Anda di halaman 1dari 594

Volume I: ESTADO, GESTÃO PÚBLICA,

DESENVOLVIMENTO E UNIVERSIDADE

Volume II: EPISTEMOLOGIA,


METODOLOGIA E TEORIA

Volume III: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS


CRÍTICOS

Volume IV: RELAÇÕES DE TRABALHO

Referências

Título: Volume III: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CRÍTICOS

Curitiba; EPPEO, 2017.

Organização: Profa. Dra. Camila Brüning

Apoio técnico: Josiane Sassi


APRESENTAÇÃO
José Henrique de Faria

Encontra-se disponível, para consulta e/ou download gratuito, no site


www.eppeo.pro.br, um conjunto de Quatro Volumes contendo artigos que
publiquei em Revistas e Eventos, como autor e coautor, desde 1978.
A organização, sistematização e edição foram feitos competentemente pela
Professora Dra. Camila Brüning. Os textos escaneados foram pacientemente
processados por Josiane Sassi. Agradeço profundamente a elas pelo carinho e
cuidado. É um belíssimo presente e também uma oportunidade para reflexão.
Os artigos estão organizados em ordem cronológica e divididos em quatro
temas: Volume I: ESTADO, GESTÃO PÚBLICA, DESENVOLVIMENTO E
UNIVERSIDADE; Volume II: EPISTEMOLOGIA, METODOLOGIA E TEORIA;
Volume III: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CRÍTICOS; Volume IV: RELAÇÕES
DE TRABALHO.
No total são 129 artigos publicados até o ano de 2017. Nesta coletânea
estão incluídos 73 artigos considerados os mais relevante nas 4 temáticas acima
apresentadas. Além disso , há trabalhos que foram publicados em anais de eventos
e posteriormente em periódicos , nestes casos optou -se por incluir apenas a
versão publicada em periódicos.
Ao voltar a vários destes textos, que ficaram na gaveta da memória,
chamou a atenção o fato de que alguns deles já não merecem mais minha
aprovação, mas, de certo modo, eles fazem parte do processo de superação
conceitual e teórico e tiveram sua importância. Outros apresentam conceitos e
concepções repetidas e reelaboradas: entendo que, nestes casos, não se trata de
mera repetição, mas dos conceitos procurando sua identidade e seu lugar nas
reflexões e na realidade. Quando os conceitos e concepções surgem, inspirados
no real concreto, eles nem sempre encontram de imediato sua forma mais
elaborada. Em geral, eles permitem certa aproximação, às vezes precária, com a
realidade. A necessidade de tensionar o real para superar sua aparência
fenomênica exige a movimentação do conceito. Figurativamente, o conceito tem
vida ao revelar e se revelar.
De fato, conceitos e concepções se defrontam, pela via do pensamento, com
o objeto que pretendem representar na consciência do sujeito. Esta tensão
permanente altera o conceito ele mesmo (processo de elaboração), seu lugar na
teoria (propriedade de alocação), sua capacidade de representação do real para o
sujeito pesquisador (condição de precisão) e sua forma textual (lógica de
exposição).
Efetivamente, no processo de produção do conhecimento, de elaboração
teórica, há um constante movimento dos objetos e do sujeito pesquisador, de
maneira que nem aqueles permanecem como estavam, eles mesmos
(ontologicamente) e para o pesquisador (epistemologicamente), e nem este é
como era (ontológica e epistemologicamente) em sua relação com os objetos.
Ambos mudam e, em decorrência, conceitos, concepções e teorias também se
alteram. Em síntese: o sujeito não é o mesmo na interação com o objeto e este já
não se apresenta do mesmo modo para o sujeito.
As alterações, por vezes, são radicais (atingem a raiz do problema), amplas
e explícitas; outras vezes são também radicais, mas localizadas e sutis; outras,
ainda, são formais e decorrem de uma necessidade expositiva. O pesquisador,
quando expõe sua teoria, não necessariamente dimensiona o seu alcance, o que
vai se constituindo à medida que o concreto ele mesmo se revela em sua estrutura,
ao mesmo tempo em que a consciência dele se apropria como coisa pensada em
diferente nível de elaboração.
Ao reler os artigos, pude observar, igualmente, que além do processo de
produção teórica e de sua exposição, o método de pesquisa também foi se
modificando, também foi evoluindo na orientação das relações com os objetos de
pesquisa, com o concreto investigado. Não é nenhuma novidade, pois método e
teoria são sobredeterminados, o que reforça a tese de que ontologia,
epistemologia, teoria e método andam necessariamente juntos na produção do
conhecimento científico.
Poder-se-ia especular se o pesquisador não seria um tipo de sujeito
obsessivo, às vezes compulsivo, em sua relação com o objeto de pesquisa e em sua
condição de elaboração teórico-conceitual. O pesquisador busca na produção
teórico-conceitual uma inteireza e integridade, uma virtuosidade estética e
formal, um rigor definitivo e inquestionável, mas este é um objetivo praticamente
inatingível devido à própria dinâmica do concreto. Assim, nem bem um texto está
publicado e o pesquisador já dá início a uma espécie de insatisfação crítica com
alguns trechos do texto. De um lado, isso constitui o processo mesmo de
desenvolvimento teórico-conceitual e metodológico. De outro, aponta para o
paradoxo de que o que está pronto não está acabado e jamais estará. Nada é
definitivo na atividade científica, exatamente porque tanto sujeito como objeto se
movem contraditória e permanentemente.
Estes volumes contêm o registro deste movimento de produção acadêmica
e, como dito no início, mesmo que não reconheça mais alguns conceitos, teorias,
métodos e concepções, elas fazem parte deste processo. Aqui vale uma metáfora:
na construção de um edifício entram todos os materiais e estruturas, bem como
todos os estrados externos que permitem que o edifício seja erguido. Mas, uma
vez que o edifício está pronto, para estar disponível ao fim ao qual se destina, é
preciso remover aqueles andaimes que foram absolutamente necessários no
processo de construção. Assim também é o edifício teórico: os andaimes
conceituais são necessários no processo de produção de uma teoria, mas não são
essenciais quando esta alcança seu termo, seu desfecho contingente.
Sobre a sistematização desta coletânea:

No período compreendido entre os anos 1978 e 2017 o Prof. Dr. José


Henrique de Faria teve um total de 129 artigos publicados em periódicos e anais
de eventos. Nesta coletânea estão incluídos 73 artigos considerados pelo Prof.
Faria como os mais relevantes dentro de 4 temáticas:
Volume I: ESTADO, GESTÃO PÚBLICA, DESENVOLVIMENTO E
UNIVERSIDADE;
Volume II: EPISTEMOLOGIA, METODOLOGIA E TEORIA;
Volume III: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CRÍTICOS;
Volume IV: RELAÇÕES DE TRABALHO.
A seguir apresenta-se a lista completa dessas publicações, bem como o
encaminhamento que lhes foi dado na sistematização desta coletânea.
A lista é apresentada em ordem cronológica, considerando primeiramente
os artigos publicados em periódicos, e na sequência, os publicados em anais de
eventos.

FARIA, J. H. de; VARGAS DE FARIA, J. R. A Concepção de Estado e a


Administração Pública no Brasil no Âmbito do Plano Diretor de Reforma do
1 Estado. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GESTÃO SOCIAL, v. 9, p. 140-147, Volume I
2017. Disponível em:
<http://www.apgs.ufv.br/index.php/apgs/article/download/1331/pdf>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. ; STEFANI, D. Razão Tradicional e


Razão Crítica: os percursos da razão no ensino e a pesquisa em
Administração na concepção da Teoria Crítica. Revista de Ciências da
2 Volume II
Administração, v. 18, p. 140-154, 2016. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/adm/article/download/2175-
8077.2016v18n45p136/pdf>

FARIA, J. H. de. Desenvolvimento Socioeconômico e Interdisciplinaridade.


3 Volume I
Revista do IMESC, v. 1, p. 5-36, 2015.

FARIA, J. H. de. Epistemologia Crítica do Concreto e Momentos da


Pesquisa: uma proposição para os Estudos Organizacionais. RAM. Revista
4 Volume II
de Administração Mackenzie (Online), v. 16, p. 1-36, 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ram/v16n5/1518-6776-ram-16-05-0015.pdf>
FARIA, J. H. de. Análise de Discurso em Estudos Organizacionais: as
concepções de Pêcheux e Bakhtin. Teoria e Pratica em Administração, v. 5,
5 p. 51-71, 2015. Disponível em: Volume II
<http://periodicos.ufpb.br/index.php/tpa/article/download/26399/14430
>

FARIA, J. H. de. Os Sete Pecados Capitais e o Pesquisador Oficialmente Não


6
Reconhecido. Revista Posição, v. 2, p. 8-12, 2015. incluído

FARIA, J. H. de. Estudos Organizacionais no Brasil: arriscando


perspectivas. Revista de Estudos Organizacionais (Impresso), v. 1, p. 01, Volume
7
2014. Disponível em: <http://www.sbeo.org.br/sbeo/wp- III
content/uploads/2014/07/v1n1_FARIA.pdf>

FARIA, J. H. de; RAMOS, Cinthia Letícia. Tempo Dedicado ao Trabalho e


Tempo Livre: os processos sócio históricos de construção do tempo de
Volume
8 trabalho. RAM. Revista de Administração Mackenzie (Impresso), v. 15, p.
III
47-74, 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ram/v15n4/03.pdf>

FARIA, J. H. de. Por uma Teoria Crítica da Sustentabilidade. Organizações e


Sustentabilidade, v. 2, p. 2-25, 2014. Disponível em: Volume
9
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ros/article/download/17796/15 III
172>

RAMOS, CINTHIA LETICIA ; FARIA, JOSÉ HENRIQUE DE . Poder e


ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma
indústria multinacional. Perspectiva (UFSC), v. 32, p. 667-701, 2014. Volume
10
Disponível em: III
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/download/2175-
795X.2014v32n2p667/30074>

FARIA, J. H. de. Economia Política do Poder em Estudos Organizacionais.


REvista Farol Digital, v. 1, p. 58-102, 2014. Disponível em: Volume
11
<http://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/article/download/2581/1407 III
>

FARIA, J. H. de; MARANHAO, C. M. S. A. ; MENEGHETTI, F. K. .


Reflexões Epistemológicas para a Pesquisa em Administração:
12 Contribuições de Theodor W. Adorno. RAC. Revista de Administração Volume II
Contemporânea (Online), v. 17, p. 642-660, 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rac/v17n6/a02v17n6.pdf

FARIA, J. H. de; BRÜNING, C. . O PROBLEMA DOS MAIS NOVOS: um


estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de uma
Volume
13 montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba. RECADM :
III
Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, v. 12, p. 6-21, 2013. Disponível
em: <http://www.spell.org.br/documentos/download/18841>
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . A Gestão e a Reificação dos Homens
Volume
14 do Mar. RAE - Revista de Administração de Empresas, v. 13, p. 01-16, 2012.
III
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ram/v13n4/a02.pdf>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Burocracia como Organização,


Volume
15 Poder e Controle. RAE (Impresso), v. 51, p. 424-439, 2012. Disponível em:
III
<http://www.scielo.br/pdf/rae/v51n5/a02v51n5.pdf>

BUSHATSKY, Magaly ; FARIA, J. H. de ; BAIBICH-FARIA, Tânia M. .


Não
16 Cuidados paliativos em pacientes fora de possibilidade terapêutica.
incluído
Bioethikós (Centro Universitário São Camilo), v. 6, p. 399-408, 2012.

FARIA, J. H. de; ANDRADE, L. C. . As Condições de uma Gestão Social em


Não
17 um Empreendimento Popular. Caderno de Iniciação Científica - FAE
incluído
Business School, v. 13, p. 89-107, 2012.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Dialética Negativa e a Tradição


Epistemológica em Estudos Organizacionais. Organizações & Sociedade
18 (Impresso), v. 18, p. 119-137, 2011. Disponível em: Volume II
<https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaoes/article/download/11141/
8053>

SILVA, Anna P. B. da ; FARIA, J. H. de . Trabalho do Século XIX e do XXI:


Não
19 breve contextualização das patologias e legislação trabalhista brasileira.
incluído
Caderno de Iniciação Científica - FAE Business School, v. 12, p. 27-38, 2011.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Liderança e Organizações. Revista


Volume
20 de Psicologia, v. 2, p. 412-420, 2011. Disponível em:
IV
<http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/download/92/91>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . (Sem) saber e (com) poder nos


estudos organizacionais.. Cadernos EBAPE.BR (FGV), v. 8, p. 38-52, 2010.
Volume
21 Disponível em:
III
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/down
load/5141/3875[>

MACHADO, Sellina da R. D. ; CUNHA, Sieglinde K. ; FARIA, J. H. de .


Observatório de Redes Sociais em Comunidades Acadêmicas: um olhar Não
22
interdisciplinar da Teoria Crítica. Caderno de Iniciação Científica - FAE incluído
Business School, v. 11, p. 341-356, 2010.

ORTIZ, Alessandra P. Z. ; CUNHA, Sieglinde K. ; FARIA, J. H. de .


Observatório de Redes Sociais em Comunidades Acadêmicas:uma avaliação Não
23
na ANPAD (2005-2009) da Teoria Crítica. Caderno de Iniciação Científica - incluído
FAE Business School, v. 11, p. 451-466, 2010.
FARIA, J. H. de. O Capitalismo Totalmente Flexível: o adeus ao liberalismo
24 e ao keynesianismo clássico e a metamorfose da economia de mercado. Volume I
Revista Espaço Acadêmico (UEM), v. 94, p. 01-15, 2009.

FARIA, J. H. de. Consciência Crítica com Ciência Idealista: paradoxos da


redução sociológica na fenomenologia de Guerreiro Ramos. Cadernos
25 Volume II
EBAPE.BR (FGV), v. 7, p. 419-446, 2009. Disponível em:
<http://www.spell.org.br/documentos/download/1038>

FARIA, J. H. de. Teoria Crítica em Estudos Organizacionais no Brasil: o


Volume
26 estado da arte. Cadernos EBAPE.BR (FGV), v. 7, p. 509-515, 2009.
III
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cebape/v7n3/a09v7n3.pdf>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Gênese e estruturação da


organização burocrática na obra de Maurício Tragtenberg. Gestão e
Volume
27 sociedade (UFMG), v. 3, p. 167-203, 2009. Disponível em:
III
<https://www.gestaoesociedade.org/gestaoesociedade/article/download/8
35/711>

VASCONCELOS, Amanda de. ; FARIA, J. H. de . Saúde Mental no Trabalho:


Volume
28 contradições e limites. Psicologia & Sociedade (Online), v. 20, p. 453-464,
IV
2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v20n3/16.pdf>

KRAMER, G. G. ; FARIA, J. H. de . Vínculos Organizacionais. RAE - Revista


Volume
29 de Administração de Empresas, v. 41, p. 83-104, 2007. Disponível em:
IV
<http://www.scielo.br/pdf/rap/v41n1/06.pdf>

FARIA, J. H. de; SANTOS, Thaís I. . A "Empresa Revolução": do Movimento


Passe Livre a um Modelo de Negócio Empresarial. Revista de Administração
Volume
30 da FEAD-Minas, v. 4, p. 85-105, 2007. Disponível em:
IV
<http://docs10.minhateca.com.br/459103405,BR,0,0,Empresa-
Revolu%C3%A7%C3%A3o.pdf>

FARIA, J. H. de; HOPFER, K. R. . Controle por resultados no local de


trabalho: dissonâncias entre o prescrito e o real. RAE Eletrônica, São Paulo,
Volume
31 v. 5, n.1, p. 5-0, 2006. Disponível em:
III
<http://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/10.1590_S1676-
56482006000100006.pdf>

FARIA, J. H. de; DJALO, A. B. . Integração Financeira Internacional e


Crescimento Econômico. Revista de Administração da FEAD-Minas, v. 3, p. Volume
32
71-90, 2006. Disponível em: IV
<http://revista.fead.br/index.php/adm/article/download/100/92>

FARIA, J. H. de. Universidade, produção científica e aderência social.


33 Volume I
Universidade e Sociedade (Brasília), Brasilia, v. XV, n.35, p. 13-33, 2005.
FARIA, J. H. de; KREMER, A. . Reestruturação produtiva e precarização do
trabalho: o mundo do trabalho em transformação. RAUSP. Revista de Volume
34
Administração, São Paulo, v. 40, n.3, p. 266-279, 2005. Disponível em: III
<http://seer.ufrgs.br/index.php/read/article/view/41500/26279>

FARIA, J. H. de. Poder, saber e razão cínica: quando o poder arromba a


Volume
35 porta o saber sai pela janela?. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico,
III
Maringá - PR, v. 53, n.10-2005, p. 6-0, 2005.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Ídolos, heróis e mitos: aspectos


(inter)subjetivos de uma organização ligada ao futebol. Cadernos da Escola
Volume
36 de Negócios da UniBrasil, Curitiba, v. 2, p. 13-32, 2004. Disponível em:
IV
<http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosnegocios/index.php/negocios/ar
ticle/view/9/8>

FARIA, J. H. de. Economia Política do Poder: os fundamentos da Teoria


Crítica nos Estudos Organizacionais. Cadernos da Escola de Negócios da
Volume
37 UniBrasil, Curitiba, v. 1, p. 15-48, 2003. Disponível em:
III
<http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosnegocios/index.php/negocios/ar
ticle/view/1/1>

FARIA, J. H. de. Ciência, Tecnologia e Sociedade. Cadernos ANDES


38 Volume II
(Brasília), Brasília, v. 1, p. 36-46, 2003.

FARIA, J. H. de. O Poder na Obra de Fernando Prestes Motta. Eccos.


Volume
39 Revista Científica, v. 5, p. 162-169, 2003. Disponível em:
III
<http://www.fernandoprestesmotta.com.br/doc/eccos_faria.pdf>

FARIA, J. H. de. Ética, moral e democracia: paradoxos da práxis


organizacional. Comportamento Organizacional e Gestão, Lisboa, v. 8, n.2, Volume
40
p. 49-73, 2002. Disponível em: III
<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/eneo2000-04.pdf>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . A organização e a sociedade


unidimensional: as contribuições de Marcuse. Revista Ciência Empresarial, Volume
41
Curitiba, v. 2, n.1, p. 01-16, 2002. Disponível em: III
<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/eneo2002-24.pdf>

FARIA, J. H. de. Poder e participação: a delinqüência acadêmica na


interpretação tragtenberguiana. RAE. Revista de , São Paulo, v. 41, n.3, p. Volume
42
70-76, 2001.Administração de Empresas. Disponível em: III
<http://www.scielo.br/pdf/rae/v41n3/v41n3a09.pdf>
FARIA, J. H. de. Trabalho, tecnologia e sofrimento: as dimensões
desprezadas do mundo do trabalho. Crítica Jurídica, México DF, v. 18, p.
Volume
43 197-214, 2001. Disponível em:
III
<http://revistas.utfpr.edu.br/pb/index.php/revedutec-
ct/article/view/1083/686>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Ética e genética: uma reflexão sobre


a práxis organizacional. Cadernos ANDES (Brasília), Curitiba - Paraná, v. 1, Volume
44
n.1, p. 17-35, 2001. Disponível em: IV
<http://www.anpad.org.br/admin/pdf/enanpad2001-cor-349.pdf>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Discursos Organizacionais.


Comportamento Organizacional e Gestão, Brasil, v. 2, n.2, p. 89-110, 2001. Volume
45
Disponível em: <http://www.anpad.org.br/admin/pdf/enanpad2001-teo- IV
324.pdf>

FARIA, J. H. de; BAIBICH, T. M. . O que o Provão avalia?. Pátio (Porto Não


46
Alegre. 2002), Porto Alegre, v. 2, n.6, p. 46-48, 1998. incluído

FARIA, J. H. de. Planejamento Institucional: para além do estratégico.


Não
47 Cuadernos de Planeamiento y Evaluación, Santa Fé - UNL, v. 1, n.1, p. 33-
incluído
54, 1996.

FARIA, J. H. de. Extensão universitária e produção acadêmica. Pátio (Porto Não


48
Alegre. 2002), Porto Alegre, RS, v. 2, n.5, p. 31-39, 1996. incluído

FARIA, J. H. de. Construção e pluralidade. Cadernos ANDES (Brasília), Não


49
Curitiba, PR, v. 1, n.2, p. 01-10, 1995. incluído

FARIA, J. H. de. A ousadia de transformar. Cadernos de Extensão Perfil da Não


50
Extensão Universitária, Curitiba, PR, v. 1, n.1, p. 01-08, 1995. incluído

FARIA, J. H. de. Universidade pública: que futuro. Cadernos da Escola Não


51
Pública, Curitiba, PR, v. 1, n.2, p. 01-07, 1991. incluído

FARIA, J. H. de. Tecnologia, processo e organização do trabalho. RAUSP.


Volume
52 Revista de Administração, São Paulo, v. 21, n.4, p. 56-61, 1986. Disponível
IV
em: <http://200.232.30.99/busca/artigo.asp?num_artigo=684>

FARIA, J. H. de. A tendência oligárquica nas organizações:será que Michels


Volume
53 ainda tem razão?. Revista do IMESC, São Caetano do Sul, v. 1, n.5, p. 16-31,
IV
1985.

FARIA, J. H. de. A questão tecnológica na indústria de bens de consumo


essenciais. RAUSP. Revista de Administração, São Paulo, v. 20, n.1, p. 37-45, Volume
54
1985. Disponível em: IV
<http://200.232.30.99/busca/artigo.asp?num_artigo=776>
FARIA, J. H. de. Crise do autoritarismo e movimentos operários no ABC
Volume
55 paulista: 1978-1980. Revista do IMESC, São Caetano do Sul, v. 3, n.7, p. 16-
III
31, 1985.

FARIA, J. H. de. Círculos de Controle de Qualidade: a estratégia recente da


Volume
56 gestão capitalista de controle e modificação do processo de trabalho.
III
RAUSP. Revista de Administração, São Paulo, v. 19, n.3, p. 9-15, 1984.

FARIA, J. H. de. O conceito de poder: uma introdução de novos elementos à


Não
57 teoria administrativa. Revista do IMESC, São Caetano do Sul, v. 1, n.3, p. 35-
incluído
42, 1984.

FARIA, J. H. de. Socialismo, Democracia e Formas de Gestão do Trabalho. Não


58
Revista do IMESC, Sâo Paulo Editora Alfa-Ômega, v. 3, n.4, p. 25-29, 1984. incluído

FARIA, J. H. de. Weber e a sociologia das organizações. RAUSP-e (São


Volume
59 Paulo), São Paulo, v. 18, n.2, p. 23-29, 1983. Disponível em:
IV
<http://200.232.30.99/busca/artigo.asp?num_artigo=867>

FARIA, J. H. de. Tecnologia, desenvolvimento econômico e gestão do


60 trabalho. RAUSP. Revista de Administração, São Paulo, v. 18, n.4, p. 101- Volume I
103, 1983.

FARIA, J. H. de. Co-gestão: uma nova instituição. RAUSP. Revista de


Volume
61 Administração, São Paulo, v. 17, n.1, p. 5-13, 1982. Disponível em:
IV
<http://200.232.30.99/download.asp?file=1701005.pdf.>

FARIA, J. H. de. Treinamento, oligarquia e instituições. Revista do IMESC, Volume


62
Porto Alegre, RS, v. III, n.20, p. 12-23, 1979. IV

FARIA, J. H. de; BRÜNING, C. . For a Critical Theory of Sustainability. In: Não


5th Corporate Responsability - CR3 Conference, 2017, Helsinki. 5th CR3. incluído
Helsinki: Hanken School of Economics, 2017. v. 1. p. 01-15.

FARIA, J. H. de; BRÜNING, C. . Organizations and their Impact over Work Não
63 and Subjectivity. In: 5th Corporate Responsability - CR3 Conference, 2017, incluído
Hensinki. 5th CR3 Conference. Helsinki: Hanken School of Economics,
2017. v. 1. p. 01-16.

BRÜNING, C. ; MARQUES JUNIOR, K. ; FARIA, J. H. de . Work Context in Não


64 Organizations and Damage to Workers' Health: taking responsability. In: incluído
5th Corporate Responsability - CR3 Conference, 2017, Helsinki. 5th CR3
Conference. Helsinki: Hanken School of Economics, 2017. v. 1. p. 01-16.
FERRAZ, Deise L. da S. ; FARIA, J. H. de . Sequestro da Subjetividade:
compreendendo a essência da produção e apropriação da subjetividade do
trabalhador e da trabalhadora. In: Colóquio Internacional de Epistemologia Volume
65
e Sociologia da Ciência da Administração, 2017, Florianópolis. Anais do VI IV
Colóquio Internacional de Epistemologia e Sociologia da Ciência da
Administração. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa
Catarina., 2017. v. 1. p. 01-16. Disponível em:
<http://coloquioepistemologia.com.br/site/wp-
content/uploads/2017/04/ANE-8872.pdf>

FARIA, J. H. de. Poder Real e Poder Simbólico: Retomando o Debate. In: XL Volume
66 EnANPAD, 2016, Salvador. Anais do XL EnANPAD. Rio de Janeiro: III
ANPAD, 2016. v. 1. p. 1-16. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MjExMjQ=>

FARIA, J. H. de. Epistemologia e Método em Hegel: A Fenomenologia e a


67 Ciência da Lógica. In: XL EnANPAD, 2016, Salvador. Anais do XL Volume II
EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2016. v. 1. p. 1-13. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MjEzMTI=>

FARIA, J. H. de; WALGER, C. S. . Materialismo Racional: a Epistemologia


68 Crítica de Gaston Bachelard e os Estudos Organizacionais.. In: EnEO 2014, Volume II
2016, Belo Horizonte. Anais do EnEO 2014. Rio de Janeiro: ANPAD, 2016.
v. 1. p. 1-16. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MjA3Nzc=>

Publicado
posterior
FARIA, J. H. de. Análise de Discurso em Estudos Organizacionais: as mente em
69
concepções de Pêcheux e Bakhtin. In: XXXIX EnANPAD 2015, 2015, Belo periódico.
Horizonte. Anais do XXXIX EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2015. v. 1. Volume
p. 01-16. II.

FARIA, J. H. de. Condições de uma Gestão Democrática do Processo Social


de Trabalho. In: XXXIX EnANPAD 2015, 2015, Belo Horizonte. Anais do
70 Volume I
XXXIX EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2015. v. 1. p. 1-16.

Publicado
posterior
FARIA, J. H. de. A Epistemologia Crítica do Concreto e os Momentos da mente em
71
Pesquisa: uma proposição para os Estudos Organizacionais.. In: EnEO 2014, periódico.
2014, Gramados. Anais do EnEO 2014. Rio de Janeiro: ANPAD, 2014. v. 1. volume
p. 1-16. II.

QUEROL, M. P. ; FARIA, J. H. de . Change Laboratory as a Tool for Não


72 Transformation Activities of Policy Implementation. In: 8th International incluído
Conference: research work and learning, 2013, Stirling. Double Symposium
on Activity, Work and Learning, 2013. v. 1. p. 1-16.
RAMOS, Cinthia Letícia ; FARIA, J. H. de . PODER, IDEOLOGIA E
ALIENAÇÃO: a construção do real e do imaginário na organização. In: Volume
73
XXXVII EnANPAD, 2013, Rio de Janeiro. Anais do XXXVII EnANPAD. Rio III
de Janeiro: ANPAD, 2013. v. 1. p. 1-16. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MTU4OTg=>

RAMOS, Cinthia Letícia ; FARIA, J. H. de . IMPACTOS FÍSICOS E


EMOCIONAIS DA EXTENSÃO DA JORNADA DE TRABALHO NA VIDA Volume
74
DOS GESTORES: estudo de caso em uma indústria multinacional. In: IV
XXXVII EnANPAD, 2013, Rio de Janeiro. Anais do XXXVII EnANPAD. Rio
de Janeiro: ANPAD, 2013. v. 1. p. 1-16. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MTYzNTI=>

FARIA, J. H. de. Por uma Epistemologia Crítica nos Estudos Não


75 Organizacionais. In: I Colóquio Internacional em Estudos Organizacionais, incluído
2013, São Paulo. Anais do I Colóquio Internacional em Estudos
Organizacionais. São Paulo: FGV/EAESP, 2013. v. 1. p. 1-15.

RAMOS, Cinthia Letícia ; FARIA, J. H. de . Sociedade, Trabalho e


Controle da Subjetividade. In: I Congresso Brasileiro de Estudos
76 Organizacionais, 2013, Fortaleza. Anais do I CBEO. Curitiba: SBEO, 2013. v. Volume
01. p. 1566-1592. Disponível em: IV
<https://drive.google.com/drive/folders/0BwpfjShmcDhCTlRNS2hHNWlT
QU0>

FERRAZ, Deise L. da S. ; HORST, A. C. ; FARIA, J. H. de .Reconhecimento


Social, Redistribuição da Riqueza Material e Paridade de Participação
77 Ampliados: Proposição de um Modelo Analítico a partir das Lutas Sociais Volume I
dos Professores do Ensino Superior Público Federal do Estado do Paraná.
In: VII Encontro Nacional de Estudos Organizacionais - EnEO, 2012,
Curitiba. VII Encontro Nacional de Estudos Organizacionais - EnEO. Rio de
Janeiro: ANPAD, 2012. v. 01. p. 01-16.

FARIA, J. H. de. Dimensões da Matriz Epistemológica em Estudos em


Administração: uma proposição. In: EnANPAD, 2012, Rio de Janeiro. Anais
78 do EnANPAD 2012. Rio de Janeiro: ANPAD, 2012. v. 01. p. 01-01. Volume II
Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MTQ2ODc=>

Publicado
RAMOS, Cinthia Letícia ; FARIA, J. H. de . Poder e Ideologia em um posterior
Programa de Gestão por Competências: análise crítica do modelo mente em
79
corporativo em uma indústria multinacional de energia. In: EnANPAD, periódico.
2012, Rio de Janeiro. Anais do EnANPAD 2012. Rio de Janeiro: ANPAD, Volume
2012. v. 01. p. 01-16. IV.
Publicado
FARIA, J. H. de; MARANHÃO, Carolina M. S. de A. ; MENEGHETTI, F. K. . posterior
Reflexões Epistemológicas para a Pesquisa em Administração a partir das mente em
80
Contribuições de Theodor W. Adorno. In: XXXV EnANPAD, 2011, Rio de periódico.
Janeiro. XXXV EnANPAD 2011. Rio de Janeiro: ANPASD, 2011. v. 01. p. 01- Volume
16. II.

Publicado
posterior
81 FARIA, J. H. de; BRÜNING, C. . "O Problema dos Mais Novos": um estudo mente em
de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de uma periódico.
montadora automotiva na RMC. In: XXXV EnANPAD, 2011, Rio de Janeiro. Volume
XXXV EnANPAD 2011. Rio de Janeiro: ANPAD, 2011. v. 1. p. 01-16. IV.

FARIA, J. H. de. O MATERIALISMO HISTÓRICO E AS PESQUISAS EM


ADMINISTRAÇÃO; uma proposição. In: XXXV EnANPAD, 2011, Rioo de
82 Janeiro. XXXV EnANPAD 2011. Rio de Janeiro: ANPAD, 2011. v. 1. p. 01-16. Volume II
Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MTMyNzM=>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . História Intelectual nos Estudos Volume


83 Organizacionais. In: VI Encontro Nacional de Estudos Organizacionais, III
2010, Florianópolis. Anais do VI EnEO. Rio de Janeiro: ANPAD, 2010. v. 1.
p. 01-16.

Publicado
posterior
mente em
84
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Burocracia como Organização, periódico.
Poder e Controle. In: XXXIV EnANPAD, 2010, Rio de Janeiro. Anais do Volume
XXXIV EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2010. v. 1. p. 1-16. III.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . História Intelectual nos Estudos Não


85
Organizacionais. In: EnEO 2010, 2010, Florianópolis - SC. Anais do EnEO incluído
2010. Rio de janeiro: ANPAD, 2010. v. 1. p. 01-16.

Publicado
posterior
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Gênese e estruturação da mente em
86
organização burocrática na obra de Maurício Tragtenberg. In: XXXIII periódico.
EnANPAD, 2009, São Paulo. XXXIII EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, Volume
2009. v. 1. p. 01-16. III.

Publicado
posterior
mente em
87
FARIA, J. H. de. A Reificação dos Homens do Mar. In: Encontro Nacional periódico.
de Estudos Organizacionais - EnEO, 2008, Belo Horizonte. Anais do V Volume
EnEO. Rio de Janeiro: ANPAD, 2008. v. 5. p. 1-15. III.
BAIBICH, T. M. ; FARIA, J. H. de . Trabalho Docente em Pós-Graduação
Stricto Sensu em Educação. In: VII ANPED SUL, 2008, Itajaí. Anais do VII Não
88
ANPED SUL - Pesquisa e Inserção Social. Itajaí - SC: Univali, 2008. v. 7. p. incluído
01-15.

FARIA, J. H. de. Bacon Versus Tragtenberg: ?(Sem) Saber e (Com) Poder?


nos Estudos Organizacionais:. In: XXXII EnANPAD, 2008, Rio de Janeiro. Volume
89 Anais do EnANPAD 2008. Rio de Janeiro: ANPAD, 2008. v. 32. p. 01-16. III
Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=OTA4MA==>

FARIA, J. H. de. DISCURSO DE EROS E PRÁTICA DE THÂNATOS: o


esconderijo da dor e a Síndrome do Estoicismo Hercúleo. In: XXXII Volume
90
EnANPAD, 2008, Rio de Janeiro. Anais do EnANPAD 2008. Rio de Janeiro: IV
ANPAD, 2008. v. 32. p. 01-15. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=OTIyNg==>

Publicado
posterior
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Dialética Negativa: Adorno e o mente em
91
atentado contra a tradição epistemológica nos estudos organizacionais. In: periódico.
XXXI EnANPAD, 2007, Rio de Janeiro. Anais do XXXI EnANPAD 2007. Volume
Rio de Janeiro: ANPAD, 2007. v. 31. p. 01-15. II.

VASCONCELOS, Amanda de. ; FARIA, J. H. de .Os Paradoxos entre a Saúde


Mental no Trabalho e as Estratégias Organizacionais de Promoção de Saúde
do Trabalhador: Um Estudo de Caso. In: XXXI EnANPAD, 2007, Rio de Volume
92
Janeiro. Anais do XXXI EnANPAD 2007. Rio de Janeiro: ANPAD, 2007. v. IV
31. p. 01-15. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=NzUwNw==>

FARIA, J. H. de; MATOS, R. D. . Poder, controle e resistência no trabalho: o Não


93 caso de uma organização de transporte coletivo urbano. In: IV Encontro de incluído
Estudos Organizacionais, 2006, Porto Alegre. Anais EnEO 2006. Rio de
Janeiro: ANPAD, 2006.

Publicado
posterior
mente em
94
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Imaginário e Poder: a dinâmica dos periódico.
grupos ligados a uma organização de futebol. In: IV EnEO 2006, 2006, Volume
Porto Alegre. EnEO 2006. Rio de Janeiro: ANPAD, 2006. III.

Publicado
posterior
95 FARIA, J. H. de. Universidade, Produção Científica e Aderência Social. In: X mente em
Colóquio Internacional Sobre Poder Local: desenvolvimento e gestão social periódico.
de territórios, 2006, Salvador. Anais do X Colóquio Internacional sobre Volume I.
Poder Local. Salvador: CIAGS/UFBA, 2006.
Publicado
FARIA, J. H. de. Consciência Crítica com Ciência Idealista: paradoxos da posterior
redução sociológica na fenomenologia de Guerreiro Ramos. In: X Colóquio mente em
96
Internacional Sobre Poder Local: desenvolvimento e gestão social de periódico.
territórios, 2006, Salvador. Anais do X Colóquio Internacional Sobre Poder Volume
Local. Salvador: CIAGS/UFBA, 2006. v. 1. p. 01-16. III.

FARIA, J. H. de. Avaliação Institucional. In: I Fórum de Avaliação Não


97
Institucional, 2006, Vitória. Anais do I Fórum de Avalição Institucional. incluído
Vitória: UFES, 2006. v. 1. p. 01-15.

Publicado
posterior
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Razão Tradicional e Razão Crítica: mente em
98
os percursos da razão no ensino e pesquisa em Administração na concepção periódico.
da Teoria Crítica. In: XXIX EnANPAD 2005, 2005, Brasília. Anais do XXIX Volume
EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2005. v. XXIX. III.

FARIA, J. H. de; LEAL, A. P. . Gestão por Competências no Quadro da


Hegemonia: estudo de caso numa organização multinacional de logística. Volume
99
In: XXIX EnANPAD, 2005, Brasília. Anais do XXIX EnANPAD. Rio de IV
Janeiro: ANPAD, 2005. v. XXIX. Disponível em:
<http://repositorio.furg.br/bitstream/handle/1/766/A%20Gest%E3o%20p
or%20Compet%EAncias%20no%20Quadro%20>

FARIA, J. H. de. A Fase do Colaboracionismo: a nova prática sindical do Volume


100 United Auto Workers. In: XXIX EnANPAD, 2005, Brasília. Anais do XXIX IV
EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2005. v. 29. p. 01-15. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=NzEx>

FARIA, J. H. de; SCHMIT, E. C. . Indivíduo, vínculo e subjetividade: o


controle social a serviço da organização. In: III Encontro Nacional de Volume
101
Estudos Organizacionais - ENEO, 2004, Atibaia. Anais do III ENEO. Rio de IV
Janeiro: ANPAD, 2004. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=NDUyOQ==>

FARIA, J. H. de; PINTO, R. S. . O Discurso e a Prática da Ética nas Relações


de Trabalho: os Paradoxos da Práxis de uma Organização Bancária. In: Volume
102
XXVII Encontro Nacional da ANPAD, 2004, Curitiba. Anais do XXVII III
EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2004. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=OTU1>

FARIA, J. H. de; HOPFER, K. R. . Controle Social no Trabalho e Novas


Perspectivas de Análise Organizacional. In: XXVI ENAMPAD, 2003, Volume
103 Atibaia. Anais do XXVI ENANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2003. III
Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MjAwMA==>
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . A Instituição da Violência nas Volume
104 Relações de Trabalho. In: XXVI ENAMPAD, 2002, Salvador. Anais do XXVI IV
ENAMPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2002. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MjY0Mg==>

Publicado
posterior
105 FARIA, J. H. de. Universidade Pública, Ciência, Tecnologia e Aderência mente em
Social: de volta ao tema da indissociabilidade. In: Encontro Nacional sobre periódico.
Ciência e Tecnologia, 2002, Curitiba. Encontro Nacional sobre Ciência e Volume I.
Tecnologia. Curitiba: APUFPR, 2002.

Publicado
posterior
106 mente em
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . As Organizações e a Sociedade periódico.
Unidimensional: as Contribuições de Marcuse. In: II ENEO, 2002. Anais do Volume I.
II ENEO. Rio de Janeiro: ANPAD, 2002.

FARIA, J. H. de. Economia Política do Poder: uma proposta Teórico-


107 Metodológica para o estudo e a Análise das Organizações. In: II Encontro Volume II
Nacional de Estodos Organizacionais - ENEO, 2002, Recife. Anais do II
ENEO. Rio de Janeiro: ANPAD, 2002. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=NDYyMw==>

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . O Seqüestro da Subjetividade e as


Novas Formas de Controle Psicológico no Trabalho: Uma Abordagem Volume
108
Crítica ao Modelo Toyotista de Produção. In: XXV ENANPAD - 2001, 2001, IV
Campinas - SP. Anais do XXV ENANPAD, 2001. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MzA4MA==>

Publicado
posterior
mente em
109
periódico.
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Discursos Organizacionais. In: XXV Volume
ENANPAD, 2001, Campinas - SP. Anais do XXV Enanpad, 2001. III.

Publicado
posterior
mente em
110
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Ética e genética: uma reflexão sobre periódico.
a práxis organizacional. In: XXV ENENPAD, 2001, Campinas - SP. Anais do Volume
XXV Enanpad, 2001. III.

FARIA, J. H. de. Political Economy of Power: theoretical-methodological Não


111
fundamentals of organizational analisys. In: BaLAS 2001 Conference, 2001. incluído
Business Association of Latin American Studies, 2001. v. 1. p. 01-15.
Publicado
posterior
FARIA, J. H. de. Ética, moral e democracia: os paradoxos da práxis mente em
112
organizacional. In: 1. Encontro Nacional de Estudos Organizacionais periódico.
(ENEO), 2000, Curitiba. Anais do 1. ENEO - 2000. Rio de Janeiro: ANPAD, Volume
2000. III.

FARIA, J. H. de; BARBOSA, S. L. . Comprometimento: Uma Avaliação


Crítica sobre a Práxis Organizacional. In: 24. ENANPAD, 2000, Volume
113 Florianópolis. Anais do 24. ENANPAD - 2000. Rio de Janeiro: ANPAD, III
2000. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=NDI1OQ==>

FARIA, J. H. de; TAKAHASHI, A. R. W. . Globalização, Estado e Sociedade:


114 Impactos da Economia do Poder Sobre as Organizações. In: 24. ENANPAD, Volume I
2000, Florianópolis. Anais do 24. ENANPAD - 2000. Rio de Janeiro:
ANPAD, 2000.

FARIA, J. H. de. Poder e participação: a práxis universitária sob a ótica Não


115
tragtenberguiana. In: Seminário sobre Maurício Tragtenberg, 2000, São incluído
Paulo, SP. Maurício Tratenberg. São Paulo, SP: EAESP/FGV, 2000.

FARIA, J. H. de. Management of social fund. In: BALAS 2000 Conference,


Não
116 2000, Caracas. Business Association of Latin American Studies, 2000. v. 1.
incluído
p. 1-12.

FARIA, J. H. de; OLIVEIRA, S. . Gestão da Qualidade: A Dimensão Político-


Cognitiva-Afetiva do Desempenho Organizacional. In: 23o. ENANPAD, Volume
117
1999, Foz do Iguaçú. Anais do 23o. ENANPAD - 1999. Rio de Janeiro: IV
ANPAD, 1999. v. 1. p. 1-15. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/~anpad/abrir_pdf.php?e=MzQxNA==>

FARIA, J. H. de. Trabalho, sofrimento e dor. In: Semana da Tecnologia,


Não
118 1999, Curitiba, PR. Tecnologia e Trabalho. Curitiba, PR: CEFET-PR, 1999. v.
incluído
1. p. 1-12.

FARIA, J. H. de. Democratic Planning. In: What Kind of University? An Não


119 International Conference, 1997, London. What Kind of University? An incluído
International Conference - Proceedings. London: Open University Quality
Support Centre, 1997. v. 1. p. 75-87.

FARIA, J. H. de. Ser da cidade um eterno aprendiz. In: Seminário


Internacional Cidades Educadoras contra a Exclusão e pela Paz, 1996, Não
120
Curitiba, PR. Cidades Educadoras. Curitiba: UFPR/UNESCO, 1996. v. 1. p. incluído
21-23.

FARIA, J. H. de. Universidade e Tecnologia da Informação. In: Seminário Não


121
Globalização e Estado: universidade e mudança, 1996, Curitiba, PR. Anais incluído
do Seminário. UFPR/SENAI: Curitiba, PR, 1996. v. 1. p. 87-107.
FARIA, J. H. de. University and Information Technology. In: Seminary 21st
122 Century Communication Technology and the University of the Future, 1995, Não
Takahashi. Seminary 21st Century Communication Technologi and the incluído
University of the Future - Proceedings. Takahashi: Kurashiki University os
Sciences and the Arts, 1995. v. 1. p. 11-18.

FARIA, J. H. de. Planejamento administrativo na gestão municipal. In: 1. Não


123
Fórum de Administração Pública: Cidade de Curitiba, 1995, Curitiba, PR. incluído
Fórum de Administração Pública. Curitiba: IMAP, 1995. v. 1. p. 1-15.

FARIA, J. H. de. Políticas Linguísticas para o Mercosul. In: Encontro sobre Não
124
Políticas Linguísticas, 1995, Curitiba, PR. Anais do Encontro. Curitiba: incluído
UFPR, 1995. v. 1. p. 1-7.

FARIA, J. H. de. Reforma do Estado, Autonomia e Compromisso Social das Não


125
Universidades Públicas. In: XII SEURS, 1995, Curitiba, PR. Extensão incluído
Universitária. Curitiba: UFPR, 1995. v. 1. p. 1-8.

FARIA, J. H. de. Planejamento institucional: a experiência da Universidade. Não


126
In: 1. Fórum de Administração Pública: Cidade de Curitiba, 1995, Curitiba, incluído
PR. Anais do Fórum. Curitiba: IMAP, 1995. v. 1. p. 97-113.

FARIA, J. H. de. Planejamento e Avaliação Institucional. In: Seminário Não


127
Internacional de Avaliação, 1995, Recife. Seminário Internacional de incluído
Avaliação. Recife: UFPe, 1995.

FARIA, J. H. de. Educação, trabalho e desenvolvimento tecnológico. In: Não


128
Simpósio Paranaense de Educação e Trabalho, 1993, Curitiba, PR. Educação incluído
e Trabalho. Curitiba: SENAI, 1993. v. 1. p. 1-10.

FARIA, J. H. de. Círculo de Controle de Qualidade: a estratégia recente da Não


129 gestão capitalista do processo de trabalho. In: 3. Seminário de Técnicas incluído
Japonesas de Administração e Manufatura, 1985, São Paulo, SP. Técnicas
Japonesas de Administração e Manufatura. São Paulo, 1985. v. 1. p. 1-12.
Volume III: ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CRÍTICOS

Este volume é composto pelos artigos publicados pelo Prof. Dr.


José Henrique de Faria, como autor e coautor, e categorizados por ele
como trabalhos que versam sobre o tema “Estudos Organizacionais
Críticos”.

Compõem este volume os seguintes trabalhos, aqui apresentados nesta


ordem:

FARIA, J. H. de. Estudos Organizacionais no Brasil: arriscando


1 perspectivas. Revista de Estudos Organizacionais (Impresso), v. 1,
p. 01, 2014.

FARIA, J. H. de; RAMOS, Cinthia Letícia . Tempo Dedicado ao


Trabalho e Tempo Livre: os processos sócio-históricos de
2
construção do tempo de trabalho. RAM. Revista de Administração
Mackenzie (Impresso), v. 15, p. 47-74, 2014.

FARIA, J. H. de. Por uma Teoria Crítica da Sustentabilidade.


3
Organizações e Sustentabilidade, v. 2, p. 2-25, 2014.

RAMOS, C. L.; FARIA, J. H.de . Poder e ideologia: o modelo


4 corporativo de gestão por competências em uma indústria
multinacional. Perspectiva (UFSC), v. 32, p. 667-701, 2014.

FARIA, J. H. de. Economia Política do Poder em Estudos


5
Organizacionais. REvista Farol Digital, v. 1, p. 58-102, 2014.

FARIA, J. H. de; BRÜNING, C . O PROBLEMA DOS MAIS


NOVOS: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de
6 produção de uma montadora automotiva da Região Metropolitana
de Curitiba. RECADM : Revista Eletrônica de Ciência
Administrativa, v. 12, p. 6-21, 2013.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, Francis K. . A Gestão e a


7 Reificação dos Homens do Mar. RAE - Revista de Administração de
Empresas, v. 13, p. 01-16, 2012.
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, Francis K. . Burocracia como
8 Organização, Poder e Controle. RAE (Impresso), v. 51, p. 424-439,
2012.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, Francis K. . (Sem) saber e (com)


9 poder nos estudos organizacionais.. Cadernos EBAPE.BR (FGV), v.
8, p. 38-52, 2010.

FARIA, J. H. de. Teoria Crítica em Estudos Organizacionais no


10 Brasil: o estado da arte. Cadernos EBAPE.BR (FGV), v. 7, p. 509-
515, 2009.

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . Gênese e estruturação da


11 organização burocrática na obra de Maurício Tragtenberg. Gestão e
sociedade (UFMG), v. 3, p. 167-203, 2009.

FARIA, J. H. de; HOPFER, K. R. . Controle por resultados no local


12 de trabalho: dissonâncias entre o prescrito e o real. RAE
Eletrônica, São Paulo, v. 5, n.1, p. 5-0, 2006.

FARIA, J. H. de; KREMER, A. . Reestruturação produtiva e


precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação.
13
RAUSP. Revista de Administração, São Paulo, v. 40, n.3, p. 266-
279, 2005.

FARIA, J. H. de. Poder, saber e razão cínica: quando o poder


14 arromba a porta o saber sai pela janela?. Revista Eletrônica Espaço
Acadêmico, Maringá - PR, v. 53, n.10-2005, p. 6-0, 2005.

FARIA, J. H. de. Economia Política do Poder: os fundamentos da


15 Teoria Crítica nos Estudos Organizacionais. Cadernos da Escola de
Negócios da UniBrasil, Curitiba, v. 1, p. 15-48, 2003.

FARIA, J. H. de. O Poder na Obra de Fernando Prestes Motta.


16
Eccos. Revista Científica, v. 5, p. 162-169, 2003.

FARIA, J. H. de. Ética, moral e democracia: paradoxos da práxis


17 organizacional. Comportamento Organizacional e Gestão, Lisboa,
v. 8, n.2, p. 49-73, 2002.
FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . A organização e a
18 sociedade unidimensional: as contribuições de Marcuse. Revista
Ciência Empresarial, Curitiba, v. 2, n.1, p. 01-16, 2002.

FARIA, J. H. de. Poder e participação: a delinqüência acadêmica na


19 interpretação tragtenberguiana. RAE. Revista de , São Paulo, v. 41,
n.3, p. 70-76, 2001.Administração de Empresas.

FARIA, J. H. de. Trabalho, tecnologia e sofrimento: as dimensões


20 desprezadas do mundo do trabalho. Crítica Jurídica, México DF, v.
18, p. 197-214, 2001.

FARIA, J. H. de. Crise do autoritarismo e movimentos operários no


21 ABC paulista: 1978-1980. Revista do IMESC, São Caetano do Sul,
v. 3, n.7, p. 16-31, 1985.

FARIA, J. H. de. Círculos de Controle de Qualidade: a estratégia


recente da gestão capitalista de controle e modificação do processo
22
de trabalho. RAUSP. Revista de Administração, São Paulo, v. 19,
n.3, p. 9-15, 1984.

FARIA, J. H. de. Poder Real e Poder Simbólico: Retomando o


23 Debate. In: XL EnANPAD, 2016, Salvador. Anais do XL EnANPAD.
Rio de Janeiro: ANPAD, 2016. v. 1. p. 1-16. B16

RAMOS, C. L. ; FARIA, J. H. de . PODER, IDEOLOGIA E


ALIENAÇÃO: a construção do real e do imaginário na organização.
24
In: XXXVII EnANPAD, 2013, Rio de Janeiro. Anais do XXXVII
EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2013. v. 1. p. 1-16. B17

FARIA, J. H. de; MENEGHETTI, F. K. . História Intelectual nos


Estudos Organizacionais. In: VI Encontro Nacional de Estudos
25
Organizacionais, 2010, Florianópolis. Anais do VI EnEO. Rio de
Janeiro: ANPAD, 2010. v. 1. p. 01-16.

FARIA, J. H. de. Bacon Versus Tragtenberg: ?(Sem) Saber e (Com)


Poder? nos Estudos Organizacionais:. In: XXXII EnANPAD, 2008,
26
Rio de Janeiro. Anais do EnANPAD 2008. Rio de Janeiro: ANPAD,
2008. v. 32. p. 01-16.
FARIA, J. H. de; PINTO, R. S. . O Discurso e a Prática da Ética nas
Relações de Trabalho: os Paradoxos da Práxis de uma Organização
27
Bancária. In: XXVII Encontro Nacional da ANPAD, 2004, Curitiba.
Anais do XXVII EnANPAD. Rio de Janeiro: ANPAD, 2004.

FARIA, J. H. de; HOPFER, K. R. . Controle Social no Trabalho e


Novas Perspectivas de Análise Organizacional. In: XXVI
28
ENAMPAD, 2003, Atibaia. Anais do XXVI ENANPAD. Rio de
Janeiro: ANPAD, 2003.

FARIA, J. H. de; BARBOSA, S. L. . Comprometimento: Uma


Avaliação Crítica sobre a Práxis Organizacional. In: 24. ENANPAD,
29
2000, Florianópolis. Anais do 24. ENANPAD - 2000. Rio de
Janeiro: ANPAD, 2000.
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.

Estudos Organizacionais no Brasil: arriscando perspectivas

José Henrique de Faria


Professor Titular do PPGADM - UFPR
Tem como principais temas de pesquisa, Economia Política do Poder em Estudos
Organizacionais, Epistemologia Crítica, Metodologia e Teoria.

Endereço para correspondência: Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-


Graduação em Administração - PPGADM.
Av. Prefeito Lothário Meissner, 632
Jardim Botânico
80210170 - Curitiba, PR - Brasil
Endereço eletrônico: jhfaria@gmail.com

1
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
Devo alertar o leitor, desde logo, na linha de Nicos Poulantzas (“O Estado, o poder, o
socialismo”. Rio de Janeiro: GRAAL, 1981. p. 12), que “assumo a responsabilidade do que
escrevo e falo em meu próprio nome”. O propósito deste artigo é, a partir do que chamo de
elementos constitutivos dos Estudos Organizacionais - EOR, arriscar elaborar perspectivas
para esta área. Como de hábito, não vou abdicar de eleger categorias (no caso, elementos
constitutivos), as quais, naturalmente, encontram-se na realidade e foram apropriadas como
concreto pensado. O espaço para estas reflexões é restrito, o que me obriga a considerar, ainda
tal como Poulantzas (op. cit. p. 11), “que os problemas atuais [dos EOR] são suficientemente
importantes e novos para merecerem um tratamento aprofundado”.
A publicação na área de estudos organizacionais enquanto tal inicia formalmente, no
Brasil, na década de 1950, como se pode constatar em um texto básico no qual Beatriz M. de
Souza Wahrlich (“Uma análise das teorias de organização”. Rio de Janeiro: EBAPE/FGV,
1958) faz uma análise das principais teorias disponíveis à época seguindo a mesma linha de
produção acadêmica americana, representada por Selznick, Simon, Barnard, Mooney, entre
outros. Wahrlich questiona, já na época, o fato de que o campo teórico de estudos
organizacionais é subestimado em favor de seu “aspecto prático” (ou seja, o gerencialismo).
Entretanto, a própria Wahrlich utiliza indistintamente os termos organização e administração
ao longo da análise, defendendo a ideia de uma teoria generalizada de organizações a partir da
possibilidade de interação entre teorias da administração pública e da administração de
empresas privadas.
Estudos sobre organizações na década de 1950, como, por exemplo, os de Guerreiro
Ramos (“Uma introdução à história da organização racional do trabalho”, de 1952;
“Relaciones humanas del trabajo”, publicado no México em 1954), ainda não tratavam
especificamente da teoria das organizações, mas as tomavam como objeto de análise. Este,
talvez, seja o ponto mais importante da história dos estudos organizacionais no Brasil: a
organização como objeto de estudo.
Desde então, de maneira bem simplificada, os estudos organizacionais no Brasil
apresentaram duas linhas elementares distintas de abordagem: (i) aqueles vinculados ao
management, ao business, aos princípios de administração pública e privada; (ii) aqueles
vinculados às “ciências humanas e sociais” (sociologia, psicologia, filosofia, ciência política,
antropologia, educação, etc.), sejam estes disciplinares (sociologia das organizações,
psicologia das organizações), multidisciplinares ou interdisciplinares. Em ambos os casos, as
dimensões epistemológicas e metodológicas que atravessam estes estudos são de diferentes

2
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
matizes: positivismo, funcionalismo, estruturalismo, fenomenologia, materialismo histórico e
pragmatismo.
Mais de meio século após as primeiras publicações na área de estudos organizacionais,
não há dúvida que estes ganharam um corpo teórico relativamente autônomo, atingiram um
nível importante de representatividade acadêmica, caracterizaram-se com alguma ênfase na
multi e na interdisciplinaridade e atualmente apresentam uma forte tendência a se separarem
das teorias de business e management. Neste último caso, há um discurso consistente que
defende a separação dos estudos organizacionais dos estudos de business, como ficou
caracterizado nas diversas intervenções dos participantes do I Colóquio Internacional em
Estudos Organizacionais realizado na EAESP-FGV em Agosto de 2013.
Ao mesmo tempo em que a área de EOR ganha certa autonomia, a criação da
Sociedade Brasileira de Estudos Organizacionais - SBEO em 2012 se dá por iniciativa de
pesquisadores vinculados aos programas de pós-graduação em administração. Ainda que o
propósito da SBEO seja congregar as diversas áreas disciplinares, é na área de administração
que a mesma se consolida. Este fato exige uma reflexão mais acurada sobre as perspectivas da
área que, embora mencione mais adiante, não terei como aprofundar adequadamente.
Uma das propostas do I Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais e que
orienta a apresentação dessa Revista, é a de tentar projetar algumas perspectivas para os
estudos organizacionais no Brasil. Certamente, as avaliações devem divergir, pois não há
como fazê-las sem uma dose de especulação, mas as mesmas são muito oportunas para uma
reflexão crítica.
Permito-me sugerir o que entendo serem elementos constitutivos dos estudos
organizacionais (que também chamei de categorias analíticas), de forma a orientar minha
avaliação sobre suas perspectivas. Os estudos organizacionais devem:
i. Caracterizar-se pela Interdisciplinaridade (com possibilidades para a
multidisciplinaridade): o conhecimento sobre a realidade organizacional
demanda um diálogo permanente entre diversas disciplinas. Os estudos
disciplinares (sociologia das organizações, psicologia organizacional,
economia industrial, gestão organizacional, etc.) tendem a abordar aspectos
muito particulares do fenômeno, restringindo o entendimento de sua totalidade;
ii. Considerar a organização como objeto de pesquisa em sua materialidade: é
preciso superar a tendência à abstração e generalização que tende a extrapolar

3
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
aspectos de diferentes tipos, formas, contextos históricos e sociais, estruturas e
finalidades de organizações para toda e qualquer realidade organizacional;
iii. Superar a xenofobia teórica: em uma época na qual o globalismo apresenta-se
como totalização da economia e da sociedade, a concepção de estudos
organizacionais tipicamente brasileiros é retrógada. Não se trata de incentivar a
importação de teorias prontas ou de incorporar teorias sem cuidados, sem
críticas e sem rigor. Trata-se de reconhecer que a ciência e seu
desenvolvimento não podem ficar confinados a escaninhos particulares, como
se isto fosse demonstração inequívoca de autonomia, de independência na
produção acadêmica, de não submissão ao imperialismo científico e coisas do
gênero. O que é preciso, de todo modo, suplantar, não é o uso inadequado de
teorias produzidas fora do Brasil, mas o uso de teorias prontas que são
aplicadas ou testadas aqui como se nossa realidade fosse um mero campo de
provas;
iv. Sobrepujar a prática dos feudos acadêmicos competitivos: há uma prática, com
consequências perversas para o avanço do conhecimento, que consiste em
estabelecer grupos de pesquisa que se esmeram em distinguir-se dos demais
para efeitos de competição, seja por recursos, seja por “prestígio
autoimputado”, sem qualquer esforço pela cooperação na produção da
pesquisa. As distinções teóricas, metodológicas e epistemológicas são
saudáveis e necessárias para a área e não são impeditivas de colaboração e
parceria em projetos acadêmicos. Estes grupos, geralmente vinculados a
programas de pós-graduação, tendem a sobrevalorizar sua pesquisa em
detrimento do avanço do conhecimento do campo1.

1 Ao mesmo tempo, muitas universidades praticamente condicionam qualquer apoio aos


professores ao fato de terem ou não registro de grupo de pesquisa, o que pulveriza o número de
grupos sem a necessária produção acadêmica, tendo relevância quantitativa nos processos de
avaliação institucional sem a correspondente relevância científica.

4
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
Não tenho nenhuma ilusão quanto à eficácia e à amplitude destes elementos
constitutivos. Eles são apenas uma tentativa de organizar minhas argumentações e não um
exaustivo tratamento acadêmico ao tema. Considerando, portanto, estes elementos
constitutivos básicos e limitados, é possível alinhavar algumas perspectivas para os estudos
organizacionais no Brasil.
i. Sobre a inter e multidisciplinaridade: a mesma depende e tem grande tendência
a continuar a depender da iniciativa de poucos pesquisadores e grupos de
pesquisa. Embora sejam pesquisadores e grupos promissores e competentes no
avanço deste campo de estudos, os mesmos encontram importantes obstáculos
em seu fazer acadêmico: (a) a estrutura dos cursos de graduação e pós-
graduação aos quais estes pesquisadores se vinculam é predominantemente
disciplinar, dificultando a necessária interação das diversas áreas; (b) as
agências de fomento, com destaque para o CNPq, não abrigam uma área
interdisciplinar, obrigando os pesquisadores e grupos a submeterem seus
projetos à lista disciplinar oferecida, de forma que o julgamento dos projetos
corre o risco de ser feito por avaliadores que nem sempre conseguem ter o
alcance do significado da interdisciplinaridade; (iii) a interdisciplinaridade
ainda é tratada com certo ceticismo e/ou desdém em alguns círculos
acadêmicos, reproduzindo a lógica das corporações de ofício que caracteriza os
conselhos de registro profissional; (iv) a iniciativa da criação da SBEO foi de
pesquisadores da área da Administração, com poucos pesquisadores de outras
áreas, o que vai exigir um esforço político, acadêmico e institucional de
superação do vínculo dos EORs com a Administração, de forma a consolidar a
SBEO como efetivamente uma sociedade de pesquisadores, desvinculada de
estruturas disciplinares e de programas de graduação e pós-graduação; (v) a
interdisciplinaridade não é um passaporte para que se utilizem conceitos de

5
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
várias áreas (psicanálise, filosofia, direito, medicina, sociologia, etc.) de
maneira rasa e irresponsável;
ii. Organização como objeto de pesquisa: esta é uma questão pacífica apenas
aparentemente. Há uma discussão nos fóruns, por exemplo, sobre se
Comportamento Organizacional pertence ou não à área de EOR. Trata-se de
uma discussão, em meu ponto de vista, absolutamente irrelevante, a não ser por
uma questão de poder político. Se comportamento organizacional estuda o
comportamento das organizações ou o comportamento dos sujeitos na
organização é também irrelevante. Estratégia organizacional não estuda o
comportamento da organização? Relações de trabalho não estuda o
comportamento dos sujeitos na organização? Relação de poder não estuda
ambos? Poderíamos falar, do mesmo modo, do simbolismo, do imaginário, dos
discursos, etc. É uma perda de tempo e energia prospectar as perspectivas da
área de EOR a partir de discussões deste tipo. Estudos organizacionais são
estudos realizados em organizações e/ou sobre organizações, ou seja, são
estudos que têm as organizações como seu objeto, independentemente dos
temas ou assuntos (gestão, poder, trabalho, comportamento, competência,
simbolismo, etc.), desde que pertinentes, é óbvio. Mas aí habita, há tempos, um
problema. O Estado é uma organização tanto quanto uma empresa, um órgão
público, uma ONG, etc. Se tudo pode ser uma organização, temos uma
hiperárea? Ou não temos nenhum objeto de fato? Para ter a organização como
objeto, os EOR devem estudar o Estado, porém não como Estado; a empresa,
todavia não como empresa; as ONGs, contudo não como ONGs, etc. Parece
uma questão simples, mas a organização precisa ser estudada em sua
materialidade e, portanto, nas suas formas manifestas e em suas essências. As
perspectivas são promissoras, mas é necessário superar limitações
epistemológicas e metodológicas, especialmente quanto ao empirismo, aos
estudos de caso descontextualizados, às generalizações arbitrárias, aos modelos
acabados, aos enquadramentos padronizados, ao raciocínio impermeável, etc.
Finalmente, é preciso superar a escolha da organização pelo comodismo
laborioso: o simbolismo no bar da esquina; as relações de poder na escola em
que o pesquisador trabalha; a gestão por resultados no armazém do bairro; as

6
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
relações de trabalho na construção do edifício na rua em que o pesquisador
mora, etc.
iii. Xenofobia teórica: embora este assunto teime em voltar à tona, em uma
referência equivocada à crítica de Guerreiro Ramos à importação de conceitos,
este parece ser um elemento com poucas chances de prosperar. A utilização de
teorias produzidas fora do Brasil tem sido muito cuidadosa por parte de
pesquisadores de ponta, suplantando a mera reprodução. Mas o problema
recorrente é que as reproduções existem. Então, aqui, as perspectivas são as de
que é necessário exatamente superar o viés da importação objeto da crítica de
Guerreiro Ramos, ou seja, a importação de modelos, conceitos, teorias,
sistemas, sem rigor e de forma acrítica. Já não se trata de xenofobia, mas de
cuidado com a apropriação inadequada e inconsistente de conceitos e teorias
produzidas no mundo acadêmico, tratando-as como se fossem verdades
absolutas e inquestionáveis, generalizáveis e aplicáveis em qualquer contexto
sócio-histórico por justaposição;
iv. Grupos de pesquisa como feudos competitivos: este é um elemento que por
certo provoca um furor basilar em certos pesquisadores e grupos, que atuam
competitivamente no mundo acadêmico como se este fosse um mercado de
financiamento, e/ou que disputam poder político e prestígio ritualístico e/ou
que se deleitam na autovalorização de si. No discurso cobertura, todos são
favoráveis à cooperação entre pesquisadores e grupos de pesquisa, mas há uma
distância entre intenção e gesto, como diz Chico Buarque em Fado Tropical 2. É

"Meu coração tem um sereno jeito


E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa,
Mas meu peito se desabotoa.

7
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
fundamental reconhecer que a valorização da produção acadêmica de grupos e
pesquisadores em EOR (como em outras tantas áreas), no Brasil, tem se
apresentado historicamente como uma atividade imperialista de um eixo
regional. O reconhecimento prático e histórico da produção fora do eixo é raro.
Assim, não é incomum que alguns pesquisadores e grupos do eixo apresentem
como sendo originalmente seus, estudos há tempos desenvolvidos em outros
centros e que, por conta da visibilidade política da geografia institucionalizada,
apropriem-se deles com ares de paternidade. Ao contrário de fazer avançar o
campo do conhecimento em EOR, desenvolve-se um movimento de rotação
acadêmica. Forma-se, assim, um círculo vicioso: pesquisadores do eixo que
são avaliadores de projetos de fora do eixo; composição de conselhos
acadêmicos predominantemente do eixo; valorização de periódicos no sistema
Qualis com predomínio do eixo. Esta reprodução das condições de perpetuação
do poder político na academia deixou de ser um mistério e se encontra exposta
na mídia. Perspectivas? A SBEO poderá contrastar esta prática se definir como
um de seus objetivos a democratização na distribuição de recursos de pesquisa,
a valorização científica de grupos e de pesquisadores por sua produção, a
promoção de isonomia na avaliação de periódicos tendo em vista seu impacto
social e acadêmico.
Por fim, deixo aqui um desafio aos historiadores. Se todos desejam fazer da área de
estudos organizacionais um campo de referência, é necessário resgatar sua verdadeira história.
Do que tenho lido até o momento, há omissões imperdoáveis de eventos, fatos históricos,
produções originais, etc. Há desvalorizações inaceitáveis à boa prática acadêmica quanto à
importância de pesquisadores na área e, ao mesmo tempo, marginalização inexplicável de
pesquisadores que contribuíram decisivamente para o que a área é atualmente. Há distorções
de fatos datados inadmissíveis, especialmente desconsideração de pesquisas relevantes
(inclusive premiadas) e de desenvolvimento teórico pioneiro. O problema mais grave é que
textos que buscam resgatar a “história dos EOR”, ao promoverem estas distorções e omissões,
estão formando uma falsa convicção da realidade histórica, que se vai reproduzindo de texto
em texto, replicando as imperfeições, por conta de citações sem críticas e sem confronto com
os fatos históricos, criando uma concepção que não é fiel aos acontecimentos, mas que passa a
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".

8
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
ser uma espécie de “história oficial”, ou seja, uma história dos contadores de história que se
contentam em narrar os eventos segundo suas convicções e interesses.
Pesquisadores, e historiadores em particular, precisam superar a prática um tanto
cômoda de contar a história dos EOR tendo como única base de dados artigos publicados nos
Anais do EnANPAD e em revistas clássicas (RAE, RAC, etc.) e garimpar fontes documentais
mais amplas, buscando trabalhos publicados em revistas que nas décadas de 1970/1980 eram
referência e que deixaram de ser veiculadas; encontrar livros em editoras de pequeno porte;
fazer um levantamento exaustivo de cadernos e publicações patrocinadas por entidades
governamentais, etc. Em resumo, fazer um estudo consistente para contar a mais fiel possível
história dos EOR no Brasil. A realidade da publicação acadêmica nas décadas de 1970/1980
não tinha ainda, como parâmetro, a síndrome do Qualis Capes, que orienta o pensamento atual
restringindo seu alcance. Assim, a história dos EOR foi reduzida a algumas (e, sem dúvida,
muito importantes e, ouso dizer, fundamentais) contribuições, como as de Guerreiro Ramos e
Maurício Tragtenberg. Contudo, há mais do que isto.
A história dos EOR no Brasil é maior do que a que é contada nos encontros,
simpósios, fóruns, colóquios, congressos, etc. Maior do que o que registram periódicos que
superaram as dificuldades financeiras e se mantiveram em atividade. Maior do que os dados
disponíveis nos sites de acesso público (do tipo Google). Como pesquisador desde 1978
convivi com outros pesquisadores, estudei textos que por magia da memória curta das novas e
velhas gerações desapareceram das citações como se nunca tivessem existido. Resultados de
pesquisas e reflexões originais publicadas nas décadas de 1970/1980 têm sido solenemente
ignorados e seus temas resurgem no final dos anos 1990 e nos anos 2000 como novidades
(toyotismo, tecnologia e relações de trabalho, autogestão, gestão e subjetividade, para citar
alguns exemplos), inclusive com a valorização de pesquisadores estrangeiros que chegaram
aos temas anos após pesquisadores brasileiros o terem abordado. O colonizado parece sentir-
se sempre devedor do colonizador, não importando sua origem, se francês, inglês, alemão,
norte-americano ou brasileiro.
Maurício Tragtenberg deixou muitos ensinamentos aos seus discípulos (que ele se
recusava a ter, mas que de fato tinha), como Fernando Coutinho Garcia, Fernando Prestes
Motta, Antonio Valverde, Antonio Candido, Doris Accioly e Silva, Sonia Marrach, Evaldo
Vieira, Lucia Bruno, Liliana Segnini, eu mesmo e muitos outros que partilhamos de sua
orientação em longos debates, seminários e conversas de corredor. Um deles, no entanto,

9
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
ficou gravado em minha memória e orientou minha vida acadêmica: “a crítica é uma das mais
poderosas armas dos intelectuais revolucionários”.
A crítica não tem compromisso com conluios, com restrições, com conveniências, com
reações desconfortáveis, mas com os fatos. Pode ser certeira ou conter equívocos, que sempre
podem ser corrigidos, mas deve ser expressa. Como disse Marx, citando Dante Alighieri em A
Divina Comédia, no prefácio da primeira edição de O Capital: “segui il tuo corso, e lascia dir
le genti!” (“segue o teu curso e deixa a gentalha falar!”). Desta forma, permito-me, no próprio
idioma italiano, concluir por mim mesmo que nella scienza, come nella vita, le cose devono
avere il senso e il significato. Qualcosa che ha significato, ma non ha senso, quindi senza
prospettive come qualcosa che rende il senso, ma che significa nulla (na ciência, como na
vida, as coisas precisam ter sentido e significado. Algo que tenha significado, mas não faça
sentido, é tão sem perspectivas como algo que faz sentido, mas que nada significa).

10
• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4) • SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line) •
http://dx.doi.org/10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74. Submissão: 4 mar. 2013. Aceitação: 7 mar. 2014.
Sistema de avaliação: às cegas dupla (double blind review).
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. Walter Bataglia (Ed.) Filipe Jorge Ribeiro Almeida (Ed. Seção), p. 47-74

T tempo dedicado ao trabalho


e tempo livre: os processos
sócio-históricos de construção
do tempo de trabalho

JOSÉ HENRIQUE DE FARIA


Doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
da Universidade de São Paulo (USP).
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Administração
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Rua Prefeito Lothário Meissner, 632, Jardim Botânico, Curitiba – PR – Brasil – CEP 80210-170
E-mail: jhfaria@gmail.com

CINTHIA LETÍCIA RAMOS


Mestra em Organizações e Desenvolvimento pelo Programa de Mestrado Interdisciplinar
do Centro Universitário do Paraná.
Administradora Plena do Departamento Comercial da Petrobras.
Rodovia do Xisto, BR 476, Km 16, Araucária – PR – Brasil – CEP 83707-440
E-mail: cinthialeticia.ramos@gmail.com

Este artigo pode ser copiado, distribuído, exibido, transmitido ou adaptado desde que citados, de forma clara e explícita,
o nome da revista, a edição, o ano e as páginas nas quais o artigo foi publicado originalmente, mas sem sugerir que a
RAM endosse a reutilização do artigo. Esse termo de licenciamento deve ser explicitado para os casos de reutilização ou
distribuição para terceiros. Não é permitido o uso para fins comerciais.
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

Resumo
O presente ensaio tem como propósito discutir como o tempo de trabalho ultra-
passa o tempo formal da jornada de trabalho a partir das três seguintes catego-
rias de análise: 1. tempo de trabalho socialmente necessário ou simplesmente
tempo de trabalho necessário, 2. tempo dedicado ao trabalho ou tempo dispo-
nível e 3. tempo livre (que compreende o chamado “tempo socialmente supér-
fluo”, quando se refere ao tempo ocioso,­e o “tempo socialmente disponível”, o
qual é mediado pela velocidade decorrente das transformações emergentes no
mundo contemporâneo). O conceito de tempo empregado neste ensaio parte de
uma concepção que possibilita apreender essa categoria como construção social
e histórica, e não como uma categoria abstrata arbitrária. Neste ensaio, serão
tratadas as concepções de construção temporal, tempo de trabalho e tempo livre,
com o propósito de entender como a fronteira do tempo de trabalho invadiu
sutilmente o tempo livre do sujeito trabalhador, tornando esses tempos fluidos,
tensos, urgentes e flexíveis. Tempo aprisionado não por um controle minucioso
da atividade, para adaptar o corpo ao exercício do trabalho, mas por dispositivos
que mobilizam o sujeito a partir de objetivos e projetos, canalizando o conjunto
de suas potencialidades para fins do capital. Os argumentos desenvolvidos aqui
permitem sugerir que o tempo de trabalho necessário corresponde àquele em
que o trabalhador produz o equivalente ao seu próprio valor. Tempo excedente
é aquele que extrapola o tempo necessário de trabalho. Dessa forma, o tempo de
trabalho necessário não constitui, no sistema de capital, o tempo de trabalho ou
tempo disponível de trabalho, pois este engloba igualmente o tempo necessário
e o tempo excedente de trabalho.

48 Palavras - chav e
Tempo dedicado ao trabalho. Tempo de trabalho necessário. Tempo disponí-
vel. Tempo livre. Jornada formal de trabalho.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

1 Introdu ção

Ao parafrasear o conceito foucaultiano de corpo1, Gaulejac (2007, p. 110) é


categórico no posicionamento do emprego do tempo regulamentado para fins do
capital, substituindo o corpo pela psique como objeto do poder pelas organiza-
ções: “É, por boa parte, como força produtiva que a psique é investida de relações
de poder e de dominação. A psique só se torna força útil se for ao mesmo tempo
energia produtiva e energia submissa”.
Ao mudar de objeto “corpo” para objeto “psique”, Gaulejac (2007, p. 110)
indica que as modalidades do controle das empresas hipermodernas transfor-
maram-se consideravelmente, mas sua finalidade permanece inalterada: “Não
se trata mais de tornar os corpos ‘úteis e dóceis’, mas de canalizar o máximo
de energia libidinal para transformá-la em força produtiva”. Com isso, Gaulejac
(2007) procura mostrar que as técnicas de gerenciamento perdem seu caráter
puramente disciplinar. Trata-se não tanto de regulamentar o emprego do tempo
e de quadricular o espaço, mas sim de obter uma disponibilidade permanente
para que o máximo de tempo seja consagrado à realização dos objetivos fixados e,
além disso, a um engajamento total para o sucesso da empresa (Gaulejac, 2007,
pp. 110-111).
Nesse sentido, o presente ensaio tem como propósito apresentar e precisar
as concepções de tempo dedicado ao trabalho e tempo livre, discutindo como
o tempo de trabalho ultrapassa o tempo formal de jornada de trabalho a partir
das seguintes categorias de análise: tempo, tempo dedicado ao trabalho e tempo
livre, também chamado de “tempo socialmente supérfluo” (quando se refere ao
tempo ocioso), e “tempo socialmente disponível” (Marx, 2008, 2011; Mészáros,
2002), habitualmente denominado “lazer”, o qual é mediado pela velocidade
decorrente das transformações emergentes no mundo contemporâneo.
É importante ressaltar que o conceito de tempo empregado neste artigo parte
de uma concepção que possibilite apreender essa categoria como construção social
e histórica, e não como uma categoria abstrata arbitrária. De fato, o tempo em si
mesmo é uma abstração arbitrária, na medida em que possui várias acepções. O
tempo universal, o tempo histórico e o clima tempo, por exemplo, são fenôme-
nos diversos de uma mesma expressão. A dimensão temporal é uma constru-
ção histórica e social, especialmente em sua concepção linear de medida (hora,
mês, ano) padronizada. Assim como, por exemplo, as medidas de peso ou massa 49
(quilograma), quantidade ou unidade de capacidade (litro) e de espaço-tempo

1
“É, por boa parte, como força de produção que o corpo é investido de relações de poder e de dominação [...].
O corpo só se torna força útil se for ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (Foucault, 2004,
p. 25.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

(anos-luz), as do tempo também foram historicamente convencionadas para


permitir sua dimensionalidade. Nesse sentido, entender-se-á, aqui, a categoria
tempo em sua manifestação concreta, que é representada por uma convenção
socialmente aceita, que é a sua medida em hora, com seus segmentos (minutos,
2
segundos) e derivações (dia, mês, ano) .
Para tanto, este ensaio se encontra dividido em quatro itens, nos quais serão
tratadas as concepções de construção temporal, tempo de trabalho e tempo livre,
com o propósito de entender como a fronteira do tempo de trabalho invadiu
sutilmente o tempo livre do sujeito trabalhador, tornando esses tempos fluidos,
tensos, urgentes e flexíveis. Tempo, conforme apontado por Cardoso (2007),
aprisionado não por um controle minucioso da atividade, para adaptar o corpo
ao exercício do trabalho, mas por dispositivos que mobilizam o sujeito a partir
de objetivos e projetos, canalizando o conjunto de suas potencialidades para fins
do capital.

2 A C onstru ção T emporal nas


Sociedades Contempor â neas

Segundo Elias (1989, p. 84):

O que chamamos tempo é, em primeiro lugar, um marco de referência que serve


aos membros de certo grupo e, em última instância, a toda a humanidade, para
instituir ritos reconhecíveis dentro de uma série contínua de transformações do
respectivo grupo de referência ou também, de comparar certa fase de um fluxo
de acontecimentos [...]. Assim, o tempo cumpre funções de orientação do homem
diante do mundo e de regulação da convivência humana.

Para Elias (1989, p. 23), relógios são invenções humanas já incorporadas no


mundo simbólico do homem como forma de orientação e integração de aspec-
tos físicos, biológicos, sociais e subjetivos. Porém, quando se esquece de que
são invenções humanas e históricas, do como ou por que os primeiros relógios
foram construídos e das transformações que sofreram, é provável que tais cons-
truções sejam abordadas como se tivessem existência natural, alheia ao homem.
50 Mas, para Elias (1989, p. 22), “em um mundo sem homens e seres vivos, não
haveria tempo e, portanto, tampouco relógios ou calendários”.

2
Os demais casos concretos específicos, como “tempo histórico”, devem ser adjetivados para garantir a
precisão da concepção.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

Sue (1995, p. 85) salienta que a noção de tempo constitui-se

[...] de acordo com a consciência histórica dos atores sociais em um dado período.
Apresentando-se como uma trama na aparência objetiva que organiza os fatos
sociais, o tempo com isso nos revela, ao contrário, a natureza construída de um
sistema de valores que ele exprime.

Grossin (1991), por sua vez, surpreende-se com a tolerância dos seres huma-
nos ao pensar em situações temporais vivenciadas cotidianamente como desa-
gradáveis e até mesmo insuportáveis, ressaltando que um dos motivos dessa
complacência é que as atitudes em relação às questões temporais partem de
ideias aceitas e interiorizadas, ou seja, não são discutidas e muito menos perce-
bidas como construção social.
Essa diferença de concepção é resolvida por Demazière (1995) e Maruani
(2000), para quem a adoção de um olhar histórico possibilita verificar que cada
momento de uma mesma realidade pode ser definido de modos diferentes.
Sennett (2000) indica que, na sociedade atual, a ênfase no presente é cada vez
mais estimulada, desconsiderando o passado e a história.
Ao fazer uma correlação do tempo com as contradições existentes nas rela-
ções de trabalho, Greco Martins (2001, pp. 19-21) acentua que quanto mais o
esquecimento dessa contradição vai ocorrendo, mais a relação de trabalho e o pró-
prio trabalho acabam enviados ao campo da natureza, sendo desvinculados das
suas relações sociais e do seu processo histórico, de forma que a subordinação
e a exploração passam a ser compreendidas como parte da natureza: “Assim o
olhar retrospectivo possibilita o reencontro de algo que ficou perdido, recalcado
e escondido nos escombros da história, permitindo a identificação do esquecido e
das contradições presentes nas relações sociais”.
Diante dessas breves considerações e entendendo que o tempo, direta ou
indiretamente, perpassa transversalmente os argumentos, paradoxos e contradi-
ções nas relações entre a sociedade, o trabalho e o sujeito trabalhador, é possível
formular as seguintes questões:

• Quais mudanças ocorreram no processo sócio-histórico do trabalho, bem


como no tempo dedicado ao mesmo?
• Quais são as principais características do tempo de trabalho e do tempo de 51
não trabalho?
• Por que há sempre a impressão de que existe um tempo único, abstrato e
quase natural, e não como resultado da interação humana?

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

No intuito de responder a esses questionamentos, torna-se importante


compreender como essas categorias se consolidaram em diferentes momentos
históricos.
Conforme já mostrado por Marx (1983), é a partir do trabalho que o ser social
se distingue de todas as formas pré-humanas. Nesse sentido, o ser social dotado
de consciência tem previamente concebida a configuração que quer imprimir
ao objeto do trabalho no ato de sua realização. É no trabalho que o ser social, ao
pensar e refletir, ao externar sua consciência, se humaniza e se diferencia das
suas formas anteriores.
Nessa perspectiva, pode-se considerar o trabalho como elemento central da
sociabilidade humana. Contudo, na sociedade capitalista, esse trabalho se torna
assalariado, controlado, fragmentado por tempos e movimentos, condicionando
à emancipação humana, muitas vezes à precarização e à alienação. Como expres-
são dessa realidade condicionada pelo sistema de capital, Marx (2010, p. 82), nos
Manuscritos econômico-filosóficos, já apontava a dialética existente entre riqueza e
miséria, acumulação e privação, possuidor e despossuído:

O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa pelas leis racional-


-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para con-
sumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna;
quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quan-
to mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais
poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico
de espírito do trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o
trabalhador.

Nos Grundrisse, Marx (2011, pp. 590-594) argumenta no sentido de que o


tempo de trabalho deixou de ser a medida de todas as riquezas, a qual passou a
ser o tempo disponível. De um modo simples, Marx (2011) entende que todo o
tempo para além do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das
condições materiais de existência é tempo livre. Assim, quanto mais se reduzir
o tempo de trabalho necessário, maior deverá ser o tempo livre. Entretanto, sob o
modo capitalista de produção, parte desse tempo livre é apropriada pelo capital,
de forma que o tempo de trabalho deixa de ser apenas o necessário (para a repro-
52
dução da força de trabalho) para se tornar tempo total disponível às necessidades
do sistema de capital. Dessa forma, no modo simples de produção,

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

[...] a poupança do tempo de trabalho é equivalente ao aumento do tempo livre [...].


O tempo livre, que é tanto tempo de ócio quanto tempo para atividades mais ele-
vadas, naturalmente transformou seu possuidor em outro sujeito, e é inclusive
como este outro sujeito que então ele ingressa no processo de produção imediato
(Marx, 2011, pp. 593-594).

Em outras palavras, sob o modo de produção capitalista, o tempo de trabalho


não pertence inteiramente ao dono dele.
O tempo “para além do tempo necessário de trabalho” converte-se em “tra-
balho excedente”. O tempo total disponível é aquele que se encontra à disposição
do capital, que o emprega tanto como trabalho necessário quanto como trabalho
excedente, ou seja, é a somatória do trabalho necessário com o trabalho excedente
(mais-trabalho). Nesse caso, a fórmula inicial se altera, de maneira que, no modo
capitalista de produção, quanto menor o tempo necessário de trabalho, maior é
o tempo excedente. Assim, quanto maior é o tempo excedente, maior é a taxa de
mais-valia. O tempo livre passa a ser, portanto, aquele compreendido para além
do tempo de trabalho necessário e de mais-trabalho, aquele que não compõe a
jornada, diferentemente do modo simples de produção, em que todo tempo além
do necessário era tempo livre.
A importância dessa concepção é precisamente para indicar que, em prin-
cípio, todo o tempo para além do tempo de trabalho necessário para a produção
das condições materiais de existência é tempo livre. Sob o modo capitalista, no
entanto, o tempo de trabalho não se reduz ao tempo necessário, mas ao tempo
disponível de trabalho para o capital, que é a soma do tempo necessário e do
tempo excedente. Na concepção marxista, portanto, o tempo disponível compreen-
de tanto o tempo de trabalho necessário quanto o tempo de trabalho excedente. O
tempo livre, desse modo, passa a ser aquele que se encontra para além do tempo
disponível. Em outras palavras, tempo livre é aquele que o trabalhador tem para
si e que não está à disposição do capital. Esse entendimento é fundamental para os
argumentos que serão desenvolvidos adiante, porque o tempo livre no sistema
de capital contemporâneo não é mais apenas aquele para além da jornada for-
mal, pois o tempo disponível para o capital extrapola o tempo formal da jornada
de trabalho.
O tempo da jornada formal de trabalho passa a compor a estrutura do tempo
coletivo social, pois este condiciona o uso do tempo livre. De fato, em A revolução 53
urbana, Lefèbvre (1999) aponta a existência de um tempo social urbano, de caráter
disciplinador, que se configurou explicitamente a partir da segunda metade do
século XIX, período esse em que a industrialização e o advento de novas técni-
cas, paralelamente ao crescimento das cidades, produziram uma nova sociedade

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

urbana. Segundo Lefèbvre (1999), nesse momento surgiram os relógios urbanos


alocados em pontos estratégicos das cidades – estações ferroviárias e de barcos –,
bem como os apitos das fábricas demarcando os turnos de trabalho. Esses novos
instrumentos visuais e sonoros surgiram, para Lefèbvre (1999), na paisagem
urbana com a finalidade de disciplinar o corpo do trabalhador em um novo orde-
namento social, caracterizado por grandes contingentes humanos e pela vida
cotidiana. Na sociedade contemporânea, esse novo ordenamento, contudo, pre-
cisa considerar o tempo de trabalho para mais além do que o tempo dos turnos
de trabalho.
Ao fazer intervenções substanciais em seu estudo do tempo e da disciplina
do trabalho, Thompson (2005) propõe o seguinte questionamento: se a transição
para uma sociedade industrial moderna supõe uma severa reestruturação dos
hábitos de trabalho, até que ponto tudo isso tem relação com as mudanças na
representação interna do tempo? Com base em uma perspectiva materialista,
Thompson (2005) entende que existe uma profunda relação entre as diferentes
situações de trabalho e as diferentes noções de tempo. Como as práticas mate-
riais de produção mudam historicamente (no tempo) e geograficamente (no
espaço), a própria noção de tempo e de espaço deve mudar. Nessa mesma linha
de argumentação, Harvey (1993, p. 189), ao tratar da compressão tempo-espaço,
assevera que “cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um
agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço”.
Thompson (2005, p. 7) ainda afirma que a passagem da vida camponesa à
vida de fábrica é a passagem de uma orientação temporal baseada na tarefa para
uma orientação fundada na prestação de trabalho por hora: “Em uma comunidade
do primeiro tipo, relações sociais e trabalho estão interligados – a jornada de traba-
lho se alonga e se prolonga conforme as tarefas – e não existe uma grande sen-
sação de conflito entre o trabalho e o passar do dia”. Entretanto, os assalariados
que tiveram seu trabalho regulado pelo relógio experimentam uma diferenciação
entre o tempo de seu patrão e o seu próprio tempo. Thompson (2005) afirma que
não era qualquer pessoa que poderia possuir um relógio, em função do seu preço
elevado. Assim, o registro do tempo pertencia aos patrões e comerciantes, nunca
aos trabalhadores. Como lembra Padilha (2000), somente por volta de 1790 foi
promovida a difusão dos relógios de bolso, mais acessíveis, justamente na época
em que a Revolução Industrial exigia uma maior sincronização.
Para Thompson (2005), com o advento da sociedade industrial, aparece a
54
necessidade de sincronização do trabalho, o que favorece uma maior atenção
ao tempo no trabalho: o “tempo das máquinas” passa a dominar sobre o novo
cenário social. Isso não acontecia em relação ao ritmo na manufatura, a qual se
manteve numa escala doméstica, pois o grau de sincronização que se requeria
era muito menor (Thompson, 2005, p. 258). Ao contextualizar a mudança do

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

tempo com o uso das máquinas a partir da Revolução Industrial, Attali (1982,
p. 199) faz o seguinte relato:

Pouco a pouco, a burguesia se instala no poder e organiza a vida dos outros e


sua própria em uma corrente contínua de eventos datados: o tempo para o traba-
lho, o tempo para o repouso, o tempo para o prazer [...]. Ao mesmo tempo, muda
o ritmo dos eventos: as notícias se difundem mais rapidamente [...], a produ-
ção em massa e barata de impressoras a vapor, a partir de 1814, permite um
enorme desenvolvimento da literatura periódica. [...] Economizar, ter uma renda,
acompanhar o progresso, torna-se uma obsessão das pessoas bem-nascidas deste
século. [...] O repouso faz temer o desperdício de tempo, a preguiça e a greve. A
ociosidade é ao mesmo tempo útil e perigosa.

Segundo Cardoso (2007), as sociedades industriais utilizaram o tempo do


relógio como principal referência, um tempo preciso, abstrato, vazio de conteú-
do, independente de qualquer evento, fracionado, mensurável e universal. Para
Cardoso (2007), essa temporalidade mecânica do relógio se expandiu para os
diversos espaços e tempos da vida cotidiana, de forma que a atitude instrumental
que consiste em considerar o tempo como um recurso raro não se destinou a
limitar e orientar apenas o espaço e o tempo de trabalho industrial.

A sociedade passa a lidar com o tempo da mesma forma como lida com o dinhei-
ro, atribuindo a ele também qualidades objetivas e impessoais, como, por exem-
plo, a escassez. Como consequência, o tempo pode ser utilizado, pode ser gasto
ou rentabilizado (Cardoso, 2007, p. 26).

Cardoso (2007) afirma que o tempo que não é traduzido em dinheiro não
recebe consideração social, caso emblemático do trabalho doméstico realizado
gratuitamente na esfera não mercantil, ou ainda passa a ser considerado como
um tempo perdido. Partindo da mesma equação de que “tempo é igual a dinhei-
ro”, Tabboni (2006) sugere que esse é o símbolo mais forte do tempo totalmente
transformado em mercadoria, reduzido a uma coisa e totalmente racionalizado,
e o tempo das experiências, das relações familiares e das interações afetivas e
pessoais, situadas no lado oposto das práticas geradas pelo dinheiro, perde con-
55
sequentemente seu lugar e sua importância social.
Além disso, Cardoso (2007) mostra que o trabalho industrial impôs uma
nova disciplina temporal e espacial, mediante a progressiva e contundente sepa-
ração entre o tempo/espaço de trabalho e o tempo/espaço de não trabalho, isto

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

é, entre produção (de mercadorias) e reprodução (da força de trabalho). Com o


objetivo de retratar o tempo socialmente dedicado ao trabalho dentro das fábri-
cas, Cardoso (2007, p. 28) indica:

Dentro do espaço fechado das fábricas, a crescente divisão das tarefas (exigindo
cálculos exatos dos tempos de trabalho e a coordenação precisa entre elas), a uti-
lização da mão de obra assalariada, a mecanização do trabalho manual, a adoção
de minuciosos estudos dos tempos e ritmos de trabalho conduziram, pouco a
pouco, à uniformização da medida do valor trabalho. De forma que o valor de
um bem passa a ser medido pela quantidade de trabalho necessária à sua produ-
ção, e a duração do trabalho torna-se a medida, por excelência, da quantidade de
trabalho. A própria divisão das tarefas estava relacionada à economia do tempo,
uma vez que ela implicava a especialização em uma pequena parte do trabalho,
permitindo uma diminuição drástica do tempo de trabalho necessário para cada
tarefa. Essas inovações que levaram ao cálculo do tempo e da produtividade máxi-
ma conseguiram definitivamente estabelecer a medida temporal de cada gesto.

Diante dessas considerações, é possível deduzir que o trabalho na linha de


produção fez com que o trabalhador perdesse quase que totalmente sua autonomia
em relação ao tempo e ao próprio trabalho. Isso porque, segundo Tabboni (2006),
o trabalho está previamente programado pelo funcionamento das máquinas,
constituindo a inovação tecnológica mais explícita e mais representativa de todos
os aspectos mais penosos do trabalho humano nas sociedades industrialmente
desenvolvidas. Atualmente, não é apenas o funcionamento das máquinas que
estabelece a programação do processo de trabalho, pois a introdução de equi-
pamentos e aparelhos de transmissão de dados e de comunicação via satélite
também interfere nessa programação.
O controle do tempo de trabalho é também o controle do trabalho. Como
já mostrava Braverman (1977, p. 106), ao discutir a degradação do trabalho no
século XX, no sistema taylorista:

Os trabalhadores não apenas perdem o controle sobre os instrumentos de produ-


ção como também devem perder o controle até de seu trabalho e do modo como o
executam. Esse controle pertence agora àqueles que podem “arcar” com o estudo
56 dele a fim de conhecê-lo melhor do que os próprios trabalhadores conhecem sua
atividade viva.

Partilhando desse mesmo entendimento, Faria (2004) afirma que uma das
consequências imediatas do sistema taylorista de produção foi a precarização

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

das formas e relações de trabalho, gerando nos trabalhadores sintomas como


fadiga, monotonia, sujeição a uma tarefa predeterminada para a qual não agre-
gava nenhuma iniciativa, alienando-os do processo de escolha e tolhendo-lhes a
liberdade individual.
De acordo com Antunes (1999), desde o advento do capitalismo, a redução
do tempo socialmente destinado ao trabalho tem sido uma das mais importantes
reivindicações no mundo do trabalho, pois se mostra contingencialmente como
um mecanismo importante na redução do desemprego estrutural que atinge
grande número de trabalhadores. Cardoso (2007) sugere que esses conflitos se
dão justamente porque o trabalho assalariado consiste na utilização, pelo empre-
gador, entre outros elementos, do tempo dos trabalhadores em troca de uma
remuneração. Dessa forma, seguindo a concepção marxista de valor de uso e de
troca, Cardoso (2007) argumenta que, se, no momento que antecede a produção,
o tempo pertence ao trabalhador, ao ser vendido por certo período ao emprega-
dor, este passa a ter o direito de utilizá-lo da forma que lhe convier, guardados os
limites da legislação, do poder dos trabalhadores e de seus representantes.
Para Bernardo (1996, p. 46), o problema é mais complexo:

Um trabalhador contemporâneo, cuja atividade seja altamente complexa e que


cumpra um horário de sete horas por dia, trabalha muito mais tempo real do
que alguém de outra época, que estivesse sujeito a um horário de quatorze horas
diárias, mas cujo trabalho tinha um baixo grau de complexidade. A redução for-
mal de horário corresponde a um aumento real do tempo de trabalho despendido
durante esse período.

Sobre esse aspecto, Elias (1989, pp. 21-22) apresenta uma reflexão crítica
afirmando que, na era moderna, o tempo exerce, de fora para dentro, sob a forma
de relógios, calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que se presta
eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma autodisciplina nos indi-
víduos, a qual “exerce uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme
e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e à
qual é impossível escapar”. Esse também é o entendimento de Bessin (1998) ao
afirmar que a temporalidade contemporânea envolve todos num sentimento de
urgência, em que o sujeito se vê prisioneiro do imediato.
Cardoso (2007) argumenta que, do ponto de vista coletivo, os trabalhadores 57
lutaram contra a imposição de um novo tipo de trabalho, como também de um
novo tempo a ser dedicado ao trabalho, e o tempo aparece como um dos prin-
cipais objetos de disputa entre capitalistas e trabalhadores, entre aqueles que
buscam implantar uma nova concepção de tempo, de trabalho e de tempo de

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

trabalho e aqueles que tentam resistir a essa concepção. Em complemento a esse


argumento, Padilha (2000) assegura que a história da humanidade foi marcada
tanto pela intensificação do desenvolvimento tecnológico e pela exploração como
pela resistência à exploração e pelo seu enfrentamento. Essas concepções são
derivadas das análises de Marx (1978, p. 341) sobre a situação de luta pela jornada
de trabalho nos séculos XVIII e XIX: “a instituição de uma jornada normal de
trabalho é resultado de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos oculta,
entre a classe capitalista e a classe trabalhadora”.
Na mesma linha de argumentação, Linhart (2005) afirma que, na sociedade
contemporânea, o conflito entre o capitalista e o trabalhador é permanente e
perpassa por dois lados: a busca da máxima objetivação pela empresa e os traba-
lhadores procurando se reapropriar subjetivamente desse tempo. Para Linhart
(2005), a contradição reside no momento em que o empregador compra algo
de que ele não pode se apropriar totalmente, pois tanto o tempo como as capa-
cidades físicas ou psicológicas não podem ser dissociados do trabalhador. Daí a
permanente e cotidiana mobilização e pressão da empresa, seja física ou psico-
lógica, buscando a máxima objetivação do tempo e da capacidade dos trabalha-
dores. Para estes, a tentativa de desassociá-los de seu tempo e de seus gestos de
trabalho torna-se fonte de muito sofrimento, frustrações, conflitos, pois é muito
difícil renunciar a dimensões que os constituem como sujeitos (Linhart, 2005).
Para Antunes (2005), as inúmeras formas assumidas pelas lutas sociais
constituíram-se em importantes exemplos de confrontação social contra o capi-
tal, dada a nova morfologia do trabalho e seu caráter multifacetado. Antunes
(1999) afirma que, na luta pela redução do tempo de trabalho, é possível articular
ações efetivas contra algumas formas de opressão e exploração do trabalho, como
também contra as formas contemporâneas do estranhamento, que se realizam
na esfera do consumo material e simbólico, no espaço reprodutivo fora do tra-
balho produtivo. Antunes (1999, pp. 174-175) entende que uma vida desprovi-
da de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora
do trabalho: “Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado e
estranhado com tempo verdadeiramente livre”. É preciso, contudo, aditar a essa
observação de Antunes (1999) que essa acepção de tempo verdadeiramente livre
não é incompatível apenas com o modo capitalista de produção, mas também
com qualquer sociedade regida por um modo de produção baseado em classes
sociais distintas e antagônicas.
58
De acordo com Antunes (1999), uma vida cheia de sentidos somente poderá
efetivar-se por meio da ruptura das barreiras existentes entre tempo de trabalho e
tempo de não trabalho, de modo que possa desenvolver uma nova sociabilidade
a partir de uma atividade vital cheia de sentido, autodeterminada, para além da
divisão hierárquica que subordina o trabalho ao capital.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

Trata-se de formas inteiramente novas de sociabilidade, em que liberdade e


necessidade se realizam mutuamente. Se o trabalho torna-se dotado de sentido,
será também por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do
tempo livre, do ócio que o ser social poderá humanizar-se e emancipar-se em seu
sentido mais profundo (Antunes, 1999, p. 177).
Conforme aponta Cardoso (2007), se, por um lado, faz-se crer que os tem-
pos tensos, intensos, urgentes e flexíveis partem de uma realidade temporal
neutra e exterior à ação e ao pensamento dos homens de uma sociedade, por
outro, torna-se fundamental olhar dialeticamente para essa temática, resgatando
o processo histórico e as relações sociais de como o tempo despendido formal-
mente para realização do trabalho vem sofrendo contínua intensificação e fle-
xibilização. Para Grossin (1991), o tempo imposto pelo capital procura dominar
os outros tempos que os trabalhadores tentam inserir e reinserir dentro e fora
do local de trabalho, resultando em disputas explícitas e implícitas, coletivas e
individuais, pontuais ou estruturais, negociadas ou não.
No sentido dado por Grossin (1991), é oportuno mencionar a concepção de
que todo o tempo livre é, de fato, tempo dominado pelo capital. Esse entendi-
mento decorre da análise realizada por Adorno e Horkheimer (1985), segundo a
qual a indústria cultural insere-se na administração do tempo livre. Nesse sen-
tido, a organização do lazer como atividade racionalizada e reificada incluída no
âmbito do processo de valorização do capital remete o tempo livre para a esfera
do consumo e da vida imediata. Contudo, Adorno e Horkheimer (1985) argu-
mentam que é necessário considerar que a consciência dos sujeitos não está
completamente integrada ao sistema de capital. Além disso, convém observar
que a concepção de que todo o tempo é dominado pelo capital, em uma espécie
de bloco unificado, tem contra si a impossibilidade dialética do movimento con-
traditório e, portanto, da mudança.
Aqui convém observar a distinção entre tempo livre e tempo livre dominado
pelo capital. Em adição à observação de Adorno e Horkheimer (1985) sobre a
consciência dos trabalhadores não estar totalmente subjugada ao capital, é preci-
so observar os seguintes aspectos:

• Tempo livre dominado pelo capital não é o mesmo que tempo disponível para
o capital. É certo, que sob o modo capitalista de produção, o mundo é o mundo
das mercadorias. Dos produtos aos serviços em geral, é a lógica do capital 59
que impera nas relações sociais. Entretanto, isso não significa que não exista
tempo livre, ou seja, que todo o tempo é tempo disponível para o capital.
• A concepção de que não há tempo de fato livre contrapõe-se à própria exis-
tência do sistema de capital, pois, em não havendo tempo livre, também não

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

há tempo de emprego da força de trabalho a ser vendida (livremente) no


mercado de trabalho. Se todo o tempo fosse tempo do capital, este não preci-
saria comprar a força de trabalho por um tempo correspondente à produção
de mercadorias.

Essas concepções exigem também o entendimento de como a fronteira entre


o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho torna-se cada vez mais fluida. Tal
é o propósito dos itens que seguem.

3 Tempo D edicado ao T rab alho

Segundo Navarro e Padilha (2007, p. 14) o trabalho tem caráter plural e


polissêmico, além de exigir conhecimento multidisciplinar:

A atividade laboral é fonte de experiência psicossocial, sobretudo dada a sua cen-


tralidade na vida das pessoas: é indubitável que o trabalho ocupa parte importan-
te do espaço e do tempo em que se desenvolve a vida humana contemporânea.
Assim, ele não é apenas meio de satisfação das necessidades básicas, é também
fonte de identificação e de auto-estima, de desenvolvimento de potencialidades
humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade.
Trabalho e profissão (ainda) são senhas de identidade.

Com base na concepção marxista de trabalho, Dal Rosso (2011) argumenta


que a sociedade moderna é a sociedade do trabalho, já que o conceito de tempo
de trabalho comporta as seguintes dimensões:

1. Duração: representa as medidas convencionais de tempo em que o trabalho


possui a propriedade de duração, sendo identificado pelas seguintes pergun-
tas: “Quanto tempo?”, “Quantos dias” e “Quantas horas?”. O tempo da jor-
nada, assim, refere-se ao trabalho que se faz em um dia, podendo também
ser empregado em relação à semana, ao mês, ano ou trabalho durante a vida.
2. Distribuição: refere-se a momentos nos quais o trabalho é executado num
intervalo considerado. Segundo Dal Rosso (2011), as interrogações “Quan-
60 do?” e “Em que horário?” mostram a diferença conceitual entre distribuição
e duração do tempo de trabalho. Estabilidade ou flexibilidade de horários,
trabalho de turnos, compensação de horas, contratos com duração anual e
distribuição flexível, idade para início e fim da vida ativa são os aspectos
mais representativos para definir a distribuição.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

3. Intensidade: representa o esforço físico, intelectual ou emocional emprega-


do na execução de uma tarefa no decorrer de uma unidade de tempo. As
perguntas que identificam essa dimensão são representadas por: “Quanto
esforço exige?”, “Como?” e “Qual é a carga de trabalho?”.

Por oposição, tempo de trabalho diferencia-se de tempo de não trabalho.


Contudo, Dal Rosso (2011) argumenta que essa separação está cada vez mais
tênue, a exemplo de descanso, lazer e atividades criativas, pontuando que nem
todas as atividades de não trabalho carregam o significado positivo, caso do
desemprego, carregado de negatividade, por exemplo.
Outra questão socialmente relevante diz respeito à quantidade de tempo tra-
balhada por uma pessoa e à forma do uso do tempo, a partir do momento em
que o trabalho passa a ser controlado por terceiros. Para Dal Rosso (2011), isso
ocorre quando as relações de trabalho passam de autônomas para heterônomas,
podendo daí emergirem acordos, pressões, imposições, conflitos e resistências.
No sistema capitalista de produção, o tempo de trabalho ganha maior dimen-
são social e conceitual. Para viabilizar a acumulação, o sistema de capital procura
estender o tempo de trabalho para além dos limites praticados nos regimes ante-
riores. Os trabalhadores, por sua vez, resistem e tentam submeter o tempo de
trabalho a seu controle. Dessa forma, essa temática torna-se um ponto nevrálgico
nas relações entre burguesia e proletariado, entre empregadores e empregados
(Dal Rosso, 2011).
No Brasil, a partir de 1932, o movimento operário obteve a fixação legal da
duração da jornada em oito horas diárias, seis dias por semana, acrescidas da pos-
sibilidade de complementar a jornada em duas horas extras por dia. A univer-
salização da jornada de 44 horas semanais foi oficializada pela Constituição de
1988, resultando na semana de cinco dias, mantendo-se a possibilidade de fazer
duas horas extras por dia.
Em que pesem a força e o embate dessa discussão – tempo de trabalho –
tanto por parte dos movimentos sindicais quanto por parte das organizações
capitalistas, observam-se uma descontinuidade de pesquisa e pouco avanço teóri-
co do tema por parte das ciências sociais. Diante desse cenário, Dal Rosso (2011)
expõe a teoria das duas principais escolas que se propõem a explicar as mudan-
ças de jornada de trabalho: a teoria das escolhas e a teoria valor-trabalho.

61
• Teoria da escolha: fundamentada no conceito de utilidade marginal por
William Stanley Jevons (1987), economista britânico do século XIX, que
interpreta a variação do tempo de trabalho como resultado de decisões
racionais tomadas pelos indivíduos, maximizando a utilidade e minimizan-
do os custos das ações. Dessa forma, os indivíduos podem decidir alongar

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

sua jornada de trabalho mediante a perspectiva de aumentar sua renda ao


mesmo tempo que aumentam o número de horas trabalhadas. Esse é o cha-
mado efeito renda, que, segundo Dal Rosso (2011), tem como consequência
o aumento das horas de atividade produtiva do sujeito. Contudo, Dal Rosso
(2011) argumenta que há um momento em que o indivíduo não atribui
nenhuma utilidade adicional decorrente do aumento da carga horária (efeito
substituição) e decide substituir renda por lazer, conduzindo consequente-
mente à redução da jornada.
• Teoria valor-trabalho: inspirada em Marx (1978), estabelece o trabalho social-
mente necessário como lastro do valor das mercadorias, ou seja, a produção
de mercadoria consome a capacidade humana (força de trabalho) durante
determinado tempo, produzindo os seguintes valores: valor de uso, imedia-
tamente visível na utilidade da mercadoria; valor de troca, incorporado no
tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. O valor de troca
confere valor à mercadoria, que é produto do trabalho humano. Seguindo
o argumento de Marx (1978) sobre a subsunção formal e real do trabalho
ao capital, Dal Rosso (2011) afirma que os principais meios de aumento da
produção da mais-valia são o alongamento dos tempos e a intensificação das
ações e transformação da base técnica da empresa. Ou seja, o tempo de tra-
balho emerge como elemento de contradição na relação dos capitalistas com
os assalariados. Dialeticamente, a luta que se estabelece entre esses dois ato-
res é responsável por uma discussão histórica ante a diminuição da jornada,
modernização das estruturas econômicas e intensificação do trabalho. Dal
Rosso (2011) sustenta que o fio condutor da análise refere-se à produção de
mais-valia. Reduzida a possibilidade de os capitalistas expandirem a mais-
-valia absoluta pelo controle das horas de trabalho, eles recorrem à elevação
da composição orgânica do capital, mediante a mais-valia relativa. Como já
propunha Marx (1983, p. 479), “a ideia de que a redução da jornada de tra-
balho apressa a mudança tecnológica e esta possibilita a intensificação do
trabalho é uma brilhante hipótese teórica”.

Segundo Dal Rosso (2011), um dos efeitos da modernização da estrutura


de trabalho é a redução do volume de trabalho socialmente necessário. Assim,
para cada avanço tecnológico, menor é a inserção de mão de obra, gerando con-
sequentemente um problema de desemprego crônico do sistema capitalista.
62
Para que uma jornada de trabalho seja reduzida em seu valor médio (número
de horas exigidas em média de cada trabalhador), Dal Rosso (2011) exemplifica
que é necessária uma transformação social profunda nas relações entre traba-
lhadores e empregadores, de forma que os primeiros adquiram o direito a uma
jornada menor.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

Contudo, Dal Rosso (2011) afirma que, para acontecerem essas mudanças
políticas e sociais, é necessário que essas transformações ocorram também nas
condições materiais e tecnológicas que concentram o processo de trabalho. Para
Dal Rosso (2011, p. 42),

[...] esse exercício teórico demonstra que o entendimento da curva da jornada de


trabalho supõe uma categoria teórica capaz de dar conta das transformações e das
mudanças dos fatores necessários à sua transformação, cuja categoria de práxis
social responde a essa necessidade.

Ainda segundo Dal Rosso (2011), a práxis social é o processo pelo qual a socie-
dade produz, determina e regula padrões de tempo de trabalho. O processo envol-
ve as classes sociais e os grupos que detêm força política na sociedade. A identi-
dade da noção de práxis social carrega o sentido de resultado de enfrentamentos
que não podem ser preditos, mas exercem implicações sobre o curso da história
(Dal Rosso, 2011). Como o tempo de trabalho é parte de uma cadeia de articula-
ções mais amplas de natureza econômica, social e política, Dal Rosso (2011) afir-
ma que o conceito de práxis social abarca esse complexo de relações entre agentes
e classes que, por sua vez, resultam nas práxis sociais de tempo de trabalho.
Com base nos pressupostos marxistas de que é por meio do trabalho que o
homem se torna um ser social, o trabalho deve ser compreendido como momen-
to decisivo na relação do homem com a natureza, pois ele modifica a sua própria
natureza ao atuar sobre a natureza externa quando executa o ato de produção e
reprodução (Navarro & Padilha, 2007).
Todavia, na relação capital-trabalho, as contradições sempre se fizeram pre-
sentes: se, por um lado, a atividade laboral legitima-se como importante fonte
de saúde psíquica, podendo criar condições para a emancipação do sujeito, por
outro, essa mesma atividade dialeticamente aliena, reprime, oprime, controla o
sujeito e causa muitas vezes doenças físicas e mentais, levando o indivíduo ao
afastamento laboral (Navarro & Padilha, 2007). Marx (1989, p. 148) afirma que,
sob o capitalismo, o trabalhador decai à condição de mercadoria e a sua miséria
está na razão inversa da magnitude de sua produção:

O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma merca- 63
doria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo
das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.
O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como
uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

Sobre o controle do tempo de trabalho, Grossin (1991) entende que o enqua-


dramento do tempo de trabalho delimita um tempo restrito e cerceado. O tempo
de trabalho é estruturado de forma que os tempos próprios dos trabalhadores
sejam eliminados e substituídos por tempos impostos. O tempo de trabalho é,
assim, coletivo, ativo, fracionado e mecanizado, caracterizando-se ainda pela
concentração que busca eliminar pausas e dimensionar paradas em função de
tarefas e ritmos (Grossin, 1991).
Contudo, Grossin (1991) salienta que, mesmo que as sociedades industriais
tenham buscado construir a predominância do tempo de produção, é justamen-
te a existência de tempos pessoalmente construídos que protege os indivíduos
da dominação excessiva dos tempos que lhes são exteriores. Uma exterioridade
diante de sujeitos individuais e não concernente às relações sociais.
Para Faria (2012), uma vez definida a dimensão temporal como social e his-
toricamente construída, pode-se considerar, então, que uma jornada de trabalho
representa uma medida social e juridicamente instituída que expressa um tempo
determinado de trabalho ao qual corresponde uma retribuição (salário). Assim,
ao tempo de trabalho se opõe determinado tempo de não trabalho ou tempo
livre. Nessa acepção, Faria (2012) entende que tanto o tempo de trabalho como o
tempo livre são vividos pelos sujeitos trabalhadores como uma experiência sub-
jetiva. Em outras palavras, as dimensões desses tempos podem ser formalizadas
objetivamente, mas não podem ser vividas objetivamente, pois isso significa-
ria atribuir aos sujeitos uma condição de absoluta racionalidade, de uma razão
plenamente instrumental, destituída de toda subjetividade, de toda emoção, de
todos os sentidos e significados.
Contudo, para Faria (2012), isso não significa retirar do tempo sua objeti-
vidade, subtrair seus parâmetros, negar sua escala de quantificação, tampouco
ignorar que as sociedades sempre procuraram definir critérios para o estabele-
cimento de medidas. Significa, sim, considerar que como experiência vivida o
tempo é, para os sujeitos, subjetivo.
O tempo, nesse sentido, pode ser considerado como um exemplo de uma
instituição aliada da produção, na medida em que se torna o padrão regulador da
conduta ao quantificar a duração, o momento de início e de interrupção da ativi-
dade de trabalho. Mas, pelo mesmo motivo, pode ser um aliado do trabalhador,
na medida em que define a dimensão de seu valor de uso e de troca e, portanto,
64
também do tempo que tem para si (Faria, 2012).

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

4 Tempo de T rabalho F luido : da


Submiss ão a uma D isponib ilidade
Permanente e “L i v re ”

Em O capital, Marx (1989, pp. 300-301) dedicou um expressivo capítulo sobre


a questão da jornada de trabalho, no qual afirma que, na busca pela extração da
mais-valia, o capitalista acabou por impossibilitar que o trabalhador pudesse se
realizar no seu tempo de descanso:

Fica claro que o trabalhador durante toda a sua existência nada mais é que força
de trabalho, que todo seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de
trabalho a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sen-
tido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher
funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e
espirituais, para o descanso dominical [...]. Mas em seu impulso cego, desmedi-
do, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos,
físicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao
crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário
para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às
refeições para incorporá-lo sempre que possível ao próprio processo de produção,
fazendo o trabalhador ingerir os alimentos [...] como se fosse mero meio de pro-
dução [...]. O capital não se preocupa com a duração da vida da força de trabalho.

Nesse mesmo sentido, é possível constatar que, apesar de todas as transfor-


mações ocorridas no mundo do trabalho, como a evolução e rapidez com que os
avanços tecnológicos foram inseridos no processo da organização produtiva, elas
ainda expressam a necessidade constante de reprodução ampliada do capital ao
longo de sua história, resultando, em última instância, na intensificação e explo-
ração da força de trabalho.
Navarro e Padilha (2007, p. 14) apontam uma contradição marcante dessas
transformações:

[...] enquanto parte significativa da classe trabalhadora é penalizada com a falta


de trabalho, outros sofrem com seu excesso. Além da precarização das condi- 65

ções de trabalho, da informalização, do emprego, do recuo da ação sindical,


crescem os problemas de saúde, tanto físicos quanto psíquicos, relacionados
ao trabalho.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

Cabe ressaltar que, no início do capitalismo, essa invasão se caracterizava de


forma opressiva, contudo, na reorganização produtiva decorrente da produção
flexível, a intensificação do trabalho e o prolongamento da jornada são realiza-
dos justamente pela estratégia de flexibilização e de sua gestão. Gaulejac (2007)
faz afirmações emblemáticas sobre as relações de trabalho na sociedade con-
temporânea, apontando as sutilezas implantadas pelas organizações nas formas
de controle, dos corpos à mobilização do desejo. Segundo Gaulejac (2007), em
uma interpretação foucaultiana, na fábrica taylorista a canalização da atividade
física tem como objetivo final tornar os corpos úteis, dóceis e produtivos. Esse
processo se opera, segundo Foucault (1977), pelo controle do tempo, pelo quadri-
culamento do espaço por uma maquinaria de poder que canaliza os corpos para
adaptá-los aos objetivos de luta (exército), de produção (fábrica), de educação
(escola). Para Gaulejac (2007), o poder gerencialista preocupa-se não tanto em
controlar corpos, mas em transformar a energia libidinal em força de trabalho.
Ou seja, a economia da necessidade canalizada opõe-se à economia do desejo
exaltado, passando do controle minucioso dos corpos à mobilização psíquica a
serviço da empresa. A repressão é substituída pela sedução, a imposição pela ade-
são, a obediência pelo reconhecimento e a vigilância física pela comunicacional
(Gaulejac, 2007, p. 110).
Gaulejac (2007) entende que, sob o poder gerencialista, certos aspectos da
vigilância continuam vigentes, mediante o uso de crachás magnéticos, laptops,
computadores e bipes. Embora ela não seja mais direta, incide sobre o resultado
do trabalho e gera, consequentemente, uma “pseudoideia” de liberdade. Trata-se
não tanto de regulamentar o emprego do tempo e de quadricular o espaço, mas
sim de obter uma disponibilidade permanente para que o máximo de tempo seja
consagrado à realização dos objetivos fixados, canalizando esforços a um enga-
jamento total para o sucesso da empresa. Como os horários de trabalho não bas-
tam mais para responder a essas exigências, a fronteira entre tempo de trabalho
e tempo livre torna-se cada vez mais porosa (Gaulejac, 2007).
A fim de exemplificar esse fenômeno, Gaulejac (2007, p. 111) descreve uma
publicidade da Philips de 1996 que retrata perfeitamente seus argumentos:
“Estar acessível não importa onde, não importa em que momento, é a liberdade
de estar ligado!”. Dessa forma, a elasticidade com que o tempo é tratado, somada
às novas tecnologias comunicacionais e de gestão a serviço do capital, permite
uma utilização não multiplicada do tempo, pois todo o tempo socialmente dispo-
66
nível pode ser preenchido por outra atividade.
Ainda segundo Gaulejac (2007), as perdas de tempo ligadas aos trajetos, às
esperas, aos contratempos são ocupadas para resolver problemas momentâneos,
para fazer algumas ligações, para complementar relatórios, atualizar planilhas,
responder a e-mails, entre outros. Se o tempo de trabalho se torna fluido, o espaço

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

deve sê-lo igualmente, haja vista a implantação de escritórios virtuais que têm
como premissa equipar cada empregado com computador portátil, celular, aces-
so a sistemas de gestão, bastando uma “tomada elétrica” para que o sujeito se
conecte com o mundo inteiro. O manager hipermoderno é uma das figuras que
se “privilegiam” com as possibilidades reais e concretas de se manter plugado 24
horas por dia. Segundo Gaulejac (2007), não há mais necessidade de um escritó-
rio fixo, mas sim de um escritório que o manager transporta consigo; não se trata
mais de uma disponibilidade obrigatória durante as horas de trabalho, mas de
uma disponibilidade permanente e livre.
Dessa forma, o tempo da planificação, da exatidão, da programação linear do
emprego do tempo é substituído pela policromia, pela urgência e pelo aleatório
na gestão do tempo. Instrumentos de liberdade, as tecnologias permitem liga-
ções para além da fronteira entre o profissional e o privado, o trabalho e o afetivo,
o familiar e o social (Gaulejac, 2007).

5 C ontradiçõ es D ecorrentes do
Tempo de T rabalho e do T empo
Livre: Consideraç ões A dicionais

Conforme discutido anteriormente, Cardoso (2007) afirma que o tempo de


trabalho, na sociedade contemporânea, vem sofrendo contínua intensificação e
flexibilização, ao mesmo tempo que o movimento histórico de redução da jorna-
da de trabalho tem evoluído pouco. Para Cardoso (2007), os tempos de trabalho
e de não trabalho são compreendidos como categorias organizadoras da vida
social, cuja construção se processa socialmente e em cada momento a partir das
interações entre os diversos atores sociais.
Diante dessa perspectiva, é importante analisar as contradições decorren-
tes dessa fluidez – tempo de trabalho versus tempo livre –, ressaltando como os
mecanismos sutis e sedutores de controle e poder, presentes nas organizações
produtivas contemporâneas, atuam nas relações laborais para além do seu tempo
formal, invadindo o tempo de não trabalho dos sujeitos trabalhadores.
Para Bacal (1988), o entendimento que se tem é que o tempo livre é aquele
de que o sujeito trabalhador dispõe após o tempo necessário para a execução de
tarefas de trabalho, pressupondo a liberdade de escolha do que fazer ou não fazer, 67
3
compreendendo tanto o lazer como o ócio . Nessa mesma linha, Dumazedier

3
O conceito de Bacal (1988), como se pode perceber, difere daquele proposto por Marx (2011) sobre o tempo
de trabalho necessário.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

(1999) concebe o lazer como um tempo dedicado ao conjunto de ocupações às


quais os indivíduos podem se entregar de livre vontade para repouso, diversão,
recreação, entretenimento, desenvolvimento de formação desinteressada, parti-
cipação voluntária em atividades sociais e exercício de livre capacidade criadora,
após livrarem-se das obrigações profissionais, familiares ou sociais. Não obstan-
te as diferenças de concepção entre tempo de não trabalho, tempo livre, ócio e
lazer, o problema do tempo que excede aquele dedicado ao trabalho é cada vez
mais complexo e menos definido.
Cardoso (2007) sugere que, nas sociedades contemporâneas, a estandardi-
zação, a sincronização ou ainda a separação clara entre tempo livre e tempo de
trabalho estão desaparecendo. A aparente uniformidade do tempo individual
de trabalho sutilmente cede lugar para uma grande diversificação de tempos de
trabalho (Cardoso, 2007). Já Zarafian (1996) considera que o movimento his-
tórico de separação entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho esta-
ria sendo substituído por um movimento contrário, de reaproximação entre os
dois tempos, ou seja, a distinção entre esses dois tempos está dando lugar a um
tempo contínuo que não diferencia o tempo de trabalho do de não trabalho. Zara-
fian (1996) entende que o tempo de trabalho, desenvolvido no local de trabalho,
passa a ser caracterizado pela ausência de limites, de contabilidades, a partir de
um controle muito mais interiorizado, indireto e impessoal.
Diante dessas transformações e partindo de uma análise das vivências tem-
porais cotidianas, é possível afirmar que o trabalho não se resume, nem nunca se
resumiu, ao local de trabalho. Cardoso (2007, pp. 37-39) exemplifica essas trans-
formações destacando: 1. a forte pressão temporal; 2. o trabalho doméstico des-
tituído de reconhecimento e naturalmente atribuído às mulheres; 3. o tempo de
trabalho remunerado que extrapola o local de trabalho; 4. as horas de sobreaviso;
5. o tempo dedicado às tarefas levadas para casa, que, na maior parte das vezes,
ocorrem de maneira informal e não são contabilizadas, sendo sua utilização cada
vez mais facilitada em função da criação de diversos instrumentos como e-mail,
celular, computador portátil, internet, entre outros que servem para acionar os
trabalhadores a qualquer momento e em qualquer lugar.
Cardoso (2007) se refere igualmente àqueles tempos nos quais os traba-
lhadores passam a buscar soluções para o processo de trabalho, principalmen-
te a partir da ênfase dada à sua participação (caixas de sugestão, CCQ, grupos
semiautônomos), levando-os a permanecer conectados no trabalho mesmo
68
estando distante da empresa.
Na concepção de Gaulejac (2007), as representações do tempo são prisionei-
ras de uma obsessão da medida de um tempo abstrato, de uma concepção entre
um início e um fim. Dito de outro modo, elas se encontram, definitivamente,
descoladas do tempo da vida humana, obrigando os homens a sofrer um tempo

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

abstrato, programado, ao contrário de suas necessidades. A temporalidade do


trabalho leva a impor ritmos, cadências, rupturas que se afastam do tempo bio-
lógico, do tempo das estações, do tempo da vida humana. A medida abstrata do
tempo permite desligá-lo das necessidades fisiológicas ou psicológicas: o sono, o
alimento, a procriação, o envelhecimento etc.
Ainda segundo Gaulejac (2007), o indivíduo submetido à gestão deve adap-
tar-se ao tempo de trabalho, às necessidades produtivas e financeiras. A adaptabi-
lidade e flexibilidade são exigidas em mão única: cabe ao homem adaptar-se ao
tempo da empresa, e não o inverso. O manager não suporta as férias. É preciso
que o tempo seja útil, produtivo e, portanto, ocupado. A desocupação lhe é insu-
portável. A abordagem da qualidade ilustra de modo caricatural essas represen-
tações que concebem a vida humana em uma perspectiva instrumental e produ-
tivista (Gaulejac, 2007, p. 79).
De acordo com o que foi exposto neste ensaio, o controle sobre o tempo da
jornada, como mecanismo de medida da produção devido ao processo de traba-
lho vivo, é mais intensamente exercido (gerido) pelas unidades produtivas do
sistema de capital por meio de dispositivos simples, como relógio-ponto e livro-
-ponto, ou mecanismos eletroeletrônicos, como crachás ou cartões magnéticos,
registradores eletrônicos, óticos ou digitais. Contudo, é necessário acrescentar
que a esses dispositivos são agregadas, atualmente, ferramentas computacionais
e de comunicação via satélite (internet), como telefones celulares e Tablet PC,
que permitem o controle do tempo de trabalho a distância.
Como exposto, a discussão sobre os conceitos de tempo de trabalho necessá-
rio, tempo de trabalho, tempo disponível, tempo morto e tempo vivo de trabalho,
tempo de não trabalho, tempo ocioso e tempo livre procede de várias e diferentes
interpretações. Essas distintas abordagens exigem uma definição.
Este ensaio permite sugerir que o tempo de trabalho necessário corresponde
àquele em que o trabalhador produz o equivalente ao seu próprio valor. Tempo
excedente é aquele que extrapola o tempo necessário de trabalho. Dessa forma,
o tempo de trabalho necessário não constitui, no sistema de capital, o tempo de
trabalho ou tempo disponível de trabalho, pois este engloba igualmente o tempo
necessário e o tempo excedente de trabalho.
O tempo disponível também tem sido chamado de jornada de trabalho, mas
é necessário precisar essa concepção. A jornada de trabalho deve ser compreen-
dida como tempo formal de trabalho ou jornada formal, que é aquele regulado 69
nos institutos normativos. O tempo disponível, contudo, sendo o tempo em que
o trabalhador está à disposição da unidade produtiva, comporta tanto a jorna-
da formal como os tempos extraordinários, regulados ou não juridicamente. O
tempo disponível é todo aquele que o trabalhador dedica ao trabalho.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

No sentido exposto, tempo de trabalho pode ser entendido como a forma


simplificada de expressão ou referência ao tempo dedicado ao trabalho ou tempo
disponível. Ao tempo de trabalho (dedicado ao trabalho ou disponível), portanto,
correspondem tanto o tempo da jornada formal de trabalho como o tempo que
a excede. O tempo de trabalho comporta tanto o tempo de trabalho vivo como
o de trabalho morto. Tempo de trabalho vivo é aquele em que o trabalhador
está efetivamente executando suas tarefas, com exceção dos tempos de paradas e
interrupções de trabalho. Tempo de trabalho morto é exatamente aquele em que
o trabalhador, estando à disposição para o trabalho na unidade produtiva, não o
executa devido a interrupções no processo de produção.
Embora o senso comum não faça distinção entre tempo morto e tempo ocio-
so, eles não são equivalentes. Tempo morto, convém insistir, é aquele em que
se processam, durante o tempo disponível de trabalho, tanto interrupções téc-
nicas do trabalho vivo (para manutenção de máquinas, reposição de peças etc.)
como interrupções físicas ou legais (intervalos para refeições ou descanso etc.).
Assim, o tempo morto de trabalho está contido no tempo disponível de trabalho
ou tempo dedicado ao trabalho. Não sem razão, as unidades produtivas investem
sistematicamente na redução do tempo morto para transformá-lo em tempo de
trabalho vivo.
A concepção de que o tempo não trabalhado enquanto o trabalhador se
encontra à disposição do trabalho é o mesmo que um tempo produtivo ocio-
so difere da concepção de tempo morto de trabalho. Esse tempo chamado de
ociosidade produtiva, ou simplesmente de tempo ocioso de trabalho, deve ser
entendido como o que se refere ao tempo de trabalho interrompido por motivos
externos à atividade em si mesma (falta de energia, falta de matéria-prima, medi-
das de segurança etc.). O tempo produtivo ocioso não faz parte diretamente do
processo de trabalho e das suas necessárias interrupções técnicas e/ou físicas e
legais. Também é fundamental esclarecer que tempo ocioso de trabalho não é,
igualmente, o mesmo que tempo socialmente ocioso, pois este corresponde à
não atividade de trabalho (aposentados que não mais se encontram no “mer-
cado de trabalho” e crianças e jovens que ainda não ingressaram no “mercado
de trabalho”).
De fato, ao tratar da concepção de tempo livre e de tempo de não trabalho, é
também necessário pontuar alguns aspectos. Inicialmente, é preciso indicar que
o tempo de não trabalho refere-se tanto ao tempo livre do trabalhador empre-
70
gado quanto ao tempo de “inatividade imposta” ao trabalhador desempregado,
incluindo aqui aquele trabalhador em busca do primeiro emprego. Trata-se, no
caso do trabalhador desempregado, de tempo de não trabalho determinado pelas
relações de produção, e não de tempo socialmente ocioso. Em seguida, é neces-
sário esclarecer a sobreposição entre os conceitos de tempo produtivo ocioso e

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

tempo livre. A concepção de tempo livre refere-se ao tempo de não trabalho, e não
ao tempo produtivo ocioso, porque o tempo livre do trabalhador empregado é o
tempo que o trabalhador tem ou dedica para si mesmo, tanto para seu lazer e seu
repouso (chamado também de tempo socialmente supérfluo) como para sua pró-
pria formação (educação), para atividades lúdicas, artísticas ou culturais e para o
convívio familiar e social (tempo socialmente disponível).

Time Devoted to Work and Free Time:


Socio-Historical Processes of Construction
of Working Time

A bstract
This essays aims to discuss how working time exceeds the formal working time
from the following three categories of analysis: 1. working time socially necessary
or simply working times required, 2. time devoted to work or time available and
3. free time (which comprises the so-called “time socially expendable”, when refer-
ring to the idle time and “time socially available”, which is mediated by the speed
resulting from the emerging transformations in the contemporary world). The
concept of time spent in this essay is part of a theoretical design that tries to cap-
ture this category as social and historical construction and not as an abstract arbi-
trary category. This will be dealt with the conceptions of the temporal structure
of working time and free time, trying to understand how the border of working
time invaded subtly the spare time of the subject employee, making these fluid
times, tense, urgent and flexible. This time trapped not by a thorough control of
the activity, to adapt the body to work, but for devices that mobilize the subject
from goals and projects, channeling all of their potential for capital purposes.
The arguments developed in this essay let suggest that working time must cor-
respond to that time in which the worker produces the equivalent to your own
value. Over time is the one that goes beyond the time required. In this way, the
working time required does not constitute, in the capital system, working time or
time available, because this also includes the time needed to produce the worker
own value and the work over time.
71

Keywords
Time dedicated to work. Necessary labor time. Time available. Free time. Formal
workday.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

Tiempo Dedicado al Trabajo y Tiempo Libre:


Procesos Socio-Históricos de Construcción
del Tiempo de Trabajo

Resumen
Este ensayo tiene como objetivo discutir cómo el tiempo de trabajo excede el
tiempo de trabajo formal de las siguientes tres categorías de análisis: 1. el tiempo
de trabajo socialmente necesario o simplemente las horas de trabajo requeridas,
2. el tiempo dedicado al trabajo o tiempo disponible y 3. tiempo libre (que com-
prende el denominado “tiempo socialmente prescindible”, al referirse al tiempo
de inactividad, y “tiempo socialmente disponible” que es mediada por la veloci-
dad resultante de las transformaciones emergentes en el mundo contemporá-
neo). El concepto de tiempo referido en este ensayo parte de una concepción que
permite capturar esta categoría como construcción social e histórica y no como
una categoría abstracta arbitraria. En este ensayo se tratarán de los conceptos de
construcción temporal, tiempo de trabajo y tiempo libre, tratando de compren-
der cómo la frontera del tiempo de trabajo sutilmente invadió el tiempo libre del
trabajador, haciendo estos tiempos líquidos, tensos, urgentes y flexibles. Este
tiempo es aprisionado no por un control exhaustivo de la actividad, para adaptar
el cuerpo al trabajo, pero por dispositivos que movilizan el trabajador a partir de
los objetivos y proyectos, canalizando todo su potencial para fines del capital. Los
argumentos desarrollados en este ensayo sugieren que el tiempo de trabajo debe
corresponder al tiempo en que el trabajador produce el equivalente a su propio
valor. El tiempo excedente es el que va más allá de los plazos requeridos. De esta
manera, el tiempo de trabajo necesario no constituye, en lo sistema de capital, el
tiempo de trabajo o el tiempo disponible, porque esto también incluye el tiempo
necesario y el tiempo excedente de trabajo.

Palabras clave
Tiempo dedicado al trabajo. Tiempo de trabajo necesario. Tiempo disponible.
Tiempo libre. Jornada de trabajo formal.

72
Referências
Adorno, T. W., & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: J. Zahar.
Antunes, R. (1999). Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São
Paulo: Boitempo Editorial.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• tempo dedicado ao trabalho e tempo livre •

Antunes, R. (2005). O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo:
Boitempo Editorial.
Attali, J. (1982). Histoires du temps. Paris: Librairie Arthème Fayard.
Bacal, S. (1988). Lazer: teoria e pesquisa. São Paulo: Loyola.
Bernardo, J. (1996). Reestruturação capitalista e os desafios para os sindicatos [Mimeo]. Lisboa.
Bessin, M. (1998). Le Kaïros dans l’analyse temporelle. Temps et Contretemps: Approches Sociolo-
giques, 32, 57-71.
Braverman, H. (1977). Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX (3a ed.).
Rio de Janeiro: J. Zahar.
Cardoso, A. C. M. (2007). Tempos de trabalho, tempos de não trabalho: vivências cotidianas de traba-
lhadores. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
Cattani, D. A., & Holzmann, L. (Orgs.). (2011). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Zouk.
Dal Rosso, S. (2011). Tempo de trabalho. In D. A. Cattani & L. Holzmann (Orgs.). Dicionário de
trabalho e tecnologia (pp. 418-422). Porto Alegre: Zouk.
Demazière, D. (1995). La sociologie du chômage. Paris: La Decouverte.
Dumazedier, J. (1999). Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva; Sesc.
Elias, N. (1989). Sobre o tempo. Rio de Janeiro: J. Zahar.
Faria, J. H. (2004). Economia política do poder (Vol. 3). Curitiba: Juruá.
Faria, J. H. (2012). Poder, trabalho e gestão: elementos básicos para uma análise crítica das organizações
(Relatório de pesquisa). Curitiba: Eppeo.
Foucault, M. (1977). Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra.
Foucault, M. (2004). Vigiar e punir (29a ed.). Petrópolis: Vozes.
Gaulejac, V. de. (2007). Gestão como doença social. Aparecida: Idéias & Letras.
Greco Martins, J. F. (2001). Experiências dos trabalhadores nos processos participativos: (re)significa-
ção da subjetividade e do trabalho. 2001. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil.
Grossin, W. (1991). Pour une science des temps: introduction à l’écologie temporelle. Nancy: Octares.
Harvey, D. (1993). Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola.
Jevons, W. S. (1987). A teoria da economia política. São Paulo: Abril Cultural.
Lefèbvre, H. (1999). A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG.
Linhart, D. M. A. (2005). Le travail nous est compté: la construction des norms temporelles du travail.
Paris: La Découverte.
Maruani, M. (2000). Travail et emploi des femmes. Paris: La Decouverte.
Marx, K. (1978). O capital (Livro I, Cap. 6). São Paulo: Editora Ciências Humanas.
Marx, K. (1983). O capital (Vol. 1). São Paulo: Abril Cultural.
Marx, K. (1989). O capital (Vol. 6, Livro 3). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Marx, K. (2008). A miséria da filosofia. São Paulo: Martin Claret.
Marx, K. (2010). Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial.
73
Marx, K. (2011). Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
Mészáros, I. (2002). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo Editorial.
Navarro, V. L., & Padilha, V. (2007). Dilemas do trabalho no capitalismo contemporâneo. Psicologia
& Sociedade, 19(Ed. Esp.), 14-20.
Padilha, V. (2000). Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito. Campinas: Alínea.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •

Sennett, R. (2000). A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo (4a ed.).
Rio de Janeiro: Record.
Sue, R. (1995). Temps et ordre social: sociologie des temps sociaux. Paris: PUF.
Tabboni, S. (2006). Les temps sociaux. Paris: Armand Colin.
Thompson, E. P. (2005). Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial: costumes em comum –
estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras.
Zarifian, P. (1996). La notion de temps libre et les rapports sociaux de sexe dans le débat sur la
réduction du temps de travail. In H. Hirata & D. Senotier (Orgs.). Femmes et partage du temps du
travail. Paris: Syros.

74

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4), 47-74 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
POR UMA TEORIA CRÍTICA DA SUSTENTABILIDADE

In A Critical Theory Of Sustainability

José Henrique de Faria1

Resumo

Este artigo tem por objetivo propor uma teoria crítica da sustentabilidade. Para tanto,

procurar-se-á resgatar as concepções mais usuais e universais sobre o tema, aqui

denominadas de Teoria Tradicional da Sustentabilidade, de forma a localizar sua evolução

teórica e conceitual, inclusive em seu viés crítico. A estratégia a ser utilizada será a de

apresentar a teoria tradicional para, posteriormente, retomá-la através de destaques, de

maneira que dê à mesma um significado que seja capaz de mostrar como estas escondem uma

proposta que atende às necessidades do sociometabolismo do capital (Mészáros, 2002). Isto

será feito a partir da definição dos elementos constitutivos de uma teoria crítica da

sustentabilidade. A argumentação que sustenta a teoria crítica sobre a teoria tradicional da

sustentabilidade tem por base a concepção de que a sustentabilidade deve ser compreendida

não apenas como um processo coletivo da produção das condições materiais objetivas e

subjetivas de existência social, mas igualmente como um processo que valoriza do mesmo

modo seus produtores.

Palavras-chave: teoria crítica, sustentabilidade, teoria crítica da sustentabilidade.

_______________________
1
Possui doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo - FEA/USP, Brasil, e Pós-Doutorado em Labor Relations pelo
Institute of Labor and Industrial Relations - ILIR – University of Michigan, EUA. Mestrado em Administração pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - PPGA/UFRGS, Brasil e a graduação em Ciências Econômicas pela Faculdade de Administração e Economia FAE-
PR, Brasil. Professor Titular da UFPR, no Programa de Pós-Graduação em Administração - PPGADM, Brasil, nível Mestrado e
Doutorado. Pesquisador e Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais - UFPR/CNPq, Brasil. E-
mail: jhfaria@gmail.com

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
Abstract

This paper proposes a critical theory of sustainability. To do so, we will retrieve the more

usual and universal conceptions of the subject, hereby called the Traditional Theory of

Sustainability, in order to find their theoretical and conceptual developments, including their

critical bias. We will present such traditional theory and then review it through high lights as

to give it a meaning that is able to show how it hides a proposal that meets the needs of the

socialmetabolism of capital (Mészáros, 2002). This will be done from the definition of the

components of a critical theory of sustainability. The arguments in support of the critical

theory on the traditional theory of sustainability is based on the idea that sustainability should

be understood not only as a collective process of production of objective and subjective

material conditions of social existence, but also as a process that likewise values its

producers.

Keywords: critical theory; sustainability; critical theory of sustainability.

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

3
A Teoria Tradicional da Sustentabilidade

O conceito de sustentabilidade tem origem em 1987, quando a então presidente da

Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, G. Harlem Brundtland

apresentou para a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) o documento

"Nosso Futuro Comum", que ficou conhecido como Relatório Brundtland (ONU, 2007).

Nesse Relatório, o desenvolvimento sustentável foi conceituado como sendo aquele que

atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras

atenderem as suas próprias necessidades. Imediatamente, este conceito deu origem ao de

Sustainability, que é uma ação em que a elaboração de um produto ou desenvolvimento de

um processo não compromete a existência de suas fontes, garantindo a reprodução de seus

meios.

Como consequência, logo se propôs o conceito de desenvolvimento sustentável enquanto

um processo de gerar riqueza e bem-estar, ao mesmo tempo em que promoveria a coesão

social e impediria a destruição do meio ambiente (Santana, 2008). A sustentabilidade passou

a ser então adjetivada e conceituada de acordo com paradigmas, modelos e critérios.

Esse paradigma tripolar refere-se diretamente à integração entre a economia, o ambiente

e a sociedade, conduzida e praticada em conjunto por três grupos: empresários, governo e

sociedade civil organizada (Almeida, 2002). Enquanto “modelo colaborador-comunidade”, o

paradigma indicaria que a preocupação central das empresas deveria ir além da produção e

geração de dividendos. Neste sentido, seria de se considerar que deve haver, por parte das

empresas, maior envolvimento com questões que proporcionam o bem-estar dos seus

empregados, associadas à preocupação com a comunidade da qual fazem parte estes mesmos

empregados. Mas entre o modelo e sua prática, há uma distância equivalente à que separa a

intenção do gesto.
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

4
Enquanto critério da responsabilidade social, o paradigma remete à busca do

desenvolvimento sustentável em que três critérios fundamentais devem ser obedecidos ao

mesmo tempo: equidade social, prudência ecológica e eficiência econômica (Kraemer, 2005).

Na mesma linha, foram listados os elementos motivadores da sustentabilidade (Hart &

Milstein, 2003).

i. O primeiro relacionar-se-ia com a crescente industrialização e suas

consequências, como o consumo da matéria-prima, poluição e geração de resíduos, sem

perder de vista que o cuidado com essas questões seria crucial para o desenvolvimento

sustentável;

ii. O segundo estaria relacionado à proliferação e à interligação dos stakeholders

(grupos de interesse) 1 que fazem com que as empresas funcionem de maneira responsável e

transparente, objetivando a formação de uma base de stakeholders bem informada e ativa;

iii. O terceiro diria respeito às tecnologias emergentes, na medida em que elas

ofereceriam soluções inovadoras e poderiam tornar obsoletas as bases das indústrias que

usassem energia e matéria-prima de forma intensiva;

iv. O quarto, de cunho social, diria respeito ao aumento da população, da pobreza

e da desigualdade social, que estaria acarretando como consequência a decadência social.

A atenção por parte dos empresários a esse conjunto de motivadores deveria ser vista

como oportunidades para que as empresas tivessem seu valor de mercado aumentado. As

empresas, ao assumirem o desenvolvimento sustentável, contribuiriam para a melhoria das

suas relações com seu ambiente interno e externo e obteriam vantagens nessa ação (Hart &

Milstein, 2003).

Neste sentido, a sustentabilidade estaria baseada em quatro princípios:

1 A parte interessada na atividade da empresa, como acionistas, funcionários, comunidades, ONGs,


consumidores, fornecedores, concorrentes e Governo.
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

5
i. Princípio precatório: determinaria que onde houvesse possibilidade de

prejuízos sérios à saúde dos seres vivos, a ausência de certeza científica não

deveria adiar medidas preventivas;

ii. Princípio preventivo: os riscos e danos ambientais deveriam ser evitados o

máximo possível e ser avaliados previamente, com objetivo de escolher a

solução adotada;

iii. Princípio compensatório: compensações para vítimas da poluição e outros

danos ambientais deveriam estar previstas na legislação;

iv. Princípio do poluidor pagador: os custos da reparação ambiental e das medidas

compensatórias deveriam ser assumidos pelas partes responsáveis (ONU,

2007).

As Cinco Abordagens Tradicionais Sobre Sustentabilidade

O conceito tradicional de sustentabilidade apresenta diferentes abordagens. As duas

primeiras (tradicional clássica e tradicional moderna) decorrem da concepção econômico-

liberal de mercado:

i. Concepção Tradicional Clássica: parte do pressuposto de que pressão de

concorrência, crescimento econômico e prosperidade levam automaticamente

ao uso racional dos recursos naturais, ao progresso tecnológico e a novas

necessidades de consumo compatíveis com as exigências do meio ambiente. O

mercado é o melhor mecanismo para garantir a satisfação dos desejos

individuais, inclusive dos desejos ambientais (Dryzek, 1992). À medida que os

consumidores manifestem sua consciência ecológica nas decisões de compra,

o mercado responde a esta demanda com a oferta crescente de produtos e

serviços ecológicos (Mason, 1999).

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

6
ii. Concepção Tradicional Moderna: defende a internalização dos custos

ambientais (os quais costumam ser avaliados e calculados de forma monetária)

(Munasinghe, 2002) através da introdução de sistemas de estímulo de

mercado, geralmente com o auxílio de impostos e taxas ambientais ou do

comércio de títulos de poluição. O caráter desta concepção restringe-se à

reivindicação de um crescimento qualitativamente diferente, ou seja, um

crescimento que leve em conta impactos ambientais e sociais. A necessidade

de pagar pelo "direito" de poluir, tende a promover mais ainda o produtivismo

e a competição pelos recursos escassos, deixando as empresas e nações mais

ricas em uma posição bastante favorável na competição sempre mais

globalizada. Além disso, não dá para ignorar que tanto a proposta de títulos de

poluição, e talvez mais ainda as propostas da internalização dos custos

ambientais via tributação ou taxas ambientais, na sua essência já contradizem

o ideário fundamental do liberalismo, visto que tais propostas representam por

si só uma interferência nas escolhas privadas.

iii. Concepção Tradicional Ecológico-tecnocrata: defende a concepção da

sustentabilidade planejada. Esta abordagem parte da ideia de que a superação

dos problemas ambientais é perseguida por meios gerenciais, em uma

perspectiva tecnocrática, geralmente baseada no centralismo do processo

decisório, confiando na capacidade técnica do planejador. A intervenção do

Governo via planejamento, é considerada indispensável para reduzir ou evitar

os efeitos nocivos dos processos de crescimento econômico, ou ainda, para

poder eliminar ou reparar distúrbios e danos já existentes.

iv. Concepção Tradicional Biocêntrica e do Ambientalismo Radical: assume uma

posição holística e apresenta uma pretensão universalista-integrativa. Sua


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

7
proposta é de que todas as políticas e atividades sociais sejam subordinadas às

exigências da sustentabilidade da natureza. Esta postura biocêntrica se

encontra também na concepção filosófica da ecologia profunda, em que as

ações se voltam às transformações culturais ocorridas com o fortalecimento do

movimento ambientalista e dos movimentos sociais em geral. Do mesmo

modo, a abordagem do ambientalismo radical rejeita o consumismo

prevalecente nas sociedades modernas visando permitir a inclusão dos

objetivos da satisfação das necessidades econômicas básicas da população e da

justiça social, especialmente no que diz respeito aos países em

desenvolvimento (Naess, 1995).

v. Concepção Tradicional da Política de Participação Popular: a participação é

parte fundamental da política ambiental, indispensável para uma mudança

substancial no atual quadro de políticas públicas. O planejamento deve ser

compreendido não apenas como orientado pelas necessidades da população,

mas também como conduzido por ela. O modelo de imposição de vontade

pública conduzida pela base (que é também defendido pelo movimento

ecológico como ordem política preferencial) aposta antes no confronto do que

na cooperação (princípio norteador do ecodesenvolvimento). Em oposição às

abordagens ecocêntricas, cujo foco de atenção é a natureza e sua proteção, a

abordagem política de participação democrática ou popular parte do

pressuposto de que o homem e a sociedade devem estar no centro de atenção e

de reflexão, daí porque se considera que esta é uma "abordagem sociológica

do desenvolvimento sustentável" (Cernea, 1994).

Existem três orientações distintas nesta última concepção tradicional (Habermas, 1995):

(i) a vertente que enfatiza a luta popular, mais especificamente dos excluídos, contra o poder
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

8
das elites tradicionais; (ii) a vertente que se concentra na ideia da força da sociedade civil e

na necessidade da criação de uma esfera pública, que deveria se tornar tanto a força motriz do

sistema político como a força transformadora em um projeto de desenvolvimento sustentável.

Milton Friedman (1992) chama esta alternativa de collective self-empowerment; (iii) a

vertente que se poderia chamar de institucional (a que se encontra no sistema), a qual sugere

que a luta democrática encontra-se no sistema representativo organizado.

A Teoria Tradicional em sua Versão Crítica

A teoria tradicional também tem seu viés crítico. A concepção mais representativa deste

viés crítico da teoria tradicional pode ser encontrada, por exemplo, nas formulações da

Agenda 21.

De fato, segundo a concepção da United Nations (1992), o Desenvolvimento Sustentável

deveria ser um modelo econômico, político, social, cultural e ambiental equilibrado, que

satisfizesse as necessidades das gerações atuais, sem comprometer a capacidade das gerações

futuras de satisfazer suas próprias necessidades. Esta concepção se oporia ao “estilo de

desenvolvimento adotado”, que, na avaliação da Agenda 21, é ecologicamente predatório na

utilização dos recursos naturais, socialmente perverso com geração de pobreza e extrema

desigualdade social, politicamente injusto com concentração e abuso de poder, culturalmente

alienado em relação aos seus próprios valores e eticamente censurável no respeito aos direitos

humanos e aos das demais espécies.

Desta forma, o conceito de sustentabilidade comportaria sete aspectos principais: (i)

Sustentabilidade Social: melhoria da qualidade de vida da população, equidade na

distribuição de renda e de diminuição das diferenças sociais, com participação e organização

popular; (ii) Sustentabilidade Econômica: organizações públicas e privadas, regularização do

fluxo desses investimentos, compatibilidade entre padrões de produção e consumo, equilíbrio


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

9
de balanço de pagamento, acesso à ciência e tecnologia; (iii) Sustentabilidade Ecológica: o

uso dos recursos naturais deve minimizar danos aos sistemas de sustentação da vida: redução

dos resíduos tóxicos e da poluição, reciclagem de materiais e energia, conservação,

tecnologias limpas e de maior eficiência e regras para uma adequada proteção ambiental; (iv)

Sustentabilidade Cultural: respeito aos diferentes valores entre os povos e incentivo a

processos de mudança que acolham as especificidades locais; (v) Sustentabilidade Espacial:

equilíbrio entre o rural e o urbano, equilíbrio de migrações, desconcentração das metrópoles,

adoção de práticas agrícolas mais inteligentes e não agressivas à saúde e ao ambiente, manejo

sustentável das florestas e industrialização descentralizada; (vi) Sustentabilidade Política: no

caso do Brasil, a evolução da democracia representativa para sistemas descentralizados e

participativos, construção de espaços públicos comunitários, maior autonomia dos governos

locais e descentralização da gestão de recursos; (vii) Sustentabilidade Ambiental:

conservação geográfica, equilíbrio de ecossistemas, erradicação da pobreza e da exclusão,

respeito aos direitos humanos e integração social. Abarca todas as dimensões anteriores

através de processos complexos.

Sobre a Teoria Crítica

Para Horkheimer (1990), trata-se de encorajar uma teoria da sociedade em sua totalidade,

que seja precisamente crítica e dialética de forma a fazer emergir as contradições da

sociedade capitalista. Cabe à Teoria Crítica, como sugere Adorno (1994), investir contra as

imagens deformadas da realidade que desenvolvem a função de servir ao poder, não dando

voz à realidade desordenada do capitalismo.

Ao denunciar o eclipse da razão, Horkheimer (1976) afirma que, por detrás da pura lei

econômica, da lei do mercado e do lucro, encontra-se a pura lei do poder de uma minoria,

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

10
baseada na posse dos instrumentos materiais de produção, de forma que a tendência ao lucro

acaba sendo o que sempre foi, ou seja, a tendência ao poder social.

Neste sentido, os estudos atuais sobre a vida nas organizações vêm sugerir que é preciso

investigar mais do que as racionalidades instrumentais, que as estratégias, que as instituições,

que os comportamentos e que as políticas. A análise das organizações necessita desvendar o

mundo do sociometabolismo do capital em seu processo incessante de acumulação para se

sentir autorizada a compreender essas organizações e suas finalidades. É isto que pode

conferir qualidade à Teoria Crítica, criar condições de análise e promover intervenções

políticas em ambientes preenchidos de competitividade de toda a ordem.

As organizações são, de fato, construções sociais e históricas que adquirem autonomia

relativa em relação aos sujeitos que a constituíram e que se consolidam como instâncias de

mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os quais foram

criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos, entidades plenamente

autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas construções sociais dinâmicas e

contraditórias, nas quais convivem estruturas formais e subjetivas, manifestas e ocultas,

concretas e imaginárias.

O problema central de uma Teoria Crítica, portanto, consiste em esclarecer em que

medida tanto as instâncias ocultas, que se operam nas organizações, nas relações objetivas

subjetivas, como as manifestas, inclusive e especialmente as referentes ao regramento e às

estruturas, dão conteúdo às configurações das relações sociais de poder no sistema de capital.

É preciso revelar em que medida as organizações definem seus mecanismos de poder,

incorporando o que não pode ser dito ao que é possível falar, ao que pode ser manifesto às

claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de racionalidades (de regras, objetivos,

políticas, processos produtivos, planos, estratégias etc.) e de subjetividades (símbolos,

sistemas imaginários e mitos), com seus paradoxos e contradições.


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

11
A distinção fundamental a ser feita quando se discorre sobre a Teoria Crítica refere-se

aos seus vários sentidos. A crítica é muitas vezes considerada a partir de uma concepção

destrutiva, como um “denuncismo”, e quando a mesma é pronunciada é porque tem o

propósito de desqualificar, diminuir, prejudicar ou combater. A exigência de uma “crítica

positiva”, em lugar de uma “negativa”, indica, desde logo, que a crítica também deve

pronunciar a solução. Este “equívoco” de aparência inocente que habita o senso comum não

apenas comete o erro de supor que a crítica já contém implicitamente uma solução pronta,

qualquer que seja, como desconsidera que sua formulação, por si só, já se constitui em um

avanço teórico e prático.

No primeiro caso, não obstante a crítica possa apontar soluções, é fundamental entender

que: (a) qualquer proposição formulada intervém sobre o real e o modifica, exigindo nova

avaliação crítica; (b) a solução esperada a partir da crítica, por vários motivos objetivos e

subjetivos, pode não corresponder necessariamente à expectativa do receptor, o que indica,

finalmente, que a solução não terá significado; (c) do crítico não se pode esperar que seja

detentor de soluções, que componha o estrito grupo de iluminados pelo saber utilitário, que

seja um interventor - no mais das vezes autoritários - ou que possua uma sabedoria incomum

e sobre-humana; (d) se a condição de identificar os problemas criticamente normalmente está

mais próxima dos que não estão diretamente envolvidos (objetiva e subjetivamente) com os

mesmos, as soluções geralmente estão mais próximas dos que vivenciam os problemas do

que dos que o estudam.

No segundo caso, a denúncia, no curso da história da humanidade, sempre teve um papel

relevante e muitas vezes decisivo, como se pode comprovar nas ditaduras, nas ações de

tortura física, nos processos de exclusão política, apenas para citar alguns exemplos. A

simples crítica fundamentada já se constitui em um grande avanço em diversas situações,

porque coloca o problema para o qual uma ação coletiva é convocada a se organizar.
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

12
A Teoria Crítica não é completa e definitiva; tampouco a expressão “crítica” é um

adjetivo utilizado para caracterizar pesquisadores inconformados com a sociedade. A Teoria

Crítica pretende denunciar situações e fenômenos sociais a partir da constatação de que uma

sociedade sem exploração é a única alternativa para que se estabeleçam os fundamentos da

justiça, da liberdade e da democracia. Neste sentido, uma sociedade sustentável não é

exatamente apenas aquela que procura preservar, nos limites determinados pelas necessidades

da produção e da reprodução do capital, as condições da natureza e do ambiente. É preciso

igualmente valorizar as condições de vida daqueles que trabalham.

A Teoria Crítica tem como característica principal fundamentar-se em critérios

específicos para análise social. Assim, seu atributo é o de questionar e transformar a realidade

social, amparada em fundamentações teóricas que procuram entender tanto as relações sociais

quanto os sujeitos e sua inserção nestas relações. Cabe à Teoria Crítica desenvolver

formulações que expliquem o real em sua forma e em sua substância, que permitam

compreender para além do que pode ser visto e imediatamente entendido pela sociedade.

Constitui-se, portanto, a partir das análises críticas para apreender os processos de

transformação da sociedade e para estabelecer as relações entre os sujeitos da ação e a própria

ação. Deste modo, esta teoria não se contenta com as análises que se encerram no plano da

macrossociedade, tampouco com as que pretendem explicar o mundo a partir do sujeito ou

das unidades de produção. Exige-se uma epistemologia que possa tratar das partes sem perder

de vista a totalidade.

Por uma Teoria Crítica da Sustentabilidade

A Teoria Crítica da Sustentabilidade deve se fundamentar na busca incessante das

contradições sociais relegadas a um plano secundário pela teoria tradicional, procurando

identificá-las com o objetivo essencial de compreender aquilo que tal teoria esconde ou
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

13
ideologiza. Tal teoria não se posiciona contrariamente a políticas, programas e medidas que

visem verdadeiramente à sustentabilidade, mas visa apontar seus limites, problemas e

contradições.

A Teoria Crítica da Sustentabilidade deve expressar a emancipação dos sujeitos do

trabalho, promovendo a conscientização crescente da necessidade de uma sociedade em que

os interesses coletivos prevaleçam sobre os particulares e em que os indivíduos sejam sujeitos

de sua própria história, escrevendo-a coletivamente. Tratar criticamente o real é questionar se

as ações sociais tradicionais não são meras atitudes remediadoras, é indagar sobre os atos dos

sujeitos que têm como objetivo atender interesses de grupos específicos na estruturação do

poder. Assim, uma teoria crítica é condição importante, ainda que não determinante, para

construir uma sociedade detentora da sua própria história, consciente das suas

responsabilidades e das suas atribuições coletivas.

Os elementos de uma Teoria Crítica da Sustentabilidade podem ser expressos em pelo

menos sete instâncias teóricas e práticas:

i. Contradições: os fatos se transformam. As aparências nem sempre denunciam as

mudanças das essências. Todas as ações e políticas de sustentabilidade necessitam

considerar a dinâmica contraditória da realidade;

ii. Ideologia Dominante: a ideologia torna parcial a consciência dos indivíduos em

relação ao todo social. Nas propostas, projetos, políticas e concepções de

sustentabilidade podem estar ideologias dominantes;

iii. Racionalidades Dominantes: as racionalizações são capazes de convencer que práticas

exploradoras, opressivas e preconceituosas sejam utilizadas quase que livremente.

Concepções de sustentabilidade racionalizam as práticas, tendo como mote a

necessidade de justiça social, distribuição de renda etc., sem questionar o modo de

produção capitalista que promove estas “disfunções”;


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

14
iv. Contexto Social-histórico: cada contexto implica um conjunto de elementos

singulares a sua época. Não é possível entender o desenvolvimento de um

determinado fato social sem entender sua trajetória histórica. O desenvolvimento

sustentável deve considerar: (i) As condições materiais existentes; (ii) Os distintos

graus de consciência política entre os diversos sujeitos, grupos sociais e comunidades;

(iii) Tanto os conhecimentos específicos sobre determinados assuntos envolvendo a

questão da sustentabilidade (econômicos, sociais, culturais, técnico-tecnológicos,

ecológicos, territoriais, biológicos, legais, pedagógicos, da saúde, entre tantos outros),

como a condição de trabalhar esses conhecimentos de forma interdisciplinar; (iv)

Concepções éticas e morais diferenciadas.

v. Emancipação: é a busca incessante da autonomia do indivíduo e da sociedade,

alimentada na capacidade de criar sua própria história, desempenhando papel ativo

sobre os problemas relevantes de interesse coletivo. Uma sociedade emancipada é,

antes de tudo, consciente da sua existência. Desenvolvimento Sustentável não é

aquele que dá melhores resultados para a empresa ou que harmoniza a produção

capitalista com a garantia de um ambiente saudável, mas aquele que emancipa cada

sujeito e todos os sujeitos;

vi. Conscientização Individual e Coletiva: consciência significa estar ciente de si mesmo,

das próprias percepções, sentimentos, emoções. A consciência individual fragmentada

impossibilita o advento da consciência coletiva emancipada. Portanto, a participação

da sociedade não se dá apenas como uma forma de luta ou de pressão organizada

sobre os Governos (tendo em vista uma Política Pública), mas configura-se como

condição interna de ação e elaboração sobre a condução de sua vida e da vida

coletiva;

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

15
vii. Responsabilidade Coletiva: sustentabilidade não é apenas preservar os recursos

ambientais, mas democratizar e coletivizar a responsabilidade por seu uso e

conservação, tanto quanto coletivizar a produção das condições materiais de

existência. Os interesses, em um ambiente sustentável, são os coletivos, definidos e

realizados coletivamente.

Considerados esses elementos, convém voltar à atenção sobre a teoria tradicional e

evidenciar seus significados ideológicos. O primeiro destaque refere-se às concepções de

“elaboração de um produto”, “existência de suas fontes” e “reprodução de seus meios”.

Note-se, aqui, que a teoria tradicional busca preservar a elaboração do produto ou

mercadoria, mas não seu produtor, o trabalhador. A ênfase é no processo e não nos sujeitos

desse processo. As fontes da produção referem-se aos recursos naturais e, novamente, ignora

que a fonte principal que faz a mediação entre a natureza e a mercadoria é seu produtor, o

trabalhador. Para encerrar este destaque, a teoria tradicional explicita a reprodução dos meios

como se os meios fossem apenas matérias-primas ou mercadorias, mas implicitamente inclui

aí a reprodução da força de trabalho para o capital.

O segundo destaque refere-se à “riqueza e bem-estar” e “coesão social”. O não

questionamento do processo de acumulação e de reprodução do capital indica que a

acumulação da riqueza não é questionada, desde que seja factível certo bem-estar, ou seja, a

sustentabilidade pressupõe a acumulação de riqueza permeada pela ética capitalista de bem-

estar nas condições do sistema de capital. Neste sentido, a coesão social só pode ser aquela

que intima a solidariedade e que demanda uma coerência de pensamento nos termos do modo

de produção dominante, que, como se sabe, é movido pela acumulação.

O terceiro destaque refere-se à “equidade social”. A equidade significa, de maneira

simplificada, o respeito à igualdade de direito de cada cidadão independentemente do aparato

legal, pois requer a adoção de uma condição considerada justa, tendo em vista os
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

16
procedimentos e as intencionalidades, ou seja, trata-se de uma exigência dos cidadãos quanto

ao que estes consideram como sendo justo, imparcial e que respeite a igualdade de direitos.

Entretanto, a ideologia, o aparato institucional e as estruturas econômicas, sociais, políticas e

culturais são condicionadas pelo modo de produção dominante, de forma que os critérios de

justiça, imparcialidade e igualdade de direitos seguem os cânones do sistema de capital.

O quarto destaque é auto evidente. A teoria tradicional indica que os programas de

sustentabilidade das empresas devem permitir que elas possam obter “vantagens nesta ação”

e que se deve investir contra a “decadência social”. No primeiro caso, esta tem sido a prática

das empresas que desenvolvem programas de sustentabilidade para efeitos de valorização da

imagem e como estratégia de marketing com relação aos seus produtos. Não é a

sustentabilidade que se persegue, mas as vantagens econômicas que podem ser obtidas

através dos programas. No segundo caso, a decadência social não interessa a um sistema

baseado no mercado e no consumo. Quanto melhor a condição social dos consumidores,

maior é a realização dos valores de troca, ou seja, maior é a condição de venda dos produtos

em preços e quantidades.

O quinto destaque refere-se às “medidas preventivas”, ao fato de que “riscos e danos

ambientais devem ser evitados o máximo possível”, a um sistema de “compensações para

vítimas da poluição e outros danos ambientais”, e aos “custos da reparação ambiental”.

Medidas preventivas se constituem na admissão explícita dos danos e, portanto, em formas de

evitá-los, mas não atuam sobre o processo gerador dos danos, senão em sua correção prévia,

desde que tais ações não inviabilizem as atividades dos geradores de danos. Evitar os danos

“o máximo possível” implica a admissão de que os danos são partes inerentes do sistema de

capital e que não podem ser superados em sua totalidade. O máximo possível não é o máximo

exigido, mas aquele que não coloca em causa o sistema capaz de gerá-lo. Na mesma medida,

compensar as vítimas não significa eliminar o problema, mas um esforço para contrabalançar
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

17
um problema inerente à estrutura do sistema de capital pela oferta de um benefício que

supostamente corrige um efeito ou uma deficiência funcional do modo de produção

dominante. Finalmente, responsabilizar o causador do dano com os custos de reparação é

apenas uma medida particular que ignora que o dano é um problema do próprio sistema, de

forma que o causador particular é apenas aquele que extrapola o dano admitido pelo sistema

de capital em seu processo sociometabólico.

O sexto destaque refere-se à ideologia de que “pressão de concorrência, crescimento

econômico e prosperidade levam automaticamente ao uso racional dos recursos naturais, ao

progresso tecnológico e a novas necessidades de consumo compatíveis com as exigências do

meio ambiente”. Esta ideologia aposta no equilíbrio automático do mercado, o qual possui a

função deificada de prover, através de uma “mão invisível”, as condições necessárias ao bem-

estar e à felicidade geral. Para esta ideologia presente na teoria tradicional, “o mercado é o

melhor mecanismo para garantir a satisfação dos desejos individuais, inclusive dos desejos

ambientais”.

O sétimo destaque refere-se ao viés crítico da teoria tradicional que sustenta a

necessidade de um “modelo econômico, político, social, cultural e ambiental equilibrado”, ou

seja, um modelo romântico do sistema de capital, no qual se supõe que a lógica da

acumulação própria desse sistema daria lugar ao milagre da lógica da justiça social

igualitária. Para esta versão crítica, não é o modo de produção capitalista que deve ser

questionado, mas o “estilo de desenvolvimento adotado”, o qual, se corrigido, poderia

promover “erradicação da pobreza e da exclusão, respeito aos direitos humanos e integração

social”, “desconcentração das metrópoles, adoção de práticas agrícolas mais inteligentes e

não agressivas à saúde e ao ambiente, manejo sustentável das florestas e industrialização

descentralizada”, “respeito aos diferentes valores entre os povos”, “compatibilidade entre

padrões de produção e consumo”, e “equidade na distribuição de renda e de diminuição das


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

18
diferenças sociais”. Erradicar a pobreza não significa uma distribuição equitativa da renda

socialmente produzida. Práticas agrícolas inteligentes não significam necessariamente

práticas sustentáveis. A descentralização industrial não é suficiente para resolver os danos ao

ambiente, à saúde e para preservar os recursos da natureza, especialmente em uma fase em

que as indústrias operam sob uma reorganização produtiva mundial. Respeito aos valores não

tem correspondência direta com garantia de condições humanas de vida em sociedade, mas

apenas que se deve observar e ser tolerante com as diferenças. Compatibilidade entre

produção e consumo não significa um padrão de produção que não esteja movido pelo

processo de acumulação privada.

Esses destaques sobre os aparatos conceituais da teoria tradicional da sustentabilidade

mostram que esta é a ideologia da sustentabilidade segundo o sistema de capital, ou seja, é

um sistema de ideias que, a despeito de tratarem da sustentabilidade, o fazem no interior do

sistema de capital e de sua reprodução.

Em vista destas questões (aparatos conceituais da teoria tradicional) e dos sete elementos

da teoria crítica da sustentabilidade, pode-se conceituar criticamente a sustentabilidade como

sendo a prática coletiva e democrática da produção das condições materiais objetivas e

subjetivas de existência social que, no processo de transformação, preserva as fontes de

recursos da natureza ou as reponha nas mesmas condições, valorizando os sujeitos sociais que

são seus produtores em um sistema de trocas que não contenha processos de acumulação

privada. Esta transformação deve ser guiada não pelo critério da lucratividade e nem

assentada em uma lógica de exploração, mas executada em um ambiente de autogestão social

visando ao atendimento das reais necessidades da condição humana, garantindo que este

processo não agrida o ambiente em que se desenvolve, tampouco as pessoas que nele vivem e

produzem.

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

19
Considerando este conceito, fica evidenciado que uma das questões que mais revelam as

contradições nas práticas empresariais orientadas pela teoria tradicional é a da política de

sustentabilidade para consumo externo e de atitudes não sustentáveis no ambiente interno. O

problema da sustentabilidade passa a ser a pressão externa que coloca em risco os resultados

da empresa e não seu compromisso com seus empregados e com as fontes de recursos. A

prática das empresas mostra que elas exploram seus trabalhadores, apropriando-se de seu

tempo livre (Ramos, 2013), investem contra a saúde e qualidade de vida através da pressão

pelo cumprimento de metas e resultados, gerando processos de estresse e de adoecimento

físico e emocional ou psicológico (Ramos, 2013), provocam demissões em massa em nome

do “equilíbrio financeiro” (lucro), praticam a violência através da dissimulação discursiva

(Faria, 2013), desenvolvem sofisticados sistemas de controle da subjetividade na gestão de

pessoas (Faria, 2004), promovem programas de docilização física e emocional; enfim,

praticam uma política que não respeita o elemento central de qualquer processo de

sustentabilidade, que é o conjunto de seus trabalhadores responsáveis diretos pela produção.

É preciso considerar que essa massa de trabalhadores cada vez mais pode representar

uma pressão constante sobre as empresas e suas práticas de produção e de prestação de

serviços. Se isso é muito eficaz ao criar nas empresas a necessidade de adaptarem seus

procedimentos ou de mudarem sua forma de agir de forma drástica e rápida, sob pena de

verem suas vendas (e seus lucros) caírem vertiginosamente de forma perigosa e arriscada,

seus efeitos são capazes de promover mudanças apenas quantitativas no sistema de capital e

não de mudar sua qualidade.

Esse “novo comportamento” de trabalhadores e consumidores acabou recebendo o nome

de sustentabilidade empresarial. Desta forma, as empresas acabaram definindo um conjunto

de práticas que procura demonstrar o seu respeito e a sua preocupação com as condições do

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

20
ambiente e da sociedade em que estão inseridas ou onde atuam (Abreu, 2008), mas que não

alterou a lógica da produção e do processo de acumulação.

Por uma Conclusão

A máxima do “quanto pior, melhor” não pode ser aplicada à sustentabilidade. Todos os

esforços, todos os programas e políticas de sustentabilidade que realmente promovam o

desenvolvimento social sustentável devem ser perseguidos. Não se trata, portanto, de

desconsiderar os benefícios porque os mesmos não resultam em uma solução adequada, mas

de reconhecer seus limites e como os mesmos se apresentam no interior de um processo

contraditório. Preservar as condições de existência humana sustentável é uma necessidade

social. Mas uma teoria crítica não pode contentar-se com o que é possível fazer nas condições

dadas. É sua obrigação apontar os limites e a dinâmica do processo de sustentabilidade para

revelar suas contradições.

Neste sentido, como se pode perceber ao longo deste artigo, as políticas e práticas de

sustentabilidade baseados na teoria tradicional têm servido mais ao consumo externo e aos

discursos cobertura do que ao respeito por um ambiente organizacional externo e interno

sustentável, no qual as pessoas sejam consideradas como alvo principal da garantia de uma

vida saudável, tanto econômica e politicamente, como do ponto de vista da saúde física e

emocional. A sustentabilidade da teoria tradicional, do ponto de vista empresarial, por

exemplo reduz-se a uma prática que visa preservar a empresa de uma imagem externa

desfavorável que interfira em seus resultados e não é um compromisso com as fontes dos

recursos e pessoas que nela trabalham e as que consomem seus produtos.

Enquanto o discurso externo apresenta a empresa como detentora de uma “política de

sustentabilidade”, geralmente associada aos seus produtos e a seus processos, a “política de

pessoal” continua reproduzindo as velhas práticas da administração das pessoas como


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

21
recursos dispensáveis assim que sua contribuição deixe de interessar à produção do lucro, ou

que suas atitudes sejam consideradas prejudiciais ao sistema de dominação, controle e

acumulação, mesmo que ou exatamente porque tais atitudes sejam coerentes com uma

sustentabilidade crítica.

É urgente discutir a sustentabilidade não apenas como uma preocupação com o ambiente

externo, que é uma questão fundamental, mas especialmente como uma atitude também de

respeito ao ambiente interno pela valorização e respeito às pessoas que atuam nas

organizações e que são responsáveis pelos seus resultados. Uma teoria crítica da

sustentabilidade deve tratar não apenas de uma parte do problema, mas de sua totalidade.

Uma sociedade sustentável é aquela em que a produção das condições de existência deve

valorizar tanto o que e como se produz quanto aqueles que produzem.

Em síntese, a Teoria Tradicional da Sustentabilidade advoga a preservação e a melhoria

das condições atuais e futuras da reprodução do capital em seu processo sociometabólico. Sua

orientação é a de aperfeiçoar o sistema de capital de forma a garantir sua perpetuação. Em

sua versão crítica, a teoria tradicional aponta os graves problemas gerados no interior do

sistema de capital e suas consequências, defendendo critérios econômicos, sociais, culturais,

políticos e jurídicos mais justos no desenvolvimento reprodutivo do processo

sociometabólico do capital. No entanto, sua proposição sugere que as contradições inerentes

ao modo capitalista de produção não passam de disfunções que podem ser “corrigidas”

através de medidas adequadas, ou seja, a questão da sustentabilidade é tratada como algo que

independe do sistema que a produz, podendo ser destacada e tratada sem alterar o próprio

sistema.

A Teoria Crítica da Sustentabilidade aqui esboçada reconhece que a lógica da reprodução

do capital não contempla a sustentabilidade emancipadora das condições de produção da

existência humana em sociedade, tampouco aqueles que de fato a produzem. Em seu


Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

22
processo sociometabólico, o sistema de capital baseia-se no uso de meios e fatores de

produção e de objetos de trabalho com a finalidade de atender suas necessidades históricas de

reprodução da acumulação. A Teoria Crítica da Sustentabilidade, portanto, aponta para o fato

de que medidas, programas e políticas de sustentabilidade, pontuais, locais, nacionais ou

mundiais, sob o comando do sistema de capital, encontram seus limites no interior do próprio

sistema. A crítica à teoria tradicional diz respeito ao fato de que ela é, em sua formulação e

em seus pressupostos, incapaz de orientar ações efetivas que permitam atingir a plenitude

econômica, social, cultural, política, jurídica necessária à construção coletiva de uma

sociedade emancipada e sustentável. Em outras palavras, uma sustentabilidade emancipadora

exige uma sociedade emancipada.

Referências

Abreu, C. (2008). Você sabe o que é sustentabilidade empresarial? de

http://www.atitudessustentaveis.com.br

Adorno, T. W. (1994). Sociologia. São Paulo: Ática.

United Nations. (1992). Agenda 21. Rio de Janeiro. Recuperado em 21 julho, 1992, de

http://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/Agenda21.pdf.

Almeida, F. (2002). O bom negócio da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova fronteira.

Cernea, M. M. (1994). The sociologist's approach to sustainable development. In I.

Serageldin & A. Steer (Orgs). Making development sustainable: from concepts to

action. (pp. 7-9). Washington, D.C: The World Bank.

Dryzek, J. (1992). Ecology and discursive democracy: beyond liberal capitalism and the

administrative state. Capitalism, Nature, Socialism, 3(2), 18-42.

Faria, J. H. de (2004). Economia política do poder. Curitiba: Juruá. 3v.

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

23
Faria, J. H. de (2013). Dissimulações discursivas, violência no trabalho e resistência coletiva.

In A. R. C. Merlo, A. M. Mendes, & R. D. de Moraes. (Orgs.).O Sujeito no Trabalho:

entre a saúde e a patologia (v. 1, pp. 119-137). Curitiba: Juruá.

Friedmann, J. (1992). Empowerment: the politics of alternative development. Cambridge,

Massachusetts: Blackwell Pub.

Habermas, J. (1995). Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, 36, 39-53.

Hart, S. L., & Milstein, M. B. (2003). Criando valor sustentável. Academy of Management

Executive.Mississippi, 17(2), 56-69.

Horkheimer, M. (1976). Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor.

Horkheimer, M. (1990). Teoria crítica. São Paulo: Perspectiva.

Kraemer, M. E. P. (2005). Responsabilidade social: uma alavanca para a sustentabilidade.

Curitiba: Ambiente Brasil.

Mason, M. (1999). Environmental democracy. London: Earthscan.

Mészáros, I. (2002). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo:

Boitempo.

Munasinghe, M. (2002). Macroeconomics and the environment. London: The International

Library of Critical Writings in Economics, Edward Elgar Publication.

Naess, A. (1995). The third world: wilderness and deep ecology. In J. B. Callicott, & M. P.

Nelson (Eds.). The great new wilderness debate (pp. 280-292). Athens: The

University of Georgia Press.

Organização das Nações Unidas (2007). Rio declaration on environment and development:

application and implementation report of secretary general (Rio + 5). Rio de Janeiro:

Organização das Nações Unidas.

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

24
Ramos, C. L. (2013). Algemas eletrônicas no mundo organizacional contemporâneo:

mecanismos de controle para além do tempo formal de trabalho. Dissertação de

Mestrado, FAE-PR/PMOD, Curitiba, PR, Brasil.

Santana, N. B. (2008). Responsabilidade socioambiental e valor da empresa: uma análise

por envoltória de dados em empresas distribuidoras de energia elétrica. Dissertação

de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Carlos, SP, 2008.

Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.


Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.

25
667
Poder e ideologia: o modelo corporativo dehttp://dx.doi.org/10.5007/2175-795X.2014v32n2p667
gestão por competências em uma indústria
multinacional

Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão


por competências em uma indústria multinacional

Cinthia Leticia Ramos*


José Henrique de Faria**

Resumo
Sendo as organizações permeadas por relações complexas e contraditórias
desencadeadas por mecanismos de poder, ideologia e controle, interessa analisar no
presente artigo de que forma estas relações se manifestam no discurso de Gestão por
Competência, mediante análise crítica do modelo corporativo implantado em uma
Indústria Multinacional, aqui denominada Indústria ALFA, a partir de duas categorias
de Análise: Poder e Ideologia. As fontes dos dados empíricos são os documentos
institucionais da Indústria ALFA que definem e orientam os procedimentos da
Gestão por Competência. A técnica de coleta e análise dos dados será a Análise de
Conteúdo segundo a proposta de Bardin e Franco. O enfoque que orienta o problema
de pesquisa se dará em torno do sujeito coletivo e sua relação estabelecida com o
conjunto de regras e comportamentos ideológicos impostos pela organização o
qual se materializa através da submissão, da alienação e da servidão voluntária nas
organizações. A base conceitual que dará suporte para sustentação desta investigação
levará em consideração uma concepção teórica crítica das formas de poder e controle
nas organizações concretas.
Palavras-chave: Gestão por competência. Relações de trabalho. Ideologia e poder.

* Mestre em Organizações e Desenvolvimento pelo Centro Universitário Franciscano do Paraná.


** Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo. Professor Titular da Pós-Graduação
em Administração na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


668 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

Introdução
Considerando o fato de que as empresas ocupam lugar de destaque
na vida dos indivíduos, é necessário compreender como estes se relacionam
com aquelas, em que medida têm sua subjetividade manipulada e como
determinados discursos organizacionais atuam não apenas como fator
constitutivo da realidade social, mas também como prática ideológica e
de poder, contribuindo na construção das identidades sociais e individuais
(SIQUEIRA, 2004).
Nesse sentido, pretende-se compreender de que forma a organização
objetiva seu poder e sua ideologia mediante o uso de métodos, técnicas
e processos embutidos em seu programa de Gestão por Competências,
legitimando a adesão, o envolvimento e a concentração do indivíduo na
implantação de sua missão e na busca de seus objetivos. Interessa revelar a
lógica e o conteúdo do programa de Gestão por Competências que, segundo
Brito (2004), encontra-se alicerçado em uma dinâmica de relações de
poder, bem como em uma ideologia materialmente ancorada e amplamente
disseminada no âmbito organizacional, reforçando a alienação do trabalhador
e possibilitando a subsunção real de caráter subjetivo (FARIA, 2004) do
trabalho ao capital.
A base conceitual que dará suporte para sustentação desta investigação
levará em consideração a teoria da Economia Política do Poder, caracterizada
como uma concepção teórica crítica das formas de poder e controle nas
organizações concretas, objetivando esclarecer em que medida as instâncias
ocultas, que se operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e
no inconsciente individual, manifestam-se na gestão por competências, dando
conteúdo às configurações de poder e de controle nas organizações (FARIA, 2004).
O que se deve buscar nos estudos das relações organizacionais são:

As relações internas e externas de poder, manifestadas


em suas formas de controle e em sua ação mediadora
de objetivos e desejos, e em sua inserção dinâmica e
contraditória na sociedade globalizada, tendo como suporte
de análise as relações entre os sujeitos coletivos, no campo
do trabalho, da produção, da realização, do imaginário ou
dos afetos, em seus aspectos objetivos e subjetivos, ou seja,
as relações de poder. (FARIA, 2007, p. 11).

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 669
multinacional

Em termos metodológicos, trata-se de um estudo de caso (YIN, 2005),


sendo a referência do campo empírico fundada em uma análise documental,
na qual os dados secundários se encontram expostos em toda sua dimensão e
em que estão explicitados determinados aspectos essenciais para a elaboração
da interpretação. Trata-se de uma pesquisa com uma perspectiva analítica de
conteúdo, que visa compreender as características do fenômeno organizacional
aqui denominado Gestão por Competências.
Tendo em vista que os dados do campo empírico encontram-se registrados
em documentos oficiais da Indústria ALFA1, optou-se por utilizar a ferramenta
denominada “Análise Crítica de Conteúdo” (AC), que considera os aspectos
qualitativos que o texto propriamente contém, utilizando-se de duas Categorias
de Análise (Poder e Ideologia), de maneira a compreender o que o texto
expressa. Nesse sentido, buscou-se um conjunto de elementos que possuem
um significado que pudesse ser percebido pelo método e ser transformado em
um “indicador” capaz de ser detectado por justaposições e que remetesse às
Categorias de Análise (BARDIN, 2002).
Justifica-se a adoção da AC neste estudo porque esta nasce com o
propósito de superar as interpretações intuitivas dos textos, propondo uma
análise objetiva e contextualizada. De início este propósito remeteu a AC
à dimensão positivista, em que se valorizavam as medidas, a neutralidade
e a quantificação, esta última através de escalas, frequência e correlações.
Esta rigidez técnica se mostrou impeditiva para que se alcançasse uma
interpretação adequada dos textos, pois as regras e as formas prevaleciam
sobre o conteúdo. Os resultados das análises eram parciais, às vezes pouco
úteis para o pesquisador e sem significado e sentido. Para Franco (2007, p.
9), isto se deu em decorrência da “confusão conceitual que se estabelece entre
método, metodologia e procedimentos metodológicos”.
Dessa forma, a AC foi aqui empregada na dimensão da análise qualitativa
a partir dos Elementos Constitutivos relativos às Categorias de Análise,
permitindo a interpretação dos dados do conteúdo documental. Com base
nos resultados das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas pelo Grupo de
Pesquisa, foram definidas duas Categorias de Análise: Poder e Ideologia. A
questão metodológica proposta foi a de encontrar os indicadores (Elementos
Constitutivos) destas categorias expressos nos documentos analisados que
revelassem a face ideológica e a dinâmica das relações de poder envolvidas no
programa de Gestão por Competências.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


670 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

A base de referência teórica deste estudo recorreu à concepção da Teoria


da Economia Política do Poder (FARIA, 2004) e à abordagem interdisciplinar
na qual se enfatizam as contribuições da educação, da psicologia, da psicanálise
e da sociologia para o alcance dos objetivos propostos (SIQUEIRA, 2004).
Para efeitos desse estudo, optou-se por trabalhar com o conceito, o
conteúdo e a aplicabilidade prática de três competências individuais: trabalho
em equipe; orientação por processos e resultados; criatividade e inovação.
Também é examinado o perfil de competências associado a todas as funções e
cargos da indústria aqui denominada Indústria ALFA. O enfoque que orienta
o problema de pesquisa se dá em torno do sujeito trabalhador individual,
enquanto unidade fundamental do sujeito coletivo, em sua relação com o
conjunto de regras e comportamentos exigidos pela organização, mediante a
implantação do modelo de Gestão por Competências no âmbito das relações de
trabalho. Desse modo, serão tratados, na sequência, a concepção de gestão por
competência e sua orientação epistemológica no campo da educação; as relações
de trabalho e a gestão por competência, com a finalidade de contextualizar o
momento histórico-social em que este tema se apresenta; as relações de poder
e a gestão por competência, com o objetivo de fundamentar a análise do
programa; a ideologia como discurso de poder e a gestão por competência, com
o mesmo objetivo anterior. Com base nessas definições, a análise do conteúdo
dos programas permitiu apontar os indicadores (elementos constitutivos) das
Categorias de Análise no programa da Indústria ALFA, que são apresentados em
suas formas relacionais com o que a empresa denomina de escala de proficiência
(Quadros 1, 2, 3 e 4).

A origem epistêmica da gestão por competências


Como se verá adiante, a literatura sobre gestão por competências é
bastante usual nos estudos organizacionais. No entanto, tal literatura não
sinaliza sua origem epistêmica no plano da educação, onde é necessário buscá-
la. Em geral, competência é considerada como inteligência prática tendo em
vista situações que se apoiam sobre os conhecimentos adquiridos pelos sujeitos,
transformando-os na medida em que aumenta a complexidade das situações
vividas, de maneira que tais conhecimentos apenas adquirem o status de
competência quando comunicados e utilizados (ZARIFIAN, 2001). Trata-se,
assim, de uma concepção que se baseia na ideia do comportamento adaptativo

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 671
multinacional

do sujeito ao meio, uma forma distorcida do construtivismo piagetiano. Embora


Piaget tenha se dedicado ao desenvolvimento moral da criança, sua teoria tem
sido utilizada no desenvolvimento de competências em adultos no âmbito do
trabalho.
Na perspectiva de Piaget (1975, 1976), todo o sujeito possui modos de
reação passíveis de serem generalizados de uma ação a outra, que o autor chama de
“esquemas”. Estes modos constituem a principal fonte dos conceitos e possibilitam
a adaptação do sujeito ao meio, a qual se dá através de seus mecanismos
constituintes: a assimilação (ação do sujeito sobre o objeto), a acomodação
(ação do objeto sobre o sujeito) e a equilibração (processo autorregulador de
enfrentamento de conflitos e desequilíbrios). Desde o início as estruturas mentais
alicerçam tanto a formação quanto o funcionamento dos esquemas. Assim, as
estruturas são modificadas pelos novos esquemas, ou seja, reestruturam-se em um
movimento permanente e dinâmico, no qual contradições e paradoxos ocupam
seus lugares, pois não se trata de um percurso linear.
Para Piaget (1975, 1976), desde seu nascimento o sujeito possui uma
forma de funcionar, dada por sua condição humana. Trata-se de uma “herança
genética”, ou seja, em seu início, na constituição do indivíduo, seu padrão
de funcionamento, descrito pela Neurobiologia dos Processos Mentais e do
Comportamento como sistemas neurais organizados (BUSS, 1999; DAMÁSIO,
1999), obedece princípios gerais e a estruturas próprias do mapa genético,
constituindo os primeiros atributos e capacidades individuais. Esta forma,
portanto, é o ponto de partida da constituição das estruturas mentais por
um processo organizado de adaptação, de forma que o sujeito, ao longo de
seu próprio desenvolvimento, através das relações sociais, (i) assimila o que
lhe é fornecido pela e nas interações (age sobre o objeto); (ii) acomoda este
conhecimento (ajeita a ação do objeto sobre suas estruturas); (iii) percebe, a
certa altura, que o objeto resiste a ser apanhado por seu esquema, o que o coloca
em conflito, desequilibrando-o; (iv) busca a equilibração em novo esquema; (v)
torna a assimilar e acomodar em um movimento contínuo; (vi) experimenta um
novo desequilíbrio o qual renova os esquemas; (vii) estabelece relações entre os
mesmos, ampliando e aprimorando cada vez mais as estruturas da inteligência.
Evidentemente, estas operações não se dão desta forma esquemática, pois se
trata de um processo complexo.
Essa concepção piagetiana ensina a dinâmica do relacionamento do sujeito
com o conhecimento, porém, como se trata de uma epistemologia aplicada às

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


672 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

crianças, jovens e adultos, parte do princípio segundo o qual o sujeito age sobre
o objeto antes de o objeto “conversar” com o sujeito. Todavia, no que se refere à
questão do conhecimento no campo do trabalho, o objeto que tem primazia sobre
o pensamento decorre de uma definição organizacional do que seja a competência
requerida e não da condição do sujeito diante do objeto de trabalho. A forma
como o pensamento se organiza em suas relações sociais no campo organizacional
é, assim, constantemente renovada pelas exigências do mundo competitivo, de
maneira que ao mesmo tempo em que se formulam novas concepções e conceitos,
também se geram informações e processos de controle e compartilhamento de
dados fornecidos tanto pela realidade das relações de trabalho como pelo simbólico
e pelo ideológico organizacional, constituindo, dessa maneira, o fundamento da
atitude manifesta e exibida e da sua compreensão.
Gradativa, dinâmica e contraditoriamente, o desenvolvimento do sujeito
depende de sua condição de internalizar e se apropriar em suas estruturas
racionais e afetivas das interações que é capaz de formular conscientemente
a partir das relações de poder e da ideologia do sistema de capital presentes
na gestão das organizações. Contudo, a formulação racional e objetiva do
conhecimento sobre o objeto pela consciência não tem como evitar o que se
encontra inscrito no inconsciente. A consciência tampouco pode ser resultado
ou reflexo da realidade objetiva.
O desenvolvimento das “estruturas” racionais e afetivas se dá sempre em
processos no quais a razão e o sentimento ampliam e flexibilizam seu escopo.
Tanto a formação como o desenvolvimento da consciência e do afeto, de
acordo com a proposta piagetiana, estão condicionadas à maturação orgânica
do sujeito (nervosa, endócrina), à transmissão social (convenções, valores,
códigos, afetos, costumes), à experiência (física e lógico-matemática) e à
“equilibração” (dinâmica e dialética). Este processo não está presente apenas
no aparato consciente-racional, permanecendo escondido no inconsciente. Isto
porque, para Piaget (1973), não existem dois domínios, o do consciente e do
inconsciente, separados por uma fronteira, mas um único, do qual, mesmo nos
estados mais lúcidos, só se percebe uma pequena parte, a qual escapa quase que
totalmente quando já não se a controla de perto.
Assim, o autor desenvolveu uma teoria da cognição (ou do desenvolvimento
do conhecimento), na qual propôs a existência de quatro estágios: sensório-
motor, pré-operacional (pré-operatório), operatório concreto e operatório
formal. Para Piaget (1973), a capacidade cognitiva se desenvolve e não vem

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 673
multinacional

pronta, sugerindo que o conhecimento não nasce no sujeito, nem no objeto,


mas origina-se da interação sujeito-objeto.
Isto torna a análise do conhecimento, que o sujeito possui e que expressa,
e das experiências que acumula, uma tarefa que exige a negação da ideia de
totalidade enquanto conhecimento absoluto, ou seja, o pensamento jamais
consegue se apropriar do real de maneira total e absoluta, mas necessariamente
relativa e provisória. De acordo com a proposição piagetiana, existem dois tipos
básicos de experiência a que os sujeitos são submetidos:
• A experiência física: refere-se à interação do sujeito com o real a partir
das propriedades do real. Interação na medida em que o sujeito só pode se
relacionar com o real enquanto uma ação própria que tem por suporte os
esquemas constituintes da estrutura. Aqui, com seus esquemas, o sujeito realiza
uma abstração do real de acordo com as propriedades deste e com os esquemas
de apreensão daquele;
• A experiência lógico-matemática: refere-se a uma abstração decorrente
da ação do sujeito sobre o real, ou seja, decorrente das propriedades da ação do
sujeito (BATTRO, 1978).
Em ambos os casos, o sujeito é sempre e necessariamente ativo na relação
com o real. Dito de outra forma, ação e pensamento constituem a percepção
inteligente, constituem uma percepção do objeto pelo pensamento na qual a
relação do sujeito com o real não está configurada em uma simultaneidade, pois
é preciso que o sujeito se aproprie do real na forma de esquemas de interação
e interpretação. A teoria da epistemologia genética de Piaget, desenvolvida no
campo da educação, ajuda a compreender como esta orientação foi apropriada
pelas organizações, fora do contexto pretendido por Piaget, e utilizada para
o desenvolvimento de competências e sua gestão2. A concepção de que o
conhecimento se desenvolve e que se baseia na interação sujeito-objeto é a base
epistêmica dos programas de gestão por competências.

Relações de trabalho e gestão por competências na


sociedade contemporânea
Relações de Trabalho
Batista e Clark (2009) sugerem que as mudanças ocorridas no mundo do
trabalho têm afetado direta e intensamente a classe trabalhadora devido às crescentes,

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


674 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

profundas e diversificadas formas de trabalho precarizados, informais, destituídos de


direitos, sem sentido e brutal. Para justificar o desemprego, a miséria, os trabalhos
precários e terceirizados são criados novos conceitos. Na perspectiva da ideologia
do sistema de capital (MÉSZÁROS, 2002), a responsabilidade desta situação social
é transferida ao próprio trabalhador por não ter se qualificado e se preparado para
as mudanças que estão ocorrendo, o que faz com que seja considerado não apto e
não empregável, pois não atende aos requisitos exigidos para o trabalho.

Este discurso ideológico da classe dominante tem como


estratégia desviar a atenção ou mesmo fazer crer para
a classe trabalhadora, que possibilidades existem, mas
precisa-se preparar para elas, que se estudar e ‘lutar na
vida’ o sujeito conseguirá o ‘sucesso’ na sociedade do
consumo. (BATISTA; CLARK, 2009, p. 11-12).

Nessa mesma linha de argumentação, Pagès et al. (1987, p. 35) mostram


que a organização “hipermoderna” passou por grandes modificações, alterando
profundamente as condições de luta social, tais como: “a intelectualização das
tarefas, o papel cada vez maior das ciências e das técnicas em todos os níveis da
produção, a maior divisão técnica do trabalho e a interdependência das tarefas,
a mudança e a renovação constantes”. Isso demanda:

Trabalhadores instruídos capazes de compreender os


princípios de sua ação e não apenas de cumprir tarefas
rotineiras, capazes de iniciativas, não só aceitando, mas
desejando a mudança, aderindo voluntariamente a seu
trabalho e interessando-se por ele, capazes e desejosos
de cooperar com os outros, não apenas com os colegas
permanentes, como nas antigas oficinas, mas de
adaptação rápida a equipes mutantes, e às força-tarefa
provisórias. (PAGÉS et al., 1987, p. 35).

Ainda segundo Pagès et al. (1987, p. 37), “o homem da organização


liberta-se da tutela estrita e mesquinha do chefe [com a qual] é obrigado a se
identificar para aprender a viver, para cair sob uma tutela muito mais obscura,
ameaçadora e insidiosa de uma entidade impessoal que penetra na sua vida e
na sua alma, de ponta a ponta”. Para Dejours (2001), há um processo em curso
no qual se pretende:

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 675
multinacional

[...] fazer acreditar que o sofrimento do trabalho foi


bastante atenuado ou mesmo completamente eliminado
pela mecanização e a robotização, que teriam abolido
as obrigações mecânicas, as tarefas de manutenção
e a relação direta com a matéria que caracterizam as
atividades industriais. (DEJOURS, 2001, p.27).

Assim, para Dejours (2001), não é mais o medo de acidentes que se impõe
soberanamente, pois por trás da vitrina está: o medo da incompetência; a pressão
para trabalhar mal resultante das relações com colegas e dos obstáculos criados
para estabelecer um padrão de desempenho mais baixo; a falta de esperança de
reconhecimento, componente decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva
da inteligência e da personalidade no trabalho; o sofrimento e a defesa para
suportar as pressões.
Nesse mesmo sentido, Gaulejac (2007) critica o caráter ideológico da
gestão, revelando que por detrás dos instrumentos, procedimentos, planos
de gestão e de comunicação há um sistema de crenças e de visão de mundo
unilateral que legitima os mecanismos de poder organizacional, fortalecendo
a ilusão de onipotência, neutralidade das técnicas e modelação de condutas
humanas, bem como a dominação de um sistema econômico que busca
incessantemente o lucro. Para Gaulejac (2007), é possível exercer uma “pseudo
liberdade” dentro das organizações, desde que o sujeito potencialize seus
esforços, energia e criatividade para os resultados gerenciais. O discurso de
excelência, revestido por uma prática excepcional para obtenção de resultados,
induz o indivíduo a assumir um projeto de eterna superação, com objetivos
“fora do comum”, metas inalcançáveis em direção a uma corrida de ideal
mítico inacessível.
Esses estudos sugerem que o controle ideológico, decorrente do
desenvolvimento da relação gerencialista, é uma forma de poder difícil de ser
percebido pelos indivíduos, pois os conflitos se colocam no nível psicológico
em termos de insegurança, sofrimento psíquico, esgotamento profissional,
perturbações psicossomáticas, depressões nervosas, entre outras. É também
de difícil qualquer contestação, porque, ao operar na “interioridade do
indivíduo”, a unidade organizacional faz com que o mesmo conteste a si
próprio, sendo, como indica Gaulejac (2007), uma espécie de “alienação à
segunda potência”, resultado da fusão entre o ego e o ideal de ego, incitado
pelo gerencialismo.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


676 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

É neste sentido que a prática de Gestão por Competências legitima-se


como a capacidade desenvolvida pelas organizações de mapear na sociedade,
trazer para a organização, distribuir, criar, recompensar e reter conhecimento
relacionado à sua competência essencial. Isso implica direcionar toda a gestão da
empresa, a gestão do trabalho e, consequentemente. o processo de educação dos
trabalhadores para a consecução da sua missão organizacional (BRITO, 2008).
Para analisar criticamente os elementos centrais da prática de Gestão
por Competências (de que ponto de vista ela foi definida, com que finalidade
foi implantada e que interesse representa), torna-se relevante entender seu
conceito, sob o ponto de vista gerencialista, bem como sua aplicabilidade prática
e estratégica no contexto de Gestão de Pessoas. Para os objetivos do presente
estudo não se trata de discutir os diversos conceitos de Gestão por Competência,
mas enfatizar alguns pontos relevantes propostos na literatura sobre o tema,
visando à construção do referencial conceitual que dará sustentação aos
argumentos que se seguirão.

Gestão por competências na sociedade contemporânea


O conceito de competência, no âmbito da gestão de pessoas, surge em 1973
com a publicação do artigo “Testing for Competence rather than Intelligence”,
escrito por McClelland (1973). McClelland (1971) discute os testes para avaliar
as competências, tendo por base os seus conceitos de competência e de White
(1959),, indicando que competência é uma característica subjacente a uma
pessoa, casualmente relacionada com desempenho superior na realização de uma
tarefa ou em determinada situação. A partir desse conceito, passa-se a diferenciar
competência de aptidão, sendo esta última entendida como o talento natural (que
pode vir a ser aprimorado), as habilidades ou a demonstração de um talento
particular na prática e seus conhecimentos, ou seja, o que as pessoas precisam
saber para desempenhar uma tarefa (MIRABILE, 1997). Embora McClelland
não se refira explicitamente à teoria piagetiana, à época com grande repercussão
nas escolas e nos cursos de psicologia nos Estados Unidos, sua concepção é a de
que a competência se pode medir e desenvolver, sendo que tal desenvolvimento
está relacionado com a tarefa (interação sujeito-objeto).
Prahalad e Hamel (1996, p. 233) afirmam que uma competência é
um “conjunto de habilidades e tecnologias, e não uma única habilidade e
tecnologias isoladas, que permitem a uma empresa oferecer determinado

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 677
multinacional

benefício”. A questão principal diz respeito à possibilidade de combinação das


várias competências que uma empresa pode conseguir para desenhar, produzir e
distribuir produtos e serviços aos clientes no mercado. Competência seria, assim,
a capacidade de combinar, misturar e integrar recursos em produtos e serviços.
Enquanto que para Fleury e Fleury (2001) a competência não se limita
a um estoque de conhecimentos teóricos e empíricos detido pelo indivíduo,
nem se encontra encapsulada na tarefa. Para Zarifian (2001), a competência
é a inteligência prática para situações que se apoiam sobre os conhecimentos
adquiridos e os transformam com tanto mais força quanto mais aumenta a
complexidade das situações, ou seja, os conhecimentos e o know how só terão
status de competência na medida em que forem comunicados e utilizados. Para
Fleury e Fleury (2001), a noção de competência aparece associada a verbos como:
saber agir, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e complexos, saber
aprender, saber engajar-se, assumir responsabilidades e ter visão estratégica. A
partir desse entendimento Fleury e Fleury (2001, p. 188) definem a competência
como: “um saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar,
transferir conhecimentos, recursos e habilidades, que agreguem valor econômico
à organização e valor social ao individuo”.
A partir dos conceitos acima expostos e segundo Boam e Sparrow (1992),
a competência é um conjunto de padrões de comportamento que o trabalhador
necessita para obter um bom desempenho no trabalho. Essa definição sugere
que as competências são repertórios de comportamentos e capacitações que certos
indivíduos ou organizações dominam melhor que outros, tornando-os eficazes
em uma determinada situação.
Para Faria e Leal (2007), a noção de competências vinculada à gestão
de recursos humanos desloca-se do foco da tarefa para a noção de suporte à
estratégia organizacional. Isso porque o trabalho já não representa um conjunto
de habilidades e requisitos definidos a partir do desenho do cargo, mas sim
de uma nova dinâmica vinculada à complexidade e flexibilidade das relações
de trabalho impostas pelas organizações contemporâneas. Para os autores, a
competência só adquire status quando é útil em um contexto produtivo, sendo
que a estratégia é quem determina essa utilidade (FARIA; LEAL, 2007).
Nesse sentido, Faria e Leal (2007) argumentam que a competência não é uma
medida absoluta, mas relativa a um desempenho melhor em relação a um pior. Essa
ideia encontra-se profundamente relacionada à noção de vantagem competitiva. Para
esses autores, a expressão “competências” designa, no âmbito da gestão capitalista,

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


678 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

um parâmetro a ser seguido de comportamento humano e organizacional e admite


implicitamente o sentido político e ideológico da competição como parâmetro de
excelência, sentido esse que perpassa pelo individualismo e, consequentemente, pela
desmobilização da luta coletiva dos interesses dos trabalhadores (FARIA; LEAL,
2007). Portanto, como pode ser observado,

O programa de competências provoca, entre os trabalhadores,


a perseguição de um “ideal de perfeição”, desenvolvendo
processos de identificação e de introjeção dos valores
organizacionais pelos indivíduos. Desta forma, ao valorizar
as competências, a organização induz o indivíduo a perseguir
objetivos e regras que ela dita, mas que acabam por se
tornar vitais para o seu próprio funcionamento psicológico,
de maneira que este possa oferecer àquela uma extrema
dedicação. (FARIA; LEAL, 2007, p. 165).

Relações de poder e gestão por competências


Para compreender o programa de gestão de competência como uma
forma de exercício do poder, parte-se do conceito de que o poder é um atributo
coletivo, mais propriamente, uma capacidade coletiva de “definir e realizar
interesses objetivos específicos, mesmo contra a resistência ao exercício desta
capacidade e independentemente do nível estrutural em que tal capacidade
esteja principalmente fundamentada” (FARIA, 2004, p. 141). O poder, em
si mesmo, é uma abstração e seu sentido somente pode ser compreendido em
sua concretização, em seu exercício, em suas práticas, ou seja, nas relações de
poder. Assim, para que os interesses dominantes se realizem, torna-se necessário
colocá-los em prática. Dessa forma, a gestão por competências é uma estratégia
de realização dos interesses da organização a partir da definição de seus
objetivos, os quais operam o sentido do controle, nesse caso, do desempenho
dos empregados. Este é um ponto de vista que, segundo Faria e Leal (2007),
não tem sido abordado nas pesquisas sobre o tema em Administração.
Faria e Leal (2007, p. 165) entendem que o discurso da gestão por
competências,

[...] atua como instrumento da hegemonia capitalista


configurando um padrão de comportamento que
‘hierarquiza’ os trabalhadores segundo o seu ‘talento’,

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 679
multinacional

recompensando-os ou punindo-os segundo os mesmos,


estabelecendo as condições de desempenho e a perseguição
de um ‘ideal de perfeição’, bem como desenvolvendo
processos de identificação e de introjeção dos valores
organizacionais.

Nesse sentido, tal programa constitui-se em uma ideologia do poder da


organização.
Para Brito (2008, p. 219):

As exigências, cada vez maiores, das empresas levam


o empregado a ter de estar continuamente buscando,
criando e disseminando conhecimentos para a
empresa, ao mesmo tempo em que o conhecimento
construído fica retido na empresa mesmo com a
demissão do empregado. Os produtos do trabalho: o
conhecimento explícito não pertence ao trabalhador e
está disponibilizado nas redes tecnológicas da empresa e
o conhecimento tácito é assimilado na prática por outros
trabalhadores, não garantindo mais o emprego de quem
o desenvolveu ao longo da experiência. Ao mesmo tempo
em que o trabalhador deve desenvolver, nas organizações
de aprendizagem, o seu potencial, o aprendizado em
grupo, a visão compartilhada e o raciocínio sistêmico,
ele precisa abrir mão de uma visão pessoal de mundo
consolidada ao longo de sua existência, mudando
continuamente seus quadros mentais, não como um
processo integral de desenvolvimento, mas negando
a própria identidade e referências para se adequar às
necessidades do capital.

Lydia Brito (2008) argumenta que os processos de educação corporativa


e de gestão por competência mobilizam os aspectos subjetivos do trabalho
envolvendo a cultura, os valores, o coração e a mente dos funcionários num
processo de aprendizado contínuo capaz de liberar a força criativa de cada um,
projetada para atingir os resultados desejados pela organização, ou seja, para
defender os interesses do capital, manter sua competitividade no mercado e
garantir seu lucro e a sua sobrevivência, ao concentrar a inteligência, a emoção
e a energia dos empregados nas estratégias empresariais. Seguindo esta lógica, a

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


680 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

autora sugere que a grande diferença entre a forma de compartilhamento natural


do conhecimento e as novas formas de compartilhamento do conhecimento,
promovida pelas organizações, é:

O gerenciamento, manipulação e controle rigoroso


do processo de aprendizagem a partir unicamente dos
interesses do capital, fato que significa uma mudança
sem precedentes na forma de gestão e educação de
pessoas para o trabalho nas organizações ao interferir
direta e claramente na cultura organizacional e ao
criar propositadamente um imaginário enganador na
organização. (BRITO, 2008, p. 207).

Segundo Siqueira (2004), o indivíduo será levado a desenvolver uma


atitude de super-herói, de uma pessoa bem acima da média, um trabalhador
polivalente, atualizado e imbuído do “espírito” da organização. O sucesso é a
palavra de ordem e obter o triunfo passa a ser necessidade do indivíduo, que
deve se dedicar inteiramente a tal sucesso. Os indivíduos devem se inserir
nesta lógica sendo competitivos, pois se “perderem o jogo”, estarão “relegados
ao limbo”. Para o autor, deve-se questionar, entretanto, não a existência de
controles ou de estrutura organizacional, mas sim, o modo como a empresa
utiliza desses mecanismos que, em determinadas situações, acabam por prender
a criatividade e a singularidade do indivíduo.
Todos os argumentos relacionados acima indicam que o poder atua nas
mais diversas frentes e nos mais variados modos, buscando sempre reconduzir
o indivíduo, por meio das regras, aos caminhos (interesses) definidos pela
empresa. Tal é a direção que o trabalhador deve percorrer. Essas direções (definir
os interesses) e estratégias de exercício de poder (realizar os interesses) permitem
analisar suas manifestações no discurso de Gestão por Competência, pois esta
é uma política organizacional que preenche os requisitos do envolvimento,
da entrega, do comprometimento e da introjeção de valores. Nesse sentido,
é oportuno questionar sob qual ponto de vista o programa de Gestão por
Competências é definido, com que finalidade o mesmo é implantado e
que interesse representa. Nessa linha de argumentação, entende-se que este
programa se constitui em uma forma de controle sobre o aprendizado e,
conforme afirma Brito (2008), constitui-se, em sua essência, na forma mais
sofisticada de apropriação e alienação do trabalho, devido ao fato de que, além

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 681
multinacional

de se apropriar dos movimentos, tempo e ritmo do trabalhador, também se


apropria da teleologia, do conhecimento tácito (que muitas vezes o trabalhador
não se dá conta que possui), do desejo, do abstrato, das formas de interação e
da criatividade coletiva.

A ideologia como discurso de poder


O conceito de ideologia possui muitas vertentes (CENTRE, 1980).
Uma das maneiras pela qual se pode conceber a ideologia é que ela é um
reflexo invertido, mutilado, deformado do real, na medida em que significa um
conjunto abstrato de ideias, representações e valores de determinada sociedade.
Trata-se de uma concepção abstrata no sentido de designar todo e qualquer
conjunto de ideias que pretenda explicar fatos observáveis sem vincular essa
explicação às condições sociais, históricas e concretas em que tais fatos foram
produzidos. Apesar da desvinculação, essas ideias são transmitidas e absorvidas
como se fossem reais (FRANCO, 2004)
Para Mészáros (2004, p. 65):

A ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de


indivíduos mal orientados, mas uma forma específica de
consciência social, materialmente ancorada e sustentada.
Como tal não pode ser superada nas sociedades de classe.
Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída
objetivamente (e constantemente reconstituída) como
consciência prática inevitável das sociedades de classe,
relacionada com a articulação de conjuntos de valores
e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo
social em todos os seus principais aspectos.

Segundo o autor, o conflito mais fundamental na arena social refere-se


à própria estrutura social que proporciona o quadro regulador das práticas
produtivas e distributivas de qualquer sociedade específica, cujo objetivo
é manter ou, ao contrário, negar o modo dominante de controle sobre o
metabolismo social dentro dos limites das relações de produção estabelecidas.
Tal conflito encontra suas manifestações necessárias nas “formas ideológicas
(orientadas para prática) em que os homens se tornam conscientes desse conflito
e o resolvem pela luta” (MÉSZÁROS, 2004, p. 65), ou seja, as diferentes formas

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


682 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

ideológicas de consciência social têm implicações práticas de longo alcance em


todas as suas variedades, independentemente de sua vinculação sociopolítica a
posições progressistas ou conservadoras.
Nesse sentido, não se pode reduzir o conceito de ideologia como
simplesmente uma “falsa consciência”. O que define a ideologia como
ideologia não é seu suposto desafio à “razão” ou seu afastamento das regras
preconcebidas de um “discurso científico” imaginário, mas sim sua situação
real – materialmente fundamentada – em um determinado tipo de sociedade.
As funções complexas precisam focalizar a atenção nas exigências práticas vitais
do sistema de reprodução (MÉSZÁROS, 2004).
Tomando como referência o discurso ideológico como veículo da
manifestação expressa do poder, seja para convencer, seja para impor ou para
estabelecer acordos (FARIA, 2004), pode-se verificar que de uma forma especial
a gestão por competências incorpora um conjunto de conteúdos de ordem
prática, política e ideológica, historicamente relacionado com os interesses
econômicos do capital. Essa relação entre poder e ideologia, em que se apresenta
como uma das formas discursivas daquele, precisa ser desvendada para que se
possam compreender as relações concretas.
Como já notaram Marx e Engels (2007) em sua famosa crítica à ideologia
alemã e Castoriadis (1982) em seu clássico estudo sobre a instituição imaginária
da sociedade, a ideologia produz seu próprio esquema de interpretação, de
dissimulação, de justificação, de divulgação e de renovação. Para examinar
as relações de poder e o esquema de interpretação ideológica que se encontra
expresso em um programa de gestão por competência (enquanto um conjunto de
saberes requerido pela organização) de forma a se conferir um sentido aceitável
ao par competência-ideologia, é necessário observar, inclusive na perspectiva
hermenêutica de Ricouer (1990, p. 92; 95, grifo do autor), que: (i) “todo o
saber objetivante” sobre a “posição na sociedade, numa classe social, numa
tradição cultural, numa história, é precedido por uma relação de pertença que
jamais poderemos refletir inteiramente”; (ii) se o saber pode se distanciar da
ideologia, esta é sempre um código de interpretação.
A investigação deve partir de bases reais e não da imaginação que se tem
sobre a realidade.

Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam


ou representam, e tampouco dos homens pensados,

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 683
multinacional

imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos


homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente
ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se
também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e
dos ecos desse processo de vida. [...] Os homens, ao
desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio
material, transformam também, com esta sua realidade,
seu pensar e os produtos de seu pensar. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 37).

Poder e ideologia em um programa de gestão por


competências
Mediante análise crítica do programa de Gestão por Competências da
Indústria ALFA, pretende-se responder a três questões fundamentais do mesmo:
(i) sob qual ponto de vista o programa foi definido? (ii) Com que finalidade
o programa foi implantado? (iii) Que interesses o programa representa? Com
estas questões objetiva-se indicar a ideologia e as relações de poder expressas e
contidas no programa.
Para melhor responder as questões é necessário aditar ainda quatro
questões complementares: qual a concepção do processo educativo
(ideologia) que está por trás do conteúdo e da prática construída pela
Indústria ALFA? Que tipo de conhecimento (ideologia) é requerido e
disponibilizado pela empresa para o trabalhador? Como a empresa se
apropria (relação de poder) do conhecimento do trabalhador? Em que
medida o modelo contribui ou não para a intensificação do processo de
alienação (relação de poder) e, consequentemente, para a precarização das
condições e relações de trabalho?
Ao analisar o conteúdo do programa de Gestão de Competências expresso
no documento produzido pela Indústria ALFA adotando procedimento
analítico sugerido por Bardin (2002) e Franco (2007), foi possível destacar
sete pontos fundamentais, descritos a seguir. Os três primeiros são relativos
à categoria relações de poder, os três seguintes relacionados à disseminação
da ideologia da empresa e o último relativo a ambas as categorias ao mesmo
tempo. Os seis primeiros pontos encontram-se resumidamente expressos nos
Quadros 2, 3 e 4. O sétimo ponto encontra-se expresso no Quadro 5.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


684 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

1. O Programa de Gestão por Competências é o instrumento definido


pela indústria ALFA para desdobrar suas estratégias, materializando-se em um
conjunto de comportamentos estruturados e diferenciados que facilitam a execução e
integração dos processos: orientando a gestão dos empregados com um estilo comum;
explicitando quais os comportamentos dos empregados esperados pela companhia;
possibilitando o alinhamento das pessoas às necessidades do negócio (relação de
poder).
2. A Gerência de Recursos Humanos, responsável por implantar o
programa e garantir sua aplicabilidade e aderência com as diretrizes corporativas,
aplica o programa nos seguintes processos: educação corporativa; aprendizagem
organizacional; gestão do conhecimento; dimensionamento de equipes; recrutamento
e seleção; gestão de desempenho; alocação, mobilidade e sucessão (relação de poder).
3. Cada competência individual é composta por: (i) título: nome da
competência; definição e descrição detalhada do significado da competência
que uniformiza seu entendimento; (ii) atributos: conjunto de Conhecimentos,
Habilidades e Atitudes (CHA); (iii) escala de proficiência: representa uma regra
para definir a expectativa requerida pela ALFA, bem como para avaliar o nível
em que o empregado se encontra. Essa escala evolutiva é composta por quatro níveis
(A, B, C e D), cada um com sua definição. O nível A é o de menor complexidade
e o D o de maior complexidade (relação de poder).
4. O Dicionário de Competências descreve de forma conceitual e prática
as competências organizacionais e as competências individuais corporativas, sendo
seu principal objetivo prover os conceitos e elementos que as compõem, assim como
orientar os processos de gestão de pessoas garantindo a identidade organizacional
além das fronteiras geográficas (ideologia).
5. O programa identifica oito competências organizacionais: orientação
para o mercado, gestão empresarial, inovação e tecnologia para os negócios, gestão
de pessoas, gestão da cadeia de suprimentos, gestão de processos, gestão de portfólio,
programa e projetos, responsabilidade social e ambiental. Cada uma delas possui
um detalhamento dessa descrição, intensificando o alinhamento às estratégias
da ALFA (ideologia).
6. Além das competências organizacionais, foram identificadas nove
competências individuais: trabalho em equipe, iniciativa, liderança de pessoas,
atuação estratégica, orientação para processos e resultados, criatividade e inovação,
aprendizagem e compartilhamento do conhecimento, foco no cliente, capacidade

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 685
multinacional

de decisão. Tais competências devem estar presentes em todos os empregados


garantindo a identidade corporativa (ideologia).
Como nem sempre todos os empregados atendem plenamente o nível
requerido para as competências, a empresa definiu uma escala de avaliação em
que o empregado é posicionado. Essa escala vai desde “não demonstrada”, quando
o avaliado não apresenta nenhum traço do nível requerido para a competência,
até “supera o nível requerido”. Esta escala está expressa nos Quadros 1, 2 e 3.
Nesses quadros encontram-se ao mesmo tempo os seis pontos mencionados, pois
no plano concreto as categorias não se apresentam separadas. A apresentação
do programa nos Quadros, adiante, pretende apenas reproduzir sinteticamente
a lógica explícita do programa da Indústria ALFA, que será analisada em cada
um dos componentes a partir das Categorias de Análise.
No Quadro 1, em que se explicita a avaliação da escala de proficiência
no âmbito do trabalho em equipe, pode-se observar a contradição entre a
concepção de que as competências individuais são consideradas no âmbito
do trabalho em equipe e a definição deste trabalho. De fato, o trabalho em
equipe é definido como a capacidade de trabalhar cooperativamente de forma
a integrar os interesses individuais aos do grupo, tendo em vista o alcance de um
objetivo comum e a busca de resultados para o negócio. A integração dos interesses
é regida pelos resultados para o negócio e pelo objetivo comum definido pela
empresa. Nota-se, aqui, que o poder (capacidade definir e realizar de interesses)
é aquele comandado pela Indústria ALFA e não o definido pelo grupo a partir
de um trabalho cooperativo. Nesse aspecto, as competências individuais são
as de intervenção, atuação, facilitação e constituição de referência no âmbito
do grupo para garantir o projeto da Indústria ALFA. As competências não
são propriamente individuais. São competências requeridas do indivíduo pela
Indústria ALFA. Compartilhar experiências, agregar qualidade, integrar pessoas
em um ambiente produtivo e cooperativo e estimular a equipe à obtenção e
superação de resultados são indicadores de como o discurso ideológico da
Indústria ALFA é disseminado no programa.
Outra contradição relevante identificada no discurso de trabalho em
equipe é a competitividade que se estabelece, de forma velada, entre os pares.
Ao mesmo tempo em que o discurso estimula a necessidade de cooperação, de
integração e participação coletiva, o trabalhador é avaliado individualmente
em cada competência. Caso o mesmo não alcance as metas estabelecidas, terá
“gap’s de desempenho” em sua proficiência requerida, impactando diretamente

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


686 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

na progressão da carreira e evolução salarial. Em outras palavras, por trás do


discurso coletivo há um estímulo à competitividade individual, bem como um
controle para que a subjetividade do trabalhador seja utilizada para interesses da
empresa, o que influi, consequentemente, na redução de sua consciência crítica
e na desmobilização para lutas por melhorias de direitos e condições de trabalho.
Outro ponto relevante no discurso organizacional é o estímulo à
participação individual como atributo fundamental para se trabalhar em equipe.
Segundo PAGÈS (1987), esta participação está relacionada, entre outras coisas,
com a flexibilidade organizacional, em que o controle ideológico com aspecto
flexível vai admitir a diversidade e dar certa autonomia ao sujeito do trabalho.
Contudo, tanto a autonomia quanto a participação são vigiadas e vão até o
ponto em que não comprometam as diretrizes e normas organizacionais, que
não coloquem em risco a estrutura de poder e o discurso ideológico produzido
pela organização.

Quadro 1 - Escala de proficiência para as Competências Individuais Corporativas:


trabalho em equipe

Competências Individu- ESCALA DE PROFICIÊNCIA


ais Corporativas Avaliação

Em desenvolvi-
Trabalho em Equipe
mento
Capacidade de traba- Aplicação Apli- Supera
Inicia-
lhar cooperativamente, interme- cação nível
ção
integrando interesses diaria integral requerido
Não me Não
individuais aos do
sinto apto Demons-
grupo, para alcance de
a avaliar trada
um objetivo comum, na
busca de resultados para 22 33 4 5
1
o negócio, considerando
as características pessoais,
culturais e profissionais.
Atua realizando
algumas interven-
A ções na equipe,
compartilhando
experiências.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 687
multinacional

Tem facilidade de
atuar em equipes,
B agrega qualida-
de ao trabalho e
propõe ideias.
É um facilitador
da equipe, integra
as pessoas e gera
C
uma ambiência de
trabalho produtiva
e colaborativa.
É referência legiti-
mada. Sua atuação
estimula a equipe a
focalizar no traba-
D
lho e na conquista
de resultados,
extrapolando a
própria equipe.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.

No Quadro 2, em que se explicita a avaliação da escala de proficiência


no âmbito dos processos e resultados, a orientação é no sentido de alcançar
e superar metas definidas pela empresa. Nota-se aqui que a ideologia é a de
superação das metas como garantia de qualidade e eficácia. As relações de
poder encontram-se definidas no processo de planejamento (e os resultados do
processo), na orientação na execução da atividade, na autonomia para aprimorar
os processos, na definição de metas desafiadoras e no comprometimento de
esforços. As competências, novamente, não são as dos sujeitos do trabalho, mas
aquelas que a empresa requer destes sujeitos, ou seja, são competências definidas
pela Indústria ALFA (corporativas) para os sujeitos.
Subentende-se que os processos críticos, metas desafiadoras, esforços
próprios e alheios descritos nesta competência individual exigem elevado
grau de comprometimento e dedicação do trabalhador, fazendo com que o
mesmo não se acomode jamais, que esteja continuamente atento às mudanças,
buscando, inovando, criando e superando metas desafiadoras. Porém, segundo
Brito (2008), essa intensificação do processo de trabalho para ser eficazmente
viabilizada, necessita não somente do consentimento, mas do comprometimento
do trabalhador com seus resultados. “Desta forma, a situação do trabalhador

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


688 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

torna-se cada vez mais complexa e contraditória e aponta para o aumento


da tensão, exclusão e deterioração das relações que o homem realiza consigo
próprio, com o corpo, com o outro e com a natureza” (BRITO, 2008, p.
216). Para o autor, a distância entre o que é cobrado e as reais condições de
trabalho – pressão por resultados, necessidade de melhoria contínua, competição
interna para “fazer acontecer” – intensifica a exploração do trabalhador gerando
um aumento da carga de trabalho, fazendo com que a vida do homem esteja
intrinsecamente ligada à vida da organização, acarretando consequentemente
o aparecimento de doenças ocupacionais (desgastes físico e mental), o medo
da perda do emprego, o sofrimento psíquico negado, entre outras patologias.

Quadro 2 – Escala de proficiência para as Competências Individuais Corporativas:


orientação para processos e resultados
Competências Individuais ESCALA DE PROFICIÊNCIA
Corporativas Avaliação
Orientação para Processos e Em desenvolvi-
Resultados mento
Capacidade de alcançar e Aplicação Apli- Supera
Inicia-
superar metas estabelecidas, interme- cação nível re-
ção
garantindo a qualidade Não me diária integral querido
e eficácia dos processos. sinto Não
Pressupõe planejamento, apto a Demons-
acompanhamento e análise avaliar trada
1 22 33
dos processos que levam aos 4 5
resultados econômico-finan-
ceiros, sociais e ambientais.
Executa atividades
dos processos de sua
área sob orientação,
A considerando o poten-
cial impacto de suas
ações nas áreas com as
quais interage.
Executa atividades
dos processos de sua
área de forma autôno-
ma. Busca resultados
B
com iniciativa para
aprimorar processos,
procedimentos e
sistemas.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 689
multinacional

Propõem-se a alcan-
çar metas desafiado-
ras adicionais às do
seu âmbito de respon-
sabilidade, otimizan-
C
do o fluxo do processo
onde atua. Diante das
dificuldades, encontra
formas de convertê-las
em oportunidades.
Compromete esforços
próprios e alheios
para alcançar metas
D e objetivos desafia-
dores, estimulando a
colaboração mútua e a
atuação integrada.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.

No Quadro 3, as competências individuais são avaliadas quanto ao


conhecimento compartilhado e à aprendizagem, incluindo a aprendizagem
com as expectativas próprias e alheias e a “desaprendizagem”, a qual se refere
a uma forma de apagar o que não interessa ao trabalho que a Indústria ALFA
requer. O discurso ideológico encontra-se expresso na busca de oportunidades
de aprendizagem pelo sujeito do trabalho, em seu comportamento constante
de aprender além do que a empresa requer, no compartilhamento de
experiências adquiridas no trabalho e na promoção da capacidade de disseminar
conhecimentos organizacionais e estratégicos de forma a transformar o
conhecimento individual em organizacional. As relações de poder encontram-
se dissimuladas, porém se evidenciam nas contradições. Nota-se que a busca
individual de oportunidades e por aprender para além do necessário, definidoras
dos critérios de competências, entram em contradição com a concepção de que
o conhecimento individual deve se transformar em organizacional. Portanto,
o caráter do saber dos sujeitos do trabalho não se refere ao saber ontológico,
mas ao saber útil para a ALFA.
A busca constante por oportunidades de aprendizagem pressupõe
uma consciência de autodesenvolvimento e de transmissão consentida de
conhecimento, onde o trabalhador deve estar continuamente buscando, criando
e se autoeducando para então transferir, de forma estruturada, esse saber explícito.
O produto do seu trabalho transforma-se em conhecimento corporativo,

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


690 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

devidamente classificado e disponibilizado em bancos de “lições apreendidas” e


de “boas práticas”. Conforme análise de Brito (2008), ao mesmo tempo em que
o trabalhador deve apreender e compartilhar o conhecimento organizacional e
o raciocínio sistêmico, ele precisa também abrir mão de uma visão pessoal de
mundo consolidada ao longo de sua existência, mudando continuamente seus
quadros mentais, não como um processo integral de desenvolvimento, mas
negando sua própria identidade e referências para se adequar às necessidades
do capital. Encontra-se aí outra contradição. Se por um lado o trabalhador deve
ser um “eterno aprendiz”, estar em constante desenvolvimento, garantindo que
sua aprendizagem individual seja transformada em organizacional, ao mesmo
tempo este conhecimento só será válido e útil para a organização se tiver um
caráter prático e um alinhamento aos objetivos e estratégias da organização.
Duas questões podem ser formuladas: de que forma repensar o
contexto organizacional e a relação de trabalho sob a ótica da aprendizagem
e do trabalho coletivo sendo que por detrás do discurso existe um trabalho
individualizado e fragmentado? De que forma compreender as significações
do trabalho, o sentido de sua experiência, definir finalidades de suas ações,
permitindo que o sujeito contribua com a sociedade em que vive ao mesmo
tempo em que não é estimulado a pensar criticamente, mas em reproduzir
os discursos preestabelecidos? Constata-se que o sentido da educação ampla,
crítica e libertadora, bases para a formação humana, é reduzida a um conjunto
de conhecimentos práticos e instrumentais reiterando a subordinação do
trabalhador a um sistema de crenças e de visão de mundo unilateral, legitimando
os mecanismos de poder ao interesse do capital.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 691
multinacional

Quadro 3 – Escala de proficiência para as Competências Individuais Corporativas:


aprendizagem e compartilhamento do conhecimento
Competências Individuais ESCALA DE PROFICIÊNCIA
Corporativas Avaliação
Aprendizagem e Comparti- Em desenvolvi-
lhamento do conhecimento mento

Capacidade de buscar, apre- Supera


ender, aplicar e disseminar Aplicação Apli-
Inicia- nível
conhecimentos para o cres- Não me Não De- ção interme- cação
requeri-
cimento pessoal e organiza- sinto apto mons- diária integral
do
cional. Inclui aprender com a avaliar trada
as expectativas próprias e de
outros, bem com desapren-
1 2 3 4 5
der quando necessário.

Busca oportuni-
dades de apren-
dizagem, aplica e
A
compartilha conhe-
cimentos quando
lhes são requeridos.
Apresenta comporta-
mento de constante
busca do apren-
dizado além do
requerido, consegue
B utilizar as compe-
tências adquiridas
em suas atividades e
compartilha conhe-
cimento de forma
consistente.

Compartilha com
equipes conheci-
mentos e experi-
C
ências adquiridas,
sistematizando a
prática.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


692 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

Promove
em outros a
capacidade
de buscar,
apreender, aplicar
e disseminar
conhecimentos
D organizacionais
estratégicos
e críticos,
garantindo que
a aprendizagem
individual seja
transformada em
organizacional.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.

Com o objetivo de reforçar e garantir a identidade da Indústria


ALFA são definidos os níveis requeridos nas competências individuais
para cada grupo de empregados, de acordo com sua posição na empresa.
Nem todas as competências individuais corporativas são obrigatórias para
todos os empregados. Porém, em função da necessidade do trabalho ou
desenvolvimento, quando uma competência individual corporativa opcional
for aplicada, é utilizado o nível requerido pelo cargo ou função ocupada pelo
empregado (poder e ideologia). O Quadro 4, adiante, mostra o perfil das
competências associadas às funções.
A concepção de competência que orienta o perfil individual faz
uma distinção de complexidade das funções, a qual é baseada em uma
estrutura de poder. A complexidade não é tratada como conhecimento
relativamente coerente, cujos componentes exigem diversas relações de
interdependência ou de subordinação e cuja aprendizagem possui um
grau elevado de dificuldade cognitiva. Os aspectos complexos das tarefas
não se encontram na hierarquia, mas nas relações de interdependência,
especialmente, no caso do processo de trabalho, aquelas que se referem aos
relacionamentos interpessoais e intersubjetivos. Para a Indústria ALFA, a
complexidade é associada à responsabilidade funcional. A ideologia que se
manifesta neste perfil é a de que quanto mais dedicado e comprometido
for o sujeito do trabalho para com a organização, mais complexa se torna
a competência.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 693
multinacional

Quadro 4 – Perfil de competências individuais associadas às funções e aos cargos


da indústria ALFA
Funções Cargo
Compe- Ge-
Gerente Geren- Coorde- Super- Espe- Sê- Ple- Ju-
tência rente
Executivo te nador visor cialista nior no nior
Geral
Trabalho
D D D D C C C B A
em equipe
Iniciativa D D D C C C C B A
Liderança
D D D C C B B A A
de pessoas
Atuação
D D C B B C B A A
estratégica
Orien-
tação de
Processos D D D C C C C B A
e resulta-
dos
Criati-
vidade e D D C C B D B A A
Inovação
Aprendi-
zagem e
Com-
partilha- D D D C C D C B A
mento do
conheci-
mento
Foco no
D D D C C C C B A
cliente
Capaci-
dade de D C C B B B B A A
decisão
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.
Obs.: Escala A, B, C e D, sendo que o nível A é o de menos complexidade e o D de
maior complexidade.
Competências Opcionais

Os programas de gestão por competências, tal como o apresentado


aqui, colocam em evidência a necessidade dos trabalhadores adaptarem-se aos
objetivos organizacionais. Esses programas têm sido considerados inovadores

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


694 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

na gestão do conhecimento, embora sejam expressões reatualizadas de teorias


oriundas da educação, das ciências sociais e da psicologia, como bem aponta
Manfredi (1999, p. 2-3, grifo do autor):

Expressões tais como “qualificação”, “competência”,


“formação profissional” ocupam lugar de destaque
nos discursos e documentos dos diferentes agentes e
instituições sociais. O uso desses conceitos polissêmicos,
na grande maioria das vezes empregados como
equivalentes e sinônimos, despertou nossa atenção, pois
tanto na literatura como nos discursos aparecem como
conceitos novos, atuais e não como reatualizações [...]. A
noção de qualificação está associada ao repertório teórico
das ciências sociais, ao passo que o de competência está
historicamente ancorado nos conceitos de capacidades e
habilidades, constructos herdados das ciências humanas
– da psicologia, educação e linguística.

Embora a noção de competência seja conhecida no Brasil desde os anos


1970 na área das ciências humanas e sociais, como insiste Manfredi (1999),
a mesma aparece nos discursos organizacionais como consequência das
necessidades impostas pelo desenvolvimento das forças produtivas. Para Hirata
(1994), a noção de competência decorre da necessidade das organizações em
avaliar e classificar novos conhecimentos e habilidades exigidas no processo de
trabalho derivado da reorganização produtiva. Assim, a gestão por competências
passa a ser uma necessidade das organizações diante das transformações do
sistema de capital. Como mostra Faria (1992), a reorganização produtiva
designada como produção flexível não pode ser considerada apenas como um
processo de desenvolvimento de tecnologias físicas de base microeletrônica,
mas igualmente de tecnologias de gestão. Este modelo de desenvolvimento de
competências para o trabalho encontra-se associado ao programa de avaliação
de desempenho do trabalhador, segundo critérios de aptidão, habilidade,
conhecimento, capacidade de relacionamento interpessoal, entre outros. Trata-
se, assim, de um programa que expressa as relações de poder nas organizações
tendo como suporte um discurso ideológico concatenado com as relações sociais
e de produção do sistema de capital.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 695
multinacional

Considerações finais
O propósito desta pesquisa foi o de compreender de que forma a
organização Indústria ALFA, mediante o uso de métodos, técnicas e processos
embutidos em seu programa de Gestão por Competências, legitima a adesão,
o envolvimento e a concentração do indivíduo na implantação de sua missão
e na busca de seus objetivos, ou seja, de seus interesses objetivos e subjetivos
específicos. Para tanto, foi necessário revelar a lógica e o conteúdo do programa
de Gestão por Competências a partir duas Categorias de Análise (Poder e
Ideologia). A pesquisa indicou que o programa de Gestão por Competência da
Indústria ALFA encontra-se alicerçado em uma dinâmica de relações de poder
e em uma ideologia materialmente ancorada e amplamente disseminada no
âmbito da organização estudada.
Sendo a ideologia um sistema de ideias e de interpretação do mundo, a mesma
se propõe a apresentar ao sujeito uma certeza e não uma verdade a ser descoberta.
Para Enriquez (1997), as organizações precisam encontrar uma definição para
formatar seu desenvolvimento e, desse modo, definem uma ideologia e propõem
um ideal a ser seguido e atingido, colocando a si mesmas como objeto a ser
admirado e cujos objetivos deverão ser alcançados, exigindo esforço e trabalho por
parte dos seus membros. As organizações propiciam um ambiente de expectativas
futuras através de promessas com vários sentidos e, por esta razão, apregoam a
necessidade de entusiasmo e ao mesmo tempo de sacrifício dos seus empregados.
As promessas fazem parte do discurso fascinante da organização e devem participar
das construções imaginárias dos sujeitos, pois enquanto a organização oferta alguns
elementos de sedução e promete outros, a mesma se constitui em um lugar seguro,
em contraposição às incertezas do mundo exterior.
Sendo portadora de ideais e fantasias, as organizações, como sugerem
Pagès et al. (1987), pretendem fornecer uma concepção de mundo conforme
suas aspirações e uma interpretação do real coerente com suas práticas sociais.
Para ocupar seu lugar e realizar seus sonhos, o empregado é conduzido a
compartilhar cada vez mais intensamente da ideologia da empresa, participando
de tal forma do seu processo de institucionalização e reprodução, que sua
submissão à mesma instaura uma relação na qual a organização não precisa
coagi-lo e ameaçá-lo para estimulá-lo a produzir mais. À medida que se efetiva e
se intensifica a integração ideológica entre o sujeito e a organização, o resultado
aparece no que esta mais investe: o aumento da produtividade. A adesão à

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


696 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

ideologia do capital é uma forma de “sequestro da subjetividade” do empregado


que a ela se entrega plenamente (FARIA, 2004). A ideologia corporativa do
capital torna-se dogmática e o programa de gestão por competências se apresenta
como um guia que se encontra à disposição, pois a ideologia é um nível de
controle e uma base de poder.
Esta pesquisa reafirma as observações de Pagès et al. (1987) de que a
organização contemporânea através de um programa de competências exige dos
trabalhadores que estes persigam o “ideal de perfeição”, desenvolvendo processos
de identificação e de introjeção dos valores organizacionais. Dessa forma,
ao valorizar as competências, a organização induz o trabalhador a perseguir
objetivos e regras que ela dita, mas que acabam por se tornar vitais para o seu
próprio funcionamento psicológico, de maneira que este possa oferecer àquela
uma extrema dedicação. O programa de Gestão por Competência da Indústria
ALFA é um instrumento de organização e implantação de um comportamento
padronizado, fundado na ideologia do talento e no poder hierárquico. Há um
processo de indução de comportamento valorizado, comprometimento, adesão
aos interesses da organização, estabelecendo condições de desempenho capazes
de manter os sujeitos do trabalho envolvidos e empenhados na disseminação
dos valores e interesses objetivos e subjetivos específicos da Indústria ALFA.

Notas
1
O nome da Indústria será mantido em sigilo por exigência da mesma.
2
De fato, é uma simplificação atribuir à teoria piagetiana a responsabilidade
pelos programas de desenvolvimento e gestão do conhecimento aplicados
nas organizações contemporâneas. Entender a proposta de Piaget ajuda a
entender a lógica destes programas, mas não autoriza sua responsabilização.

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.
BATISTA, Eraldo Leme; CLARK, Jorge Ulson. A Ideologia do Trabalho e
da Educação Profissional no contexto das reformas neoliberais. Revista Rede
de Estudos do Trabalho. São Paulo, ano 3, n. 5, 2009.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 697
multinacional

BATTRO, Antonio M. Dicionário terminológico de Jean Piaget. São Paulo:


Pioneira, 1978.
BRITO, Lydia Maria Pinto. Gestão de competências, gestão do
conhecimento e organizações de aprendizagem: instrumentos de apropriação
pelo capital do saber do trabalhador. Cadernos de Educação, Pelotas, RS, n.
31, p. 203 - 225, jul./dez. 2008.
BOAM, Rosemary; SPARROW, Paul. Designing and achieving competency: a
competency-based approach to developing people and organizations. New
York: McGraw-Hill, 1992.
BUSS, David M. Evolucionary psychology: the new Science of the mind.
Boston: Allyn and Bacon, 1999.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CENTRE for Contemporary Cultural Studies. Da ideologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1980.
DAMÁSIO, António. The feeling of what happens: body and emotions in the
making of the consciousness. New York: Harcourt Brace, 1999.
DEJOURS, Chistophe. A banalização da injustiça social. 4. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2001.
ENRIQUEZ, Eugène. Organização em análise. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
FARIA, José Henrique de. Tecnologia e processo de trabalho. Curitiba: Editora
da UFPR, 1992.
FARIA, José Henrique de. Economia política do poder. Curitiba: Juruá, 2004. 3v.
FARIA, José Henrique de. Tecnologia, processo e organização do trabalho. São
Paulo. RAUSP; FEA-USP, 2007.
FARIA, José Henrique; LEAL, Anne Pinheiro, A gestão por competências no
quadro da hegemonia, 2005. In: FARIA, José Henrique (Org.). Análise crítica
das teorias e práticas organizacionais. São Paulo: Atlas, 2007. p. 142-166.
FLEURY, Maria Tereza Leme; FLEURY, Afonso. Construindo o conceito
de competência. Revista de Administração Contemporânea, Curitibav. 5, n.
especial, p. 183-196, 2001.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


698 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Representações Sociais, Ideologia e


Desenvolvimento da Consciência. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.
121, p. 169-186, jan./abr. 2004.
FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Análise do conteúdo. 2. ed. Brasília:
Liber Livros, 2007.
GAULEJAC, Vincent. Gestão como doença social. Aparecida, SP: Ideias &
Letras, 2007.
HIRATA, Helena. Da polarização das qualificações ao modelo de
competência. In: FERRETTI, Celso J. et al. Novas tecnologias, trabalho e
educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 124-138.
MANFREDI, Silvia Maria. Trabalho, qualificação e competência
profissional: das dimensões conceituais e políticas. Educação & Sociedade,
Campinas, SP, v. 19, n. 64, 1999.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente
filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do
socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845 – 1846). São Paulo:
Boitempo, 2007.
McCLELLAND, Douglas C. Education for competence. In:
HECKHAUSEN, H.; EDELSTEIN, W. (Ed.). Proceedings of the 1971
FOLEB Conference. Berlin: Institut fiir Bildungsforschung in der Max-
Planck-Gesellschaft, 1971.
McCLELLAND, Douglas C. Testing for competence rather than intelligence.
The American Psychologist, Washington, n. 28, n. 1, p. 1-14, jan. 1973.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MIRABILE, Richard J. Everything you wanted to know about competency
modeling. Training and Development, v. 51, n. 8, p. 73-77, aug. 1997.
PAGÈS, Max et al. O poder das organizações. São Paulo: Atlas, 1987.
PIAGET, Jean. Problemas da psicologia genética. Rio de Janeiro: Forense,
1973.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 699
multinacional

PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. Rio de janeiro:


Zahar, 1975.
PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas: problema central do
desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
PRAHALAD, C. K.; HAMEL, Gari. The core competence of the
corporation. Harvard Business Review, Cambridge, v. 74, n. 6, nov./dec.
1996.
RICOUER, Paul. Interpretação e ideologia. São Paulo: Francisco Alves, 1990.
SIQUEIRA, Marcus Vinicius Soares. O discurso organizacional em recursos
humanos e a subjetividade do indivíduo: uma análise crítica. Tese (Doutorado
em Administração de Empresas)Escola de Administração de Empresas de
São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2004.
WHITE, R. W. Motivation reconsidered: the concept of competence.
Psychological Review, Washington, n. 66, p. 297-333, 1959.
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e método. Porto Alegre:
Bookman, 2005.
ZARIFIAN, Philippe. Objetivo competência. São Paulo: Atlas, 2001.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


700 Cinthia Leticia Ramos e José Henrique de Faria

Poder e Ideología: el modelo Power and ideology:


corporativo de gestión the corporate model of
por competencias en una management skills in a
industria multinacional multinational industry
Resumen Abstract
Las organizaciones están atravesadas por The organizations are permeated by
contradictorias y complejas relaciones complex and contradictory relations
provocadas por los mecanismos de poder, triggered by mechanisms of power,
ideología y control. El interés de este ideology and control. The goal of this
artículo es analizar cómo se manifiestan study is to analyze how these relations
estas relaciones en el discurso de la are manifested in the discourse of
gestión por competencia, a través del
Management by Competence, through
análisis crítico del contenido acerca del
critical analysis of the corporative
modelo corporativo en una industria
model deployed in a Multinational
multinacional, llamada Industria Alfa.
Industry, here named ALPHA Industry,
El estudio se desarrolla a partir de dos
considering two categories of analysis:
categorías de análisis: el poder y la
power and ideology. The empirical data
ideología. Las fuentes de datos empíricos
sources are the institutional documents
son los documentos que definen y guían
of ALFA Industry that define and guide
a los procedimientos de gestión basada
the Competency based management
en competencias en la Industria Alfa. La
técnica de recolección de datos y análisis procedures. The technique of data
será el Análisis de Contenido según la collection and analysis is the analysis of
propuesta de Bardin y Franco. El enfoque content according to proposal of Bardin
que orienta el problema de la investigación and Franco. The approach that guides
será alrededor del discurso del sujeto the search problem will be around the
colectivo y su relación establecida con el collective subject and its relation with
conjunto de reglas y comportamientos the set of rules and behaviors required
que son impuestos ideológicamente y que for ideological organization, which
se materializan a través de la sumisión, la materializes through the submission, the
alienación y la servidumbre voluntaria en alienation and the voluntary servitude
las organizaciones. La base conceptual de in organizations. The conceptual base
esta investigación tendrá en cuenta una that will support this investigation is
concepción teórica crítica en relación characterized as a theoretical design
a las formas de poder y de control en critique of forms of power and control in
organizaciones específicas. organizations.
Palabras claves: Gestión por competencias. Keywords: Management skills. Working
Relaciones de trabajo. Ideología y poder. relationships. Power and ideology.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


Poder e ideologia: o modelo corporativo de gestão por competências em uma indústria 701
multinacional

Cinthia Leticia Ramos


E-mail: cinthialeticia.ramos@gmail.com

José Henrique de Faria


E-mail: jhfaria@gmail.com

Enviado em: 2/2/2013


Versão final: 14/3/2014
Aprovado em: 16/3/2014

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 32, n. 2, 667-701, maio/ago. 2014 http://www.perspectiva.ufsc.br


José Henrique de Faria

Introdução

O Grupo de Pesquisa “Economia Política do Poder em Estudos Organizacionais –

EPPEO” representa estudos que vêm sendo desenvolvidos desde 1978 sobre as

relações de poder e mecanismos de controle nas organizações, entendidas estas

objetivamente como unidades produtivas. Nesta trajetória foram publicados, além

de diversos artigos em revistas acadêmicas, os seguintes livros: em 1985,

“Autoritarismo nas Organizações” e “Relações de Poder e Formas de Gestão”; em

1987, “Comissões de Fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas”; em 1992,

“Tecnologia e Processo de Trabalho” (segunda edição em 1997); em 2004, “Economia

Política do Poder”, em três Volumes, inteiramente produzido durante o ano de 2003

na University of Michigan em Ann Arbor (sexta reimpressão em 2012); em 2007,

“Análise Crítica das Teorias e Práticas Organizacionais”; e em 2009, “Gestão

Participativa: relações de poder e de trabalho nas organizações”. Todos estes livros

tiveram como campo empírico unidades produtivas: (i) da indústria

(automobilística, metalúrgica, mecatrônica, têxtil) tanto no Brasil como nos USA,

com destaque para as chamadas big three em Detroit; (ii) de serviços (logística,
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

transporte, hospitalar, bancário); (iii) do setor público direto (educação,

planejamento); (iv) do chamado terceiro setor (ONGs); (v) das organizações

coletivistas de trabalho associado (cooperativas, empreendimentos

“autogestionários”, economia solidária).

Em síntese, as pesquisas foram iniciadas pelo estudo do movimento dos

trabalhadores da indústria metalúrgica e automobilística do ABC paulista (1978-

1979), em que foi tratado o tema do autoritarismo na gestão destas unidades e na

ação do Estado Capitalista em sua mediação repressora. O autoritarismo, em sua

forma manifesta, constitui todo o sistema de controle sobre a gestão do processo de

trabalho1. Posteriormente, continuando nesta linha de estudo sobre o sistema de

controle na gestão, foram estudadas as Comissões de Fábrica ainda em São Paulo,

enquanto forma de resistência operária à gestão autoritária e, ao mesmo tempo,

enquanto lócus estratégicos de ação da gestão das relações industriais pelas

fábricas (1980-1984). Em seguida (1988-1989), foi desenvolvida uma pesquisa tendo

1
Em 25 de fevereiro de 1984, Fernando Prestes Motta escreveu-me uma carta, da qual destaco este
trecho: “A manufatura é o local da gênese da organização despótica da produção, não porque a
coordenação do trabalho dividido seja naturalmente autoritária, mas porque ela assim se torna
quando os detentores do capital se diferenciam daqueles que apenas vendem sua força de trabalho.
Manufatura, fábrica e grande empresa automatizada, são estágios de avanço burocrático, na
medida em que concentram cada vez mais o poder na cúpula administrativa e vão diluindo a
propriedade dos meios de produção(...). Paulatinamente, a burocracia vai fazendo prevalecer um
único modo de sentir, pensar e agir, visto como legítimo e impondo o seu modelo organizacional aos
sindicatos de trabalhadores e aos partidos políticos de vanguarda, bem como às instituições
educacionais que reproduzem a subjetividade burocrática (...). São esses modelos, que antes de mais
59

nada submetem a ação afetiva e a ação racional com relação a valores à ação instrumental e que
Página

transformam a razão de ser em razão do poder, que são veiculados pela teoria geral da
administração”.
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

por campo empírico organizações produtivas instaladas na Cidade Industrial de

Curitiba que haviam incorporado tecnologias de base microeletrônica em sua

linha de produção, na qual se defendeu a proposta de que as tecnologias físicas e

de gestão2 são interdependentes e fazem parte do sistema e dos mecanismos de

controle do processo de trabalho, pelo capital, em nível global, em contraposição à

tese (ainda hoje defendida em alguns círculos) do chamado “modelo japonês de

gestão” ou do “pós-fordismo”. Em 2001 foi criado o Grupo de Pesquisa Economia

Política do Poder em Estudos Organizacionais – EPPEO, registrado no Diretório dos

Grupos de Pesquisa no Brasil, do CNPq, e certificado pela UFPR, em 2002, e hoje já

consolidado (www.eppeo.org.br ou www.teoriacritica.org). A partir do EPPEO as

pesquisas passaram a ser efetiva e praticamente coletivas.

Atualmente, o EPPEO conta com 25 doutores, 12 mestres (sendo três em

doutoramento), um especialista, e 7 alunos de graduação.

A produção do EPPEO, segundo o censo de 2010, que teve por base a plataforma

Lattes, pode ser resumida no Quadro 01, abaixo.

2
Neste estudo, que se constituiu em minha tese de Professor Titular da UFPR, propus os conceitos de
tecnologia física, tecnologia de gestão, tecnologia de processo e tecnologia de produto. Tecnologia de
gestão é, hoje, uma expressão bastante utilizada na área de estudos sobre organizações com
diferentes significados, sendo os mais comuns os que a consideram como: (i) conjunto de disciplinas de
gerenciamento que permite que as organizações criem vantagens competitivas; (ii) integração de
60

planejamento, projetos, otimização, operação e controle de produtos tecnológicos, processos e serviços;


Página

(iii) gestão do uso da tecnologia para o “proveito humano”. Nenhum destes corresponde ao conceito
proposto, como se verá adiante.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Quadro 01: Indicadores de Produção do EPPEO (2007-2010)


Indicadores de Produção C, T & A de Integrantes do Grupo - 2007-2010

TIPO DE PRODUÇÃO 2007 2008 2009 2010


Produção bibliográfica 384 282 161 194
Artigo completo publicado em periódicos especializados (circulação nacional) 37 51 35 57
Artigo completo publicado em periódicos especializados (circulação internacional) 3 5 0 0
Trabalhos completos publicados em anais de eventos científicos, tecnológicos e artísticos 86 103 48 50
Livro 5 12 4 0
Capítulo de livro 114 35 27 49
Resumo de trabalhos publicados em revistas técnico-científicas 0 0 0 0
Resumo de trabalhos publicados em anais de eventos científicos, tecnológicos e artísticos 139 76 47 38

Produção Técnica 339 410 251 318


Software com registro ou patente 0 0 0 0
Software sem registro ou patente 0 0 0 0
Produto tecnológico com registro ou patente 0 0 0 0
Produto tecnológico sem registro ou patente 2 0 0 0
Processo ou técnica com catalogo/registro 0 0 0 0
Processo ou técnica sem catalogo/registro 0 0 0 0
Trabalhos técnicos 43 76 94 125
Apresentação de trabalhos 148 162 100 101
Outros trabalhos técnicos 146 172 57 92

Orientação concluída 162 179 89 84


Dissertação de mestrado 26 25 39 12
Tese de doutorado 4 4 4 2
Monografia de conclusão de curso de aperfeiçoamento/especialização 23 65 9 6
Trabalho de conclusão de curso de graduação 79 76 17 38
Iniciação científica 30 9 20 26

Produção artística/cultural 3 0 2 1

Demais trabalhos 576 645 336 40


Fonte: Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq.
61 Página

Registre-se, também, além dos indicadores de produção:


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

i. Projetos Financiados pelo CNPq: 08;

ii. Projetos Financiados por Outras Agências de Fomento: 06;

iii. Eventos Nacionais Promovidos: 03;

iv. Pesquisas Institucionais Realizadas e Concluídas: 12;

v. Divulgação de Resultados das Pesquisas (vídeos, relatórios, análises,

material didático etc.): disponíveis a partir de Novembro/2008 no site

www.teoriacritica.org ou www.eppeo.org.br cujos domínios foram

adquiridos pelo Grupo;

vi. Criação do Laboratório de Mudanças Organizacionais - LAMO em julho de

2012;

vii. Bolsas de Iniciação Científica Financiadas: 18;

viii. Relatórios de Pesquisa Concluídos: 09;

ix. Material Didático de Formação/qualificação: 24;

x. Parceria Institucional: Instituto Ambiens de Pesquisa, Educação e

Planejamento; Ambiens Sociedade Cooperativa3.

A criação do EPPEO, em 2001/2002, decorreu da convicção de que havia uma linha

coerente de investigação desde 1978, ainda que não tivesse sido previamente

planejada: relações de poder e mecanismos de controle na gestão do processo de

trabalho nas unidades produtivas. Esta linha de pesquisa teve decisiva influência
62

3 Com a integração das plataformas pelo CNPq e pela CAPES, parece inadequado a manutenção dos
Página

Censos dos Grupos de Pesquisa. Toda a produção desses grupos deveria ser automaticamente
registrada a partir dos Currículos Lattes dos pesquisadores.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

de Maurício Tragtenberg e de suas orientações. A criação do EPPEO favoreceu a

revisão, organização e sistematização desta trajetória de pesquisa e a proposição

da Teoria da Economia Política do Poder. Neste trajeto percorrido, muitas questões

ficaram mais claras e outras tantas bem mais complexas do que pareciam. Sendo

mais específico, as linhas orientadoras dos estudos e pesquisas que começaram

pelo materialismo histórico e avançaram para a Teoria Crítica Frankfurtiana,

especialmente da primeira e terceira gerações, incorporando reflexões no campo

da psicossociologia, retornaram ao materialismo histórico não ortodoxo e à

definição de uma epistemologia crítica própria: Epistemologia Crítica do Concreto.

A dimensão epistemológica do materialismo histórico e o método dialético

constituem a linha de orientação básica de todo o projeto desenvolvido, o que tem

permitido um permanente diálogo crítico com teorias de diversas origens. O

desenvolvimento das pesquisas e a maior clareza quanto às formas de realizá-las

neste percurso de cerca de 40 anos inspiraram tanto a definição das condutas

acadêmicas quanto sua consolidação.

A repercussão da teoria proposta, em especial no ambiente acadêmico crítico (que,

como se sabe, é minoritário na área de Estudos Organizacionais), mostra que a

energia despendida nestes estudos não tem sido em vão. Na área da gestão e dos

estudos organizacionais, é certo que proposições críticas, como esta, têm muito

menos visibilidade que aquelas tradicionais ou conservadoras. Mas estas


63

proposições certamente oferecem mais contribuições originais e geram maior


Página

impacto teórico, político e ideológico do que as tradicionais, mais voltadas às


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

medidas oficiais de impactos (explicitamente, as medidas do tipo Qualis Capes que

simplesmente reproduzem a versão burocrática conservadora das ciências

positivistas).

O esforço didático para tornar a análise crítica mais acessível por parte do EPPEO,

contudo, não faz qualquer concessão aos manuais de autoajuda profissional e às

cartilhas sobre gestão com suas fórmulas mágicas de sucesso imediato, com

recomendações indiscutíveis, com estratégias infalíveis e com discursos de

produtos fáceis que tanto encantam consultores e camelôs do ensino superior. A

lógica da reprodução conservadora difere completamente da lógica da produção

do saber crítico. Fazer a crítica não é dar a última e definitiva palavra, nem

considerar que tudo o mais é inútil, mas é apontar os problemas onde imperam as

certezas.

Neste sentido, é necessário esclarecer que o Grupo de Pesquisa EPPEO, que pertence

ao terreno da polêmica por conta de sua proposta, não pretende encerrar o

assunto e esgotar a teoria que propõe. Seu objetivo é o de realizar outra leitura da

realidade da gestão do processo de trabalho nas organizações produtivas, em

contraposição ao mainstream tradicional da Teoria das Organizações e da Teoria da

Administração. De fato, o caráter inovador da abordagem do poder, do controle e

do trabalho, o alargamento da análise do sistema de capital bem ali onde ele atua
64

cotidianamente, a construção de um corpo teórico interdisciplinar que valoriza o


Página

diálogo entre teorias e a proposição de uma Teoria da Economia Política do Poder,


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

decorrem exatamente deste quase “vazio analítico crítico” ao mainstream

tradicional.

Dar forma a uma questão tão complexa como a das relações de poder, dos

mecanismos de controle do trabalho na gestão do processo de produção por

unidades produtivas sob o comando do capital, colocando-se em posição crítica

quanto a este tema ao enfrentar conceitos arraigados e uma ideologia dominante

secular, exige mesmo a proposição de uma teoria nova. Como toda teoria nova,

esta também instaura a controvérsia e suscita divergências, não só no campo

tradicional, como no da própria crítica. Tal proposição demandou algum tempo

para se consolidar, ainda mais em uma área tão cheia de manuais, de receitas

prontas e de autoridades no assunto que tomam conta das prateleiras, das salas de

aula e dos encontros acadêmicos mundo afora. Uma área tão preenchida de gurus,

xamãs, palestrantes itinerantes, consultores e inventores de moda precisa ser

enfrentada de uma forma crítica científica, fundamentada no campo empírico, ou

seja, no plano do real concreto, opondo-se ao mainstream tradicional e seus

derivativos contemporâneos e de resistência ao poder avassalador da ideologia do

sistema de capital que penetra em todos os poros do tecido social.

Para quem acredita que administrar é apenas uma atividade técnica, o Grupo de

Pesquisa EPPEO tem muito a dizer. Administrar é fazer política, decidir é uma
65

ação política, tal como planejar. A gestão é uma atividade política, pois a mesma
Página

corresponde a governar (gerir) e disto já sabia Machiavel em "O Príncipe" e sua


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

arte de fazer política (administrar). Administrar não se esgota na administração

de empresas, pois muitos são os tipos de organização e de empreendimentos

(inclusive os populares) que são administrados. Em qualquer caso, sempre é

preciso uma avaliação crítica desta atividade. No EPPEO, especificamente, a

proposta de uma análise crítica pretende indicar as contradições mais evidentes

da gestão nas unidades produtivas sob o comando do capital e mostrar que se

alternativas para uma gestão democrática são difíceis, também são possíveis.

As diversas pesquisas realizadas durante vários anos sobre a gestão do processo e

da organização do trabalho nas unidades produtivas mostraram que os

mecanismos de controle, enquanto exercício do poder no plano organizacional,

constituem o elemento central de toda a gestão. Este sistema é, assim, a realidade

imediata de onde se deve partir. A realidade imediata revela apenas a aparência

do fenômeno, contudo é dela que se deve partir para que a ela se possa retornar,

não para vê-la da maneira como se apresenta, mas como a mesma opera em suas

formas manifestas e ocultas, explícitas e sutis, enfim, em sua aparência e conteúdo.

Do ponto de vista do sistema de capital, os mecanismos de controle são aplicados

sobre o tempo e o processo de trabalho para assegurar a necessidade histórica da

produção de valor e da acumulação do capital.

A proposta do EPPEO, portanto, é apresentar uma forma de análise, avaliação e


66

conhecimento a partir de uma leitura crítica, ou seja, leitura de uma face das
Página

organizações e da gestão que constitui sua negação, compondo uma unidade de


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

contrários. Isto significa que a gestão das organizações se apresenta

dialeticamente em sua dupla face e não apenas em sua versão gerencial como tem

sido amplamente exposta. A face “business” é bem conhecida através dos manuais,

trabalhos acadêmicos publicados em revistas científicas e em outros estudos e

discursos. Trata-se, então, de apresentar a outra face da mesma moeda, ou seja,

suas contradições. É preciso indicar que o mundo do planejamento estratégico

organizacional, do marketing, da administração financeira e da produção, da

gestão de pessoas, é o mundo da fantasia ideológica da harmonia e da

naturalização do modo capitalista de produção. É preciso enfrentar este modelo de

gestão submetido ao sistema de capital e à burocracia bem ali onde o mesmo é

produzido, reproduzido e ensinado.

O Grupo de Pesquisa EPPEO tem como campo empírico as organizações produtivas

sob o comando do capital e, portanto, vai se deter na análise das relações de poder

e de trabalho e dos sistemas de controle que estas foram historicamente

construindo e aperfeiçoando, de forma a torná-los cada vez menos visíveis e mais

eficientes. Por que o corte analítico escolhido é o da organização (unidade

produtiva sob o comando do capital) e de sua gestão? Porque é neste nível que se

desenvolvem concretamente e de maneira privilegiada os mecanismos de

controle e as formas de resistência aos mesmos desde uma perspectiva prática ao

alcance imediato da investigação científica. É na organização produtiva


67

capitalista, expressão da unidade do correspondente modo de produção, que as


Página

práticas de controle sob o processo e a organização do trabalho podem ser


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

observadas de perto, em seu desenvolvimento concreto. Este corte analítico de

forma alguma pretende diminuir a instância categorial do modo de produção. Ao

contrário, é no interior deste modo de produção que a organização produtiva

opera plenamente na medida em que ela o constitui.

As pesquisas acerca das relações de poder não são propriamente novas na área

dos estudos organizacionais. Entretanto, foi apenas a partir dos anos 1970 que as

mesmas trouxeram para o debate, no Brasil, a perspectiva da Teoria Crítica. Sabe-

se que quanto mais se ampliam as bases teóricas, conceituais e epistemológicas da

Teoria Crítica em Estudos Organizacionais, mais se expandem e diversificam as

perspectivas de desvendamento de novas interpretações e de novos campos de

investigação. O Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos

Organizacionais - EPPEO tem desenvolvido sua produção a partir das seguintes

linhas de pesquisa: (i) Epistemologia e Teoria Crítica; (ii) Formas de Gestão, Poder e

Relações de Trabalho; (iii) Poder, Trabalho e Controle; (iv) Estado, Poder e Políticas

Públicas; (v) Reestruturação Produtiva, Relações e Organização do Processo de

Trabalho.

Fundamentos epistemológicos e metodológicos

A explicação de todo o processo epistemológico e metodológico que orienta o Grupo


68

de Pesquisa decorre da necessidade de esclarecer as formas pelas quais a matéria


Página

(objeto da pesquisa em seu campo empírico) é apreendida pela consciência (sujeito


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

da pesquisa em sua relação com o objeto), de maneira a que seja possível

desenvolver a Teoria da Economia Política do Poder, com ênfase em um de seus

aspectos mais essenciais, a teoria crítica da gestão e do controle do processo de

trabalho.

Na perspectiva de Teoria da Economia Política do Poder o método de produção do

conhecimento tem por fundamento a primazia do real sobre a ideia, entendendo,

contudo, que o real para ser apropriado pela consciência necessita da mediação do

pensamento, recusando tanto o empirismo quanto o idealismo. A inscrição da

matéria na consciência mediada pelo pensamento não se constitui nem em uma

tradução direta, sem intermediação, nem em uma elaboração metafísica, mas em

uma interação dialética, tensionada e dinâmica, marcada pela complexidade e

pelas contradições entre o sujeito e o objeto. Como orientação epistêmica este livro

situa-se na dimensão de uma Epistemologia Crítica do Concreto de base

materialista histórica. Como orientação metodológica situa-se no procedimento

dialético4. Tal vinculação entre o materialismo histórico da epistemologia e a

dialética da metodologia não pretende prestar contas ou submeter-se a qualquer

dogma, à ortodoxia ou a qualquer corrente marxista específica, na medida em que

4
O método dialético consiste em analisar o objeto (a matéria) em sua totalidade ou inteireza (o total
não é o absoluto), em suas múltiplas relações causais (que nada tem a ver com relações causa-efeito),
em suas contradições, complexidade e movimento. Toda matéria contém um duplo caráter, constitui-
se como uma unidade de contrários. O método guia o sujeito pesquisador na apropriação do real e é
na dialética do real que se encontra a dialética da análise. A exposição dos resultados da pesquisa (o
69

texto), contudo, obedece às formalidades linguísticas, à gramática. A dialética está na realidade e no


Página

método de análise. O texto expõe, de maneira formal, a teoria, o conceito, enfim, a realidade complexa
resultante da pesquisa.
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

se constitui em uma proposta de avanço teórico, com base em uma epistemologia e

uma metodologia críticas do concreto. Não se deseja, aqui, depreciar o dogmatismo

(também chamado de fidelidade) marxista, apenas indicar que não se assume

nenhum compromisso com qualquer corrente do marxismo exatamente por

entender que este tipo de procedimento dogmático é o pai do idealismo que o

marxismo tanto critica.

Cabe também aqui insistir em uma observação importante sobre a relação do

sujeito com o real e com suas expressões. Como a Teoria da Economia Política do

Poder trata também do simbólico, do imaginário e das ideologias, não há como

deixar de indicar, como já notaram Marx e Engels em sua famosa crítica à

ideologia alemã e Castoriadis em seu clássico estudo sobre a instituição imaginária

da sociedade, que a ideologia produz seu próprio esquema de interpretação, de

dissimulação, de justificação, de divulgação e de renovação. Assim, é necessário

observar, mesmo na perspectiva hermenêutica, que todo o saber que se propõe

objetivo é precedido por uma relação de pertença social que jamais se pode refletir

inteiramente e que, embora este saber possa aspirar certa autonomia, jamais

rompe com os vínculos em que se fundamenta. Não existe pesquisador sem

ideologia. Assim, nada é mais necessário que a renúncia à arrogância para que se

possa empreender com paciência o trabalho incessantemente retomado do

distanciamento e do assumir a condição histórica. Cabe, portanto, ao sujeito


70

pesquisador compreender que o distanciamento possível de sua vinculação


Página

ideológica jamais irá lhe conferir neutralidade axiológica e que o saber que se
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

pode produzir carrega em si os vínculos iniciais. Tais vínculos, convém insistir,

não podem ser confundidos com os “mapas cognitivos”, pois enquanto os primeiros

decorrem de uma posição política os segundos decorrem da escolha arbitrária de

pressupostos conceituais.

A investigação deve partir de bases reais e não da imaginação que se tem sobre a

realidade. Como já indicava Marx (2007, p. 37):

Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e


tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a
partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens
realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se
também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse
processo de vida. [...] Os homens, ao desenvolverem sua produção material
e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua
realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar.

Com este sentido, para a Teoria da Economia Política do Poder o real é o que existe

concreta e materialmente tal como é experienciado e apropriado pela consciência,

mesmo que esta existência e esta experiência se operem apenas no plano das

ideias ou das emoções e não representem o concreto compartilhado ou o concreto

físico (tangível). Deste modo, o “material” é tudo o que pode ser apreendido pela

consciência como matéria pensada. As fantasias, as ilusões, os mitos, o imaginário,

a ideologia, as sensações, ainda que não encontrem correspondência no plano

tangível, existem concretamente para o sujeito como sua realidade (ainda que dela
71

não tenha necessariamente plena consciência) e, como tal, são existências reais, ou
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

seja, embora seus conteúdos possam ser abstratos, o plano das ideias e dos

sentimentos tem uma existência real. Nem sempre se trata de um real objetivado

ou passível de compartilhamento, mas isto não torna estes fenômenos menos

importantes na definição da ação concreta dos sujeitos. Uma parte desta realidade,

pelo fato de não poder ser compartilhada ou por não ser referenciada a uma

inteligibilidade, tem sido considerada como não pertencente ao plano do real.

Entretanto, a psicossociologia e a psicanálise já demonstram que o que não pode

ser compartilhado e o que existe no inconsciente intervêm na ação e no

pensamento dos sujeitos. Em outras palavras, são fenômenos reais.

Nesta mesma esteira, é por considerar que as fantasias, os símbolos, os mitos, as

emoções e o conhecimento não têm significado real físico, que a razão instrumental

só pode tomar o real como significação pensada do visível, minimizando ou mesmo

negando a importância da subjetividade na ação do sujeito. É por considerar que

só pode existir uma verdade absoluta que a lógica positivista não admite as

possibilidades de existência de contrários.

Desta discussão entre material e imaterial decorre outra, tão polêmica quanto.

Sem dúvida, uma das mais insistentes objeções de marxistas e freudianos em

geral refere-se à pretensão de juntar Marx e Freud em um mesmo plano teórico.

Epistemologicamente, as teorias de Marx e Freud encontram-se em planos


72

antagônicos. Entretanto, do ponto de vista da Teoria da Economia Política do Poder,


Página

a questão central é o quanto este antagonismo pode ou não ser apropriado


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

metodologicamente. Não se trata de saber, portanto, o quanto o pensamento real

corresponde ao concreto visível ou compartilhado, mas o quanto corresponde à

ação do sujeito, ainda que não possa ser percebido, pois se as relações que o sujeito

é capaz de elaborar incluem elementos que representam tanto o concreto expresso

quanto o imaginário, tanto a razão como o afeto, tanto o consciente como o

inconsciente, tanto a atividade manual quanto a intelectual, isto deve significar

que todas estas inclusões estejam presentes em sua ação e em seus conceitos. Neste

sentido, igualmente, não é suficiente deduzir a natureza do sujeito pelo seu

comportamento manifesto e tampouco pretender entendê-lo a partir apenas de

estímulos.

Este tema não é novo, tendo sido enfrentado pela primeira geração da Escola de

Frankfurt, especialmente por Fromm, Marcuse e Reich (ROUANET, 1998). Um dos

primeiros estudos que buscam estabelecer uma relação metodológica e teórica

entre a psicanálise e o marxismo foi desenvolvido por Osborn (1943), que

apresentou uma abordagem então inovadora na qual ilustrou as inter-relações

entre a vida subjetiva, descrita por Freud, e o mundo objetivo das relações de

produção, investigado por Marx: “um erro muito divulgado é que a concepção

marxista exclui de toda a consideração as qualidades subjetivas que jogam, a cada

instante, um papel tão importante na conduta humana (OSBORN, 1943, p. 23). Entre

tantas proposições sobre o tema, Viana (2008) apresenta os ensaios “universo


73

psíquico e reprodução do capital”, “Freud e o marxismo”, “Freud e a abjuração dos


Página

sentimentos” e “Marcuse e a crítica ao neofreudismo”. Todas estas propostas


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

sugerem a perspectiva aqui adotada de que na relação entre a psique e a razão,

entre o subjetivo e o objetivo, o real se torna o mundo cognoscível na forma de

concreto pensado, tanto no plano consciente quanto na constituição do inconsciente.

Desta maneira, segundo Marx (2013), o movimento das categorias de análise

aparece à consciência como um verdadeiro ato de produção decorrente do real e

seu movimento tem como resultado o mundo concreto. Se este movimento

decorresse da ideia, a totalidade concreta seria apenas produto do pensamento e

da representação que se moveriam por si mesmas, ou seja, produtos absolutos do

conceito que se originaria a si próprio, que pensaria acima e à parte da percepção

e da representação. As categorias, ao contrário, são produtos da elaboração

consciente partindo do real. Como indica Marx (2013, p. 162), “as coisas são, em si

mesmas, exteriores ao homem”, e é por isso que ele só pode apropriar-se delas

como coisas pensadas. Portanto, a totalidade que se manifesta na mente como um

todo pensado é produto do cérebro pensante que se apropria do mundo pela única

forma possível.

Ainda que se possa intuir que há mais do que se percebe e do que se elabora,

convém insistir que o real para a consciência (real pensado) é apenas o que pode

ser concebido a partir do concreto, do que é material à apreensão pelo sujeito.

Assim, se o sujeito se dedica a uma atividade especulativa ou puramente teórica, o


74

mesmo subsistiria autonomamente com relação à mente, em uma separação


Página

racional cartesiana. Isto ocorreria se o sujeito, social e historicamente


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

compreendido, atuasse de forma constante sobre a mente como condição prévia da

apreensão, representação e elaboração.

O Grupo EPPEO, portanto, fundamenta-se em uma análise com base no

materialismo histórico, ao qual agrega uma interpretação oriunda da

psicossociologia e da psicologia social freudiana, pois pretende dar conta de um

corte analítico sobre o qual o marxismo tradicional não tem se debruçado

suficientemente. Esta relação entre o marxismo e a psicologia social, como

mencionado, foi explorada de forma original pela Teoria Crítica, porém com outra

finalidade que não a da análise das relações de poder e dos mecanismos de

controle sobre o processo de trabalho nas unidades produtivas capitalistas. Ainda

que possa, esta agregação, ainda gerar certa estranheza em alguns círculos

acadêmicos mais ortodoxos, a mesma é absolutamente necessária para alcançar

os objetivos pretendidos pelo Grupo e deve ser perseguida como uma contribuição

que, se não é inteiramente nova, tampouco é dogmática. O que o EPPEO procura

fazer não é um exercício de neomarxismo, de marxismo revisionista e tampouco

se filiar a qualquer qualificação deste ou de outro gênero. É preciso insistir que o

EPPEO não tem nenhuma intenção de pagar tributo a qualquer corrente de

pensamento marxista ortodoxo ou prestar contas a nenhum marxismo em

particular.
75
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

A inserção da psicossociologia e da psicologia social freudiana5 orientado pelo

materialismo histórico é um recurso fundamental para entender a física do poder,

ou seja, a prática da gestão e do controle do processo de trabalho no mundo do

capital, nas organizações produtivas sob seu comando, exatamente ali onde as

relações de poder e sua objetivação em mecanismos de controle diariamente se

produzem e reproduzem. Assim sendo, “o método crítico toma o que os outros

disseram e vislumbraram e trabalha com este material a fim de transformar o

pensamento – e o mundo que ele descreve – em algo novo (...). Um conhecimento

novo surge do ato de tomar blocos conceituais radicalmente diferentes, friccioná-

los uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário” (HARVEY, 2013, p. 14).

Em tal perspectiva, é crucial tomar os argumentos desenvolvidos nas teorias,

desconstruí-los criticamente (procurar suas contradições, limites e falhas), repará-

los em novos termos e transformá-los em conceitos úteis.

Em síntese, é preciso compreender que a observação imediata de um fenômeno

não permite, por si só, sua captura como fenômeno pensado em sua inteireza. A

aparência do fenômeno indica apenas sua forma tal como parece ser e não como

de fato é, ou seja, em sua pseudoconcreticidade. Para compreender um fenômeno é

necessário partir de sua forma imediata, mas é fundamental ir além dela e isto

requer uma elaboração e uma reflexão em profundidade (mediação pelo

pensamento). Ao mesmo tempo, partir de uma teoria dada para com ela
76

5
Eventualmente recorre-se diálogos com a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours), com Piaget,
Página

Vygotsky e outras correntes da psicologia naquelas concepções que possam auxiliar no


desenvolvimento argumentativo.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

compreender um fenômeno permite ao sujeito ver no mesmo apenas o que já

estava previamente definido na ideia, pois, neste caso, o fenômeno “mostra” ao

sujeito somente aquilo que ele pretendia ver antes mesmo de conhecê-lo.

A teoria crítica

A concepção da Teoria Crítica tem sido relacionada diretamente à Escola de

Frankfurt (BOTTOMORRE, 1984), enquanto compreensão totalizante e dialética,

capaz de fazer emergir as contradições da sociedade capitalista. Entretanto, a

Teoria Crítica não é uma unidade na Escola: o grupo que se organiza em torno do

Instituto de Pesquisa Social (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin, Fromm,

Pollock), conhecido como a primeira geração da escola, adota fundamentos

diferentes dos seguidos por Habermas, que representa segunda geração, cujos

textos no início seguem as linhas definidas pelo grupo, mas reformula a noção de

Teoria Crítica tomando outro rumo e abandonando os fundamentos marxistas que

caracterizam a Escola de Frankfurt. A chamada terceira geração, representada

por Honneth, volta-se à filosofia hegeliana pretendendo emprestar a esta um

caráter empírico no que se refere ao tema do reconhecimento social. Mesmo no

primeiro grupo existem diferenças, que podem ser resumidas em dois textos:

Tradizionelle und Kritische Theorie, publicado em 1937 por Horkheimer e Philosophie

und Kritische Theorie, publicado no mesmo ano por Marcuse como resposta a
77

Horkheimer.
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

A Teoria Crítica pretendia denunciar a repressão e o controle social a partir da

constatação de que uma sociedade sem exploração é a única alternativa para que

se estabeleçam os fundamentos da justiça, da liberdade e da democracia. Neste

sentido, os teóricos da Escola de Frankfurt investiram tanto contra o nazismo, do

qual foram vítimas, quanto contra o totalitarismo que se introduziu na União

Soviética, sob Stalin. Assim, ao mesmo tempo em que se vinculam ao pensamento

marxista, esses teóricos não abdicam da crítica a determinados marxismos (os

mecanicistas, os naturalistas, as versões fisicalistas da história elaborada pelos

leninistas, entre outros), retomando a dialética hegeliana em sua versão

materialista e dialogando com Freud, Weber e outros pensadores não marxistas.

Tais diálogos abriram espaços para a ampliação das análises de fundamento

marxista, entre outras, nas áreas da estética, da cultura, do conhecimento, da

linguística, da psicologia social e das organizações. A Teoria Crítica oferece não

apenas um modo de interpretação de como a produção humana relaciona-se com

os desejos, conflitos e potenciais, mas também uma forma de desenvolver

habilidades para pensar lógica e criativamente, afastando-se do pensamento

canonizado.

O Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) foi fundado no interior

desse confronto entre as diversas disciplinas, os dogmas em que se tornaram

algumas teorias e as diferentes análises de uma teoria, cada qual avocando para
78

si a primazia da verdadeira interpretação. O marxismo, que detinha certa


Página

unidade e uma identidade, passava a conviver com a fragmentação. O objetivo


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

inicial dos fundadores do Instituto e de toda a primeira geração era apresentar

um modelo de marxismo como alternativa às concepções que dividiam o

marxismo. Tratava-se, neste momento, de resolver o problema da crise e da

fragmentação, de retomar a tradição do marxismo para restabelecer sua

identidade. Um dos pontos cruciais na crise do marxismo residia em uma

discordância quanto ao caminho e aos meios para se chegar ao poder: pela via das

reformas ou da revolução. Tal divergência relacionava-se às análises que

estavam na base dos diagnósticos e prognósticos. É nesse contexto que surge o

programa de Horkheimer de um materialismo interdisciplinar.

Para compreender o mundo, Horkheimer (1972; 1974; 1990) julgava, como Lukács

(1974; 1974b), que se deveria partir do marxismo, porém refundindo-o com a

incorporação de outros saberes. Esse movimento, iniciado com Lukács e Korsch,

denominado por Wiggershaus de “marxismo ocidental”, tem um dos seus eixos na

abertura para saberes, teorias científicas ou filosóficas, não diretamente

marxistas. Neste sentido, uma das novidades do materialismo interdisciplinar

proposto por Horkheimer foi a tentativa de compatibilizar Marx e Freud, questão

que veio a se tornar extremamente relevante nos anos 1930 (BRONNER, 1997) e que,

atualmente, no campo da psicologia social e dos estudos organizacionais, adquire


79
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

um lugar de destaque6. Horkheimer (1990) procurou compreender as

manifestações culturais a partir das condições de produção da vida material

relacionando os conceitos freudianos de estrutura psíquica com a teoria marxista

da reificação.

Para Adorno (1994) “a investigação social crítica deve mostrar como nas relações

subjetivas cintilam determinantes sociais objetivos”, ou seja, o modo de produção

“condiciona a consciência e o inconsciente dos indivíduos”, de forma que é “como

dimensão reificada, carente de autonomia, que a subjetividade se torna tema

prioritário de investigação”. A subjetividade, portanto, não deve ser descartada de

uma análise epistemológica crítica como se a mesma pertencesse apenas ao

terreno da pura especulação.

A economia política do poder em estudos organizacionais

A Economia Política do Poder é uma teoria crítica que não se vincula diretamente

à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica tal como definida por Adorno e

Horkheimer, mas que reconhece sua importância para os estudos organizacionais,

incorporando orientações que são fundamentais para a compreensão das relações

6
É sempre necessário algumas cautelas na incorporação dos conceitos. Lacan (2008), por exemplo,
sugere o conceito de mais-de-gozar como uma homologia ao conceito de mais-valia de Marx. Lacan se
permite uma “licenciosidade poética” e, nesse sentido, desenvolve um conceito que do ponto de vista
80

epistemológico, metodológico e teórico, não tem relação com o conceito de mais-valia. O problema
Página

assume contornos teóricos graves quando os conceitos originários de uma Epistéme são
incorporados diretamente por outra sem qualquer mediação.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

de poder e dos mecanismos de controle. A teoria crítica que aqui se propõe

constitui-se em uma teoria não apenas da economia (das relações de produção das

condições materiais de existência), mas igualmente do poder (da ideologia, da

alienação, da política, do ordenamento jurídico, enfim, da assim chamada

superestrutura). É com este sentido que se desenvolve a Teoria da Economia

Política do Poder. Desta forma, os estudos atuais sobre a vida nas organizações

vêm sugerir que é preciso investigar mais do que as racionalidades

instrumentais, que as estratégias, que as instituições, que os comportamentos e que

as políticas. A análise das organizações necessita também desvendar o mundo

objetivo e subjetivo das relações de poder e as formas de controle que as mesmas

impetram para se sentir autorizada a compreender essas organizações e suas

finalidades. Entende-se que isto pode conferir qualidade à teoria, criar condições

de análise e promover intervenções políticas em ambientes de trabalho

preenchidos de competitividade de toda a ordem.

É neste sentido que se torna obrigatório apresentar os fundamentos da Teoria da

Economia Política do Poder no estudo da gestão do processo de trabalho nas

organizações, com a finalidade de indicar que a compreensão da vida nas mesmas

e sua dinâmica exigem um esquema teórico-metodológico crítico e dialético, que

seja capaz de responder às questões que afetam a vida cotidiana dos sujeitos das

mais variadas formas e que valorizem o sujeito coletivo mais do que as


81

organizações em que trabalham, pois de um modo ou de outro, se todos vivem em


Página

função de organizações ou delas dependem, como sugere Etzioni (1976), todos vivem
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

originalmente em sociedade: especificamente, em uma sociedade dominada pelo

sistema de capital. As organizações são, de fato, construções sociais e históricas que

adquirem autonomia relativa em relação aos sujeitos que a constituíram e que se

consolidam como instâncias de mediação entre os interesses dos sujeitos a ela

vinculados e os objetivos para os quais foram criadas. As organizações não são

entes abstratos, sujeitos absolutos, entidades plenamente autônomas, unidades

totalizadoras e independentes, mas construções histórico-sociais complexas,

dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas formais e culturais,

manifestas e ocultas, concretas e imaginárias.

O problema central da Teoria da Economia Política do Poder, portanto, consiste em

esclarecer em que medida as instâncias ocultas (que se operam nos bastidores

organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e as

manifestas (inclusive e especialmente as referentes ao regramento e às

estruturas) dão conteúdo às configurações do poder e do controle nas

organizações. Dito de outro modo, é preciso revelar em que medida as

organizações concretas definem suas relações de poder e seus mecanismos de

controle, incorporando o que não pode ser dito e o que se reproduz em seus porões,

ao que é possível falar, ao que pode ser manifesto às claras, de maneira a criar um

mundo ao mesmo tempo de racionalidades (de regras, objetivos, políticas, processos

produtivos, planos, estratégias, etc.) e de subjetividades (símbolos, ritos, elementos


82

imaginários e mitos), com seus paradoxos e contradições.


Página
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

As formas concretas de organização do mundo contemporâneo só podem ser

compreendidas como resultados de um processo histórico, em todas as suas

instâncias. Muitos podem ser os enfoques e variadas as abordagens analíticas a

que podem recorrer os pesquisadores no sentido de investigar de que maneira

estas formas de organização ocorrem nas diversas sociedades e quais seus

reflexos na vida da social e organizacional, em diferentes aspectos. A Teoria da

Economia Política do Poder se propõe a dar suporte conceitual ao estudo de

organizações concretas a partir da perspectiva das relações sociais de produção,

do desenvolvimento das forças produtivas e das relações entre sujeitos e grupos

sociais com o objetivo de analisar sua anatomia. A definição da Economia Política

do Poder como uma teoria remete a uma construção epistêmica e metodológica e a

um correspondente sistema teórico e não a uma concepção ontológica, no sentido

heideggeriano, da economia do poder, pois que se trata de uma estruturação

analítica que procura recobrir os diversos campos em que se fundamenta a

realidade da práxis organizacional e não uma forma de vê-la. Trata-se de uma

teoria eminentemente interdisciplinar.

Do ponto de vista do conhecimento, conforme já indicado, a Teoria da Economia

Política do Poder é resultado de uma concepção dialética sustentada na interação

tensionada entre sujeito e objeto (consciência e matéria) na produção do saber, a

qual não abdica dos fundamentos metodológicos da ciência. De fato, o processo de


83

elaboração teórica exige a observância dos rigores metodológicos. Neste sentido,


Página

entende-se, aqui, que a metodologia a ser adotada em uma investigação científica é


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

dada não só pelas teorias disponíveis e pelas próprias condições do sujeito

pesquisador, como pela condição do objeto de pesquisa, ou seja, não existe uma

metodologia tecnicamente padronizada que se aplicaria a qualquer objeto em

quaisquer circunstâncias. A concepção de que a dialética não é compatível com

pesquisas quantitativas é aqui totalmente recusada, pois o que determina a forma

dialética de se apropriar do real é antes o movimento e as relações contraditórias

do objeto do que o tipo de base empírica de que se utiliza. Para a Teoria da

Economia Política do Poder, quanto mais amplo o acesso aos dados do campo

empírico e quanto mais diversificadas forem as formas de obtê-lo, mais precisa

será a análise.

Ao mostrar como a gestão das relações de trabalho nas organizações define e

implanta seus mecanismos de controle a partir da interação de instâncias ocultas

e manifestas que se opera em seu interior, o objetivo principal da Teoria da

Economia Política do Poder é responder a dois propósitos que constituem sua

práxis: o primeiro é de natureza epistêmica e teórico-metodológica; o segundo é de

natureza prática, porquanto deve permitir desvendar e expor as relações de

poder e os mecanismos de controle em organizações com o intuito de subsidiar os

sujeitos em suas ações políticas de resistência e de enfrentamento. Para tanto, é

necessário delimitar a abrangência de tal projeto e fundamentar sua abordagem.

Tendo em vista que as questões epistemológicas e metodológicas já foram


84

indicadas, ainda que sucintamente, cumpre agora definir que o objeto a ser
Página

estudado, o ambiente social em que o mesmo se encontra inserido, seu contexto e


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

seu foco, são as relações de poder materializadas nos mecanismos de controle na

gestão do processo de trabalho nas unidades produtivas ou de pertença.

Deste modo, é necessário reafirmar o teor específico sobre o qual está

fundamentada a Teoria da Economia Política do Poder. O campo empírico em que

se encontra seu objeto de análise são as organizações concretas formais ou

estáveis e as de pertença, em suas múltiplas interações e em suas formas recentes

de estruturação no mundo contemporâneo. O objetivo dos estudos nessa linha,

apontado no início, sugere que estas organizações devem ser analisadas nos

limites da sociedade contemporânea marcadas pelo globalismo, ou seja, pela forma

capitalista do processo histórico de globalização ou totalização. Ainda que se

reconheça que este esquema proposto possa ser utilizado para análises

organizacionais em ambientes não afetados pelo globalismo, é neste ambiente que

este tipo de estudo pretende se concentrar, pois é nele que estão mais evidentes as

contradições atuais do modo de produção capitalista.

Como se sabe deste Marx (1904; 1977), a produção social na qual os sujeitos estão

inseridos estabelece relações definidas, que são ao mesmo tempo indispensáveis e

independentes destes sujeitos, sendo que tais relações correspondem a estágios do

desenvolvimento das forças materiais de produção e que o conjunto destas

relações de produção se constitui na base econômica material sobre a qual se


85

assenta a superestrutura jurídico-político-ideológica. À base econômica e à


Página

superestrutura correspondem formas de consciência social. O modo de produção


ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

das condições materiais de existência condiciona o caráter geral da vida social e

emocional dos sujeitos, de forma que a consciência da transformação da sociedade

pelo sujeito individual encontra-se relacionada à consciência social, na medida em

que “não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, ao contrário, é sua

existência social que determina sua consciência” (MARX, 1904, p. 165).

Entretanto, a vida social é um lugar de contradições e a compreensão dos sujeitos

sobre a mesma não pode ser definida e sequer determinada apenas pela

consciência decorrente da sua existência social, pois por mais importante que esta

seja (como de fato é), não é a única forma de existência. O conjunto dos processos

inconscientes e subjetivos e das relações sociais forma a totalidade da existência

do sujeito e é esta totalidade que constrói sua consciência. De igual maneira, tal

construção encontra-se ela mesma carregada de contradições e conflitos

presentes tanto em cada um dos processos (inconscientes e sociais), como entre os

mesmos. Para os propósitos do Grupo de Pesquisa EPPEO, isto significa que se está

diante de um quadro complexo de relações de poder no qual tanto os elementos

objetivos quanto os subjetivos aparecem amalgamados nos processos de

dominação e de afirmação da hegemonia do capital. É exatamente porque há uma

percepção deste amálgama que o capital investe cada vez mais no

desenvolvimento de mecanismos sofisticados de controle sobre o processo e as

relações de trabalho e que, ao mesmo tempo, os trabalhadores aperfeiçoam suas


86

formas de resistência. Alienação, estranhamento e consciência crítica compõem o


Página

quadro histórico da luta política fundamental.


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Como indica Marx (2007, p. 35),

Indivíduos determinados, que como produtores atuam de um modo


também determinado, estabelecem entre si relações políticas e sociais
determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação
empírica coloque necessariamente em relevo – empiricamente e sem
qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre a estrutura social
e política e a produção.

Assim, o problema teórico e prático concentra-se nas especificidades ou nas

peculiaridades sócio-históricas e estruturais da produção de uma economia

política do poder, pelo capital, sobre o processo e as relações de trabalho nas

unidades produtivas sob o seu comando, produção esta que se define em

complexos sistemas e mecanismos de controle.

A pesquisa que se desenvolve no Grupo de Pesquisa a partir de uma perspectiva

crítica trata de investigar este problema teórico e prático cuja formulação está

sempre em movimento no interior de um processo histórico, o qual contém em si o

desenvolvimento contraditório das forças produtivas no capitalismo, com seus

períodos de expansão e suas crises de acumulação. Processo este que se dá com, ao

mesmo tempo, o exercício do poder tanto do capital em seu curso de reprodução

sociometabólica, quanto dos trabalhadores, em suas formas de resistência e de

enfrentamento a partir da organização das suas forças políticas. Tal problema


87

não poderia surgir ao acaso. Como afirma Marx (1904, p.165), o problema apenas
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

surge quando as condições materiais necessárias à sua solução já existem ou estão em

processo de formação.

Uma palavra ainda sobre a produção da pesquisa e sua exposição. A lógica da

descoberta difere da lógica de exposição. A pesquisa começa pelo real para chegar

aos conceitos e teorias que o expliquem. A exposição segue o caminho inverso, indo

dos conceitos mais simples que ajudam a “iluminar” o modo como a realidade

opera, para os mais complexos que permitem a representação do real em sua

forma teórica (ideal). A lógica da exposição formal dos conceitos não pode ser

confundida com uma proposição apriorística, segundo a qual o real deve ser

explicado (enquadrado) de acordo com uma teoria previamente existente (uma

teoria que existia antes e independentemente da realidade), e sim como um modo

organizado de explanação.

Deve-se distinguir o modo de exposição segundo sua forma, do modo de


investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus
detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear
seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode
expor adequadamente o real. Se isto é realizado com sucesso e se a vida
da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a
impressão de se encontrar diante de uma construção à priori (MARX,
2013, p. 90).

Digressões (ao invés de conclusões)


88
Página
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Economia Política do Poder em Estudos Organizacionais é uma forma de olhar as

organizações, é uma opção epistemológica, com fundamentos teóricos e

metodológicos próprios. A EPPEO propõe uma teoria crítica, mas não se vincula à

Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, embora reconheça sua contribuição original

no desenvolvimento de uma perspectiva analítica marxista voltada à

emancipação, ao combate ao autoritarismo. Estes pesquisadores da Escola de

Frankfurt faziam a defesa de uma sociedade diferente daquela que os perseguia:

autoritária, com intenso controle social, impositiva e preconceituosa. Eles se dão

conta de que ao fazer a defesa de uma sociedade emancipadora, mais humana,

democrática e justa, defrontam-se também com um modelo não capitalista que

reproduz, de alguma maneira, a mesma razão totalitária que eles criticam no

capitalismo. A economia política do poder vincula-se a uma teoria crítica no

sentido de que se opõe à toda forma de autoritarismo, postulando a emancipação

social, tendo por base a interação dos fundamentos econômicos, sócio-históricos,

políticos, culturais e psicanalíticos. É uma tentativa de juntar estas questões todas

para entender as organizações.

Com este propósito é que foi criado, em 2001/2, o Grupo de Pesquisa Economia

Política do Poder em Estudos Organizacionais. Trata-se de uma proposta

epistemológica porque junta em um mesmo tipo de enfoque, correntes teóricas

diferentes, mas epistemologicamente compatíveis. Muito se fala nos cursos de


89

mestrado e doutorado que a pesquisa tem que ser teoricamente coerente. Sem
Página

dúvida. Mas para que isto ocorra é necessário, antes, que ela seja
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

epistemologicamente coerente. Para que seja possível usar diversas teorias,

conversar com várias teorias, utilizar subsidiariamente várias teorias, a

coerência epistemológica que tem que ser garantida. Para o EPPEO não existe

trabalho teórico relevante se não existir uma epistemologia que guie este

trabalho. Apesar do Grupo ter preferência por um tipo de análise, não pode negar

a existência de outras formas, não pode deixar de reconhecer que elas têm seus

méritos, seus fundamentos. Pode-se não concordar com elas, mas não lhes negar

existência e propriedade. É possível conviver com teorias diferentes? Sem dúvida.

Cada uma tem as sua racionalidade, sua maneira de explicar a realidade. Quando

se escolhe uma linha de trabalho, esta é a sua linha. Todas têm suas limitações e

suas vantagens e quando se escolhe uma delas o pesquisador acredita que a

escolhida é a que oferece mais vantagens. Entretanto, a escolha se dá em grande

medida por afinidade de pensamento, pelas experiências sociais acumuladas, pelo

tipo de respostas que se procura, pelo desafio ou pelo conforto, entre outros fatores

objetivos e subjetivos.

Por isso, algumas vezes, quando se “como é que é isto pra administração?”, é preciso

devolver a pergunta com outra pergunta: “Qual administração?” Porque tudo é

tratado como se a administração e gestão das organizações fossem uma unidade,

uma verdade, uma única teoria, uma única forma de ver o mundo. Mas nas

ciências socialmente aplicadas não é assim. As teorias que alimentam a chamada


90

teoria geral da administração são de várias origens, de várias matrizes. Não há


Página

uma resposta para todas as questões e tampouco há perguntas. E quando se


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

questiona “qual seria então a sugestão para encaminhar este problema?” a

resposta só pode ser “depende do vínculo epistemológico e teórico”. Em resumo: há

uma escolha epistêmica (que permite optar pelo ponto de vista do trabalho ou do

capital) e uma escolha teórica (que permite optar, dentro da escolha pelo capital,

por exemplo, por um enfoque centrado na função, na estrutura ou no

comportamento). Não se pode dizer que uma abordagem está certa ou está errada,

mas apenas que são diferentes formas de problematização, que a preferência ou o

enfoque adotado é de uma ou outra dimensão epistemológica. Ao mesmo tempo,

não se pode ignorar aquelas ideologias que se vestem de teoria.

A tentativa da EPPEO de integrar a economia, com a política, a sociologia, a

história, a psicologia, a psicanálise, a psicossociologia ou a sociologia clínica, a

antropologia, a linguística, a filosofia, entre outras, é uma escolha pela

interdisciplinaridade, porque apenas desta perspectiva se pode pretender

alcançar a compreensão, ainda que restrita, da sociedade, da cultura, da ideologia,

do imaginário, do simbólico, das relações sociais e de produção das condições

materiais de existência. Nesta tentativa há uma recusa ao apriorismo, que ocorre

quando o pesquisador estuda uma teoria, se debruça sobre os livros, escreve o

chamado referencial teórico, seleciona variáveis, monta um questionário e depois

dirige-se à realidade (ao caso empírico) na tentativa de compatibilizá-la com o

modelo. O modelo existe antes da realidade, existe na cabeça do pesquisador. Este


91

afirma que vai “testar a teoria”, em uma perspectiva popperiana, mas na verdade
Página

o que vai testar é a sua ideia, ainda que esta se apoie em teorias. O que pode
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

acontecer é que ou a realidade sobra na teoria ou falta. O que pode fazer o

pesquisador? Refazer a teoria para acomodá-la à realidade ou recortar a

realidade para caber na teoria. Ambas as opções são uma forma de falsear o real,

embora possam ter aspectos de beleza estética. Ou seja, o pesquisador aplica o

questionário, processa os dados usando o Statistical Package for Social Science-

SPSS, de onde saem gráficos, tabelas, etc. O pesquisador, enfim, analisa os dados em

função daquela teoria. Este não é o tipo de pesquisa da do Grupo EPPEO.

Trata-se, então, em primeiro lugar, de “conversar” com a realidade. Depois, refletir

sobre ela. Daí então construir um mecanismo de sistematização, de organização,

para apreender esse real e poder traduzi-lo. A relação do pesquisador com o real

é, portanto, de interação. A realidade não está na mente do pesquisador em uma

forma teórica prévia; tampouco está na realidade e vem para cabeça do

pesquisador que se encontra totalmente vazia. De um lado, se saiu do real e vem

para a mente é empirismo; de outro, se saiu da ideia e foi para a realidade é

idealismo. Todas as vezes que um pesquisador vai para as organizações analisar

estratégias organizacionais, racionalidades, instituições, comportamentos,

conhecimento, teoria do conhecimento, políticas, desempenho, comprometimento,

etc., acaba por conhecer apenas a parte superficial da organização, aquilo que é

visível. Obviamente, não há condições de conhecer totalmente todos os fenômenos

organizacionais. Os instrumentos analíticos, as teorias e os equipamentos


92

disponíveis são incapazes não só de responder a todas as perguntas como, o que é


Página

mais importante, de formulá-las. Essa é uma fraqueza da teoria, dos instrumentos


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

e dos equipamentos. Mas a realidade tem uma existência em si mesma

independentemente do fato de que a conhecemos.

O pesquisador, ao conversar com o real, apreende dele o que ele manifesta e

procura extrair dele o não manifesto. Este saber é assimilado pelo pesquisador de

acordo com seus conhecimentos sociais e históricos. Mas, ao fazer isto, o

pensamento já não é mais o mesmo, pois incorpora elementos que o real forneceu.

Com esta nova mediação, o sujeito percebe o real de uma forma mais ampla, que

antes não era possível. Se o pesquisador não compreender que este processo está

em movimento terá um retrato simples de algo que, quando terminar de

descrever, já não será mais como era. O pesquisador não vai escrever o

movimento como se fosse um diário, vai escrever o processo, até onde investigou. O

sujeito pesquisador e a condição de interpretação daquilo que está pesquisando

move-se à medida que investiga, de forma que é preciso ter clareza sobre como

deve ser investigado esse processo para sistematizá-lo teoricamente. Se a teoria

está pronta antes da investigação, o pesquisador, que neste caso faz uma mera

conferência, apenas compara a teoria com a realidade.

De qualquer forma, existem alguns limites próprios da condição humana. Se o

sujeito pesquisador não tem condições pessoais para ler o que o real lhe fornece,

não poderá compreender a realidade senão muito parcialmente. Se o pesquisador


93

não tem essa condição internamente, não a terá externamente. A condição de


Página

leitura do real precisa estar também no sujeito e não apenas em seu conhecimento
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

teórico, em sua condição racional. Se fosse tão simples, uma pessoa poderia ler um

excelente livro sobre educação infantil e imediatamente se tornar um professor

de crianças. Conhecer teoricamente não é saber. Se o simples conhecimento teórico

mudasse a forma de ser, qualquer um poderia ler todos os livros de psicanálise e

teria resolvido suas crises, angústias, etc. Conhecimento teórico é importante, mas

não basta. Este é, talvez, o obstáculo mais complexo em um processo de pesquisa,

pois independe de técnicas.

A concepção que orienta o Grupo de Pesquisa EPPEO é a de que compreender a

estrutura material dos fenômenos organizacionais é um exercício de uma

interação necessariamente contraditória, complexa, paradoxal e jamais definitiva

entre o sujeito e o real, porque ambos, sujeito e realidade, encontram-se em um

processo dinâmico, de forma que não há uma compreensão final e absoluta sobre

como os fenômenos são, apenas uma compreensão histórica, da qual é necessário

dar conta tendo como orientação a crítica intransigente a toda a forma de

autoritarismo e a defesa de uma sociedade democrática e emancipada.

REFERÊNCIAS
94

ADORNO, T. W. Sociologia. São Paulo: Ática, 1994. 207 p.


Página

BOTTOMORE, T. The Frankfurt school. London: Routledge, 1984. 96 p.


JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

BRONNER, S. E. Da teoria crítica e seus teóricos. Campinas: Papirus, 1997. 432 p.

ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1976. 164 p.

FARIA, J. H. Gestão participativa: relações de poder e de trabalho nas organizações. São


Paulo: Atlas, 2009. 402 p.

FARIA, J. H. (Org.). Análise crítica das teorias e práticas organizacionais. São Paulo: Atlas,
2007. 342 p.

FARIA, J. H. Economia política do poder: fundamentos. Curitiba: Criar, 2004. v. 1. 201 p.

FARIA, J. H. Tecnologia e processo de trabalho. Curitiba: UFPR, 1992. 124 p.

FARIA, J. H. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas. Curitiba:


Criar, 1987. 205 p.

FARIA, J. H. Relações de poder e formas de gestão. Curitiba: Criar, 1985a. 87 p.

FARIA, J. H. O autoritarismo nas organizações. Curitiba: Criar, 1985b. 195 p.

HARVEY, D. Para entender O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. 336 p.

HORKHEIMER, M. Teoria crítica. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1990. 236 p.

HORKHEIMER, M. Critique of instrumental reason. New York: Seabury, 1974. 180 p.

HORKHEIMER, M. Critical theory: selected essays. New York: Seabury, 1972. 312 p.

LACAN, J. O seminário livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
416 p.

LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Lisboa: Escorpião, 1974a. 616 p.

LUKÁCS, G. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1974b. 174 p.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. Livro I. 574 p.

MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977. 432
95

p.
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

MARX, K. A contribution to the critique of political economy. New York: International


Library, 1904. 264 p.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 616 p.

OSBORN, R. Psicoanalisis y marxismo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1943. 251 p.

ROUANET, S. P. Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998. 380 p.

VIANA, N. Universo psíquico e reprodução do capital. Ensaios freudo-marxistas. São Paulo:


Escuta, 2008. 108 p.

96
Página
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Resumo

O Grupo de Pesquisas Economia Política do Poder em Estudos Organizacionais –

EPPEO procura desenvolver uma teoria crítica das práticas organizacionais

(públicas e privadas) a partir das relações de poder, dos mecanismos de controle

na gestão dos processos de trabalho pelas unidades produtivas, das políticas do

Estado Capitalista Contemporâneo e dos critérios de justiça na formulação e

execução de políticas públicas, nas seguintes linhas de pesquisa: Epistemologia

Crítica do Concreto, Metodologia e Teoria; Estado, Poder e Políticas Públicas; Formas

Coletivistas de Gestão, Poder e Trabalho; Laboratório de Mudança Organizacional –

LAMO; Modelos Produtivos, Relações e Organização do Trabalho; Organização,

Trabalho e Subjetividade; Políticas Urbanas, Planejamento e Poder. O EPPEO

procura desenvolver suas pesquisas, sua produção acadêmica e suas atividades

de formação (graduação, especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado)

tendo por orientação a crítica intransigente a toda a forma de autoritarismo e a

defesa de uma sociedade democrática e emancipada.


97
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Palavras-chave

Relações de poder; teoria crítica; Estado Capitalista; relações de trabalho;

epistemologia crítica do concreto.

98
Página
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Politic economy of power in organization studies

Abstract

Research group Politic economy of power in organization studies – EPPEO tries to

develop a critical theory of organizational practices (public and private one) from

Power relations, control mechanisms in work process management by productive

units, from policies of contemporary capitalist state and justice CRITÉRIOS in

formulation and execution of public policies, in research lines: Critical

epistemology of concrete, methodology and theory; State, Power and public

policies; Collectivist forms of management, power and work; Laboratory of

organizational change – LAMO; Productive models, relations and organization of

work; Organization, work and subjectivity; Urban policies, planning and Power.

EPPEO develops its researches, academic production and formation activities

(graduation, specialization, maters, doctoral and post-doctoral studies) guided by

an intransigent critics to all kinds of authoritarianism, and by defense of a

democratic and emancipated society.

Keywords

Power relations; Critical theory; Capitalist state; Work relations; Critical


99

episthemology of concrete.
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Resumen

El Grupo de Investigación Economía Política del Poder en Estudios

Organizacionales – EPPEO desarrolla una teoría crítica de las práticas

organizcionales (públicas y privadas) de las relaciones de poder, mecanismos de

control en la gestión de los procesos de trabajo por las unidades de producción, las

políticas del Estado capitalista contemporáneo y los criterios de justicia en la

formulación y implementación de políticas públicas, en las seguintes líneas de

investigación: Epistemológía crítica del concreto, metodoogía y teoría; Estado,

poder y políticas públicas; Formas colectivistas de gestión, poder y trabajo;

Laboratorio de cambio organizacional – LAMO; Modelos productivos, relaciones y

organización del trabajo; Organización, trabajo y subjetividad; Políticas urbanas,

planificación y poder. El EPPEO busca desarrollar sus investigaciones, su

producción académica e sus actividades de formación (graduación, especialización,

maestría, doctorado y post-doctorado) guiado por una crítica intransigente a

cuaquier forma de autoritarismo y por la defensa de una sociedad democrática y

emancipada.
100
Página
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA

Palabras-clave

Relaciones de poder; Teoría crítica; Estado capitalista; Relaciones de trabajo;

Epitemología crítica del concreto.

101
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

AUTORIA

José Henrique de Faria

Pós-Doutor em Labor Relations pela University of Michigan. Doutor em

Administração pela Universidade de São Paulo. Professor Titular da Universidade

Federal do Paraná. E-mail: jhfaria@gmail.com.

Endereço para correspondência

José Henrique de Faria. Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-

Graduação em Administração. Av. Prefeito Lothário Meissner, 632, Jardim

Botânico, Curitiba – PR. CEP: 80210-170. Telefone: (41) 3360-4365.

Como citar este texto:


FARIA, J. H. Economia política do poder em estudos organizacionais. Farol – Revista de
Estudos Organizacionais e Sociedade, Belo Horizonte, n. 1, p. 58-102, jun. 2014.

102
Página

Artigo convidado, aprovado em 19 ago. 2014. Editor: Luiz Alex Silva Saraiva.
Revista Eletrônica de Ciência ISSN 1677-7387
Administrativa (RECADM)

O PROBLEMA DOS MAIS NOVOS:


um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de
produção de uma montadora automotiva da Região Metropolitana
de Curitiba
RECADM - Revista Eletrônica de Ciência Administrativa / Faculdade Cenecista de Campo Largo. Campo Largo - Paraná, Brasil.

1- José Henrique de Faria*


Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo (FEA/USP), Brasil.
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Paraná (PPGADM/UFPR),
Brasil.
jhfaria@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3738279410631976

2- Cam ila Bruning


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Administração - Universidade Federal do Paraná (PPGADM/UFPR), Brasil.
camila.bruning@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0344682572379848

Diego Maganhotto Coraiola – Editor Geral


Editor responsável pela submissão:
Deise Luiza da Silva Ferraz.
Artigo analisado via processo de revisão duplo cego (Double-blind).
Recebido em: 09/10/2013
Aprovado em: 09/12/2013
Última Alteração: 09/12/2013

* Contato Principal: Rua José de Alencar, 248 – ap. 05. Cristo Rei, Curitiba - PR, Brasil. CEP: 80-050-240.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 353 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

O PROBLEMA DOS MAIS NOVOS: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O CONFLITO DE GERAÇÕES NA


LINHA DE PRODUÇÃO DE UMA MONTADORA AUTOMOTIVA DA REGIÃO METROPOLITANA DE
CURITIBA

RESUMO
Este artigo apresenta resultados e discussão de um estudo de caso em profundidade em que se buscou
identificar e analisar as avaliações dos trabalhadores da linha de produção de uma empresa do setor
automotivo, aqui denominada Gama, em relação ao seu contexto de trabalho, às vivencias de prazer e
sofrimento e os custos e danos decorrentes do trabalho. Nesta pesquisa foi possível identificar diferenças nas
avaliações entre grupos de trabalhadores de diferentes idades e tempos de empresa. Fundamenta-se a análise
na teoria da Economia Política do Poder para analisar as tecnologias de gestão e controle que compõe o
contexto de trabalho e na da Psicodinâmica do Trabalho, para analisar a dinâmica do sofrimento, resistência,
prazer e adoecimento dos trabalhadores inseridos neste contexto. As técnicas de pesquisa utilizadas foram de
natureza “quali-quanti”, a partir da observação sistemática e de entrevistas, bem como por meio da aplicação
do Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento – ITRA.

Palavras-Chave
Prazer e Sofrimento; Mecanismos de Controle; Tecnologia de Gestão; Relações de Poder; Conflitos de Geração
no Trabalho.

THE PROBLEM OF THE YOUNGER: A CASE STUDY ON THE CONFLICT OF GENERATIONS IN THE
PRODUCTION LINE OF AN AUTOMOTIVE ASSEMBLER FROM CURITIBA METROPOLITAN REGION

ABSTRACT
This research presents the results and discussion of a case study in depth in which it sought to identify and
analyze the evaluations of the production line workers of a company in the automotive sector, here named
Gama, relative to its context, the experiences of pleasure and suffering and the costs and damages arising from
the work. In this research it was possible to identify differences in the ratings between groups of workers of
different ages and times. The analysis is based on the theory of Political Economy of Power to review the
management and control technologies that make up the work, and the context of the Psychodynamics of the
Work, to analyze the dynamics of grief, endurance, pleasure and illness of workers entered in this context. The
research techniques used were of nature Qualitative-Quantitative, from the systematic observation and
interviews, as well as through the application of the Inventory of Work and Risks of Illness – IWRI.

Keywords
Pleasure and Suffering; Control Mechanisms; Management Technology; Power Relationships; Generation
Conflicts at Work.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 354 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

1 Introdução
A pesquisa aqui apresentada constitui uma parte de um estudo de caso em profundidade realizado em
uma empresa do setor automotivo da Região Metropolitana de Curitiba que é denominada de Gama1. A
pesquisa foi realizada durante cerca de seis meses, com autorização da empresa, em sua planta fabril. Neste
artigo, especificamente, o objetivo é discutir as diferentes avaliações atribuídas ao contexto de trabalho, às
vivências de prazer e sofrimento, e aos custos e danos decorrentes do trabalho por grupos de trabalhadores de
diferentes idades e tempos de empresa.
Duas teorias de natureza crítica do trabalho embasam esta análise: a Economia Política do Poder e a
Psicodinâmica do Trabalho. Por meio da Economia Política do Poder visa-se analisar o contexto de trabalho, as
tecnologias de gestão utilizadas pela empresa em estudo e as questões relacionadas ao controle social que
estas exercem sobre os trabalhadores. Por meio da Psicodinâmica do Trabalho visa-se analisar questões
relacionadas à articulação entre o contexto de trabalho encontrado na empresa em estudo e os processos de
subjetivação de seus trabalhadores.
O interesse em se desenvolver um estudo de caso em uma empresa do setor automotivo se justifica por
pelo menos três motivos relevantes. Pela importância desse setor na economia local e mundial; por sua
influência no desenvolvimento e utilização de tecnologias físicas e de gestão na organização do processo de
trabalho (Faria, 2004); pela sua condição de disseminação de práticas para outros setores devido a
características peculiares da indústria automobilística em relação às demais.
A pesquisa, cujos resultados são aqui apresentados, foi desenvolvida no âmbito de um Grupo de
Pesquisa registrado no Diretório de CNPq e responde aos objetivos expressos em suas linhas pesquisa no que se
refere à análise das práticas organizacionais do ponto de vista das relações de poder e trabalho que se
desenvolvem nas organizações. A ênfase é sobre as novas formas de organização do processo de trabalho nas
organizações contemporâneas, com especial destaque para aquelas que incorporam modernas e inovadoras
tecnologias físicas, de gestão e de processo nas unidades produtivas, com a finalidade de compreender o
movimento destas no cenário nacional e internacional, seus impactos e tendências.
O embasamento epistemológico que orienta a pesquisa considera que: “O método de produção do
conhecimento tem por fundamento a primazia do real sobre a ideia, entendendo, contudo, que o real para ser
apropriado pela consciência necessita da mediação do pensamento, ou seja, recusa-se aqui tanto o empirismo
quanto o idealismo. A inscrição da matéria na consciência mediada pelo pensamento não se constitui nem em
uma tradução direta, sem intermediação, nem em uma elaboração metafísica, mas em uma interação dialética,
tensionada e dinâmica, marcada pela complexidade e pelas contradições entre o sujeito e o objeto” (Faria,
2011, p. 3).
A fundamentação teórica que embasa as análises é a da Economia Política do Poder, no que se refere à
integridade do objeto, e a Psicodinâmica do Trabalho, no que se refere à técnica de coleta de dados (inventário)
e à análise do trabalho.
A pesquisa é um estudo de caso aprofundado, com utilização de técnicas de coleta de dados
qualitativas (entrevistas e observações) e quantitativas (Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento). O
nível de análise é o da unidade produtiva, uma planta industrial de grande porte, pois se pretende compreender
como características da estrutura organizacional se relacionam com processos de subjetivação de trabalhadores
nela inseridos.

2 Quadro Teórico
Utiliza-se neste estudo duas teorias como embasamento teórico: a teoria da Economia Política do Poder,
por meio da qual são analisadas as tecnologias de gestão e o controle social, a Teoria da Psicodinâmica do
Trabalho, por meio da qual são analisados os processos de subjetivação decorrentes do encontro entre sujeitos
e contexto de trabalho, a seguir são apresentados os principais conceitos utilizados neste enquadramento
teórico.

2.1 Economia Política do Poder: Sobre as Tecnologias de Gestão e o Controle Social


A Teoria da Economia Política do Poder parte da centralidade do trabalho na constituição do sujeito e
analisa os processos de trabalho e de sua gestão a partir das relações de poder e controle que se desenvolvem
nas unidades de produção capitalistas, em suas diversas formas de configuração organizacional, considerando
tanto seus aspectos de organização formal como de “organização de pertença” (Faria, 2004, p. 36). A Teoria da
Economia Política do Poder considera não apenas as estruturas, normas, regulamentos e divisão de trabalho
das unidades produtivas, como as formas de organização social dos sujeitos no que se referem a símbolos,
crenças e valores que representam uma relação de vinculação com aquela organização de pertença, seja essa
vinculação espontânea ou planejada, transitória ou duradoura.

1
No protocolo de pesquisa a empresa optou por não ter seu nome e sua marca expostas. Gama é, portanto, um nome fictício.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 355 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

Entende-se por tecnologia de gestão: “O conjunto de técnicas, instrumentos e estratégias utilizados


pelos gestores (...) para controlar o processo de produção em geral, e de trabalho em particular, de maneira a
otimizar recursos nele empregados, pondo em movimento a força de trabalho capaz de promover a geração de
excedentes apropriáveis (lucro) de forma privada ou coletiva” (Faria, 1997, p. 30).
As tecnologias de gestão englobam estratégias de racionalização do trabalho de ordem instrumental,
comportamental e ideológica.
As técnicas de ordem instrumental incluem o estudo do tempo e do movimento, o arranjo planejado de
máquinas e equipamentos nas organizações, a sequência e fluxo de produção, os métodos, as normas, entre
outros. As técnicas de ordem comportamental e ideológica compreendem planos de treinamento e
desenvolvimento de pessoal, mecanismos de motivação e integração entre os funcionários, inculcação
ideológica e disseminação e valores “úteis” à organização, entre outras.
Faria (1984) ao estudar a implantação, nas unidades produtivas, do modelo japonês de controle de
qualidade, já havia mostrado que este apenas reproduzia “a essência da ideologia da gestão capitalista” ao
“aperfeiçoar os mecanismos de controle sobre o trabalhador e sobre o processo de trabalho com a finalidade de
aumentar a eficiência e a produtividade do trabalho” através do controle e manipulação dos comportamentos
dos trabalhadores. Em uma pesquisa junto à indústria metalúrgica e metalmecânica, no Brasil, USA e Japão,
Faria (2004) verificou que a chamada linha de produção e a correspondente forma de gestão flexível ou enxuta
(Lean Production), é um aperfeiçoamento das práticas dos círculos de controle de qualidade implementados por
Ohno na fábrica da Toyota no Japão.
O modelo toyotista, contudo, não é apenas uma nova forma de organização do processo de trabalho.
Tal modelo “não é senão um taylorismo-fordismo de base microeletrônica, um taylorismo-fordismo
computadorizado, um taylorismo-fordismo envernizado” (Faria, 2004, p. 35). Mais do que isto, é uma tecnologia
de gestão que avança sobre a subjetividade do trabalhador, que desenvolve mecanismos sofisticados de
controle psicológico, através da sedução, da participação, do comprometimento. De fato, o interesse pelas
técnicas de ordem comportamental e ideológica passa a mostrar-se intensificado a partir do modelo Toyotista
de gestão da produção. Tal modelo, conforme Faria e Meneghetti (2007) opera pelo sequestro da subjetividade
do trabalhador com a finalidade de ampliar o controle psicossocial, fazendo com que mais que apenas trocar
sua força de trabalho por recompensas materiais, o indivíduo compartilhe dos ideais e objetivos organizacionais
e utilize todos os seus esforços para realizá-los, visto que os toma como seus.
Gaulejac (2007) confirma estas análises sobre a proximidade entre o taylorismo-fordismo e o toyotismo
ao argumentar que se os modelos Taylorista e Fordista de gestão são centrados no controle da atividade física,
se caracterizam pela presença do poder disciplinar e pela busca por tornar os corpos úteis, dóceis e produtivos,
o modelo de produção enxuta, Toyotista, caracteriza-se pelo poder gerencialista, em que o foco passa a ser
“não tanto controlar os corpos, mas transformar a energia libidinal em força de trabalho (...) passa-se do
controle minucioso dos corpos para a mobilização psíquica a serviço da empresa. A repressão é substituída pela
sedução, a imposição pela adesão, a obediência pelo reconhecimento” (Gaulejac, 2007 p. 109).
Para Faria e Meneghetti (2007), este é o estágio contemporâneo da racionalização do trabalho,
representado pelo modo de gestão da produção Toyotista. O Toyotismo tem como característica principal o
sequestro da subjetividade uma vez que se utiliza do controle comportamental e ideológico (Faria, 1997),
através da identificação, pela valorização, pela colaboração solidária e pelo envolvimento total. Esta também é
a conclusão a que chegam outros pesquisadores que ao analisarem as contradições do Toyotismo a partir da
vivência dos trabalhadores mostram como se processa a disciplina e o controle simbólico nas fábricas e como o
sofrimento e a dor são destacados nos discursos destes (Bernardo, 2009), tanto quanto indicam como a
natureza do próprio trabalho mudou com o Toyotismo ensejando novas formas de controle (Berberoglu, 2002).

2.2 Psicodinâmica do Trabalho: Sofrimento, Vivências de Prazer e Adoecimento no Trabalho


A Psicodinâmica do Trabalho é a teoria por meio da qual são analisadas neste estudo as questões
relacionadas à articulação entre o contexto de trabalho na empresa e as vivências de prazer, sofrimento e
adoecimento relatados pelos trabalhadores nela inseridos. O objeto de estudo desta teoria é a relação dinâmica
entre a organização do trabalho e os processos de subjetivação dos trabalhadores que se manifestam pelas
vivências de prazer e sofrimento, bem como as estratégias de ação adotadas pelos trabalhadores para mediar
as contradições da organização do trabalho, as patologias sociais e o processo de saúde e adoecimento no
trabalho (Mendes, 2007).
Assim, a psicodinâmica do trabalho tem como foco as relações dinâmicas entre a estrutura psíquica dos
sujeitos e o contexto de trabalho em que estão inseridos (Mendes, 2007), incluindo as tecnologias de gestão às
quais estão submetidos (Faria, 1997). O contexto de trabalho é caracterizado nesta teoria pelo conjunto da
organização do trabalho, das condições de trabalho e das relações de trabalho. Conforme Mendes (2007),
entende-se ‘Organização do Trabalho’ como a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa, as relações de poder
que envolvem o sistema hierárquico, as modalidades de comando e as questões de responsabilidade. Por
‘Condições de Trabalho’ entendem-se o ambiente físico, químico e biológico, as condições de higiene, de
segurança e as características antropométricas do posto de trabalho. Por fim, entendem-se como ‘Relações de
Trabalho’ todos os laços humanos originados na organização do trabalho, tanto as relações com hierarquia,
chefias, supervisores e demais trabalhadores (Mendes, 2007).

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 356 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

As vivências de prazer e sofrimento, de acordo com Tamayo (2004), são o resultado de três diferentes
dimensões: a da subjetividade do trabalhador, que corresponde à pessoa singular, com sua história, desejos e
necessidades; o contexto do trabalho, que corresponde às normas e padrões de conduta e à exigência da
eficácia; e a coletividade, que corresponde às relações interpessoais entre iguais e hierárquicas e aos valores
de convivência social no trabalho.
Para Dejours (1987, 1997, 2000), do confronto entre estrutura psíquica e contexto do trabalho emergem
dois tipos de contradição entre indivíduo e organização: (i) a relativa ao encontro entre o registro imaginário,
produzido pelo sujeito, produto de sua história individual com o registro da realidade, produzido pela situação
de trabalho; (ii) a relativa ao encontro entre o registro diacrônico, a história singular do sujeito, seu passado,
seus projetos e desejos, com o registro sincrônico, constituído pelo contexto material, social e histórico no qual
se encontram inseridas as relações de trabalho.
Além disso, para Dejours (1997) o trabalho possui duas dimensões: uma temporal e uma espacial. A
dimensão temporal articula dados relativos à história singular e situação atual do sujeito, já que este parte de
uma subjetividade anterior à situação de trabalho ontogeneticamente construída. A dimensão espacial se
reflete no fato de que os processos são vividos não apenas no interior das organizações, mas também fora da
empresa, tendo impacto no espaço social e doméstico do trabalhador.
Isto implica que, ainda que as condições vividas na organização do trabalho sejam semelhantes para
vários trabalhadores, e que as pressões advindas do trabalho os atinjam de maneira também semelhante, cada
indivíduo irá reagir de maneira singular, conforme a constituição de sua personalidade. Os impactos dessa
relação ao equilíbrio psíquico não ficarão restritos ao ambiente de trabalho, pois são parte constituinte de sua
condição global de existência.
Tem-se de modo geral que uma contradição ou incongruência entre as dimensões diacrônica e
sincrônica acarretam sofrimento e podem desembocar em doença mental e psicossomática conforme a
organização da personalidade de cada indivíduo. Por outro lado, a ressonância entre estes registros possibilitam
vivências prazerosas. A maneira como os trabalhadores vivem a seu modo as pressões advindas do trabalho
decorrem nas vivências de prazer e sofrimento que experimentam, e a maneira como lidam com estas
vivências se expressam nas estratégias que utilizam para suportá-las (Dejours, 2000).
Sobre as vivências de sofrimento e estratégias de defesa, tendo em seus extremos a doença mental de
um lado e a sensação de bem estar psicológico do outro, pode-se dizer que para que o trabalho permita uma
condição de equilíbrio, são necessárias duas condições: a primeira é que as exigências intelectuais, motoras ou
psicossensoriais da tarefa estejam de acordo com as capacidades do indivíduo, podendo ser fonte de prazer; a
segunda é que o conteúdo do trabalho deve ser fonte de satisfação sublimatória (Dejours, 2000).
O entrave para a sublimação ocorre quando não há condições organizacionais para o estabelecimento
da ressonância simbólica. Desta forma, o sujeito não pode beneficiar-se do trabalho para dominar seu
sofrimento e transformá-lo em criatividade. Quando isso acontece, a única saída é o círculo vicioso em que o
sofrimento contribui para desestabilizar o sujeito e impeli-lo à doença. No entanto, uma alternativa que permite
ao trabalhador suportar o sofrimento sem adoecer são as estratégias de defesa (Dejours, 2000).
Mendes (2007) apresenta um resumo das estratégias de defesa propostas por Dejours definindo-as
como regras de conduta construídas e conduzidas pelos trabalhadores, que variam de acordo com as situações
de trabalho e que são caracterizadas pela sutileza, engenhosidade, diversidade e inventividade dos mesmos, de
modo que consigam suportar o sofrimento sem adoecer.
Conforme aponta Mendes (2007), Dejours categoriza três tipos de estratégia de defesa: defesas de
proteção, defesas de adaptação e defesas de exploração. As defesas de proteção consistem em modos
compensatórios de pensar e agir, isto é, nesses casos as situações que geram o sofrimento são racionalizadas.
Desse modo evita-se o sofrimento alienando-se de suas causas. Já as defesas de adaptação tem em sua base a
negação do sofrimento, o que exige grande investimento físico e sociopsíquico do trabalhador. Por fim as
defesas de exploração relacionam-se com o mecanismo de defesa do ego de submissão. Em ambos os casos
ocorre “uma articulação entre um funcionamento perverso da organização e o comportamento neurótico que os
trabalhadores passam a assumir, submetendo seu desejo ao desejo da produção” (Mendes, 2007, p. 39).
Para Dejours (1987, p. 22): “a sublimação, diferentemente de outras defesas, garante, frente ao
sofrimento, uma saída pulsional não destruidora para o funcionamento psíquico e somático, enquanto que a
repressão é limitante para o jogo pulsional”. Assim, pode-se afirmar que conforme esta proposta o trabalho tem
efeitos amplos sobre o sofrimento psíquico, podendo contribuir para agravá-lo, levando-o à possível
somatização e doença, ou subvertê-lo em prazer, contribuindo para um sentimento de bem-estar ou ao menos
de aceitação e resignação.
Já as vivências de prazer, conforme Ferreira e Mendes (2003) apresentam as seguintes características:
(i) originam-se no bem que o trabalho causa no corpo e nas relações com as pessoas; (ii) suas principais causas
encontram-se nas dimensões da organização, das condições e das relações de trabalho que estruturam os
contextos de produção de bens e serviços; (iii) constituem indicadores de bem-estar no trabalho sob a forma de
uma avaliação consciente de que algo vai bem e, consequentemente, é um indicador de saúde psíquica; (iv)
manifestam-se por meio da gratificação, da realização, do reconhecimento, da liberdade, da valorização e da
satisfação no trabalho.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 357 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

Para Ferreira e Mendes (2003) as vivências de prazer constituem um dos sentidos do trabalho por
possibilitar o equilíbrio e a estruturação psíquica ao criar identidade e permitir a expressão da subjetividade
construída com base no confronto entre o psíquico e o social.
Dejours (1997) afirma, como já exposto anteriormente, que há pontos de congruência entre a dimensão
diacrônica e a sincrônica na relação do indivíduo com o contexto de trabalho, o que cria espaço para a
ressonância simbólica, permitindo que seja revivida a ambiguidade entre o teatro da infância e o teatro do
trabalho. A ressonância simbólica “exige condições muito particulares de concordância entre o teatro real e o
teatro interno dos fantasmas e da história singular [...]. É necessário que a tarefa tenha sentido para o sujeito,
tendo em vista sua história singular” (Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 1994, p. 134).
Pela intermediação do trabalho, o sujeito se engaja nas relações sociais, para as quais transfere
questões herdadas do passado e de sua história afetiva (Dejours, 1994). Para que essa transferência seja
ativada no encontro com a situação de trabalho, é necessário que a tarefa tenha um sentido para o indivíduo.
Ao reviver esse teatro psíquico o sujeito busca a sua autorrealização através do reconhecimento no campo
social. “O reconhecimento é a retribuição fundamental à sublimação” (Dejours, 1997, p. 158).
A sublimação tem como propósito a realização de uma atividade útil e socialmente valorizada, a fim de
fornecer ao sujeito a sensação de completude e de amor do início de sua infância. Tem-se, portanto, que a
sublimação, uma vez que visa objetos socialmente valorizados, é um processo social e historicamente situado.
O julgamento de valor social só pode ser dado por outro, que não o próprio sujeito. Desse modo, toda criação
vai pressupor um confronto entre a ação e o reconhecimento do outro em dois registros na organização do
trabalho: através da hierarquia e através do reconhecimento pelos pares (Dejours et al, 1994; Dejours, 2000).
Do ponto de vista da psicossociologia, é vital para todo o sujeito ser reconhecido para a afirmação de
sua existência, identidade e autoestima, ou seja, para existir o sujeito necessita ser reconhecido, e valorizado
pelo outro, pois esta se constitui na garantia real da sua própria existência como uma individualidade Como
sugere Lacan (1966), o sujeito se reconhece no Outro e por meio do Outro. É o reconhecimento que permitirá
ao trabalhador tornar-se um sujeito único, cada vez que o mesmo resolve os problemas que lhe são colocados e
obtém reconhecimento social de seu trabalho. Contudo, é também, ao mesmo tempo, o sujeito do sofrimento
que recebe um reconhecimento subjetivo de sua capacidade para exorcizar sua angústia e dominar seu
sofrimento.

3 Procedim entos Metodológicos


A delimitação e design desta pesquisa são considerados por meio de duas perspectivas, uma técnica e
uma epistemológica. Da perspectiva técnica esta pesquisa é um estudo de caso analítico em profundidade que
se utiliza de instrumentos qualitativos e quantitativos de coleta de dados. Da perspectiva epistemológica e
metodológica, tendo em vista que esta pesquisa insere-se na proposta da Economia Política do Poder, a
abordagem segue os pressupostos de uma análise da atualidade que nem por isso deixa de ser histórica, como
mostra Marx (1977) em “O 18 Brumário”, isto é, trata-se de uma investigação de corte transversal, uma vez
que se realiza a coleta de dados em um único momento da história da organização, porém, não deixa de
considerar o desenvolvimento histórico desta organização e do modo de produção em que se insere, também
este, considerado em uma perspectiva histórica, uma vez que não nasceu tal como se apresenta na atualidade,
mas é fruto de um permanente desenvolvimento histórico.
Conforme proposto anteriormente (Faria, 2011), para apropriar-se do real concreto é necessário tomar
como ponto de partida este real e não a ideia que se tem sobre ele. O real concreto é levado para o
pensamento como reflexão, indagação, tensionamento, dúvida, elaboração, enfim, é tomado como abstração
até que se torne real pensado, até que o sujeito seja capaz de reproduzir o real concreto pela via do
pensamento como real pensado. O ponto de partida é o ponto de chegada, não mais como real concreto, mas
como concreto pensado. Esta é a condição de, partindo do real concreto, assimilar este real (abstração), de
forma a acomodá-lo em categorias de análise provocadas pelo real, de maneira a elaborar conceitos ou mesmo
um esquema de interpretação conceitual produzido pelo pensamento (real pensado) aliado à condição de
compreensão da dinâmica do real, a qual é capaz de romper o próprio real pensado, por resistir à sua forma
(superação dogmática), e provocar uma nova interpretação (renovação do real pensado).
Ao estudar a organização aqui entendida como unidade produtiva do sistema de capital considera-se
que: (i) A organização não é uma abstração, já que se apresenta como uma materialidade prática e histórica; (ii)
A realidade estudada é o resultado de um continuum histórico, ou seja, constitui-se como momento de um
processo; (iii) Sendo um momento de um processo histórico, o mesmo traz consigo os elementos da trajetória
percorrida no que há de essencial (Faria, 2010).

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 358 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

3.1 Coleta, Tratamento e Análise de Dados


Foram coletadas informações sobre as vivências de prazer, sofrimento e adoecimento dos trabalhadores
por meio de métodos tanto qualitativos quanto quantitativos de pesquisa. Primeiramente realizou-se uma etapa
quantitativa na qual se deu a aplicação do Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento – ITRA (Mendes,
2007). Este inventário é composto por quatro escalas, sendo que a primeira permite identificar a avaliação dos
trabalhadores em relação ao seu contexto de trabalho. Nas três escalas subsequentes foram coletados dados
sobre as vivências de prazer e sofrimento, os custos relacionados ao trabalho e os danos já instalados
decorrentes do trabalho, respectivamente2.
Na segunda etapa foram utilizadas técnicas qualitativas de coleta de dados, mais especificamente,
entrevistas abertas e semiestruturadas e observações não participantes. Estas técnicas objetivaram
compreender a dinâmica da estrutura organizacional, seus processos, sistemas de gestão e formas de
relacionamento interpessoal. As informações foram complementadas com informações advindas de fontes
secundárias, mais propriamente das consultas a documentos, arquivos, sites e intranet da empresa, bem como
notícias sobre a empresa que se encontram publicadas em diferentes fontes públicas como jornais, revistas,
periódicos e sites. Estas informações complementares tiveram como objetivos: confrontar os dados obtidos das
fontes primárias com aqueles disponíveis nas fontes secundárias; circunscrever o contexto social da análise.
A análise das informações coletadas foi realizada segundo o seguinte procedimento: (i) os dados
secundários foram analisados por meio de análise documental; (ii) os dados primários obtidos por meio de
entrevistas foram submetidos à análise de conteúdo (Bardin, 1979); (iii) os dados primários obtidos por meio do
inventário ITRA foram analisados estatisticamente (Dancey & Reidy, 2006).
Neste último caso, os dados coletados através do questionário foram tabulados e analisados
estatisticamente com a utilização do software Statistical Package for Social Science – SPSS versão 13. O
tratamento e análise dos dados foram realizados de acordo com o seguinte processo:
Foram realizados testes de normalidade das amostras, análise fatorial para redução e agrupamento das
questões que compõe cada escala em fatores com a avaliação da adequação fatorial a partir dos testes Kaiser-
Meyer-Olkin (KMO) e esfericidade de Bartlett (Cassandre, 2008) e avaliação da confiabilidade e adequação dos
construtos que compõem cada fator. Para a avaliação da confiabilidade realizou-se teste de Alfa de Cronbach,
tendo 0,7 como valor mínimo para aceitação de adequação (Hair, Anderson, Tatham & Black, 2005).
A análise dos dados coletados foi realizada posteriormente. A princípio realizou-se distribuição de
frequência das respostas dos questionários conforme os perfis possíveis de serem agrupados através das
variáveis de identificação. Já para identificar grupos comuns de respondentes e percepções comuns entre
grupos foram realizados testes de correlação tais como o coeficiente de Correlação Produto-Momento de
Pearson (Cassandre, 2008). A comparação entre grupos foi feita com a utilização de testes de análise de
variância como Teste T e ANOVA (Dancey & Reidy, 2006), dependendo da quantidade de grupos ou variáveis
comparados simultaneamente. Foram, então, realizadas regressões para identificar quais variáveis e seus
respectivos pesos explicativos das vivências de prazer e de sofrimento estavam influenciando as percepções
relatadas nas escalas que avaliam os custos e os danos decorrentes do trabalho (Dancey & Reidy, 2006).
É importante ressaltar, a respeito do instrumento quantitativo que se utiliza nesta pesquisa, que o
mesmo foi aplicado à realidade empírica estudada com questões pré-formuladas e opções de respostas bem
delimitadas. Este instrumento, contudo, foi formulado a partir do real concreto em pesquisas anteriores por
Mendes (2007) e validado em outros estudos, de forma que não se trata de uma avaliação arbitrária. Trata-se,
portanto, de um estudo que tem o real concreto como primazia, estando em conformidade com os pressupostos
epistemológicos e metodológicos que servem de base para esta investigação (Kosik, 2007) e que constituem o
suporte da teoria da Economia Política do Poder.

3.2 População e Amostragem


Quanto à população e amostragem, o público alvo desta pesquisa foi constituído pelos os trabalhadores
diretos das linhas de produção da empresa Gama. Foram pesquisadas três de suas fábricas, aqui denominadas
de: (i) Gama Veículos de Passeio - GVP, que é, naturalmente, uma fábrica de produção e montagem de veículos
de passeio; (ii) Gama Veículos Utilitários - GVU, que é, obviamente, uma fábrica de produção e montagem de
veículos utilitários; (iii) Gama Motores - GMO, que, evidentemente, é uma fábrica que produz motores para
automóveis. Cada fábrica é dividida em três departamentos, sendo a população e a amostragem indicadas na
Tabela 1.
Na etapa quantitativa da pesquisa obteve-se uma amostra de 361 questionários, o que caracteriza um
nível de confiança de 95% em relação ao total da população. Em relação às três fábricas que participaram da
pesquisa, obteve-se para a fábrica GVP uma amostra que representa um total de 12,42% da população de
trabalhadores da linha de produção desta fábrica; a amostra referente aos trabalhadores da fábrica GVU

2
Para informações completas sobre o inventario ver Mendes (2007). Para informações mais detalhadas sobre a utilização do inventário ITRA
neste estudo de caso, ver Bruning (2010).

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 359 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

representa 16,14% de sua população total, e por fim, a amostra de 63 questionários obtida da fábrica GMO
representa 18,10% do número total de trabalhadores desta fábrica.
POPULAÇÃO E AMOSTRAGEM
GVP GVU GMO
Montagem Veículos de Passeio Montagem Veículos Utilitários Fabricação de Motores
1656 trabalhadores 573 trabalhadores 348 trabalhadores
Número de trabalhadores por departamento por fábrica
• Carroceria: 844 • Carroceria: 253 • Usinagem: 116
• Montagem: 589 • Montagem: 240 • Cabeçote: 116
• Pintura: 223 • Pintura: 80 • Montagem: 116
Amostragem: 361 questionários = nível de confiança 95% da população total
12,42% 16,41% 18,10%
(do total desta fábrica) (do total desta fábrica) (do total desta fábrica)
Tabela 1: População e Amostragem da pesquisa.

Já na etapa qualitativa foram realizadas ao todo 32 entrevistas, sendo entrevistados 21 operadores (9


da fábrica GVU e 12 da fábrica GVP) , 3 supervisores (1 da fábrica GVU e 2 da GVP), 3 gerentes de recursos
humanos (um de cada fábrica), 2 chefes de produção (atendem todas as fábricas), um engenheiro de produção
(atende todas as fábricas) e 2 técnicos de segurança e saúde no trabalho (1 da fábrica GVU e 1 da fábrica GVP).
A seleção dos entrevistados por cargo consistiu em se ter acesso a respondentes de diversos cargos
cujo trabalho relaciona-se diretamente com os trabalhadores de mão de obra envolvida na produção, já as
entrevistas com os trabalhadores da linha de produção das fábricas CVP e CVU foi centralizada pelos gerentes
de recursos humanos de cada departamento, que agendavam horário e local das entrevistas com os
trabalhadores. Esta maneira de realização das entrevistas por um lado facilitou a coleta de dados qualitativos
uma vez que se conseguia disponibilidade de horário para conversar com os trabalhadores, por outro lado, por
terem sido os gestores de recursos humanos que selecionaram quais os trabalhadores que participariam das
entrevistas conforme critérios próprios, abre-se a possibilidade de que a amostra tenha sido tendenciosa. Por
exemplo, sabe-se que os critérios utilizados pelos gestores de recursos humanos para selecionar seus
funcionários que participariam das entrevistas foram antiguidade, desempenho, e disponibilidade.
A principal limitação metodológica encontrada na pesquisa diz respeito à não realização de entrevistas
na fábrica GMO. Embora se tenha realizado com facilidade a coleta de dados quantitativos verificou-se
resistência por parte da administração da fábrica em relação à realização das entrevistas. Foram por três vezes
agendadas entrevistas, que foram posteriormente adiadas. Desta forma, embora a fábrica não tenha proibido a
realização de entrevistas com seus trabalhadores, não foi possível realizá-las no prazo de finalização desta
pesquisa. A falta de dados qualitativos que expliquem os dados quantitativos obtidos por meio do questionário
ITRA é uma limitação que dificulta, ainda que não impossibilite, a análise dos processos de subjetivação dos
trabalhadores da fábrica GMO.

4 Apresentação e Análise dos Dados


Sendo o objetivo deste trabalho reconhecer e analisar relações existentes entre o contexto de trabalho
e os processos de subjetivação dos trabalhadores nele inseridos cabe iniciar a apresentação dos resultados por
meio de uma breve caracterização do contexto de trabalho na GAMA, e a seguir, apresentar as avaliações
atribuídas pelos trabalhadores aos três fatores que compõem a escala de caracterização do contexto de
trabalho, quais sejam: o fator Organização do Trabalho, o fator Relações de Trabalho e o fator Condições de
trabalho.
A Gama é uma empresa do setor automotivo e é filial de uma matriz europeia que possui unidades de
negócio espalhadas em todo o mundo. Instalada no Paraná e na Região Metropolitana de Curitiba há mais de 10
anos, a Gama emprega atualmente cerca de 4000 funcionários. Em ordem de preservar a identidade da
organização, não será detalhado seu histórico de desenvolvimento no Brasil.
Quanto à organização do trabalho tem-se que esta é semelhante nos departamentos de cada fábrica da
GAMA, visto que, as relações hierárquicas e de comunicação são as mesmas, bem como às responsabilidades e
sistemas de cobrança, controle e benefícios. A divisão do trabalho ao longo da linha de produção se dá por meio
de postos de trabalho nos quais se desempenham atividades especializadas, minimamente detalhadas e
prescritas por meio de manuais. Dependendo do tipo de atividade cada operador atua em apenas um ou mais
postos de trabalho ao longo de sua jornada. Existe, no entanto, a programação para que seja realizada
“polivalência” pelos trabalhadores, isto é, que estes rodiziem entre pelo menos dois postos de trabalho ao longo
de sua jornada, de forma a variar os movimentos que são executados repetitivamente ao longo do dia.
As tarefas dos operadores são individuais, quase exclusivamente manuais, e seguem padrões já pré-
determinados de execução. Já as atividades dos supervisores estão relacionadas à garantia de bom andamento
da produção, sendo responsáveis por determinar quem deverá assumir cada posto, programar pausas e
intervalos, bem como gerenciar imprevistos rearranjando os operadores na linha, ou mesmo assumindo postos
de trabalho quando necessário.
Quanto às relações de poder que envolvem o sistema hierárquico tem-se que o público alvo desta
pesquisa compreende trabalhadores de mão de obra direta das linhas de produção, cujos cargos compreendem

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 360 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

operadores, operadores seniores e supervisores de linha. Esses cargos se arranjam hierarquicamente da


seguinte forma: tanto operadores, quanto operadores seniores respondem diretamente aos supervisores de
linha, e este se reporta ao chefe de produção. Os operadores seniores, ainda que não tenham poder hierárquico
formal sobre os operadores, devido a seu status de superioridade atribuídos pelo maior salário e possibilidade
de substituição dos supervisores, acabam sendo entendidos como superiores hierárquicos dentre os
operadores.
A comunicação segue a ordem hierárquica, sendo assim, solicitações, queixas e sugestões são
centralizadas no supervisor que toma as providencias, ou reporta-as ao chefe de produção que por sua vez
realiza as comunicações necessárias, seguindo a hierarquia com os demais departamentos e setores da
empresa.
Já em relação as questões de responsabilidade envolvidas no trabalho, tem-se que responsabilidades,
atividades e metas de cada trabalhador são estipuladas por meio de metas diárias, semanais e mensais que são
repassadas para cada equipe pelo supervisor da linha no início de cada nova jornada de trabalho. O atingimento
ou não destas metas são acompanhadas por meio de indicadores de produção. A remuneração é variável por
produtividade e atingimento de metas, assim, o cumprimento das mesmas é recompensando mensalmente com
o valor equivalente a 20% do salário. O salário dos operadores também é diferenciado devido a reajustes
relacionados ao tempo de empresa, que ocorrem a cada dois anos.
A escala 1 do inventário ITRA aqui utilizado permite caracterizar o contexto de trabalho por meio da
avaliação que os trabalhadores nele inseridos realizam de seus apectos, sendo assim, verificou-se que a média
atribuída à organização do trabalho foi de 3,70, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007) indica
uma avaliação crítica e grave.
Merece destaque o fato de que se identificou diferença estatisticamente significativa (sig.;0,040) na
resposta dos trabalhadores de até 25 anos em relação aos demais, indicando que estes apresentam uma
avaliação mais positiva do quesito organização do trabalho. Já para as avaliações das relações sócio-
profissionais de trabalho e das condições de trabalho não se identificou diferença estatisticamente significante
entre os grupos de trabalhadores pesquisados.
Uma vez apresentadas as avaliações em relação aos fatores que compõem o construto do contexto de
trabalho convém explicitar os resultados obtidos em relação aos processos de subjetivação verificados por meio
do inventário ITRA, quais sejam: as vivências de prazer, as vivências de sofrimento, o custo humano atribuído
pelos trabalhadores ao contexto de trabalho e os danos à saúde do trabalhador relacionados ao trabalho.

4.1 Vivências de Prazer


Dois fatores que compõe o Inventário ITRA tratam das vivências de prazer proporcionadas pelo contexto
de trabalho, são eles: os fatores Liberdade de expressão e Realização Profissional. Não foi identificada diferença
estatisticamente significativa entre os grupos de respondentes para este quesito.

4.2 Vivências de Sofrimento


Dois fatores que compõe o Inventário ITRA tratam das vivências de sofrimento decorrentes do contexto de
trabalho, são eles: os fatores Vivência de Sofrimento e Falta de reconhecimento. Em relação às vivências de
sofrimento verificou-se que a média atribuída pelos trabalhadores foi de 2,58, o que, conforme a avaliação
proposta por Mendes (2007) indica uma avaliação moderada à crítica deste fator. Já quanto às vivências de
sofrimento relacionadas à falta de reconhecimento verificou-se que a média atribuída pelos trabalhadores foi de
2,02, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007) indica uma avaliação moderada à crítica deste
fator.
Merece atenção o fato de ter se identificado diferença estatisticamente significativa (Sig.: 0,00) nas
avaliações atribuídas por trabalhadores com mais tempo de empresa. Foi possível verificar que quanto maior o
tempo de empresa, pior a avaliação que se faz em relação à falta de reconhecimento na linha de produção da
empresa Gama.

4.3 Custo Humano no Trabalho


Os processos de subjetivação referentes ao custo humano no trabalho são representados por três
fatores que compõe o inventário ITRA, quais sejam: o fator Custo afetivo, o fator Custo Cognitivo e o fator Custo
físico. Em relação ao custo afetivo do trabalho na linha de produção da empresa Gama verificou-se que a média
atribuída pelos trabalhadores foi de 2,11, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007) indica uma
avaliação positiva e satisfatória deste fator. Merece atenção o fato de se ter encontrado diferença
estatisticamente significativa na avaliação atribuída ao custo afetivo entre os trabalhadores com menos de 3
anos de casa (M: 1,98) e trabalhadores com mais de 5 anos de casa (M:2,30). Pode-se inferir que trabalhadores
com menos tempo de empresa apresentam uma avaliação mais satisfatória em relação ao custo afetivo no

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 361 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

trabalho na linha de produção da Gama, enquanto os mais velhos de empresa apresentam avaliação mais
negativa, considerando o custo afetivo do trabalho moderado a crítico.
Em relação ao custo cognitivo do trabalho na linha de produção da empresa Gama verificou-se que a
média atribuída pelos trabalhadores foi de 3,07, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007) indica
uma avaliação moderada a crítica deste fator, não sendo identificadas diferenças nas avaliações de diferentes
grupos em relação a este fator.
Já em relação ao custo físico envolvido no trabalho na linha de produção da empresa Gama verificou-se
que a média atribuída pelos trabalhadores foi de 3,45, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007)
indica uma avaliação moderada a crítica deste fator.
Merece destaque o fato de que em relação ao tempo de empresa e à idade dos trabalhadores verificou-
se que os respondentes mais novos apresentaram avaliações mais graves do custo físico, enquanto os
respondentes mais velhos apresentaram médias menores, o que indica uma avaliação mais positiva. Além disso
verifica-se que o grupo dos funcionários com mais de 5 anos de casa se diferencia dos demais na avaliação do
custo físico, estes funcionários atribuem avaliação mais leve ao custo físico de se trabalhar na linha de
produção da Gama.

4.4 Danos Relacionados ao Trabalho


Os processos de subjetivação referentes aos danos relacionados ao trabalho são representados por três
fatores que compõe o inventário ITRA, quais sejam: o fator Danos Sociais, o fator Danos Psicológicos e fator
Danos físicos.
Somente em relação aos danos físicos foi possível identificar diferença nas avaliações dos diferentes
grupos de respondentes. Para a avaliação dos danos físicos decorrentes do trabalho na linha de produção da
empresa Gama verificou-se que a média atribuída pelos trabalhadores foi de 1,79, sendo importante apontar
que se verificou diferença estatisticamente significativa (Sig.:0,00) entre as repostas dos trabalhadores com
mais e menos tempo de empresa. Percebe-se que os trabalhadores com mais tempo de Gama apresentaram
uma avaliação ligeiramente mais negativa em relação aos danos físicos acarretados pelo trabalho.

4.5 “O Problema dos Mais Novos”


Foram realizadas ao todo 32 entrevistas. Destas, 21 são operadores, 3 supervisores, 3 gerentes de
recursos humanos, 2 chefes de produção, um engenheiro de produção e 2 técnicos de segurança e saúde no
trabalho. Em praticamente metade (15) destas entrevistas o tema da idade e do tempo de empresa apareceu
no relato dos entrevistados demonstrando haver diferenças no comportamento de operadores mais novos em
relação a operadores mais velhos (tanto mais novos em idade como em tempo de empresa). Interessante
apontar que a temática da idade ou tempo de empresa não apareceu no relato de nenhum dos 4 entrevistados
que tem idade inferior a 25 anos.
De modo geral o conteúdo dos relatos se relaciona com o fato de “os mais novos serem mais
reclamões”, “os mais novos não se comprometem com o serviço”, “os mais novos chegam à empresa achando
que com um ou dois anos de casa já vão ser promovidos”, entre outros relatos de mesmo teor.
Pelos dados coletados por meio do questionário ITRA foi possível identificar diferenças entre os grupos
de trabalhadores mais novos e mais velhos, bem como dos que possuem menos tempo de empresa em relação
aos que possuem mais. No entanto, diferentemente do que aparece no relato dos entrevistados, os funcionários
mais novos apresentaram avaliações mais positivas que os demais.
Como exemplo, é interessante citar três fatores:
i. Fator Relações Sócio-Profissionais da contextualização do trabalho: os funcionários com menos
tempo de empresa apresentaram avaliação ligeiramente melhor que os demais;
ii. Fator Custo Afetivo no trabalho: trabalhadores com menos tempo de empresa apresentaram uma
avaliação mais satisfatória enquanto os mais velhos de empresa apresentam avaliação mais
negativa;
iii. Fator Falta de Reconhecimento: quanto maior o tempo de empresa, pior a avaliação que se faz em
relação à vivência de sofrimento relacionada à falta de reconhecimento na linha de produção da
empresa Gama.
Tendo em vista estes resultados uma questão inevitável emerge. A que pode estar relacionada esta
contradição entre: (i) o que aparece no relato dos operadores mais velhos, supervisores e demais gestores em
relação ao “problema dos mais novos”, com (ii) os dados obtidos por meio do questionário aplicado que indica
que estes estão mais satisfeitos que os demais?
A pesquisa não permitiu elaborar uma análise definitiva e única, mas é possível expor alguns fatores
que muito provavelmente se relacionam com a contradição acima explicitada e que se encontram no conteúdo

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 362 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

das entrevistas. Foram selecionadas oito tipos de manifestação que autorizam a análise das contradições
encontradas:
i. Aparentemente o “problema dos mais novos” se relaciona mais com o problema que os operadores
mais velhos, supervisores e demais gestores enfrentam ao lidar com os funcionários mais novos do
que com queixas dos mais novos em relação ao trabalho em si;
ii. Os funcionários mais novos e com menos tempo de empresa são vistos pelos demais como
“reclamões”, mas não porque reclamam do trabalho em si, e sim porque “enfrentam a autoridade”
e se “comprometem menos” do que os demais;
iii. Na visão dos funcionários mais velhos e com mais tempo de empresa os mais novos são “menos
comprometidos”, “não levam o trabalho a sério” e ainda “esperam ser promovidos logo”. No
entanto são os próprios funcionários mais velhos que se mostram mais insatisfeitos em relação ao
reconhecimento profissional. Nas entrevistas percebe-se que isto ocorre devido ao fato de que
estes já estejam na empresa a mais tempo esperando por oportunidades de crescimento e
percebem que operadores mais novos estão competindo com igualdade de condições com os mais
antigos por promoções. São os mais velhos e mais antigos de casa que se mostram mais
insatisfeitos em relação ao crescimento profissional;
iv. Em relação à opinião dos gestores o mesmo argumento parece ser válido. Estes relatam que os
trabalhadores mais novos são mais insatisfeitos em relação ao trabalho, quando o que se percebe
nas entrevistas é que são os gestores que estão insatisfeitos com o comportamento dos mais
novos. Um exemplo disso é a questão do comprometimento.
v. Embora em relação à produtividade, tanto mais velhos quanto mais novos sejam considerados
igualmente produtivos, parece haver uma opinião geral dentre os gestores entrevistados que os
mais novos (de idade e de tempo de empresa) não se comprometem com o trabalho como os
demais. Eles “fazem sua parte e pronto”, “só fazem quando são cobrados”, “não pensam na
empresa como um todo, não vestem a camisa da empresa, querem seu salário e sair daqui para ir
para a balada”. Este não comprometimento é visto como um aspecto negativo do comportamento
dos “mais novos”. É interessante retomar neste ponto o argumento de Faria e Meneghetti (2007)
segundo o qual o comprometimento e o vínculo do trabalhador com a empresa, proporcionados por
práticas de gestão que acarretam o “sequestro da subjetividade do trabalhador”, levam-no a
enfrentar de forma mais resignada as condições físicas e psicológicas de trabalho que são cada dia
mais precárias. Deste modo é compreensível a preocupação da gestão quando se depara com
trabalhadores que não se comprometem;
vi. Os gestores, quando indagados sobre o motivo pelo qual acreditam que os mais jovens não se
comprometem, entendem que “essa nova geração não respeita a autoridade”, que “a nova
geração espera crescimento muito rápido e quando não encontra se desmotiva” e que “os mais
novos não tem família para sustentar, precisam do emprego, mas não tanto quanto os mais velhos,
por isso não se preocupam tanto”.
vii. As queixas dos gestores em relação aos mais novos parecem relacionar-se com inabilidades destes
em gerir e controlar o comportamento dos operadores, tal como acreditavam conseguir com os
operadores mais velhos e, embora para a produtividade isto não incorra em nenhum déficit, para
os gestores este parece ser um motivo de preocupação;
viii. O único fator em que se constatou que trabalhadores mais novos da pesquisa apresentam
avaliação mais negativa que os demais foi quanto ao Custo Físico no Trabalho. Verificou-se que os
trabalhadores mais novos apresentaram avaliações mais graves, enquanto os mais velhos
apresentaram médias menores, o que indica uma avaliação mais positiva.
Pelos resultados da pesquisa, duas interpretações de caráter fenomênico são possíveis: (i) a falta de
conhecimento dos mais novos em relação ao contexto de trabalho na empresa Gama; (ii) o relato dos mais
velhos que admitem “já estarem acostumados” com as exigências físicas do trabalho. No campo empírico, em 5
das 32 entrevistas foi relatado que os funcionários mais novos “não tem noção do que é o ambiente da Gama”,
“tem uma visão glamourosa porque se trata de uma multinacional e se chocam quando chegam à linha de
produção”, “não tem conhecimento da realidade de uma operação industrial”, “esperavam um trabalho mais
cabeça na Gama” entre outros.
Conforme Dejours et al (1994) e Dejours   (1997), de modo geral há uma contradição ou incongruência
entre as dimensões diacrônica e sincrônica, ou seja, entre as expectativas, desejos e planos individuais e a
realidade vivenciada no trabalho acarretam sofrimento. Assim, o contraste entre as altas expectativas dos mais
jovens e a realidade do contexto de trabalho encontrado por estes na Gama parece ser um fator de relevância
para a avaliação negativa apresentada pelos trabalhadores mais novos e mais recentes na empresa em relação
ao custo físico.
Quanto à avaliação menos grave atribuída ao custo físico pelos trabalhadores com mais tempo de
empresa, esta parece se relacionar ao fato de “já estarem acostumados”. No entanto, embora os mais velhos

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 363 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
José Henrique de Faria, Camila Bruning

atribuam avaliação mais leve ao custo físico de se trabalhar na linha de produção da Gama, quando se tratam
dos danos físicos eles apresentam maior ocorrência de danos já instalados.
Pelas observações realizadas durante a pesquisa na empresa, pode-se sugerir que este discurso se trate
de uma defesa coletiva compartilhada pelos mais velhos, que, em face da competição com os mais novos,
alegam ser essa uma qualidade que só se adquire com a experiência. As estratégias de defesa, como se sabe,
são regras de conduta construídas e conduzidas pelos trabalhadores de forma que consigam suportar o
sofrimento sem adoecer (Mendes, 2007). Percebem-se, na maneira de atuação dos trabalhadores mais velhos,
duas formas de estratégia de defesa: a de proteção e a de adaptação.
As defesas de proteção se mostram nos modos compensatórios de pensar e agir, ou seja, verifica-se
que os trabalhadores mais velhos racionalizam o sofrimento, alienando-se de suas causas (Mendes, 2007).
Assim, se força e resistência física são itens valorizados na linha de produção da Gama e se trabalhadores mais
novos, que pelo senso comum deveriam ter mais força e resistência que os mais velhos, competem pelos
mesmos objetivos que estes últimos, então não é estranho que os mais velhos se sintam ameaçados pela
presença dos mais novos. É assim que a racionalização entra em jogo na criação coletiva de um argumento que
equilibra a balança para o lado dos trabalhadores mais velhos: ainda que os mais novos tenham mais força, os
mais velhos reclamam menos e são mais comprometidos.
Percebem-se também defesas atuantes de adaptação (Mendes, 2007), que têm em sua base a negação
do sofrimento. Desta forma, não basta perpetuar o discurso coletivo de que os mais novos não se
comprometem e reclamam mais. Para a negação do sofrimento é necessário que os mais velhos reclamem
menos, a ponto de negarem o sofrimento até para si mesmos. É isto que se percebe na avaliação positiva que
os trabalhadores mais velhos fazem em relação ao custo físico do trabalho, o qual consideram satisfatório,
mesmo que estejam apresentando maior índice de danos físicos já instalados.

5 Conclusões e Recomendações Finais


A pesquisa realizada na empresa Gama indica que as concepções que dissociam o sofrimento da injustiça
e do não reconhecimento costumam apresentar como alternativa adequada aquela na qual o que cabe aos
sujeitos do trabalho é a resignação e uma autoimputação de responsabilidade pela situação, até que o
"equilíbrio" se restabeleça. Resignação e autoimputação estas que acabam por funcionar como capa protetora
contra a consciência dolorosa dos que são cúmplices, colaboradores e responsáveis pelo agravamento desta
situação.
Esta causalidade do destino tem igualmente um efeito paralisante, o qual possui as mesmas
consequências do que Freud (1996) vai designar por "pulsão da morte". Neste sentido é que, como sugerem
Hannah Arendt (1999) e Dejours (2000), se estabelece a banalização do mal e da injustiça, fenômeno político
que indica que as vivências de sofrimento impostas aos sujeitos no mundo do trabalho são consideradas apenas
um fato corriqueiro e vulgar.
A pesquisa sugere que determinados sujeitos individuais e coletivos submetidos ao tratamento desigual
sancionado, ao falso reconhecimento ou ao não reconhecimento em suas interações cotidianas, não executam a
autonomia e a autorrealização e somente conseguirão efetivá-las através de uma luta ou conflito social pelo
estabelecimento ou restabelecimento de condições intersubjetivas de reconhecimento (Mattos, 2006; Souza,
2007). Esta luta acaba se dirigindo não para a formação de uma organização coletiva, mas para um
enfrentamento equivocado entre trabalhadores mais velhos e mais jovens. As entrevistas qualitativas e as
observações realizadas indicam que os sujeitos vitimados no âmbito das práticas nas empresas são
especialmente os discriminados e os que expressam relações de insatisfação e sofrimento.
Para suportar as pressões os sujeitos desenvolvem mecanismos de defesa que transformam o sofrimento
em normalidade, em uma composição entre a dor e a luta para suportá-la e "garantir a sobrevivência". A
normalidade não é uma ausência de sofrimento, apenas um condicionamento social necessário à proteção da
saúde mental que pode, no entanto, tornar o sujeito insensível contra a dor e mesmo tolerante contra o
sofrimento emocional. Disto resultam posturas morais particulares e condutas reprodutoras das dores das quais
os sujeitos se defendem.
Os sujeitos discriminados pela idade são apresentados como possuindo características e concepções que,
dependendo da situação vivida, naturalmente os colocam em posições inferiores. Ao mesmo tempo, as
vivências aparecem imbricadas com os custos e danos afetivos nas relações de trabalho, nas quais se nega aos
sujeitos discriminados a condição de se constituírem como sujeitos no âmbito privado das relações efetivas, na
esfera da solidariedade social e na instância das relações propriamente políticas.
A luta pela preservação das vivências saudáveis, portanto, se opera na empresa como uma questão de
não adaptabilidade ou de insatisfação explicada pela apreciação subjetiva do tempo de trabalho e da idade.
Este esquema gerencial impede o autêntico reconhecimento do trabalhador como sujeito, desencadeando um
conflito explícito ou oculto em que prevalece a invisibilização do outro como um trabalhador igual. Desta forma
torna-se possível aos gerentes da empresa reforçar a prática de naturalizar, nas relações intersubjetivas, o não
reconhecimento dos que são colocados em posições de inferioridade.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 364 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
O problema dos mais novos: um estudo de caso sobre o conflito de gerações na linha de produção de
uma montadora automotiva da Região Metropolitana de Curitiba

Referencias
Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das
Letras.
Bardin, L. (1979). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.
Bernardo, M. H. Trabalho duro, discurso flexível. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
Berberoglu, B. (Ed.). Labor and capital in the age of globalization. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers,
2002.
Bruning, C. (2010). Prazer, sofrimento e riscos de adoecimento na linha de produção: um estudo de caso em
uma empresa do setor automotivo da região metropolitana de Curitiba. Dissertação de Mestrado, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.
Cassandre, M. P.(2008). As Pressões Advindas da Reconfiguração Produtiva dos cursos Stricto-Sensu e seu
Impacto Sobre a Saúde de Docentes em Universidades Públicas. Dissertação de Mestrado, Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil.
Dancey, C. P., & Reidy, J. (2006). Estatística sem matemática para psicologia: usando SPSS para Windows. (3ª
ed.). Porto Alegre: Artmed.
Dejours, C. (1987). A loucura do trabalho. São Paulo: Atlas.
Dejours, C. (1997). O fator humano. Rio de Janeiro: FGV.
Dejours, C. (2000). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV.
Dejours, C., Abdoucheli, E. & Jayet C. (1994). Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à
Analise da Relação Prazer, Sofrimento e Trabalho. São Paulo: Atlas.
Faria, J. H. (1984). Círculos de controle de qualidade: a estratégia recente da gestão capitalista de controle e
modificação do processo de trabalho. Revista de Administração da Universidade de São Paulo, 19(3), 9-16.
Faria, J. H. (2004). Economia Política do Poder. (5ª. Ed.). Curitiba: Juruá,
Faria, J. H. (1997). Tecnologia e processo de trabalho. (2ª. Ed.). Curitiba: Editora da UFPR.
Faria, J. H. (2010). Materialismo histórico em estudos interdisciplinares. Curitiba: EPPEO.
Faria, J. H. (2011). Epistemologia Crítica, Metodologia e Interdisciplinaridade. Curitiba: EPPEO.
Faria, J. H., & Meneguetti, F. K. (2007). O sequestro da subjetividade e as novas formas de controle psicológico
no trabalho. In: J. H. de Faria (Org.). Análise crítica das teorias e práticas organizacionais. São Paulo: Atlas, 45-
67.
Ferreira, M. C. & Mendes, A. M. (2003). Trabalho e riscos de adoecimento: o caso dos auditores-fiscais da
previdência social brasileira. Brasília: FENAFISP.
Freud, S. (1996). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras Completas. v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.
Gaulejac, V. (2007). Gestão Como Doença Social - Ideologia, Poder Gerencialista e Fragmentação Social. São
Paulo: Ideias e Letras.
Hair, J., Anderson, R. E., Tatham, R. L., & Black W. C. (2005). Análise multivariada de dados. Porto Alegre:
Bookman.
Kosik, K. (2007). Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Lacan, J. (1966). Le Stade du Miroir comme formateur de la fonction du JE. In: Écrits. Paris: Seuil.
Marx, K. (1977). O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira.
Mattos, P. (2006). A sociologia política do reconhecimento. São Paulo: Annablume.
Mendes, A. M. (org) (2007). Psicodinâmica do trabalho: teoria, método, pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Souza, J. (2007). Teoria Critica no século XXI. São Paulo: Annablume.
Tamayo, A.(2004). Cultura e saúde nas organizações. Porto Alegre: Artmed Editora.

http://revistas.facecla.com.br/index.php/recadm/ FACECLA | Campo Largo – PR, Brasil.


doi: 10.5329/RECADM.2013026 365 RECADM | v. 12 | n. 3 | p. 353-365 | Set-Dez/2013.
• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 • SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line) •
Submissão: 3 set. 2010. Aceitação: 28 maio 2012. Sistema de avaliação: às cegas dupla (double blind review).
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. Walter Bataglia (Ed.), p. 15-47.

g gestão e reificação dos homens


do mar

FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI


Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Avenida Sete de Setembro, 3.165, DAGEE, Rebouças, Curitiba – PR – Brasil – CEP 80230-901
E-mail: fkmeneghetti@gmail.com

JOSÉ HENRIQUE DE FARIA


Doutor em Administração pela Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)
Professor do Programa de Mestrado em Organizações e Desenvolvimento do
Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino (PMOD-Unifae)
Rua 24 de maio 135, Rebouças, Curitiba – PR – Brasil – CEP 80230-080
E-mail: jhfaria@gmail.com

Este artigo pode ser copiado, distribuído, exibido, transmitido ou adaptado desde que citados, de forma clara e explícita,
o nome da revista, a edição, o ano e as páginas nas quais o artigo foi publicado originalmente, mas sem sugerir que a
RAM endosse a reutilização do artigo. Esse termo de licenciamento deve ser explicitado para os casos de reutilização ou
distribuição para terceiros. Não é permitido o uso para fins comerciais.
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

RESUMO
O homem constitui-se como homem porque é capaz de produzir seus meios de
sobrevivência, dentre os quais o trabalho tem lugar central na constituição da
sociedade. É por meio dele que os homens “dominam” a natureza e colocam-se
na posição de senhores diante dela. A pesca artesanal pode ser considerada uma
atividade “secundária” nos interesses de acumulação do capital e é justamente
por isso que o estudo da comunidade dos pescadores artesanais da cidade de
Matinhos, estado do Paraná, configura-se um dos locais privilegiados para se
verificar como o trabalho (englobando a divisão do trabalho, a tecnologia e a
forma de gestão) e a mercadoria (englobando a propriedade privada e o fetiche
da mercadoria) se constituem nas múltiplas determinações do real e estão rela-
cionadas ao processo de reificação social. Assim, o objetivo deste trabalho é com-
preender como ocorre o processo de reificação dos pescadores artesanais, pela
análise das categorias definidas como múltiplas determinações do real, tendo em
vista sua inserção econômica e sua exclusão social no sistema de capital. A base
teórica do trabalho é constituída de autores como Marx, Lukács, Adorno, Faria,
Horkheimer e Meszáros, entre outros. Esta é uma pesquisa qualitativa em uma
comunidade de pescadores artesanais. Foi possível verificar na pesquisa que a
reificação, entre os pescadores mais jovens, dá-se pelo conjunto dos elementos
(relacionados ao trabalho e à mercadoria) responsáveis pela transformação do
sujeito em instrumento do capital. É a transformação da condição de produtor
para a de mercadoria, com todas as suas propriedades. A reificação está relacio-
nada, ainda, ao trabalho alienado e, apesar da tendência hegemônica do sistema
capitalista de produção, é possível identificar resistências em relação a esse pro-
cesso de reificação.
16
PALAVRA S - C H AV E
Gestão; Pesca artesanal; Reificação; Alienação; Trabalho.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

1 INTR O D U Ç Ã O

Para Marx (1983b), o homem necessita produzir seus próprios meios de sub-
sistência material, ou seja, constitui-se como homem porque é capaz de produzir
as condições materiais de sua existência por meio do trabalho. Nesse sentido, a
categoria trabalho, entendida em sua materialidade histórica e dialética, permite
definir o homem (ser humano) em sua identidade geral como expressão de sua
condição ontológica. Essa condição, segundo Lukács (1979), confere ao trabalho
lugar central na constituição da sociedade. É por meio da produção das condições
sociais de existência, ou seja, do trabalho, que os homens “dominam” a natureza.
Assim, historicamente, em cada modo de produção, o trabalho se apresenta não
como trabalho em si, não em sua condição ontológica, mas como um elemento
que engloba as relações coletivas de ordem social. Dessa forma, sob o modo
capitalista de produção, o trabalho é caracterizado pelo fato de ser submetido à
lógica do sistema de capital. A estrutura econômica configurada por esse sistema
mascara, de diversas formas, as relações de subsunção formal e real do trabalho
ao capital.
Em alguns setores de atividade ou áreas da economia, o sistema de capital
(MÉSZÁROS, 2002) não apenas abdica de promover o que se chama de “alto
grau de desenvolvimento das forças produtivas” ao não investir nestas, especial-
mente em razão de suas baixas taxas de acumulação, como também imprime sua
ideologia em práticas que aparentemente não se enquadram como organizações
produtivas tipicamente capitalistas. Tais atividades, para garantir a tendência
de controle hegemônico do capital, são mantidas de forma periférica ou subor-
dinada. Esse é o caso da pesca artesanal, como atividade componente de uma
forma social de produção. A manutenção da pesca artesanal não intervém nega-
tivamente no processo de acumulação do capital ao não concorrer com este, ao
mesmo tempo que sua produção excedente de valor de uso e de troca de subsis-
tência é destinada a empreendimentos capitalistas a baixo custo.
Pela sua especificidade, o objeto deste estudo são os pescadores artesanais
da cidade de Matinhos, estado do Paraná, pois estes não estão imunes às influên-
cias das transformações resultantes dos investimentos do sistema de capital em
todas as áreas (economia, política, cultura e demais setores da vida social). A pesca
artesanal, pensada ontologicamente, pode ser considerada atividade “secundária”
nos interesses de acumulação do capital. Contudo, considerada sua atividade prá-
tica, ela compõe um sistema que se integra ao capitalismo. Justamente por isso, 17

essa comunidade de pescadores representa um local privilegiado para se verificar


como o trabalho (desde sua divisão, suas tecnologias, sua forma de gestão e seu
produto), englobando a propriedade privada e o fetiche da mercadoria, constitui-se
nas múltiplas determinações do real relacionadas ao processo de reificação social.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

Dessa forma, o objetivo central deste estudo é compreender como ocorre


o processo de reificação dos pescadores artesanais da cidade de Matinhos,
estado do Paraná, pela análise das categorias definidas como múltiplas deter-
minações do real, tendo em vista sua inserção econômica e sua exclusão social
do sistema de capital.
A pesca artesanal é definida, nesta pesquisa, como a atividade de captura e
desembarque de todas as espécies aquáticas para comercialização. São utilizadas
para tal fim embarcações e aparelhagens rudimentares ou simples, se compara-
das com as tecnologias disponíveis nos grandes empreendimentos pesqueiros,
seja no que se refere aos navios, como aos próprios processos de pesca (radares
de identificação de cardumes, utilização de robôs etc.), de limpeza, embalagem
e armazenamento. A forma de trabalho que prevalece na pesca artesanal pode
ser considerada pré-capitalista pelo seu caráter de não assalariamento e pelo fato
de alguns tripulantes terem remuneração por empreitada (diárias ou por pro-
dutividade) nos casos em que não se utiliza mão de obra familiar. As pescas são
realizadas próximo à costa e sua duração média não ultrapassa seis horas diárias,
devido à pequena autonomia das embarcações.
Para a realização deste estudo de caso, conforme explicitado adiante, a abor-
dagem qualitativa foi a escolhida, apoiada em técnicas de entrevista e análise de
conteúdo. Indicações quantitativas utilizadas não se referem à aplicação de méto-
dos estatísticos, mas a formas de sistematização das informações.
A abordagem teórica que sustenta este estudo tem origem na Teoria Críti-
ca da primeira geração da chamada Escola de Frankfurt e segue no âmbito do
marxismo ocidental. Em outras palavras, os conceitos de reificação, alienação e
trabalho aqui empregados procedem de uma linha de análise conhecida como
marxismo ocidental. A escolha dessa concepção teórica deve-se à sua condição
de abordagem crítica de uma realidade que se enquadra sob o comando do sis-
tema de capital, ainda que a forma de produção estudada seja pré-capitalista
(artesanal). É com os teóricos da Escola de Frankfurt que as análises de ativida-
des não tipicamente capitalistas são estudadas pela primeira vez no âmbito do
marxismo como inseridas no sistema de capital, sendo a mais conhecida delas
a indústria cultural.
O método de investigação, no presente caso, decorre de uma epistemologia
que se apoia na primazia do real. Para este estudo em particular, nessa linha
de abordagem teórica, entende-se que as técnicas que melhor propiciam a iden-
18
tificação da realidade são de natureza qualitativa, ainda que a Teoria Crítica
trabalhe com métodos quantitativos, como na clássica pesquisa sobre a perso-
nalidade autoritária conduzida por Adorno e seus colaboradores em 1950 nos
Estados Unidos.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

2 A CO M U N I D A D E D E P E S C A D O R E S

A comunidade de pescadores pesquisada localiza-se na cidade de Matinhos,


litoral paranaense. Trata-se de um balneário, sem atividades produtivas relevan-
tes, conforme pode ser deduzido dos dados do censo do IBGE. A atividade eco-
nômica principal é o turismo, com ênfase nas temporadas de verão. Matinhos
possui um campus da Universidade Federal do Paraná, chamado campus Litoral,
inaugurado em 2007, o que ainda não permite avaliar seu impacto na vida eco-
nômica e social do município, embora se reconheça sua importância.
A população estimada é de 32 mil habitantes fora da temporada de verão,
quando a população pode chegar a 120 mil pessoas. A pesca representa, fora de
temporada, uma atividade econômica importante para a sobrevivência de parte
da população permanente da cidade. Todavia, o caráter artesanal e a concorrên-
cia com os grandes barcos pesqueiros vindos do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina dificultam o trabalho dos pescadores.
A população total de pescadores da comunidade é de 210. Para a pesquisa,
os pescadores foram classificados em três grupos (faixa de tempo de experiên-
cia, em anos) em relação à atividade da pesca artesanal. Primeiro, os pescadores
mais jovens têm menos de 10 anos de experiência e totalizam 170 pescadores na
comunidade. Segundo, os pescadores intermediários têm entre 11 e 39 anos de
experiência e são 34 pescadores. Os mais experientes têm mais de 40 anos de ati-
vidade e são 6 pescadores no total. O Quadro 1 resume esse perfil dos pescadores.

Quadro 1
PERFIL DA COMUNIDADE DOS PESCADORES DE
MATINHOS POR TEMPO DE EXPERIÊNCIA (2009)
Tempo médio de experiência,
Faixa de tempo de experiência, em anos
em anos, dos entrevistados

Entre 0 e 10 anos 8,00

Entre 11 e 39 anos 18,60

Mais de 40 anos 44,67

Teste F 1692,561
Significância p < 0,001 19
Eta² 99,2%

Eta2: Percentual de explicação das categorias em relação a variável quantitativa. O alto valor do Eta2
está associado à grande homogeneidade das faixas.
Fonte: Elaborado pelos autores.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

Como se pode observar, o sentido atribuído ao trabalho está relacionado com


o tempo de experiência dos pescadores quando se compara a média de experiên-
cia deles. Esse cuidado foi importante para a seleção dos entrevistados. Nesse
sentido, as entrevistas com 29 pescadores obedeceram à classificação por faixa
de tempo de experiência, em anos. Tal classificação, quando exposta à variância
explicada pelo Eta2, condiciona o valor médio, ou seja, o alto valor do Eta2 está
associado a grande homogeneidade das faixas.
A comunidade de pescadores do município de Matinhos é formada, essen-
cialmente, por nativos da região litorânea do Paraná e de suas fronteiras próxi-
mas (nordeste de Santa Catarina e sudeste de São Paulo). A pesca é uma ativida-
de tradicional dos caiçaras, grupo indígena que habitava a região e que, embora
extinto como grupo, possui descendentes que mantêm a atividade pesqueira. As
faixas de tempo de experiência na atividade da pesca artesanal indicam que, não
obstante a transformação dessa atividade em empreendimento capitalista de alto
composto tecnológico, essa forma de produção das condições materiais de exis-
tência ainda continua sendo a principal dessas famílias de pescadores.

3 MÉT O D O D E P E S Q U I S A
A escolha dos pescadores para a realização das entrevistas foi definida por
adesão voluntária deles, observando o critério da participação das faixas de tempo
na definição dos entrevistados. Contudo, foi necessário optar por enfatizar os
resultados das entrevistas dos pescadores mais jovens e dos mais experientes,
já que as respostas dos pescadores com experiência intermediária foram pouco
relevantes em relação aos objetivos da pesquisa. Isso se deu porque os pescado-
res dessa faixa, embora entrevistados, não apresentaram nenhuma questão que
não tivesse mais bem esclarecida ou com os mais jovens ou com os mais expe-
rientes. Dessa forma, essas entrevistas foram descartadas do conjunto, restando
apenas as 29 mencionadas. No texto, os pescadores mais experientes serão indi-
cados pela sigla PE e os pescadores mais jovens pela sigla GPJ.
Esta é uma pesquisa que se enquadra em um estudo de caso, sendo a técnica
de coleta e análise das informações de natureza qualitativa, a partir da análise
dos depoimentos, segundo procedimentos recomendados por Bardin (1979).
Nas entrevistas realizadas com pescadores com menor tempo de experiência foi
necessária, inicialmente, uma conversa informal. Após realizar algumas entre-
20
vistas individuais, percebeu-se que os pescadores, tanto os mais novos como os
mais experientes, ficariam mais à vontade e predispostos a responder com mais
efetividade às perguntas caso estivessem em grupo.
Foram realizadas seis entrevistas individuais e três procedimentos de entre-
vistas coletivas. Nos três procedimentos em instância coletiva, as questões for-

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

muladas foram respondidas e debatidas entre os participantes com intervenção


apenas orientadora do tema central pelos pesquisadores. O primeiro procedi-
mento coletivo foi realizado com cinco pescadores; o segundo, com sete; e o
terceiro, com 11 pescadores. No primeiro procedimento de entrevista coletiva não
foram utilizadas questões estruturadas, pois o que se pretendia era uma “aproxi-
mação precária com o objeto” (FARIA, 2011, p. 25). Nos outros dois procedimen-
tos foram apresentadas questões semiestruturadas.Verificou-se que a condição
de entrevista coletiva, na qual os pescadores puderam trocar ideias e discutir suas
percepções, viabilizou o direcionamento das respostas para as categorias centrais
do trabalho.
No caso das entrevistas individuais com os seis pescadores, foram propostas
questões não estruturadas e semiestruturadas, porque havia o interesse dos pes-
quisadores na perspectiva da história vivida como elemento fundamental para a
compreensão da realidade estudada. Embora nessas entrevistas tenham se des-
tacado as histórias individuais, a pesquisa procurou valorizar os aspectos das
entrevistas que tinham conexão com a definição temática.
É importante destacar que os pescadores, de imediato, foram receptivos e
colaboraram com as entrevistas, ainda que, em princípio, tenham se mostrado
um pouco receosos. Contudo, a vontade de contar suas “histórias de pescadores”,
de mostrar seu trabalho, de se sentirem valorizados pelo interesse de alguém
pelo seu mundo possibilitou aproximação rápida e extrema colaboração, sem
nenhuma forma de resistência.
As entrevistas não estruturadas (denominadas aqui entrevistas de aproxima-
ção) com seis pescadores visavam, como já referido, uma “aproximação precária
com a realidade” pesquisada (FARIA, 2011, p. 26). Nesse momento, não foram
enfatizadas as faixas consideradas centrais na pesquisa, pois a finalidade dessas
primeiras entrevistas foi possibilitar a aproximação e despertar confiança mútua
entre os pesquisadores e os entrevistados. Já nas demais entrevistas individuais
posteriores foram propostas questões semiestruturadas com cada pescador, em
momentos diferentes (entrevista de retorno para maiores esclarecimentos), abor-
dando as questões centrais da pesquisa.
Este é um estudo de caso particular, sendo o nível de análise a categoria
social de pescadores que realizam uma atividade artesanal e a unidade de análise
aquela constituída pelo grupo de pescadores artesanais da cidade de Matinhos,
estado do Paraná. Adotou-se o procedimento de pesquisa de natureza qualitativa,
21
tendo em vista que ele valoriza o ambiente natural como fonte direta dos dados e
busca compreender essencialmente o significado dos depoimentos dos pescado-
res estudados no contexto das atividades.
Para a análise das informações obtidas, procurou-se descrever a complexida-
de do problema, analisar a interação dos elementos constitutivos das categorias,

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

compreender os processos de trabalho e as condições de existência do grupo


social estudado e conhecer, em maior profundidade, as particularidades do com-
portamento dos pescadores e suas vivências. A adoção desses procedimentos
se justifica porquanto a análise dos dados se torna mais coerente, pois neste
estudo a necessidade de se compreender o conteúdo vivido dos depoimentos e
a dinâmica dos grupos focais foi fundamental. Foram realizadas confrontações
que permitissem o tensionamento entre os conteúdos das entrevistas, nas quais
se procurou encontrar coerências e inconsistências, de forma que na análise dos
dados fosse possível obter maior abrangência na descrição, explicação e com-
preensão do objeto de estudo.
As entrevistas foram, na maioria das vezes, gravadas e, quando não, foram
realizados registros escritos dos depoimentos com a posterior conferência para
verificar se as anotações correspondiam ao conteúdo desses depoimentos. As
análises seguiram as técnicas descritas por Bardin (1979) quanto à abordagem não
quantitativa. A análise de conteúdo é

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por


procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores, quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensa-
gens (BARDIN, 1979, p. 27).

No caso desta pesquisa, optou-se por “indicadores” não quantitativos. Bar-


din (1979) sugere a técnica da análise do discurso pertencente ao campo da análi-
se de conteúdo. A autora argumenta que um discurso (ou conjunto de discursos)
é determinado por condições de produção e por um sistema linguístico. Dessa
forma, o discurso é determinado não só pelo referente, mas também pela posi-
ção do emissor da mensagem. As posições e lugares em que se encontram tanto
o emissor quanto o receptor determinam a estrutura e a formação social que
se relacionam na prática discursiva. Bardin (1979, p. 215), portanto, indica que se
devem descobrir “as conexões que possam existir entre o exterior e o discurso,
entre as relações de força e as relações de sentido, entre condições de produção e
processos de produção”.
A partir dos depoimentos foi possível compreender a totalidade do caso
22 estudado nos limites do tema definido. Nesse sentido, a transcrição de alguns
depoimentos não indica que eles constituem a prova definitiva da situação. A
escolha dos depoimentos foi realizada quando eles continham a representação
dos demais depoimentos, ou seja, quando refletiam o conjunto das opiniões e as
sintetizavam de forma particular.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

4 DESC R I Ç Ã O D O S M E I O S E D A
ORG A N I Z A Ç Ã O D O T R A B A L H O :
AS E M B A R C A Ç Õ E S E E Q U I PA M E N T O S
E OS T I P O S D E P E S C A

4.1 MEIOS DE TRABALHO: EMBA R C AÇ Õ E S E E Q U I PA M E N TO S

A partir das entrevistas, os pescadores informaram as características técni-


cas e operacionais dos meios de trabalho de que dispõem, as quais são descritas
a seguir:

4.1.1 Embarcações e equipamento s

• Canoas de madeira com comprimento entre 6 e 10 metros; motor de centro


com potência entre 11 e 24 HP; tora única escavada; fundo quilhado e em
forma de V.
• Botes entre 7 e 10 metros; motor de centro com potência entre 9 e 36 HP;
de tábuas encaixadas de forma lisa; fundo quilhado ou chato; com guincho e
tangones, dois por barco, utilizados para tração das redes de arrasto.
• Canoas de fibra de vidro, embora pouco utilizadas; têm entre 8 e 9 metros;
motor de centro com potência entre 11 e 24 HP, fundo quilhado e em forma
de V; fabricadas de resina sintética e fibra de vidro.

4.1.2 Tipos de pesca

Também a partir das entrevistas com os pescadores foi possível registrar


basicamente três tipos de pesca, consideradas artesanais, na região. O processo
de trabalho (tipo de pesca) descrito pelos pescadores é resumido a seguir:

• Pesca com utilização de redes de arrasto, utilizando-se pranchas (ou portas


de madeira, quando de maior tamanho e constituídas por tábuas vazadas).
Caracteriza-se pela utilização de malhas no ensacador, que varia de 1 a 6 cen-
tímetros entre nós opostos. São puxadas pela popa ou pelo costado, sempre
no fundo do mar.
• Pesca com redes de emalhe, utilizando-se malhas que variam de 5 a 40 23

centímetros entre nós opostos, operando com algumas formas particula-


res: “caceio” (de superfície ou de fundo), que fica à deriva. Uma variação de
caceio de fundo utilizado é o caracol, em que a rede é forçada em semicir-
cunferência por uma de suas extremidades presa à embarcação. Outra forma

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

é a de “fundeio”, rede presa ao fundo por poitas de ferro. Nesse tipo, os


panos interligados podem ultrapassar 3.500 metros de comprimento. Outra
variação relatada de “caceio” para os estuários foi o “lance batido”, com a dis-
posição da rede em semicircunferência e com produção de estímulos sono-
ros (remo, motor) para a movimentação dos peixes de encontro à rede.
• Pesca com tarrafas, utilizando-se oito diferentes tamanhos de malha, que
variam entre 2 e 18 centímetros entre nós opostos. É utilizada nos estuários e
na boca das baías, quando da entrada de tainhas (principalmente no inverno).

5 REIF I C A Ç Ã O E A L I E N A Ç Ã O N O
TRAB A L H O

O trabalho, que inicialmente deveria apresentar-se como forma primeira do


processo de esclarecimento e de emancipação social, é, na atual estrutura econô-
mica, um mecanismo de alienação e de controle social. A reificação do indivíduo
tem sua origem na dimensão social, mas é também nessa mesma sociedade que
se pode encontrar as contradições e negações de suas características. Não há rei-
ficação sem a presença do outro, pois são os outros, no emaranhado das relações
sociais, que estabelecem e que fornecem as múltiplas determinações do real,
“condicionantes” que limitam as ações humanas.
A compreensão da reificação só é possível por meio de análise de âmbi-
to social. Na perspectiva sugerida por Mészáros (2002), a instrumentalização
dos sujeitos só se concretiza na medida em que alguns são destituídos da sua
condição de sujeitos autônomos para ser subjugados pela dominação do outro,
quase sempre configurada por objetos dos interesses do capital. Impiedosa-
mente, o sistema capitalista, por meio da instrumentalização dos indivíduos,
formaliza o processo de reificação escondendo os responsáveis por ele. O ano-
nimato da violenta instrumentalização é a absolvição de um culpado sem iden-
tidade, pois, tal como a mercadoria, os agentes de sua constituição perdem-se
no imediato percebido pelos indivíduos. Dialeticamente, ao mesmo tempo que
a reificação se afirma como realidade objetiva da vida social, uma subjetividade
responsável pela reprodução da aceitação desse processo precisa ser formada.
Assim, a reificação constitui um processo objetivo, mas que precisa sedimen-
tar-se no plano da subjetividade dos indivíduos. Vale ressaltar, contudo, que
24
essa subjetividade nada tem de libertária, porque é ela que orienta, de forma
pacificadora e sutil, a definição das falsas necessidades a ser supridas para
manter a reprodução do sistema.
Dessa forma, é possível falar em uma subjetividade orientada para integrar
o processo de reprodução sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2002). Apesar

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

de a subjetividade ter um apelo de ordem individual, o sistema de produção e


consumo no capitalismo fomenta um conjunto de elementos específicos que
integram as subjetividades dos indivíduos de forma a “orientar” e “manipular”
processos inconscientes para concretização dos interesses objetivos do capital.
Assim, só a história, como fundamento principal do movimento de liberta-
ção, não é suficiente para libertar os homens dessa tendência totalizadora. O pas-
sado e o presente são responsáveis por narrar a história de um processo que tem
origem, essencialmente, na relação de exploração do capital sobre o trabalho.
Assim, a reificação é um processo cuja origem deve ser buscada nos primórdios
da sociedade organizada e do uso de instrumentos. Contudo, a transformação
de todos os produtos da atividade humana em mercadorias só se concretizou
com a emergência da sociedade industrial. As funções outrora preenchidas pela
razão objetiva, pela religião autoritária, ou pela metafísica, têm sido ocupadas
pelos mecanismos reificantes do anônimo sistema econômico (HORKHEIMER,
2000, p. 48).
A reificação, portanto, prescinde de elementos substanciais oriundos da
própria organização das relações de produção, sem, contudo, negligenciar a
forma como esta orienta a subjetividade dos sujeitos sociais. Questões objetivas
põem-se, destarte, como manifestação da forma como as condições de produção
da existência humana se apresentam. Nesse contexto, o trabalho nos moldes
do capitalismo é a centralidade que forma a ontologia do ser social. Os sujeitos
dessa formação ontológica, segundo Lukács (1979), são seres sociais, que não se
constituem como sujeitos porque se encontram dissociados das relações sociais
que se consolidam e solidificam nas atividades de produção da existência.
Outro aspecto relevante para se levar em consideração é a forma como o
capitalismo transforma e cria novas necessidades e como o trabalho é capaz de
dinamizar os aspectos das subjetividades dos sujeitos. Ambos os aspectos estão
no bojo da formação ontológica do ser social (LUKÁCS, 1979). Em outras pala-
vras, relacionada às novas necessidades e ao processo de reificação social, a “con-
dição necessária do processo de coisificação é que toda a satisfação das necessi-
dades se realize na sociedade na forma de tráfico de mercadorias” (LUKÁCS,
1969, p. 98). O “mercado de trocas” dimensiona como as relações devem se
estabelecer. O indivíduo cede espaço para os objetos produzidos em um sistema
impessoal e instrumentalizador, que tem como característica central condicionar
as relações sociais com base em uma organização objetiva externa aos indivíduos
25
e sob o domínio de poucos.
As novas necessidades são internalizadas pela produção e pelo consumo
acelerado de novas mercadorias. A realidade vivida pelos indivíduos é incorpora-
da pelas modificações estéticas da mercadoria produzida no sistema capitalista
de produção, ou seja, o produtor confunde-se com a mercadoria, pois ambos

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

adquirem a mesma propriedade – o caráter de coisa, mesmo que o primeiro não


tenha a propriedade do segundo (MÉSZÁROS, 2006).
De acordo com Mészáros (2006), o ser social é transformado em ser produ-
tivo, mas voltado para atender a necessidades individuais, em que a mercadoria
passa a ser mais importante que as relações sociais necessárias para produzi-la.
A mercadoria como fim em si mesmo, para a satisfação das necessidades in-
dividuais, justifica o meio pelo qual é produzida. A mercadoria, sob o capital,
torna-se mediadora das relações sociais. Assim, a consciência é transformada
em produto do pensamento instrumentalizado pelas relações de troca em todos
os níveis da vida em sociedade. Desde as relações afetivas primárias que se
desenvolvem no âmbito da família até o plano das relações sociais, a gramática
é ditada pela produção e consumo das mercadorias, as quais são transformadas
em entes com propriedades e significados próprios e que independem da con-
dição humana.
As trocas são corroboradas pela consciência com base no cálculo das utili-
dades e das consequências. A regra é a mesma definida pela ditadura do capi-
tal e seu código autoritário (FARIA, 2004). A mercadoria, portanto, é a própria
condição final da existência humana no sistema capitalista de produção. Seu
caráter fetichista se transfere para as relações que se estabelecem socialmente
e no mundo do trabalho sob o sistema capitalista de produção (MARX, 1983b).
A forma como a produção de mercadorias se constitui é o elemento central na
formação das múltiplas determinações do real.
Outro fator relacionado à reificação é a alienação do trabalhador. Marx (1967)
caracteriza o trabalho alienado de quatro formas: 1. a relação do trabalhador com
o produto do seu trabalho; 2. a expressão da relação do trabalho com o ato em si
da produção no interior do processo de trabalho; 3. o objeto do trabalho, enquan-
to “objetivação da vida da espécie humana” (MÉSZÁROS, 2006, p. 20); 4. o estra-
nhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo.
Explicando de maneira simples, na primeira forma o produto do seu traba-
lho não lhe pertence. O trabalhador vende sua força de trabalho por um salário e
o produto do seu trabalho passa a pertencer ao capital. Nesse caso, a alienação do
trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte
em objeto, assumindo uma existência externa, mas, ainda, que existe indepen-
dentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que se lhe opõe como uma
força autônoma (MARX, 1967, p. 91).
26
Na segunda forma, o trabalho é externo ao trabalhador, não fazendo parte da
sua natureza. O trabalhador não se realiza no trabalho, no processo de produção.
O trabalhador nega-se a si mesmo, sofre em vez de ter a sensação de bem-estar
no processo de trabalho. Na terceira forma, o trabalhador é objetivado para a vida
pela ação transformadora do ato de produção. Sua humanidade se realiza porque é

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

capaz de produzir suas condições materiais de sobrevivência, ao mesmo tempo


que se desumaniza porque o trabalho objetivado não é definido por ele, ou seja, a
forma e o meio de objetivação são dados pelo capital. Na quarta forma, o homem
torna-se estranho à natureza, porque passa a modificá-la. Apresenta-se como
“senhor” dela e exerce sua capacidade de impor sua vontade sobre os destinos
da natureza. Todavia, o homem é parte da natureza e, ao impor sua vontade, cria
uma relação estranha aos outros homens sem o mesmo poder de imposição de
suas vontades. O trabalho alienado cria a subordinação dos homens sobre os
homens, condicionada pelas diretrizes do capital.
Resumidamente, a reificação é a transformação dos indivíduos em coisas ou
instrumentos. O indivíduo reificado é aquele em que seu Ser é dominado pelo
processo de produção, conduzido pela relação capitalista de trabalho. A aliena-
ção expressa a forma pela qual o sujeito é reificado no trabalho. Considerando,
portanto, a não posse do objeto que produz, a constituição do processo de pro-
dução como fonte de sofrimento ao invés de fonte de satisfação de necessidades
materiais e psicológicas e a contradição do trabalho humano que, ao mesmo
tempo desumaniza, tem-se o quadro da reificação. A esse se interliga também
a constituição de uma superestrutura, cujo controle encontra-se fora do alcance
do poder político do trabalhador coletivo em detrimento do domínio estabelecido
nas condições do sistema de capital.

6 GENE A L O G I A D A S M Ú LT I P L A S
DETE R M I N A Ç Õ E S D O R E A L D O S
HOM E N S D O M A R

A apropriação do real concreto pelo real pensado se faz com a mediação do


pensamento (MARX, 1983a). Para além da materialidade do real, a existência
do imaginário e do imaterial também constituem as condições da percepção do
sujeito sobre o concreto. Oriundo das relações de produção e das relações sociais
definidas por aquela, o real se apresenta ao sujeito como uma multiplicidade,
uma variedade e uma complexidade de fenômenos contraditórios em movi-
mento. Na medida em que o modo de produção capitalista avança e se torna cada
vez mais complexo, as instâncias superestruturais por ele construídas ganham
novos contornos e nova dinâmica. Assim, as ideologias e as concepções políticas
27
multiplicam-se e ganham conotações afirmativas na defesa do multiculturalis-
mo, da diversidade, da efemeridade e de todas as características que apontem
para a multiplicidade dos fenômenos concretos.
Nancy Fraser (2008) chama a atenção para o deslocamento das lutas sociais
contemporâneas dos conflitos fundamentais para as lutas de gênero, identidade,

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

multiculturalismo, entre outras, como se estas não estivessem abarcadas pelas


lutas de classes sociais. É importante observar, nessa direção apontada por Fraser,
que a tendência totalizadora do capitalismo diversifica e promove a multiplici-
dade no plano da aparência, pois ela é capaz de justificar a continuidade de um
sistema que tem no centro da sua reprodução social a polarização entre capital e
trabalho. Dito de outra maneira, o deslocamento da atenção, incluindo a analíti-
ca, da luta fundamental para conflitos específicos favorece a ideologia subjacente
ao sistema de capital.
Outra discussão relevante refere-se ao entendimento de determinação. A tra-
dução do termo em O capital de Marx (1991) dá a ideia de um não voluntarismo,
que destitui dos sujeitos a possibilidade de mudanças sociais por meio de orga-
nizações coletivas. Entretanto, determinação não é um termo que deve ser com-
preendido por um entendimento mecanicista, fatalista ou definitivo. As determi-
nações são os elementos que exercem significativas influências sobre a definição
de algo. As determinações não extinguem possibilidades, mas orientam efetiva-
ções que, em outras condições objetivas e subjetivas, dificilmente se realizariam.
Desse modo, falar em “Genealogia das múltiplas determinações do real” é
compreender a origem e o movimento da práxis dos elementos significativos
para a definição das múltiplas determinações apresentadas como reais para os
sujeitos. Dito de outra forma, é entender o movimento contraditório das ques-
tões objetivas e subjetivas e como elas exercem significativa influência na forma-
ção dos sujeitos e na constituição da realidade.
Foi, portanto, com essa elaboração teórica e histórica que se tornou possível
olhar para a realidade empírica do objeto proposto para o estudo e relacioná-la
ao próprio movimento da história dos pescadores para definir as categorias das
múltiplas determinações do real. Entre as categorias, destacam-se: 1. o trabalho –
englobando a divisão do trabalho, a tecnologia, a forma de gestão, a hierarquia;
2. a mercadoria – englobando a propriedade privada, o fetiche da mercadoria,
as relações de troca, o consumo, a estética da mercadoria; 3. o social-histórico –
englobando o imaginário social (espaço, tempo, vínculos sociais), a ideologia e
a política.

6.1 TRABALHO

O processo de trabalho, de início, deve ser considerado independentemente


28 de qualquer forma social determinada, pois se trata de um processo que ocor-
re entre o homem e a natureza, no qual ele regula e controla seu metabolismo
(MARX, 1983a). Quando o trabalhador emprega sua força de trabalho, ele o faz
para produzir valor de uso. “A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho”
(MARX, 1983b, p. 149). A divisão do trabalho somente se efetiva, de acordo com a

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

concepção de Marx, com base na divisão clássica entre trabalho manual e intelec-
tual. Uma das condições do processo de reificação é a confirmação e sedimentação
dessa divisão. De fato, é possível perceber que na atividade dos pescadores ocorre
“certa” separação entre essas duas formas. No entanto, a natureza artesanal da
atividade impossibilita a intensa divisão entre trabalho manual e intelectual.
É possível perceber suas situações claras em relação a essa temática. Para os
pescadores mais jovens, a aceitação dessa dissociação entre trabalho manual e
intelectual é aceita com maior facilidade. Exemplo disso encontra-se nas obser-
vações de um dos pescadores entrevistados:

Em cada barco vão três a quatro pessoas. Cada um acaba se especializando em


uma coisa. Tem gente que sabe prever o tempo, se vai chover ou não. Tem gente
que é boa no lançamento da rede. Tem gente que só sabe pilotar o barco. Não dá
para ser bom em tudo. Aliás, para dar menos trabalho é melhor definir o que cada
um vai fazer em cima do barco. Assim, cada um tem sua responsabilidade (GPJ).

A divisão técnica que se desenvolve com o trabalho cooperado é aceita sem


questionamentos, não havendo reflexão sobre suas possíveis consequências. Em
prol da maior produtividade, organização e atribuição de responsabilidades, a
aceitação é imediata. Foi possível verificar que os pescadores mais jovens não se
importam com as consequências da divisão técnica do trabalho e de suas impli-
cações em relação à divisão manual e intelectual.
Pela observação realizada na explicação de um grupo de pescadores mais
velhos em relação aos procedimentos de pesca no barco, a divisão técnica do tra-
balho implica o estabelecimento de relações sociais definidas pelas relações de
produção, conforme se observa na fala de um desses pescadores:

Esse pessoal mais novo tem força, mas nem sempre sabe onde colocar a rede.
Às vezes, eles colocam quase um quilômetro de rede, mas o lugar não é bom.
Outros, mais experientes, colocam duzentos metros e pegam a mesma quantidade
de peixe. É por isso que nós velhos ainda sobrevivemos nesse ramo da pesca
artesanal. A experiência e o tempo de mar nos possibilita saber pensar nas coisas
antes de fazer. Eles ainda estão na fase de fazer mais para aprender a saber (PE).

29
A sociedade, em razão da necessidade cada vez maior de domínio da natu-
reza, fomenta o alargamento dos mecanismos de divisão do trabalho. A especia-
lização tornou-se regra inquestionável na esfera da vida social comum. Ela apre-
senta-se como condição essencial para que os homens invistam sobre a natureza,
dominando-a cada vez mais. Assim, para os pescadores mais novos, a aceitação

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

da divisão do trabalho, como já mencionado, é tida como natural. Apesar disso,


eles reconhecem que o entendimento do todo é de suma importância para esse
tipo de trabalho.

Nós sabemos que os mais velhos conseguem ter mais produtividade individual.
Por isso mesmo que os barcos que levam um deles acabam voltando com mais
pescados. Mas hoje existem poucos mestres (pescadores mais experientes). Para
eles, a pesca é sua própria vida. Para a maioria dos mais jovens é apenas uma
forma de ganhar a vida (GPJ).

Esse depoimento demonstra que trabalhar ocupando uma parte específi-


ca do parcelamento do trabalho é apenas mais uma atividade de trabalho para
grande parte dos pescadores mais jovens. A rapidez e as transformações do
mundo do trabalho tornam a atividade de aprender o todo da tarefa algo acessório.
Há uma descrença pronunciada por ambas as partes:

Eu sei que meu filho vai acabar em outra profissão. Ele está fazendo faculdade e
agora está trabalhando com o comércio de peixe. Dá mais dinheiro. Ele não terá
a mesma vida que eu. Daqui a dois ou três anos, talvez ele nem suba mais no
barco para pescar. Ele não vai passar seus quarenta e cinco anos indo e voltando
do mar. Por isso, eu não faço questão que ele aprenda tudo que eu aprendi no
mar (PE).

Os mais velhos conseguiram criar bem suas famílias indo e voltando do mar.
Mas nós sabemos que não conseguiremos isso. Daqui a dez anos, acho que nem
vai ter mais espaço para a pesca artesanal. Os barcos grandes acabam com os
peixes e são muito mais produtivos. Aprender tudo não vale a pena, o trabalho na
pesca artesanal não terá futuro. Muitos já estão fazendo outras coisas paralelas.
Alguns são pintores, outros têm restaurantes. E assim vai, até acabar tudo (GPJ).

Há uma descrença quanto ao futuro da pesca artesanal, por isso, não é moti-
vadora a ideia de aprender todo o processo produtivo da pesca. A divisão do tra-
balho, nesse sentido, acaba sendo a opção mais viável para os pescadores mais
30 jovens, porque para eles o conhecimento de todo o ofício não será útil em um
futuro próximo.
Essa perspectiva cria condições mais concretas para a instrumentalização
dos pescadores mais jovens. O trabalho e seus parcelamentos são cada vez mais
técnicos e instrumentais, com o objetivo único de garantir produtividade. A falta

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

de expectativas e o fim da crença na pesca tornam os pescadores mais susce-


tíveis a aceitar a condição de meios para realização da produtividade. O abando-
no afetivo dos pescadores em relação à sua atividade coloca-os na condição de
instrumentos. Apesar dessa tendência, é possível perceber que há contradições,
sobretudo quando o saudosismo provocado pelos mais velhos vem à tona:

Se eu soubesse que a pesca artesanal iria garantir uma vida boa para mim eu
continuaria nela. Eu vejo o meu tio contando suas histórias e vejo como ele é
feliz sendo pescador. Mas fazer o quê? Nós temos necessidades que só a pesca
não garantirá que elas sejam realizadas. Esse tempo do meu tio acabou. Para
ele, que é mais velho, a pesca é sua vida, para nós é apenas um momento pas-
sageiro (GPJ).

6.2 TECNOLOGIA

O termo tecnologia tem sido usado para identificar máquinas ou utiliza-


ção de novas máquinas no processo produtivo. Como já exposto em outra opor-
tunidade (FARIA, 1992), essa concepção é evidentemente restrita, o que acaba
prejudicando a interpretação e análise dos problemas relativos aos efeitos da
tecnologia sobre o processo de trabalho. A tecnologia deve ser entendida como
o conjunto de conhecimentos aplicados a determinado tipo de atividade. A tecno-
logia empregada em um processo de produção compreende as técnicas e o uso
de técnicas que interferem na organização do trabalho, de maneira a modificá-lo,
organizá-lo, racionalizá-lo, sejam tais técnicas de origem física (máquinas, peças
e componentes), sejam de origem gerencial (FARIA, 1992).
A utilização de novas tecnologias no processo produtivo é irreversível, na
medida em que decorre da superação das contradições inerentes ao próprio pro-
cesso de acumulação. Trata-se de uma exigência da dinâmica capitalista, cuja
base é a valorização do capital. Pesquisas que tratam desse tema de forma geral
têm ficado restritas ao exame das tecnologias materiais ou físicas (máquinas,
equipamentos etc.). É preciso indicar que existem problemas que afetam a vida
do trabalho que estão além do seu aspecto físico imediato. A tecnologia não se
constitui apenas de sua parte material, mas também da gestão do processo de
trabalho (FARIA, 1992).
A cada nova forma de divisão do trabalho, sobretudo orientada pela incorpo- 31
ração de novas tecnologias físicas, há uma reorganização das relações sociais de
trabalho. Essa nova configuração afeta não só o processo de trabalho, mas as rela-
ções entre os indivíduos, entre estes e o mundo concreto e as formas abstratas da
vida social (FARIA, 2004). O impacto da tecnologia física afeta de duas formas

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

a pesca artesanal: 1. como reorganização do trabalho pelos próprios pescadores


artesanais; 2. como ameaça quando os concorrentes se utilizam de equipamen-
tos modernos para a pesca em grande escala.
As duas situações foram amplamente abordadas tanto pelos pescadores
mais experientes como pelos mais jovens. Todavia, há divergências de enten-
dimentos, sobretudo no item relacionado à reorganização do trabalho. Para os
mais experientes, o emprego da tecnologia física é um instrumento que auxilia e
facilita as atividades da pesca artesanal.

Hoje se pesca em barcos movidos a motores. Quem não quer ter um motor
Yamaha? Em pouco tempo, você está em alto-mar. Mas só isso não é suficiente.
Tem que saber como incorporar esses avanços na sua atividade. Hoje se fala
tanto nos sonares, que eles ajudam saber onde tem cardumes de peixes. Mas
quem garante que o peixe vai cair na rede? Na pesca próxima da praia, pega
mais quem tem mais experiência! (PE).

Apesar desse entendimento, eles têm noção de que a tecnologia auxilia em


casos específicos:

O sonar ajuda nos casos de pesca em alto-mar. Esses grandes pesqueiros vão
direto ao cardume. Só que o equipamento não é capaz de diferenciar os tipos de
peixes que estão lá embaixo. Nós não sabemos, mas a máquina também não (PE).

Apesar da incorporação de tecnologias físicas modernas, sobretudo em rela-


ção aos motores dos barcos e às novas malhas para as redes, a pesca artesanal
vive em razão da utilização de instrumentos rudimentares. Entre os pescadores
mais experientes, pelo menos cinco dos seis entrevistados disseram que prefe-
rem ir para o mar e pescar sem auxílio de equipamentos de navegação, moto-
res possantes ou redes de malhas finas. Essas informações direcionaram para a
necessidade de saber o por que da não utilização das novas tecnologias. Algumas
respostas esclarecem parte do questionamento:

Vou te dizer uma coisa. Eu sei que no futuro a pesca será bem diferente. Mas
32 o pescador tradicional existe desde a época de Jesus. Claro, quem quer ganhar
dinheiro não pode viver nessa forma de trabalho. Mas ainda dá para defender
sua família. Tem muito pescador jovem que leva no barco essas novas máquinas,
mas também sei que muitos deles voltam com menos peixe do que os velhos da
pesca. Tem conhecimento que máquina nenhuma consegue pegar! (PE).

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

De fato, analisando a tábua de resultados de pesca por barco, fixada no


mercado de peixe da cidade, a produtividade média dos mais experientes é 5%
superior. Contudo, o controle de produtividade realizado não pode ser conside-
rado certo e estatístico em razão da descontinuidade do controle e da falta de cri-
térios para os diversos tipos de pescados. Esse fato pode ser comprovado porque
alguns peixes têm mais valor comercial do que outros, da mesma forma que o
camarão é avaliado não só pelo peso total da pesca, mas também pelo tamanho
médio dos capturados.
Outro pescador experiente levou a resposta para outra direção:

Para mim, que daqui a pouco não vou conseguir nem subir no barco, não adianta
nada querer aprender com essas novas máquinas. Tem umas que têm muitos
números. Não sou bom na matemática. Hoje eu saio para o mar e pego peixe
para viver. Está bom demais. Pescar para um velho do mar é a mesma coisa que
viajar para um velho da estrada. É a vida! É a nossa história! (PE).

Diante da não necessidade de manter a produtividade em alta, da relativa


“facilidade” de manter a renda com a atividade e da não capacidade de lidar com
as novas tecnologias físicas, os pescadores mais experientes tendem a entender
essa tecnologia como algo sem demasiada importância. Além disso, é fato que
as tecnologias físicas empregadas na pesca artesanal, na maioria das vezes, são
acessíveis e referem-se, basicamente, a motores e materiais das redes.
Para os pescadores mais jovens, a necessidade de pensar na subsistên-
cia da família leva-os a olhar a tecnologia física como meio para aumento da
produtividade e de melhorias de ganhos. As respostas dos mais jovens enfati-
zaram tanto quantitativa como qualitativamente dois aspectos importantes: a
utilização da tecnologia pelos concorrentes diretos e indiretos e a dificuldade
de aquisição da tecnologia para a melhoria da sua atividade.
A tecnologia física em posse dos concorrentes diretos (basicamente as
embarcações médias e os barcos de pesca industrial) e indiretos (piscicultura e
cativeiros de criação de camarão) provoca, segundo as afirmações dos pescadores
mais jovens, a queda de produção dos pescados:

É difícil concorrer com esses grandes barcos de pesca que vêm do Rio Grande
do Sul ou de Santa Catarina. Eles têm equipamentos que dão autonomia de vinte 33

dias, um mês no mar. Eles pescam com sonares e suas malhas [redes de pesca]
levam tudo. Principalmente, quando eles fazem o arrasto noturno. De manhã,
não sobra nada (GPJ).

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

O entendimento é claro e conclusivo para os pescadores. A tecnologia físi-


ca que eles incorporam nas suas atividades é modesta e, comparada às incor-
poradas aos grandes barcos, limitada para o aumento da produtividade. Os
pescadores mais jovens, tomados pela lógica da mercadoria, da produtividade,
pensam em termos quantitativos, sobretudo por ter internalizado as regras do
sistema de recompensas do capitalismo. A visão dos pescadores jovens está
muito mais atrelada ao contexto do capitalismo, apesar de sua atividade ser de
natureza artesanal.

6.3 FORMAS DE GESTÃO DO TRA BA L H O

Organização, tal como atualmente é empregado, é um conceito sociológico


e refere-se à estrutura formal ou regular de elementos que constituem uma enti-
dade, a qual serve à realização de ações de interesse econômico, jurídico-polí-
tico, social, cultural e ideológico. Morfologicamente, o conceito de organização
tem sido empregado indistintamente não apenas no que se refere à estrutura de
elementos que constituem uma entidade, mas igualmente para referenciar pro-
cessos, práticas ou formas de ação. Assim, pode-se afirmar que existem, onto-
logicamente, dois tipos básicos de organização: 1. as reais ou categóricas, que,
na sociologia, são denominadas organizações formais; 2. as políticas ou de per-
tença. As formais são aquelas unidades complexas que se estruturam de acordo
com uma finalidade (econômica, política, cultural etc.). A toda organização cor-
responde uma forma de gestão (FARIA, 2004). Nesta pesquisa, a organização
deve ser entendida em ambos os sentidos: em seu sentido formal, quando sua
materialidade se refere a uma embarcação; como forma política de ação coletiva,
quando sua materialidade se refere à luta dos pescadores por reconhecimento
social e retibuição econômica.
Antes de descrever a forma de gestão predominante na comunidade de
pescadores artesãos, é necessário recorrer às experiências históricas concretas
das formas de gestão. Em uma análise anterior (FARIA, 2009), verificou-se
que o controle sobre os elementos constitutivos da gestão do trabalho aparece
das mais diferentes formas. O Quadro 2 sintetiza as formas de gestão e de
organização. Esse esboço geral indica os graus de controle, pelo conjunto dos
trabalhadores, dos elementos objetivos e subjetivos da gestão do processo de tra-
34 balho e, portanto, sua capacidade de definir e realizar seus interesses objetivos
e subjetivos específicos. Vale dizer, indica o poder do conjunto dos produtores
(FARIA, 2009).

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

Quadro 2
MODELOS DE FORMAS E MODOS DE GESTÃO
Formas de
Gestão Gestão
Gestão/ Heterogestão Cogestão Autogestão
Participativa Cooperativa
Modos

(i) Restrita (i) Limitada (i) Anárquica; (ii)


(apenas (i) Relativa (organizações Parcial ou
no local de (alguma par- cooperativas Coletivista
(i) Absoluta trabalho); ticipação dos de produção, (autogestão ao
(monárquica; (ii) Consultiva produtores de crédito, de nível de unidades
imperial); Pontual; em conselhos serviços, que produtivas ou
(ii) (iii) Consultiva superiores); operam como Organizações
Oligárquica; Representativa; (ii) Partilhada empresas de Solidárias de
Modos (iii) (iv) Expandida (participação sócios); Produção, sob
Específicos Burocrática (Organizações formal e legal (ii) Coletivista uma gestão
Formal (que de Economia dos produto- de Produtores coletivista de
se encontra Solidária); res nos con- Associados trabalho e com
em vários (v) Popular selhos supe- (Iugoslávia); restrições nas
cruzamentos ou Coletiva riores a partir (iii) relações com
da matriz). (Conselhos de de critérios Comunitária o ambiente
Trabalhadores de represen- de Trabalho externo);
ou Comissões tatividade). Associado (iii) Plena ou
de Fábrica). (Kibutz). Social.

Fonte: Faria (2009, p. 38).

O tipo predominante de organização produtiva é o formal ou estável, por-


que se baseia em normas, regulamentos e divisão do trabalho. Cada barco pode
ser classificado como uma organização, pois possui um conjunto de normas
de trabalho e segurança, além de obedecer à legislação sobre navegação, pois
os pescadores e os respectivos barcos de pesca devem se submeter às forma-
lizações portuárias e atender às exigências legais para poder operar. Todavia,
diferentemente das organizações capitalistas, nos barcos há flexibilidade, pois
muitas normas ou regras que determinam os procedimentos dos pescadores
nem sempre são formalizadas ou rígidas. Outra característica importante é que,
35
mesmo havendo divisão do trabalho, os pescadores – em média dois ou três
por barco – sabem operar todas as etapas de execução do processo da pesca. A
divisão do trabalho, nesse sentido, serve para manter uma racionalização para
ganho de produtividade.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

Duas são as formas de gestão predominantes. Para os barcos dos pescadores


mais experientes, com seus familiares ou pessoas de vínculos sociais antigos, o
modelo predominante é o da gestão participativa grupal. Apesar de haver uma
hierarquia estabelecida motivada pelos vínculos familiares, é possível perceber
que todos participam do processo de decisão. Dos pescadores mais experientes
entrevistados, todos apontam essa tendência, fato que pode ser comprovado e
resumido nas manifestações:

No barco trabalham eu, meu filho e meu genro. Apesar de eu ser o mais antigo
neste trabalho, todos podem dizer o que pensam. Fica fácil, porque nós temos
mais liberdade. Mas nem sempre isso acontece porque, mesmo sendo da família,
as coisas podem não dar certo. No meu caso e dos meus compadres mais velhos,
não temos do que reclamar porque o negócio anda (PE).

É engraçado que apesar das brigas que temos com nossos pais, as coisas se ajeitam.
Ele cede um pouco e eu também. [...] É melhor trabalhar assim. Se eu tivesse um
patrão não poderia dizer a metade do que digo para o meu pai (GPJ).

Já entre os barcos com pescadores mais jovens, a forma predominante é a


heterogestão relativa. O proprietário da embarcação contrata a mão de obra e
tem o poder de decisão. Quem administra, dessa forma, é o dono da embarcação
e dos instrumentos de trabalho. Observa-se, contudo, que o poder de decisão
não chega a ser totalmente centralizado nas mãos do proprietário. O motivo é
simples e direto: nem sempre o proprietário parte para o mar. Assim, os outros
integrantes exercem certa autonomia em relação a algumas decisões. Há outro
fator importante. Como a atividade de pesca apresenta certa imprevisibilidade de
produção, nem sempre é possível cobrar resultados. A racionalização da produti-
vidade, dessa forma, cede certo espaço para a imprevisibilidade.

Não dá para dizer que você sai para o mar e vai voltar cheio de peixe. O mar não
é uma prateleira de pequenas peças para montar um motor, por exemplo. Tem
dia que não adianta, o peixe não vem. Só quem está no mar entende isso (GPJ).

36
Observa-se, portanto, que as formas de gestão são diferenciadas. Essa infor-
mação implica vínculos diferentes com o trabalho.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

6.4 MERC ADORIA

Não se pode tratar da mercadoria sem recorrer a Marx. Logo na Seção 1 do


Capítulo 1, Marx (1983a, p. 35) afirma que “a riqueza das sociedades em que
domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma ‘imensa acu-
mulação de mercadorias’”. A mercadoria, para Marx, é um objeto exterior que,
pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie,
independentemente de como essas são satisfeitas, se como meio de subsistência
ou como meio de produção. Toda mercadoria, continua Marx (1983a, p. 35),

[...] pode ser consideradas sob um duplo ponto de vista: o da qualidade e o da


quantidade. Cada uma delas é um conjunto de propriedades diversas, podendo,
por conseguinte, ser útil sob diferentes aspectos [...]. A utilidade de uma coisa
transforma essa coisa num valor-de-uso. Mas esta utilidade nada tem de vago e
de indeciso. Sendo determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, não
existe sem ele [...]. Os valores-de-uso só se realizam pelo uso ou pelo consumo.
Constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dessa
riqueza. Na sociedade [capitalista] são, ao mesmo tempo, os suportes materiais
do valor-de-troca [...]. O valor-de-troca surge, antes de tudo, como a relação quanti-
tativa, a proporção em que valores-de-uso de espécie diferente se trocam entre si,
relação que varia constantemente com o tempo e o lugar.

O caráter fetichista da mercadoria encontra-se exatamente nela mesma. Para


Marx (1983a, p. 94), o caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portan-
to, simplesmente em que ela apresenta aos homens as características sociais do
seu próprio trabalho como se fossem características objetivas dos próprios produtos
do trabalho, como se fossem propriedades sociais inerentes a essas coisas; e,
portanto, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global
como se fosse uma relação social de coisas existentes para além deles. É por esse
quiproquó que esses produtos se convertem em mercadorias, coisas a um tempo
sensíveis e suprassensíveis (isto, é, coisas sociais).
Nesse processo, os sujeitos tornam-se reificados porque sua consciência é
coisificada. “A reificação é definida pelo aparecimento na vida social de proces-
sos econômicos enquanto fenômenos autônomos e, por isso, puramente quanti-
37
tativos” (MATOS, 1995, p. 166). No caso em estudo, as mercadorias praticamen-
te não possuem trabalho humano objetivado além do ato da pesca. O Quadro 3
indica as mercadorias de que se trata aqui.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

Quadro 3
PESCADOS E SEUS RESPECTIVOS VALORES COMERCIAIS
Tipos de Mercadorias Mercadorias

Camarão sete-barbas (Xiphopenaeus kroyeri1), camarão


Pescados de alto valor branco (Penaeus shmitti1), camarão pistola (Penaeusshmitti
comercial e Farfantepenaeus spp), linguado (Paralichthys spp), robalo
(Centropomus spp).

Betaras (Menticirrhusamericanus e M. littoralis), pescadas


(Cynoscion spp), corvina (Micropogonias furnieri), cavala
(Scomberomorus sp), salteira (Oligoplites sp), anchova
Pescados de médio valor
(Pomato mussaltator), cação (várias famílias de Squaliformes),
comercial
paru (Chaetodipterus faber) e tainha (Mugil spp), badejo
(Mycteroperca sp), garoupa (Epinephelus sp) e caranha
(Haemulidae).

Manjuba (Engraulidae), sardinha (Clupeidae), Gerreidae,


Pescados de baixo valor
Carangidae, alguns Pleuronectiformes, alguns Sciaenidae e
comercial
outros.

Fonte: Informações dos pescadores e dos comerciantes do mercado de peixe.


Denominações técnicas inseridas pelos autores.

Duas situações foram verificadas nas entrevistas com os pescadores. A pri-


meira é manifestada especialmente pelos pescadores mais velhos e expressa sin-
teticamente por um deles:

O pescado não é um produto. É a história da pesca, do nascer do dia até a entrega


dele para a venda. Eu já vi de tudo nesse mar. Antigamente, a gente pegava peixe
de sete, oito, quinze quilos. Hoje não tem mais isso. Essa diferença nos pesos
é porque as pessoas não pescam mais para manter a família. Eles pescam para
ganhar dinheiro (PE).

Essa manifestação deixa evidenciado não apenas o processo completo de tra-


balho, mas sua alteração decorrente dos interesses do capital.
38 A segunda situação é, ao mesmo tempo, a mesma e contrária a ela, porque se
tratam de dois discursos sob pontos de vista diferentes de um mesmo problema,
que é a lógica do sistema de capital invadindo o que antes era economia de sub-
sistência ou artesanal. De fato, diferentemente do discurso dos pescadores mais
velhos, os pescadores mais jovens têm outra concepção sobre o pescado capturado:

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

Todo mundo sabe que se não preservar agora, no futuro será difícil a pesca da
maneira como fazemos. Mas se nós não capturamos os peixes, os grandes barcos
fazem por nós. Garanto que a grande maioria prefere um churrasco a um peixe.
A maioria até gosta do seu trabalho, mas se tivesse chance de fazer outra coisa,
faria. Tem gente que vê o peixe como um número. Esse número é melhor se você
pegar mais camarão e linguado do que cação e tainha. É assim, quem pega mais
e melhor chora menos na praia (GPJ).

O avanço da reificação entre os pescadores mais jovens corresponde à obser-


vação de Horkheimer (2000, p. 132) de que

[...] quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coi-
sas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos,
e mais a sua mente se transformará num autômato da razão formalizadora.

Ainda que os discursos sejam diferentes, os pescadores mais experientes


também entendem que os pescados são mercadorias, que têm valor de troca que
corresponde a um equivalente de ascensão social:

Eu gosto de pescar, mas também estou preocupado em pegar bastante peixe para
poder dar um bom estudo para meus filhos. Digo para eles que eles devem res-
peitar o mar, porque é de lá que vem o que eles comem e as regalias deles (PE).

Em ambas as situações,

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais


do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais
e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto,
a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao
refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu
próprio trabalho (MARX; ENGELS, 2001, p. 94).

6.5 PROPRIEDADE PRIVADA 39

A mercadoria – os pescados – tem para o pescador um valor comercial (valor


de troca) e outro como resultado do trabalho visando à subsistência (valor de
uso). Como se sabe desde Marx (1983b), o valor de troca se constitui quando a
mercadoria não tem valor de uso para seu produtor, mas tem para seu comprador.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

No caso estudado, a apropriação do pescado se dá como valor de uso para seu


produtor, que o consome em sua unidade familiar, e valor de troca para o exce-
dente do consumo. O que chama a atenção, nesse caso, é a diferença qualitativa
existente entre a mercadoria “pescado” destinada a valor de uso e a destinada
a valor de troca. O pescado oferecido ao comprador no mercado é de melhor
qualidade se comparado ao utilizado na alimentação dos pescadores e de suas
famílias. Isso acontece, como já indica Marx (1983b), porque, para haver valor de
troca, é preciso haver valor de uso para o comprador. Nesse sentido, o pescador
precisa oferecer a melhor mercadoria para a troca.
Além disso, também se percebe distinção quando se trata da forma de gestão.
Entre os mais experientes – em que a forma predominante é a gestão participativa
grupal –, a propriedade dos meios de produção (embarcações, redes, equipamen-
tos e demais) tem menor importância ou define menos as relações estabelecidas
entre os pescadores. Além disso, a distribuição dos resultados obtidos entre os
pescadores é dividida, se não igualitariamente, pelo menos em proporções mais
equivalentes às necessidades familiares e à propriedade dos meios de produção.
A predominância da relação familiar no processo produtivo não suplanta as
decisões baseadas na propriedade dos meios de produção. Porém, diferentemente
de um empreendimento capitalista, o proprietário desses meios faz um “cálculo
econômico” que leva em conta os “custos” (combustível, manutenção, deprecia-
ção, pagamento de licença etc.) para fazer a divisão mais adequada dos resultados.
No caso dos pescadores mais jovens, a heterogestão relativa intensifica as
diferenças entre os produtores. A definição clara dos proprietários dos meios de
produção é mais explícita, intensificando a divisão entre os indivíduos por resul-
tado da produção – a quantidade de pescados. A propriedade das embarcações,
da licença de pesca, dos equipamentos e demais, praticamente define a relação
hierárquica entre os pescadores. As relações são mais impessoais e o discurso
consolida a relação entre capital e trabalho:

Quem é dono do barco, da licença, manda. Quem não é, trabalha por jornada ou
por produtividade. Nesse caso, o que vale é a quantidade de peixe que você traz
para o mercado. Chegando à terra, vem o dono do barco e define quanto a gente
vai ganhar. Se a pescada foi boa a gente ganha mais, se não foi tem que ir para o
mar tentar novamente. Assim, a gente continua vivendo (PE).

40 Como observam Marx e Engels (2001, p. 97),

[...] é, porém, essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que
realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as
relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

6.6 FETICHE DA MERCADORIA

Lukács (1969, p. 96) procura compreender os problemas fundamentais da


objetividade do trabalho e do comportamento subjetivo por meio da racionaliza-
ção crescente da sociedade. Essa característica é uma crítica ao caráter objetivo do
trabalho, em que, com a racionalização e a mecanização crescentes do processo
de trabalho, a atividade do trabalhador vai perdendo cada vez mais intensamente
seu próprio caráter de atividade, para converter-se paulatinamente em uma ati-
tude contemplativa.
Somada à diferença qualitativa entre a mercadoria como meio de intercâm-
bio social entre os indivíduos e comércio material como meio universal de con-
figuração social, a reificação tem influência negativa na estrutura e na articulação
que organiza a sociedade. Repercute também nas relações sociais, pois estas
são mediadas pelas leis do comércio e das trocas, orientando e disciplinando,
inclusive, as trocas provenientes dos aspectos subjetivos da condição humana.
Isso porque “o homem se confronta com sua própria atividade, com seu próprio
trabalho, como com algo objetivo, independente dele, como algo o domina a ele
mesmo por obra de leis alheias ao humano” (LUKÁCS, 1969, p. 93).
A concepção marxista de Lukács pode ser identificada na relação entre os
pescadores de diferentes formas, conforme os depoimentos:

O trabalho é legal, mas confesso que nem sempre sinto prazer no que faço. O
que interessa para mim, muitas vezes, é pegar o máximo de pescados possível e
pegar meu dinheiro. Tem época que nem como peixe de tão enjoado que fico em
olhar para eles (GPJ).

Acho legal estar com outras pessoas trabalhando, mas tem dia que vamos e vol-
tamos do mar sem trocar uma palavra entre nós. É como se fôssemos máquinas.
[...] percebo que os mais velhos sempre estão contando suas histórias. Entre os
mais jovens, o que nós queremos é falar de carro, futebol, mulherada. Tenho
certeza de que os velhos são felizes no trabalho, os mais novos gostam, mas não
amam como eles! (GPJ).

O trabalho alienado é, de fato, percebido com intensidade entre os mais 41

jovens. Entre os mais experientes, a percepção é outra. Várias são as justificativas


apontadas pelos próprios trabalhadores por meio da sua autopercepção:

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

Nós gostamos do mar. Tem algo de misterioso nele. Eu entro em transe. Não sei
o que faria se não pudesse mais pescar. A vida no mar é uma integração com a
natureza. Tudo isso vai acabar um dia. Eu conheço um pintor que sente o mesmo
em relação ao seu trabalho. Eu fico arrepiado todas as vezes que acordo e vejo
aquele mundão de água. O mar é minha vida (PE).

Eu tenho um irmão que é caminhoneiro. Ele teve diabetes e perdeu parte da


visão. Agora, que ele não pode mais viajar, o mundo dele acabou. Ele vive triste,
só o vejo alegre quando ele conta os “causos” das viagens. Imagino quando eu
não puder ir mais para o mar. Vai ser difícil. Eu sei que uma parte da gente morre
quando deixamos de fazer o que gostamos (PE).

A gente se reúne na praia para grelhar um linguado e conversar, jogar um baralho.


Os mais jovens querem é beber. Aliás, é um problema grave o da bebida entre os
mais jovens. Muitos são infelizes no trabalho, eu sei disso (PE).

A relação entre o produtor e o produto do seu trabalho também é diferente


entre os pescadores mais jovens e os mais experientes. Os primeiros concebem
o resultado da pesca como sinônimo de sucesso, enquanto os mais experientes,
como resultado de um dia de trabalho prazeroso. A relação com os pescados
também é diferente entre esses grupos. A impressão que se tem é a de que os
mais jovens sentem certo desprezo pelo que conseguiram pescar, e para os mais
experientes é o resultado de um dia de prazer e sucesso no trabalho.

Para mim um peixe é um peixe, somente isso. Não sei como meu pai conseguiu
viver tantos anos fazendo a mesma coisa. Pior, ele adora comer peixe. Gosta de
uma feijoadinha também, mas tem que ter peixe com pirão pelo menos umas
três vezes por semana. Eu estou enjoado (GPJ).

Como afirma Lukács (1969, p. 100),

Como já mencionado, o trabalhador tem de representar-se como um “detentor”


42 da sua força de trabalho como mercadoria. Sua posição específica encontra-se
em que a força de trabalho é a única coisa que tem. E o típico de seu destino
para a estrutura da sociedade é que essa auto-objetivação, a conversão de um
papel humano em mercadoria, revela mais claramente o caráter desumanizado
e desumanizador da relação mercantil. comercial.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

7 CONC L U S Ã O : O A RT E S Ã O D O M A R N A S
REDE S D A R E I F I C A Ç Ã O

Em Dialética negativa, Adorno (1975) afirma que somente aqueles não com-
pletamente moldados pelo mundo administrado podem resistir ao processo de
reificação. Esta pesquisa mostra que, apesar do processo crescente de raciona-
lização da produção capitalista, ainda há espaços de trabalho em que reificação
não se instalou tal como no modelo capitalista de produção de mercadorias. É
essa a realidade que expressam os pescadores mais experientes. Não se trata de
uma forma de resistência com base em uma consciência de classe ou mesmo
em uma consciência crítica do lugar que eles ocupam no sistema de produção
capitalista. O trabalho realizado pelos pescadores mais experientes foge à regra
do trabalho alienado, pois eles trabalham para si e não para alienar o produto de
seu trabalho para outro.
É possível, assim, definir uma hipótese, que é bastante provável, para enten-
der essa situação: a pesca artesanal é uma atividade secundária, subordinada,
periférica aos interesses da acumulação capitalista e, por isso, não é objeto de
sua exploração.
A reificação, entre os pescadores mais jovens, dá-se pelo conjunto dos ele-
mentos (relacionados ao trabalho e à mercadoria) responsáveis pela transformação
do sujeito em instrumento do capital. É a transformação da condição de produtor
para a de mercadoria, com todas as suas propriedades.
Em relação ao trabalho, sua organização, sua constituição formal e divisão
são elementos importantes para a definição do trabalho alienado. Praticantes de
uma forma de gestão participativa, os pescadores mais experientes, na sua ori-
gem, estão menos suscetíveis à reificação. Todavia, a tendência hegemônica do
modo de produção capitalista e do sistema de capital manifesta-se não somente
pela organização do trabalho, mas também pela ideologia materializada na cons-
ciência dos indivíduos, e impõe aos pescadores mais experientes a certeza de que
a pesca artesanal está em vias de chegar ao seu fim.
A tecnologia física é outro elemento que contribui para intensificar a reifi-
cação. Se, por um lado, os pescadores mais experientes podem ser considerados
mais produtivos, por outro, tanto eles quanto os mais jovens conhecem “o poder
das grandes embarcações”. Não é possível assegurar que a pesca artesanal vai
43
acabar e que não haja solução para essa provável ocorrência. Porém, consideran-
do a perspectiva histórica do desenvolvimento das forças produtivas, a atividade
de pesca artesanal, como uma das mais antigas, pode resistir ao modo capitalis-
ta de produção. O mesmo não se pode dizer da atividade de pesca.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

De fato, as modificações que a pesca artesanal experimentou ao longo de sua


existência histórica são pequenas se comparadas ao sistema capitalista de pro-
dução de mercadorias. A pesca artesanal, assim, pode não vir a ser transforma-
da pelo modo de produção capitalista. Contudo, atividade pesqueira encontra-se
cada vez mais sob o comando do capital. A pesca artesanal tende a ser cada vez
menos importante como atividade, inclusive de sobrevivência, exatamente por-
que a atividade da pesca encontra-se apropriada pelo sistema de capital, com
avanços tecnológicos físicos e de gestão.
A relação da reificação com a mercadoria é outro ponto importante. O pro-
duto do trabalho é encarado de forma diferente entre os pescadores mais expe-
rientes e os mais jovens. Para os primeiros, constitui-se em resultado do envol-
vimento total do seu trabalho; representa a satisfação e a relação com o domínio
total do trabalho e não o parcelamento do trabalhador no processo de produção;
está incorporado na personalização própria de todo trabalhador que se realiza, na
maioria das vezes, com seu trabalho ao mesmo tempo que o domina por completo.
O trabalho, nesses casos, é a própria vida do trabalhador.
Para os mais jovens, a mercadoria manifesta apenas a recompensa pelo dia
de produção. O pescador não se sente ele mesmo um indivíduo completo, senão
um instrumento para o acúmulo da riqueza dos proprietários dos meios de pro-
dução. A divisão do trabalho facilita o trabalho imediato, mas, ao mesmo tempo,
desumaniza-o, porque torna o pescador instrumento do processo de trabalho.
Nem mesmo seu esforço físico lhe pertence. A realização é externa ao pescador.
A pesquisa com os pescadores identificou dois grupos distintos: os pescado-
res mais experientes, que aos poucos são desalojados da ocupação, até mesmo ou
especialmente pela idade, e os pescadores mais jovens, já submetidos à lógica do
sistema de produção capitalista.
A observação em relação aos mais experientes serve como exemplo de que
o trabalho é uma forma de realização, ainda que, dialeticamente, contenha em
si e para si contradições e sofrimentos. A observação em relação aos mais jovens
mostra que, nesse caso, não predomina no trabalho o prazer e a realização, mas
o sofrimento inerente ao processo de reificação que o trabalho alienado impõe.
Isso não significa que esse trabalho seja destituído de prazer e realização, mas
que estes não são os fatores dominantes. O trabalho é e deve ser ao mesmo tempo
o momento da realização e do sofrimento, quaisquer que sejam suas condições
e formas, como a história do trabalho tem constatado. Mas a distância entre rea-
44
lização e sofrimento pode ser maior ou menor de acordo com o processo de divi-
são e de gestão do trabalho, de sua relação com as tecnologias, da propriedade e
posse dos meios de produção e da relação entre produtor, proprietário, vendedor
e comprador da mercadoria.

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

THE MANAGEMENT AND REIFICATION OF MEN


OF THE SEA

ABSTRAC T
A man is as man because he is able to produce his means of survival, among
which work plays a central role in the constitution of society. It is through it that
men “dominate” nature and place themselves in the position of lords before it.
The fishing activity may be considered “secondary” in the interests of capital
accumulation and it is precisely the reason why the study of the community of
fishermen from the town of Matinhos, Paraná State, constitutes one of the prime
locations to see how work (comprising the division of labor, technology and
management form) and goods (comprising private property and the commodity
fetish) constitute the multiple determinations of the real and are related to the
process of social reification. The aim of this work is to understand the process of
reification of traditional fishermen, the analysis of the categories defined as mul-
tiple determinations of the real, in view of its economic integration and social exclu-
sion in the system of capital. The theoretical basis of the work consists of authors
such as Marx, Lukács, Adorno, Faria, Horkheimer, Meszáros, and others. This is a
qualitative research carried out in a community of fishermen. It was possible to
verify that the reification among the younger fishermen takes the set of ele-
ments (related to labor and goods) responsible for the transformation of the sub-
ject into an instrument of capital. It is the transformation of the condition of the
producer into the commodity, with all its properties. Reification is also related to
the alienated labor and that, despite the hegemonic tendency of the capitalist sys-
tem of production, it is possible to identify a resistance in relation to this process
of reification. In short, there would be a reification which is related to the alienated
labor and, despite the hegemonic tendency of the capitalist system of production,
it is possible to identify a resistance against this process of reification.

KEYWORD S
Management; Artisanal fisheries; Reification; Alienation; Work.

45

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •

GESTIÓN Y REIFICACIÓN DE LOS HOMBRES DEL MAR

RESUMEN
El hombre es hombre porque es capaz de producir sus medios de superviven-
cia, entre los cuales, el trabajo ocupa un lugar central en la constitución de la
sociedad. Es a través de lo que los hombres “dominan” la naturaleza y se ponen
en la posición de los Lores antes que ella. La actividad pesquera se puede consi-
derar una “secundaria” en aras de la acumulación de capital y es precisamente
por qué el estudio de la comunidad de pescadores de la ciudad Matinhos, el
estado del Paraná, parece una de las mejores ubicaciones para ver cómo trabajo
(que incluye la división del trabajo, la tecnología y la forma de gestión) y bie-
nes (que comprende la propiedad privada y el fetiche de los productos básicos)
constituyen las determinaciones múltiples de lo real y están relacionados con
el proceso social de reificación. El objetivo de este trabajo es entender cómo es el
proceso de la reificación de los pescadores tradicionales, el análisis de las catego-
rías definidas como múltiples determinaciones de lo real, en vista de su integra-
ción económica y la exclusión social en el sistema del capital. La base teórica de
la obra se compone de autores como Marx, Lukács, Adorno, Faria, Horkhei-
mer, Meszaros y otros. Se trata de una investigación cualitativa en una comuni-
dad de pescadores. Se pudo ver en la investigación que la reificación, entre los
pescadores más jóvenes, se lleva a cabo por todos los elementos (en materia de
trabajo y bienes) responsables de la transformación del sujeto en un instrumento
de capital. Es la transformación de la condición de que el productor de la mercan-
cía, con todas sus propiedades. La reificación está también relacionada con el tra-
bajo alienado y que, a pesar de la tendencia hegemónica del sistema capitalista
de producción, es posible identificar la resistencia en relación con este proceso de
reificación. En pocas palabras, no habría una reificación que esté relacionado con
el trabajo alienado y que, a pesar de la tendencia hegemónica del sistema capita-
lista de producción, se puede identificar la resistencia ese proceso de reificación.

PALABRA S C L AV E
Gestión; Pesca artesanal; Reificación; Alienación; Trabajo.
46

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
• gestão e reificação dos homens do mar •

REFERÊN C I A S

ADORNO, T. W. Dialéctica negativa. Madrid: Taurus, 1975.


BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.
FARIA, J. H. de. Tecnologia e processo de trabalho. Curitiba: Ed. UFPR, 1992.
______. Economia política do poder: Fundamentos. Curitiba: Juruá, 2004. v. 1.
______. Gestão participativa: relações de poder e de trabalho nas organizações. São Paulo: Atlas, 2009.
______. Epistemologia, metodologia e interdisciplinaridade. Curitiba: FAE-PR/PMOD, 2011. Work-
ing Paper.
FRASER, N. Escalas de justicia. Barcelona: Herder Ed., 2008.
HORKHEIMER, M. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.
LUKÁCS, G. Historia y consciencia de clase. México (DF): Edit. Grijalbo, 1969.
______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
MARX, K. Manuscritos econômicos filosóficos. In: FROMM, E. Conceito marxista do homem. 4. ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
______. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1983a.
______. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983b.
______. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MATOS, O. C. F. Os arcanos do inteiramente outro. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

47

• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, V. 13, N. 4 •


SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2012 • p. 15-47 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line)
ARTIGOS
Recebido em 18.11.2010. Aprovado em 26.05.2011
Avaliado pelo sistema double blind review
Editor Científico: Alexandre de Pádua Carrieri

BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE


BUREAUCRACY AS ORGANIZATION, POWER AND CONTROL
BUROCRACIA COMO ORGANIZACIÓN, PODER Y CONTROL

RESUMO
O objetivo central deste trabalho consiste em analisar a e de Prestes Motta. São levados em consideração nas
forma como Maurício Tragtenberg e Fernando Cláudio análises dos autores e do conceito de burocracia: a
Prestes Motta concebem a burocracia. Os objetivos es- trajetória intelectual; a ordem das produções; as epis-
pecíficos são: compreender as principais características temologias; o espaço e o tempo histórico; a dimensão
da burocracia segundo Weber, autor central que orien- semântica, ideológica e cultural; questionamentos que
ta as obras de Tragtenberg e de Prestes Motta; atingir se revelam importantes para se compreender o desen-
o entendimento de burocracia expresso na obra de volvimento teórico do conceito. Chegou-se à conclusão
Tragtenberg; apreender o entendimento de burocracia de que, apesar das diferenças nas trajetórias intelectuais
segundo a obra de Prestes Motta; analisar as relações de Tragtenberg e Prestes Motta, a burocracia é enten-
entre os entendimentos de burocracia de Tragtenberg dida por ambos como organização, poder e controle.

PALAVRAS-CHAVE Burocracia, poder, controle, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.

José Henrique de Faria jhfaria@gmail.com


Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná e do Programa de Mestrado Interdis-
ciplinar em Organizações e Desenvolvimento, FAE Centro Universitário – Curitiba – PR, Brasil

Francis Kanashiro Meneghetti fkmeneghetti@gmail.com


Professor do Departamento de Gestão e Economia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Curitiba – PR, Brasil

Abstract The main objective of this work is to analyze the way in which Maurício Tragtenberg and Fernando Cláudio Prestes Motta conceived
bureaucracy. The specific objectives are: to understand the main characteristics of bureaucracy according to Weber, the author who has
most influence on the work of Tragtenberg and Prestes Motta; to arrive at an understanding of bureaucracy as expressed in the work of
Tragtenberg, to learn how bureaucracy is understood in the work of Prestes Motta and to analyze the relationships that exist between
the understanding of bureaucracy in Tragtenberg and Prestes Motta. In analyzing the authors consideration was given to their concept of
bureaucracy, their intellectual trajectory, the order of their production, epistemologies, space and historical time, the semantic, ideological
and cultural dimension and questions that are important for an understanding of the theoretical development of the concept. The conclusion
was reached that, despite the differences in the intellectual paths of Tragtenberg and Prestes Motta, bureaucracy is understood by both as
being organization, power and control.
keywords Bureaucracy, power, control, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.
Resumen El objetivo central de este trabajo consiste en analizar la manera como Maurício Tragtenberg y Fernando Cláudio Prestes Motta conciben la
burocracia. Los objetivos específicos son: comprender las principales características de la burocracia según Weber, autor central que orienta las obras de
Tragtenberg y de Prestes Motta; lograr la comprensión de burocracia expresa en la obra de Tragtenberg; aprender la comprensión de burocracia según la
obra de Prestes Motta; analizar las relaciones entre entedimientos de burocracia de Tragtenberg y de Pestes Motta. Se tienen en cuenta en las análises
de los autores y del concepto de burocracia: la trayectoria intelectual; el orden de las producciones; las epistemologías; el espacio y el tiempo histórico; la
dimensión semántica, ideológica y cultural; cuestiones que se presentan importantes para que se comprenda el desarrollo teórico del concepto. Se llegó a
la conclusión de que, a pesar de las diferencias en las trayectorias intelectuales de Tragtenberg y Prestes Motta, la burocracia es comprendida por ambos
como organización, poder y control.
Palabras clave Burocracia, poder, control, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.

424 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

INTRODUÇÃO abordá-la em sua materialidade concreta e não apenas


abstratamente. Esta é, assim, a primeira contribuição.
A concepção de burocracia tem sido amplamente es- Em segundo lugar, Tragtenberg e Prestes Motta são
tudada em diversas áreas do conhecimento (MERTON, autores cujos estudos influenciaram várias gerações de
1952; LAPASSADE, 1977). É inegável que a grande pensadores em suas áreas de atuação. Tragtenberg, por
contribuição sobre o tema tenha sido realizada por exemplo, é referência nas áreas de Estudos Organiza-
Max Weber (1982), base para vários outros pesquisa- cionais, de Administração, Ciências Sociais, Educação e
dores de diversas correntes epistemológicas. Como na militância política. Prestes Motta influenciou vários
objeto de estudo nas ciências sociais (sociologia, pesquisadores e tornou-se uma referencia na área de
ciência política, direito, administração), as pesquisas teoria geral da Administração. Compreender seus estudos
sobre a burocracia resultaram em vários e diferentes é entender as bases conceituais com que se pode olhar
entendimentos, como por exemplo: como organiza- criticamente a realidade a partir das reflexões que fize-
ção (CAMPOS, 1978; BRESSER-PEREIRA, 1980), como ram. A perspectiva do resgate da história da constituição
categoria social (POULANTZAS, 1977) ou como poder do pensamento crítico em Administração no Brasil é a
político (MORIN, 1976; MARTIN, 1978). Na área de segunda contribuição que este estudo pretende oferecer.
estudos organizacionais não tem sido diferente, dada Em terceiro lugar, compreender a relação entre
sua característica multidisciplinar. burocracia e capitalismo de uma perspectiva ao mesmo
Nesse sentido, a pergunta que direciona este tempo materialista-histórica e anarquista a partir de
trabalho é: qual é a concepção de burocracia nos Weber é um desafio epistemológico e teórico. A leitura
estudos de Maurício Tragtenberg e de Fernando das contribuições de Tragtenberg e Motta a partir desta
Cláudio Prestes Motta? Desse modo, o objetivo prin- perspectiva do diálogo teórico e epistemológico leva a
cipal desta análise é verificar de que forma Maurício uma compreensão diferente do conceito de burocracia,
Tragtenberg e Fernando Cláudio Prestes Motta, dois fortemente influenciado pela perspectiva funcionalista
importantes intelectuais da área de estudos organi- de Talcott Parsons, Merton, entre outros, é a terceira
zacionais, concebem a burocracia. Adicionalmente, contribuição que este estudo pretende oferecer.
pretende-se: (i) compreender as principais caracterís- Em quarto lugar, refletir sobre a relação entre
ticas da burocracia segundo Weber, autor central que burocracia e Estado a partir de uma perspectiva his-
orienta as obras de Tragtenberg e de Prestes Motta; tórica concreta e não de um ponto de vista abstrato
(ii) compreender qual o entendimento de burocracia e a-histórico, como é mais usual na área de Estudos
em Tragtenberg; (iii) verificar qual o entendimento Organizacionais e da Teoria da Administração, implica
de burocracia em Prestes Motta; (iv) analisar as colocar sobre bases concretas pesquisas sobre a cons-
relações entre os entendimentos de burocracia em tituição, a estrutura e a ação do Estado na sociedade
Tragtenberg e Prestes Motta. contemporânea. Assim, as reflexões sobre gestão de
O artigo é uma contribuição para as áreas de Estu- políticas públicas, gestão tributária, governança, entre
dos Organizacionais, Administração Geral e Pública, e outras coisas, devem ser sustentadas em conceitos que
para as ciências sociais em geral, dado que o fenôme- se originam das especificidades sociais, econômicas,
no da burocracia está presente em todos os âmbitos culturais, jurídicas e políticas. Tal é a quarta contri-
sociais. Esta contribuição se dá em cinco pontos. Em buição que este estudo pretende trazer para a área.
primeiro lugar, porque há uma tendência em atribuir Em quinto lugar, rediscutir um tema que é polis-
uma uniformidade em relação ao conceito de buro- sêmico quando se restringe a compreender o conceito
cracia, o que resulta em equívocos sobre as formas de burocracia é um desafio que precisa ser perma-
que estas tomam nas diferentes relações sociais e de nentemente enfrentado para evitar que a burocracia
produção das condições materiais de existência. Essas seja mais um conceito que se torna senso comum no
dificuldades também aparecem no campo dos estudos mundo acadêmico. Considerando que Tragtenberg e
organizacionais críticos. A tendência de atribuir signi- Prestes Motta são referências importantes em vários
ficado único e de não levar em consideração como a campos de estudos, a análise de suas contribuições,
burocracia se estrutura e se sedimenta na sociedade cria apresentando conformidades e diferenças em relação
dificuldades no entendimento desse fenômeno. Isso à burocracia, reascende o debate em torno de um
significa que os estudos que tratam da burocracia na tema fundamental que parece ter desaparecido das
perspectiva da administração devem ter o cuidado de discussões acadêmicas recentes ainda que não tenha

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 425


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

desaparecido da realidade organizacional. Retomar mento de um fenômeno social implica a extração do


este debate a partir de dois autores de referência no conteúdo simbólico da ação que o configura” (FARIA,
Brasil no estudo deste tema é a quinta contribuição 1983, p. 23). Para explicar os processos particulares
que este estudo pretende oferecer. “Weber propõe a utilização dos chamados ‘tipos ide-
Para tanto, este estudo tem como objeto de aná- ais’, que representam o primeiro nível de generaliza-
lise as principais obras de Maurício Tragtenberg e ção de conceitos abstratos” (FARIA, 1983, p. 23). É com
Fernando Cláudio Prestes Motta, conforme resumido base neste método que Weber analisa o fenômeno da
no Quadro 1, adiante. burocracia (WEBER, 1974; 1982; 1989).

Quadro 1 – Principais textos utilizados no estudo


AUTOR TRABALHOS
Burocracia e ideologia (TRAGTENBERG, 1974), Reflexões sobre o socialismo (TRAGTENBERG, 1986), Admi-
Maurício Tragtenberg nistração, poder e ideologia (TRAGTENBERG, 1989), Sobre educação, política e sindicalismo
(TRAGTENBERG, 2004) e vários textos publicados em jornais.
O que é burocracia (PRESTES MOTTA, 1981), Burocracia e autogestão (PRESTES MOTTA, 1982), Teoria
geral da administração: uma introdução (PRESTES MOTTA, 1989), Organização e poder: empresa, estado
Fernando C. Prestes Motta e escola (PRESTES MOTTA, 1990), Teoria das organizações: evolução e crítica (PRESTES MOTTA, 2001),
Introdução à organização burocrática (PRESTES MOTTA e BRESSER PEREIRA, 1980) e Teoria geral da
Administração (PRESTES MOTTA e VASCONCELOS, 2004).

Todo estudo teórico exige método e procedimen- Weber analisa o processo de racionalização da
to, diferente de simples revisão teórica. Este estudo sociedade na passagem da Idade Média para a Idade
tangencia a história dos conceitos, alicerçado nos pres- Moderna. O desencantamento do mundo, baseado
supostos de que: a trajetória intelectual dos autores no cálculo utilitário de consequências, substitui a
contribui para o entendimento do conceito estudado; mediação das relações sociais que antes estavam ba-
a ordem das produções dos autores é importante para seadas na tradição e no carisma. Uma racionalidade
a compreensão do conceito em análise; as epistemo- instrumental-legal se institui e modifica as relações na
logias estruturantes do conceito apresentam impor- sociedade, fazendo com que a burocracia moderna
tante relevância para se compreender seu significado; se consolide como razão materializada desse proces-
o estudo de todo conceito deve ser compreendido so histórico. Para chegar a essa compreensão, Max
em seu espaço e seu tempo histórico; todo conceito Weber analisou a burocracia do sistema de produção
tem sua dimensão semântica, ideológica e cultural; asiático e de outras sociedades deslocadas e dentro
determinados questionamentos (Para quem o autor de seu tempo histórico. Entretanto, as características
escreve? Baseado em que perspectiva teórica? Qual o da burocracia moderna são próprias de uma raciona-
posicionamento político do autor? De onde escreve? lização estabelecida dentro do sistema capitalista de
Quais são seus interesses?) são importantes para se produção. Dessa forma, mesmo em Weber, a buro-
compreender o desenvolvimento teórico do conceito. cracia, quando analisada isoladamente, ou seja, como
fenômeno atemporal, perde sentido, pois é por meio
da racionalidade oriunda de um modo de produção
específico que uma estrutura se ergue e se instaura.
A BUROCRACIA SEGUNDO WEBER: A vantagem técnica da organização burocrática no ca-
PONTO DE PARTIDA DE TRAGTENBERG E pitalismo é a superioridade puramente técnica sobre
qualquer outra forma de organização. O mecanismo
PRESTES MOTTA burocrático plenamente desenvolvido compara-se às
outras organizações exatamente da mesma forma pela
Para Max Weber o “objeto da sociologia é a captação qual a máquina se compara aos modos não mecânicos
de sentido da ação humana, à medida que o conheci- de produção (WEBER, 1982, p. 249).

426 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

Segundo Weber (1982, p. 229), a burocracia mo- administração burocrática, tende a ser uma estrutura
derna funciona sob formas específicas. A burocracia organizada de pequenas sessões secretas, na medida
está sob a regência de áreas de jurisdição fixas e em que oculta conhecimentos e ações. Dessa forma, o
oficiais, ordenadas por leis e normas administrativas. poder do perito, ou funcionário especializado, é aqui-
Ela estabelece relações de autoridade, delimitada por latado e, por esse motivo, a qualificação como forma
normas relativas aos meios de coerção e de consen- de especialização crescente resulta muito valorizada.
so. Uma relação hierárquica se estabelece, definindo A burocracia, portanto, “tem um caráter ‘racional’:
postos e níveis de autoridades, além de um sistema de regras, meios, fins e objetivos dominam sua posição”
mando e subordinação com gerência das atividades (WEBER, 1982, p. 282). Assim, para Weber “a burocra-
e tarefas delegadas por autoridade. Nesse contexto, a cia descansa na aceitação da validez de algumas leis
administração é formalizada por meio de documentos, não excludentes [em que o] processo administrativo,
que acabam por regular a conduta e as atividades das dentro dos limites especificados nas ordenações sig-
pessoas. O treinamento é fundamental nas burocracias nifica a busca racional de interesses, de forma que as
especializadas devido às especificações das atividades atividades destinadas a atingir os objetivos organiza-
e dos trabalhos. O treinamento especializado volta-se cionais apresentam-se aos executores como ‘deveres
para generalizar o cargo e transformá-lo em profissão. oficiais’” (FARIA, 1983, p. 27). Para Weber, portanto, a
As atividades e tarefas de um trabalho transformado burocracia é um eficiente instrumento de poder. Esta
em profissão, que podem ser apreendidas por qual- concepção de burocracia enquanto poder e dominação
quer trabalhador, são descritas e delimitadas pela cria- vai fazer parte constitutiva, ainda que não exclusiva,
ção de cargos mais ou menos estáveis. A ocupação de das análises de Tragtenberg e Prestes Motta.
um cargo configura uma profissão de ordem impessoal
e transitória. A posição pessoal de um funcionário é
desfrutada e estimada em um contexto social espe-
cífico, sempre em comparação aos demais funcioná-
A PERSPECTIVA DA BUROCRACIA EM
rios e em relação à estrutura social. Os funcionários TRAGTENBERG
recebem salários (compensação pecuniária) regula-
res, criando-se certa segurança social em troca das A concepção de Tragtenberg em relação à burocracia
atividades exercidas por ele. Esse salário é definido é essencialmente weberiana. Assim como Marx, Weber
pela tarefa realizada, por suas particularidades e pela está entre os autores mais estudados em sociologia.
posição hierárquica do funcionário. A burocracia cria Particularmente em relação a Weber, existem diversas
uma carreira dentro da ordem hierárquica estabelecida. leituras e interpretações. “Assim, temos o Weber de
Para Weber (1974), o cumprimento dos objetivos Talcott Parsons, quase um ‘sociopsicólogo’; o Weber
efetiva-se por tarefas definidas, que devem ser calcula- positivista de Adorno/Horkheimer, um apologista do
das e precisam ser realizadas independentemente das status quo; o Weber fenomenológico de Alfred Schutz;
características das pessoas, ou seja, o cumprimento das e o Weber preso à ilusão objetivista de Lucien Gold-
mesmas deve se revestir de impessoalidade. mann e Michael Löwy” (LAZARTE, 1996, p. 27).
A estrutura burocrática concentra os meios mate- Maurício Tragtenberg, sobretudo pela sua fluên-
riais de administração nas mãos das elites detentoras cia com a língua alemã, que lhe possibilita inclusive
do capital, mediante o desenvolvimento das grandes a tradução dos textos de Weber para o português,
empresas capitalistas. Quando a burocracia se estabe- pôde fazer uma análise acurada das ideias originais
lece plenamente, ela se situa entre as estruturas sociais de Weber. Uma compreensão importante em relação
mais difíceis de serem destruídas, configurando-se um a Weber, como intelectual, é “pensar e refletir criti-
meio de transformar ação comum em ação societária, camente com Weber e não polemizar contra Weber,
racionalmente ordenada. Dessa forma, constitui um sem subterfúgios, escamoteação dos problemas cen-
instrumento de poder, de dominação, pois, ninguém trais, penetrando na reflexão efetiva para superar,
pode ser superior à estrutura burocrática de uma so- isto é, absorver a contribuição de Weber e excedê-la”
ciedade. (TRAGTENBERG, 1974, p. 156). Muitas divergências
Outra característica descrita por Weber (1982, ocorridas em relação às ideias de Weber se efetivaram
p. 269) em relação à burocracia é que ela poten- porque vários acadêmicos e intelectuais, municiados
cializa os segredos, conhecimentos e intenções. Na dos seus pressupostos teóricos, não compreenderam o

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 427


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

contexto histórico em que a teoria da burocracia foi es- burocracia, o que lhe permite vislumbrar as caracte-
crita. Tragtenberg, nessa situação, convida os estudiosos rísticas do modo de produção asiático na perspectiva
interessados na compreensão da teoria weberiana para do poder político. A base de sua argumentação criará
“superar em Weber as limitações do tempo e contexto as condições analíticas para a crítica da burocracia nos
social em que se situa a sua obra; discuti-la sem com- regimes de Estado, e, ao fazer tal crítica, Tragtenberg
promissos ideológicos que impliquem o sacrifício do antecipa o que se tornará a prática dominante das em-
intelecto com o respeito que uma obra do porte da que presas capitalistas contemporâneas no que se refere ao
ele nos legou implica” (TRAGTENBERG, 1974, p. 157). controle sobre a organização e o processo de traba-
Sem desconsiderar o rigor epistemológico, Weber lho. Para Tragtenberg (1974, p. 22), “a administração,
contribui para a compreensão do processo de racio- enquanto organização formal burocrática, realiza-se
nalização, em que a sociedade tradicional, baseada plenamente no Estado”, razão pela qual, “o segredo
nas crenças, valores e em uma economia atrelada da gênese e estrutura da teoria geral da administração,
ao período da Idade Média, transforma-se em uma enquanto modelo explicativo dos quadros da empresa
sociedade baseada nas relações em que os fins são capitalista, deve ser procurado onde certamente seu
mais importantes que os meios e em que o desen- desenvolvimento mais pujante se dá: no âmbito de
cantamento do mundo é uma realidade permanente. Estado”. A teoria administrativa fornece ao capitalismo
A obra de Weber segue a tradição da filosofia alemã, industrial modelos de transição do liberalismo para o
e sua teoria da burocracia ocorre em um período de capitalismo monopolista e a “emergência da burocracia
formação econômico-social do capitalismo. Antes como poder funcional e político”.
dele, Hegel já procurara entender a burocracia por Apesar de os estudos de Weber serem considera-
outras categorias de análise. Ambos, Weber e Hegel, dos o ponto de partida sobre o estudo da burocracia,
procuraram compreender a burocracia prussiana no este tema aparece direta (MICHELS, 1968) ou indire-
contexto do processo de racionalização do mundo tamente (PROUDHON, 2007) em estudos clássicos no
capitalista, por vias diferentes. “Diferentemente das campo da política ou da filosofia. No campo da análise
burocracias patrimoniais do Egito, da China, de Roma das organizações, diversos são os direcionamentos
e de Bizâncio, a burocracia capitalista na Europa oci- adotados sobre essa temática, que é amplamente es-
dental fundara-se na economia capitalista, transpondo tudada sob múltiplos recortes teóricos e perspectivas
a área administrativa à crescente divisão de trabalho epistemológicas. Entre estes se destacam dois autores
e à racionalização” (TRAGTENBERG, 1974, p. 93). fundamentais na compreensão da burocracia: Mauri-
Tragtenberg tem ciência de que a burocracia es- cio Tragtenberg e Fernando Cláudio Prestes Motta.
tudada por Weber é um processo marcado por carac- A partir deles, outros pesquisadores relacionados
terísticas determinadas por um período histórico em aos estudos críticos na administração ou mesmo de
que o capitalismo é a forma econômica dominante. A outras abordagens teóricas e epistemológicas foram
análise de Tragtenberg é, antes de tudo, uma avaliação e são influenciados por suas análises sobre a buro-
de caráter histórico, não se podendo negar, em razão cracia. É exatamente pela importância dos estudos de
disso, que o fundamento epistemológico que acompa- Tragtenberg e Prestes Motta que a presente análise se
nha Tragtenberg seja o materialismo histórico. É com justifica. O tema da burocracia, além disso, pode ser
base no marxismo que Tragtenberg dialoga com We- considerado como um pressuposto elementar para a
ber, na medida em que parte do fato histórico de que existência da teoria das organizações, especialmente
a burocracia é consequência de uma forma específica a partir da perspectiva behaviorista (FARIA, 2004). É a
de racionalização, originária da divisão do trabalho no partir da burocracia enquanto forma de racionalização
contexto do capitalismo. Marcuse (1998), que na intro- que as organizações complexas modernas (ETZIONI,
dução de um estudo de Weber (1973) considera que 1973; 1974) se efetivaram como objetos de análise.
as ideias weberianas comprometidas com o liberalismo Na atualidade, conforme questiona Tragtenberg, é
burguês chocam-se com sua pretendida neutralidade preciso entender como é possível se defender do
axiológica, chegou com propriedade à conclusão do avanço implacável da burocracia. “Esta é a preocupa-
caráter histórico da burocracia estudando o processo ção central de Weber que não se esquece de advertir
de burocratização na sociedade industrial. que a burocracia é uma máquina de difícil destruição”
Conforme Faria (2009), Tragtenberg busca em (TRAGTENBERG, 1974, p. 144). Burocracia é o opos-
Hegel a concepção inicial da relação entre Estado e to de autonomia, tanto individual como coletiva. O

428 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

próprio pensamento da atualidade encontra-se refém Toyota de produção, o os grupos semiautônomos,


da burocratização. No interior das organizações, os utilizados por empresas suecas (FARIA, 2004).
trabalhadores – do operário ao executivo – são con- Tragtenberg via em Weber a separação entre o
dicionados pelas determinações de que a burocracia econômico e o político. Em um aprofundamento sobre
(vista como sedimentação da racionalização oriunda a separação entre as esferas econômicas e políticas,
da divisão do trabalho) impõe. Para Tragtenberg, a Tragtenberg destaca que “a dualidade da realidade
burocracia materializa a face perversa do capital; re- alemã é vivida por Weber no seu labor sociológico: a
sulta num problema real com origem na expansão do separação das esferas do político e do econômico; a
sistema de capital. Nos seus estudos, a proposta sem- dialética das formas de dominação oscilando entre o
pre foi criar mecanismos de defesa ante os nefastos carisma e a burocracia.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 107).
efeitos da burocracia. As contradições existentes na própria realidade viven-
Na interpretação de Tragtenberg (1974, p. 139), em ciada por Weber configuram-se elementos importantes
Weber a burocracia é “um tipo de poder. Burocracia é na sua construção teórica. Conforme salienta Richard
igual à organização”. Tragtenberg compreende que a Sennet (2007), a teoria da burocracia é influenciada
complexidade crescente das organizações no sistema pela burocracia militar, cuja rigidez organizacional se
capitalista faz com que elas adotem, na mesma pro- generaliza no âmbito da sociedade.
porção, uma estrutura racional legal caracterizada pela Para Weber, essa generalização significa a ten-
impessoalidade para garantir a reprodução da própria dência à crescente complexidade das organizações,
organização. Além disso, a burocracia é entendida surgindo a burocracia como uma forma organizada
como um sistema racional construído da divisão do decorrente da racionalização consolidada pela for-
trabalho, que tem, como princípio, os fins. mação dos grandes Estados nacionais. Os interesses
A especialização crescente deixa a burocracia particulares são dispersos pela generalidade imagi-
organizacional cada vez mais forte. Os gestores nária do coletivo, e o Estado, visto como ente que
isentam-se de responsabilidades pela regra da im- representa os interesses da maioria, na realidade
pessoalidade, do formalismo ou do discurso de pro- consolida os interesses particulares. Assim, “as fina-
fissionalismo. A capacidade do indivíduo dá lugar à lidades do Estado são as da burocracia e as finalida-
profissão e à própria autoridade intrínseca quanto des desta se transformam em finalidades do Estado”
ao cargo com suas respectivas responsabilidades. (TRAGTENBERG, 1974, p. 24).
A dinâmica da constituição da burocracia dar-se-á, A legião de trabalhadores que formam a máquina
portanto, com base na divisão do trabalho, que faz burocrática do Estado exerce, no limite, os interesses
com que o trabalhador especializado seja percebido, de uma parte da elite dominante, realizando a tarefa
contraditoriamente, de duas formas: o especialis- de mediação do capital com os interesses do coletivo,
ta passa a concentrar conhecimento específico, ao por meio de participações específicas no processo de
mesmo tempo que destitui dos demais trabalhado- racionalização, inclusive do trabalho.
res o poder de eles agirem, por falta, justamente, de
conhecimentos específicos. Por outro lado, o traba- Quando o Estado é mencionado como organizador
lhador especializado desumaniza-se cada vez mais, do processo de trabalho, não significa que existe
pois o conhecimento, a habilidade ou a competência uma primazia do econômico na determinação de sua
específica interessam à organização e não ao indiví- função. O Estado exerce sua função global de coesão
duo. Assim, a organização, que não deve depender através, igualmente, de seus sistemas jurídicos (regras
de ninguém, articula-se para criar substitutos para o que organizam e disciplinam as trocas capitalistas), po-
especialista. Criam-se e incentivam-se aparatos ideo- líticos (a manutenção de ordem em casos de conflitos)
lógicos e um conjunto de tecnologias e técnicas, para e ideológicos (o papel no ensino, nas propagandas
envolver o trabalhador de forma sutil e silenciosa. institucionalizadas etc.). As funções particulares, men-
Explicitam-se: tecnologia da informação, sistemas de cionadas, correspondem sempre a interesses políticos
controles gerenciais, manuais de gestão, protocolos das classes dominantes. (FARIA, 2004, p. 101).
de qualidade, normas, regras, hierarquias, assim
como técnicas de gestão colaborativas e participati- Tragtenberg (1974, p. 132), em uma leitura de We-
vas, em que os exemplos mais recentes e eficientes ber, percebe que, na concepção do sociólogo alemão,
são o kaizen, utilizado em ampla escala no sistema a crescente socialização (aqui definida como estatiza-

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 429


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

ção da economia) dos meios de produção na posse versais e particulares como elemento de mediação.
de um Estado proletário implica, necessariamente, Nesse sentido, a burocracia, nos regimes de Estado,
aumento da burocratização. A ditadura do proletariado constitui-se para Tragtenberg como classe dominante,
seria, inevitavelmente, transformada em ditadura do pois detém os meios de produção e, nessa medida,
burocrata, do funcionário do Estado. possui o poder de exploração, cumprindo funções de
Diante dessa análise, a eliminação do capitalismo organização do monopólio do poder político. Desse
não seria suficiente para resolver o problema da buro- modo, Tragtenberg (1974, p. 28) encontrará em Hegel
cratização, mesmo com o Estado sendo dirigido pelos “as determinações conceituais que permitem a análise
operários (TRAGTENBERG, 1974, p. 142). da burocracia do Estado, da burocracia enquanto po-
Resta evidente que a superação da burocracia não der político que antecede em séculos a emergência da
pode ocorrer apenas por meio da consciência política burocracia determinada pelas condições técnicas da
dos trabalhadores. A própria estrutura econômica na empresa capitalista, oriunda da Revolução Industrial”.
sua unidade elementar, que é o modo de produção, Ao examinar o modo de produção asiático, Trag-
consolida essa burocracia como forma específica de tenberg afirma que, neste, o Estado extrai sob a forma
organização da produção e, consequentemente, da de impostos a mais-valia da economia de subsistência
sociedade em geral. Na fase atual de desenvolvimen- das aldeias. Sua concepção, nesse sentido, é muito
to das forças produtivas, não há como negar a exis- particular. Não no que se refere ao fato de o Estado
tência de uma forma de burocracia que estrutura o apropriar-se da mais-valia na forma de impostos, mas
aparato administrativo das unidades produtivas, uma de considerar a economia de subsistência das aldeias
vez que ela apenas consolida uma forma específica uma forma de organização do trabalho que gera mais
de produção. Todavia, quando a “burocracia participa valor. Para sustentar esse argumento, Tragtenberg
da apropriação da mais-valia, participa do sistema de entende que “o povo cria pelo trabalho” e sua “re-
dominação. [...] Em suma, ela une a sociedade civil muneração” é o conjunto dos bens de consumo. A
ao Estado” (TRAGTENBERG, 1974, p. 190). mais-valia decorre, dessa forma, da renda da terra, da
Tragtenberg recorre a Hegel (2000) exatamente qual o Estado se apropria para a realização de obras
para analisar a burocracia como poder administrativo e e para a manutenção da burocracia. As forças pro-
político, a partir do conceito deste de que o Estado é a dutivas desse modo de produção são mais intensivas
organização (burocracia pública) acabada, a síntese do de trabalho humano do que de meios de produção,
substancial e do particular, a integração dos interesses o que “pressupõe uma superexploração da força de
individuais e particulares. Assim, o Estado é visto em trabalho que compensa a subutilização das possibi-
sua representação instrumental, pois a burocracia é lidades tecnológicas” (TRAGTENBERG, 1977, p. 29).
o formalismo de um conteúdo que se encontra fora Em que medida, neste ponto, se encontra o trabalho
dela, que é a corporação privada. É como instrumento objetificado e alienado?
das classes dominantes que a burocracia tem efeitos Tragtenberg trata dessa questão ao abordar a filo-
de permanência com relativo nível de autonomia. sofia do conflito social em Marx, na qual o trabalho
Estado e sociedade civil se encontram separados na aparece como fator de mediação que enriquece o
visão hegeliana, pois o primeiro contém o interesse mundo dos objetos e empobrece a vida interior do
universal e a segunda o interesse particular, mas é no trabalhador na medida em que este não é dono de
interesse geral que reside a conservação dos interes- si mesmo. O resultado do trabalho é estranho ao tra-
ses particulares. balhador e surge como um poder independente dele
Tragtenberg (1974, p. 23) reconhece que a teoria (TRAGTENBERG, 1974, p. 69). Essa análise permite
de Hegel é sustentada em “um formalismo político compreender as relações de trabalho para além da
que encobre a realidade que ele desnatura, reduzindo burocracia. Para tanto, é necessário entender que em
arbitrariamente a oposição e traindo o real”. Por esse Hegel (2001) a história do homem é a história do espí-
motivo, buscar em Hegel uma base analítica não é rito absoluto, uma consciência que se revela de forma
simplesmente incorporar uma concepção hegeliana. O progressiva por meio de uma série de contradições
recurso a Hegel é para afirmar sua convicção de que dialéticas em direção a um autoconhecimento cada
as finalidades do Estado são aquelas da burocracia e vez maior, pois a consciência ilimitada é o estado su-
as desta são as do Estado, de forma que a burocracia premo em que o espírito se encontra com o mundo
se fundamenta na separação entre os interesses uni- ético (SWINGEWOOD, 1978, p. 107).

430 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

Sendo a alienação um processo no qual a objetifi- A clareza da análise de Tragtenberg demonstra


cação opera no homem como um poder opressivo, a domínio em relação ao fenômeno da burocratização.
concepção de Tragtenberg sobre o domínio da burocra- A burocracia instalada nos países chamados socialistas
cia como poder político no regime que ele chama de ocorre igualmente em outros Estados declaradamente
“capitalismo de estado”, essa “combinação inédita de liberais, porém com uma máscara diferente. Tragten-
iniciativa individual no plano econômico com a econo- berg, ao escrever sobre o leste europeu, afirma que “sob
mia de Estado” é uma concepção da burocracia como Stálin, o regime do leste europeu reproduziu o modelo
uma elite alienante. De fato, o capitalismo de Estado é russo: economia de Estado regida por uma burocracia
para Tragtenberg (1974, p. 40-41) “o processo de mo- que gozava de imunidades e privilégios defendidos por
dernização levado a afeito por uma elite industrializante um Estado policial, onde a liberdade era vista como
sob a direção de um partido único”. O monopólio do ‘preconceito burguês’” (TRAGTENBERG, 1990).
poder por esse partido, portanto, assegura a seleção da Mesmo os partidos políticos são incorporados pela
elite dirigente em que a ascensão na escala partidária burocratização e “o problema mais sério do partido
corresponde à promoção na burocracia estatal. “Esta (...), após escalar o poder, [é saber] quem o tira de
burocracia possui o Estado como propriedade privada, lá. (...) As diferenças entre os partidos brasileiros são
dirigindo coletivamente os meios de produção.” de rótulo. Eles se constituem nos viveiros de uma
A partir daí, Tragtenberg critica o modelo soviético nova burocracia tecnocrática que, legitimada pelo
de dominação burocrática bem como o coletivismo voto popular, melhor poderá explorá-lo e dominá-lo”
burocrático da Iugoslávia aliado ao monopólio do po- (TRAGTENBERG, 1981b).
der do partido único, no qual o líder central é o único O Estado, de certa forma, estrutura-se para manter
animador do sistema e o único possuidor da crítica. a ordem vigente, além de criar normas, regras, hie-
“Os órgãos de autogestão representam a burocracia rarquias e organizações de forma muito semelhante
dominante”, pois a burocracia “não é só o elemento às empresas da iniciativa privada. As diferenças apre-
oriundo das necessidades funcionais da técnica, mas é sentam-se, nessas situações, apenas para garantir a
acima de tudo poder político total” (TRAGTENBERG, reprodução do sistema e o equilíbrio estrutural para
1974, p. 44). Tragtenberg, recorrendo a Mannheim que o capital avance com o mínimo de dificulda-
(1976), percebe que esse processo tem implicações de possível. Tragtenberg não poupou esforços para
também no plano das ideias ao valorizar, como ele- compreender o fenômeno da burocracia nos diversos
mentos de reforço do sistema: (i) em primeiro plano, contextos sociais. Em relação à Polônia, por exemplo,
o conhecimento político doutrinário e restringir o co- alertou sobre o poder degenerativo da burocracia
nhecimento filosófico à interpretação dos donos do ante os avanços do proletariado na construção do
poder, fazendo emergir o líder carismático por meio da regime socialista. Sobre as ditaduras, não deixou de
dogmatização; (ii) em segundo plano, o conhecimen- mencionar a burocracia cubana e romena bem antes
to científico: (iii) em terceiro plano, o conhecimento das mudanças que ocorreram.
técnico. É aqui que o poder político da burocracia se Para Tragtenberg, o Estado, como representante e
constitui também como ideologia. legitimador da burocracia, tem papel central na con-
Contudo, não foi somente no âmbito da discussão solidação de uma sociedade organizada em função de
acadêmica que Tragtenberg explanou sua opinião em crescente processo da ação racional-legal, que legitima
relação à burocracia, pois em outros locais de discus- os interesses do capital. Para Tragtenberg “a máquina
são também manifestou suas ideias a respeito sem abrir do Estado funda seu poder sobre o controle de todos
mão de sua coerência de raciocínio e militância polí- a partir do centro: ela funciona na monarquia absoluta
tica. Avesso a qualquer forma de burocratização que que estatiza pouco a pouco todos os aspectos da vida,
impedisse a autonomia dos indivíduos, caracteriza-se todos os detalhes do comportamento social, econômico,
um dos pioneiros na crítica ao regime autoritário com político, sexual e afetivo” (TRAGTENBERG, 1989, p. 110).
que o socialismo tentou se estabelecer no leste euro- A concepção do Estado como meio de controle
peu. Com efeito, para Tragtenberg, o que ocorre, na e aparelho repressor se faz evidente em Tragtenberg.
realidade, “é que com o nome de economia socialis- Para ele, qualquer forma de Estado representa um
ta existe uma economia de Estado nas mãos de uma tipo de burocracia e, dessa forma, nada mais repre-
burocracia dominante, que exerce o poder em nome senta que uma sociedade que sofre um processo de
do trabalhador” (TRAGTENBERG, 1981a). desencantamento do mundo, ou seja, uma manifesta-

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 431


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

ção evidente e clara da ação racional-legal de como os cipais análises (PRESTES MOTTA, 1981, 1982, 1989,
meios de produção se organizam e se constituem. Para 1990, 2001; PRESTES MOTTA e BRESSER-PEREIRA,
Tragtenberg, “[...] as lutas sociais podem tender à buro- 1980; PRESTES MOTTA e VASCONCELOS, 2004).
cratização e à perda de suas finalidades iniciais, mas há Em seu primeiro livro, de 1972 (PRESTES MOTTA,
sempre alguém – a classe trabalhadora – que reage a 1989), que se tornou leitura obrigatória nos cursos de
isso criando suas entidades igualitárias e novas relações graduação em administração, “a forma de tratamento
sociais antagônicas à burocratização” (ACCIOLY, 2001, da teoria da administração revela que, em todas as
p. 80). Tragtenberg considera o processo de burocrati- abordagens, o que se encontra são relações de domi-
zação um fenômeno social em consequência, também, nação das mais variadas espécies, indicando como os
do grau de complexidade das forças produtivas em diferentes enfoques reproduzem uma visão segundo
uma sociedade que passa a quantificar-se em todas as a qual é da gerência o papel fundamental na coorde-
dimensões da vida social, inclusive da educação. nação das organizações. Tanto que Motta sugere que
Tragtenberg era um crítico intransigente de toda apenas uma autogestão seria capaz de propor estrutura
a forma de autoridade, de poder, de burocracia e de de poder diferenciada” (FARIA, 2003, p. 164). Assim
dominação. Sua vinculação não dogmática ao anar- é que, ao tratar especificamente da teoria das orga-
quismo não era apenas uma questão política, porque nizações, Prestes Motta (2001) afirma que as teorias
Tragtenberg não separava a ação do pensamento. organizacional e administrativa devem ser analisadas
Tragtenberg analisava a realidade de um ponto de como “ideologia do poder”, pois ocultam o próprio
vista marxista, mas não se deixou dogmatizar por isso. poder e as contradições que lhes são inerentes, bem
Vinculava-se ao anarquismo, mas não se deixava en- como a forma como a tecnoburocracia vê a organiza-
cantar por suas utopias. Suas escolhas eram escolhas ção, “base última de seu poder”.
teóricas, sem dúvida, mas eram também políticas e, Prestes Motta, um estudioso das obras de Weber
principalmente, assumiam uma posição epistemoló- e de Marx, procurou esclarecer como a relação do
gica, porque sua forma de produzir conhecimento, sistema de produção capitalista com os elementos
sua forma de transmiti-lo mediante uma pedagogia da infraestrutura pode formar a burocracia. A ligação
libertária, condicionaram sua interpretação do real. advém de um processo de racionalização, provocada
A perspectiva de Tragtenberg (1977, p. 16) é a de por condições específicas da produção. Prestes Motta
uma análise com fundamento na sociologia do conhe- (1981, p. 7) afirma que a “burocracia é uma estrutura
cimento, do “estudo da causação social das teorias da social na qual a direção das atividades coletivas fica
administração como ideológicas”. Tal análise é cate- a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente
górica, baseada em textos e se opera em três níveis: organizado, que deve agir segundo critérios impesso-
(i) lógico: como administração significa burocracia, ais e métodos racionais”.
Tragtenberg recorre a Hegel; (ii) histórico: sendo as A burocracia nasce das relações de produção,
teorias administrativas transitórias (ideológicas) por- consolida-se no Estado como forma organizada de
que refletem interesses econômico-sociais transitórios, controle social e amplia-se com as organizações de
Tragtenberg recorre à dialética; (iii) lógico-histórico: modo geral. Assim, a sociedade moderna tornou-se
como as teorias administrativas, embora refletindo uma “sociedade de organizações burocráticas subme-
momento histórico-econômico específico, trazem em tidas a uma grande organização burocrática que é o
seu interior conhecimentos cumulativos, Tragtenberg Estado” (MOTTA, 1981, p. 8). Adotando-se as orienta-
recorre a Marx para examinar a autonomia relativa ções de Weber e Marx, segundo Prestes Motta (1981,
da produção teórica em relação às determinações p. 8-9), a burocracia apresenta algumas características.
econômico-sociais (FARIA, 2009, cap. 1). Mantém-se um estado de segurança e conformismo
em troca do trabalho assalariado de boa parte das pes-
soas. As pessoas participam de grandes organizações
impessoais e a vida em comunidade perde sentido.
PERSPECTIVA DA BUROCRACIA EM O próprio trabalho perde significação intrínseca nas
PRESTES MOTTA organizações burocráticas. As necessidades das pes-
soas são manipuladas por meio das relações entre
Para adequar as contribuições de Prestes Motta aos produção e consumo, orientando a vida das pessoas.
propósitos deste trabalho, utilizam-se as suas prin- Com isso, o comportamento passa a ser disciplinado

432 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

e caracterizado como irresponsabilidade social, caso é estabelecida de acordo com os interesses do capital.
o comportamento padrão não seja seguido. Tudo isso ocorre por causa da eficiência, res-
Na esfera política, a participação das pessoas perde ponsável por aumentar a produção da mais-valia
sentido, sobretudo, porque as pessoas não participam e, consequentemente, de aumentar a taxa de lucro.
de fato das decisões relevantes. É fortalecida a apa- Concentra, ainda, o “poder de decisão”, já que o novo
rência de que a democracia é efetivamente o regime agrupamento retira da maioria tal poder por meio da
político dominante. Isso ocorre por meio dos partidos expropriação do planejamento, da criatividade e do
políticos e sindicatos, vistos como organizações bu- conhecimento amplo e integral.
rocráticas que criam a falsa sensação de participação Tudo isso se faz sob o comando das funções di-
democrática nas decisões políticas da sociedade. retivas, que coordenam o processo. [...] É por essa
As análises de Prestes Motta em geral (1981, 1982, razão que as técnicas de organização, que começam
1989, 1990) apresentam uma concepção marxista em a ser necessárias com a divisão do trabalho, são téc-
relação à burocracia, porém, ao tratar deste tema na nicas capitalistas, que visam ao aumento da mais-
perspectiva weberiana, Prestes Motta adota uma po- -valia. Racionalizar o trabalho significa aumentar a
sição na qual as categorias são construídas no plano mais-valia relativa, isto é, a mais-valia que se obtém
abstrato arbitrário, o que não significa uma recusa à com a intensificação do trabalho (PRESTES MOTTA,
história. De fato, para chegar à afirmação sobre as 1981, p. 20-21).
características descritas anteriormente, Prestes Motta A unidade de poder da burocracia é a organização,
entende a burocracia de três formas: como poder, representada principalmente pela empresa capitalista. A
como controle e como alienação. integração dessa unidade é feita pelo Estado, que de-
Assim, a burocracia como poder só pode ser com- sempenha papel fundamental para manter a concentra-
preendida “na medida em que analisamos a sua história” ção de poder. Assim, a empresa burocrática pressupõe,
(PRESTES MOTTA, 1981, p. 12). O processo de burocra- para Prestes Motta, o Estado burocrático responsável
tização no contexto do sistema de produção capitalista por manter a ordem e o controle social. O Estado apa-
é um fenômeno universal e, como tal, é parte de um rece dessa forma como uma organização burocrática
sistema antagônico próprio do sistema de capital. A fundamental, consolidando uma elite política normal-
burocracia é um instrumento da classe dominante que mente associada à classe dominante e criando, além
impõe sua ascendência sobre as demais classes. Essa disso, um corpo de funcionários hierarquicamente orga-
dominação é feita pelas organizações (empresas, escola, nizados para se ocuparem da administração. Procura-se
partidos, sindicatos e outros) e pelo Estado, por meio manter, com essa organização, a ordem interna, além
do estabelecimento de um modo de vida específico, de proteger o Estado constituído das ameaças exter-
de acordo com os interesses do capital. nas. Essa organização estatal burocrática utiliza-se do
O “modo burocrático de pensar leva o homem ao seu poder disciplinador, de políticas que promovam
vazio e à luta por pequenas posições na hierarquia consenso social e, também, o monopólio da violência,
social de prestígio e consumo” (PRESTES MOTTA, visando manter a própria burocracia.
1981, p. 13). Levando-se em consideração a história, Utilizando a categoria weberiana, Prestes Motta
outro fato importante é que a da burocracia é a his- afirma que o poder do Estado e da burocracia em
tória do afastamento entre trabalho manual e trabalho geral está associado principalmente a uma forma es-
intelectual, cuja separação entre os que pensam e os pecífica de dominação: a racional-legal. Estabelece-se
que executam estabelece uma relação hierárquica bem uma acreditação em relação às leis e à ordem legal,
definida, adequada aos interesses do capital. Para tan- cujos principais instrumentos de controle, dentro de
to, as operações no trabalho são isoladas em parcelas uma estrutura social específica, se constituem nas
que, posteriormente, são aprimoradas, classificadas e próprias regras, que necessitam de caráter impessoal
agrupadas, obedecendo à lógica da separação entre para serem aceitas pela coletividade.
concepção e execução. A partir disso, Prestes Motta Prestes Motta e Bresser-Pereira (1980), em um
considera que se cria uma nova lógica para o pro- estudo específico sobre a organização burocrática,
cesso de qualificação dos trabalhadores, passando o indicam que essa organização é o tipo de sistema so-
trabalhador coletivo a desempenhar atividades siste- cial dominante nas sociedades modernas e, como tal,
matizadas, racionalizadas e previsíveis, cujo controle trata-se de uma estratégia de administração e de domi-
não detém mais. Dessa forma, uma nova cooperação nação. Na mesma linha argumentativa de Poulantzas

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 433


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

(1977), Prestes Motta e Bresser-Pereira argumentam ocorrem entre desiguais. As organizações burocráticas
que a burocracia pode se constituir em um grupo ou servem de unidades de dominação, sendo, igualmente,
uma classe social. Além disso, é também uma forma responsáveis pela inculcação ideológica, pela adoção
de poder que se estrutura por meio das organizações da submissão, pelos comportamentos controlados e
burocráticas. Nesse estudo de Prestes Motta e Bresser- socialmente aceitos, todos entendidos como naturais.
-Pereira (1980), o conceito central da abordagem de Assim, a organização burocrática configura-se numa
Prestes Motta é que a burocracia é dominação, é poder. estrutura de controle e poder.
Tal expressão explicita-se no prefácio de outro texto Importa perceber “que, enquanto estruturas de do-
(PRESTES MOTTA, 1982), em que Prestes Motta afirma minação, as organizações burocráticas contêm em si um
que “o autoritarismo é, por todas as razões, a essência conflito latente, e para abafá-lo todas as instâncias são
do fenômeno burocrático”, sendo a burocracia uma manipuladas. Isso quer dizer que há mecanismos eco-
forma de dominação e a “dominação uma forma de nômicos, políticos, ideológicos e psicológicos utilizados
poder” (FARIA, 2003, p. 164-165). para a neutralização do conflito”. (PRESTES MOTTA,
Outra característica da burocracia é que ela é con- 1981, p. 48) As organizações burocráticas, destarte,
trole. De acordo com Prestes Motta (1981, p. 33), “as procuram garantir o controle social, o monitoramento
organizações burocráticas estão veiculadas à estrutura dos comportamentos, as padronizações e o consenso.
social. Elas reproduzem uma estrutura social caracterís- A terceira característica apresentada por Motta
tica de uma formação social. Essa reprodução significa incide na burocracia como alienação. A dominação
uma recriação ampliada das condições de produção se apresenta como um “‘estado de coisas’ no qual as
em uma dada sociedade, em um dado sistema econô- ações dos dominados aparecem como se estes hou-
mico”. Como consequência, reproduzem-se também vessem adotado como seu o conteúdo da vontade
as classes sociais dessa mesma estrutura. Sem embar- manifesta do dominante” (PRESTES MOTTA, 1981, p.
go, na organização do trabalho, a especialização das 59). De acordo com Mészáros (2006) Marx apresenta
tarefas faz com que o trabalhador domine de forma a mais conhecida teorização sobre a alienação, que
insignificante o processo produtivo, permitindo ao ca- não parte da burocracia, mas do trabalho. A teoria da
pitalista controlar o produto final. Assim, o expediente alienação do trabalho apresenta a contradição fun-
de controle do produto passa a ser do capitalista, e o damental da produção capitalista de mercadorias, no
trabalhador vende sua força de trabalho em troca de sentido de que o trabalhador torna-se mais pobre na
sua autonomia. A hierarquia burocrática nasce, por medida em que produz mais riqueza; torna-se mer-
conseguinte, na fábrica, contexto em que “hierarquia e cadoria tão mais insignificante quanto mais riqueza
divisão parcelar do trabalho se conjugam como molas produz. Dessa forma, enquanto cria valor no mundo
propulsoras de uma forma de produção e reprodução das coisas, o mundo da vida dos homens aumenta em
do capital” (PRESTES MOTTA, 1981, p. 37). razão direta de sua depreciação.
A hierarquia exerce significativo papel na institui- O trabalhador depara-se com o produto como um
ção da burocracia como controle, estabelecendo uma objeto estranho, com o qual não se identifica, uma
relação de vigilância e de disciplinamento essencial vez que a apropriação do objeto é feita pelo capital.
para garantir a submissão do trabalhador, além de ou- A alienação do trabalhador quanto ao produto de seu
tro elemento importante: o salário. “Como os salários trabalho implica, também, a alienação em relação à
não estão relacionados com o valor que produzem, natureza, por meio da qual ele garante os meios de
mas sim com a reprodução de sua subsistência, estão sua subsistência física. Trabalhar o conceito de alie-
garantidas as condições para a reprodução do capital” nação no interior da burocracia significa configurar a
(PRESTES MOTTA, 1981, p. 38). alienação como um elemento da superestrutura que
O papel das organizações burocráticas não está garante a separação entre produtor e produto. No
associado apenas à produção de riqueza, de capital âmbito da teoria da gestão do processo de trabalho,
e das demais mercadorias e serviços, e, tampouco, à significa intensificar a separação entre os que pensam
reprodução da mão de obra como força de trabalho e os que executam, fator condicionante na relação de
ou garantia da sobrevivência do trabalhador por meio posse do produtor e do produto.
do salário. O papel das organizações burocráticas “A burocracia implica [também] que os indivíduos
constitui-se em garantidor do controle social por meio não se possam inserir na sociedade de acordo com
do estabelecimento das relações de poder, que sempre suas necessidades e seu bem-estar pessoal. Daí a

434 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

relação decisiva entre burocracia e alienação. Nessa quanto maior for a utilização da tecnologia como
ordem de ideias, a alienação é tão necessária quan- meio de controle. As análises de Prestes Motta rela-
to o for a burocracia, e não são poucos aqueles que cionando a tecnoburocracia com o Estado, a escola e
nos afirmam que esta última é um aspecto imutável as organizações mostram a dialética do fortalecimento
da tecnologia industrial”. (PRESTES MOTTA, 1981, p. da burocracia na medida em que ela está subsumida
76). A burocracia garante a separação entre produtor à lógica do sistema de capital e de sua tendência a
e produto, da mesma forma que garante a separação estabelecer suas formas específicas. Diante do exposto
entre homem e natureza por meio do afastamento sobre o entendimento de burocracia nas perspectivas
físico, psíquico e social. de Tragtenberg e de Prestes Motta, faz-se necessário
Para compreender criticamente a análise de Pres- compreender o que há de comum e de diferente entre
tes Motta, dois conceitos precisam ser destacados: (i) elas. Primeiro, a burocracia e sua forma de gestão, a
alienação enquanto um processo no qual o homem se heterogestão, constituem forma de poder, e a auto-
torna cada vez mais estranho no mundo criado pelo gestão, de não poder. Segundo, o conceito de poder
seu trabalho e (ii) objetificação enquanto forma de o com que Motta trabalha refere-se a uma radical se-
homem exteriorizar-se na natureza e na sociedade pelo paração, nos processos decisórios, entre dirigentes e
seu trabalho, um processo em que este se torna um dirigidos, cuja superação não depende da integração
objeto para os outros na estrutura das relações sociais, dessas categorias, mas da superação da divisão, que
construída com base nas relações de produção. Marx não se poderá realizar no interior de uma burocracia,
e Engels (2007) criticam Hegel por tornar iguais dois mas unicamente com sua supressão. Por fim, Motta
conceitos diferentes. A alienação, para Marx e Engels, vai analisar o poder como forma de dominação de
ocorre quando o homem objetificado encontra sua uma burocracia – uma heterogestão –, ou seja, como
atividade operando nele como um poder estranho, uma prática que separa artificialmente dirigentes de
opressivo, externo. No capitalismo a objetificação im- dirigidos. O poder é, assim, um processo de exclusão
plica alienação, pois o capitalismo, ao dominar com- dos dirigidos dos mecanismos decisórios, ainda que
pletamente o trabalho humano, o aliena totalmente. sua inclusão não venha a significar sua liberdade, mas
Ao contrário do que defendia Marcuse (1982), a teoria apenas um acordo civilizado, cujos termos não são
da alienação em Marx não é uma teoria do poder to- garantia de permanência.
tal. O poder sempre se defronta com outros poderes,
pois para ser poder é preciso que esteja em relação,
em prática de classes (FARIA, 2004, v. 1). Tal poder
total, como a coisificação plena da sociedade burgue-
BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO,
sa proposta por Marcuse, significaria uma forma de PODER E CONTROLE: REFLEXÕES
fatalismo insuperável, um mundo sem contradição e
sem história, em que a emancipação seria impossível.
PROVISÓRIAS
O que Prestes Motta chama de alienação, portanto, do
ponto de vista marxista, é objetificação. Examinando o percurso teórico de Prestes Motta e
Prestes Motta (1990, p. 133) apresenta o surgi- Tragtenberg, pode-se verificar que leituras diferencia-
mento de uma nova categoria no sistema de capital, das sobre a concepção de burocracia são possíveis,
os tecnoburocratas, os quais atendem aos interesses como já havia sido observado por Paes de Paula (2002,
do capital, pois exercem atribuições de gestores. Na 2008), por exemplo. Exatamente por existirem essas
tecnoburocracia, a tecnologia é incorporada na lógica diferentes interpretações é que se torna importante
da burocracia vigente, potencializando o controle das resgatar o pensamento original desses autores.
organizações sobre os indivíduos. Dessa forma, “o Tragtenberg e Prestes Motta remetem suas análi-
controle social concentra-se cada vez mais nas mãos ses, enquanto escrevem, para os trabalhadores, para
da tecnoburocracia, tanto pública quanto privada” administradores, educadores, sociólogos, enfim, para
(PRESTES MOTTA, 1990, p. 135). sujeitos que se vinculam a uma prática social centrada
Nessa perspectiva, Prestes Motta considera que a no trabalho. Além deles, seus escritos também influen-
burocracia exerce dominação pela sua superioridade ciam os estudiosos – intelectuais e pesquisadores – das
técnica comparativamente a outras formas de raciona- áreas de humanidades e de ciências sociais. Embora
lização do trabalho, tornando-se ainda tão mais forte Prestes Motta tenha sido professor da área de Edu-

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 435


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

cação na USP e da de Administração da FGV-EAESP, Dessa forma, a burocracia configura-se uma forma es-
são os trabalhos de Tragtenberg que possuem maior pecífica de racionalização que tem como sustentação o
penetração nas áreas de Educação, Gestão e Ciência que acontece no âmbito da produção, especialmente
Política, principalmente pela sua atuação como mili- na divisão técnica e social do trabalho.
tante político. Prestes Motta não teve uma militância Tragtenberg busca compreender como se dá a
prática no campo político. construção histórica da burocracia tendo por referên-
Essa é uma característica material que diferencia cia as análises de Weber, a quem via como pensador
os trabalhos de Tragtenberg dos de Prestes Motta. crítico da burocracia. Por isso, suas críticas à tendência
Devido a sua participação ativa como intelectual e burocratizante da modernidade incorporam o mesmo
também por seu permanente contato com a classe tipo de preocupação que Weber. Prestes Motta procu-
trabalhadora em seus escritos em jornais populares, ra estudar os efeitos da burocracia sobre as relações
as obras de Tragtenberg apresentam conteúdos mais sociais e como ela se consolida na modernidade sob
intensos de militância. Ainda que ambos se dirijam a égide do sistema capitalista de produção.
aos intelectuais e à área acadêmica, Tragtenberg tem A diferenças das trajetórias intelectuais e políticas
de fato uma atuação mais intensa junto à classe tra- entre Tragtenberg e Prestes Motta é outro fator im-
balhadora, inclusive em sua formação acadêmica, portante. Tragtenberg teve uma formação autodidata,
como é o caso de Antonio Ozaí da Silva, trabalhador diferentemente da de Prestes Motta. As origens pes-
do ABC paulista que atualmente é professor doutor soais e o percurso de ambos foram distintos. Todavia,
na Universidade Estadual de Maringá. As diferenças a aproximação com a teoria marxista e anarquista é
de práticas políticas se refletem nas análises teóricas. um ponto de convergência que aproxima as análises
Tendo em vista que Prestes Motta é um dos três de ambos do ponto de vista político. Contudo, ainda
discípulos citados por Tragtenberg (1991) na área de que Prestes Motta seja um seguidor das análises de
estudos organizacionais (ainda que este nunca tenha Tragtenberg, isso não o impediu de construir uma
concordado em formar discípulos), o posicionamento obra diferenciada e original, especialmente no que
político de Tragtenberg e Prestes Motta é de oposição se refere à sua aproximação com a psicossociologia,
ao capital em defesa do trabalho. A burocracia, para à psicodinâmica do trabalho e aos temas da cultura.
ambos, tem como finalidade política a instituição de um Suas trajetórias são marcadas por problemas en-
aparelho de dominação com base em uma racionalidade frentados no interior das grandes estruturas burocrá-
que separa os que pensam dos que executam, consequ- ticas da educação. Percebem ambos que a tendência
ência elementar da divisão técnica e social do trabalho. à burocratização afeta diretamente a produção de co-
O posicionamento político de Tragtenberg, com relação nhecimento. Por isso, explicitam a resistência em acre-
a essa temática, sempre foi publicamente mais explícito ditar na capacidade emancipadora da educação em
porque seus escritos nos jornais No Batente, Folha de um sistema educacional burocraticamente estruturado.
S.Paulo e Notícias Populares, por exemplo, tinham como Ambos conviveram com o regime militar. Porém,
objetivo formar o pensamento crítico entre os trabalha- para Tragtenberg esse período foi de longe muito mais
dores, enquanto Prestes Motta dirigiu suas publicações problemático, pois implicou uma intervenção direta
exclusivamente para a área acadêmica. em sua atividade docente, intelectual e política. Ambos
Outro fato importante é que ambos elegeram o são fortemente influenciados pelas ideias e práticas
materialismo histórico como uma dimensão episte- políticas de oposição ao Estado autoritário, entretanto
mológica relevante, notadamente quando analisam a não caem na fascinação ingênua do discurso das eli-
questão da centralidade do trabalho. Assim, mesmo tes políticas dos partidos comunistas. Tragtenberg foi
quando suas análises se referem à burocracia, no sen- inclusive confrontado pelos partidos por sua posição
tido weberiano, é a categoria trabalho que permanece claramente contrária à burocratização e à violência
como orientadora de seus estudos. Pode-se especu- empreendida por partidos de esquerda em nome da
lar que esse fato ocorra porque Prestes Motta adota luta a favor do proletariado. Ambos perceberam que
os estudos sobre a burocracia de Tragtenberg como tais regimes políticos não passavam de empulhação
ponto de partida para suas próprias análises sobre o ideológica ou de um regime baseado no capitalismo
fenômeno, ou seja, a burocracia é concebida por am- de Estado. Por esse motivo, veem na burocracia desses
bos como uma superestrutura originada das relações regimes políticos os mesmos pressupostos burocráticos
materiais e sociais que se estabelecem na produção. instituídos nos países capitalistas autoritários.

436 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

Na trajetória política e acadêmica de Tragtenberg, burocracia apresenta-se como organização, poder e


percebe-se um ecletismo em relação às leituras que controle.
influenciam diretamente a sua produção e militância. Burocracia como organização, porque está basea-
O anarquismo e o marxismo estão permanentemente da em uma racionalidade formalizadora de natureza
presentes nas suas obras, ao longo da sua trajetória instrumental, estruturada na forma como o trabalho
acadêmica, e em suas atuações políticas. Marx, Weber e se organiza. A divisão técnica e social do trabalho es-
alguns intelectuais anarquistas (TRAGTENBERG, 1978) tabelece a forma como as outras dimensões da vida
acompanham permanentemente seus escritos, seja de influenciam o cotidiano dos indivíduos. A burocracia
forma direta, como objeto de análise, ou indiretamente, é organização porque está baseada em uma ordem
na estruturação dos fundamentos e das argumentações. específica que precisa ser compartilhada e reproduzida
Na trajetória de Prestes Motta, percebem-se pelo para garantir a existência da própria civilização. Assim,
menos três momentos distintos, explícitos em sua desde a organização estabelecida na forma como se
produção acadêmica: primeiro, a influência de au- estrutura a divisão técnica do trabalho para a subor-
tores como Marx e Weber (PRESTES MOTTA, 1989, dinação da existência dos homens até a burocracia no
1990, 2001); segundo, o interesse pelos estudos sobre interior do Estado, enquanto grande organização que
cultura organizacional e cultura brasileira (PRESTES assegura a continuidade do processo civilizatório na
MOTTA e CALDAS, 1997); terceiro, a influência da modernidade, a burocracia é vista não como produto,
teoria da psicanálise (PRESTES MOTTA e FREITAS, mas como processo de racionalização. Esse é o enten-
2002). Prestes Motta buscou, nas produções acadêmi- dimento tanto de Tragtenberg como de Prestes Motta.
cas, respostas para suas inquietações pessoais (FARIA, Burocracia como poder, porque sua condição de
2003). Avaliando-se o desenvolvimento teórico em re- estabelecer relações de dominação, seja formatando
lação à burocracia, é possível perceber que o conceito, as relações sociais ou instituindo a informalidade em
mesmo na segunda e na terceira fases, e apesar de favor de elites que detêm o aparelho burocrático, pos-
não ser abordado como objeto central, está presente sibilita a reprodução dos indivíduos nas suas posições
tangencialmente nos escritos, e em muitos deles como sociais ou das organizações na lógica de dominação
pressuposto elementar de estruturação social. política e econômica. A burocracia, como racionalida-
Tanto para Tragtenberg como para Prestes Mot- de instituída e mediadora de relações políticas e eco-
ta, a burocracia deve ser entendida em seu espaço e nômicas, apresenta-se como espaço das lutas sociais.
tempo históricos. Essa realidade pode ser percebida Entretanto, esse espaço beneficia aqueles que detêm
em diversas formações sociais sob variadas formas de o domínio desse espaço e que têm a posse dos meios
economia. Assim, as formas específicas de burocracia de criação e instituição das racionalidades. Sendo o
só podem ser entendidas em um contexto econômico poder um atributo coletivo, de grupos organizados, a
e político indissociável. Burocracia é mais do que um burocracia torna-se instrumento de dominação e de
termo pontual ou um fenômeno específico do sistema controle social. A superioridade técnica da burocra-
de capital. É um processo de racionalização peculiar cia moderna possibilita o estabelecimento do poder.
e que se apresenta em todas as épocas históricas. Por A adoção da técnica e de seu permanente aprimora-
isso, é necessário compreender sua dimensão semân- mento faz da burocracia um sistema de dominação
tica, compreender esse processo como consequência baseado na reprodução da dominação da natureza,
elementar do processo civilizatório. Sua compreensão inclusive do homem em relação ao próprio homem.
requer, igualmente, dissociá-la da sua imersão ideoló- As diferenças entre Tragtenberg e Prestes Motta indi-
gica e cultural, apesar desses elementos serem também cam que o primeiro dirigiu suas análises para o poder
constitutivos do próprio processo de racionalização do Estado, enquanto o segundo analisa a burocracia
de uma época histórica. como poder emanado das organizações. Isso não im-
Tragtenberg e Prestes Motta concordam que as plica afirmar que ambos não tenham feito a relação
principais características da burocracia são a impes- dialética entre poder e burocracia com base na relação
soalidade, o formalismo e o profissionalismo, apesar entre organizações e Estado.
de as conceberem como efeitos de um processo de Burocracia como controle, porque suas formas
racionalização ocorrido na sociedade, especialmen- estão presentes nas organizações produtivas e no Es-
te originado da divisão técnica do trabalho. Assim, tado. Nesse sentido, o Estado é compreendido como
avaliando-se o conceito ao longo das suas obras, a a organização em forma de máquina que garante o

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 437


ARTIGOS  BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO, PODER E CONTROLE

controle político-social, influenciando diretamente a uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora
reprodução das demais organizações na sociedade. Unesp, 2001.
A burocracia é capaz de estabelecer relações de con-
trole, seja por vias objetivas ou pelo domínio inter- CAMPOS, E. (Org) Sociologia da burocracia. Rio de Ja-
subjetivo. A tecnologia que se emprega no interior da neiro: Zahar, 1978.
racionalidade burocrática, bem como as normas, as
regras formais e os procedimentos são exemplos de ETZIONI, A. (Org) Organizações modernas. São Paulo:
meios instituintes de controle. Agregada à ideologia, Atlas, 1973.
a burocracia é capaz de criar costumes, normas infor-
mais, ideias e imaginários, tornando-se responsável ETZIONI, A. Análise comparativa das organizações com-
pelo controle intersubjetivo. Segundo os argumentos plexas. Rio de janeiro: Zahar; São Paulo: Edusp, 1974.
desenvolvidos nos estudos de Prestes Motta, o salário,
o disciplinamento dos trabalhadores no ambiente de FARIA, J. H. Weber e a sociologia das organizações. São
trabalho e a cooptação ideológica são instituidores de Paulo: Revista de Administração, v. 18, n. 2, p. 23-29,
controle no cotidiano dos indivíduos. Por isso, a alie- abril-junho, 1983.
nação se confirma na medida em que e o indivíduo
interioriza o modo burocrático de pensar. A relação FARIA, J. H. O poder na obra de Fernando Prestes Motta.
entre burocracia e alienação é, então, ressaltada. A EccoS Revista Científica, v. 5, n. 1, p. 139-172, 2003.
inculcação ideológica, a submissão, os comportamen-
tos padrão e o disciplinamento não são decorrentes FARIA, J. H. Economia política do poder. Curitiba: Juruá,
apenas da forma objetiva como a burocracia se insti- 2004. 3 volumes.
tui na organização. A burocracia investe também no
controle intersubjetivo, e esse movimento é essencial FARIA, J. H. Gestão participativa: relações de poder e de
para que o controle possa ser efetivo. trabalho nas organizações. São Paulo: Atlas, 2009.
Nos estudos de Tragtenberg e de Prestes Motta,
é possível perceber nuances em relação à burocracia HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Pau-
como organização, poder e controle. Em cada um de- lo: Martins Fontes, 2000.
les, a burocracia das organizações (privadas ou públi-
cas) ou do Estado pode ser percebida como resultado HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis:
de uma forma específica de organização da produção Vozes, 2001.
da vida dos sujeitos. Ergue-se um grande aparelho
com todas as suas racionalidades fundamentais capaz LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio
de estabelecer a organização, o poder e o controle de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
sobre as práticas dos indivíduos ou dos grupos que
participam das formas organizadas de produção e de LAZARTE, R. Max Weber: ciência e valores. Rio de Janei-
ação política. Em síntese, o presente estudo indica ro: Cortez, 1996.
que, tanto nos trabalhos de Tragtenberg como nos de
Prestes Motta, a burocracia apresenta-se em três for- MANNHEIM, K. Ideologia e utopia. 3. ed. Rio de Janeiro:
mas: organização, poder e controle. Essa orientação irá Zahar, 1976.
inspirar diversos estudos no campo das organizações,
tais como as análises críticas, a economia política do MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o ho-
poder e a psicodinâmica do trabalho. mem unidimensional. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:


Boitempo, 2004.

REFERÊNCIAS MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais re-


cente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B.
ACCIOLY, D. Tema e variações em Maurício Tragtenberg. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus diferentes
In: ACCIOLY, D; MARRACH, S. Maurício Tragtenberg: profetas. São Paulo: Boitempo, 2007.

438 © R AE n S ão Paulo n v. 51 n n.5 n set /out . 2011 n 4 2 4 - 4 3 9 I SSN 0 0 3 4 -7 5 9 0


José Henrique de Faria Francis Kanashiro Meneghetti

MARTIN, R. Sociologia do poder. Rio de Janeiro: Zahar, SENNET, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Re-
1978. cord, 2007.

MERTON, R. e outros. Reading in Bureaucracy. Washing- SWINGEWOOD, Alan. Marx e a teoria social moderna. Rio
ton: Free Press, 1952. de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: TRAGTENBERG, M. Burocracia e ideologia. São Paulo:
Boitempo, 2006. Ática, 1974.

MICHELS, R. Sociologia dos partidos políticos. São Paulo: TRAGTENBERG, M. Francisco Ferrer e a pedagogia libertá-
Senzala, 1968. ria. Revista Educação e Sociedade, v. 2, n. 1, p. 17-49, 1978.

MORIN, E. e outros. A burocracia. Lisboa: Socicultur, 1976. TRAGTENBERG, M. Trabalhador não ganha boas-fes-
tas nem feliz ano novo. Folha de S.Paulo, São Paulo,
POULANTZAS, N. Poder politico e classes sociais. São Pau- 23.12.1981a, p. 3.
lo: Martins Fontes, 1977.
TRAGTENBERG, M. São Paulo pergunta. Folha de S.Paulo,
PRESTES MOTTA, F. C. O que é burocracia. São Paulo: São Paulo, 11.11.1981b, p. 3.
Brasiliense, 1981.
TRAGTENBERG, M. Reflexões sobre o socialismo. São Pau-
PRESTES MOTTA, F. C. Burocracia e autogestão. São Pau- lo: Moderna, 1986.
lo: Brasiliense, 1982.
TRAGTENBERG, M. Administração, poder e ideologia. São
PRESTES MOTTA, F. C. Teoria geral da administração: uma Paulo: Cortez, 1989.
introdução. São Paulo: Pioneira, 1989.
TRAGTENBERG, M. Traços comuns. Folha de S.Paulo, São
PRESTES MOTTA, F. C. Organização e poder: empresa, Paulo, 27.01.1990, p. 3.
estado e escola. São Paulo: Atlas, 1990.
TRAGTENBERG, M. Sobre educação, política e sindicalis-
PRESTES MOTTA, F. C. Teoria das organizações: evolução e mo. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
crítica. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.
WEBER, M. O político e o cientista. 2. ed. Lisboa: Presen-
PRESTES MOTTA, F. C. Pró-posições. Revista Quadrimestral ça, 1973.
da Faculdade de Educação, Unicamp, n. 04, p. 79-87, 1991.
WEBER, M. Economía y sociedad: esbozo de sociología
PRESTES MOTTA, F. C; BRESSER-PEREIRA, L. C. Introdução compreensiva. 2. ed. Ciudad de México, DF: Fondo de
à organização burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1980. Cultura Económica, 1974. 2 v.

PRESTES MOTTA, F. C; CALDAS, M. (Orgs) Cultura or- WEBER, M. Ensaios de sociologia. 5. ed. Rio de Janeiro:
ganizacional e cultura brasileira. São Paulo: Atlas, 1997. LTC Editora, 1982.

PRESTES MOTTA, F. C; FREITAS, Maria Ester. (Orgs) Vida WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
psíquica e organizações. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Edi- São Paulo: Pioneira, 1989.
tora, 2002.

PRESTES MOTTA, F. C; VASCONCELOS, I. F. G. Teoria geral da


administração. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

PROUDHON, P. J. Filosofia da miséria. São Paulo: Esca-


la, 2007. 2 v.

IS SN 0034-7590 © R AE n Sã o Pa ul o n v. 5 1 n n. 5 n s et /out . 2 0 1 1 n 4 2 4 - 4 3 9 439


(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais*
(Without) knowledge and (with) power in organizational studies
1
José Henrique de Faria
2
Francis Kanashiro Meneghetti

Resumo
Bacon afirma que saber é poder. Tragtenberg contesta. Essa discussão, na contemporaneidade, faz-se mais importante
do que se possa imaginar. Por isso, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder, na
atualidade, levando em consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos
objetivos específicos deste estudo, destacam-se:
 compreender o sentido da filosofia e da ciência e suas relações com a ideologia;
 verificar como o discurso da neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e
como se dá a presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade;
 refletir sobre a consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico;
 destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais estudos
científicos;
 entender o processo de racionalização, avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia universitária
como afirmação da ciência na atualidade.
O texto conclui que tanto é possível a existência de saber como poder (Bacon) como a de não saber, mas com poder
(Tragtenberg) para compreendermos a relação entre saber e poder.
Palavras-chave: estudos organizacionais; poder; saber; ciência; teoria crítica.

Abstract
Bacon claims that knowledge is power. Tragtenberg disagrees. This debate is now more important that can be
imagined. Therefore, the main aim of this article is to examine the relationships between knowledge and power
nowadays, taking into consideration the role of science and the elements immediately related to it. The most specific
objectives of this study are: to understand the meaning of philosophy and science and their relationship with ideology;
to examine how the discourse of the axiological neutrality of science is presented as a modern myth and how “faith” fits
into philosophy and science nowadays; to reflect on the consolidation of science as a productive force and/or as a
commodity in the current economic system; to highlight the importance of the military industrial complex as a financer
of many current scientific studies; to understand the reasoning process, evaluating the importance of pragmatism and
university bureaucracy as a statement of science nowadays. The text concludes that both knowledge as power is
possible (Bacon) and the lack of knowledge, but with power (Tragtenberg) when it comes to understanding the
relationship between knowledge and power.
Key words: organizational studies; power; knowledge; science; critical theory.

* Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada no XXXIII Encontro da Anpad (Enanpad) 2008.

1 Pós-Doutorado em Labor Relations pel ILIR - University of Michigan e Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo- Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP. Professor Titular do Programa de Mestrado Interdisciplinar em
Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário; Professor Titular Sênior do Programa de Pós Graduação em Educação – PPGE (Mestrado e
Doutorado) da UFPR; Pesquisador PQ do CNPq; Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais. Endereço: Rua Itupava,
1.299 - Sala 103 - Hugo Lange – Curitiba- PR – Brasil – CEP: 80.040-000. E-mail: jhfaria@gmail.com.
2 Administrador (UFPR), Mestre em Administração pela Universidade Federal do Paraná –UFPR - e Doutor em Educação Universidade Federal do Paraná –

UFPR .Professor Titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Positivo.Endereço: Rua Professor Rua Prof. Pedro Viriato
Parigot de Souza, 5300 - 5° andar - Prédio da Biblioteca da Universidade Positivo. Campo Comprido – Curitiba/Paraná – Brasil. CEP: 81280-330 E-mail:
fkmeneghetti@gmail.com

Artigo submetido em abril e aceito em junho de 2009

www.ebape.fgv.br/cadernosebape CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

Introdução

Marx afirma que a maneira como as coisas se apresentam não é a maneira como elas realmente são, uma vez
que, se as coisas fossem como se apresentam, a ciência não existiria. Popper entende que, por ser
necessariamente humana, a ciência é falível. Em ambas as informações, constata-se a necessidade de ir além do
imediato e do aparente, além de apreender as relações sociais na produção da ciência, ponto central para a
compreensão da forma do saber instituído. / Ambas as informações indicam a necessidade de ir além do
imediato e do aparente. Além disso, mostram que apreender as relações sociais na produção da ciência é o
ponto central para a compreensão da forma do saber instituído. Se, por um lado, de forma geral, as
epistemologias de Marx e de Popper são divergentes, por outro, é inegável que ambos concebem a ciência
como caminho para o domínio crescente do homem sobre a natureza. Assim, a relação entre ciência e poder é
uma discussão constante, não só porque esteja intimamente relacionada à ideologia, mas também por estar
associada à força produtiva, às condições materiais de existência, às relações de produção e assim por diante.
Portanto, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder na atualidade, levando em
consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos objetivos específicos
deste estudo, eles são:
compreender o sentido da filosofia e da ciência e suas relações com a ideologia;
verificar como o discurso da neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade
e como se dá a presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade;
refletir sobre a consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico;
destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais
estudos científicos; e
entender o processo de racionalização, avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia
universitária como afirmação da ciência na atualidade.

Da filosofia à ciência como materialidade da ideologia

O que há de comum entre Marx e Popper? Quais são as semelhanças entre Rousseau e Hobbes? Entre os dois
primeiros transparece a crença de que a ciência seja a forma mais “confiável” para a compreensão da realidade,
ao mesmo tempo em que ambos demonstram “desconfiança” quanto à própria ciência simplesmente, porque
está é feita pelos homens. A convergência entre Rousseau e Hobbes reside na importância da sociedade na
constituição do indivíduo, mesmo que por vias diferentes. Enquanto o primeiro acredita que o homem nasce
bom, mas que a sociedade o corrompe, o segundo acredita que o homem é o “lobo do homem” e que a
sociedade acaba por regular as relações entre eles, possibilitando sua convivência social.
É fato que, apesar de divergências entre filósofos e também entre cientistas, desde o século XVI, a razão
iluminista manifesta-se como consequência de uma nova organização socioeconômica. As relações entre os
indivíduos e entre estes e a sociedade passam a se modificar em decorrência de novas formas de relações de
produção.
Desde essa época, uma nova racionalidade passa a ser dominante, transformando cientificamente a relação do
homem com o meio em que vive. Com a força dessa racionalidade científica, os indivíduos intensificam a
separação entre homem e natureza, tornando-a mais evidente. A ciência vai se transformando, na medida em
que vai produzindo transformações na realidade. Torna-se, dessa forma, força produtiva no capitalismo, por se
apresentar justamente como o principal instrumento da separação entre o pensar e o agir, ou seja, entre trabalho
intelectual e trabalho manual.
Mesmo a filosofia, na atualidade, é influenciada pela ciência moderna. Assim,

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 39-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

a filosofia oficial serve à ciência que funciona dessa maneira. Ela deve, como uma espécie de
taylorismo do espírito, ajudar a aperfeiçoar seus métodos de produção, a racionalizar a estocagem
dos conhecimentos, a impedir o desperdício de energia intelectual. Ela encontra seu lugar na divisão
do trabalho, assim como a química e a bacteriologia. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.226)
O cânone da quantidade (promovido pela necessidade de generalizações para que algo possa ser concebido
como cientifico) e, posteriormente, o pragmatismo (em que tudo deve ter uma utilidade) fizeram da filosofia
uma “erudição”, um conhecimento para indivíduos excêntricos que procuram na teoria explicações oriundas de
divagações quase sempre entendidas como caprichos de poucos. Por isso,
existe hoje um acordo quase geral em torno da ideia de que a sociedade nada perdeu com o declínio
do pensamento filosófico, pois um instrumento muito mais poderoso de conhecimento tomou seu lugar,
a saber, o moderno pensamento científico. (HORKHEIMER, 2000, p.65)
Não que a filosofia seja capaz dessa neutralidade ou que incorpore a “razão autêntica e verdadeira”, pois, assim
como o próprio Marx definiu, a filosofia também se manifesta como ideologia. O declínio da filosofia, no
entanto, é a derrota da possibilidade da consolidação do “pensamento unidimensional”, entendido aqui como a
capacidade de questionamento e de elaboração do pensamento de protesto.
A filosofia, em outro sentido, procura mais a compreensão da totalidade (sobretudo, por meio dos grandes
filósofos) do que a ciência moderna.
Sem dúvida nenhuma, o progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de
intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao quais algumas pessoas
adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. (WEBER, 2003, p.37)
Grande parte dos intelectuais considera o aparecimento e a consolidação da ciência moderna os elementos
centrais do progresso. É como se o passado não abrigasse transformações ou mudanças significativas
decorrentes de formas organizadas de superação e de modificações da realidade concreta da sociedade. Criou-
se um imaginário de que a ciência moderna seja a única possibilidade de “salvação dos homens” de uma vida
mundana, ou de uma vida condenada a insignificâncias intercambiáveis na sociedade. Todavia, “a ciência
também é uma supraestrutura, uma ideologia” (GRAMSCI, 1975, p.1457), ou seja, é um conjunto de
imaginários, de racionalidades e subjetividades com correspondência na realidade concreta.
A ciência vem associada ao progresso. Este é compreendido como a superação de estados mais primitivos para
os mais avançados, tanto nos aspectos quantitativos como nos qualitativos. O progresso é correspondente à
noção de “melhoria”, de mudança para um estágio “superior”. A sensação criada é a de que antes da ciência
não havia progresso. Apenas com os avanços oriundos de um domínio maior sobre a natureza é que a sociedade
teria passado a se modificar. Esse imaginário é manifestação clara e direta do empreendimento do
esclarecimento, movimento de tendência ideológica que procura se apresentar como potência social. Assim, “o
progresso é uma ideologia, o vir-a-ser é uma filosofia” (GRAMSCI, 1975, p.1335).
A concretização da ideologia como ciência, na concepção do próprio Gramsci (1975, p.507), ocorre quando a
ideologia assume a “hipótese científica de caráter educativo energético”. Na sociedade contemporânea, a
ciência é associada ao ensino, relação entendida como indissociável. O fato é que essa associação tem
fundamento econômico imediato: o interesse da indústria da educação em vender o ensino. A ciência (embora
independente em muitas situações da relação direta com o ensino) é “prejudicada” na sua formação de origem e
na sua “neutralidade”. A indústria do ensino apropria-se da ciência porque é também no processo de geração de
novos conhecimentos que se presencia o processo de aprendizado no mais alto grau de aprendizagem.
A consolidação da indústria do ensino faz das universidades fábricas da mercadoria “conhecimento”. Pesquisas
efetivam-se como linhas de produção gerando o produto ensino. Toda a estrutura burocrática da universidade
assemelha-se à de uma fábrica ou à de uma indústria. Mesmo nas instituições públicas, veladamente, a figura
do aluno é transformada em cliente. O professor passa a ser prestador de serviço. A diferença consiste na figura

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 40-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

do professor como monopolista da prática avaliativa dos alunos. A burocracia do ensino ganha corpo e
transforma a universidade em “multiversidade” . Dessa forma,
uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da
discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no
mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da
neutralidade do conhecimento e seu produto. (TRAGTENBERG, 2004, p.16)
Nesse processo, a sociedade passa a ser o principal “cliente”. Na realidade, a sociedade torna-se o ideal do
“cliente”, pois sob qualquer suspeita ou ferimento da ética coletiva, a sociedade apresenta-se como “superior”
ou “acima” de qualquer interesse individual. Entretanto, o fato é que essa sociedade nada mais representa do
que o ideal capitalista, em que o cliente individual se potencializa no discurso do cliente coletivo, a sociedade,
isenta de suspeita em qualquer condição. Não se questiona o quanto de particular há no discurso coletivo do
social.
De fato, sutilmente e por meio da ideologia, a ciência se constrói na direção dos interesses da classe
economicamente dominante. Essa construção dá-se lentamente, “tijolo por tijolo”, sem maiores
questionamentos. A ciência da “neutralidade científica” é utópica, porque toda ciência é sempre uma ciência de
classe ou de grupo dominante, mesmo havendo contradições no seu interior; até mesmo porque
os alunos da rede escolar recebem também conteúdos científicos. Eis que o processo de escolarização
contribui para a reprodução das condições materiais de produção, uma vez que a produção social é
uma transformação material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas
formas. (TRAGTENBERG, 2004, p.54)
Para esconder a influência e a força com que a ideologia está presente na ciência, vários são os cientistas e
filósofos que anunciaram a neutralidade científica; muitos deles, inclusive, apresentando estudos e reflexões
logicamente fundamentados. Entretanto, é importante ressaltar que mesmo a lógica tradicional se rende à
apresentação formal. Nem sempre as contradições estão no nível da percepção ou do aparente, pois, se assim o
fosse, não haveria contradição na ciência.

Mito da neutralidade da ciência e a fé filosófica e científica

Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que o mito já é esclarecimento. Na era da quantificação, a ciência
(resultado do pensamento iluminista) esconde a barbárie por meio de discursos fundamentados numa suposta
neutralidade, além de mascarar interesses econômicos, estando supostamente desvinculada de tendências
ideológicas ou políticas. Revestida da afirmação da neutralidade “a ciência ocupa hoje o lugar do Verbo
Divino. A casta dos cientistas substitui a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra
superior e a coletividade humana” (TRAGTENBERG, 2004, p.64).
O entendimento de Tragtenberg em relação à ciência não deixa de ser uma crítica à tendência de dogmatizar a
ciência e de elevá-la comparativamente às demais formas de mitologização. Dessa forma, Tragtenberg é mais
Marx e menos Weber, pelo menos nesse quesito. Assim, tal como Marx, que vê na ciência uma concepção
iluminista na maior parte, Tragtenberg acredita na ciência como força progressista, potencial e esclarecedora,
pois proporciona aos homens maior poder sobre a natureza, contribuindo para o direcionamento do destino dos
mesmos.
Apesar disso, Tragtenberg não se ilude com ela, pois sabe da perversidade da burocracia e como ela é capaz de
retirar a autonomia dos indivíduos e dos grupos organizados, aspecto pelo qual Weber está presente na crítica
da ciência burocratizada. Assim, se Tragtenberg, por um lado, não concorda com o sentido de “neutralidade
axiológica” presente em Weber, por outro, recusa a apologia da ciência, sobretudo, recusando o otimismo dos
que “louvam a ciência – isto é, a técnica de controlar a vida baseada na ciência – como o caminho para a
felicidade” (WEBER, 2003, p.177).

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 41-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

A ciência, como fenômeno social, não está isenta de certa tendência à personalização. Diferente em alguns
aspectos das demais atividades produtivas, o domínio técnico e de conhecimentos específicos faz do cientista
um indivíduo que centraliza poder por estar dotado de metodologia para a compreensão da realidade e por
concentrar técnicas que possibilitam o domínio sobre a natureza.
Apesar disso,
a importância da ciência para a humanidade não se encontra vinculada ao papel dos cientistas. Estes,
na maioria das vezes, restringem-se ao papel de novos sacerdotes à procura de rebanho para ser
cuidado. [Tragtenberg] sabia e procurava reafirmar constantemente que os saberes não se
restringiam à ciência, que esta não ocupava uma posição superior ante os demais saberes e que
tampouco teria condições de disciplinar a todos. (PASSETTI, 2001, p.106)
No entendimento de Tragtenberg, a ciência é mais uma forma de saber, que se torna dominante porque é
apropriada e utilizada pelas classes dominantes, efetivando-se, além disso, como principal instrumento técnico
no incremento produtivo, no processo de circulação das mercadorias, no ato de consumo e no fomento
ideológico necessários para intensificar a relação produção-consumo. A neutralidade anunciada, portanto, está
camuflada.
Mesmo os apontamentos de Weber em relação aos limites da ciência, não deixam de ser criticados por filósofos
ainda mais radicais (no sentido de ir à raiz) em relação ao papel da ciência na contemporaneidade. Entre esses
filósofos, destaca-se Mészáros:
Weber justifica sua “análise científica tipológica” a partir de sua pretensa “conveniência”. Sua
cientificidade só existe, porém, por definição. De fato, a aparência de “cientificidade tipológica
rigorosa” surge das definições “inequívocas” e “convenientes” com que Max Weber sempre
empreende a discussão dos problemas selecionados. Ele é um mestre sem rival nas definições
circulares, justificando seu próprio procedimento teórico em termos de “clareza e ausência de
ambiguidade” de seus “tipos ideais”, e da “conveniência” que, segundo se diz, eles oferecem. Além
disso, Weber nunca permite que o leitor questione o conteúdo das próprias definições nem a
legitimidade e validade científica de seu método, construído sobre suposições ideologicamente
convenientes e definições circulares “rigorosamente” autossustentadas. (MÉSZÁROS, 2007, p.72)
A crítica de Mészáros a Weber caracteriza-se pela sua natureza ideológica. O entendimento de “tipo ideal”1
manifesta a tentativa de absolver a ciência de qualquer interferência de ordem econômica ou pessoal. A suposta
ciência neutra existe como uma representação idealizada, mesmo que conceitualmente haja uma circularidade
criada pelo próprio Weber para “purificá-la”. A tentativa de criar uma ciência neutra, sem influência dos
interesses ou vieses que contaminem seus pressupostos de neutralidade, é tão dogmática quanto a tentativa dos
sacerdotes de afirmar a existência de uma religião salvadora.
A crença dos cientistas na neutralidade científica é a mesma da dos fiéis em relação às suas religiões. A
necessidade da existência de um ente superior manifesta-se com racionalidades diferentes, mas que procuram
aconchegar os mesmos temores humanos. A via para essa tentativa é distinta. Os resultados podem ser
diferentes, mas o que se procura, tanto em uma quanto em outra, é a consolidação de uma elite específica.
Tanto a elite dos sacerdotes como a dos cientistas procura essa diferenciação no interior da sua própria classe. É
importante ressaltar, também, que, apesar dessa “corrida” pelas diferenciações, ocorrem lutas ideológicas, cada
qual com seus pressupostos, premissas e verdades.

Ciência como força produtiva


Forças produtivas, na concepção marxista, são elementos capazes de transformar ou de modificar a natureza.
Nem sempre uma força produtiva corresponde a um elemento material ou, necessariamente, exerce o poder de
modificações que implicam a criação ou a produção de bens materiais. Os avanços da física  sobretudo, da
física quântica e da nanotecnologia  são responsáveis por mudanças qualitativas de grande impacto nas novas

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 42-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

tecnologias, na biologia e em boa parte das ciências. Na sociedade atual, o conhecimento instrumental é
apropriado, basicamente, pelo capital. Da tecnologia da informação, passando pela engenharia genética, até os
treinamentos gerenciais que transmitem as “competências gerenciais”, cria-se uma economia do conhecimento
“imaterial” (GORZ, 2005), cujo valor gerado é apropriado pelo capital. Apesar disso, a dialética da produção da
vida impede que o “capital fixo material” seja completamente substituído pelo “capital humano”, pelo “capital
do conhecimento” ou pelo “capital da inteligência”.
Geralmente, as forças produtivas estão associadas aos meios de produção, materiais ou não. Entretanto, a
ciência pode ser considerada força produtiva? Ou é uma mercadoria? A ciência como instrumento de
modificações da natureza e do domínio sobre ela deve ser entendida como força produtiva. No entanto, quando
se apresenta como resultado de trabalho realizado (ou trabalho vivo), equivalente a uma propriedade privada, a
ciência torna-se mercadoria.
A ciência despida da sua suposta neutralidade axiológica constitui instrumento de dominação e manifestação do
resultado do trabalho socialmente despendido. Todavia, é importante ressaltar que não há uma ciência, mas
várias. A ciência é resultado das relações sociais de produção e manifesta-se como elemento impossível de ser
separado das atividades humanas ocorridas no trabalho. Principalmente, porque, no atual momento de
desenvolvimento das forças produtivas, não é mais factível a separação do que é ciência do que é ideologia.
A dita neutralidade científica é consequência da necessidade de esconder a quem realmente a ciência serve,
tanto na sua forma de força produtiva como na de mercadoria. Se o passado procura isentar a tentativa de
Weber em relação à neutralidade da ciência, o presente cria a necessidade de desconfiar de todas as tentativas
de “purificação” existentes. Assim, como Kant afirma, não é possível pensar sem as operações dos conceitos,
pois, mesmo o mais simples pensamento não se isenta dessa necessidade. Da mesma forma, os conceitos não
implicam total isenção de valores, pois resultam das relações sociais, neles estando presentes pelo menos duas
figuras: quem conceitua e quem opera os conceitos.
Por essa perspectiva, todas as derivações da ciência e da produção de conhecimento estão dentro do princípio
da ciência, seja como forças produtivas ou como mercadoria. Os discursos derivados dessa lógica (inovação
tecnológica, desenvolvimento sustentável e demais) são, na realidade, discursos para o controle do capital. De
tal modo, “a inovação tecnológica e a pesquisa científica confluem para um estuário: a acumulação da mais-
valia relativa e a reprodução ampliada do capital” (TRAGTENBERG, 1974, p.216).

A subordinação da ciência ao capital é uma realidade. Se não ao capital privado, pelo menos, ao capital estatal.
Eis que a ciência não se isenta nem mesmo da formação das elites da burocracia estatal. Em regime de capital
planificado, a ciência cria a própria metodologia e procedimentos para enquadrar as regras definidas
externamente a ela. Manifestação disso é a existência de uma ciência exclusiva para o controle do capital sobre
a ciência: as ciências contábeis.

Mesmo referente às ciências tidas como as mais técnicas e pragmáticas possíveis, sua criação é
sempre um fenômeno social, sujeita à reprodução sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2001). A
contradição é que, mesmo
o fato de a ciência ser força produtiva e meio de produção que coopera para o processo de vida da
sociedade, não justifica, de forma alguma, uma teoria pragmática do conhecimento. [...] Sem dúvida, a
própria ciência se modifica no processo histórico, mas a referência a isso nunca pode valer como
argumento para a aplicação de outros critérios de verdade que não aqueles que correspondem ao
nível de conhecimento no grau de desenvolvimento alcançado. (HORKHEIMER, 1990, p.7)

O pragmatismo da ciência é consequência do seu atual desenvolvimento como força produtiva ou do seu
resultado como mercadoria de pertencimento privado. Não é estranho, portanto, que
o conhecimento aparece como força produtiva, a produção se dá como objetivação do conhecimento,
a produção e reprodução da vida social dependem da inteligência coletiva, o tempo livre se torna

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 43-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

medida da riqueza e não mais o tempo de trabalho; este adquire aspecto lúdico. (TRAGTENBERG,
1974, p.214)
O conhecimento científico, nos seus diversos níveis e formatações, está presente nas relações entre os
indivíduos. Seja como produtores ou como consumidores, diretos ou indiretos, desse conhecimento, o fato é
que a razão científica está presente na organização da sociedade, na forma como ela se reproduz, no fomento
para uma sociedade que domine a natureza para sua utilidade. A razão por trás desse conhecimento é o
direcionador da forma como os indivíduos devem interpretar grande parte do mundo e das relações que o
cercam. Por exemplo:
É fácil identificar o lugar da ciência na divisão social do trabalho. Ela tem por função estocar fatos e
conexões funcionais de fatos nas maiores quantidades possíveis. A ordem do armazenamento deve ser
clara. Ela deve possibilitar às diversas indústrias descobrir prontamente a mercadoria intelectual
desejada, na especificação desejada. Em larga medida, a compilação já é feita em vista de
encomendas industriais precisas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.226)
O conhecimento científico não tem preferências, mas está sob orientação da produção em escala industrial. As
amarras da ciência, como produtora de conhecimento específico enquadrado em procedimentos e formatações
possíveis de serem vendidas, fazem dela um processo de produção e não um fim em si mesmo, em que os
indivíduos são beneficiários do continuo processo de dominação da natureza por parte da razão científica. Em
outros tempos, mais especificamente nos anos 1940 e 1950, Horkheimer afirmou que a ciência estava em crise:
Por mais que se fale com razão de uma crise da ciência, ela não pode separar-se da crise geral. O
processo histórico trouxe consigo um aprisionamento da ciência como força produtiva, que atua em
suas partes, conforme seu conteúdo e forma, sua matéria e método. Além disso, a ciência como meio
de produção não está sendo devidamente aplicada. A compreensão da crise da ciência depende da
teoria correta sobre a situação social atual, pois a ciência como função social reflete no presente as
contradições da sociedade. (HORKHEIMER, 1990, p.12)
A sugerida existência de uma crise é de ordem ética, mais especificamente, de uma ética coletiva, pois sob a
ótica da ética do capital, em que a moral é o lucro, a ciência jamais passou por momentos de crise. De certa
forma, em grande parte é a ciência que garante a contínua reprodução do capital, por meio das técnicas
desenvolvidas, dos sistemas criados e da tecnologia da informação. Sem os avanços da ciência, portanto, a
reprodução sociometabólica poderia gerar uma crise de fato. Na atualidade, a sociedade detém suficiente
conhecimento científico para garantir tanto a produção com mais qualidade e controle como, também, técnicas
de vendas para aperfeiçoar a compra das mercadorias geradas pelo próprio sistema produtivo de base científica.
A crise, portanto, atinge aqueles que entendem que a ciência tem de estar a serviço da maioria; não, de uma
minoria. Nunca a ciência foi tão importante para a reprodução do sistema capitalista; nunca se investiu tanto
para a geração de novas técnicas, novos procedimentos, novos sistemas produtivos como na atualidade. Se não
fosse em grande parte a contribuição dos cientistas, a crise causada pela falta de controle (pelo desencontro) do
capital como força destrutiva seria muito mais evidente e problemática.
A ciência, nas suas variadas formas e concepções, é um produto histórico. Em cada época, vem para atender
aos interesses dos grupos dominantes, mas, ao mesmo tempo, atende a outros grupos, porque a própria ciência
precisa se apresentar como fonte mediadora dos conflitos e dos diversos grupos que compõem a sociedade. Por
isso, “ainda que a ciência esteja compreendida na dinâmica histórica, ela não deve ser destituída do seu caráter
próprio e utilitariamente mal interpretada. [...] a ciência é um fator do processo histórico” (HORKHEIMER,
1990, p.7-8). Persiste a esperança.
Como processo histórico, as descobertas científicas e o conhecimento gerado por ela são utilizados de diversas
formas. A ciência tanto pode ser um instrumento para o “bem” quanto para o “mal”. Todavia, o capital que
orienta grande parte da produção científica se tornou o principal instrumento de repressão ou de sublimação da
atual sociedade. Assim, a ciência serve, também, tanto para libertar os homens como para aprisioná-los. Apesar

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 44-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

das duplas possibilidades, não é possível negar que o capitalismo seja um sistema econômico bastante
confluente com o lado “sombrio dos homens”, com a perversidade coletiva e com a pulsão de morte.

“Matar e morrer” com as armas da ciência: o complexo industrial militar como financiador da
destruição

O capital se apropria de todas as forças produtivas, desenvolvendo-as de acordo com seu interesse, inclusive,
em relação à ciência. Dessa forma, uma parte da ciência é estranha ao operário da produção e, até mesmo, aos
indivíduos que trabalham para a manutenção e o controle do capital. A outra parte é incorporada pelos
operários como ideologia, conforme o próprio Maurício Tragtenberg afirma: a teoria geral da administração é
ideologia. Nas escolas de administração, os alunos dos primeiros períodos a concebem na aprendizagem como
ciência. Isto porque a literatura que aborda a temática apresenta a história da administração e as escolas
componentes de forma funcionalizada e pragmática, ou seja, como conhecimento instrumental de base para as
disciplinas específicas de natureza técnica, tais como administração da produção, de recursos humanos,
financeira e demais. É por isso que a ciência é contraditória, pois, ao mesmo tempo em que liberta, aprisiona.
Assim, a ciência pode ser considerada um instrumento de opressão de uma classe ao mesmo tempo em que é
um instrumento de dominação de outra. A ciência não pode ser definida como uma categoria moral, mas tem
sua dimensão política e ideológica.
Não é a ciência (e os conhecimentos gerados por ela) que destrói. É sua utilização política em favor de
determinadas classes para exercer opressão sobre outras. A bomba nuclear, as armas químicas, as armas de
fogo e todos os “produtos” resultantes dos conhecimentos científicos aplicados não podem ser
responsabilizados pelas matanças ou genocídios praticados na história da humanidade. Uma simples faca de
cozinha também pode matar. A questão também não é responsabilizar o indivíduo isolado, pois, apesar da sua
parcela de responsabilidade em razão de seu livre-arbítrio, a formação do seu Ser é resultado das relações
sociais.
A correta utilização da ciência torna-se cada vez mais clara, à medida que se desmistifica a própria ciência. A
substituição dos mitos antigos pelo mito da ciência como “salvador dos indivíduos” contém o mesmo gérmen
da dominação e da diferenciação entre classes. A contemporaneidade apenas consolida no tempo presente a
ideia de Habermas (1997, p.98-99):

Hoje, no sistema de trabalho das sociedades industriais, os processos de investigação combinam-se


com a transformação técnica e com a utilização econômica, e a ciência vincula-se com a produção e a
administração: a aplicação da ciência na forma de técnica e a retroaplicação dos progressos técnicos
na investigação transformaram-se na substância do mundo do trabalho. (HABERMAS, 1997, p.98-99)
Se em outros tempos a religião era o grande instrumento ideológico, na atualidade, a ciência apresenta-se como
a ideologia materializada no interior das relações econômicas e sociais. As relações econômicas na Idade Média
configuravam-se diferentemente da forma como ocorrem hoje. A função da religião como instrumento de
controle ideológico era o meio mais compatível com o grau de desenvolvimento econômico da época. Na
atualidade, o mito está também presente no discurso de salvação pela ciência.
O grau de desenvolvimento econômico de uma determinada época (mais especificamente, o relacionado ao
desenvolvimento das condições materiais de existência de uma sociedade) é o elemento que cria e consolida
técnicas responsáveis pelo domínio crescente dos homens sobre a natureza.

Esse domínio, inevitavelmente, também recai naquele que o homem exerce sobre si próprio. Se antes a
dominação era exercida pelo poder de violência e de coerção, hoje, o capitalismo traz outras formas até mais
“requintadas” de dominação; muitas, inclusive, de natureza psíquica. Todavia, o requinte e a mudança da
natureza da dominação não levam, necessariamente, à ausência de alguma forma de violência. O poder de
destruição persiste e potencializa-se, porquanto o que antes estava centrado na ação dos sujeitos (soldados,
policiais, fundamentalistas e outros), hoje, está disseminado no conhecimento ou nas técnicas utilizadas nas
formas de gestão, nos produtos gerados pela ciência e nos mecanismos de controle psicológico encomendados e

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 45-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

produzidos pela psicologia. Há evidente concentração das grandes violências, o que não impede que as de
menores consequências devam ser negligenciadas ou mesmo desconsideradas.
A concentração de poder de destruição ainda está, inevitavelmente, no complexo militar industrial. Por isso,
nos países capitalistas avançados, todos os ramos da ciência e da tecnologia são levados a funcionar
em auxílio aos objetivos das poderosas estruturas econômicas e político-organizacionais. As linhas
tradicionais de demarcação entre “ciência pura” e “ciência aplicada” – assim como entre os
negócios e o universo cada vez mais desdenhado da “academia” – são radicalmente retraçadas para
adequar todas as formas de produção intelectual às necessidades do complexo militar-industrial.
(MÉSZÁROS, 2007, p.287)

Processo de racionalização da ciência: o pragmatismo e a burocracia universitária

Habermas (1982) opõe-se ao cientificismo positivista de Karl Popper, Carl Hempel e Paul Oppenheim, ao
pretenderem definir os critérios de “toda verdade científica”. Habermas faz uma reconstrução histórica
defendendo a particularidade das ciências sociais. A tese defendida pelo frankfurtiano é a de que há um vínculo
entre conhecimento (ciência) e interesse (no sentido do interesse universal). As ciências consideradas exatas
são orientadas por procedimentos empírico-analíticos, que não podem ser generalizados ou adotados como
procedimento para as ciências sociais.
A discussão do domínio das ciências pragmáticas e a forma como suas características e pressupostos são
incorporados pelas ciências sociais não é uma preocupação somente de Habermas. Vários outros intelectuais 
entre eles Adorno, Bourdieu, Touraine e Tragtenberg  alertaram para a tendência totalitária de transformar as
ciências sociais em uma extensão das ciências pragmáticas.
A influência das ciências experimentais ou racionalistas, baseadas em cálculos e modelos de natureza
matemática, está presente em grande parte das formas de saber. Nem mesmo a filosofia escapa a essa regra,
conforme afirma Horkheimer (2000, p.51):
Como a ciência, a própria filosofia tornou-se não um exame contemplativo da existência nem uma
análise do que se passou e foi feito, mas uma visão das possibilidades futuras com a indicação de que
se alcance o melhor e se evite o pior. Probabilidade, ou melhor, o cálculo, substitui a verdade, e o
processo histórico que na sociedade tende a tornar a verdade uma expressão vazia recebe as bênçãos
do pragmatismo, que transforma isso numa expressão vazia dentro da filosofia.
O pragmatismo incorporado pela ciência, aliado à influência do capital na constituição de redes de criação de
conhecimento para produção de produtos passíveis de serem comercializados, fomenta investimentos
específicos em determinados projetos científicos. Exemplo disso são os investimentos na tecnologia de guerra,
na ciência do espaço, na engenharia genética, na nanotecnologia ou na física quântica aplicada.
Todavia,
tentar transformar a física experimental num protótipo de todas as ciências e modelar todas as esferas
da vida intelectual segundo as técnicas do laboratório, pragmatismo torna-se o correlato do
industrialismo moderno, para quem a fábrica é o protótipo da existência humana, e que modela todos
os ramos da cultura segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório racionalizado.
(HORKHEIMER, 2000, p.57)
O pragmatismo divide a realidade em “mundo prático” e em conhecimento teórico, potencializando a
compreensão da realidade em frações e fronteiras científicas. Assim,
o chamado mundo prático não tem lugar para a verdade, e, portanto, divide-a em frações para
conformá-la à sua própria imagem: as ciências físicas são dotadas da chamada objetividade, mas

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 46-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

esvaziadas de conteúdo humano; as humanidades preservam o conteúdo humano, mas só enquanto


ideologia, a expensas da verdade. (HORKHEIMER, 2000, p.81)
Tais fronteiras do conhecimento são erguidas e delimitam as teorias e procedimentos. Entretanto, os limites
ocorrem em relação ao emprego e à utilização do método, não em relação à sua utilização. Exemplo disso é
a emergência da Revolução Industrial, [que] implica uma alteração das condições de produção,
substituição da manufatura pela fábrica, absorção do êxodo rural na nova mão de obra industrial,
transferência de capitais do campo à cidade e aproveitamento dos resultados das Ciências Naturais do
universo industrial. (TRAGTENBERG, 1974, p.58)
Nessa época, o darwinismo surgia como uma ideologia conservadora, na medida em que atribuía à natureza a
origem da luta geral pelo sucesso econômico, estabelecendo uma confusão entre sobrevivência  que depende
de outros fatores além de habilidade e capacidade individuais  e desenvolvimento biológico. Confundia
conformidade com melhoria e adaptação com superioridade física. A teoria da seleção natural consagrava o
processo de expansão do capitalismo, dando novo impulso ao imperialismo. Pouco importava saber que um dos
sustentáculos da vida dentro das espécies é mais a cooperação do que a luta. Não fora como biólogo, mas como
criador de mitos, que Darwin se impusera. As necessidades de afirmação brutal, da classe, nação e raça
dominantes, segundo um dogma “científico”.2 O conhecimento gerado pela observação da dinâmica do reino
animal é transportado para a “selva” da dinâmica da economia.
Esse é apenas um dos vários exemplos da influência de conhecimentos específicos importados na tentativa de
explicar uma realidade originada em condições diferentes. Em grande parte, isso ocorre não apenas devido à
crescente especialização, mas também à formação de teorias com linguagens de identificação imediata. A forte
presença da ciência positiva, do funcionalismo e do pragmatismo faz com que as teorias construídas com base
em seus pressupostos possam ser facilmente interpretadas pelos diversos ramos do conhecimento. Weber já
havia anunciado essa tendência em relação à especialização:
Atualmente e naquilo que se refere à organização científica, essa vocação é determinada, antes de
mais nada, pelo fato de que a ciência atingiu um patamar de especialização que ela não conhecia nos
velhos tempos e no qual, segundo podemos julgar, se manterá ao longo do tempo. Essa afirmação tem
sentido em relação às disposições interiores do próprio cientista, tendo em vista que jamais um
indivíduo poderá ter certeza de alcançar qualquer coisa de valor real no domínio da ciência, sem
possuir uma rigorosa especialização. (WEBER, 2003, p.32)
As ciências sociais também são influenciadas pela tendência à especialização. Toda estrutura criada para
atender à ciência “sociologia” está alicerçada na organização das condições materiais que atendem aos
interesses do capital. A especialização da sociologia, portanto, é a mesma especialização necessária para a
ampliação do capital e para a dominação intelectual do grupo dominante. É por isso que
o saber sociológico atualmente não é simplesmente um aspecto da cultura universitária; tornou-se
elemento de poder, daí a proliferação de centros de documentação, bancos de dados, institutos de
planejamento: a escolha das pesquisas depende dos financiamentos possíveis; por outro lado, a
“moda” acadêmica impõe sua tirania. Uma pesquisa é determinada não porque se é obrigado a ter
esta ou aquela orientação teórica para receber financiamento, mas recebe financiamento por esta ou
aquela orientação teórica; trata-se de uma determinação que opera com alto nível de sutileza.
(TRAGTENBERG, 2004, p.24)

Tragtenberg (2004, p.25-27) afirma ainda que as universidades americanas estão a serviço do capital, inclusive,
as frentes de ciências responsáveis por colocar em risco a própria condição de segurança da humanidade. Todo
programa nuclear foi desenvolvido em universidades e institutos de tecnologia americanos. A Guerra Fria,
dessa forma, foi nutrida pela ciência dessas instituições. Os princípios da energia nuclear e o projeto Manhattan
(de desenvolvimento da bomba atômica) foram criados pelos cientistas da física. Aos sociólogos americanos
coube a missão de criar uma “engenharia do consenso”, necessária para justificar a utilização da bomba
atômica contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Dessa forma,

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 47-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

o grave problema da universidade norte-americana atual é a síndrome de conformismo, que permite a


utilização do saber para o genocídio, para prevenir conflitos futuros, tornando o sociólogo um
burocrata auxiliar e triste do Departamento de Defesa. (TRAGTENBERG, 2004, p.30)
A ciência social, nesses casos, não é para servir à sociedade, constituindo-se mais como ciência da dominação
voltada para a destruição. Filosofia e sociologia são “fábricas” de racionalidades que justificam e formam o
consenso para a barbárie. A destrutividade humana ganha aliados importantes, supostas razões que justificam
os regimes do medo, extermínios, pânico e desespero humano. É por isso que
a era da sociologia “inocente” terminou, surgindo a era da sociologia militante, a serviço dos profetas
armados. De igual forma, agem os sociólogos da indústria que aceitam a ideologia do
“gerencialismo”, uma ideologia patronal para manipular os dominados. A automatização dos campos
de batalha futuros é elaborada no campus. (TRAGTENBERG, 2004, p.25 e 26)
Os “campos de batalhas” estão justificados e recebem apoio dos indivíduos adeptos do senso comum revestido
de conhecimentos supostamente científicos. A indústria da espetacularização da mídia de massa torna-se o
disseminador da razão profética e amenizadora das culpas sociais. Uma legião inteira de sociólogos e filósofos
cria discursos comuns capazes de fomentar um imaginário de supremacia da razão como condutor do destino
social. Ciência e barbárie, neste momento, são faces contrárias de uma mesma moeda.
O preço pago pelos marginalizados e pelos sujeitos diretamente envolvidos nos conflitos são mostrados nos
programas televisivos, relatados nos jornais e ditos nos programas de rádios sem que o peso do sofrimento
esteja associado à descrição das informações. Grande parte da sociedade comove-se, mas permanece alheia aos
sentimentos que a barbárie pode causar nas vítimas das violências.
As universidades americanas atendem a esse complexo econômico militar, um dos alicerces da economia norte-
americana. A indústria militar é geradora de inovações, em grande parte, incorporadas na inovação de produtos
de uso geral, consumidos por cidadãos comuns. Nesse sentido,
a criação do conhecimento e sua reprodução cedem lugar ao controle burocrático de sua produção
como suprema virtude, em que “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o professor é
controlado mediante critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante critérios visíveis e
invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem depósitos de alunos, como diria Lima
Barreto, em Cemitérios de vivos. (TRAGTENBERG, 2004, p.18)
As formas de controle burocrático são institucionalizadas pela política geral dos órgãos responsáveis por
regular a educação e a política de tecnologia e ciência de cada país. As demais instituições, indiretamente, são
responsáveis por criarem as políticas necessárias para a afirmação da ideologia dominante. No interior dessas
universidades, os burocratas, muitos deles transformados em professores e cientistas, são responsáveis por
defender as regras instituídas pelas políticas de ensino e de tecnologia e ciência. O interesse é imediato e direto:
a perpetuação desses mesmos burocratas no poder. Regras internas, expressas nos documentos obrigatórios
para formalizar a adequação da Universidade aos princípios capitalistas, são “impostas” com discursos
docilizados de democracia universitária.
Weber já havia anunciado essa preocupação no que diz respeito ao sistema alemão de ensino:
Ultimamente, podemos observar nitidamente que, em numerosos domínios da ciência,
desenvolvimentos recentes do sistema universitário alemão orientam-se em conformidade com padrões
do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciência e de medicina se transformaram em
empresas de “capitalismo estatal”. É impossível administrar essas empresas sem dispor de recursos
financeiros consideráveis. É notável o surgimento, como, aliás, em todos os lugares em que se
implanta uma empresa capitalista, do fenômeno específico do capitalismo, que é o de “privar o
trabalhador dos meios de produção”. (WEBER, 2003, p.27)
O Estado controla suas instituições universitárias pelo orçamento. Agências de fomento à pesquisa e à ciência
fixam seus editais de forma a “orientar” as verbas e os recursos financeiros para áreas de interesse das elites

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 48-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

econômicas dominantes. A subordinação é clara e direta. As regras para receber o fomento variam de acordo
com os interesses da economia. Poucas bolsas de estudos ou recursos são destinados a pesquisas que não
privilegiem o interesse do capital. A existência delas é meramente ilustrativa e com a finalidade de “anunciar” a
ilusória democracia do conhecimento. Os malefícios da burocracia do ensino e da ciência, somados à rede
privada, potencializam a indiferença real com o cientista, transformando-o em mero instrumento de meio,
pouco relacionado com os fins da ciência. O cientista torna-se um trabalhador da ciência que não dispõe, na
realidade estatal,
de recursos que não os instrumentos de trabalho que o Estado põe ao seu alcance. Nesse sentido, ele
depende de seu patrão – já que o diretor de um instituto pensa, com total boa-fé, que aquele é seu
instituto. Daí passa a dirigi-lo a seu bel-prazer, de modo que a posição do assistente, nesses institutos,
é, normalmente, tão precária quanto à de qualquer outra existência „proletaroide‟, ou até quanto à dos
assistentes das universidades norte-americanas. (WEBER, 2003, p.27-28)
Mesmo os cursos de pós-graduação, responsáveis pela formação de cientistas e pesquisadores, não ficam fora
dessa regra. Conforme Tragtenberg (2004, p.80) afirma,
o curso de pós fica reduzido a ser pós-de-coisa-alguma.3 A universidade, controlada em sua função
pedagógica pela burocracia, por ter sua função de pesquisa redefinida fora de seu meio, por agências
de financiamento nacionais e internacionais, é “domesticada”. Reduz-se à criação de mão-de-obra
“superior” requerida pelo sistema, sem mais nada, sem fantasia.
De fato, não ocorre a suposta neutralidade axiológica, pois as ideologias estão o tempo todo permeando o
espaço, os procedimentos e os recursos financeiros do pesquisador. Sua subordinação à burocracia científica
limita-o na sua jornada pela busca do conhecimento científico. É nesse sentido que a pós-graduação se tornou,
segundo o próprio Tragtenberg (1974), o “bode expiatório” da ciência.
Conforme Uhle (2001, p.153) afirma,
Há crimes lógicos e passionais; a distância que os separa é incerta, são definidos os primeiros pela
existência da premeditação. Da mesma forma que a existência do carrasco pressupõe a vítima, o
poder monocrático e vertical implica bodes expiatórios. Essa é a função da pós-graduação nos
discursos do Poder, através de seus representantes mais autorizados. Justamente numa época em que
cursos de pós-graduação difundiram-se pelo território nacional, e nesse sentido democratizaram-se,
são taxados de elitistas e como tais voltados à extinção decretada pelos donos do poder.
O suposto poder da elite intelectual é reduzido à burocracia estatal direta ou indireta, presente tanto nas
instituições públicas quanto nas privadas. A abertura de vagas na pós-graduação sofre dupla contradição:
é alvo de reserva quanto à possibilidade de abertura de novas vagas, denotando certo movimento para
reservar o mercado para os cientistas e pesquisadores já atuantes; e
é defendida para consolidar a “democracia” e a universalização do conhecimento.
A burocracia apresenta as contradições do sistema no seu interior. Assim, é necessária a “produção do
conhecimento e, para isso, [é imprescindível apostar] na liberdade do pesquisador para buscar problemas
socialmente relevantes para seus estudos. Por essa crença na necessidade de autonomia de pesquisadores e
instituições de pesquisa é que [Tragtenberg] criticou sempre os acordos de interesse, os grandes financiamentos
que fecham a agenda do pesquisador, os célebres convênios com as empresas privadas ou com as fundações
Ford, Rockfeller e tantas outras. Daí porque sua história mostra o currículo de um intelectual que nunca teve
uma bolsa de estudos, nunca fez um estágio internacional, mas nem por isso deixou de ser cosmopolita”
(UHLE, 2001, p.165).

O processo de racionalização no ensino e na ciência não é um evento à parte. É parental com o mesmo
fenômeno ocorrido nos processos de trabalho. A especialização extrema aliena o cientista do fato gerador do
conhecimento. O controle financeiro subordina a pesquisa aos interesses econômicos. As normas, regras e

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 49-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

procedimentos engessam a ação do cientista e do pesquisador. Para aceitar essas condições sem maiores
“traumas” ou sofrimentos, cientistas e pesquisadores aceitam as regras impostas pelas fontes financiadoras. As
universidades nada mais são do que grandes organizações burocráticas, organizadas de forma a garantir a
reprodução das suas elites internas. O processo de racionalização das universidades está em concordância com
o processo já definido por Weber como “desencantamento do mundo”, pelo qual o próprio conceito weberiano
de neutralidade axiológica perde sentido. Porquanto não é possível neutralidade em um processo cuja forma
mais comum de racionalização não seja um fim em si mesmo, mas tão somente um meio para a realização das
elites orientadas e motivadas para o acúmulo permanente de capital, nem que seja por meio de uma economia
militar orientada mais para a destruição do que para a melhoria da sociedade.

(Sem) saber e (com) poder: Francis Bacon e o mito do “o conhecimento é em si mesmo um poder”  por
uma breve conclusão?
Francis Bacon é considerado o precursor do racionalismo. A ruptura com a tradição filosófica anterior
possibilitou o surgimento de uma nova filosofia. O aparecimento do pensamento imanentista (a construção da
filosofia por meio da razão, ao invés de admitir a prevalência do real) é responsável por focar o indivíduo do
saber como detentor do poder: “a ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada,
frustra-se o efeito. Pois, a natureza, não se vence, se não, quando se lhe obedece” (BACON, 1988, p.13).
Bacon, na época em que fez suas reflexões, conseguiu imaginar em que medida a ciência, como força
transformadora da realidade, iria se desenvolver. Mais do que isso, imaginou a força destrutiva, por meio do
complexo industrial militar, como orientadora da ciência e de grande parte das pesquisas aplicadas. Conforme
afirma Passetti (2001, p.108),
em “O saber e o poder” [Tragtenberg], localiza as orientações de Bacon como investimento, num
saber que se disponibiliza de maneira serviçal à dominação. Seu foco atinge em especial as conexões
científicas com o colonialismo e as guerras, mostrando como os intelectuais se transformam em “parte
integrante do complexo militar-industrial-acadêmico”, orientado pela especialização e criação de
modas universitárias que se impõem pela tirania. Receber financiamento implica ajustar-se às teorias
definidas pelas agências, num complexo desenho de engenharia social: “na medida em que os
cientistas propõem terapia de controle sobre os que estão abaixo, eles servem aos que estão acima”.

A realidade de Bacon era diferente da atual. A passagem da filosofia para a ciência ocorreu e sedimenta-se na
noção de materialidade da ideologia. A filosofia, a sociologia e todas as ciências humanas apresentam-se como
produtoras de racionalidades que justificam a utilização da ciência como meio de dominação, não só da
natureza como também dos próprios homens. Essas racionalidades e imaginários vêm amparados pela ideia de
que a ciência é neutra. Uma mitificação ocorre por conta disso e cria uma “fé” na filosofia e na ciência, como
libertadora dos homens em relação a todas as formas de sofrimento e angústias existenciais.
Nessa relação de fé há um equívoco de concepção. A ciência é, na atualidade, uma força produtiva ou uma
mercadoria. Constitui força produtiva quando transforma materialmente a realidade ou quando serve para
promover e intensificar o acúmulo do capital, seja por meio da exploração crescente da mais-valia absoluta ou
pela intensificação da mais-valia relativa. Constitui mercadoria quando apropriada por indivíduos ou grupos
dominantes que monopolizam sua utilização ou quando exercem as propriedades fetichistas tal como Marx
abordou e, ainda, mercadoria quando de fato é apenas a extensão da propriedade privada. A ciência, seja ela
força produtiva ou mercadoria, é fator importante nas relações de produção existentes.
Além disso, a ciência pode ser força produtiva de destruição. A humanidade vivencia uma relação entre “matar
e morrer” gerada pelas armas que a ciência disponibiliza por meio de um complexo industrial militar cada vez
mais crescente. A ciência, como força produtiva dessa natureza torna-se, na realidade, financiadora da
destruição. Nessas circunstâncias, inexiste a neutralidade da ciência porque a ideologia atua com força material
ou como formadora do imaginário da dominação.

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 50-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

A forma mais perversa de sedimentação da ciência como força produtiva destrutiva consolida-se, em grande
parte, nas racionalizações que geram o pragmatismo ou a universidade burocrática. Essa burocracia é
construída para a manutenção dos privilégios da elite intelectual que a ocupa. A universidade como local de
produção da ciência apresenta-se como a consolidação dos interesses do capital, uma vez que aprisiona e
transforma a maior parte da produção científica em mercadoria ou força produtiva.
Pelas contradições que a sociedade capitalista apresenta é possível viver sem saber e com poder, pois no
capitalismo, o que confere poder nem sempre é o domínio do saber científico. Da mesma forma, o inverso pode
ser verdadeiro: com saber e sem poder, o primeiro como consequência e o segundo como resultado. Assim, a
afirmação dogmática de que saber é poder não passa, em algumas situações, de um mito presente na sociedade.
O poder, conferido por determinados conhecimentos, ganha força e importância de acordo com os interesses
defendidos ou o grupo dominante.
Algumas reflexões precisam ser feitas com base em afirmações de Tragtenberg:
quando passaremos a nos preocupar de fato “com as finalidades sociais do conhecimento”, evitando,
assim, “a „delinquência acadêmica‟ ou a „traição do intelectual‟?” (TRAGTENBERG, 2004, p.16);
uma nova organização do trabalho, diferente da existente no modo de produção capitalista, é suficiente
para “elevar” a ciência a uma nova ética centrada nos interesses dos indivíduos e seus coletivos, ao
invés dos interesses das elites dominantes?
Nem toda pesquisa ou reflexão precisa acabar com certezas ou afirmações. A grande propriedade do saber,
incluindo a ciência em todas as épocas, é a capacidade de elaborar suas questões, de levantar as problemáticas
que permeiam a sociedade, de questionar a própria razão vigente, embora, nem sempre, chegue a respostas
definitivas. Dessa forma, quais questões o leitor pode criar após esta leitura?

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 51-52


José Henrique de Faria
(Sem) saber e (com) poder nos estudos organizacionais Francis Kanashiro Meneghetti

Referências

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.

BACON, Francis. Novum organum. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores).

GORZ, André. O imaterial. São Paulo: Annablume, 2005.

GRAMSCI, Antonio. The formation of intellectuals. London: Lawrence and Wishart, 1975.

HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

______. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1997.

HORKHEIMER, Max. Teoría crítica I – Max Horkheimer. São Paulo: Perspectiva; Editora da USP, 1990.

______. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.

MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2001.

_____. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.

PASSETTI, Edson. Maurício Tragtenberg, um socialista heterodoxo. In: ACCIOLY; SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício
Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática 1974.

______. A nova eugenia. Folha de São Paulo, p. 6, 23 dez. 1984.

______. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

UHLE, Agueda Bernardete Bittencourt . Tragtenberg e a educação. In: ACCIOLY; SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício
Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2003.

1
O tipo ideal weberiano é um instrumento de análise sociológica para a compreensão da realidade social. É um mecanismo de criação de
tipologias puras, supostamente destituídas de “valores avaliativos”. Seu distanciamento da realidade é tido como fundamental para a
sua compreensão.
2
Tragtenberg (1984).
3
“Na realidade, o que os subdesenvolvidos aprendem a respeitar na ideia de ciência são os conceitos abstratos, as realizações
experimentais que não podem ser reproduzidas por eles e que não têm relação com sua cultura. Ficam em estado de impotência
intelectual em relação à Metrópole, que capta os melhores estudantes para o doutorado, na sua maioria, oriundos da América Latina”.
(TRAGTENBERG, 2004, p.33)

CADERNOS EBAPE. BR, v. 8, nº 1, artigo 3, Rio de Janeiro, Mar. 2010 p. 52-52


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da
arte
Critical theory in Brazil's organizational studies: the state of art

José Henrique de Faria1

Toda a produção acadêmica é, necessariamente, o resultado de uma produção coletiva. O autor expressa, de
forma organizada e sistematizada, a partir de reflexões e pesquisas, aquilo que foi produzido social e
historicamente. Assim, ao escrever na primeira pessoa do singular, procedimento que não costumo adotar, não
pretendo negar esse fato, mas apenas assumir inteiramente a responsabilidade pelo texto; ou seja, falo por mim.
O que escreverei aqui é a minha avaliação, fruto de mais de 30 anos de estudos e pesquisas nessa área. Por isso,
ainda que muitas das concepções sejam originárias de outras reflexões, apenas em casos extremamente
necessários, quando a autoria da concepção não for de domínio público, farei referência à bibliografia.
Vou procurar argumentar, neste artigo, que a teoria crítica, entendida como marxismo ocidental, somente agora
tem, no Brasil, na área de estudos organizacionais, uma produção sistemática relevante. Ao contrário das
crenças fixadas na academia, no Brasil, não houve nessa área de estudos uma linha de pesquisa com substância
histórica. Isso não será feito de forma exaustiva, primeiro de tudo, porque não é o propósito dessas reflexões e,
em segundo lugar, porque muitas das questões que serão aqui abordadas já foram tratadas em outros textos.
Para facilitar minha exposição, procurarei explorar o tema a partir de quatro questões: Teoria Crítica; Teoria
Crítica em Estudos Organizacionais; Critical Management Studies; Análises Críticas em Estudos
Organizacionais. É importante considerar que as mesmas não esgotam o conjunto das abordagens necessárias
ao esclarecimento do tema do estado da arte da teoria crítica no Brasil, mas oferecem uma boa pista de
investigação e um proveitoso motivo para polêmicas, que espero possam ocorrer.

Esclarecimentos iniciais
Antes de apresentar as questões anunciadas, acredito ser necessário explicitar, a título de esclarecimento, alguns
pontos que servem para fundamentar o desenvolvimento da argumentação que se segue. Em linhas gerais,
entendo que:
I. existe uma diferença substantiva entre (a) teoria crítica, segundo a tradição da Escola de
Frankfurt, (b) teoria crítica em estudos organizacionais (TCEO), que agrega outras dimensões à
teoria crítica frankfurtiana, (c) estudos gerenciais críticos, segundo os parâmetros do critical
management studies (CMS) e (d) análises críticas em estudos organizacionais (ACEO);
II. a teoria crítica frankfurtiana possui três gerações: a primeira, original, filiada ao marxismo,
formada por Pollock, Bloch, Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse e Fromm, entre outros; a

1
Pós-Doutorado em Labor Relations pel ILIR - University of Michigan e Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo-
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP. Professor Titular do Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário; Professor Titular Sênior do Programa de Pós Graduação em
Educação – PPGE (Mestrado e Doutorado) da UFPR; Pesquisador PQ do CNPq; Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e
Estudos Organizacionais. Endereço: Rua Itupava, 1.299 - Sala 103 - Hugo Lange – Curitiba- PR – Brasil – CEP: 80.040-000. E-mail:
jhfaria@gmail.com

www.ebape.fgv.br/cadernosebape CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

segunda, liderada por Habermas, que se afasta do marxismo; e a terceira, liderada por Axel
Honneth, que se dedica ao estudo da luta pelo reconhecimento na perspectiva crítica hegeliana e
habermasiana (inclusive, criticando essas perspectivas). Portanto, falar em teoria crítica
frankfurtiana implica identificar também sobre qual das três gerações se fala;
III. a teoria crítica frankfurtiana tem alcance social e é identificada como marxismo ocidental, ou
seja, não se vincula ao stalinismo, ao leninismo, ao maoismo e a outros desvios políticos
impetrados em nome do marxismo e que resultaram em regimes totalitários, em práticas de
autoritarismo, violência, centralismo burocrático e formação de oligarquias, entre outras;
IV. a teoria crítica em estudos organizacionais segue os pressupostos frankfurtianos, mas não se
esgota neles. Trata-se de uma teoria que se baseia na dimensão epistemológica do materialismo
histórico e no método dialético. Isso significa dizer que a TCEO utiliza-se, ao mesmo tempo, de
referenciais do marxismo, das análises frankfurtianas de primeira geração, dos estudos sobre
Estado, poder e classes sociais, da psicologia sócio-histórica, da sociologia clínica crítica (ou
psicossociologia crítica) e da psicanálise freudiana. A TCEO caracteriza-se por permitir um
amplo diálogo com outras teorias, assegurado sua vinculação à dimensão fundante do
materialismo histórico. Dada sua dimensão e alcance, bem como sua expressão no campo
empírico, tenho identificado, desde 2001, a TCEO como uma economia política do poder em
estudos organizacionais (EPPEO);
V. a linha de trabalho identificada por estudos críticos em gestão ou critical management studies,
por mais que seus proponentes insistam em referenciar reflexões marxistas, não tem qualquer
semelhança ou proximidade com a teoria crítica ou com a TCEO. Trata-se, apenas, de uma linha
de usuários eventuais de conceitos marxistas, aos quais faltam metodologia, epistemologia,
teoria e ontologia marxistas;
VI. a incorporação do pós-estruturalismo foucaultiano nas análises organizacionais, segundo uma
concepção arqueológica, por mais importante que seja (como de fato é), não tem relação com a
teoria crítica ou com a TCEO. A tentativa de fazer dos estudos foucaultianos elementos
constitutivos da teoria crítica ou da TCEO é um equívoco teórico e epistemológico, ainda que o
próprio Foucault, em suas últimas obras, tenha buscado certa aproximação com o marxismo;
VII. a produção acadêmica brasileira que mais se identifica com a teoria crítica na tradição da Escola
de Frankfurt é a realizada por Maurício Tragtenberg. Ele foi o precursor e, arrisco afirmar, o
fundador da teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil, o que se evidencia na publicação
de Burocracia e ideologia. Como a direção dada por Tragtenberg aos estudos na área das
organizações fixou-se nos referenciais weberianos, marxistas e anarquistas e não teve inspiração
em Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm ou em Habermas, pode-se dizer que Tragtenberg
traçou uma linha própria de pensamento e que a proximidade com a teoria crítica não fez dele
um intelectual frankfurtiano, mas um estudioso da burocracia, do poder e da dominação, em suas
diversas formas de manifestação, pela via do marxismo-anarquismo. É, portanto, com
Tragtenberg que foi estabelecida a TCEO como referencial nesse campo de estudos, no Brasil,
por meio de uma concepção original. Para diferenciar a teoria crítica da TCEO, segundo a
concepção fundada por Tragtenberg, é que, como já afirmei anteriormente, conceituei a TCEO
como uma EPPEO;
VIII. a produção acadêmica de Fernando Prestes Motta teve contatos importantes com a teoria crítica,
especialmente, com a TCEO. Muitas vezes, no entanto, afastou-se dela ao se aproximar dos
estudos sobre a cultura pela perspectiva de Schein e não pela de Walter Benjamin e por buscar
inspiração na autogestão proudhoniana (socialismo utópico), não na autogestão social ou no
socialismo democrático (socialismo científico). Tal afastamento igualmente decorre do fato de
procurar em Jung explicações que não estavam na agenda da concepção pulsional da teoria
crítica derivada de Freud (psicossociologia crítica) ou na psicologia social-histórica da
Vygotsky. Isso não significa que Motta não possa ser considerado um analista crítico. Ao
contrário, para ser justo com Fernando Motta, suas incursões na psicossociologia crítica, no pós-
estruturalismo de Foucault e nos estudos sobre simbolismo, imaginário e ideologia forneceram

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 510-515


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

uma base nova para a análise crítica em estudos organizacionais. Suas tentativas de buscar
explicações em outras dimensões teóricas e epistemológicas indicam tanto sua insatisfação com
o estado da arte das explicações, quanto sua ousadia em procurar alternativas de análise;
IX. a produção acadêmica de Guerreiro Ramos, ao contrário do que tem sido afirmado alhures, não
tem qualquer relação com a teoria crítica. Guerreiro Ramos é um fenomenólogo crítico, não
marxista, não frankfurtiano;
X. na atualidade, a TCEO tem encontrado respaldo em algumas linhas de pesquisa, mas outras, que
se autodesignam como tributárias da teoria crítica, de fato, não o são, pois não seguem os
pressupostos da mesma. Especificamente, chamo a atenção para estudos fenomenológicos,
estruturalistas, pós-estruturalistas e da teoria da complexidade de Edgar Morin, entre outros. Não
me sinto à vontade para enquadrar esses estudos como teoria crítica quando se utiliza um critério
científico de classificação. Proponho, desse modo, que esses estudos sejam considerados uma
quarta linha, à qual chamarei de análises críticas em estudos organizacionais.
As quatro grandes áreas dos estudos organizacionais críticos

Com base nas observações precedentes, proponho, esquematicamente, uma organização no campo de estudos
organizacionais críticos em quatro grandes áreas:

I. teoria crítica frankfurtiana − que se baseia em estudos sociais e segue as orientações teóricas e
filosóficas da Escola de Frankfurt, independentemente de qual seja a geração a que se filia;
II. teoria crítica em estudos organizacionais − que se baseia no marxismo em seus estudos e
pesquisas no campo das organizações, com ênfase na centralidade do trabalho (processo e
relações de trabalho, divisão do trabalho e gestão do processo de trabalho), contemplando, além
dos estudos frankfurtianos, outras dimensões, tais como a psicologia sócio-histórica, a
psicossociologia crítica, as formas democráticas de gestão (autogestão social e organizações
coletivistas de trabalho), as análises sobre Estado, poder e classes sociais etc., área essa à qual
denomino “economia política do poder em estudos organizacionais”;
III. critical management studies − que se baseia em estudos críticos em gestão na perspectiva da
gestão, cuja referência encontra-se nos estudos conduzidos principalmente por Alvesson, Deetz e
Willmott;
IV. análise crítica em estudos organizacionais − que se baseia em estudos segundo novas dimensões,
como o pós-estruturalismo de Foucault, o pós-modernismo de Lyotard, as análises institucionais
de Lourau e Lapassade, o simbolismo de Bourdieu, o imaginário de Castoriadis e a teoria da
complexidade de Morin, entre outros. São análises críticas não marxistas e não frankfurtianas
que estudam as organizações, do ponto de vista das relações de poder.
Adiante, a figura 1 resume o esquema proposto.
Vou me ocupar, a seguir, da teoria crítica frankfurtiana e sua relação com a TCEO e as ACEO, pois os CMS
estão bem definidos na literatura e sobre eles já disse o que havia para dizer. De fato, indicadas essas quatro
áreas − que constituem, em minha concepção, a matriz do que se pode chamar genericamente de estudos
organizacionais críticos −, convém analisar os fundamentos da teoria crítica e sua apropriação pela área.
Começo lembrando que no campo dos estudos organizacionais, a teoria crítica ainda tem sido identificada
como simples crítica teórica ou como abordagem crítica que articula uma crítica à teoria das organizações,
embora permaneça prisioneira dos fundamentos epistêmicos desta. Essa inadequação tem permitido classificar
como teoria crítica textos que não se enquadram em seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, o que
sugere ser necessário demarcar o alcance dessa teoria nos estudos organizacionais, desvinculando-a da mera
crítica teórica e dos estudos críticos em gestão.

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 511-515


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

Figura 1
Áreas de estudos organizacionais críticos

Teoria Crítica Frankfurtiana

Teoria Crítica Estudos Critical


em Estudos Organizacionais Management
Organizacionais - Críticos Studies - CMS
TCEO

Análise Crítica em Estudos


Organizacionais - ACEO

Fonte: Elaborada pelo Autor

Horkheimer já sugeria encorajar a elaboração de uma teoria da sociedade em sua totalidade, que fosse
precisamente crítica e dialética, de forma a fazer emergir as contradições da sociedade capitalista. Desse modo,
caberia à teoria crítica, como indicou Adorno, investir contra as imagens deformadas da realidade que
desenvolvem a função de servir ao poder, não dando voz à realidade desordenada do capitalismo. Assim, ao
denunciar o eclipse da razão, Horkheimer afirmava que por detrás da pura lei econômica, da lei do mercado e
do lucro encontrava-se a pura lei do poder de uma minoria, baseada na posse dos instrumentos materiais de
produção, de forma que a tendência ao lucro acabava sendo o que sempre foi, ou seja, a tendência ao poder
social. No âmbito do estatismo de inspiração soviética, o lucro foi substituído pelo plano, mas as pessoas
continuaram objetos de uma administração centralizada e burocrática: tanto os controles sobre o lucro como os
controles sobre o plano geraram formas cada vez mais agudas de repressão. É nesse sentido que argumentei já
em 2001 que a teoria crítica se constituía não somente em uma teoria da economia, mas do poder: uma
economia política do poder. Aplicada à área das pesquisas em organizações, a teoria crítica constitui uma
economia política do poder em estudos organizacionais.

A teoria crítica e a economia política do poder em estudos organizacionais


No sentido anteriormente exposto, os estudos sobre a vida nas organizações que se apoiam na teoria crítica
devem investigar mais do que as racionalidades instrumentais, que as estratégias, que as funções, que as
instituições, que os comportamentos e que as políticas. Devem desvendar o mundo do poder e as formas de
controle econômico, jurídico-político, ideológico e psicossocial sobre o processo e a divisão do trabalho para se
sentirem autorizados a compreender as organizações e suas finalidades. A TCEO, na ótica da economia política
do poder, indica que a compreensão da vida nas organizações e sua dinâmica exigem a adoção de uma
epistemologia apoiada no materialismo histórico e de um esquema teórico-metodológico dialético capazes de
responder às questões que afetam a vida cotidiana dos sujeitos coletivos das mais variadas formas e que
valorizem esse sujeito coletivo mais do que as organizações para as quais vendem sua força de trabalho.
As organizações são, de fato, construções sociais e históricas que adquirem autonomia relativa em relação aos
sujeitos coletivos que a constituíram e que se consolidam como instâncias de mediação entre os interesses dos

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 512-515


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos,
sujeitos absolutos, entidades plenamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas construções
sociais dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas objetivas e subjetivas, manifestas e ocultas,
concretas e imaginárias, cabendo à TCEO a atribuição política de investigá-las além de seu aspecto
fenomênico. Como afirma Kosik, é preciso, mais do que a coisa, conhecer a estrutura da coisa.
O problema central de uma teoria crítica, portanto, consiste em esclarecer em que medida as instâncias obscuras
(que se operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e
manifestas (especialmente, as referentes ao regramento e às estruturas formais) dão conteúdo às configurações
do poder nas organizações do ponto de vista do sujeito coletivo do trabalho. É preciso revelar em que medida as
organizações definem seus mecanismos de poder e de controle sobre o processo e as relações de trabalho,
incorporando o que não pode ser dito, que se reproduz em seus porões, ao que é possível falar, ao que pode ser
manifesto às claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de racionalidades (de regras, objetivos,
políticas, processos produtivos, planos, estratégias etc.) e de (inter)subjetividades (símbolos, ritos, imaginários
e mitos), com seus paradoxos e contradições.
A TCEO não é completa e definitiva, mas precisa assumir seu compromisso histórico com a denúncia da
repressão, do controle e da exploração, baseada na convicção de que uma sociedade igualitária é a única
alternativa para que se estabeleçam os fundamentos da justiça, da liberdade e da democracia. Portanto, cabe à
TCEO desenvolver formulações que expliquem o real em sua forma e em sua substância, que permitam
compreender além do que pode ser visto e imediatamente entendido pela sociedade. A TCEO constitui-se,
assim, a partir das análises do materialismo histórico e do método dialético, para apreender os processos de
transformação que se operam no modo de produção para estabelecer as relações entre os sujeitos da ação e a
própria ação. Desse modo, TCEO não pode se contentar com as análises que se encerram no plano da
macrossociedade e tampouco com as que pretendem explicar o mundo a partir do sujeito individual (do
comportamento, da cognição, do conhecimento, da liderança e de outros atributos pessoais), reclamando a
construção de uma epistemologia que possa tratar de ambas as representações.
Por não servir aos interesses dominantes no campo teórico da análise organizacional, a TCEO tem sido
classificada como radical, em seu sentido pejorativo. Porém, ao examinar a ética e a moral da sociedade, ao
interrogar as práticas sociais, ao questionar as relações de poder, ao investigar as formas de controle social, ao
revelar a psicodinâmica do trabalho, ao trazer à tona a constituição do processo de trabalho sob o capital e as
formas de exploração aí encontradas, a TCEO é de fato radical, no sentido de que pretende ir à raiz dos
problemas, de que não se satisfaz com o que é dado pelas constatações resultantes das pesquisas, de que não lhe
basta compreender a forma sem o conteúdo e a aparência sem a essência. O pensamento radical é a busca
incessante das contradições sociais, em que a realidade aparente passa a ser questionada e torna-se objeto de
investigação.
Sem embargo, o que se deve buscar no estudo das organizações são as relações internas e externas de poder,
manifestas tanto em suas formas de controle e em sua ação mediadora de objetivos e desejos, quanto em sua
inserção dinâmica e contraditória na sociedade globalizada. As relações de poder têm como finalidade a posse
política, o domínio das estruturas organizadas da sociedade, daí a razão de se falar em uma economia política
do poder, pois se trata de compreender, ao mesmo tempo: (i) a interação entre o movimento da sociedade, do
ponto de vista do modo de produção, e do Estado capitalista contemporâneo e (ii) as lógicas internas da
dinâmica organizacional. Essa interação é necessariamente contraditória, paradoxal e, jamais, definitiva. A
análise deve estar fundamentada no entendimento das relações entre os sujeitos coletivos, seja no campo do
trabalho, da produção, da realização, do imaginário ou dos afetos, em seus aspectos objetivos e subjetivos; ou
seja, nas relações de poder.

A economia política do poder é, portanto, a forma que assume a teoria crítica, fundada no materialismo
histórico marxista, no método dialético e na interdisciplinaridade. No campo das organizações, a EPPEO leva
em conta tanto os movimentos internos e contraditórios destas (nos quais se contemplam as realidades
manifestas e ocultas, compartilhadas ou não pelos sujeitos), como suas interações com a totalidade social
(interações igualmente complexas e contraditórias), nas quais se contempla o sociometabolismo do capital,
conforme conceitua István Mészáros. As organizações, como unidades de análise, não podem ser tomadas

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 513-515


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

independentemente, tanto do lugar que ocupam nas relações de produção e na ampla superestrutura social,
quanto das relações objetivas e subjetivas que se estabelecem no interior da mesma.
Entretanto, é necessário colocar com clareza que há uma importante diferença epistemológica, com
consequências teóricas e metodológicas, entre estudar as organizações a partir das suas interações contraditórias
com a totalidade social e estudá-las a partir dos efeitos do ambiente externo sobre a realidade interna e dos
efeitos da realidade interna sobre o ambiente. Para a EPPEO, não se trata de estudar os efeitos, sejam quais
forem as direções destes, mas as relações, e não apenas as relações presentes nas estruturas e que as constituem,
mas as relações dialéticas: essa diferença marca profundamente o campo da TCEO/EPPEO e da teoria crítica
frankfurtiana, distinguindo-as tanto das ACEO − que se fundamentam no estruturalismo, no pós-estruturalismo
(inclusive, o foucaultiano), na fenomenologia crítica, no pós-modernismo, no estruturacionismo e na teoria da
complexidade −, quanto dos estudos críticos em gestão (CMS), que se fundamentam na teoria institucional
clássica, no funcionalismo, no positivismo, na teoria dos sistemas, na metafísica (neo)kantiana, no pragmatismo
e no empirismo, ainda que sejam usuários de conceitos neomarxistas e foucaultianos, entre outros.

A teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte

No Brasil, a adoção da teoria crítica em estudos organizacionais foi magistralmente realizada por Maurício
Tragtenberg no início dos anos 1970. Em Burocracia e ideologia, seu mais conhecido trabalho, Tragtenberg
ousa um pensamento interdisciplinar e lança as bases de uma verdadeira transformação nesse campo de
estudos, no qual se evidencia um fundamento de importância nuclear: o que marca a TCEO é a coerência
epistemológica.
A questão posta por Maurício Tragtenberg é a do poder e, assim, a da recusa a toda a forma de dominação, a
crítica à violência, a denúncia ao burocratismo, o apontamento à ideologia gerencialista que predomina na
chamada teoria geral da administração e, ao mesmo tempo, a defesa intransigente da democracia e do projeto
libertário. São os estudos de Tragtenberg que inspiraram Fernando Prestes Motta, Fernando Coutinho Garcia e
a mim, como o próprio Maurício indica em seu memorial, a levar adiante essas investigações no campo
organizacional.
Cabe à teoria crítica questionar a si mesma, fazer uma teoria crítica de si e se perguntar: quais suas
perspectivas diante do capitalismo contemporâneo do terceiro milênio, em que as relações de poder se tornam
cada vez mais sofisticadas, em que o imperialismo se autointitula globalização, em que as condições de vida da
classe trabalhadora se deterioram diante de uma reestruturação produtiva do capitalismo, em que profetas
recém-saídos do forno anunciam a impossibilidade concreta de um socialismo democrático, em que novos
filósofos desacreditam das grandes teorias e se contentam com explicações particulares sem projetos?
Os que postulam por transformações radicais sempre constituíram uma minoria no mundo dos estudos
organizacionais, mas nem por isso deixaram de produzir suas críticas. Atualmente, no Brasil, os pesquisadores
ligados à teoria crítica propriamente dita, à teoria crítica em estudos organizacionais e às análises críticas em
estudos organizacionais já formam um grupo bem mais consistente do que o que havia nas décadas de 1970 e
1980, quando Tragtenberg dá impulso a essa área. Não se pode dizer que seus componentes têm a mesma
orientação teórica, mas possuem grande proximidade. Refiro-me, apenas a título de ilustração, aos grupos
atuantes nas universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Santa Catarina (UFSC), do Paraná
(UFPR), de Minas Gerais (UFMG), do Espírito Santo (UFES) e de Pernambuco (UFPE), na Universidade de
Brasília (UnB) e na FGV (São Paulo e Rio de Janeiro), entre outras instituições de ensino. Apesar da existência
desses grupos e do fato dos pesquisadores que os compõem terem algum grau de proximidade de interesses,
não existe uma rede acadêmica de teoria e análises críticas no Brasil, o que promove a contenção dos avanços
nessa área de investigação. O estabelecimento de uma rede acadêmica de teoria e análises críticas é, na minha
avaliação, necessária e urgente.
Ao mesmo tempo, entendo que a linha dos critical management studies constitui-se como a crítica não crítica
de estudos críticos. Trata-se de uma abordagem na qual o papel da crítica não tem um caráter revolucionário,
mas reformador. Não estou, com isso, pretendendo significar que esses estudos sejam inúteis, inadequados,
inapropriados etc. Apenas, não considero essa linha parte da teoria crítica ou das análises críticas, porque não

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 514-515


Teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil: o estado da arte José Henrique de Faria

partilha de seus fundamentos. Os CMS têm seu lugar no campo organizacional, têm seguidores e adeptos de
renome e apresentam interessantes contribuições. Entretanto por uma questão de coerência, não se pode
considerá-los vinculados à teoria crítica ou às análises críticas.
Procurei, nessas reflexões, explicitar minha avaliação quanto ao estado da arte da teoria crítica no Brasil na área
de estudos organizacionais. Para tanto, procurei distinguir as várias formas que assumem as vertentes da teoria
crítica e, em seguida, propus um esquema no qual classifico os estudos organizacionais críticos em quatro
grandes áreas: (i) teoria crítica, segundo a tradição da Escola de Frankfurt; (ii) teoria crítica em estudos
organizacionais; (iii) critical management studies ou estudos gerenciais críticos; e (iv) análises críticas em
estudos organizacionais. As duas primeiras áreas constituem a teoria crítica, e embora não comunguem da
mesma linha teórica e epistemológica que a das análises críticas, entendo que possam dialogar. Os CMS,
contudo, pertencem à outra face da matriz dos estudos organizacionais críticos.

Embora seja uma área ainda incipiente, a mesma vem aparecendo com cada vez mais força e consistência nos
Enanpads e nos Eneos. Novos pesquisadores, mestrandos, mestres, doutorandos e recém-doutores estão se
incorporando à área, graças ao esforço dos orientadores nos programas de mestrado e doutorado e aos seus
projetos de pesquisa, o que cria uma expectativa de que, embora em minoria, os grupos atuantes em teoria e
análises críticas continuarão resistindo e apostando na transformação do status quo. Daí que a formação de uma
rede acadêmica de teoria e análises críticas, composta por pesquisadores e programas, torna-se estrategicamente
fundamental para o fortalecimento e a continuidade da área.

CADERNOS EBAPE. BR, v. 7, nº 3, artigo 8, Rio de Janeiro, Set. 2009 p. 515-515


GÊNESE E ESTRUTURAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO BUROCRÁTICA NA OBRA DE
MAURÍCIO TRAGTENBERG

GENESIS AND STRUCTURING OF THE BUREAUCRATIC ORGANIZATION IN


MAURICIO TRAGTENBERG'S WORK

JOSÉ HENRIQUE DE FARIA


Universidade federal do Paraná
jhfaria@gmail.com
FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI
Universidade Positivo
fkmeneghetti@gmail.com

Resumo: Este artigo procura compreender as “origens” e os “fundamentos” que constituem a


concepção de organização burocrática em Maurício Tragtenberg. O objetivo geral é analisar a
gênese e a estruturação da organização burocrática a partir da obra de Tragtenberg. Os
objetivos específicos são: Analisar a organização técnica do trabalho, sobretudo a divisão do
trabalho e a especialização no taylorismo-fordismo. Analisar a organização política do
trabalho, na perspectiva de organizações como o sindicato, os partidos políticos, as comissões
de fábricas. Examinar o Estado e a burocracia como fator de dominação. Entende-se que a
gênese da organização burocrática está na divisão técnica e social do trabalho. A estruturação
da organização burocrática é o resultado da divisão técnica do trabalho que se estabelece na
produção e que por meio de um processo de racionalização específica (racionalidade
instrumental) cria uma burocracia para perpetuar as relações de dominação e poder que se
originam exatamente da divisão social do trabalho.
Palavras-Chave: Teoria Crítica; Economia Política do Poder; Burocracia; Organizações
Burocráticas; Organização e Relações de Trabalho; Maurício Tragtenberg.

Abstract: This article seeks to understand the "origins" and "fundamentals" that make up the
design of bureaucratic organization in Mauricio Tragtenberg’s studies. Thus, the overall

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 167


objective is to analyze the genesis and structure of bureaucratic organization. The specific
objectives are: to analyze the technical organization of work, especially the division of labor
and specialization in the context of Taylorism-Fordism. To analyze the political organization
of work, from the perspective of organizations such as unions, political parties, the factory
committees. To analyze the State and the bureaucracy as dominations factor. We understand
that the genesis of the bureaucratic organization is at the technical division and the division of
labor. The structure of bureaucratic organization is the result of the technical division of labor
that takes place in production and, through a streamlined process specifically (instrumental
rationality) creates a bureaucracy to perpetuate relations of domination and power of which
originate exactly from social division of labor.
Key-words: Critical Theory; Political Economy of Power; Bureaucracy; Bureaucratic
Organizations; Organization an Labor Relations; Maurício Tragtenberg.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 168


Introdução

Muitos são os estudos que utilizam como referência as contribuições de Maurício

Tragtenberg sobre a burocracia e seu entendimento sobre as organizações burocráticas.

Estudado em diversas áreas do conhecimento – administração, ciências sociais, educação, etc.

– é possível afirmar que se criou um “senso comum” relacionado à sua concepção de

burocracia e de Estado. Entretanto, não há um estudo específico que procura compreender as

“origens” e os “fundamentos” que constituem a concepção de organização burocrática na sua

obra, sobretudo do ponto de vista do trabalho como condição ontológica de constituição da

sociedade. Assim, o problema que norteia este trabalho é: Qual a gênese e de que forma se

estrutura a organização burocrática, segundo a obra de Maurício Tragtenberg? Desta forma, o

objetivo geral é analisar a gênese e a estruturação da organização burocrática a partir da obra

de Maurício Tragtenberg. Para tanto, os objetivos específicos são: (i) Analisar a organização

técnica do trabalho, sobretudo a divisão do trabalho e a especialização no contexto do

taylorismo-fordismo. (ii) Analisar a organização política do trabalho, na perspectiva de

organizações como o sindicato, os partidos políticos, as comissões de fábricas e o Estado e a

relações entre elas.

Este é um ensaio-teórico, de abordagem crítica. São analisadas as obras bibliográficas

de Tragtenberg (constantes das referências) e sua produção nas colunas dos jornais –

referenciadas como nota de fim -, direcionadas à classe trabalhadora. As análises são

realizadas com base em leituras de textos que atendem às categorias da pesquisa. As citações

de Tragtenberg disponíveis no trabalho são as mais representativas e significativas em relação

à categoria analisada ou ao tema discutido. Dessa forma, as citações representam, na sua

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 169


grande maioria, a idéia dominante de Tragtenberg em relação à temática refletida no contexto

específico.

Organização Técnica do Trabalho

A Divisão do Trabalho no Taylorismo-Fordismo

A concepção de divisão do trabalho, em Tragtenberg, acompanha a teoria de Marx

sobre o tema. Em Marx (2001, p. 26-27), “a divisão do trabalho só se torna efetivamente

divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho

material e o trabalho intelectual. A partir desse momento, a consciência pode de fato imaginar

que é algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo,

sem representar algo real.” De fato, a divisão entre trabalho material e trabalho intelectual está

no centro da discussão do trabalho, fato que se manifesta, também, na classe dominante,

separando os indivíduos em duas categorias. “Uns, serão os pensadores dessa classe (os

ideólogos ativos, que teorizam e fazem da elaboração da ilusão que essa classe tem de si

mesma sua substância principal), ao passo que os outros terão uma atitude mais passiva e

mais receptiva em face desses pensamentos e dessas ilusões, porque eles são na realidade os

membros ativos dessa classe e têm menos tempo para alimentar ilusões sobre suas próprias

pessoas.” (MARX, 2001, p. 49)

No contexto da indústria moderna, Braverman (1981, p.70) afirma que a “distribuição

das tarefas, ofícios ou especialidades da produção” difere de todas as épocas anteriores,

sobretudo, porque nenhuma forma de produção subdividiu antes o trabalho de forma tão

sistemática e em operações tão limitadas.

Na educação, a divisão do trabalho sofre os mesmos efeitos da indústria. Apesar de

certa resistência e das pequenas diferenças, a educação subordinou-se à forma dominante de

produção. Assim como na indústria, procedeu à divisão técnica do trabalho por meio do

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 170


parcelamento das tarefas de execução e produção na educação, promovendo uma separação

entre trabalho “manual” ou de reprodução, e trabalho “mental” ou de criação. Nas aulas

expositivas, por exemplo, o professor que reproduz o conhecimento gerado por outro,

exigindo dos seus alunos a absorção literal dos conhecimentos de terceiros, na realidade está

executando o equivalente ao mesmo trabalho manual realizado pelos operários. A diferença

reside no fato de que as “mãos” dos professores são suas falas repetitivas, aula após aula. Seus

instrumentos de trabalho não são as ferramentas físicas, mas os manuais pré-formatados

disponíveis nas prateleiras da fábrica de ensino. Nada muda quanto à natureza intrínseca da

atividade, pois o conhecimento reproduzido tem o mesmo sentido que as máquinas têm para

os operários.

O trabalho mental, nesses contextos da educação, é exercido, em muitas situações,

pelos professores pesquisadores ou que realizam projetos de extensão transformadora. É

nestas situações que se dá a produção do conhecimento. Os professores executam um trabalho

mental porque são os criadores das teorias, dos conceitos e dos conhecimentos que asseguram

a produção da educação. Entretanto, é exatamente aí onde se produz a transformação que se

produz também a ideologia dominante, em uma dialética da hegemonia e da contra-

hegemonia. A relação entre o professor da atividade manual e o da atividade mental exprime a

divisão do trabalho na educação na atualidade, a qual expressa, igualmente, uma dependência

daquele para com este, à medida que este produz o que aquele reproduz. De fato, essa

dependência faz com que “os próprios indivíduos sejam completamente subordinados à

divisão do trabalho e, por isso mesmo, colocados em dependência uns dos outros”. (MARX,

2001, p. 80)

Neste mesmo sentido é preciso considerar a divisão social do trabalho. Em Marx

(2001), a divisão social do trabalho é “a totalidade das formas heterogêneas de trabalho útil,

que diferem em ordem, gênero, espécie e variedade”. A distinção entre a divisão social do

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 171


trabalho e a divisão técnica do trabalho é indicada por Braverman (1981, p. 72-73): “A

divisão social do trabalho é aparentemente inerente característica do trabalho humano tão logo

ele se converte em trabalho social, isto é, trabalho executado na sociedade e através dela.

Muito contrariamente a essa divisão geral ou social do trabalho é a divisão do trabalho

pormenor, a divisão manufatureira do trabalho. Essa é o parcelamento dos processos

implicados na feitura do produto em numerosas operações executadas por diferentes

trabalhadores”.

A divisão social do trabalho subdivide a sociedade de uma forma geral, a divisão

técnica do trabalho, por meio do parcelamento das atividades, faz do homem um ser alienado.

Enquanto a divisão técnica do trabalho é o gérmen das diferenças, a divisão social é sua

conseqüência, ou seja, enquanto a primeira é a ação que leva as diferenças sociais, a segunda

é sua manifestação. A divisão do trabalho implica uma separação entre o esforço produtivo e

as satisfações desfrutadas na produção, a qual se reflete no duplo caráter de toda mercadoria.

É a partir destas bases que Tragtenberg desenvolve seus argumentos. Na sua obra,

tanto nos escritos considerados acadêmicos como na sua militância política na coluna “No

Batente”, a compreensão da divisão do trabalho como fenômeno originário das diferenças

sociais é uma realidade consistente. É importante salientar, ainda, que, para Tragtenberg, a

divisão do trabalho no contexto atual ganharia novas configurações, sobretudo pela

complexidade das organizações em sua materialidade histórica. Por isso, “a grande divisão de

trabalho entre os que pensam e os que executam se realiza na grande empresa. Aqueles fixam

o progresso da produção, descrevem os cargos, fixam funções, estudam métodos de

administração e normas de trabalho; criam as condições econômicas ao surgimento do

taylorismo. (TRAGTENBERG, 1974, p. 71)

A relação entre divisão do trabalho e burocracia é direta e a segunda é conseqüência

da variedade, complexidade e especialidade que a divisão técnica do trabalho vem atingindo.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 172


A separação entre os que pensam e os que executam é cada vez maior. Para organizar todas

essas transformações, o planejamento centralizado, hieráquico, impositivo, na qualidade de

uma das quatro funções essenciais da administração, é a técnica de racionalização que garante

a continuidade organizativa da crescente divisão técnica do trabalho. Para afiançar

parcelamentos maiores, as incorporações tecnológicas devem propiciar uma especialização

crescente. Com a harmonização necessária causada pela divisão entre os que “pensam” e os

que “executam”, o planejamento ganha importância nas configurações atuais de organização

da produção. Esse fato é identificado no modelo toyotista de produção, em que o

planejamento chega à menor unidade produtiva, à ilha ou célula de produção (FARIA, 2004.

Vol. 2). Ainda que “descentralizado” operacionalmente, esse tipo de planejamento não

resolve o problema originário do parcelamento do trabalho, apenas o ameniza quanto à

realização da tarefa, porque a separação entre os que “pensam” e “executam” ganha nova

conotação. Instados a planejar suas atividades diretas, porém segundo parâmetros, metas e

procedimentos pré-definidos, os operários permanecem alheios e afastados das decisões

realmente importantes.

As críticas de Tragtenberg são sempre radicais e direcionadas aos aprimoramentos que

permitiram com que a divisão do trabalho se reconfigurasse na atualidade. Os

aperfeiçoamentos da gestão (como forma de harmonização entre a divisão técnica do trabalho,

a burocracia instalada e o planejamento; como técnica para garantir a antecipação de possíveis

problemas internos e instrumento de adaptação da organização em relação às mudanças

externas) para além das ações diretas da produção, são criticados por Tragtenberg de forma

consistente e pertinente, conforme demonstra o exemplo:

O empresariado, pelos departamentos de recursos humanos,

procura impor um dos mais arrojados tipos de escravidão.

Cansado de explorar o corpo produtivo do operário, volta-se

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 173


para a exploração da mente produtiva da mão-de-obra, a

baixíssimo custo, manejando a teoria da motivação. No Rio,

uma empresa chegou a formar os Escoteiros da Qualidade,

uniformizados com roupas de cor diferente do operário comum,

que se sentem superiores à média e denunciam à direção o que

lhes parece uma falha. Noutra, o pessoal dos CCQs usa

medalhas. Quem se nega a participar é demitido. Em troca do

aumento da produtividade, elogios. O trabalhador no Brasil em

troca desse esforço produtivo ganha medalhas, chaveiros, bonés,

distintivos, participa de disputa de taças1.

A postura atenta em relação aos aperfeiçoamentos dos mecanismos de exploração e

sua denúncia para dirigida a quem estava diretamente no processo (os operários) é uma

constante em Tragtenberg, que recorrentemente expõe o conteúdo das idéias de harmonização

das relações entre capital e trabalho (SILVA, 2001, p. 209). Entre as formas de gestão, o

taylorismo é avaliado minuciosamente, sobretudo pela sua presença no contexto em que se

dedicou à escrita para a comunidade operária. A compreensão minuciosa do taylorismo leva

Tragtenberg a insistir na tese de que a origem das desigualdades e dos grandes problemas no

sistema capitalista está na divisão do trabalho que este instaurou. Segundo Tragtenberg (1974,

p. 74), no taylorismo “cada operação é decomposta em tempos elementares; auxiliado pelo

cronômetro. Taylor determina o tempo médio para cada elemento de base do trabalho,

agregando os tempos elementares e mortos, para conseguir o tempo total do trabalho, com a

finalidade messiânica de evitar o maior dos pecados – a perda de tempo”. As operações

decompostas retiram dos trabalhadores a compreensão do todo, além de fragmentar a

consciência dos que estão inseridos na feitura do trabalho. O taylorismo implica, ainda, na

proliferação do trabalho desqualificado. A estrutura burocrática que se ergue da divisão


1
TRAGTENBERG, M. Ainda sobre o controle da qualidade total (2). São Paulo: Folha de São Paulo, 28/7/1982.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 174


crescente do trabalho, assegura o controle do processo produtivo na administração cada vez

mais profissionalizada, além de garantir obediência às ordens (TRAGTENBERG, 1974, p.

194) diluídas nas organizações complexas por meio da consolidação do discurso do

profissionalismo ou da valorização da impessoalidade frente à importância sempre maior da

organização diante do indivíduo.

Assim, continua Tragtenberg, a “racionalização taylorista situa-se fora do homem; é a

razão do homem como agente das relações, tendendo a identificar a natureza humana com a

força de trabalho simples, onde se dá o processo de valorização do capital pelo trabalho [em

que] o operário não utiliza os meios de produção. São estes que o utilizam. O taylorismo

aparece como ideologia da reprodução do trabalho simples, da acumulação primitiva do

capitalismo industrial, onde a ética da classe dominante surge como a ética da eficiência, que

ela traduz.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 194). A divisão do trabalho, por meio da separação

entre trabalho manual e trabalho intelectual, define os que fazem e os que pensam. Todas as

implicações ideológicas (morais, culturais, políticas e demais) são sedimentadas por meio de

uma burocracia erigida para garantir a separação e a distinção entre os que executam e os que

decidem. Por isso é que “as pessoas alienam-se nos papéis e estes se alienam no sistema

burocrático.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 196).

O surgimento do taylorismo e seu correspondente na

administração geral, o fayolismo, trazem para o corpo produtivo

da empresa a separação das funções de direção e de execução,

de cérebro e mão, dando-se aí a susbtituição do capitalismo

liberal pelos monopólios. No taylorismo, as mãos devem se

sujeitar à descrição de cargos e às normas de desempenho

prescritas pelo cérebro alojado no escritório de métodos. O

taylorismo para Tragtenberg não representa a racionalização do

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 175


processo de trabalho, mas sua intensificação. Para tal tarefa, não

seria necessário um trabalhador qualificado, mas disciplinado e

obediente, para o qual seria adequado um administrador

monocrático. (FARIA, 2009)

Em Tragtenberg, a compreensão dos mecanismos de controle e das conseqüências da

divisão do trabalho possibilita sua convicção de que a educação, nas suas diversas formas de

aprendizagem, não constitui uma dimensão separada das demais. Pelo contrário, tais

mecanismos indicam que a educação não é um caso à parte no tocante às conseqüências da

divisão do trabalho no sistema de produção capitalista. Para Tragtenberg, a escola é a própria

fábrica com todos os seus problemas e deficiências. Todavia, essa semelhança entre a fábrica

e a escola não é uma relação funcionalizada ou de simples causa e efeito, dentro da

perspectiva de que a educação e as organizações relacionadas a ela expressam um

microcosmo do que ocorre na sociedade. Essa idéia é ingênua e contraditória. Embora não se

refira às teses de Bourdieu e Passeron (1976) e nem de Althusser (1980), Tragtenberg

entendia que a escola é uma organização essencialmente de reprodução e produção da

ideologia dominante. Sua perspectiva difere destes pensadores, pois para Tragtenberg mesmo

o pouco espaço de resistência se transforma em um elemento de confirmação da regra da

tendência totalitária, por meio de exceções que, quantitativamente, são inexpressivas em

relação ao todo.

De fato, a relação entre o universal e o particular apresenta-se de forma bastante

evidente também na educação. A escola é a fábrica, cujo produto – a educação formal – pelos

operários professores segue a mesma lógica da divisão do trabalho da fábrica tradicional. O

taylorismo, com todas as suas características, apresenta-se como o modelo a ser seguido.

Apesar dessa semelhança, a educação formal tem outro papel, também alinhado com a

necessidade da formação ideológica dos trabalhadores. A “introdução da técnica e a

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 176


ampliação da divisão do trabalho, com o desenvolvimento do capitalismo, levam à

necessidade da universalização do saber ler, escrever e contar. A educação já não constitui

ocupação ociosa e sim uma fábrica de homens utilizáveis2.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 46)

A preocupação da educação é formar indivíduos cada vez mais aptos a se adaptarem

ao local de trabalho, sobretudo imbuídos da responsabilidade de alterar seu comportamento

em função das mudanças sociais ou organizacionais. O saber ler, escrever e contar é, portanto,

um saber que se constitui como um meio, ou seja, um instrumento que viabiliza a adaptação

dos trabalhadores às regras definidas pela organização capitalista e dentro de uma ideologia

do sistema de capital que precisa ser seguida. Em algumas situações, “não interessam, pelo

menos nos países industrialmente desenvolvidos, operários embrutecidos, mas seres

conscientes de sua responsabilidade na empresa e perante a sociedade global”.

(TRAGTENBERG, 2004, p. 46). É a “consciência da adaptabilidade”, ou seja, aquisição de

habilidades e competências que transformam o trabalhador em “funcionário domesticado”.

Tanto no taylorismo como no toyotismo, em graus e formas diferentes, “a qualificação para o

trabalho passa a ser controlada por este [o capital]. Na medida em que o capital detém o

conhecimento, ele funda uma distribuição diferencial de saber que legitima a existente na

esfera do poder. Constituindo-se em qualificações genéricas, a força de trabalho pode ser

formada fora do processo produtivo: na escola.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 78)

A escola, assim, é a organização que reforça a separação entre o trabalho manual e o

trabalho intelectual. Sua constituição pedagógica está muito mais voltada para a “preparação”

ideológica do que para o aprendizado do trabalho propriamente dito. No ensino superior, por

exemplo, o discurso frequente de que a universidade é o local da teoria, enquanto a empresa é

o local da prática, é uma constante. A teoria da administração que se ensina nos cursos da área

2
O taylorismo tem a finalidade de eliminar o poder de decisão do operário, transformá-lo numa máquina. A
organização moderna é a instituição em que se realiza a relação de produção que constitui a característica de
todo o sistema social, é o mecanismo de exploração e se rege pela coerção e manipulação. A substância da
organização não é um conjunto funcional, mas sim a exploração, o boicote e a coerção. (TRAGTENBERG,
2004, p. 46)

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 177


de negócios é uma ideologia (TRAGTENBERG, 1980)3. Adaptação às mudanças,

relacionamento interpessoal, liderança, motivação, empregabilidade, comprometimento, entre

outros, são jargões da moda. Os alunos que não os internalizam terão dificuldades para

encontrar um trabalho ou para se adaptar a uma organização empresarial. Os cursos da área de

negócios, portanto, funcionam como um laboratório de “explorados felizes”.

Conforme as idéias de Tragtenberg, todo esse esquema é estruturado por um

taylorismo intelectual, a divisão do conhecimento em

compartimentos estanques definidos pelos nomes das disciplinas

contidas nos Programas de Curso, [que] transforma o professor,

o trabalhador do ensino, num tipo social tão premido pela

divisão social do trabalho intelectual quanto o trabalhador do

vidro ou metalúrgico, premido pela divisão social do trabalho. A

situação do pesquisador, universitário ou não, não é basicamente

diferente. (ACCIOLY, 2001, p. 79)

A educação presenciada resulta de uma lógica de organização do trabalho presente em

todas as instâncias da produção. Além do caráter repressor da educação, ela se configura,

ainda, num instrumento de criação dos elementos que intensificam e justificam as diferenças

sociais. Se, por um lado, Tragtenberg analisa o avanço do taylorismo na educação, por outro,

fica evidente a necessidade de se conhecer como atualmente o toyotismo avança na educação.

Além disso, é necessário conhecer como a ideologia criada e reforçada pelas organizações

burocráticas da educação se materializa, de maneira a se tornar num dos principais

mecanismos de garantia da manutenção da ordem social.

3
Tragtenberg apresentou esta tese no início da década de 1970 (TRAGTENBERG, 1971), respondendo a uma
pergunta que ele mesmo se propos. A tese é de que a Teoria Geral da Administração é uma Ideologia. Esta tese
voltou a aparecer em outros momentos em outros textos de Tragtenberg (1974; 1980), mas sua originalidade
permaneceu inabalável. Embora possa parecer apenas uma entre tantas contribuições de Tragtenberg, a tese
serviu de orientação para muitas reflexões de diversos pesquisadores, às vezes como algo já dado, outras como
pressuposto.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 178


Portanto, o taylorismo é uma realidade na educação por questões estruturais do modo

de produção capitalista. “É impossível oportunidades educacionais iguais para todos, se as

oportunidades econômicas e sociais são desiguais. Por isso, mantida a exploração do trabalho

pelo capital, a chamada ‘igualdade de oportunidades’ garantida pela lei no acesso à educação

se reduz a uma farsa.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 200). A educação não define os

componentes estruturais do modo de produção capitalista, apenas cria as situações

conjunturais que questionam ou reforçam a estrutura economicamente dominante.

A reflexão feita por Tragtenberg acerca do taylorismo na educação o leva a considerar

que “a separação entre ‘fazer’ e ‘pensar’ se constitui numa das doenças que caracterizam a

delinquência acadêmica”. “A delinquência acadêmica caracteriza-se pela existência de

estruturas de ensino em que os meios (técnicas) se tornam fins, os fins formativos são

esquecidos”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 17-18). A educação, no sentido estrito de formação

para o trabalho, no taylorismo, é caracterizada por uma pedagogia prática, que exige muito

mais destrezas manuais do que mentais. É por isso que “o método Taylor é oriundo da

aplicação de um esquema empírico como método onde o conhecimento surge da evidência

sensível e não da abstração. O objeto do conhecimento é concreto. O método baseia-se em

dados singulares observáveis, isso limitando a possibilidade de generalização. Na essência,

presidindo tudo, está uma atitude descritiva onde o importante é o como e não o porquê da

ação.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 72)

Especialização do Trabalho

O taylorismo estabelece adaptações e ajustes aos cargos descritos pela administração,

que, somados à pedagogia prática e alienante do sistema de produção taylorista, exigem

adaptações dos trabalhadores aos parcelamentos das tarefas de tal ordem que as minúcias são

particulares daquela organização ou processo produtivo. Conforme afirma Tragtenberg (1974,

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 179


p. 72), “a especialização extrema do operário, no esquema de Taylor, torna supérflua sua

qualificação. A qualificação do operário é supérflua na medida em que a grande empresa

pressupõe alta divisão de trabalho que contribui para facilitar a tarefa e constante troca de

indivíduos, incorporando forças de trabalho ainda não desenvolvidas e ampliando o mercado

de trabalho.”

A qualificação no taylorismo, portanto, é de ordem instrumental. Na educação, tal

forma de ensino ganha a conotação de ensino técnico, ou de formação de tecnólogos ou,

ainda, de pós-médios. No ensino superior, proliferam os cursos de especialização com

vocação pragmática, embora os mesmos apresentem componentes curriculares ideológicos,

como ocorre nos cursos da área de gestão. A qualificação, portanto, resulta de um processo

de semiformação. O trabalhador prepara-se para atender às necessidades da função específica

do parcelamento do trabalho em que está inserido no processo produtivo. A especialização

está associada à necessidade da execução de uma tarefa no interior de uma divisão específica

do trabalho e não em função das necessidades específicas do trabalhador. Especializa-se para

atender à execução eficiente da atividade, independente de quem a execute, e não em função

do trabalhador que a realize.

O avanço incessante da divisão do trabalho tem como apanágio a “evolução do

trabalho especializado, como situação transitória entre o sistema profissional e o sistema

técnico de trabalho, a desvalorização progressiva do trabalho qualificado e a valorização da

percepção”. A “atenção, mais do que da habilidade profissional, [inaugura] a atual era pós-

industrial. O conjunto volta, na empresa, a ter prioridade sobre as partes: então, ela alcança

alto nível de automação. Efetua-se a mudança do operário produtivo para o de controle.”

(TRAGTENBERG, 1974, p. 80). A mudança do trabalhador “fazedor” para o de controle, em

função da especialização, ganha importância com os avanços da tecnologia. Atualmente, a

introdução de tecnologia física de base microeletrônica, aliada a tecnologias de gestão

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 180


voltadas ao controle das relações subjetivas no trabalho (FARIA, 2004. Vol. 3), que é

representada principalmente pelo modelo toyotista de produção – intensifica a necessidade de

qualificar os trabalhadores para saber controlar duas dimensões essenciais: o tempo e o espaço

(HARVEY, 1998).

Por isso, o toyotismo não deve ser qualificado como um modelo produtivo inovador,

mas apenas como uma forma específica de produção em que espaço e tempo são modificados

por uma necessidade eminente de organização frente à crise de acumulação do capital. A

rigor, o toyotismo não é senão um neo-taylorismo-fordismo de base microeletrônica (FARIA,

2004. Vol. 2)

Para Tragtenberg, a “infra-estrutura tecnológica acompanha a emergência do sistema

fabril, que consiste na reunião de um grande número de trabalhadores numa só fábrica,

disciplinando o operário.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 61). A tecnologia acompanha o

movimento de acumulação do capital. Com a acumulação flexível, o processo de

reestruturação produtiva exige da tecnologia novos mecanismos que atendam às necessidades

de formas diferenciadas de controle e indicadores de produtividade compatíveis com a nova

realidade. Assim, na terceira fase de industrialização, os ofícios tradicionais perdem espaço

para as novas formas de trabalho. “Os ofícios qualificados subdividem-se, especializam-se,

embora outros ofícios, que continuam qualificados, percam parte de seus valores. Os novos

ofícios estão na dependência de uma máquina que sofre aperfeiçoamento contínuo. A

maquinaria específica dessa nova divisão de trabalho é o trabalho coletivo, como continuidade

dos trabalhos parciais. A especialização impede que o aprendiz passe a ajudante e este a

companheiro; o trabalho como elemento da ascensão social implicará a educação permanente.

(TRAGTENBERG, 1974, p. 70)

A educação permanente, presente no discurso corrente das organizações capitalistas,

na realidade, decorre de uma necessidade e tem por objetivo criar condições de adaptações

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 181


rápidas dos trabalhadores em relação à tecnologia. Porém, há outro elemento essencial a

reforçar esse discurso ideológico: a adaptação comportamental. Trata-se de um investimento

nos aspectos subjetivos do sujeito trabalhador, pois o próprio comportamento colaborativo é

essencial para a acumulação. O trabalhador passa a ser um “colaborador”. No plano micro,

toda organização e “conhecimento” criados pelo capital, visando à manipulação psicológica,

tornam-se, elas mesmas, materialidade da ideologia, ou seja, elementos importantes e

indispensáveis, que se incorporam ao modo de produção. Esse movimento já é descrito por

Tragtenberg em relação à Escola de Relações Humanas:

Tem-se o surgimento da Escola de Relações Humanas de Mayo,

como resposta intelectual a um sistema industrial onde a alta

concentração do capital fora traduzida na formação de grandes

corporations, em que as formas de regulamentação da força de

trabalho do operário efetuadas por via autoritária direta

(esquema Taylor-Fayol) cedem lugar à sua exploração de forma

indireta: pela manipulação do operário por especialistas, os

quais, por sua vez, são instrumentos manipulados pela direção

das empresas, onde a força de trabalho é recrutada pelos

chamados conselheiros psicológicos, especialistas em relações

humanas e relações industriais. (TRAGTENBERG, 1974, p.

197)

Não basta, portanto, o aprimoramento do processo produtivo, faz-se necessário

incorporar à produção elementos de controle rebuscados, seja por meio de elementos de

subsunção, real ou de caráter subjetivo (FARIA, 2004. Vol 1), do trabalhador em relação ao

capital4. Em relação ao trabalho, se, por um lado, ele é condição ontológica na formação do

4
É importante observar que as análises de Tragtenberg são datadas nos anos 1970, 1980 e inicío dos anos 1990.
Assim, as críticas precisam ser contextualizadas àquele período histórico.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 182


indivíduo e da sociedade, o trabalho no sistema de produção taylorista-fordista separa o fazer

do pensar. A divisão do trabalho se reflete na alienação dos indivíduos e esta não exclui

nenhuma atividade ou profissão, nem mesmo a de professor. A especialização, nesse

contexto, consiste em afirmar a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual,

criando no trabalhador a falsa sensação de domínio de determinado conhecimento, quando, na

realidade, fragmenta a consciência do próprio trabalhador.

A Organização Política do Trabalho

Classe Trabalhadora, Poder, Educação e Sindicato

O taylorismo-fordismo estabelece uma nova organização burocrática do trabalho. A

burocracia consolida-se, assim, em diversos graus de racionalização do trabalho influenciando

diretamente as organizações relacionadas ao contexto do trabalho. Entre as organizações que

são influenciadas, as comissões de fábrica aparecem com destaque nas considerações de

Tragtenberg.

Socialista convicto, Tragtenberg acreditava ser a organização dos trabalhadores a

condição fundamental para a afirmação de uma nova realidade social. Defensor da

autogestão5 como ponto de inflexão para as transformações no plano econômico, entendia que

um “projeto socialista está vinculado à autogestão da luta pelos próprios trabalhadores, assim

como pela autogestão da economia da base ao topo e das demais instituições: hospitais,

escolas, empresas6.” A organização dos trabalhadores nas fábricas ressalta a possibilidade de

uma nova organização política do trabalho. Por exemplo, Tragtenberg via crédito na

5
É importante considerar que Tragtenberg defendia o socialismo como projeto, mas tinha o anarquismo como
ideal de sociedade. A autogestão, para ele, não tinha nenhuma relação com as formas vulgares que esta
expressão tomou recentemente, sendo confundida com fábrica recuperada, cooperativa, etc. Para Tragtenberg, a
autogestão era uma autogestão social, conforme conceituado em Faria (2009)
6
TRAGTENBERG, M. Trabalhador não ganha “boas-festas” nem “feliz ano novo”. São Paulo: Folha de São
Paulo, 23/12/1981.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 183


“profunda importância que tomaram os Comitês de Fábrica e Comitês de Interfábricas na

formação e crescimento do sindicato Solidariedade. Porque, através dele, era a própria classe

que dirigia sua luta, sem tutela de ninguém, de nenhum grupúsculo vanguardista ou de

intelectuais que além da ditadura científica almejam o poder de Estado para exercerem-na no

plano político-econômico7.”

As advertências de Tragtenberg para não cair na armadilha da burocracia são

constantes na coluna operária. Por várias vezes alertou sobre a interferência de pessoas que,

por força dos interesses particulares, acabavam se aproveitando da força e da estrutura criada

pelos sindicatos. Tragtenberg alerta, ainda, em relação à confiança e aos limites da

credibilidade que se deve dar para determinados indivíduos8.

Apesar dessa crença no movimento operário organizado, “o movimento operário

internacional fora corroído por homens da classe média encastelados nos Comitês Centrais

dos partidos políticos autodenominados de esquerda, que na prática, ao tomarem o poder de

Estado, se convertiam nos maiores carrascos dos trabalhadores, pretextando serem sua

vanguarda organizada e consciente.9” Essa experiência mostra a força de desarticulação por

manipulação da ideologia presente na “classe média”, ou mais especificamente, no “homem

médio10”, o qual está presente em todos os indivíduos por meio de sua condição histórica.

7
Ibid.
8
“A luta dos trabalhadores poloneses reunidos em torno do sindicato ‘Solidariedade’ é a luta de todos aqueles
que pretendam que a classe operária em qualquer lugar do mundo tenha voz e seja ouvida. Nesse sentido, diz
respeito aos trabalhadores brasileiros que lutam também pela autonomia e liberdade sindical ante o Estado e
quaisquer partidos, independente da fachada ‘operária’, que tenham que lutar por melhores condições de trabalho
e contra a condenação dos sindicalistas do ABC. A repressão polonesa encerra uma grande lição: na sua luta pela
sua classe o trabalhador só pode confiar em si e nas comissões surgidas da base”. Ibid.
9
Ibid.
10
“O homem médio é o indivíduo representante de grande parte dos homens e mulheres que compõem a massa
social, elemento da engrenagem do sistema de produção e consumo que o capitalismo vem sedimentando na
consciência desses sujeitos. A subsunção ao capital, seja de forma direta ou indireta, consciente ou não
consciente, confirma a vitória do processo de racionalização da sociedade. A informalidade por meio da
burocracia e da impessoalidade com que o capital se apresenta no cotidiano das pessoas passa a ser aceita como
natural. O domínio da natureza passa, então, a ser a dominação do homem pelo homem.” (BAIBICH-FARIA;
MENEGHETTI, 2005, p. 72-73)

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 184


Tragtenberg comemora quando a classe trabalhadora consegue se organizar

fundamentando-se no próprio local de trabalho11. Contudo, não se ilude com o poder de

sedução do capital e com a invasão da burocracia nas organizações sindicais. Para ele, a

unidade da classe é sempre vista como um meio e não um fim. A unidade sindical, portanto, é

uma manifestação da tendência de dominação de uns por outros no interior da própria classe

trabalhadora12. Não quer dizer que não se possa pensar em unidade sindical, mas, em muitas

situações, trata-se de articulação para privilegiar alguns e concentrar poder.

Por isso, Tragtenberg tem ressalvas em relação à atuação dos sindicatos. Afirma ele:

o que observamos é que, no processo de suas lutas, o trabalhador

cria instituições horizontais (grupo ou comissão de fábrica) e

que as instituições existentes, como sindicatos e partidos

construídos verticalmente, pretendem ‘tutelar’ ou ‘dirigir’. Uma

comissão de fábrica pertence, antes de qualquer coisa, aos

trabalhadores que lá labutam, não pertence a partido político

algum ou a corrente sindical alguma. Pode a comissão de fábrica

apoiar a luta do sindicato da categoria, ou ter entre seus

membros trabalhadores que pertençam a partidos políticos,

porém ela é autônoma em relação a tudo isso. Isso é muito

importante, especialmente porque a comissão de fábrica permite

que o trabalhador se apresente na luta e elimina a necessidade do

11
Ainda a Mercedes Benz e a Reifenhausen não assinaram igual acordo. Razão pela qual os membros da
diretoria cassada, tendo o Jair Meneguelli à testa, esperam pressioná-las para que aceitem igual acordo. Essa
vitória dos metalúrgicos de SBC mostra que é a organização do trabalhador, a partir do local de trabalho, a
condição básica que lhe permite iniciar, desenvolver e controlar o processo de sua luta e reivindicações. Mostra a
importância da existência de Comissões de Fábrica representativas no interior das empresas, capazes de falar
realmente em nome do trabalhador. TRAGTENBERG, M. Vitória dos metalúrgicos do ABC derruba “pacotes”
governamentais. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 20/11/1983.
12
TRAGTENBERG, M. Sem consulta ao peão de nada adiantam receitas de “iluminados”. No Batente. Unidade
ou unicidade sindical? São Paulo: Notícias Populares, 27/06/82.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 185


intermediário (seja ‘dirigente’ sindical ou de partido político)

representá-lo 13.

A autonomia constrói-se, dessa forma, no plano das comissões de fábrica 14. Toda

estrutura surgida da organização dos trabalhadores na base da produção precisa ser um meio e

não um fim em si mesmo. As instituições intermediárias, como o sindicado e os partidos

políticos, são instituições burocráticas que incorporam a mesma lógica das empresas

capitalistas. A racionalidade instrumental penetra nessas organizações de tal maneira que a

própria gestão dessas organizações é espelhada na gestão das empresas privadas. A

administração financeira, a contabilidade, as técnicas de marketing, a publicidade e

propaganda são semelhantes às das empresas, ou seja, carregam no seu cerne os mesmos

princípios ideológicos definidos pelo capital.

No trabalho, ocorre a disciplinação do operário. No processo de trabalho, a

qualificação formal atua como um “reforço ideológico”, pois nem sempre os treinamentos ou

processos educativos têm relação direta com as competências necessárias para que o

trabalhador desenvolva seu trabalho. Por isso, “predominando o capitalismo, nas chamadas

funções de supervisão, exige-se diploma universitário. Aí se coloca a função intelectual, não

só para produzir mesmo no plano simbólico, como para conduzir a direção moral e intelectual

da sociedade de classes, legitimando com seu saber o poder existente e sua distribuição

desigual15.”

Em Tragtenberg percebe-se, ainda, que a luta e defesa da classe trabalhadora é um

princípio educativo, que surge como legítimo e necessário para sua emancipação. Por esse

motivo, em muitos escritos direcionados para os operários identificam-se argumentações,

13
TRAGTENBERG, M. Ainda sobre a tão falada unidade sindical. No Batente. São Paulo: Notícias Populares,
30/06/82.
14
Uma pesquisa sobre as Comissões de Fábrica no ABC pasulista entre 1980 e 1985 mostra que as mesmas
foram ao mesmo tempo formas de luta dos operários e mecanismos utilizados como elementos estratégicos da
gestão das fábricas por sua direção (FARIA, 1987).
15
TRAGTENBERG, M. Universidade e Hegemonia. São Paulo: Folha de São Paulo, 24/12/1981.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 186


articulações e informações capazes de mobilizar maior união entre o operariado16. Em muitas

situações Tragtenberg faz críticas aos grupos organizados, mesmo que a intenção seja de

ajudá-los a conquistar novos espaços. Por exemplo, ao afirmar que “o movimento negro

precisa de negros com consciência social e política e não de jaboticabas” que é um “negro que

reproduz relações sociais de exploração e dominação, que tem alma branca ou vota no PDS”,

Tragtenberg está fazendo uma defesa de classe e não de etnia. Diz ele que “negro jaboticaba é

aquele que é negro por fora, branco por dentro, com caroço duro de engolir 17”, ou seja, que

não assume sua condição de classe ao se identificar com o agressor, com o opressor,

explorador. Como judeu, vítima de preconceito, Tragtenberg sabe exatamente do que fala

quando se refere ao tema da discriminação.

Em relação aos sindicatos, Tragtenberg vivenciou um período singular do movimento

sindical, quando o tensionamento entre capital e trabalho foi marcante, no período entre

1970 e 1980, e o poder da classe social foi posto à prova. Seu argumento era de que o que “o

trabalhador metalúrgico e a classe trabalhadora como um todo deve cobrar de seus dirigentes

ou líderes sindicais- não importa a fantasia com que se apresentem – é que as negociações ou

contatos com chefes de Estado, não sejam feitos secretamente 18.”

Esse alerta é permanente nos escritos de Tragtenberg, sobretudo nos textos

direcionados aos trabalhadores. Os questionamentos sobre a vinculação dos sindicatos com os

partidos políticos, ou ainda com organizações estudantis, desvirtuam o papel originário de

defesa da classe trabalhadora, não a partir da base, mas da representação da classe.

Essa relação entre Estado, partidos políticos e organizações de uma forma geral é

criticada por Tragtenberg. O Estado chinês é um bom exemplo.

16
TRAGTENBERG, M. A Nova República. No Batente, São Paulo: Notícias Populares, 17/03/1985.
17
TRAGTENBERG, M. Movimento Negro. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 09/06/1982.
18
TRAGTENBERG, M. A importância do Conclat em São Bernardo do Campo. No Batente, São Paulo:
Notícias Populares, 28/08/1983.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 187


Os sindicatos e as uniões estudantis continuaram atrelados ao

partido e ao Estado. As greves de trabalhadores eram proibidas e

os grevistas fortemente punidos. Paralelamente, o Estado chinês

construiu uma grande máquina de guerra onde o Exército se

tornou um dos elementos chaves no poder. Toda vez que após

uma revolução, tenha ela o nome que tiver, se cria uma máquina

militar hierárquica, burocrática, e que tenha o monopólio das

armas ante a classe trabalhadora, esta tende a ser escravizada por

quem detém as armas. Esse é o sentido do que ocorre nessa

Praça da Paz Celestial onde o poder militar esmagou milhares de

pessoas. Tudo isso foi feito “em nome do povo”. A repressão

chinesa constituiu uma lição para a esquerda mundial de como a

construção de um estado “socialista” significou a morte da

Revolução19.

Defensor da classe trabalhadora, Tragtenberg sempre esteve atento ao processo de

dominação de uma classe sobre outra. Em suas argumentações não havia argumentos para a

defesa de um modelo de socialismo ou comunismo real baseado na força, na repressão, na

hierarquia, pois sua concepção democrática de sociedade se sobrepunha às denominações

falsas e às aparências. Para Tragtenberg o grau de burocracia desenvolvido constituía uma das

formas de “monitoramento”. No caso específico da Revolução Chinesa, a simples

comprovação do uso da violência e da burocracia crescente como controle social já

descaracterizaria o que seria o socialismo democrático ou científico. Ao contrário, a prática

política comprovava que na China ocorria o avanço do modo de produção capitalista

acompanhado de uma ditadura amparada por uma ideologia repressora. Aquilo que

19
TRAGTENBERG, M. A China de Mao na pior. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 14/06/89.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 188


Tragtenberg anunciava em 1989 parece, atualmente, uma obviedade, dadas as formas como a

sociedade chinesa se organiza como modo de produção capitalista20.

Esse fenômeno ocorre nesse país devido às suas condições materiais históricas, uma

vez que, desde o regime dos mandarinatos, a população em geral era “doutrinada” para

obedecer e “tolerar” as diversas formas de violência. O controle das possíveis rebeliões se

realizava pelo controle burocrático instituído no plano micro, ou seja, nas organizações

formais e não formais, no ambiente de trabalho ou no interior da própria família.

Os sindicatos, unificados pelo discurso da unidade sindical, também servem a esse

propósito, na medida em que essas unidades sindicais possibilitam controlar e promover a

pacificação dos indivíduos. A utilização dos sindicatos21 foi um meio para promover a ilusão

da participação popular nos processos de controle de uma categoria de dirigentes sobre as

classes trabalhadoras nos países que se definem socialistas reais ou comunistas. A prática

mostra que em tais países, conforme indica Tragtenberg, o que prevalece é o modelo

despótico de governo, o estatismo autoritário, o centralismo burocrático e nenhuma

democracia.

No caso da Polônia, no ano de 1981, apenas para exemplificar, Tragtenberg sentencia:

“é que o Estado é propriedade de uma casta de funcionários estatais e do partido único (...).

Nessa qualidade eles dispõem de privilégios e imunidades e do uso da polícia e do exército

contra os trabalhadores poloneses. Tão logo o trabalhador procure organizar-se

automaticamente, independente do sindicato atrelado ao Estado, a repressão chega e é

violenta22.” Dessa forma, não se pode esperar que os sindicatos sejam necessariamente formas

de libertação da classe trabalhadora, pois, tomando como exemplo a situação da Polônia, o

20
Recentemente (junho de 2009), em um programa na TV Educativa apresentado no Paraná, o apresentador
indicou a China como um país socialista, componente do que ele denominou de Bloco Progressista, juntamente
com a Rússia, Venezuela, Cuba e Irã. A irresponsabilidade conceitual é o apanágio da ideologia.
21
TRAGTENBERG, M. Polônia, ano zero. São Paulo: Folha de São Paulo, 11/07/1986.
22
TRAGTENBERG, M. O Socialismo Blindado do General Jaruzelski. São Paulo: Folha de São Paulo,
16/12/1981.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 189


sindicato teve pouca influência ou capacidade de defendê-la. O apelo de Tragtenberg sempre

se volta para a organização autônoma do trabalhador, a partir do chão de fábrica. Assim, o

sindicato seria resultado de uma organização de base e não um organismo independente da

base impondo a esta uma política de cúpula.

O que ocorre, portanto, é que “por meio do capitalismo sindical, o capitalismo

moderno se redimensiona: o capitalista cuida das máquinas, o sindicato cuida da disciplinação

da mão-de-obra. Noventa por centro das entidades, grupos ou partidos que trazem o nome

‘operário’ têm a finalidade de controlar o operariado.” (TRAGTENBERG, 1986, p.74). Uma

pesquisa junto aos sindicatos de trabalhadores da indústria automobilística americana, United

Auto Workers – UAW, realizada em 2003 (FARIA, 2007), confirma as análises de

Tragtenberg de 1986 ao mostrar a ação colaboracionista desta entidade sindical.

No plano do discurso coletivo, parte dos que estão no comando das organizações

burocráticas manipula o imaginário daqueles que representa, apresentando-se como legítima

defensora da classe trabalhadora. A concepção de que os sindicatos são “máquinas de

negociação à cata de mais salários, redução de jornada de trabalho e melhores condições de

trabalho, sem perseguir objetivos mais elevados, como o de uma sociedade mais solidária”

(DÄUBLER, 1994, p. 26) reduz o papel do sindicato a mero negociador fundamentado em

cálculo de custo-benefício.

A escola, a igreja, a família e outras formas materiais de organizações existentes na

sociedade são responsáveis por aprendizagens que introjetam silenciosamente um mecanismo

de estabelecimento de cálculo baseado na relação custo-benefício. A lógica da racionalidade

instrumental invade a consciência dos indivíduos por meio das próprias relações sociais. “O

fato é que a mão-de-obra sai da empresa para entrar no sindicato burocratizado, ou frequenta a

Igreja ou frequenta um partido, os dois estruturados em forma de pirâmide, com níveis de staff

e linha, com regras rígidas interpretadas legitimamente por outros elementos treinados nesse

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 190


mister, dispondo dos títulos reconhecidos. Em suma, o ritmo é regulado pela escola, exército,

empresa, hospital, agência de viagens e, finalmente, o asilo.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 66)

Outra tática utilizada é a da unicidade sindical23. Independente do regime político,

manter a unidade sindical favorece o controle efetivo sobre as ações e idéias que dominam o

partido, favorecendo a burocracia da administração como planejamento, organização, direção

e controle. Assim, a previsibilidade torna-se permanente, deixando a negociação sempre com

o mesmo alinhamento e permitindo que “a organização do operariado seja reconhecida como

um negócio, como o de qualquer outra empresa, [o que] completa o processo de reificação do

homem. A força produtiva de um trabalhador hoje não é apenas induzida pela fábrica e nem

apenas subordinada pela liderança dos sindicatos operários.” (HORKHEIMER, 2000, p. 150)

Com os sindicatos agindo e operando nos mesmos moldes das empresas capitalistas,

provoca-se o enfraquecimento da classe trabalhadora por agir como negociadores

profissionais, cujos pressupostos são os mesmos utilizados nas negociações entre empresários.

A racionalidade econômica é predominante nas relações entre empresários e trabalhadores e

toda negociação baseia-se no máximo ganho de eficiência. Tal racionalidade é reforçada na

escola.

De fato, para Tragtenberg o sistema educacional prepara os indivíduos para as

organizações burocráticas. Os aprendizados da educação formal habilitam os indivíduos para

as atividades e tarefas no sistema de produção capitalista. Assim, a área de Recursos

Humanos, portanto, não pode ser considerada como um simples departamento operacional ou,

em uma visão romântica, como uma área de administração de conflitos entre “dirigentes e

dirigidos”, um “algodão entre cristais”. Tal área, hoje denominada de Gestão de Pessoas, tem

de ser observada minuciosamente, pois cria a política de dominação da organização sobre a

23
A classe patronal para manter sua dominação, às vezes, usa a tática da unicidade sindical. É o caso de Salazar,
Mussolini e Vargas. (...) O que importa é que unidade sindical ou pluralismo sindical não sejam vistos como
questões fechadas, mas como recursos táticos que o movimento operário pode utilizar conforme as situações
concretas aconselharem. TRAGTENBERG, M. Unidade sindical e democracia. No Batente. São Paulo: Notícias
Populares, 09/12/81.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 191


objetividade e subjetividade dos trabalhadores. Os sindicatos, nesse processo, precisariam

estar atentos aos mecanismos cada vez mais sutis de controle e dominação (FARIA, 2004.

Vol. 3). Entretanto, não é isso que ocorre. Ao contrário, conforme Tragtenberg afirma, os

sindicatos “dormem em berço esplêndido.” 24

Mesmo assim, é importante considerar que a classe operária não se integra totalmente

à ideologia dominante. Para cada ação do capital há uma ação de resistência, ainda que esta

não seja imediata. Grupos de trabalhadores conscientes de sua posição de classe combatem

em favor do interesse coletivo, independente de um aparelho sindical corrompido e

burocratizado. Muitas das vitórias do movimento sindical organizado, contudo, resultaram em

uma derrota política de amplitude normativa, inclusive.

O sindicalismo de ‘indústria, marcado por uma tradição e uma

vontade de enfrentamento aberto com os empregados e seus

representantes, ao conhecer grandes derrotas, teve que aceitar

sua transformação em sindicalismo de ‘empresa’, ao mesmo

tempo em que foi obrigado a passar de práticas de

enfrentamento a formas cada vez mais marcadas pelo acordo, e

até mesmo pela cooperação com os representantes dos interesses

do capital. (CORIAT, 1994, p. 85)

Tais vitórias que dialeticamente se transformaram em perdas políticas têm

consequências nas práticas do movimento sindical. Tragtenberg denuncia exatamente aquelas

práticas dos “pelegos do sindicato”. Na coluna “No Batente”, por várias vezes relatou atitudes

24
“O sistema educacional define o papel do indivíduo no sistema industrial. Os CQCs que lá se constituíram,
atualmente, estão sendo trazidos para cá. Porém, nenhum partido está prestando atenção nisso, da mesma forma
como nenhum sindicato está prestando atenção que deveria prestar ao peso da Seção de Recursos Humanos e
Treinamento, como área vital, cujos dados são importantíssimos para a ação sindical, razão pela qual os partidos
devem deixar de “dormir deitados eternamente em berço esplêndido”, e olhar mais dentro da fábrica e ver o que
lá está ocorrendo, antes que seja tarde demais.” TRAGTENBERG, M. Da “fechadura” à “Abertura”. São Paulo:
Notícias Populares, 03 /06/1982.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 192


reacionárias e autoritárias dos “pelegos”25. A ética da empresa, ou seja, de cada um por si, é

incorporada nas relações que governam o interior dos sindicatos. As associações escusas são

entendidas como ações de sobrevivência. Os “pelegos sindicais” agem com o pressuposto de

que os fins justificam os meios.

Formam-se, assim, “os novos coletivos de trabalho, integrados ativamente aos

imperativos das gerências.” (BRAGA, 1996, p. 272). A consolidação da burocracia retira dos

indivíduos o domínio sobre suas ações. Assim, estes, despersonalizados e transmutados, são

absolvidos pela prática destas ações. Em boa medida, as ações dos “pelegos sindicais” são

reforçadas pela omissão, uma vez que grande parte da burocracia está amparada na ausência

dos indivíduos. Essa nova “formatação” do sindicato é resultado de um processo histórico26.

Para Tragtenberg, é evidente que a verdadeira representação dos interesses da classe

trabalhadora parte da base, ou seja, da organização coletiva dos trabalhadores a partir do chão

de fábrica. A unicidade sindical, as organizações que concentram poder e que se caracterizam

pelas práticas burocráticas semelhantes às empresas não passam de formas organizadas para

garantir uma elite específica no poder.

Estado Capitalista e Burocracia

Ao tratar da burocracia, Tragtenberg explora também o tema do Estado Capitalista.

Sua inspiração, contudo, encontra-se em Hegel. De fato,

Tragtenberg busca em Hegel a concepção inicial da relação

entre Estado e burocracia, o que lhe permite vislumbrar as

características do modo de produção asiático na perspectiva do

poder político. A base de sua argumentação criará as condições

analíticas para a crítica da burocracia nos regimes de estado e,

25
TRAGTENBERG, M. HP e pelegos sindicais, a nova face da repressão. São Paulo: Folha de São Paulo,
13/07/1981.
26
TRAGTENBERG, M. Declínio da liberdade sindical. São Paulo: Folha de São Paulo, 06/11/80.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 193


ao fazer tal crítica, Tragtenberg antecipa o que se tornará a

prática dominante das empresas capitalistas contemporâneas no

que se refere ao controle sobre a organização e o processo de

trabalho. (FARIA, 2008)

Para Tragtenberg (1974. p 22) “a administração, enquanto organização formal

burocrática, realiza-se plenamente no Estado”, razão pela qual, “o segredo da gênese e

estrutura da Teoria Geral da Administração, enquanto modelo explicativo dos quadros da

empresa capitalista, deve ser procurado onde certamente seu desenvolvimento mais pujante se

dá: no âmbito de Estado”. A teoria administrativa fornece ao capitalismo industrial modelos

de transição do liberalismo para o capitalismo monopolista e a “emergência da burocracia

como poder funcional e político”.

Tragtenberg recorre a Hegel exatamente para analisar a burocracia

como poder administrativo e político, a partir do conceito deste de que

o Estado é a organização (burocracia pública) acabada, a síntese do

substancial e do particular, a integração dos interesses individuais e

particulares. Assim, o Estado é visto em sua representação instrumental,

pois a burocracia é o formalismo de um conteúdo que se encontra fora

dela, que é a corporação privada. É como instrumento das classes

dominantes que a burocracia tem efeitos de permanência com relativo

nível de autonomia. Estado e sociedade civil se encontram separados na

visão hegeliana, pois o primeiro contém o interesse universal e a

segunda o interesse particular, mas é no interesse geral que reside a

conservação dos interesses particulares. (FARIA, 2008).

Tragtenberg reconhece que a teoria de Hegel é sustentada em “um formalismo político

que encobre a realidade que ele desnatura, reduzindo arbitrariamente a oposição e traindo o

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 194


real”. Por este motivo, buscar em Hegel uma base analítica não é simplesmente incorporar

uma concepção hegeliana. O recurso a Hegel é para afirmar sua convicção de que as

finalidades do Estado são aquelas da burocracia e as desta são as do Estado, de forma que a

burocracia se fundamenta na separação entre os interesses universal e particulares como

elemento de mediação.

Neste sentido, a burocracia, nos regimes de Estado, constitui-se

para Tragtenberg como classe dominante, pois detém os meios

de produção e, nesta medida, possui o poder de exploração,

cumprindo funções de organização do monopólio do poder

político. Deste modo, Tragtenberg (1974. p. 28) encontrará em

Hegel “as determinações conceituais que permitem a análise da

burocracia do estado, da burocracia enquanto poder político que

antecede em séculos a emergência da burocracia determinada

pelas condições técnicas da empresa capitalista, oriunda da

Revolução Industrial”. (FARIA, 2008).

O Estado é, para Tragtenberg, a organização burocrática mais complexa existente. Se,

por um lado, a burocracia estatal é a garantia de controle de uma minoria sobre a maioria por

meio de um discurso de dissuasão dos interesses particulares ante o coletivo, a burocracia das

organizações privadas precisa, também, de alguma forma seguir a mesma lógica sem,

contudo, “engessar” as tomadas de decisões.

As classes dominantes utilizam-se do Estado para articular e garantir a realização de

seus interesses econômicos. Tragtenberg argumenta que o Estado serve às classes dominantes,

mesmo nos países tidos como socialistas ou comunistas, pois se apresenta como meio de

dominação de uma burguesia do “Capitalismo de Estado”. Portanto, nesses países, “a

burguesia de Estado estrutura-se numa propriedade capitalista coletiva, onde a abolição da

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 195


propriedade individual, o planejamento estatal, não constituem condição suficiente para

liquidação definitiva da burguesia como classe dominante.” (TRAGTENBERG, 1974, p.191-

192)

Nos escritos de Tragtenberg, as análises referentes ao Estado mostram que essa forma

burocrática passa a existir porque se faz necessária uma organização maior para garantir a

reprodução do sistema de produção dominante. Em outros termos, o

Estado, no modo de produção capitalista, tem por função zelar

pela manutenção das relações de produção dele derivadas. No

Brasil, a objetivação capitalista é tardia. Ela se realiza através da

“revolução passiva”, da revolução pelo “ato”. A evolução do

capitalismo no Brasil não foi precedida pelas realizações da

“cidadania” e da “comunidade democrática”. A burguesia

industrial ligou-se à antiga classe dominante através do processo

de conciliação, isso explica o fato de a revolução democrático-

burguesa no país ser uma flor exótica e a via colonial do

desenvolvimento capitalista ter permeado nossa formação

econômico-social. O desenvolvimento capitalista se realiza

através da alavanca do Estado social fundado no esquema

keynesiano. Não é um Estado socializante nem representa uma

solução além do modo de produção capitalista 27.

Tragtenberg critica todas as formas de “implantação” de socialismo ou comunismo,

principalmente porque na sua concepção não se implanta um regime, mas se lhe conquista, e

não é possível passar de um modo de produção para outro com a permanência de um Estado

27
TRAGTENBERG, M. O Estado Capitalista. São Paulo: Folha de São Paulo, 24/10/1977. Tragtenberg
apresenta uma concepção polêmica aqui ao afirmar que o “Estado, no modo de produção capitalista, tem por
função zelar pela manutenção das relações de produção dele derivadas”. Ao contrário, entende-se que o Estado
capitalista é resultado do Modo de Produção Capitalista e, por isto, seu fiador institucional. O Estado não é
instituinte e, portanto, dele não derivam relações de produção (FARIA, 2004. Vol. 1. Cap. 3).

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 196


Capitalista. O que ocorre, a seu ver, em alguns países como a França, é uma socialização

dentro de um Estado Capitalista28. Assim, o socialismo ou comunismo pode, no máximo, ser

um discurso ideológico.

No capitalismo, as contradições fazem com que os indivíduos e os coletivos criem a

ilusão do “mundo perfeito” ou do “futuro perfeito”, necessárias para gerar a expectativa de

um destino melhor. Em parte, a criação imaginária de uma outra sociedade aparece como uma

necessidade para o próprio capitalismo, caso contrário, não seria possível viver com as

contradições produzidas pelo próprio sistema de capital. A promessa da sociedade melhor é a

ideologia ou a utopia dos partidos políticos.

De fato, uma das formas como as elites dominam as massas é a representação política,

da qual o partido político é a forma organizada mais efetiva. Tragtenberg critica os partidos

pela separação existente entre os discursos destes e a realidade que pretendem representar, ao

afirmar: “há inúmeros partidos falando em nome do povo ou do trabalhador, porém, a classe

trabalhadora não os conhece, nem de vista. Ela trabalha no interior das oficinas, fábricas, na

exploração mineira do subsolo, na exploração florestal e não tem tempo a perder com palavras

que para ela nada significam.29”

Os partidos tendem a ser representantes das elites, sobretudo, porque “são dirigidos

por castas, intelectuais e políticos profissionais. Não são democráticos, porque neles domina

uma minoria dirigente com interesses específicos.” (TRAGTENBERG, 1986, p.70). A

democracia, portanto, não é governo de todos propriamente dito, apesar do discurso

professado. A sociedade elege os eleitos, ou seja, elege aqueles que foram definidos nas

28
“Porém, é necessário esclarecer, nem tudo que reluz é ouro e, estatizar, sob o Estado capitalista, mesmo
Mitterrand no topo, não significa socializar, significa transformar o Estado em ‘capitalista coletivo real’. É
necessário ressaltar que a economia francesa é estruturalmente capitalista, articulada no Mercado Comum
Europeu. Nesse tipo de economia, a função do Estado é distribuir a parte do trabalho não paga ao operário, que é
apropriada pelo capitalista, à classe capitalista no seu conjunto que assume as formas de: empresa comercial,
industrial, bancária ou fazenda. Estruturalmente, portanto, não há uma ruptura com o sistema capitalista de
produção.” TRAGTENBERG, M. A vitória de Mitterrand na França. São Paulo: Folha de São Paulo, 23 a
25/08/81.
29
TRAGTENBERG, M. Congresso Constituinte é safadeza da Nova República. São Paulo: Notícias Populares,
22 /11/1986.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 197


prévias dos partidos, sem levar em consideração o que a maioria realmente almeja. As

eleições, neste sistema partidário, segue a lógica da escolha dos escolhidos, ou seja, os

eleitores escolhem os seus candidatos entre aqueles previamente escolhidos pelo partido em

um jogo de poder e de interesses absolutamente alheio à realidade e aos interesses da

sociedade que será representada nas esferas de decisão. Os interesses das elites, ao contrário,

são garantidos neste sistema de burocracia eleitoral. Os “donos do poder” (para usar a

expressão de Raimundo Faoro) perpetuam-se pela alienação do trabalhador, pois estes não

conseguem sair da lógica do modo de produção capitalista.

Cumpre-se, assim, o projeto da democracia da antiga Grécia, em que somente os

cidadãos tinham direito a voto, o que significava excluir mulheres e escravos desse processo,

pois estes não eram considerados cidadãos. Hoje, a exclusão é refinada e acompanhada de

dissimulações. O comprometimento das percepções causado pelas diferenças de compreensão

da realidade e o excesso de trabalho impedindo a participação da vida coletiva são exemplos

de que a participação efetiva não depende da mera vontade do trabalhador. Isto porque na

“democracia política, o programa de cada partido somente é conhecido por uma minoria; a

grande maioria só conhece slogans, palavras de ordem e promessas ambíguas. Numa

democracia parlamentar, a decisão é tomada por uma minoria, que, assim sendo, se corrompe

e decide em seu próprio benefício.” (TRAGTENBERG, 1986, p.70)

Gênese e Estruturação da Organização Burocrática em Tragtenberg: conclusões

Tragtenberg fundamenta-se em Marx para compreender o nível da produção e em

Weber (1974) para tratar o fenômeno da burocracia, especialmente em seu estudo seminal

“Burocracia e Ideologia”. Sua articulação entre esses dois teóricos é mantida por uma

coerência epistemológica. Apesar de ter clareza dessa relação entre o plano da infra-estrutura

e da superestrutura, é relevante conhecer como ocorre o processo de estruturação da

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 198


organização burocrática a partir das análises das obras de Maurício Tragtenberg para elucidar

com maior clareza de que forma sua obra adquire consistência e importância na área dos

estudos organizacionais.

A gênese da organização burocrática, analisando a organização técnica do trabalho,

está na divisão técnica e na divisão social do trabalho. Na divisão técnica, o parcelamento do

trabalho por meios cada vez mais sistematizados e baseados em cálculos de eficiência

produtiva e com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, cria os trabalhadores

que “pensam” e os que “executam”. Nesta dinâmica, a alienação garante a continuidade do

modo de produção, possibilitando o primeiro elemento de reprodução do sistema de produção

que se torna dominante no sistema capitalista de produção. A divisão social do trabalho

instala-se como meio para subdividir a sociedade não apenas em classes sociais, mas

igualmente em grupos sociais e frações de classe, responsáveis por reproduzir as diferenças

originárias na divisão técnica do trabalho.

Condicionada pelo modo de produção capitalista, ergue-se uma estrutura social e uma

forma organizada da sociedade, o Estado Capitalista, baseados em uma racionalidade

instrumental, esta, portanto, igualmente originaria da dinâmica das relações de produção. Esta

racionalidade materializa-se em uma burocracia específica, contextualizada na obra de

Tragtenberg no sistema de produção taylorista-fordista no plano da fábrica. A supremacia

dessa burocracia está baseada na superioridade técnica da produção da vida se comparado

com outras formas burocráticas existentes.

A complexidade da produção viabilizada pela divisão técnica e social do trabalho tem

como apanágio inevitável a instituição de organizações complexas, como indica Etizioni

(1973). As novas estruturas de produção são compostas de formas multivariadas e

complexidades cada vez maiores, estruturando novas formas de produção e,

conseqüentemente, formando relações sociais cada vez mais complexas.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 199


Para manter a unidade da organização, além da instituição física e material da forma

de produção, baseada em uma racionalidade instrumental dominante, são criados mecanismos

de controle não só sobre o “corpo” do trabalhador, mas também sobre sua “mente”,

mecanismos não apenas econômicos, mas político-ideológicos e psicossociais (FARIA, 2004.

Vol. 3). Associada à ideologia que se forma originariamente com a separação entre os que

“pensam” e os que “executam”, a organização da produção taylorista-fordista fomenta nos

trabalhadores uma “consciência da adaptabilidade”.

No trabalho especializado, essa adaptabilidade está associada ao processo de

qualificação instrumental, ou a semiformação. Na medida em que o parcelamento do trabalho

torna-se cada vez mais intenso, os trabalhadores especializam-se mais na função. Entretanto,

seu conhecimento sobre o todo se torna menor, reduzindo-o na razão proporcional a mero

instrumento de produção. A tecnologia, neste sentido, serve para adaptar o trabalhador ao

sistema de produção e não para promover sua autonomia no processo produtivo.

A adaptabilidade também ocorre de forma a instituir valores, idéias, imaginários,

consolidados em regras e normas, que promovam a forma “correta” de agir e se comportar no

ambiente produtivo. Assim, “corpo” e “alma” estão adequados a nova estrutura social. A

burocracia, deste modo, faz justificar suas características imperativas: formalismo,

profissionalismo e impessoalidade em favor da organização formal.

Organizações tais como as comissões de fábrica, sindicatos e partidos políticos

também são vistas por Tragtenberg a partir do crescente processo de burocratização. Elas

incorporam a lógica da empresa capitalista, baseada na racionalização do trabalho taylorista-

fordista. Mesmo as comissões de fábrica, forma de organização que Tragtenberg percebe

como um saída à tendência totalitária da burocracia, sofrem o processo de burocratização e

rendição frente as demais organizações que se apresentam e se colocam como

“representantes” da classe trabalhadora. Nestas organizações, a burocracia atua para ocultar as

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 200


verdadeiras intenções das elites que se formam no interior da cada uma. Essas elites tem sua

origem na separação entre os que “pensam”, e que se colocam como os intelectuais da classe

que representam, e os que “executam”, os trabalhadores propriamente ditos.

O sindicato, por exemplo, serve como organização “responsável” pelo disciplinamento

dos operários na incorporação das regras e normas burocráticas que passam a dominar as

organizações. Sua função de emancipação é deixada de lado e o que se estabelece é uma

relação instrumental, baseada no cálculo econômico das relações no interior dessas mesmas

organizações.

Neste processo, o Estado torna-se a “grande organização burocrática” que garante a

reprodução da lógica das relações de produção e da permanência das elites que se forma a

partir da divisão social do trabalho. O Estado é o fator de sustentação da burocracia instituída,

ou seja, do aparelho de governo, e para isto garante a permanência das formas de produção

que dominam a sociedade.

Desta forma, a estruturação da organização burocrática é o resultado da divisão técnica

do trabalho que se estabelece na produção e que, por meio de um processo de racionalização

específico cria uma burocracia para perpetuar as relações de dominação e poder das elites que

se originam da divisão social do trabalho. A organização política do trabalho, neste contexto,

reproduz essa mesma lógica, seja por meio das organizações de natureza privada ou por meio

dos aparelhos de Estado.

Tragtenberg estuda esta lógica de estruturação. A compreensão desse mecanismo que

ele desvendou permite compreender os fundamentos da concepção de burocracia, de poder e

de trabalho que subjaz à sua concepção teórica e política. Evidencia-se sua proximidade com

o pensamento anarquista e libertário, para quem toda burocracia é uma forma de dominação, e

com o marxismo, para quem a dominação, enquanto exploração, alienação e ideologia, é

historicamente determinado pelo modo de produção capitalista.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 201


Referências

ACCIOLY, Doris. Tema e variações em Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E SILVA,

Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências

Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980.

BAIBICH-FARIA, Tânia Maria; MENEGHETTI, Francis. A Escola de Frankfurt e o

Antipreconceito. Espaço pedagógico, Universidade Passo Fundo/RS, v. 12, n. 2, p. 71-

84, 2005.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do

sistema de ensino. São Paulo: Francisco Alves, 1976.

BRAGA, Ruy. A restauração do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século

XX. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

CORIAT, Benjamin. Pensar pelo aveso. Rio de Janeiro: Revan/Edufrj, 1994.

DÄUBLER, W. Relações de trabalho no final do século XX. In: VVAA. O mundo do

trabalho – crise e mudança no final do século. Sao Paulo: Cesit-Unicamp, 1994.

ETIZIONI, Amitai. Org. Organizações Complexas. São Paulo: Atlas, 1973.

FARIA, José Henrique de. Comissões de Fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas.

Curitiba: Criar, 1987.

_____. Economia Política do Poder. Curitiba: Juruá, 2004. 3 Volumes.

_____. A Fase do Colaboracionismo: a nova prática sindical. In: FARIA, J. H. de. Org.

Análise Crítica das Teorias e Práticas Organizacionais. São Paulo: Atlas, 2007. cap. 9.

_____. Burocracia, poder e ideologia: a antevisão da empresa contemporânea em

Tragtenberg. São Paulo: PUC-SP, Encontro “10 anos sem Maurício Tragtenberg”, 2008.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 202


_____. Gestão Participativa: relações de poder e de trabalho nas organizações. São Paulo:

Atlas, 2009.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1998.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.

MARX, Karl. O capital. Livro 1. Volumes I e II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

SILVA, Antonio Ozaí da. O movimento social numa perspectiva libertária: a contribuição de

Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem.

Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora

UNESP, 2001.

TRAGTENBERG, Maurício. A Teoria Geral da Administração é uma Ideologia? Rio de


Janeiro: RAE, (11):4, pp. 77-21, out-dez, 1971.
_____. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática 1974.

_____. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980.

_____. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.

_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.

GES – V 3, n 6, jul./dez. 2009 CEPEAD/FACE/UFMG 203


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE
O DISCURSO E A PRÁTICA

CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O


PRESCRITO E O REAL

Por:

Kátia Regina Hopfer, UniFae


José Henrique de Faria, UFPR/DAGA

RAE-eletrônica, v. 5, n. 1, Art. 5, jan./jun. 2006

http://www.rae.com.br/eletronica/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=3336&Secao=Fórum&Volume=
5&Numero=1&Ano=2006

©Copyright, 2006, RAE-eletrônica. Todos os direitos, inclusive de tradução, são reservados. É


permitido citar parte de artigos sem autorização prévia desde que seja identificada a fonte. A
reprodução total de artigos é proibida. Os artigos só devem ser usados para uso pessoal e não-
comercial. Em caso de dúvidas, consulte a redação: raeredacao@fgvsp.br.

A RAE-eletrônica é a revista on- line da FGV-EAESP, totalmente aberta e criada com o objetivo de
agilizar a veiculação de trabalhos inéditos. Lançada em janeiro de 2002, com perfil acadêmico, é
dedicada a professores, pesquisadores e estudantes. Para mais informações consulte o site
www.rae.com.br/eletronica.

RAE-eletrônica
ISSN 1676-5648
©2006 Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração
de Empresas de São Paulo.
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria

RESUMO
O presente artigo procura mostrar as contradições e conflitos inerentes às relações de trabalho
submetidas à lógica do sistema capitalista de produção por meio do controle social no trabalho. Esse
controle foi analisado a partir de quatro instâncias organizacionais – mítica, sócio-histórica,
organizacional e grupal – de base psicossociológica, com o intuito de ampliar uma matriz teórico-
metodológica utilizada nos estudos organizacionais na linha de pesquisa Economia Política do Poder.
Na presente pesquisa foi possível identificar dissonâncias entre o ambiente prescrito e o real, bem como
o exercício do controle social por resultados por meio do estímulo à competição interna, à
individualidade e à busca da identificação individual ao sucesso organizacional. Es ses mecanismos de
controle correspondem a valores intrínsecos do sistema capitalista de produção enquanto estratégia s de
gestão empresarial.

PALAVRAS-CHAVE
Controle social, relações de trabalho, poder, instâncias psicossociológicas, dominação.

ABSTRACT
This article analyses the type of social control, in function of results that can be encountered in
working relations today. Analyses were done from the point of view of four psycho-sociological
instances related: mythical instance, social-historical instance, organizational instance and group
instance. The methodological choice intended to analyze a theoretical matrix developed in Brazil and
an international industry was chosen. Administrative contradictions, generated from conflicts during
working relations, were observed. Data does not show a democratic firm environment, but an
atmosphere of strongly controlled freedom. By departing from these indicators it will be possible to
gather elements to find innovative solutions enhancing quality in the firm’s management and in the
relationship with employee. For both, management and employees, the common goal is to face through
success and good strategies the challenging global economy.

KEYWORDS
Social control, working relations, power, psycho-sociological instances, domination.
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria

INTRODUÇÃO

O controle social é o elemento central da gestão organizacional (Faria, 2002b), sendo exercido sobre os
indivíduos e grupos internos de trabalho de uma determinada empresa como fundamento de sua
produtividade e competitividade. O ambiente globalizado tem exigido das empresas agilidade e
flexibilidade nas ações gerenciais com reflexos no plano psicológico dos indivíduos. Embora o controle
seja fundamental para o desenvolvimento dos processos produtivos, essa função administrativa
desencadeia mecanismos objetivos e subjetivos de exploração no ambiente laboral.
Este estudo, que apresenta parte de uma pesquisa empírica realizada em uma indústria do ramo
automobilístico na Região Metropolitana de Curitiba, tem como objetivo identificar as formas de
controle social que se articulam no modo capitalista de produção tendo como foco a busca do sucesso
econômico empresarial. Para tal finalidade, buscar-se–á compreender os mecanismos de controle, a
forma como são exercidos no ambiente de trabalho, a dinâmica das relações de poder nas dimensões
individuais e grupais, de maneira que se possa, ao final, falar do exercício do controle social nos
processos e nas relações humanas e de trabalho.
A problemática do controle sobre as relações de trabalho compreendidas no âmbito das relações
de poder tem sido tema recorrente nas pesquisas organizacionais, no intuito de aumentar a
compreensão desse universo socioprofissional em que os indivíduos se encontram inseridos. No nível
organizacional, percebe-se uma tendência ao aumento do controle indireto e sutil sobre o trabalho com
o advento das inovações tecnológicas dos processos empresariais. Sendo preciso estar em constante
mudança para que os resultados econômicos sejam alcançados, as organizações produtivas
desenvolvem diversos mecanismos de controle, o que suscita as seguintes questões: (i) de que maneira
as organizações gerenciam o processo de trabalho de forma a manter o indivíduo comprometido com
esses resultados? (ii) Quais os impactos dos processos de controle sobre a relação do indivíduo com o
seu trabalho? (iii) Quais os conflitos surgidos pela ruptura do vínculo social? (iv) De que maneira o
controle se manifesta em suas formas aparente e oculta frente às manifestações do corpo social da
organização? As respostas a essas questões permitem definir a problemática do controle social no
ambiente psicossociológico e suas manifestações na organização.

METODOLOGIA

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
A perspectiva de estudo foi a longitudinal, uma vez que se pretendia analisar as categorias descritas
num determinado período. O aspecto histórico da organização foi considerado para o estudo das
categorias analíticas, mas não foi necessário determinar nenhum recorte histórico específico tendo em
vista o tipo de enfoque psicossociológico adotado no estudo. O nível de análise é o organizacional, e a
unidade de análise foi constituída pelos grupos hierárquicos da empresa.
Optou-se por realizar um amplo cruzamento de técnicas qualitativas e quantitativas para a coleta
e análise dos dados. Por meio disso, construiu-se um quadro referencial explicativo mais completo. Os
dados primários foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas e pela aplicação de
questionários. As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com 12 membros da empresa,
escolhidos aleatoriamente entre todos os níveis hierárquicos, pela disponibilidade de tempo dentro do
período de trabalho. Essas entrevistas foram acompanhadas de inúmeras observações dos participantes,
dentre elas conversas informais, pré-teste e outras formas não convencionais de coleta de informações
na tentativa de delimitar e compreender o universo a ser explorado. Dentre essas observações, deu-se a
definição da linguagem e os termos técnicos utilizados corriqueiramente no ambiente laboral. O
objetivo dessa primeira entrevista foi identificar aspectos a serem incluídos na formulação do
questionário.
A triangulação dos dados a partir de outros entrevistados e de fontes secundárias foi
fundamental para garantir o encadeamento das evidências coletadas. Paralelamente a essa coleta, foi
utilizada a observação direta sobre o processo normal de trabalho e as relações habituais entre os
membros da empresa. A observação auxilia na captação de comportamentos importantes para a
pesquisa, bem como na sua contextualização. Os dados secundários foram coletados por meio de
consulta a relatórios arquivados, a documentos internos da organização (atas, relatórios, registros,
organograma, apostilas, jornal) e a informações divulgadas na imprensa e na Internet.
Os dados primários, obtidos mediante a aplicação dos questionários, foram analisados por meio
da estatística descritiva, com a utilização do programa SPSS. Para as entrevistas, optou-se pela análise
de conteúdo. As observações foram analisadas de forma descritivo- interpretativa. Para efeitos deste
texto, contudo, optou-se por selecionar apenas as informações mais relevantes.
A população é composta por todos os indivíduos, independentemente do nível hierárquico,
vínculo empregatício e origens culturais, que trabalham na organização em estudo, perfazendo um total
de 348 pessoas. A amostra foi do tipo não-probabilística, estratificada e intencional, conforme a
estrutura de cargos da empresa. Portanto, foi estruturada de acordo com os seis níveis de classificação
de cargos, a seguir: (i) Nível 1: Diretoria Executiva; (ii) Nível 2: Gerência Sênior; (iii) Nível 3:
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Gerência; (iv) Nível 4: Coordenação; (v) Nível 5: Especialistas; (vi) Nível 6: Operacional. Após a
coleta de dados, os seis níveis foram coligidos em três, dada a similaridade de respostas, da seguinte
forma: nível estratégico (1 e 2), tático (3 e 4) e operacional (5 e 6).
Para apreender a realidade do controle exercido pela empresa Alfa, foram construídos, a partir
das abordagens iniciais na própria organização, indicadores qualitativos que serviram como base na
análise desenvolvida neste estudo e apresentada no quadro abaixo:

QUADRO 1 – CONTROLE SOCIAL POR RESULTADOS E NÍVEIS DE ANÁLISE NAS


ORGANIZAÇÕES
SÓCIO-
Níveis de análise MÍTICO ORGANIZACIONAL GRUPAL
HISTORICO
O indivíduo se
Uma idéia na qual As estruturas se
sente reconhecido Não há estímulo
todos acreditam e defendem; limitação da
e amado. Esconder para a formação de
que justifica as competição interna.
os conflitos e grupos informais e
Controle por ações e decisões da Palavra e criatividade
ocultar as relações espontâneos.
resultados empresa. são vigiadas.
de dominação
Ideologia da Organização Competência como Competição interna Incentivo à
competição portadora do ideal valor e competição limitada e dentro de competição entre
econômica. do ego. como prática. regras. os grupos formais.
Sucesso entre
Competitividade Ideologia do Inexistente no campo Sucesso atrelado à
indivíduos ou
interna sucesso. empírico observado estrutura formal.
grupos.
Relações de
poder Grupos buscam Inexistente no
Identificação e Manipulação pela
manipuladas afirmar-se campo empírico
vínculo aos grupos. palavra vigiada.
entre os grupos (afirmação de si). observado
internos.
Reconhecimento
Valorização da Ideologia do belo Inexistente no
pela aparência e Aparente incentivo à
imagem do grupo e (estética). campo empírico
não pela criatividade.
da organização. observado
essência.
Ilusões Ilusão da troca
Crença no discurso Inexistente no
construídas e afetiva entre Ilusão pela criatividade
como portador da campo empírico
aceitas como organização e vigiada.
verdade. observado
verdadeiras. indivíduo.
Fonte: Elaborado por Faria e Hopfer (2002) a partir da proposta de Faria (2002b).

CONTROLE SOCIAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Para Marx (1988), o ser humano se apropria dos recursos da natureza e os transforma de acordo com as
suas necessidades de subsistência, tendo a capacidade de projetar as suas operações e ordenar o
trabalho em diversas atividades e pessoas, construindo uma consciência clara da sua capacidade de
execução.
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Nesse sentido, a diferença entre o homem e os outros seres vivos é a sua capacidade de construir
o resultado no plano do pensamento, antes de executar a transformação do objeto. Dessa forma, o
trabalho é concebido pelo sujeito antes da sua concretização no real. Por ter o homem essa habilidade,
as tarefas de concepção e execução do trabalho, que deveriam ser realizadas pelos indivíduos
coletivamente, são feitas por indivíduos diferentes, que ocupam diversos lugares no processo de
trabalho. Assim, o indivíduo poderá ser senhor do trabalho de outros bem como do seu próprio (Marx,
1988; Braverman, 1987). Es sa é à base do sistema capitalista de produção, em que o trabalho humano é
o resultado do conjunto das relações e comportamentos sociais.
Mesmo pesquisadores mais vinculados a uma visão institucionalista, como Castells (2000),
reconhecem que as novas tecnologias exigem novas qualificações e ocupações técnicas a partir das
necessidades do processo produtivo, como, por exemplo, as novas tecnologias da informação na década
de 1990. O trabalhador inserido nesse ambiente de mudanças recebe uma “mensagem” enviada pelo
sistema do capital, no sentido de procurar uma “atualização profissional” para não ser excluído do
processo de trabalho.
As relações sociais, estruturadas no início em um processo mais simples de acumulação, se
modificam, pois as necessidades de expansão do capital se tornam mais importantes do que as
necessidades e os desejos individuais. Quanto mais fragmentado o processo de trabalho, menos
valorizadas serão as atividades originadas por ele: esse é o “segredo” da organização do trabalho.
Essa divisão de tarefas pode ser percebida no movimento da gerência científica iniciado por
Taylor no século XIX, o que, para Braverman (1987), culminou com a aplicação de métodos científicos
sobre o controle do trabalho nas empresas industriais. Movida pelo objetivo de resolver os conflitos nas
relações de trabalho, a gerência, como é conceituada atualmente, busca controlar a força de trabalho,
sem procurar confrontar as causas dos conflitos, e aceitando as diferenças como “naturais”.
A dinâmica social do capitalismo implica uma ação coercitiva da gerência sobre o indivíduo, na
medida em que este precisa se adaptar ao tempo de produção, à cadeia de montagem, à fragmentação
das tarefas e à subordinação à hierarquia patronal. Tal ação indica que o controle não é um mecanismo
da administração ou da gestão capitalista, mas um mecanismo de poder (Faria, 1987).
Elton Mayo (1960) e outros pesquisadores já se interessavam, nas décadas de 1920-1930, pelos
estudos sobre os indivíduos nas organizações, relativamente aos ajustamentos decorrentes de contínuas
mudanças nos processos produtivos, bem como com relação à imposição, ao trabalhador, da forma
como ele deve executar o trabalho. Essas pesquisas, posteriormente conhecidas como enfoque das
relações humanas, tinham inicialmente o objetivo de estudar a fadiga no trabalho e reduzir as taxas
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
turn-over. Tratava-se, então, de compreender as conseqüências dessa mudança sobre a produtividade.
O indivíduo aparece como um elemento constituinte de grande efeito e não como centro da
investigação. O saber que o trabalhador detinha sobre todo o processo produtivo foi sendo
continuamente expropriado pelo capital e incorporado na funcionalidade da máquina.
Castells (2000), contudo, acredita que as organizações não utilizam a plena capacidade
produtiva das novas tecnologias e que a difusão da tecnologia informacional nas fábricas e escritórios
exige trabalhadores instruídos e autônomos, com plenos conhecimentos do processo produtivo. Essa
visão é controversa. Sabe-se que a qualificação exigida na fábrica moderna é instrumental e não de
ofício, ou seja, exigem-se trabalhadores preparados tecnicamente para operar as máquinas (Faria,
2004).
Para Harnecker (2000), o sistema capitalista, a partir dos anos de 1970, apresenta um novo
paradigma tecno-econômico, baseado na revolução tecnológica, envolvendo áreas como a informática e
as telecomunicações. Embora seja questionável que a produção moderna se constitua em um novo
paradigma, é correto considerar que o mesmo interage de forma bem-sucedida com a utilização dos
chamados “modelos gerenciais japoneses”, como o toyotismo, caracterizado pelos programas jus-in-
time, kanban, qualidade total e outros. Essas alterações modificam o processo produtivo, inserindo
técnicas de adaptabilidade e flexibilidade de processos, com a conseqüente transformação de estruturas
organizacionais que antes se apresentavam hierarquizadas e verticalizadas em estruturas flexíveis e
descentralizadas, com “grande autonomia para os trabalhadores”. O desenvolvimento dessa
“autonomia” parece ser restrito ao posto de trabalho, e tem seu exercício condicionado à aprovação
superior (Faria, 2004), sugerindo uma análise mais profunda quanto à estratégia da organização em
conceder “porções de poder” e sua conseqüência nas relações de produção.
O sistema fordista não apenas foi uma resposta às necessidades de reprodução de um sistema de
controle, mas se constituiu em um forte instrumento de política macrossocial, servindo de guia às
mudanças tecnológicas e organizacionais, por meio do monopólio de mercado, da negociação coletiva
entre as classes sociais e da manutenção do equilíbrio entre a produção e o consumo de massa. Sempre
é conveniente lembrar que o fordismo foi compatível com o modelo econômico keynesiano, enquanto
solução do capital para enfrentar a primeira grande crise de acumulação, que ocorreu em 1929,
conhecida como a Grande Depressão.
Com a internacionalização do capital, as organizações buscam alcançar níveis internacionais de
produtividade e competência por meio de inovações tecnológicas e mudanças nas relações e processos
de trabalho. No ambiente organizacional, as experiências sociais e políticas tomam forma sob o
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
aumento do desemprego estrutural, ganhos salariais modestos em setores específicos, desqualificação
do trabalhador e diminuição do poder sindical (Berberoglu, 2002).
Esse movimento permite sugerir o aparecimento de um sistema neofordista, que apresenta um
processo de trabalho adaptado às novas exigências de acumulação do capital, sendo flexível e integrado
a um novo modelo de relações entre produção e consumo. Um sistema atualizado e comprometido com
a busca da livre competição no mercado entre as organizações e com a desregulamentação do Estado
capitalista contemporâneo. Em síntese, as organizações perceberam que precisam aprimorar as suas
formas de controle nas relações de trabalho para garantir uma competitividade internacional (Amin,
1994).
O desenvolvimento das formas, mecanismos e instrumentos de controle tem acompanhado o
desenvolvimento das tecnologias físicas de diversas maneiras, porque há uma relação entre estas e as
de gestão (Faria, 2002a). Desde a criação da organização científica do trabalho (OCT), as organizações
têm procurado exercer a sua dominação, além de outras formas, também por meio das relações de
posse (processo de trabalho e de produção) para poder se apropriar da maior margem possível dos seus
custos. O controle sobre o processo de trabalho tem aumentado com as inovações tecnológicas por
incrementar o domínio físico e mental sobre o trabalho e o trabalhador (Dejours, 1999). A insatisfação
no trabalho pode remeter a novos aspectos sociais, que demandam perspectivas não lineares de análise
dos fenômenos organizacionais. É necessário buscar uma melhor compreensão da dinâmica social, das
relações de poder que atravessam as relações sociais e que culminam no que se pensa que as
organizações são e quais seus objetivos.
A perda do controle para a organização capitalista seria fatal à sua sobrevivência, ou seja, ao seu
processo de acumulação ampliada. Nesse sentido, ela precisa reinventar periodicamente os seus
sistemas de trabalho para sustentar a dominação nas relações de produção, por meio da desqualificação
e requalificação do trabalhador (Faria, 2002a). Alguns estudos organizacionais mostram, sob diversos
ângulos, as maneiras pelas quais as organizações estão ampliando suas formas de controle social: (i)
domínio e controle sobre o corpo (Foucault, 2000); (ii) manipulação do vínculo social (Freud, 1997;
Enriquez, 1974); (iii) desenvolvimento da afetividade no trabalho (Codo et al., 1998); (iv) banalização
da injustiça social (Dejours, 1999); (v) desenvolvimento do individualismo e da opressão (Chanlat,
1992); (vi) carga psíquica no trabalho (Dejours, 1999); (vii) corrosão do caráter (Sennet, 1999), entre
outras.
Uma abordagem que considere a subjetividade no trabalho exige uma concepção teórico-
metodológica fundamentada em uma teoria analítica que não se contente apenas com as aparências dos
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
fenômenos, visto que procura compreender “o que não é visto ou percebido, o que não se pode nomear
e que, de alguma forma, tende a aparecer” (Motta, 2000, p. 81).
Tal abordagem remete a um questionamento sobre os aspectos sociais, políticos, culturais
(Motta, 1986; Mezan, 1985), ideológicos (Althusser, 1999), imaginários (Castoriadis, 1982) e
simbólicos (Enriquez, 1997) que revestem o controle exercido pela organização do trabalho. Trata-se
de analisar os princípios gerais que regem o funcionamento das organizações, no sentido de levantar
questões sobre os indivíduos e grupos em relação ao reconhecimento de si e para si, e do outro (de seus
papéis e da sua identidade no plano social), o seu lugar na hierarquia, a estrutura das relações sociais e
as vivências das relações violentas e amorosas.

CONTROLE SOCIAL POR RESULTADOS: A PRÁTICA DA DOMINAÇÃO A SER VIÇO DO


SUCESSO ECONÔMICO

Motta (2000) salienta que as organizações podem ser mais bem compreendidas por meio da análise dos
processos sociais entre os quais estão as formas de controle social. O controle é um conjunto de ações
que visa fiscalizar as atividades das pessoas e empresas para que não se desviem das normas
preestabelecidas. O controle social é um conjunto de regras que codificam o campo de atividade de
cada indivíduo, bem como seu campo de relações sociais internas (estrutura hierárquica) e externas
(clientes, fornecedores e governo) à organização (Pagès et al., 1993). É também uma estratégia de
gestão organizacional que busca novas formas de expansão do capital envolvendo aspectos manifestos
e ocultos no âmbito das relações de trabalho e das relações de poder (Faria, 2002b). Enriquez (1999)
distinguiu sete formas de controle social cuja utilização, coletiva ou individual, tende a garantir a
manutenção do sistema vigente na organização.
O foco deste estudo é o controle social por resultados que busca superar as metas e objetivos
organizacionais por meio da competição econômica. Sob esse enfoque, a organização precisa ser
melhor do que seus concorrentes para alcançar o sucesso e manter a competitividade. A ideologia da
materialidade da sociedade capitalista pode ser observada nessa forma de controle, pois demonstra o
desejo das organizações de serem reconhecidas e valorizadas pelo ambiente no qual estão inseridas,
independentemente dos ideais de origem.
As organizações têm seu foco na livre competição e na idéia de que “os melhores” vencerão, e
aplicam esses conceitos no seu ambiente interno (Enriquez, 1997), incentivando a busca do sucesso nas
unidades, entre grupos ou indivíduos. O clima de competição interna cria processos conscientes e
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
inconscientes, que mantêm os indivíduos presos à idéia de sucesso, podendo transformar a organização
numa prisão psíquica (Morgan, 1996). Dessa forma percebe-se a vida como um grande espetáculo
(Debord, 1997) no qual o prazer é prometido, mas jamais realizado.

PERSPECTIVAS PSICOSSOCIOLÓGICAS NA ANÁLISE ORGANIZACIONAL

Os estudos organizacionais identificam muitas maneiras pelas quais se pode analisar uma organização.
Para Weber (1991), os fenômenos sociais, como as organizações, são constituídos a partir de
significados comuns e subjetivamente compartilhados, quer seja em estruturas burocráticas de
dominação ou nas instituições públicas pertencentes ao Estado moderno. Berger e Luckmann (1995)
definem o mundo segundo múltiplas realidades, dentre as quais ocupa posição destacada a vida
cotidiana, percebida pelo observador como ordenada e objetivada, associada a um forte sentimento de
intersubjetividade. Por outro lado, Enriquez (1999) sugere que a representação que uma organização
faz de si mesma, por meio de significantes e significados, pode não ser o que ela pensa que é. Assim
sendo, a psicossociologia nos remete ao escuro, ao inominável, ao inconsciente organizacional. Da
mesma forma, alguns fundamentos da psicologia e da sociologia foram aplicados na análise
organizacional nos estudos de Codo, Dejours (psicodinâmica do trabalho), Enriquez, Foucault
(microfísica do poder), Motta, entre outros.
Contudo, a perspectiva sobre as categorias manifestas e ocultas na organização mereceu um
estudo mais minucioso, conduzido por Enriquez (1994). Para verificá- las, ele propõe um corte
analítico, definindo sete instâncias de análise organizacional. Esse método de análise e intervenção foi
utilizado nesta pesquisa, na qual foram escolhidas quatro instâncias, com a finalidade de fundamentar a
abordagem teórico-metodológica utilizada para analisar as formas de controle.
As instâncias são níveis que procuram apreender a realidade organizacional por meio da análise
de seus sistemas cultural, simbólico e imaginário, com seus paradoxos e contradições (Enriquez, 1997;
Faria, 2002b). Podem ser compreendidas como um conjunto de categorias que se originam em
fenômenos manifestos ou ocultos, no nível consciente ou inconsciente, que atuam com uma força e
intensidade próprias, e cujos efeitos sobre as condutas individuais e coletivas persistem, ainda que as
causas tenham desaparecido, obedecendo a uma lógica própria. (Freud, 1997; Enriquez, 1997). Para
Enriquez (1997), trata-se de distinguir os princípios gerais que norteiam o funcionamento das
organizações, e ele propõe, para a realização dessas pesquisas, as seguintes instâncias de análise:

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
mítica, social-histórica, institucional, organizacional, grupal, individual e pulsional. Dessas, as
seguintes instâncias foram utilizadas neste estudo.
A instância mítica analisa as formas como o mito é utilizado pela organização. A empresa
enfatiza o seu passado, referindo-se à origem das coisas, de um evento, de uma comunidade ou uma
organização. Essa origem é que define a estrutura da coisa criada, legitimando regras para a sua
continuidade. Busca-se uma identificação com a organização por meio da afetividade entre essa e os
membros do grupo, formando um vínculo social baseado nos sentimentos de afeto, consideração e
amor, criando uma dependência institucionalizada. Assim, a organização consome a energia do
indivíduo, que se dedica totalmente ao trabalho, sofrendo um aumento da carga psíquica (Dejours et
al., 1994), pois precisará reafirmar constantemente a sua submissão ao mito.
A instância social-histórica analisa de que forma a organização garante o cumprimento dessa
missão por meio da definição de uma ideologia. (Enriquez, 1994, 1997; Schirato, 2000). É um sistema
que oferece diversas interpretações de mundo, construindo uma realidade de acordo com as
necessidades da organização. Com isso, a ideologia quer esconder os conflitos e ocultar as relações de
dominação, demonstrando na aparência a homogeneidade do grupo. Mostra e mascara a realidade
simultaneamente, oferecendo uma forma às práticas sociais existentes, pois dessa forma manterá a sua
supremacia, dominação e controle social.
A instância organizacional analisa o nível das estruturas, da divisão do trabalho, dos sistemas
de autoridade e das relações de poder. É o lugar das práticas sociais, das lutas e das estratégias. Nesse
aspecto, a organização é mais do que a tecnologia que possui em maquinários, processos e métodos de
trabalho, pois também se apresenta como o lugar da realização dos desejos e projetos individuais e
grupais, da realização das condições de trabalho.
A instância grupal. Para Enriquez (1997), é preciso estudar tanto os grupos formais, criados por
meio da administração por equipes, com funções pré-determinadas e atividades controladas, como os
grupos informais, que advêm de uma associação espontânea entre os seus membros. Castoriadis (1982)
afirma que o grupo é o lugar em que os indivíduos expressam os sentimentos de solidariedade em prol
do objetivo comum, da luta e resistência operária contra a direção da empresa. Enriquez (1997) afirma
que o grupo é sempre portador de um projeto comum que define a sua ação, seus objetivos e seu
sistema de valores. Tendo um objetivo, o grupo se apóia em um imaginário social comum, isto é, uma
representação coletiva do ideal do ego daquilo que ele quer ser. Transgredir é questionar as instituições
e as condutas em vigor; é utilizar a criatividade para propor novas idéias. A organização do trabalho
luta contra a formação de grupos que, no seu interior, não compartilhem dos mesmos interesses da
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
própria organização. Isso tende a impedir o desenvolvimento das relações humanas e o aparecimento
de situações novas e criativas que poderiam auxiliar no crescimento da própria organização.

Prática Da Dominação Por Meio Do Mito E Da Ideologia


As empresas buscam a sobrevivência na conquista de novos mercados, procurando desenvolver uma
estrutura interna proativa e criativa para fazer frente aos novos desafios e, se possível, superar ou até
eliminar seus concorrentes. Para atingir esses objetivos, ela precisa de pessoas que tenham
comprometimento com esse sucesso.
Para Enriquez (1999), a busca do sucesso implica a existência e aceitação de um ambiente de
competição entre empresas e entre sujeitos envolvidos no processo organizacional. A pesquisa mostrou
que a maioria dos funcionários (76%) aceita a existência de competição ent re os membros da empresa
considerando o fato como normal no ambiente de trabalho. Esse resultado, quanto ao fato de ser
“normal”, pôde ser confirmado por meio da declaração de um dos entrevistados, para quem “o
relacionamento é bom e é profissional. Não é um problema conviver com as pessoas aqui na empresa.
Acho que é profissional, mas acaba sendo pessoal, com algumas exceções”.
A percepção da existência de uma competição entre as áreas ou departamentos não é percebida
no nível tático da mesma forma, já que 67,5% discordaram da afirmativa. Para esse nível, as questões
são individuais e não departamentais. A diferença de opiniões entre os níveis fica clara na afirmação de
um entrevistado do nível estratégico, que identifica que “temos problemas de disputa de poder na
empresa”. Em contrapartida, um entrevistado do nível tático declarou que as disputas são individuais e
não coletivas quando verificou que um grupo de colaboradores não conquistou suas reivindicações.
Como a empresa possibilita promoções internas e trocas de funções entre seus funcionários, o alvo da
competição acaba sendo o individual, pois o sujeito pode estar alocado entre departamentos.
Interessante verificar que, no nível operacional, são muitas as opções de mudança de função dentro de
um único departamento, antes de o empregado ser transferido para outro, explicando, assim, o fato de
que esse nível compete individualmente e como um grupo, já que os funcionários estão alocados em
linhas de produção contínuas dentro do sistema flexível. Essa particularidade é negada quando a
percepção se dá nos níveis mais elevados da organização Alfa.
A instância mítica se refere aos desejos e sonhos em comum que dão suporte à criação de um
grupo organizacional que apresenta uma coerência em seus pensamentos e comportamentos, gerando a
ação desejada pela organização. Isso se verificou na empresa analisada, em que aparece a identificação
(71%) dos desejos dos funcionários com os da empresa. Tal identificação é ratificada pela declaração
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
de um entrevistado: “Espero que a empresa cresça e se consolide no mercado. A minha missão é ajudar
a empresa para que eu cresça também”. Note-se que o colaborador espera uma projeção sua no
mercado globalizado, da mesma forma como acontece com a empresa. Assim, o modo como ela mostra
ser a sua existência, enquanto organização, é o modo como ele espera um reconhecimento como um ser
laboral dessa organização. Os dados apontam como é importante para os funcionários a imagem
externa da empresa, o que ela parece ser para os outros, pois ele se identifica e se apóia nessa imagem.
Verificou-se que a imagem projetada pela organização e percebida (80%) pelos funcionários foi
um fator determinante para a sua entrada na empresa. Houve motivação inicial de fazer parte de algo
diferente, moderno e dinâmico nas suas relações sociais caracterizadas pela diversidade cultural
apresentada pela Alfa. Esse comportamento é corroborado nas afirmações de dois entrevistados:

Eu queria trabalhar numa empresa que tinha gente do mundo inteiro, que tinha possib ilidades
de crescimento, que tinha um intercâmbio cultural enorme, uma imagem maravilhosa. Nossa,
eu pensei que era o lugar que eu tinha pedido a Deus. E eu realmente quis muito no processo
de seleção. Hoje eu sei que não é isso.

A empresa surgiu naquela época como uma possibilidade de trabalho, de experiência


profissional incrível, a imagem que ela tem no mercado [...]

Essa valorização da imagem que a organização aparenta ser refere-se ao mito de grandeza que a
empresa estudada reforça a todo momento no seu interior. Ela reforça uma identidade que não possui e
uma consistência existencial não verdadeira. Durante todo o período da pesquisa de campo, observou-
se que os funcionários, em sua maioria, sentiam-se desmotivados com o futuro deles dentro da
empresa, resignados, sem perspectiva de crescimento profissional, e confusos com a realidade
ambiental, pois não conseguiam compreender por que a realidade atual era diferente daquela imaginada
inicialmente. Um entrevistado manifestou opinião, confirmando a existência de uma contradição entre
o que ele imaginava que seria e a sua percepção do que a empresa realmente é: “A gente sente um
pouco a falta da empresa na sociedade, ninguém fala da empresa enquanto ente assim”. Aqui o
entrevistado se refere aos valores difundidos pela empresa sobre sua inserção na comunidade local,
promovendo eventos e ações na área social da região. Na segunda opinião do mesmo entrevistado, o
mito da empresa maravilhosa é desfeito, pois a percepção da realidade atual é contrária à idéia inicial
de grandeza e sucesso prometido, o que vem corroborar a concepção de Enriquez (1997) de que as

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
organizações ocultam a sua história real, conduzindo os sujeitos a se tornarem membros da equipe e a
se sentirem parte de algo maior do que eles.

A empresa parece que é uma garagem que retifica motores, uma coisa assim. E isso choca um
pouco a gente. A gente se mata de trabalhar aqui, estou falando dos colegas da minha
geração, que começaram no barracão. A gente fez um processo de seleção muito rigoroso e
muito demorado e, de repente, parece que você está trabalhando numa oficina de fundo de
quintal.

A empresa construiu uma imagem de sucesso e futuro grandioso, quando da sua instalação em 1998,
para atrair talentos nacionais que se dispusessem a contribuir para a construção e o crescimento de algo
realmente importante para a sociedade. Verificou-se que vários funcionários ainda estavam engajados
no trabalho, na esperança do cumprimento das promessas iniciais. Observou-se que os funcionários
acreditam (51%) que os discursos feitos pelos dirigentes da empresa são compatíveis com as
expectativas e as promessas feitas na ocasião da instalação da Alfa. Enquanto alguns esperam que tais
promessas sejam cumpridas, outros não acreditam mais nelas, pois a prática mostrou serem elas
inócuas, como afirmou um dos entrevistados:

Eu entrei quando ainda era o escritório provisório. Isto criou uma expectativa muito grande e
isto é muito frustrante hoje. Entramos numa das maiores empresas de motores do mundo e
fica claro que nós agora estamos trabalhando no plano real e não mais aquele sonho, como se
via. A empresa está mudando o perfil, as pessoas boas estão saindo e entram outras com um
nível mais baixo no lugar. Isto é visível.

A entrevista acima confirma a idéia de Dejours et al. (1994) de que trabalhar em uma organização de
sucesso é uma realização imaginária a ser cumprida pelo sujeito, mesmo que o trabalho acarrete uma
carga psíquica que afete a sua saúde física e mental. O entrevistado E07, que acompanhou o
nascimento da empresa e que tinha uma expectativa em relação ao seu crescimento e desenvolvimento
profissional, atrelado ao crescimento da empresa, percebeu que o seu desejo de reconhecimento jamais
seria atendido, o que ocasionou a sua saída imediata da empresa. Essa decisão foi tomada após uma
conversa com o nível estratégico. Esse fato confirma a idéia de Enriquez (1997) de que a empresa
constrói uma realidade aparente que os sujeitos assumem como verdade. Porém, quando cai a máscara,

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
quando o imaginário se reve la como farsa e o sujeito se defronta com a realidade organizacional e
consigo mesmo, o caminho do rompimento do vínculo prontamente se coloca, seja ou não trilhado.
Com base na “filosofia de avaliação e promoção interna” dos funcionários, desenvolvida pela
empresa, este estudo pôde mostrar que os entrevistados acreditam que a empresa valoriza (55%) as
pessoas que são competentes. Porém, quando se analisou a resposta entre os níveis hierárquicos, houve
discordância por parte de 50% dos respondentes do nível tático quanto à vinculação da valorização à
competência. Para compreender melhor essa contradição, apresentam-se informações de empregados
do nível tático com a finalidade de comprovar ou refutar tal vinculação. Com base nas respostas,
concluiu- se que a empresa não segue as normas e regras internas definidas por ela, o que causou
frustração e descontentamento por parte de diversos funcionários. O Quadro 2 indica as contradições e
inconsistências em que a teoria aparece desvinculada de uma prática coerente com ela.

QUADRO 2 – REGRAS PARA AS PROMOÇÕES INTERNAS


COMO DEVE SER COMO É
O candidato não precisa ter habilidades técnicas e
O candidato deve ter as habilidades necessárias.
sim relacionamento político com o nível estratégico.
Nenhum subordinado foi consultado em sua opinião
Os futuros subordinados deverão emitir suas
sobre os candidatos nos processos ocorridos até a
opiniões sobre o candidato.
data da pesquisa.
Não há espaço social para que os futuros colegas se
Os futuros colegas do novo funcionário participam
posicionem sobre os possíveis candidatos no nível
do processo de decisão do recrutamento ni terno,
tático e operacional. O superior imediato decide
pois é determinante para o sucesso da equipe.
com o RH o melhor candidato para a vaga.
Fonte: Hopfer (2002).

Verificou-se que a empresa possui normas e regras internas que têm por objetivo propiciar aos
funcionários um desenvolvimento constante dentro da estrutura organizacional. Porém, a essa intenção
não corresponde uma efetividade no trabalho, como ficou demonstrado nas entrevistas realizadas,
corroborando o conceito de Enriquez (1997) de que a ideologia que a empresa prega no seu ambiente é
freqüentemente desmascarada pelos membros da organização. Contraditoriamente, é possível sugerir
que a própria empresa não está seguindo o melhor caminho para a construção da sua cultura
organizacional.

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Práticas da dominação por meio das estruturas e das políticas internas
A tecnologia, as metodologias e os procedimentos adotados por uma empresa são também utilizados
para estruturar os desejos e projetos dos seus grupos sociais. Trata-se da busca pela racionalização do
trabalho, que envolve uma competição interna, reivindicação social, e aumento de produtividade no
processo organizacional. Assim, constrói-se a relação social no trabalho em que, ao mesmo tempo, (i) a
empresa está sempre em busca de melhoria de processos e produtos e (ii) o sujeito está buscando a sua
própria realização pessoal na organização do trabalho.
Os dados coletados mostram um processo de dominação da empresa sobre os funcionários, pois
estes demonstraram parâmetros díspares nas respostas. Enquanto criticam a desqualificação e o não
reconhecimento do trabalho desenvolvido na empresa, submetendo-se às normas e à estrutura
hierárquica, percebem a existência de liberdade no ambiente organizacional. Observou-se que muitos
funcionários tinham liberdade de ação em relação ao seu trabalho, permitindo o exercício da
criatividade.

TABELA 1 – FORMAS DE CONTROLE POR RESULTADOS MEDIANTE AS ESTRUTURAS E


POLÍTICAS

Concordância
Questões:
%
1.A criatividade é permitida livremente dentro da empresa. 71,9
2.As ações criativas no trabalho são reconhecidas pela empresa. 62,3
3.As pessoas que são produtivas no trabalho são valorizadas pela empresa. 55,3
Fonte: Hopfer (2002).

Mesmo tendo sido confirmada a existência da criatividade por todos os níveis hierárquicos, um
entrevistado declarou que a empresa não estimula tal atributo, pois prefere que seus funcionários
trabalhem inseridos na rigidez da estrutura: “Acho que você precisa usar a criatividade, senão você fica
como executor. Mas, para a empresa, você precisa ser um executor”. As organizações permitem que os
indivíduos tenham liberdade parcial no trabalho, desde que controlada pela estrutura. Um dos controles
é exercido sobre a livre expressão, que amedronta as organizações, sendo substituída pela palavra
vigiada. A pesquisa confirmou que existe a percepção dessa prática, pois os funcionários afirmaram
que é preciso ter cuidado com o que se fala dentro da empresa.

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Da mesma forma, a empresa permite que exista uma competição interna, desde que ocorra
dentro das suas regras. A competição interna é importante para a empresa, pois estimula o trabalho
produtivo; por outro lado, se não fosse controlada, possibilitaria a formação de grupos internos
contestadores, estimulando a pulsão de vida, fato esse verificado na empresa estudada. Porém, no nível
tático foi novamente detectada uma divergência de opinião dos funcionários, discordando da existência
de uma competição interna na Alfa. Com base na declaração de um entrevistado desse nível, verificou-
se que a competição interna não é percebida, pois as possibilidades de mudança dentro da estrutura, em
função dessa competição, foram consideradas remotas. Isso foi confirmado pela seguinte declaração:

Não existe uma competição interna, pois existem dois grupos bastante distintos. Um grupo
que entrou bem no início da empresa, por um processo de seleção bastante feliz, atingiu bem
os objetivos, conseguiu trazer grandes profissionais. Outro que ainda está começando a sua
atividade profissional. Então, a competição não existe.

A declaração acima remete à questão abordada por Enriquez (1994) de que o caos desorganizador que
remonta à origem da empresa tende a retornar em alguns momentos na vida dela. Verificou-se que
alguns entrevistados fizeram analogias entre o passado e o presente da organização, principalmente por
ser um passado recente, afirmando que havia mais liberdade de ação, que se tinha o sonho de construir
uma grande empresa, que as pessoas assumiam múltiplas funções e que as tarefas não eram muito
organizadas, o que exigia iniciativa para tomar decisões. Nesse sentido, os funcionários concordaram
que a desorganização no trabalho ajuda as pessoas a terem mais liberdade. Diferentemente das outras
questões, a contradição apareceu no nível estratégico, em que 66,7% dos gerentes e diretores
discordaram da opinião de que uma desorganização parcial seja algo positivo e que estimule a
liberdade e a criatividade. Sendo os dirigentes os portadores dos ideais e objetivos das organizações,
esse posicionamento confirma o entendimento de Enriquez (1994) de que as organizações têm medo do
desconhecido, do imprevisível, temendo uma ameaça à estrutura organizacional.
Um entrevistado do nível estratégico asseverou que a desorganização do início da empresa
estava acabando e que coisas e pessoas estavam se adequando à nova realidade: “Acredito que agora as
pessoas estejam definindo o seu lugar na organização, o seu papel na relação com ao outro”. Quando
uma empresa permite a existência de um espaço criativo, significa que ela não apenas aceita coisas
novas, como quer incentivá- las. Os funcionários, em todos os níveis hierárquicos, afirmaram que a

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
empresa estudada reconhece as ações criativas no trabalho. Porém, no decorrer da pesquisa foram
identificadas duas opiniões contrárias ao resultado do questionário.
Esses entrevistados afirmaram que a empresa permite ações criativas, mas não as reconhece
nem as valoriza dentro da estrutura. Essas percepções evidenciam um dos medos organizacionais
referidos por Enriquez (1994): o medo do pensamento, no qual certa liberdade pode levar o sujeito a
tomar consciência e questionar o sistema no qual está inserido:

Eu pedi para ter espaço de atuação com a saída do gerente, pois queria mostrar o que era
capaz de fazer. Então a empresa não contratou um novo gerente. O momento para mim é
bastante desafiador e inovador. Mas não acho que reconhecer o trabalho criativo seja política
da empresa.

A empresa não vê com bons olhos o trabalho criativo, mas não que isso sirva de recompensa.
O trabalho tem que ser criativo principalmente na nossa área porque se ele não for criativo ele
não pode ser realizado.

A busca da produtividade é fundamental para as empresas competitivas da era globalizada. A pesquisa


mostrou que a crença na valorização individual está atrelada à produtividade no trabalho.

Prática da dominação por meio de grupos


A organização, para manter-se em equilíbrio, necessita alcançar certa coesão gr upal entre seus
membros. Tal coesão não impede ações individuais, mas procura dificultar que os membros se voltem
contra a estrutura e ameacem destruí- la. A percepção de que é preciso respeitar as regras existentes,
para almejar as valorizações profissiona is no interior da estrutura, foi confirmada (78%) pelos
funcionários da organização pesquisada quando afirmaram que precisam respeitar a hierarquia para ter
sucesso na empresa.
Verificou-se que a idéia de Enriquez (1994) de que as organizações controlam a competição
existente no seu ambiente foi identificada na empresa pesquisada. Os funcionários afirmaram que
percebem a competição entre os departamentos dentro da empresa, porém declararam não haver
estímulo (61%) por parte dela para esse comportamento. Essa falta de estímulo se deve ao “medo do
outro”, em que os grupos formais são controlados pela estrutura e os informais são desmontados, para
que não ameacem o controle instituído. Como já explicitado em outro estudo, “o grupo é o lugar em
que os indivíduos expressam os sentimentos de solidariedade em prol do objetivo comum, da luta e da
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
resistência operária, especificamente no âmbito das organizações produtivas capitalistas, contra a
direção” (Faria, 2004).

CONCLUSÃO

Esta pesquisa teve como objetivo ident ificar, entre várias, uma das formas de controle social presentes
na empresa Alfa a partir de indicadores desenvolvidos na matriz teórico-metodológica da Economia
Política do Poder. Optou-se por trilhar o caminho das relações sociais no trabalho, investiga ndo a
percepção dos funcionários sob o prisma de quatro instâncias de análise, tendo como objeto o controle
dos resultados, o qual é exercido por meio do estímulo à competição interna, à individualidade e à
busca da identificação do sucesso individual vinc ulado ao sucesso da organização. Essa forma de
controle foi encontrada, pois os funcionários acreditam na imagem de grandeza da empresa que está
sendo projetada na sociedade. A missão da empresa, que é ser referência mundial, estimula construções
imaginárias nos sujeitos, como a criação de expectativas e projeções de um sucesso no futuro a ser
alcançado. Porém, a pesquisa demonstrou que esse ideal não tem correspondido ao imaginário após a
entrada do funcionário na empresa. Com o passar do tempo, a expectativa de sucesso provoca um efeito
contrário ao desejado pela empresa, desmotivando as pessoas para o trabalho e destituindo-as do sonho
de um futuro almejado.
A projeção de realização do sonho do sujeito deveria ser uma conquista cada vez mais palpável.
O resultado buscado pela empresa, contudo, tem sido atrelado à produtividade, o que significa a
supremacia da razão sobre o imaginário, da acumulação ampliada do capital sobre as relações humanas.
A Alfa, sendo uma empresa nova, está tentando construir uma identidade própria, através de políticas
internas que vêm sendo desenvolvidas conjuntamente com o crescimento da empresa. A pesquisa
permitiu perceber que há restrições a mudanças e uma tendência à centralização dos processos por
meio das estruturas e regras gerais da organização. Nesse enfoque, os processos de controle aqui
analisados, a despeito de seu foco principal, acabam sendo permeados por uma rigidez burocrática, ou
seja, pela formalização, a qual acaba por definir as partes do trabalho que serão executadas pelas
pessoas envolvidas no processo. O mito do sucesso mundial deve ser propagado à exaustão, utilizando
diversas ações organizacionais que promovam um controle social, com foco nos resultados desejados,
corroborando a idéia de Enriquez.

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
O controle por resultados foi percebido na uniformidade de opiniões entre os três níveis
hierárquicos, principalmente entre o estratégico e o operacional, em diversos aspectos pesquisados. Em
alguns momentos o nível tático expressou-se contrário à opinião dos outros níveis.
A empresa estimula a competição entre os membros, mas não há uma unidade nas opiniões em
relação à competição entre os departamentos ou grupos, fato esse que promove a individualidade e não
a formação de grupos que poderiam gerar uma sinergia de poder frente à organização. Da mesma
forma, a imagem projetada pela empresa é valorizada pelos membros, confirmando a afirmativa de
Enriquez na qual a aparência da organização é importante para os sujeitos nela inseridos.
A busca do sucesso se refere à aceitação de mudanças contínuas nos processos organizacionais,
baseados na criatividade interna dos sujeitos. Isso foi percebido na empresa como uma criatividade
controlada, pois os membros se vêem como meros executores, sem liberdade de expressão e destituídos
de espaço para troca de idéias.
Igualmente, foi possível apreender alguns conflitos e contradições no interior da estrutura, por
meio de afirmação de que a competição não existe, pois as decisões são baseadas nas relações políticas
internas e não nos resultados alcançados. A valorização e o reconhecimento são prorrogados para um
momento futuro até o sujeito compreender que tal momento nunca chegará e que não conseguirá
satisfazer o seu desejo de reconhecimento. Essa não-valorização causou a saída de alguns funcionários
da empresa.
A organização será sempre um lugar de conflitos, e os indivíduos enfrentam esses conflitos
quando desenvolvem construções imaginárias e vínculos afetivos em relação à empresa na qual
trabalham. A organização não deseja mudanças, mas precisa delas para sobreviver; da mesma maneira
que necessita buscar uma homogeneidade no trabalho, definindo zonas onde será possível trabalhar. A
pesquisa permitiu perceber as formas como a empresa utiliza o seu “poder de dona” dos processos
organizacionais, para tomar decisões contrárias às próprias políticas internas previamente definidas. As
organizações, como se sabe, não apenas estão inseridas em um processo histórico da sociedade, como
também se transformam e evoluem para manter um crescimento sustentado ao longo da sua existência
formando uma ideologia própria.
Nesta pesquisa ficou evidenciado que essa ideologia se propõe a apreender os fatos e dar conta
do real em uma representação única, que oferece as respostas adequadas para os conflitos nas relações
sociais. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que enfrenta a realidade do ambiente organizacional, a
empresa também a esconde dos sujeitos, sugerindo que a liberdade de interpretação das práticas sociais
só pode ser manifestada se o sujeito consegue identificar seu lugar na organização e com ela.
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Sendo assim, conclui-se que a forma de controle social analisada está presente na empresa e que
o sucesso almejado poderá depender das estratégias estabelecidas na comunicação interna e na gestão
de pessoas. Mesmo que a empresa tenha definido as pessoas como um de seus focos principais de
investimento e desenvolvimento, a prática se mostrou diferente, pois a insatisfação dos funcionários
com relação ao seu futuro na empresa, como um plano de carreira, por exemplo, sugere a necessidade
de melhorias nesse aspecto. A perda dessa visão de futuro poderá ocasionar novas saídas de
funcionários a curto prazo. Percebe-se que o desenvolvimento de um conhecimento sobre a dinâmica
das relações sociais no trabalho melhora a qualificação dos membros para enfrentar futuros desafios,
como decisões de permanecer na empresa ou seu desligamento. De todo modo, é importante observar
que, embora esta pesquisa não tenha avançado nessa linha de investigação, a percepção das
dissonâncias entre o que é pensado e o real, por parte dos colaboradores, é fundamental para organizar
as formas de resistência.
Este estudo permite apontar algumas recomendações para pesquisas futuras e para sua própria
continuação. Sugere-se identificar mais profundamente as formas de controle também sob o prisma das
instâncias de analise institucional, pulsional e individual. Como o grupo de pesquisa vem trabalhando
principalmente com unidades produtivas industriais, sugere-se, também, que se realize pesquisa
semelhante em outras organizações não industriais, de forma a ampliar as bases de uma teoria sobre o
controle social. Pode ser interessante realizar uma nova pesquisa na mesma empresa, nos próximos
anos, e apontar possíveis mudanças significativas na forma de controle encontrada nesta pesquisa.
Finalmente, a título de recomendação, considerando que, como foi possível observar, o fato de a Alfa
ser uma empresa transnacional suscita inúmeros conflitos de ordem “cultural”, é oportuno que se
desenvolvam estudos nessa área, buscando identificar referências simbólicas, valorativas,
morfológicas, ideológicas e psicossociais.
Este foi um estudo de caso. As conclusões, portanto, pertencem à investigação do caso
pesquisado, não permitindo generalizações. Como esta pesquisa se desenvolveu no âmbito do grupo de
pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais, pode-se afirmar, contudo, que as
conclusões mais gerais correspondem ao que foi encontrado em outras organizações.

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.

AMIN, A. Post-Fordism: A Reader. Oxford: Blackwell Publishers, 1994.

BERBEROGLU, B. Labor and Capital in the Age of Globalization. Lanham: Rowman&Littefield


Publishers, 2002.

BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1995.

BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista. A degradação do trabalho no século XX. 3a ed.


Rio de Janeiro: LTC, 1987.

CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CHANLAT, J.(Org). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1992.

CODO, W.; SAMPAIO, J.; HITOMI, A. Indivíduo, trabalho e sofrimento. Petrópolis: Vozes, 1998.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.

DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento


e transgressão no trabalho. São Paulo: Fundap: EAESP/FGV, 1999.

ENRIQUEZ, E. Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, v. 36-37, p. 53-94, 1974.

ENRIQUEZ, E. O vínculo grupal. In: ENRIQUEZ, E. Psicossociologia: análise social e intervenção.


Petrópolis: Vozes, 1994.

ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Petrópolis: Vozes, 1997.


© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
ENRIQUEZ, E. Da horda ao Estado. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

FARIA, J. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas. Curitiba: Criar, 1987.

FARIA, J. Poder e relações de poder nas organizações. Curitiba: UFPR, 2002a.

FARIA, J. Economia política do poder: uma proposta teórico-metodológica para o estudo e a análise
das organizações.In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 2., 2002, Recife. Anais:
Recife, Anpad, 2002b.

FARIA, J. Economia política do poder. Curitiba: Juruá, v. 2, p. 48, 2004.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2000.

HARNECKER, M. Tornar possível o impossível: à esquerda no limiar do século XXI. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.

HOPFER, K. Organização, poder e controle social. Curitiba: UFPR (Dissertação de mestrado), 2002.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. v. 1

MAYO, E. The Human Problems of an Industrial Civilization. New York: The Viking Press, 1960.

MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. Brasília: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico, 1985.

MORGAN, G. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 1996.

MOTTA, F. C. P; BRESSER-PEREIRA, L. C. Introdução à organização burocrática. São Paulo:


Brasiliense, 1986.

MOTTA, F. C. P; FREITAS, M. E. (Orgs.). Vida psíquica e organização. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

PAGÈS, M.; BONETTI, M.; GAULEJAC, V.; DESCENDRE, D. O poder das organizações: a
dominação das multinacionais sobre os indivíduos. São Paulo: Atlas, 1993.
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
SENNET, R. A corrosão do caráter. São Paulo: Record, 1999.

SCHIRATO, M. A. R. O feitiço das organizações. São Paulo: Atlas, 2000.

WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1991.

Artigo enviado em 14.04.2004. Aprovado em 14.09.2005.

Kátia Regina Hopfer


Professora da UniFae/Pós. Mestre em Administração pela UFPR/DAGA.
Interesse de pesquisa nas áreas de gestão empresarial, controle social, empresas familiares.
E- mail: hopfer@terra.com.br
Endereço: Rua Almirante Tamandaré, 1408/52, Alto da XV, Curitiba – PR, 80040-110.

José Henrique de Faria


Professor titular da UFPR/DAGA. Pós-Doutor em Relações de Trabalho pela University of Michigan.
Interesse de pesquisa nas áreas de relações de poder, tecnologia, processo e relações de trabalho,
psicossociologia e análise organizacional, teoria crítica e epistemologia.
E- mail: jhfaria@gmail.com
Endereço: Rua São Pedro, 637/61, Cabral, Curitiba – PR, 80035-020.

© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica


REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: O
MUNDO DO TRABALHO EM TRANSFORMAÇÃO

José Henrique de Faria 1


Rua Dr. Faivre, 405 - Sala 501 - Centro
CEP: 80060-150 Curitiba/PR Brasil
Tel.: (41) 3605044
E- mail: hfaria@ceppad.ufpr.br

Antonio Kremer 1
Rua Dr. Faivre, 405 - Sala 501 - Centro
CEP: 80060-150 Curitiba/PR Brasil
E- mail: antonio_kremer@uol.com.br
1
Universidade Federal do Paraná – UFPR
Setor de Ciências Sociais Aplicadas
Departamento de Administração Geral e Aplicada
CEP: 80060-150 Curitiba/PR Brasil

Resumo:
Este artigo analisa as relações entre os processos de reestruturação produtiva e de
precarização do trabalho. As dimensões de aná lise privilegiadas são: (i) desemprego; (ii)
vínculos empregatícios; (iii) preço da força de trabalho; (iv) qualidade dos postos de trabalho.
Os resultados indicam que a base técnica característica do regime de acumulação flexível é
poupadora de mão-de-obra, o que contribui para o aumento do desemprego estrutural. Os
vínculos empregatícios formais tendem a se tornar mais tênues, assim como, a participação do
trabalho informal no total da mão-de-obra ocupada apresenta uma trajetória de crescimento.
No que se refere ao preço da força de trabalho, é observado uma tendência declinante no
decorrer da última década. O processo de reestruturação produtiva contribui para a
deterioração da qualidade dos postos de trabalho, através da intensificação do trabalho nos
espaços fabris, promovida pela redução dos ciclos de operação, operação simultânea de um
conjunto de máquinas, entre outros. A intensificação do trabalho, aliada a extensão da jornada
contribui para elevar o risco do trabalhador desenvolver doenças ocupacionais relacionadas à
LER/DORT.

Palavras-chaves: Trabalho, precarização do trabalho, reestruturação produtiva.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: O


MUNDO DO TRABALHO EM TRANSFORMAÇÃO

Durante mais da metade do século XX, o processo hegemônico de produção de


mercadorias no modo de produção capitalista é aquele que combina os princípios da
administração científica de Taylor com as inovações introduzidas por Ford, tais como a linha
de montagem, a padronização dos componentes e a verticalização da produção. O modelo de
produção fordista, gestado no início do século passado nas fábricas de automóveis de Henry
Ford, difunde-se pelos diversos países industrializados e, mais tardiamente, nos países em fase
de industrialização. O fordismo configura-se como um verdadeiro regime de acumulação e
implementa um sistema de regulação e compromisso entre proprietários do capital,
trabalhadores e o Estado, conhecido como compromisso fordista ou welfare state.
Contudo, o modelo fordista de produção de mercadorias entra em declínio no final dos
anos sessenta e início dos setenta do século passado, desencadeando um processo de
reestruturação produtiva, que vem a constituir um novo regime de acumulação, denominado
por Harvey (2002) de regime de acumulação flexível. Como modelo de produção, ocorre a
implementação de uma nova base técnica, compreendendo a implementação de novas
tecnologias físicas de base microeletrônica e novas formas de organização e gestão do
trabalho, que promovem profundas modificações no espaço fabril (FARIA, 1997). Como um
novo arranjo societal, o regime de acumulação flexível busca superar, na esfera
jurídico/política, a rigidez do compromisso fordista.
Paralelamente ao processo de reestruturação produtiva, está em curso o processo de
precarização do trabalho. Este processo, normalmente associado ao trabalho informal, passa a
fazer parte do universo dos trabalhadores de uma forma geral, sendo que sua manifestação
principal é a degradação dos padrões de compra e venda da força de trabalho. A precarização
do trabalho é um processo que possui múltiplas dimensões, seja no plano objetivo, seja no
plano subjetivo. Neste artigo, privilegiam-se quatro dimensões de análise ligadas mais
diretamente, mas não exclusivamente, ao plano objetivo. São elas: (i) o desemprego; (ii) os
vínculos empregatícios; (iii) o preço da força de trabalho; (iv) a qualidade dos postos de
trabalho. Para empreendermos a análise proposta será utilizado um conjunto de dados
proveniente de diversas fontes, quais sejam: Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE);
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC); Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE); Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 2


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

econômicos (DIEESE); Confederação Nacional da Indústria (CNI); jornais Folha de São


Paulo e O Estado de São Paulo; Produção acadêmica relacionada aos temas da pesquisa.

1. Referencial Teórico
O processo de reestruturação produtiva, de forma estrita, refere-se à incorporação, nas
plantas produtivas, de novas tecnologias físicas de base microeletrônica e de novas formas de
organização e gestão do trabalho. Tal processo, porém, inscreve-se em um quadro de
transformações mais profundas, que envolvem não apenas o processo de produção de
mercadorias, mas todo um arranjo societal. Estas transformações vêm a ser uma resposta do
capital frente à crise do modelo fordista de acumulação, que é a base da expansão econômica
registrada nos países capitalistas centrais após a segunda guerra mundial. No final dos anos
1960, este modelo começa a apresentar sinais de exaustão, não apenas no que se refere à
capacidade de geração de taxas crescentes de lucro, mas também de organização social,
fazendo emergir crises nos estados capitalistas centrais (crise do Estado de bem estar social).
As considerações precedentes indicam que o processo de reestruturação produtiva é
um fenômeno que transcende a categoria de novas formas de organização do trabalho, estando
inscrito em uma reordenação das forças produtivas, dos padrões de concorrência e dos
próprios estados nacionais.
O fordismo, visto como modo de produção, combina a administração científica -
gerência racional do trabalho - ao uso de novas tecnologias representadas pela linha de
montagem e pela padronização das peças, aliados a um sistema de remuneração mais
agressivo, oferecendo salários acima da média de mercado e um conjunto de benefícios que
não são oferecidos até essa ocasião (DRUCK, 1999). O trabalho torna-se extremamente
parcelado e ocorre a transferência da dimensão intelectual deste para os profissionais técnicos
e a gerência. Estas transformações engendram um processo produtivo altamente verticalizado,
bastante homogêneo, tendo por fim a produção de mercadorias em massa (ANTUNES, 1999).
Segundo Alain Lipietz, um dos expoentes da escola da regulação, o fordismo deve ser
entendido como “um regime de acumulação e um modo de regulação” (1991: 31). Como
regime de acumulação, apresenta os seguintes pontos centrais:
• Produção em massa de mercadorias, em que ocorre separação entre a concepção e
a execução, aliada à crescente mecanização do processo produtivo, levando à
elevação constante dos níveis de produtividade;
• Crescente poder aquisitivo dos trabalhadores de acordo com o aumento de sua
produtividade;

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 3


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

• Estabilidade das taxas de lucro, com utilização plena da capacidade produtiva e


pleno emprego.
Como modo de regulação, ainda segundo Lipietz (1991), o compromisso fordista
“comportava os seguintes ingredientes”:
• Legislação sobre o salário mínimo e as convenções coletivas, levando à sua
generalização, e indução do aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores de
acordo com o aumento da produtividade;
• Previdência social que leve a população a se manter como consumidora, mesmo
quando impedida de exercer alguma atividade assalariada;
• Emissão de moeda, controlada pelo banco central, de acordo com as necessidades
da economia, levando à desvinculação entre a moeda em circulação e reservas em
ouro.
De acordo com Lipietz “o ‘compromisso fordista’ realizava a conexão entre produção
de massa crescente e consumo de massa crescente. Foi recebido pelo mundo inteiro no
desfecho da guerra como o american way of life, um modelo produtivista e ‘hedonista’, isto é,
fundado na busca da felicidade através do aumento das mercadorias consumidas por todos.”
(1991: 32)
Para David Harvey, que utiliza uma linguagem que ecoa a escola da regulação, a
despeito da resistência apresentada pelos trabalhadores ao modelo de produção fordista, os
sindicatos são levados, nem sempre de forma voluntária, a obter dos trabalhadores a
cooperação e a disciplina em troca de aumento real dos salários. Ao Estado cabem diversos
papéis neste regime de acumulação, principalmente: (i) controlar os ciclos econômicos,
mediante políticas fiscais e monetárias, de forma a assegurar a estabilidade das condições de
demanda; (ii) disponibilizar investimentos sociais no sentido de reduzir o custo de reprodução
da força de trabalho através de investimentos em saúde, educação, habitação, seguridade
social; (iii) garantir o cumprimento dos acordos salariais e direitos dos trabalhadores mediante
o exercício do poder do Estado.
Alain Bihr atribui ao conceito de fordismo desenvolvido pela escola da regulação uma
carga demasiada de economicismo. De acordo com este autor, a luta de classes, por si só,
explica a dinâmica deste modelo de desenvolvimento:

... se, de um lado, colocar em prática o modelo técnico-organizacional da acumulação


intensiva supunha a aceitação pelo proletariado da dominação do capital sobre o
processo de trabalho (e de maneira geral sobre toda a sociedade), inversamente, a

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 4


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

regulação deste mesmo regime de acumulação não só tornava possível, mas também
necessária a satisfação de alguns de seus interesses mais imediatos: aqueles ligados
precisamente a sua ‘seguridade social’ (...). Em outras palavras, a acumulação com
característica dominante intensiva só podia desenvolver sua dinâmica de expansão
contínua com base no quadro institucional definido no compromisso entre burguesia e
proletariado. (BIHR; 1998: 43-4)

O compromisso entre burguesia e proletariado, referenciado na citação acima,


apresenta, segundo Bihr, os seguintes traços principais:
• Salário mínimo assegurado a todos os trabalhadores empregados, de forma a
garantir um patamar mínimo de consumo, e crescimento dos salários mediante a
indexação dos salários ao preço das mercadorias e levando em consideração os
ganhos de produtividade;
• Controle da massa salarial global através de mecanismos de negociação coletiva
que levem a contratos com poder de constrangimento dos agentes econômicos
individuais;
• Garantia de reprodução da força de trabalho sob quaisquer circunstâncias via um
conjunto de benefícios sociais de forma a assegurar/manter o processo de
acumulação intensiva.
A fase de expansão do modelo passa a dar sinais de exaustão em fins dos anos 1960,
sendo a queda da produtividade e conseqüente perda da competitividade da indústria
americana seus primeiros sinais. Os operários desencadeiam um processo de resistência que
se materializa na elevação dos índices de rotatividade, absenteísmo, defeitos de fabricação, e
na redução do ritmo de trabalho (DRUCK, 1999). Paralelamente, os sindicatos avançam na
luta pela incorporação dos ganhos de produtividade ao salário. Para esta mesma autora, “trata-
se, na realidade, de uma resistência, cujo conteúdo político era manifestado num certo
esgotamento desta forma de controle do capital sobre o trabalho” (1999: 68). Lipietz (1991)
sugere a existência de uma conexão entre a queda dos ganhos de produtividade do regime de
acumulação fordista e a separação entre concepção e execução dos trabalhos, característico do
fordismo como modelo de produção.
Antunes (1999) argumenta que o compromisso fordista começa a apresentar sinais de
crise no início dos anos 1970, tendo como traços principais: redução da taxa de lucro,
motivada, entre outros, pelo aumento do preço da força de trabalho e pelas lutas sociais
ocorridas nos anos 1960; incapacidade do modelo em se adaptar à retração de consumo

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 5


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

gerada pelo desemprego estrutural que então começa a se manifestar; aumento da esfera
financeira, que inicia um processo de autonomização frente aos capitais produtivos, tornando-
se o campo prioritário para a especulação; concentração do capital gerada pelas fusões de
empresas; crise do estado de bem estar social levando à retração dos gastos públicos.
Alain Bihr indica que o enfraquecimento do fordismo está associado a: (i) diminuição
dos ganhos de produtividade; (ii) elevação da composição orgânica do capital; (iii) saturação
da norma social de consumo; (iv) desenvolvimento do trabalho improdutivo (1998).
Para Coriat, o modelo fordista “entra em crise relativa, devido a uma instabilidade
social” aliado ao fato de este modelo de organização produtiva ter-se tornado
contraproducente, tendo em vista que “uma grande quantidade de tempos ‘mortos’ e de
tempos ‘improdutivos’ eram gastos com técnicas complexas de balanceamento das cadeias de
produção” (1988: 16). Este autor argumenta também que os mercados, até então regidos pela
demanda - oferta de produtos menor que a demanda - passam a ser regidos pela oferta -
demanda de produtos inferior à oferta. Esta mudança faz com que o foco dos processos
produtivos seja deslocado da quantidade e homogeneidade dos produtos para a diferenciação
e qualidade (CORIAT, 1988), o que não está alinhado aos fundamentos do modelo vigente.
Da crise atravessada pelo regime de acumulação fordista emerge um processo de
reestruturação que, por um lado, procura dotar os espaços fabris de características mais
flexíveis para a produção de mercadorias, através da utilização de novas tecnologias físicas de
base microeletrônica e pela implementação de novas formas de organização e gestão do
trabalho, com especial ênfase no modelo toyotista. Por outro lado, o “estado providência”,
desenvolvido em maior ou menor escala nos países capitalistas centrais durante os anos de
expansão do fordismo, para garantir a reprodução da força de trabalho, passa a ser
progressivamente desarticulado, assim como o poder dos sindicatos passa a ser
sistematicamente enfraquecido (McILROY, 2002), levando a uma redução de sua capacidade
de mobilização e, conseqüentemente, do poder de resistência dos trabalhadores.
Não se deve interpretar, contudo, que o processo de reestruturação desencadeado pela
crise do fordismo tenha seguido uma trajetória idêntica nos chamados países desenvolvidos.
Houve, isto sim, um conjunto variado de experiências e caminhos trilhados. Para Harvey,
estas experiências estariam levando à constituição de um novo regime de acumulação, por ele
denominado de “acumulação flexível” (2002: 140). Seu traço constitutivo principal é a quebra
da rigidez que caracterizava o modelo fordista.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 6


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

1.1. O Fordimo e a Reestruturação Produtiva no Brasil


Embora as preocupações com a racionalização das práticas de gestão e organização do
trabalho tenham despontado na década de 1930, evidenciadas pela formação do Instituto de
Organização Racional do Trabalho (IDORT - fundado em 1931), pode-se dizer que, nesse
momento, não se trata da introdução de um modelo fordista, mas da propagação de práticas
tayloristas (DRUCK, 1999).
É nos anos 50, durante a vigência do plano de metas de Juscelino Kubitschek, que
ocorre um vigoroso impulso para a implementação do modelo fordista de organização e
gestão do trabalho. Este processo, apoiado na abertura ao investimento estrangeiro direto e em
investimentos públicos em infraestrutura, desenvolve-se principalmente nas indústrias
voltadas à produção de bens de consumo duráveis, tendo à frente as indústrias ligadas ao
complexo automotivo. São as montadoras e as indústrias de autopeças, instaladas
principalmente na região do ABC paulista, que implementam de forma vigorosa o modo
fordista de produção de mercadorias, dando início, assim, a um novo modelo de organização
produtiva no país (ALVES, 2000).
Este modelo se expande para os demais segmentos da indústria, tendo por suporte o
programa de substituição das importações adotado pelo governo, sendo que seu apogeu ocorre
no período compreendido entre os anos de 1968 e 1973, conhecidos como os anos do milagre
brasileiro. Após este período, também a indústria brasileira passa a sentir os efeitos da crise,
que já havia atingido os países capitalistas centrais, motivada pela taxa de lucros decrescente e
por aspectos ligados à estrutura macroeconômica brasileira.
É importante ressaltar que o fordismo é implementado no Brasil de forma parcial.
Diferentemente do observado nos países capitalistas centrais, a rede de proteção social, que se
expressava pelo estado de bem estar social, não é implementada no país, tendo por
conseqüência um processo parcial de integração dos cidadãos ao mercado de trabalho e de
consumo, levando à exclusão social um contingente significativo da sociedade brasileira
(DRUCK, 1999).
A partir de 1974, o projeto desenvolvimentista do país passa a atravessar um período
de declínio, dado o esgotamento do modelo de substituição das importações, declínio este que
se manifesta com mais intensidade nos anos 1980. É justamente neste período que a indústria
brasileira volta sua atenção, de forma mais intensa, para o mercado externo. Este impulso
exportador ocorre, de um lado, pela necessidade de geração de divisas, para saldar
compromissos da dívida externa brasileira e, de outro lado, em função da forte retração do
mercado interno, motivado pela crise econômica que então se verificava.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 7


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

É neste contexto que se inicia um processo de reestruturação produtiva, ainda que de


forma restrita. Tendo em vista que a indústria brasileira era voltada até então principalmente
para o mercado interno, fez-se necessário obter melhores padrões de competitividade, a fim de
atingir os objetivos de penetração no mercado externo. São considerados também como
fatores que impulsionam a reestruturação produtiva deste período: (i) a emergência do novo
sindicalismo, notadamente na região do ABC paulista; (ii) as estratégias das empresas
multinacionais de difundirem em suas subsidiárias, de forma restrita, os programas de
reestruturação de inspiração toyotista (ALVES, 2000; LEITE, 1994B; ARAÚJO & GITAHY,
1998).
A reestruturação produtiva, que tem início nos primeiros anos da década de 80, é
denominada por Alves (2000) como um toyotismo restrito. É assim denominado por se
caracterizar pela implementação, de forma rudimentar, dos círculos de controle de qualidade
(CCQ's) e dos sistemas de produção just in time - kanban, dentro de um modelo de produção
de base fordista. Druck (1999), por outro lado, argumenta que os primeiros anos da década de
1980 devem ser considerados como o período que compreende a primeira fase de
implementação de uma gestão do trabalho de inspiração toyotista, com a criação dos CCQ's.
A implementação do método just in time - kanban, juntamente com o controle estatístico de
processo (CEP) e programas de qualidade, caracterizariam uma segunda fase deste processo,
ocorrido por volta de metade dos anos 1980.
Em meados da década de 1980, a reestruturação produtiva nas indústrias brasileiras
passa por um estágio de forte investimento em tecnologias de base microeletrônica,
envolvendo máquinas ferramentas de controle numérico computadorizado, sistemas de
projeto assistido por computador e manufatura assistida por computador (CAD/CAM),
controladores lógicos programáveis (CLP) para flexibilização de linhas de produção, entre
muitos outros (Faria, 1997).
Estes investimentos, liderados pela indústria automotiva, principalmente as
montadoras, são voltados de forma prioritária para sincronizar e integrar as operações do
processo produtivo, levando a uma “intensificação (e enrijecimento) do fordismo” (Alves,
2000: 135). Deve-se destacar, contudo, que os investimentos em novas tecnologias de base
microeletrônica ocorridos nesse período não vêm em substituição às tecnologias até então
empregadas; ambas convivem em um ambiente de heterogeneidade tecnológica. O toyotismo
restrito e a automação de base microeletrônica feita de forma seletiva, que vêm ocorrendo
durante a década de 1980, dão lugar, no início dos anos 1990, a um aprofundamento do
processo de reestruturação produtiva em curso nas indústrias brasileiras.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 8


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

Leite (1994b) propõe uma periodização que identifica três momentos do processo de
reestruturação produtiva. O primeiro período compreende o final dos anos 1970 e início dos
anos 1980, concentrado na implementação dos círculos de controle de qualidade, CCQ´s, sem
que alterações significativas nas formas de organização do trabalho ou investimentos
intensivos em equipamentos de base microeletrônica fossem implementados. Esta estratégia
mostra-se um fracasso já em meados nos anos 1980 com a desativação de diversos programas.
No segundo período, que se inicia na metade da década de 1980 e estende-se até o seu final, é
observada uma rápida difusão de equipamentos de base microeletrônica, tendo ocorrido
também iniciativas de implementação de novas formas de organização do trabalho,
principalmente aquelas de inspiração toyotista, sem que estas iniciativas, no entanto, venham
a se generalizar nas indústrias. O terceiro período proposto por Leite, que inicia nos anos
1990, quando “vem se detectando uma nova fase em que as empresas estão concentrando seus
esforços nas estratégias organizacionais, bem como na adoção de novas formas de gestão da
mão-de-obra, mais compatíveis com a necessidade de flexibilização do trabalho e com o
envolvimento dos trabalhadores com a qualidade e a produtividade.” (1994b: 573). Para esta
autora, embora as estratégias adotadas variem significativamente entre as empresas, possuem
como elemento comum “o caráter limitado e reativo” (1994b: 565).
Como vimos, diferentes autores apontam a existência de um aprofundamento do
processo de reestruturação produtiva ocorrido no início da década de 1990. Este
aprofundamento é impulsionado, de um lado, pelo incremento no processo de mundialização
dos capitais, internacionalização dos mercados e integração informacional, e de outro, pelas
reformas de cunho neoliberal implementadas no governo Fernando Collor e intensificadas nos
governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. As reformas implementadas por
Fernando Collor expõem as empresas nacionais à concorrência estrangeira através da redução
ou mesmo eliminação de tarifas de importação, ao mesmo tempo em que criam o Programa
Brasileiro de Qualidade e Produtividade, com o objetivo de estimular a modernização do
parque fabril brasileiro. Esta exposição abrupta à concorrência descortina de forma dramática
a defasagem competitiva existente entre a indústria nacional, por anos protegida, em relação
aos concorrentes internacionais. Já na gestão de Itamar Franco, seguida pela de Fernando
Henrique Cardoso, o plano de estabilização econômica conhecido como Plano Real promove
uma sobrevalorização artificial da moeda nacional frente à moeda norte-americana, a
chamada âncora cambial, que torna a importação de mercadorias extremamente atraente, em
detrimento da indústria nacional que, além disto, vê frustradas suas possibilidades de
exportação.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 9


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

A nova fase do processo de reestruturação produtiva se caracteriza pela


implementação de formas de organização e gestão do trabalho inspiradas pelo modelo Toyota
de produção, assim como pela expansão dos investimentos em novas tecnologias de base
microeletrônica, não somente aquelas destinadas a integrar e sincronizar as operações, mas
envolvendo todo o processo de produção de mercadorias. Esta fase do processo de
reestruturação leva as empresas a atingir novos níveis de flexibilidade que não se restringem
apenas ao espaço fabril interno à empresa, mas envolve, principalmente, o relacionamento
com outras empresas, através do desmanche das estruturas verticais de produção, mediante
um intenso processo de terceirização e subcontratação (DRUCK, 1999; ALVES, 2000).

2. Reestruturação Produtiva e Precarização do Trabalho


O processo de precarização do trabalho refere-se à degradação das condições de
trabalho e emprego e é utilizado com mais freqüência em relação ao trabalho informal. Nesta
pesquisa, é utilizada uma concepção estendida do processo de precarização do trabalho. Tal
concepção é baseada na noção ampliada e contemporânea de classe-que-vive-do-trabalho,
proposta por Antunes. Segundo este autor, “uma noção ampliada de classe trabalhadora inclui,
então, todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário” (1999:
103). Desta forma, esta noção de classe trabalhadora inclui os assalariados industriais, de
serviços, rurais, os trabalhadores terceirizados, temporários, em tempo parcial, trabalhadores
informais e os desempregados.
Assim, no âmbito deste trabalho, o processo de precarização de trabalho é entendido
como o processo que envolve a degradação das condições de trabalho e emprego, seja do
trabalhador formal, informal, em tempo parcial, temporário e, o extremo da precarização que
é a própria ausência de trabalho vivenciada pelos trabalhadores que estão desempregados.
Para que a discussão das relações entre os processos de reestruturação produtiva e
precarização do trabalho possa ser desenvolvida com a profundidade necessária, são adotadas
as seguintes dimensões de análise: (i) desemprego; (ii) vínculos empregatícios; (iii) preço da
força de trabalho; (iv) qualidade dos postos de trabalho. Embora estas dimensões sejam
abordadas separadamente no decorrer da análise empreendida, deve-se ter presente que se
tratam de dimensões com elevado nível de interdependência.

2.1. O Desemprego
Nesta categoria de análise, é verificada a relação existente entre o desemprego e o
processo de reestruturação produtiva, seja pela incorporação de novas tecnologias de base

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 10


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

microeletrônica, seja pela implementação de novas formas de organização e gestão do


trabalho. Desempregados são as pessoas que compõem o conjunto da População
Economicamente Ativa (PEA) 1 não utilizada pelo processo de acumulação do capital, a qual
manifesta-se através de diferentes modalidades: (POCHMANN, 2001):
• Desemprego friccional: refere-se à mobilidade ocupacional e de inserção na
ocupação;
• Desemprego conjuntural: desemprego gerado pela insuficiência no nível de
atividade econômica ou sazonalidade da produção;
• Desemprego estrutural: a mão-de-obra necessária ao processo de acumulação de
capital é inferior à mão-de-obra disponível no mercado de trabalho.
No momento em que este artigo é redigido, o desemprego atinge elevados patamares
no Brasil e no Mundo. De acordo com dados divulgados pela Organização Internacional do
Trabalho, existem atualmente 180 milhões de pessoas desempregadas no mundo 2 . No Brasil,
os resultados da pesquisa mensal do IBGE para seis regiões metropolitanas 3 indicam uma taxa
de desemprego de 13% em Agosto/2003 4 . Para a região metropolitana de São Paulo, a
pesquisa do IBGE indica uma taxa de desocupação de 14,9%. De acordo com a pesquisa da
fundação SEADE/DIEESE, que utiliza uma metodologia diferente da empregada pelo IBGE,
o desemprego na região metropolitana de São Paulo em Agosto/2003 é de 20,0% 5 .
Durante a vigência do regime de acumulação fordista, o pleno emprego é um dos
elementos constituintes do compromisso que a ele dá sustentação. Com o advento do regime
de acumulação flexível, tal preocupação deixa de ser central, estando aberta a possibilidade de
um desajuste entre a mão-de-obra demandada e a população economicamente ativa e, por
extensão, a possibilidade do desemprego estrutural tomar maiores proporções.
Para investigar a dinâmica das relações entre a base técnica característica do regime de
acumulação flexível e o desemprego, é empreendida uma análise de dados referente ao
faturamento, produção industrial, nível de emprego, produtividade e o PIB da indústria de
transformação brasileira.
De acordo com dados da Confederação Nacional da Indústria 6 , o faturamento das
indústrias de transformação apresentou um crescimento de 85,09% no período de 1992 a
2002. Por outro lado, o emprego industrial teve uma queda de 24,31% no mesmo período,
conforme Gráfico 1, apresentado a seguir. O índice do emprego industrial no período
estudado apresenta reduções sistemáticas, exceção feita ao ano de 1994, em que se manteve
estável em relação ao ano anterior, e aos anos de 2000 e 2002, em que foram registradas
ligeiras elevações comparativamente aos anos anteriores. Em relação ao faturamento,

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 11


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

observa-se que houve um aumento constante em valores reais deflacionados, tendo sido
registrada queda em relação ao ano anterior nos anos de 1995 e 2001.

Gráfico 1 - Variação das Vendas Reais* e do Emprego na Indústria de Transformação - Brasil


200,00

180,00

160,00

140,00
Número Índice

120,00

100,00

80,00

60,00

40,00

20,00

0,00
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Vendas Reais Pessoal Empregado

* Deflator: IPA/OG-Indústria de Transformação-FGV


Fonte: CNI - Confederção Nacional da Indústria
Elaboração do autor

Os dados coligidos pela CNI, ilustrados no Gráfico 1 e que mostram comportamentos


opostos para as linhas que representam as vendas reais e o pessoal ocupado, apontam para a
hipótese de uma base técnica poupadora de mão-de-obra. Esta hipótese é corroborada pela
variação da produção industrial, do PIB da indústria de transformação e da produtividade do
trabalho. De acordo com dados do MDIC 7 , a produção industrial e o PIB da indústria de
transformação apresentam uma trajetória de crescimento no período de 1994 a 2001,
interrompida nos anos de 1998 e 1999, mantendo, contudo, uma taxa líquida de crescimento
no período de 17,3% para a produção industrial e de 16,9% para o PIB da indústria de
transformação. A produtividade do trabalho no período de 1994 a 2000 também apresenta
taxas positivas de crescimento, sendo que, com exceção do ano de 2000, sempre superiores
aos outros dois indicadores. O crescimento total da produtividade do trabalho no período é de
74,97%, superior em mais de 50 pontos percentuais comparativamente ao crescimento da
produção industrial e do PIB da indústria de transformação. A partir destes dados, é possível

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 12


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

indicar a ocorrência de crescimento industrial sem o aumento do nível de emprego (jobless


growth). O Gráfico 2, apresentado a seguir, ilustra estas observações.

Gráfico 2 - Taxas de Desempenho da Produção Industrial, Crescimento do PIB e da


Produtividade do Trabalho - Indústria de Transformação - Brasil
16,0

14,0

12,0

10,0

8,0 Produção Industrial


Produtividade
6,0
PIB
4,0

2,0

0,0

-2,0

-4,0
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Fonte: IBGE/MDIC
Elaboração do autor

Os dados da indústria de transformação, analisados até aqui, indicam que a nova base
técnica implementada pelo processo de reestruturação produtiva é poupadora de mão-de-obra,
fazendo com que o regime de acumulação flexível venha a demandar uma quantidade cada
vez menor de trabalhadores em relação àqueles que são ofertados pela população
economicamente ativa, o que configura a expansão do desemprego estrutural.

2.2. Vínculos Empregatícios


Ao analisar a relação existente entre o processo de reestruturação produtiva e a
fragilização dos vínculos empregatícios, deve-se levar em consideração, além da nova base
técnica característica do regime de acumulação flexível, as suas articulações na esfera
jurídico/política. Neste sentido, é analisado como o regime de acumulação flexível se
relaciona com a transformação nos vínculos tradicionais, com a emergência de novos vínculos
de trabalho, e com a própria inexistência de vínculos, característica do trabalho informal e,
muitas vezes, do trabalho autônomo.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 13


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

Uma das características da nova base técnica é a incorporação pela estrutura


tecnológica do “saber fazer”, ou saber de ofício, dos trabalhadores. Passam a ser requeridas
deste trabalhador novas qualificações, principalmente um saber instrumental, que o habilita a
operar as máquinas e equipamentos característicos da nova base técnica. De posse deste
“saber fazer”, a empresa prescinde do trabalhador especializado, tornando-o “intercambiável”,
ou seja, ele pode ser facilmente substituído por outro trabalhador, sem maiores investimentos
em treinamento.
A fragilidade dos vínculos formais é comprovada pelo tempo de empresa dos
trabalhadores, extraído das estatísticas oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego. De
acordo com dados da RAIS/MTE, no período de 1992 a 2001, há um aumento na proporção
de funcionários com menor tempo de empresa (ver Gráfico 3). No ano de 1992, os
trabalhadores com três anos ou mais de empresa correspondem a 45,42% do total da força de
trabalho da indústria de transformação do Brasil; em 2001, passam a representar 38,22%. Em
contrapartida, os trabalhadores com menos de dois anos de trabalho, que representavam
43,53% em 1992, passam a representar 51,17% em 2001.

Gráfico 3 - Tempo de Empresa dos Trabalhadores - Ind. Transformação - Brasil

10 anos ou mais

De 5,0 a 9,9 anos

De 3,0 a 4,9 anos

De 2,0 a 2,9 anos

De 1,0 a 1,9 anos

De 6,0 a 11,9 meses

De 3,0 a 5,9 meses

Até 2,9 meses

0,00% 2,50% 5,00% 7,50% 10,00% 12,50% 15,00% 17,50% 20,00%

1992 1997 2001

Fonte dos dados: Rais / MTE


Elaboração do autor

Temos, então, um cenário no qual o vínculo formal de trabalho se mostra muito tênue,
fazendo com que o trabalhador tenha sempre presente a possibilidade de perda do emprego e
de sua incorporação ao contingente de trabalhadores desempregados, que vão alimentar o

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 14


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

trabalho temporário ou, em situação ainda mais precária, o trabalho informal, sem qualquer
tipo de garantia e excluídos de todos os benefícios sociais.
Postos de trabalho que anteriormente compunham o centro do processo produtivo das
empresas são deslocados para a periferia, através dos processos de desconcentração produtiva,
tendo como motivação principal a busca constante por redução de custos. Trata-se de um
processo que atinge as indústrias de uma forma global, levando a um aumento do contingente
de trabalhadores que podem ser facilmente incorporados ou desligados pelas empresas.
Dadas as características do processo de industrialização no Brasil, onde deu-se a
implementação de um fordismo parcial, sem a rede de proteção social na forma do estado de
bem estar social que caracteriza o compromisso fordista nos países capitalistas centrais, a
sociedade convive com um contingente de excluídos do mercado formal de trabalho e de
consumo (DRUCK, 1999). O trabalho autônomo e sem carteira assinada passa a ser o destino
dos excluídos da expansão capitalista brasileira. Os anos 1990, sob a intensificação do
processo de reestruturação produtiva, registram o crescimento destas formas de trabalho e,
através da flexibilização da legislação trabalhista patrocinada pelo Estado, vêem surgir novas
formas de contrato de trabalho, tais como o contrato de trabalho com jornada de trabalho
parcial, e o contrato de trabalho por prazo determinado, conhecido como trabalho temporário.
Estas formas de contrato de trabalho fazem emergir um contingente de trabalhadores
que convivem com uma grande instabilidade e têm os seus direitos trabalhistas bastante
reduzidos, como é o caso do contrato temporário. Nesta modalidade de contrato de trabalho, o
aviso prévio de desligamento é eliminado, a multa de 40% sobre o FGTS é extinta e a
contribuição deste é reduzida de 8% para 2% sobre o salário (FREITAS, 2002).
A contratação de trabalhadores com vínculos informais apresenta uma tendência de
crescimento no decorrer da última década. Na região metropolitana de São Paulo, onde o
acompanhamento da situação do emprego e desemprego do DIEESE é realizado há mais
tempo, permitindo uma comparação histórica, o número de trabalhadores sem carteira
assinada do setor privado aumenta em 6,3 pontos percentuais, passando de 11,6% dos postos
de trabalho em 1989 para 17,9% em 1999 (Tabela 1). Na categoria "contratação
flexibilizada", que envolve os trabalhadores sem carteira do setor privado e público, os
trabalhadores assalariados que possuem vínculo com outras empresas (terceiros) e os
autônomos que prestam serviço a uma única empresa, a região metropolitana de São Paulo
registra um crescimento de 12,2 pontos percentuais, passando de 20,9% em 1989 para 33,1%
em 1999. As regiões metropolitanas de Recife e de Salvador apresentam os maiores

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 15


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

percentuais de contratação flexibilizada no ano de 1999, 35,8% e 35,4%, respectivamente


(DIEESE, 2001).

Tabela 1 - Trabalhadores Ocupados em Contratação Flexibilizada


Belo Horizonte Distrito Federal Porto Alegre
Tipo de Contratação
1996 1998 1999 1992 1998 1999 1993 1998 1999
Contratação Flexibilizada 25,8 27,4 27,2 22,2 25,3 26,4 17,8 22,1 24,8
Sem carteira - setor privado 14,6 14,5 14,6 10,6 12 11,2 9,7 10,4 12,3
Sem carteira - setor público 1,8 2,2 1,9 1,1 2,7 3,5 1,4 2,3 2,2
Assalariados terceiros 4,4 5,2 5,2 6 6,6 8,1 1,6 4,1 4,4
Autônomos para uma empresa 5 5,6 5,5 4,5 4 3,5 5,1 5,3 5,9

Recife Salvador São Paulo


Tipo de Contratação
1998 1999 1997 1998 1999 1989 1998 1999
Contratação Flexibilizada 35,8 35,8 34,2 34,2 35,4 20,9 31,6 33,1
Sem carteira - setor privado 17,3 17,7 17 16,9 17 11,6 17,1 17,9
Sem carteira - setor público 3,4 2,9 3,9 4,2 3,8 0,9 1,7 1,7
Assalariados terceiros 5,7 5 7 7,6 8,2 2,4 4,3 4
Autônomos para uma empresa 9,4 10,2 6,4 5,4 6,3 6 8,5 9,5
Fonte: DIEESE, 2001: 64

Assim, temos, por um lado, um contingente de trabalhadores com direitos trabalhistas


legalmente reduzidos e, por outro lado, um contingente de trabalhadores informais,
autônomos e a domicílio, que estão à margem dos direitos trabalhistas previstos em
legislação, assim como dos benefícios sociais ligados ao trabalho assalariado com vínculo
empregatício legal (DIEESE, 2001).

2.3. Preço da Força de Trabalho


Ao desenvolver a análise sobre as relações existentes entre o processo de
reestruturação produtiva e a redução do preço do trabalho é necessário, primeiramente,
demonstrar a existência de um processo em que o preço da força de trabalho daquelas pessoas
que compõem a classe-que- vive-de-trabalho (ANTUNES, 1999) está sendo efetivamente
reduzido. Para empreender tal propósito é analisada, primeiramente, a variação da renda do
trabalhador formal para a indústria de transformação em nível nacional.
A indústria de transformação brasileira apresenta um aumento no número de
trabalhadores empregados em faixas de remuneração até três salários mínimos no período de

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 16


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

1992 a 2001. Os dados apresentados no Gráfico 4 mostram que o número de trabalhadores


que tem os seus salários nestas faixas de remuneração aumenta em 106,60%. Destaca-se o
significativo aumento de trabalhadores na faixa de 1,01 a 2,00 salários mínimos (SM),
tornando-a a faixa de maior freqüência. Em 1992, os trabalhadores empregados com
remuneração entre 1,01 e 2,00 SM representam 12,12% do total; em 2001, passam a
representar 29,30% do total, um aumento de 17,18 pontos percentuais. Nas faixas de
remuneração mais elevadas, a situação se inverte: o número de trabalhadores que tem os seus
salários em faixas de remuneração acima de quatro salários mínimos apresenta uma redução
de 41,34%.

Gráfico 4 - Pessoal Empregado por Faixas de Salário Mínimo Ind. de Transformação - Brasil

2001

1997

1992

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

0,00 - 0,50 0,51 - 1,00 1,01 - 2,00 2,01 - 3,00 3,01 - 4,00 4,01 - 5,00

5,01 - 7,00 7,01 - 10,00 10,01 - 15,00 15,01 - 20,00 Mais de 20,0 Ignorado

Fonte dos dados: RAIS/MTE


Elaboração do Autor

As informações precedentes apresentam um cenário de deterioração da remuneração


do emprego formal. Há um deslocamento dos trabalhadores das faixas de remuneração mais
elevada para as mais baixas, fazendo com que a faixa de 1,01 a 2,00 SM passe a ser a faixa de
maior freqüência para a indústria de transformação no âmbito nacional.
A queda no nível de remuneração dos trabalhadores formais e sua relação com o
processo de reestruturação produtiva deve ser analisada também na esfera jurídico/política.
Com a implementação do plano de estabilização econômica (Plano Real), ocorre a instituição
da livre negociação salarial entre empresas e trabalhadores. Este movimento, mais do que uma
forma de eliminar a inflação inercial através da desindexação entre preços e salários, deve ser

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 17


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

interpretado como uma forma de eliminar da legislação instrumentos característicos do regime


de acumulação fordista, em que a recomposição do poder de compra do salário dos
trabalhadores possui um importante papel.
Como resultado deste movimento, temos que as negociações salariais nas datas-base
de diversas categorias profissionais têm apresentado, ao longo dos últimos anos, um quadro
desfavorável em termos de recomposição do poder de compra comparativamente ao
INPC/IBGE. De acordo com acompanhamento realizado pelo DIEESE, 45,3% dos acordos
coletivos firmados em 2002 obtêm reajustes salariais inferiores à inflação acumulada no
período, medida pelo INPC; em 2001, este percentual é de 35,9% e de 32,8% em 2000 (ver
Gráfico 5). O resultado de 2002 é apenas melhor do que os resultados alcançados nos anos de
1999 (50,3%) e de 1997 (46,6%).

Gráfico 5 - Categorias com reposição inferior ao INPC/IBGE - 1995/2002

60,0%
50,3%
46,6%
50,0% 43,5% 45,3%

35,2% 35,9%
40,0% 32,8%

30,0%

20,0% 14,6%

10,0%

0,0%
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

Fonte: DIEESE

O desemprego estrutural, aliado a outras modalidades de desemprego, forma a reserva


de mão-de-obra disposta a ocupar postos de trabalho com salários inferiores, o que é facilitado
pela intercambiabilidade dos trabalhadores da nova base técnica flexível e confirmado pelo
elevado índice de rotatividade da mão-de-obra. Além disto, a utilização crescente da
terceirização de atividades, tende a pulverizar os trabalhadores em número grande de
pequenas empresas ou empreendimentos informais, levando-os a terem um padrão salarial

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 18


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

inferior ao das empresas centrais, as contratantes de seus serviços, mesmo em se tratando de


vínculos trabalhistas formais.
De acordo com dados DIEESE, de 1999, para as seis regiões metropolitanas com
compõem a PED – Pesquisa de Emprego e Desemprego, o rendimento do trabalho sem
carteira assinada para o setor privado é, aproximadamente, 40% inferior do rendimento do
trabalho com carteira assinada nas regiões metropolitanas de São Paulo, Belo Horizonte e
Distrito Federal (ver Tabela 2). Na região de Porto Alegre, a diferença é de 32,83%. Nas
capitais do Nordeste que compõem a amostra, a diferença é ainda maior: de 46,95%, no
Recife, e 55,61% em Salvador. Para os trabalhadores terceirizados, a diferença de rendimento
em relação ao trabalho com carteira assinada no setor privado é de aproximadamente 33% nas
regiões metropolitanas do Distrito Federal e de Porto Alegre; nas regiões de Recife e
Salvador, os rendimentos são inferiores em 36%; em Belo Horizonte, 38,95%. A maior
diferença de rendimento entre os assalariados terceirizados e os assalariados com carteira
assinada é observada na região metropolitana de São Paulo, estando em 49,43% em 1999.

Tabela 2 – Rendimento Mensal Médio (em índice) Segundo Formas de Contratação - 1999

Belo Distrito Porto


Formas de Contratação São Paulo Recife Salvador
Horizonte Federal Alegre
Assalariados com carteira setor
100 100 100 100 100 100
privado
Assalariados sem carteira setor
59,96 59,02 61,19 67,17 53,05 44,39
privado
Assalariados em serviços
50,57 61,05 67,71 66,67 64,63 63,46
terceirizados
Fonte: Elaborado a partir de DIEESE, 2001: 93/4

2.4. Qualidade dos Postos de Trabalho


As relações entre o processo de reestruturação produtiva e a qualidade dos postos de
trabalho são analisadas a partir de dados referente à saúde ocupacional dos trabalhadores. Os
dados oficiais sobre acidentes e doenças do trabalho apresentam uma redução no total de
ocorrências registradas; entretanto, na década de 1990, é observada uma expansão acentuada
de casos de doenças ocupacionais, conforme pode ser observado na Tabela 3, apresentada a
seguir.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 19


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

Tabela 3 – Total de Acidentes de Trabalho e Doenças Ocupacionais no Brasil – 1980 a 1998

Total de Acidentes Doenças Ocupacionais


Ano
Quantidade Número Índice Quantidade Número Índice
1980 1.464.211 100,00 3.713 100,00
1985 1.077.861 73,61 4.066 109,51
1990 693.572 47,37 5.217 140,51
1991 632.322 43,19 6.281 169,16
1992 532.514 36,37 8.299 223,51
1993 412.293 28,16 15.417 415,22
1994 388.304 26,52 15.270 411,26
1995 424.137 28,97 20.646 556,05
1996 395.455 27,01 34.889 939,64
1997 421.343 28,78 36.648 987,02
1998 401.254 27,40 28.597 770,19

Fonte: Anuário Brasileiro de Proteção, 2001

De acordo com Couto (2000a), as novas tecnologias têm, efetivamente, reduzido as


patologias tradicionais, tendo em vista que elas levam à redução, no espaço fabril, dos níveis
de poeira, solventes, fumos metálicos e gases; entretanto, uma série de novos problemas tem
surgido, muitos ligados a patologias/lesões nos membros superiores.
Os movimentos repetitivos são um dos principais fatores a provocarem lesões nos
trabalhadores. Segundo este autor, é nos tempos mortos que os tecidos descansam e se
recuperam de lesões (COUTO 2000a). As novas tecnologias de base microeletrônica tendem a
aprofundar a repetição de movimentos, fa zendo com que este período de recuperação deixe de
existir ou que ele seja minimizado, abrindo espaço para o agravamento de lesões. Para Couto
(2000b), também as novas formas de organizar e de gerir o trabalho contribuem para o
surgimento de patologias relacionadas ao trabalho, principalmente a carga de trabalho
excessiva, dada pelo enxugamento dos quadros e pela pressão exagerada por prazos e
resultados.
As novas formas de organização e gestão do trabalho levam, segundo este autor, à
eliminação de mecanismos de regulação (COUTO 2000b). Tais mecanismos atenuam a
sobrecarga de trabalho e a pressão, evitando o agravamento de patologias/lesões. É o caso, por
exemplo, dos estoques, que absorvem variações da demanda sem aumentar a carga dos

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 20


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

trabalhadores. Com a implementação do just in time/kanban, a necessidade de produção no


tempo certo torna não somente o trabalho mais intenso, como pode provocar a necessidade de
trabalho acima da jornada normal, expondo o trabalhador por um período maior de tempo aos
fatores que causam patologia ou lesão.
Lucchini, Fazioli, Cortesi & Alessio relacionam a tendência de aumento de patologias
profissionais ligadas às estruturas ósteo-articulares aos sistemas de gestão “nos quais o
modelo produtivo é determinado pelo produto solicitado pelo mercado e pelas rápidas
variações em função da competitividade. Os bens vêm sendo produzidos nos tempos
necessários para serem vendidos e as matérias-primas são adquiridas nas quantidades
suficientes para a confecção dos produtos. De tal modo os tempos de recuperação e de
repouso para os operários são extremamente limitados.” (2000: 52).
A analise dos registros de doença ocupacional por patologia revela que aquelas ligadas
à LER/DORT8 são as de maior incidência. Nos anos de 2000 e 2001, as Sinovites e
Tenossinovites 9 representam, respectivamente, 31,5% e 32,4% do total de doenças
ocupacionais registradas. Estas patologias têm como agentes etiológicos 10 ou fatores de risco
ocupacionais, segundo o Ministério de Previdência e Assistência Social, as posições forçadas
e gestos repetitivos, o ritmo de trabalho penoso e as condições difíceis de trabalho.
Das considerações precedentes, depreende-se que o aumento na incidência de doenças
ocupacionais, principalmente aquelas relacionadas à LER/DORT, possui estreita ligação com
a intensificação do trabalho, entendida esta como o aumento da taxa de ocupação da força de
trabalho durante uma jornada normal.
A articulação entre a nova base técnica e a intensificação do trabalho se processa na
medida que a redução do tempo de cada ciclo e entre cada ciclo é motivada, de um lado, pela
incorporação das novas tecnologias de base microeletrônica que, mediante sistemas de
controle computadorizados, dão mais flexibilidade e rapidez aos equipamentos, reduzindo o
tempo de execução das tarefas. De outro lado, as novas formas de organização e gestão do
trabalho, muitas de inspiração toyotista, tendem, mediante uma nova organização espacial das
plantas produtivas e novas formas de planejamento e controle da produção, associadas a
meios de manipulação de materiais, a reduzirem a circulação dos materiais em processo no
espaço fabril. Como conseqüência, ocorre uma redução significativa dos tempos mortos ou,
em outros termos, da porosidade do trabalho.
A intensificação do trabalho está no próprio núcleo do modelo toyotista de gestão e
organização do trabalho. A transformação do trabalhador especializado, da era fordista, no
trabalhador polivalente da era toyotista, que opera um conjunto de máquinas, além de ser

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 21


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

responsável pela qualidade do produto e pela manutenção preventiva das máquinas e dos
equipamentos, aliada às técnicas de movimentação de materiais dentro do processo produtivo,
fazem com que os tempos mortos sejam revertidos de forma a aumentar a produtividade do
modelo toyotista. Kamata, citado por Antunes, argumenta:

[a racionalização da Toyota] não é tanto para economizar trabalho, mas, mais


diretamente, para eliminar trabalhadores. Por exemplo, se 33% dos movimentos
desperdiçados são eliminados em três trabalhadores, um deles torna-se desnecessário.
A história da racionalização da Toyota é a história da redução de trabalhadores, e
esse é o segredo de como a Toyota mostra que, sem aumentar trabalhadores, alcança
surpreendente aumento na sua produção. Todo o tempo livre durante as horas de
trabalho tem sido retirado dos trabalhadores da linha de montagem, sendo
considerado um desperdício, todo o seu tempo, até o último segundo, é dedicado à
produção. (KAMATA, 1982 apud ANTUNES, 1999: 56).

A qualidade dos postos de trabalho é afetada também pelo tamanho da jornada de


trabalho. Pesquisas desenvolvidas pelo DIEESE (PED) e pelo IBGE (PNAD) indicam um
expressivo contingente de trabalhadores com jornada de trabalho semanal superior a
legalmente estabelecida. De acordo com dados da PED para o ano de 1999, 42,4% dos
trabalhadores da região metropolitana de São Paulo possuem uma jornada de trabalho
semanal média superior a 44 horas. Esta proporção é de 41,2% em Belo Horizonte; 27,1% no
Distrito Federal; 39% em Porto Alegre; 47,7% em Recife e 38,1% em Salvador (DIEESE,
2001). Os dados da PNAD de 2001 indicam que 39,67% dos trabalhadores vinculados a
indústria de transformação no Brasil possuem jornada de trabalho superior a 44 horas
semanais.
Em relação à extensão da jornada de trabalho, é importante salientar o papel do estado
como agente de flexibilização da jornada de trabalho. Com a regulamentação do banco de
horas, a jornada de trabalho é considerada no prazo de um ano, em detrimento da jornada
semanal considerada anteriormente. Com o banco de horas, as empresas passam a dispor e
controlar a jornada de trabalho dos seus empregados de acordo com as necessidades de
produção. Assim, a jornada de trabalho é reduzida ou ampliada de acordo com a variação nos
níveis de produção, sendo efetuado um balanço anual para o pagamento de eventuais horas
extraordinárias.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 22


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

3. Encaminhamento Reflexivo
O processo de reestruturação produtiva, através das novas tecnologias físicas de base
microeletrônica e de novas formas de organização e gestão do trabalho, promove a
implementação de uma nova base técnica que é poupadora de mão-de-obra, levando ao
crescimento do desemprego estrutural. Ao analisar faturamento, produção industrial,
produtividade, PIB e o nível de emprego para a indústria de transformação, foi possível
observar o descompasso entre estes indicadores ao longo da década de 1990. Embora o
crescimento da produção industrial tenha sido comprometido pelo cenário macroeconômico
adverso, este indicador apresentou crescimento no período. A mão-de-obra empregada, a
despeito do crescimento da produção industrial observado, apresenta uma redução expressiva
no mesmo período, indicando a existência de um processo de crescimento sem trabalho
(jobless growth). Assim sendo, mesmo com um vigoroso aumento na produção industrial,
possibilitado por um hipotético cenário macroeconômico favorável, o aumento na mão-de-
obra empregada dar-se-á num ritmo inferior.
Os vínculos empregatícios sob o regime de acumulação flexível tornaram-se mais
frágeis. Esta fragilidade decorre de um duplo movimento. Em primeiro lugar, articulações na
esfera jurídico/política fazem emergir novas modalidades de vínculos formais de trabalho,
como o trabalho em tempo parcial e o trabalho temporário, com significativa redução nos
direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que os vínculos tradicionais de trabalho
tornam-se mais tênues, devido à intensificação na rotatividade da mão-de-obra. É observado,
no período compreendido entre os anos 1992 e 2001, um crescimento desproporcional do
número de trabalhadores da indústria de transformação com menos de um ano de trabalho
(36,14%) relativamente ao total de trabalhadores (5,58%).
Em segundo lugar, ocorre uma expansão do trabalho informal. Alimentado pelo
excedente de mão-de-obra que é descartado do processo formal de venda da força de trabalho,
o trabalho informal, anteriormente restrito às franjas da economia brasileira, passa a ocupar
um lugar cada vez mais central. A terceirização de fases do processo produtivo encontra neste
contingente uma mão-de-obra preparada para produzir fora do espaço fabril das empresas
centrais o que, anteriormente, era produzido dentro.
A terceira dimensão de análise utilizada nesta pesquisa é o preço da força de trabalho.
A partir dos dados analisados, é possível perceber um nítido processo de redução do preço de
venda da força de trabalho. No trabalho formal, é observada uma migração dos trabalhadores
de faixas de remuneração mais elevadas para as faixas de remuneração menores. O controle
da massa salarial é efetuado, de um lado, pela renovação do quadro de trabalhadores, através

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 23


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

da demissão daqueles com mais tempo de trabalho e, portanto, com mais vantagens
acumuladas. De outro lado, a livre negociação estabelecida pelo governo, no âmbito do Plano
Real, abre a possibilidade de redução salarial via reposição parcial da inflação acumulada no
período entre as datas-base. A redução do preço da força de trabalho ocorre, também, pela
migração de postos de trabalho das empresas centrais para empresas terceirizadas, seja
utilizando mão-de-obra formal, seja informal. Além disto, segundo dados do DIEESE (2001),
a remuneração do trabalho sem carteira assinada é 40% inferior em média, comparativamente
à remuneração do trabalho com carteira assinada, para a região metropolitana de São Paulo.
A qualidade dos postos de trabalho, analisado sob o ângulo do ritmo de trabalho, da
jornada e das condições de saúde do trabalhador, apresenta um quadro de degradação. Por um
lado, a nova base técnica, através das novas tecnologias físicas de base microeletrônica e das
novas formas de organização do trabalho, permite a intensificação do trabalho, via redução
dos ciclos de operação, redução dos tempos mortos, operação simultânea de mais de uma
máquina, entre outros. Por outro lado, dispor da força de trabalho além da jornada semanal
normal vem se configurando uma prática comum. Deste duplo processo de superexploração
da força de trabalho, resulta uma situação de risco para o desenvolvimento de doenças
ocupacionais, principalmente as chamadas LER e DORT, que assumem a proporção,
utilizando a linguagem dos especialistas da área, de uma verdadeira epidemia.
Estas dimensões, separadas no âmbito desta pesquisa de forma a possibilitar uma
melhor aproximação ao processo de precarização do trabalho, possuem uma profunda
interdependência, e sua dinâmica vem provocando mudanças fundamentais no mundo do
trabalho. O trabalho precário, instável, intenso, mal remunerado, com poucos ou mesmo sem
direitos e, muitas vezes, agressivo à saúde, antes características associadas ao trabalho
desenvolvido nas franjas do tecido social, vem se tornando a realidade dos demais
trabalhadores envolvidos nas principais cadeias produtivas da economia brasileira. Trata-se de
um movimento em que a distância que separa o trabalho informal do trabalho formal vem
sendo combatida não com um esforço de inclusão dos trabalhadores informais, mas através da
degradação das condições de trabalho e emprego do trabalhador formal.

1
“Contingente de pessoas em condições de participar do processo de produção
social”. (POCHMANN, 2001: 78)

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 24


José Henrique de Faria & Antonio Kremer

2
Conforme jornal Folha de São Paulo, de 16 de Fevereiro de 2003, em reportagem
intitulada “No mundo, há 180 milhões sem emprego”.
3
As regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE são: Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
4
Conforme base de dados da PME, disponível em <http://www.ibge.gov.br>,
acessado em 17 de outubro de 2003.
5
Conforme base de dados da PED, disponível em www.dieese.org.br, acessado em
20 de outubro de 2003.
6
Indicadores Industriais CNI - Resultados Brasil - Série Histórica, disponível em
<www.cni.org.br>, acessado em 05 de Março de 2003.
7
Boletim Estatístico de 2001, disponível em <www.mdic.gov.br>, acessado em 06
de Março de 2003.
8
LER - Lesão por Esforço Repetitivo; DORT - Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho.
9
Sinovite: processo inflamatório agudo ou crônico da membrana das cápsulas
articulares; Tenossinovite: processo inflamatório agudo ou crônico do tendão e da membrana
que o envolve.
10
Agentes etiológicos são os agentes causadores de uma doença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Giovanni. O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho - Reestruturação Produtiva
e Crise do Sindicalismo. São Paulo: Boitempo Editorial: FAPESP, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho - Ensaio Sobre a Afirmação e Negação do
Trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO 2001. Porto Alegre: MPF, 2001.
ARAÚJO, Angela Maria Carneiro; GITAHY, Leda. Reestruturação Produtiva e
Negociações Coletivas Entre os Metalúrgicos Paulistas. Chicago: XXI Congresso
Internacional da Latin American Studies Association, 1998.
ARAÚJO, Angela Maria Carneiro (org.). Do Corporativismo ao Neoliberalismo – Estado e
Trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
BIHR, Alain. Da Grande Noite À Alternativa – O Movimento Operário Europeu em
Crise. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
CORIAT, Benjamin. Automação Programável: Novas Formas e Conceitos de Organização da
Produção. In SCHMITZ, Hubert; CARVALHO, Ruy de Quadros. Automação
Competitiva e Trabalho: A Experiência Internacional. São Paulo: Ucitec, 1988.
COUTO, Hudson de Araújo. Limites do Homem. Revista Proteção. Porto Alegre: MPF, p.
40-44, janeiro 2000a.
______. Realidade Instigante: Quais Práticas se Mostram Mais Críticas na Origem das Lesões
por Esforço Repetitivo?. Revista Proteção. Porto Alegre: MPF, p. 46-48, setembro
2000b.
DIEESE. A Situação do Trabalho no Brasil. São Paulo: DIEESE, 2001.
DRUCK, Maria da Graça. Terceirização: (Des)Fordizando a Fábrica - Um Estudo do
Complexo Petroquímico. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
FARIA, José Henrique de. Tecnologia e Processo de Trabalho. Curitiba: Editora da UFPR,
1997.
FREITAS, Carlos Eduardo. Levantamento Sobre Normas do Direito do Trabalho Durante
o Governo Fernando Henrique Cardoso. [Texto da Internet]: URL:
<http://www.pt.org.br/assessor/LevantaPrecariza.htm>, Acesso em 12/09/2002.
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 25


Reestruturação produtiva e precarização do trabalho: o mundo do trabalho em transformação

KREMER, Antonio. Reestruturação Produtiva e Precarização do Trabalho: Um Estudo


Sobre as Transformações no Mundo do Trabalho. 2003. Dissertação (mestrado em
Admistração – Setor de Ciências Sociais Aplicadas, UFPR, Curitiba.
LEITE, Márcia de Paula. Reestruturação Produtiva, Novas Tecnologias e Novas Formas de
Gestão da Mão-de-obra. In OLIVEIRA, Carlos Alonso (org) et alii. O Mundo do
Trabalho, Crise e Mudança no Final do Século. São Paulo: Scritta/Campinas: Cesit-
Unicamp, 1994.
LIPIETZ, Alain. Audácia: Uma Alternativa para o Século 21. São Paulo: Nobel, 1991.
LUCHINI, R.L. et alii. As Mulheres Sofrem Mais. Revista Proteção. Porto Alegre: MPF, p.
52-55, outubro 2000.
McILROY, John. Os Sindicatos e o Estado. In ARAÚJO, Angela Maria Carneiro (org.). Do
Corporativismo ao Neolibera lismo – Estado e Trabalhadores no Brasil e na
Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
OLIVEIRA, Carlos Alonso (org) et alii. O Mundo do Trabalho, Crise e Mudança no Final
do Século. São Paulo: Scritta/Campinas: Cesit-Unicamp, 1994.
POCHMANN, Marcio. O Emprego na Globalização: A Nova Divisão Internacional do
Trabalho e os Caminhos que o Brasil Escolheu. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.
PORTO, Marcelo Firpo de Souza; FREITAS, Carlos Machado. Modelo Brasileiro. Revista
Proteção. Porto Alegre: MPF, p. 59-61, abril 1999.
SCHMITZ, Hubert; CARVALHO, Ruy de Quadros (org.). Automação, Competitividade e
Trabalho: A Experiência Internacional. São Paulo: Ucitec, 1988.

REAd – Edição 41 Vol. 10 No. 5, set-out 2004 26


PODER, SABER E RAZÃO CÍNICA:
quando o poder arromba a porta o saber sai pela janela? 1

Professor Dr. José Henrique de Faria


UFPR

No Brasil, quando nada se quer mudar,


realiza-se uma “reforma” educacional,
que na realidade é uma “restauração”.
Maurício Tragtenberg (em 11.08.1979).

Este texto trata da contribuição de Maurício Tragtenberg em um tema que marca sua
obra. Analisar seu trabalho é um desafio permanente, porque quanto mais se estuda, mais se
descobrem relações novas e mais se percebe o quanto são atualizadas suas reflexões.
Tragtenberg percorreu um caminho no qual se encontram três temas principais: (i)
organização e burocracia, (ii) poder e saber e (iii) educação, trabalho e pedagogia libertária.
Todos relacionados entre si, como não poderia deixar de ser em se tratando de Tragtenberg.
Ainda que escrevesse sobre planificação, ideologia ou sobre o movimento operário (nos
jornais O Batente, Folha de São Paulo, entre outros), era sobre estes temas que ele se
debruçava.
É voz corrente nas ciências que uma teoria enquanto for capaz de explicar a
realidade sobre a qual foi construída continua válida. Porém, existem aqueles intelectuais
que são capazes de retirar da realidade, mais do que apenas sua aparência, a essência no
âmbito do movimento complexo e contraditório. Este é o caso de Tragtenberg.
Basta ver que no quadro da política atual, em que o poder instituído mostra sua face
perversa; em que um projeto de sociedade tão duramente construído é desmontado
favorecendo o pensamento conservador a posar de guardião do templo da ética, da
moralidade e dos bons costumes; em que a razão assume sua forma cínica; em que
justamente um governo que se anunciava popular propõe uma reforma do ensino superior
que, como já denunciava Maurício, não passa de uma restauração, é bastante oportuno
revisitar Tragtenberg e redescobrir sua atualidade.
Com efeito, suas reflexões parecem ter vindo a lume apenas há poucos meses,
convidando todos a percorrê-las atenciosamente. Neste texto, porém, resistindo à tentação
de abordar mais amplamente os seus três temas principais, procurar-se-á direcionar a
análise especialmente ao tema da relação entre poder e saber, tendo como campo empírico
a universidade pública. Como já foi dito, não sendo possível eleger um tema sem atravessar
os outros, a escolha de um deles é apenas para marcar a ênfase da abordagem.
1. Razão cínica e poder
Como já exposto em outro texto (FARIA, 2004), poder é a capacidade coletiva de
definir e realizar interesses objetivos e/ou subjetivos específicos. O poder é uma construção
social e não um atributo genético. O exercício desta capacidade se torna mais efetivo e
importante quando resulta do acesso do grupo social ao comando das principais estruturas
organizacionais da sociedade (partidos, sindicatos, governos, universidades, etc,), pois estas

1
Texto elaborado para o III Seminário de Ciências Sociais, promovido pela Universidade Estadual de
Maringá de 26 à 30 de setembro de 2005, cujo tema foi O saber e a produção do conhecimento nas Ciências
Sociais. Apresentado na mesa redonda intitulada Maurício Tragtenberg: poder e saber. Publicado na Revista
Eletrônica Espaço Acadêmico. Maringá, volume 53, número 10, pp. 06-20, 2005.
2

fornecem, tendo em vista sua constituição, elementos estratégicos e operacionais mais bem
estruturados. Não é sem razão que os grupos desencadeiam confrontos políticos para
ocupar estes lugares institucionais. O poder não é absoluto, mas relativo, não é monolítico,
mas apresenta rupturas, não é total, mas pressupõe a existência de outros poderes ou de
contra-poderes. Deste modo, o poder somente tem existência real enquanto relação de
poder e é nesta relação que se organiza o processo de dominação.
Contudo, se o contra-poder, que não é senão um outro poder que se constrói
contrariamente ao dominante, é incapaz de estabelecer bases sólidas para seu exercício, ou
seja, se ele se estrutura sem um saber socialmente referenciado, o mesmo fornece, a este
poder dominante, recursos de que ele originalmente não dispõe. Diz a razão instrumental
que a definição e a realização dos interesses se constitui sobre um arcabouço racional
devido à tendência de que se opere, no coletivo, um cálculo utilitário de conseqüências.
Mas é justamente aí que o problema reside. Como é que o próprio coletivo se constrói? Na
objetividade encontra-se a subjetividade, pois estas não são duas instâncias, mas uma
unidade de contrários. Aqui se encontra o sujeito e suas idiossincrasias. Como o interesse
individual não consegue expressar-se como tal no plano coletivo, ele atua como um vírus
oportunista, a espera de uma brecha nas defesas coletivas para se colocar, como se coletivo
fosse, apropriando-se do discurso que o mesmo legitima.
É aí que o interesse individual pode se expressar por outros meios que não os seus,
pois o que ele não quer é expor a si e às suas fragilidades e contradições. Para cada situação
objetiva e/ou subjetiva é necessário encontrar um argumento objetivo aceito coletivamente.
Diferenças pessoais tornam-se incompatibilidades políticas; invejas tornam-se
discordâncias de procedimento; questões menores se transformam em argumentos
plenipotenciários. Enfim, sempre será preciso pronunciar as palavras certas, que não
denunciem a expressão individual oculta ou subalterna.
A garantia que a organização coletiva contém é a de que ela tanto depende quanto
fornece um vínculo social comum, o qual assegura, em larga medida, os níveis de
comprometimento dos sujeitos com os princípios agregadores que guiam as ações. Em não
se observando ou em não existindo tais princípios, qualquer atitude pode ser justificada,
qualquer posição pode ser racionalizada, qualquer política pode ser burocratizada. Desta
maneira, o sujeito pode passear por coletivos opostos, incorporar discursos diversos,
defender propostas contrárias, sem culpa, vergonha ou sofrimento, porque o que lhe orienta
é o hedonismo. O que ontem era a favor, hoje pode ser contra; o que ontem era princípio de
conduta, hoje pode ser fora de moda.
Todo o projeto coletivo deve admitir divergências internas para se fortalecer. Sem a
crítica coletiva, a organização opta pela pulsão de morte, pela onipotência narcísica, sempre
defendida pelos conservadores como princípio de fidelidade ao compromisso original,
quando este, de fato, só pode ser resultado de uma construção dinâmica, complexa e
contraditória, exposta à pulsão de vida, à dor da mudança e da transformação. O que faz
com que a organização coletiva se fortaleça não é a manutenção de suas crenças primevas,
mas a sua capacidade de renovar-se diante do movimento da realidade, para resguardar seus
princípios. As divergências internas podem provocar cisões, às vezes inconciliáveis, dando
vida a novos coletivos, os quais somente podem ter nascido do parto doloroso da matriz
original. Trata-se, assim, de saber até que ponto este DNA herdado é suficientemente
consistente para permitir alianças estratégicas entre sucessores de uma mesma matriz. Para
tanto, é necessário, especialmente diante de um quadro de aniquilamento dos princípios
3

estruturantes da matriz original, não cair na armadilha da valorização das pequenas


diferenças e dos desencontros entre os sujeitos da ação.
Nas universidades, esta situação vem reforçar o que Tragtenberg (1979c:16-7)
chama de “complô de belas almas”, “recheadas de títulos acadêmicos, de doutorismo [...],
de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que
espécie for”. Nas escolas formam-se, deste modo, tecnocratas aptos a confeccionar
reformas educacionais que, na realidade, são “verdadeiras ‘restaurações”, da mesma forma
que em outros centros educacionais se reproduz a universidade mandarinal do século
passado a inculcar “normas de passividade, subserviência e docilidade através da repressão
pedagógica”. Mesmo nos “cursos críticos” a universidade dominante prevalece, através do
juízo professoral hegemônico exercido sobre os estudantes em um processo de
“contaminação”. “Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário (...) constitui-
se numa farsa, numa fábrica de boa consciência para a delinqüência acadêmica
representada por aqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder”.
Quando a “unidade coletiva” da universidade é ameaçada por desvios particulares
ou corporativos e por críticas que revelam suas fragilidades, é fundamental garantir aquela
pela correção desses. Entretanto, o que se observa é que a defesa da instituição universitária
diante das possibilidades de sua transformação democrática dá lugar à existência de um
universal totalmente aparente que, de novo, é somente a soma de infinitas particularidades,
cada qual, sem abdicar de seus interesses privados e encerrados em sua esfera, caracterizam
o coletivo como elemento do particularismo, essencialmente desorgânico, em que a união
se realiza apenas inconscientemente, nas costas dos indivíduos.
Tal concepção do ethos singular embutido na estrutura coletiva, tomada como
princípio genérico, afirma, em nome do todo, que a sociedade coletiva é apenas um
conjunto de pessoas ou grupos privados, que a organização é simplesmente a soma dos seus
“colaboradores” e que todos, defendendo seus interesses particulares, transformam-nos em
coletivos, em metas e objetivos comuns: com este sentido, o universal torna-se não uma
construção, mas uma soma, não um fim, mas um meio, não um valor, mas uma instância de
legitimação dos agregados particulares (FARIA, 2004).
A vida cotidiana na academia passa a ser, assim, preenchida por vários espaços em
que o falso toma a forma do verdadeiro, instituindo um pacto no qual ali tudo é aceito como
norma, como próprio da natureza, de maneira que as verdades impostas e a ética
conceituada não venham a provocar, nos sujeitos, incômodo, envolvimento ou dor. Os
grupos e alguns de seus líderes, no sentido de manter uma unidade competitiva na luta pelo
poder, desfilam um conjunto de regras, de comportamentos e de condutas administrativas e
morais, a partir do que julgarão outros grupos ou seus membros mais destacados;
entretanto, o que deveria ser princípio e compromisso, não passa de discurso. Na medida
que o que antes era definido como ético ou democrático, venha a se constituir em obstáculo
ao exercício ou à luta pelo poder, toda a lógica passa a ser reconstruída, de maneira a
abarcar as novas regras, atitudes ou comportamentos agora necessários e, portanto, aceitos.
Tais alterações não se processam, destarte, apenas pela dinâmica das relações, pela dialética
da natureza, mas por interesses particulares (FARIA, 2004). Como bem aponta Tragtenberg
(1979c:19), “em nome do ‘atendimento à comunidade’ e em nome do ‘serviço público’, a
universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a
serviço dos interesses econômicos hegemônicos”. “A escolha das pesquisas depende dos
financiamentos possíveis; por outro lado, a ‘moda’ acadêmica impõe sua tirania”.
(TRAGTENBERG, 1979c:30).
4

Assim, os princípios que guiam estes “filantropos da intelectualidade” no interior


das academias aparecem sem estilo e sem densidade política, porque resolvem suas
carências com frases tradicionais e com bordões; sem conteúdo, porque sendo vazios de
teoria preenchem suas falas com estéticas duvidosas; sem horizonte, porque sua visão de
mundo não ultrapassa a porta da sala de reuniões; e sem compromissos, porque legitimam
práticas organizacionais com superficialidade e, às vezes, com a profundidade da
banalização (FARIA, 2004). São princípios nos quais não cabe a sabedoria e nos quais o
sujeito não vale pelo afeto que cultiva, mas pela esperteza capaz de lhe conferir vantagens
competitivas.
A introdução de ensino pago nas universidades públicas, a realização de cursos a
qualquer clientela que por eles se disponha a pagar, as atividades de prestação de serviços
onde o que mais importa são os recursos e não a qualidade acadêmica resultante dos
mesmos, o financiamento da pesquisa por organizações de interesse privado, a realização
de encontros em que se operam vendas de conhecimento científico ou em que se constroem
palcos nos quais os pares se apresentam para sua autopromoção: estas se constituem, para
Tragtenberg, em graves ameaças ao ensino público libertário. Como se este movimento não
fosse suficiente, o Governo Federal envia ao Congresso Nacional, em Agosto de 2005, um
Anteprojeto de Lei da Reforma da Educação Superior, que, mais do que uma restauração, é
uma liquidação silenciosa da universidade pública.
Diante disto, em que esconderijos da academia se resguardam alguns dos defensores
da universidade pública quando esta necessita que eles assumam publicamente suas
posições? Que importantes propostas estão construindo ou em que relevantes programas de
defesa de uma universidade libertária estão associados? Em que recintos se fecham, a
reclamar do mundo globalizado, a tricotar suas análises mesquinhas, a desqualificar os que
assumem os enfrentamentos, a ironizar os que acreditam que o projeto desta universidade é
mais importante que as brigas de vizinhos pelo lugar no varal? A armadilha se encontra
armada à espera dos incautos, dos distraídos e dos omissos.
É possível evitar esta armadilha, desarmá-la, todavia, a condição de escapar dela
não basta. Eis que aparece, com todo o fulgor, a razão moderna dos intelectuais da caverna
platônica, em sua versão cínica, a cobrar uma fidelidade metafísica dos que permaneceram
defendendo o projeto coletivo original dinâmico, ultrapassando diferenças menores de
segunda ordem. É sabido que motivos para o cinismo nunca faltarão, pois eles se encontram
disponíveis para o uso, alguns nas prateleiras empoeiradas dos subterrâneos, outros nos
velhos baús dos piratas históricos da academia. Porisso, os cobradores, de sua confortável
posição de inércia, entendem que podem reclamar à vontade, que podem apontar
problemas, que podem discordar dos encaminhamentos, enfim, que podem tudo. Mas, uma
vez que nada fizeram, a não ser transitar pelos corredores das conversas vazias e sem
qualquer compromisso efetivo, suas reclamações só podem ser e só são a demonstração
cabal da não construção, da pulsão de morte.
Como sugere Calligaris2, para tal razão “não há avaliação coletiva dos atos”, pois o
que importa não são os efeitos das ações, mas as motivações dos sujeitos. Sempre é
possível suspeitar que existem interesses mesquinhos não manifestos. Como toda a
motivação (original) é interesseira, diz Calligaris, “a ação é sempre culpada, pois suas
‘verdadeiras’ razões devem ser sórdidas”.

2
Vide Folha de São Paulo de 25 de agosto de 2005, p. E10.
5

É muito cômodo, portanto, para esta razão, cobrar as ações dos que agem. Com
efeito, confinados em suas divagações oníricas, omitem-se da constituição do espaço
coletivo organizado, mas se acham plenos de direitos de cobrar o que poderia ter sido se já
não tivesse sido diferente, o que deveria ser se já não fosse de outro modo. Esta é a forma
de ser do idealismo, que acredita que a realidade existe a partir da consciência que dela se
tem e não que a consciência existe a partir da interação do sujeito com o real.
Se o sujeito não constrói a razão coletiva e, portanto, não vive a dinâmica, a
complexidade e as contradições deste processo, que tipo de razão o impulsiona se não a
razão moderna em sua versão cínica? A conquista desta razão, como afirma Calligaris, se
transforma em miséria “por causa de um estranho espírito de porco que conclui: quem se
mete é sempre sujo; melhor não se meter e reservar-se assim o direito de berrar”. Para os
donos desta razão “quem age é verdadeiramente interesseiro e quem não age é covarde”.
Deste modo, apenas aqueles que protestam contra os dois é que se consideram ungidos pela
sublime providência política.
Pois esta razão, que se considera plena de razões, é também aquela que julga o
contra-poder como interesseiro, pois é somente o poder que tem projetos, que tem meios,
competências, experiências e facilidades. O poder pode tanto que até faz com que suas
realizações vulgares pareçam grandes conquistas, que sua ineficácia pareça estratégia
política, que seu autoritarismo pareça disciplina democrática, pois o seu compromisso é
com o discurso, com a aparência, com o simbólico. E para mostrar as razões desta razão,
nada como uma boa logística, um marketing político eficiente, o uso não ético das
estruturas e recursos, os acordos políticos ilegítimos. Tudo porque o poder se considera
detentor do único projeto possível, da única verdade, da única política, do único modo de
pensar e agir. Para o poder, que sempre pretende se perpetuar, não há nada mais
interessante do que o esfacelamento do contra-poder, pois assim ele pode ser exercido com
baixa ou com desorganizada resistência.
Desta forma, se o contra-poder não se estrutura como saber e não se organiza para
além do discurso, das aparências e dos simbólicos unívocos, se o mesmo se faz prisioneiro
de antigas diferenças de segunda categoria, se ele se acredita o lugar de todo o
descontentamento, se considera que nada é puro senão seu moralismo e que nada é viável
senão sua proposta, então o poder se enraíza. E se enraíza também no contra-poder, na
medida que este, na eventualidade de suceder-lhe, assume sua identidade exatamente pela
prática que condenava.
Ao mesmo tempo e contraditoriamente, a razão cínica sempre se mostra disponível
para manifestar-se com seus surrados argumentos. Ainda que esta razão possa se colocar
contra o poder, não consegue ser um contra-poder, pois nem um e nem outro são
suficientemente bons para ela. Mais do que isto, a razão cínica pode se colocar ao lado do
poder, que nos bastidores ou em segredo combate, simplesmente porque não consegue
suportar romper com as pequenas diferenças, já que para esta razão cínica o projeto
coletivo é um discurso que cumpre pronunciar, mas não necessariamente assumir.
De fato, quando a razão cínica age com a hipocrisia que lhe é própria, não é
necessário que haja motivos pertinentes para a sua ação. Qualquer motivo serve, porque a
ação já se encontrava previamente definida antes de se apresentar e ser executada. Neste
sentido, o que precisa ser observado com redobrada atenção pelo contra-poder é tanto o
movimento coletivo, pois nada se realiza sem ele, quanto aquelas questões que afetam os
sujeitos no plano individual e que são transportadas para o plano coletivo como se a ele
pertencessem, porque, ao final, poderão mesmo acabar sendo assumidas coletivamente.
6

No mundo dos descontentamentos, dos preconceitos, das exclusões, como se sabe,


mentiras repetidas tornam-se verdades. Estas “verdades” oficialmente relatadas tornam-se
fatos insuspeitos. Estes “fatos” são considerados realizações. Mas a verdadeira realização é
aquela da razão cínica e de seu projeto de poder. É contra ela e seu acobertamento ao poder
instituído que deve ser travado o verdadeiro combate.
Tal razão, como razão do poder, entranha-se na burocracia, ocupa os lugares da
autoridade na estrutura hierárquica, elabora normas e regras, impõe políticas e determina as
formas de sua perpetuação. É ali, nos departamentos da organização formal que as
articulações do poder principiam, pois estes, como ensina Tragtenberg, já se constituem em
um autêntico poder feudal, nos quais se estabelecem práticas autônomas e desvinculadas de
projetos universitários, favorecendo a aparecimento do baronato, de hábitos protetores
corporativos e de atitudes persecutórias de membros não conformados à ordem dominante.
É dos departamentos que saem os representantes docentes nos colegiados e conselhos
superiores e nos colegiados de curso. A lógica departamental se reproduz por toda estrutura
universitária como uma lógica do poder funcional e político, fortalecendo um sistema de
regras e uma burocracia que subsistem com um nível relativamente autônomo e que tendem
a se auto-reproduzir em todas as instâncias. Como demonstra Tragtenberg (1977:188), "a
burocracia constitui um sistema de condutas significativas e não só um sistema de
organização formal".
Neste sistema, portanto, a participação da comunidade universitária no processo
decisório e na definição das políticas acadêmicas vai depender da concepção de
universidade que seus dirigentes representam e não de sua estrutura formal; vai depender
das ações verdadeiramente comprometidas com a transformação social que se podem
desencadear a partir de uma participação política real capaz de quebrar as condutas
burocráticas, o conformismo e o obscurantismo e não de atributos personalísticos; vai
depender da capacidade de organização coletiva e não de determinações emanadas de
acadêmicos vestidos com trajes de burocratas. Este sistema de produção de teorias nem
sempre as relacionam às suas próprias práticas. Como alerta, muito apropriadamente,
Tragtenberg (1977:215), "o rumo da sociedade não será decidido por enunciados teóricos,
mas sim determinado pela relação de forças entre as classes sociais".
2. Poder com saber se paga: a crise da universidade
No campo da razão cínica também passeiam o poder e o saber, em uma situação na
qual aquele investe sobre este, para capturá-lo e submetê-lo. O poder é bem sucedido
quando o saber se entrega, mas não se consolida quando o saber resiste. Mais do que isto, o
poder se perturba quando o saber é um contra-poder. Tragtenberg afirma que o tema da
relação entre a dominação e o saber é amplo. Isto permite sugerir que, certamente, o mesmo
ultrapassa o espaço circunscrito da escola. Entretanto, é na escola que esta relação se
manifesta de forma mais evidente, enquanto uma reprodução do que ocorre na sociedade
sob o signo do sistema de capital.
Quando a estrutura de poder arromba a porta e se instala na escola, impondo sua
pedagogia burocrática, o saber é expulso pela janela, o que levanta a questão: o saber não
pode ser poder” Ou, para dizer de forma diferente: o saber não é a forma de enfrentar o
poder, na medida que ele constitui um contra-poder, um outro poder? O poder, como se viu,
pretende ser dono da verdade, da única interpretação, de todas as pompas e todas as
circunstâncias. Mas, se cada circunstância pudesse reivindicar uma verdade, nenhum
código seria produzido, nenhuma sociedade seria organizada e nada seria instituído. Isto
não significa que, uma vez definidas, as verdades, assim como os princípios de conduta se
7

tornem imutáveis. De fato, como analisa Engels (1979), em sua crítica ao Senhor Düring, se
o produto do exercício do pensamento pudesse reivindicar a validez soberana das
verdades, a sociedade alcançaria um nível tal que se teria esgotado a infinidade do mundo
intelectual. Se tudo já estivesse pronto, nada mais haveria a produzir. Se tudo já se
soubesse, nada mais haveria a investigar.
Entretanto, é interessante verificar que mesmo em situações que se caracterizam
pela renovada produção intelectual e pela permanente investigação também acabem
emergindo estes axiomas, definitivos e inapeláveis, dos quais se extraem as deduções da
existência humana, do poder-ser e do dever-ser. E é interessante observar que justamente aí
é que alguns membros das organizações acadêmicas asseguram, em seus discursos, que só a
sua concepção é aceitável, que tudo o mais é equívoco e, como profetas recém saídos do
forno, trazem em sua mochila, pronta para ser posta em circulação, a única verdade e a
eterna justiça (FARIA, 2004).
Neste sentido, a relação professor-aluno é sempre uma relação de poder quando tem
como suporte os aparatos da coerção institucionalizada e o domínio de um saber
inacessível. Tragtenberg (1979c, p.18) observa bem estas práticas, indicando que “o mestre
possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória: não há saber absoluto, nem
ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor: a
separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada”.
Deste modo, ao examinar a crise da universidade, que ocorre porque a “sociedade
está em crise”, Tragtenberg (1979c:15) percebe que, ao contrário do que afirmam alguns
acadêmicos, a universidade “não é uma instituição neutra; mas sim de classe, onde as
contradições aparecem. Para obscurecer estes fatores, a universidade desenvolve uma
ideologia do saber neutro, científico, uma neutralidade cultural e um mito de saber
‘objetivo’ acima das contradições sociais”. De fato, a universidade desenvolve
determinadas práticas acadêmicas e administrativas que, por vezes, escondem,
deliberadamente ou não, movimentos contraditórios. O processo de seleção dos membros
de sua comunidade é um exemplo destas práticas. “Quem é escolhido econômica e
socialmente tem potencialidades em termos de habilidade intelectual de verbalização, de
raciocínio abstrato, de passar pelo chamado filtro aparentemente educacional ou cultural
que é o vestibular”. A “seleção, educacional, mascara uma seleção social preexistente”, de
forma que a educação “apenas confere um poder simbólico a quem já tem poder real”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 130). A seleção dos alunos da graduação e da pós-graduação,
caracterizada pela igualdade de oportunidades, disfarça o fato de que em cursos de alta
demanda as maiores oportunidades são conferidas aos que tiveram acesso prévio a um
ensino privilegiado (ZANDONÁ, 2005)3.
Tragtenberg (1979c:20-2) percebe criticamente este movimento. Sobre a ética e a
função social, afirma que “uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto
a pagá-las perde o senso de discriminação ética e da finalidade social de sua produção: é
uma ‘multiversidade’, que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o
fim da encomenda, acobertada pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu
produto”.

3
Isto sem falar que “a seleção dos docentes através de concursos, às vezes esconde a preferência das bancas
pelo conteúdo teórico e político dos candidatos, quando não por relações interpessoais”. Maurício foi uma das
vítimas deste processo (TRAGTENBERG, 1999).
8

Tragtenberg (1979c:22-3) assegura que “a valorização do que seja um homem culto


está estritamente vinculada a seu valor na defesa de valores de cidadania essenciais, ao seu
exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência e ação”. Para que a
universidade possa participar do desenvolvimento deste sujeito, Tragtenberg acredita que
“a alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e
funcionários no meio universitário que se oponham à esclerose burocrática da instituição. A
autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência”.
Observa, finalmente, que “a participação discente não se constitui num remédio mágico aos
males [...] apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em
colegiados é fator de sua moralização”.
Esta crença exposta por Tragtenberg nos canais de participação real, entretanto,
mostrou-se concretamente um engodo. Os canais de participação real existem, a
participação discente é assegurada, mas a democracia, a ética e a justiça não estão
garantidas por força destes dispositivos. Mais do que os canais de participação é necessário
que sejam superadas tanto as dificuldades de organização dos professores, técnico-
administrativos e estudantes, quanto a falta de motivação, de participação política e de
valorização das representações. Ainda assim, restará vencer a máquina trituradora da
burocracia pública, o conservadorismo obscurantista da academia, as práticas destrutivas e
intestinas de poder que não se manifestam nos canais de participação, mas nos bastidores, a
preservação das corporações de ofício e de suas práticas instaladas na academia, a
mediocridade dos processos de avaliação da produção acadêmica.
Até que ponto a motivação participativa pode valorizar os fins para definir os meios,
transformar os problemas técnicos em problemas também políticos, preferir a consulta
pública a soluções de gabinete, substituir a indignidade intelectual pela dignidade da
inteligência? Convém não padecer de ilusões. A universidade é uma instituição dominante
e não uma instituição neutra, na qual grupos disputam o lugar do poder com muito mais
empenho do que o lugar do saber. É uma instituição de classe, sustenta Tragtenberg, na
qual as contradições de classe aparecem e na qual, para obscurecer esses fatores, ela
desenvolve uma ideologia do saber científico neutro, da neutralidade cultural e do mito de
um saber “objetivo”, acima das contradições sociais. No século passado, era a
universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a
manter nas fábricas o despotismo do capital.
Além disto, alguns intelectuais universitários utilizam a universidade como
trampolim para realizar seus projetos e interesses pessoais, contando com a colaboração,
sempre muito prestativa, dos que esperam abocanhar as sobras do banquete; abandonam
princípios por funções remuneradas na burocracia, mudam seu discurso ao sabor das
conveniências do poder, trocam a produção acadêmica (nem sempre relevante) por uma
carreira na política, submetem-se à participação em convescotes e eventos gastronômicos
eleitoreiros em busca de prebendas. Para Tragtenberg (1981, p. 13), “é através da
nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a
burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e
conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já
constituem um sistema ideológico(...). A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou
a profissão acadêmica”. A universidade ainda mostra-se “hostil ao pensamento crítico
avançado”.
A realidade tem confirmado que, como afirmava Tragtenberg (1981, p. 156), “quem
tem medo de perder cargos não pode contribuir a uma educação libertadora. Capachos do
9

poder só podem contribuir a uma educação opressiva”. Muitas universidades tiveram seu
comando entregue àqueles que possuíam como título maior sua cumplicidade com o poder,
muito mais do que sua qualificação científica. Estas parcerias entre o poder e a direção da
universidade, as diversas formas de submissão dos dirigentes às determinações do poder, os
vínculos destes dirigentes com agremiações políticas e as trocas de favores, aliados à
inépcia e à incompetência na gestão, aos modos autoritários e excludentes no trato dos
interesses das comunidades interna e externa, entre outros, vêm se constituindo em fatores
de transformação do campus universitário em cemitério de esperanças perdidas, vulnerável
à politicagem local, onde o regime da “incompetência treinada” é o predominante. Como
afirmava Shakespeare, “é lamentável que na nossa época loucos dirijam cegos”.
Enquanto grupos com intimidade com a burocracia se aplicam com diligência nos
escaninhos do poder, a pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre
o parco conhecimento produzido pela universidade. Com isto, aponta Tragtenberg (1981),
se processa a passagem da universidade que se pretendia humanística à universidade
tecnocrática, em que se aplicam os critérios lucrativos privados, que funcionam voltados
para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e
dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o
diplomado universitário.
A universidade tende a reproduzir não apenas ideologicamente o modo de produção
capitalista, mas, também o faz pelos servos que ela forma. Desta maneira, como enfatiza
Tragtenberg, a não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se
constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou de “traição intelectual”. Deste modo,
cabe compreender que poder se enfrenta com contra-poder e se paga com saber,
especialmente porque, como lembra Tragtenberg (1981, p. 135), no país se tem uma relação
em que geralmente existe muito saber sem poder e muito poder sem nenhum saber.
3. O intelectual docente, o saber e a política do poder.
“Os professores servem para reproduzir o poder na medida em que determinam as
questões que [seus alunos devem] estudar”, afirma Tragtenberg (1981, p. 24). “Como os
dados empíricos são influenciados pelo instrumental metodológico, o contexto social
obviamente afeta as teorias e metodologias” (Ibid, p. 21) e conduz a compreensão da
realidade para onde o professor deseja construí-la. O significado basilar desta trama é que o
intelectual docente, dependendo de sua vinculação, articulará a explanação do mundo para
onde aponta seu lugar de pertença nas relações de classe. Isto exige, de imediato, que se
possa compreender que o papel do intelectual não é unívoco.
Classificações não são formas de analisar o mundo histórico e dialético, mas podem
ajudar a organizar didaticamente uma exposição. Nestes termos, sem fugir do conhecido
risco da simplificação, trata-se de aceitar as evidências empíricas que confirmam que os
intelectuais docentes não podem ser agrupados em um mesmo quadro. Na universidade se
encontram e se produzem alguns tipos de intelectuais, caracterizados por suas atividades,
que podem ser dispostos em quatro categorias4:
a. Intelectual orgânico (no sentido usado por Gramsci): é o que se relaciona
diretamente com uma classe social pela função e pelo lugar que ocupa nas

4
Desculpo-me pela generalização e pela ironia com que apresento criticamente alguns tipos de intelectuais,
pessoas cujo objeto de trabalho é a idéia. Entretanto, não apenas é difícil evitar uma análise tragtenberguiana
em se tratando de Tragtenberg, mas igualmente evitar apontar para as diferenças entre os intelectuais
(orgânicos) e seus similares.
10

relações de produção. Os intelectuais orgânicos podem ser divididos em dois


grupos: (i) intelectual orgânico do trabalho, comprometido com as causas
dos trabalhadores, que faz de sua atividade de ensino e de produção do
conhecimento uma forma de construção de uma sociedade igualitária e que
com sua atividade subsidia a resistência e a autonomia operária; (ii)
intelectual orgânico do capital: comprometido com a manutenção, a defesa e
a expansão do sistema de produção capitalista, com sua atividade subsidia a
acumulação ampliada não só para reproduzi-lo, mesmo no plano simbólico,
como para “conduzir a direção moral e intelectual da sociedade de classes,
legitimando com seu saber o poder existente e sua distribuição desigual”,
como afirma Este “intelectual age como ‘agente comissionado’ do poder na
medida em que estende a disciplinação da mão-de-obra da fábrica à
sociedade global, assegurando a viabilidade da dominação”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 61)5;
b. O intelectual transgênico: é o que tem sua origem de classe geneticamente
modificada. Trata-se de um intelectual sem identidade histórica e social e
estabelecendo relações de oportunidade, com grande produtividade
acadêmica (e geralmente com pouco aprofundamento teórico), produzindo
qualquer coisa para qualquer encomenda a qualquer tempo, vinda do
trabalho ou do capital, servindo a quem lhe oferecer uma retribuição
(material ou não) mais atraente e promissora;
c. O intelectual estéril: é o que na academia nada produz, nada publica e de
nada participa. Mais do que um alienado, ele é fruto maduro do cruzamento
de duas espécies semelhantes de fenômenos do gênero político (organização
burocrática da escola e falta de vínculo social), cujos modos são aceitos
pelos demais por força do hábito, dos vícios ou de acomodações. Dele não se
pode esperar discípulos ou seguidores, mas apenas vagas lembranças;
d. O intelectual hermafrodita: é o que se basta, o que contém em si todas as
divergências, todas as perguntas, todas as respostas e que pode produzir e se
reproduzir sem necessidade de interação com o outro e com o “real
concreto”. Sua relação com o mundo do saber é uma relação consigo mesmo
e se esgota em seu gabinete. O resultado de sua criação, portanto, aparece na
sala de aula como produto acabado da auto-reprodução abstrata.
Independentemente da autenticidade dos intelectuais, da qualidade de seu fazer e de
seu saber, de seu comprometimento e de sua dedicação, a universidade e suas agências

5
No Paraná, foi criada a Academia Paranaense dos Doutores para o Desenvolvimento, ligada ao Instituto
Paranaense do Desenvolvimento - IPD. Segundo seu site, sua maior contribuição é “potencializar o
conhecimento acadêmico”, dando “mais visibilidade aos trabalhos acadêmicos” e levando “seus resultados ao
setor industrial como forma de contribuir para o desenvolvimento econômico, social e ambiental”. A
Academia pretende compor “cenários que reúnam conhecimentos e agreguem inovações, tanto no âmbito de
desenvolvimento do conhecimento e pesquisa quanto na aplicação prática”. Seus objetivos são os de “reunir a
comunidade de doutores do Paraná, descobrir competências, dialogar e buscar soluções para contribuir com o
futuro do desenvolvimento do Estado, usando o conhecimento para ajudar na construção de uma comunidade
sustentável e melhor de se viver”, tendo como prioridades o “mapeamento das competências e áreas de
atuação dos profissionais do meio acadêmico” e “das necessidades das Indústrias na área de inovação
tecnológica” e a “avaliação contínua do processo de interação academia-empresa-comunidade”.
11

(divididas em comitês formados pelos próprios intelectuais) os avalia6 a partir do que


Tragtenberg (1981, p. 15) chama de “política das panelas” acadêmicas de corredor
universitário, que juntamente com “a publicação a qualquer preço de um texto qualquer, se
constituem no metro para medir o sucesso universitário”, daí porque “a maioria dos
congressos acadêmicos universitários serve de ‘mercado humano’ (...) em que se trocam
informações sobre inovações técnicas revêem-se velhos amigos e se estabelecem contatos
comerciais”.
“A ascensão do docente na carreira não depende da verificação dos
resultados obtidos em longo prazo pelo mesmo sobre seus alunos;
portanto, os critérios de eficácia ou valor são desprezados e o de
conformidade (aprovação nos exames, provas) supervalorizado. O exame,
mais que o programa, define a pedagogia do docente. O objetivo que a
pedagogia burocrática lhe propõe não é o enriquecimento intelectual do
aluno, mas seu êxito no sistema de exames”. (TRAGTENBERG, 1981, p.
37)
Assim, “o problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do
acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do
poder”. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se
numa “agência do poder”. O problema significativo a ser colocado é o nível de
responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. Porisso, por este
descompromisso com a realidade social, Tragtenberg (1981, p. 16) reclama da concepção
taylorista que ainda prevalece na universidade:
A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que
caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos
problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma
forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A
valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao
seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo
revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.
Daí, pergunta Tragtenberg (1981, p.17), em que “condições o Poder produz um tipo de
saber necessário à dominação e em que medida esse saber aplicado reproduz o Poder”? É
“com o capitalismo que o saber instrumental adquire características dominantes”, é com o
positivismo e o neopositivismo que se definiu “uma linha de saber instrumental”, de
maneira que “o saber tem status na medida em que se constitui em saber ‘aplicado’. A
instrumentalização do saber é uma das características dominantes na cultura do capitalismo
moderno”, responde.
“Cobertos pelo ideal de ‘neutralidade ante valores’”, continua Tragtenberg (1981,
pp. 18-9) “a maioria dos acadêmicos universitários vegetam no conforto intelectual
agasalhado pelas sinecuras burocráticas e legitimadas ideologicamente pelo apoliticismo: a
ideologia dos que não têm ideologia. Esse apoliticismo converte-se na ideologia da
cumplicidade trustificada”. É neste sentido que o saber “não é simplesmente um aspecto da
cultura universitária; tornou-se elemento de poder”, de tal forma que “uma pesquisa é
determinada não porque se é obrigado a ter esta ou aquela orientação teórica para receber
financiamento, mas recebe financiamento por ter esta ou aquela orientação teórica. O
acadêmico, conclui, “produz como um operário de linha de produção”. Como não discute
os fins, o resultado de sua produção é a alienação.

6
Os comitês acadêmicos valorizam a especificação de “que um verdadeiro professor deve publicar em inglês”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 27).
12

Para Tragtenberg, a maior preocupação da educação é formar indivíduos cada vez


mais adaptados ao seu local de trabalho, porém capacitados a modificar seu
comportamento tendo em vista as mudanças sociais. Ao novo sistema de capital não
interessa a formação de operários embrutecidos, mas de trabalhadores conscientes de sua
responsabilidade social na empresa e perante a sociedade global. A empresa moderna
deseja possuir o monopólio da sedução (FARIA, 2004) e, para tanto, vai se valer também
das ciências do comportamento. É desta forma que o conhecimento científico apropriado
pelo capital, tornado saber para si, constitui-se em força produtiva imaterial.
Para sustentar estas necessidades do capital, o sistema cultural assiste à ruptura
entre a palavra sagrada e a profana. Para Tragtenberg (1981, p. 50) “não é mais Deus que
dispõe do monopólio do verbo nem a Igreja de sua interpretação. A ciência ocupa hoje o
lugar do Verbo Divino. A casta dos cientistas substitui a hierarquia eclesiástica como
elemento mediador entre a palavra superior e a coletividade humana”.
É neste monastério onde florescem as instituições educacionais e seus sacerdotes, os
professores, que se desenvolve um trabalho contínuo e sutil para a conservação da
estrutura de poder e, em geral, da desigualdade social existente. A educação constitui-se
em parte integrante do todo social, captado por suas determinações econômico-sociais. “O
importante é reter que a forma assumida pelo processo de trabalho determina as
características e o significado da educação. Na medida em que o capital detém o
conhecimento, ele funda uma distribuição diferencial de saber que legitima a existente na
esfera do poder. Constituindo-se em qualificações genéricas, a força de trabalho pode ser
fora do processo produtivo: na escola” (TRAGTENBERG, 1981, p. 61).
O Estado Capitalista Contemporâneo atua no sentido de transformar a Universidade
em aparelho de reprodução e o faz (i) através da manutenção da produção intelectual nos
limites da comunidade acadêmica, (ii) da regulamentação rígida da pós-graduação, (iii) do
desvio dos melhores professores para a pós-graduação confiscando a pesquisa do nível de
graduação e limitando a participação de alunos através de restrições de bolsas de iniciação
científica. Assim, alerta Tragtenberg (1981, p. 63), “a Universidade, controlada em sua
função pedagógica pela burocracia, tendo sua função de pesquisa redefinida fora de seu
meio, através das agências de financiamento nacionais e internacionais, é ‘domesticada’”.7
4. O poder e a prepotência do dono do campinho: é bom saber que o saber do
mestre é a única condição de sua “autoridade”.
Hoje, o problema da histórica exclusão social tornou-se moda nos discursos da
burguesia e das elites universitárias. Conhecidos freqüentadores de colunas sociais, a exibir
uma baldada e desinteressante existência realmente social, pousam de progressistas,
cometendo discursos desconectados da realidade em que vivem. Acostumados a serem
donos dos campinhos, das bolas e do jogo de camisas, estas elites não conseguem articular
os discursos com suas práticas, porquanto no mundo da prepotência em que tudo antes
puderam não havia lugar para conviver com a frustração das derrotas e com os
enfrentamentos críticos. Não sabem, porque esta não é a prática a que sempre estiveram
acostumados, que o “poder do professor”, sua “autoridade”, é apenas o seu saber e que tal

7
Eu tenho medo, de tudo o que concentre poder, medo da concentração de saber, também medo da
Pedantocracia, da chamada ditadura científica exercida pelo braço secular apoiada em tecnocratas “com
boa consciência”, que conseguem tranqüilamente penalizar até a classe média-média, e a média-alta, com a
redefinição de imposto de renda, e dormir tranqüilamente. Eles acreditam que cumprem uma missão de
salvação nacional. (Tragtenberg, 1981, p. 136).
13

“poder” somente se efetiva quando entra em cena sua generosidade. Tampouco sabem que
ser o “dono do campinho universitário” não é suficiente para determinar o andamento do
jogo. Não sabem, porque não lhes interessa saber, que cargos de direção somente têm
sentido acadêmico quando têm sentido histórico.
O docente da educação libertária não pode muito, porque a transformação do mundo
não está contida em si, mas nas relações sociais e de produção. Neste sentido, ele pode
contribuir decisivamente para o processo libertário quando se afirma criticamente contra a
dominação, contra a distribuição desigual do poder. Para tanto, não basta o simples domínio
de técnicas que favoreçam a pedagogia libertária. É preciso que o sujeito docente, ele
mesmo, tenha um envolvimento consciente, crítico, autônomo e, ao mesmo tempo, afetivo,
contra a educação bancária (para usar uma expressão de Paulo Freire), a pedagogia
autoritária e burocrática. Um docente que não for internamente generoso na socialização de
seu saber, não alcançará a condição política libertária.
Se na universidade é necessário haver uma recepção afirmativa às práticas
democráticas, é necessário ter claro que, afirma Tragtenberg (1981), somente a partir de
uma mudança profunda na área econômico-social e de distribuição desigual do poder
existente hoje é que se terá condição de alcançar uma democratização real da universidade.
O problema educacional é aparentemente educacional. Na realidade é econômico-social e
político. Somente países que realizaram profundas transformações sociais e econômicas
chegaram a universalizar o ensino a toda a população, sem discriminação.
A universalização da educação em todos os níveis, continua Tragtenberg (1981, p.
152-3), pressupõe a supressão de uma estrutura social baseada na desigual distribuição de
renda. “É impossível oportunidades educacionais iguais para todos se as oportunidades
econômicas e sociais são desiguais. Mantida a exploração do trabalho pelo capital, a
chamada ‘igualdade de oportunidades’ garantida pela lei no acesso à educação se reduz a
uma farsa”. A universidade se desenvolve sob o signo da contradição. Ela reproduz o
sistema na medida que forma pessoas para assumirem posições de mando, ao mesmo
tempo em que é um espaço onde a crítica ao sistema se dá e igualmente a resistência.
É exatamente por ser também um espaço do contra-poder, a exigir daqueles que
possuem uma responsabilidade política e social que assumam sua condução, que a
universidade deve combater, sem transigência, a pedagogia burocrática que acentua o
conformismo, o espírito acrítico do aluno, formando a futura mão-de-obra dócil que nada
reivindicará nas empresas ou no Estado, formando os “servos” do capital que docilmente
contribuirão para sua reprodução ampliada. “Na medida em que o mercado de trabalho é
dinâmico e muda, a universidade não pode ser uma mera agência de adequação a esse
mercado de trabalho”. “Quanto menos os interessados e os objetos dessa política
educacional participarem das definições, maior será o retardamento e a disfunção da
universidade em relação ao todo social” (TRAGTENBERG, 1981, p. 140)
O problema entre o saber e o trabalho, continua Tragtenberg (1981, p. 141-149), é
que “as estruturas de trabalho, no nosso mundo, são profundamente burocráticas e
hierárquicas e a elas se acoplam, aparentemente, estruturas de saber diferenciadas”,
enquanto a relação entre poder e educação encontra-se no fato de que as medidas que
afetam profundamente a educação são “tomadas com absoluta desconsideração pela
comunidade acadêmica brasileira, por ‘sábios’ que curtem mordomias em Brasília”, que se
acostumaram a emitir diktat’s (ordens) de cima para baixo, desconsiderando interesses de
professores e estudantes, “porém a serviço dos grandes grupos empresariais privados que
14

dominam a maior parcela da educação universitária brasileira e que transformam muitos


desses conselheiros em simples lobbys em detrimento do interesse público”.
Sem um aumento considerável do salário do operário urbano, insiste Tragtenberg,
falar de ensino público e universal para todos se constitui em outra mentira. O que se
observa como resultado das políticas educacionais é uma elitização do ensino, que se dá na
medida que quem tem capital econômico tem capital cultural, e para este a Universidade
confirma, com o diploma, um poder simbólico para validar um poder real já existente.
A relação entre ideologia, poder e educação, afirma Tragtenberg (1981), pode ser
explicitada na medida em que a Escola é um elemento de ‘disciplinação’ da futura mão-de-
obra para as indústrias e para a burocracia de Estado. A burocracia escolar controla o
professor através da nomeação e dos mecanismos de carreira e o aluno através do sistema
de exames e notas. Na universidade, continua Tragtenberg (1981, p. 160),
A principal preocupação da burocracia é o controle: ela procura controlar
um saber inexistente ou escasso, da mesma forma que são escassos os
recursos a ela atribuídos. Se entendermos a universidade como a sede da
produção e reprodução de conhecimentos, a burocracia cumpre um papel
inteiramente supérfluo. Se entendermos a comunidade acadêmica como o
conjunto de alunos e professores, a burocracia tem um papel parasitário,
convertendo os meios (controles) em fins e desestimulando a criação
intelectual.
Os mandarins universitários, conclui Tragtenberg (1981, pp. 162-3), ainda não
entenderam que a liberdade não é a submissão livremente consentida a seus ditames: ela é
a aceitação daqueles que pensam de forma diferente, em termos estruturais e não
meramente ocasionais. A liberdade só é possível entre os socialmente iguais; portanto, só é
possível quando se desvincula o saber do poder na sociedade civil e na universidade. Na
sociedade, através da auto-organização, para que os que não têm voz conquistem o direito
de tomar a palavra. Na universidade, opondo a democracia em todos os níveis à ditadura
da cátedra, dos departamentos, setores e órgãos da estrutura funcional-burocrática.
Transportadas as análises de Maurício Tragtenberg de 1980 para 2005, vê-se que
passados um quarto de século a comunidade universitária promoveu avanços, enfrentou
processos repressivos, empenhou-se na democratização acadêmica e administrativa,
estabeleceu parcerias com a comunidade, tornou-se crítica. Mas, apesar disto, a
universidade ainda padece dos mesmos males que a caracterizavam, o que implica em que
as denúncias formuladas por Tragtenberg, suas preocupações e propostas, por serem atuais,
ainda estão a merecer consideração e a mobilizar para a transformação.
Maurício Tragtenberg não era um simples visionário, como se poderia deduzir em
uma observação rápida. Era um analista crítico, meticuloso, perspicaz e atento ao seu
entorno, ao contexto histórico, que produziu sua teoria retirando-a do núcleo da contradição
em que realizava seu trabalho: a universidade. Conhecer a teoria elaborada por Tragtenberg
é conhecer a ele mesmo, pois sua produção intelectual esteve sempre associada ao seu
fazer. Tirou sua teoria de sua vida (das relações sociais) sem concessões. Suas
contribuições ainda estão por ser descobertas e aprofundadas. Porisso, Maurício
Tragtenberg é para ler e reler sem concluir, é para estudar sem esgotar, é para refletir sem
finalizar e para inspirar sem dogmatizar.

Bibliografia Consultada e Referenciada

ENGELS, F. Anti-Düring. 2a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979.


15

FARIA, José Henrique de. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas.
Curitiba: Criar, 1987.
_____. Economia Política do Poder. Curitiba: Juruá, 2004. 3 Volumes.
MARX. K e ENGELS, F. A ideologia alemã. 3a ed. Lisboa: Presença, 1976.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. 2a ed. São Paulo: Ática, 1977.
_____. Francisco Ferrer e a pedagogia libertária. Educação & Sociedade. São Paulo:
Cortez e Moraes, 1(1):17-49, set. 1978.
_____. Violência e trabalho através da imprensa sindical. Educação & Sociedade. São
Paulo: Cortez e Moraes, 1(2): 87-120, jan. 1979.
_____. A delinqüência acadêmica. Educação & Sociedade. São Paulo: Cortez e Moraes,
1(3):76-82, maio, 1979.
_____. A delinqüência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo:
Rumo, 1979.
_____. O conhecimento expropriado e reapropriado pela classe operária: Espanha 80.
Educação & Sociedade. São Paulo: Cortez e Moraes, 2(7):53-62, set. 1980.
_____. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980.
_____. Educação e política: a proposta integralista. Educação e Sociedade. São Paulo:
Cortez e Moraes, 3(8):97-110, mar. 1981.
_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982.
_____. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.
_____. Memorial. Pro-Posições. Campinas: Cortez/Unicamp, 4:79-87, mar. 1991.
_____. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo: Escuta, 1999. (Organizado por Sonia
Alem Marrach).
ZANDONÁ, Norma da Luz Ferrarini. O espaço do contrapoder: o acesso à universidade pública
e o perfil socioeconômico educacional dos candidatos ao vestibular da UFPR. Curitiba:
UFPR, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2005. Tese de Doutorado.
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

O PODER NA OBRA DE
FERNANDO PRESTES MOTTA
*Professor Titular na José Henrique de Faria*
Universidade Federal do Paraná
– UFPR.
Introdução
Existem temas nas Humanidades e, particularmente, no estudo das
Organizações, cuja abrangência e complexidade ultrapassam a discussão teórica
1
FARIA. José Henrique de. Poder e entram no sempre difícil terreno epistemológico. Um desses é o do poder.
e relações de poder. Curitiba:
UFPR, 2002. Como já tive a oportunidade de me referir,1 não é raro ouvir expresso, pelo senso
comum ou mesmo nos círculos acadêmicos, que:
a) determinada pessoa tem poder ou que um certo grupo chegou ao poder. O que
se pretende dizer com isso? Que o poder é propriedade ou atributo de um
indivíduo? Que um indivíduo tem poder ou que pode vir a obtê-lo? Que o poder
E se encontra em algum lugar e que, para obtê-lo, deve-se alcançar este lugar?
C
C b) poder é uma atitude ou ação coercitiva. Pergunta-se: quando alguém ou um
O grupo age de forma repressiva é porque possui poder? O poder é
S incompatível com a democracia?
R c) Quem tem informação (ou dinheiro) tem poder. Neste caso, a informação
E (ou o dinheiro), ou sua posse bastam para identificar o detentor do poder?
V. d) poder é a condição de mandar ou decidir. Quem manda ou decide tem
C poder? Tal poder seria exercido em quaisquer circunstâncias, ou apenas sobre
I os subordinados?
E e) poder é a capacidade de influenciar. Seria o poder, então, uma condição de
N
T. liderança ou carisma cujo resultado é o fato de algumas pessoas realizarem
algo por indução de outras?
f ) todos têm poder, mas só alguns sabem exercê-lo. Poder é um atributo inato
n. 1
v. 5
que pode ser desenvolvido a partir de qualificação formal ou de práticas
políticas?
jun. g) poder é o governo ou o Estado. O poder é uma entidade abstrata ou uma
2003 instituição política?

162
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

Levando-se em conta tais considerações, pode-se notar que o poder é


compreendido, sob diferentes conotações. Essas perguntas indicam com clareza
que, em cada caso, o conceito de poder utilizado possui uma concepção
diferente. Qual seria a validade de um conceito que se aplica a tantos casos e tem
tantos significados quanto às situações que pretende explicar? Rigorosamente, a
validade seria nula. Entretanto, não seriam estas situações referentes às relações
de poder?
A questão do poder, especialmente nos estudos organizacionais, parece
estar impregnada em todas as análises, mesmo naquelas que a ele não se refiram
diretamente. Um estudo, por exemplo, sobre o comportamento do
consumidor, para efeitos de elaboração de uma estratégia de marketing, não
seria também um estudo sobre poder? O planejamento da linha de produção
em uma fábrica não trata igualmente das relações de poder? Os processos de
recrutamento, seleção e treinamento, em uma organização bancária, não se
referem ao poder? Se as relações de poder se desenvolvem dessa forma, isso não
significa que sejam totalmente visíveis todo o tempo para todas as pessoas. É
um equívoco supor que, uma vez desvendados os mecanismos do poder, já se E
C
pode enxergá-lo às claras. É certo que as relações de poder estão em toda a C
parte; no entanto, não se deve fazer dele o centro monolítico das relações O
sociais, pois, desse modo, ainda que esteja em toda parte, acaba-se por colocá- S
lo em parte alguma. Como sugere Bourdieu,2 “é necessário saber descobri-lo 2
BOURDIEU, Pierre. O poder
R
simbólico. Rio de Janeiro:
onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, Bertrand do Brasil, 1998. E
portanto, reconhecido”. Por isso, é preciso compreender, além dos aspectos V.
objetivos e intersubjetivos, também o caráter simbólico do poder, esta forma C
invisível de seu exercício que somente pode ser exercida, segundo o sociólogo I
francês, “com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão 3
Idem.
E
N
sujeitos ou mesmo que o exercem”.3 T.
Se a teoria pudesse dar conta desse tema de umas poucas formas, talvez
fosse mais fácil compreendê-lo. Mas não é assim que ocorre. Influenciados pelas
n. 1
reflexões propostas por Maurício Tragtenberg, alguns pesquisadores, no Brasil,
v. 5
foram conduzidos a concepções críticas sobre o poder, penetrando no terreno
pantanoso de seu desenvolvimento. E é aqui que se pode encontrar Fernando jun.
Prestes Motta. Sua trajetória como um dos mais fecundos e importantes 2003

163
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

estudiosos das Organizações e da Administração do país é marcada


permanentemente pelo tema do poder, que, em seus trabalhos, aparece em
quatro grandes tipos de abordagens não excludentes, quais sejam: a) das
organizações burocráticas; b) da ideologia e da hegemonia política; c) das formas
de administração/gestão; d) da cultura e da psicanálise. Tais abordagens indicam
uma direção reflexiva, caracterizada por incorporações, em sua base conceitual,
de novas articulações teóricas que permitem lidar com a realidade estudada,
exigindo aprofundamentos.

1. Poder e organizações burocráticas


4
MOTTA, Fernando C. Prestes. Em seu primeiro livro, de 1972,4 que se tornou leitura obrigatória nos
Teoria geral da administração: cursos de graduação em Administração, em todo o Brasil, Fernando estabelece
uma introdução. São Paulo:
Pioneira, 1972. uma classificação da evolução da Teoria Geral da Administração, analisando-a a
partir de seus enfoque e abordagens, segundo suas origens, principais
E representantes, idéias centrais e relações com as organizações. Ao final, faz uma
C
C crítica a cada abordagem, na qual já se percebe claramente sua concepção: trata-
O se de uma sistematização que tem, como eixo, o problema do poder, ainda que
S o autor não trate diretamente desta questão. Porém, a forma de tratamento da
R teoria da administração revela que, em todas as abordagens, o que se encontra
E são relações de dominação das mais variadas espécies, indicando como os
V. diferentes enfoques reproduzem uma visão segundo a qual é da gerência o papel
C fundamental na coordenação das organizações. Tanto que Motta sugere que
I apenas uma autogestão seria capaz de propor estrutura de poder diferenciada.
E 5
MOTTA, Fernando C. Prestes. Ao retomar o tema da teoria das organizações, Motta afirma,5 exatamente,
N Teoria das organizações: evolução
T. e crítica. São Paulo: Pioneira, que a teoria organizacional e administrativa deve ser analisada como “ideologia
1986. do poder”, que “não só oculta o próprio poder e as contradições que lhe são
inerentes, mas também a forma pela qual a tecnoburocracia vê a organização,
n. 1
v. 5 6
MOTTA, Fernando C. Prestes e base última de seu poder”
PEREIRA, Luiz C. Bresser. Fernando Motta e Bresser Pereira publicaram6 estudo específico sobre a
Introdução à organização organização burocrática em que indicam, de saída, que “a organização
jun. burocrática. São Paulo:
2003 Brasiliense, 1980. burocrática é o tipo de sistema social dominante nas sociedades modernas; é

164
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

uma estratégia de administração e de dominação” e que “a burocracia pode


constituir-se em um grupo ou uma classe social, mas é também uma forma de
poder que se estrutura através das organizações burocráticas”. Este estudo, que
contém um conjunto de reflexões relacionando diversos temas ao da burocracia,
é uma importante contribuição para o estudo do poder. Aqui se discute o
conceito central dessa abordagem de Motta, segundo a qual burocracia é
dominação, é poder. Tal expressão explicita-se no prefácio de outro texto,7 no 7
FARIA. Idem, 1985.
qual Motta afirma que “o autoritarismo é, por todas as razões, a essência do
fenômeno burocrático”, sendo a burocracia uma forma de dominação e a
“dominação uma forma de poder”.
Porém, em dois outros textos8 é que se encontra explicitado, com absoluta 8
MOTTA, Fernando C. P.
precisão, o conceito de poder como dominação burocrática, constituindo dois Burocracia e autogestão: a
proposta de Proudhon. São
estudos sobre poder cujo lócus é a organização burocrática. Paulo: Brasiliense, 1981; e
____. Organização e poder:
empresa, Estado e escola. São
Paulo: Atlas, 1986.
2. Poder, ideologia e hegemonia política
E
C
Ao analisar o processo político brasileiro, Motta demonstra como a C
burguesia nacional articula sua hegemonia pela prática política autoritária e O
democrática, conforme seus interesses e as circunstâncias que determinam essa S
prática.9 Embora mostre que a burguesia não é totalmente hegemônica, suas 9
____. Empresário e hegemonia R
política. São Paulo: Brasiliense,
ações sempre foram bem articuladas em torno de projetos nacionalistas, 1979.
E
populistas e desenvolvimentistas. O poder aparece como dominação política de V.
classe, baseada na aliança entre burguesia local e Estado na definição do arranjo C
econômico, jurídico e ideológico. I
Motta realiza uma análise marxista da atuação da burguesia brasileira e de E
N
suas contradições, detendo-se na dominação ideológica exercida por meio do T.
controle sobre os aparelhos ideológicos. O poder da burguesia, portanto, refere-
se ao investimento no domínio dos aparelhos de Estado, o que permitiu a ela
n. 1
articular as diversas políticas que, embora tivessem aberto as portas para sua v. 5
ascensão, não lhe garantiram a plena hegemonia.
Nesta abordagem, Motta toma o Estado como Organização, e as ações jun.
políticas e ideológicas da burguesia, como estratégia de controle do Estado e, 2003

165
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

desse modo, como exercício do poder. Poder, portanto, refere-se ao controle ou


domínio político de uma classe sobre o Estado e seus aparelhos, de modo a pôr
em prática seus interesses de classe.

3. Poder e formas de administração


MOTTA, Fernando C. Prestes.
10
Desde seu primeiro livro,10 Motta indica a autogestão como alternativa à
Teoria geral da administração:
uma introducação. São Paulo: burocracia, como forma democrática de poder dos produtores associados na
Pioneira, 1972. consecução de objetivos coletivamente construídos. Assim, em termos de poder,
burocracia e autogestão são dois extremos do processo. Neste livro, desenvolve
essa tese com precisão, tomando a proposta de Proudhon como foco da
argumentação. Aqui, o autor vai tratar o poder como forma de apropriação que
se dá por meio da burocracia e de sua forma de gestão, a heterogestão, a qual
assume e conserva o monopólio da função de governo sobre os processos sociais
essenciais, com o que pretende ser a representação das massas trabalhadoras. A
E proposta autogestionária significa a negação desse processo, na medida em que a
C
C política é controlada pelo povo e desaparece a apropriação que caracteriza a
O burocracia, tanto em termos de produção capitalista, quanto em relação ao
S Estado. Se a heterogestão separa artificialmente as categorias dos dirigentes da dos
R dirigidos, a autogestão libera a sociedade real das ficções a que se acha submetida,
E sendo a proposta de Proudhon o marco de uma forma de organização social que
V. respeita a liberdade e o pluralismo, como uma possibilidade de um governo das
C massas que incomoda os detentores do poder e na qual não há lugar para os
I burocratas. A autogestão, para Motta, é uma denúncia e possibilidade real e
E radical da transformação social, cuja dificuldade de operacionalização se
N
T. encontra, justamente, ente em uma razão que se opõe à do poder.
Nota-se, nesse sentido, que a burocracia e sua forma de gestão, a
heterogestão, constituem forma de poder, e a autogestão, de não-poder. O
n. 1
v. 5
conceito de poder com que Motta trabalha refere-se a uma radical separação, nos
processos decisórios, entre dirigentes e dirigidos, cuja superação não depende da
jun. integração destas categorias, mas da superação da divisão, que não se poderá
2003 realizar no interior de uma burocracia, mas unicamente com sua supressão.

166
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

Ao analisar a participação dos trabalhadores na gestão, especificamente na


forma de co-gestão, Motta11 mostra que se trata de uma forma de dominação 11
Participação e co-gestão: novas
sutil e ‘civilizada’, cuja finalidade é domesticar a ação dos trabalhadores, na formas de administração. São
Paulo: Brasiliense, 1982; e
medida em que não há garantias de que os pactos sociais estabelecidos entre estes Participação e participações:
e os capitalistas venham a ser cumpridos. Embora alerte que, no interior dos ensaios sobre a autogestão. São
Paulo: Babel Cultura, 1987.
sindicatos, existe uma luta de classes, Motta observa que também aí existe uma
tendência de criação de um grupo burocrático dirigente que opera as mediações
entre o trabalho e o capital. Assim, a co-gestão seria uma tentativa de conciliar
o inconciliável, o que o remete à retomada da concepção segundo a qual a
alternativa para a dominação seriam os movimentos caracterizados por uma
contra-institucionalização.
Novamente, embora decorra de uma outra abordagem, Motta vai analisar
o poder como forma de dominação de uma burocracia – uma heterogestão -, ou
seja, como uma prática que separa artificialmente dirigentes de dirigidos. O
poder é, assim, um processo de exclusão dos dirigidos dos mecanismos
decisórios, ainda que sua inclusão não venha a significar sua liberdade, mas
apenas um acordo civilizado, cujos termos não são garantias de permanência. E
C
C
O
S
4. Poder, cultura e psicanálise
R
12
MOTTA, Fernando C. P.
A última e mais recente abordagem do poder elaborada por Motta Cultura organizacional e
E
V.
encontra-se em trabalhos que se referem à cultura e psicanálise,12 seguindo a cultura nacional. In: DAVEL, E.
orientação teórica de Enriquez, que procura resgatar textos clássicos de Freud e Vasconcelos, J. (Orgs).
C
Recursos humanos e
para uma leitura das organizações. subjetividade. Petrópolis: Vozes, I
Pode-se perceber que Motta entra em nova fase de suas reflexões, pois se 1997; ____ e FREITAS, Maria E
Ester de. Vida Psíquica e N
até então a burocracia e a racionalidade burocrática eram o foco da atenção, organização. São Paulo: Editora T.
agora é a cultura e a análise do sujeito do ponto de vista da sociologia clínica, FGV, 2000; e ____,
que direcionam suas preocupações. Assim, Motta trata da assimilação cultural, ALCADIPANI, R.; BRESLER, R.
Cultura brasileira, estrangei- n. 1
chamada de estrangeirismo, e sua conseqüência direta, a segregação; das formas rismo e segregação nas v. 5
que as variações culturais assumem no mundo do trabalho; da continuidade dos organizações. In: DAVEL, E.; e
VERGARA, S. C. (Orgs.). Gestão
sentidos e dos significados, enquanto relação dos indivíduos com suas condições com pessoas e subjetividade. São jun.
de existência; das formas de controle social que se enquadram em pressupostos Paulo: Atlas, 2001. 2003

167
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

universais da cultura humana, como instrumento para decifrar os pressupostos


básicos de cada organização.

Conclusão
Os estudos de Fernando Prestes Motta têm o tema do poder como seu
objeto central, seguindo a linha de estudos críticos sobre organização na tradição
tragtenberguiana. A burocracia e suas formas organizacionais são os pontos de
referência em suas análises, que transitam, com desenvoltura, entre diversos
autores – Weber, Marx, Gramsci, Althusser, Poulantzas, Proudhon, Ansart,
Freud, Foucault, Enriquez e Dejours. Resumidamente, na trajetória de Motta
observam-se quatro abordagens e duas fases. Na primeira fase, Motta trabalha
numa perspectiva do poder enquanto burocracia e organização burocrática,
manifestando-se a administração como dominação, uma heterogestão. Nesta
fase, elabora três abordagens: da organização burocrática e sua administração; da
E ideologia e hegemonia política, tendo como lócus o Estado; das formas de
C
C
gestão, em que se debruça sobre a autogestão e a co-gestão. Na segunda fase,
O Motta trabalha o poder como controle social que se manifesta no conjunto dos
S valores e crenças, indicando a ação da organização sobre a vida psíquica. Nesta
R
fase, procura estudar, especialmente, a questão da cultura, encontrando, neste
E tema, campo para uma investigação decorrente da sociologia clínica. Enquanto
V. na primeira fase o poder é analisado a partir da racionalidade burocrática, na
C
segunda, é discutido na perspectiva da subjetividade, compondo, dessa maneira,
I um quadro teórico que leva em conta tanto os elementos objetivos da
E dominação quanto os decorrentes de suas formas ocultas, que atingem o sujeito
N
T.
em sua dimensão psicossocial.
Para finalizar, apresento quadro ilustrativo, sintetizando os principais
aspectos teóricos desenvolvidos por Fernando Motta em suas obras:
n. 1
v. 5

jun.
2003

168
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172

As abordagens do poder em Fernando Prestes Motta

FASE ABORDAGENS CONCEITO PRINCIPAIS TEXTOS


• Teoria geral da administração (1972);
Poder é uma das • Introdução à organização burocrá-
formas de dominação tica (1980);
Organizações MOTTA, Fernando. O que é
13
que se articulam no • O que é burocracia13 (1981);
Burocráticas burocracia. São Paulo:
interior da burocracia • Teoria das organizações: evolução e Brasiliense, 1981.
e de suas organizações crítica (1986);
• Organização e poder (1986).
Poder é o domínio de
uma classe sobre o
Burocrática e Ideologia e • Empresários e hegemonia política
Estado e seus
Administrativa Hegemonia Política (1979).
Aparelhos, de modo a
impor seus interesses.
E
Poder é um processo C
de exclusão, uma C
O
heterogestão, que • Burocracia e autogestão (1981); S
Formas de
separa artificialmente • Participação e co-gestão (1982);
Administração
dirigentes e dirigidos • Participação e participações (1987). R
E
dos sistemas de
V.
decisão e comando.
C
• Cultura organizacional e cultura I
Poder é uma forma de nacional (1995); E
controle social que se • Cultura e organizações no Brasil N
T.
manifesta no interior (1997);
Cultura e Cultura e
de símbolos e • Os pressupostos básicos de Schein e a
Psicanalítica Psicanálise n. 1
significativos que fronteira entre a psicanálise e a cultura
intervêm na vida organizacional (2000); v. 5
psíquica dos sujeitos. • Cultura brasileira, estrangeirismo e
jun.
segregação nas organizações (2001). 2003

169
Scanned by CamScanner
da de m o e r a c ia n o â m b ito d a s o r g a n iz a ç õ e s d a é tic a d a le da dem o c r a c ia
O s e s tu do s a c e rc a m o ra

q u a se tiio a n tig o s to à p t ó p r ia h lo s o fia m o tiv o


qu an e as c iê n c ia s s o c ia is c o n tin u a m se m pre de re
n c x iio (N 19 9 2 P e 19 9 9 ), g a n h a n d o d e s ta q u da g lo b a liz a ç ã o (C h a n
o v aes n n a , e a go ra n o c o n te x to

ge u x 19 9 9 ) P a r a s e te r 11 111a id é ia d a lid a d e im p o r tân c ia b a s ta n o ta r e x is tia m


s u a a tu a e qu c n o

me io do m o 0 0 9 2 8 s hm hueme
n a so b e s e te m
O P r e s e n te a r tig o a n a lis a l
p a r tir d e p e s q u is a b a s e a d a e m u m s lm e y n o q u a s ã o e n tr e
'
,
a u m a
is ta d o
v s p t o p r ie tiir io s ; d ir e to r e s e g e r e n te s d e d iv e r s o s n ív e is c le d ife r e n te s tip o s d e o r g a n iz a ç iio
lo m a n clo t e fe r ê n c ia
co m o a é tic a e a m o ra l a s s o c ia d o s fu lc r a lm e n te às a titu de s de m o c r iitic a s os

P a ra d o x o s e n tr e o d is c u r s o q u e a fir m a e a s a titu d e s q u e d e fin em e n tre a te o r ia e a p r zitic a e n fim

p a r a d o x o s d a p r á x is
o s
o r g a n iz a c io n a l n o imbito an a 1ícic o d o q u e se p o cle c ha m ar de e c o lto m ia
POKhc do p o d
M tiv a d o p e la g iio d e titu d e s a d o ta cla s p e lo s s u je ito s iz a ç õ e s l
o c o n s ta ta n a s o rg a n
a e m ge ra

n ls qu a is lu i d is tiin ia Fe
ulla c e n tr e a a p a r ê n c ia e a e s s ê n c ia e s p c c ia ln 7 e n te n o qu e se re r e a o s c LJ N

te lid o s d a e tic da le da de b s e r v a q a o lig e ir a


a m o i.a m o c r a c ia e qu e e s te fa to o c o rre e m u m a o co m

ho h h eqM R
m u m a do w e formameme se H m h , p re m de se U sc u h a concepo de h
m o 1 II e de m o c r a c ia n o b ie m
am e das o r g a n iz a ç õ e s e in v e s tig a r e m p ir ic a m e n te o p a ra d o x o e n tr e o

clis c u r s o s u s te n ta d o po te o r ia a c e ita c o m o
, r u m a
po r ta do ra do s c o n c e ito s a p ro p r ia d o s e u m a p r ñti
u l qu e ,
n e gan do o d is c u rs o e s ta b e le c e a titu d e s d iFe r e n te s a r e fe r e n da r n a v id a o r g a n iz a c io n a lco
,

tid ia n a c o n te úd o s o u co m po r ta rT ie n to s qu e o p r ó p r io d is c u rs o e n te n de n ã o é tic o s de m o ra l c o e rc i
tiv a e a u to r i[ ir io s o s
, q u a is s ã o r ig o r o s a m e n te o b se rv a do s e ace ito s n e s te a m b ie n te e n qu a n to p o r ta
do re s de u m a ló g ic a co m p e titiv a de so b r e v iv ê n c ia e de e s p e r te z a

E te n d e do p r á x is d e tr a n s fo r m
n n a e n qu an to p ro c e sso a ç ã o in te g r a n d o te o r ia e p r á t ic a ,
a

q u e s tã o qu e o r ie n ta e s te tr a b a lh o é s e a o s c o n c e ito s a d m itid o s d e é tic a de de m o c r a c ia s ño


e qu e
c o n s id e r a do s de v b a liz a r das re la ç õ e s s o c a is e i
qu e p o r ta m e n to
p o lític a s
co m o o s em o co m em gc
ra l c o rr e s p o n de m p r itic a s o r g a n iz a c io n a is se m e lh a n te s D ito d e o u [l o m o do á in v e s ti
p ro c u ra t s e

gar se h iu m co n c e ito d o q u e d e v e r ia se r a p r ilic a s o c ia le o u tro d ife re n te d e s te d o q u e é d e ra to a

p r itic a o rg a n iz a c io n a l v iv ic la p e lo s su je ito s c lc lo r ill a que to m a n do po r b a se a zln 1lis c d a é tic a LTs

s o c ia da h de m o c r a c ia d o p o n to d c v is ta cla p r ix is o r g a n iz a c io n a l s e r ia c o r re to a tin a í se
T \a r qu e
e s ta b e le c e u m p a ra d o R o e n tr e te o r ia e p ra tic a
O e s tu clo p r o c u ra in v e s tig a r s e o s g e s to re s a v a lia m q u e as co n d iq õ e s p r a g m á tic a s U e fin id o ra s

d a p r á tic a clo d e s e m p e n ho o rg a n iz a c io n a l itc a b a m po r fa z e r a d m itir a titu d e s é tic a s e a a d o ln r p r o

c e d im e n to s que n ão s ão co m p a tív e is c o m o qu e o s m e s m o s e s p e ra m v e r in s titu íd o s n a s r e la q ijc s

so c ia is e p o lític a s d e m o c r a tic a s

D o po n to de v is ta d a c o n tr ib u ig ã o a te o r ia o r g a n iz a c io n a l p re te n d e se q u e s tio nar q u e d in ii
m ic a é e s ta q u e p e r m ite ao j
s u e ito n e s te s a ls o s co n v iv e r co m o p a r a clo x o po d e n d o o u n ão se d a r

[o [ \lm e n te c o n ta do s m e sm o s Is to s e r ia u m in d ic a tiv o d e q u e s e tra ta d o fa to d o j


s s u e ito s te r e ln

0 5 dado s a qu iubhzado c o n s h u e m p m e d e u m a p e s q u is a m a i um p a so h co uo m h po u ca do P o C e r c I m d w
O W m iz t i o na b hm nc h d a p e lo c w w e c o e d e m a p e lo M o r

260

Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 2., 2002, Recife. Anais... Recife: Observatório da
Realidade Organizacional : PROPAD/UFPE : ANPAD, 2002. 1 CD.

As Organizações e a Sociedade Unidimensional: as Contribuições de Marcuse

José Henrique de Faria


Francis Kanashiro Meneghetti

Resumo
O presente artigo procura, tendo como referência o pensamento de Marcuse, estudar o
conteúdo de alguns elementos constitutivos da sociedade unidimensional, a saber, repressão
social, aniquilamento do pensamento de protesto, tolerância repressiva, introjeção das normas
sociais, formas de controle, supressão do individualismo, alienação, instrumentalização do
homem, incorporação da competição, relação entre ciência e interesse, advento das
necessidades falsas e perda da autonomia, relacionando-os à formação do pensamento
democrático, crítico e reflexivo, enquanto contribuição à análise das organizações. Defende a
tese de que apesar da sociedade industrial e pós-industrial caminhar em direção à
unidimensionalidade, à perda da dimensão da autonomia, suas próprias contradições apontam
para a possibilidade da emancipação e do processo auto-reflexivo, permitindo à teoria a
incorporação de uma concepção que considere a organização como o local privilegiado para o
estudo da dominação e, igualmente, de seu enfrentamento.

Abstract
This article intends, having as reference the Marcuse’s thoughts, to study the content
of some constitutive elements of the one-dimensional society such as, social suppression,
annihilation of the protest’s thoughts, repressive endurance, introjections of the social norms,
ways of control, deletion of the individualism, alienation, instrumentalization of the mankind,
incorporation of competition, relation between science and interest, relating to the formation
of democratic thought, critic and reflexive, as contribution to analysis of organizations.
Defends the thesis that despite the industrial society and post-industrial step goes towards
one-dimensional, the loss of autonomy’s dimension, its own contradictions aim to the
possibility of the emancipation and of the auto-reflexive process, allow ring the theory to the
incorporation of one conception that considers the organization as a privileged to the study of
domination and, likewise, its confrontation.

Introdução
O pensamento filosófico de Hebert Marcuse tem muito a contribuir com os Estudos
Organizacionais, embora não tenha se destacado neste campo. Sua busca incessante pela
emancipação, pela ética coletiva, pela luta contra qualquer forma de totalitarismo e pela
autonomia do indivíduo, faz dele um dos importantes teóricos do pensamento crítico da
sociedade. Sua vinculação com a Escola de Frankfurt e com a Teoria Crítica permite localizar
suas reflexões no âmbito de uma retomada do pensamento marxista original em plena
Segunda Guerra, no momento em que se tornava explícita a luta contra a dominação do
homem pelo homem. Seu engajamento político permitiu aliar a reflexão à ação, legitimando-o
como um dos grandes expoentes da práxis de seu tempo.
Seus temas vão desde a repressão social, abordado em “Eros e Civilização”
(MARCUSE, 1975), em que o autor procura fazer uma interpretação do pensamento de Freud,
até sua obra mais reconhecida, que trata do homem unidimensional em uma sociedade
industrial (MARCUSE, 1999a), na qual Marcuse se indaga sobre se o pensamento perdeu uma
das suas dimensões: a da autonomia. Portanto, através de temas específicos incorporados nas
contribuições mais expressivas de Marcuse - a repressão social, o aniquilamento do
pensamento de protesto, a tolerância repressiva, a introjeção das normas sociais, as formas de
controles, a supressão do individualismo, a alienação, a instrumentalização do homem, a
incorporação da competição, a relação entre ciência e interesse, o advento das necessidades
falsas e a perda da autonomia - procurar-se-á fazer neste artigo uma análise voltada à Teoria
das Organizações, de forma a verificar suas inserções e contribuições no processo de
formação do pensamento democrático e reflexivo. O objetivo específico pontual é permitir
uma análise que seja capaz de ampliar, do ponto de vista marcuseano, o campo de ação dos
estudos organizacionais, contribuindo para com o debate sobre se a Teoria das Organizações
dirige seu foco para a emancipação dos indivíduos ou para a perpetuação de uma sociedade
unidimensional.

1. A Sociedade Repressiva
Em “Eros e civilização”, Marcuse (1975) aborda um dos pensamentos mais
importantes da teoria freudiana, segundo o qual a civilização se baseia na repressão
permanente dos instintos humanos. A felicidade, para Marcuse, estaria subordinada à
disciplina monogâmica, a um trabalho que ocupa toda a jornada, às leis e ordens instituídas,
aos sacrifícios metódicos da vida cotidiana. Ao mesmo tempo em que a sociedade impõe
constrições sociais e biológicas, estas se tornam premissas necessárias para o progresso.
Assim, o indivíduo se vê obrigado a renunciar aos seus instintos primários em prol da
convivência social civilizada. Para vencer estes instintos, o indivíduo obriga-se aos “desvios
dos instintos”, através do processo de mudança do princípio do prazer em princípio da
realidade. Deste modo, “a convicção de que é impossível uma civilização não repressiva
representa pedra angular da construção teórica freudiana” (MARCUSE, 1975).
Marcuse tenta demonstrar que as teorias psíquicas, a partir de Freud, permitem
analisar a sociedade contemporânea, reafirmando a importância da psicanálise como
instrumento de análise da Teoria Crítica. Marcuse (1999c:109) credita à psicanálise destaque
dentro das teorias que se propõem a compreender a dinâmica dos indivíduos na sua relação
com o capitalismo.

(...) a abordagem freudiana pode e deve entrar nessa teoria, pois abriu uma dimensão no que se
refere à determinação social do ser humano que, em grande parte, havia ficado à margem na
teoria marxista. Freud mostrou quão profundamente as relações sociais são produzidas nos
próprios indivíduos e através dos indivíduos, quer dizer, a própria sociedade co-determina em
alto grau a estrutura pulsional dos indivíduos

Nas palavras de Rouanet (1986, p. 199-200), “o freudismo permite a Marcuse explorar


os mecanismos pelos quais a cultura unidimensional se interioriza e se perpetua, exatamente
como permitiria Adorno e Horkheimer estudar a introjeção, nos indivíduos, dos valores e
estruturas do Iluminismo”. Assoun (1991) destaca a importância da unidimensionalidade do
pensamento, que procura ser uma reação contra o “revisionismo neofreudiano” dos anos 50.
Contudo, ressalta que a psicanálise intervém na Teoria Crítica como um instrumento, ou seja,
como um dos componentes da caixa de ferramentas crítica, não sendo possível exaltá-la nem
para mais, nem para menos. As posições contraditórias, dos vários autores, que discorrem
sobre a influência da psicanálise na teoria de Marcuse, não invalidam sua tentativa de
caminhar para além da análise sociológica. Sua intenção sempre foi de proporcionar
explicações plausíveis que incorporasse as dimensões individuais e coletivas.
Os elementos que influenciam os comportamentos individuais são abordados por
Marcuse e tornam-se fontes explicativas na formação da dinâmica coletiva, passagem esta que
pode ser observada quando apresenta dois destes elementos: (a) a mais-repressão, que são as
restrições pela dominação social, a qual diferencia-se da repressão básica, ou seja, das
transformações dos instintos necessários à perpetuação da raça humana em civilização; (b) o
princípio do desempenho, que é a forma histórica predominante do princípio da realidade
(MARCUSE, 1975:51). Na mais-repressão há modificações e deflexões da energia instintiva
para novos elementos que compõem as relações sociais: aceitação do trabalho, perpetuação da
coesão familiar, aceitação dos controles normativos, etc. Sua função imediata é de
transformação da horda inicial para a sociedade regulada. No principio de desempenho, a
crescente racionalização faz com que os controles sejam introjetados pelos indivíduos,
possibilitando, assim, que o trabalho social se reproduza em escala ampliada e progressiva.
Estas duas transformações são responsáveis por englobar e legitimar as novas formas de
dominações sociais. É evidente que dentro destas possibilidades vários são os mecanismos
que contribuíram para a passagem da horda à configuração da sociedade atual. Como exemplo
pode-se citar o papel do sentimento de culpa na regulação da ordem coletiva, conforme
descrito por Freud (1997).
Estes elementos da formação inicial da ordem social e da transferência de energia
instintiva para o trabalho são responsáveis pelo ditame das novas “normas” sociais. Sendo
assim, os indivíduos se vêem obrigados a abrir mão de realizar seus desejos para manter a
coesão social. Freud (1997) relata esta passagem para a nova configuração social. Sua visão
explicita a transformação que vai desde a ilusão inicial até a culpa estruturante. Assim, o
indivíduo se vê na necessidade de se adequar a esta nova “imposição” social e, para tal,
necessita aceitar as normas que devem ser respeitadas para manter a ordem. Eis aí a origem
das primeiras formas de controles sociais. A aceitação destas formas nem sempre é
acompanhada da reflexão sobre as mesmas. Poucos são os que se atrevem a questionar as
práticas do seu cotidiano. Isto ocorre, em parte, porque os indivíduos passam a ter a sensação
de que todos são beneficiados igualmente e que as chances dentro de uma sociedade
civilizada se dá uniformemente. A aceitação da norma baseia-se, portanto, na crença de que
esta é a melhor opção.
Percebe-se, aqui, como a sociedade repressiva encontra e faz eco nas organizações
igualmente repressivas, as quais reproduzem lógicas que têm como suporte teórico toda a
trama relacionada à eficiência, ao controle, à unidade de comando, à hierarquia, à disciplina, à
divisão do trabalho e às diversas formas de recalcamento e de repressão, a qual constitui-se no
fundamento do autoritarismo nas organizações (FARIA, 1985).

2. A Perda do Pensamento Crítico


Na perspectiva marcuseana, o homem, na sociedade contemporânea, é um ser
unidimensional, ou seja, perdeu uma de suas dimensões: a dos valores idealistas e românticos,
isto é, a dimensão da autonomia, da personalidade e do humanismo. Contudo, mesmo a
unidimensionalidade do homem tende à ruptura, podendo, assim, vir a encontrar sua
bidimensionalidade: sua “liberdade”. Da mesma forma que o homem é reprimido, é também
profundamente livre para imaginar e pensar, carregando consigo as duas dimensões possíveis.
(MARCUSE, 1999a).
Em “A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional”, Marcuse
incorpora à filosofia marxista, à psicanalítica e à idealista, uma análise sociológica, propondo-
se a buscar explicações para o homem no próprio seio da sociedade. Ao analisar os diversos
aspectos do capitalismo, descobre uma sociedade repressiva, que aprisiona a existência
individual em nome de um pretenso “interesse geral”. Confronta-se, portanto, com a
intensificação dos interesses particulares frente aos interesses gerais e vê que os políticos
dominam uma sociedade sem oposição, graças, principalmente, a um discurso liberal, o qual
não passa, contudo, de um discurso hermético.
A sociedade contemporânea tenderia para o totalitarismo, que se manifesta na
uniformização política e técnico-econômica. A sociedade tornou-se, portanto, unidimensional,
uma “sociedade que paralisou a crítica através da criação de controle total” (REALE e
ANTISERI, 1991:854). A filosofia de uma dimensão é a filosofia da racionalidade
tecnológica e da lógica do domínio, é a negação do pensamento crítico e da lógica do
protesto. “Todos os tipos de consumo são apresentados como liberdades econômicas, mas
satisfazem falsas necessidades. Pela eficácia dos controles sociais, a imprensa se auto-censura
e a liberdade se reduz a optar entre marcas e aparelhos” (MARCUSE, 1999a). A noção de
liberdade se modifica e torna-se, cada vez mais, propensa a atender os interesses do mercado.
Sem perceber, os indivíduos trocam sua autonomia por práticas de consumo: há uma
superposição de um novo valor compartilhado socialmente, o consumismo. A busca
desenfreada pelo consumo permite que as relações que se estabelecem nas trocas materiais
sejam transpostas para as relações humanas, fazendo com que os indivíduos integrem-se ao
processo de reificação.
Esta nova configuração social que se estabelece a partir do advento da sociedade
industrial é legitimada pelos seus governos. “O governo das sociedades industriais
desenvolvidas e em fase de desenvolvimento só se pode manter e garantir quando mobiliza,
organiza e explora com êxito a produtividade técnica, científica e mecânica à disposição da
civilização industrial. E esta produtividade mobiliza a sociedade em seu todo, acima e além de
quaisquer interesses individuais ou grupais” (MARCUSE, 1999a:33). Esta forma de
concepção econômica da sociedade reduz os indivíduos a meros instrumentos produtivos. O
sistema incorpora as relações humanas e as tornam engrenagens do sistema produtivo. Tal
sistema não exclui ninguém. Para Marcuse, as classes operárias são as peças, os capitalistas o
combustível e os governos a manutenção. A posição totalitária deste sistema consiste, então,
em não possibilitar qualquer forma de organização econômica diferente, de maneira que os
grupos que resistem a este sistema, tentando desenvolver formas alternativas de produção e
gestão, invariavelmente tenderão a se emoldurar, em maior ou menor grau, em algum elo da
cadeia econômica (produção, comercialização etc.), à forma de vida imposta pela sociedade
industrial.
É oportuno observar que a aceitação da sociedade industrial, atualmente em sua nova
configuração, o globalismo, criou mecanismos implícitos de controle psicológicos dos
indivíduos, como mostram Faria e Meneghetti (2001) ao analisar como o atual modelo
toyotista de produção é capaz de seqüestrar a subjetividade do trabalhador e estabelecer
mecanismos de controle subsumindo-o à lógica do capital. De fato,

O seqüestro da subjetividade do trabalhador passou a se intensificar com os


novos modelos de controles psicológicos viabilizados por uma reorganização
dos modelos de produção e gestão, representados, atualmente, pelo toyotismo.
Técnicas como o team work, kaizen, just-in-time, CCQ´s, TQC, são capazes de
propiciar o seqüestro da subjetividade do trabalhador, intensificando o ritmo de
trabalho e precarizando as condições físicas e psicológicas do ambiente de
trabalho, submetendo o trabalhador à lógica da acumulação ampliada do
capital.

A aceitação dos indivíduos por esta ação e sistema produtivo se dá pelo autocontrole e
pelo controle da dinâmica do grupo. Há, portanto, uma descentralização do controle coercitivo
direto, de moldes tayloristas, para o autogerenciamento, responsável pela manutenção das
taxas de produtividade. Assim, evidencia-se como são articuladas novas formas para
manutenção das relações sociais no trabalho, na qual o controle do imaginário torna-se um
fator importante na subsunção dos indivíduos ao capital. Estas novas formas de controle,
diferente das anteriores que eram de natureza direta e que envolviam um agente coercitivo
direto, são percebidas como natural. Isto só é possível devido a três elementos:
a. Introjeção das normas e dos controles. Este processo se refere não apenas à
internalização das normas, responsáveis por reproduzir e perpetuar os controles antes
externos, exercidos pela sociedade, como também sugere um conjunto de mecanismos e de
processos relativamente espontâneos “pelos quais um Eu (Ego) transfere o exterior para o
interior” (MARCUSE, 1999a:40). Alguns elementos psicológicos contribuem para esta
introjecão: (i) o controle imaginário: a sociedade e as organizações são responsáveis por
articular “promessas” de ascensão material e social para os indivíduos. Através das
articulações simbólicas, é possível a criação de determinadas imagens ou projeções de cenas
vividas, aceitas como verdadeiras. Assim, as promessas imaginárias de sucesso,
reconhecimento social, grandiosidade e vitória são constantemente afirmadas como o caminho
mais curto, se os indivíduos estiverem dispostos a incorporar os valores ideológicos. Na
relação ideologia e imaginário, a deformação imaginária propicia não as relações de produção
existentes, mas antes de qualquer coisa, as relações derivadas delas. A ideologia apresenta-se,
assim, não como sistema de relações reais que governam os indivíduos, mas de relações
imaginárias dos indivíduos com as relações reais em que vivem (ALTHUSSER, 1999): (ii) o
enquadramento dos comportamentos sociais: trata-se da limitação de comportamentos
concreta ou imaginariamente aceitos pela sociedade. Convém observar que existem normas
comportamentais “implícitas” permitidas, que devem ser obedecidos pelos indivíduos e que
não podem ser transgredidas para não colocar em risco o controle das relações sociais entre os
diversos atores sociais. Os enquadramentos sociais têm sua correspondência nas relações
materiais que permeiam na sociedade. Desta forma, é possível afirmar a existência de
estratificação das classes sociais levando-se em consideração as funções que cada indivíduo
desempenha na sociedade; (iii) o fornecimento de identidades e papéis sociais: têm certa
correspondência com os enquadramentos sociais. Uma identidade criada a partir de uma
posição relacionada com o trabalho possibilita a identificação do indivíduo com o seu
enquadramento social. O discurso ocorre de forma coordenada atendendo ao pressuposto de
que a profissão requer esta forma de conduta. As normas de condutas comuns e
compartilhadas pelos indivíduos de uma mesma profissão são responsáveis por criar um
vínculo identificatório que limita e ordena um controle implícito nos indivíduos. O
fornecimento de identidades e de papéis sociais específicos ocorre sutilmente. Os valores
ideológicos são incorporados pelos indivíduos sem a percepção de que se configuram como
uma “violência simbólica” imposta silenciosamente e sem dor. Destarte, não é difícil
encontrar uma categoria de profissionais que compartilham de um mesmo discurso, possuem
o mesmo vocabulário e as mesmas argumentações, configurando uma "sinfonia muito bem
ensaiada";
b. Derrota do pensamento de protesto: na sociedade contemporânea o pensamento de
protesto tem sido tratado como inapropriado, promovido por "radicais de esquerda", "xiitas",
"retrógrados inconformados" e sem condições de adaptação social. Afirmar que as
manifestações de protesto foram derrotadas é um exagero, como o demonstram os fatos,
entretanto é preciso reconhecer que se deu uma transformação qualitativa e quantitativa nas
formas de protesto, o que tem acentuado a precarização do trabalho, a perda da identidade
coletiva e a redução do pensamento crítico das práticas sociais. Os elementos mais
importantes que contribuíram para esta modificação foram o avanço da racionalidade
tecnológica, a afirmação do protesto como sinônimo de desordem, o discurso ilusório da
negociação democrática e a expansão do individualismo. É verdade que o avanço da
racionalidade tecnológica trouxe contribuições significativas para a qualidade de vida dos
indivíduos. O desenvolvimento das engenharias, da física, da química, da biotecnologia, etc.
contribuíram significativamente para o domínio da natureza. Entretanto, as ciências sociais e
humanas não tiveram, nos seus avanços, o mesmo reconhecimento, na medida em que se
desenvolveu uma associação entre progresso e racionalidade tecnológica, pois na nova
sociedade, como alerta Marcuse (1999a:125), "o universo totalitário da racionalidade
tecnológica é a mais recente transmutação da idéia de razão". Segundo Rouanet (1987) é uma
ilusão que se alimenta nas esperanças, desde o Iluminismo, de uma sociedade que tende à
igualdade. A crença de que apenas as ciências baseadas na racionalidade tecnológica venham
resolver os problemas de ordens humanas da sociedade, promove a perda da elevação do
pensamento crítico voltado para os interesses coletivos. Como se sabe, os crescentes avanços
das engenharias na formulação de novos processos produtivos não trouxeram o progresso
prometido em termos de qualidade no trabalho: a precarização (ALVES, 2000), a
intensificação (FARIA, 1992; FARIA e MENEGHETTI, 2001), o sofrimento (DEJOURS,
1988 e 1994) são elementos que permeiam o ambiente de trabalho, não obstante os avanços
das tecnologias físicas e de processo.
Os protestos em prol de melhores condições de trabalho têm sido alvo de mecanismos
que visam atribuir à esta prática a conotação de desordem. Protestar por melhores salários,
ambiente físico de trabalho, qualidade de vida, segurança, são ações amplamente apoiadas nos
manuais administrativos voltados aos "colaboradores", especialmente na chamada área de
"gestão de pessoas", mas a prática gerencial aponta em outra direção, especialmente quando
os protestos atingem a assim dita "individualidade". O culto ao individualismo tornou-se uma
regra que não deve ser ferida. "A partir do individualismo pode-se demonstrar a necessidade
de nenhum sistema particular de valores. O indivíduo adequa-se a qualquer sistema de moral e
valores. A impossibilidade de mostrar no interior da visão racionalista a necessidade de
valores, quaisquer que sejam, é a base epistemológica do niilismo" (TRAGTENBERG,
1974:182-3). Assim, quando há uma paralisação dos meios de transporte de uma cidade, ou de
uma instituição de ensino, como ocorreu recentemente, as manifestações mais freqüentes
divulgadas pela mídia são as afirmações e indagações que se baseiam em perdas de interesses
individuais: "como é que eu vou me locomover agora?"; "ninguém tem nada a ver com os
problemas deles, não é justo que eu pague por um problema que não é meu!"; "vou perder a
minha formatura"; "levei um ano preparando-me para o vestibular e quem é que vai me
reembolsar por isto?". A paralisação é associada imediatamente ao caos. Cria-se uma falsa
sensação de desordem, de irresponsabilidade por prejuízos à sociedade, sem que se faça
qualquer esforço empático. O primeiro pensamento é centrado nas próprias dificuldades. Os
motivos que levaram à paralisação configuram-se como secundários. É a elevação dos valores
do imediatismo e do utilitarismo, em que não há o reconhecimento da dificuldade do outro
como sendo possível, em algum momento, ser o seu.
Aliado a estes fatores, encontra-se a sociedade de consumo, alimentada por bem
sucedidas estratégias de marketing, atraentes procedimentos de comunicação visual, imagens
e textos convincentes, a acentuar a fragmentação da sociedade. Há um crescente ambiente
competitivo entre as organizações produtivas ao mesmo tempo em que o consumo torna-se
objeto de fetiche, pois a preocupação se consolida na perspectiva de sempre poder consumir o
produto reconhecido pelo outro como portador simbólico de status, aquele cuja posse causa
inveja. Enquanto há esperanças em atingir esta promessa imaginária (possibilidade de
consumir o que o outro já tem), o pensamento do indivíduo estará voltado para aquilo que
acredita ser necessário para a manutenção das suas necessidades.

Delas, faz parte, por exemplo – e aqui evidentemente falo apenas dos países
industriais altamente desenvolvidos, a situação é essencialmente diferente no
Terceiro Mundo – a necessidade, que já se tornou imperiosa, de, a cada ano, ou
comprar um aparelho de televisão maior ou mais sofisticado, a necessidade de
ficar sentado durante horas na frente desse aparelho de televisão, a necessidade
de comprar todas as mercadorias que hoje são vistas como símbolos de status.
São necessidades negativas, que satisfazem de fato uma necessidade que se
tornou real, mas ao satisfazê-la retardam a emancipação do homem do trabalho
alienado, de todo o sistema de valores do capitalismo, e trabalham contra essa
emancipação (MARCUSE, 1999b:113).

O que ocorre, na visão marcuseana, é a destituição dos indivíduos de um pensamento


unificador em prol dos interesses coletivos e em detrimento das realizações das necessidades
agora consideradas como essenciais. Este fato é um dos componentes que potencializam o
advento de uma sociedade cada dia mais individualista, reforçando a concepção, muito em
voga inclusive em círculos que se denominam mais esclarecidos, de que qualquer forma de
protesto, torna-se um perigo à segurança das conquistas na manutenção das necessidades. O
pensamento que perdura é de que não se pode colocar em risco o projeto individual em favor
do coletivo. Os protestos passaram a ser interpretados de forma pejorativa quando se criou a
falsa sensação de que o mundo do trabalho contemporâneo possibilita a negociação
democrática. São constantes as situações em que dirigentes públicos ou privados se recusam a
discutir reivindicações de empregados, dificultando o diálogo, promovendo o desencontro de
informações, omitindo-se, faltando publicamente com a verdade, adotando posturas
preenchidas de despotismo e de desqualificação dos mesmos. Várias são as estratégias
gerenciais e políticas para se evitar que a discussão ampla e democrática se consolide. Além
das ações formais, tem livre curso o imaginário da punição possível. As ameaças “nas
entrelinhas” de demissão, de transferências indesejadas, de intensificação do nível de stress
no trabalho, de desgaste perante a sociedade apoiado por uma mídia conivente, são alguns
exemplos da sociedade repressiva e da perda do pensamento crítico, cujos efeitos na práxis
organizacional são diretos.
c. Tolerância repressiva: este tema relaciona-se com a passagem da postura
questionadora pró-ativa para a prática da simples omissão. A tolerância, que deveria ser um
fim em si mesma, torna-se um meio de controle social do desejo de manifestação. “Dentro do
contexto de tal estrutura social, pode-se seguramente praticar e proclamar a tolerância”
(MARCUSE, 1970:91). Para Marcuse a tolerância pode ser classificada de duas formas:
tolerância passiva, de atitudes e idéias enraizadas e compartilhadas tradicionalmente, mesmo
que seus efeitos sejam nocivos ao homem; tolerância ativa, responsável pelos movimentos
reivindicatórios, que busca a emancipação dos indivíduos. A tolerância passiva “torna-se
duvidosa apenas quando não prevalece seu fundamento lógico, quando a tolerância é
administrada a indivíduos manipulados e doutrinados que repetem, como suas, as opiniões
dos senhores para as quais a heteronomia se transformou em autonomia” (MARCUSE,
1970:95). Este tipo de comportamento é adotado por aqueles que estão alienados dos meios de
produção da sociedade. Englobam-se dentro da trama ideológica vigente, muitas vezes,
reproduzindo-a. Suas opiniões quase sempre estão em concordância com os das elites, sua
esperança funda-se na promessa imaginária de ascensão profissional e social. A tentativa de
fuga desta forma de tolerância é responsável por uma série de punições indiretas: demissão da
empresa em que trabalha, exclusão social, alvo de preconceitos, etc. A dinâmica que rege a
tolerância passiva é a do cumprimento dos papéis sociais, ou seja, os indivíduos devem se
enquadrar nos personagens sociais determinados, eliminando qualquer forma de atitudes
imprevistas e indesejadas. Na tolerância ativa, os atores sociais desempenham o papel de
articuladores da crítica social. Seus comportamentos são reivindicatórios sem, contudo, serem
atos de violência explícita. Suas manifestações partem de pressupostos da existência da
violência contra os interesses da grande maioria. Suas preocupações não são centradas nos
fundamentos ideológicos, econômicos e políticos, mas nos interesses de igualdade e justiça.
Na tolerância ativa, os preceitos maiores são a prática democrática, o diálogo, a reflexão, a
razão articulatória e os interesses coletivos. Deste modo, não há tolerância ativa quando há
relações de poder. Qualquer tentativa de dominação do homem pelo homem é excluída desta
classificação.
Portanto, enquanto a tolerância passiva proporciona a “coesão” social, mantendo a
ordem através das ações administradas, através da manipulação das reivindicações, a
tolerância ativa, contraditoriamente, preocupa-se com a emancipação dos indivíduos,
procurando estabelecer relações mais democráticas e justas. Suas posições antagônicas
refletem a dualidade com que as relações sociais fundamentaram as atitudes humanas na
atualidade. A ausência de um pensamento democrático-reflexivo faz com que atitudes opostas
sejam aceitas como normais. Por este motivo é que a aceitação de algumas formas de
violência sejam tidas como “normal”, especialmente as social e politicamente
institucionalizadas. De fato, dia 11 de Setembro de 2001 ficará no registro da história como
símbolo da violência, com a destruição, em New York, do World Trade Center e a morte de
cerca de 7.000 pessoas. O fato, que causou indignação no mundo, resultou em ações militares
e políticas determinadas pelo Presidente dos USA George W. Bush e pelo Primeiro Ministro
Britânico Tony Blair, com apoio de outras lideranças e autoridades, entre as quais encontra-se
o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso. As formas como estas autoridades
mencionadas referiram-se à violência pareceram estar fixadas em apenas este tipo de ação,
não abrangendo outros tipos, especialmente aqueles decorrentes de políticas econômicas e
sociais adotadas pelos países que dirigem e que provocam a morte cotidiana de milhares de
inocentes não só em seus países como no resto do mundo, que provocam a fome, as doenças
endêmicas, o desespero com a falta de segurança e o pavor diante do desemprego e das
condições subumanas de vida. Este tipo de violência, contudo, não provocou nessas
autoridades iguais reações de indignação, iguais investimentos em seu aniquilamento, iguais
disposições de combate e tampouco ocupa iguais espaços na mídia. Qual o grau de tolerância
com a violência? Após o assassinato do Prefeito de Santo André, em São Paulo, por exemplo,
o Presidente Fernando Henrique Cardoso fez um pronunciamento no qual afirmou que este
crime havia ultrapassado todos os limites, como se houvesse um grau de tolerância para a
violência que seria aceitável pelo Governo e pela Sociedade; afirmou que desejava que os
criminosos fossem para a cadeia, como se o problema da violência se esgotasse neste caso,
como se a violência cotidiana, na qual este crime está inserido, pudesse conviver com a
impunidade desde que o mais visível fosse punido; afirmou que se trata de um problema
suprapartidário, como se a opção por uma política social e econômica excludente, centrada no
controle de grandes agregados das Contas Nacionais, facilitadora da organização do crime,
ineficaz no combate à corrupção, pudesse fazer parte de um grande acordo nacional.
Pode-se avaliar o tema da violência pelo tempo que os jornais televisivos ocupam com
notícias desta natureza: assassinatos, seqüestros, assaltos, guerras, conflitos urbanos e rurais,
desemprego, falta de atendimento à saúde, abandono de crianças e jovens, maltratos em
famílias, etc. Pode-se também avaliar a perda do pensamento crítico pelo tempo que é
destinado ao debate, às denúncias e às críticas sobres as condições de vida da sociedade e às
ações públicas promotoras da justiça social, da distribuição de renda, da geração de empregos,
do atendimento às necessidades humanas fundamentais. A comparação mostra, com clareza,
que a escalada da violência tomou conta da vida cotidiana. Mostra que os horários nobres da
televisão são ocupados por programas de lançamento de candidaturas à presidência e aos
governos estaduais, dirigidos por profissionais altamente qualificados e bem sucedidos, que
escondem o fato de que a opção política de seus candidatos é conivente com a violência
institucional, já que diretamente vai gerá-la e reproduzi-la, apresentando jingles atraentes,
rostos bonitos e cenários maravilhosos: é quando a violência é combatida pela farsa; é quando
a cruel realidade é enfrentada pela promoção de um imaginário social da beleza estética sem
ética; é quando a ação é substituída pelo discurso que de tudo dá conta; é quando o lado
desumano é escondido e as imagens velam pelo disfarce.

3. As Formas de Controle Social e a Perda da Autonomia


A falta de autonomia paira sobre a atual sociedade. A supressão da individualidade,
diferente de individualismo, se dá pela presença de mecanismos de desempenhos implícitos
ou explícitos: quem é o melhor aluno, quais os grupos de trabalhos mais produtivos, quem
tem o maior salário, qual o melhor músico da banda, qual o melhor funcionário. O indivíduo
passa a ser quantificável e qualificável. Assim também as organizações, que inseridas em
competições, transferem para sua estrutura interna os valores com os quais pretende ser
reconhecida: qual a instituição de ensino com melhor desempenho no "provão", qual a
empresa mais lucrativa no setor, qual o hospital mais bem aparelhado, qual a empresa de
transporte que oferece mais vantagens e conforto a seus passageiros.
O Estado, as escolas, as igrejas, as empresas, a mídia, são, entre outras, instituições
responsáveis por disseminar ideologias, as quais, cada uma a seu modo, atuam no sentido de
mostrar que qualquer conduta que coloque em risco a coesão dos interesses dominantes, que
buscam preservar, é considerado ato indesejável. Os indivíduos, para se ajustarem a esta
lógica, sujeitam-se a padrões comportamentais que os levam a dispor de sua autonomia em
troca de uma heteronomia. Assim, o indivíduo perde sua individualidade e sua condição de
sujeito, tornando-se mais um elemento do processo tecnológico de mecanização e
padronização.
A criação das necessidades falsas, como sugere Marcuse, é também responsável por
promover o controle e a perda da autonomia do indivíduo. Sendo as necessidades falsas
aquelas de interesses sociais particulares que levam o indivíduo para sua repressão, relativas
aos esforços que perpetuam o empenho demasiado no trabalho, a absorção das agressividades
cotidianas, a aceitação das misérias e da injustiça,

as questões sobre as quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida
pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando eles tiverem livres
para dar a sua própria resposta. Enquanto eles forem mantidos incapazes de serem autônomos,
enquanto forem doutrinados e manipulados (até os próprios instintos) a resposta que derem a
essa questão não poderá ser tomada por sua (MARCUSE, 1999a, p. 36).

Para Marcuse, os indivíduos não são capazes de definir quais são as suas necessidades
falsas e, conseqüentemente, as verdadeiras, sem que haja a prática democrática da reflexão.
Mesmo que estas reflexões sejam influenciadas pela ideologia dominante, é somente pela
prática livre do diálogo, do debate aberto e democrático que os indivíduos chegarão a uma
opinião alicerçada no pressuposto coletivo e emancipado. Não há autonomia sem sua origem
na mesma, pois é o próprio exercício da autonomia que a eleva a graus superiores. Autonomia
não pressupõe liberdade absoluta. As leis, normas e regras explícitas ou implícitas, quando
advindas da prática reflexiva e dos interesses coletivos são, em si mesma, a expressão da
autonomia. Assim, diferentemente da liberdade absoluta, a autonomia é a prática das relações
que nem sempre são expressas no rompimento das estruturas regimentais da sociedade. Sua
função, muitas vezes, é de colocar limites para as atitudes humanas.
As necessidades humanas, principalmente as referentes à sobrevivência, são
impulsionadoras dos atos não reflexivos. Na manutenção da vida, o indivíduo submete-se à
intensificação do trabalho, aos trabalhos insalubres, às mandos coercitivos dos seus
superiores. Contudo, não são somente estes indivíduos que são submetidos. As promessas
imaginárias de sucesso financeiro, status social, reconhecimento social etc., para os
indivíduos dispostos a enquadrar-se no controle social, são outros elementos implícitos
capazes de subordina-los. Tais indivíduos, sujeitos econômicos “livres”, “tornam-se objeto de
organização e coordenação em larga escala, em que o avanço individual transformou em
eficiência padronizada. (...) O indivíduo eficiente é aquele cujo desempenho consiste numa
ação somente enquanto seja a reação adequada às demandas objetivas do aparato (...)”
(MARCUSE, 1999b:78). A lógica da dominação econômica impõe sobre os indivíduos
padrões comportamentais baseados na ética do desempenho, ou seja, a mensuração através do
utilitarismo. Esta concepção está de acordo com o a afirmação de Marx segundo a qual as
relações de produção das condições materiais de existência constituem-se no suporte das
relações sociais. Em “Materialismo histórico e existência”, Marcuse (1968) sugere que como
decorrência da sociedade industrial, a competição torna-se um valor. Vários são os teóricos
que creditam a ela o motor propulsor do progresso da sociedade. Os que afirmam que as
competições - individuais, grupais, organizacionais e entre nações - são as engrenagens para
o sucesso, são quase sempre os mesmos que afirmam que os protestos e as manifestações são
atos radicais, prejudiciais à coesão social. “A competição livre confronta os indivíduos entre
si como compradores e vendedores de força de trabalho. A abstração pura a que os homens
são reduzidos em suas relações sociais se estende ao relacionamento com os bens reais”
(MARCUSE, 2001:15). O engajamento do indivíduo para vencer as competições sociais,
desloca-o de uma posição mais reflexiva para uma mais passiva. Toda sua energia é
direcionada a tarefas e funções que proporcionem ganhos instrumentais para obtenção do seu
sucesso. Assim, às vezes sem perceber, o indivíduo torna-se meio na realização dos interesses
de uma minoria, ganhando, em troca, algumas realizações individuais e promessas
imaginárias de sucesso. Para Marcuse, a sociedade, em grande medida, vende ilusões.
Assim, a ética na sociedade industrial é aquela que incorpora o indivíduo como
instrumento, reduzindo as relações humanas a poucas brechas do cotidiano. As racionalidades
possíveis são as que justificam o uso das técnicas científicas para o progresso da sociedade,
que, em última instância, são desprovidas do pensamento crítico. Desta forma, um cientista é
capaz de ajudar a projetar uma arma nuclear ou um coração artificial. Para Marcuse, a questão
está em saber qual o nível de consciência dessas criações, de forma que a postura reflexiva
possa ser capaz de mover o indivíduo da posição de instrumento de criação para senhor desta,
saber mensurar para qual finalidade será usado o seu conhecimento. Como reconhece
Habermas (1997:68) "a técnica e a ciência cumprem também hoje a função de legitimação da
dominação, proporcionando a chave para a análise da constelação que foi alterada”. É ainda
Habermas (1997:73) quem afirma que

os interesses sociais continuam a determinar a direção, as funções e a velocidade do progresso


técnico. Mas tais interesses definem de tal modo o sistema social como um todo, que
coincidem com os interesses pela manutenção do sistema. A forma privada da revalorização do
capital é a chave da distribuição das compensações sociais, que garantem a lealdade da
população, que permanecem como tais subtraídas à discussão. Como variável independente,
aparece então o progresso quase autônomo da ciência e da técnica, do qual depende de fato a
outra variável mais importante do sistema, a saber, o crescimento econômico. Cria-se assim
uma perspectiva na qual a evolução do sistema social parece estar determinado pela lógica do
progresso técnico-científico.

Assim, são os interesses patrocinados pela política dominante na sociedade capitalista


contemporânea que procuram induzir, em grande parte, quais os conhecimentos merecedores
de investimentos. O conhecimento é tratado como sendo baseado na racionalidade
instrumental, desprovido de senso crítico, subordinado à lógica da acumulação ampliada do
capital, pois para este não poder haver invenção sem retorno econômico quantificável.
Portanto, a própria ciência acaba por se tornar uma forma de controle, incorporada a uma
ideologia desprovida dos interesses coletivos. A dominação ganha nova expressão quando a
tecnologia e a ciência subordinam-se aos interesses privados, reforçando os parâmetros da
sociedade unidimensional que articulam o esgotamento do princípio da autonomia. A
capacidade de emancipação, para Marcuse, está no processo de reflexão e não na geração do
conhecimento. Quando a reflexão é praticada o conhecimento técnico ocupa sua real função:
prover o progresso para todos. Na sociedade industrial, vários são os obstáculos a enfrentar
para que o conhecimento técnico favoreça todos os indivíduos. Em “O fim da utopia”,
Marcuse (1986) sugere que na atualidade é possível tecnicamente eliminar a opressão e a
miséria. O único obstáculo seria a atual organização sociopolítica do mundo. Marcuse propõe
uma reorganização das relações materiais e sociais na sociedade, pensamento este entendido
por alguns de seus críticos como pertencente à sua fase “otimista” - diferentemente da sua
fase de exílio político nos anos 30 – na qual procura mostrar as possibilidades de
enfrentamento do domínio do pensamento unidimensional na sociedade e, conseqüentemente,
das formas de controle social.
4. A Teoria das Organizações e a Sociedade Unidimensional
A Teoria das Organizações Complexas, inaugurada com os estudos de Weber, tem se
mostrado implicada no núcleo da ideologia capitalista, muitas vezes contribuindo com a
reprodução das relações sociais que lhe dão suporte (TRAGTENBERG, 1974). São comuns
pesquisas que envolvem cultura, clima, comprometimento, conflitos, liderança, motivação,
estratégias competitivas, qualificação corporativa, entre outras, constituírem-se em tentativas
de elaborar técnicas que possam ser utilizadas para reforçar os mecanismos de controle social
das organizações: tendo em vista o desempenho e os resultados como objetivos primordiais, a
utilização dos novos conhecimentos passa a ter caráter instrumental. O controle é
intensificado e a reflexão-crítica praticamente eliminada do contexto organizacional. Temas
relacionados à repressão ao sofrimento dos indivíduos nas organizações são considerados
tabus ou secundários, porque questionam os elementos centrais da dominação. As
organizações, acabam por desenvolver procedimentos e estruturas capazes de intensificar a
repressão dos instintos, promovendo a perda da autonomia criativa. A organização torna-se
unidimensional, reforçada por esquemas teóricos que as legitimam como tal.
Técnicas de motivação, satisfação no trabalho, comunicação, integração corporativa,
tentam criar um "ambiente saudável", "administrado". Porém, os sentimentos ambivalentes, a
dinâmica dos grupos, os discursos democrático-reflexivos, os paradoxos organizacionais,
podem restaurar a autonomia, pois nenhuma organização configura-se totalmente como local
da repressão, como determinante de todo o comportamento e da ação, como isenta de
contradições. Pela sua natureza, as organizações complexas criam estruturas e normas
inibidoras do pensamento de protesto, da intolerância ativa e do repúdio pela introjeção de
valores e crenças, na medida em que estas manifestações sociais, inerentes ao sujeito,
questionam as relações de poder. Desta forma, nas organizações unidimensionais os papéis
sociais são interrogados, os vínculos grupais ameaçados, os interesses individuais
questionados, já que é preciso antepor-se à autonomia, garantindo a organização como espaço
heterônomo, para o que a pesquisa e a teoria criam conhecimentos instrumentais, visando
manter um certo clima de coesão que proporcione um ambiente de conflitos administrados. O
conhecimento gerado no interior da Teoria das Organizações tem propiciado a criação e a
disseminação de técnicas que introjetam as normas sociais, proporcionam maiores controles
individuais e coletivos capazes de amenizar as incertezas, criam mecanismos de regulação dos
protestos e instauram a tolerância passiva. Todas estas concepções são contemplada nas
análises críticas de Marcuse sobre a dinâmica da sociedade que projeta o homem
unidimensional.
Neste sentido, é necessário ampliar a linha da Teoria Crítica nos estudos
organizacionais, que tem tratado de questões que envolvem a emancipação do indivíduo,
libertando-o do pensamento unidimensional, da alienação, da competição predatória, das
necessidades falsas, da supressão da individualidade e da sua adoção como instrumento para
se obter fins para grupos específicos. O papel da Teoria Crítica nos estudos organizacionais é
oferecer uma alternativa democrática-reflexiva, possibilitar o pensamento crítico e autônomo
das condições de vida e de trabalho.

5. Reflexão Crítica e Organização Unidimensional: por uma conclusão


Para Marcuse a sociedade se encontra diante de um dilema: ou impedirá as
transformações, impondo-se a repressão de uma vez por todas, ou desenvolverá um “contra
movimento internacional e global” capaz de promover transformações. A segunda alternativa
oferece aos intelectuais novos embasamentos teóricos para lutar contra as formas
“autoritárias” da sociedade. Daí porque pode-se concordar com Bronner (1997:286), para
quem “Marcuse pôs a sociedade industrial avançada diante de um espelho, desafiou sua noção
de progresso e trouxe a busca da felicidade de volta para o vocabulário político. Sua obra tem
um compromisso duradouro com os impulsos mais radicais e concretos da teoria crítica”. O
pensamento marcuseano se coloca contra qualquer forma de totalitarismo, autoritarismo,
alienação e controle social. Seus conceitos continuam tão atuais quanto na época em que
foram formulados.
De fato, a forma como Marcuse analisa o capitalismo industrial pode ser transposto
para a forma recente de organização da sociedade, o globalismo, já que ambos tentam impor-
se como forma hegemônica na vida dos indivíduos, sob a proteção do Estado Capitalista
Contemporâneo, excluindo ou marginalizando qualquer outro modelo de produção que não
seja com ele compatível. No âmbito dos estudos organizacionais, são menos freqüentes as
análises críticas, razão pela qual o resgate de importantes pensadores pode contribuir na
ampliação destes temas, na apresentação de novas contribuições teóricas que sejam capazes
de enfrentar a dominação do homem pelo homem ou do homem pela organização, no
desvendar de uma precarização dos preceitos éticos. A ética, neste sistema, não só no âmbito
da produção material e social mas igualmente no da produção intelectual, deve interessar-se
pela autonomia do sujeito, pelo pensamento crítico e reflexivo, pois o elemento ético corre o
“perigo cada vez maior de ser erradicado por uma sociedade industrial avançada que procura
adequar o progresso à forma mercantil e à lógica alienante da racionalidade instrumental”
(BRONNER, 1997:288). A contribuição de Marcuse é importante para orientar estudos
organizacionais críticos a respeito das organizações unidimensionais, bloqueadoras da
autonomia e reprodutoras de um pensamento único. Seus temas pertencem à práxis
organizacional, à avaliação do papel do Estado e da Sociedade e aos estudos das relações que
estas instâncias estabelecem com os indivíduos.

Referências:
ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial,
2000.
ASSOUN, Paul-Laurent. A escola de Frankfurt. São Paulo: Editora Ática, 1991.
BRONNER, Stephen Eric. Da teoria crítica e seus teóricos. Campinas: Papirus, 1997.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. 3.
ed. São Paulo: Editora Cortez, 1988.
_____. Psicodinâmica do trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
FARIA, José Henrique de. O autoritarismo nas organizações. Curitiba: Edições Criar, 1985.
_____. Tecnologia e processo de trabalho. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1992.
_____; MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Captura da Subjetividade e as Novas Formas
de Controle Psicológico no Trabalho: Uma Abordagem Crítica ao Modelo Toyotista de
Produção. Campinas: XXV Encontro Nacional da ANPAD, 2001. Anais da ENANPAD
[CD-Rom].
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1997.
MARCUSE, Herbert. Tolerância repressiva. In: WOLFF, R. P; MOORE JR, B; MARCUSE,
H. Crítica da tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
_____. Eros e civilização. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
_____. El final de la utopía. Barcelona: Editorial Ariel, 1986.
_____. El hombre unidimensional. Barcelona: Editorial Ariel, 1999a.
_____. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Editora da UNESP, 1999b.
_____. A grande recusa hoje. Petrópolis: Editora Vozes, 1999c.
_____. Cultura e psicanálise. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. 4. ed. Vol. III. São Paulo:
Paulus, 1991.
ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Universitário,
1986.
_____. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974.
Documento

Maurício Tragtenberg

PODER E PARTICIPAÇÃO:
A DELINQÜÊNCIA ACADÊMICA NA
INTERPRETAÇÃO TRAGTENBERGUIANA

José Henrique de Faria


Economista, Mestre em Administração pela UFRGS, Doutor em
Administração pela USP e Professor Titular da UFPR.
E-mail: hfaria@ceppad.ufpr.br

“Quanto menos poder o sujeito tem, de (Tragtenberg, 1991, 1999). A organização universi-
mais ele se atribui poder simbólico.” tária, sua gestão, as relações de poder que a atraves-
Maurício Tragtenberg sam e a vida psíquica que se desenvolve em seu interi-
or oferecem-se ao pesquisador como um palco para re-
flexões acerca de uma “economia política do poder”
(Faria, 2001), que Tragtenberg soube explorar com
INTRODUÇÃO maestria. Nesse sentido, procurando retomar as orien-
tações tragtenberguianas, este artigo pretende analisar
Em abril de 1978, o professor Maurício Tragtenberg a relação entre administração, poder e participação no
foi a Porto Alegre ministrar um curso sobre poder e âmbito da delinqüência acadêmica, segundo a ótica do
sindicalismo. Sua análise da situação, tendo como objeto referido professor.
as greves do ABC paulista, compunha uma crítica sem
concessões de qualquer espécie. A certa altura de sua ex-
posição, ao avaliar as relações entre o poder e o uso de SOBRE O PODER
artifícios para obtê-lo, Tragtenberg propôs uma distinção,
que iria aparecer em seus textos posteriores – especial- Tomando por base uma rápida revisão da literatura
mente nos que se referiam à sua crítica à delinqüência em seus enfoques mais significativos para o estudo do
acadêmica –, entre o poder que decorria da dominação, e, controle social nas organizações, bem como análises efe-
portanto, das relações de autoridade e coerção, daquele tuadas sobre as relações de poder (Faria, 1985a, 1985b,
que decorria do uso de símbolos e de articulações políti- 1987; Tragtenberg, 1977, 1979a, 1980b), pode-se afirmar
cas. Não se tratava, para Tragtenberg, de tipos de poder, que poder é a capacidade que possui uma classe social
mas de instâncias de manifestação das relações. (ou uma de suas frações ou segmentos), uma categoria
A passagem referida no preâmbulo resume, de cer- social ou um grupo (social ou politicamente organizado),
ta forma, uma concepção teórica que se traduziu em de definir e realizar seus interesses objetivos específicos,
uma inovação na área de estudos organizacionais, não mesmo contra a resistência ao exercício dessa capacida-
pelo fato de que ambos os conceitos eram, em si mes- de e independentemente do nível estrutural em que tal
mos, novos, mas em função de oferecer aos pesquisa- capacidade esteja principalmente fundamentada. O exer-
dores um outro paradigma de interpretação, no qual o cício do poder adquire continuidade e efetividade políti-
real e o simbólico fazem parte de uma mesma realida- ca por ocasião do acesso do grupo ou da classe social ao

70 RAE - Revista de Administração de Empresas • Jul./Set. 2001 RAE


São•Paulo,
v. 41 v.•41n. •3 n.
• 3Jul./Set. 2001
• p. 70-76
Poder e participação: a delinqüência acadêmica na interpretação tragtenberguiana

comando das principais organizações, das estruturas ins- do tomadas pelo grupo como interesse coletivo no âmbi-
titucionais ou políticas da sociedade – inclusive aquelas to de suas práticas1.
criadas como resultado de um processo de transformação Assim, o exercício do poder é a sua concretização, de
– de maneira a pôr em prática ou a viabilizar tal exercí- maneira que o sentido do poder somente pode ser com-
cio. Nesse sentido, o poder é uma capacidade coletiva e, preendido por ocasião das relações de poder, por ocasião
como tal, deve ser adquirido, desenvolvido e mantido, das práticas. Desse modo, é oportuno fixar que a capaci-
inserindo-se os indivíduos em suas relações a partir de dade de definir os interesses depende de um conjunto de
funções que desempenham no âmbito coletivo, de forma fatores, os quais podem ser genericamente agrupados em
orgânica ou não, podendo influir, coordenar, liderar, re-
presentar, organizar e conferir legitimidade.
O conceito proposto diz respeito aos efeitos produ- NÃO SE PODE FAZER DO PODER O
zidos pelas práticas sobre a unidade das estruturas orga-
nizacionais. Esses efeitos se manifestam tanto sobre os CENTRO DAS RELAÇÕES SOCIAIS,
elementos que constituem seus suportes e garantem sua
coesão, com base ou não na legitimidade, quanto sobre
POIS, DESSE MODO, AINDA QUE ELE
aqueles que implicam sua reestruturação ou mesmo seu ESTEJA EM TODA PARTE, ACABA-SE
aniquilamento, pois, ainda que haja vínculos promoto-
res de uma unidade coesa, ela é passível de rompimento POR COLOCÁ-LO EM PARTE ALGUMA.
parcial, total ou definitivo: um grupo não possui poder
para sempre e tampouco seus interesses, estratégias e
direção são sempre os mesmos. O que vai determinar a quatro grandes categorias totalmente interdependentes: (I)
permanência e a direção são as práticas. as motivações subjetivas dos sujeitos que constituem o
A capacidade de definir e realizar interesses depen- grupo; (II) a condição de elaboração teórica e conceitual
de das condições internas do grupo e igualmente da ca- que permita a leitura da realidade, a identificação e a aná-
pacidade de outros grupos. Assim, pode-se afirmar que: lise das dificuldades, das oportunidades, riscos e estraté-
a) um grupo definirá e realizará seus interesses devido gias de ação política; (III) a capacidade de estabelecer
às relações que se desenvolvem entre os sujeitos que o relações entre a própria condição de manutenção da orga-
constituem – em um processo dinâmico e dialético, no nização e a realidade; (IV) a necessidade de preservar o
qual as contradições vão dando forma a essa unidade caráter de identidade do grupo e a reafirmação do senti-
não monolítica, pois não só os indivíduos formulam e mento de pertença de seus membros.
mantêm tal capacidade quanto são determinados por ela A capacidade de realizar os interesses definidos, por
(o que garante a coesão da unidade) –, ao mesmo tempo seu turno, também depende de um conjunto de fatores,
em que, por força das relações e das práticas de grupo chamados bases ou recursos do exercício do poder. Tais
ou de conflitos internos, podem reformular ou reestru- bases podem ser agrupadas, essencialmente, em três di-
turar essa capacidade – redefinindo uma nova coesão da mensões ou instâncias, não excludentes, mas não neces-
unidade do grupo ou desagregando-o definitivamente; sariamente dependentes e tampouco seqüencialmente or-
b) a capacidade de um grupo de definir e realizar seus denadas. São elas: (I) as articulações políticas: suas estra-
interesses – condição necessária para o exercício do tégias e programas – ao que corresponde o desenvolvi-
poder desse grupo – depende das capacidades de outros mento de competências políticas – e o conjunto simbóli-
grupos de definirem e realizarem os seus, de forma que co-imaginário; a divulgação, por meio dos aparelhos, da
a efetividade do poder de um grupo depende diretamen- ideologia – ao que correspondem toda a trama da posse,
te da efetividade do poder de outros grupos no âmbito uso e disseminação de informações e o domínio do siste-
da determinação das práticas e nos limites fixados pelas ma de comunicação; as atitudes obscuras e ocultas que se
práticas de outros grupos. processam à margem do sistema institucional, nos basti-
Os interesses, da maneira aqui empregada, são inte- dores, em “segredo”, que dizem respeito ao psiquismo
resses objetivos relativamente autônomos e referem-se à dos sujeitos e do grupo ou aos compromissos não forma-
sua expressão coletiva, à prática coletiva, e não à conduta lizados que visam garantir apoio político e que não po-
ou a motivações de comportamentos dos sujeitos. O inte- dem ser manifestos na instância coletiva; (II) a autorida-
resse individual, embalado pelo sujeito, seu papel ou po- de legítima, tal como definida por Weber (1974); (III) a
sição no interior do grupo a que pertence, consiste em coerção (direta, indireta e sutil) – geralmente utilizada
expectativas de ação que somente adquirem sentido quan- quando os demais mecanismos ou bases não lograram

RAE • RAE
©2001, v. 41- Revista
• n. 3de •Administração
Jul./Set. 2001
de Empresas/FGV/EAESP, São Paulo, Brasil. 71
Documento

Maurício Tragtenberg

garantir a consecução dos objetivos, pois se trata de uma relações de poder. Se as relações de poder se desenvol-
base politicamente muito onerosa. vem dessa forma, isso não significa que sejam totalmente
O exercício do poder, quando se utiliza desses recur- visíveis todo o tempo para todas as pessoas. É um equí-
sos da articulação política, da autoridade e da coerção, voco supor que, uma vez desvendados os mecanismos do
não o faz apoiado em uma única base. O recurso da arti- poder, já se pode enxergá-lo às claras. É certo que as rela-
culação, ainda que muitas vezes possa ser utilizado como ções de poder estão em toda a parte, ainda que não se
um anteparo com relação ao emprego da autoridade legal pretenda reconhecê-las; que entram pelos olhos, ainda que
ou da coerção, não pode prescindir totalmente de uma não se queiram vê-las; que estão presentes nos discursos,
estrutura legal ou coercitiva que venha a garantir perma- ainda que não se queira falar delas.
nência institucional às metas perseguidas pelo grupo ou No entanto, não se pode fazer do poder o centro das
classe social. As relações de poder não são apenas resul- relações sociais, pois, desse modo, ainda que ele esteja
tado de práticas racionais conscientes voltadas ao inte- em toda parte, acaba-se por colocá-lo em parte alguma.
resse coletivo. De fato, não é propriamente no plano ma- Como sugere Bourdieu (1998), “é necessário saber des-
nifesto das relações que se devem procurar as motiva- cobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
ções subjetivas, pois elas se encontram expressas tanto completamente ignorado, portanto, reconhecido”. Por isso,
nas formulações quanto nas realizações, de forma que todo é preciso compreender o caráter simbólico do poder, essa
o aparato objetivo racional constitui um momento do pro- forma invisível de seu exercício que somente pode ser
cesso, que é aquele da legitimação, da “publicização”, do exercida “com a cumplicidade daqueles que não querem
próprio manifesto. É dessa dinâmica oculto-manifesto que saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. É
se definem os termos da operação dos controles sociais, com este sentido, ou seja, é a partir da definição e da rea-
ou seja, são as relações de poder que permitem operar as lização de interesses específicos por parte de grupos no
diversas formas de controle social nas organizações. interior das organizações acadêmicas, fundados em uma
É preciso observar, igualmente, que o emprego de ins- racionalidade política e em uma subjetividade psíquica,
trumentos ideológicos e ocultos de articulação política pos- que se irá percorrer a perspectiva de Tragtenberg.
sui caráter muito próximo ao do coercitivo sutil, pois, não
pertencendo à ordem da violência explícita ou recalcante,
não deixa por isso de fazer uso de elementos trabalhados DA ACADEMIA DELINQÜENTE:
nos bastidores, de desejos inomináveis e de intenções que PODER E PARTICIPAÇÃO NA
não podem ser explicitadas, bem como da manipulação na ANÁLISE TRAGTENBERGUIANA
divulgação da ideologia dominante mediante aparelhos
específicos, instituições e mecanismos organizacionais in- Maurício Tragtenberg é um pioneiro nos estudos crí-
ternos, que são do mesmo modo efetivos. É esse conjunto ticos sobre poder, administração universitária e delinqüên-
que Tragtenberg chamará de delinqüência e é aí que estão cia acadêmica, oferecendo não apenas um legado, mas
também todos os ordenamentos que, ainda que tomem a uma história. A teoria das organizações e a educação, no
forma jurídica – que aparentemente poderia conferir legiti- Brasil, podem ser divididas em antes e depois de Buro-
midade à ordem legal –, não têm resultado de um processo cracia e ideologia (Tragtenberg, 1977). Crítico do auto-
democrático. Tal problema evidencia que, do assentimen- ritarismo e defensor da pedagogia libertária, Tragtenberg
to à autoridade, está se passando ao assentimento da mani- expõe a contradição entre a utopia que precisa ser reali-
pulação de consciências, em que os verdadeiros poderosos zada e a realidade que teima em aperfeiçoar seus meca-
não são conhecidos, pois o poder deslocou-se do visível nismos de dominação, seguindo a tradição daqueles cuja
para o invisível, do conhecido para o anônimo. prática intelectual correspondia a enfrentamentos revolu-
Essa análise sugere que há uma dinâmica pela qual as cionários (Tragtenberg, 1978,1979b,1979c,1980a,1981).
estruturas legais podem ser desfiguradas pelas estruturas Tomando como ponto de referência a mesma linha
autoritárias dando origem a uma “nova legalidade”, em sugerida há mais de um século e meio – em que dois jo-
que a função da lei é substituída por um novo ordenamento vens filósofos, Marx e Engels (1976), ao analisarem a
que serve de instrumento ao exercício do poder, confe- contradição entre Estado enquanto sociedade política e
rindo-lhe a aparência de legalidade e legitimidade. Isso sociedade civil, mostraram que, em uma democracia, seus
não significa que as estruturas sejam meros instrumentos membros, para manterem a unidade universal, não po-
de exercício do poder. As estruturas não podem ser dire- dem atribuir-se ou conquistar importância diferente da-
tamente tomadas senão como campos em que se operam quela que lhes compete –, Tragtenberg investe contra os
as relações sociais – essas, sim, espaços de realização das usurpadores, os delinqüentes, os repressores de toda a

72 RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001


Poder e participação: a delinqüência acadêmica na interpretação tragtenberguiana

espécie. Em suas análises, explicita-se com clareza tanto tros centros educacionais, se reproduz a universidade
como o exercício da democracia supõe responsabilidade mandarinal do século passado ao inculcar “normas de
política, quanto como, no cumprimento das suas atribui- passividade, subserviência e docilidade através da repres-
ções, deve-se garantir a função social do universal e do são pedagógica”. Mesmo nos “cursos críticos”, a univer-
particular acima de quaisquer interesses específicos. sidade dominante prevalece mediante o juízo professoral
Tragtenberg, ao mostrar como o poder encontra-se incrus- hegemônico exercido sobre os estudantes em um proces-
tado nas instituições e nas organizações, indica como se so de “contaminação”. “Essa apropriação da crítica pelo
dá a apropriação do saber e a perpetuação dos sistemas de mandarinato universitário, mantido o sistema de exames,
dominação nos diferentes poros do tecido social. a conformidade ao programa e o controle da docilidade
De suas análises, pode-se deduzir um entendimento do estudante como alvos básicos, constitui-se numa far-
de que a prática autoritária é assumida sem crítica, de que sa, numa fábrica de boa consciência para a delinqüência
na democracia o processo formal supera o conteúdo, de
que o coletivo é um agregado de muitos singulares, e não
uma unidade substancial. É nesse prisma que circulam A SELEÇÃO DOS ALUNOS DA
livremente, especialmente no interior das instituições aca-
GRADUAÇÃO E DA PÓS-GRADUAÇÃO,
dêmicas, ao sabor dos contextos, textos e discursos sobre
democracia, participação e autoritarismo2, muitos deles CARACTERIZADA PELA IGUALDADE
defendendo a idéia de que a própria universidade é um
locus privilegiado da prática democrática, uma salvaguar- DE OPORTUNIDADE, ESCONDE O
da da neutralidade e da defesa do conhecimento científi-
co – tudo se dá como se a universidade fosse uma insti- FATO DE QUE, EM CURSOS DE
tuição homogênea, coesa, sem contradições e absoluta-
mente desenvolvida e democrática. Ao examinar a crise ALTA DEMANDA, AS MAIORES
da universidade, que ocorre porque a “sociedade está em
crise”, Tragtenberg (1979c, p. 15) percebe que, ao con- OPORTUNIDADES SÃO CONFERIDAS
trário do que afirmam alguns acadêmicos, a universidade
AOS QUE TIVERAM ACESSO PRÉVIO
“não é uma instituição neutra; mas sim de classe, onde as
contradições aparecem. Para obscurecer estes fatores, a A UM ENSINO PRIVILEGIADO.
universidade desenvolve uma ideologia de saber neutro,
científico, uma neutralidade cultural e um mito de saber
‘objetivo’ acima das contradições sociais”. acadêmica representada por aqueles que trocam o poder
De fato, a universidade desenvolve determinadas prá- e a razão pela razão do poder.”3
ticas acadêmicas e administrativas que, algumas vezes, Quando a “unidade coletiva” da universidade é
escondem movimentos contraditórios. O processo de se- ameaçada por desvios particulares ou corporativos e por
leção dos membros de sua comunidade é um exemplo críticas que revelam suas fragilidades, observa-se que a
dessas práticas. A seleção dos alunos da graduação e da defesa do instituído diante das possibilidades de sua trans-
pós-graduação, caracterizada pela igualdade de oportuni- formação democrática reafirma a existência de um uni-
dade, esconde o fato de que, em cursos de alta demanda, versal totalmente aparente que, de novo, é somente a soma
as maiores oportunidades são conferidas aos que tiveram de infinitas particularidades, cada qual sem abdicar de
acesso prévio a um ensino privilegiado; a seleção dos seus interesses privados e encerradas em sua esfera, ca-
docentes por meio de concursos, às vezes esconde a pre- racterizando o coletivo como elemento particular, essen-
ferência das bancas pelo conteúdo teórico e político dos cialmente “desorgânico”, em que a união se realiza ape-
candidatos, quando não por relações interpessoais. nas inconscientemente, nas costas dos indivíduos. Tal con-
Essa situação vem reforçar o que Tragtenberg (1979c, cepção do ethos singular embutido na estrutura coletiva,
p. 16-17) chama de “complô de belas almas”, “recheadas tomada como princípio genérico, afirma, em nome do
de títulos acadêmicos, de doutorismo (...), de uma nova todo, que a sociedade é apenas um conjunto de pessoas
pedantocracia, da produção de um saber a serviço do po- ou grupos privados, que a organização é simplesmente a
der, seja ele de que espécie for”. Nas escolas de educa- soma dos seus “colaboradores” e que todos, defendendo
ção, formam-se, desse modo, tecnocratas aptos a “con- seus interesses particulares, os transformam em coleti-
feccionar reformas educacionais que, na realidade, são vos, em metas e objetivos comuns. Com esse sentido, o
verdadeiras ‘restaurações’”, da mesma forma que, em ou- universal torna-se não uma construção, mas uma soma;

RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001 73


Documento

Maurício Tragtenberg

não um fim, mas um meio; não um valor, mas uma ins- des ou comportamentos agora necessários e, portanto,
tância de legitimação dos agregados particulares. aceitos. Tais alterações não se processam, destarte, ape-
Se cada circunstância pudesse reivindicar uma verda- nas pela dinâmica das relações, pela dialética da nature-
de, nenhum código seria produzido, nenhuma sociedade za, mas por interesses particulares. Como bem aponta
seria organizada e nada seria instituído. Isso não significa Tragtenberg (1979c, p. 19), “em nome do ‘atendimento à
que, uma vez definidas, as verdades, assim como os prin- comunidade’ e em nome do ‘serviço público’, a universi-
cípios de conduta, se tornem imutáveis. De fato, como dade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a
analisa Engels (1979) em sua crítica ao Senhor Düring, quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos
se o produto do exercício do pensamento pudesse reivin- hegemônicos”. “A escolha das pesquisas depende dos fi-
dicar a validez soberana das verdades, a sociedade alcan- nanciamentos possíveis; por outro lado, a ‘moda’ acadê-
çaria um nível tal que se teria esgotado a infinidade do mica impõe sua tirania. Uma pesquisa é determinada não
mundo intelectual. Se tudo já estivesse pronto, nada mais porque se é obrigado a ter essa ou aquela orientação te-
haveria a produzir. Se tudo já se soubesse, nada mais ha- órica para receber financiamento, mas recebe financia-
veria a investigar. Entretanto, é interessante verificar que, mento por ter essa ou aquela orientação teórica. Trata-
mesmo em situações que se caracterizam pela renovada se de uma determinação que opera com alto nível de su-
produção intelectual e pela permanente investigação, tam- tileza” (Tragtenberg, 1979c, p. 30).
bém acabem emergindo esses axiomas, definitivos e Assim, os princípios que guiam esses filantropos da
inapeláveis, dos quais se extraem as deduções da existên- intelectualidade no interior das academias aparecem sem
cia humana, do poder ser e do dever ser. estilo e sem densidade política, porque resolvem suas
E é importante observar que é justamente aí que al- carências com frases tradicionais e com bordões; sem
guns membros das organizações acadêmicas asseguram, conteúdo, porque, sendo vazios de teoria, preenchem suas
em seus discursos, que só a sua concepção é aceitável, falas com estéticas duvidosas; sem horizonte, porque sua
que tudo o mais é equívoco e, como profetas recém-saídos visão de mundo não ultrapassa a porta da sala de reu-
do forno, trazem em sua mochila, pronta para ser posta niões, e sem compromissos, porque legitimam práticas
em circulação, a única verdade e a eterna justiça. A re- organizacionais com superficialidade e, às vezes, com a
lação professor–aluno é sempre uma relação de poder profundidade da banalização. São princípios nos quais não
quando tem como suporte os aparatos da coerção insti- cabe a sabedoria e nos quais o sujeito não vale pelo afeto
tucionalizada e o domínio de um saber inacessível. que cultiva, mas pela esperteza capaz de lhe conferir van-
Tragtenberg (1979c, p.18) observa bem essas práticas, tagens competitivas. A introdução do ensino pago nas
indicando que “o mestre possui um saber inacabado e o universidades públicas, a realização de quaisquer cursos
aluno uma ignorância transitória: não há saber absoluto, a qualquer clientela que por eles se disponha a pagar, as
nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui atividades de prestação de serviços em que o que mais
a diferença entre aluno e professor: a separação entre importa são os recursos, e não a qualidade acadêmica ofe-
aluno e professor opera-se através de uma relação de recida e resultante dos serviços, o financiamento da pes-
poder simbolizada”. quisa por organizações de interesses privados, a realiza-
A vida cotidiana nas academias passa a ser, assim, ção de encontros em que se operam vendas de conheci-
preenchida por vários espaços em que o falso toma a for- mento científico ou em que se constroem palcos nos quais
ma do verdadeiro, instituindo um pacto no qual ali tudo é os pares se apresentam para sua autopromoção, estas se
aceito como norma, como próprio da natureza, de manei- constituem em graves ameaças ao ensino público libertário
ra que as verdades impostas e a ética conceituada não na perspectiva tragtenberguiana.
venham a provocar, nos sujeitos, incômodo, envolvimento Tragtenberg (1979c, p. 20-22), de fato, percebe criti-
ou dor. Os grupos e alguns de seus líderes, visando man- camente esse movimento que atualmente ganha contor-
ter uma unidade competitiva na luta pelo poder, desfilam nos cada vez mais definidos. Sobre sua ética e sua função
um conjunto de regras, de comportamentos e de condutas social, afirma que “uma universidade que produz pesqui-
administrativas e morais, a partir do qual julgarão outros sas ou cursos a quem é apto a pagá-las perde o senso de
grupos ou seus membros mais destacados. Entretanto, o discriminação ética e da finalidade social de sua produ-
que deveria ser princípio e compromisso, não passa de ção: é uma ‘multiversidade’, que se vende no mercado ao
discurso. Na medida em que aquilo, antes definido como primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda,
ético ou democrático, venha a se constituir em obstáculo acobertada pela ideologia da neutralidade do conhecimen-
ao exercício ou à luta pelo poder, toda a lógica passa a ser to e seu produto”.
reconstruída, de maneira a abarcar as novas regras, atitu- Sobre as avaliações de desempenho, sugere que “a

74 RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001


Poder e participação: a delinqüência acadêmica na interpretação tragtenberguiana

política das ‘panelas’ acadêmicas de corredor universitá- de ensino, os quais revelam fragilidades que, para eles,
rio e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer seria melhor que permanecessem escondidas. Esses cír-
constituem-se no metro para medir o sucesso universitá- culos interpretam o movimento dialético da vida coletiva
rio”. Sobre as valorizações simbólicas, observa que “a como um simples avanço da competitividade capitalista
maioria dos congressos acadêmicos universitários serve no espaço público, tomando este como se fosse o altar da
como ‘mercado humano’, onde entram em contacto pes- justiça social, e não a sua coxia. Assim, defendem a ausên-
soas e cargos acadêmicos a serem preenchidos”, pois o cia de critérios e de atitudes não porque estes sejam impró-
“mundo da realidade concreta é sempre muito generoso prios, mas para esconder suas segundas intenções, para abrir
com o acadêmico” na medida em que o título conferido espaço de manobra política às suas velhas e surradas práti-
pela academia torna-se “o passaporte que permite o (seu) cas de distribuição de favores, totalmente incompatíveis
ingresso nos escalões superiores da sociedade”, o que re- com qualquer projeto democrático. Os discursos, cobertu-
força o problema da desvinculação da universidade com ras que sustentam essa tese, contudo, parecem, ao público,
os processos de transformação social e a tese de que “a ter saído dos mais puros manuais de democracia política.
ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia: faz
fé de apolítico, isto é, serve à política do poder”. “Cober-
tos pelo ideal de ‘neutralidade ante valores’, a maioria AS DIMENSÕES DA ÉTICA E DA
dos acadêmicos universitários vegetam no conforto inte-
lectual, agasalhados pelas sinecuras burocráticas e legiti- DEMOCRACIA, QUE TODOS OS
mados ideologicamente pelo apoliticismo: a ideologia dos
que não têm ideologia. Na verdade, esse apoliticismo con- MEMBROS DA UNIVERSIDADE
verte-se na ideologia da cumplicidade trustificada. Sem
dúvida, o cultivo de ideologia livre de valores é paralelo DEFENDEM EM PÚBLICO, NEM
à despreocupação sobre as implicações éticas e políticas
do conhecimento”(Tragtenberg, 1979c, p. 28).
SEMPRE POSSUEM A MESMA
As dimensões da ética e da democracia, que todos os CONSISTÊNCIA NA PRÁTICA PRIVADA
membros da universidade defendem em público, nem sem-
pre possuem a mesma consistência na prática privada dos DOS GRUPOS OU DOS INDIVÍDUOS.
grupos ou dos indivíduos. As interpretações produzidas
nos princípios formulados por esses membros da intelec-
tualidade acadêmica, independentemente do lugar que Tragtenberg (1979c, p. 22-23) assegura que “a valo-
ocupem na estrutura formal – por estarem voltadas aos rização do que seja um homem culto está estritamente vin-
seus interesses específicos, aos seus objetivos e à sua con- culada a seu valor na defesa de valores de cidadania essen-
cepção de mundo –, pretendem se constituir em uma pa- ciais, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas
nacéia que, aplicada em qualquer condição, impõem, por sua existência e ação”. Para que a universidade possa
como sendo fruto maduro do pensamento soberano, um participar do desenvolvimento desse sujeito, Tragtenberg
mero encadeamento de frases com muito mais que um (e, acredita que “a alternativa é a criação de canais de partici-
em alguns casos, sem nenhum) sentido. Esse tipo de prá- pação real de professores, estudantes e funcionários no meio
tica, muito adequada a impactos momentâneos, na reali- universitário que se oponham à esclerose burocrática da
dade, não é senão uma nova versão do velho e favorito instituição. A autogestão pedagógica teria o mérito de de-
método apriorístico, que consiste em estabelecer e provar volver à universidade um sentido de existência”. Observa,
propriedades de um objeto partindo não dele mesmo mas finalmente, que “a participação discente não se constitui
do conceito que dele antes se formou. Assim, não é o num remédio mágico aos males (...) apontados, porém a
conceito que se ajusta ao objeto mas este que se ajusta experiência demonstrou que a simples presença discente
àquele (Engels, 1979), segundo uma lógica previamente em colegiados é fator de sua moralização”. Porém, essa
definida, na qual os conceitos de democracia e ética aca- crença exposta por Tragtenberg nos canais de participação
dêmica cabem onde se deseja pô-los antes até de os cons- real, com a qual se pode concordar em tese, tem se mostra-
truir: a realidade é deduzida não de si mesma, mas da do, concretamente, um engodo. Os canais de participação
idéia, por isso não é senão ideologia. real existem, a participação discente é assegurada, mas a
Um exemplo (Faria, 2000) é a crítica que certos cír- democracia, a ética e a justiça não são garantidas por esses
culos progressistas fazem à adoção de critérios em pro- dispositivos.
cessos de avaliação institucional em instituições públicas Se forem superadas as dificuldades de organização dos

RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001 75


Documento

Maurício Tragtenberg

professores, funcionários e estudantes, se for superada a permite ao MEC desqualificar suas próprias universida-
falta de motivação, de participação política e de valoriza- des, a falta de uma política pública verdadeiramente com-
ção das representações, ainda restará vencer a máquina prometida com a educação, a diminuição dos recursos e o
trituradora da burocracia pública, o conservadorismo obs- sucateamento das instituições públicas de ensino, os víci-
curantista da academia, as práticas destrutivas e intesti- os corporativos, as práticas pedagógicas coercitivas (“ban-
nas de poder que não se manifestam nos canais de parti- cárias”, diria Paulo Freire), a vinculação de pesquisas a
cipação, mas nos bastidores, a preservação das corpora- interesses particulares, a individualização da produção do
ções de ofício e de suas práticas instaladas na academia, a conhecimento, tudo isso contribui, sem dúvida, para a
mediocridade dos processos de avaliação da produção aca- reprodução da injustiça, do autoritarismo, da despolitiza-
dêmica. ção intelectual e do conservadorismo.
Até que ponto a motivação participativa pode valori- Mas é ainda no interior desse ambiente desfavorável
zar os fins para definir os meios, transformar os proble- que se produzem as melhores pesquisas, que se faz a
mas técnicos em problemas também políticos, preferir a melhor extensão, que se pratica o melhor ensino, que se
consulta pública a soluções de gabinete, substituir a in- pode democratizar o acesso ao conhecimento, que as crí-
dignidade intelectual pela dignidade da inteligência? A ticas podem ser formuladas, que a autonomia intelectual
simples existência de mecanismos formais de participa- pode ser exercitada, enfim, que se pode encontrar uma
ção não garante a plena prática da democracia. A máqui- produção intelectual libertária como a do professor Mau-
na burocrática, os jogos de interesses, a mídia oficial que rício Tragtenberg. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro : MARX, Karl, ENGELS, Friederich. A ideologia alemã. 3. ed. TRAGTENBERG, Maurício. O conhecimento expropriado
Bertrand Brasil, 1998. Lisboa : Presença, 1976. e reapropriado pela classe operária: Espanha 80.
Educação & Sociedade, São Paulo, v. 2, n. 7, p. 53-62,
ENGELS, Friederich. Anti-Düring. 2. ed. São Paulo : Paz e set. 1980a.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo
Terra, 1979.
: Ática, 1977. TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e
FARIA, José Henrique de. Relações de poder e formas de ideologia. São Paulo : Moraes, 1980b.
gestão. Curitiba : Criar, 1985a. TRAGTENBERG, Maurício. Francisco Ferrer e a pedagogia
libertária. Educação & Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 1, TRAGTENBERG, Maurício. Educação e política: a
p. 17-49, set. 1978. proposta integralista. Educação & Sociedade, São Paulo,
FARIA, José Henrique de. Autoritarismo nas organizações.
v. 3, n. 8, p. 97-110, mar. 1981.
Curitiba : Criar, 1985b.
TRAGTENBERG, Maurício. Violência e trabalho através TRAGTENBERG, Maurício. Memorial – Maurício
FARIA, José Henrique de. Comissões de fábrica: poder e da imprensa sindical. Educação & Sociedade, São Paulo, Tragtenberg. Pro-Posições, Campinas, v. 4, p. 79-87, mar.
trabalho nas unidades produtivas. Curitiba : Criar, 1987. v. 1, n. 2, p. 87-120, jan. 1979a. 1991. Revista quadrimestral da Faculdade de Educação
da Unicamp.
FARIA, José Henrique de. Tecnologia e processo de trabalho.
Curitiba : Editora da UFPR, 1992. TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica.
TRAGTENBERG, Maurício. Memórias de um autodidata
Educação & Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 76-82,
no Brasil. Organizada por Sonia Alem Marrach. São
maio 1979b.
FARIA, José Henrique de. Ética moral e democracia: os Paulo : Escuta, 1999.
paradoxos da práxis organizacional. Curitiba : ENEO, 2000.
TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica: WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de
FARIA, José Henrique de. Economia política do poder. o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo : sociología compreensiva. México : Fondo de Cultura
Curitiba : UFPR, 2001. Paper. Rumo, 1979c. Económica, 1974. 2 v.

NOTAS

1. Nenhum indivíduo, no grupo, expressa seu interesse em uma formulação reconstruída. Não raro, quando o mesmo significado que democracia. Para uma crítica
como sendo propriamente seu. Os indivíduos formulam interesses conflitantes são expostos, o grupo é levado a esses “modelos”, ver Tragtenberg (1980b) e Faria
seus interesses a partir de um discurso coletivo, a decidir a alternativa que melhor convém, com todas (1987, 1992).
tentando traduzir seu desejo no desejo do grupo, em as implicações daí decorrentes (Faria, 2000).
busca de uma legitimidade e de uma impessoalidade
que venham a garantir que seu interesse seja adotado 2. Estas concepções invadiram a literatura 3. O que dizer, então, a propósito, do Exame Nacional
pelo grupo como sendo interesse do grupo, seja em organizacional sob a forma de defesa de modelos de de Cursos (o “Provão”), instituído pelo MEC para
sua formulação original, proposta pelo indivíduo, seja “Gestão Participativa”, em que a participação assume avaliar os cursos e as universidades?

76 RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001


TRABALHO, TECNOLOGIA E SOFRIMENTO: as dimensões
desprezadas do mundo do trabalho.

36
José Henrique de Faria

RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade expor, de


acordo com uma análise realizada em uma unidade industrial de
processo discreto, os impactos da introdução de tecnologia
informacional de base microeletrônica no processo de trabalho e
apresentar as dimensões desprezadas do mundo do trabalho: o
sofrimento e a injustiça. Tomando por base a qualificação do
trabalhador, o emprego e reorganização dos postos de trabalho ou
alojamento e desalojamento de ocupações, os mecanismos de
controle sobre o processo de trabalho, as condições de trabalho e
a produtividade e qualidade do trabalho, procurar-se-á analisar a
situação do trabalhador nesse processo, a partir do que serão
propostas as novas dimensões do trabalho do ponto de vista do
trabalhador individual e coletivo. A escolha desta forma de análise
deve-se ao fato de que a teoria das organizações tem dado
insuficiente ênfase na maneira como os atores diretos do processo
de trabalho, os sujeitos da produção, vivenciam a atividade
produtiva e suas contradições e sofrem seus efeitos, que
aparecem nas formas não diretamente manifestas de opressão e
de dor. As dimensões esquecidas, que são possíveis levantar
enquanto conseqüência, decorrem de uma análise que tem por
base a economia do poder.

1. INTRODUÇÃO

A introdução de tecnologia de base microeletrônica no âmbito das


relações de produção tem gerado controvérsias quanto aos seus impactos,
seja do ponto de vista do desalojamento de ocupações, das mudanças na
natureza mesmo do trabalho, do processo de reestruturação produtiva, da
reorganização das cadeias produtivas e dos complexos industriais ou

36
Professor Titular Doutor da UFPR

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
157
ainda dos novos fatores determinantes da localização das plantas fabris no
contexto mundial em face da globalização que dela decorrem. Isto não
significa que tal tecnologia seja determinante dessas transformações, pois
elas compõem o desenvolvimento das forças produtivas, mas não há
dúvida de que as mesmas representam um aspecto importantíssimo nas
modificações que ocorrem no processo de trabalho industrial, tanto que
muito se tem escrito sobre esse tema. No entanto, os efeitos da nova
tecnologia sobre o comportamento do trabalhador, forjado no espaço do
trabalho e nas relações dele com o mundo do trabalho, que produz
processos objetivos e subjetivos, que produz, enfim, o modo de ser do
trabalhador enquanto tal, tem merecido menos atenção do que poderia.
Tanto quanto outros enfoques, é igualmente importante fazer a
análise dos impactos da introdução de tecnologia informacional de base
microeletrônica no processo produtivo também a partir dos seus efeitos
sobre o trabalhador, sujeito do processo de trabalho, dono de um saber
fazer, detentor de uma determinada práxis social e porta-voz privilegiado
deste espaço de trabalho que é o chão de fábrica.
Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo geral expor as
conseqüências da automação sobre o processo de trabalho, tomando por
base uma unidade fabril em que a organização científica do trabalho foi
substituída por atividades sustentadas por tecnologia de base
microeletrônica37 , e apresentar, a título definição de tendências das
relações de trabalho, as dimensões humanas que decorrem da
reestruturação produtiva.
No estudo que serve de base para a presente análise foi possível,
além de acompanhar as mudanças em seu próprio curso: (a) identificar a
variação que sofre a qualificação do trabalhador com a introdução da
automação; (b) determinar as implicações que a automação traz ao
processo produtivo e ao emprego; (c) examinar as conseqüências da
automação sobre as condições ambientais do trabalho e o controle sobre o
processo de trabalho; (d) verificar os efeitos da automação sobre a
produtividade, a competitividade e a qualidade dos produtos.

2. TRABALHO E MUDANÇAS TECNOLÓGICAS

O estudo que serve de base para a primeira parte da presente


análise foi realizado por Loyola (1995) em uma indústria de processo
discreto que produz em série a partir da intervenção direta do trabalhador.

37
Para maiores detalhes acerca da metodologia empregada bem como dos dados
obtidos, consultar Loyola (1995).

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
158
A indústria é constituída de duas unidades fabris, uma moderna (fábrica II),
cujo processo produtivo é realizado com equipamentos de base
microeletrônica, outra antiga (fábrica I), cujo processo produtivo era
inicialmente realizado com equipamentos convencionais. A fábrica I, no
decorrer da pesquisa, também passou pelo processo de modernização
tecnológica.
A escolha do citado estudo como base desta análise deu-se pelas
condições privilegiadas que a indústria oferecia para poder examinar os
impactos da automação a partir da comparação dos processos
convencionais de produção com processos automatizados de base
microeletrônica. No início do estudo a indústria estava iniciando o processo
de reestruturação organizacional, concomitantemente à automação
gradativa da fábrica I, que foi implementada no ano seguinte. A
reestruturação foi provocada por fatores exógenos e endógenos. Dentre
os fatores exógenos destacam -se a crise econômica que atravessava o
País e a busca de maior competitividade. Os fatores endógenos são
decorrentes das contradições manifestas de sua estrutura produtiva
convencional, o que levou a empresa a procurar novos modelos
tecnológicos e organizacionais. A reestruturação da indústria compreendeu
várias etapas que visavam modernizar a estrutura administrativa, reduzir
os níveis e volumes de hierarquia funcional e descentralizar o fluxo de
informação, de forma a obter maior agilidade e facilidade operacionais.
Um dos objetivos da reestruturação foi a adoção do conceito de
mini-fábricas, de modo a facilitar o planejamento e a execução das
atividades produtivas, bem como tornar exeqüível a implantação do
conceito cliente-fornecedor no interior da fábrica. As mini-fábricas têm um
grau de autonomia relativa que lhes permite assumir responsabilidades
pela qualidade, segurança e manutenção da operação, sendo que os
trabalhadores são qualificados para o desenvolvimento de atividades
polivalentes e incentivados à participação, criatividade e comprometimento.

1.1 DAS NOVAS TECNOLOGIAS: por uma primeira conceituação


Entende-se por novas tecnologias físicas de produção as
tecnologias informacionais de base microeletrônica, ou seja, os
equipamentos automatizados e informatizados pela microeletrônica, que
emergiram no cenário industrial a partir da década de 1970 (FARIA, 1992).
O aparecimento das novas tecnologias é conseqüência de dois fatores
conjugados: o primeiro é o esgotamento dos métodos tayloristas e
fordistas da organização do trabalho; o segundo é a mudança nos padrões
da concorrência decorrente da crise econômica (CORIAT, 1988).

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
159
As novas tecnologias surgiram na década de 70 numa época
marcada pela crise econômica que assolou as economias dos países
capitalistas avançados, que experimentaram redução da produtividade
gerada pelos limites da eficácia dos métodos da organização do trabalho
baseados no taylorismo e no fordismo. Esse paradigma, como observa
Coriat (1988), entra em crise quando se depara com dois fatos novos: a
instabilidade social engendrada pela própria Organização Científica do
Trabalho (decorrente da desqualificação em massa do trabalhador,
associada à grande intensificação do ritmo do trabalho e, muitas vezes,
das más condições deste); o grau de sofisticação alcançado pela técnica
para o qual a linha taylorista/fordista tornou-se contraproducente, devido
ao excesso de tempos mortos e de tempos improdutivos despendidos em
técnicas complexas de balanceamento das cadeias de produção.
Devido aos efeitos da crise econômica da década de 1970, que
resultou em uma redução de demanda de bens de consumo nos países
desenvolvidos, associada a políticas restritivas no combate à inflação, foi
necessário deixar de lado a produção de séries muito grandes de produtos
padronizados para produzir séries menores de bens diversificados,
atendendo a demandas específicas, que se tornam prioritárias no
mercado: a mudança verificada nos padrões da concorrência possibilitou o
aparecimento das linhas flexíveis de produção, capazes de fabricar
diferentes produtos com a mesma organização básica de equipamentos
num pequeno intervalo de adaptações.
“Com essas crises, aparecem para as empresas novas
necessidades de integração – que permitam saltos de produtividade e de
flexibilidade como forma de fazer frente a um ambiente - especialmente a
um mercado pouco previsível e com alta instabilidade” (DIEESE, 1991:21).

1.2 DA QUALIFICAÇÃO
A nova tecnologia coloca em pauta a velha discussão a respeito da
questão da qualificação do trabalhador. Desde o princípio do século
dezenove, quando trabalhadores se opuseram à introdução de novas
máquinas de tecelagens de meias destruindo-as (LYON, 1992), ficou
evidente que a percepção do trabalhador em relação à tecnologia foi a de
que esta representava uma ameaça ao emprego e às qualificações: até
hoje os debates quanto à questão da qualificação admite opiniões
favoráveis (“a tecnologia é qualificadora”) e desfavoráveis (“a tecnologia
desqualifica o trabalhador”).
Quando a automação é introduzida no âmbito da produção
industrial, provoca transformações no processo produtivo que,
consequentemente, se refletem na necessidade de qualificação do

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
160
trabalhador. “Estas modificações implicam certas alterações do perfil de
qualificações necessárias ao desempenho adequado da produção
industrial” (SOUZA, 1988:103). Com efeito, a automação leva a diferentes
procedimentos, alterando rotinas, internalizando saberes, transformando
os conteúdos das tarefas e impondo mudanças significativas no processo
produtivo. A introdução das novas tecnologias provoca uma certa ruptura
na relação do trabalhador com as ferramentas de trabalho através das
quais ele realiza o seu saber profissional, de maneira que este possui uma
percepção da mudança provocada pela nova base técnica no processo
frente às mudanças em sua relação imediata com o trabalho.
Uma das mudanças significativas, sentidas pelos trabalhadores, é o
fato de o trabalho ter se tornado "mais fácil", assim entendido como
aquele que, além de menor esforço físico despendido na sua realização,
apresenta um menor número de operações manuais, uma redução do
conteúdo das tarefas. Todavia, a característica de maior peso é o fato
desse trabalho não exigir do trabalhador o seu “saber profissional”, o
“saber fazer”, reduzindo-o a um executor destituído de motivação, a um
executor de operações mecânicas, monótonas e inconscientes, que
dispensa os “macetes” da produção, que o mesmo descobriu ao longo da
trajetória do trabalho através da experiência que se consolidou na
qualificação adquirida e exteriorizada nos resultados do trabalho.
Desse modo, quando o trabalho com as novas máquinas torna-se
mais fácil, identifica-se o esvaziamento do seu conteúdo e a redução do
grau de complexidade do mesmo, ou seja, quando o trabalho torna-se
mais fácil é porque são menores as exigências de qualificação para
realizá-lo. O trabalhador, ao traduzir sua percepção como sendo uma
conquista na qual o trabalho fica mais fácil de ser realizado, igualmente
está convencido que a automação reduz sua qualificação, enquanto
trabalhador coletivo, à medida em que a simplificação do trabalho reduz o
saber profissional da maioria dos operários.
A concepção de que a força de trabalho desqualifica-se, “não
significa que haja uma perda absoluta de qualificação, mas uma perda
relativa, ligada ao papel cada vez menos importante que o trabalhador tem
em relação ao das máquinas automatizadas e integradas no processo
produtivo” (FARIA, 1992: 113).
Com efeito, essa desqualificação é observada na maioria dos
processos de trabalho em que as máquinas automatizadas são
introduzidas. Os novos equipamentos dão origem a novas tarefas para um
menor número de trabalhadores, exigindo destes novos conhecimentos
que não eram utilizados anteriormente, mais propriamente maior
especialização em áreas como eletrônica, computação e mecânica. Isso

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
161
ocorre principalmente com os trabalhadores da manutenção e com aqueles
que desenvolvem o software e o hardware, reduzindo a qualificação do
trabalhador coletivo e exigindo maior qualificação dos trabalhadores
individuais em certas unidades da indústria.
A introdução das novas máquinas passa a exigir conhecimentos
específicos não só do trabalhador da manutenção, como também dos
programadores. Muitos deles são aproveitados do antigo processo em que
trabalhavam e tiveram um treinamento adequado para poder realizar as
novas tarefas. Os operários aproveitados para programar e operar as
novas máquinas possuem uma qualificação formal mínima.
Observa-se que as novas tecnologias, ao mesmo tempo que
qualificam o trabalhador em termos de saber instrumental, desqualificam-
no em conhecimento ou saber de ofício38 , o qual vem sendo transferido
paulatinamente para as novas máquinas, destituindo o trabalhador de sua
posse. Para operar as máquinas automatizadas, as antigas habilidades
tornam-se então dispensáveis frente ao aumento da capacidade e das
especificações do novo maquinário: com efeito, a automação promove com
maior eficiência a apropriação do saber operário, utilizando-o de modo a
reafirmar a hegemonia do capital sobre a força de trabalho (FARIA, 1992).

1.3 DA TECNOLOGIA E DO EMPREGO


A controvérsia existente em relação ao impacto ocasionado pelas
novas tecnologias em relação ao emprego pode ser simplificadamente
expressa em duas posições antagônicas. As favoráveis à tese de que as
novas tecnologias têm efeitos negativos sobre o emprego e as que
entendem que as mesmas são inevitáveis e que os empregos desalojados
serão alojados em novos postos de trabalho: pouco se fala sobre a
natureza do novo trabalho.
Na verdade, o assunto, mesmo quando tratado apenas do ponto de
vista econômico, é de significativa complexidade e envolve fatores como:

38
Entende-se por saber de ofício ou saber profissional o conjunto de
conhecimentos que o trabalhador detém, inerentes às suas condições cognitivas
internas e desenvolvidas a partir de suas relações sociais e de produção e por
saber instrumental aquele que o trabalhador adquire, desenvolve e dele se
apropria na efetivação do processo de trabalho e no manuseio de seus
instrumentos de trabalho. O primeiro possui um caráter coletivo, na medida em
que decorre de uma práxis social, e o segundo possui um caráter individual, na
medida em que decorre de uma atividade particular. Não se trata, no entanto, de
saberes excludentes, pois um interfere no desenvolvimento do outro e o constitui e
vice-versa. ( Cf. FARIA, J. H. Educação, trabalho e desenvolvimento tecnológico.
Simpósio Paranaense de Educação e Trabalho. Curitiba,1993).

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
162
emprego absoluto e relativo; a distinção entre ganho de produtividade,
extinção de funções e redução de volume de emprego; o contexto regional
da análise (a experiência internacional e os países em desenvolvimento); o
contexto temporal de análise (distinção entre as fases de transição e de
maturidade de nova tecnologia); o nível da análise (macroeconômica ou
microeconômica); a distinção entre tecnologia aplicada e tecnologia
disponível; a questão da divisão internacional do trabalho; o tipo de
automação (bancária, industrial, de escritórios).
Falabella (1988:15) pondera que a automação implica uma
economia líquida de tempo de trabalho e assegura que “nem toda essa
economia significa desemprego, mas não há dúvida que existe uma
diminuição dos coletivos operários e um crescimento dos trabalhadores de
escritório, porém não em igual proporção”
Para os trabalhadores, a automação é responsável pela redução do
número de empregados para fazer as mesmas tarefas, que eram
realizadas anteriormente pelas máquinas convencionais. A automação leva
à redução do número de empregados para cada unidade produzida, à
medida que alcança mais elevados níveis de produtividade. A maior
racionalização do tempo de produção e o maior número de produtos com
menor número de empregados, demonstra que a automação tem
efetivamente um impacto negativo sobre o volume líquido da mão-de-obra.

“A nova tecnologia reforça as oportunidades de demissão dos trabalhadores,


sem provocar qualquer impacto negativo à produção. Muito ao contrário, os
novos equipamentos obrigam os trabalhadores a acompanhar seu ritmo
alcançando níveis expressivos de produtividade. Mesmo ampliando o volume
de produção, a capacidade de incorporar força de trabalho ao processo
produtivo é reduzida, não permitindo recuperar níveis anteriores”. (SOUZA,
1988:96).

De fato, ao comparar a produtividade alcançada com as novas


máquinas, verifica-se não só a grande diferença entre estas e as
anteriormente empregadas, mas sua conseqüência: a possibilidade de
extinção de postos e de turnos de trabalho. A introdução das novas
máquinas na indústria tem sido consentânea com períodos em que
ocorrem inúmeras demissões, extinção de postos e do turno noturno. Isso
sugere, como já observou Schmitz (1988:140) que “a crise e a difusão de
tecnologia de automação estão interligadas”.

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
163
1.4 DA NOVA TECNOLOGIA E DO CONTROLE SOBRE O PROCESSO DE
TRABALHO
Desde seu início, o capitalismo caracterizou-se pela apropriação do
controle sobre o processo de trabalho, retirando-o das mãos do
trabalhador. Isso se deu mediante a divisão parcelar do trabalho, típica da
indústria capitalista. O advento e a evolução da maquinaria acentuaram
ainda mais essa característica (apropriação do controle do processo de
trabalho), pois esta é uma forma eficaz de controle. Por meio da
maquinaria as empresas têm amplas possibilidades de controlar o ritmo e
a intensidade do trabalho e de organizá-lo da maneira que melhor lhe
aprouver (BRAVERMAN, 1974).
A automação industrial decorrente da inovação tecnológica
constitui-se no aperfeiçoamento e na sofisticação da maquinaria que, como
já demonstrado, com o esgotamento da OCT, não só provoca
transformações técnicas, organizacionais e de gestão, como “vem
reafirmar o controle sobre o saber operário e sobre a divisão do trabalho”
(FARIA, 1992:92). Como sugere Coriat (1988), tanto no caso das soluções
organizacionais quanto nas tecnológicas, trata-se de aprofundar as
técnicas de organização, visando renovar os métodos tradicionais de
controle sobre o trabalho. Essa renovação é necessária ao capital à
medida em que as relações sociais de produção evoluem, tornando as
técnicas e métodos organizacionais de controle ineficazes e obsoletos,
exigindo que o controle seja assegurado vestindo o velho modelo de nova
embalagem, ou seja, adaptando os métodos e técnicas às novas
exigências, modernizando a forma cujo conteúdo permanece o mesmo
(FARIA, 1992).
A expansão do controle sobre o processo de trabalho é verificado
através da intensificação do aumento do ritmo do trabalho e da
transferência, para a gerência, do planejamento e da organização do
trabalho a ser realizado. À medida que o ritmo de trabalho torna-se mais
intenso, o trabalhador fica mais preso ao seu posto de trabalho e sob maior
controle gerencial, além de ficar sujeito ao controle do próprio
equipamento, que traz em si mecanismos eficientes de domínio da força
de trabalho. O planejamento e a organização do trabalho também ganham
maior dimensão com a nova base técnica, pois estes definitivamente
deixam o chão de fábrica e passam para os escritórios, de onde podem
agora ser controlados à distância: é notável a redução do grau de
liberdade do trabalhador em relação ao seu posto à medida que a
automação intensifica o ritmo de trabalho. O trabalhador fica submetido ao
ritmo homogêneo dos automatismos e preso à nova disciplina da linha
automatizada.

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
164
1.5 DAS NOVAS TECNOLOGIAS E DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO
Considera-se meio ambiente físico aquele constituído pela
ventilação, temperatura, umidade, iluminação e ruídos. Esse meio onde se
desenvolve o trabalho exerce uma ação significativa sobre os
trabalhadores, podendo ser nocivo ou agradável.
A instalação de equipamentos automatizados obedece a diferentes
fatores (forma, tamanho e necessidade de operação) e introduz grandes
modificações no meio físico. A realocação espacial dos locais de trabalho
ocorre devido: ao melhor aproveitamento do espaço por lotes de produto;
ao menor número de pessoas trabalhando; às novas direções dos fluxos
na produção; e à própria ambientação desse espaço determinada pelas
condições de ventilação, ruído e temperatura exigidas pelos novos
equipamentos.
As novas tecnologias, além de propiciar melhorias externas no
ambiente, possibilitam menores riscos físicos aos trabalhadores ao
transferir a execução de trabalhos perigosos e insalubres para
equipamentos automáticos, e também diminuem o esforço físico dos
operadores, melhorando as condições ergonométricas.
Se a automação de um modo geral é considerada positiva pelos
trabalhadores em relação as condições de trabalho anteriores, devido ao
fato de os novos equipamentos exigirem um ambiente adequado para o
seu funcionamento fazendo com que o layout da fábrica seja alterado,
proporcionando melhorias na ventilação, iluminação e espaço para o
deslocamento dos trabalhadores, o aumento do ritmo de trabalho imposto
pela automação, entretanto, configura-se desfavorável, pois provoca um
incremento do cansaço físico e mental aliado ao maior desgaste e tensão a
que o trabalhador fica submetido na operação de duas ou mais máquinas
ou no exercício de mais de uma tarefa.

1.6 DA PRODUTIVIDADE E DA QUALIDADE NO MARCO DAS NOVAS


TECNOLOGIAS
A exigência da preservação/ampliação do capital está na maior
obtenção de valor excedente e, neste sentido, a automação, mediante a
maior produtividade e competitividade, assegura a possibilidade de
enfrentar e superar os problemas decorrentes das contradições inerentes à
evolução do próprio sistema. Do ponto de vista do trabalho, entretanto, são
questionáveis as benesses desta nova tecnologia, conhecendo-se a sua
inserção no âmbito do sistema de produção capitalista e
consequentemente em sua lógica. Além disso, enquanto o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia estiver sob a égide do capital,

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
165
suas aplicações sobre o processo produtivo estarão sob a orientação do
princípio que o norteia : a produção e a apropriação de valor excedente.
Para o entendimento da relação entre desenvolvimento tecnológico
e produtividade, pode-se considerar três momentos. O primeiro se refere à
incorporação da função da mão humana à máquina, com a revolução da
máquina-ferramenta. O segundo momento é caracterizado pelo surgimento
da fábrica automática, onde as máquinas-ferramentas especializadas
funcionavam em conjunto sob o comando de um autômato central. O
terceiro é o da introdução da automação, acompanhada de alterações
significativas nas antigas divisões entre as atividades do chão da fábrica e
as do escritório, ou entre produção e serviços.
Os dois primeiros momentos apresentam a lógica da produtividade
aparente do trabalho (volume produzido por tempo ocupado), atingindo-se
a economia através dos custos de mão-de-obra direta. Neste cenário, o
método taylorista-fordista é bastante eficiente para melhorar o
desempenho e aumentar a produtividade.
No terceiro momento, verifica-se uma mudança em relação aos
dois momentos anteriores quanto aos critérios que embasam a
produtividade. Agora, a noção de produtividade estende-se também à
mão-de-obra indireta e ao trabalho morto (capital, material), quando
passam a ser considerados os enormes custos de panes e de estoques de
matérias-primas. Não mais funcionam apenas a economia sobre o trabalho
vivo nem o extremo parcelamento e a repetitividade das tarefas ligadas às
cadências da máquina.
As diferentes abordagens sobre produtividade carregam consigo
uma característica comum: a relação entre as saídas geradas por um
processo produtivo e os insumos utilizados na conversão. A maneira pela
qual são dispostos os diversos elementos (matéria-prima, mão-de-obra,
equipamentos) e a importância que a eles é dada, para obtenção da
produtividade, vai depender das diferentes concepções, porém, a essência
é sempre a mesma, considerando que a “produtividade está relacionada
com a própria geração do excedente e, portanto, com a esfera da
acumulação” (FARIA, 1992:102).
Com as máquinas automatizadas passa-se a produzir maiores
quantidades em intervalos de tempos menores, reforçando a concepção de
que quanto maior é a produção e menor o tempo de trabalho socialmente
necessário gasto nela, maior será o valor excedente.
A maior produtividade propiciada pelas máquinas automáticas pode
ser observada na diminuição dos tempos de movimentação e de espera e

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
166
dos tempos mortos, transformando-os em tempos produtivos, propiciando
maior exploração das potencialidades da linha de produção.
Como bem asseverou Crosby (1990:177), “vivemos numa
economia mundial e no futuro a qualidade não será apenas algo bonito de
se ter. Será o preço necessário de administrar o mercado”. O cerne do
problema é o fator econômico, que dinamiza o mercado impelindo as
empresas à busca contínua de uma melhor performance de seus produtos
a fim de conquistar e/ou assegurar posição em um mundo altamente
competitivo, definido não por uma nova postura do consumidor, mas
provocada pelo próprio capital em sua estratégia de manutenção ou
ampliação de sua fatia de mercado, a qual resulta no oferecimento de uma
gama de produtos industriais que influenciam diretamente as opções do
consumidor, levando-o a uma exigência diferenciada de consumo.
Essa busca de “melhor qualidade” tem reflexos ao longo da cadeia
produtiva. A produção de mercadorias de melhor qualidade implica a
melhoria de matéria-prima e outros insumos, peças e componentes,
processo produtivo e, sobretudo, a disseminação de uma concepção da
qualidade como valor de produção e de consumo.
Através da automação do processo produtivo é possível obter
produtos com “maior qualidade”, maior rigidez nas especificações e maior
conformidade aos padrões. A automação propicia maior precisão na
realização das tarefas e na obtenção das medidas, determinando maior
adequação entre o produzido e o planejado e, com isso, maior “qualidade”
na produção.
Outra característica que denota “qualidade” é o menor desperdício
industrial que se traduz nos refugos, retrabalho, produtos defeituosos,
produtos devolvidos, retestes etc. A automação viabiliza um menor índice
de desperdício de materiais, retrabalho e redução nas porcentagens do
refugo. Isso acontece à medida que se alcança a precisão adequada na
obtenção de maior conformidade às especificações pré-estipuladas.

2. AS DIMENSÕES DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O


TRABALHADOR: dos eufemismos à injustiça

A reestruturação produtiva, em termos de seus impactos sobre as


unidades produtivas, isoladas ou em seu conjunto, ou seja, como elos de
uma cadeia produtiva ou como rede do complexo de produção, vai afetar
as ocupações tradicionais, o conhecimento de ofício, a organização, o
processo e as condições de trabalho. Nos dois primeiros casos, o impacto
maior será, certamente, sobre o nível de emprego que depende, em linhas

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
167
gerais, da forma de desenvolvimento das forças produtivas e de políticas
macroeconômicas de governos, de maneira que o desalojamento de
ocupações e a diminuição de postos de trabalho podem vir a ser
compensados com a criação de novas ocupações e postos, desde que a
evolução das referidas forças produtivas e as ações políticas apontem
direção.
Como ficou evidenciado no item anterior, a introdução de novas
tecnologias informacionais de base microeletrônica no processo de
trabalho modifica a natureza do mesmo muito mais na forma de sua
realização do que no conteúdo de seus efeitos: controles, pressões,
tensões, sofrimento e dor ganham uma outra dimensão, mas não perdem
seu núcleo constituinte. As relações capital-trabalho sofrem uma alteração
histórica importante com o surgimento do anti-trabalhador coletivo, com a
valorização do individualismo, com a quebra das unidades de luta e das
proteções institucionais e políticas das associações trabalhistas. O novo
trabalhador, submetido ao movimento da virtualidade produtiva, perde sua
identidade e sua capacidade de articulação.
Como bem observa Castells (1999:298), a utilização de "poderosas
tecnologias de informação e das formas organizacionais facilitadas pelo
novo meio tecnológico de comunicação" possibilitou uma redefinição
histórica das relações capital-trabalho. "A capacidade de reunir mão-de-
obra para projetos e tarefas específicas em qualquer lugar, a qualquer
momento, e de dispersá-la com a mesma facilidade criou a possibilidade
de formação da empresa virtual como entidade funcional. Daí para frente,
foi uma questão de superação da resistência institucional para o
desenvolvimento dessa lógica e/ou de obtenção de concessões dos
trabalhadores e dos sindicatos sob a ameaça potencial de virtualização
[...]. A produtividade e a lucratividade foram aumentadas, mas os
trabalhadores perderam proteção institucional e ficaram cada vez mais
dependentes das condições individuais de negociação e de um mercado
de trabalho em mudança constante".
Tais alterações, de ordem econômica e institucional, provocaram,
do ponto de vista das relações de trabalho, particularmente quanto à
gestão do processo de trabalho, especialmente no que se refere ao
trabalhador individual e coletivo, mudanças que, como foi dito, estão muito
mais relacionadas à forma do que ao conteúdo. Tomando-se por base a
percepção dos trabalhadores quanto aos impactos causados pela
introdução das novas tecnologias, o que se revela é um olhar imediato,
individualizado, em que a crítica está mais assentada no medo e no
desconhecimento dos efeitos observados do que em uma reflexão
elaborada destas novas dimensões, que é necessário fazer.

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
168
De fato, para o trabalhador individual e coletivo, que é o foco desta
análise, as transformações imediatas operadas pela introdução de novas
tecnologias sobre o processo de trabalho se dão, como já foi observado,
tanto no plano político, com o surgimento do anti-trabalhador coletivo,
quanto no plano de trabalho em si, com o desenvolvimento de novas
formas de opressão gerencial. No primeiro caso, há uma manifesta
tendência à valorização do indivíduo e da mercantilização da vida, focos de
uma recusa à coletivização e às ações coletivas de defesa dos interesses
dos trabalhadores, que estão no cerne dos projetos de multiculturalismo
individualista (TOURAINE, 1999). No segundo caso, a descrição gerencial
do trabalho dá a falsa impressão de que as novas tecnologias são
poupadoras de sofrimento e de controle, são fortalecedoras de sistemas
participativos de gestão e, portanto, criadoras de novas condições e de
ambientes de trabalho; entretanto, a pressão imposta pelos novos padrões
de competitividade, produtividade e lucratividade vai estabelecer também
novos mecanismos de opressão, controle e sofrimento (FARIA, 1992).
As novas dimensões, desde este ponto de vista, ou seja, que
afetam o trabalhador individual e coletivo, podem ser resumidas em quatro
categorias de análise, a seguir expostas.

2.1 A DIMENSÃO DA COMPETITIVIDADE E DA PRODUTIVIDADE


O estabelecimento de novos padrões de competitividade e
produtividade ditados pela introdução das tecnologias informacionais no
processo de trabalho, no âmbito do recente desenvolvimento da
globalização, estimulam as ameaças de derrocada econômica e de perda
de mercados por parte de empresas e países, criando, desta forma, uma
situação de extrema competição, de "guerra" econômica: é preciso ser
mais eficaz que o concorrente para permanecer no mercado. Em nome
desta causa, considerada justa e legitimadora da sobrevivência,
desenvolvem-se políticas de governo e atitudes empresariais cruéis contra
os cidadãos, (a) excluindo os não aptos ao combate, seja por sua
formação ou qualificação, seja por condições psico-físicas, do terreno da
luta: os velhos, os mal preparados, os "desmotivados", ou são demitidos
ou sequer conseguem entrar no mercado de trabalho e (b) exigindo, dos
considerados aptos, desempenhos cada vez maiores, em termos de
produtividade, dedicação, disponibilidade, abnegação e disciplina
(DEJOURS, 1999).
A competição, assim estimulada, implica em um alargamento de
princípios éticos e morais, o qual é justificado por uma lógica darwiniana de
adaptação às novas condições impostas de fora, colocadas não em si,
mas no inimigo externo, este invisível causador das mudanças de atitudes.

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
169
Internamente, as palavras de ordem deste combate assumem sempre a
defesa da organização, da empresa, e jamais do empregado, do
trabalhador: é necessário "enxugar os quadros", "diminuir as estruturas",
"queimar gorduras", "arrumar a casa", "fazer uma faxina". Este eufemismos
pretendem diminuir, no plano simbólico e imaginário, as razões
organizacionais causadoras de sofrimento, aflição e medo: rebaixamento,
dispensa, marginalização. Neste combate entre concorrentes, nesta luta
pela competitividade e pela melhoria dos índices de produtividade, a
organização pode perder ou ganhar, mas os indivíduos, de uma forma ou
de outra, sempre perdem: emprego, saúde física, psicológica e emocional,
autonomia moral e intelectual.
A globalização, expressão chave desta guerra, demanda atitudes
cada vez mais individualizadas e menos solidárias. A competitividade
passa a ser não apenas um valor econômico, mas um valor humano, um
orientador de condutas e de, como sugere Morice (1996), motivação
subjetiva de dominação, em que uns consentem em padecer de
sofrimento, enquanto outros consentem em infligi-lo. Participar do sistema
de competição implica, assim, em aceitar o sofrimento no trabalho, o qual
vai minando resistências e retirando, sutilmente, as esperanças de que as
condições possam melhorar, ao mesmo tempo em que vai propiciando o
desenvolvimento de estratégias de defesa, tão engenhosas e criativas que
escondem para os sujeitos as suas próprias armadilhas.

2.2 A DIMENSÃO DO DESEMPREGO, DA INJUSTIÇA E DO SOFRIMENTO


Nesta dimensão existem dois tipos de atores que, em realidade,
são os mesmos sujeitos: o desempregado e o empregado. Não há dúvida
que as novas tecnologias informacionais de base microeletrônica
desalojam ocupações tradicionais e diminuem postos de trabalho, mesmo
os postos criados pela sua introdução no processo produtivo. Há, no
entanto, uma concepção, muito difundida atualmente, decorrente dos altos
índices de desemprego que afetam as economias do mundo todo, com
raras exceções, que sugere que o sofrimento pertence ao terreno do
desemprego e que é melhor ter um emprego, qualquer que seja, do que
não ter nenhum. É certo que, analisando a questão do ponto de vista do
indivíduo em si mesmo, tal assertiva pode parecer verdadeira, mas
analisando-a do ponto de vista do trabalhador, é falsa, porquanto, de um
lado, a segurança no emprego não existe, de maneira que a ameaça do
desemprego não exclui ninguém, e de outro lado, o benefício individual
não contribui diretamente com a ação coletiva.
Quem quer que tenha perdido seu emprego e que não consiga
reempregar-se ou que sequer tenha conseguido encontrar seu primeiro

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
170
emprego e que, deste modo, "passa pelo processo de dessocialização
progressivo, sofre. É sabido que esse processo leva à doença mental e
física, pois ataca os alicerces da identidade. Hoje, todos partilham um
sentimento de medo - por si, pelos próximos, pelos amigos ou pelos filhos -
diante da ameaça de exclusão". (DEJOURS, 1999:19). Os levantamentos
feitos por institutos de pesquisa mostram a situação cada vez mais
alarmante do desemprego. A mídia tem divulgado reportagens chocantes
que contam os dramas de desempregados e de excluídos. Ninguém pode,
portanto, esconder-se atrás da ignorância. Contudo, não são raras
opiniões que asseguram que este fenômeno é resultado natural do mundo
econômico, que será solucionado ou pelo reequilíbrio das forças do
mercado ou após estarem garantidas todas as condições de estabilidade
econômica decorrentes de medidas e de políticas de governo, ou seja,
opiniões que sustentam que o desemprego, a pobreza e a exclusão social
não decorrem da injustiça, mas resultam de uma adversidade que até pode
despertar compaixão e piedade, mas nada que possa provocar indignação
ou ação coletiva, as quais são tratadas como manifestações provocadas
pela ignorância quanto ao movimento da realidade econômica.
De acordo com esta concepção, que dissocia o sofrimento da
injustiça, a alternativa adequada que cabe aos sujeitos é a da resignação e
de uma auto imputação de responsabilidade pela situação, até que o
"equilíbrio sistêmico" se restabeleça, provavelmente conduzido pela "mão
invisível" do mercado ou por uma "lanterna na popa". Resignação e auto
imputação estas que acabam por funcionar como capa protetora contra a
consciência dolorosa dos que são cúmplices, colaboradores e
responsáveis pelo agravamento desta situação. Esta causalidade do
destino tem igualmente um efeito paralisante, o qual possui as mesmas
conseqüências do que Freud vai designar por "pulsão da morte". Neste
sentido é que, como sugerem Hannah Arendt e Dejours, se estabelece a
banalização do mal e da injustiça, fenômeno político que indica que o
sofrimento imposto aos homens e mulheres no mundo do trabalho é
apenas um fato corriqueiro e vulgar.
A dimensão da injustiça e do sofrimento aponta para uma
transformação qualitativa da sociedade, de maneira tal que as reações que
esta poderia promover estão cada vez mais atenuadas. A mobilização
coletiva a favor da justiça e da solidariedade tendem a ser mais reservadas
e hesitantes, sendo tratadas por governos e por amplos setores da mídia
ou com solenes indiferenças e com descaso, ou como atitudes políticas
dos que nada têm a propor. Se é verdade que a energia que sustenta as
mobilizações não é tanto a esperança quanto a intolerância à injustiça e ao
sofrimento, o cenário passa a ser o do desenvolvimento de uma tolerância

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
171
à injustiça, o que favorece o desemprego e todos os estragos por ele
causados.

2.3 A DIMENSÃO DO EMPREGO, DO AMBIENTE E DAS CONDIÇÕES DE


TRABALHO
As novas tecnologias informacionais de base microeletrônica, como
demonstrado (FARIA, 1992), exigem a adoção de novas tecnologias de
gestão, de novos métodos gerenciais. Tais tecnologias de gestão, vistas
pelo ângulo da organização, instauram formas participativas de
administração, mas escondem métodos mais sutis e efetivos de controle,
ampliando as bases coercitivas e tornando as atitudes dos empregados,
para utilizar uma expressão de Foucault (1984), mais domesticadas,
docilizadas e disciplinadas, mais submetidas à ordem organizacional. A
literatura sobre as vantagens obtidas pelas novas tecnologias, pela
produção flexível ou enxuta, pela revolução toyotista, tentam fazer crer que
o sofrimento no trabalho foi bastante atenuado ou até mesmo eliminado,
tomando por base os acidentes no trabalho, o ambiente físico em geral
(higiene, iluminação, espaço, etc.) e as diversas formas de poluição.
Mesmo os operários, como se viu, ao serem questionados sobre o novo
sistema, apontam o ambiente e as condições físicas de trabalho como
sendo as suas vantagens mais visíveis. O trabalhador braçal, "cheirando a
suor", é substituído pelo técnico uniformizado e asseado, o ambiente sujo é
substituído por um "clean".
Por detrás desta fachada, desta vitrine que, inclusive é montada
para receber visitas de aprendizes, professores e curiosos, es conde-se o
sofrimento dos que trabalham, não aqueles predominantemente físicos,
que caracterizavam os processos produtivos anteriores, mas psicológicos.
Agora não é mais o medo de acidentes que se impõe soberanamente, não
se trata mais apenas de perder os dedos ou a mão, de morrer intoxicado,
ainda que os riscos representados pela radiação, por fungos ou produtos
químicos estejam presentes nos novos processos produtivos. Atrás da
cortina, como mostra Dejours (1999":27-36) está:
?? o medo da incompetência: o sofrimento dos que temem não estar à
altura das novas exigências da organização do trabalho, das
imposições de horários, de ritmo, de desempenho, de
conhecimento, de instrução formal, de experiência, de formação, de
rapidez de assimilação de saber teórico e prático, de adaptação à
cultura e à ideologia organizacional, das demandas do mercado e
das relações com clientes;
?? a pressão para trabalhar mal: resultante das relações com colegas,
dos obstáculos criados para estabelecer um padrão de

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
172
desempenho mais baixo, de maneira a garantir o lugar de todos e a
não expor ninguém ou, de outra forma, resultante do péssimo
ambiente social, do individualismo, em que cada um trabalha por si,
sonegando aos outros informações ou dificultando
propositadamente seu desempenho, no sentido de proteger-se (se
alguém tem que ser dispensado, que seja o outro);
?? a falta de esperança de reconhecimento: quando o trabalho resulta
de esforço, é justo que seja reconhecido. Quando isto não ocorre,
quando o trabalho não é percebido, quando é tratado com
indiferença ou com negação, o sofrimento que acarreta causa
danos à saúde mental "devido à desestabilização do referencial em
que se apoia a identidade". O reconhecimento não é uma
reivindicação mas um componente "decisivo na dinâmica da
mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no
trabalho": do reconhecimento depende o sentido do sofrimento;
?? o sofrimento e a defesa: para suportar as pressões, os sujeitos
desenvolvem mecanismos de defesa que transformam o sofrimento
em normalidade, em uma composição entre a dor e a luta para
suportá-la e "garantir a sobrevivência". A normalidade não é uma
ausência de sofrimento, apenas um condicionamento social
necessário à proteção da saúde mental que pode, no entanto,
tornar o sujeito insensível contra a dor e mesmo tolerante contra o
sofrimento ético e psicológico, resultando em posturas morais
particulares e em condutas reprodutoras das dores das quais se
defende.

A nova dimensão do emprego, do ambiente e das condições de


trabalho aponta, portanto, para novas formas de sofrimento, para a
valorização daquilo que Hobbes chamou de "individualismo possessivo",
para o anti-trabalhador coletivo, para a negação da dor e para as fantasias
realizáveis pela mercantilização da vida em geral e das relações de
intimidade em particular.

2.4 A DIMENSÃO DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA


A crescente expansão da intolerância é igualmente visível na
organização coletiva do mundo do trabalho. Por muito menos do que
ocorre atualmente, explodiram manifestações decisivas, seja na França,
em 1968, seja no ABC paulista em 1978 (FARIA, 1985a). A fragilidade dos
sindicatos e dos movimentos dos trabalhadores, em todos os setores,
acompanhada pelo crescente desinteresse associativo das massas
operárias, é causa e conseqüência da tolerância às injustiças. No Brasil,

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
173
em particular, este processo é fortalecido pela estrutura e pela política
partidária e pelo sistema de representação da sociedade no comando das
principais instituições.
A organização política do mundo do trabalho tem contribuído para a
desqualificação do problema do sofrimento e, portanto, para o aumento
dos processos de tolerância subjetiva. Isto tem sido possível, em regra,
devido a um equívoco político e teórico baseado na crença de que apenas
as lutas revolucionárias das superestruturas ou que apenas as
transformações das relações materiais de produção são modificadoras,
que apenas estas lutas contém as possibilidades da construção de um
outro mundo. De fato, não há possibilidade de transformação sem uma
revolução estrutural, no sentido dialético dos termos. Contudo, a
valorização das demandas objetivas e o desprezo pelas subjetivas,
entendidas estas como pertencentes ao terreno da metafísica, da não
ciência, abriu um amplo campo para o florescimento das mais cruéis
formas de domínio psicológico por parte das empresas, apoiadas por
diferentes correntes teóricas aplicadas às organizações (FARIA, 1985 e
1987). Este erro de avaliação, de sindicatos e partidos, permitiu o
desenvolvimento de inovações gerenciais e a implantação de técnicas e
modelos de gestão sem que se lhes opusesse adequados
questionamentos: certamente, este descaso não foi por falta de
apropriados avisos provenientes de grupos de intelectuais.
As empresas desenvolveram eficientes programas de recursos
humanos baseados em esquemas manipulativos de comportamento,
implementaram igualmente programas de qualidade de vida no trabalho,
criaram associações esportivas e culturais e estruturas internas de
assistência social e psicológica sem que, dos sindicatos e partidos
operários, surgisse qualquer questionamento ou atitude política
conseqüente. O sucesso das empresas, a excelência e as suas
estratégias, passaram a ser também valores dos seus empregados, de
maneira que em menos de duas décadas a produção e o trabalho deram
lugar à gestão e aos modelos administrativos.
Apesar das mudanças provocadas pelas tecnologias informacionais
de base microeletrônica nos processos produtivos, o trabalho não foi
inteiramente automatizável e inteligível; o trabalho continua sendo o "único
mediador da realização do ego no campo social"; o trabalho ainda pode ser
o mediador da emancipação política do trabalhador.
Entretanto, a dimensão da organização coletiva aponta não para
uma valorização, mas para um arrefecimento dos movimentos sociais e
para a ampliação da base de intolerância quanto ao sofrimento e a

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
174
injustiça, tendência esta que somente poderá ser revertida se forem
derrubados dogmas e revistos certos paradigmas.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo procurou contribuir com a discussão sobre os


impactos causados pela introdução de novas tecnologias sobre o processo
de trabalho, com ênfase nos efeitos sobre um de seus principais atores, o
trabalhador, delineando as dimensões nem sempre lembradas sobre tais
impactos no mundo do trabalho. Tais dimensões assumem, aqui, o caráter
de uma tendência que se está firmando no âmbito das relações de trabalho
decorrentes da reestruturação produtiva.
A análise foi feita tomando-se por base: a (des)qualificação; o
(des)emprego; os efeitos sobre as condições ambientais do trabalho; a
produtividade e a qualidade; o controle sobre o processo de trabalho.
Quando se delineiam novas dimensões, quaisquer que sejam seus
conteúdos, é fundamental afirmar que as tendências apontadas não se
constituem em irremediáveis destinos, sob pena de, se assim o fosse,
estar sendo negado aos sujeitos a construção de sua própria história: tudo
estaria previamente determinado, por circunstâncias externas aos sujeitos
e de forma inevitável. As dimensões desenham tendências e, neste
sentido, indicam que intervenções bem sucedidas podem vir a reforçá-las
ou alterá-las, mantendo ou redirecionando os rumos prováveis que se
verificarão se nada ocorrer que as modifique.
É de se esperar, às vezes, dos analistas, que sejam
suficientemente otimistas para incentivar as motivações e suficientemente
realistas para não criar ilusões. O analista, contudo, não pode se permitir
ser condescendente. Sua posição, tal qual um médico que exige um
adequado diagnóstico da situação do paciente, é a de, com base na
investigação realizada, fazer uma projeção da situação: só assim, pode
avaliar mais propriamente as alternativas de intervenção e suas
conseqüências.
Quando se examina os efeitos causados pela introdução de novas
tecnologias sobre o processo de trabalho, é preciso, antes de mais nada,
observar que não se trata de jogar sobre o desenvolvimento tecnológico a
responsabilidade pela injustiça e pelo sofrimento dos trabalhadores. Tal
desenvolvimento é próprio da natureza humana, tanto quanto seus
benefícios. O que determina as novas dimensões apontadas é a forma
como se articulam as relações humanas e os processos de trabalho. Da

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
175
mesma maneira, não se pode atribuir ao desenvolvimento tecnológico a
função de panacéia do mundo do trabalho e da sociedade.
Finalmente, no plano do desenvolvimento individual, cabe afirmar
que o que promove mudança é a possibilidade do sujeito reconhecer-se a
si próprio como protagonista de sua história e, portanto, como um sujeito
capaz de, ao refletir sobre pensamentos, sentimentos e ações, apropriar-
se da realidade e nela intervir de forma consciente. Não menos
fundamental para a possibilidade de transformação é que se opere a
passagem da condição daquele que como vítima também se percebe
como culpado, para aquele que passa a negar o ideário do dominador,
ideário este que justifica o aviltamento ao qual é submetido.
Entretanto, existe um hiato entre os diferentes momentos de
reconhecimento desta realidade. Partindo da ignorância para o
conhecimento intelectual deste processo, se não houver, por parte do
sujeito, a condição de alcançar também o conhecimento emocional,
integração esta que representa o genuíno saber de si, o dado meramente
intelectual passa a constituir ele mesmo uma máscara.

4. BIBLIOGRAFIA

BRAVERMANN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho


no século XX. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CORIAT, Benjamin. Automação programável: novas formas e conceitos de
organização da produção. In: SCHMITZ, H.; CARVALHO, R. Q.
Automação, competitividade e trabalho: a experiência internacional. São
Paulo: Hucitec, 1998.
CROSBY, P. B. Quality is free. N.Y. : McGraw-Hill, 1979. In: PALADINI, E.P.
Controle de qualidade: uma abordagem abrangente. São Paulo: Atlas,
1990.
DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV,
1999.
DIEESE. O trabalho na produção integrada e flexível. Ano X, n.126, set.1991.
FALABELLA, Gonzaga. Microeletrônica e sindicatos. A experiência européia,
1985. In: SCHMITZ, H: CARVALHO, H.Q. Automação, competitividade e
trabalho. São Paulo: Hucitec, 1988.
FARIA, José Henrique de. A questão do autoritarismo nas organizações. Curitiba:
Criar, 1985.
_____. Crise do autoritarismo e movimentos operários no ABC paulista: 1978-

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
176
1980. São Caetano do Sul: Revista IMES, 3(7):16-31, set.-dez. 1985.
_____. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas. Curitiba:
Criar, 1987.
_____. Tecnologia e processo de trabalho. Curitiba: Editora da UFPR, 1992.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1984.
LYON, David. A sociedade de informação. Celta, 1992
LOYOLA, Sonia. Os reflexos da automação sobre o processo produtivo. Curitiba,
1995. Dissertação de Mestrado UFPR.
MORICE, A. Des objectifs de production de connaissances aux orientatios
méthodologiques: une controverse entre anthropologiee et
psychodynamique du travail. Revue Internationale de Psychosociologie,
5:143-60, 1996.
SCHMITZ, Hubert. Automação microeletrônica e trabalho: a experiência
internacional.In:SHMITZ& CARVALHO.Automação, competitividade e
trabalho: a experiência internacional. São Paulo : Hucitec, 1988.
SOARES, Rosa M. de Melo. Padrões tecnológicos: trabalho e gestão. In: Para a
década de 90 prioridades e perspectivas de políticas públicas. Políticas
Sociais e Organização do Trabalho. 4. Brasília: IPEA/JP/NA, 1990.

REVISTA EDUCAÇÃO & TECNOLOGIA


Periodico Técnico Científico dos Programas de Pós -Graduação em Tecnologia dos CEFETs - PR/MG/RJ
177
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Scanned by CamScanner
Poder Real e Poder Simbólico: Retomando o Debate
Autoria: José Henrique de Faria

Resumo
O presente ensaio teórico pretende argumentar a favor da não distinção entre poder
real e simbólico desde uma perspectiva segundo a qual o poder simbólico é uma forma de
expressão do poder real. Trata-se, portanto, de uma visada propriamente epistêmica que
procura trazer, para o interior do debate, a perspectiva da psicologia social quanto ao tema do
real-simbólico-imaginário no que se refere às relações de poder. Neste sentido, entende-se que
para compreender as formas de confronto e de associação entre o real e o simbólico-
imaginário, especialmente na gestão das unidades organizacionais produtivas, é fundamental
trazer à tona, para a discussão mesma sobre poder real e poder simbólico, outra referência.
Isto não significa que gestão e exercício do poder sejam equivalentes práticos ou conceituais,
mas que ambos são práticas de poder. Para efetivar a proposta deste ensaio, procurar-se-á
primeiramente esclarecer as diferenças e a integração entre o real, o simbólico e o imaginário
social para, logo na sequência, abordar o tema do imaginário social e do recalcamento. Em
seguida, tratar-se-á do poder real e do poder simbólico, de maneira a mostrar como as relações
entre o real e o simbólico, mediadas pelo imaginário social, manifestam-se na prática das
unidades organizacionais.
Palavras-chave: poder real; poder simbólico; imaginário social; psicologia social;
estudos organizacionais críticos.

Introdução
As discussões sobre poder real e poder simbólico têm origem em diferentes
perspectivas. Por exemplo, Korda (1976) observa que muitas empresas encorajam o jogo do
poder, sentindo-se perfeitamente felizes em dar poder e prestígio aos que nela trabalham,
agindo como uma corretora, oferecendo símbolos de poder aos que têm fome de poder. Já
Bourdieu (1998) sugere que o poder não é totalmente visível todo o tempo para todas as
pessoas, sendo um equívoco supor que uma vez desvendados os mecanismos do poder já se
pode enxergá-lo às claras. Embora as relações de poder estejam em toda a parte, é necessário
saber descobri-lo onde ele é menos visível, onde é ignorado e não reconhecido, ou seja, em
seu caráter simbólico. Por outro lado, são muitos os que argumentam que o poder é
necessariamente real, pois é exercido em situações de disputa por algo que interessa a os
oponentes (LUKES, 1974). Trata-se, então, de questionar se existe esta diferença entre o
poder real e o poder simbólico. Paço-Cunha e Bicalho (2008), argumentam, com propriedade,
a partir de categorias marxianas e frankfurtianas, que poder simbólico é poder real.
O presente ensaio teórico pretende argumentar a favor da não distinção entre poder
real e simbólico, porém desde uma perspectiva argumentativa diferente, que se espera
complementar, daquela proposta por Paço-Cunha e Bicalho (2008), ou seja, uma perspectiva
segundo a qual o poder simbólico é uma forma (não a única, certamente) de expressão do
poder real. Trata-se, portanto, de uma visada propriamente epistêmica que procura trazer, para
o interior do debate, a perspectiva da psicologia social quanto ao tema do real-simbólico-
imaginário no que se refere às relações de poder. Neste sentido, entende-se que para
compreender as formas de confronto e de associação entre o real e o simbólico-imaginário,
especialmente na gestão das unidades organizacionais produtivas, é fundamental trazer à tona,
para a discussão mesma sobre poder real e poder simbólico, outra referência. Isto não
significa que gestão e exercício do poder sejam equivalentes práticos ou conceituais, mas que
ambos são práticas de poder (FARIA, 2004). Também é preciso marcar a posição
epistemológica e teórica: poder real e poder simbólico não são dois poderes, mas duas formas
concretas, que embora se apresentem fenomenicamente diferentes, referem-se concretamente
1
à mesma realidade fundamental da materialização do poder. Neste sentido, as tecnologias de
gestão em prática nas unidades organizacionais produtivas se constituem em manifestações
que se revelam plenamente no interior mesmo das relações de poder (“poder real” e “poder
simbólico”).
Para efetivar a proposta deste ensaio, procurar-se-á primeiramente esclarecer as
diferenças e a integração entre o real, o simbólico e o imaginário social para, logo na
sequência, abordar o tema do imaginário social e do recalcamento. Em seguida, tratar-se-á do
poder real e do poder simbólico, de maneira a mostrar como as relações entre o real e o
simbólico, mediadas pelo imaginário social, manifestam-se na prática das unidades
organizacionais.
Antes de avançar na exposição, é fundamental indicar que se entende por poder a
capacidade coletiva de definir e realizar interesses objetivos e subjetivos específicos, mesmo
contra a resistência ao exercício desta capacidade e independentemente da estrutura em que
a mesma esteja principalmente fundamentada (FARIA, 2004). O poder é concretamente seu
exercício (relações de poder) e se constitui sobre, simultaneamente, dois eixos ou
fundamentos: pela prática política (econômica, jurídica, ideológica) e pelo imaginário (social
ou restrito). Para indicar desde logo, o poder real materializado pela prática política será
chamado aqui de poder real politicamente objetivado ou, simplesmente, de poder real. O
poder real materializado no plano simbólico pelo imaginário (social ou restrito), será chamado
aqui de poder real de caráter simbólico ou, simplesmente, de poder simbólico. Convém
insistir no fato de que o que é imaterial não é necessariamente subjetivo e o que é subjetivo
não é necessariamente incognoscível, podendo, portanto, ser também objeto de apreensão
pelo pensamento como realidade concreta.
Ao contrário do senso comum, que entende que o simbólico é criado a partir da
fantasia e só tem sentido para a imaginação que o cria, ou seja, que é apenas uma ficção que
não tem relação com a realidade, considera-se aqui que o simbólico recorre ao real, (i) seja
para diretamente representá-lo de uma forma particular, (ii) seja para indiretamente criar algo
que o explique. O plano simbólico se constitui de maneira a conferir ao sujeito que dele se
vale um conforto no que se refere à interpretação da realidade, consciente ou imaginária.
Mas o plano simbólico também pode refletir a realidade a partir de uma ansiedade ou
temor devido à alteração do estado afetivo-emocional. Portanto, embora o simbólico seja
produzido pela ideia a partir de fatos reais, pode não corresponder inteiramente aos elementos
fornecidos pela realidade ou pode dar margem a diferentes interpretações da mesma segundo
uma condição histórico-social determinada.
O simbólico como forma de expressão à qual recorrem os sujeitos para representar o
real pode, portanto, indicar uma relação convencionada com aquilo que pretende referir
(letras, algarismos, sinais de trânsito, figuras, bandeiras, escudos), um sistema instituído de
signos (palavras, imagens) que designam um fato ou objeto, ou ainda uma alegoria
reconhecida (em que as coisas são representadas de forma figurada). O simbólico pode ser ou
amplamente aceito no espaço social que o reconhece ou pode ser aceito e reconhecido apenas
em campos reduzidos (uma formação social, região, comunidade, unidade produtiva).
O plano simbólico é desenvolvido a partir de um imaginário, o qual pode ser social ou
restrito. O imaginário social tem como característica o predomínio da relação coletivamente
construída e aceita (que a literatura gerencial tem muitas vezes denominada equivocadamente
de cultura). O imaginário restrito é criado pela imaginação individual e só existe neste nível (a
criação pode ser desenvolvida como uma fantasia ou pode refletir a necessidade de
interpretação do ininteligível). Nos dois casos, a compreensão mais acurada do imaginário
pertence ao campo psicanalítico, seja o restrito, seja o social ou ambos.
A questão que se pode formular a partir desta concepção é: como saber se o simbólico
corresponde exatamente às coisas ou aos fatos que pretende representar? Como confrontar os
2
símbolos produzidos pela leitura consciente do real para representá-lo, com os símbolos
produzidos arbitrariamente? Como separar a forma consciente de interpretação da realidade
das formas fantasiosas, fictícias, ilusórias?
Há, de fato, uma linha tênue que destaca o simbólico decorrente da leitura consciente
da realidade, do simbólico originado pela leitura ficcional, já que em ambos os casos se trata
da criação de uma abstração presumida. O que os diferencia não é o fato da produção
imaginária ser coletiva ou individual, pois esta diferença indica apenas se se trata de um
imaginário social (coletivo) ou restrito (individual). É indispensável, portanto, diferenciar o
plano simbólico produzido a partir de abstrações arbitrárias (de simbólicos originados pela
fantasia, pela ficção) do plano simbólico produzido a partir de abstrações conscientes do real
(simbólico como recurso de representação do real pensado) para tentar compreendê-lo.
Outra questão que precisa ser esclarecida desde logo é: como associar e dissociar o
imaginário social do imaginário restrito? São duas instâncias do imaginário e, portanto, não
podem ser tratadas analiticamente como sendo de mesmo fundamento, ou seja, são criações
que recorrem a fontes diferenciadas de produção, sendo necessário, do ponto de vista da
análise do poder, dissociar uma instância da outra. Todavia, não se pode desconsiderar que
embora sejam instâncias analiticamente diferentes as mesmas estão concretamente associadas,
de tal forma que a produção da cada uma delas não está isenta da presença da outra, ainda que
seus resultados não sejam os mesmos. É deste plano simbólico produzido a partir de
abstrações conscientes do real, admitindo sua associação e sua dissociação com o simbólico
produzido a partir de abstrações arbitrárias, que se tratará aqui ao discutir o poder simbólico e
o poder real.

1. O Simbólico, o Real e o Imaginário.


Quando se aborda o tema do simbólico, logo a ele se associam os conceitos de real e
de imaginário. Sabe-se que, ordinariamente, símbolo é a forma como as ideias ou sentimentos,
guardados no inconsciente e que possuem significação, são representados de maneira
consciente, pelo sujeito, dentro de si. Ao tratar da substituição da mercadoria-dinheiro por
signos de si mesma, Marx (2013, p. 165) argumenta que “cada mercadoria seria um signo,
uma vez que, como valor, ela é tão somente um invólucro reificado do trabalho humano nela
despendido”. O “perigo está em tratar essas qualidades simbólicas – que são muito
importantes – como se fossem puramente imaginárias ou como produtos arbitrários da
reflexão dos homens” (HARVEY, 2013, p. 58). A dificuldade, afirma Marx (2013, p. 186),
“não está em compreender que dinheiro é mercadoria, mas em descobrir como, por que e por
quais meios a mercadoria é dinheiro”.
Nesta mesma linha, a dificuldade não está em compreender que o poder se manifesta
também em uma forma simbólica, mas em compreender como, por que e por que meios certos
símbolos expressam em si mesmos as relações de poder. É preciso, portanto, considerar que o
real é tudo o que pode ser cognoscível, ainda que aqui se possa desde logo introduzir a
discussão entre (i) o real como uma representação e, portanto, como uma forma percebida e
não como uma forma de fato e (ii) o real como uma existência autônoma diante da condição
dos sujeitos de se apropriarem dele pela via do real pensado. Assim, do mesmo modo, o
imaginário pode ser (i) aquilo que só existe na imaginação, que não tem existência real, que é
ilusório, mas pode ser também (ii) o conjunto dos símbolos e atributos que identificam e/ou
que pertencem a um grupo social e, neste caso, o imaginário tem o mesmo sentido de
símbolos e de valores partilhados (imaginário social). Entretanto, a questão não é tão simples.
Por esse motivo convém recorrer a algumas formulações, começando pela análise da relação
real-simbólico-imaginário, pois o enigma do poder precisa ser desvendado na medida em que
o mesmo também se traduz no enigma do simbólico e do imaginário.
3
A relação Real-Simbólico-Imaginário (R-S-I) é proposta, de forma original, por
Lacan, segundo a linha psicanalítica freudiana estruturalista. Do ponto de vista lacaniano,
existem três registros do campo psicanalítico: o real, o simbólico e o imaginário. O simbólico
refere-se às relações entre o inconsciente e a linguagem (LACAN, 1993). A realidade, como
apontam Jorge e Ferreira (2005, p. 32), “é constituída por uma trama simbólico-imaginária
feita, portanto, de palavras e de imagens, ao passo que o real é precisamente aquilo que não
pode ser representado nem por palavras nem por imagens: ao real falta representação
psíquica”. É neste sentido que, do ponto de vista lacaniano, o real é impossível de ser
simbolizado porque ele se encontra fora do simbólico. Para a elaboração do simbólico a
linguagem adquire grande importância, na medida em que ela é uma cadeia simbólica que
determina o sujeito antes de seu nascimento e depois de sua morte.
Contra argumentando, o real (a Coisa, o Outro) existe independentemente do
simbólico (da linguagem), mas somente pode ser representado no plano do simbólico como
real elaborado. A coisa-em-si não pode ser a coisa pensada senão pelo simbólico. O conceito
da coisa, na perspectiva de Espinosa (1979), não é a coisa, mas o conceito da coisa. O real
somente adquire sentido quando representado pelo pensamento como concreto pensado.
Para Lacan (1993), desde que nasce o sujeito é marcado por um discurso no qual estão
inscritas as fantasias da família, os valores da cultura, as particularidades decorrentes das
relações de pertença de sua classe social, o contexto, o idioma, ou seja, os significantes. O
significante é a unidade mínima do simbólico e tem como característica o fato de jamais
comparecer isolado, mas sempre articulado com outros significantes. O que produz o processo
de significação é a articulação entre os significantes, constituindo, assim, uma cadeia.
Enquanto o real é para Lacan, conforme Braga (1999), “aquilo que sobra como resto
do imaginário e que o simbólico é incapaz de capturar”, o imaginário é devido à relação do
sujeito consigo mesmo. Neste sentido, Lacan repete a fórmula freudiana que afirma que no
início não existe uma unidade compatível ao “eu” do sujeito e que, portanto, esse “eu” deve
ser construído. Esta construção é imaginária e, deste modo, o eu é o Outro. O imaginário é
uma fantasia fundamental, mas é inacessível à experiência psíquica. O imaginário não pode
ser contido, pois todo o discurso sobre ele sempre estará localizado no simbólico. Esta
concepção epistemologicamente estruturalista da relação R-S-I descaracteriza o real como
tendo primazia na elaboração do imaginário e do simbólico, pois o real é o que sobra do
imaginário e que o simbólico não captura. É preciso considerar, igualmente, que o imaginário
e o simbólico atuam também no plano social.
A questão posta por Lacan (1998, p. 13) é apreender por quais vieses do imaginário
vem a se exercer a “apreensão do simbólico”, de forma a saber da “importância das
impregnações imaginárias nas parcializações da alternativa simbólica que dão, à cadeia
significante, seu aspecto”, entendendo que é esta cadeia de significantes que rege os efeitos
determinantes para o sujeito. Em outras palavras, “é a ordem simbólica que é constituinte para
o sujeito, demonstrando-lhes numa história a determinação fundamental que o sujeito recebe
do percurso de um significante” (LACAN, 1998, P. 14). É com este sentido que Lacan
argumenta que nem toda comunicação é transmissível sob a ordem simbólica, sustentando-se
somente na relação com o objeto e, assim, reunindo muitos sujeitos em torno de um mesmo
ideal sem a mediação irredutível da comunicação. A linguagem, portanto, não se reduz à
comunicação, pois se encontra já na cadeia significante.
Para Castoriadis (1982) o simbólico também se encontra primeiro na linguagem, mas,
relativamente diferente da análise de Lacan, está igualmente, de outra maneira e em outro
grau, nas instituições. Enquanto Lacan se refere à cadeia de significantes, Castoriadis (1982,
p. 142-143) sustenta que no mundo social-histórico tudo está indissociavelmente entrelaçado
com o simbólico, ainda que nele não se esgote. Os atos, os sujeitos, os produtos não são
necessariamente símbolos, mas não existem fora de uma rede simbólica. Os sistemas
4
simbólicos sancionados (direito, religião) consistem em ligar significados (representações,
ordens injunções, noções) a símbolos (a significantes: tudo aquilo que faz sentido; formas) e
fazer com que estas ligações valham como tal, tornando-as relativamente forçosas para a
sociedade ou para os grupos. O símbolo, para Castoriadis (1982, p.144), não se impõe como
necessidade natural e tampouco pode privar-se, em seu conteúdo, de referência ao real. O
simbolismo, insiste Castoriadis (1982, pp.146-152), “não pode ser neutro, nem totalmente
adequado, (...) porque não pode tomar seus signos em qualquer lugar, nem pode tomar
quaisquer signos”. O simbolismo se encontra no natural e no histórico, participa do racional,
fazendo surgir “encadeamentos de significantes, relações entre significantes e significados,
conexões e consequências, que não eram visadas nem previstas”.
Castoriadis (1982, pp. 154-159) afirma que as determinações do simbólico “não
esgotam sua substância”, o que demanda a inclusão de um componente essencial, que é o
imaginário de todo o símbolo e de todo o simbolismo. O imaginário é alguma coisa inventada,
seja decorrente de uma invenção absoluta (uma história imaginada) ou de um “deslizamento,
de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras
significações” que não aquelas consideradas normais. Em ambos os casos “o imaginário se
separa do real”, pretendendo (no caso de uma mentira) ou não (no caso de um romance)
colocar-se em seu lugar. O imaginário, continua Castoriadis, utiliza-se do simbólico não
apenas para exprimir-se, o que seria óbvio, mas para existir.
O delírio mais elaborado bem como a fantasia mais secreta e
mais vaga são feitos de “imagens”, mas estas “imagens” lá estão
como representando outra coisa; possuem, portanto, uma função
simbólica. Mas também, inversamente, o simbolismo pressupõe
a capacidade imaginária. Pois, pressupõe a capacidade de ver em
uma coisa o que ela não é, de vê-la diferente do que é.
(CASTORIADIS, 1982, p. 159)
Assim, na concepção de Castoriadis, o simbolismo estabelece um vínculo com o
imaginário, de tal forma que um representa o outro.
Vygotsky (1991) também faz referência à linguagem e à fala, mas atribui ao simbólico
uma função organizadora. Vygotsky (1991, pp. 21-27) procura caracterizar os “aspectos
tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se
formam ao longo da história humana e de como se desenvolvem durante a vida do indivíduo”.
Entendendo que o desenvolvimento do comportamento humano se caracteriza por
“transformações complexas, qualitativas, de uma forma de comportamento em outra”,
Vygotsky estuda a relação dos seres humanos com seu ambiente físico e social, a relação
entre o homem e a natureza por meio do trabalho e suas consequências e as relações entre o
uso de instrumentos e a linguagem. Assim, a atividade simbólica tem “uma função
organizadora específica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas
fundamentalmente novas de comportamento”.
Para Vygotsky, o mundo é percebido pelos sujeitos não apenas em seu aspecto
externo, em sua forma, mas igualmente como um mundo com sentido e significado. As
percepções humanas, além do mais, não são isoladas, mas categorizadas. Isto permite aos
sujeitos, diante de processos de escolha, reconstruir tais processos, dinamicamente, em bases
totalmente novas. Nesse sentido, pode-se considerar que como as funções simbólicas
incluídas nas escolhas influem no comportamento do sujeito, há um investimento importante
das lideranças dos grupos sociais na construção de símbolos capazes de dar sua direção
política às escolhas que devem ser realizadas por membros desse grupo, escolhas que no
plano coletivo têm o intuito de legitimá-las para conferir sustentação e coesão ao mesmo. O
grupo social não escolhe ou decide apenas baseado em fatos imediatos. Há um processo de

5
construção que lhe antecede, uma memória, que torna disponíveis fragmentos do passado e
transforma-se em um novo método de amalgamar as experiências com os fatos presentes.
Finalmente, Ansart (1977), ainda que trate dos bens simbólicos uniformes, naquilo que
constituem uma linguagem coletiva, está mais interessado no campo simbólico como uma das
variáveis da ação suscetível de intervir na mudança social. Por isso, Ansart (1977, pp. 212-
219) relaciona o simbólico ao ideológico, no sentido de mostrar como a ideologia ganha corpo
e se fortalece visando aprofundar e orientar um conflito ou impedir a irrupção de conflitos, a
partir da “eficácia do simbólico”. O trabalho de persuasão ideológica precisa se valer de
esquemas simples e afirmativos que autorizem uma interpretação, que permitam vencer as
dúvidas e projetar a “unidade tranquilizadora do sentido”, ultrapassar as dissonâncias e fazer
com que os sujeitos pensem por si mesmos para que adquiram a satisfação de “dominar
simbolicamente a realidade”. “Os esquemas ideológicos comportam a sedução especial que
livra das ambiguidades”, instaurando um acordo coletivo sobre os significados globais,
produzindo “consciências falantes, sujeitos que, encontrando no sentido recebido os meios de
domínio simbólico, sentem sua vivência ideológica como a sua verdade”, gerando um acordo
entre os sujeitos no terreno simbólico “pela linguagem interiorizada, pela reprodução dos
significados”. Dessa forma, o sujeito, na concepção de Ansart, reafirma sua identidade, firma-
se no seu lugar e nos seus valores, ao mesmo tempo em que “confirma sua inserção e
participação no grupo”.
Os bens simbólicos, continua Ansart (1977), que constituem a “linguagem coletiva”
tornam-se meios de comunicação entre os membros do grupo, pois manejam o mesmo código.
São estes bens simbólicos que, usando a “verdadeira linguagem” e divulgando as palavras
indiscutidas carregadas de significados, definem os termos dos acordos, designa o que não se
pode contestar codificando eficazmente as relações. Esta linguagem induz, no plano das
trocas de significado, uma sociabilidade original, gera a comunicação entre os sujeitos que
encontram nesta rede de sentidos as condições de sua identidade: “quanto mais o sujeito
encontra em sua crença as condições de conciliação consigo mesmo, tanto mais sensível será
às ameaças simbólicas e desejoso de reviver o acordo com o bom senso” (ANSART, 1977, p.
214). O sistema simbólico, portanto, não apenas participa da orientação das ações como da
orientação e elevação das energias coletivas, ao fazer agir, fazer crer e fazer amar.
Como se pode notar, as relações entre o real, o simbólico e o imaginário colocam o
problema da distinção entre (i) a condição objetiva (econômica, política, espacial, geográfica,
física) do real, (ii) as formas de compreendê-la e de nela intervir pelo recurso da significação
(plano simbólico do imaginário social ou restrito) e (iii) e a imaginação proporcionada pelas
fantasias, ficções (plano simbólico arbitrário). Ao mesmo tempo, colocam o problema da
integração, pois a condição objetiva não pode ser compreendida fora do sistema de
significação, sistema este no qual também está contida justamente a fantasia, os fantasmas e a
imaginação (social ou restrita). Este campo que o sistema de significação contém, contudo, só
pode ser e só é instituído como aquele do imaginário social, o qual se relaciona com o
ordenamento econômico, jurídico, político e ideológico do próprio sistema simbólico que o
contém. Convém insistir, também, que ainda que o imaginário restrito componha
objetivamente o sistema de significação, sua eficácia se encontra apenas quando reconhecido
no plano simbólico do imaginário social, pois é somente neste nível que ele adquire
importância nas relações de poder.
O simbólico, portanto, para também ocupar um lugar nas relações de poder, precisa
possuir qualidades distintas daquelas do imaginário ficcional, sendo capaz de fornecer
elementos precisos que o caracterizem como expressão destas relações, ou seja, como
imaginário social compartilhado. Da perspectiva das práticas organizacionais, o simbólico-
imaginário se apresenta como ordenamento, como lei e ordem e, deste modo, pertence à

6
esfera do recalcamento, do fetiche imposto como regra da vida social, sendo, assim, oportuno
explorar a relação entre esta esfera e o imaginário social.

2. O imaginário e o recalcamento
Para compreender a presença do imaginário social nas organizações produtivas é
importante estabelecer sua relação com o recalcamento. Para tal, há que se recorrer à
psicanálise freudiana em sua ligação com o marxismo, tal como proposto por Reich (1972)
Fromm (1979), Marcuse (1975) e Rouanet (1998). Embora este tema do recalcamento e do
imaginário social não tenha sido abordado por Enriquez (1974) segundo uma leitura da
chamada psiquiatria dialética do Freudo-Marxismo, convém explorá-lo desde esta
perspectiva, dada sua originalidade.
Enriquez introduz o tema pela via das relações duais que se estabelecem entre o
dirigente e os dirigidos nas organizações, relações em que se sobressai a onipotência. De fato,
na relação de onipotência, o Outro não é o portador dos desejos, mas instrumento de
satisfação do sujeito e é por essa razão que neste caso o sujeito onipotente vai tentar apanhar o
Outro nas suas redes, podendo olhá-lo como a si mesmo, como alguém que nada tem a
ensinar além do que o sujeito já sabe. Ao contrário da promoção da experiência e da
autonomia do Outro, o que se dá neste caso é a castração do Outro, como forma de evitar a
castração de si. “Neste momento, o imaginário enquanto logro triunfou definitivamente. Não
se trata mais de olhar o que ocorre, basta mostrar o que deve ocorrer, a realidade deve se
dobrar à palavra geradora (ENRIQUEZ, 1974, p. 64).
Nas situações em que se evidencia a onipotência narcísica no âmbito simbólico do
poder, o sujeito se apega à sua própria imagem. Exceto em momentos de crise, nos quais
aqueles aos quais se negou o plano simbólico do poder o tomam para si, os sujeitos apanhados
em uma relação de dualidade “serão incapazes de se libertar e de colocar em causa aquele (ou
aqueles) que os incorporaram na sua própria imagem. Ao contrário, aquele que tiver
conseguido exprimir seu desejo de potência se encontrará protegido da interrogação dos
outros e estará ao mesmo tempo forçado a repetir, por seus atos ou pela colocação na
estrutura, seu projeto inicial de ser reconhecido, valorizado, amado” (ENRIQUEZ, 1974, p.
65).
Para Enriquez (1974, p. 66), a relação de dualidade, no que se refere ao caráter
simbólico do poder, promete o discurso da paixão, para que todos os sujeitos possam se
identificar com um só, “para que o tomem como exemplo”, conferindo a este discurso “uma
importância privilegiada”, de forma que os sujeitos se sintam “em estado de dependência com
relação a ele”. Para isso, “é necessário que essas relações sejam cimentadas pelo que Freud
chamou ‘o laço libidinal’”, inaugurando o reinado da afetividade entre os sujeitos e aquele
que eles tomam como seu chefe. “Não seria necessário, no entanto, acreditar que aqueles que
vão ser submetidos não tirarão nenhum benefício de sua incondicionalidade”.
O poder que se assenta no plano simbólico, especialmente aquele constituído pelo
imaginário restrito, não pretende apenas a proximidade com o poder real, com seus
privilégios, pois o restrito aspira ao social. A luta insistente por alcançá-lo tem como motivo o
desejo prazeroso de que o sujeito se ajuste, se afine ao seu “chefe”, de forma a viver o mesmo
imaginário socialmente atribuído a ele. Esse status quo permite ao sujeito não ser interrogado
por ninguém, pois se torna semelhante a quem primeiramente caberia interrogar. Por isso é
que para que tal relação prospere, não basta a semelhança, sendo necessário que uma parte
importante dos membros da organização produtiva reconheça no onipotente a representação
do poder real, que também alimente o desejo de se identificar com tal poder para se sentir
mais poderosa em sua submissão, ou seja, é necessária a produção de um imaginário social.

7
Contudo, como a vida organizacional em torno do poder simbólico não se esgota nas
relações de identificação, submissão e vassalagem, sempre existirão aqueles sujeitos dispostos
a um enfrentamento. Para estes, o poder deve surgir com sua imponência, despido de pudores
e aparências, desnudado dos símbolos, para ser exercido plenamente até que obtenha adesão
daqueles contra quem investiu. Assim o poder, tanto no plano real quanto no simbólico, de
diferentes formas, arremete contra os que pretendem dominar o ambiente coletivo, a partir
tanto das relações de afeto dos que se identificam com tal poder, quanto das relações
coercitivas impostas por este poder. Assim, igualmente no plano simbólico como no plano
real “a paixão inerente à relação dual acaba por se traduzir em exploração” (ENRIQUEZ,
1974, p. 66).
As relações favorecidas pela busca do poder simbólico se intensificam quanto mais
propício for o terreno libidinal. Tal terreno, entretanto, é um campo de batalha, um lugar de
conflitos, em que tudo pode ser dito e no qual a coesão da organização é posta em risco pela
fragmentação. Tal prática libidinal necessita ser, deste modo, exorcizada e o é por práticas
variáveis, mas que têm o mesmo sentido, que é o de não permitir que as paixões conflitantes
possam “colocar em perigo a coesão da organização”.
Se o imaginário social se apresenta para os membros da organização em seu aspecto
cobertura e se é colocado em uma situação em que o desejo não deva surgir, continua
Enriquez (1974, 0. 74) “é porque um único desejo pode ser considerado, é aquele da
organização; e se não devem realizar projetos pessoais, é porque a organização propõe um
ideal comum para o qual devem concorrer todas as condutas individuais”.
Também no âmbito simbólico, a organização produtiva oferece um sistema de
legitimidade já definido e sistematizado. Como insiste Enriquez (1974, pp. 75-76), “os
valores, os ideais que ela propõe, na medida em que vão ser interiorizados, vão servir de
normas de comportamentos aos indivíduos que não irão mais se interrogar sobre o sentido de
sua ação. O sentido já está aí. Basta fazê-lo seu. A partir desse momento os atos não levam
mais consigo sentimentos de incerteza (a exploração é normal já que permite tirar lucro)”.
Porém, “o desejo não é ocultado (recalcado) para todo mundo”.
Essa ocultação favorece, pelo contrário, a irrupção do desejo de
alguns: aqueles que estão habilitados a definir o ideal do ego da
organização, aqueles que lhe dão a palavra, que vão também
construir os significantes fundamentais da organização (seu
sistema simbólico, sua lei, aos quais os membros da organização
estarão presos) e que vão tentar fazer passar para o real (através
das estruturas colocadas e da ação quotidiana) seus desejos de
poder total. Aqueles então que instauram a relação de submissão
e que vão institucionalizá-la: o superego da organização (seu
sistema de valores e de proibições) tornando-se o superego do
conjunto dos atores sociais. (ENRIQUEZ, 1974, pp. 76-77)
É nesta institucionalização, afirma Enriquez (1974, p. 77), “que se faz a junção entre
identificação a uma pessoa central e identificação à organização, entre instauração da relação
dual fusional e instauração da fantasia da organização protetora”. Desta forma, o poder real de
caráter simbólico pode criar “um objeto comum ao qual todo mundo deve estar submetido,
identificado e deve amar”, ou seja, pode criar um símbolo e a ele atribuir poder, de onde
emanará um poder simbólico artificialmente criado, enquanto elemento resultante da adição
de substâncias que formam uma massa relativamente uniforme de características específicas
para atingir o fim a que se destina, que é a dominação.

8
3. Poder Real e Poder Simbólico
Entende-se, como já exposto, que o poder pode e deve ser entendido como uma práxis
não apenas relacional, mas uma práxis cuja natureza fundamenta-se em uma interação,
complexa e contraditória, entre os sujeitos coletivos da ação e refere-se, neste sentido, a uma
capacidade ou condição de mobilização, pois não há como dissociar o poder de seu exercício
(sua cristalização), ou seja, das relações de poder.
Mas é preciso ir além deste ponto. Há um conjunto de múltiplas vinculações e
interações que atravessam o campo do exercício do poder. Primeiramente, o fato de o poder
não ser uma capacidade e nem um atributo individual não deve significar a exclusão do
sujeito das relações de poder e, portanto, também a exclusão do imaginário restrito. O sujeito
pode ser oculto na oração, na liturgia, na gramática do poder, mas não está ausente. O desejo,
as emoções, o pensar, o sentir, são fenômenos psicológicos ao mesmo tempo sociais e
individuais. De outra forma, haveria uma impossibilidade concreta de um encontro entre os
sujeitos individuais e o plano coletivo que os mesmos constituem.
Do mesmo modo que as contradições são inerentes às relações objetivas, sociais,
econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas e culturais, também são inerentes às condições
humanas individuais. As contradições compõem ao mesmo tempo o campo coletivo,
individual e o das interações dinâmicas entre eles. A compreensão do poder e de suas relações
não pode separar de um lado o que é objetivo (econômico, jurídico, ideológico) e de outro o
que naturalmente é subjetivo (psicológico), pois tal cisão remeteria à exclusão ou negação da
consciência que atua simultaneamente em ambos os campos. Mas é preciso deixar claro que
tanto para a prática quanto para a análise, é necessário levar em conta que a consciência do
poder pelos sujeitos não exclui o fato da vivência contraditória ser “ausente e até mesmo
intolerável” (PAGÈS, et alii, 1987, p. 216) nas manifestações, nos discursos, falas, expressões
ou textos. Portanto, também não é demais reafirmar que o poder se encontra em um plano
pluridimensional da prática tanto quanto, inevitavelmente, da sua análise.
De mesmo modo, se a fala, o discurso, o texto (linguagem e seus signos e símbolos),
são expressões do poder (mas não só dele), também o são todas as formas que não se
manifestam necessariamente pela palavra (desejos, sentimentos, percepções). Se a expressão
verbal (discursos, manifestações, textos) se constitui enquanto veículo de instrumentalização
do poder, da dominação, da autoridade, dos códigos e normas de conduta, o que não é verbal
ou verbalizado pode também expressar, no plano simbólico e imaginário, a realidade coletiva.
Neste sentido é que se pode entender que as relações de poder se inscrevem no corpo dos
sujeitos e moldam as atitudes, comportamentos, manifestações e expressões (simbólicas,
imaginárias e reais) (REICH, 1972; FOUCAULT, 1977; PAGÈS et alii, 1987). Dito de outro
modo, as relações de poder não só não são invisíveis (pois que concretas) para todos os
sujeitos, como tampouco são plenamente visíveis (inteligíveis) o tempo todo, mesmo para os
sujeitos para quem tais relações são visíveis.
Sendo o poder, então, a capacidade dos grupos sociais de coletivamente definir e
realizar seus interesses específicos, as relações de poder são o exercício ou a prática concreta
desta capacidade, ou seja, são a cristalização do poder. Mas, como foi observado
anteriormente, é um equívoco supor que uma vez desvendadas as relações de poder e as bases
de seu exercício, já se pode enxergá-las às claras. Não se pode fazer das relações de poder o
centro monolítico das relações sociais, pois deste modo, ainda que estas relações estejam em
toda a parte, acabar-se-ia por colocá-las em parte alguma.
Para Bourdieu (1994), os símbolos, ou sistemas simbólicos, são representações de
práticas, de posições sociais ou de funcionamento diferenciados de agentes ou classe de
agentes, de forma que os que aderem ao sistema de símbolos precisam partilhar de seus
significados. É desta maneira que Bourdieu (1988, pp. 9-15) argumenta que os sistemas
simbólicos “só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder
9
simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnosiológica”. A força dos sistemas simbólicos se deve ao fato de que as relações de força
que neles se exprimem somente se manifestam “em forma irreconhecível de relações de
sentido”. O poder simbólico não reside, para Bourdieu, nos sistemas simbólicos, enquanto
força ilocucionária, mas como uma relação determinada entre os que exercem o poder e os
que lhes estão sujeitos na estrutura de um campo em que se produz e se reproduz a crença.
Para Bourdieu, o poder simbólico é um poder subordinado, uma forma transformada,
“irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder”. A concepção de
poder simbólico em Bourdieu, portanto, repousa “em uma teoria da produção da crença,
aspecto responsável pela convicção do pertencimento a um campo social” (MEDEIROS,
2006, p. 36). A convicção de Bourdieu de que o poder simbólico é uma forma subordinada de
poder decorre exatamente de sua consideração de que o poder simbólico não é real. Esta
concepção de Bourdieu que reconhece o símbolo como uma realidade e, imediatamente,
suprime da realidade o que nela reconhece, é uma evidente contradição que precisa ser
superada.
De fato, sem abandonar de todo o argumento de Bourdieu, entende-se que enquanto o
poder real em sua manifestação política refere-se a uma capacidade coletiva de definir e
realizar interesses objetivos e subjetivos específicos, em sua manifestação simbólica refere-se
a uma relação de força em um campo de crenças, de ideologias, de modelos de referência, de
representações e códigos. Desta forma, no plano simbólico o poder somente se concretiza
quando os símbolos, que constituem o sistema imaginário social (crenças, ideologias,
modelos, códigos, etc.) que certifica tal poder, podem ser efetivos e reconhecidos pelos
sujeitos da relação como manifestação de sentido compartilhado. O símbolo de poder não se
constrói por si mesmo, mas é construído pelos sujeitos de maneira que se o mesmo tem
significado é porque este possui o mesmo sentido para todos os sujeitos da relação de poder.
A organização produtiva, na medida em que favorece a mediação dos interesses em
jogo, é o lugar privilegiado das tramas, dos conluios, da dupla linguagem, das encenações,
construídas pelas intrigas que se operam em seus bastidores e que emergem disfarçadas no
plano formal. Com efeito, as atividades formais, as reuniões, os trabalhos em equipes, podem
ser, em larga medida, teatralizações, em que os indivíduos não são apenas seres-em-si-
mesmos mas também seres-para-outro, porque se colocam como objetos da interpretação pelo
outro, interpretação esta para a qual o desempenho na cena é relevante. Neste teatro os
poderes real e simbólico se apresentam em grande estilo.
A organização produtiva permite o desenvolvimento do poder simbólico através de
redes simbólicas invisíveis, que funcionam como autênticos subterrâneos, em cujos dutos
comunicantes (que Lacan chama de cadeia de significantes) circulam os que habitam o mundo
que não pode ser pronunciado, que não pode vir à luz, por onde escorrem as alianças e as
armadilhas, onde habitam os fantasmas que precisam ser destruídos, onde podem viver às
escondidas os paradoxos. É aí, neste mundo dos bastidores, que proliferam as tramas, que se
propaga o fantasmático, que as mentiras (que são do campo do imaginário) pretendem se
transformar em fatos (campo do real), que se constroem as aparências do que pode ser dito,
que se afirmam as poses e os símbolos, que se justificam as cenas, que se elaboram as normas
(e assim, o recalque), que se definem os inimigos reais e imaginários, que se aditam vínculos
em segredo.
Quanto mais politicamente desorganizados os grupos sociais nas organizações
produtivas, tanto menor é a possibilidade de sua democratização e tanto maior é o espaço dos
bastidores. Entretanto, são justamente nos bastidores que se desenvolvem as formas e os
obstáculos à organização política. As contradições estão desnudadas:
i. A primeira indica que o que deve ser enfrentado (a prática dos bastidores) é que
estabelece as regras dos combates que visam desarticulá-lo;
10
ii. A segunda, na mesma ordem, indica que a organização produtiva é também o lugar
das tramas, as quais, para serem desembaralhadas, demandam uma organização dos
grupos políticos, de maneira que esta, para cumprir seu papel, desenvolverá suas
próprias tramas, necessárias para entrar no jogo e para torná-la habilitada na disputa,
pois os que não tramam pouco podem fazer para compreender as tramas e agir contra
elas;
iii. A terceira revela que o mundo das aparências precisa parecer o mundo real (daí que se
investe tanto no acobertamento, no disfarce, nas encenações, na “mentira
institucional”). Contudo as aparências são construídas tendo como formulação valores
tidos como inquestionáveis, os quais assim permanecerão enquanto a realidade visível
não puder ser pronunciada, pois se tratam de valores fundados no encobertamento.
O funcionamento dos grupos sociais organizados, que se põem em movimento no jogo
dos bastidores, deve ser mais bem compreendido caso se pretenda compreender tais
contradições. A ideia segundo a qual os interesses de um grupo social, ou sua ideologia, têm
origem apenas em suas relações com outros grupos sociais, seja do ponto de vista do
confronto ou das alianças, remete às formulações do modelo empirista da mente que enfatiza
que a gênese das ideias se dá a partir de sensações produzidas por estímulo do ambiente (pela
experiência). Nesse sentido, é preciso compreender, em outra dimensão, como os sujeitos
agem no interior do grupo social ao qual pertencem, especialmente quando participam
ativamente da definição e da realização dos interesses do mesmo ou apenas quando, de
maneira direta ou indireta, conferem legitimidade política a tal definição.
O grupo social, no entanto, seja através de sujeitos individuais ou de frações, pode ter
igualmente outros desejos que, do mesmo modo, irá colocar em exposição, seja para compor,
aprimorar ou modificar aquele então exposto. Tal processo, independente do resultado
específico, opera uma transformação no grupo social, nas relações intrapessoais e no
desenvolvimento intrapessoal, que, por seu turno, resultará em novas formas e em novos
conteúdos de intervenção. Isto se dá justamente porque a estrutura formal de autoridade (que é
da ordem do recalcamento e uma das bases das relações de poder) alimenta no imaginário dos
grupos sociais em confronto a necessidade de “estar bem com o poder”, de receber seus
benefícios, de serem seus filhos prediletos (em um sistema simbólico). Como a leitura desta
relação simbólica perpassa o inconsciente grupal, cada grupo social buscará seu lugar ao lado
do “Pai” (chefe, gerente, diretor, presidente, etc.), que é o símbolo do poder, que representa os
investimentos libidinais, que reafirma o simbólico (as relações de trabalho em um sistema de
regras, de trocas, de signos comuns).

Considerações Adicionais
O poder simbólico é, como exposto, um poder real (realmente existente), ou seja, os
símbolos que compõem a realidade e que fundamentam o exercício deste poder não são meras
abstrações sem sentido e significado. O simbólico não deve ser tratado, portanto, como um
fenômeno irreal ou inexistente. O que aqui se chama de poder simbólico é uma forma que
assume o poder real ao se revestir de um caráter simbólico criado pelo imaginário social ou
restrito em sua definição e realização. O que se chama de poder real é uma forma objetivada
de poder revestida pela luta concreta de grupos sociais em confronto e que se manifesta como
capacidade coletiva de definir e realizar interesses a partir de práticas políticas. As expressões
“poder real” e “poder simbólico” não significam uma separação entre o que é real e o que não
é real, mas uma indicação de que há uma diferença entre o plano simbólico do poder real e o
plano politicamente objetivado deste mesmo poder real.
Um dos modos de exercício do poder real é o que se reveste de uma forma simbólica
(poder simbólico), ou seja, do exercício concreto do poder real que opera no plano do
11
simbólico, que se serve da criação, pelo imaginário social e restrito, de símbolos que possuem
sentido e significado coletivamente aceitos. Na base das tecnologias e práticas de gestão
abarcadas pelas relações de poder encontram-se tanto os conflitos ou as intrigas que compõem
a vida dos sujeitos nas organizações (unidades produtivas), quanto, por exemplo, a questão da
ética que vai servir de escudo ao exercício do poder em sua manifestação tão perversa quanto
sutil. Assim, a distinção entre poder real e poder simbólico não se refere à discussão sobre a
concretude ou não de ambos, mas aos elementos objetivos e subjetivos que constituem as
condições de formulação e realização dos interesses coletivos, isto é, as relações entre as
singularidades imediatas e mediações que a mesma contempla.
No âmbito das singularidades, as relações de poder são reduzidas superficialmente às
intrigas, conquanto estas são aspectos relacionais conflitivos inerentes aos grupos sociais e,
por extensão, às unidades organizacionais. Alguns ambientes são, por suas características,
mais e outros menos propícios às intrigas, mais ou menos favorecidos pelas relações
interpessoais e intergrupais, pela disputa de "espaços de poder" (na verdade, espaços de
comando, de dominação das estruturas, cuja posse política confere consideráveis vantagens na
realização de interesses objetivos e subjetivos específicos), pelo baixo comprometimento e
pelos vínculos frágeis. As intrigas utilizam-se de vários fatores, dentre os quais se destaca
exatamente uma luta permanente pela ocupação de lugares estratégicos no comando das
estruturas, pois "espaço vazio de poder" é espaço de disputa, espaço de luta, campo de
conflito.
As organizações despendem uma extraordinária energia alimentando, em seus
bastidores, intrigas que geralmente são baseadas em elaborações imaginárias, restritas e
sociais. Tais intrigas, que ocorrem entre sujeitos ou entre grupos, têm como motivação (i) o
comando real das estruturas de poder ou a garantia de proximidade com o mesmo e com seus
privilégios (ii) e/ou a posse de elementos simbólicos de poder no espaço das influências, o
qual poderá servir de “moeda de troca” no jogo daqueles privilégios. A intriga compõe a
estrutura dramática do mundo organizacional, tornando-se um elemento que se desenvolve
insidiosamente e que culmina em um clímax, um desenlace, durante o qual se desenvolvem os
caracteres e incidentes imaginados ou pretendidos por seus autores.
É com este sentido que este ensaio teórico trata da luta pelo poder por parte dos grupos
sociais que coloca frente a frente o poder real que se exerce a partir de uma realidade
objetivada pelas práticas (poder real), com o poder real que se exerce a partir de formulações
concretas produzidas no plano do imaginário social e restrito (poder simbólico). Esta é a
mediação aqui pretendida. Sendo grupos sociais em confronto (em disputa, em luta), a
apropriação, por estes grupos dos recursos objetivos e subjetivos (tanto reais como
simbólicos) do exercício do poder tem como meta o controle social sobre as estruturas
coletivamente instituídas e reconhecidas por estes grupos sociais em luta como espaço de
exercício privilegiado do poder.
O que confere a esta luta um aspecto singular que cumpre destacar são as tentativas
malogradas de se construir uma linguagem uniforme, de se perpetrar valores partilhados e de
se cultuar formas unívocas de simbolismo. Tais tentativas fracassam porque longe de obter
uma única interpretação da realidade, as mesmas favorecem a reprodução de um imaginário
multifacetado que se opera nas relações de poder como um discurso ambíguo e ininteligível
dando curso às intrigas e tramas. De fato, o poder real de caráter simbólico ao mesmo tempo
em que constitui a prática política do poder real, o ameaça, pois introduz nesta prática política
do poder real, elementos do imaginário social e restrito. Em muitos momentos, por exemplo,
em nome da competitividade, da “seletividade dos colaboradores” e das avaliações de
fidelidade e compromisso, o poder real assume o lugar de incentivador, ainda que velado,
destes procedimentos que são próprios do poder simbólico. O poder real atua desta maneira
para, propriamente, conter aquelas manifestações que possam vir a ameaçar seu exercício.
12
Investindo no poder real de caráter simbólico como se este fosse o poder real
objetivado pela prática política, os sujeitos desenvolvem uma rede de relações construtoras de
significados, no interior da qual medram conflitos que, para mais além dos fundamentais, são
permanentemente adubados pelas ciladas, pela insídia e pela traição a partir de conluios, de
conspirações e de métodos ardilosos. É neste espaço que se reproduzem relações de
dominação e dependência entre o real objetivado pela prática política e o real de caráter
simbólico, onde os dramas existenciais constroem o cotidiano do trabalho.
Em 1879, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (2001) publica “Os Irmãos Karamázov”,
um romance em torno do parricídio, mas que explora a fundo este tipo de drama existencial.
Recorrendo a este romance, que embora seja do plano do imaginário ficcional retrata com
clareza o drama humano, pode-se observar como o mesmo refere-se ao mesmo tempo ao real
objetivado pela prática política e ao real de caráter simbólico.
Ao receber de nós os pães, eles verão que tomamos os deles, que
eles mesmos ganharam com seu próprio trabalho, para distribuí-
los, sem nenhum milagre. Entretanto, o que lhes dará maior
prazer do que receber os pães é recebê-los de nossas mãos.
Assim, eles compreenderão o valor da submissão definitiva. E
enquanto não a tiverem compreendido, serão infelizes. Sabemos
que o rebanho se dispersou e se dividiu por estradas
desconhecidas, mas voltará a se recompor e nós daremos e eles
uma felicidade mansa e humilde, adaptada a criaturas fracas.
Eles ficarão tímidos, sentirão uma surpresa medrosa e terão
orgulho de toda aquela inteligência que nos permitiu domar os
rebeldes (DOSTOIÉVSKI, 2001, pp. 270-271).
Os rebeldes são domados pelos seus próprios discursos. Os que partem voltam
humildes para a casa do grande “pai” em uma felicidade mansa. Os bravos batalhadores que
tiveram o resultado de seu trabalho surrupiado nas intrigas e tramas da política
organizacional, terão prazer em aceitar que irão receber o que lhes foi tirado exatamente por
quem lhes tirou. Os que se associam ao caráter simbólico do poder comemoram ao som da
hipocrisia e deslocam-se como em um desfile de modelos ultrapassados na esperança de
sempre ser parte do imaginário social valorizado no plano simbólico.
Mas, o poder real, ao mesmo tempo em que não se descarta das armadilhas e
artimanhas do poder simbólico, precisa dele, depende dele e não pode abrir mão de seus
favores. O poder real, ao tentar negar a ameaça do poder simbólico, assim se expressaria, nas
palavras de Ivan: “Nem por um instante eu o considero uma realidade. Você é uma mentira,
um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como livrar-me de você, vejo que será
preciso sofrer algum tempo”. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 619). Este é o drama da Política
Karamázov nas Organizações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions de Seuil,
1994.
BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
BRAGA, Maria Lucia Santaella. The three Peirce’s categories and the three Lacan’s registers.
Psicol. USP. São Paulo, v. 10, n. 2, 1999.
13
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikhailovich. Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
ENRIQUEZ, Eugène. Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. São
Paulo: Tempo Brasileiro, 36/37: 53-94, jan.-jun. 1974.
ESPINOZA, B. Tratado da Correção do Intelecto. São Paulo: Abril Cultural, 1979
FARIA, José Henrique de. Economia Política do Poder. Curitiba: Juruá, 2004. Livro I.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
FROMM, Erich. Psicanálise e sociedade contemporânea. 9a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
HARVEY, David. Para Entender O Capital Livro I. São Paulo, Boitempo, 2013.
KORDA, Michael. Poder: como obtê-lo, como usá-lo. 5a. ed. Negócios em Exame. São Paulo:
Abril, 1976.
LACAN, Jacques. O simbólico, o imaginário e o real. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
LUKES, Steven. Power: a radical view. London: Macmilland Press, 1974.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso. A teoria sociológica de Pierre Bourdieu na produção
discente dos programas de pós-graduação em educação no Brasil (1965-2004).
Curitiba: UFPR/PPGE, 2006. Tese de Doutorado.
PAÇO-CUNHA, Elcemir; BICALHO, Renata. Categorias Marxianas e Frankfurteanas para o
Poder Simbólico como Poder Real. Belo Horizonte: V EnEO, 2008.
PAGÉS, Max; BONETTI, Michel; GAULEJAC, Vincent de; DESCENDRE, Daniel. O poder
das organizações: a dominação das multinacionais sobre os indivíduos. 3a. ed. São
Paulo: Atlas, 1987.
REICH, Wilhelm. A psicologia de massas e o fascismo. São Paulo: Marins Fontes, 1972.
ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1998.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 4ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.

14
PODER, IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO:
a construção do real e do imaginário na organização

Autoria: Cinthia Leticia Ramos, José Henrique de Faria

Resumo

Este ensaio de natureza teórica tem como propósito apresentar elementos norteadores
relacionados a poder, ideologia e alienação para o estudo das relações de trabalho em uma
unidade industrial de processo contínuo. O interesse está em verificar como estes elementos
se fazem presentes tanto durante a jornada formal de trabalho como igualmente no tempo de
trabalho disponível. A conclusão é a de que da perspectiva das relações de poder pode-se
verificar se o aparato organizacional da unidade produtiva industrial (composto por novas e
refinadas formas de gestão do processo de trabalho) atua como instrumentos de poder e
controle nas atividades laborais.

1
Introdução
O presente ensaio de natureza teórica tem como propósito apresentar elementos
norteadores relacionados a poder, ideologia e alienação para o estudo das relações de trabalho
em uma unidade industrial de processo contínuo, prevista no projeto do Grupo de Pesquisa. O
interesse está em verificar como estes elementos se fazem presentes não apenas durante a
jornada formal de trabalho, mas igualmente no tempo de trabalho disponível, ou seja, no
tempo de trabalho formal e extraordinário (no e fora do ambiente físico da organização).
Desta forma, não será objeto do presente ensaio, dadas as limitações de espaço, apresentar um
modelo exaustivo e profundo sobre estas categorias, mas expor os conceitos de poder,
ideologia e alienação, em uma perspectiva interdisciplinar, tendo como referência empírica o
campo da organização produtiva e suas dinâmicas complexas e contraditórias.
Para isto, a base conceitual que dará suporte para sustentação deste capítulo levará
em consideração a Teoria da Economia Política do Poder, caracterizada como uma concepção
crítica das formas de poder e controle nas organizações concretas, objetivando esclarecer em
que medida as “instâncias objetivas e subjetivas, reais e imaginárias, se operam na realidade
organizacional”, dando conteúdo às configurações de poder e de controle nas organizações
(FARIA, 2004).
Para Faria, deve-se buscar nos estudos das organizações:
As relações internas e externas de poder, manifestadas em suas formas de controle e
em sua ação mediadora de objetivos e desejos, e em sua inserção dinâmica e
contraditória na sociedade globalizada, tendo como suporte de análise as relações
entre os sujeitos coletivos, no campo do trabalho, da produção, da realização, do
imaginário ou dos afetos, em seus aspectos objetivos e subjetivos, ou seja, as
relações de poder (FARIA, 2007, p.11).
Deste modo, entende-se que o estudo do controle, suas formas e mecanismos, do
ponto de vista gestão de organizações concretas, demanda a compreensão de três Categorias
de Análise: (i) poder: porque o controle é um modo de exercício do poder; (ii) ideologia:
porque o controle exige um sistema de ideias articulado e eficaz; (iii) alienação: porque no
exercício do controle, a incorporação da ideologia que o sustenta corresponde a pelo menos
algum “grau” de alienação. As relações de poder estão na raiz das práticas de controle, na
medida em que o asseguramento da realização dos interesses definidos por um grupo
encontra-se na efetividade dos mecanismos de controle e de sua gestão. Portanto, as relações
de poder, em suas formas distintas de exercício, dão suporte aos mecanismos e às formas de
controle. A ideologia e a alienação, por seu turno, apresentam-se como condições necessárias
(porém, não suficientes) para a garantia desta efetividade de forma eficaz.
As relações de poder assumem um lugar central nas práticas, na medida em que
“nenhuma classe ou grupo social aplicaria mecanismos de controle se não fosse para garantir
a realização de seus interesses objetivos e subjetivos específicos [seu poder]. O controle é a
mais bem estruturada garantia de permanência do poder” (FARIA, 2004, p.150). Tendo em
vista que as relações de poder, a ideologia e o processo de alienação serão considerados neste
estudo tendo como referência empírica uma organização produtiva, é necessário, antes de
tratar destes três elementos, indicar a concepção de organização aqui adotada.

2
1. A Concepção de Organização
De acordo com Faria (2004), organizações são:
Construções sociais e históricas que adquirem autonomia relativa em relação aos
sujeitos coletivos que a constituíram e que se consolidam como instâncias de
mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os
quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos,
entidades plenamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas
construções sociais dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas
objetivas e subjetivas, manifestas e ocultas, concretas e imaginárias, cabendo à
teoria crítica a atribuição política de investigá-las além de seu aspecto fenomênico
(FARIA, 2004, p. 31).
Desta forma, não se considera, aqui, “a organização” em seu sentido abstrato, mas
em sua concretude, enquanto unidade produtiva inserida em um modo específico de produção
e em uma dada formação social. Sendo assim,
As organizações são conceituadas a partir de sua materialidade objetiva e histórica,
na medida em que são unidades produtivas capitalistas [...]. Assim, pode-se afirmar
que existem, ontologicamente, dois tipos básicos de organização: (i) as categóricas,
que na sociologia são denominadas de organizações formais: (ii) as políticas ou de
pertença. As formais são aquelas unidades complexas que se estruturam de acordo
com uma finalidade (econômica, política, cultural, etc.) [...]. Como organização
formal, as unidades produtivas possuem como finalidade controlar para produzir sob
a lógica da repetição [...]. Há, aqui, uma lei histórica: toda organização formal
corresponde a uma forma de poder e de controle. Mas é necessário precisar: as
organizações e as formas de poder e controle correspondem aos momentos históricos
objetivos do modo de produção e não podem ser tratadas em sua generalidade
abstrata. É com esta concepção que uma organização deve ser entendida em sua
materialidade histórica como um sistema social ao mesmo tempo objetivo e
subjetivo, ao mesmo tempo simbólico e imaginário, cujos contornos somente são
possíveis de precisar em sua atividade prática no interior dos estágios do modo de
produção ou das formações sociais (FARIA, 2012, pp. 16-17).
O presente estudo, portanto, como já indicado, tem como referência no campo
empírico uma organização formal, especificamente uma unidade produtiva industrial, ou seja,
uma organização concreta, social e historicamente construída.
Uma vez exposta a concepção de organização, trata-se agora de explorar os conceitos
de Relações de Poder, Ideologia e Alienação procurando dar conta de esclarecer estas
instâncias sem perder sua condição de abrangência para a apreensão da realidade objetiva e
subjetiva, de maneira a dar sustentação às ações que assegurem às organizações buscarem
seus resultados independente das práticas que tenham que adotar.

2. As Relações de Poder
Poder será entendido, aqui, como a capacidade que um grupo social ou politicamente
organizado possui “de definir e realizar seus interesses objetivos específicos, mesmo contra a
resistência ao exercício desta capacidade e independentemente do nível estrutural em que tal
capacidade esteja principalmente fundamentada” (FARIA, 2004, p. 141). Os interesses
objetivos específicos podem possuir natureza econômica, jurídico-política, ideológica e
psicossocial, conforme a definição estabelecida pelo próprio grupo. O exercício do poder
pode adquirir continuidade e efetividade por ocasião do acesso do grupo ao comando das
organizações. Nesse caso, o que vai determinar a sua permanência e a direção que toma são as
práticas grupais, em que também estão contidas ações individuais.
Nessa perspectiva, o poder não é entendido como um jogo de forças que resulta em
uma soma zero, ou seja, um espaço político em que a “variação da quantidade de poder” de
um grupo corresponderia a uma “variação inversa da quantidade de poder” de outro grupo,
mas como um fenômeno relacional recíproco, geralmente assimétrico, ou seja, um fenômeno
3
que em determinadas condições práticas encontra-se em desequilíbrio do ponto de vista da
dominação ou da gestão das organizações concretas, indicando um confronto de interesses
entre o(s) grupo(s) dominante(s) e o(s) grupo(s) dominado(s). Desde este ponto de vista, a
dominação pode ser temporária, a favor de um ou de outro grupo no comando das estruturas
organizacionais. Portanto, é uma concepção que não nega o poder da outra parte envolvida na
relação social concreta, pois se tratam necessariamente de relações de poder.
Esse caráter relacional recíproco supõe, de acordo com Melo (1991), uma
“circulação do poder”, uma “flexibilidade e processo contínuo de negociação”, de forma a
estruturar uma dinâmica política própria no bojo das organizações. Para Melo (1991), a
capacidade de exercício do poder depende das características do tipo de organização, tanto de
sua estrutura formal, como da cultura organizacional, bem como das possibilidades que o
trabalhador tem de se “coligar com seus colegas”, de “mobilizar a solidariedade do grupo”, de
“construir e estabelecer relações e alianças”, de “suportar tensões psicológicas” e também da
estratégia que ele venha a traçar diante de cada situação.
Ao se admitir que as organizações, em sua dinâmica, são arenas políticas, é possível
reconhecer que nelas vários agentes ou protagonistas das relações sociais organizadas
apresentam as mais variadas estratégias. Tais estratégias são traçadas no sentido de constituir as
suas capacidades em termos políticos, fazendo valer os objetivos de grupos ou de coalizões de
interesses. Ao fortalecerem as suas posturas estratégicas, esses atores inseridos em
determinados grupos, fortalecem, portanto, o seu “poder” (BRITO et alii, 2008).
Considerando este processo e uma vez percebidas as contradições e os paradoxos
decorrentes da análise crítica do conteúdo de entrevistas concedidas por trabalhadores da
organização pesquisada, é preciso esclarecer “em que medida as instâncias obscuras (que se
operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e
manifestas (referentes ao regramento e às estruturas formais) dão conteúdo às configurações
do poder nas organizações do ponto de vista do sujeito coletivo do trabalho” (FARIA, 2004, p.
32). Em outras palavras, torna-se necessário revelar em que medida os mecanismos de
controle, como expressão de poder, manifestam-se através do dito, das regras, códigos,
políticas, processos produtivos, planos, estratégias, como também nas formas de subjetivação
relacionadas ao trabalho (símbolos, ritos, imaginários e mitos).
É preciso revelar, portanto, como as organizações definem seus mecanismos de poder
e de controle, “incorporando o que não pode ser dito, que se reproduz em seus porões, ao que
é possível falar, ao que pode ser manifesto às claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo
tempo de racionalidades (de regras, objetivos, políticas, processos produtivos, planos,
estratégias etc.) e de subjetividades (símbolos, ritos, imaginários e mitos), com seus
paradoxos e contradições” (FARIA, 2004, p.148). Trata-se, assim, de compreender as
dualidades experienciadas por esse sujeito coletivo que cria e reproduz coalizões e estratégias
de poder e controle organizacional, ao mesmo tempo em que também se angustia, sofre,
desenvolvendo mecanismos de defesa ou até mesmo demonstrando manifestações de
enfrentamento com relação às formas imediatas e gerais de produção e às relações de
trabalho.
Nesse sentido, a pesquisa deve permitir constatar se todo o aparato organizacional da
unidade produtiva industrial é composto por novas e refinadas formas de gestão do processo
de trabalho e se atua em última instância como instrumentos de poder e controle nas
atividades laborais fortalecendo, através de mecanismos sutis de sedução, as condições de
engajamento com a organização, potencializando (i) o controle da subjetividade e (ii) a
manipulação dos desejos e necessidades dos sujeitos trabalhadores. A análise crítica de
conteúdo das entrevistas deve permitir verificar como e se o poder se consolida através de
regras, dispositivos e técnicas consentidas mediante uma lógica racional, para fins de

4
melhoria do desempenho organizacional e/ou através de mecanismos de controle da
subjetividade.
Não se trata de medir o poder da gestão ou de uma atividade, pois como já indicava
Foucault (1977): “o poder não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma
proibição, aos que ‘não têm’; ele os investe, passa por eles, e através deles; apoia-se neles, por
sua vez nos pontos em que ele os alcança” (FOUCAULT, 1975, p. 29). Isto significa dizer que
o poder vai além da relação entre acionistas e trabalhadores, entre gestores, administradores e
demais subordinados, pois se enraíza na prática cotidiana da organização, encobrindo o
espaço em sua totalidade (PAGÈS et alii, 1987, p. 66; 98). Em síntese, o poder está em “todo
o lugar”, expandindo seu domínio para muito além das relações de produção: na ordenação do
espaço (LEFÈBVRE, 1999), na distribuição e na produção do saber e da norma (FOUCAULT,
1977), independentemente do nível estrutural em que tal capacidade esteja principalmente
fundamentada (FARIA, 2004), nas engrenagens e regras da organização e até no inconsciente
(PAGÈS et alii, 1987).
De acordo com o obtido da análise crítica de conteúdo das entrevistas será possível
verificar se a eficácia dos sistemas e das formas de gestão utilizadas para controlar e que são
amplamente disseminadas nos discursos derivados da função gerencial dos gestores,
dependem ou não exclusivamente de imposição, obediência ou de formas autoritárias de sua
aplicação. Para Pagès et alii (1987)h há outras formas de exercício do poder. De fato, estes
pesquisadores já haviam retratado de forma contundente como o novo “aparato de regras”
(não formais) entra em contradição com o antigo sistema baseado na autoridade pessoal do
chefe. “Assim, o poder não está mais fixo em uma rede de relações hierárquicas interpessoais,
mas encarna o conjunto da organização e se define como a capacidade da organização em
submeter os indivíduos a uma lógica abstrata de lucro e expansão” (PAGÈS et alii, 1987, p.
67).
Levando em consideração tanto o exposto teoricamente, como também os
depoimentos dos gestores, entende-se ser possível verificar se e como trabalhar em uma
organização industrial implica a adesão a um sistema de crenças, cultura e valores, a uma
filosofia de vida, a uma formação específica e diferenciada. Entende-se que esta adesão
ideológica alicerça as energias e incita o sujeito a se dedicar de “corpo e alma” a seu trabalho,
a ponto de não só aceitar, mas desejar constantes mudanças, sujeitando-se voluntariamente ao
projeto estratégico da empresa. Partindo deste referencial, espera-se que a análise detalhada
do campo empírico permita observar se os sujeitos sentem-se capazes e desejosos de cooperar
e de se sacrificar, se preciso for, para o cumprimento de metas e resultados, de forma a
enfrentar novos e constantes desafios, naturalizando uma jornada de trabalho que ultrapassa,
muitas vezes, 12 horas diárias (comprometendo parte do tempo livre: sábados, domingos,
feriados, folgas) em prol dos assuntos e interesses estratégicos da unidade produtiva.
Entende-se que é justamente essa adesão, este “vestir a camisa da empresa” o
elemento fundamental para legitimar o exercício do poder, potencializando o sistema de
dominação e alienação. Portanto, para responder de que forma os mecanismos de controle
como expressão do poder expandem suas amarras para além do tempo formal da jornada de
trabalho – questão central da pesquisa – torna-se necessário incorporar nestas reflexões os
conceitos de ideologia e alienação, sendo este o propósito dos próximos itens.

5
3. A Ideologia
O conceito de ideologia possui muitas vertentes (CENTRE, 1980). Uma das maneiras
pela qual se pode conceber a ideologia é que ela seria um reflexo invertido, mutilado,
deformado do real, na medida em que significaria um conjunto abstrato de ideias,
representações e valores de determinada sociedade. No entanto, esta é uma concepção abstrata,
no sentido de que designa que todo e qualquer conjunto de ideias pretende explicar fatos
observáveis sem vincular essa explicação às condições sociais, históricas e concretas em que
tais fatos foram produzidos. Apesar da desvinculação, essas ideias seriam transmitidas e
absorvidas como se fossem reais (FRANCO, 2004).
Ao criticarem a ideologia alemã, Marx e Engels (2007) expressam de início a
concepção de ideologia como uma abstração deformada do real. À medida que desenvolvem
suas argumentações, a concepção de ideologia passa a ser definida como uma forma de
consciência social. De fato, para Mészáros (2004),
A ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas
uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada.
Como tal não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência se deve ao
fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída) como
consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a articulação
de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social
em todos os seus principais aspectos (MÉSZÁROS, 2004, p. 65).
Segundo Mészáros (2004), o conflito mais fundamental na arena social refere-se à
própria estrutura social que proporciona o quadro regulador das práticas produtivas e
distributivas de qualquer sociedade específica, cujo objetivo é manter ou, ao contrário, negar
o modo dominante de controle sobre o metabolismo social dentro dos limites das relações de
produção estabelecidas. Tal conflito encontra suas manifestações necessárias nas “formas
ideológicas (orientadas para a prática) em que os homens se tornam conscientes desse conflito
e o resolvem pela luta”. Ou seja, as diferentes formas ideológicas de consciência social têm
implicações práticas de longo alcance em todas as suas variedades, independentemente de sua
vinculação sociopolítica a posições progressistas ou conservadoras (MÉSZÁROS, 2004, pp.
65-66).
Neste sentido, não se pode reduzir o conceito de ideologia como simplesmente uma
“falsa consciência”. O que define a ideologia como ideologia não é seu suposto desafio à
“razão” ou seu afastamento das regras preconcebidas de um “discurso científico” imaginário,
mas sim sua situação real - materialmente fundamentada - em um determinado tipo de
sociedade. As funções complexas precisam focalizar a atenção nas exigências práticas vitais
do sistema de reprodução (MÉSZÁROS, 2004, pp. 472-473).
Nesta mesma linha de argumentação, Pagès et alii (1987) alertam que:
Quando se evoca a ideologia que uma instituição produz, geralmente se refere a um
sistema de representação do qual se servem os detentores do poder para mascarar e
ocultar a realidade. Ainda que a ideologia se ocupe de tais funções, esta leitura
torna-se muito simplista, tendo em vista que não explica o domínio profundo que
uma organização pode exercer sobre seus membros (PAGÈS et alii, 1987, p.74).
Para compreender tal fenômeno, Pagès et alii (1987) apontam a necessidade de
renunciar à visão ingênua da ideologia que corresponde apenas aos interesses das classes
dominantes, ou seja:
A ideologia predominante num grupo social ou em uma instituição constitui de
fato uma “bricolagem” de elementos disparatados resultante de influências
variadas, heranças de períodos diferentes. Uma classe, ainda que dominante, só
pode impor uma ideologia conforme seus interesses particulares na medida em que
consegue integrar as ideologias próprias daqueles que ela quer submeter. Deve
oferecer uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais
dos membros da instituição e fornecer-lhes uma concepção do mundo conforme
suas aspirações (PAGÈS et alii,1987, p.74).

6
Tomando como referência o discurso ideológico como veículo da manifestação
expressa do poder, seja para convencer, seja para impor ou para estabelecer acordos, tem sido
possível constatar que de uma forma especial os modelos e as formas de gestão implantados
pelas organizações incorporam um conjunto de conteúdos de ordem prática, política e
ideológica, historicamente relacionado com os interesses econômicos do capital. Ou seja, é
principalmente a existência de um sistema estruturado, de uma filosofia global, de um
conjunto de princípios nos quais os sujeitos podem acreditar, que leva à adesão dos mesmos
ao conjunto de valores da organização produtiva.
Sendo assim, uma análise crítica das entrevistas deve evidenciar se, na avaliação dos
gestores, a unidade industrial atua como uma organização apenas dirigida para gerir
racionalmente as suas atividades, segundo a lógica de acumulação inerente ao modo de
produção capitalista, a mesma suscitaria a admiração e a adesão maciça da maior parte de
seus trabalhadores e poderia submetê-los profundamente ao seu grandioso sonho de ser a
“preferida” por seu público de interesse. É justamente pelo fato de construir um apelo
ideológico amalgamado no imaginário heroico, ser motivo de orgulho e de pertencimento,
como também oferecer ao seu corpo técnico e gerencial, além das condições materiais,
satisfações de ordem psicossocial e elementos de vínculos sociais, que os gestores se
reconhecem na organização a ponto de se engajarem à mesma, empregando toda sua energia
física e emocional.
Pagès et alli (1987) indicam que a ideologia da empresa, tal qual ela difunde e pratica
e tal qual o indivíduo reproduz, ampliando, não funciona apenas como uma compensação
frente à dureza e à submissão ao trabalho. “Ela só é tão eficaz porque vai de encontro e
mobiliza aspirações profundas, valores, que transcendem o interesse individual” (PAGÈS et
alii, 1987, p. 94).
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels (2007) já apontavam a ligação entre ideologia,
alienação, mistificação e coisificação. Como interpreta Swingewood (1978. p. 76), uma
“consciência social alienada é aquela que passou a ser dominada por um mundo de coisas, no
qual a realidade não é mais considerada como uma realidade humana, mas uma ideologia de
atributos humanos”. A ideologia, portanto, entre tantas “funções”, como as de cooptação,
engajamento, legitimação, interpretação, etc., também está na base da alienação conduzindo
os sujeitos à uma estrutura de crenças desfigurada, alicerçada na transferência a outros
sujeitos daquilo que lhe pertence.

4. A Alienação
O conceito de alienação, bem como de estranhamento, encontra-se primeiramente
exposto em Hegel (2008), mas é em Marx (2007; 2010) que o mesmo ganha importância no
estudo sobre o trabalho. É na relação entre o trabalhador e o produto do seu trabalho e na
relação entre o trabalhador e a atividade produtiva que este desenvolve sob o modo capitalista
de produção que se pode compreender tanto a alienação, em que o trabalhador não se apropria
do resultado de seu próprio trabalho (alienando-o ao capital), como o estranhamento, em que
o resultado de seu trabalho aparece como algo externo ao trabalhador e não como parte de si,
7
ou seja, sua atividade não lhe pertence, é estranha a ele. Isso acontece, entre outras questões,
porque a força de trabalho é vendida como mercadoria.
Neste sentido, o trabalhador é estranho ao produto de seu trabalho na medida em que
aquilo que produz apresenta-se para ele como detentor de um poder independente, pois quanto
mais o trabalhador executa sua atividade, mais o mundo lhe parece estranho, o que intervém
em sua consciência e em sua vida emocional. A alienação se dá em relação à sua atividade
produtiva e ao que produz, pois o trabalho deixa de ser uma atividade essencial para satisfazer
suas necessidades de existência e se transforma em um meio para satisfazer necessidades que
lhes são estranhas.
Marx (2010) trata do trabalho estranhado a partir de quatro dimensões (formas): (i) a
relação entre o trabalho e o produto do trabalho: o objeto produzido se torna estranho ao seu
produtor, torna-se independente dele, ainda que seja sua atividade cristalizada. O que o
produtor produz não lhe pertence (MARX, 2010. p. 80); (ii) autoestranhamento: o
estranhamento “não se mostra somente no resultado (...), mas também, e principalmente, no
ato de produção, dentro da própria atividade produtiva” (MARX, 2010. p. 83). Sendo o
produto estranho ao trabalhador, isto significa que nem sua própria atividade lhe pertence; (iii)
negação genérica do homem: a vida produtiva é a vida genérica do homem, é a vida que
engendra sua vida, ou seja, é a relação do sujeito com sua existência vital. Porém, “o trabalho
estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é consciente, faz
de sua atividade vital de sua essência, apenas um meio para sua existência” (MARX, 2010. p.
85); (iv) Estranhamento do outro: o homem somente se reconhece como tal defrontando-se
com outro homem (MARX, 2010. pp.85-86).
Para melhor compreender o conceito de alienação, que é o que interessa neste estudo,
convém destacar os conceitos de mediação de primeira e de segunda ordem, conforme
proposto por Marx (1983). A mediação de primeira ordem é a forma como o homem se
relaciona com a natureza e com o próprio homem, ou seja, é a forma que permite ao homem
compreender o mundo através de sua atividade produtiva. Na mediação de primeira ordem o
homem se relaciona diretamente com a natureza e com os outros homens. No sistema de
capital, contudo, estas relações homem-natureza e homem-homem são mediadas pelo capital,
ou seja, são mediações de segunda ordem. De acordo com Mészáros,
As mediações de segunda ordem do capital – ou seja, os meios alienados de
produção e suas ‘personificações’; o dinheiro; a produção para troca; as variedades
da formação do Estado pelo capital em seu contexto global; o mercado mundial –
sobrepõe-se, na própria realidade, à atividade produtiva essencial dos indivíduos
sociais e na mediação primária entre eles (MÉSZÁROS, 2002, p. 71).
As mediações de segunda ordem constituem, portanto, a condição do processo de
alienação do trabalho. Entretanto, o conceito de alienação não é pacífico. Ao analisar as
diferentes formas de entendimento da alienação, conclui-se que além de sua caracterização
econômica que significa a transferência, pelo trabalhador, da propriedade do fruto de seu
trabalho ao capital, a mesma também se refere à forma de inserção dos sujeitos no mundo e à
concepção daí decorrente. O mundo é visto pelo sujeito alienado não em um plano concreto,
mas como uma fantasia que direciona a maneira de ser, de pensar e de agir dos sujeitos. A
realidade não é compreendida pelo sujeito alienado em sua complexidade, em seus
movimentos contraditórios, em seu dinamismo, mas é naturalizada como sendo tal como
parece ser, simplificada e destituída de sua história. Neste sentido, o sujeito projeta a si
mesmo como um ser de qualidades segundo aquilo que dele se espera e passa a agir de acordo
com estas qualidades. Com isto, o sujeito aliena-se de sua própria existência real, doando sua
vida a uma ideia dela, a um tipo idealizado. Este tipo é referido pelo sujeito como sendo a
configuração das exigências da realidade, de onde advém a concepção fantasiosa do que deve
ser o “trabalhador ideal”, o “chefe competente”, o “gestor democrático”, a “equipe unida”, “o
trabalho eficaz”, a “qualidade reconhecida”, entre outras. Em síntese, há uma elaboração
8
maniqueísta do bom trabalhador (gerente, chefe) e do mau trabalhador (gerente, chefe). O
bom é o ser do elogio, da aceitação, da admiração, do sucesso. O mau é o ser da crítica, da
exclusão, do desprezo, do fracasso. Esta dicotomia que sustenta a construção do tipo
idealizado esconde o sujeito alienado de si, incapaz de desenvolver uma consciência crítica da
realidade e de seu lugar nela (FARIA, 2004).
Segundo John Holloway (1997), como condição, a alienação se expressa da seguinte
forma:
Se a humanidade é definida como atividade – pressuposto básico de Marx – então
alienação significa que a humanidade existe sob a forma de inumanidade, que os
sujeitos humanos existem como objetos. Alienação é a objetificação do sujeito. O
sujeito (homem ou mulher) aliena sua subjetividade, e essa subjetividade é
apropriada por outros. [...] Ao mesmo tempo, como o sujeito é transformado no
sujeito da sociedade. A objetificação do sujeito implica também a subjetificação do
objeto (HOLLOWAY, 1997, p. 146).
Seguindo a mesma linha teórica, Antunes (1999), ao retratar as formas de alienação
nas empresas flexíveis, aponta que o estranhamento do trabalho encontra-se em sua essência
preservado. Isto porque a subjetividade que emerge na fábrica ou nas esferas produtivas
contemporâneas é expressão de uma existência inautêntica e estranhada, em relação ao que se
produz e para quem se produz (ANTUNES, 1999, p. 130). Isto significa dizer que os
benefícios aparentemente obtidos pelos trabalhadores no processo de trabalho são largamente
compensados pelo capital, uma vez que a necessidade de pensar, agir e propor dos trabalhadores
deve levar em conta prioritariamente os objetivos intrínsecos da empresa, que aparecem muitas
vezes escamoteados pela necessidade de atender aos desejos do mercado consumidor
(ANTUNES, 1999, pp. 130-131).
Além deste aspecto, alguns estudos têm tratado dos chamados infoproletários,
trazendo à tona a discussão sobre a “associação oculta entre o uso de novas tecnologias e a
imposição de condições de trabalho” em uma área que simboliza a chamada moderna
economia, que é aquela que emprega exatamente tecnologias físicas informacionais, seja na
produção direta, seja nos processos de terceirização, tanto em setores industriais quanto de
serviços. Esta associação tem indicado uma “tendência crescente de alienação do trabalho em
escala global” (ANTUNES; BRAGA, 2000).
As investigações no campo empírico da organização produtiva devem permitir indicar
como se materializam as inúmeras práticas por ela disseminadas objetivando estabelecer maior
vínculo, envolvimento, adesão aos projetos e programas da empresa e dedicação permanente
dos trabalhadores na execução e planejamento de atividades. Estudos realizados mediante a
participação e discussões coletivas, oriundas de reuniões de análises críticas, indicam que os
gestores dedicam suas melhores ideias, iniciativa e criatividade em prol do resultado
organizacional. Existe, assim, tanto incentivo à criação de comitês internos e grupos de
trabalho, como também estímulo à qualificação e desenvolvimento profissional, utilizando para
isto o tempo livre do gestor (RAMOS, 2013).
Práticas como estas, já relatadas por Pagès et alii (1987, p. 75), implicam, em última
instância, em uma adesão ideológica, a um sistema de valores que galvaniza as energias e incita
as pessoas a se dedicarem de corpo e alma a seu trabalho. “Esta adesão é um elemento
fundamental para o poder da empresa e para seu sistema de dominação e alienação dos
indivíduos” (PAGÈS et alii, 1987, p. 75).
Assim, é possível verificar se, por detrás do sistema de crenças, valores, planos e
estratégias de atuação gerencial, existem mecanismos de controle e dominação que orientam e
condicionam a atuação e discurso gerencial para interesses do capital. Pagès et alii (1987, p.
78) já relatavam que o indivíduo só pode aderir a um sistema de valor coerente com sua
experiência própria se este lhe permitir ao mesmo tempo torná-lo inteligível e valorizá-lo.

9
Neste sentido, pode-se observar se o diferencial da organização está em canalizar a
pulsão e energia do sujeito trabalhador por meio do engajamento, da persuasão e do
convencimento de que suas atividades são fundamentais para o sucesso e alcance dos seus
resultados. Mesmo os gestores convivendo com dificuldades em gerir suas equipes de trabalho,
com aumento das cobranças por resultados e também forte exigência especialização e
automação no ambiente laboral, seus discursos geralmente retratam orgulho de pertencimento,
pois “graças à organização”, os mesmos se sentem “participantes de um processo social que os
transcende e lhes permite identificar-se com seu poder, mesmo que este poder os destruam”
(PAGÈS et alii, 1987, p. 78).
Faria (2004) afirma que, subjetivamente, a organização contemporânea se vale da
crença no pertencimento, na associação, na unidade da organização, no projeto compartilhado,
na destituição psíquica, na competição intergrupal, na entrega dos sentimentos e do afeto à
valorização do trabalho do grupo (equipe) e no sequestro da subjetividade. Assim, embora o
trabalho se intensifique com as novas práticas de administração, as estratégias e as tecnologias
de gestão procuram fazer com que os trabalhadores mostrem-se mais motivados e satisfeitos
(ADLER, 1993).
A crença no pertencimento, na vida organizacional, no projeto compartilhado e na
unidade da entrega dos sentimentos e afetos, compõe o quadro do sujeito alienado. Segundo
Faria (2004), objetivamente, a alienação se dá pela (i) manutenção da forma assalariada de
trabalho como mecanismo de “liberdade”, (ii) introdução de vantagens, prêmios, benefícios e
outros aliciantes, (iii) participação direta nos resultados relacionados à intensificação do
trabalho, (iv) valorização dos resultados da produção em detrimento das condições de
trabalho, (v) utilização de programas de premiação por produtividade, (vi) destituição material
dos resultados individuais de produção, (vii) apropriação cada vez mais significativa de
resultados pela empresa, (viii) criação de incentivo ao melhor desempenho (eficiência, eficácia,
produtividade) devido a ameaças reais (flexibilidade da jornada, terceirização, subcontratação).
Diferentemente de Adler (1993), Faria (2004) não entende que a alienação resulta da
imposição de padrões externos à força de trabalho (o “mau taylorismo”) e que na produção
flexível, a mesma tenha se descaracterizado pelo fato dos padrões serem definidos pelos
próprios trabalhadores nas equipes de trabalho (o “bom taylorismo”) resultando de uma
aderência aos mesmos. Para Faria (2004), não é a origem do padrão que define a alienação,
mas a da apropriação do resultado objetivo e subjetivo. Este é um dos motivos, por exemplo,
pelos quais o investimento das empresas no trainee se dá na medida em que esta compreende
que o mesmo deve compor uma categoria de trabalhador “destinada a vencer, uma elite
preparada para o sucesso, disposta a abrir mão de sua vida pessoal pela prosperidade da
organização e de sua carreira, ensinada a reproduzir os valores que expressam os interesses da
empresa” (LEAL, 2003).
Do ponto de vista clássico do marxismo, portanto, a alienação refere-se à
apropriação, pelo capital, do resultado do trabalho do sujeito trabalhador. Em outras palavras,
o trabalhador é alienado do produto do seu trabalho, o qual é transferido ao capital que dele se
apropria e dele dispõe. Entretanto, é necessário considerar que o sujeito trabalhador não aliena
apenas o fruto do seu trabalho (físico ou intelectual), mas igualmente parte do processo de
trabalho (as habilidades, o conhecimento técnico, o saber abstrato) e não só o processo como a
si mesmo como força de trabalho e como comprometimento, sentimentos, afeto, engajamento
e subjetividade. (FARIA, 2004).
Diante disto, é possível afirmar que as bases que alicerçam a adesão e o apego dos
gestores ao sistema de poder e os meios que estes utilizam para integrá-los, consolidam-se
numa forte estrutura ideológica ligada ao mais profundo estágio de alienação, que é a
alienação ideológica, conforme explicitada por Pagès et alli, (1987, p. 95). É neste sentido que
os gestores, dominados por seus desejos de onipotência e pautados pelo imaginário de
10
sucesso, aprisionam-se numa espiral que os envolve de todos os lados e os toma totalmente,
algemando o que eles possuem de mais precioso: seus valores, seus sentimentos, seu corpo e
sua mente.

5. Considerações Finais
O presente ensaio teórico procurou discutir três categorias de análise com o objetivo
de respaldar uma investigação sobre as relações de trabalho tanto no tempo formal da jornada
como no tempo extraordinário (dentro e fora do ambiente físico da organização) no campo
empírico de uma unidade produtiva industrial: relações de poder, ideologia e alienação.
Da perspectiva das relações de poder, pretende-se verificar se o aparato organizacional
da unidade produtiva industrial (composto por novas e refinadas formas de gestão do processo
de trabalho) atua como instrumentos de poder e controle nas atividades laborais fortalecendo,
através de mecanismos sutis de sedução, as condições de engajamento com a organização,
potencializando (i) o controle da subjetividade e (ii) a manipulação dos desejos e necessidades
dos sujeitos trabalhadores. Em outras palavras, a partir desta categoria pode-se verificar como
e se o poder se consolida (i) através de regras, dispositivos e técnicas consentidas mediante
uma lógica racional e/ou (ii) através de mecanismos de controle da subjetividade.
O estudo das relações de poder permite, assim, verificar se a eficácia dos sistemas e
das formas de gestão utilizadas para controlar (presentes nos discursos de gestão) (i)
dependem exclusivamente de imposição, obediência ou de formas autoritárias de sua
aplicação, ou (ii) se entra em contradição com o antigo sistema baseado na autoridade pessoal
do chefe, submetendo os indivíduos a uma lógica abstrata de lucro e expansão. Em outros
termos, o estudo das relações de poder devem permitir verificar se e como trabalhar em uma
organização industrial implica a obediência exclusiva às regras ou se igualmente compreende
a adesão a um sistema de crenças, cultura e valores, a uma filosofia de vida, a uma formação
específica e diferenciada.
Da perspectiva da ideologia, deve ser possível constatar como os modelos e as
formas de gestão implantadas pela organização incorporam um conjunto de conteúdos de
ordem prática, historicamente relacionado com os interesses econômicos do capital. Em
outras palavras, esta categoria de análise permite verificar a existência de um sistema
estruturado, de uma filosofia global, de um conjunto de princípios nos quais os sujeitos
podem acreditar: construção de um apelo ideológico amalgamado no imaginário heroico;
motivo de orgulho e de pertencimento; além das condições materiais, oferta de satisfações de
ordem psicossocial e elementos de vínculos sociais; elementos de reconhecimento com a
organização a ponto de promover o engajamento à mesma com o emprego de toda energia
física e emocional disponível.
Da perspectiva da alienação pode-se verificar como a fantasia (o imaginário)
direciona a maneira de ser, de pensar e de agir dos sujeitos trabalhadores, tendo em vista que a
realidade passa a ser compreendida pelo sujeito alienado como sendo tal como parece ser,
simplificada e destituída de sua história, de forma que este sujeito projeta a si mesmo como
um ser de qualidades segundo aquilo que dele se espera e passa a agir de acordo com estas
qualidades, alienando-se de sua própria existência real, doando sua vida a uma ideia dela, a
um tipo idealizado: “trabalhador ideal”, “chefe competente”, “gestor democrático”, “equipe
unida”, “ trabalho eficaz”, “qualidade reconhecida”, entre outras. O estudo sobre a alienação
pode indicar a existência de uma elaboração maniqueísta do bom (ser do elogio, da aceitação,
da admiração, do sucesso) e do mau (ser da crítica, da exclusão, do desprezo, do fracasso)
trabalhador. Além deste aspecto, pode-se também analisar a associação entre o uso de novas
11
tecnologias e a imposição de condições de trabalho. O estudo da alienação no trabalho deve
permitir verificar como se materializam as inúmeras práticas organizacionais com o objetivo de
estabelecer maior vínculo, envolvimento, adesão aos projetos e programas e dedicação
permanente dos trabalhadores na execução e planejamento de atividades. Assim, será possível
verificar se, por detrás do sistema de crenças, valores, planos e estratégias de atuação
gerencial, existem mecanismos de controle e dominação que orientam e condicionam a
atuação e discurso gerencial para interesses do capital, canalizando a pulsão e energia do
sujeito trabalhador por meio do engajamento, da persuasão e do convencimento de que suas
atividades são fundamentais para o sucesso e alcance dos seus resultados.
Objetivamente, o estudo da alienação permite analisar (i) a manutenção da forma
assalariada de trabalho como mecanismo de “liberdade”, (ii) a introdução de vantagens,
prêmios, benefícios e outros aliciantes, (iii) a participação direta nos resultados relacionados à
intensificação do trabalho, (iv) a valorização dos resultados da produção em detrimento das
condições de trabalho, (v) a utilização de programas de premiação por produtividade, (vi) a
destituição material dos resultados individuais de produção, (vii) a apropriação cada vez mais
significativa de resultados pela empresa e (viii) a criação de incentivo ao melhor desempenho
(eficiência, eficácia, produtividade) devido a ameaças reais (flexibilidade da jornada,
terceirização, subcontratação).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADLER, Paul S. The learning bureaucracy: the United Motor Manufacturing Inc. Research in
Organizational Behavior. Geenwich: JAI Press, 1993.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy. Orgs. Infoproletariados: a degradação real do trabalho
virtual. São Paulo: Boitempo, 2000.
BRITO, Valéria da Glória Pereira, CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves, BRITO, Mozar José
de, SILVA, Paulo Jose. A Dinâmica Política no Espaço Organizacional: um Estudo das
Relações de Poder em uma Organização Cooperativa. RAC-Eletrônica, 2(1):141-154,
Jan./Abril 2008.
CENTRE for Contemporary Cultural Studies. Org. Da Ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
FARIA, José Henrique. Economia Política do Poder. Curitiba: Juruá, 2004. 3 Volumes.
FARIA, José Henrique (Org.). Análise crítica das teorias e práticas organizacionais. São
Paulo: Atlas, 2007.
FARIA, José Henrique de. Poder, Trabalho e Gestão: elementos básicos para uma análise
crítica das organizações. Curitiba: EPPEO, 2012. (Relatório de Pesquisa)
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
FRANCO, Maria Laura Puglisi Barbosa. Representações Sociais, Ideologia e
Desenvolvimento da Consciência. Cadernos de Pesquisa, 34(121):169-186, jan./abr.
2004.
HEGEL, G. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.
HOLLOWAY, John. A Note on Alienation. Historical Materialism. No. 01. London: London
School of Economics, 1997.
LEAL, Anne Pinheiro. Universidades corporativas e controle social: as faces da habituação e
da instrumentalização do sujeito trabalhador em uma organização multinacional da

12
área de lojista. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2003. (Dissertação de
Mestrado)
LEFÈBRE, Henri, A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
MARX, Karl H. O Capital. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Vol.1
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2007.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã
em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas (1845 – 1846). São Paulo: Boitempo, 2007.
MELO, M. C. O. L. Estratégias do trabalhador informático nas relações de trabalho. Belo
Horizonte: UFMG, 1991. Tese de Concurso Professor Titular.
MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo:
Boitempo, 2002.
MESZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
PAGÈS, Max; BONETTI, Michel; De GAULEJAC, Vicent; DESCENDRE, Daniel. O Poder
das Organizações. São Paulo: Atlas, 1987.
RAMOS, Cinthia Leticia. Algemas Reais e Imaginárias no Mundo Organizacional: a expansão do
controle para além do tempo formal de Trabalho. Curitiba: PMOD/FAE-PR, 2013.
Dissertação de Mestrado.
SWINGEWOOD, Alan. Marx e a teoria social moderna. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.

13
 

História Intelectual nos Estudos Organizacionais


Autoria: José Henrique de Faria, Francis Kanashiro Meneghetti

Resumo
A história intelectual é frequentemente associada à história das ideias ou, ainda, história das
mentalidades. Isto porque a história intelectual é praticada de muitas maneiras, não possuindo
uma metodologia específica consolidada e nem mesmo uma linguagem teórica considerada
padrão. Como na área de estudos organizacionais, a história intelectual não se apresenta como
“temática” sistematizada de conhecimento, os artigos, textos ou mesmo teses de intelectuais
que influenciaram ou influenciam essa área ainda se mostram metodologicamente frágeis. As
discussões resumem-se a práticas ideológicas, apropriações indevidas dos pensamentos de
intelectuais, biografias comuns ou apologias mistificadas das suas práticas intelectuais.
Assim, o objetivo geral deste estudo é apresentar alguns elementos, que compõem a
elaboração da história intelectual e sua relevância para os estudos organizacionais,
fundamentados na trajetória de Maurício Tragtenberg. Quanto aos objetivos específicos, tem-
se: (i) Analisar a história pessoal e profissional de Maurício Tragtenberg; (ii) Apresentar os
aspectos metodológicos que devem ser levados em consideração na elaboração da história
intelectual; (iii) Refletir sobre a importância da história intelectual nos estudos
organizacionais. A base de sustentação teórica relacionada à história intelectual é formada por
Altamiro (2007), Silva (2002) e Carvalho (1998). Para compreender a importância de
Tragtenberg na área de estudos organizacionais, utilizam-se autores como Paula (2001, 2008,
2009), Faria (2001), Valverde (2001), Motta (2001), Maranhão et. al. (2010). Os fundamentos
para compreender a história de Tragtenberg se encontram em autores como Resende (2001),
Antunes (2001), Löwy (2001), Morel (2001), Uhle (2001). Além disso, os livros e artigos de
jornais de Tragtenberg constituem os pilares para entender sua história intelectual. A ideia,
portanto, é promover uma primeira reflexão sobre os cuidados que a história intelectual exige
dos pesquisadores no percurso de elaborá-la. Apresentam-se reflexões sobre a metodologia
utilizada para elaboração da história intelectual, sem, contudo, apresentar modelos definitivos,
uma vez que não há unanimidade em relação à metodologia mais adequada. Várias são as
técnicas que podem ser utilizadas e quase todas elas relacionadas à abordagem qualitativa de
pesquisa, no entanto, encontram-se alguns estudos de história intelectual que podem servir de
base para o pesquisador que se decida pelos estudos organizacionais. Por fim, são
apresentados alguns elementos que refletem sobre a importância da inserção da história
intelectual nos estudos organizacionais. O aparecimento sistemático de estudos de história
intelectual tem auxiliado a clarificar e corroborar linhas de pensamentos, concepções
epistemológicas e posicionamentos políticos na área de enfoque, ocorrendo da mesma forma
com concepções metodológicas. A história intelectual nos estudos organizacionais pode abrir,
caso seja feita com rigor, novas perspectivas para a área, sobretudo, no mapeamento
qualitativo das concepções dominantes e sua evolução histórica.

  1
 

Introdução
A história intelectual é praticada de muitas maneiras, não possuindo uma metodologia
específica consolidada e nem mesmo uma linguagem teórica considerada padrão
(ALTAMIRO, 2007), assim, a história intelectual é frequentemente associada à história das
ideias ou, ainda, história das mentalidades. Na França, por exemplo, não há “padrões” bem
definidos que delimitem a história intelectual. As temáticas, os objetos de estudo, os métodos
de análise ainda não estão fixados (SILVA, 2002).
No Brasil, a história intelectual é basicamente dividida em dois tipos de abordagem
(CARVALHO, 1998, p. 149). O primeiro, mais tradicional, aproxima-se da prática em
Filosofia de expor o pensamento isolado de cada pensador, procurando-se estudar seu
pensamento e analisar de que forma ele é influenciado ao longo da sua vida por outros
pensadores. O segundo, mais recente, estuda um grupo de pensadores que cria um conjunto de
pensamentos influentes em uma época ou determinado contexto social.
Percebem-se, contudo, divergências conceituais a respeito da definição de história
intelectual. Vários autores, escolas (francesa e anglo-saxônica), linhas de pensamento fazem
da temática algo a ser amadurecido, refletido, dependentes de as áreas de conhecimento, como
a Filosofia, a Educação e as Ciências Políticas (mais adiantadas nessa discussão) e outras
novas desenvolverem pesquisas e expressivos estudos de boa qualidade.
Na área de estudos organizacionais, a história intelectual não se apresenta como
“temática” sistematizada de conhecimento, visto os artigos, textos ou mesmo teses de
intelectuais que influenciaram ou influenciam a área serem ainda metodologicamente frágeis.
As discussões resumem-se a práticas ideológicas, apropriações indevidas dos pensamentos de
intelectuais, biografias comuns ou apologias mistificadas das suas práticas intelectuais.
Logo, o objetivo geral deste estudo é apresentar alguns elementos que compõem a
elaboração da história intelectual e sua relevância para os estudos organizacionais com fulcro
na trajetória de Maurício Tragtenberg.
Para tanto, tem-se como objetivos específicos: (i) Analisar a história pessoal e
profissional de Maurício Tragtenberg; (ii) Apresentar os aspectos metodológicos que devem
ser levados em consideração na elaboração da história intelectual; (iii) Refletir sobre a
importância da história intelectual nos estudos organizacionais.
A opção por apresentar os aspectos metodológicos e a importância da história
intelectual para a área de estudos organizacionais com base na obra de Maurício Tragtenberg
deve-se a alguns fatores. Primeiro, porque o pensamento do autor vem sendo ou foi estudado
por alguns pesquisadores da área de organizações, destacando-se, entre eles, José Henrique de
Faria, Ana Paula Paes de Paula, Fernando Claudio Prestes Motta, Antonio José Romera
Valverde, Carolina Machado Saraiva Maranhão. Segundo, porque Tragtenberg influenciou
expressivamente outras áreas, como a Educação e a Sociologia, motivando pesquisadores
dessas áreas a elaborarem materiais que enriquecem a análise no âmbito da história
intelectual. Terceiro, pela vasta e expressiva obra intelectual do autor, que influenciou
expressivamente as áreas de Estudos Organizacionais, Administração, Educação e Sociologia.
Quarto, pelos registros e relatos pessoais de quem conviveu com Tragtenberg, possibilitando
clareza e comprovação de fatos vividos por ele no âmbito pessoal, profissional e acadêmico.

1 - A História Pessoal e Profissional de Maurício Tragtenberg


Tragtenberg pode ser considerado um intelectual? Sim, ele pode ser “qualificado” de
intelectual orgânico, porque pertence a um grupo social específico defendido por ele, o dos
trabalhadores, e pela forma como proporciona a homogeneidade e a consciência dos mesmos
em relação às suas funções “não apenas no plano econômico, mas também no social e no
político” (GRAMSCI, 1991, p. 3). Alguns podem questionar a atribuição de intelectual para
Tragtenberg por causa da influência dos anarquistas. Não seria uma contradição? Não. O
  2
 

ponto de convergência com o entendimento de Gramsci utilizado aqui para atribuir tal
qualidade a Tragtenberg é que “longe de encobrir sua situação de classe e acenar com uma
fala ‘em nome da comunidade em geral’, eles fazem seus apelos diretamente em nome de uma
modernidade fundada em interesses de classe, que deixam transparecer ao invés de disfarçá-
los” (GONZALES, 1981, p. 93). Tragtenberg é um intelectual porque representa “o máximo
grau de consciência de um intelectual sobre sua própria situação na sociedade.”
(GONZALES, 1981, p. 94). O “próprio Gramsci põe à margem as funções conectivas dos
‘grandes intelectuais’, as pessoas ‘especialmente preparadas’ para a vida do pensamento. Eles
não poderiam ser qualificados nem de ‘tradicionais’, nem de ‘orgânicos’. São aqueles que às
vezes ‘influem mais do que toda uma universidade inteira’. (...) Não teria sentido aplicar-lhes
o rótulo”. (GONZALES, 1981, p. 99) Tragtenberg é um intelectual orgânico da classe
trabalhadora, porque mantém uma relação orgânica com os problemas dessa classe, da qual é
procedente, pautando sua atuação política por contínuo combate em relação à exploração do
capital sobre o trabalho. Em suma, Tragtenberg é um intelectual tanto no sentido atribuído por
Gramsci como por Sartre, porque
O intelectual é o homem que toma consciência da oposição, nele
e na sociedade, entre a pesquisa da verdade prática (com todas
as normas que ela implica) e a ideologia dominante (com seu
sistema de valores tradicionais). Essa tomada de consciência –
ainda que, para ser real, deva se fazer no intelectual, desde o
início, no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua
função – nada mais é que o desvelamento das contradições
fundamentais da sociedade, quer dizer dos conflitos de classe e,
no seio da própria classe dominante, de um conflito orgânico
entre a verdade que ela reivindica para seu empreendimento e os
mitos, valores e tradições que ela mantém e que quer transmitir
às outras classes para garantir sua hegemonia.” (SARTRE, 1994,
p. 30-1)
Apesar das convicções teóricas, Tragtenberg não é um intelectual dogmático. Sua
vasta leitura, sua vivência e convivência com a diversidade, sua tolerância com os que menos
têm, sua disponibilidade com aqueles que desejam aprender, mas, principalmente, a coerência
entre teoria e prática caracterizam-no um intelectual diferenciado. A sua orientação baseada
na dúvida, com a formulação de questionamentos cada vez mais profundos e pertinentes, com
o compromisso de aproximar-se da verdade sem dogmatismo torna-o um intelectual no
sentido pleno.
Avesso à burocracia da academia e questionador das regras burocráticas que
direcionam o ensino, não se importava com as disputas de “quantificação curricular”, com os
títulos acadêmicos. É um intelectual diferenciadoi. Sem se apegar ao mainstream acadêmico
ou ser um acadêmico programado, Tragtenberg é um intelectual radical. Tragtenberg teve
posicionamento político claro e objetivo até mesmo quando defendia a classe trabalhadora
contra as investidas do poder das elites capitalistas sempre compromissado com suas
convicções. Falava para a classe trabalhadora, seja pessoalmente ou por meio de colunas de
jornais, de tal forma que suas falas estão sempre, direta ou indiretamente, associadas a sua
história de vida. A forma como cresceu e aprendeu influencia diretamente na sua visão de
educação, em cujo potencial de emancipação sempre acreditou, apesar de ser um crítico dela.
Tragtenberg é neto de imigrantes judeus que se instalaram no Rio Grande do Sul e
viveu em uma fazenda de agricultura de subsistência. Desde cedo, começou a aprender
português, espanhol, esperanto e russo, o que veio a lhe ajudar futuramente nos estudos.
Frequentou o grupo escolar em Porto Alegre, mas só cursou até a terceira série do primário.

  3
 

Sua pouca experiência como aluno desde os anos iniciais do sistema tradicional de
ensino provavelmente influenciou na compreensão de que nem sempre o ensino tradicional é
a única forma de educação. Cria, desde cedo, a noção de que a educação acontece de diversas
formas e por vias nem sempre institucionais ou organizadas. Assim, sua experiência com a
Educação ocorre de forma não convencional, distante das vias da estrutura escolar tradicional.
Com a morte prematura do seu pai, transferiu-se para São Paulo, onde foi adotado pela
família Abramo, depois de ter vagado por alguns dias pelas ruas paulistanas. Essa família
iniciou-o na formação autodidata, proporcionando-lhe o afeto e o exemplo necessários. Nas
suas palavras: “Então, essa família [família ABRAMO] foi uma das minhas universidades.”
(MARRACH, 2001, p. 17).
A condição de judeu, de “desabrigado” e de estrangeiro no próprio país faz com que
Tragtenberg entenda o mundo com o sentimento de não aceitá-lo como ele se apresenta.
O autodidatismo é outro ponto central para compreender a relação que Tragtenberg faz
entre a aprendizagem e a educação. Para ele, sobretudo pelas suas atitudes com os próprios
alunos e orientandos de mestrado e doutorado, todo indivíduo é potencialmente autodidata e
capaz de estabelecer as próprias condições e metodologias de aprendizado. A liberdade em
poder escolher o que estudar é outro importante pressuposto que acompanha a vida de
Tragtenberg. A liberdade de escolha e a procura por aprender aquilo que realmente deseja sem
estabelecimento de regras ou metodologias pré-definidas e presentes nas organizações
escolares tradicionais são permanentes na obra e atitudes desse professor autodidata.
O ingresso na Universidade de São Paulo ocorreu após a realização da monografia sob
a orientação de Antonio Candidoii. Escreveu sobre o texto “Planificação - Desafio do século
XX” (TRAGTENBERG, 1967), que, posteriormente, foi transformado em livro.
Com a aprovação da monografia pela USP, prestou vestibular e, como o mesmo
Tragtenberg afirma, “ficou universitário”, iniciando o curso de Ciências Sociais, de que,
todavia, desistiu para cursar História e tornar-se bacharel nessa área. Essa formação permitiu
que tivesse embasamento consistente para analisar as mudanças ocorridas na sociedade.
Doutorou-se em Ciência Política também pela Universidade de São Paulo.
Mesmo sendo um combativo crítico ao processo de diplomação, Tragtenberg
beneficia-se dele para conseguir os títulos acadêmicos. Assim, de alguma forma, a mesma
burocracia e o formalismo que tanto critica nas organizações escolares acabam por afirmar
sua condição de professor universitário, burocraticamente formalizado.
Presta diversos concursos para o magistério, logrando êxito em todos. Lecionou no
Ensino Médio e em diversos cursos de graduação e pós-graduação de universidades como a
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade de São Paulo, Universidade
Estadual de Campinas e da Fundação Getúlio Vargas.
Suas relações com o trabalho sempre foram conturbadas, pois sua postura anarquista e
de ativista político causaram vários conflitos e demissões, sobretudo na época do Regime
Militar. Questões internas, de ordem pessoal, causaram certas dificuldades na condução da
sua vida profissional. Tragtenberg, em muitas situaçõesiii, era anarquista na escolha dos temas
das aulas e nas discussões promovidas para debater sobre vários livros, nem sempre mantendo
coerência epistemológica. Em outras situações, gostava de manter a ordem na sala de aula e o
disciplinamento, de forma que todos os alunos prestassem atenção nas suas exposições.
Observa-se não ser possível definir o que é real e o que é imaginário social na sua vida
acadêmica, sobretudo, nos tempos em que Tragtenberg é estudado e homenageado
frequentemente.
Outra experiência bastante marcante foi o tempo em que frequentou a Biblioteca
Municipaliv, onde iniciou sua formação heterodoxav, conciliando seu trabalho (na Companhia
de Água do Estado de São Paulo, local onde conheceu a burocracia de perto) e a leitura. É
importante ressaltar, aqui, o frequente equívoco com a noção de heterodoxia. Uma formação
  4
 

heterodoxa não está, necessariamente, associada à quantidade de livros lidos ou estudados por
alguém, mas principalmente reflete a capacidade analítica de um estudioso em compreender
as diversas leituras e a realidade por meio de embasamento teórico consistente. Tragtenberg
pode ser considerado heterodoxo, caso o critério seja a quantidade e qualidade das suas
leituras, entretanto, se forem levadas em consideração as análises sob o ponto de vista da
coerência epistemológica ou das temáticas desenvolvidas por ele (o tema da burocracia é o
objeto central de estudo), deve-se ser prudente nessa afirmação. Frequentando a referida
biblioteca, conheceu os grandes pensadores de Aristóteles a Splenger, tendo sido leitor atento
de todos os clássicos da Filosofia, da História e da Sociologia, mas também da Literatura,
como as obras de Dostoievski. Essa aproximação com diversos autores, contudo, não
dificultou Tragtenberg na sua opção quanto à linha de pensamento que guiaria seus escritos.
Mesmo quando faz “conversar” Marx e Webervi, o faz com extrema competência,
definindo, por meio da dialética e de uma sociologia compreensiva, Marx como um crítico da
infraestrutura e Weber (1979a, 1979b, 2003b), da superestruturavii. Apesar dessa suposta
separação, não deixa de avaliar e criticar o entendimento de Weber em relação à sua
compreensão da economia e às suas posições políticas. Suas críticas e observações são
fundamentadas no capítulo “Max Weber”, do seu livro “Burocracia e Ideologia”
(TRAGTENBERG, 1974, p. 108-185).
Igualmente, é importante observar que, mesmo qualificando Weber na crítica da
superestrutura, em referência ao processo de racionalização consolidada na formação de uma
burocracia de dominação, Tragtenberg não abandona, no plano da superestrutura, as
contribuições de Marx principalmente, quanto à ideologia. Seu estudo que comprova tal feito
é “Administração, poder e ideologia” (TRAGTENBERG, 1989), obra em que afirma que a
Teoria Geral da Administração não passa de ideologia presente, como forma de controle nas
grandes organizações e de sedimentação da exploração e da dominação decorrentes da
organização e das relações de produção no plano da divisão do trabalho. Weber e Marx são,
evidentemente, os autores que mais influenciaram Tragtenberg, embora muitas tenham sido
suas leiturasviii. Ele leu desde os autores europeus (Althusser, Foucault e outros) até os
anarquistas, os socialistas libertários, Freud e muitos outros, dos quais muitos eram moda em
seu tempo e outros, quase desconhecidos pela maioria dos leitores. Além de Weber e Marx,
outras importantes influências foram: Kropotkin, Bakunin, Trotski e os literatos Tolstoi e
Dostoievski.
De Kropotkin (2001, 2005, 2007), Tragtenberg (1987) absorveu as contribuições
relacionadas ao “comunismo libertário”, cuja concepção central é a de que o critério para o
consumo seja a necessidade e não o trabalho, sem que isso implique deslocar o trabalho do
foco central, pois, sem ele não há consumo. Para isso, fazia-se necessário um sistema de
distribuição livre da produção, o que provoca o raciocínio de que não se poderia medir a
contribuição – na administração atual, a produtividade – do indivíduo na produção social.
Kropotkin, dentro do entendimento socialista, defende a coletivização dos meios de produção,
fato que leva, consequentemente, a uma transformação social orientada para a inevitável
distribuição livre e extinção de qualquer forma de salário.
O pensamento e escritos de Tragtenberg recebem também a influência de Bakunin
(1999, 2001, 2003a, 2003b), que conheceu Marx e Proudhon. Suas principais ideias
consistiam na defesa de que as energias revolucionárias devem se centrar na destruição das
“coisas”, inclusive do Estado, e não dos indivíduos. Bakunin foi um crítico de Comte, pois,
em suas obras, este defende a centralização da autoridade e do Estado, enquanto o primeiro
(Bakunin) impediria a evolução dos Estados e dos indivíduos. Chegou a defender inclusive a
ideia do fim do Estado, não deixando, no entanto, de fazer críticas ao Estado Comunista. Ao
passar à compreensão antiautoritária com suas ideias, influenciou várias organizações de
proletariados de países como Rússia, Itália, Espanha e também do Brasil, procurando unir os
  5
 

anarquistas e influenciando vários movimentos cooperativistas de ocupação e reforma urbana


e de grupos locais e internacionais autogestionados.
Trotski (1977, 2001a, 2001b) exerce outra relevante orientação no pensamento de
Tragtenberg sobretudo nos anos em que ele inicia sua jornada acadêmica, com a noção de
“Degenerescência do Estado, concepção bastante presente nos textos do pensador brasileiro,
especialmente nas entrelinhas dos escritos no Jornal Notícias Populares, na Coluna “No
Batente” .
Em si, o pensamento era: para que a revolução socialista ocorresse em países
semifeudais, ou em que as forças produtivas estivessem menos desenvolvidas, o sucesso da
superação do capitalismo para o socialismo somente poderia se confirmar se as revoluções
socialistas fossem também vitoriosas nos países mais desenvolvidos. Dessa forma, a
revolução deve ser “permanente”, ou seja, de forma contínua para que o mundo como um
todo supere o sistema de produção capitalista. Se esse fato não ocorrer, haverá uma
“degenerescência” da transformação e da superação do sistema capitalista para o sistema
socialista. Outra tese importante no pensamento de Trotski, que também comparece em
Tragtenberg, é a noção de “degenerescência burocrática das organizações operárias”. A
exploração capitalista estimula o desenvolvimento político do proletariado representado pelas
organizações operárias, que passam, com o tempo, a formar os “dirigentes profissionais”, ou
os “burocratas” dos sindicatos, como afirma Tragtenberg em vários textos. Esse movimento
leva à formação do “Estado Operário”, que pode seguir duas tendências: primeiro, os
“burocratas” concentram o poder e remetem as massas e os sindicalizados a posições
passivas. Segundo, procuram alcançar níveis mais graduados de desenvolvimento econômico
e cultural, induzindo para uma participação popular mais acentuada e efetiva e enfraquecendo
o aparelho do Estado. Para Trotski, a construção de uma sociedade socialista só pode ocorrer
em escala mundial sem o caráter “mecânico”, progressivo e linear, diferentemente da
concepção estalinista.
Marcante contribuição também presente em boa parte dos escritos de Tragtenberg é a
noção de “democracia operária”, em que os trabalhadores se organizam para decidir o que
produzir e como produzir. Assim, formam-se as organizações de trabalhadores e organizações
de consumidores para a elaboração de um plano econômico comum e compartilhado
socialmente. No sistema burocrático de economia planificada, não há como assegurar que o
produzido traduza realmente uma necessidade imediata. Há uma inversão, porque é a
produção que dita o aparecimento de novas necessidades e muitas delas podem se configurar
artificiais e criadas. Caso o modelo burocrático atinja dimensões totalitárias dentro de um
sistema econômico, segundo Trotski, uma revolução operária é inevitável. Se tal revolução
operária não ocorrer, uma “contrarrevolução social” decorrerá da ineficiência econômica e
pelo desejo dos burocratas de se manterem no poder e de restaurar a condição da propriedade
privada.
As contribuições de Tolstoi (2004, 2007) e Dostoievski (2008) são também relevantes,
sobretudo, no período em que Tragtenberg frequentou a Biblioteca Municipal Mário de
Andrade. Os romances dos dois grandes escritores russos do século XIX foram decisivos para
iniciar sua caminhada nas obras dos anarquistas, socialistas libertários, mas, também, na
compreensão de Marx.
Os pensadores anarquistas exerceram acentuadas influências no pensamento de
Tragtenberg, no plano teórico, com as concepções de Estado e sobre a força do operariado
como agente revolucionário, contudo, a influência maior dos anarquistas se faz em relação às
suas atitudes. Em determinadas situações, Tragtenberg incorpora o “comportamento
anarquista” e, em outras situações, o oposto. Ressalta-se que as teorias que influenciaram os
escritos de Tragtenberg são diversas, nem sempre seguindo uma tendência epistemológica
linear.
  6
 

Em referência às contribuições de Marx, praticamente toda a obra de Tragtenberg,


desde suas contribuições nos artigos de jornais, revistas científicas e livros, é influenciada
pelos conceitos de classes sociais, de divisão do trabalho, de relações de produção, de forças
produtivas, de ideologia, de alienação e outros, ou seja, dos principais conceitos presentes nas
obras marxistas. Além das contribuições conceituais, o método também se faz importante,
uma vez que desde o início das suas obras Tragtenberg se utiliza da dialética para realizar
suas reflexões e, no decorrer deste trabalho, essa prática se fará evidente.
Por todos os autores que o influenciaram direta e indiretamente, pela “junção” e
“conversa” entre eles, tentando não perder a coerência epistemológica e pelo método adotado
nas suas análises, Tragtenberg é considerado por muitos um estudioso diferenciadoix.
A maioria dos seus leitores considera que ele escreveu muito mais textos sobre as
temáticas relacionadas ao trabalho do que sobre Educação, embora se encontrem vários
escritos seus sobre esse tema, sobretudo, relacionados a experiências educacionais, políticas
educacionais e educação em instituições não escolaresx. As experiências e conhecimentos
adquiridos sobressaem pela sua trajetória pessoal, mas também pelas diversas orientações de
dissertações e teses. Essa experiência, por meio das orientações realizadas e valorizadas pelo
próprio Tragtenberg, somadas à sua experiência de vida como educador, é responsável pela
construção do seu perfil combativo, sempre alicerçado por textos críticos e curtos e por
reflexões mais elaboradas que, posteriormente, foram lançadas em forma de livros.
Em geral, os escritos de Tragtenberg abordam temáticas ligadas às políticas de
governo, de universidades e de programas oficiaisxi. Em razão de sua história pessoal e de sua
prática profissional relacionada à Educação, a concepção de escola, para esse pensador, não é
uma concepção naturalizadaxii. Como aprendeu na prática que a educação não ocorre somente
na forma sistematizada, organizada e em estruturas burocráticas como a escola, via na
burocracia da Educação um meio de disciplinamento e aprisionamento.
Seus escritos sobre Educação foram, em um determinado período, influenciados por
Francisco Ferrerxiii, que concebe uma escola muito diferente da escola tradicional (FERRER,
s.d.), pois a vê sempre como uma organização de classe, como resultado das relações de
produção estabelecidas na sociedade. Pensador de ideias avançadas e diferenciadas do modelo
de escola tradicional, Ferrer é defensor da participação igualitária da mulher em todas as
instâncias sociais. Pedagogo libertário, via a Educação como a possibilidade de realização da
emancipação individual e coletiva. “Desertor da burguesia, enfatizava o papel da educação na
renovação social, uma educação livre de quaisquer ‘ismos’, na qual não atuasse a violência
refinada, a violência simbólica. Ciência, liberdade e solidariedade se constituíam no seu ideal
pedagógico.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 136-137).
Ferrer é um escritor importante na construção do entendimento de Tragtenberg sobre a
pedagogia libertária, cujas contribuições teóricas deságuam na maioria das leituras feitas e
presentes na sua obra, sem, no entanto, configurar pleno assentimento por esse intelectual, que
não perde a oportunidade de fazer considerações a respeito e de questioná-las.
Com a experiência de vida e as leituras que adquiriram “força material” na formação
da sua consciência, Tragtenberg desenvolveu um jeito peculiar de pensar, sobretudo, se for
levada em conta a Educação na atualidade.
Seu método de ensinar era único, sempre procurando a emancipação dos que tinham
vontade em aprender, ensinava a aprender: a ler, a escolher a bibliografia adequada, a pensar,
a questionar, sem, contudo, ser dogmático. Entretanto, não era considerado um bom professor
para os alunos que necessitavam do método mais tradicional de estudo. Era conhecedor de
vários temas sem se restringir a demasiada especialização e com isso provocar o
engessamento da crítica, portanto, enfatizava a interpretação crítica, reflexiva. Para ele, dados
e informações tinham relevância, mas não deveriam ser mais importantes do que a críticaxiv.

  7
 

Era dotado de memória privilegiada, sabia onde estava determinada citação, sempre
mencionando o nome do livro, o autor e, em muitos casos, a página. Sua autonomia estava
ligada diretamente à leitura, reconhecendo seu papel diferenciado como orientador da
aprendizagem, convicção que pode ser confirmada com a biblioteca adquirida durante sua
vida. Preservava livros de diversas línguas, muitos dos quais viviam empilhados por falta de
espaçoxv. A experiência com os livros sempre foi mais prazerosa do que a experiência com
seus professores ou nas organizações burocráticas em que trabalhou. Assim, para
Tragtenberg, submeter-se a uma situação hierárquica em Educação era difícil.
Em suas obras, depreende-se que é possível educação para além das fronteiras da
escola tradicional, acontecendo oportunidades de aprendizagem, momentos de articulação da
teoria e das ações necessárias para mudança real do cotidiano até mesmo em reuniões
informais com a participação de pessoas da família, em momentos de descontração e lazer,
por meio de debates, críticas e questionamentos. Assim, transformava articulação política em
aprendizagem, ou seja, estabelecia a relação entre teoria e práticaxvi.
A vocação de educador é fortemente inerente em Tragtenberg, para quem não eram
necessárias salas de aula para ensinar e aprender, pois, se valia de reuniões em locais pouco
convencionais para apresentar suas convicções e articulações políticasxvii. Todavia, exerceu a
docência no ensino secundário e universitário, sempre ensinando de acordo com suas
convicções políticasxviii, sem, no entanto, ter o objetivo de criar discípulosxix.
Preferia compartilhar conhecimentos a tornar-se um mito e, de forma coerente, não se
veiculava a grupos políticos, não seguia modismos acadêmicos e nem cedia à sedutora
“indústria intelectual” para obter prestígio ou vantagens profissionais tão comuns nos dias
atuais. No meio acadêmico, Tragtenberg ficou conhecido como autodidata (o que era apenas
parcialmente verdadeiro, embora ele próprio costumasse alardear, provocativamente, o seu
"primário incompleto"), por agir como pessoa com capacidade de aprender algo sem ter um
professor ou mestre lhe ensinando ou instruindo mediante aulas. O autodidata, por meio do
próprio esforço, busca e pesquisa o material necessário para sua aprendizagem, aprende por
si, sem auxílio de professores. Suas aulas eram frequentadas não só por alunos regulares, mas
também por numerosos ouvintes não matriculados. Por seu espírito rebelde e senso de humor
sempre sarcástico, mas sobretudo por sua profunda generosidade intelectual, Maurício
Tragtenberg foi muito admirado pelos alunos.
Ele é um crítico diferenciado e de vanguarda em relação às novas formas de produção
do trabalho, tendo sido pioneiro na crítica ao toyotismoxx. Sua crítica era compartilhada com
os trabalhadores, a serviço de quem sempre esteve xxi, antes mesmo de compartilhar com os
intelectuais. Crítico e cético, porém combativo e engajado politicamentexxii, sua pretensão
sempre foi a de contribuir para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de
qualquer forma de dominação e exploração, embora nunca tenha se iludido em relação à
condição humana.
Tragtenberg é um crítico democrático, não restringindo suas exposições, aulas ou
debates ao meio acadêmicoxxiii. Suas observações superam o provincianismo e a possibilidade
de enclausuramento do pensamento crítico às instâncias da academia ou de uma elite letrada.
Sua crítica vai além da moralxxiv, caracterizada como refúgio da hipocrisia, sobretudo,
quando o debate tinha como centralidade o mero comportamento em detrimento das
motivações que levam os indivíduos a se comportarem de determinada forma. Sua
preocupação, destarte, é em relação à práxis revolucionária. Essa postura, como crítico, faz de
Tragtenberg um revolucionário coerente entre o pensamento e a ação, ou seja, entre o que é
dito e o que é feitoxxv. Profundo conhecedor da história e convicto da superação do sistema
capitalista, postulava-se um socialista libertário e heterodoxoxxvi, deixando clara a influência
de Bakunin e Kropotkin no seu pensamento.

  8
 

Na seção “No Batente”, do Jornal “Notícias Populares”, escreveu para os operários e


trabalhadores em geral, com quem estabeleceu uma relação direta durante anos. Em suas
palavras, “a seção dirige-se a quem está ‘no batente’ e não àqueles que estão afastados da
produção querendo falar em nome dos que trabalham. Receberá com o maior interesse e
atenção cartas de trabalhadores que retratem os problemas do interior da fábrica como
sugestões de temas de interesse de quem trabalha, de que a seção deva tratar. (No Batente,
6.12.1981)”.
Sem receber crédito pelo canal de comunicação estabelecido com os trabalhadores
(principalmente no meio acadêmico, que reduz como legítimos alguns poucos veículos de
comunicação, como o oficial do meio científico), “No batente” “contribuiu para mostrar aos
trabalhadores em geral que muitos dos problemas cotidianos por eles enfrentados não eram
pessoais ou subjetivos, mas sim compartilhados por demais outros companheiros em vários
outros locais, às vezes, bastante distintos, abrindo assim espaço para a percepção do
mecanismo real de atuação das engrenagens do poder capitalista.” (MOREL, 2001, p. 286)
Para alguns, Tragtenberg cai no equívoco de estabelecer uma “teoria do bom
operário”, ainda que seja uma crítica reducionistaxxvii. Avaliando seus escritos mais
profundamente, sobretudo os direcionados aos trabalhadores, destaca-se sua crença na
possibilidade de uma sociedade melhor num sistema que privilegie os aspectos positivos dos
indivíduos em relações sociais igualitárias. Assim, superar a concentração dos meios de
produção (por meio da propriedade privada ou da posse) nas mãos de elites torna-se condição
elementar para se eliminar uma das várias formas de dominação existentes na sociedade.
Tragtenberg é um intelectual sem vaidadexxviii, característica comum entre os
acadêmicos e de grande parte daqueles que se julgam depositários de um saber específico. Sua
solidariedadexxix foi resultado de sua história, das relações estabelecidas ao longo da sua vida
e das pessoas com quem conviveu. Sua severidade estava nas suas convicções e não na
postura austera adotada por muitos, quando representam uma classe ou um grupo de
pessoasxxx. Pode-se alinhar Tragtenberg ao perfil: “o intelectual público, diferenciado do
acadêmico esnobe e descomprometido, [que] é aquele que, segundo Adorno, falando de
Proust, evita a deselegância de deixar o leitor imaginar-se menos inteligente do que o autor do
texto que ele lê.” (RESENDE, 2001, p. 136)

2- Aspectos Metodológicos na Elaboração da História Intelectual


Alguns aspectos metodológicos precisam ser levados em consideração ao se tratar da
história intelectual, uma vez que alguns deles são pertinentes para qualquer área de
conhecimento, como é o caso do método de análise. A coerência epistemológica é um critério
fundamental na elaboração de estudos na história intelectual, pois manter os pressupostos que
norteiam a análise dos fatos garante encadeamento lógico e coerência para o leitor. A história
intelectual de Maurício Tragtenberg analisada adota o materialismo histórico como método
epistemológico, o que pode ser verificado, especialmente, porque os fatos concretos vividos
por Tragtenberg influenciam na construção da sua identidade. A força dos acontecimentos
reais da aprendizagem autodidata, por exemplo, são estruturantes na forma como Tragtenberg
concebe a educação e estabelece vínculos com seus alunos e orientandos.
O encadeamento histórico é outro elemento basilar, porque a organização dos fatos em
ordem cronológica pode ajudar na compreensão da trajetória intelectual do autor. Note-se que
encadear significa harmonizar fatos dentro de uma perspectiva temporal, portanto, trazer à
pesquisa todos os fatos históricos significativos é atitude de grande relevância para ser
adotada pelo pesquisador.
Em relação aos instrumentos de coleta de dados, o rigor na escolha e na utilização
garante resultados expressivos à pesquisa. Saber fazer entrevistas de coleta de depoimentos
pessoais configura-se central para garantir fidedignidade nas informações, bem como procurar
  9
 

comprovar fatos por meio da análise de documentos. O exame de cartas, de correspondências


eletrônicas, de registros e documentos oficiais, de fotos, de currículos, etc., são instrumentos
essenciais para gerar hipóteses, comprovar fatos ou mesmo questionar aquilo que é
considerado verdade.
As entrevistas e coletas de depoimentos precisam ser contextualizadas no seu período
histórico. A situação de o intelectual estar vivo no momento da pesquisa afeta diretamente na
forma e no conteúdo dos depoimentos e entrevistas. Em situações festivas e de homenagens
póstumas, há sempre a tendência de supervalorizar as virtudes e minimizar as limitações do
homenageado, ponderações fundamentais para evitar mistificações em relação ao intelectual.
A capacidade de evitar “exageros” garante análise mais realista.
Observa-se que, no caso da análise realizada sobre Maurício Tragtenberg, os
depoimentos apresentados são póstumos à sua morte, quando ainda havia um contexto de
homenagens a ele. Nesses casos, é mister sempre citar a fonte do depoimento específico e
fazer relações com o conjunto total dos demais depoimentos. Essa atitude ajuda o pesquisador
a centrar no fato em si, ao invés de simplesmente acreditar no depoimento apresentado.
As análises das obras do autor e da sua produção intelectual constituem outro
respeitável objeto de análise, pois sempre apontam para um contexto específico vivido pelo
autor. Momentos de produção intelectual refletem contatos estabelecidos com linhas de
pensamento, contextos econômicos, políticos e ideológicos, vivências pessoais e
acontecimentos marcantes experienciados pelo autor. Quanto mais documentos, depoimentos
e comprovações relacionados ao período específico da obra o pesquisador conseguir, mais
assertividade ele terá na apresentação dos dados. Esses elementos podem ser percebidos na
apresentação da trajetória intelectual de Maurício Tragtenberg. A formação anarquista pode
ser percebida com a proximidade que teve com autores como Bakunin, Trotski e Kropotkin,
por exemplo. Sua relação com Weber e Marx e a experiência na Companhia de Água, como
funcionário da burocracia estatal, foram fundamentais para a elaboração dos seus trabalhos
sobre burocracia.
Quanto à redação, deve-se ressaltar que a história intelectual evita o estilo jornalístico
ou qualquer forma de espetacularização. O texto precisa ser apresentado de forma coesa e
consistente, com primazia da comprovação dos fatos para evitar que o estilo da redação
suplante o próprio conteúdo.
Não há unanimidade em relação à metodologia mais adequada para se fazer história
intelectual, sendo várias as técnicas que podem ser utilizadas, quase todas relacionadas à
abordagem qualitativa de pesquisa. Alguns estudos de história intelectual podem servir de
base para o pesquisador que eleja o campo de estudos organizacionais. O estudo de
Tragtenberg apresentado segue uma metodologia muito próxima da história intelectual
realizada nos estudos literários e/ou filosóficos.
Este texto tem a pretensão de apenas apresentar algumas observações de natureza
metodológica com base em um estudo de história intelectual. Dessa forma, é muito mais uma
apresentação metodológica para discussão do que para concretização e consolidação de um
modelo metodológico.

3 - A História Intelectual nos Estudos Organizacionais


Alguns textos como os de Paula (2001, 2008, 2009), de Faria (2001), de Valverde
(2001), de Motta (2001) e de Maranhão et. al. (2010) contêm escritos que abordam as
contribuições e a importância de Maurício Tragtenberg para a administração e a área de
estudos organizacionais. Todavia, não fazem uma análise histórica da trajetória do autor, mas
das percepções particulares de cada um em relação à pessoa e às contribuições de
Tragtenberg. Obviamente, esses textos são importantes, sobretudo, porque ajudam a

  10
 

compreender como a área de Teoria Crítica se iniciou e se desenvolveu na área de estudos


organizacionais.
Alguns esforços dessa natureza são feitos em relação a alguns intelectuais da área,
como é o caso de Guerreiro Ramos. Entretanto, em nenhuma situação, os estudos dos
intelectuais da área vêm acompanhados da forma como eles construíram sua trajetória
intelectual, profissional e acadêmica. O máximo que acontece são apresentações de
informações sobre esses autores nos encontros e congressos da área. Dessa forma, estudar a
história intelectual de autores da área de estudos organizacionais revela-se um proeminente
passo para amadurecimento em relação às reflexões desses autores. Na área de Filosofia, sua
história se encarrega de fazer esse papel; na de Educação, estudos sobre os grandes
educadores e pedagogos são frequentes e na área de Ciências Sociais, a história intelectual é
uma constante. Essas comprovações demonstram amadurecimento dessas áreas de
conhecimento, sobretudo, porque procuram conhecer a fundo a origem de certos
pensamentos.
Ainda, o aparecimento sistemático de estudos sobre história intelectual propicia
clarificar e corroborar linhas de pensamentos, concepções epistemológicas e posicionamentos
políticos, ocorrendo, da mesma forma, com concepções metodológicas. A história intelectual
dos estudos organizacionais pode abrir, caso seja feita com rigor, novas perspectivas para a
área, principalmente, no mapeamento qualitativo das concepções dominantes e sua evolução
histórica.
A necessidade de se evitarem mistificações ou mitificação de determinados autores
representa contribuição imperativa e prudente. A formalização imposta à pesquisa
sistematizada na história intelectual evita fazer com que fatos se tornem fantasias ou exageros
daqueles que, de forma apaixonada, optam por determinadas concepções teóricas sem manter
uma perspectiva crítica sobre a mesma.
A área de estudos organizacionais ainda se encontra imersa em uma arena de conflitos
teóricos. Os grupos que atuam nos estudos organizacionais (área de conhecimento
relativamente nova, pois, nesse campo, menos de cinquenta anos representam um tempo bem
recente) ainda estão tentando firmar suas concepções teóricas, epistemológicas e mesmo
ontológicas. Somada aos modismos que invadem a área e que acabam orientando os
pesquisadores para escrever sobre os temas da “atualidade”, a área de estudos organizacionais
pouco ou nada se preocupa em formalizar as correntes de pensamentos existentes, as
abordagens teóricas e os intelectuais que vêm contribuindo sistematicamente para o
fortalecimento de determinadas áreas de estudos.
A tendência, que se verifica na atualidade, é criar um fetiche sobre os pesquisadores da
área, mormente daqueles que ocupam cargos ou posições estratégicas em associações
nacionais, revistas científicas de renome, escolas renomadas ou pessoas que criam boas redes
de relacionamentos. A ideia da história intelectual é abordar como as influências de outros
intelectuais, como a vivência pessoal na academia, como a trajetória profissional, como os
escritos do pesquisado, como as redes de relacionamento, enfim, como os fatos históricos
formam a história intelectual de um determinado estudioso da área organizacional. Essa
postura evita idolatrias a determinados personagens ao mesmo tempo em que esclarece como
a história de um intelectual acaba por influenciar a história de uma coletividade.
Naturalmente, a inserção da história intelectual na área de estudos organizacionais
exige esforço para que os pesquisadores se adaptem às metodologias de estudo pertinentes.
Todavia, abre-se um campo de pesquisa que, com o tempo, acaba fortalecendo a área e
fazendo da história um elemento essencial para amadurecimento dos estudos organizacionais.

Referências

  11
 

ALTAMIRANO, Carlos. Idéias para um programa de História intelectual. Tempo e


sociedade. São Paulo, v. 19, n. 1, jun. 2007. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
20702007000100001&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 10 fev. 2009.
ANTUNES, Ricardo. Maurício Tragtenberg: a perda de um intelectual herético. In:
ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida
para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
BAKUNIN, Mikhail A. Textos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 1999.
_____. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2001.
_____. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003a.
_____. A instrução integral. São Paulo: Imaginário, 2003b.
BRUNO, Lúcia. A heterodoxia no pensamento de Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E
SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as
Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
DOSTOIEVSKI, Fiódor. Fiódor Dostoievski - Obra Completa - 4 Vols. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2008.
FARIA, José Henrique de. Poder e participação: a delinqüência acadêmica na visão
tragtenberguiana. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v.41, n.3, jul-set.
2001. Disponível em
<http://www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=1129&Secao=DOC&Vo
lume=41&Numero=3&Ano=2001> acesso em 6 nov. 2009.
FERREIRA, Pedro Roberto. Anotações para um socialismo libertário (II). In: ACCIOLY E
SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as
Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
FERRER, Francisco. La escuela moderna. Ed. Racionalista, s.d.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 8.ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.
GONZALES, Horácio. O que são intelectuais. São Paulo: Brasiliense, 1981.
KROPOTKIN, Piotr. O Estado e seu papel histórico. São Paulo: Imaginário, 2001.
_____. Palavras de um revoltado. São Paulo: Ícone Editora, 2005.
_____. O princípio anarquista e outros ensaios. São Paulo: Editora Hedra, 2007.
LOUREIRO, Isabel. Rosa Luxemburgo e Marcuse, segundo Maurício Tragtenberg. In:
ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida
para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
LÖWY, Michael. Maurício Tragtenberg, espírito libertário. In: ACCIOLY E SILVA, Doris;
MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São
Paulo: Editora UNESP, 2001.
MARANHÃO, Carolina Machado Saraiva; KLECHEN, Cleiton Fabiano; PAULA, Ana Paula
Paes de; BARRETO, Raquel de Oliveira. A tradição e a autonomia dos estudos
organizacionais críticos no Brasil. Revista de Administração de Empresas. São Paulo,
v.50, n.1, jan-mar. 2010. Disponível em
<http://www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=5521&Secao=ARTIGO
S&Volume=50&Numero=1&Ano=2010> acesso em 05 jan. 2010.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o Homem Unidimensional. 6.ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
_____. Cultura e sociedade. Vol. 1 e 2. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
MARRACH, Sonia Alem. Memórias de Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E SILVA,
Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências
Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

  12
 

MATOS, O. F. Maurício Tragtenberg: uma saudade. Jornal Muito+, São Paulo, n. 27, ano
VIII, set. 1999.
MOREL, José Carlos Orsi. Maurício Tragtenberg, a solidariedade de classe e as lutas sociais
em São Paulo. In: ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício
Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
MOTTA, Fernando Claudio Prestes. Maurício Tragtenberg: desvelando ideologias. Revista
de Administração de Empresas. São Paulo, v.41, n.3, jul-set. 2001. Disponível em
<http://www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=1096&Secao=DOC&Vo
lume=41&Numero=3&Ano=2001> acesso em 6 nov. 2009.
NEVES, Luiz Felipe Baêta. História intelectual e história da educação. Revista Brasileira de
Educação. Rio de Janeiro, v. 11, n. 32, ago. 2006. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782006000200012&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 2 abr. 2009.
PAULA, Ana Paula Paes de. Tragtenberg e a resistência da crítica: pesquisa e ensino na
administração hoje. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v.41, n.3, jul-set.
2001. Disponível em
<http://www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=1133&Secao=DOC&Vo
lume=41&Numero=3&Ano=2001> acesso em 23 nov. 2009.
_____. Maurício Tragtenberg: contribuições de um marxista anarquizante para os estudos
organizacionais críticos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 5,
out. 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
76122008000500007&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 10 fev. 2010.
PASSETTI, Edson. Maurício Tragtenberg, um socialista heterodoxo. In: ACCIOLY E
SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as
Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
RESENDE, Paulo-Edgar Almeida. Maurício Tragtenberg: o intelectual sem cátedra, o judeu
sem templo, o militante sem partido. In: ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia
Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora
UNESP, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
SILVA, Antonio Ozaí da. O movimento social numa perspectiva libertária: a contribuição de
Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem.
Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP,
2001.
SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da história intelectual – entre questionamentos e
perspectivas. Campinas: Papirus, 2002.
TRAGTENBERG, Maurício. Planificação Desafio do Século XX. São Paulo: Senzala, 1967.
_____. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática 1974.
_____. No Batente. Notícias Populares, 6.12.1981.
_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Autores Associados, Cortez, 1982.
V.1 – Educação.
_____. No Batente: Criada comissão de fábrica dos trabalhadores da Asama. Notícias
Populares, 25.8.1982.
_____. Kropotkin: textos escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1987.
_____. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Ática, 1989.
_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
TOLSTOI, Liev. Guerra e Paz. Vol. 1 e 2. Porto Alegre: L&PM, 2007.
_____. Obra completa de Leão Tostoi. 3 vol. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
TROTSKI, Leon. Escritos sobre la cuestion feminina. Espanha: Anagrama, 1977.
_____. A Revolução de Outubro. São Paulo: Boitempo Editoral, 2001a.
  13
 

_____. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001b.


UHLE, Agueda Bernardete Bittencourt . Tragtenberg e a educação. In: ACCIOLY E SILVA,
Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências
Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
WHITAKER, Dulce C. A.. Maurício Tragtenberg: Uma vida para as ciências humanas.
Educação e Sociedade. Campinas, v. 23, n. 78, abr. 2002 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
73302002000200018&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 10 fev. 2010.
VALVERDE, Antonio. Elogio de Maurício Tragtenberg. In: ACCIOLY E SILVA, Doris;
MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São
Paulo: Editora UNESP, 2001a.
VALVERDE, Antonio José Romera. A inteligência do orientador. Revista de
Administração de Empresas. São Paulo, v.41, n.3, jul-set. 2001b. Disponível em
<http://www16.fgv.br/rae/rae/index.cfm?FuseAction=Artigo&ID=1109&Secao=DOC&Vo
lume=41&Numero=3&Ano=2001> acesso em 10 out. 2009.
                                                            
i
“Falemos, sim, de alguém que dignifica a vida acadêmica, fora das disputas de quantificação
curricular, com o tratamento enérgico dos problemas, matizado ora de verve, ora de sátira
corrosiva do establishment burocrático. Poucos intelectuais deste país têm igual percurso, não
previsto. É o intelectual original.” (RESENDE, 2001, p. 137)
ii
“Um dia, na Biblioteca, o Antonio Candido me disse: ‘Maurício, você gosta de estudar. E há
uma lei federal que diz que, se você fizer uma monografia e a Congregação aprovar, você tem
direito de prestar vestibular na USP’. Eu fiz. E outras pessoas fizeram também. Era a única
forma de um autodidata ter acesso à universidade. Eu apresentei uma monografia sobre os
‘Fundamentos históricos do planejamento no século XX’. Resumi em 90 dias o que eu li
naqueles anos todos. Mas precisava ser bem penteado, bonitinho, não pode ser um troço
bah!!! E tá!!. Aí eu dei para Antonio Candido ler. Ele falou: ‘Isso é para a faculdade, esses
termos aqui, toma cuidado, que isso não é um manifesto conclamando a nada, isso é um
trabalho para a faculdade’, quer dizer, gente respeitável, respeitosa, bem vestida, com bons
dentes, come três vezes ao dia, gente decente, uns vieram do estrangeiro. Fiz a monografia.
Nomearam um relator. Era Cruz Costa, autor da História das Idéias no Brasil. Foi ele quem
introduziu a preocupação com o pensamento brasileiro, com a política brasileira. Ele era
baixinho, meio gordinho, conversava muito comigo no bar da Maria Antônia. Eu aprendia mil
vezes mais conversando com ele no bar que em muitas outras aulas. Fui aprovado. Aí fiquei
universitário”. Depoimento de Maurício Tragtenberg citado na obra de Marrach (2001, p. 21).
iii
Afirmações embasadas no depoimento espontâneo de José Henrique de Faria, aluno de
Tragtenberg que frequentou suas aulas.
iv
Conforme Tragtenberg afirma: “A Biblioteca Municipal, [foi] o melhor período da minha
vida.”
v
“Eu trabalhava, mas tinha tempo livre para a leitura. Foi o melhor período da minha vida! Eu
lia oito, nove horas por dia. Lia de tudo, de Aristóteles a Spengler. No começo, acontecia o
seguinte: lia muita ficção, sozinho; livros que eu escolhia. Nessa época, lia Dostoiévski.
Queria ler romance.” Depoimento de Maurício Tragtenberg citado na obra de Marrach (2001,
p. 18).
vi
Essa abordagem que aproxima Marx de Weber, já foi realizada por Marcuse no livro “O
Homem Unidimensional”, no Brasil publicado com o título “A ideologia da sociedade
industrial” (MARCUSE, 1982). A convergência entre Tragtenberg (1974) e Marcuse (1982,
1998) refere-se à crítica da neutralidade axiológica, do processo de racionalização e ao
equívoco de Weber em relação à análise da economia e por desconsiderar a noção de classes
sociais. “A segunda é que ‘O Homem Unidimensional’ pode ser considerado um livro
  14
 

                                                                                                                                                                                          
marxista weberiano; assim como Marcuse, Maurício também procurou juntar Marx e Weber.”
(LOUREIRO, 2001, p. 95).
vii
“O pensamento crítico de Maurício Tragtenberg é constituído através de Marx e Weber,
numa combinação da dialética com a sociologia compreensiva. Combinação – sempre
problemática – que Maurício vai assumir com a idéia de ser Marx o portador da penetrante
crítica da infra-estrutura do capitalismo e, Weber, o da superestrutura.” (FERREIRA, 2001, p.
197)
viii
“Maurício passou pelos modismos acadêmicos europeizantes: Lukács, Sartre e A questão
de método, Althusser, Foucault, etc. Não ficou com nenhum deles. E, mesmo dominando
cabalmente o marxismo, jamais fez dele um modelo redutor para as suas análises e críticas da
administração e da burocracia. Fez, sim, do anarquismo, marxismo, Weber, os teóricos da
administração, Marcuse, dos socialistas libertários, escadas de subir. Uma vez apoderado
dessas correntes de pensamento, lidava com elas com a maior liberdade possível.”
(VALVERDE, 2001a, p. 61-62)
ix
“Fortemente influenciado por Marx, Weber, pelos anarquistas e também por Trotski. Disso
resultou um autor criativo e agudamente crítico da sociabilidade contemporânea, agudamente
anticapitalista e contrário às formas de opressão antioperária. Ele atava vivamente sua
reflexão teórica ao solo societal brasileiro marcado por iniquidades que até hoje se
prolongam.” (ANTUNES, 2001, p. 101)
x
“Em primeiro lugar, descobri que guardei uma imagem do Maurício que a documentação de
sua produção intelectual não confirma. Por exemplo, eu tinha para mim que não encontraria
escritos sobre escola a não ser o clássico ‘A escola como organização complexa’. Engano.
Que eu encontraria muito poucas teses e dissertações orientadas por ele que tratassem de
escola ou de educação no sentido mais estrito do termo. Novo engano. São muitas as teses
sobre experiências educacionais, política educacional e educação em instituições não-
escolares. Estas últimas, sim, eu esperava encontrar, mas não as outras.” (UHLE, 2001, p.
149)
xi
“Observei que a maioria dos artigos escritos no final da década de 1970 e início da década
de 1980 tem uma característica comum: são textos de militâncias, ou textos de combate,
melhor dizendo. Neles, o autor analisa políticas de governo, de universidades e programas
oficiais. Os textos que estou chamando aqui de textos de combate são pequenos artigos
escritos com o objetivo de participar de um debate público ou mesmo de estabelecer um
debate, provocando os responsáveis pela educação, sejam eles do poder público ou de
empresas privadas. Trata-se sempre de manifestação do intelectual sobre os problemas mais
relevantes no seu campo de trabalho.” (UHLE, 2001, p. 152)
xii
“No caso de Tragtenberg, a situação é diferente, mas permite um certo paralelo. Ele foi
expulso da escola, na infância, só voltando a ela depois de adulto, passando por exames de
reingresso e toda sorte de concursos, seja como estudante, seja, depois, como professor. Esse
aspecto pode ter contribuído para que sua concepção de escola não fosse naturalizada como o
é a da maioria dos autores que escrevem sobre o tema.” (UHLE, 2001, p. 160)
xiii
“A cada pai que inscrevia [na escola] filho homem, Ferrer pedia que inscrevesse também
as do sexo feminino, tornando pública a intenção de co-educação na Escola Moderna,
evitando assim os temores de crítica do ambiente à co-educação, à coexistência dos dois sexos
numa sala de aula... Ferrer pregava um tipo de mulher não limitada à casa. Para que tal fosse
possível, os conhecimentos, em nível de qualidade e quantidade, deveriam ser idênticos aos
recebidos pelos homens. Tanto mais que a mulher poderia acompanhar a evolução e o
desenvolvimento da ciência, beneficiando-se da aplicação do método científico.”
(TRAGTENBERG, 1982, p.107)”

  15
 

                                                                                                                                                                                          
xiv
“Em poucas palavras, Maurício ensinava a ensinar, ensinava a ler, ensinava a pensar e
ensinava a selecionar obras importantes e obras desimportantes e desnecessárias. Dava pouca
ênfase à transmissão de informações e de conteúdos; dava muita ênfase à interpretação crítica
e, sobretudo, à indicação das obras primordiais, imprescindíveis, conforme o interesse de cada
um, independentemente do campo de estudo. Não existia área de conhecimento em que ele
não trouxesse contribuição segura, válida, atual, referente a qualquer época. Tal abrangência
relativa a obras, a artigos, a edições raras ou não, em diferentes línguas, vem confirmada nos
escritos, especialmente nos livros.” (LÖWY, 2001, p. 50)
xv
Relato conforme depoimento espontâneo do professor Doutor José Henrique de Faria, de
quem foi informalmente orientador.
xvi
“Maurício, sua companheira e seus filhos estiveram presentes em muitas dessas reuniões;
discutia-se muito, não apenas teoria, mas também os rumos práticos do movimento e, num
clima bastante informal, aprendia-se tanto na convivência despretensiosa quanto nas ocasiões
mais formais, nas reuniões, palestras e nos debates que organizávamos. Eu mesmo aprendi
muito de Maurício tomando caipirinha à espera da feijoada, de calção e admirando um belo
panorama: um chiste, uma confidência, uma pergunta e uma resposta sobre um tema
específico ou candente podem nos iluminar mais a razão que um longo e elaborado
argumento.” (MOREL, 2001, p. 279)
xvii
“Francisco Cuberos conta que, por volta de 1948, muitos desses jovens operários,
incluindo Maurício, associaram-se ao E. C. Corinthians Paulista, então um clube popular,
instalado às margens do Tietê, que fazia às vezes de piscina, e em cujas várzeas estavam
localizados os campos de futebol, para poderem reunir-se e discutir à vontade, dado o clima
repressivo reinante nos sindicatos. As reuniões do grupo se davam no campo de futebol; todos
se sentavam e colocavam uma bola no meio do círculo e começavam a discutir; quando
chegava alguém estranho, ou um ‘olheiro’, eles mudavam de assunto e começavam a falar de
futebol, retomando as deliberações quando o ‘perigo’ passava.” (MOREL, 2001, p. 271 e 272)
xviii
“A docência no ensino secundário e no ensino superior, por décadas, significou para
Maurício Tragtenberg um lugar de trabalho e de estudo, mas não significou seu único lugar,
talvez não tendo sido nem sequer o principal lugar da ação intelectual. Falou em muitos
recintos deste país, tendo apenas como recompensa a convicção ética e política de mudá-lo,
tirando-o do domínio das oligarquias, das tecnoburocracias e dos salvacionistas.” (LÖWY,
2001, p. 51)
xix
“Maurício Tragtenberg não cultivou discípulos, mas dividiu seus conhecimentos com
outras pessoas; não se ligou a grupos de nenhum tipo, mas manteve sua opção política de
vanguarda; não se sujeitou aos esquemas e aos modismos acadêmicos, mas procurou expor
suas análises com originalidade; não se preocupou em conceder entrevistas capazes de
arrumar sua vida e sua trajetória política e intelectual, o que não é comum nos dias que
correm.” (LÖWY, 2001, p. 51)
xx
“Também nesses artigos de imprensa foi pioneiro, entre nós, na crítica ao toyotismo, antes
que esse ideário e essa pragmática se tornassem lugar-comum na empresa moderna e viessem
a substituir e/ou mesclar-se ao taylorismo, ao fordismo e à Escola de Relações Humanas de
Elton Mayo.” (ANTUNES, 2001, p. 101-102)
xxi
“É o acadêmico diferenciado, fora do percurso de rotina, sem pergaminhos de escola.
Consta de seu currículo o notório saber. É o judeu sem templo. O militante sem partido, o
intelectual sem cátedra.” (RESENDE, 2001, p. 137)
xxii
“Tragtenberg, contudo, nunca foi sectário. Assim, embora crítico e cético, sempre que
pôde contribuiu com as oposições sindicais e os partidos políticos, em especial o PT [Partido
dos Trabalhadores]. Mas seu horizonte estava muito além da mera conquista do sindicato ou
da eleição do maior número possível de candidatos. Tragtenberg representa a utopia libertária
  16
 

                                                                                                                                                                                          
de uma sociedade sem exploração e explorados, sem dirigentes e dirigidos, portanto, sem
partidos, Estado ou governos.” (SILVA, 2001, p. 132)
xxiii
“Maurício deu a oportunidade a todos que foram seus leitores, alunos, ouvintes de suas
palestras e amigos de superar o provincianismo, assim como a pretensão, as consequências
diretas, que dominam o chamado ‘pensamento crítico’ na academia e fora dela.” (BRUNO,
2001, p. 115)
xxiv
Tragtenberg, no entanto, nunca aceitou o relativismo e a tolerância, tão em voga hoje. O
primeiro era por ele entendido como uma forma de descompromisso com os problemas de
nossa época. O relativismo nega as cisões profundas em que se estrutura a sociedade em que
vivemos e se sustenta na crença do compromisso entre as classes e na possibilidade de
consenso, que na realidade nada mais é que uma forma de exercício do poder, em que o
diferente, o dissonante, é subordinado aos interesses do dominante, apresentado como
maioria. A tolerância, por sua vez, inscreve-se na ordem da moral, do dever-ser. Tragtenberg
nunca foi um homem da moral, refúgio último da hipocrisia. Sob a capa tolerância reafirma-se
todo tipo de discriminação colocando-a aparentemente em suspenso. É o recurso utilizado por
aqueles que são incapazes de compreender e aceitar que todas as pessoas são diferentes e que
a consciência da diferença é a aceitação da liberdade. Ou ainda, a igualdade é a liberdade de
ser diferente.” (BRUNO, 2001, p. 117-118)
xxv
“A obra de Maurício Tragtenberg constitui-se como orientação no pensamento e na ação.
Cidadão do mundo e cidadão do espírito. Foi puro de coração e íntegro de caráter.” (MATOS,
1999)
xxvi
“Bakunin lembrava que a história da humanidade somente será desvendada quando a
humanidade acabar; não há finalidade na história, apenas a certeza, como Maurício sublinhou
acompanhando Marx, de que ‘o modo de produção capitalista’ não é eterno.” (PASSETTI,
2001, p. 111)
xxvii
“Penso que na obra de Maurício não se encontra uma teoria mítica dos trabalhadores.
Parafraseando J.-J. Rousseau, pode-se dizer que ele não pretendeu uma rediviva ‘teoria do
bom operário’.” (FERREIRA, 2001, p. 201)
xxviii
“Ainda nesse ponto, citamos um último exemplo. Em 1987, um jovem escritor, de origem
operária e autodidata, procura o mestre para pedir-lhe ajuda para a divulgação de seu livro.
Esse jovem esperava encontrar um intelectual dentro do figurino: uma estrela, alguém que
aparenta situar-se acima dos comuns dos mortais. Surpreso, constatou que a vaidade não é
uma ‘qualidade’ inerente ao intelectual. Com seu exemplo, Tragtenberg mostrou-lhe que os
mestres, doutores e outros titulados no meio universitário podem ser pessoas simples,
humildes e honestas e solidárias. Referimo-nos à humildade sincera e desinteressada, e não
àquela que é própria dos demagogos.” (SILVA, 2001, p. 125)
xxix
RESENDE (2001, p. 138), citando Tragtenberg em artigo publicado no jornal Notícias
Populares: “Para Freud, a maior perda do ser humano é a morte do pai. É o que sinto com a
morte de Sacchetta [ao qual muito deve de sua] cultura política, no sentimento de
solidariedade com os que nada têm; a noção de luta como integrante do cotidiano contra a
exploração e opressão; o ódio ao carreirismo político e o desprezo aos canalhas, que usurpam
a fala do trabalhador, para legitimar suas prebendas burocráticas; o desprezo pelos heróis sem
caráter, os macunaímas, que servem a todos os governos, ontem à ditadura, hoje à
democracia.”
xxx
“O que mais caracterizava Maurício como pessoa, como orador e como militante era o
humor, a auto-ironia, a falta de agressividade – e, ao mesmo tempo, a intensidade do
compromisso com a causa dos explorados.” (LÖWY, 2001, p. 32)

  17
Bacon Versus Tragtenberg: “(Sem) Saber e (Com) Poder” nos Estudos Organizacionais
Autoria: José Henrique de Faria, Francis Kanashiro Meneghetti

Resumo
Francis Bacon afirma que saber é poder. Tragtenberg contesta. Essa discussão, na
contemporaneidade, se faz mais importante do que se possa imaginar. Por isso, o objetivo
central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder, na atualidade, levando em
consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos
objetivos específicos deste estudo, destacam-se: (i) Compreender o sentido de filosofia e
ciência e sua relação com a ideologia; (ii) Verificar como o discurso da neutralidade
axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e como se dá a presença da “fé”
na filosofia e na ciência, na contemporaneidade; (iii) Refletir sobre a consolidação da ciência
como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema econômico; (iv) Destacar a
importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais
estudos científicos; (v) Entender o processo de racionalização, avaliando a importância do
pragmatismo e da burocracia universitária como afirmação da ciência na atualidade. O texto
conclui que tanto é possível a existência de saber como poder (de acordo com a idéia de
Bacon) como a de não saber, mas com poder (conforme as contribuições de Tragtenberg) para
a compreensão da relação entre saber e poder.

Introdução

Marx afirma que a maneira como as coisas se apresentam não é a maneira como elas
realmente são, uma vez que, se as coisas fossem como se apresentam, a ciência não existiria.
Popper entende que, por ser necessariamente humana, a ciência é falível. Em ambas as
informações, a necessidade de ir além do imediato e do aparente e além de compreender as
relações sociais na produção da ciência é o ponto central para a compreensão da forma do
saber instituído. Se, por um lado, de forma geral, as epistemologias de Marx e de Popper são
divergentes, por outro, é inegável que ambos concebem a ciência como caminho para o
domínio crescente do homem sobre a natureza. Assim, a relação entre ciência e poder é uma
discussão constante, não só porque esteja intimamente relacionada à ideologia, mas também
por estar associada à força produtiva, às condições materiais de existência, às relações de
produção e assim por diante.
Portanto, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder na
atualidade, levando em consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela
relacionados. Quanto aos objetivos específicos deste estudo, eles são: (i) Compreender o
sentido de filosofia e ciência e sua relação com a ideologia; (ii) Verificar como o discurso da
neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e como se dá a
presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade; (iii) Refletir sobre a
consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico; (iv) Destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de
grande parte dos atuais estudos científicos; (v) Entender o processo de racionalização,
avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia universitária como afirmação da
ciência na atualidade.

Da Filosofia à Ciência como Materialidade da Ideologia

O que há de comum entre Marx e Popper? Quais são as semelhanças entre Rousseau e
Hobbes? Entre os dois primeiros, transparece a crença de que a ciência é a forma mais
“confiável” para a compreensão da realidade, ao mesmo tempo em que ambos demonstram
“desconfiança” em relação à própria ciência simplesmente porque é ela feita pelos homens. A
1
convergência entre Rousseau e Hobbes reside na importância da sociedade na constituição do
indivíduo, mesmo que por vias diferentes. Enquanto o primeiro acredita que o homem nasce
bom, mas a sociedade o corrompe, o segundo acredita que o homem é o “lobo do homem” e
que a sociedade acaba por regular as relações entre eles possibilitando sua convivência social.
É fato que, apesar de divergências entre filósofos e também entre cientistas, desde o
século XVI, a Razão Iluminista manifesta-se como conseqüência de uma nova organização
sócio-econômica. As relações entre os indivíduos e entre estes e a sociedade passam a se
modificar em decorrência de novas formas de relações de produção.
Desde essa época, uma nova racionalidade passa a ser dominante, transformando
cientificamente a relação do homem com o meio em que vive. Com a força dessa
racionalidade científica, os indivíduos intensificam a separação entre o homem e a natureza
tornando-as mais evidentes. A ciência vai se transformando na medida em que vai produzindo
transformações na realidade. Torna-se, dessa forma, força produtiva no capitalismo, por se
apresentar justamente como o principal instrumento da separação entre o pensar e o agir, ou
seja, entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Mesmo a filosofia, na atualidade, é influenciada pela ciência moderna. Assim, “a
filosofia oficial serve à ciência que funciona dessa maneira. Ela deve, como uma espécie de
taylorismo do espírito, ajudar a aperfeiçoar seus métodos de produção, a racionalizar a
estocagem dos conhecimentos, a impedir o desperdício de energia intelectual. Ela encontra
seu lugar na divisão do trabalho, assim como a química e bacteriologia.” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 226)
O cânone da quantidade (promovido pela necessidade de generalizações para que algo
possa ser concebido como cientifico) e, posteriormente, o pragmatismo ( em que tudo deve
ter uma utilidade) fizeram da filosofia uma “erudição”, um conhecimento para indivíduos
excêntricos que procuram na teoria explicações oriundas de divagações quase sempre
entendidas como caprichos de poucos. Por isso, “existe hoje um acordo quase geral em torno
da idéia de que a sociedade nada perdeu com o declínio do pensamento filosófico, pois um
instrumento muito mais poderoso de conhecimento tomou seu lugar, a saber, o moderno
pensamento científico.” (HORKHEIMER, 2000, p. 65)
Não que a filosofia seja capaz dessa neutralidade ou que incorpore a “razão autêntica e
verdadeira”, pois, assim como o próprio Marx definiu, a filosofia também se manifesta como
ideologia. O declínio da filosofia, no entanto, é a derrota da possibilidade da consolidação do
“Pensamento Unidimensional”, entendido aqui como a capacidade de questionamento e de
elaboração do pensamento de protesto.
A filosofia, em outro sentido, procura mais a compreensão da totalidade (sobretudo
por meio dos grandes filósofos) do que a ciência moderna. “Sem dúvida nenhuma, o
progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de intelectualização a
que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao quais algumas pessoas adotam,
atualmente, posição estranhamente negativa.” (WEBER, 2003, p. 37)
Grande parte dos intelectuais considera o aparecimento e a consolidação da ciência
moderna os elementos centrais do progresso. É como se o passado não abrigasse
transformações ou mudanças significativas decorrentes de formas organizadas de superação e
de modificações da realidade concreta da sociedade. Criou-se um imaginário de que a ciência
moderna é a única possibilidade de “salvação dos homens” de uma vida mundana, ou de uma
vida condenada a insignificâncias intercambiáveis na sociedade. Todavia, “a ciência também
é uma supra-estrutura, uma ideologia” (GRAMSCI, 1975, p. 1457), ou seja, é um conjunto de
imaginários, de racionalidades e subjetividades com correspondência na realidade concreta.
A ciência vem associada ao progresso. Este é compreendido como a superação de
estados mais primitivos para os mais avançados, tanto nos aspectos quantitativos como nos
qualitativos. O progresso é correspondente à noção de “melhoria”, de mudança para um
2
estágio “superior”. A sensação criada é a de que antes da ciência não havia progresso. Apenas
com os avanços oriundos de um domínio maior sobre a natureza é que a sociedade passou a se
modificar. Esse imaginário é manifestação clara e direta do empreendimento do
esclarecimento, movimento de tendência ideológica que procura se apresentar como potência
social. Assim, “o progresso é uma ideologia, o vir-a-ser é uma filosofia” (GRAMSCI, 1975,
p. 1335)
A concretização da ideologia como ciência, na concepção do próprio Gramsci (1975,
p. 507), ocorre quando a ideologia assume a “hipótese científica de caráter educativo
energético”. Na sociedade contemporânea, a ciência é associada ao ensino, relação entendida
como indissociável. O fato é que essa associação tem fundamento econômico imediato: o
interesse da indústria da educação em vender o ensino. A ciência, embora independente em
muitas situações da relação direta com o ensino, é “prejudicada” na sua formação de origem e
na sua “neutralidade”. A indústria do ensino apropria-se da ciência porque é também no
processo de geração de novos conhecimentos que se presencia o processo de aprendizado no
mais alto grau de aprendizagem.
A consolidação da indústria do ensino faz das universidades fábricas da mercadoria
conhecimento. Pesquisas efetivam-se como linhas de produção gerando o produto ensino.
Toda estrutura burocrática da universidade assemelha-se à de uma fábrica ou de uma
indústria. Mesmo nas instituições públicas, veladamente, a figura do aluno é transformada em
cliente. O professor passa a ser prestador de serviço. A diferença consiste na figura do
professor como monopolista da prática avaliativa dos alunos. A burocracia do ensino ganha
corpo e transforma a universidade em “multiversidade”. Dessa forma, “uma universidade que
produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e
da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao
primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da
neutralidade do conhecimento e seu produto.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 16)
Nesse processo, a sociedade passa a ser o principal “cliente”, sob pena de ser isentada
da relação mercantil. Na realidade, a sociedade torna-se o ideal do “cliente”, pois sob
qualquer suspeita ou ferimento da ética coletiva, a sociedade apresenta-se como “superior” ou
“acima” de qualquer interesse individual. Entretanto, o fato é que essa sociedade nada mais
representa do que o ideal capitalista, em que o cliente individual se potencializa no discurso
do cliente coletivo, a sociedade, isenta de suspeita em qualquer condição. Não se questiona o
quanto de particular há no discurso coletivo do social.
De fato, sutilmente e por meio da ideologia, a ciência se constrói na direção dos
interesses da classe economicamente dominante. Essa construção dá-se lentamente, “tijolo por
tijolo”, sem maiores questionamentos. A ciência da “neutralidade científica” é utópica, porque
toda ciência é sempre uma ciência de classe ou de grupo dominante, mesmo havendo
contradições no seu interior e até mesmo porque “os alunos da rede escolar recebem também
conteúdos científicos. Eis que o processo de escolarização contribui para a reprodução das
condições materiais de produção, uma vez que a produção social é uma transformação
material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas formas.”
(TRAGTENBERG, 2004, p. 54)
Para esconder a influência e a força com que a ideologia está presente na ciência,
vários são os cientistas e filósofos que anunciaram a neutralidade científica, muitos deles,
inclusive, apresentando estudos e reflexões logicamente fundamentados. Entretanto, é
importante ressaltar que mesmo a lógica tradicional se rende à apresentação formal. Nem
sempre as contradições estão no nível da percepção ou do aparente, pois, se assim o fosse, não
haveria contradição na ciência.

3
Mito da Neutralidade da Ciência e a Fé Filosófica e Científica

Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que o mito já é esclarecimento. Na era da


quantificação, a ciência (resultado do Pensamento Iluminista) esconde a barbárie por meio de
discursos articulados da sua neutralidade e, sem supostamente vincular-se a tendências
ideológicas ou políticas, esconde os interesses econômicos por traz dela. Revestida da
afirmação da neutralidade “a ciência ocupa hoje o lugar do Verbo Divino. A casta dos
cientistas substitui a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra superior
e a coletividade humana”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 64)
O entendimento de Tragtenberg em relação à ciência, não deixa de ser uma crítica à
tendência de dogmatizar a ciência e de elevá-la comparativamente às demais formas de
mitologização. Dessa forma, Tragtenberg é mais Marx e menos Weber, pelo menos neste
quesito. Assim, tal como Marx, que vê na ciência uma concepção iluminista na maior parte,
Tragtenberg acredita na ciência como força progressista, potencial e esclarecedora, pois
proporciona o aumento de poder dos homens sobre a natureza e contribui para o
direcionamento do destino dos homens.
Apesar disso, não se ilude com ela, pois sabe da perversidade da burocracia e como ela
é capaz de retirar a autonomia dos indivíduos e dos grupos organizados, aspecto pelo qual
Weber está presente na crítica da ciência burocratizada. Assim, se Tragtenberg, por um lado,
não concorda com o sentido de “neutralidade axiológica” presente em Weber, por outro, ele
recusa a apologia da ciência, sobretudo recusando o otimismo dos que “louvam a ciência –
isto é, a técnica de controlar a vida baseada na ciência – como o caminho para a felicidade”
(WEBER, 2003, p. 177).
A ciência, como fenômeno social, não se isenta de certa tendência à personalização.
Diferente em alguns aspectos das demais atividades produtivas, o domínio técnico e de
conhecimentos específicos fazem do cientista um indivíduo que centraliza poder por estar
dotado de metodologia para compreensão da realidade e por concentrar técnicas que
possibilitam o domínio sobre a natureza.
Apesar disso, “a importância da ciência para a humanidade não se encontra vinculada
ao papel dos cientistas. Estes, na maioria das vezes, restringem-se ao papel de novos
sacerdotes à procura de rebanho para ser cuidado. [Tragtenberg] sabia e procurava reafirmar
constantemente que os saberes não se restringiam à ciência, que esta não ocupava uma
posição superior ante os demais saberes e que tampouco teria condições de disciplinar a
todos.” (PASSETTI, 2001, p. 106)
No entendimento de Tragtenberg, a ciência é mais uma forma de saber, que se torna
dominante porque é apropriada e utilizada pelas classes dominantes, efetivando-se, além
disso, como principal instrumento técnico no incremento produtivo, no processo de circulação
das mercadorias, no ato de consumo e no fomento ideológico necessários para intensificar a
relação produção-consumo. A neutralidade anunciada, portanto, está camuflada.
Mesmo os apontamentos de Weber em relação aos limites da ciência, não deixam de
ser criticados por filósofos ainda mais radicais (no sentido de ir à raiz) em relação ao papel da
ciência na contemporaneidade. Entre esses filósofos, destaca-se Mészáros:
Weber justifica sua “análise científica tipológica” a partir de sua
pretensa “conveniência”. Sua cientificidade só existe, porém,
por definição. De fato, a aparência de “cientificidade tipológica
rigorosa” surge das definições “inequívocas” e “convenientes”
com que Max Weber sempre empreende a discussão dos
problemas selecionados. Ele é um mestre sem rival nas
definições circulares, justificando seu próprio procedimento
teórico em termos de “clareza e ausência de ambigüidade” de
4
seus “tipos ideais”, e da “conveniência” que, segundo se diz,
eles oferecem. Além disso, Weber nunca permite que o leitor
questione o conteúdo das próprias definições nem a legitimidade
e validade científica de seu método, construído sobre suposições
ideologicamente convenientes e definições circulares
“rigorosamente” auto-sustentadas. (MÉSZÁROS, 2007, p. 72).
A crítica de Mészáros a Weber caracteriza-se pela sua natureza ideológica. O
entendimento de “Tipo Ideali” manifesta a tentativa de absolver a ciência de qualquer
interferência de ordem econômica ou pessoal. A suposta ciência neutra existe como uma
representação idealizada, mesmo que conceitualmente haja uma circularidade criada pelo
próprio Weber para “purificá-la”. A tentativa de criar uma ciência neutra, sem influência dos
interesses ou vieses que contaminem seus pressupostos de neutralidade, é tão dogmática
quanto a tentativa dos sacerdotes em afirmar a existência de uma religião salvadora.
A fé dos cientistas na credulidade da neutralidade científica é a mesma dos fiéis em
relação às suas religiões. A necessidade da existência de um ente superior manifesta-se com
racionalidades diferentes, mas que procuram aconchegar os mesmos temores humanos. A via
para essa tentativa é distinta. Os resultados podem ser diferentes, mas o que se procura, tanto
em uma quanto em outra, é a consolidação de uma elite específica. Tanto a elite dos
sacerdotes como a dos cientistas procura essa diferenciação no interior da sua própria classe.
É importante ressaltar, também, que, apesar dessa “corrida” pelas diferenciações, ocorrem
lutas ideológicas, cada qual com seus pressupostos, premissas e verdades.

Ciência como Força Produtiva

Forças produtivas, na concepção marxista, são elementos capazes de transformar ou de


modificar a natureza. Nem sempre uma força produtiva corresponde a um elemento material
ou, necessariamente, exerce o poder de modificações que implicam na criação ou na produção
de bens materiais. Os avanços da física, sobretudo da física quântica, da nanotecnologia, são
responsáveis por mudanças qualitativas de grande impacto nas novas tecnologias, na biologia
e em grande parte das ciências. Na sociedade atual, o conhecimento instrumental é
apropriado, basicamente, pelo capital. Da tecnologia da informação, passando pela engenharia
genética, até os treinamentos gerenciais que transmitem as “competências gerenciais”, cria-se
uma economia do conhecimento “imaterial” (GORZ, 2005), cujo valor gerado é apropriado
pelo capital. Apesar disso, a dialética da produção da vida impede que o “capital fixo
material” seja completamente substituído pelo “capital humano”, pelo “capital do
conhecimento” ou pelo “capital da inteligência”.
Geralmente, as forças produtivas estão associadas aos meios de produção, materiais ou
não. Mas, a ciência pode ser considerada força produtiva? Ou é uma mercadoria? A ciência
como instrumento de modificações da natureza e do domínio sobre ela deve ser entendida
como força produtiva. No entanto, quando se apresenta como resultado de trabalho realizado,
ou trabalho vivo, equivalente a uma propriedade privada, a ciência torna-se mercadoria.
A ciência despida da sua suposta neutralidade axiológica constitui-se instrumento de
dominação e manifestação do resultado do trabalho socialmente despendido. Todavia, é
importante ressaltar que não há uma ciência, mas várias. A ciência é resultado das relações
sociais de produção e manifesta-se como elemento impossível de ser separado das atividades
humanas ocorridas no trabalho. Principalmente, porque, no atual momento de
desenvolvimento das forças produtivas, não é mais factível a separação do que é ciência e do
que é ideologia.
A dita neutralidade científica é conseqüência da necessidade de esconder a quem
realmente a ciência serve tanto na sua forma de força produtiva como na de mercadoria. Se o
5
passado procura isentar a tentativa de Weber em relação à neutralidade da ciência, o presente
cria a necessidade de desconfiar de todas as tentativas de “purificação” existentes. Assim,
como Kant afirma, não é possível pensar sem as operações dos conceitos, pois, mesmo o mais
simples pensamento não se isenta dessa necessidade. Da mesma forma, os conceitos não
implicam na total isenção de valores, pois são resultados das relações sociais, neles estando
presentes pelo menos duas figuras: quem conceitua e quem opera os conceitos.
Por essa perspectiva, todas as derivações da ciência e da produção de conhecimento
estão dentro do princípio da ciência, ou como forças produtivas, ou como mercadoria. Os
discursos derivados dessa lógica (inovação tecnológica, desenvolvimento sustentável e
demais) são, na realidade, discursos para o controle do capital. De tal modo, “a inovação
tecnológica e a pesquisa científica confluem para um estuário: a acumulação da mais-valia
relativa e a reprodução ampliada do capital.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 216)
A subordinação da ciência ao capital é uma realidade. Se não ao capital privado pelo
menos ao capital estatal. Eis que a ciência não se isenta nem mesmo da formação das elites da
burocracia estatal. Em regime de capital planificado, a ciência cria a própria metodologia e
procedimentos para enquadrar as regras definidas externamente a ela. Manifestação disso é a
existência de uma ciência exclusiva para o controle do capital sobre a ciência: as ciências
contábeis.
Mesmo referente às ciências tidas como as mais técnicas e pragmáticas possíveis, sua
criação é sempre um fenômeno social, sujeita à reprodução sócio-metabólica do capital
(MÉSZÁROS, 2001). A contradição é que, mesmo “o fato de a ciência [ser] como força
produtiva e meio de produção cooperar para o processo de vida da sociedade, não justifica, de
forma alguma, uma teoria pragmática do conhecimento. (...) Sem dúvida, a própria ciência se
modifica no processo histórico, mas a referência a isso nunca pode valer como argumento
para a aplicação de outros critérios de verdade que não àqueles que correspondem ao nível de
conhecimento no grau de desenvolvimento alcançado.” (HORKHEIMER, 1990, p. 7)
O pragmatismo da ciência é conseqüência do seu atual desenvolvimento como força
produtiva ou do seu resultado como mercadoria de pertencimento privado. Não é estranho,
portanto, que “o conhecimento aparece como força produtiva, a produção se dá como
objetivação do conhecimento, a produção e reprodução da vida social dependem da
inteligência coletiva, o tempo livre e se torna medida da riqueza e não mais o tempo de
trabalho; este adquire aspecto lúdico.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 214)
O conhecimento científico, nos seus diversos níveis e formatações, está presente nas
relações entre os indivíduos. Seja como produtores ou como consumidores, diretos ou
indiretos, desse conhecimento, o fato é que a razão científica está presente na organização da
sociedade, na forma como ela se reproduz, no fomento para uma sociedade que domine a
natureza para sua utilidade. A razão por trás desse conhecimento é o direcionador da forma
como os indivíduos devem interpretar grande parte do mundo e das relações que o cercam.
Por exemplo: “É fácil identificar o lugar da ciência na divisão social do trabalho. Ela tem por
função estocar fatos e conexões funcionais de fatos nas maiores quantidades possíveis. A
ordem do armazenamento deve ser clara. Ela deve possibilitar às diversas indústrias descobrir
prontamente a mercadoria intelectual desejada na especificação desejada. Em larga medida, a
compilação já é feita em vista de encomendas industriais precisas.” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 226)
O conhecimento científico não tem preferências, mas está sob orientação da produção
em escala industrial. As amarras da ciência, como produtora de conhecimento específico
enquadrado em procedimentos e formatações possíveis de serem vendidas, fazem dela um
processo de produção e não um fim em si mesmo, em que os indivíduos são beneficiários do
continuo processo de dominação da natureza por parte da razão científica. Em outros tempos,
mais especificamente nos anos 40 e 50, Horkheimer afirmou que a ciência estava em crise:
6
Por mais que se fale com razão de uma crise da ciência, ela não
pode separar-se da crise geral. O processo histórico trouxe
consigo um aprisionamento da ciência como força produtiva,
que atua em suas partes, conforme seu conteúdo e forma, sua
matéria e método. Além disso, a ciência como meio de produção
não está sendo devidamente aplicada. A compreensão da crise
da ciência depende da teoria correta sobre a situação social
atual; pois a ciência como função social reflete no presente as
contradições da sociedade. (HORKHEIMER, 1990, p. 12)
A sugerida existência de uma crise é de ordem ética, mais especificamente, de uma
ética coletiva, pois sob a ótica da ética do capital, em que a moral é o lucro, a ciência jamais
passou por momentos de crise. De certa forma, em grande parte é a ciência que garante a
contínua reprodução do capital, por meio das técnicas desenvolvidas, dos sistemas criados e
da tecnologia da informação. Sem os avanços da ciência, portanto, a reprodução sócio-
metabólica poderia gerar uma crise de fato. Na atualidade, a sociedade detém suficiente
conhecimento científico para garantir tanto a produção com mais qualidade e controle como
também técnicas de vendas para aperfeiçoar a compra das mercadorias geradas pelo próprio
sistema produtivo de base científica.
A crise, portanto, atinge aqueles que entendem tenha a ciência de estar a serviço da
maioria e não de uma minoria. Nunca a ciência foi tão importante para a reprodução do
sistema capitalista, nunca se investiu tanto para a geração de novas técnicas, novos
procedimentos, novos sistemas produtivos como na atualidade. Se não fosse em grande parte
a contribuição dos cientistas, a crise causada pela incontrabilidade (pelo desencontro) do
capital como força destrutiva seria muito mais evidente e problemática.
A ciência nas suas variadas formas e concepções é um produto histórico. Em cada
época, vem para atender aos interesses dos grupos dominantes, mas, ao mesmo tempo, atende
a outros grupos, porque a própria ciência necessita de se apresentar como fonte mediadora dos
conflitos e dos diversos grupos que compõem a sociedade. Por isso, “ainda que a ciência
esteja compreendida na dinâmica histórica, ela não deve ser destituída do seu caráter próprio e
utilitariamente mal interpretada. (...) a ciência é um fator do processo histórico.”
(HORKHEIMER, 1990, p. 7-8). Persiste a esperança.
Como processo histórico, as descobertas científicas e o conhecimento gerado por ela
são utilizados de diversas formas. A ciência tanto pode ser um instrumento para o “bem”
quanto para o “mal”. Todavia, o capital que orienta grande parte da produção científica se
tornou o principal instrumento de repressão ou de sublimação da atual sociedade. Assim, a
ciência serve, também, tanto para libertar os homens como para aprisioná-los. Apesar das
duplas possibilidades não é possível negar que o capitalismo seja um sistema econômico
bastante confluente com o lado “sombrio dos homens”, com a perversidade coletiva e com a
pulsão de morte.

“Matar e Morrer” com as Armas da Ciência: O Complexo Industrial Militar


como Financiador da Destruição

O capital se apropria de todas as forças produtivas desenvolvendo-as de acordo com


seu interesse, inclusive em relação à ciência. Dessa forma, uma parte da ciência é estranha ao
operário da produção e até mesmo aos indivíduos que trabalham para a manutenção e controle
do capital. A outra parte é incorporada pelos operários como ideologia, conforme o próprio
Maurício Tragtenberg afirma: a Teoria Geral da Administração é ideologia. Nas escolas de
administração, os alunos dos primeiros períodos a concebem na aprendizagem como ciência.
Isto porque a literatura, que aborda a temática, apresenta a história da administração e as
7
escolas componentes de forma funcionalizada e pragmática, ou seja, como conhecimento
instrumental de base para as disciplinas específicas de natureza técnica, tais como
administração da produção, de recursos humanos, financeira e demais. É por isso que a
ciência é contraditória, pois, ao mesmo tempo em que liberta, aprisiona. Assim, a ciência pode
ser considerada um instrumento de opressão de uma classe ao mesmo tempo em que é um
instrumento de dominação de outra. A ciência não pode ser definida como uma categoria
moral, mas tem sua dimensão política e ideológica.
Não é a ciência (e os conhecimentos gerados por ela) que destrói. É sua utilização
política em favor de determinadas classes para exercer opressão a outras. A bomba nuclear, as
armas químicas, as armas de fogo e todos os “produtos” resultados dos conhecimentos
científicos aplicados não podem ser responsabilizados pelas matanças ou genocídios
praticados na história da humanidade. Uma simples faca de cozinha também pode matar. A
questão também não é responsabilizar o indivíduo isolado, pois, apesar da sua parcela de
responsabilidade em razão de seu livre-arbítrio, a formação do seu Ser é resultado das
relações sociais.
A correta utilização da ciência torna-se cada vez mais clara na medida em que se
desmitifica a própria ciência. A substituição dos mitos antigos pelo mito da ciência como
“salvador dos indivíduos” contém o mesmo gérmen da dominação e da diferenciação entre
classes. A contemporaneidade apenas consolida no tempo presente a idéia de Habermas
(1997, p. 98-99): “Hoje, no sistema de trabalho das sociedades industriais, os processos de
investigação combinam-se com a transformação técnica e com a utilização econômica, e a
ciência vincula-se com a produção e a administração: a aplicação da ciência na forma de
técnica e a retro-aplicação dos progressos técnicos na investigação transformaram-se na
substância do mundo do trabalho.” (HABERMAS, 1997, p. 98-99)
Se em outros tempos a religião era o grande instrumento ideológico, na atualidade, a
ciência apresenta-se como a ideologia materializada no interior das relações econômicas e
sociais. As relações econômicas na Idade Média configuravam-se diferentemente da forma
como ocorrem hoje. A função da religião como instrumento de controle ideológico era o meio
mais compatível com o grau de desenvolvimento econômico da época. Na atualidade, o mito
está também presente no discurso de salvação pela ciência.
O grau de desenvolvimento econômico de uma determinada época (mais
especificamente, o relacionado ao desenvolvimento das condições materiais de existência de
uma sociedade) é o elemento que cria e consolida técnicas responsáveis pelo domínio
crescente dos homens sobre a natureza.
Esse domínio recai, inevitavelmente também, no domínio do homem sobre o próprio
homem. Se antes a dominação era exercida pelo poder de violência e de coerção, hoje, o
capitalismo traz outras formas até mais “requintadas” de dominação, muitas, inclusive, de
natureza psíquica. Todavia, o requinte e a mudança da natureza da dominação não levam,
necessariamente, à ausência de alguma forma de violência. O poder de destruição persiste e
potencializa-se, porquanto o que antes estava centrado na ação dos sujeitos (soldados,
policiais, fundamentalistas e outros) hoje está disseminado no conhecimento ou nas técnicas
utilizadas nas formas de gestão, nos produtos gerados pela ciência, nos mecanismos de
controle psicológico encomendados e produzidos pela psicologia. Há evidente concentração
das grandes violências, o que não impede que as de menores conseqüências devam ser
negligenciadas ou mesmo desconsideradas.
A concentração de poder de destruição ainda está, inevitavelmente, no complexo
militar industrial. Por isso, “nos países capitalistas avançados, todos os ramos da ciência e da
tecnologia são levados a funcionar em auxílio aos objetivos das poderosas estruturas
econômicas e político-organizacionais. As linhas tradicionais de demarcação entre ‘ciência
pura’ e ‘ciência aplicada’ – assim como entre os negócios e o universo cada vez mais
8
desdenhado da ‘academia’ – são radicalmente retraçadas para adequar todas as formas de
produção intelectual às necessidades do complexo militar-industrial.” (MÉSZÁROS, 2007, p.
287).

Processo de Racionalização da Ciência: o Pragmatismo e a Burocracia


Universitária

Habermas (1982), em “Conhecimento e Interesse”, opõe-se ao cientificismo positivista


de Karl Popper, Carl Hempel e Paul Oppenheim, ao pretenderem definir os critérios de “toda
verdade científica”. Nesse texto, Habermas faz uma reconstrução histórica defendendo a
particularidade das ciências sociais. A tese defendida pelo Frankfurtiano, aqui caracterizado
na sua primeira fase, a mais próxima dos demais filósofos da Escola de Frankfurt, de que há
um vínculo entre conhecimento (ciência) e interesse (no sentido do interesse universal). As
ciências consideradas exatas são orientadas por procedimentos empírico-analíticos, que não
podem ser generalizados ou adotados como procedimento para as ciências sociais.
A discussão do domínio das ciências pragmáticas e a forma como suas características e
pressupostos são incorporados pelas ciências sociais não é uma preocupação somente de
Habermas. Vários outros intelectuais, entre eles Adorno, Bourdieu, Touraine, Tragtenberg e
outros, alertaram para a tendência totalitária de transformar as ciências sociais e a extensão
das ciências pragmáticas.
A influência das ciências experimentais ou racionalistas, baseadas em cálculos e
modelos de natureza matemática, está presente em grande parte das formas de saber.
Nem mesmo a filosofia escapa a essa regra, conforme afirma Horkheimer (2000, p. 51):
“Como a ciência, a própria filosofia tornou-se não um exame contemplativo da existência
nem uma análise do que se passou e foi feito, mas uma visão das possibilidades futuras com a
indicação de que se alcance o melhor e se evite o pior. Probabilidade, ou melhor, o cálculo
substitui a verdade, e o processo histórico que na sociedade tende a tornar a verdade uma
expressão vazia recebe as bênçãos do pragmatismo, que transforma isso numa expressão vazia
dentro da filosofia.”
O pragmatismo incorporado pela ciência, aliado à influência do capital na constituição
de redes de criação de conhecimento para produção de produtos possíveis de serem
comercializados, fomenta investimentos específicos em determinados projetos científicos.
Exemplo disso são os investimentos na tecnologia de guerra, na ciência do espaço, na
engenharia genética, na nanotecnologia ou na física quântica aplicada.
Todavia, esse movimento “ao tentar transformar a física experimental num protótipo
de todas as ciências e modelar todas as esferas da vida intelectual segundo as técnicas do
laboratório, o pragmatismo torna-se o correlato do industrialismo moderno, para quem a
fábrica é o protótipo da existência humana, e que modela todos os ramos da cultura segundo a
produção na linha de montagem ou segundo o escritório racionalizado.” (HORKHEIMER,
2000, p. 57).
O pragmatismo divide a realidade em “mundo prático” e conhecimento teórico,
potencializando a compreensão da realidade em frações e fronteiras científicas. Assim, “o
chamado mundo prático não tem lugar para a verdade, e, portanto, a divide em frações para
conformá-la à sua própria imagem: as ciências físicas são adotadas da chamada objetividade,
mas esvaziadas de conteúdo humano; as humanidades preservam o conteúdo humano, mas só
enquanto ideologia, a expensas da verdade.” (HORKHEIMER, 2000, p. 81)
Tais fronteiras do conhecimento são erguidas e delimitam as teorias e procedimentos.
Mas os limites ocorrem em relação ao emprego e utilização do método, mas não em relação à
sua utilização. Exemplo é “a emergência da Revolução Industrial, [que] implica uma
alteração das condições de produção, substituição da manufatura pela fábrica, absorção do
9
êxodo rural na nova mão-de-obra industrial, transferência de capitais do campo à cidade e
aproveitamento dos resultados das Ciências Naturais do universo industrial.”
(TRAGTENBERG, 1974, p. 58)
O darwinismo, nesta época, penetra como ideologia conservadora na medida em que
atribui à natureza a origem da luta geral pelo sucesso econômico, estabelecendo confusão
entre a sobrevivência, que depende de outros fatores além da habilidade e capacidade
individuais, com o desenvolvimento biológico. Confundia conformidade com melhoria e
adaptação com superioridade física. A teoria da seleção natural consagrava o processo de
expansão do capitalismo, dando novo impulso ao imperialismo. Pouco importava saber que
um dos sustentáculos da vida dentro das espécies é mais a cooperação do que a luta. Não fora
como biólogo, mas como criador de mitos, que Darwin se impusera. As necessidades de
afirmação brutal, da classe, nação e raça dominante, segundo um dogma “científico”ii. O
conhecimento gerado pela observação entre a dinâmica do reino animal é transportado para a
“selva” da dinâmica da economia.
Esse é apenas um dos vários exemplos da influência de conhecimentos específicos
importados para tentar explicar realidade originariamente em condições diferentes. Grande
parte disso ocorre em razão da especialização crescente e da formação de teorias com
linguagens de identificação imediata. A forte presença da ciência positiva, do funcionalismo e
do pragmatismo faz com que as teorias construídas sobre seus pressupostos possam ser
facilmente interpretadas pelos diversos ramos do conhecimento. Weber já havia anunciado
essa tendência em relação à especialização:
Atualmente e naquilo que se refere à organização científica, essa
vocação é determinada, antes de mais nada, pelo fato de que a
ciência atingiu um patamar de especialização que ela não
conhecia nos velhos tempos e no qual, segundo podemos julgar,
se manterá ao longo do tempo. Essa afirmação tem sentido não
somente em relação às disposições interiores do próprio
cientista, tendo em vista que jamais um indivíduo poderá ter
certeza de alcançar qualquer coisa de valor real no domínio da
ciência, sem possuir uma rigorosa especialização. (WEBER,
2003, p. 32)
As ciências sociais também são influenciadas pela tendência à especialização. Toda
estrutura criada para atender à ciência sociologia está alicerçada na organização das condições
materiais que atendem aos interesses do capital. A especialização da sociologia, portanto, é a
mesma especialização necessária para a ampliação do capital e para a dominação intelectual
do grupo dominante. É por isso que
o saber sociológico atualmente não é simplesmente um aspecto
da cultura universitária; tornou-se elemento de poder, daí a
proliferação de centros de documentação, bancos de dados,
institutos de planejamento: a escolha das pesquisas depende dos
financiamentos possíveis; por outro lado, a ‘moda’ acadêmica
impõe sua tirania. Uma pesquisa é determinada não porque se é
obrigado a ter esta ou aquela orientação teórica para receber
financiamento, mas recebe financiamento por esta ou aquela
orientação teórica; trata-se de uma determinação que opera com
alto nível de sutileza. (TRAGTENBERG, 2004, p. 24)
Tragtenberg (2004, p. 25-27) afirma ainda que as universidades americanas estão a
serviço do capital, inclusive as frentes de ciências responsáveis por colocar em risco a própria
condição de segurança da humanidade. Todo programa nuclear foi desenvolvido em
universidades e institutos de tecnologia americanos. A guerra fria, dessa forma, foi nutrida
10
pela ciência dessas instituições. Os princípios da energia nuclear e o projeto Manhattan (de
desenvolvimento da bomba atômica) foram criados pelos cientistas da física. Aos sociólogos
americanos coube a missão de criar uma “engenharia do consenso”, necessária para justificar
a utilização da bomba atômica contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Dessa forma, “o
grave problema da universidade norte-americana atual é a síndrome de conformismo, que
permite a utilização do saber para o genocídio, prevenir conflitos futuros, tornando o
sociólogo um burocrata auxiliar e triste do Departamento de Defesa”. (TRAGTENBERG,
2004, p. 30)
A ciência social, nesses casos, não é para servir à sociedade, constituindo-se mais
como ciência da dominação voltada para a destruição. Filosofia e sociologia são “fábricas” de
racionalidades que justificam e formam o consenso para a barbárie. A destrutividade humana
ganha aliados importantes, supostas razões que justificam os regimes do medo, extermínios,
pânico e desespero humano. É por isso que “a era da sociologia ‘inocente’ terminou, surgindo
a era da sociologia militante a serviço dos profetas armados. De igual forma, agem os
sociólogos da indústria que aceitam a ideologia do ‘gerencialismo’, uma ideologia patronal
para manipular os dominados. A automatização dos campos de batalha futuros é elaborada no
campus.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 25 e 26)
Os “campos de batalhas” estão justificados e recebem apoio dos indivíduos adeptos do
senso comum revestido de conhecimentos supostamente científicos. A indústria da
espetacularização da mídia de massa torna-se o disseminador da razão profética e
amenizadora das culpas sociais. Uma legião inteira de sociólogos e filósofos cria discursos
comuns capazes de fomentar um imaginário de supremacia da razão como condutor do
destino social. Ciência e barbárie, neste momento, são faces contrárias de uma mesma moeda.
O preço pago pelos marginalizados e pelos sujeitos diretamente envolvidos nos
conflitos são mostrados nos programas televisivos, relatados nos jornais, ditos nos programas
de rádios sem que o peso do sofrimento esteja associado à descrição das informações. Grande
parte da sociedade comove-se, mas permanece alheia aos sentimentos que a barbárie pode
causar nas vítimas das violências.
As universidades americanas atendem a esse complexo econômico militar, um dos
alicerces da economia norte-americana. A indústria militar é geradora de inovações em grande
parte incorporadas na inovação de produtos de uso geral, consumidos por cidadãos comuns.
Nesse sentido, “a criação do conhecimento e sua reprodução cedem lugar ao controle
burocrático de sua produção como suprema virtude, em que ‘administrar’ aparece como
sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante critérios visíveis e invisíveis
de nomeação; o aluno, mediante critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em
escolas que se constituem depósitos de alunos, como diria Lima Barreto, em Cemitérios de
vivos”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 18)
As formas de controle burocrático são institucionalizadas pela política geral dos
órgãos responsáveis por regular a educação e a política de tecnologia e ciência de cada país.
As demais instituições, indiretamente, são responsáveis por criarem as políticas necessárias
para a afirmação da ideologia dominante. No interior dessas universidades, os burocratas,
muitos deles transformados em professores e cientistas, são responsáveis por defender as
regras instituídas pelas políticas de ensino e de tecnologia e ciência. O interesse é imediato e
direto: a perpetuação desses mesmos burocratas no poder. Regras internas, expressas nos
documentos obrigatórios para formalizar a adequação da Universidade aos princípios
capitalistas, são “impostas” com discursos docilizados de democracia universitária.
Weber já havia anunciado essa preocupação em relação ao sistema alemão de ensino:
Ultimamente podemos observar nitidamente que, em numerosos
domínios da ciência, desenvolvimentos recentes do sistema
universitário alemão orientam-se em conformidade com padrões
11
do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciência e
de medicina se transformaram em empresas de “capitalismo
estatal”. É impossível administrar essas empresas sem dispor de
recursos financeiros consideráveis. É notável o surgimento,
como, aliás, em todos os lugares em que se implanta uma
empresa capitalista, do fenômeno específico do capitalismo, que
o de “privar o trabalhador dos meios de produção”. (WEBER,
2003, p. 27)
O controle do Estado em relação às instituições universitárias do estado dá-se pelo
controle orçamentário. Agências de fomento à pesquisa e à ciência fixam seus editais de
forma a “orientar” as verbas e os recursos financeiros para áreas de interesse das elites
econômicas dominantes. A subordinação é clara e direta. As regras para receber o fomento
variam de acordo com os interesses da economia. Poucas bolsas de estudos ou recursos são
destinados a pesquisas que não privilegiem o interesse do capital. A existência delas é
meramente ilustrativa e com a finalidade de “anunciar” a ilusória democracia do
conhecimento. Os malefícios da burocracia do ensino e da ciência, somados à rede privada,
potencializam a indiferença real com o cientista transformando-o em mero instrumento de
meio e pouco relacionado com os fins da ciência. O cientista torna-se um trabalhador da
ciência que não dispõe, na realidade estatal, “de outros recursos que não os instrumentos de
trabalho que o Estado põe ao seu alcance. Nesse sentido, ele depende de seu patrão – já que o
diretor de um instituto pensa, com total boa-fé, que aquele é seu instituto. Daí, passa a dirigí-
lo a seu bel-prazer, de modo que a posição do assistente, nesses institutos, é, normalmente,
tão precária quanto a de qualquer outra existência “proletaróide”, ou até quanto a dos
assistentes das universidades norte-americanas. (WEBER, 2003, p. 27-28)
Mesmo os cursos de pós-graduação, responsáveis pela formação de cientistas e
pesquisadores, não ficam fora dessa regra. Conforme Tragtenberg (2004, p. 80) afirma, “o
curso de pós fica reduzido a ser pós-de-coisa-algumaiii. A universidade, controlada em sua
função pedagógica pela burocracia, por ter sua função de pesquisa redefinida fora de seu
meio, por agências de financiamento nacionais e internacionais, é ‘domesticada’. Reduz-se à
criação de mão-de-obra ‘superior’ requerida pelo sistema, sem mais nada, sem fantasia.”
De fato, não ocorre a suposta neutralidade axiológica, pois as ideologias estão o tempo
todo permeando o espaço, os procedimentos, os recursos financeiros do pesquisador. Sua
subordinação à burocracia científica limita-o na sua jornada pela busca do conhecimento
científico. É nesse sentido que a pós-graduação se tornou, segundo o próprio Tragtenberg
(1979), o “bode expiatório” da ciência.
Conforme Uhle (2001, p. 153) afirma,
Há crimes lógicos e passionais; a distância que os separa é
incerta, são definidos os primeiros pela existência da
premeditação. Da mesma forma que a existência do carrasco
pressupõe a vítima, o poder monocrático e vertical implica
bodes expiatórios. Essa a função da pós-graduação nos discursos
do Poder, através de seus representantes mais autorizados.
Justamente numa época em que cursos de pós-graduação
difundiram-se pelo território nacional e nesse sentido
democratizaram-se; são taxados de elitistas e como tais voltados
à extinção decretada pelos donos do poder.
O suposto poder da elite intelectual é reduzido à burocracia estatal direta ou indireta,
presente tanto nas instituições públicas quanto nas privadas. A abertura de vagas na pós-
graduação sofre dupla contradição: (i) é alvo de reserva quanto à possibilidade de abertura de
novas vagas denotando certo movimento para reservar o mercado para os cientistas e
12
pesquisadores já atuantes; (ii) é defendida para consolidar a “democracia” e universalização
do conhecimento.
A burocracia apresenta as contradições do sistema no seu interior. Assim, é necessária
a “produção do conhecimento e, para isso, [é imprescindível apostar] na liberdade do
pesquisador para buscar problemas socialmente relevantes para seus estudos. Por essa crença
na necessidade de autonomia de pesquisadores e instituições de pesquisa é que [Tragtenberg]
criticou sempre os acordos de interesse, os grandes financiamentos que fecham a agenda do
pesquisador, os célebres convênios com as empresas privadas ou com as Fundações Ford,
Rockfeller e tantas outras. Daí porque sua história mostra o currículo de um intelectual que
nunca teve uma bolsa de estudos, nunca fez um estágio internacional, mas nem por isso
deixou de ser cosmopolita.” (UHLE, 2001, p. 165)
O processo de racionalização no ensino e na ciência não é um evento à parte. É
parental com o mesmo fenômeno ocorrido nos processos de trabalho. A especialização
extrema aliena o cientista do fato gerador do conhecimento. O controle financeiro subordina a
pesquisa aos interesses econômicos. As normas, regras e procedimentos engessam a ação do
cientista e do pesquisador. Para aceitar essas condições sem maiores “traumas” ou
sofrimentos, cientistas e pesquisadores aceitam as regras impostas pelas fontes financiadoras.
As universidades nada mais são do que grandes organizações burocráticas, organizadas de
forma a garantir a reprodução das suas elites internas. O processo de racionalização das
universidades está em concordância com o processo já definido por Weber como
“desencantamento do mundo” pelo qual o próprio conceito weberiano de neutralidade
axiológica perde sentido. Porquanto, não é possível neutralidade em um processo cuja forma
mais comum de racionalização não seja um fim em si mesmo, mas tão-somente um meio para
a realização das elites orientadas e motivadas para o acúmulo permanente do capital, nem que
seja por meio de uma economia militar orientada mais para a destruição do que para a
melhoria da sociedade.

(Sem) Saber e (Com) Poder: Francis Bacon e o Mito do “O Conhecimento é em si


mesmo um poder”: por uma breve conclusão?

Francis Bacon é considerado o precursor do racionalismo. A quebra com a tradição


filosófica anterior possibilitou o surgimento de uma nova filosofia. O aparecimento do
pensamento imanentista (a construção da filosofia por meio da razão ao invés de admitir a
prevalência do real) é responsável por focar o indivíduo do saber como detentor do poder: “a
ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o
efeito. Pois, a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece.” (BACON, 1988, p. 13)
Bacon, na época em que fez suas reflexões, conseguiu imaginar em que medida a
ciência, como força transformadora da realidade, se desenvolveria. Mais do que isso,
imaginou a força destrutiva, por meio do complexo industrial militar, como orientadora da
ciência e de grande parte das pesquisas aplicadas. Conforme afirma Passetti (2001, p. 108),
em ‘O saber e o poder’ [Tragtenberg], localiza as orientações de
Bacon como investimento num saber que se disponibiliza de
maneira serviçal à dominação. Seu foco atinge em especial as
conexões científicas com o colonialismo e as guerras, mostrando
como os intelectuais se transformam em ‘parte integrante do
complexo militar-industrial-acadêmico’ orientado pela
especialização e criação de modas universitárias que se impõem
pela tirania. Receber financiamento implica ajustar-se às teorias
definidas pelas agências, num complexo desenho de engenharia
social: ‘na medida em que os cientistas propõem terapia de
13
controle sobre os que estão abaixo, eles servem aos que estão
acima’.
A realidade de Bacon era diferente da atual. A passagem da filosofia para a ciência
ocorreu e sedimenta-se na noção de materialidade da ideologia. A filosofia, a sociologia e
todas as ciências humanas apresentam-se como produtoras de racionalidades que justificam a
utilização da ciência como meio de dominação, não só da natureza como também dos próprios
homens. Essas racionalidades e imaginários vêm amparados pela idéia de que a ciência é
neutra. Uma mitificação ocorre por conta disso e cria uma “fé” na filosofia e na ciência, como
libertadora dos homens em relação a todas as formas de sofrimentos e angústias existenciais.
Há, nessa relação de fé, um equívoco de concepção. A ciência é, na atualidade, uma
força produtiva ou uma mercadoria. Constitui-se força produtiva, quando transforma
materialmente a realidade ou quando serve para promover e intensificar o acúmulo do capital,
seja por meio da exploração crescente da mais valia absoluta ou pela intensificação da mais
valia relativa. Constitui-se mercadoria, quando apropriada por indivíduos ou grupos
dominantes que monopolizam sua utilização ou quando exercem as propriedades fetichistas
tal como Marx abordou e, ainda, mercadoria quando de fato é apenas a extensão da
propriedade privada. A ciência, seja ela força produtiva ou mercadoria, é fator importante nas
relações de produção existentes.
Além disso, a ciência pode ser força produtiva de destruição. A humanidade vivencia
uma relação entre “matar e morrer” gerada pelas armas que a ciência disponibiliza por meio
de complexo industrial militar cada vez mais crescente. A ciência, como força produtiva dessa
natureza torna-se, na realidade, financiadora da destruição. Nessas circunstâncias, inexiste a
neutralidade da ciência porque a ideologia atua com força material ou como formadora do
imaginário da dominação.
A forma mais perversa de sedimentação da ciência como força produtiva destrutiva
consolida-se, em grande parte, nas racionalizações que geram o pragmatismo ou a
universidade burocrática. Essa burocracia é construída para a manutenção dos privilégios da
elite intelectual que a ocupa. A universidade como local de produção da ciência apresenta-se
como a consolidação dos interesses do capital porque aprisiona e transforma a maior parte da
produção científica em mercadoria ou força produtiva.
Pelas contradições que a sociedade capitalista apresenta é possível viver sem saber e
com poder, pois no capitalismo, o que confere poder nem sempre é o domínio do saber
científico. Da mesma forma, o inverso pode ser verdadeiro: com saber e sem poder, o
primeiro como conseqüência e o segundo como resultado. Assim, a afirmação dogmática de
que saber é poder não passa, em algumas situações, de um mito presente na sociedade. O
poder, conferido por determinados conhecimentos, ganha força e importância de acordo com
os interesses defendidos ou ao grupo dominante.
Algumas reflexões precisam ser feitas com base em afirmações de Tragtenberg: (i)
Quando passaremos a nos preocupar de fato “com as finalidades sociais do conhecimento”,
evitando, assim, “a ‘delinqüência acadêmica’ ou de ‘traição do intelectual’?”.
(TRAGTENBERG, 2004, p. 16). (ii) Uma nova organização do trabalho, diferente da
existente no modo de produção capitalista, é suficiente para “elevar” a ciência a uma nova
ética centrada nos interesses dos indivíduos e seus coletivos ao invés dos interesses das elites
dominantes?
Nem toda pesquisa ou reflexão precisa acabar com certezas ou afirmações. A grande
propriedade do saber, incluindo a ciência em todas as épocas, é a capacidade de elaborar suas
questões; de levantar as problemáticas que permeiam a sociedade; de questionar a própria
razão vigente embora nem sempre chegue a respostas definitivas. Dessa forma, quais questões
o leitor pode criar após esta leitura?

14
REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editores, 1985.
BACON, Francis. Novum Organum. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
GORZ, André. O imaterial. São Paulo: Annablume, 2005.
GRAMSCI, Antonio. “The formation of intellectuals”. London: Lawrence and Wishart,
1975.
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
_____. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1997.
HORKHEIMER, Max. Teoría Crítica I – Max Horkheimer. São Paulo: Perspectiva: Editora
da USP, 1990.
_____. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
PASSETTI, Edson. Maurício Tragtenberg, um socialista heterodoxo. In: ACCIOLY E
SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as
Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática 1974.
_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
UHLE, Agueda Bernardete Bittencourt . Tragtenberg e a educação. In: ACCIOLY E SILVA,
Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências
Humanas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2003.

i
O Tipo Ideal weberiano é um instrumento de análise sociológica para a compreensão da realidade social. É um
mecanismo de criação de tipologias puras, supostamente destituídos de “valores avaliativos”. Seu distanciamento
da realidade é tido como fundamental para a sua compreensão.
ii
TRAGTENBERG, Maurício. A nova eugenia. Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 23/12/1984.
iii
“Na realidade, o que os subdesenvolvidos aprendem a respeitar na idéia de ciência são os conceitos abstratos,
as realizações experimentais que não podem ser reproduzidas por eles e que não têm relação com sua cultura.
Ficam em estado de impotência intelectual em relação à Metrópole, que capta os melhores estudantes para o
doutorado, na sua maioria oriundos da América Latina”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 33)

15
O Discurso e a Prática da Ética nas Relações de Trabalho:
os Paradoxos da Práxis de uma Organização Bancária

Autoria: Rodrigo Serpa Pinto, José Henrique de Faria

Resumo
O ressurgimento da questão da ética no campo administrativo trouxe novos desafios
para a gestão das organizações, principalmente àquelas inseridas em um sistema capitalista
onde predomina a lógica produtiva e a racionalidade instrumental. A necessidade de adaptação
decorrente das novas exigências profissionais e sociais, em virtude das novas reflexões éticas,
fez com que as organizações buscassem legitimar suas ações com base em um código de
conduta, entendido aqui como o discurso formal1 da organização, capaz de regulamentar o
comportamento dos indivíduos, “sugerindo” condutas “eticamente corretas”. Porém, o que se
verifica empiricamente é que nem sempre tal discurso corresponde à prática administrativa.
No campo organizacional, isso é percebido quando o compromisso com as regras instituídas
permanece somente até o ponto onde elas não comprometam as práticas ou os interesses
particulares de alguns, tornando-se comum, em muitos casos, as organizações adaptarem as
regras às práticas. Portanto, quando não há coerência entre o discurso e a prática
administrativa, tornam-se evidentes alguns paradoxos nos quais se observam que as ações dos
indivíduos não correspondem aos princípios éticos que deveriam embasá-las e/ou justificá-las,
convergindo para relações de trabalho fundamentadas em uma ética convencionada.

1. INTRODUÇÃO
O tema da ética ressurgiu no campo administrativo com uma relevância inquestionável,
principalmente para as organizações em que a lógica de ação está subordinada ao sistema
econômico. Para essas organizações tornou-se um grande desafio integrar a questão da ética
em suas práticas administrativas, visto que as relações de trabalho precisam “obedecer” a
lógica do mercado, na qual a racionalidade instrumental impera como a única racionalidade
possível para a sobrevivência das empresas.
Para Enriquez (1997), é justamente o triunfo da racionalidade instrumental (através do
seu cálculo utilitário das conseqüências), o responsável pelo profundo mal-estar em que se
encontra a nossa sociedade e, portanto, pelo reaparecimento das reflexões a respeito da
ética.De fato, como lembram Séguin e Chanlat (1987), muitas vezes os indivíduos são
considerados apenas como “recursos” com os quais as organizações precisam contar. Segundo
Enriquez (1997), em muitos casos, quando os indivíduos são designados como responsáveis
pela realização de alguma tarefa, a única intenção das organizações é obrigá-los a prestarem
conta do seu desempenho aos seus superiores e aceitar o julgamento dos mesmos. Nesse
sentido, o indivíduo torna-se um “objeto manipulável”, ou seja, alvo de uma sanção externa e
sem possibilidade de avaliar a sua própria ação.
No entanto, a busca incessante das organizações é fazer com que os indivíduos creiam
que ela considera suas opiniões, seus sentimentos, e que pode realizá-los plenamente. Sem
dúvida, o ideólogo organizacional (FARIA, 2001a, p.13), “deseja construir princípios da
ética, da moral, do direito, da democracia e do comportamento, que devem ser respeitados na
organização, não baseados na realidade das condições sociais que lhe dão suporte, mas
partindo de um conceito já previamente formulado no interior de sua corporação”.
Quando os princípios são conceituados sem conexão com a realidade, e segundo uma
lógica previamente definida, os mesmos cabem onde se deseja pô-los antes mesmo de os
construir; ou, em outras palavras, quando a realidade é deduzida não de si mesma, mas de uma
idéia, a mesma não passa de uma ideologia (FARIA, 2001a). Conforme Chauí (2001), a
ideologia representa um mascaramento da realidade social que lhe permite a legitimação da

1
exploração e da dominação, onde, por intermédio dela, tomamos o falso pelo verdadeiro, o
injusto pelo justo.
Pode-se constatar que, agindo dessa forma, as organizações têm como objetivo
desenvolver um forte consenso em torno de seus próprios ideais. Sendo assim, as normas e
princípios a serem “respeitados” pelos indivíduos da organização podem representar aquilo
que for mais conveniente aos seus elaboradores e não aquilo que deve realmente ser
observado na prática organizacional. A fim de atingir objetivos e interesses particulares, o
código de conduta da organização pode ser utilizado como um instrumento sutil de controle,
avaliação e punição. Conforme afirma FARIA (2001a, p.3):
A concepção de ética, moral e democracia nas organizações é sustentada por um discurso coerente com os
princípios éticos e morais e com o exercício da democracia e da justiça, como a recusa às atitudes
preconceituosas, desonestas, injustas e infiéis; e, por uma prática que, negando o discurso, estabelece
atitudes diferentes, a referendar, conteúdos e comportamentos que o próprio discurso entende não éticos,
de moral coercitiva e autoritária, os quais são observados e aceitos neste ambiente enquanto portadores de
uma lógica competitiva, de sobrevivência e de esperteza.
Este estudo pretende investigar os possíveis paradoxos existentes entre o discurso e a
prática administrativa de uma organização bancária. Entende-se que, em uma organização
onde a lógica de ação está subordinada ao sistema capitalista, as relações de trabalho devem
ser sustentadas por um discurso que seja capaz, ao mesmo tempo, de justificar a prática de
algumas ações e encobrir algumas de suas conseqüências.

2. ÉTICA E MORAL: por um entendimento conceitual


Etimologicamente, as palavras ética e moral têm o mesmo sentido. A palavra ética
originária do grego (ethos), e a palavra moral originária do latim (mores), significam, ambas,
costume (CHAUÍ, 2002). Segundo Rios (2000), o costume resulta no estabelecimento de um
valor para a ação humana, que é criado e conferido pelos próprios homens, nas suas relações
uns com os outros. Sendo assim, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes de uma
organização e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus
membros.
Porém, embora geralmente entendidas e usualmente aplicadas (principalmente pelos
estudiosos de organizações) como sinônimos, ética e moral não o são (FARIA, 2001a).
Conforme explica Rios (2000, p.23):
A ética se apresenta como uma reflexão critica sobre a dimensão moral do comportamento do homem.
Cabe a ela, enquanto investigação que se dá no interior da filosofia, procurar ver – claro, fundo e largo –
os valores, problematizá-los, buscar sua consistência. É nesse sentido que ela não se confunde com a
moral. No terreno da última, os critérios utilizados para conduzir a ação, são os mesmos que se usam para
os juízos sobre a ação, e estão sempre, indiscutivelmente, ligados a interesses específicos de cada
organização social. No plano da ética, estamos numa perspectiva de um juízo critico, próprio da filosofia,
que quer compreender, quer buscar o sentido da ação.
Pode-se deduzir, então, que a ética analisa as escolhas que os agentes fazem em
situações concretas, verificando as opções de conformidade aos padrões sociais estabelecidos.
Faria (2001a) ressalta que, no grupo, as relações entre os sujeitos devem ser pautadas por
normas e regras coletivamente construídas; porém, isso não significa que os sujeitos não
sejam capazes de estabelecer valores por si próprios e de respeitá-los.
Srour (1998, p.271) alerta para o fato de que, atualmente, a ética (que sempre fez parte
da filosofia) desenvolveu uma nova concepção, denominada pelo autor como ética científica,
“que constata o relativismo cultural e o adota como pressuposto, abordando as normas que as
coletividades consideram válidas, sem prejulgá-las ou sequer julgá-las”. Por essa definição, a
ética estaria a serviço de uma moral particular (a de cada organização), exigindo uma adesão
ideológica, que se transforma em coação interna aos agentes; a moral, neste caso, nada mais
seria do que um discurso de justificação.

2
Portanto, a relação entre ética e moral se põe de forma a tentar compreender as razões
pelas quais uma pessoa ou um grupo venha a agir ou não de determinada maneira, dada às
alternativas possíveis (FARIA, 2001a). Como em um mecanismo de influências recíprocas, a
moral constitui-se, então, na matéria de reflexão da ética (VAZQUEZ, 2002).

2.1 O Porquê do Ressurgimento da Ética no Campo Organizacional


O termo ética, anteriormente reservada a questões de cunho filosófico e praticamente
subestimada do mundo dos negócios, ressurgiu com grande força na linguagem e na prática
das organizações contemporâneas. Segundo Enriquez (1997), o reaparecimento de tal questão
está relacionado a um sinal de mal-estar profundo que afeta a nossa sociedade (em virtude do
triunfo da racionalidade instrumental), que faz prevalecer a questão como sobre a questão
porque.
Sabe-se que a lógica de ação das organizações produtivas contribui para a supremacia de
tal racionalidade. Trata-se de adequar os meios aos fins a partir de um cálculo de custo-
benefício (que se refere tão somente a elementos mensuráveis), desconsiderando variáveis
humanas e sociais que não podem ser integradas em um sistema de equações (ENRIQUEZ,
1995).
Certamente, as organizações procuram fazer com que os indivíduos acreditem que elas
estão considerando as dimensões humanas e sociais em seus cálculos. Inclusive, para que a
razão instrumental impere como guia norteador da conduta organizacional é necessário que
ela reapareça como uma nova promessa de sucesso, como a única racionalidade possível entre
as relações interpessoais e de trabalho. Não se questiona, porém, o modo pelo qual esses
indicadores são selecionados, definidos e avaliados. Uma avaliação não é jamais um dado,
mas uma construção social, e depende da maneira pela qual aqueles que decidem escolhem as
variáveis e as ponderam. Como observa JESSOP (1996), o interesse comum é sempre
assimétrico, marginalizando e definindo certos interesses ao mesmo tempo em que privilegia
outros. Dito de outra forma, na racionalidade instrumental tanto é ocultada a referência social
quanto a referência ética.
Por isso, a preocupação das organizações frente às novas reflexões éticas que surgem em
decorrência das transformações sociais. O grande desafio para as organizações é “mascarar”
seus interesses particulares, legitimando suas ações com base em discursos de justificativa,
que atribuem ao ambiente externo a total responsabilidade pelo atendimento dos requisitos,
próprios do sistema capitalista. Portanto, presume-se que as organizações conduzam, da
maneira que mais lhes convém, o “consenso” sobre a conduta ideal de seus membros
utilizando-se de um código de conduta, a fim de construir a sua própria ideologia.
Desse modo, pode-se deduzir que a ética está a serviço do próprio sistema e, por
conseguinte, daqueles que dele se beneficiam, sobrepondo interesses particulares sobre
interesses coletivos através de uma ética convencionada (FARIA, 2001a), sustentada por um
discurso cobertura (ENRIQUEZ, 1974).

2.2 Diferentes Abordagens sobre a Ética


Entende-se relevante analisar algumas das diversas abordagens encontradas sobre a
ética, relatadas pelos teóricos que estudam o comportamento humano e organizacional, a
partir da distinção feita por Weber (1999) entre a ética da convicção e a ética da
responsabilidade, entendida como o centro de análise e questionamento das demais
abordagens utilizadas.

2.2.1 Ética da Convicção


A ética da convicção corresponde ao cumprimento dos deveres, sua máxima sentencia:
tudo ou nada! Pode-se dizer que os fundamentos e a justificação das ações e atitudes se fazem

3
presentes na ética da convicção através de leis morais que não toleram desvios ou ideais de
vida coletiva a serem realizados. Esta ética, absoluta, presume o caráter universal de suas
obrigações e se apresenta de forma incondicional e unívoca, dito de outro modo, uma
convicção não se negocia.
A ética da convicção está relacionada à abordagem deontológica (deón em grego ou
dever) e corresponde ao estudo dos princípios e fundamentos da moral ou tratado dos deveres,
em que o padrão para a decisão moral pode ser obrigatório ou correto pelo bem que promove
ou, igualmente, por sua natureza (ENRIQUEZ, 1997; MOREIRA, 2000; SROUR, 1998;
WEBER, 1999).

2.2.2 Ética da Responsabilidade


A ética da responsabilidade, como sugere o nome, preocupa-se com a responsabilidade
dos fins, sua máxima reza: fundamentais são os resultados! Pode-se dizer que na ética da
responsabilidade os fundamentos e a justificação das ações e atitudes se dão através das
conseqüências, que devem promover o máximo bem ao maior número de pessoas ou dos
propósitos, que a coletividade reputa como bons. Nesta abordagem, os indivíduos devem
considerar as conseqüências dos atos a fim de antecipar os resultados prováveis.
A ética da responsabilidade está relacionada à abordagem teleológica (télos em grego ou
fim) e corresponde ao estudo dos fins humanos, em que a obrigatoriedade de uma ação deriva
de sua finalidade ou de suas conseqüências (ENRIQUEZ, 1997; MOREIRA, 2000; SROUR,
1998; WEBER, 1999).

2.2.3 Ética da Convenção


Este tipo de ética sustenta-se através de regras convencionadas. Portanto, a dificuldade
de uma definição rígida, tendo em vista que a sua abordagem é relativista, ou seja, recusa os
princípios absolutos oriundos do fim último ou do dever, admitindo-os em um quadro espaço-
tempo mutável (FARIA, 2001a).
Trata-se de uma convenção entre os agentes que operam em um determinado sistema.
Em uma organização (especialmente naquelas inseridas em um sistema capitalista), os agentes
representam aqueles que detém os meios de produção e aqueles que se utilizam desses meios
para a transformação dos insumos em produtos. Como aqueles que detém os meios de
produção encontram-se em uma posição privilegiada em relação aqueles que os operam, fica
evidente que as regras serão convencionadas beneficiando aqueles que estão a serviço da
lógica do capital.
Em outras palavras, as relações existentes em uma organização selecionam os
indivíduos com base em suas posições hierárquicas e os condicionam a adotarem padrões
estabelecidos através de normas que representam alguns interesses particulares. Através de um
discurso de justificação, os dominantes legitimam suas ações, encobrem algumas de suas
conseqüências e generalizam seus interesses particulares como se fossem coletivos. Conforme
afirma por Srour (1998, p.277), “a moral dos dominantes torna-se a moral social em vigor e
as ações são julgadas a partir de seus cânones”. Corroborando esta afirmativa, Faria (2001b,
p.31) conclui:
Nenhum indivíduo, no grupo, expressa seu interesse como sendo propriamente seu. Os indivíduos
formulam seus interesses a partir de um discurso coletivo, tentando traduzir seus desejos no desejo do
grupo, em busca de uma legitimidade e de uma impessoalidade que venha a garantir que seu interesse seja
adotado pelo grupo como sendo interesse coletivo, seja em sua formulação original, proposta pelo
indivíduo, seja em sua formulação reconstruída.
Este estudo utilizará a ética da convenção e a abordagem relativista para sustentar seus
pressupostos. Entende-se que, em uma organização bancária, inserida em um sistema
capitalista (em que a lógica predominante é o cálculo utilitário das conseqüências), as relações

4
de trabalho são embasadas por uma ética convencionada entre aqueles que detém o capital e
os meios de produção, representados pela figura dos gestores.

2.3 Verdadeiros Desafios Éticos das Organizações


Inseridas em um ambiente cada vez mais turbulento e incerto, frente a um ritmo
desenfreado de mudanças que reflete novos arranjos na organização do trabalho e na gestão,
as organizações contemporâneas encontram-se em uma situação em que as certezas
ideológicas e os remendos técnicos que outrora eram o suporte de sua disciplina estão sendo
questionados e, aparentemente, já começam a recuar no debate sobre a natureza da
organização e quais os meios mais adequados ao seu estudo.
As implicações de tais mudanças são potencialmente revolucionárias, gerando novos
desafios e responsabilidades para as organizações. Se nem o conservadorismo, nem o
relativismo agradam mais, uma terceira opção é recontar a história da teoria organizacional de
forma a redescobrir as narrativas analíticas e os discursos éticos que moldaram seu
desenvolvimento e legitimaram sua essência (REED, 1999).
Para Sidekum (2002), as exigências do progresso científico na atualidade levam a um
desafio ético que é rever ou até negar as concepções clássicas de natureza humana em suas
mais diversas estruturas e compilações. O que implica que a experiência vivida pelo ser
humano em sua plenitude de identidade ética é a consciência individual de sua condição
humana, bem como o reconhecimento de sua condição como ser universal.
Aí está a dificuldade de uma fundamentação da ética e da alteridade 2 . Como
fundamentar a subjetividade e a alteridade como princípios da eticidade? Sidekum (2002,
p.45) afirma que:
É na dimensão da ética como experiência da heteronomia que se implicará a afirmação da subjetividade a
partir da irrupção interpelativa da alteridade do outro ser humano. Os conceitos para explicar o princípio
da heteronomia são o estar face a face e a infinita responsabilidade pelo outro (...) Assim, a heteronomia
suscita, como princípio de uma ética social, responsável pela experiência de uma dissimetria das relações
interpessoais, onde a relação entre o eu e tu, na reciprocidade, é rompida pela irrupção de um terceiro tu,
que se fundamenta no exercício infinito da justiça.
Seria utópico, porém, acreditar que esse terceiro tu, fundamentado no exercício da
justiça, correspondesse à organização. Seria o mesmo que admitir que houvesse a
possibilidade de se instalar uma harmonia perfeita entre os valores do indivíduo e os valores
da organização. Por isso, entende-se que os verdadeiros desafios éticos das organizações
contemporâneas correspondem à tentativa de harmonizar tal equilíbrio, ou seja, transformar
interesses particulares em razões coletivas aceitas.
Como afirma Srour (1998, p. 277), “toda ética palpita no coração de uma ideologia e, de
maneira aparentemente paradoxal, reivindica um caráter universalista (...) de maneira que os
apelos ao universalismo funcionam como máscara ou álibi, e visam, sobretudo, a ampliar o
nível de legitimação”. Na mesma linha, Lukács (1974) tem mostrado que os interesses
particulares são freqüentemente universalizados e tratados como se fossem os interesses de
todos. Na prática das corporações contemporâneas, grupos da administração são privilegiados
na tomada de decisão. Dessa forma, os interesses da corporação são igualados aos interesses
específicos da gerência.
Entende-se agora porque as organizações se empenham tanto na “conquista” da
consciência de seus membros. A verdadeira intenção é assegurar aprovação e garantir
legitimidade às suas ações. Para isso, utiliza-se de um discurso incongruente, que desenvolve
uma retórica universalista, apela para interesses coletivos, mas encobre interesses
particularistas Srour (1998). Em outras palavras, a fim de legitimar suas ações, as
organizações utilizam-se de um discurso que apela para a aceitação coletiva, através da
promessa de garantia dos interesses gerais; porém, que resulta no atendimento de interesses
específicos.

5
2.4. A Relação entre a Ideologia e os Discursos Organizacionais
Segundo Faria e Meneghetti (2001, p.90), “o discurso está presente em todas as esferas
sociais, tendo um papel extremamente importante no ambiente organizacional. Todo discurso
esconde uma rede simbólica de relações de dominação ideológica e de poder. Cada palavra
expressa no ambiente organizacional está, de alguma forma, sendo monitorada e classificada”.
Castoriadis (1995) acredita que existe uma delimitação imaginária na qual o indivíduo
pode aventurar-se com o uso de palavras, diálogos e argumentações, devendo, contudo, estar
atento para que seu discurso não ponha em risco os interesses do grupo dominante e a
ideologia vigente na organização. Entende-se pertinente descrever sobre algumas das
modalidades do discurso organizacional encontradas, e que fazem parte do imaginário
coletivo dos indivíduos que “pertencem” à organização; visto que, como lembra Enriquez
(1996), quanto mais o indivíduo inclui-se em uma formação coletiva, mais ele será contido em
um jogo fechado de obrigações e trocas, mais ele se sentirá unido a um chefe e aos
companheiros e, menos a neurose poderá alcançá-lo. Desta forma, é criada uma identidade
compacta onde não existe questionamentos nem opiniões formadas a respeito do
funcionamento do sistema (ENRIQUEZ, 2001).
Funcionando como uma instância mediadora ideológica, a organização fornece respostas
às suas contradições inerentes, encarnando concretamente os valores de consideração pela
pessoa, do serviço e da eficácia, que legitimam todas as práticas organizacionais e ocultam os
objetos de lucro e de dominação (PAGÈS et al., 1993). A grande questão é que esse
“sentimento de pertença” não garante a permanência do indivíduo na empresa e tampouco o
permite avaliar suas próprias ações. Vale lembrar que o indivíduo sofre uma avaliação
externa, ficando sujeito a um julgamento que o torna responsável por qualquer conduta que
não aquela estipulada pelo discurso vigente.

2.4.1 O Discurso Formal


Essa modalidade corresponde ao discurso expresso no regulamento interno da
organização e tem por função regulamentar as relações de trabalho. Trata dos deveres e das
proibições dos indivíduos, e das ações e atitudes que resultam em demissão por justa causa.
Portanto, todo e qualquer comportamento que não esteja explícito no regulamento interno é
passível de punição.
Representa o código de conduta, convencionado pelos agentes que “respondem” pela
organização, a saber, os gestores; e, sugere a “conduta ideal” dos indivíduos que dela fazem
parte. Segundo Zylbersztajn (2002), “muitas vezes o código representa uma perspectiva
distante da realidade da organização, existindo apenas como tentativa de criar uma imagem
corporativa positiva ou mesmo para servir de salvaguarda legal, no caso de litígios na Justiça”.
Neste trabalho o objetivo é analisar o conteúdo ético do discurso formal de uma
organização bancária e relacioná-lo com as ações e atitudes praticadas pelos seus gestores. De
acordo com as fundamentações apresentadas até aqui, acredita-se que a postura assumida
pelas organizações é a de que o código de conduta ajuda a consolidar, perante seu público
externo, uma imagem de integridade e, perante seus funcionários, uma “garantia” do
cumprimento dos deveres e uma “adesão” à ideologia da organização. Corroborando com este
pressuposto, Dejours (2001, p.65) discorre:
O discurso oficial sobre o trabalho e sua organização é, pois, construído, sobretudo, para servir a uma
propaganda visando ao exterior da empresa: o mercado, a clientela, etc. Na verdade, contudo, atualmente
ele é também construído para servir a objetivos internos, da cultura da empresa, que preconizam o
rigoroso ajustamento da produção e da organização do trabalho às exigências do mercado e da clientela,
devendo, além disso, atestar a satisfação e a felicidade dos empregados que trabalham na empresa.
Na mesma linha, Foucault (1997), ao analisar o discurso, percebe que o mesmo pode
criar uma dimensão capaz de estabelecer regras de comportamentos e de diálogos comuns a

6
uma organização ou a uma sociedade em geral, aceito por todos e legitimado como padrão de
conduta a ser adotado pela maioria, com a finalidade que os atores sociais evitem o conflito
entre si.
Desse modo, a prática discursiva atinge a todos os setores da empresa, que passam a
estabelecer entre si relações do tipo comercial, “vendendo” sua imagem através da divulgação
de suas habilidades, competências e resultados. Essa valorização impõe uma disciplina que
consiste em defender e sustentar a mensagem difundida, bem como de abster-se a qualquer
crítica, em nome da união e da solidariedade.
Porém, apesar do discurso ser dirigido, preliminarmente, a todos os membros da
organização, independente da posição hierárquica que ocupem, sugerindo condutas
“eticamente corretas” nas relações interpessoais e de trabalho, percebe-se que a prática
administrativa geralmente não é condizente com tal discurso. O discurso torna-se, portanto,
instrumento ideológico ausente de ética e dirigido aos interesses da organização e de seu
grupo dominante.

2.5. A Lógica do Capital nas Relações de Trabalho


É sabido que as relações de trabalho não se reduzem apenas a relações que se dão
exclusivamente ao nível de unidades produtivas. É preciso considerar as várias instâncias
definidoras dessas relações: a instância político-econômica, a instância da organização do
processo de trabalho, a instância das políticas de recursos humanos, a instância do simbólico,
dentre outras (FARIA, 1985; FLEURY, 1996).
Porém, para este estudo, o que interessa é analisar a lógica pela qual as relações de
trabalho, especificamente em uma organização bancária, estão subordinadas,à lógica
capitalista. Segundo Fleury (1996, p.114), “as relações de trabalho nascem das relações
sociais de produção, constituindo a forma particular de interação entre os agentes sociais, que
ocupam posições opostas e complementares no processo produtivo: trabalhadores e
empregadores”.
No caso de produção capitalista, existem duas peculiaridades entre os atores sociais
envolvidos: o trabalhador, que atua sob o controle do capitalista, após este comprar a sua força
de trabalho; e, o produto, que passa a pertencer ao capitalista e não ao trabalhador, que é o seu
produtor imediato.
Outra característica da produção capitalista, apontada por Braverman (1977, p.79),
refere-se à separação dos trabalhadores dos meios com os quais a produção é realizada, só
podendo ter acesso a eles vendendo sua força de trabalho. Assim, “a força de trabalho
converteu-se numa mercadoria (...) suas utilidades não mais são organizadas de acordo com as
necessidades e desejos dos que a vendem, mas antes, de acordo com as necessidades de seus
compradores que são, em primeiro lugar, empregadores à procura de ampliar o valor de seu
capital”.
A introdução de novas tecnologias no processo produtivo não visa suavizar o trabalho
humano, mas sim baratear as mercadorias, reduzir o tempo de trabalho necessário e aumentar
o valor excedente. Porém, ressalta Faria (2002, p.17), “quando se examina o efeito causado
pela introdução de novas tecnologias sobre o processo de trabalho, é preciso, antes de
qualquer coisa, observar que não se trata de jogar sobre o desenvolvimento tecnológico a
responsabilidade pela injustiça e pelo sofrimento dos trabalhadores”.
A incorporação de novas tecnologias no processo de produção capitalista, somente se
faz necessário quando a margem de rentabilidade sobre o capital vigente está se esgotando e,
mesmo assim, haja disposição de continuar no mercado. Por isso, a modernização tecnológica
não é apenas uma opção individual ou contextual, mas uma imposição de novos padrões de
acumulação de capital.

7
Desse modo, o discurso posto pelas empresas, de que a automação é necessária e
imprescindível, que irá trazer benefícios ao trabalhador, tornando-os mais qualificados,
garantindo seu posto de trabalho frente a um mundo competitivo e globalizado, flexibilizando
as suas tarefas e alinhando-as à produção, é “mascarado” pelo interesse do sistema de capital.
Considerando o exposto e com base na análise de Thiry-Cherques (1997), é possível
identificar alguns pressupostos a respeito das relações de trabalho produtivas. São eles:
! A percepção do eticamente justificável é condicionada pela obsessão com as leis do
mercado;
! Os valores éticos não racionalmente justificáveis (relação meio-fim) são considerados
hierarquicamente inferiores (não prioritários);
! Os atores econômicos professam uma ética de dupla face: certos preceitos (que
constituem a memória ética da formação e garantia da sobrevivência do capitalismo) são
mandatários para uso geral e (pela necessidade de sobrevivência no capitalismo) são
facultativos para uso privado;
! A vida afetiva e a vida social dos atores envolvidos no processo de produção são
sacrificadas em função da vida econômica e da sobrevivência no sistema capitalista.
Thiry-Cherques (1997) salienta que o estilo de vida é condicionado pela força da lógica
capitalista, que por sua vez produziu e validou um código de ética particular, lógico em
relação ao funcionamento da economia, mas descabido em relação à vida social.
Os pressupostos apresentados, aliados às análises teóricas anteriores, permitem a
identificação de alguns paradoxos da práxis organizacional no que tange à ética nas relações
de trabalho.

3. METODOLOGIA DA PESQUISA
Além de sua fundamentação teórico-empírica, um trabalho científico deve sustentar-se
em procedimentos metodológicos adequados, de modo que trate as categorias analíticas, os
conceitos e os fenômenos estudados de forma coerente e consistente.
A especificação da metodologia é a que abrange o maior número de itens, pois responde
detalhadamente como será feita a pesquisa. O problema de pesquisa a ser respondido e o
atendimento dos objetivos propostos também dependem da metodologia a ser utilizada, visto
que a mesma deverá possibilitar um desenvolvimento harmônico entre a teoria e a verificação
empírica dos dados coletados.

3.1 Delimitação e Design da Pesquisa


A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo de caso ex-post-factum
(KERLINGER, 1980), visto que não pretende manipular os fenômenos em análise, e se valeu
da abordagem descritivo-qualitativa, com corte transversal. O campo empírico do presente
estudo foi uma organização bancária em seus diversos níveis de análise, sendo as categorias
analíticas a ética, o discurso e as relações de trabalho, cuja verificação se encontra justamente
na práxis organizacional.
Segundo Godoy (1995), o estudo de caso tem-se tornado a estratégia preferida quando
os pesquisadores procuram responder como e por que certos fenômenos ocorrem; quando há
pouca possibilidade de controle sobre os eventos estudados; e, quando o foco de interesse é
sobre fenômenos atuais, que só poderão ser analisados dentro de um contexto de vida real.
Pode-se verificar ainda, que o estudo de caso se caracteriza como um tipo de pesquisa cujo
objeto é uma unidade que se analisa profundamente, visando ao exame detalhado de um
ambiente, de um simples sujeito ou de uma situação em particular.
Na mesma linha Yin (2001) afirma que o estudo de caso é uma forma de se fazer
pesquisa empírica quando se deseja investigar fenômenos contemporâneos dentro de seu

8
contexto da vida real, em situações onde os limites entre o fenômeno e o seu contexto não
estão claramente estabelecidos.
A meta abrangente do estudo de caso, contudo, mesmo que não seja alcançada, tem
conseqüências importantes e úteis: prepara o investigador para lidar com descobertas
inesperadas e, de fato, exige que ele reoriente seu estudo à luz de tais desenvolvimentos;
força-o a considerar, por mais que de modo rudimentar, as múltiplas inter-relações dos
fenômenos específicos que observa; e, evita que ele faça pressuposições que podem se revelar
incorretas sobre questões que são relevantes, ainda que tangenciais, para seus interesses
principais. Isto acontece porque um estudo de caso quase sempre fornece alguns fatos para
guiar estas pressuposições, enquanto os estudos com procedimentos de coleta de dados mais
limitados são obrigados a pressupor o que o observador, que faz o estudo de caso, pode
verificar.
A abordagem descritivo-qualitativa é considerada propícia para capturar o fenômeno
estudado, visto que busca observar os fenômenos, procurando descrevê-los sem interferir ou
manipular a realidade.
Segundo Bogdan (apud TRIVIÑOS, 1987), esta abordagem apresenta as seguintes
características: caráter descritivo; o ambiente natural como fonte direta dos dados e o
pesquisador como instrumento-chave; a preocupação do pesquisador com o processo e não
simplesmente com os resultados; a análise indutiva dos dados; e, o significado, como sendo a
preocupação essencial.
O propósito deste trabalho é o de investigar as relações entre o discurso e a prática no
que tange à ética nas relações de trabalho, a fim de evidenciar possíveis paradoxos na práxis
organizacional. Para isso, utilizou o código de conduta aliado às entrevistas coletadas com os
gestores da organização.
A fim de garantir credibilidade e base para se fazer generalização científica, fatores
alvos de preconceitos em relação à estratégia de estudo de caso (YIN, 2001), o presente estudo
não utilizou nenhum tipo de amostragem por julgamento, o que garantiu uma visão mais
ampla e imparcial dos fatos, e uma isenção ou neutralidade na condução ou influência do
significado das descobertas e conclusões. Neste caso, pode-se recorrer à noção de
transferibilidade, adotada no âmbito da pesquisa qualitativa como equivalente ao conceito de
validade externa, podendo-se alegar a possibilidade de acomodação dos resultados obtidos no
contexto original a outros contextos, no qual sejam observados padrões e características
semelhantes ao caso original.

3.2 Dados: fonte, coleta e tratamento


No presente estudo, a coleta da fonte primária dos dados foi obtida a partir de entrevistas
semi-estruturadas com os gerentes da organização, buscando confirmar e complementar os
dados levantados na fonte secundária, que ocorreu através da análise do código de conduta da
mesma.
Conforme Triviños (1987), na entrevista semi-estruturada o pesquisador parte de certos
questionamentos básicos, apoiados em teorias e pressupostos que oferecem amplo campo de
interrogativas, gerando novos pressupostos à medida que se recebem as respostas dos
informantes.
Para a verificação desses dados foi utilizada a análise de conteúdo que, segundo Bardin
(1979), é uma técnica de verificação de comunicações que contêm informações sobre o
comportamento humano, atestado por uma fonte documental. Seguindo esta lógica, os dados
secundários do presente estudo foram coletados através da análise documental. Na
organização em estudo, foram analisados os estatutos que estabelecem as relações entre os
agentes, ou, praticamente, o regulamento interno que rege as relações de trabalho, a fim de

9
verificar se o conteúdo da análise documental será condizente com os resultados obtidos pelo
levantamento dos dados primários.
Na análise documental, o pesquisador estuda e analisa um ou vários documentos para
descobrir as circunstâncias sociais com as quais podem estar relacionados (RICHARDSON,
1989). A análise documental consiste em “uma operação ou um conjunto de operações
visando a representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim
de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” (BARDIN, 1979, p.45).
Bardin (1979), destaca ainda que o objetivo da análise documental é a representação
condensada da informação para consulta e armazenagem, enquanto o da análise de conteúdo é
a manipulação de mensagens para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre outra
realidade que não a da mensagem. Neste sentido, a análise documental trabalha com
documentos e análise de conteúdo com mensagens.
Todos os dados coletados sofrerão uma análise descritivo-qualitativa. Os procedimentos
qualitativos, segundo Richardson (1989), têm como objetivo: descrever a complexidade de
determinado problema; analisar a interação das categorias analisadas; compreender e
classificar processos dinâmicos vividos pelos grupos sociais; possibilitar, em maior nível de
profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos e das
organizações.
Foi utilizada a técnica de triangulação (TRIVIÑOS, 1987), a fim de se obter uma maior
abrangência na descrição, explicação e compreensão do foco em análise. Sendo assim, este
processo procurou ampliar o reforço recíproco das fontes de dados e sua correlação, no intuito
de compreender melhor o fenômeno estudado.

4. A ÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: paradoxos da práxis


organizacional
Primeiramente, cabe salientar como a teoria organizacional tem (ou não) tratado desses
paradoxos. A grande maioria dos estudos que têm como objetivo analisar o comportamento
organizacional em suas diversas unidades de análise apóia-se em teorias e metodologias que
aceitam, sem nenhuma crítica, as concepções das estruturas organizacionais definidas pelos
seus autores, como se as organizações fossem inertes, sem história, e suas relações totalmente
mensuráveis.
Conforme Freitas (2000), não podemos pensar em organizações independentes do
contexto social e da época em que se inserem. Isso significa que as organizações devem ser
compreendidas dentro de um espaço social e de uma época específica, constituindo-se assim,
num formato sócio-histórico. O histórico e o social estão intrinsecamente ligados, pois não
existem relações sociais entre os indivíduos e os grupos, nem entre estes e os objetos sociais,
que se dêem sem referência a um tempo e a um espaço.
As organizações não são elementos estáticos, elas são permeadas por contradições,
oposições, conflitos e rupturas, que não são independentes daquelas observadas na sociedade
global. Além do que, as relações que as organizações desenvolvem com o exterior, assim
como suas relações internas, não são independentes de suas raízes sociológicas, ou seja, da
estrutura social e das relações sociais, próprias à determinada sociedade. Logo, elas estão
ligadas às ideologias, aos valores e às concepções de mundo, que muitas vezes existem para
justificar algumas situações e alguns privilégios e, assim, legitimar algumas ações.
Para Benson (1983), a análise dos estudos organizacionais deve se dar em uma
perspectiva histórica, dialética, favorecendo a concorrência entre diferentes perspectivas e
matrizes teóricas no sentido de organizar melhor e explicar de forma mais coerente os
problemas objetivamente colocados à práxis3 administrativa, entendendo a práxis enquanto
processo de transformação integrando teoria e prática (FARIA, 2001a) e, portanto, passível de
contradições.

10
O que justifica a prática de uma ética em desacordo com os códigos morais pode ser ou a falta de
condição da norma para continuar a oferecer um guia seguro, ou as apreciações de caráter avaliativo, tanto
da ética como da moral. Neste segundo caso, a prática é aquela em que a qualificação da ética passa a ser
assegurada pelo desenvolvimento de padrões de excelência, os quais definem o sucesso esperado,
tornando-se regras aceitas por uma certa coletividade organizacional e interiorizada por seus membros.
Tal prática resulta em atividades com regras socialmente estabelecidas, cujos padrões têm sua própria
história a justificar os critérios do que é uma organização bem sucedida e do que são os seus melhores
colaboradores. Na prática organizacional, estes padrões, nem sempre escritos, mas usualmente sugeridos
nas definições das estratégias, levam os sujeitos a conviver com conjuntos diferentes de códigos: os do
dever-ser e os do ser, o que os leva a valorizar mais o parecer-ser do que o de-fato-ser (FARIA, 2001a,
p.7).
Acredita-se que com o arcabouço teórico construído, que possibilitou a identificação de
alguns pressupostos, aliado a uma pesquisa empírica realizada com os gestores, que tomou por
base a ética, a moral e a democracia no ambiente organizacional, seja possível identificar
alguns paradoxos na práxis administrativa da organização em estudo4.
Como o tema do presente estudo trata da ética nas relações de trabalho, entendeu-se
relevante investigar, num primeiro momento, qual a concepção dos gestores a respeito da
ética, bem como da sua aplicabilidade nas relações de trabalho.
Os gestores entrevistados entendem a ética como sinônimo de verdade, de exemplo, de
princípios, de valores, enfim como base de todo profissional. Como exposto na
fundamentação teórica, nota-se que, muitas vezes, o conceito de ética é confundido com o de
moral, e que o julgamento ético para os valores morais está condicionado com o que a
organização entende como verdade, como exemplo, como princípios e como valores, enfim
como base de todo o profissional, como confirmam as entrevistas:
E1. Hoje eu entendo a ética como sinônimo de verdade. Se eu trabalhar corretamente com o meu cliente,
tanto interno quanto externo, dizendo para ele as conseqüências disso, os benefícios, os prós, os contras, e
trabalhar com a verdade, acredito eu que estou sendo ética. Para mim está muito ligada à verdade, porque
daí você é que vai decidir, e não eu, eu mostro para você a verdade. Para mim, ser ético é ser verdadeiro.
E2. Eu acho que ética são atitudes que a gente deve ter, que não fere, não afeta princípios e nem invade
espaços de outra pessoa. Eu entendo por ética algo que é limpo, é claro, ou seja, bons princípios. Eu acho
que a ética é regida por normatização, você tem regras dentro da empresa que você deve seguir.
E3. Eu penso que ser ético é ser exemplo. Passar os conceitos corretos que a empresa pede para a gente,
ser transparente, não dar privilegio a ninguém, tratar todos os funcionários de forma igual, da forma que a
empresa pede, e ser totalmente transparente com o cliente.
E4. Eu acho que ética é algo que você pratica no dia-a-dia, aliado ao Código de Conduta que a empresa te
apresenta no ato que você se predispõe a ser funcionário dela. Já que nós temos um Código de Conduta,
seja ele de ordem financeira ou individual, você deve colocá-lo em prática.
E5. Eu entendo a ética da seguinte forma: tudo aquilo que você faz, tanto no seu lado pessoal, como no
seu lado profissional, que entra em conformidade com aquilo que você acha que é correto e que não fere
nenhuma das partes.
E6. Para mim ética é tudo, é como se fosse a base de um profissional.
Em contrapartida, quando questionados sobre a aplicabilidade da ética nas relações de
trabalho, os gestores responderam que a ética deve ser difundida através da verdade, do
exemplo, dos princípios e dos valores, tornando-se assim um indicador de respeitabilidade e
um parâmetro pelo qual os direitos e os deveres de cada um devem ser respeitados. A prática
da ética nas relações de trabalho é entendida como uma prática baseada na transparência entre
as ações dos indivíduos, o que os torna responsáveis pelas conseqüências dessas ações,
isentado dessa forma a organização de qualquer responsabilidade. A seguir, alguns trechos das
entrevistas que corroboram esta leitura:
E1. Seguindo a mesma linha da verdade, mostrando para os meus clientes internos e externos quais as
conseqüências e os benefícios de uma determinada ação. A ética nas relações de trabalho é mostrar
aquelas pessoas responsáveis pela decisão tudo o que é isso e quais as conseqüências disso, porque cada
ação vai ter uma conseqüência.
E2. Deixando claro para os funcionários a questão de direitos e deveres de cada um. Eu acho que quando
a organização pressiona muito por resultados, ela acaba, muitas vezes provocando, esquecendo um
pouquinho o espaço do outro, enfim, o mercado é uma selva, seja aqui ou aí fora, enfim, todo mundo tem

11
que sobreviver.
E3. Dando exemplos, sendo positivo nas ações, fazendo o possível para não se cometer injustiça
nenhuma. Acho que o principal ponto é dar exemplo, não adianta eu falar e não fazer.
E4. Acho que a primeira coisa a respeitar é aquele que está do seu lado, entendendo que você já esteve na
função que hoje ele está, você sabe o que é necessário para aquela função e deve ouvir antes de tomar uma
definição. Mesmo que você já a tenha definida ou traçada, antes de você colocar a aplicabilidade dela,
você deve ouvir, e aí você consegue fazer com que a equipe venha para o teu lado. Isso para mim é uma
questão necessária e que está diretamente ligada à ética nas relações de trabalho.
E5. Eu acho que ética a gente aplica todos os dias, a todos os minutos e a todos os instantes. Por que?
Quando você atende um cliente, por exemplo, e ele vem te expor um problema, ele tem uma necessidade.
A ética manda que, primeiro eu lhe escute, entenda o que ele precisa e coloque a disposição dele um
produto, não que me interesse [ao banco], mas que realmente seja a necessidade dele, aí entra a tal da ética
profissional. Eu entendo assim, você não consegue construir nada se não houver confiança, aí entra
também a confiança e a credibilidade que você passa para os seus colegas de trabalho, aí entra também o
comprometimento.
E6. Eu acho que enquanto líder de agência, enquanto gerente de agência, é uma coisa incrível: os seus
funcionários olham a sua atitude. A ação, o exemplo, a condução de um titular faz quase que totalmente o
time te seguir ou não. Se você enquanto titular preza por isso, se você faz reuniões, se você orienta seus
funcionários, se você busca informações, juntada a sua própria atitude, isso faz com que o teu funcionário
seja ético e siga nessa linha de transparência. E, isso é ética nas relações de trabalho.
Além da análise dos paradoxos em si, este estudo se propôs a identificar o embasamento
e a justificativa das práticas organizacionais; em outras palavras, buscar um entendimento de
como a organização justifica uma prática em desacordo com o próprio discurso. Justificar,
segundo Heemann (1993), significa apontar os motivos e razões para uma decisão ética.
Com base em Srour (1998), que faz uma distinção entre racionalização, que são
situações em que o agente sabe o que é certo fazer, mas deixa de fazê-lo mediante situações
ad hoc, e dilemas, que são situações em que o agente não sabe o que é certo fazer e patina na
incerteza moral, acredita-se que, em defesa de seus interesses, as organizações procuram
encarar os problemas que nascem da própria prática administrativa através de fórmulas que
giram em torno da eficiência e da competitividade.
Quando questionados sobre quais os valores éticos e morais deveriam permear uma vida
em sociedade, a maioria dos gestores acredita que os mesmos valores que são observados na
organização devem ser observados nas relações sociais, e entende que a vida fora da empresa
é uma extensão da vida na empresa, e que a honestidade, a credibilidade, a autenticidade e a
transparência são valores necessários para os relacionamentos sociais e de trabalho, como
revelam os trechos das entrevistas:
E1. Na verdade eles estão ligados com os da empresa. Quem faz a organização são pessoas e são pessoas
que vivem socialmente. O que eu entendo hoje é que dentro da organização não se tem muito mais tempo
para se cultivar amizades e relacionamentos. Hoje eu tenho um tempo muito curto para uma série de
coisas que eu tenho que fazer, então eu preciso ser rápida, eu preciso decidir rapidamente.
E3. Eu acho que a vida fora da empresa, eu entendo que é uma extensão da empresa, eu preciso ser aqui
dentro, ou ser lá fora o que eu sou aqui dento, e vice-versa.
E5. A ética entra numa série de fatores, por exemplo, nas relações entre as pessoas, na forma como você
se coloca. Nós vendemos uma imagem, e você não consegue dissociar isso, eu como profissional e eu fora
do banco sou a mesma pessoa, tanto aqui como lá fora, e isso é que é o mais importante.
E6. Credibilidade, no sentido de dizer a verdade. Autenticidade. Honestidade. Transparência. Se tiver que
dizer não, dizer não e o por quê do não, se tiver que dizer sim, dizer sim e o por quê do sim. Mas, sempre
conduzido com bases sólidas, concretas, verdadeiras.
Por outro lado, todos os gestores concordaram que os valores necessários para uma vida
em sociedade devem ser adaptados à situação particular de cada organização, o que comprova
que em determinadas situações, os mesmos valores servem para legitimar a prática de algumas
ações e encobrir algumas de suas conseqüências. A seguir, alguns trechos transcritos das
entrevistas realizadas com os gestores que corroboram esta concepção:
E1. Eles têm que ser adaptados, eu não consigo trazer as mesmas coisas do social para o profissional. No
profissional eu tenho que ser fria nas minhas decisões. Eu nunca vou conseguir agradar gregos e troianos.
Se eu for muito para o social, eu vou acabar tomando decisões moralmente aceitas pela sociedade, no

12
entanto com prejuízo para instituição onde eu trabalho.
E2. Acho que devem ser adaptados. Em determinados segmentos, em determinadas situações você pode
estar criando condições muito mais maleáveis para os funcionários ou para a comunidade, fazendo com
que aquela empresa contribua para o desenvolvimento da economia do país como um todo.
E4. Quando você vai para o mercado externo, você nota que o mercado não tem muita conduta ética, e aí
você se depara com certas situações: todos aqueles valores morais que você aprendeu, que você trás da
sua família, como é que você faz quando você sai da porta da empresa para fora? O mercado está como se
fosse uma selva, ou seja, quem pode mais, engole o outro. Então, eu acho que você deve usar a
moralidade, a ética que você aprendeu, aliado ao Código de Conduta do que a empresa espera de você, e
aí você vai para o mercado.
E5. Vamos imaginar o seguinte: o que é um sigilo dentro de um banco? É não comentar a situação
financeira de um cliente com outro. Quando você leva isso para fora, lá na sociedade, muitas vezes você
acaba comentando, por exemplo, coisas pessoais de uma pessoa com outra, coisas que não dizem respeito,
e aí entra na quebra do sigilo. Existe dentro de uma empresa a ética das leis, aquilo que você pode fazer
dentro das normas do banco, então, claro que são coisas adaptadas.
E6. Eu acho às vezes pode ter uma variação Como a gente está em uma instituição financeira, enquanto
cliente, eu não empregaria o meu dinheiro aplicado naqueles bancos onde aqueles diretores no exterior
fraudaram o balanço, eu não confiaria mais nisso. Então, eu acho que essa honestidade em termos de
transparência, de confiabilidade, de realmente prezar pelo que é certo, devido alguma especificação tem
que ser adaptados para aquele estilo de negócio.
Paradoxalmente, a maioria dos gestores concorda que nas organizações com fins
lucrativos, especificamente nas organizações bancárias, a observância de padrões éticos e
morais torna-se mais difícil. Ainda assim, alguns gestores atribuem a normatização imposta
pelo Banco Central e a própria essência dos indivíduos como imposições para uma gestão
pautada em valores éticos e morais socialmente aceitos, o que comprova, mais uma vez, a
isenção da organização quando se ferem princípios éticos e morais. A seguir, alguns trechos
transcritos das entrevistas realizadas com os gestores que corroboram esta visão:
E1. É mais complexo. Porque eu tenho que ver um leque muito grande de conseqüências para cada ação, e
hoje esse tempo é curto para eu ver tudo isso. Então, vai depender muito do indivíduo e da concepção
dele, porque a organização é feita de pessoas, e as pessoas são diferentes.
E2. O ABCD, como todos os bancos, segue a normatização do Banco Central. A intermediação financeira
está normatizada por taxas que são definidas pelo próprio mercado. O aspecto social são os benefícios
para os próprios funcionários, dependentes, ou até o banco como patrocinador de entidades, esse tipo de
coisa acaba dando um aspecto um pouco mais social para uma atividade que é toda ela de ganho
financeiro.
E3. Talvez você esteja falando porque eu trabalho em um banco e aqui se cobra juros. Eu acho que na
verdade, o que a gente tem é preço de mercado, o cliente é soberano para decidir se o que a gente pratica é
o melhor para ele, ou se não é melhor para ele, mas eu acho que isso não é ser menos ético. Você
seguindo os padrões de mercado em si, você não está roubando ninguém, ofendendo ninguém.
E6. Eu acho que é mais difícil. Eu acho assim, qualidade e quantidade, se eu posso usar essa analogia, são
retas opostas. Se eu trabalho com quantidade, velocidade, meta, pressão, eu estou sujeito a que os meus
profissionais possam fugir um pouco da ética para atingir isso daí. Se eu trabalho numa organização onde
eu não tenha talvez uma velocidade tal alta, uma meta não tão inatingível, e talvez, no caso de uma ONG,
eu não tenha nem que dar um resultado, um lucro, e isso não é cobrado de mim, é lógico que a ética é
muito mais fácil de ser seguida, eu percebo assim.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo procurou, através da sua fundamentação teórica, discorrer a respeito
da ética e das relações de trabalho produtivas. Foram efetuados cruzamentos entre o código de
conduta de uma organização bancária, entendido aqui como o discurso formal da organização
que regulamenta as relações de trabalho (indicando a conduta esperada dos indivíduos) com
entrevistas realizadas com os gestores dessa organização, indicando as ações e atitudes
praticadas pela administração da mesma. O intuito era o de identificar paradoxos na práxis
organizacional no que tange a ética nas relações de trabalho.
Foram identificados alguns paradoxos na práxis administrativa da organização em
estudo, sendo que a ética nas relações de trabalho, objeto da pesquisa, é sustentada por um

13
discurso que expressa a garantia de interesses gerais, mas que resulta na garantia de interesses
particulares.
Porém, como exposto anteriormente, além da identificação e análise dos paradoxos, este
estudo tem como objetivo identificar o embasamento e a justificativa das práticas
administrativas da organização referida. Entendeu-se que, em uma organização bancária, em
que a lógica de ação está subordinada ao sistema econômico e em que a racionalidade
predominante é a racionalidade instrumental, a eficácia, o desempenho e a competitividade
justificam ações administrativas que o próprio discurso entende como práticas ausentes de
ética.
Concluiu-se que a concepção dos gestores a respeito da ética e da sua melhor aplicação
nas relações de trabalho, bem como seus entendimentos de quais valores éticos e morais
deveriam permear uma vida em sociedade, não condiz com a prática administrativa da
organização em estudo, visto que as justificações às suas ações e atitudes são legitimadas de
acordo com a lógica pela qual tal organização está subordinada, a saber, a lógica do mercado.
Portanto, a fim de legitimar as suas ações, a organização utiliza-se de um discurso que
serve, ao mesmo tempo, para justificar algumas práticas administrativas e legitimá-las como
condutas eticamente corretas, tendo em vista a necessidade de sobrevivência no mercado.
Trata-se de uma ética convencionada por aqueles que se beneficiam das relações que ocorrem
no interior da organização.
A análise dos paradoxos evidenciou que as ações praticadas pela organização eram
contraditórias ao seu próprio discurso, tornando os vínculos e os relacionamentos entre os
sujeitos nulos de verdade e de juízo. Os paradoxos indicaram:
! Que a concepção dos gestores a respeito da ética converge para uma idéia do que seja o
bem, o correto, o verdadeiro, tanto na vida organizacional quanto na vida social; porém,
quando aplicados à prática administrativa, estes mesmos valores são adaptados à situação
particular da organização;
! Que a prática da ética nas relações de trabalho não pode ser generalizada para todas as
organizações, tendo em vista que nas organizações com fins lucrativos, especificamente nas
instituições financeiras, como no caso estudado, os padrões éticos tornam-se mais difíceis de
serem observados;
! Que a conduta moral observada nas relações de trabalho não expressa elementos
presentes no discurso formal da organização, em outras palavras, que o discurso do que se diz
não é garantia do que se faz;
! Que as relações de trabalho devem ser pautadas na transparência e na confiança; porém,
que a necessidade de sobrevivência da organização garante ações e atitudes administrativas
que não devem ser observadas em outras práticas sociais;
! Que a ética convencionada pela organização é subordinada à lógica de ação que ela
reproduz, ou seja, à lógica capitalista;
! Que as relações de trabalho da organização convergem para o mesmo sentido que o
sistema social que ela reproduz, a saber, o sistema capitalista.
Finalmente, cabe salientar que, embora não fosse objetivo do presente trabalho defender,
em particular, nenhuma linha filosófica a respeito da ética, nem tampouco prescrever normas
ideais de comportamento moral, é de grande interesse compreender que, se a ação humana não
se dissocia do pensamento que a projeta, o juízo que a torna boa ou má está, ao mesmo tempo,
nas causas e nos efeitos que lhe dizem respeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.

14
BENSON, J. K. As organizações: um ponto de vista dialético. In: SÉGUIN, F. ; CHANLAT,
J. F. L’analyse des organisations : une anthologie sociologique. Tome I : Les théories des
organisations. Montreal : Gaëtan Morin, 1983.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
_______. Convite à filosofia. 12ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2002.
DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2001.
ENRIQUEZ, Eugène. Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Tempo
Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 36/37, p. 53-94, jan-jun, 1974.
_______. Prefácio. In: DAVEL, Eduardo; VASCONCELOS, João (Org.). “Recursos”
humanos e subjetividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
_______. Da horda ao Estado: psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
_______. Os desafios éticos nas organizações modernas. Revista de Administração de
Empresas. São Paulo, v. 37, n. 2, p. 6-17, abr-jun, 1997.
_______. Interioridade e organizações In: DAVEL, Eduardo; VERGARA, Sylvia (Org.).
Gestão com pessoas e subjetividade. São Paulo: Atlas, 2001
FARIA, José Henrique de. O autoritarismo nas organizações. Curitiba: Criar, 1985.
_______. Ética, moral e democracia: os paradoxos da práxis organizacional. Lisboa:
Comportamento e Gestão Organizacional. Universidade Técnica de Lisboa, 2001a.
_______. Poder e relações de poder nas organizações. Curitiba: UFPR, 2001b.
_______. Economia política do poder: uma proposta teórico-metodológica para o estudo e a
análise das organizações. Curitiba: UFPR/CEPPAD, 2002.
FARIA, José Henrique de e MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Discursos Organizacionais.
Revista de Estudos Organizacionais. Maringá, v. 2, n. 2, p. 89-110, jul-dez, 2001.
FREITAS, Maria Ester de. Contexto social e imaginário organizacional moderno. Revista de
Administração de Empresas. São Paulo, v. 40, n. 2, p. 6-15, abr-jun, 2000.
FLEURY, Maria Tereza Leme.O simbólico nas relações do trabalho. In: FLEURY, Maria
Tereza Leme; FISCHER, Rosa Maria (Coord.). Cultura e poder nas organizações. 2ª ed.
São Paulo: Atlas, 1996.
FOUCAULT, Michael. A arqueologia do saber. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1997.
GODOY, Arilda S. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de
Empresas. São Paulo, v. 35, n. 3, p. 20-29, mai-jun, 1995.
HEEMANN, Ademar. Natureza e ética. Curitiba: Editora da UFPR, 1993.
JESSOP, Bob. State theory: putting the capitalist state in its place. 2ª ed. Cambridge: Polity
Press, 1996.
KERLINGER, Fred N. Metodologia da pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Ed. Da
USP, 1980.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto, Publicações Escorpião, 1974.
MOREIRA, Carlos Augusto A. Considerações sobre a ética nas empresas brasileiras.
Encontro da ANPAD (24º: 2000: Florianópolis). Anais. Rio de Janeiro: ANPAD, 2000. [CD-
Rom].
PAGÈS, Max; BONETTI, Michel; GAULEJAC, Vicent de; DESCENDRE, Daniel. O poder
das Organizações. São Paulo: Editora Atlas, 1993.
REED, Michael. Teorização organizacional: um campo teoricamente contestado. Handbook
de Estudos Organizacionais. Volume 1. Modelos de análise e novas questões em estudos
organizacionais. São Paulo: Atlas, 1999.

15
RICHARDSON, Roberto J. et alli. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas,
1989.
RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e competência. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
SÉGUIN, F.; CHANLAT, J. F. L’analyse des organisations : une anthologie sociologique.
Tome I, p. 65-71. Montreal : Gaëtan Morin, 1987.
SIDEKUM, Antonio. Ética e alteridade: a subjetividade feriada. São Leopoldo, RS: Editora
Unisinos, 2002.
SROUR, Henry Robert. Poder, cultura e ética nas organizações. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Campus, 1998.
THIRY-CHERQUES. Max Weber e a ética nas organizações: cinco hipóteses sobre a cultura
e a moral a partir dos conceitos de Max Weber. Revista de Administração Pública. Rio de
Janeiro, v. 31, n. 2, p. 5-21, mar-abr, 1997.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa
em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VÁZQUEZ, Adolfo S. Ética. 20ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:
Ed. UnB, 1999.
YIN, Robert. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman,
2001.
ZYLBERSZTAJN, Decio. Organização ética: um ensaio sobre comportamento e estrutura das
organizações. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba, v. 6, n. 2, p. 123-143,
mai-ago, 2002.
1
O discurso é, genericamente, uma forma manifesta de expressão de idéias, valores e sentimentos. Ainda que
discursos ocultos ou implícitos possam existir, o seu significado pretende sempre ser alçado à esfera que melhor
seja interpretada pelo outro. Portanto, em sua forma mais comum, o discurso é encontrado na linguagem falada
ou escrita (FARIA e MENEGHETTI, 2001).
2
Alteridade, segundo Enriquez (1996), é a modalidade específica com a qual entramos em contato com o outro
ser, aceitando vê-lo em sua singularidade, e onde aparecemos para o outro em nossa diferença e unicidade.
3
Visto que na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis (CHAUÍ, 2002).
4
A organização pesquisada não foi identificada a pedido da mesma. Trata-se de uma agência de grande porte de
um banco privado.

16
Controle Social no trabalho e novas perspectivas de análise organizacional.

Autoria: Kátia Regina Hopfer, José Henrique de Faria

Resumo
O presente artigo procura mostrar as contradições e conflitos inerentes nas relações de
trabalho submetidos à lógica do sistema capitalista de produção por meio do controle social
no trabalho. Este controle foi analisado a partir de quatro instâncias organizacionais (mítica,
social-histórica, organizacional e grupal) de base psicossociológica, com o intuito de ampliar
uma matriz teórico-metodológica utilizada nos estudos organizacionais na linha de pesquisa
Economia Política do Poder. Na presente pesquisa foi possível identificar dissonâncias entre o
ambiente prescrito e o real, bem como o exercício do controle social por resultados por meio
do estímulo à competição interna, à individualidade e a busca da identificação individual ao
sucesso organizacional. Estes mecanismos de controle correspondem a valores intrínsecos do
sistema capitalista de produção enquanto estratégica de gestão empresarial.

1. Introdução

O controle social é o elemento central da gestão organizacional (FARIA, 2002b),


sendo exercido sobre os indivíduos e grupos internos de trabalho de uma determinada
empresa como fundamento na busca da sua competitividade. O ambiente globalizado tem
exigido das empresas agilidade e flexibilidade nas ações gerenciais com reflexos no plano
psicológico dos indivíduos. Embora o controle seja fundamental para o desenvolvimento dos
processos produtivos, esta função administrativa desencadeia mecanismos objetivos e
subjetivos de exploração no ambiente laboral.
Este estudo1 tem como objetivo identificar as formas de controle social que se
articulam no modo capitalista de produção tendo como foco a busca do sucesso econômico
empresarial. Para tal finalidade, buscar-se–á compreender os mecanismos de controle, a forma
como são exercidos no ambiente de trabalho, a dinâmica das relações de poder nas dimensões
individuais e grupais, de maneira que se possa, ao final, falar do exercício do controle social
nos processos e nas relações humanas e de trabalho.
A problemática do controle sobre as relações de trabalho compreendidas no âmbito
das relações de poder tem sido tema recorrente nas pesquisas organizacionais, no intuito de
aumentar a compreensão desse universo social-profissional em que os indivíduos se
encontram inseridos. No nível organizacional, percebe-se uma tendência ao aumento do
controle indireto e sutil sobre o trabalho com o advento das inovações tecnológicas dos
processos empresariais. Sendo preciso estar em constante mudança para que os resultados
econômicos sejam alcançados, de que maneira as organizações gerenciam o processo de
trabalho de forma a manter o indivíduo comprometido com estes resultados? Quais os
impactos dos processos de controle sobre a relação do indivíduo com o seu trabalho? Quais os
conflitos surgidos pela ruptura do vínculo social? De que maneiras o controle se manifesta
aparente e oculto frente às manifestações do corpo social da organização? Estas questões
buscam definir a problemática do controle social no ambiente psicossociológico e suas
manifestações na organização.

2. O controle social nas relações de trabalho

Para Marx (1985, 1988, 1998), o ser humano se apropria dos recursos da natureza e o
transforma de acordo com as suas necessidades de subsistência. O homem tem a capacidade
de projetar as suas operações (o que deseja fazer) e ordenar o trabalho em diversas atividades

1
e com diversas pessoas, construindo uma consciência clara da sua capacidade de execução.
Nesse sentido, a diferença entre o homem e os outros seres vivos é a sua capacidade de
construir o resultado no seu imaginário, antes de executar a transformação do objeto. Dessa
forma, o trabalho é concebido pelo sujeito antes da sua concretização no real. Por ter essa
habilidade, as tarefas de concepção e execução do trabalho, que deveriam ser realizadas pelos
indivíduos coletivamente, não apenas são feitas por indivíduos diferentes como por indivíduos
que ocupam diferentes lugares no processo de trabalho. Assim, o indivíduo poderá ser senhor
do trabalho de outros bem como do seu próprio (MARX, 1988; BRAVERMAN, 1987). Esta é
a base do sistema capitalista de produção, em que o trabalho humano é o resultado do
conjunto das relações e comportamentos sociais.
De acordo com Castells (2000), as novas tecnologias exigem novas qualificações e
ocupações técnicas a partir das necessidades do processo produtivo como, por exemplo, as
novas tecnologias da informação na década de 90, com a difusão dos computadores em rede
que revolucionaram o processamento, armazenamento e a forma de acesso à informação. O
trabalhador inserido nesse ambiente de mudanças recebe uma “mensagem” enviada pelo
sistema do capital, no sentido de procurar uma “atualização profissional” para não ser
excluído do processo de trabalho.
As relações sociais capital–trabalho ou capitalista–trabalhador se modificam, pois as
necessidades de expansão do capital se tornam mais importantes do que as necessidades e os
desejos individuais. Quanto mais fragmentado o processo de trabalho, menor valor terão as
atividades originadas por ele: esse é o “segredo” da organização do trabalho. Quanto maior a
divisão de tarefas em trabalhos simples, maior a submissão do indivíduo ao sistema capitalista
de produção.
Essa divisão de tarefas pode ser percebida no movimento da gerência científica
iniciada por Taylor no século XIX, o que, para Braverman (1987), culminou com a aplicação
de métodos científicos sobre o controle do trabalho nas empresas industriais. Movida pelo
objetivo de resolver os conflitos e as contradições nas relações de trabalho, a gerência como é
conceituada atualmente, busca controlar a força de trabalho sem procurar descobrir e
confrontar as causas das contradições, aceitando as diferenças como “naturais”.
Na ótica de Faria (1987), a dinâmica social do capitalismo implica uma ação coercitiva
da gerência sobre o indivíduo, na medida em que este precisa se adaptar ao tempo de
produção, à cadeia de montagem, à fragmentação das tarefas e à subordinação à hierarquia
patronal. Tal ação indica que o controle não é um mecanismo da administração ou da gestão
capitalista, mas um mecanismo de poder.
Elton Mayo e outros já se interessam, no início do século XX, pelos estudos dos
indivíduos nas organizações, relativamente aos ajustamentos decorrentes de contínuas
mudanças contínuas nos processos produtivos, bem como a imposição ao trabalhador sobre a
forma como ele deve executar o trabalho (MAYO, 1960). Com a divisão do trabalho, o
indivíduo passou a executar tarefas repetitivas, gradualmente substituídas pelas novas
tecnologias. O saber que o trabalhador detém sobre todo o processo produtivo é
continuadamente expropriado pela máquina. Braverman (1987) afirmou que a revolução
tecnológica marcada pela automação de máquinas e equipamentos, com conseqüente
desenvolvimento da tecnologia de informação pela utilização em massa do computador,
transformaria os homens em robôs de segunda ordem.
Em sentido contrário, Castells (2000) acredita que as organizações não utilizam a
plena capacidade produtiva das novas tecnologias, e que a difusão da tecnologia
informacional nas fábricas e escritórios exige trabalhadores instruídos e autônomos, com
plenos conhecimentos do processo produtivo.
Na mesma linha de Castells, Harnecker (2000) afirma que o sistema capitalista, a
partir dos anos 70, apresenta um novo paradigma tecno-econômico, baseado na revolução

2
tecnológica, envolvendo desde áreas como a informática e telecomunicações até a utilização
dos novos modelos gerenciais japoneses, como o toyotismo, caracterizado pelo sistema just in
time, kan-ban, qualidade total e outros. Essas alterações visam modificar o processo
produtivo, inserindo técnicas de adaptabilidade e flexibilidade de processos, com conseqüente
transformação de estruturas organizacionais, que antes se apresentavam hierarquizadas e
verticalizadas, para estruturas flexíveis e descentralizadas, com grande autonomia. O
desenvolvimento da autonomia sugerida por Castells e Harnecker induz ao questionamento
quanto à estratégia da organização em conceder porções de poder advindas dessa autonomia e
sua conseqüência nas relações sociais de produção.
O sistema fordista veio ao encontro das necessidades de reprodução de um sistema de
controle, constituindo-se num forte instrumento macrosocial, servindo de guia às mudanças
tecnológicas e organizacionais, por meio do monopólio de mercado, da negociação coletiva
entre as classes sociais e a manutenção do equilíbrio entre a produção e o consumo de massa.
Com a internacionalização do capital, as organizações buscam alcançar os níveis
internacionais de produtividade e competência por meio de inovações tecnológicas e
mudanças nas relações e processos de trabalho. No ambiente organizacional, as experiências
sociais e políticas tomam forma sob o aumento do desemprego estrutural, ganhos salariais
modestos em setores específicos, desqualificação do trabalhador e a diminuição do poder
sindical (BERBEROGLU, 2002).
A partir dessas considerações é possível sugerir que se apresenta um novo sistema
pós-fordista como um processo de trabalho adaptado às novas exigências de acumulação do
capital, sendo flexível e integrado a um novo modelo de relações entre produção e consumo.
Um sistema atualizado e comprometido com a busca da livre competição no mercado entre as
organizações e a desregulamentação do Estado como um todo. As organizações perceberam
que precisam aprimorar as suas formas de controle nas relações de trabalho para garantir uma
competitividade internacional (AMIN, 1994).
As formas de controle têm acompanhado o desenvolvimento tecnológico de diversas
maneiras. Desde a criação da organização científica do trabalho - OCT, as organizações têm
procurado exercer a sua dominação por meio da propriedade dos meios de produção, para
poder se apropriar da maior margem possível dos seus custos. O controle sobre o processo de
trabalho tem aumentado com as inovações tecnológicas na área de microeletrônica,
principalmente por incrementar o domínio físico e mental sobre o trabalho como um todo
(DEJOURS, 1999). A insatisfação no trabalho pode remeter a novos aspectos sociais que
precisam de perspectivas não lineares de análise dos fenômenos organizacionais. É necessário
buscar uma melhor compreensão da dinâmica social, das relações de poder que atravessam as
relações sociais e que culminam no que se pensa que as organizações são e qual seu objetivo
maior. Uma possível perda do controle para a organização capitalista seria fatal à sua
sobrevivência. Nesse sentido, ela precisa reinventar periodicamente os seus sistemas de
trabalho para sustentar a dominação nas relações de produção, por meio da desqualificação e
requalificação do trabalhador (FARIA, 2001). Estudos na linha da psicossociologia
demonstram as maneiras pelas quais as organizações estão ampliando suas formas de controle
social. Citam-se os estudos do domínio e controle sobre o corpo (FOUCAULT, 2000), da
manipulação do vínculo social (FREUD, 1997; ENRIQUEZ, 1974), do desenvolvimento da
afetividade no trabalho (CODO et alii, 1998); da banalização da injustiça social (DEJOURS,
1999), do desenvolvimento do individualismo e da opressão (CHANLAT, 1992), da carga
psíquica no trabalho (DEJOURS, 1999), da corrosão do caráter (SENNET, 1999) e outros.
Essa subjetividade no trabalho exige uma abordagem teórico-metodológica de base
psicossociológica fundamentada em uma teoria analítica que não se contenta apenas com as
aparências dos fenômenos, visto que procura compreender “o que não é visto ou percebido, o
que não se pode nomear e que, de alguma forma, tende a aparecer” (MOTTA, 2000:81). Para

3
Enriquez (1999) o perfil que o social oferece ao indivíduo é um mundo fetichizado, submetido
a um Estado que tende a se tornar cada vez mais tentacular e a encobrir a sociedade civil,
apesar dos esforços que estas fazem para conservar suas margens de autonomia, sendo o
indivíduo continuamente submetido ao poder na vida econômica e na vida política.
Tal abordagem remete a um questionamento sobre quais aspectos sociais, políticos,
culturais (MOTTA, 1986; MEZAN, 1985), ideológicos (ALTHUSSER, 1999), imaginários
(CASTORIADIS, 1982) e simbólicos (ENRIQUEZ, 1997) revestem o controle exercido pela
organização do trabalho. Trata-se de analisar os princípios gerais que regem todo o
funcionamento das organizações, no sentido de levantar questões sobre os indivíduos e grupos
em relação ao reconhecimento de si e para si e do outro (de seus papéis e da sua identidade no
plano social), o seu lugar na hierarquia, a estrutura das relações sociais e a vivências das
relações violentas e amorosas.

3. O controle social por resultados: a prática da dominação a serviço do sucesso


econômico

Motta (2000) salienta que as organizações podem ser mais bem compreendidas por
meio da análise dos processos sociais entre os quais estão as formas de controle social. O
controle é um conjunto de ações que visa fiscalizar as atividades das pessoas e empresas para
que não se desviem das normas preestabelecidas. O controle social é um conjunto de regras
que codificam o campo de atividade de cada indivíduo, bem como seu campo de relações
sociais internas (estrutura hierárquica) e externas (clientes, fornecedores e governo) à
organização (PAGÈS et alii, 1993). É também uma estratégia de gestão organizacional que
busca novas formas de expansão do capital envolvendo aspectos manifestos e ocultos no
âmbito das relações de trabalho e das relações de poder (FARIA, 2002b). Enriquez (1999)
distinguiu sete formas de controle social cuja utilização, coletiva ou individual, tende a
garantir a manutenção do sistema vigente na organização.
O foco deste estudo será o controle social por resultados que busca superar as metas e
objetivos organizacionais por meio da competição econômica. Sob esse enfoque, a
organização precisa ser melhor do que seus concorrentes para alcançar o sucesso e manter a
competitividade. A ideologia da materialidade da sociedade capitalista pode ser observada
nesta forma de controle, pois demonstra o desejo das organizações de serem reconhecidas e
valorizadas pelo ambiente no qual estão inseridas, independente dos ideais de origem.
As organizações têm o seu foco na livre competição e na idéia de que "os melhores"
vencerão, e aplicam esses conceitos no seu ambiente interno (ENRIQUEZ, 1992),
incentivando a busca pelo sucesso nas unidades, entre grupos ou indivíduos. O clima de
competição interna cria processos conscientes e inconscientes, que mantém os indivíduos
presos à idéia de sucesso, podendo transformar a organização numa prisão psíquica
(MORGAN, 1996). Por meio desses processos, a organização administra as relações de poder
com seus grupos internos, pois incentiva o reconhecimento pela aparência e não pela essência,
possibilitando a construção de uma realidade aparente, cheia de ilusões, que os indivíduos
assumem como verdade. Nesse sentido, Morgan afirma que "enquanto [as empresas] criam
um modo de enxergar e sugerem uma forma de agir, tendem também a gerar maneiras de não
ver e de eliminar a possibilidade de ações associadas a visões alternativas da realidade"
(MORGAN, 1996:208). Dessa forma percebe-se a vida como um grande espetáculo
(DEBORG, 1997) no qual o prazer é prometido, mas jamais realizado.

4
4. Perspectivas psicossociológicas na análise organizacional

Os estudos organizacionais identificam muitas maneiras pelas quais se pode analisar


uma organização. Berger e Luckmann (1998) definem o mundo segundo múltiplas realidades,
dentre as quais ocupa posição destacada a vida cotidiana, percebida pelo observador como
ordenada e objetivada, associada a um forte sentimento de intersubjetividade. Para Weber
(1991), os fenômenos sociais, como as organizações, são constituídos a partir de significados
comuns e subjetivamente compartilhados, quer seja em estruturas burocráticas de dominação
ou nas instituições públicas pertencentes ao Estado moderno. Por outro lado, Enriquez (1992)
sugere que a representação que uma organização faz de si mesma, por meio de significantes e
significados, pode não ser o que ela pensa que é. Assim sendo, a psicossociologia nos remete
ao escuro, ao inominável, ao inconsciente organizacional. Da mesma forma, alguns
fundamentos da psicossociologia foram aplicados na análise organizacional nos estudos de
Codo, Dejours, Enriquez, Foucault, Motta, Faria e outros. Contudo, a perspectiva sobre as
categorias manifestas e ocultas na organização mereceram um estudo mais minucioso como o
realizado por Enriquez (1992). Para verificar essas perspectivas e suas manifestações no
ambiente organizacional, Enriquez (1997) propõe um corte analítico definindo sete instâncias
de análise organizacional. Esse método de análise e intervenção apresentada por ele foi
utilizado nesta pesquisa na qual foram escolhidas quatro instâncias, com a finalidade de
aplicar uma abordagem teórico-metodológica para analisar as formas de controle nas
organizações.
As instâncias de análise são níveis que procuram apreender a realidade organizacional
por meio da análise de seus sistemas cultural, simbólico e imaginário, com seus paradoxos e
contradições (ENRIQUEZ, 1997; FARIA, 2002b). Podem ser compreendidos como um
conjunto de categorias de análise que se originam em fenômenos manifestos ou ocultos, em
nível consciente ou inconsciente, que atuam com uma força e intensidade próprias, e cujos
efeitos sobre as condutas individuais e coletivas persistem, ainda que as causas tenham
desaparecido, obedecendo a uma lógica própria. (FREUD, 1997; ENRIQUEZ, 1997). Para
Enriquez (1997), trata-se de distinguir os princípios gerais que norteiam o funcionamento das
organizações. Para a realização desses estudos, Enriquez (1997) propõe as seguintes
instâncias de análise: mítica, social-histórica, institucional, organizacional, grupal, individual
e pulsional. Destas, as seguintes instâncias foram utilizadas neste estudo:
a.) instância mítica: analisa as formas pelas quais o mito é utilizado pela organização. O
mito serve para tentar convencer os trabalhadores de que “somos a melhor empresa
para ele”. Utilizando-se do mito original, a empresa enfatiza o seu passado. Desse
modo, o mito se refere à origem das coisas, de um evento, de uma comunidade ou uma
organização. Essa origem é que define a estrutura da coisa criada, legitimando regras
para a sua continuidade. Trata-se de concretizar a união de um povo em torno de uma
missão salvadora que deve facilitar tanto a regeneração dos seres quanto a nova
germinação do território. “Só um mito partilhado pode ter tal função de união”
(ENRIQUEZ, 1999:277). Uma organização é criada na busca da realização de um
sonho, um objetivo maior, isto é, o mito original. Esse mito é formalizado por meio de
um discurso que justifica as ações e decisões tomadas pela organização para garantir o
cumprimento da missão original definida na sua criação. O mito visa unir os
indivíduos ou grupos em torno de um discurso comum provocando uma identificação
com a organização, uma relação afetiva com os outros membros do grupo, formando
um vínculo social baseado nos sentimentos de afeto, consideração e amor. Do mesmo
modo que uma criança se submete à autoridade paterna, os indivíduos se submetem à
autoridade do outro [da organização] que se utiliza dessa prática, criando uma
dependência institucionalizada. Assim, a organização suga toda a energia do indivíduo

5
que se dedica totalmente ao trabalho sofrendo um aumento da carga psíquica
(DEJOURS et alii, 1994), pois precisará reafirmar constantemente a sua submissão ao
mito;
b.) instância social-histórica: analisa de que forma a organização garante o cumprimento
desta missão. Portanto, sabendo o que quer ser e onde quer chegar, a organização
define uma ideologia que indica o modo de acontecer no tempo e no espaço, criando a
forma de ser da organização (ENRIQUEZ, 1994, 1997; SCHIRATO, 2000). A
ideologia serve para consolidar a dependência ao mito original. É um sistema que
oferece diversas interpretações de mundo. Assim constrói uma realidade de acordo
com as necessidades da organização. O indivíduo deixa de buscar a verdade
temporariamente, pois a organização oferece uma a ele. Como o mito, a ideologia fala
ao afetivo, ao consciente e inconsciente, pois realiza o desejo do indivíduo de ser
guiado, reconhecido e amado. Faz de cada trabalhador um filho, um ser com prestígio,
alimentando o imaginário e o simbólico, pois cada um se sentirá tão competente,
importante e famoso como o seu senhor [a organização]. Portanto, a ideologia permite
racionalizar os desejos mais secretos dos indivíduos, que é o de ser amado, aceito e
reconhecido pelo outro. Com isso, a ideologia quer esconder os conflitos e ocultar as
relações de dominação demonstrando na aparência uma certa homogeneidade do
grupo. Mostra e mascara a realidade ao mesmo tempo, ou seja, oferece uma forma às
práticas sociais existentes. A organização define como quer construir o seu
desenvolvimento produzindo ideologias para mostrar a realidade das relações sociais,
mascarando as relações de poder, pois dessa forma manterá a sua supremacia,
dominação e controle social. A ideologia é a guardiã da ordem sempre pronta para as
lutas sociais presentes nas relações de trabalho;
c.) instância organizacional: analisa o nível das estruturas, da divisão do trabalho, dos
sistemas de autoridade e das relações de poder. É o lugar das práticas sociais, das lutas
e das estratégias. Nesse aspecto, a organização é mais do que a tecnologia que possui
em máquinas e equipamentos, em processos e métodos de trabalho, também se
apresenta como o lugar da realização dos desejos e projetos individuais e grupais, da
realização das condições de trabalho. Para Enriquez (1997) as estruturas
organizacionais têm por objetivo lutar contra seis angústias fundamentais:
i. Medo do informe: a estrutura procurará se defender da turbulência da vida,
do espontâneo, do imprevisto, isto é, do informe. Refere-se ao caos
desorganizador que estava na origem da organização e que tende a retornar
periodicamente;
ii. Medo das pulsões: a organização lutará contra a pulsão de morte que
poderia abalar a sua estrutura. Para isso, ela limitará a competição interna
dividindo o poder e as funções. A pulsão de vida só é permitida se auxiliar
na coesão do grupo e for voltada para o trabalho produtivo;
iii. Medo do desconhecido: o incerto sempre gera receios. A organização
utilizará instrumentos de análise para tomar decisões que diminuam as
incertezas;
iv. Medo dos outros: a organização estimula a coesão grupal, porém incentiva
a individualização e a competição para não correr o risco de uma ameaça
de diversos indivíduos sobre sua estrutura de dominação;
v. Medo da livre expressão: a palavra livre é vista como ameaça. Portanto, é
permitida a livre expressão por meio da palavra vigiada;
vi. Medo do pensamento: o ato de pensar, o livre pensamento que pode levar a
uma tomada de consciência ou a um julgamento são desestimulados, pois
poderiam levar a um questionamento do sistema utilizado. Nessa acepção

6
há pouco espaço para a criatividade. A organização tem por objetivo
funcionar de acordo com um modelo previamente determinado se tornando
o lugar da pulsão de morte representada pela compulsão a repetição e não
um processo vivo;
d. instância grupal estuda os grupos dentro da organização. Para Enriquez (1997), é
preciso estudar tanto os grupos formais, criados através da administração por equipes,
com funções pré-determinadas e atividades controladas, como os grupos informais,
que advém de uma associação espontânea entre os seus membros. Os indivíduos se
reúnem em grupos para tentar resolver problemas comuns dentro da organização do
trabalho. Ali, eles discutem, divergem e lutam contra as agressões do trabalho.
Castoriadis (1982) afirma que o grupo é o lugar onde os indivíduos expressam os
sentimentos de solidariedade em prol do objetivo comum, da luta e resistência operária
contra a direção da empresa. A cada dia a organização impõe normas e regras que
tentam transformar o indivíduo num trabalhador mais produtivo e submisso.
Diariamente o trabalhador reage às formas de dominação e controle da organização,
procurando tomar consciência da situação e desenvolvendo a vontade de mudar a
realidade que se apresenta. Assim, Enriquez (1997) afirma que o grupo é sempre
portador de um projeto comum que define a sua ação, seus objetivos e seu sistema de
valores. Com essa unidade, os grupos poderão transformar as suas idéias em ação.
Tendo um objetivo, o grupo se apóia num imaginário social comum discutido por
Castoriadis, isto é, uma representação coletiva do ideal do ego daquilo que ele quer
ser. Esse sistema de valores representa o tipo de organização que o grupo gostaria que
existisse. Um grupo tem uma causa comum a defender que procura ir contra os valores
e a ordem instituída. Transgredir é questionar as instituições e as condutas em vigor; é
utilizar a criatividade para propor novas idéias. A organização do trabalho luta contra
a formação de grupos que no seu interior não tenha o interesse da própria organização.
Para tanto, procura reduzir o grupo de trabalho a uma simples formação de equipes,
com tarefas bem definidas, com funções rígidas e bastante automatizadas. Isso
impede o desenvolvimento das relações humanas e de trabalho e o aparecimento de
situações novas e criativas que poderiam auxiliar no crescimento da própria
organização.

5. Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa procurou estabelecer um estudo descritivo elaborando um retrato


complexo e dinâmico da forma de controle por resultados presente em uma organização do
setor automotivo de alto composto tecnológico denominada empresa Alfa. Para abarcar este
desafio, optou-se pela metodologia de estudo de caso utilizando-se diferentes mecanismos de
coleta, como questionário estruturado, entrevistas semi-estruturadas e não-estruturadas,
observação não-participante e consulta a documentos e arquivos da empresa. A perspectiva de
estudo foi a longitudinal uma vez que se pretendia analisar as categorias descritas num
determinado período. O aspecto histórico da organização é importante e foi levado em conta
para o estudo das categorias analíticas, mas não foi necessário determinar nenhum recorte
histórico específico pelo enfoque psicossociológico do estudo. O nível de análise é o
organizacional e a unidade de análise foi constituída pelos grupos hierárquicos da empresa.
Optou-se por realizar um cruzamento amplo de técnicas qualitativas e quantitativas para a
coleta e análise dos dados, com o que foi possível construir um quadro referencial explicativo
mais completo. Para apreender tal realidade por meio do controle exercido pela empresa Alfa
foram construídos indicadores qualitativos que serviram como base na análise desenvolvida
neste estudo e apresentada no quadro abaixo:

7
Quadro 1: Controle Social por resultados e níveis de análise nas organizações
SOCIAL
MÍTICO ORGANIZACIONAL GRUPAL
HISTORICO
As estruturas se
Ideologia.O indivíduo
Níveis de Análise defendem da
Uma idéia na qual se sente guiado,
/ desorganização e
todos acreditam e reconhecido e amado. Não há estímulo
Formas de limitação da competição
que justificam as Homogeneizar as para formação de
Controle por interna. Diminuição das
ações e decisões da relações. Esconder os grupos informais
Resultados incertezas, palavra é
empresa. Objetivo conflitos e ocultar as e espontâneos.
vigiada, o livre
em comum relações de
pensamento é
dominação
desestimulado.
Organização
portadora do ideal Competência como Competição interna Incentivo à
Ideologia da
do ego. (o sucesso valor amoroso. limitada. competição entre
competição
da organização é o Competição como Competição interna os grupos
econômica.
sucesso do prática humana. dentro das regras. formais.
empregado)
Sucesso entre Sucesso atrelado
Competitividade Ideologia do sucesso.
indivíduos ou x à estrutura
interna Harmonia e sucesso
grupos. formal.
Identificação e Desorganização
Relações de poder Grupos buscam vínculo aos grupos. favorecendo a
manipuladas entre afirmar-se. Organização como manipulação. x
os grupos internos. (Afirmação de si) esconderijo dos Manipulação pela
conflitos. palavra vigiada.
Ideologia do belo
Reconhecimento Valorização da
(estética). Aparente incentivo à
pela aparência e imagem do grupo e x
Valorização das criatividade.
não pela essência. da organização.
relações harmônicas
Ilusão da troca afetiva
Ilusões construídas Crença no discurso
entre organização e Ilusão pela criatividade
aceitas como como portador da x
indivíduo. vigiada.
verdadeiras. verdade.
Ilusão da integração.
Fonte: Elaborado por Faria e Hopfer (2002) a partir da proposta de Faria (2002b).

A organização estudada foi escolhida intencionalmente, pelo seu nível de automação


industrial e pelo fato de ser uma empresa em fase de desenvolvimento e implantação de
políticas e controles internos. A população é composta por todos os indivíduos que trabalham
na organização independente do vínculo empregatício e origem cultural, perfazendo um total
de 348 pessoas. Para a composição da amostra não-propabilística, realizou-se uma pré-seleção
a partir da disponibilidade dos participantes indicados pelo setor de Recursos Humanos para
as entrevistas. Quanto ao questionário, a seleção dos participantes deu-se de forma aleatória,
porém estratificada, de forma a garantir uma composição proporcional entre os seis níveis
hierárquicos da empresa. Após a coleta dos dados, os seis níveis foram coligidos em três, dada
a similaridade de respostas encontrada nos níveis agrupados, ficando estratificados conforme
a definição clássica, da seguinte forma: nível estratégico, tático e operacional.

6. A prática da dominação por meio do mito e da ideologia

As empresas buscam a sobrevivência na conquista de novos mercados, procurando


desenvolver uma estrutura interna pró-ativa e criativa para fazer frente aos novos desafios e,
se possível, superar ou até eliminar seus concorrentes. Para atingir esses objetivos ela precisa
de pessoas que tenham comprometimento com o sucesso, isto é, com a idéia de vencer alguém

8
ou alguma empresa, de ultrapassar os limites e fazer o que for necessário para atingir os
objetivos definidos e de buscar a vitória dentro de um mercado competitivo e globalizado.
Para Enriquez (2000), a busca pelo sucesso implica a existência e aceitação de um
ambiente de competição entre empresas e entre sujeitos envolvidos no processo
organizacional. A pesquisa mostrou que os funcionários aceitam a existência de competição
entre os membros da empresa considerando o fato como normal no ambiente de trabalho. Este
resultado quanto ao fato de ser “normal” pôde ser confirmado por meio da declaração de um
dos entrevistados, que afirmou: “Acho que o relacionamento é bom, é profissional. Não é um
problema conviver com as pessoas aqui na empresa. Acho que é profissional, mas acaba
sendo pessoal com algumas exceções”(E07).

Tabela 1 - Formas de Controle por Resultados EM %


Questões: Concordância Discordância
1. Na empresa é normal a existência de uma competição interna entre as
76,5
pessoas.
2. Na empresa você observa que os departamentos ou áreas competem entre si. 69,4
3. Você verifica que as pessoas acreditam que o seu sucesso está relacionado
71,7
com o sucesso da empresa.
4. A imagem que a empresa projeta na sociedade é valorizada pelos seus
80
funcionários.
5. Você observa que as pessoas acreditam nos discursos feitos pelos dirigentes
47,1
da empresa.
6. A empresa valoriza as pessoas que são competentes. 55,3
7. A competição interna é permitida dentro das regras da empresa. 57,7
8. A desorganização no trabalho ajuda as pessoas a fazer o que querem. 51,8
9. É preciso ter cuidado com o que se fala dentro da empresa. 84,3

Da mesma forma, existe a percepção da existência de uma competição entre as áreas


ou departamentos, porém o nível tático não percebe dessa forma, já que 67,5% discordaram
da afirmativa. Para esse nível, as questões são individuais e não departamentais.
A diferença de opiniões entre os níveis fica clara na afirmação de um entrevistado do
nível estratégico, quando afirma que “nós temos problemas de disputa de poder na
empresa”(E06). Em contrapartida, um entrevistado do nível tático declarou que as disputas
são individuais e não coletivas, principalmente depois que um grupo de colaboradores não
conquistou suas reivindicações. Como a empresa possibilita promoções internas e trocas de
funções entre seus funcionários, o alvo da competição acaba sendo o individual, pois hoje o
sujeito pode estar alocado ao departamento X e amanhã ser alocado para o Y. Interessante
verificar que, no nível operacional, são muitas as opções de mudança de função dentro de um
único departamento, antes do empregado ser transferido para outro, explicando assim, o fato
de que esse nível compete individualmente e como um grupo, já que estão alocados em linhas
de produção contínuas dentro do Sistema Toyota. Essa particularidade é negada quando a
percepção se dá nos níveis mais elevados da organização Alfa.
A busca pelo sucesso da empresa no mundo corporativo vem ao encontro do sonho de
sucesso dos seus funcionários. A instância mítica se refere aos desejos e sonhos em comum
que dão suporte à criação de um grupo organizacional que apresenta uma coerência em seus
pensamentos e comportamentos, gerando a ação desejada pela organização. Isso se verificou
na empresa analisada em que aparece a identificação dos desejos dos funcionários com os da
empresa. Tal identificação é ratificada pela declaração de um entrevistado: “Eu espero que a
empresa cresça e se consolide no mercado. A minha missão é ajudar a empresa para que eu
cresça também”(E04). Note-se que o colaborador espera uma projeção sua no mercado
globalizado, da mesma forma como acontece com a empresa. Assim, o modo como ela mostra

9
ser a sua existência enquanto organização é o modo como ele espera um reconhecimento
como um ser laboral dessa organização. Os dados apontam como é importante para os
funcionários a imagem externa da empresa, o que ela parece ser para os outros, pois ele se
identifica e se apóia nessa imagem.
Verificou-se nesta pesquisa que a imagem projetada pela organização e percebida
pelos funcionários foi um fator determinante para a sua entrada na empresa. Houve motivação
inicial, pelos funcionários, de fazer parte de algo diferente, moderno e dinâmico nas suas
relações sociais. Essa motivação foi caracterizada pela diversidade cultural apresentada pela
Alfa. Esse comportamento é corroborado nas afirmações de dois entrevistados, transcritas a
seguir:“Eu queria trabalhar numa empresa que tinha gente do mundo inteiro, que tinha
possibilidades de crescimento, que tinha um intercâmbio cultural enorme, uma imagem
maravilhosa. Nossa, eu pensei, que era o lugar que eu tinha pedido a Deus. E eu realmente
quis muito no processo de seleção. Hoje eu sei que não é isso”(E07). “A empresa surgiu
naquela época como uma possibilidade de trabalho, de experiência profissional incrível, duas
grandes empresas criaram uma nova, então, o próprio marketing, a imagem que ela tem no
mercado foi incrível”(E12).
Essa valorização da imagem que a organização aparenta construir refere-se ao mito de
grandeza que a empresa estudada reforça a todo o momento, dentro do seu ambiente de
trabalho. A organização reforça uma identidade que não possui, uma consistência existencial.
Durante toda a pesquisa, observou-se que os funcionários, em sua maioria, sentiam-se
desmotivados com o futuro deles dentro da empresa, resignados, sem perspectiva de
crescimento profissional e confusos com a realidade ambiental, pois não conseguiam
compreender porque a realidade atual era diferente daquela imaginada inicialmente, quando
ingressaram na Alfa. Acerca disso, um entrevistado manifestou opinião em dois momentos
distintos - confirmando a existência de uma contradição entre o que ele imaginava que seria e
a sua percepção do que a empresa realmente é: “A gente sente um pouco a falta da empresa na
sociedade, ninguém fala da empresa enquanto ente assim”(E07). Aqui o entrevistado se refere
a um dos valores difundidos pela empresa que é a inserção dela na comunidade local,
promovendo eventos e ações na área social, contribuindo para o desenvolvimento sustentado
da região onde está instalada a fábrica. Na segunda opinião do mesmo entrevistado, o mito da
empresa maravilhosa é desfeito, pois a percepção da realidade atual é contrária à idéia inicial
de grandeza e sucesso prometido, que vem ao encontro da concepção de Enriquez (1997) de
que as organizações ocultam a sua história real, conduzindo os sujeitos a se tornarem
membros da equipe e a se sentirem partes de algo maior do que eles. “A empresa parece que é
uma garagem que retifica motores, uma coisa assim. E isso choca um pouco a gente. A gente
se mata de trabalhar aqui, estou falando dos colegas da minha geração, que começaram no
barracão. A gente fez um processo de seleção muito rigoroso e muito demorado e de repente,
parece que você está trabalhando numa oficina de fundo de quintal”(E07).
A empresa construiu uma imagem de sucesso e futuro grandioso, quando da sua
instalação em 1998, para atrair talentos nacionais que se dispusessem a contribuir para a
construção e o crescimento de algo realmente importante para a sociedade. Verificou-se que
muitos funcionários ainda estavam engajados no trabalho na esperança do cumprimento das
promessas iniciais. Observou-se, que os funcionários acreditam que os discursos feitos pelos
dirigentes da empresa são compatíveis com as expectativas e as promessas feitas na ocasião
em que a instalação da Alfa se fazia perceber. Alguns esperam que tais promessas sejam
cumpridas no futuro. Por outro lado, outros funcionários não acreditam mais nas promessas da
empresa manifestadas nos discursos dos dirigentes, pois a prática mostrou serem essas
inócuas, como afirmou um dos entrevistados: “Eu entrei quando ainda era o escritório
provisório. Isto criou uma expectativa muito grande e isto está muito frustrante hoje.
Entramos numa das maiores empresas de motores do mundo, com duas gigantes do setor. Fica

10
claro para a gente que nós agora estamos trabalhando no plano real e não é mais aquele sonho,
como você via. A gente vê que a empresa está mudando totalmente o perfil. A gente fica
falando que as pessoas boas estão saindo e vem pessoas com um nível muito mais baixo para
substituir. Isto é visível. A gente sente isso e comenta”(E07).
A entrevista acima confirma a idéia de Dejours et alii (1994) de que trabalhar em uma
organização de sucesso e multinacional, aceita como sendo a ideal pela sociedade capitalista,
é uma realização imaginária a ser cumprida pelo sujeito, mesmo que o trabalho acarrete uma
carga psíquica que afete a sua saúde física e mental. O entrevistado E07, que acompanhou o
nascimento da empresa, tinha uma expectativa grande em relação ao seu crescimento e
desenvolvimento profissional, atrelado ao crescimento da empresa, e percebeu que o seu
desejo de reconhecimento jamais seria atendido, o que ocasionou a sua saída imediata da
empresa. Essa decisão foi tomada após uma conversa com o nível estratégico. Esse fato
confirma a idéia de Enriquez (1997) de que a empresa constrói uma realidade aparente que os
sujeitos assumem como verdade.
Com base na filosofia de avaliação e promoção interna dos funcionários, desenvolvida
pela empresa, este estudo pôde mostrar que os entrevistados acreditam que a empresa valoriza
as pessoas que são competentes. Porém, quando se analisou a resposta entre os níveis
hierárquicos, houve discordância por parte de 50% dos respondentes do nível tático quanto à
vinculação da valorização à competência. Para compreender melhor essa contradição,
apresentam-se informações de empregados do nível tático com o fito de comprovar ou refutar
tal vinculação. Com base nas respostas, concluiu-se que a empresa não segue as normas e
regras internas definidas por ela, o que causou frustração e descontentamento por parte de
diversos funcionários. A empresa se propõe a criar uma cultura de confiança,
comprometimento e participação coletiva no ambiente prescrito, porém isso não se efetiva no
ambiente real, onde as coisas acontecem de uma forma completamente diferente e inesperada
nas relações de trabalho. O quadro 2 apresentado abaixo indica as contradições e
inconsistências dessa forma de gestão onde a teoria aparece desvinculada de uma prática
coerente com ela.

Quadro 2: Regras para as promoções internas


COMO DEVE SER COMO É
O candidato não precisa ter habilidades técnicas e sim
O candidato deve ter as habilidades necessárias.
relacionamento político com o nível estratégico.
Nenhum subordinado foi consultado em sua opinião
Os futuros subordinados deverão emitir suas opiniões
sobre os candidatos nos processos ocorridos até a data
sobre o candidato.
da pesquisa.
Não há espaço social para que os futuros colegas se
Os futuros colegas que precisam apoiar o novo
posicionem sobre os possíveis candidatos no nível
funcionário a ter sucesso em sua nova posição farão
tático e operacional. O superior imediato decide com o
parte do processo de decisão do recrutamento interno.
RH o melhor candidato para a vaga.

Verificou-se que a empresa possui normas e regras internas que tem por objetivo
propiciar aos funcionários um desenvolvimento constante dentro da estrutura organizacional.
Porém, a essa intenção não corresponde uma efetividade no trabalho, como ficou
demonstrado nas entrevistas realizadas. Os fatos relatados nas entrevistas vêm ao encontro do
conceito de Enriquez (1997) de que a ideologia que a empresa prega no seu ambiente é
freqüentemente desmascarada pelos membros da organização. Também é possível inferir que
a empresa não está seguindo o melhor caminho para a construção da sua cultura
organizacional, pois como afirmou Drucker (2000:39), “a prática da gerência, e não apenas
para empresas, terá que ser definida operacionalmente e não politicamente”.

11
7. Práticas da dominação por meio das estruturas e das políticas internas

A tecnologia, as metodologias e procedimentos adotados por uma empresa são


utilizados para dar uma estrutura aos desejos e projetos dos grupos sociais presentes em uma
organização. É o que se conhece por racionalização do trabalho, que envolve uma competição
interna, reivindicação social, aumento de produtividade e rentabilidade no processo
organizacional. É preciso que cada sujeito encontre o seu lugar idealizado na organização para
que possa realizar os seus sonhos. Assim, constrói-se a relação social no trabalho em que, de
um lado a empresa está sempre em busca de melhoria de processos e produtos e, de outro, o
sujeito está buscando a sua própria realização pessoal na organização do trabalho. Os dados
mostram um processo de dominação da empresa para com o corpo funcional, pois os
funcionários demonstram parâmetros díspares nas respostas. Enquanto criticam a
desqualificação e o não reconhecimento do trabalho desenvolvido na empresa, submetendo-se
às normas e à estrutura hierárquica, percebem a existência de liberdade no ambiente
organizacional. Observou-se que muitos funcionários tinham liberdade de ação em relação ao
seu trabalho, permitindo o exercício da criatividade.

Tabela 2 - Formas de Controle por Resultados por meio das estruturas e políticas em %
Questões: Concordância Discordância
1. A criatividade é permitida livremente dentro da empresa. 71,9
2. As ações criativas no trabalho são reconhecidas pela empresa. 62,3
3. As pessoas que são produtivas no trabalho são valorizadas pela empresa. 55,3

Mesmo tendo sido confirmada a existência da criatividade por todos os níveis


hierárquicos, um entrevistado declarou que a empresa não estimula tal atributo, pois prefere
que seus funcionários trabalhem inseridos na rigidez da estrutura. Afirmou: “Acho que você
precisa usar a criatividade, senão você fica como executor. Mas, para a empresa você precisa
ser um executor”(E07). As organizações permitem que os indivíduos tenham uma certa
liberdade no ambiente de trabalho, desde que controlada pela estrutura. Um dos controles é
exercido sobre a palavra livre nas relações de trabalho. As organizações têm medo da livre
expressão por isso adotam a palavra vigiada. A pesquisa confirmou que existe a percepção
desse indicador, pois os funcionários afirmaram que é preciso cuidar com o que se fala dentro
da empresa.
Da mesma forma, a empresa permite que exista uma competição interna, desde que
ocorra dentro das regras da empresa. A competição interna é importante para a empresa, pois
estimula o trabalho produtivo; por outro lado, se não fosse controlada, poderia estimular a
formação de grupos internos contestadores, estimular a pulsão de vida, fato esse verificado na
empresa estudada. Porém, no nível tático foi novamente detectada uma divergência de opinião
dos funcionários, discordando da existência de uma competição interna na Alfa. Com base na
declaração de um entrevistado desse nível, verificou-se que a competição interna não é
percebida, pois possibilidades de mudança dentro da estrutura, em função dessa competição,
foram consideradas remotas. Isso foi confirmado pela seguinte declaração: “Não existe uma
competição interna, pois existem dois grupos bastante distintos. Um grupo que entrou bem no
início da empresa, por um processo de seleção bastante feliz, atingiu bem os objetivos,
conseguiu trazer grandes profissionais. E dali pra frente não ocorreu mais isso. Então, tem um
grupo que é bem qualificado e outro que ainda está começando a sua atividade profissional.
Isso se dá em função de que competição não existe porque aqueles do grupo de pessoas com
bastante experiência não tem como competir com os outros porque a diferença da formação
técnica é gigantesca. Então, a competição não existe”(E12).

12
A declaração acima remete à questão abordada por Enriquez (1992) de que o caos
desorganizador que remonta à origem da empresa tende a retornar em alguns momentos na
vida dela. Verificou-se que alguns entrevistados fizeram analogias entre o passado e o
presente da organização, principalmente por ser um passado recente, afirmando que havia
mais liberdade de ação, que se tinha o sonho de construir uma grande empresa, que as pessoas
assumiam múltiplas funções (o que elevava o grau de motivação para o trabalho) e que as
tarefas não eram muito organizadas, o que exigia uma certa iniciativa para tomar decisões, por
parte das pessoas envolvidas no processo. Nesse sentido,os funcionários concordaram que a
desorganização no trabalho ajuda as pessoas a terem mais liberdade. Diferentemente das
outras questões, a contradição apareceu no nível estratégico, em que 66,7% dos gerentes e
diretores discordaram da opinião de que um certo grau de desorganização seja algo positivo,
que estimule a liberdade e, conseqüentemente, a criatividade. Isso confirma o entendimento
de Enriquez (1992) de que as organizações têm medo do desconhecido, do imprevisível,
temendo uma ameaça à estrutura organizacional.
Um entrevistado do nível estratégico asseverou que a desorganização do início da
empresa estava acabando e que coisas e pessoas estavam se adequando à nova realidade:
“Acredito que agora as pessoas estejam definindo o seu lugar na organização, o seu papel na
relação com o outro”(E06). A organização sempre que possível irá tentar diminuir as
incertezas nas tomadas de decisão. Quando uma empresa permite a existência de um espaço
criativo, significa que ela não apenas aceita coisas novas, como quer incentivá-las. Os
funcionários, em todos os níveis hierárquicos, afirmaram que a empresa estudada reconhece
as ações criativas no trabalho. Porém, no decorrer da pesquisa foram identificadas duas
opiniões contrárias ao resultado do questionário. Esses entrevistados afirmaram que a empresa
permite ações criativas, mas não as reconhece nem as valoriza dentro da estrutura. Essas
percepções evidenciam um dos medos organizacionais referenciados por Enriquez (1992): o
medo do pensamento, no qual uma certa liberdade pode levar o sujeito a tomar consciência e
questionar o sistema no qual está inserido: “Eu pedi para ter espaço de atuação com a saída do
gerente, pois eu queria mostrar do que era capaz de fazer. Então a empresa não contratou um
novo gerente. O momento para mim é bastante desafiador e inovador. Mas não acho que
reconhecer o trabalho criativo seja política da empresa”(E07); “A empresa não vê com bons
olhos o trabalho criativo, mas não que isso sirva de recompensa. O trabalho tem que ser
criativo principalmente na nossa área porque se ele não for criativo ele não pode ser
realizado.”(E12). A busca pela produtividade é fundamental para as empresas competitivas da
era globalizada. A pesquisa mostrou que a crença na valorização individual está atrelada à
produtividade no trabalho.

8. A prática da dominação por meio de grupos

A organização, para manter-se em equilíbrio, necessita alcançar uma certa coesão


grupal entre seus membros. Tal coesão não impede ações individuais, com metas de
promoção e reconhecimento, mas procura impedir que os membros se voltem contra a
estrutura e ameacem desestruturá-la. A percepção de que é preciso respeitar as regras
existentes, para almejar as valorizações profissionais no interior da estrutura, foi confirmada
pelos funcionários da organização pesquisada quando afirmaram que precisam respeitar a
hierarquia para ter sucesso na empresa.
Tabela 3 - Formas de Controle por Resultados por meio dos grupos em %
Questões: Concordância Discordância
1.Os funcionários, para terem sucesso na empresa, precisam respeitar a
77,7
estrutura hierárquica definida por ela.
2.A empresa estimula a competição entre os departamentos. 61,2

13
Verificou-se que a idéia de Enriquez (1992) de que as organizações controlam a
competição existente no seu ambiente foi confirmada na empresa pesquisada. Os funcionários
afirmaram que percebem a competição entre os departamentos dentro da empresa, porém
declararam não haver estímulo por parte da empresa para esse comportamento. Essa falta de
estímulo se deve ao “medo do outro”, em que os grupos formais são controlados pela
estrutura e os informais são desmontados, para que não ameacem o controle instituído.

9. Conclusão

Esta pesquisa teve como objetivo identificar uma das formas de controle social
presentes na Empresa Alfa a partir de indicadores desenvolvidos na matriz teórico-
metodológica da Economia Política do Poder. Optou-se por trilhar o caminho das relações
sociais no trabalho, investigando a percepção dos funcionários sob o prisma de quatro
instâncias de análise, tendo como objeto o controle por resultados, o qual é exercido por meio
do estímulo à competição interna, à individualidade e à busca da identificação do sucesso
individual vinculado ao sucesso da organização. Essa forma de controle foi encontrada na
empresa Alfa, pois os funcionários acreditam na imagem de grandeza da empresa que está
sendo projetada na sociedade. A missão da empresa, que é ser a melhor do mundo, estimula
construções imaginárias nos sujeitos, como a criação de expectativas e projeções de um
sucesso no futuro a ser alcançado. Porém, a pesquisa demonstrou que essa imagem não tem
correspondido ao imaginário após a entrada do funcionário na empresa. Com o passar do
tempo, a expectativa de sucesso provoca um efeito contrário ao desejado pela empresa,
desmotivando as pessoas para o trabalho e destituíndo-as do sonho de um futuro almejado.
A projeção de realização do sonho deveria ser, para a organização, jogada para
adiante, alimentando o sonho sempre latente, a conquista cada vez mais palpável. O resultado
buscado pela empresa, contudo, tem sido atrelado à produtividade, o que significa a
supremacia da razão sobre o imaginário. A Alfa, sendo uma empresa nova, está tentando
construir uma identidade própria, através de políticas internas que vêm sendo desenvolvidas
conjuntamente com o crescimento da empresa. A pesquisa permitiu perceber que há restrições
a mudanças e uma tendência à centralização dos processos por meio das estruturas e regras
gerais da organização. Nesse enfoque, os processos de controle aqui analisados, a despeito de
seu foco principal, acabam sendo permeados por uma rigidez burocrática, ou seja, pela
formalização, a qual acaba por definir as partes do trabalho que serão executadas pelas
pessoas envolvidas no processo.
A organização será sempre um lugar de conflitos e os indivíduos enfrentam esses
conflitos quando desenvolvem construções imaginárias e vínculos afetivos em relação à
empresa na qual trabalham. A organização não deseja mudanças, mas precisa delas para
sobreviver; da mesma maneira que necessita buscar uma homogeneidade no trabalho,
definindo zonas onde será possível trabalhar. A pesquisa permitiu perceber as formas pelas
quais a empresa utiliza o seu “poder de dona” dos processos organizacionais, para tomar
decisões contrárias às próprias políticas internas previamente definidas. As organizações,
como se sabe, não apenas estão inseridas em um processo histórico da sociedade como
também se transformam e evoluem para manter um crescimento sustentado ao longo da sua
existência. O objetivo de sucesso contínuo contribui para a formação de uma ideologia
própria da organização que vai conduzir as decisões e definir os caminhos que ela deverá
percorrer para conquistar o seu espaço no mercado competitivo. Nesta pesquisa ficou
evidenciado que a ideologia (o sistema de idéias que a organização toma como referência) se
propõe a apreender os fatos e dar conta do real em uma representação única, que oferece as
respostas adequadas para os conflitos nas relações sociais. Nesse sentido, ao mesmo tempo

14
em que enfrenta a realidade do ambiente organizacional, a empresa também a esconde dos
sujeitos, sugerindo uma que a liberdade de interpretação das práticas sociais só pode ser
manifesta se o sujeito consegue identificar seu lugar na organização e identificar-se com ela.

Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.
AMIN, Ash. Ed. Post-fordism: a reader. Oxford: Blackwell Publishers, 1994.
BERBEROGLU. Berch. Labor and capital in the age of globalization. Lanham: Rowman
& Littefield Publishers, 2002
BERGER, Peter I.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 12a. ed.
Petrópolis: Vozes, 1995.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. A degradação do trabalho no
século XX. 3a. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1987.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3a. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 4a. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, VOL.I.
CHANLAT, Jean F (org). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo:
Atlas, 1992, vol. I, II, III.
CODO, Wanderley; SAMPAIO, José J.C; HITOMI, Alberto H. Indivíduo, trabalho e
sofrimento. 3a. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
DEBORG, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DEJOURS, Christopher; ABDOUCHELI, Elisabeth; JAYET, Christian. Psicodinâmica do
trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
Conferências Brasileiras: identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São
Paulo: Fundap: EAESP/FGV, 1999.
DRUCKER, Peter. Desafios gerenciais para o século XXI. São Paulo: Guazzelli, 2000.
ENRIQUEZ, Eugène. Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Rio
de janeiro: Tempo Brasileiro, 1974. vol 36-37. p.53-94
O vínculo grupal. In: ENRIQUEZ, E. Psicossociologia: análise social e intervenção.
Petrópolis: Vozes, 1994.
A organização em análise. Petrópolis: Vozes, 1997.
Da Horda ao Estado.Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
FARIA, José Henrique de. Comissões de Fábrica. Poder e trabalho nas unidades produtivas.
Curitiba; Criar, 1987.
Poder e relações de poder nas organizações. Curitiba: UFPR, 2002a.
Economia política do poder:uma proposta teórico-metodológica para o estudo e a
análise das organizações. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS,2., 2002,
Recife. Anais... Recife: Observatório da Realidade Organizacional: Propad/UFPE: ANPAD,
2002b. 1 CD.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Tradução: José Octávio de Aguiar Abreu. Rio
de Janeiro: Imago, 1997. Tradução de: Das Unbehagen in der Kultur.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 22a. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível: à esquerda no limiar do século XXI.
São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HOPFER, Kátia R. Organização, poder e controle social. Dissertação de mestrado. Curitiba:
UFPR, 2002.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 12a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil S.A, 1988. (Livro I, Volume I).
MAYO, G. Elton. The human problems of an industrial civilization. New York: The
Viking Press, 1960.

15
MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense - Brasília: Conselho
Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1985.
MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 1996.
MOTTA, F.C.P; BRESSER PEREIRA, L.C. Introdução à organização burocrática. 5a. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
MOTTA, F.C.P; FREITAS, Maria E. (org). Vida psíquica e organização. Rio de Janeiro,
FGV, 2000.
PAGÈS, Max; BONETTI, Michel; GAULEJAC, Vincent de; DESCENDRE, Daniel. O
poder das organizações: a dominação das multinacionais sobre os indivíduos. 3a. ed. São
Paulo: Atlas, 1993.
SENNET, Richard. A corrosão do caráter. São Paulo: Record, 1999.
SCHIRATO, Maria A.R. O Feitiço das organizações. São Paulo: Atlas, 2000.
WEBER, Marx. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1991.
1
O presente estudo apresenta uma parte de uma pesquisa realizada em uma indústria do ramo automobilístico.

16
COMPROMETIMENTO: uma avaliação crítica sobre a práxis organizacional

Autoria: Solange de Lima Barbosa e José Henrique de Faria

RESUMO
O estudo sobre comprometimento vem se tornando cada vez mais freqüente pelos
interesses que seu conteúdo desperta para as organizações. No entanto, esta área de estudo
vem sendo marcada por uma clara dispersão conceitual e analítica, reconhecida por parte
significativa dos pesquisadores. No intuito de contribuir teoricamente para com a análise do
comprometimento nas organizações, este trabalho, baseado em uma avaliação crítica da práxis
organizacional, procura sugerir uma maior precisão conceitual, melhor definição das bases e
indicar as condições possíveis em que o comprometimento pode ser melhor investigado e o
que deve ser levado em conta nas pesquisas empíricas.

INTRODUÇÃO

Comprometer-se é, basicamente, assumir uma responsabilidade ou um compromisso com


alguém, com um grupo ou com uma organização. Dito desta maneira, o conceito de
comprometimento seria, do ponto de vista da teoria das organizações, tão amplo quanto
provavelmente pouco útil, na medida em que abarcaria tantas possibilidades formais e
subjetivas que sua avaliação tenderia a ser inconsistente. Isto não significa que
comprometimento não tenha relação com assunção de compromisso e de responsabilidade,
mas que é preciso investigar o que move o sujeito a adotar comportamentos ou atitudes
comprometidas ou não. Neste sentido, este tema tem aparecido com bastante freqüência na
literatura sobre estudos organizacionais, referentes tanto às relações humanas e seus correlatos
(motivação, desempenho, turnover, entre outros temas), quanto à psicologia de grupos.
Ao avaliar tais estudos, no entanto, é possível perceber que a concepção de
comprometimento usualmente adotada, tomando por base a práxis organizacional, incorre em
equívocos que necessitam ser desfeitos ou esclarecidos, para que o conceito possa adquirir
maior precisão analítica. Tais equívocos estão centrados em uma certa confusão entre o
conceito de comprometimento com o de (a) ligação a valores de natureza moral ou ética, (b)
relação de subordinação, devida ou não a uma obrigação, do sujeito a alguém, a um grupo ou
a uma organização, (c) aceitação tácita ou motivada por atos implícita ou explicitamente
coercitivos, (d) conveniência passageira ou indefinida e (e) reciprocidade entre indivíduos e
grupos com relação à organização, relativa ao atendimento de necessidades destes. Dito de
outro modo, isto significa que o conceito de comprometimento tem sido tomado pelos
conceitos de vínculo, lealdade, subordinação, aceitação, conveniência e reciprocidade de
interesse. É admissível que um sujeito comprometido possa vincular-se com a organização e
com ela relacionar-se tendo em conta seus interesses, mas isto não significa que os conceitos
possam ser intercambiáveis: o comprometimento admite, entre outras, a assunção de vínculos,
a lealdade de propósitos e a confluência de interesses, mas não pode ser confundido com
estes.
Entendendo a práxis como o resultado do movimento da prática e da teoria que dela se
origina e que lhe dá suporte cognoscível e impulsionador da ação, como coroamento da
relação teoria-prática, como, enfim, uma questão eminentemente humana (PEREIRA, 1982),
o objetivo do presente artigo é o de fazer uma avaliação crítica das concepções teóricas e das
práticas organizacionais explicitadas em alguns estudos sobre comprometimento, propondo
uma conceituação consentânea com a práxis organizacional.

1. COMPROMETIMENTO: uma discussão conceitual

1
É interessante observar, de saída, a partir do levantamento e da análise dos estudos
acerca do comprometimento, que os mesmos não têm levado em conta os diversos tipos de
organizações e/ou suas peculiaridades e/ou as diversas instâncias dentro das quais os sujeitos
se movem ou a que são submetidos, o que faz com que as possibilidades da existência de
vários níveis de comprometimento sejam ignorados e com que predominem os estudos nos
quais as organizações são tratadas como entes monolíticos, estruturados segundo uma razão
objetiva e despidos de contradições.
Não se pode descartar a possibilidade de que atividades diferentes nas organizações
possam resultar em naturezas diferentes de comprometimento, da mesma maneira como
formas diversas de gestão e de relações de trabalho e fins organizacionais possam provocar ou
favorecer comprometimentos específicos. A idéia de um comprometimento genérico com a
organização torna-se inconsistente com a realidade se for levado em conta o fato de que a
organização é um conjunto complexo e contraditório de sujeitos e grupos, com aspirações,
experiências, valores, códigos e interesses heterogêneos, vinculados a projetos nem sempre
claramente explícitos e agrupados segundo uma forma estrutural obstativa das relações
interpessoais ou institucionais, participando, na maior parte do tempo, de atividades isoladas,
departamentalizadas e com divisões que operam com metas e objetivos predominantemente
operacionais. Tais objetivos, ainda que possam vir a estar relacionados com as estratégias
organizacionais e com suas metas – competitividade, reconhecimento, lucratividade,
produtividade, realização mercadológica –, constituem-se em fatores limitadores da ordem
organizacional, transformando-se na própria realidade dos sujeitos, em suas referências,
ligadas antes às tarefas e às atividades do que a considerações de natureza organizacional, as
quais se encontram, não raras vezes, muito longe da realidade diária de grande parte de seus
membros.
A noção de um comprometimento genérico, portanto, tende a ser teórica e empiricamente
inconsistente na medida em que é mais fácil o sujeito estar comprometido com os objetivos e
metas de seu departamento ou setor, de determinados trabalhos, atividades ou tarefas que deve
realizar e pelas quais será avaliado objetiva e subjetivamente, do que com a organização como
um todo. De acordo com Reichers (1985), a organização, para muitos empregados, é uma
abstração; é algo que representa na realidade os seus colegas de trabalho, seus chefes e
supervisores, os clientes e outros indivíduos e grupos que compõem as relações imediatas no
trabalho. Esta forma de conceber as organizações, facilitada por sua própria natureza,
funcionamento e estrutura, não permite que se possa desconsiderar as possibilidades de uma
teoria sobre comprometimento que seja capaz de incorporá-la.
Em estudo recente Bastos (1997) propôs uma discussão sobre comprometimento no
trabalho, organizando as principais pesquisas efetuadas na área conforme os enfoques em que
se basearam. Concluiu que existe uma vasta fragmentação e redundância conceitual entre as
pesquisas realizadas, tanto no exterior quanto em âmbito nacional. A razão para tal
fragmentação e redundância apoia-se no fato de que se observa a “predominância de uma
abordagem metodológica dominantemente quantitativa e extensiva” (BASTOS, 1997:106), o
que favorece o aparecimento de diversas dimensões que, pela necessidade de nomenclaturas
específicas, contribuem para o surgimento de vários constructos, muitas vezes muito
próximos entre si. A partir disso, escalas e instrumentos são desenvolvidos para investigar os
novos constructos, o que faz com que a contribuição teórica acabe perdendo escopo.
Um outro estudo efetuado por Bastos, Brandão e Pinho (1997), aponta para o fato de que
uma das dificuldades encontradas para o avanço da pesquisa sobre comprometimento se
encontra na inexistência de concordância conceitual entre os pesquisadores. Uma vez havendo
discordância a respeito do que se deve entender por estar comprometido, a dispersão de
modelos teóricos leva ao desenvolvimento de diversas análises, nas quais pelo menos dois
conjuntos de fatores tendem a ocorrer: (a) antecedentes e conseqüentes do comprometimento

2
se mostram indefinidos e ambíguos; (b) as bases do comprometimento são confundidas com o
próprio.
A dispersão conceitual pode também provocar certa confusão entre as bases do
comprometimento e seus focos. Morrow (1983) examinou a diversidade conceitual e
metodológica sobre o que seria considerado como comprometimento no trabalho, fixando
cinco grandes focos de comprometimento utilizado pelos trabalhadores: a organização, o
trabalho, os valores, a profissão ou carreira e o sindicato. Em estudo mais recente, Morrow
(1993:107) considera “como formas universais de comprometimento, a ética no trabalho, o
comprometimento com a carreira ou profissão, o envolvimento com o trabalho e o
comprometimento organizacional”, o qual posteriormente divide em duas vertentes: uma
atitudinal (afetiva) e a outra relacionada à continuação do indivíduo na organização
(instrumental). Além destes pontos, Morrow (1993:107) organiza sua análise de forma a
distinguir os elementos que representam a natureza do vínculo individual ou, como
usualmente se denomina na literatura, as bases do comprometimento: “identificação, apego,
envolvimento, comprometimento, saliência, centralidade, entre outros”.
Alguns estudos ampliaram o escopo de análise acerca do comprometimento introduzindo
reflexões sobre o sindicato e a carreira, por exemplo. Todavia, a maioria dos trabalhos aborda
a organização como foco do comprometimento (ALLEN e MEYER, 1990; BORGES-
ANDRADE, 1994; MOWDAY, PORTER, STEERS 1982; BECKER, 1992). Os estudos que
se debruçam sobre a organização demonstram a predominância do comprometimento sob o
enfoque afetivo. Isso ocorre pelo fato de ser, o comprometimento afetivo, o mais desejado nas
organizações e devido ao fato de que trabalhos multidimensionais sobre o comprometimento
são ainda muito recentes (ANTUNES e PINHEIRO, 1999). Entretanto, como alertam Meyer e
Allen (1997), todos os esforços gerados no sentido de angariar uma forma de
comprometimento inevitavelmente impulsionam o desenvolvimento de outras formas.
As bases de comprometimento propostas nas pesquisas têm-se proliferado, pelas razões já
referidas, mas pode-se observar certo consenso em pelo menos três delas: (a) afetiva, em que
o vínculo se estabelece pela presença de sentimentos de afeição, apego, identificação
reconhecimento e lealdade, entre outros; (b) instrumental, em que o vínculo se estabelece pela
observação de custos e benefícios relacionados à ação; (c) normativa, em que o vínculo se dá
pela internalização das normas, valores e padrões estabelecidos, criando uma concordância
moral com os valores e objetivos da organização. A concordância com relação a estas três
bases parece estar relacionada à existência e à influência de componentes tidos como
motivadores do vínculo indivíduo-trabalho.
As abordagens desenvolvidas pelo conjunto dos pesquisadores, entretanto, independente
das suas especificidades, acabam por considerar implicitamente a organização como um ente
monolítico e estático. Ainda que na forma possam admitir que as organizações sejam
entidades dinâmicas, complexas e contraditórias, que possam não ignorar as articulações entre
as suas várias instâncias, nas quais os sujeitos atuam e se envolvem, ou que admitam a
possibilidade de coexistirem diversos níveis de comprometimento, o que se observa é que o
conteúdo da investigação adotada, das questões propostas e dos pressupostos teórico-
metodológicos de referência, toma a organização como um objeto inerte e sem movimento,
como fica evidenciado, por exemplo, nos estudos realizados por Bastos, Brandão e Pinho
(1997). Uma das decorrências mais importantes de tais abordagens está na tendência a
explicar antes os motivos pelos quais os sujeitos permanecem na organização do que os que o
levam a adotar, como seus, metas e objetivos organizacionais.
De fato, o comprometimento afetivo com a organização pode explicar a permanência nela
dos sujeitos, mas esse desejo de permanecer não garante, por si só, qualquer disposição para o
trabalho como se procura deduzir. O sujeito pode apenas participar sem sequer se envolver,
sendo que esse apego afetivo pode fazer, e muitas vezes faz, com que os sujeitos se prestem

3
mais à preservação da imagem organizacional do que à execução comprometida de suas
tarefas. Além desta questão, é preciso considerar que o fato do sujeito não querer sair da
organização não significa necessariamente que ele esteja comprometido com a mesma, não
sendo raras as situações em que os sujeitos estão comprometidos com suas próprias
aspirações, interesses e desejos, os quais podem ser, e freqüentemente o são, realizados no
âmbito da organização. Quando questões como estas não são consideradas na construção
teórica e também nos instrumentos de investigação empírica, o conceito de comprometimento
adotado acaba ficando reduzido à concepção de permanência do indivíduo na organização,
empobrecendo e limitando o entendimento das diversas faces do processo no interior das
organizações.
Neste sentido, o próprio conceito de comprometimento deve ser esclarecido ou
reelaborado. Bastos, Brandão e Pinho (1997) sugerem que à medida que o conceito é adotado
na linguagem científica, sua amplitude torna-se reduzida e o seu significado limitado ao de
“engajamento do indivíduo com variados aspectos do seu ambiente de trabalho” (p.100).
Todavia, ao conviver com outros conceitos como identificação, envolvimento moral e afetivo,
vínculos formais ou subjetivos, por exemplo, o conceito de comprometimento adquire outros
significados - algumas vezes muito próximos e outras diversos e ambíguos - o que acaba
contribuindo para a diversidade de conceitos na área e, em conseqüência, pela imprecisão da
análise e, portanto, pela ineficácia de atitudes gerenciais capazes de fortalecer situações de
comprometimento.
A respeito disso, Senge (1998) afirma que o comprometimento verdadeiro é algo pouco
observado nas organizações. Para ele, na maior parte das vezes o que se considera como
comprometimento não passa de aceitação. Na falta de uma conceituação precisa do constructo
teórico, elementos como engajamento e participação são confundidos com comprometimento.
As pessoas aderem às metas e objetivos organizacionais e muitas vezes até participam
ativamente na execução destes, todavia, deduzir daí que se comprometam verdadeiramente é
reduzir não apenas o alcance do conceito, mas sua efetividade analítica e prática.
Segundo Senge (1998:246), o comprometimento pressupõe “um sentimento total de
responsabilidade na transformação das metas e objetivos em realidade”; para tanto, os
indivíduos valem-se da criatividade e inovação, desenvolvem alternativas e procuram os
meios mais eficientes para garantir o sucesso do que se propuseram a fazer. As pessoas
comprometidas não seguem metas ou visões, elas acreditam em sua legitimidade. Como
apontam Kiesler e Sakamura (1996:296), “comprometimento pode ser equiparado com
sentimentos de auto responsabilidade por um determinado ato, especialmente se eles são
percebidos como livremente escolhidos, públicos e irrevogáveis”.
Comprometimento poderia ser identificado, neste sentido, como engajamento ou
disposição plena e espontânea para trabalhar, sentimento de responsabilidade pelo resultado e
aplicação de esforços, criatividade e inovação para contornar os problemas e garantir o
sucesso e o resultado. Estar comprometido significa estar movido pelo desejo de ver o
trabalho concluído e o objetivo atingido da melhor, mais eficiente, eficaz e efetiva maneira. É
sentir-se realmente responsável e demonstrar desejo de ver o sucesso da ação.
Segundo Allen e Meyer (1991:1), as bases do comprometimento organizacional são
identificadas pelos componentes afetivo, normativo e o de permanência. O “componente
afetivo refere-se ao apego emocional, identificação e envolvimento dos empregados para com
a organização. O componente de permanência se refere ao comprometimento baseado sobre
os custos associados a deixar a organização. O componente normativo se refere ao sentimento
de obrigação em permanecer na organização”. Analisando a proposta destes autores, percebe-
se que o conceito de comprometimento está relacionado principalmente à taxa de turnover:
“empregados comprometidos são aqueles que apresentam a mínima probabilidade de deixar a
organização” (ALLEN e MEYER, 1991:1).

4
O comprometimento baseado no componente de permanência tem sido comparado ao que
Becker (1992) definiu como os custos associados à atitude de se deixar a atividade ou a
organização, ou “lost side-bets”, sendo operacionalizado por alguns pesquisadores brasileiros
como um componente instrumental - como pode ser visto no trabalho de Antunes e Pinheiro
(1999). Contudo, algumas ponderações devem ser feitas a respeito dessa conceituação dada
tanto aos componentes da base, como ao próprio conceito de comprometimento. A maioria
dos trabalhos - como defende também Bastos (1997) – analisa os componentes do
comprometimento como sendo motivos que explicam por que os sujeitos, diante da avaliação
de alternativas, escolhem não deixar a organização, ao invés de explicar os fatores que os
motivam a engajar-se nas atividades ou permanecer na organização mesmo havendo
alternativas mais atraentes. Uma consideração que pode ser levantada a respeito da definição
dada ao componente afetivo é a de que, de uma forma geral, vem-se considerando o
componente afetivo como sendo um mero apego afetivo - ou uma simples necessidade de
reconhecimento por parte do indivíduo para com a organização - ou ainda, na melhor
hipótese, admitindo uma certa satisfação psicológica no cargo ou ocupação - a qual depende,
como se sabe pela literatura, de recompensas e fatores oferecidos pela organização. No
entanto, o que não é levado em conta nessa abordagem é a possibilidade de se ter
comprometimento motivado por apego ou ligação afetiva do sujeito para com o grupo ou
colegas de trabalho ou pela lealdade – classificada como um componente normativo pela
maioria dos autores. A lealdade, ao contrário do que se defende, é mais um componente
afetivo que normativo, à medida que significa uma ligação afetiva originada pela troca e não
uma congruência de valores morais (que constituiria um componente normativo de fato).
Parece mais claro entender que o sujeito é leal não porque o conjunto de valores aceitos
socialmente definem que assim deva ele ser, mas porque desenvolveu-se entre ele e o outro
(seja este outro a organização ou seus trabalhadores, clientes, usuários, etc.) um sentimento de
cumplicidade fundado na troca. O dever aqui é mais de ordem afetiva que moral.
Um dever moral poderia ser exemplificado através do caso de um sujeito em uma
organização voltada ao trabalho social com relação a seu chefe, que ele sabe não ser
envolvido com as finalidades desta atividade e que a utiliza apenas para fins de promoção
pessoal. Embora possa não existir nenhuma ligação de caráter afetivo entre eles - pelo fato do
sujeito não admirar nem concordar com o seu chefe ou pela inexistência de apoio deste com
relação ao desenvolvimento dessas atividades - ele pode assim mesmo se comprometer com o
trabalho que executa porque sente sua importância para a comunidade atendida, independente
das intenções de seu superior. O sujeito pode perfeitamente estar em desacordo com o seu
chefe, não estar muito satisfeito com as suas condições de trabalho, mas pode estar
comprometido com a sua atividade por considerá-la válida e seu resultado importante ou
necessário.
Nota-se, na análise de casos como este, que existe uma diferença entre lealdade e dever
moral, o que permite observar que há, de fato, uma certa confusão entre o conceito de
lealdade, a qual se dá pelo fato desta ser um valor cultivado socialmente, embora não se possa
ignorar que seu princípio seja afetivo. É bastante provável que essa confusão explique a razão
do alto coeficiente de correlação existente entre esses dois componentes nas pesquisas levadas
a efeito por Allen e Meyer (1990:08 e 13).
A grande diferença entre o componente afetivo e o normativo se concentra basicamente
no fato de que o primeiro não significa obrigação. Pelo contrário, a ligação afetiva possui um
caráter voluntário, enquanto o componente normativo pressupõe a obrigação moral de agir
conforme as normas e leis estabelecidas no momento que o sujeito concorda com elas. No que
diz respeito ao componente instrumental (ou de permanência), a capacidade de explicar o
comprometimento detém-se nas razões pelas quais o sujeito decide ficar na organização ou
subordinar-se às prescrições estabelecidas. No entanto, em muitos casos examinados percebe-

5
se que nenhum esforço se dá no sentido de explicar porque realmente o sujeito se
compromete, ou seja, embora o mesmo tenha motivos para sair da organização ou motivos de
insatisfação naquele ambiente, ainda assim ele decide permanecer e propõe-se a melhorar a
situação.
Do modo como o comprometimento tem sido abordado na literatura, estar comprometido
parece estar ligado coercivamente a algo cuja separação acarretaria prejuízo para o sujeito.
Mesmo quando as pesquisas dizem respeito ao comprometimento de base afetiva, o sentido
dado pelas pesquisas correntes deixa a impressão de que o indivíduo avalia racionalmente os
benefícios obtidos naquela organização para decidir se comprometer. Entretanto, o
comprometimento deve ser observado não como uma troca eminentemente racional, em que o
sujeito elabora uma relação custo-benefício ou faz para si uma proposição do tipo perdas e
danos, mas um processo que precisa ser analisado como uma resposta na qual são decisivas as
manifestações inconscientes do sujeito, dadas a existência de fatores nem sempre racionais ou
percebidos. Isso é evidente na definição dada por Meyer, Allen e Smith (1993) do
componente afetivo e do componente de permanência. Segundo estes autores, se o
comprometimento é afetivo, o indivíduo não deixa a organização porque suas necessidades
(psicológicas e materiais) estão sendo satisfeitas e ele não possui garantias de que em outra
organização terá as mesmas condições; em contrapartida, se o comprometimento é o de
permanência (instrumental) ele permanece na organização porque, embora outra alternativa
até seja mais compensadora, o custo de integração e aprendizagem inicial é alto ou, no
mínimo, indesejado.
O comprometimento normativo é o único (entre os demais) que parece realmente estar no
caminho de explicar as razões ou motivações do comprometimento. Isso porque ele supõe, na
abordagem dada pelos citados autores, que o indivíduo permanece na organização por
lealdade ou obrigação moral em função do investimento realizado ou da confiança depositada
sobre ele pela organização, ou seja, de atitudes guiadas por motivos não racionais. Nestes
casos, a avaliação de alternativas privilegia o outro e não a si próprio, o que permite presumir
um indício de comprometimento.
Entende-se que o comprometimento não é movido por pressões coercitivas, o que parece
ser característico de aceitação ou subordinação mas, pelo contrário, por um caráter voluntário,
no qual é possível ao sujeito abrir mão do benefício próprio em detrimento do benefício do
outro, consciente ou inconscientemente. O conceito de comprometimento corrente, entretanto,
tem acentuado mais sentido de aceitação, de subordinação e de concomitância. De acordo
com Hirschman (1973), a existência de uma lealdade inconsciente leva o membro de uma
organização a não considerar uma eventual deterioração da sua situação na mesma,
permanecendo ali apenas pelo sentimento de dever para com o outro embora a situação, se
analisada racionalmente, motivasse sua saída.
Como pode ser percebido, o problema mais crítico no estudo do comprometimento nas
organizações se encontra nas diferenças existentes entre as várias definições utilizadas.
Definições estas que envolvem o estado psicológico refletido nas atitudes e comportamentos e
as condições antecedentes que levam ao seu desenvolvimento. Mottaz (1988), a este respeito,
mostra em seu estudo que boa parte dos trabalhos tem se preocupado com o que a organização
pode oferecer e com o que os indivíduos esperam e desejam, mas que estas questões têm sido
abordadas separadamente nas análises. Mottaz entende, porém, que é teoricamente
impraticável analisar o comprometimento sem abordar estas questões juntas, pois a
congruência entre ambas é que vai realmente possibilitar entender o comprometimento.
A partir desse ponto é possível identificar um novo elemento na análise: para se
identificar as bases do comprometimento, a direção deve ser dada pelos valores e motivações
dos sujeitos e não pelas condições externas oferecidas pela organização ou grupo. Ao mesmo
tempo, fica evidente que, uma vez identificadas as bases, o foco do comprometimento será

6
facilmente determinado pelas próprias atitudes indicadoras de comprometimento e/ou pelas
condições externas congruentes com a base identificada. Como afirma Mottaz (1988: 470):
“comprometimento organizacional representa uma adequação indivíduo-ambiente”.
A partir das análises mencionadas, constata-se que os conceitos que a literatura oferece a
respeito do comprometimento com a organização indica, em geral, muito mais o atendimento
a interesses próprios de indivíduos ou grupos do que aos organizacionais. Desse modo,
analisar o comprometimento organizacional torna-se menos importante que o
comprometimento localizado que o sujeito desenvolve em seu cotidiano.
Deste modo, é oportuno indicar que para além destas situações descritas, o que pode ser
encontrado nas relações entre os sujeitos e os grupos/organizações é a aceitação da relação,
seja por imposições coercitivas diretas (explícitas, repressivas) ou indiretas (recalcantes,
implícitas), presentes na organização ou no ambiente, seja por interesses secundários,
avaliados como realizáveis na relação. Neste caso, o sujeito pode se engajar na ação sem
comprometer-se com ela ou com a organização onde a mesma se efetiva. Segundo Senge
(1998), as possíveis atitudes de um indivíduo diante de uma meta ou visão são: (a)
comprometimento: sentimento total de responsabilidade na transformação da meta em
realidade, o que implica a livre escolha do sujeito em participar; (b) aceitação genuína: o
sujeito compreende os benefícios da meta e participa, mas não a toma como sua; (c) aceitação
formal: o sujeito compreende os benefícios e faz o que se espera dele; (d) aceitação hostil: o
sujeito faz o que se espera dele porque tem algo a perder; deixando claro que está contra; (e)
não-aceitação: o sujeito não vê benefícios e não faz o que se espera dele.
As observações listadas sugerem que se torna importante analisar o comprometimento a
partir de múltiplos ângulos, relacionando-o com diferentes partes e processos organizacionais:
relações de trabalho; níveis hierárquicos e de responsabilidade; graus de envolvimento com a
definição e a implementação de objetivos e estratégias; relações interpessoais e grupais;
posturas, atitudes, comportamentos, entre outros. Além disto, é preciso considerar que se o
comprometimento relaciona-se com afeto, códigos, vínculos e interesses, a existência de uns
não necessariamente implica a existência de outros, o que confere ao comprometimento um
caráter adverbial e contextual, de forma que seu conceito deve ser reavaliado, apresentando
elementos próprios que o diferenciem de não só de afeto, código, vínculo e interesse, mas
igualmente de aceitação ou envolvimento, que são os intercâmbios mais comuns na literatura.

2. COMPROMETIMENTO: uma avaliação crítica

Tomando por base estas discussões conceituais, é necessário fazer uma avaliação crítica
dos estudos sobre comprometimento e demais conceitos relacionados que se encontram na
literatura, buscando averiguar se os mesmos têm logrado êxito em superar as dificuldades
apontadas ou se se corrobora a hipótese sugerida no início de que está havendo, além de uma
discordância conceitual entre os diversos trabalhos na área, uma interpretação equivocada do
que realmente seja comprometimento e do que poderia incitá-lo. Três pontos foram escolhidos
para essa análise: o conceito de comprometimento, as bases do comprometimento e o(s)
foco(s) do comprometimento.
2.1. Allen e Meyer e os três componentes do comprometimento
O trabalho de Allen e Meyer (1990) foi, certamente, um dos mais influentes nos estudos
sobre comprometimento. Embora suas idéias estejam baseadas nos estudos de Kanter (1968),
Mowday, Steers e Porter (1979), Buchanan (1974) e Becker (1960), os seus três tipos de
comprometimento podem ser encontrados como fundamento em grande parte dos trabalhos,
sobretudo dos autores brasileiros. Contudo, o conceito de comprometimento em si mesmo não
é a preocupação central desses autores, que definem a tipologia a partir de argumentos

7
fundados em suas próprias bases, que de fato acabam sendo os pontos mais importantes de
suas análises.
No entanto, como pode ser observado neste estudo de Allen e Meyer, para cada base tem-
se uma definição diferente para o constructo teórico sobre comprometimento, de forma que a
questão conceitual torna-se ainda mais vulnerável. De fato, na medida em que estes autores
iniciam a análise do comprometimento sem defini-lo, as explicações que são oferecidas ao
longo do texto acabam por criar dificuldades. Isso ocorre porque os autores concebem o
comprometimento como sendo apenas uma atitude, deixando as dimensões organizacional e
psicossociológica de fora da análise, o que faz com que se dê uma confusão analítica entre as
bases e o próprio constructo teórico. Mesmo a definição mesmo dada para cada “tipo” deve
ser melhor avaliada.
O comprometimento afetivo caracteriza a ligação afetiva/emocional à organização com a
qual o indivíduo vai se envolver, identificar e apreciar o fato de ser seu membro. Neste caso, o
indivíduo não deixa a organização por estar afetivamente ligada a ela. O comprometimento de
permanência (chamado por alguns de instrumental), indica que o indivíduo permanece na
organização pelo reconhecimento dos custos associados a deixá-la. E o comprometimento
normativo indica a permanência do indivíduo na organização pela obrigação que este sente
pelo fato de, uma vez internalizadas as metas e regras organizacionais, acreditar ser certo ou
moral fazê-lo.
Na verdade, Allen e Meyer entendem que o sujeito se compromete quando permanece na
organização. Segundo os autores, como já foi observado anteriormente, na avaliação de
alternativas presentes o indivíduo decide permanecer na organização: a) porque incorrerá em
custos e prejuízos se deixá-la, ou b) porque sente-se na obrigação de ficar, ou ainda c) porque
está afetivamente ligado à organização. O conceito de comprometimento é utilizado com o
mesmo sentido do de permanência. Entretanto, é preciso insistir na observação de que
permanecer na organização com base em escolha entre alternativas não significa
necessariamente comprometer-se: o sujeito pode estar comprometido consigo mesmo, com
seus interesses e necessidades. Assim, se ele permanece na organização porque ali possui
melhores condições de trabalho, de satisfação pessoal e porque os custos associados à sua
saída são altos demais para suportar, não se pode dizer categoricamente que está
comprometido com a organização.
Uma segunda crítica a este estudo está relacionada com os componentes do constructo,
mais propriamente com as bases do comprometimento. A base afetiva pode, de fato, ser
considerada como um dos fatores que levam os indivíduos a se comprometer. Todavia, a base
instrumental do componente de permanência, tal como proposta, não pode ser utilizada para
explicar o comprometimento. É preciso considerar que se o indivíduo pode fazer uma
avaliação racional entre alternativas para escolher a que melhor represente suas expectativas,
também pode decidir pela permanência não porque esteja realmente comprometido mas em
troca de benefícios que deseja obter. A questão é que o comprometimento muitas vezes
independe das alternativas presentes na escolha.
Quanto ao componente normativo, entende-se que é possível que o indivíduo se
comprometa quando internaliza as normas e padrões adotados pela organização, pois haverá
então a congruência entre valores pessoais e organizacionais, entre os desejos inconscientes e
imaginários do sujeitos e aqueles representados na e pela organização. Mas, no que se refere à
lealdade (o sentimento de obrigação moral aludido pelos autores concernente ao investimento
percebido sobre si), é necessário, como foi exposto, considerá-lo antes como parte do
componente afetivo do que do componente normativo.
A terceira crítica ao trabalho de Allen e Meyer está relacionada ao foco do
comprometimento. Os autores, em toda a sua análise, referem-se ao comprometimento com a
organização enquanto totalidade, ignorando a possibilidade de haver comprometimento com

8
partes da mesma, com grupos de interesse ou de trabalho, com projetos ou tarefas, ou ainda de
haver a ocorrência de comprometimentos múltiplos e simultâneos. Ademais, está presente no
estudo uma concepção de que o comprometimento é uma atitude permanente, ou seja, uma
vez comprometido, o indivíduo permanecerá assim até que alternativas melhores lhe
apareçam. Esse tipo de raciocínio deixa antever a própria inexistência de comprometimento,
podendo ser melhor caracterizado como envolvimento e aceitação.
2.2. Kanter e o conceito de controle social
Rosabeth M. Kanter (1968:499-500) entende comprometimento como sendo a disposição
para ceder energia e lealdade aos sistemas sociais, sendo que a ligação de sistemas pessoais a
relações sociais são vistas como auto-expressivas. Em outras palavras, comprometimento
significa o processo pelo qual interesses individuais se atrelam aos padrões sociais de
comportamento que são vistos como “adequados aos interesses daqueles, como expressando a
natureza e necessidades da pessoa”. Na visão de Kanter, os atores podem se comprometer não
apenas a normas e padrões mas também a outros aspectos do sistema social. Assim, Kanter vê
a possibilidade de vários focos de comprometimento além do grupo. As bases observadas pela
autora são a cognitiva, avaliativa/normativa e a gratificação emocional (cathectic
orientations). Através das bases, Kanter identificou três tipos de comprometimento:

Tipo Base Princípio características


Permanência Cognitiva subordinação/acei- Indivíduos agem em termos de
tação recompensas e punições
Comprometimento com normas,
Controle social Avaliativa/nor- Internalização valores e convicções sociais que
mativa parecem congruentes com o seu
conjunto interno de crenças
Coesão Grupal Gratificação Identificação Comprometimento com relações
emocional sociais que concentram o estoque de
afetividade dos indivíduos
Fonte: Kanter (1968)

O constructo teórico aqui também, a exemplo do de Allen e Meyer, é definido pela


dimensão atitudinal, o que faz com que se parta das bases do comprometimento para
identificação do seu conceito. Além disso, embora a autora considere a possibilidade de se ter
o comprometimento para com diversos focos além do grupo, sua análise permanece centrada
sobre o papel social e sobre o grupo e não faz qualquer menção a respeito da variabilidade do
comprometimento, ou seja, deixa entender que, uma vez desenvolvido, o comprometimento
permanece inalterado. Uma outra observação a ser feita é concernente à motivação. Segundo a
autora o comprometimento é motivado pelo contexto, ou seja, o comprometimento pode ser
“criado” ao se estabelecer as condições externas. A motivação individual e psicológica é
analisada como sendo dada e igualmente como sendo observada em todos os sujeitos.
Quanto às bases propostas, uma delas parece incorrer no mesmo equívoco conceitual
examinado anteriormente. De fato, a base cognitiva pressupõe o cálculo e a escolha entre
recompensas e punições, o que retoma a discussão a respeito da possibilidade de haver
comprometimento quando se escolhe a recompensa em lugar de punição. O caráter de
obrigação ou de falta de melhor alternativa prejudica a natureza do conceito de
comprometimento, conduzindo-o à aceitação ou ao envolvimento condicional, com ênfase na
punição e na preservação de benefícios.
2.3. Stebbins e a avaliação entre penalidades e recompensas
Baseando-se no trabalho de Becker (1960) e sua conhecida teoria que postula que o
comportamento é o resultado de uma avaliação dos custos associados às alternativas de

9
permanecer ou se deixar uma posição, Stebbins (1970) vai definir o comprometimento como
um estado psicológico que surge da presença de ou da iminência de penalidades, associadas
com a tentativa ou desejo de deixar uma posição específica. Na verdade, Stebbins entende o
comprometimento como uma ação para evitar uma penalidade, conceito este que parece mais
apropriado a avaliar a obrigação ou aceitação de uma determinada situação para evitar os
custos envolvidos com a saída.
Além disto, Stebbins utiliza o conceito de permanência tendo como foco não apenas a
organização mas tratando também da idéia de permanência da identidade, o que permite
aceitar a concepção de múltiplos focos. Neste sentido, qualquer situação que coloque em risco
a identidade individual pode ser considerada como o foco – o grupo, a relação social, o cargo,
etc.. A questão crítica, neste caso, está não só na definição de comprometimento adotada,
como igualmente na base proposta, que leva em conta apenas a avaliação de custos
envolvidos, ignorando as demais possibilidades.
2.4. Congruência de valores e interesses: aproximando-se do sentido
Mottaz (1988) procurou demonstrar em seu estudo que, embora haja uma extensa
divergência entre os diversos estudos no que tange aos determinantes do comprometimento
(se são fatores pessoais ou organizacionais), o mesmo é dado em função de ambos:
recompensas organizacionais e valores pessoais. Desse modo, “quanto maior a congruência
percebida entre os valores pessoais e as recompensas maior será o comprometimento. Assim,
o comprometimento organizacional representa uma adequação pessoa-ambiente” (p.470).
Embora não chegue a estabelecer uma tipologia e nem separar bases de comprometimento,
mas apenas a sugerir a importância das expectativas pessoais no desenvolvimento da atitude
de estar comprometido, Mottaz deixa implícita a definição de comprometimento como sendo
uma forma de lealdade oferecida pelo indivíduo à medida que suas satisfações psicológicas e
suas expectativas (que chamou de valores pessoais – work values) são atendidas pelas
recompensas oferecidas pela organização. Diante disso, o comprometimento teria apenas uma
base: a afetiva. O foco da abordagem de Mottaz, a princípio, parece centrar-se ainda na
organização, todavia pode-se interpretar que outros poderiam ser considerados, uma vez que
se parte de expectativas e satisfações.
Contudo, a análise de Mottaz incorre em problemas já mencionados: considerar a base
afetiva do comprometimento (relação expectativa-recompensa) como a única possível; não
partir de uma definição completa do seu constructo teórico, avaliando-o apenas como uma
ligação afetiva do indivíduo à organização, ou seja, uma resposta afetiva (atitude) resultante
de uma avaliação da situação de trabalho.
Esse tipo de concepção também é encontrada no trabalho de Mowday, Porter e Steers
(1979), bastante influente na área, sobretudo pelo seu modelo de investigação empírica,
largamente utilizado. O conceito de comprometimento é visto por esses autores como sendo a
força relativa de identificação e envolvimento de um indivíduo com uma organização,
caracterizada pela aceitação de valores e objetivos organizacionais, pelo desejo de exercer um
esforço considerável pela organização e um forte sentimento de pertença. Para esses autores, o
constructo teórico é atitudinal, ou seja, o comprometimento é uma disposição individual
ativada pela existência de elementos contextuais. Sendo assim, também partem da base do
comprometimento para posteriormente defini-lo. Esta forma de tratar a elaboração conceitual,
muito comum nos autores examinados, é tautológica e, como afirma Becker (1960:35), uma
das formas de evitá-la é “especificar as características do ‘estar comprometido’
independentemente do comportamento comprometido que servirá para explicá-lo”.
2.5. Os pesquisadores brasileiros: os problemas subsistem
No Brasil, autores como Borges-Andrade e Pillati (1999), Bastos (1997), Medeiros et alii
(1999), Antunes e Pinheiro (1999), entre outros, vêm desenvolvendo pesquisas e discussões a
respeito desse assunto, muitos deles baseados nos trabalhos anteriormente analisados.

10
Em recente trabalho Borges-Andrade e Pillati (1999) tentaram identificar a influência de
suporte e imagem organizacional sobre o comprometimento atitudinal e comportamental.
Definem o conceito de comprometimento como um vínculo afetivo no qual o indivíduo
compartilha valores, defende e oferece lealdade e interesse para a organização que lhe confere
suporte (atende às suas necessidades materiais e psicológicas). O foco analítico é estritamente
organizacional e a base exclusivamente afetiva, de forma que a análise não leva em conta
outras condições presentes no âmbito organizacional, como as relações pessoais e de trabalho,
as tarefas locais, os envolvimentos grupais, o inconsciente e o imaginário dos sujeitos e outros
fenômenos aos quais os mesmos estão submetidos e/ou comprometidos. Uma análise que
considera apenas o foco organizacional, amplo e indefinido, dificulta as conclusões que se
pode obter a respeito do comprometimento, o que pode ser agravado pela ausência de uma
definição clara e completa do que é estar comprometido. O comprometimento pode ser muito
mais que um vínculo afetivo e, em alguns casos, pode sequer sê-lo.
Medeiros et alii(1999), baseados no trabalho de Allen e Meyer (1990) e de Meyer, Allen
e Smith (1993) afirmam ter encontrado um quarto componente para o comprometimento, o
qual denominam de componente afiliativo. Na verdade, esta quarta dimensão se inclui na base
afetiva pois relaciona-se com o sentimento de pertença e a necessidade de identificação, que é
uma característica do afeto, desde que o conceito deste não seja também reduzido a uma parte
apenas de sua manifestação. O conceito de comprometimento proposto também é tratado com
o sentido de permanência ou vínculo afetivo, o que sugere que aqui também se vai encontrar o
mesmo problema já mencionado de que o conceito do fenômeno é tomado pela sua base.
Bastos, Brandão e Pinho (1997) desenvolveram um trabalho com vistas a construir uma
definição do conceito através dos próprios sujeitos envolvidos. Realizaram uma pesquisa com
servidores universitários buscando determinar, de acordo com o foco, quais eram os
indicadores de comprometimento. Alguns dos indicadores, porém, não logram atingir os
objetivos propostos pelos autores, na medida em que não indicam exatamente o
comprometimento mas diferentes reações do sujeito diante de situações tais como aceitação,
consentimento, interesses pessoais e subordinação consentida, como se pode ver nos
exemplos a seguir:
a. trabalho como foco: os autores incluem neste item cumprir as obrigações e deveres,
realizando tarefas; fazer o que lhe é solicitado; ser pontual e assíduo. Há, neste caso,
uma certa confusão entre comprometimento e consentimento, concordância com
regras gerais, necessidade de ser reconhecido no grupo como seu membro ou mesmo
receio ou medo de sanções punitivas;
b. organização como foco: os autores incluem neste item respeitar a hierarquia, normas e
procedimentos institucionais e obedecer à chefia; buscar crescer profissional e
pessoalmente; ter um contrato de trabalho. Aqui aparece uma confusão entre
comprometimento e obediência, obrigação contratual, interesse pessoal;
c. grupo como foco: os autores incluem neste item o bom relacionamento com os
colegas, o que sugere uma confusão entre características pessoais ou de personalidade
ou de comportamento social com comprometimento.
O problema central neste tipo de análise é de caráter teórico e metodológico. É
questionável que se possa construir uma referência teórica ou conceitual a partir da percepção
que os sujeitos têm de sua ação sem que se tenha pelo menos penetrado na análise do discurso
e de suas motivações inconscientes. Tampouco é recomendável que o que se deseja avaliar
seja estabelecido após a avaliação. Em ambos os casos, os riscos são o de reduzir o real à sua
percepção consciente por parte de determinados sujeitos e o de confundir as medidas do
fenômeno com o próprio fenômeno, riscos estes cuja conseqüência mais evidente é a de
imprecisão conceitual.

11
Já o estudo de Antunes e Pinheiro (1999) incorre no mencionado equívoco de considerar
o comprometimento como tendo o mesmo significado que envolvimento – outro conceito de
múltiplos significados. Além disto, os autores adotam o sentimento de obrigação como uma
definição da base normativa de comprometimento. Na afirmação de que os “empregados mais
atentos com as despesas de treinamento ou os que apreciam as habilidades que adquiriram
poderiam desenvolver uma sensação de obrigação” (p.4) para com a organização, pode-se
perceber mais um elemento de gratidão, pelo sentimento de apreço, agradecimento ou
lealdade, ou seja, valores relativos ao afeto, que uma ligação de base normativa. Entretanto, o
fato mais discutível, encontrado de forma menos explícita em outros trabalhos, está na
tentativa de demonstrar que as organizações podem desenvolver políticas e práticas de
envolvimento para comprometer os trabalhadores. Esta conclusão dos autores merece pelo
menos duas ordens de reparos: (a) a primeira refere-se ao fato de que todos os esforços
analíticos na área, como reconhece a quase totalidade dos autores, não foram capazes de
definir com uma certa precisão o que de fato é estar comprometido e quais são
definitivamente as bases e princípios do comprometimento, o que, sem sombra de dúvida,
constitui um sério impedimento para a adoção de estratégias para provocá-lo; (b) a segunda e
principal razão refere-se à suposição de que políticas e práticas de envolvimento possam ser
adotadas com efetividade quando a literatura já tem farta e felizmente demonstrado que os
efeitos das relações reais, simbólicas e imaginárias sobre o ego e o id não geram padrões
comportamentais definidos e homogêneos (DAMÁSIO, 1998 e 1999)
Como se pode deduzir destas observações, o estudo sobre o comprometimento nas
organizações é ainda um processo em construção e que deve estar aberto a outras
contribuições.

3. COMPROMETIMENTO: uma proposição à análise da práxis organizacional

Considerando-se as questões decorrentes das análises conceitual e crítica efetuadas,


admite-se que, do ponto de vista das relações organizacionais, estar comprometido significa
que o sujeito desta ação deve partilhar dos valores objeto da mesma, estar motivado a
participar da definição e da realização dos objetivos e das estratégias de sua consecução e
sentir-se responsável pelo sucesso das ações que permitam o atingimento dos objetivos,
engajando-se, criando e inovando para a conclusão das ações conforme os ou além dos
padrões esperados. Neste sentido, pode-se sugerir que, do ponto de vista organizacional, o
comprometimento só se manifesta quando pelo menos uma dessas quatro situações (ou bases)
ocorre:
a. sujeito possui ligação afetiva com um grupo ou uma organização ou com os objetivos
e as finalidades da ação: comprometimento com base em relações de afeto;
b. existe concordância moral e ética do sujeito com a ação em si ou com sua finalidade:
comprometimento com base em relações éticas e morais;
c. o sujeito irá beneficiar-se diretamente dos resultados da ação: comprometimento com
base em relações de conjugação de interesses;
d. o sujeito acredita que o grupo ou a organização são portadores de seus desejos ou
ideais: comprometimento com base em relações de vínculos subjetivos.
Na primeira situação, o comprometimento será resultado da lealdade emocional e do
sentimento de apreço. Os valores que estão em jogo nesta situação dizem respeito não apenas
aos relacionamentos determinados por laços de afeto entre indivíduos, como àqueles que
decorrem da alteridade, da experiência afetiva da descoberta do outro como tal e da
constituição do outro na relação que se processa coletivamente, a qual Pagès (1976) chamou
de “vida afetiva dos grupos”.

12
Na segunda situação, o comprometimento se dá pela congruência dos códigos morais e
éticos e dos valores individuais correspondentes, com os códigos e valores correspondentes
pertencentes ao grupo ou à organização, ou ainda pela confirmação desses códigos e valores
através dos resultados, gerando satisfações também à medida que o sujeito sente-se
importante (auto-estima, status) em participar da ação. Segundo Schwartz (1973) a ativação
das normas pessoais se dá quando o indivíduo se torna consciente das conseqüências
benéficas de sua ação; quando as conseqüências de sua ação reforçam suas convicções
pessoais, ou quando o sujeito sente alguma responsabilidade pessoal sobre a ação ou suas
conseqüências.
Na terceira situação, o comprometimento será resultado da satisfação de interesses
objetivos, explícitos ou não, do sujeito (racionalidade instrumental), sendo que neste caso a
remuneração, a premiação e o reconhecimento tornam-se insuficientes para gerar o
comprometimento, de forma que somente o beneficio direto sobre os resultados é que é capaz
de motivar o sujeito a se comprometer com a ação.
No quarto caso, o comprometimento resulta da crença na condição da organização poder
realizar ela mesma, ou de que será através dela que se torne possível realizar, desejos e
idealizações, de forma que o que assegura as relações são os interesses subjetivos, a
identificação e os vínculos estabelecidos pelo sujeito com o grupo ou a organização.
Em síntese, a manifestação do comprometimento está relacionada, de forma não
excludente, ao afeto, aos códigos (valores), aos vínculos e aos interesses subjetivos e
objetivos, desde que, em todos os casos, o que esteja em pauta sejam os objetivos e as
finalidade da ação e o envolvimento do sujeito com a ação e com seus resultados. Entretanto,
estas considerações por si só não são satisfatórias. É fundamental, ainda, considerar que os
estudos sobre comprometimento devem levar em conta pelo menos quatro aspectos:
a. a organização é um sistema vivo, ao mesmo tempo cultural, simbólico e imaginário,
no qual desejos, projetos e fantasias se entrecruzam de forma dinâmica e contraditória
(ENRIQUEZ, 1997);
b. os sujeitos não são seres abstratos movidos por interesses e desejos perceptíveis
apenas nas aparências, na medida em que o jogo entre pulsões existentes na dinâmica
inconsciente também ocorre nos grupos/organizações (KAËS, 1997; KERNBERG, 2000);
c. as relações entre os sujeitos e os grupos/organizações variam conforme os movimentos
de ambos (ZIMERMAN e OSORIO, 1997) ;
d. fatores ambientais, concretos ou imaginários, muitas vezes incontroláveis, são capazes
de alterar, inclusive completamente, as relações dos sujeitos entre si e com os
grupos/organizações (ANZIEU, 1993; CASTORIADIS, 1982).
A proposta apresentada, portanto, assume que o conceito de comprometimento não
pode ser intercambiável com outros conceitos correlatos ou com os derivados de suas bases e
enfatiza dois elementos inseparáveis de um mesmo processo: os referentes às relações em si e
para si mesmas (as situações ou bases) e os referentes aos aspectos relacionais presentes na
manifestação destas relações (as condições). As bases e as condições de manifestação são,
portanto, os elementos constitutivos do comprometimento, de forma que a ausência dos
mesmos nas investigações diminui a capacidade explicativa do fenômeno estudado. Estes
elementos constitutivos são dinâmicos e sua evidência às vezes é contraditória e paradoxal, já
que, ainda que se refiram ao mesmo fenômeno e a ele estejam vinculados, movem-se muitas
vezes independentemente uns dos outros, o que permite sugerir que os estudos acerca do
comprometimento organizacional serão necessariamente prejudicados caso estes elementos
sejam considerados de forma estática e/ou desintegrada nas análises e nas investigações
empíricas.

13
CONCLUSÃO

Quando se analisa os estudos acerca do comprometimento organizacional, como


observam vários dos autores mencionados, é evidente a heterogeneidade conceitual. O que é
adequado, do ponto de vista da pluralidade que deve caracterizar os procedimentos científicos
e do ponto de vista epistemológico, acaba por tornar-se também, de certa forma,
problemático. A questão que salta da análise destes estudos é se de fato os seus resultados: (a)
revelam um estado de comprometimento ou não; (b) indicam que o comprometimento
observado pode ser totalmente afirmado com base em todos os componentes avaliados; (c)
permitem comparações em ambientes semelhantes; (d) consideram que a aparência manifesta
do ou a percepção dos sujeitos sobre o fenômeno é a única forma de compreendê-lo.
Em síntese, deve-se questionar se o que é considerado comprometimento é
concretamente comprometimento, ou seja, se não há uma sobreposição ou um intercâmbio
conceitual nestes estudos. Pelo que pôde ser visto, é correta a hipótese de que os estudos
acerca do comprometimento confundem o conceito com as suas bases e/ou utilizam termos e
conceitos correlatos, porém com diferentes alcances, para dar conta do fenômeno. A
conceituação a partir das bases é problemática porque parte de um limite predeterminado, que
não se observa na práxis organizacional, reduzindo o alcance do conceito. As bases são um
dos elementos constitutivos e não as razões constituintes. A utilização de conceitos correlatos
tem como resultado que o conceito de comprometimento tem sido intercambiável, entre
outros, com os de permanência, lealdade, oportunidade, avaliação custo/benefício, obediência,
concordância/aceitação e vínculos afetivos . Em ambos os casos, as investigações sobre o
fenômeno restam prejudicadas.
A contribuição teórica aqui oferecida, portanto, é no sentido de sugerir maior precisão
conceitual, melhor definição das bases e indicar as condições possíveis em que o
comprometimento pode ser avaliado nas organizações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLEN, Natalie J. e MEYER, John P. The measurement and antecedents of affective,


continuance and normative commitment to the organization. Journal of Occupation
Psychology. 63:1-18, 1990.
ANTUNES, Elaine D. D. e PINHEIRO, Ivan Antonio. Sistema de Comprometimento
Organizacional para Empresas Inovadoras em Países de Capitalismo Tardio. Foz do
Iguaçu: Anais do XXIII Encontro Anual da ANPAD, 1999.
ANZIEU, Didier. O grupo e o inconsciente: o imaginário grupal. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1993.
BASTOS, Antonio V. B. Comprometimento no Trabalho: os caminhos da pesquisa e os seus
desafios teórico-metodológicos. In TAMAYO, A. et alli Trabalho, Organização e
Cultura. São Paulo: Cooperativa de Autores Associados, 1997. Cap. VIII, p. 105-127.
_____. O conceito de comprometimento – sua natureza e papel nas explicações do
comportamento humano no trabalho. Curitiba: Anais do XVIII Encontro Anual da
ANPAD, 1994.
_____. Os vínculos do indivíduo-organização: uma revisão da pesquisa sobre
comprometimento organizacional. Canela: Anais do XVI Encontro Anual da ANPAD,
1992.
BASTOS, Antonio V.B.; BRANDÃO, Margarida G.A.; PINHO, Ana Paula M.
Comprometimento Organizacional: uma análise do conceito expresso por servidores
universitários no cotidiano de trabalho. Revista de Administração Contemporânea.
1(2):97-120, maio-ago. 1997.

14
BECKER, T. E. Foci and bases of commitment: are they distinctions worth making?
Academy of Management Journal. 35(1):232-244, 1992.
BORGES-ANDRADE, Jairo E. Comprometimento organizacional na Administração Pública
e em seus segmentos meio e fim. Temas de Psicologia – Psicologia Social e
Organizacional. 1:37-47, 1994.
BORGES-ANDRADE, Jairo E. e PILLATI, Ronaldo. Comprometimentos atitudinal e
Comportamental: relações com suporte e imagem nas organizações. Foz do Iguaçu: Anais
do XXIII Encontro Anual da ANPAD, 1999.
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
DAMÁSIO, Antônio R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
_____. The feeling of what happens: body and emotion in the making on consciousness. New
York: Harcourt Brace, 1999.
ENRIQUEZ, E. Imaginário social, recalcamento e repressão nas organizações. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, jan-jun/1974.
HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. São Paulo: Perspectiva, 1973.
KAËS, René. O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
KANTER, Rosabeth Moss. Commitment and social organization: a study of commitment
mechanisms in utopian communities. American Sociological Review. 33(4):499-517,
Aug., 1968.
KERNBERG, Otto F. Ideologia, conflito e liderança em grupos e organizações. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
KIESLER, C.A. e SAKAMURA, J.A. A test of a model for commitment. Journal of
Personality and Social psychology, v. 3, p.349-353.
MEDEIROS, et all. Três (ou quatro?) Componentes do Comprometimento Organizacional.
Foz do Iguaçu: Anais do XXIII Encontro Anual da ANPAD, 1999.
MEYER, John P. e ALLEN, Natalie J. Commitment in the workplace: theory, research and
application. London: Sage, 1997.
MEYER, J. P., ALLEN, N. J. and SMITH, C. A. Commitment to organizations and
occupations: extension and test of a three-component conceptualization. Journal of
Applied Psychology, 78(4):538-551, 1993.
MORROW, P. C. Concept redundancy in organizational research: the case of work
commitment. Academic Management Review, 8(3):486-500, 1983.
MOTTAZ, Clifford J. Determinants of organizational commitment. Human Relations,
41(6):467-482, 1988.
MOWDAY, R. T.; PORTER L. W.; STEERS, R. M. Employee-organization linkages – a
psychology of commitment, absenteism and turnover. New York: Academic Press, 1982
SENGE, Peter M. A Quinta Disciplina. 2.ª ed. São Paulo: Best Seller, 1998.
SCHWARTZ, Shalon H. Normative explanations of helping behavior: a critique, proposal
and empirical test. Journal of Experimental Social Psychology. 9:349-364, 1973.
PAGÈS, Max. A vida afetiva dos grupos. Petrópolis: Vozes, 1976.
PEREIRA, Otaviano. O que é teoria. São Paulo: Brasiliense, 1982.
REICHERS, A. E. A review and reconceptualization of organizational commitment. Academy
of Management Review. 10(3):465-476, 1985.
RITZER, G. e TRICE, H. An Empirical Study of Howard Becker’s Side-Bet Theory. Social
Forces, v.47, p. 475-478, june – 1969.
STEBBINS, R. A. On Misunderstanding the Concept of Commitment: a theoretical
clarification. Social Forces, v.48, p. 526-529, 1970.

15
ZIMERMAN, David E. e OSORIO, Luiz Carlos. Orgs. Como trabalhamos com grupos. Porto
Alegre: Artmed, 1997.

16

Anda mungkin juga menyukai