Rio de Janeiro
2006
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Rio de Janeiro
2006
7
DEFESA DE MESTRADO
BANCA EXAMINADORA
Defendida a tese:
Em: / / 2006.
8
SINOPSE
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 5
2 DA DIÁSPORA 11
4 CONCLUSÃO 74
5 BIBLIOGRAFIA 79
5.2 Outra 79
10
1 INTRODUÇÃO
mesma três palavras-chave que nos foram guiando pelo terreno movediço da
Marina Tsietaieva,
voltar-se para aquilo a que se costuma fechar os olhos: esse é o seu papel. E
1
TSIETAIEVA, M. Lisboa: 1993. p.p. 63-64.
2
FOUCAULT, M. Rio de Janeiro: Graal, 1977; p. 83.
11
transgressor.
perduraria por quase cinco décadas, tendo fim somente com a Revolução dos
Cravos.
como historia rerum gestarum. Para Greimas, que desenvolveu sua teoria
para quem
3
GREIMAS & COURTÉS. Bloomington, 1979.
12
que toda obra literária tem um suporte no real. São as mundividências pessoais
do autor que formarão o repertório necessário para sua produção. Cabe a nós,
determinará quais sinais enxergar e como fazê-lo. Assim, uma obra literária
pessoais transcritas pelo artista são bem mais do que ponto de partida.
os planos.
uma obra literária sob o viés histórico-social, subtrair de uma obra de arte toda
motivo, deixamos que o escritor nos guie em nossa visita à sua poesia.
artigos de jornais. Sinais de uma mente complexa para compreender uma obra
4
BENJAMIN, W. São Paulo: 1986; p.p. 200, 201.
13
complexa, quer pelo seu trabalho de linguagem, ora refinado, ora simples e
drama: o exílio.
seus exílios. Múltiplos e eternos. Como homem, em desalinho com seu tempo;
nos Estados Unidos, foi sempre escritor português, ainda que cidadão
condição humana, uma vez que o Adão expulso do Paraíso viu-se eternamente
país.
fim de evitar incorrer em pena mais grave. Somente a partir de 63 a.C. o exílio
passa a ser incluído no direito penal, sendo considerado uma punição, a qual
têm sido objeto de normas precisas no âmbito jurídico internacional. Mas, o que
nos chama a atenção em nossos dias é a proximidade semântica com que são
longo dos séculos por Ovídio, Dante, Sá de Miranda, Camões, entre tantos
sobre Jorge de Sena [...] ainda está quase tudo por dizer. A grandeza,
a complexidade e vastidão da sua obra – ímpar na literatura
portuguesa – não deixam de atemorizar, tornando-a de difícil
abordagem, já que todas as aproximações pecarão necessariamente
pelo reducionismo, inevitável quando se tenta a aproximação a uma
personalidade enorme, e cuja incansável actividade se estendeu por
domínios tão variados e heterogêneos, sem com isso perder aquela
coesão e permanente recorrência interna que tão distintamente a
caracterizam e tornam inconfundível.6
do autor, isto é, indagar se e em que termos ele foi frutífero ao longo desse
6
NEVES, M. B. Lisboa: 1990; p. 313.
16
diáspora.
ainda quando se tem em conta o poeta Jorge de Sena. Mas, é nosso desejo,
que fique como contributo para a formulação de novos olhares sobre a obra
2 DA DIÁSPORA
experiências de exílio.
século, mais do que qualquer outra época, produziu uma legião de exilados,
cultural.
relação da diáspora com a história, como ela é vista e contada pelo exilado? O
Fruto de um mundo cada vez mais globalizado, mas com toda a sorte de
passado, esse hibridismo cultural tem forjado um novo tipo de arte: uma arte
sua cultura natal, tenta, pela arte, ao mesmo tempo manter vivos os laços
convencionalmente pátria.
primatas, apura suas emoções, criando uma complexa teia de relações sociais.
parte integrante de sua personalidade nacional. Para Stuart Hall, “no mundo
formado pela história do surgimento de tal gente, pelos povos primitivos, pelos
gerações.
idéia de que um elemento possa ser banido do seu meio deveria ser
8
HALL, Stuart. Rio de Janeiro, DP&A, 2003, p.47.
9
SCRUTON, Roger. apud HALL, S. Rio de Janeiro, DP&A, 2003, p. 48.
21
continentes, é que essa pluralidade ideológica seja cada vez maior e mais
Não há nação que não tenha passado, durante seu processo de formação, por
10
op.cit. p.58
11
RENAN, Ernest. Apud, HALL, S. op.cit, p. 58.
22
convivência entre os grupos só pode ser viável uma vez que seus elementos
só é classificada como tal uma vez que há uma identidade cultural que a
representa politicamente.
“automática” pelos seus demais membros, o que nos leva a acreditar que tais
o fato real, entre a crença forjada no mais remoto passado e o seu presente. E
mutuamente.
13
MARX, Karl. São Paulo: Centauro, 2000.
14
ALTHUSSER, Louis. São Paulo: Graal, s/d; pp. 62, 63.
24
tendem a entrar em conflito, quer pela posse do poder do Estado, quer por
por meio de repressão, tende a haver uma radicalização desse conflito, que
passa a ser observado, não mais entre classes, mas entre o grupo social e o
social do qual compartilha que pode surgir a ruptura que causará a diáspora. O
necessária como um solo à nação – haja vista o caso do povo judeu –, faz-se
chamamos exílio.
Assim, para Said, “O exílio é uma fratura incurável entre o ser humano e
um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais
uma nação que não seja a que o abriga. Dessa forma, o nacionalismo, uma vez
produzida por uma legião de errantes através dos séculos. Uma literatura
historicidade.
Jorge de Sena, poeta que terá parte de sua obra comentada adiante,
15
SAID, Edward. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; p.46.
16
SENA, Jorge de.Lisboa: Edições 70, 1961, pp. 11, 12.
26
no discurso poético.
o ponto de vista histórico. Então, nos questionamos até que ponto a poesia de
exílio pode ser considerada um texto histórico, ou, pelo menos, em que sentido
De nossa parte, optamos pela tentativa de aqui manter vivo, pela História e
Uma obra literária traz sempre em seu bojo, ainda que não seja esse
seu principal objetivo, uma gama de elementos históricos, os quais vão desde o
Goff ,
de fatos ocorridos. Assim, baseado no que diz Paul Veyne: “a história é quer
história.
a, tanto quanto possível, imparcialidade como condições sine qua non para sua
imaginativa, uma vez que o historiador tem como oficio dar vida a fatos
18
VEYNE, Paul. Apud: Ibidem, pp. 18, 39.
29
Dessa forma, não se pode contestar que uma obra literária possa
conhecimento dos fatos, o caminho que a leva até as bibliotecas passa antes
que foi vivido, numa relação constante entre o presente e o passado. Por esse
19
BARTHES, Roland. São Paulo, Cultrix, 1978.
20
Idem. Lisboa: Edições 70, 1988.
30
“como se vê” dos fatos. Uma vez que autoriza manipulações ideológicas, ainda
ruptura, rejeição e renúncia, este não pode ser considerado uma via de mão
Assim, a fuga de Adão e Eva daria início à raça humana, bem como o
Na mitologia grega, o exílio toma a forma da vida de Io, bela filha do rio
sua mulher, Juno, não a descobrisse. Contudo, a astuta Juno não se deixa
31
enganar. Incitada pela afronta sofrida, exige de Júpiter o animal como presente.
Ele então cede aos apelos da mulher, perdendo a amante, que se torna
Que esta jamais foi a intenção de Dante, todos sabemos, mas foi o exílio
a força motriz para uma tão ousada quebra de protocolo. Como todo exilado, o
língua mãe, elo derradeiro com a terra natal, para escrever sua peregrinação
Da mesma forma, sem o seu banimento de Roma, Ovídio não nos teria
exemplos possíveis.
E é talvez por não o vivenciarmos “em primeira mão” que o tema nos
atraia tanto. Porque nós, leitores, vemos o exílio como uma dor de outrem, que
particular e coletiva. Mas o que faz do exílio uma condição tão propensa à
dois tempos, dois lugares, duas realidades. Banido de seu locus amoenus, e,
desterro tem na poesia terreno fértil para a sua produção poética, que é
a poesia de exílio liga duas realidades: surge e vive entre o aqui e o ali, o
21
SAID, Edward. São Paulo: Companhia das Letras, 50.
33
nos fatos reais que apresenta, e, por outro lado, a poética, expressa pelos
mesmo.22
época a nação lusitana formou uma imensa massa errante por Ásia, África e
portuguesa.
mulher, sujeito lírico das cantigas de amigo, evocava com dor e saudade o seu
sob seu domínio, que o país viu dispersar-se uma multidão errante. No seu
Desse período, para não citar outros nomes, fiquemos com o maior: Luís de
Camões.
23
ANDRÉ, C. A. Coimbra: Minerva, 1992, p. 439.
24
GARRETT, Almeida. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
25
HERCULANO, Alexandre. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
35
existência, o que se lê, por exemplo, em “Roteiro de vida”: longe das pedras
más do meu desterro/ [...]/que eu, desde a partida, não sei onde vou.28 E
Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos, dirá que a minha pátria é
como um peregrino. E assim como ele, Eugénio Andrade, que entrevia “sobre
a luz do Tejo as últimas barcas/ sobre as barcas uma luz de desterro”; Adolfo
Quando a pátria que temos não a temos/ Perdida por silêncio e por renúncia/
Até a voz do mar se torna exílio/ E a luz que nos rodeia é como grades.31
Lídia Jorge, que, ao dar voz à personagem Evita, de A costa dos murmúrios32,
árduo, longo e denso, uma vez que o exílio toma formas diversas, aceita
português, estará sempre na sua poesia, a cada dia reinventada pelo engenho
34
Idem. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
35
ANTUNES, António Lobo. Lisboa: Dom Quixote, 2000.
36
Op.cit, 93.
37
realismo.
deste contexto literário, no momento histórico português dos anos 30-40, época
declarada.
jovem poeta Jorge (vide Sinais de Fogo) ao seu forte posicionamento político
fase madura – o que talvez encontre paralelo numa crítica literária que não o
toda a sua vida. Contudo, se já se sabia um deslocado mesmo em seu país, foi
entanto, o poeta vê-se obrigado a partir para os Estados Unidos, onde viveria o
37
SENA, J. Lisboa: Ed 70, 1961, p. 1.
39
transformação.
38
LOURENÇO, J.F. Paris: Centre Culturel Caloustre Gulbenkian, 1998, p. 31.
39
LOURENÇO, J.F. Paris: Centre Culturel Caloustre Gulbenkian, 1998, p. 36.
40
40
SENA, J.Lisboa: Ed. 70, 1978, p 19.
41
SENA, J. Lisboa: Edições 70, 1978, pp. 20, 21.
41
livros de poesia de Jorge de Sena, trata-se de “Uma obra que me surge sem
estado adulto parece ter sido sempre, e tristemente, o seu”43. E com razão. A
maturidade literária chegou cedo para Jorge de Sena. E com ela, a descoberta
viremos a chamar aqui exílio. Para tanto, partimos do romance “Sinais de fogo”,
42
Ibidem, p. 20.
43
Idem apud FRANÇA, José-Augusto. Tetracórnio ,fev. 1955.
44
Idem. Lisboa: Edições 70, 1979; p. 484. Grifos nossos.
42
e sim, do seu desajuste diante dos valores sociais tidos como referência à
época, os quais tenta, com algum sucesso seguir: serve à Marinha de Guerra
por dois anos, como cadete, e depois laureia-se Engenheiro, profissão que
exerce até sua partida para o Brasil, em 1959. Nesse tempo, cultivava em
deste prelúdio na vida do menino que, de um simples homem parvo, sofre uma
quebrado tem também aniquilado pelo desprezo o tesouro que ele representa.
da audição.
Ícaro em direção à liberdade. Dédalo, seu pai, preso no labirinto que ele próprio
construíra para o rei Minos, de Creta, ao olhar para o céu, espaço da liberdade
engenho, ele e seu filho alçaram vôo e logo se afastaram da armadilha que ele
mesmo criara, podendo, com isso, observá-la do alto. Antes da partida, Dédalo
deslumbrado com o vôo, ele avizinha-se do sol, derretendo, assim, suas asas,
e morrendo, ao se chocar com o oceano. Cada uma das asas formou uma ilha,
A vontade “de impor aos outros a visão profunda” do mundo levou Sena
a todos os exílios que o homem pode percorrer. O interior sempre esteve muito
Mais do que os países por onde passaria, o primeiro e eterno porto seguro
será, então, a escrita, conforme já acenava nos versos finais de “Os trabalhos e
45
os dias”, do ano de 1942: “e falo da verdade, essa iguaria rara: / este papel,
pertencer fazem com que o escritor exilado veja sua pátria como paraíso, Sena
seu país, mas também na ironia com que trata a propaganda oficial deste
regime. 46 Se, no poema anterior, as acusações são feitas de forma velada, por
pelo governo salazarista para se manter no poder, deixando bem claro a quem
46
ver SANTOS, G. Lisboa: 1997; p.p. 49 a 51.
48
vez a profunda tristeza de um Jorge de Sena humanista que não consegue ver
irrevogável.
47
SENA, Jorge de. Lisboa: Edições 70, 1978, p.p. 113. 114.
49
francas, não teria outro destino, por tudo o que de transgressor representava,
48
“A poesia é só uma”: 1940-1951. Cadernos de Poesia 6, 2ª série (1951): 5-8.
50
creio que, nos tempo de hoje, se possa honestamente fazer ficção e outra
metamorfoseada em literatura.
primeira vista, não apresentam entre si uma “unidade” temática. Segundo, pelo
“tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever [...] E ficou
primeira, que vai dos sonetos I ao VII, lemos, de imediato, “ao desconcerto
de seu país.
dos pólos do espírito, assim como a Canaã para os hebreus, Ítaca para Ulisses
As evidências expostas por essa nova gênese logo deram motivo para a
Brasil. Como o nome sugere, tem como matriz a obra do barroco lusitano Arte
intitulado epígrafe da obra supracitada não teria outro mote senão a denúncia.
Epígrafe e não posfácio, quer pelo seu caráter conciso, resumido, quer pelo
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
– quem cantarei?
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros me roubam
– quem cantarei?
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
– aqui del-rei!
literatura barroca atualizados pelo autor. Estão entre eles a angústia humana,
Também o refrão, “quem cantarei?”, repetido no fim das três primeiras estrofes,
socorro final.
cada vez mais opressor, de maneira que foi se tornando insustentável a vida
54
“embora ao mundo pertença”, indicia não somente uma alusão à sua condição
quase inevitável. De fato, apenas três anos após haver escrito esse poema,
à idéia desenvolvida por Ernest Bloch56: o “princípio esperança”, que existe não
56
BLOCH. Paris: Galimard, 1976, 1982, 1989. 3 volumes.
55
em tudo que escreveu. Apesar de nessa missão nem sempre encontrar eco,
persistiu fiel aos valores que defendia. O embate entre a “pouca humanidade
neste mundo/ quando não acredito em outro, e só outro queria que/ este
escrito antes da partida para o Brasil, pode ser visto como uma análise final no
pictórico.
tomada como primeiro referente para esta criação poética, torna-se atemporal,
uma vez que serve de argumento para discutir as crueldades cometidas pelo
tão anonimamente quanto haviam vivido,/ Ou suas cinzas dispersas para que
outros tantos. Por outro lado, as mesmas cenas remetem mais uma vez à
conduz o leitor a uma profunda análise do mundo em que vive, primeiro passo
Vale recordar que as asas que levaram Ícaro ao vôo mais alto, e, por
francesas em África, fazia com que o já enfraquecido Salazar ficasse cada vez
mais acuado. Nesse mesmo momento, tem início, tanto na Metrópole quanto
de Sena.
palestra. O escritor parte, então, com visto temporário, para o Brasil, mas logo
escritor reside no Brasil por apenas cinco anos. No entanto, diversos fatores
convergiram para que esse fosse o período mais frutífero da sua carreira.
então impossível, seria uma oportunidade única, da qual não poderia abrir mão:
O Brasil era realmente solo fértil para Sena. Os últimos anos da era JK
uma liberdade de expressão há muito não vista em Portugal, o que fazia deste
qual logo Sena aderiu – que visava a divulgar não só as notícias proibidas,
Brasil como pátria de eleição, o que, mais tarde, o levou a requerer e a obter a
cidadania brasileira.
seniana.
58
“Jorge de Sena não crê em poesia concreta, só nos concretistas”. Entrevista a Paulo Carvalho. Tribuna
da Imprensa 26 Set. 1959.
61
soneto. E, sob uma carga não apenas referencial, mas assaz emotiva, na qual
o poeta como que expõe sua vida, é desfiada sua peregrinação ao longo de
59
SENA, J. apud SANTOS, G. Inédito.
63
escritor aviltado, emerge prevendo para si o futuro de glória que lhe furtam no
nada, enfatizado em “não importa nada”, “nada tereis, mas nada”, aponta o
que traz consigo não só a possibilidade do roubo, mas, o que é ainda mais
Deste italiano que foi um dos maiores escritores de seu tempo, junto com
Dante Alighieri, Sena extrai a epígrafe Perchi’ I’ no spero di tornar giammai que
morte que depois surgirá. Exílio e morte formam, pois, um binômio freqüente no
nos nesta “Glosa...” com um modelo de amor cortês transposto para o campo
relação a Portugal.
negação, talvez seja este o poema de Sena onde mais claramente se expõe a
Portugal aqui pintado é, sem dúvida, um dos mais negativos de toda a poesia
cronologicamente, o que põe em relevo mais uma vez a forte marca temporal
resta da vida.
“Nel mezzo del camin...” retoma, em seus dois “cantos” (as duas partes em que
Jorge de Sena.
I
Quarenta e dois...Provavelmente já
vivi mais de metade a minha vida.
Provavelmente até, em mim escondida,
não como inevitável, mas guarda –
II
...de tudo, sim. Não me contento nunca.
Não me contentarei. Mesmo que eu visse
moredendo a lama a secular canalha,
[...]
E nem morte nem vida podem mais
do que apagarem sem deixar sinais.
de crise do ser humano, a partir do qual, o mesmo pode tomar tanto o caminho
conduziu tal desgraça foi a de que, não obstante haver perdido seus bens
de que, provavelmente, até mesmo a própria vida que lhe fora permitido viver,
devido à ditadura militar que se instalara no Brasil em abril de 1964, Sena deixa
1965, “Em Creta, com o Minotauro” inaugura a fase mais sombria de sua obra.
pátria de eleição e partida para a América que se torna ainda mais agudo.
a fábula, Minos, rei de Creta, solicita a Poseidon que lhe envie um sinal que
confirme a aceitação dos sacrifícios aos deuses. Este consente, sob a condição
de que o touro que fará surgir das ondas como prova seja sacrificado em
seguida. Mas o animal era tão esplêndido que o rei decide poupá-lo. Como
incontrolável pelo touro. Com a ajuda de Dédalo, que lhe fabrica uma vaca em
isso deve ser encerrado num labirinto. Por outro lado, a execração ao labirinto
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo respeito
necessário à roupa que se veste e que se prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade deste mundo
quando não acredito em outro, e só outro queria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando um café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria...
uma recusa que parece refletir a amargura de alguém não se sentir perfilhado
70
nem por Portugal, nem pelo Brasil, nem por pátria alguma. Ser apátrida é, pois,
a única alternativa.
V
Em Creta, com o Minotauro,
Sem versos e sem vida,
Sem pátrias e sem espírito,
sem nada nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
existem.
organizou obras de teoria e crítica literária. Fique, pois, o registro de que sua
62
ANDRESEN, S. M. B. Lisboa: Salamandra, 1989.
71
seu trabalho.
chegada aos Estados Unidos, em 1965, até seu falecimento no ano de 1978 e,
1968, deixando para Marcelo Caetano a difícil missão de comandar uma nação
à beira do colapso social e propondo uma certa “abertura” política, como última
Sul, sendo ele próprio uma vítima. “Noutros lugares”, escrito em Madison, e
algumas vezes, por pouco tempo, a sua terra. De uma destas viagens trata
Europa”, que tem como uma das epígrafes os versos de Safo que nos soam
nostálgicos:
visitados e de ações realizadas para o tom grave e melancólico dos três últimos
da partida. Desta forma, percebe-se que, assim como nos demais poemas do
da temática anunciada pelo seu título, o autor diz que “[o público] melhor
entenderá quanto necessita de exorcismos, sem dúvida uma das mais antigas
arcaicas.”63
...solo resta che sia alla terra un animal, che non sia a voi soggetto, e
non operi, come gli altri, per necessità di natura; ma che abbia la
volontà libera (...) formò l’uomo di nobilissima, e temperatissima pasta
elementare (...) e tutti gli Dei, quasi spettatori, rivolsero gli occhi
all’uomo, che nel teatro del Mondo cominciava l’azione del suo quasi
poema.64
Segundo o trecho, extraído de Il Messagero, de Torquatto Tasso, o
homem foi criado, diferenciando-se dos demais animais, “para que tivesse a
vontade livre”. No entanto, o mal, fruto desta mesma vontade humana, parece
que representava:
português, a história recente de seu país, que, assim como o mal, parece andar
em círculos:
liberdade, para a qual o homem fora criado, a partir de tão particular massa
64
“...só falta que haja na Terra um animal, que não seja a vós sujeito, e não trabalhe, como os outros, por
necessidade de natureza; mas que tenha a vontade livre (...) formou o homem de nobilíssima e
temperadíssima massa elementar (...) e todos os Deuses, quase expectadores, voltaram os olhos ao
homem, que no teatro do Mundo começava a ação de seu quase poema.
75
do livro, mas, com segurança, o de toda a sua poesia: “De amor e de poesia e
II
Viandante, é teu caminho
esse da pátria? Tu
sabê-lo-ás sozinho?
maio de 71:
idade em que morreu o ditador português, aos 39 anos, fora executado o líder
daqueles que, ao contrário de si, optaram por não deixar o país, lê-se grave
IV
Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados por eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos –
– a ponto de voltarem).
66
SENA, J. Lisboa: Ed. 70, 1978, p. 259.
79
quer pelos estudos que lhe dedicou, quer pelos originais diálogos literários que
morte, o seu exílio definitivo. Não tivera tempo de ver publicada a coletânea de
seis relativos aos livros que constituem um “fio temático” (Perseguição, Coroa
68
ver “Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras/ Um épico d’outrora ascende, num pilar!” (v.67 e
68). VERDE, Cesário. “O sentimento dum ocidental”. In: O livro de Cesário Verde. Porto Alegre:
L&PM, 2003; p. 73.
81
evidentes.
00:20h daquele dia, serviu de sinal para o arranque das tropas mais afastadas
epígrafe da cantiga: “Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade”
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
[...]
Tens de saber que o inimigo
Quer matar-te à falsa-fé.
Ah tem cuidado contigo;
quem te respeita é um amigo,
quem não respeita não é.
portugueses.
83
vêm sendo publicados desde seu falecimento. Vivendo em exílio quase vinte
anos de sua vida, e, tendo mantido com sua pátria, uma tão conflituosa
obras tenha sido publicada por editoras portuguesas, ainda que em tempos de
povo. E o quanto, como seu agente formador, deve ser considerado, a fim de
que, com ele, e a partir dele, se construa a História das novas gerações.
4 CONCLUSÃO
com que Fernando Pessoa inicia Mar Português nos dão a dimensão exata do
Atlântico, desde muito cedo foi através dele que Portugal vislumbrou o futuro,
84
por uma grave crise sócio-política, agravada na década de 60, o país viu
milhões de seus filhos cruzarem o mar. Entre tantos, estava Jorge de Sena.
povo judeu do Egito em busca da Terra Prometida, à sua errância pelo mundo
diáspora. Segundo análises de, entre outros, Robert Said e Stuart Hall, dois
marcados pela censura antagônica a uma imprensa que cresceu com o índice
ruptura, o diferencial do século XX foi, sem dúvida, provocado pela difusão dos
85
liberdade de expressão.
longo de três exílios que Jorge de Sena feneceu. E falamos aqui não só da
morte como destino natural do ser vivo, mas de uma morte “espiritual”, de um
desgostar da vida, própria de quem já perdeu o que lhe era mais caro: a pátria.
Mas o exílio de Jorge de Sena vai muito além dos limites da pátria.
seu meio. Dono de uma inteligência vigorosa, crítico feroz da sua sociedade, o
escritor foi muito mais do que um exilado político, foi um exilado intelectual. E
glosas, epígrafes ou referências, Sena nos leva até Dante, Guido Cavalcanti,
Horácio, Sá de Miranda, entre tantos outros. Mas, acima de todos está Luis de
Camões.
69
AGUIAR & SILVA apud ANDRÉ, C.A. Coimbra: Minerva, 1992; p. 439.
86
Inscrito numa geração que teve a árdua tarefa de produzir uma literatura de
várias vezes por ele demarcada, como, por exemplo, na epígrafe de Fidelidade:
O mundo é tão grande e tão rico, e a vida tão cheia de verdade, que
nunca faltarão motivações para poemas. Mas hão-de ser sempre
poemas circunstanciais, quer dizer, a realidade terá de proporcionar-
lhes o motivo e a matéria.
que mais alterou o rumo do seu país e de sua escrita foi, sem dúvida, o golpe
ocorrido ainda na década de 20 e que estendeu seus efeitos até meados dos
70
SENA, J. Lisboa: Ed 70, 1961.
87
anos 70, sendo também o que alterou para sempre o rumo de sua vida. Desde
traçado pelo testemunho poético de Jorge de Sena durante sua vida. E, uma
vez que “o progresso dos textos é epigráfico”, como bem nos ensinou Fiama
71
Ibidem, p. 11.
72
Idem. Lisboa: Ed 70, 1978; p.p.15, 16.
88
73
KNOPFLI, Rui. Lisboa: IN-CM, 2003.
89
5 BIBLIOGRAFIA
5.2 Outra
27 JORGE, Lídia. A costa dos murmúrios. 11ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2000.
37 QUEIRÓS, Eça de. A Ilustra Casa de Ramires. São Paulo: Click Editora, s/d.
RESUMO
ABSTRACT