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Índice
Proémio ...................................................................................................................................... 5
Manuel João Lemos de Sousa
2
História mineira
Pode uma sociedade anónima estrangeira ser concessionária de minas portuguesas?
José Manuel Brandão & Maria de Fátima Nunes ...................................................................... 217
A mina de carvão do Cabo Mondego: 200 anos de exploração
J.M. Soares Pinto et al.............................................................................................................. 235
Memória da comunidade mineira Riomaiorense, 1942-1969
Nuno Alexandre Rocha ............................................................................................................ 259
Mineiras do Lena: no fio da navalha
José Manuel Brandão .............................................................................................................. 285
História de uma mina contada por alunos do ensino secundário: o exemplo
da exploração das lignites de Soure
Matilde Azenha et al. ............................................................................................................... 309
Minas de Alcanadas: prelúdio, fuga e final
José Manuel Brandão .............................................................................................................. 331
Notas curtas
João Monteiro Conceição, engenheiro. “Homem, técnico e empresário; um Legado”
José Charters Monteiro............................................................................................................ 361
“Carvões do Lena”: um projeto de investigação participada do MCCB
Equipa do Museu da Comunidade Concelhia da Batalha .......................................................... 371
3
As Minas do Pejão: da estrutura produtiva
à paisagem cultural
Daniela Ribeiro
Resumo
À semelhança do que se verificara em muitos países europeus, a exploração do carvão teve um papel
fundamental nas indústrias portuguesas. Ao longo do século XX é o combustível o motor de
desenvolvimento da Bacia Carbonífera do Douro. A dependência do País perante o minério determina a
relevância do sistema energético na transformação da paisagem.
Na base deste sistema, organizam-se os Coutos Mineiros, estruturas autónomas imbuídas por si só de
valor identitário e de representatividade; não só pela especificidade das formas e equipamentos que
acompanhavam o processo de extração; também pelas lógicas sociais que o árduo trabalho no subsolo
obrigava a estruturar.
No Couto Mineiro do Pejão, a paisagem constrói-se pela desconstrução do filão de carvão. Aproximamo-
nos do entendimento de paisagem cultural. Mais do que musealizar tudo o que foram equipamentos de
extração mineira, problematiza-se hoje a sua assimilação perante as lógicas contemporâneas.
Palavras-chave: Património; minas de Carvão; paisagem.
Abstract
Similar to what was happening in other European countries, the coal exploitation had a decisive role in
Portuguese industry. Throughout the twentieth century is the fuel the engine of development of the
Carboniferous Basin of Douro. The ore dependence of the Country determines the relevance of the energy
system in the landscape transformation.
On the base of this system, the “Coutos Mineiros” are designed, autonomous structures, by themselves
with important identity and representative value; not only because of the specificity of shapes and
equipment that were part of the extraction process; but as well because of the social logics that hard
underground work imposed.
The "Couto Mineiro do Pejão" landscape is constructed by the deconstruction of the coal seam. We are on
approaching of cultural landscape meaning. More than musealizate all that were extraction equipment,
today we are problematizing their assimilation before the contemporary way of life.
Keywords: Heritage; coal mining; landscape.
MEMÓRIAS DO CARVÃO
Nota biográfica
Daniela Alves Ribeiro. Arquiteta e Mestre em Arquitetura, pela Universidade do Porto. Em 2012 ingressa no
Curso de Estudos Avançados em Património Arquitetónico, no qual inicia a investigação relativa a
complexos mineiros. Atualmente encontra-se a frequentar o Programa de Doutoramento em Arquitetura
no Perfil de Património FA–UP, desenvolvendo investigação em torno de Territórios de produção
energética e património paisagístico, tendo já participado em seminários e conferências com
comunicações relativas à investigação desenvolvida na Bacia Carbonífera do Douro.
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As Minas do Pejão: da estrutura produtiva à paisagem cultural
Introdução
Volvidas duas décadas após a introdução do fuelóleo na Central Termoelétrica da Tapada
do Outeiro, encerra a última exploração de minério combustível em Portugal. Em 1994 dá-se a
“morte assistida” da Mina do Pejão. A afirmação da era industrial da eletricidade e da
transformação química vem alterar o sistema energético assente no que L. Mumford designa por
“Capitalismo Carbonífero” 1.
Durante a fase paleotécnica 2 o carvão é o combustível por excelência. Enquanto capital
acumulável, o carvão, um mineral não oxidado, rapidamente se torna mais rentável do que a
madeira: muito mais compacto, a sua extração, transporte, armazenamento e transformação
passam a constituir-se como um sistema de organização territorial. Pela primeira vez é utilizada
energia potencial, tanto nas indústrias como nas estruturas urbanas.
Ao longo do século XX é o combustível o motor de desenvolvimento da Bacia Carbonífera
do Douro: a dependência do Porto em relação ao carvão determina a relevância do sistema
energético 3 na transformação da paisagem 4, que se estende desde as estruturas sociais de apoio
à Mina aos sistemas infraestruturais da Cidade.
Desmaterializada a fonte de energia, todo o sistema deixa de ter significância: o elemento
de articulação territorial passa à imaterialidade; perde-se a necessidade de uma estrutura física
de suporte, duplamente obsoleta perante o esgotamento do minério. Mais do que a forma,
ganha relevância a sua representação enquanto símbolo cultural.
Perante a morte funcional deste sistema energético problematiza-se a sua assimilação
aquando da substituição das lógicas (infra)estruturantes. É neste contexto de investigação que se
apresenta uma primeira abordagem às Minas do Pejão.
No final do século XIX começa a ser atribuída particular relevância ao carvão nacional. Com
a “Regeneração” (1851-1868) e o forte investimento nas Obras Publicas, o carvão passa a ser
entendido como fator chave para a recuperação da economia nacional, iniciando-se a corrida ao
carvão mineral. Na viragem do século, já a Bacia Carbonífera do Douro se apresenta como
principal área de extração deste combustível. Contudo, será durante o Estado Novo que se
verificará o maior desenvolvimento dos sistemas energéticos: a vontade de afirmação
nacionalista de um País pouco industrializado leva ao forte investimento no sector.
1
Em Técnica y Civilización (1946) Lewis Mumford usa a expressão Capitalismo Carbonífero para se referir ao
sistema económico subjacente à utilização do carvão como fonte de energia potencial. MUMFORD, L. Técnica Y
Civilización. 1992. p. 112.
2
A fase paleotécnica corresponde à era industrial subjacente ao binómio carvão-fero, associada à 1.ª
Revolução Industrial, Idem. p. 109.
3
Entenda-se por Sistema energético o processo ilustrado por Fausto Posso em Development in Venezuela of
energy system based in the hydrogen . I : Production of electrolytic hydrogen, 2007.
4
Entenda-se por Paisagem a representação de um sistema de relação entre natureza e cultura.
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
Figura 1. Carta da região mineira do Douro. Desenho original de J.P. da Silva Rosado, à escala 1:100 000.
[S.I.]: Lithographia da Imprensa Nacional, 18--?]
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As Minas do Pejão: da estrutura produtiva à paisagem cultural
Figura 2. Povoados existentes em 1877. Base: Carta corográfica do Concelho onde se define as concessões
da mina do Pejão e da Serrinha (Póvoa), publicada na Revista de Obras Públicas e Minas, 1877.
6
O termo infraestruturação é utilizado no sentido da criação das estruturas de suporte, neste caso, suporte de
todas as relações socioeconómicas, e até mesmo culturais, que se estabeleceram em torno do complexo
industrial
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
caracterizada por grandes declives: ou numa posição alta - não extrema -, ou junto ao rio. Na
primeira, criam-se socalcos e libertam-se os vales para a agricultura. Evita-se o clima agreste do
alto dos montes; na segunda, privilegiam-se as relações comerciais, tendo como via de
comunicação por excelência, o Douro. Estes povoados - constituídos por aproximadamente 15
habitações - apresentavam sensivelmente a mesma distância entre si, 2 km (Araújo, 2006, p. 53),
consequência de um raio de apropriação para cultivo e estruturando-se a partir de uma rede de
caminhos articulados com a estrada que liga Castelo de Paiva ao Porto que, no final do século XX,
passa a corresponder a um troço da Estrada Nacional 222.
Figura 3. Evolução do sistema de povoamento durante o século XX. Base: Carta corográfica do Concelho
onde se define as concessões da mina do Pejão e da Serrinha (Póvoa), publicada na Revista de Obras
Públicas e Minas, 1877
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As Minas do Pejão: da estrutura produtiva à paisagem cultural
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
No caso do Pejão, deverá este Couto Mineiro ser entendido em articulação com o de São
Pedro da Cova, não só por integrarem o que aqui designamos por Sistema Carbonífero do Douro,
mas também pela articulação socioeconómica que mantiveram ao longo da história, visível, por
exemplo, através da partilha de estruturas de apoio social, a Caixa de Previdência designada
“Carvões”, ou de medidas protecionistas e de fomento à mão-de-obra comuns aos dois Coutos
Mineiros.
A imagem coletiva e de pertença ao Couto Mineiro era fomentada pela construção de
novos equipamentos, cada vez mais próximos do Douro. Desenhadas na Empresa e para a
Empresa, estas formas surgem da apropriação da linguagem das construções autóctones por
parte de uma arquitetura ao serviço das Minas, conferindo uma unidade específica ao território
que deverá ser entendida como símbolo de identidade.
No intuito de gerar uma espécie de referência/modelo socioeconómico, as estruturas
sociais (p. ex. Cooperativa de Consumo, 1942) e, ainda que de forma menos notória, as culturais
(p. ex. realização de Sessões de cinema sonoro, 1949) ou até mesmo as desportivas (p. ex. Piscina
de Germunde, 1957), pretendiam criar motivações para os mineiros (fig. 4). Eram estes os
espaços onde tinham lugar os momentos de sociabilidade e as festividades.
Figura 4. Acão Social no Couto Mineiro do Pejão (“O Pejão”, nº 49 ano V, 1952).
Durante décadas toda a região viveu em torno do Couto Mineiro: inteligível enquanto
conjunto, apresentava-se como uma comunidade autónoma, dependente de uma tutela especial,
com uma cultura administrativa própria, onde todos pormenores da vida do mineiro eram
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As Minas do Pejão: da estrutura produtiva à paisagem cultural
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
Figura 5. “Constrói a tua casa. II - O Projecto” (“O Pejão”, n.º 72, 1954).
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As Minas do Pejão: da estrutura produtiva à paisagem cultural
Ainda que projetados pelos mesmos técnicos envolvidos na construção dos equipamentos
sociais, os edifícios construídos para participarem no processo extrativo apresentam um
resultado formal completamente distinto, não só pelo programa específico a que se destinam,
também pela introdução de um sistema construtivo próprio, baseado em estruturas de betão
armado e obedecendo à escala da Exploração, em nada articulada com a dimensão humana (fig.
6).
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
Figura 7. Cavalete de S. Vicente, S. Pedro da Cova, construído em 1936 (Imagem original: Direção Geral do
Património Cultural).
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
Figura 9. Centro de Acão Social, Oliveira do Arda. Desenho publicado n’ “O Pejão”, n.º 49 de outubro de
1952.
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MEMÓRIAS DO CARVÃO
relação que a nova indústria estabelece com o lugar que assenta o património mineiro, em geral,
e por isso, omisso nas cartilhas de património (CUSTÓDIO, 2005: 148).O legado mineiro constitui
por si só valor identitário e de representatividade. Não só pela especificidade das formas e
equipamentos que acompanhavam os processos de extração; também pelas lógicas sociais e
territoriais que o árduo trabalho no subsolo obrigava a estruturar. Trata-se pois de um conceito
alargado e integrador, inerente a todo o espaço cultural da mina.
Estamos perante complexos cuja forma decorre de uma forte adaptação à paisagem
preexistente e também das questões ideológicas inerentes à lógica administrativa da Empresa
(fig. 11). Ganha relevância a sua dimensão enquanto modelo, enquanto “microcosmo económico,
social, científico e técnico” (Custódio, 2005, p. 149) cuja formalização denuncia a própria
organização social da Empresa. Destaca-se perante o entendimento de património cultural 7.
Contudo, tal como nos apresenta Lewis Mumford em Técnica Y Civilización (1992 [1946]:
112), a Mina é a base de assentamento urbano mais vulnerável possível. Esgotado o filão,
encerra, deixando obsoletas todas as estruturas determinadas em função da atividade extrativa.
A esta questão, os últimos trinta anos têm respondido com alterações programáticas nas suas
arquiteturas que, pelo seu funcionalismo, apresentam dificuldades de adaptação a novos usos.
Por um lado estamos perante um território estruturado em função “de imperativos
socioecónomicos (…) que desenvolveram a sua forma em resposta ao próprio ambiente natural”
(Aguiar, 2007: definição de Paisagem Cultural). Por outro, o Couto Mineiro do Pejão integra hoje
uma paisagem que denuncia os impactos de uma arquitetura industrial, também vernacular, cujo
processo de evolução ficara suspenso.
A natureza decadente destes complexos leva-nos a equacionar a “morte assistida” do
Património, no qual a ruína surge como alegoria dum processo destrutivo subjacente à própria
ideia de progresso (fig. 12).
Referimo-nos não só ao património subjacente ao conceito de paisagem cultural adoptado
em 1972 pela UNESCO 8 de carácter mais administrativo e politizado, mas também ao bem
patrimonial, em particular reconhecido em estruturas industriais, cujo próprio âmbito assume a
priori, a dimensão territorial.
7
Lei-quadro da política e do regime de proteção e valorização do património cultural (Lei n.º 107/2001)
“Artigo 2.º, Conceito e âmbito do património cultural
1- (...) integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de
cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objeto de especial proteção e valorização.
3- O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitetónico,
linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o
património cultural refletirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade,
singularidade ou exemplaridade”
8
A ideia de Paisagem Cultural é definida, pela primeira vez, em 1925 por C. Sauer, sendo a definição de 1972
uma interpretação da mesma.
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Figura 12. Lavraria de Germunde. Relação do edifício industrial, agora em ruína, com a paisagem pré-
existente. Fotografia da autora, 2013.
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Reconhecida a sua dimensão patrimonial no vínculo que estabelece com a paisagem e até
mesmo com as estruturas urbanas onde incide, procurou-se incitar ao debate da sua integração
nos modos de vida contemporâneos. Mais do que musealizar tudo o que foram equipamentos de
extração mineira, a sua valorização deverá conduzir à requalificação do território. A consciência
do valor do património deverá ser entendida como fator e desenvolvimento.
Qualquer estratégia que pretenda a valorização do património mineiro deverá conduzir à
sua reintegração no território, possibilitando a leitura das formas da Exploração enquanto parte
integrante de um todo. Ainda que a evolução dos edifícios industriais para ruína tenha construído
uma nova Paisagem, o entendimento do sistema de relações que sustenta a memória coletiva do
Couto Mineiro deverá manter-se.
Numa altura em que a articulação natureza-cultura começa a emergir como paradigma do
ordenamento territorial, o entendimento do património enquanto recurso estritamente
vinculado ao território, ultrapassando a prospetiva da sua inventariação e musealização, surge
como oportunidade para reequacionar os métodos e instrumentos não só para a sua gestão, mas
também para a revitalização de territórios, agora sustentada numa identidade territorial e com
base nos seus recursos patrimoniais.
A responsabilidade de preservar o legado mineiro surge como uma oportunidade para o
desenvolvimento de condições que assegurem o seu futuro.
Bibliografia
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Planeamento Biofísico e Paisagístico, Universidade de Évora (exec.), 2004, Contributos para a
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Arquitectura e Industria Modernas : 1900-1965. Actas do Segundo Seminario Docomomo
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[publicação da conferência realizada em 15 de Março de 2005].
Conselho da Europa, 2000. Decreto n.º 4/2005. Convenção Europeia da Paisagem. [s.n]. Itália
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