assistente técnico para “higiene
Mais radicáis que esses “italianos” da di re gao da mental”, Guy Trastour, descobre nessa ocasiào
UEC, correntes heterogéneas de urna esquerda um novo discurso que o deixa encantado: “Perce-
que se pretende mais revolucio- nária bo urna outra forma de colocar os problemas, as
desenvolvem-se dentro da UEC, sobre- tudo no relagoes com o outro, com a loucura, e estou
setor de Letras. Suas referencias teóricas sao urna completamente seduzido”11. Guy Trastour decide
mistura de Victor Serge, Lenin, Trotsld, Rosa de imediato implantar com Guattari um projeto
Luxemburgo, e de André Gorz, no que se refere à de hospital-dia para adolescentes, que deve ser
análise da sociedade francesa. Esses escritos um local de acolhimento para estudantes e jovens
alimentane urna esperanqa revolucionária na qual operários. A rede constituida por Guattari assume
a contestagào estu- dantil desempenharia um amplitude particular em um meio sensível ao
papel fundamental: “0 condicionamiento estreito discurso psi, na medida em que Guy Trastour,
da universida- de (pelo Capital) dà à agao que cuida dos BAPU, tem a possibilidade de
universitària urna importancia nacional”, condui percorrer o país1 para estabelecer ligagoes entre
Marc Kravetz, um dos dirigentes da FGELi0. A psi e estudantes ".
aspiragào riessa corrente é romper com a forma O outro sinal de radicalizagáo surgiu em
puramente corporativista da atividade sindicai margo de 1964 na UEC, 0 aparelho do Partido
para dire- cionar o movimento estudantil a preparou as coisas com o máximo cuidado,
questoes de vida concreta na sociedade, a esperando tirar proveito das divisóes de seus
problemas de or- dem existencial enfrentados contestatários de todo matiz, “italianos",
pelos jovens que nao se reconhecem nos valores “trotskistas”, “maoístas”, para retomar a dire- gáo
dominantes da sociedade de consumo capitalista. de sua organizagáo estudantil. Encontraran! em
Outro elemento da situagáo no melo estu- Jean-Micheì Catala e em Guy Hermier dois
dantil absolutamente essencial, em particular para líderes incumbidos de comandar na bata- Iha as
realizar a conexáo desejada por Guattari entre a tropas reunidas pela diregáo para o congresso. O
política e a pràtica psicoterapèutica, é a evolugáo comité nacional dominado pelos “italianos” è
da MNEF, que administra a Segu- ridade Social ampiamente minoritàrio e se orienta para um
estudantil. Eia volta a atenqao para as diversas compromisso com a diregáo do Partido a firn de
patologias específicas que se encontram no meio manter o controle da UEC. 0 su- cessor naturai de
estudantil no momento de sua massifìcagào e Alain Forner, Pierre Kahan, prepara um relatório
impianta agèncias de ajuda psicológica aos centrado na denùncia das diversas alas
universitários (BAPU). Estas últimas publicam a esquerdistas. Entretanto, os “italianos”, que
revista que estará na origem de Recherches representam nao mais que 20% dos mandatos,
Unìversitaires da FGERÍ, e disso resulta a acabam se colocando ao lado da oposigáo de
criagào de um Comité Nacional Universitàrio esquerda em urna mesma mo- gao final que
para a Saúde Mental. Um dos responsáveis pela contabiliza o mesmo número de votos (180) que
MNEF, Jean-Pierre Milber- gue, prega entao a os partidários da tendéncia ortodoxa da diregáo
estruturagào do movimento estudantil em torno do PCF. Diante desse empate, a tensáo se acirra, e
de métodos psicosso- ciológicos, o que supóe parte-se para a decisào nos penaltis: “A sessào é
urna ruptura com as formas tradicionais de reaberta na manha de domingo. Logo na abertura,
militància politica. Eie organiza urna sèrie de Marie-Noélle Thinaut pega o microfone e, com a
estágios, de encontros entre estudantes e os melos voz es- maecida, embargada de emogao, revela
profissionais especializados. É no àmbito de um que durante a noìte foi fechado clandestinamente
desses estágios, no final de 1963, que jean-Pierre um acordo entre os ‘pró-Partido’ e os ‘italianos’.
Eia conta que ouviu por acaso uma conversa, Roland senâo jean-Marie Le Pen. Isso significa que nao pega
Leroy e Alain Forner dividiam entre si os postos do bem ser de esquerda e menos ainda esquerdis- ta em
comité nacional; fìcam cinco cargos para cada uma das Assas. Entretanto, começa a se organizar um pequeño
tendèncias principáis, e treze para a esquerda. O espanto polo de resistènza chamado de Associaçâo Cujas*.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 73

toma conta da pìateia. Um silencio13pesado, incrédulo, se Cruzam-se ali tanto jovens radicáis quanto jovens
estabelece por alguns segundos” . Pierre Goldman e católicos de esquerda, tanto socialistas como Pierre
Yves Janin langam imprecagòes contra Roland Leroy, Guidoni quanto militantes da UEC. É nesse caldo de
provocando uma confusao tao grande que a diregào cultura de esquerda que se encontram aqueles que se
teme um possivel ques- tionamento de seu acordo por tornarâo amigos próximos e fiéis de Guattari: Liane
baixo do pano e decide se reunir a portas fechadas. A Mozère e Hervé Maury. Essa extrema esquerda plural
cortina pode baixar pudicamente sobre o primeiro ato da tem de demonstrar urna cora- gem singular, mas eia
nova sessao secreta, e os dois líderes por merecimento conta com alguns apoios de peso, como o do decano da
da normalizaqao, Guy Hermier e Jeàn-Michel Catala, faculdade, Gabriel Le Bras, especialista em direito
podem ter acesso ao comité nacional e se arrogar o canònico, assim corno de um outro grande jurista, na
controle do Clarté, deixando a Pierre Kahn o papel pessoa de Georges Vedeì.
decorativo de secretário-geral da UEC. O Instituto de Estudos Políticos de Paris é um meio
É nesse meio efervescente de sindicalistas da mais aberto que as faculdades de direito. É inclusive
UNEF, membros da UEC, antistalinistas outro viveiro onde Guattari poderá realizar encontros
revolucionários que Guattari trava suas ami- zades e decisivos. Em 1964, François Fourquet, estudante de
constituí seu “bando”. 0 candidato da “minoría” em ciéncias po~
1963, Jean-Cìaude Polack, vai para La Borde como
interno em psiquiatría e se torna imediatamente o <!
N. de T.: Sigla de Cercle universi lai re juridique d’action sociale.
“tenente” de Guattari. Outro dirigente da UNEF, líricas e militante da “esquerda” da UEC, en- contra
secretàrio-geral em 1964, Michel Rostain, estudante de Guattari por ocasiao do congresso da UEC. Jà Lion
filosofia na Sorbonne, na òrbita de A Via Comunista, Murard é um pouco mais jovem que seus colegas.
fica incomodado ao constatar a distància entre o Nascido em 1945, eie ingressa na faculdade de ciencias
discurso sustentado por essa organìzaqao e suas políticas em 1963 e fica amigo de François Fo urque t
pràticas. Quando de urna reunido em 1964, perto do através da açâo que realizam juntos na minoria da
Panthéon, onde se encontram, entre outros, em torno de UNEF e da UEC nos anos de 1964 e 1965. Outra re-
Guattari, Antoine Griset, jean-Louis Péninou e Marc cruta importante em ciencias políticas é Anne Querrien,
Kravetz, Michel Rostain manifesta sua discordància que estuda na Rue Sainfc-Guillame mais para satisfazer
com A Via Comunista. Sur preso, ele percebe que suas a vontade de seu pai, que é conselheiro de Estado, Eia
palavras causam a maior alegría em Guattari, que logo se engaja de forma muito ativa na esquerda da
telefona para eie no dia seguin- te convidando-o para La UNEF e em1 1964 está na presìdència da seçâo de Paris
Borde, Michel Buteì também faz parte do primeiro da MGEN e depois na agencia nacional da ins- tituiçâo
círculo em torno de Guattari, que conheceu em La em 1965. Juntamente com Liane Mo- zère, François
Borde em 1963. Eie passa a vida na UEC e se dedica à Fourquet e Hervé Maury, Anne Querrien faz parte do
agitaçâo política no Quartier Latin. Na Sorbonne, setor Direito da UEC. Eia se envolve nas ativìdades do
Michel Butel reencontrou seu amigo de infancia Yves Centro Estudantil de Pesquisa Sindical (CERS) e
janin, mais combativo aínda do que ele. Eles formano descobre o nome de Guattari lendo Recherches Univer-
um trio com o mais ativista dos ativìstas, Pierre sitaires. Por outro lado, as enquetes do CERS
Goldman, res- ponsável pelo serviço de ordem da UEC. possibilitavam associar politica e abordagens
Essa equipe afinada pretende manter o controle do sociopsicológicas, bem como possuiam a van- tagem de
Quartier Latin diante das ameaças constantes da ser transversais, realizando estudos que diziam respeito
extrema direìta. ao mesmo tempo aos meios estudantis, operários e
Todavía, a Sorbonne e a faculdade de medicina nâo camponeses. Essas pesquisas-açôes podiam chegar a
constituem o unico terreno fértil onde brota a esquerda resultados para esclarecer um pouco melhor o mal-
sindical radical. As ra~ mificaçôes se estendem do lado -estar estudantil. Foram ùtels para redéfinir de maneira
da faculdade de direito em um ambiente hostil assim mais apropriada as reivindicaçôes do movimento
corno no Instituto de Estudos Políticos de Paris. No estudantil medindo suas necessi- dades, suas aspiraçôes,
inicio dos anos de 1960, a faculdade de direito se tornou
um territòrio ocupado pelas or- ganizaçôes de extrema
direita. 0 presidente de honra da corporaçâo nâo é outro 1 N. de T.: Mutuelle Générale de l’Education Nationale.
A guiñada à esquerda operada pela UNEF quando Na medida em que a “esquerda” está excluida da
do congresso de Dijon se traduz em : um reforço dessa direçâo da UEO, é preciso prolongar sua existencia, mas
corrente74 no aparelho sindical. AMGEN é presidida agora de fora. Em 1965, é com esse objetivo na cabeça
entao por François
um adepto da esquerda sindicai na pessoa de
Dosse
que Guattari reúne alguns militantes estudantis na casa
Antoine Griset. A Federaçâo de Letras da UNEF de Marie Depussé, em Paris, para criar a OG e esta-
organiza urna grande manifestaçâo parisiense com 10 belecer urna plataforma para eia. Em seguida, um grupo
mil : estudantes que enfrentam a policía. Eles impe- inteiro se instala nos Godelins, entre Cour-Cheverny e
dem a visita do ministro da Educaçâo Nacional, Bracieux, bem perto de La Borde, onde Guattari podía
Christian Fouchet, à Sorbonne. A alta dos alu~ guéis da prosseguir o traballio junto aos internos da clínica. Ele
Cidade Universitària esbarra em um verdadeiro front de vinha de tempos em tempos visitar os amigos para ver
recusa. Essa agitagáo do final de 1963 se traduz em como os trabalhos estavam avançando. Encontram-se
Vitorias importantes: em janeiro de 1964, o governo ali François Fourquet, Michel Butel, Pierre Aroutchev,
desiste dos aumentos de aluguel e anuncia a construgào Liane Mozère, Hervé Maury, Geoges Préli e sua
de urna nova unìversidade em Nanterre, para desafogar mulher, Nicole.
a Sorbonne. Tais concessoes nao de- sarmam o Ê urna responsabilidade pesada para os so-
movimento estudantil que se sente encorajado por essas breviventes da UEC definir ao mesmo tempo as regras e
Vitorias e quer acentuar ainda mais a pressáo sobre os o programa político de urna organiza- çâo que se
poderes públicos. pretende inovadora: “A incumbencia era escrever teses,
Um novo jront se abre em 1965 por ocasiao do que se tornaram As 9 Teses da Oposiçâo de Esquerda,
congresso da UEC, que se realiza em um feudo do mas na verdade o que se fez foi sobretudo jogar um
stalinismo, em Montreuil. É o segundo ato da diregáo jogo chamado a mano’, que consiste em adívinhar o que
“pró-Partido” para coroar o putsch de 1964, se tem na mao”15. Quanto a Guattari, um pouco cha-
apoderando-se desta vez da to- talidade dos poderes da teado ao constatar que as coisas nâo avançam, aproveita
organizagáo estudantil, Os “italianos’ se desgastaram e para aprender a dirigir e fica dando voltas em torno da
já nao tem ilusoes sobre sua sorte. De fato, eles seráo casa, sob o olhar divertido e sob as caçoadas de Michel
es- magados, como mostra o resultado da mogao de Butel. Depois, impaciente, Guattari decide suspender a
Guy Hermier (344 votos contra 145). Este último será o locaçâo dessa casa dos Godelins e pôr toda essa gente
novo dirigente da UEC: “Jean-Michel Catala, apelidado para trabalhar levando o grupo para La Borde. Na
de ‘Dracatala’ em razáo de sua intransigencia, o mais clínica, o dispositivo de redaçâo das 9 teses se reduz a
empedernido dos pró-Partido, instala-se na tribuna'“. A um trio formado por Guattari, François Fourquet e Jean
diregáo do Partido encontra no caminho um aliado Médam: “Félix escreve mal, em um jargao horroroso,
inesperado, do qual nao tem necessidade ne- nhuma, ilegível, e ele achava que eu podia fazer urna revisáo no
mas que Ihe oíerece seus servigos. Tra- ta-se da corrente projeto. Era impos- sível. Já quando fala, ele é
maoista surgida na ENS de Ulm, que no entanto nao se cristalino”16. Guattari é, no essencial, a “voz” dessas 9
cansa de denunciar o “revisionismo” e os “social- teses. François Fourquet acrescenta e completa as
traidores”. Os líderes dessa corrente, valendo-se do proposiçôes acerca da economia política e estimula o
prestigio da ENS e da autoridade intelectual de Althus- amigo a desenvolver os aspectos psicanalíticos relacio-
ser, decidem se aliar a Guy Hermier e jean-Mi- chel nados com a di mens ao política da contestaçâo, É a
Catala para despachar da diregáo da UEC todas as primeira vez que Félix Guattari póe em pràtica esse
outras correntes. Eles voltam a tomar assento em um dispositivo de escrita a dois.
comité nacional “expurgado” ao lado Raqueles da A intençâo dele a propósito das 9 teses é criar um
tendéncia pró-Partido. Esse expurgo pòe firn ás ilusoes tipo de agrupamento de ordem política, mas original,
de urna possí- vel autonomia da UEC em relagáo ao rompendo com o centralismo democrático tal como
aparelho do Partido. Entre 1965 e 1966, esse chamado à funciona nao apenas ñas organizaçoes stalinistas, como
ordem levará ao surgimento de novas organi- zagòes, também ñas trotskistas. Além disso, Guattari pretende
primeiro trotskista, com a juventude Comunista tirar as liçôes políticas da experiencia de La Borde.
Revolucíonária (JCR), depois maoista, com a Uniao da Cabe a ele levar em conta a dimensao subjetiva dos
Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJCML). individuos, seu desejo e, portanto, seu inconsciente. Isso
Quanto às redes de esquerda constituidas por Guattari, implica urna organizaçâo bem diferente de A Via
elas es- táo desconectadas das verdadeiras alavancas Comunista - que de resto desaparece em fevereíro de
políticas. 1965. Guattari e Fourquet passam todo o verâo e todo o
Em busca de um programa outono de 1965 pensando e redigindo essa plataforma
em La Borde. É preciso nao apenas reescrever a historia
do mundo como também extrair perspectivas para o A OG é criada entáo com urna plataforma e um
futuro e ligar as tradiçôes do movimento operário às pequeño jornal, o Bulletin de VOpposition de Gauche
aquisîçôes do freu- do-lacanismo. Guattari apressa o (BOG). EsseGilles
jornal contém todos os enderegos da rede
movimento para que a plataforma esteja pronta o mais constituida por Félix Guattari ñas alas esquerdas da
Deleuze & Félix Guattari 75

cedo possível. Eia é concluida no Natal de 1965 e UEF, da MGEN e da UEC. Com tiragem de urna
lançada em forma de brochura em fevereíro de 1966, centena de exem- plares quinzenal ou mensa!, ele faz a
com prefacio de Gérard Spitzer. ligagáo entre o que se passa no movimento estudantil e
A primeira tese propóe adotar urna escala de análise o que se passa no movimento operario gra- gas ao grupo
que ultrapasse o ámbito nacional e se situar de inicio no Híspano.
plano mundial para demonstrar melhor o que é Em 1966, surgem assim, e a coincidencia no tempo
considerado como urna nova contradiçâo pròpria do nao é mero acaso, duas iniciativas sob o bastáo de
capitalismo entre urna lògica mundiaìizada, de um lado, Guattari, pensadas como complementares: a revista
e a lógica dos interesses específicos do capitalismo Recherches da FGERÍ e o Bulletin de 1’Opposition de
monopolista de Estado, de outro. A segunda tese Gauche, chamado também de “Carré Rouge”. Ao
denuncia o projeto reformista e stalinista de integraçâo mesmo tempo, há urna mudanga na maneira como se
do movimento operário na lógica capitalista. A terceira concebe Recherches. Até ali, os números eram hete-
e a quarta teses analisam as contradiçôes antì- róclitos por definigao, expressáo da diversida- de dos
imperialistas e a emergèncìa de urna nova força com o grupos da FGERI. A partir de junho de 1967, a revista
tercei- ro mundo para tomar mais clara a dimensao publica números temáticos, especies de obras coletivas
intemacionalista do movimento operário: ‘A luta17 de de reflexáo sobre um tema específico.
classes caracteriza-se por sua univer- salidade” . A O primeiro dessa série, “Programmation,
quinta tese é urna crítica em regra aos Estados architecture et psychiatrie”, aborda a questâo
socialistas existentes, por sua incapacidade de psiquiátrica estudada do ángulo da arquite- tura e do
abandonar as regras do mercado mundial. Essa crítica urbanismo. Ele associa as pesquisas dos dois grupos
inspira-se fortemente nas análises de Trotski, mas se mais dinámicos da FGERI, o dos psiquiatras e o dos
demarca em alguns pontos: “As análises de Trotski nos urbanistas. Na orìgem dele, consultores do ministérío
parecem táo irrefutáveis no plano económico quanto as dos Assuntos Sociais e da Saúde fazem um estudo sobre
consequéncias políticas e18sociais que se deduz délas nos o caso da clínica de La Borde, que, com 150 Jeitos,
parecem problemáticas” . A sexta e a sétima teses cuida do mesmo número de pacientes que um hospital
tratam de apre- sentar um panorama da situagáo de 2 mil leitos. Nao apenas os métodos da psicoterapia
francesa em meados dos anos 1960 do ángulo da institucional começam a seduzir para além do pequeño
relagáo do Estado com os imperativos da modernizagao círculo labordia- no, como esse modelo seria mais
económica e política, Finalmente, a oitava e a nona interessante tendo em vista que permitiría urna
teses se dedicam a colocar o problema da organizagáo economia substancial. O ministérío decide entâo fazer
revolucionária e da etapa de agru- pamento a constituir. um levantamiento mais ampio, que resultará na redaçâo
Partem da necessidade da criagao de urna nova de relatório sobre um projeto de normas de construgao
organizagáo política para modificar as relagoes sociais aplicáveis aos hospitais psiquiátricos. Os encarregados
de produgáo capitalista, mas constatam ao mesmo disso serào Guy Ferrand e Jean-Paul Roubier, ambos
tempo o impasse do centralismo adotado pelos partidos médicos e membros da FGERI: “O balanço dessas
comunistas: “Nao se trata de negar o papel dirigente do discus- sòes é ampiamente positivo. Sem dúvida, por-
partido, mas de afirmar a necessidade de urna que poem em jogo mecanismos inconscientes e náo
descentralizagáo efetiva da dire- gáo das lutas de urna pura e simples transmissao de in- formaçôes ou
massas nos diversos níveis se- toriais”19. Quanto á confronto de opinioes”20. Esse número faz eco a um
efervescencia de grupelhos de extrema esquerda, ela questionami ento real dos poderes públicos que estáo
nao constituí urna solugao para esses problemas: a mesmo decididos a abandonar o equipamiento
última tese coloca a questáo de saber se é preciso adotar manicomial clàssico de ajuntamento de doentes em
a resolugao de criar um novo partido. Os autores da locáis her- dados do período carceràrio. O 5" plano
plataforma constatam o fracasso constante dessas tinha como ambigáo recuperar um atraso flagrante nesse
tentativas reiteradas. Diante da imatu- ridade das campo, pautando a construgao de 30 mil leitos
condigoes, o que está em questáo é um agrupamento, psiquiátricos públicos até 1975. Modesto nas
mas com a firme vontade de nao sucumbir na conclusses, esse número de Recherches pretende
impoténcia. sobretudo mostrar quais as escolhas decisivas a serem
feítas: “Desejamos avangar no sentido de defmiçôes
mais precisas, de um esclarecimiento que permita ás “agenciamento coletivo de enunciaçâo” ou de uma nova
pessoas de boa vontade que tém alguma “subjetividade de grupo”, partíndo de uma
responsabilidade nesse campo se situar com pleno multilocalizaçao espacial: “Era uma comunidade
conhecimen- to de causa” .
76 François Dosse 21
urbana”20.
Em 1967, Liane Mozère assume a direçâo da revista
Recherches, pela quai Picará respon- sável até 1970. Notas
Nascida em 1939, eia foi criada em Pequim - o pai
trabalhava no Jornal de Pe- quim, e o avô materno era 1. Félix GUATTARI, “La transversai i té”, 1964;’re-
ministro. Quando Mao assume o poder em 1949, a produziclo em PT.
familia deixa a China e vai para a Franga, e ela 2. Recherches, n.6, junho 1967, p. 316.
abandona o sobrenome Tchang para adotar o patrônimo 3. Guy Trastour, entrevista com o autor.
de sua avô, Mozère. A formaçâo em direito e a 4. Editorial, Recherches, n. 1, Janeiro, 1966, p. 2,
especializaçâo sobre a China abrem-lhe as portas do 5. ïbid., p. 3. Entre os fundadores da FGERI, ao lado de
CNRS, de onde acaba saindo para se engajar numerosos psiquiatras, como Jean Ayme, Jean Oury,
plenamente em urna concepçâo mais coletiva da Gilbert Diatkine, Nicole Guillet, Claude e Catherine
pesquisa, mais ajustada às suas posiçoes militantes. O Poncinjean-Clau- de Polack, Afelio e Horace Torrubia,
Germaine Le Gillant, Jean-Pierre Muyard; etnólogos:
CERFI que se constituí em 1967 reúne um primeiro Michel Cartry, Alfred Adler, Françoise e Michel izard,
círculo de responsáveis que, sarcasticamente, recebe o Olivier Herrenschmidt; arquite- tos: Gérard Buffiere,
nome de “Màfia”22. 0 CERFI se pretende um organismo Catherine Cot, Jacques Depussé, René Poux, Alain e
agregador de grupos autónomos e livres. Eie quer Estelle Schiedt, Ametico Zublema; muitos estudantes,
simplesmente caminhar por suas duas pernas - Marx e alguns economistas e sociólogos, psicólogos, estatís- ticos
Freud -, e a “Màfia” cuida do resto. 0 CERFI será antes e educadores, aos quais se juntam alguns escritores, como
de tudo um grupo-sujeito, o que implica urna vida Roland Dubillard, Thomas Buchanan e Jean Perret.
comunitaria entre seus membros. Em nome da recusa da Ultrapassando o centralismo jacobinista, a FGERI implanta
dissociaçâo entre vida privada e vida publica, corre-se o numerosos grupos correspondentes na provincia. Os
risco de muitos descontroles passionais e fortes tensôes primeiros grupos de correspondentes sao os de Blois,
afetivas. A atençâo voltada aos fenómenos do Dijon, Lyon, Nancy, Nantes, Nice, Rennes, Strasbourg e
inconsciente e do desejo “quería dizer que as Tours.
assembleias gérais do Coletivo se transformam 6. Félix GUATTARI, “La causalité, la subjetïvité et
frequentemente em sessóes de análise coletiva; que era l’histoire”, 1966, em PT, p. 175.
preciso assumir seu desejo reivindicando 23o montante do 7. ïbidp. 182.
salàrio que se acreditava poder justificar” . 8. Editorial, Recherches, n. 2, Janeiro, p. 1.
Em 1967, quando Liane Mozère assume a direçâo 9. Cifra informada por Hervé HAMON, Patrick ROTMAN,
da revista Recherches, ganham pro- jeçâo as revoluçôes Génération, tomo 1, Seuil, Paris, 1987, p. 128.
latino-americanas: Fidel Castro, Che e a guerrilha na 10. Marc KRAVETZ, Cahiers de l'UNEF, PUF, de- zembro de
Bolivia, etc. Para ampliar o pequeño cenáculo da OG, 1963, citado por Alain MONCHA-
Guattari e seus amigos criam em 1967 a Organizaçâo de BLON, Histoire de IVNEF, PUE Paris, 1983, p. 150.
Solidariedade à Revoluçâo Latino-Americana 11. Guy Trastour, entrevista com o autor.
(OSARLA), que também funciona de maneira 12. Essa atividade se prolonga no lançamento de um Bulletin
Santé mentale que vai asse- gurar a ligaçâo entre informaçâo
descentralizada: cada grupo da organizaçâo se ocupa de e reflexâo sobre o trabaiho realizado pelas diversas
um país particular da America Latina. Essa organizaçâo comissôes e difundir os resultados das pesquisas dos GTU
tende a envolver um círculo mais ampio, e Guattari terà (grupos de trabalho univer- sitáríos).
a oportu- nidade de reencontrar um antigo camarada 13. Hervé HAMON, Patrick ROTMAJM, Génération, tomo 1,
trotskista, Alain Krivine. op. cit., p. 209-210.
Nesse final dos anos de I960, a onda comunitària 14. Ib id., p. 240.
vjnda da América se propaga entre a juventude 15. Liane Mozère, entrevista com o autor.
contestadora francesa: “Vamos coletivizar nossa força 16. François Fourquet, entrevista com o autor.
de trabalho e vamos negociá-la, vamos vendê-la. E o 17. Félix GUATTA.Rï, "Les neuf thèses de l’opposition de
dinheiro que tirarmos dai, bem, nos o dividiremos, ele gauche” (1966), em PT, p. 108.
nos servirá para cultivar nossas ideias, nossa 24força de 18. Ibid., p. 111.
trabalho, nossa corrente enquanto cor- rente” . Dessa 19. Ibid.,p. 121.
experiência, o CERFI espera a emergencia de outra 20. Félix GUATTAR1, “Présentation”, Recherches, n. especial,
forma de subjetividade que possa surgir de um junho de 1967, n. 6, p, 4.
21. Ibid., p. 9. 23. Janet H. MORFORD, “Histoire du Cerfi. La trajectoire d’un
22. Encontra-se ali a rede recrutada pela açao militante na collectif de recherche sociale », EHESS/DEA, texto
U.NEF, na iMGEN, na UEC, e depois na criaçâo da OG: datilografado, outubro, 1985, p. 55.
François Fourquet, Liane Mozère, Hervé Maury, Michel 24. MichelGilles Rostain, em Janet
Deleuze H. Guattari
& Félix MORFORD, 77 "Histoire du
Rostain, Anne Querrien e Lion Murard. Todos fizeram um Cerfi. La trajectoire d’un collectif de recherche sociale”, op.
estâgio iniciâtico em La Borde. cit., p. 57.
25. Hervé Maury, ibid., p. 75.
Gilles Deleuze: o irmào do herói

Estamos no verao de 1928, alemáes, é deportado e morto


diante da casa de ferias dos durante a viagem que deveria
Deleuze em Deauviìle: conduzi-lo a um campo de
Georges, 5 anos, segura no concentralo - luto impossível
ombro de seu irmào mais dos pais, que erigem o fìlho
novo, Gilles. Ambos estáo mais velho em mártir, Assim,
vestidos de palhago. Um Gilles Deleuze sofre
pouco mais tarde, em 1934, os duplamente com o
revemos, ainda em Deauviìle, desaparecimento de seu irmào:
Gilles, entao com 9 anos, por mais que faga, sempre
fìngindo fumar um cigarro parecerá insignificante aos
com um papel enrolado. No olhos dos país díante do ato
ano seguínte, eìes posam de heroico do irmào mais velho.
novo juntos, desta vez em Isso levará a urna rejeigáo
trajes de tènis, cada um com precoce do meio familiar,
sua raquete. Georges segura como se recorda seu amigo
novamente no ombro do irmào Michel Tourníer, com quem
menor. Depois, mais nada. 0 Gilles se abrira a respeito:
irmào mais velho desaparece “Gilles sempre foi
do horizonte. Nào se encontra compìexado em face de seu
mais nenhum vestigio dele. irmào Georges. Os pais
Contudo, esse irmào maior devotavam um verda- deiro
desempenhou com certeza um culto ao fìlho mais velho, e
papel importante na cons- Gilles nao os perdoava pela
trugào da identidade de Gilles admiragào exclusiva por Geor-
Deleuze, ainda que como ges. Eie era o segundo, o
sujeito ausente. Georges mediocre, enquanto Georges
Deleuze entrou na escola era um herói”1. Em nenhum
militar de Saint-Cyr para se outro testemunho ou escrito
tornar oficial. Durante a encontra-se vestigio desse
guerra, eie se engaja na ressentimento. Contudo, jean-
resistèncìa. Preso pelos Pierre Faye, que descobriu
urna reìagao de parentesco por casamento com eie, ajuda que seu pal quería Ihe dar no período de férias em
recorda de ter assistido, quando crìanga, a urna cena sua difícil aprendizagem da álgebra.
estranila e, para ele, inexplicável: “Durante a guerra, Isso me deixava em pánico. Era regulado em milímetro.
minha mae foi ao enterro de um rapaz quei morreu Meu pai achava que tinha o dom de enunciar com
Gilles Deleuze & Félix Guattari 79

quando chegava ao campo de con- centragào de clareza, A coisa desandava rapidamente. Em cinco
Buchenwald, e estava iá o jovem Deleuze [Gilles] com o minutos meu pal comega- va a gritar, e eu, a chorar”7.
rosto convulsionado:; de dor, transtornado”2. No pós-
guerra, esse ; traumatismo logo será recalcado, ou
evocado;; com ironia. Em 1951, professor de filosofìa As primeiras aprendizagens
erri Amiens, Gilles Deleuze contará a seu aluno de
colegio, Claude Lemoine, que teve um irmào, “mas esse A guerra surpreende Gilles Deleuze aos 15 anos,
imbécil, quando de urna cerimònia de calouros, se quando se encontra na casa aiugada por seus país todo
perfurou com a pròpria espada;; de Saint-Cyr. Isso o veráo em Deauville. Decidero deixá-lo na regiáo e
fazia rir. Fazia-o passar ali por um imbécil”3. encontrar um lugar para ele como pensionista. Com isso,
Gilles Deleuze, que náo cansará de denunciar o Gilles cursa um ano da escola num hotel de Deauville
familiarismo e a atmosfera confinada da burguesía, transformado em colegio para a ocasiáo. É nesse
nasceu em 18 de Janeiro de 1925, no 17" Distrito de momento da descentragáo familiar que Gilles Deleuze
Paris. De sua infancia, eie nào è capaz de suportar a situa urna primeira ruptura decisiva em sua
mera evocagào. Contudo, quando da reaììzagao da sèrie personalìdade. Ele diz ter sido até entáo um aluno
de TV UAbécédaire junto com Claire Fernet, ele recor- mediocre, que enganava o tèdio se langando em urna
dará de alguns momentos-chave que marca- colegáo de selos. Um encontró produzirá o despertar
ramsuajuventude. intelectual e urna curiosidade sem limites.
Seu pai, Louis Deleuze, é engenheiro. Dono de urna De fato, em Deauville, ele sente ama ver- dadeira
raicroempresa - com um ùnico assala- riado, um operario fascinagào por seu jovem professor de letras, um certo
italiano -, ele explora urna tècnica de impermeabìlizagao Fierre Halbwachs. De saúde frágil, ele fora dispensado, e
de teihados. A crise de 1930 o atingiu em chelo, e eie como tinha urna licenciatura, o requisitaram para
precisou se requalificar e arrumar emprego em urna fá- lecionar nesse hotel-liceu. Gilles Deleuze descobre
brica de aeronaves. A vitória eleitoraì da Frente Popular através dele a literatura francesa. Torna-se um aluno
deixou desolado esse empresário de direita, próximo do devotado e náo se contenta com as aulas; segue Pierre
movimento dos Cruz de Fogo. Eie compartilhava o òdio Halbwachs pelas praias e dunas; "Eu era seu discípulo.
de todo seu meio social por esse judeu, Leon Blum, que Tinha encontrado meu mes- tre”8.0 professor declama
se tornou ehefe do Executive. Ao contràrio, seu filho para ele os textos de Gide, Baudelaire, Anatole France.
Gilles se recorda desse momento extraordinàrio - o Essa proxi- midade levanta suspeìtas de sua senhoria,
verno de 1936 quando, aos 11 anos de idade, assistiu que o adverte contra as supostas tendencias pederastas
encantado a chegada às praias de Deauville dos de seu professor. Gilles Deleuze menciona essa
primeíros 4 beneficiàrìos das férias pagas; “Era prevengáo ao professor, que Ihe promete esclarecer a
grandioso” . senhoria e dissipar qualquer mal-entendido. Contudo, a
Sua mae, 0 dette Camaüer, cuidava da casa e dos discussáo só serve para inquietar ainda mais a boa
filhos. Eia compartilhava pienamente das ideias políticas senhora, que alerta os pais de Deleuze sobre o perigo
do esposo e se indignava diante da invasáo popular de que ameaga seu fìlho. É ímpossível retomar a París, pois
lugares até en- táo preservados; “Minha mae, embora nesse meio-tempo os alemáes haviam atravessado a
fosse a melhor das mulheres, dizìa que era ímpossível fronteira e avangavam rapidamente sobre a capital.
frequentar urna praia onde há pessoas assim’V Sem Gilles e o irmáo Georges pegam entào suas bicicletas e
dúvida como reagao ao seu meio familiar, Gilles váo encontrar os pais em Rochefort, para onde a fábrica
Deleuze adorará afirmar mais tarde a origem meridional fora transferida a fi m de escapar ao avango das tropas
de sua familia, que amigamente era "De lyeuse”, nome nazistas.
occitano que significa “Do carvalho”; “Urna árvore cuja Finalmente, após o armisticio, Gilles Deleuze retorna
única preocupagáo, como da familia, era se desarraigar,6 à Paris ocupada e ao liceu Car- not, onde estudava desde
tomando a ‘linha de fuga de urna livre deriva’ . a 5a serie. Em 1943, no ùltimo ano do ensino mèdio,
Evocando posteriormente, diante de seus alanos, a figura poderla ter tido Maurice Merleau-Ponty corno professor
de Pierre Janet, esse contemporáneo de Freud que de filosofìa, mas volta para a classe do senhor Vial, que
definía a memòria como “canal da narrativa”, Deleuze de ìmediato lhe transmite suapaixáo pela disciplina:
menciona urna lembranga da infancia que o marcou, a da “Desde as primerias aulas de filosofìa, soube que era
isso que eu iria fazer"9, Deleuze, mais urna vez, vai além anos e se embrenha no estudo de filosofia e história,
dos marcos instituidos, está sempre criando oportunida- aprende latim, grego, hebreu e sànscrito, além de urnas
des de 80
conversar com o professor de filosofia e se toma dez línguas vivas. Conhece Étìenne Gilson, que a inicia
um alunoFrançois
particularmente
Dosse
briíhante. A descoberta da no latim medieval, frequenta os salòes, sobretudo o de
especulagao filosófica é para ele urna verdadeira Marcel Moré - um católico de esquerda e militante
revelagáo: “Quando aprendi que havla conceitos, isso personalista que fez parte da revísta Esprit - onde tem
teve para mim o efeifco de novos personagens. Isso me contado com toda a elite filosòfica. Ao mesmo tempo,
pareceu tao vivo, táo animado' 10
faz urna licenciatura de teologia no Instituto Católico de
"Quando iniciou o 4o e último ano do ensino mèdio, Paris. Titular de: um doutorado em teologia em 1941,
Gilles Deleuze já tinha despertado um pouco para a entra no: CNRS como especialista do sécuìo XII e
filosofìa através de seu amigo Michel Tournier, apenas traduz obras de Guillaume Saint-Thierry, Pierre de Blois
um mès mais velho que ele. Em 1941, Michel Tournier e Bernard de Cìairvaux.
faz sua “filò" no liceu Pasteur, onde tem aula com
Maurice de Gandillac. Um amigo comum, Jean
Marinier, que farà medicina, lhe apresenta Deleuze, que Um "novo Sartre"
reside na época na Rué Daubigny com os pais e está no É nesse meio e sob a ègide dessa mulher que
2Ü ano do ensino mèdio no liceu Carnot, Michel aparece o jovem aluno do último ano do ensino mèdio
Tournier recorda com certo orgulho esse momento em Deleuze, que chama a atengáo de imediato. Ali ele pode
que inicia seu amigo Gilles na filosofìa ao falar sobre o sobretudo conversar livremente corri Pierre Klossowski
curso de Gandillac, Logo admite: “Quando Deleuze a proposito de Nietzsche. As pessoas cochicham em
entrou na filosofìa, ele nos dominou a todos de cabega e torno dele: “Esse vai ser um novo Sartre”14. Nesses
om- bros”u. Michel Tournier lembra as conversas com anos, Deleuze participa também com Maurice de
seu novo amigo, em 1941 e 1942: “As pala- vras que Gandillac das reunioes no último sábado de cada mes na
trocávamos como balas de algodáo ou de borracha, ele residència de Marcel Moré, um grande apartamento do
nos devolvia endurecidas e pesadas como projéteis de Quai de la Mégisserie onde se encontram professores
ferro fundido e de ago. Logo passou a ser temido por universitários e intelectuais de renome. No dia 23 de
esse dom que tinha de nos pegar por urna única palavra junho de 1943, discute-se ali a “civili zagáo crista’ com
em flagrante delito de banalidade, de idiotice, de laxismo Jean Grenier, Brice Parrain, Marie-Magdeleine Davy,
do pensamento'12. Antes de ingressar na sèrie final; Michel Butor, Maurice de Gandillac e Gilles Deleuze.
Deleuze acompanha seu amigo, convidado por Maurice No dìa 5 de margo de 1944, debate-se “Mal e pecado” a
de Gandillac, em 1943, para as décadas organizadas por partir da obra de Georges Bataille com Jean Daniéìou,
Maríe-Mag- deleine Davy em urna grande propriedade Alexandre Kojève, Jean Paulhan, Roger Caillois, Geor-
da regíáo parisiense, perto de Rosay-en-Brie. Marie ges Bataille, Pierre Klossowski, Jean Hyppolìte, Arthur
Magdelelne fez do castelo de La Fontrelle um lugar Adamov, Jean-Paul Sartre e, mais urna vez, Maurice de
protegido onde pode esconder ju- deus, resistentes, Gandillac e o jovem Deleuze. Nesse ano de 1944,
refratáríos ao STO, aviadores británicos ou americanos. Michel Tournier leva Deleuze também às aulas públicas
Para dissimular essa atividade, eia organiza inúmeros dos psiquiatras Alajouanine e Jean Deìay em
encontros culturáis para os quais convida Michel Leiris, Salpètrière.
Jean Paulhan, Léopold Sédar Senghor, Paul Fia- mand, Desde essa época, Michel Tournier está assombrado
Gastón Bachelard, Robert Aron, Jean Wahl, Jean com a capacidade de seu amigo de tirar a poeira da
Burgelin, Jean Hyppolite, Maurice de Gandillac e muitos tradigáo filosófica para lhe dar um ar de atualidade. É
outros. preciso dizer que essas discussóes ocorrem no clima
Personalidade surpreendente era essa Marie- sombrío da ocupagáo nazista. Ao abrigo de seu liceu
Magdeleine Davy. Nascida em 1903 na regiào parisiense, Gilles Deleuze, que tem 18 anos e está
parisiense, “parecia mais um menino de verdade, prestes a concluir o ensino mèdio, nao entra na
detestava vestidos e em 1908 só usava calgòes ou caigas Resistencia. Contudo, está na mesma classe do militante
comprìdas. A màe a repreendia por nao usar os adjetivos comunista Guy Mòquet, que será abatido pelos nazistas.
no temi- nino e por falar dela mesma no masculino"13. Ele lembra o pavor que causou a noticia do massacre da
Aìém de esquisita, eia devotava tamanha adoragao à populagáo do viìarejo de Oradour-sur-Gìane no día 10
natureza que fugia de seu quarto à norie, deslizando por de junho de 1944.
urna corda amarrada^ para ir ao imenso parque e ao rio Nao tendo se engajado, Deleuze forma junto com
próximos à propriedade de sua avó. Desafiando a outros, entre os quais Michel Tournier, um pequeño
proibi- gáo familiar, eia se inscreve na Sorbonne aos 18
grupo que partüha a mesma con- cepgáo nao académica publicagáo de 0 Ser e o Nada de jean-Paul Sartre.
da filosofìa. Criado soh a ègide de Alain Clément, o “Gilles me telefonava todos os dias para contar o que
grupo publica urna revista de filosofìa, Espace, que terá tinha lido naGilles
jornada. Ele sabia de cor” 20
. Esse meteoro
apenas um número. Seus redatores se dizem inteiramen- filosófico era diferente de tudo e tinha a capaeidade de
Deleuze & Félix Guattari 81

te hostis à nogáo de interioridade e decidem fazer urna dar à filosofia urna presenga viva no clima mortífero da
provocagáo ilustrando o primeiro e único número da Ocupagáo: “Passami os esse inverno de guerra, negro e
revista com um vaso sanitàrio com a seguinte legenda: gelado, enrolados em cobertores, os pés envolvidos em
“Urna paisagem é um estado de alma”. Essa revista quer peles de coelho, mas a cabega pegando fogo, lendo em
se erigir contra a “salmoura malcheirosa do Espirito”, voz alta as 722 páginas compactas de nossa nova
como Sartre qualìfica a vida interior, e esclarece na biblia”21. Gilles Deleuze frequenta a obra de Sartre antes
apresentagao em forma de advertencia ao leitor: “Se os do deslumbramento co- letivo a que a Franga da
atrativos do esplritualismo declinam dia a dia, seria um Libertagáo assistirà. Nao apenas ele faz soprar um vento
erro nao prestar atengáo10 ao sucesso atual dos diversos novo na filosofìa como também é escritor e teatrólogo,
humanismos modernos” . encarnando assim a possibilidade de conjugar atividade
No artigo que escreveu em 1946, De Cristo à especulativa e criagáo literaria. Essa é urna ligáo precoce
Burguesía, Deleuze denuncia a ligagáo de conti- nuidade para o jovem Deleuze, que jamais renegou sua divida
histórica entre o cristianismo e o capitalismo, apegado para com Sartre.
ao mesmo culto do engodo da interioridade. Durante a semana, Deleuze devora 0 Ser e o Nada, e
Paradoxalmente, dedica esse artigo à “Senhorìta Davy”, no domingo, quando vai ao teatro, o que vai ver? Sartre.
sua grande sacerdotisa, que no entanto é urna fervorosa Num domingo de 1943, ele vai com Michel Tournier ao
espiritualista. Esse artigo tem claramente a marca de teatro Sarah-Ber- nhardt onde estáo encenando As
Sartre, que detesta Marie-Magdeleine Davy. “Hoje,16 Moscas. Sur- preendidos pela historia trágica do
muitos homens nao acreditam mais na vida interior” momento, eles tém de evacuar a sala diante de um alerta.
em um mundo de tecnicidade que es- vazia o homem Enquanto a multidao se apressa para chegar aos abrigos
para reduzi-lo à condigáo de ex- terioridade pura. Todo subterráneos, os dois comparsas desafìam o perigo nessa
o artigo visa desenvolver urna dialética de interioridade bela tarde ens oí arada: “Deambulamos pelos cais em
e exterioridade para valorizar a segunda. Assim, Deleuze urna París absolutamente deserta: a noite em pleno dia. E
opòe a interiorizagào à qual o marechal Pétain havia as bombas comegam a chover. Os alvos da RAF sao as
induzido os franceses ao ato de exteriorizagào de um de fábricas Renault de Billancourt... Nao diremos urna só
Gauìle ao entrar na resistencia. Deleuze vè no sucesso palavra sobre esse incidente mediocre. Só sabemos dos
moderno da burguesía urna continuidade e urna embates de Orestes e Júpiter ás voltas com as moscas’.
acentuagào do processo de interiorizagào: “A Natureza, Passada meia-bora, as sirenes anunciam o fìm do alerta,
ao se tornar vida privada, espiritualizou-se em forma de e voltamos ao teatro, A cortina sobe. Júpiter-Dullin gstá
familia e de boa natureza; e o Espirito, ao 17se tornar o lá. Ele grita pela segunda vez: ‘Jovem, naÓ incrimine os
Estado, se naturalizou em forma de pàtria” , Deleuze deusesP22.
ironiza essa fìliagào comparando a “vida interior” e a A primeira de todas as publicaçôes de De- leuze é
“vida de interior”, separadas apenas por urna palavrinha. um pastiche de Sartre intitulado: “Des- criçâo da mulher.
Paradoxo extremo, a burguesía consegue concluir o Por urna filosofía de outro sexuado’ 23. Nesse “à maneira
movimento iniciado por Cristo interiorizando tudo o que de...”, Deleuze se lança a urna fenomenología divertida
este último execrava: a propriedade, o dinhei- ro, o ter, do ba~ tom que remete a urna exteriorizaçâo da in-
que ele combatía para substituir pelos valores do Ser. Ao terioridade, a urna outra forma de revelaçâo do oculto,
se naturalizar, a vida espiritual crista se degradou. para concluir Uque a mulher nao é, mas que ela se
Partindo de um impeto rumo ao Espirito, tornou-se “urna temporaliza: 2 1A maquiagem é a formaçâo dessa
natureza burguesa,l8. Um vasto movimento de seculari- interioridade” ' . A urgencia desse artigo, segundo o
zagáo transformou o Espirito em Estado, Deus em jovem Deleuze, que retoma por sua conta a crítica
sujeito impessoal e o Contrato Social em ex- pressáo da dirigida por Sartre a Heidegger por ter representado urna
Divindade, que permite concluir que “a relagáo que liga huma- nidade assexuada, é dar um estatuto filosófico à
o Cristianismo e a Burguesía mulher. Mas o discípulo quer ultrapassar ’ o mestre que,
* / » íp19 a seu ver, nao vai até o fim na crítica, e descreve um
nao e contingente . universo desolador por seu caráter inteiramente
No outono de 1943, táo logo ingressa na última sèrie assexuado. Com a mulher, é Outro que surge, e todo um
do ensino mèdio, um acontecimiento filosófico desperta mundo interior se expressa nela: "A mulher é um uni-
seu entusiasmo, partilhado por Michel Tournier: a versal concreto, é um mundo, nao um mundo exterior,
mas a face oculta do mundo, a morna interioridade do precedente que ve um filósofo provocar “quinze
mundo, urna condensaçao do mundo interiorizado. Daí o desmaios” e “trinta poltronas destruidas”. Nessa
incrível82sucesso sexual da mulher: possuir a mulher é multidao, Deleuze, que acaba de concluir o ensino
possuir o mundo” ,
François25Dosse
medio, e seu amigo Michel Tournier estâo desapontados
Contudo, essa paixáo sartriana sofre sua primeira com a apresen- taçâo de seu gura, e nao o perdoam por
fratura quando o fenómeno se transforma em moda da tentar reabilitar essa velha noçâo de humanismo: “Es-
filosofía existencialista na Libertagáo. No dia 29 de távamos arrasados. Assim nosso mestre reco- Ihia da
outubro de 1945, Sartre pronuncia sua famosa lata de lixo onde tínhamos jogado essa besta deformada,26
conferencia onde Paris inteira se amontoa: “O fedendo a suor e vida interior, o humanismo" .
exietencialismo é um humanismo”. Urna multidao Conversando em um café após a conferência, os dois
compacta se acotovela para conseguir um lugar. A im- companheiros nao
prensa repercute esse acontecimiento cultural sem
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 83

conseguem parar de pensar que seu entusias- incompletos, e ritmava com o punho as tríades
mo foi traído pelo mestre, Apesar da decepgao, hegelianas, encadeando as palavras”31,
Deleuze estará ainda por multo tempo sob a Deleuze está também na mesma classe que
influencia da estrela sartriana, como testemu- nha jean-Pierre Faye. Este recorda que logo nos pri-
o conteúdo de dois artigos que publicou em 1946 meiros dias de aula “havia alguém nessa classe
e 19472/ e que posteriormente rene- gou. Contudo, preparatória de Alquié que quase na primeira
mesmo tomando outro carni- nho, Deleuze fileira falava do cogito em Husserl, e era Deleu-
sempre reconhecerá sua divida para com Sartre, ze”32. Aínda aprendiz de filósofo, Deleuze já é
como atesta ainda um artigo escrito um mès ouvido por seus colegas, distinguindo-se por suas
depois28 de Sartre ter recusado o prèmio Nobel em capacidades excepcionais.
1964 . Ali eie deplora urna geragao sem mestres Deleuze assiste ainda no liceu Henri-IV a
e reconhece em Sartre al- guém que conseguiu algumas aulas de Jean Beaufret, que é entào o
dizer aìguma coisa sobre a modernidade e se introdutor na Franga da obra de Fleidegger,
erigir em mestre de toda urna geragào, a da Fascinado por seu mestre, Jean Beaufret afirma
Libertagào: “A gente eonhe- cia entào, depois de como ele que só é possível compreendé-lo
longas noites,29 a identidade do pensamento e da verdadeiramente falando e pensando em alemao.
líber dad e” . Deleuze nao se reconhece no Na semana seguiate, Deleuze vem contradi zè-lo e
espirito dos anos I960, que tende a considerar lhe opóe urna solugáo sarcástica, dizendo que
Sartre como "superado”. Ao contràrio, Deleuze encontrou em Alfred Jarry o poeta francés que nao
denuncia o conformismo de seu tempo e saúda a somente compreendeu, mas antecipou Heidegger.
Critica da razào diatètica como “um dos livros Beaufret pede que se caie, mas alguns anos mais
mais belos e mais importantes langados nos tarde, por ocasiáo do 33langamenfco da obra de seu
últimos anos”'10 Passado o baccalauréat*, amigo Kostas Axelos , Gilles Deleuze voltará por
Deleuze ingressa no curso superior de letras, e duas vezes a essa surpreendente comparagáo3'1.
após a classe preparatoria à ENS do liceu Louis- Ele afirma entào que se “pode considerar a obra de
le-Grand em Paris. Está na mesma classe que Heidegger como um desenvolvimento da patafí-
Claude Lanz- mann, que logo se torna seu amigo. sica”3:>. A iinguagem pròpria a Heidegger, que
Ali era aluno assiduo de Ferdinand Alquié e de introduz o grego antigo e o velho alemao na lingua
Jean Hyp- polite. Urna vez emancipado de sua moderna por meto de múltiplas agluti- nagoes,
profunda influencia, eie descreverá um e outro encontra seu equivalente em Jarry, que, por sua
com certo sarcasmo. Alquié “tinha longas máos vez, introduz no francés moderno o latina e o
brancas e urna gagueira que nao se sabia se vìnha velho francés, sem contar a gíria e mesmo o
bretáo: “Talvez seja bom dizer que nao há ali nada
de R. T.: No original, Hypokhâgne. Primeiro ano da classe mais que jogos de palavras”, comenta Deleuze36.
preparatoria para o curso de entrada das seçôes literarias Nao obstante suas aptidóes excepcionais,
{francés, línguas estrangeiras, filosofía e artes) da Escola Deleuze nào consegue entrar na ENS, aínda que
Normal Superior (ENS) da França. suas exposigoes já sejam consideradas como
Kâgrie ou Cagne: segundo ano da classe preparatória para o eventos a que nao se pode faltar sob nenhum
concurso de entrada na Escola Normal Superior. Ambos sao
oferecidos após o Bacharelado (baccalauréat). Baccalauréat pretexto e mobüizem grandes pla- teias. É o caso,
comumente denominado 'bao', é um diploma que saciona o fim entre outros, da arguigáo sobre “Bárbaros e
dos estudos do secundario francés. E o mais antigo exame da civilizados” a que é submetido por
França e foi criado em 1808 por Napoleao. Existem 3 tipos de Georges Canguilhem. Gilles obtém uma boa nota,
‘bac- o geral, o tecnológico e o profissiona!. As très séries que permitirla seu ingresso se ele nâo houvesse
propôem materias gérais co- muns cujo horario está adaptado
para as especialidades de: francés, matemática, historia- abandonado outra matéria. Assim, ele é reprovado,
geografía, filosofía, línguas vivas 1 e 2, educaçâo física e porém, devido aos seus bons resultados, consegue
esportiva. uma boisa de agrégation* e se recolhe na
da infancia ou se, ao contràrio, estava ali para Sorbonne, onde segue os cursos de Ganguilhem,
esconder um sotaque natal, e que se colocava a de Bachelard e de Gandillac, que será o orientador
servigo dos dualismos cartesianos”; quanto a de sua tese.
Hyppolite, ele “tinha um rosto forte, de trapos Estudante na Sorbonne, Deleuze faz parte de
um pequeño grupo de amigos entre os quais se
encontram seu companheiro de sem- pre, Jean-Pierre manifestamente, tivera de se segurar para nao întervir; à
Bamberger, François Châtelet, Olivier Revault medida que a exposiçao la avançan- do, aindignaçâo se
dAllonnes, Claude Lanzmann, Michel Butor e, transformava em increduli- dade e, depois, no momento
naturalmente, Michel Tour- niér. Nem todos sao
84 François Dosse
das consideraçoes fináis, em surpresa maravilhada. E ele
filósofos: um trio formado por Jacques Lanzmann, Serge acabara de concluir... que nao era costume tratar os pro-
Rezvani e Pierre Dmitrienko se dedica à pintura e se blemas como fora feito ali com tanta maestría e que, em
instala em uma antiga lavandería na Rue de Vaugirard, todo caso, quanto a ele, nâo poderla menosprezar o
onde fazem suas amigas posarem. 0 desfi* le de elevado 40interesse de hipóteses explicativas dessa
aprendizes filósofos que vâo ver o trio pintar é natureza” .
permanente: Gilles Deleuze, Claude Lanzmann, jean Para quem passou pela qualificaçâo do programa de
Cau, Jacques Houdart, René Guillonnet, Pierre Cortesse, agregaçâo, resta o temido grande teste oral que é
Jean Launay, de pé em silencio, contemplam à vontade dividido em quatro provas: uma sobre um texto grego,
as bêlas moças desnudas. O traje rigoroso desses estu- outra sobre um texto latino e duas sobre textos franceses.
dantes vin dos da Sorbonne em suas j aquetas, camisas Para se preparar melhor, um pequeño grupo de
brancas e gravatas contrastava com as roupas boemias candidatos se reúne regularmente na Rue Méchin, perto
dos artistas: “Gilles Deleuze já tinha na época um do Hospital Cochin, na casa de Olivier Revault
discurso original. Os outros - sobretudo Claude - se dAllonnes. Esse pequeño ‘ clube dos cinco” que se
limitavam a reprodu- zir a retórica pedante” 37. Nessa impoe uma ascese coletiva é constituido por Pascal
época, Claude Lanzmann e Gilles Deleuze sáo muito Simon, que morrerá de um cáncer no cérebro quatro
ligados, e Lanzmann fala de seu amigo com um fervor e anos após o concurso, Alain Deìaltre, primo do famoso
uma admiraçâo particulares. Quanto a Gilíes Deleuze, generai de Latre de Tassigny, François Châtelet, Gilíes
ele “era muito gentil, muito desaceitado; usava cachecol Deleuze e Olivier Revault dAllonnes. A relaçâo de
no verao; tinha o aspecto de uma criança superprotegida textos de filosofìa francesa para o programa de
por uma mae preocupada demais. Sua inteligéncia agregaçâo de 1948 é constituida entâo pelo estudo de
deixava Claude em transe. Ele sorvia Deleuze. Procura- Matèria e Memòria, de Bergson, e pela obra de
va por todos os meios apropriar-se dele”38. Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Revault
dAllonnes recorda que eie e Châtelet, mais marxizantes,
nào tinham nenhum problema de se apropriar das teses
durkheimnianas, mas consideravam Bergson um
■‘N. de R. T.: Agrégation ê um concurso francés acessível após um espiritualista empoeirado em quem nào viam interesse:
Mestrado, bastante seletivo, que permite àqueie que o obtém lecionar “No Biarritz, o café onde a gente se encontrava, dizemos
em escolas secundávias. Esse diploma permite, igualmente, depois de
alguns anos de expe- riéncia profesional íec'ionar em uma universidade. a Gilles que Bergson nos aborrece um pouco. Ele
Na licenciatura, Deleuze e Olivier Revault dAllonnes retruca: ‘Nào, nao se enganem, vocès nào leram diretto,
nunca faltam as aulas de Gaston Bachelard, pelo quai É um grande filòsofo”“11. Entào, Deleuze tira de sua
têm a maior admiraçâo. Também fazem os cursos de maleta Matèria e Memòria e come ça a 1er em voz alta
Jean Wahl, que sensibilizará o jovem Deleuze para a urna longa passagem e a expìicà-la, a comentá-la com
filoso fia anglo-saxâ e para o existencialismo pré-feno- seus colegas: “Eie usou a se- guinte expressâo; ‘Ah!
menológico. Martial Guéroult é outro mestre para eles Vocès nào12 gostam de Bergson! Isso me deixa
por sua leitura particularmente metódica dos textos: desolado”’ .
“Sempre 39achei que Gilles foi um grande aluno de Portanto, desde 1947, Deleuze jà considera Bergson
Guéroult” . De sua parte, Guy Bayet consagra seu curso um filòsofo de primeìro plano, e essa obra o
a Espinosa, que está no programa da agregaçâo. acompanharà sempre e inspirará toda sua filosofìa. Num
François Châtelet se recorda de um momento momento filosòfico marcado pela dominaçâo do
antológico entre o mestre Alquié e o estudante Deleuze a marxismo e do existenciaìismo sartriano, considerar
propósito de Malebran- che: “Guardo.,, a lembrança de Bergson um filòsofo importante denota urna originaìì-
um trabalho de Gilles Deleuze que dévia tratar de nâo sei dade que Deleuze jamais deixará de reivindicar, sempre
mais que tema clássico da doutrina de Nicolas Male- preocupado em pensar de manetta intempestiva contra a
branche diante de um de nossos mais profundos e mais doxa de sua época, 0 pequeño grupo solicita aos
meticulosos historiadores da filosofía, e que havia membros do júri do concurso, Alquìé, Gandillac e
construido sua demonstraçâo, sólida e sustentada por Lacroze, que Ihes entreguem em enveîope fechado os
citaçoes perempfcórias, em tomo do único principio da temas de dissertaçâo. O resultado do concurso este- ve à
irredutibilída- de da parte de Adáo. Diante do enunciado altura das expectativas para esse pequeño cenáculo.
do principio adotado, o mestre empalidecerá e, Deleuze, sem dúvida fragilizado por sua reprovaçao na
BNS, nào queria se apresentar no oral. Será necessària a porque o tomam como o louco do lugar, ele pode se
capacidade de convencimiento de seu amigo Châtelet, permitir urna certa excentricidade, e assim, quando o
que o. encoraja a se apresentar em todas as pro vas, vai cansaço se Gilles
faz Deleuze
sentir, toca serrote musical para os
buscádo e o leva à força diante do júri. Ele foi admitido alunos. Alain Aptekman, grande amigo de François
& Félix Guattari 85

como colaborador. Châtelet, que ele co- nheceu em Túnis, onde Châtelet foi
O jovem Deleuze já tem problemas de saúde a ponto nomeado para o liceu francés, lembra de ter visitado De-
de nào ter obtído o certificado necessàrio para se leuze nesse pequeño hotel várias vezes: “Fui várias
apresentar nas provas da agregagáo. Quando comegou a vezes ao seu quarto, que me angustiava bastante, pois
faltar as aulas no ano da agregagáo, o pequeño grupo de nao havia um dedinho de pare- de que estivesse livre.
preparagao fica preocupado e o visita na Rué Daubigny. Havia um monte de re- produçôes de pintura penduradas
Deleuze, que está saindo de urna violenta crise de asma, na parede, as persianas ficavam entreabertas. Era um lu-
está de cama. O pai falecera pouco depois do gar completamente fechado”"17.
desaparecimento do filho Georges, e Gilíes vive só com Michel Tournier e ele se encontram com muita
a máe: “Fo- mos vé-lo, e na minha lembranga é urna frequencia com os irmaos Lanzmann, Jacques e Claude,
visita á Marcel Proust no quarto com a máe, urna pe- Serge Rezvani, François Châtelet, Kostas Axelos. Fies
quena lámpada rosa e Gilíes, que já tinha difí- culdades têm seu bistro favorito na ilha com um nome multo
re sp i rato rías”43, Nesse ambiente confinado, tudo que o filosófico de “Mónada", que coloca o grupo de amigos
jovem Gilíes Deleuze deseja é sair. O éxito na agregagáo sob a elevada proteçao de Leibniz. Tournier e Deleuze,
é a chance de obter sua índependéncia financeira. De sua cujos quartos sâo vlzinhos, também se encontram quase
relagáo confíituosa com o meio familiar, ele conserva sempre no restaurante La Tourelle, na rua HautefeuiUe,
urna fobia a qualquer alimentagáo á base de leite, o que para o jantar. Nesses anos, Deleuze tem urna breve
surpreende seus amigos: “Convidamos Gilíes para jantar relaçâo amorosa com a comediante Évelyne Rey, irma
várias vezes. Ele sempre perguntava á dona da casa se o dos Lanzmann. Serge Rezvani menciona a che- gada
prato continha alguma gota de leite, e, se era o caso, ele dessa moça à casa de Monny, padrasto dos Lanzmann:
nao podia comer”44. “De repente entra uma moça magra, a testa escondida
sob urna franja de cábelos sombríos. É Évelyne, a irmâ
de Jacques... Sob a massa de cábelos, ela dissimula um
A ilha Saint-Louis estranho olhar de pássaro noturno. O nariz pequeño e
adunco (que mais tarde ela fará a loucura de retalhar),
Em 1949, de volta da Alemanha, onde foi fazer o lábios muito finos, sensi- veis, um maxilar um pouco
curso de filosofía na universidade de Tübingen, Michel largo e, sobretudo, iluminando a sombra na quai ela
Tournier decide preparar-se para a agregagáo um ano tenta escon- dê-los, os olhos, grandes olhos 18de um azul
depois de seus amigos, mas nao íará parte dos felizes de miçangas, claros como praias ao ar livre’’ .
eleitos: ele nutrirá um grande ressentimento por aquilo No final dos anos de 1940, Gilles Deleuze prossegue
que qualifica de “curso hipertrofiado, ínchado, ubuesco, âeu trabalho de escrita. Em49 1946, faz a introdugao a uma
a instituigáo maís desonesta e mais nefasta de nosso obra de natureza esotèrica . 0 autor é um pseudònimo, e
ensino”43. Ao chegar, ele se instala no Hotel de la Paix, Deleuze deve ter recebìdo a incumbencia dessa
no número 29 da Rué dAnjou, na ilha de Saint-Louis. É introdugao gragas ao convivio com os círculos de
la que ele acolhe Gilíes Deleuze, que decidiu abandonar Marcel Moré, para tirar algum dinheiro. A obra, que
a máe em 1950. Esse hotel está magníficamente segundo Deleuze “apresenta um interesse capitai”, visa
localizado á margem do Sena, no coragao de Paris, com reunifìcar as lìnguagens separadas da ciència e da
suas agradáveis orlas bordadas de álamos, seus galeristas filosofìa para encontrar a ambi- gao cartesiana de
famosos e livreiros. Al- gumas estrelas vivem ali, como construgao de uma matkesis universalis. Contudo, por
o escritor Yvan Audouard e sobretudo Georges de trás dessa introdugao que parece fruto de mera
Caunes, que apresentava o telejornal da noite na única contingència, pode- -se encontrar o ponto de vista
rede de TV existente: “Ele era46 mais conhecido que sempre defendido por Deleuze, de um monismo que
Brigitte Bardot ou De Gaulle” . Deleuze, como seu parte de uma filosofìa da vida que subsume qualquer
amigo, ocupa um quarto por mes nesse ho- tel onde subdivisáo: “A unidade, a hierarquia para além de
viverá sete anos. A tarifa nâo é exces- siva na época, qualquer dualidade anárquica, é a mesma da vida, que
mesmo porque o hotel nâo é de alto padrâo. As sim, desenha uma terceira ordem, irredu- tiveì às duas outras.
Deleuze vive no centro de Paris e leciona entâo no liceu A vida é a unidade da alma corno ideia do corpo e do
de Amiens, para onde viaja toda semana. Visto que o corpo corno extensào da alma’50, escreve eie, dando ali
professor de filosofía é julgado com muita complacéncia uma defmigào de estrita obediencia spinozista. Deleuze
ofere- ce urna leitura da obra que lhe permite escapar à náo era essa disciplina rígida que eu temia. Era o
parte mística para insistir em suas próprias temáticas. encontró, a fusáo entre, de um lado, um aparelho
Define 86a matkesis como algo que nao é nem científico conceitual, urna cultura com suas linguagens, suas
nem filosófico e que, por transgredir
François Dosse
as fronteiras, se técnicas de apren- dizagem, suas expiicagoes e seus en
oferece como “um saber da vida' 51. Encontra-se a marca cade amentos, que se aprende em contato com geragóes
de Sartre nessa introdugáo onde Deleuze afirma que de pensadores, e, de outro lado, urna especie de impulso
“cada existència encontra sua pròpria essència fora dela secreto, de disposipao do espirito a Apreender, a
mesma, no outro”52. conceber as coisas mais simples, es mais cotidianas e as
Em 1947, Deleuze publica a introdugao a urna obra mais fundamentáis da existen eia”"'3. Inmediatamente,
essencial de Diderot, A Religiose?*. ■ Eie expressa Deleuze adota um estilo de ensino singular, abordando
seu mais vivo interesse pelo per- sonagem de Susana, em om tom leve os problemas mais concretos dos
que encarna ao mesmo tempo a natureza e a liberdade a adolescentes, o esporte, o namoro, os animáis, para em
ponto de fazer de seu autor, Diderot, o tolo de sua seguida elevá-los aos cirnos da refle- xao, apoiando-se
pròpria trama romanesca. Eie ressalta a tensao do ca- em um repertorio de autores clássicos da tradipáo
ráter da heroína, dividida entre dois estilos diferentes, filosófica. Nesse primeiro ano, ele fala de Espinosa aos
aquele específico do século XVIII, que: remete à alunos, mas Bergson também já ocupa um papel
natureza, à eloquència, ao sentimental e ao exclamativo, importante em seu ensino. Depois da aula, Michel Marie
e um estilo-liberdade em que as consciéncias se opoem frequentemente acompanha o professor até em casa.
em frases curtas e em negagóes obstinadas. Deleuze insiste para que ele faga um curso de filosofìa.
Esse período do final dos anos de 1940 e inicio dos Entretanto, Michel Marie lhe confessa que quer ser
anos de 1950, para Deleuze, é marcado principalmente padre operàrio: “Sentì urna reagao dura, que o fazia
pelo inicio de sua carreña de professor no liceu de sofrer. Ele36 nao tinha um discurso anticlerical, mas
Amiens, onde lecionará de 1948 a 1952,0 horário o aderisca!” Michel Marie seguirà efetivamente esse
retém boa parte da semana em Amiens, aonde chega caminho, trabalhará mais de dois anos em urna fábrica,
terpa-feira de manda e so retoma a Paris sexta-feìra à mas a bula papal condenando a experiencia dos padres
noite ou sábado de manha. Descobre que é colega de operários impedirá essa escolha. Entao, tardíamente, ele
Jean Poperen e de MaxMilner. Quando se apresenta seguirá os conselhos de Deleuze e irá se inscrever na
diante de sua primeira classe entre 1948 e 1949, está Sorbonne em 1954, para se tornar urbanista no futuro e
vestido de forma bem clàssica, um pouco exagerada até, depois antropólogo.
camisa branca e gravata, còrno é de uso em um liceu de Outro aluno de Deleuze no liceu de Amiens, Claude
urna cidade da provincia. Contudo, jà se distingue pelo Lemoine, será mais tarde diretor da FR3. Ele recorda de
cha- péu que deposita sobre a mesa quando sobe : ao Deleuze no ano letivo de filosofìa de 1951 e 1952,
tablado e que tomará legendário. Fuma um cigarro atrás decisivo em seu curso: “Ele me transmitiu de imediato a
do outro enquanto dà aula. necessidade da filosofìa57. Filho de advogado da boa
burguesía da provincia, Claude Lemoine tinha um des-
tino todo tragado: assumiria o escritório do pai no día
Um despertador de em que este se aposentasse, “Deleuze me disse: As
voca^òes filosóficas coisas nao podem ser desse jeito!”’58 0 rapaz pede para
Desde seu prìmeìro ano de ensino, eie é um ter ama conversa com o pai; este consente, sem
“fantástico despertador”^, nas palavras de seu aluno entusiasmo, e finalmente acaba se convencendo: o fìllio
Michel Marìé. Nascìdo em 1931 e fillio de urna familia estudará filosofìa em Paris. Claude Lemoine tira 19 em
camponesa, este último nao está inscrito na área de filosofìa e recebe felicitagoes de Deleuze através de urna
filosofìa, ele se prepara para o curso em ciéncias carta. Essa atengáo dedicada aos alunos que manifestam
experimentáis, mas ; 0: fascínio que Deleuze exerce interesse e competéncia em filosofía é absolutamente
sobre ele mudará sua vida: “Um dos professores que excepcional, e náo se limita ao ano letivo. Quando
mais ;me influenciaram fai Gilles Deleuze, que me dava Claude Lemoine chega a Paris, fica um pouco perdido
aula de filosofìa. Pela mobilidade e leveza de seu na capital. Deleuze propoe que fique na casa de sua mae,
pensamento, pela aparente facilidade : de seu ensino, na Rué Daubigny, se nao tiver outro lugar onde se
pelo interesse que tinha pelas coisas da vida (o esporte, a instalar. Claude Lemoine ingressa no curso superior de
roupa, a comida, a historia das técnicas.,.), esse rapaz de letras do liceu Louis-le-Grand e faz um curso de
24 ou 25 anos, que era antes um irmao mais velho do filosofía na Sorbonne. Como nao deseja lecionar, acaba
que um pai, me inspirou confianza. Com ele, a filosofía optando, para grande desespero de seu mestre, pelo
jornaìismo e ingressa da Associalo Geraì de Imprensa.
Para demonstrar a importancia que Deleuze e a filosofia ensino mèdio, hypokhâgne e duas horas de ensino
tiveram para eie, Lemome e sua mulher darao o nome de khâgne. A classe de letras é constituida essencìalmente
Gilles ao fìlho mais velho e de Sofìa à fììha, o que dà de mogas, boas alunas que, em sua maioria, nâo têm a
“Gillesofia” em forma de homenagem e reconhecimento. intençâo deGilles
se preparar para a ENS, mas que estâo là
Deleuze & Félix Guattari 87

No final de 1952, Deleuze è nomeado para o liceu de para fazer seu curso preparatorio antes de ingrassar na
Orléans, onde lecionará até 1955. Eie geralmente universidade. O magnetismo de Deleuze será decisivo
iniciava suas aulas com alguma facécia à qual dava a para o futuro de Alain Roger, Nesse final de no- vembro
aparència de verossimil. Sempre ìhe aconteciam de 1954, seu moral está baixissimo. Inscreveu-se em
historias no trem viudo de Paris, e os mais variados letras por pressâo dos pais - tinha obtido mençâo honrosa
incidentes se passavam no ónibus que o conduzia da em filosofìa no concurso geral, mas acaba de ter uma
esta- gào de Orléans à estagào de Aubray, um trajeto de série de avaliaçôes desastrosas, e, para completar, seu
apenas dez minutos que logo se tornou um concentrado professor de latim Ìhe dà uma nota negativa: 7/20! Essa
de desventuras, como aquela jà relatada por um de seus situaçâo reforça sua ideia de que nâo tem nada a fazer
alunos, Alain Roger; “Levaram minha valise... Um ali, que os pais se enga- naram. Quanto a eie, sua paixâo
engano... urna ter- rivel confusáo... no ónibus de é a bicicleta, da qual pretende fazer sua profìssào. Seu
Aubrais... Enfio, imaginem voces, abro minha valise no fiel corcel da marca Stella está só esperando por ele na
hotel, e o que é que eu vejo? Colgate, Paìmolive, essas casa da familia em Bourges, e Alain està multo decidido
coisas... Um representante comercial.., Lembro dele, a abandonar o universo confinado das letras para voltar
tòdo apressado... um senhor gordo... Um belga, sem ao ar livre que sopra nas estradas do Berry e se inscrever
dúvida. Todos enormes numas ca- sinhas pequeñas... no clu- be de ciclismo profìssional do locai. Nascido em
Como vocès querem que eu de aula com dentifricios e 1936, Alain Roger idolatra Louison Bobet e só tem um
cremes de barbear? Por outro lado, o senhor gordo... sonho; ganhar urna etapa do Tour de France depois de
quando eie abrir minha valise... diante de todos os seus haver deixado Fausto Copi no Tourmalet. “Um sonho
clientes... o que é que ele vai lhes mostrar? A Crítica da que jamais realizei por causa de Deleuze”62.
Razào Pura... e minha aula sobre o transcendental... É nesse estado de espirito que eie assiste prostrado à
nada disso é vendável... Ele vai perder seu ganha-páo, eu última aula da semana. Larga a ca~ neta e contempla o
me sinto59 mal... Enfim, vou pelo menos tentar lhes dar vazio, desvairado, urna bicicleta na cabeça. Isso nâo
aula... ” . escapa à perspicacia de Deleuze, que, vendo o aluno se
Após esse preámbulo, a aula pode comegar. Deleuze esquivar rapidamente no firn da aula às II horas, abor-
tira um papel do bolso, desdobra-o lentamente e fica dara no corredor e pede que nao vá embora. Alain Roger
segurando na máo, sem jamais consultar. Dá a impressao Ihe explica as razóes de sea desin- teresse, e Deleuze
de impro- visagáo, mas se sabe, e voltaremos a isso, do tenta elevar seu moral: “Co- mígo vai melhor?”. Na
cuidado meticuloso com que preparava suas aulas. verdade, o aluno havia obtido lì em filosofia: “Entâo,
Dando a impressao de estar no mesmo nivel que seu responde Deleuze, II + (-7), dà quanto? Quatre, isso deve
público, de náo ter preparado nada e de ser pego dar 4, já é menos pior”. Alain Roger diz que quer se
desprevenido, ele finge estar perturbado diante das tomar ciclista profissional. Deleuze o leva entâo à
questóes que coloca a si mesmo em voz alta; “Ah! O biblioteca do liceu, e Alain Roger o segue um pouco
transcendental, o que é isso? Kant diz claramente que encabulado, nâo ousando contradizé-lo, mas também se
sao as condigoes de possibilidade... Mas, por que cha- manteado firme em suas intençoes. Deleuze tira tres
mar isso de transcendental?... Náo sei, nao sei mesmo”. obras das estantes da biblioteca: as Entrevistas, de
Pouco a pouco a decantagáo se opera, as linhas do Epicteto, a Ética, de Espinosa, e a Genealogia da Moral,
problema se desenham, as articu- lagoes tornam de Nietzsche. Seleciona alguns capítulos desses très
luminoso o discurso: “Ele procedía por repetigóes sob livras e manda o aluno preparar urna exposiçâo para a
ángulos diferentes, praticando urna especie de terça-feira seguiate: “Você vai procurar o centro de
perfuragáo em espiral”60. Assim como em Amiens, gravidade desse triángulo, a intersecçâo de très
Espinosa é o que mais se discute em suas aulas em medianas, é fácil”. A linha de fuga é cortada, e o fim de
Orléans: “Ele comentou o inicio da Ética durante très ou semana na casa dos pais comprometido. Alain Roger
quatro meses”61. Também abre um espago nao precisa fìcar para preparar essa exposiçâo a contragosto,
desprezíve! à psicanálise e já a Lacan, com urna aula mas ninguém contesta Deleuze. Pois bem, o mergulho
sobre “A oposigáo Lagache/Lacan”. nesses très textos conseguiu convertê-lo definitivamente,
No último ano que lecionou em Orléans, Alain Roger pois eie irà se tornar professor de filosofìa na Uni-
é interno do hypokhâgne. O tra- balho de Deleuze se versidade Blaise-Pascal de Clermont-Ferrand de 1967 a
divide entáo entre très classes: urna do último ano do 2004. Eie se pergunta entâo “como Deleuze podia prever
que esses très nomes 63se- riam, durante meio século, meus mundo”6/. Ele entao dá urna aula sobre a questao do
autores preferidos” . Esse triángulo ético, cuja fundamento: “O que é fundar?”, ap Gian do-se sobretudo
exposiçâo durará mais de urna hora, irá se tomar de fato em Heidegger e em Leibniz, autores particularmente di
a matriz88daFrançois
nova vocaçâo.
Dosse
ficéis para alunos que acabaram de sair do baccalauréat,
Alain Roger se vê bombardeado de exposi- çôes o e esse tema o faz remontar também à an- tiguidade
ano todo e nâo deixa mais o internato para honrar a grega: “Ele nos tinha feito 1er um livro que me marcou
confiança daquele que se tornou mais que um professor, muito, Da Tiranía de Xenofonte, lançado peía Gallimard
seu mestre espiritual. Deleuze se incumbe dele e o com um prefácio de Kojève e a63correspondéncia trocada
submete a um programa de lei turas para quatro anos, entre Ko- jève e Leo Strauss” . Ele também consagra
cujos progressos acompanha regularmente: “E entâo, o sua aula a um comentario de Fédon, de Platao.
Sofista, está avançando?”; “E entâo, essa teoria da Outra incongruencia para os alunos da classe
percepçâo pura em Bergson, você gostou?”. A “terapia” preparatória é que Deleuze fala muito de literatura, de
funciona, e aquele que quería se tornar ciclista passa de Proust, de Rousseau, mas também de Claudel, cuja obra
9/20 em filosofìa no inicio do ano para 16/20 antes das O Sapato de Cetim está no programa de letras; comenta
férias de verao. A primeira prova do ano, que Ihe vale com eles Pro tea, que considera urna peça belísslma de
um modesto 9/20, trata do seguiate tema: “O que é o Claudel. Evoca também Ambrose Bierce, suas historias
desejo?”, e a apreciaçâo geral revela a vontade do mestre monstruosas e particularmente o conto “Óleo de cao” e,
de tirar o aluno de sua subordinaçâo a Sartre: “Quaiidade ignorando as barreiras entre as literaturas, aconselha
filosófica incontestável. Muita esperança, mas para vivamente os alunos. a 1er certos romances policiais da
conseguir realizá-las precisará renunciar a Sartre, pelo série Noire da Gallimard. Ele escreverá mais tarde que
menos por um ano. Você voltará a ele depois, e de outra “um livro de filosofìa deve ser em parte69urna espécie
forma. Será preciso 1er Pìa- tào e Kant e compreender muito particular de romance policial” . Além da
Sartre a partir dai, e nao o inverso. Senao você ficará literatura, Deleuze é apaixo- nado por cinema e comenta
bloqueado e nâo conseguirá progredir. De certa maneira, alguns filmes em aula, fascinado particularmente por
é o momento de partir do zero, nâo que você já nâo aqueles que póem monstros em cena, e que convida os
tenha feito urna boa aquisiçâo, mas é nessa condiçâo que alunos a ir ver. Michel Ciment, já um fanático por
sua aquisiçâo6 1 de filosofia ganhará sentido e irá se cinema, que está sempre correndo entre o Louis-le-
desenvolver” ' , Grand e a cinemateca da Rue d’Ulm, é convidado por
O mestre o e aluno deixam juntos Orléans. A partir Deleuze para jantar no Balzar: “Eu tinha 18 anos e ia ver
de 1955, Deleuze é nomeado para o liceu Louis-le- as retrospectivas de Keaton, Bergman, Stroheim... e a
Grande, em Paris, onde lecionará até 1957. Quanto a gente falava de cinema. Ele já era muito cinefilo e
Alain Roger, entra na classe preparatoria no liceu Henri- gostava muito70 de Jerry Lewis. E também gostava muito
IV, bem ao lado. Suas relaçoes passam a ser entâo de de Stroheim” . Tudo em seu discurso mostra o desejo de
amiza- de, Sabendo que ele está na penùria em Paris, eliminar as fronteiras entre os gostos e os saberes. Ele já
numa falta de dinheiro terriveì, Deleuze o leva ao fala de animais, dizendo-se fascinado pelos rinocerontes.
restaurante com frequència, mas, como eie pròprio nâo Quanto à música, afirma ser táo apaixonado por Edith
dispóe de muifcos recursos nesse meado dos anos 6de Piaf quanto por Mozart, “nos dizendo que temos o
1950, lhe diz: “A gente vai corner dois ovos fritos” ". diretto de julgá-los igualmente belos”7í.
Em 1956, mais urna vez, o apoio de Deleuze se re vela Deleuze possui urna espécie de autoridade natural,
decisivo para Alain Roger, que fica doente: ‘No inverno nao responde a nenhuma provocaçâo
de 1956, fui vitima de urna pleurisìa, que me rete- ve na e por isso nunca perde a calma. Por causa de suas unhas
enfermarla do liceu durante longas semanas, onde, compridas e de seu tom afetado, um aluno o chama de
apesar de tudo, eu tentava trabalhar. Gilles veio me “pederasta”, e eie atende: “Sim, e entao?”. Outro aluno,
visitar e, se nâo fosse66eie, talvez eu tivesse capitulado militante marxista muito “staiinizado”, um tal
diante da adversidade” , Na classe preparatòria, durante Fussmann, tinha escrito em sua dissertaçâo de filosofìa
o ano escolar de 1955 e 1956, Deleuze tem na sua turma que "o professor de filosofìa é um lacaio da burguesía, ;
aquele que será mais tarde diretor da revista Positif, estipendiada pelo capitalismo”. Ao lhe devolver a prova,
Michel Ciment, e François Regnauìt, futuro filòsofo Deleuze lè a passagem para a classe e V comenta:
althusseriano. Michel Ciment, que na época escreve um “Primeiro fìquei vermelho. Depois Vi fiquei pálido...”, e
diàrio, recorda de ter anotado varias vezes: “Que aula seu aluno François Regnauìt, fascinado, sabe muito bem
íncrível!". Ele nao entende seus colegas, preocupados o quanto isso o fa- zia rir. Para desanuviar a atmosfera,
em nao fazer o curso de maneira mais clàssica. Contudo, ocorreu-lhe : fazer a classe jogar o jogo do cadavre
Deleuze nunca foi afrontado: “Ele era adorado por todo
exquis1. Cada um escreve urna palavra na borda de urna
folha de papel, dobra e passa para o próximo, e Deleuze
anota no quadro o poema que resulta dali. 0 nome do
poema é “O nabo civico” e co- meça assim: “0 Gilles Deleuze & Félix Guattari 89

avermelhado. Eia gozou, gran- : de mosca...”: ‘Ainda


éramos um pouco meninos ■ de colegio, e Deleuze
comento« o poema no ■ quadro, deixando todo mundo
deslumbrado com seu comentário. Ao mesmo tempo,
isso v 72nos livra de ter de descobrir o que o autor quis ?
dizer” Sobre a questào da sexualidade, um campo ainda
tabu na época, ele demonstra ;■ urna certa audàcia.
Freud e a psicanàlise tem lugar garantido em seu curso
vi

de filosofìa, fato rarissimo em 1955, Quando aborda as


rela- v çôes homens/mulheres, refere-se ao desejo de i;
“encontrar um parceiro sexual", longe da ideia
sentimental do grande amor. Quanto à hornos- V
sexualidade na Antiguidade grega, ao contràrio dos
comentários da Sorbonne sobre Platâo, y que ainda
evitavano o assunto, “[o] de Deleuze nesse momento
era: ‘Nao fìquem chocados, o vi pederasta grego nào tem
nada a ver com o que v vocès pensam. Isso era
absolutamente normal i; no mundo grego. Eis a
dtferença com Proust, y que mostra o pederasta
enrustidó. Nessa época, ninguém mais teria a audàcia de
dizer isso”73. Vi Em 1956, a vida privada de Deleuze
encon- tra-se em um momento decisivo. Ele conheceu V
i

1 R de X: Literalmente, “cadáver delicioso", um dos jogos vi inventados


peìos surrealistas para aumentar o repertòrio ìmagético e onirico de seus
participantes.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 90

por intermèdio de Michel Tournier o galerista Karl 13. Marc-Al ain DES CAMPS, Marie-Magdeleine Davy
Flinker, e através deste ùltimo urna certa Fanny ou la liberté du dépassement, Le mìei de la pierre,
Grandjouan, que trabalha com o costu- reiro Pierre 2000, p. 97.
Balmain. Eia se torna sua mulher em agosto de 14. Maurice de Gandillac, entrevista com o autor.
1956. A cerimònia religiosa foi realizada na 15. “Présentation”, Espace, n. 1,1946, p. 11.
basílica Saint-Léonard de Noblat, onde fica a 16. Gilles DELEUZE, "Du Christ à la bourgeoisie”,
propriedade da familia de sua esposa, e que se ibid., p. 93.
tomará seu local privilegiado de trabalho, no 17. Ibid., p. 97.
centro de timousin, na cida- de natal de Poulidor. 18. Ibid., p. 105.
Deleuze escreve algumas ■palavras ao seu 19. Ibid., p. 106,
orientador de tese, Maurice de Gandillac: “Foi 20. Michel Tournier, entrevista com o autor.
urna bela festa. 0 casamento é um estado 21. Michel TOURNIER, Le VentParadet, op. dt., p.
arrebatador, já era tempo de eu saber. Sob o olhar 160.
severo de Fanny, Balmain teve um ataque de furia. 22. Michel TOURNIER, Célébrations, Gallimard, col.
"Folio”, Paris, 2000, p. 425.
A senhora Alquié nos apoiou nessa prova de urna
maneira delicio- sa...”y,t. Após urna breve 23. Gilles DELEUZE, “Description de la femme. Pour
une philosophie d'autrui sexuée”, Poésie 45, n. 28,
passagem por Cham- pigny, em um conjunto out.-nov. 1945, p. 28-39.
habitacional bem2 triste, Deleuze e sua esposa se 24. Ibid., p. 33.
instalam no 15 Distrito de Paris, Rué des 25. Ibid., p. 32.
Moriìlons - a rúa dos objetos perdidos, perto do 26. Miche! TOURNIER, Le Vent Paradet, op. dt., p. 160.
abatedouro - em um pequeño apartamento 27. Gilles DELEUZE, "Du Christ à la bourgeoisie”,
reformado pela familia Grandjouan. Nesse ano de Espace, 1946, p. 93-106; “Dires et profils”, Poésie
1956, eie visita com frequència Maurice de 47,1947.
Gandillac, e nào se limita a urna troca meramente 28. Gilles DELEUZE, “Il a été mon maître”, Arts, 28 de
filosòfica com seu orientador de tese. As duas novembro de 1964, p. 8-9; reproduzido em ÍD, p. 109-
filhas de Gandillac tèm verdadeira adorapào por 113.
eie, que lhes conta historias sempre mais extrava- 29. Ibid., p. 110.
gantes de um certo senhor “Cretino”, de quem ele 30. Ibid., p. 112.
diz ser vizinho no hotel do Quai dÀnjou. 0 humor 31. Gilles Deleuze, citado por Giuseppe BIANCO, "Jean
jáé um dos trapos distintivos de Deleuze, sem Hyppolite et Ferdinand Alquié”, em Sté- phan
dúvida urna maneira de mascarar seus sofrimentos LECLERQ (sob a dir.), Aux sources de la pensée de
físicos e psíquicos. Gilles Deleuze, Sils Maria, Mons, 2005, p. 92, nota 2.
32. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor,
33. Kostas AXELOS, Vers la pensée planétaire, Minuit,
Notas Paris, 1964.
y 1. Michel Tournier, entrevista com o autor, v 2. 34. Gilles DELEUZE, “En créant la pataphysique Jarry a
Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. ouvert la voie à la phénoménologie”, Arts, 27 de maio
3. Claude Lemoine, entrevista com o autor. a 2 de junho de 1964, p. 5; reproduzido em ID, p. 105-
4. L’Abécédaire de Gilles Deleuze (1988), 3 cas- setes, 108. Gilles DELEUZE, “Un précurseur méconnu de
ed. Montparnasse, Arte Video, 1997; reed. DVD, Heidegger, Alfred Jarry”, Critique et clinique, Minuit,
2005 (doravante citado A), Paris, 1993, p. 115-125 (doravante citado CC).
5. Ibid. 35. Ibid., p. 115.
6. René SCHÉRER, Regarás sur Deleuze, Kimé, Paris, 36. ibid., p. 123.
1998, p. 12. 37. Serge REZVAN1, le Testament amoureux, Stock,
7. Gilles Deleuze, curso em Paris-VÌIÌ, 3 de junho de Paris, 1981, p. 124.
1980, arquivo sonoro, BNF. 38. ibid., p. 126.
8. Gilles Deleuze, A. 39. Olivier Revault dAllonnes, entrevista com o autor.
9. Ibid. 40. François CHÂTELET, Chronique des idées perdues,
10. Ibid. Stock, Paris, 1977, p. 46.
11. Michel Tournier, entrevista com o autor. 41. Olivier Ravault d’Allonnes, entrevista com o autor.
12. Michel TOURNIER, Le Vent Paradet, Gallimard, col- 42. Ibid
“Folio", Paris, 1977, p. 155. 43. Olivier Revault dAllonnes, entrevista com o autor.
44. Ibid. obra pessoal, mais tardía. O pròprio Deleuze induz a
45. Michel TOURNIBR, Le VentPctradet, op. cit., p. 162. essa lettura em 0 Abecedario, quando compara o ato de
46. Michel Tournier, “Gilles Deleuze: Avez-vous des questions filosofar com o ato de pintar. Da mesma manei- racomo
à poser?1', France Culture, pro- grama de jean Daive, 20 de Van Gogh comegou pelo retrato antes de se dedicar à
abri! de 2002. paisagem, o filósofo deve antes de tudo se empenhar em
47. Alain Aptekman, entrevista com o autor. restituir a singulari- dade dos pensadores que o
48. Serge REZVANI, le 'Testament amoureux, op. cit., p, 219. precederam para, urna vez nutrido e mais bem armado
49. Gilles DELEUZE, introduçào a Dr. Jean MALFATTI DE com o pensamento de outro, se lanzar em um trabalho
MONTEREGGIO, Études sur la Ma- thèse, éd. Du Griffon de criapáo pessoal. Antes de se tornar um : colorista à
d’or, Paris, 1946.
50. Ibid., p. XI. Van Gogh ou á Gauguin, o filósofo também deve passar1
51. Ibid., p. XV pela “cor batata, cores de terra, sem nenhum brillio” .
52. Ibid., p. XX.
Deleuze prossegue : alertando contra aqueles que teriam
53. Gilles DELEUZE, introduçào a DIDEROT, La Religieuse, a pretendo de dispensar essa fase iniciática: “É neces-
éditions Marcel Daubin, Paris, 1947. sàrio esse trabalho de historia da filosofìa, é essa 2lenta
54. Michel Marié, entrevista com o autor. modestia. É preciso íazer retratos por muito tempo” .
55. Michel MARIÉ, Les 'Terres et les Mots. Une traversée des Contudo, o esquema de um percurso tranquilo em
sciences sociales, Méridiens-Klinck- sieck, Paris, 1989, p. dois tempos complementares é contestado com muita
82. veemència pelo pròprio
56. Ibid. Deleuze, que, em 1973, nao encontra palavras
57. Claude Lemoine, entrevista com o autor. suficientemente duras para expressar sua re- jeipáo a
58. Ibid. urna historia da filosofía; “Sou de urna gerapáo, urna das
59. Alain ROGER, "Gilles Deleuze et l'amitié”, em Yannick últimas gerapoes que foram mais ou menos assassinadas
BEAURATIE (sob a dir.}, Tombeau de Gilles Deleuze, com a historia da filosofía... Na minha gerapáo, muitos
Mille Sources, Tulle, 2000, p. nao esca-
36. »3

param .
60. Alain Roger, entrevista com o autor. Como conciliar esse paradoxo, urna vez que essas
61. Ibid. afirmapóes, urna de 1973 e a outra de 1988, sao ambas
62. Alain Roger, en trevista com o autor, posteriores á sua emanci- papao da historia da filosofía?
63. Ibid. Pode-se considerar que Deleuze escapou dessa
64. Gilles Deleuze, comentárío cia dissertaçâo de Alain Roger contradipáo aparentemente servindo á historia da
de 26 de outubro de 1954, passado por Alain Roger. filosofía, mas instalando verdadeiras minas explosivas
65. Gilles Deleuze, fala relatada por Alain Roger, entrevista
com o autor. sob o pedestal de cada um dos modelos in- telectuais;
66. Alain ROGER, “Gilles Deleuze et l’amitié”, em Yannick “Minha maneira de escapar nessa época, eu acredito, era
BEAU.BATIE (sob a dir.), Tombeau de Gilles Deleuze, op. conceber a historia da filosofía como urna especie de
cit., p. 40 sodomía ou, o que dá no mesmo, de conceppáo
67. François Regnault, entrevista com o autor. imaculada, Imagino-me chegando por trás de um autor
68. Michel Ciment, entrevista com o autor. pelas costas e Ihe fazendo um filho, que seria seu, mas
69. Gilles DELEUZE, Différence et répétition, PUF, Paris, que seria monstruoso”*. Essa atitude suscita muitas
1968, p. 3. reservas por parte dos autores visitados e fecundados por
70. Michel Ciment, entrevista com o autor. Deleuze e mesmo em muitos de seus próximos que
71. François Regnault, entrevista com o autor. dizem nao compreender isso. Para aqueles que consi-
72. Ibid. deran! que Deleuze trai os autores sobre os quais escreve
73. François Regnault, entrevista como autor monografías, ele tería aparecido
74. Gilles DELEUZE, carta a Maurice de GANDUL AC, Le
Siècle traversé. Souvenirs de neuf décennies, Albin Michel,
Paris, 1998, p. 357.
Deleuze explicou Isso vàrias
vezes. Eie se langou em seu pròprioA arte do retrato
trabalho filosòfico a partir de monografías de autores.
Costuma- -se separar sua obra em dois períodos; o das
publicares clássicas sobre os grandes autores da tradigao
- Hume, Bergson, Nietzsche, Espinosa, etc. - e o de sua
mascarado até desvendar seu fato, na universidade de Strasbourg, Jean Hyppolite
pròprio sistema filosófico em havia consagrado seu curso de 1946 e 1947 a Hume, o de
1969, com a dupla publicaçâo 1947 e 1948 a Kant e o de 1948 e 1949 a Bergson. Entre
de Diferença elîepetiçâo e de Lògica do
92 François Dosse
1949 e 7 1950, Hyppolite dedica quatro ar- tigos a
Sentido. Na verdade, parece que Bergson , cuja particularidade, na qual Deleuze irá se
Deleuze leva ao seu paroxismo apoiar, é reduzir a dímensáo psicológica da obra de
aquiìo que julga ser o meìhor Bergson para destacar melhor sua natureza ontològica.
e o mais autèntico no Ferdinand Al- quié, orientador da tese secondària'1 de
pensamento dos autores do Deleuze sobre Espinosa, havia dado duas aulas sobre
qual se faz porta-voz em um esse autor em 1958-1959.
procedimento que segue mais Quanto a Jean Wahl, bastante aberto à filosofia
ou menos a lógica endógena de angìo-saxa da qual foi um grande divulgador na Franga,
seu pensamento, à maneira de foi eie, seni dúvida, que con- venceu Deleuze a exumar
um Martial Gué- roult, cujo Hume. Além dessa abertura internacional, Jean Wahl dà
rigor eie admirava multo, Ao duas aulas sobre Nietzsche entre 1958 e 1959 e entre
mes- mo tempo, eie sempre se 1960 e 19618. Jean Wahl desempenha um papel
situa a urna distancia que igualmente inspirador para Deleuze na reabiìi- tagáo da
Ihe permite oferecer urna obra de Bergson. É de fato Jean Wahl, ex-aluno de
vìsao singular, Essa tensáo o Bergson a quem ele dedicará sua tese, que introduz este
conduz a revitalizar último na universidade, consagrando-lhe algumas de
tradiçôes que de um golpe sao suas aulas. Como introdutor para Deleuze ao mesmo
metamorfoseadas e reju- tempo de Hume, da literatura anglo-saxá e de Bergson,
venescidas. desempenhou um papel fundamental em sua formagào.
Nessa primeira fase, até 1969, Deleuze é movido Isso é atestado por urna carta que eie escreve muito mais
pela preocupaçâo de respeitar a origi- nalidade de cada tarde, em 1972: “0 se- nhor me pergunta se pode utilizar
autor, de descobrir os problemas que tentou resolver. meu ponto de vista sobre Jean Wahl no livro que está
Esse entrelaçamento em que evoluì faz dele um filósofo escrevendo. Com certeza. Esse ponto de vista é de total
que cultiva ao mesmo tempo urna arte da distinçâo, urna admiraqào. A ìmportància de Jean Wahl para minha
sede de criaçâo pessoal e um desejo de ruptura com o geragáo foi: 1. Por ter trazìdo ao nosso conhecimento um
prêt-à-penser (pronto para pensar), Ao mesmo tempo, nùmero incrivel
ele se inscreve na Linha de urna tradiçao francesa cuja
originaììdade reside na singularidade de cada
interpretaçâo e em um modo de intervençâo “mais
problemática que doxográfica, mais conceitual que
erudita”5. Muitos, incluidos seus amigos, o qualificaram
de “dándf, nao por seu chapéu ou pelas unhas
comprìdas, mas por sua arte de ser inoportuno e por
desenvolver um pensamento sempre intempestivo: !A
orìginalidade de Deleuze está... em ter~se colocado
multo cedo numa posiçâo de ruptura com todas as
tendencias contemporáneas que agitavam a nós,
estudantes: antes de tudo o marxismo e a fenomenologia.
Na contracorrente, com um dandismo - tanto intelectual6
quando nos trajes e na postura - reconhecido por todos” .
Ele está plenamente convencido de que exumar Hume
no clima intelectual dos anos 1950, dominado pelos “très
H” (Hegel, Husserl, Heidegger), é coisa de urna arte
consumada do contraponto. Deleuze volta à carga 1 N. de R, T.: No original: Doctorat Para obter-se um dou- torado em
quando lança em 1961 urna leitura destinada a marcar a Filosofía, na França, como urna “norma gérai” extge-se très teses: a
importancia de Sacher-Masoch, em piena onda de Sade, principal que ocupa a maior parte do corpus de pesquisa, urna
Oìhando mais de perto, pode-se afirmar também, secundaría e urna complementar que, vía de regra, sâo extensóes da
como Giuseppe Bianco, que Deleuze, no essencial, principal, Evetuaimente pode-se escolher diretores diferentes para as
diferentes teses, por exemplo, para G. Deleuxe, Maurice de Gandíüac foi
retomou os autores abordados por seus professores. De o promotor da tese principal e Fernand Alquié o de sua tese secundaria.
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 93

de pensadores, por torná-los vivos, introdu- traduzisse páginas de livros alemâes, ou para que
ssindo-os na Franga, trate-se de Kierkgaard ou de datilografasse seus próprios manuscritos'12.
Whitehead. É espantoso como os livros de jean Resultado; o autor nâo reconhece mais seu texto.
Wahl dominam tudo o que foi feito depois. Ele Depois que datilografo, ele o vé tristemente
sacudiu completamente a filosofía francesa. 2. Seu encolhido e suspeita de alguma amputaçao. Essa
tom, seu humor, sua autoironia, e sobretudo por suspeita é atestada pela dedicatoria pessoal que
seu estilo, ele acaba realmente com qualquer escre- ve no exemplar do livro oferecido ao seu
divisao entre filosofía e poesía, muito maís que amigo Tournier: "Para Michel, este livro que ele
Bachelard, que permanece no nivel de um dati- îografou, e também criticou, achincalhou du-
comentário sobre a poesía ou fantasía, ramente, e talvez tenha até diminuido, porque
prolongando-a. Jean Wahl surge como um filósofo- tenho certeza de que era mais grosso, mas que é
poeta irredutívei á filosofía. 3. Seu próprio também um pouco seu, na medida em que lhe
pensamento e a própria atualidade de seu devo muito (nâo por Hume) em filosofía’.
pensamento: foi ele quem comandou a reagáo A obra é publicada em 1953 com o título
contra a dialética quando Hegel do- minou a Empirismo e Subjetividade. É dedicada por
universidade. Foi ele quem fez valer o peso da Deleuze ao seu ex-professor jean Hyppolite,
construgao do Foi ele o pensador da intensidade e fundador e diretor da colegao “Épiméthée”, que
igualmente da crítica da tota- lidade. Em tudo o acolhe a obra13. Esse livro é totalmente anacrónico;
que foi importante antes e depois 9 da guerra, Hegel, que está no programa da agrégation em
encontram-se as marcas de Jean Wahl” . 1946, denunciou enérgicamente o empirismo, que
também sofreu criticas veementes de Husserl Esse
estudo inspira-se amplamente ñas teses críticas de
Hume revisítado jean Wahl contra o hegelianismo.
Em 1952, Deleuze tem a oportunidade de Por trás da apresentaçâo das teses de Hume, já
publicar urna primeira obra na colegao de seu se percebe a singularidade da abor- dagem
amigo André Cresson, professor de classe pre- deleuziana, que consiste em situar em prímeíro
paratoria, que dirige urna série de pequeños livros plano o problema que o autor tenta resolver, isto é,
de iniciaqáo filosófica no modelo “Vida e obra”. em formular a pergunta certa: “Urna teoría
Deleuze, que ficou seduzldo com a lei- tura filosófica é, na verdade, urna pergunta
empirista de Descartes por jean Laporte e com seu desenvolvida, e nada mais: por si mes- ma, nela
grande artigo sobre Hume de 1933, elabora junto mesma, ela consiste nâo em resolver um problema,
com André Cresson essa intro- dugáo a Hume 10 Os mas em desenvolver até o limite as implicaçôes
autores captam a esséncia da doutrina de Hume necessárias de urna pergunta formulada” 14.
em seu principio de cau- salidade e em sua Descobre-se o que será a linha metódica constante
reflexáo sobre as probabilidades: "Ele constata que de toda intervençâo de Deleuze em urna carta
a probabilidade tem regras, que algumas enviada muito mais tarde, em 1986, a Arnaud
proposigóes sao maís pro- váveis que outras"11. Viliani, em que define o que é para ele um livro
Embora o absoluto esteja fora de alcance, a ordem útil de filosofía: “Creio que um ìivro, para que
probabilísima permite avangar alguns degraus no mereça existir, pode ser representado em très
conhecimento. aspectos rápidos. Apenas se escreve um livro
Deleuze se dedica ao mesmo tempo a preparar digno: L quando se acredita que os lívros sobre o
a publicagao de sua tese de estudos superiores mesmo tema ou sobre um tema próximo incorrem
sobre Hume, defendida sob a dupla orientagao de em urna es- pécie de erro global ( funçâo polèmica
Hyppolite e de Canguillen, Como nao sabe utilizar do iivro);
2.
a máquina de escrever, é aju- dado por seu vizinho quando se acredita que algo de essencial foi
e amigo no Flote! de la Paix, Michel Fournier, que esquecido sobre o tema (funçâo inventiva); 3.
se torna na ocasiáo sua “força de dissuasáo”1: “Ele quando se julga capaz de criar um novo concedo
nao parava de me importunar, ou para que (funçâo criadora). Naturalmente, esse é o minimo
quantitativo: um erro, um esqueci- mento, um
1 N. de T.: A expressâo "force de frappe” presta-se aqui a um conceìto... Assim, eu pegaria cada um de meus
jogo de sentido, pois “frappe" significa também a açâo ou livros, abandonando a modèstia necessària, e me
maneira de datiíografar.
perguntaria: 1. que erro pre- tendeu combater?; 2. que passar das simpatías reais que se excluem a um todo real
esquecìmento quìs reparar?; 3. que novo conceito crio que inclui23 as próprias simpatías. Trata-se de ampliar a
u?...” A94 François Dosse simpatía” . Disso resulta urna teoria da instituigáo
Aplicando-se a eie seus próprios critérios de pròpria de Humel, que ; pretende fazer prevalecer a regra
avaliaçâo, pode-se dizer que essa obra sobre o sobre a lei: “A principal ideia é esta: a24 essència da
empirismo de Hume se justifica por várias razôes. 0 socieda- ; de nào é a lei, mas a instituigáo” . As teses de
contrassenso praticado pela tradiçâo filosófica e Hume implicam, portanto, urna nova concep- gao do
combatido por Deleuze seria considerar o sujeito corno direito e urna nova defmigáo da voca- gáo de urna
um dado naturai e nao distinguir bem o atomismo e o ciencia do homem mais aberta a essas dimensoes
associacionis- mo. A falba a suprir, o esquecimento, psicológicas e sociais.
visaría a noçâo essencial da construçâo, a instituiçao. Essa redefinigao de urna filosofía do direito
Quanto à novidade, eia “consistiría na possi- biìidade de interessa particularmente a Deleuze. Tal temática do
urna ciencia da natureza humana, substituindo urna direito como estreitamente articulado ao social, como
psicologia16 do espirito por urna psicologia das codificagáo da jurisprudéncia, é urna ideia que
afeiçôes” . continuará a se desenvolver e que ele retomará em
No caso de Hume, a pergunta é: “Como o espirito se 1988 em 0 Abecedárío. O direito, para ele, nao é urna
torna urna natureza humana?”17. E Deleuze restituì a limitaqáo canónica e separada do socius, mas um
originalidade da resposta de Hume. Eia reside na processo permanente de invengáo: “Nesse sentido, a
afirmaçao segundo a qual o espirito nâo preexiste aos concep- gáo que Hume tem da sociedade é muito forte.
seus conteúdos, que ele é fortemente tributàrio da Ele nos apresenta urna crítica do contrato que nao
travessia da experiencia. Dessa primeira pergunta decor- somente os utilitaristas, mas também a maior parte dos
re urna segunda, essencial e que se coloca de13 imediato: juristas que se opoem ao direito natural, serao
“Como o espirito se torna um sujeito?” Segundo obrigados a retomar”25. Quando Dominique Séglard
Deleuze, Hume permite deslocar a pergunta clàssica que lhe perguntou por que havia dedicado seu mestrado a
explica tudo pelo sujeito, ao passo que a tarefa do Hume, Deleuze responden; “Por causa do direito.
filòsofo deve ser a de elucidar seu funcionamento. Minha verdad eira vocagáo era o direi to, a filosofìa e
Hume é definido por Deleuze como um pensador da o direito”26. Na época, é encorajado pelo jurista
pràtica, um moralista, um pensador político, um Maurice Hauriou para quem a instituigáo prevalece
historiador. O que19 é que funda a moral seguncjp Hume? sobre o contrato. Essa referencia é muito importante
“É a simpatia” . Esse impulso afetivo porta urna para ele se inserir em urna íllíaqáo de crítica interna ao
parcialidade que é pensamento republicano, que procura limitar o
preciso assumir: “Urna das ideias mais simples de principio da soberanía. Deleuze acrescenta: “£u estava
Hume, mas também das mais importantes,íüé; o homem procurando meu homem na classe preparatoria. Alquié
é muito menos egoísta do quepar- ciat , Por outro era Descartes e Byppolite era Hegel. Mas eu detestava
lado, Hume nos apresenta um sujeito que jamais é Descartes e Hegel”2'.
dado, mas sempre construido, Ele já nao é fonte de No mesmo ano da publicagáo de sua monografía
explicagáo, mas o que deve ser explicado: “A filosofía sobre Hume, Deleuze publica na pe- quena colegáo
de Hume é sempre teoria da pràtica'21. A razáo está na dirigida por Canguilhem urna coletánea de 66 textos
órbita da paixáo e, portanto, é tributària da escolhidos e aposentados por ele sobre o tema Instintos
contingencia, da diversidade de situagóes, e Institui- pñes28. Deleuze manifesta ali todo o interesse
fundamentalmente variável de acordo com o momento. de que se reveste a seu ver a dimensao da instituigáo
Hume enfatiza assim a insergao social do individuo, que, segundo ele, está ligada, assim como o instinto, a
sempre ancorado em um pertencimento, fonte de sua um mesmo principio de satisfatto: “Que na instituigáo a
paixáo; “Deleuze encontra a essencia do empirismo no tendéncia se satisfaga, nao há dúvida: no casamento a
problema da subjetividade, e o que faz o sujeito em se- xualidade, na propri edade a avidez”29. Nessa
Hume é sua capaeidade de crer e de inventar, a crenga apresentagào, Deleuze retoma a diferenciagao entre lei e
está na base do sujeito cognoscente, a inven gao está instituigáo, e se apoia na concepgao defendida por
na base do sujeito da moral e da política”22. Hume sobre a positividade que representa a instituigáo
Hume se dissocia aínda do caráter excessi- vamente enraizada no social, diferentemente das teorías do direito
formalista, excessivamente abstrato, das teorías do natural, : que rejeitam essa positividade reguladora fora
contrato social como a de Rousseau. A questáo nao é do social, confinando o direito à sua dimensao negativa
tanto refrear os ardores egoístas, mas sim ampliar as e limitativa: “A tirania é um regime em que há muitas
solidariedades: “O problema moral e social consiste em leis e poucas instituigoes, enquanto a democracia é um
regime em que :há muitas instituigoes e pouquíssimas paixôes humanas e &que
Gilles Deleuze permitem\ ^,95restituir a
Félix Guattari
leis”30 Antes da lei, a instituigáo impòe ao corpo do singularidade nos diversos campos da economia, do
individuo e ao corpo social os modelos a partir dos quais direito e da moral. Segundo Deleuze, julgam
a agáo poderá se desenvolver e que leva a pensar que “o erroneamente Hume quando o acusam de ter
homem nao tem instintos, é feito de instituigoes” 31. pulverizado, atomizado o dado. Seu atomismo, assìm
Deleuze atribui a Hume a intuigáo segundo a qual todo como seu as- sociacionismo, é o correlato de sua
debate concepçâo do sujeito corno se constituìndo no dado.
vis Deleuze retomará sua leitura de Hume mais tarde,
em 1972, para sua contribuiçâo a urna Historia da37
Filosofia dirigida por seu amigo François Ch àtei et .
sobre a natureza humana tem a ver com a di- ferenga Ele insistirá ainda na originalidade do procedimento
entre instintos e instituigóes. Nada no homem decorre de empirista de Hume38 que se apresenta como um mundo de
algo natural, tudo é cons- trugáo, está em eíaboragáo. 0 “ficçâo científica” , embora a pesquisa que sustenta esse
homem nao nasce sujeito, mas se torna sujeito. procedimento se abra para o campo da pràtica e,
Portanto, o homem é impulsionado adian- te, em portanto, da cotidianìda- de. O mérito de Hume foi ter
diregao a um futuro, a sua insergao singular na pràtica. O sido capaz de per- ceber a exterioridade das relaçôes aos
hábito e a repetigáo também participam desse processo seus ter- mos'e de ter rompido assim com o julgamento
produtivo. O sujeito e a subjetividade situam-se sempre de atribuiçâo. Quem le essa caracterizaçâo de Hume em
no polo da criatividade:32 “Crer e inventar, eis o que faz o 1972 se pergunta se Deleuze nao está qualificando sua
sujeito como sujeito” . No plano do método, Deleuze pròpria ambiçao filosòfica. Será que eie fez, segundo
saúda fiume por ter distinguido a crítica transcendental suas palavras, "um filho por trás” em Hume? O Hume de
que parte de urna certeza de essència e seu proprio Deleuze é pelo menos o filho de um sistema filosófico
procedimento, que provém de um ponto de vista concebido no sáculo XVIII e de indaga- çôes sugestivas
imánente. Também aqui, Deleuze náo deixará de seguir formuladas no século XX que renovam sua importància.
o ensinamento de Hume de permanecer em um plano de Pode-se considerar, entáo, que a problemática de Hume
imanéncia. formulada por Deleuze é “estranila ao vocabulàrio do
0 que é entao o sujeito? Em primeiro lugar, urna Hume histórico”39. A contribuiçâo de Deleuze foi reunir
duragáo,33 um hábito: “0 hábito é a raíz constitutiva do urna série de proposiçôes esparsas de Hume em um
sujeito” . Urna das grandes regras da pràtica reside conjunto coerente, sistemàtico, visando mostrar que a
nessa condensa- gáo temporal constituida pelas consti tuiçâo do sujeito se opera a partir do dado da
convengoes, pelos costumes sociais. As rei ago es sáo experiència.
vistas por Hume como sempre exteriores aos seus 0 empirismo de Deleuze nao fica às mar- gens de
termos. Quanto à associagáo de ideias, eia esclarece Hume, eie toma ali seu primeìro impulso, mas para
apenas a fina película da consciencia, a dos hábitos de radicalizar em seguida sua critica da subjetividade.
pensamento, das considera- gòes do senso comum, a Arnaud Villani ve nisso a tentativa de tornar
doxa, mas náo elucida as diferengas, o que só é possível indiscemiveis o empirismo e a metafisica: “É por isso
mediante o recurso ás circunstáncias: “Essa nogáo de cir- que, sem acrobacia nem ilusionismo,30 pode-se considerar
cunstáncia aparece constantemente na filosofía de Hume. Deleuze metafisico e npoempirista” .
Está no centro da historia, torna possível3 1 urna ciencia do Urna fase de I alen ci a
particular, urna psicologia diferencial” ' . No ámago do
empirismo de Hume, Deleuze encontra o principio ao Depois de sua obra sobre Hume em 1953, e até a
qual consagrará sua tese, o principio da diferenga: publicaçâo da obra sobre Nietzsche em 1962, Deleuze
‘Assim, a experiencia é a sucessáo, o movimento de escreve um bom nùmero de estudos e de resenhas, mas
ideias separáveis na medida em que diferentes, e nao um verda- deiro livro. Em urna entrevista com
diferentes na medida em que separáveis. É dessa Raymond Belìour e François Ewald datada de 1988, eie
experiéncia que se deve partir, porque eia é 35a se indaga sobre essa interrupçâo, sobre essa fase de
experiencia. Eia náo supóe nada mais, nada a precede” . latência: “Se vocés querem aplicar a mìm os criterios
Sua tese encontrará ali sua fonte com a fírme vontade de bibliografia-biografìa, vejo que escre- vi meu primeiro
pensar a diferenga por eia mesma e36retomará as aquisi- livro relativamente cedo, e depois mais nada durante
goes de sua monografía sobre Hume . oito anos. Sei, no en- tanto, o que estava fazendo, onde
0 empirismo de Hume contém em si urna filosofìa da e corno vivia nesses anos, mas sei abstratamente, um
pràtica, um sujeito envolvido, inse- parável do dado pouco. corno se outra pessoa me contasse lembranças
circunstancial Sao as circuns- tâncias que afetam as em que acredito, mas que nao vivi de fato. É como um
buraco na minha vida, um buraco de oito anos. É isso o momento em que se torna assistente de historia da
que me parece interessante ñas vidas, os buracos que filosofìa na Sorbonne, entre 1957 e 1960. Està
elas contêm, as la-Dosse
cunas, às vezes dramáticas, ou às assoberbado com a preparaçâo de suas aulas às quais
vezes nao” 41
. Contudo,
96 François
é nesses períodos de ausencia sempre dedicou bastante tempo e atençâo. Na
que se produzem as mutaçôes essenciais, que as forças Sorbonne, ele logo conhece um sucesso espetacular.
em açâo no movimento do pensamento exercem sua Professor muito jo- vem nesse lugar venerável, ele
pressâo, cujos efeitos costumam ser de retardamento. oficia na sala Cavaillés, quartas-feiras, das 14 às 15
Sao momentos de de- cantaçâo necessària para perceber horas: “Nao apenas a sala .ficava cheia, como havia
melhor seu pròprio caminho. estudantes sentados no pequeño tablado em torno da
Onde anda Deleuze nesse período? Ele está mesa do professor, Outros tinham de ficar no corredor,
exercendo entâo suas funçôes de professor de liceu em e a porta era deixada aberta para que pudessem ouvir.
Orléans, entre 1953 e 1955, : depois em Paris, no Louis- No final da aula, às 15 horas, todos iam embora, e
le-Grand, de 1955 a 1957. Esse é também, e sobretudo, Raymond Polin,
Gilles Deleuze & Félix Guattari 97

que lecíonava na rnesma saia, fícava com ape- de sua licenciatura, que deve acom- panhá-lo em
nas seis pessoas. Ele era buco furioso e detestava sua tese, é seu ex-professor Jean Hyppolite.
Deleuze”'12. Ele também dá urna aula no sábado Quando este último é nomeado para a diregáo da
pela manhâ, ás lOh 30: “Era fascinante, eu estava ENS da Rué d’Ulm, Deleuze o substituí na
subjugado, Ele tinha resposta para tudo e com Sorbonne, onde é encarregado do ensino de
reviravoltas surpreendentes, com urna visao historia da filosofìa. Deleuze já sente o que
completa tanto de Platáo quanto de Espinosa, chamará mais tarde de “aversao” ao hegelianismo
Kant ou Hegel”, testemunha um de seus ex- e à sua dialética, mas aínda está a servigo dos
alunos, Marc-Alain Descamps, vindo de grandes macigos do corpo filosófico e demonstra
Bordeaux para fazer seu curso de filosofía em urna certa “timidez filosófica’48, que o leva, por
Paris43. Segundo este ultimo, Deleuze teria exemplo, a nao mencionar em seu curso sobre
mencionado em suas aulas, desde essa época, a Hume a tese central de licenciatura defendida em
importáncia das raízes dos iris como possíbí- 1947 e publicada em forma de livro em 1953,
lidades de formar rede, o que ele conceituará mais Empirismo e Sab- jetividade.
tarde com Guattari na forma de um novo Antes de mais nada, Deleuze está realizando
paradigma: o rizoma. Na Sorbonne, ele consagra sua progressiva emancipagáo, numa mescla de
seu curso entre 1954 e 1955 a Aristóteles e a reconhecimento e ruptura com seus dois mestres,
Hume, frequentado por um futuro escritor que se Ferdinand Alquié e Jean Hyppo- líte. Na época,
tornará seu amigo, Rafaël Pividal: “Era Ferdinand Alquié é orientador de sua tese
absolutamente notável, ele aínda era muito jo- secundária sobre Espinosa, quase concluida nesse
vem e já tinha feito sua reputaçâo entre 44os in- final dos anos de 1950. Ele é também, sobretudo,
contáveis estudantes que faziam seu curso” . o grande especialista em Descartes, defensor
O curso de 1957 e 1958 atesta a importáncia fervoroso do dualismo contra todas as tentagoes
que teve para ele Jean Wahl, de quem retoma as monistas que identifica em Espinosa, Bergson,
temáticas essenciais sobre diversidade, filosofías Hegel ou Marx. Segundo ele, apenas o dualismo
pluralistas, irredutibilidade do diverso e “urna pode permitir desenvolver urna metafísica em
filosofía do ET'b”. Entre 1959 e 1960, ele consagra torno da distingao de objeto e sujeito. Nessa
seu curso ao Capítulo III de 46A Evoluçâo Criadora, época, Deleuze partilha com seu mestre Alquié
de Bergson, e a Rousseau . Este último curso urna visao metafísica comum, na medida em que
sobre Rousseau revela o interesse de Deleuze, já ambos acreditam que a realidade nao se re- duz
mencionado a propósito de Hume, pela questáo do absolutamente à sua representagáo. Em 1956,
contrato social, do direito natural em suas relaçôes Deleuze dedica urna resenha a urna obra de Alquié
com o socias. Portanto, a dimensao pràtica e sobre Descartes em que saúda seu mestre por ter
política do pensamento deleuziano, sempre ajudado tanto na compreensáo dá obra cartesiana e
reiterada mais tarde, já está presente em estado por ter evidenciado o fato de que seu pensamento
embrionário. Esse curso dará lugar, dois anos “expressa a pròpria essència da metafísica”49. Ele
depois, a um pequeño prolongamento com urna o segue também em sua apresentagáo da atividade
publicaçâo a propósito 47do 250a aniversário do filosófica de um Descartes que se descobre
nascimento de Rousseau . Nessa evocaçâo da obra filòsofo em um movimento de singularizagao “que
de Rousseau, ele destaca como seu escrito mais o conduz a romper com os hábitos de seu melo, as
significativo o Contrato Social Seu maior ensi- ligóes de seus mestres, as tradigoes de sua familia,
namento está no fato de que, para Rousseau, a seu país, o pròprio mundo objetivo™0. Nìnguém
separaçao dos poderes é um engodo, e que o duvida que Deleuze reconhece ali um caminho náo
legislativo, o poder da leí, é que prevalece. tragado que delimita para si.
Mas o que se passa de essencial para Deleuze Embora Deleuze dedique a Alquié sua obra
durante esses oito anos meio apagados? sobre Kant em 1963, suas relagoes se deteriorano
Esse período parece constituir urna importante rapidamente depois disso, e em 1967 Alquié critica
transí gao para sua relagáo com a historia da seu ex-aluno por se extraviar nos meandros de um
filosofìa e para sua emancipagáo dos mestres. método estrutural que vira as costas à pròpria
Institucionalmente, continua tributàrio de sua essència da filosofìa, à metafisica e à questao do
formagào primeira, na medida em que o orientador sujeito. Em 28 de Janeiro de 1967, quando de urna
exposigào perante os membros da Sociedade Francesa ontologia abandona a essència, isso pressupòe a ausencia
de Filosofìa sobre “0 método da dramatizagao”, Alquié de um segundo mundo, e, por isso mesmo, o saber
critica Deleuze por ter condenado a pergunta “0 que é?": absoluto náo pode ser distinto do saber empírico.
“Lamento a rejeiqao, um pouco ràpida, da pergunta O
98 François Dosse
Contudo, Deleuze náo adere totalmente as teses de
que é?, e nào poderla aceitar o que ele nos diz no inicio, Hyppolite e inclusive discorda radicalmente quando ele,
intimidando-nos um pouco, a saber, que nenhum filósofo de maneíra muito hegeliana, considera que o Ser só pode
havia fei- to essa pergunta, a náo ser Hegel... Quando ele ser idèntico à diferenga quando eia é levada ao seu
chegou à verdade, disse a mim mesmo: enfim, eis um absoluto, que é a contradigáo. já Deleuze, desde 1954,
exemplo filosófico! Mas esse exempìo logo se deturpou, formula a hipótese essencial que estará no centro de sua
pois Deleuze nos disse que precisávamos nos perguntar: futura tese, Dìferenga e Repetì- gào, segundo a qual se
quem quer a verdade? por que se quer a verdade? é o trata de construir urna “ontologia da diferenga que nào
cioso que quer a verdade?, etc., perguntas muito ínteres- teria de chegar até a contradigáo, porque a 55contradigáo
sanies, sem dúvida nenhuma, mas que náo to- cam a seria menos que a diferenga, e nao mais” , Trata-se,
essència mesroa da verdade, que talvez náo sejam entao para ele, de substituir a leitura de Hegel por Hyppolite,
perguntas estritamente filosóficas”51. Na resposta que que visa deslocar a ontologia para o Ser, por urna
Deleuze lhe dirige, sente-se que ele está muito abalado ontologia interamente voltada para a vida.
com esse ataque crítico. Depois de ter admitido que, de Em 1967, quando a ruptura se consuma, jà faz um
fato, numerosos filósofos colocaram a questuo do “o que bom tempo que as relaçôes entre Hyppolite e seu aluno
é?”, mas antes de tudo em forma de “como”, ele se diz estâo degradadas. Deleuze tinha renunciado a Hyppolite
fendo pela crítica de ter abandonado um questionamento para sua tese principal e escolhido Maurice de Gandillac.
propriamente filosófico: “Pois acredito inteirámente na Segundo Alain Roger, um dos elementos que teria
especifìcidade da filosofìa, e essa convicgáo eu a devo provocado urna situaçâo irremediável entre eles, além de
ao senhor”52. Consuma-se assim a ruptura entre Alquié e sua discordância teórica sobre Hegel, seria
seu ex-aluno. aparentemente o rumor de que Deleuze tinha certa
Um processo similar de desligamento de Jean propensâo à homos- sexualidade. “A senhora Hyppolite,
Hyppolite se desencadeia nesse mesmo período. Depois Marguerite, muito pudica, teria praticamente forçado o
de ter sido o coorientador, junto com Ganguilhem, da marido a despacha-lo”56.
tese de licenciatura de Deleuze sobre Hume, Hyppolite Quando em 1959 François Regnault ingressa na ENS
estava previsto para ser o orientador de sua tese principal da Rue d’Ulm e participa das pri- meiras leituras de
que, como ficou definido, deveria tratar da “ideia de Marx em torno de Althusser, eie manifesta com alguns
problema”. Grande especialista de Hegel, Hyppolite é o colegas, como Pierre Macherey e Roger Establet, o
tradutor de Fenomenología do Espirito, mas também desejo de convidar Deleuze: “Lembro muito bem que
aquele que abriu as teses hegelianas a um confronto Hyppolite nos perguntou quem gostariamos que viesse, e
permanente com a modernidade filosófica, Professor de quando falamos em Deleuze, eie respondeu: ‘Nâo, eu
Deleuze na classe preparatória, Hyppolite tinha a maior nâo quero’. A gente nunca soube por que'57. Seja como
estima por seu aluno. Quando Deleuze nào se candidata for, o que se ates- tou foi o caráter ao mesmo tempo
à ENS, Hyppolite Ihe propòe que vá com eie para brutal e írre- versível dessa ruptura. Deleuze nâo
Strasbourg, para onde acaba de ser nomeado, Deleuze participará d&Homenagem a Hyppolite publicada em
nào vai para là, mas obtém de seu mestre urna bolsa de 1971, com ediçao de Michel Foucault, do qual eie era
agregagao concedida pela Universidade de Strasbourg. muito próximo na época. Nâo participará tam- pouco do
Em 1954, Deleuze dedica urna resenha a Lògica 53e volume dedicado a Alquié, lançado um pouco mais
Existència, de Hyppolite, lanqado pela PUF em 1953 . tarde, em 1982.
Deleuze louva ali um distanciamento critico do Entre 1960 e 1964, Deleuze fica afastado do CNRS,
humanismo e o esbogo de urna ontologia, contra a e sua maior disponibilidade Ihe possi- bilitará explorar
leitura de Hegel feita por Kojév, excessivamente livremente textos que nao fa- zem parte do corpo
antropológica. clàssico da historia da filosofìa, mas que atendem ao seu
Essa reinterpretagao de Hegel nào deixa de estar desejo de ligar a critica e a clínica. O recurso ìiteràrio
ligada à entrada de Heidegger na Franga no mesmo torna-se entáo um objeto legítimo e mesmo privilegiado
momento, sobretudo após a publi- cagào em 1946 da de sua reflexao filosòfica. A oportunidade surge no
Carta sobre o humanismo. Deleuze concorda com inicio dos anos de 1960. Seu amigo Kostas Axelos
Hyppolite principalmente em sua defmigao do Ser como prepara um número da revista Arguments sobre “O amor
sentido, e nao essència: “De urna certa maneira, o saber problema”. Ele tinha recebido várias colaboraçôes sobre
absoluto é o mais próximo, o mais simples, eie està Se a Sade, mas nenhuma sobre Sacher-Masoch. E propos a
Deleuze. O texto, publicado em 1961, é o pri- meiro mas o proprio romancista Sacher-Masoch; ‘A literatura
estudo de Deleuze sobre urna obra lite- rária,58 que nao é secundária, testemunha ima- ginária de urna
antecede seu Proust e é bem anterior ao seu Kafka . Ele perversidade real. Eia contribui efetivamente, e por seus
atende ao pedido de Axelos com enorme prazer, pois próprios 62meios, para o quadro clínico 99
Ciliés Deleuze & Félix Guattari
da sexu
assim pode acabar com o entusiasmo intelectual por alidade’” . É preciso levar a sèrio, como sugere Anne
Sade, que tem como efeito reduzir Masoch ao estado de Sauvagnargues, a indagagáo sartriana de Deleuze no
componente secundário do sadismo naquilo que era inicio de sua apresentagao de Sacher-Masoch: “Para que
chamado de sadomasoquismo39. Essa intervençâo de serve a literatura?”6’.
Deleuze é urna faca de dois gumes, pois nâo somente Em seu artigo de 1961, Deleuze apoia-se sobretudo
imerge na literatura como se afirma no campo da em Theodor Reik6íl, apresentado como o principal teórico
pesquisa da psicanálise num momento em que a de referència por ter caracterizado bem a sintomatologia
populari- dade de Lacan nâo para de crescer no campo do masoquismo, apesar de ter omitido o contrato. Reik
intelectual francés. Desde 1961, muito antes de conhecer demonstrara que “o masoquista só consegue sentir prazer
Guattari, Deleuze é instigado pelas categorías analíticas, após a punigào: isso nào significa que ele tenha prazer (a
Como explicou a Arnaud Villani, um livro deve sua nao ser um prazer secundário) na pròpria punigáo”65, Em
utilidade a alguns imperativos. No que se refere à sua 1967, quando Deleuze publica sua Apresentagao de
Apresen- taçâo de Sacher-Masoch, Deleuze esclarece Sacher-Masoch, é Freud que se torna a referencia teórica
em que medida ele responde a esses criterios: “0 erro foi matricial. Retoma a distingáo feita por ele entre pulsào
ter negligenciado a importancia do contrato (e, para de morte e instinto de morte para esclarecer a propensáo
mirn, o éxito desse livro é que depois dele todo mundo do sádico a se colocar do lado da negagáo pura e a se
falou do contrato masoquista, ao passo que antes esse aproximar do instinto de morte. Freud e Lacan
era um tema muito acessório); o novo conceito60 é a enfatízaram as resistencias e os processos de denegagáo,
dissociaçâo do sadismo e do masoquismo” . O e Deleuze retoma a análise do lugar do fetichismo em
comentário que Deleuze faz aquí lembra sua insistência Freud para fazer disso um atributo do masoquismo: “Os
já acentuada a propósito de Hume sobre a questáo de um principáis fetiches de Masoch e de seus heróis sao as
contrato social que nâo seja abstrato, sua visâo da peles, os calgados, o pròprio chicote, os capacetes
instituiçâo como ancorada no socius. Ele encontra essa estranhos 66com os quais gostava de paramentar as
diferen- ciaçâo entre contrato e instituiçâo também em muíheres” , A confusao das duas sintomatologias que
Sacher-Masoch, cuja relaçâo com o contrato é chega à identidade de um sadomasoquismo nao deve ser
absolutamente essencial atribuida a Freud, que serhpre diferenciou os dois modos
Indo de encontró à assimilaçâo que se costumava de comportamento. Antes mesmo de seu encontró com
fazer entre sadismo e masoquismo, Deleuze opôe a Guattari, em 1969, Deleuze já emprega a teoría analítica
pràtica contratuaì de aliança do masoquismo ao ato de quando critica o esquema edipiano e o estatuto atribuido
posse instituida buscado pelo sadismo. É pelo contrato à castrando na teoria freudiana. Deleuze considera que a
que o masoquista garante sua relaçâo com o parceiro, maneira como os analistas querem ver a qualquer custo a
conferìndo-ìhe todos os direitos por um tempo limitado. imagem paterna por trás do ideal masoquista é
Ao contràrio, o pensamento de Sade pertence à esfera da singularmente redu- tora. Sem dúvida, o pai tem um
instituiçâo, e nisso é um pensamento profundamente papel essen- cial no sadismo, que se desenvolve com
político, em ruptura com o quadro contratuaì que eie base na negagao da figura materna, mas é abusivo
ultrapassa por todos os lados. estende-lo ao masoquismo. Ao contrario, o masoquismo
O segundo objetivo de Deleuze é fazer justi- ça a vive em um universo simbólico ìntermaterno no qual os
Masoch diante do ofuscamento que sofreu em proveito tipos de ideal femini- no constítuem urna ordem
de Sade, Eie nâo apenas deixou de ser lido corno, no simbólica em que a figura do pai está ausente, é
plano clinico, foi rebaixado a simples variante do suprimida. Nesse plano, Deleuze se apoia na tese
sadismo na entìdade “sa- do maso qui sta”, ao passo que lacaniana da forclusáo do “nome do pai”: “Lacan
“está muito claro que6! seu universo nada tem aver com o enunciou urna lei profunda segundo a qual aquilo que é
universo de Sade” , Deleuze se propòe, portanto, a abolido simbolicamente ressurge no real em forma
refazer o percurso que conduz da crítica literaria à alucinatória”67. Deleuze se apoia tam- bém naquilo que
cllnica para discernir, por trás da síndrome, os síntomas considera a obra-prima de Freud, Alérn do principio de
próprios ao masoquismo e aqueles específicos do prazer, saudada como urna incursáo genial de Freud no
sadismo. Deleuze reabi- lita com seu estudo aquele que continente filosófico. O principio de prazer governa
foi o verdadeiro inventor da qualificando “masoquista, tudo, nao sofre de excegáo, mas so mente de
que nao é, como se acredita, o psiquiatra Krafft-Ebing, complicagóes, fontes de exfcerioridade, de produgao de
um residuo irredutível, de um para-atém que reabre para principio de prazer e do principio de desejo no
a reflexáo filosófica. Essa exterioridade leva Freud a masoquista. Essa desvinculagáo conduz o masoquista a
invocar100
umFrançois
principioDosse
transcendental. Assím, Eros está um duplo processo de dessexualiza- gáo e
preso a um principio de repetigáo: “É preciso ressexualizagáo em torno do principio da repetigáo.
compreender que a repetigáo, tal como Freud a concebe Anunciando urna temática central de 0 Anti-Édipo,
nesses textos geniais, é em si mes- ma síntese do tempo, Deleuze contesta em Freud o papel atribuido às nogóes
síntese ‘transcendental’ do tempo. É ao mesmo tempo de castragáo e de culpabilizagáo: “Elas se tornam fáceis
repetigáo do antes, do durante e do depois”68. Deleuze demais, visto que servem para reverter situagòes e para
abandona Freud para revelar um destringamento do
Gilles Deleuze & Félix Guattari 101

fazer com que se comuniquem no abstrato cogito cartesiano está Tendido agora - bem antes
mundos realmente estranhos”69. da psicanálise.
Em A Filosofía Crítica de Kant, dedicada a seu
mestre Ferdinand Alquié, Deleuze segue o
O incontornável Kant percurso da nogáo de íaculdade ñas tres “Críticas”.
Em 1963, Deleuze consagra um estudo a Kant, A revolugáo copernicana de Kant está em
embora ele nâo faça parte de seu Pan- teño submeter o objeto ao sujeito, e nao em pres- supor
filosófico . Ao evocar esse livro mais tarde, ele urna harmonía entre sujeito e objeto. “A primeira
70

dirá que o escreveu contra um "inimi- go”; porém, coisa que a revoluto copernicana nos ensina é que
quando em 1968 explica o porqué dessa obra, somos nos que a comandamos... Kant opòe à
Deleuze nâo esconde seu fascmïo: “Quando se está sabedoria a imagem crítica: nos, os legisladores da
diante de urna obra tâo genial, nâo é o caso de Natureza” ^ Em A Crítica da Razào Pura,
dizer que nâo se está de acordo. É preciso antes submetem-se os fenómenos a categorías que,
saber admirar; é preciso encontrar os problemas enquanto conceitos produ- zidos pelo
que ele coloca, seu próprio maquinário. É por entendimiento, sao objeto de urna dedugao
força da71 admiraçâo que se encontra a verdadeira transcendental. A razáo legisla, mas sob o impulso
crítica” . Além dessa obra, Deleuze publica no da faculdade de desejar, ou seja, sob o reino da
72 razào pràtica, da vontade autónoma, Para fazer
mesmo ano um artigo sobre a estética kantiana .
Ele tam- bém deu algumas aulas sobre Kant, esse exercício autónomo, é necessàrio um regime
primeiro na Sorbonne, no final dos anos de 1950, de liberdade. No ámago do procedimento
depois na universidade de Vincennes, em 1978. transcendental, Kant situa o uso da imanéncia, que
Finalmente, em 1986, ele publicará um longo será um de seus temas favoritos: “O método
estudo sobre o tema de urna “poética” kantiana'’ . transcendental é sempre a determinagáo de um uso
3

A genialidade de Kant, segundo Deleuze, é ter imánente 73da razáo, conforme um de seus
descoberto que o homem é composto de duas interesses” . Assim, Deleuze sempre reivindica
faculdades de natureza diferente: de um lado, a um criticismo transcendental, ao mesmo tempo
intuiçâo, a receptividade, que está ligada à considerando que a exigencia fundamental de
experiencia e encontra sua fonte na sensibili- dade; imanéncia é mais realizada por Nietzsche do que
de outro, o conceito, que tem sua fonte no por Kant.
entendimiento que define a forma do co- Essa busca da imanéncia associa-se á
nhecimento, seu agenciamento no ser pensante. preocupagáo filosófica de Deleuze, mas nao a
Entre essas duas dimensoes heterogéneas, Kant preenche, pois Kant parou no meio do cami- nho
percebe um buraco, e ele será o primeiro a definir ao reduzir a dímensao transcendental ás condigoes
o ser humano a partir desse buraco que o atravessa; de urna experiencia possível. Assim, ele se
essa é sua contribuiçâo fundamental à condena à recogniqáo, ao decalque do real
modernidade, Enquanto no sáculo XVTÍ o averiguado e, segundo Deleuze, cai nos meandros
pensamento se reñetia no infinito, seja em da consciéncia psicológica. Deleuze, ao contràrio,
Descartes ou em Leibniz, sendo o infinito primeiro reafirma sua tese sobre a abertura a outras
em relaçâo ao finito, a intuiçâo e o entendimiento modalidades do pensável mais criativas do que as
se tornam com Kant dimensoes incomensuráveis, e do simples reconhecimen to do mesmo, e que só se
o principio de finitude é erigido em principio pode atingir insistindo sobre a diferenga por si
constituinte, Essa revoluçâo é absolutamente mesma 76
Com isso, ele modifica a acepgâo da
fundamental: o dado e o conceito nâo se pròpria noçao de “facul- dade”, que ainda é
sobrepôem, e o buraco nâo pode ser tapado ou entendida como urna dis- posiçâo ou funçâo
saltado. Constatando a diferença de natureza entre cognitiva gérai à espera de seus conteúdos
o espatjo-tempo e o “Pensó’, Kant se indaga sobre particulares “possiveis”, mas se torna urna força
as condipoes do conheci- mento. Ele faz com que cada vez mais singular, susce- tível de afetar ou de
intervenha entáo urna terceira facuìdade, ser afetada por um fenomeno também singular:
certamente incapaz de se livrar do buraco, mas “Há, portanto, modos múltiplos (no sentido de
cuja fumjao é estabelecer a relagáo: o que Kant Espinosa) de pensar, de sentir, de recordar, de
chama de “esquematismo da imaginagao”. O fantasiar, de falar..., que constituent faculdades
distintas, criadas a cada vez no contato com fenómenos o título à obra de Deleuze e constituí a seu ver a pròpria
ou obras singulares”77. unidade da escrita proustiana: “A palavra signo’ é urna
A relaçâo de Deleuze com Kant nâo é de simples das palavras mais frequentes da Busca”86. Cada
negatividade, Vincent Descombes apresenta-o inclusive
102 François Dosse
segmento social é compartimentado e se re- conhece por
como um continuador da obra crítica de Kant das ideias signos comuns emitidos por seus .membros. Assim, os
de alma, de mundo, de 78Deus: “Gilles Deleuze é antes de signos dos Verdurin náo tèm muito a ver com os dos
tudo um pós-kantiano’’ . Kant foi o filòsofo que atingiu Guerreantes; sáo urna pluralidade de mundos
certos limites, como o do tempo, do sujeito, do incomensuráveis que constituem o universo social e
pensamento, “mas seni jamais ousar ultrapassàdos”79. sensível no qual o narrador evoluì. Podem-se descobrir
Deleuze procura passar do decalque à construgao de sua ali subconjuntos coerentes, como os signos de
pròpria cartografia das teses kantianas. De fato, ele pertencimento à mundanidade ou os signos próprios à
escapa da alternativa kantiana na qual a multiplicidade é expressáo amorosa, ou ainda aque- le que designa as
regulada por um tempo que ele percebe como uniforme, qualidades sensíveis. Mas o que subsume o conjunto é o
homogéneo e irreversível contra urna abordagem que mundo da Arte, que desempenha o papel de mundo
verla no tempo a expressao de profundezas insondàveis. último dos signos entáo “desmaterializados” que
Deleuze, ao contràrio, reivindica urna temporalidade “encon- tram seu sentido em urna esséncia ideal. Desse
heterogénea cujos fragmentos nâo se juntam mais modo, o87 mundo revelado da Arte reage sobre todos os
segundo a ideia de urna totalidade restaurada"30. Isso lhe outros” . A arte tem um estatuto privilegiado na medida
permite, em um procedimento que qualifica de em que é a mediagáo sem a quaì a interpretaçâo dos
empirismo transcendental, libertar a força de efraçâo do signos nâo poderia superar sua opacidade aparente.
acontecimiento e das singularidades: “Quando se abre o Um livro útil, segundo Deleuze, deve inventar um
mundo fervilhante de singularidades anónimas e novo conceito, e nesse plano a obra sobre Proust lança1
nómades, impes- soais, 8pré-individuais, pisamos enfim o luz acerca da fecundidade da noçâo de “captura .
solo do transcendental” *. Deleuze retoma no plano conceitual a captura efetuada
entre dois elementos: um animal - a vespa - e um vegetal
- a orquídea -, em que a vespa fecunda a orquídea,
Proust em busca de verdade transgredindo as regras de separaçâo entre os dois
Em 1964, um ano após a publicagáo de sua obra mundos. Deleuze retoma concettualmente o primeiro
sobre Kant, Deleuze volta à literatura com urna obra capítulo de Sodoma e Gomorra em que Proust consagra nada menos
dedicada a Proust82. Ele afirma assim a vontade de fazer que trin- ta páginas à metáfora da vespa e da orquídea.
valer a reflexáo filosófica sobre territorios náo Faz disso um modo de fecundaçâo possível da literatura
cultivados pela tradigáo académica, urna maneira de pela filosofìa e vice-versa. Aliás, ele conclui a obra
escapar da historia clàssica da filosofia88. Com Proust e constatando que a procura da verdade da Busca rivaliza com
os Signos, Deleuze deseja corrigir o erro co~ mumente a ambiçâo filosófica. A imagem do pensamento, tal
partilhado pela crítica literária que consiste em fazer da como o entende Proust, “opôe-se ao que é mais88essencial
obra-prima de Proust urna obra sobre a memòria: “Em em urna filosofia clàssica de tipo racionalista' . A obra
que consiste a unidade de Em Busca do Tempo Perdido? de Proust, ao significar que as verdades nâo dependem
Sabemos pelo menos em que eia nao consiste. Eia nao nem do arbitrio nem da abs- traçâo, tem portanto urna
consiste na84 memoria, na lembranga, mesmo dímensáo filosófica. Essas verdades devem ser buscadas
involuntária” . Segundo Deleuze, a Busca se serve da no interior das zonas de opacidade nas quais agem as
memoria, mas como ferramenta, como melo de chegar à forças empregadas nos movimientos do pensamento. Sob
verdade: “A Busca 8do tempo perdido é, na verdade, urna as convençôes da comunicaçâo regrada, forças
busca da verdade’’ ? O movimento dessa busca só pode subterráneas desempenham o papel de verdadeiros
se realizar a partir de urna imposigao ou de urna situagáo detonadores do pensamento. Esses conectores que o
violenta que a suscita, e o motivo essencial para Proust é colocam em movimento sâo os próprios signos, que é
seu ciúme. Segundo Deleuze, o herói proustiano se preciso “sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver,
apaixona para poder liberar seu desejo de ser ciumento. decifrar"89,
Nes- se aspecto, a Busca nao é orientada ao passa- do, Deve-se observar que, se Deleuze inova por seu
mas ao futuro. tratamento da literatura como sintomatologia, como
O segundo destacamento operado por Deleuze olhar clínico, na linha do que já ha- via tentado com
consiste em reparar o principal esqueci- mento na Sacher-Masoch, ele continua fiel a toda urna tradiçâo
análise da obra de Proust: o universo dos signos, que dá para a qual pensar é interpretar. Como assinala Robert
Mauzi, especialista em literatura francesa, Deleuze ofe-
rece urna leitura original da Busca, privilegiando a universo cinematográfico empreendida nos anos de
Giües Deleuze & Félix Guattari 103

temporalidade do narrador em relaçâo à do escritor, que 1980 . Deleuze confirma em 1968, quando da
%

é abandonada: ele nâo indaga sobre a intencionalidade de publicando das Obras Completas, de Nietzsche, esse
Proust, limitan- do-se a urna decodificaçâo de seu eixo fundamental de sua reflexáo que perpassa todas as
universo de signos: “Seria preciso, portanto, parar de suas monografías: “Hume, Bergson, Proust me
falar da subjetividade proustiana: há de se convir que é interessam tanto porque há neles elementos profundos
um alivio 1er um ensaio sobre Proust em que todos90os para urna nova imagem do pensamento. Há alguma coisa
temas da psicologìa e da psicaná- lise sao eliminados” , de ex- traordinário na maneira como eles nos dizem:
Segundo o filósofo Jean-Claude Dumoncel, a chave pensar nao significa aquilo que vocé acredita... Sim, urna
para entrar no pensamento de Deleuze está na leitura de nova imagem do ato de pensar, de seu funcionamento,
Proust, pois o que aparecerá mais tarde como urna tese de sua génese 1no próprio pensamento, é exatamente isso
pessoal abstrata - Diferenga e Repetigao - está lá, com a narra- gáo que buscamos' ”.
proustiana, sua expressáo mais legível e seu verdadeiro Ao mesmo tempo, sao perceptíveis certas
esquema diretor, que chega a considerar que ‘e a modificapoes entre as diversas edigóes de Proust e os
diferenga que dá à repeti- gáo seu objeto. O grau desta Signos. Publicado em 1964, o livro dá lugar a duas
vem sempre da diferenga. É a diferenga que deve ser versoes posteriores ligeramente modificadas, em 1970 e
repetida, e Proust apenas relata isso ao longo de centenas em 1976. Entre apri- meira edigáo e a seguíate, ocorre o
de páginas"91. Jean-Claude Dumoncel julga tanto mais encontró fundamental de Deleuze cora Guattari. A marca
fundamentada a leitura filosófica que Deleuze faz de deste é perceptive! e reconhecida por Deleuze, que Ihe
Proust na medida em que este ultimo reivindica duas fon empresta a. temática da transversa- lidade: “Em relagáo
tes de inspira- gao filosófica: Gabriel Tarde e Henri as pesquisas psicanalíticas, Félix Guattari formou um
Bergson. conceito multo rico de ‘transversalidade para dar98 conta
A Busca se desenvolve entre o que Deleuze qualifica das comu- nicaqoes e relaqoes do inconsciente’’ . Essas
como “diferengas livres” que fazem vibrar e “repetigoes transversais sao essenciais para compreender a passagem
complexas” que se revelam como ondulagdes vibratorias de um mundo fechado a um outro que nao destrói sua
em urna relagáo que leva a pensar naquele que une a singularidade, mas que, sem confusáo nem totalizagao
nuvem de tempestade e os estrondos do trováo. No en- possível, permite a passagem de um universo de signos a
tanto, essas ondulagoes se distinguerò das re- petigoes outro. Sao essas transversals que conduzem a passagem
simples: ‘A ondulagáo, diferentemente
1 * m/ . ! ^ * Ì&2 de urna Albertina a outra, com paseantes privilegiados
da iteragao, e urna maneira de nao se repetir . A repetigao como Swann. Essas trans- versaüdades tém como efeito
vibratòria traz consigo no tempo diferengas potenciáis. tornar possíveis os encontros, suscitar novos fluxos, sem
Proust indaga sobre a maneira como emergem na com isso por em perigo a existéneia da pluralidade, “sem
consciéncia as reminiscencias que parecem depender de jamais reduzir o múltiplo ao Um, sem jamais reunir o
um regime associativo do tipo: “O sabor da mada- lena é múltiplo em um todo”99. Essas transversals sao de todas
parecido com o daquelas que degustá- vamos em as ordens: o ciúme
Combray; e eia ressuscita Combray, onde a degustamos pela multipli ci dade amorosa ou a viagem pela
pela primeira vez’93. Ele se aproxima assim da multiplicidade de lugares, ou ainda o sono pela
concepgao bergsoniana da memoria, que faz coexistir multipìicidade de momentos.
um presente que invoca outro presente que foi, mas que
nao é mais, e cuja evocagào é tributària dos presentes
que o recompóem sem que o ser do passado jamais94 seja Notas
atingido: ‘A esséncia do tempo nos escapa” . A 1. Gilles Deleuze, A.
memoria involuntária interioriza o contexto antigo, que 2. Ibid.
se torna inseparável do momento presente, e efeito disso 3. Gilles DELEUZE, “Lettre à un critique sévère” (1973),
como o essencial nào é a semelhanga, mas, ao contràrio, PP, p. 14.
“é a diferenga interiorizada, tornada imánente”9j. 4. Gilles DELEUZE, PP, p. 14.
Com o título que Deleuze dá á sua conclusao - “A 5. Thomas BÉNATOUIL, “L’histoire de la philosophie: de
imagem do pensamento” é possível avallar a l’art du portrait au collage”, Le Magazine littéraire,
permanéncía desse tema da busca em toda sua obra: esse fevereiro 2002, p. 36. :
será o título do Capítulo IIÍ de importancia capital de 6. René SCHÉRER, Regards sur Deleuze, op. cit., p. : 12 .

Diferenqa e Repetiqao, e já se pode dizer que “a imagem 7. jean Hyppolite, Figures de la pensée philoso- ’ phique,
PUF, Paris, 1991, tomo 1, “Du bergsonisme à
do pensamento” é o horizonte de toda sua exploragáo do l’existentialisme” (1949), p. 443-459; “Vie et philosophie de
l’histoire chez Berg- son” (1949), p. 459-467; Aspects 10. André CRESSON, Gilles DELEUZE, David Hume, sa
divers de la mémoire chez Bergson” (1949), p, 468-488; vie, son Œuvre, PUE Paris, 1952.
“Vie et existence d’après Bergson” (1950), p. ; 488-498. 11. Ibid,.,pAl.
8. informaçôes transmitidas
104 François Dosse por Giuseppe : BIANCO, “Trous 12. Michel TOURNIER, “Gilles Deleuze”, Critique, n. 591-
et mouvement: sur le dandysme deîeuzien. Les cours de la 592, agosto-setembro de 1996, p. 699.
Sorbonne 1957-1960”, op. cit., p. 93. 13. Gilles DELEUZE, Empirisme et subjectivité, PUE 1953
9. Gilles Deleuze, carta de 17 de julho de 1972, acervo jean (doravante citado ES).
Wahl, 1MEC, transmitida por Giuseppe Bianco, 14. Ibid., p. 119.
"Philosophies du ET. Que se passe-t-il entre (Jean Wahl et 15. Gilles Deleuze, carta de 29 de dezembro de 1996 a
Deleuze)?", por ocasiao de urna Jomada Jean Wahl, Arnaud Villani, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et
organizada por Frédéric Worms e Giuseppe Bianco, 16 de l’Orchidée, Belin, Paris, 1999, p. 56,
abril de 2005, ENS. 16. Arnaud VILLANI, “Une généalogie de la philo- v sophie
deleuzienne: Empirisme et subjectivité,
Gilles Deleuze & Félix Guattari 105

Concepts, “Gilles Deleuze I”, Janeiro de 2002, Sils curso sobre Kant: 24 páginas datiiografadas; curso
Maria, Mons, p. 108. sobre Hume: 38 páginas datiiografadas.
17. Gilles DELEUZE,'ES, p. 2. 47. Gilles DELEUZE, “jean-jacques Rousseau précurseur
18. Ibid, p. 3. de Kafka, de Céline et de Ponge”, Arts, n. 872, 6-12 de
19. Ibid, p. 23. junho de 1962, p. 3; retomado em Gilles Deleuze, ID,
20. Ibid., p. 24. p. 73-78.
48. Giuseppe BIANCO, “Trous et mouvement: sur le
21. Manola ANTÛNIOLI, Deleuze et l’histoire de la dandysme deieuzien. Les cours de la Sorbonne 1957-
philosphie, Kimé, Paris, 1999, p. 30. 1960”, op. cit., p. 95.
22. Ibid., p. 31. 49. Gilles DELEUZE, “Descartes, l’homme et l'Œuvre,
23. Gilles DELEUZE, ES, p. 27. por Ferdinand Alquié”, Cahiers du Sud, n. 337,
24. Ibid., p. 35. outubro de 1956, p. 473-475.
25. Ibid., p. 34-35. 50. Ibid.
26. Paiavras de Gilles Deleuze reportadas por Dominique 51. Ferdinand ALQUIÉ, em Gilles DELEUZE, "La
Séglard, entrevista com o autor. méthode de dramatisation ”, ID, p. 148.
27. Ibid. 52. Ibid, p. 149.
28. Instincts et institutions, textos escollados e 53. Gilles DELEUZE, “Jean Hyppolite, logique et
apresentados por G. DELEUZE, Classiques Hachette, existence", Revue philosophique de la France et de
Paris, 1953, l’étranger, n. 7-9, julh.-set, 1954, p. 457-460;
29. Gilles DELEUZE, ibid., p. VUE reproduzido em Gilles Deleuze, ID, p, 18-23.
30. Ibid., p. LX. 54. Ibid., p. 20.
31. Ibid, p. XL 55. Ibid., p. 24.
32. Gilles DELEUZE, ES, p. 90. 56. Alain Roger, entrevista com o autor.
33. Ibid., p. 101. 57. François Regnault, entrevista com o autor.
34. Gilles DELEUZE, ES, p. 115. 58. Gilles DELEUZE, “De Sacher-Masoch au ma-
sochisme”, Arguments, n. 21, 1961. Após esse
35. Ibid., p. 93. primeiro estudo, Deleuze lançarà em 1967 uma versâo
36. Gilles DELEUZE, DR. ampliada de sua abordagem de Sacher-Masoch: Gilles
37. François CHÂTELBT, Histoire de la philosophie, t. DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Minuit,
IV: Les Lumières, Hachette, Paris, 1972, p. 65-78: Paris, 1967.
reproduzido em Gilles Deìuze, ID, p. 226-237. 59. Essa onda de Sade nâo parou de crescer desde os anos
38. Ibid., ID, p. 226. 1930, balizada por importantes estu- dos como: Pierre
39. Patricia de MARTBLABRE, “Gilles Deleuze, KLOSSOWSKI, “Éléments d’une étude
interprète de Hume”, Revue philosophique de psychanalytique sur le marquis de Sade", Revue de
Louvain, fevereiro de 1984, t. 82, p. 224. psychanalyse, 1933, e Un si funeste désir, Gallimard,
40. Arnaud VILLANI, “Une généalogie de la philosophie 1963; Maurice BLANCHOT, Lautréamont et Sade,
deleuzien ne; Empirisme et subjectivité ”, op. cit., p. 1947; Simone DE BEAUVOIR, Faut-il brûler Sade?,
120. 1955; Georges B ATAILLE, La Littérature et le Mal,
4L Gilles DELEUZE, PP, p. 188-189. 1957;
42. Olivier Revault d’Allonnes, entrevista com o autor. Jacques LACAN, “Kant avec Sade", Critique, n. 191,
43. Marc-Alain Descamps, entrevista com o autor. 1963; Michel FOUCAULT, “De Sade à Freud”,
44. Rafaël Pividal, entrevista com o autor. Critique, n. 195-196,1963; Œuvres complètes de Sade,
45. Giuseppe BIANCO, “Philosophies du ET. Que se 1967; Roland BARTHES, Sade, Fourier, Loyola,
passe-t-il entre (Jean Wahl et Deleuze)?", por ocasiâo 1971,...
de urna Jornada Jean Wahl, organizada por Frédéric 60. Gilles Deluze, carta de 29 de dezembro de 1986 a
Worms e Guìseppe Bianco, 16 de abril de 2005, ENS. Arnaud Villani, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et
46. Encontram-se aíguns resquicios desses cursos nos l'Orchidée, op. cit., p. 57.
arquivos da Escola Normal Superior de Fontenay- 61. Ibid., p. IL
Saint-Cloud que se encontrare na biblioteca da ENS- 62. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et làrt, PUF,
LHS de Lyon. Curso sobre Bergson: 19 páginas Paris, 2005, p. 44.
datiiografadas, publicado em Frédéric WORMS (sob a 63. Gilles DELEUZE, SM, p. 15.
dir.), Annales ber~ gsoniennes IL Bergson, Deleuze, 64. Theodor REÏK, Le Masochisme, Payot, Paris, 2000.
la phénoménologie, PUF, Paris, 2004, p. 166-188; 65. Gilles DELEUZE, “De Sacher-Masoch au ma-
curso sobre Rousseau: 27 paginas datiiografadas; sochisme ”, Arguments, n. 21, p. 44.
66. Gilles DELEUZE, SM, p. 30. 99. Ibid,, p. 137.
67. Ibid., p. 57. Nietzsche, Bergson, Espinosa: urna Um dos très mestres
68. Ibid., p, 99.
106 François Dosse da suspeita:
69. Ibid., p. 51. triade para urna filosofia vitalista Nietzsche
70. Gilles DELEUZE, La Philosophie critique de Kant, PUF,
Paris, 1963 (doravante citado PCK). Nietzsche tem um papel fundamental para Deleuze
71. Gilles Deleuze, entrevista, afîrmaçôes coli- gidas por Jean- na formalizaqao de suas pròprias posigòes filosóficas.
Noël VUARNET, Les Lettres françaises, 28 de fevereiro-5 Ele aplica a Nietzsche o mesmo procedimento de leitura
de março de 1968; reproduzida em 1D, p. 192. que para os outros. Trata-se em primeiro lugar de reparar
72. Gilles DELEUZE, “L’idée de genèse dans l’esthétique de um erro, o da interpretagao do eterno retorno do mesmo,
Kant”, Revue d’esthétique, n. 2, abril-iunho de 1963; conforme urna lei ciclica, Em segundo lugar, Deleuze
reproduzido em ÏD, p. 79-101, contribui com outros para tirar do esquecimento a
73. Gilles DELEUZE, “Sur quatre formules poétiques que faculdade critica, corrosiva, progressista de um
pourraient résumer la philosophie kantienne”, Philosophie, n. pensamento nietzschiano que foi utilizado até entào
9, inverno de 1986; reproduzido em CC, p. 40-79. essen- cialmente em urna perspectiva reacionária e
74. Gilles DELEUZE, PCK, p. 23. elitista. Por firn, ele extrairà de Nietzsche seu conceito
75. Ibid., p. 54. fundamental da diferenga como resultado da libertagào
76. Gilles DELEUZE, DR, p. 176-177. da vontade de potencia.
77. Guillaume Sibertin-Blanc, entrevista com o autor, Como mostrou bem o especialista do mundo
78. Vincent DESCOMBES, Le Même et l’Autre, Minuit, Paris, germánico Jacques Le Rider, a recepgào de Nietzsche na
1979, p. 178. Franga, nos anos que antecede- ram a guerra, foi
79. Manda ANTONIQLI, Deleuze et l'histoire de la philosophie, essencialmente muito conservadora. No entanto, é bem
op. cit., p. 87,
80. jean-Clet MARTIN, Variations. La philosophie de Gilles diferente durante a Segunda Guerra Mundial, com o
Deleuze, Payot, Paris, 1993, p. 34. pequeño círculo que se constituí em torno de Marcel
81. Gilles DELEUZE, LS, p. 125. More e que, como já mencionamos, é frequentado pelo
82. Gilles DELEUZE, Proust et les signes, PUF, Paris, 1964 jovem Deleuze. -Encontram-se ali Georges Bataille, Jean
(doravante citado PS). Wahl Jean Hyppolite, que faráo urna leitura bem
83. Sobre a unidade de projeto de prospecçâo da “imagem do diferente de Nietzsche. É preciso considerar também a
pensamento” que serve de fio condutor para Nietzsche e a influencia de Can- guilhem, cuja tese defendida em
filosofia, Proust e os signos e Diferença e repetiçâo, ver 1943, Ensaio sobre Alguns Problemas acerca do
Arnaud BOUAMCHE, Gilles Deleuze, une introduction, op. Normal e do Patológico, repele qualquer visáo
cit., p. 45-52. evolucionista de um progresso continuo da razào e opoe
84. Gilles DELEUZE, PS, ed. 1970, p. 7, a eia um ponto de vista resolutamente nietzschiano,
85. Ibid., p. 21. Deleuze encontra ali, antes de tudo, urna refor- mulaçâo
86. Ibid., p. 9. da vontade de potencia como “ñor- matividade vital”, da
87. Ibid., p. 19. vida como ato de criaçâo ou de instituiçâo de novas
88. Ibid., p. 186. normas.
89. Ibid., p. 190. Em 1946, surge a Sociedade Francesa de Es- tudos
90. Robert MAUZI, Critique, n. 225, fevereiro de 1966, p. 161. Nietzschianos, que dura até 1965 e tem como objetivo
91. Jean-Ctaude Dumoncel, entrevista com o autor. "contribuir, sem nenhum designio político nem intençâo
92. jean-Claude DUMONCEL, Le Symbole d'Hécate. de proselitismo, para que se conheça melhor o
Philosophie deleuzienne et roman proustien, ed. HYX, pensamento de Nietzsche, reconduzido do plano da
Orléans, 1996, p. 60. propaganda tendenciosa para o de urna compreensiva
93. Gilles DELEUZE, PS, p. 69. obje- tividade e de urna crítica esclarecida”1, Deleuze
94. Ibid., p. 71. está entre os membros mais ativos dessa sociedade
95. Ibid., p. 73. presidida por Jean Wahl, que consagra dois de seus
96. Ver Dork ZABUNYAK Gilles Deleuze. Voir, parler, penser cursos a Nietzsche, entre 1958 e 1959 e 1960 e 1961 3,
au risque du cinéma, Presse de la Sorbonne nouvelle, Paris, Ao mesmo tempo em que se em- preende um importante
2006. trabalho de traduçâo, de ediçâo e de interpretaçao nesses
97. Gilles Deleuze, entrevista com Jean-Noël Vuarnet, Les anos 1950, a sociedade publica um obra antològica por
Lettres françaises, 28 de fevereiro-5 de março de 1968; oca- siâo do cinquentenário da morte do filósofo em
reproduzida em ID, p. 193.
98. Gilles DELEUZE, PS, p. 184, nota 1. 19503, Além disso, inicia-se um enorme trabalho
de ediçâo das obras * N. de R. X: O termo usado acjui é séméiologie e, embora aprésente a
completas de Nietzsche, sob a mesma definipao de “semiología”, indica mais específicamente
su^pertenga á área médica que trata dos sin ais clínicos e doif sintonías
dupla responsabiîidade de das doengas.
Gilles Deleuze e de Maurice Dando ênfase à força afirmativa, ao “sim”, Deleuze
de Gandillac. Assim, o livro apresenta Nietzsche como o anti-He- gel, o antidialético.
de Deleuze, Nietzsche e a Filosofía, Canguilhem já havia desestabilizado fortemente o
publicado em 1962, inscreve- continuismo hegeliano. Deleuze prossegue e radicaliza
se como extensâo de um sua crítica a Hegel questionando seu conceito de
interesse rea- bilitado e de negaçâo e de contradiçâo que coloca a filosofía em um
urna renovaçâo dos estudos impasse, pois eia permanece fundamentalmente
nietzs- chianos1. O leitor é prisioneira de urna identidade primeira cuja negaçâo é
logo atraído pela novidade da apenas a repetiçao. Com isso, Deleuze lança o conceito
proposiçâo e do olhar que que será a pròpria es- séncia de sua tese e o fio condutor
resulta dali. de todo seu pensamento; o da diferença. Urna filosofía
Deleuze nâo se contentou em exumar com Nietzsche da vontade faz valer a afirmaçao de sua diferença, e é
um maciço filosófico recoberto por camadas sucessivas esse “diferencial” que Deleuze procura valorizar ñas
de comentáríos que te- riam pervertido sua mensagem. teses de Nietzsche, À cultura do res- sentimento e da
Logo de inicio, eie dà um tom polemico à sua obra culpabílidade do cristianismo, Nietzsche opôe o
contra a dialética hegeliana para realçar a força de individuo soberano, liberto da moral dos costumes, “o
desestabilizaçâo das teses de Nietzsche dirigidas contra homem que pode prometer”. Nietzsche ve nisso urna
toda a historia da filosofìa. A filosofìa de Nietzsche, que forma superior de responsabiîidade. Sobre esse ponto,
Paul Ricceur qualificarâ de “filosofìa da suspeita”, opera como de hábito, Deleuze faz o que chama de um “filho
a “golpes de martelo" para desenvolver urna teoria dos por trás” do filósofo e transforma essa liçâo em urna
conceitos de sentido e de valor, que relega ao segundo exaltaçâo do homem liberto da moral e, por isso,
plano a questào da verdade. Nietzsche preconiza um irresponsável: ‘X irrespon- sabilidade, o mais nobre e o
procedimento específico que chama de “genealógico”, mais belo segredo de Nietzsche”8,
que nâo tem nada a ver com um tribunal de valores: Ao polo da reatividade se opôe o da ativida- de, da
“Genealogia significa 5ao mesmo tempo valor da origem vontade de potencia. Ele pode levar até a figura do
e origem dos valores” . A esse título, Nietzsche se opôe super-homem que está no Livro IV de Zaratustra.
a qual- quer absolutizaçâo dos valores. O sentido da Contado, também aqui, as ins- trumentalizaçoes
fenomenalidade é sempre os ligar aos diversos pontos de totalitárias ou simplesmente conservadoras das teses de
vista que os comportarti, às forças ativas que constituem Nietzsche repou- sam em um contrassenso na
sua dinàmica. É esse jogo de forças que a filosofìa deve interpretaçâo da significaçâo do super-homem que em
reencontrar na- quiio que Deleuze chama de Nietzsche nâo está ligado absolutamente à exaltaçâo de
“sintomatologia"” ou de “semiologia”6. Essa reavaliaçao um poder sobre outro. O super-homem nao procura tanto
do sentido nâo deve conduzir a um refugio na hermenéu- converter a reaçâo em açâo, mas sim transmutar a
tica para reencontrar um suposto sentido original negaçâo em afirmaçâo. A afirmaçao, para Nietzsche, é o
perdido, encoberto ou rasurado. O sentido, em urna pròprio ser em direçâo ao qual a humanidade deve
acepçâo nietzschiana, nâo provém de um reservatório já caminhar. Essa leitura de Nietzsche parece encontrar sua
existente, mas de um efeito produzido cujas leis de fonte em Espinosa, o outro grande inspirador da filosofia
produçâo é preciso des- cobrir. A historia de um vitalista de Deleuze.
fenòmeno é antes de tudo a historia das forças que se Quanto ao eterno retorno, a interpretaçâo feita por
apoderam dele e que modificam sua significaçâo. Deleuze rompe totalmente com o sentido que era
atribuido até entâo à doutrina
Gilles Deleuze & Félix Guattari 108

nietzschiana. Contra a ideia de que tudo o que Deleuze a Hegel sâo tâo superficiais quanto as da
se produz retorna segundo movimientos cíclicos, corren- te marxista, ao mesmo tempo em que
Deleuze vê no eterno retorno a resultante de urna admite a necessidade de um olhar crítico sobre
seleçâo dos fortes, urna eliminaçâo dos fracos: Hegel. Em compensaçâo, Wahl saúda o final da
“Ela faz do querer urna coisa intei- ra... ela faz do obra consagrada a uma “nova imagem do pensa-
querer9 urna criaçâo, ele efetua a equaçâo querer = mento” e que prolonga a obra nietzschiana por sua
criar” . Apenas as diferenças voltam, e por isso o insistencia nas forças que devem se apoderar do
retomo nao é do mesmo, mas do outro. pensamento para torná-lo crítico e cria- tivo.
Ele extrai da leitura de Nietzsche urna nova Contudo, a interpretaçâo de Deleuze comporta
tarefa da filosofía, que nao deve mais se contentar riscos, segundo Wahl: “Estamos diante cíe dois
em ser o reflexo de seu tempo, mas sim se perigos nessa interpretaçâo, por mais intéressante e
aventurar ñas vias da radicalizaçâo da crítica profunda que ela seja, ou, pelo menos, diante de
contra seu tempo para Inzer surgir daí, pelo caráter duas dificuldades: a dificul- dade que consiste em
intempestivo, inatual de suas in- dagaçoes, as eclipsar completamente o negativo e outra
forças criativas. O método que deve prevalecer é o dificuldade que decorreria do fato de que o
da “dramatizaçao”, Ele consiste em deslocar o positivo corre o risco12de nâo mais aparecer o tanto
modo de questiona- mento, passando da pergunta quanto seria preciso” .
tradicional da metafísica - “O que é?” - a outra Pouco depoís da publicaçâo do livro, Deleuze
indagaçao - "Quem?” - para restituir as forças em organiza um coloquio sobre Nietzsche, realizado
açâo no fenómeno estudado. Portanto, o conceito na abadía de Royaumont, de 4 a 8 de julho de
deve ser relacionado a um querer na perspectiva de 1964. Ele submete a lista13 de convidados ajean
dar conta do universo concreto da vida. A filosofía Wahl e a Martial Guéroult . Como assinala David
se afasia, entâo, de sua inspiraçâo platónica, Lapoujade, essa será a única manifestaçâo coletiva
abandonando a questáo da esséncia - o que é o organizada por Deleuze, O fato de ele conseguir
certo? O que é belo? - que induz urna concepçâo superar sua aversao por coloquios mostra a
dualista, opondo a esséncia do fenómeno à sua importúnela que atribuí à renovaçâo em curso nos
aparência. Esse “método de dra- matizaçâo” estados nietzschia- nos. É nesse coloquio que
tematizado por Deleuze para além das teses de Michel Foucault pôe em discussao sua
Nietzsche, em 1967i0, abre para urna possível aproximaçâo entre os très “mestres da suspeitá’,
tipología que interroga as forças do ponto de vista que sâo Nietzsche, Freud e Marx1'1.
de suas qualidades ativas e reativas. Associa-se a Como é de praxe, o organizador Deieu- ze
uma sintomatologia que interpreta os fenómenos a deve apresentar uma conclusao 1 sintética para
partir das forças que os produzem, e a uma extrair os ensinamentos essenciais ”. Ele enfatiza
genealogía que ava- lia as forças em funçâo de sua que a ediçâo crítica da obra de Nietzsche aínda tem
vontade de potencia, ou seja, urna filosofía que enormes lacunas, o que dá livre curso a todos os
cumpre uma tripla funçâo: artística graças à sua contrassensos possíveis, e se pergunta, por outro
tipología, clínica graças à sua sintomatologia e lado, em que medida a loucura que atinge
legislativa graças à sua genealogía. Nietzsche no fim da vida deve fazer parte ou nao
Jean Wahl, responsável pelo retorno em favor de sua obra filosófica. A verdadeíra razáo
de Nietzsche, escreve uma longa resenha da obra invocada por Deleuze para explicar a parte de
de Deleuze na Revue de Métaphysique et de la opacidade na leitura do corpo nietzschiano é de
Morale-, ele reconhece ali um grande livra que se ordem metodològica. Está ligada ao fato de que em
soma à linhagem das melhores exegeses desse Nietzsche o sentido nao é unívoco, nao é tributàrio
pensador. Contudo, em face da lei- tura qualificada daquìlo que designa: “Toda interpretagáo já é de
de “original" feita por Deleuze, Wahl toma alguma urna interpretado, ao infinito,., A lógica é substi-
distancia do tom polémico dirigido a Hegel,!i que tuida por urna topologia e urna tipologia”16. A
ele atribuí a “uma espécie de ressentimento” , pois nogao de valor transforma a busca da verdade:
acha que Nietzsche nao está tao distante assim de após a separagao do verdadeiro e do falso, é
Hegel sob vários aspectos. Wahl considera que as preciso sair em busca de urna instancia mais
páginas consagradas à dialética figuram entre as profunda, a da vontade de potència,
melhores, mas diz que as críticas dirigidas por
Em 1965, Deleuze consagra a Nietzsche urna nova efervescencia, ocorre em julho de 1972, por ocasiao de
publicagào dentro de urna colegào de iniciagào à urna década deDeleuze
Gfíies Cerisy-la-Salle. Todos109aqueles que
& Félix Guattari
filosofìa"'. Eie mostra entào a unidade impressionante percorrer am a obra de Nietzsche se reuniram ali2:> para
em Nietzsche entre o pensamento e a vida em urna expor suas interpre- tagòes e debatè-las . A
dinàmica de afìrmagao de sua singularidade. Essa comunìcagao de Deleuze intitula-se “Pensamento
unidade existencial tem suas raizes na tradigao pré-so- nòmade”26. Eie tem apenas 47 anos na época, mas
orática, mas constituí sobretodo um enorme potencial de comega sua exposigáo talando de urna defasagem de
renovagao de toda a historia da filosofia. Eia prefigura o gera- gáo; “O que um jovem descobre atuaímente em
advir do pensamento por seu estilo inovador que Nietzsche nao é27 seguramente o que minha ge- ragáo
adiciona ao corpo clàssico de textos filosóficos os descobriu nele’’ . Estamos entáo no insediato pós-68,
poemas e aforismos que se tornaram instrumentos depois do encontró com Guattari. O recurso a Nietzsche
privilegiados da interpretagáo. assumíu um contorno bastante político, como arma da
Dois anos depois, Deleuze e Foucault re- digem crítica mais radical, confirmando a virada em curso ao
juntos urna introdugào geral à publica- gào das Obras longo de toda a década de 1960 de um pensamento
Completas de Nietzsche18 Eles inscrevem sua edigao na marcado à direita para a extrema esquerda, grapas
continuidade do traballio de exploragào sistemática dos principalmente à leitura de Deleuze. Em sua
arquivos e de sua publicagào na ordem cronológica dis- intervengao, Deleuze toma distancia da maneira como
posta pelos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Foucault havia destacado em Royaumont o alvorecer de
Manifestam também sua vontade de corrigir, por um nossa modernida- de em urna tríade reunindo Nietzsche,
retomo aos textos, as defor- magóes e numerosas Marx e Freud. Segundo Deleuze, diferentemente do
omissòes praticadas pela irma de Nietzsche, Elisabeth, freudismo e do marxismo, Nietzsche constituí urna
que se erigiu em herdeira testamenta! multo autoritària e contracultura irredutível a qualquer recuperando
abonadora da imagem de um Nietzsche antissemi- ta e institucional: 38“Nietzsche faz urna tentativa de
precursor 19do nazismo: “0 anti-Nietzsche por decodificapao” . Em contrapartida, Deleuze ve urna
excelencia” Por esse “retorno a...", Deleuze e Foucault aproximapáo possível de Nietzsche com Kafka.
possìbilitam ler um novo Nietzsche: “Os pensadores Nietzsche encarna urna possível filosofìa contra a
‘malditos se reconhecem do exterior em très tragos: urna instituipáo filosófica, sempre em relapáo com um de
obra brutalmente interrompida, parentes abusivos que fora, como mostrou Blanchot. A necessidade de separar
interfe- rem nas pubìicagòes postumas, um livro-mis- Nietzsche de sua ganga deformadora e fascis- tizante foi
tério, algo como ‘o20livro’ cujos segredos a gente nunca suprida pela revista Acéphale e pelos trabalhos de Jean
deixa de pressentir” Wahl, Georges Bataille e Pierre Klossowski. No inicio
Na expiicagào que dà quando da edigao das Obras dos anos de 1970, é importante, segundo Deleuze,
Completas, Deleuze atribui boa parte desse retorno a sobretudo es- tabelecer urna relayáo entre os aforismos
Nietzsche à redescoberta do intempestivo e, portanto, da niet- zschianos e urna exterioridade que Ihe dá seu
historia como res- surgimento do novo, do .inesperado21- sentido libertador, O que é preciso resgatar é a
estamos nos meses que precederò o Maio de 1968 , intensidade propria desses “estados vividos”, o
Nietzsche é apresentado por Deleuze corno exemplo nomadismo que isso induz e seu humor: ‘Aqueles que
daquilo que a filosofia contemporànea deve cumprir em leem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir com
sua critica radicai, em sua procura de outras formas aìém frequència e ás vezes morrer de rir, é como se nao
do “Ego” ou do “Eu” e em sua busca de formas de íessem Nietzsche”29.
individua- lizagòes interpessoais ou de singularidades Máquina de guerra em favor do nomadismo e contra
pré-individuais, Para mostrar o caminho des- sa procura, todas as formas de recodificayáo, o nietzschianismo
Deleuze evoca urna linhagem de filósofos: “É Lucrecio, torna-se urna vía possível de libertapao dos servilismos,
é Espinosa, é Nietzsche, urna linhagem prodigiosa em dos confmamen- tos burocráticos, urna verdadeira escola
filosofia, urna linhagem estilhagada, explosiva, da vida, Nesses anos pós-68, pode-se falar de um
totalmente vulcanica"2". “momento Nietzsche”, no qual sua obra conhe- ce um
O inicio dos anos de 1970 é um momento verdadeiro sucesso junto a um número enorme de
particularmente intenso da recepgao de Nietzsche na leitores30 Esse impulso encontra em A Genealogia da
Franga. As pubìicagòes se tornam mais numerosas. Moral um ponto de apoio, sobretudo quando Nietzsche
Pierre Klossowski23 dedica seu ensaio sobre Nietzsche “a evoca os fundadores de civilizagóes origináis que
Gilles Deleuze” e, sobretudo, toda urna geragao “chegam como o destino, sem causa, sem razáo, sem
oferece novas lei- turas de Nietzsche2'1. 0 apogeu desse considerayáo, sem pretexto, aparecem com a rapidez de
momento, verdadeiro ponto de cristaìizagao de toda essa um relámpago, terríveis demais, súbitos demais,
convincentes demais, outros demais para ser até mesmo CNU1 a partir de 1967, As relaçôes entre os dois homens
objeto de ódio”3i, Deleuze encontra ali, com Nietzsche, logo se deteriorano. Quando Deleuze chega a Lyon, é
urna fonte de hispir ay áo essencial para sua propria te- inicialmente acolhido de forma calorosa por Dagognet,
mática 110
da “nomadoiogia”
François Dosse33
. Já presentes antes de 1968 que deseja integrà~lo à vida da uni- versidade. Contudo,
em Deleuze, as análises em termos de nomadismo Deleuze se mantém muito distante, e mesmo
assumiráo com Guattari urna di- mensáo revolucionária, desdenhoso, em relaçâo a eie. Disso resulta um profundo
como assinala Manola Anton 33i olí33, dimensáo que rancor que degenera em eonflito aberto por causa de
continuará ganhan- do amplitude . Maldiney, firmemente defendido por Deleuze.
Entre seus colegas, Deleuze convive também com
urna celebridade académica no campo da historia da
Bergson: o impulso vital filosofìa na pessoa de Geneviève Rodis-Lewis, que dà
Assistente na Sorbonne de 1957 a 1960, Deleuze aula sobre Pla- tào, Malebranche e sobretudo Descartes,
pede licença do CNRS. Acaba conse- guindo a licença do qual é a grande especialista. Quando estoura Maio de
entre 1960 e 1964, o que Ihe permite, como vimos, 68, Rodis-Lewis nao compreende por que está sendo
orquestrar seu retorno a um Nietzsche revisitado. De contestada, assim como os outros, e afirma: “Eu ensino
1964 a 51969, é encarregado de ensino na universidade de Piatáo!”. Deleuze, ao contràrio, se regozija com a
Lyon'* . Nao se pode dizer que ele tenha ñcado contestaçâo e zomba da reaçâo de medo dos colegas,
fascinado com essa nomeaçâo, em que Ihe dao um posto principalmente de Rodis-Lewis, cujos trabalhos versara
de professor de moral: “Eis-.me em Lyon, lyonizado, agora sobre os discípulos de Descartes, os chamados de
instalado, moralizado, professor de moral, etc. Fiquei “pequeños cartesianos”. A urna pergunta de seu amigo
muito feliz de vé-los, o senhor mesmo e a senhora Wahl, Alain Roger, que quer saber como estao as coisas em
antes de minha partida"36. Ele participa com humor ao Lyon na efervescencia de Maio de 1968, se nao há
seu amigo François Châtelet os tormentos que causa a violencia demais, Deleuze Ihe responde que sim, "os
preparaçâo de sua tese: ‘Ah! Minha tese é urna sopa estudantes sao muito violentos: eles desfilam nas ruas
onde tudo boia (o3 melhor deve estar no fundo, mas é o contra a senhora Rodis-Lewis carre- gando um 0cartaz
que menos se vé)” '. onde está escrito ‘Basta de pequeños cartesianos’”' .
Ele foi escolhido depois que o colegiado de Em Lyon, Deleuze faz amizade com a filósofa
professores descartou dois concorrentes peri- gosos, mas Jeannette Colombel, professora de classe preparatòria,
conhecidos demais por suas opçôes ideológicas: Jules intelectual comunista que se situa na linha de Sartre. Os
Vuillemin, de um lado, e Henri Lefebvre, de outro: dois casais, Fanny e Gilles Deleuze e Jeannette
“Deleuze era jovem, sem rótulo, inclassiñcável38apesar do Colombel e seu marido, usufruem da vida cultural
diabolismo de Nietzsche que o ensoiarava” Deleuze ìyonesa, ritmada pelos espetáculos de Roger Planchón e
encontra no departamento de filosofía um fenome- de Michel Auclair no Thèatre de îa Cité. Vao
nologista bastante conhecido, Henri Maldiney: “Tudo frequentemente ao cinema, e correm para ver os filmes
começou com urna conferencia sobre a razao em que os de Jean-Luc Godard logo que lan- çados, Pierrot le Fou,
colegas ficaram um pouco deslocados, mas Maldiney A Chinesa: ‘Assisti n essa época a quase todos os filmes
tratou do seu tema, o que, aliás, marcou o inicio, de urna citados em L'Image-temps. Ah! Monica Vitti e
ami zade entre os dois homens”39. Deleuze é muito sen- Antonioni,42 os primeiros Fellini, os filmes de
sível ao fato de que a notoriedade intelectual de Bergman” .
Maldiney nao se traduz em urna posiçâo institucional Chris Younès, que teve Deleuze como professor
sólida. Na época, ele tinha apenas o estatuto precàrio de durante quatro anos em Lyon, recorda de seu uso da
professor substituto, apesar da repercussáo internacional historia da filosofìa, bem diferente do que fazìam seus
de seus trabalhos, e era marginalizado dentro do colegas: ‘‘Com eie, a gente vivia de verdade Nietzsche,
departamento de filosofìa: "Deleuze defendía Maldiney Espinosa, Bergson, Leibniz”43. Entre 1964 e 1969,
contra as autoridades università- rías”'10, confirma Chris Deleuze se emancipa progressivamente da historia
Younès. Eles tinham na época urna grande cumplicidade, clàssica da filosofìa e, embora insista sempre em seus
e Maldiney conseguiti inclusive arrastar o pobre autores prediletos em aula, já desen- volve temáticas
Deleuze, que mal respirava, em excursôes alpinas! mais pessoais. Em particular, atribui enorme
Já François Dagognet, ex-aluno de Cangui- Ihem, importância à noçâo de acon- tecimento como
ocupa urna postçâo institucional sólida no departamento, surgimento do inesperado, com a necessidade, que ele
como também no ámbito nacional, como presidente do retém do estoicismo, de se mostrar digno dele e de
1 K de X: ConseitNatìonaì des Universités.
conseguir encarná-lo. Fascinado por toda urna reflexâo séncia do que eie nos transmitia em Lyon 47e que assumirá
em torno da noçâo de acontecimento, ao longo desses um contorno umDeleuze
Gfíies pouco diferente depois'111. Seus alunos
& Félix Guattari
anos, “Deleuze falava o tempo todo de Joë Bousquet”44. lyoneses estào estupefatos com a maneira bastante
A reediçâo pela Gallimard de Traduit du Silence^ em escrupulosa de Deleuze se manter muito próximo dos
19671he dà a opor- tunidade de inverter 46a posiçâo textos que evoca, de penetrar no mais profundo de sua
temporal da relaçâo do homem com sua fenda lògica pròpria. Ainda que Deleuze permaneça um pouco
Outra grande temática desenvolvida por Deleuze em à parte de seus colegas de Lyon, é urna autoridade
Lyon, e que vem de seu trabaìho sobre Nietzsche, é a do incontestável e incontestada em face do enorme público
eterno retorno corno retorno do diferente, o que implica que acorre às suas aulas. Em propedéutica, ele se dirige
urna valori- zaçâo da afirmaçâo e urna critica da lògica a duas
do ressentimento ou da negatividade: “Essa é a es-
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 112

centenas cíe estudantes reunidos em um anfi- diferença como absoluto, que tem sua fonte nas
teatro e, quando toma a palavra, “é carismatico 48a posiçôes bergsonianas. De fato, segundo Deleuze,
tal ponto que se ouvem as moscas voando” Bergson desloca o questiona- mento clàssico e sem
Deleuze já atraÉ numerosos estudantes vindos de resposta possível do tipo “por que alguma coisa ao
outras especializares e, como de costume, dá a invés de nada?” para "por que tal coisa e nâo tal
impressâo de improvisar as aulas que, na verdade, outra?”, o que remete à questâo da diferença, de
foram cuidadosamente preparadas, a ponto de se uma verdadeira metafísica da diferença: “Isso
dirigir a seu público sem recorrer a anotaçôes: significa que o ser é a diferença, e nâo o imutável
“Ele nos mantinha em suspense com um evidente ou o indiferente, nem a contradîçâo que nada mais
talento de narrador, ao mesiti o tempo multo é que um falso movimentò04, A saída possível da
próximo e muito distante, multo dândi. Com ele aporia que insiste em opor de maneira binària o
nâo tinha moleza, nem favoritismo”49. uno e o multiplo é fazer valer a diferença enquanto
Esse período lyonês de Deleuze é marcado, diferença. Bergson tem uma preocu- paçâo
antes da publicaçâo de sua tese, pelo îan- çamento particular em operar as cesuras certas, em
de sua obra sobre o bergsonismo;’°. Esse ensaio distinguir bem nas realidades híbridas da matèria
resulta de uma longa gestaçâo. Todos se recordam os elementos que as compôem. Nesse aspecto,
que Bergson foi um autor de referência para ele apoia-se em Platâo ao comparar o filósofo a um
nos anos 1940, enquan- to seus companhelros bom cozinheiro que faz os cortes seguindo as
François Châtelet ou Olivier Revault d’Allones articulaçôes naturais, A intuiçao é o instrumento
manifestavam sérias reservas em relaçâo a esse do filósofo, seu método de di- visâo, de construçâo
filósofo, considerado excessivamente idealista. Na de dualismos pertinentes que nâo cindem tanto as
Libertaçâo e até os anos 1950, quando reinam coisas, mas suas tendencias, suas inscriçôes
incontes- táveis os “3 H” (Hegel, HussrI, mutáveis na duraçâo conforme -as linhas de
Heidegger), nâo há realmente lugar para Bergson. diferenciaçâo da materia. É, portante, na realizaçâo
Mesmo as- sim, Deleuze continua a trilhar seu da virtualldade que está o impulso vital. Deleuze
caminho com urna fìdeUdade impressionante. Em encontrava ainda em Bergson esse primado da
1956, Merleau-Ponty Ihe oferece a oportunidade diferença, que será inclusive o tema de sua tese: “0
de escrever o capítulo “Bergson” na obra que diri- impulso vital 4é a diferença na medida em que eia
ge, Les Philosophes Célèbres31. passa ao ato’° .
Nessa apresentaçâo, Deleuze começa por Entre a virtualldade e sua atualizaçâo, o que
afirmar que se reconhece um grande filósofo por tiga na duraçâo passa pela memòria. É por eia que
sua capacidade de inventar conceítos. No caso de o passado se prolonga no presente. A memoria
Bergson, as noçôes de “duraçâo” e de “memòria”, preserva o que foi e suas potencialidades que
de “impulso vital” ou de “intuiçâo” estâo sobrevivem no atual. Deleuze enfatiza essa
indissoluvel mente ligados à sua contri- buiçâo. contribuiçâo essencial de Bergson que desalinha a
Filòsofo que tem como principal imperativo concepçâo tradicional do tempo e rompe com a
colocar claramente o problema que pretende lógica simples da sucessâo de momentos separados
resolver, Bergson sugere um método fecundo para uns dos outros; “O passado nâo se consti-
descartar os falsos problemas graças à sua doutrina Luì depois de ter sido presente, ele coexiste consi-
da intuiçao. Deleuze discerne em Bergson duas go como presente™. A valorizagáo do virtual no
características da intuiçao. Bergson torna possível atuaì, que faz coexistir em um mesmo momento
a apariçâo da coisa, e, ao mesmo tempo, eia se passado e presente, conduz Bergson a preconizar o
apresenta como um retorno. A maior implicaçao impulso criador, o abandono dos hábitos; “Um
de uma tal concepçâo é a superaçâo do dualismo tema lirico percorre toda a obra de Bergson: um
entre mundo sensível e mundo inteìigivel que, verdadeiro canto em louvor do novo, do im-
segundo Bergson, fazem parte de um mesmo previsível, da inven gào, da liberdade’”6.
movimento: "A distinçâo de dois mundos foi Esse ano de 1956 é decididamente muito
substituida portanto por Bergson pela distìn- çâo bergsoniano para Deleuze. Além de sua contri-
de dois movimentos”';>*\ buigào à obra dirigida por Merleau-Ponty, eie
Nesse texto de 1956, já estavam presentes os publica um longo estudo, que já fora objeto de
prolegómenos da futura tese de Deleuze sobre a expo si gao em 1954 perante a Associagáo dos
Amigos de Bergson, sobre “a concepgào da diferenga recorrer à intuiçâo como método: “É papel da intuiçâo
em Bergson”'. Deleuze extrai Bergson da ganga do decompor os mistos, encontrar os puros’”66.
psicologismo em que se acredita- va poder encerrá-lo e Quando Deleuze publica em 1966 O Berg-
insiste na dimensao ontologica da obra. Sobre esse sonisrno>7, éGilles
encarregado de um curso na uni- versidade
Deleuze & Félix Guattari 113

ponto, essencial, eie se apoia na leitura que Hyppolite já de Lyon. O pròprio título de sua obra se reveste de um
havia feito de Bergson, que era8 confrontado com Hegel tom provocativo, em ruptura com a doxa em vigor sobre
sobre a questao da diferenga” . O artigo temati za essa Bergson. O que prevalece a propósito de Bergson é a
conexào essencial entre a vida e o principio de interpre- taçâo ultracrítica, panfletária, feita antes da
diferenciagào: "A vida é o processo da diferenga” 9. Seja guerra por Georges Politzer. Com o pseudónimo
na ordem vegetai, animai ou humana, os processos de anticlerical de François Arouet, Georges Politzer
diferenciagào es- tào no cerne da emergencia da publicou em681929 um livro bastante corrosivo contra o
multiplicidade das especies. Ainda que a perspectiva seja bergsonismo . Militante comunista fuzilado em Mont-
es- sencialmente monista, e nao dualista, Bergson Valérien, Politzer torna-se urna celebridade no pós-
distingue urna especifìcidade da historia propriamente guerra, e sua concepçâo do bergsonismo domina a maior
humana, ligada à dimensao da conscìència: “Se a parte dos melos intelectuaìs. Politzer nâo somente reduz
diferenga mesma é biológica, a conscìència da diferenga o bergsonismo a urna forma de psicologismo
é histórica”60. Bergson também representa inlclalmente ultrapassado, como faz dele a expressâo de urna corrente
urna alternativa à dialética hegeliana, que valoriza a ideológica da burguesía: “Toda sua vida [de Bergson],
negagào e a contradigào, ao passo que eie defende urna as- sim corno as indicaçôes que deu de sua moral, que
concepgào da diferenga sem negatividade. Com isso, aínda nao nasceu e nào nascerà jamais, nos permitem
permite sair do finalismo causai, de urna teleologia compreender que 00ele se entre- gou totalmente aos
histórica, para ressaltar os jogos de series temporaìs valores burgueses" . Segundo Régis Jolivet, Bergson era
imbricadas e que abrem para um devir marcado pela considerado “cao morto” pela vanguarda filosófica dos
indeterminagáo. Esta nao remete a urna nogáo frouxa e anos 1940 e 1950. Portanto, ainda nos anos de 1960, o
vaga. Concluindo esse intenso estudo, Deleuze escreve: bergsonismo era suspeito de ser o tapa-sexo de urna
“0 bergsonismo é urna filosofìa da diferenga, e de burguesía revanchista. 0 fato de Deleuze assumir o
realizagao da diferenga: hà 61a diferenga em pessoa, e esta “ìsmo” de bergsonismo nesse contexto representa um
se realiza como novidade” , apreciagáo que poderia se extraordinàrio golpe de força: “Com Deleuze, é a
aplicar muito beni a eie também62. operapào de retomo do bergsonismo de urna ideologia
Como assìnala Anne Sauvagnargues, “Bergson para urna doutrina filosófica. Ao mesmo tempo, chamar
orienta Deleuze para urna filosofìa da diferenga, como seu livro de 0 Bergsonismo é também um gesto de
operagao da vida”63. Deleuze encontra justamente em ri deboche aos próprios bergsonia- nos, estigmatizando-os
Evolugao Criadora a realizagao desse programa: “0 por terem constituido urna espécie de religiào. Hà ali
impulso vital é a duraçâo que se diferencia”61*. Deleuze urna jogada de genio já no título na obra”70.
nâo se limita a urna simples repetigáo da temática Desde as primeiras linhas, Deleuze investe contra o
bergsonìana, mas opera um deslocamento decisivo do lugar comum segundo o qual a infcui- çâo, em Bergson,
vitalismo ao diferencìalismo. Em seu curso de I960, ele estaría ligada a urna forma de espontaneidade
aproxima Freud e Bergson, que assumem a mesma infrarreflexiva. Ao contràrio, ele ve ali o pròprio método
postura ao atribuir a liberdade à novidade e a memòria a do bergsonismo e “um dos métodos mais elaborados da
urna fun- çâo voltada para o futuro: “Mais passado = filosofìa'71. Deleuze se apropria dessa doutrina. Eia exige
mais futuro e, portanto, liberdade. A memòria é sempre a maior precisao, e sua primeira regra, que Deleuze nao
urna contraçâo do passado no presente”6”. Para Deleuze, cansa de evocar como a tarefa mesma da filosofìa, é
nâo se trata de recair em urna forma de dualismo, mas de colocar bem os problemas, o que ele já havia dito em seu
ressaltar as linhas da diferenga segundo os movimentos livro sobre Hume. Com Bergson, avança-se mais um
de diferenciagào, Ao dualismo clàssico na tra- digao passo ao denunciar os falsos problemas. O ver- dadeiro e
filosòfica entre o sujeifco da representa- çâo e o objeto o falso devem ser postos à prova nào mais pelo mero
representado, que a fenomenologia retoma por sua conta, exame das soluçoes apresen- tadas, mas no proprio nivel
Bergson e depois Deleuze opôem outra vìa, monista, das questoes levantadas. Assim, colocar o problema
segundo a qual a conscìència nâo seria “consciencia de certo nâo depende da capacidade de desvendar o que é,
qualquer coisa”, pois a consciencia é qualquer coisa. mas da capacidade de inventar.
Quanto à experiencia, eia é feita apenas de mistos nos Urna das regras básicas de Bergson decorre do
quais o sujeìto evoluì, o que implica da parte do filósofo imperativo de discernimento das verdaderas artieulaçôes
entre categorías diferentes por natureza. Desse ponto de
vista, Bergson utilizará o dualismo, e Deleuze farà o criaçao”':>. Essa via de escape dos fluxos criativos da
mesmo com frequência, nâo para fazer prevalecer um vida que Deleuze desvenda em Bergson constituí um
sistema114
filosófico binàrio, pois, ao contràrio, a doutrina veio que eie continuará aprofundando ao longo de sua
de Bergson,François
assimDosse
como a de Deleuze, permanece obra. Para reinicìar o movimento, para desio car as
resolutamente monista. Todo o método bergsoniano formas e fazer valer as forças, falta ainda poder pensar o
consiste, de fato, em restaurar as dìferenpas de natureza descontinuo, as possíveis rupturas. Aqui também
nos mistos que a experiéncia nos fornece, e é a intuipào Deleuze encontra suporte em Bergson, pois 76“a
que serve de guia nesse processo de discrimi- napào. inteligencia só concebe claramente o descontinuo” .0
Assim, a perceppáo coloca de imediato a consciencia em que conta é o ato prestes a se realizar, o processo em
pé de igualdade na materia, enquanto a memoria nos curso inovando e liberando devires: “Há mais em um
situa de imediato no campo do espirito. Por outro lado, a movimento do que nas posiçôes sucessivas atribuidas ao
intuipào erigida em método de discriminapào privilegia móvel, mais em um 7 devir do que ñas formas
o tempo em relapáo ao espapo, pois a durapào é para atravessadas uma a uma '. Nesse processo que é a vida
Bergson o lugar pròprio do processo de diferenciapào, mesma em seu impulso conjugam-se a materia, que
de alterapào. Portanto, a intuì- pào bergsoniana é mesmo representa o polo da necessìdade, e a consciencia, que é
um mètodo rigoroso por sua capacidade de o polo da liberdade. Esse caminhar para a criativida- de
problematizar, de diferenciar e de temporalizar. passa por um método subtrativo - é o que Deleuze reterà
Um dos principáis deslocamentos feitos por Deleuze mais tarde das teses de Bergson no primeiro capítulo de
em relapào às interpretapoes tra- diclonais de Bergson Matèria e Memòria (1896), ao preparar suas obras sobre
foì o de considerar que a essèncìa de sua doutrina nao é o cinema nos anos 1980. A consciência nâo se junta ao
representada nem pelo impulso vital, nem pela memòria, mundo. Eia lança suas redes para capturá-lo; eia é o
mas pela lògica da multiplìcidade. Assim, dife- pròprio mundo por subtraçâo. Tem-se aqui a defmiçâo
rentemente dos bergsonìanos, eie dedica longos da consciência nâo como feixe luminoso que junta, mas,
desdobrarnentos à exposipào de seu pri- meiro ensaio de ao contràrio, como algo de menos, que subtrai: “É urna
1889 caído no esqueci mento,7a Ensaìo sobre os Dados mudança radical de regime metafórico. Nâo se está mais
lmediatos da Consciencia: , onde encontra os na luz dirigida para as coisas, nem no arpâo fe-
fundamentos de urna teoría das multiplicidades: “Nao se nomenològico, mas8 sim na tela escura onde se projeta a
trata para Bergson de opor o Múltiplo ao Uno”73. A matèria do menos”' .
nopao de multiplìcidade possibilità abandonar a dia- Contudo, essa apropriaçao das teses berg- sonianas é
lética hegeliana - que, segundo Bergson, parte de urna aspociada,^ como sempre, da parte de Deleuze, a uma
abordagem abstraía demais, desligada da experiéncia - e ìeitura singular. Como disse de todos os autores que
substituí-la por urna per- ceppáo fina das singularidades. explorou, ele acaba por lhe fazer “um filho por trás".
A temática mais clàssica desenvolvida por Deleuze Bergson, apesar de seu estatuto privilegiado no Panteáo
em sua obra diz respeito à memòria, na medida em que deleuzia- no, nao escapa à regra. Como disse o especia-
eia induz.uma conceppáo do tempo que nao opòe mais lista na obra de Bergson, Frédéric Worms, "o que quer
um passado consumado cortado do presente, mas um que se diga, Bergson é espiritualista, mesmo que eu me
tempo imbricado, graus coexistentes da durapào. Se o insurja contra esse rótulo”'9. Contudo, o Bergson de
presente é do dominio da psicologia, o passado, por sua Deleuze é um Bergson sem a consciencia, um Bergson
vez, remete à ontologia pura: “A lembranpa pura só tem do qual se teria subtraído o espirito, o que de aígum
significapào ontològica'711, afirma Deleuze que, nesse modo, nao é pareo. Segundo Bergson, uma coisa só
plano, segue o ensìnamento de seu mestre Hyppolite, existe se a memoria faz sua síntese temporal, e mesmo o
quando este criticava as interpretapoes psicologizan- tes corpo sozinho nao se sustenta no Ser. 0 corpo só se
de Bergson. Em ruptura com as teses do historicismo sustenta entao a partir de uma sub- jetividade, de um ato
alemâo de Ranke e com as da escola historiadora imánente ao tempo e à experiéncia, mas se trata de um
francesa de Lan gì ois, Seígno- bos e Lavisse, Bergson ato.
lança uma concepçao do tempo multo ¡novadora, Deleuze, porém, deixa totalmente na sombra de seu
fundada na con- cepçâo de um passado que nunca é comentário esse aspecto importante das teses
verdadei- ramente consumado na medida em que per- bergsonianas. Isso o leva a desconsiderar toda urna parte
siste no presente do quai nâo é indissociâvel. da obra: “Ele nao fala de seu livro essencial As Duas
A filosofia da vida definida por Bergson pretende Fontes da Moral e da Religiào, o que é surpreendente,
transcender os limites do causaìismo mecanicista: “A pois essa obra traz já no título a nogao de distinqao de
atualizaçâo tem como regras, nâo mais a semelhança e a nature- za. Estranha ausencia, que certamente se deve ao
Umitaçâo, mas a di- ferença ou a divergencia, e a tabu da consciéncia’80. A duraqáo, segundo Bergson, é
um ato subjetivo, enquanto, para Deleuze, o movimento em 1978,88 escreve um artigo sobre a atualidade de
é inverso: o sujeito é um efeito da durapào. A Espinosa , Alguns anos mais tarde, publica um ensaio
consciencia se apresenta, portanto, como uma simples que retoma Gilles
parcialmente os dois textos anteriores 89. En-
contragáo de instantes. Deleuze extrai assim uma parte tre 1980 e 1981, consagra todo o seu curso de Vincennes
Deleuze & Félix Guattari 115

da obra de Bergson para abandonar outra que nao julga a Espinosa, ao qual aínda90 voltará posteriormente em
essencial. Apesar disso, sua leitura contribuiu muito para Crítica e Clínica, em 1993 .
o retorno de Bergson ao cenário filosófico, para sua Essa penetraqao no mundo de Espinosa, no interior
legitimando junto a uma nova gerapáo de filósofos: “O mesmo das questóes colocadas por ele, no proprio humus
filho que Deleuze fez por trás em Bergson é um filho das controversias que teve de enfrentar, já é urna ruptura
genial, de que todos necessitam. Quanto a mim, adoto decisiva realizada por Deleuze em face da reputagáo
esse bastardo, fomece-lho o pào, a moradia, a educagáo; académica de um filósofo considerado o mes tre de um
foi o que tentei fazer”81. sistema ao mesmo tempo desencarnado e inacessível.
Deleuze ressuscita Espinosa e, ao mesmo tempo, esse
dom de fazer reviver passa por ele mesmo. É preciso
Um pensamento da dizer que toda urna tradigáo filosófica difundía a
afirma^áo: Espinosa imagem de um espinosa puro metafisico, impraticável,
por nao levar em conta a questáo da liberdade: “Se ele
Espinosa ocupa um lugar privilegiado na obra de foi táo desacreditado a ponto de se fazer do ‘Es-
Deleuze. Em 1977, Deleuze o designará como o autor de pinosísimo’ urna injuria, ou até um rótulo diabólico, é
que tratou mais e que teve pa- pei fundamenta] sobre eie: porque se viu de imediato (ainda que para deformá-las e
“Foi sobre Espinosa que trabalhei mais seriamente caricaturá-las) as91 implica- gòes ateológicas e amorais de
seguindo as normas da historia da filosofía, mas foi ele sua metafísica” . Para Hegel, Espinosa é o criador de um
que mais me fez sentir o efeito de urna corrente de ar sistema puramente teórico, e, depois dele, Kojève con-
que sopra ñas suas costas toda vez que vocé o íé> de sidera que nao se pode fazer nada com Espinosa, cuja
urna vassoura de bruxa em que ele o faz montar. As filosofía é sustentada por um sistema morto, que excluí
pessoas nem eomegaram aínda a corrípreen- der tanto a liberdade quanto a subjetividade. Deleuze tira
Espinosa, e eu nao mais do que os outros” 82. Muito mais Espinosa desse aprisionarnento; “Fazendo dele o grande
tarde, em 1991, quando da publica- pao de O que é a ‘her- deiro de Nietzsche, o grande vivente, Deleuze
filosofía?, Deíeuze presta urna vibrante homenagem a reverte completamente as coisas”92.
Espinosa, que é apre- sentado como “o príncipe dos “O filósofo pode habitar diversos Estados, frequentar
filósofos. Talvez o único a nao ter assumido nenhum diversos meios, mas à maneira de um eremita, de urna
compromis- so com o transcendente, a té-lo perseguido sombra, viajante, locatàrio de pensòes mobili ad as”93.
por toda parte”33; “Espinosa é também o Cristo dos Durante toda sua vida, Espinosa se mostrou preocupado
filósofos, e os maiores filósofos nao passam de em manter sua independencia e so pediu das autoridades
apóstolos, que se afastam ou se aproximam des- se para ser tolerado, o que mais tarde constituirá urna regra
mistério. Espinosa, o devir-filósofo infinito. Ele de vida do proprio Deleuze. Entretanto, no século XVII,
mostrou, traqou, pensou o ‘melhor plano de imanéncia, mesmo nesse meio efervescente de Amsterda, o uso da
isto é, o mais84 puro, aquele que nao se entrega ao liberdade nao é algo simples, e Espinosa teve essa
transcendente” . amarga experi ència. Sua grande obra, a Ética, que lhe
Espinosa é o tema da tese complementar de Deleuze, custou quinze anos de trabalho, nao pode ser publicada
'A ideia de expressáo na filosofía de Espinosa”, em vida, pois mexia demaís com as convengóes.
defendida em 1968 sob a orientando de Ferdinand Espinosa morre em 1677 sem ter conseguido torná-la
Alquié8'1. Esse trabalho de pesquisa, que de fato pública. A forma como foi recebida pelo Conselho
comeqou bem antes, já está praticamente concluido no Presbiteriano de Leyde confirmou os temores do
final dos anos 1950. Deleuze tem, na verdade, urna filósofo. O julgamento foi implacável: esse “livro que,
divergencia bastante radical com seu orientador, que desde o principio do mundo, e talvez até agora, é impar
defende firmemente o dualismo cartesiano contra o em impiedade”. Fez-se de Espinosa, resistente a
monismo espinosista. Contudo, Deleuze encentra em qualquer submissao, um anacoreta, urna espécie de
Alquié algumas suges- toes que lhe parecem espectro desencarnado. Contado, há urna grande
fundamentáis, como a ideia de considerar as “nogóes distancia entre tal representando e a realidade desse
comuns” como “ideias36biológicas”, e nao como esséncias filósofo,9 1percorri- do “pela própria Vida”, segundo
geométricas abstraías . Em 1970, Deleuze publica urna Deleuze ' . Seu pensamento é em primerro lugar e acima
segunda obra sobre Espinosa em forma de antología87 e, de tudo um pensamento da vida, de sua poténcia, do
triunfo dos afetos de alegría contra os afetos tristes. É O tema da poténcia está no cerne do es- pinosismo.
esse aspecto fundamental da mensa- gem espinosista que A poténcia está em atividade por toda parte, e nesse
Deleuze116ressalta sempre: “A vida nao é urna ideia, um campo o entendimento nao tem privilégios em relagao
problema deFrançois
teoría em Espinosa. É urna maneira911de ser,
Dosse
aos seus objetos, que desenvolvem a mesma poténcia
um mes- mo modo eterno em todos os atributos” . para existir. A poténcia é o equivalente da esséncia.
Espinosa pertence plenamente ao seu tempo, Todos os seres sao animados pela poténcia de existir,
portanto seu sistema nao tem nada de desencamado. que é para o homem “urna parte da poténcia infinita, isto
Expressa até o paroxismo das questoes próprias a urna é, da esséncia, de Deus ou da Natureza” 101. Essa poténcia
modernidade que passa de urna relagao com um divina se desdo- bra em urna poténcia de existir e de
universo considerado fechado, finito, no pensamento agir, de pensar e de conhecer. Essa natureza divina é
clássico, a urna relagao com um universo que se desco- fundada “ao 102mesmo tempo na necessidade e na
bre infinito. A grande pergunta do sáculo XVII é como possibilidade” .
pensar o infinito. As teses de Espinosa levaráo essa Deleuze mostra em que Espinosa toma distancia de
pergunta ao extremo, recusando o face a face entre urna Descartes e de seu dualismo fundado na adequagáo entre
finitude e urna infini- tude gragas á invengáo de urna a ideia e a coisa que eia representa. Com isso, o
nova categoría, a do infinitamente pequeño, que se pode cartesianismo se condena a permanecer no nivel da
apreender a partir de series. Nesse plano, Espinosa forma e nao atinge a poténcia. Para Espinosa, a ideia
apresenta urna concepgáo singular do individuo como adequada nao tem a significagao de urna cor-
composigáo, poténcia e graus. O individuo nao é mais respondencia entre a ideia e a coisa, mas ‘é precisamente
visto enfcao como substancia, mas como relagao a ideia como que exprime sua causa”103. Deleuze
independente de seus termos. Em segundo lugar, o estabelece urna ligagáo entre Espinosa e seus trabalhos
individuo é antes de tudo poténcia, e nao forma; ele sobre Hume. Ele caracteriza o método espinosista como
tende ao seu limite. Espinosa propoe aquí o conceito de “empirista” a partir do momento em que Espinosa
conatus, segundo o qual “cada coisa tende a perseverar desìoca o questionamelo cartesiano do claro e do distinto
em seu ser”. O individuo tende, portanto, ao seu limite: para substituido por um mètodo que nao se pergunta
“A poténcia é isso: 96o esforgo na medida em que ele mais se hà ideias inadequadas, e sim corno se formulano
tende para um limite" . ideias adequadas: “Nisso, a inspiraçâo espinosista é
Em sua tese complementar, Deleuze te- matiza um profundamente empirista'10,1.
problema que julga central para Espinosa, o da Aspecto essencial ao qual Deleuze voitara com
expressao, termo utilizado no livro primeiro da Ética e frequència posteriormente é a questao colocada por
que serve de ponto de partida para Deleuze: “Entendo Espinosa sobre o que pode um corpo enquanto poder de
por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, urna afetar e de ser afetado; “Nâo se sabe o que pode o corpo,
substáncia que consiste em urna infinidade de atribu tos, ou o que se105pode deduzir da mera consideraçâo de sua
e cada um exprime urna esséncia na~ turezà’ Do que é capaz a potencia propria ao
97

eterna e infinita” . O problema da expressao, segundo humano nâo pode ser predeterminado, na medida em que
DÜeuze, condensa a difícil relagao unitària entre a ao polo da atividade corresponde sua contraparte,
substáncia e a diversidade de seus atributos. É pela passiva, de ser-afetado. Essa potencia leva a existencia
expressao que oespino- sismo consiste em um monismo. aos seus limites extremos, e é chamada de conatus, o
Diferentemente da dimensao do “explicar”, o “exprimir” esforço para perseverar no ser. Deleuze conféré a essa
reveste-se de urna dimensao ontològica cuja importancia força o nome de “desejo” e insiste no fato de que este é
está em opor ao cartesianismo as potencialidades de urna determinado por afeiçoes, Essa temática será
filosofía da natureza: ‘A expressao nao deve ser, fundamental em Deleuze quando - prìmeiro para se
portanto, objeto de demonstragáo; é eia que pòe a apropriar dele e depois para combaté-lo -vai ao encontró
demonstragáo no absoluto”98. Espinosa nao chegou do discurso psicanalitico, opondo-lhe outra via, urna via
verdadei- ramente a tematizar essa nogáo de expressao filosòfica, que leva em conta essencialmente a questao
em sua obra, como admite Deleuze: “A ideia de do de- sejo, mas de forma nâo freudiana. A retomada
expressao em Espinosa nao é objeto nem de definigáo, desse conatus ! desejo provém, segundo Espinosa, dos
encontros. Tais encontros ou têm como efeito nos tornar
nem de demonstragáo”99. Visto que os atributos só mais ativos, redobrando assira nossa potência, e entào
podem consistir em afir- magoes, estas sao expressívas: causar alegria ou, ao contràrio, sào portadores de afetos
‘A filosofìa de Espinosa é urna filosofìa da afirmagáo tristes e nos condenam à impotência, à passividade,
pura. A afìrmagào ém o principio especulativo do qual obstruíndo nossa capacidade de açâo. 0 ho- mem dispòe
depende toda a Ética . portanto, enquanto ser afetado, de urna capacidade de
discernir o que o torna triste ou alegre. Eie tem Nessa comunicaçâo, Deleuze já exprime o
condiçôes de discriminar entre os encontros bons e os deslocamento que confirmará em 1981 quando da
maus. É na esfera pràtica que essa lucidez sobre si pode publicaçâo Gilles
de suaDeleuze
nova obra sobre Espinosa, isto é, o
difundir suas luzes: “Triunfamos quando conseguimos ensino essencialrnente & Félix Guattari 117
pràtico de sua Ética, que nâo
afastar esse sentimento106de tristeza e, portanto, destruir o consiste em um tratado de moral, mas em um ensaio de
corpo que nos afeta” . Disso resulta urna ética que etologia: “A etologia é em primeiro lugar o estudo das
convida a nâo sucumbir no òdio ou na polemica, assim relaçôes de velocidade e de lentidâo, dos poderes de ate-
como em qualquer outro afeto triste, para que prevaleça tar e de ser afetado que caracterizam qualquer coisa”111.
sempre a potencia pròpria de agir e de criar. Essa questâo de velocidades diferenciáis é essencial para
Quando Espinosa constata a incapacidade de Deleuze, que se apoia em Espinosa para nâo définir urna
conceber o que pode um corpo, esse é para1 7 coisa ou um individuo por sua forma, por seus ôrgâos ou
Deleuze um verdadeiro “grito de guerra” “ , pois inverte suas funçoes, nem como substância ou sujeito, mas por
a prevalènza atribuida até entâo às açôes e reaçôes da sua longitude e sua latitude. Ele retoma de Espinosa a
alma sobre as do corpo. 0 corpo, segundo Espinosa, distinçâo entre esses dois modos de individuaçâo, que
ultrapassa o co- nhecimento que se pode ter dele, pois sao a existencia enquanto conjunto divisivel em partes
encarna urna maneira de ser de um dos dois atributos, a extensivas e a es- sência enquanto parte intensiva. Sua
extensâo, feita de velocidades e de lentidòes compostas concep- çâo dò corpo é de ordem cinética, opondo re-
entre elas. O que faz mover o corpo tem a ver apenas laçôes de velocidade e de lentidâo de cada um de seus
com a imanència. elementos. Essa distinçâo servirá mais tarde, tanto a
Espinosa situa-se em um plano que nâo é o da Deleuze quanto a Guattari, para pensar em termos de
oposiçâo moral entre o Bem e o Mal, mas o plano ético cartografìa do corpo.
do tipo de afetos que determinam o conatus: “No limite, A primeira leitura de Espinosa que Deleuze publica
o homem livre, forte e ra- zoâvel vai se definir em 1968 nâo é verdadei ram ente superada peía segunda
pienamente pelo dominio de sua potencia de agìr”ms. Là publicaçâo, de 1981. No en- tanto, pode-se compartilhar
onde o encentro - o que Deleuze chamará, depois de seu a constataçâo de François Zourabichvilì, que aponta um
encontró com Guattari, de corte de Jfluxo - é essencial deslocamento do olhar que dirige112a Espinosa “o herói
para perseverar no ser, é porque o “Eu posso” está ligado filosófico do segundo Deleuze” . Quando Deleuze
à capacidade de ser afetado, e isso depende do encontró publica essa segunda obra sobre Espinosa, estamos no
com outro, na medida em que ele pode alterar a pós-68 e depois da publicaçâo dos dois lìvros mais
identidade do Mesmo. importantes escritos com Guattari, OAnti-Édipo e Mil
Em 1977, quase dez anos após a publicaçâo de sua Platos. O resultado é que desta vez a ênfase é colocada
tese complementar. Deleuze é convidado pelo Centre na dimen- sáo pràtica dessa filosofìa Espinosista, assim
International de Synthèse por ocasiào do tricentenàrio da como em suas afinidades com a de Nietzsche, O
morte109de Espinosa, Ele faz urna conferènza: “Espinosa e Espinosa re visitado entào por Deleuze é o filósofo de
nós” . Com essa fòrmula, Deleuze exprime seu pròprio urna arte de vìver, de urna maneira de ser que permite
estilo de começar pelo melo das obras filosóficas para combinar em urna harmonía as solicitaçôes tanto do
intensificar o agencia- mento entre o leitor atual e o afeto como do conceito para intensificar a coincidência
filósofo solicitado. Esse “começar pelo meio” de mais razâo e mais alegria. Para se impor, essa
possibilità, por outro lado, urna melhor inteligibìlidade maneira de viver deve travar très combates: contra o
de Espinosa: até entâo, os comentadores giravam em poder e suas proibiçôes, contra a transcendência que
torno dos dois atributos da substáncia segundo Espinosa, cava um fosso entre o pensamento e suas po-
que sâo a extensâo e o pensamento. De fato, só podemos tencialidades e, finalmente, contra “uma con- cepçâo
conhecer dois dos atributos da substáncia, que, por sua nociva das relaçôes teoria-pràtica (pro- eminência da
vez, provém do divino por seu caráter infinito: a exten- primeira sobre a segunda)”m. Espinosa toma-se a
sâo e o pensamento. “Já Deleuze se instala no meio do referencia fundamental de um pensamento plenamente
sistema e circunscreve ali a substancia, os atributos que imánente.
se exprimem, e recompoe todo o110sistema de Espinosa a
partir da noçâo de expressao” . O que é nâo é a Deleuze retoma, mas desta vez após urna breve
substáncia, mas a exprime sem nenhum caráter hierár- apresentaçâo de sua vida, o tema da diferenga entre
quico, o que faz de Espinosa um pensador da imanéncia moral e ética, pela qual Espinosa causou escándalo em
em ruptura com todo pensamento emanativo. O Ser sua época. Sua filosofìa pràtica é de fato apresentada
remete ao Uno, à univodda- de, quando todos os corno um triplo desafio langado ao reino da conscìència,
atributos estâo em urna situaçâo de perfeita igualdade, dos valores e das paixôes tristes, que Ihe vale um triplo
motivo de acusaçâo de materialismo, de imoralismo e de se apoiar, Deleuze passa a difundir suas próprias teses
ateísmo. A analogìa com Nietzsche impressiona filosóficas, em 1968-1969, falando agora em seu proprio
Deleuze,118que afirmaDosse
de insediato a pertinencia dessa nome aquilo com que está rompido. Afirma, entao, sua
aproximaçâoFrançois
um tanto quanto diabòlica. “Tudo114tendía singularidade de pensamento e de escrita, de estilo,
para a grande identidade Nietzsche-Espinosa” . Es-
pinosa serve entâo de máquina de guerra para Deleuze Notas
contra o estruturalismo e contra o psi- canalismo.
Espinosa permite exaltar as forças da vida contra toda 1. Prospecto da Société française d’études nietzschéennes,
cultura de culpabilidade, contra todo pensamento que citado por Jacques LE RIDER, Nietzsche en France. De la
parte da falta, da ausencia: “A1 i:>alegria ética é o correlato fin da XIX siècle au temps présent, PUF, Paris, 1999, p. 185.
da afir- rnaçâo especulativa” . 2. Jean WAHL, La Pensée philosophique de Nietzsche des
années 1885-1888, La Sorbonne, CDU, Paris, 1959;
Tudo se opera na existencia como expe- rimentaçâo VAvant-derriière pensée de Nietzsche, La Sorbonne, CDU,
das boas ou más combinaçoes, e só elas podem fazer Paris, 1961.
aflorar o que é bom ou mau: “Essa é portanto a diferenga 3. Nietzsche, 1844-1900, Études et témoignages du
final do fio- mem bom e do homem mau: o homem bom, cinquantenaire, ed. Martin Flinker, 1950.
ou forte, é aquele que existe táo plenamente ou táo 4. Gilles DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, PUF, Paris,
intensamente que conquistou a eter- nidade em vida e 1962 (doravante citado Nph}.
para quem a morte, sempre extensiva, sempre exterior, é 5. Gilles DELEUZE, Nph, p. 2.
pouca coisa”116. Essa exteriorizaçâo da morte, que é 6. Ibid., p, 3.
apenas um acídente, para Espinosa, é outra convicçâo 7. NIETZS CHE, La Généalogie de la morale, II, §2, trad. H.
que Deleuze nunca deixará de defender e de opor ao Albert, Mercure de France, 1900.
“ser-para-a-morte” de Heidegger. A morte, diz Espinosa, 8. Gilles DELEUZE, Nph, p. 25,
só envolve as partes117extensivas, “a realidade da parte 9. Ibid., p. 78.
intensiva subsiste“ . Disso resulta uma dupla 10. Gilles DELEUZE, “La méthode de dramatisation", Bulletin
eternidade, ao mesmo tempo a das relaçôes que definem de la Sociétéfrançaise de philosophie, n. 3, ju'Dset. de 1967,
a singularida- de de cada um e a da essência particular p. 89-118; reproduzido em ID, p. 131-162.
11. Jean WAHL, “ Nietzsche et la philosophie ”, Pie- vue de
que caracteriza aquilo que desaparece, É isso que métaphysique et de la morale, n. 3,1963, p. 353.
permite a Espinosa afirmar que se experimenta em vida 12. Ibid., p. 373.
urna forma de eternidade, que ele opoe à imortalidade 13. Na carta que envia a Jean Wahl datada de 6 de junho de
dos teólogos. Nessas condiçoes, “a ideia de pulsâo de 1963, eie sugere que sejarn convidados onze conferencistas:
morte para ele é grotesca118. afirma Deleuze, visando da França, Beau fret ou Polin, Delay, Foucault ou Laplanche,
também Freud. Gabriel Marcel, jean Wahl; da Alemanha, Heidegger, Fink,
Em 1993, Deleuze volta a Espinosa para distinguir Lowith; da Suiça, Starobìnski, Hans Barth; e da Italia,
très niveis, très rítmicas, correspondentes aos très Vattimo,
gêneros de conhecimento na Ética, cuja primeira leitura 14. Michel FOUCAULT, “Nietzsche, Freud, Marx”, Cahiers de
pode levar a pensar em um fluxo continuo: “Os Signos Royaumont, n. VI, Minuit, Paris, 1967; reproduzido em Dits
ou afe- tos;119 as Noçôes ou conceitos; as Essências ou et Écrits, tomo I„ Gallimard, Paris, 1994, p. 564-579.
perceptos” . 0 livro se desenvolve, portanto, segundo 15. Gilles DELEUZE, “Conclusions sur la Volonté de puissance
et 1 eternel retour”, Cahiers de Royaumont, n. VI, Nietzsche,
rítmicas diferentes, mais ou menos intensas, contraídas Minuit, Paris, 1967, p, 275-287; reproduzido em ID, p. 163-
ou dilatadas, que fazem com que o mundo dos 177.
“postulados”, “demons- traçôes" e “corolários” se suceda 16. Ibid, p. 165.
segundo sua pròpria lógica continua, enquanto que o dos 17. Gilles DELEUZE, Nietzsche, PUF, 1965, Essa obra aparece
“escolios” transcorre nos estratos inferiores, na coleçâo “Philosophes” e con- tém orna apresentaçâo da
revelando.ali suas paixôes e suas violencias, as dos vida do autor, urna apresentaçào de sua filosofìa, um
afetos secretos da obra em urna or- dem descontinua, e o glossàrio com os principáis personagens de Nietzsche e
Livro V segue um ritmo bem diferente, procede por raios sobretudo urna antologia com extratos de sua obra.
luminosos. O modo demonstrativo se modifica entao 18. Gilles DELEUZE, Michel FOUCAULT, “Introduction
radicalmente, contraindo-se para dar livre curso a urna générale”, Œuvres philosophiques complètes de Nietzsche,
velocidade superior. Gallimard, 1967, t. V, Le Gai Savoir, hors-texte, p. ITV;
reproduzido em Michel Foucault, Dits et Écrits, op. cit., 1.1,.
Depois de ter pago seu tributo à corpora- çào dos Gallimard, p, 561-564.
filósofos de oficio ao publicar essas monografías, ao 19. Ibid, p. 561.
mesmo tempo consolidando a base vitalista em que vai 20. Ibid., p. 561.
21. Gilles DELEUZE, “Leclat de rire de Nietzsche”, entrevista 37. Gilles Deleuze, carta a François Châtelet, 1966, acervo
com Guy Dumur, Le Nouvel Obser- valeur, 5 de abri! de Châtelet, IMEC.
1967, reproduzida em ÎD, p. 178-181. 38. Jeannette COLOMBEL, “Deieuze-Sartre: pistes”, em André
22. Gilles Del uze, entrevista com Jean-Noëi Virarne!, Les BBRNOLD, Richard
Gilles PÍNHAS
Deleuze & Félix(sob a dir.),119
Guattari Deleuze épars,
lettres françaises, 28 fevereiro-5 de março de 1968; Hermann, Paris, 2005, p. 41.
reproduzida em 1D, p. 191-192. 39. Ibid., p. 4L
23. Pierre KLOSSOWSKI, Nietzsche et le cercle vicieux, 40. Chris Younès, entrevista com o autor.
Mercure de France, Paris, 1960. 4L Alain Roger, entrevista com o autor.
24. Jean-Miche! REY, L’Enjeu des signes, Seuil, Paris, 1971; 42. Jeannette COLOMBEL, "Deleuze-Sartre: pistes”, op. cit., p.
Bernard PAUTRAY, Versions du Soleil, Seuil, Paris, 1971; 42.
Sarah KO FM AN, Nietzsche et la métaphore, Payot, Paris, 43. Chris Younès, entrevista com o autor.
1972.
25. Essa década de Cerisy é publicada em 2 volumes: Nietzsche 44. Ibid.
aujourd’hui?, vol. 1. Intensités, vol. 2. Passion. Encontram- 45. Joë BOUSQUET, Traduit du silence, Gallimard, Paris
se ali Bernard Pautrat, Jean-Luc Nancy, Pierre Klossowski, (1941), 1967,
Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze, Sylvia- ne Agaclnski, 46. “Minha ferida existía antes de mim, nasci para encarnâ-la”,
Rodolphe Gasché, Éric Clemens, Roberto Cal asso, Jacques escreve Bousquet, e Deleuze comenta: “A ferida é urna coisa
Derrida Jean-Michei Reyjean-Noël Vuarnet, Pierre Bardot, que recebo em meu corpo, em tal lugar, em tal momento,
Léopold Flam, Philippe Lacoue-Labarthe, jean Mourei, mas há também urna verdade eterna da ferida como
Edouard Gaède, Sarah Kofman, Éric Blondel, Jeanne acontecimento impassível, incorporal” (Gilles DELEUZE,
Delhomme, Karl Liwith, Paul Vaiadier, Eugen Biser, Richard D, p. 80).
Roos, Heinz Wismann, 47. Chris Younès, entrevista com o autor.
. Eugen Fink, Norman Palma. 48. Ibid.
26. Gilles DELEUZE, "Pensée nomade”, ibid., vol. 1, p. 159- 49. Ibid.
174; reproduzido em ID, p. 351-364. 50. Gilles DELEUZE, Le Bergsonisme, PUF, Paris, ; 1966
27. Ibid.,emïD,p.351. (doravante citado B).
28. Ibid., p. 354. 51. Giiles DELEUZE, "Bergson, 1859-1941”, em Maurice
29. Ibid., p. 359. MERLEAU-PONTY (sob a dir.), les Philosophes célèbres,
30. Jacques LE RIDER apresenta dados numéricos em Lucien Mazenod, Paris, 1956, p. 292-299; reproduzido em
Nietzsche en France. De la fin du XDC siècle au temps ID, p, 28-42.
présent, PUF, Paris, 1999: La Généalogie de la morale, a 52. Jbid., p. 31.
obra mais lida, vende 269 mil exemplares na traduçâo Albert 53. Ibid., p. 32.
publicada pela coleçâo "Idées" em 1966; 11 mil exemplares 54. Ibid., p. 37.
na ediçâo OPC, em 1971; 105 mil exemplares na "Folio”, 55. Ibid., p. 39.
ediçâo de 1985; ou seja, um total de 385 mil exemplares. 56. Ibid.,pA\.
Ainsi parlait Zarathoustra, por sua vez, atinge 191 mil 57. Gilles DELEUZE, “La conception de la différence chez
exemplares e Le Gai Savoir, 183.500 exemplares. Essa Bergson”, Les Études bergsoniennes, vol. FV, 1956, p. 77-
década de Cerisy so.bre Nietzsche corresponde ao ano de 112; reproduzìdo em ID, p. 43-72.
publicaçâo de EAnti-Œdipe. Portanto, nâo é de se surpreender 58. Ver Giuseppe BIANCO, “L’inhumanité de la différence. Aux
diante da ahrmaçâo do signifi- cado politico contestador sources de l’élan bergsonien de Deleuze”, Concepts, Gilles
trazido pelo pensamento nietzschiano revisitado e pela Deleuze, Sils Maria, Mons, 2003, em parfcîcular p. 68-73,
abertura para linhas de fuga, para um nomadismo do 59. Gilles DELEUZE, “La conception de la différence chez
pensamento que deve se desterritorializar e se decodificar. Bergson", em ID, p. 54.
31. NIETZSCHE, La Généalogie de la morale, II, §17. f 60. Jbid., p. 57.
32. Ver jean-Clet MARTIN, Variations. La philosophie de
Gilles Deleuze, Payot, Paris, 1993, prin- ; cípalmente o 61. Ibid, p. 72.
capitulo “Nomadotogie”, p. 51-71, 62. Bergson, Mémoire et vie, textos escolhidos por Gilles
33. Manola ANTONIOLI, Deleuze et la histoire de ta Deleuze, PUF, Paris, 1957.
philosophie, Kimé, Paris, 1999, p. 52. 63. Anne SAUVAGNARGUES, “Deleuze avec Bergson. Le
34. É o que atesta o capítulo 12 de Mil Platos, consagrado a um cours de 1960 sur L’Évolution créatrice , em Frédéric
"Tratado de nomadologia. A máquina de guerra”. WORMS (sob a dir.), Annales bergsoniennes II, Bergson,
35. Encarregado de ensino (chargé d'enseignement) significava Deleuze, la phénoménologie, PUF, Paris, 2004, p. 153.
na época professor titular mas seni ter ainda a tese de 64. Gilles DELEUZE, "Cours sur le chapitre III de L’Évolution
doutorado. créatrice de Bergson”, ibid., p. 169.
36. Gilles Deleuze, carta a Jean Wahl, 16 de de- zembro de 65. Ibid., p, 170.
1964, acervo jean Wahl, IMEC, carta comunicada por 66. Ibid., p. 186.
Giuseppe Bianco.
67. Gilles DELEUZE, B. 91. Guillaume Sibertin-Blanc, entrevista com o autor.
68. Georges POLITZER, La Fin d'une parade philosophique, le 92. Thomas Bénatouil, entrevista com o autor.
bergsonisme, Les Revues, 1929; reed. Pauvert, Paris, 1968. 93. Gilles DELEUZE, SPP, p. IL.
120 François Dosse
69. Ibid., p. 11, 94. Ibid., p,2L
70. Frédéric WORMS, entrevista com o autor, 95. Ibid., p. 22.
71. Gilles DELEUZE, B, p. 1. 96. Gilles Deleuze, aula de 17 de fevereiro de 1981,
72. Henri BERGSON, Essai sur les données immédiates de la universidade de Paris-VIII, arquívos sonoros, BNF.
conscience, PUF, Paris, 1889. 97. Spinoza, Éthique, livro primeiro, defmiçâo 6, GF-
73. Gilles DELEUZE, B, p. 1. Flammarion, Paris, 1965, p, 21.
74. Ibid., p. 51. 98. Gilles DELEUZE, SPE, p. 18.
75. Ibid., p, 100. 99. Ibid., p. 15.
76. Flenri BERGSON, L'Évolution créatrice, op. cit., p. 155. 100. Ibid., p. 51.
77. Ibid., p. 315. 101. SPINOZA, Éthique, livro IV, 4, dem., op. cit., p. 224.
78. Élie During, entrevista com o autor. 102. Gilles DELEUZE, SPE, p. 108,
79. Frédéric WORMS, entrevista com o autor. 103. Ibid., p. 119.
80. Ibid. 104. Ibid., p. 134.
SI. Ibid. 105. SPINOZA, Éthique, III, 2, sc., p. 137.
82. Gilles DELEUZE, D, p. 22. 106. Gilles DELEUZE, SPE, p. 221.
83. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qu’est-ce que la 107. Ibid., p. 234.
philosophie?, Minuit, Paris, 1991. p, 49 (doravante citado 108. Ibid., p. 240.
Qph), 109. Gilles DELEUZE, "Spinoza et nous”, Revue de synthèse,
84. Ibid., p. 59, Albin Michel, Paris, 1978, n. 89-91; retomado e ampliado
85. Gilles DELEUZE, Spinoza et le problème de l’expression, em SPP, cap. VI, p. 164-175.
Minuit, Paris, 1968 (doravante citado SPE). 110. jean-Claude Dumoncel, entrevista com o autor.
86. Ver Ferdinand ALQUÎE, Servitude et liberté chez Spinoza, 111. Giiles DELEUZE, “Spinozaet nous”, SPP, p. 168.
CDU Sorbonne, 1959; reed. em Leçons sur Spinoza, La 112. François ZOURABICHVILI, “Deleuze et Spinoza”, em
Table ronde, Paris, 2003. Olivier BLOCH {sob a dir.), Spinoza au XX siècle, PUF,
87. Gilles DELEUZE, Spinoza, Textes choisis, PUF, Paris, Paris, 1993, p. 240,
1970. Essa publicaçâo encontra-se na mesma coleçâo, “Les 113. Ibid., p. 238.
philosophes”, que Nietzsche, lançado em 1965, e 114. Gilles Deleuze, Le Magazine littéraire, n. 257, setembro de
compreende uma apre- sentaçao da vida do autor, de sua 1988, entrevista com Raymond Bellour e François Ewald.
filosofía, e o índice de seus principáis conceitos, que intro- 115. Giiles DELEUZE, SPP, p. 43.
duzem urna antología de extratos de sua obra. 116. Ibid,., SPP, p. 59.
88. Gilles DELEUZE, “Spinoza et nous”, Revue de synthèse, 117. Gilles Deleuze, aula da universìdade de Vincennes, 17 de
janeiro de 1978, março de 1981, arquivos sonoros, BNF..
89. Gilles DELEUZE, Spinoza. Philosophie pratique, Minuit, 118. Ibid.
Paris, 1981 (doravante citado SPP). 119. Gilles DELEUZE, “Spinoza et les trois ‘Éthiques’”, em CC,
90. Gilles DELEUZE, “Spinoza et les trois Éthiques", em CC. p. 172.
O deleuzismo: urna ontologia da diferença

Entre 196S e 1969, época em que trigo, “a coisa e os simulacros”3. Para


Deleuze defende sua tese de doutorado, conseguir essa seleçâo, Pla- tâo lança o
chega a hora de tomar públicas as conceito de Ideia, que corresponde à
“cores” propriamente deleu- zianas. O essência do fenómeno. É em nome dessa
autor de Diferenga e Repetiq&o toma essência que Platâo pode pretender
distáncia daquilo que constituí a separar os rivais e descartar os
principal referencia filosófica imperfeitos, os falsá- ríos, os simulacros.
preconizando urna inversáo do Contudo, Deleuze chama a atençâo para
platonismo. Por outro lado, sua um momento excepcional no final do
intervengo ocorre em um momento Sofista, em que Platâo, de tanto perseguir
filosófico, o dos anos de 1960, em que se por toda parte o simulacro, descobre que
questiona de forma radical o monumento nâo é urna simples copia falsa, mas “que
hegeliano, que até entao dominava poe em questao as próprias noçôes de
ampiamente a historia da filosofìa. Quer cópia e de modelo: ‘No simulacro há o
se olhe do lado do nouveau román, das que contestar, e a noçâo de cópia e a de
cièncias humanas ou do fasdnio modelo1. O modelo submerge na
heideggeriano, é a era 1deum “anti- diferenga, ao mesmo tempo em que as
hegelianismo generalizado” . copias resvalam na dissimilitude das
séries que interiorizam, e é impossível
dizer que1 urna é copia, e a outra,
In verter o platonismo e o modelo”" . Pîatâo teria sido entao o
hegelianismo primeiro a anunciar urna possível vía de
O primeiro macigo a remover para inversáo de seu próprio método. Ironía
avangar suas próprias posigòes é o de2 do destino, supremo paradoxo, o sofista
Platào, que deve sofrer urna “inversáo” que Pla- táo injuria como encarnagao do
pela filosofia moderna. 0 problema que falso, do simulacro, sátiro ou centauro,
Platào coloca é de fato muito concreto. nâo é no fim das contas o verdadeiro
Consiste em fazer urna selegáo entre os filósofo?
pretendentes cada vez mais numerosos a Portanto, Platâo ficara reduzido até
encarnar a verdade na cidade ateniense, ali à univo cidade das teses que
sub- metendo os rivaìs a urna prova desenvolve no Te- eteto, onde figura
filosófica que permite separar o joio do como o instaurador de urna ordem moral
orientada para a verdade segundo o modelo imutável do À diferença por eia mesma
reconhecimento. É preciso, portanto, seguir o pròprio Deleuze denuncia urna verdadeira maldi- çâo que se
Platâo 122
na via que ele entreviu sem conseguir penetrar abateu sobre todo pensamento da diferença na tradiçâo
neta: “Inverter o platonismo significa aqui: negar o
François Dosse
filosófica ocìdental, A diferença foi identificada às
primado de um original sobre a copia, de um modelo forças do Mal, ao erro, ao pecado e ao monstruoso. O
sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos projeto de Deleuze é reabilitar essa parte de sombra da
reflexos"J. Em Lógica do Sentido, quando Deleuze historia do pensamento. Retomando a metàfora de
distingue très posturas possíveis do filósofo, ele Platao, mas desta vez para o seu pròprio projeto,
radicaliza um pouco sua crítica do platonismo, visto aqui Deleuze pretende conseguir “tirar de sua caverna” a
como tradiçâo que teria cristalizado a atitude esperada diferença’2.
do filósofo como aquele destinado a sair de sua caverna Como conseguir apreender a diferença? Nâo por
para se elevar aos céus do mundo ideal e partir em busca meio da fenomenologia nem do mètodo dialético, pois
de urna verda- de inacessível às pessoas comuns. A pensà-la nela mesma pres- supôe que se manifeste
filosofia platónica é considerada entáo por Deleuze, na enquanto afirmaçâo pròpria, e, de fato, Deleuze sustenta
linha de Nietzsche, como a expressâo de urna patologia, que, “em sua essência, a diferença é objeto de afirma-
a de urna fuga constante para o irreal ao ritmo das6 çâo, afirmaçâo eia mesma”13. Levar em conta essa
ascensóes impulsionadas pelo “bater de asas platónico” . essência pressupoe romper radicalmente com um
A reabertura das virtualidades históricas, das pensamento da representaçâo que subordina sempre a
potencialidades de transformaçao, de revo-7 luçâo, passa expressao das diferenças ao identico, ao modelo que se
“pela diferença e sua potência de afirmar” .0 virtual que trataría de re-re- presentar, e substituido de maneira
Deleuze valoriza desde esse momento, antes de nietzschiana por urna experimentaçâo: “Il faut montrer
construir, muito mais tarde, urna verdadeira filosofìa do la différence allant différant w’!4.0 eterno retorno seria
virtual8, nao se opóe ao real, mas ao atual: “O virtual entáo o “para si” da diferença, nâo o retomo do mesmo,
pos- sui urna realidade plena, enquanto virtual”5. À mas do diferente. Nâo se é inevitavelmente conduzido
maneira do acontecimento que corre o risco de ser ao Mesmo ou a recorrer a algumas mediagòes capazes
subsumido, erradicado pelos esquemas explicativos, a de redu- zir as diferengas para pensa-las? Deleuze toma
diferença resiste à explicaçâo. É isso que permite a o exemplo da tempestade que irrompe quando as
Deleuze atingir o verdadei- ro horizonte problemático intensidades entre massas de ar diferentes sao
da filosofìa, pensar o paradoxo que é a grande figura, o excessivamente contrastantes. A tempestade é
principal tropo dos anos de 1960 contra a ilusáo da antecedida de um precursor sombrio que indica sua
supe- raçâo possível das contradiçôes: “O paradoxo é o precipitalo no céu. Este ultimo seria o “em si” da
pathos ou a paixâo da filosofìa”10. Embora encarnem diferenga: “Chamamos de dispar a sombra precursora,
duas orientaçôes muito diferentes, essa defmiçâo do ato essa diferenga em si, em segundo grau, que 15conecta as
de filosofar corno resposta aos paradoxos, às tensóes series também heterogéneas ou disparatadas” .
aporéticas, aproxima no mesmo momento Gilles A tradiqáo estaría encerrada no conformismo de um
Deleuze e Paul Ricoeur, cuja pràtica filosófica nâo modelo considerado iterável. Do Teeteto, de Pìatào, à
consiste tampouco em pretender superar as contradiçôes Crítica da Razào Pura, de Kant, um modelo de
por urna síntese totalizante. Afirmando a necessidade de recognigáo orienta a filosofía para o que se tomará urna
pensar juntos polos incomen- suráveis, Ricœur procede doxa, urna ortodoxia, fonte de conformismo e prisioneira
de fato por escapes sucessivos das,tensoes aporéticas, das ideias do tempo. Deleuze se pergunta qual pode ser o
inventando mediaçôes irfiperfeitas; Deleuze, por sua valor de um pensamento que nao perturba ninguém. A
vez, busca vias de acesso mais diretas às diferenças filosofía teria funcionado até ali apenas como
puras. Outra proximidade de Deleuze com Ricœur sìtua- reconhecimento dos valores e ìnstituigòes estabelecidos,
se na metaestabilizaçâo da postura questionadora do como seu duplo de legitimagáo, seu acréscimo de alma.
filòsofo. Na relaçâo entre a pergunta e a resposta, urna 0 projeto de Deleuze em 1968 é justamente elaborar
dessimetria atribui nos dois filósofos urna prevalência à urna ontologia. O par pergunta-próbleme, tal como o
pergunta: “Fazem-nos crer ao mesmo tempo que os pro- concebe Deleuze, deve permitir redinamizar um
blemas sao dados prontos e que desaparecerá nas programa ontologico a partir de urna brecha que nao se
respostas ou na soluçaô’“, crença que decorre, para pode preencher. Para isso, é preciso partir do problema
Deleuze, de um pré-julgamento infantil do quai é para colocar apergunta certa. A ontologia lembra um
preciso se livrar. Jangar de dado. Eia nao tem o estatuto de um pedestal
para se apoiar ou se recostar, mas de um devir aleatorio,
de urna abertura: “Os pontos singulares estào no dado; as nogoes husserltanas, como as de “síntese passiva” ou de
perguntas sao os próprios dados; o imperativo é langar. “empirismo transcendental”. Segundo seu amigo Paul
As Ideias sao as 16combinagoes problemáticas que Virilio, que,Gilles
de Deleuze
sua parte, reivindica com fervor o
resultam dos lances” , Esses lances de dado tém urna programa fenomenològico, Deleuze gostava muito do
& Félix Guattari 123

relagáo com o sujeito, o "Eu”, mas sempre fragmentado, último livro de Merleau-Ponty, O Visível e o Invisívef'\
fendido, e deslocam as ìinhas da fenda na ordem da Segue também Husserl, que considera o sentido como o
temporalídade. exprimido, a expressao, e se indaga sobre o sentido da
Urna repetigáo de ordem ontològica teria como percepçâo que nâo se reduz ao objeto físico nem à
fmalidade distribuir a diferenga entre repetigáo física e vivência psicológica. Ele acaba por se perguntar: ‘'A fe-
psíquica e produzir a ilusáo que as afeta. Realizarla a nomenologia3 1 seria essa ciencia rigorosa dos efeitos de
pròpria ontologia, nao de modo analógico, como ocorre superficie?” ' .
com a represen- tagáo, pois “a repetigáo é a17 única Husserl nâo está tâo longe assim de Deleuze quando
Ontologia realizada, isto é, a univocidade do ser” . Esse afirma que a consciéncia se supera em um sentido
programa filosófico apoia-se essencialmente em dois visado. Contudo, ele erra o alvo ao partir "de urna
filósofos: Espinosa que, na Ética, define os atributos faculdade originària do senso comurn encarregada de dar
como irredutíveis a géneros por serem formalmente conta da identida- de do objeto qualquer” 25. Essa incap
distintos - eles sao ontologicamente um enquanto acidade de romper com o senso comum condena o pro-
substancia. Deleuze partilha o monismo de Espinosa grama fenomenològico à impotencia. Embora Husserl
acrescen- tando-íhe a torgáo iniciada por Nietzsche, que tenha percebido bem a necessidade de romper
permite realizar essa univocidade reimprimin- do-Ihe provisoriamente com a doxa ao preconizar uma reduçâo
urna dinámica “como repetigáo no eterno retorno”15. A eidètica, ele conserva o essencial do senso comum com
univocidade tal como Deleuze segue o processo de sua ambiçâo de elevar o empirismo ao plano
radicalizagáo de Espinosa a Nietzsche estimula urna transcendental. Husserl compreendeu bem, entao, uma
crítica radical a toda substancia, incluida a espinosista: certa independència do sentido, mas “o que o impe- de
“Dai sua tese segundo a qual a substáncia como principio de conceber o senso comum corno uma piena
de ipseidade, de identidade em si e para si, é segunda, (impenetrável) neutralidade é a preocupa- çâo de guardar
derivada19 em relagáo ao devir-outro, efeito do eterno no sentido o modo racional de
retorno” . um bom senso e de um senso comum, que eie
Deleuze concluí sua tese com urna espécie de canto apresenta erroneamente como urna matriz . Ao contràrio,
»26

lírico, de grito filosòfico de natureza fundamentalmente Deleuze procura atingir a dimen- sào do pré-individual,
ontològica: “Urna unica e mesma voz para todo o do ìmpessoal, que nâo se confunde nem com qualquer
multiplo de mil vias, um ùnico e mesmo Oceano para profundidade informe nem com os esforços da
todas as20gotas, um único clamor do Ser para todos os conscìència. Esse nivel sìtua-se na pròpria superficie da
estados” Essa tomada de posigào sem equivoco pela emergència das singularidades, e estas últimas é que sâo
univocidade do ser nao significa, po- rém, urna “os27 verdadeiros acontecimentos fcran s c e n de n t ai
minoragào do mùltiplo, ao contràrio. Deleuze se explica s” .
na Lógica do Sentido, quando esclarece que a A outra tradiçâo que Deleuze exuma é a estoica, na
univocidade do ser “nao quer dizer que haja um único e qual ele se inspira ampiamente para avançar sua ideia de
mesmo ser:21 ao contràrio, os seres sao múltiplos e “conjunçâo disjuntiva”. De fato, essa noçâo de
diferentes” . Eíes provém dessa entidade paradoxal que conjunçâo é essencial nos estoicos, mesmo entre os
mantém juntos elementos incomensuráveis em urna menos lógicos entre eles. É urna corrente que raciocina a
síntese disjuntiva. partir da evidência das iraplicaçôes desta ou daqueia
A radicalizagáo da diferenga operada por Deleuze açâo. É óbvio, por exemplo, que ir ao banho implica sair
define urna vía ao mesmo tempo próxima e diferente respingado. Sabendo disso, nâo ha do que se queìxar -
daquela, fenomenològica, proposta por Husserl. Todo o isso é parte integrante do fato de ir ao banho. Trata-se de
percurso de Deleuze leva muito em conta as uma maneira de estrangular os julgamentos e a moral em
contribuigóes da fenomenologia, que se situa em um tal termos lógicos, visto que o importante é seguir as
grau de proximidade com suas posigoes que se pode conjunçôes que funcionara meìhor, o mais próximo
afirmar, a exemplo de Alain Beaulieu, que Deleuze nao possível de sua vontade. “Bordeando' assim seus desejos,
combate a fenomenología, mas “combate corri eia”22. evitam-se os riscos do inesperado e do desagradável. A
Deleuze travou urna relagáo ambivalente com a moral encontra-se entáo no entre-dois pelo qual Diogene
fenomenologia, mantendo-se à distància e ao mesmo Laërce define a maneira como os estoicos entendem a
tempo recuperando para uso pròprio um certo número de
filosofía: ‘A casca é a lógica, a clara é a moral, e a gema, puro na sua verdade eterna,29independentemente de sua
bem no centro, é a física'38. efetivaçâo espaço-temporal” . Seguindo as análises do
DeleuzeFrançois
se senteDosse
encorajado também pela concepçâo filósofo Victor Goldschmidt, Deleuze vê nessa postura
estoica 124
do acontecimento, por essa ligaçâo levada à estoica a expressâo mesma do desejo de encarnaçâo do
potência máxima entre acontecimento e lógica, por essa acontecimento puro na pròpria carne do sábio, sua
promoçâo do acontecimento sobre o atributo. Segundo vontade de “corporalizar” o efeito incorporai 80. Quando
os estoicos, tudo é potencialmente acontecimento, até o define as très figuras possíveis do filósofo, ele descarta
fenómeno mais ínfimo, o menos no- tável, concepçâo duas: aquela que busca no céu a verdade e aquela que, ao
que Deleuze retoma por sua conta, que encontra alì, contràrio, crê encontrâ-la nas profundezas da crosta
ainda, um ponto de apoio fundamental na distinçâo de terrestre, aquela que pensa atingi-la por um bâter de asas
natureza que eie opera entre “representaçâo” e “expres- e a que usa batidas de martelo. A essas duas posturas, ele
saó” em provetto desta última. O sábio estoico mantém- opôe a atitude estoica, que implica uma reorientaçâo de
se na superficie, é animado pela logica que Ihe permite todo o pensamento: “Nâo existe mais nem profundidade,
ter acesso ao acontecimento puro: "Là o sábio espera o nem altura”31.
acontecimento. ïsto é, compreende o acontecimento
Gilles Deleuze & Félix Guattari 125
O mundo das ídeias nos estoicos está na superficie. Sâo os A segunda vertente do estoicismo é a recusa da naturalizagáo da
acontecimentos mais cotidianos, aqueles aparentemente mais insig- física. Deleuze exprímiu em 1988 seu desejo de prosseguir o trabalho
nificantes, que o estoico mostra a quem lhe faz urna pergunta, O empreendido com Guattari e de consagrar urna obra a “urna especie de
mundo dos paradoxos, mundo dos contrastes, é mostrado por Dió- filosofía da Natureza, no momento em que desaparece toda diferenga
genes, o Cínico, e Crisipo, o Estoico, como se pode ter conhecimento entre a natureza e o artifició’ 41. De fato, Mil Platós nao está muito
por intermèdio de Diogène Laérce. Dessa atitude filosófica nasce um distante desse horizonte de urna filosofía da natureza, sub- jacente a
método que Deleuze qualifica de pràtica da perversào, “se3 é verdade toda a obra de Deleuze e Guattari, na qual os personagens conceituais
que a perversaci implica urna estranila arte das superficies” ^ François convivem com os afetos de tiques, o tornar-se animal do herói de A
Zourabichvili qualifica com pertinència o método deleuziano de Metamorfose, de Kafka, as relagóes entre a vespa e a orquídea em
método de perversào, que nâo tem muito a ver com as pequeñas Proust, ou ainda a relagáo com a terra em sua dupla dinámica de
máquinas perversas estigmatizadas pelos psicanalistas: “Há nele um desterritorializagáo e de reterritorializagáo.
alegre perverso”33. Do mesmo modo, Deleuze des- creve o capitào Ora, o mundo estoico oferece ali um modelo de plenitude interna e de
Achab de Melville como um perverso sublime e, em seu comentário vazio exteriorizado em relagáo ao mundo. O que prevalece nao vem de
sobre o grande sucesso de Michel Tournier, Sexta- -Feira ou os outro lugar, mas da própria natureza em suas expressoes mais diversas.
Limbos do Pacífico, celebra um mundo perverso sem outro. Esses usos A falta nao é mais o motor, pois “a Natureza deleuziana12só é imánente
filosóficos da perversào sâo múltiplos em Deleuze. Consisterai “ora nela mesma, é plenamente realizada em si mesma'' . Á parte de
em desviar pedaços de teorías de toda natureza e utilizá-las para outros quaíquer trans- cendéncia, é no plano da imanéncia que a na- tureza se
fins, ora ainda em relacionar um conceito às suas verdadeiras dá a 1er em suas formas, a partir de conexdes que questionam a
condiçoes, isto é, às forças e aos dinamismos intuitivos que o própria distingáo entre o natural e o artificial Existe na ver da- de um
subentendem, ora enfim, em vez de criticar de frente um tema ou urna fora, que Deleuze retoma de Blanchot e de43Foucault, mas é um “fora
noçâo, abordá-lo pelo viés de urna concepçâo inteiramente mais longínquo que todo mundo exterior” . Ele elimina assim toda
distorcida’34”35. distingáo entre interioridade e exterio- ridade por seu distanciamento e
Deleuze toma urna situagao concreta e observa onde se exprime sua indeter- minagáo. Esse universo assume o aspecto de um conjunto
um excesso de energía, onde esta foge e - ao contràrio da diatètica que de singularidades mais ou menos conectadas, agenciadas entre elas,
tem como meta superar as contradiçôes por urna síntese - procura urna espé- cie de “muro de pedras livres, nao cimentadas, onde cada
demarcar a iínha de fuga que mantém a tensâo paradoxal. Por isso elemento vale por si mesmo, mas em rélagáo com outro s“ 44. Desse
mesmo, renuncia à postura crítica de projeçâo em nome da qual se universo plural, multicósmico e que responde a lógicas de combinagáo
pode escolher urna linha e nao urna outra. Instala-se nessa posiçâo su- mais variadas, resulta urna “sintonía da Natureza”45 que converge com
bentendida pela frase enigmática do Bartleby de Melville: “Eu prefería o tema da simpatía universal entre as coisas terrestres e celestes dos
nâo”36. estoicos.
Deleuze encontra as experimentaçôes da atitude estoica sobretudo Resta o terceiro combate comum aos estoicos e a Deleuze, o da
na literatura, em Herman Melville, Lewis Carroll, Francis Scott recusa da tecnocrati- zagáo da ética. Urna vez libertadas as pedras do
Fitzgerald, Charles Péguy, etc. Nesse final dos anos de 1960, está muro de seu cimento de encaixe, o mundo aparece como
particularmente fascinado pelo poeta Joè Bousquet e pelo ferimento de fundamentalmente disparatado, deixando o caminho aberto as
que foi viti ma durante a Primeira Guerra Mundial: “É preciso chamar conexóes mais inéditas em um caosmo que nao permite mais enraizar
Joé Bousquet de estoico, O ferimento profundo que traz no corpo, ele firmemente um universo hierar- quizado de valores moráis. A que
o apreende em sua verdade eterna como acontecimiento puro"37. corresponde o desejo da vida boa segundo Deleuze quando do
Ferido no dia 27 de maio de 1918 no combate de Vailiy, Joé Bousquet langamento de Lógica do Sentido em 1968? Que moral adotar? Mais
nunca mais saiu da cama, onde os ferimentos o retiveram até sua urna vez, os estoicos sao fonte de inspiragáo com sua moral que pri-
morte em 1950. Viveu recluso em Carcassonne em um quarto com vilegia o acontecimiento: “A moral estoica diz respeito ao
janelas fechadas, dedicando-se à escrita poética. Ele3Sescreve: “Meu acontecimiento; consiste em querer o acontecimiento como tal, isto é,
ferimento existia antes de mìm, nasci para encamá~ló’ . em querer o que chega enquanto chega”' 16. Toda a filosofía do
Deleuze retoma também o triplo combate travado pelos estoicos: acontecimento de Deleuze está ali, nessa concepgáo qud nao privilegia
"Ninguém melhor que Deleuze enfrentou esses trés combates contra a nem o presentis- mo, nem a escatologia revolucionária, nem a
matematizagáo da lógica, a naturali zagao da física e a tecnocratizagáo nostalgia passadista para preservar um dinamismo pròprio à
da ética”39. No plano da lógica, ainda que Deleuze siga os estoicos singularidade de cada ser e que respeita os seres vivos. A ética é
nesse terreno, diferencia-se deles radicalmente por sua rejeigao da arte concebida, entáo, como urna “etologia superior”47.
de dizer a verdade da dialética e pelo pouco caso que faz da retórica
como arte de bem dizer. Ao contràrio, segue os estoicos na indagagáo
sobre os atributos transformados em infinitivos (intensificar, O cogito rompido
verdejar...) e sobre os artigos indefinidos (urna vida, um devir, chove, A elaboragáo de urna ontologia da diferen- ça passa por urna
morre-se...) e inclui os paradoxos, as proposigóes disjuntivas. O acon- crítica de todo pensamento que atribuida um papel exagerado ao
tecimiento é identificado como urna adequa- gáo entre a forma e a cogito, a toda concepçao voltada a urna suposta interioridade que
vida40. realizaría a harmonía entre o homem e o mundo circundante. Embora
suas, perspectivas estejam multo distantes, Deleuze Artaud pode ser confrontado ponto por ponto a Carroll,
retoma a fórmula apresentada por Ricoeur em 1965 em na medida em que descobriu a linguagem prodigiosa do
seu ensaio sobre Freud, Da Interpreta- çâo: “O Eu corpo vital. É nessa 13a seçâo de Lógica do Sentido que
ativo, mas fendido, nao é somente a base do superego, é
126 François Dosse
Deleuze identifica em Artaud o que se tomará um
o correlato do ego narcísi- co, passivo e ferido, em um concerto central de sua filosofìa, o “corpo sem órgaos”,
conjunto complexo que Paul48 Ricceur chamou mais tarde rebatizado de “CsO”. Como esclarece Anne
acertadamente de cogito abortado” . Sauvagnargues, o corpo sem órgaos nao é um corpo
Na concepgáo deleuziana, a busca de pro- cessos de desprovido de órgàos, mas um corpo “aquém da
individuagao, de afirmagáo da singularidade náo se determi- naçâo orgànica, um corpo com órgaos indeter-
reduz a um ego. Ao contràrio: 'A individualidade náo é o minados, uma corpo em via de diferenciaçâo”5a.
caráter do Ego, mas, ao contràrio, forma e nutre o Essa 13 seçâo de Lógica do Sentido é ponto nodal
sistema do Ego dissolvi do”49. O individuo náo é mais no percurso do pensamento de Deleuze, na medida em
considerado entáo como essa entidade irredutível e que essa descoberta da potencia das forças em açao no
indivisi- vel De fato, ele náo para de se dividir, de corpo dará lugar a possíveis patologías psicóticas que
mudar de natureza, de se fazer múltiplo a partir de sin- podem fa- zer ruptura nos jogos lingüísticos. Quando es-
gularidades pré-individuais segundo linhas de creve esse capítulo, Deleuze ainda nâo condece Guattari,
intensidade. É na estrutura de outro e em seu modo de e o mundo psiquiátrico ainda Ihe é totalmente estranho,
expressáo, a linguagem, que se situa finalmente a mas o encontró futuro parece já anunciado pelas
diferença encontrada. Na base da diferença, está a força questoes colocadas, Pode-se também levantar a hipótese
que representa o corpo que, de maneira gérai, foi de que a obra construida por Deleuze a partir dali nao
subestimado na tra- diçâo filosófica. Espinosa se responde mais a imperativos de ordem académica dos
mostrava surpreso já no sáculo XVII por nao se saber quais já se libertou, mas torna-se urna maneira de
melhor que potencia o corpo podía exprimir: “Espinosa exprimir seu proprio corpo: “É um tanto quanto
abría um caminho novo ás ciencias50 e à filosofìa: nós nietzschiana como atitude essa espécie de idiossincrasia
nem sabemos o que pode um corpo” . na obra a partir da qual se fala do pròprio corpo. Sua
Trata-se, portanto, de libertar a força de afirmagáo obra e os diversos objetos que aborda nao seriam meios
que o corpo contém em si, a firn de “evitar viver de diversos para amoldar o movimento corporal? O corpo
maneira separada de nossos modos de existencia vivo é dinàmico, está em movimento, e a questao é
ímanentes”5!. O corpo é singular, sua composiçâo nâo encontrar objetos que permitam descrever isso”56.
permite nenhum dos reducionismos em uso nas ciéncias Deleuze percorre entáo com o maior interesse um
neuro- nais que localizaría os genes e os neurotrans- campo ao qual já consagrou seu es- tudo muito
missores, pretendendo reduzir o comporta- mento comentado sobre Sacher-Masoch: a psicanátise. Com a
humano a urna simples transposiçâo da materialidade figura do psicòtico, descobre um ángulo morto da pràtica
subjacente do corpo humano. O corpo, segundo psiquiátrica, sua insufìcìèncìa em dar conta dele, sua
Deleuze, nâo tem a ver com um dentro: “Nenhuma impotencia para curar aqueles acometidos de patologías
linearidade demons- trativa abraça a 2subjetividade, pois graves. Deleuze considera que a psi- canálise continua
o sujeito vivente atravessa o corpo™ . É essa fenda que prisioneira da repetiqao sob o triplo registro do realismo,
provoca a virada decisiva na demonstraçâo filosófica do materialismo e do individualismo. Essa teoria da
empreendida por Deleuze na 13a seçâo de Lógica do repetiqào permanece fundamentalmente tributària de
Sentido quando eia passa das lógicas formais de urna filosofia da simples representagáo, par- tindo de um
superficie de Lewis Carroll àquelas, viudas das principio de identidade e de dìs- tanciamentos que se
profúndelas, de Antonio Artaud, que exprime o pode discernir em face de um modelo inicial.
sofrimento da esquizofrenia confrontada com a vida e Certamente, essa repe- tigáo que se opera na psicanálise
com a morte, se desloca no tempo sob máscaras diferentes. Também
0 que vive o esquizofrénico é justamente a ausência aqui Deleuze se separa de Freud e do modo de cau-
de superficie dos corpos: “0 primeiro aspecto do53 corpo salìdade que apresenta quando vè em agào um processo
esquizofrénico é urna espécie de corpo-coador“ . Essa de recalque que suscita esses traves- timentos do mesmo:
ausência de superficie deixa o caminho livre a urna “Nao se repele porque se recalca, mas se recalca porque
proliferaçào de corpos vindos das profundezas: “Tudo é se repe te™7.
corpo e corporal... Urna árvore, urna coluna,54urna flor, Da mesma maneira que Deleuze havia criticado o
urna vara penetrano através do corpo” .0 corpo mecanismo da contradigào na dia- lética hegeliana,
esquizofrénico assume très características: é um corpo- critica o dualismo subjacente ao freudismo, que, na
coador, um corpo fracionado e um corpo dissociado, teoria das pulsòes, atribuí um primado ao modelo
conflitual, à forma simples da oposigáo frontal, enquanto A reabilitagáo dos vencidos
“os conflitos58 sao a resultante de mecanismos diferenciáis Com a arte consumada de pensar contra seu tempo,
mais sutis” . Deleuze reconhece em Melarne Klein o Deleuze assume
Gillesurna posigào dia-Guattari
A metraìmente oposta
mérito de ter explorado o teatro dos horrores tal corno o Deleuze & Félix 127
das afìrmagòes peremp- A tórìas das tradìgòes triunfantes
vive o bebé no primeiro ano, perdido entre toda urna sè- e reabìlita as tradigóes esquecidas, as possíbilidades nao
rie de objetos introjetados ou projetados que permìtem A confirmadas. Revendo as controversias do pas- L
urna comunicagào dos corpos pela profundidade sado, eie ressimetriza, dando toda a atengao necessària
mediada por esses simulacros; “Melanie Klein a aos vencidos, que frequentemente sao portadores de
descreve69 como posigào pa- ranoide-esquizoide da devires mais interessantes do que aqueles, logo
crianga” O esquema kleiniano, que descreve essa institucionalizados, dos vencedores. Enquanto a
tentativa de conquista de urna identidade correspondente sociologia francesa se encarnou desde cedo, já no final
a esses objetos pare!ais, nào està muito distante do do sáculo XIX, ñas teses defendidas por Durkheim e sua
discernimento da posigào do esquizofrénico que, longe corrente, que se impuseram e se proion- L garam no
de substituir o bom objeto pelo mau, opòe a eie um triunfo irrestrito do estruturalismo nos anos 1960,
organismo sem partes, um corpo sem órgaos. Deleuze exuma em urna longa nota de sua tese a
Deleuze minimiza já na Lógica dos Sentidos a sociología de Gabriel Tarde, o grande vencido da
importancia nodal que a teoría freudiana atribui ao controversia que o opós a Durkheim; “A filosofìa de
complexo de Édipo. Longe de ver o risco da frustragáo Gabriel Tarde é urna das últimas grandes filosofías da
depressiva ou da agres- sividade esquizoide como Natureza, herdeira de Leibniz”, afirma Deleuze60
resultado do dese- jo edipiano do incesto, considera este Quando se sabe que Tarde escreveu que “existir é
último como urna tentativa de neutralizar tais riscos em diferir” e tentou, na virada do sáculo, restituir a
um espirito salvador. Chega a apresentar Édipo como dinàmica pròpria da diferenqa e 64apresentar “a
um “herói pacificador do tipo Hércules’ 60 Édipo é diferenga como objetivo dela mesma” , compreende-
movido, portanto, pelas melhores intenqoes do mundo, se todo o interesse de Deleuze por essa sociologia
mesmo que a historia acabe mal. Contudo, ao contràrio nutrida de filosofia leibniziana. Tarde recusa toda
do que pensam os freudianos, sua agao decorre de urna coisificagáo do social Parte da ideia de que as
“tragedia da Aparència”61. É, no sentido da tradigáo representa- goes coletivas nao sao um dado, mas um
estoica, alguma coisa que o corre, um aconte cimento construido, que sao trabalhadas por 65correntes de
puro projetado no plano da imanéncia. imitagao e movimentos de invengáo ; “Tarde se
Entretanto, a psicanálise ainda é reconhe- cida por interessa mais pelo mundo do detalhe, do infinitesimal;
Deleuze, em 1969, como urna disciplina promissora, as pequeñas imitaqóes, oposigóes e invengdes, que
urna verdadeira “ciéncia dos acontecimentos” 62, mas nao constituem toda urna materia sub-representativa”66.
verdadeiramente por sua capacidade de desvendar o Durkheim e sua escola acusaram Tarde de querer
sentido dos acontecimentos, pois o acontecimento é o reduzir a sociologia a urna psicologia ou
proprio sentido. Nesse plano, Deleuze segue Freud em interpsícologia, tendo a pretensáo de explicar o social
seu esforgo de distinguir o acontecimento do estado das pelo individual “Tarde jamais se reergueu”67. Portanto,
coisas no qual ele se realizou. 0 segundo mérito da foi excluido das ciéncias sociais com base em um
psicanálise é descentrar o sujeito, por sua teoria da contrassenso de grande eficácia polèmica, Contudo,
fantasia. Deleuze, como a maior parte dos intelectuais ele nunca quis dizer que a imita- gao decorna de urna
desse final dos anos de 1960, atribui um papel preemi- lógica individual e sim que eia “está relacionada a um
nente à psicanálise e inclusive se mostra muito atento fluxo ou a urna
aos escritos de Jacques Lacan e de Serge Leclaire para
esclarecer essas lógicas do corpo.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 128
onda, e nao ao Individuo. A imitagdo é a pro- pagagáodeumfluxd’ . m
Simondon carregava sozinho “um mundo surpreendente, o de um
Daí aimportáncia para Tarde dos cálculos infmitesimais, da estatístí- grande enciclopedista dos anos de 1960 que76realiza magníficamente a
ca em geral, para apreender no estado molecular as transformagoes ligaçâo entre física, biologia e filosofìa” . Além disso, era urna
mais ínfimas no campo das crengas e dos desejos. Fazer microssocio- homem de experiencia, de competencia, que conhecia de dentro o
logia á maneira como Tarde a inventou “é fazer o estudo das ondas de mundo das técnicas. Alias, desesperava-o a maneira como sua época
propagagáo de crenga e de desejo que percorrem o campo social”69. havia fracassado no contato com a inovaçâo técnica, nesse encontró
Jurista, Tarde se confrontou com as teorías biologistas sobre a marcado, pois a maioria dos utilizadores da técnica ignora
criminalidade defendidas por Lombroso, que havia considerado a ideia completamente seu modo de funcionamento e seus desafios. Simondon
de urna explicagáo social do ato criminoso, distinguindo-se de era professor, mas também homem de laboratorio: fazia experiéncias
Durkheim e de sua tese da criminalidade como fenómeno “normal” no em seu pròprio laboratorio na Rue Serpente, testando tanto quanto
plano social, nao imputávei a atores singulares, Esse combate em duas possível aquilo sobre o que iría falar.
frentes de batalha nao contribuiu para dar visibilidade ás suas teses. Já em 1966, Deleuze escreve urna resenha da pubìicagao parcial
Contra toda forma de reducionismo, Tarde se apoia no saber biológico de sua tese de doutora- do, defendida em 195877, A tese de Simondon
com a competencia estatística. impressiona Deleuze por sua originalidade. Eie encontra, enfìm, um
Como assinaia Éric Alliez, o projeto de Tarde inscreve-se em urna pensador para 8quem o individuo “nao é apenas resultado, mas meio de
perspectiva leib- niziana: “Nao se poderla projetar outro ponto de individuagao"' . Encontra também um ponto de apoio em seu
partida que nao leibniziano”70. De fato, Tarde inspira-se em Leibniz confronto com Hegel gragas à nogáo de “desaparìgào”, tirada do
para desenvolver urna forma de panvitalismo do infinitesimal. vocabulàrio da psicofisiologia da percepgáo, que lhe parece mais
Durkheim conseguiu fazer com que Tarde passasse por um adequada e profunda que a nogáo hegeliana de oposigào.
psicologista promotor de um método puramente individualista e Deleuze se apropria dessa teoria simondia- na da individuagao por
submisso a um naturalismo biológico, embora ele tenha desejado diferenciagao intensiva: “A individuagao aparece justamente como a
construir urna sociología de vocagáo universal, mas fundada em urna chegada de um novo 79momento do Ser, o momento do ser Jasado,
abordagem que desse l ugar ás dife rengas, ás multiplicidades do ser acoplado a si mesmo” . Ele descobre ali urna dimensào ontològica,
vivo segundo o principio leibniziano de que urna mónada singular mas urna ontologia da diferenga, das multiplicidades: “O que
contém o mundo em sua totalidade. Seu problema é de inicio de ordem Simondon elabora é toda urna antologia, segundo a qual o Ser jamais
sociológica. Ele alega um vetor em agáo na sociedade, urna especie de é Uno”50. A problemática simondiana serve a Deleuze de máquina de
desejo de ser específico a cada mónada, “um sentido o mais próximo guerra eficaz contra a dialética hegeliana: a ideia de “desaparigáo” val
possível da Jorga'11. Urna lógica da potencia de ser de ordem espi- dar em Deleuze o conceito de “dispar”, de “disparídade consti tuinte”,
nosiana encontra-se em agáo e orienta o desejo para um ter: “Há de “diferenga em si”: “Essa teoria do dispar prepara a 81síntese
portanto em Tarde um poder constituinte do socius>72. É fácil com- heterogénea e define a diferenga como diferenga de diferenga” .
preender que Deleuze só pode ficar seduzido por esse materialismo Simondon contribui finalmente para consolidar a nogáo de corpo
vitalista voltado intei- ramente à liberaçâo da pluralidade das forças, sem órgáos, dando- -lhe urna base ñas ciencias da vida, Deleuze re-
transformando a concepgao de Durkheim segundo a qual a sociedade é encontra nele essa arte dos limites que rompe o dualismo entre
urna coisa em vitalismo social. Quando Deleuze, em sua tese em 1968, interioridade e exterioridade e íhe permite dizer que “o mais profundo
e ainda com Guattari em 1980, insiste sobre a contribuigao de Tarde, é a pele: ‘O ser vivo vive no limite de si mesmo, no seu limite.., A
prega no deserto, Contudo, essa reapropriaçâo assume um aspecto polaridade característica da vida está no nivel da membrana” 82. Tal
profètico: contata-se na Franga, desde o final dos anos de 1990, um abordagem do ser vivo escapa também das explicagóes causáis
“efeito Tarde", tanto mais marcante à medida que, se nos permitem mecanicistas para substituí-las pelo primado dos processos com
dizer, foi retardado. múltiplas varia- goes de intensidade.
Deleuze atribuí também urna grande importáncia a um pensador Outro grande vencido exumado por Deleuze é o biólogo Étienne
solitàrio, seu contemporáneo, Gilbert Simondon, que se interessa pelos Geoffroy Saint-Hilaire que perdeu seu combate contra Cuvier. Aqui
fenómenos de individuaçâo, pelo cruzamento de múltiplas culturas, ainda, como a propòsito do confronto entre Durkheim e Tarde, é o
tanto técnicas e científicas, quanto filosóficas. Ele encontra em elemento temporal, a introdugàO'de urna dinàmica e a atengáo a um
Simondon a busca de processos de individuaçâo que traçam seu processo aberto prestes a se realizar que retém o olhar de Deleuze e
caminho a partir do encontró de duas ordens de grandeza entre as quais que o fazem preferir as orientagoes de Geoffroy Saint-Hilaire ao esta-
se desencadeiam urna onda, urna intensidade, potencial: “A tismo da tipología de Cuvier. Contudo, na época, é Cuvier que aparece
individuaçâo é um ato de intensidade que impulsiona as reía- çôes como moderno, ao langar as bases de noves caminhos para a biología,
diferenciáis a se atualizarem”'’ 7'. Simondon consegue explorar esse ocupada em estudar a coordenagao das diversas fungoes do organismo
estrato pré-individual como reservatório de singularidades^. O indi- para cada espèrie. Ao contràrio desse funcionalismo, para83 Geoffroy
viduo, segundo Simondon - e Deleuze -, nâo é um ser estável, mas o Saint-Hilaire “a introdugáo do fator temporal é essencial” . Geoffroy
resultado de um encontró de processos, de operaçôes e de formas, um Saint-Hilaire é convocado por Deleuze, assim como Simondon, para
encentro de energías diferenciáis “entre afetos, dar sustentagao à sua ontologia da diferenga. 0 corpo deve se libertar
perceptos e emogoes .
»7$
do jugo das fungoes do organismo, e Deleuze evoca a “ge- nialidade
de Geoffroy1‘ífM, que, ao contràrio de Cuvier, soube dar Para se afirmar como programa filosófico, a
lugar às relagòes diferenciáis entre elementos ontologia da diferença deleuziana precisou, portanto,
anatómicos puros. rever o possível nao confirmado, barrado, de alguns
Geoffroy Saint-Hilaire afirmava em 1837 que seu trabalhos Gilles
da tradiçâo excluidos da historia do
Deleuze & Félix Guattari 129

sonho era se tornar o Newton do infinitamente pequeño, pensamento. Nao se fcra- tava, nem para Deleuze nem
“descobrir o mundo dos detalhes ou das conexoes ideáis para Guattari, de transportá-los como tais, mas de
a curtíssima distancia’”55. Nesse caso também, as traduzi-los, de transformá-los em operadores lógicos de
diferencia- góes sao urna questáo de velocidade, de acordo com sua pròpria construçâo filosófica.
intensidade, 86de lentidoes “que medem o movimento da
atualizagáo” . Opondo os argumentos de Cuvier e os de
Geoffroy Saint-Hilaire, Deleuze emprega pela primeira A outra metafísica
vez em sua tese o conceito de "dobra”, que retomará Diante da pergunta feita por Arnaud Villani: “O
mais tarde e que dará o título de seu ensaio sobre senhor é um filósofo nâo metafisico?”, Deleuze
Leibniz: em 1988: “A discussáo encontra seu método e respondeu: “Nâo, eu me sinto puro metafisico”90.
sua prova poética na dobragem: é possível, por Provocaçâo num momento em que se declarar metafisico
dobragem, passar do Vertebrado ao Cefalópo- de?”87, era considerado o cúmulo do arcaísmo? É improvável.
Deleuze faz de Geoffroy Saint-Hilaire: o defensor de Existe nele a ideia de construçâo de um sistema - po-
urna concepgáo monista, espi- nosiana, que promove um deríamos acrescentar antissistemático - e a vontade de
plano de composi- gáo como pura multiplicidade. Sente- elaborar urna nova metafísica ade- quada à lógica das
se entáo:: encorajado pelas teses de Geoffroy a alegar a multiplicidades. Deleuze se explica na carta enviada a
faculdade de variagóes da atualizagáo diferenciante: Jean-CIet Martin em 1990: ‘Acredito na filosofìa como
“Um lugar à parte deve ser atribuido à relagáo sistema. O que me desagrada é a noçâo de sistema quan-
Espinosa/Geoffroy Saint-Hilaire, o plano de composigáo do a relacionam ás coordenadas do Idéntico, do
que fornece o ponto de:88partida á concepgáo deleuziana Semelhante e do Análogo... Sinto-me um filósofo muito
do plano da imanéncia” . clàssico. Para mim o sistema nâo apenas deve estar em
Deleuze também encontra apoio para sua ontologia perpetua heterogeneida- de, como deve ser 91 uma
da diferenga em Raymond Ruyer, cujo programa, heterogénese, o que, me parece, nunca foi tentado” .
exposto em 891938, é empreen- der uma filosofia da Situando-se em tensâo paradoxal entre o Uno e o
diferenciaçâo . Para guyer, como para Tarde, existir é múltiplo, nâo cedendo nem sobre a univocidade, nem
diferir, pois a criaçâo opera por diferenciaçôes. Assim, sobre a pluralidade de singularidades, sua metafísica se
em conferência de 1938, Ruyer opôe a relaçâo mecánica desenvolve no plano da imanencia em torno desse
do comportamento animal quando movido por urna oxímoro que é nele sua noçâo de “superficie metafísica’,
causali dade forte, por exemple, quando segue em linha na mais pura tradiçâo estoica: “Na realidade, a
reta em direçâo à sua comida. Ao contràrio, quando se metafísica que Deleuze reivindica é menos um nome
vè diante de um perigo, um complexo de fatores vai de- (uma 93essência) que um adjetivo (uma ‘maneira de
terminar a “geodésica animai” para se afastar dele - ser’)” . A univocidade é um principio em93 Deleuze, e
afastamento que, segundo Ruyer, decorre de uma nâo pode ser diferente: “0 Ser é unívoco” , o que nâo
criaçâo. É o encontró com o obstáculo que estimula o significa, ao contràrio do que gostaría de faze-lo dizer
animal a criar, e isso, naturalmente, reforça muito Alain Badíou, que a univocidade afirmada por Deleuze
Deleuze, para quem o verdadeiro pensamento nâo é uma remeta ao primado do Uno94. De fato, imediatamente
operaçâo espontánea, natural, mas vem de uma necessi- após ter afirmado essa univocidade, Deleuze acrescenta:
dade exterior, de um encontró, de um corte de fluxo que “O essencial da univocidade nâo é que o Ser se diga em
o obriga a isso. um único e mesmo sentido, mas que ele diga, em um
0 projeto de Raymond Ruyer é articular os único e mesmo sentido, de todas as suas diferenças
ensinamentos da revoluçâo da física quàntica e o individuantes ou modalidades intrínsecas”9'’. A
dominio vital do biológico. Ele distingue dois planos que metafísica de Deleuze é a do desenvolvimento da figura
Deleuze e Guattari retomarâo para outro uso, o plano do paradoxo, da tensâo levada ao extremo contra a doxa,
“molar” dos grandes conjuntos estatísücos e o plano o senso comum sempre tomado entre alternativas, diante
“molecular”, do microfísico psicológico e vital. Ruyer de escolher este ou aquele termo, e assim se confinando
quer aínda valorizar o nivel das interaçôes e dos facilmente naqulio que Deleuze estigmatiza como o
fenómenos individuantes descoberto pela nova verdadeiro mi- migo da filosofia, a imbeciìidade. É
microfísica, agregando os resultados da biologia sobre o inclusive o sentido mais eminente que ele reconhece no
modo de funcionamento das moléculas.
discurso filosófico: “Se o pensamento só pensa coagido heterogeneidade pura e o primado da relagáo entre essas
e forçado, se permanece estúpido enquanto nada o força diferencias em urna “ontologia da relagáo”100.
a pensar, o que o força a pensar nâo seria também a Avalia-se a que ponto tal pesquisa oferece, na virada
existencia da im- becilidade, ou seja, que ele nâo pensa
130 François Dosse
do sáculo, os prolegómenos da ontologia da diferenga
enquanto nada o força?”96, preconizada por Deleuze. Para esses pensadores,
Ainda que o horizonte metafisico pareça ter sido tratava-se, de fato, de ir mais adiante em um
evacuado pelo paradigma estruturalis- ta dominante nos descentramento do homem para melhor reemergi-lo em
anos de 1960, Deleuze man- tém essa direçâo, essencial seu meio vivo e reencontrar assim a unidade perdida, de
para eie, em suas duas obras publicadas em 1968 e 1969. desumanizar o homem para melhor humanizar a
Contu- do, “nâo se deve fazer de Deleuze urna espécie natureza, naquilo que Pierre Montebello qualifica de “a
de OVNI da filosofia. Eie se inscreve em urna tradiçào e mais humana das metafísicas do cosmos e a mais
inventa sua tradiçâo”, adverte com multa pertinència cosmica das metafísicas do homem posteriores à
Pierre Montebeììo97. Como já vimos, há todos esses revolugào copernicana’101. Assim, a questào nao era
autores clássicos da historia da filosofìa revisitados por exumar a velha' metafísica que concede demais ao
Deleuze, particularmente a triade vitalista constituida mesmo, à identìdade do modelo, mas de construir urna
por Bergson, Espinosa e Nietzsche. Pode-se notar nova metafisica, fazendo ressurgir urna filosofia da
também urna concordancia surpreen- dente com aquilo Natureza que abre espago ao desenvolví- mento de
que Pierre 98Montebello qualifica como sendo “o outro todas as diferengas, pois “o ser está efetivamente do
metafisico” . lado da diferenga, nem uno? nem mùltiplo”102.
A ruptura moderna em todos os aspectos enquanto 0 problema fundamental que colocam esses
revoluçâo copérnico-galiìeana esta- belece um corte metafísicos é justamente a incapacida- de tanto da
entre o mundo aqui de baixo e a autoridade celeste ciència quanto do racionalismo em geral de pensar a
abrindo-se para o infinito, e urna matematizaçâo da multiplicidade de nosso ; mundo. Assim, Tarde, que,
natureza, urna evacuaçao do sujeito pensante. Eia como vimos, teve: urna enorme importancia para
submete as categorías do espaço-tempo a urna relaçâo de Deleuze, tenta compreender a gánese das diferengas
exterìoridade que se prolonga com o cogito cartesiano e mais ínfimas: “Tarde langa a hipótese de que a natureza
com a critica kantiana. Toda essa evoluçâo provocou é a consteìagào cosmica das pequeñas diferengas
urna crise do pensamento metafìsico e um primado monádicas”108, Nao se trata de virar ; as costas para a
concedido ao dominio propriamente científico que é auto ciència, pois suas descobertas ; sao absolutamente
no mi- zado graças às suas conquistas sempre novas, essenciais para compreender melhor tal dispersáo de
mas cada vez mais separado da unidade postulada até heterogeneidades, e sìm de religà-la ao infinito do
entâo entre o homem e o cosmos. Na virada do sáculo universo. Nesse plano, a explicagào física logo topa
XIX para o sáculo XX alguns pensadores tentaram com seus limites, pois suas leis nào levam em conta as
refundar essa unidade rompida entre a experiencia relagòes laterais, transversais das mónadas;;, entre elas,
humana e essa unidade originària; “Esse foi99 um nem sua agao de interpenetragao:- “Cada àtomo é um
momento extraordinàrio de criaçao filosófica” . À universo em projeto”, es- creve Tarde 109. Procurando
indaga- çâo sobre a unidade do Ser ressurgiu graças a reencontrar uma : unidade, ter acesso à univocidade do
urna renovaçao profunda da indagaçâo metafísica. mundo, esses pensadores se agarram a todas as formas
Longe de procurar refundar essa unidade por meio de de dualismo. Descobre-se ali um adversario comum a
urna interioridade maior do sujeito pensante, dç um Deleuze com a ideia de que se pode superar a oposigao
primado do cogito, trata-se agora de pôr ëm evidencia a entre matèria e espi-
Gilles Deleuze & Félix Guattari 131
rito e substituí-la pela força da afirmaçâo da Goddard, poderia causar sur- presa ver assim Deleuze mobilizar
vida em todas as suas formas: “Se o ser em si é, Fichte, considerado o pensador por exceiéncia do sujeito, mas seria
fundamentalmente, semelhante ao nosso ser, ignorar a leitura que haviam feito dele os primeiros mestres de
nao sendo mais aquilo que nao se condece, Deleuze, Jean Hyppolite ou Víctor Goldschmidt Estes últimos
ele torna-se aquilo que se manifesta”100. Como apresentaram a compreensáo do transcendental fichtiano como campo
diz Nietzsche, o mundo é “um mundo de rela- _ »106 çoes sem sujeito da produqáo do sentido, como “imanéncia integral
A ontologia, tal como a concebe Deleuze, deve ser sempre colocada no fundamento, como campo a-subjetivo: ‘Reencontrando
indexada ao dever-ser. É por ísso que ele se qualifíca sem reservas Fichte a véspera de sua morte, Deleuze simplesmente retor- nava 113 ao
como “empirista transcendental”, o que o aproxima de Whitehead: que havia sido o ponto de partida de todo seu trabalho filosófico’” .
“As categorias pertencem ao mundo da representaçâo, e a filosofía foi A substituigáo da intencionalidade pela íntuígáo intelectiva e
tentada corn frequência a opor a elas noçôes de outra natureza, formadora da imagem, mediadora, também reaproxima Deleuze de
realmente abertas, testemu- nhando um sentido pluralista e crítico da Fichte em sua recusa comuni do objetivismo e do pensamento da
Ideia, existenciais, perceptos, e a lista de noçôes empírico-ideáis que representagáo, substituí ndo-os por outra metafisica: "O que a i m age
se encontra em Whitehead, e que faz 107 de Process and Reality um dos m-fan tasi a, a imagem sonhada sem sonhador nem mundo sonhado,
maiores livros de filosofía moderna . Mais tarde, em A Dobra, revela para Fichte, como para Deleuze, é o114ser em sì, o ser verdadeiro,
Deleuze se apoia mais firmemente ainda nas teses de Whitehead a o Ser-Uno como via e ativìdade ilimitada” .
propósito da natureza do acontecimento como vibraçâo contendo uma
infinidade de harmónicos. Ele encontra em Whitehead, assim como Notas
em Bergson, a pergunta para saber como uma produ- çâo subjetiva é 1. Gilles DELEUZE, DR, p. 1.
capaz de criatividade: “Para Whitehead, o individuo é criatividade, 2. Ibid., p. 82.
forma- çâo de um Novo”108. Deleuze é um empirista transcendental à 3. Ibid., p. 85.
maneira de Whitehead, com aconvicçâo de que o abstrato nâo explica, 4. Ibid., p. 168.
mas deve ser explicado, e que nâo se trata de atingir : as leis do 5. Ibid., p. 92,
universal, mas de discernir as condi- çôes da produçâo do novo, o que
implica partir dos estados de coisas que nâo podem ser senâo : 6. Gilles DELEUZE, LS, 1969, p. 153,
multiplicidades. Há uma grande proximidade entre esse aventureiro de 7. Gilles DELEUZE, DR,p. 269.
devires plurais que é Whitehead, para quem “fixar limites à espe- 8. Gilles DELEUZE, Le Pii. Leibniz et le baroque, Minuit, Paris, 1988
culaçâo é trair o futuro”109 e o grande viajante “imóvel” que é (doravante citado Pii),
Deleuze, cujas viagens sao de or- dem especulativa. Ele também 9. Gilles DELEUZE, DR, p. 269.
converge corn Whitehead em sua crítica de um cartesianismo que 10. Ibid., p, 293.
isola a razâo do resto do mundo, separa-a da alma e da materia. Tanto 11. Ibid., p. 205.
em um como no ou tro, igualmente metafísicos, contata-se uma : 12. Gilles DELEUZE, DR,p. 45.
insistênciauoem fazer valer a plena realidade do Virtual ainda que nâo 13. Ibid., p.74.
seja atual” 14. Ibid., p. 79.
Uma proximidade tao surpreendente tem a ver com essa outra 15. Ibid., p. 157.
metafísica que atribuí um primado também á relaqao, sempre a 16. Ibid., p. 255.
conjun- gáo, o “e”, fonte de agenciamentos, das cone- xoes mais 17. Ibid., p. 387.
diversas. Contudo, a analogía para no terreno do religioso, pois a 18. Ibid., p. 388.
metafísica de Deleuze recusa a pertinéncia de um discurso de ordem 19. Guillaume Sibertìn-Blanc, entrevista com o autor.
teológica, que ele sitúa em uma ex- terioridade absoluta em relagáo á 20. Gilles DELEUZE, DR,p. 389.
indagaqao filosófica. Seu problema é encamar o melhor possível o 21. Gilles DELEUZE, LS,p. 210.
filósofo, justamente separando es- ses dois campos incomensuráveis e 22. Alain BEAUUEU, “Husserl”, em Stéfan LE- CLERQ, Aux sources-de la
colocando apenas questóes que podem retornar á filosofía. Nesse pensée de Gilles Deleuze 1, Sìls Maria, Mons, 2005, p. 84.
ponto fundamental, como mostra Arnaud Villani, os caminhos se 23. Paul VIRILIO, Voyage d’hiver, entrevista com Marìanne Brausch, ed.
separam entre um Deleuze que recusa toda transcendencia e um parenthèses, Paris, 1997, p. 47'.
Whitehead cuja filosofía se transforma em “sot enología”1 H. 24. Gilles DELEUZE, LS,p. 33.
O último texto de Deleuze publicado em vida, algumas semanas 25. Ibid., p. 119.
antes de seu faleci- mento, e que tem um valor quase testamenté- rio, é 26. Ibid., p. 124.
ainda uma afirmaqáo metafísica: “Pode- -se dizer da pura imanéncia 27. Ibid.,?. 125.
que ela é UMA VIDA, e nada mais,m. Nesta última ocasiáo, Deleuze 28. Diogene LAERCE, citado por Gilles Deleuze, LS, p. 167.
mobiliza um filósofo pouco citado por ele até ali: Fichte, que, em seus 29. Gilles DELEUZE, LS, p. 172.
últimos trabadlos, sobretudo em sua Iniciagáo a Vida Feliz, consegue 30. Victor GOLDSCHMIDT, Le Système stoïcien et Vidée de temps, Vrin, Paris,
superar as aponías da sepa- raqáo entre o objeto e o sujeito. Como 1953.
assi- nala o especialista do pensamento fichtiano jean-Christophe 31. Gilles DELEUZE, LS, p. 155.
32. Ibid., p. 158. :
67, Gilíes Deleuze, curso na universidade de Pa- ris-VHI, 7 de
33. François Zourabichvili, entrevista com o autor. janeiro de 1986, arquívos sonoros, BNF.
34. Gilles DELEUZE, PP, p, 229, 68. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 267.
35. 132 François Dosse
François ZOURABICHV1LL Le Vocabulaire de Deleuze, 69. Gilles Deleuze, curso na universidade de Pa- ris-VHí, 7 de
op. cit., p. 43. janeiro de 1986, arquivos sonoros, BNF.
36. Gilles DELEUZE, posfacio a MELVILLE, Bar- tleby, : 70. Éric ALLIEZ, prefacio a Œuvres de Gabriel Tarde, vol. I,
Flammarion, Paris, 1989; reproduzido em CC, p. 89-114. Monadologie et sociologie, Synthé- labo, Paris, 1999, p. 11,
37. Gilles DELEUZE, LS, p. 174. 71. Ibid., p. 23.
38. Joë BOUSQUET, citado por Gilles DELEUZE, LS.p. 174. 72. Ibid., p. 25.
39. Alain BEAULIEU, “Gilles Deleuze et les stoïciens", em 73. Gilles DELEUZE, DR, p. 317.
Alain BEAULIEU (sob a dir.), Gilles Deleuze, héritage : 74. Gilbert SIMONDON, L'Individu et sa genèse physico-
philosophique, PUF, Paris, 2005, p. 50. biologique, PUF, .Paris, 1964.
40. Eie nâo designa um objeto presente, mas ao mesmo tempo 75. Pascal Chabot, entrevista com o autor.
passado e por vir, quebran- do assim todo impacto da 76. Ibid.
negativìdade em proposiçoes disjuntivas do tipo: “Como : 77, Gilbert SIMONDON, L’Individu et sa genèse physico-
dizia Crisipo: ‘Se você nâo perdeu urna coisa, voce a tem; biologique, op. cit.-, resenha de Gilles DELEUZE, “Gilbert
ora, você nâo perdeu os chifres, portanto você tem chifres.’” Simondon, l’individu et sa genèse physico-biologique",
(Chrisippe em GILES DELEUZE, LS, p. 161), Por essas Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol.
proposiçoes, Deleuze pretende criar movimento no funcio- CLVJ, n. 1-3, janeiro-março de 1966, p. 115-118;
namento da lògica. .reproducido em Gilles DELEUZE, ID, p. 120-124.
41. Gilles Deleuze, Le Magazine littéraire, setem- bro de 1988, 78. Ibid.,emlD, p. 120-121.
entrevista com Raymond Bellour e François Ewald;
reproduzido em PP, p. 212. 79. Ibid., p. 123.
42. Alain BEAULIEU, “Gilles Deleuze et les stoïciens”, op. 80. Ibid., p. 124.
cit., p. 63. 81. Anne SAUVAGNARGUES, “Gilbert Simon- dori\ em
43. Gilles DELEUZE, Michel Foucault, Minuit, Paris, 1986, p. Stefan LECLERQ (sob a dir,), Aux sources de la pensée de
92 (doravante citado F). Gilles Deleuze 1, op. cit., p. 196-197.
44. Gilles DELEUZE, CC, p. 110. 82. Gilbert SIMONDON, L’Individu et sa genèse physico-
45. Gilles DELEUZE, SPP, p. 170. biologique, op. cit., p, 260.
46. Gilles DELEUZE, LS, p. 168. 83. Gilles DELEUZE, DR, p. 278.
47. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p, 71. 84. p. 240.
48. Gilles DELEUZE, DR, p. 146, 85. Ibid., p. 239.
49. Ibid,, p. 327. 86. Ibid., p. 240.
50. Gilles DELEUZE, Nph, p. 44, 87. Gilles DELEUZE, DR, p. 278.
51. Bernard ANDRIEU, “Deleuze, la biologie et la vivant des 88. François CHOMARAT, “Geoffroy Saint-Hi- iaire”, em
corps”, em Concepts, Gilles Deleuze, ed. Sils Maria, Mons, Stéfan LECLERQ (sob a dir.), Aux sources de la pensée de
2002, p. 94. Gilles Deleuze 1, op. cit., p. 181.
52. Ibid., p. 92. 89. Raymond RUYER, “Le psychologique et le vital”, Bulletin
de La Société française de philosophie, 26 de novembre de
53. Gilles DELEUZE, LS, p. 106. 1938, A. Colin, 1939, p. 159-195.
54. Ibid., p. 106. 90. Giües DELEUZE, “Réponses à une série de questions”,
55. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op. cit., p. nov. 1981, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et l’Orchidée,
87-88. op. cit., p. 130.
56. Bernard Andrieu, entrevista com o autor. 91. Gilles Deleuze, carta de 13 de junho de 1990 a Jean-Clet
57. Gilles DELEUZE, DR, p. 139. MARTIN, Variations. La philosophie de Giües Deleuze,
58. Ibid., p. 140. Payot, Paris, 1993, p. 7.
59. Gilles DELEUZE, ES, p. 218, 92. Alain BEAULÏEU, “Gilles Deleuze et les stoïciens", em
60. Ibid., p. 234. Alain BEAULÏEU (sob a dir.), Gilles Deleuze, héritage
philosophique, op. cit., p. 52.
61. Ibid., p. 241, 93. Giües DELEUZE, DR, p. 52.
62. Ibid., p. 246. 94. Ver capítulo “1977: année de tous les combats”.
63. Gilles DELEUZE, DR, p. 104, nota 1. 95. Gilles DELEUZE, DR, p. 53,
64. Gabriel TARDE, “La variation universelle”, em Essais et 96. /¿Ed., p. 353.
mélanges sociologiques, Stock e Mas- son, 1895, p. 391.
65. Gabriel TARDE. Les Lois de l’imitation, Alean, París, 97. Pierre Montebello, entrevista com o autor.
1890. 98. Pierre MONTEBELLO, LAutre Métaphysique, DDB,
66. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 267. Bruxeias, 2003.
99. Ibid., p. 8. 107. GillesGiües Deleuze & Félix Guattari 133
DELEUZE, DR, p. 364.
100. Ibid., p. 10. 108. Gilles DELEUZE, Pii, p. 105.
101. Ibid., p. 12. 109. WHITEHEAD, La Fonction de la Raison, et autres essais,
102. Gilles DELEUZE, "Bergson, 1859-1941", em M. Payot, Paris, 1969, p. 156.
MERLEAU-PONTY (sob a dir.), Les Philosophes célèbres, 110. Arnaud VILLANI, “Deleuze et Whitehead", Revue de
I Mazenod, Paris, 1956; reprodu- zido em ID, p. 33. métaphysique et de morale, ahriLjunho 1996, p. 247.
I 103. Pierre MONTEBELLO, L’Autre Métaphysique, op. cit., p. 111. Arnaud VILLANI,, “Deleuze e Whitehead”, op. cit., p. 256.
113. 112. Gilles DELEUZE, “L’immanence: une vie", Philosophie, n.
104. Gabriel TARDE, La Logique sociale, Institut Synthélabo, 47, setembro de 1995, p. 3-7; repro- duzido erri RE, p. 360.
Paris, 1999, p. 231. 113. jean-Christophe GODDAKD, Fichte. L'émancipation
105. Gabriel TARDE, Monadologie et sociologie, op. cit., p. 44. philosophique, PUE Paris, 2003, p. 8.
106. NIETZSCHE, Œuves complètes, Fragments posthumes, 114. /¿El p. 15.
XIV 14(93).

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Maio de 68: a ruptura instauradora
Nesse mès de
maio de 1968, o “movimento de 22 de margo” reúne-se todos os dias
para preparar manifestagòes cada vez mais ampias e combativas.
Quando Anne Querrien, estu- dante de Nanterre, amiga de Deleuze e
pes- quisadora ativa do CERFI, chega com a mulher de Serge July,
Évelyne, para a reuniáo do movimento, na noite 8 de maio, eneontra a
porta fechada com o seguiate aviso: “Estamos na casa de Félix”. De
fato, os militantes do 22 de margo realizara suaü reuniáo na sede do
CERFI, no número 17 da Avenue de Verzy, no 17 distrito de París.

Como urn peixe na água


Fortuitamente, o CERFI se dissolve no “movimento de 22 de
margo” em um momento crucial da contestagáo de Malo. Nessa noite
de 8 de maio, o CERFI tinha previsto preparar um numero especial de
sua revista sobre a contestagáo estudantil: "A gente tinha portanto
marcado reuniáo com Cohn-Bendit e alguns outros na Avenue de
Verzy no dia 8 à noite, e estavam todos na maniíestagáo da Halle- aux-
Vins. A maniíestagáo custa a se dispersar, e a gente diz: encontró na
Avenue de Verzy, mas Cohn-Bendit está acompanhado entáo de 25
pessoas, e a gente decide que todos devem voltar para lá, com july,
Sauvageot, Geismar”1. Daniel Cohn-Bendit e os líderes do movimento
estao um pouco irritados com as manobras em curso para conter a
contestagáo crescente. Os representantes do SNESupy Alain Fes- mar,
e da UNEF, Alain Sauvageot, passaram o dia todo negociando com os
representantes do poder em busca do retomo à calma após a grande
manifestagáo de 7 de maio, que termi- nou nos Champs-Élysées.
Na Avenue de Verzy, pro cura-se desesperadamente manter vivo o
movimento, quando por volta de 3 horas da manhà Alain Geismar
empurra a porta. Està decomposto pelo cansago, e pela tensào por eie
vivida entre a responsabilidade sindical, que o obriga a negociar, e
suas convicgòes revolucionárias, que o levam à inflexibiìidade:
“Diante dos enralecidos do 22 de margo, ele veio se explicar, táo2
intenso é seu desejo de mergulhar Mico nessa lava transbordante” .
Geismar explica com lágrimas nos olhos que teve de admitir o inacei-
tável, conseguiu a libertagáo dos estudantes detidos, com excegáo dos
estrangeiros. É nes- se momento que a assembleia gérai do 22 de
março decide que a jornada de mobihzaçâo de 10 de maio será a da
intransigência sobre as duas reivindicaçôes do movimento, que sâo a
libertaçâo de todos os estudantes detidos sem discriminaçâo e a
reabertura ¡mediata da Sorbonne. Às 4 horas da manhâ, resolve-se re-
digir um panfleto a ser distribuido ampiamente convocando para uma
grande manifestaçâo em 10 de maio - serâo impressos mais de 400 mil
exemplares.
Félix Guattari passa ampiamente à margeur dessa amigos da FGERI costumano trabalhar com os pesqui-
longa noite das barricadas da Rue Gay-Lussac. Chega ao sadores desse instituto, mas os militantes de base do
local de moto às 4 horas da manhâ, sem jeito, e movimento Gilles
ignoram até sua pròpria existência: a
procurando na bruma matinal seu amigo do CERFI, ocupaçâo desse local Ibes parece um pouco bizarra.
Deleuze & Félix Guattari 135

François Four- quet, que acaba encontrando perto do Outra ocupaçâo, mais espetacular, é a do Théâtre de
Jussieu um pouco atordoado por causa do gás lacri- l’Odeon. Seu iniciador é Jean-Ja- cques Lebel, ex-
mogêneo. Félix Guattari nâo é verdadeiramen- te um colaborador de Socialisme et Barbarie, convertido à arte
grande comandante, os combates de rua lhe dâo medo, revolucionária, aos happenings e à contracultura.
mas exercem sobre ele um poder de fascinaçâo: “Eu me Guattari e a FGE- ; RI estao por perto, sâo os guarda-
lembro, passava de carro. Era fogo de3 artificio por toda costas dessa: operaçâo. Lebel conheceu Guattari através
parte. Era ìncrivel algumas no ite si“ . Mais do que os de- Jean-Pierre Muyard, decididamente o inter- mediador
enfrentamentos físicos, o que o extasia é a tomada de profissional - foi ele quem pôs eml contato Guattari e
palavra gérai, pois “essa experiencia, para4 os que a Deleuze. Em 1966, Muyard ; convida Lebel para uma
viveram um pouco de perto, é inesquecivel” . representaçâo que se realiza no Museu de Arte Moderna
Quando a contestaçâo se generaliza, Guattari é como no Palácio de Tóquio. A sessao é organizada pela
um peixe na água. Ele vê se realizar o deslocamento das clínica ; de La Borde, e os atores sâo os pacientes da clí-
esperanças revolucionarias, pelo qual trabalha desde nica, que foram a Paris para a ocasiâo e a con- vite de
suas teses da Oposiçâo de Esquerda, para o movimento Lacan: “Félix assumia entâo as funçôes de seguidor de
estudantil, concebido como ponta de lança da luta social, tacan. Era considerado como um dos dois ou très tipos
único capaz de escapar dos apare- Ihos burocráticos. Ao mais brilhantes em torno de Lacan”'. O contato entre
mesmo tempo, ele está aturdido, estupefato com o jean-Jacques Lebeí e Guattari é de imediato caloroso e
caráter espontáneo dessa eclosáo: “Quando 68 estoura, intenso. Ambos partiiham a mesma busca de
tenho a im- pressâo de estar ficando maluco. Tenho uma radicalidade antiacadémica. Quando Lebel descobre
sensaçâo estranha, total. Encontro-me nesta Sorbonne, esses pacientes vindos de um hospital psiquiátrico que
que me deixava enfastiado, no anfiteatro Richelieu... fogem às normas e que em cena sâo capazes de
Incrível, é uma experiencia incrível, Nâo vi nada ultrapassar nos dois sentidos as fronteiras entre o estatuto
acontecendo e nao com- preendi nada. Depois de alguns de louco e de ator, ele fica literalmente fora de si. O que
dias é que me dei conta”. No entanto, Guattari tinha sido o deixa mais aturdido é a cena em que um paciente de La
informado por seu bando do que se passava há alguns Borde se sen ta ao piano e começa a tocar como um
mesdá no campus de Nanterre. Anne músico de primeira linha. Em seguida se levanta e, com
Querrien estava matriculada ali no terceiro ciclo, com a um oíhar de relámpago à Antonin Artaud, começa a
orientaçâo de Henri Lefebvre no departamento de gritar para os espectadores: “Finalmente sou alguém”.
sociologia. Eia participa das primeiras açôes do 22 de Dian- te desse paciente que partilha com o público seu
março: “Eu tinha dito a Félix que o que se passava em abismo interior, já nao se sabe mais entâo o que emana
Nanterre6 era muito mais divertido que as reunióes do da réplica teatralizada ou da terapia: “Eu estava
CEREI” . Em abril de 1968, Guattari, intrigado, vai perturbado, e tudo isso correspondía exatamente àquilo
entâo à universidade de Nanterre para sentir de perto que nos, a partir de Marcel Duchamp e John Cage,
um movimento que já tem seu líder carismàtico na tentávamos fa- zer. Por um caminho diferente, eles
pessoa de Cohn-Bendit, que alia talento de tribuno, chegavam8 à mesma coisa, Transformavam sua angustia
humor devastador e senso de oportunidade inaio. em arte” . No final do espetáculo, jean-jacques Lebel se
Guattari vai de Paris para La Borde, onde vive e apresenta a Guattari, que lhe diz que já conhece seus
trabalha, e reúne as tropas, convocando os médicos, os happenings e se inspirou neles, e acaba por convidá-lo a
monitores, os estagiários, asslm como os pacientes, para engrossar as fiíeiras da FGERI para abrir urna nova
reforçar as füeiras da revoluçâo em marcha nas ruas frente poética e teatral. Aínda que Lebel tenha alguma
parisienses. Jean Oury, diretor da clínica, embora dificul- dade de convencer seus amigos artistas a tra-
entusiasmado com o movimento, considera balhar ao lado de psiquiatras, os dois homens nâo se
irresponsável esse último ponto. separarâo mais.
Entre as “façanhas” de Guattari e seu bando durante No auge do movimento de Maio de 68, após a
o mes de maio, estará a ocupaçâo do Instituto reabertura da Sorbonne logo tomada pelos estudantes
Pedagógico Nacional, na Rue d’UIm. Sâo os contestatários, Lebel, que rejeita o confinamiento nessa
proíessores da FGERI que decidera essa ocupaçâo. fortaleza do esquerdismo estudantil, propôe a ocupaçâo
Guattari conhece bem, através de seu amigo Fernand do Théâtre de TOdéon. Com esse teatro, do qual o
Oury, as ques- tóes de ordem pedagógica, pois seus ministro da Cultura André Malraux é frequentador assí-
duo, o que se pretende atingir é a cultura oficial da era entao mais bem aceita que a dos gru- pelhos. A força
República. Decidida a ocupaçâo, Guattari faz sua parte, do 22 de11março era tamanha que a CGT foi obrigada a
nao sem avaliar os perigos que representa o ataque compor" .
frontal 136
a um dos símbolos do Estado. A universidade
François Dosse
O grupo de amigos de Guattari ajuda materialmente
ainda passa, pois é protegida das intervenqòes os operários em greve: “A gente ia à Hispano levar
intempestivas da policía pelas prerrogativas produtos do Loir-et-Cher, com alguns cuidados, pois era
universitárias, mas o teatro subvencionado de Jean- preciso entregar-lhe ovos muito estritamente
Louis Barrault é outra historia! Guattari póe entáo toda a calibrados”12. Os jo- vens operários da Hispano pedem
ex- periéncia da FGERI, seus médicos, suas diversas aos respon- sáveis permissáo para discutir em um quadro
redes de militantes, a servipo da tomada do Odeon: mais institucionalizado dentro da fábrica. Um
“Muitos trabalhavam em hospitais. A gente encheu os compromisso é firmado, possibilitando a entrada de
carros de 9 bandagens, de mercurio cromo, de alguns estudantes do movimento no anexo da fábrica, na
antibióticos" . Outros cuida- ram do abastecimento sede do comité de empresa, Os representantes do
necessàrio para aguen- tar um hipotético cerco: aparelho constatam surpresos que os operários da base
“Tínhamos visitado o teatro sob o pretexto de ser nao hesi- tam em tomar a palavra e expressar urna révol-
jornalistas e reparamos que era possível subir no ta particularmente radical: “Etes se puseram a falar com
telhado, levar colchóes, demarcando os lugares para muita violéncia dizendo: o que é que a gente está
armaze- nar os medicamentos e a comida” 10 Depois da fazendo lá? Devíamos todos sair à rua para nos
grande manifestando de 13 de maio, o Odèon é tomado manifestar. Com urna tal violéncia e urna tal intensidade
de assalto no dia 15, e o movimento se apodera assim, que os tiposrí do aparelho ñcaram completamente
sem maiores enfrentamen- tos, de um cenário onde desnorteados” . Os quadros sindicáis aprenderam a
artistas e intelectuais, Julien Reck, o Living Theatre, e liçâo, e no dia seguinte prepararam a reuniâo de modo a
sobretudo urna multidáo de anónimos tomarào a monopolizar a palavra, e logo depois as portas da fábrica
palavra. No hall de entrada, o comando-chefe escreveu se fecharam aos elementos externos.
em vermelho a seguinte advertencia: “Quando a No final do més de maio, os ventos mudam com o
assembleia nacional se torna um teatro burgués, todos os discurso de grande repercussao do general de Gaulle,
teatros burgueses devem se tornar assembleias que retorna de Colombey e de Baden-Baden, e a ampia
nacionais!”. jean-Jacques Lebel, Daniel Cohn-Bendit e demonstraçao gaullis- ta nos Champs-Élysées. Guattari
Julián Beck ex- plicam diante de urna plateia entusiasta, denuncia en- tao as tentativas de controle feitas pelos
que tomou assento ñas confortáveis poltronas da gru- pelhos de extrema esquerda de todo matiz. Ele
orquestra e nos baleó es, que nao se tratava de confiscar espera preservar o movimento do 22 de março com sua
o teatro de Barranít-Renaud, mas de devolvé-lo ao espontaneidade, sua criatividade transgressiva, assim
público. como todos os comités de base surgidos durante a
Progressivamente, o conjunto dos assala- riados mobilizaçào nos locáis de trabálho e nos bairros. O 22 de
adere ao movimento de contestando, sobretudo após a março "deve defender o direito dos comités de base de
noite das barricadas de 10 de maio, a ponto de o país se manterem independentes de quaíquer estrutura que
ficar totalmente parausado pela greve e a maior parte das pretenda controlá-los”H. Guattari reconhece no 22 de
fábricas ser ocupada pelos trabalhadores. Embora a margo que ele aspirava desde que criou o OP: “O que é
regra, com excepao da jornada de 13 de maio, seja a excepcional no 22 de margo nao é o fato de que um
separagao mantida pelos aparelhos do PCF e pela CGT grupo tenha conseguido sustentar seu discurso sobre o
entre a contestando estudantil e o mundo do trabalho, o modo de associagáo livre, mas sim que tenha conseguido
Grupo Jovens da Hispano, que já minou a hierarquia dos se constituir como analista de urna massa considerável
responsáveis pela burocracia sindical, pode agora se de estudantes e de jovens trabalhadores”15.
manifestar abertamente. Seu líder, jo Panaget, grande Na manhá de 6 de junho de 1968, os confrontos se
amigo de Guattari, pede aos militantes do CERFI que deslocam para a fábrica de Flins-sur-Seine em Yvelines:
venham dar um golpe de mao na cerca de mil CRSa e policiais militares ocupam o local as
Hispano, em La Garenne-Colombes. Como em toda 3 horas da manhá, cercando a fábrica Renault. Os
parte, a fábrica é controlada pelo PCF e pela CGT, como operários estáo em greve há dezenove dias e, apesar dos
tinha sido em 1936. Diante da porta de entrada, urna acordos de Grenelle, se recusam a voltar ao trabalho.
grande praça serve de fórum permanente onde os Para fazer frente a essa forte ofensiva policial, os poucos
militantes do 22 de março vêm distribuir panfletos, operários ¡solados abandonam seus braseiros e se
coordenar debates e informar sobre o que se passa nos dirigem a Paris para buscar ajuda. Váo as Belas Artes,
cam- pk “Era preciso brandir a sigla do 22 de março que entram em contato com o movimento do 22 de margo e
com os comités de agáo parisienses. A mobi- lizagáo De sua parte, Félix Guattari pega o carro para ir a
geral é decretada para o dia seguinte, e programa-se urna Flins: “Em Flins, dei carona a dois tipos muito jovens. A
assembleia no dia 7 de junho as 5 horas da manhá ñas gente conversa: o que vocés fazem? Somos estudantes.
imediagóes da fábrica. Barreiras policiais sao montadas Estudantes de qué? Eles vacilam. É... na Sorbonne. Eram
Gilles Deleuze & Félix Guattari 137

ñas saídas de Paris para impedir os militantes parisienses operários muito jovens, taivez aprendizes. Nao era para
de chegar a Flins. Contudo, muitos conseguem escapar impressionar que se diziam estudantes, era porque so se
da vigilancia policial, e os confrontos se propagam as julgavam dignos de ir
margens do perímetro proibido com perseguigóes pelos
campos e mesmo ao longo das duas margens do Sena. A N. de T.: Compagnie Républicaine de Sécurité, Policía Nacional
jornada termina trágicamente, com a primeria morte de da França.
Maio de 68, a do jovem colegial Gilíes Tautin,
Gilles Deleuze & Félix Guattari 138
combater se passando por estudantes” . Em junho de 1968, Guattari
16
do entrismo. Guattari e seu bando de La Borde aderem ao PCF do
considera que os dois fatos mais significativos do movimento foram departamento. Foi urna entrada maciga de uns quinze militantes
esses momentos de confronto radical em Flins e em Sochaux, por sua expedentes. Com essa cobertura oficial, eles podem controlar nume-
capacidade de romper os entendimentos de fachada; “Em Fíins e em rosas pequeñas associagòes, movimentos de mulheres, movimentos
Sochaux, a CGT e os tiras apavorados: denun- ciavam em conjunto os culturáis, cineclubes... Rapidamente, encontra-se um terreno1 mais
elementos incontrolá- veis”17. Em Sochaux, no dia 11 de junho, a in- ampio de agào com a luta pelo direito ao aborto, a luta do MLF e dos
tervençào brutal da policía na fábrica ocupada termina com a morte de médicos. Entre estes últimos, estáo engajados particularmente os de La
dois operarios, um deles atingido por bala. O deslocamento dos Borde, como Jean-Claude Polack: “Tínha- mos implantado em La
estudantes para o próprio terreno das lufas operárias tem um valor Borde um método de aborto multo apropriado cujo principal artesáo
transgressivo, na medida em que rompe as fronteiras bem guardadas foi Jean Oury”23. Na época, o PCF ainda era contrario a qualquer
entre os dois mundos. iiberalízagao da interrupgáo voluntária da gravidez. Ele defendía a
A onda de choque de Maio de 68 nao poderla deixar de sacudir os linha natalista tradicional, segundo a qual quanto mais numerosos
labordianos. Eram muitos os que iam e vinham sem parar entre as fossem os proletários, mais capazes serlam de construir as bases de
manifestaçôes parisienses e a clínica onde viviam e trabalhavam. A urna democracia popular. A diregáo do PCF acaba por se dar conta de
radicalidade da con- testaçâo antiautoritária atinge como um bu- que as coisas sao mais heterodoxas pelos lados do Loir-et-Cher e envía
merangue esse universo construido contra toda forma de paralisia sua líder, Jeannette Vermeersch-Thorez, esposa de Maurice Thorez,
institucional. Esse pequeño mundo vanguardista nao podía portante para por ordem ali, relem- brando as posigoes oficiáis do partido.
ficar atrás de um movimento que havia preparado cuidadosamente. A “camarada jeannette” já se notabilizara antes por suas posigoes
Forma-se na clínica um comité de greve, e assegura-se urna ligaçâo hostis ao uso da pílula. Sua aterrissagem na regiao é organizada pela
com os estabelecimentos psiquiátricos do Val-de-Loire. Mantém-se Uniao das Mulheres da Franga, o biombo de urna organizagáo “de
contatos com as fábricas da regido, de Bloís, Vendôme e Romo- massa” para as mulheres do PCF. A reuniao que prometía ser
rantin. Os numerosos estudantes viudos de París e recrutados por Félix tranquila, controlada pelo partido, nao transcorre táo pacificamente
Guattari fazem a ponte com a capital e colocam seu Citroën 2 CV à conforme o previsto. Inundada de pérguntas, Jeannette Vermeersch
disposiçâo para abastecer a clínica, criando vínculos com os eleva o tom e diz que nao tem intengao de discutir política com
camponeses das imedia- çôes. Quanto aos internos, no mes de maio há lésbicas: ‘As mogas comegaram a insultá-la, e ela teve de abandonar a
um envolvimento maior ñas tarefas materiais de urna clínica reuniao no meio, debaixo de gracejos”24. Isso é demaís para a diregáo
constantemente abandonada pelos profissionais voltados às suas do PCF, que expulsa do partido esse bando de esquerdistas do Loir-et-
atividades militantes. Questionamentos radicáis se fazem ouvir: “Do Cher.
movimento vêm indagaçôes insistentes. O que vocés fazem em Cour-
Cheverny? A loucura Ihes parece um fenómeno político? Por que a
psiquiatría? !SQuais sao os direitos dos doentes, seus poderes? Curar, o Deleuze á escuta de 1968
que é isso?” 0 movimento de Maio empurra a clínica de Durante esses dois meses de contestagáo, Deleuze nao é um
La Borde da psiquiatría institucional até os limites da antipsiquiatria militante revolucionário como seu futuro amigo Guattari. Eles ainda
que se desenvolve na época com as teses de Laing, Cooper, Basaglia, nao se conhecem, e suas preocupagoes na época parecem bem
para os quais a propria instltuigao deve ser eliminada19. Essas posigoes distantes. Contudo, olhando mais de perto, esse acontecimento, essa
sao vistas como ir- responsáveis pela autoridade local, Jean Oury, que ruptura que cada um vive á sua maneira, preparará seu encontró. Em
zela pela conservando de seu instrumento de trabalho apesar da Maio de 68, Deleuze leciona na universidade de Eyon e desde o inicio
contestagao de que é alvo. Isso explica suas impressoes, compar- se mostra receptivo á contestagáo estudantil. É um dos raros
tilhadas, sobre esse período que, segundo ele, produziu efeitos professores da universidade a declarar publicamente seu apoio, a
funestos para o futuro da psiquiatría, Oury nao tolera que os participar das assembleias gerais e das manifestagóes dos estudantes
estagiários apareqam ao meio-dia, quando devem entrar no servigo as lyoneses. É inclusive o único professor do departamento de filosofía a
9 horas da manhá, e se ponham a acusar os que já estáo trabalhando de marcar presenga no movimento. Ele simpatiza e se mantém à escuta.
“alienados do capitalismo”. Jean Oury considera que tudo íoi Sua aluna Chris Younés lem- bra-se de urna assembieia geral reunindo
temporariamente destruido: “Eu disse que aquilo foi como um um grande número de estudantes, Ao lado déla, urna estudante se
bombardeio”20. Oury acusa seu amigo Guattari de ser o principal queixa à sua colega, evocando a sorte dos estudantes assalariados que
instigador, como também, é claro, todo seu bando, que denunciava La nao podem se permitir passar nos exames com um filho para alimentar
Borde como sendo21 a “Saint-Tropez da Bologne”: “Era demais, eu os e um empreguinho de bedel: “Deleuze, que estava ao lado déla, ficou
botei para fora” . Incontestavelmente, Maio de 68 pós firn à um pouco irritado e lhe disse: ‘Mas é evidente que nao se pode deter o
coabitagao: “Em La Borde, quando aìguém era feliciano nao era movimento. É preciso que o movimento25 acontega. Voce pode ver que
ouryano. Era preciso escolher, visto que Oury fìcou traumatizado com o que está acontecendo é importante!’” .
68”n. Deleuze aderiu completamente ao movimento. Quando em 10 de
Antes de 1968, durante a guerra do Vietna, Guattari conseguirà maio de 1968 Maurice de Gandillac, seu orientador de tese, passa por
reagrupar nos bìstrós da regiáo a antiga rede FTP do Loir-et-Cher por
ocasiào de projegòes de filmes sobre a guerra. Voltando à sua pràtica
1N. deT,: Mouvement de libération des femmes.
sua casa em Eyon, é recebido por cartazes, bandeiras presidente da banca, que eslava fixado na porta para
vermelhas e bandeirolas presas à sacada pelos filhos de saber se os bandos iam chegar”28. Após a defesa,
Deleuze, Julien e Émilie. Urna noite de maio, em que a Deleuze manifesta ao amigo François Châtelet o desejo
familia Deleuze havia convidado para jantar Jeannette de ser nomeado para a regiáo parisiense: ‘Ah!
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 139
Dessa
Colom- bel e seu marido, um estudante aparece inopi- defesa, o que dizer? Nao há mesmo nada de engraçado a
nadamente para anunciar que a extrema direi- ta está recordar, o nada, o nada. Vi Al- quié no dia seguinte e
preparando um projeto de intervengao violenta contra o tive a impressáo de que ele me fez urna declaraçâo de
piquete dos estudantes da universidade: “Rapidamente, ruptura. Tanto melhor. Mas eu preciso me estabelecer no
Gilles e eu nos precipitamos escada abaixo para ano que vem, em Vincennes ou em Nanterre. Prefi- ro
encontrar nossos alunos”26. No final de junho, Claude ter outra caverna a permanecer em Lyon”29.
Lemoine, ex-aluno de Deleuze em 1951, agora membro Após a defesa, Deleuze teve de se submeter a urna
de gabinete de Alain Peyrefitte na diregáo da ORTF* e operaçao muito delicada, urna toracoplas- tia. A partir de
que, portanto, se encontra no outro campo, ve chegar na entao, ele possui um único pul- mao, o que o condena a
estagáo de ràdio um grupo de manifestantes entre os perfusoes constantes e a urna insuficiencia respiratoria
quais identifica Gilíes Deleuze: “Eles chegam diante da até o fim de seus dias. Essa operaio exige também um
minha sala, e um dos manifestantes diz: ‘Queremos ver ano inteiro de convalescenga, que ele passa em com-
Lemoine!’ Indique! a sala ao lado, que eles ocuparam panhia da esposa, longe de toda agitagáo, em sua
durante quatro horas. Gilles me reconheceu e achou propriedade de Limousin. É no vazio desse momento de
engrapado. De minha parte, aproveitei para cair fora”27. debilitagao vital e de afastamento obrigatório que
Deleuze fixou como prioridade concluir: sua tese de Deleuze encontra Guattari30 Sem Maio de 68, esse
doutorado e defendé-la no outono de 1968. Assim, encentro náo poderla ter ocorrido. O acontecimento de
dedica o veráo a ela, na pro- priedade familiar do Mas 1968 operou neles algo como urna “ruptura
Révéry em Saint-Léo- nard-de-Noblat, no Limousin. instauradora” (Michel de Certeau). Seguindo o
Sente-se muito ensinamento de Joè Bousquet, muito citado por Deleuze
em 1967, sua primeira obra comum, 0 Anti-Édipo, se
enraíza no movimento de maio: eia tem a marca da
N, de T.: Office de Radio di ffiision-Téié vi si o n Prangaise.
11
efervescencia intelectual do periodo. Comentando a
cansado e consulta um médico, que diagnostica o publicagao dessa primeira obra comum, Guattari
reaparecimento de urna antiga tuberculose refratária aos confirma tal ancoragem: “Maio de 68 foi um abaio para
antibióticos e que abriu um enorme buraco em um de Gilles e para mini, corno para tantos outros: nao nos
seus pulmóes. Ele precisa ser hospitalizado com conhe- ciamos, mas esse35 livro, atualmente, é urna con-
urgência a fim de nao comprometer a defesa da tese, tinuagào do movimento” .
adiada para Janeiro de 1969, Assim, Deleuze aprésenla
na Sorbonne, no inicio dé 1969, urna das pri- meiras Notas
teses defendidas após o movimento de maio, quando os
confrontes aínda estao ion- ge de ter acabado, Sabendo 1. jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor.
que ele está multo doente, a banca decide abreviar um 2. Hervé HAMON, Patrick ROTMAN, Génération, tomo 1,
pouco a duraçao da defesa para náo cansar demais o Seuil, Paris, 1987, p, 473.
autor, pois todos reconhecem a qualidade excepcional do 3. Féìix Guattari, entrevista com Daniele Linhart, arquìvos
trabalho realizado. Sobretu- do, a banca teme a chegada IMEC, 1984.
de visitantes nao convidados e inoportunos, e se 4. Ibìd.
pergunta se ele poderá oficiar normalmente. Eles 5. Ibid.
“tinham urna única obsessáo: como evitar os bandos que 6. Anne Quemen, entrevista com o autor.
7. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart.
estavam na Sorbonne e que tanto temiam. Lembro que o 8. Ibid.
presidente da banca me disse que havia duas 9. ìbid.
possibilidades. Pode-se fazer sua defesa no terreo, e há
urna vantagem, que é ter duas saídas, mas o 10. Ibid.
inconveniente é que há bandos que circulam mais 11. jo Panaget, entrevista com o autor.
fácilmente por lá. Pode ser no primeiro andar, com a 12. Jean-Marie Doublet, entrevista com o autor.
vantagem de que os bandos sobem com menos frequén- 13. Debate Grupo jovens da Hispano com Félix Guattari, grava
cia, mas há também um inconveniente: urna única gao de 29 de junho de 1968, transcrigào datilografada
cedida por jo Panaget.
entrada e saída. De modo que, enguanto apresentei
minha tese, em nenhum momento cruzei o olhar do
14. Félix GUATTARI, “La contre-révolution est une scìence 23. jean-Claude Polack, entrevista com Virginie Linhart.
qui s'apprend”, Tribune da 22 mars, 5 de junho de 1968; 24. Ibid.
reproduzido em PT, 25. Gilíes Deleuze, palavras reportadas por Chris Younès,
p. 140
211. François Dosse entrevista com o autor.
15. Féìix Guattari, “Extraìt de dìscussion”, 23 de junho de 26. Jeannette COLOMR.EL, “Deleuze-Sartre: pistes”, em André
1968; reproduzido em PT, p. 217. BERNOLD, Richard P1NHAS (sob a dir.), Deleuze épars,
16. Ib id., p. 221. op. cit., p. 43.
17. Ibid. p. 223. 27. Claude Lemoine, entrevista com o autor
18. jean-Claude POLACK, Danielle SIVA- DON-SABOURIN, 28. Gilíes Deleuze, A,
la Borde ou le droit a la folie, op. cit, p. 54. 29. Gilíes Deleuze, carta a François Châtelet, 1969, acervo
19. Ver capítulo “Urna alternativa á psiquiatría?”. Châtelet, IMEC.
20. Jean Oury, entrevista com o autor. 30. Ver prólogo '“Nos dois ou o entre-dois”.
21. Ibid. 31. Félix GUATTARI, “Entretien sur VAnti- Œdipe”, IdArc, n.
22. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. 49, 1972; reproduzido em Gilles DELEUZE, PP, p. 26.
II
D ESDOBRES : BIOGRAFÍAS CRUZADAS
10
Fogo no psicanalismo

Nos anos de I960, dominado na filosofia


Guattari, vagando pelos pelos althusserianos,
corredores da Sorbonne, Lacan se aproxima de
só jura por seu mes tre, urna nova geragào, a de
que inspira todas as suas jacques-Alain Miller e
palavras e seus escritos. Jean-Claude Milner, que
Ele conhece as teses quase seráo 1 seus guarda-
de cor, estimula seu bando -costas . Nesse periodo,
de companheìros a ler e, Althusser contribuì para
naturalmente, é um dos instalar a psicanàlise no
fiéis da cerimònia semanai centro da vida intelectual
do seminàrio. Seu faseimo francesa e para vencer as
e seu mimetismo sào tais últimas resistèncìas dos
que, quando seu amigo comunistas 2 às teses
Philippe Girardi o freudia- nas . O retorno a
interpela nos corredores Freud assume em
da Sorbonne, o chama de Althusser a forma do
“Lacan"! Quando este recurso a tacan, visto
último crìa a Escola como um aliado objetivo
Freudiana de Paris, em em sua luta contra o
1964, Guattari está entre aparelho centralizado do
os lugares-te- nentes, e PCF que ele contesta do
inclusive sugere a criaqáo mes- mo modo que Lacan
do que se tornará o contesta a organizaçào
periódico interno: La oficial internacional do
Lettre de l’École. freudismo, a IPAL Lacan
Em 1964, Lacan consegue obter de Félix
instala seu seminàrio em Guattari um texto para a
um lugar de destaque da revista Scilicet,3 e, no final,
cultura parisiense, a nao o publica . Contudo,
prestigiosa ENS da Rue quando fica sabendo que
d’Ulm. Nesse caldo de um dos seus, na pessoa de
cultura, ampiamente Guattari, está envolvido
em um projeto de texto 1972. “Evidentemente,
sobre a psicanàlise junto isso estava fora de
com Deleuze, cujos questào! Deleuze
trabalhos ele aprecia, a desconfía- va de Lacan
cotaçao daquele volta a como da peste’A Guattari
subir repentinamente: se escusa polidamente,
Lacan fica preocupado alegando a vontade de
com o que pode sair de Deleuze de só divulgar
urna tal parceria e teme a um texto muito bem
força de convicçâo de cuidado em sua versâo
eventuais críticas: “Ele final. Procura tranquilizar
passou a me interpelar nos seu antigo mentor,
congressos: 'Guattari, 1o dizendo-íhe que
que voce acha disso?..f“ . permanece um lacaniano
A preocupaçao de Lacan é de primeira hora, que
cada vez maior, e ele apenas sentiu
pergunta a Guattari se necessidades de respigar
pode ter acesso ao em outros campos ainda
manuscrito desse Iivro, nao explorados por seu
que deve ser publicado em mestre.
Lacan fica mais preocupado ainda na medida
146 François Dosse
propósito de suas teses, os vínculos serao
em que já se comenta sobre o que Deleuze diz em definitivamente rompidos. Nao apenas eles nao
seu curso em Vincennes, que, naturalmente, em se verào mais, como Lacan e seus próximos vào
1971, é dirigido às teses essenciais de 0 Anti- espalhar urna serie de boatos sobre as práticas de
Édipo. Nâo podendo ter acesso ao texto, Lacan Guattari para desacreditá-lo nos meios
espera conseguir evitar os even- tuais mal- psicanalíticos.
entendidos e solicita um encontró com Deleuze, A ideia inicial de Guattari nao é escrever um
que se limitará a lhe dar um telefonema, Lacan texto polèmico contra Lacan, mas sim superar o
retoma, entâo, sua tentativa de seduçao junto a lacanismo. Na época, ele concebe O Anti-Édipo
Guattari e o leva a um grande restaurante ás como urna maneira de pensar o lacanismo para
margens do Sena para que lhe explique o além do pròprio Lacan. Aliás, Guattari é
conteudo misterioso desse livro a ser lançado. reconhecido como analista profìssìonal e de
Guattari trata de lhe expor os grandes eixos de 0 obediència lacaniana, membro de sua escola. Em
Anti-Édipo temendo o pior. Fica perpíexo com a 1975, tres anos após a pubiicagáo da obra, ele
reaçâo inteiramente positiva de um Lacan que se ainda mantém urna clientela de 35 pessoas.
diz muifco interessado, e lembra que criou urna Quanto a Deleuze, no momento do encontró
escola justamente para que fosse o lugar de com Guattari em 1969, nao tem a mesma
expressâo de divergencias: "Ele me disse urna familiaridade que este último com as obras de
frase célebre, do tipo: ‘O que conta para mim é Freud e de Lacan, mas já fez algumas incur- sóes
que tenha análise”'6. no campo da psicanálise. A primeira foi em 1961,
Esse discurso é falsamente tranquilizador, quando 8publicou seu primeiro texto sobre Sacher-
Lacan encara Guattari: "O que é isso, a esquizo- Masoch , que ele enriquece mais tarde em sua
análise?”. Guattari fica no mínimo embaraçado: apresentaqáo de Sacher-Masodi. Este último
“Eu me atrapalho fazendo referência a urna fór- estudo será saudado por Lacan em pessoa em seu
mula sacrossanta do lacanismo e me safo como seminàrio, quando desafiará seus discípulos a
posso. Autoritarismo inconcebível com o maître. realizar urna análise com a mesma intensidade. O
Sinto calor e nâo tenho muito apetite. Explico. O psicanalista Jean La- planche, em sua aula de 23
a como máquina desejante, a desterritorializa- de janeiro de 1973, reeonhece que Deleuze
çâo, a historia. Desenvolvo tudo o que me passa atacou os pontos fra- cos de Freud, o das
pela cabeça de antropología e de economía polí- perversoes manifestas: “Ele mostra com
tica. - ‘Estou escutando. Muito intéressante. No facilidade (e nao há como nao concordar com ele)
fundo, Deleuze se deixou levar pela bajulaçào de que o sadismo nao é um masoquismo às avessas,
seus alunos em Vincennes. Nao sei se as coisas e vice-versá,w.
para vocés já estáo decididas, mas acho que é útil
ter um analista.,,.’ Um segundo de emoçâo. Mas
é tarde demais! Alguma coisa se quebrou. Talvez Lacan em Lyon com Deleuze
já estivesse quebrada desde sempre entre ele e eu. Quando, no outono de 1967, Lacan vai para
Depois, ele alguma vez leve acesso ao outro, Lyon, onde Deleuze leciona, este último o busca
alguma vez falou verdadeiramente com alguém? na estagao e o recebe com a maior deferencia.
É o que me perguntoi Tendo se colocado em Convidado oficialmente por jean-Paul Chartier, o
posiçâo de significante despótico, será que ele decano do internato do Vinatier, Lacan já é urna
nao se condenou há muito tempo a urna solidáo celebridade. Nao somente seu seminàrio é
irremediável? É tarde. É hora de se separar Ele disputado por toda Paris, como seus Escritos,
está satisfeito com nosso encontró. Está tranquilo. publicados em 1966, sao um best-seller. Deleu-
Enfim, ele admite! Encurvado, um ar abatido e ze está radiante com a visita de Lacan e sugere
mancando imperceptivelmen- te, sua silhueta organizar um aperitivo em sua casa, perto da
se'perde na obscuridade.7 A porta da Rué de Lille praga jean-Macé: “Nessa época, Deleuze eslava
se fecha pesadamente” . Quando Lacan tomar completamente fascinado pela psicanálise,
conhecimento do caráter devastador da obra a sobretudo por Lacan. O jogo do objeto perdido,
por exemplo, o cativava. Assim, ele havia rees- Seus dissabores nao param por ai. Em urna
Gilles Deleuze & Félix Guattari 147
crito seu pequeño Proust e os Signos em seus pequeña recepgáo prevista para depois da
livros seguintes, pondo em jogo o objeto perdido conferéncia, o psicanalista Henri Vermorel
entre várias cenas”11, Lacan chega à casa de manifesta seu espanto a Lacan em face do dis-
Deleuze, recusa qualquer bebida alcoólica e, de- curso dele, que julga incoerente. Lacan, pouco
pois de dez minutos, avisa que está táo cansado acostumado a esse gènero de impertinencia, fica
que precisa de um tempo de repouso Jean-Paul vermelho de raiva: “Eu sentía meu Lacan cada
Chartier, um pouco desapontado com essa partida vez pior. Nem o alcool fazia efeito. Foi Lacan
lastimável, o leva de volta ao hotel Combi- na-se quem encontrou a solugao possível: 'Quero
um al mogo em Montplaisir, no Auberge acabar a noitada na casa de Deleuze. Arranjei um
Savoyard, onde se encontram, além do guru La- mensageiro para tentar convencer Deleuze, que,
can, a autoridade convidante, Chartier, Deleuze, o bom apóstolo, concordou”l:i. A essa hora tardía,
filósofo Maldiney e o psicanalista Fédida, Logo 23 horas, é preciso inmediatamente encontrar
que chega ao restaurante, Lacan pede urna charutos para a diva, e cabe a Maldiney correr
garrafa de vodka e bebe metade: “Deleuze nao Lyon inteira à procura, enquanto Chartier
parava de festejar: ‘Que grande dia, sua vinda a acompanha Lacan à casa de Deleuze; “Deleuze o
Lyon deixará marcas inesquecíveisL.' Passado recebeu muito gentilmente, e Maldiney voltou
um instante, Lacan, que Picara mal-humorado, com as máos vazias. Havia alguns internos,
respondeu um enigmático nao desse jeito’. En- provavelmente Fédida. De todo modo, nao houve
táo Deleuze nao disse mais nada. E ele era pra- nenhuma conversa. Lacan se langou em um
»12 discurso de acusagáo paranoica contra todos os
ticamente o unico a manter a conversa . Em que queriam roubar suas ideias, enumerando um
seguida, esse pequeño grupo se dirige à sala do a um aqueles de quem era vi tima’16. Só Deleuze
centro social onde se realiza a conferencia de tinha paciencia de retomar as palavras de Lacan
Lacan, que, razoavelmente embriagado, joga o para transformá-las e lhes dar urna dimensáo
casaco no chao antes de tomar o microfone e poética, sem entrar na di- mensao polèmica do
iniciar sua in ter ven gao intitulada “Lugar, discurso: “Esse joguinho nào acabava mais.
origem e fmaìidade de meu ensino”. Sua fala Lacan nào se causava, Pelo menos tinha urna
consiste em transformar o sintagma “sa vie píatela servil que o suportaría até o firn. Essa era
sexuelle em “ga visse acuelle”1, a firn de sua vinganga, ou no mínimo um desrecalque
esclarecer “certas coísas”, e afirmar que “poderá indispensável. Deleuze foi
de qualquer modo produ- zir urna pequeña faísca 1 - A »17 T“i
nos espíritos”13. de urna enorme paciencia . Esse encontró em
Terminada a conferéncia, era preciso ou- sar Lyon, compreensivelmente, náo deixou urna boa
fazer perguntas ao guru: apenas Maldiney aceita lembranga a Deleuze,
o desaño, tratando da contradigáo sobre alguns
pontos. No final dessa discussáo, Maldiney fala
de diálogo impossível, ou até de um duplo Lacan-Deleuze em situa^áo de
monólogo entrelagado, ao que Lacan Ihe proximidade
responde que “isso nào é específico do que se Deleuze considera que um momento decisivo
passa entre1 1 filósofos; entre marido e mulher, é no freudismo é quando Freud deixa de considerar
parecido” ' , Lacan sai um pouco decepcionado como significantes apenas os acon- tecimentos
por náo ter suscitado entusiasmo maior. Nao afetivos da pequeña infância para dar lugar a
encontra em Lyon a atmosfera ele trizan Le de qualquer dimensáo fantasmática: “A repetiçâo é
seu seminàrio parisiense. simbólica em sua essência, o símbolo, 18o
simulacro, é a letra da propria repetiçâo”
1N. de T.: A traduçâo para o portugués ("sua vida sexual" e Quando Freud elabora o dispositivo da cura
“isso aparafusa o exuaf] perde o jogo sonoro e de sentido do analítica com o objetivo de provocar no paciente
original; “ça visse exuelle” joga com a homofonia em francés o fenómeno da transferencia, ele ainda está no
com bissexuai.
ámbito da estriba repetiçâo: “Se a repetiçâo nos
148 François Dosse
projeto de radi- calizagáo da crítica do
deixa doentes, é eia também que nos cura”19. Se estruturalismo, e “é exa- tamente isso o que, me
Freud já havia mostrado que a sexualidade pré- parece,¿í> fascina Lacan leitor de Deleuze em
genital se exprimía em pulsoes parciais, Deleuze 1969” .
vê em Lacan um continuador dessa hipótese com Para Deleuze, a repetigáo no campo da psi-
sua teoriza- çâo do objeto a. Diferentemente do canálise revela um triplo regime: o do realismo, o
objeto real que está ou nâo está em algum lugar, do materialismo - que é submetido a um principio
o objeto pardal enquanto objeto virtual “tem a mecánico interno -, o da repetigáo bruta e
proprie- dade de ser e 20de nao ser lá onde ele está, individualista - a reí agáo entre o novo presente e
onde quer que ele vá” . Nesse plano, Deleuze se o antigo é regida pelas representagoes do su-
apoia no famoso seminàrio de Lacan sobre a carta jeito, A esse título, Freud nao teria conseguido,
roubada publicada nos Escritos em 1966: nao obstante suas descobertas, romper com urna
“Parecem-nos exemplares as páginas de Lacan concepgáo clàssica da representagáo que submete
assimilando o objeto virtual A carta roubada, de a repetigáo a um principio de identi- dade. Por
Edgar Alian Poe”2!. outro lado, Deleuze critica o dualismo
Lacan observa com grande interesse esse exageradamente acentuado da teoria freudiana,
empréstimo e saúda com insistencia a “elegán- que valoriza o modelo conflitual, e o substituí por
cia de Gilles Deleuze”, “nosso amigo”, em seu urna abordagem dos deslocamentos e
seminàrio de 1968 e 196922. Opôe a imbecili- travestimentos a partir de mecanismos de
dade que reina na psicanálise à maneira como diferenciagáo mais sutis e múltiplos, mais “mo-
Deleuze mostrou que o prazer masoquista leculares” que “molares”. Contudo, Freud nao
constituí o Outro em forma de um contrato, Na permanece fechado em urna dialética pós-he-
sessâo de 12 de março, Lacan convida seu geliana; ele supera seu dualismo preconizando
publico a 1er Diferença e Repetiçâo e Lógica do urna concepgáo mais fina das distancias dife-
Sentido: ‘Acontece, por exemplo, que o senhor renciáis, o que expressa quando afirma que o
Gilles Deleuze, continuando seu traballio, lança, inconsciente ignora o Nao, ou ainda por sua va-
como suas teses, dois lìvros capitais”23. Ele dá a lorizagáo de objetos parciais: “O inconsciente é
entender que as teses apresentadas por Deleuze diferencial, e de pequeñas percepgoes, mas por2
foram multo fortemente inspiradas nas suas. “Ele, isso mesmo difere por natureza da consciencia” '.
em sua bonança, teve tempo de reunir em um O inconsciente, segundo Freud, ignora ao mesmo
único texto nâo somente o que está do cerne do tempo o negativo, a morte e o tempo, Contudo,
que meu discurso enunciou - e nao há dúvida de como diz Deleuze, isso é tudo o que importa no
que esse discurso está no cerne de seus livros, saber psicanalitico.
pois isso é reconhecido ali como tal e que o Como conclusáo de sua tese, Deleuze evoca
seminàrio2 1 sobre A carta roubada é a porta de as repetigòes gestuais e lingüísticas nos casos de
entrada” " , Ao mesmo tempo, Lacan reconhece a esquizofrenia; ele ve ñas iteragoes um fenòmeno
contribuiçâo do filósofo, particularmente por ter de contraçâo com o sufocamento dos níveis
introduzido em sua anáfise as reflexóes dos diferenciáis em decorrènda de um transtomo
estoicos. Ele saúda igualmente em Deleuze específico entre duas repetiçoes. A esse respeito,
aquele que con- seguiu definir melhor o Deleuze tem interesse no Lacan que consagrou
paradigma estrutura- lista: “Os senhores verao sua tese à psicose"*. A p sic ami- lise é vista,
que ele diz em algum lugar que o essencial do portanto, como um avanço para sair dos impasses
estruturalismo, se essa palavra tem um sentido,.., do pensamento clàssico invertido a partir de urna
é ao mesmo tempo um vazio, urna falha na cadeia unidade postulada e constitutiva da
significante, e o resultado disso sao objetos representaçâo, mas Deleuze já considera que eia
errantes na cadeia significada”'”. Comentando nâo pode satisfacer as exigencias de urna
esse elogio, a psicanalista Sophie Mendelsohn filosofía da multiplicidade.
considera que Lacan admira a capacidade do Em sua 29a série de Lógica do Sentido, De-
filósofo de ir mais longe do que ele em seu leuze se apoia na pertinència da noçâo freudiana
do complexo da castraçâo relacionado ao Deleuze jáGilles
entaoDeleuze
pretende&acabar com a pretensao
Félix Guattari 149
Edipo"9. Contudo, desloca as forças em jogo ali, psicanalítica de ocupar um lugar privilegiado no
que nao devem ser buscadas nem nas proíun- desvendamento do verdadeiro a partir das
dezas de um id, nem nas alturas de um superego, profundezas de urna ver- dade oculta que escapa a
mas que se situam na superficie do ego, no qualquer atestagáo, a qualquer presenqa, por seu
universo das aparências: “O célebre mecanismo caráter sempre bloqueado. Essa oríentaqáo da
de cienegaçâo’, com toda sua importancia para a filosofía deleu- ziana é muito clara na 18 a série de
formaçâo do pensamento, deve entao ser sua obra consagrada as “tres imagens de
interpretado como exprimindo a passagem de filósofos”.
urna superficie à outra”30. Deleuze pretende assim Deleuze estigmatiza ali duas tentaqóes que
romper com a concepçâo subjacente da levam o filósofo ao erro. Desde Platao, há a
psicanálise entendida como psicologia das pro- crenga de que a verdade só pode ser elevada, fora
fundezas para reconduzi-ìa a um plano imánente. da caverna, a um céu purificado das ílusóes daqui
Esse deslocamento é sugerido em sua maneira de de baixo, no universo supralunar: “Assim, a
encarar o fenómeno da fantasìa. Segundo operagáo do filósofo é determinada como
Deleuze, esta é puro acontecimento, e enquanto ascensao, como conversao, isto é, como o
tal se distingue do vìvido e da lógica para fazer movimento de se voltar33 para o principio do alto
parte de “urna superficie ideal na qual é de onde ele procede” . Á tendencia de definir
produzida como eíéitó’31.0 discurso psicanalitico, urna filosofía a golpes de asas para atingir os
nesse plano, é defendido por Deleuze como a cumes opóe-se outra perversáo, que busca a
expressao de acontecimentos puros: morte- verdade no subsolo, escavando no mais profundo
incesto-castraçâo. para desenterrar urna verdade oculta: é essa a
A psicanálise seria a grande ciéncia dos orientaqáo definida pelos pré-socráticos: “Os pré-
acontecimentos com a condiçào de nao con- socráticos instalaram o pensamento ñas cavernas,
ceber o acontecimento como alguma coisa da a vida na profundeza. Sondaram a água e o fogo.
qual se deveria buscar o sentido - o aconteci- Fizeram a filosofía a golpes de martelo, como
mento encama o sentido que emerge nele em sua Empédocles quebrando as311está- tuas, o martelo do
propria efetuaçâo, Deleuze segue ainda Freud e geólogo, do espeleólogo” . Essa tradiqáo origina
Lacan em sua análise do falo como toda a filíagáo hermenéutica que nao cansará de
fundamentalmente marcado pelo excesso ou pela perseguir a verdade sob sua máscara, e a
falta, verdadeiro ponto de desequilibrio sempre à psicanálise participa de tal busca, que Deleuze
distènda de sua pròpria origem, significante considera inútil.
fìutuante, casa vazia, agindo sobre as duas séries, Deleuze opòe a essas duas tradigòes aque- la
pré-genital e edìpiana. Também aquí, Deleuze que encontra sua primeira expressáo nos estoicos
reconduz a aqáo a um fenómeno de superficie gregos, que nào esperam a saìvagào nem do aito
que tem como efeito transformar urna serie em nem de baixo, mas lateralmente ao
série significante e urna outra em série acontecimento, de là onde o sol se levanta, do
significada. O mais profundo é o que se sitúa na oriente. A saída é a que está na ponta do bastao,
superficie, e Lógica do Sentido se apresenta como na propria superficie do plano de ima- nència.
urna elucidagáo dos para- doxos do sentido e Essa reabertura da superficie como campo
construqao de urna teoría do sentido: “Esse livro autonomo é a grande descoberta dos estoicos
é um ensaio de romance lógico e p sí c contra as ilusóes que o homem busca
analítico”3". erroneamente no alto e em baixo. É o que
Nesse final dos anos de 1960, em que a psi- Deleuze qualìfica de “filosofìa a golpes de bas-
canálise é considerada urna disciplina chave na tào”35; eia deve substituir a filosofìa a golpes de
engrenagem estruturalísta, Deleuze parece tomar martelo que designa, entre outros, o olhar psi-
emprestadas a linguagem e a aborda- gem de seus canalitico. Essa perspectiva imánente singulariza
contemporáneos. Todavía, essa adesáo á o projeto filosófico de Deleuze e o mantém a
linguagem do momento é apenas aparente: urna distancia crítica da psícanálise antes de seu
encontró com Guattari. Os pontos de co- nexáo
150 François Dosse
aqui a anàlise de Lacan privilegiando os objetos
entre as lógicas verticais encontram-se na parciais: “O objeto parcial implica um fenòmeno
superficie, e é, portanto, esse plano de ima- essencial de afastamento em que cada pedago,
néncia que deve constituir o local de prospec- gáo embora inseparável da mul- tlplicidade que o
privilegiado a partir do qual se pode pór em define, se afasta dos outros e se divide nele
ressonáncia as pulsóes das proíundezas e as mesmo”39. Deleuze também retoma de Lacan a
imagens idealizadas. É a experiéncia que vive o nogao de forclusào paterna para significar a
esquizofrénico para quem só existe superficie; ausencia simbòlica do pai em Wolfson, dividido
seu corpo virou corpo-coador, o que foi entre o pai real e o padrasto: “Todo simbòlico é
magnificamente expressado por Antonin Artaud, real Essa proposigáo laca- niana é ilustrada
que se torna, na época da redagáo de Lógica do magistralmente em Te Schìzo et les Langues
Sentido, o coador de Deleuze em terra (Wolfson, 1970). No entanto, é sempre invocada
esquizofrénica. Deleuze empresta urna metáfora a referencia de Klein,Ii0. Desse percurso, resulta
que transforma em conceito absolutamente urna melhora do estado do psicotico que, ao final
essencial, o de “corpo sem órgáos": “Sem boca do seu percurso de in~ vengáo de urna lingua
Sem lingua Sem dentes Sem laringe Sem esófago diferente, compreende que a vida é injustificável,
Sem estómago Sem ventre Sem ánus Eu pois eia nao tem de ser justificada. Só a aventura
reconstruiría o homem que sou.” (O corpo 36sem das palavras é possível e viável para ele: “O
órgàos é feito somente de ossos e de sangue.) saber nào é mais significado, mas insuflado na
Nos anos de 1969 e 1970, Deleuze trabalha palavra; a coisa nào é mais designada, mas
sobre a questáo da esquizofrenia. Em 1970, imbricada, encai- xada na palavra”“1.
escreve o prefacio à obra de Louis Wolfson, Le No momento em que Deleuze e Guattari
Schìzo et les Irrigues’7. Interessa a ele a maneira comegam a trabalhar na elaboragáo de O Anti-
como Wolfson é levado aos limites da lingua se- Édipo, Eacan se afasta da lingüística es- trutural
gundo um procedimento que nao deixa de evocar e se volta para urna formalizagáo mais avangada
outro autor que chamara bastante a atengáo de de seu pensamento, com as figuras topológicas e
Foucault, Raymond Roussel38. Esse procedimento o materna. Realiza entáo a sim- biose entre o
é o da proliferagao esquizofrénica de palavras em conceito de mitema íévi-straus- siano, a palavra
óombinagóes que se aproximam no plano fónico, grega mathéma (que significa conhecimento) e o
mas que se opóem no plano do sentido. Contudo, continente da matemática. Ele espera assim
diferentemente de Roussel, que apresentava seu abandonar definitivamente o caráter ainda
projeto como urna criagao literária de dimensao descritivo demais do que passa a classificar de
poética, os afastamentos praticados por Wolfson “lingu isleña”, para chegar, pela formalizagáo
tèm em vista arrancá-la por todos os meios de sua total a esse significante puro, a essa abertura
lingua materna, que ele considera opressiva. Seu inicial a partir da qual se formam os “nos”,
projeto nao é fazer urna obra de arte nem urna qualificados desde 1972 de "borróme- anos”.
experiéncia de or- dem científica, mas Depois de ter suturado temporariamente o
simplesmente dar livre curso à sua inspiragáo destino da psicanálise ao das ciencias so- ciáis, é
patógena. a escapada para as ciencias exatas: “Só restava,
O objetivo de Wolfson é destruir para poder único alimento do ermitao no deserto,
criar, matar sua lingua materna para fazer nascer /-

a matemática .
»42

urna nova. Essa rejeigáo da lingua decorre de Assim, em seus seminários, Lacan multiplica
urna rejeigáo do saber imposto e encontra em as figuras topológicas: os grafos, os toros, e
Wolfson suas reservas para se- nutrir. Dado que a manipula no tablado rolos de barbante e fitas de
vida só vale pelo saber e que ele está ligado à papel que corta e recorta para mostrar que nao há
podridào, é preciso tentar obter outra nem exterioridade, nem interioridade nos nós
combinagáo da vida e do saber ao longo da borromeanos. O mundo é fantasía para Lacan:
disseminagào necessària das paìavras segundo situa-se fora da realidade intra- mundana, e sua
outras series de significantes. Deleuze reconhece unidade só é acessívei a partir do que falta ao
discurso: "A matematizagáo só atinge um real, responde que se trata da máquina46. Lendo as
Gilles Deleuze & Félix Guattari 151
um real que nao tem nada a fazer com aquilo que numerosas notas preparatórias, avalia-se a que
o conhecimento tradicional sustentou, que nao é o ponto a contri- buigào de Guattari foi essencial na
que ele 4 1acredita, nao a realidade, mas sim preparagáo da obra, particularmente nos dois
fantasía” ' . Tentando pensar a totalidade e a campos em que Deleuze espera dele maior
interioridade da falta ao que é, Lacan pensa no competéncia, o da psicanálise e o dos incidentes
interior de um espago que elimina as categorías militantes, políticos, de seu trabalho crítico.
de dentro e de fora, de interior e exterior, e de Seria preciso acrescentar a isso o trabalho de
toda topología esférica. Guattari sobre a obra do linguista dinamarqués
Aproximando-se da nogao de estrutura tal Hjelmslev, Lacan é criticado por ter recalcado
como a entendem os matemáticos, Lacan dá mais toda forma de polivo cidade em nome do “sujeito
um passo no sentido da abstragáo, da ideia de um da ciencia” que é a ordem simbólica: “Lacan
objeto solto, ligado a urna opera- gao de ideagao errou ao identificar, no nivel do processo
particular pela qual se podem deduzir as primàrio, o deslocamento da condensagào com a
propriedades gerais de um conjunto de metáfora e a metonimia de Jakobson. Ele
operagóes, e definir o campo em que os linguistica, 47 diacroniza, esma- ga o
enunciados demonstráveis engendram as inconsciente” . O inconsciente, segundo
propriedades dessas operagóes. Tal escapada para Guattari, nao é, portanto, estruturado como a
o formalismo, de resto, afasta Lacan do Edipo, linguagem, como tenta demonstrar Lacan.
cuja importancia ele relativiza antes da Opondo-se ao imobilismo da estrutura, do
publicagao de O Anti-Édipo. Lacan comegara a sistema e de sua taxonomía para substitui-lo pela
criticar o uso freudiano do Édipo, a desmi- produgào de fluxos, de dinámicas dester- ritori al
tologizar sua figura tutelar para remeté-la ao izadas, Guattari preconiza que se volte a atcngao
primado da estrutura significante do simbólico, à biologia, nao à linguistica, para encontrar
particularmente nos seminários do final dos anos modelizaqóes úteis: ‘À escrita cerebral está
de 1960: "Lacan se fixou à estrutura significante, diretamente em contato com o que, do exterior, é
e a questao do Édipo vai para um lugar que diagramático. É o órgáo de afdiagào maquínica.
pretende completar a flingao do pai, a um lugar A escrita cerebral está diretamente em contato
que até se44 poderia dizer que é o do buraco na com os sistemas maquinicos do corpo:
estrutura” . percepgào, sistema motor, neurovegetativo,
etc,”1'8.
A famosa afirmagao de Lacan segundo a qual
Um dispositivo de traballio a duas “um significante representa o sujeito para outro
vozes significante” também é contestada por Guattari,
já vimos como era o dispositivo muito pois, para ele, o que é representado pelo
singular de escrita medíante o qual Deleuze e significante náo é em nada o sujeito, mas “o
Guattari empreenderam a redagáo de O Anti- representado da repressao ‘incestuante’”. “Pode-
Édipo. Sabe-se, portanto, que a questáo se até chamar isso de sujeito, mas é en- tào o
identificar “quem escreveu” nao é pertinente, na sujeito da repressao, e nao o sujeito do desejo'.
medida em que os dois autores pensaram juntos Nao há, de fato, sujeito de desejo, há produgào
seus conceitos por meio de trocas de cartas e de do desejo segundo urna máquina de signoNessas
sessóes de trabalho. No comego da atividade notas preparatorias, Guattari preconiza o uso de
comum, antes de sua primeira estada em urna infìnidade de conceì- tos que se encontram
Dhuizon, em 29 de julho de 1969, Deleuze envía na obra final, com algu- mas excegoes apenas,
a Guattari urna longa carta. Ele lembra ao amigo45 como aquela, emprestada a Simondon, da
que dispoe de seu artigo “Máquina e estrutura” “transdugáo”, ou aínda as nogòes de
e de suas notas sobre Schreber. À pergunta que “transcursao” e “transcursividade”, mas que
Ihe coloca Deleuze sobre os mecanismos capazes podem ser todas agrupadas sob a temática já
de levar “a cru" ao inconsciente, Guattari auriga da “transversalidade”.
Guattari fornece a Deleuze elementos de sua
152 François Dosse
um exemplo concreto de transformagáo do melo
pràtica analítica, menciona sonhos de seus hospitalar com o estabelecimento em La Borde
pacientes e o que se pode excluir das categorías de familias artificiáis batizadas de “comunidades
edipíanas. Entre muitos casos, há o do ex- terapéuticas de base” ou “unidades de atendi
miiitante político e estudante de cién- cias mento”, cujo objetivo é captar o imaginário de
políticas de cerca de 30 anos que foi tra- balhar pacientes, assim como de mem- bros do pessoal
no jornal [sensacionalista] Détective: ‘Antes das da clínica, tirando-os dos re- ducionismos
férias eu brigo com ele... Recuso-me a continuar farmliar-edipianos que a relagáo clàssica entre
a análise (à qual ele é fortemente apegado, aínda doente e médico induz. Guattari relata a Deleuze
que de forma ambivalente) se continuar assim. o caso de seu primeiro esquizofrénico em La
Volta das férias. Abandonou tudo: o emprego, as Borde, cujo tratamento lhe tornava até cinco
mulherzinhas materna- loides e fraternais, etc.”30. horas por dia. Esse paciente se identificava com o
Urna vez consumada essa mudanga de rumo, sen escritor preferido de seu terapeuta, Kafica, e
paciente ihe relata um sonho que parece girar em Guattari o fazia copiar 0 Castelo, gravando suas
torno de figuras parentais, de cadáveres, de urna leituras até que readqui- risse sua singularìdade
Irma monstruosa. Apáhentemerite, tudo deve ter propria e, finalmente, curado, partisse para Israel
lugar no dispositivo edipìano, mas, para Guattari, com a esperanga de contribuir concretamente
é preciso estender a interpretagáo além da serie para a pacificando das relagòes entre israelenses
familiar: “Esse sonho traz a resposta à min ha e árabes,
intuigáo de antes das ferias: a fidelidade à sua A esquizoanálise, tal corno Guattari a con-
máe (ele nunca abandona a casa da familia), é cebe em sua pràtica de analista, visa favorecer as
essa fidelidade à territorialidade dos tres filhos rupturas existenciais, romper as amarras, os
(jardim dividido em tres). Seu objeto é o buraco, simulacros, às vezes ao prego de urna certa
o de sua irmá e o seu, que será obstruido pelos brutalidade assumida e reivindicada. Isso dá, por
fluxos de terra misturada. É o buraco para as exemplo, nesta expressáo profundamente sincera
mortes produzidas elas próprias como um fluxo de Guattari: “'Nao confunda - nao sou nem seu
transfinito de cadáveres... Nada a fazer, nesse pai, nem sua máe... Estou me lì- xando para
caso, com o Édipoí’r>!. Em 14 de novem- bro de voce!’ Se o senhor preferir, retomo
1970, Guattari chega a enviar a Deleuze, a título implicitamente sua frase: ‘Nao me interesso pelas
confidencial, urna carta de urna de suas pacientes pessoas a nao ser na 5 medida em que elas
sobre a sexualidade feminina, que deve contribuir produzem alguma coisa" . Cabe a Guattari passar
para sua reflexáo sobre as diferengas entre ao ato quando a situagáo fica insupor- tável para
homossexuaíidade masculina e feminina. ele, como no caso daquela paciente médica que
Por isso é um absurdo acusar os autores de O Ihe conta sua vida no diva como se fosse um
Anti-Édipo, como faráo alguns quando de sua romance. Ele se levanta, pega um livro e comega
publicagáo, de náo ter vínculo com a pràtica a ler ostensivamente, Na sessao seguinte, é a
analítica e de se deixar levar por um mero “de- paciente que se desculpa:5,1“É ver- dade, é idiota,
lirio” desconectado. A pràtica labordiana está lá, eu falo... como um livro” .
onipresente, ñas orientagóes sugeridas por A outra vertente absolutamente essencial das
Guattari. Assim, em urna anotagáo de Io de ou~ relagòes de trabalho de Deleuze com Guattari
tubro de 1970, ele afirma que náo é absurdo “es- situa-se no plano político, a propósito da
quizofrenizar” a neurose, pois nao existe urna transformagáo das práticas coletivas. A anco-
verdadeira neurose que náo esteja apoiada em ragem de O Anti-Édipo no movimento de 1968 é
urna psìcose. Enquanto a psiquiatria clàssica afirmada claramente em urna entrevista comum
tende a neurotizar a psicose, a esquizoanálise que seus autores concedem em 1973 a Michel-
deve fazer o contràrio: “Parece-me que é muito Antoine Burnier, entao diretor da revista Actual.
mais fácil cuidar de um esquizofrénico do que de A dupla lógica da desterritoria- lizagáo e da
um neurótico. Fácil, desde que se trabalhe em reterritorializagáo nao é um simples binarismo
tempo integral”32. Cabe a Guattari dar a Deleuze opondo o bem e o mal, pois dos dois lados a
política do desejo pode ser traída: “De um lado, a jugo do Édipo e conduzi-lo ao ponto de sua
Gilles Deleuze & Félix Guattari 153
desterritorializagáo carece dos agenciamentos das autocrítica. Mas é como a historia dos resistentes
máquinas desejantes. De outro, a que, querendo destruir urna torre, equilibraran!
reterritorializagáo os aliena, os e dipi a- niza, os táo bem as cargas de explosivos que a torre
arcaíza™. Em face desse duplo perigo, como salfcou e voltou a cair no pròprio buraco”68.
Guattari considera as lutas emancipadoras? Nesse plano, Deleuze e Guattari compartilham os
Articulando urna reterritorializagáo que seja sarcasmos de Michel Foucault com a psicanálise.
compatível com um projeto revolucio- nário Eles se apoiam na
fundado em um plano de consisténcia subjetiva Historia da Loueur a na Idade Clássica59 para
autogerida, ou seja, gragas a novos processos de estabelecer uma ligaçâo de continuidade entre a
subjetivagáo. Lá se encontra a preocupagao psiquiatría do sáculo XIX e a psicanálise na
maior manifestada por Guattari, que foi sempre reduçao comum da loucura a um “complexo
pela articulagáo das lutas coletivas a novas parental”, na importúnela da figura da confis- sâo
formas de subjetivagáo. de culpabilidade que resulta do Édipo: “En- tâo,
0 Anti-Èdipo é, de fato, antes de tudo, o re- ao invés de participar de um projeto de liber açâo
torno violento do recalcado do lacanismo. O efetiva, a psicanálise participa da obra da
retorno a Freud realizado por Lacan privilegiara o repressâo burguesa mais gérai, aquela que
Significante, o Simbólico, a concepgáo de um consistiu em manter a humanidade europeia sob o
inconsciente esvaziado de seus afetos. Essa jugo de papai-mamâe, e nâo em acabar com esse
abordagem é radicalmente contestada por De- problema”60.
leuze e Guattari, que opòem à Lei do Mestre, cara A psicanálise, segundo Deleuze e Guatta- ri,
a Lacan, a necessària liberagao da produ- gáo procede por reduçôes e limita sistemáticamente o
desejante. Eles substituem o "Eu penso” por um desejo a um sistema fechado de repre- sentaçôes:
“Eu sinto” mais originàrio e que nada mais é que “A psicanálise nâo faz senâo elevar o Édipo ao
a produgào de um devir. Contudo, os autores de quadrado, o Édipo de transferencia, Édipo de
0 Ànti-Édipo reconhecem em Lacan o merito de Édipo Ê a invariante de um desvio das forças do
ter mostrado justamente como o inconsciente é inconsciente”61. Eles estabe- lecem um corte entre
urdido de urna multipli- cidade de cadeias o capitalismo, que tem interesses comuns com a
significantes. A esse respei- to, eles admitem psicanálise, e os movimientos revolucionários,
urna abertura lacaniana que permite a passagem que caminham do lado da esquizofrenia. Para
de um fluxo esquizofrénico capaz de subverter o eles, nâo hà Sujeito Significante, nâo há lugar
campo da psicanálise, principalmente gragas ao delimitado por qual- quer transcendêncîa, há
objeto a: “O objeto a faz sua irrupgáo no interior apenas processos.
do equilibrio es- trutural à maneira de 56urna Deleuze e Guattari criticam sobretudo o pai
máquina infernal, a máquina desejante” . A do estruturalismo, Claude Lévi-Strauss, cuja
maior contribuigao de Lacan foi ter feito a importúnela foi fundamental na própria definiçâo
passagem da psicanálise do aparelho edipiano à dada por Lacan ao inconsciente es- truturado
máquina paranoica, Há um significante maior que como uma linguagem. Eles opoem duas lógicas
subsume os signos, que os mantém no sistema de divergentes encarnadas urna pela máquina
massa e que organiza sua rede: “Esse me parece o desejante e a outra pela estru- tura anoréxica: “O
criterio do delirio paranoico, é o fenómeno da que se faz do próprio inconsciente, a nao ser
rede de signos, onde o signo remete ao signo”'’'. reduzi-io explícitamente a uma forma vazia, de
A obra nao ataca tanto Lacan quanto seus onde o próprio desejo está ausente expurgado?
discípulos e a psicanálise em geral. Lacan en- Uma tal forma pode definir um pré-consciente,
saiou um inicio de desmitologizagáo do Édipo, seguramente nao o inconsciente”6“1. Todavía,
mas nao transpós o Kubicáo, e os autores de O Lévi-Strauss cal de novo nas graças dos autores
Anti-Édipo ridicuiarizam a maneira como ele se para a definiçâo deles da esquizoanálise, quando
safou: “Fantástica e genial regressáo: era preciso se trata de minorar o lugar do Édipo. Deleuze e
fazer isso, 'ninguém me ajudou, para se livrar do Guattari se apoiam entáo no mito de referencia do
primei- ro volume das Mitológicas, O Cru e o
154 François Dosse
como se fez até agora, como uma especie de
Cocido para seguir a demonstraçâo de Lévi- teatro onde se representarla um drama,
Strauss segundo a qual o verdadeiro culpado da privilegiado, o drama de Édipo. Nao achamos
historia do incesto do filho com a mae é na que o consciente seja um teatro, mas sim uma
realidade o pai que quis se vrngar. O pai será fábrica”63. Com base no desejo, já nâo se en-
punido e mor- to por isso: “Édipo é, sobretudo, contra mais entâo a falta, a Lei, mas a vonta- de
uma ideia de paranoico adulto, antes de ser um de produzir, de afirmar sua singularidade, sua
sentimento infantil de neurótico'6*, deduzem potencia de ser. Por isso, o objetivo de O Anti-
Deleuze e Guattari. Édipo nao é absolutamente uma restaura- çâo do
Da teoria lacaniana do desejo, eles retém marxismo, um “retorno a Marx”, como se diz na
apenas um dos dois polos: o do objeto parcial, o época.
objeto a. Ao contràrio, recusam a referencia a Deleuze é multo claro em sua aula de Vin-
um “grande Outro”, que, por sua vez, parte de cennes: “Nossa tentativa nâo está ligada nem ao
uma falta. Para eles, nao falta nada ao desejo, “é marxismo nem ao freudo-marxismo”69. Identifica
antes o sujeito que falta ao desejo, ou o desejo tres grandes diferenças em relaçâo ao
que carece de sujeito fixo”to. Contudo, um procedimento marxista. A primeira está no fato
estatuto à parte é atribuido a Lacan no de que Marx parte de urna teoria das
questionamento da pertinéncia do discurso necessidades, enquanto, “ao contràrio, nos- so
psicanalitico. Ainda que acusado de substituir a problema se colocava em termos de dese- jos” 70.
familia que falta, de desrealizar a produqáo do A segunda diferença está na oposiçâo que o
desejo sob as máscaras de um crer, de um marxismo estabelece de infraestrutura e
imaginário de representagào, de utilizar Édipo superestrutura, enquanto que, segundo Deleuze e
como forma de reterritorializaqao na forma da Guattari, nâo há esfera ideológica cortada do
castraqao, Lacan é visto como aquele que ten- resto da sociedade, mas somente organizares de
tou tirar a psicanálise de suas aporias. poder: “O que se chama de ideologías71 sao
Outra marca de Guattari é a preocupapáo de enunciados de organizaçôes de poder” . A
ancorar a busca do inconsciente em seu tenido terceira diferença consiste em deixar de lado a
social, coletivo: “Devemos passar por um: vontade de recapitulaçâo do marxismo, que visa a
paralelo entre a produpáo desejante e a produ- uma espécie de compendio da memoria, de
páo social”66. Nem por isso a maneira como os desenvolvimento unitàrio das forças produtivas:
marxistas clássicos se contentam em justapor as “Nosso ponto de vista é completamente diferente.
duas dimensoes é satisfatória. Nao se pode partir Concebemos a produçao de enunciados nâo
da ideia de que haveria, de um lado, urna absolutamente em forma de um desenvolvimento,
produgáo social e, de outro, uma produpao do de um compéndio da memoria, mas, ao contràrio,
desejo: “Na verdade, a produqáo social nada a partir de uma potencia que é a de esquecer...
mais é do que a pròpria produgào desejante Creio que essas très diferenças práticas fazem
em : condiqoes determinadas"™. Portanto, há com que nosso problema jamais tenha sido o de
coex-: tensáo do campo social e do desejo na um retorno a Marx, ao contràrio, nosso problema
concepto que se desenvolverá em O Anti-Édipo. é muito mais o esquecimento, incluido o
A di- ; ferenga entre máquinas técnicas de esquecimen- to de Marx, Todavía, no
produpáo e máquinas desejantes nao é uma esquecimento,72 pequeños fragmentos
diferenqa de:: natureza, mas de simples regime, sobrenadam” .
de relapáo de grandeza. De sua parte, Deleuze fornece a noçâo ~ re-
Essa conceppáo do inconsciente como má- tomada de Artaud - de “corpo sem órgáos”, que
quina de produpao é considerada por Deleuze e serve de plano de imanência para recapitular todo
Guattari como o fundamento mesmo de sua : o processo do desejo. Deleuze insiste na grande
demonstrapáo: “A ideia fundamental talvez seja oposiçâo entre o plano de consistènza do desejo
esta: o inconsciente ‘produz’. Dizer que ele: do corpo sem órgáos e os extratos que o ligam.
produz significa que é preciso parar de tratá- -lo, Ele distingue très extratos. O pri- meiro é o da
organizaçâo e consiste em fazer do corpo sem completamente improprio a urna explicagáo
Gilles Deleuze & Félix Guattari 155
órgáos um organismo. O segundo extrato é o da edipiana, por isso langado em um lugar fora da
significaçao. Nesse73 nivel “vai se falar de ángulo pràtica psicanalitica: “Freud nao gosta dos
de signiñcánciá’ .0 último, no ponto de esquizofrénicos, nao gosta de sua resisténcia á
intersecçâo dos dois outros, pode ser definido edipianizagáo, ele tende mais atratá-Ios como
como o extrato da subjetivaçâo. É apenas com O animáis”'6.
Anti-Édipo que o “corpo sem órgáos” passa a ter Ao contràrio do que poderiam levar a crer
lugar em um pensamento da imanência, e esse algumas leituras apressadas, a intengao de
conceito torna-se, entâo, urna peça decisiva do Deleuze e Guattari nao é fazer a apología da
maquinàrio conceitu- ai. Aìiàs, Deleuze e esquizofrenia. Sua vontade de esquizofrenizar o
Guattari nâo limitam seu uso apenas ao plano da inconsciente visa libertá-lo do jugo edipia- noe
teorìa do desejo, mas o estendem ao campo social familialista da pràtica psicanalitica. Para superar
e histórico. Com O Anti-Édipo impôe-se uma o triángulo edipiano, a experiencia da
concepçao totalmente imanentista, a do “corpo psicoterapia institucional da clínica de La Borde
sem órgáos”, que será a pròpria fonte do é mobilizada com a distíngáo entre gru- pos-
movimento que anima as palavras e as coisas. 0 sujeitos e grupos assujeitados, que poe em
“corpo sem órgáos” é concebido como uma questáo a pròpria ideia de fantasia individual. A
máquina de guerra critica e clínica das esqmzoanáiíse que os autores querem promover
instituiçôes e se torna urna nova ferramenta para nao visa resolver o Édipo, mas se pro- pòe a
a elaboraçâo de urna filosofía política. Guattari “desedipianizar o inconsciente para atingir os
contribui de maneira decisiva para enriquecer verdadeiros problemas”77. Nao se delira papai-
esse conceito já utilizado por Deleuze, mas cujo mamae, mas se delira o mundo; “Todo delirio
alcance é renovado e enriquecido por novas tem um8 conteúdo histórico-mundial, político,
dimensóes no cruzamento do desejo e do poder: o racial”' , A esquizoanálise se propoe, portanto, a
“corpo sem órgáos” é guarnecido por Guattari de defender urna psicanálise ao mes- mo tempo
uma dimensáo que ele nao tinha em Lógica do social e política, aberta a todos os fluxos, a todos
Sentido e que contém uma aposta polémica de os cortes significantes.
crítica das teses lacanianas. Guattari opôe à A esquizofrenia brandida como programa
posiçâo mestra do Significante em Lacan o jogo universalizante por Deleuze e Guattari nào é a
de forças de intensidades variáveis de um “corpo doenga que leva esse nome, mas a ideia de um
sem órgaos” cujo campo de aplicaçâo nâo é processo sem limites, a capacidade sempre re-
programado como o de um organismo em tomo novada de transgredir os limites, de libertar das
de funçôes delimitadas, prisòes. É esse processo que parece em agào em
0 proprio cerne da demonstraçâo freudiana, o urna certa literatura anglo-saxá que Deleuze
triángulo edipiano, é o objeto essenciaì da crítica aprecia particularmente: Hardy, Lawrence,
de Deleuze e Guattari, que denunciam ali um Lowry, Miller, Ginsberg, Kerouac, que carregam
reducionismo familialìsta: “Como a psi- canáíise o mundo neles e tèm a capacidade de delirá-lo, de
faz, desta vez, para reduzir a neurose a uma pobre romper as amarras e embaralhar os códigos, de
criatura que consome77 eternamente o papai- facilitar os fluxos. É também o caso daque- les
mamâe e nada mais?” . A psicanàlise traz em si, capazes de deixar a lingua gaguejar, de se
portanto, um monocausalismo terri- vélmente empreender na invengáo de um estilo novo de
empobrecedor, e o paciente se presta a receber linguagem que rompa com a gramaticalidade,
ordens da parte do terapeuta: “Diga que é Édipo, com a sintaxe, para permitir que escoe melhor o
senao vai levar uma bofetada’75. Se o esquema ñuxo do desejo de exprimir, como Artaud:
edipiano parece nâo responder às questòes da “Artaud é a realizágao da literatura, justamente
neurose, é menos adequado ainda para resolver as porque é esquizofrénico, e nao porque nao é. Faz
psicoses, seja a paranoia ou a esquizofrenia. muito tempo que ele derrubou o muro do
Visto que o esquizofrénico justamente fugiu do significante: Artaud, o Esquizo”'9.
universo parental no qual nao acredita mais, é
156Urna tentativa
François Dosse de antropología burburinho: Édipo Africano^, A tese defendida
histórica pela obra provoca a indignaçâo de Guattari e de
Oury, que julgam infundado fabricar o Édipo na
A segunda vertente de O Anti-Édipo é cons- África. Guattari recorre aos amigos Alfred Adler
tituida por urna tentativa de antropologia que e Michel Cartry para contestar o livro. Michel
possa sustentar a tese da ancoragem histórica dos Cartry, que, como vimos, tinha urna forte relaçâo
processos esquizofrénicos. Deleuze e Guattari com Guattari, também conhecia Deleuze por ter
distinguem très fases sucessivas: Selvagens, assistido às suas aulas de filosofia sobre Hume
Bárbaros e Civilizados. Embora Deleuze tenha quando cursava a Sorbonne em 1957. Quando
limitado rigorosamente a preparagáo da obra a Guattari està trabalhando em 0 Anti-Édipo, pede a
um tête-à-tête com Guattari, aceitará urna ele, assim como a Alfred Adler e Andras
mudanga na regra que tinha estipulado solici- Zempléni, que esclareça as ques- tôes de ordem
tando a opiniáo de alguns antropólogos próximos antropologica, Esses etnólogos estâo bem a par
de seu amigo. A minoraçâo ou relativiza- çâo das questôes psicanalíticas: Michel Cartry fez
cultural do Édipo já era visivel em certos análise com Serge Leclaire, e Alfred Adler, com
antropólogos desde o final dos anos de 1960.0 Jean Laplanche, e ambos forana assíduos nos
casal Ortigues, ligado a um trabalho de campo seminários de Lacan.
realizado em Dakar e dirigido pelo etnopsiquia- Michel Cartry volta entâo da Àfrica, seu
tra Flenri Collomb, que tentava aplicar os mé- campo de estudos. É convidado para Dhui- zon,
todos da psicoterapia institucional na Africa, onde Guattari Ihe explica seu projeto. Cartry vai
publica em 1966 urna obra que causa grande regularmente à Rue de Condé, à
casa de Guattari, duas a très vezes por mes no forma intransigente a entrada dos sociólogos157do
inicio dos anos de 1970, ou sozinho, ou com CERFI noCiliésseuDeleuze
gabinete& Félix
de Guattari
trabalho, decorre
Alfred Adler e Andras Zempléni, para sessóes de essencialmente de consideraçôes táticas. De fato,
trabalho. Cartry e Adler, amigos e ambos essa ainda é a época do estruturalismo, cujo
africanistas, acabam de escrever um artigo núcleo é constituido pela antropologia estrutural
importante que será publicado na revista81 de de Lévi-Strauss. Essa dimensáo de confronto no
Claude Lévi-Strauss, l'Homme, em 1971 . O cume explica a mudança aceita por Deleuze para
artigo subverte de tal modo os postulados do sair do isolamento de seu gabinete de trabalho:
estruturalismo que Lévi-Strauss convoca os “Era preciso subverter Lévi-Strauss por seus
autores. O tema é um grande mito dogon que discípulos, mesmo que à força. É evidente que
reduz o Édipo a quase nada. Adler e Cartry todo esse capítulo, quando estiver pronto,
mostram no artigo que o mito condicionante dos precisará ser lido por um etnòlogo (Cartry? Ou
dogons nao atribuí um lugar importante ao entâo seu especialista nos uó lofes' 1
? Melhor
personagem da mâe nas relaçôes parentais. Ela Cartry)”8'.
permanece excluida ou como simples objeto de Os amigos etnólogos se mantêm céricos
alianças laterais: “Raciocina-se como se o mito diante da tripartiçâo sugerida por Deleuze e
pusesse em cena pessoas definidas como paí, Guattari - Selvagens/Bàrbaros/Civilìzados -, mas
mâe, filho e irmâ, ao passo que esses papéis estào contentes por poder discutir suas
pertencem à ordem82constituida pela proibiçâo... o descobertas com Deleuze: “0 que era ao mesmo
incesto nao existe” . tempo simpàtico e gratificante é que eie pegava
Segundo Adler e Cartry, o anti-Édipo já es- nossos artigos e os trabalhava a partir dali” 88.
tava ñas teses de Lacan, pelo menos da manei- ra Evidentemente, os amigos etnólogos beneficiano
como o liam. Lacan, aliás, havia sido grande Deleuze com seu saber antropológico. Eles o
amigo de Marcel Griaule, que já mandara Édipo fazem 1er Marcel Griaule, assim como um dos
pelos ares nos anos de 195083. O artigo de Adler e mestres de Evans-Prìtchard, o ingles Meyer
Cartry tem a dimensáo de um verda- deiro livro, Fortes, e também Pierre Clas- tres, por quem
90 páginas da revista L'Homme: “Parecíamos Deleuze tinha urna admiraçâo irrestrita89 devido a
crianças aguardando o veredicto de Deleuze logo seu trabalho sobre os indios guayakis . Adler e
que foi lançado”84. No essencial, o diálogo se Cartry procederà geralmen- te por pequeñas
desenvolve com Guattari, mas Deleuze aceita se sínteses sobre pontos precisos e delicados e as
envolver ñas discussoes: “Se possível, fícaria enviam a Deleuze: “Essas sínteses chegavam a
feliz de encontrar A., Z„ Car- try”8j. Um pouco nós, e ficávamos sempre muito surpresos com o
mais tarde, Deleuze escreve a Guattari que “as que se tirava dali, Havia um verdadeiro trabalho
observaçoes de Adler e Cartry sao muito que se reportava às próprias fontes”90 Eles pôem
preciosas para nós”. Deleuze e Guattari em discussâo, entre outras coisas, um conceìto
submetem suas hipóteses de antropología em voga na época a propósito da África
histórica à leitura crítica de sens amigos etnó- tradicional, o da “sociedade segmentária”, isso é,
logos, o que tem como efeito corrigir o passo sociedades organizadas em enorme escala, mas
aqui e ali, como reconhece Deleuze em sua sem Estado central. Essa noçâo de
correspondéncia com Guattari: “Estou plena- segmentaridade, aliás, é antiga, e já está presente
mente feliz com seu sentimento de que nosso em Durkheim: “Eia havia interessado muito a
texto caminha bem e com a opiniáo de Cartry, Deleuze, que se per- guatava se as sociedades
que nos será cada vez mais preciosa (suas ob- segmentárias eram algo a elaborar localmente,
servaçôes já me fazem corrigir detalhes, e com em um universo étnico determinado, ao lado das
mais forte razâo mais tarde, por isso é preciso formagoes estatais, ou se eram na verdade o
manter contato com ele), o que nao86impede que o produto de grandes deslocamentos de Estados
essencial seja nosso acordo a dois” . africanos muito antigos dos quais nao se teriam
A exceçâo que constituí o envolvimiento dos
etnólogos, depois de Deleuze ter impedido de 1N. de R. X: Uoiof ou Wolof é um grupo étnico encontrado no
Senegal, em Gambìa e na Mauritania,
encontrado vestigios’91. Por outro lado, a famosa frase mantem em funcíonamento continuo fluxos decodifi-
de Lacan segundo a qual "nao existe pai, só pai morto” cados que ultrapassam os limites das codifi- caçôes
é explicada do ponto de vista etnológico por Alfred estatais. Ora, o capitalismo represen- tou o sistema mais
Adler, 158
paraFrançois
quem urna tal afirmagao nao tem nenhum
Dosse
capaz de responder a esse desejo de decodificagáo
mistério em re- ìagào às práticas das populagòes que generalizado. Dai a ligagáo entre capitalismo e
estudou no Chade. De fato, o acesso ao estatuto de pai esquizofrenia que aparece como subtítulo da obra, pois
nessas populagòes só pode ser obra de fìlhos iniciados e os dois fenómenos visam liberar os fluxos por todos os
se situa, pois, após urna passagem pela morte simbòlica meios. Retém-se ali o caráter unlversalizante do
do pai: “Portanto, essa frase significa sìmplesmente que capitalismo, que decodifica para me- lhor se situar em
nao se pode ter acesso ao estatuto de pai em vida”92. urna escala mundial e assim responder à sua axiomática
Nas entrelinhas desse capítulo, “Selvagens, da maximizagáo das leis de mercado: "A civilizaçâo se
Bárbaros, Civilizados”, os autores encontraran! um define pela decodificagáo e pela96desterritorializagáo dos
operador que desenha os contornos de tres fluxos na produgào capitalista” . Isso daría margem a
configuragoes de que se dotou a historia da pensar que, por força de liberar os fluxos, a evolugáo do
humanidade: sao os processos de codificagáo e capitalismo corresponde a urna decodificagáo
decodificagáo, de territorializagáo e de libertadora de fluxos do desejo, mas náo é verdade,
desterrítorializagao dos fluxos de desejo que irrigam o senáo o capitalismo seria considerado como a utopia
universo social. A máquina adota urna primeira forma enfím realizada da libertagáo da humanidade. A razâo é
como máquina territorial assentada sobre a valorizagáo que a esquizofrenia é o proprio limite do capitalismo,
da terra concebida enquanto unidade primitiva, suporte seu límite exterior, e o capitalismo tem o cuidado de
fundador da historia da humanidade. É o tempo da inibir essa ten- dência: “O que ele decodifica com urna
codificagáo absoluta que marca os espíritos e os corpos. máo,
Tatuar, excisar, incisar, cortar, sacrificar, mutilar, todas axiomatiza com a outra .
»07

sao práticas que remetem a "um ato de fundagáo pelo


qual o homem passa de um organismo biológico a um Dat a preocupaçâo dos autores de “esquí-
corpo pleno, urna terra, na qual os órgáos se acoplam, zofrenizar” para avançar no sentido da decodi- fïcaçâo
atraídos, repassados, miraculados segundo as exigencias generalizada. Sem dúvlda, a burguesía deu um passo
de um $ociusm. decisivo como classe que con- seguiu decodificar as
A ruptura que faz a passagem dos selvagens aos castas, mas a sociedade moderna se debate entre duas
bárbaros situa-se na criagao de um Estado déspota, de forças contradi- tórias: o imperioso desejo de
urna máquina estatal que impòe sua codificagáo ao decodificar sobre as ruinas da máquina despótica e seu
socius, O déspota impòe urna nova alianga, náo mais sonho de recodificar, de reterrítorializar os fluxos e toda
lateral, mas vertical, e seu povo deve segui-lo no de- a historia contemporánea: “Oscila-se entre as
serto. A antiga codificagáo subsiste, mas é submetida a sobrecargas paranoicas reacionárias e as cargas98
novas lógicas que se colocam a servigo da máqiñna subterráneas, esquizofrénicas e revolucio- nárias”
estatal. Esses dois primei- ros régimes têm em comum Deîeuze e Guattari fazem do Édipo a recapitulaçâo de
urna canalizagao estrita de todos os fluxos que très momentos históricos que ocupam o lugar do
permanecerá sobreedificados: "A sobrecodijlcaçâo, tal imaginario das antigas sobrecodifîcaçôes no coraçâo da
é a operagáo que constituí a esséncia do Esta- do”í>!. modernidade capitalista. Essa reapropriaçao para
Urna das principáis mutaçôes dessa ruptura histórica se controlar o socius se faz em nome de urna cultura da
traduz no primado atribuido à grafia sobre a voz. A cul- pabilizaçâo, de urna cultura do ressentimento
escrita se impóe com o déspota e seu corpo de nutrido pelo mito edípiano. Ela é difundida por très
funcionarios de Estado. O sistema gráfico se alinha heróis da codificaçâo: Lutero, que deslocou o objeto do
sobre a voz que constituí seu modelo. Deleuze e crer para o foro íntimo; o economista Ricardo, que
Guattari seguem aqui as análises de Jacques Derrida e reterritorializa no ámbito da propriedade privada dos
sua critica ao logocentrismo e ao fonologismo da meios de produçâo, e Freud, que reduz a esséncia do
civilizaçâo od dentai95. É nesse momento que a lei desejo ao ámbito estrito do homem privado - “Em vez
designa sem significar e se pode fa- lar de arbitrio do dos grandes fluxos decodificados, os pequeños córregos
signo em relaçâo ao que eie significa. recodificados na cama da mamâe. A interioridade em
Depois de ter-se apoiado, entre outras, nas teses vez de urna nova relaçâo com o de fora”99.
marxistas para dar conta dessas duas primeiras fases,
Deleuze e Guattari utilizano Fernand Braudel para Para urna esquizoanálise
destacar as forças em açâo na era dos civilizados que
A obra termina com urna introduçâo ao que pode ser Pode-se identificar aquí um trapo característico da
a esquizoanálise e retoma, entáo, os dois polos, busca de Deleuze e Guattari, que utilizano novas
paranoico e esquizofrénico, para afirmar de imediato oposipóes binárias em urna época ávida délas: lingua e
que Édipo se situa do lado do polo paranoico. Embora a palavra, Gilles
significante e significado, socius e
Deleuze & Félix Guattari 159

psicanálise leve a crer que o desejo incestuoso vem da inconsciente, paradigma e sintagma, metáfora e
crian->,]00ça, na verdade “o pai paranoico edipianiza o metonimia, mas desta vez na perspectiva de abrir essas
filho . Segue-se um desdobramento binário que se binaridades à multiplicidade, à díssemmapáo, à
apoia em urna oposiçâo entre um polo negativo, fragmenta- pao generalizada. A libido é remetida à
paranoico, e um polo positivo, esquizofrénico. energia específica liberada pelas máquinas desejantes.
Enquanto o primeiro tende a se situar em grandes No momento em que Jacques Derrida denuncia o
conjuntos, as massas, em urna direçâo molar, o outro se logocentrismo da cultura ocidental, Deleuze e Guattari
deixa transportar para as singularidades e partículas do atacam o falo centrismo do freudismo, para o qual,
molecular. Disso resulta um novo contraste entre um depois de ter an- tropomorflzado a sexualidade, só
investimento que no primeiro caso, paranoico, molar, é haveria um sexo, o masculino, a partir do qual a mulher
o do grupo assujeitado, enquanto no segundo caso, se definiría como falta, para finalmente culminar em
esquizofrénico e molecular, se chega ao grupo-sujeito. urna comunicapáo puramente negativa de- vido à
A linha divisòria entre esses dois polos passa de castrapáo. É nessa auséncia que a libido encontraría sua
maneira transversal sobre o corpo sem órgáos que é a origem comum no homem e na mulher, e a castrapáo
substáncia imánente, tal como a concebe Espinosa. As seria assim seu motor essencial. Para Deleuze e Guattari
máquinas desejantes estao do lado do polo molecular, nao basta, por tanto, defender os direi tos de urna
ocupadas em fluxos generalizados segundo múltiplas sexualidade feminina dominada, também ali é preciso
conexoes. Sao consideradas à maneira de um pluralizar a libido: “A fórmula esquizoanalítica da
significante vazio, pois nào significami nada e nao revolupáo desejante será acima de tudo: a cada um seus
representam nada além do que se faz délas, à maneira sexos"’01.
como Jacques Monod concebe a originalidade das A preocupapao da esquizoanálise é abrir o jogo
sínteses realizadas na biologia molecular. endógeno da caixa preta analítica para fora, para urna
ancoragem no tempo histórico
de um mundo do sujeito libertado da opres-
160 François Dosse
4. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Ève
sâo das diversas formas de reterritorializaçâo que Cloarec, arquivos IMEC.
se operam sob o jugo da culpabilizaçâo, da falta, 5. Ibid.
das forças da morte: “O instinto de morte celebra 6. Ibid.
as nupcias da psicanálise com o capitalismo” 102, 7. Felix GUATTARI, “Journal 1971”, 6 dc outubro de
A vaiorizaçâo dos processos de produçâo na 1971, la Nouvelle Revue française, outubro de 2002,
esquizoanálise coloca-a do lado de urna technè, n.563, p. 349-350.
8. Gilles DELEUZE, “De Sacher-Masoch au ma-
de urna micromecánica. A esquizoanálise parte sochisme”, Arguments, n. 21,1961,
do postulado de que o desejo nao é de modo 9. Gilles DELEUZE, Présentation du Sacher-Masoch.
nenhum urna superes- trutura, mas sim parte Le froid et le cruel seguido do texto integral de La
integrante do mundo da produçâo, do campo Vénus à la fourrure, Minuit, Paris, 1967 (citado SM).
social que ele irriga em todos os pontos. Para 10. jean LAPLANCHE, Problématiques 1, l'angoisse
isso, eia dispôe de diversos índices dos quais a (aula de 23 de Janeiro de 1973), PUE Paris, 1980, p.
sexualidade é apenas um campo limitado na 296.
análise dos tipos de investimento do desejo. 11. jean-Paul CHARTIER, “La rencontre La- can-
Segundo Deleuze e Guattari, a esquizoanálise, Deleuze ou une soirée de Lacan à Lyon à l’automne
pela reabertura que possibilità, viabilíza a 1967”, em Le Croquant, n, 24, outo- no-inverno
elucidaçâo de um campo muito mais extenso que 1998-1999, p. 25.
a psicanálise. Seu campo de investigaçâo é muito 12. Ibid., p. 26.
mais ampio que o estri to contexto familiar, pois 13. Jacques LACAN, “Place, origine et fm de mon
eia se vale de todas as formas de sociabilidade, enseignement”, ibid., p. 44.
inclusive atribulado um primado a tudo o que 14. Ibid., p. 64.
emana do campo social no sentido ampio em 15. jean-Paul CHARTIER, ibid., p. 28.
relaçao ao investimento na célula familiar. 16. Ibid., p. 29.
A psicanálise traduz, sobretudo, urna rela- 17. Ibid., p. 29.
çâo de forças, e nesse piano Deleuze converge 18. Gilles DELEUZE, DR, p. 28.
com a demonstraçâo de Robert Castel sobre o 19. Ibid., p.m.
“psicanalìsmo": eia é urna relaçao de poder de- 20. Ibid., p, 135.
negada pelos próprios psicanalistas. A transfe- 21. Ibid., p. 135.
réncia, apresentada como a fonte desse poder, 22. Jacques LACAN, Le Séminaire, iivro XVI, D'un
nâo passa de um engodo, segundo Deleuze, para Autre à l’autre (1968-1969), Seuil, Paris, 2006, p.
quem o contrato tácito decorre de urna troca de 134.
fluxo de libido do paciente, que instala o poder 23. Ibid., p. 218.
do analista em troca de urna palavra que possa 24. Ibid.
exprimir suas fantasias: “Como todo poder, ele 25. Ibid., p. 227.
tem como objetivo tornar impotentes a produçâo 26. Sophie MENDELSOHN, “J. Lacan-G. Deleuze.
do desejo e a formaçâo de enunciados, em suma, Itinéraire d’une rencontre sans lendemain”,
neutralizar a libido”103. VÉvolution psychiatrique, vol. 69, abr.-jun. 2004, p.
365.
27. Gilles DELEUZE, DR, p. 143.
Notas 28. Jacques LACAN, De la psychose paranoïaque dans
1. Ver R. CRÊMANT (Clément ROSSET), les Ma- ses rapports avec la personnalité, Le François, Paris,
tinées structuralistes, Laffont, Paris, 1969 1932; ïeed. Seuil, Paris, 1975.
2. Louis ALTHUSSER, “Freud et Lacan , la Nou- 29. Gilles DELEUZE, “Les bonnes intentions sont
velle Critique, n. 161-162, dez. 1964/jan. 1966. forcément punies", LS, p. 236-244.
3. Ver capítulo^Nos dois ou o entre-dois”. 30. Ibid., p. 242.
32. IbicL p. 246. consciência aoDeleuze
preço de&uma perda de realidade, ou
32. Gilles DELEUZE, LS, p. 7. mesmo Gilles
ao preço Félix Guattari 161
de um aniquilamento do simbolismo
33. Ibid., p. 152. - idade, sexo, etc.-, que seja. Mas isso só é verdade
em parte, como ìembra Lacan em sua tese, pois há
34. Ibid., p. 153. todo um sistema de transformaçôes que ìn- tervêm e
35. /¿tó, p. 158. que fazem, por exemplo, com que a
36. Antonia Artaud, 1948, citado por Gilles DELEUZE, homossexualidade nào seja ‘manifestada, etc. 3)
LS, nota 8, p. 108. Começa a mais difícil. 0 senhor define a máquina por
37. Gilles DELEUZE, prefacio a Louis WOLFSON. Le um corte, ou melhor, pela existencia de múltiplos
Schizo et les langues, Gallimard, Paris, 1970, p. 5- cortes... 4) Finalmente, o que mais me preocupa é a
23; reed. Gilles DELEUZE, CC, 1993, p. 18-33. coeréncia de seu concetto de antiproduçâo...” (Gilles
38. Michel FOUCAULT, Raymond Roussel, Gallimard, Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 29
Paris, 1963. de julho de 1969.
39. Gilles DELEUZE, prefacio a Louis WOLFSON, Le 47. Félix Guattari, em Stéphane NADAUD, Ecrits pour
Schizo et les langues, op. cil, p. 15. LAnti-Œdipe, op. cit., p. 98.
40. Serge COTTET, “Les machines psychanalytiques de 48. Ibid., p. 102,
Gilles Deleuze", La Causefreudienne, revue de 49. Ibid., p. 148.
psychanalyse, Seuil, n. 32, fevereiro de 1996, p. 15-
19. 50. Ibid., p. 152-153.
41. Gilles DELEUZE, prefacio a Louis WOLFSON, Le 51. Ibid., p. 154-155,
Schizo et les langues, op. cit., p. 23. 52. Ibid., p. 203.
42. Catherine CLÉMENT, Vies et légendes de Lacan, 53. Ibid., p. 212-213.
Le Livre de poche, Paris, 1986 (1981), p. 54. Ibid.
35. 55. Ibid., p. 272.
43. Jacques LACAN, Le Séminaire, lîvro XX, Encore 56. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, 1972, p.
(1973-1974), Seuil, Paris, 1975, p. 118, 99.
44. Catherine Millot, entrevista com o autor. 57. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIH,
45. Félix GUATTARI, “Machine et structure”, ex- 12 de fevereiro de 1973, retomada e desenvolvida em
posiçâo destinada à Escola Freudiana de Paris, 1969, MilPlatôs, “Sobre alguns régimes de signos”.
publicada por Change, 1972, reproducida em 58. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 319.
Psychanalyse et transversalité, Maspero, Paris, 1972. 59. Michel FOUCAULT, Histoire de la folie à lage
46. Deleuze considera a resposta “bela e rigorosa. Eia classique, Gallimard, Paris, 1971.
levanta todo tipo de problemas*. 1) O mais fácil; será 60. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 59.
preciso estudar, de um lado, o tipo de máquina 61. G. Deleuze, “Entretien sur IJAnti-Œdipe", com
esquizofrénica ou paranoica... Seria preciso mostrar Catherine Backès-Clément, L’Arc, n. 49, 1972,
que, como toda máquina, a máquina esquizofrénica reproduzido em PP, p. 29.
a) é inseparável de um tipo de produçâo, aqui o 62. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, 1972,
propriamente esquizofrénico, a definir; b) é
inseparável de um modo de transcriçâo ou de p. 220.
registro... Há al- gumas indicaçoes, helas na minha 63. Claude LÉVI-STRAUSS, Mythologiques, Le Cm et
lembrança, sobre a produçâo de uma tabela le Cuit, Pion, Paris, 1964.
esquizofrénica, em um livro recente de Michaux. 64. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 235.
Será preciso rever essas páginas; e sua experiência de 65. AO, p.34.
La Borde deve nos fornecer todo tipo de análises 66. Ibid., p. 16.
alegres e precisas sobre os seguintes pontos; a 67. îbid-, p. 36,
produçâo esquizofrénica; a manei- ra muito 68. Gilles DELEUZE, "Capitalisme et schizophrénie”,
particular como o uso e consumo se relacionan) com entrevista com Vittorio Marchetti, Tempi
a produçâo; os modos muito particulares de moderni, n. 12,1972; reproduzido em 1D, p. 323.
registro... Em ludo isso, definir portan to urna 69. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa- ris-VIIi,
economia propriamente esquizofrénica... 2) Ainda 28 de maio de 1973.
uma questào anexa; o senhor coroeca sua carta 70. Ibid.
lembrando que a oposiçâo manifestaçâo-siibjacência
nào funciona mais para o esquizofrénico. Se isso 71. Ibid.
consiste em dfzer que o complexo invadiu a 72. Ibid
73. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa- ris-VIII, 14 de 90. Michel Cartry, entrevista com o autor.
maio de 1973. 91. Ibid.
74. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AG, p. 27. 92. Alfred Adler, entrevista com o autor.
75. Ibid,
162 François Dosse
p. 54. 93. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 169,
76. Ibid., p. 30. 94. Ibid,, p. 236.
77. Ibid., p. 97. 95. Jacques DERRIDA, De la grammatologie, Minuit, Paris,
78. Ibid., p. 106. 1967; L’Écriture et la Différence, Seuil, Paris, 1967.
79. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 160. 96. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 291,
80. Marie-Cécile e Edmond ORTIGUES, Œdipe africain, Pion, 97. Ibid., p, 292.
Paris, 1966. 98. Ibid., p. 310.
SI. Alfred ADLER, Michel CARTRY, “La Transgression et sa 99. Ibid., p. 322.
dérision", VHomme, julho de 1971. 100. Ibid., p. 327.
82. Ibid., eitado em Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI,
AO, p. 189. 101. Ibid., p. 352.
83. Marcel GRIAULE, “Remarques sur fonde utérin au 102. Ibid., p. 400.
Soudan”, Cahiers internationaux de sociologie, Janeiro, 103. Gilles DELEUZE, “Quatre propositions sur la
1954. psychanalyse” (1973), em Gilles DELEUZE, Fé- :: ìix
84. Alfred Adler, entrevista com o autor. GUATTARI, Politique et psychanalyse, Bibliothèque des
85. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 5 de mots perdus, 1977 (sem paginaçào); reproduzido em ID, p.
abril de 1970. A. é Alfred Adler e Z., Andras Zempléni. 382. Por sua vez, quando de seu colóquio italiano, Guattari
86. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, nâo da~ tada, faz urna con-: ferência sobre “As lutas do desejo e a
arquivos IMEC psicanâlk: se” (Félix GUATTARI, “Les luttes de désir et la
87. Ibid, ;■ psychanalyse”, exposiçâo feita no primeiro en- -
contro “Psicanalise e politica”, Milâo, maio dev 1973;
88. Micherl Cartry, entrevista com o autor, reproduzida em RM, p. 29-43), na qual eie destaca a
89. Pierre CLASTRES, Chroniques des Indiens Guayakis, dimensâo politica de OAnti-Êdipo.
Pion, Paris, 1972.
Na primavera de 1972, um aerolito cal sobre máquina de guerra em que se transformara a GP e
o continente do saber e sobre o mundo político. Benny Lévy, vulgo Víctor, seu chefe mais em
Apenas quat.ro anos após a explosao de Maio de vista, era um dos alvos favoritos de Guattari, que
68,0 Anti-Édipo ainda traz a marca e o efeito de escreve em seu Diário, em 1972: “Decidida-
sopro, sendo de enxofre. Nesse ano, a agitaçao mente, a GP tornou-se urna coisa muito grande!,,.
ainda é diària, e o movimento de 1968O Anti-Édipo O pior, para mim, é aínda que ele tenha
continua vivo nos espirites. O
esquerdismo político é entao bastante ativo e até
consegue, em certas circunstâncias, transcender
suas divisôes, corno por ocasiâo do enterro do
militante maoista Pierre Overney, que reúne 200
mil pessoas em 4 de março de 1972.
No mesmo ano que se assiste ao lança- mento
de 0 Anti-Édipo, Guattari publica urna coletânea
de seus escritos, prefaciada por Deleuze, que
retraça seu itineràrio intelectual e político,
Psicanâlise e Transversalidade1 , Seu amigo
psiquiatra Roger Genti s, que foi cedo para Saint-
Albain, em 1956, e que foi um dos criadores do
GTEPSI, acaba de publicar, em ■1971, Les
Murs de 1 Asile, o que Ihe vale receber a
incumbência, junto com Horace Torrubia, de
urna coleçâo de psiquiatría pela Maspero. A
primeira obra em que ele pensa é o livro de
Guattari sobre a transversalidade: “Um dos pri-
meiros livros que Ihes enviei (mas sem dùvida
eles o teríam publicado de qualquer maneira) foi
o livro de Félix Guattari sobre a transver-
salidade; essa é urna das publicaqoes da qual
tenho muito orgulho, sobretodo por que nao fi-
quei táo entusiasmado pelo que Félix escreveu
em seguida...”2.

A linha de fuga que permite


evitar o perigo do terrorismo
O Anti-Édipo é um dos momentos fortes de
cristalizando de um movimento que poderla ter
resvalado, como ocorre um pouco mais tarde na
Itália e na Alemanha, em direqáo ao terrorismo3
por deter a fase de refluxo que tomou conta dele .
A organizando mais próxima da tentando
terrorista, a Gauche Prolétarienne (GP), desa-
parece em 1973. Será que se podem ver ai os
efeitos dissoiventes, abrasivos da esquizoanáli- se
sobre a paranoia militante? Nao se pode afirmar
isso, mas, se a teoría do desejo teve o efeito de
fazer morrer a pulsao coletiva de morte des- sa
juventude militante maoísta, terá sido útil. A
adotado esse pseudònimo de Victor: o nome de meu mas restituindo-as ao seu contexto histórico, o do
avo mineìro em Montceau-les-MinesL. Esses maoístas capitalismo. Pividal ressalta que a invo- caçâo da
sao os164 François
inimigosDosseìrredutiveis do movimento esquizofrenia nao consiste em fazer a apología da
revolucionàrio naquilo que é sua essênçia: a üheraçâo da doenga do mesmo nome, mas em valorizar urna
energia desejante... A dissimulaçâo de Victor é máquina que, “ao invés de organizar as letras do
inesgotávef'1. alfabeto para fazer pa-: lavras, decompôe as paiavras
Outro líder maoista, Robert Linhart, nao está para fazer um alfabeto, Picasso nao fez outra coisa. Mas
engañado quando ataca Guattari e seu bando do CERFI se- rao Beckett, Kafka e Artaud que vao servir de
no Libération, no final de 1974, sob o título exempte”9, A maneira como Le Monde percebe a obra
"Esquerdisrno à venda?", Eie de fato estigmatiza, por revela de imediato a disparidade de tratamento entre
trás dos ataques a pessoas, os efeitos deletérios de O seus dois autores. Saúda-se: ou critica-se Deleuze, mas
Anti-Édipo e menciona a obra já no subtítulo de seu ato tende-se a ignorar Guattari. Essa tendencia apenas se
acusatorio: “Consequéncias inesperadas de O Anti- confirma: na continuidade, chegando, ás vezes, ao desa-
Édipo ou como aprendi a ser um bom vendedor e a nao parecimiento puro e simples do nome de Guattari nas
mais me atormentar”'*. Serge July, diretor do jornal, referencias aos livros em coautoria com Deleuze.
aprova a operagao em nome de urna necessària crítica O colega e grande amigo de Deleuze em Vincennes,
do que se configurou como o pós-esquerdismo no François Châtelet, testemunha seu entusiasmo diante do
momento em que o gis- cardismo tira algumas de suas que julga ser o combate: de um novo Lucrecio, esforço
ideias das forças vivas da contestaçâo: “Nâo é mais para compreen-; der o que leva os homens a se baterem
segredo para ninguém. A famosa mudangá giscardiana para: aumentar sua servidâo como se fosse a pròpria
tira suas ideias da contestaçâo... Tanto mais que al- guns salvaçâo. A essa questâo fundamental, há duas
esquerdistas jogam o jogo. Com esse artigo de Robert respostas, urna dada por Marx e outra por Freud, e “é
Linhart, será preciso abrir e manter6 urna rubrica sobre elas que Deleuze e Guattari combar-: tem, nâo para
os destinos do pós-esquer- dismo” . Robert Linhart vê atacá-las, mas para Ihes devote ver essa força que o
O Anti-Édipo como a fonte de todos os males do desdobramenfco idealista: quer tirar delas”iü. François
maoismo agonizante. O livro autorizaria principalmente Châtelet organiza: em sua luxuosa residència da Rue
a releitura de Freud à luz dos ensinamentos de Taylor Clauzel, no 92 Distrito de Paris, urna grande reuniâo
para fazer os proletários engolirem a ideia de que que dura a noite inteìra, com seu amigo Deleuze,
realizam seu desejo produzindo; “Se o operario Guattari e cerca de 30 pessoas: “Essa reuniào : foi muito
conseguir gozar sendo mais eficiente, ele será intensa. Parecía um grande salso do: sáculo das Luzes”“
revolucionàrio”7.0 CERFI so asseguraria as bai- xas Os ataques às vezes sâo rudes. Assim o filósofo
necessidades do capitalismo, brago armado de O Anti- Kostas Axeios se dirige a Deleuze: “Hono- rável
Édipo, qualificado alternadamente de livro professer francés, bom esposo, excelente pai de duas
“essencialmente autoritàrio”, “delirio paranoico”, “livro crianças encantadoras, amigo fiel, progressista que
de dimita” e “projeto totalitàrio”8, que tem como meta a exige profundas reformas em todos os ámbitos onde
integragáo dos esquerdistas envelhecidos na sociedade grassam exploraçâo e opressao,., vocé gostaria que
burguesa. seus alunos e seus filhos seguissem na Vida afetiva a
via da sua vida ou, por exemplo, a de Artaud, de que
Um sucesso editorial estrondoso
tantos escribas tiram partido?”’2,0 tom é aber- tamente
crítico do lado do psicanalista André Oreen, ao quai
A imprensa, por sua vez, se dà conta do voltaremos, e do psiquiatra Cyrille Koupernik, para
acontecimiento, pois o sucesso já esperado é imediato - quem o remédio preconizado por Deleuze é pior que o
enqtrês días se esgota a primeira tiragem! Le Monde mal: “Isso pelo que Deleuze substituí o Édipo, ou seja,
dedica duas páginas à obra, Rolland Jaccard, que faz a em última análise, por um desojo biológico inuma- no,
abertura do dossié, considera que o livro se reveste de a-humano, protopessoal, me parece, no fim das contas,
aspectos proféticos em sua meta de esquizofrenizar a mais terrível. É 13a imagem no espe- Iho da entropía que
sociedade. O grande artigo de apresentaçâo cabe a um obcecou Freud” .
amigo de Deleuze, seu antigo aluno na Sorbonne nos Em Le Figaro, é o filho de François Mauriac,
anos de 1950, o escritor Rafaël Pividal, na época Claude Mauriac, engajado nas lutas do GIP ao lado de
professor de filosofia em Paris-VIL Ele saúda um livro Michel Foucault, jean-Marie Domenach e Gilles
que retoma as indagaçôes sobre a pertinencia do Deleuze, que julga o “livro notável”: “É preciso 1er,
discurso: psicanalitico de um Reich e de um Marcuse, reler, meditar, atento - às reaçôes que ele nâo deixará de
suscitar”1'1. Em L’Express é Madeleine Chapsal que
ressalta sua radicalidade, sua intençâo revolucionária Catherine Millot, desde 1972, ele parece ter insistido
em uma varredura que nao esquece nenhum canto. Esse mais em uma relativizagáo do Édipo: “O seminàrio de
livro, “pleno de imagens e de ima- ginaçâo, faz sonhar. Lacan do ano se- guinte&era intitulado ‘Os Nomes do
Uma vez que o espaço é liberado por seus cuidados, Pal'. SeriaGilles
urnaDeleuze
resposta Félix
a Deleuze e Guattari? É
Guattari 165

Deleuze e Guattari se instalam no centro e começam a possível. Nao querendo ser vítima do Édipo, a pessoa
expor suas novidades. E hà para todos os gostos”15. poderia se condenar a ficar vagando, e, aiiás,
Em La Quinzaine Littéraire, Maurice Na- deau Deleuze e Guattari nâo haviam pregado o nomadismo?
organiza em torno dos dois autores um debate mediado Depois houve o grande periodo dos nos borromeanos, e
por François Châtelet com o psicanalista Serge Leclaire, Lacan volta à questâo das relaçoes do Édipo com a
o psiquiatra Horace ïorrubia, o etnólogo Pierre Clastres estrutura. É a propósito de Joyce que Lacan lança essa
e ainda Roger Dadoun, Rafaël Pividal e um -estudante, ideia de que o complexo de Édipo era um síntoma como
P, Rose. O confronto de très horas é transcrito em forma qualquer outro”19 Lacan consagra de fato todo o ano
de 60 páginas datilografadas das quais a revísta publica universitàrio de 1975-1976 a um seminàrio sobre James
alguns extratos. Deíeu- :• ze e Guattari explicam a Joyce intitulado “0 Sinthome”, que remete à noçâo de
maneira como conce- beram esse trabalho comum. O síntoma. Eie analisa ali a vocaçâo üterária de Joyce
tom da discus- sâo é positivo e de modo nenhum como urna forma de redençâo pela escrita.
polémico. Serge Leclaire, representante da psicanálise, Outra jovem psicanalista, filiada à Escola, disdpula
é bem lacaniano, mas a oposiçâo nâo é frontal, na indisciplinada de Lacan, recusa a censura e decide
medida em que O Anti-Édipo concede um lugar escrever. Em Les Lettres Françaises, Élisabeth
particular a um artigo dele sobre “A reali- dade do Roudinesco resenha 0 Anti-Édipo. Eia assistiu à gênese
desejo”16, considerado como precursor da ideia de um da obra, pois segue os cursos de Deleuze desde sua
inconsciente-máquina. chegada à universidade de Vincennes, em 1970. Agora
está dividida entre a admiraçâo por Deleuze e o fascínio
por Lacan, mas nâo pode endossar a crítica frontal da
Teses discutidas do lado dos analistas psicanàlisi Por isso, o tom do artigo é muito cáustico,
Lacan, muito contrariado com a publica- gao desse sobre um fundo afetu- oso. O título é por si só
ìivro, pois vè novamenfce abortar sua tentativa de ser significativo da acolhi- da irónica daproposiçao: “O
sancionado por um grande filósofo, ordena aos navio desgoverna- do do esquizofrénico desembarca no
membros da Escola Freudiana que mantenham total país de Al Capone”20. Élisabeth Roudinesco dimensiona
silencio, que nao comentem nem participem de nenhum a escrita a dois e nâo hesita em ligar os autores sob a
debate. A censura é de praxe, o que náo deixa de chocar sigla "D.G.” em seu artigo. Eia chega a afirmar que “o
alguns, como a jovem psicanalista Catherine Millot, um é o21 outro sem que o ser seja, no entanto, a
filósofa de formagáo que se filia á Escola Freudiana. questâo” . Roudinesco vê nesse texto polemico urna
Na época, eia se encontra no diva de Lacan: “Lacan atualizaçâo do procedimento de Reich em sua vontade
estava realmente furioso e tinha dado ordem para que de ligar o de- sejo e o sodas, a sexualidade e a luta de
náo hou- vesse debates organizados de sua escola em classes. Eia reconhece em 0 Antì-Édipo “um belissimo
tomo desse lívro. Ele pròprio fìcara em silencio e nao romance; como Totem e Tabu ou como Moisés, é a mais
dissera uma só palavra no Seminàrio. Algum tempo bela apologia de Édipo que existe”"". Eia considera que
mais tarde, fez uma alusáo a ele em um escrito, mas os autores erraram de alvo, pois Lacan nâo é menos
chamava Deleuze e Guattari de águia de duas cabeqas obcecado do que eles pelo complexo de Édipo.
schreberiana”17. -É uma maneira de reduzir o livro a um Se esse livro tem um sentido, é o de um romance de
delirio semelhante à paranoia que se apoderara de Édipo, portador de urna mitologia de reposiçâo, a do
Schreber, o paciente de Freud. delirio maquínico, da ruminaçao de um ego
Segundo Catherine Millot, Lacan fcomou O Anti- mecanizado, Entretanto, Élisabeth Roudinesco
Édipo como “um ataque pessoal ainda mais ofensivo recomenda aos analistas, assim como aos marxistas, a
tendo em vista que havia tentado 18uma reaproximagáo leitura desse “belo livrbfv Aínda que essa obra hostil à
com Deleuze, a quem estimava” . De fato, é ele o psicanálise provoque de imediato um impasse sobre a
principal alvo dessa máquina de guerra contra a neurose, e particularmente sobre a figura da histeria,
psicanàlisi eie e seus numerosos discípulos. Além de ausente dessa grande pesquisa: “Esse abandono da
seu despeito, será que Lacan modificou suas histeria é na verdade o abandono da psicanálise. D.G.
orientagoes depois dos golpes recebidos de O Anti- nâo esconde isso: joga-se contra eia a carta da
Édipo? Fundamentalmente nao, porém, segundo psiquiatría”24.;
Apesar dessa crítica veemente, Deleuze convida primeiro no Le Monde, depois em um texto mais
sua aluna Élisabeth Roudinesco para um encontró no desenvolvido, na Revue Française de Psychanalyse.
bar do 166
PontFrançois
RoyalDosse
para prolongar o diálogo. Nada André Green analisa a intervençao de Deleuze e
contente com a acolhi-; da delà em Lettres Françaises, Guattari em termos estratégicos, como urna reaçào, um
ele o inicia de ; forma irónica: “Entâo, Simone Simon, contra-ataque da filosofìa dirigido contra o avanço
estâo me atacando?”. Deleuze tinha dado esse ape- lido freudo-lacaniano realizado no mundo das ideias.
a Élisabeth Roudinesco por sua inerivel : semeihança Contudo ele reconhece um grande mérito em Deleuze e
com urna cèlebre atriz do mesmo nome: “Respondí: Guattari, que é o de ter abandonado a tese lacaniana
‘Sim, nâo concordo com esse reichismo. Nâo concordo segundo a qual o inconsciente é estruturado como urna
com a ideia de que vâo resolver as coisas com lin- guagem, e fica feliz por se tratar novamente de
medicamentos25 e que isso vai dar nos grandes afeto, de puisao, que é o atributo do campo
laboratorios’” , ; De modo muito firme, mas com a psicanalitico. Nessa crítica do lacanismo, Green se
maior ama-; bilidade, Deleuze Ihe responde: “Tudo encontra na mesma linha que os autores de O Anti-
isso é muito gentil, mas no momento a senhora só é Édipo, de valorizar urna economía do desejo em
capaz de imitar ou criticar seus mestres. Pense ; em relaçâo a urna lógica formal da cadeia significante. Ele
encontrar seu objeto!”26. reconhece a dificuldade, na tradiçao freudiana, de
Os psicanalistas nâo podiam deixar de se sentir pensar a articulaçâo entre as estruturas individuáis e as
contestados na essência de sua pratica; É André Green sociais, e
que vai se colocar à frente da defesa da psicanálise,
aínda que Marcuse tenha tentado isso, náo tese central eraDeleuze
a de que os contestadores167do
conseguiu convencer os analistas. Green pre- movimentoCiliés
tinham resolvido mal seu Édipo. Os
& Félix Guattari

tende aplicar à obra o principio que promove militantes de 1968 teriam regredido à fase anal e
colocando a seguinte questáo acerca dos con- passariam o tempo semeando “merda” nas ruas,
ceitos sugeridos: “A que serve isso?”. Chega-se emporcaíhando os muros. Em um discurso
à equagáo de que é preciso urna revolugáo, nías confuso invocando Freud, os autores acusavam o
esta nao pode ser feita sem a psicanàlisi pois movimento de merguihar em um tal narcisismo
faìharia no seu objetivo: “É necessàrio antes de que, na falta de satisfaçâo, ele se encarnou no
tudo abrir os olhos de Marx, cego ao desejo, e desejo de regressoes bárbaras de tipo nazista! No
cegar Freud27 e Édipo, e mandar para o inferno o genero reducionista, nunca se chegara a esse
complexo” . ápice. Em 1972, os dois analistas, com o mesmo
Assim, os autores se desvencilham do Édipo, pseudónimo, nao podiam deixar de voltar à carga
conservam o desejo, modifìcando-o, abo- lindo a em se tratando de Édipo, capitalismo e
falta, a frustrando, a castrando, a lei, revoluçâo. Aos seus olhos, a crítica da
transformando-o em desejo puro, em significante psicanálise que O Anti-Édipo desen- volve Ihes
vazio que pode se investir por toda parte: “Faz-se dá razâo e esclarece suas posiçôes, tomando
entáo que o desejo entre na máquina de produnáo evidente o divorcio entre esquerdis- mo e
e que a máquina de produgáo entre no desejo”28. psicanálise. Para eles, em Deleuze e Guattari “se
André Green nào segue Deleuze e Guattari nessa vê a cama82 da mamâe fazer a cama do
via por julgar que eles confundem a experiencia capitalismo” . Os autores de O And-Édipo sáo
da satisfagáo, que de fato pode ser vista como acusados de negar a realidade e qualquer au-
liberta de toda falta, com o desejo, ao qual toridade para um mundo sem coerçâo, o da re-
sempre falta seu objeto, pois ele consiste em voluçâo permanente. Os dois psicanalistas náo
trazer de volta urna sa- tisfagao ausente. A escondem sua satisfaçâo de celebrar, enfim, as
maneira como os autores jogam para o alto o núpcias contrarias à natureza entre um certo
medo da castrando decorre, segundo Green, de esquerdismo e a psicanálise.
urna negando de toda a experiéncia clínica. Ele Janine Chasseguet-Smirgel prosseguirá sua
observa que a concep- gáo do desejo em Deleuze reflexao sobre O Anti-Édipo organizando urna
e Guattari de algum modo está relacionada á jornada de estudo em 3 de junho de 197333. Ali se
maneira como funciona o perverso, no qual a saberá que ninguém escapa a Freud e que,
desqualificando é parte integrante do desejo: “A portanto, Deleuze e Guattari sao freudianos
singularidade do objeto do desejo enquanto involuntariamente à maneira do senhor
pessoa vem atrás do trago que eia apresenta, e Jourdain®, que fazia prosa sem saber. Essa é a
que será buscado de forma anònima e tese desenvolvida por Françoise Para- melle, que
intercambiável”29. Para Green, em última análise, retoma alguns conceitos utilizados sobretudo no
o aparelho conceitu- al de Deleuze e Guattari capítulo “Psicanálise e familialis- mo’ para fazer
inspira-se sobretudo no primeiro Freud, o de a crítica. El a considera que a defmiçâo
antes da descoberta : da psicanàlisi aquele do apresentada da esquizofrenia como fluxo nao
Esbogo para urna Psicología com o Uso de organizado e disjuntivo é errónea, pois o que é
Neurologistas (1895). Em materia de avango descrito como um modo de reali- zaçâo no
conceitual, O Anti-Édipo sepia na verdade urna mundo é na verdade um fechamento em si. A
regressáo a um Freud an- m : terior a Freud: noçao de inconsciente codificado por
“OAnti-Édipo é o Anle-Édípd ,
No meio dos psicanalistas, a intervengáo de
Deleuze e Guattari continua causando re- buligo, " N. de T.: Protagonista de O burguésfidaígo, de Molière.
Dois analistas, Bela Grunberger e Jani- ne Édìpo parece-Ihe um contrassenso, pois o in-
Chasseguet-Smirgel, voltam a atacar. Eles já consciente ignora qualquer código: “Os autores
haviam publicado um livro sobre Malo81de 68 concebem o inconsciente mais de acordo com a
com o pseudónimo de André Stéphane , cuja formula lacaniana, isto é, estruturado como urna
Imguagem”34, Ao invés de “edipiani- zari', o analista relagao dialógica, do devir reciproco. Messe aspecto,
tem corno tarefa, ao contràrio, ir ao encontró das eie converge com o nietzschianismo de Deleuze e
fixaçôes168deFrançois
seu paciente: “Desedipianizar, tal nos Guattari: “Diferentemente de Freud, que permanece
parece 3j ser o objetivo
Dosse
do psicanalista que invoca aferrado em seus país e suas máes, Nietzsche é 39o pri-
Freud" . Em ùltima análise, segundo Françoise meìro a desvincular o desejo de qualquer objeto” . Em
Parameìle, os autores sâo de fato defensores dos pontos última análise, René Girard considera que Deleuze e
de vista freudianos. Guattari sao bastante indulgentes com Édìpo, que sai
intacto de seu texto polémico, e até engrandecido: O
Anti-Édipo é ele pròprio, “com toda evidéncia,
Os apoios de Girard, Lyotard, Foucault edipianizado até o umbigo, pois é inteiramente
As grandes revistas intelectuais ab rem um grande estruturado sobre urna40 rivalidade triangular com os
espaço para O Anti-Édipo. Assim, a Critique confia a teóricos da psicanàlisi' . Para René Girard, a obra de
resenha da obra a Jean-François Lyotard e a René Deleuze e Guattari tem o mérito de exprimir o impasse
Girard. O primeiro expressa sua admiraçâo diante dessa em que se encontram as disciplinas que julgam poder
torrente que desloca üm grande volume de água com encontrar uma saída unifi- cadora em torno dos
uma força energética que arrasta tudo à suapassagem: postulados da psicanáli- se, mas eia é apenas a
“É um pantógrafo que capta a energia elétrica na ìinha recapitulagáo em escala crescente de formas culturáis
de alta tensâo e permite transformá-la em rotaçâo de anteriores, mais do que o passo adiante que permita
rodas sobre os trilhos, e para o viajante em paisagens, deixar para irás os horizontes aporéticos.
em fantasias, em músicas, em obras, que por36sua vez A revista Esprit atribuí igualmente grande
sâo transformadas, destruidas, arrebatadas” . Jean- importancia ao langamento de O Anti-Edipo, que é
François Lyotard previne os leitores da falsa interpreta- objeto de um dossié constituido de urna presenga mais
çâo que pode suscitar o título da obra de Deleuze e positiva das teses essenciais . da obra41. Os psicanalistas
Guattari, que nao é um livro polémico e destrativo, mas Jean Furtos e René Roussilon se mostram reticentes
uma afirmaçâo, um ato positivo, posicional. O livro quando De- leuze e Guattari esquecem o nivel molar
subverte principalmente aquilo que nao critica, o para valorizar apenas o nivel molecular. Juìgam esse
marxismo, e carrega alguns cadáveres, como o esquecimento empobrecedor, ao passo que te- ría sido
proletariado, a luta de classes e a mais-valia. Lyotard mais útil articular os doís níveis. Por seu lado, o
aproxima o procedimento crítico de Baudrillard ao de sociólogo Jacques DonzeioL faz a apologia do que
Deleuze e Guattari, mas assinala também as diferenças considera ser urna “antisso- ciologìa”<u Ele vé a obra
essenciais: Baudrillard situa-se na esfera da troca, da como a justaposipáo de blocos erráticos de saberes que
circulaçâo e da tentativa de construçâo de um freudo- eriam um coágulo no fluxo de sua escrita. Com O Anti-
marxismo, enguanto que Deleuze e Guattari, ao Édipo, a psicanálise deve sofrer o assalto do pensamento
contràrio, dâo ênfase aos fenómenos produtívos e a uma nietzschiano. Superando as opo- sipoes ffontais entre
al- teraçâo do que está na essência do marxismo, assim descripóes funcionalistas e análises estruturais, mas
como dojleudismo. também a oposipáo entre infra e superestrutura, assim
De sua parte, René Girard é mais critico em face de como a maneira como se evita o problema do Estado,
uma obra que nao atribui nenhu- ma pertinència ao Deleuze e Guattari permìtem escapar de algu- mas
mito e à tragèdia, mas concorda com Deleuze e aporias comuns, próprias ás análises so- ciais. Ao invés
Guattari quanto ao fato de que nao se deve ver na de se perguntar, sem conseguir responder à questáo, “O
pequeña infancia o lugar de emergencia de toda que é a sociedade?”, os autores de O Anti-Édipo tem o
patologia social. Eie nao os segue quando se trata de mérito de substituí-la por urna interrogapao interpola-
demolir a crenga religiosa e julga que Deleuze e dora: “Como vivemos em sociedade?, pergunta concreta
Guattari enunciano na verdade “uma nova forma de que suscita outras: Onde vivemos?43 Gomo habitamos a
pie- dade, 37particularmente etérea, a despeito das terra? Como vivemos o Estado?” . O social ja nào é
aparèncias” . Embora apro ve a disposilo deles de mais, entào, um campo neutro atormentado com lógicas
compreender um certo delirio societal, oferece outra internas, mas o lugar de investimentos que sao fon- tes
grade de leitura que continuará desenvoìvendo, a do de variapoes. Jacques Donzelot estabelece urna
desejo mimetico aquém 36de qualquer representagào e de aproximapáo entre o “grupo em fu sao” de Sartre e as
qualquer objeto singular . A partir desse modelo, René “revolupoes moleculares” de Deleuze e Guattari. Com
Girard renuncia a toda ancoragem fisiològica ou sua nopào de territori alidade, os autores oferecem seu
psíquica do desejo, assim como a todo pansexualismo, conceito mais rico, ::que possibilità escapar das
para situar o desejo mimètico apenas no plano da
distinpòes entre elementos ditos margináis e outros do responde: “£ a crianpa que subsiste 4Sem cada um de nos
ámbito do essencial. que D. G. procura humilhar” , em particular
jean-Marie Domenach, diretor de Esprit, feúcha o substituindoGilles
o Deleuze
trio pai-màe-fìlho por169aquele mais
dossie com um artigo mais crítico, ainda que encoberto em cada um,& Félix
Pa- Guattari
paì-Mamàe~eu. Roger
recomendé a leitura de O Anti-Édipo como urna Laporte julga que o tom adotado pelos autores decorre
distrapáo. Segundo ele, a inventivida- de que se menos de urna tendencia esquizoide do que de urna
encontra ali é revigorante e diverte mais que Lacan: lìngua- gem “paranoico-perversa”49.
“Deixemo-nos entregar por um instante a essa44 chacota. Se 0 Anti-Édipo provocou assim um enorme
Nào se tem mais oportunidades assim de rir” . Mas rir barulho, nao se pode dizer, em compensa- páo, que a
nao é subscrever, e Domenach recusa se pór de joe- obra tenha levado a qualquer mu- danpa da pràtica
Ihos diante do que ele j ulga ser urna técnica de psicanalitica e psiquiátrica. É até muito surpreendente
matraqueagem, indicando o tipo de fórmulas impostas que eie nào tenha sido objeto de um verdadeiro debate
sem demonstrapao e repetidas à sa- ciedade: “Sei muito là onde nasceram militas de suas teses, a clinica de La
bem que criticar em nome da lógica um livro que se Borde, onde o lanpamento de 0 Anti-Édipo é visto como
apresenta como urna4 1 apología do discurso delirante um nào acontecimento. Jean 50Oury confirma isso: “Nao,
parece inade- quado” ' , Quanto à sua teoria do desejo, Nào se faìou a respe ito” . A psicanalista Nicole
pode- ría ser, mas o desejo jamais é definido: "Critico Guiìlet, embora muito próxima de Guattari, confessa
nesse livro, na falta de enfrentar o mal, ter-se omitido inclusive que nào leu o livro até o fìm: “Assim como a
dìante do sofrimento. Pode-se dizer por urna agradável maneira como Félix trabalhava era preciosa para mim,
metáfora máquina dese- jante ; é mais difícil dizer me ajudava muito, o que ele escrevia nào me servia para
“máquina sofrenté”’6. nada, e por isso nào li seus li- vros por inteìro”51.
Na influente e seletíva revísta literaria das edipòes Guattari está plenamente consciente de que a grande
Gallimard, Les Cahiers du Chemiri, dirigida por repercussào de 0 Anti-Édipo nào atinge o público-alvo,
Georges Lambrichs, é o escrito de Roger Laporte que os psicanalistas. Pura ilusáo esperar modificar sua
coloca seu talento a ser- vipo da desmontagem da obra. pràtica: “Os psi- canalistas se mantiveram
Denunciando um livro de rara violencia, eie 4/ se impermeáveis a eie. É inteiramente normal: vá pedir aos
pergunta: “De quem se zomba? Quem se humilha?” , e apouguei-
ros que, por razòes teóricas, parem de vender correspondido, que promova sua pessoa e sua
170
carne.François
Ou queDosse
se tornem vegetarianos! As pes- obra: “E se os esquizofrénicos, por sua vez, se
soas pedem mais e mais. E tèm razào de pagar tornassem seus empresarios? Seu jaleco preto de
caro por isso, porque funciona. Mais ou menos operario já é o equivalente ao vestido rosa de
como urna droga. E depois, isso garante urna corpete plissado de Marilyn Monroe, e suas
certa promogao social que nào é de se despre- unhas compridas, aos óculos escuros da Garbo”57.
zar. 0 Anti-Édipo provocou apenas urna pequeña Deleuze dá a essa interpelando brutal e arrogante
corrente de ar”52, urna resposta plena de sutileza e ironía: “Vocé é
A critica mais violenta, além daqueìa mais charmoso, inteligente, malévolo, e mesmo
tardia já mencionada de Robert Linhart, parte de inclinado á ruindade. Um esforzó a mais...” 58.
um ex-aluno de Deleuze na universi- dade de Acusado de vampirizar os esquizofrénicos,
Vincennes, Michel Cressole, que já em 1973 Deleuze, que tem o gosto das transpo- sigoes,
publica um ensaio corrosivo contra eie53. avisa de forma bem-humorada ao seu contraditor
Estudante elegante, homossexual seguro da que se converteu alegremente á paranoia,
sedugáo que exerce, Michel Cressole se propoe a fazendo-o saber assim que errou o alvo.
escrever um livro sobre seu mestre Deleuze para Atacado no plano de sua aparéncia física, ele
expor seu pensamento. Deleuze fica lisonjeado, esclarece primeiramente que seu jaleco preto nao
mas acha que seu aluno deve caminhar por suas tem nada de um jaleco de operario, pois é um
próprias pernas e se recusa a ajudá-lo na jaleco de camponés, e dá urna explicando a
realizagao do projeto. Desse mal-entendido propósito de suas unhas compridas: “Como vocé
resulta a demoligào do idolo da véspera. 0 volta várias vezes as minhas unhas, vou explicar.
sarcasmo é inevitável nesse opúsculo vingativo: É sempre possível dizer que era minha mae quem
0 Anti-Édipo é apresentando como a biblia de as cortava, e que isso está ligado ao Édipo e á
urna nova seita de adeptos da esquizoanálise que, castrando (interpreta- gao grotesca, mas
além do mais, so fazem “lembrar esses bataìhoes psicanalítica). Pode-se notar também, observando
de ópera que repe- tem marchemos sem se a extremidade de meus dedos, que me faltam as
mexerem do lugar, criando apenas a ilusáo de um impressóes digitaís geralmente protetoras, e tocar
movimento”^. Esse livro teria simplesmente com a ponta dos dedos um objeto, sobretudo um
juntado ao par marxista-freudiano um bufào que tecido, me causa urna dor nervosa que exige a
se pretendería artista. Desse texto polèmico protegáo de unhas compridas”59.
resulta urna troca epistolar publicada no pròprio A obra, que nao tem apenas detratores,
panfleto entre seu autor e Deleuze. encontra um aliado de peso em Michel Fou-
Em seu desejo de acabar com o Deleuze “tal cault. O Anti-Édipo assume aos olhos dele um
como se fala dele”, o tom de Cressole é o de um estatuto inteiramente singular, o de um puro
acerto de contas. Eie acrescenta, citando a acontecimento que excede o objeto livro, de urna
cantora da moda, Sheila:níb “Voce està por fora, fulguráncia que deve ser aprecíada por sua
papal, como diz a cangáo . Denuncia o curso de faculdade afetante: “O Anti-Édipo, que [mí-
Vincennes corno um grande barnum* onde se ticamente nao se refere a quase nada alérn da
aglutina todo tipo de demandas patogénicas a um suaprópria e prodigiosa inventividade teórica,
mestre que está acuado, sufocado em pequeñas livro, ou melhor, coisa, acontecimos!lo. que
salas enfumagadas. Ao mesmo tempo, Cressole chegou a fazer enrouquecer até na viola púnica
invoca um uso possivel de 0 Anti-Édipo corno um mais cotidiana esse murmurio, porém por tanto
“joguete fantàstico” colo- tempo60 interrompido, que resvalou do diva para o
sofà” . Entusiasta, Foucault redige o prefàcio da
*'N. de T.: Referènza ao Grande Circo Barnum, famosos por ediçâo americana da obra, lança- da em 1977 .
61

suas excentricidades. Ele percebe no que juìga ser um grande livro a


cado á disposigáo da juventude por dois “cien- demonstraçâo de uma arte de viver em tres
tistas malucos”56.0 ex-aluno de Deleuze parece registros: ars erotica, ars theore- tica, ars
enfim sugerir-lhe, nessa historia de amor nao polìtica. O resultado é um verdadeiro
acontecimento do pensamento com esse livro; “Eu diria amargura que Deleuze expressa a Catherine Backès-
que 0 Anti-Édipo (que me perdoem seus autores) é um Clément: “0 Anti-Édipo é pós-68: era um periodo de
livro ético, o primeiro livro ético62 que se escreveu na efervescència, deDeleuze
busca.& Hoje há uma reagào muito
Franga depois de muito tempo” . Foucault identifica forte a isso.Gilles
É toda uma economìa do livro, uma nova
Félix Guattari 171

très tipos de adversários desse livro: os profissionais da política que impòe o conformismo atual... o jornalisrao
revoluçâo, que pregano o ascetismo para fazer triunfar a passou a ter cada vez mais poder sobre a literatura.
verdade; os técnicos do desejo, que sâo os psicanalisi as Depois, urna massa de romances redescobre o tema
e semiólogos, que buscam por trás dos signos os familiar mais banal e desenvolve ao infinito todo um
síntomas, e, finalmente, o verdadeiro inimigo, o papaì-mamàe: é preocupante quando se encontra um
fascismo, nâo apenas o que os historiadores denominam romance pronto, pré-fabrieado, na familia que se tem. É
sob esse vocábulo como tipo de regime político, mas o realmente o ano do patrimònio, e66 quanto a isso 0 Anti-
fascismo incubado em cada um de nós. O principal Édipo foi um fracasso completò" .
mérito dessa obraé oferecer aos seus Ieitores uma Contado, Deleuze apresenta o dossie de 0 Anti-
introduçâo à vida nâo fascista, da qual Michel Foucault Édipo dìante de seus alunos da uni- versidade de Paris-
retém alguns principios fundamentáis. Entre eles, está VIII-Vincennes admitindo que, entre as críticas
sobretudo a postura de alerta contra os atrativos do po- formuladas, nem todas eram injustificadas. Em O Anti-
der, o que implica resistir a qualquer forma de Édipo, Deleuze e Guattari afirmara: “Somos aínda
endausuramento unitàrio, favorecer a açâo, o competentes demais, gastaríamos de falar em nome de
pensamento e o desejo, fazendo-os proliferar e se uma incompeténcia absoluta. Alguém nos perguntou se
libertar da categoria do negativo. Verdadeiro guia apto alguma vez tínhamos visto um67 esquizofrénico, nao,
para modificar a vida cotidiana das pessoas, O Anti- nào, nós nunca tínhamos visto” . Deleuze repete com
Édipo nâo deve ser lido, porém, corno a nova teoria humor diante dos alunos essa tirada espirituosa, levada
“tantas vezes anunciada; aquela que vai englobar tudo, a sèrio por muitos críticos da obra, e relata que uma
aquela que 63 é absolutamente totalizante e psiquiatra particularmente agressiva lhe teria
tranquilizadora” . pergimtado: “Vocès já viram esquizofrénicos?" Ele
As teses de Deleuze e Guattari sâo tam- bém comenta: ‘Achei essa pergunta insolente. Para Félix
defendidas firmemente por um sociólogo próximo a Guattari, que trabalha em urna clínica onde há muitos, e
Michel Foucault, Robert Castel, que saúda a para mim, pois há poucas pessoas no mundo que nao
contribuiçâo64 “inestimável a uma sociologia crítica da viram esquizofrénicos. Por isso respondi: ‘Eu, jamais’,
psicanálise” trazida por Deleuze e Guattari, que e eia en- táo escreveu nos jornáis que 68nunca tínhamos
estabelecem a relaçâo entre a supremacía atribuida ao visto esquizofrénicos. Era muito chato” .
triángulo edi- piano na teoria e na pràtica das análises e 0 que Deleuze retém com um eixo forte da
a existencia de formas sociais, políticas e religiosas nas demonstrando de 0 Anti-Édipo, e que de- vería
quais a psicanálise nasceu e prosperou. Robert Castel permanecer como urna aquisiqáo, é que “o delirio é
segue Deleuze e Guattari na sua meta de rearticular a mediatamente um campo de investimento sòcio-
ordem do investimento dos desejos à pràtica social. histórico”69. O eixo crítico do causalismo familialista tal
Segundo ele, Freud talvez nao estivesse errado ao como o pratica a psi- canálise é, portanto, urna vertente
axiomatizar o saber psicanalitico em torno do complexo essencial da demonstrando da obra que diz que nao se
de Édipo, mas partilha o ponto de vista de Deleuze e delira sua familia, mas o mundo. Contudo, Deleuze
Guattari quando eles mostram como a psicanálise pretende corrigir um pouco o alvo, reagindo a algumas
rcterritoriaíiza na esfera privada “uma estrutura lei turas da obra que sobrevalorizaram apenas a linha
antropológica fundamental cuja gánese deve ser buscada esquizofrénica como intrinsecamente liberadora,
do lado do sodas: esse é o alcance fundamental de O experimentando todo tipo de linhas de fuga entre as
Anti-Édipo"^. mais perigosas.
NaVerdade, é preciso romper a segmen- taridade
que cliva os individuos em universos fechados, em
O Anti-Édipo a distancia espagos estritamente circunscritos, e a esquizofrenia se
Oito anos após a publicagáo de O Anti-Édipo, define como urna tentativa de cartografìa das linhas de
Deleuze vè esse acontecimento editorial como um fuga possíveis em relagao a essas segmentagoes.
fracasso. Maio de 68 e seus sonhos se afastam do Contudo, toda linha contém seus perigos. A linha de
horizonte. Ficou um gosto amargo para aqueles que se fuga nao é em si criativa e liberadora: eia pode ser um
deixaram transportar pela espei'anga e que agora se clesmoronamento quando se transforma em linha de
agarram às sobras do conservadorismo. É essa aboligao, de destrui- gáo, e nisso o psicotico dito
esquizofrénico nao é idealizado em seu sofrimento tornem farrapos. Para nos, o terror era criar produtos de
como doente. Do mesmo modo, no plano histórico- hospital"73
mundial,172asFrançois
sociedades podem adotar perigosas linhas Trinta anos após a publicagao de 0 Anti-Édipo, a
de fuga: “Se douDosse um conteúdo ao fascismo, é atualìdade da obra é mais urna vez destacada pelo
típicamente70 urna linha de fuga que vira linha filósofo Eric A'lliez, que ve cesse momento urna
mortuària” . Essa teoria das linhas é objeto de urna reviravolta da biofilosofia deleuziana, que, grapas à
elaboragáo entre 1976 e 1980, que encon- tra suas fecundagao proporcionada por Guattari, se torna urna
primeiras expressóes em Diálogos e se desdobra em biopoliti- ca, “fazendo passar ao plano de imanencia a
Mil Platos. desterritorializagào relativa do capitai para conduzi-la
Deleuze deixa bem clara, portanto, a distinguo entre ao absoluto e atingir nesse ponto7 critico a liberagao da
a entidade clínica que segue urna linha de aboligao e de imanencia no aqui-ago- ra” ‘!. Inversamente, o
morte e a esquizofrenia como processo de vida. É a sociòlogo Jean-Pierre Le Goff estigmatiza 0 Anti-Édipo
oportunidade para ele de reafirmari'seu vitalismo corno fonte de desvios do esquerdismo politico'' 1. Eie ve
fundamental, sua ojeriza a qualquer afeto mórbido. O em 0 Anti-Édipo um elogio do inconsciente como
pro- cesso em questáo decorre de urna linha vital, e é triunfo da anticultura, como regressào voluntária ao
nisso que nao tem nada de negativo: “Quan- do ouço a infrassignìficante, lugar anterior à partilha entre o bem e
ideia de que a morte pode ser um proeesso, todo o meu o mal, e, portanto, à produgào em sua imediaticidade.
coraçâo, todos os meus afetos sangram”71. Nao se trata, Eie denuncia o caràter elitista dessa concepgao que atri-
entao, de si- metrizar vida e morte como dois polos bui apenas a um pequeño número de eleitos a chance de
alternativos do proeesso. Para Deíeuze, o culto da morte enfrentar o caos do Ser: “Apenas os esquizofrénicos, os
decorre do fascismo, e ele opóe a esse desvio a delinquentes, os margináis e, de alguma maneira, os
concepçâo espinosista segundo a qual a morte só pode artistas e os militantes revolucionónos tem alguma
vir de fora. Daí a crítica minuciosa da ideia da pulsao de chance de chegar a isso”'6. Quanto ao resto da huma-
morte no Capítulo IV de O Anti-Édipo. nidade, ele estaría condenado a vagar em sua
Mais tarde aínda, em 1988, por ocasiáo de O impotencia e em suas pulsñes fascistoides... Dessa
Abecedário> Deleuze voltará ao que julga ser um mal- equagáo, depreende-se que Deleuze e Guattari
entendido a propósito da acepçâo dada à noçâo de aparecem como dois inimigos da cultura,
desejo em O Anti-Édipo. Ele esclarece que a intençâo instrumentalìzando a jovem geragáo para abaté-la,
nâo tinha nada a ver com o todo desejante, mas era a Em outro registro, desta vez filosófico, Je- an-
passagem de urna concepçâo abstraía do desejo a urna Christophe Goddard estabelece urna liga- gao entre o
abordagem construtivista que leve em conta o Bergson de As Duas Fontes da Moral e daReligiào e as
agenciamento concreto no qual ele se exprime: “Náo há teses de O Anti-Édipo, que ele concebe como urna
desejo que nâo passe por um agenciamento. Desejar é verdadeira mística da doenga mental, em que os
construir um agenciamento”72. Em compensaçâo, psicóticos substi- tuem a comunidade de santos 77.
Deleuze confirma a lógica do ataque contra a Segundo Goddard, essa obra erige a esquizofrenia à
psicanálise e lembra, nessa ocasiâo, as très principáis con- digáo de método. Nao evidentemente o que se
criticas que lhe sao dirigidas: o inconsciente náo é um entende por esse vocábulo como doenga mental:
teatro, mas urna fábrica de produçâo; o delirio nao é “Assim como o Cristo de Espinosa, o esquizofrénico
absolutamente aquilo que a psicanálise enfcendeu, pois deleuziano é o filósofo por ex- celència, e a
o delirio incide sobre o mundo inteiro; o desejo constrói esquizofrenia é conhecimento metafisico"78. A no ite
agenciamen- tos múltiplos. Sobre esses tres pontos patológica torna-se fonte de luz, liberando um possível
fundamentáis, Deleuze diz que náo tem o que modificar contato com o principio concebido como impulso vital.
e predíz urna redescoberta desse livro que comporta De maneira bastante surpreendente, O Anti-Édipo
urna concepçâo mais ajustada do inconsciente. tornou-se um recurso importante para os Gender
No diálogo com Claire Parnet, ele evoca também os Studies. Nos Estados Unidos, numerosas correntes que
outros mal-entendidos que de- ram lugar a urna leitura pretendem superar a bipolaridade sexual encontram
da obra em termos de culto da espontaneidade, ou ainda nesse livro sustentaçâo para suas teses pelo fim da
de culto da esquizofrenia. Nos dois casos, sao graves opressao totalitaria dos dois sexos, contestando assim
contrassensos, e ele afirma, nessa ocasiáo, sua com o Édipo a insistencia na castraçâo. Na Franga,
preocupaçâo permanente de fazer com que seus alunos essas teses encontram seguidores em alguns
em Vincennes nao sejam atraídos por urna forma de psicanalistas lacania- nos, o que é particularmente
delirio que os teria reduzido ao estado de farrapos: perceptível em Jean Allouch, que, como membro da
“Esse livro é de urna pru- dèncìa extrema: náo se escola lacaniana de psicanálise, dirige ao mesmo tempo
a revista VUmbêvue e urna coleçao nas ediçôes Epel, Alguma coisa que produz: efeitos de máquina, e nao
consagrada à difusáo de estudos gays e lésbicos norte- metáforas,iì3. A máquina desejante nao remete, portanto,
americanos e da queer theory, "Les Grands Classiques a um desejoGilles
que funcionaría como urna 173
máquina. Esse
de TÉrotoìogìe Moderne”. oxímoro visa naDeleuze
verdade& aFélix
urnaGuattari
dupla ruptura com o
Assim, psicanalistas lacanianos “que nâo estavam rebatimento tecnicista e com a leitura fenomenologica
especialmente interessados em 0 Anti-Édipo na época segundo a qual o desejo seria tensao propria de um
de seu lançamento se tomam foucaultianos ou sujeito em relaçao a um objeto ou a um outro sujeito. É
deleuzianos"79. A distancia das intensas controvérsìas o encontró, o corte do fluxo que é criador da máquina
da época da puhlicaçao da obra, a psicanalista desejante e instaurador de um fazer engendrado pelo
Catherine Miìlot reconhece nela agora um certo merito, pensamento.
o de “ter explorado urna concepçâo nâo deficitària da
psicose. Para além de urna idealizaçâo da esquizofrenia Notas
que pode parecer ingènua, O Anti-Édipo sensibiliza
para o fenómeno da psicose, sua dimensâo criativa, a 1. Félix GUATTAEl.PT.
liberdade, a originalidade e a inventividade de que os 2. Roger G ENTI S, Un psychiatre dans le siècle, Érès, Pari
psicóticos sao capazes, ao passo que, é preciso di- zer, a sf2005. p. 1-38.
neurose com seus recalques parece nesse aspecto 3. Ver capitulo “A revoluçâo moiecular; Itâlia, Alemanha,
França”.
bastante inibida80. 4. Félix Guattari, Journal, notes, 1° de abril de 1972, arquivos
François Zourabichvili, por sua vez, insiste na IMEC.
necessidade de urna leitura literal da obra que está em 5. Robert LTNHART, “Gauchisme à vendre?”, Libération, 7
consonancia com a preocupaçâo dos autores de de dezembro de 1974.
construir um plano de imanen- eia. Na medida em que a 6. Serge JULY, Libération, 7 de dezembro de 1974.
imanencia só pode ser enunciada se realizando, eia 7. Robert LINHART, “Gauchisme à vendre?”, art, cit.
supôe urna pràtica singular da linguagem que abandona 8. îbid.
os tropos clássicos em voga no auge do estru- 9. Rafaël PIVIDAL, “Psychanalyse, schizophrénie,
turalísmo, como a metáfora e a metonimia, e os capitalisme”, Le Monde, 28 de abril de 1972.
substituí por máquinas; “Nâo é por metáfora que se fala 10. François CHATELET, “Le combat d’un nouveau Lucrèce”,
da máquina: o homem é rná- quina desde que esse Le Monde, 28 de abril de 1972.
caráter seja comunicado por recorréncia ao conjunto81 do 11. Noëlle Châtelet, entrevista com o autor.
qua! ele faz parte em condiçôes bem determinadas” . A 12. Kostas AXELOS, “Sept questions à un philosophe”, Le
máquina nao é nem exterior ao homem, nem projeçao Monde, 28 de abril de 1972. Embora Kostas Axeios fosse
de sua interioridade. Eia ocupa um espaço mediano que um amigo filosofo muito prôximo de Deleuze desde meados
deixa o campo do sentido e pertence a um espaço dos anos 1950, sua relaçâo se romperà subitamente a partir
semántico a ser com- preendido literalmente e diferente dessas questôes: “Dépôts dessas ques- tôes no Le Monde,
do sentido proprio, como assinala François nâo nos vimos mais. A ; gente se telefonou, mas
compreendi que era uma récusa” (Kostas Axelos, entrevista
Zourabichvili. com o autor).
Deleuze e Guattari pôem seus leitores à prova de 13. Cyrille KOUPERNIK, “Um delire intelligent) mais
insediato, desde as primeiras pala- vras do ììvro: “Isso gratuit”, Le Monde, 28 de abril de 1972. ;
funciona por toda parte, ora sem interrupçâo, ora 14. Claude MAURIAC, “L’Œdipe mis en accusation”, Le
descontinuo. Isso respira, isso produz calor, isso come. Figaro, 1° de abril de 1972,
Isso defeca, isso beija. Que erro ter dito o isso. Por toda 15. Madeleine CH APS AL, “Œdipe connais plus ”N
parte sao máquinas, nâo metaforicamente; máquinas de L’Express, 27 de março-2 de abril de 1972.
máquinas, com suas aco- plagens, suas conexôes. Urna 16. Serge LECLAIRE, “La réalité du désir ”, Sexualité
máquina-órgao está ligada a urna máquina-fonte: urna humaine, Aubier, Paris, 1970.
emite um fluxo que a outra corta’82. Assim, quando 17. Catherine MILLOT, comunicaçâo sobre FAntiU Œdipe,
Deleuze e Guattari escrevem no mesmo paràgrafo que Centre Pompidou, ‘Abécédaire pour Gilles Deleuze”,
“o presidente Schreber tem raios do céu ho cu, Anus “Revues Parlées”, 2 de novem- bro de 2005.
solar”, nao se deve ver ai urna simples metáfora, mas 18. Ibid
1er um sentido literal que faz a teoria de sua propria 19. Catherine Millot, entrevista com o autor.
20. Elisabeth ROUDINESCO, “Le bateau ivre du schizo
literalidade. Para que os compreendam bem, os autores débarque chez Al Capone”, Les Lettres Françaises, 19 de
acrescentam ainda: “Tenham certeza de que isso abri! de 1972; reed. com o ti- tulo ‘Œdipe et la
funciona; o presidente Schreber sente al- guma coisa,
produz alguma coisa e pode fa- zer a teoria disso.
schizophrénie”, em Elisabeth: ROUDINESCO, Un discours 51. Nicole Guillet, entrevista com o autor.
au réel, “Repères", Marne, Paris, 1973, p. 195-204. 52. Félix GUATTARI, RM, p, 31.
21. Ibid, Un discours au réel, op. cit., p. 195, 53. iMichel CRESSOLE, Deleuze, Éditions Universitaires,
174 François Dosse
22. Ibid., p. 199. Paris, 1973.
23. Ibid., p. 203. 54. Ibid., p. 91.
24. Ibid., p. 203. 55. Ibid., p. 103.
25. Elisabeth Roudínesco, entrevista com o autor. 56. ibid., p. 104.
26. Elisabeth ROUDÍNESCO, Généalogies, Fayard, Paris, 57. Ibid., p. 105.
1994, p. 54. 58. Gilles Deleuze, “Lettre à un critique sévère”, em Michel
27. André Green, "Réflexions critiques", Revue française de CRESSOLE, Deleuze, op. cit.-, repro- duzido em Gilles
psychanalyse, vol. 36, n. 3, L972, p. 494. DELEUZE, PP, p. 11,
28. Ibid., p. 494. 59. Ibid., p. 13.
29. Ibid., p. 495-496, 60. Michel FOUCAULT, "Cours au Collège de France du 7
30. Ibid., p. 497. janvier 1976”, em Dits et écrits, Gallimard, Paris, 1994, tomo
31. André STÉPHANE, l’Univers contestationnaire, Petit III, p. 162-163.
Bibliothèque Payot, Paris, 1969. 61. Michel FOUCAULT, prefâcîo a Gilles DELEUZE, Félix
32. André STÉPHANE, “La Fin d’un malentendu", GUATTARI, Anti-Œdipas; Capi- talism and Schizophrenia,
Contrepoint, n. 7-8, ag.-nov., 1972, p. 244, Viking Press, New York, 1977, p. Xl-XIV; reproduzido em
33. Janine C HAS SE G UET- S M î RG EL (sob a dir.), les Dits et écrits, Gallimard, Paris, 1994, tomo III, p. 133-136.
Chemins de l’Anti-Œdipe, Privât, Toulouse, 1974. 62. Dits et écrits, op. cit., p. 134.
34. Ibid, p. 73. 63. Ibid.
35. Ibid. 64. Robert CASTEL, Le Psychanalysme, Maspero, Paris, 1973;
36. jean-François LYOTARD, "Capitalisme éner- gumène”, nova ed, Champs-Flammarion, Paris, 1989, p. 83.
Critique, nov. 1972, p. 925; reproducido em jean-François 65. Ibid., p. 275.
LYOTARD, Des dispositifs pulsionnels, 10/18, Paris, 1973, 66. Gilles DELEUZE, entrevista com Catherine Backès-
p. 7-52. Clément, reed. VArc, 1980, p. 99-102; reproduzido em Gilles
37. René GIRARD, “Système du délire”, Critique, nov. 1972, p. DELEUZE, RF, p. 162-163,
921. 67. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 456.
38. René GIRARD, Mensonge romantique et vérité 68. Gilles Deleuze, aula de 27 de maio de 1980 na universidade
romanesque, Grasset, 1961. de Paris-VlII, arquivos audiovi- suais, BNF.
39. René GIRARD, “Système du délire”, art. cit., p. 965. 69. Ibid.
40. Ibid., p. 976-977. 70. Ibid.
4L jean FURTOS, René ROUSSILON, “L’An- ti-CEdipe. Essai 71. Ibid.
d’explication”, Esprit, dez. 1972, p. 817-834. 72. Gilles Deleuze, A, letra D..
42. Jacques DONZELOï, “Une anti-sociologie”, Esprit, dez. 73. Ibid.
1972, p. 835-855. 74. Éric ALLIEZ, “LAnti-Œdipe - Trente ans et quelques
43. Ibid., p. 849. après”, Radical Philosophy, n. 124, março-abril 2004.
44. Jean-Marie DOMENACH, "CEdipe à l’usine”, Esprit, dez. 75. Jean-Pierre LE GOFF,Mai 6$. L’héritage impossible, La
1972, p. 856. Découverte, Paris, 1998.
45. Ibid., p. 857, 76. Ibid., p. 343.
46. Ibid., p. 863. 77. jean-Christophe GODDARD, Mystique et folie. Essai sur la
47. Roger LAPORTE, “Gilles Deleuze, Félix Guattari: simplicité, Desclée de Brouwer, Bruxelas, 2002.
Capitalisme et schizophrénie, LAn~ ti-Œdipe, Les Cahiers 78. Ibid., p. 45.
du chemin, Gallimard, Paris, n. 16,15 de outubro de 1972, p. 79. Catherine Millot, en travista com o autor,
96. 80. Ibid.
48. Ibid., p. 97. 81. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 464.
49. Ibid., p. 104. 82. Ibid., p, 7.
50. jean Oury, entrevista com o autor. 83. Ibid.
A máquina contra a estrutura

Entre os anos de 1966 e ultrapassar os limites da


1969, Deleuze e Guattari filosofia o toma muito
estao ambos muito receptivo à efervescència
próximos dos autores e dos em curso ñas ciencias
trabalhos estruturalìstas e ao humanas, A figura do
mesmo tempo multo esquizofrénico nao para de
conscientes de seus im- interrogà-lo, seja sob sua
passes, recusando qualquer forma clinica, seja sob sua
enclausuramento de sentido, forma literària. Con- tudo,
qualquer rebatìmento sobre nem um nem outro se
um pensamento binàrio e satisfaz com uma simples
fechado tanto aos procesaos adesào às teses dominantes
de temporalìzagao quanto à da época. Pouco antes de
dimensào pragmàtica da seu encontró em 1969,
linguagem. pode-se considerar que a
posigào que expressam jà é
uma forte critica do
Urna estruturalismo.
máquina Quando Guattari toma a
de guerra palavra diante da plateia da
contra o
Escola Freudiana de Paris
em 1969, já havia rompido
estrutura com a evoluçâo formalista e
lismo logicista de Lacan. Eie nâo
Guattari, por seu é mais o sucessor
lacanismo, enquanto presumido do Mestre, que o
membro da Escola preteriu em favor de seu
Freudiana, participa pie- genro Jacques-Alain Miller
namente da difusao do e de seu círculo uìmiano,
estruturalismo em sua que acaba de lançar os
versào psicanalitica. Quanto Cahiers pour l’Analyse.
a Deleuze, sua vontade de Assim, Guattari falará de
“Máquina e estrutura”1, O alvo é designado, e sua ao mesmo tempo se propondo a dinamizá-las, Guattari
intervençâo poderla muito bem se intitular “Máquina retoma de Lacan a aná- lise dos objetos parciais, o
contra estrutura”. Ele identifica ali os ángulos morios da objeto a, e o utiliza como máquina de guerra contra o
grade de176análise estrutu- ral, e a noçâo de máquina que
François Dosse
equilibrio estrutural. De fato, ele irrompe ali onde nao se
apresenta como operatoria é destinada a pensar o espera, 7à manéira de urna verdadeìra “máquina
recalcado do estruturalismo, à articulaçao dos processos infernal” . Ele se torna o irredutível, o inas- similável na
de subjetivaçào e do acontecímento histórico, £ o estrutura, e8 é rebatizado por Guattari de “objeto-
primeiro texto de Guattari que se refere a Deleuze, a máquina a” . É o elemento que impede de pensar em
quem ainda nao conhece, mas do qual leu e apreciou a círculo, desconstrutor de equilibrios estruturais que
tese, Diferença e Repeti- çâo, e Lógica do Sentido, que frustra as tentativas de representagào de si, descentrando
cita logo de inicio, invocando a definiçâo deleuziana da o individuo “até a borda dele mesmo, no limite do
estrutura. Contra a estrutura, que se define por sua ca- outro”9.
pacidade de troca de elementos particulares, a máquina Essa busca de urna conexáo que seja de grupos, de
proviria da repetiçâo, mas no sentido entendido por entidades coletivas, nao somente converge com as
Deleuze, ìsto é, a repetiçâo como diferença, “como primeiras preocupares de Deleuze sobre a questáo da
conduta e como ponto de vista referidos a uma instituigáo e de suas relagoes ambivalentes com o
singularidade intro- cável, insubstltuível”2. Parti ndo das desejo10, como terá um fecundo devir no deleuzo-guat-
teses de tarismo, com a nogáo de grupo sujeito e de
Deleuze, Guattari sente necessidade da nogào de agenciarnento coletívo de enunciagáo. Essa perspectiva
máquina para introduzìr esse elemento diferenciante que crítica do estruturalismo assume para Guattari urna
reìntroduz do acontecimento e do movimento: ‘A significalo nao apenas especulativa como também
temporalizagào penetra a máquina por todos os lados, e eminentemente política. Trata-se de tirar os
nao se pode si- tuar-se em relagào a eia a nào ser à ensinamentos de Maio de 68, de redínamizar as
maneira de um acontecimento. O surgimento da estruturas de- sestabilizadas pela irrupgáo do
máquina marca urna data, um3corte nào homogéneo em acontecimento. Como reativar a máquina revoiucionária
urna representagào estrutural” . Chama a atengào aqui a que demonstrou suas capacidades de abertura em Maio
proximidade de posigao e de discurso, já entao, antes de de 68? Essa é a pergunta propriamente política de
se encontrarem. Guattari se faz porta-voz de urna Guattari: “O projeto revolucio- nário, como maquinagao
filosofia do acontecimento, que é a signi ficaqào de urna subversáo institucional, teria de revelar essas
essenciaì de Lògica do Sentido, de Deleuze. potencialidades subjetivas e, em cada etapa das lutas,
Nessa intervengao matriciaì, encontra-se urna nogào prevenidas contra sua ‘estruturalizagáo’”11. Se Maio de
derivada da nogáo de máquina, e que se tornará 68 possibilifcou 2o triunfo institucional do estruturalismo
igualmente centrai no dispositivo deleuzo-guattariano, a na universidade’ , o acontecimento 68 também produziu
de “máquina de guerra”. Guattari endossa a orientagao um pensamento 68 que nao tem nada de estrutural e que,
deleuziana de urna filosofìa em ruptura com a ideia de ao contràrio, pòe em crise, de maneira decisiva, um
representado, e situa seu conceito de máquina nessa paradigma abandonado um pouco rápido demais por
perspectiva: “A essència da máquina é justamente essa aqueles mesmos que tinham visto nele a expressáo de
operagao de despreendimento de um significante como um novo olhar na moder- nidade e que agora proclamam
representante, como 'diferenciante, como corte causal, jamais ter participado do banquete estruturalista.
heterogéneo na ordem das coisas estruturalmente Se Guattari encontra materia para argumentos ñas
establecidaPara sair dos impasses do panlinguismo da duas obras publicadas por Deleuze em 1968 e 1969, é
semiologia estrutural, Guattari sugere rea- bilitar o ato porque a oríentagáo filosófica de Deleuze se distingue
de palavra como significante: ‘A voz, como máquina de do paradigma que domina absoluto nessa época. Em sua
palavra, corta e 5funda a ordem estrutural da lingua, e tese, Diferenqa e Repetiqao, Deleuze se mostra vigilante
nào o contràrio” . Assim, ele inverte completamente a em face de qualquer redugáo do acontecimento à
perspectiva estrutural que fizera prevalecer o sistema da insignifìcància que o estruturalismo corre o risco de
lingua como único nivel científico excluindo a palavra, praticar. Ao contràrio, eie prega pela recusa da
remetida ao puro contingente. alternativa entre estrutura e acontecimento, mas por sua
É o sujeito que interessa a Guattari, e ele o concebe arti- culagào: “Assim como nào há oposigáo estru- tura-
como divado, lacerado, na inter- secgao, no entre-dois, gènese, nào há oposigáo entre estrutura e
em tensáo entre estru- tura e máquina: “O ser humano 6é acontecimento, estrutura e sentido”13. Contudo, Deleuze
tomado no entrecruzamento da máquina e da estrutura” . reconhece no estruturalismo sua eficacia em dar conta
Permanecendo no interior das categorias la- canianas e das multiplicidades. Seu teatro nao tem nada a ver com
o da representando, é um “teatro de multiplicidades”19 objeto a. Para ele, Lacan teve ainda o mérito de
que, longe de buscar urna sintese ideal de recogni- gáo, dissociar a relagao com o tempo do objeto real e do
de representado adequada do identitàrio, persegue os objeto parcial este último tendo como propriedade ser e
problemas no interior mesmo dos movimentos de náo ser láGillesondeDeleuze
ele é.& Félix
Apesar desses avangos, a
Guattari 177

experimentado. psicanálise permanece prisioneira, segundo Deleuze, de


Segundo Deleuze, o estruturalismo continua urna filosofìa da representagao do sujeito, subme- tendo
prisioneiro das categorías de identidade e de oposigáo, e sua teoría da repetigáo a um principio de identidade no
náo é capaz de colocar os bons problemas. Assim, a passado, ou de analogía, de semelhanga no atual.
linguistica, que é a cièn- cia-piloto do paradigma Da mesma maneira que saúda a contribui- gáo de
estruturaìista, na sua componente Saussure-Jakobson Lacan, ele saúda a leitura de Althusser e dos
que transfor- mou em modelo heurístico as regras da althusserianos da obra de Marx; “Althusser e seus
fonologia em seus aspectos estruturais, se fecha em suas colaboradores estào, portanto, cobertos de razáo ao
lógicas binárias e privilegia os termos negativos, mostrar em O Capital a presenga de urna verdadeira
“assimilando as relagòes diferenciáis entre fonemas a estrutura e 21ao recusar as in- terpretagóes hístoricistas do
relagòes de oposigáo”iS. 0 estruturalismo saussuriano marxismo” . As relagóes entre Althusser e Deleuze sao
mutila a positìvida- de potencial da diferenga, segundo multo boas: em 1964, Althusser convida Deleuze para
Deleuze, que opòe a ele o ensinamento de um outro lin- dar um curso na ENS, na Rué d’Ulm. Este último
guista, marginal entre os lingüistas, mas cuja declina da oferta, pois na época está se instalando em
importúnela ele nao cansará de afirmar, Gustave Lyon: “Obligado por sua carta e sua proposta. É urna
Guillaume: ‘A substituido do principio de oposigáo pena, é urna pena. Náo fui nomeado em Grenoble, onde
distintiva por um principio de posi- gao diferencial éa era mal rece- bido, faço meia volta e vou para Lyon
contribuido fundamental de obra de Guillaume”16. Com exercer a estranha funçâo de professor de moral. Vou
eie, dispòe-se de urna verdadeira explorado morar là. Se bem que, apesar de toda rninha vontade, eu
transcendental da Ideia do inconsciente linguistico que nâo poderia dar aula na Escola. Fico feliz que vocé e
desta vez nào perde seu objeto. Em sua aula sobre a se- alunos da Escola tenham desejado me ter lá, díga a eles.
miologia do cinema de 19 de margo de 1985, Deleuze Acredite na minha inteira amizade”“ Althusser envia a
declara seu entusiasmo pelas teses de Guillaume: “O Deleuze suas obras e as de seu grupo em 1965. A reaçâo
que é o significado de potència em Guillaume? É o de Deleuze é multo positiva: “Fico feliz por ter-me
movimento:17 que confirma- gào! É um dia de festa. Que enviado seus très livros. Vocé nao poderia me dar prazer
encontró!” . Ele o apresenta como o último dos grandes maior. Nâo termine! aínda, mas nao somente os artigos
lingüistas filósofos, cuja tese, recusada pela maioria dos que eu já ti- nha lido e que admirava, como tudo o que
lingüistas, é sustentar que urna palavra enquanto nâo conhecia (sua elucidaçâo do concerto de ‘problema,
unidade significativa mínima tem um único sentido, que que é urna preocupaçâo comum que tenho com você), e
ele chama de "significado de potencia”18 Essa dimensào depois o fetiche e a anáíise do papel exato da alienaçâo,
remete a urna matèria ideal que preexiste ao discurso, tudo isso já me parece tâo importante que sinto sua
mas da qual nao se pode prescindir: “É a res- surreigao influén- cia. Dos seus colaboradores, eu conhecia um
da filosofía que chega ñas 19costas da lingüística e é pouco Macherey, a quem estimo. O conjunto desses très
detestada pelos lingüistas” . O psicomecánico da livros e seu estilo me impressio- nam... (Sim, creio que
linguagem que é Guillaume nao está na verdade multo esses livros sao de urna grande profundidade e beleza.
distante, por suas hipóteses sobre a linguagem, dos Costaría muito de conversar com vocé sobre eles.)"23.
objetivos deleuzianos. Ele sempre criticou os outros lin- - 0 belo texto de Deleuze sobre “Em que se
güistas por se limitarem aos fatos visíveis: “Os reconhece o estmturalismo?”2<í, que seu amigo François
pensamentos de Guillaume e de Deleuze con- vergem na Chátelet publicará em sua Historia da Filosofía, em
afirmagáo de 20que o virtual/potencial é tao real quanto o 1972, foi escrito na realidade em 1968, portanto antes
atual/efetivo” . do encontró com Guatta- ri, e submetido a Althusser:
A afirmagáo de sua ontologia da diferenga conduz “Envió-Ihe anexo o texto de que Ihe havia íalado sobre
Deleuze, em sua tese, a atribuir a maior importancia ás o estru- turalismo. Como eu disse, minha ambïçâo ali
teorías apresentadas por aqueles que se apresentam era urna vulgarizaçâo mais rigorosa do que a que se faz
como os mestres do estruturalismo em todas as suas comumente. Mas já nao tenho mais a mesma
facetas nos anos de I960. Assim, ele reconhece em tranquilidade, mesmo modesta. Pois tenho a impressáo
Freud o mérito de ter insistido sobre urna sexualidade ora de permanecer em urna grande obscuridade, ora de
pré-genital, que consiste em pulsòes parciais, e em dizer as mais completas besteiras (particularmente no
Lacan o de ter prolongado essa descoberta com seu parágrafo final sobre os ‘últimos criterios’). Mas Ihe
envío porque, de um lado é urna questáo sua, de ou~ tro maneira de valorizar o que ele chama de plano de imán
para que me diga se é publicável. Faça-me a encía. O terceiro e o quarto criterios apresentados por
camaradagem de lé-lo, de maneira muito pessoal, Deleuze o aproximara ainda mais do paradigma
Escrever178alguma coisa ruim pode ser sempre formador,
François Dosse
estrutural, pois se trata da valorizagáo do diferencial26 e
mas publicar nao. Talvez seja preciso suprimir a última do singular: “Toda estrutura é urna multiplicidade" , ;
parte”2,1. afirma Deleuze, que faz aqui urna leitura do paradigma
Nesse texto absolutamente fúhdamental em que apresen estrutural que o coloca do lado de sua pròpria ontologìa
ta q paradigma estrutural, De- leuze tenta identificar, da dì fe renga, o que fica evidente quando afirma que
para além da diversi- dade de dominios explorados, “da estrutura se dirá: real sem ser atual, ideal serri ser
alguns criterios ■ comuns aos estudos estruturais, quer abstraía11. Ele aprova Lévi-Strauss por conceber que o
se ocu- pem do campo lingüístico, quer do literário, inconsciente é sempre vazio e tributàrio apenas de suas
antropológico, psicanalitico ou sociológico. leis estruturais. Aínda se está longe da apreciagáo muito
A primeira característica é a centralidade da dimensáo negativa que será feita maistarde, após o encontró com
simbólica que faz a ligapáo entre o real e o imaginário: a Guattari, quando estigmatizaráo conjuntamente essa
descoberta desse ter- ceiro termo é atribuida ao concep- gao, qualiíicando-a de concepgáo anoréxica do
estruturaíísmo e, tanto nesse dominio quanto nos outros, inconsciente. Aínda se está em um momento em que o
é a lingüística que figura como ciéncia piloto. O estruturaíísmo é apresentado em sua posìtìvidade. O
segundo critèrio é de locaUzagáo ou de posi- gáo. O quinto criterio é a serialidade, que permite dar urna
sentido dos elementos da estrutura tem a ver unicamente mexida na estrutura. Deleuze se sente ali a tal ponto em
com sua posigào, e Deleuze saúda a maneira “rigorosa” situagao de proxìmìdade que organiza sua obra Lógica
como Lévi-Strauss demonsfcrou isso. Encontram-se ali do Sentido em 34 séries diferentes. O sexto critèrio,
as bases mesmas da ambigáo estruturalista que é se absolutamente essencial para o estrutu- ralismo, é o
tornar urna topologia, urna lógica do re lacio-:-.;' nal. principio da casa vazia, o famoso grau zero da lingua,
Deleuze se sente, portanto, muito próximo dessa do inconsciente, Deleuze
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 179

assínala que ele sempre falta em seu lugar, e que individual que é o díctico*, em segundo lugar a
é essa falta que suscita o movimento: “Nao há manifestaçâo e em terceiro lugar somente a
estruturalismo sem esse grau zero”2s. significaçâo. A esses très níveis explorados pelos
Encontra-se em Lógica do Sentido a am- lingüistas, Deleuze acrescenta urna quarta
bivalencia em face do estruturalismo já presente dimensâo que é a do sentido e que os estoicos
em sua tese, essa mistura de fascinaçâo por um descobriram com a questâo do acontecimen- to:
método que permite, em tomo de um ponto zéro, “O sentido é o exprimido da proposiçào, esse
de urna casa vazía, fazer circular o sentido em um incorporal na superficie das coisas, entidade
plano de superficie. Deleuze aínda vê a estrutura complexa irredutivel, acontecimento puro que
como o equivalente de urna máquina. O texto de insìste ou subsiste na proposiçào”32.
Guattari “Máquina e estruturá' deixará Deleuze Na abordagem sugerida por Deleuze, que se
apaixonado, tanto mais quanto este último inspira em parte nos trabalhos dos lingüistas,
inclusive avança no piano da crítica do conectando-os à sua propria orientaçâo filosòfica,
estruturalismo. o signo e o sentido nâo sâo mais dois estratos
De fato, Deleuze afirma ainda em 1969: ‘A diferentes ou dois horizontes alternativos. Ao
estrutura é verdaderamente urna máquina de contrario, estao indissoluvelmen- te ligados:
produzir o sentido incorporal”^. Esses estudos “Como diz Bergson, nâo se vai do sentido às
lingüísticos, antropológicos, psicanalíticos que imagens, e das imagens ao sentido: instala-se ‘de
gíram em torno de urna casa vazia, que pode ser pronto no sentido”33. Encontra-se mergulhado em
tanto o lugar da morte, o valor zéro, o significante um já-lá do sentido ao qual se regride em urna
flutuante, pôem em questáo o esquema de proliferaçâo sem limites evidenciada tanto por
causalidade, pois a causa está ausente de seu Frege no plano da lògica quanto por Carroll no
lugar. Deleuze proclama entáo que “a ímportáncía plano da escrita literaria. Aquilo a que Deleuze
do estruturalismo em filosofía, e para todo o reage de maneira critica é a alternativa diante da
pensamento,30 se mede nísso: que ele desloca as qual se apresenta, de um lado, a via de urna
fronteiras” . “£, por tanto, urna satisfaçâo que regressào indefinida e, de outro, a de urna
hoje ressoe a boa nova: o sentido nâo é jamais duplicaçâo estéril, de urna fixaçâo definitiva do
principio ou origem, é pro- duto. Ele nâo deve ser sentido: “o um ou o ou- tro”34, que prevalece
descoberto, restaurado nem reempregado, mas ainda com a fenomenologia husserliana. 0 atributo
deve ser produzido por novos maquinários. Ele do acontecimento puro é justamente superar todos
nâo pertence a nenhu- ma altura, nâo está em os dualismos e se abrir para o horizonte dos
nenhuma 31 profundeza, mas é efeito de objetos impos- síveis, dos paradoxos que chegam
superficie' . Deleuze vê nessa orientaçâo urna ao absurdo e aos oxímoros do tipo quadrado
libertaçâo da transcendên- cia, urna valorizaçâo redondo, materia inextensa, montanha sem vale...
do plano da imanência, e identifica nela o “que sao objetos sem pàtria, no exterior do ser...
possível maquinário produtor de sentido que ele Eles sao o extra-ser’, puros acontecimientos ideáis
deseja ver se desenvolver em urna proliferaçâo inefetuáveis em estados de coisas” 35. Afirmando o
livre para fazer emergir ; as singularidade pré- caráter paradoxal da regressào, Deleuze indica
individuais. que a força só pode ser serial. Eia retoma a
Em Lógica do Sentido, Deleuze segue bem de distinçâo estrutural entre significante e
perto os trabalhos estruturalistas aos quais significado, mas atribuí a eles outra acepçâo,
consagra varios capítulos qualificados de séries,
mas ao mesmo tempo prossegue sua própria : s
N. de R.T,: No original, déictique. Dèi tico ou díctico. Diz- -se
elaboraçâo metafísica. Ele se apoia particular- : de todo elemento lingüístico que faz referencia à sifcu- qáo na
mente nos trabalhos de Benveniste para distinguir quai ele é enunciado, por exemplo, pronome, tempo verbal,
as très formas que pode assumir urna pro- demonstrativo, adverbio, etc.
posiçâo: a relaçâo de designaçâo de urna coisa chamando de significante todo signo desde que
comporte um elemento de sentido e de significado
o que serve de correlato a esse aspecto de sentido: método de “perversao” elaborado por Deleuze para sair
“Portanto, o que é significado jamais é o próprio do enclausuramento estrutural,
sentido'180
36
, mas o conceito. Segundo Deleuze e Guattari, as máquinas sao de
Aquilo François
em queDosse
Deleuze insiste, sempre com a todas as ordens: técnicas, cibernéticas, de guerra,
preocupagáo de afirmar urna filosofìa do pa- radoxo, do económicas, significantes, desejan- tes, institucionais,
duplo, da tensao mantida no oxímoro, é a copresenga do mas podem ser também literarias. É uma verdadeira
sentido e do nào sentido, que nao estáo em uma relagao senha que se pro- : poe destronar a outra senha da época,
de exclusáo do falso pelo verdadeiro. Deleuze opera que é a; noçâo de estrutura. Eia se torna de tai modo i
uma inversáo do “panlinguismo” de sua época. No central que, quando Deleuze publica uma nova ediçâo de
momento em que todo mundo proclama que tudo é seu Proust e os Signos em 1970, acrescenta uma
estruturado como uma linguagem, que tudo parte da segunda parte intitulada ‘À máquina literaria'. Eia inclui
linguagem, Deleuze atribui uma importàncìa menor à uma descriçâo : das “très máquinas” de Em Busca do
linguagem do que àquilo que prevalece segundo ele, o Tempo Perdido. O Anti-Édipo começa com um capítulo
acontecimiento: “Sao37 os acontecimentos que tornam a consagrado as máquinas desejantes, noçâo que será
linguagem possívei” . O co mego nao é da ordem do abandonada por seus autores emMf Platos, alguns anos
sistema lingüístico, mas do ato da palavra, e nisso mais tarde, com toda cer- : teza porque esse conceito terá
Deleuze se distancia do saussurismo dominante por essa feito seu oficio) de desestabilizar a noçâo de estrutura
reabilitagáo da palavra como significante: “Comega-se que nâo é mais necessàrio questionar em 1980, quando:;
sempre na ordem da palavra”38, O acontecimento se o paradigma estruturalista nâo passa de uma lembrança.
torna com Deleuze o horizonte transcendental da lingua-
gem, suas condigoes de possibilidade.
Inverter a semiologia estrutural

Snverter o estruturalismo
O adversário designado de O Anti-Édipo - a psicanálise
“estruturalizada” por Lacan - se apoia na concepçâo
pelas ciencias humanas saussuriana da lingua. Deleuze e Guattari empreendem,
O “agenciamento Deleuze-Guattari” que se portanto, uma critica violenta da teoria saussuriana do
estabelece ao longo do ano de 1969 radicaliza a postura signo. Chegam a denunciar ali “a sombra do despotis-
crítica de um e de outro, mas assume urna feigao mo orientai Saussure insiste sobre isso: que o arbitràrio
nitidamente polèmica, desdo- brando-se um com o outro da lingua funda sua soberanía como urna servidào ou
no inicio dos anos de 1970. As primeiras palavras de O urna escravidào generalizada a que seria submetida a
Anti-Édipo sao significativas de uma recusa de qualquer massa"39. Por olitro lado, a relagáo
enclausuramento estrutural, ainda que essas proposigóes significante/significado em Saussure é dissimétrica, em
fagam signo em face da auséncia de pertinéncias do proveito de urna prevalència absoluta do significante. O
sujeito, do “Eu”, em provento de lógicas maquínicas que antes era apresentado como positivo, a casa vazia
polimorfas. Afirmam o primado absoluto das que opera por dobragens sucessivas de todas as ordens,
multiplicidades em relagáo ao binarismo estrutural O é visto agora como tributàrio de urna concependo do
Anti-Édipo é concebido como uma verdadeira máquina campo linguistico definido por Saussure corno urna
de guerra contara o estruturalismo e contribui transcendéncia girando em torno de um significante
fortemente pàra acelerar a desconstrugáo em curso do mestre.
paradigma desde 1967 e 1968. Funciona como máquina A essa linguistica do significante, Deleuze e Guattari
infernal, fazendo explo- dir de dentro o paradigma opòem urna linguistica bem di ferente, a dos fluxos.
estruturalista. Sobre esse ponto, a confcribuigao de Guattari é
Ao formalismo dos estudos estruturais, Deleuze e manifesta, corno atestam suas notas preparatorias à
Guattari opoem, por sua pròpria escrita comuni, o escrita de OAnti~Édipom. De fato Hjelmslev, inventor do
contraponto da experimentaçâo. O projeto deles é opor que denomina ‘glossemàtica’, iniciou urna linguistica
as ciencias sociais ao paradigma estrutural, apoiando-se ainda mais formal que a de Saussure. 0 uso que Deleuze
principalmente em uma releitura dos avanços realiza- e Guattari fazem dela tem pouco a ver com a
dos pela antropologia, semiótica, psicanálise, história, glossemàtica, e o sentido das nogòes de Hjelmslev é
quando essas disciplinas emprestam caminhos ligeiramente alterado. 0 verdadei- ro objetivo é se servir
transversais em relaçâo ao esquema estrutural para dessa leitura como urna máquina de guerra
desfazer este último. Trata-se de praticar a dois o antissaussurìana para dar lugar a urna linguistica
verdadeiramente pragmàtica. Para isso, eles encontram
em Hjelmslev o advento de um verdadeiro plano de elementar da linguagem, é concebido como urna
ima- nència que corresponde ao seu desejo de urna “palavra de ordem”46. A linguagem se apresenta como
linguistica “álgebra imánente das línguas"41. essencialmente informativa, ainda que seja em primeiro
O que Deleuze e Guattari retomam principalmente lugar a acima de tudo performativa, Deleuze e Guattari
Gilles Deleuze & Félix Guattari 181

desse linguista, interpretando-o à sua maneira, é a apoiam-se firmemente ñas teses de John
distingao entre o plano da expressáo e o do conteádo, Austin'17 a propósito das relagoes intrínsecas entre agao
que funcionam de maneira totalmente reversível: “Dada e palavra nos performativoé, como também nos
sua de- finigáo funcional, é impossível sustentar que trabadlos de Oswald Ducrot.
seja legítimo chamar urna dessas grandezas de Essa crítica radical do estruturalismo lingüístico é
expressáo e a outra de conteúdo”42. Esse distin- gáo está encontrada apenas em escritos de Guattari ao longo dos
ligada a estratos, a planos de consistencia que quebram anos 1970. Em urna aula dada em 1973 a estudantes da
o binarismo saussuriano. Haveria de fato apenas um Columbia University em Paris, no “Reed Hall”, por
plano de consistencia se desdobrando em múltiplos incumbèn- cìa de Sylvère Lotrìnger, Guattari
estratos. Hjelmslev tena o mérito de libertar o estudo da desenvolve o tema de urna micropoìitica do desejo.
lingua de seus jugos, de abrir ao máximo para a teoría Desde suas primeiras palavras, ataca "as análises es-
do signo que tem vocagáo para englobar tudo. Guattari truturalístas [que] tentam mascarar a dualida- de
vè ainda nos Ensaios de Hjelmslev os prolegómenos de fundamental entre o conteúdo e a expressáo, dando a ten
sua teoría do agente coíetivo da enunciagào, e com isso gao apenas8 à expressáo, pondo entre parenteses o
asuperagáo possível da dicotomia saussuriana entre a conteúdo”'' . Ele considera que antes de ser estruturados
lingua e a palavra, Hjelmslev é envolvido assim na por regras da lingua- gem, os conteúdos sao estruturados
construgáo da máquina semiótica criada por Deleuze e por urna muitiplicidade de níveis micropolíticos. Nessa
Guattari contra a semiologia estrutural, o que é aula de 1973, Guattari engloba à sua crítica as teses
manifesto no pròprio texto de O Anti-Édipo: “A althusserianas: "Para nós, uáo há por que se apegar à
linguistica de Hjelmslev opòe-se profundamente ao oposigao entre a ciència e a ideologia, sobretodo da
projeto saussuriano e pós-saussuriano, porque abandona maneira obsessiva dos althus- serianos... Por isso
qualquer referencia privilegiada, porque des- creve um recusaremos aqui a validade de um corte epistemológico
campo puro de imanéncia algébrica que nao se deixa radical entre um campo conceitual de pura cientificidade
mais sobrevoar por nenhu-43ma instancia transcendente, e urna ideología puramente ilusoria e mistificadora”49.
nem mesmo em retirada” . Essa teoria imánente da Diante de urna plateia de economistas, Guattari
linguagem permite fazer escoar forma e substáncia, con- intervém na universidade Dauphine em um coloquio
teúdo e expressáo, “seguindo fluxos de desejo, e corta organizado pelo IRIS e nessa ocasiáo compara o
esses fluxos, seguindo pontos-signos ou figuras- estruturalismo a urna doenga: “Nao há razáo para que as
esquizes”44. ciencias económicas escapem da doenga que, há certo
Entre 1972 e 1980, data da publicagáo de Mil tempo, devasta as ciencias da linguagem, a
Platos, Deleuze e Guattari descobrem um outro teórico antropologia, 50a psicanálise, etc.: nomeei o
da lingua para opor a Saussure, o semiótico Charles estruturalismo” . Um pouco mais tarde, em 1979, ataca
Sanders Pei ree, fundador do pragmatismo, e que a fórmula de Chomsky segundo a qual o “vazadouro da
defìniu o pensamento como signo45. Segundo Peirce, o pragmática” recolhe todo o que é insignificante. O
pensamento se desdobra a partir de um triángulo pròprio título de seu capítulo, “Sair da lingua”, assinala
semiótico (signo-objeto-interpretante), que remete a um seu desejo de propor umalinha de fuga em relagáo ao
diálogo indefinido das interpretagoes. Peirce realiza panlin- guismo da época, com a intengao de reconectar
com isso um descentramento da lingüística, que só o es todo da lingua às outras facetas do universo social.
figura agora como subconjunto parcial de urna A esse respeito, eie denuncia urna linguistica que é
semiologia geral, e submete as regras da linguagem ao dotada de um modelo epistemologico, o das cièncias
seu uso. O sentido se revela sob sua fungáo pràtica. Sua exatas, e que as imitou para se legitimar pomo ciència. 0
outra grande inversao consiste em nao mais pensar o efeito dessa pretensào terá siao o de virar as costas para
mundo como físico, mas como fundamentalmente os tragos contingentes socio-históricos: “É51 como se o
semiótico. De sua parte, Deleuze e Guattari re- cusam a socius tivesse de se dobrar à linguagem!” . Por força
alternativa entre físico e semiótico. desse corte e dessa depuraçâo, os lingüistas se tornaram
Em Mil Platos, a orientagao pragmática é “imperialistas”!'’2.
particularmente afirmada como alternativa ao Nào há lingua em si, martela Guattari, que se apoia
saussurismo. Desta vez, a palavra prevalece como nos trabalhos dos historiadores, o que será retomado em
expressáo de um fazer, e o enunciado, enquanto unidade Mil Platos, para mostrar que a lingua em seu processo
de homogeneizaçâo assume um carâter essenci al mente pseudocientífico. A máquina desejante deve, quanto a
político53. A maior ou menor estabilizaçâo de urna isso, mandar pelos ares o jugo edipia- no para meíhor
lingua 182
depende, portanto, de equilibrios de poder e libertar as forças produtivas do inconsciente e
pressupôe sua historicizaçâo. Os agenciamen- tos estâo
François Dosse
esquizofrenizádas. Ao lado dos desenvolvimentos
em primeìro: “Os agencìamentos de fluxos e de códigos argumentativos opostos as teses psicanalítieas,
sao primeìros34em relaçâo às diferenciagòes de forma e encontram-se em textos dos dois autores palavras de
de estrutura” . Em 1979, Guattari jà se proclama ordem tiradas do movimento de Maio de 68 do tipo:
partidàrio de urna pragmática geral incluindo diversas “Somos todos esquizofrénicos! Somos todos perversos!
semiologías, temática retomada em Mil Platos que Somos todos libidos viscosas demais ou fluidas
também enfatiza a dimensao política do fundo namento demais”“'. A conversâo constante pelos analistas de toda
das línguas. manifestaçâo inconsciente em Édipo mostra que a
Embora Deleuze e Guattari estabelegam urna cor psicanálise traz em si urna metafísica que deve sofrer
relaçâo com um socius particular, es- sas semióticas urna critica materialista. Promotores de um método de
nao se identificam com um momento histórico disjunçâo conjuntiva, nossos autores denunciane na
particular, e nao se trata de opor a um estruturalismo pràtica psicanalitica o uso sistemático de disjunçôes
estático, puramente sincrónico, um continuum exclusivas, do “ou..., ou...”, que ignora totalmente o
evolucionista, mas, ao contràrio, de valorizar o primado esquizofrénico, que o torna estranho ao discurso
das misturas, das hibridades. Sao os agenciamentos que freudiano.
constituem as condiçôes mesmas de inteligibi- lidade A esquizoanáíise pretende reconectar o inconsciente
desses régimes de signos. O que faz passar de um ao social e ao político. A grade de leitura edipiana
sistema de signos a outro é sempre o acontecimento decorreria ao mesmo tempo de uma forma de
fundador que corta os fluxos, poe em marcha em reducionismo mecanicista e de um procedimento de
caminhos nao tragados. Assìm, em epígrafe nesse simples aplicaçâo. A aparelhagem estrutural do
“quinto plato”, encon- tram-se fíxadas duas datas: 587 lacanismo teria de fato como funçâo recalcar o desejo,
a.C. e 70 d.C., as duas destruiçôes do Templo que fazer renunciar a ele e assim aperfeigoar no plano
obrigam os judeus a partir. O profeta judeu encarna terapèutico a obra do aparelho de repressáo:
entao a passagem imposta pela destruiçâo do Templó, “Estendendo-lhe o espelho deformante do incesto (veja,
do pensamento à açâo, incitando à marcha O ; povo era isso que vocé queria?) se deixa o desejo
israelita. Ele se toma o personagem eponimo de um envergonhado, atordoado, metido em uma situagáo sem
caso concreto de análise de semiótica transformacional salda, e se8 o convence facilmente a renunciar a si
capaz de passar de urna semiótica significante a urna mesmo’”“ .
semiótica de sub- jetivaçâo. A pragmática para Deleuze Pór novamente o desejo em movimento, torná-lo
e Guattari nao é um simples suplemento anímico da produtivo é a fungáo primeira da máquina desejante,
linguistica, “mas, ao contràrio, o elemento dé base do que deve substituir a estrutura edipiana confinante. É
qual depende todo o resto”55. preciso aínda desfazer a unidade estrutural postulada da
A esquizoanáíise contra a psicanálise máquina. A diferenga situa-se no nivel das máquinas
molares e das máquinas moleculares, e o essencial é que
A máquina desejante deve abrir caminho nas o desejo seja da ordem da produgao, quer esta se efetue
estruturas para fazer expíodir o significante mestre na escala micro ou macro. Entretanto, a unidade
defendido pelos lacanianos. A interpre- taçao estrutural em torno da teoria da falta impoe um conjunto
psicanalitica se desdobra a partir da no- çao de falta molar: “É essa a operagáo estrutural: eia dispòe a falta
primeira, de ausência, enquanto os cortes subjetivos, no conjunto molar”59
verdadeiros cortes de fluxos, partem, ao contràrio, Essa polaridade entre o molar e o molecular é
segundo os autores, de um excedente. introduzida por Guattari e vem essen- cialmente de sua
Epistemológicamente ao lado de seu objeto, a pratica no campo da psico- terapia institucional em La
psicanálise é também estigmatizada como esforço de Borde. É de inicio um meio de desmontar as lógicas
normalizaçâo, de repressáo, prosseguindo a obra de molares de estratificagáo, de burocratizagao e de roti-
confinamento e de re- traimento em si inaugurada pela nizagáo das organizagòes, liberando a cada momento os
psiquiatría no século XIX: “Ao invés de participar de fluxos moleculares e suas intensidades capazes de
um esforço de libertaçâo efetiva, a psicanálise participa enflaquecer os códigos do polo molar: “A distingào do
da obra de repressáo burguesa mais gérai”“6. macro e do micro é muito importante, mas talvez eia
A psicanálise seria, na realidade, apenas um pertenga mais a Guattari do que a mim. Minha é mais a
familialismo que se dotou de um discurso distingào de duas multiplicidades. Essa é essencial para
mim”60. Guattari sugere a Deleuze opor a aìteridade Urna antropologia política contra a
molecular e a alterìdade molar à aìteridade imagìnària antropologia estrutural
de Lacan, que realì- zou “urna Iinguistizagáo de
conjuntos molares, recusa do genetismo habitual. Tudo A relaçâo com
Gilles Lévi-Strauss
Deleuze é nitidamente
& Félix Guattari 183 menos
é condu- zido a um estruturalismo com base no modelo poleíhica do que com Lacan em O
linguistico. Tem-se uma aìteridade absoluta, estrutural, Antí-Édipo, cuyo alvo principal é a pràtica psi-
linguistica e sem garantía”61. canalitica. Contudo, tomam-se distáncias evidentes da
Embora Lacan tenha o enorme merito de descobrir antropologia estrutural. Deleuze e : Guattari apoìam-se
com o objeto a algo da ordem do molecular, que em Edmund Leach, para : quem a ausencia de estrutura
enquanto objeto parcial sempre escapa, excede a caracteriza todo um conjunto de dados empíricos
estrutura, ele permanece pri- sioneiro desta última. direiamente observados - o que nao significa, em
Definindo-se como um procedimento materialista, a Leach, que nao exista estrutura, mas somente que a
esquizoanáíise pretende, ao contràrio, opor aos yogos estrutura é principio de seu pròprio desequi- ; líbrio.
endógenos da estrutura a intervençâo significante de um Deleuze e Guattari recusam assim a id eia de
de fora. A esquizoanálise apresenta-se antes de tudo sociedades Mas, de sociedades primitivas ; sem
como defensora de um modo de experimentaçâo. Como historia, fundadas na simples reprodu- qáo do mesmo:
um “mecánico, um mi- cromecânico”6", o que se precisa “A ideia de que as sociedades primitivas sao sem
cap tar em cada um nâo é um segredo profundamente historia, dominadas por arquetipos eílw sua repetiqáo, é
enterrado, mas máquinas desejantes que funcionam de particularmente fraca e inadequadá . Embora Lévi-
maneira singular com seus ratei os, suas ace- leraçôes, Strauss nao seja tido como responsável por essa con-
seus cortes de fluxo, seus devires; “Nao sao as íinhas de cepgáo, foi ele quem dividiu as civili z ago es em
pressâo do inconsciente que contam, ao contràrio, sâo as sociedades quentes, que funcionam sobre o modelo da
Iinhas de fuga”63. termodinàmica, e sociedades frías, com funcionamento
Defmindo o inconsciente como urna multi- de relógio, mecánico, protegendo-se pela repetìgào de
plicidade de intensidades e de excessos, Deleuze e qualquer elemento aleatòrio que possa provocar
Guattari pôem em circulaçâo novamente o que tinha mudanza.
sido o recalcado do estruturalismo. Nesse plano, pode- Deleuze e Guattari pretendem também inri verter a
se considerar, com Joël Birman, que a clínica defendida demonstradlo clàssica de Lévi-Strauss, segundo o qual
por Deleuze e Guattari visa reintroduzir a problemática a universalidade da troca de muflieres estaria ligada à
econòmica da metapsicologia freudiana, sua parte vontade de evitar o fecha- mento na sociedade em si
pulsional abandonada pelo lacanìsmo. Opostas frontal- mesma: “Longe de ser a extensao de um sistema
mente à concepçâo formalista, puramente simbòlica de inicialmente fechado, a abertura é primeira, fundada na
um inconsciente que funciona como urna estrutura heterogenei- dade de elementos que compoem as
segundo o modelo lingüístico, Deleuze e Guattari prestares, e compensam o desequilibrio deslocando-
“afirmaram em OAnti-Édipo que o inconsciente é o’66. Deleuze e Guattari contestam a leí universal
atravessado de um extremo ao outro pela pulsao, ou, em descoberta por Lévi-Strauss da proibito do incesto que
outras palavras, que nâo poderia existir inconsciente se encontraría como leí intangíveh de toda sociedade
sem intensidades"611. A máquina desejante recoloca no em qualquer laütude. Eles afirmam que a pròpria ideia
circuito a pulsao com seus excessos, sua mobili- dade e dessa proibirlo nao pode ser pertinente, pois “o6 incesto
suas rupturas, suas capacidades disyuntivas. A nao existe” em inúmeras sociedades primitivas '.
esquizofrenia, nesse quadro, oferece o duplo interesse Deleuze e Guattari se apoiam ñas pesquisas de
de demonstrar a incapacidade do discurso psicanalitico, Meyer Fortes sobre as lógicas territoriais que se
mesmo estruturalizado, como seu Édipo ao quadrado, constata serem primeiras em relagáo ás trocas de
de descobrir e de cuidar da patologia. Mas o mulheres: “O problema nao é o da circulagáo de
esquizofrénico tem também o interesse de encamar essa mulheres... Urna mulher circula por eia mesma. Nao se
figura da impessoalidade singular que buscam Deleuze dispoe déla, mas os di- reitos jurídicos sobre a
e Guattari para opó-la ao mesmo tempo à estrutura progenitura sao fixados
dessingularizada e ao personalismo.
GiiSes Deleuze & Félix Guattari 184

em proveito de uma pessoa determinada”68. cidadania so- brecodificando os segmentos


Portanto, a terra, com suas segmentaridades linhageìros a fim de chegar a um espago
territoriais, é primeira em relagao às trocas homogéneo. Esses dois tipos de segmentaridades
matrimoniáis e às estruturas do parentesco. Os estao emaranhados, e assim se podem identificar
sistemas de alianzas e as regras de parentesco sáo flexibilidades no pròprio cerne dos sistemas mais
relegados ao segundo piano em relagào às burocráticos ~ como mostrou Kafka'/ Ao
codifìcagòes territoriais do sacias, Ao contràrio contràrio, obser- vam-se também núcleos de
da tese lévi-straussiana, Deleuze e Guattari arborifæaçâo, de endurecimiento no interior das
afirmam: “Um sistema de parentesco nao é urna sociedades primitivas. Essas travessias de
estrutura, mas urna pràtica, uma praxis, um segmentaridade sao o atributo de toda sociedade
procedimento e mesmo uma estratégia”6/ ou de todo individuo e fundam o caráter
A pròpria ideia de fechamento potencial de um dominante do político: “Tudo é político, mas toda
sistema de parentesco resulta do erro de política é aon mesmo tempo macropolíüca e
perspectiva que consiste em separar as práti- cas micropolítica \ A micropolítica que resulta dessas
matrimoniáis de seu substrato económico e observagóes e desse primado atribuido à dimensao
político. Pierre Clastres mostrou a propósito dos do político se impoe como nogao essencíal com a
indios guayakis que nao exístem nómades puros, pubiicaçâo de Mil Platos, onde eia substituí o
pois há sempre acampamento para estocar, mesmo conceito de esquizoanálise, funcionando como seu
que em pequeñas quantidades, para se alimentar, equivalente.
para se casar, etc/0. A crítica de ordem À antropologia estrutural, Deleuze e Guattari
epistemológica que Deleuze e Guattari dirigem opóem em O Anti-Êdipo toda uma antropología
aos defensores da antropología estrutural, assim histórica e política que se desdobra segundo a
como a toda semiologia estruderai, é a de bipolaridade entre a lógica dos flu- xos de
privilegiar a esfera da troca, da circulagáo, em decodificaçao e a dos processos de re-
detrimento da produgáo e da reprodugáo social. codificaçâo. Se o estruturalismo nâo é o bom
Entretanto, para eles, tambera aqui, a máquina se procedimento para estudar as sociedades
opòe à estrutura, pois eia é seu elo duro: “Uma primitivas, o funcionalismo nâo se sai melhor
estrutura mole jamais funcionaría, nem faria quando se pergunta para que serve tal ou qual
circular, sem o elemento duro maquínico que instituiçâo, e acredita encontrar o sentido na
preside as inscrig5es”7!. funçao. Contudo, credita-se aos etnólogos uma
Todas as ativìdades percorrerà o vivido por vantagem em relaçâo aos psicanalistas que
segmentá-lo espacial ou socialmente, combinando permaneceram na questa o de saber o que isso
tipos de segmentaridades lineares, binárias, quer dizer. A esquizoanálise substituí essas falsas
circulares. Contudo, foram os africanistas nao questoes por uma atençâo 74aos usos: “Como isso
estruturalistas como Meyer Fortes, Evans- funciona é a única questáó’ .
Pritchard e alguns outros que conseguirán! É isso o que colocam Deleuze e Guattari e que
mostrar como o sistema político das sociedades os leva a diferenciar très tipos de sociedades -
primitivas sem Estado foi capaz de incorporar os Selvagens, Bárbaros e Civilizados --, segundo os
sistemas e as segmentaridades territoriais, graus de desterritorializaçâo dos fluxos. Eles
apoiando-se e apropriando-se das relagoes de constroem, portanto, uma verda- deira
parentesco segundo um sistema híbrido e flexível. antropología política, na qual se atribui um papel
Deleuze e Guattari identificam uma binaridade em motor a esse processo ao mesmo tempo
agáo, mas opóem as sociedades primitivas de progressivo e descontinuo de deco- diftcaçâo, de
segmentaridade flexível às sociedades modernas falha dos códigos e de liberaçâo dos fluxos. A
de segmentaridade dura. Evocam, para sustentar cada etapa, as estruturas estatais centrais,
sua tese, a reforma na Grecia antiga de Clístenes, despóticas ou feudais, se mostram in- capazes de
o Ateniense, que construiu um espago político da resistir às forças de decodificaçao que subordinam
as formas institucionais esta- tais para subjugá-las. 1. Félix GUATTARI, “Machine et structure”, expo- siçâo de
Pouco a pouco, os fluxos de todas as ordens impóem 1969, publicada na revísta Change, n. 12, Senil, 1972,
suas leis: “Fluxos de propriedades que sao vendidas, reproduzida em PT, p. 240-248.
fluxos de dinheiro que circuía, fluxos de produgáo e de 2. GilíesGilles
DELEUZE,
DeleuzeDR,&1968,
Félixp.Guattari
7. 185

meios de produgáo”^. A característica da máquina 3. Félix GUATTARI, “Machine et structure”, PT, 2003, p.
progressista será de ter sido capaz de conectar todos 241,
esses fluxos decodificados, de fazé-los jogar juntos em 4. Ibid., p. 243.
urna mesma par- tigáo para constituir sistema. Essa 5. Ibid.
restituíqáo da historia da humanidade nao se apresenta 6. Ibid.
absolutamente como urna nova teleologia, na medida 7. Ibid., p. 244.
em que é animada pela contingencia de acontecimentos 8. Ibid.
que faz com que os devires sociais se bifurquen! em um 9. Ibid.
ou outro sentido. 10. Instincts et institutions, textos escolhidos e: apresentando
“Seguramente, nem o capitalismo, nem a re- por G. Deleuze, Classiques Ha-; chette, Paris, 1953.
volupáo, nem6 a esquizofrenia passam pelas vias do 11. Félix GUATTARI, “Machi ne et structure", PT, pl; 248.
significante"' . 0 que define as civilizagóes é seu grau de 12. Ver François DOSSE, Histoire du structuralisme, tomo 2,
codificagáo ou de decodificagáo dos fluxos. O que “L’institutionnalisation: la; conquête de l'université”, p.
173-182.
diferencia os fluxos capitalistas dos fluxos 13. Gilles DELEUZE, DR, p. 247.
esquizofrénicos é que estes últimos permanecem 14. Ibid., p. 248.
bloqueados, pois o capitalismo recodifica e impde 15. Ibid., p. 263.
limites que nao devem ser transpostos. A modernidade 16. Ibid.. p. 265.
capitalista nao se enganou com sua política do “grande 17. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pag ris-VUI, 19
confina- mento” analisadaporFoucault Se o capitalismo de março de 1985, arquivos sonoros, BNF.
ve na esquizofrenia trapos característicos de sua própria 18. O “significado de potencia”, segundo Gustave Guillaume,
tendéncia a de codificar, a desterritoria- lizar, vé nela é a dinámica inconsciente que organiza a poüssemia de um
também seu limite exterior, e nao pode funcionar “com lexema dado. Portanto, a significaçâo de uma palavra
a condigáo de inibir essa tendencia”77. Assim como toda enquanto discurso é sempre um agenciamento ou um
sociedade que comporta essa parte de tensao entre os arranjo entre a palavra de língua (significado: de potência)
dois polos principáis, que sao a tendéncia á desterrito- e o contexto.
rializagáo e á reterritorializagáo, o capitalismo 19. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa- ris-Vin, 19 de
permanece fundamentalmente ambivalente. março de 1985, arquivos sonoros, BNF.
Segundo Deleuze e Guattari, tres máquinas sociais 20. Pierre Rianchaud, entrevista com o autor.
teriam entáo se sucedido, cada urna ten- do sua 21. Gilles DELEUZE, DR, p. 241.
dominante. A primeira, a dos selvagens, é a máquina 22. Gilles Deleuze, carta a Louis Althusser, acervo Althusser,
territorial subjacente que tenta codificar os fluxos no arquivos 1MEC, 29 de outub.ro de 1964.
corpo pleno da térra. Depois, a máquina imperial dos 23. Gilles Deleuze, carta a Louis Althusser, acervo Althusser,
bárbaros sobrecodifica os fluxos no próprio corpo do arquivos IMEC, 28 de fevereiro de 1966.
24. Gilles DELEUZE, ‘À quoi reconnaît-on le structuralisme?”,
déspota e de seu aparelho burocrático de poder. em François CHÂTELET (sob a dir.), Histoire de la
Finalmente, a máquina moderna, civilizada, capitalista, philosophie, tomo Vili: Le XV Siècle, Hachette, Paris, 1972,
deco- difica os fluxos e realiza a imanéncia. Exempli- p. 299-335; reproduzido em ID, p. 238-269.
fica-se, assim, no plano concreto da realizágao histórica 25. Gilles Deleuze, carta a Louis Althusser, acervo Althusser,
da hhmanidqde, o desdobramento de urna teoría geral arquivos IMEC, 24 de fevereiro de 1968.
dos fluxos, das multiplicidades e do primado das 26. Gilles DELEUZE, “À quoi reconnaît-on le
máquinas produtivas que recobraram urna dinámica, structuralisme'?’’, reproduzido em ÏD, p. 247.
urna axiomática, e que, portanto, romperam as amarras 27. IbicL p. 250.
com as leituras puramente sincrónicas, estruturais, que 28. Ibid., p. 261.
valorizam os invariantes, as permanencias," e remetem 29. Gilles DELEUZE, LS, p. 88.
os acontecimentos à ïnsignificância. 30. Ibid., p. 89.
31. Ibid., p. 89-90.
Notas 32. Ibid, p. 30.
33. Ibid., p. 4L
34. Ibid., p. 45.
35. Ibid., p. 49.
36. Ibid., p. 51. 58. Ibid., p. 142.
37. Ibid., p. 212. 59. Ibid., p. 366.
38. Ibid.186 François Dosse 60. Gilles Deleuze, “Réponse à une série de questions”, nov.
39. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 245. 1981, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et l'Orchidée, op.
40. Félix GUATTARI, Écrits pour VAnti-Œdipe, textos cit., p. 131.
organizados por Stéphane NADAUD, op. cit. 61. Félix GUATTARI, Écrits pour VAnti-Œdipe (14/11/1970),
4 L Louis HJELMSLEV Prolégomènes à une théorie du langage, op. cit., p. 185.
Minuit, Paris, 1968, p. 11 62. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 404.
42. Ibid., p. 85. 63. Ibid., p. 405.
43. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 288. 64. Joël BIRMAN, “Les signes et leurs excès. La clinique chez
44. Ibid., p. 288. Deleuze”, em Éric ALLIEZ (sob a dir.), Gilles Deleuze. Une
45. Charles Sanders PEIRCE, Écrits sur le signe, Seuil, Paris, vie philosophique, op. cit., p. 485.
1978. 65. Ibid.,p. 177.
46. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI. MP, 1980, p. 95. 66. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 176.
47. John AUSTIN, Quand dire, c’estfaire. Seuil, Paris, 1970. 67. Alfred ADLER, Michel CARTRY, “La Transgression et sa
48. Félix GUATÏAJRI, “Pour une micro-politique du désir” dérision”, L’Homme, julho, 1971.
(1975). RM. p. 241. 68. Meyer FORTES, em “Recherches voltaïques", 1967, p. 135-
49. Ibid., p. 274. 137.
50. Félix GUATTARI, “La valeur, la monnaie, le symbole”, 69. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 173.
RM, p. 291. 70. Pierre CLASTRES, Chronique des Indiens Guayakts, Pion,
51. Félix GUATTARI, L’Inconscient machinique, ed. Paris, 1972.
Recherches, 1979, p. 23 (doravante citado IncM). 71. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 222.
52. Ibid., p. 24. 72. Ver capítulo “A literatura menor’ sob um oihar cruzado”.
53. Michel de CERTEAU, Dominique JULIA, Jacques REVEL, 73. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 260.
Une politique de la langue, Gallimard, Paris, 1975. 74. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 213.
54. Félix GUATTARI, IncM, p. 13. 75. Ibid, p. 265,
55. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 184. 76. Ibid., p. 291.
56. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 59. 77. Ibid, p. 292.
57. Ibid., p. 80.
No
caminho
nao tragado
que conduz
13 tentativas
de
interpretar
urna obra
Deleuze e que se
Guattari deA literatura "menor" sob um olhar cruzado propòe de
0 Anti- fato apenas
Édipo a Mil Platos entre 1972 e 1980, há urna à ex-; perimentagao’b
etapa importante, um ponto forte, que é a Obra de transigáo entre dois macigos, Kafka
publícagáo de seu Kafka, em 1975*. O ve igualmente emergir outro conceito;: essencial
acontecimento dessa publica- gao nao está ligado que vai irrigar os mil platos por vir: o de
tanto à leitura multo original e renovadora de urna agenciamento, que dá o nome a um capítulo da
obra literária pela qua! ambos tém grande obra5. Do mesmo modo que o con- ceito-chave de
admíragáo. É sobretu- do a oeasiáo de O Anti-Édipo era o de máquina;; de se jante, Mil
experimentar conceitos-chave que em seguida Platos poderá ser lido, alguns anos mais tarde,
poderao desdobrar e desenvolver em Mil Platos. como urna verdadeira teoría do agenciamento. A
Por esse novo fivro, Deleuze e Guattari passam meio percurso, Kafka; aínda utiliza bastante o
também da postura crítica, denunciativa, que é a conceito de máquina,:
de O Anti-Édipo em face da psicanálise, para urna
posigáo afirmativa, a de seu proprio
procedimento, singular, testando-a no confronto
com urna grande obra literária.

"É um rizoma, urna toca"


Kafka é, de fato, a ocasiao da primei- ra
ocorrència do conceito de "rizoma”, que se
encontra já ñas primeiras linhas da obra: “Como
entrar na obra de Kafka? É*um rizoma, urna cova.
O Castelo tem entradas múltiplas das quais nao se
conhecem bem as leis de uso e de dístribuigao. O
hotel de América tem inúmerás portas^ principáis
e auxiliares... Portanto,2 pode-se entrar por
qualquer extremidade” . Sabe-se que esse
principio da multiplicidade de entradas possíveis,
de co- ■ nexòes em todos os pontos portadores
das sìgnifìcagòes mais diversas, essa escoìha do :
rizoma de brotagào horizontal contra a árvore de
ramifìcagòes hierárquicas dará lugar, em: 1977, a
urna pubìicagào eponima3 e fornece- rà a
introdugao de Mil Platos. Se o conceito de rizoma
é particularmente adequado para compreender o
mundo labirintico de Kafka, é também urna nova
arma contra toda forma, de interpretagào
psicanalitica. O adversàrio é claramente
designado desde a primeira página da obra: “0
principio das entradas múltiplas impede sozinho a
introdugao do inimigo, : o Significante, e as
apresentando o proprio Kafka corno urna máquina estatuto da escrita literaria que, por sua capacidade de
de escrita. Mas já se tem o inicio do des- locamento por afetar, está ligada a urna sintomatologia, a urna
vir. 0 agenciamento se torna a realizagào da máquina verdadeira captura de forças transformadas em formas e
gragas às conexòes que possibilità.
188 François Dosse
que se contata ser urna clinica8.
Os dols conceitos fundamentáis da filosofìa de Deleuze e Guattari situam-se resolutamente no
Deleuze e Guattari, o agenciamento e o rizoma, tem campo da experimentagáo e se er~ guem contra a
origem, portanto, com essa lettura de Kafka, no literatura que permanece nos limites estreitos dos
confronto com a literatura como lugar mesmo da cánones consagrados pela tradiçao, opondo a eia a força
experimentagáo. Como de hábito, Deleuze toma com criativa de urna literatura dita “menor”. A demons-
Guattari o caminho inverso de todas as análises, leituras traçâo de Deleuze-Guattari apoia-se aqui em urna
e exege- ses de especialistas da obra de Kafka. De fato, análise do contexto de um impèrio dos Habsburg em
é comum na tradi gao literaria apresentar essa obra plena deliquescência, que favorece os movimentos
como a pròpria expressao de um mundo desesperado, centrífugos, acentúa os processos de desterritorîalizaçâo
absurdo, confrontado com lógicas burocráticas, com a e provoca um retorno às formas de reterritorializaçâo. É
obsessao que leva a se chocar sem eficácia contra o essa tensâo extrema que suscita um clima propicio à
muro da incom- preensáo. Entretanto, Deleuze e eclosáo de vozes singulares, nao apenas a de Kafka, mas
Guattari, bem ao contrario, apresentam um Kafka também as de seus contemporáneos, como Einstein, que
còmico, alegre, sempre do lado do desejo, confrontado leciona em Praga, o físico Philipp Frank, os músicos
com as lógicas infernáis da máquina burocrática sob dodecafonicos, os cineastas expressionistas, como
suas tres formas - stalinista, nazista e liberal americana - Robert Wiene ou Fritz Lang, sem contar o Círculo
em urna perspectiva crítica mais eficiente que muitas Lingüístico de Praga ou aínda Freud em Viena mesmo,
enunciagoes es- tritamente políticas. com o nascimento da psi- canáhse. Nesse imenso
Além do estudo de caso sobre Kafka, a obra se imperio em declínio, onde o alemâo é a lingua oficial, a
apresenta como um manifesto contra toda forma de do poder, da administraçâo central, há muitas outras
leitura arque típica que visaría impor ao texto tal ou qual línguas dominadas. Kafka encontra-se no cruzamiento
interpretagáo. O estudo a substituí pelo primado da de várias línguas: a lingua tcheca enquanto natural de
experimentagáo. "Nao acreditamos a nao ser em urna Praga, o alemâo, que é a lingua oficial do Impèrio
experimentagáo de Kafka, sem interpretagáo nem Austro-Húngaro, e o li diche, enquanto judeu.
significancia, mas somente protocolos de experiencia10. Segundo Deleuze e Guattari, “urna literatura menor
Na continuidade de O Anti-Édipo, o alvo é a redugao nâo é a de urna lingua menor, mas a de urna minoria
psicanalitica. Sua interpretagáo do caso Kafka é formada em urna lingua maior"9 A lingua menor é
reprovada de forma radical, nao somente porque definida, portanto, por seu hibridismo no interior mesmo
empobrece terri- velmente a abordagem da obra, mas da lingua maior. Assim, para Kafka, o alemao será sua
porque se apoia em um contrassenso. Eia parte de fato lingua de expressáo literaria, mas um aìe- máo singular:
de um documento atestado, a carta dirigida ao seu pai “Kafka define nesse sentido o impasse que barra aos
em 1919, na qual Kafka o acusa de todos os seus males, judeus de Praga o acesso à escrita e faz de sua literatura
de sua inaptidào para a vida assim como para a escrita, urna coisa Impossivel: impossibilìdade de nâo escrever,
responsabilizan- do-o por seus fracassos e parecendo impossibilidade de escrever em alemao, impossibilìdade
“edipiani- zar” toda sua relagáo com o mundo. Contudo, de escrever de outro modo”10 E preciso entáo,
para Deleuze e Guattari, o que Kafka signifì- cou nessa literalmente, exprimir sua alteridade, sua estranheza em
carta é outra coisa. Essa hipertrofia do Édipo é para ele relaçâo à lingua dominante: "Estar em sua propria lingua
um meio de se esquivar dele, de escapar. Eie tenta corno um 1estrangeiro; é a situaçâo do Grande Nadador
realizar, portanto, o oposto do que acreditam os de Kafka” Essa exterioridade do interno faz com que
psicanalistas: "Desterritorializar o Édipo no mundo,7 em atuem no interior da escrita os dois processos que
vez de se reterritorialìzar no Édipo e na familia” . Os Deleuze e Guattari tematizarào sobretodo em Mil
freudianos teriam passado à margem da ironia Platos, o da territoriali zaçao e o da desterritorializaçâo:
subjacenfce a essa hipertrofia voluntária do Édipo. “É para os judeus de Praga o sentimento de urna
Assim como em O Anti-Édipo, a grade de leitura é distancia12 irredutível com a territorìalidade primitiva
acusada de valorizar demais o peso do Significante e de tcheca” . A literatura menor, mais do que qualquer
negligenciar a eficácia da máquina, aqui literaria, outra, caracteriza-se por sua essència politica: “Cada
Deleuze e Guattari a substituem por urna teoria política problema13 individuai é imediatamente conectado à
da literatura articulada a urna concepçâo da escrita política” e, nesse sentido, tal literatura nao pode se
impessoal, resultante de um agenciamento coìetivo. dobrar às codificaçôes restritivas do triángulo edipìano
Essa abordagem da criaçâo transforma radicalmente o da psicanálise. Finalmente, a literatura menor nâo é
propria de um sujeito de enunciaçâo individual, mas esquizofrenia: o de urna linha de fuga esquizocriativa,
tenta exprimir pela escrita - sem poder se erigir em simplesmente diferente segundo sua intensidade
porta-voz - a palavra do povo, de um povo sempre propria. PorGilles
esse Deleuze
par maior/menor, Deleuze e Guattari
ausente, Essa literatura pôe em obra agenciamentos entendem finalmente “articular très níveis teóricos: urna
& Félix Guattari 189

coletivos de enunciaçâo. ontologia da potencia vital e do devir, urna


É nessa literatura menor que Deleuze e Guattari epistemologia da cultura envolvendo urna lògica da
encontram os recursos mais vivos, as forças mais varìaqào, e urna poesìa politica sob a aparència !f>de urna
eficazes suscetíveis de desestabilizar as convençoes e os teoria da dominagào e do devir~revoìucionàrio” .
poderes constituidos. Embora a literatura menor assuma Desde 0 Anti-Édipo, Deleuze e Guattari tinham
urna di- mensâo imediatamente eontestatoria, a relaçâo iniciado um trabalho de recusa radicai do saussurismo
menor/maior nao depende apenas de urna diatètica de dominante que alimentava urna leitura binària, dualista
tipo hegeliano, em que o menor tena vocaçao de ìnyerter da lingua, pensada como em principio separada da
o maior. Ao contràrio, o menor se pensa em seu devir palavra17. Embora nao tenham se apropriado ainda, o
enquanto vari agio intensiva capaz de transformar o que será o caso em Mil Platos, das contribui- qòes da
maior, mas seu devir so pode ser minoritàrio segundo a pragmática - a de Austin, Searle ou, na Franga, Oswald
defimqào mesma que Ihe dáo Deleuze e Guattari: “O Ducrot -, já estào à espreita de tudo o que possa
menor se sustenta da existència do maior do mesmo redistribuir as cartas, refazer o jogo na lingua para
modo que o corpo sem ór- gàos reclama o organismo”14. restituir sua polifonia. É nessa perspectiva que Deleuze
Com isso, Deleuze e Guattari escapam do dualismo se aproxima de um linguista que íeciona nos
a que o par maior/menor parece, no entanto, remeter departamentos de psicología e de inglés da universidade
naturalmente. Pode-se ver ai a marca do ensinamento de Vincennes, Henri Gobard, do qual prefacia o livro
de Canguilhem, que havìa definido o “anómalo" como langado em 197618. Tendo já tomado co- nhecimento da
urna diferen- qa constituinte entre o normal e o obra quando escreve Kafka com Guattari, Deleuze se
patologico que náo remete tanto ao modelo de norma- apoia no modelo de Gobard, onde encontra urna
lidade, mas sim à expressáo do insólito15, Da mesma articulagáo pos-; sível dos fatores sociais com o
maneira, Deleuze e Guattari tinham definido em 0 Anti- funcionamento da lingua.
Édipo um terceiro termo entre o capitalismo e a
Gilles Deleuze & Félix Guattari 190

Ao dualismo saussuriano, Gobard opòe urna sempre aos extremos, o “proceder kafkiano”
tipologia que se organiza em torno de quatro consiste em uma intensificagáo do alemáo que
fungòes da linguagem e distingue, o que Deleuze despoja essa lingua das significagóes da qual é
retém, uma lingua vernacular, materna ou rural, portadora.
que representa para Kafka a lingua de sua A metáfora enquanto uma imagem repre-
comunidade territorial - o tcheco; uma segunda sentativa dá lugar entáo à metamorfose que é seu
lingua "vele alar, de troca, de co 1 màrcio, de contràrio, pois “nao20 há mais sentido pròprio nem
circulagáo, por excelència urbana” / que tem sentido Figurado” . Assim, os devi- res-animais
corno fungao arrancar do territòrio, em Kafka nao remetem a qualquer referente
desterritorializar reterritorializando-a em suas mitológico ou arquetípico, mas “corresponden!
fungòes económicas - para Kafka, é o alemào. Um someníe a gradientes2 transpostos, a zonas de
terceiro nivel linguistico é constituido pela lingua intensidade liberadas” / Assim, se Gregorio se
“referencial, nacional e cultural, que opera urna torna uma barata em À metamorfose, essa nao é
recopìlagào ou urna reconstituigào do pass ado” 20. somente uma maneira de fu- gir de seu pai, mas
Nesse nivel, a desterritorializa- gáo se transforma de vencer là onde seu pai fracassou para “fugir do
em reterritorìahzagào cultural, e para Kafka se gerente, do comercio e dos burócratas, para
trata ainda do alemào, sobretudo o de Goethe. atingir essa regiáo onde a voz nao faz mais que
Finalmente, hà a lingua “mítica, que remete a uma zumbir”2'. À analogía estrutural, Deleuze e
terra espiritual, religiosa ou mágica”21, ligada a Guattari opóem uma ver- dadeira teoría dos
todas as fun- góes precedentes por uma devires, que encontra vários exemplos na obra de
reterritorializagao religiosa - o hebraico para o Kafka. O devir-animal se apresenta como uma
autor do Processo. possível fuga. É antes de tudo devir molecular
Deleuze e Guattari tomam emprestada de outro que acaba por se integrar a uma máquina ou
linguista, Vidal Sephiha, sua 3defìni- gào multo “mais precisamente a um agenciamento
ampia da nogáo de intensivo / que passa a ser maquínico,2cujas partes sao in~ dependentes uma
todos “os elementos lingüísticos, por mais das outras” /
variados que sejam, que2 exprimem tensoes
interiores de urna lingua” '/ Deleuze e Guattari
identifìcam urna multiplicidad e des- ses O acontecimento Kafka
“tensores” (um termo tirado de Jean-Fran- qoìs
Lyotard) em Kafka. Como escreve o proprio Guattari é acometido por uma verdadei- ra
Kafka em seu Diàrio: “Nenhuma paiavra - ou paixao por Kafka. Dado que o Diàrio deste
quase - escrita por mim concorda com a outra, último revela a impressáo de viver como em um29
ougo as consoantes rangendo umas contra as o u sono - “Ele levava muito em conta seus sonóos”
tras com um ruido surdo de fer- ragem, e24as vogaìs -, Guattari prepara no inicio dos anos 1980 urna
cantando como negras de exposigao” *. Nessa antologia dos “65 sonhos de Kafka. Sugere uma
linguagem que tende leitura que nao seja de ordem psicanalitica, para
trabalhar mais concretamente os pontos de
singularidade que se encontram na expressáo
N. de R. T.: No original et les voyelles chanter comme desses sonhos.
des nègres d'exposition. Dado que a frase anterior reporta- Muitos anos depois do langamento de Kafka,
se à noçào linguistica de "intensivo", refermdo-se às em 1982, Guattari manifesta a Jack Lang seu
tensôes internas da lingua ~ e assim sâo, por exemplo, os
prefixos extra ou hyper que reforçam uma noçâo jà desejo de organizar alguma coìsa por ocasiào do
expressa -, diz- -se também da expressâo parler petit centenàrio do nascimento do escritor. O ministro
nègre como de uma lingua que é falada de maneira da Cultura fìcou radiante: “Obrigado por seu
îndevida, impròpria. Em uma traduçâo nâo literal poderia bilhete a propósito de Kafka. Concordo. Vocè
ler-se: e as vogais cantar/ soar [assim corno uma] falâcia pode tomar a iniciativa? Se aceitar tomar a frente,
em [uma] exposiçâo/[ao] expressar-se. Ou ainda: ‘‘e as
vogaìs cantar em uma impro- priedade que se expressa”. eu fìcaria feliz”, res- ponde-lhe Jack Lang30. É
criado um comité de manifestaçôes sobre Kafka,
com um presidente de honra, Jorge Luis Borges, e um Sonhos. Quando Cormann convida Guattari a jantar com
presidente executivo, Guattari, que vai se dedicar à toda a pequeña trupe, faz um jogo de palavras
orga- nizaçâo de urna grande exposiçâo no Centre involuntario: "Tu es là quand? pergunta ele. “Lacan? A
Beaubourg. A exposiçâo “Le Siècle de Kafka” se gente saberia!” , responde& Félix
Gíiles2Deíeuze Guattari. Nasce entre
Guattari 191os dois
realiza de 7 de junho a V de outubro de 1984, sob homens urna verdadeira cumplicidade. O sucesso de
aresponsabilidade do crítico de arte Yasha David e de Sonhos já era esperado, e o traballìo recebe o prèmio da
Guattari. Crítica em 198534. Em 1983, no momento mesmo do
Guattari, que é seu idealizador, pretende fazer surgir centenàrio,: Guattari reaviva sua paixâo por Kafka: “Eu
como acontecimento a parte moderna de um Kafka do me apeguei a Kafka”3S. Recorda nessa ocasiâo que seu
sáculo XXI. Pretende fazer dessa exposiçâo urna primeiro paciente, o primeiro esquizofrénico de quem
manifestaçâo plural que reúna exposiçôes temporarias, cuidou em La Borde, era um jovem judeu que tinha se
programas em vídeo, peças de teatro, filmes, identificado totalmente com o autor de Sonhos. Guattari
conferéncias. Nos cadernos pessoais de Guattari, sente- se dedicou muito a esse paciente catatónico, difícil,
se a preocupaçâo meticulosa de evitar as instru- emparedado no seu silencio, e o tirou de suapsicose
mentalizaçoes publicitárias e mundanas. A ex- posiçâû fazendo-o escrever. O paciente escrevia sobre Kafka: “A
deve ser urna resposta ao paradoxo de Kafka, que é de esquizofrenia de meu paciente, meu próprio processo
ser ao mesmo tempo um autor secreto, da intimidade, da esquizofrénico e Kafka. Tudo36isso se comunica ainda
solidáo, e de ter dado origem a um qualificativo muito em urna relagáo de impressao” .
usado. Para restituir esse paradoxo, é preciso dar a ver e Encontram-se ñas notas manuscritas de Guattari
a ouvir todas as facetas do efeito Kafka: “O mais íntimo multas análises sobre este ou aque- le aspecto da obra de
do efeito Kafka diz respeito tam- bém ao maior número. Kafka. Ele testa assim a pertinéncia da noqáo de
Esse é o desafío que gostaríamos de assumir'131. intensidade e de “blo- eos de infancia” no primeiro
Guattari nâo mede esforços para o éxito dessa capítulo do Gástelo, observando que o castelo nao é
manifestaçâo: “Ele convidou Jorge Luis Borges para apreendido em urna pepa única, mas por toques sucessi-
fazer urna conferencia sobre Kafka nesse contexto. vos. Sucedem-se, po.rta.nto, diversos tipos de regimes
Noite sublime durante a qual o Cegó Vidente falou de de intensidade que nao permitem reduzir a leitura ao
sua descoberta dos textos de Kafka. Isso nâo impediu triángulo edipiano, com al- guns elementos intensivos
que a direçâo de Beaubourg se récusasse a pagar a presentes em toda a obra de Kafka, como "a cabepa
viagem e a hospedagem de32 Borges! Foi Félix que pagou baixa, como forma de conteúdo, e o retrato, como forma
entáo do seu bolso!” Guattari prevé também de expressáo”37. Em urna carta a Milena, Kafka Ihe
numerosas leituras e teatro com a participa- çâo da relata seu terror de infáncia, a de um bloco de
companhia de Jean-Luc Borg {Le théâtre par le bas) e lembranpas ligadas que o perseguiu durante toda a
de Philippe Adrien, cujo encontró é decisivo: Adrien faz descripáo da chegada ao castelo: é a chegada á escola,
urna representaçâo dos Sonkos, de Kafka, muito garoto, passando diante dos balcoes ensanguentados do
inspirada na leitura deleuzo-guattariana. Aliás, um apougueiro, que transformava a escola em objeto de
pouco mais tarde, em 1~ de março de 1988, Guattari terror, Em outro lugar, em suas reflexoes sobre A Meta-
convidará Philippe Adrien para intervir em seu morfose, Guattari comenta o caráter inacabado das obras
seminàrio sobre o tema “A improvisaçâo”, que inspirou de Kafka: “É como se Kafka es- tivesse sempre
ampiamente sua representaçâo teatral de Sonhos. querendo iniciar um retomo a urna ítaca edipiana, mas
É o dramaturgo Enzo Cormann que escre- ve os nunca consegue... O edipismo de Kafka nao resiste á sua
diálogos da peça encenada por Philippe Adrien no máquina Uterária. Ele nao chega a sobrecodiñcar suas
Théâtre de la Tempête em 1984, resultado de varios
meses de improvisaçâo de 14 atores dirigidos por 2de R. T.: Na resposta à pergunta homofònica Tu es là quand?
Adrien. Cormann co- nhece Gattari nessa ocasiâo. que pode ser ouvida como Tu es Lacan?, Guattari responde com urna
Philippe Adrien, entâo diretor do Théâtre des Quartiers expressào ambigua: Qa se saurait. O vocábiüo francés ga pode aqui,
de Ivry, coorde n a um estágio sobre o tratamento cênico além do pronome demo¡latrati vo neutro (isto, isso, aquilo), fazer
dos sonhos de Kafka. Ele convida Cormann a se engajar referencia à segunda tópica da nogào freudiana id que, sob o ponto de
vista dinàmico do aparelho psíquico, é considerado como o primeiro
da aventura na qualidade de escritor: “Durante os seis reservatório da energia psíquica pulsional e libidini. A resposta poderia
meses de elabo- raçâo, Félix vai regularmente ao teatro ficar, entáo, com sentidos duplos; "0 id [ga] saberia isso [a respeito]
nos ver trabalhar”33. Ao mesmo tempo, François Pain, disso", ou, “ Isso [gd¡ se: saberia”. O vocábulo “se” poderia, aínda, ser
amigo de Guattari, prépara um filme bascado em reflexivo em rei a gao ao ga. Assim, O ga $e saberia/saber-se-ia, o
que,: sem dúvida, ampliaría ainda mais o deciframento da res- posta de
Guattari na medida em que ele poderia também querer referir-se ás
1iSF. de T.: A pergunta “Tu es là quand?" (Voce vai là quando?) teorías lacanianas a respeito do con- ceito de “identidade" na fungió do
produz o mesmo som que “Tu es Lacan?” (Vocè é Lacan?), eu (sujeito).
produpoes. Salvo, talvez, em A Metamorfose... Urna 18. Gilles DELEUZE, “L’avenir de la linguistique”, prefácio a
carga esquizofrénica faz explodir o com- promisso Henri GOBARD, IlAliênaüon linguistique (analyse
edipiano. O pai encontra coragem de jogar a mapa em tétraglossique), Flammarion, Paris, 1976; reproduzido em
Gregorio; ele o reedipianiza pela violencia.38 Símbolo
192 François Dosse Gilles DELEUZE, RF, 61-65.
talvez da queda da mapa, do pecado original” . 19. Gilles DELEUZE, “L’avenir de la linguistique", op. cit., RF,
p. 61.
20. Ibid., p. 61.
Notas 21. Ibid., p. 61.
1. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTARI, Kafka. Pour une 22. Háím-Vidal SEPHIHA, “Introduction à l’étude de
littérature mineare, Minuit, París, 1975 (do- ravante citado l’intensif”, Langages, n. 18, Larousse, maio-junho 1970, p.
K). 104-120.
23. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 41.
2. Ibid., p. 7. 24. Franz KAFKA, Journal, 13 de dezembro de 1910, Grasset,
3. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, Minuit, Paris, 1913, p. 17.
París, 1977; ver capítulo “1977, ano de todos os combates”. 25. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 40.
4. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 7. 26. Ibid., p. 24.
5. Ibid.p. 145-157. 27. Ibid., p. 25.
6. IbicL, p. 14. 28. Ibid., p. 68.
7. Ibid., p. 19. 29. Félix Guattari, “Les rêves de Kafka”, arquivos IMEC;
8. GillesDELEUZEXC. reproduzido em Le Magazine littéraire, Kafka, le rebelle,
9. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 29. dezembro de 2002.
10. Ibid., p. 29, referencia à carta de Kafka a Brod, junho de 30. Jack Lang, carta a Félix Guattari, 30 de agosto de 1982,
1921, Correspondance, p. 394. arquivos IMEC.
11. Ibid., p. 48, 31. Félix Guattari, notas, Cahiers Kafka, arquivos IMEC.
12. Ibid., p, 30. 32. Jean-Jacques LEBEL, Poésie directe, Opus international
13. Ibid,, p. 30. éditions, 1994, p. 49.
14. Anne SAUVAGNARGUES, Deíeuze et l'art, op. cit., p. 33. Enzo CORMANN, "Comme sans y penser”, Chimères, n.
140. 23, Félix Guattari, vol. 2, veräo de 1994.
15. Georges CANGUILHEM, Le Normal et le Pathologique, 34. A peça será montada mais tarde na Italia, em Bolonha, por
PUF, Paris, 1966. um amigo de Guattari, o pintor Gìanmarco Montesano.
16. Guillaume Sibertin-Blanc, “‘Pour une littérature mineure’: 35. Félix GUATTARI, "Kafka”, programa de Jean Daive,
un cas d’analyse pour une théorie des normes chez Deleuze”, France Culture (1983), 24 de agosto de 2003, arquivos INA.
12 de março de 2003, UMR 8163, universidade de Lille 3, 36. Ibid.
grupo de estudo coordenado por Pierre Macherey, Savoirs, 37. Félix Guattari, “Notes sur les Intensités et la fonction ‘Blocs
textes, langage, “La philosophie au sens large”, texto on- d’enfance dans le premier chapitre du Château", notas
line. manuscritas, arquivos IMEC.
17. Ver capítulo ‘À máquina contra a estrutura”. 38. Félix Guattari, “Notes sur la Métamorphose', notas
manuscritas, arquivos IMEC.
Casamento dos pais de Félix Guattari,
Jeanne e Louis, 1919 (acervo Emmanuelle
Guattari),

Os très ¡rmâos Guattari, da


esquerda para a direita:
Jean, Paul e Félix sobre a
cade ira, 1932 (acervo
Emmanuelle Guattari).
Gilles e Georges Deleuze. Gilles està à esquerda, 1935. (acervo Fanny Deleuze).
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Félix Guattari (criança) com seus pais diante da fábrica Mon-Bana, 1935 (acervo Emma-
Os très irmâos, da esquerda para aXfeVvJ
diretta: Félix, Paul, Jean (acervo
Emmanuelle Guattari).

Os très irmâos, da esquerda para a dî-


reità: Jean, Paul, Félix, 1953 (acervo
Emmanuelle Guattari).
O jornalista Wilfred Burchett (primeiro jornalista a ter entrado em Hiroshima) com seus
fiihos na clínica de La Borde ao lado de Félix Guattari (à esquerda), 1965 (acervo Bruno
Guattari).
Félix Guattari em La Borde (acervo Bruno e Emmanueiie Guattari),

Clinica de La Borde hoje (foto pessoal).


Gilíes Deíeuze com seu filho Julien, com 1 ano, no terraço do Mas Révéry, 1961 (acervo Fanny
Deleuze).

Gilles e Fanny Deleuze na residencia de


Félix Guattari em Dhuizon, na proprie-:
dade de Vaugoin, em Sologne, próximo;
da clínica de La Borde, julho de 1969
(fotografia tirada por Félix Guattari,
acervo Emmanuelle Guattari).
Gilles Deleuze. Viagem à Grècia: férias na iîha de Skyros, 1970 (fotografia tirada por Karl Flinker,
acervo Emmanuelle Guattari).

Gilles Deleuze, sua mulher, Fanny, e seus dois filhos (Julien e Emilie) em férias na Grècia, 1970
(acervo Emmanuelle Guattari).

Nicole Guattari, a primeìra esposa de Féiix Guattari, em 1967 (acervo Bruno Guattari).

Arlette Donati, anos 1970 (acervo Bruno Guattari),


O casai Félix Guattari e Nicole Guattari com sua fil ha Emmanuelle (acervo Emmanuelle Guattari).
Félix Guattari com sua esposa Nicole em ferias á beira-mar (acervo Emmanueüe Guattari).
Gilles Deleuze e Félix Guattari diante da televisâo, na Rue Condé, com o ftlho de Félix, Bruno
Guattari, 1969 (acervo Emmanuelle Guattari).

Gilles Deleuze jogando xadrez na casa de Félix Guattari, Ao seu lado, Stephen Guattari, 1970
(fotografia tirada por Félix Guattari, acervo Emmanuelle Guattari).
Gilles Deleuze ao teteione, na Rue de Condé, na casa de Félix Guattari (acervo
Emmanuelle Guattari).

Ràdio Tomate.
Ao centro: Félix Guattari. Àesquerda: Franco Pipemo, 1981 (acervo Emmanuelle
Guattari).
FéÜx Guattari em seu escritorio em
Dhuizon no Loir-et-Cher, 1982 (acervo
Emmanuelle Guattari).

Gilles Deleuze em feveretro de 1986


(fotografia tirada por Gérard Uferas,
já publicada em Le Magazine
Littéraire, setembro de 1988, p. 30).
Félix Gilles Deleuze, 1986
Guattari (fotografia: Hélène
Bamberger/Gam-
(acervo Félix
ma/EyecSea).
Guattari/Arq
uivos IMEC).
Cilles Deleuze e Félix Guattari, 1980 (fotografia: Marc
Cantier/Camma/Eyedea)
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Mil Platôs: urna geofilosofia do político

Após a fase polémica de 0 Anti- um processo: “É verdaderamente


Édipo, Deleuze e Guattari publicam urna interpretaçao dinamica,
em 1980 urna obra cuja riqueza e processionai, nem 1 personológica,
originaìidade aínda nâo foram nem estruturalista” ,0 delirio està
totalmente exploradas: Mil Platôs. presente corno apreendido
Essa segunda vertente de imediatamente em um campo de
Capitalismo e Esquizofrenia ë, investimento sócio-histórico que. em
depois da fase critica de 0 Anti- Mil Platos, é objeto de urna
Édipo, a parte preposicional, cartografìa das micropolíticas que
positiva. Nesse livro, que permitem restituir os modos de
desenvoìve urna filosofìa das lógicas articulaçâo entre os processos de
espaciáis, Deleuze e Guattari subjetivaçâo e os apareìhos
rompem radicalmente com o institucionais, fazendo emergir a
historicismo do século XIX que produtividade potencial dos grupos-
produziu urna teodiceia, urna sujeitos.
cronosofìa teleologica dominante 0 proprio título da obra indica
durante boa parte do século XX urna abordagem geográfica, o plato,
Substituem a hegelianizaçâo do como zona plana, horizonte
tempo por urna abordagem indefinido, sem limites, zona inter-
espacializante das forças múltiplas mediària, central, zona de
que ali se manifestam. intensidade. Deleuze gostava de
Urna grande unidade liga os dois dízer - talvez como urna piada - que
volumes. O Anti-Édipo pretendía esse título correspondía ás paisagens
mostrar que, contrariamente à de suas térras em Limousine, o plato
maneira como o estruturalismo a de Millevaches, que ele apreciava
concebe, a psicose nâo decorre de das janelas de sua proprieda- de de
urna distribuiçâo estru- tural, mas de Saint-Léonard-de-Noblat Sobretudo,
essa ausencia de comego e de firn do preciso em geografìa, em mecánica,
plato faz eco ao conselho sempre em cenografia: plató de erosáo e de
repetido por Deleuze, segundo o qual sedimenta- gao, plató da mudanga de
é preciso comegar “pelo meió’. veìocidade e de desa- celeragáo,
Depoís de terem rompido as plano 5de2 distribuigáo e de
rigideces da instituí gao familiar com rodagem ' .
O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari Contudo, Mil Platós nao tem
tomam os caminhos nao tragados, as como referencia direta a disciplina
linhas de fuga, os percursos nómades geográfica, mas tem como horizonte
para explorar tudo o que possa urna verdadeira física “no sentido da
revelar diferengas e conexóes inédi- (meta)física bergsoniana, ou melhor,
tas, Portanto, o título nao tem nada de geografìa da phys¿s”'\. O
de metáfora, mas anuncia urna tratamento da informagáo em
metamoríose: “Plató tem um sentido
214 François Dosse

termos de lógicas espaciáis tem como efeito um os leitores apaixonados pela leitura de O Anti-
modo inteiramente original de uso do tempo. Cada Édipo precisaram de oito anos de paciencia para
plató tem urna data precisa, indicada em epígrafe, conhecer a continuagáo. Contudo, apesar dessa
que remete a um acontecimento que dá nome ao expectativa, o sucesso nao foi o que se previa. O
capítulo. £ urna maneira de relem- brar a livro foi considerado difícil de- mais,
importancia do acontecimento para sua filosofía, desconcertante. Enquanto O Antí-Édipo, por seu
mas segundo urna lógica que 4nao tem mais nada de alvo designado, se tornara de insediato um best-
cronológico nem de evolutivo . seller, Mil Platós é publicado em um clima de
MiiPlatós, assim como O Anti-Édipo, é urna indiferenga8. Denso demais e na contracorrente
travessia no coragao das ciéncias humanas, que faz nesse ano de 1980, em pleno periodo de triunfo dos
funcionar a pleno regime as contribui- góes de um “novos filósofos” e de conceitos “firmes como
procedimiento transversal. Essa travessia é, no dentes ocos”, a sofística elaborada por Deleuze e
entanto, a expressáo de urna filosofía. Á pergunta Guattari nao podia • tornar-se um acontecimento
de Catherine Clément sobre o género a que nesse momento.
pertence esse novo livro, Deleuze responde sem A acolhida do livro é mais discreta. Por trás dos
ambiguidade: “Filosofía, nada mais que filosofía, elogios, irrompe urna certa confusáo. Na revista
no sentido tradicional da pa- lavrá’f O livro Critique, é Arnaud Villani, especialis-i ta no
prossegue o projeto de urna nova metafísica, de pensamento deleuziano, quem escreve, : mas cinco
urna cronología da diferenga, e, ao mesmo tempo, anos após a publicagao da obra. Ele saúda um livro
o corpas que lhe serve de suporte é constituido “essencial no ^planamento5 de um espago9por
pelo trabalho de lingüistas, antropólogos, textos e pensamentos sem pre~ : cedente” . No Le
psicanalistas, etnólogos.,. Seus autores se propóem Matin, Catherine Clément se diz “desconcertada”,
como objetivo criar con- ceitos operatorios - urna mas esclarece: “Estar des-:f concertada é
“mecanosfera" - que possam mudar nossa relagao justamente o que era preciso”50,; Insistindo sobre a
com o mundo. nogáo essencial de nomadismo que percorre toda a
A construqáo dessa “mecanosfera” procede de obra, eia saúda urna irrupgáo de múltiplas figuras
um método enunciado no texto inicial, Rizoma, da anormalidade, desde os fora-da-lei e o
desenvolvido ao longo de toda a obra. Trata-se de imperativo de pensar de outro modo. No Le
um procedimento resolutamente construtivista e Monde, Christian Delacam- pagne qualifica os dois
pragmático que parte da deli- mitagao de um plano volumes de Capitalismo e Esquizofrenia de “suma
de consistencia ou plato, prossegue inscrevendo filosófica sem igual na ; produgao
nesse plano duas series de pontos, para em seguida contemporánea”11, ao mesmo tempo : em que
por em conexáo assimétrica alguns desses pontos adverte os eventuais leitores das difi- culdades que
de séries diferentes. Essa linha rompida deve váo encontrar em face dessa nova publicagao que
funcionar em outro plano ou plato conexo, onde abarca a historia mundial;12“O ; leitor sai atónito,
sofre a atragao de urna nova linha de fuga; essa embasbacado e perplexo” . f
rede de agoes/reagoes é indefinida no rizoma, cujas Libération, ao contràrio, dá a máxima im-
conexoes nao tém finalidade predeterminada. A portancia a Mil Platós, fazendo urna entrevista com
afirmagáo da produtividade dessa diagonal do Guattari antes da publicagao,13 na qual i ele enfatiza
pensamento, dessa transversalídade em ato tem a dimensáo política da obra . No momento em que
como efeito um livro fervilhante, de urna rara o livro é langado, o jornal organiza urna longa
densidade: “É o livro que eu levaría para urna ílha entrevista com Deleuze em que ele explica que “o
deserta, porque é um livro nao inumano, nem título Mil Platós remete a essas14 individuagoes que
sobre-humano, mas quase a-humano. É urna nao sao pessoais nem coisas” . À observagáo de
máquina múltipla de devi- res múltiplos’^, - Robert Maggiori se-
As teses desenvolvidas em Mil Platos pro-
duzem um efeito de sideragao. Muito aguardadas,
Gilles Deleuze & Félix Guattari 215

gundo a qual Mil Platos se apresentaria para- desequilibrio na medida em que é afeto a um
doxalmente com urna organizaçao acrônica, campo de desejo no qual se constituí. Nesse
heteróciita à maneira de um antissistema, de um sentido, o agenciamento é o equivalente ao papel
patchwork, ao mesmo tempo em que traz urna que desempenhava em O Anti-Édipo a nogao de
visáo do mundo, outro sistema Filosófico, Deleuze máquina desejante. Consiste também em urna
responde que é fácil constatar a falencia maneira de exprimir que o desejo é urna ques- táo
generalizada da maior parte dos sistemas de saber, apenas de encontros, de cortes de fluxo.
mas sobretudo porque permanecerá fechados em si Os agenciamentos nao decorrem, portanto, de
mesmos, confinados em seus limites: “O que binaridades clássicas, como as que opóem
Guattari e eu chamamos de1 rizoma é justamente individuo e coletivo, ou significante e significado,
um caso de sistema afaerto” ”. ou ainda signo e sentido. Deleuze e Guattari
Se existe um conceito nodal de Mil Platos que defendem dois grandes eixos de agenciamento, que
constituí sistema, é o do agenciamento. À pergunta se subdividem cada um em suas variantes: um eixo
de Catherine Clément sobre a unidade dessa obra original comportando o segmento do conteúdo e o
particularmente heteróciita, Deleuze responde: da expressáo. Segundo esse nivel, ele é
“Seria taívez a noçâo de agenciamento (que agenciamento maquínico do corpo, de agòes e de
substituí as máquinas desejantes)”16 Esse conceito, paìxòes e agenciamento coletivo de enunciagáo, de
de fato, irriga todos os platos e, por sua capacidade atos e de enunciados. Outro eixo, vertical,
de conectar os elementos mais diversos, abre para comporta aspectos territoríalizados e pontos de
urna lógica geral que Guattari qualifica desfcerritorializagào. Isso está longe das análises
frequentemente de “diagramática” nesses anos. O marxianas aíthusserianas, ainda dominantes na
conceito de agenciamento tem a vantagem, em época, que atribuem ao económico um valor de
relaçao à noçâo abandonada de “máquina infraestrutura determinante em última instáncia.
desejante”, de sair do campo da psi- canálise para Aquí, tudo se conecta entre series heterogéneas
pôr em relaçâo todas as formas de conexoes, sem jogo de causalidade mecánica, sem
incluidas as do ámbito do nao humano, e liberar determinismo, segundo as diversas linhas de fuga
suas forças. Basta colocar juntos elementos do sistema macropolítico.
singulares e heterogéneos para se dispor de um Outros tipos de agenciamentos, desta vez
agenciamento particular. Pode ser a vespa e a territoriais, defmem a fungao do ritornelo1. Assim,
orquídea, mas também o cávalo, o homem e o os cantos de pássaros marcam seu territòrio. Essa
estribo, ou ainda o cavalo-ho- mem-arco... Todas mesma fungao territorializante é encontrada na
as combinaçoes sâo possíveis entre máquinas Grècia antiga ou nos sistemas hìndus, e "o ritornelo
técnicas, animais e humanos. Sâo sempre processos pode ter outras fungóes, amorosa, profissional ou
de subjetivaçâo, de indivi- duaçâo que estáo no social, litúrgica17 ou cósmica: ele sempre carrega a
horizonte. Um tal objetivo pressupóe nao somente terra consigo” . As rítmicas que pontuam a vida
desvíos, mas também reconectar o homem com a dos animáis assim como a dos humanos é urna
natureza, com a physis. Na verdade, nao há mais maneira de enfrentar o caos e suas ameagas de
distinçao pertinente, no nivel das ligaçôes de esgotamento. Des- se agendamento entre um meio
agenciamento, entre natureza e artificio. que responde ao caos nasce um “ritmo-caos ou
Assim, Deleuze e Guattari váo dar a maior caosmos'13. Na linguagem comum, um ritornelo é
importância à etología para restituir a maneira urna pequeña música que se repe te, um refrao, um
como os animais constroem seus agenciamen- tos estribi- Iho, urna forma de eterno retorno que,
com a natureza e entre eles. Esse conceito, de uso simultaneamente, fabrica tempo, o “tempo
muito ampio, sem limites, é ideal para construir um implicado’ de que falava o linguista Gustave
sistema aberto. Designa a relaçâo que se estabelece Guillaume. Ele traz, sobretudo, urna dinámica
entre um conjunto de relagoes materiais e um
regime de signos correspondente. Longe de se 1 N. de R.T.: No vot 4, p. 115-170, da obra de Gilíes Deluze e
Félix Guattari, Mil Platos - Capitalismo e Esquizofrenia. Sao
perpetuar, o agenciamento se pòe novamente em Paulo, Ed. 34. 1907 [trad. de Sueiy Poiníck], encontramos um
movimento: ele é sempre afetado por urna dose de desenvolví mentó detalhado da no gao de ritornelo.
contraditória em sua relagáo com a territorialidade. Ele Nossos autores nao pretendem absolutamente
tende a um retorno ao territorio conhecido para habi- defender urna forma de determinismo geográfico que
tá~lo e216assim conjurar o caos. É o famoso Canto da considerava como inevirável o nascimento da filosofia
Terra, de Mahler, com seu final: a coexistencia de dois
François Dosse
no mundo grego. Simplesmente ligam o encontró de duis
motivos, um melódico evocando os agenciamentos do i'en tímenos heterogéneos um com o outro: o do meio
pássaro, o outro rítmico, profunda respirando da terra, grego e o do plano da imanéncia do pensamento. Para
eternamente”0.0 ritornelo é também o sinai de urna que o agenciamento tornasse forma, foi necessàrio o
partida para urna desterri torializagáo, urna expatriagáo, encontró entre essas duas formas de desterritorializaçâo.
urna viagem, efetuando esse vai-e-vem entre o partir e o Hegel e Heidegger, na visáo de Deleuze e Guattari,
voltar, dando a tonalidade desse entre-dois, do permaneceram historicistas em sua Tihuado nascimento
entrelagamento entre dois territorios. Sua pròpria da filosofìa na Grecia. Os ¡nitores de Mil Platôs situam a
circularidade evoca o fato de que nao há comego nem geografía do lado do contingente, multo longe das
firn, mas somente variagóes infinitas: “O ritornelo vai orientaci!es da escola geográfica vidaliana e dos usos
em di re gao20ao agenciamen- to territorial, instala-se ali e que o historiador Braudel faz da geografía, caie, pani ele,
vai emborá’ tem mais a funçao de fazer prevalecer as permanências,
Embora seja difícil distinguir o que é de Deleuze e o as estruturas, a longuíssima duraçao. Para Deleuze e
que é de Guattari, o conceíto de ritornelo vem mais de Guattari, ao o mi nino. ■ a geografía “nâo é somente
Guattari que é músico e sempre tocou piano. Aliás,1 em física e humana, mas mental, como a paisagem. Eia a
1979, ele dedicou um texto pessoal ao ritornelo" . De minea a história do culto da necessidade para ressaltar a
saída, ele enfatiza a conjuraqáo do tempo que passa, da irredutibilidade da contingencia. Eia a arranca do culto
angustia de morte, do risco do caos, do medo de perder o das origens para afirmar a pot encía de um meio”' 27.0
controle que exprimem os ritornelos, essas rítmicas ensinamento que tira ni dai é que, se a filosofía nasceu na
produtoras de um tempo habitado, territorializado: Grècia, isso nao é exatamente a resultante de urna
“Todo individuo, todo grupo, toda nagáo se equipa necessidade, mas de urna pura contingencia.
assim de urna gama de base de ritornelos A relagáo com o territòrio dà um fundamento
conjuratórios”22. Esse modo de semiotizagao do tempo nacionalista às diversas correntes de pensamento, às
que esses estribilhos praticam é percebido também pelo “opìnioes” filosóficas. Deleuze e Guattari citam
etnólogo Pierre Clastres, que evoca o canto solitario de esses arquetipos segundo os quais os franceses
um indio diante da noite, langando um desafio ao tempo tendem a se reterritorializar consciencia, no cogito,
na

que passa e ao processo de “sujeigao do homem à rede enquanto os aiemáes nao renunciam ao Absoluto
geral de signos”23. Nossas sociedades modernas se para reconquistar o plano de imanencia grego
comptexificaram e per- deram essa relagáo de desterritorializan- do a consciencia: “Na trindade
imediaticidade com a expressáo de suas angústias. Sao Fundar-Con- truir-Habitar, sao os franceses que
inclusive portadoras de urpa ilusáo de dominio em razao constroem e os aiemáes que fundam, mas os ingleses
de seus sólidos equipamientos maquínicos. é que habitara'"8. A experimentaqáo é antes de Ludo
Con tudo, a nogáo de territorio pode ser engañosa, filosófica e define o que é pensar. Eia resulta dessa
como todas as nogoes de Deleuze e Guattari: “O tensáo entre territorializaqáo e desterri- torializagáo.
territòrio é na verdade um ato, que afeta os meios e os Assim como o conhecido trem do western, “a
ritmos, que os ‘territorialìza'”2^ Esse conceíto está filosofia se reterritorializa tres vezes, urna vez no
ligado fundamentalmente a urna pragmática, e passado nos gregos, urna vez no presente do Estado
portanto nao é passivo, mas expressivo. Nesse sentido democrático, urna vez no futuro no novo povo e na
existe urna relagáo endógena entre territòrio e ritmo: nova terra .
“O ritornelo é o ritmo e a melodía territorializados, Para sair da axiomática crista do tempo es-
porque tomados expressivos - e 2atornados expressivos catològico, Deleuze e Guattari investem contra a
porque t e r rito r i ali z an t e s” . A esse processo de rostidade* em um plato, o sétimo, que tem corno
territorializaçâo é preciso opor, segundo os autores, data de referencia o ano zero, o do nascimento de
outro polo, o de urna des territorializaçâo do ritornelo, Cristo. O objetivo dessa critica é duplo: saìr do
um soltar no cosmos, para “abrir o agenciamento a europeucentrismo, da dominaqào do homem branco
urna força cósmica’26. Em todo agenciamento, a linha moderno sobre o resto da humanidade como
molar entra em interpe- netraçâo com a linha de fuga encarnaqao do progresso e do universal e, ao mesmo
do sistema graças à linha de desterritorializaçâo tempo, confrontar-se com as teses fenomeno lógicas.
molecular.
Como jà visto, Deleuze sempre adotou urna via* hora de escrever"32. Para os nossos autores, o rosto
alternativa ao programa fenomenològico. Nos anos pertence aGfíies
urnaDeleuze
máquina deGuattari
& Félix signos217particular, já
de 1970, um de seus representantes, estigmatizada no quinto plato, que trata dos régimes de
V Emmanuel Lévinas, vè no rosto a injungào do Outro, o signos. Essa máquina tem o defeito de se circunscrever à
proprio fundamento da ética, a pròpria mera redundância e de garantir o triunfo do Significante
;; exposiqào da humanidade do homem: “O rosto do mestre. Nâo somente toda a historia do cristianismo
próximo me significa urna responsabilidade irrecusável, encarna o corpo místico em um rosto, o de Cristo, como
precedendo qualquer consentimento Iivre, qualquer também o poder despótico encama o corpo do poder em
pacto, qualquer contrato”30. f-..: Ao contràrio, para seu chefe. Em sua preocupaçâo constante de reavivar a
Deleuze e Guattari, o rosto chama da desterritorializaçâo, Deleuze e Guattari
V está estreitamente ligado à singularìdade do ; : momento investem contra o propósito de rostifi- caçâo, que é um
espaciotemporal em que eie emerge ; : e por isso perde meio de subjugar ao significante e de impor a lei da
qualquer pretensao ao univer- :Y sal. Ademáis, transcendéncia.
prosseguindo a construgào de ; sua metafisica, Deleuze e Guattari já havia consagrado um capítulo inteiro de
Guattari entendem a seu livro de 1979, 0 Inconsciente Ma- quínico, a esse
conceito: 33“Rostidade significante, rostidade
diagramáticá’ .0 principal alvo é en- tao o capitalismo e
ft
N, de T.: No originai visagéité, de visage (rosto). urna mieropolítica de fecha- mento: 34“O paradigma
noçâo de rostidade em todas as formas de ex- pressâo último da rostidade é um e assim’” . Ele investe
natural e animai. Com a preocupaçâo de irem mais longe também contra Lacan por ter atribuido ao rosto, com sua
na naturalizaçao do humano e na humanizaçâo da análise da fase do espelho, um papel matricial na
natureza, rompent com qualquer antropomorfismo: ‘A constituiçâo mesma do “Eu”, no momento de sua
ponto de que, se o homem tem um destino, será entrada na ordem simbólica. Portanfco, a rostidade é
sobretudo escapar ao rosto, desfazer o rosto e as inse- parável das estrategias de poder: ela funciona como
rostificaçôes,81 tornar-se imperceptíve.1, torna-se um “sinalizador de normalidade”33. A rostidade serve
clandestino” . Recorda-se de Foucault dizendo que para inscrever um modo de domi- naçâo fundado no
escrevia para nao ter mais rosto: “Como eu, há outros, primado da subjetividade e na ideia de sua autonomía.
sem dúvida, que escrevem para nao ter mais rosto. Nâo Nos très planos, se- miótico, político e artístico, a
me perguntem quem eu sou e nâo me digam para rostificaçâo é um modo de dominaçao: “O rosto é urna
permanecer o mesmo: é urna moral de estado civil, ela política”36.
rege nossos documentos. Que ela nos deixe livres na
Se o rosto exprime um impulso de territorio" tomadas como objetivos enquanto linhas mortíferas.
lizapào, esta última comporta também linhas de Evidentemente, podem-se invocar civilizaqóes primiti-
resistencia, linhas de fuga, É sobre essas linhas de fuga vas que, ao contràrio dos europeus, nao opoem o rosto à
que se pode elaborar outra politica. Para fazer isso, é cabepa como continuidade do resto do corpo. Elas nao
preciso remontar à máquina abstraía produtora de tém necessidade do rosto, o que nao as impede de ter as
rostidade. “Os rostos concretos07 nascem de urna cabepas mais humanas. Contudo, Deleuze e Guattari
máquina abstraía de rostida- de’ , constituida de um nao pregam um "retorno a...'1, as semióticas pré-
pequeño sistema binàrio que opoe o muro branco do significantes: “Nunca conseguiremos ser o negro ou o
significado ao buraco negro da subjetividade: “0 sistema indio, ou mesmo o chinés”40. A regressáo ao passado é
buraco negro-muro branco já nao seria entao um rosto, um caminho barrado, estéril e um engodo. É preciso, ao
seria a máquina abstraía que o produz”38. Deleuze e contràrio, partir do que é, do rosto sobrecodi- ficado do
Guattari, conscientes em 1980 dos riscos que período capitalista para identificar me- lhor suas linhas
comportam certos mal-entendidos, como puderam de fuga potenciáis. A semiótica que está por vir, por ser
constatar com as interpretares de OAnti-Édipo, alertam criada, é a “das cabepas pesquisadoras onde os4 !pontos
também contra os pe- rigos próprios ao fato de querer se de de sterri tori ali- zapáo se tornem operatorios" .
desíazer do rosto: “Desfazer o rosto nao é urna coisa
simples. Corre-se o risco da loucura: será que é por Lógicas espaciáis
acaso que o esquizofrénico perde ao mesmo tempo o
sentido do rosto, de seu proprio rosto e do rosto dos Outra poiarizapáo utilizada no esmiu- pamento das
outros, o sentido da paisagem, o sentido da linguagem e lógic'ás espaciáis é aquela, es- sencial, entre espapos
de suas sìgnifìcapoes dominantes?”39. É preciso evitar lisos e estriados, entre espapos nómades e sedentários.
que as linhas de des- truipáo nao sejam elas próprias De natureza diferente, esses espapos so existem pelas
rela- poes recíprocas entre si: de um lado, um espapo Essa tensáo define duas modalidades micropolíticas, e
nao polarizado, fundamentalmente aberto, nao ao mesmo tempo duas estéticas, o háptico, pròprio ao
mensurável, povoado de singularidades, e de outro, um espapo liso, espapo de contato, de tocar, de ime-
espapo 218
sobrecodificado,
François Dosse
métrico, hierarquizado; de um diaticidade, e a arte ótica, propria ao espapo estriado,
lado, o modelo do bordado com seu motivo central remetendo a urna visáo do longínquo, da perspectiva:
(espapo estriado), e de outro, o do patchwork {espapo “Cézanne falava da necessidade de nào mais ver o
liso) com acréscimos sucessivos de tecido sem limites campo de trigo, de náo fícar próximo demais43dele, de se
predeterminados. O exemplo escolhido para designar o perder, sem referéncia, num espapo liso" , hm Mil
espapo liso, o patchwork, revela que esse espapo nao Platos, desenvolve-se sobretudo a vertente micropolítica
significa homogeneidade. a partir des- sa tensáo entre polo estriado e polo liso
De resto, essa oposipao nao se limita ao mundo com a dupla polaridade que opòe a máquina de guerra,
terrestre, pois o espapo marítimo também é atravessado de um lado, e o aparelho de captura encarnado pelo
por tal binaridade: “Espapo liso por exceléncia e, no Estado, de outro (platos 12 e 13).
entanto, aquele que se vè mais cedo confrontado com as Nossos autores náo param de utilizar opo- sipoes
exigencias de um esfcriamento cada vez mais estrilo”42. binárias, mas, como já dissemos, nao para apregoar um
Nao há, portanto, urna oposipao simples entre o liso, de pensamento dualista, e sim, ao contràrio, para rompèdo
um lado, e o estriado, de outro. Náo há, portanto, e substituido por um pensamento da multiplicidade
sobredeterminapào do lugar para qualificar o espapo, de percorrido por binaridades pluralizadas. Embora o senso
forma que se pode viajar sem se mexer, no lugar - comuni tenha o hábito de pensar que a máqui
Deleuze qualifica a si pròprio como “viajante imóvei”.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 219

na de guerra é um subproduto do apareìho de A esse respeito, Deleuze e Guattari veem na


Estado, nossos autores enfatizam a diferença causa palestina o exemplo dramático e atual de
radical de natureza, entre esses dois polos. Nâo um possível espago-tempo que seria encarnado
somente a máquina de guerra nao provém do pela Organizagáo pela Líbertagáo da Palestina
apareìho de Estado como toda sua dinámica se (OLP). Essa sensibilidade aos “povos sem terra”,
opôe à lógica estatal. Criaçâo de nómades, as desterritorializados, está na origem do
máquinas de guerra foram inventadas para resistir, engajamento de Deleuze e Guattari ao lado da
para lutar contra o apare] ho de Estado concebido causa palestina. Guattari foi amigo próximo do
como um aparelho de captura. As máquinas de escritor judeu israelense Han Halévi, represen-
guerra tomaram corpo em um tipo de espaço tante da OLP na Internacional Socialista. Ao
particular, o espaço liso (os desertos, as estepes, chegar a París, em 1975, lian Halévi entra em
os mares). contato com Guattari, por saber de seu enga-
Deleuze e Guattari falam dessa oposiçâo em jamento contra a guerra da Argelia, e o convence
um capítulo que se apresenta como a escrita de facilmente a apoiar a causa dos palestinos: “Nem
um “Tratado de nomadologia: a máquina de terceiro-mundista, nem eurocentrista. Curioso de
guerra”. Esse título aceña, de maneira ao mesmo tudo e de todos, mas desprovido de voyeurismo...
tempo séria e irónica, a um outro tratado, o de Félix era desse tipo de intemacionalista, e era essa
Espinosa14, que adquire aqui4 o estatuto de “fonte disposigáo primeira que informava sua atitude a
para urna nova disciplina” '"’. A máquina de respeito da48 Palestina e seu engajamento na causa
guerra nao se define, contra toda expectativa, pela palestina” Guattari coloca entáo a sede do
guerra. Eia se caracteriza de très maneiras. CERFI à disposigáo para o primeiro encontró
Primeiro, há a composiçâo aritmética dos homens secreto de personalidades israelenses e palestinas
que a compòem a contrario da organizaçao que se realiza em fevereiro de 1976. Dois anos
territorial do aparelho de Estado. Segundo, “o mais tarde, é convidado a ir aos territorios
aparelho de Estado in~46 ventou um tipo de ocupados para se encontrar com militantes
atividade: o traballio” . Evidentemente, na palestinos e israelenses ligados à OLP. Entre 1977
máquina de guerra também se trabalha, mas a e 1978, Han Halévi organiza um seminàrio em
atividade regrada é urna açâo livre. Finalmente, Vincennes sobre o confisco de térras árabes em
no plano da expressáo, o aparelho de Estado se Israel, que Guattari acompanha com paixao e
manifesta pelas ferra- mentas e pelos signos, assiduidade. Por ocasiáo de um desses debates, o
enquanto a máquina de guerra se define antes por intelectual palestino Elias Sanbar, que conhecia
suas armas. Halévi e um pouco Guattari, está presente na sala.
A questao fundamental do Estado é saber Sua fala nao estava prevista, mas, no fogo das
como se apropriar da máquina de guerra, como controversias, acaba fazendo urna longa
capturá-la e subjugá-la, enquanto a máquina de intervengáo improvisada sobre as técnicas de
guerra tenta resistir as lógicas estatais e preservar guerra dos maquis palestinos nos anos de 1930:
seu dinamismo pròprio, A máquina de guerra “Félix estava na sala e me perguntou como estava
exprime toda a ambivalencia da linha de fuga que pensando em retornar a Paris. Disse que de metrò,
consiste em fazer fugir, em explorar todas as e ele propós me acompanhar de carro. Alguns dias
linhas de dester- ritorializaçâo. Pela exterioridade mais tarde, o telefone tocou e o interlocutor me
significada da máquina de guerra em relaçâo ao disse: ‘Olà, sou Félix Guattari, será que posso
Estado resulta o fato de que o Estado nao se visitá-lo? Gostaria de discutir com o se- nhor.
concebe sem urna relaçâo com um de fora do qual Entáo ele foi à minha casa"49.
se nutre, enquanto a máquina de guerra vive um Nesse ano de .1978, Deleuze e Guattari pré-
agenciamento social cujo modelo matricial47 é o parant Mil Platôs e estâo em plena reflexâo sobre
nomadismo, dai o “Tratado de nomadologia” . as máquinas de guerra, os aparelhos de captura.
O caso de um povo sem Guattari havia convencido Deleuze da
terra: o povo palestino
necessidade de travar relaçôes com San- bar,
depois de ter ouvido seu discurso em Vin- cennes
220 François Dosse
sobre as técnicas de guerra nómades. Desse inmediatamente o proje- to. No dia seguinte, ás
encontró entre Sanbar e Deleuze nasceu urna 7hl5, recebo um telefonema: ‘É Jéróme Lindon, li
intensa amizade até os últimos dias: “Ele se atinha seu texto, as coisas estáo andando’” 56. Foi assim
sempre ao essenciaí, Nao havia desperdicio. Ele que nasceu a Revue : d’Études Palestiniennes, em
se atinha sempre ao núcleo das coisas. Era alguém outubro de 1981.
que levantava as questoes antes que vocé Pouco após o seu nascimento, urna jornalis- ta
levantasse. Era incrível”oü. do Libération, Blandíne Jeanson, manifesta a Elias
Após esse primeiro encontró, Deleuze in- Sanbar seu desejo de que o jornal repercuta essa
tervém pela primeira vez no plano público sobre o nova publicagáo e Ihe pergunta se Deleuze nao
conflito1 israelense-palestino ñas colunas do poderia escrever um texto. Elias Sanbare Deleuze
Monde' . Essa tomada de postçâo se segue a urna decidem publicar urna ionga entrevista,; que
vasta operagao do exército israelense no sul do intitulam 7 em comum acordo “Os indios da
Líbano, que fez varias centenas de vítimas nos Palestina" : “Era formidável, fantástico para a
campos palestinos e na populaçâo libanesa e revista. E essa ideia dos peles-vermelhas emanava
provocou o éxodo de dezenas de militares de de nossas conversas"8. Nessa entrevista, ; Sanbar
íibaneses para Beirute. Deleuze toma partido dos traga um paralelo entre a situagáo dos palestinos e
palestinos: “Os palestinos, gente sem terra nem2 a dos indios da América: “Nisso ele está certo de
Estado, sao incómodos para todo mundo”” , que a historia do estabelecimento de Israel é urna
Nesse artigo, Deleuze denuncia o fato de nao se repetigáo do processo59 que deu origem aos Estados
propor nada além da morte como perspectiva para Unidos da América” .
os palestinos e apela à comunidade internacional Alguns anos depois, enquanto o conflito : se
para que eles sejam reconhecidos como eterniza nos combates cada vez mais dramáticos
interlocutores legítimos “pois [vivem] em um da guerra do Líbano de 1982, Deleuze escreve um
estado de guerra pelo qual certamen te nao sao texto em que celebra a 60causa palestina saudando
responsáveis”53. seu líder Yasser Arafat : “A causa : palestina é
Guattari, por sua vez, ajuda Han Halévi a or- antes de tudo o conjunto de injusti- 61gas que esse
ganizar um coloquio, em 1979, sobre sionismo, povo sofreu e continua sofrendo” . Arafat só
antissemitismo e racismo. A publicaçâo de Mil podía falar de “vergonha” em face dos massacres
Platos constituí para ele, em 1980, um recurso de Sabra e Chatila; Deleuze, por sua vez, critica a
importante: “Esse livro incomparável em que, transformagao do maior genocidio da historia
pela primeira vez depois de multo tempo ñas le- perpetrado pelos nazistas em, um Mal absoluto
tras francesas, filósofos assumem seu papel, que considerado em urna versáo religiosa
consiste em tomar o mundo inteligíve!, a sérió’G desistoricizada. Ele expressa com um grande
Em 1980, Elias Sanbar tem como projeto criar radicalismo sua rejeigáo à política israelense:
urna revista de reflexâo sobre a questáo palestina. “Israel jamais escondeu seu objetivo, desde o
Ele amplia os contatos, expoe seu projeto já bem inicio: esvaziar o territòrio palestino... E um
definido, mas sempre encentra as portas fechadas: genocidio, mas onde o exterminio físico per-
“Ligo para Deleuze e Ihe per- gunto como sair manece subordinado à evacuagao geográfica .
dessa. Ele responde: ‘Nao sel, mas vou pedir a Segundo Deleuze, para resistir à defcerminagáo
Jérôme Lindon que o receba”"5. Elias Sanbar israelense e à cumplicidade internacional, que
vafiëntâo à editora Minuit. Lindon comega por encobrìu pudicamente sua politica, foi preciso
Ihe expor as dificuldades da edi- gáo francesa e encontrar “um grande personagem histórico que se
acrescenta que a Palestina nao é realmente a diria, de um ponto de vista ocidental, quase saido
especialidade da editora: “Depois ele me pergunta de Shakespeare, e eie foi Arafat"w
o que espero fazer nessa revista, e eu Ihe falo Essa tomada de posigào de Deleuze é, com
durante uns quinze minutos de meu projeto. Logo certeza, um grande consolo para o intelectual
que concluo, Lindon me diz: A editora Minuit vai militante da causa palestina que é Elias Sanbar,
acolhè-lo. Faga-me só urna página, que seria mais encarregado na Delegando Palestina da difícil
ou menos o editorial de sua revista’. Envio-lhe questào dos refugiados palestinos no momento
Gilles Deleuze & Félix Guattari 221

das grandes negociagoes de paz organizadas em tende submeter a instituiçâo ao tratamento clinico
Camp David por Clinton, em 1991: “Durante as ao mesmo tempo em que cuida dos doen- tes. Há
negociagoes, eu ligava para Deleuze e lhe dizia: ainda a ideìa de evitar o enfraquecimento de todas
'Voce sabe, isso é muito violento para mim, pois as tentativas de transformaçâo social em
tive de negociar com pessoas que fìzeram mal aos revoluçôes traídas, confiscadas. Multiplicar
meus. Isso nào fica evidente, e eu lhe digo que máquinas de guerra aparece, entao, como um
encontrei um antidoto durante as negociagòes. À meio de criar contrapesos efcazes para evitar essas
noite, antes de dormir, para me redimir perante armadilhas. Trata-se de fazè-las proliferar, de
mim mesmo, todas as noites lelo alguns multiplicá-las ao infinito para que as institui- çôes
parágrafos da Ética,64 de Espinosa, e Gilles me diz: oficiáis, molares, percam sua razâo de ser em
‘Eu compreendó” . Aléna de suas discussòes proveito de microrredes moleculares,
sobre a poesia, as conversas deles giravam em O etnólogo Pierre Clastres reforça as teses de
torno do deslocamento no espago, do fora-do- Deleuze e Guattari68. Ele mostra, de fato, ao
lugar e do fora-do-tempo produzi- dos pelo contràrio do esquema evolucionista, que o Estado
desenraizamento, e que conduz os palestinos a nao se revela como a resultante do desen-
urna espécìe de invisibilidade, a urna forma de volvimiento das forças produtivas, nem como
dissolugào no espago e na duragào. resultado da diferenciaçâo das forças políticas.
A obra de Deleuze e Guattari é um recurso Surge de um golpe, por efraçao, como um
essencial para Sanbar: “Sao textos que acom- acontecí mento puro, quando se atinge o límite
panham minha vìdai,6'\ Quando publica em 2004 mínimo de agrupamento de urna comunidade de
Figures da Palestinien, ele o dedica “a Gilles 300 individuos. Ele mostra também, e prin-
Deleuze em homenagem e indefectivel ami- cipalmente, que essas sociedades primitivas, nao
zade”66: “Esse livro foi o tema de nossa ùltima sao apenas “sem Estado”, mas que sua máquina
discussào. A última vez que faleí com ele foi a de guerra é empregada para lutar “contra o
propósito desse livro, e nào pudemos ir67 até o firn, Estado”. Sao “sociedades contra o Estado”.
pois eie teve urna crise de s ufo cagno” . Embora exista urna onipresença da guerra, sao as
máquinas de guerra que controlam todas as
formas de violéncia se confrontando com o Es-
Urna pragmàtica politica em escala tado, tentando manter a segmentaridade dos
mundial grupos, enquanto o Estado necessita sempre
pacificar para se instalar. A figura do nòmade nào
A nogáo de máquina de guerra é particular- remete apenas ao nomadismo clàssico, mas se
mente aproprìada para pensar a questào palestina, apresenta corno um personagem con- ceitual que
na medida em que esse povo nào tem nem permite restituir a singularidade da máquina de
territorio, nem Estado. Para além da causa pales- guerra. É um espago de mobi- lizaçâo, e nào de
tina, tal nogao tem como fungao se indagar sobre apropriagao, Ocupa-se sem se instalar nele.
os meios de conjurar a formagào de um aparelho Desenvolve-se ali sem capitalizar.
de Estado portador de burocracia e de servidào. A exterioridade da máquina de guerra as- sìm
Eia està também no centro da reflexao sobre a concebida e atestada pelos trabalhos de etnólogos
vida de grupos cujo modo de existencia efêmero pode ser observada também no campo da
conduz a se questionarem permanentemente, à epistemologia, com a existencia de um certo tipo
maneìra corno a psicoterapia institucional pre- de ciéncias que se perpetuaram em
222 François Dosse

um modo menor, lateralmente e exteriormente O desafio é político. Está em jogo a preserva-


em relaçâo à física. Essa ciencia nómade teria çâo de micropolíticas plurais e resistentes para
várias características: um modelo hidráulico que nâo desapareçam na axiomática estatal73.
criador de fluxo, e nao sólido; um modelo de de- Nesse final dos anos de 1970, Deleuze e Guattari
vir e de heterogeneidade, e nao de estabilidade; referem-se explícitamente ao movimento 73 da
um modelo turbulento em um espaço aberto e, autonomia italiana, a Franco Berardi (“Bifo”) , a
finalmente, um modelo problemático, e nao te- Toni Negri e às análises do marxista italiano
oremático. A partir dessa binaridade, opóem-se Mario Tronti sobre o papel do aparelho de Estado
sempre duas tradiçoes científicas: de um lado, as na integraçâo da classe operária à sociedades
ciéncias da repetiçâo, da iteraçâo; de outro, as da capitalista e a necessidade para o proletariado de
itineraçào, das ciéncias ambulantes. A criatividade só desenvolver sua estrategia critica depois de se
estaría na vertente das ciéncias nómades, desprender de sua posiçâo de classe.
ambulantes, que tem como funçâo inventar os Para regular essa tensâo entre os dois pov los,
problemas, enquanto as ciéncias reais teriam o que sâo os aparelhos de captura e as máquinas de
encargo de oferecer soluçôes científicas a eies. guerra e definir urna nova micro- política na
Disso resulta urna complementarida- de potencial, junçâo da esfera ética e do campo político,
mas que acaba por ocultar o primeiro momento, o Deleuze e Guattari enfatizam urna noçâo cara ao
da inovaçâo, logo encoberto pela eficácia do primeiro: o contrato social É graças ao contrato
procedimento, da soluçâo encontrada pela ciéncia que o aparelho de captura avança, submetido em
de Estado: ‘Ao contrario, existe apenas a ciéncia urna ambivaléncia que nâo pode ser atribuida a
real para dispor de urna poténcia métrica que urna simples dependencia voluntária ou forçada.
define o aparelho dos coríceitos ou a autonomía Toda essa ar- ticulaçâo do si em urna escala cada
da ciéncia”69. vez mais : planetària, a do mapa-mùndi, torna
As máquinas de guerra têm também a funçâo imperativo repensar urna micropoìitica que possa
de fazer circular o sentido, de transgredir os levar em consideraçao as lógicas espaciáis, urna
limites, de saír dos cercados graças às linhas de geofilosofia capaz de localizar e de pensar a
fuga em urna deriva literal. As máquinas de infìnidade de pontos constitutivos de diversas;
guerra devem permanecer ativas, pois sao con- forças de vida do rizoma mundial. Dai a neces-
frontadas com o Estado, definido por nossos sidade de cartografar esses elementos e nao se:
autores como um aparelho de captura. Ao invés de contentar em calcá-los em um estado de fato,:
retomar a noçâo marxista e althusseriana de modo mas de experimentar, de se confrontar com 0: reai
de produçao, Deleuze e Guattari definem as social multiplicando as vias de acesso.
formaçôes sociais como “processos maquí- É nesse esforço de cartografìa que Guattari:
nicos”70. Distinguem a propósito disso as socie- prossegue depois de 1980, em seu proprio se-
dades primitivas cujos mecanismos de funcio- minàrio, dando lugar a um livro, Cartografías
namento sáo os da conjuraçao-antecipaçâo, as Esquizoanalíticas, publicado em 198974. A or-
sociedades com Estado definidas por seus ins- ganizadora das sessòes desse seminàrio é Danielle
trumentos de polarizaçâo, as sociedades nómades Sivadon, que cuida ao mesmo tempo da
por suas máquinas de guerra. Enquanto o Estado programaçâo, dos convites e da decîffaçâo das
se empenha em capitalizar, em se apro- priar, a proposiçôes sustentadas: “Durante o primeiro
máquina de 71guerra tem urna “poténcia de período de 1980 a 1985, era essencialmen- te
metamorfose” . Essa noçâo de captura, pró- pria Félix que falava de suas cartografías, e de- pois,
das sociedades com Estado, encontra sua origem no segundo período (1985-1992), na Rue S anti-
longínqua na mitología indo-europeia, e designa o Sauveur, funcionava-se mais com base em
polo da soberanía. Essa propensao à captura e à intervençôes de convidados”7“. Para urna centena
sobrecodificaçâo do aparelho de Estado coloeá o de convidados previstos, cerca de 20 pessoas
problema das minorías, que devem ser capazes de participaram regular e ativamente.
constituir máquinas dé guerra para evitar seu Quando da primeira sessao de seu seminàrio,
desaparecimento. em 9 de dezembro de 1980, Guattari dà o tom:
Gilles Deleuze & Félix Guattari 223

“Para mim, ele só terá sentido [esse seminàrio] se Atém de seus temas predlletos sobre a psica-
funcionar. Quer dizer, para ser bem preciso, se os nàlisi Guattari abre seu seminario a outras dis-
diferentes avanços históricos que proporci 76aqui ciplinas. Em 1983, ele faz intervir urna etnóloga,
servirem efetivamente para as pessoas” . 0 Barbara Glowczewski, que realizou um trabalho
conceito-chave do seminàrio - o de agenciamento sobre os sonhos dos aborígines da Austrálía. Eia
- vem de Mil Platôs, que acaba de ser lançado. mostra que o sonho nao traduz tanto urna pro- je
Trata-se em primeiro lugar do agenciamento gao individual quanto urna el ab o rag áo mítica
coletivo de enunciaçâo para aclarar algumas hip ó coletiva e que liga nao menos que 500 etnías di-
tes es, mas esse conceíto serve também para ferentes em torno de um dream comum a todas:
definir o que Guattari entende por esquizoanálise: "O sonho é o presente e há multo tempo. Para
“É o estudo de incidéncias de agenciamentos mim, esse tempo, que é ao mesmo tempo o pre-
maquínicos em urna problemática dada’77. Ele se sente e há muito tempo, nao é um tempo histórico,
engaja ali em um construti- vismo coletivo para mas um tempo de metamorfose.8 É um tempo
testar seus conceitos e mostrar por que os dinámico, mas de transformagáo” ’.
operadores sao indispensáveis em sua pràtica. Ao O filósofo Éric Alliez, assím como a velha
longo desses anos, ele mobili- za as competencias guarda labordiana, Jean-Cìaude Polack e Danielle
mais diversas, realizando na pràtica a Sivadon, intervem varias vezes no seminàrio de
transversalidade que tanto invocava. De inicio, Guattari. Intervengóes no terreno da criagáo
Guattari sugere pluralizar a noçao de cultural favorecem urna reflexáo sobre a
inconsciente. Quando de sua apresentaçâo, ele já espontaneidade, em tomo da temática da ím-
lança a hipótese, que, como explica, poderla ser provisagáo no campo do teatro eom Philippe
urna fantasia, de distinguir um inconsciente Adrien82, no campo do jazz com Yves S3Buin, sobre
relativo de um inconsciente absoluto, este último a improvisagáo em Thelonious Monk , ou aínda
remetendo a urna consciencia sem objeto. Na sobre a improvisagáo na ópera com o an- tigo
segunda sessào, ele aprofunda essa hipótese companheiro do CEREI, Michel Rostain84.
apresentando quatro inconscientes diferentes: Guattari convida também seu amigo Enzo Cor-
subjetivo, material, territorial ou corporal e ma- mann sobre o tema do “Esquizoteatro”. O tema
quínico, que “seria o dos campos possibilistas, o comum a todos é identificar o trago de proces- sos
das micropolíücas moleculares”78 de subjetivagao onde quer que ele se revele.
A orientaçâû pragmatista desse seminàrio é Na busca dos modos de subjetivagao, Guattari
altamente afirmada, às vezes contra a tradiçâo os articula aos territòrios, aos ambientes, segundo
psicanalitica: “A dimensâo do ato foi (é o caso de linhas lógicas que qualifica de “diagra- máticas”.
dizer!) excluida pela psicanálise: basta falar de A questao que ele se coloca em Cartografías
passagem ao ato para, de algum modo, con- : Esqaizoanalíticas, em continuidade com as teses
siderar que se está fora do campo da análise. de Mil Platos, é: “Como se85 pode falar hoje de
Jápara a esquizoanálise, essa dimensâo do79 ato, produgao de subjetividade?” . Esta, às voltas com
justamente, se torna inteiramente central” . Por a tensáo entre o assujeìtamento e o grapo-sujeito,
outro lado, urna atençâo fma à contingencia e à é tributària de agenciamentos maquínicos. Ora,
singularidade das situaçôes conduz a reabilitar o cada vez mais melos técnicos científicos
conteúdo, o significado, que até en- táo parecía interferem no homem, e esse estado de coisas
fadado a desaparecer sob as lógicas significantes. concretiza na pràtica a anáiise do so- dus em
A pròpria experiência corporal de Guattari, seus termos de agenciamentos maquinicos: “Nenhum
sonhos, suas angústias sao válidos nesse àmbito de opiniao, de pensamento, de imagem, de
seminario onde tudo é bom para pensar, Ele evoca afetos, de narratividade pode pretender hoje
ali, por exemplo, sua primeira cólica renal (ele escapar ao controle invasivo da assisténcia por
terá multas e bastante graves) como a expressáo computador86 dos bancos de dados, da
corporal de um buraco negro ameagador que o telemática” . No momento do que ele qualifica de
remete à sua angustia80 do tempo passando e da advento do “Capitalismo Mundial Integrado”
fmitude da existencia (CMI), Guattari pesquisa sobre os processos de
224 François Dosse

individuaçâo, sobre as forças alternativas de guattariano de momento de emissao de


subjetivaçâo. Longe de qualquer olhar nostálgico singularidades, ligando-o à nogáo america- na de
acerca das origens perdidas, Guattari se volta aos mudanga de comportamento {pattern). Em suas
devires inéditos e as es- peranças de inovaçâo, de análises de geofìlosofìa, a nogáo de :
criaçâo e de articula- çôes novas entre o homem e reterritorializagáo no proprio poder da des-
a máquina. territorializagáo funciona muito bem nessas zonas
A filósofa Manola Antonioli tem razao de de instabilidade á margem do Mississi- pi,
destacar a pertinência e a atualidade dessas noçoes fragilìzadas pela oc orrènda regular de ciclones. O
de pensamento espacializante de Deleuze e importante é considerar as zonas de sensibilidade
Guattari no momento da mundializa- çâo: “O que maximízam a possibilidade de
pensamento deverà cada vez mais se abrir aos comportamientos de adaptagáo. Deleuze e
espaços, às di mens oes, aos territorios, Guattari permitem elaborar uma especie de
reconhecer sua dimensâo essencial de espaça- fisiología política, utilizando dados científicos,
mento e nâdmais se limitar a uma meditaçâo sobre mas em uma perspectiva nao mecaniclsta, A
sua hístória e a historia dos conceitos”87, Em um geografía é utilizada aqui como um recurso nao
período marcado pelo firn das certezas, é preciso determinista, nao atribuido a causalidades'
habitar de outra maneira nossos espaços lisos e simples, pois, com as cartografías virtuais dos
estriados, e abandonar o imaginá- rio das sistemas sociais, resta sempre um papel írredu-
possíveis identidades fechadas -- individuáis, tível do acaso e da “emissáo de singularidades”.
orgánicas, naturais ou estatais -, para compreender John Protevi e seu colega geógrafo utilízam tanto
melhor que estáo sempre abertas a um de fora, só fatores geomorfológicos, climatológicos e
tem uma realidade fragmentar e um devir imprevi oceanógraficos quanto fatores sociotécnicos para
sível: “A abertura da ‘mun- dialidade’ só será estudar os agenciamentos sociopolíticos.
possível em um mundo em arquipélago, mundo de Mil Platos apresenta-se, por tanto, como uma
múltiplas interfaces, que multiplica as trocas, as pragmática política generalizada em que os
passagens e os en- contros”88, Nessa perspectiva conceitos transversais constituem o elemento de
criadora, Mil Platos é uma caixa de ferramentas, base do qual depende todo o resto. A
de valor ressal- tado por Manola Antonioli, aínda micropolítica a construir deve definir as linhas
muito pouco explorada, essencialmente ética e de fuga que correm sob as segmentaridades
política89. duras para desestratiñcá-las. Contudo, “o modelo
Um filósofo americano da universidade do de micropolítica continua sendo o dos
Estado da Louisiana, John Protevi, trabalhou com acontecimentos de Maio de 68”92. Mil Platos
um geógrafo, Mark Bontà, a partir dos conceitos privilegia, em detrimento da teleologia histórica,
de Mil Platos, e publìcou um livro90 sobre a blocos de devir ancorados enquanto fenómenos
geofìlosofìa de Deleuze e Guattari . 0 que moleculares em seu ambiente especial, como faz
apaixona sobretudo John Protevi é fazer a ponte o acontecimento Maio de 68: “Maio de 68 na
entre as humanidades e a cultura científica que Franga era molecular, e suas condi- goes tanto
geraìmente se ignoram. Para ele, o capítulo mais mais perceptíveis do ponto de vista
sugestivo é “A geologia da moral’’, pois macropolítico... Todos aqueles que julgavam o
“expressa o desejo de forjar uma ontologia que, acontecimento em termos de macropolítica nao
com o mesmo conceíto, pode91 tratar de sis- : temas entenderam nada,98 porque alguma cousa de
físicos, orgánicos e sociais“ . Ele escreve sobre o inatribuível fugiá’ .
furaeáo Katrina utilizando o concetto á deleuzo-
Gilles Deleuze & Félix Guattari 225

Notas 24. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 386.


L Gilles Deleuze, aula de 27 de maio de 1980, 25. Ibid., p. 389.
universidade de Paris-VIH, arquivos sonoros, BNF. 26. Ibid., p. 433.
2. Arnaud VILLANI, “Géographie physique de Mille 27. Ibid., p. 92.
Plateaux > Critique, 455, abril de 1985, p. 333, 28. Ibid., p. 101.
3. Ibid., p. 345. 29. Ibid., p. 106.
4. A 20 de novembro de 1923 sucede-se 587 a.C„ 30. Emmanuel LEVINAS, Autrement qu'être ou au-delà
depois 28 de novembro de 1947, o ano zero, de l’Essence, Nijhoff, Llaia, 1974, p. 141.
1874,1933..., esses pontos altos têm como efei- to
inverter o tempo, desorientado, abandonar qualquer 31. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 209.
axiomática para que Ckronos dê lugar a Aïon. 32. Michel FOUCAULT, L’Archéologie du savoir,
5. Gilles Deleuze, “Une tentative d’agencement entre Gallimard, Paris, 1969, p. 28.
les savoirs et la pratique quotidienne", entrevista 33. Félix GUATTARI, IncM, p. 75-108.
coni Catherine Clément, Le Matin, 30 de setembro 34. Ibid, p. 77.
de 1980. 35. Ibid., p. 78.
6. Isabelle Stenghers, entrevista com Virginie Li- 36. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 222.
nhart. 37. Ibid, p. 207.
7. Foram vendidos 63 mil exemplares de O An- ti- 38. Ibid.
Êdipo entre seu lançamento em 1972 e o inicio de 39. Ibid., p. 230.
2007. 40. Ibid., p. 231.
8. Quando muito, foram vendidos 30.500 exemplares
de Mil Platôs entre o lançamento em 1980 e 2007. 41. Ibid., p. 233.
9. Arnaud VILLANI, “Géographie physique de Mille 42. Ibid., p. 598.
Plateaux', art, cit., p. 331, 43. Ibid., p. 615.
10. Catherine CLÉMENT, “L’expression nomade de la 44. SPINOZA, Œuvres III, Traité théologico-poli- tique,
modernité”, Le Matin, 30 de setembro de col. “Épiméthée”, PUF, 1998.
1980. 45. Guillaume Sibertin-Blanc, seminario “Deleuze,
11. Christian DELACAMPAGNE, "Deleuze et Guattari Spinoza e as ciências sociais: leituras de Mil Platôs
dans leur machine délirante”, Le Monde, 10 de de Deleuze e Guattari", CBRPHL ENS, sessâo de 13
outubro de 1980. de maio de 2006.
12. Ibid. 46. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII, 6
13. “Petites et grandes machines à inventer la vie”, de de novembro de 1979, arquivos sono- ros, BNF.
Félix Guattari, entrevista com Robert Maggiori, 47. Ver Guillaume SIBERTIN-BLANC, “État et
Libération, 28-29 de junho de 1980. généalogie de la guerre: l’hypothèse de la 'machine
14. Gilles Deleuze, “Entretien sur Mille Plateaux", com de guerre de Gilles Deleuze e Félix Guattari”,
Christian Descamps, Didier Érîbon, Robert Asterion, n. 3, setembro de 2005.
Maggiori, Libération, 23 de outubro de 1980; 48. Ilan HALÉVI, “Un internationaliste singulier”,
reproduzida em PP, p. 40. Chimères, n. 23, verâo de 1994, p. 120.
15. Ibid. 49. Elias Sanbar, entrevista com o autor.
16. Gilles Deleuze, "Une tentative d’agencement entre 50. Ibid.
les savoirs et les pratiques quotidiennes", entrevista 51. Gilles DELEUZE, “Les gêneurs”, Le Monde, 7 de
com Catherine Clément, Le Matin, 30 de setembro abril de 1978,
de 1980. 52. Ibid.-, reproducido em RF, p. 147.
17. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MF, p. 384, 53. îbid., p. 149.
18. Ibid., p. 385. 54. lian HALEVI, “Un internationaliste singulier”, art.
19. Ibid., p. 418. cit., p. 123.
20. Ibid., p. 396. 55. Ibid.
21. Félix GUATTARI, “Le temps des ritournelles”, 56. Ibid.
IncM.p. 109-153, 57. Gilles DELEUZE, “Les Indiens de Palestine”,
22. Ibid., p. 109. entrevista com Elias Sanbar, Libération, 8-9 de maio
23. Pierre CL ASTRES, La Société contre l’État, Mi- de 1982; reproducida em RF, p. 179-184.
nuit, Paris, 1974, p. 107 e seguint.es. 58. Elias Sanbar, entrevista com o autor.
59. Elias SANBAR, “Les Indiens de Palestine”, art. cit., p. 181. 90. Mark BONTÀ, John PROTEVI, Geophilosophyr A Guide
60. Gilles DELEUZE, “Grandeur de Yasser Arafat" (escrito em and Glossary, Edinburgh University Press, 2004.
setembro de 1983), Revue d’études palestiniennes, n, 10, 91. John Protevi, entrevista com o autor.
inverno
226 de 1984; reproducido
François Dosse em RF, p, 221-225. 92. Philippe MENGUE, Gilles Deleuze ou le système du
61. Ibid,, p. 221. multiple, Kimé, Paris, 1994, p. 227.
62. Ibid., p.222. *ü F“ 93. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP,
I p. 264.
63. Ibid., p. 223. I
64. Elias Sanbar, entrevista com o Depois de sua criapao, em 1967, o
autor, CERFI e sua rede de pesquisadores
65. Ibid; permanecem um pouco apáticos, Embora
66. Elias SANBAR, Figures du O CERF1 em suas obras os membros do CER- Fí sejam como
Palestinien. Identité des peixe na água da contestapao radical, a
origines, identité de devenirs, Gallimard, Paris, 2004. verdadeira “decolagem” da atividade só ocorre em 1970.
67. Elias Sanbar, entrevista com o autor. Á primeira vista, a ocasiao parece fortuita. Com dois
68. Pierre CL ASTRES, La Société contre l'État, op. cit. pequeños contratos assinados para urna pesquisa sobre o
69. Ibid., p, 463. projeto de implantapáo de urna televisáo educativa na
70. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 542. Costa do Marfim e outra na rede da FNAC, Anne
71. Ibid, Quemen, entao secretária geral do CER- FI, passa na
22. “Nâo hâ luta que nâo se faça através de todas essas escada, quando vai apanhar a correspondencia, por urna
proposiçôes insolúveis, e que nâo cons- trua conexôes mulher, funcionária do ministério do Equipamento, com
revolucionàrias contras as conjugales da axiomática (ibid., o primeiro número especial de Recherches debaixo do
p. 591). brapo’: “Ela me interpela e diz que seu chefe, Michel
73, Ver capítulo 'A revoluçâo cultural à prova’. Conan, que está encarregado de implantar a missáo de
74. Félix GUATTARI, Cartographies schizoanaly- tiques, pesquisa no ministério do Equipamento, gostaria de nos
Galilée, Paris, 1989 (doravante citado CZ). ver”2. Essa proposta desperta o entusiasmo no pequeño
75. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. grupo, que comepava a se colocar seriamente o
76. Félix Guattari, apresentaçâo do seminàrio, 9 de dezembro problema de sua sobrevivéncia.
de 1980, arquivos IMEC. Como é que um punhado de agitadores es-
77. Ibid. querdistas, de promotores da esquizoanálise, poderia
78. Félix Guattari, seminàrio de 13 de janeiro de 1981, arquivos ínteressar aos mais altos responsáveis do Estado? Para
IMEC.
79. Félix Guattari, seminàrio de 28 de abri! de 1981, arquivos responder a tal pergunta, é preciso levar em conta a
IMEC. personalidade original de Michel Conan e seu interesse
80. “Um dia, houve urna cena que cristalizou tudo: eu estava no pelas questoes intelectuais. Michel Conan, urbanista,
trem que tornava toda quinta-feira e ia no vagâo-restaurante; estará na base de urna volta do interesse peía historia
o gar- çom se aproxima e me diz; 'Senhor, vou aper- tar sua dos jardins e da arquitetura da paisagem na Franpa. No
mao porque é a última vez, estou me aposentando.’ Meu ministério, Michel Conan díspóe entáo de um
Deus! É apavorantef (Félix Guattari, seminàrio de 8 de ornamento consi- derável, da ordem de 4 a 5 milhoes de
dezembro de 1981, arquivos IMEC.) francos anuais. Ele mobiliza as competencias de pes-
81. Barbara Glowczewski, “Espaces de rêves", seminario de quisadores em sociología, da sociología das
Félix Guattari, 18 de janeiro de 1983, arquivos IMEC. organizapoes de equipes de Michel Crozier aos
82. Philippe Adrien, seminàrio de Félix Guattari, Ia março de marxistas especialistas em sociología urbana, como
1988, arquivos IMEC.
Yves Buin, seminàrio de Félix Guattari, 15 de novembro de Christian
83. Topalov. Dois anos após a explosáo de Maio
1988, arquivos IMEC. de 68, jacques Chaban-Del- rrtas é primeiro-ministro. O
84. Michel Rostain, seminàrio de Félix Guattari, 10 de janeiro poder procura compreender as razoes da contestapao.
de 1989, arquivos IMEC. Está disposto a empregar os meios fmanceiros ne-
85. Félix GUATTARI, CZ, p. 9. cessários e a utilizar as competencias dos pesquisadores
86. Ibid. em ciencias sociais para escrutar em profundidade as
87. Manola ANTONIOLI, Gêophilosophie de Deleuze et disíunpoes das institui- póes, identificar as aspirapoes
Guattari, L’Flannattan, Paris, 2003, p. 9-10. nao satisfeitas e oferecer solupoes as situapoes de
88. Ibid., p. 256. bloqueio. O objetivo é evitar urna nova deflagrapáo,
89. Manola ANTONIOLI, “La machination politique de segundo o adágio de que é melhor prevenir do que
Deleuze et Guattari”, em Alain BEAU- LIEU (sob a dir.), remediar.
Giles Deleuze, héritage philosophique, op, cit., p. 73-95.
Urna delegapáo do CEREI comandada por Guattari
vai ao ministério para um encontró com Michel Conan.
A delegapáo pretende dizer que o CERFI, em suas
pesquisas, critica o Estado e sua avaliapáo errada das
transformapoes
necessárias da sociecíade. Enquanto grupo independente e autogerido, o
Contado, é esse mes- rao CERFI tenta trabaihar de maneira diferente, sobretudo
Estado que nesse día Ihes pondo em prática seus principios de esquizoanállse. Ñas
228 François Dosse
propoe contratos e dinheiro reunióes, discutem-se as pesquisas em curso, mas tam-
para ajudar a identificar as bém a implicapao subjetiva de cada um, de sua libido,
zonas em que ele poderla de seus desejos. Todos os meses, a ques- táo dos
intervir para atender melhor salários é reexaminada, e o que é um problema menor
as necessidades e ádecisao se torna urna questao importante quando as grandes
pública. O CERF1, sem dúvida, somas do contrato sobre os equipamentos coletivos
eslava preparado para essa entram nos caixas do CEf¿p.
posipáo crítica no interior A “grande missa” do Centro ocorre na terpa-feira:
da própria instituiqáo com a Guattari está em París nesse día e assim pode coordenar
experiencia labordiana, e era a reunido. Nela se de- cidem os projetos de pesquisas e
isso o que inte- ressava as somas atribuidas a eles. Â “máfia” composta pelo
particularmente a Michel pe-, queno grupo de permanentes atribui-se um saíário
Conan. Entretanto, dada a reajustado a cada dois meses (a taxa de inflapao na
proximidade imediata de Maio época é de duas cifras). Esse núcleo de pesquisadores
de 68, o grupo podia temer convive regularmente ñas instalapoes do CERFI. A
sua absorpáo pura e simples pequeña comunidade : ■ de trabalho, que colocou a
ñas lógicas estatais, ao libido no posto de comando, é perpassada por todo tipo
passo que o en- gajamento no de psico- dramas, de crises de lágrimas, de altercaçôes.
CERFI tinha como urna de suas O maná caído do céu do Estado atrai muita gente, e as
razoes essenciais recusar a reunióes de terça-feira se tornam ; grandes
vi a da funcionariza- páo oportunidades para expor e propor a todos projetos
para preservar sua frequentemente rocamboles- eos: "Todos os esquerdistas
independencia, de Paris baixam : ali com projetos cada um mais
Bis entao que o sonho de urna pesquisa co- letiva esdrúxulo que o outro. Félix os apoia cegamente.
remunerada de súbito se torna realidade. A imaginapáo Compra-se urna câmera para um, urna moto para o
pode assim se apoderar do poder, O primeiro contrato outro,. e diminuimos o movimento ao preço de vários
assinado refere~se á organizando da cidade nova de confiitos”’1; ‘A gente dava dinheiro para qual- quer um
Évry em 1971 e ao projeto de implantapao de um que nos procurasse dizendo: ‘Preciso de 5 mil francos
hospital psiquiátrico, Por outro lado, o CERFI vacila em para um aborto amanhá.
responder a urna licitapáo de um grande programa de - Voce nos de volve quando4 puder, aqiti está’, e eles
pesquisa sobre a demanda social de equipa- mentos nao voltavam nunca mais” . Um día, conta Michel
coletivos. É um contrato enorme tanto pelo numero de Rostain, professor de filosofía, um bando de
setores em questao quanto pelos valores envolvidos - 1 toxicómanos propoe ao CERFI fazer urna pesquisa
milhao de francos. O CERFI se beneficia de um sobre a droga. Eles conseguem obter um contrato sobre
prestigio internacional que compensa amplamente sua o tema utilizando o aparelho logístico do Centro e
pequeña base institucional, grapas ao apoio de Guattari, pegam o dinheiro: “Eles se drogaram como loucos. Os
mas também de Deleuze e de Foucault. tiras inclusive víeram procurá-los na nossa sede onde
estavam alojados”3.
Em 1973, o CERFI está no auge: graças à sua fonte
Um grupo de pesquisa autogerido de riqueza e à repercussâo de OAn- ti-Édipo, o grupo
mantém 75 pessoas com um salário-base de 1,500
francos por mes. Além dos pesquisadores contratados,
o CERFI garante o financiamento de alguns grupos
internos cuja atividade apoia, mesmo sabendo que.,
nao será lucrativa. É o caso do grupo “Vídeo, de
François Pain, mas também do grupo “Costura”,
coordenado pela estilista Agnes B„ que começou no

1 N. de T.: UNEF - Union Nationale des Étudiantes de France; BAPU -


Bureau d'aide psychologique universitaire.
CERFI antes de fazer fortuna, ou ainda do grupo
“Canto”, de Michel Rostain. A
Giítes Deleuze & Félix Guattari 230

partir de 1972, o CERFI conta com a coopera- uma demanda em pieno crescimento. Guattari
çâo de François Fourquet, cujo envolvimento é solicita a ajuda de Anne Querrien e François
tanto mais importante na medida em que ele Pain, aos quais se junta Danielle Rouleau, que
acaba de deixar a clínica de La Borde onde cui- têm em comum nâo serem nem médicos nem
dava da administraçâo. psicólogos: “Àssim, recebemos pessoas no qua-
O CERFI deixou a Avenue de Verzy. O ende- dro do CERFI que nos contaram coisas que te-
reço oficial da revista é a Rue Buffon, no 52 Dis- nant contado a um psicanalista, e nos fizemos a
trito, em um lugar bem pequeño nos fundos de rede, a ligaçâo”6. Às vezes, as conexôes reali-
um prèdio, urna espécie de porao que havia zadas acabam tendo efeitos positivos, Elas per-
servido de esconderijo durante a guerra da Ar- mitem a certas pessoas perturbadas com sua
gelia. É lá que Olivier Quérouil, estudante de obsessâo do momento reencontrar uma certa
lingüística, faz sua entrada em 1970, e que se alegría de viver. Contudo, o grupo de responsá-
implanta um “psico-clube”, pilotado por Fran- veis, constituido por muitos nâo especialistas que
çoise Doìto e sob a responsabìlidade de Nicole nunca fizeram qualquer curso de psicologia, é
Guillet. Essa iniciativa visa utilizar a competencia bastante frágil, Danielle Rouleau, em particular,
psicanalitica sem passar pela cura - procedimento vive isso com muita angùstia, a ponto de ter de
que muitos consideram longo e caro demais. Em parar a experiéncia: "O que me impressiono u é
torno de Anne Quemen, Gerald Grass, Olivier que funcionava e poderla ter7 sido urna pràtica.
Quérouil e, de tempos em tempos, jean-Cìaude Mas implicava poder demais” .
Polack e alguns outros, trata-se de suscitar urna O alvoroço no Boulevard Beaumarchais é
transferencia (como na cura analítica) por meio tamanho que, para alguns, a mudança para o
da correspondencia: as pessoas compravam o suburbio, em Fontenay-sous-Bois, no outono de
direito de enviar dez cartas a esse grupo de 1974, é um verdadeiro alivio, A mudança tornou-
“psicanalistas” para se abrir depois de ter-se se inevitável por causa das reclama- çôes dos
beneficiado de urna primeira carta gratuita. vizinhos, que nao queriam mais essa agitaçâo
Olivier Quérouil torna- -se o gestor desse psico- cotidiana. No momento de deixar o Boulevard
clube antes de se ocu- : par mais tarde das Beaumarchais, os membros do CERFI têm em
finanças do CERFI. vista vários projetos. Guattari retorna de uma
No outono de 1971, o grupo se instala no viagem dos Estados Unidos dizendo-se muìto
nùmero 103 do Boulevard Beaumarchais, em um seduzido por urna soluçâo verdaderamente
belo apartamento burgués pertencente ao comunitària. Trata-se mes- mo de um ampio
fabricante de avioes Marcel Dassault, que nâo projeto que consistiría em transformar uma
deve ter gostado muìto de abrigar um tal “bando“ garagem de concreto de cinco andares em habitat
de contestadores. É lá que desfila toda a : Paris coletivo: “Pessoalmente, isso 8me deixava
esquerdista em busca de ajuda ftnanceira para apavorada”, confessa Florence Pétry Um segundo
projetos de toda ordem. O grupo de semi- projeto é sugerido por Claude Harmelle, que tinha
permanentes passa de 7 membros a um grande militado em Dijon, na UNEF, nos BAPU'L e
laboratòrio de 20 pessoas, A partir de 1972, o integrara o CERFÎ em Paris. Considerando que a
sucesso de 0 Anti-Édipo atrai a multidào e alguns época dos apartamentos privados era coisa
recrutas distintos, como Guy Hocquen- ghem. A passada, ele sugere que todos joguem as chaves do
“màfia” de permanentes trabalha com afmco, pois pròprio apartamento em seu chapéu e que cada
nâo basta debater nas reumoes, é preciso também membro do CERFI escolha ao acaso seu lugar de
fazer as pesquisas, redigir os relatónos e obter estadía cotidiana: "Achei isso muito corajoso, pois
novos contratos. ele tinha um belíssimo apartamento”9. Finalmente,
Após a publicaçao de 0 Ànti-Êdipo, Guattari a soluçâo adotada é mais clàssica; consiste em
nâo consegue mais dar conta do número de encontrar urna grande casa com terraço e jar- dim
pessoas que desejavam fazer esquizoanálí- se em Fontenay-sous-Bois. Esse lugar jamais foi
com ele. O Boulevard Beaumarchais com o verdadeiramente investido como experiencia
CERFI servirá de instrumento para responder a comunitària, Ninguém chegou a se instalar ali
efetivamente, a nao ser por algumas noítes, A grande do marxismo; “Nossa firmeza sobre os principios do
transformaçâo afeta, sobretudo, a famosa reuniao de marxismo15 enfraqueceu um pouco ao longo de nossa
terça-feira, pois o descentra- mento espacial reduziu a viagem” . Sob o impulso de Lion Murard e François
participaçâo10 Fourquet, outro recurso torna-se entao essencial para
Gilles Deleuze & Félix Guattari 231

pensar as lógicas do mercado, do capitalismo: o


historiador Fernand ; Braudel, verdadeiro “papa” dos
Esclarecer as decisóes do Estado Annales, que ocupa na época, em 1973, urna posiçâo
0 numero mais importante da revista do CERFI, hege- monica na corporaçâo historiadora.
Recherches, é o que1 l inaugura a série sobre os Pouco depois dessa realizaçâo coletiva, Fourquet
equipamentos coletivos . É multo significativo do lugar escreve um livro pessoal que publica sob o16número 14
reivindicado pelo grupo no dominio das ciencias sociais. da revista, com o título L'Idéal Historique . Ele
Além disso, conta com o apadrinhamento e com a inclusive apresenta o projeto desde a primeira linha
participaçâo excepcional de Deleuze e de Foucault. como a traduçao “de urna crise pessoal e de urna
Possibilità 1er também intervençôes “militantes”, que transformaçâo profunda de minhas relaçôes com a
nada mais sâo que os estados de alma, os desejos pràtica17militante, com a psicanálise e com o saber his-
pessoais e as frustraçôes dos pesqui- sadores do grupo: tórico' . LIdéal Historique é de fato urna crítica em
"Falar do desejo, do inconsciente, etc., ñas ciencias regra à postura militante e, em particular, ; à dos
sociais é específico do CERFÍ”12. Sobre a questáo dos althusserianos maoístas, como Robert Linhart, em nome
equipamentos coletívos, o grupo retoma a distinçâo das teses sartrianas e sobretudo nietzschianas, às quais é
lacaniana entre “demanda” e "desejo”: Afirmávamos preciso acres-\ centar a inspiraçâo histórica que Fourquet
que a demanda de equipamentos era determinada vaf; buscar em Fernand Braudel. Ele deduz desse:
principalmente pela oferta de equipamentos, e a percurso crítico que “só existem a libido e a;
representaçâo social, decorrente delà, e que saber o que . »¡8
as pessoas desejavam era bem mais difícil”13.0 desejo potencia .
cole rivo se pluraliza em urna infìnidade de desejos Fourquet pretende sobretudo se demarcar do meio do
individuáis e, antes de tudo, o dos pesquisadores, aos CERFI e das teses deleuzo-guatta- rianas de 0 Anti-
quais a revista Recherches dà a possi bilidade de urna Édipo em sua defesa de um certo ideal militante. De
expres- sao pública do que geralmente é escondido, fato, eie aponta ali urna concepqào implicita do ideal
recalcado, considerado insignificante e confinado aos militante derivada do ideal moral, que, segundo ele,
bastidores do gabinete do sociólogo19, nada mais é que o prolongamiento do ideal ascético de
A apresentaçâo do número, coassinada por François Nietzsche em urna forma moderna. Ele toma distáncia
Fourquet e Lion Murard, reconhece a paternidade das de tal concepgáo, tanto quanto considera que Deleuze e
teses foucaultianas deleuzia- nas e guattarianas. A Guattari projetam essa moral em sua concepgáo de
equipe do CERFI nao se limitou ao usqpuramente inconsciente: haveria um inconsciente bom e um mau, o
livresco de seus “pa- drinhos”: convidou Deleuze e que é propriamente absurdo, pois, como mostrou Freud,
Foucault a participar dos debates no quadro da o inconsciente nao conhece o tempo nem a moral e, por
preparaçâo do número. A revista publica alguns extratos tanto, se situa para além do bem e do mal. Fourquet
dessas discussôes informais a très entre Gilles, Michel e exprime essa crítica em termos um pouco velados, mas
Félix, Deleuze propôe desconstruir o caráter molecular decifráveis. Dá urna extensao existencial a esse
da noçâo de equipamentó distinguindo très formas distancia- mentó, ao deixar Paris em 1976 com urna
específicas: as estru- turas de investimento, as estruturas grande mala carregada com as obras completas de
de serviço público e as estruturas de assistència. Por sua Nietzsche. Vai viver à margem da montanha de
vez, Foucault, tomando o exemplo da estrada, distingue Ardèche, mas prossegue seus trabalhos de pesquisa para
as funçôes de produçëo da produ- çâo, de produçâo da o CERFI, que o obrigam a ir regularmente a Paris.
demanda e de normali- zaçâo. Em cada um desses À parte o ensaio de Fourquet, Recherches tem como
níveis, percebe-se um par de oposiçôes: o agente do ambigào testar na pràtica a no gao de agenciamento
poder/o bandido para a primeira funçâo, o agente da coletivo de enunciagào. Ainda que a revista nao
alfandega/o contrabandista para a segunda, e o abandone as assinaturas individuáis, privilegia um real
engenheiro/vagabundo para a terceira. trabalho coletivo de reflexáo, e nao se contenta em ser
Significativo também da evoluçâo do CERFI, cuja urna caixa postai para onde se envlam artigos depois
referencia teórica era constituida até entao pela dupla justapostos de qualquer jeito. O objetivo do grupo é
Marx-Freud, esse número de 1973 toma certas distancias particularmente ambicioso, pois visa dar à luz urna nova
subjetividade coletiva: "Cada um deve assumir a ®N. de T.: Jeunesse communiste révolutionnaire.
subjetividade coletiva, ao mesmo tempo em que rastas”), mas essa “Grande enciclopédia das
preserva232a François
sua. Há Dosse
momentos em que isso pode ser homossexualidades” (subtítulo do número) conta com a
muito pesado”19. Assim, na pràtica, nao está em questáo participagáo e caugao de grandes autoridades da vida
no CERFI organizar o trabalho segundo um esquema intelectual francesa. E fácil concluir isso a se considerar
racional que leve em conta as quali- ficagòes de cada os nomes de alguns participantes: Deleuze, Guattari,
um, menos ainda recorrer a competéncias externas. Jean Genet, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Je- an-
Portanto, nao há postos de executivos, nem secretários, Jacques Lebel... Apesar disso, o poder julga que exagero
nem administradores profissionais: “Tratava-se igual e é exagero, e o número é apreen- dido. Como diretor da
fundamentalmente de 20estar juntos, de criar urna forma publicagáo, Guattari é processado e condenado a 600
de vida comunitària” . No rimediato pós-68, é urna francos de multa por “ultraje aos bons costumes”. A
maneira de retardar a queda das folhas mortas e de sentenga exige a destruigao de todos os exemplares de
continuar a viver intensamente urna utopia em ato. A um número que constituí, segundo os juízes, urna
única lei que o CERFI reconhece é aquela, sagrada, do “exposigáo detalhada das torpezas e dos desvíos
grupo e de seus interesses militantes. Fourquet se re- sexuais”, a “exibigáo libidinosa de urna minoría de
corda de que eles tinham adotado e transformado o lema perversos". Guy Hocquenghem recebeu manifestamente
da Companhia de Jesús, Perínde ac cadaver ("Obedecer carta branca para fazer o que quisesse com seus
como um cadáver”), e que o CERFI entendía, com o companheiros do FHAR e desenvolver á vontade
mesmo sentido da disciplina, como um chamado à algumas experiencias homossexuais explosivas com ára-
ordem: "Como militante,/mili tar/ou combatente”21, bes, detentos, mineiros, entre outros: “A gente utilízou a
estrutura dessa revista chamada Re- cherches. Durante
um ano a gente podía fazer tudo o que quisesse, era urna
A arte do escándalo espécie de grupo de criatividade, porque na verdade a
Após a publicagao de 0 Anti-Édipo, em 1972, Guy gente se empenhava em fazer urna outra revista. É mui-
Hocquenghem, antigo militante da JCRG militante dos to importante ocupar o terreno de um outro qualquer”23
movimentos de luta dos homossexuais e, sobretudo, Guattari explica na apresentagao do número que foi
fundador do Front Homosexuel d Action preciso pór em questáo os métodos tradicional s das
Révolutionnaire (FHAR), chega um día ao CERFI com ciéncias humanas para se li- vrar das formas de censura
o livro de Deleuze e Guattari debaixo do brago que poderiam comprometer o éxito desse projeto de
exclamando ter enfim encontrado a teoría de que enciclopédia das homossexualidades. Era preciso
precisava. Ele nao chega sozinho, mas com toda urna contornar o objetivismo que esse tipo de pesquisa costu-
equipe do FHAR, e pede ao CERFI que aceite confiar a ma invocar, como o do relatório Rinsey, publicado no
ele a responsabili dade de um número da revista sobre as pós-guerra, sobre o “comportamento sexual dos
homossexualidades. Solicita a participagáo da "màfia”, americanos”, assim como se livrar das armadühas da
mas somente Anne Querrien se dispòe. Esse número de interpretagáo psicanalítica, que reduz a diversidade do
Re- cherches será o mais célebre e o mais provocador de vivido a urna grade preestabelecida.
toda a historia da revista, a ponto de ser objeto de Lembrando que a homossexualidade é aínda em
diligéncias judicials - o número será apreendido. 1973 objeto de discriminagoes, publi- ca-se nesse
Quando dessas diligéncias, em abril de 1973, Félix número urna petigao em protesto contra o afastamento
Guattari participa de um colóquio no Canadá. Áo voltar, de um professor assis- tente de histeria no liceu piloto de
encontra a porta fechada a cadeado pela polícia, que Saint-Quen- tìn Jean-Claude Boyer, por ter assumido
pro- cedeu a urna investigagáo. Todos os papéis e publicamente sua homossexualidade e sua lì llaga o ao
roupas foram revirados e vasculhados em seu domicilio FHAR. Antes que a sangao fosse aplicada, ele foi
parisiense, enquanto outra brigada fazia urna interpelado por seu diretor deste modo: “Pederasta
investigagáo da mesma ordem em seu local de trabalho, ordinàrio, raga ordinària! Vamos ver se o seu sindicato
na clínica de La Borde. de pederastas vai defender voce!”211. Em urna carta de
Esse número é langado em margo de 1973 com o 1974 ao tribunal, Guattari explica que deu ao FHAR a
título Trés Bilhdes de Perversos2, Foi es- sencialmente possibili- dade de expressar o desejo dos homossexuais
obra do FHAR (mais do que do CERFI, que, com urna de sair de seu gueto, seja aquele que os confina a urna
certa distáncia brin- calhona, chamava-o de número patologia ou aquele que se limita a exaltar sua diferenga.
“dos pede- Além disso, diante da 17a Cámara Correcional, ele
defenderá o caráter fundamentalmente político desse
processo: “Ele condena urna nova abordagem da vida
cotidiana e do desejo e as novas 5formas de ex- pressáo pesquisa, diplomados em sua área27 respectiva: semente 5
que irromperam a partir de 1968”' . em 25 assalariados nessa época . Evidentemente, essa
Esse confronto com a justiga entre 1973 e 1974 é incorporagaoGilles
implicaria renunciar à ìndependència do
urna guiñada ao mesmo tempo para o CERFI e para o CEREI e deixariaDeleuze
para; &trás a maioria do grupo: “A
Félix Guattari 233

movimento esquerdista em geraì. Soa a hora do refluxo posigào tomada foi a recusa. Michel Rostain e eu
e do recolhimen- to, em boa ordem para uns, na assinamos um texto no Le Monde que me fechou as
confusáo para outros: “Em 1974, a festa acabou em portas do CNRS definitivamente, pois dizíamos que nao
todos os planos”26. A era de Chaban-Delmas, cujo era bom que pesquisadores2S se transformassem em
governo se empenhava em fazer urna radioscopia da pesquisadores por toda vida" .
sociedade francesa para melhor modificá-Iai se Em 1974, a conjungáo de vários elementos -- um
encerrou. Para o CERFI, com a chegada de Valéry grupo inchado, os efeitos do nùmero proíbido, as
Giscard d’Estaing ao poder, é o fim dos : grandes difìculdades financeiras crescere- tes ligadas ao firn dos
contratos com o Estado. Em 1975, o ministerio do grandes contratos, a evolugao política desfavorável após
Equipamento propoe incorporar certos pesquisadores do a derrota
CEREI, mas isso se aplica apenas aos profíssionais da
Gfíies Deleuze & Félix Guattari 234

de François Mitterrand para Vaiéry Giscard lha junto com sens amigos em uma primeira
d’Estaing - concorre para uma inflexâo. Deci- restauraçâo em uma das cidades do suburbio de
diu-se pluralizar o CERFI e implantar unidades fi Marselha.
nancei rameute autónomas: ‘A partir de 1974, o Hà também entre as atividades do CERFI, o
CERFI foi fragmentado em subgrupos orga- grupo vídeo-cinema, coordenado por François
nizados em unidades de produçâo, a saber: um Pain. Além de sua atividade clássica de cineasta,
contrato/um grupo, um grupo/um orçamen- to... A que o levou a realizar diversos filmes sobre La
palavra de ordem era como se dizia: ‘Um, dois, Borde, Pain estende o principio da análise
très Vietna durante os anos de 1960... Eu dizia: institucional, propondo a instituiçôes esfcágios
‘Um, dois, très CERFI!”29. para ensinar as pessoas a filmar, de dentro, suas
Para fazer frente à îiquefaçâo dos capitais, instituiçôes de trabalho. O grupo intervém
Lion Murard e Michel Rostain se encarregam das principalmente em Nantes, em 1974, em uma
finanças do CERFI, até entao assumidas em estrutura de hospitalizaçâo em apartamentos
alternância, embora a verdadeira instancia disseminados na cidade. Esse centro de psico-
decisoria fosse a reuniâo-AG de terça-feira. A terapia de Nantes invoca a análise institucional,
nova dupla está firmemente determinada a mas François Pain, com seu “grupo vídeo”, poe
racionalizar as despesas, a equilibrar o orça- em evidência uma série de graves disfunçôes.
mento, o que representa uma responsabilida- de
de arbitragem na decisáo de sustentar este ou
aquele projeto. Pouco a pouco, o modelo de Grandes sucessos editoriais
funcionamento coletivo vai se transformando. As
AG da terça-feira caem em desuso. Guatta- ri A mudança por que passa o CERFI em 1974 e
deixa de participar regularmente délas; “O 1975 se traduz, portanto, em uma multipli- caçâo
CERFÍ está entáo um pouco esvaziado de sua das atividades periféricas, mas também por uma
substancia central que era vista agora apenas atividade editorial que nao se limita mais à revista.
como uma especie de caixa que tirava dinhei- ro0 É o momento em que se inicia uma política de
dos grupos periféricos para alimentar a revista"'' . ediçâo de livros com a cria- çâo da coleçâo
Essa transformaçâo interna do CERFI “Eneres” [Tintas] nas ediçoes Recherches e com a
corresponde à mudança para o suburbio, em : reediçâo na coleçâo de bolso “10/18” de alguns
Fontenay, em setembro de 1974. números que tiveram uma certa repercussâo. Essa
Assim, o CERFI instalou subgrupos em tomo atividade editorial corresponde também à chegada
de atividades particulares, como o CER- FI- na equipe do CERFI de Florence Pétry. Militante
Musica, coordenado por Michel Rostain, ou do Grupo Informaçâo Prisâo (GÍP), ela ouve falar
segundo uma lógica de descentralizaçâo que deu do CERFI e em 1973 passa a frequentar as famo-
origem, entre outros, ao CERFISE (CERFI sas AG da terça-feira. Programadora visual, ela
Sudeste). Esse CERFI local é implantado em trabalha em ediçâo como free-lance e participa de
Marselha, em 1974, em torno de um dos pio- operaçôes de sensibilizaçâo de professores
neiros da política da cidade na França, Michel universitarios para o 10/18: “Ao chegar a esse
Anselme, antigo militante maoísta do Partido grupo do CERFI, senti que havia ali uma pro-
Comunista Marxista-Leninista da França dutividade31 que precisava de uma caixa de res-
(PCMLF), que já havia estado várias vezes a La sonâneia” . Seu prlmeiro contato com Guat- tari é
Borde. Nesse meado dos anos de 1970, a pedi- do bem frío e mesmo conflituoso: motivada para
do prefeito de Marselha, Gaston Defferre, e do cuidar da ediçâo no grupo, ela se depara num
administrador público do FIEMA ele traba- primeiro momento com urna recusa sem meio-
termo da parte dele. A própria evoluçao da revista
se orienta cada vez mais para obras eoletívas:
N. de T.: Habitation à Loyer Modéré, conjunto hahkacio yai, “Minha contribuiçâo pessoal foi, sem dùvida,
movadia destinada a iamilias de baixa renda.
perceber que se podía passar da revísta para o
livro coletivo, e para isso era preciso um olhar
externo”32. No momento da chega- da de Florence Pétry, despertam Gilles
o maìor
Deleuzeinteresse do: editor.
& Félix Guattari \ ^,235 Christian
caida-se da reediçâo do número proibido Trois Milliards Bourgois e o CERFI fecham um acordo para algumas
de Pervers. A segunda tiragem de 10 mil exemplares reediçoes em bolso: de Recherches ao final de um café
desse número da revista Recherches esgota rápidamente. da manhâ: que reuniu, em torno do editor, Lion Murard,
Pouco tempo depois, há o lançamen- to por Recherches, François Fourquet, Claude Rouot e Florence : Pétry.
transformada em editora, dos primeiros títulos da Razoes familiares aproximam o editor Christian
coleçâo “Eneres”: La Révolution Moléculaire, de Félix Bourgois de Guattari: sua primeira mulher, Agnes
Guattari, e La Force du Dehors, de Georges Préli, B„ viveu em meados dos anos de 1970 com Jean-René
ambos publicados em 1977.0 sucesso é imediato, como de Fleurieu ( filho de Marie-Claire Servan-S crei ber,
já se esperava, e reafirma o grande prestigio que a que se tornou senhora Mendès France), com quem eia
revista já tem na época, esse momento 33bendito de boa se ca- sou e teve dois filhos: “Minha relaçâo com Félix
saúde da ediçâo em ciéncias humanas . As îivrarias estava ligada a La Borde, à sua relaçâo com Agnes, à
pedem a revísta, cujas tiragens alcançam fácilmente as minha relaçâo com os filhos de Félix,,:i,i.
dos livros. Respeitoso do territòrio dos outros, Christian
Os quiosques do Boulevard Saint-Michel eoloeam Bourgois considera Deleuze e Guattari como autores da
em pilha La Révolution Moléculaire e L’Idéal editora Minuit, Jérôme Lin- don é hostil a qualquer
Historique, de Fourquet, ao lado do Le Monde. Em La reediçâo em bolso. Contudo, eie farà uma pequeña
Quinzaine Littéraire, Maurice Nadeau manifesta seu exceçâo ao seu principio intangivel por amizade,
entusiasmo pelas teses de Guattari, que vê como o permitindo a Christian Bourgois reeditar, em 1973,
surgimento de uma voz e de um pensamento novos. Logique du Sens pela 10/18, para uma única tiragem.
Contudo, até 1976, a distribuiçâo ainda é multo Toda a efervescência intelectual das décadas de Cerisy
artesanal. Os quiosques e Iivrarias fazem as encomen- encontra assim, com o 10/18, uma vertente editorial:
das diretamente à editora, que pratica a venda por “10/18 era o desejo agindo, Eu tinha vontade de que
consignaçâo, Florence Pétry pôe François Fourquet e esses livros existissem e eles tinham vontade de me
Lion Murard em contato com a distribuidora da oferecé-los” .
Gallimard, a Sodis, o que permite multiplicar a A atividade de Recherches ganha amplitude,
capacidade de difusao dos traba- lhos do CERFI. principalmente sob o impulso de Lion Mu- rard e de
A reediçâo em bolso, pela 10/18, de alguns títulos Patrick Zylberman, que envolvem a editora em projetos
como Les Équipements du Pouvoir, L’Idéal Historique, ambiciosos, que, de resto, suscitam resistências no
La Révolution Moléculaire prolongam os sucessos de grupo, dado que essas iniciativas visam cada vez mais a
Recherches. No ámbito do livro de bolso em ciencias urna política clàssica de autores. A maior e mais
humanas e em literatura, o papel de Christian Bourgois é prestigiosa publicaçâo realizada pelas ediçôes
absolutamente essencial no período. Desde o inicio dos Recherches serao os cinco volumes da Histoire des
anos de 1970, ele é o chefe de orquestra dos sucessos Passions françaises (1848-1945), de Théodore Zeldin, a
editoriais que produz por suas escolhas ambiciosas. partir de Ì977. A traduçâo e a compra dos direi- tos de
Quando lança Boris Vian pela 10/18, seu amigo Pauvert, publicaçâo desse monumento exigiram um
cé~ tico, tenta dissu adido, Ele vende rápidamente várias investimento desproporcional aos recursos do CERFI,
centenas de" milhares de exemplares. Aliâs, Olivier Quérouil, responsável pela gestao do
Quanto ao ensaio, mesmo árido, de Ernest Mandel, Centro, se opôe firmemente a urna tal aventura, mas
Traité d’Économie Marxiste, ele vende 200 mil sem sucesso.
exemplares. Christian Bourgois conquista um enorme Os temas explorados pelo CERFI que de- ram lugar
público de jovens e estu- dantes. Aliás, ele se cerca de a publicaçôes sâo numerosos, e, a distancia, pode-se
numerosos consel heiros estudantes ou assistentes que mensurar a contribuiçâo de cada urna dessas pesquisas.
muitas vezes Ihe possibilitam fazer contato com cer- tos É possível discernir très grandes setores de prospecçâo
autores. É por essa via que se aproxima de Jean- privilegiados entre as múltiplas publicaçôes de Re-
François Lyotard e Cornélius Castoriadis (cujo cherches36 a partir de 1971. Em primeiro lugar, a
pseudonimo é entâo “Ch aulì eu”). loueura , o verdadeiro dominio de competên- cia do
Nesse inicio dos anos de 1970, Christian/ Bourgois CERFI, que tem corno ponto de anco- ragem a clínica
recebe a visita de Deleuze, que o procura sem nenhuma de La Borde, lugar de estágío da maioria dos membros
outra intençao a nâo ser conhecê-lo. Quanto a Guattari, do grupo. Um segundo dominio, muito ampio, pode ser
Christian Bourgois tem um encontró com ele logo apés; agrupado soh a denominaçâo foucaultiana de “mundos
a publicaçâo de O AntLÉdipo em 1972, no momento em disciplinares“: trata-se da interrogaçâo sobre o passado
que o CERFI inicia suas grandes pesquisas que e o presente das instituiçôes do Estado em urna
abordagem inspirada em Foucault, Deleuze e Guattari, alguns questionamentos radicáis das orientapóes
como o vetor da fixaçâo Territorial, da normaüxaçao, passadas e fazer su- gestóes para o futuro, Sem urna
das disciplinas e e da [normalizaçao] setorial. O CERFI apresentapáo diplomática, esse texto considera38 que a
opóem236frontalmente a expressao do desejo ás lógicas do
François Dosse
revista na sua forma atual, "nos parece superada” .
poder segundo urna abordagem binària da vqual O diagnóstico sobre a situaçâo da revista é irrefutável e
Fourquet toma urna certa distáncia crítica em 1982, severo: “Moribunda, Recherches pode morrer
quando escreve urna síntese dos trabalhos do CERFí. calmamente, ser enterrada o mais cedo possível ou
Nesse momento, ele considera o Estado como urna mudar de direçâo - e de máos. Tres eventualidades,
instituiçâo evidentemente central mas nao única, cuja portanto, das quais apenas a última merece exame” 39.
funçâo é recuperar, mais do que reprimir: “O As divergéncias se acumularam depois de alguns anos.
imperativo primeiro do Estado-captor é captar, nao Em primeiro lugar, a rejeiçâo das orientaçoes
estancar; canalizar, nao fazer barragem; concentrar, nao representadas pelo FHAR é muito explícita e muito
bloquear“37. Nesse processo, o emaranha- mento das radical: “Nosso projeto, que ainda precisa ser
forças dominantes e dominadas é íal que nâo é mais explicitado, era exatamen- te o oposto da fórmula
possível propagar urna lógica exógena à sociedade futurista e fascista de Hocquenghem: ‘Somos pelo
civil, como é o caso na maioría dos trabalhos do superficial, pela violencia e pelo sexo”40.0 pro jeto
CERFI. Apesar disso, as pesquisas concretas, a substitutivo desejado por Lion Murard e Patrick Zylber-
valorizado das experiencias e a atenpáo ao discurso dos man visa, ao contràrio, assumir uma ética da
atores permitem que os estudos do CERFI preserven) responsabilidade, se abrir para o estrangeiro e, portanto,
seu valor e seu interesse nao obstante um paradigma sair de um certo egocentrismo franco-francés: “Vozes
que mostrou seus límites. Urna terceira vertente de nos disseram indignadas de sua cólera diante da misèria
publicapoes do CERFI é consagrada á questáo da dessa Lichtenstein intelectual que41 é a França, de sua
sexuaíidade, o que nao surpreende da parte de urna xenofobia, de seu egocentrismo” .0 que pro- pôem é
corrente qua- lificada de “desejante”, porque coloca no uma verdadeira “revoluçâo na revo- luçâo”: firn da
posto de comando a satisfapáo dos desejos de todas as referéncia ao CERFI na revista, abandono por Guattari
ordens e, portanto, a supressáo de todos os obstáculos. da geréncia, controle da secretaria de redaçâo pelo
O pleno período de questiona- mento das tradipoes é irmâo de Lion Murard, Numa, assim como urna nova
propicio também a urna receppao macipa de teses conste- laçâo de autores que seriam vinculados à nova
apresentadas nesses números dedicados á liberapáo revista: Jean-Marie Doublet, François Ewald,
sexual. Condominas Fiìho, Marcel Gauchet, Krzysztof Pomian,
Por voíta de 1979 e 1980, o paradigma crítico está etc.
em crise generalizada ñas ciéncias humanas: o marxismo A grande discordância que eclode nesse final dos
e o estruturalismo mos- tram cada vez mais seus limites. anos de 1970 entre Lion Murard e Patrick Zylberman,
O contexto político evolui e muda a situapáo com a de um lado, e Guattari, do ou- tro, está ligada também à
escalada do tema dos direitos humanos ligada á che- recusa do fundador do CERFI de condenar claramente
gada na Europa Ocidental de dissidentes soviéticos com uma extrema esquerda italiana e alemâ que prega a Mo-
seus relatos do Gulag. Comepa-se a ter urna ideia da lènda armada. Lion Murard, ao contràrio, exige entre
extensáo dos massacres perpetrados pelo regime de Pol 1979 e 1980 uma condenaçâo clara e nítida do
Pot, no Camboja, que atingem as dimensóes de um terrorismo: “Eu acrescentava ao meu texto: ‘Nâo é,
genocidio. Tudo isso contribuí para serias reavalíapóes Félix?’. Félix me ligou, furioso, como se pode imaginar,
e, antes de tudo, para o questíonamento das utopias que mas esse era apenas um texto interno. Eie ameaçou me
inspiraran) os estudos críticos nos anos de 1.960 e 1970. mandar seus advogados. Depois de 20 anos de trabalho
O CERFI está abalado. O tempo das fraturas decisivas conjunto, isso me deixou perplexe. Resolví por firn
chegou para urna organizapao que perdeu seu centro, reescrever as cinco linhas incriminadas”42. Esse texto
substituin- do-o por pequeños grupos descentralizados, e nâo é aiscutido-em reuniâo plenària - mais um síntoma
do qual o apartamento de 250 m J do Boulevard do estado de decomposi- gào do grupo - e provoca um
Beaumarchais é apenas urna longínqua idade de ouro. O agravamento da crise interna.
CERFI está reduzido de fato a so- breviver em um Anne Querrien, no contexto do ano de 1980,
minúsculo dois cómodos per- to de La Nation, na Rué considera que a necessìdade de uma re- orientagao da
Pleyei. revista no sentido da defesa dos ideáis democráticos
É nesse contexto que Lion Murard e Patríele deve ser no mínimo discutida. AJém disso, eia está cada
Zylberman tomam a iniciativa de redi- gir um texto vez mais critica quanto ao funcionamento bem pouco
dirigido aos outros membros do CERFI para propor democrático de uma revista cujo diretor detém todos os
poderes, mas sem se envolver efeti- vamente. Apesar de com Félix Gilles
Guattari e tem&oFélix
Deleuze hábito de lhe\ ^,237
Guattari contar no diva
sua fidelidade indefectível a Guattari, eia está dividida e os problemas de funciona-: mento do CERFI. Guattari já
receptiva à ideia de uma reorganizando da revista lhe havia dito, o que a deixara apavorada; “Quando vejo
proposta por Murard e Zylberman. Depois de escrever uma árvore morta e coisas brotando, olho as coisas
um texto de compromisso, em outubro de 1980, eia brotando e nao me importo nem um pouco que essa
recebe um telefonema de Guattari, que a acusa de tomar árvore esteja morta no meio, porque se eu cortasse as
partido de seus adversarios e deixa claro que nao quer coisas que estao brotando,:;
mais vé-la: “Comecei a tremer 43como urna louca e i -
tudo estaña morto .
M¿|4

quando vi estava em Sainte-Anne” . Dá para imaginar a O CERFI nao se recupera dessa divisao interna. Em
pertur- : bagáo de Anne Querrien quando se sabe que a ; 1981, Félix Guattari se afasta e deixa a diregao da
esfera afetiva e a do trabalho se misturam totalmente no revista a Liane Mozère. Além disso, Recherches nao é
grupo do CERFI. As atividades de pesquisados para os mais apresentada como a revista do CERFI. Sao
que se empenham como eia, nao tem horário e exigem publicados mais alguns números, até o 49, em abril de
urna dedicagáo : permanente; a isso se acrescentam as 1983, simbolicamente colocado, para esse canto do
relagoes afetivas, o trabalho analítico, a transferencia... cisne, sob a co diregao de Félix Guattari e de Liane
Circunstancia agravante, Anne Querrien faz ; análise Mozère.
Gíiles Deíeuze & Félix Guattari 238

Na hora do balanço, pode-se avaliar a que Lion Murard entrevistam os psiquiatras e


ponto essa experiencia coletiva foi rica. Eia administradores que foram os atores dessa
certamente pagou um preço alto pela recusa de transformaçào da pràtica psiquiátrica4': “Apa-
constituir urna equipe institucionalizada. Contudo,
recemos essencialmente como encenadores de
fazia parte do espirito do CEREI estar enunciados que reunimos segundo urna certa
permanentemente em busca de si mesmo, em ordem, e foi esse trabaìho de montagem que nos
caminhos nào traçados, constituidos por suas deu o maior prazer”48. É no posfácio que Fourquet
próprias crises. 0 CEREI: grupo de pes- coloca os problemas metodológicos próprìos a
quisadores em cìèncias sociais? Movimento de esse levantamento. Ele explica as duas
ideias? Movimento intelectual? Justaposi- çâo de particularidades dessa pesquisa que relativizou a
desejos? Escola de pensamento? Ex- periència parte dos arquivos escritos em proveito de
comunitària, tipo falanstèrio? Cooperativa de depoimentos gravados dos atores dessa historia.
produçâo científica? Se cada um viveu o CEREI Portanto, o trabalho do pesqui- sador consistiu
com sua singularidade pròpria, conectada ao essencialmente na elaboraçâo de um questionàrio
grupo de maneira tanto mais intensa na medida e na montagem dos extratos coletados para
em que nao havia um suporte institucional estabelecer o texto definitivo, Inspirando-se nos
unificante, a galáxia de planetas diferentes tinha,
métodos do jornalismo e da sociologia, o método
no entanto, um centro de gra- vidade, um sol poupa os autores da obra de ter de escolher entre a
chamado Guattari: “É um teatro no qual muitos estrutura e o individuo: “Nào se trata de substituir
afetos sao representados, mui- tos rearranjos de a Estrutura pelo Individuo e 49de dizer: sao os
relaçôes... Creio que o CERFI é isso, mais 3do que
individuos que fazem a historia” . Onde encontrar
tudo, é a instalaçâo de um cenário“' . Sua entáo o verdadeiro motor dessa historia da
originalidade reside nesse en- trelaçamento psiquiatría para agenciar suas evoluçôes?
voluntário de desafíos teóricos e da experiência Fourquet diz ter pensando primerio em termos de
pràtica, da dimensâo intelectual e dos afetos, do“matrizes históricas”. Por exempio, o autor da
socius e dos desejos individuados. Urna tal circular de 1960, o Dr. Aujaleu, inscreve suas
articulaçao nâo era simples, mas possuía atguma decisôes em urna espécie de matriz gaullista, que
coisa de heroico da parte daqueles que a tentaram.
comporta ao mesmo tempo sua vertente teórica e
Em muitos dominios, o CERFI foi inova- dor, pràtica e age sobre o individuo para além da
e o resultado de suas pesquisas, valioso. Quando consciencia que eia possa ter. Haverìa, portanto,
se toma a metodologia de investi- gaçâo adotada um jogo complexo durante o qual se poderia
pelo CERFI, restituindo-a ao espirito dominante articular a matriz gaullista de um Dr. Aujaleu, a
dos anos de 1970, é sur- preendente ver a que matriz comunista de um Dr, Lucien Bonnafé, ou
ponto eia anuncia a virada pragmática que o aínda a matriz protestante de um Dr. Georges
conjunto das ciéncias sociais experimenta no final
Daumézon, ou a matriz ‘Albergues da juventude”
dos anos de 1980. Quem melhor refleüu sobre sua do Dr. Oury e de Guattari... “E depois isso nao
pràtica de pesquisa foi, incontestavelmente, funcionou. Nossas matrizes acabaram irritando a
François Fourquet, em duas ocasioes nós mesmos. No firn das contas, elas lembravam
importantes*16. Sem dùvida por sua postura critica
ospatterns do50culturalismo americano, além disso
em face de urna concepçào do sujeito com a libido” .
desconectado do socius, mas ao mesmo tempo em Em 1980, Fourquet publica, desta vez sozi-
busca de processo s de subjetivaçâo, ele é levadonho, urna nova pesquisa sobre a contabilidade
a dar crédito aos atores e ao maior respeíto ético à
nacional que prolonga sua reflexáo sobre os usos
palavra deles como recurso de sentido e espa- ço das fontes oráis55. Como já dissemos, em 1976 ele
privilegiado de suas prospecçôes. troca Paris por Ardéche e só volta a se estabelecer
À escuta dos atores em Paris em 1994. Nesse meio tempo, nao fica
Para escrever sua Histoire de la Psychiatrie inatívo.
junto ao
Vai e volta para realizar sua pesquisa
maior corpo do Estado: “Eu subia até
de Secteur, lançada em 1975, François Fourquet e Paris vestindo um casacao de la e calgando
tamancos, e desembarcava desse52jeito na casa de Fierre 5. Ibid., p. 178.
Mendés France e dos outros!” . Nesse traje ridículo 6. Anne Querrien, entrevista como autor.
bem pou- co académico, nao há necessidade de cultivar 7. Ibid, Gilles Deleuze & Félix Guattari 239
a distáncia do pesquisador, ela é flagrante e singular. 8. Florence Pétry, responsável pela revista Recherches,
Gragas ao papel que atribuí ás fontes oráis, Fourquet entrevista com o autor.
consegue a proeza de tomar audível um tema 9. Ibid.
particularmente árido e austero como o da contabiíidade 10. Depois de très anos, em fevereiro de 1978, oç CERFI volta
nacional, e apre-53 senta essa historia como sendo narrada finalmente a Paris, no 12” Distrito, Rue Pleyel.
por seus atores . De fato, a fonte principal, mas nao 11. “Généalogie du Capital 1, Les équipements du pouvoir”,
exclusiva, é constituida pelas entrevistas realizadas com Recherches, n. 13, dezembro de 1973.
essas 26 personalidades entre 1978 e 1980. Depois de 12. François FOURQUET, “L’accumulation du pouvoir ou le
ter obtido um certo número de entrevistas, ele retorna désir d’État”, Recherches, n, 46, setembro de 1982, p. 15.
para explorar suas fontes em Ardéche: “Se o 13. Ibid., p. 15.
pesquisador escuta bem, descobre coisas magníficas, ao 14. Assim, fica-se sabendo o que é condenado: na companheira
pas- so que com o discurso erudito se chega em ge- raí a do jornalista do Monde Daniel Verne t (Marie-Thérèse
Vernet-Stragiotti): consagrar-se demais à conjugalidade do
elementos emasculados, anestesiados”5^. Sua pesquisa casai, territoriaîizar-se demais, Essa historia é de:; fato
ressalta a mutagáo fundamental de mentalidade reveladora de urna frente de luta da época ; contra todas as
económica entre a fase mal- thusiana de antes da guerra formas de fechamenfco no casai. Ora, a companheira de
e o voluntarismo produtivista do pós-guerra ligado a um Daniel Vernet teve a audácia de programar o periodo de
controle maior do Estado sobre os mecanismos férias do: casai pouco antes do fechamento do numéro peio
económicos para garantir urna maximizaqáo dos íatores quai ela tinha assumido a responsabiiida- de! Ela é
de crescimento. Valendo-se de sua experiéncia sobre a convocada por dois membros da “má- fia” na véspera de
psiquiatría de setor, Fourquet prossegue seus trabalhos sua partida, e o caso se torna mais grave, pois Marie-
na continuida- de de urna pesquisa que “me havia Thérèse tinha aceitado redigir o reiatório fmal, e sua atitude
mostrado a superiorídade extraordinária de urna historia “peque- no-burguesa" compromete esse engajamento,
contemporánea contada por seus próprios atores sobre 15. François FOURQUET, Lion MUHARD, apre- sentaçâo.
urna obra que se diz científica e que frequentemente se Recherches, n. 13, dezembro de 1973, p.l.
16. François FOURQUET, L'Idéal historique, Recherches, n.
limita a recobrir a pa- lavra dos atores com urna 14, Janeiro de 1974, reed. UGE, 10/18, Paris, 1976.
reescrita erudita, misturando, sem discerní mentó 17. Ibid.-, reed. UGE, 10/18, p. 7.
possível para o leitor, a informagáo primaria dada pelos
18. /bid.,p.B,
atores e o comentário dos pesquisadores”55. 19. Anne Querrien, em janet H. MORFORD, "Histoire du
Entre a postura de superiorídade do erudito que se CERFF’, op. cit., p. 63.
supóe sgber e que se julga em condi- góes de desvendar20. Janet H. MORFORD, ibid., p. 75.
a má-féí a justificativa artificial e o pós-ato no discurso
21. François Fourquet, em janet H, MORFORD, ibid., p. 94.
dos atores, e a ideia segundo a quai para compreender o
22. Trois milliards de pervers, Recherches, n. 12, março de
outro é necessário primeíro escutar e assimilar suai 1973.
própria lógica como pertinente, Fourquet tem muita 23. Guy Hocquenghem, entrevista corn jean-Pier- re joeker e
consciéncia da tensao inevitável do pesquisador que nao Alain Sanzio, Masques, março de 1981, p. 16.
deve ceder nem de um lado nem do outro, mas, ao 24. Texto assinado por F. Châtelet, H. Weber, D. Bensaïd, G.
contrário, apreender os dois extremos da cadeia. Sao Deleuze, J.-F. Lyotard, R, Shérer, G. Lapassade, F. Guattari,
essas tensoes criativas entre querer e saber, socius e R. Lourau, F. Lourau, G, Hocquenghem, M. juffe, P.
libido, conhecimento e poder que conseguiram fazer Rarjonnet, C. Hen- nion,
viver os pesquisadores do CERFI, até a carne, levando-25. Félix Guattari, “Trois milliards de pervers à la barre”
os ao paroxismo. (1974), em RM, p. 118.
26. Anne Querrien, entrevista com o autor.
27. Trata-se de François Fourquet, Lion Murard, Liane Mozère,
Notas Michel Rostain e Anne Querrien.
1. “Architecture et programmation, psychiatrie”, 28. Lion Murard, entrevista com o autor.
Recherches, n. 6, junho de 1967. 29. Michel Rostain, em Janet H. MORFORD, “Histoire du
2. Anne Querrien, entrevista com o autor. CERFF, op. cit., p. 139.
3. Lion Murard, entrevista com o autor, 30. Anne Querrien, ibid., p. 112-113.
4. Michel Rostain, em Janet H. MORFORD, “Histoire du 31. Florence Pétry, entrevista com o autor,
CERFI", EHESS/DEA, out 1985, p. 139. 32. Ibid.
33. 0 n, 22 de Recherches, Coure, 1976, realizado por René publicado com o titulo Psychiatrie: le secteur impossible?.
SCHÉRER e Guy HOCQUENGHEM vendeu 7 mil Recherches, n. 17, março de 1975); François FOURQUET,
exemplares em um ano e meio. 0 n. 25, Le Petit Travailleur Les Comptes de la puissance. Histoire de la comptabilité
infatigable, 1976, Dosse
240 François realizado por Lion MURARD e Patrick nationale et du plan, ed. Recherches, col. “Encres”, Paris,
ZYLBER- MAN, com 4 mi! exemplares na primeira edi- çâo 1980.
e 4.500 na segunda ediçâo, vendeu tudo. 47. Dr. Aujaleu, Dr. Pierre Bailly-Salin, Dr. Lucien Bonnafé,
34. Christian Bourgois, entrevista com o autor. Dr. Georges Daumézon, Félix Guattari, Dr, Robert-Henri
35. Ibid. Hazemann, Sra. Lauren- ceau, Srta, Mamelet, Dr. Mignot, Dr
36. Principal mente com os Cahiers de 1‘Immuable de Fernand Jean Oury, Dra. Danieîle Sabourin-Sivadon, Dr. Paul Si-
DELIGNY (n. 18, 20 e 24, em 1975 e 1976); Psychiatrie: le vadon, Dr, Horace Torrubia, Dr. François Tos- quelles, Dr,
secteur impossible (n, 17, março de 1975); Histoires de La Charles Vaille.
Borde (n. 21, abril de 1976); HAsile (n. 31, fevereiro de 1978); 48. François FOURQUET, Lion MURARD, “Pré- ■
Déraisonances (n. 36, março de 1979). sentation", Histoire de la psychiatrie de secteur,
37. François FOURQUET, “L’accumulation du pouvoir ou le op. cit., p. 6.
désir d’État”, Recherches, n. 46, setembro de 1982, p. 64. 49. François FOURQUET, op. cit., p. 314,
38. Lion Murard, Patrick Zylberman, texto dati- lografado 50. Ibid., p. 316.
passado ao autor por Lion Murard; ele é dirigido ao CERF! a 51. François FOURQUET, Les Comptes de la puissance.
Anne, Liane, Félix, Michel, François, Numa, Olivier, Claude Histoire de la comptabilité nationale et du plan, op. cit.
Fi, Georges, Claude R„ Gérard, Luc, Philippe, Florence, 52. François Fourquet, entrevista com o autor.
Françoise. 53. Claude AJphandéry, Henri Aujac Jean Bernard, Louis-Pierre
39. Ibid. Blanc, François Bloch-Lainé, Jean Denizet, René Froment,
40. Ibid. Pierre Gavanîer, Claude Gruson, Étienne Hirsch, Edouard
41. ibid. Malinvaud, Jean Marczewski, Pierre Massé, Jacques Mayer,
42. Lion Murard, entrevista com o autor. Pierre Mendès France, René
Mercier, Simon Nora, François Perroux, Charles Prou Jean
43. Anne Querrien, entrevista com o autor. Ripert, Michel Rocard Jean Saint-Grours Jean Serisé, Pierre
44. Félix Guattari, citado por Anne Querrien, em Janet H. Uri, André Va- noli, André Vincent.
MORFORD, “Histoire du CERFI”, op. cit., p. 163. 54. François Fourquet, entrevista com o autor.
45. Félix Guattari, em janet H. MORFORD, “Histoire du 55. François FOURQUET, Les Comptes de la puissance,, op.
CERFF, op. cit., p. 218. cit., p. XI.
46. François FOURQUET’, Lion MURARD, Histoire de la
psychiatrie de secteur, ed. Recherches, Paris, 1980 (jâ
16
A "revoluçâo molecular":
Itália, Alemanha, França

Em 1976, o País Basco revolupáo molecular de seus


está agitado, sobretodo do sonhos, um movimento contra
lado espanhol, onde o ETA os aparelhos de todo tipo, que
está engajado em urna luta se expressa em urna
armada contra o poder linguagem totalmente nova e
madrilense. É a época em que com métodos até entáo
Félix Guattari sonha em inéditos. Em 1977, enquanto
construir urna federaqáo de é lanpado o ensaio Revolugáo
todos os movimentos de Molecular, de Guattari, a
contestado regional capaz de Itália assiste à deflagrando de
abrir frentes secundárias e um movimento cujo
enfraquecer o Estado-naqáo. radicalismo e cuja violencia
Apesar de suas redes, ele nao quase relegam o Maio de 68
consegue realizar esse francés à categoria de desfile
projeto, no mínimo pe- de estudantes.
rigoso, na fronteira do A itália de 1977 vive urna
combate democrático e das crise serri precedente. Os
aqoes terroristas. indicadores económicos sâo
de- sesperadores. A cada mes
o país afunda um pouco mais.
O Maio de 68 Contam-se 2 milhoes de
italiano: 1977 desem- pregados, e as
Em compensando, previsôes dos responsáveis
Guattari e seus amigos vivem nâo permitem esperar nada de
no movimento italiano um bom desse lado: em Janeiro
verdadeiro banho de de 1977, o ministro da
juventude. Urna década Industria em pessoa anuncia,
depois de ter estado no centro à guisa de votos de ano novo,
do movimento de Maio de 68, mais 6Ü0 mil desempregados
ei-los ñas rúas de Bolonha para íevereiro. A taxa de
observando, petrificados, inflaçâo de 25% ao ano faz
estupefatos, irromper a despencar a lira, que perde
38,9% em relaçâo ao dólar
em très anos. Paradoxalmente, é nesse país que está
perdendo seus empregos e suas referencias que explode
um ampio movimento de contestaçao, nâo para exigir
urna melhor dis- tribuiçao dos empregos, traballio para
242 François Dosse

todos, salários indexados à alta dos preços, mas sim,


menos classicamente, minarás bases do sistema
atacando de frente o valor traballio, a pro- priedade, a
delegaçâo de poder e de palavra.
. Se a crise económica e social é de grande amplitude,
a situaçao política, por sua vez, está totalmente
bloqueada. O governo Andreotti pilota o país sem
bussola. Quanto à grande força alternativa multo
influente, o Partido Comunista Italiano (PCI) dirigido
por Berlinguer,
apeìa à recuperalo nacional, acuada, que quer íns- trumentalizar a violéncia fascista
à ordem moral e à aceitagào como meio de intimidaçâo em face do movimento
da austeridade. Em nome de um social e deGilles
justificaçâo de urna repressâo rígida dos
necessàrio “compromisso movimentos de extrema esquerda. Assim, a di- vlsáo
Deleuze & Félix Guattari 243

histórico”, o PCI se das tarefas é pensada em todos os deta- lhes: os fascistas


transforma em partido de cometem atentados seguidos, e a política persegue os
governo. Nessa epoca, os militantes de extrema esquerda, apontados como
comunistas italianos tomaram responsáveis e entregues à ira popular, com um PCI que
distancia do grande irrnào nao in- tervém ou que até aplaude a repressâo que sé
sovietico. Eles sào, entao, a abate sobre seus rivais.
facgáo ativa e desejada do A explosáo de urna bomba em Milao em 12 de
“eurocomunismo”. Ao mesmo dezembro de 1969 na Piazza Fontana, que deixa 16 mor
tempo, seu alinhamento atrás tos e 80 feridos, é considerada um “traumatismo
das autoridades italianas e a original” por Isabelle Sommier. No dia seguin te a esse
busca de urna, alianga com um ato terrorista, a policía procede à prisao de 27 militantes
partido tào comprometido de extrema esquerda. Outros atos de terrorismo se se-
quanto a Democracia Crista guem: um trem que descarrila em 22 de julho de 1970
tèm como efeito dramático nào (6 morios, 50 feridos), urna bomba em Eresela durante
mais oferecer urna urna manifestaçâo antifascista (8 morios, 94 feridos),
escapatoria para a grande urna bomba em um trem em 4 de agosto de 1974 (12
massa de excluidos (os morios, 105 feridos). A “estratégia da tensâo” nâo para
emarginali) atingidos de frente de avançar ao longo dos anos de 1970, e com ela o
pela crise e privados de número de vítimas. O escándalo da Loge: P2** vem à
qualquer esperanza. tona, revelando à opiniâo pública o : alto grau de
Esse clima pesado alimenta os radicalismos, as infiltraçâo das redes fascistas no: seio do poder.
explosòes espontáneas e a violencia dos Enquanto os dirigentes italianos se compróme tem com
enfrentamentos. Enquanto em maio de 1968 o os piores inimigos da democracia, e o PCI se faz de
movimento se expressava, no fìm das contas, em urna chantre do “compromisse histórico”, para os excluidos
linguagem antiga, a do marxismo-leninismo, versào e: contestadores de todas as tendencias nao resta senao
trotskista ou maoista, a contestalo italiana, a dez anos de avia da oposiçâo radical. Quando oí secretário-geral da
distàn- cia, busca novas inspiraqòes. Toda urna serie de grande central sindical italiana, a CGIL, Luciano Lama,
correntes da extrema esquerda italiana encontrará ñas se apresenta na universidade de Roma, é posto para fora
teses deleuzo-guattarianas, e particularmente em 0 Anti- sem qualquer condescendéncia, o que dá lugar a
Édìpo, cuja tradu- qào italiana aparece em 1975, urna
linguagem nova, sobretudo em torno da nopào de “má-
quina desejante”. Os Trinta Gloriosos sào agora urna
lembranga longínqua, e os estudantes nào tém mesmo a
menor esperanza de utilizar seus diplomas. Visto que
nao hà mais futuro, as correntes alternativas,
autónomas, pòem a mudanga de vida no presente.
Querem inventar um novo aqui e agora em espaqos
coìetivos de convivio, lugares autogeridos, comunida-
des propicias à libertacáo do eu. Em reiagào a 1968,
assiste-se a urna alternància de geraqào.
Outro componente da situapào italiana contribuì
para o radicalismo dos enfrentamentos, a persistencia na
Itália de um partido fascista, o MSI'1, que nao somente
pode se apoìar em tropas ativas, como também dìspòe
de redes de cumplí ci dade no mais alto nivel do
aparelho de Estado que podem servir de forças
suplementares para cercear quaíquer veîeidade de
contestaçâo social, A essa situa- çâo já explosiva
acrescenta-se a estratégia de urna Democracia Crista

'v< N, de R. T.: sigia MSI é para Movimento Sociale Italiano. ______________________________


Ele foi um partido de extrema direita que surgi u a partir de ** N. de R, X: O escándalo da “LOGE P2" deve seu nome a
urna “nostalgia” do fascino. unía organizaçâo (loge) maçônica criada em 187?.
intensos confrontos entre Maio: o terrorismo, praticado cada vez mais
os estudantes, as forças correntemente por algumas organizaçôes da
poïiciais e o serviço de ultraesquerda italiana. As Brigadas Vermelhas (Brigate
244 François Dosse
ordem do PCI Rosse), surgidas em 1970, benefìciam-se de urna
Quanto à existencia da extrema esquerda italiana, penetraçâo real nas fábricas, particularmente no feudo
ala viveu entre 1968 e 1977 uma ver- dadeira mutaçao de Agnelli, a Fiat, em Turim. Em 1972, desempenham
que, em alguns, se configurou como uma busca criativa um papel fundamental nas grèves selvagens que
e, em outros, como recurso ao terrorismo. As perturbam o grupo industrial, pois semeiam o pànico
organizaçôes de tipo leninista oriundas de 1968, no nos contramestres e nos operários nâo grevistas,
essenciat, desa- pareceram do horizonte político 1. Sobre lançando o movimento dos “lenços vermelhos”. Ao
seus escombros, brotou um movimento que reivin- longo dos anos de 1970, as BR se orientami para o
dicava a autonomía operaría, reunindo inúme- ros terrorismo, e os sequestros visam principalmente juízes
coletívos dos quais alguns eram muito poderosos ñas e políticos. Além das BR, essa ala terrorista conta ainda
maiores empresas italianas, como Fiat, Pirelli, Alfa com uma organizaçâo surgida em 1984, os Núcleos
Romeo, Polichnico... Sua par- ticularídade é recusar por Armados Proletários (NAP), que reúnem militantes de
principio as formas tradición ais de delegaçâo do poder extrema esquerda e antigos presos comuns. Essas duas
e da palavra. Encontram-se ai muitos militantes da organizaçôes pregam a luta armada na clandestinidade e
antiga organizaçâo Potere Opéralo. Em 1977, os “In- o terrorismo. Em 1977, nao há um mês em que nâo
dios Metropolitanos”, a ala mais criativa do mo- ocorram sequestros, explosóes, assassinate^.
vimento, enfatizam a necessidade de transformar as Outros preferiram palavra e diálogo ao P-38 1.
relaçôes entre os individuos e utilizam como principal Aproveitando o firn do monopolio da RAI, aprovado em
arma a gozaçao e a ironía em face do sistema. 1976, uma profusao de rá- dios livres se apoderou das
Organizam-se e deslocam-se como tribos de “peles- ondas, abrindo-as à possibilidade da expressâo da
vermelhas” pelas grandes cidades da Italia e lutam pela contracultura. Entre esses inúmeros polos de agitaçâo
liberaiizaçâo da droga, pela “requisiçao de imóveis cultural, a Radio Popolare é transmitida para Miláo com
vazios, pela criaçao de rondas antiíamílias para livrar os uma audiencia e capacidade de mobiliza- çâo
menores condicionados por seus pais, por um impressionantes. Em dezembro de 1976, elas
quilómetro quadrado de verde para cada habitante, pela transmitem ao vivo os disturbios durante a abertura da
devoluçâo aos países de origem de todos os animais Scala e, em março de 1977, “anunciam a morte de uma
presos nos zoológicos”". mulher que te ve recusado um aborto terapèutico; nos
Esses movimentos contestatórios nâo précisant, minutos seguintes, 5 mil mulheres saem as rúas”4.
como em 1968, clamar a necessidade da aliança e stu Entre todas as rádios da contracultura, a Ràdio Alice
dan te s - op er árl o s : ela existe de fato entre os nao é das menores, lanqada por um antigo dirigente de
estudantes, os jovens operários, os numerosos Potere Operaio de Bolonha, Franco Berardi, vulgo
subproletários e desemprega- dos que se reconheciam “Bifo". Essa ràdio é transmitida para Bolonha, cidade
na emergencia de um : movimento que defende sua estudantií, mas também vitrine do compromisso históri-
autonomía em relaçâo a todas as formas de co, com sua municipalidade comunista. Conta com urna
manipulaçâo. Até : 1977, as açôes da autonomía audiéncia muito grande e com um público apaixonado e
operária se mui- tiplicam, e muitas délas sao da esfera bastante ligado a essa voz dissidente. Bifo está fazendo
do delito de direito comum nos fatos e da açâo política o serviqo militar, aos 23 anos, quando descobre
nas intençôes: sâo ocupaçôes de casas particulares, Psicanálise e Transversalidade. A refiexáo de Guattari
autorreduçâo das tarifas nos serviços : públicos, sobre a psicanálise e sobre a maneira como eia modifica
expropriaçôes e assaltos a bancos. O ano de 1977 é o a relaqáo com a política desperta seu entusiasmo de
ponto culminante dessa agi- ; taçao, com uma militante. No prefácio a um li- vro sobre essa ràdio,
“progressâo de 77,62% dos ataques contra os bens em Guattari escreve; “A Ràdio Alice entra no olho do tufao
relaçâo a 1976"3. Jovens, estudantes, operários e cultural - subver- sào dalinguagem, aparecimento de um
margináis, eles constituem um proletariado juvenil que jornal, A/Traverso’, mas està também diretamente
desestabiliza o sistema, pregando a açâo imediata para envolvida 3na agào política que deseja ‘trans-
mudar sua existência de excluidos. A ten- sâo nâo para versalizar’” . Em 1976, Bifo foi preso por “ins- tigaqao
de crescer entre esse movimento incontrolável e um moral à revolta”; ‘A Ràdio Alice tinha urna importúnela
poder acuado. incrível em nivel nacional. Era multo ouvida. Ñas
A essa situaçâo acrescenta-se um fator agravante 1 N. de R. T.: A P-3S, é urna arma de fogo (Walther pistol 38) de
que havia poupado a Franga de Maio de 68 e do pós- fabricaçâo alemâ, criada na ÏI Guerra Mundial.
fábricas, havia grupos de operarios que entravam em6 cujos textos tanto apreciou. O pintor Gianmarco
suas oficinas com o ràdio e o ìigavam na Ràdio Alice” . Montesano, amigo de Bifo e do filósofo Toni Negri, o
Em 1977, a situagào é muito mais tensa. leva até Guattari. Esse artista; pintor é um antigo mili
Em 8 de fevereiro de 1977, a maioria das grandes tante de Potere Operaio, encarregado pela direçao de
Gilles Deleuze & Félix Guattari 245

universidades italianas é ocupada pelos estudantes em sua organizaçâo de abrir o movimento italiano a uma
protesto contra a reforma universitària. No final do mes, dimensao europeia e, portante, de estabelecer contatos:
urna assembleia nacional do movimento estudantií que a firn de constituir redes de uma esquerda alternativa,
se realiza em Roma dá lugar a violentos confrontes. Em Ele está em Paris há algum tempo e conheceu na ENS
11 de margo de 1977, um militante da Lotta Continua, Yann Moulier-Boutang, que prepara a agregagáo de
Francesco Lo Russo, é morto pelos carabineiros, o que cíéncias sociais; os dois fundam o grupo “Camarades”,
motiva urna manifes- tagào de mais de 100 mil pessoas, que publica urna brochura difundindo informagóes e
no día se- guinte, ñas rúas de Roma. Eclodem tiroteios, anáüses com o título “Materiais para a intervengao”. É
a cidade está em estado de sitio. Do lado de Bolonha, a nesse grupo que Montesano encontra a soció- loga
situagáo também é muito tensa: “Em margo de 1977, Daniéle Guillerm: “Quando propus a ‘Camarades
passou-se da fase de ocupagáo à fase de cnagáo de traduzir coisas sobre o moviment.o na Italia, Rádio
‘zonas livrea. Decidiu-se que urna parte da cidade seria Alice... ela me propós discutir com Félix" 10. Desse
interditada aos tiras, aos fascistas, e ergueram-se7 encontró nasce o livro prefaciado por Félix Guattari
barricadas. A policía atirou e ■piatoti um estudante” . sobre a Radio Aiice!
A no- tícia dessa morte é difundida imediatamenté em No inicio, Guattari nao conhece muita coisa sobre a
Bolonha através da Radio Alice, o que leva aum situapáo italiana, fora o movimento da antipsiquiatria
ajuntamento de 10 mil pessoas. com o qual mantém rela- páo estreita. No plano político,
Em 12 de março, ‘as 22h25, a policía ocupa a rúa seu primeiro informante é Montesano: “Meus primeiros
onde fica a Ràdio Alice, zona onde até entâo nâo havia encontros com Félix eram totalmente instrumentáis”12,
acontecido nada, fecha bares e restaurantes, langa gases Para além da motivapao maior de constituir urna rede
lacrimogeneos e se apre-, senta com fuzis apontados se militante internacional eficaz, logo nasce urna
coletes à prava de bala diante desse “perigoso covil’” . cumplicidade, e Guattari dedica atenpao crescente á
A ràdio él fechada, os carabineiros fazem oito prisoes situapáo italiana. Ele acoíhe Montesano em sua casa, na
por instigaçâo à delinquência e associaçâo subversiva, Rué Conde, local de passagem de todas as dis- sidéncias
mas nâo consegue pôr as mâos em Bifof No dia e marginalídades. Quando Bifo, que conhece bem
seguinte, 13 de março, Bolonha está em estado de sitio. Montesano, está foragido em París, nao tem nenhuma
Très mil carabineiros e policiais: em blindados dificuldade de encontrar Guatari.
ocupamt a zona universitaria a pedido do prefeito Assim, Bifo encontra Guattari várias vezes desde o
democrata-cristâo. O administrador comunista da més de junho de 1977 e de imediato se toma seu amigo.
cidade, Gangliari, exorta as forças da ordem à repressâo Em 7 de julho, vai para a casa de urna amiga em Paris:
mais severa: “Entre quem o espera diante da porta é a policía italiana. Bifo é
1. 1 e 16 de março ocorre em Bolonha uma es-! pécie de detido e encarcerado em La Santé, depois em Fresnes.
insurreiçâo. Todo o centra está cercado de barricadas, Guattari organiza rápidamente urna rede de apoio para
com bairros controlados por estudantes, mas também sua libertapáo. É nessa ocasiáo que ele se dedica com
muitos jovens operarios. Um depósito de armas foi alguns amigos a criar o Centro de Iniciativas para
saqueado”9. Os funerais do estudante morto dâo lugar a Novos Espapos de Liber- dades (CINEL) lí, cujo
violen- ; tos confrontes. Em 16 de março, a primeiro objetivo é garantir a defesa dos militantes
Democracia; Crista e o PCI organizam em conjunto perseguidos pela justipa. Esse grupo publica um jornal,
urna? grande passeata com 150 mil pessoas contra a encontra urna sede na Rué de Vaugirard e se mobiliza
violencia, enquanto, por sua vez, 15 mil estudantes imediatamente pela libertapáo de Bifo.
desfilam nas ruas de Bolonha. Uma açâo rápida da O processo, em que está em jogo o exame do pedido
policía culmina com a prisào de 300; pessoas em de extradipao por parte das autoridades judiciárias
Bolonha, Em 13 de maio, o ministra do Interior adota italianas, é aberto apenas alguns dias após a prisáo.
medidas anfci terroristas: a partir de entào, os autores Embora perseguido como animador de urna rádio livre,
de atentados terroristas seriam condenados à prisâo o motivo da extradipao faz dele um chefe de gangue
perpétua. responsável por um sequestro em Bolonha, A defesa
Bifo, em fuga, vai para Milâo, depois Turirn, é dos advogados franceses, entre oles Me Kiejman, nao
atravessa a fronteira francesa. Chega a Paris em . 30 de tem dificuldade de demonstrar a fragílidade das razoes
maio com o ardente desejo de encontrar? Guattari, oficiáis do processo aberto. Em 11 de julho, Bifo é
considerado nao extraditável e acolhido na Franga como Bolonha, debate-se por toda parte, sobretudo no Palácio
refugiado político: “Na tarde de minha saída da prisáo, dos Esportes, onde milhares de pessoas vào ao forum
foi redigido um apelo contra a re- pressáoH na Itália para permanente discutir tática, estratégia, aboliçâo do traba-
ser assinado por inte- lectuais franceses” . Bifo, ao ser
246 François Dosse
lho... Das janelas da sede da administraçao de Bolonha,
libertado, instala-se na casa de Guattari, na Rué Conde. os hierarcas do PCI assistem impotentes a essa maré
Ele acaba de conhecè-lo e já o considera como um humana multicoìorida, “Eoi a primeira vez que se viu
“irmào mais velho”1;). Os dois amigos redigerò o apelo urna manifestaçao de 20 mil jovens mulheres que
condenando a repressáo que se abate sobre o faziam o simbolo de seu sexo com a mâo e que
movimento na itália e acusam frontalmente o poder gritavam. Era de urna beleza! Era a primeira vez que se
dernocrata-cristáo, mas também a política de via essa possibilìdade; um poder de mulheres!”, recorda
compromesso histórico do PCI. Essa iniciativa suscita Gerard Fromanger, inebriado17,
de imediato urna verdadeira reapáo de exasperapáo Guattari representa o herói em Bolonha,
nacional do lado italiano, onde os intelectuais e os Considerado um dos inspiradores essenciais do
políticos atacam violentamente os franceses por esquerdismo italiano, eie assiste a esses desfiles na
ingerencia em assuntos que nao conhe- cem e Ihes maior felicidade por ver suas teses se tornarem urna
negam o direito de se erígirem em donos da verdade. força social e politica. No dia seguente ao encontró, a
grande imprensa diària e semanal estampa sua foto na
capa e o apresenta como o iniciador e o idealizador
A reapáo de Bolonha dessa mo- biîizaçao. Guattari se torna de súbito o Daniel
Para reagir contra a política repressiva e retomar a Cohn-Bendit da ìtàlia: “Quando eie caminhava pelas
iniciativa, toda a extrema esquer- da italiana se reúne ruas de Bolonha, todo mundo se precipitava para
para um grande encontró e coloquio na cidade de cumprimentà-ìo, tocà-lo, abraçâ-lo. Era urna coísa
Bolonha nos dias 22, 23 e 24 de setembro de 1977. O louca, inusitada. Era jesús Cristo caminhando sobre as
PCI, que administra a cidade, diz que é provocapao, e águas. Quanto a mim,iS estava multo conterife porque
seu secretário-geral, Enrico Berlinguer, denuncia os recebia aìgumas gotas” . Durante esses très dias, Hervé
"portadores da peste”. Esperavam-se predadores, mas se Maury também se encontra em Bolonha, no mesmo
assiste, ao contràrio, a um encontró de trés dias de hotel que Guattari, Christian Bourgois e Maria Antonietta
dimensóes dantescas para urna cidade mèdia como Macciocchi: “Eu estava com François Pain como
Bolonha, ocupada por 80 mil pessoas na maior calma, Fabrício em Waterloo, nao eslava entendendo nada. Era
sem saques, sem violencia, o que, considerados o clima urna enorme festa de pacificaçâo dos movimentos de
de tensao e a dimensáo da multidao reunida, é urna extrema esquerda, e ao mesmo tempo se desfila diante
proeza. Bifo passa esses tres dias se informando ao da prisâo para libertar os camaradas, e eu vejo de súbito
telefone sobre o que se passa na cidade, para onde nao os jovens sacarem os P-38”19.
pode ir sob o risco de prisáo. Todo o bando de Guattari O editor Christian Bourgois, mortificado pela
está' lá, ñas rúas de Bolonha, em estado de e stupefa- campanha dos italianos contra os intelec- tuais
çâo. Estâo presentes todas as componentes da extrema franceses, decide com Yann Moulier-Bou- tang ir a
esquerda italiana, da ala terrorista à corrente da Bolonha para se explicar, Ele participa dos desfiles ao
autonomia operária, passando pelos “indios lado do líder da Liga Comunista Revolucionária, Henri
Metropolitanos”, pelas feministas, pelos homossexuais, Weber: “Encontramos nessa cidade de Bolonha dezenas
pelas “lésbicas verme- Ihas”... Os militantes do PCI de pessoas dizendo que tínhamos provocado tudo isso,
mant.êm discriçâo na sua propria cidade-símbolo do com um sentimento de medo, nao de nos, mas isso
compro- misso histórico contestado e ainda fornecem podía degenerar, e teríamos sido complemente
alojamento, durante tres dias, a essas dezenas de irresponsáveis. Recebi nesse momento urna grande
miìhares de jovens. Um acordo tácito foi fechado com liçâo de política italiana, pois nâo víamos os
as BR para que evitassero qualquer Molènda. comunistas. Eles estavam nos corredores dos predios ao
Hábilmente, as BR respeitaram esse pacto, mas longo do caminho, nos: pátios internos, A p oficia
aproveitaram de sua manifestaçao de força para recrutar vigíava a cidade, mas ficava fora”™
em massa nessa opor- tunidade única que lhes foi Entre a delegaçâo francesa em Bolonha: encontra-
oferecida de desfilar publicamente na total ìmpunidade: se, portante, Yann Moulier-Boutang,: um instigador
“Isso ocorreu, evidentemente, à nossaK> revelia, nào se essencial da solidariedade: franco-italiana, que muito
havia considerado essa possibilidade” . Durante essas cedo se ligou aos: italianos do movimento autónomo,
très jornadas, circula-se dia e noi- te pelas ruas de no qual: se reconhecia politicamente. Militante atmr
desde 1968 em Censier, em grupos, ele pro* poe já em
1970 receber camaradas italianos) Comunista mais caráter autónomo de seu movimento: essa ideia de
libertàrio, pertence entâo à corrente Cahiers de Mai, autonomia verat dos italianos. Eia: implica levar em
semanário oriundo do movimento de Maio de 68 que consideraçâo a singularldade de cada grupo. Política
será publicado: até 1974. Em 1972, ele organiza um significa também que; cada grupo defina seus objetivos
Gilles Deleuze & Félix Guattari 247

encontró em Jussieu com representantes da Lotta Con- próprios. A partir dessa concepçào, o movimento social
tinua e do Potere Operaio. Entre 1973 e 1974,: é
mobiliza-se em grupos de imigrantes, enfati-; zando o
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 248

concebido nâo em torno de urna imidade for- Apenas dois meses após os acontecimientos
mal, mas a partir da conexáo de multiplicidades, de Bolonha, dois alemâes chegam à sede do
É trabalhando sobre essa apropriaçâo pelo CINEL. Guattari e Fromanger os recebem: “Etes
movimento francés das orientaçoes italianas e nos dizem: gostaríarnos que voces fi- zessem por
militando ao lado de Montesano que Yann nos o que fízeram pelos italianos em Bolonha,
Moulier-Boutang conhece Guattari em 1977 e se pois estamos enìouquecendo”2". Buscam apoio
engaja na criaçâo do CINEL pela libertaçâo : de internacional para mìlhares de comunidades
Bifo. É muito naturai que esteja em Bolonha em alternativas de Berlim cuja vida está cada vez
setembro: “Foi sobre essa questào do apelo de mais difícil devido à tensâo com um Estado que
Bolonha que encontre! Félix pela primeira vez, suspeita de que qualquer marginal tenha ligaçâo
na Rue de Conde’21. Ble viajou com o artista com o bando de Baa- der. Guattari já havia se
Gérard Fromanger. comprometido a ir ao Brasil, para se encontrar
No cortejo, nem todos os componentes têm a com o líder do Partido dos Trabalhadores, Lula.
mesma postura de bom menino: vários mílhares Entâo, recorre ao seu amigo Gérard Fromanger
de brigatistas, com seus bonés de lâ encobrindo a para atender ao pedido dos alemâes.
cabeça e o pescoço, brandem armas. Essa Fromanger, que nâo se sente preparado para
demonstraçâo de força, em última anáüse, foi tal missâo e nâo fala uma palavra sequer de
favorável à recuperaçâo de boa parte do alemâo, qualifica a proposta de Félix de
movimento pelas BR. É verdade que a festa nâo “loucura”, mas se resigna. Toma um aviâo para
degenerou em violências, mas pode- : -se Berlim com um de seus camaradas do CINEL,
considerar esse desafio de Bolonha como um Gilles Herviaux. Na escala em Frankfurt, eles têm
fracasso, pois, para além da euforia do momento, a dimensao do clima de terror que reina na
o encontró nâo ofereceu nenhuma al- Alemanha ao ver fotos de terroristas procurados
■ ternativa clara ao movimento, que foi coladas por toda parte: “Chegamos ao aeroporto
deixado de novo à propria sorte, de novo de Berlim: ninguém. Nós nos perguntamos o que
confrontado com a repressao e com o estávamos fazendo ali. Deviamo s partir de volta
isolamento. quando, vàri as horas depois, vimos no fundo do
aeroporto um sujei- to com um cachecol enrolado
no pescoço que ia até os pés e uma moça de belos
A placa de chumbo na Alemanha cábelos lou- ros encaracolados”23. Sao justamente
0 movimento de contestaçâo na Europa :: seus contatos, e Fromanger e Herviaux se
está às voltas com urna repressao mais intensa, e encaminham até o centro de Berlim para uma
os diversos governos se munem de um : arsenal reunido onde, diante de 60 pessoas, lançam as
jurídico adequado para ter mais eficá- cia em sua bases de uma grande concentraçao em Frankfurt
política repressiva. Na França, é a lei anti para a qual se preve a reuniao de 100 mil pessoas.
depredado res de 8 de junho de 1970; na Italia, Para preparà-la e romper o cerco que pesa sobre
urna lei promulgada pelo presidente da as comunidades berlinenses, trata-se de reunir,
■ República em agosto de 1977, trazando dois meses mais tarde, 1 mil pessoas em Berlina:
novas "disposiçôes em materia de ordem “De fato, somos 27 mil durante très dias e très
pública”, agrava o instrumento jurídico central noites, 1 inventando um código chamado24 de
da re- pressâo italiana: a lei real que data de ‘Tunix (Nâo fazer nada, nâo se mexer)” . Os
1975 e qá permite praticar a detençâo por tempo alternativos de Berlim, permanentemente sob
in- suspeita de terem ligaçoes com a RAF (Facçâo
■ determinado. Resta, portanto, organizar a vi- Exército Vermelho) nâo podiam sequer se mo-
gilancia em face das violaçoes das liberdades, vimentar livremente em seu pròprio bairro, e suas
; e o CINEL, pronto para alertar a qualquer mo- mulheres eram o tempo todo insultadas, tratadas
mento os intelectuais, está atento a qualquer ; de “putas nojentas”. Bastava que se juntassem
eventualidade. très na ma, e a policia sacava suas metralhadoras
leves, revistava-as da cabega aos pés,
encaminhando as mogas para a delegada. Durante esses se nao houve derrapagem de tipo Itália/Ale- 28manha foi
très dias, a polida subitamente e milagrosamente gragas a isso, pois esse era o lugar da catarse” .
desapareceu, e o movimento póde respirar de novo: A propósito Deleuze
dessa questáo dos desvíos terroristas,
“Como pintor, eu tinha inventado um truque com as Éric AUiezGilles
confirma a posigào muito firme de Guattari,
& Félix Guattari 249

cores: 10 mil pequeñas bombas coloridas, quentes e embora Bernard-Henri Lévy o tenha acusado de ter tido
frias. Cada um ficava com duas ou très e toda vez que mais do que fra- quezas pelas posigoes dos terroristas:
passava diante de um tanque: pimba! Díante do muro: “Erapreciso, nos anos de chumbo italianos, por exem-
pimba! Os tanques logo fica- ram todos coloridos. plo, ir a campo, como eu fiz, ñas universidades-; de
Depardon tirava fotos. Félix estava lá, como tarnbém Roma ou de Bolonha, fatar com os possiveis adeptos das
Foucault e Deleuze”'5. Assim como em Bolonha, Berlim Brigadas Vermelhas para dissua-: dí-los de se desviar.
abriga um fòrum permanente no enorme anfiteatro da Mas, discutir diretamente : com os brigatistas, debater
Universidade Politécnica, que chegou a reunir até 5 mil com os próprios: assassinos29 corno fazia Guattari na
pessoas. época, nao, mil vezes nao" . É verdade que Guattari
O CINEL encontra-se tarnbém nos postos nao- condenou publicamente em 1977 e 1978 as agoes
avangados da mobilizagáo de 11977 pela liber- tagáo do dos brigatistas italianos ou da RAF na Alemanha, Esse
ádvogado de Ulrìke Meinhof* , Klaus Croissant, detido silencio parece explicar-se pelo trabalho subterráneo que
na prisáo de La Santé por ocasiao de sua visita a Paris. Guattari realiza para dissuadir, mais do que para
O CINEL decide, junto com a Liga dos Direitos do condenar, os que estivessem tentados a se passar para o
Homem, organizar um encontró no Palácio da Mutualité terrorismo, explicando-lhes a que ponto urna tal escolha
para defender o advogado, A sala fica superlo- tada: 6 é grave para os outros e conduz a envenenar a sì mesmo.
mil pessoas. Contudo, essa mobilizagáo nao é suficiente Ele teria, portanto, desem- penhado um papel importante
para impedir a extra di gao de Croissant, solicitada pelas nesse plano e principalmente em seu apartamento da
autoridades alemas: “Em um corredor estrito do Palácio Rué de Conde que nesses anos é a rota de passa- gem de
da fustiga de Paris, estávamos amontoados desde o ini- todos os margináis: “A forma como Félix abrigou,
cio da tarde diante da porta da sala precavidamente acolheu essas pessoas! Félix me di- zia: ‘Estou me
abarrotada de policiais em trajes civis, onde a Corte de lixando que eles nos espionen!. Ele acolhia pessoas
Apelagao deveria se pronunciar publicamente sobre o perseguidas como ratos e tentadas pela luta armada.
recurso do refugiado Klaus Croissant recusando sua Acrescentava: A gente deveria ser reembolsado pela
extradigáo para a Alemanha. Era impossível entrar, previdencia social’”'10. Outro companheiro de Guattari
entáo por que ficar ali? Cabisbaixos, alguns se reti- ñas mobilizagoes do CINEL, Jean Chesneaux, confirma:
raram discretamente. Mas isso estava fora de questáo “Se as aventuras armadas estilo Brigadas Vermelhas ou
para Félix, cavalo de batalha, um gracejo nos lábios e os Facgáo Exército Vermelho forana evitadas na Franga,
óculos prestes a voar. Éramos algumas dezenas os que, isso se devia em boa parte aos seus contatos terapéuticos
como ele, persistimos durante longas horas, para nao com os margináis e os autónomos tentados pela vio-
ceder, para no final ficar sabendo que o recurso havia lencia direta. Félix me disse aliás que convivía com
sido rejeitado. Assim era Félix,,. Estava sempre pronto a essas pessoas intencionalmente, pois, ao invés de
fazer datudo”~CNa noite da extradigáo, um pequeño fabricar seus coquetéis Molotov, ele os colocava no seu
grupo chega à sede da Ligai dos Direitos do Homem diva de psicanalistá’31.
para protestar diante da prisáo de La Santé. Desse grupo
fazerri: parte alguns advogados, como Jean-Jacques de
Felice e Michel Tubiana, assim como Foucault. Os anos de chumbo italianos
No decorrer das reunieses do CINEL, na Rué
Vaugirard, um bom número de con testadores, durante a A execugáo pelas Brigadas Vermelhas do presidente
mobilizagáo contra a extradigáo de Croissant, comegava do conseího, Aldo Moro, em 1978, acentúa a repressao e
a tomar como exemplos as posturas terroristas das BR reforga os processos judi- ciais na Itália. O CINEL ainda
italianas ou do bando de Baader na Alemanha, o que o se encontra nos postos avanzados. É o caso quando as
jurista Gerard Soulier deplora na época. Ele se abre:: autoridades judiciárias italianas pedem a extradigao de
com Guattari sobre o problema de consciencia que ìhe Franco Piperno, preso em París em 18 de se- tembro de
cria esse desvio, confessa-lhe que nao pode e náo quer 1978, e de tanfranco Pace, suspeitos de estarem ligados
seguir em hipótese nenhuma, e se diz prestes a deixar o ao assassinato de Moro. O mandado nao foi aceito, e um
CINEL: “Félix meé diz; ‘De jeito nenhum, é multo último pedido de extradigao é justificado em nome de
importante que voce fique. E eu compreendi nesse delitos de direito comum. Todavía, nao há nada nos au-
momento que ele estava fazendo psicoterapia coíetiva, e tos, pois esses militantes italianos nunca tive- ram
ligagáo com os meios terroristas. Na Itália, um apelo aos O CINEL envia seus militantes para visi- tarem Toni
magistrados italianos é assinado por numerosas Negri e Oreste Scalzone na prisáo. É um momento de
personalidades, entre as quais Leonardo Sciascía, intensa atìvidade para o CINEL, que se vè confrontado
Alberto250Moravia, Umberto Eco, etc. Na Franga, o
François Dosse
com o nùmero crescente de pedidos de extradigao e de
CINEL coleta assinaturas contra a extradigao32. Piperno, pri- sòes: ‘Agregam-se juristas ao CINEL, advoga- dos:
antigo militante do Potere Operaio, seria preso antes de Jean-Pierre Mignard, Jean-Denis Bredin, Georges
se tornar o que é hoje, professor da universidade de Kiejman, o juiz Yves Lemoine, alguns do PS, como
Catane e grande físico nobelizável François Loncle e o senador Par- mentier. A gente se
O caso mais rumoroso nesse final dos anos 1970 é a mobiliza, colhe assinaturas de textos, interpela as
detengao de outro antigo dirigente do Potere Operaio, personalidades, desmonta peças de acusaçâo”36.
Toni Negri nao tem mais liga- gao com o meio terrorista Imediatamente após sua detençâo, quando o
dos brigatistas. Amigo de Gianmarco Montesano, é, processo ainda nao foi iniciado, Deleuze defende a
como ele, par- tidário da autonomia operária. Filósofo, inocèncìa de Toni Negri em urna carta aos juízes,
Toni Negri tem a estatura de um líder político impor- publicada em La Repubblica, em 10 de maio de 197937.
tante, já autor de várias obras. Chega a París em 1977 e Surpreende-o que se possa perseguir alguém e
através de Montesano encontra Guattari, que no encarcerà-lo serri que se tenha nada de palpável no auto
momento prepara o encontró de Bolo- nha. Seus textos, de acusaçâo e faz urna analogia - retomada mais tarde
embora nao defendam as BR, nao deixam de exaltar a por Carlo Ginzburg quando do processo de seu amigo
violencia armada. Adriano Sofri - com os interrogatorios feitos pela
Pesa sobre Toni Negri um mandato de pri- sáo como ïnquisiçâo. Deleuze enuncia alguns principios: ‘Antes
líder do grupo Autonomia e mais particularmente do de tudo, a justiça deveria3S se conformar a um certo
grupo Rosso de Miláo. Professor de ciencias políticas e principio de identida- de” . Entretanto, nesse caso, a
sociais na universidade de Pádua, ele teve de fugir para acusaçâo nâo dispôe de provas palpáveis para
escapar à prisáo, primeiro para a Suíga, onde fundamentar seus processos. Em segundo lugar, o
permaneceu apenas trés meses, depois para París, onde inquérito e a instruçâo devem ser sustentados por um
chegou em setembro de 1977. Ele encontra refugio na mínimo de coeréncia, segundo o principio de disjunçâo
casa de Guattari, na Rué de Conde. Tornam-se amigos, ou de exclusâo, enquanto a acusaçâo “procede por
e Toni Negri costuma passar seus fins de semana em inclusâo, adicionando os termos contraditórios"39.0
Dhuizon, próximo de La Borde. acusado nao pode ter estado em um lugar e em outro ao
Yann Moulier-Boutang o convida entáo, por meio mesmo tempo, como afirma a imprensa italiana, que
de Louis Althusser, para coordenar um seminàrio sobre atribui a Toni Negri um dom de ubiquidade, pois ele es-
os Grundrisse de Marx na ENS, publicado em 197933. taría presente no mesmo momento em Roma, Paris e
Toni Negri também assiste às aulas de Gilles Deleuze Miláo. Finalmente, Deleuze responde por antecipaçâo às
em Vincen- nes: “Ouvir Gilles Deleuze era urna espécie críticas veementes feitas pelos italianos aos intelectuais
de ìimpeza do que estava predeterminado no meu franceses, acusándolos, a propósito do documento de
cerebro... Tornei-me espìnosista no decorrer de suas Bolo- nha, de se imiscuírem naquilo que nâo Ihes diz
aulas”31, Em 1978 e 1979, Negri comete a imprudència respeito, assinalando que “Negri é um teórico, um
de dividir seu tempo entre a Franga e a Itália. Até que intelectual importante tanto na Franga como na Italia”40.
em 7 de abril de 1979 é preso pelas autoridades Pouco depois, por ocasiáo do langamento pelo editor
italianas, assim como Oreste Scalzone, outro líder do Bourgois em 1979 da obra de Toni fiegri, Marx, au-
Potere Operaio: sao acusados de serem a fachada legal delà de Marx,
das BR e de estarem envolvidos no assassinato de Aldo Deleuze volta à carga no Le Matin de Paris para
Moro. Sào encaminhados imediatamente à “prisáo reafirmar a inocència de seu autor. Ele convida os
especial”, o equivalente dos QHS (quar- téis de alta juízes que investigam sobre as intengòes de Negri e seu
seguranga) franceses. Ele Picará encarcerado quatro grau de envolvimento no caso Moro a ler41 sua obra, que
anos e meio, e, ao final do processo, em 1983, o tribunal “é literalmente urna prova de inocencia” , pois as teses
do juri de Roma o condena a 30 anos de prisáo, e defendidas atestare que ele só pode ser hostil a um tal
Scalzone, a 20 anos, por constituigào de associagào assassinato,
subversiva e de grupo armado. O CINEL, evidentemen- Guattari vai diversas vezes á ítália para visitar Toni
te, com Guattari à frente, se mobiliza de pronto: “A Negri na prisáo, e os dois homens se correspondem
ideia de que Negri seja chefe das BR é táo ridicula durante mais de quatro anos.- Essa ligagáo mantida
como se alguém dissesse que em 1937 Trotski era chefe gragas à escrita é, sobre- tudo, um grande conforto para
da KGB”33. Negri, que se impacienta e se desespera na prisáo. Em
maio de 1980, Guattari faz urna nova visita ao t» -A 1
»49
prisionei- ro Negri e lhe sugere urna troca de cartas ha* E urna construgao interna ,
mais regular. Dois meses depois, Toni Negri lhe expri- Les Nouveaux Espaces de Liberté é publicado em
me sua prostragáo: “Estive bem mal - comego a me Gilles Deleuze & Félix Guattari 251
1985. Comega por defender o “comunismo”, um termo
sentir cansado na prisao e de estar em urna situagáo marcado de infamia, mas deixando claro que, “de nossa
psicológica42 que acaba se transformando em parte, nós o concebemos como a via de urna libertagáo
preguiga.” No final do ano de 1980, Toni Negri é das singularidades individuáis e coletivas"50. A ruptura
transferido para aprisáo de Rebibbia em Roma para ser em relagao ao esquema marxista tradicional consiste em
submetido aos primeiros interrogatorios desde sua afirmar 51que “comunidade e singu- laridade nao se
detengáo, isto é, depois de 17 meses de opóem” . Esse ensaio reafirma o enraizamento da
encarceramento... Ele acaba de 1er na prisáo a última experiéncia naquílo que se passou em 1968 e que dá o
obra de Deleuze e Guattari: “Li, finalmente, quase título j2ao segundo capítulo: “A revolugao comegou em
inteiro, Mil Platós. É um livro importante, talvez o 1968” . O movimento de Maio de 68 nao foi so mente
mais 43importante que eu tenha lido nos últimos 20 um movimento de emancipagáo política, mas a ex-
anos” . pressáo de urna verdadeira vontade de liberta- gáo, ao
Para ajudar o amigo a suportar o choqué, Guattari mesmo tempo radical e plural.
lhe propoe em 1982 escrever um !í- : vro a quatro maos O que alguns chamam de morte do político nada
com base em sua corres-\ pondència. Toni Negri aceita mais é que o parto de um novo mundo, de urna nova
com prazer essa proposta que permite tirá-lo da política: o sucesso da reagáo nos anos de 1970, a apar i
morbidade da; vida carcerària e espera assim se gao de um “No Future, ligado ao estabelecimento de
beneficiar da experiencia de escrita comum de que um CMI que im- póe sacrificios ao conjunto do planeta.
Guattari já dispoe com Deleuze: “Voce tem mais expe-; Com o CMI, os individuos em geral sao mais subyuga-
riència que eu no que se refere ao trabalho em; : dupla, e dos á medida que incapazes de localizar o poder. O
creio que a montagem final é voce que deve fazer”44. mercado mundial é apresentado como um instrumento
Em junho de 1983, Toni Negri é libertado antes de eficaz de “enquadramento” da pobreza, de “contengáo”
urna condenagáo formal, por ter sido: eleito deputado da marginalizagao. Apesar desse enquadramento do
europeu do Partido Radical italiano. No momento em universo social em escala mundial, a revolugao, e
que deixa a prisáo, a classe política se mobiliza para portanto a esperanza, náo acabou.
obter a sus-; pensáo de sua imunidade parlamentar, O final da obra é constituido por duas con-
Con-; vencido de que será mandado novamen te para a tribuigóes pessoais, urna de Guattari sobre “Liberdades
prisáo, Toni Negri recorre a Guattari. Em se- tembro de na Europa” e a outra de Toni Negri, “Carta
1983, urna maioria de quafcro votos - 300 votos contra arqueológica”. Mais urna vez, pode- -se ter a medida do
296 - se pronuncia no Parlamento italiano pela retirada que, para além de sua luta comum, distingue urna
de sua í mu ni da- de parlamentar: “Parto para a abordagem aberta a questionamentos profundos em
Córsega em um15 navio que muito provavelmente foi Guattari e urna vontade de se agarrar a qualquer prego á
pago por Félix'“ . Ele entra clandestinamente em París, tradigáo revolucionária clássica em Toni Negri. Guattari
com a ajuda de Gerard Sculier e Guattari. explica que suas lutas em defesa dos direitos de Bifo,
Ele prossegue entáo face a face com Guattari o Croissant, Piperno, Pace, Negri o levaram a rever seu
trabalho já bem avanzado do livro comum: “De 1983 a julgamento “sobre a importancia que se devia atribuir a
1987, eu me chamava Antoine Guattari, Era ele que essas liberdades pretensamente formáis e que me
pagava tudo. Mudei-me da Place d’Italie para o parecem hoye como inteiramente inseparáveis de outras
Boulevard Pasteur, depois para a Rué Monsieur-le- liberdades de ‘terreno”'58. Guattari se congratula com o
Princé'46, para apartamentos que Guattari conseguía: papel positivo que desempe- nham na Franga
“Félix realmente me assistiu como um irmao. Ele me organizagóes como a Anistia Internacional, a Liga dos
ajudava por toda parte”'1'. A Rué Condé continua sendo Direitos do Homem, France Terre dÁsile, a Cimade*.
a rota de passagem do movimento. É lá que Toni Negri etc. Ele suge- re faíar “de graus de liberdade, ou54melhor,
conhece Daniel Vernet, jornalista do Le Monde, Serge de coeficientes diferenciáis de liberdade” . Essa
July e Régis Debray: “Foi lá que se construiu a pluraíizagáo da nogáo de liberdade soma-se á
‘doutrina Mitterrand’48. Nao é urna tomada de p o si gao preocupagao de náo apresentar o Estado como um
externa a propósito da Itá- monstro exterior á sociedade - o poder, como o
1 N. de T.: Organizaçâo ecumènica de defesa dos direitos dos
migrantes.
desenvolveu Foucault, está por toda parte, e antes de o defendo”“1. François Pain é processado em
tudo em a5nós mesmos, e “é preciso ‘se virar com o que firimeiro,lugar em nome da lei antidepredadores: seu
se tem”’252. François
Já Negri, em sua contribuigáo, se permite encarceramento dura quatro meses e meio. Seu amigo
expressar seu apego Dosse
inabalável ao leninismo. Guattari, que o visita regularmente na prisao da Santé,
Se a repressáo e o reforgo do arsenal náo cresceram decide lançar, simultaneamente à campanha por sua
na Franga no mesmo grau que na Alemanha e na Itália, libertaçâo, urna batalha contra a detençâo preventiva
náo foi por urna anco- ragem mais sólida na tradigáo que permite ao juiz manter François Pain na prisao por
democrática. Simplesmente, a Franga náo conheceu ver- seis meses antes da abertura do processo. O Instituto
dadeiros movimentos terroristas, fora alguns margináis. Nacional do Audiovisual, onde François Pain trabalha,:
Contudo, a vontade de erradicagao do perigo in- tervém em sua defesa, e o CINEL multiplica os
esquerdista, a lei antidepredadores de yunho de 1970 e a testemunhos de moralidade: “Ri muito quando me
repressáo brutal de certas manifestaçôes na França contaram que Jean-Luc Godard quería tes* temunhar
contrìbuiram para que o dima internacional dos anos de com urna pedra de açùcar roubada em um bistro e jogá-
1970 ad- quirisse o caráter pesado de anos “de la no juiz. O juiz a pegaría, e ele, ;,sdiria: ‘É urna
chumbo”. receptaçâo, pois o açucar foi roubado ” . A campanha
Em 19 de setembro de 1979, um dos me- Ihores de opiniâo funciona bem, e nâo hà um dia sequer sem
amigos de Guattari, o cineasta François Pain, é derido e mençâo ao caso na imprensa. Em fevereiro de 1980,
preso. É perseguido por fa tos que remontam a mais de François Pain pode finalmente deixar a prisâo. Con-
seis meses: partici- pou da manifestaçâo dos vencido de que era o verdadeiro alvo através de seu
metalúrgicos de 23 de março de 1979 que acabou em amigo, Guattari pagou-lhe, a ele e à sua companheira
confrontes e pancadaria. François Pain se viu entre a Marion, “urna estadía56 de 15 dias no sul do Marrocos
République e a Opéra no bulevar saqueado por “au- para [Ihe] dar prazer” ,
tónomos” que quebraram e pilharam todas as vitrines Em 1979, Guattari é visado pessoaimente, desta vez
das lojas luxuosas. François Pain, que caminha entâo por urna operaçâo policial que procede a urna
pela calçada diante da loja Lan- cel, recebe urna bolsa investigaçâo em La Borde no àmbito ! do inquérito
na cara e, quando a pega nas mâos para examinar a na sobre o sequestro do bilionàrio Henri Lelièvre por
tu re za do projétil, é fotografado no meio de um grupo Jacques Mesrine, o ìnimigo público número um. A
de enca- puzados. Essa foto aparece no semanàrio de policía nâo encontra : nada, o que nao impede o diàrio
extrema diretta Minute. Já bem condecido da policía por L'Aurore de dar a mánchete, da autoria de Pierre
suas ligaçôes com os esquerdistas italianos, como Dumas, “A via esquerdista”, e de pretender revelar as
também por sua açâo em favor das radios livres, é reiaçôes entre determinados bandidos e o meio esquer-
imediatamente identificado e preso pelo roubo de urna dista! Esse jornal destaca o caso de um certo.; Charles
bolsa que a policía jamais encontrou! Bela oportunidade Bauer que Guattari teria ajudado a se reinserir a pedido
de fa2er Guattari pagar, por intermèdio de François de seu amigo Pierre Goldman, e que depois se tornou
Pain, por suas atividades de apoio aos italianos. cúmplice de Mesrinc.
Quando do interrogatorio, François Pain está
convencido de que o prenderam porque estava voltando
de Roma onde havia ajudado a por em abrigo alguns Do bobo da corte à
militantes procurados pela policia italiana. “Quando me liberaçâo das ondas
apresentam a foto da bolsa, foi um alivio... Dou urna
garga- lhada!”'% O CINEL entra em açâo sem demora, e Em março de 1980, o Charlie-Hebdo lança a ideia
a defesa de François Pain é assumida por Jean-Pierre de urna possível candidatura de Coluche* à eleiçâo
Mignard e urna assistente de Georges Kiejman. Em presidencial. Em outubro de 1980 o
urna das reuniôes do CÏNEL, uns e outros, muito
exaltados, fazem as propostas mais esdrúxulas para
chamar a atençâo da opiniâo pública, A urna certa
altura, alguém no fundo da sala grita: “Grana para
Pain!”. Guattari comenta: “Genial, é exatamente a
campanha que vamos fazer”. François Aubral recorda
que nesse momento “o tipo que está ao meu lado me
diz: ‘Escute, se continuarem assìm, eie vai passar o
resto da vida na prisao, sou Henri Le- crerc, sou eu que
1a N. de T.: Comedíante de sucesso.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 253

que era inicialmente apenas urna brincadeira, No final dos anos de 1970, fazer urna emis-
assume oufcro contorno: as primeiras sonda- sâo de urna ràdio nâo autorizada pelo Estado, o
gens revelarn que as întençôes de voto em Co- que é o caso de algumas rádios privadas, como
luche situam-se em torno de 17%. Para ir até o Europe 1, Radio Luxemburg ou RCM, é um ato
fim, é preciso reunir 500 assinaturas de elei- tos. delituoso passível de severas medidas judiciais.
Se para os grandes partidos políticos isso é mera François Pain, especialista nessas tecnologias,
formalidade, para os candidatos sem apoio está bastante envolvido, junto com seu amigo
partidário nâo. Nesse més de outubro de 1980, o Guattari, na implantaçâo riessa rede alternativa
jurista Gérard Soulier recebe uni telefonema de que difunde à revelia da policía: "Criei urna rede
seu amigo Guattari: " - Voce nâo pode imaginar, de fornecimento de emissores de ràdio que
me diz... Ele nâo ia direto ao assunto... - O Gilíes passavam clandestinamente, viudos da Itáliá’6'1.
Deleuze me ligón... Sabe o que ele me disse? A rede italiana està ligada, é claro, à Radio Alice
Que apoia a candidatura de Coluche!”60. Gérard em Bolonha, onde um técnico muito competente
Soulier fica radiante com isso. Nâo apenas fabricava excelentes emissores, que François Pain
aprecia, e muito, o humor de Coluche, como recebe regularmente na estaçâo ferroviària de
esperava secretamente por essa candidatura havia Lyon,
pelo menos seis meses. Soulier começa entâo a Tâo logo detectadas, as emissôes das rádios
redigir a famosa peti- çâo do "candidato dos livres sâo distorcidas pela policía. Contudo, o
nulos”. número délas cresce, as iniciativas proìiferam,
Toda urna série de in telectuais, por trás dos atestando um real desejo de tomar a palavra, dez
duetistas Deleuze e Guattari, adere a Coluche, anos após Maio de 68. Guattari simpatiza com
sobretudo a rede do CINEL e, em particular, Je- um profíssional muito envolvido na luta pelas
an-Pierre Paye: "Félix manda me chamar e me rádios livres, que em setembro de 1977 criou a
diz: A gente decidiu com Gilles apoiar o direito à Associaçao pela Liberdade das Ondas (ALO). A
candidatura de Coluche. A direita dizia que associaçao divulga um apelo em favor da
Coluche arruinarla a França, a esquerda dizia que liberalizaçâo das ondas assinado por 18
a arruinaría, e ele precisava de suas 500 as- personalidades, entre as quais Deleuze, Guattari e
sinaturas. Respondí: ‘Coluche? Quem é?’ e ele Foucault De sua parte, François Pain consegue
replicou; ‘É o Père Duchesne”6!L Jean-Pierre agregar as pequeñas rádios associa- tivas a partir
Paye, autor de urna obra sobre o Père Duchés- ne, de um grande encontró entre as rádios emissoras
sabe muito bem a que ponto o personagem pode que se realiza em 1978, Desse encontró, nasce
ser corrosivo para o sistema político francés. Ele urna associaçao, a ALFREDO, que agrega essa
concorda e passa a participar ati- vamente das miriade de pequeñas redes6"1. Tendo-se tornado
reunioes com Coluche. majoritária no movimento das rádios livres, a
Para compreender esse engajamento e a força corrente que se reconhece nas posiçôes de
de sua dinámica, deve-se recordar a pane política Guattari funda a Federaçao Nacional das Rádios
desse o uto no de 1980, com a quase certeza da Livres Nâo Comerciáis.
reeleiçao para sete anos de Valéry Gis- card- Um dos filhos de Guattari, Bruno, que tem 20
d’Estaing, Acredita-se que François Mitterrand anos em 1978, também se lança nessa aventura.
está prestes a repetir a derrota de 1974, Em 1979, enquanto a repressâo se abate sobre
aparentemente incapaz de forçar o destino da qualquer tentativa de ràdio livre, Bruno apro-
esquerda. Para alguns, a soluçâo é rir, e é esse o veita a autonomia universitària de jussieu para
sentido da dinamica efémera que acompanha a criar urna ràdio local. A partir dessa experiencia
candidatura de Coluche: "Coluche chega entâo62e de pequeño alcance, eie amplia suas ambiçôes
vira um bobo da corte, porque ele tem talento” , 1N. de T.: le Père Duchesne é o título de um jornal que sur- giu
explica Paul Virilio, que encontra Guattari nessa durante a Revoluçâo Francesa, e que foi utilizado por mui tos
ocasiâo e que se tornará seu editor. autores. O personagem que dá nome à publicaçâo representa o
homem do povo, sempre empentado em denunciar os abusos e
as injustiças.
com a Radio Paris 80, que atinge seu público e à quai bastante conséquente, e Gisèle Donnard, militante ativa
ele fornece o material. Quando Félix Guattari e François do CINEL, cuida um pouco desse setor por ocasiâo de
Pain criam a Radio Libre Paris, que se torna, em debates regulares sobre a Polònia, sobre a guerra do
dezembro de 1.980, a Radio To- mate, Bruno Guattari
254 François Dosse
Líbano, sobre a questâo árabe-israelense. Contudo, o
cuida da programaçâo. material: nâo tem a qualidade necessària para permitir
0 aparelho repressivo é reforçado: a lei de julho de urna boa escuta, e o alcance da recepçâo aínda é
1978 prevê urna multa de 10 mil a 100 mil francos para pequeño, se bem que a Radio Tomate jamais
qualquer infraçâo, acrescida de urna pena de prisâo de conquistou o público que poderia atingir.
um mes a um ano. Essas medidas nâo refreiam a Essa experimentaçâo nas ondas corresponde, no
determinaçâo daqueles que querem liberar as ondas. A entanto, a um prolongamento na pràtica das teses
efer- vescência chega ao ápice com o grande festival enunciadas por Deleuze e Guattari. Hà ali, de fato, um
“Anti-Brouille 78” [Antidistorçâo], organizado durante modelo de ins- criçâo rizomática transversal que rompe
o verâo de 1978 no parque de Hyères, onde os com as lógicas, sejam estatais, sejam comerciáis. Como
participantes podem assistir gratuitamente a 48 horas em todo rizoma, as conexoes podem se produzir em
ininterruptas de música com a participaçâo dos qualquer ponto, o que proporcio- ■ na cartografías
melhores cantores do momento, como Jacques Higelin, bem surpreendentes e sempre origináis, como a que liga
Téléphone... Contudo, para multas pequeñas estaçôes, a Radio Bastille à sua i vizinha Radio Onz’Débrouille,
os riscos sâo excessives, e elas se veem forçadas a que, por sua vez, colabora com a Radio Fíi Rose:
abandonar a parada no outono de 1978 ou passar à “Graças a essa .
cìandestinidade. Quanto às personalidades como organizaçâo rizomática que engloba estaçôes e
Guattari, está fora de questâo para o poder cobrir-se de individuos, o movimento de rádios livres de-
ridículo, jogando-as na prisâo, mas elas nao se livram senvoIveu'Se como urna verdadeira máquina de guerra
dos tribunais. Um advogado amigo de Gérard Soulier, no campo audiovisual"6'.
Michel Tubiana, futuro presidente da Liga dos D ireitos Quando François Mitterrand é eleito presidente da
do Homem, assume a defesa da maioria dos casos República, em 10 de maio de 1981, decide abrir as
relacionados às rádios livres: “A gente os ridiculariza ondas, o que beneficia todos aqueles que falavam na
frequentemente. O correa mais de urna vez de se dar sombra. Contudo, outros problemas surgem. É preciso
urna entrevista, ao sair da audiencia, com urna ràdio principalmente operar agrupamentos para continuar
emissora no carro. Vou me íembrar para o resto da vida emitindo. Com quem a Radio Tomate é chamada a
o que se passou na 17a Cámara Correcional Fizemos coabitar? Um primeiro projeto designa a Radio J [Rádio
desfilar urnas 40 testemunhas, e a sessâo, que havia Judaica], mas há pro-palestinos demais na Radio
começado às 13h50, só termino« às 23h. O advogado da Tomate para que esse casamento funcione sem atritos.
TDF [Télédiffusion de France], que reclamava perdas e De- pois, é a Radio Solidarnosc, “mas lá eram os
danos, termina sua argumentaçâoa pedindo um franco antissemitas, e a coisa terminou em panca-
simbólico de indenizaçâo. A 17 Cámara é urna sala daria... Finalmente, encontramos um lugar só para
bem comprida e está abarrotada de gente; entáo, al-
/ »68

guém joga urna moeda de 1 franco do fundo da sala em nos .


direçâo ao advogado e eia vai 65rolando até cair aos Urna hipótese mais séria pesa sobre a concepçâo
seú^pés! Mq¡mento muito lúdico” . associativa das rádios livres, com a chegada em massa
Criada no final de 1980, em plena cam- panha nas ondas de rádios comerciáis, cujos recursos sao bem
presidencial, a Radio Tomate agrega principalmente outros: “Na superficie do aquário, estáo os peixes
militantes do CINEL: *A gente transmite inicialmente miúdos dos radio maníacos, mas69 abaixo estáo os gran-
da cozinha do Félix, até encontrar urna espécie de des tubaroes da publicidade” . Para defender sua
adega no 66edificio da Fondation de France, na Rue concepçâo de rádios de experimentaçâo social, Guattari
Lacépède” . A ràdio transmite 24 horas por dia e convida o ministro da Cultura, Jack Lang, com o quai
difunde ao mesmo tempo animaçôes culturáis sobre mantém boas relaçôes, para debater ao vivo na Radio
cinema, música, teatro e programas mais so- Tomate com ele, Jean-Pierre Faye e François Pain. Parte0
ciopolítieos de debates e de anàiise. Guattari tem um do debate é publicada em La Quinzaine Littéraire
horario reservado na programaçâo, consagrado aos Nesse final do ano de 1981, o ponto de vista do ministro
debates políticos, na segunda- -feira à tarde. Podem-se e o de Guattari nao estáo muito distantes: “Esta nao
ouvir também repor- tagens sobre os squatters* ou pode ser a líberdade da raposa no galinheiro... Sim à
ainda sobre o africano que anima a noite com ‘A árvore líberdade desde que nao seja em proveito dos
de palavras”*®. A parte dedicada à informaçâo é
poderosos, que seja urna liberdade para aqueles que 13. Encontram-se no CINEL, ao lado de Félix Guattari, entre
inventam ou têm coisas a dizer”71. outros, o jurista Gérard Soulier, o pintor Gérard Fromanger,
A conquista de liberdades novas também passa por Yann Mou- lier-Boutang, Éric Alliez, Jean-Pierre Fayejean
cima do muro que separa o mundo comunista e a Chesneaux e Gilles
Ciliés Deleuze.
Deleuze & Félix Guattari 255

Europa Ocidental. No final dos anos de 1970, muitos 14. Franco Berardí (Bifo), entrevista com Virginie Unhart.
dissidentes soviéticos e da Europa do Leste encontram 15. Ibid.
refugio na França. O CINEL e o CERFI contribuem 16. Franco Berardi (Bifo), entrevista com Virginie Linhart
para difundir o relato de sua experiencia nos campos de 17. Gérard Fromanger, entrevista com o autor.
18. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Linhart
concentraçâo. Inclusive um número da revista 19. Hervé Maury, entrevista com o autor.
Recherches será dedicado a isso, sob a responsabilldade 20. Christian Bourgois, entrevista com o autor.
de urna soviética nascida em 1936 em Moscou, Natalia 21. Yann Moulier-Boutang, entrevista com Virginie Linhart.
Gorbanevskaía, incumbida de reunir os textos77. 22. Gérard Fromanger, entrevista com o autor.
O CINEL representou para Guattari a pos- 23. Ibid.
sibilidade de demonstrar a eficácia de urna 24. Ibid.
micropolítica, dotando-se de suportes orga- nizacionais 25. Ibid.
mínimos e simplesmente ligados à aqáo, com isso 26. Ulrike Meinhof foi considerado o cérebro da RAF. Nascido
abandonando esquemas tra- dicíonais. Foi o equivalente em 1934 em Oldenburg, estu- dou filosofía, sociología e
político do CERFI, cuja atividade era voltada ás pedagogía nos anos 1950. Torna-se jornalista e participa da
ciencias humanas. Um pouco à rnaneira do movimento liber- taçâo de Andreas Baader em 14 de maîo de 1970,
de 22 de marqo, trata-se de um agrupamento de como também de alguns atentados.
personalidades vindas de horizontes diferentes em torno 27. jean CHESNEAUX, L’Engagement des intellectuels 1944-
de um objetivo comum, no caso servir de desmancha- 2004. Itinéraire d'un historien franc-tireur, Privât, Toulouse,
prazeres no clima pesado dos anos de chumbo. Sem 2004, p. 259-260.
urna verdadeira organizado, sem programa, mas 28. Gérard Soulier, entrevista com o autor,
simplesmente com um local regular de reuniáo, a 29. Bernard-Henri Lévy, entrevista com Éric Cenan, Denis
“máquina” CINEL conseguiu sensibilizar e mobilizar, Jeambar e Renaud Revel, L’Express, 10 dejaneiro de 2005.
mas também provar sua eficácia política em certas 30. Éric Alliez, entrevista com o autor.
situaqoes de urgéncia. 31. Jean Chesneaux, entrevista com o autor.
32. Entre os inúmeros signatarios, além de Félix Guattari e
Gilles Deleuze, estâo Gérard Soulier, Pierre Halbwachs,
Notas Claude Bourdet, Georges Casalis, Louis A^âgon, Louis
1. Potere Operaio data de 1969, mas se autodis- solveu em Althusser, Christian Descamps, Jean-Claude Polack, Daniel
1973. Essa organizado, que teve urna infiuèncìa real, tinha Guérin, Jack Lang, Jean-Pierre Paye, Michel Tu-i biana,
como dirigentes, entre outros, Toni Negri, Oreste Scalzone, Christian Bourgois, Alain jouffroy, Yann Mouiier-Boutang,
Franco Piperno, Nanni Balestrini, Sergio Bologna. Lotta Jérôme Lindon, Gérard Fromanger, Mony Elkhaïm, jean-
Contìnua, surgida na mesma epoca, também se jacques Lebel, Daniel Colm-Bendit, René Schérer, Bernard"
autoliquidou um pouco mais tarde, em novembro de 1976, Noël, Matta, Jean Chesneaux...
2. Fabrizio CALVI, Italie 77, le “Mouvement", les intellectuels, 33. Toni NEGRI, Marx, au-delà de Marx, Christian Bourgois,
Seuil, Paris, 1977, p. 29, Paris, 1979.
3. Isabelle SOMMIER, La violence politique et son deuii 34. Toni Negri, “Surpris par la nuit”, programa de Alain
Uaprès-68 en France et eri Italie, PUR, Rennes, 1998, p. Veinstein, France Culture, 23 de abri! de 2002, arquivos do
102. INA.
4. Fabrizio CALVI, Italie 77, le '‘Mouvement1 les intellectuels, 35. Yann Moulier-Boutang, entrevista com Virginie Linhart.
op. cit, p. 34. 36. Gisèle Donnard, entrevista com Virginie Linhart.
5. Félix GUATTARI, prefácio, COLLECTIF A/ 37. Gilles DELEUZE, “Lettera aperta ai guidieri di Negri", 10
TRAVERSO, Radio Alice, radio libre, ed. Jean-Pierre de maio de 1979; reproduzida em Gilles DELEUZE, RE p.
Delarge, Paris, 1977, p. 6, 115-159.
6. Franco Berardi (Bifo), entrevista com Vìrginie Linhart. 38. Ibid., p. 156.
7. Ibid. 39. Ibid, p. 157.
8. Les Untorelli, Recherches, n. 30, novembro de 1977, p. 19. 40. Ibid, p. 158.
9. Franco Berardi (Bifo), entrevista com Virginie Unhart. 41. Gilles DELEUZE, Le Matin de Paris, 13 de de- zembro de
10. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie Unhart. 1979; reproduzido em Gilles DE- i LEUZE, RE p. 161.
11. COLLECTIF A/TRAVERS0, Radio Alice, radio libre, op. 42. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 18 de julho de 1980,
cit. Trani, arquivos 1MEC.
12. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie Linhart.
43. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 28 de novembre de querda que tinham rompido com seu passade dos “anos de
1980, Roma, arquivos IMEC. chumbo”.
44. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 10 de julho de 1982, 49. Toni Negri, entrevista com o autor.
256 François Dosse
Rebibbia, Roma, arquivos IMEC. 50. Félix GUATTARI, Toni NEGRI, NEL, p. 7.
45. Toni Negri, entrevista com o autor. 51. Ibid., p. 12.
46. Ibid. 52. Aid., p. 15.
47. 'Ioni Negri, entrevista com Virginie Linhart. 53. Ibid., p. 98.
48. A chamada “doutrina Mitterrand” refere-se ao compromisso 54. Ibid., p. 103.
do presidente da República, François Mitterrand, em 1985, 55. Ibid., p. 108.
de nâo extraditar antigos militantes italianos de extrema es-- 56. François Pain, entrevista com o autor.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 257

57. François Aubral, entrevista com o autor, 66. Gisèle Donnard, entrevista com Virginie
58. François Pain, entrevista com o autor, Linhart.
59. Ib id-, 67. Matthieu DALLE, “Les radios libres, utopie
60. Gérard Soulier, entrevista com o autor. deieuzo-guai:tatie n ne", French Cultural Studies,
vol. 17, n. I, fevereiro de 2006, p. 67.
61. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. 68. François Pain, entrevista com o autor.
62. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart. 69. Félix GUATTARI, Libération, 27 de agosto de
63. François Pain, entrevista com o autor. 1981.
64. ALFREDO; sigla que mistura ALO (Association 70. ‘Entretien avec jack Lang sur les radios libres", La
pour le liberté des ondes) e FRED (Fede- ratio di Quinzaine littéraire, 16-30 nov„ 1981.
Radio Emetrice Democratice), a fede- raçao das 71. Ibid.
rádios associativas italianas.
65. Michel Tubiana, entrevista com o autor. 72. Nous, dissidents, Recherches, n. 34. out, 1978,
Deleuze e Foucault: urna amizade filosófica

A afirmaçao lucida de Michel Foucault ao Deleuze, que nuncâfîieixou de afirmar sua proxi-
declarar em 1969 que “um dia, talvez, o século midade com Foucault: “Nâo trabalhei com Fou-
será deleuziano”* foi muito repetida. Por sua vez, cault mas acredito que existem muitos pontos de
“Gilles tinha urna profunda admiraçâo por Miche! correspondencia entre nosso trabalho (com
Foucault”2. Embora se encontras- sem muito, Guattari) e o dele, mas fomos como que man-
estivessem lado a lado em lufas comuns, nunca tidos a distancia por urna grande diferença de
chegaram a trabalhar juntos. Contado, no método e mesmo de objetivo”’. Prosseguia a pro-
momento da última homenagem prestada a pósito da hìpótese de sua rivalidade: “ Vou lhe di-
Foucault em La Salpêtrière, diante de algumas zer: que Foucault exista com essa personalidade
centenas de pessoas em estado de choque em face tâo forte e tâo misteriosa, que tenha escrito tâo
desse desaparecimento prematuro, foi Deleuze belos livros, com um tal estilo, isso só me dea
quem tomou a paiavra e leu um trecho do prefácio alegría”6. A rivalidade com Foucault era impen-
de 0 Uso dos Pra- zeres. Urna certa con correncia sàvel para Deleuze, pois por ele sentía apenas
na encarnaçâo do magisterio do pensamento admiraçâo: “Talvez nos tenhamos conhecìdo tarde
crítico sem dú- vida atiçou alguns desacordos de demais. Eu tìnha um enorme respeito por ele. Um
fundo, pelo menos do lado de Foucault. Paul novo ar chegava, As coisas mudavam. Era
Veyne, urna pessoa próxima de Foucault, atesta atmosfèrico. Havìa urna emancipaçao-Fou-
esse estado de espirito em seu amigo: “Tive a cault... 0 gesto de Foucault era admirável: de
sensaçâo de urna rivalidade de Foucault em metal e de madeìra seca, de belos gestos”'.
relaçâo a Deieuze”‘\ Foucault, exasperado de ver A historia de sua cumplicidade começa cedo.
a obra de Nietzsche a tal ponto ligada à leitura 0 primeiro encontró data de outubro de 1952, em
feita por Deleuze, apoquentava seu amigo Veyne, Lille. Como professor no liceu de Alìens, Deleuze
dizendo-lhe que o que ele gostava em Nietzsche e seu amigo jean-Pierre Bamberger vao a urna
era “o Nietzsche de Deleuze”4, conferencia de Foucault, assistente de psicologia
Nâo se pode dizer que esse sentimento de na universìdade de Lille. No inicio dos: anos de
ciúme e desconfiança fosse compartilhado por 1950, Foucault está bem próximo do; PCF, e
Deleuze nâo se engana: “O que ouvì era muito nitidamente de orientaçâo marxista’’8. Terminada
a conferencia, Bamberger convida
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 259

ambos para jantar em sua casa. Esse primeiro Nietzsche e o Círculo Vicioso, em 1969, Klosso-
encontró, glacial, parecía nâo ter futuro. wski o dedica a Deleuze em homenagem a seu
A oportunidade seguinte só surgirá dez anos Nietzsche e a Filosofia.
mais tarde, em 1962. Foucault, professor em A reflexáo paralela de Klossowski fornece
Clermont-Ferrand, està concluindo seu Raymond tanto a Foucault quanto a Deleuze urna pro-
Roussel e Nascimento da Clinica. Quanto a blemática comum, diretamente inspirada na obra
Deleuze, acaba de publicar seu Nietzsche, que dele12. Esta é colocada sob o signo de um
fascina muìto Foucault. Como Jules Vuillemin foi prolongamento da literatura transgressiva que
eleito para o Collège de France, há urna vaga, a cruza a ficgáo e a filosofìa à maneìra do si-
ser preenchida na unìversidade de Clermont- mulacro: “Por meio dessa mimesis paradoxal, ao
Ferrand. Foucault sugere a VuiL lemin o nome de mesmo tempo atualizante e exorcizante, o
Deleuze para substituido. Sondado para o cargo, simulacro se torna o ponto de inversáo das
Deleuze vai a Cìermont, onde passa o dia com reìagoes entre o profano e o sagrado”13. É im-
Foucault, que nâo o via desde o jantar em Lille. portante interrogar a identidade facticia das coisas
"O encontró é muito bom, e todo mundo está e dos seres suscitando a ruptura que o simulacro e
contente. A candidatura de Deleuze era a proliferagáo de máscaras possi- bilitam.
unanimidade no departamento de filosofía, e Encontra-se ali o tema foucaultiano da morte do
Vuillemin farà com que seja aprovada igualmente9 homem, que o tornará famoso e ao mesmo tempo
pelo voto unánime do Consel ho da Faculdade” . causará escándalo em As Palavras e as Co isas:
Contudo, essa perspectiva de colaboraçâo entre “Toda a obra de Klossowski tende para um
Foucault e Deleuze no mesmo departamento nâo objetivo único: assegurar 14a perda da identidade
se con- cretiza: o ministério já havia decidido pessoal, dissolver o eu” . Assim, Foucault e
entregar o cargo a alguém da hierarquia do PCF e Deleuze fundamentare seu nietzschianismo - e seu
membro do comité político, Roger Garaudy. anti-hegelianismo - utilizando o simulacro como
Nesse meio tempo, Deleuze é nomeado para a uni- máquina de guerra contra um pensamento da
versidade de Lyon, mas a pequeña guerrilha identidade e da representagáo. Deleuze saúda no
contra Garaudy aproximou os dois homens: “Eles último ensero de Klossowski, “O Baphomet”
se veem regularmente quando Deleuze vai a Paris. (dedicado a Foucault), urna narrativa que permite
Ainda que isso nao os torne íntimos, suas ligaçôes escapar do dilema moral e teológico entre o Bem
sâo suficientemente fortes para que Foucault e o Mal, mostrando que os dois sistemas nao sao
empreste seu apartamento a Deleuze e à esposa alternativos, mas simultáneos, e desse modo
quando está ausente”10. constituem1 “urna continuagáo grandiosa de
Nesse inicio dos anos de 1960, Foucault e Zaratustrá’ ”.
Deleuze trabalham juntos, para a Gallimard, na Separadamente - Deleuze está em Lyon, e
ediçâo das Obras Completas de Nietzsche, que Foucault, em Sidi-Bou-Saíd, na Tunisia -, eles
deve modificar11 radicalmente a lettura que se fez compartílham o mesmo entusiasmo por Maio de
dele até entâo . Os dois se reencontram nos dois 68. Em sua aula sobre Foucault, Deleuze insiste
grandes momentos desse “retorno a Nietzsche”, o na importancia do acontecimento para
coloquio de Royaumont, em 1964, e depois o de compreender os desafíos da filosofia foucaul-
Cerisy, em 1972. Ambos es- táo ligados a Pierre tiana que nao sao apenas teóricos, mas de ordem
Klossowski, que traduzìu A Gaia Ciència em pràtica. Evocando esse acontecimento fundador
1964, e esse é seu primeiro grande encontró no em 1986, Deleuze recorda seu alcance
terreno da filosofia. Deleuze conhece Klossowski internacional, a exuberáncia indescritível e
há muito tempo, e o reenoontrou nos círculos de impensável no deserto dos anos de 198016. Ele
Marie-Magdeleine Davy durante a guerra. Quando situa o operador dessa ruptura no questiona-
publica seu mento das diversas formas de centralismo.
Quando se discute a criaçao da universida- de
de Vincennes, durante o verâo de 1968, Foucault,
sondado para implantar o departamento de filosofía, Urna audiència requisitada por Alfred Kas- tler, Paul
recorre naturalmente a Deleuze, que é obrigado a Ricoeur e Pierre Vidal-Naquet junto ao ministro da
recusar260
temporariamente por razôes de saúde. É o fustiga, René Pie ven, resulta na promessa de urna
momento François
em queDosse
Deleuze publica Diferença e comissào para estatuir sobre a condilo carcerària e, por
Repetiçâo e Lógica do Sentido, que Foucault acolhe firn, depois 34 dias de jejum por aíguns, “os advogados
como urna verdadeira revoluçâo filosòfica. Expressa seu Henri Ledere e Georges Kiejman anunciam, em 8 de
entusiasmo diante do que qualifica como urna fevereiro de 1971, em urna coìetìva de impren- sa 21na
“fulguraçâo que levará o nome de Deleuze: um novo capela Saint-Bernard, a suspensao da greve de fome” e
pensamento é possível; o pensamento, de novo, é a obtengào de um regime especial de detengao. Durante
possível. Ele nao está por vir. Prometido pelo mais essa coletiva dèi imprensa, très intelectuais de renome,
longinquo dos recomeços. Ele está ali, nos textos de Michel Foucault, Pierre Vidaì-Naquet e o diretor da;
Deleuze, saltando, dançando diante de nos, entre nos; revista Esprit, Jean-Marie Domenach, anun- ciam a
pensamento genital, pensamento intensivo, pensamento criagào de um “Grupo de ìnformagoes: sobre as
afirmativo, pensamento acategórico”17. Foucault já Prisóes”. Na origem, esse grupo é di- retamente oriundo
percebe muito bem, em 1969, que a filosofìa de Deleuze da corrente maoista e tem como objetivo proteger do
é em primeiro lugar e acima de tudo, como mostrará arbitrio os militantes processados da GP. Os antigos da
François8 Zourabichvili, urna “filosofìa do acón te ci GP ha- viam criado na verdade urna Organizagáo dos
mento”’ . Mostra que a questâcf fundamental colocada Prisioneiros Políticos (OPP) sob a responsabi- lidade de
por Deleuze é a de saber o que é19 pensar e situa o Serge july e depois de Benny Lévy. Na pràtica, o GIP
pensamento na “disjunçâo afirmada” do acontecimento logo será autònomo.
e da fantasia*. Como em eco, Deleuze afirma em 20 de Sem ter combinado com ele, Daniel Defert langa
maio de 1986, ao finalizar sua aula sobre Foucault: entáo o nome de Foucault para cuidar de urna comissao
“Urna única coisa preocupou Foucault o tempo todo: o de pesquisa sobre as condígóes ñas prisóes. Foucault
que quer dizer pensar?”20, aceita e, “no final de de- zembro, reúne em sua casa
aqueles que julgava capazes ou de constituir ou de
preparar urna comissao de pesquisa sobre as prisóes” 22.
A aventura do Grupo de Informaçôes Rapidamente se estabelece o método de pesquisa: a
sobre as Prisóes advogada Christine Martineau está con- cluíndo um
Essa proximidade filosófica conhece no inicio dos livro sobre o traballio na. prisao e já elaborou com a
anos de 1970 um prolongamento político corn a criaçao filosofa Danielle Rancière um : questionàrio, que agora
do Grupo de Informaçôes sobre as Prisóes (GIP) por é preciso fazer chegar ■ aos detentos: “Nosso método
Foucault e o engajamento de Deleuze ao seu lado. O era a pesquisa operária de Marx" 23. Finalmente, por
GIP iniciativa de Foucault, o projeto de urna comissâo de
pesquisa, um pouco desgastado pelas pesquisas
populares realizadas pelos militantes maoístas após
-'N, de R. T.: No original fantasme. Seria interessante examinar as 1968^, se transforma no GÏP. O grupo se organiza de
diferenças de contendo pelos quais passa esse conceito, sobretudo no
uso da epistemologia psicanalitica francesa, naquilo que se refere à maneira totalmente descentralizada (um grupo por
traduçâo e ao emprego (julgado ou nao “apropriado”) referindo-se uso prísao). Em pouco tempo, esse modelo parisiense se
de “fantasia” ou de “fantasma”. Ver artigo clàssico de I,,aplanche, J. & propaga nas prisoes de provincia onde há militantes.
J.B. Pontalis: Fantasme originaire, fantasme des origines, orìgine Deleuze logo ñca seduzido por esse tipo de organizando
dufantasme. {Les Tèmps Modernes, n. 215, p. 1833-1868). ao mesmo tempo guiada por urna resistencia prática,
nasce quando da dissolugào da GP (Gauche efetiva, e que rompeu com toda forma de aparelho
Prolétarienne) em maio de 1970 pelo ministro do burocrático centralizando, defínindo-se como urna
Interior, Raymond Marcellin. O poder endurece nesse microestrutu- ra: "O GIF desenvolveu um dos únicos
momento sua politica de repressaci'- da agitagào grupos esquerdistas a funcionar sem centralizando,..
esquerdista no pós-68 e prende numerosos militantes Foucault soube nâo se conduzir como chefe”2°.
da organizaqáo dissolvi* : da, corno Alain Geismar. Em Pretextando uma tensâo crescente desde o motim na
setembro de 1970, militantes presos fazem urna greve prisao de Clair vaux em setem- bro de 1971, em que
de fonie de 25 dìas para obter o estatuto de preso dois prisioneiros, Buffet e Bontens, tomaram como
politico;: que nao obtèm. Em janeiro de 1971, cometa reféns um carcereiro e urna enfermeira, o ministerio da
urna nova greve de fome com apoìo mais ampio da Justiça de- cidiu nesse ano, a título de puniçao coletiva,
opiniáo pública. e para acalmar a angustia dos carcereiros, suprimir as
encomendas de Natal para o conjunto dos detidos. Essa
decisâo teve como efeito ati- çar o fogo da contes taçâo Em 17 de janeiro de 1972, para protestar contra a
nas prisôes: durante o invernó entre 1971 e 1972, repressao ñas prisoes, o GIP consegue reunir em urna
contabilizam-se 32 movimentos de révolta, aiguns deles mesma manifestando Sartre e Foucault Um pequeño
che- gando à destruiçâo de celas e à ocupaçâo dos grupo de personalidades adotou como objetivo penetrar
Gilles Deleuze & Félix Guattari 261

telhados. Na noite de Natal, o GIF organiza uma no interior do ministério da Justina, na Place Vendóme,
manifestaçâo diante da prisao da Santé, em Paris, da para conceder ali uma entrevista coletiva à imprensa.
quai participam Foucault e Deleuze. Ao longo de Toda essa gente importante se senta no corredor do
dezembro de 1971, ocorrem violentes confrontes, ministério para ouvir Foucault, que se pôe a 1er a
sobretudo na central elé- trica da prisao de Toul, que declaraçao dos prisioneiros de Melun. A policía
deixam uma quin- zena de feridos entre os detentes. intervém calmamente sob os urros e1 gritos de “Pleven na
Os intelectuais do GIF sâo chamados às ve- zes a se prisâoi” ou “Pleven assassino!” . “Os policiais se
deslocarem à provincia. É o caso em Nancy, onde o enervam. Sartre resiste. Foucault resiste. Faye resiste.
motim foi duramente reprimido, e 6 dos 200 amotinados Deleuze resiste e nâo para de rir. Os poììciais acabam
sâo levados aos tri- bunais. Deleuze, Daniel Defert, por vencer nossa resistencia e conseguem empur- rar o
Hélène Cixous, Jean-Pierre Paye, Jacques Donzelot grupo até a calçada’32. Finalmente, posta para fora dos
fazem o trajeto para participar de uma manifestaçâo de muros do ministerio protegido por urna fìleìra tripla de
protesto, Foucault, detido depois de ter in- tervindo para policiais com capacetes e armas, a entrevista coletiva à
prestar socorro a um imigrante que estava sendo imprensa se realiza nos escritorios da agência noticiosa
espancado no metro, nào pode estar lá. Na prana central de Libération, na Rue Dussoubs.
da cidade, Je- an-Pierre Faye conversa com um Pouco tempo depois, em 31 de Janeiro de 1972,
jornalista de L’Est Républicain, que lhe diz que essa Deleuze escreve em Le Nouvel, Observateur: “0 que os
manifestando nao tem o menor interesse. Faye o acon- prisioneiros esperam de nos...”33. Ele lembra suas
selha a esperar mais alguns minutos antes de julgar: reivindicaçôes sobre o levan- tamento da censura, sobre
“Mal proferí essas palavras proféticas e os policlais o tribunal, sobre a “solitària”, sobre a exploraçâo do
caíram em cima de nos’’26. Deleuze sobe em um banco trabalho e sobre a liberdade condicional, e vê na expres-
para discursar, logo cortado pelo ataque da polícia, e sâo dos prisioneiros algo de inteiramente novo que nâo
afirma: “Meu chefe nao está aqui, por isso vou íalar no diz respeito mais à “confîssâo pública”, mas à urna
lugar dele’. Com a polícia atacando, Deleuze, debilitado “crítica personalizada”34. Foucault, nessas
por suas diñculdades respiratorias, passa mui- to mal e manifestaçôes, se mostra bastante atento e preocupado
se ve obrigado a deitar no chao em um estado de com o estado de saude de seu amigo Deleuze. Assim,
semicoma. O jovem Jacques Donze- lot, amigo de em 16 de dezembro de 1972, durante os confrontes com
Foucault, fica junto dele, muito preocupado: “Quando as forças da ordem, Claude Mauriac encontra-se com
recobrou a consciéncia, ele me disse: Ah! Voce está ai? Foucault e um pequeño grupo após um ataque policial:
Que gentil!”'27. “Vocés viram Deleuze... Espero que nao tenha sido
Quando Donzelot está para defender sua tese sobre preso...35Eis como se preocupa Michel Foucault - multo
‘A polícia das familias”23 em Pa- ris-VIIÍ sob a pálido” .
orientando de Jean-Claude Passe- ron, Deleuze lhe Aiém das açôes voltarias às prisóes, o GIP se
propoe fazer parte da banca: ‘Amarelei de súbito e, mobiliza em casos de repressâo e de racismo. Na
incapaz de dizer qualquer coisa, disse simplesmente: primavera de 1971, estoura o caso Jau- bert. Jornalista
‘Por que eu faria um resumo, visto que vocé já me leu?’, do Nouvel Observateur, Alain Joubert é testemunha de
e Deleuze retruca: ‘Nao29 faz mal, vou resumir a tese no violência policial durante urna manifestaçâo de
seu lugar, Fantástico!" . Quando da publicando da tese, antilhanos. É embarcado em carro-cela e espancado
foi Deleuze quem sugeriu a Donzelot escrever um pelos guardas. Em urna reuniâo presidida por Claude
prefácio para ele. Entretanto, aumenta a tensáo entre os Mauriac, Foucault anuncia que está sendo formada urna
dois amigos, Foucault e Deleuze. Donzelot acaba de comissâo de informaçôes. No dia 21 de junho de 1971,
defender uma tese muito foucaultiana e quando diz a realiza-se urna coletiva de imprensa. Após urna
Foucault que vai ter um prefácio de Deleuze, ouve como intervençâo de Denis Langlois, Deleuze toma a palavra:
res- posta: “Tenho horror disso, nao suporto que um “Um pii- meiro grupo de questoes parte do comunicado!
velho venha meter sua marca no traballio de um publicado pela chefìa policial em 30 de maio... Se o
jovem”30, No firn das contas, para náo ferir a comunicado é táo inverossímil é porqué nao se espera
suscetibilidade de Foucault, Deleuze escreve náo um
prefácio, mas um postado3
1 N. de T.: René Pleven, ministro dajusüça.
que acredìtem 3 nele. Há outro objetivo, que é a Contudo, Foucault se deixa convencer por Deleuze,
intimidagào,.. ” \ apesar das reservas em face de Guattari e do desejo de
No outono de 1971, um jovem argelino destrata a manter distância de seus grupos, a participar de alguns
zeìadora262deFrançois
seu predio na Goutte d’Or. O marido da
Dosse
números das publicaçôes do CERFI. Assim, Foucault
zeladora vè a cena, saca a espinó-: garda e mata, colabora em dois números da revista Recherches: Les
acidentalmente, diz ele, o argelino Djelìali. Esse caso Équipements du Pouvoir (n.41 13, dez. de 1973) e Trois
revela o contexto de ten- sáo racial crescente no bairro, e Milliards de Pervers (1973) . Ao mesmo tempo, no ano
manifestapòes denunciam um crime racista. Foucault letivo de 1971 e 1972, Deleuze participa do seminàrio
toma a iniciativa de urna nova comissao de pesquisa em de Foucault no Collège de France. Foi nessa ocasiao que
que se encontram, entre outros, Deleuze, Jean Genet, se examinou de todos os ángulos o caso de Pierre
Claude Mauriac e Jean-Claude Pas~ ser on. Em 27 de Rivière, que degolou a mâe, o irmâo e a irmâ no sáculo
novembro, Sartre e Foucault tomam a frente de um XIX, aos 20 anos, e que deixou um relato, parcialmente
encontró na Goutte;: d’Or em nome de um 'Apelo aos publicado em 1836.
trabalhadores do bairro”, assinado por Deleuze,
Foucault, Michel Leiris,37 Yves Montand, Jean Genet,
Sartre e Simone Sìgnoret . O momento das fraturas
Essas intervenpòes militantes de 1971 e 1972
permitirao a Deleuze e Foucault travar um diálogo O outro momento de mobilizaçâo conjunta de
sobre a maneira como defínem as novas tarefas dos Foucault e Deleuze foi, um pouco mais tarde, o caso
inteìectuais em face do poder. É durante esse encontró Klaus Croissant, em 1977. O ad~ vogado do bando de
de 1972 que Deleuze retoma a frase de Guattari: Baader na Alemanha che- ga a Paris em 11 de julho de
“Somos todos gru- púsculos”38 Deleuze vè no GIP um 1977 para pedir asilo político - ele é denunciado em seu
novo tipo de organizaban capaz de renovar as relaqòes país como “agente” de Baader, instrumentalizado pelos
entre teoria e pràtica, ressituando-as em um quadro terroristas. Logo que chega a Paris, as autoridades
mais concreto, local e parcial: “Para nós, o intelectual alemas pedem sua detençao e ex- tradiçao. Em 30 de
teórico deixou de ser um suieito, urna setembro, ele é preso pela policía francesa.
,A . »39 O advogado Gérard Soulier, amigo de Guattari e
consciencia representante e representativa . Foucault muito ativo no CINEL, ñcou sabendo da noticia pelo Le
considera, de sua parte, que o papel universal do Monde quando se preparava para dormir: “Isso me
intelectual como encarnagáo do discurso da Verdade despertou!”42. Ele salta do sofá, pega o anuário dos
acabou, pois a democra- tizagáo da sociedade permití u advogados e liga para jean-Jacques de Felice, Tubiana e
a toda categoria social exprimir meìhor suas Antoi- ne Comte, que organizara urna coletíva de im-
insatisfaqòes serri ter necessidade dos intelectuais. prensa com a participado do presidente da Liga dos
Estes últimos devem se concentrar na luta contra as Direitos do Homem, Henri Noguéres. De sua parte,
formas de poder. Cabe a eles delimitar os focos de po- Alain Peyrefítte, entáo ministro da Justíga, declara em
der e retrasar sua genealogia, 26 de outubro de 1977 que “náo é possível que a Franga
Se nesses anos os dois amigos se aproxi- mam no se torne urna terra de asilo paraa terroristas”. No inicio de
terreno da pràtica política, sua con- cepqáo do novembre, realiza-se na 10 Cámara da Corte de
engajamento nao é exatamente idèntica: “De um lado, Apelagao de Paris a audiencia que deve estatuir sobre o
Foucault parte de expe- rièncias e de práticas e pedido de extradigáo. Em 16 de novembre de 1977,
conceitualiza, Deleuze e Guattari inventam máquinas enquanto urna pequeña multidao se posiciona diante da
de guerra e as experimentam”40. Assim, Foucault que prisáo de Santé, Foucault e Deleuze estao là quando a
passa um tempo em Sainte-Anne e se interessa pela policía ataca. Croissant é reconduzído à fronteira alema.
psiquiatría, cria o GIP, depois escreve Vigiar e Punir e Desta vez, as discordancias entre os dois amigos
traba!ha sobre a analítica do poder, Ao contràrio, estáo prestes a abalar sua relagáo de amizade. Embora
Deleuze e Guattari produzem concertos, máquinas, e estejam juntos no protesto contra a extradigáo de
testam o que elas podem dar na realidade social. Croissant, Foucault se recusa a assinar a petigáo da qual
Guattari inscreve sua reflexào em toda urna série de participam Deleuze e Guattari, pois a considera excessi-
pràticas sociais ligadas à milîtância, na psicoterapia vamente compiacente com os terroristas da RAF.
institucional e ainda em vários organismos de pesquisa, Foucault pretende limitar seu apoio es- tritamente ao
como o CERFI, todos lugares de experimenta- çâo de advogado Croissant43. Claude Mauriac se recorda de ter
conceitos elaborados em conjunto com Deleuze, ligado para Foucault “a fìm de Ihe perguntar como ele
havia reagi- do ao telefonema de Guattari a propósito da
extradigáo pedida para o advogado de Baader, Klaus da ruptura: “Ele obtivera essa Informaçâo do proprio
Croissant. Já entáo, sem ter combinado antes, tínhamos Deleuze”47, o que Deleuze nâo contradisse quando
nos recusado a assinar um texto, concordando com um Miller Ihe colocou a questâo. Enquanto Deleuze escreve
náo absoluto à extradigáo, mas recusando ambos a um artigo ìouvando Yasser Arafat48, Foucault
Gilles Deleuze & Félix Guattari 263
denuncia a
assumir o44 que se dizia, no mesmo texto, da resoluçâo49 da ONU que compara o sionismo a um
Alemanha” . racismo e, em 1978, em piena crise libanesa, ataca o
Anos depois, o biógrafo americano de Foucault, totalitarismo da Siria e da URSS e poupa q politica
James Miller, perguntou a Deleuze o que poderia ter israelense.
afetado de maneira táo irreversível essa amizade. Urna nova dìvergèncìa politica surge por ocasiào da
Deleuze destacou tres pontos, em 7 de fevereiro de troca de poder em 1981, com a che? gada da esquerda.
1990, cinco anos após o fa- lecimento de Foucault: “1. É Deleuze està seduziclo e mesmo entusiasmado com os
evidente que nao há urna resposta única. Um de nos inicios da presidencia de Mitterrand. Acha que se deve
pode ter dado urna resposta num día ou outra num outro deìxar os socialistas trabalharem e demonstrar
día, náo por inconstáncia. Esse é um ámbito em que as benevolencia. Foucault, de sua parte, julga que é preciso
razoes sao múltiplas, e nenhuma é essencial’. criticá-los como todo poder, ou até mais, e isso porque
Justamente porque nenhuma des- sas razoes é essencial, os comunistas entraram no governo de Pierre Mauroy.
elas sao sempre várias ao mesmo tempo. A única coisa Quando Jacques Donzelot encentra Deíeuze pela última
importante é que durante muito tempo eu o havia vez, “foi em 1981, no Panthéon. Ele estava do lado de
seguido filosóficamente e, em certos momentos, ja nâo Mitterrand. Cruzo com ele, estava indo no outro sentido.
tinha mais as mesmas avaliaçôes que ele sobre varios Ele me diz: ‘É fantástico o que está acontecen-:; do!’, e
pontos. 2. Isso nâo provocou um esina- mento’ entre eu lhe respondo que nâo, é um10político cínico que deu
nos, nem urna éxplicaçâo’. Passa- mos a nos ver com sorte. Ele estava fascinado”' . Essa? diferença de
menos frequência, como por força das coisas. Com isso, apreciaçâo explode por ocasiào do golpe de Estado do
fìcava cada vez mais difícil nos revermos. generai Jaruzelski na Polònia em 1981, destruindo os
Curiosamente, nâo foi por desentendimiento que sonhos do dirigente do Solidarnosc, Lech Walesa.
deixamos de nos ver, mas, ao contràrio, foi por nâo nos Foucault redige com Bourdieu um documento
vermos mais que se instalo u talvez urna especie de in- condenando as fraquezas do novo governo socialista
compreensâo ou de distância. 3. Posso Ihe di- zer que diante de mais um golpe de força stalinista. Deleuze,
lamento constantemente, e cada vez mais, nâo vê-lo. con- tatado para assiná-lo, se recusa e assina um do-
Entâo, o que me impediu de ligar para ele? É nisso que cumento concorrente, emanado de Jack bang e retocado
intervém urna razâo mais profunda ou mais essencial por Jean-Pierre Faye, denunciando a repressao na
que as outras. Com ou sem razâo, achei que ele desejava Polònia e ao mesmo tempo elogiando a açâo de
mais solidâo, para a sua vida, para o seu pensamento, Mitterrand.
que ele tinha necessidade dessa solidâo, mantendo A todas essas dìvergèncìas de ordem politica, é
relaçoes apenas com seus íntimos. Penso agora que preciso acrescentar diferenças notorias nas orientaçôes
deveria ter tentado revê-lo, mas acho que nâo o fìz por filosóficas, aínda que insuficientes para explicar a
respeito. Aínda so- fro por nâo tê-lo revisto, tanto mais ruptura do vínculo entre Deleuze e Foucault. Depois de
que nâo creio que houvesse razôes externas”45. Essa ter expressado sua mais viva admiraçâo quando do
carta diz muìto, mas de modo alusivo. Para compreender lançamento de Diferença e Repetiçâo e de lógica do
o porqué dessa ruptura radicai, é preciso voltar a alguns Sentido, Foucault fica perplexo ao tornar conhecimento
pontos de desacordó. em 1972 de 0 Anti-Édipo. É verdade que eie escreve,
Em primeìro lugar, nesse ano de 1977, hà duas em 1977, um prefà- cio para a ediçâo americana, onde
tomadas de posiçâo diametralmente opostas acerca dos apresenta 0 Anti-Édipo como o primeìro lìvro ético
novos filósofos, defendidos por16 Foucault e escrito depois de muito tempo. Entretanto, segundo seu
violentamente rejeitados por Deleuze' . Além do caso amigo Donzelot, esse prefàcìo nâo tra- duziria o
Croissant, é preciso acrescentar sua divergencia verdadeiro sentimento de Foucault quanto ao liv.ro de
profunda quanto à questâo palestìno-israelense. Sobre seu amigo: “Foucault nâo51 gostou de 0 Anti-Édipo. Eie
esse ponto, Edward Said deu urna entrevista a James me disse varias vezes” . Quando Jacques Donzelot
Miller em novembre de 1989. Said considera que o escreve, de sua parte, urna resenha entusiasmada em
conflito do Oriente Mèdio foi urna das principáis causas
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 264

Esprity\ Foucault se sente aliviado por nâo ter de imediato a ponto de ser preciso reimprimir 22 mil
fazê-lo: para eie, esse livro é "um efeito de exemplares além da tiragem inicial de 22 mil, A
linguagem, é Celine. Ele [Foucault] partiu com imprensa também Ihe reservou urna apreciaçâo
meu texto para dar a urna revista americana e com muito favoràvel. Ao contràrio, a tese centrai do
isso pode53 se redimir de nâo ter escrito nada a livro, que pôe em questâo o combate an
respeitó' . tirrepressivo, derrapa no entourage de Foucault.
Em 1976, Foucault pretende acertar as contas Nao se com- preende bem corno toda urna década
com a psicanálise, com Lacan e com sua teoria da de lutas de emancipaçâo em nome de minorías
falta, ao publicar o primeiro volume de urna sexuais deveria reverter do lado do
Historia da Sexualidade54. Messa obra inaugural, desenvolvimento de um biopoder. As críticas e
ele ataca o desejo no sentido freudiano e contradiz incompreen- sòes se fazem ouvir, e o Esquecer
as teses segundo as quais a sociedade seria cada Foucault de Baudrillard, verri coroar um contexto
vez mais repressiva desde a Idade Clàssica. que fra- giliza o filosofo um pouco abalado, pois
Foucault mostra que nâo se assiste a urna todo o edificio que programara é abandonado. Ele
rarefaçâo progressiva dos discursos sobre o sexo, só publica o segundo tomo de sua Historia da
mas, ao contràrio, à sua proliferaçâo. Deleuze e Sexualidade em 1984, ou seja, após sete anos de
Guattari foram de fato apanhados no oìho do síléncío e em bases totalmente renovadas.
furacâo pela crítica fou- caultiana do desejo e dos Essa questâo do desejo é tanto mais central na
“desejantes”. Deleuze reage, aliás, enviando urna ruptura com Deleuze na medida em que no cerne
carta pessoal a Foucault, por intermedio de de seu encontróa9 está o mesmo imperativo de
François Ewald, na qual argumenta ponto por pensar o desejo . Segundo Deleuze e Foucault,
ponto. Messa carta, que será publicada bem mais Freud e Lacan teriam fracas- sado em pensar o
tarde, em 1994, sob o título de “Desejo e prazer”55, desejo ao reduzi-lo à falta e ao proibido: “Mas se
Deleuze se pergunta se é possivel pensar como os dois filósofos se encon- tram, mais do que
equivalentes aquiio que para eie provém do “corpo nunca, em uma causa comuni, estao também
sem órgaos-desejos” e para Foucault do “corpo- irredutivelmente distan- teswf!Ü. Em .1983,
pra- zeres”. Eie recorda nesse texto a viruiència da Foucault é muito claro sobre essa divergencia em
rejeiçâo da noçâo de desejo em Foucault: “A ùl- uma longa entrevista com Gérard Raulet, que lhe
tima vez que nos vimos, Michel me disse, com pergunta se ele admitía um certa proximidade com
muita gentileza e afeiçâo, mais ou menos o se- Deleuze: “Essa proximidade iria até a concepçâo
guiate: nâo consigo suportar a palavra desejo; do desejo deleuziano?”. Foucault responde de
ainda que voce a empregue de outra maneira, nâo maneira categórica e lapidar: “Nao, justamente
posso me impedir de pensar ou de viver que nab,6i. De fato, eles nâo dâo as mesmas respostas a
desejo =56 falta, ou que o desejo se diga re- um questionamento que Ihes é comum. Ainda que
primido” . Por sua vez, Deleuze considera, de compartilhem apreocupaçâo de construir uma
maneira espinosiana, que os prazeres nâo sào ética de vida nâo fascista e concordem também
senao obstáculos no caminho do desejo de ser, do sobre a falta de naturalidade e de espontaneidade
conatus, da realizaçâo de si, do perseverar no Ser, do desejo sempre preso em agenciamentos, o
e, portanto, só podem conduzir à perda. 0 prazer, projeto de Deleuze e Guattari é pensar o desejo
para eie, interrompe o “processo imánente ao como concatenaçâo em agenciamentos e em uma
desejo” A perspectiva resolutamente construtivista: “A
Ferido, Foucault nâo responde. Eie vê ali urna genialidade filosófica de Deleuze é inventar um
razâo a mais para romper com seu amigo: “Pouco novo vitalismo, buscar as condigòes nào de
depois, Foucault decidiu subitamente nunca mais possibilidade,62 mas de realidade entre expressào e
ver Deleuze”58. Para compreender o que mais construgào” . Entra em jogo mais urna vez no
chateou Foucault na acolhida mui- to cótica de plano de suas concepgòes diferentes do desejo a
Deleuze, é preciso recordar que, sem dùvida, seu apropria- gào pessoal de Nietzsche, que Deleuze
livro configura um sucesso de público evidente e retém sobretudo para a questào do desejo em A
Vontade de Potencia - enquanto que o que mais in- Contudo, Deleuze expressa na carta de 1977 sua
teressa a Foucault é a questào da verdade em A perplexidade quanto aos meios desse: retorno. Partindo
Genealogia da Moral. da ideia de Gilles
que os dispositivos de poder assim como os
À ancoragem nietzschiana do desejo em Deleuze é dos contrapoderesDeleuze
sao portadores de verdade, Foucault
& Félix Guattari 265

preciso acrescentar a potència de ser espinosiana. Eie subordina a questáo da verdade á do poder. Coloca-se
introduz a potència de ser em urna ontologia. Em sua “o problema do papel do intelectual em Michel, e sua
aula sobre Foucault, em Janeiro de 1986, Deleuze volta maneíra de reintroduzír a categoría de verdade, pois, ao
à concepgào foucauìtiana do desejo/prazer, apresentando renová-la completamente e ao subordiná-la ao poder, ele
sua recusa da nogào de desejo e seu apego à ideia do encontrará nessa renovagáo urna materia retornável
corpo e de seus prazeres corno a expressào de urna contra o poder. Mas isso, eu nao vejo como”69.
sexualìdade sem sexo com que eie termina sua obra A Tentando compreender o uso foucaultiano do verdadeiro
Vontade de Saber. Essa vontade de substituir urna em sua aula do ano letivo de 1985 e 1986, Deleuze
concepgào “molar”, centrada no sexo, por urna percebe urna disjungáo que está se operando em
abordagem “molecular” de prazeres multiformes Foucault entre o dominio do ver e o do dizer, entre o
encontra sua fonte de inspiragào, segundo Deleuze, em visível e o enunciado. É a partir dessa tensáo paradoxal
Proust, quando este define très universos em Sodoma e que se joga o jogo do verdadeiro, pois falar nao é ver.
Gomorra: o dos grandes conjuntos de amores As duas posigoes sao acordadas á verdade entre os dois
heterogéneos, um segundo em que o mesmo é remetido amigos filósofos. Foucault acaba por encontrar no
ao mesmo, o homem ao homem, a mulher à mulher. designio de verdade a fungao mesma da filosofía: “Nao
Proust i n63 el ui um terceiro nivel “transversal e nao mais vejo muitas outras definigoes da palavra ‘filosofía a nao
vertical” em que todo homem tem urna componente fe- ser essa”70. Inversamente, para Deleuze, nao é a verdade
minina e toda mulher urna componente masculina, mas que determina a importancia de urna afirmagáo ou de
que nào se comunicara entre elas, dai a necessidade um conceíto, “ao contrario, sua importáncia e sua
imperiosa de ter os quatro termos e agenciamentos novidade é que determinara sua verdade’”'1.
moleculares. Pulverizando o tema da culpabilidade, Em muitos níveis, há uma contradança entre
Proust “chega até a falar de prazeres locáis”64. Foucault e Deleuze, principalmente nos autores-recursos
comuns dos quais fazem usos diferentes e às vezes
inconciliáveis. Assim, Deleuze, ao abandonar os retratos
Á Verdade da historia da filosofía, em Lógica do Sentido, inspirou-
se fortemente no estoicismo. Por sua vez, Foucault se
Com o langamento de A Vontade de Saber, um novo apropriou das teses estoicas em todas as suas últimas
diferencial opòe Foucault e Deleuze, o da reativagào do publicaçôes. Ele já havia retomado por sua conta,
tema da verdade. Como lem- bra Jacques Donzelot, alusivamente, desde 1970, em A Or- dem do Discurso, o
“Deleuze me chamou a atengáo sobre isso muitas vezes: horizonte estoico de Lógica do Sentido, quando afírmou
‘Jacques, o que é que vocé acha disso? Michel está ser preciso conferir uma “materialidade” pròpria aos
completamente louco. C^que é essa coisa ultrapassada enunciados, que seria da ordem de uma materialidade
da verdade? Ele nos reconduz a essa coisa ultrapassada, incorporal. Deleuze e Foucault têm um adversá- rio
a veridícgáo! Ahhh! Nao é possível!” 63, Na; carta que comum, o platonismo, e se apropriam dos mesmos
envía a Foucault, Deleuze manifesta explícitamente sua aspectos do estoicismo, tais como o primado do
preocupagáo com o ressur- gimento dessa temática em acontecímento: “Foucault e Deleuze assinalam também
seu amigo: “0 peri- go é: será que Michel retrocede a um que essa arte estoica do acontecímento visa a uma
análogo do sujeito constituinte, e por que ele tem inserçao de si na imanéncia do mundo e do tempo” 7'".
necessidade de ressuscitar66 a verdade, mesmo que faga Contu- do, o uso que fazem dos estoicos é diferente; o
déla um novo conceíto?” . Para Foucault, nao se trata de Deleuze se inscreve mais em urna historia filosófica
de retroceder á tradicional oposigáo frontal entre o da filosofìa, que ve neles um deslo- camento de toda a
verdadeiro e o falso. Falando da con- cepgao do reflexáo na73 qual “a filosofìa se confunde com a
verdadeiro em Heidegger e em Witt- genstein com Paul ontologia” , Deleuze busca mais do lado dos primeíros
Veyne, certa noite, Foucault acrescenta “textualmente estoicos, enquan- to Foucault privilegia os estoicos da
(pois eu anotei sua frase) que a questáo é: de onde vem época da Roma imperial, Epicteto ou Marco Aurelio,
que a ver-' dade é tao pouco verdadelra?” 6'. Se ele que têm reputaçâo de moralistas.
pretende exumar um conceíto adormecido na tradigao, é Contudo, sua relaçao comum com o pensamento
“para fazé-lo atuar em outro cenário, aínda que ao prego grego é mediada, tanto para um como para o outro, pela
de se voltar contra si mesmo”68. obra de Nietzsche, para quem o filòsofo, a partir dessa
ìdade gre- ga, é aquele que afirma a vida; “A vontade de Em linhas de frente invertidas, visto que sempre se
potencia em Nietzsche é afirmar a vida, e nâo mais opós um vitalismo deleuziano considerado como
julgar a266
vidaFrançois
como oDosse
Desejo-sobe rano”74. O interesse de perigoso a um neokantismo mais respeitoso dos limites
Foucault pelos gregos em O Uso dos Prazeres também em Foucault, Deleuze, em várias ocasiòes, qualifica de
deriva de Nietzsche, mas avança em proposiçôes multo perigosas as posigoes foucaultianas. Ele se explica:
pessoais. Foucault pergunta quem pode ser esse homem “Perigoso, sim, porque há urna violència em Foucault
livre escolhido para ser o pastor da comunidade civil na Ele tinha urna extrema violencia controlada, dominada,
cidade grega da Antiguídade. “Somente aquele que sabe tornada coragem. Ele tremia de vio- léncia em certas
governar a si mesmo está apto a governar os ou tros”75. manifestagoes, Ele percebia o intoleráveL. E seu estilo,
Deleuze discerne ai a tese central de Foucault, em pelo menos até os últimos livros, que conquistaram urna
ruptura com seus trabalhos anteriores; esse governo de si espécie de serenidade, é como Sium chicote, urna correia,
é desligado do saber, mas também do poder, para se com suas torgoes e distensòes” . Deleuze compartidla o
tornar urna verdadeira “arte de si”7fi. Essa força de ponto de vista de Paul Veyne sobre um Foucault
subjetivaçao nâo é primeira, pois permanece dependente guerreiro, pronto a transformar a história do pensamento
da sìngularìdade do “diagrama grego”. em máquina de guerra, em urna abordagem
A proxìmidade entre Focault e Deleuze, aínda polemológica fascinada pela morte. Deleuze, por sua
grande a propósito da referencia estoica, é bem menor vez, está mais do lado da astucia, da inteligència grega,
quando se compara a filosofìa fundamentalmente da Metis, do rir, do humor devastador,
afirmativa, resolutamente espìnosiana de Deleuze, em
um procedimento metafisico assumido a partir se
Espinosa, e a de Foucault, fundamentalmente kantiana, Jogos de espelhos
que integra a negatividade às vezes até o ceticis- mo: O jogo de espelhos entre essas duas obras que
“Para mim, seus livros sao grandes lìvros céticos. A caminham em sua singularidade pròpria, mas sobre
verdade de Foucault està ali, em um cetìcismo moderno temáticas geralmente muito próximas, é percebido pela
articulado a77 uma forma de engajamento inteìramente filósofa Judith Revel em vários momentos de suas
misterioso” . Isso nao significa que Espinosa nâo tenha discussòes como urna relagào ao mesmo tempo muito
contado para Foucault: “Daniel Defert me disse que forte e sempre enviesada. Um e outro tèm urna relagào
Foucault tinha utilizado Espinosa, que eslava 78na de proximidade com a história, mas em posturas
cabeceira de seu leito de morte. Ele o eslava relendo" . diferentes, com um Foucault mais kantiano, que se
Contudo, tanto quanto Deleuze segue Espinosa com coloca a questao das condì- goes de possibiìidade,
a ideia de uma temporalidade, de urna eternidade enquanto Deleuze se situa no plano das condigoes de
pròpria ao conatus que escapa ao chronos, Foucault realìdade. Foucault fica exultante ao descobrir os funda-
prefere praticar descon- tínuidades, rupturas radicáis no mentos de urna politica da diferenga em Deleuze em
tecido temporal. Nesse plano, Deleuze está do lado de 1968-1969, que ressoa corno sua busca da figura do
urna ontologia da potencia que nâo para de crescer, outro, da alteridade, que deu lugar à sua História da
enquanto Foucault está mais próximo do criticismo Loucura (1961). Foucault se sente, portanto, reforgado
kantiano. Em seu curso de 1985 e 1986, Deleuze diz, em sua posigòes, e Deleuze Ihe permite definir urna vìa
aliás: “Há um neokantismo particular em Foucault”79. de salda de um estrutu ralísimo que renegará mais tarde,
Por ocasiáo do que designa como seu “pequeño passeio” mas que em 1967 aínda defendía com o maior ardor. A
em Kanfc, Deleuze presta uma vibrante homenagem à experiéncia da esquizofrenia apaixo- na a ambos como
luz kantiana que considera extraordinària 80
. Foucault via de salda da codifìcagào binària estrutural: “Eia
encontra essa abertura kantiana1, segundo Deleuze, por permitía aparentemente narrativas que eram 552 ao mesmo
sua maneira de distinguir o ver e o falar, cuja diferença tempo ma- nuais de decomposigáo de código” .
de natureza nâo permite reduzir uma dimensâo à outra. Em suas aulas no inicio dos anos de 1970 Foucault
Se nâo se pode cobrir essa distância, como se pode ter desenvolve a ideia de urna medica- lizagáo da
conhecimento dela? Deleuze vê nessa ques- tâo kantiana sociedade, de urna psiquíatrizagao do social, de um
uma analogia entre a situaçâo de Kant, dividido entre devir institucional de práticas de poder que é preciso
suas duas faculdades, o entendimento e a intuiçao, e a de contra-arrestar por práticas anti-institucionais de saber.
Foucault, às voitas com essas duas dimensòes Essa posigáo nao está distante das teses de Deleuze e
heterogéneas que sào o visível e o enunciável, Guattari enunciadas em 1972, em O Anti-Édipo, e
principalmente das práticas da psicoterapia institucional
de La Borde83. Contado, o que parece urna perspectiva
1N. de R. T.: No original, béance, significa abertura/fenda.
comuni nao é, pois o horizonte de interrogagáo de tensóos produzidas por um pensamento entre a
Foucault está concentrado entáo na questáo do poder, virtualidade e a atualidade. Em sua atençâo ao novo,
enquanto o interesse de Deleuze e Guattari consiste nos Foucault éGilles
herdeìro de toda filiaçao da escola
processos de subjetivagáo: os grupos-sujeitos, os epistemológica francesa, a de Bachelard, de Canguilhem
Deleuze & Félix Guattari 267

sujeitos coletivos de enunciagao... “Depois: Foucault se e da genealogia nietzschiana. A partir dessa tradiçâo, eie
volta à subjetivagáo, o que é o caso desde Vigiar e apre- goa urna abordagem descontinuista do tempo,
Punir, e entáo8 1se diz que eles váo se cruzar, mas isso privilegiando os cortes radicáis que chama
nao acontece” ' . temporariamente de episteme (termo que abandona
Judith Revel, que estudou de perto os ecos: do depois de As Paiavras e as Coisas^).
pensamento de um no outro atesta os efei- tos da ruptura A partir de Nietzsche, Foucault substituí : a busca de
do final dos anos 1970, quando Foucault se engaja no origens temporais e de causalidades por um positivismo
terreno da ética; “Quando se observam as ocorrèncias a critico, procurando demarcar as descontinuidades graças
partir de 1977 e 1978, náo há mais 8referèncias de um ao a um esquema das potencialidades materiais. Em
outro. Há um verdadeiro siìèncio" L Ao contràrio, no: segundo lugar, Foucault pretende demarcar a
plano do uso frequente da metáfora espacial, Foucault e singularidade dos acontecìmentos fora de sua finalidade
Deleuze, assìm como a maioria dos: pensadores dessa declarada. Finalmente, a acon- tecimentalidade permite
geragào, estao muito próximos, o que corresponde neles minorar a figura do sujeito consciente e sua ilusáo de
a urna vontade de sair do hegelianismo e de urna dominar o tempo: 'A historia efetiva faz ressurgir o
filosofia sub- jacente da história por meio da acontecimento naquilo que ele pode ter de único e de
espacialidade e suas lógicas próprias: a do plano de agir”89. Foucault opoe ás trés modalidades platónicas da
imanen- eia para Deleuze-Guattari, com seus estratos e história seu pròprio uso, des- construtor, dos mitos
seus espagos lisos, seus buracos, suas linhas de fuga, históricos. Ele substituí a história-reconhecimento peto
que permitem urna cartografia dos fenómenos. Quan to uso paródico da realidade; a história-continuidade por
a Foucault, ele define a historia: geral que apregoa como um uso destruidor da identidade, e a história-co-
o passive!8ñ desdobra- mento de um “espago de nhecimento por um uso destruidor de verdades. Nessa
dispersáo” . Como assinala Deleuze, sob os termos perspectiva, a história-síntese total é, segundo ele, um
genealogia/ e arqueología em Foucault, està em questao embuste, pois “urna possível tarefa implica que se
também urna geologia, com seus lengóis de questione tudo o que per- tence ao tempo, tudo o que é
arrastamento, seus deslizamientos de terreno, suas formado nele... de maneira que aparega o rasgo 90sem
descontinuidades. Aliás, Deleuze define foucault como cronologia e sem história de onde provém o tempo” .
um “novo cartógrafo”. Sem dú* vida, o modo de Deleuze e Guattari, de sua parte, também enfatízam
posicionamento de Foucault e de Deleuze em face da em sua concepgao do envenemen- ciar o caráter de
historia é multo diferente, como Deleuze afirma sem surgimento de urna novidade, de comego, de origem em
ambiguidade em 1988: “Sempre gostamos (Félix e eu) sí mesmo. Em Diálogos, Deleuze faia de “fulguragáo de
de urna historia universal, que ele detestava”8'. superficie”91. Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guat-
tari se apoiam em Péguy (Clio) para explicar que há
duas maneiras de ver o acontecimento. Registrar sua
Dois filósofos do acontecimento efetuagáo na história, seu con- dicionamento, e remontar
Foucault e Deleuze se libertaram de urna filosofía da ao acontecimento, instalar-se nele e passar por todas as
historia no sentido de urna teleología hegeliano- componentes e singularidades. Mil Platos enuncia em
marxista para dar lugar a urna filosofía do 1980 a importáncia das escansóes evenemen- ciais, pois
acontecimento. Ambos, de maneira diferenciada quanto cada um dos treze platos é situado sob o signo de urna
à sua relaçâo com a historia, com os historiadores e com data inaugural: “A Historia nao se desembarazará das
o arquivo estarâo sempre esquadrinhando o surgimento datas. Talvez seja a economia, ou a análise fmanceira,
do novo, as fulgurâncias que subvertem os hábitos e as que melhor mostre a presenta e a instantaneidade desses
ideias prontas. É nas fases de crise, de muta- çâo que se atos decisorios em um processo de conjunto”92.
podem perceber esses momentos de cristalizaçâo tâo Essa ideia do acontecimento nao tem nada de
essenciais para a compreen- sâo daquilo que está em presentismo. Ao contràrio, a filosofia como criagáo de
jogo na historia social assim como na história do conceitos deve estar em ruptura com sua época. Eia é
pensamento. E, alias, o que afirma o pròprio Deleuze ao fundamentalmente ina- tua! e intempevStiva segundo a
abordar o pensamento de Foucault a partir de seus concepgao nietzschiana compartilhada com Foucault:
desìo- camentos, de suas passagens, que atestam mo- “Age contra o tempo, portanto sobre o tempo, e, es-
mentos de crise cuja travessia é esclarecedora das peremos, em beneficio de um tempo por viri’93. Deleuze
distingue história e devir. A criagáo do novo é sempre se apoia na demonstragao sobre Duns Scot e retoma dele
inatual e constituí um devir. o conceito de hecceidade pelo qual define a
Este último, sem dúvida, tem necessidade da historia, de mdividuaiidade even emendai. Disso resultam duas
estados268deFrançois
coisas, Dosse
para nao permanecer totalmente características essenciais. De um lado, o acontecimento
indeterminado, e, ao mesmo tempo, escapa déla. O devir se define pela coexistència simultánea de duas
irrompe no tempo e jamais se reduz a ele. dimensóes heterogéneas em um tempo em que o futuro e
Foi assim com o acontecimento vivido com o passado nao param de coincidir, de ! se sobrepor um
intensidade por Deleuze, Guattari e Foucault, Maio de ao outro, simultaneamente : distintos e indiscerníveis.
68, que nao pode ser compreendido apenas no eixo dos Em segundo lugar, o : acontecimento é o que ocorre, e
fatos históricos do afonda- mentó, pois isso sígnificaria sua dimensáo i emergente aínda nao está separada do
omitir o essencial, seu aspecto criativo. O acontecimento passado. É urna intensidade que vem e que se distingue
é um desafio à concepçâo tradicional da historia. É pro- simplesmente de outras intensidades. O : acontecimento
priamente sua crise. Deleuze e Guattari defen- dem tal ideal, definido como tal por Deleuze em Lógica do
posiçâo na medida em que, para eles, o que acontece nao Sentido, é portanto urna sin- guìarìdade ou um conjunto
poderia ser explicado pela historia. O tempo pôe em de singularidades.
crise a causalidade sob a qual reina um acaso irredutívei Para pensar o acontecimento, Deleuze e : Guattari
que a torna ontologicamente secundária, sem negada. consíderam que este deve ser declinado em dois modos
Em Lógica do Sentido, Deleuze recusa dois modos de temporais distintos. Primeiro, há sua efetuagáo em um
abordagem do acontecimento: o essen- ciaüsta, estado de coisas, em um presente. O acontecimento está
platónico, que subsume a pluralidade dos ligado entáo a um tempo particular chamado de
acontecimentos em um acontecimento puro, más Chronos e pelo qual fixa as coisas e as y pessoas
também a abordagem circunstancia- lista, segundo a segundo um certa medida. Ao mesmo tempo, o
qual o acontecimento se reduz ao acídente atestado. Ele acontecimento nao se reduz à sua ; efetuagao, e por isso
responde a isso dando ênfase à pluralidade 9,1dos a necessidade de considerar urna segunda dimensáo
acontecimentos como “jatos de singularidades” , e temporal para ele, que Deleuze e Guattari qualifícam de
também ao fato de que o acontecimento enquanto tal Aión, urna eterni dade paradoxal pela qual alguma coisa
abre para um questionamento: “O acontecimento por si de incorporal, de inefetuável, transborda e se abre para o
mesmo é problemático e problematizante”95. Em A tempo indefinido do acontecimento, “urna linha
Dobra, Deleuze responde à pergunta de Whitehead: “O flutuante que nao conhecéy a velocidade e ao mesmo
que é um acontecimento?”. Segundo ele, o tempo nao deixa de divisar o que ocorre em um já-lá e
acontecimento se manifesta como urna vibraçao em em um ain- da-nào-là, um tarde-demais e um cedo-
harmonías infinitas, séries extensivas, o surgimento do demais simultáneos, aigu ma coisa que93ao mesmo tempo
novo, ao mesmo tempo público e privado, potencial e vai se passar e que acaba de se passar”
atual, marcado por intensidades. Essa ènfase no acontecimiento remete em Deleuze e
É possível, nessas condiçôes, pensar o Guattari à esfera do agir, segundo os ensinamentos da99
acontecimento e confiná-lo em seu dizer? O filosofìa pràtica de Espinosa, mas também dos estoicos
acontecimento excede sua discursividade. Foucault, - um carni- nho estoico que, em um eia vitalista, tende a
depois de A Arqueología do Saber, muda sua orientaçâo ser digno do que ocorre, a se apoiar e valorizar todo
para um programa genealógico que supervaloriza o nivel clarâo que possa revelar o que ocorre: um
discursivo com A Ordern do Discurso, sua aula acontecimiento, uma velocidade, um devir. Um
inaugural no Collège de France. Ele desenvolve o Eventum Tantum pode ser imperceptível e, no entanto,
programa de urna problematizaçâo da vida, do crime, da mudar tudo: “Fazer um acontecimen- to, por menor que
loucura por rijfeio do exame das condiçôes de validade seja, a coisa mais delicada do mundo, o contràrio de
do saber. Trata-se de %“restituir: ao discurso seu caráter fazer um drama, ou de fazer uma historia. Amar os que
de acontecimento” , segundo relagoes de sao assim: quando entram em um lugar, nao sao pessoas,
descontinuidade: “Os discursos devem ser tratados como caracteres ou sujeitos, é uma variaçâo atmosférica, uma
práticas descontinuas”97. A esse respeito, Foucault se mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma
apresenta como um positivista feliz, e isso desde A populaçâo discreta, uma bruma ou uma névoa, Tudo
Arqueología do Saber, em 1969, com a preocupagao de mudou, na verda- de. Os grandes acontecimentos, eles
prospectar o que é o suporte enunciativo para ele também, nâo sao feitos de outro modo: a batalha, a re-
mesmo, em sua positivi- dade e em sua efetividade. voluçâo, a vida, 100
a morte... As verdadeiras Entidades sao
Deleuze expressa esse excesso em relagáo 1 ao dizer acontecimentos” .
do acontecimento assinalando seu caráter singular. Ele
Deleuze, leitor de Foucault Contudo, essa relaçào em espelho entre saber e
Ao longo de todo seu percurso, Deleuze es- teve poder vai dar em urna aporia. Para resta- belecer urna
sempre muito atento à obra de Foucault e o resenhou dinàmica, éGilles
necessàrio que inter- venha um terceiro
regularmente. Em particular, fez dois estudos, em 1970 eixo, que DeleuzeDeleuze
considera como já-presente, mas em
& Félix Guattari 269

e em 1975: um sobre A Arqueología do Saber e o outro modo menor, e que ocupa o último Foucault, o de suas
a propósito de Vigiar e Punir101. Sobretudo, consagra duas últimas obras, com o estudo dos modos de sub-
todo seu curso de 1985 e 1986 a Foucault e no veráo pu- jetivaçâo, que se julgou abusivamente como o retorno
blica seu Foucault. do sujeito. Essa dimensâo da subjeti- vaçâo “estava
O fato de se consagrar à obra de Foucault presente em Foucault, mas nâo106 por eia mesma,
imediatamente após seu falecimento atesta a força da entremeada no saber e no poder” . A questâo maior
ligaçâo e o difícil trabalho de luto empreendido por que Foucault se coloca entâo é saber como o poder e o
Deleuze, que perde ali mais que um amigo. Quando Ihe saber tentam reconquistar esse terceiro elxo, o da
perguntam por que um livro sobre Foucault, ele subjetiva- çâo, para se reapropriar dele no interior de sua
responde de forma muito clara: “Por necessidade para propria lógica. Assim, reencontra-se urna dinámica, pois
mini, por admiraçâo por 103eie, por emoçâo de sua morte, “quanto mais o poder se apodera da subjetivaçâo, mais
dessa obra interrompida” . A maneira de Deleuze fazer se formam novos modos de subjetivaçâo”107.
o luto do desaparecimiento de Será que se pode dizer que Deleuze, do mesmo
Foucault foi mostrar a lógica pròpria de seu pensamento, modo que procedeu quase sistematicamente com outros
procurando a coerência deste através das crises, dos filósofos da tradiçâo, Ihe fez um filho pelas costas com
sobressaltos, dos des- locamentos incessantes que ele seu Foucault, justapondo-o ás suaspróprias posiçôes?
atravessa. Se- guindo as liçôes de Martial Guéroult, Essa é de algum modo a opiniâo de Potte-Bonneville,
Deleuze defende a ideia de que nâo se pode extra! r a que vê na obra de Deleuze a melhor porta da entrada na
parte de uma obra de seu conjunto. É preciso recuperar obra foucaultìana, um belo convite para 1er e para
tudo e restituir sua lógica, seu gesto: “k lògica de um esclarecer, mas, ao mesmo tempo; urna operaçâo “de
pensamento é como um vento que sopra às nossas encobrimento, de ocultaçâo de alguns aspectos do
costas, uma série de lufadas e de sacudidelas. pensamento de Foucault. Assim, a questâo da história
Irnagmava-se estar no porto e se vê lançado em mar desaparece completamente, o que é bem estranho para
aberto, para usar urna frase 103de Leibniz. É falar de Foucault”108.
eminentemente o caso de Foucault” . Deleuze refaz, Quando o especialista da obra de Foucault, Frédéric
pertanto, todo o percurso cla obra de Foucault e encontra Gros, publica um estudo consagrado à imagem que
nela simultaneamente uma profunda unidade e Deleuze retém de Foucault, vê nela ama “fîcçâo
deslocamentos importantes. Toda a obra dele, segundo metafísica”109. Ele nâo reco- nhece ali nem seu Foucault
Deleuze, é articulada com base na distinçâo de natureza nem seu latim e lembra que compreender Foucault nâo
entre o ver e o falar, entre o visível e o enunciávei. significa para Deleuze proceder a um comentário
Nesse aspecto, é fundamentalmente dualista e desdo- bra esclarecido sobre sua obra: “Compreender um autor,
essas duas dimensoes irredutíveis uma à outra: “Para ele para Deleuze, é de certa maneira fundâ-lo antes de
o primado dos enunciados nao impedirá jamais a tudo...110é se lançar mais à metafísica inerente a urna
irredutibilidade histórica do visível, ao contrarió”101. obra” Isso seria tam- bém poder sonhá-lo, e sonhá-lo
Entretanto, Deleuze demarca evoluçôes notorias em como duplo do que eie foi, como metafisico. Frédéric
Foucault. Até a publicaçâo de A Arqueología do saber, Gros reconhece, sem dùvida, a extraordinària coe-
em 1969, o que domina a obra deste é a questâo do rência que traz à ìuz a lettura feita por Deleuze da obra
saber. Depois, com Vigiar e Punire A Vontade do de Foucault, que estaría ligada ao fato de que, “ìendo
Saber, Foucault se lança em uma nova dimensao, a do Foucault, Deleuze encontra as aquisiçôes de sua leitura
poder. Deleuze se indaga sobre o que o levou a passar de de Bergson”111. Con- tudo, depois de redigir esse artigo
um registro ao outro e sugere que o problema de em 1995, Frédéric Gros pdjÜe avallar o acerto de certos
Foucault é o do duplo, e “o enunciado é o duplo de eíxos da leitura deleuziana: “O lìvro de Deleuzé ■ é
quaiquer coisa idéntica a ele”lúa. O saber sendo a um verdadeiro livro filosófico. Tudo o que ele enuncia
integraçâo de relaçôes de forças, ele se serve de uma sobre a relaçâo entre os enunciados e as visibilidades
dupla partiçâo, a das relaçôes de forças constitutivas do mostra que compreendeu al- guma coisa de muito forte,
poder que se somam as relaçôes de formas que e que eu reencon- trei nos últimos cursos de Foucault no
constituem o saber. As singularidades próprias emanam Collège? de France, mas que Deleuze nâo pode fazé-lo,
de urna rela- çâo endógena do saber com o poder. a saber, a ideia de que eie constróì urna ética dìreta
procurando estabelecer urna correspon- dência entre a
trama visível dos gestos e dos lo-- gol, dos enunciados. No decorrer de 1984, começa a circular em Paris o
Ê surpreendente ver como/: Deleuze, que nâo teve rumor de que Foucault está muito? doente: de que? Nâo
acesso 270
a esses cursos no Collège de France, pode ter se sabe, mas alguns têm? conhecimento de sua
feito urna leitura tao cor reta”1 ì2. Como escreve Robert
François Dosse
hospitalizaçâo, Deleuze se preocupa com o estado de
Maggiori? quando do lançamento do Foucault de saúde do amigo com quem nâo tem mais contato desde o
Deleu- : ze, este ultimo “nâo explica Foucault, que se final ; dos anos de 1970: “Quinze dias antes da morte v;
explica muito bem eie pròprio em seus livros, nem o de Foucault, Deleuze me ligou muito preocupado para
comenta, pois jà està assoberbado de/ comentários. perguntar se eu tinha noticias dele,/: dizendo: ’Voce sabe
Mineiro respeitoso da rocha que resiste a ele, e hábil em o que está aconteeendo? O que ele tem?? Eu nâo sabia
se desfazer de todas as escorias, Deleuze escava até de nada, a nâo .; ser que ele estava hospitalizado. E
encontrar na produçâo de Foucault o que é mais Deleuze? acrescenta: ‘Mas talvez nâo seja nada, e Fou-
produtivo 113e aumenta as posslbilidades de cault saia do114hospital e nos procure para dizer que està
pensamento” :/ tudo bem’” . Quanto a Foucault, segundo Didier
Éribon, um de seus desejos mais intensos, ao saber que
estava condenado, seria// se reconciliar com Deleuze.
O desaparecimento Contudo, eles nâo se viram mais. 0 fato de Daniel Defert
ter pedido a Deleuze para tomar a paiavra nas obsé-
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 271

quias de Foucault atesta essa vontade de rea- de Artaud em Lógica do Sentido descons- trói as
proximaçâo para além da separaçâo da morte. engenhosas conexóes de superficie de Lewis
Deleuze, que detestava os coloquios, abre urna Carroll, e Deleuze reencontra Artaud no cerne
exceçâo para o amigo Foucault e participa do mesmo das indagaçôes de Foucault: “O
encontró internacional organizado em Janeiro de impensado como duplo do pensamento, tudo
1988 em sua homenagem, intitulando sua enfim de As Palavras e as Coisas é o tema do
intervençao de "0 que é o dispositivo?”1'1. Em um duplo, pròprio a Foucault, que ele reinterpreta e
curso que consagra a ele entre 1985 e 1986, que 119
conheceu com Artaud, Heidegger, Blan-
Deleuze evoca a morte de Foucault a propósito da chot” , Foucault vê ali urna experiencia próxima
valorizaçao do “On”*, do “Ele", de sua crítica de à de Artaud, que atingiu no pensamento alguma
toda personologia. Em L’Espace Littéraire, coisa que se furta ao pensamento e que se torna no
Blanchot desdobrava o “Se morre” como escritor um “impoder vital”130.
acontecimento, concebendo que a morte só pode Esse tema da duplicidade aparece em um dos
vir de fora. Reencontra-se esse tema do “Se primerios livros de Foucault, que 131trata de um
morre” reinterpretado 110por Foucault que “morreu outro escritor, Raymond Roussel , Sobre a
como pensou a morte” , “Foucault nos117dizia urna distorçâo entre o ver e o dizer, Foucault tam- bém
coisa que se refere diretamente a ele” , a morte enconfcra inspiraçâo na literatura. A reía- çào com
nâo é o acontecimento irredu- tível, último, esse a lingua, com a vontade de praticá-la em seus
momento limite tal como o concebem os límites, que é comum a Foucault e a Deleuze,
moralistas e os médicos. Portanto, nunca se acaba pode ser expressada por esta frase 133 de Roussel:
de morrer: “Foucault vive a morte à maneira de “Fender as coisas, fender as palavras” , Urna das
Bichat Ele morreu assim. Ele morreu tomando seu intuiçôes de Roussel é construir dois enunciados a
lugar no 118‘Se morre’ e em forma de ‘mortes partir de uma diferença infinitesimal, mas que
parciais’” modifique fundamentalmente seu sentido
Para além de suas diferenças e desacordos, global123. Para Foucault, assim como para
para além do desaparecimento de ambos, seria Deleuze, a literatura nâo tem valor ilustrativo ou
absurdo falar de um “foucault-deleuzianismo”? Já exótico, mas um valor de experimenta- çâo, de ato
se viu que essa expressâo nao poderia ser de criaçao, e corno a filosofia consiste, segundo
cristalizada, pois eia encobriria a síngularida- de Deleuze, em inventar conceitos, a literatura a
de cada um, suprimiría os objetos de discordia por acompanha nessa criaçao.
urna falsa aparéncia em nome de um ecumenismo Dessa relaçâo Foucault-Deleuze, pode-se
estéril. Assim, é preferível falar, à maneira da extrair bem mais que uma base comum: um devir
relaçâo entre Deleuze e Guattari, de “síntese do foucaultismo trazido por Deleuze. Com seu
disjuntiva”. texto “Post-scriptum sobre as sociedades de
Além da herança filosófica, sua proximidade controle”, publicado em 1990, Deleu-
se mede pelo uso que fazem da literatura. O tra- * 24
ballio clínico sobre a literatura é comum a ambos ze prolonga o gesto de Foucault . Como Foucault,
e os distingue da corporaçâo dos filósofos de Deleuze é interpelado pela atualidade e pela
oficio, que frequentemente limita seu corpus ao necessidade de pensar o que muda. Ele parte do
saber filosófico académico. Sabe-se como o grito historicismo proposto por Foucault Deleuze
distinguiu um modelo de sociedade fundado na
1N. de B. T.: O texto original re fe re-se à crítica de soberanía no qual o poder se revela por sua
Foucault a todo tipo de “personaiizaçâo” e, como tai, à
valorizaçâo dos pronomes pessoais indefinidos orí e il que capacidade de matar. Depois, na época moderna,
designam urna pessoa ou um grupo de pessoas de maneira nos sáculos XV1II-XIX, impôs-se um modelo
indeterminada (nós, a gente, alguém, se). Por exempta, On disciplinar determinando os limites da atividade
est. tous égaux devant la Loi, traduz-se [Nós] Somos todos humana segundo o esquema de um “grande
iguais perante a Loi; On meurt, traduz-se Morre-se ou nào/ confinamento”, que levou a urna generalizando
se morre; H se fait qu’il y a de la peur à cet endroit, traduz-
se [Acontece que] existe medo nesse lugar, etc.. dos universos fechados com sua disciplina
alcanzando cada partícula do corpo social, Sobre o 4. ¡bici.
modelo do panóptico, multi- plicaram-se as construgóes 5. Gilles Deleuze, “Fendre les choses, fendre les mots”,
de presidios, casernas, escolas, fábricas, etc. O poder entrevista com Robert Maggiori, Libération, 23 de
nao tem272mais a fungao de matar, mas de disciplinar os
François Dosse setembro de 1986; reproduzido em PP,p, 117.
corpos, de fazè-los vìver, de otimizar suas po- 6. Ibid., p. 117.
tencialidades e de deixá-los morrer. 7. Gilles Deleuze, A.
Foucault comegara a perceber a emergencia de um 8. Gilles Deleuze, palavras reportadas por Didier ÉRIRON,
novo modelo social girando em torno do biopoder e de Michel Foucault, Flammarion, Paris, 1989, p. 83.
urna biopolìtica das populagòes, um pouco defasada em 9. Ibid, p. 162.
reìagào às lógicas disciplinares. Deleuze aprofunda 10. Ibid., p. 163.
essas intuigóes e discerne em 1990 o advento de um 11. Ver capítulo 3, "A triade vitalista”.
novo tipo de sociedade: o das sociedades de controle. 12. Michel FOUCAULT, “La prose dActéon”, MF, n. 135,
Elas teriam se instalado depois da Segunda Guerra março de 1964, p. 444-459; reproduzido em Dits et écrits,
Mundial, que termina com a cri- se generalizada de tomo I, Gallimard, Paris, 1994, p. 326-337; Gilles
todos os meios de12confinamento: “Trata-se apenas de DELEUZE, “Klossowski ora le corps-langages”, Critique,
gerir sua agonia” “. Deleuze é premonitòrio nessa n. 214, março de 1965; reproduzido em LS, p. 325-350.
13. Philippe SABOT, “Foucault, Deleuze et les si-: mulacres”,
análise que de- senvolve já em seu curso sobre Foucault Concepts, 8, Sils Maria, 2004, p. 6. T
De fato, Deleuze percebe nessa gestao da vida em 14. Gilles DELEUZE, LS, p. 329.
multiplicidades abertas e indefinidas, o que só veio a se 15. Ibid., p. 348.
confirmar, uma gestao bem diferente, a do controle, e 16. Gilles Deleuze, aula de 28 de Janeiro de 1986,
uma transformagào do sujeì- to de direito. Este nào se universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros,;
limita mais à pessoa como na era humanista, pois . RNF.
implica todas as outras populagòes além das humanas - 17. Michel FOUCAULT, “Theatrum phüosophi- cum”, art.
os cernáis como os rebanhos de vacas, os carneiros, as cit., Dits et écrits, tomo II, op. cit., p. 98.
aves de criagáo e qualquer outro ser vivo. O sujeito de 18. François ZOURABICHVILI, Deleuze. Une philosophie de
direito se torna, na26 sociedade de controle, o vivo: “O l’événement, PUF, Paris, 1994.
vivo no hornera”* . 19. Michel FOUCAULT, "Theatrum philosophi- cum”, Dits et
Nao há mais necessidade de confinamento, “pois se écrits, op. cit., p. 85,
sabe que a tal hora os encontrará todos na estrada. Os 20. Gilles Deleuze, aula de 20 de maio de 1986, universidade de
cálculos 27de probabilidades sao bem melhores que urna Paris-VIÎI, arquivos sonoros, BNF.
21. Philippe ARTIÈRES, Laurent QUÉRO, Mi- cheìle
prisáo”* . Desde os anos de 1980, Deleuze constata a ZANCARINI-FOURNEL, Le Groupe d'information sur les
frag- mentagao de todo o tecido de confinamento, e prisions, Archives d’une lutte 1970-72, IMEC, 2005, p. 28.
particularmente o da fábrica, que nao para de se 22. Daniel DEFERT, “L’émergence d’um nouveau front: les
decompor sob os golpes do trabalho temporario, do prisions”, em Le Groupe d’information sur les prisions, op.
trabalho no domicilio ou aínda dos arranjos do tempo de cit., p. 317. Essa reuniâo com cerca de vinte pessoas retine
trabalho. Na escola, vive-se em um mundo menos em torno de Foucault, entre outros, Daniel Defert,
disciplinar, mas os controles ali se multiplieam: “Os Casamayor, Jean-Marie Domenach, Louis Joinet, Frédéric
individuos se tornaram ‘dividuais,28 e as massas, Pottecher, Christian Revon, jean-jacques de Felice, Christine
amostras, dados, mercados!‘bancos?’* . Em todas essas Martineau, Danielle Rancière, Jacques Donzeìot.
transformaçoes que quebram as velhas rigi- dezes 23. Ibid., p. 318,
disciplinares para dar lugar aos chips, aos telefones 24. Particularmente pelo caso de Bruay-en-Artois em 1972. Foi
celulares, que permitem ter unf controle permanente encontrado nas proximidades da vila operaría o corpo de urna
sobre cada um em uní espago ab erto onde nâo se adolescente de 16 anos, filha de um mineiro, Brigitte
distingue mais a interioridade e a exterioridade, o que Dewèvre, nua e mutilada. O juiz Pascal logo tratou de acusar
a personalidade local, o notario Pierre Leroy. O diàrio
conta “é que estamos no começo de alguma coisa”129. maoista La Cause du peuple considera que apenas um porco
Novas formas de subjetivaçâo e de resistencia ao burgués pode- ria ter cometido um tal crime, e instala-se um
controle devem seguir vias inéditas. tribunal popular em nome da necessària justi- ça popular.
Notas 25. Gilíes Deleuze, aula de 28 de Janeiro de 1986, universidade
1. Michel FOUCAULT, “Theatrum philosophi- cum”, de París-VIIÍ, arquivos sonoros, BNF.
Critique, n. 282, nov. 1970; reproducido em Dits et écrits, 26. Jean-Pi erre Faye, entrevista com o autor.
tomo II, Gallimard, Paris, : 1994, p. 76. :: 27. Jacques Donzeìot, entrevista com o autor,
2. Fanny Deleuze, entrevista com o autor. 28. Jacques DONZELOT, La police des familles, Minuit, Paris,
3. Paul Veyne, entrevista com o autor. 1977.
29. Jacques Donzeìot, entrevista com o autor. primavera de 1983, p. 195-211; reproduzido em Dits et
30. Michel Foucault, palavras reportadas por Jacques Donzeìot, écrits, op.cit., tomo IVI p. 445.
entrevista com o autor. 62. Éric Alliez, entrevista com o autor.
31. Deleuze escreveu en tào um belo posfàcio com o título “A 63. Gilles Deleuze, aula de 21
Gilles Deleuze de Janeiro
& Félix de 1986,
Guattari 273 universidade
ascensào do social” (Gilles DELEUZE, Xascension du de Paris-VIII, arquivos sonoros, BNF.
social”, posfàcio a Jacques DONZELOT, La police des 64. Ibid.
familles, op. cit., p. 213-220). 65. Jacques Donzelot, entrevista com o autor.
32. Alain JAUBERT, Michel Foucault, une journée particulière, 66. Gilles DELEUZE, "Désir et plaisir”, Le Magazine littéraire,
Aedelsa ed„ Lyon, 2004, p. 15. art. cit., p. 59; reproduzido em RF, p. 113.
33. Gilles DELEUZE, Le Nouvel Observateur, 31 de Janeiro de 67. Paul VEYNE, "Le dernier Foucault et sa morale”, Critique,
1972. n. 471-472, agosto-setembro de 1986, nota 1, p. 940.
34. lbid.\ reproduzìdo em ID, p. 286. 68. Hervé COUCHOT, “Philosophie et vérité: quelques
35. Claude MAURIAC, Mauriac et Fils, Grasset, Paris, 1986, p. remarques sur un chassé-croisé”, Concepts, 8, Süs Maria éd.,
388. 2004, p, 29.
36. Gilles Deleuze, arquivos da universidade Pa- ris-Vlil- 69. Gilles DELEUZE, “Désir et plaisir”, art. cit., p. 62;
Vineennes, BDIC. reproduzido em RF, p. 118.
37. InformaçÔes Didier ÊRIBON, Michel Foucault, op. cit., p. 70. Michël Foucault, introduçâo ao curso do ano letivo de 1978
254. no Collège de France, 11 de ja- neiro de 1978, gravaçâo
38. Gilles DELEUZE, “Les intellectuels et le pouvoir”, L’Arc, pública, citado por Hervé COUCHOT, “Philosophie et vérité;
n. 49,4 de março de 1972 ; reprodu- zido em ID, p. 289. quelques remarques sur un chassé-croisé”, art. cit., p. 39,
39. Ibid., p. 289. nota 1,
40. Judith Reveì, entrevista com o autor. 71. Hervé COUCHOT, ibid., p. 43.
41. Ver o capitulo “O CERFI em suas obras”. 72. Thomas BÉNATOUIL, “Deux usages du stoïcisme: Deleuze
42. Gérard Soulier, entrevista com o autor. et Foucault”, em Frédéric GROS e Carlos LÉVY, Foucault
43. Posteriormente se saberâ, mas bem mais tarde, que essa et la philosophie antique, Kimé, Paris, 2003, p. 31.
personalidade democratica, advogado de seu estaclo, era, na 73. Gilles DELEUZE, LS, p. 210.
verdade, um agente da Stasi. 74. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universi- dade de Paris-
44. Claude MAURIAC, Mauriac et Fils, op. cit., p. 294. VÏÏI, 6 de malo de 1986, arquivos sonoros, BNF.
45. Gilles Deleuze, carta de 7 de fevereiro de 1990 a James 75. Ibid.
Miller, em James MILLER, Michel Foucault, Pion, Paris, 76. Michel FOUCAULT, L'Usage des plaisirs, Gallimard, Paris,
1993, p. 346. 1984, p. 90.
46. Ver capitalo “1977; o ano de todos os comba- tes”. 77. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor.
47. James MILLER, Michel Foucault, op. cit., p. 345. 78. Judith Revel, entrevista com o autor.
48. Gilles DELEUZE, “Grandeur de Yasser Arafat”, Revue 79. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-
d’études palestiniennes, n. 10, inverno 1984, p. 41-43 (texto Vili, arquivos sonoros, BNF
de setembro de 1983); re- produzido em RF, p. 221-225. 80. “Kant foi o primeiro a definir o ser humano em funçâo de,
49. Michel FOUCAULT, Le Monde, 17-18 de outu- bro de urna abertura que o atravessa" (ibid.). Kant realiza o
1976, reproduzido em Dits et écrits, op. cit., tomo II, p. 96. acontecimento da filo-; sofia moderna diferenciando duas
50. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. dimensôes ■ heterogéneas e ressaltando a disjunçâo irre-
51. Ibid. dutivel entre a receptividade e a espontaneé dade, entre a
52. Ver capitulo “Fogo no psicanalismo”. intuiçâo e o conceito, e erigindo a fmitude em principio
53. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. constituíate: “Com Kant, aparece aigu ma coisa que nào
54. Michel FOUCAULT, La Volonté de savoir, Gallimard, podia: aparecer antes” [ibid.).
Paris, 1976. 81. Gilles DELEUZE, “Un portrait de Foucault”, entrevista com
55. Gilles DELEUZE, “Désir et plaisir”, Le Magazine littéraire, Claire Pernet, 1986; reproduzi- : doemPP, p. 140.
outubro de 1994, n. 325; repro- duzido em RF, p. 112-122. 82. Judith REVEL, “Foucault lecteur de Deleuze:; De l’écart à
56. ' Ibid.,W, p. 118-119. la différence”, Critique, n. 591-592,;■ agosto-setembro de
1996, p. 734.
57. Ibid., p. 119. 83. Ver o capítulo “La Borde, entre mito e realidadë’.:
58. James MILLER, Michel Foucault, op. cit., p. 345.
59. David RABOUIN, “Entre Deleuze et Foucault: penser le 84. Judith Revel, entrevista com o autor.
désir”, Critique, junho-julho de 2000, n. 637-638, p. 475- 85. Ibid.
490, 86. Michel FOUCAULT, Archéologie du savoir, Gallimard,
Paris, 1969, p. 19.
60. [bici., p. 485. 87. Gilles Deleuze, entrevista com Raymond Bel- îour e
61. Michel Foucault, entrevista com Gérard Eau- let, François Ewald, Le Magazine littéraire, setembro de 1988,
“Structuralisme et post-structuralisme”, Te- ios, v. XVI, n. 55, p. 24.
88. “Ê preciso despedaçar aquilo que permitía o jogo 105. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade
consolador dos reconhecimentos. Saber,: mesmo na ordem de Paris-VllI, 3.7 de dezembro de 1985, arquivos sonoros,
histórica, nâo significa 'reencontrar e, menos ainda ‘nos BNF.
reencontrar. A historia
274 François Dosseserá efetiva na medida em que in~ 106. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade
troduza o descontinuo em nosso próprio ser. : Ella dividirá de Paris*VÏÏI, 6 de maio de 1986, arquivos sonoros, BNF.
nossos sentimentos, dramatizará nossos instintos; 107. Ibid.
multiplicará nosso corpo : e o oporá a ele mesmo... É que o 108. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor.
saber nao é feito para compreender, é feito para cortar” 109. Frédéric GROS, “Le Foucault de Deleuze: une fiction
(Michel FOUCAULT, “Nietzsche, la généalogie,. l’histoire”, métaphysique”, revu e Philosophie, n. 47, setembro de
em S. BACHELARD (dir.), Hommage à Jean Hyppolite, 1995, p. 53-63.
PUF, Paris, 1971; reproduzido em Dits et écrits, tomo II, op. 110. Ibid., p. 54.
cit., p. 147-148). 111. Ibid., p. 63.
89. Michel FOUCAULT, "Nietzsche, la généalogie, : 112. Frédéric Gros, entrevista com o autor.
l’histoire”, em S. BACHELARD (dir.), Hommage: à Jean 113. Robert MAGGIORI, “Gilles Deleuze-Michel Foucault: une
Hyppolite, op. cit., p. 161. amitié philosophique”, Libération, 2 de setembro de 1986.
90. Michel FOUCAULT, Les Mots et les Choses, Gallimard, 114. François Regnauit, entrevista com o autor.
Paris, 1966, p. 343. 115. Gilles DELEUZE, 'Quest-ce qu’un dispositif?”, em Michel
91. Gilles DELEUZE, D, p, 80. Foucault philosophe, Seuil, Paris, 1989, p. 185-195.
92. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 103.; Essa 116. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade
data de 20 de novembre de 1923 está li- ! gada à infiaçâo de Paris-VIll, 26 de novembro de 1985, arquivos sonoros,
galopante apôs 1918 na Aie- : manha; “A cortina cai em 20 BNF.
de novembre de; 1923”, escrevia o economista J. K. 117. Ibid.
Galbraith: (J. K. GAJLBRAÍTH, L’Argent, Gallimard,
Paris,; 1976, p. 259). 118. Ibid.
93. NIETZSCHE, Deuxième considération intempestive, 119. Gilles Deleuze, auia sobre Foucault, universidade de Paris-
prefacio, VIII, 22 de abri! de 1986, arquivos sonoros, BNF.
94. Gilles DELEUZE, LS, p. 68. 120. Ibid.
95. Ibid., p. 69.
121. Miche! FOUCAULT, Raymond Roussel, Gallimard, Paris,
1963.
96. Michel FOUCAULT, L'Ordre du discours, Gallimard, 122. Raymond ROUSSEL, Comment j’ai écrit certains de mes
Paris, 1971, p. 53. livres, UGE, 10/18,1977.
97. Ibid., p. 55. 123. Exemplo: “Les lettres du blanc sur les bandes du vieux
98. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MR p. 320. billard”; “Les lettres du blanc sur les bandes du vieux
99. "Nao ser inferior ao acontecimento, tornar-se o filho de pillard”. [N. de T. Que pode- riam ser traduzidas como: “As
seus prôprîos acontecimentos” (Gilles DELEUZE, D, p. 80). letras de giz n as bandas do velho bilhar” e ‘As cartas do
100. Ibid., p. 81. branco sobre os bandos do veiho pilhador”.]
101. Gilles DELEUZE, “Um nouvel archiviste”, Critique, n. 124. Gilles DELEUZE, “Post-scriptum sur les sociétés de
274, março 1970; “Écrivain non; un nouveau cartographe", contrôle”, IIAutre Journal, n. 1, maio de 1990; reproduzido
Critique, n. 343, dezembro de 1975: artigos reproduzidos e em PP, p. 240-247.
revistos em Foucault, Minuit, Paris, 1986, p. 11-30 para o 125. Ibid, p, 241
primejro artigo, p. 31-51 para o segundo (do- ravante citado 126. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-
F). VIII, 8 de abri! de 1986, arquivos sonoros, BNF.
102. Gilles Deleuze, entrevista com Didier Éribon, Le Nouvel 127. Ibid.
Observateur, 23 de agosto de 1986; reproduzido em PP, p, 128. Gilles DELEUZE, “Post-scriptum sur les sociétés de
129. contrôle”, PP, p. 244.
103. Ibid,, p. 129. 129. Ibid., p. 246.
104. Gilles DELEUZE, F, p. 57.
La Borde foi
confundida
frequentemente com a
antipsiquiatria,
apresentado-se a clinica
18 excessivamente
reformistas,
integradoras
conformistas. Seu
objetivo declarado na
e

de Loir-et-Cher como a época é destruir a


expressào francesa dessaUrna alternativa à psiquiatría? instituiçao. O
corrente. Basta ouvir seu diretor, Jean Oury, para movimento que; Basaglia lança mais tarde,
se convencer de que um fosso separa a “Psichiatria Democratica”, defende, aliás, 0
psicoterapia institucional e as teses da fechamento puro e;; simples dos hospitais
antipsiquiatria. Em La Borde, pratica-se a psi- psiquiátricos.
quiatría e se assume isso: “Ele [Félix] fìcou fas- No clima de radicalizaçâo política da Itália
cinado, mais ou menos na mesma época, pelos dos anos de 1960, a corrente da antipsiquiatria- é
antipsiquiatras. É dai que vem a nuvem que se um ator nâo desprezivel. Guattari nào segue :
formou, na cabeça mal informada das pessoas, Basaglia até suas posiçôes extremistas. Em 1970,
entre La Borde e a antipsiquiatria. Isso sempre me ele se pergunta se nâo se trata de urna “fuga
deixa com raiva”1. Oury considera que os adiante”, de urna tentativa de “caráter
antipsiquiatras sâo “estetas muito perigosos. Eu
gostava bastante do Basaglia por seu ca- râter
impulsivo, mas nâo por sua política. Os doentes
saiam de manha, voltavam à noite, e o hospital
Beava fechado. Os doentes desapa- receram
fisicamente. Talvez seja isso que a antipsiquiatria
concerta, suprimem~se os doentes, eles
desaparecen^2.

Antipsiquiatria
A antipsiquiatria surgiu na Itália com Franco
Basaglia, que, a partir de 1961, deci- diu
abandonar 4* principio do confinamento dos
doentes mentais, abrir todos os serviços de seu
hospital e organizar assembleias gérais abertas a
todos. Após um prímeiro momento de espanto,
Basaglia foi seguido pelos psiquiatras de seu
hospital, que contabilizou mais de 50 reunióes por
semana. Foram registrados; progressos
importantes com doentes que vegetavano no
hospital há 15 ou 20 anos. Alguns inclusive
puderam voltar para casa graças à melhora de
estado. Após essa primeira etapa, Basaglia decidiu
estudar experiencias psiquiá- ; tricas em outras
partes da Europa. Em 1965, foi a La Borde em
companhia de outro representante da
antipsiquiatria italiana, Giovanni Jervis. Basaglia
mostrou-se crítico diante das práticas da
psicoterapia institucional, que jul- gou
desesperado”'5, Além disso, enfermeira, empreende a “viagem" da esquizofrenia e
Guattari critica o caráter faz urna regressáo até o limite da morte. O familialismo
irresponsável de certas em que ela se fecha a conduz a negar a realidade social á
276 François Dosse
posigóes de Basaglia, que se sua volta. Qual terá sido a contribuigáo da
recusa a administrar medica- antipsiquiatria? Levar ao paroxismo esse desvio
mentos apacientes sob o familialista e, ao invés de enquadrá-lo em urna relagáo
pretexto de que seria um entre o paciente e seu psiquiatra, dar-lhe um possível
melo de o médico mascarar desdobramento coletivo e teatral que terá exacerbado
sua incapaci- dade de todos os efei- tos. Segundo Guattari, a diregao da cura
estabelecer urna verdadeira nao foi no bom sentido. Mary Barnes náo necessi- tava
relagáo com o doente. de um a mais-de-famííia, e sim de um a mais-de-
Guattari se pergunta sociedade.
inclusive se nao se chega Na Alemanha, a antipsiquiatria também conquista
assim, com as melhores adeptos do lado do SPK (Coletivo Socialista de
inten- goes do mundo, a Pacientes), nascido na policlínica da universidade de
recusar ao louco o direito Heidelberg, em torno do doutor Hubber. Constituem-se
de ser louco. A negagáo grupos terapéuticos reunindo cerca de 40 doentes com
institucional de Basaglia seu médico, e eles denunciam a instituigáo psiquiátrica
seria, entáo, urna denegagáo como um instrumento de opres- sáo. A diregao da
no sentido freudiano da universidade decide acabar com esse movimento
singularidade da doenga contestatório. Em julho de 1971, usando como pretexto
mental as desordens causadas pela circulagáo de doentes na ci-
A outra grande cepa da antipsiquiatria é británica, dade e em seu entorno, assim como algumas trocas de
com Ronald Laing e David Cooper4. Guattari os conhece tiros, 300 policiais armados de me- tralhadoras leves
por ocasiáo das “Jornadas da Infáncia Alienada”, ocupam as instalagóes do SPK, enquanto helicópteros
organizadas em 1967 pela psicanalista Maud Mannoni e vigiam a cidades e se procede a buscas. Médicos e
com a participagao de Lacan. Essas duas jornadas dño doentes sao presos, e o SPK desaparece. O doutor
lugar à publicagáo de dois números da revista Hubber e sua mulher sao mantidos na prisáo durante
Recherches5, Contudo, Guattari reafirma ali suas vários anos, e seus advogados, imediatamente
reservas em relagáo ás práticas antipsiquiátricas, que ele dissuadidos, por pressóes e intimidagdes, de assumir sua
considera prisionei- ras do esquema edipiano, que, junto defesa, que só poderá ser feita por advogados de oficio.
com Deleuze, tentou superar com a publicagáo de O É sobretudo a dimensao política do combate do SPK
Anti-Édìpo. Pouco depois, ele faz urna crítica radical da que atrai Guattari, mais do que á defesa de sua prática
experiéncia anglo-saxá da antipsiquiatria6. psiquiátrica: “Produ- ziu-se alguma coisa de totalmente
A primeira experiéncia de antipsiquiatria anglo-saxá novo que constitui urna saída da ideología e a passagem
ocorreu em torno de Ronald Laing no suburbio de para urna verdadeira luta política. Isso é importante nos
Londres, em Kingsley Hall, em 1965. Nesse antigo militantes do SPK, e náo o fato de saber se eles
reduto da historia do movimento operário inglés, confundem alienagáo social e alienagào individual, ou
desenvolve-se urna tentativa de romper as fronteiras se seus métodos terapéuticos sào discutíveis... Como no
institucio- nais entre cuidadores e cuidados. Psiquiatras, dia 22 de margo em Nanterre, o SPK se mobilizou em8
enfermemos e doentes abolem as relagoes hierárquicas e torno de urna luta real - e a repressáo nao se enganouf .
as diférengas de estatuto. Entre o grupo de psiquiatras, Quando do processo, Guattari e Deleuze se deslocaram
ao lado de Laing, os principáis animadores da vida de até Heidelberg. Um aluno de Deleuze em Vincennes,
Kingsley Hall sao David Cooper e Maxwell Jones. Essa Pierre Bìan- chaud, encontra-se no saguào da
experiencia suscita reaqoes de rejeigáo do meio e universidade. Vindo para Heidelberg aos 19 anos para
transformam esse “territorio livre” em urna fortaleza fugir a um curso de letras clássicas e viver piena- mente
sitiada. Para fundamentar sua crítica, Guattari toma o o pós-68, ele acredita nesse dia que se trata de urna apari
caso da célebre residente de Kingsley Hall, Mary gao irreal: “Vejo diante de mim Deleuze e Guattari!
Barnes, que escreveu com seu psiquiatra Joseph Becke Entáo exclamo: ‘Deleuze, o que é que><:1vocé està fazendo
um livro narrando sua experiéncia. Ele ve nesse relato a aqui?’ Ele me responde: ‘0 acaso!” . É brincadei- ra,
“face oculta da antipsiquiatria anglo-saxá”7, que é urna evidentemente, pois essa estada tem um objetivo
mistura de dogmatismo neobehaviorista, de familialismo militante, tanto mais que Deleuze detesta as viagens...
e do puritanismo mais tradicional. Mary Barnes, Na realidade, Deleuze e Guattari vào manifestar sua
solidariedade ao SPK juntamente com um grupo de seminários de conscientizagáo política. A ideia deles era
psiquiatras holandeses, italianos e franceses. No mesmo que as autoridades difundiam intencionalmente a droga
instante, Pierre Blanchaud os acompanha ao campus, a fi m de enfraquecer a determinagao revolucionária. No
onde um grupo de estudantes de extrema esquerda inicio, essesGilles
programas causaram a desconfianga das
Deleuze & Félix Guattari 277

convoca à mobilizagáo contra a repressáo. Pierre insti-: tuigòes oficiáis, que acabaram por aceitá-los e
Blanchaud confia a Deleuze seus problemas de dinheiro ajudá-los fmanceiramente.
- eie vive de ma- neira muito precària em Heidelberg: Mony Elkaim, interessado pelas relagoes entre as
“Eie me disse: ‘Eu preciso te deixar aìgum entào?’, e me questoes de saúde mental e os problemas sociais,
deixou 400 francos, que era muito na época, e deu para trabalha portanto nesse quadro nos Estados Unidos
eu sobreviver por duas semanas. Eie me dissera: ‘Vocè quando conhece Guattari: “Encontrei-o na casa de
me pagará quando ficar rico. Muitos1 anos mais tarde, amigos que moravam em Manhattan, ele estava com
quando consegui meu cargo de Lektor na Alemanha em Arlette na épo- ca, e o contato foi extremamente
1983, escrevi urna carta me propondo a reembolsà-lo, caloroso. De imediato, convìdeì-o para bear no meu
mas ele me respondeu: ‘Nào, escute, é 10urna recor- dagáo apartamento no2 Bronx State Hospital e me instale! em
de viagem, eu, que viajo táo pouco’..,” . outro lugar”* . Guattari encontra sobre a mesa do
Se o “momento antipsiquiátrico” faz adeptos da apartamento um artigo de Mony Elka'im,
Itália, na Inglaterra e na Alemanha, esse nao é nem de “Antipsiquiatria, para uma revisào epistemologica”, em
longe o caso na Franga. Essa “exce gao” está que critica a visao caricaturai de uma corrente que
relacionada, sem dúvida, aos avan- gos permitidos no atribui mecánicamente a causa da doenga mental à
quadro da psiquiatría de se- tor, à implementagáo das sociedade, à familia; “Félix me diz; ‘Voce sabe, nossos
teses da psicoterapia institucional e ás clínicas como La pensamentos estáo muito próximos, apesar de virmos de
Borde. Há alguns grupos na Franga que pregam a horizontes muito diferentes'. Dito isto, foi a uma livraria
antipsi- quiatria, como o GIA (Groupe de Information francesa de Manhattan comprar 0 Anti-Édìpo para me
Asiles), que pretende reunir os psiquiatrizados e suas dar”18.0 ponto de concordancia entre eles, que está na
familias contra o aparelho psiquiátrico: “Para nos, nao origem de urna aventura internacional, é que ambos
existe boa psiquiatría, psiquiatría de esquerda, que se consideram a dimensáo política fundamental em sua
oponha a urna psiquiatría burguesa,.. O que há sáo abordagem das questóes psiquiátricas.
apenas graus na repressáo, no isolamento, no Mony Elka'im trahalha de fato para tirar a
embrutecimento, na privatizagáo e na medicalizagáo da psiquiatría familiar do campo estrilo do fa- miliaiismo,
loucu- rá’n. Vários outros pequeños grupos surgem na conectando-a ao ambiente social. É o caso
mesma época, como os “Cahiers pour la Folie”, “Garde- particularmente em Nova York na época em que
fous”, “Marge”, “Tankonalasan- te’, “Breche”, “Le mantém ligagáo com os grupos revolucionários, os
Vouvray”, “Psychiatrie en Liberté de Saint-Dizier”, “La Black Panthers e os Young Lords, Eikaím dirige uma
Gratte”, mas todas essas organizagoes permanecem equipe composta por profissionais, psiquiatras,
confinadas na marginalidade. psicólogos e tra- balhadores sociais, mas também por
No inicio dos anos de 1970, Guattari, em visita aos pessoas recrutadas ao acaso, em encontros na rúa, e
Estados Unidos, conhece Mony Elkai'm, psiquiatra de formadas na pràtica grapas aos créditos federáis. Muito
origem marroquina que adquiriu notoriedade seduzido por esse novo amigo e por seu trabalho
internacional por sua pràtica no campo da teoria familiar pioneiro, Guattari retoma muitas vezes a Nova York:
fora da instituigáo. Mony Elkaim organizou lugares eles se veem, trocam suas experiencias mutuas e, ao
abertos de reinsergào em um dos bairros mais carentes mesmo tempo, frequentami as boates de jazz de
de Nova York, o South Bronx. Ele trabalha Manhattan.
particularmente com a United Bronx Parents, associagáo
fundada em 1966 por iniciativa de pais de aìunos da
comunida- de porto-riquenha que foram educados contra A "Rede Alternativa à Psiquiatría"
as práticas discriminatorias, No mesmo setor, militantes Antes de seu retorno à Europa, em 1974-1975,
revolucionários decidem ocupar um andai' do Lincoln Mony Elkáím organiza um grande coloquio no Bronx
Hospital em Nova York, e empreendem o que chamam sobre o tema “Formar os trabalhadores da saúde mental
de Lincoln De~ tox Program, um programa de nos guetos urbanos”, com a intenpáo de agrupar
desintoxicagao para drogados que recebem doses de diferentes escolas psiquiátricas. Além das delegapóes de
meta- dona ao mesmo tempo em que participam de Nova York, da Filadélfia, de Chicago e de algu- mas
1 N. de X: Assistente estrailgeiro adjunto a um professor de Imguas outras cidades americanas de vanguarda, Guattari,
vivas em um estabeledmento de ensino.
Robert Castel, Giovanni Jervis parfci- cipam desse O modelo nesse campo é um pouco a experiencia do
coloquio, cujo sucesso foi ainda maior porque Mony South Bronx. Para Guattari e Mony Elkaïm, trata-se
Elkaïm278conseguiu créditos para garantir entrada e também de romper, com essa rede, o isolamento em que
alimentaçâoFrançois
gratuitas, embora muita gente do Bronx
Dosse
vívem alguns inova- dores, sujeitos à repressâo ou ao
tenha comparecido apenas para comer em um ambiente conformismo, É o que ocorre particularmente no berço
particularmente festivo. da antipsiquiatria no norte da Itália, onde a experiencia
Mony Elkaïm pratica a psiquiatría na Bèlgica em lançada em 1969 e levada a Reggio Emilia por Giovanni
um bairro pobre de Bruxelas, quando em 1975 decide, Jervis está a ponto de ser abandonada, pois enfrenta
com Guattari, juntar as experiencias alternativas, reunir muitos obstáculos políticos. Quanto ao SPK, acabamos
todas as escolas psiquiátricas dissidentes em uma rede de ver como ele foi removido pela força em 1971. Nessa
internacional. Elkaïm ocupa entâo uma posiçâo im- época, na Inglaterra, David Cooper desistili, e Ronald
portante no campo da teoria familiar. Quanto a Guattari, Laing está fascinado pela Ìndia.
é muito receptivo às teses sistémi- cas do amigo, que Contudo, a esperança renasce na Espanha do firn do
têm o mérito de conceber a terapia em termos de franquismo, Em setembro de 1975, uma reuniao de
grupos, e nao de individuos dessocializados. Assim, em internos dos hospitais psiquiátricos da Espanha em
janeiro, em Bruxelas, decidem juntos lançar urna “Rede Santiago de Compostela convida a Rede Alternativa à
Alternativa à Psiquìatria”. Por esse engajamento, Psiquìatria a participar de seus trabalhos e ajudà-ìos a
Guattari pretende ir mais longe que as teses da enfrentar a repressâo. Na origem desse encontró, está a
psiquiatría institucional; “Com essa Rede Internacional, decisâo do governo espanhol de dispensar 11 internos,
é como urna página virada. Nao se pretende mais ‘ir os dois médicos chefes e o diretor
para’! Proeura-se que as coisas partam dos próprios
interessados”14.
279 Francois Oosse

administrativo considerados culpados de ter desempenhou um papel importante no itineràrio


aderido a reformas aventuraras, Em 1973, eles intelectual de Mony ElkaimiS com seu livro
haviam iniciado um processo de renovagáo das Psiquiatría e Antipsiquiatria . Mony Elkaim
estruturas do hospital psiquiátrico Consco de também aprecia bastante Franco Ba- saglia, do
Santiago de Compostela, que permanecerá urna qual é muito próximo: “Franco era um homem de
verdadeira penitenciária psiquiátrica, “doentes rara delicadeza. Passando por Bruxelas, ocorria de
acorrentados, espancados por qual- quer motivo, bater na minha porta en- : tre dois aviòes para me
amontoados na pal ha”15. trazer urna flor. Quando eu dormía na casa dele
Em 1975, Mony Elkaim consegue reunir em em Veneza ou em Trieste, às vezes me trazia o
torno dele Guattari, Castel e Franco Basaglia, que café da manhá na cama e me contava seus sonhos
compareceu apesar de seus desentendi- mentos da noite”19. i
como o primeiro, gragas á intervengáo do Um dos últimos grandes encontros interna- ;
segundo. A denominagáo inicial, ‘Alternativa ao cionais da Rede teve lugar na California, em San
setor” logo foi considerada limitada demais, e Francisco, um mès após a morte de Basaglia, em
adotou-se a proposigao 15de Basaglia de “Rede setembro de 1980. Por iniciativa desse encontró, o
Alternativa á Psiquiatría” . Guattari se envolveu grupo “Pacientes contra o assalto psiquiátrico"
multo nessa rede bastante ativa na deíesa de acolhe em domicilio seus convidados. Mony
Franco Basaglia e dos antipsiquiatras alemáes: Elkaim e Guattari ficam no mesmo quarto,
“Félix era um militante incrível, sempre prestes a povoado de baratas. “Para mim, é impossível
me ajudar a redigir um texto, cartas. Ele era de dormir com baratas! Fiquei empuleirado numa
urna disponibilidade extraor- dinária na época, cadeira a noite toda!”20' Logo que amanhece,
Vinha regularmente a Bruxe- las participar de Mony Elkaim sai em busca de um hotel, apesar
nossas atividades17.” dos protestos de Guattari, que teme constran- v ger
A Rede organiza numerosos encontros inte seus anfìtrióes. Quando da segáo plenària, no
macionais após a reuniáo constitutiva de Bru- momento em que Elkaim passa a palavra a
xelas, em Paris (margo de 1976), Trieste (setem- Guattari, a delegagáo italiana se levanta para
bro de 1977), Cuernavaca no México (setembro de deixar a sala em sinal de protesto, Elkaim se irrita
1978), San Francisco (setembro de 1980). O e Ihes pede urna explicagao. Seus representantes
objetivo dessas reunioes nao era construir urna esclarecem, entao, que nao se pode aceitar alguém
nova ortodoxia, mas estar á escuta do que se faz que aplica eletr o choques nos doentes, fazendo
em outros lugares. Em suas intervengoes dentro da referéncia ao que se pratica ;: efetívamente em La
Rede, Guattari se atém absolutamente a essa Borde. Elkaim responde que Félix nao é médico, e
atitude isenta de proselitismo. Nesse campo, a isso nao passa de fantasía. Entáo, eles se
ciéncia nao pode se erigir como urna autoridade desculpam e voltam ao lugar.
unificante, pois as práticas eficientes só podem
emergír de urna micropolítica cuja natureza sin-
gular nao se limita mais á sua escala de análise Acusa^òes de pedofilia
sobre pequeños grupos, mas ao fato de que ela Depois de 1980, as atividades da Rede di-
implica um diálogo permanente e um processo minuem. Acontecem apenas mais alguns en-
continuo de elaboragáo com a escala macrosso- contros, como o de 1983, na lugoslávia. Nessa
cial. Nao de trata, portanto, de constituir grupos ocasiáo, é Claude Sigaia quem apresenta sua
isolados, separados do resto da sociedade em experiencia de cuidar de criangas em dificulda-
nome de urna lógica alternativa. de na Franga, fora dos quadros instituidos. Ele
Os encontros internacionais allam a serie- dade acaba de sofrer pessoalmente os anátemas da
das intervengoes e o aspecto engragado de urna repressáo, o que Ihe valeu urna pena de prisáo a
rede nao institucional animada por personagens partir do fìnal do ano de 1982. Depois de ter
potfco habituados a certas restri- góes. É o caso obtido o diploma de educador especializado e de
particularmente de David Co~ oper, que
ter feito curso de psicologia aplicada, Claude Sígala Meu confinamento nao se justifica EM NADA”, escreve
trabalhou cerca de dez anos em instituido. Insatisfeito eie a Guattari22.
com sua280pràtica, hostil às compartimentagoes e arredio Além de seu amigo, Claude Sigaia conta com o
às relagoes François
hie- rárquicas,
Dosse
eie se encontra com Guattari, apoìo de Edgar Morin, de Bruno Frappati do Canard
Fer- nand Deìigny, Roger Genfcis, Maud Mannoni, e Enchaîné, e de aìguns outros: “Precisami me tirar do
decide langar-se em proposigòes alternativas. buraco, Félix, por todos os melos: estou Beando Louco,
No final de 1986, Fernand Deligny e Maud Mannoni tenho medo de tanta injustiça e de tanta sujeira. Vocè
Ihe encaminham duas crian gas, e eie cria urna sabe como eu gosto do Coral e da açao que realizei...
associagáo, o Goral, em Aimarges, per- to de Nimes, no Minhas fìlhas estao completamente perturbadas... Minha
sul da Franga. Trata-se de urna comunidade de adultos e mulher està em pànico: eis o ver- dadeiro atentado”28,
de criangas que tem como objetivo acolher em meio Em um texto a ser enviado a Guattari e escrito na prisâo,
aberto criangas com problemas. 0 principio é constituir Claude Sigaia esclarece sua posiçâo acerca da pedofilia:
um “lugar de vida” propicio à reìnsergao e ao desabro- "O que me interessa ñas minorías sexuais nâo é a per-
char da crianga, que poderiam assim escapar ao versáo... Percebi muito rápido que o Coral era um lugar
confinamento psiquiátrico. Essa associagáo adere que interessava aos pedófilos, nâo particularmente por
naturalmente à Rede Alternativa à Psiquiatría. Em 1982, acolher criangas, mas so- bretudo por sua estrutura
Claude Sigaia organiza os primeiros estados gerais dos libertària e autoges- tionária que atribuí um lugar
"lugares de vida" em Nimes. 0 caso ganha ampli tude. preponderante aos menores. Sempre soubemos colocar
Sao implantados vários “lugares de vida” no Sudeste, os limites do respeito do Outro... Ver na pedofilia o
para acolher criangas psicóticas, autistas ou deficientes. individuo que persegue criangas para ‘se apro- veitar del
Esses centros, conveniados com a Segurida- de Social, as’ é urna imagem reducionista pouco fundamentada e
inspiram-se um pouco no espirito do trabalho de que só corresponde a urna situaçâo que acredito ser
Fernand Deìigny com criangas, mas com urna dimensáo extremamente rara. Náo sou absolutamente defensor
mais diretamente política. desses perversos. O que me parece mais frequente sâo
Nessas comunidades de adultos e de crian- gas, pessoas que amam as criangas, dando-lhes a dimensáo
coloca-se o delicado problema do tipo de relagoes da liberdade... A crianga tem neces- sidade de Amor.
possíveis e de seus limites. Claude Si- gala “tentou Amar, é preciso insistir, nâo é possuir, ao contràrio, é
promover relagoes corporais entre os educadores e as deixar o outro feliz...”24.
criangas como um modo possível de relagáo” 21. Chega- Ao final, Claude Sígala é ínocentado e, ao sair da
se às fronteiras de um tabu, o da pedofilìa. Guattari prisâo, prossegue suas atividades no
dissuade Claude Sigaia de seguir essa via, que corre o Coral; em maio de 1992, reúne os segundos estados
sèrio risco de comprometer a legitimidade de sua gerais com a participaqáo do psiquiatra Roger Gentis, de
experiencia e de levà-la a um impasse. Com essa Guattari, Maud Manno- ni, Edgar Morin, do psicanalista
associagáo, Claude Sigaia atrai aìguns educadores que Tony Lainé e do filósofo Comelius Castoriadis. Nesse
reveìam ser pedófilos. Em margo de 1982, sua melo2 1 tempo, publica urna obra prefaciada por Guat-
associagáo é processada com base no testemunho de um tari ' , do qual se sentía próximo a ponto de lhe propor,
menino. Esse menino, encaminhado pelo DDASS* do em 9 de agosto de 1992, ou seja, vinte dias antes da
Gard ao Co- morte dele, escreverem um livro a dois: “Eu gostaria que
nossas ideias, práticas e teorías fossem compreendidas
' 'N. de T.: Direction Déparlamentale des Affaires Sanitaires et pelo maior número de pessoas. Vocé sabe que seus livro
r

Sociales. s atingem urna parcela ínfima dos intelectuais e


ral, era particularmente perturbado. Ele vivía chamando estudantes. Proponho trocarmos urna sèrie de cartas que
a atengáo por suas fugas e, um día depois de ter sido depois publicaremos em urna cole- qào de bolso' 26
.
acusado de violagáo de urna menìninha de Aigues-Vives
e de urna tentativa de atear fogo à vegetaçao, denuncia o
Coral de té-lo violado. No final do ano, Sígala é preso e Gourgas tomada de assalto
processado por ter acobertado essas práticas. Apresenta-
se, entáo, a associagáo Coral como ligada a urna rede RedeOutro caso que atinge de perto Guattari, ligado à
Alternativa à Psiquiatría, eclode em sua
internacional de pedofilìa que comercializa fotografías propriedade de Gourgad, no Gard, em 1977. Recorda-se
pornográficas. Essa acusaçâo é desconsiderada nos autos que Guattari havia adquirido em 1967 essa grande
do processo, mas o juìz mantém Claude Sigaia na fortaleza ao pé de Cé- vennes, no territorio da comuna
prisâo: “É urgente que voce veja os autos do processo. de Monoblet, onde havia instalado temporariamente Per-
nand Deíigny. Essa fortaleza servia ao mesmo tempo de A internacionalizaçâo da rede
lugar de veraneio para alguns pensionistas de La Borde, A Rede cresce ao longo dos anos 1980 e adquire
para os animadores do CEREI, mas sobretodo de lugar urna dimensâo mais internacional. ■ Em281dezembro de
de encontró para todos os componentes do movimento Gilles Deleuze & Félix Guattari
1986, pela terceira vez, a rede latino-americana de
contestatório e para todas as marginalidades. Em 1977, alternativa à psiquiatría se reúne em Buenos Aires.
enquanto o amigo de Guattari, Louis Ohrant, militante Guattari intervém sobre a quesfcáo da mudança de
operário da primeíra hora, estava instalado em Gourgas paradigma que nâo afeta somente as práticas sociais do
com a mulher e os tres fiíhos e cuidava da gestào do campo “psi”, mas o conjunto dos procedimientos de
local, a comunidade antipsiquiátrica do povoado de suhjetivaçâo em ligaçâo com as revo- luçôes
Routier, no Aude, assim como algumas outras informática, robotica, telemática e da engenharia
comunidades do mesmo tipo esfcabelecidas no Sudeste genética. Guattari vê ali a passa- gem de um paradigma
comunicano a Louis Ohrant que pretendano se fixar em técnico-científico “a um paradigma ético-estético, isto é,
Gourgas. Assim, urna pri- meira delegagáo solicita que implicando urna responsabilidade moral, um engaj
ele deixe o local ou, pelo menos, que se limite a um amento mícropolítico e cobrando, a propósito de cada
pequeño apartamento. Essa primeira tentativa se depara caso concreto, urna atitude criativa, que eu reportarla ao
com urna recusa clara e nítida. Guattari, proprietàrio do tema genérico da ressingula- rizaçâo das práxis” ,0 27

locai, nào toma partido, e em suas “Cartas de longe” principal efeito social é urna generalizaçâo da
apregoa que é preferiva! o entendimento e um acordo precariedade, o fim do traballio garantido que afeta até
amigável. Visto; que o entendimento cordial é os funcioná- rios dos países desenvolvidos.
manifestamente irrealizável, a comunidade de Routier, Nessa época, a corrente alternativa à psiquiatría
com o apoio dos militantes parisienses do movimento perdeu duas de suas grandes figuras com o falecimento
antipsiquiátrico “Marge”, desembarca em Gourgas e aii de Franco Basaglia e de David Cooper. Entretanto,
se instala. Nâo sendo o proprietàrio, Louis Ohrant nâo conseguiu conquistar urna posiçâo forte e dinámica em
dispôe de nenhum recurso judiciário e é obrigado a Trieste com o sucessor de Basaglia, Franco Roteili. A
ceder o lugar. Apesar de tudo, os novos ocupantes Rede tende a se abrir a outras realidades nacionais,
deixam a lele, à sua familia e dois ou très amigos um pe- difundindo novas experiéncias realizadas na Grècia, na
queño apartamento de dois cómodos. lugoslávia, na Espanha e na América Latina. Eia pode
oferecer ajuda em termos
Gilles Deleuze & Félix Guattari 282

de divulgagáo de informagóes e de urna maior houve; ninguém nega; mas nao há mais já faz
eficacia ñas intervengoes. vários meses”30. Um dos psiquiatras de Leros,
Um dos terrenos de intervengáo privilegiados é Lucas Jannis, foi adepto de Basaglia e espera
a Grècia. Em 1987, os p .si qui a tras de equipe de ansiosamente a vinda da missáo italiana para
Trieste, coordenada por Franco Roteili, intervèm avangar na reabilitagáo do lugar, que esbarra em
no hospital de Salónica. Guattari aproveíta um muitas resisténcias.
encontró internacional da antipsiquiatria para Em compensagáo, como o advertirá Franco
visitar esse servigo totalmente renovado com a Roteili, um escándalo pode esconder outro: o
colaboragáo deles. Dois anos depois, em 1989, hospital de Daphni, a 5 Km de Atenas, onde se
eclode um escándalo na midia. Em urna das mais encontram 1.900 pessoas, é inegavelmente pior
helas ilhas do Do- decaneso, a ilha de Leros, que o de Leros. Guattari empreende entáo difíceis
subsiste urna peni- tenciária psiquiátrica onde negociagòes para poder visitar o local com seus
foram confinados amigos. Quando conseguem, em 11 de outubro,
1. 200 doentes: “Um campo de concentragáo, sem a descobrem urna imensa industria hospitalar com
presenga de um pessoal cuidador, sem sequer um 16 servigos distribuidos em 33 pavilhóes. O
psiquiatra. As imagens aposentadas na TV eram responsável pelo local, que orienta a visita nesse
pavorosas: carpos ñus, rostos descarnados e labirinto, o doutor Savas Tsitou- vides, tenta
petrificados no medo e na angustia por trás das escamotear o pior. Contudo, náo conta com a
grades, e o odor fétido parecía atravessar a tela”
78
vigilancia de urna coordenadora da equipe de
Franco Roteili decide montar urna equipe Trieste que trabalha há um ano em Atenas. Chiara
internacional - italiana, holandesa, irlandesa e Strutti “cochichou no nosso ouvido: ‘Pegam o
alema - para investigar Leros. Cada grupo é pavilháo IT. Éric Favereau insiste: ‘E o pavilháo 1
composto de 12 pessoas, e o conjunto é de lf Nao tendo mais como re- cuar, lá fomos nós,
responsabilidade da Comu- nídade Econòmica Um horror! 95 homens - se o nome pode se aplicar
Europeia. Guattari viaja de Paris para Atenas em 8 a eles - andam em círculos, urram, alguns
de outubro de 1989.0 dossié de imprensa que Ihe completamente ñus, outros amarrados... É um
foi passado pelo jornalista Éric Favereau no aviáo amontoado indescritível... Para reerguer meu
é verdadei- ramente estarrecedor: doentes em um moral, Chiara Strutti me diz que em outro
campo de prisioneiros confinados em gaiolas de pavilháo eles soltaram 3icriangas que estavam
ferro, 85% deles amarrados, em camisa-de-forga. amarradas há quatro anosf .
Relatam-se ali os tratamentos sofridos: espan- Fazendo um balango da Rede Alternativa à
camentos, jatos de água para “acalmar” e um Psiquiatría em 1990, Guattari considera que, em
“saldo de cinco a seis dúzias de mortos por ano. face das ambigóes do inicio, em 1975, poucos
Nenhuma alta há 30 anos!”. objetivos foram alcangados. A Rede nao
Do Pireu, Guattari e seus amigos tomam o conseguiu, sobretudo, mudar as políticas nacionais
navio para a ilha de Kos, fazem escala em em matèria de psiquiatría, com excegáo da Itália.
Kalymnos e desembarcam em Leros em 9 de Entretanto, levando-se em conta o período de
outubro em um navio privado. Chegando ao refluxo dos anos de 1980, desses “anos de
hospital de reputagáo sinistra e esperando o pior, inverno”, é excepcional que o grupo ainda esteja
Guattari descobre no firn das contas urna de pé. AJIém disso, a Rede conseguiu constituir
realidade ordinària, sem dúvida escandalosa, mas um verdadeiro bastiáo de resistència a certas
náo mais que qualquer outra, infelizmente banal: práticas com as equipes de Trieste, que se irradiam
“Devo confessar antes de tudo que aquí nao é pior náo somente pelo resto da Itália, mas também pelo
que em outros lugares. Inclusive é exatamente sul da Europa e pela América Latina.
como a maioria dos asilos franceses há 25 anos” 29. Guattari considera, no inicio dos anos 1990,
A visita as alas reveía claramente o exagero da que é oportuno relançar a Rede Alternativa à
mídia, que apostou no sensacionalis- mo: “O fato Psiquiatría, pois alguns acontecimentos recentes
está ali: nao há mais doentes rolando na lama Já podem assegurar seu êxito. Em pri- meiro lugar, a
queda do Muro de Berlim em 1989 e, com ele, de todos 11. GIÀ, brochura; Psychiatrie, la peur change de camp, em
os régimes comunistas, coloca frontalmente o problema Gardes Fous; reproduzido em Alain ; JAUBERX Jean-
dos usos da psiquiatría pelos régimes totalitários: “Seria Claude SALOMON, Nathalie WEIL, lan SEGAL, Guide de
desejável que a Rede Alternativa à Psiquiatría, ou o que la FranceGilles
des luttes, Stock,& Félix
Deleuze Paris, Guattari
1974, p, 371.
283

resta déla, estivesse aqui na posiçâo de interlocutor”32. 12. Mony Elkaïm, entrevista com Virginie Linhart.
Colocando o problema es- sencial da formaçâo, ele 13. Ibid. y
sugere que o hospital de Trieste, sede do movimento, se 14. Félix GUATTARI, RM, p. 149.
tome um “centro internacional de formaçâo”33. Nesse 15. Ibid., p. 155.
local se conceberia uma formaçâo profíssional e que, 16. Ver Mony ELKAÏM (sob a dir.}, Réseau-Alternative à la
sobretodo, poderla ser difundida a nâo especialistas, psychiatrie. Collectif internationalp 10/18, Paris, 1977.
como é o caso ñas cooperativas de Trieste. 17. Mony Elkaïm, entrevista com Virginie Linhart
Partindo da ideia de que a questâo nâo é formar para 18. David COOPER, Psychiatrie et antipsychiatrie, op. cit
reproduzir, Guattari concebe a formaçâo como uma 19. Mony Elkaïm, entrevista com Virginie Linhart.
autopoiese, tal como a define Francisco Varela, o que 20. Ibid.
pressupoe qué, em cada nivel, os protagonistas da34saúde 21. Jean-Claude Polack, entrevista com o autor.
mental usufruam de um “máximo de liberda- de" . Nâo 22. Claude Sigaia, carta a Félix Guattari, 22 de Janeiro de 1983,
se trata, para Guattari, de reviver o velho mito arquivos IMEC.
23. Ibid.
autogestionário, que corre o risco da autarquía. A 24. Claude Sigaia, carta a Félix Guattari, 4 de feve- reiro de
verdadeira formaçâo e o relan- çamento da rede passam 1983, arquivos IMEC.
pela necessária arti- culaçâo entre o teórico e a travessia 25. Claude SIGALA, Vivre avec, éd. du Coral. 1987.
de expe- riéncias singulares, inspirando-se ñas teorías 26. Claude Sigaia, carta a Félix Guattari, 9 de agosto de 1992,
i -v 35
arquivos IMEC.
da auto-orgamzaçao . 27. Félix Guattari, “Un changement de paradigme", intervençâo
no Paine! ‘Análise critica do modelo médico e bases
Notas epistemológicas : para novas práticas”, 3o Encontró da “Rede
latino-americana de alternativa à psiquiatría, Buenos Aires,
1. Jean OURY, em jean OURY, Marie DEPUSSE, À quelle 17 a 21 de dezembro de 1986, texto datilografado, arquivos
heure passe le train..., Calmann-Lévy, 2003, Paris, p, 223. IMEC.
2. Jean Oury, entrevista com o autor. 28. Félix GUATTARI, 27 de setembro de 1989, París, “Le
3. Félix GUATTARI, “Guérilla en psychiatrie”, La Journal de Léros”, texto datilografado,:: arquivos IMEC;
Quinzaine littéraire, n. 94, maio de 1970; repro- duzido em reproduzido em Chimères, n. 18, inverno de 1992 e 1993, p.
Félix GUATTARI, PT, p. 263. 36.
4. Ronald LAING, La Politique de l’expérience, Stock, Paris, 29. Félix GUATTARI, 9 de outubro, “Le Journal de Léros”,
1969; David COOPER, Psychiatrie et antipsychiatrie, ibid., Chimères, p. 44.
Seuil, Paris, 1970. 30. Féìix GUATTARI, IO de outubro, “Le Journal de Léros”,
5. Recherches, n. 7, “Enfance aliénée I", setembro de 1967; ibid., Chimères, p. 46.
Recherches, n. 8, “Enfance aliénée II”, dezembrtyde 1968.
6. Félix GUATTARI, “Mary Barnes ou l’Œdipe an- 31. Félix GUATTARI, 11 de outubro, “Le Journal de Léros”,
tipsychiatrique”, Le Nouvel Observateur, 28 de maio de ibid., Chimères, p. 51.
1973; reed. em Félix GUATTARI, RM, p. 125-136. 32. Félix Guattari, texto datilografado sobre “La Réseau-
7. Ibid, p. 127. Alternative à la psychiatrie", 1990, ar- quivos IMEC,
33. Félix Guattari, carta manuscrita a Maria Grazia e a Franco
8. Félix GUATTARI, RM, p. 152-153. sobre a Rede Alternativa à Psiquiatría, arquivos IMEC.
9. Pierre Bianchaud, entrevista com o autor. 34. Ibid.
10. Ibid. 35. Ver Franciso VARELA, Autonomie et connais-
sance( 1980), Seuil,Paris, 1989.
1Q
I z)
Deleuze em Vincennes

No fim de 1969 - o no bosque de Vincennes,


ano decisivo de seu en- ao lado de um campo de
contró com Guattari tiro. O ministerio da
Deleuze foi nomeado Defesa cedeu por tempo
professor titular no limitado á prefeitura de
departamento de filosofía Paris um terreno para a
da nova universidade construpáo a toque de
experimental de Vincen- cama de urna
nes, criada no outono de universidade
1968. Deleuze assu- me o experimental, aberta já
lugar de Michel Serres, no inicio do ano letivo de
que está deixando o 1968 e 1969. Essa nova
campus. Se Deleuze universidade, Paris-VIII,
atravessou Maio de 68 na espécie de anti-Sorbonne,
periferia do movimentó, faz da
em Lyon, a partir do ano pluridisciplinaridade sua
letivo de 1970 e 1971, ele religiao, recusa os cursos
mergulha no centro do tradicionais de
“reator”. preparagáo para
concursos a fim de
permitir o florescimento
O caldeiráo de de capacidades de
Vincennes pesquisa. O curso magis-
Esse microcosmo, tral, com pouquíssimas
que nao tem nada em exceçôes, é proscrito, e a
comum com a tradiqáo palavra circula nos
universitária académica, grupos que trabalham em
é um verdadeiro pequeñas salas de aula. O
caldeiráo, situado em ple- academicismo e a
tradiçao sorboniana sao
barrados nessa universidade que se pretende
resolutamente contemporánea e se apropria das
tecnologías mais sofisticadas e dos métodos mais avan-
çados das ciencias do homem para assegu- rar a Gilles Deleuze & Félix Guattari 285

renovaçâo das antigas humanidades. Av disposiçâo


interior da fáculdade é fantástica, verdadeira joia da
coroa de um regime gaullis- ta desgastado que oferece
ali urna vitrine: há tapetes em todos os anfiteatros; cada
pequeña sala de aula é equipada com urna televisao li-
gada a urna central; a decoraçâo é assinada por Knoll, e
tudo cercado de verde, sem os ruidos da cidade,
perturbado apenas pelos tiros lon- gínquos dos
treinamentos de recrutas.
Os mais contestadores do movimento de Maio de
68 encontram refugio em Vincennes. Cruza-se ali com
muitos maoístas. As forças vivas da contestaçâo de
1968 se reuníram ali, encurraladas nessa universidade
confinada, abalada, onde a agitaçâo pode se expandir
com toda a liberdade, ao abrigo da sociedade, bastante
satisfeita por ter circunscrito o mal no meio de urna
floresta que constituí seu cor- dao sanitàrio.
Desde os primeiros anos, a faculdade-vi- trine cai no Foucault intervém na implantaçao do centro
esquecimento: o poder deixa Vin- cennes asfixiada pela experimental, além do departamento de filosofia. Ele
penuria,286sobrevivendo nos limites da pauperizagáo. quer afastar os psicólogos em favor dos psicanalistas,
Privada de meios materiais suficientes, a escola vivencia
François Dosse
que assim poderiam fundar um departamento só para
um afluxo de inscrigoes que excede amplamente sua eles, dispondo de todos os créditos e nomeaçôes. A
capacidade de acolhimento. As paredes logo sao ideia de um tal departamento, instalado por Foucault,
arrebentadas pelos estudantes para descobrir se a polícia vem de Jacques Derrida. 0 psicanalista Serge Leclaire é
nao instalou micro fon es, Contudo, Vincennes será quem assume sua direçâo, com o aval de Lacan. Embora
sempre animada pelo desejo de todos os seus membros, Lacan nào esteja em Vincennes, o ìacanismo se introduz
Diosamente empenhados em preservar as liber- dades em massa ali, e desse modo a psicanàtise passa a fazer
conquistadas, a qualidade das trocas, e essa palavra parte oficialmente de urna universidade literaria: todos
libertada que é urna aquisigao fundamental de Maio. os professores do departamento de psicanálise sâo
Por trás da vitrine, por tras da agitagäo militante de uns membros da Escola Freudiana de Paris e coordenam
e do hedonismo explícito de o u tros, há os trabalhos e nada menos que 16 seminários,
os dias, o labor subterráneo que se pretende o mais O departamento de filosofia anuncia na as- sembleia
moderno, o mais científico de todas as faculdades de geral constitutiva, de 11 de dezembro de 1968, a linha a
letras da Franga. Aliás, a uní- versidade ganha ser seguida: sua vocaçâo nâo é “fabricar câes de
rápidamente projegáo internacional. Se Paris näo é a guarda”, mas prosseguir a luta politica e ideològica. 0
Franga, Vincennes poderla ser o mundo. exercicìo da filosofia deve obedecer estritamente a esse
É o decano da Sorbonne, o anglicista Raymond Las imperativo. As tarefas do departamento sao definidas
Vergnas, que cuida da instalagáo dessa nova em margo de 1969. Consistent em apreender a natureza
universidade. Em outubro de 1968, urna comissao de exata da “Frente Filosófica” e em es~ tudar a ciència
orientagáo com 20 personalidades se reúne sob sua como desafio da luta de clas-
presidéncia, entre as quais Roland Barthes, Jacques
Derrida, ]e- an-Pierre Vernant, Georges Canguilhem,
Emmanuel Le Roy Ladurie, etc. Doze pessoas sao
designadas para formar o núcleo de cooptagáo, que se
encarregará da nomeagao do conjunto do corpo docente:
professores, professores-as- sistentes e assistentes. O
grande projeto é fazer de Vincennes um pequeño MIT*,
urna universidade ä americana, um modelo de
modernida- de, um enclave de projegáo internacional
cuja ambigáo declarada é a interdisciplinaridade.
A noticia mais espetacular é, incontesta- velmente, a
nomeagäo para o comando do departamento de filosofía
de urna das estrelas da hora: Michel Foucault.
Responsável pelo recru- tamento, ele convoca de inicio
seu amigo De- leuze, que, muito doente, só vai para
Vincennes dois anos mais tarde. Já Michel Serres aceita
de insediato participar da aventura de Vincennes. No
outono de 1968, Foucault dirige-se à ENS de Ulm, por
intermedio dos editores da revista Cahiers pour
l’Analyse, com um objetivo preciso: recrutar althussero-
lacanianos para Vincennes. É assim que ele consegue
convencer a filha de Lacan Judith Miller, e Alain
Badiou Jacques Rancière, François Regnault A tonalida-
de dominante será estro turalista- maoista, mas há outras
nomeaçôes que permitem nao estar exclusivamente sob
o comando dos “maos”: as de Henri Weber da LCR** e
Étienne Balibar, filósofo althusseriano e membro do
PCF. Para garantir que o conjunto funcione sem atritos,
Foucault convoca um homem da conciliaçâo: François
Châtelet,

'i*N. de T.: Liga Comunista Revolucionaria, seçâo francesa da IV


*N. de R. x.: Massachusetts Institute of Technology. internacional.
ses, contribuindo assim esquizofrenia. Rápidamente entra em sinto- nia com seu
para “a entronizaçâo nas público, sem que para isso tenha de ceder sobre o
massas estudantis da conteúdo Gilles
muitoDeleuze
filosófico de seu ensino. Sua
& Félix Guattari 287
preponderância teòrica do notoriedade Já adquirida quando chega a Vincennes, seu
marxismo-leninismo'1. talento de pedagogo e o rumor que circula em Paris
O poder quis dar a Maio de 68 e à contes- taçâo esse sobre o caráter excepcional de seu curso lhe valem em
concentrado do “revoìucionarismo”, mas em Janeiro de pouco tempo um público muito numeroso. As pessoas
1970 começa a se alarmar com a radicalidade se espremem para ouvi-lo na pequeña sala onde dá sua
demonstrada por esse departamento de filosofìa, tao fora aula de terça-feira, recusando-se terminantemente a falar
das normas académicas. O ministro da Educaçâo Nacio- em um anfiteatro. Tendo chegado a Vincennes no ou~
nal, Olivier Guichard, denuncia em Janeiro de 1970 o tono de 1970, Deleuze só sairá ao se aposentar, no final
caráter “marxista-leninista” dos ensina- mentos de 1986, inicio de!987.
filosóficos em Vincennes e a atríbui- çâo Ele ficou imediatamente seduzido pelo público
excessivamente indulgente de notas aos estudantes. Em heterogéneo de Vincennes, que convém magníficamente
urna entrevista concedida ao L’Express, Judith Miller, a um ensino que pretende ultrapassar o corpus clássico
militante da Esquer- da Proletària, declara da filosofía para se abrir às ciências e ás artes.
placidamente: “Certos grupos decidiram por um Vincennes lhe parece realizar um salto no tempo:
controle dos conhe- cimentos por melo de urna prova, “Quando ia a outra íaculdade, tinha a impressâo de cair
outros op~ taram pela atribuiçâo do diploma a todo espí- em pleno sáculo XIX”4. À diversidade das com-
dante que desejava té-lb’ .0 departamento de filosofìa se
2
petências e dos centros de interesse de seus : alunos, é
vé privado da habilitaçao nacional de seus diplomas. preciso acrescentar a particularida- de de Vincennes de
Foucault protesta e Justifica a orientaçâo muito engajada nao exigir o baccalauréat e de ter urna grande
dos filósofos de Vincennes. proporçâo de estrangeiros. Estes últimos sao atraídos
Em 1970, ele deixa Vincennes, nao por ter sido pela qualidade das publicaçôes de Deleuze e fascinados
relegado a um colegio de secundário, conforme os por sua personalidade: “Em ondas, há de repente 5 ou 6
rumores que circularam no campus, mas porque acaba australianos que estavam lá nao se sabia por qué. Os
de ser eleito professor do Collège de France. Deixa a Japoneses eram constantes: 15 ou 20 todos os anos, os
direçâo do departamento de filosofìa para François sul-americanos, os negros..^.
Châtelet, único professor titular capaz de fazer navegar Quando Deleuze chega ao departamento de
esse barco desgovernado. Os efetivos estudantis es- tào filosofía, dirigido por seu grande amigo François
se esvaindo rapidamente ao sol do Oriente Vermelho: Châtelet, o clima aínda está muito agitado. Ao longo de
416 inscritos em filosofìa no primei- ro ano (1968- todo més de junho de 1971, e aínda no reìnicìo das
1969), 247 em 1970-1971 e 215 em 1971-1972, o que aulas no outono de 1971, a uni- versìdade està
representa a perda da metade dos alunos, enquanto a semiparalisada por uma greve multo determinada do
universidade passa ao mesmo tempo de 3 7.900 pessoaì, que mobiliza simultaneamente os temporarios,
estudantes em 1968 para 12.500 em 1971 e 1972 . os servigos administrativos, técnicos e de reprografìa
em protesto contra a insufìcìència de melos, a pre-
cariedade dos status e as remuneragòes multo baixas.
Lutas internas Em 23 de junho de 1971, o departamento de Filosofìa
É nesse contexto de crise aguda, de ba- talhas se declara solidàrio a essa greve, e entre os signatários
intramaoístas pela conquista de urna posiçâo destacam-se, ao lado do responsável pelo
hegemônica, que Deleuze chega entre 1970 e 1971 e departamento, Chàtelet, os outros nove professores
consagra seus primeiros cursos a temas um pouco em titulares, entre os quais Deleuze6. Esse movimento, que
defasagem com o espirito ambiente: “Lógica e desejo” e motivou a demissào coletiva do conselho da
“Lógica de Espinosa”. O percurso realizado por Deleuze universida- de e de seu presidente, Claude Frioux, em
em seus cursos em Paris-VHI é bastante rico, sempre 11 de junho, so levará a um protocolo de acordo em 9
em conexao com suas publicaçôes. Ele começa em de novembre de 1971,
1970-1971 por temas que váo alimentar O Antí-Édipo: Em 1974, o departamento de filosofìa é sacudido
os códigos, os fluxos, a codificaçâo e a decodificaçâo, o por oufcro condito. É sobretudo o momento da chamada
double bind, a libido e o trabalho, a psicanálise e seus à ordem do departamento vizinho, de psicanálise,
mitos, o corpo sem orgasmos e sem intensidades, a estruturaìmente ligado aos filósofos, que ibi
axiomática, o capitalismo, Marx e Freud, a reorganizado sob a au- toridade da diregao da Escola
Freudiana de Paris, e portanto de Lacan, por intermèdio
de seu genro. 0 fato é que, em 1974, Jacques-Alain se um movimento dos encarregados de curso que recebe
Miller é designado para a chefìa dos professores de o apoio de Deleuze e Lyotard. Chatélet, que
psicanálise de Vincennes. 0 jornalista Roger-Poì Droit inicialmente avalizara essa decisao, acaba voltando
divulga288o François
caso Dosse
no Le Monde, qualificando o atrás. A batalha foi longa, e as feridas, difíceis de
apoderamento de expurgo e denunciando o espirito cicatrizar. François Regnault, que faz parte dos
vichista da manobra7. Esse apoderamento familiar nao vencidos, decide ir para o departamento de psicanáli- se
agrada a Deleuze e Lyotard, que redigem juntos um a convite de Jacques-Alain Miller, embora náo tenha
panfleto divulgado em dezembro e publicado em Les nada de psicanalista profissional.
Temps Modemei. Deleuze e Guattari qua- lificam o caso Quanto a Badiou, Rancière, tin hart e Weber,
de “operagào stalinista”, verda- deira inovagào em constituem no departamento de filosofìa um efèmera
matèria universitària, pois a tradigào proíbe que pessoas “Setor” que pretende urna autonomia relativa em face
privadas interve- nham diretamente na universidade da dìregao.
para proceder a destituigòes e nomeagòes: “Todo terro- A verdadeira consequència dessas querelas
rismo é acompanhado de lavagem: a lavagem do intestinas é a autonomia do departamento de filosofìa,
inconsciente nào parece menos terrível e autoritària que um recolhimento dos professores em seus centros de
a lavagem cerebral”9. interesse particulares. Quanto ao dìretor, Chàtelet,
Retomado agora por Jacques-Alain Miller, o consulta os colegas pelo telefone antes de cada decìsào,
departamento de psicanálise de Vincennes trabaiha em para1 grande alivio de todos: “Havia entáo dois tipos de
favor de Lacan em uma estrita ortodoxia. Em 1969, AG : a AG feira, que ocorria no departamento, e13 as AG
Lacan prevenire: “Vocès en- contrarao seu mestre”. Os decisorias, que ocorriam fora da univer- sidade” . Entre
estudantes imagina- vam ingenuamente que ele estava essas AG, em plena crise dos departamentos de filosofìa
pensando em Pompidou, mas se tratava dele pròprio. A e de psicanàlisi o caso de Gérard Miller é submetido a
psicanálise de Vincennes volta a ser, entáo, uma discus- sao. 0 irmao de jacques-Alain Miller é encar-
estrutura de ordem que terá justificado a agitaçâo para regado de curso do departamento de filosofìa: a AG dos
restaurar a hierarquia. Com o éxito do “golpe”, Lacan filósofos, muito irritada contra esse novo golpe, decide
define o que deve ser o ensino em Vincennes, na linha votar a revogagáo de seu contrato em um ambiente
do que, a seu ver, era o desejo de Freud, ou seja, o bastante exacerbado: “Nesse momento, após a votagao,
ensino da linguistica, “lingüística - que se sabe ser aqui Deleuze toma a palavra para dizer: ‘Acho que a gente
a maior... Que a lingüística tenha como campo o que acabou de fazer urna coisa repugnante!’, e consegue
chamo de la langue pare dar suporte ao inconsciente, eia retomar a AG, que de imediato reconsideran sua
procede de um purismo que assume formas variadas, posigáo e renovou o contrato de Gerard Miller”14. Essa
justamente de ser formal”10. À linguistica acrescentam- atitude atesta a preo- cupagáo maior de Deleuze com a
se a lògica, a topologia e a antifìlosofìa, “como eu equidade, pois nao se pode dizer que ele tivesse a menor
intitularía naturalmente a mvestigaçâo daquì- lo que o complacéncia com a corrente lacano-maoísta.
discurso universitàrio deve à sua su- posiçâo Dizer que durante os anos de 1970 o departamento
educativa”*11. de filosofìa de Vincennes atravessa urna crise de
Ao mesmo tempo, o departamento de filosofia é reconhecimento político nao explica tudo. Quando ele
agitado pela questâo dos encarregados de curso. Cada nao se desmoraliza por discordias internas, é atingido de
um tendo convidado pessoas de suas relaçôes pessoais frente por um poder que Ihe devota um òdio às vezes
para se inscreverem como professores, o nùmero de náo dissimulado, como é o caso quando a ministra das
encarregados explode: sâo bem uns 50, dos quais a Universidades, Alice Saunier-Seité, declara em 16 de
maior parte nem se dà ao trabalho de se deslocar para junho de 1978, ou seja, quinze di as antes de anunciar a
dar aula. A diregao do departamento, sob a respo usabili mudanqa de Paris-Vlll para Saint-Denis, em um jantar-
dade de Chàtelet, decide nao renovar o contrato firmado debate: “Náo se pode fazer o que quiser, deve-se evitar
com muitos deles que nao honraram seu compromisso. o ex- cesso de indulgència. É um fato que em Vincennes
Essa de- cisâo é tomada no mesmo momento em que se se diplomou um cavalo”15.
procede à normalizagâo no departamento de psicanálise, Para se contrapor a esse odio e à hemorragia de
por iniciativa de Alain Badiou, Jacques Rancière, alunos que afeta o departamento de filosofía, Châtelet e
François Regnault e Jean Borreil. Eia é interpretada Deleuze têm a ideia de criar um instituto Politécnico de
como um inicio de caça às bruxas por Deleuze e Filosofía. Tal denominaçâo, um pouco pomposa, soa
Lyotard, alertados pelos excluidos que denunciam ali estra- nha nessa faculdade, mas a nova “instituigáo”
um golpe de força bolchevique: "Eles organizaram urna
espécle de greve de fome.no curso de Deleuze”12. Crìa- 1N. de T.: Assembletîgeral,
permite conceder diplomas que proporcionen! um ñm das contas, você é urna prova viva da exi stènda da
mínimo de reconhecimento social aos seus titulares. A alma, era verdaderamente eia que o segurava quando
ideia era exigir que as teses defendidas tratassem de seu corpo Gilles
escapava. Impressionou-me que, no pior
objetos concretos de criaçâo, literária, musical ou momento e quando estava sofrendo, você continuava
Deleuze & Félix Guattari 289

cinematográfica. Certamente, o numero de teses sendo o mesmo, era o único sinal que podía nos dar.
atestadas por esse Instituto foi limitado: “Sem duvida, Você é um homem maravilhoso, Noëlle também,
Deleuze havia superes timado as potencialidades maraviihosa (evidentemente, percebe que meu
criativas dos estudantes. Sua ideia sempre foi favorecer vocabulário é restribo)... Os alunos tém um enorme
a invençâo e o fato de trabalhar fora das regras univers! apego por você: falta-lhes alguma coisa, isto é, alguém,
tárias. Mas a maioria dos estudantes se sente você. Que o mal termine rápido! As etapas de sua cura,
evidentemente mais à vontade na representaçâo”16. depois de sua convalescença, depois de sua invençâo de
Entretanto, o Instituto, implantado pouco antes da um modo de vida que o proteja mais, você saberá fazer
transferén- cia para Saint-Denis, función ou com tudo isso. Isso começa pela Normandia, mas tem
eficácia. Numerosos estudantes, sobretudo estrangei- também as características de urna incrivel viagem
ros, podem assim adquirir um diploma reco- nhecido interior. Fanny e eu o abraçamos e o amamos”20. Em
pelo mercado de trabalho. 1983, dois anos antes de seu faìecimento, François
Desde que chegou a Vincennes, Deleuze se sente Châtelet está no hospital entre a vida e a morte, e o
muito próximo de seu velho amigo François Châtelet. prognòstico é mais que reservado no serviço de
Eles se veem bastante fora do campus universitário. reanimaçâo. Ele recebe, entâo, a vìsita de seu amigo
Contudo, nao se pode dizer que seu corpus de autores Deleuze, que o convence a aceitar a traqueostomia e a
seja similar: entre a paixâo de Châtelet pela historia, por continuar vivendo. Sua cumplicidade se situa também
Hegel e pela filosofía política, e o panteao filosófico de ali, no terreno do sofrimento, de um corpo que carece de
Deleuze, há um mundo. Mesmo assim, em meados dos ar, de graves insuficiências respiratorias: “Quan- do
anos de 1970, eles resolvem dar um curso conjunto, Gilles foi visitar François na reanimaçâo, ele Ihe disse:
com Jean-François Lyo- tard e Christian Descamps. 'Enquanto você puder segurar urna cañeta, você aínda
Deleuze e Châtelet: tinham urna profunda estima um pode viver’, É o filósofo pedindo ao outro filósofo para
pelo outro: “Sempre ouvi François me dizer que o maior continuar. Isso significa que enquanto você ainda pode
filósofo era Deleuze. Tinha urna grande admira- çâo por fazer filosofía, é preciso viver”21. Durante esses dois
ele e aehava que era ele17quem mais tra- zia um novo últimos anos, os Châtelet recebiam prati- camente todos
olhar sobre esse sáculo” , recorda sua esposa Noëlle, os domingos o casai Deleuze: “Gilles falava de filosofía
que se inscreve em Vincennes para preparar sua tese sob com François. Depois dizia: ‘Passemos às coisas sérias,
a orientaçâo de Deleuze. Ela faz sua defesa diante de e ele nos en- sinou a jogar belote-bridge, porque1 achava
urna banca composta por seu orientador, Deleuze, ao que a belote normal nâo era para o nosso nivel . Era o
lado de Roland Barthes e de Nicos Poulantzas. único momento em que eu chamava Gilles de ‘Gilou.
Noëlle Châtelet conheceu seu marido aos 19 anos, Ele era meu parceiro, e Fanny, a parceira de François"22.
em 1962, quando ele tinha 35: “Lem- bro-me de ter me Deleuze faz urna bela bomenagem ao amigo
surpreendìdo com essa paì- xâo, enquanto eu era urna falecido. Quando retoma seu curso, logo após a morte
menina ingènua, nrmito inocente. François me dele, dirige-se aos alunos para Ihes dizer que “a
respondeu, o que me ajudou muito depoìs: ‘Eu amo o homenagem que se deve prestar a ele é reler seus livros
que você vai ser”'18. Châtelet, e.m sua aula, era como para 23avahar sua força. Ele realmente construiu urna
Sócrates, um mestre em maièutica, apaixonado pela obra’ . No Liberation, Deleuze escreve: “Ele continua
transmissao intelectual. Quinze dias antes de morrer, sendo urna es- trela, nâo no sentido de star, mas no
ligado às suas máquinas respiratorias e sem poder falar sentido de constelaçâo”21. Nesse artigo, Deleuze traça o
mais verdaderamente, ele ainda desejou, urna última percurso de seu amigo desde a época em que ambos
vez, dar aula em casa: “De repente, ouvi sua voz que eram estudantes. Ele recorda, o que fi- cou esquecido,
ganha- va vida novamente. Sua última aula foi sobre a sua primeira competencia de filósofo lógico quando se
felícidade”19. falava dele como prová- vel sucessor de Cavaillès e de
François Châtelet viveu um verdadeiro calvàrio. Lautman, depois do apaixonado pela historia sob a
Atingido pelo cáncer devido ao tabagismo, foi influéncia de um dos introdutores de Hegel na França,
submetido a urna traqueostomia e fìcou imobilizado em Éric Weil. Deleuze expressa sua admiraçâo e emo- çâo
casa nos últimos dois anos, totalmente dependente de
máquinas de oxigenio. Em 1962, recebe a seguiate carta 1N. de T.: A belote é um jogo de cartas simples e muíto popular.
16
N. de R. T.: No origina!, Plus de vagues, des vagues. “Nao mais
de seu amigo Gilles: “Penso em você em Évreux. No vagas (ondas), [mas sim] vogas (modas)”.
com a releitura de seu liv.ro “fitzgeraldia- nó’, Os Anos visitar Deleuze, e, nào sei por que, eie me constituiu
de Demoliçâo, e saúda também o grande capítao que ele corno mais competente que eu era ñas fungóes
foi para290oFrançois
comando do navio de Víncennes: “O administrativas das quais eie nào34gostava muito, fìando-
departamento de filosofía
Dosse
em Paris-VIII se apoiou nele. se na minha apre- ciagao” . No momento da
Foi ele quem verdaderamente geriu esse departamento aposentadoria de Deleuze em 1987, sua proximidade é
difícil, e seu sentido da política passava sempre por um tanta que Deleuze confìaleus doutorandos a Schérer35.
sentido da negociaçâo dura, isto é, de modo nenhum do A outra grande figura filosòfica de Vincennes,
compromisso”25. Pouco depois, Deleuze fará urna também próxima de Deleuze, é François Lyotard, vìndo
conferencia sobre seu amigo na qual celebra urna do grupo Socialismo ou Barba- rie. Sua cumplicìdade
magnífica filosofía da imanéncia, da relaçâo com Deleuze se estabe- lece em torno de Nietzsche e da
potencia/ato: “É nisso que Chátelet é aristotélico '" A
6
década de Ce- risy de 1972: “Eles chegaram juntos e
natureza desse ato em Chátelet é conducida por seu partiram 36juntos, com urna lettura de Nietzsche muito
racionalismo, pois “o ato é a razad’2', concebida como próxima” . Lyotardil saúda com entusiasmo a publicaçâo
processo, e nao como simples facuìdade. Deleuze de 0 Anti-Édipo . A publicagáo por; Lyotard de
recorda que a primeira publicagáo de seu amigo foi Economìa Libidinal é o momento da maior
consagrada a Péri el es e que ele tirará de seu herói a
28
proximidade: “Ao mesmo tempo, essa : associagào era
ligáo de que o racionalismo empírico e pluralista29 se urna especie de mal-entendido. Lyotard nào estava de
desenvolve na ágora de urna “historia do presente” . À modo nenhum na es-: qui z o an ài i se", considera a
dimensao de política responde em contraponto a criagáo fììha de Lyotard, a : filosofa Corinne Enaudeau39. Eia
musical: “O que Chátelet30 mais gostava era de urna ópera acha que seu pai, ao contràrio de Deleuze é um
de Verdi sobre Péricles” , verdadeiro político: “Há ali urna dìvergència e feriva.
Com o desaparecimento de Chátelet, o departamento Lem- bro-me de meu pai chegando em casa enraive-
de filosofía é assumldo pouco a pouco por seu amigo cido com Deleuze, que se eximia de tudo e nào fazia
Rene Schérer, que ele conheceu muito cedo, no nada. Ele o imitava: ‘Escute, jean-Fran- ; çois, voeê
momento da preparalo da agre gag ño entre 1946 e sabe, eu acho que nâo tenho nada; a dizer sobre a
1947. Quando nomeado em 194S na Argelia, em Oran, decisâo a ser tomada...’ Deleuze era a criança, e havia os
Chátelet é acolhido por Schérer, que o precedeu em um país: Chátelet e Lyotard, convocados a cuidar de
ano. Por intermèdio de Chátelet, Schérer conhece qualquer questào institucional”40.
Deleuze no firn dos anos de 1940 e o reencontra em Apesar desses poucos momentos de irrita-: çâo,
París ao retornar à Franga em 1954. No momento da Deleuze e Lyotard eram muito ligados, e suas obras
criagáo de Vincennes, Chátelet exige que Schérer esteja foram recebidas entre 1972 e 1979 ; corno a expressao
lá. de urna exigéncia comuni; Chegaram a ser considerados
Se até entao Schérer se sentia um pouco distante dos como duas modalidades possíveis e compatíveis de
trabalhos de Deleuze, a publicagáo de O Anti-Édipo urna- mesma filosofìa da diferença. Entretanto, com ; a
acelera sua aproximagào: “É a partir dai que há de publicaçâo de A Condiçâo Pós-Moderna\ consuma-se a
minha parte urna especie de adogáo do pensamento de ruptura: Deleuze nao suporta; ver seu amigo defender
Deleuze’31. Essa aproximagào passou também por posiçôes radicalmente relativistas, e Guattari zomba
Guattari, pelo CERFI, pela participagào de Schérer ao dessa rejeiçâo de toda metanarrativa: “Nâo mais vagas;
lado de Guy Hocquenghem em alguns números da vogas”42*.
revista Recherchesn. Quando a posigao de Schérer fìcou Fica claro entâo que eles estâo em duas linhas
fragilizada a propósito do caso do Coral em 1982, que filosóficas muito diferentes, e quando Lyotard publica
terminou com urna impronùncia em 198533, Deleuze se Le Différend0, nâo menciona mais a obra de Deleuze-
engajou imediata- mente em sua defesa. Com o Guattari. Lyotard já nao segue Deleuze em seu
desaparecimento do capitao Chátelet, Deleuze confía o monismo e opoe a eie um procedimento dualista em
navio a Schérer: “Em um instante me vi com a respon- nome de Kant, de Freud e, sobretudo, da virada linguiV
sabilidade desse departamento de filosofìa. Eu tinha ido
Gilles Deleuze & Félix Guattari 291

tica da filosofìa anglo-saxà, apoiando-se es- Claude jaeglé restituì magnificamente a


senciaìmente em Wittgenstein. Resta-lhes em polifonia, os diversos registros de voz 48 que
comum seu anti-hegelianismo, sua oposigào à atravessam o corpo do professor Deleuze . O
dialética reconciliadora que Lyotard aniquila em silencio de sua plateia heterogénea revela a força
Le Différend. Apesar dessa degradando de suas de efeito de sua vocalizaçâo e dramaturgia. Ele
relagòes a partir de 1979, Lyotard preserva uma conduz seu público aos cumes que frequenta e,
grande estima por Deleuze, que expressa sem para se assegurar de que está sendo
reserva quando do faleeimento deste. Lyotard acompanhado, pergunta regularmente: “O que
escreve: “Sempre achei que eie era 44um dos dois isso quer dízer?”: “Os segundos durante os quais
gènios de nossa geragao filosòfica” . Sua fìlha, Deleuze capta um conceito no ápice de um
muito surpresa de ver o pai utilizar esse tipo de desenvolvimento racional provocara um suspense
superlativo a que estava pouco acostumado, de reflexáo em todo o auditòrio, e é no cerne
pergunta quem é o outro. Ele responde que se dessa apneia subjetiva que se exerce a
trata de Jacques Derrida e acrescenta; “porque os transmissâo do pensamento"49, Jaeglé identifica
dois tinham compreen- dido toda a historia da nele várias figuras e, entre elas, a do gaia- to que
filosofìa aos 19 anos”4! nâo se interessa verdaderamente pela filosofía; “O
gaiato produz na voz de80 Deleuze um timbre
nasalado, vivo, malicioso” . Um dia, Deleuze se
Deleuze pedagogo surpreende ao encontrar a porta de sua sala de
aula aberta e explica aos alunos que a
Vincennes é sobretodo o lugar onde se de- administraçao elaborou todo um dispositivo de
senvolve entre 1970 e 1987 o talento excepcional regras estrilas para evitar a pilhagem de cadeiras
de pedagogo de Deleuze. Eie atribui grande impor praticada pelos alunos das salas vizinhas: “Impós-
lància à aula de terga-feira - o essencial de sua se um esquema totalmente estranho,
semana gira em tomo da preparagao dela. Um Supostamente, quando chego, deve procurar um
amigo da familia, Pierre Chevalier, que viveu vigía. Dou ao vigía urna pequeña ficha redonda, e
entre 1973 e 1983 na Rue de Bizer- te, na casa ele me dá a chave da sala, mas fica com a ficha.
dos Deleuze, lembra-se do cuidado que eie Depois de ter fechado51 a sala, levo a chave, e ele
dedicava à preparagao das aulas de Vincennes: devolve minha ficha” . Um outro dia, quando lhe
“Eu via Deleuze trabalhar desde o domingo de propoem uma pequeña sala quase insalubre nos
manhà, às vezes desde sábado. A aula era muito pré-fabricados de Paris-VIII em Saint-Dénis, em
amadurecida durante très días e antes de ministrà- 17 de Janeiro de 1984, ele traça um quadro
la era corno uma preparagao física, como antes de magnífico da sala muito modesta que lhe
uma corrida”46. Quando chega entao na terga-feira atribuem: “Fui ver a sala; é um palacio onde
de manhà, eie de fato nao mais necessita da conheceremos o bem- -estar. Imaginem um
pequeña ficha com anotagòes que tem na mào, pequeño pàtio, um tufo de grama no meio de um
porque sabe sua aula de cor. Contudo, dà a pàtio quadrado. Em torno, há construçôes com um
impressao de um pensamento prestes a se único andar, todas multo charmosas, em ocre e
expressar, pura improvisagào e elaboragáo mental verde. Portas se abrem para fora, o que, para
em harmonía com seu público. Por esse qualquer acídente com fogo, salva nossa vida... A
procedimento, eie chega ao essencial, suscitando sala é nítidamente maior que aqui. O teto é mais
um efeito de estupefagào e de encantamento dos baixo, o que favorece a concentraçâo. Possui
estudan- tes, conduzidos por seu rigor intelectual. grandes baias com janeias duplas: nâo há
Uma aula, segundo ele, é “urna especie de problemas de barulho, nom de aquecimento.
matèria em movimento musical, em que cada Estaremos bem ali, e se nos perseguem, vamos
grupo apreende o que lhe convém. Nào é todo que para a garagem. Viveremos días felizes,
convém a qualquer um. Uma aula é emoçâo. Se saudáveis, seremos livres. O único problema é
nâo há emoçâo, nâo há inteligência, ne- nhum atravessar o bulevar... É um palácío pré-
interesse, nâo há nada”4'’.
fabricado, salas de estudo onde ninguém se atrasa, A Bourget, na formagáo de futuros professores e
atmosfera logo os cobre de M!>a serenidade, e dizer que isso professoras de primàrio, dividido entre sua adesáo ás
existía e292
a gente nâo sabia... , teses lacania- nas e a fascinagao por Lyotard e Deleuze:
Nao muito distante do gaiato, tem-se o clown, que
François Dosse
“A pri- meira vez que encontré! Gilles Deleuze foi na
joga com repetiçôes e torna audível a pontuaçao dos universidade de Vincennes, que acabara de ser criada.
longos desenvolvimentos filosóficos. É o “testemunho Foi um choque!”57. Quando vai à aula da terga-feira, o
rítmico” que lança “Po- orrquêê?". Ao lado do clown, há ritual é sempre o mesmo. Deleuze chega, e a sala já está
o moribundo, o agonizante, que vive seus últimos cheia de estudantes, a ponto de se ter difìcuìdade de
momentos e do qual se ouvem os estertores e os entrar, 0 lugar onde Deleuze deve fìcar já está tomado
borborigmos. Ele geme seus Aaaah” com “essa voz5 por urna infinidade de gravadores. Ele entáo interpela a
senil em que cada palavra parece um gorgolejo” '. piatela: “Vocès sao gentis. Sinto prazer em ver que há
Todos esses personagens acompanham o sedu- tor, o tanta gente, mas eu precisaría pelo menos de um
encantador Gilles Deleuze, cuja “voz é um charme, um lugarzinho onde possa colocar meus livros’58. Eie trazia
canto eficaz”'^. Todas essas vozes formam urna sempre debaixo do brago um grande número de
dramaturgia que poe em cena o teatro filosófico de volumes que em-' pilhava cuidadosamente e nos quais
Deleuze, que representa todos os personagens ao mesmo se encon- travam foìhas de anotagòes que nunca tocava.
tempo diante de um auditorio petrificado e seduzido. Quando em 1973 Philippe Mengue, cansado de lecionar
Entre seus alunos, Deleuze conta com um fiel dos psicopedagogia na École Normale, expressa ao diretor
fiéis, que leva a presunçâo a ponto de tomar a palavra sua insatisfagao e o desejo de ensinar metafisica, ouve
tongamente a cada aula, contradizendo o mestre. corno resposta que nao pode esperar nada mais que um
Georges Comtesse se impôs como interlocutor meio posto de filosofía no Midi. Ele aceita e deixa
obrigatório cujas reaçôes afetam o público, mas que se París. Depois de ter defendido sua tese sobre o sadismo
beneficia de urna cortesia acolhedora de Deleuze. sob a orientagao de Lyotard, em 1986, diante de urna
Presente sistematicamente em todas as aulas, tendo lido banca presidida por Deleuze, ele se dedica a escrever
todas as publicaçôes do mestre e se apropriado de seu sobre 59a obra de seu mestre, á quem consagra dois
discurso e de seus concei- tos, Comtesse se vangloria de livros .
acompanhar o pensamento de Deleuze, interrogando-o, As razóes mais diversas levam os estudantes a
formulando objeçôes, para pô-lo à prova. convergir para as aulas de Deleuze. 0 atual professor de
Nesse inicio dos anos de 1970, entre esses filosofia de Nanterre, Jean-Michel Saìanski, acaba de
estudantes fascinados por Deleuze, está Elisabeth sair de sua agregagao de matemàtica quando se
Roudinesco, membro da Escola Freudiana de Paris apaixona pela filosofia grapas aos trabalhos de Lyotard,
desde 1969, que percebe bem o caráter devastador de mas tam- bém ao descobrir Diferenqa e Repetiqào.
suas proposiçôes sobre a psicanálise. Deleuze encontra- Vindo também de Lyotard, Richard Pinhas opta por
se em plena preparaçâo de O Anti-Édipo. Deleuze no momento da ruptura entre seus dois mestres,
Evidentemente, Roudinesco nâo pode concordar com Após o falecìmento de Deleuze, desempenha um papel
esse questionamento radical do significante mestre ao fundamental na difusào de suas teses, criando um site na
quai se opôe^a força dos fluxos, com esse Internet no qual disponibiliza on-line um numero
questionamento do Édipo, da falta, do uno em nome do crescente de aulas dadas em Vincennes em francés,
múltiplo, e ao mesmo tempo está cativada: “Exaltado inglés, espanhol e alemáo. Pinhas acompanha com
mas sempre tolerante, Deleuze era o filósofo mais constáncia todas as aulas de Deleuze em Vincennes de
socrático que se possa imaginar, tonge de se fazer o 1970 a 1987 e frequentemente o busca em casa para
ídolo de um culto religioso, ele fascinava suaplateia levá-lo de carro à universi- dade. Pinhas sempre discute
tornando-se o parteiro terno e bárbaro do desejo dos que as aulas antes, no trajeto, e prossegue a discussáo
o ouviam... Ele falava sem anotapóes a quem o ouvisse, durante o al- mogo após a aula, Ele se beneficiou da
como se o livro que trazia nele e stive s- se inscrito por relagáo nao sacralizada de Deleuze com o livro: “Ele me
toda eternidade no mais íntimo de sua alma”55. Essa deu nao poucas obras raras, exemplares anotados, com
admiragáo nao impede Elisabeth Roudinesco de receber dedicatorias...” Para nao transportar um número muito
150

a publicagao de O Anti-Édipo com grande severidade volumoso de livros, Deleuze nao hesitava em arrancar
crítica“6. as páginas de que necessitava para suas aulas.
Nessa massa que se espreme ás tergas-féi- ras, um A proporgao de militantes políticos que assistiam ás
exegeta escrupuloso de Deleuze assiste aos cursos nos aulas caiu sensivelmente com o tempo. Estimada em um
primeiros anos de 1970. Trata- -se de Philippe Mengue, tergo no inicio, eia se dilui para dar lugar a urna plateia
já professor em exercí- ció na École Normale do composta es- sencialmente de aprendizes filósofos nos
anos 1980. Richard Pinhas viveu ao lado de Deleuze, primeiras páginas, seduzido pela maneira de ir
durante esses anos de ensino, urna encarnagao da diretamente aos fatos por meio de frases concisas, eficaz
tradigao filosófica grega da amizade. No campo do es e fâceis de me mori zar. Entra assim em Deleuze com
saber filosófico, Deleuze nao é nada diretivo e repete afinidade estilística e interesses comuns, pois293
Ciliés Deleuze & Félix Guattari
consagra
sempre que se deve tomar para si aquilo de que se seu mestra- do a Espinosa . Procurando trabalhar sobre
66

necessita: “Li Espinosa tarde, com uns 30 anos, e ele me um filósofo contemporáneo, François Zoura- bichviü
dissera: 'Che- gará o dia em que vocé terá realmente faz, por tanto, a escolha, evidente para ele, de Deleuze, e
necessi- dade dele, e nesse momento isso realmente lhe segue seus últimos cursos a partir de 1985. Causa
farà bern. De fato, cinco anos antes, isso nao teria tido o surpresa na Sorbonne que alguém tâo sèrio e
mesmo efeito sobre mim”6i, competente possa ter escoìhido Deleuze, que nao é
O estudante de lingua alemà, Pierre Blan- chaud, na considerado em seu meio como um verdadeiro filósofo.
época com apenas 18 anos, é também um fiel de No seu círculo, eie era qualificado no melhor dos casos
primeira hora das aulas de 1970 a 1972, Seu pai, de brilhante comentador eclético e de dandy. “Assumi o
autodidata, lhe fala de Deleuze durante o verao de 1968, desafio de mostrar que se tratava de urna verdadeira
depois de ter desco- berto com paixáo seu Nietzsche e a filosofìa. Minha questao era detonar a bomba deleuziana
filosofia. Em comum acordo, pai e filho decidem acom- na filosofìa’67.
panhar a aula de Deleuze em Vincennes na terga-feira e Mesmo nesse último período, os filósofos nao sao os
a de Foucault no Collège de France na quarta-fèira: “Eu únicos a assistir às aulas de Deleuze. No último ano,
nao entendía quase nada, mas me sentia bem. Era urna entre 1986 e 1987, consagrado a Leibniz, um
festa. Ele tinha urna maneira táo gentil de falar! Havia funcionário que trabalha em um centro de reinserçâo
urna fascina- gao real. Gostei dele de imediato1’62. que Ihe causa tedio instala-se regularmente ao lado de
Durante seus últimos anos de ensino, entre 1984 e François Zourabichvili. Tendo partido em busca de
1987, Deleuze assiste ao afluxo de al- guns filósofos de conteúdos mais estimulantes em Vincennes, ele decidiu
oficio. Entre eles, aquele que será um dos mais aportar no curso de Deleuze: “Isso Ihe causava prazer, e,
promissores especialistas do pensamento de Deleuze e certa vez, a coisa tinha sido muìto àrdua a propósito do
cujo destino foi tragicamente interrompido em 2006: cogito cartesiano e de Kant. Ele se vira para mìm e me
François Zou rabie hvili, Ele acompanha os dois últimos diz; ‘Nao sei muito bem do que se trata, mas gos- to
anos do curso de Vincennes, e quando a PUF lhe bastante’. Tinha-se de68fato a impressào de que ele se
encomenda urna63obra sobre Deleuze, troca algumas dirigía a todo mundo” . Indo ouvir seu amigo Deleuze
palavras com ele . Estudante de filosofia na Sorbonne, em Paris-VIII, Elias San- bar teve urna experiéncia da
François Zourabichvili é imediatamente conquistado por mesma ordem: “Havia urna senhora idosa que vinha a
Deleuze, que na época consagra seu curso a Foucault, todas as aulas, e fazia um certo frió nesse día. Nos
depois a Leibniz; “Para estar nas primeiras dez fìleiras, intervalos, a maioria dos estudantes saia para fumar, e
era preciso chegar urna hora antes, e urna vez, intrigado eu fiquei. Dirijo-me a essa mulher para Ihe perguntar se
com o fato de que eram sempre os mesmos que ficavam estava preparando al güín a coisa, pois eia nunca faltava
ao lado dele, tive vontade de saber a que horas a urna aula. Eia me responde: ‘O senhor sabe, ele me
chegavam essas pessoas. Chegueì quase64très horas antes, ajuda a viver’. Existe de fato algo nesse pensamento que
e eles já estavam a cinco ou seis” . Zourabichvili ajuda as pessoas a viver”69.
aprecia particularmente a maneira lancinante que Entre os jovens filósofos desse último período de
Deleuze tem de voltar às mesmas coisas. Nele, isso nâo Paris-VIII, David Lapoujade assiste ao curso sobre
é da ordem do refrâo, mas uma maneira de aglutinar Fouçault entre 1985 e 1986, e, no final do ano letivo,
novas dimensôes ao seu enunciado inicial em forma de Deleuze o convida para ir à sua casa. A partir de entào,
uma ladainha que exerce urna eficácia pedagógica Lapoujade se torna um familiar, primeiramente na
excepcional: os ouvintes podem nâo eompreender a relagao pro- fessor-aluno. Depois de quatro anos de
liçâo do día, mas, ao ver retornar o mesmo tema com trocas regulares, ele é convidado para ir a Saint-Léo-
outras configuraçôes, acaba por se apropriar dele. nard-de-Noblat, na propriedade de Deleuze em
O detonador que conduziu François Zourabichvili a Limousin, Os dias de verào ali se desenro- iam
Deleuze foi a leitura de Proust e os Signos na classe tranquilamente entre pequeños passeios, partidas de
preparatoria à ENS no verâo de 1982: “Eu o li e fiquei xadrez e jogo de cartas: “Ele passava muito tempo em
muito surpreso, pois nao se parecía com nada do que eu sua correspondencia, pois respondía sistematicamente,
lia no campo da crítica literária. Tinha um forte teor com sua letra trémula” Deleuze também dedica mo-
70

filosófico”63. Ele experimenta depois a mesma fas- mentos para o trabalho ali, e a maior parte dos artigos
cinaçâo com seu Nietzsche e relé sem parar as duas inéditos publicados em Crítica e Clínica foi escrita em
Limousin. Fora isso, ‘‘Limousin era a vida de familia, amigo japonés : que encontró 72na Sorbonne me deu o
de repouso, de jogos de 71salào entre amigos, de pequeños Kafka de Deleuze e Guattari” . Grande apaixonado ;
passeios,294mas de carro” . Os íntimos desses momentos por Kafka, do qual leu a maioria das obras no Japáo, e
de calma, François
além da Dosse
familia, sao essencialmente Jean- muito seduzido pela novidade des- sa abordagem, ele
Pierre Bamberger, Pierre Chevalier, Gioire Parnet e fica sabendo algum tempo mais tarde que Deleuze dá
David Lapoujade. aula em Vincennes. Decide fazer o curso do ano letivo
Nessa pequeña saia de Paris-VIII, ao lado do de 1978 el 1979. O campus aínda está agitado, e a aula-
mestre, encontra-se invariavelmente um estudante de Deleuze sofre constantes intervengoes in-
japones que, por mais de dez anos, ocupa o mesmo tempestivas. Pessoas chegara para dizer que é
lugar todas as tergas-feiras, ao custo de levantar muito absolutamente necessàrio ajudar seus cama- radas em
cedo. Hidenobu: Suzuki chegou à Franga em 1974, dificuldade e pedem ajuda fmancei- ra para esta ou
vindo de Tóquio, para aperfeigoar seu conhecimento de aquela causa: “Quase toda vez Gilles circulava seu
francés, e nao conhece nada de filosofia na época. chapéu peía sala e tirava notas de seu bolso enquanto o
Inscreve-se na Sorbonne nova onde encentra aquilo que chapéu circula-
satisfaz seu gosto pela literatura francesa: “Um dia, um
Gilles Deleuze & Félix Guattari 295

va. Eu achava isso muito generoso e cíelo de sua vida de professor, sobre o tema da
descobria alguém que nao 7fìcava absolutamente harmonía, urna harmonía que deve emergir do
em sua torre de marfim” '*. Urna tal atitilde conceito filosófico de “acordo da alma e do
contrasta muito profundamente com as práticas corpo”. Como de hábito, Deleuze se volta para o
universitarias japonesas. Hidenobu, que vem da universo criativo para mensurar o que poderla dar
extrema esquerda japonesa, descobre fascinado urna experimentaçâo dessa harmonía. Evoca a
que trabalhos de ordem universitària como os de renovaçâo da noçâo de harmonía na música
Deleuze e Guattari podem ter um prolon- barroca: “Cabe aos ‘músicos’ do seminàrio
gamento pràtico: “Ir à sua aula tornou-se urna desenredar essa historia de transformaçâo da
paixáo para mim”V Tendo observado desde o noçâo de harmonía”79. Ele recorre à competên- cia
primeiro dia que havia muitos gravadores em de musicólogos como Pascale Criton para
torno de Deleuze, Hidenobu coloca o seu, um esmiuçar a hipótese de urna mudanga de estatuto
Sony de última geragao. Ele se torna urna insti- da harmonía, que náo se fundamentaría mais em
tuigáo por si só, e, quando um próximo de De- intervalos regulares, mas em acordes. Essa
leuze lamenta náo ter podido assistir a esta ou transformaçâo que seria trazìda pela música
àquela aula, este último o aconselha a procurar o barroca estaría em sintonía com o que Leibniz
estudante japonés para que Ihe empreste o entende com sua ideia de harmonía, que distingue
cassete7f très maneiras de problematizar as re- iaçôes entre
Na terga-feira, 2 de junho de 1987, chega o o corpo e a alma: a influéncia que remetería à
dia táo lamentado por todos da última aula, O melodia, a assistência que correspondería aos
acontecimento é ao mesmo tempo programado e contrapontos e o consentimento a uma concepçâo
negado por Deleuze, que considera que se trata do acorde, É com essa ques- tâo aberta que
apenas de urna penúltima aula, como de um termina sem terminar seu en- sino, pois ele se abre
penúltimo copo, mas nao deixa de fazer dele um a novas exploraçôes. Deleuze encerra essa última
acontecimento, e as efímeras, somando-se aos já aula afirmando: “Essa historia da música me
habituáis gravadores, marcam presenga. Esse proporciona pontos de partida em que80eu náo teria
momento é descrito por um dos representantes pensado sem esta sessáo de traballio” .
dessa diàspora internacional fascinada por
Deleuze, o estudante italiano Giorgio Passerone, Notas
tradutor de Mil PlatosVindo de Genova e do 1. Proposiçâo de orientaçâo sobre o ensino de fi-
movimento de extrema esquerda da autonomia losofía, março de 1969, arquivos “Vincennes”,
italiana, Passerone acompanha as aulas de BDIC,
Deleuze desde 1977: “Depois mergulho em O 2. Judith Miller, entrevista com Madeleine Chap- sal e
Anti-Édipo e decido que há ali urna linha de vida Michele Manceaux, l’Express, 16 de março de
e fago minha dissertagfío de mestrado sobre a 1970. Essa declaraçâo provocadora suscita uma
ideia da dìferenga em Deleuze”77. A situagao reaçâo imediata. Em 3 de abri! de 1970, Judith
italiana se deteriorava com a progressfío do Miller recebe urna carta do ministro revogando sua
número dos que decidem se engajar na luta indicaçâo para o ensino superior e mandando-a de
armada das BR, enquanto outros, desesperados, se volta para o secundário.
entregam ás drogas pesadas, e entao Passerone 3. Cifras extraídas de Charles SOULIÉ, “Le destin
pede urna bolsa de estudos, instala-se na Franga e dune institution d’avant-garde: histoire du dé-
faz os cursos de Deleuze: ‘As aulas de terga-feira partement de philosophie de Paris VIH", Histoire de
sempre funcionaram assim, urna produgao- l’éducation, janeiro de 1998, n. 77, INRP, p. 57.
laboratório em torno do operador Deleuze: fazer 4. Giìles Deleuze, A.
urna leitura 78 dos filósofos que capte sua 5. Ibid.
originalidade" . 6. Arquivos "Vincennes”, BDIC,
Assim, essa última aula nao apenas coroa o 7. Roger-Pol DROIT, Le Monde, 15 de novembro de
traballio empreendido sobre Leibniz, mas todo o 1974.
8. Gilles DELEUZE, Jean-François LYOTARD, ‘À propos du 44. Jean-François LYOTARD, Libération, 5 de novembro de
département de psychanalyse à Vincennes”, Les Temps 1975; reproduzido em Misère de la philosophie, Galilée,
modernes, n. 342, Janeiro de 1975, p. 862-863; reproduzido 2000, p. 194.
em Gilles DELEUZE,
296 François RF, p. 56-57.
Dosse 45. Jean-François LYOTARD, palavras reportadas ■ por
9. Ibid, p. 57 Corinne Enaudeau, entrevista com o autor.
10. Jacques LACAN, "Peut-être à Vincennes”, Or~ nicar?, n. 1, 46. Pierre Chevalier, “Gilles Deleuze: avez-vous des questions
Janeiro de 1975, p.3. à poser?”, France Culture, 20 de abril de 2002, programa de
11. Ibid., p. 5. Jean Daive e Clotilde Pivin, arquivos INA,
12. Jacques Rancière, entrevista com o autor. 47. Gilles Deleuze, A, letra P, "Professeur”.
13. Ibid. 48. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoire de Gilles Deleuze aux
14. Ibid. yeux, jeunes, Paris, PUF, 2005.
15. Alice Saunier-Seïté, declaraçâo publicada em Ouest-Fronce, 49. Ibid, p. 18-19.
19 de junho de 1978; reproduzida em Pierre MERLIN, 50. Ibid, p. 24.
L’Université assassinée. Vincennes 1968-1980, Ramsay, 51. Gilles Deleuze, em "Gilles Deleuze: avez-vous; des
Paris, 1980, p. 82. questions à poser?”, France Culture, 20 de abril de 2002.
16. René Scherer, entrevista com o autor. 52. Gilles Deleuze, aula de 17 de Janeiro de 1984, arquivos
17. Noëlle Châtele, entrevista com o autor. sonoros, BNF.
18. Ibid. 53. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoire de Gilles Deleuze aux
yeux jaunes, op. cit., p. 32.
19. Ibid.
20. Gilíes Deleuze, carta a François Châtelet, 3 de maio de 54. Ibid, p. 33.
1982, acervo Châtelet, 1MEC. 55. Elisabeth ROUDINESCO, Généalogies, Fayard,; Paris,
21. Noëlle Châtele, entrevista com o autor. 1994, p. 53.
22. Ibid. 56. Ver capitulo “Fogo no psicanalismo”.
23. Gilles Deleuze, aula de 7 de Janeiro de 1986, universidade 57. Philippe Mengue em Yannick BEAUBAT1E (sob a dir,},
de Paris-VHI, arquivos sonoros, BNF. Tombeau de Gilles Deleuze, Mille; Sources, Tulle, 2000, p.
24. Gilles DELEUZE, “Il était une étoille de groupe”, 49.
Libération, 27 de dezembro de 1985, p. 21-22; reproducido 58. Gilles Deleuze, palavras relatadas por Philippe ; Mengue,
em RF, p. 247. entrevista com o autor.
25. Ibid., p. 249. 59. Philippe MENGUE, Gilles Deleuze ou le système du
26. Gilles DELEUZE, Périclès et Verdi. La philosophie de multiple, Kimé, Paris, 1994; Deleuze et la question de la
François Châtelet, Minuit, Paris, 1988, p. 8. démocratie, Kimé, Paris, 2003.
27. Ibid., p. 9. 60. Richard Pinhas, entrevista com o autor.
28. François CHÂTELET, Périclès, Club français du livre, 61. Ib id.
Paris, 1960. 62. Pierre Blanchaud, entrevista com o autor.
29. Gilles DELEUZE, Périclès et Verdi, op. cit., p. 20. 63. François ZOURABICHVILI, Deleuze. La philosophie de
30. Ibid., p. 25. l'êvenément, op. cit.
64. François Zourabichvili, entrevista com o autor.
31. René Schérer, entrevista com o autor. 65. ïbid.
32. Ver o capítulo “O CEREI em suas obras". 66. François ZOURABICHVILI, Spinoza: une physique de la
33. Ibid. pensée, PUF, Paris, 2002; Le Conservatisme paradoxal de
34. René Schérer, entrevista com o autor. Spinoza: enfance et royauté, PUF, Paris, 2002.
35. Entre os numerosos doutorandos que Deleuze deixou corno 67. François Zourabichvili, entrevista com o autor.
herança a Schérer estâo Yvonne Thoros, Jean-Clet Martin, 68. ïbid.
Giorgio Passerone... 69. Elias Sanbar, entrevista com o autor.
36. Christian Descamps, entrevista com o autor. 70. David Lapoujade, entrevista com o autor.
37. Ver capitulo “Fogo no psicanalismo", 71. ïbid.
38. Jean-François LYOTARD, L’Économie libidinale, Minuit,
Paris, 1974. 72. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor.
39. Corinne Enaudeau, entrevista corno autor. 73. Ïbid.
40. Ihid. 74. ïbid.
41. Jean-François LYOTARD, La Condition postmoderne, 75- O conjunto dessas gravaçôes esta disponivel na sala
Minuit, Paris, 1979. audiovisua! da BNF: 177 aulas, 400 horas - de 1979 a 1987.
42. Félix Guattari, palavras reportadas por jean Chesneaux, Frédéric Astier publi- cou o inventârio delas: Les Cours
entrevista com o autor. enregistrés de Gilles Deleuze: 1979-1987, Sils Maria
43. Jean-François LYOTARD, Le Différend, Minuit, Paris, éditions, Mons, 2006.
1983.
76. Giorgio PASSERONS, “Le dernier cours?”, Le Magazine 79. ïbid., p.Giües 36. Deleuze & Félix Guattari 297
littéraire, n. 257, setembro de 1988, p. 35-37. 80. Gilles Deleuze, aula de 2 de junho de 1987, universidade de
77. Giorgio Passerone, entrevista com o autor. Paris-VIII, arquivos sonoros, BNF.
78. Giorgio PASSERONE, “Le dernier cours?”, art. cit., p. 36.
20
1977: o ano de todos os combates

A meio caminho entre OAnti- vegetal de plantas rizomáticas, cujas


Édipo (1972) e o segundo volume de ramifica- goes sao ao mesmo tempo
Capitalismo e Esquizofrenia, Mil proliferantes e ho- rizontais. Com essa
Platos (1980), Deleuze e Guattari analogia, eíes pretenderti romper com
escreyem um pequeño texto de menos um raciocinio que vai do tronco aos
de cem páginas absolutamente ramos da árvore conforme um
essencial, de valor programático: esquema causal e linear, para
Rizoma . Esse texto serve para afirmar substituido por um modo de
a multiplicidade de entradas possíveis pensamento que nao tem ponta
em urna obra: “Nenhuma entrada tem original nem extremidade final, mas
privilegio", “Portanto, pode-se entrar muitas conexoes significantes. Áo
por qualquer saída” .0 rizoma é
2
mesmo tempo, conseguem fazer com
concebido assim como urna teoría da que toda ruptura possa se tornar
recepgáo, da lettura, e justifica a parte significativa, em todos os pontos.
ativa do leitor em relagáo ao autor e à Deleuze e Guattari opoem
sua suposta intencionalidade. É con- simultáneamente ao pensamento do
siderado como a expressáo possívei de Uno, que se enraíza profundamente
urna teoría pragmática da lettura: “O para se desenvolver segundo urna
rizoma, como teoría da lettura, leva em lógica binaría, um pensamento do
conta, portanto, o ato de lettura e faz multi-'. pio, um “sistema-radícula”,
1

da recepgáo urna produgáo ativa, urna produto do fracase so do enraízamento


verdadeira transformagáo e urna e que se desenvolve já em urna lógica
captura da obra”3. da dobra que Deleuze tematizará mais
O conceito torna-se por si só urna tarde nela mesma a partir de Leibniz:
forma manifesta de seu pensamento ‘A dobragem de um texto sobre outro,
novo. Reves- te-se de um aspecto constitutiva de raízes múltiplas e
polèmico enquanto máquina de guerra mesmo adventicias:; (dir-se-ia urna
contra a tradigáo ocidental da estaca), implica urna dimensáo
verticalidade, alternativa à famosa suplementar à dos textos
árvore do conhecimento. Propóe considerados. É nesso dimensáo
também outra manei- ra de pensar suplementar da dobragem que a
segundo as linhas da horizonta- lidade, unidade 4 continua seu trabalho
do plano de imanéncia, sobre o modelo espiritual” . Ao cosmo-raiz se opòe a
afirmagáo de urna caos-:: mo-radícula, e por isso nào novas linhas de fuga, em diregáo a urna abertura para
basta recolher doy múltiplo, mas1 é preciso produzi-lo: um de fora.
“O múlti-; pio, é precisofaze-ío”' . Os outros principios do rizoma estáo ligados à
Opondo os bulbos e os tubérculos ás raízes, Deleuze prevalènciaGilles
da cartografìa sobre a decalcomania e sua
Deleuze & Félix Guattari 299

e Guattari utilizara como sempre urna lógica dualista reprodutibilidade ao infinito, como percebem em agào
para combater meíhor o bina- rismo. Ao mesmo tempo, nas duas ciéncias-piloto do estrufcuralìsmo, que sao a
alertam seus leítores contra toda simplificagáo abusiva linguistica e a psicanàlisi Disso resulta urna logica bem
em termos de oposigao entre o bem e o mal, pois pode diferente: ao invés de representar códigos subjacentes,
haver ai o melhor no rizoma, como a batata, e o pior, eia provém inteiramente da experimentagao; eia inova,
como a erva daninha. O rizoma induz um método, conecta campos heterogéneos, provoca um
alguns principios. Lá também forana multas as deslocamento do real, multiplicando as entradas
símplificagóes que viram nisso a justificativa de um possíveis, os ángulos de visáo. A lingüística e a
certo laxismo intelectual que se contentaría com psicanálise cometem o erro de impor à complexidade do
colagens, enquanto o método pregado é o da ascese. real suas respectivas grades de interpretagáo, imutáveis
Fazer o múltiplo exige sobriedade, contragáo, subtragáo enquanto modelos de significagáo. À leitura
e supressáo das facilidades do Uno para estabe- lecer reducionista e gradis- ta, os autores opòem o
conexóes transversais produtivas de per- tinéncias procedimento cartográfico de um Fernand Deligny
inéditas. quando este último faz suas criangas autistas
Os primeiros desses principios sao os de conexao e desenharem para reconstituir seus itinerários nao
de heterogeneidade: "Qualquer ponto de um rizoma6 tragados. Do privilègio atribuido à árvore, Deleuze e
pode ser conectado a qualquer outro, e deve sé-lo” . Guattari fazem inclusive um invariante civilizacional
Outro principio, o da multiplicidade, é urna contribuigáo característico do Ocídente. Assim, regionali- zam um
específica reivindicada por Deleuze em urna perspectiva modo de pensamento considerado até entáo universal e
bergsoníana; ‘A distingáo do macro e do micro é muito Ihe opoern urna outra relagáo com a natureza, oriental,
importante, mas pertence talvez mais a Félix do que a que se vé confrontada com a estepe e com o jardim, com
mim. Meu, é mais a distingáo de dois tipos de o deserto e com o oásis, e cujas culturas sáo as dos
multiplicidades. É isso o es- sencial para mim: que um tubérculos. Eles encontrara nos trabalhos de Jean Hau-
desses dois tipos remeta a micromultiplicidades, o que é dricourt sustentagáo para essa oposigáo entre o enterrar
apenas urna consequéneia. Mesmo para o problema do oriental dos tubérculos e as semeadu- ras das plantas de
pensamento, e mesmo para as ciencias, a nogao de grao da agricultura ocidental, É essa abordagem do
multiplicidade, tai como é introduzi- da por Riemann, mundo vivo que sugerem nossos autores. Nao
me parece mais importante que a da microíísica” 7. A pretenderá inaugurar urna nova ciencia, mas sim urna
multiplicidade é concebida assim como substantivo, e inflexao do olhar, que deve se desenvolver em planos
nao remete mais ao Uno como pode fazer o múltiplo. horizontais, como nos convidam os platos: "Chamamos
Sem objeto nem sujeito, a multiplicidade tem apenas de plato toda multiplicidade conectável com outras
divisoes ou grandezas diferentes: “Pode-se falar entáo práticas subterráneas superficiais, de ma- neira a formar
de um plano de consisténcias das multiplicidades”*1. De e a estender um rizoma” 10

sua parte, Guattari traz a esse conceito um possível É um campo de experimentaçao segundo novas
desdobramento de seu tema da transversalidade, que regras que Deleuze e Guattari inaugurane com esse
pode se ramificar segundo .linhas inéditas. ensaio que Ihes serve de manifesto antes de se tornar a
Outro principio essencial, o da "ruptura sig- introduçâo ao segundo volume de Capitalismo e
nificante... Um 9rizoma pode ser rompido, quebrado em Esquizofrenia, urna verdadeira caixa de ferramentas de
qualquer lugar” . A relagáo fecundante da vespa e da múltiplas utilidades. Esse pensamento da experimen-
orquídea serve de ilustragao a esses possíveis taçâo é importante em todos os campos de atividade.
agenciamentos múltiplos de elementos heterogéneos Anne Sauvagnargues enfatiza sua contribuiçâo no
entre eles. Nesse caso preciso, o animal e o vegetal se campo da estética para recuperar a criaçao artística
desterritoriali- zam e se reterritorializam para corno captura de forças e recusa do corte clàssico entre
estabelecer urna ramificagáo surpreendente de dois a arte e a vida ou entre a obra e sua interpretaçâo11.
seres vivos, sem que haja urna medida comum entre um Pode-se também definir a partir desse concei- to urna
e outro. O rizoma náo tem a ver com um decalque do já- nova forma de pensamento que nâo corresponde mais à
lá, nem com qualquer ascendencia genealógica; ele se busca de urna mimese entre a suposfca realidade
abre para o inédito, para a captura, sempre em diregao a objetiva e a ideia que se faz dela segundo o esquema da
representaçâo. Nâo se partirá mais tampouco em busca
de origens, de suportes ontològico® que ofereçam urna revolucionária organizada? Leíamos:/ realizar esse
base sólida de verdade, e serao privilegiados os processo que já está realizado na medida em que
cruzamentos de fìuxo, os encontros, discernindo neìes o procede {O Anti-Édipo, p. 459),/ Em suma, correr como
que sâo300
impasses ou, ao contràrio, fecundas aberturas de
François Dosse
um pus... Olhemos para; eles, esses velhos kantianos
certas linhas de fuga segundo a técnica da clínica. Com com cara de quem está brincando de quebrar os bibelos
o rizoma, pode-se aínda abrir o continente do saber da cultura. Olhemos para eles; o tempo urge, e eles já
científico, pois pensar o pensamento em termos de sentem a poeirá'11.
ligaçôes está em consonáncia com as descobertas Na segunda parte do ato de acusaçâo, escrito sob a
neurobiológicas. máscara de um pseudónimo, trata-se desta vez de qualificar as
Pelo caráter multidimensional desse concerto, mede- posiçôes do colega e de seu comparsa Guattari de “pré-
se a força de interpelaçâo de que eie se reveste. Sua fas- clstas”, O que se encontra de fato por iJtrás do::
apresentaçâo cursiva em urna pequeña obra, muito mais múltiplo do rizoma? “0 dèspota revisionistá’ . Badiou
acessivel que será depois o imponente mas sempre percebe que o alvo de Rizoma é o Uno que se divide
dissuasivo Mil Platôs, faz desse pequeño manifesto em dois, a famosa máquina dia- lética de triturar
mais proposicional que polémico um desafio que quando serve de estrategia do camarada Lin Piao:
suscitará o contra-ataque daqueles que se sentem “Deleuze e Guattari nao seráo considerados
visados por essa nova orientaçâo. analfabetos.16 Será preciso entáo considerá-los
escroques” . Suas mal- versagoes estariam a servígo de
um combate travado contra o pensamento dialético,
O "fascismo da batata" visando aos justos interesses do povo. Sua redugáo do
Alain Badiou, colega filósofo de Deleuze em Uno do proletariado ao Uno da metafísica seria a prova
Vincennes, ondqjleciona por trinta anos, é um que tangível de seu profundo conservadorísimo: eles
compreende de imediato a força atrativa desse opúsculo. perseguiriam a detestável es- colha de classe necessària
Antigo discípulo de Sartre, e depois de Althusser, ele para realizar a justa revolugao proletària. Finalmente,
comanda na época um pequeño grupo de maoístas e Deleuze e Guattari convidariam seus leitores a se acan-
dirige a revista Cahier Yenan, que empresta seu apoio tonarem em um papel pacífico de espectador separado à
ao "Grande Timoneiro”. Em 1977, já sentindo a forte maneira de Raymond Aron, ou seja, a trairem a classe
concorrência e incomodado com o sucesso de O Anti- operària: “Ficar no seu canto,17 essa é a máxima das
Édipo, que fez do curso de Deleuze um rnust do multiplicidades rizomá- ticas” . Sob essas aparèncias
departamento de filosofía de Vincen- nes, Badiou de bons mogos que fazem pensar no jardim da
decreta, desta vez, que com o Rizoma é demais. Deleuze aclimatagào, “Deleuze e Guattari sao ideólogos pré-
figurará ñas fíieiras dos “inimigos do povo”, Em Cahier fascis- tas, Negagáo da moral, culto do afirmativo
Yenan, Badiou assina um artigo, “O fiuxo e o partido”, natural, repùdio ao antagonismo, estética do múltiplo
que tem como alvo O Anti-Édipo, e aínda um segundo, / permitindo subsistir fora dele, como sua condigáo
sob o pseudónimo de Georges Peyrol, em que o ataque é politica18 subtrativa e seu fascinio indelével, o Uno do
dirigido a Rizoma com um título bastante sugestivo: "O tirano” .
fascismo da batata”. O ato de acusagáo é inapelàvel. Esse ataque violento
No primeiro artigo, Deleuze e Guattari sao coroa anos de “guerrilha” verbal comandada por Badiou
denunciados como defensores de urna filoso- fia do e suas tropas maois- tas contra Deleuze desde o inicio
desejo12 que “tem quase a mesma virtu- de sonífera do dos anos 1970 no campus de Vincennes. Nos momentos
opio” . Eles teriam se tornado os representantes de um mais fortes do enfrentamento, Deleuze nunca consegue
moralismo dos mais vulgares que consistiría em terminar sua aula: ele pega o cha- péu, faz sinai de que
demonstrar a duras penas, à custa de urna “balbúrdía está abandonando a partida. Na maioria das vezes, essas
cultural”, de um “inchamento do bíceps subversivo”, intervengóes de sabotagem sáo obra dos “homens” de
que a liberdade está do lado do bem e da necessí- ; dade Badiou, mas o Mestre chega a se dirigir à aula de
do mal, anunciando assim um simples retorno a Kant, Deleuze para interrompé-lo, o que reconhece no livro
esquecendo os ensinamentos do marxismo-leninismo que consagra a ele em 1977: “Para o maoista que sou,
que continua sendo a en- camaçâo da “seriedade da Deleuze, inspirador filosófico disso que chamávamos de
ciencia”13. Por trás desse caráter lúdico da escrita de O anarco-desej antes, é um inimigo tanto mais temível na
Anti-Édipo, Badiou desmascara sem dó o verdadeiro medida em que é interior ao movimento e que seu curso
ros-: fco dos inimigos do povo: “Quai é a última pa- é um dos pontos altos da universidade. Jamais tempere!
lavra para esses adversários que odeiam toda / política minhas polémicas, o consenso nâo é meu forte. Ataco
com as palavras da artilharia pesada de entáo. Uma vez,
eu mes- mo dirijo uma ‘brigada’ de in tervençào em sua alguns méritos em seus novos livros, como o ensaio
aula”11. sobre Leibniz publicado em 1988, ADobra, do qual faz
Alain Badiou e Judith Miller chegaram a criar em urna resenhaGilles
elogiosa para o Annuaire Philosophique.
1970 urna unidade de valor cuja fun- çâo consiste em Deleuze, sempre Deleuze
cortés, lhe agradece calorosamente, o
& Félix Guattari 301

controlar o conteúdo político dos outros cursos do que leva Badiou a pensar que eles formam “sem nunca
departamento de filosofìa. Alain Roger, ex-aluno que se ter decidido24 isso (ao contràrio!) uma espécie de tandem
tornou amigo de Deleuze, lembra aínda de um Deleuze paradoxal” .
contrariado, pois é seu día de controle pela “brigada” de Inicia-se, entao, um confronto epistolar tardío a
Badiou: “Preciso ir là pois tenho o bando do Badiou” 70. partir do lançamento de O Ser e o Acontecimento, de
Deleuze reage a essas intervengóes com a maior calma e Badiou, em 1988. Essa troca, que ocorreu entre 1992 e
evita o confronto direto. Contudo, os opositores 1994, trata essencialmen- te de questoes de filosofìa da
geralmente chegam em massa, às vezes uns dez, com a matemàtica e de epistemologia. A iniciativa é do pròprio
firme intençâo de brigar: “Bom, Deleuze, é muito Badiou. Seu objetivo, aliás alcançado, é assegurar e
agradável o que voce faz, mas vocé fala sozinho diante assumir urna certa continuidade deleuziana em Paris-
de uma piatela de admiradores subjugados! Veja a corte VIIi, onde numerosos estudantes de filosofía querem
que tem diante de você. Eles estào de boca abertal Nào consagrar suas teses a Deleuze e encontram em Badiou
dizem nada! É essa sua pràtica. Defina para nós sua as competências requlsitadas. Assim, em 1991, Badiou
pràtica”21. Philippe Mengue recorda da virulencia desses sugere a seu ex-colega a ideia de urna controversia, exa-
acusadores que "tentavano colocar Deleuze em contra- tamente quando este último concluí a redaçâo de O que
diçâo com eie mesmo e chegavam com textos de é a filosofia?. Deleuze recusa, mas de maneìra
Nietzsche, fazendo perguntas que julgavam incómodas argumentada, e Badiou lhe responde por seu turno. De
para Deleuze”22. Com frequéncia, a “brigada” acabava todo modo, resulta dessas trocas uma importante
por impor a “lei do povo”, ordenando aos estudantes correspondéncia até o final de 1994, data em que as
presentes que se retirassem sob o pretexto de uma duas partes de- cidem em comum acordo encerrâ-la.
assembleia geral no anfiteatro ou de qualquer outro ato Deleuze recusa qualquer publicaçâo e dà sumiço a essa
de apoìo às ìutas dos trabalhadores. Deleuze rea- gia correspondéncia, como faz com todos os vestiglos que
calmamente, fingía falar no mesmo sentido, utilizava a possui, para náo deixar à posteridade nada além de suas
arma da ironia. fibras publicadas. Já Badiou dispoe da correspondéncia
Deleuze nao é, aliás, o ùnico alvo das “brigadas” de integral das duas partes, mas nao pode publicá-la.
Badiou: Jean-François Lyotard, outro “desejante” O exercício a que Badiou procede em sua obra de
também figura na lista daqueles que é preciso homenagem de 1997 consiste em tirar um retrato de
importunar para garantir a saìva- çâo de suas oveihas, Deleuze que seria digno dele e que náo teria nada a ver
Mesmo o homem da con- ciliaçâo, chefe do com o dos deleuzia- nos, e menos ainda com o de
departamento desde a saida de Foucault, François Guattari, uma espécie de Deleuze puro, um extrato de
Châtelet está no quadro de caga. Contudo, ao longo dos Deleuze passado na peneira, uma ideia de Deleuze sem
anos 1970, a vindita maoista vai se atenuando ao ritmo Deleuze. “Qual Deleuze?”, pergunta-se Badiou.
do declinio progressivo das tropas submetidas ao Resposta: o seu. Descobre-se, entáo, com espanto que
pensamento de Mao. Assim, as aulas de Deleuze sao Deleuze propòe um conceito renovado do Uno: “É ao
cada vez mais poupadas dessas incur- sóes dos advento do Uno, reno- meado por Deleuze o Uno-todo,
adoradores do ìivrinho vermelho. que se consagra, em sua mais elevada destinagáo, o
Entretanto, quando Deleuze falece em 1995, Badiou pensamento”“1, e ele fundamenta seu argumento na
ìhe presta uma homenagem vibrante. Depois, chega a se seguinte citagao tirada de seu contexto: “Um único
apresentar corno digno sucessor de Deleuze no clamor do Ser para todos os sendos" 25, que dará lugar ao
magisterio de filosofìa de Paris-VIII, com a condiçâo de título de seu livro. Badiou julga poder discernir na obra
reler a obra de Deleuze com base em criterios da “boa de Deleuze náo um grito filosófico para libertar o
filosofìa”, Dois anos após a morte de Deleuze, consagra múltiplo, mas uma vontade de elaborar uma metafísica
a ele urna obra que pretende enfìm atestar uma relaçâo do Uno. Esse horizonte sublime pressupoe afastar de
de proximidade, embora so tenha havido conflito Deleuze seus inúmeros discípulos e sua relagao com
enquanto Deleuze era vivo28. Na verdade, o tom se qualquer posteridade pós-68: “Esse autòmato
tornou menos polèmico a partir de final dos anos 1980. purificado’ está sem dúvida muito mais próximo da
Mes- mo que Badiou ainda se refìra a Stalin e a Poi Pot, norma deleuziana que os barbudos de 68 que levavam a
o maoismo foi enterrado por todos. De sua parte, tiracolo de forma ostensiva seu grande desejo”27.
Deleuze se aposentou em 1987. Badiou encontra entao
Remeter Deleuze ao Uno, eis a estrategia de Badiou Uno, mas para combatè-lo: “A ùnica maneira de fazer
em oposigáo a todo pensamento de Deleuze, que situou urna critica do Uno é pela multipìicidade, pelo múltiplo.
as multiplicidades no proprio cerne de sua construgáo Nâo posso29 destruir o Uno sem subs- tancializar o
filosofía:302“Seu Ser, seu Uno, seu Todo sáo sempre
François Dosse
mùltiplo” .
artificiáis, e nao na- turais, corruptíveis, evaporados, Em compensaçâo, Badiou acerta quando qualifica
porosos, frag- mentáveis, quebràveìs. A diversidade do de “ascetico” o pensamento de Deleuze, quando o
diverso foi substituida pelos filósofos pelo idèntico ou remete ao seu parentesco com os estoicos. Contudo,
pelo contraditório”28. Em sua aula de 10 de de-: zembro logo depois de destacar esse rigor proprio ao gesto
de 1985 sobre Michel Foucault, Deleuze se pergunta o deleuziano, Badiou afirma que a filosofìa de vida
que poderia ser uma posigáo dualista e diferencia trés pregada por Deleuze é de fato urna “filosofìa da mor-
tipos de dualismo, Em primeiro lugar, o que considera te”30. Como poderia ser animado por qualquer pulsao
ser o verdadeiro dualismo e que significa afirmar a mortífera aquele que é animado pelo conatus
exisfcéncia de duas dimensoes incomensuráveis urna à espinosiano e que afirma em 1988: “Tudo o que escrevi
outra. Ele toma como exemplo o dualismo objetivo e era vitalista, pelo menos espero, e31constituía urna teoria
substancial de Descartes quando este diferencia a dos signos e do acontecimento”? . Contra a evìdència,
substáncia pensante e a substáncia estendida, ou ainda o Badiou persiste: “Essa ídentidade do pensar e do mor-
dualismo subjetivo de um Kant quando distingue a rer é dita em um verdadeiro càntico à morte, 32onde
faculdade de receptividade e a de espontaneidade. A Deleuze resvala sem esforço no trago de Blanchot” .
esse verdadeiro dualismo, convém acrescentar um outro Nas palavras de seus alunos de Paris-VIII, Deleuze
uso que vale como etapa provisoria em direçao ao Uno. nao abría mao de urna atitude po- lida, apesar das
Nesse caso, o que se visa é a unidade profunda graças interrupçôes intempestivas dos partidários de Badiou,
ao pròprio movimento de desdobra- mento. Desta vez mas também dos numerosos esquizofrénicos que
Deleuze toma como exemplo Espinosa, que distingue do assistiam às suas aulas. Contudo, certa vez ficou furioso
atributo do pensamento e o da extensâo para atingir a quando encontrou em sua mesa um panfleto de um
unidade da substáncia. Do mesmo modo, Bergson é bas- “comando da morte” incitando ao suicidio. Em sua aula
tante conhecido por ser um mestre das dualidades que de 27 de maio de 1980, afirma que a morte só pode vir
opoem duraçâo e espaço, materia e memoria ou ainda as do exterior e nâo pode em nenhum caso ser pensada
duas fontes da moral e da religiâo, mas todos sào gestos como processo: “Quando ouço a ideia de que a morte
metodológicos preparatorios para a restituiçâo de um possa ser um processo, é todo meu coraçao, todos os
horizonte de unidade. Esses pensamentos perma- necem meus afetos que sangram"33. A pulsâo de morte Ihe
fundamentalmente monistas, e o abaio provocado pela causava horror fisicamente, e tudo nele resistía a eia
tensào dual conduz ao triunfo final do eia vital que para fazer triunfarem as forças da vida e da criatividade.
funda a unidade. Prosseguindo na mesma linha de estabele- cimento
0 dualismo praticado por Foucault e Deleuze é de de um Deleuze irreeonhecível, Badiou faz dele o
urna ordem bem diferente. Deleuze atribui a eie urna homem de um pensamento sistemático e abstrato, pouco
importancia primordial, a ponto de afirmar que é isso o preocupado com a singularidade dos casos, para fazer
que mais o aproxima de Foucault, ainda que este último prevalecer seu sistema de um pensamento produtor de
nâo empregue muito o termo “multiplicidade”, conceitos “que eu nâo hesitaria em declarar
preferindo em seu lugar “dispersad’ ou “disse- monótonos”2*. Seguramente, o retrato de corpo inteiro
minaçâo”. Quai é entâo essa terceira maneira de realizado por Badiou tem pouca seme- ihança, como ele
dualismo praticada por Deleuze e Foucault? Esse pròprio admite, com aquilo que designa como a doxa
dualismo é, como em Espinosa e Bergson, urna etapa que se constituiu. Para dar um toque final, como a cereja
preparatoria, mas o horizonte nâo é mais construir o no bolo, Badiou qualifica Deleuze de pensador aristo-
Uno, e sìm levar às multiplicidades, ao pluralismo. O orático e vè corno prova disso desprezo dele por debates
que Deleuze retém da multipìicidade é, diferentemente e discussoes, que considera urna atitude
do adjetivo “multiplo”, o fato de se tornar um antidemocrática.
substantivo, urna “multipìicidade”, e nâo mais um Ao longo de sua demonstragào, Badiou re- duz a
simples atributo. A multipìicidade pode entâo ser pen- singularidade de Deleuze, identificando suas posigòes
sada por eia mesma, e todo esforço de Deleuze conduz a como um mero desvio da ontologia heideggeriana. Ao
isso, da mesma maneira que em sua tese Diferença e contràrio de suas preten- sòes de pensar contra seu
Repetiçâo se tratava de pensar a diferença por eia tempo, Deleuze teria sido, no firn das contas, nada mais
mesma. A multipìicidade é, portanto, a única máquina que urna pálida reprodugào de um sáculo dominado por
de guerra que pode servir, nâo mais para reencontrar o Heidegger. Ao assimilar a filosofìa a urna ontologia, o
que Deleuze visaria é o Ser. Nesse sentido, Deleuze defensor do fardo memorial, coniando sua filosofia
haveria escapado da ruptura moderna de Kant e nào como “injunqáo memorial a sempre recomegar”33.
teria compartilhado a natureza critica de sua filosofìa. Deleuze seria, portanto, um antinietzschiano! 0 cenàrio
Teria permanecido um pensador resolutamente clàssico, dessa disputatio opoe o mestre da Verdade e do
Gilles Deleuze & Félix Guattari 303

como Badiou se reconhece, eie pròprio, nessa postura. acontecimiento que seria Badiou ao defensor da tradigáo
Con- tudo, ele se distancia de Deleuze quando este memorial e do culto do Falso que seria Deleuze. Como
último atribui ao virtual urna posigao estratégica, pois se bom maoista, Badiou permaneceu fiel à lògica da de-
mantém entào prisìoneiro de urna transcendència: “É puragao, à tàbua rasa do passado contra aqueles que,
também o conceito que me separa cíele mais ainda em 3 um livro recente, qualifica como
abruptamente’35, Eis nosso pensador da imanència “renegados” '.
arremessado no fracasso mais evidente de seu projeto Nesse retrato-caricatura, nenhum leitor sèrio de
filosòfico. Deleuze pode encontrar qualquer se- melhanga que
É sobre essa questao do virtual que cometa em 1993 seja. Urna tal manobra de defor- magào-recuperagao é
a troca epistolar, quando Badiou escreve a Deleuze para singularmente violenta, mais ainda que urna polèmica
lhe dizer que essa categoria do virtual mantém urna frontal. Os de- leuzianos nao se deixaram enganar.
forma de transcendència. “Deleuze logo reconhece que Reagiram a esse retrato de um pseudo-Deleuze por trás
nos encontrávamos ali no cerne de nossa controvèrsia’36. do qual se reconhece sem margem de erro um Badiou-
Em sua resposta, Deleuze insiste sobre a realidade do Badiou. A réplica mais áspera veio de Arnaud Villani,
virtual. A partir dos argumentos trocados nessa grande conhecedor da obra de
correspondència, Badiou procede a urna inversáo Deleuze, que contesta o pròprio procedimento de
espantosa. Apoiando-se no fato de Deleuze afirmar que Badiou, que consiste em pretender discutir teses de um
a indizibilidade dos lances de dados permanece ligada a outro filòsofo sem 40precisar levar em conta o que eie
um único e mesmo langador, Badiou opoe sua efetivamente pensou .
concepgáo da irredutibilidade de cada um dos lances de Segundo Villani, Badiou pressupòe em Deleuze urna
dados, toda vez diferentes no plano ontològico. Badiou “desonestidade inata”41, na medida em que teria
tira dai a ligáo de que ele pròprio se encontra no campo cultivado conscientemente a am- biguidade para poder
da defesa do múltiplo, do acontecimiento como ruptura, manipular meìhor e para nao desencantar seus
enquanto que Deleuze se encontrarla do lado do Uno, do discípulos, Em um dos- siè da revista Futur Antérìeur,
continuo, do eterno retorno do mesmo: “Para Deleuze, o Villani contesta violentamente a imagem de um Deleuze
acaso é o jogo do Todo, sempre re-jogado tal e qual. filòsofo fascinado pela morte. Badiou concede um
Para mim, há rnultipiicídlde (e raridade) dos acasos”37. Deleuze partidàrio do Uno contra o mùltiplo, urna forma
A leitura que Badiou propoe da Dobra confirma isso de “filosofia de urna perna so’, nos diz Villani, enquanto
nessa hipótese que leva a considerar Deleuze um que, de sua parte, Badiou, como bom discípulo de Mao,
passadista que poe em jogo as dobras e os desdobres da continua a cami- nhar sobre as duas pernas. No mesmo
tradigáo, do já-lá em : urna memòria que se oferece dossiè, o deleuziano portugués José42 Gil reage ao que
como forma de : subjetivagáo, enquanto que ele, Badiou, qualìfica corno um “livro maldoso” , perceben- do bem
seria o único dos dois a ser verdadeiramente recep- : tivo a lógica da demonstrando implacável que vem lembrar
aos comegos absolutos, aos verdadeiros : ao leitor que là onde Deleuze fracassou, Badiou teve
acontecimentos. A sensibilidade extrema de Deleuze a éxito, e que só resta, portanto, deixar de lado as obras de
todas as formas de criatividade radical em todos os Deleuze para 1er melhor as de Badiou. A contrario, Gil
dominios constituí, segundo : Badiou, campos de pòe em evidència o movimento endógeno do
experimentagao que atestara os desdobres do Ser. pensamento de Deleuze, suas inflexoes como aquela,
Deleuze se aproximarla de Badiou em um pensamento decisiva, segundo suas próprias pala- vras, quando ele
metafisico do Ser e de seu fundamento ontològico, mas constata o quase fracasso do projeto ontològico. É nesse
teria permanecido á margem, mostrando-se incapaz de sentido que o encontró com Guattari é capital: a partir
preconizar um pensamento radicai: em sua novidade. desse momento, ele passa a trabalhar nao mais nos
Posando de digno herdeiro da questao da Verdade, conceitos, deixando que estes últimos se fa- pam “irrigar
Badiou faz de Deleuze o defensor de um tempo imóvel. e ultrapassar pelo movimento que Ibes dá origem e que
O leitor um pouco acostumado a ler Deleuze fìcarà vem de outro4 5lugar, e ao qual eles imprimem direpòes e
estupe- fato mais urna vez com o embuste prati cado por velocidades” ' .
Badiou quando, recusando radicalmente a singularidade No mesmo espirito que Badiou, o filòsofo Guy
de Deleuze e sua relagào privilegiada com Nietzsche, o Lardreau publica em 1999 um opúsculo com um título
apresenta como o chantre do dever de memòria, o sugestivo, O Exercício Diferido da Filosofìa', cujo
objetivo é demonstrar como Deleuze nào realizou suas teses de 0 Anti-Édipo vendo ali urna tentativa inútil de
promessas, que en- contrariam a realizan ño em Badiou. salvar o marxismo assiro. como a psicanàlise. A critica
Lardreau304concebe explícitamente sua intervenpáo como edipiana da psicanálise nao faria senáo exaltar as formas
um complemento do livro de Badiou: “Deleuze, o
François Dosse
mais extremas da axiomática do desejo. Quanto à defesa
clamor do Ser. É o livro que permite apreen- der de viés da “produtividade” e das “máquinas de sej antes”, eia
a metafísica de Deleuze, pois ele a apre ende de retrocedería2 aos “axiomas depurados do marxismo e da
frente"45. É evidente que entre Lardreau e Deleuze psicanàlisi . Para Baudrillard, ao contràrio, nào hà
persiste o contencioso da denùncia por Deleuze dos lògica no simulacro a nao ser circulatoria, a produqào e
“novos filósofos” dos quais Lardreau faz parte, e o o poder sáo apenas engodo: “Escapa a Foucault que o
antigo enga- jamento maoista de Lardreau. Contudo, poder está rebentando”53.
este último pertence a urna gerapáo marcada peías
publicapoes de Deleuze, a ponto de afirmar, fazendo
pastiche de Engels, que “na historia da46 filosofìa, fomos Os novos filósofos: "um trabalho de
todos momentaneamente deleuzianos" . porco"
Lardreau denuncia em Deleuze um tático entri sta Ò ano de 1977 é também, e sobretudo, o momento
que, tal como um car rapato, vem se alojar sob a pele do grande confronto com os “novos filósofos”. Estes
dos corpos filosóficos para perverté-los do interior e se últimos utílizaráo macidamente a mídia para representar
nutrir de seu sangue - “A política de Deleuze foi o diante do grande público urna pepa meio trágica, meio
‘entrismo’” -- e oferece como prova disso os diversos
47
còmica que equivale a se libertar de seu engajamento
atos de obediencia de Deleuze aos seus primeiros maoista da Esquerda Proletària, A escatologìa
mestres, que foram Hyppolite, Alquié, Cangui- Ihem e, revolucionária agoniza, e é o momento em que toda
através deles, à instituipào académica, Deleuze seria por urna gerapáo, em um mesmo elá, re- jeita seu passado
tanto um “falsàrio”, mas Lardreau explica que um “sessentoìtista" e passa ao confessional para aliviar seus
deleuziano esclarecido nao pode se chocar com isso, pecados: “Essas crianqas mimadas, esses garó toes
pois seu líder mesmo teria feito o elogio do falso. retardados queriam a revolupao de imediato, nao! Eia
Deleuze seria plenamente consciente dessas submissoes náo veio, 54e entao eles batem o pé. [...] Pobres gati- nhos
sucessivas e, para melhor impò-ìas a fórceps como a perdidos” , condoi-se o jornalista Pierre Viansson-
nova doxa a adotar, praticaria, ñas pa- lavras de Ponté. Esses adoradores de Mao, André Glucksmann,
Lardreau, um verdadeiro terrorismo intelectual fundado Christian Jambet, Guy Lardre- au, Bernard-Henri Lévy
na intimidapáo. Se fosse possível reconhecer nele urna e muitos outros, líderes da adesáo mística do Grande
fìdelìdade, seria reduzida ao seu18 bergsonianismo: Timoneiro, desco- brem extasiados o charme discreto do
“Deleuze é o Bergson mal escrito“' . Só o nome de liberalismo e o horror do totalitarismo, conceito que
Bergson já seria suficiente para desqualificar seu pretendem inventar, esquecendo de passagem a
homem e remeté-lo as esferas de um velho espirítualis- contribuipáo decisiva de urna Hannah Arendt.
mo e da defesa da ordena estabelecida: “Ele só se Em 1977, Bernard-Henri Lévy publica urna obra
interessou pelas doutrinas que se prendem á ordem das que se torna de imediato um best-seller, tamanha é sua
coisas” Portanto, o cenário está montado em vantagem
49
correspondencia com o espirito do tempo, A Barbàrie
do materialismo dialé- tico de Badiou contra o de Rosto Humano. Ali ele denuncia o Maio de 68, que
espiritualismo do falso moderno Deleuze. se tornou a imagem do Mal ocultando o Mestre. Ele ve
Em 1977, Jean Baudrillard publica Esquecer no movimento de Maio de 68 o crepúsculo desbotado e
Foucault, um ataque que tem como alvo o autor banal de nosso século XX: “Vivemos o ñm da historia35
deAsPalavras e as50 Coisas, mas também o traba- ìho de porque vivemos na órbita do capitalismo continuado" .
Deleuze-Guattari . Baudrillard denuncia esses Nesse panfleto, Bernard-Henri Lévy ataca de forma
pensadores do desejo como defensores da ordem virulenta, entre outros, Deleuze e Guattari, considerados
estabelecida sedentos de poder. Eles se- riam mais urna vez como expressóes de um fascismo
prisioneiros como Narciso da fascinapáo exercida por ordinàrio, “figuras da barbàrie”. Assimilando
sua pròpria imagem, e Foucault, por sua trilogia saber- abusivamente sua filosofìa a urna ideologia do desejo,
poder-prazer, é que teria assim “contribuido para eie denuncia ali urna nova maneira de ser bárbaro: “Eles
estabelecer um poder que seja da ordem, da mesma sâo bem conhecidos, es- ' ses cavaleiros da aiegre
ordem de fun- cionamento que o desejo, assim corno figura, apóstolos do desvio e chantres do mùltiplo,
Deleuze terà estabelecido um desejo que seja da ordem terrivelmente antimarxistas e prazenteiramente
dos futuros poderes. Essa colusào é perfeita demais para iconoclastas... Eles tèm seus timoneiros, esses marujos
nào ser suspeìta”51. Baudrillard ataca frontalmente as
da moderna nave dos loucos, Sâo Gilles e Sâo Félix, pede para encontrá-lo e convida para um jantar os dois
pastores da grande familia e autores de 0 Anti-Édipo’30. autores do livro a ser lançado: “Passamos entáo uma
Fazer do fascismo urna ques- tao de libido na superficie noite na casa de Deleuze, fascinados, e Deleuze se
do corpo social ao sabor das flutuaçôes de relaçôes de transformouGilles
em Deleuze
grande feiticei- ro em relaçâo a essa
& Félix Guattari 305

força faz parte dessa “barbàrie de rosto humano” estig- historia dos novos filósofos”61. François Aubral e Xavier
matizada por Bernard-Henri Lévy. O veredicto é Delcourt começam por manifestar sua surpresa diante
inapelável: “A ideologia do desejo é urna figura de do slléncio de personalidades como Deleuze e Châtelet.
barbàrie no sentido muito rigoroso em que o defmi,0/. Eles dizem a Deleuze que bastariam algumas palavras
Esse libelo é trazido por um belo jovem de camisa de sua parte, um pequeño artigo, para reduzí-los a nada:
branca desabotoada. Aquele que se:: tornou rapidamente1 ‘Ah! Sim, ele nos diz, mas vocé compreende... Teriam
urna marca, "BHL”, é a coqueluche de Françoise Verny dito que esse velho está com inveja dos jovens, E eu nâo
e faz a alegría delà à altura das tiragens de suas obras. quero falar na mídia. Vocé sabe que eu nâo sou disso,
Queri- dinho do editor Grasset, é ovacionado por um nâo é meu estilo”62.
público leitor imponente e ávido de autoflage- laçâo Deleuze prossegue se perguntando o que poderi a
pelos erros passados. O resto é questao de marketing e fazer, corno poderi a intervir: “A gente está entâo em
de rede, que permite passar sem transiçâo dos palcos da uma situaçâo de samizdat.* Somos minoritários. Preciso
televísáo aos dos- siés de imprensa e vice-versa. explicar a voeês quem sâo esses tipos. Esses tipos estâo
Para Deleuze e Guattari, essa agitaçâo é mais coisa sempre do lado do poder, aconteça o que acontecer”63.
de circo do que especulaçâo filosófica. Portanto, presta- Ao longo da noite, Deleuze considera várias hipóteses
se mais a sorrir. Entre- tanto, quando Michel Foucault com seus convidados. Pensa principalmente em um
se envolve nis- so, fazendo-se advogado dos “novos pequeño livro que seria escrito por ele mesmo e
filósofos”, nâo é mais possível manter o silencio. É de prefaciado por Aubral e Delcourt, mas essa proposta
fato Foucault quem faz a apologia da obra de Glu- parece hilária. Ao final do encontró, Deleuze deseja
cksmann, Os Meslres Pensadores, em Le Nouvel muita cora- gem aos seus convidados e os previne do
Observateur^. Ele saúda ali um dos “grandes livros de que os espera: “Foi o que aconteceu, pois eu nâo co-
filosofía”. Segundo ele, Glucksmann “faz surgir no nhecia o tribuno Glucksmann, mas quando no estúdio de
cerne do mais elevado discurso filosófico esses televisao abordei um tema intelectual, ele joga na sua
desertores, essas vítimas, esses irredutíveis, esses cara os campos611de concen- traçâo, os poloneses... e vocé
dissidentes sempre emperti- gados - em suma, essas está acabado” .
cabeças ensanguenta- das e outras formas brancas que Deleuze se convence de que o melhor é recorrer a
Hegel queria apagar da noite do mundo”50, Com a Jérôme Lindon da editora Minuit Pensa, entáo, em
bênçao do verdadeiro filósofo que é Foucault e que escrever algumas folhas em forma de plaqueta, e como
Deleuze tem em alta estima, o caso se torna sèrio e nâo se trata de ganhar dinheiro com isso, pede a Lindon
requer urna resposta imediata. que distribua gratuitamente esse fascículo em todas as
Sem nenhuma combinaçâo com Deleuze e Guattari, iivrarias, recomendando-lhes que o coloquem à
dois jovens filósofos, François Au- bral e Xavier disposiçâo dos clientes perto do caixa. Dito e feito.
Delcourt, se apressam em lançar uma pequeña antologia Jérôme Lindon concorda e tudo deve ser mantido em
crítica denunciando a “nova filosofia’60. A assessora de segredo. Contudo, algumas indiscriçôes chegam ao Le
imprensa da editora Gallimard, Paule Neuvéglise, busca Monde, que inmediatamente publica o texto em sua
uma ocasiao de promover Aubral antes de uma apariçâo página “Ideias” de 19-21 de junho de 1977. Nesse
temida no programa de Bernard Pivot, Apostrophes. Eia interim, a plaqueta é disputada ñas Iivrarias.
consegue que ele seja um dos debatedores escolhidos Datado de 5 de junho de 1977, o texto de Deleuze é
para interpelar Philippe Sollers no programa L’Homrne apresentado em forma de entrevista. A uma situaçâo
en Question. O que Aubral executa de man eira bem excepcional, uma reaçâo excepcional, pois Deleuze
direta: “Philippe Sollers, o senhor foi maoista, papista, viola seu principio de jamais perder tempo polemizando
feminista, antifeminista. 0 senhor foi quase tudo, 0 que para nâo parasitar sua força de afirmaçâo. Na ocasiâo,
o senhor é de falo?”. eie se mostra mordaz, consciente do perigo
Deleuze fora informado por seu amigo François
Châtelet de que seria publicado um opúsculo polémico N. de R. T.: A Samizdat era uma atividade-chave da dis- sidencia
41

sobre os “noves filósofos” e fica feliz ao saber do tom russa para publicaçâo e distribuiçâo de textos secretos.
pouco respeitoso de François Aubral na televisao. Ele que esses filósofos de araque impoem ao pròprio
1 N, de T.: Editora que se notabilizou como grande deseo-, bridora de pensamento. Diante da pergunta: “O que voce acha dos
talentos. Foi considerada durante décadas a: nimba da edi^áo francesa. ‘novos filósofos’?”, Deleuze responde secamente:
“Nada. Creio que seu pensamento é nulo. Vejo duas Deleuze convida a um hino à vida em face dos
razòes possiveis para essa nulidade. Primeìro, eles perigos mortais que ameaçam varrer sáculos de esforço
procedem por grandes conceitos, tao grandes quanto de pensamento. Enquanto todo projeto de Deleuze e
den- tes306ocos, A lei, O poder, 0 mestre, O mundo, A
François Dosse
Guattari pretende deixar que o ar circule, os novos
rebeìiào, A fé, etc. Com isso eles podem fazer misturas filósofos “reconsti tuiram um espaço sufocante,
grotescas, dualismos sumarios, a lei e o rebelde, o asfixiante, por onde passa pouco ar. Ê a negaçao de toda
poder e o anjo. Ao mesmo tempo, quanto mais fraco é o politica e de toda experimentaçâo. Em suma, o que
conteúdo do pensamento, mais o pensador ganha critico 69neles è o fato de fazerem um trabalho de
importancia, mais o sujeito de enunciagño se dá porco” .
importáncia em relagao aos enunciados vazios” 65.
Deleuze explica que o que mudou na situagáo e Notas
permitiu sua intervenqào foi a publicaqào do “belo livro
tònico” de Aubral e Delcourt 1. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, Minuit,
A gravidade desse caso, segundo Deleuze, nao ser Paris, 1976.
sèrio e que esse falso pensamento deve sua sedupào à 2. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 7-8
3. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et Vari, op, ciL, p.
ilusào de que se pode dispensar todo o traballio de 120.
complexifìcagào, de ajuste de conceitos fìnos para 4. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, op. cit.,
evitar esse tipo de dilemas dualistas e simplifìcadores: p. 15.
“Eles des- troem o trabalho”, comenta, em particular o 5. ïbid.,p. 17.
que empreendeu com Guattari. Entao, é hora de por as
coisas de novo no lugar, e Deleuze identifica no 6. ïbid., p. 18.
fenòmeno “novos filósofos” um casting particular, urna 7. Gilles DELEUZE, “Réponses à une série de questions”,
minuciosa distribuiqào dos papéis66. A novidade do em André VILLANI, La Guêpe et l’Orchidée, op. cit., p.
fenòmeno está na introduco de regras do marketing no 131.
campo da filosofia, e é preciso pensar nisso, como diz 8. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, R, p. 24. :
Deleuze. 9. Ïbid., p. 27.
Na origem do triunfo dos “novos filósofos”, 10. ïbid., p. 63.
Deleuze encontra duas razòes principáis. De um lado, a 11. Ver Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l’art, op.
inversào da reìaqao entre o jornalìs- mo e a criagáo cit., p. 181-183.
intelectual. É o ato j ornatisti co que faz o 12. Alain BADIOU, “Le flux et le parti”, Cahier Yé- nan, n.
acontecimento, e isto conduz, quando nao se dà mais 4, Maspero, 1977, p. 26.
tempo para o pensamento se desenvolver, a um 13. Ibid., p. 38.
“pensamento de minuto”. Em segundo lugar, o que 14. Ibid., p. 40-41.
anima esses eacamoteadores é o odio de 1968: “Era a 15. Georges PEYROL, “Le fascisme de la pomme de terre”,
ibid., p. 43.
quem mais insultava Maio de6768... Um rancor de 1968, 16. Ibid., p. 44,
eles só tem isso para vender . Aproxima-se o aniver- 17. Ibid., p. 50.
sário, o dos dez anos de Maio, e toda urna parte dessa 18. Ibid., p. 51-52.
gerapao.se deleita na negaqao de suas esperanzas 19. Alain BAD.IOU, Deleuze. La clameur de l’Être, Hachette,
frustradas em nome do fracasso das rupturas Paris, 1997, p. 8.
revolucionárias. Là ainda se encontra um sentimento 20. Palavras reportadas por Alain Roger, entrevis- ta com o
profundo express ado por Deleuze em sua rejeiçâo autor.
desses “novos filósofos”, seu companheirismo com 21. Palavras reportadas por Philippe Mengue, en- trevista com o
urna cultura de morte: “O que me aborrece é multo autor.
simples: os novos filósofos fazem urna martiroìogia, o 22. Ibid.
Gulag e as viti mas da historia. Eles vivem de 23. Alain BADIOU Deleuze. La clameur de l’Être, op.cit.
cadáveres... Foi preciso que as vitimas pensassero e 24. ibid., p. 12.
vivessem de urna maneira bem diferente para dar 25. Ibid., p. 19-20.
matèria àqueìes que choram em seu nome e dâo liçôes 26. Gilles DELEUZE, DR, p. 389.
em seu nome. Aqueles que arrìscam sua vida pensam 27. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l'Être, op.cit., p.
geralmente em termos de vida, e nao de morte, de 22.
amargura e de vaidade morbida; os resistentes sao antes 28. Gilles DELEUZE, LS, p. 309.
grandes vivent e s”68. 29. Ibid.
30. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l’Être, op.cit., p. 51. Ibid., p. 24.
24. 52. Ibid., p. 37.
31. Gilles DELEUZE, PP, p. 196. 53. Ibid., p.Gilles
54. Deleuze & Félix Guattari 307
32. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l’Être, op.cit., p. 54. Pierre VIANSSON-PONTÉ, prefacio a j. PAU- GAM,
24. Génération perdue, Laffont, Paris, 1977, p, 15-16.
33. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa- ris-VIII, 27 de 55. Bernard-Henri LÉVY, La Barbarie à visage humain,
maio de 1980. Grasset, Paris, 1977.
34. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l’Être, op.cit, p. 26. 56. Ibid., p. 20.
35. Ibid., p. 69, 57. Ibid., p. 140.
36. Ibid., p. 70. 58. Michel FOUCAULT, “La grande colère des faits”, Le
37. Ibid., p. 115. Nouvel Observateur, 9-15 de maio de 1977, p. 84-86.
38. Ibid., p. 98. 59. Ibid.
39. Alain BADIOU Le Siècle, Seuil, Paris, 2005. 60. François AUBRAL, Xavier DELCOURT, Contre la
40. “Sem isso, nâo é ‘golpe duplo, Badiou sobre Deleuze, mas nouvelle philosophie, Gallimard, Paris, 1977.
desdobramento, Badiou sobre Badiou” (Arnaud VILLANI, 61. François Aubral, entrevista com o autor.
“La métaphysique de Deleuze", Futur antérieur, n. 43, ab rii 62. Gilles Deleuze, palavras reportadas por François Aubral,
de 1998, p. 56). entrevista com o autor.
41. Ibid., p. 56. 63. Ibid.
42. José GIL, "Quatre méchantes notes sur un livre méchant", 64. François Aubral, entrevista com o autor.
Futur antérieur, n, 43, p. 71-84, 65. Gilles DELEUZE, "A propos des nouveaux philosophes et
43. Ibid., p, 77, d’un problème plus général”, Supplément à la revue Minuit,
44. Guy LARDREAU, L’Exercice différé de la philosophie. À n. 24, maio de 1977; reproduzido em RF, p. 127.
l’occasion deDeleuze, Verdier, Paris, 1999. 66. “Há algo de Dr. Mabuse em Clavel, um Dr. Mabuse
45. Ibid., p. 60, nota 7, evangélico, e Jambet e Lardreau sâo Spori e Pesch, os dois
46. Ibid., p. 15. ajudantes de Mabuse (eles querem "pegar Nietzsche pelo
47. Ibid., p, 44. colari- nho”). Benolst é o corcel, é Nestor. Lévy é ora o
48. Ibid., p. 62. empresario, ora a script-girl, ora o alegre animador, ora o
49. Ibid, p. 63. disc~jockey.„” {Ibid. e RF, p. 129).
50. Jean BAUDRILLARD, Oublier Foucault, Galilée, Paris, 67. Ibid., p, 131.
1977, 68. Ibid., p. 132.
69. Ibid.,p. 133.
SOBREDOBRAS: BIOGRAFIAS PARALELAS
2*4
I

Guattari entre açâo cultural e ecologia

Um certo mes de maio de 1981, a mapáo a que é! submetido: “Enfim, Jack


esperan- ça hà muito tempo relie ad a, a Lang veio...” . Guattari expressa seu
vontade de “mudar de vida” pela política encantamento com um estilo que rompe
parece en firn encarnarse em François com as convenpoes por seu sentido da
Mitterrand, que representa a esquerda escuta, por seus acessos de entusiasmo,
desde 1965 e já figura como o único por seu aspecto táo pouco protocolar:
capaz de fazer frente ao general de “Contra quaíquer verossimilhanpa, acu-
Gaulle. O eia de Maio de 68, que se sa-se Jack bang de trabalhar por urna
acreditava ter sido interrompido pela estati- zapáo da cultura, do tipo daquela
vitória gaullista nas elelçôes legislativas que grassou nos países do Leste. Curioso
de 30 de junho de 1968, encontra Jdanov, na verda- de, que encoraja as
finalmente um prolongamento político. É iniciativas mais 2diversas, as vezes as mais
preciso dizer que desde o pós-guerra a surpreendentes” . Jack Lang tomou
esquerda nâo frequentava mais as decisoes origináis, como a de instituir a
alamedas do poder. Essa ruptura política Festa da Música, que de imediato
que pôe um termo a urna ocupaçâo do alcanpou um sucesso espetacular. Além
poder pela direita sem partilha, sem disso, um dos maiores combates de
alternância, provoca imedìatamente urna Guattari, a liberapáo das ondas, saiu
grande onda de entusiasmo no país, vitorioso grapas a maio de 1981.
Deleuze e Guattari também estào
enleva- dos por essa atmosfera de euforia
politica. Deleuze vai à cerimònia de posse As alamedas do poder
do novo presidente Mitterrand no Guattari representa junto a Jack Lang
Panthéon, em 21 de maio de 1981, e o papel de urna caixa de ideias:
participa do júbilo geral. Quanto a “Costaríamos igualmente de ihe falar de
Guattari, felicita-se com a nomeaçâo do um tema particularmente caro a nós: a
novo ministro da Cultura; Jack bang já criagáo de urna quarta rede de televisáo
mostrou sua proximidade com os artistas cultural, consagrada á cria- pao, á
e seu desejo de realizar profundas experimentapao de pesquisa”, escre- ve-3
transformaçôes nas práti- cas culturáis. lhe Guattari já no més de agosto de 198I .
Guattari inclusive publica, em 1983, um Em fevereiro de 1982, Guattari sugere a
artigo quase apologético para defender Jack
Jack bang contra as campanhas de difa-
314 François Dosse

Lang a criaçâo de uma fundaçao para iniciativas Assuntos Sociais e da Solidariedade Nacional,
locáis, inovaçoes instítucionais, pesquisa ativa em Georgina Dufoix, Em 1991, propoe ao primeiro-
ciencias sociais, animaçâo e pesquisa cultural. 0 ministro Michel Rocard a nomeagao de Guattari
ministro a encaminha ao seu assistente Dupavillon para o Conselho Económico e Social.
com o seguinte comentàrio: “Seria preciso ajudá- No final dos anos de 1980, Guattari sugere a
los... é muito importante”. A ideia de Guattari é Lang uma exposigáo universal para 1989, ano ;
que a descentralizaçâo em curso corre o risco de do bicentenàrio da Revolugao Francesa, sobre o
virar letra morta se for reduzida a urna simples tema “Encontró do Quinto Mundo”, que seria um
transferencia de poder. Dai a ideia de criar um grande encontró internacional de representantes
terceiro setor “que se interponha entre o mercado1 de minorías tribais e nómades vindas tanto do
capitalista e os sistemas de controle estabais”" . Alasca quanto da Amazonia, tanto da China
Jack Lang apoia o projeto e consegue um encontró quanto do Saara, assim como ciganos de diversos
de uma importante delegaçâo comandada por países. O objetivo desse encontró seria nao
Guattari com o “conselheìro em chefe” de apenas fazer justiga a povos oprimidos,
François Mitterrand, Jacques Aitali, no Élysée. A perseguidos, mas também reconhecer sua
sigla provisoria adotada por essa institui- çâo é contribuigáo à cultura mundial. Apesar do co-
FIRC, de Fondation Innovation Recherche mentário muito positivo de Jack Lang - “Èsse
Création. Guattari multiplica as dili gè nei as nos projeto é apaixonante. Nosso amigo Guattari tem
círculos governamentais para aprovar esse projeto muitas ideias”' - o clima político de 1989 se
e consegue entrevistas com Eric Arnoult, presta pouco a esse gènero de manifestagòes, e o
Ségolène Royal, sem que isso leve ver- projeto nao vai adiante. Entretanto, por meió de
daderamente a algo de concreto. Eie chega a se seu amigo Jean-Pierre Faye, muito ligado aos
encontrar com o secretàrio-geraì da Presi- dència dirigentes socialistas, Guattari dìspòe de uma
da República, jean-Louis Bianco, para que a porta de acesso à alta cúpula do poder do Estado.
iniciativa avance, sugerindo-lhe a ideia de ligar Assim, é convidado à mesa do presidente
essa fundaçâo á um ministerio sólido. Mitterrand: “Félix tomou a palavra para defender
Enquanto Guattari se ocupa ativamente do Lang, pois Lang nada mais era que um ministro
centenàrio de Kafka e ao mesmo tempo presta delegado, relegado a um subministério. De forma
alguns serviços discretos, como a redaçâo do muito corajosa, partindo para o ataque, meu
discurso de Mitterrand sobre a cultura na Sor- pequeño Félix toma a palavra e diz ao presidente:
bonne, Jack Lang o distingue com o título de ‘0 senhor deveria conceder à cultura a plenitude
comendador das Artes e das Letras em Janeiro de de seus direitos”’8.
1983: “Pouco sensível ás marcas de mérito e Guattari também se engajou, estimulado por
menos ainda apto a julgá-las, eu a recebo de sua Faye, na implantagao de um colegio internacional
parte como uma marca de ami zade”5. de filosofia. A ideia velo do impasse em que se
Ao longo dos anos de 1980, a cumplicidade encontra o departamento de filosofìa da
entre Lang e Guattari os torna mais próximos. universidade de Paris-VlII, que em 1980;: se
Lang inclusive se desìoca a La Borde, convidado mudou de Vincennes para Saint-Denis e . cujos
por Guattari, que o ajuda a encontrar uma casa na diplomas9 nao sao reconhecidos no plano
regiao de Blois; “Obrígado ainda por sua acolhida nacional : “Se voce encontrar Aitali, fale jà al- ;
em Loir-et-Cher. Foi magnífico”6. Em 1984, em guma coisa do projeto de um eventual ‘Colegio
plena preparaçao da exposiçâo de Kafka, Guattari Filosófico’, cuja alma vincennìana seriam Gilles
é convidado para almoçar com Lang no Deleuze e Félix Guattari..., onde nao seria
ministerio. Antes desse almo- ço, Guattari escreve impossívei convidar personalidades estran-
a Lang a firn de fazer um balanço sobre <Ss geiras, ou nâo universitários, para fazer semi-
projetos em andamento, a maioria em suspenso. É nários de curta ou longa duraçâo”10. Quando
um verdadeiro fogo de artificio: Lang possibilità a Jean-Pierre Chevènement é nomeado ministro da
Guattari entradas em alguns ministerios. Em 1986, Educaçâo Nacional Faye reapresenta seu projeto
consegue um encontró dele com a ministra de e recebe urna acolhida favorável do ministro, que
Gilles Deleuze & Félix Guattari 315

o encarrega de organizar um almoço. Esse Fabius, “por um direito de asilo político uno e
almoço reúne Jean-Pierre Chevènement, Jean- indivisivel”, que aparece no Le Monde12.
Pierre Faye, François Châteiet, Jacques Derrida e Em 1983, Max Gallo, entâo porta-voz do
Dominique Lecourt, e deïe resultará a criaçao do governo, queixa-se publicamente do silencio
Colegio internacional de Filosofía, cuja ensurdecedor dos intelectuais de esquerda que nâo
responsabilidade ñcará a cargo de Jacques levantam um dedinho para defender a política
Derrida. Quanto a Faye, é nomeado para a seguida pelos socialistas. Essa crítica enunciada
direçao do ‘Alto Conselho” do colégio, onde terá no mais alto escalao suscita urna ampia tomada de
ao seu lado Guattari e algumas sumidades, como palav.ra sobre o papel dos intelectuais e suas
René Thom, Vladimir Jankélé- vitch, ïlya relaçoes com os decisores. A controversia é
Prigogine e Isabelle Stenghers. Logo se constata particularmente intensa. Jean François Lyotard
que o verdadeiro centro de poder está nas mâos diagnostica 13o aparecimento de um “túmulo de
de Derrida. O conflito é inevitâ- vel tendo em intelectuais” , e Maurice Blanchot deixa de lado
vista que o Alto Conselho, com seu nome sua reserva costumeira para alertar contra14 a ideia
pomposo, nâo dispôe de meios fi- nanceiros e, de um repouso eterno dos intelectuais . JÉ no
portanto, depende totalmente de quem detém as quadro desse ampio debate público que Guattari
chaves do cofre, intervém, irritado com esse questionamento, ao
mesmo tempo para estigmatizar a intervençâo de
Max Gallo, qualificada de “homilía sobre o
Relaçoes tumultuadas enfraqueci- mento cerebral dos intelectuais de
Apesar de toda essa efervescencia, a re- laçâo esquerda”, e para contestar a própria pertinencia
de Guattari com o poder socialista ao longo dos da ideia segundo a qual os intelectuais deveriam
anos 1980 nâo está livre de sombras, crises, se erigir em porta-vozes naturais.
explosôes diversas e rupturas irreversi- veis. Aínda nesse final do ano de 1983, Guattari se
Guattari se reconhece cada vez menos na política preocupa com o ressurgimento do racismo e,
conduzida pelo governo socialista, e as ocasioes também nesse caso, exige urna reaçâo dos res-
de manifestar suas discordâncias se multiplicam, ponsáveis políticos: “Cada um tem o racismo que
o que explica em grande medida por que vários de merece. Nao é natural, após o 10 de maio, que se
seus projetos caem no esquecimento. No outono assista à manutençao do estado de coisas. Assim,
de 1984, a política de acordo dos governos a incapacidade do governo socialista de mudar a
francés e espanhol para extraditar os nacionalistas natureza do tecido social provo- cou1J
bascos do ETA na Espanha provoca a indignaçâo insensivelmente a retomada do racismo” .
de Guattari, que se abre primeiramente com Jack Segundo ele, é apostando em um terceiro setor, o
Lang: "Estou ulcerado com essas extradiçoes e do mundo associativo, que se poderá superar a
expulsées. Aínda nâo consigo acreditar que os so- fraqueza moral e os medos que alimentam a
cialistas franceses tenham chegado a isso! Sei que rejeiçao ao outro. Por ocasiáo do éxito espe-
você nâo tem nenhuma responsabilidade direta tacular da Frente Nacional nas eleiçôes euro-
nesse caso, e é fácil imaginar quai é seu peías de 17 de junho de 1984, Guattari reafirma
sentimento íntimo. Mas as coisas do jeito que suas críticas em face dos socialistas que estâo
estâo, acho que nâo é mais possível manter a perdidos por nâo se engajarem firmemente em
relaçâo pública’ que tlnhamos antes. Creia que urna política de mudanga. Diz que sâo força- dos
lamento sinceramente e conservo toda minha a seguir a via de um “compromisse absurdo com a
amizade por vocé”u, Guattari nao se limita a direita no terreno da segurança, da aus- teridade e
recriminaçôes pessoais e privadas. Assume do conservadorismo. Enquanto eia (a esquerda
publicamente a ofensiva e assina junto com socialista] poderla ter conseguido todos os
Deleuze e Châteiet urna carta aberta enviada a sacrificios necessários, no plano económico, para
François Mitterrand, ao primeiro secretario do PS, fazer face à crise e às requalifìca- çôes
Lionel Jospin, e ao primeiro-ministro, Laurent profissìonais se tivesse contribuido efeti- vamente
para o agenciamento de novas modos coletivos de
316 François Dosse

enunciaçâo, deixou que a esperança se perdesse de 15 mil pessoas em outubro de 1971, havia
de novo, que o corporativismo se reafìrmasse, que langado, no seu impulso, o jornal La Gueulle
as velhas perversôes fascisti- zantes voltassem a Ouverte, em novembro de 1972. Urna segáo
ganhar terreno”16. francesa dos Amigos da Terra se constituí em
No inicio dos anos de 1980, o CINEL se 1971 por iniciativa de Aíain Hervé, movimento
encarrega de algumas açôes que permitem logo dominado por Brice Lalonde, que encarnou
manifestar concretamente sua soìidariedade um herdeiro, o dos “filhos de Maio de 68”1S. Pela
internacional. Lança um apelo à opiniâo pública primeira vez em 1974, por ocasiáo da eleiqáo
internacional para apoiar a causa da Frente presidencial, a voz da ecología se faz ouvír com o
Sandinista na Nicaràgua contra a ditadura de presidente de honra dos Amigos da Terra, Rene
Somoza. A sede do Centro é nada menos que o Dumont, que obtém em seu nome 1,32% dos
domicilio de Guattari, no número 9 da Rue de votos.
Condé. Em 26 de margo de 1985, Guattari par- Em julho de 1977, em Creys-Maíville, urna
ticipa de um congresso internacional sobre "os gigantesca manifestagáo de protesto contra a
direitos coletivos das nacionalidades minorì- tárias construgáo do reato r Super-Fénix reúne 40 mil
na Europa” em Bilbao, na Espanha. Condena o pessoas, apesar de proibida pela autorida- de
desprezo com que se trata essa questâo policial. O caso acaba mal: a polícia ataca, e o
considerada obsoleta no momento em que ul- resultado é um morto e cerca de 50 feridos entre
trapassa o ámbito nacional. Disso resulta que os manifestantes, Tendo demonstrado sua
algumas minorías se tornam os abandonados da capacidade de mobiiizagáo social, os ecologistas
historia, e Guattari cita entre outros “os palestinos, se apresentam na eleigao presidencial de maio de
os armenios, os bascos, os irlandeses, os corsos, os 1981. Brice Lalonde conquista 3,9% dos votos, ou
lituanos, os uigures, os ciganos, os indios, os seja, mais de 1 milháo de elei- tores. Após essas
aborígines da Australia”’7. Guattari vê nessas eleigóes, Lalonde organiza essa sensibilidade á
expressoes particulares urna forma de causa na Confederagao Ecologista, que privilegia
singularidade que se deve preservar no momento a forma associativa e as iniciativas
da uniformizaçâo generalizada, recusando-se a descentralizadas. Em novembro de 1984, no
considerá-las isolados culturáis e lingüísticos. congresso de Clichy, a Confe- deragao Ecologista
e a organizagao Ecología e Sobrevivencia, criada
por Antoine Waechter no leste da Franga, se
A revollic úo ecológica fundem para dar origem aos “Verdes”, que, nesse
Nos anos de 1980, Guattari se engaja prin- embalo, obtém 3,4% dos sufrágios ñas eleigóes
cipalmente nosfmovimentos ecológicos. Antes de europeias do final do ano. Contudo, a organizagao
alcanzar urna primeira conquista eleitoral em é prejudicada internamente por clivagens políticas
1981, o movimento ecologista conseguirá importantes entre a tendéncia de esquerda, repre-
estruturar grandes mobilizagoes nos anos 1970, sentada por Didíer Anger e Yves Cochet, e a ala
sobretudo no terreno da contestagao nuclear. direita, comandada por Jean Briére e Antoine
Fierre Fournier, que organizou a primeira grande Waechter. Nesse clima, Félix Guattari abre pas-
manifestagáo ecologista na Franga, reunindo cerca sagem e adere aos Verdes em 1985. Esse é o ano
do caso Rainbow Warrior, navio do Greenpeace
Gilles Deleuze & Félix Guattari 317

afondado pelos serviços secretos franceses em e para urna ressingularizapáo de individuos e de


Auckland, na Nova Zelándia, em 10 de julho. Jean grupos humanos... O que se deve visar nao é um
Chesneaux, que mais tarde se tornou presidente de acordo programático que apague suas diferenpas,
honra do Greenpeace França, constituí junto com mas um diagrama coletivo que permita articular
outros um pequeño coletivo de protesto, “Nao suas práticas em beneficio de cada uma delas,
afonde meu navio”, e organiza urna manifestaçâo sem que uma se imponha sobre a outra”2’.
de protesto em navio com apoio do prefeito de Encontram-se essen- cialmente nessa tomada de
Conflans-Sainte-Hono- rine, Michel Rocard: posipáo os voca- bulários e os conceitos de
"Havíamos negociado um navio da prefeitura no Guattari.
qual fizemos urna manifestaçâo no Sena, e A eleipao presidencial que se perfila no
imaginávamos ingenuamente que haveria horizonte de 1988 aínda divide os Verdes entre
centenas de navios com handeiroías antinucleares. uma esquerda partidária da candidatura do ex-
Eram apenas cinco, comunista Fierre Juquin e Antoine Wa- echter,
»19 partidário do “nem direita, nem esquerda”. Este
E Guattari estava presente . último propoe sua candidatura e ganha a parada, e
Guattari encontra nos ecologistas um meio assim assume o controle da organizapao e se torna
receptivo ao mesmo tempo ao seu engajamen- to o candidato oficial dos Verdes. Ele obtém 3,89%
em favor de urna transformaçâo profunda da dos sufrágios contra 2,1% de Juquin. O novo
sociedade e à sua crítica da política adotada pela primeiro-ministro, Mi- chel Rocard, nomeia Brice
esquerda no poder. Evidentemente, ele se aîinha Laíonde secretário de Estado, depois ministro do
de imediato com a ala esquerda, alternativa dos Meto Ambiente. Ñas eleipóes europeias de 1989,
“Verdes”. Após o grande movi- : mentó de os ecologistas de todas as tendencias em conjunto
contestaçâo estudantil de 1986 e a saída de um dáo um grande passo: 11% dos sufrágios e 9
pequeño grupo de20militantes de um PSU que nâo eleitos.
para de agonizar , é lançado um apelo por um Em 1989, Guattari se integra a outro grupo
‘Arco-íris” em favor do agru- : pamento de um vinculado á sensibilidade ecológica, aque- íe que
polo alternativo aos partidos da esquerda nasceu do Grupo dos Dez, o “Ciencia e Cultura",
tradicional. A iniciativa é apoiada coordenado, entre outros, por René Passet,
simultáneamente por René Dumont e Daniel : Jacques Robin e Anne-Brigitte Kern, que se
Cohn-Bendit. Guattari assina o documento junto pergunta como conceber outra esquerda. Um
com líderes Verdes, como Didier Anger, Yves primeiro encontró se realiza na casa de Guattari
Cochet e Dominique Voynet, mas tam- bém nao em 1989 sobre a questáo da transfor- mapáo
Verdes, como Alain Lipietz e alguns militantes informática: "Para mim, ele represen- tava a
do PSU. O modelo é o movimento, muito forte na transversalidade, e Ihe digo que a gente val lanpar
época, dos Verdes alemâes, os Grünen, que uma revista que deve se chamar Transversales.
conseguiram criar verdadeiros enclaves Ele se juntou a nós e escreveu no segundo número
associativos no seio da sociedade alema e que sobre ecosofia”22. Guattari passa a fazer parte do
representam uma esperança política. Os grupo de orientapáo da revista: "Ti vemos várias
signatários do apelo por um ‘Arco-íris” querem reunióes muito in- teressantes na casa de Sacha
"reunir as forças de transformaçâo da sociedade Goldman, com Edgar Morin,2 Paul Virilio, Félix
no arco-íris de sua diversidade”. O con- gresso do Guattari, René Passet e eu” ‘\ Guattari incorpora
PSU de dezembro de 1986, que pensa na essa dimen- sáo ecológica em suas múltiplas
possibilidade de autodissoluçâo, consultou intervenpoes, dando énfase ao desequilibrio
pessoas de fora para saber a opiniao delas sobre Norte-Sul e as suas consequéncias catastróficas,
suas propostas. Guattari rédigé com Daniel Cohn- assim como á dimensáo ética do problema: "Ser
Bendit uma resposta às perguntas do PSU em que responsá- vel pela responsabiíidade do outro, para
afirmam que ê preciso ‘‘favorecer o que retomar urna frase de Emmanuel Lévinas, isso nao
chamamos de uma cultura de dissenso, abrindo significa de24 modo nenhum o abandono das ilusoes
para o aprofundamento das posipóes particulares idealistas” .
Em 1990, Brice Lalonde cria um polo de satisfanno que urna parcela crescente da opinino pública
agrupamento que pretende se situar à esquer- da do PS, vè os ecologistas como os únicos a colocar de maneira
Geragào318Ecologia, e que autoriza a dupla fìiìagao. inovadora as questoes essenciais da época. Lamenta
Algumas personalidades
François Dosse
emprestan) seu apoio a essa apenas que as duas componentes dessa corrente, sem
iniciativa, entre as quais Guattari, que, no entanto, faz desmerece-las, tenham se alinhado demais ao modelo de
parte dos Verdes. Na verdade, Guattari se envolve nas partidos clás- sicos: “Parece necessàrio que as
duas organizaqoes concorrentes, insatisfei- to componentes vivas que existem no interior de cada um
igualmente com as pràticas de Waechter e com as de desses movimentos se organizem entre elas e em
Lalonde. Essa dupla fìliapao nao agrada os dirigentes ligando com o movimento associativo”20,
dos Verdes, que enviam urna carta registrada a Guattari Certo dìa, no final dos anos de 1980, Guattari
para forgá-lo a escolher e ameaqá-lo de expulsáo: "Cabe convida para ir à sua casa Paul Virilio, que conheceu no
a voce, portanto, se quiser continuar membro dos comité de apoio à candidatura Coluche. Virilio dirige na
Verdes, se desligar da Geragao Ecologia, Nesse caso época urna colegào da editora Gaìiìée: “Chego à casa
pedimos que nos envie copia de sua carta de dele. A gente discute. Havia urna grande amìzade entre
desligamento até 14 de maio, data de nosso prókimo nós, e eu lhe digo: ‘Voce sabe, eu gostaria muito de
conselho regional... Sem res- posta de sua parte nessa publicar um livro seu em mìnha colegào’. Eie responde:
data de 14 de maio, seremos obrigados a considerá-lo ‘Tudo bem, tem um ali namesa, nin- guém quer’. Eu o
excluido de fato’'^. Guattari reage a essa decisáo vejo e pego. Eie me pergun- ta se jà li. Respondo que
arbitrària com astucia tática. Responde que, tendo rece- nao, mas o pego”31. É Cartografías Esquizoanalíticas,
bido a carta apenas no dia 13, está impossibi- litado de que Virilio publica pela Galilée em 1989 e que é, com
tomar as providéncias necessárias para se colocar à toda certeza, o livro mais inacessível de Guattari, o mais
disposilo para a reuniáo do dia 14 e acrescenta: “Hà sofisticado, o mais lógico. Esse livro reflete na verdade
muito tempo considero que os Verdes se tornaram urna as atividades do seminàrio que coordenou a partir do
organizando partidária sectária, fechada em si mes- ma, final da redagáo de Mil Platos, em 19S032: “Trata-se um
muito mais preocupada com a atividade burocrática pouco dos ar- quivos de Guattari, e como ele publicou
interna do que aberta para a vida social e para 26a pouco, seus arquivos me interessavano Eu tínha cons-
reinvengáo de novas formas de mi litan cía’ . ciencia de que esse livro seria difícil de ler, mas
Entretanto, diz também que é muito crítico a Brice iv ■ «33 v-, -

isso nao me importava multo . Eoi por urna decisào


Lalonde e afirma nao ter nenhuma intengáo de continuar irrefletida, um momento de entusiasmo, que eie decidiu
participando da Geragao Ecología, mas que, “nao tendo publicar esse livro em urna colegao de prestigio.
jamáis aderido formalmente a essa associando, nào Contado, Cartografías Es- quìzoanaliticas nào passará
preciso me desligar dela”27. facilmente e nao encontrará verdaderamente seu
No inicio de 1992, quando se preparano as eleigòes público'5'1.
regionais, Guattari ainda se manifesta no Le Monde para A esse livro jà imponente por seu tamanho, Guattari
dizer o quanto as querelas Waechter/Lalonde sao pretende acrescenfcar um pequeño conjunto sobre a
irrelevantes diante dessa “aspiranào vaga, mas ecologìa, Virilio manifesta sua discordancia e propoe
significativa, de urna abertura paralsutra coisa... Cabe ao publicá-lo separadamente35: “Tenho o instinto das coisas
movimento plural de ecologia politica dar urna que comegam, e o frescor era um elemento determinante
expressao a essa aspirando”28. Ao longo do ano de 1992, em Félix. Esse texto sobre a ecologia tinha o mesmo
Guattari se empenha em reaproximar os militantes dos frescor que Rizoma'*. O diagnóstico se revelou cor reto:
Verdes, da Gerando Ecologia e de outras associagóes As Tres Ecologías, publicado em 1989, é um sucesso
ecologistas. Após o éxito dos ecologistas nas eleigòes de editorial. Guattari defme ali o que entende por ecosofìa
22 de margo de 1992, eie consegue que se adote um corno articulagao necessària entre a dimen- sáo política
texto comum a alguns desses militantes de organi- e ética de tres registros, que sao a questáo do meio
zagòes rivais. Deplorando o estado de divisao e as ambiente, a das relagòes so- ciais e a dimensáo
polémicas estéreis, conclama à preparando dos estados subjetiva. Encontra-se nele a preocupaqao constante de
gerais da ecologia, que teriam urna fungào unifìcadora e levar em conta os modos de subjetivagáo, articulando-os
mobilizadora. a partir de seus pontos de ancoragem. Assim, eie cons-
O último dos inúmeros combates trava- dos por tata que os progressos tecnológicos permitem liberar
Guattari foi no front da ecologia. Em suas notas tempo para o homem, mas se coloca a questáo dos usos
manuscritas encontra-se um texto datado de um mès dessa lìberagao. Enfatiza também a escala de análise,
antes de seu falecìmento1 intitulado “Por urna nova que só pode ser planetària em tempos de mercado
democracia ecológica”"' , em que observa com
mundial. Um novo paradigma ético-estético terìa como homens”41. Trata-se, da parte de Lue Ferry, de urna
ambìpao pensar os tres registros, que seriam urna incompreensao total quanto ao sentido do combate
ecologia mental, urna ecologia social e urna ecologìa ecologista Gilles
de Guattari, que nào cansa de insistir, em
ambiental. Seu método, como desde o primeiro dia, todas as oportunidades, sobre o caráter náo passadista de
Deleuze & Félix Guattari 319

continua transversal e procura evidenciar em cada caso suas proposigoes.


os vetores potenciáis de subjetivagáo para permitir o
florescimento das diversas formas de singu- laridade.
Grapas ás revolugóes informáticas, à eclosáo das Caosmose
biotecnologías, “novas modalidades de subjetivapao A última obra de Guattari é Caosmose, publicada
estáo prestes a ver a luz do dia"37. Guattari evita tanto o em 199242. Félix retoma com esse título urna nopáo que
discurso catas- trofìsta quanto o da lamentapáo. Ao tirou de seu autor literario preferido, Joyce, que havia
contràrio, ele se felicita com as obras por vir e com o dia inventado o termo “caosmo”, já utilizado por Deleuze e
em que haverá cada vez menos necessidade de apelar à ele. Com esse livro terminal, seu canto do cisne,
inteligència e à iniciativa humana. Guattari assi na sem dúvida seu texto mais legível, o
É isso que motiva seu fascínio pelo Japáo que soube mais bem acabado que havia escrito sozinho. É urna
“enxertar industrias de ponta em urna subjetividade forma de testamento intelectual que lega no mesmo ano
coletiva e ao mesmo tempo preservar ligapòes com um de seu falecimento. A extrema legibilídade desse livro
passado às vezes multo longínquo (remontando ao tem a ver com um momento de cristalizapáo e com toda
xinto-budismo para o japáo)”',s. É essa tensáo que deve a aquisigáo teórica e pràtica que ele consegue sintetizar,
ser pensada pela nova disciplina que Guattari tanto mas se deve também muito ao trabalho de urna amiga, a
almeja e que chama de “ecosoñá’. psicanalista Danielle Sìvadon: ‘A gente o reescreveu
Essas teses expostas em As Tres Ecologías aparecem duas vezes. Ele tinha enviado à Galilée um manuscrito
em 1989 em um contexto em que o meio ecologista está completamente ilegivel, sem pontuapao, sem sujeito.
dividido entre, de um lado, os partidários da defesa do Foi preciso retrabalhar em um primeiro e depois em um
ambiente natural, com sua tentapáo conservadora que se segundo jogo de provas e refazer a totalidadé"13.
destaca do progresso técnico, e, de outro lado, os que A demonstrapào a que se dedica Guattari consiste
dáo um conteúdo político ao seu enga- jamento: “O que em defmir um novo paradigma estético ao fìnal de um
me interessou foi que era urna das primeiras vezes que processo que revisita a subjetivìdade, passando pelo
Félix descrevia as tres ecologías, ou seja, maqumismo. Ele reafirma o caráter plural, polifònico de
verdaderamente o papel do ser humano em urna sua conceppao do sujeito e a importancia da ques- tao
natureza com39 a qual é preciso tentar realizar urna da subjetivìdade com que se depara desde sempre como
coevolupáo” . O editor e amigo de Guattari, Paul pràtico psicoterapeuta. Segundo ele, o método
Virilio, também fìcou multo entusiasmado com esse transversalista é mais eficaz para dar conta do coquetei
livro: “O que importa é o fato de que a ecologia é muito frequentemente explosivo de subjetividades
mais que a ecologia. A ecologia é a cién- cia do futuro, contemporáneas às voi- tas com urna tensáo entre
Nao se poderá passar sem eia. Eis o que será a ecologia: modernidade tecnològica e apego arcaizante. Guattari
a coeréncia buscada entre a economía no sentido recorda a critica formulada contra o estruturalismo e
complexo do termo e a economía no sentido ecológico. seu reducionismo: “Foi um grave erro, da parte da
Os dois níveis váo se fundir, estou totalmente seguro corrente estruturalista, pretender remeter tudo o que diz
disso, e Félix também”'’0. respeito à14 psique ao dominio do significante
Em A Nova Ordem Ecológica, publicado em 1992, linguistico“ , Félix se apoia nos trabalhos de Dáhiel
Lue Ferry lanpa um ataque violento contra a ecología Stern sobre o bebé para captar o caráter emergente e
política. Ele tenta reduzir as proposigoes de Guattari a heterogenéti- co da subjetivìdade1A Nesse firn de
urna concepgáo fun- damentaiista e ultraesquerdista da percurso, nota-se o retorno discreto de Guattari àquilo
ecología, que nao darla lugar aos direitos do homem, ao que marcou seus inicios, Sartre e a questào exìstencial:
espago público de discussáo e ás instituigóes para eie, a consistència dos sistemas discursivos deve
republicanas, Nào temendo um amàlgama, Ferry ser buscada46do lado do conteudo, “isto é, dessa fungáo
pretende desacreditar o adversário, no caso aqui as teses existencia!’ .
de Guattari sobre a ecologia, estabeiecendo urna fíliagao Reconhecendo ao freudismo toda sua con- tribuigáo
com o redator das leis nazistas sobre a protegáo da histórica, Guattari quer promover urna abordagem
natureza. Walther Schoenìchen: “Para Guattari, como diferente, que náo gira mais em torno da oposigao entre
para Schoenichen, a cultura é urna realidade ontològica, consciente e inconsciente, mas que considera o
nao urna abstragáo: eia se inscre- ve no ser dos
inconsciente como urna superposigáo de diversos estética de sentir... nos parece prestes a ocupar urna
estratos heterogéneos de subjetivagáo de consistencias posiçâo privilegiada no interior dos agenciamentos
variáveis e produtoras de fluxo, que ele tenta identificar coletivos de enunciaçâo de nossa época”51. £ sinal de
em suas cartografías esquizoanalí- ticas47.0 trabalho
320 François Dosse
que a civilizaçâo moderna só pode perdurar se for
analítico náo deve se referir mais a universais, a permanentemente impulsionada no sentido da inova-
estruturas preestabele- cidas, mas a urna “constelagáo çâo. Mas esse processo de transformaçâo nâo cessa de
de Universos. Náo se trata de Universos de referencia recolocar a questâo da subjetividade sob ángulos
em geral, mas de dominios de entidades incorporáis, diferentes. A subjetividade sendo tanto quanto a água e
que sao detectadas ao mesmo tempo em que o ar um dado natural, "como trabalhar52 para sua
produzidas...48 Sao dados no instante criador, como liberaçâo, iste é, para sua ressingularizaçâo?” ,
hecceidade” . Essa atenqao à subjetivagáo leva a
rejeitar as modelizagoes confinantes, negadoras do
novo, em busca apenas; das regularidades, de medias O desmoronamento de um mundo: 1989
significantes. Guattari, ao contràrio, prefere o Guattari atravessou com a mesma acuida- de
processuali a irreversibilidade e a singularizagao. Para analitica a grande reviravolta de 1989 com a queda do
sair das oposigoes binárias, langa “o concetto de in- : muro de Berlim, a derrocada do comunismo e o firn da
tensìdade ontològica. Ele implica um engaja- 49mento “guerra fria”. A consciência dos riscos que representa a
ético-estético do agenciamento enunciativo” . O multiplicaçâo dos desdobres identitários sectários e
freudismo tomou como modelo a neurose, enquanto fundamen- talistas nâo diminuì seu otimismo e seu
que, segundo Guattari, a esquizoanálise tem como desejo de avançar em direçâo a futuros melhores. Ao
modelo a psicose:é nela que o outro está além da contràrio, essa é urna oportunidade única de “reinventar
identidade pes- soal, e essa fratura permite construir a política™3. 0 mundo nâo é mais bipolarizado entre
urna ver- dadeira heterogénese. Leste e Oeste e se encontra entâo em pieno processo de
Apoiando-se nos trabalhos do filósofo Pierre Lévy, integraçâo com base no modelo do Capitalismo Mundial
Guattari mostra por que náo se pode.: reduzir a nogáo Integrado (CMI). Em 1987, em Libération, Guattari
de máquina à ideia de um funcionamento mecánico. De expôe o 54que vê como “Os novos mundos do ca-
um lado, todas as máquinas sao atravessadas por pitalismo” : urna das características do capitalismo pós-
“máquinas abstratas”, mas, nos tempos da robotica, da industrial ou do CMI é transferir as estruturas produtivas
informática, elas 50dependem cada vez mais da in- de bens e serviços para as estruturas produtivas de
teligencia humana . Como Pierre Lévy, Guattari acha signos e subjetividade, ou seja, a mídia, as pesquisas de
que é preciso derrubar a “cortina de ferro ontològica” opiniâo e as mensagens publicitárias.
que a tradiçâo filosófica edi- ficou entre o espirito, de Dessas refiexôes sairá um último texto, redigido
um ìado, e a materia, do outro. Félix encontra ali o algumas semanas antes de sua morte e publicado
pròprio sentido da outra metafísica que construíu com postumamente por;> Le Monde Diplomatique na ediçâo de
Gilles em suas obras comuns. outubro de 1992 'l Com essa contribuiçâo, ele pretende
Guattari propóe retomar a noçâo de auto- poiese de sacudir as passivldades crescentes de um mundo que vê
Francisco Várela, que designa assim os organismos que seu destino passar em urna tela, como se lhe escapasse
engendram seu pròprio funcionamento e seus limites inelutavelmente, embora as mutaçôes em curso
específicos, mas acrescendo-a do campo da aplicaçào permitissem estabeíecer novos agenciamentos coletivos
biológica aos sistemas sociais, ás máquinas técnicas e a de enunciaçâo com impactos em todo o tecido social.
qualquer entidade evolutiva a partir do momento em que Guattari reafirma nesse momento urna concepçao que
esses elementos sáo logo envolvidos em agenciamentos continuará a se desenvolver até se impor como urna
singulares e em devìr. Depois de ter criticado evidencia, a pluralidade de cada ser humano: “O que
novamente o corte saussuriano entre a lingua e a pretendo enfatizar é o caráter fundamentalmente
palavra, e de ter demonstrado o caráter totalmente im- pluralista, mulücentrado, heterogéneo da subjetividade
bricado dessas duas dimensoes, Guattari define, no final contemporánea, nâo obstante a homogeneizaçâo a que é
desse livro-síntese de todas as suas refiexôes, o novo sub- metida devido à sua mass-midiatizaçao. Nesse
paradigma estético que tanto almeja. Parte da ideia aspecto, um individuo já5 é um ‘coletivo’ de
segundo a qual o que ñas sociedades do passado componentes heterogéneas™ As concepçôes fordistas e
provinha de imperativos técnicos ou sociais, no nosso tayloristas estâo ultrapassadas, e é preciso pensar novos
presente é percebido como manifestares estéticas e agenciamentos coletivos de traballio, considerando-os a
atesta o ascenso dessa relaçâo de estetizaçâo que o partir de transversalidades possíveis com as demais ati-
homem moderno tem com o mundo: ‘A potencia
vidades sociais. Ele insiste na urgencia de responder a sâo adjacentes”63. Sacha Goldman envia aos par- ceiros
esses novos desafíos, pois, sem isso, os efeitos da inércia a transcriçâo desse diálogo do mes de agosto corrente.
poderiam ser bem cruéis e destrutivos: “Sem a promoçâo Paul VirilioGilles
está Deleuze
corrigindo O : texto quando
321 recebe um
de urna tal subjetividade da diferença, da atipia, da uto- & Félix Guattari

pia, nossa época poderla resvalar nos conflitos atrozes telefonema de Antoine de Gaudemar: “Ele me diz:
da identidade, como os que sofrem os povos da ex- ‘Voce viu o que aconteceu com o Félix?’. Respondo:
Iugosiávia””7. ‘Nao, ele está aborrecido?’, porque a gente tinha briga-:
Essa referencia à desastrosa implosao que vive a ex- do um pouco, e eu achava que ele nao quería mais fazer
Iugoslávía e os riscos de uma genera- lizagáo da o livro comigo. Ele me diz: ‘Nao, ele? morreu’”64.
violéncia bélica em escala planetària preocupam
Guattari, que analisa a primeira guerra contra o iraque,
em 1991, como a ma- nifestagáo do hegemonismo Notas
americano, que impós sua soiugao à comunidade 1. Félix GUATTARI, “Enfin Jack Lang vint...”, Le :
internacional. Sem negar o papel importante do ditador Quotidien de Paris, 18 de março de 1983; esse : artigo
íraquiano na e el o sao da guerra, Guattari invoca uma aparece também em Le Nouvel Observateur com o título:
“Plaidoyer pour un ‘dictateur’”.
situapáo de perversáo da ordem internacional que levou 2. Ibid.
a essa situagáo desastrosa: a cumplicidade das grandes 3. Félix Guattari, carta a jack Lang, 22 de agosto de 1981,
potèncias no condito Ira-Iraque, a nao resolugáo da arquivos IMEC.
questuo do Líbano e dos palestinos, a política das 4. Félix Guattari, anotaçôes acerca de um pro- : jeto de
grandes empresas petrolíferas e, “de maneira geral, o Fundaçao enviado a Jack Lang, 13 de : fevereiro de 1982,
fato de que as rei ago es entre o Norte e o Sul nao arquivos IMEC. Essa funda- çâo respondería ao interesse
param de evoluir de maneira catastrófica”^. de criar uma ins- tituiçao democrática e descentralizada
A guerra contra o Iraque provoca uma re- jeigáo para estabelecer as conexôes necessárias com as
igualmente violenta em Deleuze, que assina junto com associaçoes sem fins lucrativos: “Um direito à pesquisa
seu colega de Paris-VIII, René59 Schérer, um texto deveria ser proclamado. Trabalhado- res de uma empresa,
bastante duro: “A guerra imunda” . Eles denunciam ali instituiçôes, mâes de familia em um bairro deveriam ter
a destra i gao de urna nagao, a nagáo iraquiana, sob o apossibilida- de de se tornar promotores de uma pesquisa”
pretexto da libertagáo do Kuwait por um Pentágono (ibid.).
apresentado como “órgáo de um 60terrorismo de Estado 5. Félix Guattari, carta a Jack Lang, 26 de janeiro, de 1983,
que está testando suas armas” , e atacara o que arquivos IMEC.
considerara um simples alinhamen- to do governo 6. Jack Lang, carta a Félix Guattari, 6 de janeiro de 1986,
arquivos IMEC.
francés: “Nosso governo nào para de renegar suas 7. Jack Lang, comentário sobre a carta de Félix Guattari a
declaragoes e se precipita cada vez mais em uma guerra Jack Lang, 14 de abril de 1984, arquivos IMEC
à qual tinha o poder de se opor. Bush nos felicita como 8. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor.
quem felicita um doméstico”61. 9. Ver capítulo “Deleuze em Vincennes”.
Por instigagáo de seu amigo Sacha Goldman, no 10, Jean-Pierre Paye, carta a Félix Guattari, 26 de outubro de
clima do pós-guerra do Golfo e em plena guerra na ex- 1981, arquivos ÍMEC.
Iugoslávia, inicia-se um diálogo em várias etapas entre IL Félix Guattari, carta a Jack Lang, 26 de setem- bro de 1984,
Guattari e Paul Virilio. Très sessóes de discussoes se arquivos IMEC.
realizam: em 4 de maio de 1992, 22 de junho de 1992 e 12. Trechos dessa carta aberta: ‘As extradiçôes e as expulsôes de
4 de agosto de 1992: “A guerra da Espanha foi um bascos refugiados na França causam urna grave fissura,
laboratorio... A guerra do Golfo e a guerra da lugoslávia talvez irreversivei, na confiança que depositamos, apesar de
sao laboratorios de alguma coisa que virá depois... Com todas as incertezas, no governo de François Mitterrand... Até
o que acaba de ocorrer nos anos de i99(Eé o firn da entâo, o asilo político era considerado um direito
arma de destruí- fundamental.., Que Europa se pretende construir com tais
■ *úi • procedimientos? A das liberdades ou a do controle social e da
gao em massa que se opera em proveito de uma arma de segurança erigidos em culto supremo?”, Le Monde, 18 de
outubro de 1984, com o título: "Quelle Europe veut-on
comunícagáo”62. Nesse diálogo, Guattari volta construire?”.
permanentemente à questâo es- sencial para ele dos 13. Jean-François LYOTARD, "Tombeau des intellectuels ”, Le
modos de transformaçâo da subjetividade, ligando as Monde, 8 de outubro de 1983; reproducido em Tombeau des
novas tecnologías militares, as novas estrategias às intellectuels et autres papiers, Galilée, Paris, 1984.
14. Maurice BLANCHOT, “Les intellectuels en question.
“condiçôes de produçâo de subjetividade das quais elas Ébauche d u n e réflexion", Le Débat, n. 29, março de 1984.
15. Félix GUATTARI, “On a le racisme qu’on mérite”, 37. Félix GUATTARI, TE, p. 62-63.
Cosmopolis, novembro de 1983; reproducido em Félix 38. Ibid, p.63
GUATTARI, AH, p. 39. 39. Jacques Robin, entrevista com Virginie Linhart.
16. Félix GUATTARI,
322 François Dosse “La gauche comme passion
40. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart.
processuelle”, La Quinzaine littéraire, juiho de 1984; 4L Luc FERRY, Le Nouvel Ordre écologique, Grasset, Paris,
reproducido em Félix GUATTARI, AH, p. 1992, Livre de Poche, 1998, p, 176.
53. 42. Félix GUATTARI, Chaosrnose, Galilée, Paris, 1992
17. Félix GUATTARI, “Le cinquième monde natio- nalitaire”, (doravante citado CH),
conferência pronunciada em Bilbao em 26 de março de 1985; 43. Danielle Sivadon, entrevista com o autor.
reproducida em Félix GUATTARI, ATI, p. 71.
18. Raymond PRONÍER, Vincent Jacques LE SEIGNEUR, 44. Félix GUATTARI, CH, p. 16.
Génération Verte. Les écologistes en politique, Presses de la 45. Daniel STERN, Le Monde interpersonnel du nourrisson,
Renaissance, Paris, 1992, p. 27. PUF, Paris, 1989.
19. jean Chesneaux, entrevista com o autor. 46. Félix GUATTARI, CH, p. 87.
20. Trata-se da GOP - Gauche ouvrière et paysanne [Esquerda 47. Félix GUATTARI, CZ.
Operaría e Camponesa], particularmente com Marc Heurgon, 48. Félix GUATTARI, CH, p. 33.
Alain Rist, Alain Lipietz, Alain Desjardin, Gérard Peurière. 49. Ibid., p. 49-50.
21. Félix Guattari e Daniel Cohn Bendit, “Pavane pour un PSU 50. Pierre LÉVY, Les Technologies de l’intelligence, La
défunt et des Verts mort-nés”, outubro de 1986, arquivos Découverte, Paris, 1990
IMEC. 51. Félix GUATTARI, CH, p. 141.
22. Jacques Robin, entrevista com Virginie Li- nhart. 52. Ibid., p. 52.
23. Ibid. 53. Félix GUATTARI, “Réinventer la politique”, Le Monde, 8
24. Félix Guattari, abril de 1990, arquivos IMEC. de março de 1990.
25. Carta do secretariado executivo dos Verdes a Félix Guattari, 54. Félix GUATTARI, “Les nouveaux mondes du capitalismo",
7 de maio de 1991. Libération, 22 de dezembro de 1987.
26. Félix Guattari, carta de 13 de maio de 1991 ao secretariado 55. Félix GUATTARI, “Pour une refondation des pratiques
executivo dos Verdes, arquivos IMEC. sociales”, Le Monde diplomatique, outubro de 1992.
27. Ibid. 56. Ibid.
28. Félix GUATTARI, “Une autre vision du futur”, Le Monde, 57. Ibid,
15 de fevereiro de 1991. 58. Félix GUATTARI, “Le courage d’une politique", Lettre
29. Félix GUATTARI, “Vers une nouvelle démocratie d’information de Génération Écologie, n. 6,28 de Janeiro de
écologique", julho de 1992, arquivos IMEC 1991.
30. Ibid. 59. Gilles DELEUZE, René SCHÉRER, “La guerre immonde”,
31. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart. Libération, 4 de março de 1991.
32. Ver capítulo “Urna geofilosofîa do político”. 60. Ibid., reproduzido em Gilles DELEUZE, RR p. 351.
33. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart, 61. Ibid., p. 351,
34. Ver sobre as teses de Cartografías esquizoanalí- ticas, o 62. Paul Virilio, “Le concept de guerre”, transcri- çâo
capítulo “Urna geo filo sofia do político” datilografada do diàlogo com Guattari, 4 de agosto de 1992,
35. Félix GUATTARI, Les Trois Écologies, Galilée, 1989 arquivos IMEC.
(doravante citado TE), 63. Félix GUATTARI, ibid., diàlogo de 4 de maio dé 1992.
36. Paul Virílio, entrevista com Virginie Linhart. 64. Paul Virilio, entrevis ta com Virginie LinharL Ver capitulo
“Dois de sap are ci mento s".
Deleuze vai ao cinema

Quando, na cinematográfico
manhâ de 10 de está ligado a
novembro de fatores
1981, Deleuze contingentes e
inicia sua aula exteriores e, ao
consagrada ao mesmo tempo, a
cinema, será que urna necessidade
ele tinha realmente interior de sua
a dimen- sâo do reflexao filosófica.
canteiro que se
abria? Vai lhe
dedicar nada Um com pan
menos que1 très herró dos
anos letivos , 250 Cahiers du
Cinéma
horas de 2aula e
duas obras . Esse Em 1980, a
novo ciclo de estu- universidade
dos se desenvolve experimental de
imediatamente Paris-VIII acaba
apos a obra de deixar o bosque
comum realizada de Vin- cennes de
com Félix onde foi alijada
Guattari. Pode- -se pela ministra das
considerar essa Universidades,
investigaçao fora Alice Saunié-Seité,
do corpus clássico e teve de encontrar
da filosofía como refugio em Saint-
um parêntese Denis. Além do
recreativo? Nada fato de nao dispor
disso. Como é do mesmo espaço,
comum, esse essa mudan- ça
avanço no tem consequéncias
continente sobre a vida da
pesquisa e do ensino. Graças a essa situaçâo de crise, Quando o estudante brasìleiro André de Souza
operaram-se aproximagoes fecundas. É o caso entre o Parente, vindo da unìversidade do Rio, onde se iniciara
departamento de estudos cinematográficos e o de na obra de Foucault e Deleuze, chegou à unìversidade de
filosofìa324
. Dado que a origina- lìdade desse ensino está
3 François Dosse
Parìs-VIII para o ano letivo de 1982 e 1983, já havìa
em ligar a teoría e a pràtica, alguns cineastas sao realizado al- guns filmes experimentáis. Tinha ido para
convidados - Jacques Rivette ministrou cursos. Quando Paris fazer doutorado em cinema e ìnscreveu-se, entao,
decídiu parar em 1970, propóe-se ao redator adjunto do no departamento de Paris-VIII, mas nao encontra
Cahiers du Cinéma que o substitua: “Ríram na nossa ninguém habilitado a orientar suas pesquisas. ,É o
cara no ministério ao qual se havia solicitado material departamento de cinema que designa Deleuze como
Achavam que estávamos desvalorizando a universidade, orientador oficial de sua tese. Essa contingencia
que era indigno, que havia escolas para isso,4 mas a gente administrativa foi urna sorte para Parente. Mais
insistía nessa ligagáo entre teoria e pràtica” . apaixonado pela filosofia do que pela teorìa do cinema,
O departamento de cinema prepara um curso eie acompanha assi diramente as aulas de Deleuze e lhe
específico com diplomas. Contudo, para validar os apresenta sua dissertaçâo de mestrado intitulada
doctorados, foi preciso encontrar professores habilitados “Narratividade e nâo narratividade fílmica”. Deleuze,
para fazé-lo: os res- ponsáveis recorreram ao inicialmente hesitante, o remete ao departamento de
departamento de filosofia para validar as pesquisas em cinema, mas o estudante insiste em ter sua opiniâo: “Ele
curso. Guy Fíhman e Claudine Eizykman, antigos do 22 lê minha dissertaçâo e a partir daí tudo muda. Ele me
de Margo, que dirigem o departamento desde o inicio, diz: ‘Nâo somente acho isto muito intéressante, como
conservaram boas relagóes com Je- an-Frangois Lyotard. teria necessidade de voce para o próximo ano’, pois ele
Por sua vez, Jean Narbo- ni e alguns outros, como os tinha a intençâo de tratar da questâo da semiología’10.
diretores Serge Ee Perón e Jean-Henri Roger, sào mais Parente deíende sua tese em 1988 sobre o tema da
deleuzia- nos, assim como a especialista em estética do “Narrativi- dade e nâo11 narratividade iïlmicas” com
filme, Dominique Viilain. A par tir de final dos anos orien- taçâo de Deleuze .
1970, Guy Fihman e Claudine Eizykman decidem A cinefilia de Deleuze é atestada muito antes de ele
consagrar seu seminàrio a pensar o cinema a partir das se lançar na escrita de suas duas obras, Critico do
categorías bergsonianas: “Disso resultou entào urna Cahiers du Cinéma, Serge Toubiana lembra de ter visto
situapào nova, em que o enquadramento do curso de Deleuze regularmente, desde meados da década de
doutorado de cinematografia recebeu o concurso de nos- 1970, na “semana” de filmes inéditos na Action-Répu-
sos colegas de filosofìa, Jean-Franpois Lyotard, cujo blique, organizada todos os anos pelos Cahiers du
seminàrio estava centrado na estética do sublime, e Cinéma: “Vê~lo com tanta reguiaridade entre a multidáo
Gilles Deleuze, que aproveitou essa ocasiao para fazer de espectadores que vinha descobrir ríossos’ filmes nos
enfìm convergir seu5 gosto pelo cinema com seus deixava orgulho- sos”12. Segundo Toubiana, Deleuze era
interesses filosóficos” . Na verdade, nao se encontra em o único dos grandes pensadores desse período a “ver-
Deleuze qual- quer trapo da contribuipào de Bergson daderamente amar o cinema”13. Ele logo com- preendeu
para o campo cinematográfico em sua obra de 19665. Ele a força do cinema e a necessidade de pensar esse novo
faz a ligapào entre Bergson e o cinema em seu7 texto modo de expressâo para pensar o mundo. Disso resultou
sobre Godard para os Cahiers du Gimmo. em 1976 , urna grande afinidade entre os críticos dos Cahiers du
Ao lado de projetos de tese sérios, algumas Cinéma e Deleuze, a tal ponto que Toubiana escre- verá
solicitapòes sao burlescas, como a proposi- pào feita a em homenagem do filósofo desaparecido: “O cinema é
Deleuze de orientar um trabalho de pesquisa sobre o um movimento do pensamento. O cinema é
teatro de marionetes no Libano: “Deleuze me liga para deleuziano”14.
me dizer que é totalmente incompetente sobre esse tema, Sua primeira intervençâo pública sobre o cinema
e respondo-lhe que eu também”8. Ainda que, por data de 1974. Deleuze defende entáo o filme de Plugo
generosidade, Deleuze estivesse prestes a assi- nar e dar Santiago, Les Autres, que acaba de causar escándalo no
sua caupào a essa pesquisa, estudan- tes libaneses o Festival de Cannes e no quai atua a jovem esposa de seu
alertam: nunca houve teatro de marionetes no Líbano, e amigo: François Châtelet, Noëlle Châtelet Deleuze
suspeita-se que o tipo em questuo seja um policial: saúda nesse filme urna arte da mobilidade, um uso da
“Outra vez, era o estudo do lugar dos trabalhadores no cámara que se assemelha ao do plantador de arroz, que
cinema sirio, e Deleuze me liga de novo para me faìar de nâo procede por enraiza- mento, mas por múltiplos
sua ignorancia desse tema, e, de novo, con- fesso-lhe nao orificios15.
saber mais do que eie”9.
Très anos mais tarde, enquanto vários filmes já os Cahiers vivem a partir de meados dos anos 1960 sua
tinham sido proibidos pelo ministério do : Interior em fase maoista. Eles encarnam urna ìinha ultrateórica,
1976, L’Ombre des Anges, de Daniel lacano-althusseriana, mes- clada de um certo populismo
Schmid, por sua vez, é atingido pela proibito em com o livrinho vermelho do presidente Mao, e viram as
Gilles Deleuze & Félix Guattari 325

fevereiro de 1977. Cerca de 50 cineastas, críticos e costas resolutamente para o cinema burgués. Essa linha
alguns intelectuais assinam urna petigào em protesto provoca urna ruptura com François Tru- ffaut, que
contra o que considerara um atentado à liberdade de manda tirar a mençao 20ao seu nome a partir de 1970. As
expressào, na medida em que a decisao do poder é vendas se ressentem . No pós-68 constituiu-se um
acompanhada de atos de violència, corno a colocagào de “Front Q” (cultural), agrupando Tel Quel os Cahiers du
aparelhos fumígenos no cinema Saint-André-des-Arts Cinéma e Cinêthique, que nos Cahiers se traduz em vio-
para dissuadìr alguns raros espectadores. O filme é lentas campanhas contra Yves Boisset, Louis Malle,
qualificado por seus detratores de antissemita, o que é Jean-Louis Bertucelli e outros cineastas “burgueses”.
refutado pelos peticionários, entre os quais Deleuze, que Em 1972, em texto assinado por Pascal Bonitzer, os
publica um comentário no Le Monde de 18 de fevereiro Cahiers passam à margem de A Mae e a Puta, de Jean
de 1977. Eustache, e de ri Co- milança, de Marco Ferreri, cujo
Embora Deleuze nao negue que possa ha- ver filmes interesse é totalmente subestimado: “Tive urna sensaçâo
antissemitas, constata nesse caso específico “a inanidade de impasse total. Grandes obras de arte21 nos eram
da acusagao. É inacre- ditável” .0 grande problema é
16
enviadas, e éramos incapazes de assisti-las” .
sem dúvida um personagem denominado “judeu rico”, Apesar de urna linha política bastante explicita de
mas o diretor nao explicou que praticava urna constante adesao ao movimento revolucio- nário, isso nâo é
defasagem entre os rostos, os atores e seus discursos? considerado suficiente, e, no verâo de 1973, os Cahiers
Buscam-se em vao 17os motivos dessa “acusagao demente sâo instruidos a demonstrar seu valor e a reunir os
de antissemitismo” : Deleuze adverte contra a ascensao militantes de campo para difundir o pensamento de Mao.
de um neofascismo secretado pela acumulagáo de pe- Eles tém apenas um ano para atingir esse objetivo
queños medos e de grandes angústias em urna sèrie de estipulado pela nova plataforma do “Front Q”: Contudo,
microfascismos, dos quais faz parte a proibigáo do filme. a partir dessa data, com o declí- nio do esquerdismo e do
Essa intervengáo vale a Deleuze urna resposta áspera de maoismo, as coisas começam a mudar. A linha dos
seu antìgo e devoto amigo Claude Lanzmann no mesmo Cahiers é entáo um pouco reduzida, pois as únicas
jornal, que torna público assim o fosso aberto entre eles estrelas do firmamento sao Jean-Marie Straub e je an-
desde os anos do pós-guerra. Para Lanzmann, o Luc Godard, “JMS” e “JLG”,
antissemitismo desse filme nao deixa dúvida: “Filho Sob o impulso de Serge Daney e de Serge Toubiana,
legítimo do Judeu Süss e do O Eterno Judeu1, inscrito a nova equipe que se instala na pas- sagem da Boule-
nalinhagem direta das produgoes nazistas do auge, A Blanche, no bairro da Bastille, abandonando a linha
Sombra dos Anjos, filme antissemita de R. W. dogmática, reata com a “funçâo crítica” (Serge Daney) -
Fassbinde- rer e Daniel Schmid, também foi considerado e a revista com seu público. A JMS e JLG somam-se
acima de18 qualquer suspeita pela crítica de es- querda na entâo và- rios diretores: Robert Kramer, Hans-Jürgen
Franga” . Lanzmann lembra que a delegagáo israelense Sy- berberg, Manoel de Oliveira, Youssef Chahine,
abandonou o Festival de Cannes no ano anterior para Raoul Ruiz, Akira Kurosawa, Wim VVenders, Barbet
protestar contra a apresentagáo desse filme e denuncia o Schroeder, entre outros, A revista, que busca também
“terrorismo” das panelinhas cinéfilas. Ele ataca Deleuze, novos recursos teóricos, recorre a Michel Foucault, Marc
que veio em socorro do inomínável: "Concordo, concede Ferro e ainda Daniel Sibony. A equipe dos Cahiers -
compiacentemente Deleuze, a palavra ‘judeu rico’ é Pascal Bonitzer, Serge Daney e Serge Toubiana - reúne-
muito importante. Nâo a palavra, Deleuze, a coisa. E nâo se com Foucault para urna longa entrevista publicada em
importante, essencial. Sem o ‘judeu rico’ -- e Deleuze 1974. Nessa ocasiâo, Toubiana apresenta Foucault a
sabe disso - nao há mais filme”19. René Alilo, que farà urna adaptaçâo cinematográfica de
A ligaçâo com os Cahiers se estabelece nesses anos sua pesquisa sobre Pierre Pivière, Daney e Toubiana
graças a Jean Narboni. Ele ouve falar de Deleuze pela refazem contato com François Truffaut, em 1975, e Ihe
primeira vez por Barbet Schroeder, que, num dia de pedem auxilio fmanceiro, que ele nâo dà, mas comunica,
1964, chega à sua sala exclamando que leu um livro de- pois de ter feito um sermâo sobre a evoluçào da
extraordinàrio, o Proust e os Signos de Deleuze. revistad partir de final dos anos de 1960, que manterá
Entretanto, a conexâo nâo é imediata, longe disso, pois agora urna neutralidade benevolente: “Ele nos diz que
nâo tem nada a nos condenar no plano da orientaçâo
1 N. de T.: Filmes de propaganda alemà lançados em 1940. política, mas que fi- cou ressentido por termos
conservado o título Cahiers du Cinéma, que pertence à Turcos, exibido no Festival de Veneza, em 1968. Em
tradiçâo de Bazin, e termos feito o que ñzemos. Ele deu 1971, os Cahiers fazem a cobertura: do seu segundo
a entender que deveriamos ter mudado o título, que filme, e Narboni o encontra em urna de suas passagens
havíamos traído a herança bazmiana’"
326 François Dosse
por Paris, quando Bene está decidido a abandonar o
É nesse contexto que, durante o verào de 1976, a cinema pelo teatro. Narboni debate com Bene na
Antenne 2 apresen ta 23seis domingos seguidos a série de presença : do especialista da literatura italiana jean-Paul
Godard Six fois deux . Jean Narboni, professor corno Manganalo e de Deleuze. Colegas em Vincen- nes,
Deleuze no campus de Vincennes, nâo perde a ocasiâo, Narboni leciona no andar acima do de Deleuze, e um de
ainda mais porque soube por Caroline Champetier que seus alunos lembra-se de ter fìcado intrigado: invocando
Deleuze aprecia muito Godard e ficou im- pressionado seu amigo Narboni, “eie [Deleuze] apontava com o
com essa série na TV, Eie entâo Ihe manda urna carta dedo para o teto como se houvesse urna instáncia trans-
para pedir que escreva sobre Godard nos Cahiers. cendental que encarnasse urna autoridade superior”37,
Deleuze aceita o principio de urna entrevista, que é Mesmo preocupados em chegar no horàrio para suas
gravada na sede da revista. Contudo, depois da aulas das tergas-feiras pela manhà, eles tèm tempo de
entrevista, recusa a publicaçâo das transcriçôes e sugere discutir antes de ir ao encontró de seus respectivos
escrever um simulacro de entrevista intitulado “Très alunos.
perguntas sobre Six fois deuxcontendo na verdade qua Em 1972, a publicagào de OAnti-Édipo perturba a
tro perguntas formuladas pelo pròprio Deleuze: “Essa linha marxista-leninista dos Cahìers sem modificá-la em
entrevista sobre Sixfois deux nos impressionou. Ele abre um primeiro momento, mas, com o tempo, as temáticas
ali linhas de pensamento sobre Godard que depois foram da obra vào fissurar as certezas para alimentar alguns
retomadas, citadas, repetidas, pilhadas: o balbució fìu- xos desejantes que se insinuam entre os blo- cos
criador, a liçâo das palavras e das coisas, a política das epìstémicos do momento. Pascal Bonitzer guarda a ligào
fronteiras, a invençâo de urna lingua estrangeira dentro para mais tarde, na segunda metade dos anos 1970,
da propria lingua, a solidao povoada, etc.”24. Deleuze quando prioriza a estética do cinema e passa a estudar
expressa ali a emoçâo duradoura que sentiu e evoca Go- mais sobre o “olhar-càmara”, o “fora de plano” e o “d e
dard corno um trabalhador solitàrio um pouco: à sua se riquadrami ento”. No outono de 1977, acabam os
imagem, alguém que marca seu tempo: sem conhecer o longos textos teóricos, deixando-se espago ao proprio
verdadeiro sucesso, “conti- nuando sua pròpria linha, cinema, e Pascal Bonitzer expressa inequívocamente seu
urna linha de fuga ativa, linha sempre quebrada, em desejo de narrativa: “Por que nos aborrecem desse
ziguezague, no subterráneo”“1', jeito?... Hoje, quase por toda parte, o que mais se sente é
Seduzido pela frase de Godard “nâo urna imagem a falta de historias, de boas historias”28. Nesse contexto,
correta, mas apenas urna imagem”, eie erige em quando Deleuze intervém sobre o cinema, Pascal
principio para 26os filósofos: “nâo ideias corretas, mas Bonitzer considera isso bastante alentador,
apenas ideias” . Deleuze consi-: dera, entre outras principalmente em relagao às teorías semiológicas de
coisas, que o cineasta coloca um verdadeiro problema Christian Metz, que, segundo ele, jamais deram nada no
quando pulveriza a noçao de força de traballio sugerí terreno da critica, A arte cinematográfica “se expressa
ndo remunerar os telespectadores na medida em que através das obras, náo é urna Iinguagem que se expressa
eles fornecem de fato um serviço público. O outro: através de um sistema de aplìcagào. Deleuze estava em
deslocamento operado por Godard tem a ver com um total sintonia com o cinema corno obra e tinha urna
questionamento radical da informa- çâo como forma de compreensao29 muito ràpida e pessoal dos cineastas que
comando. Deleuze retoma a análise de André S. amávamos” .
Labarthe, que, no inicio ; dos anos de 1960, chamou a Deleuze, por sua vez, vai regularmente aos Cahiers e
atençao para a maneira como Godard apagava as assiste às programagóes organizadas por Dominique
transiçôes) para substituí-las por um “e", rompendo Paini no Studio 43: “Eie vinha às vezes com sua filha
assim com a linearidade da narrativa ao estabelecer Émilie, que também faz filmes, e às vezes com sua mu-
falsas continuidades entre as sequências. lher, Fanny”30, Muito preocupada com urna
Essa publicaçâo é o ponto de partida de en- : contras programagáo pensada, reflexiva, Dominique Paini
e discussôes regulares entre Deleuze è; Narboni. Eles se adquirirá o hábito de cruzar o antigo e o novo em torno
veem com frequência cada: vez maior, sobretudo após a de um tema. Assim, eia exi- biu em sua sala, entre
publicaçâo da obra realizada por Deleuze e Carmelo muitos outros temas, “O papel dos canaìs e dos ríos na
Bene enfi 1979, Superposiçôes. 0 autor italiano foi constituigào da escrita do cinema francés desde o cinema
muito: apoiado pelo Cahiers, e particularmente pori: mudo”. Essa temática da água, do lábil, se encontra tal e
Narboni, fascinado com seu filme Notre-Dame dos qual em A Irnagern-Movimento como urna característica
do cinema francés, fortemente marcado pelos cursos pois o que a cámara vai procurar no reai é sempre esse
d’água que atravessam seu territorio, e que Jean Renoir “outro misterioso” da realidade que a fragili za ao
exprimiu com a maior intensidade. mesmo tempo em que a atesta 37
. Deleuze retomou por
0 que mais surpreende Jean Narboni é a capacidade sua conta essa heranca intelectual pròpria aos Cahiers:
Gilles Deleuze & Félix Guattari 327

de Deleuze de construir classifì- cagòes e taxinomías, e “'Nao creio que eie tenha posto em questao o grande
se diverte langando a hipótese de que nele, com certeza, tòpico da Nouvelle vague. Eie retomou essencialmente
o compartimento teórico deve preceder o conteúdo. urna historia do cinema tal como Langlois, a nouvelle
Narboni considera que, entre as mais belas páginas vague, Razin, os Cahiers, Truffaut e Godard tinham
produzídas sobre o cinema, será preciso levar em conta o concebido antes dele,3S.
que Deleuze escreve sobre a imagem-pulsáo, o afeto, o Essa proximidade com os Cahiers nao excluí outras
grande plano, o rosto, as potencias e as qualidades. Entre influèncias. Quando Deleuze decide escrever sobre o
o mundo original das profundezas (Stroheim, Buñuel, cinema, refaz contato com seu ex-aluno de Louis-le-
Nicholas Ray, King Vidor, Losey) e o das entidades ex Grand, que se tornou diretor da revista Positi/, Michel
traco rp oráis (Dreyer, Bres- son), Deleuze traga urna Ciment: “Eie tinha consciencia de que passara um longo
transversal “evidentemente conectada às duas outras, a periodo de interrupqao em sua relagao com o cinema.
linha do cerebro e a do pensamento, a cidade-cérebro. Sentiu necessidade de documenta- gào, que providenciei
Creio que seu cineasta preferido, no fundo, era para eie”39. Deleuze tem vários encontros com eie no bar
Resnais”31. Wepler, na place Clichy. É aconselhado a ler alguns
A proxìmidade de Deleuze com os Cahiers du livros e se remeter aos dossiès da revista Positi/ entre
Cinéma é atestada pelo prefácio2 que escreve para o livro outros, sobre Lose/e Kazan, e em geral sobre o cinema
de Serge Daney, Ciné Journal . Deleuze reconhece em americano, paixao de Michel Ciment, que acaba de
Daney alguém que, como ele, procura a ligagao publicar, no inicio dos anos 1980, duas obras sobre o
profunda que une o pensamento e o cinema em urna tema, das quais Deleuze faz bom uso Por sua vez,
40

tradigao crítica, a de Bazin e dos Cahiers. Sauda a ma- Ciment utilizou a Apre- sentaçâo de Sacher-Masoch, de
neira como ele soube converter em otimismo crítico as Deleuze, para escrever um opúsculo em 1967 sobre
ambigóes dos primeiros realizadores, como Eisenstein e Erich von Stroheim.
Gance, que sofrem com as tragedias do século XX: “O A terceira grande revista de cinema utilizada por
cinema estaría ligado nao mais a um pensamento Deleuze é Le Cinématographe, fundada nos anos de
triunfante e coletivo, mas a um pensamento casual, sin- 1970 por Jacques Fieschi, que vem dos Cahiers e de La
gular, que nao se apreende e náo se conserva mais a náo Nouvelle Critique. Essa revista, mais ligada ao meio
ser em seu Jmpoder'”33. Finalmente, Deleuze situa o profissionaî, tem entre seus colaboradores regulares
livro de Daney sob o signo da viagem, nao de urna busca produtores como Philippe Carcassonne e roteiristas
do exotismo, mas no sentido proustiano do verdadeiro como o próprio Fieschi e Jérôme Tonnerre. Nascida um
so- nhador que tem necessidade de verificar suas pouco como reaçao ao discurso multo ideológico dos
intuiqòes: “Bis que, por sua conta, o que vocès vào Cahiers, Le Cinématographe prega um cinema que
verificar em suas viagens é que o mundo faz cinema, passe pela escrita: “Era o inicio da critica egotista, sem
nunca para de fazer”34. Apesar desse prefàcio caloroso, que se diga abertamen- te eu, mas com um investimento
Daney e Deleuze se encontraram raramente, apenas duas singular”41. A revista tem reputaçâo de dandismo e, era-
vezes. Atendendo ao desejo de ambos de se rever, bora cubra a atualidade, publica igualmente dossiés
Raymond Reilour, que participa da revista Tra- fie, sobre o neorrealismo italiano, Viscon- ti, Godard, o
organiza um último encontró, dois meses antes do cinema do terceiro mundo... En- contra-se mais ou
falecimento de Serge Daney, em 1992. menos o mesmo panteao de cineastas, com apenas
No essencìal, o Deleuze cinèfilo é fìel à finirà de algumas nuanças, entre urna revista e outra, Michel1
Bazin35: seu panteao homenageia a mesma triade, Ciment inclusive considera Deleuze mais “positivista ,
Rossellini-Renoir-Welles, e, as- sim como o pai dos por co- mungar com Positif a admiraçâo por Kazan,
Cahiers, eie ve no neorrealismo italiano o advento do Losey e Kubrick. Entretanto, como se viu, Deleuze
cinema moderno. 0 cinema corno gènero impuro é o continua próximo dos Cahiers e resolutamente afinhado
instrumento que oferece a possibilidade de urna nova com eles na batalha por Hitchcock: “Os críticos de
maneira de chegar ao realismo. Para André Ba- zin, Positif, que eram mais libertários, surrealistas, tinham
discípulo de Emmanuel Mounier e marcado pela horror da maneira como os Cahiers apresentavam
fenomenologia, “a tela é a transubstan- ciaqao do36 reai, e Hitchcock, como encarnando a redençao em torno das
esse fenomeno tem um nome: o realismo' . Esse questóes do pecado, da admissáo, da 42confissáo, e se
realismo nao é o que remete à simples mímese do real, portaram de maneira um pouco ridicula” .
Quanto aos Cahiers, vale lembrar que, por força do confosáo entre o movimento e o espapo percorrido.
maoísmo, haviam ignorado Scorsese, Altman, Coppola e Enquanto o movimento remete a um ato, o de percorrer,
muitos 328
outros cineastas americanos obrigatoriamente que nao é divisí- vel, o espapo é divisível. O movimento
corrompidosFrançois
pelo Dosse
imperialismo. Fora isso, as duas pertence, portanto, a outra dimensao, a da durapáo. Re-
cinefi- lias distinguem-se pela singularidade de suas corde-se, para ilustrar a dificuldade de pensar o
adesoes: preferencialmente um certo cinema italiano de movimento, o famoso paradoxo de Zenon, segundo o
esquerda, o de Antonioni e de Vis- conti, mas também qual Aquiles jamais conseguirá al- canpar a tartaruga
Buñuel e Franju, no caso do Positi/, enquanto os que partiu antes dele caso se proceda a uma simples
Cahlers sào mais favo- ráveis a Hitchcock e Rossellini. divisao espacia] de seus respectivos movimentos. Além
Nos anos de I960, as duas revistas se aproximam na disso, Bergson considera impossível entender o
defesa dos jovens cinemas da Europa Oriental, do ter- movimento procedendo a cortes imóveis operados no
ceiro mundo e do Canadá. traje- to. Há urna irredutibìlidade do movimento que nao
O engajamento de Deleuze no mundo do cinema é está ligada a um tempo abs trato. Se Aquiles acaba por
tal que eie passa furtivamente diante das cámaras, ultrapassar a tartaruga, isso se deve ao fato de que seu
aceitando por amizade a proposta que lhe faz Michèle movimento é incomensurá- vel. Todo movimento é
Rosier de representar um papel secundário, o de qualificado e procede segundo suas divisoes próprias.
Lammenais, em seu filme sobre George Sand, George Esse movimento puro, separado de seu substrato
qui?, lanzado em 1974. Pode-se ve-lo duas vezes, em espacial, nao é o que o cinema pode exprimir?
um salao e encarcerado em sua cela na prisáo de Sainte- A segunda tese de Bergson é que existem duas
Pélagie. No final dos anos 1970, Deleuze hesita por um maneiras de reproduzir o movimento por cortes imóveis:
instante quando Philippe Venauìt e Raymond Bellour, seja por momentos privilegiados, seja a partir de
que trabalharam sobre o Journal de Jules Michelet para instantes quaisquer definidos em fonpao de sua
fazer um roteiro, lhe propoem, desta vez, ser o herói do equidistáncla, O pensamento antigo retìnha o movimento
filme, Michele t em pessoà13. a partir de momentos privilegiados. Ao contrario, a
segunda maneira tem a ver, segundo Bergson, com a
ciencia moderna; eia introduz o tempo como variável
Urna nova metafisica bergsoniana específica e requer urna nova metafísica; “A revolupáo
Grapas a essa travessia do universo cinematográfico, científica moderna consistiu em relacionar o movimento
Deleuze pode reatar com o ex- trafilosófìco. Mostrando náo mais45 a instantes privilegiados, mas ao instante
que o cinema anuncia uma verdadeira revolupáo qualquer” , Essa segunda maneira é a da técnica
filosòfica, seu pro- jeto continua sendo o de um filòsofo cinematográfica, e Deleuze se per- gunta se o cinema
e, corno esclarecerá mais tarde, nao tem a ambipào de nao é portador dessa nova metafísica que Bergson tanto
escrever urna historia da sétima arte. almejava: 16“Seria preciso dizer: o cinema como
É na esteira de Bergson que se situa a refle- xào de metafísica”' . É necessàrio pensar o tempo da maneira
Deleuze, do qual re toma as aberturas para prossegui-las como o pensa Bergson, como invenpao: “O tempo é
até seus limites extremos: “A descoberta bergsoniana de invenpáo ou nao é absolutamente nada”17.
uma ismagem-mo- vimento e, mais profondamente, de A terceira tese é que nao apenas os instantes
uma imagem-tempo preserva ainda hoje uma tal riqueza consisterà em cortes imóveis do movimento, como
que nao se pode afirmar que já se tenha tirado todas as também o movimento “é um corte móvel da duragáo,
consequéncias déla”44. Deleuze demarca um avanpo em isto é, do Todo, ou de um todo. O que implica que o
Matèria e Memoria, publicado em 1896, antes do movimento exprime algo de mais 43profundo, que é a
nascimento oficial do cinema, Em A Evolugáo Criadora, mudanga na dura gao ou no todo’ . É preciso, entao,
publicado em 1907, Bergson renuncia a prosseguir no considerar a perspectiva temporal como pròpria à
sentido de suas primeiras intuipoes. É esse projeto que imagem mostrada no cinema, e disso resulta que a
Deleuze assume, quase um século mais tarde, imagem é mais que uma imagem em movimento, é uma
enfrentando o desafio que Bergson abandonou no imagem-movimento. Entretanto, o todo de que se trata,
caminho quando denunciava a ilusáo mecánica pròpria assinala Deleuze, nao é de modo nenhum uma totalidade
do cinema. Contado, ele intuirá uma possível revolupáo fechada nela mesma. Ao contrario, “o Todo nao é um
filosófica análoga à que estava em gestapáo no mesmo conjunto fechado, ele pròprio é o Aberto, dimensáo de
momento no campo da cinematografía. um ser-tempo que muda e, com isso, perdura e produz o
Deleuze retoma por sua conta as tres teses de novo”49. Essa dimensáo do Aberto permite à memòria
Bergson sobre o movimento. A primeira acaba com a caminhar na profundeza do tempo: “Esse plano 0é o
Plano Aberto. Ali se encontra o espirito do cinema™ .
Em Matèria e Memoria, Bergson inclusive .distingue fenómenos, amnesia, hipnose, alucinagao, delirio, visao
dois tipos de imagens: as ima- gens-movimentos, dos moribundos e, sobretudo, pesadelo e sonho”53. Essas
enquanto fenómenos de superficie ligados ao atual, e as imagens-lembrangas remetem à dimensáo memorial e à
imagens-Iem- brangas das profundezas, que remetem à do presente,Gilles
As camadas do passado parecem suceder-se
Deleuze & Félix Guattari 329

virtualìdade. Depois, limitando sua reflexao apenas ás conforme uma ordem cronològica coerente. Para
imagens de superficie, ele diferencia as imagens- Bergson, “ao contràrio, elas coexistem do ponto de vista
percepgoes, as imagens-agóes e as imagens-afeigòes. É do atual piesente que constituí sempre seu limite comum
gragas a esta última dimensáo, a da afeigáo, que marca ou da mais contraída délas”54. Bergson utiliza a metàfora
uma coincidéncia entre o sujeito e o objeto como fonte do cone para por em evidencia um ponto que culmina e
de uma qualidade particular, que o movimento deixa de condensa as irnagens-lem- branpas requisitadas pela
ser pura translagáo para se tornar um “movimento de apao em um duplo movimento de contrago em situapào
expressao”51. Entre a image m-percepgao e a imagem- de aten- pào viva ou de dilatando em situapào de
agao, algo ocupa o intervalo sem saturar seu sentido; é a repouso.
imagem-afeigáo. Disso resulta urna questao de ordem metafisica: por
Deleuze retém aínda de Bergson urna outra via, que que o presente passa? Essa passa- gem do presente é de
é a da fenomenologia. Na virada do sáculo, a disciplina fato contemporànea do proprio presente. Hà, portanto,
psicològica clàssica atravessa urna grave crise. Eia nao contempora- neidade do passado e do presente que foi,
pode mais pensar a separagào entre imagens que teriam na medida em que o presente se constituí como passado
como lugar a consciència e movimentos exteriores a eia. no mesmo tempo em que surge corno presente. 0
Duas vias se apresentam para sair do impasse. A presente se desdobra assim ao longo de seu desenrolar, a
fenomenologia segundo Husserl define a consciència cada instante, e se en- contra olivado entre um presente
corno consciència de aìguma coisa e inicfa uma corrente que é e um presente que foì. Essas duas dimensoes
filosòfica com um destino bastante rico. Bergson, por coexisten! e conjugara em confìgurapòes singulares as
sua vez, mais isolado, define a consciència como algu- reìapòes entre o passado e o presente“ É esse plano da
ma coisa. Segundo Deleuze, Bergson vai muito mais indiscernibilidade do desdobra- mento do tempo que dà
longe que Husserl para tirar a psicologia dessa situaqào lugar ao que Guattari chamou de “cristal de tempo”, e
difícil: “Minha intervengào é de reparagao porque que Deleuze retoma para fazer dele o proprio suporte da
Bergson foí tratado duramente pela fenomenologia”52, imagem-tempo, desse acesso direto da ima- gem ao
A contribuigào de Bergson é decisiva para pensar a tempo libertado de sua dependencia do movimento.
imagem como movimento e igualmente para pensar a Com a imagem-cristal, o cinema se dota de um meio
imagem-tempo, Bergson distingue de fato dois tipos de de acesso direto ao tempo e, assim corno para a bola de
reconhecimen- to: o imediato, que remete ao hábito, e o cristal, trata-se mais de urna funpao de vidèncìa do que
outro, 1 atentivo, que recorre ao passado. Esta última, a de simples percepgáo. 0 pensamento é forpado a criar
imagem-lembranga, ocupa o intervalo entre a percepgào no- vos circuitos para dar conta de urna realidade sempre
e a agào com a dimensáo da afeigáo. Sào essas movente. Segundo Deleuze, é isso que Rossellini realiza
lembrangas que, em fungao da situagáo presente e do tào magnificamente quando, em Europa 51, sua heroína
que eia supoe corno rea- góes, se ataalizam em imagens observa os operarios entrando na fábrica e diz: “Eu
e guiam a agào. : Contudo, a imagem-lembranga nao pensava estar vendo condenados”. Eia faz a ligapáo, e
tem o mesmo estatuto no reconhecimento imediato e no nao apenas metafórica, entre o universo carceràrio e a
reconhecimento atentivo. Eia pode desem- penhar o empresa capitalista. Todos esses circuitos trazidos pelo
papel de imagem virtual no caso da imagem-lembranga, cinema nao tém a ver apenas com a psicología, “sao
corno modo de cristaliza- gào da atengào, Contudo, regioes de ser e de pen-
segundo Bergson, a imagem-lembranga nao é em si . »56

samento .
virtual, eia apenas atualiza a virtualìdade de uma Pensar, para Bergson, consiste em se instalar em
“lembranga pura". É o operador que, mesmo sem poder urna dessas regioes que contèm a per- gunta que nao se é
al- cangar a ressurreigao do passado, nào deixa de capaz de formular, poden- do revelar ao mesmo tempo
constituir o trago de um antigo presente. Essa/ evocagáo um aspecto do ser que até entáo estava oculto, e que
se choca multas vezes com obstáculos e fracassos sobre desse modo abre para um circuito de pensamento
os quaìs Bergson se interroga, pois, para ele, tais inédito, É essa “arte de pensar“ que Deleuze tem em
7
inadequagòes tornam o fenomeno mais interessante. vista em sua explorapáo da produgáo cinematográfica
0 cinema adota como objeto privilegiado/: essas
disjungoes do reconhecimento atentivo: “0 cinema contemporánea com a ajuda das ins- tituipóes
europeu se confrontou muito cedo com um conjunto de bergsonianas.
Crítica da semiología do cinema nica do "O que é?” para substituida por outra
Quando, no inicio dos anos 1980, Deleuze adota interrogaqào, a das condigòes de possibilidade. Ao par
como objeto de estudo o cinema, o que aparece como o antigo da essència a descobrir por trás da aparència
330 François Dosse
olhar crítico mais profundo é o de urna semiología do sucede o par dos fatos atestados e das condigoes de sua
cinema, herdeira do paradigma estruturalista. Ela tem possivel emergència. Metz é kantiano na medida em que
seu teórico na pessoa de Christian Metz, que participa descarta como um falso problema a questao de saber se o
ativamente do desenvolví mentó das leituras cinema provém, corno clamam os pioneiros, de urna
semiolinguísticas. Em 1968, ele publica urna obra que lingua universal. Ele desloca essa questao se
fará eclodir toda urna nova corrente na semiología, A perguntando: “Em que condigòes 63o cinema pode ser
Significagao no Cinema8. considerado como urna ìinguagem?” .
Segundo Metz, o cinema é urna lingua- gem sem Deleuze elogia a prudència de Metz quando
língua caracterizada pela narrapao, a imagem-cinema fundamenta sua demonstragao em um fato histórico
sendo aproximativamente comparável a um enunciado: atestado, o da dominagào do cinema de Hollywood
“O plano fílmico se parece mais com um enunciado do como matriz do cinema narrativo, Deleuze nào concorda
que com urna palavra”''9. Quando se pergunta em que mais com Metz quanto ao prego a pagar: “Desde que se
condipóes essa imagem se torna um enunciado, tende-se substi- tuiu urna imagem por um enunciado, deu-se à
a definir regras de uso, e é esse o projeto de urna imagem urna falsa aparència, tirou-se dela 1 seu caráter
semiología do cinema, conforme as orientapoes da aparente mais autèntico, o movimento’* . Tudo se
lingüística saussuriana. reduziu à linguagem com suas regras, e é a narragào que
Metz passa da cinefilia a urna nova aborda- gem do faz a diferenga entre a fotografìa e a imagem-cinema
cinema, á qual aplica a grade concei- tual que elabora segundo Metz: “Passar de urna imagem a duas imagens
com sua “grande sintagmática”: “O objeto de minha é passar da imagem à linguagem”65. Os discípulos de
paixáo intelectual era a própria máquina lingüística” 60. Metz seguem o mesmo caminho que conduz a suspender
Em 1964, seu primeiro texto semiológico parte de urna o movimento naquilo que é definido como urna “sèmio
rea- pao contra a crítica cinematográfica que ignora as critica”.
renovapóes lingüísticas e que se mantém á parte dos Metz tem como ambigào construir urna “grande
avanpos semioiógicos, ao mesmo tempo em que sintagmática”, que faz rir Deleuze: “Isso me provoca o
aumentara as recorréncias a urna linguagem riso, pois66 ougo a grande senhora està morta, é
cinematográfica particular: “Partí ali da nopáo Bousset!” . Sempre de man eira divertida, Deleuze diz
saussuriana de língua. [...] Eu achava que o 6lcinema ouvir, atrás da grande sintagmática, a grande
podia ser comparado á linguagem, e nao á língua . paradigmática, mas Metz admite que para o cinema esta
Essa formalizapáo extrema da linguagem se reveste de pouca importancia, pois é infinita em suas
cinematográfica encontra sua fonte lingüística possibilidades.
essencíalmente na obra de Hjelmslev, cuja nopáo de À semiologia saussuriana, Deleuze opòe urna outra
expressao define muito bem, segundo Metz, a unidade fonte de inspi ragáo, que lhe permite avangar em seu
de base da “linguagem” ííl- mica, enquanto que a designio de construir harmónicas de signos na
codíficagáo está ligada a urna abordagem puramente continuidade do que havia fei- to com Proust. Quando
formai, lògica e relacional: “No sentido em que fala em cinema, tem em mente urna classificagào de
Hjelmslev o entendia (~ forma de contendo + forma da signos. Anunciando aos seus alunos, em 2 de novembre
expressáo), um código é um campo de comu- tabìlìdade, de 1982, que .irá retomar e ruminar, ‘a maneira de urna
de diferencialidades significantes. Portanto, pode haver vaca, acrescenta, seu curso do ano anterior sobre o ci-
vários códigos em urna unica linguagem"62, nema, eie parte dessa intuigao de que tem algo de
Deleuze se inscreve em ruptura radicai com essa importante. Sua intengào é prosseguir em urna
orientando dominante no campus da universidade de exploragáo sistemática dos signos: “Nao digo, se chegar
Paris-III, na época o principal reduto de estudos teóricos a essa classificagáo, que eia vai mudar o mundo, mas6
sobre o cinema na Franga. Para ele, nao se pode definir a que eia vai me mudar, e isso me dà o mesmo prazer” ',
imagem cinematográfica como urna lingua, pois isso Deleuze nào tem a ambigào de estabelecer para o cinema
significa deìxar de lado o que especifica a imagem corno o equivalente da tabela de Mendeleiev. Mais do que
movimento e corno tempo. Deleuze qualifica Metz de Saussure, é o inventor da semiòtica, Charles Sandres
“kantiano”, qualificativo mais laudatòrio, mas acrescenta Peirce, que vai desempenhar o papel de caixa de
que Metz parece nào se dar conta disso. Kant é quem ferramentas e dar urna diregào bem diferente de
remete ao passado pré-critico a questao metafisica platò- pesquisa, pragmática, privilegiando a agáo e os usos68.
Peirce assinala o fato de que cada degrau contém
degraus precedentes. Seu interesse maior aos olhos de Assim, quando em 1983 aparece o primei- ro volume
Deleuze está na concepgáo dos signos como ligados a de Deleuze sobre o cinema, A Ima- gem-Movimento, ele
outra lógica que nào a da lingua. De fato, sua trilogìa causa pavorGilles
e reprovaçao& Félix
do lado dos universitários
está ligada fundamentalmente à imagem-movimen- to e especialistas desseDeleuze
campo: “No meu caso, minha reaçâo
Guattari 331

permite pensar a imagem cinematográfica segundo a foi de uma terrivel resistência. Bergson, isso nâo me
lógica endógena. Contudo, Deleuze nao se deixa interessava de jeito nenhum, era o inimigo do povo, eu
aprisionar pela “pulsao” classificatòria de Peirce. Em tinha lido meu Politzer quando menino. Depois, eu
primeiro lugar, dà a eia outra acepgáo, mas, achava que ele forçava portas abertas: passar 300
principalmente, recusa a ideia de fechar o sistema com a páginas muito complicadas para nos dizer que69 a imagem
terceidade. O modelo saussuriano nào podia interessar a está em movï- mento, obrigado, eu já sabla” . Situando-
Deleuze, pois é sincrónico, negador de todo movimento se no cruzamento dessas duas correntes, Raymond
em nome da lei que rege o sistema, e além disso excluí a Bellour acha severa a crítica deleuziana das teses de
palavra como objeto da ciencia lingüística em proveito Christian Metz. Considera que Deleuze, de quem alias
apenas da lingua. aprecia muito a contribuiçâo no campo da teoria do
Os pioneiros do estudo cinefílico na cinema e ao qual consagra todo seu curso de 1989 e
universidade 1990, rejeita de forma um tanto quanto violenta a
questao da narra- tividade. Ele partilha com André de
0 nascimento do departamento de estudos Souza Parente a ideia de que há “processos narrativos
cinematográficos de Paris-III remonta a 1969. Esse imageantes” a partir dos quais se pode afirmar que a
ensino é entao dos mais confìdenciaìs, fruto da vontade narraçâo de inicio faz parte da imagem, A imprensa, por
de um único individuo, Alain Virmaux, especialista em sua vez, dá uma boa aco- lhida a es sa incursâo do
Antonio Artaud, as- sistido por sua esposa. No ano filósofo Deleuze nesse novo continente. Le Monde
seguinte, esse pioneiro amplia sua equipe e, aconselhado publica uma lon- ga entrevista de Deleuze com Hervé
por Raymond Bellour, telefona para os Cahiers para Guibert. Deleuze explica ali que nao se trata, com essa
recrutar professores: Jacques Aumont, Pierre Baudry, obra, de uma história do cinema, mas de um ensaio de
Pascal Bonitzer e Pascal Kané aceitam a missâo e se classificaçâo de signos e de imagens, Ele evoca o prazer
lançam, sem nenhuma experiencia, em urna aventura que experimenta ñas salas de cinema especializadas,
que em pouco tempo será um sucesso espetacular. Os como o Mac Mahon, onde pôde assistir a toda a obra de
estudantes afluem e esses críticos de cinema serâo Joseph Lo- sey. Quanto ao que o levou a escrever sobre
obrigados a dar aula em anfiteatros, diante de 200 a 300 esse tema, explica que na infáncia, por volta de 10 anos,
pessoas. Em 1971, apesar do sucesso, os quatro compa- antes da guerra, já ia muito ao cinema: “Tenho
nheiros dos Cahiers ficam sabendo que nao se- râo lembranças de filmes e de atores dessa época. Eu amava
recontratados. Dispostos a brigar, procuram um Danielle Darrieux, e Saturnin Fabre me agradava muito,
advogado, ocupam junto com seus alunos a sala do pois me causava medo e me fazia rir, ele tinha inventado
presidente da universidade e obtém ga- nho de causa. uma dicçâo”70. Contudo, no pós-guerra, a filosofía o
Contudo, preocupados em estabilizar esse departamento, absorve quase por completo: “O que me levou a escrever
recorrem ao cineasta René Gilson para dirigi-ío. É este sobre o cinema é que eu arrastava ha muito tempo um
último que recruta Michel Marie, militante comunista problema dos signos. A lingüística me parecía inapta
que, com suas qualidades de organizador, estabelece as para abordá-lo”7!. Serge Daney consagra uma página72 de
bases académicas do departamento. Libération à obra e também dá a palavra a Deleuze .O
Paris-III ganhou a aposta do reconheci- mento, a mesmo acontece com os Cahiers du Cinéma'í. Por sua
ponto de ter-se tomado o epicentro dos estudos vez, Jérôme Bindé saúda esse livro que demonstra que a
universitários franceses sobre a teoria do cinema: foi lá irrupçâo da sétima arte nesse século necessitava de uma
que tfveram lugar em 1983 as primeiras nomeaçôes de verdadeira re- voluçâo filosófica, que Deleuze re alì
titulares. A semiología estrutural do cinema tal como a zou7’5.
concebe Christian Metz é entao dominante na instituiçâo Contudo, o essencial dos teóricos do cinema reserva
vizinha que é o EHESS1, onde ele coordena seu uma acolhida muito crítica, quando nâo cáustica, à obra
seminario, que frequentemente se prolonga em Paris-III, de Deleuze. Em- bora em seu seminàrio Christian Metz
Os pilares do departamento de Paris-III passam a ser aceite o principio da critica de suas teses, esclarece que
Michel Marie, Roger Odìn, Jacques Aumont, François Deleuze e ele náo falam da mesma coisa, o que Ihe
Jost e Marc Vernet. permite evitar um confronto direto: "Metz náo era
filòsofo, mas professor de gramática, e se sentìu muito
1N. de X: Sigla de École des hautes études en sciences sociales. atingido. Eie era, aliàs, de uma fragiìidade pessoal
incrivel. Mas decidiu náo avançar no terreno do Édipo ainda menciona apenas um filme de Nicholas
contraditor e entào fez de conta que nao Ihe dizia respe Ray, Atrás do Espelho, e outro de Chaplin, Tempos
ito”75. 332 François Dosse Modernos, mas em Mil Platos (1980) já se encontram
Quando aparece A Imagem-Movimento, Metz nâo é reflexoes técnicas sobre o grande plano e referèncìas a
mais o líder de uma semiologia generalizada em plena Godard, Eìsens- tein, Herzog, Hitchcock, Sternberg,
expansâo, e seu isolamento é cada vez maior. Sua reaçâo Wenders e Daniel Mann. Alguns conceitos essenciais
de re trai me rito consolida seu prìmeiro círculo, o de sao apresentados desde essa obra escrita com Guattari, o
Michel Marie, Roger Odin, Marc Vernet, François jost e de “dividual” ou ainda esse canteiro importante de
todos os frequentadores de seu seminàrio, em urna exploraqao do virtual, de modo que é precìso ver esses
rejeiçâo violenta das teses de Deleuze. Essa reaçâo dois livros sobre o cinema na estrìta continuìdade das
académica se mantém por multo tempo. Com apenas ìndagaqòes filosóficas de Deleuze. Assìm, “uma parte de
aigumas exceçôes, é preciso esperar os anos de 1990 A Imagem-Tempo se desenvolve Sia partir do segundo
para que os estudan- tes imponham aos seus professores capítulo de Diferenga e Eepetigao” .
as obras de Deleuze sobre o cinema. Essa experiencia é Na contracorrente, Leutrat é um dos pou- cos a poder
vivida por Jacques Aumont, que reconsidera agora suas situar essas intervenqòes de Deleuze sobre o cinema na
primeiras impressóes negativas a partir do trabalho de coerència do conjunto de sua filosofìa. Na medida em
pesquisa de seus alunos e, 76em particular, de seu que Deleuze vai se tornando moda nos estudos
doutorando Dork Za- bunyan . Dominique Château cinematográficos, Leutrat é cada vez mais requisitado
ainda permanece muito critica e muito polémica nos para orientar teses ou participar de bancas, visto que
anos 1990, vendo em Guattari um guardiào do tempio pode argumentar de urna posiçao académica sólida na
filosófico: preocupado sobretudo em conservar um condiçâo de presidente da universidade de París-III
monopolio sobre o conceito, eie teria uma concepçâo durante cinco anos. Quando Deleuze se aposenta no final
“caníbal da filosofìa"7. As duas obras consagradas por do ano letivo de 1987, confia a ele dois de seus doc-
Deleuze ao cinema sào, para eia, uma especie de torandos que estao trabalhando na área do cinema:
roupagem filosòfica de uma concepçâo puramente Véronique Tacqúin, especialista em Dreyer, e Alain
baziniana que nâo leva em consideraçâo as contrihuiçôes Ménil82.
da teoria fìlmolinguistica de Metz: “Deleuze descarta a
hipótese linguistica para voltar ao simplismo dos
postulados bazinianos (e bergsonianos)” 78 O sismo de 1939-1945
Nesse melo dos teóricos do cinema, Je- an-Louis Os especialistas do pensamento de Deleuze sabem de
Leutrat élim pouco exceçâo, pois es- capou à semiologia sua desconfîança nietzschiana diante do fardo da historia
de Metz e muito cedo tra- vou reìagao com a obra de e por isso se tranquilizan! quando ele esclarece que seu
Deleuze. Estudante em Lyon nos anos de 1960, náo foi projeto de cinema consiste em realizar urna classificaçâo
aluno de Deleuze -- fazia um curso de literatura -, mas das ìmagens e dos signos. Con- tudo, logo sao pegos a
um de seus professores, Robert Mauzi, escre- veu uma contrapé por urna tese interamente ordenada em torno de
longa resenha de Proust e os Signos. Portanto, descobre um corte histórico muito incisivo, a partir do qual se de-
Deleuze precocemente e, quando aparecem os livros senvolvere dois modos de ser da imagem: urna ìmagem-
deste sobre o cinema, já conhece bem as temáticas movimento antes da Segunda Guerra Mundial e urna
deleuzianas que sáo para ele pontos de apoio para resistir imagem-tempo em seguida, Como um filòsofo corno eie
à onda semiológica que conduz a crítica cinematográfica - perguntam-se alguns - pode ceder tao facilmente a um
a praias que julga estéreis. Ao publicar em 791988 uma his- toricismo que sempre eombateu firmemente? Seria
obra sobre o cinema, dedìca-a Gilles Deleuze , tendo o na verdade urna conexâo necessària ao enredo, às
cuidado de Ihe enviar antes uma còpia para ter sua apro- imposiçôes narrativas específicas a um desenvolvlmento
vaqào. Esse será o ponto de partida de trocas epistolares no tempo de seu traballio de classificaçâo dos signos?
e de alguns encontros. A hipótese que se lança aqui pretende dar a devida
Bom conhecedor da obra de Deleuze, Leutrat importancia a esse corte, para além das imposiçôes
identifica nele um interesse já manifesto pelo cinema na próprias à narrativa, ligando-a a um questionamento
rápida progressáo das referèn- cias cinematográficas muito mais profundo de urna visao teleologica da
desde Diferenga e Pepe~ tìgàio (1968). Sua análise do historia, que se traduziu em urna critica permanente da
filme de Welìes, Ci- dadào Kane, e a afìrmagào de que diatètica hegeliana. Pensar a modernidade implica para
"o tempo nao está mais subordinado ao movimento' 80
Deleuze “renunciar a Hegel”, como, aliás, sugere no
prefì- guram o corte que conceituará bem mais tarde mesmo momento Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa.
entre imagem-movimento e imagem-tempo. 0 Anti-
Se é preciso renunciar a esse grande filósofo é porque massas, um ingrediente da política totalitària. Sobre esse
um sismo muito forte abalou nossa relaçao com o mundo ponto, Deleuze retoma as análises de Serge Daney
desde o triunfo da barbàrie nazista no coraçâo da segundo asGilles
quaisDeleuze
as ambiçôes libertárias do cinema
Europa. Nao se pode mais sustentar urna visào ingènua e viraram obra de submissáo. & Félix Guattari 333

linear de urna historia que realizaría, seguindo urna linha O que se discute após a Segunda Guerra Mundial e
de progresso continua da especie humana, o reino da que provoca urna ruptura radical com o cinema enquanto
Razâo. A reîaçâo com o mundo será afetada, e Deleuze imagem-movi mento sao “as grandes realizaçôes
é, nesse sentido, um fìllio da Segunda Guerra, que o in- políticas, as propagandas de Estado que se tornaram
terpelou quando era aínda adolescente. Assim, o cinema quadros83 vivos, as primerias transportaçôes humanas de
foi para ele um observatorio privilegiado para medir a massa” . A política concentracionista e a obra
força de desesfcabilizaçâo da grande tragedia do século cinematográfica que a acompanhou, como a de Leni
XX. Rlefenstahl, derrotaram os sonhos de emancipaçao
A maior ambiçâo do cinema expressada pelos trazidos pelo cinema. Ao invés de alavanca de urna
pioneíros da primeira geraçâo é renovar profundamente renovaçâo do pensamento, o cinema se torna o lugar de
a relaçâo com o mundo e com o pensamento deste sua asfixia. Enquanto se pensava poder transformar as
último. Torna-se en- táo urna arte de massa para as massas em atores responsáveis por sua propria história, o
massas, onde o povo é sujeito do pensamento cinemato- cinema contribuiu para sua submissáo, para o seu éxtase
gráfico, sujeíto de inspiraçao e de enredo para Eisenstein e para urna brutalizaçâo generalizada. A guerra foi
como para Abel Gance, Segundo esses primeiros sempre urna grande realizaçâo, cada vez mais
realizadores, o cinema pode se tornar o modo de sofisticada, na medida de sua modernizaçâo, e o que eia
expressáo de urna lingua universal, que acaba por se empreen- de consiste menos em ocultar do que em exi-
romper com a tragèdia da historia: torna-se, ao contràrio, bir mentiras. Segundo Paul Virilio, o desejo de
um instrumento de propaganda, de manipulaçâo das
334 Frango i sDosse

Goebbels, até a derrocada final do Reich, era segundo um esquema linear e lògico. Trata-se,.
rivalizar com Hollywood. Eiaveria, portanto, urna entao, de um cinema-verdade eujos encadea-
relag ao circular, em espelho, entre os dois mundos mentos exteriorizam um todo que se supòe ser : o
opostos no terreno militar, mas unidos na mesma verdadeiro. Entretanto, real ou ficticio, pou- co
ìmagem do pensamento. importa para Deleuze, esse cinema clàssico visa
Terminada a guerra, forma-se urna nova chegar a urna verdade. A outra dlmensào pròpria
alianga entre o cinema e o pensamento. Ao mesmo ao cinema clàssico é oferecer urna re- presentagào
tempo em que o totalitarismo in- terrompeu o indireta do tempo, pois eia depende do movimento
evolucionismo progressista do Ocidente, o sonho com seus encadeamentos lógicos e sua
americano de urna socie- dade fraterna desmorona exteriorizagào em urna totalidade realizada gragas
no pós-guerra. Em primeiro lugar é a crise de à operagào da montagem. ;;
Hollywood e a ruma do sonho de integragao 0 cinema moderno rompe com essas com-
americana corno crisol de urna unica e mesma ponentes e promete urna confìguragào muito
civilizagào. Por outro lado, a evolugào tècnica que diferente. Ele nao é mais tonai, e sim serial, con-
favorece a proliferagào de imagens alimenta urna forme um regime de encadeamentos e reenca-
crise generalizada da imagem em seu poder de en- deamentos de imagens a partir de disjungoes e de
camar o mundo. A isso é preciso acrescentar um cortes irracionais. Nào busca mais a verdade,
questionamento do enredo no romance americano mas mostra atitudes corporais que decorrem do
do qual Dos Passos é um dos representantes: gestas, ou seja, de comportamentos que nao
“Resta urna totalidade, mas dispersiva”8'*. Dall traduzem o vivido, mas tentam se livrar de suas
sairà, 20 anos mais tarde, o novo cinema de Robert imposigoes e daquelas da historia.
Altman, de Sidney Lumet e de John Cassavetes,
em que nào há mais per- sonagem principal, mas
urna pluralidade de casos85nào hierarquizados em Da imagem-movimento à imagem-
urna narrativa patchwork” . O mundo circundante tempo
tornou-se o inumano, o impensàveì. A barbàrie De acordo com as très modalidades definidas
acabou com a esperanga de libertagao. Nào se por Bergson de imagem-percepgào, ima- gem-
acredita mais no mundo, e a nova fungào atribuida afeigáo e imagem-agáo, o cinema é antes de mais
ao cinema é “fazer acreditar em urna relagào do nada movimento. Deleuze identifica quatro
homem com o mundo”86. correntes cinematográficas que se distìnguerti
Assim, a ligagào entre o homem e o mundo se principalmente no plano da montagem, pois é là
teria rompido irremediavelmente entre 1939 e que tudo se opera no desenrolar do movimento e
1945: “fi essa ligagào que deve se tornar objeto de das escansòes.
crenga: é impossível que eia seja refeita a nào ser A escola americana privilegia o orgànico na
em urna fé. A crenga nào se dirige87 mais a um composigào das ìmagens-movimentos. Griffìth é
mundo diferente, ou transformado” . Assim, o quem leva mais longe essa ambigào. Esse
cinema nào tem mais corno fìnalidade ser o reflexo organismo sempre ameagado de implodir
de um suposto reai, mas passa a ser a expressao da constituí o enredo dessa nova nagào que surge
pròpria crenga no mundo, restituindo, pela ilusào e das ondas de imigragào mais diversas e cuja
pelo reencantamento do mundo, a confianga em frágil unidade é preciso preservar: “É pròprio do
um suporte social da existència humana: “Cristàos conjunto orgánico estar sempre ameagàdo; é
ou ateus, em nossa universal esquizofrenia temos disso que os negros sao acusados em Nasci-
necessì- ss dade de razòespara acreditar tiesse mentó de uma Naçâo, de querer romper a uni-
mundo” . Dessa rup turale sulta um dade recente dos Estados Unidos aproveitan- do
desmoronamento do a derrota do Sul”s9

esquema sensório-motor que estava na base do Do lado soviético, na mesma época, o


desenvolvimento da imagem-movi mento. 0 problema é outro. Trata-se de mostrar que os
cinema clàssico anterior a essa ruptura era um sacrificios presentes se inscrevem em uma lógica
cinema tonal que encadeava os cortes racionáis
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 335

dialética de superaçâo por um mundo melhor, suportes da comunicagáo parece identificar-se aos
Nessa dialética, a divisâo é motriz do movimento seus efeitos: “Tais sao as cinco características
histórico que conduz ao futuro de acordo com as aparentes da nova imagem: a situagáo dispersiva,
leis do desenvolvimento genético. Eisenstein levou as ligagóes deliberadamente fracas, a forma-
essa divisâo ao cume. Há também unidade, mas passeio, a tomada de consciència dos clichés, a
conforme uma dinámica, uma motricidade que ele denùncia do compio,93.
induz em um movimento inexorávei. Sua Mais urna vez, Deleuze invoca razòes
expressâo é o patético pelo quai a consciencia se históricas para explicar por que é a Itália do pós-
revela a si mesma como participante do guerra que assiste primeiro ao desmoro- namento
movimento histórico. Eisenstein expressa na tela da imagem-movimento com o apare- cimento do
essa leí essencial da dialética segundo a qual “o neo-realismo. Terminada a guerra, a Itália
Uno se toma dois e forma uma nova unidade, encontra-se de fato em uma situagáo ambigua. Ao
reunindo o todo orgánico e o intervalo patético”90. mesmo tempo em que participou plenamente ao
Do lado francés, os realizadores sugerem outra lado da Alemanha nazista na submissao da
via com a composigao mecánica de ima- gens- Europa, viu seu povo se erguer contra o regime
movimento conforme duas modalidades: a da fascista. É nesse terreno minado, em meìo a esse
máquina-autómato do tipo relojoaria e a da tapete de folhas mortas e de ilusoes perdidas que
máquina a vapor, a máquina termodinámica: “A nasce, com Rosseìlinì, De Sica e muitos outros,
uniao cinética do homem e da máquina definirá esse novo cinema que faz saltar pelos ares tudo o
uma besta humana, muito diferente da marionete que tinha constituido o elo da imagem-
animada, e da quai Renoir sa- berá explorar as movimento, Assim, De Sica desconstrói a relagáo
novas dimensóes”9í. A essa mecánica dos sólidos agao-situagáo-agao que faz a ligagao entre os
se acrescenta na França uma mecánica dos fluidos acontecimentos em Ladrees de Bicicleta, dando
que reveía o gosto pronunciado dos realizadores todo o espago à contingéncia. A figura do falsàrio,
franceses pelas águas correntes, as margens dos da falsa apa- réncia, substituí a busca da verdade
rios, do mar... do cinema clàssico.
Finalmente, o outro reduto de criaçâo dinámico Essa crìse do cìnema-agao se traduz no fato de
dessa época sítua-se na Alemanha com o que o esquema sensório-motor é substituido pela
expressionismo, que se concentra na luz como singularidade pròpria a certas situagòes óticas e
vetor de intensidade no movimento. Wegener e sonoras que valem por elas mesmas. Dáo lugar a
Murnau se tornaram mestres desse género que novos signos, chamados por Deleuze de
pretende traduzir as forças do abismo, a opacidade “opsignos” e “sonsignos", que tèm corno efeito
das profundezas, para melhor destacar a embaralhar as fronteíras entre o reai e o
luminosidade e o jogo dos claros-es- curos. O ìmaginàrio: “Um tal regime de troca entre o
expressionismo encontra inspiraçâo na vida nao imaginário e o real aparece94 plenamente em Noi-
orgánica: “É 92o vital como potente germinalidade tes Brancas, de Visconti” .0 destino do neo-re-
pré-orgánica” . alismo italiano é particularmente brilhante com
A tomada de consciéncia da crise da imagem- Visconti, Fellìni, Antonioni, Pasolini...
movimento só intervirá após 1945. Fica evidente Esse corte entre duas eras do cinema, a de um
nessa época que a açâo difícilmente pode cinema clàssico e a de um cinema moderno, é
modificar uma situagáo global. A imagem nao contestada por Jacques Rancière: “Clara em seu
remete mais, entao, a uma unidade orgánica, mas a enunciado, a divisào se obscurece quando se entra
elementos esparsos, dissemi- nados. Por outro no exame das duas questoes que eia levanta”90.
lado, o fio condutor que liga- va uma imagem a Segundo Rancière, há urna di fe renga de ponto de
outra se rompeu, e o contingente vem substituir as vista entre a imagem-movimento e a ìmagem-
conexoes lógicas. A agáo determinada por seu alvo tempo, mas apropriada às mesmas imagens que
se transforma em passeio que tende à erráncia, podem ser examinadas alternadamente em termos
abertura para todas as sorpresas. Finalmente, um de imagens-afeigao e .imagens-cristal. Essa
poder inquietante, oculto, confundido com os oposigao seria, portanto, puramente ficticia.
336 Frango i sDosse

Haveria assim, segundo Rancière, urna forma de instituida pela fenomenologia entre a or- dem da
foucaultianismo em Deleuze na sua pràtica de consciència e a ordem do mundo.
cortes, na separagào entre o momento da logica A imagem-movimento é automovimento,
sensório-motora, o da imagem-movimento e o de automática, solicita a imagem do pensamento.
seu questionamento com a imagem-cristal. Esse caráter de automatismo decorre das técnicas
de gravagao e de projegáo, mas está presente
também no conteúdo representado. O fato de os
O p e n s a m e ri to - i m a ge m expressionistas alemáes representaren! Golem,
O que suscita o interesse filosòfico de Deleuze sonámbulos e outros zumbís é significativo dessa
pelo cinema é, sobretudo, a constatagào do fascinagáo. Para Robert Bresson, aínda, o modelo
automatismo da imagem cinematográfica que se cinematográfico é o autòmato espiritual. Esse
parece com o funcionamento do pensamento. automatismo revita- liza a ambigáo de ter acesso
Nesse piano, ele descobre um precursor na pessoa aos mecanismos inconscientes do pensamento.
de Epstein, que, no inicio do século, tentou Tomando de Bakhtin a nogào de cronotopo, que
construir urna “filosofia do cinema”96. Segundo define um espago-tempo, um continuum espago-
Epstein, a invengào dessa nova tècnica inaugura tem- poral, Deleuze pretende restituir, por meio da
um novo modo de pensamento capaz de mudar expressáo cinematográfica, um cronotopo do
nossa relagao com o mundo. Epstein insiste, corno pensamento que sofre variagoes cuja lógica a
Deleuze farà mais tarde, sobre essa possibilidade filosofìa pode compreender: “Esse espago- -tempo
de um acesso direto ao tempo: “0 tempo para é balizado por gritos”99. Sob as cama- das do
Epstein aparece no cinema corno a quarta discurso, é preciso, portanto, buscar a
dimensáo que se acres- centa às très dimensoes singularidade dos gritos filosóficos. A filosofìa
espaciáis... No cinema, pressupoe urna imagem do pensamento que é urna
•t - »97 de suas condigóes de possibilidade, e esta remete a
o tempo aparece como sendo ñas coisas . Segundo um cronotopo no qual vibra urna sin- gularìdade
Epstein, o automatismo da cámara é fonte de propria a cada pensador.
positivìdade, e a nova subjefcividade que se Para Deleuze, o que fundamenta a apro-
origina déla se encontra fixada, conectada à ximagáo entre a imagem-cinema e a imagem do
máquina: “A imagem cinematográfica designa o pensamento tem a ver, entáo, com essa
mundo sem intermediàrio, atinge sua presenga espontaneidade, com esse automatismo proprio à
pura. É nessas condigóes que Epstein pensa o imagem do cinema. É essa relagáo direta com o
cinema como essencialmente poético, ele permite tempo que marca a segunda geragao de cineastas.
de fato encontrar urna ligagáo 98 direta, Assim, para Robert Bresson, os filmes sao melos
eminentemente sensual com o mundo” . Essa de representar autómatos espirituais capazes de
fonte de inspiragáo nao é na verdade sur- restituir os automatismos da cotidianidade:
preendente, pois Epstein é bastante influenciado “Portanto, o cinema faz ascender100em nós o
pelo bergonianismo. De fato, encontra-se nele a autòmato espiritual. Que bela ideia!" . Com esse
mesma preocupagáo de evitar a separa- gao automatismo, nao se tem acesso aos mecanismos
inconscientes do pensamento? É o que pensa o
psiquiatra Pierre
Gilles Deleuze & Félix Guattari 337

janet no fìnalzinho do sáculo XIX, exatamente escolha - adaptanclo-o à afìrmagào nietzschiana


no momento em que nasce o cinema. do eterno retorno da diferenga na repetigào”Kb O
Deleuze ironiza a propòsito da concepçào que sempre se constata ser o alvo critico de
critica do cinema desenvolvida por Georges Deleuze, em sua valorizagao do que permite a
Duhamel ao se queixar de nao conseguir mais imagem-tempo, é o distan- cìamento que ele
pensar quando as ìmagens moventes do cinema autoriza em face da opinìào pronta, da doxa.
substituiam seus próprios pensamentos. Eie Assim, sao transbórdamenos, excessos da
exprimia assim uma oposiçâo radical entre conscièncìa dominada mostrados na tela: “Pensar
imagem e pensamento. Essa concepçào, segundo é aprender o que pode um corpo nao pensante, sua
Deleuze, é absurda: “É justamente porque o capacidade, suas atitudes ou posturas. É pelo
cinema é capaz de dar vida ao automato espiritual corpo (e nào mais por intermèdio do corpo) que o
que ele está 10em uma relaçâo fundamental com o cinema se 100casa com o espirito, com o
pensamento” ’. A conexáo com o pensamento pensamento” . Segundo Deleuze, quem foi mais
filosófico se faz, portanto, nos dois extremos da longe nesse campo da expressivìdade corporal,
cadeia: no plano da lógica formal supraconsciente, além do dito, foram Antonioni, Cassavetes,
assím como no plano da investigaçâo sobre o Rivette, Godfard, mas encontram-se também, um
funcionamiento do cé- rebro e dos modos de pouco mais tarde, Chantal Akerman, Jean
transmissâo por enca- deamentos e Eustache, Philippe Garrel nesse cinema de
reencadeamentos de neurónios. posturas, do gestus e das diversas atitudes
Esta última dimensáo aproxima as pesquisas corporais. Alguns cineastas conseguem inclusive
deleuzianas daquelas das ciencias cogni- tivas exprimir possiveis disjungòes entre a dimensáo
sobre a transmissâo de um neurónio ao outro, mas, das atitudes corporais e o cerebro. É o caso de
sobretudo, daquelas de um Gilbert 102Simondon Antonioni, cuja obra, como se disse muitas vezes,
sobre a estrutura topològica do cérebro , Deleuze nào passa pelo tema da soìidào e da
desloca, assim, a questao da verdade incomunìcabìlidade, e sim do dualismo profundo
representativa - seu alvo crítico favorito: a entre um cérebro moderno inteìramente voltado às
imagem-pensamento à quai o cinema nos dá potencialidades crìativas oferecidas pelo mundo,
acesso nao é absolutamente o prolongamiento de mas confrontado com um corpo usado, fatigado,
qualquer interioridade ou exterioridade cuja às voìtas com uma neurose que o esteriliza.
verdade seria projetada na tela. Ao contràrio, a Resnais também foi um grande explorador dos
imagem-pensamento provoca o pensamento na mecanismos cerebrais. O que o cinema desvenda
medida em que opera uma disjunçao que deixa nao se limita a um mundo de imagens. Ele mostra
entrever a relaçâo direta com o tempo: “O tempo urna dimensáo essencial da vida confrontada com
aparece mais como uma força que provoca o a duragáo, a dos cristais de tempo: “O cristal é
pensamento dissociando-o de sua imagem ou de expressào. A expressào vai do espelho ao
sua autor- representaçâo ‘verídica’”103. A partir germe”107. Werner Herzog con- jugou o atual e o
desse postulado, todo o principio de identidade se virtual nessas imagens-cris- tal, particularmente
desagrega, e o verdadeiro nao pode se referir ao em Coragáo de Cristal E também o caso do
imutável, ao idéntico: “O que antes se chamava de cinema de Andrei Tarlo- vsky: O Espelho, Solaris,
‘leis’ do pensamento (os principios de iden- Stalker. Quanto a Max Ophüls, conseguiu restituir
tidade, de contradiçâo e do terceiro excluido) o cristal puro: “Na imagem-cristal há essa busca
encontra-se privado de todo fundamento”10^. A mùtua, 105cega e lateante, da matèria e do
verdade se deslocou, entâo, para terreno do espirito” . Com essa imagem-cristal, Deleuze
revolto, das transformaçôes; eia remete à mu- aproxima mais urna vez as inspiraçôes
dança inexorável, à poténcia do falso, do devir da bergsonianas de urna imbri- caçâo temporal do
difere nei açâo: “Deleuze reescreve aqui o presente e do passado, pois o que se percebe
principio ontològico de Bergson - segundo o qual através do cristal é justamente essa duplicaçâo do
a disjungào temporal entre percepgáo e iembranga tempo: “O que se vè no cristal é sempre o
informa nossa liberdade de pensamento e de irromper da vida, do tempo, em sua duplicaçâo ou
338 François Dosse

em sua diferenciaçâo” Com o cristal, é o tempo


109
Souza PARENTE, Cinéma et narrativité,
a que se tem acesso em seu proprio processo de L’Harmattan, Paris, 2005, obra já publicada no Brasil,
cisào e, portanto, o que se percebe é menos o com prefácio de Raymond Bellour).
tempo em si mesmo do que a força que eie 12. Serge TQUBIANA, “Le cinema est deleuzien”,
veicula, seu processo. Cahiers du cinéma, n. 497, dezembro de 1995,
0 que apaixona Deleuze é o surgi mento do p. 20.
tempo no cristal, que permite uitrapassar o nivel de 13. îbid
análise psicológica e neuronal para explicar a açâo 14. Ibid., p. 21.
humana. Deleuze esclarece aínda na conferéncia 15. Gilles Deleuze, “Une art de planteur”, em Deleuze,
da Femis de 17 de margo de 1987 que marcará Paye, Roubaud, Touraine parlent de Les Autres un -

época: “O que é o ato de criaçâo?”. A filosofìa, diz film de Hugo Santiago, écrit en collaboration avec
Adolfo Bioy Casares et Jorge Luis Borges, Christian
Deleuze, nâo tem como tarefa refletir sobre o Bourgois, 1974; reproduzido em ID, p. 401-403.
cinema, pois os cineastas nao precisam do filósofo 16. Gilles Deleuze, “Le juif riche”, Le Monde, 18 de
para Ihes dizer como devem pensar sua pràtica. fevereiro de 1977; reproduzido em RF, p. 123.
Ele qualifica sua contribuiçâo como urna maneira 17. Ibid., p. 124.
de teorizar nâo o cinema, mas “os conceitos que o 18. Claude LANZMANN, “Réponse à Gilles Deleuze.
Nuit et Brouillard”, Le Monde, 23 de fevereiro de 1977.
.. »HO

cinema suscita . 19. Ibid.


20. Os Cahiers passam de 15 mil números vendidos
Notas (assinatura e banca) entre 1968 e 1973 para 3.403! Cifra
1. 1981-1982; 1982-1983; 1984-1985. extraída de Antoine DE BAECQUE, Cahiers du
2. Giles DELEUZE, Cinéma I. Limage-mouvement, cinéma, histoire d’une revue, tomo 2, ed. Cahiers du
Minuit, Paris, 1983 (doravante citado IM); Cinéma cinéma, Paris, 1991, p. 225.
2. L'image-temps, Minuit, Paris, 1985 (doravante 21. Serge Toubiana, entrevista com o autor.
citado ÍT). 22. Ibid.
3. O departamento de cinema da universidade de 23. Six fois deux/Sur et sous la communication [Seis
Vîncennes nasceu de um departamento de “Artes”, vezes dois/Sobre e sob a comunicaçâo] é uma série de
constituido na criaçâo de Paris-VIIl, no outono de programas transmitidos pela televlsâü em 1976 com a
1968. Mas, em pouquissimo tempo, o grande afluxo advertencia de que eia nâo tem as características
de estudantes impôs dividir esse departamento usuais dos outras programas. Jean-Luc Godard
ínchado. É assim que alguns professores vâo desenvolve ali uma reflexâo sobre a comunicaçâo e,
constituir um departamento de cinema, sobretudo em particular, sobre a produçâo, a transmissâo e a
para satis- fazer seu gosto pela sétima arte. recepçâo de informaçôes na televisâo. Os seis
4. jean Narboni, entrevista com o autor. programas comportara cada um duas partes
5. Guy FIHMAN, “Deleuze, Bergson, Zénon d’Élée et complementares: urna teórica sobre um aspecto da
le cinéma”, em Olivier FAHLE, Lorenz ENGELL produçâo e do consumo de ímagens à quai se segue
(dir.), Le Cinéma selon Deleuze, Verlag der urna entrevista com urna pes- soa que expóe um ponto
Bauhaus-Universitat Weimar, Presses de la Sorbonne de vista subjetivo.
nouvelle, Paris, 1997, p. 66. 24. Jean NARBONI, “Gilles Deleuze... une aile de
6. Gilles DELEUZE, B. papillon”, Cahiers du cinéma, n. 497, dezembro de
7. Gilles DELEUZE, "Trois questions sur Sixfois 1995, p. 24.
deux”, Cahiers du cinéma, n. 271, novembro de 1976; 25. Gilles DELEUZE, “Trois questions sur Six fois
reproduzido em PP, p. 55-66. deux’\ Cahiers du cinéma, n. 271, novembro de 1976;
8. Jean Narboni, entrevista com o autor. reproduzido em PP, p. 56.
9. îbid. 26. Ibid. e PP. p. 57.
10. André de Souza Parente, entrevista com o autor. 27. jean Narboni, entrevista com o autor.
11. Apenas em 2005 ele publica urna obra na Franga 28. Pascal Bonitzer (1977), citado por Antoine DE
sobre esse tema. Na época, é diretor do Centro de BAECQUE, Cahiers du cinéma, histoire d'une
Pesquisa Cultura e Tecnología da imagem da revue, tomo 2, op. cit., p. 296.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (André de 29. Pascal Bonitzer, entrevista com o autor.
30. Dominique Païni, entrevista com o autor.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 339

31. Jean NARBONI, “Gilles Deleuze... une aile de cronológica, que se deixa adivinhar no cristal:
papillon”, art. cit., p. 25. “Cronos e nao Chronos” {Ibid., p. 107).
32. Gilles DELEUZE, “Lettres à Serge Daney: op- 56. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos
timisme, pessimisme et voyage", prefacio a Serge audiovisuais, BNF, 7 de junho de 1983.
DANEY, Ciné journal ed. Cahiers du cinéma, Paris, 57. Ibid.
1986, reed. PRp. 97-112. 58. Christian METZ, Essais sur la signification au
33. Ibid., p. 101. cinéma, Klincksieck, Paris, 1968.
34. Ibid., p. 110. 59. Ibid., p. 118.
35. Ver a biografía de Dudley ANDREW, André Bazin, 60. Christian Metz, entrevista com Marc Vernet e Daniel
ed. Cahiers du cinéma, Paris, 1983. Percheron, Ça, Cinéma, maio de 1975,
36. Antoine DE BAECQUE, Cahiers du ciném.a, p. 26.
histoire d’une revue, op. cit., tomo 1, p. 58. 61. Christian Metz, entrevista com Raymond Bellour,
37. André BAZIN, Qu'est-ce-que le cinéma?, Cerf, Paris, Semiotica, IV, 1,1971, p. 242.
1976. 62. Ibid., p. 266.
38. Serge Toubiana, entrevista com o autor. 63. Gilles Deleuze, aula em Paris-VHI, arquivos
39. Michel Ciment, entrevista com o autor. audiovisuais, BNF, 26 de fevereiro de 1985.
40. Michel CIMENT, Kubrick, Calmann-Lévy, Paris, 64. Gilles DELEUZE, IX p. 41.
1980; Les Conquérants d'un nouveau monde: essais 65. Christian METZ, Essais sur la signification au
sur le cinéma américain, Gallimard, Paris, 1981. cinéma, op. cit., p. 53.
41. Alain Ménil, entrevista com o autor 66. Gilles Deleuze, aula em Paris-VHI, arquivos
42. Michel Ciment, entrevista com o autor. audiovisuais, BNF, 5 de março de 1985.
43. Raymond Bellour, entrevista com o autor. 67. Ibid., 2 de novembro de 1982.
44. Gilles DELEUZE, IM, p.7. 68. Charles Sandres PEIRCE, Écrits sur le signe, Seuil,
45. Jbîd. Paris, 1978.
46. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIiI, arquivos 69. Jacques Aumont, entrevista com o autor.
audiovisuais, BNF, Io de dezembro de 1981. 70. “Portrait du philosophe en spectateur”, en- fcrevista
47. Henri BERGSON, L'Évolution créatrice, PUF, de Gilles Deleuze, Hervé Guibert, Le Monde, 6 de
"Quadrige”, Paris, 1998, p. 341. outubro de 1983.
48. Gilles DELEUZE, IM, p, 18. 71. Ibid.
49. Paola MARRATI, “Deleuze. Cinéma et philosophie", 72. “Gilles Deleuze: Cinéma 1, Première”, Libération, 3
em La Philosophie de Deleuze, PUF, Paris, 2004, p. de outubro de 1983.
251. 73. “La protographie est déjà tirée dans les choses”,
50. Alain MÉNIL, “Deleuze et le bergsonisme du entrevista de Gilles Deieuze com Pascal Bonitxer e
cinéma”, Philosophie, n. 47, setemhro de 1995, p. 49: Jean Narboni, Cahiers du cinéma, n. 352, outubro de
ver também Alain MÉNIL, L’Écran du temps, PUL, 1983.
Lyon, 1992. 74. Jérôme Bindé, Le Nouvel Observateur, 21 de outil bro
51. Gilles DELEUZE, ÏM,p, 97. de 1983.
52. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIIÏ, arquivos 75. Jacques Aumont, entrevista com o autor.
audiovisuais, BNF, 5 de Janeiro de 1981. 76. Dork ZABUNYAN, Gilles Deleuze. Voir, parler,
53. Gilles DELEUZE, IT, p. 75. penser au risque du cinéma, Presses de La Sorbonne
nouvelle, Paris, 2006.
54. Ibid., p. 130. 77. Dominique CHÂTEAU, Cinéma et philosophie,
55. O passado contemporàneo do presente dà a imagem Nathan, Paris, 1996, p. 107.
virtual ou a imagem em espelho: “Segundo Bergson, a 78. Ibid., p. 142.
paramnésia (ilusâo do jà visto, do jà vivido) apenas 79. Je an-Louis LEUTRAT, Kaléidoscope, PUL, 1988.
torna mais sensiveì essa evidência” {ibid., p. 106).
Essa virtualidade pura näo precisa ser atualizada na 80. Gilles DELEUZE, DR, p. 139.
medida em que está imbricada na imagem presente 81. Jean-Louis LEUTRAT, Kaléidoscope, op. cit., p. 146.
atual Ele nao tem a ver com «m estado psicológico, da 82. Alain MÉNIL, L’Écran du temps, op. cit., 1998.
consciencia, mas só com a dimensäo temporal. Nao se 83. Serge DANBY, La Rampe, Gallimard, Paris, 1983, p.
trata, contudo, de urna tem- poralidade particular, nao 172.
340 François Dosse

84. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIIl, arquivos 98. Ibid., p. 79.


audiovisuais, BNF, 4 de maio de 1982. 99. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIIl, arquivos
85. Ibid. audiovisuais, BNF, 30 de outubro de 1984.
86. Gilles DELEUZE, IT, p. 222. 100. Ibid.
87. Ibid., p. 223. 101. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIIl, arquivos
88. ibid., p. 223. audiovisuais, BNF, 30 de outubro de 1984.
89. Gilles DELEUZE, IM, p. 48. 102. Gilbert SIMONDON, L'individu et sa genèse
physico-biologique, PUF, Paris, 1964.
90. Ibid., p. 59. 103. D. N. RODOWICK, “La critique ou la vérité en
91. Ibid., p. 64. crise”, Iris, n. 23, primavera de 1997, p, 8; ver
92. Ibid., p. 76, também Gilles Deleuzes Time Machine, Duke
93. Ibid., p. 283. University Press, Durham-Londres, 1997.
94. Gilles DELEUZE, IT, p. 17. 104. Ibid., p. 14.
95. Jacques RANCIÈRE, La Fable cinématographique, 105. Ibid., p. 22.
Seuil, Paris, 2001, p. 146. 106. Gilles DELEUZE, IT, p. 246.
96. jean EPSTEÏN, L’Intelligence d’une machine, 107. Ibid.,p. 100.
Écrits sur le cinéma 1,2, Seghers, Paris, 1974. 108. Ibid., p. 101.
97. Suzanne HÊME DE LACOTTE, “Epstein et
Deleuze, cinéma et image de la pensée”/ Chimères, 109. Ibid., p. 121.
n, 57, outono de 2005, p. 76-77. 110. Gilles DELEUZE, IT, p. 365.
Em meados dos anos de 1980, o chao parece casa modesta em La Borde, perto do domicilio de
fugir aos pés do incansável Guattari, sempre Jean Oury, e instala sua mesa no espago mais
perseguindo novas ideias. Urna série de acon- sombrio de seu quarto. Essa ex- tirpaçâo dos
tecimentos afunda lugares e dos rituais
aquele que parecía Guattari e a estética ou a ligados a eles
insub- mergível, compensaçâo aos anos de inverno ocorre, além disso,
Entretanto, ele no momento em
continua a dissimular em público, a responder as que perde a máe. O crítico feroz do familialismo
solicitagoes cres- centes, mas o círculo de amigos, nao se cansa, entao, de exprimir a dor por essa2
que sabe que a energía se esgotou, tenia perda: “Ele nào parava de dizer que estava órfao” .
desesperadamente tirá-lo de seu mergulho na A essas perdas se soma o clima político, o dos
depressáo. Evidentemente, nao existe urna única anos de inverno, que veem ressurgir na superficie
razáo para esse revertério, mas um leque de fatores tragos que se acreditava definitivamente
que agem sobre urna estrutura psicológica da qual desaparecidos, o racismo, que encontra sua
já mostramos algumas fissuras que pareciam expressâo política no avança da extrema direìta e
colmatadas\ de seu líder, Jean-Marie Le Pen. É a hora dos
O pensador da desterritorializagao se vé de recuos sob o pretexto das ilusóes perdidas. As
urna hora para outra destituido de seus apegos pessoas preferem cultivar o jardim e se resguardar
territoriais. Guattari perde a locagáo do castelo de no seu interior protegido, ao abrigo de outro. A
Dhuizon perto da clínica de La Borde, com seus utopia que animara os combates de Guattari se
300 hectares, seus 8 lagos e suas 4 fazen- das. É afasta do horizonte como urna simples miragem. A
despejado também do espagoso apartamento possibilidade de transformar suas angústias
parisiense da Rué Condé com seus seis cómodos exístencíais em projetos de esperanga política se
dispostos em torno de um grande saláo de festa, no tornou mais distante para Guattari ao ritmo da
coragao do Quartier Latin e a dois passos do acumu- lagâo de decepçoes e desilusóes. Em 1978,
jardim de Luxembourg. o olhar caricatural do desenhista Gérard Lauzier
Guattari está muito mais sedimentado, havia esbogado um certo “Gilles Guatareuze”,
enraizado do que aparenta. O luto desses dois estranho híbrido de Deleuze e Guattari perseguido
lugares constitutivos de sua identidade privada e por urna histérica, que decide recorrer
pública íhe é bastante doloroso. Ele arran- ja urna
Gilles Deleuze & Félix Guattari 341

à policía para internâ-Ia3. Guattari se sentiu Halbwachs traz no rosto a doenqa e a morte
fortemente atingido: “Sei que Félix ficou multo próxima quando Jean Chesneaux convida Guattari
magoado com as caricaturas de Lauzier”^. Quando para visitado: ‘Ao sair dessa visita, eu estava
François Fourquet reencontra Guai- tari, após um arrasado, pois sabia que ele estava condenado, e
longo período de afastamento, percebe de imediato Félix, descendo a escada, me disse: ‘Por que voce
a profunda perturbaçao de seu amigo: “Voce sabe, me pediu para vir; ele está bem, o Halbwachs” 56.
François, o que está acontecendo comigo. Fui Essa denegando da morte é seguida de um outro
despejado da Rue de Condé, fui despejado de episodio. Jean Chesneaux convida o amigo Félix
Dhuizon no mesmo momento”. Era urna espécie para passear no cemitério de Père-Lachaise: “É um
de esquizofrénico que perdeu o controle da dos lugares mais emocionantes de París. Passeia-se
situaçâo: “Eu o senti completamente desamparado com prazer entre os monumentos, as legendas
no sentido pròprio, um navio! que perdeu o vento e desse reduto cultural. Vi que estava Picando
nao sabe mais para onde ir" \ pálido, e nao tínhamos percorrido duas alamedas.
A euforia criativa ligada ao traballio com Ele visualízou um portáo se- cundário e se foi sem
Deleuze termina com a publicaçâo de Mil Platos, mais”'.
em 1980, que assínaia o firn, se nao de urna Guattari, que se sabia insaciável, bulímicoi cai
amizade, de urna aventura comum. No inicio dos em um estado catatònico, recolhido em si mesmo,
anos 1980, Deleuze está absorvido pelo traballio urna almofada sobre o ventre como para se
sobre o cinema, depois por seu Foucault e pelo proteger das agressoes do mundo exterior. ELlo
traballio sobre Leibniz, que resultará em A Dobra sentado, absorvendo passivamente programas
em 1988, Ao longo desses anos 1980;-cada um debilitantes da televisáo por dias inteiros. Guattari
deve reencontrar seu proprio fôlego, definir de tem também problemas de saúde cada vez mais
novo objetivos pessoais. Isso é mais fácil para graves. Sofrendo de Grises violentas e muito
Deleuze, que se beneficia de urna ancoragem dolorosas de cólica renal, enche suas valises de
universitària, do que para Guattari, mais isolado. medicamentos e espera assim aliviar suas dores.
Ao retornar a La Borde, Guattari também atravessa Ocorre de encontrar em sua urina verdadeiros
momentos difíceis: ele se vê às voltas com as pedregulhos, e ele precisa controlar estritamente a
chateaçôes do comité de empresa clínica, que o alimentando. Dois anos antes de morrer, recebe
acusa de receber um salàrio alto demais em vista vários alertas cardíacos, mas está táo deprimido
de seu envolvimento nas atividades déla. Tais acu- que nao faz nenhum dos exames necessários.
saçoes apenas reforçam a sensaçâo de isolamento e
a melancolía de um Guattari que nao mediu
esforços, desde os anos 1950, para que La Borde joséphine
se projetasse napaisagem intelectual francesa e É nesse estado fragilizado que Guattari vive
internacional, urna experiéncia conjugal bastante difícil. Na Rué
Além disso, todos esses elementos influem em de Tournon, em 1983, ele inicia de maneira
urna estrufcura psicológica frágil, como ti- vemos fortuita urna relapao amorosa que se revelará
oportunidade de ver ao mencionar a in- fância e a mortífera, joséphine é bonita, tem 30 anos a menos
adolescencia de Guattari, O mergu- Iho que ele, e seus inicios parecem felizes: “joséphine
melancólico só se toma maior, marcante, longo e era urna moqa adorável quando ele a conheceu,
profundo. Dois episodios de sua vida de adulto multo graciosa, multo simples em sua manetta de
relatados pelo amigo Jean Chesne- aux revelam a ser. Mas, pouco a pouco, tornou-se a mulher de um
relaçâo patológica que ele tem com a morte. O grande intelectual parisiense, gastando muito
primeiro refere-se a Pierre Halbwachs, íllho dinheiro, se drogando em excesso”3. Essa aventura
dcrisociólogo Maurice Hal- bwachs, militante de desastrosa empurra Guattari na depressâo mais
todas as causas, jamais refeito da morte do pai em profunda. Em 1986, Félix e Joséphine se casam e
Buchenwald, que se sacrificava por ele e pelo encontram um magnífico apartamento na Rue
irmáo, passando-lhes sua raqáo alimentar. Saint-Sauveur. Guattari precisa se endi- vidar para
Sofrendo de cáncer de- vído ao tabagismo, Pierre
342 François Dosse

adquiri-lo, enquanto Joséphine, por sua vez, perturbaçâo que isso causoifH. Na verdade,
multiplica as despesas suntuosas que acabam por Guattari nao preparou nada, e Joséphine se limitou
causar sérios problemas. Suas necessidades de a ir buscar na mercearia de baixo alguns pratos
droga pesada sao exponen- ciais e custam cada vez frios em embalagens de plástico e colocar tudo de
mais caro, e Joséphine conta com seu novo esposo qualquer jeito sobre a mesa com talheres de
para poder se abastecer. Sua relaçâo fusiona! do plàstico. Eia deixa que os convivas se arranjem e
inicio passa por um afastamento de todo o tecido volta para o quarto no primeiro andar do duplex.
relacio- nal que envolvía Guattari até entâo. Anoréxica, filiforme, Joséphine passa entre os
Joséphine fecha as portas às visitas intempestivas amigos como urna sombra. Lebel se recorda de
para deixar bem claro que náo se trata mais da Rue urna “mulher que era muito magra, encorajada em
de Condé onde o acesso era livre dia e noite a si mes- ma e que nao dizia urna palavra, urna
qualquer amigo de passagem. Amigos tâo presen- ça 12quase cadavérica, no limite entre a vida
próximos de Guattari corno um François Pain e a morte” . Ainda que continue com Guattari, eia
íoram vítimas disso. Posto para fora do aparta- viverá urna longa aventura com o escritor Jean
mento de forma autoritària, Paim se mantém à Rolin, que lhe consagrará um livro após sua morte
distancia. por overdose em março de 199313.
A isso se somam as múltiplas relaçôes se- Nesse clima deletèrio, Guattari consegue às
xuais de Joséphine. Guattari se abre com François vezes recuperar seu dinamismo de outrora,
Pain sobre os problemas que está atraves- sando sobretudo quando se trata de sair de Paris, de
com a esposa: “Félix me diz: ‘Voce sabe bem que viajar em outras latitudes. Contudo, nao é fácil
isso me deíxa doente. Voce está certo de dizer que fazê-lo se mexer nesse estado depressivo, Em
estou na merda com Joséphine, Preciso que me 1988, seu amigo Éric Alliez faz de tudo para tentar
ajude, que vá vê-la. E acrescenta: ‘É como se vocé convencê-lo de que a presença dele no Brasil ao
me visse no fosso após um addente de carro e me seu lado é absolutamente indispen- sável: “Toda
olhasse dizendo:9 vocé precisa sair dai, sem me hora eu ligava para ele do Brasil e ficávamos
estender a máó” . Quando Jean-Jacques Lebel se longo tempo no telefone, com multos silencios”14.
lembra dessa relaçâo com Joséphine, fala como de Felizmente, ainda que Guattari sinta urna certa
urna grande tragèdia que ainda lhe causa arrepios: lassidâo em face desse lugar onde in- vestiu tanto,
‘Assisti à autodes- truiçâo desse homem, desse o universo de La Borde subsiste. Consciente do
amigo, desse irmâo. Nao digo que foi Joséphine estado grave em que se en- contra o amigo, Jean
quem o destruiu. Digo que eie10 se serviu de Oury forma um grupo estruturante de quatro
Joséphine para se auto- destruir” . Como outros, pessoas que se reúne em seu escritorio todas as
Lebel vai sempre que possivel à casa de Guattari quintas-feiras à tarde, ao longo dos anos 1980,
para Ihe fazer com- panhia. Guattari, alias, apela para discutir urna coisa ou outra, muito
com frequência à ajuda dos amigos, até no melo da livremente, Em torno de Oury, encontram-se toda
noite, para iugir da solidao que se tornou semana Guattari, o conselheiro municipal da
ìnsuportàvel. Eles o encontram entâo na Rue Saint- cidade de Blois, Lucien Martin, e a psiquiatra
Sauveur diante da televisao no ùltimo volume, a Danielle Rouleau: “É importante, isso foi umi3
que Guattari assiste ella e noite de boca aberta. ponto de encontró que Ihe permitiu reagir” .
Um dia, chamado por Guattari, Lebel chega Dentro desse grupo, Guattari nâo se abre
com Allen Ginsberg, Edouard Glissant, Paolo verdaderamente sobre seus problemas pessoais,
Fabbri e Christian Bourgois, esperando que com mas reata os vínculos com sua pràtica dos anos de
essas visitas importantes seu amigo Félix se 1960 e 1970. Durante o último período, ele
sentisse obrigado a tirar as pantufas, se lavar, inclusive assiste regularmente ao seminàrio de
descer para fazer as compras e preparar urna boa Jean Oury. Silencioso, toma notas em um
refeiçâo, gestos cotidianos que ele nâo tìnhamais: caderninho preto. Essa escuta é preciosa para
“Esse jantar foi estranho, recorda Christian Oury, pois encarna um diálogo que se restabelece
Bourgois, pois a mulher de Félix apareceu corno entre eles depois de muito tempo interrompido,
um fantasma no meio da refeiçâo, e lembro a desde o traballio conjunto com Deleuze: “No final
Gilles Deleuze & Félix Guattari 343

de cada seminàrio Félix, nunca dízia nada, mas televisào. Digería, conectava, trabalhava o tempo
eles ñcavam sozínhos na grande sala vazia. En- táo todo”19.
se sentavam em duas cadeiras, urna16 junto da outra,
e conversavam por urna boa hora” .
Na casiftha de La Borde, onde reside urna Ser escritor
parte da semana e onde nao pode receber ninguém, Apesar de seu estado catatònico, Guattari
Guattari está sozinho. O tempo das grandes mesas continua disponível, aberto aos combates do
comunitàri as de Dhuizon ficou para trás. Ele momento, e muitos do seu círculo de conhe-
recebe visitas regulares do filho Bruno, que mora cidos nem desconfiara de seu estado psíquico.
em Loir-et-Cher e que Ihe traz o conforto de sua É a época em que ele se engaja ativamente na
presença e comida para o firn de semana. Ao batalha ecologista e continua viajando pelo
publicar seu último Iivro, em 1992, Caosmose, mundo, em particular para o Brasil e o Japao.
Guattari escreve corno dedicatória pessoal ao seu Entretanto, a atividade que o ajuda sobretudo a
Riho: Tara Bruno, que tantas vezes me repescou compensar um pouco os efeitos mais insù-
no fundo de minha vaia”. Esse longo periodo portáveis de seu sofrimento é a escrita. Guattari
sombrío, no final dos anos 1980, é a causa da sempre desejou escrever, ser escritor. Verdadeiro
partida da fìlha Emmanuelle para Nova York. Eia polígrafo, ele nào para de manusear a cañeta a
nào suporta mais a atmosfera da Rue Saint- propósito de qualquer coisa, mentendo um diàrio
Sauveur e sente a ne- cessidade vital de se afastar por períodos, preenchendo cadernos, escrevendo
do pai. Quando retorna à França em 1991, artigos e ìivros.
encontra-o em um estado bem triste. Eia traz um Nos anos de 1980, ele goza do estatuto de
Iivro de Daniel Stern, que o pai lhe encomendou, autor conhecido e reconhecido, principalmente
leitura que o apaixona e à qual dà um lugar por seus Ìivros com Deleuze. Contudo, conserva
importante em Caosmose. Ele o discute com a um gosto amargo, nào somente porque no
fìlha Emmanuelle, e os dois travam en tao um tandem que constituí com Deleuze o público
verdadeiro diàlogo, corno jamais havia existido. retém sobretudo a assinatura do filòsofo, mas
Visto que a Rue Saint-Sauveur é interditada aos também porque espera realizar urna obra literaria.
filhos por Joséphine, Emmanuelle encontra o pai: Nesse plano, multiplica os projetos, os rascunhos,
no fms de semana em La Borde: ‘A gente fazia17 os esbogos, sem chegar efetíva- mente a nada.
muitos passeios. Era verdaderamente tocante” . Experimenta todas as formas de expressao
No plano pessoal, Emmanueìle vive com o pai literaria: poesías, romances, pegas de teatro,
momentos que nunca teria vivido seni essa roteiros, confissoes, sonhos: “Ele nao era um
depressao: “Eu nunca o teria encontrado, era verdadeiro escritor, e acho que sofreu com isso.
impossivel 18 Esse lugar foi liberado pela Ele tinha vontade de criar.110 Creio que era
depressao” . Contudo, a máquina intelectual obcecado demais por Joyce” . Assim, em um
continua a funcionar, mesmo nos plores mo- texto literário de 1975 que critica a política do
mentos: “Eie nào parava jamais, mesmo diante da concreto armado no subùrbio
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 344

de París, ele invoca diretamente Joyce: "Desde Fromanger, propoe-lhe editar às suas expensas o
Finnegans Wake eles nao sabem mais no que texto de Guattari e Ihe pede que o ilustre com seus
pensar! Acreditam que demolindo o máximo de desenhos. O texto é publicado em dois números de
coisas salvarao o essenciar21. Depois de ter La NRF em 1999^. Messe monólogo interior,
publicado Kafka com Deleuze, Guattari se langou Guattari evoca fragmentos de lembranças: a
em um romance de título enigmático que remete á famosa dama de negro, com a arma e a armadura
sua historia pessoal, á sua data de nascimento: es- pelhada diante da cama, a morte do avô, a cifra
33.333 ~ ele nasceu em 30 de margo de 1930. Esse 33.333, todos temas obsessivos que o perse-
ensaio de romance que jamais vem á luz está guiram até o fim em urna torrente literária de
repleto de anotagóes, de observagoes muito frases muito curtas, pensamentos como urna
pessoais sobre sua própria vivencia, seu círculo, expressáo musical.
suas angustias frequ ente- mente mórbidas, o Ao mesmo tempo, em 1989, Guattari apro-
triángulo edipiano que forma com os pais e que, no funda o tema dos ritornelos já presente em 1980
entanto, foi violentamente expelido do horizonte em Mil Platos: “A gente sempre reìacìonou os
teórico definido por ele e Deleuze. objetos musicais com o tempo. Ficou evidente que
Em 1986, Guattari assina urna coietánea de a música habita o tempo. E se fosse o inverso? Se
poemas que também nao sai da gaveta, e cujo fosse o tempo que habitasse a música, senao no
título nao deíxa de evocar o tema da 22dobra, que conjunto de seu desdobra- mento, pelo menos
Deleuze persegue no mesmo momento . De todos dentro de um certo tipo de seus ritornelos?”26. Em
esses esbogos, resulta enfim um escrito mais sua demonstraçâo, Guattari parte do mais simples,
acabado, Ritornelos, urna autobiografía a delimitaçâo territorial de numerosas especies de
fragmentária cujo texto definitivo ele estabele- ce pássa- ros por um ritornelo singular, passando pela
em 1992 com a ajuda de um amigo, o pintor complexificaçâo dos registros numéricos, os
Gérard Fromanger: “Ele me liga e diz: ‘Tenho um leitmotiv de Wagner ou as células repetitivas de
texto fantástico!’ Ele me passa, e havia 300 Philip Glass, para finalmente concluir sua
páginas, e eu digo: está bem, um lado joyce, mas contribuiçâo por um retorno ao simples: “O
acrescento: ‘Há duzentas páginas excedentes, é conceito de ritornelo que proponho tende, ao
ilegível, repetitivo, chato’, e Ihe pro- ponho que a contràrio, a levar em conta todos os tipos de
gente trabalhe junto”2'1. Guattari aceita com tanto produçâo musical, por exemplo, a música rock,
mais entusiasmo na medida em que nao tem que significou, para numerosos jovens, urna
recursos para rever sozinho o texto. Os dois especie de fungao iniciática de 27entrada em urna
homens se langam entáo em um trabalho obstinado cultura popular transnacional” , Ele concebe
que dura seis meses. Reveem tudo, linha por linha, igualmente outras expressôes possíveis com essas
em longas ses- sóes de trabalho de quatro horas, aberturas que restituera à música o ruido e o
seja em Paris ou no atelié de Fromanger na Italia. siléncio, como John Cage, Maurice Kagel ou ainda
Fromanger lia em voz alta e sugería cortar toda Georges Aperghis com sua mùsica gestuali “O
passagem que pudesse enfastiar o leitor: “Eu fazia desafio passa a ser, entáo, a conquista do tempo da
como Fernand Raynaud:Aquíse vendem belas la- vida cotidiana, sua ri- tornelizaçâo* estética, para
ranjas a prego baixo. - Está se vendo que sao depurà-la da banali dade, para ressingularizá-la,
laranjas! - Risco: laranjas...’ Eu fazia a mesma recrié-la28e inventar modos inéditos de presença no
coisa>M. Ao final de um longo trabalho, resta do mundo” .
manuscrito inicial de 300 páginas apenas um No momento em que preparava com Deleuze
extrato de 80. Verdadeiramente seduzido por esses seu capítulo sobre esse tema para Mil Platôs,
manuscritos, Fromanger tira dali urna imensa tela Guattari havia escrito um longo estu- do sobre
intitulada “Caosmos”, que traduz todas as cores de Proust, 20intitulado “Os ritornelos do tempo
urna atualidade movimen- tada e violenta em plena perdido” , publicado em 1979. Ele vê Em Busca
guerra do Golfo e de ataque das Torres Gémeas. do Tempo Perdido como um i menso mapa
Logo após a morte de Félix Guattari, no final de rizomático derivando de objetos mentais
agosto de 1992, Agnès B. telefona para desterritorializados. A “pequeña frase de Vinteuü”
desempenha o papel de uma matèria expressiva de considera seu amigo Fromanger como o pintor do ato de
efeitos reais. Guattari se pôe a estudar os diferentes pintar, respondendo à questao metafísica do “o que é
agenciamentos de enunciaçâo dessa pequeña frase que pintar?” por uma demonstraçao pràtica, um ato
balizara Em Busca. Segue assim o percurso dessa sonata performativo, Parafraseando Austin, pintar é fazer.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 345

que desempenha a funçâo de ritornelo ao longo de todo Libertando as cores de suas relaçôes hierárquicas e
Em Busca até que, ao final da escrita, eia nâo esteja mais colocando-as em pé de igualdade, Fromanger faz délas,
associada às moças e abandone até mesmo o terreno segundo Guattari, o vetor privilegiado da expressao.
musical: “É a propria escrita que se torna música. A Longe do desconstrucionismo, o pintor desenvolve urna
música atravessa as notas, os sons, os muros... 0 pròprio “pintura processus!”34.
mundo se tornou uma espécie de órgao gigantesco, e a Em 1986, Guattari escreve um texto para comentar a
escrita, urna música que por toda parte ultrapassa o série “Cythère, ville nouvelle” por ocasiao da Feira
universo sonoro”30. Internacional de Arte Contemporánea (FIAC), Nessa
A escrita romanesca e seu comentàrio erudito nào época de fríeza, em que, diz Guattari, a arte morre como
sao os únicos campos prospectados por Guattari, que se as moscas, Fromanger aparece como uma exceçâo, pros-
exercita em outras formas de expressao. Amigo do seguindo sua busca pictórica como se nada tivesse
diretor de teatro Philippe Adrien desde a peça sobre Os mudado: “O que o salva, sem dúvida, é que sua questáo
Sonhos de Kafka, escreve para ele em janeiro de 1985 o jamais foi a do porqué, mas a do como . No campo da
texto de um futuro espetáculo dramático, de dança e de pintura, Guattari se liga também a Merri Jolivet, fìlho do
expressao plástica, Le Maître de Lune. Ele imagina uma compo- : sitor André Jolivet, e escreve um texto sobre a
trupe de 12 atores para esse espetáculo, que deve ser obra dele por ocasiao de uma exposiçâo em Paris, em
musicado por Georges Aperghis, com balé de Daniel maio de 1975. Entretanto, a expressao pictórica mais
Dobbeis, figurino s de Adélaïde Vignola, e a cenografia intensa do mundo que eie anali- sa corno “caosmose",
por conta do pintor Gérard Fromanger. Envia a peça a Guattari encontra, nesses anos 1980, do lado do Japao,
Enzo Cormann, que, apesar de sua ami- zade com com a pintura de Imaï Toshimitsu. É um pintor ao
Guattari, nâo está muito convencido. Guattari solicita mesmo tempo enraizado pela infancia passada em
suas criticas, mas31Cormann Ihe responde que “nao se Kyoto, mas em seguida criador errante em um bairro
critica um delirio” , Montparnasse onde, nos anos de 1950, luta contra o frio
Guattari Ihe propóe várias vezes escreve- rem uma e afome até ser reconhecLdo, mas ‘por tras do imaï valor
peça de teatro juntos, mas Cormann nâo leva realmente a reconhecido pelo Establishment perfila sempre o had
serio o que para Guattari, no entanto, é um pedido boy da Beat,36 generation, da Action painting e dos
auténtico. Eles cons-32 tituem em 1987 uma cooperativa Happenings .
de autores franceses , agregando toda uma série de per- Guattari saúda também a obra nutrida de errância e
sonalidades que participam de uma dezena de reuniôes de revolta do pintor-poeta-fotógra- fo-escultor
para adotar um texto de orientaçào sobre o tipo de americano David Wojnarowicz, que levou urna vida de
criaçâo a defender, mas a mobili zaçâo nâo alcança vagabundagem à Kerouac após urna infância muito
éxito. Con tu do, fazem urna pequeña representaçâo- perturbada, entregue aos procedimentos irregulares de
leitura conjunta. Guat- tari envia uma boa dezena de subsistencia e à prostituiçâo. Homossexual, revoltado
peças ao seu amigo Enzo Cormann. Entre elas, este contra o conformismo da sociedade americana,
último retém uma pequeña peça intitulada Sócrates, cujo frequentou as margens, a contracultura, para finalmente
tom facecioso o diverte. Enzo Cormann apresenta a peça se beneficiar de um reconhecimento público quando
no Théâtre Ouvert com o comediante Arnaud expoe em 1985 na famosa Whitney Biennal. Ele começa
Carbonnier, dentro da programaçâo de uma semana de por esboços rápidos nos muros de Nova York,
leitura de autores contempo- g râneos, diante de representando no essencial bombardeiros em chamas e
Guattari, sentado na quarta fììeira ao lado de Joséphine. casas explodindo, depois pinta grandes afrescos em um
Quando montar sua trupe de teatro musical em 1991, depósito abandonado e é seguido por várias dezenas de
Cormann a balizará de “0 Grande Ritornelo”, em amigos artistas no que se tornará um dos principáis
referéncià às análíses de Deleuze e Guattari. redutos da criaçâo pictórica de Nova York, o East Villa-
A pintura também requer toda sua aten- çâo e, em ge Art. Nessa expressâo pictórica, a questâo da
primeiro lugar, a de seu amigo Fromanger, sobre a qual resistencia aos poderes estabeìecidos sempre foi um
escreve nos anos de 1980: “Esse afresco espantoso, A vetor essencial de expressâo. Guattari se encontra
Noite, o Dia, que : deixa o oìhar siderado, fascina o seguramente nessa revolta contra a morte da qual a
espirito, onde em oito metros de extensâo se enlaçam em pintura se sabe ameaçada: contaminado pela AIDS,
uma dança, a do erotico e moral, corpos-cores nus”33. Eie
morre aos 38 anos de idade, no mesmo ano que Guattari, passagem, os limites em urna deriva esquizofrénica
em 1992. continua.
GuattariFrançois
chegouDosse
a fazer até algumas tentativas do Em outra ocasiao, em Bolonha, em dezembro de
lado do346
cinema, escrevendo um ro- teiro para um amigo, 1973, quando de um coloquio sobre o tema “Erotismo e
o diretor Robert Kramer, “Un amour de UIQ”, no inicio Cinema’, Guattari se ergue contra as categorizaçôes
dos anos de 1980. Sem dar à sétima arte a mesma rígidas que deixam de lado o cinema erótico. Sempre
importancia que Deleuze, Guattari analisou a produçâo requisitado como psicanalista, Guattari colabora com o
cinematográfica em várias ocasiôes, agrupando a maìor número de Communications consagrado em 1975 a
parte de suas intervençoes em um capítulo intitulado “07 “Psicanáiise e cinema"39. Ele traça um paralelo entre a
cinema: urna arte menor” em A Revoluçâo molecular . prevençâo dos psicanalistas em face do cinema e,
Eie atende, sobre- tudo, a solicitaçôes sobre as relaçoes inversamente, o fascínio dos promotores da sétima arte
entre o cinema e a representaçâo da loucura. De fato, se pela psicanáiise, a come- çar pelo enorme contrato de
o tema da loucura foi sempre um tema recorrente da 100 mil dólares proposto pela Goldwyn a Freud para
produçâo cinematográfica, assiste-se nos anos de 1970 a tratar de amores célebres. Segundo Guattari, os psica-
um crescimento sensivel do público interessado com os nalistas podem encontrar matèria de reflexáo na criaçâo
sucessos de Family Life, de Ken Loach, ou deAsylum, ou cinematográfica para compreen- der melhor os
ainda de Loucospara Libertar, de Bellocchio. 0 cinema, investimientos inconscientes no campo social, na medida
urna arte menor? “Sim, desde que se esclareça que urna em que os cineastas devem captar as evoluçôes do
arte menor é urna arte que pode estar a serviço de imaginário social para estar em sintonia com o público.
pessoas que constituem urna minoría, e que, portanto, Por outro lado, além da palavra, o cinema possui outros
isso nâo é absolutamente pejorativo. Urna arte maior é meios de transmitir intensidades, sig- nificaçôes
urna arte a serviço do poder”38. Ele comenta longamente racionáis e, à maneira da palavra do analista na cura, “as
em urna entrevista a Libération o filme de Yerren ce componentes semióticas do filme se ínsinuam urna entre
Mafick, A Balada Selvagem, insistindo no fato de que o as outras sem jamais se fixarem e se estabilizaren! ”
1 0

filme mostra principalmente, para além da violencia dos Guattari concebe o cinema como um modo singular
assassí natos, urna historia de amor iouco e, de de agenciamento maquínico
347 François Dosse

que tem efeitos importantes sobre a subjeti- do que por suas criagòes pròpri as, uma “caixa de
vidade do público. A esse respeito, ele alerta ferramentas" para pensar a arte, como escreve
contra o fato de considerar insignificante o cinema Nicolas Bour- riaud44, para quem a concepgáo
comercial cuja agao inconsciente é particularmente guattariana da subjetividade fornece à estética um
profunda: “O cinema comercial é paradigma que é atestado pela pràtica de artistas há
incontestavelmente familialista, edipiano e pelo menos tres décadas, Seu procedimento trans-
reacionário!”41. Guattari compartilha o entusiasmo versal por si só pode dar conta das criagdes de
de Deleuze pelo cinema de Straub e escreve um Duchamp, Warhol, Rauschenberg ou Beuys;
texto por ocasiäo do lang amento, em 1987, de A “Todos construíram sua obra com base em um
Marte de Empédocles. Guattari aproxima essa sistema de trocas com os fluxos sociais, deslo-
nova estética das experiencias musicais tentadas cando o mito da ‘torre de marfirn 4mental que a
com Moisés e Aaráo e Crónica de Anna ideologia romàntica atñbui ao artista” '1.
Magdalena Bach de instauragao de um “falar- Heterogénese, a subjetividade está funda-
cantar” que pretende respeitar a métrica do texto mentalmente ligada à arte para Guattari, que nao
de Hölderlin. faz déla um campo à parte ligado a uma estética,
Finalmente, a arquitetura é outro dos campos ponta de langa da atividade humana, mas, ao
fundamentáis que apaixonam Guattari, pois ele faz contràrio, um mergulho na propria existencia: “O
a ligagao en tre a criatividade e as evolugoes territorio artístico para Guattari nao é objeto de
sociais. Em 1988, escreve um texto sobre a uma análise autónoma, é seu próprio espago,,. As
enunciagao arquitetural para responder a confusäo prátioas artísticas dese- nham para ele cartografías
dos arquitetos um pouco perdidos diante da existenciais onde objetividade e socialidade
explosao urbanística que se apodera das descobrem novas referéncias, novas coordenadas,
megaíópoles do planeta: “Hoje, para que serviría, possibilidades de fuga”46.
por exemplo, em uma cidade como o México, que
se aproxima, em pleno delirio, de seus 40 milhoes Notas
de habitantes, invocar Le Corbusier! Nem o42 baräo
Haussman poderia fazer mais nada ali!” , Nao 1. Ver capítulo “Félix Guattari: itineràrio psia-po-
lítico: 1930-1964”.
restaña aos arquitetos senáo se debrugar em boa 2. Ariette Donati, entrevista com Ève Cloarec, 25 de
ordern sobre a construgáo de alguns monumentos outubro de 1984, arquivos IMEC.
suntuosos, visto que o objeto da arquitetura foi 3. “Drama da demencia: cinco poüciais feridos em
pelos ares. Se é possível reinventar a arquitetura, Saint-Tropez. Gilíes Guatareuze chama a policía para
nao é langando um estilo particular ou uma escola, internar sua amante. O menos surpreendente nao era
mas repensando a “enunciagao arquitetural” e, a ver o célebre teórico da antipsiquiatria ir atrás do
partir daí, o próprio oficio do arquiteto. Este nao se comissário de Saint-Tropez suplicando-lhe: ‘O
contentaría mais em ser o plástico de formas senhor nao vai colocá-la em La Borde ou na casa de
construidas, mas “se proporia a ser também um gen- tis, hein! Sao capazes de deixá-la escapar! Sao
revelador de desejos virtuais de espago, de lugares, capazes de deixá-la escapar! Nao, nao, um
de percursos e de territorio... um artista43 e um estabelecimento sèrio, hein, cela estofada e tudo.'”
artesao da vivéncia sensível e relacional” , Essa (Gérard LAUZIER, “Déboutonnez votre cerveau”,
redefinigäo induz um des- looamento do objeto Tranches de vie, 4,1978; reproducido ern Le
Meilleur des années 70, Dargaud , 2001.)
para cima: o projeto e a especificidade da 4. François Fourquet, entrevista com Virginie Li- nhart.
contribuigáo arquitetural seriam a capacidade de 5. Ibid.
apreender os diversos afetos de enunciagao esp 6. jean Chesneaux, entrevista com o autor.
acial izad a, segundo suas escalas e suas^Ungoes. 7. Ibid.
Todas essas intervengoes no campo da criagao 8. Danieiîe Sivadon, entrevista com o autor.
artística e literaria testemunham a vontade de 9. François Pain, entrevista com o autor.
Guattari de experimentar o que, de resto, define no 10. Jean-jacques Lebei, entrevista com Virginie Linhart.
plano teórico como um paradigma estético. Ele 11. Christian Bourgois, entrevista com o autor.
deixou, sem dúvida, mais por seus escritos teóricos
12. jean-jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 40. Ibid, p. 233.
13. Jean ROLIN, Joséphine, Gallimard, Paris, 1994, 41. Ibid, p. 237.
p. 20. 42. Félix Guattari, “Dénonciation architecturale”, texto
14. Éric Alliez, entrevista com o autor. datilografado, arquivos IMEC.
15. jean Oury, entrevista 43. Ibid.

24
com o autor. 44. Nicolas BÛURRIAUD, “Le
16. Marie Depussé, paradigme esthétique”, Chimères,
entrevista com inverno de 1994, p. 77-94.
Virginie Linhart. 45. Ibid., p. 84.
17. Emmanuelle Guattari,
entrevista com jLm I 46. Olivier ZAHM, “Félix Guattari et
Fart contemporain”, Chimères,
verâo de 1994, p. 48.
Virginie Linhart.
18. Ibid. Puro filósofo, puro metafísico,
19. ibid. como ele próprio se apresentava,
20. Marie Depussé,Deleuze dialoga com a criagào Deleuze sempre teve como
entrevista com Virginie Linhart. singularidade integrar em sua
21. Félix Guattari, “LAmateur Amate”, arquivos IMES, reflexao filosófica, o mundo do percepto e do afeto, o da
publicado em Marc PIERRET, Le Divan romancier, Ch. criagáo literáría e artística. Encontrou nela fontes vivas
Bourgois, Paris, 1975, de sua reflexao filosófica, mas nao se contentou em
22. Félix Guattari, “Crac en plan pas um pii”, abril de 1986, observar esse campo com um olhar exterior. Trabalhou
textos datilografados, arquivos ÏMEC. também com os criadores para compreender meíhor o
23. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. processo de criapao. Para Deleuze - como para Guattari
24. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Linhart. a estética nao é um campo á parte, e sua filosofía-artista
25. Félix GUATTARI, “Ritournelles", La NRF, Janeiro de 1999, atribuí um estatuto privilegiado, nodal, ao ato criativo. A
p. 338-374 e abril de 1999, p. 314-329; reed. éditions Lume, filosofía, que define entáo elaprópria como “criapao de
2007.
26. Félix Guattari, “Les ritournelles Essere”, notas manuscritas, conceitos”, deve estar á escuta dos processos de
arquivos IMEC, maio de 1989. singularizado artística.
27. Ibid.
28. Ibid. Trabalhar com os artistas
29. Félix GUATTARI "Les ritournelles du temps perdu”, em
IncM, Já se sabe da importancia que Deleuze atri- buiu ao
30. Ibid, p. 308. cinema’, assim como á literatura, com os ensaios sobre
31. Enzo CORMANN, “Comme sans y penser”, Chimères, n, Proust e Sacher-Masoch, e de- pois a Lewis Carroll e
23, verâo de 1994, p. 25- Antonin Artaud, perso- nagens centráis de Lógica do
32. O nùcleo inicial é composto por Denise Bonal, Enzo Sentido, em 1969. A literatura sempre foi para ele um
Cormann, Roland Dubiilard, jean-Cîaude Grumberg, Félix campo de experimentado privilegiado de suas hipóteses
Guattari, Jean jourdheuÜ, Romain Weingarten, Jean-Paul filosóficas. Filósofo da vida, estabelece urna li- gapáo
Wenzel. fundamental entre eia e a literatura. Ser escritor ou
33. Félix GUATTARI, “Gérard Fromanger, la nuit, le jour”, filósofo é confrontar-se com o problema da escrita, do
Eighty Magazine, n. 4, agosto de 1984; reproducido em estilo, e “es ere ver é urna questao de devir, sempre
AH, p. 249.
34. Ibid., p. 256. inacabado, sempre se fazendo, e que ultrapassa toda
35. Félix Guattari, “Cythère, ville nouvelle”, FIAC 1986, Grand matèria vivível ou vivida” 2
. A escrita está por esséncia
Palais, 24 de outubro - 2 de novembre» de 1986, notas no ato de ruptura, no devir outro que pode ser o de- vir-
manuscritas, arquivo IMEC. mulher, o devir-animal ou vegetal, mas que é em
36. Félix Guattari, “Imaï, peintre de la chaosmo- se", texto qualquer hipótese um devir minoritàrio, de simples
datilografado, arquivos IMEC. vizinhanpa: “Quando Le Clézio se torna indio, é um
37. Félix GUATTARI, "Le cinéma: un art mineur”, em RM, p. indio sempre inacabado, que nao sabe cultivar milho
203-238. nem talhar urna piroga”'1. A literatura, segundo Deleuze
38. Félix GUATTARI, “Le cinema doit devenir un art mineur”, só existe no movimento de extirpagáo de seu próprio
Revue Cinêrnatographie, n. 18, abril de 1976; passado, de sua questiúncula edipiana. Eia tira seu
reproduzido em RM, p. 205. impulso da capacidade de se desprender do Eu: “Nao se
39. Félix GUATTARI, “Le divan du pauvre”, Com- escreve com suas neuroses”\
munications, n. 23, abril de 1975,
É essa capacidade de se deíxar desterri- torializar
que fascina Deleuze na literatura americana, aberfca aos
ventos mais impetuosos da aventura, expressáo de um
povo menor, exprimindo-se de fato na lingua dominante, Gilles Deleuze & Félix Guattari 349

o inglés, mas a partir de raízes longínquas e múltiplas:


‘A literatura inglesa-americana nao para de apresentar
essas rupturas, esses persona- gens que criam sua lingua
de fuga, que criam por linha de fuga”5. Em Thomas
Hardy, Herman Melville, Robert Louis Stevenson,
Virginia
Woolf, Thomas Wolfe, D, H. Lawrence, Francis Scott que defmem sua trama: “O único provetto que posso
Fitzgerald, Henry Miller, jack Kerouac, “tudo ai é tirar do ato de escrever, me dizia ele, é ver
partida, devir, passagem, salto, demònio, relaçao com o desaparecerem com isso as vi- dragas que me separam
de fora. Eles criam urna nova Terra”6. do mundo”!íi. Assim, a literatura americana é de saída
Um sopro coletivo, agenciamentos ino- vadores agenciamento coletivo de enunciagáo por sua capacidade
atravessam essas escritas imantadas pela ideía de de se fazer a expressao do povo ausente, a dizer toda a
fronteira, de conquista de um Oeste ao mesmo tempo América ñas narrativas que desenvolve. Essa literatura
concreto e imaginá- rio que substituiu a Jerusaiém parece realizar o que o proprio Proust visava ao definir o
celestial. Certamente, essas linhas de fuga podem se papel da literatura como invengao de urna espécie de
revelar perigosas e até mortíferas. Todo recomeço lingua estrangeira concebida como devir-outro da
comporta serios riscos: basta pensar no al- coolismo de lingua: “Todo escritor é obrigado a fazer sua lingua”“.
um Fitzgerald ou no suicidio de Virginia Woolf. Há Evidentemente, uma tal posigao só pedería tornar
perversâo, traiçâo nesses recomeços, em um processo Deleuze muito sensível as ques- tòes de passagem de
em que os estali- dos podem ser imperceptiveis no urna lingua para outra. Quando seu antigo aluno, Pierre
tempo longo dos romances de Fitzgerald, Blanchaud, germanista, Ihe fala em 1982 dos problemas
Trata-se de sair do caminho traçado, à ma- neira do que tem com seu editor a propósito da tra- dugáo de
profeta que se afasta da via da simples obediencia: “Do romances de Kleist ~ ele se recusa a edulcorar o texto de
que o capitâo Achab é culpado, em Melville? De ter Kleist para torná-lo mais legível em francés -, recebe
escolhido Moby Dick, a baleia branca, ao invés de ¿mediatamente o apoio ativo de Deleuze: “Pierre
obedecer à lei do grupo de pescadores, que acha que Blanchaud é um dos raros tradutores 12de Kleist que
toda baleia é boa para caçar”7. O capitâo Achab segue soube- ram colocar o problema do estiló’ .
seu devir-baleia, que nao tem nada a ver com urna Fazer a lingua gaguejar, esse é o meio privilegiado
simples imitaçâo, mas com uma captura de força e de do escritor que pretende sair dos caminhos batidos, e
código. Cada elemento ali traz em si sua pròpria Beckett foí quem pos em cena no mais alto nivel essa
desterritorizaìizagao, e no final dela “sempre se dà a maneira de expor disjungóes inclusas. Deleuze encontra
escrita aqueles que nao a têm, mas estes dâo à escrita um no plano Iiterário urna extraordinària ilustragáo des- sas
devir sem o qual eia nao existiría’ Longe da literatura
8
séries gaguejantes na famosa frase de Bar- tleby de
que oculta seu pequeño segredo ou que só o revela de Melville: “Eu preferiría nao” (1 would prefer not to),
forma muito parcímoniosa ao leitor, exigindo dele todo que Deleuze comenta longamen- te13. Para ele, a frase de
um trabalho interpretativo, Deleuze prefere uma Bartleby exemplifica a postura do escritor por seu
literatura interamente dirigida a novas experi mentaçôes, caráter enigmático, exprimindo a recusa de se conformar
a um fazer, e é isso que o fascina na literatura anglo- àquìlo que se espera dele, e pela escapatória que nao é
saxá: ‘A literatura inglesa ou americana é um processo nem a revolta nem a inversáo dialética da si- tuagào, mas
de experimentaçâo”9, a linha de fuga, nos confins da íou- cura: “A cada
Ainda que experimente linhas de fuga, essa literatura ocorrència, tem-se a impressáo de que a loucura cresce:
nâo é absolutamente urna fuga da vida. Ao contràrio, é nao 14particularmente’ a de Bartleby, mas em torno
levada pelo desejo de criar um outro real. Essa literatura dele” . Como as- sinala Deleuze, a frase é devastadora
traz a eficácia do conceito central de Mil Platos, o por sua capacidade de aprofundar uma zona de indis-
agenciamen- to, pois se situa no cruzamento do interior e cernibilidade, de indeterminagao, enquanto se espera da
do exterior, e sao as modalidades desse agen- ciamento parte do herói que ele aceite o que
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 351

se pede que faça, ou que recuse. Entretanto, a centrai em Deleuze em sua leìtura de Sacher-
cada vez que eie pronuncia sua frase màgica, Masoch, problema que se encontra na lei formai
mergulha as pessoas à sua volta no maior em- kantiana: “Deleuze tira dali a lìgào de que a lei
baraço, e tudo deve recomeçar. Quando Deleuze moral, que é formai e sem conteúdo, culpabiliza.
lança a hipótese segundo a qual o que anima a obra Portanto, entra-se no mundo europeu como mundo
de Melville é restabelecer a unidade entre o da culpabi- lidade permanente, e isso conduz a
inumano e o humano, encontra, sem dizer Kafka”20. Saindo do horizonte europeu, Deleuze
explícitamente, seu pròprio projeto filosòfico, o da està fascinado, como se recordava hà pouco, com a
outra metafisica, que visa reatar a ligaçâo entre o América, onde busca a ideia de urna sociedade de
humano e seu caosmo. irmàos libertada dos país: “Ele nao a encontra e
A outra dimensâo é a da sociedade de finíaos, tampouco21 acredita na ideia de revolugao
libertada do dominio paterno. É, portanto, urna soviética" , Nao encontrando essa sociedade de
humanidade chamada a elaborar seu mundo, a sonho no Novo Mundo, nao Ihe resta senáo
afirmà-lo corno processo, “como um muro de explorar a humanidade nos confins dos deser- tos,
pedras livres, nao cimentadas, em que cada o que faz em Mil Platos. O lugar explorado por
elemento vale por eie mesmo, mas em re- laçâo Deleuze nao é nem a América nem a Europa, mas
aos outros”15. A originaìidade como ritornelo, à os territórios de hibridez e de hete- rogeneidade,
maneira dessa frase de Bartleby que se repete em misturas lingüísticas e culturáis.
forma de urna série, é a ùnica salda, segundo Édouard Glissant, escritor no cruzamento das
Deleuze, para escapar a urna dupla ar- madilha: a culturas afro-americana e francesa, amigo de
da guerra dos particularismos e a da fusao em um Deleuze e Guattari, expressa bem em sua obra
Todo, em um Universal negador das pessoal essa hibridez. Nascido na Martinica, em
singularidades: “A fraternidade segundo Melville Sainte-Marie, em 1928, cursa filosofía e depois
ou Lawrence é urna questào de almas origináis”16. etnologia na Sorbonne; em 1958, recebe o Prèmio
Entretanto, essa fraternidade, fundada no Renaudot por seu primeiro romance, LaLézarde.
pragmatismo da qual o verdadeiro he- rói é Conhece Guattari em Paris e, encantado com a
Bartleby, acaba fracassando. Bartleby se ve inteligencia dele, logo se torna seu amigo: “Eu me
confrontado com a falencia da sociedade de ir- dizia: ‘Estou ouvindo Sócrates’. Eu ouvia a mesma
màos que nao teve meihor êxito que a sociedade sabedoria, a mes- ma ironia, a mesma aspereza de
da universal proletarizaçâo dos soviéticos. abordagem e benevoléncia fundamental”22.
Segundo Jacques Rancière, esse fracasso da Édouard Glissant é fortemente impregnado por
sociedade da fraternidade assinala o impasse da orientagoes e conceitos de Deleuze e Guattari, pois
tentativa de libertaçao deleuziana em que o pròprio encontra nessas posigòes urna filosofìa que leva
muro, feito de pedras livres, para o qual eie conduz em conta presengas da oralidade. Um concetto
seu leitor, exprime o impasse em que ele o coloca. como o de rizoma é i mediatamente percebi- do
Ele define seu tragado e ao mesmo tempo “o por ele como um “sistema de intrusao na
remete ao muro”17. Bartleby é incumbido de urna identidade” que o remete a essa.identidade
22

missao prometeica similar à que Nietzsche confia a heterogénea que bem conhece no Caribe: “Eles
Zaratustra, Torna-se o herói da passagem entre pensam de maneira fractal. É um pensamento
ontologia e politica, mas “a literatura nào abre fractal, nòmade, errante”24. Glissant emprega a
nenhuma passagem a urna politica deleuziana. Nao nogáo de “pensamento tremido", de estreme-
hà politica dionisiaca”18. cimento do mundo à maneira como Deleuze fala
O diretor da revista Esprit, Olivier Mon- gin, é de gaguejo da lingua. Se o mundo é tao fortemente
um conhecedor da obra de Deleuze e o acompanha mestizado sob os golpes ociden- tais da
desde o inicio de seus estudos de filosofia. Mongin eolonizagào, Édouard Glissant prefere chamar a
percebe, a partir dos seus es- tudos sobre a atengào para os valores da criouliza- gao, isto é, de
literatura, o desenvolvimento de urna19 geografia, de urna mestigagem de culturas» de individuos e de
um “pensamento que se des- loca” . Assim, para coletividades que sao fontes do inesperado. A obra
Olivier Mongin, a questào da culpabìlidade é poetica de Glissant é intei- ramente perpassada por
352 François Dosse

conceitos muito próximos aos de Deleuze e De fato, em 1975, ao retornar dos Estados Unidos,
Guattari, corno mos- trou a pesquisadora sueca esta última se instala inicialmente em um quarto
Christina KuUberg: “O caos-mundo em Glissant de empregada no mesmo predio que os Deleuze no
lhe serve para designar a mundiaìizagào que eie 17“ Distrito, depois atravessa a rúa para morar em
qualifica de mundialidade, e sua nogào de um estudio no primeiro andar, bem em frente ao
opacidade é muito próxima da nogào de apartamento deles. Nesse momento, Pierrette
singularidade em Deleuze e Guattari. É essencial Fleutiaux acaba de publicar seu primeiro livro,
para ele o tema da diversidade, que chama de Histoire de la Chauve Souris. Deleuze fica intri-
divergali dad e, assim como o concedo de ‘lugar gado ao mesmo tempo com o casal atípico que ela,
comum, que remete à ideia de um e spago compar com cerca de 30 anos, forma com um ex- -aluno
tí lirado”"5. de apenas 18 anos e com a trama desse romance
Para Deleuze, a literatura é antes de Ludo que narra o delirio de urna mulher convencida de
experimentagào e lhe serve de argumento contra o abrigar um morcego em sua longa cabeleira.
procedimento interpretativo. Como já vimos» Fleutiaux descobre com entusiasmo 0 Anii-Édipo,
Kafka é sob muitos aspectos um manifesto de Kafka e, sobretudo, Rizoma, que marcarao
experimentagào literària. Por suas múltiplas profundamente sua escrita literária em torno de
intervengoes nesse campo, Deleuze nao pretende temas de ñuxo, de codi- ficagáo e de
acrescentar um segundo grau reflexivo, filosófico, sobrecodificagáo, de desterrito- rializagáo, mas
à crítica literària clàssica. Procede, ao contràrio, a também o “devir-animal” que habita a mulher do
urna subtragào, a urna “amputagao cirurgica”26, e morcego. O universo psicó- tico nunca está longe:
define assim um espago misto, ao mesmo tempo “Escrevi muito historias abstraías, especies de
critico e clinico. Co m Guattari, consagra em Mil agenciamentos maquí- nicos. Isso correspondía
Platós um capítulo inteiro (o 8° plató) a très também ao que ele di- zia a respeito. Ele vía coisas
novelas em torno do concedo do acontecimento que me permitiam prosseguir nessa vía, o
para responder à27 pergunta sempre enigmática: “O fantástico maquínico. Eu o vejo como um inventor
que se passou?” . É a resposta a essa pergunta que genial”29.
especifica a novela como gènero, em contraste Deleuze e Pierrette Fleutiaux mantém no dia a
com o conto, que responde à pergunta: “O que vai dia urna relagáo silenciosa de um lado e de outro
se passar?”. Para fundamentar essa tese, Deleuze e da rúa. Quando ele abre a janela para fumar um
Guattari tomam corno exempìos a novela “A cigarro, dá de cara com ela pentean- do seus
gaiola” (1898), de Henry James, a novela “The longos cábelos. Deleuze faz parte do universo
Crack-Up” (1936), de Fitzgerald, e por firn urna cotidiano e familiar da escritora, que o incluí como
novela francesa de Pierrette Fleu- tiaux, “Historia personagem em seu livro Nous Somrnes Éterneli°.
do abismo e da luneta” (1976). A obra de No capítulo em que ele aparece, encontra-se o
Fitzgerald é animada pela convicgào de que toda famoso tema da erva que brota pelo melo,
vida é um processo entropico de demoligào. Para enquanto que a arborescencia está do lado do
Fitzgerald, nao há necessariamente grandes cortes, poder: “Eu estava feliz de ver essa erva, eu a
mas “microfissuras, corno em um prato, bem mais olhava caminhando pelas3! ruas da cidade, era eia a
sutis e mais maleáveis, e que se produzem dança de nossa cidade” . Nessa evocaçao de seu
sobretudo quan- do as coisas vao melhor do outro vizinho Deleuze, a autora menciona sua sìlhueta
lado"2*. Sao, portante, mudanqas imperceptíveis, na janela defronte.
tenues, moleculares, que pouco a pouco fazem Apreciador dos géneros ditos “menores”,
explo- dir o suporte das unióes, das identidades e Deleuze devolve assim toda a nobreza à novela
das certezas. Assim, Fitzgerald desenvolve em sua pelo lugar que Ihe atribui em Mil Platôs. Nos anos
novela tres linhas que atravessam todo individuo: 1960, ele já havia restituido a digni- dade a um
urna linha de corte, urna linha de fissura e urna género por muito tempo depreciado, mas que
linha de ruptura. depois adquiriu uma legitimidade que nao tinha na
Urna combinagao de circunstancias faz com época: o romance policial. Por ocasiáo do número
que Deleuze e Pierrette Fleutiaux se co- nhegam. 1.000 da “Série Noire”, em 1966, Deleuze saúda a
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 353

virada espetacular alcançada por essa coleçâo, que essencial desse livro, consagrado ao plano da
conduz o romance policial clàssico, inteiramente imanência, Michaux é citado ao termo de uma
voltado à busca da verdade, seja sob sua filiaçao que parte de Epicuro e passa por Espinosa
modalidade racional francesa, seja sob sua forma para significar que o problema do pensamento é
indiciá- ria británica à Conan Doyle, a um registro urna questao de velocidade infinita. Em seguida,
bem diferente: o do32 encadeamento de erros e da ele é associado a Blanchot e a Foucault para o
“poténcia do falso” , que se exprime na relaçao oximoro da “intimidade como Fora”. Esse estatuto
trinitàrio entre delaçâo, corrupçâo e tortura. A singular atribuido : a Michaux tem a ver, segundo
“Série Noire” reatava assim com a grande tra- Bellour, com a situaçâo ambivalente desse escritor
diçâo, aquela que Deleuze remonta a Suetônio e que também é filósofo, bem como com o estatuto
Shakespeare por melo desse agenciamento funesto lite- a rário da filosofia tal como a concebe
do grotesco e do terrificante que pode dispor de Deleuze, que utiliza Michaux para chegar a um
vidas a seu béi-prazer. tragado- sinuoso de asserçôes filosóficas. Essa
Deleuze explorou também a literatura maldita. proxi- midade excepcional é ressaltada também
Pode-se observar a esse respeito, como Raymond por Anne Sauvagnargues, que ve ali urna tentativa
Bellour, a extraordinària proximi- dade de Deleuze comurn de captura das forças vitáis e dos afetos,
e Henry Michaux33. Em sua apresentaçâo, assim como 30 um desejo de liberaçâo das
Raymond Bellour define o poeta corno “uma singularidades .
variedade de multiplicidades” feitas de
34
Com Michaux, encontra-se no ornamento
experiencias de vida fortes, de mèdico ou de entre a expressao literária e a arte pictórica, e sua
soldado da marinha de guerra, antes de se tornar obra deu lugar também a intensas reflexoes de
escritor, com a vontade de captar, na sua escrita ou Deleuze. Este conhece o pintor Gerard
na sua pintura, essas forças de vida com seus Fromanger em 1971 em condiçôes
afetos. Segundo Bellour, que retoma a frase pela rocambolescas. Fromanger acaba de realizar toda
qual Deleuze designa o verdadeiro escritor, eie fez uma série de quadros, e o famoso galeris- ta Karl
“a lingua gaguejar”. Por seu uso do fragmentário, Fiinker Ihe prometerá expô-los. Contu- do,
dos fluxos escandidos por cortes, parece ter-se ai a Fiinker nào dava sinal de vida, e Fromanger
expressao literária mais sintonizada com as decidiu aparecer na galeria sem marcar hora.
temáticas filosóficas de Deleuze: “Escrever é Chega à Rue de Tournon, ao lado do Senado,
responder, É fazer da lingua, concebida com parte atravessa a exposiçâo do tèrreo e sobe direta-
do sensi- vel, o lugar de unfa resposta ao mente ao primerio andar, onde fica o escritorio de
acontecimento Fíinker. Este último Ihe apresenta aquela que será
do sensivel, aos seus múltiplos aciden tes” .0
35
a responsável pela galeria, urna certa Fanny, que
que Michaux procura se aproxima de uma certa assiste ao áspero confronto entre o galerìsta e o
maneira do que visava a corrente surrealista com pintor. Flinker explica seu siléncio pelo temor que
a qual, no entanto, ele rompeu: explorar o provoca nele todo o círculo esquerdista de
pensamento pela escrita ou pela pintura. Fromanger, o representante eìeito de urna
Como observa Raymond Bellour, Deleuze associaçao agregando pelo menos 300 artistas
empresta de uma só vez em seu Focault très plásticos: “Ele me diz: ‘Tenho medo de que vocé
títulos de Michaux, mencionando sucessiva- fabrique coquetéis Molotov em minha galeria, isso
mente um “espaço do dentro”, “o longínquo vai ser urna assemblera gérai dia e noite, nao tenho
interior” e a “vida ñas d obras”36. Na dedicatória tempo a perdere prossegue: ‘Você40 tem um enorme
de Diferença e Repetiçâo a Michaux, Deleuze charme, eu precisava refi etri”’ . Fromanger se
escreve: “Você soube dizer sobre a esquizofrenia levanta e dá a entender que compreendeu a
mais e bem melhor do que tu do o que jamais se mensagem. Acompanhado por essa mulher que
disse e em algumas páginas: as grandes provas do nâo condece e que assistiu à discussâo à porta da
espirito”37. Ao lado de filósofos, Michaux é o galería, vâo ao bistro em frente, onde lhe confessa
escritor mais citado em O 33que é a : filosofia?, seu espanto diante da violência das relaçôes entre
assinala Raymond Bellour . No capí- : tulo marchands e jovens artistas: “Eia me diz que nâo
354 François Dosse

conseguirá viver isso e acrescenta que seu marido retoma essa ideìa quase que literalmente em O que
adora o que eu faço e me convida para jantar em é a filosofia?-. “O pintor nao pinta em urna tela
sua casa. Pergunto-lhe o que faz seu marido e eia virgem, nem o escritor escreve em urna pàgina
responde: ‘Ele é professor de filosofia, escreve branca, mas a pàgina e a tela jà estào de tal modo
livros, é um filósofo’”41. Nessa mesma noite, cobertas de clichés preexistentes, preestabelecidos,
Fromanger está à mesa dos Deleuze, muito que é preciso primerio apagar, limpar, lixar e
lisonjeado pelo interesse que este ùltimo tem por mesmo rasgar para permitir passar urna4 corrente de
sua obra. ar saida do caos que nos traz a vi sao" '’.
A amizade entre eles é imediata. Deleuze Após essas primeiras sessòes de trabalho
pergunta a Fromanger se pode ver seus qua- dros intenso a dois, Fromanger recebe urna ligagao de
no atelié, prelùdio de urna longa colabora- çâo. Deleuze, que o convida para jantar em sua casa,
Durante essas sessoes, Deleuze questiona o artista esclarecendo que toda a familia precìsa da sua
sobre seus procedimentos, seu dispositivo de opìniao para urna questào da maior importancia.
trabalho, a maneira como elabora sua criaçâo: Fromanger aceita com prazer. Quando chega,
“Gilles me disse: ‘Vou lhe fazer perguntas idiotas’, “Gilles estava quase em trajes socíais, o menino,
e me indagava por que eu tinha posto vermelho ali. julien, que devia ter 10 ou 12 anos, usava urna
Colocada por ele, isso me fez faìar durante urna pequeña gravata. Preocu- po-me em saber o que se
hora, e eie tornava notas, me encorajando o tempo passa, e Gilles me diz que é urna sessào um pouco
todo: “Oh! perfeito, està perfetto!”, isso me especial”46. À sobremesa, Deleuze se vira para a
confìrmou o que pensava Leonardo da Vinci, 42a lareria, que fica atrás dele, pega um envelope nela
pintura sao as ideias, urna coisa do espirito” . depositado e pede a Fromanger para abri-Io.
Quinze días depois, Deleuze liga para Fromanger a Fromanger abre e descobre um cheque de 8.000
firn de solicitar urna segunda sessâo de trabalho: francos, o primerio mès de salàrio de sua esposa
“Eie me dìz que ainda lhe faìtam coisas, e que é Fanny, e urna pequeña carta enderezada a Karl
preciso que eu lhe dê um pouco mais. Eu es- tava Flinker em que Deleuze explica que, dadas as
contente, mas pouco convencido de lhe relagoes que Flinker mantém com o pintor
proporcionar verdaderamente alguma coisa“43. Fromanger, e provavelmente com todos os outros
Deleuze pergunta como ele faz para por coisas na jovens pintores, seria muito difícil para sua mulher
tela que está branca no inicio: “Eu lhe digo: ‘A Fanny continuar traballando com ele e que,
tela, voce a ve branca, mas na ver- dade está é portanto, eia decidiu pedir demissáo do cargo de
negra, e eie reage: Ah! Fantàstico! Eia està negra, diretora da galería. Deleuze pergunta a Fromanger
està negra de què?\ e eu respondo: ‘Eia està negra se ele concorda: “Respondo-l'he que eu nao tenho
de tudo o que os outros pintores fizeram antes de de concordar, e entáo ele me pergunta se é justo, e
mirri, e ele comenta: ‘Entáo, nao se44 trata de eu Ihe respondo afirmativamente”47, Em seguida,
enegrecer a tela, mas de branqueá-la...”’ . Deleuze Deleuze pega o cheque
Gilles Deleuze & Félix Guattari 355

e dà ao ao seu filho Julien, que o rasga em pe- público ocorre um pequeño incidente. Deleuze
dacinhos; depois, "Gilles pôe de novo o cheque toma a palavra, e alguém na píatela se levanta para
rasgado no envelope e me diz: ‘Gérard,48é você que dizer que nao está entendendo nada. A sala
vai pôr o envelope na caixa de correio” . comepa a se agitar, e Boulez se le- V vanta
Essa historia, que ocorre bem no inicio de sua exasperado, pedindo ao inoportuno para deíxar a
relaçâo, sela uma. amizade indefectivel. 0 caso é sala se nao é capaz de eompreender Deleuze.
tanto mais solene e grave na medida em que, na Durante todo esse incidente, Deleuze ■ ■
época, em 1971, os Deleuze nao têm uma situaçâo contempla a sala calmamente, depois retoma a ■
fmanceira muito boa, tratando-se assim de um palavra esclarecendo que vai prestar atenpào e ser
sacrificio real. Para a exposiçâo de Fromanger na simples, mas se limita a prosseguir a lettura do
Rue des Beaux-Artes, n 9, que ocorre em 1973,
2
texto que havia preparado cuidadosamente.
pouco após esse encontró, é Deleuze quem escreve Partíndo de uma reflexao sobre a sèrie de cinco
o prefácio do catálogo49. Resultado desse trabalho obras propostas por Boulez para serem ouvidas,
a dois sobre o processo de pensamento que a Deleuze percebe urna unidade da sèrie em um
pintura Instaura, Deleuze se lança em refiexôes tempo nao pulsado que se separa do: tempo
sobre as cores, assinalando a desconexâo delas pulsado: ‘A questáo seria saber em que consiste
com um sentido explícito: ‘As cores nâo querem exatamente esse tempo nao pulsado. Essa espécie
dizer nada: o verde nâo é a esperança, nem o de tempo flutuante”53. Esse tempo remete a uma
amarelo a tristeza, nem o vermelho a alegría. Nada durapao, um tempo libertado na medida, um
além do quente ou do frio, do quente e do frío. Do; “tempo em estado puro” como imaginava Proust,
material na arte: Fromanger pinta, isto é, faz composto de heterocronias, nao comunicantes e
funcionar um quadro. Quadro-má- quina de um nao coincídentes entre elas. Deleuze faz uma
artista mecánico”'0. analogía com as pesquisas em biologia
confrontadas com o problema da articulapao de
moléculas dispares. Pode-se falar de moléculas
Da música antes de qualquer coisa sonoras, de “moléculas sonoras em acoplagem
Esse trabalho com escritores e pintores De- capazes de atravessar camadas de ritmicidade,
leuze realizou também com os músicos. Para ele, a camadas de durapoes totalmente heterogéneas”4.
intrusao em um campo que nâo é o seu passa Essa oposìpào binària tempo pulsado/tempo
sempre pelo encontró com um saber-fa- zer que nào pulsado tem muito a ver com a dualida- de
aprende de outro. Se Deleuze consa- grou obras ao desenvolvida por Deleuze e Guattari em Mil
cinema, à literatura e à pintura, nao escreveu um Platos entre o espapo liso e o espapo estriado.
livro sobre música. Contudo, pouco antes de seu Essa aproximapao temática é, alias, explorada
falecimento, em setembro de 1995, telefona ao mais tarde por Deleuze em um texto consagrado
amigo Richard Pinhas: “Gilles me fala de Raveì, a Boulez em 1986: “Do estriado, destaca-se por
do livro sobre a música que gostaria de escrever, sua vez um espapo-tempo Uso ou nao pulsado,
da forma livro que gostaria de superar”1. que nao se refere mais à cronometria a nào ser
Sua primeira intervençâo pública nesse campo de maneira global: os cortes ali sao in-
remonta a 1978, quando está em plena preparaçâo determinados”50. Essa dupla binarìdade foi56 eia
de Mil Platos com Guattari. Deleuze participa de propria teorizada nos anos 1960 por Boulez , no
um seminàrio sobre o tempo musical organizado qual Deleuze encontra “o primado atribuido à
pelo IRCAM sob o comando de Pierre Boulez, fluidez criadora sobre a norma formal, em- bora
com Roland Barthes e Michel Foucault Em u|na esta seja reconhecida como 7necessària à
homenagem prestada a elaboraçâo e à execuçâo da obra™ .
Deleuze em janeiro de 1996 na Cité de la Musi- Além disso, um fiel entre os fiéis do curso de
que, Boulez declara na abertura: “Gilles Deleuze Deleuze em Vincennes, Richard Pinhas, que se
foi um dos raríssimos intelectuais a se interessar fcornou um amigo próximo, é compositor. Foi ele
profundamente pela música”52. No dia do debate quem introduziu na Franga a sintese sonora no
rock, depois de ter comegado com a música
356 François Dosse

repetitiva. Pinhas faz o curso de Deleuze desde a tanto Rach, Wagner, Hendrix, Steve Reich ou
chegada deste na universidade de Vincennes, em Phillip Glass segundo intensidades diferentes. A
1971, até sua aposentadoria no final de 1987. lógica da sensagao definida por Deleuze a partir da
Ocorre de Deleuze pedir a Pinhas que lhe prepare obra de Bacon pode se traduzir também no plano
urna pequeña nota de sintese sobre urna questáo de da criagao musical segundo Pinhas: ‘Á modulagáo
musicologia: “Era a època em que eu trabalhava e o ritmo possuem as mesmas modalidades e a
muito sobre as sínte- ses analógicas, e é um pouco mesma esfera de constituigáo que a sensagáo
isso que encontró no firn do capítulo sobre 8‘Do definida por Gilíes Deleuze: ca- ráter
Ritornelo em Mil Platôs acerca da sintética™ . A irredutivelmente sintético e diferenga de nivel
troca entre eles funciona nos dois sentidos. Pinhas constitutivo”63.
considera que sua música é ampiamente inspirada Em 1975, Pascale Gritón, música e estu- dante
em alguns concertos trabalhados por Deleuze: “A de musicología, assiste ao final de uma aula de
música eletrônica é fundamentalmente ba- seada Deleuze - ela havia ido procurar uma amiga ali.
em fiuxos sonoros, em cortes59de fîuxos e em uma Empurra a porta e ouve Deleuze fazer a analogia
refiexâo sobre as sequências” . Entre as refiexôes entre o que ele quer significar no plano filosófico e
de Deleuze sobre o material e o jogo de forças a o cromatismo em música. Dirigindo-se á sala,
extrair dali e as composiçôes eletrônicas de Pinhas, prossegue dizendo que seria interessante ter o
a relaçâo é portanto imediata. A isso se ponto de vista de alguém que conhecesse um
acrescentam as refiexôes de Deleuze sobre o pouco essa questáo. Pascale Criton tem apenas 21
tempo e sobre a maquinica. “Para os anos, é muito reservada e está ali por acaso, mas
sintetizadores, isso eram apenas cortes com trabalha sobre a variagao cromática ñas culturas
conexôes e repetiçôes,fil) ao contràrio da música africanas, Entáo, ela se oferece, toma a palavra e
numérica de hoje” . Richard Pinhas está expóe em algumas frases sucintas o que pode ser o
verdaderamente espantado: “Se tomo as últimas ponto de vista de um especialista da questáo. Logo
páginas do capítulo sobre o ritornelo em Mil que termina a aula, a sala vai se esvazían- do em
Platos, ele chega a exprimir em quatro páginas o meio ao barulho de cadeiras e mesas, e “ele me faz
que qualquer músico que teorizasse um pouco a sinal com seu olhar que passava por cima dos
música gostaria de 61poder esorever, É nisso que óculos. Olho atrás de mim para ver a quem ele
está sua genialidade’ . podía estar se dirlgindo, até Mque me dei conta de
Essa capacidade de penetrar no ámago da que ele se dirigía a mim” Pascale Criton se
criagao musical é tanto mais surpreendente na aproxima, espera se dispersar o último grupo que
medida em que Deleuze, ao contràrio de Guattari, se espreme em tomo de Deleuze, que lhe faz sinal
começou a ouvir música muito tarde, e ainda ouvia novamente, e “ele retoma minhas palavras sobre o
muito pouco; além disso, seus gostos eram mais cromatismo me pedindo para 6voltar, para falar
voltados a Piaf, Paul Anka e Claude François, o mais, por mùsica para se ouvir” ? Eia aceita, mas
que nao o impedía de gos- tar muito do Bolero, de diz que nào ve em que poderia ser útil: “Ele me diz
Ravel, sobre quem tinha intençâo de esorever. Em entáo: ‘Seria muito simples, só pór música para
um dia de 1972, Richard Pinhas arrasta Deleuze a ouvirmos ou trazer documentos e fazer pequeñas
um estudio de gravagao e o faz ier um texto de exposigòes, e a gente avangaria no conhe- cimento
Níetzsche sobre sua própria composigáo musical: que lem do cromatismo em música.
“Ele eslava com um capacete na cabega, e isso o Evidentemente, isso nao me desagradava”“’.
divertiu muito. De resto, ele62 tinha trabalha- do Na semana seguiate, o trabalho comega sobre o
muito sobre os sintetizadores” , A criagao musical cromatismo, e Pascale Gritón leva seu gravador
é concebida por Pinhas como uma forma de para que se ouga "A Catedral Submer- sa, de
símultaneísmo que se aproxima da concepgáo Debussy; Cronocromia, de Messiaen, e os cantos
nietzschíano-deleuziana do tempo concebido como africanos reunidos por Gilbert Rouget
eternidade e totalidade temporal. Ultrapassando as Rapidamente, numerosos níveis se entrecruzar am:
clivagens entre géneros musicais, Pinhas considera Deleuze trabaihava sobre as nogóes de máquina de
a produgáo sonora como um mesmo fluxo que liga guerra e de aparelho de Estado. O cromatismo
Gilles Deleuze & Félix Guattari 357

estava próximo da máquina de guerra!”6? Além de aluno de Messiaen, que ' havia lanqado o que se
suas contribuigoes tópicas sobre a música, Pascale chama de “movimento espectral" em meados dos
Criton foi como que capturada pelo grào e pela anos de 1970, que reintroduz os processos
rítmica da voz de Deleuze e por sua maneira de temporais. Ora, Griset tinha um autor de
pensar em voz alta. referencia, o único filósofo cujos escritos Ihe
Na mesffiá época, Pascale Criton conhece um serviam para pensar a música: Deleuze. Falecido
grande músico russo, Ivan Wyschnegra- dsky, que prematuramente aos 52 anos, Griset deixa uma
vive entáo em París, onde morreu em 1979. obra teórica que Pascale Criton apresenta a
Deleuze se interessa de perto pelo trabalho de Deleuze.
Pa.scale Criton com esse compositor russo que Consagrando sua última aula em 1987 à
teve um papel pioneiro no que ele chamou de harmonía, Deleuze confia a Pascale Criton seu
uìtracromatìsmo e ao qual eia consagra uma obra desejo de continuar trabalhando com eia, muito
dedicada a Gilíes Deleuze em 1996 68 Este último provavelmente sobre o que teria sido um li- vro
recebe várias versoes do manuscrito e escreve a sobre a musica, mas as circunstáncias nao sao
esse respeito: “Acredito muito no seu trabalho... favoráveis: o estado de saude de Deleuze se
Ele me fascinou, e pela lei dos encontros felizes, degrada, assim como o estado da máe de Pascale
estou trabalhando justamente sobre o virtual. Criton, Dominique dAcher, que foi com a fìlha
Entáo me encanta a ideia de um continuum sonoro assistir à aula: “A conjungao dos dois me deu
que se divide em continuum parcial pelo jogo de muito medo, deixo passar os meses, mas nao me
quali dades ínterválicas. Talvez elas nao estejam sinto capaz de estar presente junto dele para uma
definidas aínda... processo de atualizagáo que obra sobre a música"7?
precede a atualidade, a individualidade e a Se Deleuze acompanha com entusiasmo a
qualidade sonora. Sao trés belas páginas em que criagáo cinematográfica, pictórica e musical,
voce mostra que nesse processo de atualizagáo o com o teatro é bem diferente. Esse modo de
limite é indiscernível, do 69mesmo modo que a expressáo náo Ihe interessa muito. Será que é
passagem de plano ao plañó’ , sua crítica virulenta e constante à temática da
Pascale Criton, em seu trabalho de compo- representagao que o conduz a essa distáncia?
sigáo musical, é fortemente influenciada pelas Talvez. Contudo, hà algumas excegoes nes- se
temáticas deleuzifhas e guattarianas. Ñas pegas campo que o aproximam da cenografìa do teatro.
que escreve para piano nos anos 1980, eia afirma Em prìmeiro lugar, seu encontró com Carmelo
ter acesso a um material molecular, fluidificar o Bene, criador de um gènero particular que poe em
material sonoro, e seu trabalho sobre o continuum cena a música, a voz, a imagem, após ter
musical empresta a nogáó ? de “transcodiñcagao” de comegado pelo cinema.
Guattari. Ao mesmo tempo, Deleuze está à escuta O encontró ocorre gragas a um intermediàrio
da especialista: “Ele nao se apresentava como um que se tornará amigo próximo de Deleuze, o autor
especialista no campo da música. Era um e tradutor italiano jean-Paul Manganato: “Em
laboratorio ao vivo, um pensamento que se 1975, tenho um encontró com Carme- Io Bene em
construía.70 Ele me dizia: ‘Está certo?’; ‘Posso dizer Roma para trazè-io a Paris e fago a besteìra de Ihe
assim?”’ . perguntar quem eie deseja ver em Paris. Ele me
No inicio dos anos 1980, quando Deleuze ■ responde: Barthes, Deleuze, Klossowski, Lacan e
■ se consagra ao trabalho sobre o cinema, nao Foucault. Eu só conhe- cia Barthes e Foucault, e
esquece com isso sua componente musical. precisei me encher de coragem para telefonar a
Trabalha com Pascale Criton sobre os escritos Deleuze, que fot extremamente gentil 1e cordial.
teóricos de Eisenstein, sobre as harmonías na Ele jà conhecia alguns filmes de Bene”'' . A partir
imagem e no som: “Isso pertencia ao campo da desse encontró, Carmelo Bene e Deleuze mantèm
intermodalidade, da transmodalidade sensorial, e discus- soes regulares sobre o teatro, que
nesse plano a gente teve muítas trocas e leituras conduzem a um Iivro comum em 19797'. O título,
teóricas”“. Ao longo dessas sessoes, eia Ihe Super- posigoes, indica que nào se trata para
apresenta também o trabalho de Gérard Griset, um Deleuze de se langar a urna interpretagao exterior,
358 François Dosse

de impor um comentàrio a mais à obra de Carme- Deleuze publica em 1992 um texto importante,
Io Bene, mas de teorizar o ato subtrativo operado OEsgotado, no mesmo volume que Quad e outras
pelo pròprio Bene sobre o Ricardo III, de pegas para a teievisào, de Beckett'9.0 mundo de
Shakespeare. O espago crítico/clínico definido Beckett, seus personagens e suas disjungoes
aquí por Deleuze pretende-se, portanto, urna despertam em Deleuze o mesmo fascínio que eie
operagào cìrurgica da amputagào. Deleuze, sente pelo personagem de Bartleby e seu I
embora pouco dado às vìagens, se deixa levar por wouldprefer not to. A ausència de possiveis no
Manganaro a Roma em 1977 para assistir à teatro de Beckett remete para Deleuze ao tema do
representagào da pega. Ator antes de ser di- retor, esgotamento, que nào é a simples fadiga: o
cineasta antes de ser homem de teatro: a fatigado ainda dispòe de pos- siveis, mesmo que
ambivalencia seduz Deleuze, essa potencia pela seja incapaz de reaüzá-los, enquanto que o
qual Bene transcende a dìvisào entre o autor, o esgotado nao tem mais - “Eie se esgota esgotando
ator e o dìretor, o que Deleuze qualifica em Bene o possivel, e inversamente” Há, segundo
80

de “máquina atoriaf’. Deleuze, quatro vias para esgotar o possivel:


Na essència desse teatro, além da questào da formar séries exaustivas de colsas, calar os fluxos
lingua menor, encontra-se o tema da varia- gáo: de voz, extenuar as potencialidades do espago e
“O que conta sào as relagoes de veìocida- de ou de dissipar a potencia da imagem: “0 esgotado é o
lentidàò’75. Nisso ele está em ruptura, o que agrada exaustivo, 81é o calado, é o extenuado e é o
Deleuze, com a ideia tràgica de representagào dos dissipado” .
conflitos e das contradi- gòes a superar. A estética, segundo Deleuze, nào é absolu-
Abandonando essa diaiética intersubjetiva, Bene tamente um jardim privado para especialistas;
deixa correr linhas de va- riagòes segundo eia está em cada um en qua nto símbiose de afetos
modalidades e velocidades diferentes, evoluindo e de perceptos segundo combinaqoes muìto
para devires minoritàrios. singulares no que ele define, a partir de Bacon,
Hà também nesse teatro toda urna representagào como urna “lógica da sensagáo”. Quando Deleuze
sobre o corpo, próxima dos temas deleu- zianos. O confía a Harry Jancovìci, da editora La Différence,
trabalho teatral, segundo Carmelo Bene, coloca a um ensaio sobre Bacon, nunca tinha encontrado o
questào de saber como ser um corpo de ator sem pintor. Nessa ocasìao, seu editor joachim Vita!
órgaos e ao mesmo tempo em cena. Trata-se de costuma discutir sobre pintura com Deleuze e
exprimir “a impossibilìda- de do corpo de querer, considera sua anàli- se sobre Bacon especialmente
de poder: os obstáculos -- os impedimentos, para apaixonante e originai. Constata também que “sua
retomar o termo de Gilles Deleuze - que distraem e bagagem, em materia de arte, era minima, e seus
desorientan!"6. Nessa expressao teatral, Bene dá gostos con traversos” .0 fato de trazer conceitos
83

toda sua importancia à voz, às suas variagoes operatorios, a partir da obra de Bacon, é o mais
continuas, que sao da ordem da proferlgào e surpreendente.
corresponder« em seu teatro a tres fluxos distintos: Logo após o lanpamento, o ensaio de Deleuze
a voz direta do ator em cena, a voz gravada e a voz é enviado a Francis Bacon que se impressiona
88

distorcida, ora aumentada, ora diminuida, a partir com a acuidade da proposito: “Era o caso de dlzer
da voz real do ator. que esse tipo estava por atrás dos meus ombros
Sobre o tema da voz, Deleuze presta urna enquanto eu pintava meus quadrasi”, diz eie84.
vibrante homenagem ao seu velho amigo Alain Joachim Vital, grande admirador de Bacon,
Cuny, que havia conhecido adolescente na casa de organiza o encontró entre o autor c o pintor em
Marie-Magdeleine Davy": “O que a voz revela é Paris, um jantar, na Rue Trudaine, no Auberge du
que os conceitos nao sao abstratos... Quando a voz Clou. Entretanto, o que devia ser um sonho
do ator é a de Alain Cuny... É talvez a mais bela acordado vira um pe~ sadelo: “A comida estava
contribuigào a um teatro de ìeìtura. Imagina-se a horrivel - tao horri- vel quanto o diálogo deles.
Ética, de Espinosa, fida por Alain Cuny. A voz é ‘Caro Gilles', ‘Caro Francis... Sorriram um para o
como que levada por um vento que conduz as outro, se cumpri- mentaram, sorriram de novo.
ondas de demonstragòes"8. Aturdidos, nós os ouvimos desfìar banalidades. A
Gilles Deleuze & Félix Guattari 359

gente lan- gava bolas para eìes: a arte egipcia, a que você viu, da sua maneira pessoal, o que é
tragèdia grega, Dógen, Shakespeare, Swinburne, essencial para mìm, esse vitalismo cu urna
Proust, Kafka, Turner, Goya, Manet, as cartas de concepçâo da vida como potència nâo orgànica”*.
Van Gogh ao seu irmao Théo, Artaud, Beckett. Contado, quando Mireille Buydens reintroduz na
Cada um por seu turno sgarrava urna boia e jo- estética deleuziana urna série de dualismos
gava com eia, no seu canto, sem se preocupar com concebidos como contraditórios, como a força e a
o outro. Urna garrafa de vìnho de Bordeaux estava forma, para chegar a urna constataçâo de ‘
com gosto de roìha, e Bacon tomou isso como urna aformalismo”, eia passa à margem do que Deleuze
ofensa pessoal Deleuze enca- deou com um expressa, como este último confia a Arnaud
discurso de 85alto nivel sobre o futuro da Villani: “Deleuze, quando submeti o problema e
Universidade” . Deleuze, de sua parte, quando ele, se demarcou veementemente disso
perguntam a eie se conheceu Bacon comenta: (correspondéncia privada)”91.
“Sim, logo depois desse livro. Sente- -se nele O que é fundamental em Deleuze, segundo
potència e violencia, mas também um enorme Arnaud Villani, nâo é de modo nenhum esse jogo
charme. Quando permanece sentado por urna hora, de oposigòes, mas o corpo, e é isso que fascina
eie se contorce em todos 86os sentidos, diríamos Deleuze nos artistas: ‘Agir, reagir sao primeiros
verdádeíramente um Bacon” . em relagao a conhecer. É preciso que urna estética
Em seu livro, Michel Pepiatt atribui a Deleuze da representagao de lugar a urna estésica do
o fato de que em nenhuma outra parte do mundo sujeito ativo”93, pois toda sua filosofìa està voltada
Bacon8 usufruì de tao grande prestigio quanto em para o corpo como potencia aínda inexplorada tal
Paris '. Contado, além do caso de Bacon, é toda como já a havia concebido Espinosa.
urna reflexào de ordem estética que Deleuze tem
em vista a través desse estado pictórico, a do
acesso ao “pura figurai” por ex- traçâo e isolaçao: As dobras da imanencia
‘A pintura deve arrancar a Figura do figurativo" 88
Ao término do seu ensino em Paris-VIII,
Deìeuze prossegue assim a reflexào que Deleuze encontra um conceito que consomé toda
empreendeu com Guattari sobre a rosteidade em sua elaboragáo filosófica, o de dobra. Essa nogáo
Mil Platos. Eie vê Bacon como o pintor que desfaz emana de urna longa viagem no pensamento de
os rostos para deixar que apareçam melhor, sob o Leibniz, que ocupou Deleuze durante parte do ano
efeito sobrecodificado destes últimos, os devires letivo de 1979 e 1980, mas sobretodo seu último
múltiplos das cabe- ças como prolongamento dos ano de ensino, 1986 e 1987, Com o livro,
corpos. Do que nasce a sensaçâo forte publicado em 198893, Deleuze parece também
experimentada diante de urna tela de Bacon? refazer o elo com suas primeiras monografías,
Essencialmente de sua capacidade de captar o jogo com a arte do retrato que marcou seu primerio
de forças que se exercem no quadro para periodo. Deleuze, ao mesmo tempo em que
determinar as formas ali. Encontra-se em Bacon revisita o autor exumado para fazer dele um de
essa vontade de figurar a vida - ‘A matèria é a seus contemporáneos, pretende ressituar um
vida”. Leibniz filósofo da idade barroca confrontado com
Graças a todas essas experimentaçôes, Deleuze os problemas de seu tempo.
constrói urna estética transcendental da sensaçâo. O que está em questáo de maneira dramática, e
Com a preocupaçâo de superar a oposiçao entre que abre um novo período, a época moderna em
critica e clinica, eie elabora urna “psique da pleno século XVII, é o desmoronamiento da
intensidade”89, permanecendo na filiaçâo de sua construgao teológica. Construida sobre um sistema
primeira inspiraçao nietzschiana, perseguìndo essa fechado e monocentrado, eia se ve confrontada
vontade de recuperar forças nessas travessias da com a grande ruptura copérnico-galileana e,
experiència criadora. 0 vitalismo està bem no portanto, com a infí- nitude. Como pensar esse
coraçâo dessa estética, como o pròprio Deleuze infinito? Esse é o desafio que tem de enfrentar os
menciona em urna carta a Mireille Buydens em filósofos do século XVII. Leibniz foi quem tento u
resposta ao livro que esta consagra a eie: “Creio
360 François Dosse

responder a esse problema em duas vertentes: a da identifica- ram com esse uso da dobra, em
estética, prosseguindo as operagoes distintivas do particular urna ‘Associaçâo de Dobradores de
barroco até o infinito, e a da epistemologia, Papel”, que pos- sui sua pròpria revista e que
incluindo o acontecimiento e o predicado na expressa seu reco- nhecimento a Deleuze: “A
mónada enquanto unidade ao mesmo tempo gente está de acor- do, o que o senhor faz é o que97a
fechada e contendo a integralidade do mundo, gente faz”. “E urna maravilhaf, comenta Deleuze .
apesar da ausencia de “janela para o exterior”. Quando
O mundo se encontra dobrado em cada alma, Deleuze publica sua obra, a tradigào filosòfica dos
mas segundo confìguragòes sempre diferentes. especialistas de Leibniz já é longa: Louis Couturat,
Como de hábito, Deleuze toma distáncia de Bertrand Russel, Martial Guéroult, Yvon Belava! e
algumas ideias reeebídas ou de interpreta- çôes sobretudo Michel Serres, que deu uma enorme
dominantes. Leibniz é visto como otimista um repercussào ao pensamento de Leibniz nos anos
pouco beato quando afirma que o mundo se 1970 e 1,980,
edifica a partir de urna harmonía preestabe- íecída; Será que se pode afirmar que Deleuze, como
Deleuze mostra que, ao contràrio, sua ideia ele mesmo diz, fez um filho ñas costas de Leibniz,
repousa em urna concepçâo da danaçao, segundo a ñas dobras de seu pensamento? Nada é menos
qual “é ñas costas dos dañados que aparece o seguro. Michel Fichant, especialista em Leibniz,
melhor dos mundos possíveis”94. nao manifestou discordáncia com a visáo
O que Leibniz possibilità a Deleuze, em um deleuziana: “Relendo A Dobra, me dei conta de
momento em que já nâo é apenas a constru- çâo que Deleuze é muito mais fiel a Leibniz do que se
teológica que desmorona, mas também a razao poderia imaginar”98, Contudo, Deleuze, que dá
otimista das Luzes que se esfrangalha, é responder como subtítulo ao seu livro “Leibniz e o barroco”,
a um desafio igualmente premente por sua inscreve-se mais na filia- gao da recepgáo cultural,
potência telúrica. A esse título, as tentativas simbólica de Leibniz, a de um Cassirer, do que na
contemporáneas de salvar qualquer coisa e de filiagào mais propriamente epistemológica da
refundar sobre novas bases “nos torna[am] talvez filosofía da matemática ou da lógica, a de um
mais próximos de Leibniz do que de Voltaire”90, Couturat: “O que, portanto, é original no
Além disso, a outra metafísica que Deleuze procedimento de 09Deleuze é abordar Leibniz a
procura elaborar é aquela que transcende o corte partir do barroco’ . Esse é também o ponto de
entre o sujeito e o mundo, aquela que restabelece vista de Bruno Paradis, que define o estilo de
as pontes entre o ser vivo e o cosmo, pois as Deleuze com um concei- to que este último havia
dobras se encontram por toda parte no universo. utilizado para caracterizar100 o procedimento de
Está em harmonía com as temáticas de Leibniz: “E Foucault, o da “diagonal” . Deleuze encontra de
preciso pór o mundo no sujeito, a fim de que o fato em Leibniz esse sentido das multiplicidades,
sujeito seja para o mundo. É essa torçâo que dos elementos dispares, dos campos distintos, e
constituí a dobra do mundo e da alma”96. Essas que po- dem ao mesmo tempo ser relacionados uns
dobras po- dem ser identificadas tanto nos e outros com fenómenos de captura de um campo
plìssamentos das montanhas mais antigas, como as em outro. As diagonais tèm a possibilidade de
monta- nhas hercinìanas, quanto nos nos, nas tragar linhas, de dobrar os saberes uns sobre os
plantas e nos organismos vivos, sejam animais, outros, e assim de consoar a matemática, a poesia,
sejam humanos. a arquitetura, a filosofía, a música...
Tem-se ai, com a noçâo de dobra, um operador Restabelecer as pontes é o horizonte per-
dessa transversalidade que Guattari tanto almejava. manente de Deleuze, que ve em Leibniz um
Além disso, tem-se um conceito que fala a todos, pensador que torna possível fazer passar de novo,
pois corresponde a certos usos da vida cotidiana. É entre as dobras da alma e as dobras da materia, as
essa conexâo com a vida mesma que mais agrada dobras do mundo. Essa nogáo 11- vra igualmente
Deleuze, o que aliás ele menciona em 1988, ano da de ter de escolher entre continuidades e
publicaçâo da obra em O Abecedario. Ele fala das descontinuidades, imobilidades e rupturas, pois a
inúmeras cartas que recebe de pessoas que se dobra traz em si “ao mesmo tempo a distingáo real
Gilles Deleuze & Félix Guattari 361

e a inseparabilidade”101, A dobra se torna o vetor modelos aleatorios que permitem produzir objetos
das intensidades sen- síveis e inteligíveis moduláveis, nao padroes, mas de ma~ neira
.misturadas; eia nào remete nem a um comegd industrial. Ele criou urna empresa, cujo nome,
nem a um firn, nem a uma proíúndidade nem a Objectile Diffusion, lhe fot sugerido por Deleuze:
uma altura, mas se refere apenas ao plano de “Ele me disse um dia que os objetos de que eu
imanéncia. O objetivo que Deleuze se atribuí é falava de maneira leibniziana por meio de fungóes
constituir um conceito de dobra que siga todas as paramétricas sao de fato objetéis”108. Nessa
sinuosidades do pensamento de Leibniz: “Minha empresa, Cache transforma os principios
hipótese é que o barroco faz pregas”102. O barroco filosóficos em verdadeiro modo de produgao
certamente nâo inventou a prega, que se percebe singular, passando da dobra algébrica leibniziana
até nas esculturas da antiguidade grega, mas a á dobra geométrica desarguia- na. Trata-se para
dobra barroca, e é isso que a especifica, vai ao infi- Bernard Cache de urna forma de neofinalismo
nito: “Uma alma nao poderia desenvolver de uma "que seria urna filosofía da desnaturando!”10'.
só vez todas as suas redobras, pois elas vâo ao Com suas sombras interiores mobiliadas em
infinito”103. No sistema leibniziano, Deleuze perspectiva engañosa, com seus interiores sem
encontra uma forma de vitalismo próxima de suas exterior e suas fachadas sem interior, a mónada
posiçôes. O vitalismo de Leibniz consiste em leibniziana está ligada sobretudo á arquitetura
afirmar que “o ser vivo é urna máquina... O que se barroca. O espago barroco é olivado em duas
opoe à mecánica é a máquina”104. O que as partes separadas por urna simples dobra. Encontra-
diferencia é que a máquina está do lado do infinito, se essa vísáo binocular particularmente em
enquanto que a mecánica se situa do lado do finito. Tintoretto e El Greco. Sabe-se também que o
Jovem arquiteto recém saído da Escola Po- barroco introduz um novo regirme de luz com o
litécnica de Lausanne, Bernard Cache chega a claro-escuro: “O claro-escuro preenche a mónada
Vincennes entre 1979 e 1980, quando Deleuze seguindo 110urna serie que se pode percorrer nos dois
começa a falar de Leibniz. “Disse a mim mesmo, sentidos” . Essa rela- qáo entre duas fases e duas
é issoî É exatamente o que estou105 procurando. intensidades da luz remete a urna outra clivagem
Ainda nâo sei o que é, mas é isso” . Ele decide entre a infmidade de mundos possíveís e a finitude
seguir um curso de filosofìa e escolhe Deleuze de mundos reais, porém, entre as duas, restam os
como seu orientador de tese. Começa entre eles mundos virtuais que sao atuais ñas mónadas que os
um longo diálogo que será interrompido com o exprimem sem que eles sejam reais. O mundo é
falecimento de Deleuze em 1995. O inicio da portanto “Uno” para Leibniz, mas deve ser
Dobra atesta a importancia que assumirá Bernard pensado em dois níveis distintos, que se percebe
Cache a propósito da abordagem da matemática e também na relagáo entre a alma e o corpo, cada
da geometria em Leibniz. Segundo Deleuze, a um agindo segundo leis próprias. Urna exprime o
matemática barroca começa com Leibniz como mundo, é a alma, enquanto o outro, o corpo, o
campo por excelencia da variaçâo. O atualiza: “Nao sao duas cidades, urna Jerusalém
perspectívismo de Leibniz é análogo ao celeste e urna terrestre, mas a cume- eirá e as
relativismo, mas nao aquele que se imagina, “nâo fundagóes de urna mesma cidade, os dois andares
é uma variaçâo da verdade segundo o sujeito, mas de urna mesma casa”Hi.
a condiçâo sob a qual aparece ao sujeito a verdade Sobre a questáo da criagáo musical, a ideia de
de uma variaçâo”106. As dobras da alma, segundo Leibniz segundo a qual a alma canta por ela
Leibniz, : envolvem as virtualidades das diversas mesma em acordes, enquanto os olhos ieem urna
infle- xoes: “O mundo inteiro é apenas uma partitura, e a voz segue a linha melódica -
virtua- assinalando assim o envolví mentó conforme
lidade que só existe atualmente ñas dobras da « dobragens de operagdes diferentes cujo resultado
10?
alma que o exprime , Bernard Cache trans- visa á harmonía - encontra seu pro- longamento na
formou esses principios em forças materiais, : música mais contemporánea: “O mesmo problema
concebendo objetos manufaturados a partir de expressivo nao deixará de animar a música, até
Wagner ou Debussy, e hoje Cage, Boulez,
362 François Dosse

Stockhausen, Berio. Nao é um problema de Eric Alliez està certo ao ver na construgào
correspondencia, mas de ‘fold-irí, ou de prega dessa ontologia do virtual a linha di retri z mais
conforme prega”' í2. Deleuze concluí sua obra:
1
pura do pensamento deleuziano11'1: “Seria en- tào
continuamos fundamentalmente leibnizdanos, pois corno se Deleuze tìvesse comegado por generalizar
se trata sem- pre de dobrar, desdobrar e redobrar. ao conjunto da filosofìa moderna, kantiana e
O tema do cristal é onipresente na obra de hegeliana, dialética e fenomenologica, a crítica que
Deleuze, pois o plano cristalino constituí o modelo Bergson dirigía a Einstein: ter confundido o atual
do acontecimento como plano de imanéncia. e o virtual, ter reduzido a logica matemática dos
Como indica Ch.risti.ne Buci-Glucksmann ^ que 1
casos de soluqào à problemàtica ontològica da
foi sua aluna muito cedo, o cristal tem um valor questuo da matèria e do tempo. É apenas tendo em
matricial para a cons- trugáo de urna estética do vista que o pensamento deleuzíano nào possui
virtual, Christine Buci-Glucksmann, 11que publica como sujeito senao o virtual que ele pode ser
em 1.986 urna obra sobre o barroco '1, discute a chamado indiferentemente de filosofìa do devir, da
estética barroca com Deleuze, que, de sua parte, diferen- ga, da imanencia ou do acontecimento -
prepara o livro sobre Leibniz: “Havia entre nós pois é o virtual que permite enunciar, do ponto de
urna dis- cussáo sobre o barroco do continuo, isto vista de' um materialismo verdadeiramente
é, o modelo da dobra leibniziana, Bernini, a Itália, transcendental, cada urna dessas nogoes por eia
o conceito, e o que eu tinha trabalhado de mi- nha mesma e com as outras”120.
parte: o barroco do vazio, as retóricas 11barrocas O amigo comum de Guattari e de Deleuze,
napolitanas, venezianas, espanholas” '’. O Raymond Bellour, que fìcara fascinado com O
falecimento de Deleuze interrompe esse diálogo Ánti-Édipo, em 1972, e que chegou a fazer urna
fecundo, mas Christine Buci-Glucksmann entrevista com os autores para Les Temps
prossegue sua elaboragáo de urna estética do Modernos, táo longa que jamais foi publicada,
virtual “tentando elaborar um terceiro regime da consegue convencer o diretor do Magazine
imagem que é pós-deleuziana e que chamei de littéraire a consagrar um dossiè a Deleuze em
imagem-fluxo, nao mais a imagem-cristal que torno da publicagào de a Prega, em 1988131.
aínda tem arestas. É urna imagem que se constituí Bellour está particularmente apaixonado por essa
urna especie de continuo virtual” Os trabalhos de
116
questáo do atual e do virtual que, na con- tinuidade
Buci-Glucksmann sao extremamente próximos aos de seu trabalho sobre Leibniz, preocupa Deleuze
conceitos deleu- zianos. Ela os coloca á prova de até o fim. Seu último projeto de obra, que ficou
algumas ex- pressoes criadoras, como117é o caso inacabado, deveria se chamar Conjuntos e
quando de sua obra sobre o Japao , em.que Multiplicidades. Seu último texto “A imanència,
distingue algumas matrizes próprias ao “olho urna vida”, assim como o texto publicado como
japonés” a partir de suas observagóes da anexo em Diálogos, “O atual e o virtual”,
arquitetura e do urbanismo. Observa urna primeira constituiriam os dois primeiros capítulos: “Seria
matriz no efeito-onda: “Ondas e espiráis, como o um livro pequeño, com capítulos muito curtos. Ele
nuagis- mo* da imagem ou das dobras dos quería explicar os conjuntos lógicos de Russel e de
orígínários, sao sempre inflexóes virtuais no Frege e o conceito de virtual. Mas ele se mata após
sentido preci- escrever esses dois textos”122. C
Em um de seus últimos textos, Deleuze volta à
R de T.: Termo derivado de nuage (niivem), que deu o nome a
f, defmigáo da filosofìa como teoria dàs
um movimento de arte abstrata nos anos de I960. multiplicidades que coloca frontalmente o
so de Gilles Deleuze e Bernard Cache” 118. Trata- problema do atual e do virtual: “Toda multipli-
-se ali do campo das variagòes múltiplas, das cidade implica elementos atuais e elementos
linhas-universos, das inflexòes que traduzem bem virtuais. Nao há objeto puramente atual. Todo
essa expressào japonesa “ter o espirito da onda” atual se 123cerca de um emaranhado de imagens
que é de algum modo o inverso da expressào virtuais” . Quanto ao plano de imanencia; ele
ocidental “ter o espirito da esc a da”. compreende essas duas dimensoes, sem que se
possa dizer o que pertence a urna ou à mitra. Essa
Gilles Deleuze & Félix Guattari 363

temática do virtual no pensamento de Deleuze 17. Jacques RANCIÈRE, La Chair des mots, Galilée,
encontra-se desde sua tese em que ele afirma a Paris, 1998, p. 203.
plena realidade de tal dimensáo virtual: "O virtual 18. Ibid., p, 202.
nào se opoe ao real, mas so- mente ao atual” 12tt. A 19. Olivier Mongin, entrevista com o autor.
concepgáo de um tempo multidimensional é 20. Ibid.
necessària, e Deleuze a busca na imagem-tempo 21. Ibid.
com esse cristal dé tempo como nao cronológico 22. Édouard Glissant, "Philosophie de la mondia- lité'L
que nos permite entrever devires singulares. Com 25 de julho de 2003, France Culture.
o cristafi ele valoriza urna matèria organizada na 23. Ibid.
frontéira entre o orgànico e o inorgánico, um 24. Ibid.
precipitado de sáltese. 25. Christina Kullberg, entrevista com o autor.
Aínda que as últimas publicagóes de Deleuze 26. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze ettari, PUF,
fagam pouca mengao ao cinema e se apoiem mais Paris, 2005, p. 19.
na literatura - o que talvez esteja ligado ao fato de 27. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, 235-252,
que nos últimos anos Deleuze: permaneceu 28. Ibid., p. 243.
recluso em casa-, ele certamente persistiu na ideia 29. Pierrette Fleuüaux, entrevista com o autor,
de prosseguir suas pesquisas sobre o cinema. Nos 30. Pierrette FLEUTIAUX, “Le phiolosophe, Dlou- rès,
últimos meses de vida*: em 1995, Raymond le philosophe”, em Nous sommes éternels, Gallimard,
Bellour lembra-se deter discutido com ele sobre a Paris, 1990 ; Folio, 1992, p. 679-692.
questáo do virtual,: dessa dimensáo que nao é 31. Ibid., p. 681.
32. Gilles DELEUZE, “Philosophie de la série noire”,
atual, mas sempre; bem real: “Ele eslava Arts et Loisirs, n, 18,26 de janeiro-l° de fe- vereiro de
preparando um livro sobre o virtual, e me lembro 1966, p. 12-13; reproduzido em ID, p.
de ter comentado com ele ao telefone no veráo de 117.
1995 quando: ele estava em Saint-Léonard-de- 33. Raymond Bellour dedica seu prefâcio às Œuvres
Noblat”125. complètes de Henri Michaux, entre outros, a Gilles
Deleuze e Félix Guattari. Henri MICHAUX, Œuvres
Notas complètes, Gallimard, Pléiade, Paris, 1998, tomo I.
1. Ver capítulo “Quando Deìeuze vai ao cinema”. 34. Raymond Eellour, ibid., p. XIII.
2. Gilles DELEUZE, CC,p. 11. 35. Ibid., p. XVII.
3. Ibid., p. 12. 36. Gilles DELEUZE, F, p. 126.
37. Henri MICHAUX, Œuvres complètes, op. cit., tomo
4. Ibid., p. 13, III, 2004, p. XXXIX.
5. Gilíes DELEUZE, D, p. 47. 38. Raymond BELLOUR, em Éric ALLIEZ (sob a dit.),
6. Ibid., p. 48. Gilles Deleuze. Une vie philosophique, Syn- thélabo,
7. Ibid., p. 53-54. 1998, p, 537-543.
8. Ibid., p. 55. 39. Anne SAUVAGNARGUES, Gilles Deleuze et l'art,
9, Ibid., p. 60. op. cit., p. 200-208.
10. Henry MILLER, Sexus, Buche t-Ch as tei, Paris, p. 40. Gérard Fromanger, entrevista com o autor.
29. 41. Ibid.
11. Marcel PROUST, Correspondance avec madame 42. Gérard Fromanger, entrevista com Eve Cloa- rec, 22
Strauss, lettre 47, Livre de poche, Paris, 1972, p. 110- de outubro de 1984, arquivos IMEC,
115, citado por Gilles DELEUZE, CC, p. 16, 43. Ibid.
12. Gilles DELEUZE, CC, p. 138. nota 4. 44. Ibid.
13. Gilles DELEUZE, posfacìo a H, MELVIILLE, 45. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Qph, 192.
Bartleby, Flammarion, Paris, 1989; reproduzi- do em 46. Gérard Fromanger, entrevista com o autor.
CC, p. 89-114, 47. Ibid.
14. Gilles DELEUZE, CC,p. 91.
48. Ibid.
15. Ibid., p. 110,
16. Ibid., p. 112.
364 François Dosse

49. Gilles DELEUZE, “Le froid et le chaud”, em Lyon, Théâtre national populaire, nov. 1987;
Fromanger, le peintre et le modèle, Eaudard Alvarez, reproduzìdo em RF, p. 303-304.
1973; reproduzido em ID, p. 344-350. 78. Ibid., p. 303-304.
50. Ibid., p. 344. 79. Samuel BECKETT, Quad et autres pièces pour la
51. Richard PINHAS, Les Larmes de Nietzsche. Deleuze télévision, suivi de L’Épuisê par Gilles DELEUZE,
et la musique, Flammarion, Paris, 2001, p. 24. Minuit, Paris, 1992.
52. Pierre Roulez, citado por David RABOUIN, Le 80. Gilles DELEUZE, L’Êpuisé, ibid,, p. 57.
Magazine littéraire, fevereiro de 2002, p. 81. Ibid., p, 78.
40. 82. Joachim VITAL, Adieu à quelques personnages, La
53. Gilles DELEUZE, “Rendre audibles des forces non Différence, Paris, 2004, p. 228.
audibles par elles-mêmes” (1978), em RF, p. 143. 83. Gilles DELEUZE, Francis Bacon. Logique de la
54. Ibid., p. 144. sensation, La Différence, Paris, 1981; reed. Seuil,
55. Gilles DELEUZE, “Occuper sans compter: Boulez, Paris, 2002 (doravante citado FB).
Proust et le temps" (1986), DR, p. 274. 84. Francis Bacon, citado por Joachim VITAL, Adieu à
56. Pierre BOULEZ, Penser la musique aujourd'hui, quelques personnages, op.cit, p. 228.
Gonthier, Paris, 1963. 85. joachim VITAL, ibid., p. 236-237.
57. Mireille BUYDENS, Sahara. L'esthétique de Gilles 86. Gilles Deleuze, “La peinture enflamme l’écriture”,
Deleuze, Vrin, Paris, 1990, p. 154. palavras recolhidas por Hervé Gui- bert, Le Monde, 3
58. Richard Pinhas, entrevista com o autor. de dezembro de 1981; repro- duzido em RE, p. 170-
59. Ibid. 171.
60. Ibid. 87. Michel PEPIATT, Bacon. Anatomie dam énigme,
61. Ibid. Flammarion, Paris, 2004.
62. Richard Pinhas, “Deleuze Variations”, France 88. Gilles DELEUZE, FB, p. 17.
89. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op.cit,
Culture, 21 de abri! de 2002. p. 260. V’
63. Richard PINHAS, les Larmes de Nietzsche. Deleuze 90. Gilles DELEUZE, “Lettre-préface”, em Mireille
et la musique, op.cit., p. 200. BUYDENS, Sahara. L'esthétique de Gilles Deleuze,
64. Pascale Criton, entrevista com o autor. op.cit, p. 5.
65. Ibid. 91. Arnaud VILLANI, “De festéthique à l’esthé- sique:
66. [bici. Deleuze et la question de l’art”, em Alain
67. Pascale CRITON, '‘L’invitation”, em André REAULIBU (sob a dir.), Gilles Deleuze, héritage
BERNOLD e Richard PINHAS (sob a dir.}, Deleuze philosophique, PUF, Paris, 2005, p. 105.
épars, Hermann, Paris, 2005, p. 56. 92. Ibid., p. 120.
68. Pascale GRITON, prefácio a Ivan WYSCHNE- 93. Gilles DELEUZE, Pli.
GRADSKY, La Loi de la pansonoritê, Contrechamps, 94. Gilies DELEUZE, Libération, 22 de setembro de
Genebra, 1996. 1988, palavras recolhidas por Robert Maggiori;
69. Gilles Deleuze, carta a Pascale Criton, 20 de reproduzìdo em PP, p, 220.
dezembro de 1993. 95. Ibid
70. Pascale Criton, “Deleuze Variations”, France Culture, 96. Gilles DELEUZE, Pli, p. 37.
21 de abril de 2002. 97. Gilles Deleuze, A.
71. Pascale Criton, entrevista com o autor. 98. David Rabouin, entrevista com o autor.
72. Ibid. 99. Ibid.
73. Jean-Paul Manganaro, entrevista com o autor. 100. Bruno PARADIS, “Leibniz: um monde unique et
74. Carmelo BENE, Gilles DELEUZE, Superpositions, relatif1", LeMaganize littéraire, n. 257, setembro de
Minuit, Paris, 1979. 1988, p. 26.
75. Ibid., p. 113. 101. Ibid., p. 29.
76. jean-Paul MANGANARO, prefácio a Carmelo 102. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII,
BENE, Notre-Dame des Turcs, POE, Paris, 2003, P- 28 de outubro de 1986.
17- 103. G. W. LEIBNIZ, La Monadologie, Belio, Paris,
77. Gilles DELEUZE, “Ce que la voix apporte au texte", 1952, § 61.
em Théâtre national populaire: Alain Cuny “Lire”, 104. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa- ris-VIII,
28 de outubro de 1986.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 365

105. Bernard Cache, entrevista com o autor. 114. Christine BUCI-GLUCKSMANN, La Folie du voir.
106. Gilles DELEUZE, Pli, p. 27. De l'esthétique baroque, Galilée, Paris, 1986.
107. Ibid, p. 32. 115. Christine Buci-Glucksmann, entrevista com o autor.
108. Bernard Cache, entrevista com o autor. 116. Ibid.
109. Bernard CACHE, “Objectiie: poursuite de la 117. Christine BUCI-GLUCKSMANN, L’Esthétique du
philosophie par d’autres moyens?", em Rue temps au Japon. Du zen au virtuel, Galilée, Paris,
Descartes/20, Gilles Deleuze. Immanence et vie, 2001.
Collège international de philosophie, PUF, Paris, 118. Ibid., p. 97-98.
maio de 1998. 119- Éric ALLIEZ, “Sur la philosophie de Gilles Deleuze:
110. Gilles Deleuze, Pli, p. 45. une entrée en matière”, em Rue Descartes/20, Gilles
111. Ibid., p. 161. Deleuze. Immanence et vie, op. cit., p. 49-57.
120. Ibid., p. 56-57.
112. Ibid., p. 187. 121. “Gilles Deleuze, Um philosophe nomade”, Le
113. Christine BUCI-GLUCKSMANN, “Les cristaux de Magazine littéraire, n. 257, setembro de 1988.
l’art: une esthétique du virtuel”, em Rue 122. David Lapoujade, entrevista com o autor.
Descartes/20, Gilles Deleuze. Immanence et vie, op. 123. Gilles DELEUZE, “L’actuel et le virtuel”, D, p. 179.
cit.
124. Gilles DELEUZE, DR, p. 269.
125. Raymond Beílour, entrevista com o autor.
o p“
LJT

Urna filosofia artista

0 resultado final do traballio comuni entre acesso de risos geral de seus alunos, que pensam
Deleuze e Guattari vemà luz em forma de urna se tratar de urna brincadeíra. Mais tarde, ao longo
questào que nao podia ser mais clàssica e que os dos anos de 1980, Deleuze volta a formular esse
dois companheiros parecìam ter recusado até entào desejo diante de seus alunos, mas sem jamais
- afirmando o primado do “e” sobre o “é”. Em realizá-lo, pois diz nao estar pronto ainda para
1991, para surpresa geral, aparece 0 que é a responder a essa questào falsamente fácil. Eie
filosofia?. Esse projeto vem de longa data, pois, reafirma muitas vezes a importancia que atribui a
desde o langamento de Mil Platos, Deleuze esse projeto2.
manifestara o desejo de traba- Ihar sobre esse O estatuto desse livro é ambivalente: està
tema. Assim, ele encerra seu curso do ano leüvo ligado a um projeto multo pessoal de Deleuze,
1979 e de 1980 em Vincen- nes com as seguintes urna especie de coroamento de sua vida de fi-
palavras: “No próximo ano, será preciso encontrar losofo, e 1fol manifestamente escrito por eie e
alguma coisa de novo. Meu 1sonho sería um curso apenas eie' . Ao meàmo tempo, pode-se considerar
sobre o que é a filosofía?” , o que provoca um que a decisào tomada por Deleuze de aceitar
366 François Dosse

assiná-lo junto com Guattari nao é ape? nas urna Por sua vez, Roger-Pol Droit publica na mesma
prova de amizade excepcionalmente ■ intensa, semana urna resenha no Le Monde• “Faz mui- to
mas urna maneira de mostrar que asY teses ali tempo que se esperava esse livro. Há mui- tos anos
desenvolvidas, a lingua em que elas sao Deleuze6 o havia anunciado. Sua vida toda,
enunciadas fazem parte desse trabaìho de talvez” . Droit ressalta também o caráter
elaboragáo comum empreendido desde 1969. 0 intempestivo dessa intervençâo, seu aspecto
livro de 1991 coroa esse trabaìho comum que terá hiíariamente inoportuno: “Esse livro está à altura
durado vinte anos: nesse aspecto, a dupla do inesgotável. Faz parte daqueles pou- cos que
assinatura nào fol usurpada e faz justiga ao balançam as bibliotecas inúteis, voces agarram e
agencìamento que o tornou possivel. póem em marcha”7. De 0 Anti-Édipo a 0 que é a
filosofia? alguns conceitos aparece- ram, e outros
desapareceram. Deleuze e Guattari habituaram
Filosofar é criar conceitos seus leitores a urna linguagem singular que oferece
A obra, mais bem recebida que Mil Platos, foi um contraste marcante com o discurso filosófico
um acontecimento, pois sua mensagem é clara, clàssico.
límpida, a propósito da fungao definida como a Um doutorando oriundo das letras clássi- cas e
pròpria filosofia: a capacidade de criar conceitos. convertido à linguistica, Sylvain Loiseau, prepara
Nela ainda, Deleuze e Guattari to~ mam as ideias em Paris-X, sob a orientaçâo de François Rastier,
em voga nos anos de 1990 em sentido inverso - urna tese sobre a “Semántica do discurso
todo mundo pretende criar e difundir conceitos, filosófico”, que trata da filosofìa dos anos de 1970
especialmente os publicitarios. Só se fala entào de na Franga. Trabalhando sobre os textos de
“conceitos” em todos os departamentos de Lyotard, Derrida, Foucault, Loiseau integrou ao
recursos humanos, em todos os centros de decisào corpo de sua pesquisa o essencial da obra de
e em todos os ámbitos. Diga-me teu conceito, e eu Deleuze e Guattari. Com isso, póde avallar no
te direi quem ési Nao é tao simples! plano lexicológico até que ponto realixaram isso
A mensagem é mais bem recebida por aqueles que para eles define a filosofìa: a invengao de
já familiarizados com o pensamento de Deleuze e conceitos. Por meìo de urna de- marcagao
Guattari, pois se encontra ali urna sèrie de quantitativa das ocorrèncias léxicas, depois de ter
temáticas bastante conhecidas deles. Seu amigo enumerado o corpo dos textos, Sylvain Loiseau
Robert Maggiori aeompanha urna resenha mu ito pòe em evidencia aìguns tragos semánticos
elogiosa do livro em Libération de um longo artigo estruturantes, como “a oposigáo delimìtado/nào
sobre seu trabalho comum a partir de urna delimitado, que é urna constante textual, em
entrevista com os dois autores na qual afìrmam a particular de O Anti-Édipo"*.
força de sua iigaçâo, a na- tureza heterogénea dos O levantamiento das coocorrèncias permite,
conceitos produzidos por sua “ramificaçâo por outro lado, reconstituir, quando Deleuze e
maquinica”, mas, ao mes- mo tempo, a ausencia de Guattari falam do sujeito ou do ator, léxicos
efusao de amizade entre eles, o fato de se tratarem reveladores das fungòes que eles Ihes atribuem e
por "senhor”, etcA Maggiori enfatiza a dos papéis semánticos que tèm em vista: “Os
continuidade do gesto que foi inicialmente colocar atores sao especializados em urna relagáo de
urna primeira bomba na psicanálise com O Anti- conflitualidade com o continuo. Devem ‘passar
Édipo e, em 1991, urna segunda bomba na através’, ‘romper os 9limites, embaralhar',
disciplina filosófica “ “o livro de Deleuze e ‘demonstrar autonomia’” . Sylvain Loiseau
Guattari é inas- similável pela filosofìa hoje’G Ele demarca, no plano da lingua, o corte que constituí
qualifica de “construtivista” essa defmiçâo da o encontró com Guattari. Os textos exclusivos de
filosofía que, para criar conceitos, deve extrair um Deleuze, de 1968 a 1969, permanecem na ordem
acontecimiento dos seres e das coisas, inventar de urna semántica bastante clàssica, mesmo
perso- nagens conceituais e assegurar a Iigaçâo, as Lógica do Sentido: ‘A obra que mais se singulariza
co- nexoes destes últimos no plano da imanencia. é Mil Platos'10.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 367

Evidentemente, esse trabalho de invengao nào no piano de imanência, inventar e dar vida a
se faz ex nihìlo. Nào é no face a face solitàrio com personagens pró-fììosófìcos e, finalmente, criar
sua folha em branco que o filósofo cria conceitos; conceitos filosóficos. Fazer a historia da filosofia
eie necessita de personagens conceituais como o significa, portanto, encontrar esse gesto triplo para
“amigo”, que atestaría a origem grega da filo- extrair dele o problema que o filòsofo se dispos a
sofìa: “Com a filo-sofia, os gregos submetem a pensar. É nessa situaçâo de crise que o filósofo
urna violencia o amigo, que náo está mais em pode ao mesmo tempo abordar mais de perto os
relagáo com um outro, mas com urna Entidade, verdaderos problemas colocados e criar novos
urna Objetividade, urna Es- senciá’11. Os conceitos, pois “a filosofìa vive assim em urna
personagens conceituais podem encarnar-se em crise permanente. O plano opera por abaìos, e os
figuras psicossociais como “o déspota”, “o conceitos procedem por lDsaraivadas, os per-
nòmade”, “o profeta”, “o traidor”, “o guerreiro”, sonagens por solavancos” . É ilusorio entáo
“o itinerante”, para citar aqueles que animam o acreditar que se pode simplesmente interpor
percurso de Mil Platos. camadas de saber, à maneira como a erosao
A lista de personagens conceituais que podem deposita as camadas sedimentares sobre o suporte
ser convocados pela filosofía é indefinida. O idiota terrestre. O critèrio, sempre atual, é o do
é um deles: “É um pensador privado em oposigáo interessante: “Mesmo repulsivo, um conceito deve
ao professor público”12. Esses personagens tèm ser interessante”16. A partir desse critèrio, pode-se
cada um seu “momento de glòria”, lugares de encontrar na historia mais antiga da filosofia com
enraizamento, ligados a um espirito do tempo o que tornar um velho conceito adormecido
situado espacialmente. As- sim, circunscreve-se o “interessante”, mas com a condi- gào de que eie
idiota na atmosfera cris- ta e se vê seu surgimento possa contribuir para despertar outros devires em
na cena eslava, russa, onde Dostoïevski lhe dà urna um novo cenàrio, “mesmo ao prego de voltá-lo
força particular, Ao mesmo tempo, eie sofre contra ele mesmo”17, segundo o método da
metamorfoses. As- sìm, o novo idiota se opòe ao perversao tao caro a De^ lenze.
antigo pelo fato de nào se contentar mais com as A filosofìa ocupa, portanto, o terreno da
evidências, mas querer o absurdo. invengào, mas em que isso difere da ciència lógica
Da mesma maneira que Jules Michelet, no e da arte? É o problema que colocam Deleuze e
prefácio à sua Historia da Franga (1869), dizia Guattari na segunda parte de O que é a filosofia?.
que tinha sido nao o pai de sua obra, mas seu A ciència inova evidentemente, mesmo nao tendo
produto, o fììho tendo engendrado o pai, Deleuze e como objetos os conceitos, mas as fungòes.
Guattari atrìbuem ao personagem concei- tual um Confrontada também, assim como a filosofìa, com
papel fundamental e ao filósofo o do simples o caos, eia procede ao inverso, renunciando ao seu
invòlucro. Esses personagens concei- tuais tèm a infinito para ga- nhar em operacìonalìdade, e
ver, como os ritornelos, com um lugar originàrio, “ganhar urna referencia capaz de atualìzar o
um territòrio com suas lógicas de virtual,1S. A ciència tem necessidade de colocar
desterritorializaçâo e reterritorializaçao. Têm suas balizas, de estabeiecer limites fixos para
traços que conservara do melo histórico e geo- construir süas experiencias sobre o que nao é um
gráfico do qual emergiram e, ao mesmo tempo, piano dé imanéncia, mas um plano de referéncia.
como os acontecimentos puros, escapam ao estado As fungòes que assume sào compostas nao de
de coisas que os viu nascer e se tornam suscetiveis conceitos, mas de “functivos”. Lá onde filosofía e
entao de urna “determinaçâo puramente pensante e ciència se aproximara é no que elas sao duas
pensada”13, É apenas nesse caso que ádquirem o modalidades, dois tipos heterogéneos de
estatuto de personagens conceituais. Deleuze e multiplicidades. Contudo, um conceito pode se
Guattari definem o que qualificam como sendo transformar tornando-se preposicional e é chamado
filosófico, que1 se condensa no fato de “tragar, entáo de “prospecto”. Nesse caso,“o: conceito
inventar, criar” ’1. perde todos os caracteres que possuía como
Essas très operaçoes estâo ligadas urna à outra conceito filosófico, sua autorreíerencia, sua
e consistem em encontrar um piano pré-fìlosófìco endoconsistència e sua exoconsisténciá'19. Esse
368 François Dosse

argumento visa de maneira polèmica às posìgòes logica, em sua rivalidade ou sua vontade de
da filosofìa analitica, totalmente he- gemònica no suplantar a filosofia. Eia mata o conceito duas
mundo académico norte-americano. Assimilando a vezes”20.
filosofìa a urna simples ciència logica, Tal assimilagao decorre da difìculdade de
confundindo seus conceitos e suas fungòes, os compreender o que é o conceito enquanto
adeptos da filosofia analitica sào os coveiros da acontecimento puro de sentido, além de sua
filosofia: “E um verdadeiro odio que anima a funcionalidade em um estado de coisas pre
Gilles Deleuze & Félix Guattari 369

ciso: “O conceito é urna forma ou urna força, experimentaçâo privilegiado para testar as ca-
jamais2! urna funçao em nenhum sentido pos- pacidades humanas de criatividade. À manei- ra
sivel” , Deleuze e Guattari, nesse plano, arrancara dos personagens conceituais, os afetos podere
a filosofìa da fascinaçâo-dependência a que esteve desempenhar um papel principal de que se
submetida por longo tempo e que a colocou na investem certos heróis* A arte nâo é reservada ao
orbita da ciencia. Ora, o conceito é da ordem do humano e, com Deleuze e Guattari, reata sua
acontecìmento e escapa por defì- niçâo a qualquer relaçao ativa com o mundo e com sua
funcionalizaçâo, pois o acontecimento é “a parte transformaçâo: “A arte come ça possivel- mente
em tudo o que acontece do que escapa à sua com o animai, pelo menos com o ani-
pròpria atualizaçâo”22. Há, portanto, essa vontade mal que talha um territorio e faz urna casa . Do
„27

de ser digno do acontecìmento que se deve mesmo modo que a filosofìa, que só pode viver
encamar: “A filosofìa nâo tem outro objetivo a nâo criando conceitos, a arte é ìmpulsionada a criar
ser tornar-se digna do acontecimento, e aqueie que sempre novos perceptos e afetos. Com métodos e
contraefetua o acontecimento é precisamente o objetos diferentes, o horizonte é o mesmo para a
personagem conceituaì”* Dessa heterogeneidade arte, a ciéncia lógica e a filosofìa: é criar finito que
de naturerà entre ciencia e filosofìa, Deleuze e abre para o infinito, que possa reatar com o caos
Guattari nâo deduzem que esses dois campos circundante para tirar planos dali. Nenhuma
devem se dar as costas. Simplesmente, nâo devem prevaléncia pode ser atribuida a este ou aqueie
ser confundidos, mas se cruzar no respeito 24de sua procedimento; eles sâo as très variantes do
singularidade, “cada um seguindo sua linhá’ . pensamento, e sua re- laçâo respectiva pressupóe o
cruzamento deles, com a condiçâo de se evitar
Afetos e perceptos qualquer iden- tificaçâo e falsa síntese.
O objetivo dessas tres formas de expressâo da
A filosofía também compartilha com a arte o criatividade é liberar as forças vitáis onde quer que
campo da criatividade, mas aquí aínda os objetos estejam aprisionadas, reencontrar sua virtualidade
diferem. A arte é o campo dos afetos e dos a partir de urna operaçâo de desestratificaçâo. Na
perceptos, que se distinguen! das afei- çôes e das medida em que nâo há determinismo a descobrir
percepçôes por sua capacidade de ser conservados, no plano de ima- néncia, todos os momentos, todos
de extrapolar os momentos em que se os os lugares podem ser fontes fecundas de
experimentam, A funçâo da arte é tornar possível experimentaçâo. Dai o construtivismo generalizado
essa conservaçao e transmìs- sâo para além da sugerido por urna bricolagem criadora que se
fmitude da exìstèncìa e do vivido: ‘As sensaçôes, apodera de todas as formas de expressâo da vida
perceptos e afetos, sào seres que28 valem por si para agenciá-las de outra maneira e depois medir
mesmos e excedem todo vivido” . Se o filòsofo os resultados. Essa outra metafísica passa, por-
cria conceitos, o artista cria perceptos e afetos por tanto, por um empirismo - encontram-se28ali os
todos os meios, seja através da arquitetura, da primeiros trabalhos de Deleuze sobre Hume .
escrita, da escultura, da pintura, da música... Essa 0 gesto fundamental defendido com insistencia
capacidade artística multiforme, que vem por Deleuze e Guattari é o de por em movimento o
ultrapassar o estado das coisas, está no cerne da mundo natural, animal e humano através de urna
problematizaçâo de ordem filosófica de Deleuze e observaçâo fina da maneira como as coisas advèm.
Guattari. Isso implica um “estilo” filosófico, sempre em
A estética recebe assim um estatuto cer- busca de novos agenciamentos, de novos
tamente diferente da filosofía, mas nâo é vista de conceitos, que possa exprimir a criaçâo em sua
fato como um campo à parte, separado do resto da força, traduzi-ìa em palavras segundo as linhas de
especulaçâo filosófica, pois esses perceptos e urna filosofia artista ou de um paradigma estético
afetos sáo indissociáveis das imagens do cujo campo de experimentaçâo nâo se reduziria ao
pensamento, sao suas condiçôes mesmas de campo artistico,
possibilidade, como também o campo de
No inicio dos anos de 1990, esse modelo artistico pronto para funcionar. Ele é confrontado com o risco da'
encontra outro prolonga.mento com os fcrabalhos de criagào, da inovagào produzida por sua brico- lagem
pesquisa370cognitiva do biòlogo Francisco Varela. Este singular.
último tomaFrançois
distancia
Dosse
da fenomenologia husserliana, Há, portanto, urna ligagào direta entre a arte e a
que, segundo ele, nâo conseguìu chegar à propria filosofìa. A criagào artistica nao é relegada a qualquer
estrutura da ex- perìència e se retraiu em um ato de superestrutura, mas é constitutiva de sistemas de valores
introspec- çâo filosófica abstrata, deìxando escapar a di- e fonte de identidade: “Pense na emergència da mùsica
mensao pragmàtica. Varela introduz o conceìto de polifònica no34 Ocidente; é um modo mutante de
“enaçâo”, de açâo encarnada enquanto inte- raçâo subjetivagáo” . A arte é considerada como o campo por
circular entre um organismo e seu ambiente, que excelència que resìste. Como jà dito, eia conserva afetos
permanecem estritamente autónomos um em relaçâo ao e perceptos desafiando o tempo que passa, mas é
outro29. Isso pressupoe dirigir urna atençao especial aos também um possivel melo de resistencia aos procesaos
agenciamentos mais diversos de elementos heterogéneos de homogeneizagao, um meio de valorizar as
e valorizar fenómenos emergentes que aparecem multiplicidades: “A arte vai no sentido da he- terogènese
simultaneamente como um mundo que faz sentido: “Há contra a homogènese capitalista”35. A obra de arte,
numerosas reîaçôes entre urna estética da enaçâo e urna enquanto autopoiese, atesta um processo de
estética do territorio no sentido de Deleuze e Guattari”20. autoprodugao do novo e se apresenta corno paradigma
possivel, estètico, podendo servir de modelo tanto para a
ciència corno para a filosofìa.
Urna estética da vida A propòsito da relagáo que Deleuze man- tém com a
A estética assume um sentido novo em Deleuze e arte, Anne Sauvagnargues distìngue très momentos
Guattari. Atravessa todos os campos de atividade sucessìvos, correspondendo a um tempo de privilègio
humana e encontra seu enraizamen- to com suas linhas atribuido à expressao literaria, depois, gragas ao
de fuga e de desterritoríali- zaçâo. Todas as práticas, as encontró com Guattari, a urna virada pragmática aber ta
atividades que tém urna relaçâo com o novo, portanto à dìmen- sâo política da criaçâo artística e, depois de
com urna forma de desterritorializaçâo, podem ser situa- Mil Platôs, à elaboraçâo de urna semiòtica gérai da
das assim como modalidades diferentes de um criaçâo artística, passando peía imagem e pelo estudo do
paradigma estético ou de urna filosofía artista. cinema. Se é possivel efetivamente perceber urna
Evidentemente, a arte condensa esse fenómeno de insistencia malor ou menor sobre esta ou aquela forma
exposiçâo do novo: “Criar é se expor”31. artística, o objetivo claramente enunciado desde
O psiquiatra e terapeuta Mony Elkaxm, amigo de Diferença e Re- petiçâo permanece o mesmo de um
Guattari, que trabalhou multo ao lado dele na animaçâo extremo a outro de seu percurso; captar diretamente, o
de urna rede de psiquiatría alternativa32, expressa sua mais perto possível, as imagens do pensamento, quer se
divida para com Guattari após o desaparecimento deste: trate do falar ou do ver, submeter a crítica à clínica e
“Félix desempenhou, na vi4a de cada um de nós, um vice-versa, direcionar o olhar analítico do filósofo ao
papel crucial. Reconhecendo a fecundidade da referència proprio cerne do ato criativo prestes a se realizar. A arte,
aos sistemas ahertos longe do equilibrio, suscetíveis de nessa abor- dagem, nao é urna simples reproduçâo do
regimes de atividade estável, mas também de real, é o proprio real: “Urna imagem nao representa36 urna
instabilidades e de bi- furcagao para outros regimes de realidade suposta, eia pròpria é toda sua realidade” .
atividade, eie esperava que essa referencia virasse Com essa concepçâo, Deleuze e Guattari deslocam o
palavra de ordem, que nào permitisse ao terapeuta grande esquema dominante do la- canismo, que
esque- cer as dimensòes éticas e estéticas. É sob sua distingue très níveis heterogéneos na relaçâo RSI (Real-
inspiralo que a nogào de sistema, dominada por ideal de Simbólico-ímaginário), concedendo urna prevalência ao
inteìigibilidade, é substituida pela de combinagáo, sob o nivel simbolico, com os polos Real-Irnaginário
signo do heterogéneo”33. Por esse testemunho, pode-se afastados um do outro e quase antitéticos. Deleuze e
avaìiar corno as questòes em jogo nos conceitos e Guattari, ao contràrio, enfatizam a dimensao reai do
posturas teóricas adotados por Deleuze e Guattari re- imaginário e o caráter literal dos enunciados assim como
presentam questòes sociaìs candentes. Assim, o das imagens. A arte transforma radicalmente o poder de
terapeuta, com essa ideia criativa, artista da combinagáo, atetar e ser afetado, “de modo que isso que chamamos
nao pode mais se contentar em reconhecer em urna de arte ou literatura consiste em urna sintomatologia de
situagáo suas categorías analíticas em forma de rela- çôes reais, urna captura de forças que se revela
"Compreendi” referido a um sistema de interpretagao urna clínica”3'', O filósofo capta ali a expresado das
forças sob as formas e tenta avahar a potencia que elas
contera, na linha de Nietzsche. Espinosa também
permite a Deleuze e Guattari discernir duas formas de
individuaçâo segundo duas linhas heterogéneas: a
longitude, que é extensiva, extrínseca e que se refere ao Gilles Deleuze & Félix Guattari 371

estado de forças e signos, ou a latitude, que é o nivel


intensivo, intrínseco referente aos afetos. Essa dupla
relaçâo entre longitude e latitude é constitutiva da
singularidade individuante, chamada também de
hecceidade. Os seres nao se distribuem, portanto, em
grades, em casas, entre especies diferentes, mas segundo
sua intensidade pro- pria, isto é, seu aíeto. Essa
problemática se de- senvolve em Guattari graças à nova
importân- cia atribuida ao afeto, que rompe também
com as teses lacanianas, que atribuem tudo ao Sig-
nificante mestre, ao simbólico, e nada ao afeto. Ora,
para Deleuze, o afeto é a partícula elementar do ser vivo.
É assím que, a partir de estudos etológicos, ele evoca em
198S, em O Abecedario, o modo de ser do carrapato,
que se limita a tres afetos: um excitante visual, que o
leva a se îçar na extremídade de um ramo de árvore para
ter acesso à luz; o excitante do odor, que o leva a se
lançar sobre sua presa, e, finalmente, um excitante tátil,
que o conduz a se infiltrar sobre a pele: “Isso faz um
mundo”38.
Segundo a teoria dos devires de Deleuze e Guattari
(devir-animal, clevir-intenso, de- vir-imperceptível), a
criaçâo artística funcionará como captura de forças. Os
dois abrem assim urna vía bem diferente da tradiçâo in-
terpretativa na medida em que “a captura de forças
permite substituir a relaçâo forma-materia pela relaçâo
força-matéria. Pondo em contato as forças heterogéneas
que produzem urna captura inédita, a obra associa
criador e receptor em um devir real que dá conta da mu-
taçao das culturas”39. Com essa crítica do pro- cedimento
interpretativo, Deleuze e Guattari afirmam urna filosofía
resolutamente imánente. A arte é concebida como urna
força entre outras forças, o que vai ao encontró de toda
concepçâo fundada na arte pela arte, urna arte mutilada
de suas forças Constituantes' O empirismo, nessa
0

perspectiva, näo terá sido apenas um aperitivo para


Deleuze, pois este é bem persistente, como mostra
Philippe Choulet: “A iniciativa deleuziana consiste em
descom- plexar o empirismo e a se servir dele como de
urna máquina de guerra, de 0um cavalo de Troia contra o
idealismo e o racionalismo“ .

Notas
1. Gilíes Deleuze, aula na universidade Paris-
VHI, 3 de junho de 1980, arquivos sonoros, BNF.
2. Ao seu cúmplice, o filósofo Mikel Dufrenne, que sofre
como ele de urna grave insuficíén-
3. cia respiratòria desde 1988, ele escreve em 1991: “Caro Ibid., p. 147. Ver capítulo “Foucault e Deleuze. Dois filósofos do acontecí mentó”,
22.
Mikel, obrigado por suas palavras no final da circular da
23. Ibid., p. 152.
[Revue372 dj Esthétique.
François Dosse Infelizmente, eu nâo poderia participar 24. Ibid., p. 152.
desse número, porque, depois de ter finalmente terminado o 25. Ibid., p. 154-155.
livro que eu imaginava o ùltimo para mím, O que é a 26. Assim, o cióme em Proust nâo é concebido por Deleuze e
filosofia?, eu quería parar, pelo menos dois ou très anos, e Guattari como mera consequência de um amor frustrado, mas
atingir a verdadeira aposen tadoria. Aììàs, é necessàrio, porque corno fmalidade: “Se é preciso amar, é para ser ciumento”
{ibid., p. 165).
o inverno foi multo penoso para mi- nha saúde: longa 27. Ibid, p. 174.
sufocaçâo, preso corno um câo ao meu balâo de oxigènio, sem 28. Gilles DELEUZE, ES.
sofrìmen- to, mas muìto pànico respiratòrio. Co rivales- cença 29. Ver Francisco VARELA, Evan THOMPSON, Eleanor
que se arrasta. Todas essas queìxas sào menos para me afligir ROSCH, L'Inscription corporelle de l'esprit, Seuil, Paris,
1993.
do que para lhe dar urna satisfaçao, e desejar que sua saúde es- 30. Mony ELKAÏM, Isabelle STENGHERS, “Du mariage des
teja em bom estado...” (Gilles Deleuze, carta a Mikeì Dufrenne, hétérogènes”, Chimères, Félix Guattari, inverno de 1994, n,
25 de abril de 1991, Revue d’esthétique, 30,1996, p. 57). 21, p. 150.
4. Ver capítulo “Nós dois”. 31. Ibid., p, 153.
5. Robert MAGGIORI, "Une bombe sous la philosophie”, 32. Ver o capítulo “A Rede Alternativa à Psiquiatría”.
Libération, 12 de setembro de 1991; reproducido em La 33. Mony ELKAÏM, Isabelle STENGH ERS, “Du mariage des
philosophie au jour le jour, Flammarion, Paris, 1994, p. 374- hétérogènes”, art. cit., p. 159.
381. 34. Félix Guattari, “Entrevista com Olivier Zahm, 28 de abril de
5. Ibid., p. 379. 1992”, Chimères, Félix Guattari, vol. 2, verào de 1994, n. 23,
Roger-Pol DROIT, "La création des concepts”, Le Monde, 13 de setembro de 1991. p. 50.
6. 35. Ibid., p. 51.
7. Ibid. 36. Gilles Deleuze, “Portrait d’un philosophe en spectateur”,
8. Sylvain Loiseau, entrevista com o autor. entrevista com Hervé Guibert, Le Monde, 6 de outubro de
1983; reprodir/ido em RF, p. 199.
9. Ibid. 37. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l’art, op. cit., p. 58.
10. Ibid. 38. Gilles Deleuze, A.
11. Gilíes DELEUZE, Félix GUATTAR3, Qph, p. 9. 39. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l’art, op. cit., p. 107,
12. Ibid, p. 60. 40. “A arte nâo é jamais um fím, mas apenas um instrumento
13. Ibid, p. 68. para traçar as linhas da vida, isto é, todos esses devires reais,
14. Ibid., p. 74. que nâo se produ- zem simplesmente na arte, todas essas
15. Ibid., p. 79. fugas ativas, que nâo consistent em fazer ria arte, em se
16. Ibid., p. 80. refugiar na arte, essas desterritorializaçôes positivas, que nâo
querem se reterritoriaiizar na arte, mas sim transportâ-la com
17. Ibid, p, 81, elas para regiôes do assignificante, da assubjetividade e do
18. Ibid., p. 112, sem rosto,” (Gilles Deleuze, Félix Guattari, MP, p. 230)
19. Ibid., p. 130. 41. Philippe CHOULET, “L’empirisme comme apéritif. Une
20. Ibid., p. 133. persistence de Deleuze”, em André BERNOLD, Richard
21. Ibid., p. 137. PINPIAS (sob a dir.), Deleuze épars, op. cit., p. 93-111.

ir
Nâo se conquista a
America em um dia. Sao
necessários intercessores,
passadores. Quando Deleuze e
Guattari pisam o solo ame-
ricano em meados dos anos de
26 Argélia e se junta aos
responsàveìs do setor Lettres-
Paris da UNEF.
Em 1972, Lotringer obtém
urna cadeira na Universìdade de
Columbia em Paris, Read Hall,
1970, os campi americanos jáÀ conquista do Oeste em Montparnasse, Rue de
estao 1 ávidos de French Chevreuse, para organizar ali
Theory . Contudo, as estrelas intelectuais do cursos de verào centrados nas ciencias humanas.
momento sâo Roland Barthes, Michel Foucault e, Ampliando os contatos, ele convida Catherine
depois, a partir de 1975, Jacques Derrida, que Clément, Serge Leclaire, Tzvetan Todorov, Dennis
leciona regularmente nos Estados Unidos desde Hollier e
1966, Nessa época, Deleuze e Guattari, apesar da
enorme repercussao na França de O Anti-Édi- po,
ainda figuram como os primos pobres dessa
French Theory. Deleuze, que nao gosta de viajar e
detesta os coloquios e congressos, nunca
atravessou o Atlàntico, Entretanto, um encontró
colocará a dupla em condiçôes de poder se
conectar com a América.

O passador Lotringer
O percorso de Sylvère Lotringer é surpre-
endente. judeu nascido em Paris em 1938, mas de
nacionalidade polonesa, eie foi naturalizado aos 3
meses de idade. Passa a infància em urna França
ocupada por nazistas, escondido por um operário
da Renault que encontrará trinta anos mais tarde:
“Tenho essa pequeña distènda que me permite
manter minha ìnde- pendència. Foram os franceses
que me salva- ram e ao mesmo tempo foi a França2
que me traiu. Portanto, sempre deixei a Franga” .
Com a criaçâo de Israel, em 1948, ainda criança,
eie acompanha os pais que vâo viver là, mas isso
dura apenas um ano. De volta a Paris, matricu- la-
se na Sorbonne em 1957. Jovem estudante, fìlia-se
a urna organizaçâo sionista de extrema esquerda, a
Fiachomer Atzáir. já muito atraído pela atividade
das revistas, cria urna na Sorbonne, L’Étrave, cujo
conteudo é essencìal- mente literario. Além disso,
a partir de 1959, assina colunas regulares em les
Lettres Françaises. Inserito inicìaimente em
psicologia, escolhe os cursos mais longos possiveis
para evitar a convocaçâo para a guerra da Argélia e
vai parar filosofìa. Lotringer logo se torna um
militante engajado, e influente, contra a guerra da
alguns derridianos. Aínda em 1972, descobre com intelectuais devem estar a servipo4 do Estado, eu sempre
entusiasmo O Anti-Édipo. Logo que o li- vro é lanpado, estive convencido do contràrio” . Yves Mabin pergunta
entra em374contato com Guatta- ri, que fica radiante por se ele aceitaría partici-: par de urna missao nos Estados
poder lecionar e leva Deleuze para algumas
François Dosse
Unidos para: apresentar ao público americano sua obra.
conferencias. A ligapao entre Guattari e Lotringer é Deleuze fica mais intrigado do que verdaderamente
imediata, Ambos compartilham os mesmos centros de entusiasmado. Pede para se encontrar com Yves Mabin,
interesse e tém a mesma propensáo a agir, a querer criar que o recebe em seu gabinete na Avenue Kléber: KEle se
o novo. Em 1974, Lotringer tira um ano de fé- rias em senta diante de mim, aproxima a poltrona de minha
Paris com a intenpáo de trabalhar ao lado de Guattari e mesa, e eu me sinto na situapao de um acusado diante do
passa a maior parte do tempo na Rué de Condé. co- missário Maigret’A Deleuze quer saber mais sobre o
Aproveita esse período li- vre para participar de que pode ter motivado essa proposta intempestiva:
pesquisas com o CERFI, com o qual realizará um "Conversamos durante urna hora, e o que se passou entre6
número da revista sobre Saussure. No mesmo ano, ele e eu foi urna especie de aceitapao instantánea” .
Lotringer decide lanpar urna nova revista nos Estados Deleuze faz saber a Yves Mabin de suas reservas em
Unidos: Semiotext(e). A equipe é constituida em Paris rela- páo a esse tipo de viagem, mas Mabin permanece
com um comité editorial composto majorita- riamente de infiexível, acrescentando que fracassarla: em sua missao
estudantes americanos de francés e de alguns colegas, se Deleuze nao aderisse ao programa, com o qual
como Wlad Godzich, Genis Hollier, Peter Caws e John Guattari já tinha concordado. No final, conseguiu
Rajchman. convencer Deleuze.
Com Semiotext(e), Lotringer cria a máquina de Deleuze e Guattari aceitam o convite de: Lotringer.
guerra'ántiacadémica que deve contribuir para divulgar o Este último está persuadido de que: as posipoes
pensamento deleuzo-guatta- riano nos Estados Unidos. filosóficas deles tém mais corres- pondéncia com o que
Durante esse período, Lotringer vai com frequéncia a La é a sociedade americana do que com a sociedade
Borde, apenas para se encontrar com Guattari em sua francesa: “G que na Franpa aparecia como urna teoría7
casa de Dhuizon. De volta aos Estados Unidos em 1975, utópica era urna realidade cotidiana em Nova York” .
Lotringer decide, junto com seu colega e amigo John Para o simposio sobre “Loucura e prisáo”, Lotringer sai
Rajchman, membro de sua revista, organizar com urna em busca de equivalentes americanos de Deleuze e
pequeña equipe um grande simposio na Universidade de Guattari, mas, nao os encontrando, convida
Columbia consagrado á “Esquizoculturái cujo objetivo é essencialmente, além de outros in-;
imprimir a marca deleuzo-guattariano no solo teleetuais de renome como Arthur Danto e o psiquiatra
americano. Para que essa operapao tenha éxito, é Joel Kovel, escritores e artistas em quem pressente urna
imperativo contar com a participapáo de alguns proximìdade com as teses de 0 Anti-Édipo: “Eu estava
intelectuais franceses de renome, entre os quais, impressionado pelo fato de que alguém corno John
obviamente, Deleuze e Guattari. Contudo, Lotringer e Cage, de quem eu havia retraduzido para o ingles as en-
sua revista ainda de cir- culapáo restrita nao dispoem de trevistas com Daniel Charles, tivesse chegado a alguma
bases institu- cionais nem de recursos fmanceiros para eoisa bastante8 próxima da vìsào de- leuzo-guattariano do
arcar com essa iniciativa. capitalismo” , Lotringer o traz entào, assim como
O projeto acaba por se realizar grapas a Yves Mabin, William Burroughs, Richard Foreman e Ti-Grace
responsável pelas missoes francesas no exterior, que se Atkinson, feminista famosa. Do lado dos franceses, além
torna um amigo próximo de Deleuze. Mabin decide criar de Deleuze e Guattari, eie aproveita a passagem de
um pequeño grupo de trabalhó preparado para prestar Foucault por Nova York, de retomo do Brasil. Lyotard
informapoes qualificadas sobre as personalidades a também està de passagem, assim como jean-Jacques
enviar aos Estados Unidos, pois até entáo os convites Lebel, especialista do happening, que acompanha
eram de iniciativa exclusiva das universidades Deleuze e Guattari ao simposio para apresentá-los aos
americanas: “O principio era que se pretendia divulgar artistas, cantores e escritores americanos com os quaìs
obras através dessas missoes”3. Assim, ìnstìtui-se urna tem ìigagào. Instalado no Chelsea no mesmo quarto que
lista com a ideia de que seja renovada anualmente, sem Guattari, nessa atmosfera muito descontraída de
a priori ideológico. Eia é composta de 4 professores do contracultura, Lebel passeia completamente nu no
Collège de France, 20 direto res de estados do EHESS e hotel.., Sabendo-o bilingue, en- carregam-no da
alguns professores as- sistentes da universidade, todos já animando de um programa na ràdio WBA1, emissora da
com iivros publicados: “Foi nessas condipoes que esquerda nova-iorqui- na, durante toda a semana do
escrevi a Gilles Deleuze, que eu só conhecia por sua; simpòsio. Pelas ondas do ràdio, ele convida as pessoas a
obra. Diferentemente dos que pensam que ós abri- rem suas próprias oficinas de discussào sobre todos
os temas possíveis: “Ele clizia: ‘Venham! Isto vai ser desvíos dos anos 1960 e promete náo botar mais os pés
um verdadeiro borde!,9 magnífico. Tragam quem ali,
quiserem, é a liberdade”’ . À noite, Deleuze, Guattari e Foucault se en- contram
Assim, urna vasta multidáo acorre para participar do no Chelsea Gilles
com John Rajchman e cri- ticam a desastrosa
Deleuze & Félix Guattari 375

acontecimento anunciado. Aínda que o anfiteatro do organizagào do encontró, que virou urna farsa. Após
Teachers College seja gigantesco, Lotringer está esse inicio apocalíptico, o pobre Sylvère Lotringer se
completamente atordoado com o sucesso, Além disso, pergunta se Foucault voltará no segundo dia para a mesa
visto que a Universìdade de Columbia cobrou um prego redonda com o psiquiatra Ronald Lalng e a ati- vista
muito alto pelas salas, ele é obrigado a exigir o radicai Judy Clark. Foucault está mortificado, nào dorme
pagamento de um ingresso de quinze dólares. As à noite, mas no dia seguinte encontra a rèplica adequada
pessoas esperavam que o dinheiro fosse bem pago. para re tornar à saia onde a mesma acusagào Ihe é
Lotringer tinha contatos no Village Voice e articula o langada por um provocador: “Eie rebateu: ‘Sou agente
acontecimento maior da semana, chamado de “Pick of da CIA, Lotringer é agente da CIA, somos todos agentes
the Week”, que é o simpòsio sobre semiótica: “Como da CIA. Menos o senhor, o senhor é um agente da
nin- guém sabia o que era semiótica, tive de atender de KGBf. O sujeito fìcou sem graga, e o público morreu de
manhá à noite em minha sala centenas e centenas de rir”i?\ 0 clima continuou tenso. As numerosas reuniòes
pessoas telefonando, pergun- tando o prego da entrada e sào tomadas de assalto por 200 individuos que lanpam
acrescentando: explique-me um pouco o que é a acusa- gòes para todo lado, agridem os conferencistas e
semiótica’”10. Assim, foram atraídas para esse simposio propagam depredagòes e ataques.
até 2 mil pessoas nos trés días, Mesmo assim, houve um “efeito simpòsio" e
Todos os ingredientes estavam reunidos para que a impactos positivos sobre a difusào das teses de Deleuze e
panela superaquecída explodisse, o que de fato Guattari e sobre a revista Semiotext(e), que conhece um
aconteceu. A comunicagáo de Deleuze transcorre verdadeiro su- cesso. O número sobre a “Esquizocultura”
relativamente bem. Ele recusa ser traduzido e promete é langado em 1976, com urna tiragem de 5 mil
falar bem devagar, utilizando muito o quadro para fazer exemplares esgotados em très semanas. Está previsto um
croquis. Desenha principalmente rizomas, e o público segundo número, mas Lotringer desconfía do sucesso e
parece satisfeito com suas demonstragóes. Em seguida decide parar por ali. Isso provoca a ira de Guattari, cuja
vem Guattari, que conta com urna tra- dugao simultánea. contribuigáo era anunciada justamente para o segundo
Sua comunicagáo logo provoca um reboligo que vai se número: “Ele estava furioso e me dizia: ‘Mas como? Fui
tornando cada vez mais hostil, e boa parte do público eu quem o ajudou a fazer esse coloquio”’13. Por sua vez,
comega a vaiá-lo. Ele nao é visado, na verdade, por suas a revista SubsTance, criada em 197.1, que tem como
concepgoes do poder e do desejo, mas contestado ambigáo se tornar a caixa de ressonancia da vanguarda
enquanto homem pela líder do movimento feminista do pensamento francés nos Estados Unidos, publica em
radical, Ti-Grace Atkinson, que velo reforgada por suas seus números de 1974 e 1976 as teses de Deleuze e
tropas para as quaís um homem é negessariamente um Guattari sobre a esquizoanálise e consagra um número
falocrata, e o caso é agravado quando ele se atreve a de 1978 a Deleuze e Foucault A tradu- gáo de O Anti-
falar das mulheres e do desejo: “Sempre me lembra- rei Édipo é Jangada logo depois, em 1977, com um belo
de Félix debrugado na tribuna, Ele amassou suas folhas prefácio de Foucault14.
e teve de ir se sentar de novo com Deleuze51 e Foucault. A
coisa comegara mal, e ele estava furioso” .
Depois, é a vez de Foucault ser vítíma de urna Rumo ao extremo oeste
agressao em regra, quando está comegan- do a fazer um Após o simposio de Lotringer, a viagem americana
discurso sobre a sexualidade da crianga. Atacando prossegue para a nossa dupla, guiada por Jean-jacques
fortemente os adeptos da Escola de Frankfurt, que Lébel, que os introduz
acreditam ter feito as coisas avangarem denunciando em nos meios alternativos nova-iorquinos, Label os
todas as ocasioes o exercício da censura pelo poder, ele conduz a Massachusetts, a Loweit, local de nascimento
provoca reagóes de exasperagáo dos mem- bros de um de Kerouac, para um concerto de Bob Dylan e Joan
grupo marxista, o Comité Sindical Revolucionário Baez. Alien Ginsberg participa da turné de Dylan.
Larouche, q.ue o acusam de ser pago pela CIA. Ao final Pouco antes do intervalo, ele chega ao palco drogado,
desse primeiro día, as pessoas cercam Foucault e lhe com sua longa barba, suas sinetas e seu harmonio: “O
pergun- tam, consternadas, se isso é verdade. Fora de si, concerto era extraordinàrio. A gente atravessa as
Foucault fulmina contra esse público e denuncia esse grades. Caio nos braços de Ginsberg, e ele nao sabia
simposio como o último coloquio ilustrando todos os
quem eram Gilles e Félix”15. Depois, eles prolongam livros. Depois disso, pegam a estrada de novo para
sua estada na California: “A gente embarca no que é visitar a casa de Henry Miller em Big Sur: “Gilles, me-
chamado376deFrançois
‘Red Eye ¡ o aviao noturno. Todos estao lhor do que Félix, conhecia de cor os livros de ; Kerouac
com os olhos ver- Dosse
melhos de sono. A gente viajava e de Miller. Ele tinha teorizado mais isso que era a
Félix e eu de : um lado, Gilles e Claire Par.net do literatura do nomadismo e da linha de fuga. Ele disse
outro. Claire adormeceu, enquanto Gilles e Félix, sem coisas muito importantes sobre18 On the Road em suas
parar um minuto, falaram durante 7 a 8 horas sobre as discussoes com Claire Pamet” . Lebel leva Félix aos
noçôes de O Anti-Édipo e de Mil Platos em meios “psi” para que conheça sobretudo um certo h
preparaçao. Era como um laboratorio inter- minável Arthur Jdanov, a coqueluche do momento, que T.
que eles interrompiam de tempos em tempos para consegue extorquir dinheiro dos milíardários h de
viver, mas que sempre recomeça- va. Eu ouvia isso Hollywood: “Meu companheiro John Lennon tinha
como se ouvisse Rimbaud ou Nietzsche”16. caído na conversa desse Jdanov e seu ‘Primai Scream’,
Na California, eles ouvem Patti Smith em Berkeley: que consistía em reencontrar o grito do recém-nascido
“A gente 17foi apresentâ-los, eles esta-, vam saindo do ventre da mâe. Puro charlatanismo!"19. Lebel,
emocionados” . À noite, vâo de carro a San Francisco que conhecia bem Nova York e seu mundo suspeito,
para encontrar o poeta Lawrence Ferlinghetti, que volta para là varias vezes com Guattari. Logo
construiu a cabana onde Kerouac escreveu dois de seus
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 377

que chega, a primeira coisa que faz Guattari é ter per- cebido em 2muitas pessoas que encontrei
alugar o maior carro possivel: “0 que ele quería, o nos Estados Unidos” '*.
que ele amava era dirigir na estrada. Ele ñcava
encantado20 em dirigir, em ouvir música no último
volume” . O turno universitàrio
Por ocasiâo dessas viagens, Guattari en- contra Após esses tempos heroicos de urna primeira
urna antiga atriz de teatro francesa, Martine Barrat, recepçâo da obra de Deleuze e Guattari, que
instalada no Chelsea Hotel, que tem paixâo pelos atingiu mais os meios da contracultura, os artistas,
bairros pobres do Harlem e do Bronx e que se os margináis e os meios contestatórios, veio um
lançou na fotografía e no vídeo, Ela leva Guattari segundo período de recepçâo, desta vez pelos
para conhecer as gangues do Bronx com as quais universitários. Esse segundo alento experimentado
tem urna re- laçâo de trabalho para a realizaçâo de pela obra de Deleuze e Guattari encontrou um
seu vídeo: “Félix a acompanhava com frequéncia novo intermediàrio muito ativo na pessoa do
ao Bronx. Ela fez coisas sobre as gangues de meni- universitárío canadense, de ori- gem grega,
nas no Bronx que publiquei na Semiotext(e)”21. Constantin Boundas, professor no departamento de
Guattari se apaixona por Nova York, aumenta suas filosofìa da universidade de Ontário no Canadá.
estadas ali e encontra mais vezes seu amigo Trabaìhando em urna tese sobre Ricoeur nos anos
Lotringer no final dos anos 1970 e inicio dos anos 1970, ele está em busca de algo de rigoroso na
1980. Contudo, no meio da psiquiatría, nunca se teoría pós-estruturalista, mas a leitura de Barthes,
estabeleceu verdadeiramente o diálogo sobre suas de Derrida, de Foucault e de Lyotard nâo o
teses de esquizoanálise. Em 1974, antes do famoso satisfaz: “Eu estava de férias em París em 1981, e
simposio, convidado para ir aos Estados Unidos perto de meu hotel, na Rue Cujas, encontrei por
pelos serviços culturáis franceses para se informar acaso na livraria Tiers-Mythe muitos ìivros de
sobre o estado da psiquiatría, ele vai Deleuze. Comprei Diferença e Repetiçâo, levei
sucessivamente a San Francisco, Berkeley, para o meu quarto e cinco días depois já tinha lido,
Stanford, Chicago, Ann Ar~ bor, Yale e Nova sem compreen- der o essencial, mas mesmo assim
York. Na volta, envia um rela- tório para as fiquei fascinado e convicto de que era isso”24.
autoridades francesas no qual se felicita por esse Boundas comunica o seu orientador que está
programa elaborado pelo economista Pierre mudando o tema e que vai consagrar sua pesquisa
Tabatoni e sua equipe, mas se diz perplexo quanto a Deleuze. Começa a 1er tudo o que está
à evoluçâo da psiquiatría americana; “A evoluçâo disponível de suas publicaçôes, assim como de
da psiquiatría e das disciplinas anexas nos Estados Guattari, quando conhece François Lamelle, que o
Unidos me dei- xou urna certa impressao de mal- encoraja na escolha.
estar. Eu nâo tinha me dado conta até entáo da De volta a Ontário, está convencido de que
dimensao da volta com força do behaviorismo ao quer escrever sobre Deleuze, mas, em 1981, há
campo das ciéncias humanas e dos maleficios de ainda pouquíssimas obras de Deleuze dis- poníveis
urna 4 , T“| em inglés25: “Deleuze era entáo um desconhecido
nos departamentos de filosofìa. Derrida, Foucault26e
(
A,

especiahzaçao excessiva . Em compensaçao,


exprime o interesse que despertou nele o fato de ter Lyotard já eram conheci- dos, mas ele nao” .
compartilhado por quinze dias a vida de urna das Boundas empreende entáo um enorme e solitàrio
mais importantes comunidades de San Francisco trabalho de traduçâo. Começa, sem contrato, a
(“Project One’), instalada de manelra confortável traduçâo de Diálo- gos, Lògica do Sentido,
e funcional havia quatro anos em urna antiga Diferenga e¿i Repetìgào e Empirismo e
fábrica, mas, também ali, o que vê o deixa mais Subjetivídade . No final dos anos 1980, a editora
amargurado: "Farado- xalmente, pareceu-me que universitària de Columbia encomienda a
seus participantes nâo se libertam de um certo Constantin Boundas a preparagao de urna
conformismo... Encontrei aqui, quase intactos, o coletànea de trabalhos de Deleuze. Em 1989, por
isolamento e mesmo a perturbaçâo que acreditava ocasiao de urna viagem a Paris, tem um encontró
com eie para discutir a esco- Iha mais pertinente e lhe fascinado, mesmo nao tendo ne- nhuma ideia do que se
apresenta seu projeto. O encontró é cordial, mas Deleuze passava ali. Eu fiquei. Ele estava dando urna aula sobre
substitui378o François
projeto de Boundas por sua propria selepào, Mil Platos e falava de devires, de devires animais, de fei-
composta de textos Dosse
mais curtos, extraídos de um mai or ticeíras. Eu nao via absolutamente o que ele quería dizer
nùmero de publicapòes. Quando Deleuze menciona o e nâo via tampouco a relaçâo com a filosofìa, dìzendo a
íivro que está para sair - O que é afilosofia? -, Boundas mim mesmo que se trata- va mais de poesia, e isso me
lhe diz que acha que Ricoeur está trabalhando sobre um atraiu a tal 35ponto que passei a frequentar a aula
tema similar e ouve corno resposta: “Sim, mas eie é regularmente" .
cristào”"8. Ao longo dos anos de 1980, a sombra que constituía
Isoìado em Ontàrio, Boundas tem absoluta o encantamento por Foucault na recepçâo das teses de
necessidade de um intercàmbio com ou- tros Deleuze e Guattari se dissipa um pouco e dá lugar a um
pesquisadores que trabalham a partir de Deleuze. Ele surto de traduçôes de sua obra33. No firmar dos anos de
desempenha papel fundamental na realizaqáo dos 1990, os pesquisadores já díspoem do es- sencìal do
primeiros encontros de de- leuzianos áüglo-saxoes. Em corpus dos textos em inglés, Em 2001, o canadense Gary
1991, participa ao lado de alguns especialistas na obra de Genosko, professor do departamento de sociología da
Deleuze e Guattari, entre outros, Ronald Bogue, Paul Universidade Lakehead, de Ontário, edita très obras
Patton, Brian Massumi, David Land, Dan Smith, Eugen volumo- sas reunindo boa33 parte dos estudos publicados
Holland, de um primeiro encontró que acontece na sobre Deleuze e Guattari . Quando em 2004, antes de se
Inglaterra, em Oxford, organizado pela British Society aposentar, Constantin Boundas organiza seu último
ofiPhenomenology. congresso na Trent Uníve- sity em torno da obra de
Com a ajuda de sua colega da universidade do Deleuze e Guattari, o pequeño núcleo inicial de 20
Colorado, Dorothea Olkowski, e do Conse- lho para a pessoas fez numerosos seguidores e reúne entao ISO
Pesquisa em Ciencias Sodais e Humanidades do Canadá, pesqui- sadores de todas as nacionalidades e de todas as
Boundas organiza, em maio de 1992, o primeiro disciplinas: as entradas possíveis na obra sao cada vez
coloquio internacional de deleuzianos na universidade mais diversas entre as preocupa- goes especulativas de
de Trent sobre o tema: “Gilíes Deleuze. Pluralismo, pura filosofía, os Cultural Studies e as utilizagoes
teoria e pràtica”. Os participantes sao essen- cialmente literárias ou artísticas.
dos Estados Unidos,39 Canadá, Australia, Inglaterra, mas Do pequeño núcleo inicial de estudos de- leuzianos,
também da Franga . Em 1996, Constantin Boundas o americano Eugene Holland também acompanha por
organiza, aínda em Trent, o segundo grande encontró algum tempo as aulas de Deleuze em Paris-VIíI sobre o
puramente anglo-saxáo. Depois, em maio de 1999, um cinema, no inicio dos anos de 1980. Holland tinha come-
ter- ceiro encontró internacional tem como objetivo gado por estudar Derrida, entáo professor em Yale.
definir os pontos de semelhanga e de diferenga entre Depois, em 1974, foi fazer seu doutorado em San Diego,
Foucault, Derrida e Deleuze, sobre o tema “Rizoma, na California, onde assistiu ao seminàrio de Fredric
Genealogía, Desconstrugao”, e atrai muitas pessoaé; Jameson no departamento de literatura comparada; lá
entre as quais numerosos franceses e mesmo brasileiros, ouviu falar pela prim eira vez de O Anti-Edipo. Jameson,
como Peter Pài Pelbart30. Esse cresci mento prossegue, e filósofo marxista, faz entáo, em 1976, urna lettura
a quarta conferencia internacional da universidade de compatirei com suas posigòes do capítulo sobre
Trent, realizada em maio de 2004, é um sucesso maior “Selvagens, Bárbaros, Civilizados”. Bastante interessado
ainda, com o tema: “Gilles Deleuze: experimentaçâo e nessa lettura na medida em que ele pròprio é marxista,
intensidades. Ciên- cias, filosofías, políticas, artes”. Eugene Holland organiza um pequeño grupo de leitura
A difusâo anglo-saxâ da obra de Deleu- ze-Guattari com outros doutorandos de San Diego: “Passamos seis
se deve também ao empenho daqueles que frequentaram meses à razáo de duas reunióes por mes lendo O3 Anti-
o curso de Deleuze em Paris-VlII. É o caso do Édipo para tentar compreender o que ele trazia” “. Na
australiano Paul Pat- ton, que se inscreve no curso de época, íeciona no campus de San Diego urna
filosofìa em 1975 com um triplo interesse pelo personalidade excepcional, Michel de Certeau35. Quando
marxismo, por Althusser e pela ciencia. Patton prepara Jameson deixa San Diego, Holland escolhe Certeau e
sua tese, que defende em 1979, sob a orienta- çâo de seu amigo Dick Terdiman como orientadores de tese,
François Châtelet, sobre “O marxismo e a filosofìa da Nomeado em 1985 professor na universidade do Estado
ciéncia: Althusser e Popper”.- : Quando Paul Patton abre de Ohio, Holland publica urna intro- duqáo a O Anti-
a porta da pequeña sala onde Deleuze leciona às terças- Édipo em 199936.
feiras, nunca tinha lido nada dele nem o conhecia, a nao A maior parte dos departamentos de filosofía nos
ser por urna vaga referencia: “Entrei na sala e fíquei Estados Unidos adota as teses da filosofia analítica e dà
pouca importància à filosofia dita “continental”, de um pouco diferentes. É o caso de Julián Bourg, que
modo que a obra de Deleuze e Guattari só se impoe estudou no final dos anos de 1980 e inicio dos anos de
através da instituigao filosófica. Mas há excegoes. É o 1990 em umGilles
altoDeleuze
reduto &daFélix
semiótica, em Boston. Era
caso em particular da Society for Phenomenology and ainda o grande momento da French Theory, em que se
Guattari 379

Existential Philosophy, cujos congresses anuais sempre cruzam os textos de Lyotard, Deleuze, Foucault e Lacan.
dáo lugar a contribuigóes sobre a obra de Deleuze. Nesse Oriundo de um meio católico comprometido com a
melo, “o interesse pelo trabalho de Deleuze cresceu justiça social Julián Bourg está ao mesmo tempo
consi- deravelmente em urna década e meia, ligado à interessado e pouco à vontade: “Minha difìculdade era a
renovagáo do interesse por Bergson e por Espinosa”37. A questao 47do relativismo, a critica do sujeito e da
difusao das teses deleuzianas é mais ampia é, sem historia” . No momento de escolher o tema de sua tese,
dùvida, no setor da filosofìa continental das ciências. Julián Bourg decide confrontar a French Theory com a
Esse campo de reflexâo era até entáo monopolio da questao ética. Seu campo de pesquisa se concentra en-
filosofìa analítica, que o considerava um sub do minio tào nas publicaçôes de Deleuze e Guattari dos anos de
de seu procedimento, enquanto que a filosofia 1968 a 1972: "Trato isso como um cami- nho bloqueado
Continental se scantonava em um horizonte pós- às questòes éticas"43. Restituin- do as fontes e
heideggeriano de desconstrugào. confluencias que conduzem ao rio que é 0 Anti-Édipo,
A evoluçâo do pensamento científico na direçâo da Julián Bourg já percebe a presença da questâo ética e a
teoria do caos, das teorías genéticas ou da física das coerência desta em Deleuze nas suas posiçoes
partículas torna possíveis novas conexoes com a espinosianas. Assim, a tese de Bourg, lançada em 2007,
ontologìa filosófica e, portanto, com as posiçôes de situa Deleuze, assim como Guattari, no cerne daquilo
Deleuze. Cutro- fello, professor de filosofía na que se pode chamar o verdadeiro pensamento 68, ou
universidade de Chicago ve ali um devir maíor do seja, algo muito diferente 44do que fora estigmatizado por
pensamento de Deleuze, sobretudo de Diferença e Luc Ferry e Alain Renault .
Repeti- çâo*. Dan Price, outro especialista da obra de Ainda no inicio dos anos de 1990, Eleanor Kaufman
Deleuze-Guattari, professor da universidade de Houston, faz seu doutorado na Duke University, na Carolina do
Texas, formado em Chicago, come- çou a 1er a obra Norte. No departamento de estudos teológicos, o
deles no final dos anos 1980. Interessado principalmente professor Ken Surin ensina sobre Deleuze, enquanto sua
na teorizagáo do movimento social e político, confirma o esposa, Janell Watson, se dedica, por sua vez, à obra de
isolamento dos estudos deleuzianos em um universo Guattari. A universìdade de Duke é urna das primeiras
ampiamente dominado pela filosofía analítica: “Um universidades americanas a se interessar por Deleuze:
aluno que quisesse trabalhar sobre Deleuze como tema “Havia verdaderamente um grande interesse por O Anti-
principal seria fortemente dissuadido, pois um grande Édipo, Mil Platos e Lògica do Sentido, que acabaram de
número de filósofos analíticos nao o reconhece como ser traducidos em inglés. Éramos 20 no grupo de
seu”39. pesquisa”4'’. Eleanor Kaufman e alguns outros
Além disso, a obra de Deleuze tornou-se estudantes se encarregam de organizar um coloquio
indispensável nos estudos teóricos sobre o cinema, e sobre Deleuze em março de 1993. À parte os coloquios
algumas universidades americanas contribuíram muito de Constantin Boundas que tiveram lugar no Canadá,
para a divulgagáo de suas teses. É o caso de Dudley esse coloquio, um dos primeiros realizados sobre
Andrew, autor de urna biografía de André Bazin, que Deleuze aiém-Atiântico, foi um grande sucesso.
descobre Deleuze desde a publicagáo em inglés de Eleanor Kaufman confirma a impressâo que tivera
Proust e os Signos, por volta de 1973. Na época, ele é Sylvère Lotringer em 1972: a relaçao com o mundo
estudante em lowa City e trabalha sobre a biografía de instituida pelas teses de Deìeuze-Guat- tari seria mais
Bazin. Ligado aos meios cinéfi- los franceses, apropriada à realidade americana do que ao velho
particularmente aos críticos dos Cahiers, dos quais continente. “Principalmente no que se refere à ideia de
Bazin é o pai tutelar, Dudley Andrew logo toma espaços nâo hierarquiza- dos, imanentes. Eu, de minha
conhecimento do primeiro volume de Deleuze sobre o parte, venho de um pais de grandes espaços. isso sempre
cinema lançado em 1983: “Bergson me interessa muito, me ajudou a compreender de onde venho, do Missouri,
e quando vi que Deleuze comegava por Bergson, isso em pleno meio oeste. Creio que eles falam da Améri- i
me cativou de imediato”40 Andrew reconhece a marca do ca profunda. Há essa vasta dimensao, e há tam- bém na
criador dos Cahiers: “A relaçâo com os grandes autores, literatura americana pessoas que nâo se’ mexem, como
com os grandes cineastas é comum a Bazin e Deleuze”41. nos livros de Herman Melville ou v de Emily
A obra de Deleuze-Guattari tornou-se tambera um Dickinson, pessoas que pennaneeem no lugar. Ao lado
recurso essencial para a geraçâo mais jovem, em bases de Deleuze do nomadismo, há também o Deleuze que
pensa o estado das pessoas que sáo pequeñas, que nâo Deleuze e Guattari dispòem agora na America do
se mexem”46. Norte de bons exegetas unìversìtàrìos, competentes, que
A forte relaçâo entre a fenomenologia e o de- trabaìharam muito para difundir sua obra. Entre eles,
leuzianismo está no cerne da tese de um univer- sitário
380 François Dosse
Charles Stivale* criou um importante site na Internet
canadense, Alain Beaulieu. Ele descobre : Deleuze em que é urna mina, ao mesmo tempo como caixa de
Strasbourg, em 1997, com seu professor Daniel Payot, e ressonància dos textos de Deleuze e Guattari, dos
inicia no ano seguinte urna ; tese em Paris para estudar a estudos consagrados a eles e da rede de pesquisadores
relaçao que considera bastante ambivalente e subversiva interessados em sua obra. Por sua vez, Brian Massumi,
de Deleuze ; com a fenomenologia; “Eu vinha da professor do departamento de comunicagáo da
fenomenologia após meu curso de filosofìa em Montreal universidade de Montreal e tradutor de Mil Platos em
com : Jean Grondin e urna permanência47 de dois anos na inglés57, também publica obras pessoais e agrupa con-
Alemanha nas pegadas de Heidegger” . tribuigòes sobre a obra de Deleuze e Guattari88.
Se a editora universitària de Columbia de-
sempenhou no inicio um papel fundamental na difusâo
das publicaçôes de Deleuze e Guattari, a editora de A admira^ao americana
Minnesota, muito ativa da edi- çâo da French Theory,
aìternou-se com eia de forma interamente decisiva, com Desde o final dos anos de 1990, o ritmo das
urna relaçâo muito forte com Deleuze. É o caso de publicagòes consagradas a Deleuze e Guattari no mundo
Biodun ; Iginla, antigo diretor da editora universitària de anglo-saxâo conhece urna inflaçâo galopante. De cinco
Minnesota, que, menos de dois dias após a morte de a seis livros publicados por ano entre 1998 e 2000,
Deleuze, escreveu: “Sábado, 4 de novembre de 1995, passou-se a urna boa dezena de títulos apenas para o ano
perdi o ùnico pai intelectual J que tive”4S. Em outubro de 2001. A tendência nâo para de se confirmar desde o
de 1990, quando Iginla, ■ sucedendo Lindsay Waters inicio do novo milênio. Os departamentos de literatura
e Terry Cochran, se torna o editor titular de Deleuze, a comparada sâo os mais receptivos e, segundo Dana
editora de Minnesota já havia publicado oito de seus Potan, tradutor do Kafka, de Deleuze e Guattari*, o
livros no mundo anglo-saxâo.49 Iginla prossegue marxista americano Fredri- ckjameson, apesar de suas
ativamente essa política de difusâo , reservas, é um bom exemplo de um uso possível de O
O filósofo Reda Bensmaïa, que leciona na Anti-Édipo na crítica literaria, ainda que ás vezes seja
universidade de Minnesota, se torna amigo de um pou- co simplificador60 Em 1987, a importante
Deleuze por ocasiáo de um número especial da re vista revista Cultural Critique consagra dois números aos
Lendemains pelo qual foi responsà- vel e que é discursos menores, utilizando maciçamente o conceito
consagrado a eie* Bensmaìa jà tive- ra a oportunidade deleuzo-guattariano e transpondo-o aos discursos das
de encontrá-lo vàrias vezes quando a editora de populaçôes “subalternas”.
Minnesota estava editando suas obras: “Cheguei Essa recepçâo deleuzo-guattarìana ultrapassa de
inclusive a lhe enviar as provas de seus livros**1. Essa longe os meios estritos da teoria literaria. É também um
amizade se traduziu em urna correspondencia seguida recurso nâo desprezível para alguns dentistas que
da qual se encontram vestigios em Pourparleri2, na desejam restabelecer as pontes entre as duas culturas,
carta de agradecimento sobre a qualidade dos artigos sobretudo a partir das tecnologias mais sofisticadas. É o
publicados nesse nùmero pelo qual Bensmáía é caso de Manuel DeLanda, que começou sua carreira com
responsàvel. filmes experimentáis, tornando-se programador e artista
Na mesma epoca, em 1989, o americano Lawrence em informática antes de ser professor no departamento
Kritzmann, professor em Dart- mund, que se tomaria de filosofia de Columbia. DeLanda se pos como objetivo
especialista da historia intelectual francesa, conhece superar a clivagem entre cientistas e humanistas. Para
Deleuze ao lan- gar urna colegáo pela editora da isso, concebe a ontologia deleuziana como a filosofía
universidade de Columbia: “Perspectivas Europeias”. O mesma das ciéncias da61 complexida- de e dos
pri- meiro livro publicado na colegáo é O que é a dinamismos nâo lineares . É preciso contar também
filosofia^'. “Fiquei muito orgulhoso com isso, pois, para com urna recepçâo mais específicamente política e
mini, é urna obra-prima do pensamento francés da contestatória no interior do mundo anglo-saxâo, como
segunda metade do século XX”84. Em 1989, Deleuze o ilustra Michel Hardt62, ex-al uno do filòsofo italiano
recebe em sua casa, na Rue de Bizerte: “Em geral, Toni Negri, que escreveu com ele algumas obras de cri-
quando se chega à casa dos mestres pensadores em tica social e politica de grande repercussào e de
Paris, eles lhe dizem o que estào fazendo, mas Deleuze inspiraçâo deleuzo-guattarìana63. Esses livros tém como
me perguntou o que eu es tava fazendo”55. ambiçâo defender urna forma de radicalismo político
nutrido pela contestaçâo do sistema capitalista e estruturalismo, mas eneontrou prolongamentos nos
conduzido pela esperança de urna ruptura, ainda Estados Unidos do lado das primeiras redes eletrónicas
ampiamente inspirada em um marxismo revisitado pelos teorizadas por Hakim Bey,& Félix
amigoGuattari
de Sylvère Lotringer,
conceitos espinosistas e deleuzo-guattarianos. como67 “zonasGilles
de Deleuze
autonomia temporária” (TAZ em in-
381

Entretanto, nâo se pode limitar a recepçâo dessa obra glés) . O autor convoca a usos ilegais, rebeldes da Tela:
à mera esfera uníversitária, ainda que esta ateste um “A obra individual de Félix Guattari : tem sobre esses
reconhecimento, certa- mente tardío, mas profundo e primeiros cyber-comunitaris- tas americanos um impacto
muito intenso. É preciso contar também com a recepgáo específico”68. Coni seu conceito de rizoma, Deleuze e
da obra nos meios feministas, nao obstante a rejeipao Guattari figuram como grandes profetas da Net, que
brutal que sof'reu quando do famoso simposio de torna tangíveis o plano da imanéncia, as conexo es em
Columbia, em 1975: ‘Até meados dos anos de 1990, todos os sentidos, a desierarquizaçâo, os percursos
urna desconfianza instintiva em relagáo á forma como singulares e transversais. Assim, um site com o nome de
Deleuze e Guattari molecularizam a questao íeminina “Deleuze & Guattari RhízOmat” propoe um módulo de
vai dominar64 a relagao do feminismo americano com a citaçoes “pirateadas” dos dois autores que avança ao
obra deles” . Tal abordagem é vista como urna manobra sabor das ligaçôes hipertexto69. Os ínternautas deleuzo-
diversionista em relagao aos verda- deiros e guattarianos se sentem tanto mais à vontade na Tela na
fundamentáis questoes que sao da or- dem “molar”. medida em que sao encorajados por todos os conceitos
Contudo, o movimento feminista evolui nos anos de de que se apro- priaram. Assim, encontram em sua
1990 no sentido de urna abordagem menos essencialista, pràtica o desejo de seus mestres de urna dessubjetiva-
que permite urna receppáo mais positiva das teses sobre çâo que praticam on-line. Sentem-se sintonizados com a
o “devir-mulher”, sobre a desidentificagáo sexual sobre noçâo de multiplicidades, de táticas de desmultiplicaçâo,
o devir minoritário da escrita, masculina ou feminina, de sínteses disyuntivas, de desmultiplicaçâo e produçâo
sobre a indeterminaqáo sexual e sua ambivalencia maquínicas, e mesmo o famoso CsO, o corpo sem
fundamental Assim, podem ser lidos na obra dirigida por órgaos, que é utilizado para qualificar a rede, tornou-se
Constan- tin BoundasA Dorothea Oíkowskí dois estudos uma“BwO [body without organs) Zone”.
feministas 63muito inspirados ñas teses deleu- zo- Esses múltiplos usos do deleuzo-guattarismo em
guattarianas . Afastando-se aínda mais do mundo terra americana realizam o desejo de Deleuze de urna
universitario, pode-se mesmo encontrar usos do deleuzo- “pop-filosofìa” que privilegie as práticas. Parecem
guattarismo exaltando o devir maquínico da humanidade atestar o sucesso esp eiacular de um enxerto. A forte
em nome de urna “política cyborg, conforme o desejo da adequaçao entre as teses conceituais apresentadas e a
feminista Donna Haraway, que, em 1985, define o singu- laridade civílizacíonal americana converge
cyborg como “um organismo cibernético, híbrido de assim com a intuiçâo de Sylvère Lotringer, segundo a
máquina e de organismo, criatura da realidade social qual Deleuze e Guattari nao falam aos americanos,
assim como da fie gao”66. mas já falam da América.
Outro campo que desempenha um papel mais ou Notas
menos importante ñas pesquisas americanas, o dos post- 1. Ver François CUSSEX French Theory, La Découverte,
colonial studies, dos Su- baitern Studies, também utiliza Paris, 2003 [Cusset, François: Filosofía Francesa: a
fortemente os conceitos deleuzo-guattarianos, Essa influencia de Fourcault, Derrida, Deleuze e Cia. Trad.
influén- cia passou sobretudo pelo grande intelectual Fátima Murad, Por Artmed, 2008,312 p.].
palestino, professor na universidade de Columbia, 2. Sylvère Lotrînger, entrevista com o autor.
Edward Said, para quem o “tratado de no- madoiogíá' de 3. Yves Mabin, entrevista com o autor,
MU Platos permite cartografar o mundo contemporáneo 4. Ibid.
e situar o destino des- terrítorializado do povo palestino. 5. Ibid,
A outra grande figura dos Subaltern Studies, Gayatri 6. Ibid.
Chakra- vorty Spívak, de origem indiana, também se 7. Sylvère LOTRINGER, “No comment”, Chimères, n.
apropriou dos conceitds de Deleuze e Guattari. 37,1999, p. 14-15.
Sua crítica dos sistemas totalizantes, sua con- cepçào 8. Ibid., p. 15.
do concerto como tendo antes de tudo urna vocaçâo 9. Sylvère Lotrînger, entrevista com Virginie Li- nhart.
pràtica, tática, sua definiçâo do intelectual ou ainda sua 10. Sylvère Lotringer, entrevista com o autor.
defesa da minoridade literària testemunham essa 11. Sylvère Lotringer, entrevista com Virginie LL nhart
proximidade. 12. Sylvère LOTRINGER, “No comment”, art. cit., p. 16.
O conceito de máquina deleuzo-guatta- riana nao 13. Sylvère Lotringer, entrevista com o autor.
servia apenas de máquina de guer- ; ra contra o
14. Gilles DELEÜZE, Félix GUATTARI, Ânü-Œdi- pus, GUATTARI, A Thousand Plateaux, Minnesota, 1987:
Viking Press, New York, 1977. Gilles DELEUZE, Foucault, Minnesota, 1988; Gilles
15. Jean-Jacques Lebel, “Gilles Deleuze: avez-vous des DELEUZE, Bergsonism, Zone Books, 1988; Gilles
questions à poser?",
382 François DosseFrance Culture programa de Jean DELEUZE, Spinoza, Practical Philosophy, City Lights
Daive, 20 de abril de 2002. Books, San Francisco, 1988; Gilles DELEUZE, Cinema 2,
16. jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. Minnesota, 1989.
17. Ibid. 33. Gary GENOSKO (sob a dî r.}, Deleuze and Guattari, Rout
18. Ibid. led ge, New York e Londres, 3 tomos,
19. Ibid. 2001.
20. Ibid. 34. Eugene Holland, entrevista com o autor.
21. Sylvère Lotringer, entrevista com Virginie Linhart. 35. Ver François DOSSE, Michel de Certeau. Le marcheur
22. Félix Guattari, “Notes sur mon voyage aux États-Unis”, blessé, La Découverte, Paris, 2002.
36. Eugene HOLLAND, Deleuze and GuaUari's Ariti-Œdipus,
setembro-outubro de 1974, arqui- vos 1MEC, Routiedge, 1999.
23. Ibid. 37. Andrew Cutrofello, entrevista com o autor.
24. Constantin Boundas, entrevista com o autor. 38. Andrew CUTROFELLO, Continental Philosophy: A
25. Além de Anti-Œdipus, já mencionado, publicado em Contemporary Introduction, Routiedge,
1977, encontra-se entâo Masochism, G. Braziler, 197,1, e 2005.
Proust and Signs, G. Braziler, 1972. 39. Dan Price, entrevista com o autor.
26. Constantin Boundas, entrevista com o autor. 40. Dudley Andrew, entrevista com o autor.
27. Só será publicado, traduzido por Boundas, Bmpirism and 41. Ibid. Os usos de Deleuze no quadro dos Cinemas Studies
Subjectïvity, Columbia, 1991: estâo em pleno crescimento. Rudowick, professor em
Boundas editará também a traduçâo de Mark Lester e Harvard, autor de um excelente livro sobre sua teoria do
Charles Stivale de The Logic of Sense, Columbia, 1990. cinema (ver capítulo “Deleuze vai ao cinema”) organizou em
28. Gilles Deleuze, palavras reportadas por Constantin maio de 2005 um grande coloquio internacional sobre
Boundas, entrevista com o autor. A co- letânea de textos é Deleuze em Harvard: ‘Afterimage of Gilles Deìeuzes Film
lançada nos Estados Unidos em 1993 (The Deleuze Reader, Philosophy", por oca- siào do 10" aniversario de sua morte e
Constantin Boundas, ed. Columbia, 1993). do 20a aniversario da publicaçâo de Cinema 2. Mencionamos
29. Constantin BOUNDAS, Dorothea OLKOWSKI (sob a dir.), aqui, entre muítos outros, o colega de Dudley Andrew em
Gilles Deleuze and the Theatre of Philosophy, Routledge, Yale, John MacKay, que ensína o cinema dos inicios,
New York e Londres, sobretudo Vertov, e que todos os anos consagra um
1994. Esse primeiro coloquio deleuziano é a oportunidade seminàrio a Deleuze.
de criar a rede de pesquisado- res interessados por sua obra. 42. Julian Bourg, entrevista com o autor.
Há ali nâo mais que vinte pesquisadores, ma s 43. Ibid.
particularmente interessados em prosseguir e aprofundar 44. Julian BOURG, Forbidden to Forbid: May 68 and the
suas trocas, É também a oportunidade de lançar novas Return to Ethics in Contemporary France, Me GilLQueens
iniciativas, como a de Charles Stivale, que faz os contatos University Press, Montreal, 2007.
necessários para publicar um número da revista Substance 45. Eleanor Kaufman, entrevista com o autor.
consagrado a MU Platos em meados dos anos de 1990.
30. O essencial do coloquio foi publicado na revista británica 46. Ibid.
Angelaki em um número especial, vol. 5, agosto de 2000. 47. Alain Beaulieu, entrevista com o autor. A tese de Beaulieu,
31. Paul Patton, entrevista com o autor. Paul Patton aconselhará publicada em 2004 {Gilles Deleuze et la phénoménologie,
numerosos estudantes que chega.m a París nesse periodo a Sììs Maria, Mons, 2004), consìste em seguir mais de perto o
fazer o curso de Deleuze, É o começo de urna pequeña colo- combate quase amoroso de Deleuze com as teses
nia formada por australianos muito assíduos em Vincennes. fenomenológicas. Cada um dos concei- tos-chave de Deleuze
Ao retornar à Australia em 1981, Patton começa a trad uscir seria, segundo Beaulieu, urna maneira de se posicionar e de
para o ingles Rizoma, e dedica cinco anos a traduzir a tese de se demarcar da via fenomenologica para construir sua propria
Deleuze, Diferença e repetiçâo, que será publicada em 1994. orientaçâo. Ele espera assim esclarecer melhor a
Paul Patton dirige também a ediçâo de um Deleuze Critical conceitualizaçào deleuziana encontrando seu hump e as
Reader, reunì ndo especialistas tanto franceses como an- questôes a que eia responde, que revelara ser as mesmas que
glo-saxoes: Paul PATTON (sob a dir.), Deleuze Critical as da fenomenologia, mas oferecendo urna outra perspectiva.
Reader, Blackwell Pub., 1996. 48. Biodun ÍG1NLA, “Gilles Deleuze - In Memoria m (1925-
32. Gilles DELEUZE, Nietzsche and Philosophy, 1983: Kant's 1995). A Personal Noté’, Iris, n. 23, primavera de 1997, p.
Critical Philosophy, Minnesota, 1984; Gilles DELEUZE, 19.1.
Félix GUATTARI, Kafka, Minnesota, 1986; Gilles 49. Gilles DELEUZE, The Fold: Leibniz and the Baroque,
DELEUZE, The Mouvement-Image, Minnesota, 1986; Minnesota, 1993; Essays Critical and Clinical, Minnesota,
Dialogues, Columbia, 1987; Gilles DELEUZE, Félix 1997: Francis Bacon, Minnesota, 2004. Igínla, que se
tornaría editor, foi aluno de Deleuze em Paris-VIÍI a partir de
1975, antes de prosseguir seus estudos em literatura universidade da Tasmania, eie dirigiu urna pubìicapao
comparada na unìversidade do Minnesota. O concerto de coìetìva consagrada à obra de Deleuze (lan BUCHANAN e
rizoma “me serviu muìto em minha carreña de editor" John MARKS (sob a dir.), Deleuze and Litte- rature,
(Biodun IGINLA, “Gilles Deleuze - In Memoriam (1925- ColumbiaGilles
University
DeleuzePress, 2001)Guattari
& Félix e foi posteriormente
383 um
1995). A Personal Note”, art, cìt, p. 193). Foi Tom Conley dos orquestradores do deleuzianismo no cenário británico.
quem o aconseìhou a ler 0 Anti-Édipo em 1973, antes Leciona agora em Cardiff e se torno u editor da Edin-
mesmo que fizesse o curso de Deleuze; “Eie se tomou minha burghed.
biblia” {ibid., p. 194). Segundo ele, a profecia de Foucault já 59. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Kafka, Minnesota,
se realizou: “Em certo sentido, este século já é deleuziano. 1986.
Por exemplo, ele havia teorizado a distinqao entre o atual e o 60. Fredrick JAMESON, Fables of Aggression: Wyndham
virtual pelo menos duas décadas antes que a cibernética e os Lewis, University of California Press, 1979.
tecno-evangelistas comeqassem a falar da distingáo entre a 61. Ver Manuel DELANDA, Intensive Science and Virtual
vida real (RC) e a realidade virtual (VR)” {ibid., p. 195). Philosophy, Continuum International Publishing Group,
50. Reda EENSMAIA (sob a dir.), Lendemains, n. 53,1989. 2002; New Philosophy of Society: Assemblage Theory and
51. Réda Rensmáia, entrevista com o autor. Social Complex- tty, Continuum, 2006.
52. Gilles DELEUZE, “Lettre à Réda Bensmaía sur Spinoza”, 62. Michel HARDÏ, Gilles Deleuze-. An Apprenticeship in
Pourparlers, Minuit, Paris, 1990, p. Philosophy, University of Minnesota Press, 1992.
223-225. 63. Michel HARDT, Toni NEGRI, Empire, Harvard University
53. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, What is Press, 2000; trad, fr., La Découverte, 2001; Multitudes:
Philosophy?, Columbia, 1994. Guerre et démocratie à l’âge de l’Empire, La Découverte,
54. Lawrence Kritzmann, entrevista com o autor. 2004.
55. Ibid. 64. François CUSSET, French Theory, op. cit., p. 163. [Cusset,
56. Charles STIVALE, The Two-Fold Thought of Deleuze and François: Filosofìa Francesa; a in- fluência de Fourcauìt,
Guattari, Guilford Press, 1998. Derrida, Deleuze e Cia. Trad. Fâtima Murad, Por Artmed,
57. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, A Thousand 2008,312 p.]
Plateaux, Minnesota, 1987. 65. Elisabeth GROSZ, “A Thousand Tissy Sexes: Feminism
58. Brian MASSUMI, User's Guide to Capitalism and and Rhizomatics”; Rosi BRAIDOTTI, "Toward a New
Schizophrenia: Deviations from Deleuze and Guattari, Nomadism: Feminist Deleuzian Tracks, or Metaphysics and
MIT Press, 1992; Parables for the Virtual- Movement, Metabolism", em Constantin BOUNDAS, Dorothea
Affect, Sensation, Duke University Press, 2002: Brian GLKGWSKl (sob a dir.), Gilles Deleuze and the Theater of
MASSUMI (sob a dir.), A Schock to Thought: Expressions Philosophy, Routledge, New York, 1994.
after Deleuze and Guattari, Routiedge, 2001. "O Deleuze 66. Donna Haraway, citada por François CUSSET, French
da América; o terceiro excluido. Isto é, a afìrmag.ào: nosso Theory, op. cit., p. 270. [Cusset, François: Filosofìa
possível impossiveì. Ler Deleuze, entre a sinceridade e o Francesa: a ìnfluèneia de Four- cault, Derrida, Deleuze e Cia.
cinismo, era se langar em urna aprendizagem do pensamento Trad. Fatima Murad, Por Artmed, 2008,312 p.]
como pràtica de reabertura. Linha de fuga, pragmatismo 67. Hakim BEY, The Temporary Autonomus Zone:
insubmisso” (Brian Masu- mi, declarares a Élie During, Le Ontological Anarchy, Poet rie Terrorism, Autonomedia,
Magazine littéraire, fevereiro, 2002, p. 56). Um univer- New York, 1991.
sitário australiano, Ian Buchanan tornou-se também um 68. François CUSSET, French Theory, op. cit., p. 265. [Cusset,
especialista prolifico da obra de Deleuze, que comparou François: Filosofìa Francesa: a influên- cia de Foucault,
inicialmente à de Michel Certeau em torno do conceito de Derrida, Deleuze e Cia. Trad. Fatima Murad, Porto Alegre:
plano de imanència (lan BUCHANAN, Michel de Certeau: Artmed, 2008,312 p.]
Cultural Theorist, Sage, Londres, 2000). Professor da 69. Ibid., p. 266.
Sob todas as latitudes
A influència de Deleuze,
internacional de afirmadas desde a
Deleu- ze-Guattari publicagáo de seu
nao se limita à Hume, do mesmo
América do Norte. modo que sua
Do continente adesào e a de
asiático à América Guattari a urna orlen
Latina, passando tagao pragmática, só
pela Europa, sua poderiam agradar a
obra dà a volta ao priori a alguns
mundo. Enquanto británicos. Contudo,
Guattari costuma sua recepgáo no
acompanhá-la por Reino Unido é
seus deslocamentos, tardia e menos pro-
Deleuze, com raras funda que nos
excegòes, segue campi americanos.
como viajante Na realidade, os
imóvel as pegadas mais suscetíveis de
de seus escritos no se interessar por
mundo, a partir de Deleuze e Guattari,
seu observatorio de em um país
Paris-VlII, onde seu profundamente
curso aco- lhe marcado pelo
pesquisadores de empirismo e
todas as pragmatismo,
nacionalidades. procuram antes no
No mesmo pensamento francés
espago lingüístico urna outra via, e
anglo-saxáo, a aderem mais aos
Inglaterra conta com autores da French
algans redutos Theory que
deleu- zianos, como privilegian! as
a universidade de lógicas estruturais.
Warwick, onde Entretanto, graças às
lecíonam Keith traduçôes em inglés
Ansell-Pearson e finalmente dis-
Nick Land, cujo poníveis ao longo
dinamismo irradia dos anos de 1980 e
em todo o mundo 1990, a recepgáo
anglofono. As dessa obra avança
posígoes empirístas sensivelmente: “Na
Inglaterra, os ‘deleuzianos’ nao procuram nem deleuzianos quando1 isso parece necessàrio para dar
comentar seu trabalho, nem aplicá-lo. Tentam mais conta do contexto” *.
‘agenciar com’ - no cinema, na escultura, no Pertencente Deleuze
à jovem& Félix
geragào británica, Simon
performance act, no rock”1. O filósofo Keith Ansell- Tormey é Gilles
de6 origem irlandesa e lecio- na politica e
Guattari 385

Pearson, de Warwick, engajou-se claramente nas teoria crítica na universidade de Nottingham, onde se
posiçôes deleuzianas e inclusive qualifica Deleuze de encontra um conhecido especialista da obra de Deleuze
“engenheiro da diíérengá’2. e Guattari, Philip Goodchild7. Quando descobre essa
Nick Land, personagem que se tomou mítico por obra, seu oìhar sobre o mundo muda radicalmente:
ficar invisível desde que abandonou o en- sino, também “Para mim, a descoberta de Deleuze e Guattari foi corno
foí professor de filosofia na universidade de Warwick. passar para um mundo a cores,8 enquan- to até entáo
Procurou conectar os dois volumes de Capitalismo e tinha sido em preto e branco” . No entanto, alguma
Esquizofrenia com os trabalhos de cibernética de coisa predispòe Tormey a so- frer um tal choque: “Eu
Norbert Wiener, mas também coni o esoterismo e a nao podia conceber a profundidade, a expressào, a
ficçâo científica. Nos anos de 1990, ele organiza vibragào do pensamento delegò. No campo das criagòes
algumas manifes- taçôes culturáis sobre temas como artísticas, Deleuze tornou-se para alguns urna fonte de
“Virtual Futures”, “Afro-Futures”, “Video-Technics”, inspiragào, É o caso, por exemplo, do escritor británico
reunin- do em um mesmo evento conferencias e festas lan Pindar, que se exercita em fìcgoes rizomáticas. É o
techno na venerável universidade de Warwick, pouco caso também, no teatro, de Benjamin May, que pretende
acostumada a esse género de rítmicas. pór em cena a no- gào de “corpo sem órgaos” na
Um dos campos de mais visibilidade da pesquisa em diregao dos atores.
ciencias sociaís no Reino Unido é constituido pelos
Cultural Studies, nos quais Deleuze e Guattari estao
pouco presentes. Mas Lawrence Grossberg, um dos Urna terra de escoìha: o Japao
representantes mais importantes dessa corrente, comega Bem longe do mundo anglo-saxáo, o Ja- pào é urna
a ler Foucault no final dos anos de 1970, quando lecíona terra de acolhimento muito mais favorável ao deleuzo-
era Illinois: “Foì nesse contexto que descobri a tradugao guattarismo. A recusa de qualquer transcendencia, o
de OAnti-Édìpo e formei um grupo de ìeitura com pensamento imánente de Deleuze e Guattari encontram
alguns estudantes de graduagào e com alguns colegas de como que um eco no pensamento budista japonés, Já se
outras universidades. Flavia entào Charles Stivale, que mencionou o caso de Hidenobu Suzuki, a quem se deve
nessa época era doutorando em francés em Illinois. o tesouro de arquivos que sao as gravagòes das aulas de
Passamos o ano todo lendo a obra de Deleuze e Guattari Deleuze em Paris-VIÍI de 1979 a 198710 e, ao seu lado,
ìi- nha por linha”8. A partir do inicio dos anos 1980, o futuro tradu- tor oficial de Deleuze no japào, Kuniìchi
Grossberg se apropria dos conceitos de De'leu- ze- Uno, que também segue o curso de Deleuze a partir de
Guattari para argumentar ao mesmo tempo contra a meados dos anos de 1970. Depois de ter defendido urna
orientagào desconstrucionìsta e contra a hermenéutica, e tese sobre Rimbaud, Uno propòe a Deleuze orientar sua
para valorizar a dimen- sào propriamente politica da tese sobre Antonio Artaud, que defende em 1980. Na
cultura evitando o perigo do relativismo: “Eu via em Franga, até 1983, Uno forma um grupo com Suzuki e
Deleuze (e Foucault) como que um melo de ir além dos alguns outros estudantes japoneses: “Estáva- mos
limites ao mesmo tempo da guiñada heideggeriana para traduzindo Mil Platos, e eu perguntei a Deleuze: por
urna espécie de misticismo em4 seus últimos escritos e que Mil Platos?1 Ele me responden: ‘Vocè conhece o
da desconstrupào de nidi ana.” . Em meados dos anos plato de Mille vaches?’*, e acrescentou: ‘Para11 mim é
de 1980, Grossberg conhe- ce Meaghan Morris, urna isso, náo sei para Félix, mas para mim é isso” . Esses
especialista australiana dos Cultural Studies que cinco es- tudanfces sao entáo dirigidos em seu trabalho
estudou com Deleuze. Grossberg a convida para a de tradugao por um professor importante no japào,
universidade de Illinois, e juntos eles formam toda urna tradutor de Rizoma, Kouichi Toyosaki. A dificuldade de
geragào de estudantes nos trabalhos dos Cultural tradugao de certos conceitos exigiu algumas
Studies británicos e em um bom dominio da obra de explicagoes obtídas junto aos autores: “Tivemos a
Deleuze-Guattari. Assim, Grossberg insere Deleuze e oportunidade de trabalhar junto com Deleuze e Guattari
Guattari em sua concepgào singular dos Cultural para discutir
Studies corno projeto radicai de contex- tualìsmo
político e de análise do discurso: “Eu me vejo mais s
N. de R. T.: Platmu. Mtllevadm designa um planalto na parte sudeste
corno um pragmatista que utiliza os conceitos de Lirnousin, entre os vales de Vienne e Vezére que atinge alturas um
pouco abaixo de mii metros. Seu nome nada tem a ver com vacas
(vaches) pois é de origem celta (balz) que significa nascentes de agua, manifes- taçôes culturáis ou de convidar personalidades
abundantes na regiáo. japonesas, Guattari é o conselheiro de Christian
termos 17difíceis e enigmáticos e para esclarecer alguns Descamps, responsável pelo Espaço Seminario do
pontos”386. François Dosse Centro Beaubourg entre 1984 e 1994.
Em 1983, quando Uno retoma ao Japâo, colabora Masaakl Sugimura é o tradutor das obras de Guattari
com urna revista de filosofìa contemporánea, Genddi- no japdo1'. Defme-se como um “ses- sentaoitista”. É, de
Shiso, muito aberta ao estru- turalismo e ao pensamento fato, em pleno maio de 1968 que ele ve pela primeira
francés em geral, contribuindo assim para apresentar ao vez Guattari, quando da ocupaçâo do Odeon, Quando
público japonés a obra de Deleuze e Guattari. Ê, alias, Sugimura volta ao japao em 1970, é proibido de entrar
em meados dos anos 1980 que eles começam a se tornar na Franga por dez anos, por ser considerado um
condecidos no japâo graças à publicaçao em japonés de esquerdista perigoso. Eie se debruça sobre as questoes
O Anli-Édipo, Uno, que se tornou professor no da política japonesa para reconstruir em seu país urna
departamento de literatura daUni- versidade Ríkkyo, de nova esquerda. É Uno que, investido na traduçâo de Mil
Tóquio, traduziu O Esgota- do, Foucault e A Dobra, e Platós, Ihe pede um dia para traduzir A Revoluçâo
participou da traduçao de Mil Platos. Toda vez que Molecular, que ninguém quer assumir, pois o livro é
viaja a Paris, até 1982, Uno visita Deleuze em sua casa: considerado excessivamente político: “Pus-rne a
“Quando termi- nei a traduçao da Dobra, eie me disse trabalhar e encontrei nesse livro lembranças do que
que gosta- ria de ter trabalhado mais sobre a relaçâo tinha vivido nos anos de I960”18. Muito engajado nos
entre Leibniz e o Orienté’13. Principalmente Mil Platos movimentos contestatórios contra o imperador japonés,
é lido e utilizado no japâo, em particular nos melos da e pondo em questâo até mesmo os fundamentos do
arquitetura e da sociologia:1 “0 corpo sem órgáos diz sistema imperial, Sugimura encontra em Deleuze-
muita coisa a nos japoneses” ’1. Guattari os instrumentos para pensar na criaçào de
Quanto a Guattari, sente um verdadeiro fascinio grupos militantes de um novo tipo, e a ideia da
pelo Japâo, a ponto de ter ido para là oito vezes: “As revoluçâo molecular lhe parece particularmente
duas cidades que15 mais interessavano Félix eram Sào pertinente para agir no contexto da sociedade japonesa.
Paulo e Tóquio“ . Eie é convidado por Uno desde o No inicio dos anos de 1980, suas obras começam a ser
retorno deste, depois por Akira Asada, que publicou em traduzidas no japâo, e “urna moda desenvolvere em
1983 A Estrutura e a Força, um best-seller consagrado torno deles. Muitos intelectuais japoneses invocam seu
ao pensamento francés. Nessa ocasiao, Guattari faz urna pensamento”19.0 Japâo é de fato, desde o pós-guerra,
conferencia sobre a esquizoaná- lise na universidade de muito receptivo à atualidade intelectual francesa.
Kyoto. Graças a Uno, encontra os melos muito Sugimura só conhece Guattari após sua traduçâo de A
politizados, muito militantes de Okinawa e visita alguns Revoluçâo Molecular, Eles se encontram em Kyoto;
hospitais psiquiátricos. Por sua vez, Uno vai a La Borde “Simpatizamos de imediato um com o outro. Falamos
para rever Guattari em 1984 e 1985 e grava as de maio de 1968 e encontrei em Félix um ìrmao mais
entrevistas para a re vista Gendaï-Shiso, que consagra veìho Era um verdadeiro alento encontrar em Félix
um número especial a Deleuze-Guattari: “Na exposiçâo afguém que compar- tilhava minhas ideias. Vivemos
universal de design em Na- goya, Guattari falou diante entáo 20très anos de relagòes muito íntimas até sua
de urna imensa plateia de cerca de mil arquitetos. Ele morte” .
faz urna conferéncia sobre a maneira como a arquitetura No ámago do fascínio de Félix Guattari pelo japào
pode modificar o ambiente da cidade”16. está sobretudo a arquìtetura. A convite de urna
Em conexâo com os meios de dançarinos, fotógrafos associando de arquitetos japoneses, eie participa em
e arquitetos japoneses, Guattari brinda a clínica de La 1987 de urna equipe de projeto no àmbito do concurso
Borde e seus pensionistas. Assim, convida o dançarino de ideias para encontrar um “Simbolo Franga-Japao”21,
Turatami e inclusive projeta fazer um filme com o Guattari consagra um estudo a um dos mais célebres
fotógrafo Keiichi Tahava, que deveria se chamar “Luz arquitetos japoneses, Shin22 Takamatsu, por ocasiào de
negra”. Tahava de- verá realizá-lo sozinho em razao do urna exposìqao em 1989 . Ao apresentar seu reìató-
faleclmento prematuro de seu amigo. Guattari adorava rio, Christian Girard afirma que "Guattari abre aos
pas- sear em Tóquio, onde gigantescos arranha-céus arquitetos urna possibilidade de revisào teòrica de sua
ultramodernos coexistent com pequeñas casas de dois pràtica”23. Guattari considera a arquitetura japonesa
andares em bairros que parecem cidades, Seu gosto pelo urna via que se singulariza em relagào ao modelo
Japâo levou-o a fundar urna associaçâo França-Japâo estilístico internacional. A historia da arquitetura
para organizar e desenvolver intercâmbios culturáis japonesa é marcada por alguns grandes criadores, como
entre os dois países. Quando se trata de organizar Kenzo Tan- gue e seu aluno Arata ísozaki, que,
rompendo com o funcionalismo ambiente, se Empregada nos servigos psiquiátricos na regiao
orientaram para 24o que Guattari qualifica de parisiense, Suely Rolnik decide, de- pois de nove anos
“processualis- mo” . Takamatsu consegue construir de exilio, Gilles
voltarDeleuze
ao Brasil, onde se dedica ao seu
edificios que exprimem o “devir-máquina”25 da subjeti- doutorado em psicologia. Envolvida em psicoclínica em
& Félix Guattari 387

vidade, como a clínica dentària de Kyoto construida Sao Paulo, encontrou de fato em Paris, com Deleuze e
sobre o modelo de urna locomotiva barroca em razáo da Guattari, exatamente o que procurava: a micropolítíca,
proximidade imediata de urna ferrovia e de urna as relagoes entre a psicanálise, a política e a cultura no
estagao de trem, “o que tem como efeito transformar o contexto pós-1968. Desde que poe os pés de novo no
ambiente, como que pelo toque de urna varinha mágica, Brasil, eia se empenha em pór em circulagao essas teses
em urna es- pécie de paisagem maquínica vegetal”26. no mundo intelectual brasiìeiro. A apro- priagào dessas
A sensibilidade japonesa aos equilibrios precários teses é quase instantánea nos meios psicoclínicos e
do ecossistema e ás questoes ecológicas permite urna desempenha um papel essencial das lutas travadas no
recepgao das teses de Guattari desenvolvidas no livro campo da saú- de mental, antes mesmo da queda da
As Tres Ecologías, sua obra mais vendida no Japào. O ditadura. Suely Rolnik coordena ao mesmo tempo um
nome de Felix Guattari “serviu até27para a promogáo de seminàrio com mais de 80 pessoas, um lugar de
um uísque e de um saqué japonés" . formagao fortemente marcado pelo deleuzo-
guattarismo. Teria sido fácil constituir urna verdadeira
escola, mas Suely Rolnìk vè com razào em tal ideìa o
O Brasil: terra de esperanzas risco de trair os objetivos perseguidos por Deleuze e
Guattari, Eia prefere a forma da rede que estende suas
No inicio dos anos de 1970, Guattari co- nhece urna ramifìcaqoes por todos os países latino-americanos. O
brasileira judia de origem polonesa, Suely Rolnik. Anti-Édipo logo é adotado pelos brasileiros e traduzido
Estudante de ciencias sociais na Universidade de Sao relativamente cedo, em 1976. Em 1981, Suely Rolnik
Paulo, entre marxismo e contracultura, eia é presa em publica um livro de Guattari, com o título Pulsagdes
janeiro de 1970, em um momento em que a ditadura Políticas do Desejo, que retoma boa parte de A
brasileira endurece. Quando chega a Paris em 1971, Revolugáo Molecular'^
Rolnik faz o curso de Pierre Clastres, matricula-se em Guattari vai ao Brasil sete vezes e considera
Vincennes em sociologia e assiste às aulas de Deleuze: inclusive a possibilidade de se instalar no país. Em
“No inicio, meu francés era aínda muito pobre, mas o 1982, Suely Rolnik organiza todo um calendàrio de
timbre de sua voz e sua atìtude, essa linguagem que entrevistas com os inúme- ros movimentos
passa pelo corpo,28pela carne das paiavras, isso me tocou micropolíticos da sociedade brasileira de vários estados,
e me reanimou” . Suely Rolnik pede a Guattari para como também com os meios psicanalíticos e
iniciar urna análise porque nao está se sentin- do bem. psiquiátricos: “Este se tornou o único país33em que as
Guattari nao vacila: “Ele adorou isso e aceitou de teses de esquizoanálise sao bastante fortes” . Eia grava
imediato fazer análise comigo gratuitamente me todas essas intervengoes que resultam em quase trés mil
dizendo:21í A gente cometa amanha às sete horas da páginas de transcriqáo sobre as quais se pos a trabalhar
manha” . Após um curto período de análise clàssica no e que deram lugar a urna obra comum em 1986,
diva, Guattari decide fazer urna interven pao de tipo reeditada seis vezes^.
esquizoanálise, modificando o modo de vida de Suely Guattari retorna desta vez ao Brasil onde renascem
Rolnik. Ele a convida para organizar as festividades de as esperanzas de mu dan ya política. Suely Rolnik está
Natal de 1972 cujo tema era: "A revolugáo chinesa”. muito envolvida na época no apoio à candidatura de
Depois ìhe pede naturalmente para organizar o carnaval Luis Inácio da Silva, o Lula, líder do novo Partido dos
em margo: “Isso me ocupou inteiramente. Criei várias Trabalhadores, ao governo de Sao Paulo. Eia organiza
oficinas com pessoas que acabaram se instalando em La um encontró entre os doís. Guattari já se encontrara, em
Borde. Havia 30atores que atuavam no Living Theater, urna viagem anterior, em 1979, com o representante
Julián Beck” Ao mesmo tempo, Suely Rolnik sindical da industria petrolífera, Jacó Bittar, e alguns
prossegue seu curso uni- versitário em ciencias sociais militantes operários. Na época, discutia-se a criaqáo de
em Vincennes, depois em psicologia em Paris~Vfl: um novo partido. Em 1982, isso está consumado: Lula
“Um dia de 1973, estou na casa de Félix, que me diz cristaliza as esperanzas do Partido dos Traba- lliadores.
logo de manhá: ‘Quero que vocé fique aqui porque Guattari lheLxpressa sua esperanza de que esse partido
Deleuze vem almogar e quero31que voce o co- nhega. consiga inventar novos instrumentos de luta coletiva e
Vocés precisam um do outro”’. mesmo urna nova lógica micropolítica.
De volta a Paris, Guattari preserva suas re- lagoes brasileiros tem a ver também com a fraca implantaqào
com o Brasil, grazas a Suely Rolnik. Eia o mantém lacaniana no Brasil, diferentemente da Argentina.
regularmente a par do progresso da rede nos meios Após a morte de Deleuze, um momento alto da
psiquiátricos e reitera em sua correspondència a adesao
388 François Dosse
recepto das teses do deìeuzo-guattarìsmo é organizado
plena e total ás posicoes teóricas dele. De fato, o Brasil ainda por Eric Alliez com os encon- tros internacionais
parece ser o único país em que o enxerto da esqui- no Rio e em Sao Paulo de 10 a 14 de junho de 1996,
zoanálise vingou de verdade. Eia íoi inclusive “as si mil grapas à instituipào que eie mesmo ìmplantou, o
ad a” por certos meios académicos e figura nos cursos Colégio Internacional de Estudos Filosóficos
de doutorado em psicologia clínica. Vários centros de Transdíscíplínares38. Dois filósofos, entre outros,
pesquisa consagram seus trabalhos a eia. O que essa ocupam um pape! importante na fìliapào dos estudos
apropriazao pode significar? Entre as expHcazoes, deieuzianos: Sento Prado, tradutor de O que é39 a
pode-se mencionar, em urna perspectiva culturalista, o filosofia?, e que defendeu urna tese sobre Bergson , e
fato de que a sociedade miscigenada, fun- um filósofo próximo a Foucault, Roberto Machado, que
damentalmente híbrida e mestiza como é a sociedade escreveu 10urna obra sobre agénese da filosofìa
brasileira, talvez se preste mais do que as outras a essa deleuziana . No Rio de Janeiro, Norman Ma- darasz,
labilidade da construzáo subjetiva, aos seus devires professor de filosofìa de origem húngara e de
múltiplos e a urna subjetividade fundamentalmente nacionalidade canadense, que passou dez anos em Paris,
heteroge- nética. Guattari nao está fascinado pelo Brasil também se situa em urna fìliapào deleuziana. Em seu
por exotismo, mas, ao contràrio, porque vé brotarem curso, emina certos aspectos do pensamento deleuziano
novas experiéncias de subjetivazáo que poderiam ser com seu colega jorge Vasconcellos, entre outros, em
respostas as questoes políticas que se colocam no velho torno de sua leitura de Nietzsche. Vasconcellos acredita
continente: “Se vocés continuarem no ritmo em que que é se fazendo “pop” que a filosofia ultrapas- sarà
estáo engajados nessa espécie da transformazao do com sua influencia o cenáculo dos .meios inteieetuais
Brasil, acabaráo por nos retribuir com revolu- Zóes estritos e poderá assim atingir os mais desfavorecidos. É
moleculares”35. o que eie tenta com sua colepào “Filosofìa e Arte” da
Apenas alguns meses antes de sua morte, em maio editora Ciència Moderna.
de 1992, Guattari se encontra de novo e pela última vez As fronteiras mexicanas
no Brasil, em visita ao Rio de Janeiro, por ocasiào do Em comparando, o Mexico nao é verdaderamente
langamento da edizao brasileira de Caosmose e de O urna terra de escoìha do deleu- zo-guattarismo, apesar
que é a filosofia?i6. Nessa oportunidade, é organizada de sua receptividade à French Theory grapas a Arnaldo
urna mesa-redonda, em 21 de maio de 1992, pela Orfila, diretor da Fondo de Cultura Economica, que
Editora 34 e pelo Colégio Internacional de Estudos depois criou sua propria editora, a Siglo XXI. Esse
Filosóficos Transdisciplinares, reunindo pesquisadores movimento editorial favoreceu mais Braudel, da escola
franceses e brasileiros. Esse centro de pesquisa, que dos Annales, Foucault, Derrida e Althusser do que
convidou Guattari várías vezes, foi criado por um ami- Deleuze ou Guattari. Apesar de ludo, estabeleceu-se
go de Deleuze e Guattari, conhecedor e especialista de urna conexào com os meios psiquiátricos mexicanos,
seu pensamento, o filòsofo Eric Alììez. grapas aos deslocamentos de Guattari. Desde 1975, o
A primeira vez que Eric Alliez vai ao Brasil é em .li- vro de Guattari, Psicanàlise e Transversalidade,
companhia de Guattari, em urna vi-a- gem de trabalho eneo n tra-se di spo nivel em espanhol grapas à sua
organizada por Suely Roìnik. Alliez sente o mesmo publìcapao pela Siglo XXI (argentina). Sua influencia
fascínio que Guattari. No momento em que defende sua nao foi decisiva nem na Argentina nem no México,
tese orientada por Deleuze, em 1987, é convidado por Entretanto, um pequeño grupo de psiquiatras e
urna instituipào brasileìra, o Centro Brasìleiro de psicanalistas mexicanos decide discutir suas teses para
Pesquisas Físicas (CBPF), a apresentar seus trabaìhos aprofundar sua critica à instituipáo psiquiátrica já
sobre as lógicas temporais tiradas de sua tese3'. Os alimentada pelas posipóes da antipsiquiatria de Cooper
brasileiros estao multo interessa- dos na experiencia e Basaglia. O antipsiquiatra tinha ido ao México em
francesa do Colegio Internacional de Filosofìa onde 1973, em4! Cuernavaca, convidado por Ivan Ilíich para o
Alliez coordena um seminàrio com Isabelle Stenghers. CíDOC . Urna primeira reunido desses contestadores
Pensando na possibìlidade de criar urna instituipào da psiquiatría ocorre em 1976 em Cuernavaca, com
equivalente no Brasil, Alliez desempenha um papel Marie Langer, austríaca que ainda jovem, em 1936,
articulador nas conexòes que se estabeiecem. 0 eco fitgiu do nazismo para a Espanha e depois para a
espetacular da esquizoanálise nos meios psicanaliticos Argentina, onde fundou a APA'13, e em seguida para o
México. Há também Thomas Sachs, Franco Basaglia e estudantes e a direpao da Facul- dade de Psicologia da
Igor Caruso. Urna nova reunido ocorre em 1978, ainda Unìversidade Autònoma de Nuevo León organi zam um
em Cuernavaca, organizada por Sylvia Marcos, com a congresso sobre “Saúde mental, loucura e sociedade”,
participapao de Guattari em1 urna mesa-redonda sobre coordenadoGilles
por dois psicanalistas mexicanos: Rodolfo
Deleuze & Félix Guattari 389

“Psiquiatría e antipsiquiatria . Alvarez del Castillo e Fernando Gonzáles. Esse


Áproveitando a presenpa de Guattari, a Rede congresso, realizado em Monterrey, é um grande
Alternativa à Psiquiatría do México, o conselho de sucesso. Diante de urna piatela de mil estu-
390 François Dosse

dantes, Guattari faìa da experiencia de La estáo em plena sessao de traballio. Guattari ìhe
Borde e 43 das práticas da psicoterapia telefona para convencè-lo a participar de urna
institucional . reuniào na Mutualità contra a repressào na Italia.
Fernando Gonzáles, assìm corno os outros Todo o grupo vai ao encontró, e à noìte, no
psicanalistas presentes ao encontró, leram e restaurante, o acaso coloca Miguel Norambuena
apreciaram 0 Anti-Édipo, que faz urna crítica diante de Guattari, que faìa do clima repressivo e
acerba à grade em geral excessivamente co- que de subito o interpela: “Eie se dirìge a mim:
dificada. de ìnterpretagào psicanalitica: “Isso me ‘Quem é voce?’, e eu lhe conto minha historia.
deu possibilidade de tomar44 distáncia em relagáo à Ele me diz: ‘Escute, sua historia me interessa.4A
máquina psicanalitica' . 0 concetto de próxima vez que for ver David, venha me ver’” '.
transversalidade é também, na visào de Fernando Muito mal adaptado nesse momento, ainda
Gonzáles, urna contribuigào certa aos seus nào recuperado da prisao, Miguel Norambuena
próprios trabaìhos, que cruzam a psicanàlisi a nào se faz de rogado e vai regularmente à Rue de
historia, a filosofìa e a sociologia: "Foì gragas a Condé, até se ver no diva de Guattari. Nos
Guattari que em 1978 comecei a tra- balhar no primeiros momentos da cura, Norambuena nào
hospital no45 àmbito da intervengào para de se lamentar, de chorar os morios chilenos,
institucional” . Quando volta ao México em de falar de sua culpa de estar ali, ao abrigo.
junho de 1983, o deleuzo-guattarismo ainda nào Guattari procede com eie corno se costume,
se enxertou verdadeiramente: “0 lacanis- mo sendo duro: “Ele me diz: ‘Evidentemente, voce é
estava bem implantado. Era o inicio de sua um desenraizado e vai continuar chora- míngando
importagào e de urna admiragào total por sobre suas raizes, Se voce continuar là, nào vou
Lacan”46. Das pósigòes de Guattari restavam poder ajudá-lo. Ao contràrio, se encarar isso
apenas alguns'enclaves, como um mestrado de como urna erva daninha, um rizoma, posso
psicologia social dos grupos e instituigoes criado eventualmente fazer alguma coisa porque isso
por Fernando Gonzáles na universidade volta a brotar, de outra manetta, que nào em
autònoma, segáo Xo Chi Mìlko (UAMX), e que vocè’. Eu nao tinha entendido nada, e voltando
acoìhe cerca de 20 estudantes por ano. A esse para casa fui procurar no dicionário o que
pequeño enclave, é precìso acrescentar aìguns queriadizer rizoma”48. Na sessào seguiate,
tragos de sua influencia na Associagáo Mexicana Norambuena compreendeu a mensagem e ini-
de Psicoterapia Psicanalitica de Grupo (AMPPG) ciou um trabalho esquizoanalitico com Guattari
fundada em 1966 e onde um dos fundadores, que durará de 1979 a 1986.
jorge Margolis, continua ativo. As relagóes entre esse militante chileno e
Guattari atestam a recusa deste ùltimo de loda
forma de terrorismo, ou mesmo de estrategia de
Um chileno escapa de Pinochet confronto militar. Por quatto vezes, Norambuena
Um encentro fecundo ocorreu nos anos 1970 retorna clandestinamente ao Chile para dar apoto
entre Guattari e um intelectual chileno que fugíu aos seus companheiros, e Guattari sempre tenta
da dítadura de Pinochet Miguel Norambuena é em vào dìssuadi-lo: "Para mìnha grande surpresa,
estudante na Faculdade de Be- las Artes em mesmo para o Chile, eie nào era a favor da luta
Santiago e militante da extrema esquerda. Preso e armada. Era fundamentalmente hostil a isso e
torturado pelos militares quando do golpe de passava horas com camaradas chilenos que eu
Estado de 1973, consegue fugir para a Suíga. Ele levava a eie e que esperavam sua caugào. Ao
tem 23 anos e já leu e apreciou as teses contràrio,49 ele os convencía a deixar a luta
antipsiquiátricas de Cooper, que conhece em armada” .
Paris junto com sua compa- nheira Marina Miguel Norambuena vai ao Chile com
Zecca,^em 1976, e com quem comega a Guattari em maio de 1991, quando a situagào
trabalhar. Um día, enquanto Cooper e seu grupo politica està mais caima, e pouco depois publi-
cara urna obra em espanhol, com introdugào de esquecimento. Depois, a situagáo mudou, e
Norambuena, composta de urna compilagao paulatinamente os italianos redescobrem a obra. A
v , 5() A leitura heideggeriana de Nietzsche prevaleceu por
de conferencias feitas por Guattari no país . As teses de longo tempo nos meios académicos, mas se toma
Gilles Deleuze & Félix Guattari 391
esquizoanàlìse tiveram incontestavel- mente um efeito conhecimento na universìdade de urna abor- dagem
notorio: “Se Deleuze e Guattari fossem ao Chile hoje, bem diferente com Deleuze. Ho uve apropriagòes aqui
nao ìam acreditar no que viam”M, afirma Miguel e ali, e algumas iniciativas foram tomadas, como a de
Norambuena, quando volta ali no fmaì de 2005, Tiziana Villani, que criou urna revista em Milao,
Convidado por très universidades para faìar da questáo Millepiani, cuja orientagáo evoca explícitamente
da esqui- zoanálise, ele encontra todas as vezes as salas Deleuze e Guattari.
abarrotadas com 150 estudantes. Norambuena, de sua Tiziana Villani é originalmente geografa de
parte, continua vivendo na Suíga, em Genebra, onde formaqào, mas se orienta para a filosofia, com um
coordena desde o final de 1985 urna instituigao interesse particular pelas questòes urbanísticas.
psiquiátrica muito original, Le Racard, onde vivem em Preocupada com a transversa- lidade, defende urna tese
comunidade esquizofrénicos, drogados e outros de doutorado sob a orientagáo de Thierry Paquot,
margináis em urna microestrutura de nove leitos, cuja diretor da revista Urbanismo, e reúne para sua pròpria
organiza- gao e práticas de animagáo psicossociais sao revista filósofos, sociólogos, urbanistas, críticos litera-
muito inspiradas em La Borde. rios e de arte'5,1. Em torno da revista, é criada urna
pequeña colegáo de livros: “Heterotopia. O público
mais interessado pela obras de Deleuze e Guattari é
Urna terra de escolha: a Itáíía formado por artistas, arqui- tetos e urbanistas. Em
Na Europa, a Itália é sem dúvida o lugar onde outras cidades italianas, há outros centros de difusáo
Deleuze e Guattari foram mais lidos e apreciados. desse pensamento, como a revista Aut-Aut, em Trieste,
Todos se recordam do envolvimiento de Guattari ñas dirigida por um filósofo hermeneuta, amigo de Vatti-
lutas alternativas tra- vadas na Itália no final dos anos mo, Pier Aldo Rovatti.
de 1970. Guattari é muito popular ali e visto entáo Na recepqáo atual na Itália, ocorre um des-
como o Cohn-Bendit italiano. Suas ligagoes com Fran- colamento entre Guattari, recebido mais por suas
co Berardi, vulgo Bifo, com Toni Negri, Oreste posigoes políticas, e Deleuze, como filósofo mais
Scaizone e 2mui tos outros contestadores italianos sao clàssico, mas um pouco atrofiado. É contra essa
condecidas" As teses críticas da ins- tituigáo dicotomia que Luca Cremonesi, doutorando da
psiquiátrica tiveram na Itália um eco tanto maior na Universidade de Verona, res- salta a dimensáo política
medida em que a experiéncia antipsiquiátrica de Franco do pensamento de Deleuze. A verdade é que ñas
Basaglia em Trieste cristalizou muítas esperanqas universidades italianas se faz um uso clàssico dos
culturáis e políticas. Nessas condigóes, O Anti-Édipo, textos de Deleuze, de seus prìmeiros trabalhos, de suas
que foi traduzido rapidamente, já em 1975, por urna monografías, a maioria delas traduzidas para o italiano,
grande editora italiana, a Einaudi, teve grande que servem à iniciagao filosòfica.
repercussào e acompanhou a onda de radica- lizagáo Deleuze se beneficia também de rela- gòes que se
dos movimentos de autonomia italiana em meados dos estabeleceram em seu curso de Paris-VlII. É o caso,
anos de 197053, O sucesso foi táo espetacular quanto a para a Itália, grapas à sua relaqáo com seu aluno
reagáo severa, ao ritmo do refluxo dos movimentos Giorgio Passerone, que frequentou suas aulas em
alternativos dos anos 1980. Se Guattari fala desses anos Vincennes a partir de 1977. Em junho de 1980, este
como “anos de inverno” na Franga, trata-se na Itália de último solicita um encontró com eie sem ter escoìhido
urna verdadeira glacìagào, e o pensamento de Deleuze- ainda o tema de sua tese: “Ele me dà um capítulo de
Guattari, que foi identificado com urna radicalidade Mil Platos, o capítulo sobre a novela, me dizendo:
crítica, teve sua contrapartida, A editora Einaudi, que ‘Voce pode traduzi-lo e procurar as editoras. Parto para
adquirirá os direi tos de Mil Platos e cuja tradugáo es- a Italia e fago um tour pelas editoras”*'. No outono,
lava pronta desde 1981, um ano somente após o Giorgio Passerone jà tem um tema de pesquisa, que é o
langamento na Franga, acabou por desistir de publicar a estilo, e se encontra regularmente com Deleuze.
obra. Passerone se inscreve erìtào no doutorado na universi-
O livro aparece em 1987 sob urna indiferen- ga dade de Paris-VlII e defende sua tese em 1987. No
generalizada e é cuidadosamente ignorado pela crítica mesmo ano, Mil Platos é finalmente langa- do na Italia,
universitària quando do langamento. Até os anos de traduzido por Giorgio Passerone, a quem é dedicado o
1990, Deleuze e Guattari caem no mais completo prefacio inèdito de Deleuze e Guattari 56
.
Alguns pesquisadores da jovem geragào italiana se 11. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor.
interessam muìto ativamente pelo pensamento de 12. Kuniichi Uno, entrevista com o autor.
Deleuze-Guattari. É o caso de Giuseppe Bianco, que foi 13. Ibid.
aìuno de392Pier Aldo Rovatti em Trieste: “Foi realizado
Frango i sDosse
14. Ibid.
um seminàrio57sobre Lògica do Sentido em 1996, e isso 15. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor,
me fascinou’ . Buscando um caminho de entrada na 16. Kuniichi Uno, entrevista com o autor.
obra de Deleuze, Bianco nào o encontra imediatamen- 17. Ele traduziu A revolugáo molecular em 1988, depois As
te, até se dar conta de que o conceìto-chave, a essència tres ecologías, Psicanálise e transver- salidade e Os anos
mesma dessa filosofia, está na nogào de de invernó.
“multiplicidade”. Em seguida, estabelece a ìigagào com 18. Masaaki Sugi mura, entrevista com Virginie Li- nhart
Bergson e inicia um traballio mais ampio sobre a 19. Ibid.
recepgáo do bergsonismo dos anos de 1920 até o final 20. Ibid.
dos anos de 1960, para trazer à luz nao apenas a fìliagào 21. “Os para-ventos", projeto para o concurso “Símbolo Eran
bergsoniana de Deleuze, mas também urna via .singular, ça-Ja pâo” organizado pelo INA. Equipe: F. du Castel, Ch.
que nao é nem fenomenologica nem estruturalista. Girard. F. Guattari, J. Kaíman, H. Suzuki.
A filósofa italiana Manola Antonioli também fez 22. Félix GUATTARI, “Les machines architecturales de Shin
muito pela obra de Deleuze-Guattari, publicando na Takamatsu”, em Transfiguration, catálogo da exposiçao
Franfa váx’ias obras sobre o pensamiento deles'*8. Em “Europalia 89,Japan in Relgium”, p. 99-107; reproduzido
em Chimères, inverno de 1994, p. 127-141.
um primeiro momento, O Anti-Edipo e Mil Platos eram 23. Christian GIRARD, Chimères, inverno de 1994,
bastante obscuros para eia, muito difíceis de compreen- p. 128.
der. Contudo, a partir de 1995 e 1996, ela comega a 24. Félix GUATTARI, ibid, p. .130.
acompanhar regularmente os seminários do Boulevar 25. Ibid., p. 131.
Saint-Germain, n2125, coordenados por Jean-Cíaude 26. Ibid, p. 134.
Polack, que prossegue os seminários de Guattari. Ela 27. Masaaki Sugimura, entrevista com Virginie Li- nhart.
percebe o caráter muito atual e premonitorio do que no 28. Suely Rolnik, entrevista com o autor.
inicio Ihe pareciam livros um pouco delirantes e pu-
ramente Accionáis: “Percebo sobretudo que, depois de 29. Ibid.
11 de setembro de 2001, Mil Platos se torna mais 30. Ibid.
legível, pois fala de coisas que na época aínda nao 31. Ibid.
estavam presentes e que pareciam ter a ver com a ficgáo 32. Félix GUATTARI, Puisaçôes políticas do desejo, Sulina,
científica™9. I98L
33. Suely Rolnik, entrevista com o autor.
34. Félix GUATTARI, Suely ROLNIK, Micropolitica.
Notas Cartografias do desejo, Vozes, Petrópolis, 1986; em
1. Hugh TOMLINSON, Robert CALETA, Le Magazine francés, Félix GUATTARI, Suely ROLNIK,
littéraire, setembro de 1988, p. 60. Micropolitiques, Les empêcheus de penser en ronde, Paris,
2. Keith ANSELL-PEARSON, Germinal Life: The ' 2007.
Difference and Repetition of Deleuze, Rout- ledge, 1999; 35. Félix GUATTARI, Suely ROLNIK, MicropoUtica, op. cit.,
Keth ANSELL-PEARSON (sob a dir.), Deleuze and 4a éd., 1996, p. 311 (debate realizado em 1982).
Philosophy. The Difference Engineer, Routledge, 36. Félix GUATTARI, Caosmose, um novo paradigma
Londres/New York, 1997. estético, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992; O que é
3. Lawrence Grossberg, entrevista com o autor. afilosofia?, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992.
4. Ibid. 37. Éric ALLIEZ, Les Temps capitaux, Le Cerf, Paris, 1999.
38. As contribuiçôes desse encontró foram publicadas em Éric
5. Lawrence Grossberg, entrevista com o autor. ALLIEZ (sob a dir.), Gilles Deleuze. Une vie philosophique,
6. Simon TORMEY, Anti-Capitalism: A Beginner’s Guide, op. cit., 1998.
Oneworld, Oxford and New York, 2004. 39. Bento PRADO, Presença e campo transcendental
7. Philip GOODCHILD, Deleuze and Guattari. An Consciencia e negatividade na filosofia de Bergson,
Introduction of the Politics of Desire, Sage Publications, EDUSP, 1989.
Londres, Thousand Oaks, New Dehli, 1976; Gilíes Deleuze 40. Roberto MACH AD O, Deleuze e afilosofia, Gra- al, Rio
and the Question of Philosophy, Associated University de Janeiro, 1990.
Press, 1996. 41. Centro de Documentaçâo de Cuernavaca
8. Simon Tormey, entrevista com o autor. 42. Associaçâo Psicanalitica Argentina.
9. Ibid. 43. Ele voltará ao México depois desse convite de 1978 e farà
10. Ver o capí tul d’Deleuze em Vincennes”. urna conferencia na UNAM em ou- tubro de 1981: Félix
Guattari, “Les temps ma- chiniques et la question de 52. Ver o capítulo “A revoluçâo molecular".
l'inconscient", conferencia pronunciada no México em 53. “O movimento de 77 como seus emarginati, seus indios
outubro de 1981; reproduzida em Les Années d'hiver, metropolitanos, seus jornais (Attraverso), suas rádios livres
Barrault, Paris, 1986, p. 125-137. (Radio Alice), en con tra& em
Gilles Deleuze O Guattari
Félix Anti-Édipo393um verdadeiro
44. Fernando Gonzáles, entrevista com o autor. Ver Fernando lìvro-instrumento” (Giorgio Passerone, Le Magazine
Gonzáles, La guerra de las memorias. Psicoanálisis, littéraire, setembro de 1988, p. 61),
historia y interpretación, Universidad Iberoamericana, 54. Millepiani: diretora Tiziana Villani. Comité de redaçâo:
México, 1998, em particular o capítulo 2 sobre Freud e a Roberto Callegari, Marco Dotti, Ubaldo Fadinì, Francesco
máquina de interpretaçao psicanalitica. Galluzi.
45. Ibid. 55. Giorgio Passerone, entrevista com o autor.
46. Fernando Gonzáles, entrevista com o autor. 56. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, “Prefàcio à ediçâo
47. Miguel Norambuena, entrevista com o autor. italiana de Mil Platôs”, reproduzido em Gilles DELEUZE,
48. Ibid. RF, p. 288-290.
49. Ibid. 57. Giuseppe Bianco, entrevista com o autor.
50. Félix GUATTARI, Cartografia del deseo, intro- duçào de 58. Manda ANTONIOLI, Deleuze et la histoire de la
Miguel NORAMBUENA, La Marca, Buenos Aires, 1995. philosophie, Kimé, Paris, 1999: Géophiloso- phie de
51. Miguel Norambuena, entrevista com o autor. Deleuze et Guattari, UH armati an, Paris, 2003.
59. Manola Antonioii, entrevista com o autor.
Sexta-feira, 28 de agosto de 1992. Urna reuni cuidou, Ao sentir um mal-estar nessa ùltima
ao ordinària se realiza na clínica de La Borde. reuniào, poderia e deveria ser hospitalizado, mas,
Dois desaparedmentos
Jean Oury, o diretor do lugar, está ausente, mas pre- feríndo ficar até o firn, voltou como se nada
seu segundo, Guattari, está là, como de hábito, à tivesse acontecido. Seus fìlhos estào là, em La
escuta dos pacientes e das inúmeras recia- Borde. É Bruno, preocupado ao constatar que o
magoes a proposito da dlvisào de tarefas. Dis- pai nào se levantou, embora tenha o costume de
cutere, entre outras coisas, a defasagem entre as trabalhar cedo, que descobre seu corpo inanimado
atividades previstas e realizadas, Guattari sugere na manhà seguirne em seu escritório. Sobre a
e consegue que se forme urna equipe de mesa de cabeceira estao Les Chiens
voluntários para se ocupar desse problema. Um
paciente toma a palavra: "Da minha parte,
gostaria que a gente se interessasse pelas er- vas.
As tilias me divertem. Li um ìivro a respei- to. A
gente poderia colher. Seria preciso que o club e
nos 1 desse duzentos francos para poder destilá-
las” . Guattari responde muito sèrio que isso lhe
parece plenamente viável, "depois se levanta e sai
da sala, um momento que me parece longo. Sem
dúvida, foi entáo que um mèdico o examinou.
Félix sempre foi doente. Ele tem o hábito, a
lassidao, a dureza. Eie volta à reuniào, entra
sorrateiramente como sabe fa- zer”2. Outro
paciente toma a palavra para questionar urna
falha de organizagáo na circuìagào de carros e de
pedestres dentro do parque da clínica e exige
mais reguìagao nos fluxos. Isso provoca urna
gargalhada geraí. É difícil pensar em estabeìecer
zoná^ de pedestres nesse meio rupestre, mas
"Félix olha atentamente para o rapaz: ‘Sim, os
carros váo muito rápido em La Borde. Organizar
urna zona de pedestres, eie tem razáo’, diz
calmamente. O rapaz se acalma. A reuniào
termina. Na salda, reencontró a alegria de seu
olhar”3.
É a ùltima reuniào de Guattari. À noite, ele
parece ter recuperado a forma. Sua fìlha
Emmanuelle lembra-se da ùltima refeigào à noìte:
“Urna energia! Hà muito tempo ele nao faìava
tanto. Estava radiante, cheio de vivaci- dade. Eie
me disse ‘boa noite, divirta-se’, com um sorriso
extraordinàrio. Nào o via sorrir assim fazia muito
tempo”4, Eie volta ao seu pequeño escritório e,
durante a noite, morre de urna crise cardiaca, aos
62 anos de idade. Desde 1990, havia tido vários
infartos, su as coronárias estavam bloqueadas,
mas, em razáo de seu estado depressivo, nào se
d’Éros, de D. H. Lawrence, e Kecojevic vai para Londres organizar a mudança para
Ulysses, de Joyce, em ingiês. viver com Félix em Paris e deve encontrá-lo no firn de
Consternaçâo em La Borde: “Os semana. Félix, por sua vez, vai para La Borde:
lou- cos choraram quando O. “Lembro-me de ter tornado o navio para a Inglaterra
Gilles Deleuze & Félix Guattari 395

[Oury] os informou da morte com urna grande alegría, eie me dava muita força.
de Félix, no dia seguinte, no Chego em casa e fico sabendo de sua morte por um tele-
grande salâo. ‘Obrigado por fonema”10 Tatiana Kecojevic re torna i mediata- mente
nos ter dito dessa manei- ra, para a Franga para o enterro, onde se comprime a
responderam. Em troca, ainda muìtidào de amigos de Féììx.
que alguns ficassem vagando Quanto a Joséphine, está em férias no sul da Franga
nessa noite, sem conseguir com seu eompanheiro Jean Rolin, na casa de um amigo
dormir, tiveram a delicadeza, dele: “À véspera de nos- sa partida de Maussane, como
a ternura de nâo fazer quase todos os dias durante essa semana, Joséphine se
barulho. A noite foi calma”3. deteve longamente e alegremente ao telefone com F.
A morte apanha Guattari no momento em que ele [Guattari], À noite, quando voltamos do restaurante, um
emergia da depressâo, reencontrando seu legendário bilhetinho11 na nossa chave indicava que F. tinha ligado
entusiasmo após um longo estado catatònico. Um mes de novo” . No dia seguinte, o amigo de Jean Rolin o
antes dessa noite fatai, eie havia conhecido Tatiana chama à parte para lhe anunciar a morte de Guattari que
Keco- jevic, urna atriz sérvia de 26 anos que fugira da acaba de fìcar sabendo pelo ràdio. Por sua vez, eie deve
guerra de 1992. Eia vive em Londres e vai a Paris para contar para Joséphine, jean e Joséphine atravessam o
urna reuniao organizada por seu amigo publicitário centro da Franga nessa mesma noite para chegar na
Sacha Goldman: “Foi nessa noite que conheci Félix. manha seguinte à funerària de Blois e depois à clínica
Vinda de Belgrado, eu me sentia mal, todo mundo de La Borde.
começando a me atacar sobre a forma de agir dos
servios. Félix foi o único que sentiu que eu estava
perturbada com todas essas questôes e me disse: ‘Mas O amigo chorado
pouco nos importa tudo isso! Voce viu 6Paris?’ E me
levou para ver Paris nessa mesma noite” , Lies trocam No enterro, seu amigo Gérard Fromanger é
endereços e telefones, voltarci a se ver e iniciam urna designado para discursar sobre a tumba diante da
relaçâo amorosa que faz Guattari esquecer seus multidao de amigos, pelo menos 1.500 pes- soas
dissabores com Joséphine. Tatiana Kecojevic “fica reunidas ali no Père-Lachaise: “Fiz isso. Eu soluçava
loucamente apaixonada por Félix, e ele me liga: ‘Meu sem parar, e diante de mim estava Tatiana. Citei todas
querido, estou amando!’. Ele reencontrava todo seu as suas amantes, pelo menos uns trinta nomes de mogas.
frescor, a infâneia de sua vida, sua juventude, seu amor Todo mundo chorava ou ria. Havia urna orquestra de
pela vida” . Guattari liga entao varias vezes por dia ao
7 jazz e urna infinidade de pessoas. Foi um enterro
seu amigo Fromanger para compartilhar com eie essa comovente” 17
. Por sua vez, o autor e ator Enzo
nova paixâo: “Eie me diz: ‘Eu íhe telefono à notte, Gorman n le ex tratos de Ritornelos, o relato au-
espero que isso nâo acabe, é fantástico!’. Ele estava tobiográfico íragmentário de Félix. Ele está de pé diante
decidido a deixar ludo para Joséphine, o apartamento, do caixáo, acompanhado por um quarteto de metáis:
os carros, e tinha encontrado um quarto para vi- ver “Leio primeiro meia página, sozinho, depois a orquestra
com eia . me acompanha a partir da frase: ‘Voces me
Guattari mobiliza toda sua rede de amigos a firn de reconhecem?’. Fapo a pergunta, a música comepa, eu
conseguir um papel de atriz para sua nova amiga. Entre choro, o que posso fazer de MELHOR?” 13
Ao mesmo
muitos outros, conta com seu novo amigo, o ator e tempo, o círculo de amigos quer testemunhar o desejo
escritor Jacky Ber- royer, com quem tem entao alguns de viver e o entusiasmo sempre manifestado por
projetos. Ele leva Tatiana a todos os lugares carregados Guattari, e o enterro termina em urna espé- cie de festa:
de sua propria historia, até a Rue de FAigle, na “É urna lembranpa meio fantástica, urna lembranpa
Garenne-Colombes, diante da casa de sua infâneia: “Ele muito bonita, Houve cantos, poemas, discursos, e
me disse: ‘Tatiana, voce é jovem e bela. Tem toda vida depois, à noite, fìzemos a festa no bosque de Boulogne,
pela frente. Voce deveria ter um monte de amantes, mas era estranhó’ 14
.
nâo me deixe!’, e isso me comoveu. Eu achava Toda a familia de Guattari està presente,
magnifica essa generosidade em relaçâo a mim. Tive notadamente seu irmao mais velho, Jean, que te ve um
vontade de Ihe dar tudo o que eu podia Ihe dar” Tatiana
9 papel importante para eie. Jean està surpreso e um
pouco contrariado pelo fato de se evocar diante do quase comum, um traballio gigantesco que permanece
túmulo do irmào a lista de suas numerosas conquistas em obras”20.
femininas, mas ao Dosse
mesmo tempo q transportado pelo Robert Maggiori consagra a Guattari a capa de
fervor 396
co- François
letivo dessa multidào: “Em geral, cada um Libération de segunda-íeira, 31 de agosto, com o título
joga urna fior no tumulo. Eu vi pessoas jogarem suas “As mil e urna vidas de Félix Guattari” e destaca a
alianpas, estojos de chaves, coisas extra- ordinárias!,,IJ. vitalidade excepcional e o caráter cativante daquele que
Após o enterro, Jean vai a cada quinze dias ao túmulo foi mestre em matèria de desorganizaçâo sistemática:
de Félix. Ele nào para de se surpreender: “Por duas ‘Apenas o prenome era suficiente para designar Félix
vezes encontró flores novas e o mesmo senhor, Dirijo- Guattari. Simples, jovial e generoso, ele era urna
me a eie: ‘Glhe, isso é simpàtico, 0 senhor o conhecia?’ energía, um carburante, urna rede. Um passador que, em
‘Nao, responde eie, venho da parte de urna amiga que urna grande 21alquimia verbal, procurava definir a
me pedfu para vir regularmente’”16. subjetividade” . Na urgéncia, Maggiori redige um
0 ministro da Cultura, Jack Lang, e sua mu- Iher longo artigo de homenagem, “Félix, a vida rizoma”, e
Monique enviaram um texto que será lido ñas organiza a publicaçao de um volumoso dossié com um
obsequias: “Félix nos deixou. Como acreditar nisso? artigo de Jean-Baptiste Marongiu e de Marc Ra- gon,
Sua curiosidade inesgotável e sua alegria calorosa "Um militante de todos os terrenos”, um depoimento de
conferiam a ele urna espécie de eterna juventude. Em Jean Oury recoìhido por An- toine de Gaudemar em que
nossa tristeza, queremos conservar o sorriso do amigo e Oury afirma que, “aos 60 anos, eie era o mesmo que aos
o júbilo do pensador. Nos nos recordaremos por muito 15 anos. Ele jamais mudou; aparentemente sonhador,
tempo de nossos encontros, de nossas conversas. Sua mas extremamente atento, retendo ludo com urna falsa
voz Inesquecível permanece quente em nossos indolencia e de urna presenta ex- traordinária. E sempre
eorapóes”1 '. a mesma simplicidade adolescente”22. Encontra-se ainda
Deleuze está em Saint-Léonard-de-Noblar em nesse dossiè o depoimento de Paul Virilio a propósito
companhia de David Lapoujade quando fica sabendo, do debate que iniciaram sobre a guerra e que foì
desolado, da morte de seu ami- go Félix, que deveria interrompido pela morte quando eie estava revendo a
passar em Limousin para visitá-lo nesse mesmo dia, transcrìqao de suas discussoes. No Le Monde, Roger-Pol
nesse 29 de agosto, dia de seu desaparecimiento. Proit saúda “Um provocador inventivo” ao lado de um
Deleuze escrevé um texto de homenagem que é depoimento de Jean Oury sobre “urna diatètica da
publicado em Chimères: “Até o firn, meu traballio com amizade”23. A imprensa internacional também dà
Félix 18ibi para mim urna fonte de descoberta e de ale- primei- ra pàgina a esse acontecimento, como na Italia,
grías” Ele recorda nesse texto a riqueza inesgotável onde Guattari gozava de urna popularida- de maior do
dos livros que seu amigo Félix escreveu sozinho. que tinha na Franca. Mesmo seu adversário político, o
Destaca très grandes línhas de força: o dominio de suas L’Unita, jornal diàrio do Partido Comunista Italiano, dà
intervençoes na psiquiatría com todo o pensamento dos urna chamada de primeira pàgina em 30 de agosto com
grupos-sujeitos e das relaçôes transversais, seu desejo sua foto anunciando a morte de “L’enfant terrible”,
de construir urna espécie de sistema composto de “Guattari: o antì-Freud”, lembrando que esse militante
segmentos heterogéneos e, finalmente, suas análises apaixonado foi a bandeira do movimento de contestalo
teóricas sobre a produçâo literária e artística. Nao pode de 1977 na Italia.
deixar de evocar aquele que foi durante anos urna Aqui e ali, nos inúmeros círculos de amigos, de
componente de sua filosofìa a duas cabeças que militantes, de artistas que conheceram Guattari, as
constituíam sem expressar a parte essencial, que é de homenagens se multiplicam, A equipe da revista
ordem afetiva: “O que há de doloroso na lembrança de Chiméres, que ele criou com Deleuze, dedica-lhe dois
um amigo morto sao os gestos e os olhares que ainda números especiáis no veráo e no inverno de 199424.
nos atingem,i9 que nos chegam ainda quando ele Guattari era membro do comité de patrocinio do Centro
desapareced’ . Internacional de Cultura Popular, criado em 1977 por
Para aquele que foi um pouco seu irmao mais velho iniciativa do Cedetim25. Essa organizado realiza um
por adoçâo e contou muito em seu itineràrio, Jean Oury, encontró de homenagem em Janeiro de 1994 sobre o
o luto também é difícil, ainda que suas relaçôes nem tema: “Qual o lugar da26so- íidariedade internacional na
sempre tenham sido fáceis. Recordando toda sua historia indagapáo filosófica?” . A revista Transversales, de
comuna desde o pós-guerra, Jean Oury perde com Félix Jacques Robin, Anne-Brigitte Kern e Armand Petitjean,
seu alterego em La Borde: “Félix nos deixa hoje, da qual Guattari se tornara um conselheiro muito ou-
bruscamente, sem estar preparado. Estamos todos vido, saúda “o amigo” e Ihe consagra 21todo um dossiè
desamparados. Mais de quarenta anos de existencia em seu número do final do ano de 1992 .
A homenagem mais espetacular prestada ao amigo “Como você sabe, minha saúde nâo está muito boa.
é a obra de jean-Jacques Lebel, que edifica um Tenho dificuldades de respiraçâo que me impedem
“Monumento a Félix Guattari” exposto no Centre frequentemente deDeleuze
sair, e &mesmo de falar. Estou preso a
Beaubourg em 1996. Esse monumento multiforme deu um balâo Gilles
de oxigênio como um cachorro. Nâo há
Félix Guattari 397

lugar por dois meses e meio a um debate público no dúvida, a doença é34 uma abjeçâo, embora a minha nâo
hall do Beaubourg, todas as quintas-feiras durante très seja tâo dolorosa.” Apesar dos baloes, ele so- fre crises
horas. Todos os amigos de Félix sao convidados, de sufocaçâo de urna violencia cada vez maior, Deleuze
célebres ou anónimos, e ali leem textos, impro- vlsam já assistiu a esse calvàrio quando acompanhou a morte
urna intervençâo, tocam um trecho de urna música, de seu amigo François Châtelet: “Quando Gilles teve de
declamam alguns versos. passar por tal provaçâo, essa fol uma das razôes que ele
Todos esses testemunhos se desenrolam no quadro invocou para partir, para se suicidar. Ele me escreveu
barroco preparado por Lebel. Co- nhecendo o gosto de uma carta toda trémula duas semanas antes de se
Félix pelos carros, ele desmanchou sua Renault 25, suicidar para me dizer que nâo quería viver o que
colocou terra dentro e fez brotar ali cogumelos Châtelet teve de viver. Eu o revi algumas semanas antes
alucinógenos. Ao lado de um enorme retrato de Félix, o de sua morte em seu apartamento na Hue Niel, e dava
alto- -falante reproduz a voz dele contando o sonho de para sentir que ele nâo tinha mais vontade de vìver esse
Yasha e seu desejo de carro: ‘As pessoas que chegavam sofri mento”33.
ao Beaubourg se diziam: ‘Ouça, Félix está lá? Ele está Mais ainda que o sofrimento, o que certamente
vivo?’. Era urna alucinaçâo, pois se ouvia sua voz por Deleuze nào suportou foi a incapacida- de progressiva
todo o Beaubourg”28, Lebel colocou urna placa atrás do de trabalhar, escrever, discutir. Eie chegou a pensar no
enorme porta-malas em plexiglás transparente do carro, fìm em uma escrita mais fragmentária, mais densificada,
convidando as pessoas a depositar cartas, poemas, mas a violencia das crises é ta! que impede essas
fotos: “Foram tantas as pessoas que deixaram tentativas. Em setembro de 1995, Deleuze liga para seu
mensagens que fui obrigado a esvaziá-lo très vezes amigo Richard Pinhas de Saint-Léo- nard-de-Noblat:
durante a exposiçao, mas as29 conservei, pois eram “Gilles diz: ‘Estou com uma crise de asma severa.’ Ele
mensagens enviadas a Félix” . Lebel nao esqueceu a desliga por falta de ar. O telefone toca de novo. Gilles:
obra de Guattari: “No lugar do motor do carro, eu tinha ‘Mal posso falar’, voz metálica, mas suave. Um
colocado exemplares de Chimères e textos de Félix, zumbido difuso no telefone como se um inseto artefato
manuscritos, fotos”30. Sobre o teto da R 25, é entronado se agitasse em tomo de sua voz, máquina de
um diva de esquizoanálise esculpido com textos e reconstituiçâo”36. Em oujubro, Deleuze voltou de
objetos para que fique bem imbricado com a carrocería Limousin para o seu apartamento de Paris.
do carro. Projetado sobre ele um enorme coraçâo de Richard Pinhas Ihe telefona, mas ele está em um estado
seis metros de altura que rodopia suavemente. Em tal que Fanny nao pode lhe passar. A mesma coisa no
baixo, seis vídeos rodam permanentemente. Dessa día seguinte. Finalmente, é Deleuze que liga para ele,
exposiçao, resta um filme realizado por François Pain, mas para lhe dizer... que precisa desligar: “Eu sorrio, e
em que se ve urna parte desse desfile incessante31. ele me abra- ga. Através de París, sinto o fio de 37Ariadne
que agora o separa imperceptivelmente da vida” .
Seu amigo Yves Mabin assistiu a algumas dessas
A falta de ar até a morte crises agudas, muito penosas: “Eram sufocagoes
Nessa multidáo, um ausente: Deleuze, cujo estado absolutas, e o fato de té-las suportado por tanto tempo é
de saúde o mantém preso a ba- lôes de oxigénio. Ele urna prova de uma coragem excepcional. Ele deu
acompanha de casa essa demonstraçao coletiva de afeto mostras de uma coragem fora do normal para resistir a
por seu a mi- go Félix: “Gilles me telefonava todas as esse ponto”38 Pouco tempo antes de seu suicidio,
noi tes quando eu estava em Beaubourg para me per- Deleuze liga para Yves Mabin, que nao está em casa.
guntar o que tinha acontecido nesse dia. Ele inclusive Deixa uma mensagem dizendo que volta a ligar: “Ele
me deu um texto para 1er ali”32. Para materializar a ligou de novo quinta-feira e me disse coisas que
presença de Deleuze, Lebel pôe multos tubos em sua costumava me dizer, com uma grande afeigáo, mas eu
escultura. Deleuze, vendo a exposiçâo pela TV disse a39mim mesmo: por que ele me ligou para me dizer
reconheceu ali seus tubos de oxigênio: “Ele me disse ao isso?” . Um pouco preocupado, Yves Mabin decide
telefone: ‘Mas voce pôs os meus tubos’. ‘Sim, Gilles, esperar até sábado no final da manhà para ter certeza da
eu pus seus tubos.’ E ele me disse: ‘Tudo bem você os presenga da Fanny, de volta do mercado, para nào
transformou”'13. perturbar seu amigo, que na maioria das vezes nao
conseguía nem mesmo responder ao telefone. Nesse
sábado, 4 de novembro de 1995, Fanny informa a Yves “Deleuze continua sendo, apesar de tantas
Mabin sobre a morte de Deleuze, sem lhe dizer aínda dessemelhangas, aquele de quem sempre me julgueì
que ele398
acabou de se jogar da janela do apartamento. mais próximo entre todos os dessa 'ge- raqàd. Jamais
Esse acontecimento era temido por todo seu círculo de
François Dosse
senti a menor ‘objeqào’ se anunciar em mim, mesmo
amigos que acompanharam sua di- ñculdade crescente que virtualmente, contra nenhum de seus discursos”45,
de viver. Ao mesmo tempo, o .suicidio é táo pouco Na segunda-feira à noite, dois días após a morte de
congruente com o que Deleuze encarnava como Deleuze, Laure Adler, que írequentou alguns dos cursos
potencia vital, como pensador da vida, que alguns dele em Vincennes, consagra boa parte de seu programa
tentaram ver nisso uma maneira de voo, de último ato “Le Cercle de Minuit” a urna homenagem espontánea.
de vida. No mesmo dia 4 de novembro de 1995, o Laure Adler apresenta Deleuze como um “degustador
mundo toma conhecimento de outra noticia trágica: o de palavras”, que eia la ouvir com avidez, levantando-se
assassinato do primeiro-minístro is- raelense Itzhak bem cedo todas as terças-feiras para ir a Vincennes.
Rabin. Enquanto Maggiori compara Deleuze a um carpìnteiro
Esse desaparecimento abre um tempo difícil para os instalado com aplicaçâo em seu banco, Roger-Pol Droit
próximos: “Paris, 5 de novembro de 1995: terrível, res- salta o gesto proprio do pensamento de Deleuze:
desoladora noticia da morte do filósofo Gilles Deleuze... “Pòr em movimento por toda parte, Os devires, os
Creio que só se pode falar filosoficamente da morte de surgimentos, enquanto que a historia da 46filosofìa
Gilles Deleuze, que guardará para sempre seu misterio. pensava mais as coisas fixas, as permanencias” .
Eia nào se deve com certeza a qualquer desespero ou O falecimento de Deleuze também é pri- meira
‘desejo de morte’; essa expressao, a ideia mesma de um página do Le Monde de 7 de novembro, onde Roger-Pol
‘instinto de morte’, popularizada pela psicanàlise, Droit enfatiza a equivalén- cia4 que o filósofo estabelece
sempre Ihe parecen aberrante e contraditória. Toda a entre rebeliâo e inteligéncia '. O jornal reproduz um
filosofia de0 Deleuze é um hino à vida, urna afirmagao retrato pintado por Gérard Fromanger, enquanto que
da vida’’“’ . Pierre Verstraeten e Juliette Simont veem Roger-Pol Droit relembra suas múltiplas expe-
nesse ato final um último “sim” de Deleuze, um sim à rimentaçôes. No Le Monde des Livres da mesma
morte como prosseguimento da vida por outros melos, semana, publica-se um verdadeiro dossié em forma de
para “reter Alisso que nos acontece, e que é addentai, homenagem destinado a mostrar todas as facetas da
querendo~o . obra. jean-Frangois Lyotard e Frédéric Gros destacam
Em 6 de novembro, no Libération, Robert Maggiori sua relaçâo privilegiada com o futuro, suas fugas
saúda a “corrente de ar” que soprou no pensamento do incessantes mas sempre adiante, com urna maneira de
século gragas a Deleuze: “Nào se avalia aínda a que viver e de pensar que48 “só se fia nesse outro tempo,
ponto eie varreu tudo, deslocou tudo, a linguagem aquele que nao passa’ . No programa da France Culture
filosofica, a maneira12de fazer filosofìa, a definigào “Du jour au lendemain”, de Alain Veinstein, Michel
mesma da filosofia’’' . Maggiori afirma que Deleuze Butel, que dirigiu ILAutre Journal presta-lhe uma
foi o mais filósofo dos filósofos. No mesmo dos- siè, vibrante homenagem, declarando que Deleuze contou
Antoine de Gaudemar volta ao tema do esgotado, que mais para ele do que qualquer outra pessoa: ‘Antes de
tinha servido a Deleuze para qualificar o teatro de conhecê-lo,49 eu jamais tinha conhecido al- guém
Beckett: “Nao se pode impedir de pensar no pròprio inteligente” . Eie recorda seu amor pela vida, sua
Deleuze, esgotado por seus graves problemas recusa do suicidio, e a que ponto seu ato define o ato
respiratorios43e tendo cada vez mais difìculdade de se livre que surpreende da parte de quem o comete:
desio - car” . Acrescenta, retomando o comentárío de “Deleuze, para mim, é um pouco como Samuel Beckett
Deleuze sobre o suicidio de Empédocles, que esse ou Che. Eie fez sem querer ou saber o elogio da
suicidio está ligado ao mesmo tempo à anedota da vida amizade que é a arte de viver, suprema”50.
e ao aforismo do pensamento. No dìa seguinte, 6 de De sua parte, Christian Descamps prepara no outono
novembro, Libération dà a palavra a alunos, colegas e um grande dossié consagrado a Deleuze que é lançado
amigos de Deleuze que Ihe prest am urna homenagem no inicio de 1996 em La Quinzaine Littéraire1. Yves
em très páginas. Alain Badiou publica urna carta que Mabin, que trabalha no ministerio das Reiagóes
enviou a Deleuze em julho de 1994. Jean-Luc Nancy Exteriores, evoca ali o amigo, que considera um santo:
revela sua perturbagao: "No momento em que Gilles “Urna noite, eu estava jantando com eles dois [Gilíes e
Deleuze nos deixa, somos tentados, na grande tristeza e Fanny]. Digo a Deleuze que, para o bretáo que tambérn
no respeito, a retè-lo enquanto ‘eie mesmo, a parar a sou, qualquer pessoa que dá aos seus semelhantes
imagem”44. Jacques Derrida afirma que agora precisará qualquer coisa de necessàrio que antes dele, desde a
“vagar sozinho” e expressa sua proximìdade com eie: origem dos tempos, nin- guém tinha dado era um santo.
Que, por isso, eu achava seriamente que ele era um Filosofía realiza um coloquio “Gilles Deleuze:
santo. Gilíes sorri, esse sorrìso em que a diversáo o imanência e vida” em Janeiro de 1997, cujas
disputava com a emogao. Entáo, em um dos mais belos intervençôes resultarâo em um numero da revista Rue
gestos de amor que pude presenciar, Fanny estende os Descartesr><Gilles
\ UmDeleuze
pouco& mais tarde, em 2000, será
Félix Guattari 399

bragos, pega as máo de Deleuze com seus longos dedos publicado Tombeau60 pour Deleuze, sob a direçâo de
finos e lhe diz: ‘Yves tem razao. Eu também acredito Yannick Beaubatie , que introduz o volume sobre o
que voce é um santo”’53. Esse tema da33 santidade será enorme apego de Deleuze à regiâo de Limousine, nas
retomado por Roger-Pol Droìt em 1998 . É de fato sob imedia- çôes de Saint-Léonard-de-Noblat, local de sua
esse título da santidade que Roger-Pol Droít pinta trés residencia secundária, o Mas Révéry, onde ele passava
retratos possíveis de Deleuze: o do filósofo enquanto regularmente très a quatre meses no verao. No seu
professor aparentemente clàssico, mas já inclassificável; último verâo, embora já multo debilitado, Deleuze ainda
o do filósofo enquanto criador, incessantemente voltado pôde passear pela estrada de Saint-Germain-les-Beììes,
à invengáo, e finalmente o do experimentador “se a alguns quilómetros de Saint-Léonard, percorrendo o
deixando alterar pelas correntes de fora, aceitando piato que domina o vale da Vienne. Seus amigos da
aderiva destas. O pensamento de Deleuze é,54 portan- to, regiâo organizaram, com a associaçâo “Saint-Léonard,
experiencia de vida, mais do que de razao” . Esses trés ses artistes et écrivains”, duas jomadas de conferências
retratos nao sao limitativos, há mui- tos outros e urna exposiçâo em Limoges, em 25 e 26 de outubro de
possíveis, e a última figura evocada é a do sábio que 1996, sobre o tema “Um filòsofo em Limousin: Gilles
remete ao que está escrito em seu túmulo: “Duas frases Deleuze”. A inspiradora dessa manifestaçâo, Elisabeth
de Nietzsche, distorcidas. Urna fala de Leibniz: Lagisquet, enfatizou a ligaçâo muito forte de Deleuze
’Temeràrio e em si misterioso até o extremo’. A outra com Limousin, que ele cha- mava de uma “regiâo
fala dos gre- gos: ‘Superficiais... por profundidade”“ 5. profunda”: “Talvez se imponha um desvio por
O derradeiro texto de Deleuze foi publicado pouco Limousin para tentar urna lettura muito particular, um
antes de seu desaparecimento, no outono de 1995, pela pouco errante, em liberdade, da obra do filòsofo, mas
revista Philosophie: “A imanència: urna vida...”56, que náo é menos legítima”51. É nesse novo cemité- rio
elemento de um conjunto57concebido sobre o virtual e de de Saint-Léonard-de-Noblat que repousa agora Gilles
valor quase testamentàrio . Deleuze, desde a sexta-feira, 10 de novembre de 1995,
A comunidade filosófica se mobüiza para mostrar a
vitalidade da filosofìa de Deleuze. Essas iniciativas náo Notas
partem do centro da ins- tituigáo academia, que 1. Marie DEPUSSÉ, Dieu gît dans le détails, POE, Paris,
continua a considerar Deleuze como um pestífero, mas 1993, p. 143.
da periferia, do exterior. Por iniciativa de Éric Alliez, 2. ïbid., p. 144.
reali- zam-se varias jomadas de Encontros Interna- 3. Ibid.,p, 144.
cionaís Gilles Deleuze fto Rio de Janeiro e em 4. Emmanuelle Guattari, entrevista com Virginie Linhart.
Sao Paulo, 8em junho de 1996, que dáo lugar a um 5. Marie DEPUSSÉ, Dieu gît dans le détails, op. cit., p. 145.
compêndkY . Em Paris, o Colégio Internacional de 6. Tatiana Kecojevic, entrevista com Virginie Linhart,
Gilles Deleuze & Félix Guattari 400

7. Gérard Fromanger, eri travista com o autor. Henri MACCHERONI, Dialogue et court traité
8. Ibid. sur de transformat, Al Dante/L’enseigne des
9. Tatiana Kecojevic, entrevista com Virginie Li- Oudin, 2000, p. 67-68,
nhart. 35. Noëlle Châtelet, entrevista com o autor.
10. Ibid, 36. Richard Pinhas, Les Larmes de Nietzsche, De-
lì, Jean ROLIN, Joséphine, Gallimard, Paris, 1994, p. 48. leuze et la musique, op. cit., p. 19.
12. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 37. Ibid., p. 26.
13. Enzo CORMANN, Chimères, “Félix Guattari”, vol. 38. Yves Mabin, entrevista com o autor.
2, n, 23, verâo de 1994, p. 30. 39. Ibid.
14. Patrick Farbias, entrevista com o autor. 40. René SCHÉRER, “L’écriture, la vie”, Revue des
15. Jean Guattari, entrevista com o autor. lettres, sciences et arts de Corrèze, tomo 99,
16. Ibid. 1996; reproduzido em Regards sur Deleuze,
17. jack e Monique Lang, texto lido nas obséquias em 4 Kimé, Paris, 1998, p. 10.
de seternbro de 1992, arquivos 1MEC. 41. Pierre VERSTRAJETEN, Juliette SIMONT, “Vol de
18. Gilles DELEUZE, “Pour Félix”, Chimères, n. 18, l’aigle et chute profonde”, em Gilles Deleuze,
inverno de 1992-93, p. 209; reproduzido em RE p. Vrin, Paris, 1998, p. 16.
357. 42. Robert MAGGIORI, “Un courant d’air dans la
19. Ibid,, RF, p. 358. pensée du siècle”, Libération, 6 de novembro de
20. Jean OURY, “Pour Félix”, Chimères, n. 18, inverno 1995.
de 1992-93, p. 208. 43. Antoine DE GAUDEMAR, “Le geste d’un
21. Robert MAGGIORI, Libération, 31 de agosto de philosophe”, Libération, 6 de novembro de
1992, p. 32. 1995.
22. Jean OURY, Libération, 31 de agosto de 1992, p. 44. Jean-Luc NANCY, “Du sens dans tous les sens”,
35. Libération, 1 de novembro de 1995,
23. Roger-Pol DROIT, Jean OURY, Le Monde, 1° de 45. Jacques DERRIDA, “Il me faudra errer tout seul ”,
seternbro de 1992. Libération, 7 de novembro de 1995.
24. Chimères, n. 21, inverno de 1994, “Félix Guatta- 46. Roger-Pol DROIT, em “Le Cercle de Minuit” de
ri” vol. 1; n. 23, verâo de 1994, “Félix Guattari”, Laure Adler, 6 de novembro de 1995, arquivos INA.
vol. 2. 47. Roger-Pol DROIT, “La rébellion et l’intelU- gence
25. Centro de Estudos e de Iniciativas de Soiida- d’un philosophe”, Le Monde, 7 de novembro de
riedade Internacionai. 1995.
26. Com a participaçâo e comunicaçoes de: je- an-Paul 48. Jean-François LYOTARD, “Le temps qui ne passe
Gay, Michel Benasayag, Gisèle Don- nard, Ilan pa$, le Monde, 10 de novembro de 1995.
Halévi, François Lautier, Bernard Ravenel, René 49. Michel Butel, “Du jour au lendemain”, France
Schérer. Culture, 7 de novembro de 1995, arquivos INA,
27. “Félix Guattari”, por Anne-Brigitte KERN, Sacha 50. Ibid.
GOLDMAN, Gilles DELEUZE, Jean OURY, 51. Christian DESCAMPS, “Pour Deleuze le mi-
Transversales, n. 18, novembro-dezembro de 1992. noritaire”, La Quinzaine littéraire, 1-15 de feve-
28. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie reiro de 1996.
Linhart.
29. Ibid. 52. Yves MABIN, “Gilles, l’ami”, ibid.
30. Ibid. 53. Roger-Pol DROIT, “Saint Deleuze”, em La
31. "Monument a Félix Guattari”, filme de Jean- Compagnie des philosophes, Odile Jacob, Paris,
Jacques Lebel e François Pain, realizaçâo François 1998, p. 299-312.
Pain, arquivos audiovisuais, RNE 54. Ibid., p. 301.
32. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie 55. Ibid., p. 302.
Linhart. 56. Gilles DELEUZE, "L’immanence: une vie,..",
33. Ibid. Philosophie, Minuit, setembro de 1995, p. 3-7.
34. Gilles Deleuze, carta a Jean-Pierre Paye, 15 de 57. Ver capítulo “Urna ontologìa da diferença.
março de 1991, publicada em Jean-Pierre PAYE,
58. Éric ALLIEZ, Gilles Deleuze. Une vie philosophique, Vinciguerra, Jean-Clet Martin, Danielle Cohen-Levinas,
Synthélabo, Paris, 1998, Bernard Cache.
59. Rue Descartes/20, Gilles Deleuze. Immanence et vie, 60. Yannick BEAUBAT1E (sob a dir.), Tombeau pour
Collège international de philosophie, Deleuze, Mille Sources, Tulle, 2ÜQÜ.
PUF, maio de 1998, com artigos de José Gii, Alain Badiou, 61. Elisabeth LAGISQUET, "Pourquoi parler de Gilles Deleuze
Françoise Proust, Éric Alliez, Guy Lardreau, René Schérer, en Limousin?”, em Db philosophe en Limousin. Gilles
Toni Negri, Christine Buci-Glucksmarm, Lucien Deleuze, publicado pela Associaçâo “Saint-Léonard, ses
artistes et écrivains”, 1996, p. 6.
A obra trabalhando
Os primeiros comentadores: um volvido. No inicio de 1991, este último envía a Deleuze
desdobramento da obra um cartáo de bons votos ilustrado por um quadro de
Van Gogh representando os girassóis, ao qual
A obra de Deleuze e Guattari prosseguiu seu acrescenta urna citagáo de Malcolm Lowry sobre os
caminho para além do faledmento dos seus autores. A estranhos girassóis que olham pela janela. Deleuze Ihe
recepgào inelusive nao parou de se ampliar, como jà responde: “Caro amigo, seu cartào postai é muito
tivemos oportunidade de mensurar em escala bonito, e o texto de Lowry: é exatamente isso um per-
internacional. É tam- bém o caso no cenário intelectual cepto! Em Kafka, um estranho cavalo olhapela janela...
francés. Os primeiros comentadores da obra come^aram Hà muito tempo eu nao Ihe escrevia; por estar muito
a publicar antes mesmo de 1995, data do fale- cimento cansado da mudanga, caí de novo em urna depressào
de Deleuze. Esse primeiro círculo de “discípulos”, respiratòria penosa da qual ainda nao sai, embora esteja
ainda que o termo tenha sido recusado por Deleuze e bem me- lhor... Avancei bastante na ùltima versào de 0
Guattari, é composto por aqueles que conheceram que é a filosofiaf3,
Deleuze e/ou Guattari ou que acompanharam o curso Das cartas que recebe de Deleuze Jean-Clet Martin
em Paris-VIII. Quase todas essas primeiras publicagòes, retém urna, que pòe no prefàcio de seu livro sobre a
com excegào de Éric Alliez, destacam um ùnico nome, filosofìa de Deleuze. Este último reage ao seu
o de Deleuze, excìuindo Guattari. manuscrito recordando-Ih e seu apego à ideia de
A primeira obra de amplitude, que tem como sistema, no sentido de Leibniz, mas com a condigno de
ambiqao desenvolver o conjunto da obra de1 Deleuze, é que nào se relacione o sistema ao Idèntico, pois o que
a de Jean-Clet Martin, entào com 32 anos . Residìndo eie procura construir é urna heterogènese. Deleuze
perto de Mulhouse, em Altldrch, ele jamais considera que Martin percebeu bem4 sua defmigao da
acompanhou as aulas de Deleuze, mas leu a obra muito filosofia “como atividade criadora” , assìm corno sua
jovem, embora desde 1988 pretenda consagrar suas insistència sobre a questao do multiplo: “Voce vè bem a
pesquisas à filosofìa dele. Considerada a distancia geo- importancia5 para mim da nogào de multipìicidade; é o
gráfica, suas discussoes com Deleuze serào de natureza essenciaì” .
essencialmente epistolar, embora và a Paris de tempos Outro especialista da obra de Deleuze, Ar- naud
em tempos para prosse- gui-las de viva voz. Villani, vem de estudos literários. Nos anos de i960, ele
Martin é convidado para visitar Deleuze pela faz um curso duplo de letras clássicas e de filosofìa,
primeira vez em abril de 1989 em um firn de tarde obtém seu grau em letras clássicas em 1967 e no ano
tempestuoso. 0 tempo està sombrio, e Deleuze ainda seguinte, de filosofia. Torna-se entao professor de
nào acendeu a luz do apartamento: “Eu nao conseguía filosofía em Nice, no liceu Masséna, onde leciona
mais vè-lo nessa obscuridade. Houve esse momento de sempre em classe preparatoria para a Escola Normal.
graga entre cao e lobo. Eu sentía a maìor dificulda- de Villani se interessa por Deleuze desde .1972 e escreve
em percebé-ìo, mas havia sua voz, que se tornava periodicamente artigos para apresentar as grandes
inaudivel na invisibilidade total e entrecortada de orientagoes do pensamento dele. Em Nice, dá cursos de
trovòes. Esse foi para2 mìm um momento quase màgico. veráo para estrangeiros e Ihes apresenta a filosofìa
Sua voz é um grito” . Em seguida a esse encontró, urna francesa contemporánea. Se seus primeiros artigos
verdadei- ra amizade filosófica se estabeìece entre eles sobre Deleuze remontam ao Inicio dos anos 19806, ele
através do correio ou do telefone. Deleuze parece escreve um ensaio em 1999 que restituí o método de
apreciar muito em seu interlocutor o distanciamento Deleuze e no quai se en- contram extratos de sua
dele dos pequeños cenáculos parisienses, seu caráter correspondència com ele a partir de 19807. Ao longo
muito singular, marginal mesmo. Isso Ihes vale belas dessas trocas, Deleuze alerta Villani sobre urna certa
discussóes, como a propósito do trabalho sobre o propen- sáo a desconsiderar Guattari: “Seria preciso
girassol de Van Gogh em que Jean-Clet Martin está en- corrigir a maneira como, ñas primeiras páginas, voce
faz abstragáo de Félix. Seu ponto de vista está correto, e do Centro Internacional de Estudo da Filosofìa Francesa
se podé falar de mim sem Contemporánea da ENS de Ulm, dirigida por seu
Félix. A402questáo é que O Anti-Édipo e Mil Platos sao antecessor Frédéric Worms: “Eu os tive todos aqui, na
inteiramenteFrançois
dele, Dosse
como sao interamente meus, ENS, enquanto diretor de estudos entre 1991 e 1995,
seguindo dois pontos de vista possíveis. Dai a como professor de reforgo, preparando-os portanto ao
necessidade, se puder, de marcar que, se vocè quer se concurso de entrada à universidade”9.
ater a mim, é em virtude de seu trabalho mesmo, e nao Entretanto, diferentemente de Foucault, que geriu
absolutamente de um caráter secundário ou ocasional’ um centro e toda urna equipe que orquestra a difusáo de
de Félix”8. sua obra, Deleuze e Guattari tiveram discípulos, mas
subterráneos, muito livres nos modos de apropriagáo de
sua obra.
A alternancia por urna nova geragáo Élie During descobre Deleuze no último ano do
O deleuzo-guattarismo “embalou” urna geragáo liceu lendo seu Foucault, sem com- preender
totalmente nova e, dentro déla, um pequeño grupo de verdadeiramente seu sentido, mas seduzido de imediato
jovens filósofos da ENS da Rué d’Ulm. Esses jovens pelo “estilo” deleuziano. Na classe preparatoria à
filósofos descobrem os livros de Deleuze e Guattari em Escola Normal, de- dica-se a 1er mais seriamente as
completa defasagem com relagáo à sua época. Disso re- monografías de historia da filosofia de Deleuze a
sulta urna relagáo bem diferente com a obra de Deleuze discutí-las junto com os cinco ou seis que se destinano a
e Guattari que a da geragáo precedente, isso porque as fazer filosofìa. Seu amigo Thomas Bénatouil faz parte
questóes em jogo já nao sao mais as mesmas. Todos desse grupo. Élie During e Thomas Bénatouil integram
hoje participam dos trabalhos de pesquisa e de ensino a ENS de Uìm e ali conhe-
Ciliés Deleuze & Félix Guattari 403

cem David Rabouin, oriundo das letras obra: “Nào basta gritar Viva o multiplo, ou
modernas. Rabouin nao gostou de Deleuze na brandir qualquer outro conceito pop, pois a única
classe preparatòria, e seu primeiro contato com coisa que conta é fazer 10 qualquer coisa,
Empirismo e Subjetivida.de, livro difícil, nào o impuìsionada por um ‘de fora” .
con- venceu. Poi através de Espinosa que Próximos desse pequeño grupo e realizando
descobriu verdadeiramente Deleuze: “Quando seu seminàrio na ENS de Ulm, Anne
entramos na ENS, Thomas Bénatouil e eu fomos Sauvagnargues e Guillaume Sibertin-Blanc
para o seminàrio de Bernard Pautrat com um fazem justipa ao papel de Guattari. Anne Sau-
gosto acentuado por Espinosa,i0 ao qual ambos vagnargues tornou-se a primeira pesquisadora a
consagramos nosso mestrado” Com um ano de alcanpar urna posipao universitària sòlida tendo
defasagem, Patrice Manigtier ingressa em Ulm corno campo de especializapáo o deleu- zo-
em 1993 e se junta ao pequeño grupo de deleu- guattarismo. Em 1997, recebe a proposta de um
zíanos que teve por um bom tempo um itineràrio cargo multo bom na ENS, que eia so pode
comum. assumir com a condipào de se inscrever em tese.
Deleuze é para eìes, sobretodo, urna outra Querendo entáo refletir sobre as relapoes entre
maneira de fazer filosofìa, Elie During, que se filosofìa e arte, eia procura um filòsofo francés
tornou especialista em Bergson, tenta construir contemporaneo: “Deleuze correspondía
urna teoria do tempo local ancorado na física. perfeitamente. Sua obra estava fechada, e nào
Thomas Bénatouil, após um mestrado sobre havia um verdadeiro comentador, tudo estava por
Espinosa, faz um doutorado em sociologia antes ser feito, e, aléna disso, eie dava à arte urna parte
de se tornar um especialista de Epicteto e dos completa. Era exatamente do que eu precisava”16.
estoicos11. David Rabouin, que se tornou Eia consegue convencer seu orientador, Pierre-
epistemologo, consagra sua tese à filosofìa dos Franpois Moreau, que, no entanto, a previne que,
matemáticos na Idade Clàssica. Quanto a Patrice sobre essa base, nào poderá sustentar urna
Manigìier, faz do estrutura- lismo seu campo de eventual candidatura a um posto na Sorbonne.
pesquisa e considera Deleuze o filòsofo desse Guillaume Sibertin-Blanc foi aluno de Anne
paradigma, a metafisica experimental das Sauvagnargues. Mais jovem, eie està cursando a
operapòes estruturais. classe preparatòria para a Escola Normal no
Élie During se exaspera com a prolìferapào Henri-IV no momento em que sua futura
de publicapoes e comentários privilegiando o professora é nomeada para a ENS e inicia sua
mimetismo. Recorda as palavras de Deleuze tese17. É là que eie conhece Anne Sauvagnargues,
dizendo que nào basta invocar o mùltiplo, é que o prepara para a agre gap ào. Além do
preciso fazè-lo. Quando fica sabendo pela revista concurso, eia estabelece um pequeño seminàrio
Critique dos doìs grandes voìumes cole- tivos de traballio sobre Deleuze e Guattari que, entre
publicados sobre Deleuze, critica severamente 1998 e 1999, nao interessa a multa gente: apenas
aqueles que se erigem em discípulos13. David quatro pessoas, entre as quais Guillaume
Rabouin colabora regularmente no Magazìne Sibertin-Blanc, que precisa de ar para respirar ao
Littéraire e, por ocasiào da primei- ra coletánea sair dos concursos.
de artigos organizada por David Lapoujade, Desde 2005, Anne Sauvagnargues e
prepara com toda sua equipe de 13amigos um Guillaume Sibertin-Blanc coordenam um se-
número consagrado a Deleuze .0 dossiè, minàrio de “Leituras de Mil Platós de Deleuze e
lanpado em 2002, coloca frontalmente a questao Guattari” no ámbito do grupo de traballio
“Deleuze, por 14que fazer?” a personalidades “Deleuze, Espinosa e as cièncias sociais” do
multo diferentes , Em sua apresenta- pao, David CERPHI18 (que nao tem nenhuma relapao com o
Rabouin constata que os conceitos deleuzianos CERFI} . Ambos preconizam, para tornar
circulam por toda parte, mas sem a ascese ìnteligivel essa obra difícil, um método de lei-
necessària de um verdadeiro conheci- mento da tura “externaiista” que abre um grande espaço às
fontes utilizadas por Deleuze e Guattari e, por essas Chiméres, Reme des Schizoanalyses, cujo nascimento
fontes infrapaginais, ao contexto de enunciaçâo, às foi decidido na cozinha do Boulevar Saint-Germain, n~
questôes404emFrançois
jogo: “éDosse
urna trans- formaçào da historia125, onde se encontram psiquiatras labordia- nos e
da filosofìa, urna maneira de pensar a filosofìa em seu
guattarianos. O primeiro número, publicado na
devìr, de afirmar que nâo há conceitos ou primavera de 1987, apresenta Guattari como diretor de
acontecimientos fora de urna base corporal atestável, de pubìicagào e jean-Claude Polack e Danielle Sivadon
um certo 19encontró de forças que sao exteriores ao pen- como os redato- res-chefes. Nos primeiros tempos, a
samento” . Todo seu comentário consiste em descobrir revista é ampiamente dominada por preocupagóes de
quais foram os agenciamentos entre o texto deleuziano ordem psiquiátrica, mas sempre em um espirito de
e os textos com os quais ele dialogava, para medir transversalidade. Pouco tempo após sua criagào,
assim os pontos de inflexâo, as diferenças, a emergencia Deleuze aceita codírigir oficialmente essa revista que
de novos conceitos, assim como sua desapariçâo depois evoca sua comum orlen tagáo esquizoanalítica, mas sem
que estes últimos cumpriram seu papel Para intengáo de se envolver verdadeiramente em um
compreender a maneira como o pensamento deleuziano trabalho cole- tivo, do qual tem horror. Ainda hoje a
pode se enunciar em algumas fortes proposiçôes, revista mantém seu primeiro elá de agitagáo cultural
convém dar o tempo necessàrio a esse “passeio” textual Se Chiméres é antes de tudo de fìlìagào guattariana,
e conjuntural. Trata-se de captar os encontros, as existem outras revistas que se insplram na mesma
conjunçôes disjuntivas os rizomas enquanto elos proporgáo em Deleuze e Guattari. Elas sao mais
semióti- cos tomados’em seu regime de historicidade diretamente políticas, ainda que seu terreno de interven
específica. Esse método nâo exige urna leitura que siga gao nao seja limitativo. É o caso de Putar Antérieur,
a progressâo cronológica: “Meu método se caracteriza nascida em 1990 por iniciativa de Jean-Marie Vincent,
por dois aspectos. De um lado, nâo dissocio o conteúdo Denis Berger e Toni Negri. Eia publicou 43 números
intelectual e a estratigrafía material das ideias. De outro,
trimestrais e 10 números especiáis antes de desaparecer
considero que a estratigrafía material, a conexâo que em 1998. Sob o impulso de Yann Moulier-Boutang, que
um autor faz com suas reflexoes lem aver com o foi grande amigo de Guattari, uma parte da equipe
cruzamento de diferenças. Nâo há, portanto, diferença editorial de Putar Antérieur cria em 2002 Multitudes,
entre ideia e sociedade, mas urna pragmática do uma revista política, artística e cultural. Fiel ao espi-
concetto: essa é a primeira ideia. A segunda, tiro de rito de transversaíidade de Deleuze e Guattari, essa
Pierre-François Moreau, para quem nâo existe um visita pretende intervir tanto em questóes de arte
momento chave na biografìa de um pensador. É por contemporánea e de reflexóes sobre a mídia quanto
tudo isso que é preciso passar de urna estàtica a urna sobre as diversas questóes so- ciáis e políticas como o
dinàmica do sistema para produzir urna ima- gem feminismo, a mestiga- gem, a guerra, o racismo, a
viva”20. Isso implica urna grande atençao ao aparelho de ecopolítica, a renda garantida, a Europa, etc."
referencia da obra estudada, para apreender as múltiplas Urna outra revista nascida da contestagáo social e
diferenças entre as fontes e sua utilizaçâo, mas também política, e em parte nutrida do pensamiento deleuzo-
entre duas noçôes que parecem querer dizer a mes- ma guattariano, é a revista Vetearme. Um dos membros de
coisa em pontos diferentes da gestaçâo da obra, mas que seu comité de reda- gao, Mathieu Potte-Bonneville
de fato remetem a uma outra coisa em funçâo do descobre a obra deleuziana bem no inicio dos anos de
contexto e do agencia- mento espaço-tempo^àl que ele 1990. Ele prepara a agregagáo, e em 1991 conhece na
pressupôe: “Interessar-se pela irrupgáo do novo impoe ENS um estudante deleuziano que faz o concurso no
identificar o perfil de curva de um conceito no sistema, mesmo ano, Fierre Zaoui, muito ativo para organizar
levando em conta especialmente seu ponto de entrada e reunióes, agóes militantes contra os efeitos negativos de
a zona de dissipaqáo, setores teóricos que ele póe em
urna gíobalizagáo incontrolada, contra a guerra do
jogo, conexoes práticas que decorrem daf2i. Golfo.
Pierre Zaoui faz Mathieu Potte-Bonneville ler Mil
Platos: “Foi em torno disso que fundo- nou durante
Urna nova radicalidade cultural e dois anos urna especie de grupo de reflexáo na ENS,
política com normalistas1 e outros, que é intitulado2 1 ‘Le couteau
Ao lado do mundo universitàrio, alguns co- letivos e entre les dents [A faca entre os dentes]” ' . Esse grupo
revistas tentam manter vivo o deleu- zo-guattarismo. de 20 pessoas era dotado de um boletim chamado
Em primeiro lugar, a revista criada por Guattari como Cahiers de la résistance, muito nutrido de teses
prolongamento de sua rede e de seu seminario, 1N. de R. T.: No original normaliens, ou se ja "aqueles que frequéntam
a prestigiada École Normale Supérieure (ENS], Paris França.
deleuzianas24. Alguns anos mais tarde, em 1996, por Em urna perspectiva que enfatiza também a
iniciativa de Pierre Zaoui, esse pequeño círculo se capacidade da obra de Deleuze e Guattari de esclarecer
recompóe em torno de um projeto de revista que se as mutagoesGilles
fundamentáis& Félix
da sociedade e de nutrir um
propóe a ser a caixa de ressonáncia para o grande olhar critico e Deleuze
urna radi- calidade política, Manola
Guattari 405

público de novas formas de mílitáncia e de novos Antonioli, depois de ter consagrado urna obra a Deleuze
movimentos sociais; é assim que nasce em 1997 a e a historia da filosofìa28, publica um novo estudo em
revista Vacarmé25 Dizer que a revista se apoia interna- 2004, no qual ressalta a fecundidade do agenciamen- to
mente em Deleuze e Guattari seria abusivo. Ela é entre Deleuze e Guattari e sua pertinencia, a lucidez de
também amplamente foucaultiana, mas, so- bretudo, seus conceitos para estudar os processos em curso da
nao se coloca sob nenhuma autorida- de intelectual. O gìobalizagào29. Manola Antonioli percebeu bem que
que a caracteriza nao é tanto o léxico deleuziano ou Deleuze e Guattari nao excìuem a história, mas urna
guattariano, mas urna abordagem renovada da política. forma de teleologia histórica, substituìndo-a pela plura-
Essa atengao á construgáo de agenciamentos, á maneira lidade das lógicas espaciáis. Constatando que toda a
como os dispositivos sáo sempre singulares e obra de Deleuze e Guattari se desenvol- ve em torno de
difícilmente avaliáveis do exterior, conduz a urna conceitos como territorio, solo, rede, fìuxos,
compreensáo das ambiguidades próprias dos nomadismo, eia tem a. ambigao de explorar a '
movimentos sociais contemporáneos, for- gados a proximidade30 entre geografia e filosofìa que emerge
negociar contradigóes permanentes: “Quando um grupo dessa obra’ Manola Antonioli mostra particularmente
político é obrígado a atacar laboratorios farmacéuticos a extraordinària atuaìidade das lógicas de
como foi o caso do Act Up, ele é ao mesmo tempo desterritorializagáo e de reterrìtorìalizagao que “tragam
obrigado a negociar com eles, a fazer aliangas urna linha de fuga em diregao a um futuro que ainda
permanentes e flutuantes. Ora, Deleuze permite isso por permanece incompreensivel”31.
suas análises26 que sáo operantes para julgar casos
particulares” .
O deleuzo-guattarismo se encontra também na fonte Críticas da critica
de urna nova radicalidade política, urna especie de Aìguns, ao contràrio, tomaram distancia das
máquina de guerra contra as lógicas da gíobalizagáo, orìentagòes politica do pensamento de Deleuze e
em Toni Negri e em seu amigo americano Michael Guattari, Para eles, chegou o momento das grandes
Hardt, professor de literatura comparada em Duke, Em revisoes e da percepgào do firn de um certo
2000, eles apresentam sua análise, Empire, como a esquerdismo politico e do destino funesto da maior
realizagáo de um novo “manifesto comunista”, parte das utopias. A partir dai, essa obra beveria ser
adaptado ás condigóes da modernidade, preconizando, deixada sob as asas do passado: emanagào do
em face da gíobalizagáo e da uni- formizagáo, urna pensamento radical dos anos de I960 e 1970, eia terìa
utopia alternativa27. Em 2004, Hardt e Negri voltam à perdido definitivamente sua pertinencia politica e
carga, atacando desta vez o uso da guerra no momento intelectual,
da globali- zagao, opondo de maneira binària o desejo Foi a esse traballio de revisáo que se de- dìcou
de democracia da multidáo e a agao de repressao dos Philippe Mengue, ex-aluno de um dos prímeiros
poderes cuja lógica de soberanía passa ine- comentadores da obra de Deleuze, colocando
xoravelmente ás violencias e à guerra. Segundo eles, a frontalmente a questao da democracia32 Bom
“multidáo’ tem necessidade de urna nova ciencia que conhecedor do deleuzismo e antigo esquerdista,
conduza à destruigao da soberanía, reencontrando assim Mengue sente urna fratura política em meados dos anos
o gesto leninista. Para escapar ao perigo de Termidor, de 1980: “Sinto que aìguma coisa nào funciona mais no
preconizam urna teoria política que possa conciliar o discurso que se tinha, A gente é obrigado a se dizer em
centralismo de um Lènin e o constitucionalismo de um um certo33 momento que há urna raciona- lidade do
Madison. Fiéis ao espirito de resistencia ás lógicas de politico' . Eie pretende acabar com a contradígáo entre
controle que Deleuze e Guattari encarnaram, Hardt e o fato de defender urna teoria do mùltiplo e ao mesmo
Negri estáo, porém, muito longe deles, por seu apego a tempo se opor à democracia que se caracteriza pelo
urna teleología histórica, a um sentido de historia já pluralismo. Philippe Mengue crìtica a maneira como
presente que seria preciso apenas preencher com novas Deleuze nào leva em conta as mediagòes pró- prias ao
categorías sociais. Para Hardt e Negri, se a multidáo politico, afastando-se assim da propria realidade
substituí a nogao de classe operaría, sua abordagem politica. Para Mengue, Deleuze manifestou um desdém
permanece amplamente tributaria da mesma filosofía da aristocrático vìsivel na estigmatizagào constante da
historia marcada pela escatologia revolucionária.
opinìào, da doxa, da imprensa e das midias: “Deleuze minorías e os devires. Os direitos do homem e o
se situa em urna posigào nietzschiana antidemocràtica. aparelho jurídico-político sao pensados como
Nietzsche escarrava sobre os jomáis, ele sobre as realidades trans-históricas e, por isso, “transcendentes".
mídias”406 . Mengue situa a política no cerne do
34 François Dosse
Quanto à democracia, que se define por sua busca de
pensamento deleuziano, mas contesta o fato de reduzir consenso social, eia amordagaria as minorías em nome
a figura do intelectual à mera postura guerreira da da maio- ria. Ora, segundo Deleuze, “semente o menor
encarnagao de um paradigma hipercrítico; “Deleuze é criativo, Náo há devir majorítário, portanto só há
vem conceber o pensamento obligatoriamente como devir minoritário. O majorítário é urna re- tengáo, urna
urna máquina de guerra nómade, e seu ato como urna recaída de devires, e em retorno, os36 devires só podem
* t v >?35
guernlha . ser bloqueados pelo ma- joritário” , Mengue propoe,
Para Philippe Mengue, a supervalorizagào das no entanto, pensar e prolongar o deleuzismo contra
minorías, únicas portadoras de devir e, por esséncia, em Deleuze, sustentando as infiexoes requeridas por nosso
ruptura com a ordem dominante, conduz a urna momento pós-moderno “por sua concepgáo da
desvalorizagao radical da democracia. O estado de heterogénese do social e dos devires distintos da
direito aparece de fato como incompatível com tres historia”37. Ele vé um devir do deleuzismo do lado da
temas centráis da filosofìa deleuziana: a imanéncia, as micropolítica, do lado das práticas que tomaram alguma
distancia da inspiragao de
Gilles Deleuze & Félix Guattari 407

suspeigào dominante nos anos de 1960. tornava problemático, digno de questionamen-


Deleuze poderla nesse caso nutrir um tó’4í. Vinte anos depois, nesse ano de 1988, eia
pensamento novo guarnecido de sua dependencia ainda saúda a fulguragáo que Deleuze representa
ao marxismo e ao historicismo. Mais do que no céu do pensamento. Deleuze nào é insensível
Deleuze, Philippe Mengue critica um certo a isso e Ihe envía um bilhete, além de seu Leibniz
deleuzìsmo e sobretudo o enxerto guattariano da com urna dedicatoria. Contudo, para Jacob
radicaliza- gao política que intervém a partir de Rogozinski, Deleuze, diferentemente de Lyotard,
1969. nao permite pensar os desastres que o século XX
Paul Patton responde a Mengue que, na atravessou: "O que é heroico em Deleuze é que
verdade, os trés valores incriminados por ele no ele vai42 até o extremo do radicalismo dos anos de
deleuzismo nào 38sáo absolutamente de na- tu re za I960” . Hoje, Rogozinski é particularmente
antidemocrática Segundo Patton, a crítica da severo em fase do deleuzismo. Nao encontra ali
transcendencia que encarnaría a evocagáo dos lugar para pensar a ética: Deleuze, em urna
díreitos do homem é motivada em Deleuze por perspectiva muito espinosista, nào leva em conta
sua insatisfagào diante do que decorre de o desejo de fazer o mal. Essa oblìteragào da
abstragòes desencarnadas. Se é preciso fazer questáo do mal nào Ihe permite pensar o
avangar os direìtos do homem, é mais totalitarismo, o terror político e, portanto, os
concretamente, com as populagóes em questào, a principáis acontecimentos que mar- caram o
partir de situagòes singulares, inventando século XX, a Shoah, o Gulag, os Kh- mers
jurisprudèneias. Patton recusa tam- bém a vermelhos, etc. Atribuir um lugar à ética implica
oposigào molar praticada por Mengue entre atribuir um lugar ao sujeito, ao ego, e, nesse
maioria e minoría que nao corresponde à plano, Rogozinski considera que Deleuze, como
concepgáo desenvolvida por Deleuze e Guattari, boa parte dos filósofos de sua gera- gao, tem urna
para os quais maiorìa e minoría nào es- táo nem atitude que qualifica de Regicida”, negadora do
em posigáo de exterioridade nem em oposigào, “Eu”, que deve ser humilhado, esmagado: “Seu
mas em urna relagào de nào coincidencia. sujeito é um sujeito sem ‘Eu’, um sujeito
Quanto à oposigào entre o concetto filosófico e a anonimo, acéfalo. É sempre oposto a um sujeito
opiniáo, nao implica nada no plano da esfera identitàrio. 0 inimigo nào é tanto o sujeito, mas o
pública. A resisténcia ao presente a que apelam eu, o ego. Eie jamais pensou que pudesse haver
Deleuze e Guattari visa, segundo Patton, ai urna parte imánente do ego, e nao vejo entáo
aprofundar a democracia por vir, De sua parte, como se pode ter43 acesso ao plano de imanència
Axnaud Villani juìga severamente o ponto de de que eie fai a” .
vista de Mengue porque omite o aspecto maior
do deleuzianismo, o da dinàmica desencadeada
pela linha de fuga, que nao tem nada a ver com o Um pensamento do
binarismo em que Mengue confina a política maquinico moderno
deleuziana: “a democracia nào é criticada por A obra de Deleuze-Guattari serve de recurso
Deleuze porque ele seria um aristócrata críptico. essencial na emergencia de urna nova episte-
Nào é porque eia faga demais, é porque eia nào mologia das ciencias, que nào é mais fundada em
faz o suficiente39. urna separagáo entre o conteúdo científico e a
Encontram-se em Jacob Rogozinski, que sociedade, entre o homem e a natureza, entre
escreveu, entre outros, um belo artigo sobre objetìvidade e subjetividade. É o caso na filósofa
Deleuze em 198S em Le Magazine Littérairem, as e sociologa das ciencias Isabelle Stenghers.
críticas formuladas por Philippe Mengue. Quando eia termina seu curso de filosofìa em
Rogozinski recordava nessa ocasiào seu en- 1973, é o momento da publicagào de OAnti-Édi-
tusiasmo de colegial descobrindo a filosofía po, mas ‘‘foi Diferenqa e Repetigao que me fez
pouco depois de 1968: “Com Deleuze, tudo se trabalhar”44.0 que a seduz de imediato na obra de
Deleuze é sua capacidade de engajar o leitor uo tecnodemocracia participativa. Nao se trata mais de
estabelecimento de urna comunicagáo entre zonas que pensar a oposigáo entre o hornera e a máquina, mas
em geral sào comparfcimentadas. Era a seus modos de cone- xao, Pierre Lévy exuma o passado
descompartimentaìizagào
408 François Dosse
que eia procurava na relagao da cibernética e vé em Warren McCulloch o primerio a
entre cièncias e que descobre no campo da filosofía. estabelecer urna ligagao entre o ftmcionameiv to
Nos seis volumes que publica entre 1996 e 1997 sob o neuronal e os circuitos lógicos, langando as bases do
título Cosmopolíticas, e que atravessam os continentes conexionismo. Pierre Lévy se inspira aínda na ideia de
científicos, os da guerra das cièncias, da rizoma que se torna nele o modo mesmo de difusáo do
termodinámica, dos tempos em Prigogine, da mecánica conhecimento em ramificagoes múltiplas, que se tornou
quàntica, dos rostos da emergéncia45, numerosas nogoes possível gragas ás novas tecnologías da inteligencia.
sao inspiradas em Deleuze e Guattari, Os conceitos deleuzo-guattarianos tém também um
Isabelle Stenghers esbarra com Guattari a partir dos prolongamento bastante decisivo na nova antropologia
anos de 1980. Eia o convida para um encontró com das cièncias, nascida no Centro de Sociologia da
cientistas por ocasiáo do simposio que organiza em Inovagào (CSI), que tem como objeto de estudo os
Cerisy com ìlya Prigogine, prèmio Nobel de Química processos emergentes de inovagáo científica e tecnoló-
de 1977; “Eie fez o pìor que podia ter feito expondo gica, segundo Michel Callón e Bruno Latour. As
seus diagramas. Ele entrou em desenvolvimientos tais descobertas que permítem conturbar as ligagòes sociaís
que os cientistas nao16 entenderam nada. Foi urna sao elas próprias a resultante de múltiplos efeitos das
oportunidade perdida”' . Contudo, Stengers utiliza redes. Envolvem ao mesmo tempo os laboratorios, as
conceitos deleuzo-guattarianos em seu pròprio traballio políticas públicas, os financiamentos privados, as rela-
e desempenha um papel ativo na diíusao da obra dele goes com os consumidores potenciáis... Urna das
em Bruxelas. Nos anos 1980, Stenghers consagra seu nogoes centráis dessa antropología das cièncias é a
seminàrio, que se realiza na Universidade Livre de nogao de redes, em urna acepgáo inédita e muito ampia
Bruxelas, a Deleuze e Guattari. A partir dos anos de do termo: As redes sao ao mesmo tempo reais como a
1990, seu colega Pierre Verstraeten, um sartriano muito natureza, narradas como os discursos, coletivas como a
ativo, constrói seu curso de introdugáo à filosofìa a so- ciedade'A Ao contràrio de seu sentido usual, a
partir de O que é afilosofia?. utilizagáo do termo rede em antropologia das cièncias
Fol assim que Daniel Franco se iniciou cedo nesse corresponde à vontade de manejar urna nogao que
pensamento. Quando ele pròprio comega a lecionar na permite evitar qualquer vi sào territorializada da
Universidade Livre, consagra a Deleuze quatro anos do sociedade. Eia se demarca assim das nogòes de campo,
curso de filosofía, de 1990 a 1994: “Deleuze foi um de subcampo, de instituigòes, que pressupòem
extraor- dinário sintetizados Hoje, fìco impressionado conjuntos homogéneos definidos por tipos de agoes,
por seu caráter multo literario. É um pouco um curso regras de jogo particulares. A segunda característica
ñas nuvens” 4
'. O especialista de Simon- don, Pascal dessas redes é a mistura que implicam entre humano e
Chabot48, também passa pelo ensi- no de Isabelle nao humano, sujeitos e objetos.
Stengers e de Pierre Verstraeten, que consagram urna Bruno Latour retoma a nogao deleu- zo-guattariana
obra a Deleuze em 199S49. Como historiador da para apresentar essas redes como urna dupla máquina
filosofía, iniciaímente especializado nos estudos de guerra, contra a ideia de estrutura e contra o
husserlianos, Deleuze tem um papel “libertador" para interacionismo. Contudo, esse poderoso operador tem
Pascal Chabot; permite a ele fazer saltar pelos ares a alguns inconvenientes, porque implica um vazio no
ídeia de suporte, essencial na fenomenología, gragas à nivel do conteúdo que conduz a urna visáo empobrecida
sua nogao de muìtipfìtidade - “O encontró com o do mundo em que vivemos. Evidentemente, o
universo de Deleuze foi para mim um baláo de dispositivo permanece desligado de todo conteúdo para
oxigénio”''0 poder acolher novos elementos, pela preocupagáo de
Pierre iévy, que se torna especialista das nao pré-formar a fím de seguir melhor os atores, as
“tecnologías da inteligencia”, foi muito marcado por controversias, as configuragoes mais diversas. Bruno
Michel Serres, mas também por Deleuze e Guattari. No Latour se reconhece mais na ñliagáo de Epicuro, de
inicio dos anos de 1990, chega a se encontrar com Espinosa ou de Nietzsche do que na linha- gem dos
Guattari, com quem partilha a mesma curiosidade pelas filósofos da conscìència, Descartes, Kant e Husserl.
tecnologías mais modernas. Pierre Lévy ve inclusive Entre os filósofos contemporáneos, aínda que tenham
ñas novas tecnologías da informagáo as bases de urna pouca utilidade para definir um programa de pesquisa
ecologia cognitiva que nao está mui- to distante da em ciéncias so ciáis, dois filósofos desempenham um
ecosofìa de Guattari, fundadora de urna papel fundamental: Michel Serres e Gilles Deleuze.
Pode-se dizer que a nogao de rede é bastante próxima se desenvolve em urna tensao “in- superáveP3, Os
do rizoma em Deleuze. Contudo, a nogáo deleuziana quase-objetos sao ao mesmo tempo “reais, discursivos e
nao é internamente similar àquela de redes utilizada sociais”'’“1, a partir do postulado fundador da
pela antropologia das ciéncias. Para esta, a intengáo antropologia das ciéncias. Bruno Latour preconiza
Gilles Deleuze & Félix Guattari 409

primeira, ao contràrio da nogáo deleuziana, é de inverter a fórmula habitual dos modernos segundo a
reterrito- rializar. Em segundo lugar, a nogáo de rizoma qual seria preciso partir de um processo de purificagáo
é fluente demais, sem pontos de parada, portan- to nao para clivar o que vem do sujeito e o que é extraído do
muito adaptada aos mecanismos que se estabelecem objeto e, em um segundo momento, multiplicar os
quando a ciència, a técnica e o mercado se conjugam. intermediónos a fím de chegar a urna explicagáo situada
Por outro lado, em Michel Callón e Bruno Latour, a no ponto de contato entre os dois extremos. Ao
visibilidade do fato científico está ligada à cadeia de contràrio desse procedimento, Bruno Latour propoe
tradugáo ao longo dos des- locamentos múltiplos que transformar o ponto de clivagem/encontro em ponto de
permitem deduzir a heterogeneidade inicial de partida da pesquisa que conduz para os extremos,
discursos, de laboratorios e de recursos mobiüzados. sujeito/objeto: “Esse modelo de explicagáo permite
Sobretudo, essa antropologia das ciéncias inscreve-se integrar o trabalho de53 purificagáo como um caso
na ruptura com o projeto moderno de separagáo, de particular de mediagáo” .
grande distancia entre o mundo natural, os objetos, de O “Post-scriptum sobre as sociedade de controle”
um lado, e os sujeitos, de outro. É com o kantismo que de Deleuze, publicado inicialmente em L'Autre Journal
o projeto moderno toma forma: "As co isas em si de Michel Butel, em 1990, e reproduzido em
tornam-se inacessíveis enquanto que, simétricamente, o Pourparlers, constituí para muitos analistas da
sujeito 52transcendental se afasta infinitamente do sociedade em suas muta- gòes mais recentes urna matriz
mundo’' . Urna vez estabeìecido um corte, as tentativas teórica essen- cial, pois permite pensar ao mesmo
para superá-la se revelam como impasses. Assim, essa tempo na escala macro da sociedade e na escala micro
antropologia das ciéncias busca as vias de urna outra da empresa. É o caso, por exemplo, para Bernard
metafísica e se junta a toda a busca filosófica de Stiegler, que o toma como ponto de partida de suas
Deleuze em sua preocupa- gao de reencontrar urna reflexóes sobre a misèria simbólica. Stiegler deplora o
ligagao orgánica entre o homem e a natureza, o que corte entre o político e a estética, que tem como efeito
implica urna crítica do hegelianismo que, por sua vez, funesto urna queda da participagao na criagáo estética.
aumenta de fato o abismo que ele quer transpor entre o Ele
polo do sujeito e o do objeto. O projeto fenomenologico
410 Frangote Dosse

retoma aínda de Deleuze a ideia de buscar Richard Pinhas. Na Biblioteca Nacional da


novas armas apropriadas a essa nova sociedade Franga, a Trance Culture organizou um grande
de controle que ele se propòe qualificar de encontró, coordenado por Jacques Munier, com a
hiperindustrial. A guerra, portanto, nao aca- bou, partìcipapao de Cìément Rosset, Gerard
aínda que seja transposta: “Essa guerra se tornou Fromanger, Anne Sauvagnargues, Toni Negri e
urna guerra essencialmente estética”56, Nessa era Paola Marrati. Toda urna sèrie de livros revela a
contemporánea, é preciso reencontrar, à maneira fecundidade sempre manifesta desse pensamento
de Simondon e de Deleuze, os processos de nos campos61 mais diversos: a arte *
5 1
, sua voz60, a
indivíduapáo enquanto proces- sos ao mesmo psicanáiíse 63, o tempo , as fontes de seu
63

tempo físicos e coletivos “onde eu e nós sao duas pensamento , sem contar as coletàneas coietf vas
faces de um mesmo processo, a distancia entre de contribuipóes sobre este ou aquele aspecto de
eles constituí ndo também a dinàmica do sua 66filosofìa64, e reedipòes6/65, aulas em forma de
processo”57. CD ou ainda semi nérios .
O filósofo Pierre-Antoine Chardel, que Um campo particularmente receptivo aos
inicialmente consagrou seus trabalhos à her- conceitos de Deleuze e Guattari é o do urbano da
menéutica e à desconstrupao derridiana se voltou arquitetura. O filosofo do urbano Thierry Paquot
em direpào a Deleuze e Guattari para responder lembra que o meìo dos urbanistas era sobretodo
aos desafíos colocados pelas novas tecnologías. foucaultiano nos anos de 1980: “Embora
Professor do Instituto Nacional das publicado em 1980, Mil Platos nao penetrará
Telecomunicapòes, onde leciona ciencias espontáneamente nesse meio”68. Só mais tarde,
humanas, criou um grupo de pesquisa inter- ao longo dos anos de 1990, os conceitos deleuzo-
disciplinar para abordar as questoes transver- sais guattarianos sao utilizados pelos arquitetos,
ao mesmo tempo éticas, tecnológicas, de urbanistas e paisagistas: “Para mim, Mil Platós é
organizapao e de sociedade (ETOS). Na socie- um livro mágico, um livro para 1er sem parar e
dade cada vez mais padronizada, coloca-se de que a cada nova leitura traz seu lote de
fato a questao da preservapao da multiplicida- de questionamentos”69. A difusáo e a apropriapáo
como eondipao de possibilidade da criati- vidade. desses conceitos, como sempre acontece, nao
“Toca-se ai em urna questao de ordem ética, deíxa de ter excessos. Assim, a dobra barroca é
ligada à estética, isto é, de estética como acomodada a todas as situa- pòes sem
prolegómeno a 58urna ética, para usar um termo discernimento. Toda arquitetura se dobra,
caro a Ricoeur” . desdobra, redobra, Mais seriamente, desde o final
dos anos de 1990, o conceito de
desterritorializapao se expande com um forte
lima atualidade crescente valor heurístico, aínda que seu uso geralmente
esteja um pouco defasado em relapào à signifi-
Um dos sinais da expansáo desse pensamento capáo que Ihe atribuem Deleuze e Guattari em
deìeuzo-guattariano e da explosáo de seus usos seu par territorializapào/desterritoriaìizapào:
mais diversos é a profusào de artìgos, obras, “Esse conceito é compreendido muitas vezes
encontros e outras manifestapoes que marcaram como urna forma de desligamento do lugar sob o
o 10Q aniversário da morte de Deleuze, em 2005. efeito da globalizapáo, urna especie de
O Centre Beaubourg rendeu-lhe urna dupla deslocalizapáo, a exemplo das indústrias que
homenagem organizando um ‘Abe- cedàrio para deixam esta ou aquela regiáo0por países onde os
Gilles Deleuze” em 2 de novembro de 2005, salários sao mais baixos”' . Thierry Paquot
durante o qual numerosos especialistas, consagra urna parte de seu ensino no Instituto de
testemunhos e amigos vieram apresentar urna Urbanismo da Universidade Paris-XII à
faceta de Deleuze em ordem alfabética, tudo apresentapao das contribuipóes de Deleuze e
entrecortado po^rdocumentos sonoros e Guattari, pois esses dois autores permitem
filmados, terminando com um concerto de
compreender melhor o que poderla ser urna geografìa Neurofisiologia (1988). Professor na universidade de
existencial do humano na hora das redes fora do solo. Nancy, Bernard Andrieu formou-se em Bordeaux entre
Chris Younès, filosofa do urbano, respon- sàvel pela 1978 e 1984. Engajando-se no terreno da epistemología
Rede Filosofia, Arquitetura, Urbano e professora na das ciencias humanas, apropria-se entáo da411obra de
Ciliés Deleuze & Félix Guattari

Escola de Arquitetura de Paris-La Villette, foi aluna de Deleuze e retém sobretudo seu conceito de “dividuaf,
Deleuze em Lyon em 1960. Eia avalla agora com seus que transforma em “dividuo”, para sustentar seu ponto
prò- príos alunos a importancia de que se reveste a obra de vista sobre o corpo disperso e resistir ao
dele no campo do pensamento da ci- dade, da reducionismo de certas correntes das neurociéncias.
arquitetura e, mais ampiamente, dos territorios do Andrieu se sente próximo da concepgáo de Deleuze que
urbano; “Eu o utiìizei bastante no campo da arquitetura nao privilegia a entrada individual, mas de processos de
e da cidade com meus alunos. Se há um filósofo que individuagáo a partir de corpos fracionados, divididos.
eles cìtam abundantemente, é Deleuze”?ì. Langam-se na Em Deleuze e Guattari, Andrieu encontra urna filosofìa
leitura de Deleuze-Guattari por eles próprios, mesmo próxima da biologia, do mundo do ser vivo - urna
sem que lhes proponham. Retèm so- bretudo algumas reflexáo sobre o Ser, mais do que urna epistemología do
temáticas recorrentes que lhes servem de instrumentos ser vivo -, e considera fundamental a con- tribuigáo
de leitura das mutagòes mais contemporáneas que deles, tanto quanto a de um Merle- au-Ponty, de um
tocam o fenòmeno urbano: “Très coisas voltam sempre: Ruyer ou de um Pradines, para rebater as tentagóes
a questào da dobra,72os rizomas e a nogào de espago liso reducionistas.
e espago estriado” . As trans- formagòes do urbano, o A obra de Deleuze e Guattari está traba- Ihando,
periurbano, os mo~ vimentos pendulares tornam cada inclusive nos círculos filosóficos, nos filósofos que
vez mais centrai a questào dos fluxos, da errància, dos parecem a priori distantes deles. É o caso, por exemplo,
deslocamentos no espago segundo movimientos do diretor da revista Esprit, Olivier Mongin, que se
alternativos de desterritorìaìizagào e reter- inspira mais em Ricceur, Lefort, Merleau-Ponty ou
ritoríalizagáo, Além disso, o rizoma inspira a figura Arendt. Con- tudo, Deleuze desempenha para ele um
urbana proliferante e ao mesmo tempo conectada em papel de guia constante, instigando a pensar fora dos
todos os pontos, todo esse sistema invisíveí que esquemas estabelecidos: “Há dois autores que leio
estrutura os territorios do urbano em sua expansao. A regularmente e que 6me reconduzem à filosofia, que sào
nogáo de ex- perimentagáo de travessia do vivido Ricceur e Deleuze’" ,
também está totalmente sintonizada com as pesquisas Se Mongin nâo compartilha o radicalismo politico
atuais sobre o espago habitado, sobre o primado dos de Deleuze, nem seu anticristianísimo, encontra nele o
usos, da pràtica, sobre um certo cons- trutivismo que aprecia particularmente em Kicœur, essa abertura
teòrico. ao extrafìlosófìco, essa maneira de dar respostas
O filósofo Jean Afctali, professor em arquitetura, filosóficas a questôes que têm sua origem fora da
abre um grande espago ao pensamento de Deleuze e filosofìa. Evidentemente, Olivier Mongin nâo segue
Guattari, nào tanto para comentá-lo, mas como caixa de Deleuze em sua recusa de toda mediaçâo: “Nâo há
ferramentas para pensar a cidade 7'1, confirmando sua in- Cristo para eie, nâo há boa mediaçâo, mesmo sacrifi-
fluència internacional no melo dos arquitetos: “A cada. É um pensamento artista”7'. 0 interesse que
tradugáo inglesa do livro de Deleuze A Dobra {The Mongin sente pelo pensamento de Deleuze o conduz a
Fold, 1993} encontrou forte eco ñas escolas de traçar um paralelo assimétrico, per- guntando~se se essa
arquitetura nos Estados Unidos e na Inglaterra. O obra nâo se limita a expres- 78sar o excesso, e a de
conceito filosófico vjnha refor- gar o interesse pelas Ricoeur, a encarnar a divida . Para aìém do nao
geometrías nao métricas, pelo cálculo assistido por encontró entre esses dois filósofos e de sua diferença de
computador4 de superficies flexíveis ou de formas estilo, nâo se pode reduzir sua oposiçâo a um suposto
aleatorias" ,0 arquiteto nova-iorquino Peter Eisenman confronto entre o humanismo e o anti-humanismo teó-
toma emprestados atualmente muitos dos concei- tos de rico. Os dois se demarcaram da tradiçâo, ambos
Mil Platos e sugere como exemplo urna definigáo acolheram o nâo filosófico, ambos conduzem urna
ampliada da nogáo de diagrama. reflexâo aporética, tudo em ten sao, e pri- vilegiam o
Encontra-se também urna fecundidade singular da “e”, o pensar junto, o entrelaçamento. Ambos
obra deleusso-guattariana no campo da epistemologia renunciaram a Hegel e nâo se satisfazem como
do corpo tal como a concebe Bernard Andrieu, que formalismo kantiano, ambos atribuem a Bergson um
acaba 15de organizar um volumoso Dicionárío do lugar privilegiado, e “o acordo de Deleuze e Ricceur,
Corpo , depois de ter publicado outras obras, entre as caso se queira encontrar um, é essencialmente aquele
quais um “Que sais-je?” [O que eu sel?] sobre A que se refere ao ser para a vida (Espinosa), à
desconfiança 79em rela- çâo a b ser para a morte’ 7. Arnaud VILLANI, La Guêpe et l’Orchidée, op. cit.
(Heidegger)” . 8. Gilles Deleuze, carta a Arnaud Villani, 1° de agosto de
Restam dois ángulos mor tos no horizonte 1972, em Arnaud VILLANI, la Guêpe et l'Orchidée, op.
espinosísta de Deleuze: a questao do trágico, do mal,
412 François Dosse cit., p. 125-126,
nâo tem sua pertinencia, nâo mais que a questao 9. Frédéric Worms, entrevista com o autor,
colocada por Jean Nabert da “afìr- maçâo originària”. 10. David Rabouin, entrevista com o autor.
Resta que Deleuze sacudìu fortemente a àrvore 11. Thomas RENATOU1L, Faire usage: la pratique du
genealògica, a lei do pai, para sair do sentimento de stoïcisme, Vrin, Paris, 2006.
falta e da cuìpabi- lidade em um gesto cujo heroísmo 12. Éric ALLIEZ (sob a dir.), Gilles Deleuze. Une vie
desper ta a euforia e ao mesmo tempo as forças da vida philosophique, op. cit.-, Keith ANSELL-PEAR- SON (sob a
dir.), Dele-uze and Philosophy. The Différence Engineer,
em urna sociedade que seria fundada por urna Londres, Routledge, 1977.
solidariedade entre irmâos, urna sociedade da aliança, 13. Gilles DELEUZE, ID.
mais que da filiaçâo. 14. Le Magazine littéraire, “L’effect Deleuze. Philosophie,
esthétique, politique", fevereiro de
Notas 2002.
15. David RABOUIN, ibid., p. 17.
1. jean-CIet MARTIN, Variations, La philosophie de Gilles 16. Anne Sauvagnargues, entrevista com o autor.
Deleuze, Payot, Paris, 1993, 17. Eia sera pubìicada com o titulo Deleuze et Tort, PUF, Paris,
2. Jean-CIet Martin, entrevista com o autor. 2005.
3. Gilles Deleuze, carta a Jean-CIet Martin, 19 de Janeiro de 18. CERPH1: Centre d’études em rhétorique, philosophie et
1991. histoire des idées.
4. Gilles Deleuze, “Lettre-préface” de 13 de junho de 1990, a 19. Anne Sauvagnargues, entrevista com o autor.
Jean-CIet MARTIN, Variations, La philosophie de Gilles 20. Ibid.
Deleuze, op. cit., p. 7, 21. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op. cit., p. 12.
5. Ibid., p. 8. 22. Multitudes, verào de 2002, diretor de publica- çâo: Yann
6. Arnaud VILLANI, “Modernité de la pensée philosophique. Moulier-Routang.
II”, Bevue de l’enseignement philosophique, n. 2, dez. 1982- 23. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor.
jan. 1983: “Deleuze et la philosophie microphysique”, em 24. Esse grupo efèmera e muito heterogêneo se dispersa
Philosophie contemporaine, Annales de la faculté de lettres rapidamente e seus membros se vol- tam a açôes militantes
de Nice, n. 49, Les Belles Lettres, 1985: "Géographie diversas, de tipo luta contra a AIDS, Act Up, grupos de
physique de Mille Plateaux, Critique, n. 455,1985, p. 331- apoio aos
347.
Gilles Deleuze & Félix Guattari 413

intelectuais argelinos, movimentos de desem- pregados e 52. Bruno LATOUR, Nous n’avons jamais été mo-
de precàrios. dernes, op. cit., p. 76
25. Vacarme, n. 34, inverno de 2006, diretor da pubi 53. Ibid., p. 79,
icacào: Stany Grelet. 54. ibid., p. 87.
26. Mathieu Potte-Bormeville, entrevista com o autor 55. Ibid., p. 107.
27. Michael HARDT, Antonio NEGRI, Empire, op. cit. 56. Bernard STIEGLER, De la misère symbolique. 1.
28. Manola ANTONIO LI, Deleuze et Vhistoire de la L’Époque hyperindustrielle, Galilée, Paris, 2004, p,
philosophie, Kimé, Paris, 1999. 41.
29. Manola ANTONIOLI, Géopolitique de Deleuze et 57. Ibid., p.96.
Guattari, L'Harmattan, Paris, 2004. 58. Pierre-Antoine Chardel, entrevista com o autor,
30. Ibid., p. 12-13. 59. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op.
31. Ibìd., p. 252. cit.
32. Philippe MENGUE, Deleuze et la question de la 60. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoire de Gilles De-
démocratie, L’Harmattan, Paris, 2003. leuze aux yeuxjaunes, PUF, Paris, 2005.
33. Philippe Mengue, entrevista com o autor. 61. Monique D AVID-MÉNARD, Deleuze et la psy-
34. Ibìd. chanalyse, PUF, Paris, 2005.
35. Philippe MENGUE, Deleuze et la question de la 62. Yann LAPORTE, Gilles Deleuze, l’épreuve du
démocratie, op. cit., p. 32. temps, L'Harmattan, Paris, 2005.
36. Ibid., p. 104. 63. Stéfan LECLERCQ (dir.), Aux sources de la pensée
37. Ibid., p. 204. de Gilles Deleuze. 1, Sil s Maria, Mons, 2005.
38. Paul PATTON, "Deleuze et la démocratie”, co- 64. Alain BEAULIEU (dir.), Gilles Deleuze. Héritage
municaçâo ao coloquio internacional organizado por philosophique, op. cit.; André BERNOLD, Richard
Manda Antonìollì e Pierre-Antoine Chardeî: “Gilles PINHAS (dir.), Deleuze épars, op. cit.
Deleuze, Félix Guattari et le politique”, 14-15 de 65. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Quest-ce que
Janeiro de 2005, e Pa- ris-VHL la philosophie?, Minuit-poche, 2005; Jean-Clet
39. Arnaud VILLANI, “Comment peut-on être de- MARTIN, La Philosophie de Gilles Deleuze, Fayot,
leuzien?”, em André BERNOLD, Richard PIN- col. “Petite Bibliothèque”; Catherine CLÉMENT
HAS (sob a dir.), Deleuze épars, op. cit., p. 82, (dir.), Gilles Deleuze, Are/Inculte, Paris, 2005.
40. Jacob ROGOZINSKX “La fêlure de la pensée”, Le 66. Gilles Deleuze Cinema, 6 CD, ‘À voix haute”,
Magazine littéraire, n. 257, setembro de 1988, p. 46- Gallimard, 2006.
48. 67. A essa atualidade editorial acrescenta-se em 2005 a
41. Ibìd., p. 46. presença da obra de Deleuze-Guattari em algumas
42. Jacob Rogozinski, entrevista com o autor. manifestaçôes universitarias. No inicio de 2005, em
43. Ibid. 14 e 15 de janeiro, Manda Antonioli, Pierre-Antoine
44. Isabelle Stengers, entrevista com o autor, para Chardel, Ivan La- peyrox e Hervé Regnault
François DOSSE, L’Empire du sens, ¿’humanisa- organixam um coló- quio internacional sobre “Gilles
tion des sciences humaines, La Découverte, Paris, Deleuze, Félix Guattari et le politique” em Paris-
1995; reed. La Découverte/Poche, 1997, p. 35. VIÍÍ (Manola ANTONIOLI, Pierre-Antoine
45. Isabelle Stenghers, Cosmopolitiques, 6 volumes, La CHARDEL, Hervé REGNAULT (dir.), Gilles
Découverte, Paris, 1996-1997. Deleuze, Félix Guattari et le politique, ed. du
46. Isabelle Stenghers, entrevista com Virginie Linhart. Sandre, Paris, 2006). No final do ano, em 2 e 3 de
47. Daniel Franco, entrevista com o autor. dezembro, Jean-Christophe Goddard organiza duas
48. Pascal CHABOT, La philosophie de Simondon, jorna- das de estudo sobre 0 Anti-Êdipo na Universi-
Vrin, Paris, 2003. dade de Poitiers,
49. Pierre VERSTRAETEN. Isabelle STENGHERS 68. Thierry Paquot, entrevista com o autor.
(dir.), Gilles Deleuze, Vrin, Paris, 1998. 69. Ibid.
50. Pascal Chabot, entrevista com o autor, 70. Ibid,
51. Bruno LATOUR, Nous n’avons jamais été mo- 71. Chris Younès, entrevista com o autor.
dernes, La Découverte, Paris, 1991, p. 15. 72. Ibid.
73. jean ATTALI, Le Plan et le Détail Une philosophie de 76. Olivier Mongin, entrevista com o autor.
l’architecture et de la ville, ed. jcquline Chambón, Nîmes, 77. Ibid.
2001. 78. Olivier MONGIN, “L’excès et la dette. Gilles Deleuze et
74. Ibid.,
414p. François
216. Dosse Paul Ricœur ou l’impossible conversation?", em François
75. Bernard ANDRIEU, Le Dictionnaire du corps en sciences AZOUVI, Myriam REVAULT DALtONES (dir.), Paul
humaines et sociales, CNRS, Paris, Ricœur, Cahiers de i’Herne, Paris, 2004, p. 271-283.
2006. 79. Ibid,, p. 282.
Conclusáo
De 1969 até a morte de Guattari, em 1992, dois pode restituir. Como com- preender a amizade e a
autores diferentes por sua formagào, seu caràter, sua sedugao mutua, motores essenciais dessa obra comura?
sensibilidade trabalharam juntos para construir urna Entretanto, podem-se identificar alguns fatores e, em
obra excepcional. Durante esse longo período, primerio lugar, sua preocupagào constante de sempre
funcionou o que se defìniu, de maneira premonitoria fazer prevalecer o movimento, contra qualquer
quando de seu primerio artigo publicado em 1970, a rotinizagao. Dai o interesse comum pelas relagòes
proposito de Klossowski, urna “sintese disjuntiva”, um complexas e tensas entre os processos de subjetivagáo e
agenciamento coletivo de enunciagáo, o casamento as lógicas institu- cionais. Dai também a vontade de
improvável da vespa e da orquídea. valorizar as linhas de fuga e os procedimientos de
No ssa pesquisa talvez tenha conseguido ratificar desestra- tifìcagào.
alguns “efeitos de ángulo” que tiveram como Esse gesto se enraíza sem dùvida em um mesmo
consequència minorar Guattari e mesmo fazè-lo adubo histórico, o do trauma da Segunda Guerra
desaparecer para se guardar apenas o nome de Deleuze. Mundial, que ambos atraves- saram muito jovens para
Tivemos a oportunidade de ver que Guattari foi nao tomar posigào ali, Sua resistència à barbàrie os diferiu,
apenas, em um sentido, um provedor de conceitos e de e pode-se mesmo sugerir a hipótese de que sua revolta
pistas sempre novas, mas também, em outro sentido, pode ser um efeito defasado do sismo que re- presentou
um militante da experimentaqào social, política e para o Ocidente e seus valores a vi- tória do nazismo.
psiquiátrica em La Borde, no CERFI ou no CINEL. De Criar novos conceitos é um imperativo absoluto: o
maneira inteiramente originai, Deleuze e Guattari traumatismo da barbàrie nazista obriga a retomar com
criaram “máquinas de guerra” e provaram sua validade novo fólego as tarefas do pensamento. Pensar impòe ser
e seus limites em situagòes concretas. Essas digno de um acontecimento atravessado muito cedo
“experimentagòes" testemunham o caràter excepcional para ter participado ativamente dele. Encontra-se esse
e inèdito dessa coìaboragao, imperativo no cerne mesmo
O que tornou possível um encontró tào fecundo?
Com certeza um feixe de razòes que apenas a razào nao
415 Conclusâo

da abordagem da historia do cinema que De- nao segunda, compensatoria: "Em vocé, em
leuze retoma de André Bazin1. Blanchot, é a amizade. O que implica urna
A filosofìa nao deve sair desarmada da tra- reavaliaçâo total da ‘filosofia, pois voces sao os8
vessia da tragèdia histórica. Ao contràrio, eia únicos a retomar ao pé da letra a palavra philos .
deve afirmar sua fimçâo: “Nâo há lugar para crer A travessia dessa experiéncia e sua memoria
que nâo podemos mais pensar depois de impóem exame profundo, a pas- sagem pelo
Auschwitz2 e que somos todos responsáveis pelo crivo da crítica de algumas teses canónicas da
nazismo" . Permanece um sentimento formulado historia do pensamento: "Como os conceitos [de
de modo candente por Primo Levi: a " vergo- Heiddeger] nao seriam intrínsecamente
nha de ser um homem”. Nâo que todos sejam conspurcados por urna reter- ritorializaçâo ab]
responsáveis, mas todos fcram conspurcados età?”9. Para preparar devires de liberdade, nâo é
pelo nazismo: “É urna catástrofe, mas a catás- preciso se furtar diante da necessidade de criar:
trofe consiste em que a sociedade de irmâos ou “Nos carecemos de resistencia ao presente. A
de amigos passou por urna tal prova que eles já criaçâo de conceitos requer em si mesma urna
nâo podem mais olhar um para o outro, ou cada forma futura, eia re-
um para si mesmo, sem um3 cansaço’, tai- vez quer urna nova terra e um povo que aínda nâo . .
mesmo urna desconfiança” , Depois de Aus-
»10 existe .
chwitz, nao se pode mais ter a candura dos gre-
gos. Encontra-se aqui a exigència de urna outra Evitar a abjeçâo exige experimentar con-
metafisica que restabeleça a relaçâo com o caos ceitos criados: “Pensar é experimentar, mas a
para criar forças vitáis, e nâo mortíferas: “Esse experimentaçâo é sempre isso que se está
sentimento de vergonha é um dos mais fortes fazendo”11. Essencialmente filosófica, a expe-
motivos da filosofìa. Nâo somos responsáveis rimentaçâo nâo pode se prevalecer de qual- quer
pelas vítimas, mas perante as vítimas”4. territorio passado, presente ou futuro: "Jamais
Essa imperiosa necessidade de urna trans- fui tocado por aqueles que dizem que é preciso
formaçâo do pensamento é sentida intensamente superar a filosofìa. Enquanto houver necessidade
por Deleuze, como atesta5 sua correspondencia de criar conceitos haverá filosofìa, pois essa é
com Dionys Mascólo . Em seguida ao sua definiçao. E eles sâo criados em funçâo de
lançamento do livro de Mascólo, Autour d’un problemas. E os problemas évoluera... Fazer
effort de mémoire, em 1987, Deleuze lhe escreve filosofìa é criar novos conceitos em funçâo de
para expressar sua admiraçâo por ter renovado problemas que se colocam hoje. O último
tâo intensamente as relaçôes entre o pensamento aspecto seria: o que é a evoluçâo dos problemas?
e a vida. Aproveita para indagar sobre a As forças históricas, sociais, mas também um
afirmaçâo segundo a quai “um tal abalo da devir do pensamento que faz com que nâo se
sensibilidade gérai nâo pode deixar de5conduzir a coloquem os mesmos problemas e nâo da
novas disposiçôes do pensamento" . Deleuze mesma maneira, Há urna historia do pensamento
pressente um segredo que Mas- colo guardaría que nâo se reduz a um jogo de influencia. Há
com ele. Mascolo lhe responde que esse aparente todo um devir do pensamento que permanece
segredo “talvez nao seja outro, no fundo, que o misterioso"12.
de um pensamento que desconfía do7 Se Deleuze e Guattari sofreram lateralmente
pensamento. O que nâo deixa de causar afliçâo" , e a posteriori os efeìtos do trauma da Segunda
Nâo há vontade de segredo, acrescenta Mascolo, Guerra Mundial, ao contràrio, participaram
mas dessa afliçâo nasce o fundamento de pienamente do acontecimento que foi maio de
amizades possíveis. 1968. Particularmente sensíveis aos desafíos do
Deleuze sugere em sua resposta urna in- seu tempo, perceberam de imediato seu valor de
versâo da ordem das coisas e lhe pede que ruptura instauradora. Todo o itineràrio de
considere a amizade cdlho primeira, fundadora, e Guattari desde o pós-guerra o conduziu à
“preparaçâo” desse acontecimento, em par- tícular pela exumar as tradi- çôes esquecidas, desprezadas,
conexâo que havia estabelecido entre as dimensôes vencidas, caídas em desuso: as de Tarde, Nietzsche,
politica e psicanalitica e que o conduzirá à crítica de Bergson... Estes tentaram formular urna metafísica
qualquer416tentaçâo burocrática. Se Deleuze nâo é um
Conclusáo nova que, ao invés de separar a consciéncia da natureza,
militante re- volucionário como seu futuro amigo encontrarla a componente pela qual, como pensava
Guattari, é, no entanto, esse acontecimento que prepara Bergson, a consciéncia nâo é consciéncia de qualquer
esse encontró e o torna frutífero. Sem maio de 1968, coisa: eia é qualquer coisa - deslocamento maior em
esse encontró, sem dúvida, jamais teria existido. O relaçâo ao programa fenomenològico de Husserl.
acontecimento 68 foi esse corte de fluxo necessàrio O mundo, diz Nietzsche, é um "mundo de
para liberar a combinaçâo de suas forças criativas. Esse relaçoes”16: essa convicçâo, ño condutor na obra de
apego ao eia vital sentido jamais será negado nem por Deleuze, é afirmada já em Lógica do Sentido na
Guattari nem por Deleuze. passagem do “é” ao “e”, no primado do “e”, e
Sua primeira obra comum, O Anú-Édipo, se enraíza constantemente reafirmada. Assim, na entrevista
com toda evidéncia no movimento de mato, da quai concedida aos Cahiers du Cinéma em 1976 a propósito
esboça as modalidades de um pensamento renovado do de Jean Luc Godard, onde o “e”, bem além de urna
mundo. Com Guattari, Deleuze escreve ainda, bem valorizaçâo da relaçâo, é promovido a matriz da
mais tarde, em 1984, que nâo há renegados para dizer diversidade, inaugu- raçâo de urna nova metafisica: “O
que um acontecimento possa ser superado; ele passa no E nâo é mais urna conjunçâo ou urna relaçâo particular,
interior dos individuos da mesma manei- ra que no ele carrega todas as relaçoes, e há tantas relaçoes
interior da sociedade. Respondendo à tentaçâo quanto E, o E nao se limita a balançar todas as relaçôes,
revolucionária das ciencias sociais, "Maio de 68 é mais ele balança o ser, o verbo..., etc. O E, e... e... e...’ é
da ordem de um acontecimento puro, livre de toda exatamente a gagueira criadora... A multiplicidade está
causalidade normal ou normativa. Sua história é ‘urna precisamente no E”i7.
sucessao de instabilidades e de flutuaçôes Nessas condiçôes, pensamento a matèria, até entâo
simplificadas. Há muitas agitaçôes em 68, mas nâo é dissociados no pensamento moderno, podem se
isso o que conta. O que conta é que esse foi um fenó- correlacionar. Como observa Pierre Montebello, essa
meno de videncia, como se a sociedade visse de um “outra metafísica" procurou urna via diferente daquela
golpe o que eia continha de intolerável e visse também emprestada pela fenomenologia, virando as costas à
a possibilidade de outra coisa. É um fenómeno coletivo intencio- nalidade para reencontrar urna relaçâo menos
sob a forma: ‘Do possí- vel, senâo eu sufoco...’. O mediada, mais direta entre o movimento das coisas e o
possível nâo preexiste, ele é criado pelo acontecimento. das ideías, o que deve passar por urna suspensâo
É urna ques- táo de vida. O acontecimento cria13 urna provisoria da consciencia. “Imaginar urna
nova existencia, produz urna nova subjetividade” . ultrapassagem do homem sobre a linha de crista do
Dois acontecimentos, portanto, tornaram possível cosmo, levar a humanidade à altura do poder imánente
esse encontró, mas, em que consiste sua fecundidade? que afcravessa o universo. Reencontrar o envolvimento
Em que esse clarâo no céu do pensamento anuncia um criatívo do ser no homem para iluminar e liberar em
paradigma novo? Para esses dois pensadores, trata-se retomo sua açao e sua criatividade no cerne da
de ir mais longe no descentramento do homem para me- natureza'18: tal terá sido a ambiçâo dessa “outra
lhor reemergir em seu meio vivo e reencontrar assim a metafísica”.
unidade perdida, de desumanizar o homem para melhor
humanizar a natureza, no que Pierre Montebello Notas
qualifica de “a mais humana das metafísicas do cosmo 1. Ver capítulo “Deleuze vai ao ci nenia”.
e a mais còsmica das metafísicas do homem posteriores 2. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p, 102.
à revoluçâo copernicana”11*. Nâo se trata, portanto, de 3. Ibid., p. 102,
exumar a velha metafisica que concede demais ao 4. Ibid., p. 103.
mesmo, mas de construir urna nova metafísica, fazendo 5. “Correspondance Dìonys Mascolo-Gilles Deleuze”,
remontar urna filosofìa da natureza que dà lugar ao Lignes, n. 33, março de 1998, p. 222-226; reproduzido em
desenvolvimento de todas as diferenças, pois “O Ser de RF, p. 305-310.
fato está do lado da diferença, nem um nem múltiplo”15. 6. Dionys MASCOLO, Autour d’un effort de mémoire,
É esse o sentido mesmo da busca de Deleuze, puro Maurice Nadeau, Paris, 1987, p. 20.
metafisico corno eie se reivindicava, ar- rastando seu 7. Dionys'Mascolo, carta a Gilles Deleuze, 30 de abril de
amigo Guattari em urna aventura que começa no inicio 1988, em RF, p. 306.
dos anos de 1950. Foi essa busca que o conduziu a
8. Gilles Feleuze, carta a Dionys Mascolo, 6 de agosto de 14. Pierre MONTEBELLO, L’Autre Métaphysique, Desclée de
1988, ibid., p. 307. Brouwer, Paris, 2003, p. 12.
9. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p. 104. 15. Gilles DELEUZE, “Bergson 1859-1941”, em MERLEAU-
10. Ibid., p. 104. PONTY (dir.), Les Philosophes célèbres,417
Conclusâo Mazenod, Paris,
11. Ibid., p. 106. 1956; reproduzido em ID, p. 33.
12. Gilles Deleuze, A. 16. NIETZSCPIE, Œuvres completes, Fragments posthumes,
13. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, "Mai 68 n a pas eu XIV, 14 (93),
lieu", Les Nouvelles littéraires, 3-9 maio 1984; reproduzido 17. Gilles DELEUZE, “Trois questions sur Sixfois deux
em Gilles DELEUZE, RF, p. (Godard)”, Cahiers du cinéma, n. 271, no~ vembro de 1976;
215-216. reproduzido em PP, p. 65.
18. Pierre MONTEBELLO, L’Autre Métaphysique, op. cit., p.
305.
índice
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N, Chantal, 341-342 ALAJOUANINE, Théophile, 85 ALLÉGRET, Yves, BELLOCCHIO, Marco, 351
50 Bellour, Raymond, v-vi, 18-19,102.126,135-136,
Alliez. Éric, v-vi, 139,184-185,197-198,218-219,240-241, 244-245,261- 264-265,326,330-331,333-335,358-359,368 Benasayag, Michel, 404-405
262,347-348,358-359,367-368,396-397,408, 411-413 Benatouil, Thomas, v, 97-98,123,262-263,412-413 Bene, Carmelo, 328.362-
ALLIO, René, 327-328 ALLOUCH, jean, 185 ALPHANDÉRY, Claude, 233- 363 Benjamin, Waiter, 38-39 BENOiSTjean-Marie,índice308419
BensaïD, Daniel,
234 ALQUIÉ, Ferdinand, 41,86-88,98,100-101,103-105,107, 122-123,305 228-229 Bensma'ia, Réda, v, 386-387 Benveniste, Émile, 193
Althusser, Louis, 73,77-78,105,157,191-192,245-246, 299-300,384,397 Berardi, Franco, vuigo “Bifo", v-vi, 217,239-242,399 Berger, Denis, v-vi.
Altman, Robert, 330-331,338 Andreotte, Giulio, 237-238 Andrew, Dudley, 36-39,414-415 Bergman, ingmar, 93-94,118-119 Bergson, Henri, 21-22,88-
v, 330,385-386 Andrîeu, Bernard, v, 136-137,421 Anger, Didier, 316-317 89,91-93,97-98,102-103, 109-110,113,117-122,141-143,185,193,268,302-303,
ANKA, Paul, 360-361 Ansell-Pearson, Keith, 392-393 ANSELME, Michei, 305-306,325-326,331-333,335,338-339,341,367-368,385, 397,400,412-
229 413,421-422,427 Berio, Luciano, 367 Berlinguer, Enrico, 237-238,241-242
ANTONI OLI, Manola, v, vi, 100,107-108,117,218-220,400, 415-417,420 Bernold, André, 117,152-153,,362,377,416-417,420 Serroyer Jacky, v-vi, 403
ANTONIONI, Michelangelo, 118-119,330-331,339-342 APERO H IS, Bertucelli Jean-Louis, 327 Besse Jacques, 49-50 Beuys Joseph,
Georges, 349-350 ApPRlLL, Olivier, v, 59-60 352 Bey, Haldm, 388
Aptekman, Alain, v. 17-18,89-90 AracagÓK, BiANCO, Giuseppe, V, 87-88,98-99,102-103,117,120, 399-400
Zafer, v Arafat, Yasser, 215-216,260 Aristóteles, Bianco, Jean-Louis, 313-314 Bierce, Ambrose, 93-94 Bindé Jérôme, 335-336
102-103 ARNOULT, Éric, 313-314 Aron, BiOY Casares, Adoifo, 326-327 Birman Joël, 197-198 Biser, Eugen, 116
Raymond, 34-35,301 Aron, Robert, 84-85 Bittar Jaco, 395-396 Blanc, Louis-Pierre, 233-234 BlanchaUD, Pierre, v,
Arûuet. François, 120-121 AROUTCHEV, 19.1,275-276,292-294,355 Blanchot, Maurice, 105,117,135-136,269,303-
Pierre, 53-54, 77-78 Arrieux, Claude, 37-38 304,315, 358-359,426
Artaud, Antonin, 136-137,149,161-162,167-169,176-177, 269,334- Blûch-LaîNÉ. François, 233-234 Bloncourt, Élie, 38 Blondel, Éric, 40-41,116
335,354,364,393 Aktières, Philippe, v, 256 ASADA, Akira, 393-394 Astier, Rlum, Léon, 34-35,82-83 Blum, Robert, 34-35 Blumenthal, Simon, 36-37,39
Frédéric, 294-295 Atkinson, Tî-Grace, 380-382 Attali, Jacques, 313-315 Bobet, Louison, 92-93 Bogue, Ronald, 383-384 Boisset, Robert, 327 Bologna,
Attaju, Jean, 421 AUBRAL, François, v, 248,306-308 Audouard, Yvan, 89-90 Sergio, 238-239 Bonal, Denise, 350 Bonelli-Bassano, Novelia, v-vi Bonitzer,
AU FF ray, Daniele, v AUJac, Henri, 233-234 AUJaLEU, Dr, 233-234 Pascal, v, 327-329,335-336 Bonnafé, Lucien, 44-46,233-234 Bonta, Mark,
AUMONï, Jacques, v, 335-336 AUSTIN, John, 195-196,204,350 AXELûS, 219-220 BONTENS, 256-257 Borg Jean-Luc, 206 Borges Jorge Luis, 205-
Kostas, v, 87-90,105-177 Ayala, 15-16 206,326-327 BORREIL, Jean, 287 BouanïCHE, Arnaud, 21,108 Boudiaf,
AYME, Jean, 46,59-60,72-73 AZOUVI, François, 421-422 Mohammed, 39 Boulez, Pierre, 360-361,367 Boundas, Constantin, v, 383-
386,388 Bourdet, Claude, 38,245 Bourdieu, Pierre, 260 BOURG, Julian, v,
B 385-386
Baader, Andréas, 243-245,259-260 Bach, Jean-Sébastien, 58-59,352,361-362 Bourgois, Christian, v, 230,242-243,245-246,326-327, 347-349
Bachelard, Gaston, 84-85,88,99,265 Bacon, Francis, vi, 361-364 Bourriaud, Nicolas, 352 BousquetJoë, 118-119,135,153 Boyer Jean-Claude,
Bad I ou, Alain, Í4M42,285-287,299-306,407-408 227-228 Braidotti, Rosi, 388
BAECQUE, Antoine DE, 327-330 Braudel, Fernand, 170,211-212,226-227,397
BAEZ, Joan, 382 Bredin Jean-Denis, 245-246
BAÍLLY-SAEÍN, Dr Pierre, 233 Bresson, Robert, 329-330,340-341
BAISSETTE, Gaston, 45-46 Brière, Jack, v-vî, 49-50
Bakhtine, Mikhail, 340-341 BriÈRE Jean, 316-317
Balestrimi, Nanni, 238-239 Brivette, v-vi, 36-37
Balibar, Étienne, 285-286 Bruhat, Jean, 36-37
BALMAIN, Pierre, 94-95 Buchanan, Ian, 387-388
BALVET, Paul 44-45,57 Buchanan, Thomas, 72-73
Bamberger, jean-Pierre, 88,254-255,294-295 Buci-Glucksmann, Christine, v, 367-368,408
BARATIER Jacques, 50 Buffet, 256-257
Bardot, Brigitte, 89-90 Buffiere, Gérard, 72-73
BARDOT, Pierre, 116 Buin, Yves, 218-219
Barjonnet, P., 228-229 Bunuel, Luis, 329-331 Bubgelin, Jean, 84-85 Bubnier, Michel-
Barnes, Mary, 275 Antoine, 165 Burrûughs, William, 380 BUTEL, Michel, v-vi,
BARRAT, Martine. 382-383 23.38-39,52-54,72-73,76-78, 407-408,419-420 BUTOR, Michel.
BARRAULT, Jean-Louis, vi, 149,397-398 84-85,88 BUYDENS, Mireille, 360-361,364-365
BARTH, Hans. 115
Barthes, Roland, 67-68,105,284-285,288-289,360,
362-363,379,383
c
Basaglia, Franco, 151-152,274,277-278,280-281,397-399
CACHE, Bernard, v, 366-368,408 Cachin, Yves, 36-37 Cage
Bataille, Georges, 85,105.113,117
John, 149,349-350,367,380 Caillois, Roger, 85 Calasso,
BAUDELAIRE, Charles, 83 Roberto. 116 Callegari, Roberto, 399-400 Callon, Michel, 418-
BAUDRILLARD Jean, 180,261,305-306 419 Calvez, Paul, 36-37 Calvi, Fabrizio, 239-240 Camaüer,
BAUDRY, Michel. 59-60 Odette, 82-83 Camus, Albert, 33
BaUdry, Pierre, 335
Canguilhem, Georges, 46,87-88,99-101,103-104,
BAUER, Charles, 248 113-114,117-118,204,265,284-285,305 Carbonnier, Arnaud, 350
BAYET. Guy, 88
Carcassonne, Philippe, 135,330-331 Carroll, Lewis, 135-
Bazin, André, 327-330.385,425-426 Beaubatie,
137,193.269,354 CARTRY, Michel, v-vi, 36-39,50-51,72-73,168-
Yannick, 92,93,292,408 Beaufret, jean, 87-88 170,198-199 Caruso, Igor, 397-398 CASALÎS, Georges, 245 CASAMAYOR,
BEAULIEU, Alain, v, 133-136,141,219-220,364-365,386,420 BECK, Julian, Louis, 256 Cassavetes, John, 338,341-342 CASSIRER, Ernst, 365-366
149-150,395 BECKS Joseph, 275 CASTEL, Robert, 171-172,183,277-278 Castillo, Rodolfo Alvarez del,
BECKETT, Samuel, 14-15,75,176,355,363-364,407-408 397-398 CastORIADîS, Cornelius, 230,279-280 Catala Jean-Michel, 75-
BEETHOVEN, Ludwig Van, 34-35 78 CAU,Jean,88
BEINARDjean, 233-234
Caunes, Georges DE, 89-90
BÉJART, Maurice, 75 CAVAïLLès, Jean, 102-103,289-290
BKLAVAL, Yvon, 365-366 CAWS, Peter, 379-380
CÉLINE, Louis-Ferdinand, 260-261 DAVID-MENARD, Monique, 420
CERTEAU, Michel DE, 153,196,384-385,387-388 Davy, Marie-Magdeieine, 83-85,255,363
Chaban-Delmas Jacques, 223-224,228-229 DE GAULLE, Charles, 89-90
CHABOT, Pascal, v, 139-140,418 DE SICA, Vittorio, 339
CMAHINE, 420
Youssef, 327-328
índice DEBBAY, Régis, 246-247
CHAÎGNEAU, Hélène, 59-60 DEBUSSY, Claude, 362,367
Champetier, Caroline, 328 DEFEKT, Daniel, 256-257.263,268
CHAPLIN, Charlie, 61-62,336 Delacampagne, Christian, 209-210
Chapsal, Madeleine, 176-177,286 DELANDA, Manuel, 387-388
CHAKDEL, Pierre-Antoine, v, 416-417,419-420 DELATTBE, Alain. 88-89
CHARLES, Daniel, 380 Del ay, Jean, 85
CHARTiERjean-Paul, 158-160 DBLCOURT. Xavier, 306-308
CHASSEGUET-SMIRGEL Janine, 179-180 DELEUZE, Fanny, v, vi, 254
Château, François, 164-165,202,208-209,336 DEEHOMME, Jeanne, 116
CHATELET, Albert, 38 Delïgny, Fernand. 54,67-70,72-73,230-231,278-280,299 Denizet, jean,
CHÂTELET, François, 17-18,36-37,88-90,101-102,117,119, 153,176- 233-234 Depardon, Raymond, 243-244 DepussI Jacques, 72-73
177,192,228-229,285-291,301-302,306-307, 314-315,326-327,384,406 Depussé, Marie, v-vi, 52-54,59-60,63-64,66,67,77-78, 274,348-349,402-
ChÂtelet, Noëlle, v, 176-177,288-289,326-327,406 CHESNEAUXjean, v, 403
36,240-241,243-245,290-291, Derrída Jacques, 116,170-171.284-286,290-291,314-315, 373,379,383-
316-317,346 385,397,407 Descamps, Christian, v, 209-210,245,288-290,394, 407-408
Chevalier, Pierre, 291,294-295 CHEVENEMENTjean-Pierre, 314-315 descamps, Marc-Alain, 84-85,102-103 Descartes, René, 41,99-
Chomarat, François, 140-141 Chomsky, Noam, 196 Choulet, Philippe, 377 101.103,107,117-118,124-125, 302-303,408,419 Descombes, Vincent,
Ciment, Michel, v, 93-94,330-331 Cixous, Hélène, 256-257 CLARKjudy, 381- 107-108 Desjardin, Alain, 317 Despinoy, Maurice, 46 Deville, Claude, 37-
382 38 Dewèvre, Brigitte, 256-257 Diatkine, Gilbert, 72-73 Dickinson, Emily,
CLASTRES, Pierre, 17-18,38-39,169-170,177,198-199,211, 386 Diderot, Denis, 90 Diogène Laërce, 134-135 Diógenes, o Cínico, 97
216-217,395 Claudel, Paul, 93-94 Djellali, 258-259 DMîTRIENKO, Pierre, 88 Dobbels, Daniel, 350
Clemens, Éric, 116 Clément. Alain, Domenach, Jean-Marie, 176-177,180-181,256 OONATI, Ariette, 17-18,62-
85 67,345-346 Donnard, Gisèle, v-vi, 245-246,250,404-405
Clément. Catherine, 162-163,166,183-184,208-210, 379-380,420 Clinton, DoNZELOTjacques, v, 180-181,256-257,260-262 Doriot, Jacques, 59-60
Bill, 216 Clîstenes, o Ateniense, 199-200 CLOAIŒC, Eve, 14,17,29-30,32- Dos PASSOSjohn, 338 Dosse, Florence, vi
33,36,39-41,49,58-59, 64-67,157-158,345-346,359 Cochet, Yves, 316-317 DOSSE, François, 60-61,190,384-385,417
Cochran, Terry, 386-387 Cohen-Levinas, Danieile, 408 Cohn-Bendit, Daniel, DOSTOÏEVSKI, 373-374
38-39,147-150,242,245,317,399 Cohn-Bendit, Gaby, v-vi, 38-39 Colemin DOTTI, Marco, 399-400
Jean, 59-60 Colli, Giorgio, 116 Collomb, Henri, 168-169 CûLOMBELjeanette, Doublet, Jean-Marie, v-vi, 149-150,232
117-119,152-153 Coluche, 248-249,318 COMTE. Antoine, 259 Comtesse, Doyle, Conan, 358 r
Georges, 291-292 CONAN, Éric, 244-245 Conan, Michel, 223-224,358 Droit, Roger-Pol, 100-101,286-287,373,404-405,407-408
CONDOMINAS, 232 Conley, Tom, 386-387 Dubillard, Roland, 72-73,350 Duchamp. Marcel. 352
COOPER, David, 151-152,274-275.277-278,280-281, 397-398 DUCROT, Oswald, 195-196,204 Dudan, Pierre, 32-33 Dufqix.
COPL Fausto, 92-93 Georgina, 314 Dufrenne, Mikel, 372 Duhamel, Georges, 340-
Coppola, Francis Ford, 330-331 341 Dullin, Charles, 50,86 Dumas, Pierre, 248
Cormann, Enzo, 206,218-219,350,403-404 DUMONCEL ,Jean-C3aude, v, 109-110,125-126
CORTESSE, Pierre, 88 Dumont, René, 36,316-317
Cot, Catherine, 72-73 Dumoulin, Huguette, 68-69
Cottet, Serge, 162 Duns ScoTjohn, 266
COUCHOT, Hervé, 262-263 Dupavillon, 313-314
Couturat, Louis, 365-366 Dupuis De Lôme, Hélène, v-vi
CREMONES!, Luca, 399-400 Durand, Any, 67-68
Cressole, Michel, 181-183 During, Éhe, v, 122,387-388,412-413
Cresson, André, 99 Durkheim, Émile, 88-89,138-140,169-170
Crisipo, o Estoico, 134-135 Dylan, Bob, 382
Criton, Pascale, v, 295,361-363
Croissant, Klaus, 243-245,247,259-260 E
Crozier, Michel, 223 Eco, Umberto, 245 Eiffel Jean, 36 ElNAUDi, 399 Eisenman,
CUNY, Alain, 363 Peter, 421
Cusset, François, 379,387-388 Eisenstein, Sergueï, 329-330,336-339,362-363
Cutrofello, Andrew, v, 385 Eizykman, Claudine, 325-326
Cuvier, Georges, 140-141 Elkajm, Mony. v-vi, 276-278,376
ÉLUARD, Paul, 45-46
D Enaudeau. Corinne, v, 290-291
Dadoun, Roger, 17-18,177 DAGOGNET, François, 117-118 Daive Jean, Engell, Lorenz, 325-326
89-90,208-209,291,382 EPICTETO, 92-93,262-263,412-413
Dalle, Matthieu, 250-251 Epicuro, 358-359,419
Dajne Y, Serge, 327-330,335-338 Epstein Jean, 339-340
Daniel, Jean-Pierre, 67-68 Eribon, Didier, 209-210,254-255,258-259,267,268 Espinosa, Barudi, v-
ÜANiÉLOUjean, 85 vii, 14,88,90-93,97-98,102-103,113- 114,116,118-119,122-127,133-
DANTO, Arthur, 380 134,136-137,140-142,171, 185,214,216,263,266-267,286,292-
Darrieux, Danielie, 335-336 294,302-303,358-359,
Dassault, Marcel, 225 363-365,377,385,412-413,419,421-422 ESTABLET, Roger, 105
Daumezon, Georges, 46-47,234 Eustache Jean, 327,341-342 Evans-Pritchard, Edward Evan, 169-170,198-
DAVID, Yasha, 205-206 199 Ewald, François, 18-19,102,126,135-136,232,260-261, 264-265
F Gonzales, Fernando, v, 397-398
Goodchild, Philip, 393
FaBBRI, Paolo, 347-348 Fabre, Saturnin, 335-336 Fadinl Ubaldo, 399- Gorbanevskaïa, Natalia, 251
400 Fahle, Olivier, 325-326 Fanon, Franz, 57 Farbias, Patrick, v-vi, 403- GORZ, André, 75
404 Farci, Claude, 62-63 Fassbinder, Rainer Werner, 327 Favereau, Éric, Goya, Francisco, 364 índice 421
281 Grandjguan, Fanny, 94-95
Paye Jean-Pierre, v-vi, 19-20,67-68,82-83,87-88,240-241, 245,248- Grass, Gérard, 225
251,256-258,260-261,314-315,326-327,406 Fédida, Pierre, 158-160 Grazia, Maria, 281-282
PELiCEjeanJacques de, 256,259 Fellini, Federico, 118-119,339-340 Greco (El), 367
Ferlinghetti, Lawrence, 382-383 GREEN, André, 176-179
Ferrano, Guy, 79 Fer reri, Marco, 327 Ferro, Gkelet, Stany, 415
Marc, 327-328 Ferry, Lue, 319,385-386 Grenier Jean, 84-85
Fichant, Michel, 365-366 Fichaut, Mme, 58- GrîAULE, Marcel, 169-170
59 Fichte, Johann Gottlieb, 143-144 Fiescmi, Griffith, Thomas lan, 338-339
Jacques, 330 Fihman, Guy, 325-326 Fink, Griseï, Antoine. 76-77
Eugen, 116 GRISET, Gérard, 362-363
Fitzgerald, Francis Scott, 135,354-357 Flam, Léopold, 116 Flamand, Grondin Jean, 386
Paul, 84-85 Fleurieu, jean-René De, 230 Fleutiaux, Pierrette, v, 356-358 Gros, Frédéric, v, 262-263,267-268,407-408 GROSSBERG, Lawrence, v,
Flinker, Karl, 94-95,358-360 Foreman, Richard, 380 Forner, Alain, 74- 392-393 Grosz, Elizabeth, 388 GRUMBERGjean-Claude, 350
76 FORTES, Meyer, 169-170,198-199 Foucault, Michel, vi, 22- GRUNBERGER, Beia, 179 Gruson, Claude, 233-234 Guattari, Bruno, v-vi,
23,105, i 15-117,135-136,162, 165-166,176-177,179-180,182- 63-65,249-250 GuaTTaRI, Emmanuelle, vi, 64-65,348,402-403
183,200,212.223-228, 230-231,243-245,247-250,254-270.284- GuATTARïJean, v-vi, 29-30,33,36,64-65,403-404 Guérin, Daniel, 245
286,293-294, 301-303,305-307,326-328,345-346,358,360,362-363, GuÉROULT, Martial, 88.97-98,115,267,365-366 Guibert, Hervé, 335-
365-366,373,379-387,392-394,397,412-413 Fouchet, Christian, 76- 336,364,377 Guichard, Olivier, 285-286
77 Fournier, Pierre, 316-317 Guidoni, Pierre, 76
Fgurquet. François, v- vi, 14-17,44-47,53-54,76-80, 147-148,224- Guillaume, Gustave, v-vì, 76-77,84*85,190-191,211 Guillerm, Alain,
231,233-234,345-346 Fôurquet, Geneviève, 230-231 France, Anatole, v Guillerm, Daniele, v. 240-241 Guillet, Micheline, 33
13-14,83 FRANCO, Daniel, v, 281-282,418 François, Claude, 361-362 GuiLLET, Nicole, v-vi, 13-14,57,59-60,63,68-69,72-74, 181-182,225
Franju, Georges, 330-331 Frank, Philipp, 203 Frappat, Bruno, 279- Guillonnet, René, 88 Gusdorf, Georges, 46
280 Frege, Gottlob, 193,368
Freud, Sigmund, 53-54,72-73,79-80,83,94-95,106,115, 117,120,126-
127,136,137-138,157-161,165,167-168, 170-171,175-177,179- H
180,183,191,203-204,226-227,261, 286,287,290-291.351,397-398,404- Halbwachs, Maurice, 346 Halbwachs, Pierre, 83,245,346 Halévi, Il an, 214-
405 Frioux, Claude, 286-287 215,404-405 Hallyday, Johnny, 61-62 Hamon, Hervé, 75-76,147-148
Fromanger, Gérard, v-vi, 19-20,240-243,245,349-351, 358-360,403- Haraway, Donna, 388 Hardt, Michael. 387-388,415-416 Hardy, Thomas,
404,407-408,420 Froment, René, 233-234 Furtos, jean, 180-181 354-355 Harmelle, Claude, 225-226 Haudri COURT, jean, 299 Hauriou,
Maurice, 100-101 Hazemann, Robert-Henri, 233 Hegel, Friedrich, 98-
G 105,114-115,119-120,123,139-140, 211-212,288-290,306-307,336-
Gaède, Edouard, 116 Galbraith, J. K„ 265-266 Galeta, Robert, 392-393
337,421-422 Heidegger, Martin, 36-37,86-88,93-94,98,104-105,119,
Gallo, Max, 315 Galluzi, Francesco, 399-400 Gance, Abel, 329-330,337-
126-127,211-212,262,269,304,386,421-422,426 HÉ me De Lacotte,
338 Gandillac, Maurice De, v, 83-85,88-89,94-95,104-105, 113-114,152- Suzanne, v, 339-340 Hendrix Jimi, 361-362 HennîON, C., 228-229
Hermier, Guy, 75-78 Herrenschmîdt, Olivier, 72-73 Hervé, Alain, 316-317
153 Garaudy, Roger, 255 Garbo, Greta, 182-183 Garnaud, Gervaise, v-vi Herviaux, Gilles, 243 Herzog, Werner, 336,341-342 Heurgon, Marc, 317
Garrel, Philippe, 341-342 Gasche, Rodolphe, 116 Gauchet, Marcel, 232 Higelin, Jacques, 250 Hitchcock, Alfred, 330-331,336 Hitler, Adolf, 66-67
GaUDEMAR, Antoine De, 322,404-405.407 Hjelmslev, Louis, 163-164,195,333 Hlrsch, Étienne, 233-234
Gauguin, Paul, 97 Hocquenghem, Guy, 225,227-230,232,290 Hölderlin, Friedrich, 352
Gavanïer, Pierre, 233-234 Holland, Eugene, v, 383-385 Hollier, Denis, 379-380 Houdart, Jacques, 88
GAYjean-Paul, 147-148,404-405 Huber (Dr), 275
Geismar, Alain, 147-148,256 HUME, David. 14,97-106,110,121,124-125,168-169, 375-376,392
Genet, Jean, 227-228,258-259 Husserl, Edmund, 87-88,98-100,119,133-134,332,419, 427
GeNüSKO, Gary, 384-385 Hyppolite, Jean, 84-87,98-101,103-105,113,119-122, 143-144,305
Gentis, Roger, v, 44,46,59-60.175,278-280
Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne, 140-141
GiLjosé, 304-305,408 I
Gilson, Étienne. 84-85 Iginla, Biodun, 386-387 Illich, Ivan, 397-398 Isozaki, Arata, 394-395
GiLSON, René, 335 Izard, Françoise, 72-73 Izard, Michel, v, 40-41.72-73 i
Ginsberg, Allen. 167-168,347-348.382 Ginzburg, Carlo, 246 Girard, Jaccard, Roland, 176
Christian, 394-395 Girard, Philippe, 36-39,157 Girard, René, 179- Jaeglé, Claude, 291-292,420
180 Giscard D’Estaing, Valéry, 228-229,248-249 GLASS, Philip, 349- Jakobson, Roman, 60-61.163-164,190-191
350,361-362 Glissant, Édouard, 347-348,356 Glowczewski, Barbara, JALLON, Hugues, vi
218-219 Glucks mann, André, 306-308,367-368 GobarD, Henri, 204- Jambet, Christian, 306
205 James, Henry, 177-178,356-357
GODARD, Jean-Luc, 69-70,117-118,248,325-328,330-331, 336,341- Jameson, Fredrick, 384*385,387-388
342,427 JANCOVICI, Harry, 363-364
GoDDARD,Jean-Christophe,v-vi,2L 143-144,185,420 Janet, Pierre, 83,340-341
GODZICH, Wlad, 379-380 JANIN, Yves, 75-76
GOEBBELS, Joseph, 337-338 JANKÉLÊVITCH, Vladimir, 16-17,41,314-315
Goethe, Johann Wolfgang Von, 34-35,40-41,204-205 Jannis, Lucas, 281
Goldman, Pierre, 75-76,248 Jarry, Alfred, 87-88
Goldman, Sacha, v-vi, 317-318,322,402-405 Jaruzelski. Wojciech (General), 260
Goldschmidt. Victor, 134-135,143-144 JAUBERT, Alain, 257-258,276-277
Jdanov, Arthur, 313-314,382-383 JUFFE, M., 228-229
JEAMBAR, Denis, 244-245 Julia, Dominique, 196
Jeangïrard, jean, 51.56-57 JULY, Serge, 147,175-176,246-247,256
Jeanson, Blandine, 215-216 JUQUIN, Pierre, 317
Jervis, Giovanni, 274-275,277-278
422 índice
jOEKER Jean-Pierre, 227-228
Joinet, Louis, 256
K
Kafka, Franz. 21,105,117,135-136,164-165,176,199-200, 202-209,294-
JOLIVET, André, 350-351 295,314,348-350,356-358,364,387-388, 411-412
Jolivet, Merri, 350-351 KAGEL, Mauricio, 349-350 Kahn, Pierre, 74-76 Kalman J„ 394-395
JOLIVET Régis, 120-121 KANE, Pascal, 335
Jones, Maxwell, 275 Kant, Emmanuel, vii, 14,92-93,98,102-104,106-108, 132-133,263,290-
Joseph, Xavier, 275 291,294,300-304,334,419 KaO, Micheline, 30,32-33,35-36,48.62-63
Joséphine, 346-348,350,402-403 KaSTLER, Alfred, 256 Kaufman, Eleanor, v, 385-386 Kazan, Elia, 330-
jOST, François, 335-336 331 Keaton, Buster, 93-94 Kecojevic, Tatiana, v-vi, 402-403 KERN, Anne-
Jouffroy, Alain, 245 Brigitte, 317*318,404-405 KeröUAC, Jack, 354*355,382-383
Jourbheuil, jean, 350 Kestemberg, Fvelyne, 47 Kierkegaard, Soren, 36-37,50-51,99 Klein,
JOYCE James, 52-53,177-178,320,348-349,402-403 Melanie. 137-138 Klein, Yves, 162 Kleist, Heinrich Von, 18,355
Indice 423

Klejman, Georges, 241-242,245-248,256 Lebel, Jean-Jacques, v-vi, 148-149,206,227-228,245,


KLÖSSÜWSKI, Pierre, 84-85,105,116,255,362-363,425 346-348,380,382-383,405-406 iEBûViCî, Serge, 51
Koechun, Philippe, 59-60 Leclaire, Serge, 17-18,46-47,137-138,168-169,177, 285-
Kofman, Sarah, 116 286,379-380 Leclerc, Henri, 248,256 LeCLERCQ, Stéfan, 140-
Kojève, Alexandre, 85,93-94,123 141,420 Lecourt, Dominique, 314-315 LEDUC, Victor, 36-37
KOPP, Anatole, 36-37 Lefervre, Henri, 36-37,117,148-149 Leibniz, Gottfried Wilhelm,
KOUPERNIK, Cyrille, 176-177 vii, 89-90,93-94,107,118-119, 138-141,267,293-295,298-
KOVEL, Joel, 380 299,301-302,345-346,364-368, 386-387,393-394,408,411-
Krafft-Ebing, Richard Freiherr Von, 105-106 Kramer, Robert, 412,417 LEIRÏS, Michel, 36,84-85,258-259 Lelièvre, Henri, 248
327-328,350-351 Kravetz, Marc, 75-76 Kritzmann, Lawrence, DEMARQUE, Francis, 32-33 Lemoine, Claude, v, 82-83,91-
v, 386-387 KjRIVlNE, Alain, 79-80 Kubrick, Stanley, 330- 92,152-153 Lemoine, Yves, 245-246 Lénine, 72-73,75,415-416
331 Kullberg, Christina, v, 356-357 Kurosawa, Akira, 327-328 Lennon, John, 382-383 Léonard De Vinci, 359 LEROY, Pierre,
256-257 LEROY, Roland, 75-76 Lester, Mark, 383-384 Leutrat.
L Jean-Louis, v, 336-337 Levi, Primo, 425-426 Levïldier,
Labarthe, André S., 328 Raymond, 36-37 Levinas, Emmanuel. 212,317-318 Lévi-Strauss,
Laborde, Gérard, 14-15 Claude, 51,166,169-170,192-193,198 LÉVY, Benny, 175-
Labre, Jean, 37-38 176,308 LÉVY, Bernard-Henri, 244-245,306,308 Lévy, Carlos,
LACAN, Jacques, 13-17,19,38-41,46-54,59-61,66-68,73, 262-263 Lévy, Pierre, 308,320-321,418 LEWIS, Jerry, 93-
75,92,105-106,137-138,148-149,157-170,177-178,181, 189,190- 94,117-118,135-137,269 LIN Piao, 300-301
191,194-195,197-198,206,212-213,260-261, 274-275,285-287,362- LîNDON, Jérôme, 215,230,245,307-308 Linhart, Danièîe, 147-
363,385-386,398 Lacoue-Labarthe, Philippe, 116 Lacroze, 148 Linhart, Robert, 175-176,181-182,226-227,287-288
René, 89 Lagache, Daniel, 92 Lagisquet, Élisabeth, 408 Laine, Linhart, Virginie, v-vi, 19-20,22-23,33,38-39,41,49-54, 59-
Tony, 54,279-280 60,63-66,149,151-152,209,239-243,245-250,276-278,
LainG, Ronald, 151-152,274-275,277-278,381-382 317-319,322,345-349,380-383,394,395,402-406,418
Lalonde, Brice, 316-318 LïpietZ, Alain, 317 LiWith, Karl, 116 Lo RUSSO,
Lama, Luciano, 238-239 Francesco, 240 Loach, Ken, 351 Loiseau, Sylvain, v, 373
LAMBRICHS, Georges, 181 Lûncle, François, 245-246
Lammenaîs, Félicité Robert De, 330-331 LoSEYjoseph, 329-331,335-336
Land, David, 383-384 Lotringer, Sylvère. v-vi, 195-196,379-383,386,388
Land, Nick, 392-393 Lourau. René, 228-229
Lang, Fritz, 203-204 LOWRY, Malcolm, 167-168,411-412
Lang, Jack, 205-206,245,250-251,260-261,313-315, LUCRÈCE. 116,176
403-404 Lula (Luis Inacio da Silva), 243,395-396 Lumet, Sidney, 338
Lang, Monique, 404 Langer, Maria, 397-398 Langlois, Denis, Luxemburg, Rosa, 75,249-250 Lyotard Jean-François, 116,179-
257-258 LAN2MANN, Claude, 86-90,327 Lanzmann, Jacques, 180,204-205,228-230, 287-293,301-302,315,325-
89-90 Lapassade, Georges, 228-229 Lapeyroux, Ivan, 420 326,373,380,383-386,407-408, 417
Laplanche, Jean, 158-159,168-169 Laporte, jean, 99 Laporte,
Roger, 181 Laporte, Yann, 420 M
LapOUJADE, David, v-vii. 115,294,368,404,412-413 MABíN, Yves, v. 406-408 Maccheroni, Henri, 406 Macciocchi,
LaRDET, Pierre, 29-30 Maria Antonietta, 242 Machado, Roberto, 397 Macherey, Pierre,
Lardreau, Guy, 305,306,408 105,192,204 MacKay, John, 385-386 Madarasz, Norman, v, 397
Larouche, Gustave, 381-382 Madison, James, 415-416
Laruelle, François, 383 Maggiori, Robert, v, 13,16-19,22,209-210,254-255,268,
LAS VERGNAS, Raymond, 284-285 365,372-373,404,407 Mahler, Gustav, 211 MALDINEY, Henri,
Latour, Bruno, 418-419 13-14,117-118,158-160 Malebranche, Nicolas, 88,117-118
LAUNAY,Jean,88 MaLICK, Terrence,,351 Malinvaud, Edouard, 233-234 Malle,
LAURENCEAU, Mme, 233 Louis, 327 Mamelet, Mlle, 233 Manast, Pierre, v-vi Manceaux,
Lautier, François, 404-405 Michèle, 286 Mandel, Ernest, 230 MANENTI, Josée, v, 67-
Lautman, Jean. 289-290 Lauzier, 69.72-73 Manet, Édouard, 364
Gérard, 18-19,345-346 Lavisse, MangaNaro, jean-Paui, v, 328-329,362-363 Maniglier, Patrice, v,
Ernest, 121-122 412-413 Mann, Daniel, 336 Mannoni, Maud, 274-275,278-280
Lawrence, David Herbert, v, 167-168,354-356,392-393, 402- Mao, 36,79-80,304-306,327-328 Marcel. Gabriel, 115 Marcellin,
403 Raymond, 256 Marco Aurelio, 262-263 Marcos, Sylvia, 397-398
Le Bras, Gabriel, 76-77 Le ClÉzlo.JMG, Marcuse, Herbert, 176,178-179 Marczewskì Jean, 233-234
354-355 Le Goff, Jean-Pierre, 184-185 Le MaRGOLIS, Jorge, 398 Marié, Michel, v, 90-91,335-336
Guillant, Germaine, 47,72-73 Le Guillant, Marinier Jean, 83-84 Marion, Sylvie, 248 MARONGItjJean-
Louis, 47 Le Pen, Jean-Marie, 76,345-346 Baptìste, 404-405 MarraTI, Paola, 331-332,420 Martelaere,
Le Péron, Serge, 325-326 Le Rider, Jacques, Patricia de, 102 Martin Jean-Clet, v, 107-
113-114,117 Le ROY Ladurie, Emmanuel, 108,117,141,290,408,411-412, 420
284-285 Le Seigneur, Vincent Jacques, Martin, Lucien, v-vi, 347-348 Martineau, Christine, 256-257
316-317 Leach, Edmund, 198 Martinet, Gilles, 38
Marx, Karl, 53-54,72-73,79-80,403,105,115,117,166-167, MuRARD, Lion, v-vi, 44-47,54,66-67.76-77,79-80, 224-225-233 Murard,
176,179,191,226,245-246,256-257,286 Numa, 232 Murnau, Friedrich Wilhelm, 339 Muyakd, Jean-Pierre, v-vi,
MasCOLO, Dionys, 425*426 13-18,72-73,147-149
Massé, Pierre. 233-234
Massumi, Brian,
424 383-384,387-388
índice
N
Matta, Ramondo, v-vi Nadaud, Stéphane, v-vi, 17-21,163-164,195 Nadeau, Maurice, 17-18,176-
Maugendre, Brigitte, 73-74 177,229-230,426 Nancy, Jean-Luc, 116,407 Narboni, Jean, v-vi, 325-
Mauriac, Claude, 176-177,257-260 330,335-336 NEGRI, Toni. v-vi, vi, 217,238-240,245-247,387-388,399,
Mauriac, François, 176-177 408,414-415,420 NeuvÉGLîse, Paule, 306-307 Newton, isaac, 140-141
Mauroy, Pierre, 260 Nietzsche, Friedrich, vii, 14,20-21,84-85,92-93,97-98, 102,107-
MAURY, Hervé, v, 53-54,76-80,242 108,110,113-119,123,126,131-134,141-143,180. 226-227,254-255,261-
Mauzi, Robert. 108-110,336 263,265-266,290,292-294,301-302, 304-305,308,355-356,361-
May, Benjamin, 393 362,377,382,397,399,408, 416,419,427 Noël, Bernard, 78,245 NoguèRES,
Mayer Jacques, 233-234 Flenrî, 259 Nora, Simon, 233-234 NoramBUENa, Miguel, v-vi, 398-399
McCulloch, Warren, 418-419
MÉDAM.jean, 78
Meinhof, Ulrike, 243-244 O
Melville, Herman, 134-135,354-356,386 Odin, Roger, 47-48,335-336 Ohrant, Louis, 69-70,280 Oliveira, Manoei
Mendelfjev, Dimitri Ivanovitch, 334-335 De, 327-328 Olkowski, Dorothea, 383-384,388 OPHÜLS, Max, 341-342
Mendelsohn, Sophie. 160-161 Orfila, Arnaldo, 397 Ortigues, Edmond, 168-169 Ortigues, Marie-Cécile,
Men dès France, Pierre, 230,233-234 168-169 Oury, Fernand, 31-33,72,148-149 Oury, Jean, v-vi, 17,39-41,46-
MENGUE, Philippe, v, 220,292-293,301-302,416-417 50,52-53,56-57,59-60,63-69, 72-73,148-149,151-152,181,233,274,345,347-
Ménil, Alain, v, 330-332,336-337 348,402, 404-405
Mercier, René, 233-234 OVERNEY, Pierre, 175
Merleau-Ponty, Maurice, 83-84,119-120.134,421-422
Mesrine Jacques, 248 P
Messiaen, Olivier, 362-363 Pace, Lanfranco, 245.247 Packet,
Metz, Chrisitan, 328-329,333-336 Pierre, v-vi. 38-39 Paillot, Maurice,
Meyer, Daniel, 38,169-170,198-199 59-60
Michaud, Ginette, v-vi, 47-48,50-51,61,63 Pain, François, v-vi, 54,61-62,65,69-70,206,224-225,229, 242,247-
Michaux, Henri, 358-359 251,346-347,405 PAÏNL Dominique, v-vi, 328-329 Palma, Norman, 116
Michelet Jules, 330-331,373-374 PANAGET, Jo, v-vi, 35-37,73-74,149-150 Pankûw, Giséla, 59-60 Paquot,
Mignard, Annie, 73-74 Thierry, v-vi, vi, 399,420
Mignard Jean-Pierre, 245-248 Paradis. Bruno, 365-366
Mignot (Dr), 233 Paramellr, Françoise, 179-180
Milbergue Jean-Pierre, 75 Parente, André de Souza, v-vi, 326,335
Miller, Gérard, 287-288 Parmentier (senado), 245-246
Miller, Henry, 355 PARNET, Claire, vi, 82-83,184-185,264,294-295,382-383
Miller, jacques-Alain, 67-68,157,189,286-287 PARRAIN, Brice, 84-85
Miller Jam es, 259-261 PASCAL (juiz), 256-257
Miller Judith, 285-286,301 Pasolinï, Pier Paolo, 339-340
Millon, Robert, 46,59-60 Passerûn, Jean-Claude, 257-259
Millot, Catherine, v-vi, 163,177-178,185 PaSSERONE, Giorgio, v-vi, 290,295,399-400
Mïlner Jean-Claude, 157 Passet, René, 317-318
Milner, Max, 90-91 PATTON, Paul, v-vi, 383-384,416-417
Mira y Lûpès, 45-46 Paulkan, jean, 84-85
Mitterrand, François, 228-229,246-251,260,313-315 Pautrat, Bernard, 116,412-413
Monchablon, Alain, 75 Pauvert, Jean-jacques, 230
Mongin, Olivier, v-vi, 356,421-422 Payot, Daniel, 386
Monnet, Giannini, 36-37 PÉGUY, Charles, 135,265-266
MONODjacques, 171 Peirce, Charles Sanders, 21-22.195-196,334-335
Monroe, Marilyn, 182-183 Pelbart, Peter Pal, 384
Montand, Yves, 258-259 Pellandini, Ettore, 63-64
Montebello, Pierre, v-vi, 141-142,426-428 Péninou, Jean-Louis, 74,76
MoNTEREGGioJean Malfatti De, 90 Pepiatt, Michael. 364
Montesano, Gianmarco, v-vi, 22-23,206,240-243,245 Percheron, Daniel, 333
Montinari, Mazzino, 116 Perdreau, Nicole, 63-65
MÔQUET, Guy, 85 PÉRICLES, 289-290
Moravia, Alberto, 245 Perret, jean, 72-73
More, Marcel, 84-85,90,113 Perroux. François, 233-234
Moreau, Pierre-Prançois, 413-414 Petit, Raymond, 29,34-38,58-59,69-70
MORPORD Janet H., 79-80,224-225,227,229,232-233 Petitjean, Armand, 404-405
Morin, Edgar, 279-280,317-318 Pétry, Florence, v-vi, 225-226,229-230
MORO, Aldo, 245-246 Peurière, Gérard, 317
Morris, Meaghan, 392-393 PeyrefïTTE, Alain, 152-153,259
MOULIER-BûUTANG, Yann, v-vi, 240-243,245-246,414-415 Moulin, Peyrol, Georges, 300-301
Jacqueline, 63 MûUNiER, Emmanuel, 330 MouRELjean, 116 Mozart, Piaf, Edith, 93-94,360-361
Wolfgang Amadeus, 93-94 MOZÈRE, Liane, v-vi, 53-54,58-59,73- Picasso, Pabio, 176
74,76-80,228-229, 232-233 PIERRE DE BLOIS, 84-85
Munier, Jacques, 420 Pierret, Marc, 348-349
Pïndar, lan, 393 Riefenstahl, Leni, 337-338 Riemann, Bernhard, 298-299 Rimbaud, Arthur,
PlNHAS, Richard, v-vi, 117,152-153,292-293,360-362,377, 406,416- 382,393 RiPERTjean. 233-234 RrST, Alain, 317
417,420 Pinochet, Augusto, 398 PlPERNO, Franco, 238-239,245,247 RlVETTE, Jacques, 325-326,341-342
Pivïdal, Rafaël, v-vi, 17-18,102-103,176,177 Pivin, Ciotilde, 291 Pivot, Rivière, Pierre, 259,327-328
Bernard, 306-307 PLANCHON, Roger, 117-118 PLATÂO, 93-95,102- Robert, Yves, 32-33 índice 425
103,117-120,131-133,161-162 Pleven, René. 256-258 Poe, Edgar Alian, 160 Robin Jacques, v-vi, 317-319,404-405
Pol Pot, 231-232,301-302 Rocard, Michel, 62-63,233-234,314,316-318
PolaCK, Jean-Claude, v-vi, 13-14,48,52-54,57-60,65, Rodis-Lewis, Geneviève, 117-118
6?, 72-74,76,151-152,218-219,225,245,278-279,400, 414-415 Rqdowick, David Norman, 341,385-386
Polan, Dana, 387-388 Polin, Raymond, 102-103 Polïtzer, Georges, 120- Roger, Alain, 92-93,104-105,117-118,301
121,335 Pomian, Krzysxtof, 232 Pompidou, Georges, 287 PONCIN, ROGER Jean-Henri, 325-326
Catherine, 72-73 Poncin, Claude, 46,60-61,72-73 PONGE, Francis, 47-48 Rogozinski Jacob, v-vi, 416-417
Poperen, Jean, 90-91 ROLiNjean, 347-348,403
PORTER, Karl, 384 Rolnik, Suely, v-vi, 395-397
Potte-Bonneville, Matthieu, v-vi, 263,267-268,414-415 Rûmeu, 50-51
PÛTTECHER, Frédéric. 256 ROOS, Richard, 116
Poulantzas, Nicos, 288-289 Rûsch, Eleanor, 376
Poulidor, Raymond. 94-95 Rose, Pierre, 17-18,67-68,177,250-251
Poux, René, 72-73 Rosenfeld, Oreste, 38
Pkadines, Maurice, 421-422 Rosier, Michèle, 330-331
Prado, Bento, 397 Rossellini, Roberto, 330-333,339
PRÉLI, Georges, 53-54,77-78,229-230 Prenant, Marcel, 38 Prîce, Daniel, Rosset, Clément, 157,420
v-vi, 385 Prigogine, Ilya, 314-315,418 Prûnïer, Raymond, 316-317 Protevi, Rostain, Michel, v-vi, 14-15,53-54,66,76,79-80,218-219,
John, v-vi, 219-220 Prou, Charles, 233-234 Proust, Françoise, 408 224-225,228-229 Rotelli, Franco. 280-281 Rothberg, Denise, 59-60
Proust, Marcel, vii, 89,93-95,105,108-110,135-136, 158-159,261- Rotman, Patrick, 75-76,147-148 RoubaudJacques, 326-327 Roubier Jean-
262,293-294,334-335,349-350,354-355,360, 364,375-376 Paul, 79 Roudinesco, Élisabeth, v-vi, 177-179,292 Rouget, Gilbert, 362
Rouleau, Danielle, 54,225-226,347-348 ROUOT, Claude, 230
Rousseau Jean Jacques, 93-94,100-103
Q Roussel, Raymond, 162,254-255,269-270
QUÉRû, Laurent, 256 QUEHOTRET, M. DE, 58-59 QUEROUIL. Olivier, Roussillon, René, 180-181
v-vi ■ Routier, Françoise, 53,280
QUERRIEN, Anne, v-vi, 73-74,76-77,79-80,147-149,223, 225,227- Rovattï, Pier Aldo, 399-400
229,232-233 ROY, Claude, 36
Royal, Ségoiène, 313-314
R Ruiz, Raoul, vi, 327-328
Rabin, Itzhak, 406-407 Russel, Bertrand, 365-366,368
Rabouïn, David, v-vi, 261,360,365-366,412-413 Ruyer, Raymond, 140-141,421-422
RACINE, Yves, 59-60
RaGON, Marc, 404-405 S
RAJCHMAN, John, 379-382 Sabot, Philippe, 255
Rancière, Danielle, 256-257 Sacher-Masoch, Leopold Von, vii, 13-14,98,105-106, 108-
Rancière Jacques, v-vi, 285-288,339-340,355-356 109,137,158,330,354,356 SACHS, Thomas, 397-398 Sade, Marqués de,
RaNKE, Otto, 121-122 105-106 Sadoul, Georges, 45-46 Safouan, Mustafa, 46-47 Said, Edward,
RASTIER, François, 373 260,388 Saint-GroüRS, jean, 233-234 Saïnt-Thierry, Guillaume, 84-85
Raulet, Gérard, 261-262 Salanskis Jean-Michei. v-vi, 292-293 Salomon, Jean-
Rauschenberg, Robert, 352 Ciaude, 276-277 Sanbar. Elias, v-vi, 214-216,294
RaVENEl, Bernard, 404-405 Sand, George, 330-331 Santiago, Hugo, 326-327,398
RAY, Nicholas, 329-330,336 Sanzio, Alain, 227-228
Raynaud, Fernand, 349 Sartre, Jean-Paul. 33-40,49,84-87,90,93,117-118. 180-
Regnault, François, v-vi, 93-95,105,285-288 181.227-228,257-259,299-300,320 Saunier-Séï'TÉ. Alice, 287-
Regnault, Hervé, 420 289 Saussure, Ferdinand De. 60-61,190-191,194-196, 334-
REICH, Steve, 361-362 335,379-380 Sauvageot, Jacques, 147
Reich, Wilhelm, 176-178 Sauvagnargues, Anne, v-vi, 105-106,120.137,140,204, 298-300,356-
REÏK, Theodor, 106 359,364,376-377,413-414,420 SCAL20NE, Greste, 238-239,245-246,399
RENAUT, Alain, 385-386 Schalit, jean, 74
RENOIR, jean, 61-62,329-330,338-339 SCHÉRER, René, v-vi, 83,98,228-230,245,288-290,321-322, 404-408
Resnais, Alain, 50,75,329-330,341-342 SCHIEDT, Alain, 72-73
Revaült dAllonnes, Myriam, 421-422. SCHiEDT, Estelle, 72-73
REVAULT D’ALLÛNNES, Olivier, v-vi, 88-89,102-103,119 SCHMID, Daniel, 326-327
REVEL, Jacques, 196 SCHOENICHEN, Walther, 319
REVEL Judith, v-vi, 258-259,263-265 SCHROEDER, Barbet, 327-328
Revel, Renaud, 244-245 Schwartz. Laurent, 38
Revon, Christian, 256 Sciascia, Leonardo, 245
REY, Evelyne, 89-90 SEARLE, John, 204
REYjean-Michel, 116 Sebag, Lucien, 36-39,50-51
REY, Roger, 37-38 Segal, lan, 276-277
REYNAULD, Hervé, 420 ,, SEIGNOBOS, Charles, 121-122
Rezvani, Serge, 88-90 Senghor, Léopold Sédar, 84-85
Richard Jean-Pierre, v-vi, 292-293,360-362,406 Riccëur, Paul. 113- Sephiha, Vidal, 204-205
114,132,136,256,336-337,383-384, 419-422
SERGE, Victor, 75 Sugimura, Massaki, v-vi, 394-395 Surin, Ken, 385-386
Serisé Jean, 233-234 SUZUKI, Hidenobu, v-vi, 294-295,393-395 Swinburne, Algernon, 364
Serres, Michel, 284-286,365-366,418-419 Syberberg, Hans-Jürgen, 327-328
SERVAN-SCBREIBER, Marie-Claire, 230
SHAKESPEARE
426, William,
índice 216,358,363-364
T
SHEILA, 181-182 Tabatoni, Pierre, 382-383 Tacquin, Véronique, 336-337 Tahava, Keiichi,
Sibertin-Blanc, Guillaume, v-vi, 107-108.123,133-134. 204,214-215,413 394 Takamatsu, Shin, 394-395 Tangue, Kemo, 394-395 Tarde, Gabriel De,
SïBONY, Daniel, 327-328 Si GALA, Claude, 69-70,278-280 Signoret, 109-110,138-143,427 Tarkovski, Andreï, 341-342 Tautin, Gilles, 150-151
Simone, 258-259 Simon, Hermann, 36-37,39,45-46,88-89 Simon, TerdimaN, Dîck, 384-385 Thibault, Marie-Noeile, 75-76 Thierrée, Jean-
Simone, 178-179 Baptiste, v-vi, 61-62 Thom, René, 314-315,397-398 Thompson, Evan,
SiMONDON, Gilbert, 139-140,163-164,341,418-420 SlMONT, Juliette, 376 THOROS, Yvonne, 290 Tintoretto, 367 Tito, 35-36
406-407 TODOROV, Tzvetan, 379-380 Tomlinson, Hugh, 392-393 Tonnerre,
SrVADON, Danielie, v-vi, 48,53,57-58,65,151-152,217-219, Jérôme, 330-331 Topalov, Christian, 223-224 Tormey, Simon, v-vi, 393
233,320,346-347,414-415 Sivadon, Paul (Dr.), 233 SMITH, Dan, 383- Torrübia, Afelio, 72-73
384 Smith, Patti, 382-383 Sollers, Philippe, 306-307 SOMMIER, Isabelle, TORRUBIA. Horace, 17-18,46,59-60,72-73,175,177,233 TOSHîmitsu,
238-239 S ou lié, Charles, 286 Imaï, 350-351
SOULIER, Gérard, v-vi, 240-241,244-250,259 Spitzer, Gérard, 36-39,78 TOSQUELLES, François, 44-47,49,54.57,59-60,67,72,233
Spivak. Gayatri Chakravorty, 388 Staline, 38-39,301-302 TOUBIANA, Serge, v-vi, 326-328,330
Stenghers, Isabelle, v-vi. 209,314-315,376-377,397, 417-418 Touraine, Alain, 326-327
STÉPHANE, André, v-vi, 18-19,179-180 STERN, Daniel, 320,348 TOURNïER, Michel, v-vi, 82-90,94-95,99-100,135
Sternberg Jacques, 336 TOYOSAKI, Kouichi, 393-394
Stevenson, Robert Louis, 354-355 TraSTOUR, Guy, v-vi, 72-73,75-76
STIEGLER, Bernard, 419-420 Trastour-Fenasse, Renée, 72-73
Stivale, Charles, 383-384,387-388,392-393 Tronti, Mario, 217
Stockhausen, Karlheinz, 367 TrOTSKI, Léon, 38-39,75,78-79,245-246 Troubetzkoy, Mcolaï, 60-61
STRAUS Jean-Marie, 327-328,352 Truffaut, François, 327-328,330 TsitouvîDES, Savas (Dr.), 281 Tubiana,
Strauss, Claude, 169-170,192-193,198 Michel, v-vi, 244-245,250,259 Tuhakami, 394 Turner, William, 364
Strauss, Leo, 93-94,166
Stroheim, Erich Von, 93-94,329-330
Strulti, Chiara, 281 u
Suétone. 358 UNO, Kuniichi, v-vi, 19-20,393-394 Uri, Pierre, 233-234
V w
VAHANENjanne, v-vi Vaille, Dr. Charles, 233 ValadìER, Paul. Wegener, Alfred, 339
116 Valéry, Paul, 228-229 Van Gogh, Vincent, 97,364,411-412 Weil, Éric, 289-290
VANOLI, André. 233-234 Varela, Francisco, 22,281-282,320- Weil, Nathalie, 276-277
321,376 Vasconcellos Jorge, 397 Vattimo, Gianni, 399-400 Vedel, Weingarten, Romain, 350
Georges, 76-77 VEINSTEIN, Alain, 245-246,407-408 Venault, Welles, Orson, 330,336
Philippe, 330-331 Verdi, Giuseppe, 289-290 Vermeersch-Thgrez, Wenders, Wim, 327-328,336
Jeannette, 152 Verkant, Jean-Pierre, 36-37,284-285 Verne, jules, WENZELjean-Paul, 350
20-21 Vernet, Daniel, 226,246-247 Vernet, Marc, 333,335-336 Whitehead, Alfred North, 21-22,99,142-144,266
Vernet-Stragiotti, Marie-Thérèse, 226 Verny, Françoise. 306 Wiene, Robert, 203-204
Verstraeten, Pierre, 406-407,418 Vertov, Dziga, 385-386 Veyne, Wiener, Norbert, 392-393
Paul, v-vi, 254,262,264 Vial, André, 83-84 Vian, Boris, 230 WISE John Macgregor, v-vi
Vianssûn-Pgnté, Pierre, 306 Vidal-Naquet, Pierre, 256 Vidor, King, Wismann, Heinz, 116
329-330 Vignola,'Adélaïde, 350 Vilar, Jean, 62-63 Villain, Wittgenstein, Ludwig, 262,290-291
Dominique, 325-326 VILLANI, Arnaud, v-vi, 99- Wojnaro wi c z, David, 350-351
100,102,105-106,141-144, 197-198,208-209,304-305,364- Wolfe, jhomas, 354-355
365,411-412,416-417 Vincent, André, 233-234 Vincent, Jean- Woolf, Virginia, 354-355
Marie, 107-108,414-415 Vinciguerra, Lucien, 408 Worms, Frédéric, v-vi, 99,102-103,120-122,412
Virilio, Paul, v-vi, 133-134,248-249,317-319,322,337-338, WYSCHNEGRADSKY Ivan, 362
404-405
VlRMAUX, Alain, 334-335 Visconti, Luchino, 330-331,339- X
340 Vital, Joachim, 363-364 Vitti, Monica, 118-119 Vives, Xenofonte, 93-94
Angels, 44-45 Vivien, Claude, v-vi, 38-39,41,50-51 Vlaminck,
Maurice DE, 32 Vlllani, Tiziana, 399-400 Voltaire, 365 Voynet,
Dominique, 317 VuARNET,Jean-Noel, 106-107,110,116 Y
Vuillemin, jules, 117,254-255 Younes, Chris, v-vi, 117-119,152,420-421
Waechter, Antoine, 316-318
Wagner, Richard, 349-350,361-362,367
Wahl, jean, 4.1,84-85,88,98-100,102-103,113-115,117
z
Zabunyan, Dork, 110,336 Zahm, Olivier, 352,376-377 Zancarini-
Walesa, Lech, 260 Fournel, Michelle, 256 Zanghari, 240 Zaoui, Pierre, 414-415
Warhol, Andy, 352 Zecca, Marina, 398 Zeldin, Theodore, 230-231 ZempléNî, Andras,
Waters, Lindsay, 386-387 168-169 Zourabichvilî, François, v-vi, 125-126,134-135,185,
Watson, Janeil, 385-386 355-356,293-294 Zublena, Americo, 72-73 Zylberman, Patrick,
Weber, Henri, 228-229,242,285-288 229-232
*N. de T.: Sigîa de Francs-tireurs et partisans, movimento na Résisté ¡ici a Francesa à ocupaçâo alemà.
*N. de T.: UNEF: Union Nationale des Étudiants de France; MNEF; Mutuelle Nationale des Étudiants de France.
* SNf, de R. T.; A expressao IIfaut montrer la différence allant différant, ao ievar em consideralo o contexto epistemológico deleuziano, poderia traduzir-
se como “é necessàrio indicar a diferença dirigindo-se ao diferimento",
* N. de T/. Syndicat National de tEnseignement Supérìeur.
* N. de T.: International Psychoanalytieai Association.
N. de X: Palavra de origem inglesa que designa os invasores de imóveis desocupados.
** N. de R. X: No original, Varbre a palabrea. O voeábulo i francés palabre corresponde, na sua primeira acepgáo, a:; um uso pejorativo de um discurso enfadonho.
Na Africa, no entanto, relaciona-se a um debate costumeiro éntreos homens de urna pequeña cídade. Assim, o verbo palabre, aínda em uso africano, significa queixar-
se, pedir instiga. Este último significado parece-nos o adequado á tradugáo do conten do deste texto.
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