1
Visita realizada em dezembro de 2003.
2
Muitos destes professores, comumente denominados “leigos” por não terem uma
formação específica para as atividades de ensino, viam-se diante da possibilidade de
freqüentar os cursos destinados a superar essa lacuna de escolarização aliada à formação
pedagógica. Programas governamentais do tipo “Logos I e II” e, mais recentemente,
“Agora Eu Sei”, ao lado das denominadas licenciaturas breves, foram criados para, pelo
menos formalmente, suprir as carências existentes na formação de professores do País,
especialmente em áreas rurais.
2
Um exemplo disso foi o Projeto Interdepartamental: Curso de Graduação em Pedagogia para Formação
de Professores do Ensino Fundamental e Coordenadores de Escolarização dos Assentamentos de Reforma
Agrária (1998-2001) da Universidade Regional do Noroeste do Estado-UNIJUÍ do RS. Este curso surgiu
em função de uma demanda do Setor de Educação do Movimento Sem-Terra (MST), encaminhada à
UNIJUÍ, inicialmente para curso de formação de professores em nível médio.
3
Para o MST, o desafio é uma formação ampla, crítica e aberta, que contribua
efetivamente no engajamento de educadores e educandos nos processos de construção
de um novo tipo de desenvolvimento rural, objeto dos projetos de assentamentos rurais.
[...]À escola não caberia a tarefa de transmitir o saber objetivo, mas sim a de
preparar os indivíduos para aprenderem aquilo que deles for exigido pelo
processo de sua adaptação às alienadas e alienantes relações sociais que
presidem o capitalismo contemporâneo (2000:09).
Como contraponto a esse ideário que camufla e nega a luta de classes, é justo
lembrar Marx, quando assinala que as diferenças entre as classes sociais não se reduzem
a uma diferença quantitativa de riqueza, mas a uma diferença de existência. Os
indivíduos de uma mesma classe partilham de uma mesma situação de classe, que inclui
seus valores, regras e interesses. Percebe-se, no entanto, que a classe trabalhadora, em
geral, acaba por aceitar os valores e regras da cultura dominante, apesar de não usufruir
dos “benefícios materiais” que, de fato, são frutos da exploração a que é subjugada
cotidianamente pelos detentores dos meios de produção.
Com arrimo no próprio Marx, podemos questionar até que ponto uma mudança
apenas de caráter valorativo e subjetivista, alicerce dos novos paradigmas do campo
educacional, pode levar a humanidade a uma condição de liberdade plena. A citação a
seguir, uma das pedras de toque das formulações marxianas, convida-nos a refletir sobre
a necessidade de considerar a relação dialética entre o contexto de produção das idéias
de uma época e o contexto da produção material:
Para melhor situar a análise dos pressupostos desse ideário, que toma como
central a questão do resgate da subjetividade, articulada às dimensões da cultura e da
ética (valores), recorremos à análise de Lukács, apresentada de forma magnífica por
Antunes, que, ao contrário, toma como base a centralidade do trabalho na constituição
da vida social e que, depois de Marx, foi o intelectual que “buscou a verdadeira
apreensão das complexas relações e determinações existentes entre objetividade e
subjetividade, entre materialidade e consciência de classe”. (ANTUNES, 1996- 97).
10
IN: ANTUNES: 1996, p. 100, citação retirada do Prefácio de Luckács à Sociologia de la Vida
Cotidiana, de Agnes Heller. Espanha. Ed, peninsula, 1987, pags. 11 e 12.
11
Parêntese nosso
11
leste-europeu - o qual casa com a noção de cidadania como o norte e objetivo principal
da educação.12
Por sua vez, a concepção socialista tem como fundamento a ruptura radical com
o modo de produção capitalista. Traça como objetivo maior a libertação da humanidade
do jugo do capital e toma como horizonte a emancipação plena.
O modo capitalista de reprodução social não poderia estar mais distante desta
determinação original de produção e propriedade. Sob o comando do capital,
o sujeito que trabalha não mais pode considerar as condições de sua produção
e reprodução como sua própria propriedade. Elas não mais são os
pressupostos auto-evidentes e socialmente salvaguardados do seu ser, nem os
pressupostos naturais do seu eu como constitutivos da “extensão externa de
seu corpo”. Ao contrário, elas agora pertencem a um “ser estranho” reificado
12
Sobre essa relação entre democracia, cidadania e educação, conferir TONET, Ivo. Socialismo e
democracia. In: Práxis, nº 9. Belo Horizonte: Projeto Joaquim de Oliveira Editora, mar./jun. 1997.
13
Cf. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. . São Paulo: Tradução Paulo César Castanheira e
Sérgio Lessa, Editora Unicamp e Boitempo Editorial., 2002. p. 611 e 613.
12
O capital deve ser entendido como uma relação contraditória entre capital-
trabalho. Não existe capital sem trabalho. Essa relação funda ontologicamente classes
sociais com interesses antagônicos. A classe burguesa se põe plenamente como o
fundamento de uma concepção de mundo, de uma forma de sociabilidade econômica,
política, social, ideológica, cultural e jurídica. É a fundação de uma perspectiva de
mundo e de uma forma de sociabilidade datada historicamente.
mapear, passo a passo, suas manifestações mais concretas e reais. Nesse sentido, as
categorias que guiaram nosso trabalho são aquelas que nos permite desvendar as
determinações da crise estrutural do capital: trabalho e luta de classes são assim,
categorias particularmente centrais nessa pesquisa.
investigação o questionamento sobre até que ponto essa proposta sofre influências dos
novos paradigmas educacionais.
CAPÍTULO 1
Nesse sentido, vamos nos apoiar em alguns trabalhos que tomam como objeto
de estudo o MST e, mais especificamente, a sua história de luta, apresentando os
principais marcos do seu processo de gênese e formação.
O MST nasceu a partir das lutas pela terra iniciadas no final dos anos 1970,
numa conjuntura de organização e luta pela redemocratização do País, que se travava
contra a ditadura militar. O marco de sua fundação só se deu em janeiro de 1984, no
primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Rurais Sem-Terra, realizado em
Cascavel-PR, que teve como lema: "Terra para quem nela trabalha".
14
Trecho da música “Quando chegar na terra”.
22
O autor relaciona a gênese do MST com essa forma de organização e luta pelo
acesso à terra. A apreensão de sua formação só é possível articulada ao entendimento da
ocupação da terra no Brasil. A ocupação para o Movimento representa um espaço de
luta e resistência em que se torna possível a realização de um sonho, mediante o
enfrentamento com os latifundiários e o Estado. Nas palavras do autor:
23
Olhando para as raízes históricas mais antigas, a origem dos sem-terra ocorreu
com fim do trabalho escravo, no final do século XIX, com a chegada do imigrante
europeu e em pleno desenvolvimento do capitalismo, estabelecendo-se uma outra
relação social baseada na venda da força de trabalho. Nos períodos de escravidão, o
negro era vendido como mercadoria e como produtor de mercadoria. Com a instituição
do trabalhador livre, representado agora pelos sitiantes (pequenos proprietários ou
posseiros), os agregados e os negros, conservaram-se a separação entre o trabalhador e
os meios de produção, por meio da subordinação da venda da força de trabalho ao
fazendeiro, ao capitalista. Dessa forma, ao imigrante europeu, banido de sua terra, livre
por possuir a sua força de trabalho, restara-lhe a luta pela terra.
25
Desde o final do século XIX e todo o século XX, registraram-se diversas formas
de resistência do campesinato brasileiro ocorridas por meio da organização de
movimentos messiânicos e de grupos de cangaceiros, que lutavam contra o cerco à terra.
17
As glebas eram terras públicas que estavam arrendadas para empresas.
18
Nesse Encontro, foram definidos os objetivos e os princípios que consolidariam o MST, como um novo
movimento camponês que recolocaria a pauta da reforma agrária no campo político. Tornava-se
necessário a intensificação da luta pela terra, por meio da ocupação. Era necessário ainda articular o
Movimento nacionalmente, ficando os estados com a tarefa de contribuir na organização e formação do
MST por todo o Brasil.
30
O MST existe, nos estados do sul do País, desde 1979, quando seu lema era
“Terra para quem nela trabalha”.No 1o Congresso, em 1985, consolidou sua
organização nacional, levantando a bandeira: “Ocupação é a única solução”.
A orientação atual é continuar a ocupar os imóveis em desapropriação, sob o
lema “Ocupar, resistir e produzir”. No congresso de 1995, o MST reforçou
tal lema e conclamou “a união dos trabalhadores do campo e da
cidade:”Reforma agrária: uma luta de todos”. A bandeira de luta atual
consagrada no mais recente congresso, em 2000, é a seguinte: “Reforma
agrária: por um Brasil sem latifúndio”. (2000:50-51)
19
Sobre a importância dessa ocupação como ponto de partida da gênese do MST, Stédile ressalta que “A
Macali foi uma trincheira, mas não foi a guerra... não pelo espaço geográfico, pelo pedaço de terra
conquistado, e sim porque foi uma vitória... A Macali ganhou fama porque teve repercussão e porque foi
vitoriosa”. (2000:24)
31
20
Citação feita por Vendramini, 2000:52, retirada do documento MST. Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. MST em dados. Disponível na Internet. http://www.mst.org.br, 8 abril de 2000.
33
21
A respeito da nomenclatura trabalhador rural e não camponês, Stédile apresenta a seguinte
justificativa: “Porque a palavra “camponês” é meio elitista. Nunca foi usada pelos próprios camponeses.
Não é, digamos, um vocábulo comum. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi o único que usou o
termo “camponês”. O homem do campo geralmente se define como agricultor, trabalhador rural ou como
meeiro, arrendatário. É, na verdade, mais um conceito sociológico e acadêmico, que até pode refletir a
realidade em que eles vivem, mas que não foi assimilado”. (2000:31)
34
A análise dessa temática não é o centro do nosso trabalho, o que nos limita no
sentido de desenvolver um estudo mais aprofundado sobre os mecanismos estruturais
que fundam essa problemática. O nosso esforço constitui-se na tentativa de
situar/contextualizar o MST nesse panorama atual de crise do movimento sindical e
social, que não toma mais o conflito de classes como base de seu trabalho
formativo/político.
Para tanto, iremos nos ancorar em análises realizadas por estudiosos que
privilegiam as questões relativas ao sindicalismo (Ricardo ANTUNES e James
PETRAS), ao MST e aos “novos movimentos sociais”. (Célia VENDRAMINI,
Bernardo Mançano FERNANDES, Zander NAVARRO et al, e BEZERRA NETO).
Com efeito, a crítica marxista vem apontando uma lacuna importante nesses
“novos movimentos sociais” surgidos na década de 1980, os quais se afastariam de uma
crítica radical, estrutural da sociedade capitalista, buscando, ademais, substituir os
conceitos classistas, históricos e totalizantes por categorias que priorizam o caráter
individual e específico de alguns grupos organizados. Representam, assim, um refluxo
do social para o simbólico. No mais, desenvolvem uma análise de cunho conjuntural,
sem adentrar o núcleo central: a crise estrutural do capital.
- a categoria classe social vem sendo substituída por atores sociais. - a dimensão
da cultura e da subjetividade torna-se o centro da análise, abandonando
categorias explicativas que desvelam a totalidade do real;
Nesse sentido, é importante interrogarmos até que ponto o MST toma como
centro de sua prática e de seu processo formativo as questões referentes a uma crítica
mais radical à sociedade, tentando desvelar os seus fundamentos, ou se aproxima um
pouco mais das categorias centradas dos “novos movimentos sociais”, ou, ainda, se
tenta conformar essas duas correntes, o que o levaria a uma “subordinação” desavisada
à primeira alternativa.
Para Antunes (1998:109-110), as ações do MST e sua luta pela reforma agrária
consolidam-se como um exemplo de organização que contesta a lógica do capital e do
mercado, devendo servir como fonte de inspiração para a esquerda sindical no sentido
de atuarem na construção de uma sociedade para além do capital.
Por sua vez, Martins (2000) avalia criticamente a atuação de movimentos que
reivindicam a reforma agrária em permanente confronto com o Governo, como, por
exemplo, as posições do MST e da Comissão da Pastoral da Terra - CPT, definindo a
questão agrária como essencialmente histórica, que tem sua própria temporalidade, ou
seja, um tempo conjuntural histórico, diferente da conjuntura política e eleitoral, ou
38
MST e CPT querem uma reforma agrária que atinja as causas, que são causas
históricas, que se tornaram causas institucionais e políticas, sem, entretanto,
oferecerem perspectivas de saída política para elas no marco da lei e da
ordem. Pois, para isso é preciso ganhar eleições e não as ganhando é preciso
estar disponível para a negociação política de questões como essa, que são
questões sociais e nacionais, suprapartidárias, como foi a abolição da
escravatura. É aí que a credibilidade e a legitimidade do confronto se perde.
(Martins, 2000: 124.).
Martins é o único que destoa desse quadro, já que questiona o MST no sentido
de que busca atingir as causas da problemática da terra, cobrando, ao Movimento,
contudo que ele busque alternativas dentro da ordem. O ponto de partida de sua análise
é, portanto, diferente daqueles outros autores que buscam investigar no MST o seu
núcleo revolucionário.
39
Sua análise, no entanto, merece atenção, pois expõe uma contradição do MST: a
luta pela reforma agrária, pela propriedade coletiva da terra, dentro dos marcos de uma
sociedade capitalista que tem como fundamento a propriedade privada. Exibe seu
caráter mais político que incide em sua articulação de parcerias com o Governo para se
manter organizado, amortecendo a sua legitimidade de movimento que, em princípio,
luta por uma sociabilidade para além do capital.
Essa autora conclui sua análise, advogando a idéia de que, diante da natureza e
das características específicas do MST, não se encontra uma identificação automática
desse Movimento com os chamados “novos movimentos sociais”.
Observa-se nas próprias produções do MST uma certa demarcação que contribui
com a análise sobre a nossa controvérsia inicial que interpela sobre a afinidade ou
distanciamento do MST com o modelo dos chamados “novos movimentos sociais”.
23
MÉSZÁROS, István. (1995) Beyond Capital (Towards a Theory of Transittion), Merlin Press,
Londres. Em português, a obra foi traduzida com o título Para além do capital: São Paulo. Boitempo,
2002.
24
Para Antunes, fundamentado em Mészáros, o sistema metabólico do capital nasceu como resultado da
divisão social que operou a subordinação estrutural do trabalho ao capital, que para Mészáros constitui
um período específico da história da humanidade, não sendo conseqüência de nenhuma determinação
ontológica inalterável. Essa subordinação estruturou um sistema de mediações de segunda ordem que
42
sobredetermina suas mediações básicas, suas mediações de primeira ordem. Para efeito de
esclarecimento, sinteticamente, as mediações de primeira ordem, têm como objetivo a preservação das
funções vitais da reprodução individual e societal, fundada pelas determinações ontológicas
fundamentais: o intercâmbio e interação do homem com a natureza, dados pela ontologia singularmente
humana do trabalho. As mediações de segunda ordem atingem de forma profunda essas finalidades de
primeira ordem. Assim, cada uma das formas de mediação de primeira ordem é subordinada aos
imperativos do capital, introduzindo elementos fetichizadores e alienantes em função do controle social e
metabólico do capital, em que prevalece a divisão social hierárquica que subsume o trabalho ao capital, o
valor de uso ao valor de troca, o atendimento das necessidades genuinamente humanas aos interesses de
expansão e autovalorização do capital. As mediações de segunda ordem têm como núcleo constitutivo o
tripé capital, trabalho e Estado, que são dimensões fundamentais do sistema, materialmente inter-
relacionadas, sendo impossível superá-las sem a eliminação completa do conjunto de suas determinações.
(Ver Antunes, 2000: 19-22).
25
Analisando a estrutura de comando do capital sobre o processo de trabalho, Mészáros afirma que “esse
controle é exercido tanto horizontal como verticalmente tal como os imperativos estruturais emergentes
da divisão do trabalho capitalista o prescrevem (sob seus múltiplos aspectos funcionais e
sociais/hierárquicos). [A dimensão vertical] corresponde diretamente à estrutura de comando do capital,
sem paralelo na história, cuja função é salvaguardrar os interesses vitais do sistema dominante. [...]
assegurar a expansão contínua da mais-valia com base na máxima exploração praticável da totalidade do
trabalho.[...]Tais interesses devem ser assegurados graças ao funcionamento adequado da estrutura de
comando do capital, qualquer que seja o escopo e a complexidade da organização horizontal (a
fragmentação/divisão e simultânea reunificação funcional) do total das jornadas de trabalho
capitalisticamente utilizáveis”(2002:622-623).
26
Essa afirmação toma assento numa elaboração que Antunes faz sobre o Toyotismo no Japão, apoiado
em Satoshi Kamata, um estudioso do modelo toyotista que o classifica como a “fábrica do desespero”.
"De modo metafórico: se o trabalhador respirava, e enquanto respirava havia momentos em que não
produzia, urgia produzir respirando e respirar produzindo, e nunca respirar não produzindo. Se pudesse
o trabalhador produzir sem respirar, o capital permitiria, mas respirar sem produzir, não. (ANTUNES,
2000:204)
43
É válido observar que o que falta aos novos movimentos sociais e sindicais da
chamada esquerda democrática, a inter-relação em suas análises entre o particular e o
global, encontramos em abundância nas determinações do capital, que, por meio de seu
mando vertical controla e aprisiona toda a sociabilidade humana, desde a mais
específica, como a respiração, aos mais complexos processos de tomada de decisão do
campo econômico, favorecendo sempre a supremacia dos mais fortes sobre os mais
fracos.
Dessa forma, qualquer análise que se pretenda crítica e radical, tem que tomar
como pano de fundo essa definição do que seja o capital em sua contemporaneidade e
sua crise estrutural que remete aos indivíduos e à natureza em geral, a determinação de
ajustamento de suas necessidades e ações a sua viabilidade produtiva, com
conseqüências devastadoras para o planeta.
Antunes (2000: 198) inicia essa tematização apresentando uma noção ampliada
da forma de ser da classe operária contemporânea, em bases marxistas, enquanto
alternativa para se incorporar o coletivo dos trabalhadores.
Quando Antunes trata do proletariado rural, “... que vende sua força de trabalho
para o capital, os chamados bóias-frias das regiões agroindustriais” que vende sua força
de trabalho como parte constitutiva dos trabalhadores hoje, da classe-que-vive-do-
trabalho. (idem: 1995), nos remete ao debate sobre os trabalhadores rurais engajados no
MST.
Nesse caso peculiar, nem todos os trabalhadores rurais são, foram ou pretendem
ser assalariados. O aporte categórico do assalariamento para o MST, talvez não seja
suficiente para incluí-lo na classe-que-vive-do-trabalho. O delimitador poderia ser
aquele trabalhador (operário ou camponês), que depende do seu trabalho, e não
contando com a exploração do trabalho alheio, para viver, e, ainda, os trabalhadores que
não possuem os meios de produção, pois, mesmo com a conquista da terra em seus
assentamentos, os trabalhadores rurais mantêm um árduo processo de luta por condições
que lhes permitam permanecer e sobreviver no campo28, o que significa que são
estruturalmente dependentes da lógica do capital, que subordina tudo em função de sua
expansão e auto-valorização.
Esse recorte sobre a conformação da classe trabalhadora hoje nos leva a pontuar
as características principais da problemática sobre as metamorfoses do mundo do
trabalho em curso nas últimas décadas, particularmente nos países capitalistas
27
Antunes inclui ainda nessa denominação os trabalhadores temporários e terceirizados que compõem o
subproletariado que são "sempre desprovidos completamente de direitos... porque é o proletariado
precarizado no que diz respeito às suas condições de trabalho e desprovido dos direitos mínimos do
trabalho. (idem: 200)
28
Vale lembrar as ocupações dos prédios públicos sob a coordenação do MST em busca de recursos
públicos para projetos que viabilizem a agricultura familiar, além de políticas que atendam suas
necessidades básicas, como educação, saúde, construção de estradas para escoamento de sua produção,
dentre outras.
46
[...] Ao contrário, penso que há uma nova interação do trabalho vivo com o
trabalho morto, há um processo de tecnologização da ciência que, entretanto
não pode eliminar o trabalho vivo, ainda que possa reduzi-lo, alterá-lo,
fragmentá-lo. Mas a tragédia do capital é que ele não pode suprimir
definitivamente o trabalho vivo, não podendo, portanto, eliminar a classe
trabalhadora. (idem)
O conhecimento das determinações essenciais da crise do capital nos permite
compreender com maior clareza as questões relativas aos “novos movimentos sociais” e
à crise sindical, já que o aparecimento dessas circunstâncias históricas é atado à
complexa crise estrutural do capital. Nesse sentido, a superação das questões de
29
Para maiores detalhes, ver: MARX, Karl, Capítulo Inédito de O Capital, em que o autor conceitua
trabalho produtivo como trabalho socialmente combinado em função da subsunção do trabalho ao capital,
ou seja, como trabalho coletivo que participa direta ou indiretamente do processo de valorização do
capital.
47
exploração e operação de uma fatia do real, como a emancipação das mulheres, deve ser
articulada à luta de classe, já que,
Nesse sentido, a própria luta pela terra desenvolvida pelo MST, que traz em sua
pauta as suas necessidades particulares tais como: formação de seus professores, uma
educação voltada para a cultura do campo, discussão a respeito das questões de gênero
e etnia, inserção de crianças, jovens e adultos em seu processo de formação política,
deve ser atada à afirmação da luta de classes e da construção do socialismo.
eles, destacamos Antunes, que, como já indicamos aqui, apresenta uma análise positiva
sobre o MST em termos de sua radicalidade. O MST, para ele, se constitui ao lado da
rebelião de Chiapas no México, em importantes exemplos das novas formas de
confrontação social contra o capital. A esse respeito, analisa a emergência do MST
como,
Esta afirmação de Antunes é baseada no fato de que, para ele, o MST tem,
primeiramente, sua prática voltada para o movimento social do campo e não para a ação
institucional e parlamentar, sendo, esta última, conseqüência da luta social.
Em segundo lugar, por ter uma estruturação nacional, com intensa base social
que lhe dá dinâmica, vitalidade e movimento, possibilitando aos trabalhadores Sem
Terra apostar numa vida dotada de sentido na medida em que,
O MST lhes permite lutar por algo muito concreto, que é ter a posse da
terra por meio da ação e resistência coletivas. Isso dá a esse movimento
muita força e vigor. Na brutal exclusão social do País, há um manacial
de força social a ser organizada pelo MST. E quanto maior for sua
importância, quanto maiores forem seus laços com os trabalhadores
urbanos, mais sua experiência ajudará na retomada das lutas sindicais
de classe no Brasil. E o fato de o MST ter como eixo de sua ação as
lutas sociais concretas tem sido decisivo como fonte de inspiração
também para a esquerda sindical, para que esses setores não se vejam
envolvidos no ideário das parcerias, ideologicamente subordinado ao
capital, mas atuem de modo direto, como um movimento sindical,
social e político capaz de participar da construção de uma sociedade
para além do capital. (idem).
CAPÍTULO 2
(Militante do MST)
Como bem sabemos, a preocupação com a educação do século XXI teve sua
origem na Conferência de Jomtien em 1990, na Tailândia, promovida pela ONU, em
parceria com outros organismos internacionais, entre eles a Unesco, sob o patrocínio
do Banco Mundial.
A Comissão presidida por Jacques Delors definiu seis pistas de reflexão sobre
as finalidades individuais e sociais do processo educativo: educação e cultura;
educação e cidadania; educação e coesão social; educação, trabalho e emprego;
educação e desenvolvimento; e educação, investigação e ciência. Essas pistas foram
complementadas pelo estudo de três temas transversais: as tecnologias da
comunicação; os professores e o processo pedagógico; e financiamento e gestão.
30
Utilizamos nesse trabalho a 6ª edição da publicação do Relatório Educação: Um tesouro a descobrir,
da Editora Cortez em 2001. A primeira edição é de 1996. O título original desse documento é
LEARNING: THE TREASURE WITHIN. Report to Unesco of the International Commission on
Education for the Twenty-first Century
52
31
Em 1993, um novo encontro se realizaria para dar continuidade aos debates iniciados em Jomtien.
Desta vez, reuniam-se os nove Países mais populosos do mundo, entre os quais se incluía o Brasil.
53
Para cumprir tal missão, a Comissão ressalta que orientará todo esse processo de
reflexão por uma questão central que envolve todas as outras: que tipo de educação
necessitaremos amanhã, e para que gênero de sociedade? (idem). Para tanto,
considerará uma reflexão sobre as grandes linhas do desenvolvimento humano no
século XXI, e sobre os novos imperativos resultantes desse contexto para a educação.
Toda essa ostentação analítica vem permeada pelo grande segredo da Unesco
que consistiu na proposta de que esse Relatório orientasse as ações dos organismos
públicos ou privados em relação à elaboração das políticas de educação com a
motivação de um amplo debate público em torno da reforma da educação nos Países
membros da Unesco.
Para atingir esse objetivo, ora explicitado, sem encontrar resistência forte de
muitos educadores e da sociedade em geral, esse paradigma presente no Relatório
utiliza uma estratégia de esboçar um quadro analítico sobre a sociedade atual,
examinando seus problemas e apontando suas possibilidades, com a perspectiva de
encontrar caminhos de ajustamento da educação às demandas do que denominam a
sociedade do futuro, do conhecimento e ou da informação.
32
Para melhor dimensionar-se a colossal importância estratégica atribuída ao complexo educacional, pelo
Banco Mundial, deve ser levado em conta, segundo informa o autor, o fato de que é, precisamente, no
campo da educação que aquele organismo mais investe em consultorias, assessorias especializadas em
treinamento, reformas curriculares, gestão, avaliação...
33
Conferir artigo Consciência de classe ou cidadania planetária? Notas críticas sobre os paradigmas
dominantes no campo da formação do educador. Fortaleza: mimeo, 2003.
57
Para concretizar essa reforma dos sistemas educativos, idealizados pela Comissão,
foi orquestrado um modelo de educação, centrado em saberes e competências
adaptáveis à chamada civilização cognitiva. No capítulo quarto do texto, encontramos a
definição do chamado Modelo das Competências, ou do que chamamos de Pedagogia
das Competências, que apresentaremos a seguir.
plenitude: realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser. (DELORS, op. cit.
2001:90).
Com efeito, Hirata (1994) lembra que tal modelo corresponderia ao chamado
padrão toyotista de produção com a conseqüente fragmentação e precarização do
trabalho, que se fortalece na redução dos empregos estáveis, passando a exigir
qualificações que tendem a ser substituídas por um “saber-ser”...
[...] Particularmente nos últimos anos, como respostas do capital à crise dos
anos 70, intensificaram-se as transformações no próprio processo produtivo,
pelo avanço tecnológico, pela constituição das formas de acumulação flexível
e pelos modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo entre os quais
se destaca, para o capital, especialmente, o modelo “toyotista” ou “japonês”
[...] Fundamentalmente, essa forma de produção flexibilizada busca a adesão
de fundo por parte dos trabalhadores, que devem assumir o projeto do capital.
Procura-se uma forma daquilo que chamei de envolvimento manipulatório
levado ao limite. (2000:190).
34
Examinando essas formulações, visualizamos a tendência que Frigotto (1995)
apontou como a cooptação do saber do trabalhador. Se antes o capital em seu processo
de acúmulo da mais-valia se contentava com a disponibilidade do saber prático-técnico
do trabalhador, agora exige que suas qualidades subjetivas, o seu saber, seja posto à
disposição dos interesses dos “homens de negócio”.
34
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo:Editora Cortez,
1995.
64
No mais ambicioso dos princípios, aprender a ser, que se norteia pelo apego ao
ideário da psicologia comportamental, encontramos a defesa da posição de que a
educação deve contribuir com a sociedade no sentido de melhor desenvolver a
personalidade das crianças e adolescentes, para agirem com maior autonomia,
discernimento e responsabilidade pessoal, além de suas potencialidades como: memória,
raciocínio, sentido estético, capacidades físicas e aptidão para comunicar-se.
A atitude crítica frente aos postulados desse modelo não representa a defesa
dessa perspectiva de escola, mas é mister esclarecer que esse paradigma, dominante
hoje no seio acadêmico, na sua essência, representa os mesmos objetivos dessas
tendências da educação: a reforma (o ajustamento/adequação) da escola e da educação
em função dos desejos do capital. “A palavra de ordem é clara: reforma. Reforma da
escola, reforma das mentalidades; reforma do pensamento, como propõe Morin”
(JIMENEZ, op. cit. 2003:06).
É importante observar que existe por trás dessa apresentação das diretrizes para
a formação dos professores, toda uma perspectiva de controle do trabalho docente,
incluindo desde as exigências que lhe são feitas até “a que contrapartidas podem-os
aspirar – condições de trabalho, direitos, estatuto na sociedade” (idem). Como podemos
ver, até mesmo o direito de reivindicar algo deve ser orientado pela perspectiva desse
relatório que representa de fato os interesses de seu patrocinador maior: o Banco
Mundial. É justo então questionarmos: e como fica o aprender a ser do professor?
O professor deve estabelecer uma nova relação com quem está aprendendo,
passar do papel de “solista” ao de “acompanhante”, tornando-se não mais
alguém que transmite conhecimentos, mas aquele que ajuda os seus alunos a
encontrar, organizar e gerir o saber, guiando mas não modelando espíritos, e
demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem
orientar toda a vida. (DELORS, op. cit. p.154).
Nesse mesmo cenário, aparece como o ponto mais intrigante das propostas em
torno da formação docente a recomendação de que a formação contínua se desenvolva
em tempo parcial no sistema educativo e que os professores assumam um período de
trabalho ou de estudo no setor econômico como forma de contribuir para aproximação
do saber e do saber-fazer. Nesse mesmo sentido, recomendam, ainda, que os professores
exerçam outras profissões, fora do contexto escolar, a fim de se familiazarem com
outros aspectos do mundo do trabalho, como a vida das empresas, que não conhecem
bem.
direta com o trabalho escolar, são, dentre outras, atividades fortemente recomendadas
como estratégias para encorajar o ensino da qualidade. As parcerias são o ponto forte
para que se conquiste a qualidade do ensino, mediante o incremento de acordos e
contratos de parceria com as famílias, o meio econômico, o mundo associativo, os
atores da vida cultural, dentre outros segmentos sociais. O envolvimento da população,
da comunidade, é aclamado pela Comissão em todos os aspectos e formas de atuação
descrita acima.
37
Cf. NOSELLA, Paolo. A Escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1992.
38
Ibidem
75
39
MAIA Osterne; JIMENEZ Susana. A CHAVE do saber: um exame crítico do novo paradigma
educacional concebido pela ONU. In: Trabalho, Educação e Luta de Classes: a pesquisa em defesa da
história. Fortaleza: Brasil Tropical, 2003. p. 105-125.
76
O modelo das competências foi eleito pela ONU e seus parceiros como aquele
capaz de habilitar o trabalhador para atuar no atual cenário, em que já se vislumbrava
para o século XXI uma sociedade do conhecimento ou da informação, em que a
articulação entre o saber teórico, saber prático e demais dimensões do ser humano
assume um papel decisivo na proclamada civilização cognitiva.
destacado pelos autores que tecem a crítica a essa Pedagogia, em tese, existe uma
preocupação com a problemática da educação que sem dúvida precisa ser superada, mas
a proposta desse paradigma não passa pela ruptura com o modo de produção capitalista,
que é de fato, quem produz essas cisões entre as ricas e complexas dimensões do ser
social.
Quem não concordaria com uma educação que articule as dimensões cognitivas,
afetivas, sociais, políticas, estéticas e instrumentais do ser humano? No entanto, da
forma como aparece, promove uma confusão entre os educadores em geral, que, em
conseqüência, promove a sua retirada40 do campo do materialismo histórico-dialético
em direção a esse pressuposto mais leve e cômodo, pois não aponta para a ruptura,
apenas mudanças cosméticas superficiais por dentro da ordem, que não arranham a
ordem estabelecida, não levando a lugar nenhum, ou seja, não construindo nada de
novo, apenas reeditando antigas propostas em tempos recentes.
40
Alusão ao título do artigo de James Petras "Os intelectuais em retirada"(1996)
78
No entanto, percebe-se que toda essa proposta não se concretiza dentro dos
marcos do capitalismo, já que a iniciativa de discutir essa temática foi da ONU em
parceria com organismos internacionais, expressando uma direta vinculação do referido
empreendimento com o projeto atual do capital da gestão da crise de seu processo de
reprodução, que vem apelando tanto para o campo da produção, através da
reestruturação produtiva, como para o plano político-ideológico, especialmente nos
41
A esse recorrente apelo à educação, assinala Jimenez, "tudo – do desemprego à destruição ecológica do
planeta - se resolverá na e pela educação, o que, aliás, traduz a antiqüíssima e mistificadora crença na
educação como panacéia de todos os males sociais, sistematicamente trazida à tona, quando as forças
sociais em ebulição tentam colocar em cheque o projeto do capital” (op. cit. 2003: 09).
79
Entendemos que esta crítica desnuda todo o aparato fetichizante presente nessa
proposta que, sem dúvida, representa a gênese de todas essas "belas e admiráveis"
mentiras que arrebanham todo o sistema oficial de ensino, com educadores consagrados
como progressistas, prontamente dispostos a defendê-las como as mais revolucionárias
idéias educacionais. Essa formulação do modelo centrado no quadrante das
competências tem como núcleo a questão ideológica: contribuir no campo político-
ideológico para o alívio dos conflitos sociais através da educação.
Essas falsas promessas precisam passar por uma análise mais crítica e radical,
como forma de não perpetuar entre nós educadores as falácias tão presentes na
educação, o que acarreta sérias conseqüências para o campo educativo, pois passam a
pautar as nossas discussões desde a elaboração da política educacional à própria prática
da sala de aula. Nessa perspectiva, MAIA e JIMENEZ indicam,
83
Com efeito, a chave do saber não é uma questão apenas da vontade política
ou de determinação da consciência, mas precisa com todas as tintas o conflito
inerente à atual forma de produzir bens e riquezas, fazer ciência, relacionar-se
com a natureza e com os outros homens. Pois há possibilidade de fazê-lo
diferente, segundo uma história que vem se construindo e poderia ser e ainda
pode ser, igualmente, diferente. (idem: p. 123)
Nesse sentido, entendemos que todo esse modelo das competências, consignado
no aprender a aprender proposto pelos educadores da ONU de fato se insere no
contexto das reformas educacionais do Banco Mundial, que teve como gênese a
Conferência de Jomtien, como forma de montar todo um aparato ideológico em função
da superação da crise estrutural do capital, que, segundo Mészáros (2002) assume uma
proporção inédita, de natureza destrutiva e com conseqüências devastadoras para a
humanidade e para o planeta.
Como vimos, o Relatório apresentado nesse estudo nos permite concluir que tal
documento representou, no início da década 90 do século passado, uma proposta de
reformas na educação a serem implementadas em escala mundial, com aval de todos, e,
mais particularmente, nos chamados países em desenvolvimento.
42
“Os sete códigos da modernidade originalmente formulados por Toro são: domínio da leitura e da
escrita; capacidade de fazer cálculos e resolver problemas; capacidade de analisar, sintetizar e interpretar
dados, fatos e situações; capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; receber criticamente
os meios de comunicação; capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada;
capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo (Revista Nova Escola, Nº 154, Ano XVII: 25). A esse
rol, foi acrescentado o oitavo: criar no estudante uma mentalidade internacional. Revista Nova Escola, Nº
149, Ano XVII: 47)” In: JIMENEZ, op. cit. 2003:08.
87
43
É valido observar que César Coll foi um dos consultores responsáveis pela elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCN para o Ensino Fundamental, divulgados pelo MEC em 1995.
88
44
cf. PAQUAY, Léopold e WAGNER, Marie-Cécile. Competências profissionais privilegiadas nos
estágios e na videoformação. In: PAQUAY, Léopold; PERRENOUD, Philippe; ALTET, Élelyne Charlier
(orgs). Formando professores profissionais: quais estratégias? quais competências?. Porto Alegre:
Artmed, 2001. pp. 135-136.
89
A opção por trabalharmos com esse Documento é justificada exatamente por este
representar o grande marco na formulação das políticas educacionais, principalmente
dos chamados países em desenvolvimento, orientados pelo Banco Mundial em função
de atender às expectativas do capital que impõe à educação a tarefa de amortecer os
conflitos sociais. Esse Relatório representa a gênese de todo um processo de
envolvimento manipulatório da educação no atual contexto de crise estrutural do capital,
que tem como cerne a questão ideológica.
Tal como pensa Leher (1998), que relaciona o desenvolvimento de uma política
educacional orientada pelo Banco Mundial e sua relação com o contexto da crise do
capital, Frigotto (1995) desenvolve sua análise tomando como eixo central a tese de que
a atual metamorfose conceitual expressa a forma, mediante a qual, ideologicamente,
apreendem-se a crise e as contradições do desenvolvimento capitalista e encobrem-se
os mecanismos efetivos de recomposição dos interesses do capital e de seus
mecanismos de exclusão.
45
Idem
90
Para Toledo, após o golpe militar (década de 70), a esquerda brasileira iniciou
seu divórcio com o projeto de “socialismo real” e restabeleceu a questão da democracia
fundada numa visão de cunho mais instrumental e “taticista”, que ainda impera no
interior do pensamento político da esquerda latino-americana. Mas, mesmo essa
concepção “taticista” já é questionada por alguns setores da esquerda que acreditam que
“a defesa da democracia não deve ter mais um valor tático, mas adquirir um valor
estratégico46, um valor em si mesmo”47 (TOLEDO, 1994:28).
46
Grifo do autor
47
idem
91
Ainda de acordo com Toledo, esse setor se afina com a análise de Carlos Nelson
Coutinho, (1992:33), que apresenta a democracia como valor universal, sob o
argumento de que a realização da democracia foi uma busca desde as primeiras
comunidades históricas e em diversas formações econômico-sociais.
aparente igualdade se reverte numa desigualdade, pois, para garantir a igualdade dos
contratantes numa sociedade estruturalmente desigual, o Estado assegura a
desigualdade, através da defesa dos direitos dos proprietários privados dos meios de
produção, em oposição aos interesses dos que possuem apenas a força de trabalho.
Assim, para preservar a igualdade dos contratos, o Estado tem que pôr as
desigualdades. A igualdade se transforma em seu contrário: a não-igualdade, sendo
necessário apelar para a opressão do Estado dentro dessa relação.
Voltando a Toledo, outra análise desenvolvida pelo autor, e que configura outro
recorte sobre a questão da democracia e sua relação com a esquerda moderna, diz
respeito à hegemonia popular como caminho para essa nova democracia e como
estratégia na luta pelo socialismo. Existiria nessa concepção um pressuposto de que a
luta dos trabalhadores seria centrada na conquista da hegemonia. O locus privilegiado
da luta seria a conquista dos aparelhos de hegemonia no seio da sociedade civil.
A democracia política não é uma formulação que serve apenas aos interesses da
classe trabalhadora. Ela efetivamente contribui para a legitimação dos interesses
burgueses - difundindo a ideologia do Estado neutro e do Estado representante imparcial
dos interesses da sociedade - através do funcionamento das instituições democráticas e
de suas objetivações mais significativas (divisão de poderes, parlamento, eleições
periódicas livres, alternância de poder, liberdades políticas, pluralismo partidário,
democracia representativa etc.), tudo isso garantido pelo Estado de Direito e pela
convivência dos direitos civis, políticos e sociais, em diferentes graus de articulação.
ele, existiria nesse sentido um silêncio teórico da esquerda democrática quanto ao tema
da ruptura política revolucionária,
Tonet destaca entre os socialistas duas posições mais significativas diante desse
tema. A primeira reside numa exclusão mútua entre a democracia e o socialismo. A
democracia como conjunto das instituições e direitos representaria apenas os interesses
burgueses e deveria ser destruída com a tomada do poder pela classe trabalhadora. A
segunda posição, amplamente majoritária na esquerda em todo o mundo, é a proposição
de repensar a estratégia de revolução, colocando a democracia como o caminho
revolucionário. Essa formulação produziu-se em conseqüência do reexame dos
conceitos de Estado, sociedade civil e democracia, onde se constatava que após a
segunda metade do século XIX, o Estado tinha se ampliado e, na visão dessa esquerda,
95
Este fato não altera a natureza essencial do Estado nem desloca a oposição
social decisiva para o terreno do enfrentamento entre o Estado e a sociedade
civil. A oposição fundamental continua a se dar no âmbito das relações de
produção (idem).
49
A respeito dessa interpretação e a título de ilustração, é válido recorrer a uma entrevista de Chico de
Oliveira, quando é interrogado sobre a defesa dos socialistas de que sem socialismo não há democracia e
dos capitalistas que defendem o oposto: não há democracia sem liberdade de mercado. OLIVEIRA,
afirma: Não posso bancar aqui que a ciência mostra que a democracia só se completa com socialismo. É
uma posição nossa, não é uma posição científica. Nós, socialistas, achamos que a democracia só se
completa com o socialismo. Porque aí você junta a liberdade econômica à liberdade política, que no
capitalismo é muito reduzida... Em outro momento da entrevista, questionado a respeito se a desigualdade
de classes seria um obstáculo para a democracia, o mesmo responde: Depende. A desigualdade de classes
não é um obstáculo para a democracia. Digamos que a democracia, tal como a conhecemos, reconhece a
desigualdade de classe e arma um espaço de conflito em que a desigualdade de classe pode ser
contestada, mas ela não é um obstáculo. Sempre pensamos numa democracia ideal, aí a desigualdade se
torna um obstáculo. Agora, uma profunda desigualdade é obstáculo para a democracia.. In: REVISTA
CAROS AMIGOS, Para onde vai a DEMOCRACIA?. Ano VI, nº 15, São Paulo, novembro de 2002. p.
19-20.
96
50
Conferir MST-Instituto de Educação Josué de Castro. Plano de Estudos: Curso Normal de Nível
Médio. 2003:4-5. A apresentação e análise dessa proposta será desenvolvida nos próximos capítulos.
98
Julgamos oportuno, nesse sentido, abrirmos um parêntese para traçar uma breve
contextualização da trajetória desse autor, de reconhecida influência sobre a obra
educativa do MST. Boff trabalhou como professor de teologia, filosofia, espiritualidade
e ecologia. Dessa combinação, nasceu a Teologia da Libertação, que ele, ao lado de
outros, ajudou a formular. Boff foi e continua sendo, uma grande referência para as
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, um movimento da igreja católica progressista,
tendo já escrito mais de sessenta livros, onde enfoca a relação entre sociedade, ética,
ecologia e religião.
Com efeito esse autor vem sendo trabalhado cotidianamente nas práticas e
elaborações dos documentos do MST. Nesse misto de práticas e documentos do
Movimento, encontramos uma certa aproximação das idéias de Freire ao modelo das
competências, especialmente, quando em seu livro Pedagogia da Autonomia trata de
supostos saberes necessários à prática educativa do professor. É importante assinalar,
contudo, que, ainda que as idéias de Freire mantenham em alguma medida, afinidades
com o que Duarte (2000) denomina Pedagogias do aprender a aprender – o que deve ser
51
BOFF, Leonardo. Ethos mundial – um consenso mínimo entre os humanos. Brasília:Letraviva, 2000.
52
Cf: CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.
Petrópolis,RJ:Vozes, 2000.
100
54
GADOTTI, Moacir (Org.). Perspectivas Atuais da Educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
102
Percebe-se mais uma vez uma certa semelhança nessa formulação do autor
com o texto da Conferência, haja vista que o objetivo do primeiro é a recuperação da
discussão sobre a concepção teórica e desenvolvimento de um Projeto da Escola
Cidadã. O fato de discutir a problemática da educação contemporânea à luz do conceito
de cidadania, o que implementaria, segundo o autor, uma conversão da escola em novos
espaços de formação como: ecopedagogia, dialogicidade, transdisciplinariedade,
glocalização55, virtualidade, dentre outras categorias apontadas no texto, inscreveria a
compreensão desse autor, sobre o atual fenômeno educativo, no campo do ecletismo,
não o distinguindo do que ele mesmo criticou há pouco.
55
Glocalização nesse contexto significa a articulação do global com o local.
104
Nesse sentido, a crítica radical nos ensina ser preciso que o movimento
sindical e os movimentos sociais, dentre os quais devemos destacar o MST, reconheçam
a unidade entre as repercussões econômicas e político-sociais da educação,
qualificando, assim, sua intervenção na política educacional. Compreendemos que dessa
forma será possível partilhar da idéia da liberdade gestada pelo trabalho, fazendo com
que esses movimentos voltados para os interesses históricos da classe trabalhadora
avancem para uma concepção de escola unitária, síntese entre formação para o trabalho
manual e formação para o trabalho intelectual.
Assim, a ecopedagogia, não restrita aos muros da escola e que está para além da
escola, consiste numa estratégia indissociável dessa cidadania, pois trabalharia no
sentido de desenvolver uma consciência ecológica sobre a importância da preservação
do meio ambiente, interferindo na reformulação do movimento pedagógico, no currículo
e na teoria e prática educacional. O desenvolvimento sustentável aparece assim, como
um componente educativo formidável.
Outro conceito citado no referido capítulo, aldeia global, está presente em todo
o texto do Relatório da Conferência, inclusive com um capítulo intitulado “Aldeia
Global”, o que demonstraria um certo comprometimento da análise que os autores do
livro afirmam ser totalizante e estrutural. A aldeia global, fundada em valores,
comportamentos, atitudes e competência, seria, a nosso ver, parente próxima da
cidadania planetária, que tem como limite o controle metabólico do capital, sendo
refém do receituário utópico, sem possibilidades reais de concretização. Essa
formulação nos remete à análise de Mészáros (2002), quando este afirma ser
extremamente equivocada a rotulação de utópicos para os que acreditam numa
sociedade emancipada para além do capital. Para ele, acreditar numa humanização
dentro da ordem do capital é que constitui numa verdadeira utopia. A esse respeito,
Mészáros nos ensina:
Mészáros (2002) interpreta que os seres humanos são postos como peças,
engrenagens do mecanismo geral do sistema produtivo capitalista. Nesse caso, as suas
qualidades humanas devem ser consideradas um empecilho à eficácia ótima de um
sistema que tem sua própria lógica e medida de legitimação.
A luta sindical é desqualificada e tida como corporativa, uma vez que se apregoa
a modernização das relações trabalhistas com a implantação de um contrato coletivo,
uma revisão do papel da Justiça do Trabalho e uma flexibilidade dos encargos sociais
sobre a folha de pagamento. É na verdade a reedição do sindicalismo de Vargas no
sentido de atrelamento do movimento sindical.
A educação deve ter como princípio educativo o trabalho, contribuindo para que
o trabalhador tenha uma compreensão das relações sociais e de produção em que está
inserido e fornecendo-lhe os instrumentos técnico-científicos para construir uma contra-
hegemonia e conquistar condições dignas de vida que lhe garantam seu processo de
auto-construção, tendo como horizonte a emancipação do gênero humano.
É preciso uma análise séria e comprometida sobre as mutações por que passa o
capitalismo contemporâneo e suas implicações na organização do mundo do trabalho e
da classe trabalhadora e acerca da relação entre mudança tecnológica e a política de
(des) emprego estrutural permanente, desregulamentação, flexibilização, precarização e
mudanças na legislação sindical - pressupostos básicos da ofensiva do capital no campo
das relações de trabalho. Estes pressupostos destroem a possibilidade de integração do
indivíduo na sociedade.
Não é nossa intenção esgotar aqui essa discussão sobre as influências desses
paradigmas na política educacional, particularmente no projeto de formação de
professores do MST e o que isso representa em termos de aproximação ou
distanciamento com a Pedagogia das Competências.
CAPÍTULO 3
56
Título original do Caderno de Educação n. 8, produzido pelo Setor de Educação do MST e que
apresenta na própria capa (roda-pé): Reforma Agrária: semeando educação e cidadania. Esse documento
surgiu da necessidade de reedição do Boletim da Educação n. 1, Como deve ser uma escola de
assentamento, escrito em agosto de 1992, pois o referido Boletim foi o mais citado, num levantamento
realizada junto ao Coletivo Nacional do Setor de Educação, como um dos materiais mais importantes para
o estudo e divulgação da proposta de educação do MST nos estados. (1999: 3)
112
Intenciona-se defender uma educação omnilateral que tem como eixo uma
práxis social que integre as diversas esferas do homem:
Queremos que a prática social dos/das estudantes seja a base do seu processo
formativo, seja a matéria-prima e o destino da educação que fazemos...Em
outras palavras, também estamos afirmando o primado da prática sobre a
teoria, ou seja, de que as verdadeiras teorias são aquelas que são frutos de
práticas sociais e que, por sua vez, instrumentalizam práticas sociais[...] O
grande desafio metodológico que este princípio nos traz é o de como aprender
a articular o maior número de saberes diante de situações da realidade.
Aprendizagem que é a garantia, não só para atingirmos os objetivos da nossa
educação, como também para deixar este processo com muito mais sabor,
mais prazer, mais sentido (idem, p. 11).
Durante muito tempo se pensou que a educação não tinha e não deveria ter
nada a ver com economia. Até porque geralmente se pensa na economia
capitalista. Então, se a educação se mistura com a economia, está
reproduzindo a exploração, a dominação e a exclusão, que são as
características básicas do modelo econômico de mercado capitalista. Só que
isto é uma ilusão! Se o que queremos, afinal, é a transformação deste modelo,
não é fugindo das relações econômicas que vamos conseguir isso. Ao
contrário, é experimentando outros tipos de relações que até podemos
descobrir como, de fato, toda a sociedade pode ser diferente (idem, p. 18).
Ainda sobre a análise desse documento que trata dos Princípios filosóficos e
pedagógicos da educação do MST (1999), que devem orientar e balizar as ações
educacionais do Movimento, é mister reavivar um dos cinco princípios filosóficos da
proposta educacional do MST, dentre eles, educação de classes, que estabelece como
perspectiva uma educação voltada para a construção da hegemonia política das classes
trabalhadoras e para a formação da consciência de classe.
O que une todos estes princípios é uma clara defesa da democracia enquanto
princípio pedagógico no contexto da luta pela terra:
O educador educa pela sua conduta...A força do MST não está nos seus
discursos, mas sim nas ações e na postura dos Sem Terra que as reluzam. São
as práticas e a conduta do coletivo que educam as pessoas que fazem parte do
movimento ou com ele convivem. (2001: p 38)
57
Elaborado a partir de uma coletânea de textos produzidos nos últimos anos (mais precisamente no final
de 1999 e ao longo do ano 2000 e início de 2001), com o intuito de subsidiar e apoiar as discussões sobre
a concepção de educação e de escola, organizados pelo Coletivo Nacional do Setor de Educação, sempre
com a colaboração da Professora Roseli Caldart, que produziu os textos a partir de debates a respeito do
tema, conforme registra o próprio documento. In: MST. Pedagogia do Movimento Sem Terra:
acompanhamento às escolas. Boletim da educação, n. 8. Porto Alegre – RS: Gráfica e Editora Peres, julho
de 2001.
124
58
Observa-se, em suas propostas de educação, que O MST recorre ao pensador italiano Antônio Gramsci,
quando expressa a sua preocupação na formulação de uma nova ideologia e de uma nova hegemonia. Em
Gramsci, a hegemonia do proletariado representa a construção de uma nova sociedade como uma nova
estruturação econômica e organização política acompanhada por uma conseqüente orientação ideológica e
cultural. Essa contra-hegemonia do proletariado deve realizar-se no âmbito da sociedade civil, enquanto
que a repressão e a coerção contra os trabalhadores são assumidas pelo Estado burguês. Cf. GRAMSCI,
Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1978.
59
A tese da professora Roseli Caldart será objeto de nossa análise quando formos tratar especificamente
da Proposta de Formação de Professores do MST no capítulo que se segue.
125
Então o MST não tem outro jeito senão radicalizar (ir à raiz) sua pedagogia, para
assumir conscientemente o seu destino. E não fará isso sem refletir mais
profundamente sobre si mesmo, no conjunto de suas ações e das dimensões que
compõem sua organização, desde a perspectiva da formação humana e da produção
dos sujeitos sociais da luta de classes... Em nossa pedagogia, pois, o trabalho, a
divisão de tarefas, a organização de pessoas para garantir determinada ação não
apenas uma necessidade a ser suprida; são uma ferramenta pedagógica no cultivo
de valores, exatamente aqueles que serão capazes de nos fazer continuar em
movimento (idem, p. 22 e 23)
O MST aposta em três grandes desafios para essa tarefa de educar: o primeiro diz
respeito à ajuda que deve ser dada às famílias sem-terra a fim de que rompam com o
processo de desumanização ou degradação humana a que foram submetidas, no sentido
de tentar fazer com que, a partir do assentamento, vislumbrem uma vida mais digna,
apesar de sua história de miséria degradante.
60
A respeito dessas parcerias, é bom situar que algumas universidades públicas e privadas vêm
oferecendo o Curso de Pedagogia em parceria com o MST, para atender a demanda específica de
formação de seu quadro de professores. Um exemplo disso foi o Projeto Interdepartamental: Curso de
Graduação em Pedagogia para Formação de Professores do Ensino Fundamental e Coordenadores de
Escolarização dos Assentamentos de Reforma Agrária (1998-2001) da Universidade Regional do
Noroeste do Estado-UNIJUÍ do RS. Este curso surgiu em função de uma demanda do Setor de Educação
do Movimento Sem-Terra (MST), encaminhada à UNIJUÍ, inicialmente para curso de formação de
professores em nível médio. Temos ainda os cursos da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
(1999); da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT (1999), da Universidade Federal do Pará
– UFP (2001), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2002) e da Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS (2002). Todas essas propostas são financiadas com recursos do
Governo federal por intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA.
126
Aqui é muito bom e lindo. Não me agrada muito o fato daqui ter sido fácil entre
aspas porque não houve ocupação, porque a ocupação é uma escola, porque faz com
que a pessoa tome gosto pela terra e pela luta e organização. Você não ganha a terra,
você conquista. Pelo fato de não ter sido ocupação, passado por este processo, aqui
tem alguns que viveram no passado sendo definido pelo patrão. Se você não
participa da ocupação continua na sua cabeça a história de ser mandado. Não é fácil
apagar isso que foi vivido nos anos passados até porque é uma coisa que vem de
500 anos passados de exploração (Maio de 2001).
Percebe-se que a professora comunga dos mesmos receios expostos pelo Setor
de Acompanhamento, que, no documento em pauta, adverte que a base social do MST
não tem a consciência do que seja a identidade Sem Terra, surgindo assentados com
jeito de fazendeiros que se autodenominam “com-terra”.
O terceiro desafio faz referência à proposta de que outros setores sociais, que
não os sem-terra, assumam os valores e o modo de vida dos lutadores do povo,
conquistando novos aliados para a defesa de um projeto de reforma agrária no Brasil.
Nessa formação dos lutadores do povo, a mística parece assumir uma dimensão
educativa importante, no sentido de incentivar o cultivo dos valores e da memória
simbólica para os militantes mais antigos. Ela serve também para ajudar os novos
militantes a assumir o compromisso pessoal de entrar no processo de luta e vivenciar as
ações de maneira mais humana e plena, como se estivessem num ritual de acolhida.
Como o documento lembra: “cultivar a mística é parte fundamental do que entendemos
por formação humana” (idem, p.29).
Nas lutas sociais existem momentos de repressão que parecem ser o fim de
tudo. Mas, aos poucos, como se uma energia misteriosa tocasse cada um,
lentamente as coisas vão se colocando novamente e a luta recomeça com
maior força. Essa energia é que chamamos de ‘mistérios’ ou de ‘mística’.
Sempre que algo se move em direção a um ser humano aí se manifesta a
mística (In. MTSUE, 2001: 209).
Dentre estes valores, destacaremos alguns que tratam da formação mais ampla
do indivíduo e que, até então, não foram tratados neste estudo. Tínhamos anteriormente
a defesa da educação e da formação humana a partir da ênfase em valores tais como
solidariedade, respeito às diferenças, dignidade, cultivo da memória da história e dos
símbolos do MST e dos lutadores do povo, esperança, sobriedade, liberdade, dentre
outros, que devem ser trabalhados, principalmente na mística do Movimento.
sobre o calendário instituído após a revolução francesa. Nessa obra, Marx faz uma analogia ao golpe de
Estado de 10 de novembro de 1799 (18 Brumário do VII da República), - no qual Napoleão Bonaparte
(1769-1821) tornou-se a mais importante figura da vida política francesa - com o de Luís Bonaparte,
chamado o III pretendente – Napoleão III, em 1851. Através da narrativa deste golpe de Estado, Marx
estuda a estrutura de classes da França em meados do século XIX e sua articulação política, em função
das possibilidades históricas do momento. O título 18 Brumário representa um calendário republicano
que vigorou na França, no tempo da revolução, entre 24 de outubro de 1793 e 1 de janeiro de 1806.
Implantado pela Convenção Nacional, no qual o ano tinha 12 meses, a semana foi dividida em 10 dias e
cada mês passou a conter três semanas. Os cinco dias excedentes no final da contagem tornaram-se
feriados patrióticos, que eram consagrados a valores cívicos, tais como: a virtude, o caráter, o trabalho, a
opinião e a recompensa. Ao mesmo tempo, os dias passaram a ser dedicados aos aspectos da vida rural,
em vez de permanecerem vinculados a homenagens feitas aos santos do calendário cristão gregoriano.
Citamos como exemplo: o dia do porco (antes, dia de Santa Catarina); o dia da picareta (anteriormente,
dia de Santo André). Já os meses, por sua vez, foram relacionados às estações do ano: mês da neve
(nivôse), da neblina (brumaire), do frio (frimaire), da chuva (pluviôse), do vento (ventôse). Os
revolucionários desejaram assim, colocar abaixo todas as referências que os ligavam ao Antigo Regime, à
igreja católica, à nobreza feudal e ao Estado Absolutista, transformando o nome dos dias e dos meses em
lembranças de suas próprias lutas. A experiência desse calendário, indica uma mudança no conteúdo
ideológico planejado pelos revolucionários franceses.
129
O MST quer educar seres humanos que também sejam militantes de uma
organização da causa da transformação do mundo. E não se chega a ser, de
fato, militante de uma organização com objetivos de transformação sem
desenvolver consciência política e firmeza ideológica... E com uma atitude
permanente de crítica e auto-crítica, de abertura ao novo, sem sectarismos
nem autoritarismos de nenhuma versão. (MST, op. cit. 2001:55)
É válido observar que parte das falas desses educadores será analisada na
próxima etapa do trabalho, que tratará mais especificamente de um exame sobre os
postulados da proposta de formação de professores do MST. Essas reflexões tomarão
como eixo investigativo a relação educação, escola e sociedade e o perfil do professor
do MST.
63
Entrevista realizada em 10/12/2003 na Sede do Setor de Educação em Porto Alegre - RS
132
destruição, creditando à própria luta pela terra desenvolvida pelo MST um processo rico
de formação e educação dos trabalhadores para a transformação social.
A mesma lógica de articular a luta pela terra à luta pelo socialismo preside a
concepção da autora em relação à educação quando afirma que no próprio processo de
luta pela reforma agrária se constrói a possibilidade de consolidação de uma proposta de
educação diferente, que atenda às necessidades dos trabalhadores rurais Sem Terra.
69
Um das principais lideranças nacionais do MST que vem trabalhando com a discussão em torno dos
valores e da mística do MST.
136
formar seres humanos, e, a partir do momento que a gente forma esses seres
humanos, dentro de um sistema capitalista, dentro de uma lógica capitalista
essas pessoas vão ser, vão trabalhar para o capitalismo, por isso que nós,
que eu digo sem que haja essa ruptura, não conseguimos chegar ao
socialismo[...] Primeiro porque a gente vive gritando pra frente e pra trás:
viva o socialismo! Queremos mudanças para o socialismo!
Para alcançar essa ruptura, Diana aponta como importante ação o processo de
formação humana (novo sujeito social) articulada e desenvolvida na própria dinâmica
de um Movimento que luta pela conquista da terra.
Eu acredito que a gente não está querendo conquistar mais espaços, e eu falo
agora pela escola, se nós hoje tivéssemos essa escola somente para
conquistar espaços nós já nem teríamos mais condições de ficar aqui porque
a briga conosco é ideológica [...],No ano passado, nós brigamos muito,
tivemos audiência pública aqui na cidade, e não era porque a escola recebia
financiamento, não recebia valores de projeto de Estado, não era só por isso,
em várias escolas aqui que não são do MST, são escolas particulares que não
nos aceitam, a briga é ideológica pelo jeito que a gente forma as pessoas[...]
Porque aqui a sociedade de Veranópolis não nos aceita 100%. Não aceita a
“cidade de lona preta...” Mas a gente faz o nosso trabalho, a gente trabalha
contra os transgênicos, contra a ALCA, contra o FMI, contra o BUSH...
Porque a gente acredita que essas coisas não podem estar na nossa
sociedade, a gente tem que mudar, viver, sobreviver de uma forma diferente.
Um belo exemplo para nós é o próprio Movimento. Ele com tanta dificuldade
ele dá um exemplo de organização... (Diana)
Para Pedro, um legítimo assentado, a ruptura com o sistema capitalista passaria
necessariamente, pela conquista de espaços dentro do próprio sistema. Presta tributo à
relevância do trabalho desenvolvido no curso de magistério, no sentido de formação da
consciência de classe, que, segundo ele, permite um olhar crítico sobre a sociedade
138
como um todo. A formação da consciência de classe teria, para ele, um papel relevante
na proposta de educação do MST.
Nesse sentido, em seu depoimento, Pedro ressalta a sua caminhada como exemplo
concreto da proposta de formação do Movimento.
Eu acredito que pra fazer essa ruptura com a produção dos transgênicos é
preciso mudar esse modelo capitalista. Acho que teria que se romper com o
capital. É uma ruptura que não se faz assim de uma hora pra outra. Pra
implantar o modelo é fácil, mas pra se romper é difícil porque teria que ter
toda uma conscientização da sociedade, principalmente de quem consome
esses produtos como os transgênicos. Era preciso um controle mais severo,
mais duro por parte do governo nessas questões dos transgênicos,
incentivando mais a agricultura familiar com políticas pública, mais crédito
para a agricultura familiar. Que rompesse com essa questão só do
capital(lucro) e incentivasse a questão orgânica. Eu acredito que seria mais
uma maneira de romper com essa questão (Pedro).
Eu acredito que não tem essa ruptura de chegar lá e dizer: vou romper
agora... Isso se dá no processo. Essa nova sociedade seria uma questão de
que principalmente não exista essa visão eu sou eu e você é você, mas que
todo mundo seja igual. Tenha os direitos iguais, superando as desigualdades
sociais, como por exemplo, a questão da mulher, da valorização maior da
mulher que romperia com o machismo. Seria uma questão de uma sociedade
mais igualitária, onde a terra principalmente fosse dividida igualmente.
Seria uma questão que todo mundo tivesse acesso aos direitos básicos como,
por exemplo, de se alimentar três vezes ao dia, ter uma vida digna, ter saúde
e ter educação[...] Para isso, acredito principalmente que tem que se romper
com o capitalismo se não se chega a essa sociedade. É uma trajetória
grande. Tem que principalmente fazer essa divisão da terra. É claro que o
capital não iria deixar.Eu acredito que pra romper com o capitalismo tem
que começar por aí, onde toda a sociedade não só do campo, mas da
cidade[...] os que estão lá nas favelas se mobilizassem todos. Sobre o
trabalho do MST nessa questão da ruptura, eu acredito que ele trabalha
nesse sentido. Acredito que o socialismo possa acontecer um dia no Brasil.
Talvez não sejamos nós que vamos viver esse socialismo, mas pelo menos foi
iniciada essa caminhada. Não partimos do zero (Pedro).
Sobre a questão da luta do MST, acho que a gente faz as duas coisas, a gente
amplia o espaço de participação dos sem terra e tenta romper com o modelo
capitalista. Na verdade é uma construção.Por exemplo, no meu assentamento
a maioria das famílias depois que entraram para o MST tem todo um
processo de transformação em suas vidas, de oportunidade de estudo, até eu
pessoalmente fui uma dessas, eu quando entrei no MST tinha a 5 a série.
Também é todo um espaço onde a gente cria coisas novas, dentro de outra
lógica. A gente sai de lá, do curso de formação de professores e faz muito
trabalho de conscientização, e esse trabalho constrói outra sociedade, outras
relações, então a gente faz ao mesmo tempo uma luta pra ampliar o espaço
de participação e faz essa luta mais política, mais ideológica[...]Eu acho que
o MST faz as duas coisas, não é fácil, mas tem que fazer[...] Sobre qual
sociedade queremos construir, na verdade assim para nós, que somos
militantes isso está bem claro e o trabalho que a gente faz na base também o
povo percebe que é outra lógica e assim a gente trabalha abertamente que é
outra lógica (Madalena).
Madalena apresenta, em alguma medida, uma espécie de tática adotada pelo
Movimento, alicerçada pelo trabalho de formação humana, que vislumbra atender às
necessidades da classe trabalhadora, apontando para uma mudança de natureza
140
A gente não chega falando socialismo. A gente constrói uma outra sociedade,
tem todo um conjunto de coisas. O Movimento vai contra essa lógica que
esta aí. Então é um trabalho dedicado a todos os sentidos: e na escola, na
família, no assentamento, no acampamento, no trabalho mais intenso. No
assentamento por ser um espaço mais aberto, a gente vive mais essa
condição. A gente procura trabalhar em todos os espaços, inclusive na
comunidade onde a gente trabalha a religiosidade. Então a gente procura
trabalhar dentro dessa perspectiva socialista. Para isso nós trabalhamos na
perspectiva da classe trabalhadora.[...]Na verdade a gente quer mudança
estrutural. A gente trabalha a questão da identidade, da construção da
identidade, da educação do campo, principalmente, de assumir uma nova
postura de fazer educação (Madalena).
Sobre o papel dos intelectuais dentro do MST, acredito que o nosso lado
intelectual é de contribuir no dia a dia do Movimento. É contribuir com suas
formulações. No meu caso, um dos papéis que eu tenho assumido foi essa
tarefa de conseguir elaborar em forma de texto, não aquilo que está na
minha cabeça, na minha produção, mas de justamente fazer a síntese do
debate do momento que está na programação. Aos poucos, temos o desafio
que a gente tem assumido e em alguma medida atingido, de descentralizar a
própria escrita[...] Não esperava ter um patrimônio em relação aos
materiais. Os materiais quando saem para cada setor, eles saem bastante
amadurecidos justamente porque é alguém que escreve, é a gente que escreve
sim, porque o texto precisa sair de alguém, não é do mundo, é de algumas
pessoas, mas, na verdade sai fruto da discussão, da experiência, experiência
que sai amadurecida e a gente, na verdade, empresta apenas o nome. Mas ao
mesmo tempo, isso de emprestar vai aos poucos descentralizando a própria
atividade da escrita, proporcionando que mais pessoas possam fazer essa
passagem. O que está se discutindo são atividades diferenciadas para que o
texto possa ser socializado por mais gente, por isso inclusive, os nossos
cursos pra formação de professores, trabalha com a elaboração de
monografia, com a produção de texto, pra que essa experiência rica possa
ter mais mãos trabalhando (Roseli Caldart).
Acho que o papel dos intelectuais é fazer a gente entender, interpretar mais
as coisas e ajudar a gente a avançar inclusive uma análise da sociedade e
apontar saídas, porque até pouco tempo, nós não tínhamos ninguém com
curso superior aqui, então nós temos poucas pessoas que já conseguiram
chegar ao nível superior, então eles ajudam a entender, a compreender e
avançar no conhecimento em todos os sentidos. Os intelectuais atuais, que
nos ajudam são pessoas que contribuíram muito conosco, como, Miguel
144
Arroyo que é sempre bastante próximo de nós, tem os menos famosos como
Carlos Brandão. Temos a ajuda na análise da economia do Plínio de Arruda
Sampaio e, na educação, temos a ajuda da Rosely que já é uma militante do
Movimento (Madalena).
CAPÍTULO 4
Discutindo cooperativismo
O avanço da organização
É na vida do assentamento
Que a criança aprende a lição
Conhecer a caneta e a enxada
Afinado estudo e trabalho
Aprendendo teoria e prática
Nova forma de aprendizado
70
Canção do músico Zé Pinto, publicada no livro Sem-terra: as músicas do MST. Porto Alegre: Unidade
Editorial, 1996.
146
71
Para de demonstrar nossa afirmação, temos o exemplo do documento do MST, intitulado Pedagogia do
Movimento Sem Terra: Acompanhamentos às Escolas. In: Boletim da educação. n. 8, Porto Alegre:
Gráfica e Editora Peres, julho de 2001, que apresenta um conjunto de reflexões e debates dos educadores
que fazem o Setor de Educação, responsável maior pelo acompanhamento às escolas, em que Roseli
Caldart assume a redação do texto final desse processo de construção coletiva. Ainda a esse respeito, é
válido registrar que, em seu depoimento concedido a nós (2003), a própria autora afirma que a
construção do texto é um processo coletivo de discussões e reflexões, mas eu empresto a minha mão, o
meu nome e o meu conhecimento para escrever o documento final resultado dessas discussões[...].
Ressalta ainda que, [...] Temos consciência de que é preciso descentralizar a produção dos textos. Temos
que democratizar esse processo de escrita[...]
72
CALDART, Roseli. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola... Petropólis,
RJ: Vozes, 2000.
73
Como forma de reiterar a nossa afirmação sobre as possíveis influências dessa autora no projeto de
formação de professores do MST, recorremos a uma nota presente nesse livro em que Caldart expressa
literalmente sua contribuição nas obras educativas do MST e se assume como uma Sem Terra. Este livro
se integra a outras iniciativas que estão sendo tomadas em vista da nossa memória histórica: "História
do MST", que está desenvolvendo um levantamento documental e a coleta de depoimentos, visando um
registro mais organizado e analítico da participação do movimento na luta pela Reforma Agrária em
nosso País[...] (Grifo Nosso) (1997:20, nota 7).
148
Além dos textos de autorias da própria Caldart, que são o eixo principal de nosso
texto, iremos nos fundamentar em trechos de documentos do MST, como o que trata da
Pedagogia do Movimento Sem Terra: Acompanhamentos às Escolas e parte dos
depoimentos colhidos em entrevistas com a própria Roseli Caldart e demais educadores
do MST.
74
É interessante destacar que os trabalhos e teses desses autores por nós consultados reconhecem a
contribuição de Roseli Caldart na formulação da proposta de educação do MST. Tal reconhecimento é
notório quando em seus trabalhos citam como referência o livro resultado da tese de doutorado de
Caldart, como uma preciosa contribuição da autora às formulações do MST no campo da educação e,
conseqüentemente, na formação dos professores militantes do Movimento...
75
É válido ressaltar a total disponibilidade dessa professora diante da nossa demanda por entrevistá-la,
oferecendo-nos uma gama de documentos que ela considera relevantes para a compreensão da educação
no MST, além de um artigo de sua autoria que trata de afirmar a tese do Movimento como princípio
educativo, do qual apresentaremos trechos ao longo da exposição de suas concepções.
149
reconhecimento por parte de todos os militantes do MST que a consideram uma Sem
Terra.
Caldart nos conta que seu envolvimento com o MST se deu no período em que
estava fazendo Mestrado no Estado do Paraná. Esse momento de sua história pessoal
coincidiu com o próprio surgimento e criação formal do Movimento enquanto entidade
nacional. Em suas palavras,
Eu entrei pra pesquisar essa dimensão da poesia e aos poucos fui dando
conta da outra que estava começando a emergir: a finalidade da educação e
da escola no Movimento. E continuei a tentar pesquisar o MST. Enfim
começaram as primeiras reuniões para constituir o Setor de Educação e o
pessoal sabia que eu tinha feito uma dissertação[...] me convidaram para
participar das discussões sobre o que fazer com as escolas dos
assentamentos[...] Isso aconteceu quando eu comecei a participar das
reuniões da criação do Setor de Educação do Movimento no RS nos anos de
1986 a 1988 e eu ainda estava da universidade. Até que em 1989, começou a
criação da FUNDEP/DER76 iniciando a discussão sobre a necessidade de ter
cursos de magistério especificamente voltados para formação de educadores
da reforma agrária, de educadoras dos assentamentos. Eu ajudei na criação
dessa entidade e na hora que ela foi criada o pessoal olhou pra mim e disse:
- bom agora oficialmente ajude a formar a coordenação pedagógica dessa
entidade temos uma mestre aqui[...] Então o pessoal me fez o convite pra
coordenar esses primeiros cursos (Roseli Caldart).
76
Fundação de Desenvolvimento e Pesquisa da Região Celeiro – FUNDEP, em seu Departamento de
Educação Rural - DER
150
Eu comecei no estadual aqui no RS, mas uma coisa puxa a outra. Esses
cursos serviram de referência para outras discussões e em 90, 91 comecei a
integrar a Coletivo Nacional. Esse setor de educação nacional tem ajudado
na produção de materiais, nessa tentativa de expressar na linguagem escrita
essa construção que é feita no projeto de educação que nasce vinculado a
uma obra social e sempre desde que eu comecei, quer dizer eu entrei assim e
até hoje é um debate muito forte, na formação de educadores. Eu entrei pra
ajudar a formar o educador do magistério no âmbito nacional, e, hoje,
embora eu participe das discussões a nível nacional, tenho tido o cuidado no
sentido de compreender que a coordenação deve estar vinculada a
experiências locais...(Roseli Caldart).
Nesse sentido, vale apresentar a fala do demais entrevistados sobre como vêem a
relação da Rosely Caldart como o MST.
Nós não fazemos muito essa diferenciação porque pra nós a companheira
Roseli é militante do MST. Ela colabora com a nossa educação [...] Eu tenho
assim um grande reconhecimento e admiração com o trabalho que a Roseli
fez e faz, principalmente porque você sabe a história da tese da Roseli como
foi que aconteceu? Nós aqui no Ceará nós tínhamos uma parceria com a
Secretaria de Educação do Estado e com o Unicef e com outros órgãos como
o Conselho da Mulher e algumas ONGs. Estávamos fazendo um trabalho
para o assentamento e a discussão que a gente queria é que de fato se
trabalhasse a proposta da pedagogia do MST. E nenhum desses órgãos
reconheceu a nossa proposta de educação, a nossa pedagogia. Eu ligava pra
151
Roseli pra resolver, investigar, pra questionar: - Roseli, nós não temos uma
pedagogia, porque aqui estão dizendo que nós não temos essa formulação. A
Roseli transformou essa angústia nossa, esse debate nosso em sua tese de
doutorado que foi publicada no “A Pedagogia do Movimento Sem Terra.
Assim o MST tem uma pedagogia e eu creio que a obra da Roseli, expressa
aquilo que o Paulo Cerioli diz: depois de Pedagogia do Oprimido de Paulo
Freire, o livro Pedagogia do Movimento Sem Terra é uma obra que faz a
diferença dentro de todas as discussões pedagógicas, porque ela sistematiza
através da sua tese, a nossa experiência, em que o sujeito educativo é um
movimento social e isso é um novo paradigma para a educação, inclusive
para a educação popular e para todos os outros movimentos sociais que hoje
nos procuram, reivindicando do MST uma participação na construção de
processos pedagógicos diferenciados em relação a implantação de propostas
diferentes, camponesas em vários países. (Maria de Jesus).
A Roseli pra nós é uma grande educadora, não por ela vir aqui dar aula aqui
no Curso de Pedagogia [...] O pessoal gosta muito das aulas dela por ela ser
essa educadora extraordinária, a sua forma ser... Ela não precisa dizer pra
ninguém como se organizar, ela é extremamente organizada, e a gente olha
assim: eu acho que só em a gente ver o dia-a-dia dela a gente aprende. Ela
tem um papel muito importante nessa ligação teoria e prática através de sua
própria vida pessoal e nessa influência conosco aqui internamente. Ela é
uma educadora que vive na prática o compromisso com a transformação
dessa sociedade[...]Ela é uma educadora que milita conosco...(Diana).
Frente a essa gama de depoimentos que afirma e situa Roseli Caldart como uma
educadora militante do MST e que reconhece a sua influência nas formulações das
propostas de formação de professores do Movimento, compreendemos que, para
desvendarmos as concepções do Movimento em relação à educação, é preciso uma
análise atenta e pormenorizada do pensamento dessa professora que registra em seus
escritos o ideário pedagógico do MST.
152
A autora afirma que existe uma trajetória histórica de ocupação da escola pelo
MST, identificada como um processo de construção que decorre da ocupação da terra,
fruto das ações dos mesmos sujeitos. Nesse sentido, apresenta a trajetória da educação
escolar do MST a partir de três momentos significativos:
[...] O que a gente vem tentando ao longo desses anos é assumir o vínculo
com a nossa identidade de educador. Não é qualquer educador, mas deve ser
um educador que já fez opção, que já escolheu estar vinculado a uma luta
social. Porque o grande desafio é construir uma coerência entre a atuação
específica na área da educação, na área da formação, com a dinâmica dessa
luta que a gente sabe fazer. Assim formaremos um educador comprometido
com a nossa luta. Um educador numa perspectiva crítica e democrática, que
se preocupe com a luta desencadeada pelo Movimento. Essa compreensão a
gente vem construindo aos poucos[...] (Roseli Caldart).
Nessa escola, as práticas do MST são trabalhadas com os alunos para que eles
levem consigo, ao final do curso, a ideologia do Movimento para ser
divulgada aos jovens e adultos que venham a ser alunos nos acampamentos e
assentamentos. Uma das práticas estimuladas é a autogestão, para que os
alunos aprendam a gerir cooperativas e associações dos assentamentos, como
forma de organização (2003:54).
O MST buscou afirmar o seu caráter político, e não apenas corporativo, o que
já naquela época indicava não ser a sua luta apenas pela terra. Foi este caráter
que exigiu uma conformação organizativa aberta a um tipo de demanda como
a educação e a escola. Não fosse assim talvez esta preocupação continuasse a
se desenvolver entre as famílias e professoras, tal como acontece em muitas
comunidades, rurais ou urbanas, mas então estaremos tratando de outra
história, outros vínculos, outros desenlaces (op. cit. 2000:152).
155
Essa dimensão da educação dentro da luta pela reforma agrária é bem analisada
por Morigi, quando afirma que "a importância dada à educação pelo MST é mensurada
pela afirmação de que investir na educação é tão importante quanto o gesto de ocupar a
terra" (op. cit. 2003:56).
São Mateus, no Espírito Santo. Esse encontro tinha por finalidade desenvolver uma
articulação nacional do trabalho que já vinha sendo desenvolvido em vários estados do
País.
Esse autor registra, ainda, que a criação do Setor de Educação foi resultado desse
Encontro, que teve o objetivo de articular e potencializar as lutas e as experiências
educacionais, desencadeando a organização do trabalho nas regiões onde o Setor ainda
não tinha surgido. Os encontros nacionais dos professores de assentamentos
transformaram-se nas reuniões ordinárias do Coletivo Nacional de Educação do MST,
que se constitui numa instância máxima de decisão do Setor de Educação82.
Pedro Stédile (Conferir: BELTRAME, Sônia Aparecida Branco. MST, professores e professoras:
sujeitos em movimento. 2000. Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000, p. 162).
82
De acordo com Caldart, “[...]o Setor de Educação do MST tem sua centralidade de atuação na escola, e
a referência construída na sociedade em relação a este campo também está centrada nela” (2000:140 e
144). A autora registra que no I Encontro Estadual dos Professores de Assentamento do RS, de 9 a 11 de
dezembro de 1988, na Anoni, onde foi discutida a questão da reestruturação do MST em setores, a equipe
que trabalhava com a educação passou a ser denominada de Setor de Educação do MST. Nos estados de
Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Bahia e Piauí, já existia a
articulação deste Setor (idem, p. 150, nota 140).
83
Essa forma de organicidade centrada do movimento ascendente e descendente trata do percurso de
tomadas de decisões dentro do MST. Na democracia ascendente, parte-se dos chamados Núcleos de Base
– NB até se chegar à direção nacional, e na democracia descendente, as decisões tomadas nas instâncias
nacionais devem contar com a participação efetiva de todos os envolvidos no processo. O objetivo é que
se garantam os espaços de participação democrática em todos os níveis. Esta mesma lógica rege o
percurso das decisões do Setor de Educação do MST. A respeito dessa estrutura organizativa, CALDART
ressalta que essa lógica do MST quase sempre é temperada com os seus ingredientes de movimento de
massas, ajustando permanentemente o formato da organização de que, afinal, são os sujeitos (2000:163).
159
Foi a partir daí que se tornou mais usual a expressão educadores do MST (agora já
com maior presença masculina), porque ela incluía as professoras, mas não deixava
de fora estes outros militantes que, não sendo professores de escola, são também
trabalhadores e trabalhadoras da educação. Isto seria ainda mais reforçado com a
introdução de novas frentes de ação do Setor, com a educação de jovens e adultos,
as mobilizações infantis e outras (idem, p. 164).
84
É válido lembrar que parte desse documento já foi analisada no texto que tratou especificamente de
explicitar os princípios que sustentam e orientam o projeto de educação do MST.
160
Sobre isso temos vivido muitas tensões. Não temos certeza de que é possível
combinar nas mesmas pessoas duas tarefas. E ainda temos alguns mitos sobre
quem pode e quem não pode fazer discussões de pedagogia. Um dos
objetivos de adotar a expressão Pedagogia do Movimento é para que a nova
linguagem nos ajude nesta necessária desmistificação. (op. cit. 2001:15).
Temos assim uma orientação desse Setor para a atuação dos educadores do MST,
que deve estar articulada ao processo de constituição da escola diferente e de uma
formação de professores que atenda às demandas da luta pela terra, que, conforme
Caldart, apontou para outra dimensão importante no processo de ocupação da escola
que trata da elaboração teórica coletiva da proposta pedagógica do MST para suas
escolas. Esta dimensão foi se construindo a partir de dois eixos de reflexão coletiva
presentes em todos os encontros do MST realizados nos estados no final da década de
1980 e início de 1990: o que queremos com as escolas dos assentamentos e como fazer
esta escola que queremos.
85
A autora refere-se ao Caderno de Formação nº 18 do MST, considerado o primeiro material produzido
de forma coletiva com o objetivo específico de orientar o trabalho educativo do Movimento.
86
Estes princípios estão sistematizados no documento analisado anteriormente: Princípios da Educação
do MST. Caderno de Educação nº 8, São Paulo: MST, 1997.
162
Assim, de acordo com Caldart, o grande desafio era juntar essas fontes, tendo a
realidade como base e o método proposto como guia da sistematização pretendida. O
eixo da elaboração da proposta pedagógica foi “no início e continua sendo hoje, a
prática dos sujeitos sem-terra, desdobrada em questões do cotidiano pedagógico, da
escola do Movimento como um todo” (idem, p.168).
87
Ainda a respeito dessa experiência, é válido registrar o depoimento de Maria de Jesus, que foi formada
nessa primeira turma de pedagogia: Então eu creio que para nós assim que fizemos o curso no MST
sempre a gente tem essa visão de que a gente é um privilegiado[...] Não no sentido da gente se sentir
mais do que os outros companheiros e companheiros, mas no sentido da gente poder se apropriar
daqueles conhecimentos para contribuir com a nossa organização. Nosso conhecimento tem um sentido
social. A gente não está numa universidade fazendo um curso desse por conta de uma questão pessoal,
mas a gente está por conta de uma causa e por conta de um projeto que a gente acredita. E a gente quer
dar a nossa contribuição para que o Movimento avance, para que ele seja vitorioso nas conjunturas
adversas[...] Na nossa relação com as universidades nossos cursos vivem uma disputa porque as
universidades querem nos tornar acadêmicos. E uma coisa que nós firmamos é que nós dentro da
universidade somos estudantes do MST. Nós estamos aqui é para estudar, para aprofundar nossas
práticas, para aprender a sistematizar, aprender a entender o mundo. Então isso tem sido uma
construção diferente. O que é que é ser um estudante do MST? Esse estudante é um lutador social, um
lutador que tem compromisso, que quer a mudança, que quer construir o Movimento, que quer fazer uma
sociedade diferente[...]
164
[...]Ou seja, logo estes cursos começaram a ser vistos como lugares de
formação de militantes da educação do MST, e não apenas para o trabalho
direto nas escolas [...]. (2002:78)
Nessa perspectiva, a autora assinala que esse processo acabou por transformar as
professoras de ofício em uma identidade coletiva específica, que vai além do ofício, mas
não o supera:
Professora sem-terra é o nome que pode ser dado à personagem do MST que
combina em três componentes identitários diferenciados, cuja síntese é que
acaba sendo a novidade na conformação histórica do sujeito sem-terra. O
primeiro componente é a condição de mulher; o segundo é o ofício de
educadora ou educador; o terceiro componente desta identidade é a sua
participação na luta pela terra e na organicidade do MST (idem, p. 187).
Parte dessas concepções estará expressa no texto que se segue, que tem como
objetivo apresentar a estrutura e os princípios organizativos da proposta de formação de
professores do MST, tomando como centro de nosso exame as experiências
desenvolvidas pelo Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranopólis - RS.
88
O ITERRA, Instituto Técnico de Captação e Pesquisa da Reforma Agrária, criado em 12 de janeiro de
1995, para ser mantenedor do Curso Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), tendo como
sócios fundadores a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda –CONCRAB e a
Associação Nacional de Cooperação Agrícola – ANCA. O ITERRA, é entidade educacional que abriga o
Instituto de Educação Josué de Castro, situado no Município serrano Veranópolis/RS, reconhecida
legalmente como escola de ensino supletivo e de educação profissional, com turmas de Magistério e de
técnico em Administração de cooperativas – TAC, desde 1996. O ITERRA abriga-se numa parte do
Seminário São José, da Congregação dos Freis Capuchinhos, alugada pela CONCRAB. A aprovação legal
da Escola Normal de Nível Médio do ITERRA coincide com o início da sexta turma de Magistério do
MST em parceria com o FUNDEP no Rio Grande do Sul. Existe ainda a Escola Nacional Florestan
Fernandes, em Santa Catarina, que realiza um trabalho de formação básica para os jovens no âmbito da
psicologia, da filosofia, da economia política etc, com o objetivo de desvelar o funcionamento da
sociedade. Em São Paulo, capital, o Movimento conta com um centro de formação Roseli Nunes e, no
interior do Estado, há o centro de Formação Carlos Lamarca. Conferir: MORIGI, Valter. A escola do
MST: uma utopia em construção Porto Alegre: Mediação, 2003. p. 58.
89
Observamos ao longo de nossa pesquisa documental, das entrevistas e observações realizadas, que o
Instituto de Educação Josué de Castro, como formalmente é reconhecido e legalizado, recebe muitas
vezes a denominação de Escola Josué de Castro ou de Escola Nacional de Formação de Professores do
MST.
167
É importante mais uma vez, recordar que nossa intenção, após a necessária
exposição de todos esses materiais, é conduzir nossa análise tomando como eixo a
investigação sobre até que ponto o programa de formação de professores do MST se
afina com o que está exposto pelo modelo das competências, especialmente no
Relatório da Conferência de Jomtien, ou se mantém a perspectiva da luta de classes e
da construção do socialismo em suas formulações educacionais.
90
MST. Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA, ano II, nº 6, Veranópolis-RS, 2002.
168
inicial de Escola de Ensino Supletivo Josué de Castro. Naquele momento, essa escola
abrigou ainda o Curso Experimental de Formação de Professores de 1ª a 4ª série do
Ensino Fundamental, conhecido como Curso de Magistério do MST, que teve sua
experiência iniciada, como já nos informou Caldart, junto ao FUNDEP/DER no ano de
1990 e que em janeiro de 2001 teve sua oferta regulamentada como Curso Normal de
Nível Médio em atendimento às exigências legais.
Essa concepção do que seja um educador da reforma agrária é bem ilustrada pela
seguinte formulação do próprio MST:
92
Conferir MST. Como fazemos a escola de educação fundamental. Caderno de Educação, n. 9, Porto
Alegre: 1999.
172
pelos NB para que possam ser cumpridas pelos setores de trabalho 93. Os
educandos estão distribuídos dentro desses setores, que vão desempenhar e
cumprir as decisões tomadas por eles anteriormente. Os educandos acabam
participando das decisões e no cumprimento de metas da produção e de
outras metas também, como as metas pedagógicas. Então você faz o caminho
de ida e volta. (Diana)
Tal concepção foi trazida para o Instituto de Educação Josué de Castro como
um princípio político pedagógico e vem norteando o seu funcionamento,
levando os membros da organização a uma gestão coletiva dos interesses do
Instituto e suas relações com o conjunto mais amplo do MST. Busca-se o
desenvolvimento de uma consciência para a luta e que sejam sujeitos desse
processo[...] Não entendemos democracia como a possibilidade de voto em
eleições. Entendemos democracia como a participação de todos nos processos
de informação, decisão, planejamento, execução, controle, avaliação e
apropriação dos resultados de um determinado empreendimento social, mas
tudo feito de forma organizada. (TREVISAN, 2002:11).
Nós queremos formar esses educadores, essas educadoras para que sejam
quadros da educação, da formação do MST. Que sejam pessoas que tenham
94
A metodologia dos tempos educativos não é uma particularidade dos cursos de formação de professores.
Ela é empregada em todos os demais cursos desenvolvidos pelo MST.
175
Na escola, os nossos cursos se realizam por etapas com dois tempos: o tempo
escola e o tempo comunidade. O tempo escola é o tempo em que os
educandos estão aqui no Instituto cumprindo a carga horária legal do curso.
No tempo comunidade voltam para suas comunidades de origem e vão
desenvolver atividades melhoradas no sentido de poderem olhar pra essa
realidade com outros olhos, no sentido desse conhecimento que vão
adquirindo aqui nesses dois meses. Também vão desenvolver atividades no
Movimento pela sua própria inserção no Movimento. Vão também
desenvolver atividades que a escola delegue, mas nunca a escola delega
atividades que faça com que os educandos fiquem longe do MST, trancados
dentro de casa, estudando. Assim eu só vou me tornar uma pessoa
consciente da minha classe trabalhadora se eu estiver ligada a algo que me
proporcione analisar esse movimento. Essa mudança de consciência ela se
dá quando eu compreendo que só me conscientizo se participar do MST. Se
eu não vivo o Movimento, daí eu vou entrar muito em conflitos, no sentido
“ah mais tudo isso é verdade ou é mentira?” [...] Para mim existe, precisa
existir essa vinculação entre a teoria e a prática, essa ligação entre escola e
Movimento. Assim a gente trabalha na escola essa realidade do Movimento
que vai formando a consciência de classe (Diana).
outros tempos, desde que estejam ligados à concepção de que a escola é um lugar de
formação humana em que as várias dimensões da vida estejam contempladas.
Nesse sentido, Caldart parte do princípio que os Sem Terra se educam em sua
relação com a luta pela terra, o trabalho e a produção. Em suas palavras,
95
Grifo nosso para destacar o objetivo da proposta de educação do MST, bem explicitada e assumida
nesse trecho do documento.
96
A respeito desse pressuposto é válido conferir artigo de Caldart, O MST e a formação dos sem terra: o
movimento como princípio educativo. Revista Estudos Avançados nº 15, São Paulo: 2001.
179
formação deve se dar no cotidiano de luta dos assentados, com a participação coletiva
no processo de ocupação da terra, na organização para o enfrentamento da repressão
policial e dos fazendeiros, além do confronto constante com o Poder Judiciário. Isso
incluiria a distribuição de tarefas nos acampamentos e assentamentos e o próprio
processo de negociação com as instituições governamentais.
Para trabalhar com esse contexto amplo e adverso, o Movimento apresenta como
um desafio importante a formação de seus professores, que deve ser fundada em um
determinado perfil e numa identidade, definidos em vários documentos e depoimentos
de seus educadores. Assim, encontramos a definição de três pilares do projeto de
formação de professores do MST:
- o terceiro pilar, que parece expressar um avanço nas formulações das propostas
de educação do MST, é a preocupação de articular as lutas locais com as questões
mundiais de ordem política, econômica e social, resgatando, ainda, a história dos
lutadores do povo. A interpretação dessas questões é compreendida como um caminho
para se estabelecer um pensamento dialético e totalizante sobre a realidade da luta
específica pela reforma agrária e por políticas públicas em geral.
Maria de Jesus entende que todos os cursos desenvolvidos pelo MST nascem da
necessidade que o Movimento tem de qualificar suas experiências. Nesse sentido, ela
compreende que, “a questão é formar pessoas de dentro dos assentamentos, porque a escola
também está em disputa no assentamento”.
A educadora afirma, ainda, que a premissa básica dos cursos oferecidos pelo
Movimento é a de formar uma autoconsciência da identidade Sem Terra. Essa seria a
função social também dos cursos de formação de educadores.
97
Grifo nosso
181
Precisamos assegurar que o Movimento tenha essa força local, mas também
essa força mundial, no sentido de que nós sempre estamos vivendo na
berlinda. Porque nós estamos também vinculados às questões de hoje como a
da guerra do Iraque. Esse movimento de local ao geral é que vem também
organizando essa educação. Esses cursos de formação (Maria de Jesus).
Sabemos que o MST é formado por uma classe trabalhadora que foi
excluída[...]Nós dos movimentos sociais, que articulam aquelas pessoas que
não tem mais direitos a tantos espaços contribuímos para que essas pessoas
comecem a ver a sociedade de uma outra forma, aprendendo que é possível
construir uma outra forma de se viver. É bem a partir do momento que a
gente passa a vivenciar essa identidade de Sem Terra, que se liga à
identidade de classe trabalhadora que para mim também é uma identidade
muito forte porque é uma classe trabalhadora, que justamente busca o seu
direito de trabalhar, mas não trabalhar por trabalhar, não o trabalho
escravo, mas um trabalho que seja construído por todos. Assim você aprende
a desvendar a sociedade. Nesse sentido a escola precisa trabalhar muito
forte essas duas ligações: entre a classe trabalhadora e a identidade Sem
Terra. Essas duas identidades são muito ligadas à escola. Assim, a
orientação metodológica da escola parte de uma realidade que a gente tem
que entender a história da relação entre teoria e prática. A escola, os cursos
todos, em especial o magistério, têm que trabalhar uma educação voltada à
realidade, mas a realidade em que a escola está inserida, como se dá a vida
no campo, no acampamento, na escola, na família, a luta do MST[...]
Questionamos o que é um Sem Terra, quais são as linhas, qual o projeto de
ser humano dos Sem terra. Nesse sentido, os princípios educativos estão
assim para nós como os 10 mandamentos da Igreja Católica... (Diana).
98
Grifo nosso
183
Eu não sei até que ponto o Estado seria fundamental. De repente, o MST faz
essas parcerias, esse envolvimento com a política com o Estado e eu acho
que é mais difícil conseguir nossos objetivos quando se tem muito essa
parceria, porque o governo vai meio que enrolando, vai fazendo o tempo
passar. Eu acho que não é muito grande a vantagem de ter muita parceria
com o governo. Por outro lado, a questão já muda um pouco quando se trata
da parceria para oferta dos cursos de Pedagogia em parceria com a
universidade. Acho que essas parcerias são importantes. Por mais que se
tenha um conflito para se conseguir as coisas, mas é uma forma de se
conseguir alguma coisa. Até para essa questão desse curso de Pedagogia, se
formos olhar bem, já foi uma luta grande para se conseguir essa parceria
(Pedro).
Mesmo mantendo parcerias com o Estado, o MST busca não deixar de lado as
reivindicações por políticas públicas. Tem-se a compreensão de que, mesmo
conquistando um projeto em parceria com Estado, tal projeto é de natureza temporária e
emergencial, devendo-se lutar para que ele se torne uma política pública. Nesse sentido,
o MST reconhece a necessidade de realizar convênio com diversas instituições públicas,
privadas ou comunitárias.
Diante dessa visão que a sociedade assume a respeito do MST, a diretora afirma
que o Movimento enfrenta sérias dificuldades no processo de aprovação dos seus
cursos, uma vez que, segundo ela,
[...] Vem toda uma conceituação no sentido do que realmente essa escola vai
trabalhar, tanto é que alguns projetos e documentos a gente não pode usar
uma linguagem assim muito de esquerda, revolucionária, porque não temos
a aceitação do projeto. (Diana)
Todo esse processo pode ser bem representado e sintetizado no Manifesto das
educadoras e dos educadores da Reforma Agrária ao povo brasileiro 99, elaborado no I
ENERA de 1997, sendo útil aqui reproduzi-lo.
99
1.° Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária. Homenagem aos educadores
Paulo Freire e Che Guevara. Brasília, 28 a 31 de julho de 1997.
187
100
Segundo Caldart, a elaboração dessa síntese teve por base o documento “Proposta Pedagógica do
Curso de Magistério” de dezembro de 1996. (1997:109), que parece representar uma das primeiras
sistematizações dessa experiência. Dessa forma, o documento intitulado Plano de Estudos (2003) já
incorpora os ajustes e adequações curriculares realizados ao longo da trajetória desse curso.
188
O curso tem uma carga horária de 3.400 horas estruturando-se em três eixos
interligados: o primeiro intitula-se Formação Geral - Base Nacional Comum: que
trabalha com as disciplinas de fundamentação das diversas ciências como: Língua
Portuguesa e Literatura; Noções de Informática; Matemática; Biologia; Química; Física;
História; Geografia; Economia Política; Filosofia; Sociologia; Psicologia; Cultura
Brasileira; Educação Física; e Educação Artística.
101
É justo notar que existe uma referência a essa problemática específica numa disciplina do terceiro eixo
curricular, intitulada Estrutura e Funcionamento da Educação Básica do Brasil, de 112 horas-aula, em que
se tem como um dos conteúdos estudar “a situação dos trabalhadores de EB: formação, carreira, salários,
organização sindical” (idem, p. 15).
192
102
Para maiores detalhes sobre a OFOC, ver especialmente: CALDART, Roseli Salete. Educação em
Movimento: formação de educadoras e educadores do MST. Petrópolis: RJ: Vozes, 1997.p. 114-122.
193
103
Em nossa observação feita no Instituto de Educação Josué de Castro, em Veranópolis, verificamos a
execução dessas atividades, quando visitamos as oficinas de artesanato; de recuperação de móveis; da
fábrica de doces e geléias; e a oficina de produção de pães e doces. Observamos, ademais, que parte dos
educandos de todos os cursos oferecidos no ITERRA participam, em forma de rodízio, da Ciranda
Infantil, uma sistemática que permite aos pais-cursistas desenvolverem seu Tempo Escola, já que seus
filhos ficam sob a vigília atenta e cuidadosa desses educadores-cursistas. Encontramos, ainda, esses
educadores que, assim como os que participam da Ciranda Infantil, cumprem seu Tempo Comunidade no
próprio ITERRA, mediante o envolvimento com essas oficinas, ou mesmo com o acompanhamento
pedagógico às diversas turmas do Instituto. Como exemplo concreto desse fato, podemos apontar o caso
dos dois entrevistados Madalena e Pedro, que, ao mesmo tempo em que fazem o Curso de Pedagogia da
Terra, são responsáveis pelo acompanhamento pedagógico de alguma turma do IE JC.
194
O Tempo Comunidade possui cinco eixos que têm como objetivo proporcionar a
interdisciplinaridade, combinando estudo com ações de intervenção social nas
comunidades. Alguns desses eixos têm uma carga horária definida na Proposta
Pedagógica do Curso, e outros, têm duração determinada pelos participantes, num
processo de auto-gestão, sendo alvo de ajustes de acordo com as necessidades de cada
comunidade e da própria escola. São eles,
Esses conteúdos são trabalhados quase que exclusivamente nessa disciplina numa
fração de 104 horas/aula se tomarmos como referência o curso que tem 3.400 horas e
48 horas-aula do total carga horária de 1.600 horas distribuídas no curso específico para
complementação da formação destinado aos militantes que já concluíram o ensino
médio regular.
105
Em relação à própria nomenclatura dada aos cursos de pedagogia do MST, Caldart observa, [...]De
nome-apelido, a expressão Pedagogia da Terra vai aos poucos identificando a presença de determinados
sujeitos na Universidade, bem como um jeito talvez novo de fazer e de pensar a formação das
educadoras e dos educadores do campo[...]O batismo foi uma espécie de intuição política e pedagógica
da turma sobre uma diferenciação que precisava ser destacada e uma raiz que não deveria ser
abandonada, especialmente diante da insistência com que a Universidade passava a chamá-los de
“acadêmicos” (2002:77 e 83).
106
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, Pedagogia para Formação de Professores
em Anos Iniciais e Educação de Jovens e Adultos. Rio Grande do Sul, 2002. A respeito da
nomenclatura desse curso, é válido registrar que os educadores do MST utilizam a sigla PEF na
designação oficial do curso na Universidade.
198
Assim sendo, efetuaremos a análise desse Curso através dos depoimentos dos
educadores do Movimento e do relato de educandos presentes no documento
Pedagogia da Terra107 que integra a coleção Cadernos do ITERRA publicado em
dezembro de 2002, o qual tem como objetivo registrar, socializar e refletir sobre as
experiências do Movimento com os Cursos de Pedagogia dentre eles o da UERGS
intitulado Pedagogia da Terra da Via Campesina - Turma José Martí em
Veranópolis108, de autoria das educandas Marilene Hammel e Matilde de Oliveira de
Araújo Lima. Complementaremos esse exame com um artigo de Caldart presente nesse
mesmo documento intitulado Pedagogia da Terra: formação de identidade e
identidade de formação109, em que a autora procura contribuir no processo de registro
e reflexão das práticas de formação de educadores do MST, concorrendo, segundo ela
própria, para contextualizar a trajetória do MST no desenvolvimento dos seus cursos.
107
ITERRA. Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA. Ano II, nº 6, Veranópolis – RS, 2002.
108
Vale registrar que o nome oficial do curso presente no seu Projeto Político-Pedagógico é Pedagogia
Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos. A denominação Pedagogia da
Terra da Via Campesina - Turma José Martí em Veranópolis, é utilizada internamente pelo ITERRA/MST
dentro do Instituto de Educação Josué de Castro - IEJC.
109
In: MST/ITERRA: Pedagogia da Terra. Cadernos do ITERRA. Ano II - n. 6 - Veranópolis - RS: 2002
199
111
A Via Campesina do Rio Grande do Sul reúne o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, o
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST, o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR, a Pastoral da Juventude Rural – PJR, e
o Movimento dos Trabalhadores Desempregados - MTD.
201
No relato das experiências da turma José Martí, as autoras registram que foi
definida, como linha de pesquisa, Movimentos Sociais e Educação do Campo,
estabelecendo, como recorte temático, os processos de formação/educação do campo,
apresentando com o objetivo de exercitar o olhar para os sujeitos dentro do contexto do
campo, a partir de duas questões gerais que orientam a elaboração dos projetos de
monografia do curso: como são e como se formam/se educam os sujeitos do campo, e
como são e como se formam/se educam os educadores dos sujeitos do campo?
(ITERRA, op. cit. 2002:62).
Nesse sentido, a proposta tem uma carga horária mínima de 2880 h/a,
distribuídas em quatro eixos curriculares/temáticos: sociedade e educação;
conhecimento e educação; educação anos iniciais do ensino fundamental e educação de
jovens e adultos; pesquisa em educação.
112
Grifo nosso
204
113
A política de Estágio Supervisionado inclui 400h/a de práticas que perpassam todos os componentes
curriculares, envolvendo diretamente o fazer docente, e 420 h/a que devem ser desenvolvidas ao final do
curso, das quais 210 h/a acontecerão nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e 210 h/a na Educação de
Jovens e Adultos.
205
Não se trata de pensar que um curso, por melhor que ele seja, é capaz de dar
conta de um desafio tão grandioso que é o de transformar as pessoas e sua
prática social, e mesmo que ele em si mesmo possa se materializar com
práxis. A questão aqui colocada é a da possibilidade de um curso também
fazer parte deste processo mais amplo de formação requerido pela dinâmica
atual do Movimento. Para que isto aconteça é preciso alterar a visão que
geralmente se tem da relação prática, teoria, prática. No próprio âmbito da
educação popular é comum a idéia de que o curso é, nesta relação, o
momento da teoria: os educandos vêm de uma prática; estudam no curso as
teorias e depois voltam à prática, em tese mais qualificados para transformá-
la. Por que isto não basta? Porque se é como sujeitos sociais que os
educandos são capazes de melhor significar o que estudam, o seu processo de
formação como sujeitos precisa perpassar o curso, e isto só é possível no
movimento permanente (e contraditório) entre teoria e prática (2002:93).
como direito e como pedagogia própria e assim, propor uma formação de pedagogos da
terra, de educadores do campo.
explorado. É ensinar o amor à terra e à luta; Ter amor pelo MST. É aprender
muito e ensinar todos os sem-terra a ler e a escrever. É ter respeito pelo jeito
que cada pessoa é; não excluir; ensinar coisas novas para os alunos. É ser um
coordenador de buscas; formar pensando no presente e no futuro; ajudar o
assentamento a produzir; ajudar a mudar o País; ser democrático, solidário e
humilde. Ser cidadão e ensinar a ser cidadão. É estar sempre se
transformando e ajudando a transformar.
Por fim, o MST entende, que não terá atingido plenamente seus objetivos mais
amplos em relação à luta pela terra, se esta não vier acompanhada de uma política
educacional comprometida com as necessidades dos trabalhadores rurais sem-terra e
com a classe trabalhadora em geral.
210
CONSIDERAÇÕES FINAIS
116
In: Boletim da Educação, no. 08 – julho de 2001.
117
In: Caderno de Educação no. 8 julho de 1996, 3a. Edição, janeiro de 1999.
211
À luz desse debate sobre socialismo, democracia e cidadania, que nos serviu
para indicar os elementos essenciais da articulação entre cidadania e democracia,
dominante na esquerda denominada democrática, percebemos que as concepções de
sociedade, educação (formação) e homem do MST, a exemplo do que vem ocorrendo,
via de regra, no seio dos outros movimentos sociais e sindicais, conforme atesta a
literatura118, resguardando as devidas proporções - visto que, esse Movimento vem
confrontando-se historicamente com o poder vigente através de ações de contestação e
de desobediência civil - são informadas por uma gama de interpretações que se perdem
na aparência da realidade, deixando de lado a análise ontológica, ou seja, aquela
perspectiva que toma como centro o movimento do real.
118
Conferir a esse respeito, ANTUNES (1998), BOITO JR (1996), COGGIOLA (1995), dentre outros,
além do conjunto de avaliações críticas produzidas pelo Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento
Operário – IMO-Ce, através de investigações diversas sobre a política de ação e formação sindical no
Ceará. De todo modo, vale ressaltar que, em nenhum grau, os ideários e estratégias do MST são colocadas
no mesmo patamar de acomodação à ordem da CUT propositiva, reconhecendo-se, no caso daquele
Movimento, o caráter de insubordinação, desobediência civil e de contestação à política vigente, o que
tem lhes valido repressão e violência sistemática por parte do Estado.
212
unânime entre eles a tese de que a construção do socialismo passaria pela ampliação dos
espaços de participação coletiva.
de luta. O desafio é o de garantir que as famílias assumam essa identidade, esse modo
de vida e os valores que sustentam o Movimento e seu projeto político.
capazes de articular, de forma competente, teoria e prática. Esse aspecto nos leva, em
alguma medida, ao modelo das competências, sistematizado pelos consultores da
Unesco e da ONU, como o mais dinâmico, abrangente e complexo, sendo capaz de
habilitar o trabalhador para a sociedade globalizada e em constante mudança. Assim,
apreendemos que essa ideologia parece perpassar o ideário da formação do educador do
MST.
Assim, por exemplo, percebemos, nas falas dos educadores, alguns elementos a
respeito das concepções do Movimento sobre universidade, e da inserção de seus
militantes nesse contexto:
Percebemos, assim, que a escola é mais do que o conhecimento teórico que ela
proporciona. Ela deve cumprir o mesmo papel da luta social no sentido do que eles
217
Assim sendo, a formação desse professor deve ser informada por uma concepção
de educação interessada, a exemplo da acepção gramsciana, no sentido de atender às
necessidades da luta pela reforma agrária e da sobrevivência do próprio Movimento.
Por outro lado, faz-se necessário enfatizarmos, mais uma vez, que nos documentos
analisados e em outros trechos das entrevistas, encontramos um significativo apego às
concepções de natureza mais cultural e subjetivista como a preocupação com a
218
Percebemos, assim, que existe uma contradição que move o projeto formativo do
Movimento: os depoimentos e os documentos apresentam um apego a uma concepção
mais idealista, reconhecendo a educação como espaço privilegiado para formação de
valores tais como: respeito às diferenças; construção de uma ética cidadã; resgate da
identidade dos Sem Terra; esforço para afirmar a cooperação e a solidariedade no
processo de formação de um novo homem, dentre outros aspectos que não se afinam, na
essência, com o próprio discurso que fazem sobre a superação do capital e a construção
do socialismo, afirmando a luta de classes.
Assim, nesse contexto adverso ao conteúdo crítico que discute a ontologia do ser
social em sua estreita relação com o trabalho, temos a prevalência de conteúdos
advindos do campo dos Novos Movimentos Sociais, da crise dos paradigmas das
Ciências Sociais e da centralidade no multiculturalismo ‘crítico’. Essa nossa crítica tem
como fundamento as referências bibliográficas dessas disciplinas que privilegiam
autores que trabalham a questão da problemática educativa nos limites estreitos da
formação de valores e da identidade cultural, à exceção da Teoria da Cooperação que
trouxe, na bibliografia básica, a referência ao teórico marxista Ernest Mandel e de
Movimentos Sociais e Educação, que apresentou um texto de Ricardo Antunes.
Entretanto, ousamos especular até que ponto, diante desse quadro de festividade cultural
e cidadã, a perspectiva crítica desses autores pode ser assemelhada a ‘uma pedra no
meio do caminho’.
Ressaltamos, mais uma vez, que as influências dos novos paradigmas do campo
da formação docente não é uma particularidade das propostas educacionais do MST.
Essa perspectiva é prioritária nos curso de graduação e pós-graduação das universidades
brasileiras. E, como a proposta em tela é uma parceria com uma universidade, não
poderia ser diferente.
No que diz respeito a essas parcerias com o Estado, o Movimento entende que
elas são feitas para garantir um novo projeto de escola dentro dos assentamentos. Nessa
perspectiva, defende uma autonomia na orientação dos projetos que realiza, mesmo
220
Essa pedagogia do aprender a aprender, a nosso ver, aponta para uma educação
escolar de baixa qualidade que independe das intenções políticas dos militantes e
dirigentes da Pedagogia do MST, e que se contrapõe, na essência, à proposta de ruptura
com o capital, que verdadeiramente interessa ao Movimento, já que essa pedagogia
responde aos mandos e exigências da acumulação capitalista.
119
Atualmente, vale ressaltar, as ONG’s vêm conquistando espaços importantes, representando muitas
vezes a ajuda humanitária do Estado capitalista mundial, como forma de superar a perda de controle da
expansão do exército industrial do crime e, também, contra os movimentos sociais e sindicais de natureza
mais revolucionária e contestatória, Nesse sentido Boito denuncia que, “a participação de ONG’s e
associações filantrópicas na aplicação da política social tem desprofissionalizado e desistintucionalizado
os serviços sociais tornando-os precários e incertos, oferecidos mais como filantropia pública que
estigmatiza a população usuária de que como direitos sociais. É uma espécie de retrocesso à filantropia
capitalista do século XIX, que fora superada pelo Estado de bem-estar” (1996:83-84).
221
Face ao exposto, nossa pesquisa permite concluir que o Movimento não ficou
imune aos ventos dos novos paradigmas que tomam como centro de suas análises a
subjetividade auto-referenciada, ou seja, descolada da relação com a objetividade. O
Movimento tenta, assim, somar uma perspectiva de classe com a perspectiva do
desenvolvimento centrada no indivíduo e na subjetividade, apelando a formulações de
cunho idealista-humanista que priorizam a cultura e os valores de solidariedade, de ética
e de cooperação, tentando articular essa concepção às formulações do campo marxista.
É fato que atualmente estamos inseridos num contexto em que a força da luta
ideológica avança fortemente por conta das exigências postas pelas condições adversas
da crise estrutural do capital e da própria ameaça da barbárie. Nesse sentido, se fortalece
um subjetivismo, uma subjetividade, no vácuo de suas determinações históricas.
Contexto esse, que inclui o MST e sua proposta educacional. Assim, os homens do
capital recorrem, insistentemente, à ideologia para disseminar e desqualificar qualquer
tentativa de organização da classe trabalhadora. O MST tem sido, nas últimas décadas,
um alvo privilegiado desse ataque, especialmente, pela grande imprensa.
Enfocamos, aqui, a capa, pois a imagem é forte demais e diz muito da estratégia
ideológica, comumente, adotada pela imprensa. O objetivo, a nosso ver, foi realmente o
de fazer uma relação com o antigo (pré)conceito de que “comunista come
criancinhas...” Quanto ao conteúdo, apresenta depoimentos de jovens que cresceram na
luta do Movimento e que hoje estão à frente da sua organização e que afirmam, como
lideranças, o desejo e o sonho de construir a revolução socialista: “Quando 169 milhões
de pessoas do País quiserem o socialismo, não vai ter jeito. Nem que seja pela força”.
(Valdir Navroski, professor nos acampamento. In: Revista Época, 2003:40)
capa traz justamente a matéria sobre os ataques de terroristas chechenos a uma escola
em Beslan, na Rússia em 3 de setembro de 2004. Enfim, trata-se de um artigo
absolutamente indecente, um panfleto de má qualidade que não tem nenhum objetivo
jornalístico. Aponta um preconceito com os muçulmanos que têm ao longo da história
da humanidade, inegavelmente, uma aquisição de um saber erudito e um nível
educacional elevado. Enfim, trata-se de uma matéria obscurantista que diz muito dos
tempos em que vivemos.
Apontamos essas duas reportagens, para colocar que as avaliações críticas que
tecemos ao longo do nosso trabalho não se situam em torno do objetivo de desqualificar
a luta do MST por educação e pela formação de seus professores militantes, como bem
faz a imprensa a serviço do capital.
Enfim, se nossa análise não conseguiu dar respostas integrais, pelo menos
esperamos ter apontado alguns elementos teóricos e metodológicos sobre essa
particularidade do real, que permitem a outros pesquisadores a realização de novas
pesquisas.
BIBLIOGRAFIA
122
É justo ressaltar, que na declaração de Stédile, anunciada na introdução de nosso trabalho, percebe-se o
claro direcionamento para a superação do capital quando insiste na luta do MST para derrubar as três
cercas que oprime os trabalhadores Sem Terra: do latifúndio, do capital e da ignorância.
226
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