Havia um personagem muito curioso interpretado por Jô Soares. Era um cientista que
vivia realizando experiências estranhas, fazendo cruzamento de animais diferentes.
Produzia, por exemplo, a sanhoca, que era o resultado do cruzamento de sapo com
minhoca, ou a porlinha, saída de um teretetê entre um porco e uma galinha. E outras
besteiras do gênero.
Enquanto estava no laboratório avaliando suas criações, sempre surgia um rapaz
querendo entrevistá-lo para saber o nome daquelas novas criaturas e como elas haviam sido
produzidas. Como era muito insistente, assim que ele aparecia na porta do laboratório o
cientista exclamava: “O senhor de novo, hein!”
Lembrei-me dessa história porque mais uma vez, coincidentemente em seguida à
matéria anterior, terei de citar meu amigo Max Gehringer também neste texto. E, a exemplo
do cientista interpretado pelo Jô Soares, ao se deparar com o nome deste grande
pesquisador da comédia corporativa brasileira, você poderia exclamar: “O senhor de novo,
hein!”
É que as sugestões do Max são tão apropriadas que, se eu tivesse de prometer algo a
você que lê meus textos com regularidade, diria: “Fique frio aí que outros Max virão”.
Você é convicto?
Quantas pessoas você conhece que se habituaram tanto a reclamar da vida que,
antes mesmo de se perguntar “como vai?”, já se sabe qual será a resposta: “Está tudo cada
vez mais difícil; estou trabalhando demais; pareço um condenado (essa parte da resposta é
que não consigo entender - condenado aonde?); estou sempre correndo; não tenho tempo
nem para respirar; tudo de ruim acontece comigo; a vida tem sido uma madrasta (essa eu
não poderia esquecer de jeito nenhum, pois já tem destinatário com nome, CPF e impressão
digital)”. E o mais interessante da história é que são sempre as mesmas pessoas. Com uma
mesma forma lamuriosa de expressar sua história e de encarar a vida.
Se você entrar nesse alçapão, esteja preparado para se livrar dele. Mude sua maneira
de falar e adote uma postura diferente. Veja a vida por outros ângulos e reflita se é verdade
mesmo que os fatos ocorrem sempre da mesma maneira. Se for sincero com você mesmo,
verá que sua história e a maneira de falar da vida poderá ser modificada. E se quiser dar
uma reclamada de vez em quando vá em frente, que ninguém é de ferro, certo?
Por mais animadora que seja essa expressão, em determinadas circunstâncias mais
atrapalha do que ajuda. Você ali com aquele problema de tirar o sono e sair da mesa sem
tocar no prato de comida e chega aquele tomado pelo complexo de eterna Poliana dizendo:
“No fim tudo vai dar certo”. Ele não sabe bem qual é o assunto e muito menos o que
efetivamente nos preocupa. Mas, acostumou-se tanto a dizer que no fim tudo vai dar certo,
que essa será sempre a sua mensagem, independentemente do assunto tratado e do
tamanho do problema que precisa ser resolvido.
Se você tropeçar nessa outra armadilha, reflita sobre a possibilidade de poder se
inteirar mais do assunto antes de fazer sua profecia. Talvez descubra que naquele
determinado momento o comentário mais apropriado seria: “Rapaz, que problemão! Eu na
sua pele não saberia nem por onde começar”.
Você poderia dizer: mas você não está se esquecendo da importância do otimismo?
Não, não estou fazendo culto ao pessimismo, só estou pedindo para refletir sobre a
inadequação desse otimismo automático, vazio, sem respaldo, desenvolvido pela força do
hábito, que nos escraviza e nos obriga a adotar sempre o mesmo discurso.
É muito bom ouvir pessoas falando com entusiasmo sobre o trabalho que
desenvolvem. Além de termos a oportunidade de aprendermos um pouco sobre suas
atividades, também descobrimos como elas contornaram situações profissionais delicadas,
informação que pode ser útil no nosso próprio trabalho.
Mas, daí a adotar esse assunto como narrativa permanente, nem gerente de RH vai
agüentar.
O trabalho consome a maior parte do nosso tempo (pelo menos da maioria de nós,
pois me lembrei agora de uns e outros que conseguem dedicar um período bem
pequenininho para o trampo), e é lógico e muito natural que falemos das nossas atividades
profissionais. Alguns, entretanto, acordam trabalho, almoçam trabalho, jantam trabalho e
dormem trabalho, por isso, na hora de falar só existe um assunto que conseguem abordar -
trabalho.
Reflita como você tem se comportado com relação a esse tema e analise se não está
exagerando na sua narrativa profissional. Se perceber que está aprisionado a esse tipo de
discurso, vire o disco e passe a tocar outras músicas.
As narrativas que elaboramos surgem como extensão própria de nossa vida, definindo
nossa identidade, comprometendo-nos e moldando-nos, mas também oferecendo-nos a
possibilidade de descobrir novas perspectivas sobre a realidade. Exemplo belíssimo nos é
dado por William Shakespeare na comédia “O Mercador de Veneza” para interpretar o
mesmo fato de duas maneiras totalmente distintas.
Podemos observar como aquele que fica prisioneiro das próprias palavras pode perder
mais do que a chance de considerar a vida por outros ângulos.
Em “O Mercador de Veneza”, Bassânio, pretendente de Pórcia, uma rica herdeira e
possuidora de muitos admiradores, pede a seu amigo Antônio, um mercador de Veneza, que
lhe empreste três mil ducados, com os quais teria possibilidade de conquistar a mulher
amada.
Como Antônio não dispusesse desses recursos naquele momento, pois dependia da
chegada dos seus barcos aos portos de Veneza, decidiu ir com Bassânio até o judeu Shylock
para pedir o empréstimo daquela quantia.
Shylock, que costumeiramente emprestava dinheiro a juros, razão principal do seu
conflito com Antônio, cristão caridoso, e que o desprezava por isso, vislumbrou a
oportunidade de vingar-se. Elaborou um contrato e, disfarçando suas intenções, concordou
em conceder o empréstimo sem cobrar juros, mas com a condição de que, se ele não fosse
honrado no tempo estipulado, teria direito de exigir do devedor uma libra de carne, que seria
retirada de qualquer parte do corpo, conforme sua decisão.
Como o empréstimo não pôde ser pago no vencimento, pela demora dos barcos do
mercador, Shylock entra na Justiça para exigir o cumprimento da cláusula do contrato.
Pórcia, ao saber do perigo que Antônio corria por ter ajudado seu amor, resolve ir a
Veneza na tentativa de salvá-lo.
Valendo-se do parentesco que possuía com Belário, um influente advogado,
apresenta-se ao tribunal disfarçada de advogado, com uma carta de recomendação ao Doge
para atuar no caso.
Inicialmente tenta persuadir o judeu para que receba três vezes a quantia devida e
desconsidere a cláusula do contrato.
Porém, como a intenção de Shylock era fazer com que Antônio sofresse, permaneceu
irredutível na sua decisão, não aceitou as propostas de acordo e exigiu que a lei fosse
cumprida.
Pórcia, disfarçada no papel de advogado responsável pelo julgamento, decidiu que o
contrato fosse executado. Vale a pena rever trechos desse clássico diálogo:
Pórcia - Uma libra de carne desse mercador te pertence. O tribunal te adjudica essa
libra e a lei ordena que ela te seja dada.
Shylock - Corretíssimo, juiz!
Pórcia - E podes cortar-lhe essa carne do peito. O tribunal o autoriza e a lei o permite.
Shylock - Sapientíssimo juiz! Isto é que é uma sentença! Vamos, preparai-vos!
Pórcia - Espera um momento. Ainda não é tudo. Esta caução não te concede uma só
gota de sangue. Os termos exatos são:
“Uma libra de carne”. Toma, pois, o que te concede o documento; pega tua libra de
carne. Mas, se ao cortá-la, por acaso, derramares uma só gota de sangue cristão, tuas
terras, teus bens, segundo as leis de Veneza, serão confiscados em benefício do Estado de
Veneza.
Ao perceber que havia uma outra interpretação para aquele contrato, que não
considerara, Shylock diz aceitar o dinheiro que lhe ofereceram como acordo, mas é tarde
demais, pois acaba perdendo a quantia que emprestara e tem seus bens confiscados por ter
atentado contra a vida de um cristão.
Ter convicção pode ser importante, mas ficar prisioneiro das próprias palavras, como
se elas fossem a única maneira de ver a vida, é insensatez.
Reinaldo Polito
Revista Vencer nº 46