DESENVOLVIMENTO E UNIVERSIDADE
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1
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
Devo alertar o leitor, desde logo, na linha de Nicos Poulantzas (“O Estado, o poder, o
socialismo”. Rio de Janeiro: GRAAL, 1981. p. 12), que “assumo a responsabilidade do que
escrevo e falo em meu próprio nome”. O propósito deste artigo é, a partir do que chamo de
elementos constitutivos dos Estudos Organizacionais - EOR, arriscar elaborar perspectivas
para esta área. Como de hábito, não vou abdicar de eleger categorias (no caso, elementos
constitutivos), as quais, naturalmente, encontram-se na realidade e foram apropriadas como
concreto pensado. O espaço para estas reflexões é restrito, o que me obriga a considerar, ainda
tal como Poulantzas (op. cit. p. 11), “que os problemas atuais [dos EOR] são suficientemente
importantes e novos para merecerem um tratamento aprofundado”.
A publicação na área de estudos organizacionais enquanto tal inicia formalmente, no
Brasil, na década de 1950, como se pode constatar em um texto básico no qual Beatriz M. de
Souza Wahrlich (“Uma análise das teorias de organização”. Rio de Janeiro: EBAPE/FGV,
1958) faz uma análise das principais teorias disponíveis à época seguindo a mesma linha de
produção acadêmica americana, representada por Selznick, Simon, Barnard, Mooney, entre
outros. Wahrlich questiona, já na época, o fato de que o campo teórico de estudos
organizacionais é subestimado em favor de seu “aspecto prático” (ou seja, o gerencialismo).
Entretanto, a própria Wahrlich utiliza indistintamente os termos organização e administração
ao longo da análise, defendendo a ideia de uma teoria generalizada de organizações a partir da
possibilidade de interação entre teorias da administração pública e da administração de
empresas privadas.
Estudos sobre organizações na década de 1950, como, por exemplo, os de Guerreiro
Ramos (“Uma introdução à história da organização racional do trabalho”, de 1952;
“Relaciones humanas del trabajo”, publicado no México em 1954), ainda não tratavam
especificamente da teoria das organizações, mas as tomavam como objeto de análise. Este,
talvez, seja o ponto mais importante da história dos estudos organizacionais no Brasil: a
organização como objeto de estudo.
Desde então, de maneira bem simplificada, os estudos organizacionais no Brasil
apresentaram duas linhas elementares distintas de abordagem: (i) aqueles vinculados ao
management, ao business, aos princípios de administração pública e privada; (ii) aqueles
vinculados às “ciências humanas e sociais” (sociologia, psicologia, filosofia, ciência política,
antropologia, educação, etc.), sejam estes disciplinares (sociologia das organizações,
psicologia das organizações), multidisciplinares ou interdisciplinares. Em ambos os casos, as
dimensões epistemológicas e metodológicas que atravessam estes estudos são de diferentes
2
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
matizes: positivismo, funcionalismo, estruturalismo, fenomenologia, materialismo histórico e
pragmatismo.
Mais de meio século após as primeiras publicações na área de estudos organizacionais,
não há dúvida que estes ganharam um corpo teórico relativamente autônomo, atingiram um
nível importante de representatividade acadêmica, caracterizaram-se com alguma ênfase na
multi e na interdisciplinaridade e atualmente apresentam uma forte tendência a se separarem
das teorias de business e management. Neste último caso, há um discurso consistente que
defende a separação dos estudos organizacionais dos estudos de business, como ficou
caracterizado nas diversas intervenções dos participantes do I Colóquio Internacional em
Estudos Organizacionais realizado na EAESP-FGV em Agosto de 2013.
Ao mesmo tempo em que a área de EOR ganha certa autonomia, a criação da
Sociedade Brasileira de Estudos Organizacionais - SBEO em 2012 se dá por iniciativa de
pesquisadores vinculados aos programas de pós-graduação em administração. Ainda que o
propósito da SBEO seja congregar as diversas áreas disciplinares, é na área de administração
que a mesma se consolida. Este fato exige uma reflexão mais acurada sobre as perspectivas da
área que, embora mencione mais adiante, não terei como aprofundar adequadamente.
Uma das propostas do I Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais e que
orienta a apresentação dessa Revista, é a de tentar projetar algumas perspectivas para os
estudos organizacionais no Brasil. Certamente, as avaliações devem divergir, pois não há
como fazê-las sem uma dose de especulação, mas as mesmas são muito oportunas para uma
reflexão crítica.
Permito-me sugerir o que entendo serem elementos constitutivos dos estudos
organizacionais (que também chamei de categorias analíticas), de forma a orientar minha
avaliação sobre suas perspectivas. Os estudos organizacionais devem:
i. Caracterizar-se pela Interdisciplinaridade (com possibilidades para a
multidisciplinaridade): o conhecimento sobre a realidade organizacional
demanda um diálogo permanente entre diversas disciplinas. Os estudos
disciplinares (sociologia das organizações, psicologia organizacional,
economia industrial, gestão organizacional, etc.) tendem a abordar aspectos
muito particulares do fenômeno, restringindo o entendimento de sua totalidade;
ii. Considerar a organização como objeto de pesquisa em sua materialidade: é
preciso superar a tendência à abstração e generalização que tende a extrapolar
3
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
aspectos de diferentes tipos, formas, contextos históricos e sociais, estruturas e
finalidades de organizações para toda e qualquer realidade organizacional;
iii. Superar a xenofobia teórica: em uma época na qual o globalismo apresenta-se
como totalização da economia e da sociedade, a concepção de estudos
organizacionais tipicamente brasileiros é retrógada. Não se trata de incentivar a
importação de teorias prontas ou de incorporar teorias sem cuidados, sem
críticas e sem rigor. Trata-se de reconhecer que a ciência e seu
desenvolvimento não podem ficar confinados a escaninhos particulares, como
se isto fosse demonstração inequívoca de autonomia, de independência na
produção acadêmica, de não submissão ao imperialismo científico e coisas do
gênero. O que é preciso, de todo modo, suplantar, não é o uso inadequado de
teorias produzidas fora do Brasil, mas o uso de teorias prontas que são
aplicadas ou testadas aqui como se nossa realidade fosse um mero campo de
provas;
iv. Sobrepujar a prática dos feudos acadêmicos competitivos: há uma prática, com
consequências perversas para o avanço do conhecimento, que consiste em
estabelecer grupos de pesquisa que se esmeram em distinguir-se dos demais
para efeitos de competição, seja por recursos, seja por “prestígio
autoimputado”, sem qualquer esforço pela cooperação na produção da
pesquisa. As distinções teóricas, metodológicas e epistemológicas são
saudáveis e necessárias para a área e não são impeditivas de colaboração e
parceria em projetos acadêmicos. Estes grupos, geralmente vinculados a
programas de pós-graduação, tendem a sobrevalorizar sua pesquisa em
detrimento do avanço do conhecimento do campo1.
4
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
Não tenho nenhuma ilusão quanto à eficácia e à amplitude destes elementos
constitutivos. Eles são apenas uma tentativa de organizar minhas argumentações e não um
exaustivo tratamento acadêmico ao tema. Considerando, portanto, estes elementos
constitutivos básicos e limitados, é possível alinhavar algumas perspectivas para os estudos
organizacionais no Brasil.
i. Sobre a inter e multidisciplinaridade: a mesma depende e tem grande tendência
a continuar a depender da iniciativa de poucos pesquisadores e grupos de
pesquisa. Embora sejam pesquisadores e grupos promissores e competentes no
avanço deste campo de estudos, os mesmos encontram importantes obstáculos
em seu fazer acadêmico: (a) a estrutura dos cursos de graduação e pós-
graduação aos quais estes pesquisadores se vinculam é predominantemente
disciplinar, dificultando a necessária interação das diversas áreas; (b) as
agências de fomento, com destaque para o CNPq, não abrigam uma área
interdisciplinar, obrigando os pesquisadores e grupos a submeterem seus
projetos à lista disciplinar oferecida, de forma que o julgamento dos projetos
corre o risco de ser feito por avaliadores que nem sempre conseguem ter o
alcance do significado da interdisciplinaridade; (iii) a interdisciplinaridade
ainda é tratada com certo ceticismo e/ou desdém em alguns círculos
acadêmicos, reproduzindo a lógica das corporações de ofício que caracteriza os
conselhos de registro profissional; (iv) a iniciativa da criação da SBEO foi de
pesquisadores da área da Administração, com poucos pesquisadores de outras
áreas, o que vai exigir um esforço político, acadêmico e institucional de
superação do vínculo dos EORs com a Administração, de forma a consolidar a
SBEO como efetivamente uma sociedade de pesquisadores, desvinculada de
estruturas disciplinares e de programas de graduação e pós-graduação; (v) a
interdisciplinaridade não é um passaporte para que se utilizem conceitos de
5
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
várias áreas (psicanálise, filosofia, direito, medicina, sociologia, etc.) de
maneira rasa e irresponsável;
ii. Organização como objeto de pesquisa: esta é uma questão pacífica apenas
aparentemente. Há uma discussão nos fóruns, por exemplo, sobre se
Comportamento Organizacional pertence ou não à área de EOR. Trata-se de
uma discussão, em meu ponto de vista, absolutamente irrelevante, a não ser por
uma questão de poder político. Se comportamento organizacional estuda o
comportamento das organizações ou o comportamento dos sujeitos na
organização é também irrelevante. Estratégia organizacional não estuda o
comportamento da organização? Relações de trabalho não estuda o
comportamento dos sujeitos na organização? Relação de poder não estuda
ambos? Poderíamos falar, do mesmo modo, do simbolismo, do imaginário, dos
discursos, etc. É uma perda de tempo e energia prospectar as perspectivas da
área de EOR a partir de discussões deste tipo. Estudos organizacionais são
estudos realizados em organizações e/ou sobre organizações, ou seja, são
estudos que têm as organizações como seu objeto, independentemente dos
temas ou assuntos (gestão, poder, trabalho, comportamento, competência,
simbolismo, etc.), desde que pertinentes, é óbvio. Mas aí habita, há tempos, um
problema. O Estado é uma organização tanto quanto uma empresa, um órgão
público, uma ONG, etc. Se tudo pode ser uma organização, temos uma
hiperárea? Ou não temos nenhum objeto de fato? Para ter a organização como
objeto, os EOR devem estudar o Estado, porém não como Estado; a empresa,
todavia não como empresa; as ONGs, contudo não como ONGs, etc. Parece
uma questão simples, mas a organização precisa ser estudada em sua
materialidade e, portanto, nas suas formas manifestas e em suas essências. As
perspectivas são promissoras, mas é necessário superar limitações
epistemológicas e metodológicas, especialmente quanto ao empirismo, aos
estudos de caso descontextualizados, às generalizações arbitrárias, aos modelos
acabados, aos enquadramentos padronizados, ao raciocínio impermeável, etc.
Finalmente, é preciso superar a escolha da organização pelo comodismo
laborioso: o simbolismo no bar da esquina; as relações de poder na escola em
que o pesquisador trabalha; a gestão por resultados no armazém do bairro; as
6
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
relações de trabalho na construção do edifício na rua em que o pesquisador
mora, etc.
iii. Xenofobia teórica: embora este assunto teime em voltar à tona, em uma
referência equivocada à crítica de Guerreiro Ramos à importação de conceitos,
este parece ser um elemento com poucas chances de prosperar. A utilização de
teorias produzidas fora do Brasil tem sido muito cuidadosa por parte de
pesquisadores de ponta, suplantando a mera reprodução. Mas o problema
recorrente é que as reproduções existem. Então, aqui, as perspectivas são as de
que é necessário exatamente superar o viés da importação objeto da crítica de
Guerreiro Ramos, ou seja, a importação de modelos, conceitos, teorias,
sistemas, sem rigor e de forma acrítica. Já não se trata de xenofobia, mas de
cuidado com a apropriação inadequada e inconsistente de conceitos e teorias
produzidas no mundo acadêmico, tratando-as como se fossem verdades
absolutas e inquestionáveis, generalizáveis e aplicáveis em qualquer contexto
sócio-histórico por justaposição;
iv. Grupos de pesquisa como feudos competitivos: este é um elemento que por
certo provoca um furor basilar em certos pesquisadores e grupos, que atuam
competitivamente no mundo acadêmico como se este fosse um mercado de
financiamento, e/ou que disputam poder político e prestígio ritualístico e/ou
que se deleitam na autovalorização de si. No discurso cobertura, todos são
favoráveis à cooperação entre pesquisadores e grupos de pesquisa, mas há uma
distância entre intenção e gesto, como diz Chico Buarque em Fado Tropical 2. É
7
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
fundamental reconhecer que a valorização da produção acadêmica de grupos e
pesquisadores em EOR (como em outras tantas áreas), no Brasil, tem se
apresentado historicamente como uma atividade imperialista de um eixo
regional. O reconhecimento prático e histórico da produção fora do eixo é raro.
Assim, não é incomum que alguns pesquisadores e grupos do eixo apresentem
como sendo originalmente seus, estudos há tempos desenvolvidos em outros
centros e que, por conta da visibilidade política da geografia institucionalizada,
apropriem-se deles com ares de paternidade. Ao contrário de fazer avançar o
campo do conhecimento em EOR, desenvolve-se um movimento de rotação
acadêmica. Forma-se, assim, um círculo vicioso: pesquisadores do eixo que
são avaliadores de projetos de fora do eixo; composição de conselhos
acadêmicos predominantemente do eixo; valorização de periódicos no sistema
Qualis com predomínio do eixo. Esta reprodução das condições de perpetuação
do poder político na academia deixou de ser um mistério e se encontra exposta
na mídia. Perspectivas? A SBEO poderá contrastar esta prática se definir como
um de seus objetivos a democratização na distribuição de recursos de pesquisa,
a valorização científica de grupos e de pesquisadores por sua produção, a
promoção de isonomia na avaliação de periódicos tendo em vista seu impacto
social e acadêmico.
Por fim, deixo aqui um desafio aos historiadores. Se todos desejam fazer da área de
estudos organizacionais um campo de referência, é necessário resgatar sua verdadeira história.
Do que tenho lido até o momento, há omissões imperdoáveis de eventos, fatos históricos,
produções originais, etc. Há desvalorizações inaceitáveis à boa prática acadêmica quanto à
importância de pesquisadores na área e, ao mesmo tempo, marginalização inexplicável de
pesquisadores que contribuíram decisivamente para o que a área é atualmente. Há distorções
de fatos datados inadmissíveis, especialmente desconsideração de pesquisas relevantes
(inclusive premiadas) e de desenvolvimento teórico pioneiro. O problema mais grave é que
textos que buscam resgatar a “história dos EOR”, ao promoverem estas distorções e omissões,
estão formando uma falsa convicção da realidade histórica, que se vai reproduzindo de texto
em texto, replicando as imperfeições, por conta de citações sem críticas e sem confronto com
os fatos históricos, criando uma concepção que não é fiel aos acontecimentos, mas que passa a
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".
8
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
ser uma espécie de “história oficial”, ou seja, uma história dos contadores de história que se
contentam em narrar os eventos segundo suas convicções e interesses.
Pesquisadores, e historiadores em particular, precisam superar a prática um tanto
cômoda de contar a história dos EOR tendo como única base de dados artigos publicados nos
Anais do EnANPAD e em revistas clássicas (RAE, RAC, etc.) e garimpar fontes documentais
mais amplas, buscando trabalhos publicados em revistas que nas décadas de 1970/1980 eram
referência e que deixaram de ser veiculadas; encontrar livros em editoras de pequeno porte;
fazer um levantamento exaustivo de cadernos e publicações patrocinadas por entidades
governamentais, etc. Em resumo, fazer um estudo consistente para contar a mais fiel possível
história dos EOR no Brasil. A realidade da publicação acadêmica nas décadas de 1970/1980
não tinha ainda, como parâmetro, a síndrome do Qualis Capes, que orienta o pensamento atual
restringindo seu alcance. Assim, a história dos EOR foi reduzida a algumas (e, sem dúvida,
muito importantes e, ouso dizer, fundamentais) contribuições, como as de Guerreiro Ramos e
Maurício Tragtenberg. Contudo, há mais do que isto.
A história dos EOR no Brasil é maior do que a que é contada nos encontros,
simpósios, fóruns, colóquios, congressos, etc. Maior do que o que registram periódicos que
superaram as dificuldades financeiras e se mantiveram em atividade. Maior do que os dados
disponíveis nos sites de acesso público (do tipo Google). Como pesquisador desde 1978
convivi com outros pesquisadores, estudei textos que por magia da memória curta das novas e
velhas gerações desapareceram das citações como se nunca tivessem existido. Resultados de
pesquisas e reflexões originais publicadas nas décadas de 1970/1980 têm sido solenemente
ignorados e seus temas resurgem no final dos anos 1990 e nos anos 2000 como novidades
(toyotismo, tecnologia e relações de trabalho, autogestão, gestão e subjetividade, para citar
alguns exemplos), inclusive com a valorização de pesquisadores estrangeiros que chegaram
aos temas anos após pesquisadores brasileiros o terem abordado. O colonizado parece sentir-
se sempre devedor do colonizador, não importando sua origem, se francês, inglês, alemão,
norte-americano ou brasileiro.
Maurício Tragtenberg deixou muitos ensinamentos aos seus discípulos (que ele se
recusava a ter, mas que de fato tinha), como Fernando Coutinho Garcia, Fernando Prestes
Motta, Antonio Valverde, Antonio Candido, Doris Accioly e Silva, Sonia Marrach, Evaldo
Vieira, Lucia Bruno, Liliana Segnini, eu mesmo e muitos outros que partilhamos de sua
orientação em longos debates, seminários e conversas de corredor. Um deles, no entanto,
9
RBEO, v.1, n.1, jan.-jul. 2014.
ficou gravado em minha memória e orientou minha vida acadêmica: “a crítica é uma das mais
poderosas armas dos intelectuais revolucionários”.
A crítica não tem compromisso com conluios, com restrições, com conveniências, com
reações desconfortáveis, mas com os fatos. Pode ser certeira ou conter equívocos, que sempre
podem ser corrigidos, mas deve ser expressa. Como disse Marx, citando Dante Alighieri em A
Divina Comédia, no prefácio da primeira edição de O Capital: “segui il tuo corso, e lascia dir
le genti!” (“segue o teu curso e deixa a gentalha falar!”). Desta forma, permito-me, no próprio
idioma italiano, concluir por mim mesmo que nella scienza, come nella vita, le cose devono
avere il senso e il significato. Qualcosa che ha significato, ma non ha senso, quindi senza
prospettive come qualcosa che rende il senso, ma che significa nulla (na ciência, como na
vida, as coisas precisam ter sentido e significado. Algo que tenha significado, mas não faça
sentido, é tão sem perspectivas como algo que faz sentido, mas que nada significa).
10
• RAM, REV. ADM. MACKENZIE, 15(4) • SÃO PAULO, SP • JUL./AGO. 2014 • ISSN 1518-6776 (impresso) • ISSN 1678-6971 (on-line) •
http://dx.doi.org/10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74. Submissão: 4 mar. 2013. Aceitação: 7 mar. 2014.
Sistema de avaliação: às cegas dupla (double blind review).
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE. Walter Bataglia (Ed.) Filipe Jorge Ribeiro Almeida (Ed. Seção), p. 47-74
Este artigo pode ser copiado, distribuído, exibido, transmitido ou adaptado desde que citados, de forma clara e explícita,
o nome da revista, a edição, o ano e as páginas nas quais o artigo foi publicado originalmente, mas sem sugerir que a
RAM endosse a reutilização do artigo. Esse termo de licenciamento deve ser explicitado para os casos de reutilização ou
distribuição para terceiros. Não é permitido o uso para fins comerciais.
• JOSÉ HENRIQUE DE FARIA • CINTHIA LETÍCIA RAMOS •
Resumo
O presente ensaio tem como propósito discutir como o tempo de trabalho ultra-
passa o tempo formal da jornada de trabalho a partir das três seguintes catego-
rias de análise: 1. tempo de trabalho socialmente necessário ou simplesmente
tempo de trabalho necessário, 2. tempo dedicado ao trabalho ou tempo dispo-
nível e 3. tempo livre (que compreende o chamado “tempo socialmente supér-
fluo”, quando se refere ao tempo ocioso,e o “tempo socialmente disponível”, o
qual é mediado pela velocidade decorrente das transformações emergentes no
mundo contemporâneo). O conceito de tempo empregado neste ensaio parte de
uma concepção que possibilita apreender essa categoria como construção social
e histórica, e não como uma categoria abstrata arbitrária. Neste ensaio, serão
tratadas as concepções de construção temporal, tempo de trabalho e tempo livre,
com o propósito de entender como a fronteira do tempo de trabalho invadiu
sutilmente o tempo livre do sujeito trabalhador, tornando esses tempos fluidos,
tensos, urgentes e flexíveis. Tempo aprisionado não por um controle minucioso
da atividade, para adaptar o corpo ao exercício do trabalho, mas por dispositivos
que mobilizam o sujeito a partir de objetivos e projetos, canalizando o conjunto
de suas potencialidades para fins do capital. Os argumentos desenvolvidos aqui
permitem sugerir que o tempo de trabalho necessário corresponde àquele em
que o trabalhador produz o equivalente ao seu próprio valor. Tempo excedente
é aquele que extrapola o tempo necessário de trabalho. Dessa forma, o tempo de
trabalho necessário não constitui, no sistema de capital, o tempo de trabalho ou
tempo disponível de trabalho, pois este engloba igualmente o tempo necessário
e o tempo excedente de trabalho.
48 Palavras - chav e
Tempo dedicado ao trabalho. Tempo de trabalho necessário. Tempo disponí-
vel. Tempo livre. Jornada formal de trabalho.
1 Introdu ção
1
“É, por boa parte, como força de produção que o corpo é investido de relações de poder e de dominação [...].
O corpo só se torna força útil se for ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (Foucault, 2004,
p. 25.
2
Os demais casos concretos específicos, como “tempo histórico”, devem ser adjetivados para garantir a
precisão da concepção.
[...] de acordo com a consciência histórica dos atores sociais em um dado período.
Apresentando-se como uma trama na aparência objetiva que organiza os fatos
sociais, o tempo com isso nos revela, ao contrário, a natureza construída de um
sistema de valores que ele exprime.
Grossin (1991), por sua vez, surpreende-se com a tolerância dos seres huma-
nos ao pensar em situações temporais vivenciadas cotidianamente como desa-
gradáveis e até mesmo insuportáveis, ressaltando que um dos motivos dessa
complacência é que as atitudes em relação às questões temporais partem de
ideias aceitas e interiorizadas, ou seja, não são discutidas e muito menos perce-
bidas como construção social.
Essa diferença de concepção é resolvida por Demazière (1995) e Maruani
(2000), para quem a adoção de um olhar histórico possibilita verificar que cada
momento de uma mesma realidade pode ser definido de modos diferentes.
Sennett (2000) indica que, na sociedade atual, a ênfase no presente é cada vez
mais estimulada, desconsiderando o passado e a história.
Ao fazer uma correlação do tempo com as contradições existentes nas rela-
ções de trabalho, Greco Martins (2001, pp. 19-21) acentua que quanto mais o
esquecimento dessa contradição vai ocorrendo, mais a relação de trabalho e o pró-
prio trabalho acabam enviados ao campo da natureza, sendo desvinculados das
suas relações sociais e do seu processo histórico, de forma que a subordinação
e a exploração passam a ser compreendidas como parte da natureza: “Assim o
olhar retrospectivo possibilita o reencontro de algo que ficou perdido, recalcado
e escondido nos escombros da história, permitindo a identificação do esquecido e
das contradições presentes nas relações sociais”.
Diante dessas breves considerações e entendendo que o tempo, direta ou
indiretamente, perpassa transversalmente os argumentos, paradoxos e contradi-
ções nas relações entre a sociedade, o trabalho e o sujeito trabalhador, é possível
formular as seguintes questões:
tempo com o uso das máquinas a partir da Revolução Industrial, Attali (1982,
p. 199) faz o seguinte relato:
A sociedade passa a lidar com o tempo da mesma forma como lida com o dinhei-
ro, atribuindo a ele também qualidades objetivas e impessoais, como, por exem-
plo, a escassez. Como consequência, o tempo pode ser utilizado, pode ser gasto
ou rentabilizado (Cardoso, 2007, p. 26).
Cardoso (2007) afirma que o tempo que não é traduzido em dinheiro não
recebe consideração social, caso emblemático do trabalho doméstico realizado
gratuitamente na esfera não mercantil, ou ainda passa a ser considerado como
um tempo perdido. Partindo da mesma equação de que “tempo é igual a dinhei-
ro”, Tabboni (2006) sugere que esse é o símbolo mais forte do tempo totalmente
transformado em mercadoria, reduzido a uma coisa e totalmente racionalizado,
e o tempo das experiências, das relações familiares e das interações afetivas e
pessoais, situadas no lado oposto das práticas geradas pelo dinheiro, perde con-
55
sequentemente seu lugar e sua importância social.
Além disso, Cardoso (2007) mostra que o trabalho industrial impôs uma
nova disciplina temporal e espacial, mediante a progressiva e contundente sepa-
ração entre o tempo/espaço de trabalho e o tempo/espaço de não trabalho, isto
Dentro do espaço fechado das fábricas, a crescente divisão das tarefas (exigindo
cálculos exatos dos tempos de trabalho e a coordenação precisa entre elas), a uti-
lização da mão de obra assalariada, a mecanização do trabalho manual, a adoção
de minuciosos estudos dos tempos e ritmos de trabalho conduziram, pouco a
pouco, à uniformização da medida do valor trabalho. De forma que o valor de
um bem passa a ser medido pela quantidade de trabalho necessária à sua produ-
ção, e a duração do trabalho torna-se a medida, por excelência, da quantidade de
trabalho. A própria divisão das tarefas estava relacionada à economia do tempo,
uma vez que ela implicava a especialização em uma pequena parte do trabalho,
permitindo uma diminuição drástica do tempo de trabalho necessário para cada
tarefa. Essas inovações que levaram ao cálculo do tempo e da produtividade máxi-
ma conseguiram definitivamente estabelecer a medida temporal de cada gesto.
Partilhando desse mesmo entendimento, Faria (2004) afirma que uma das
consequências imediatas do sistema taylorista de produção foi a precarização
Sobre esse aspecto, Elias (1989, pp. 21-22) apresenta uma reflexão crítica
afirmando que, na era moderna, o tempo exerce, de fora para dentro, sob a forma
de relógios, calendários e outras tabelas de horários, uma coerção que se presta
eminentemente para suscitar o desenvolvimento de uma autodisciplina nos indi-
víduos, a qual “exerce uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme
e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e à
qual é impossível escapar”. Esse também é o entendimento de Bessin (1998) ao
afirmar que a temporalidade contemporânea envolve todos num sentimento de
urgência, em que o sujeito se vê prisioneiro do imediato.
Cardoso (2007) argumenta que, do ponto de vista coletivo, os trabalhadores 57
lutaram contra a imposição de um novo tipo de trabalho, como também de um
novo tempo a ser dedicado ao trabalho, e o tempo aparece como um dos prin-
cipais objetos de disputa entre capitalistas e trabalhadores, entre aqueles que
buscam implantar uma nova concepção de tempo, de trabalho e de tempo de
• Tempo livre dominado pelo capital não é o mesmo que tempo disponível para
o capital. É certo, que sob o modo capitalista de produção, o mundo é o mundo
das mercadorias. Dos produtos aos serviços em geral, é a lógica do capital 59
que impera nas relações sociais. Entretanto, isso não significa que não exista
tempo livre, ou seja, que todo o tempo é tempo disponível para o capital.
• A concepção de que não há tempo de fato livre contrapõe-se à própria exis-
tência do sistema de capital, pois, em não havendo tempo livre, também não
61
• Teoria da escolha: fundamentada no conceito de utilidade marginal por
William Stanley Jevons (1987), economista britânico do século XIX, que
interpreta a variação do tempo de trabalho como resultado de decisões
racionais tomadas pelos indivíduos, maximizando a utilidade e minimizan-
do os custos das ações. Dessa forma, os indivíduos podem decidir alongar
Contudo, Dal Rosso (2011) afirma que, para acontecerem essas mudanças
políticas e sociais, é necessário que essas transformações ocorram também nas
condições materiais e tecnológicas que concentram o processo de trabalho. Para
Dal Rosso (2011, p. 42),
Ainda segundo Dal Rosso (2011), a práxis social é o processo pelo qual a socie-
dade produz, determina e regula padrões de tempo de trabalho. O processo envol-
ve as classes sociais e os grupos que detêm força política na sociedade. A identi-
dade da noção de práxis social carrega o sentido de resultado de enfrentamentos
que não podem ser preditos, mas exercem implicações sobre o curso da história
(Dal Rosso, 2011). Como o tempo de trabalho é parte de uma cadeia de articula-
ções mais amplas de natureza econômica, social e política, Dal Rosso (2011) afir-
ma que o conceito de práxis social abarca esse complexo de relações entre agentes
e classes que, por sua vez, resultam nas práxis sociais de tempo de trabalho.
Com base nos pressupostos marxistas de que é por meio do trabalho que o
homem se torna um ser social, o trabalho deve ser compreendido como momen-
to decisivo na relação do homem com a natureza, pois ele modifica a sua própria
natureza ao atuar sobre a natureza externa quando executa o ato de produção e
reprodução (Navarro & Padilha, 2007).
Todavia, na relação capital-trabalho, as contradições sempre se fizeram pre-
sentes: se, por um lado, a atividade laboral legitima-se como importante fonte
de saúde psíquica, podendo criar condições para a emancipação do sujeito, por
outro, essa mesma atividade dialeticamente aliena, reprime, oprime, controla o
sujeito e causa muitas vezes doenças físicas e mentais, levando o indivíduo ao
afastamento laboral (Navarro & Padilha, 2007). Marx (1989, p. 148) afirma que,
sob o capitalismo, o trabalhador decai à condição de mercadoria e a sua miséria
está na razão inversa da magnitude de sua produção:
O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma merca- 63
doria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo
das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.
O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como
uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral.
Fica claro que o trabalhador durante toda a sua existência nada mais é que força
de trabalho, que todo seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de
trabalho a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sen-
tido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher
funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e
espirituais, para o descanso dominical [...]. Mas em seu impulso cego, desmedi-
do, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos,
físicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao
crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário
para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às
refeições para incorporá-lo sempre que possível ao próprio processo de produção,
fazendo o trabalhador ingerir os alimentos [...] como se fosse mero meio de pro-
dução [...]. O capital não se preocupa com a duração da vida da força de trabalho.
deve sê-lo igualmente, haja vista a implantação de escritórios virtuais que têm
como premissa equipar cada empregado com computador portátil, celular, aces-
so a sistemas de gestão, bastando uma “tomada elétrica” para que o sujeito se
conecte com o mundo inteiro. O manager hipermoderno é uma das figuras que
se “privilegiam” com as possibilidades reais e concretas de se manter plugado 24
horas por dia. Segundo Gaulejac (2007), não há mais necessidade de um escritó-
rio fixo, mas sim de um escritório que o manager transporta consigo; não se trata
mais de uma disponibilidade obrigatória durante as horas de trabalho, mas de
uma disponibilidade permanente e livre.
Dessa forma, o tempo da planificação, da exatidão, da programação linear do
emprego do tempo é substituído pela policromia, pela urgência e pelo aleatório
na gestão do tempo. Instrumentos de liberdade, as tecnologias permitem liga-
ções para além da fronteira entre o profissional e o privado, o trabalho e o afetivo,
o familiar e o social (Gaulejac, 2007).
5 C ontradiçõ es D ecorrentes do
Tempo de T rabalho e do T empo
Livre: Consideraç ões A dicionais
3
O conceito de Bacal (1988), como se pode perceber, difere daquele proposto por Marx (2011) sobre o tempo
de trabalho necessário.
tempo livre. A concepção de tempo livre refere-se ao tempo de não trabalho, e não
ao tempo produtivo ocioso, porque o tempo livre do trabalhador empregado é o
tempo que o trabalhador tem ou dedica para si mesmo, tanto para seu lazer e seu
repouso (chamado também de tempo socialmente supérfluo) como para sua pró-
pria formação (educação), para atividades lúdicas, artísticas ou culturais e para o
convívio familiar e social (tempo socialmente disponível).
A bstract
This essays aims to discuss how working time exceeds the formal working time
from the following three categories of analysis: 1. working time socially necessary
or simply working times required, 2. time devoted to work or time available and
3. free time (which comprises the so-called “time socially expendable”, when refer-
ring to the idle time and “time socially available”, which is mediated by the speed
resulting from the emerging transformations in the contemporary world). The
concept of time spent in this essay is part of a theoretical design that tries to cap-
ture this category as social and historical construction and not as an abstract arbi-
trary category. This will be dealt with the conceptions of the temporal structure
of working time and free time, trying to understand how the border of working
time invaded subtly the spare time of the subject employee, making these fluid
times, tense, urgent and flexible. This time trapped not by a thorough control of
the activity, to adapt the body to work, but for devices that mobilize the subject
from goals and projects, channeling all of their potential for capital purposes.
The arguments developed in this essay let suggest that working time must cor-
respond to that time in which the worker produces the equivalent to your own
value. Over time is the one that goes beyond the time required. In this way, the
working time required does not constitute, in the capital system, working time or
time available, because this also includes the time needed to produce the worker
own value and the work over time.
71
Keywords
Time dedicated to work. Necessary labor time. Time available. Free time. Formal
workday.
Resumen
Este ensayo tiene como objetivo discutir cómo el tiempo de trabajo excede el
tiempo de trabajo formal de las siguientes tres categorías de análisis: 1. el tiempo
de trabajo socialmente necesario o simplemente las horas de trabajo requeridas,
2. el tiempo dedicado al trabajo o tiempo disponible y 3. tiempo libre (que com-
prende el denominado “tiempo socialmente prescindible”, al referirse al tiempo
de inactividad, y “tiempo socialmente disponible” que es mediada por la veloci-
dad resultante de las transformaciones emergentes en el mundo contemporá-
neo). El concepto de tiempo referido en este ensayo parte de una concepción que
permite capturar esta categoría como construcción social e histórica y no como
una categoría abstracta arbitraria. En este ensayo se tratarán de los conceptos de
construcción temporal, tiempo de trabajo y tiempo libre, tratando de compren-
der cómo la frontera del tiempo de trabajo sutilmente invadió el tiempo libre del
trabajador, haciendo estos tiempos líquidos, tensos, urgentes y flexibles. Este
tiempo es aprisionado no por un control exhaustivo de la actividad, para adaptar
el cuerpo al trabajo, pero por dispositivos que movilizan el trabajador a partir de
los objetivos y proyectos, canalizando todo su potencial para fines del capital. Los
argumentos desarrollados en este ensayo sugieren que el tiempo de trabajo debe
corresponder al tiempo en que el trabajador produce el equivalente a su propio
valor. El tiempo excedente es el que va más allá de los plazos requeridos. De esta
manera, el tiempo de trabajo necesario no constituye, en lo sistema de capital, el
tiempo de trabajo o el tiempo disponible, porque esto también incluye el tiempo
necesario y el tiempo excedente de trabajo.
Palabras clave
Tiempo dedicado al trabajo. Tiempo de trabajo necesario. Tiempo disponible.
Tiempo libre. Jornada de trabajo formal.
72
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74
Resumo
Este artigo tem por objetivo propor uma teoria crítica da sustentabilidade. Para tanto,
teórica e conceitual, inclusive em seu viés crítico. A estratégia a ser utilizada será a de
maneira que dê à mesma um significado que seja capaz de mostrar como estas escondem uma
será feito a partir da definição dos elementos constitutivos de uma teoria crítica da
sustentabilidade tem por base a concepção de que a sustentabilidade deve ser compreendida
não apenas como um processo coletivo da produção das condições materiais objetivas e
subjetivas de existência social, mas igualmente como um processo que valoriza do mesmo
_______________________
1
Possui doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo - FEA/USP, Brasil, e Pós-Doutorado em Labor Relations pelo
Institute of Labor and Industrial Relations - ILIR – University of Michigan, EUA. Mestrado em Administração pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - PPGA/UFRGS, Brasil e a graduação em Ciências Econômicas pela Faculdade de Administração e Economia FAE-
PR, Brasil. Professor Titular da UFPR, no Programa de Pós-Graduação em Administração - PPGADM, Brasil, nível Mestrado e
Doutorado. Pesquisador e Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais - UFPR/CNPq, Brasil. E-
mail: jhfaria@gmail.com
This paper proposes a critical theory of sustainability. To do so, we will retrieve the more
usual and universal conceptions of the subject, hereby called the Traditional Theory of
Sustainability, in order to find their theoretical and conceptual developments, including their
critical bias. We will present such traditional theory and then review it through high lights as
to give it a meaning that is able to show how it hides a proposal that meets the needs of the
socialmetabolism of capital (Mészáros, 2002). This will be done from the definition of the
theory on the traditional theory of sustainability is based on the idea that sustainability should
material conditions of social existence, but also as a process that likewise values its
producers.
3
A Teoria Tradicional da Sustentabilidade
apresentou para a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) o documento
"Nosso Futuro Comum", que ficou conhecido como Relatório Brundtland (ONU, 2007).
Nesse Relatório, o desenvolvimento sustentável foi conceituado como sendo aquele que
meios.
paradigma indicaria que a preocupação central das empresas deveria ir além da produção e
geração de dividendos. Neste sentido, seria de se considerar que deve haver, por parte das
empresas, maior envolvimento com questões que proporcionam o bem-estar dos seus
empregados, associadas à preocupação com a comunidade da qual fazem parte estes mesmos
empregados. Mas entre o modelo e sua prática, há uma distância equivalente à que separa a
intenção do gesto.
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
4
Enquanto critério da responsabilidade social, o paradigma remete à busca do
mesmo tempo: equidade social, prudência ecológica e eficiência econômica (Kraemer, 2005).
Milstein, 2003).
perder de vista que o cuidado com essas questões seria crucial para o desenvolvimento
sustentável;
(grupos de interesse) 1 que fazem com que as empresas funcionem de maneira responsável e
ofereceriam soluções inovadoras e poderiam tornar obsoletas as bases das indústrias que
A atenção por parte dos empresários a esse conjunto de motivadores deveria ser vista
como oportunidades para que as empresas tivessem seu valor de mercado aumentado. As
suas relações com seu ambiente interno e externo e obteriam vantagens nessa ação (Hart &
Milstein, 2003).
5
i. Princípio precatório: determinaria que onde houvesse possibilidade de
prejuízos sérios à saúde dos seres vivos, a ausência de certeza científica não
solução adotada;
2007).
liberal de mercado:
6
ii. Concepção Tradicional Moderna: defende a internalização dos custos
globalizada. Além disso, não dá para ignorar que tanto a proposta de títulos de
7
proposta é de que todas as políticas e atividades sociais sejam subordinadas às
Existem três orientações distintas nesta última concepção tradicional (Habermas, 1995):
(i) a vertente que enfatiza a luta popular, mais especificamente dos excluídos, contra o poder
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
8
das elites tradicionais; (ii) a vertente que se concentra na ideia da força da sociedade civil e
na necessidade da criação de uma esfera pública, que deveria se tornar tanto a força motriz do
vertente que se poderia chamar de institucional (a que se encontra no sistema), a qual sugere
A teoria tradicional também tem seu viés crítico. A concepção mais representativa deste
viés crítico da teoria tradicional pode ser encontrada, por exemplo, nas formulações da
Agenda 21.
deveria ser um modelo econômico, político, social, cultural e ambiental equilibrado, que
satisfizesse as necessidades das gerações atuais, sem comprometer a capacidade das gerações
utilização dos recursos naturais, socialmente perverso com geração de pobreza e extrema
alienado em relação aos seus próprios valores e eticamente censurável no respeito aos direitos
9
de balanço de pagamento, acesso à ciência e tecnologia; (iii) Sustentabilidade Ecológica: o
uso dos recursos naturais deve minimizar danos aos sistemas de sustentação da vida: redução
tecnologias limpas e de maior eficiência e regras para uma adequada proteção ambiental; (iv)
adoção de práticas agrícolas mais inteligentes e não agressivas à saúde e ao ambiente, manejo
respeito aos direitos humanos e integração social. Abarca todas as dimensões anteriores
Para Horkheimer (1990), trata-se de encorajar uma teoria da sociedade em sua totalidade,
sociedade capitalista. Cabe à Teoria Crítica, como sugere Adorno (1994), investir contra as
imagens deformadas da realidade que desenvolvem a função de servir ao poder, não dando
Ao denunciar o eclipse da razão, Horkheimer (1976) afirma que, por detrás da pura lei
econômica, da lei do mercado e do lucro, encontra-se a pura lei do poder de uma minoria,
10
baseada na posse dos instrumentos materiais de produção, de forma que a tendência ao lucro
Neste sentido, os estudos atuais sobre a vida nas organizações vêm sugerir que é preciso
sentir autorizada a compreender essas organizações e suas finalidades. É isto que pode
relativa em relação aos sujeitos que a constituíram e que se consolidam como instâncias de
mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os quais foram
criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos, entidades plenamente
concretas e imaginárias.
medida tanto as instâncias ocultas, que se operam nas organizações, nas relações objetivas
estruturas, dão conteúdo às configurações das relações sociais de poder no sistema de capital.
incorporando o que não pode ser dito ao que é possível falar, ao que pode ser manifesto às
claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de racionalidades (de regras, objetivos,
11
A distinção fundamental a ser feita quando se discorre sobre a Teoria Crítica refere-se
aos seus vários sentidos. A crítica é muitas vezes considerada a partir de uma concepção
positiva”, em lugar de uma “negativa”, indica, desde logo, que a crítica também deve
pronunciar a solução. Este “equívoco” de aparência inocente que habita o senso comum não
apenas comete o erro de supor que a crítica já contém implicitamente uma solução pronta,
qualquer que seja, como desconsidera que sua formulação, por si só, já se constitui em um
No primeiro caso, não obstante a crítica possa apontar soluções, é fundamental entender
que: (a) qualquer proposição formulada intervém sobre o real e o modifica, exigindo nova
avaliação crítica; (b) a solução esperada a partir da crítica, por vários motivos objetivos e
finalmente, que a solução não terá significado; (c) do crítico não se pode esperar que seja
detentor de soluções, que componha o estrito grupo de iluminados pelo saber utilitário, que
seja um interventor - no mais das vezes autoritários - ou que possua uma sabedoria incomum
mais próxima dos que não estão diretamente envolvidos (objetiva e subjetivamente) com os
mesmos, as soluções geralmente estão mais próximas dos que vivenciam os problemas do
relevante e muitas vezes decisivo, como se pode comprovar nas ditaduras, nas ações de
tortura física, nos processos de exclusão política, apenas para citar alguns exemplos. A
porque coloca o problema para o qual uma ação coletiva é convocada a se organizar.
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
12
A Teoria Crítica não é completa e definitiva; tampouco a expressão “crítica” é um
Crítica pretende denunciar situações e fenômenos sociais a partir da constatação de que uma
exatamente apenas aquela que procura preservar, nos limites determinados pelas necessidades
específicos para análise social. Assim, seu atributo é o de questionar e transformar a realidade
social, amparada em fundamentações teóricas que procuram entender tanto as relações sociais
quanto os sujeitos e sua inserção nestas relações. Cabe à Teoria Crítica desenvolver
formulações que expliquem o real em sua forma e em sua substância, que permitam
compreender para além do que pode ser visto e imediatamente entendido pela sociedade.
ação. Deste modo, esta teoria não se contenta com as análises que se encerram no plano da
das unidades de produção. Exige-se uma epistemologia que possa tratar das partes sem perder
de vista a totalidade.
identificá-las com o objetivo essencial de compreender aquilo que tal teoria esconde ou
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
13
ideologiza. Tal teoria não se posiciona contrariamente a políticas, programas e medidas que
contradições.
as ações sociais tradicionais não são meras atitudes remediadoras, é indagar sobre os atos dos
sujeitos que têm como objetivo atender interesses de grupos específicos na estruturação do
poder. Assim, uma teoria crítica é condição importante, ainda que não determinante, para
construir uma sociedade detentora da sua própria história, consciente das suas
14
iv. Contexto Social-histórico: cada contexto implica um conjunto de elementos
capitalista com a garantia de um ambiente saudável, mas aquele que emancipa cada
sobre os Governos (tendo em vista uma Política Pública), mas configura-se como
coletiva;
15
vii. Responsabilidade Coletiva: sustentabilidade não é apenas preservar os recursos
realizados coletivamente.
mercadoria, mas não seu produtor, o trabalhador. A ênfase é no processo e não nos sujeitos
desse processo. As fontes da produção referem-se aos recursos naturais e, novamente, ignora
que a fonte principal que faz a mediação entre a natureza e a mercadoria é seu produtor, o
trabalhador. Para encerrar este destaque, a teoria tradicional explicita a reprodução dos meios
acumulação da riqueza não é questionada, desde que seja factível certo bem-estar, ou seja, a
estar nas condições do sistema de capital. Neste sentido, a coesão social só pode ser aquela
que intima a solidariedade e que demanda uma coerência de pensamento nos termos do modo
legal, pois requer a adoção de uma condição considerada justa, tendo em vista os
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
16
procedimentos e as intencionalidades, ou seja, trata-se de uma exigência dos cidadãos quanto
ao que estes consideram como sendo justo, imparcial e que respeite a igualdade de direitos.
culturais são condicionadas pelo modo de produção dominante, de forma que os critérios de
sustentabilidade das empresas devem permitir que elas possam obter “vantagens nesta ação”
e que se deve investir contra a “decadência social”. No primeiro caso, esta tem sido a prática
imagem e como estratégia de marketing com relação aos seus produtos. Não é a
sustentabilidade que se persegue, mas as vantagens econômicas que podem ser obtidas
através dos programas. No segundo caso, a decadência social não interessa a um sistema
maior é a realização dos valores de troca, ou seja, maior é a condição de venda dos produtos
em preços e quantidades.
evitá-los, mas não atuam sobre o processo gerador dos danos, senão em sua correção prévia,
desde que tais ações não inviabilizem as atividades dos geradores de danos. Evitar os danos
“o máximo possível” implica a admissão de que os danos são partes inerentes do sistema de
capital e que não podem ser superados em sua totalidade. O máximo possível não é o máximo
exigido, mas aquele que não coloca em causa o sistema capaz de gerá-lo. Na mesma medida,
compensar as vítimas não significa eliminar o problema, mas um esforço para contrabalançar
Organizações e Sustentabilidade, Londrina, v. 2, n. 1, p. 2-25, jan./jun. 2014.
Recebido em 01/04/2014. Aprovado em 13/06/2014. Avaliado em double blind review.
17
um problema inerente à estrutura do sistema de capital pela oferta de um benefício que
apenas uma medida particular que ignora que o dano é um problema do próprio sistema, de
forma que o causador particular é apenas aquele que extrapola o dano admitido pelo sistema
meio ambiente”. Esta ideologia aposta no equilíbrio automático do mercado, o qual possui a
função deificada de prover, através de uma “mão invisível”, as condições necessárias ao bem-
estar e à felicidade geral. Para esta ideologia presente na teoria tradicional, “o mercado é o
melhor mecanismo para garantir a satisfação dos desejos individuais, inclusive dos desejos
ambientais”.
acumulação própria desse sistema daria lugar ao milagre da lógica da justiça social
igualitária. Para esta versão crítica, não é o modo de produção capitalista que deve ser
18
diferenças sociais”. Erradicar a pobreza não significa uma distribuição equitativa da renda
que as indústrias operam sob uma reorganização produtiva mundial. Respeito aos valores não
tem correspondência direta com garantia de condições humanas de vida em sociedade, mas
apenas que se deve observar e ser tolerante com as diferenças. Compatibilidade entre
produção e consumo não significa um padrão de produção que não esteja movido pelo
Em vista destas questões (aparatos conceituais da teoria tradicional) e dos sete elementos
recursos da natureza ou as reponha nas mesmas condições, valorizando os sujeitos sociais que
são seus produtores em um sistema de trocas que não contenha processos de acumulação
privada. Esta transformação deve ser guiada não pelo critério da lucratividade e nem
visando ao atendimento das reais necessidades da condição humana, garantindo que este
processo não agrida o ambiente em que se desenvolve, tampouco as pessoas que nele vivem e
produzem.
19
Considerando este conceito, fica evidenciado que uma das questões que mais revelam as
problema da sustentabilidade passa a ser a pressão externa que coloca em risco os resultados
da empresa e não seu compromisso com seus empregados e com as fontes de recursos. A
prática das empresas mostra que elas exploram seus trabalhadores, apropriando-se de seu
tempo livre (Ramos, 2013), investem contra a saúde e qualidade de vida através da pressão
praticam uma política que não respeita o elemento central de qualquer processo de
É preciso considerar que essa massa de trabalhadores cada vez mais pode representar
serviços. Se isso é muito eficaz ao criar nas empresas a necessidade de adaptarem seus
procedimentos ou de mudarem sua forma de agir de forma drástica e rápida, sob pena de
verem suas vendas (e seus lucros) caírem vertiginosamente de forma perigosa e arriscada,
seus efeitos são capazes de promover mudanças apenas quantitativas no sistema de capital e
de práticas que procura demonstrar o seu respeito e a sua preocupação com as condições do
20
ambiente e da sociedade em que estão inseridas ou onde atuam (Abreu, 2008), mas que não
A máxima do “quanto pior, melhor” não pode ser aplicada à sustentabilidade. Todos os
desconsiderar os benefícios porque os mesmos não resultam em uma solução adequada, mas
social. Mas uma teoria crítica não pode contentar-se com o que é possível fazer nas condições
Neste sentido, como se pode perceber ao longo deste artigo, as políticas e práticas de
sustentabilidade baseados na teoria tradicional têm servido mais ao consumo externo e aos
sustentável, no qual as pessoas sejam consideradas como alvo principal da garantia de uma
vida saudável, tanto econômica e politicamente, como do ponto de vista da saúde física e
exemplo reduz-se a uma prática que visa preservar a empresa de uma imagem externa
desfavorável que interfira em seus resultados e não é um compromisso com as fontes dos
21
recursos dispensáveis assim que sua contribuição deixe de interessar à produção do lucro, ou
acumulação, mesmo que ou exatamente porque tais atitudes sejam coerentes com uma
sustentabilidade crítica.
É urgente discutir a sustentabilidade não apenas como uma preocupação com o ambiente
externo, que é uma questão fundamental, mas especialmente como uma atitude também de
respeito ao ambiente interno pela valorização e respeito às pessoas que atuam nas
organizações e que são responsáveis pelos seus resultados. Uma teoria crítica da
sustentabilidade deve tratar não apenas de uma parte do problema, mas de sua totalidade.
Uma sociedade sustentável é aquela em que a produção das condições de existência deve
das condições atuais e futuras da reprodução do capital em seu processo sociometabólico. Sua
sua versão crítica, a teoria tradicional aponta os graves problemas gerados no interior do
ao modo capitalista de produção não passam de disfunções que podem ser “corrigidas”
através de medidas adequadas, ou seja, a questão da sustentabilidade é tratada como algo que
independe do sistema que a produz, podendo ser destacada e tratada sem alterar o próprio
sistema.
22
processo sociometabólico, o sistema de capital baseia-se no uso de meios e fatores de
mundiais, sob o comando do sistema de capital, encontram seus limites no interior do próprio
sistema. A crítica à teoria tradicional diz respeito ao fato de que ela é, em sua formulação e
em seus pressupostos, incapaz de orientar ações efetivas que permitam atingir a plenitude
Referências
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United Nations. (1992). Agenda 21. Rio de Janeiro. Recuperado em 21 julho, 1992, de
http://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/Agenda21.pdf.
Dryzek, J. (1992). Ecology and discursive democracy: beyond liberal capitalism and the
23
Faria, J. H. de (2013). Dissimulações discursivas, violência no trabalho e resistência coletiva.
Habermas, J. (1995). Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, 36, 39-53.
Hart, S. L., & Milstein, M. B. (2003). Criando valor sustentável. Academy of Management
Mészáros, I. (2002). Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo:
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Naess, A. (1995). The third world: wilderness and deep ecology. In J. B. Callicott, & M. P.
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Organização das Nações Unidas (2007). Rio declaration on environment and development:
application and implementation report of secretary general (Rio + 5). Rio de Janeiro:
24
Ramos, C. L. (2013). Algemas eletrônicas no mundo organizacional contemporâneo:
25
667
Poder e ideologia: o modelo corporativo dehttp://dx.doi.org/10.5007/2175-795X.2014v32n2p667
gestão por competências em uma indústria
multinacional
Resumo
Sendo as organizações permeadas por relações complexas e contraditórias
desencadeadas por mecanismos de poder, ideologia e controle, interessa analisar no
presente artigo de que forma estas relações se manifestam no discurso de Gestão por
Competência, mediante análise crítica do modelo corporativo implantado em uma
Indústria Multinacional, aqui denominada Indústria ALFA, a partir de duas categorias
de Análise: Poder e Ideologia. As fontes dos dados empíricos são os documentos
institucionais da Indústria ALFA que definem e orientam os procedimentos da
Gestão por Competência. A técnica de coleta e análise dos dados será a Análise de
Conteúdo segundo a proposta de Bardin e Franco. O enfoque que orienta o problema
de pesquisa se dará em torno do sujeito coletivo e sua relação estabelecida com o
conjunto de regras e comportamentos ideológicos impostos pela organização o
qual se materializa através da submissão, da alienação e da servidão voluntária nas
organizações. A base conceitual que dará suporte para sustentação desta investigação
levará em consideração uma concepção teórica crítica das formas de poder e controle
nas organizações concretas.
Palavras-chave: Gestão por competência. Relações de trabalho. Ideologia e poder.
Introdução
Considerando o fato de que as empresas ocupam lugar de destaque
na vida dos indivíduos, é necessário compreender como estes se relacionam
com aquelas, em que medida têm sua subjetividade manipulada e como
determinados discursos organizacionais atuam não apenas como fator
constitutivo da realidade social, mas também como prática ideológica e
de poder, contribuindo na construção das identidades sociais e individuais
(SIQUEIRA, 2004).
Nesse sentido, pretende-se compreender de que forma a organização
objetiva seu poder e sua ideologia mediante o uso de métodos, técnicas
e processos embutidos em seu programa de Gestão por Competências,
legitimando a adesão, o envolvimento e a concentração do indivíduo na
implantação de sua missão e na busca de seus objetivos. Interessa revelar a
lógica e o conteúdo do programa de Gestão por Competências que, segundo
Brito (2004), encontra-se alicerçado em uma dinâmica de relações de
poder, bem como em uma ideologia materialmente ancorada e amplamente
disseminada no âmbito organizacional, reforçando a alienação do trabalhador
e possibilitando a subsunção real de caráter subjetivo (FARIA, 2004) do
trabalho ao capital.
A base conceitual que dará suporte para sustentação desta investigação
levará em consideração a teoria da Economia Política do Poder, caracterizada
como uma concepção teórica crítica das formas de poder e controle nas
organizações concretas, objetivando esclarecer em que medida as instâncias
ocultas, que se operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e
no inconsciente individual, manifestam-se na gestão por competências, dando
conteúdo às configurações de poder e de controle nas organizações (FARIA, 2004).
O que se deve buscar nos estudos das relações organizacionais são:
crianças, jovens e adultos, parte do princípio segundo o qual o sujeito age sobre
o objeto antes de o objeto “conversar” com o sujeito. Todavia, no que se refere à
questão do conhecimento no campo do trabalho, o objeto que tem primazia sobre
o pensamento decorre de uma definição organizacional do que seja a competência
requerida e não da condição do sujeito diante do objeto de trabalho. A forma
como o pensamento se organiza em suas relações sociais no campo organizacional
é, assim, constantemente renovada pelas exigências do mundo competitivo, de
maneira que ao mesmo tempo em que se formulam novas concepções e conceitos,
também se geram informações e processos de controle e compartilhamento de
dados fornecidos tanto pela realidade das relações de trabalho como pelo simbólico
e pelo ideológico organizacional, constituindo, dessa maneira, o fundamento da
atitude manifesta e exibida e da sua compreensão.
Gradativa, dinâmica e contraditoriamente, o desenvolvimento do sujeito
depende de sua condição de internalizar e se apropriar em suas estruturas
racionais e afetivas das interações que é capaz de formular conscientemente
a partir das relações de poder e da ideologia do sistema de capital presentes
na gestão das organizações. Contudo, a formulação racional e objetiva do
conhecimento sobre o objeto pela consciência não tem como evitar o que se
encontra inscrito no inconsciente. A consciência tampouco pode ser resultado
ou reflexo da realidade objetiva.
O desenvolvimento das “estruturas” racionais e afetivas se dá sempre em
processos no quais a razão e o sentimento ampliam e flexibilizam seu escopo.
Tanto a formação como o desenvolvimento da consciência e do afeto, de
acordo com a proposta piagetiana, estão condicionadas à maturação orgânica
do sujeito (nervosa, endócrina), à transmissão social (convenções, valores,
códigos, afetos, costumes), à experiência (física e lógico-matemática) e à
“equilibração” (dinâmica e dialética). Este processo não está presente apenas
no aparato consciente-racional, permanecendo escondido no inconsciente. Isto
porque, para Piaget (1973), não existem dois domínios, o do consciente e do
inconsciente, separados por uma fronteira, mas um único, do qual, mesmo nos
estados mais lúcidos, só se percebe uma pequena parte, a qual escapa quase que
totalmente quando já não se a controla de perto.
Assim, o autor desenvolveu uma teoria da cognição (ou do desenvolvimento
do conhecimento), na qual propôs a existência de quatro estágios: sensório-
motor, pré-operacional (pré-operatório), operatório concreto e operatório
formal. Para Piaget (1973), a capacidade cognitiva se desenvolve e não vem
Assim, para Dejours (2001), não é mais o medo de acidentes que se impõe
soberanamente, pois por trás da vitrina está: o medo da incompetência; a pressão
para trabalhar mal resultante das relações com colegas e dos obstáculos criados
para estabelecer um padrão de desempenho mais baixo; a falta de esperança de
reconhecimento, componente decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva
da inteligência e da personalidade no trabalho; o sofrimento e a defesa para
suportar as pressões.
Nesse mesmo sentido, Gaulejac (2007) critica o caráter ideológico da
gestão, revelando que por detrás dos instrumentos, procedimentos, planos
de gestão e de comunicação há um sistema de crenças e de visão de mundo
unilateral que legitima os mecanismos de poder organizacional, fortalecendo
a ilusão de onipotência, neutralidade das técnicas e modelação de condutas
humanas, bem como a dominação de um sistema econômico que busca
incessantemente o lucro. Para Gaulejac (2007), é possível exercer uma “pseudo
liberdade” dentro das organizações, desde que o sujeito potencialize seus
esforços, energia e criatividade para os resultados gerenciais. O discurso de
excelência, revestido por uma prática excepcional para obtenção de resultados,
induz o indivíduo a assumir um projeto de eterna superação, com objetivos
“fora do comum”, metas inalcançáveis em direção a uma corrida de ideal
mítico inacessível.
Esses estudos sugerem que o controle ideológico, decorrente do
desenvolvimento da relação gerencialista, é uma forma de poder difícil de ser
percebido pelos indivíduos, pois os conflitos se colocam no nível psicológico
em termos de insegurança, sofrimento psíquico, esgotamento profissional,
perturbações psicossomáticas, depressões nervosas, entre outras. É também
de difícil qualquer contestação, porque, ao operar na “interioridade do
indivíduo”, a unidade organizacional faz com que o mesmo conteste a si
próprio, sendo, como indica Gaulejac (2007), uma espécie de “alienação à
segunda potência”, resultado da fusão entre o ego e o ideal de ego, incitado
pelo gerencialismo.
Em desenvolvi-
Trabalho em Equipe
mento
Capacidade de traba- Aplicação Apli- Supera
Inicia-
lhar cooperativamente, interme- cação nível
ção
integrando interesses diaria integral requerido
Não me Não
individuais aos do
sinto apto Demons-
grupo, para alcance de
a avaliar trada
um objetivo comum, na
busca de resultados para 22 33 4 5
1
o negócio, considerando
as características pessoais,
culturais e profissionais.
Atua realizando
algumas interven-
A ções na equipe,
compartilhando
experiências.
Tem facilidade de
atuar em equipes,
B agrega qualida-
de ao trabalho e
propõe ideias.
É um facilitador
da equipe, integra
as pessoas e gera
C
uma ambiência de
trabalho produtiva
e colaborativa.
É referência legiti-
mada. Sua atuação
estimula a equipe a
focalizar no traba-
D
lho e na conquista
de resultados,
extrapolando a
própria equipe.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.
Propõem-se a alcan-
çar metas desafiado-
ras adicionais às do
seu âmbito de respon-
sabilidade, otimizan-
C
do o fluxo do processo
onde atua. Diante das
dificuldades, encontra
formas de convertê-las
em oportunidades.
Compromete esforços
próprios e alheios
para alcançar metas
D e objetivos desafia-
dores, estimulando a
colaboração mútua e a
atuação integrada.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.
Busca oportuni-
dades de apren-
dizagem, aplica e
A
compartilha conhe-
cimentos quando
lhes são requeridos.
Apresenta comporta-
mento de constante
busca do apren-
dizado além do
requerido, consegue
B utilizar as compe-
tências adquiridas
em suas atividades e
compartilha conhe-
cimento de forma
consistente.
Compartilha com
equipes conheci-
mentos e experi-
C
ências adquiridas,
sistematizando a
prática.
Promove
em outros a
capacidade
de buscar,
apreender, aplicar
e disseminar
conhecimentos
D organizacionais
estratégicos
e críticos,
garantindo que
a aprendizagem
individual seja
transformada em
organizacional.
Fonte: Documentos Institucionais da Indústria ALFA.
Considerações finais
O propósito desta pesquisa foi o de compreender de que forma a
organização Indústria ALFA, mediante o uso de métodos, técnicas e processos
embutidos em seu programa de Gestão por Competências, legitima a adesão,
o envolvimento e a concentração do indivíduo na implantação de sua missão
e na busca de seus objetivos, ou seja, de seus interesses objetivos e subjetivos
específicos. Para tanto, foi necessário revelar a lógica e o conteúdo do programa
de Gestão por Competências a partir duas Categorias de Análise (Poder e
Ideologia). A pesquisa indicou que o programa de Gestão por Competência da
Indústria ALFA encontra-se alicerçado em uma dinâmica de relações de poder
e em uma ideologia materialmente ancorada e amplamente disseminada no
âmbito da organização estudada.
Sendo a ideologia um sistema de ideias e de interpretação do mundo, a mesma
se propõe a apresentar ao sujeito uma certeza e não uma verdade a ser descoberta.
Para Enriquez (1997), as organizações precisam encontrar uma definição para
formatar seu desenvolvimento e, desse modo, definem uma ideologia e propõem
um ideal a ser seguido e atingido, colocando a si mesmas como objeto a ser
admirado e cujos objetivos deverão ser alcançados, exigindo esforço e trabalho por
parte dos seus membros. As organizações propiciam um ambiente de expectativas
futuras através de promessas com vários sentidos e, por esta razão, apregoam a
necessidade de entusiasmo e ao mesmo tempo de sacrifício dos seus empregados.
As promessas fazem parte do discurso fascinante da organização e devem participar
das construções imaginárias dos sujeitos, pois enquanto a organização oferta alguns
elementos de sedução e promete outros, a mesma se constitui em um lugar seguro,
em contraposição às incertezas do mundo exterior.
Sendo portadora de ideais e fantasias, as organizações, como sugerem
Pagès et al. (1987), pretendem fornecer uma concepção de mundo conforme
suas aspirações e uma interpretação do real coerente com suas práticas sociais.
Para ocupar seu lugar e realizar seus sonhos, o empregado é conduzido a
compartilhar cada vez mais intensamente da ideologia da empresa, participando
de tal forma do seu processo de institucionalização e reprodução, que sua
submissão à mesma instaura uma relação na qual a organização não precisa
coagi-lo e ameaçá-lo para estimulá-lo a produzir mais. À medida que se efetiva e
se intensifica a integração ideológica entre o sujeito e a organização, o resultado
aparece no que esta mais investe: o aumento da produtividade. A adesão à
Notas
1
O nome da Indústria será mantido em sigilo por exigência da mesma.
2
De fato, é uma simplificação atribuir à teoria piagetiana a responsabilidade
pelos programas de desenvolvimento e gestão do conhecimento aplicados
nas organizações contemporâneas. Entender a proposta de Piaget ajuda a
entender a lógica destes programas, mas não autoriza sua responsabilização.
REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.
BATISTA, Eraldo Leme; CLARK, Jorge Ulson. A Ideologia do Trabalho e
da Educação Profissional no contexto das reformas neoliberais. Revista Rede
de Estudos do Trabalho. São Paulo, ano 3, n. 5, 2009.
Introdução
EPPEO” representa estudos que vêm sendo desenvolvidos desde 1978 sobre as
com destaque para as chamadas big three em Detroit; (ii) de serviços (logística,
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
1
Em 25 de fevereiro de 1984, Fernando Prestes Motta escreveu-me uma carta, da qual destaco este
trecho: “A manufatura é o local da gênese da organização despótica da produção, não porque a
coordenação do trabalho dividido seja naturalmente autoritária, mas porque ela assim se torna
quando os detentores do capital se diferenciam daqueles que apenas vendem sua força de trabalho.
Manufatura, fábrica e grande empresa automatizada, são estágios de avanço burocrático, na
medida em que concentram cada vez mais o poder na cúpula administrativa e vão diluindo a
propriedade dos meios de produção(...). Paulatinamente, a burocracia vai fazendo prevalecer um
único modo de sentir, pensar e agir, visto como legítimo e impondo o seu modelo organizacional aos
sindicatos de trabalhadores e aos partidos políticos de vanguarda, bem como às instituições
educacionais que reproduzem a subjetividade burocrática (...). São esses modelos, que antes de mais
59
nada submetem a ação afetiva e a ação racional com relação a valores à ação instrumental e que
Página
transformam a razão de ser em razão do poder, que são veiculados pela teoria geral da
administração”.
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
A produção do EPPEO, segundo o censo de 2010, que teve por base a plataforma
2
Neste estudo, que se constituiu em minha tese de Professor Titular da UFPR, propus os conceitos de
tecnologia física, tecnologia de gestão, tecnologia de processo e tecnologia de produto. Tecnologia de
gestão é, hoje, uma expressão bastante utilizada na área de estudos sobre organizações com
diferentes significados, sendo os mais comuns os que a consideram como: (i) conjunto de disciplinas de
gerenciamento que permite que as organizações criem vantagens competitivas; (ii) integração de
60
(iii) gestão do uso da tecnologia para o “proveito humano”. Nenhum destes corresponde ao conceito
proposto, como se verá adiante.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
Produção artística/cultural 3 0 2 1
2012;
coerente de investigação desde 1978, ainda que não tivesse sido previamente
trabalho nas unidades produtivas. Esta linha de pesquisa teve decisiva influência
62
3 Com a integração das plataformas pelo CNPq e pela CAPES, parece inadequado a manutenção dos
Página
Censos dos Grupos de Pesquisa. Toda a produção desses grupos deveria ser automaticamente
registrada a partir dos Currículos Lattes dos pesquisadores.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
ficaram mais claras e outras tantas bem mais complexas do que pareciam. Sendo
energia despendida nestes estudos não tem sido em vão. Na área da gestão e dos
estudos organizacionais, é certo que proposições críticas, como esta, têm muito
positivistas).
O esforço didático para tornar a análise crítica mais acessível por parte do EPPEO,
cartilhas sobre gestão com suas fórmulas mágicas de sucesso imediato, com
do saber crítico. Fazer a crítica não é dar a última e definitiva palavra, nem
considerar que tudo o mais é inútil, mas é apontar os problemas onde imperam as
certezas.
Neste sentido, é necessário esclarecer que o Grupo de Pesquisa EPPEO, que pertence
assunto e esgotar a teoria que propõe. Seu objetivo é o de realizar outra leitura da
do trabalho, o alargamento da análise do sistema de capital bem ali onde ele atua
64
tradicional.
Dar forma a uma questão tão complexa como a das relações de poder, dos
secular, exige mesmo a proposição de uma teoria nova. Como toda teoria nova,
para se consolidar, ainda mais em uma área tão cheia de manuais, de receitas
prontas e de autoridades no assunto que tomam conta das prateleiras, das salas de
aula e dos encontros acadêmicos mundo afora. Uma área tão preenchida de gurus,
Para quem acredita que administrar é apenas uma atividade técnica, o Grupo de
Pesquisa EPPEO tem muito a dizer. Administrar é fazer política, decidir é uma
65
ação política, tal como planejar. A gestão é uma atividade política, pois a mesma
Página
alternativas para uma gestão democrática são difíceis, também são possíveis.
do fenômeno, contudo é dela que se deve partir para que a ela se possa retornar,
não para vê-la da maneira como se apresenta, mas como a mesma opera em suas
conhecimento a partir de uma leitura crítica, ou seja, leitura de uma face das
Página
dialeticamente em sua dupla face e não apenas em sua versão gerencial como tem
sido amplamente exposta. A face “business” é bem conhecida através dos manuais,
sob o comando do capital e, portanto, vai se deter na análise das relações de poder
produtiva sob o comando do capital) e de sua gestão? Porque é neste nível que se
As pesquisas acerca das relações de poder não são propriamente novas na área
dos estudos organizacionais. Entretanto, foi apenas a partir dos anos 1970 que as
linhas de pesquisa: (i) Epistemologia e Teoria Crítica; (ii) Formas de Gestão, Poder e
Relações de Trabalho; (iii) Poder, Trabalho e Controle; (iv) Estado, Poder e Políticas
Trabalho.
trabalho.
contudo, que o real para ser apropriado pela consciência necessita da mediação do
pelas contradições entre o sujeito e o objeto. Como orientação epistêmica este livro
4
O método dialético consiste em analisar o objeto (a matéria) em sua totalidade ou inteireza (o total
não é o absoluto), em suas múltiplas relações causais (que nada tem a ver com relações causa-efeito),
em suas contradições, complexidade e movimento. Toda matéria contém um duplo caráter, constitui-
se como uma unidade de contrários. O método guia o sujeito pesquisador na apropriação do real e é
na dialética do real que se encontra a dialética da análise. A exposição dos resultados da pesquisa (o
69
método de análise. O texto expõe, de maneira formal, a teoria, o conceito, enfim, a realidade complexa
resultante da pesquisa.
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
sujeito com o real e com suas expressões. Como a Teoria da Economia Política do
objetivo é precedido por uma relação de pertença social que jamais se pode refletir
inteiramente e que, embora este saber possa aspirar certa autonomia, jamais
ideologia. Assim, nada é mais necessário que a renúncia à arrogância para que se
ideológica jamais irá lhe conferir neutralidade axiológica e que o saber que se
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
não podem ser confundidos com os “mapas cognitivos”, pois enquanto os primeiros
pressupostos conceituais.
A investigação deve partir de bases reais e não da imaginação que se tem sobre a
Com este sentido, para a Teoria da Economia Política do Poder o real é o que existe
mesmo que esta existência e esta experiência se operem apenas no plano das
físico (tangível). Deste modo, o “material” é tudo o que pode ser apreendido pela
tangível, existem concretamente para o sujeito como sua realidade (ainda que dela
71
não tenha necessariamente plena consciência) e, como tal, são existências reais, ou
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
seja, embora seus conteúdos possam ser abstratos, o plano das ideias e dos
sentimentos tem uma existência real. Nem sempre se trata de um real objetivado
importantes na definição da ação concreta dos sujeitos. Uma parte desta realidade,
pelo fato de não poder ser compartilhada ou por não ser referenciada a uma
emoções e o conhecimento não têm significado real físico, que a razão instrumental
só pode existir uma verdade absoluta que a lógica positivista não admite as
Desta discussão entre material e imaterial decorre outra, tão polêmica quanto.
ação do sujeito, ainda que não possa ser percebido, pois se as relações que o sujeito
que todas estas inclusões estejam presentes em sua ação e em seus conceitos. Neste
estímulos.
Este tema não é novo, tendo sido enfrentado pela primeira geração da Escola de
entre a vida subjetiva, descrita por Freud, e o mundo objetivo das relações de
produção, investigado por Marx: “um erro muito divulgado é que a concepção
instante, um papel tão importante na conduta humana (OSBORN, 1943, p. 23). Entre
consciente partindo do real. Como indica Marx (2013, p. 162), “as coisas são, em si
mesmas, exteriores ao homem”, e é por isso que ele só pode apropriar-se delas
todo pensado é produto do cérebro pensante que se apropria do mundo pela única
forma possível.
Ainda que se possa intuir que há mais do que se percebe e do que se elabora,
convém insistir que o real para a consciência (real pensado) é apenas o que pode
mencionado, foi explorada de forma original pela Teoria Crítica, porém com outra
que possa, esta agregação, ainda gerar certa estranheza em alguns círculos
os objetivos pretendidos pelo Grupo e deve ser perseguida como uma contribuição
particular.
75
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
capital, nas organizações produtivas sob seu comando, exatamente ali onde as
los uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário” (HARVEY, 2013, p. 14).
não permite, por si só, sua captura como fenômeno pensado em sua inteireza. A
aparência do fenômeno indica apenas sua forma tal como parece ser e não como
necessário partir de sua forma imediata, mas é fundamental ir além dela e isto
pensamento). Ao mesmo tempo, partir de uma teoria dada para com ela
76
5
Eventualmente recorre-se diálogos com a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours), com Piaget,
Página
sujeito somente aquilo que ele pretendia ver antes mesmo de conhecê-lo.
A teoria crítica
Teoria Crítica não é uma unidade na Escola: o grupo que se organiza em torno do
diferentes dos seguidos por Habermas, que representa segunda geração, cujos
textos no início seguem as linhas definidas pelo grupo, mas reformula a noção de
primeiro grupo existem diferenças, que podem ser resumidas em dois textos:
und Kritische Theorie, publicado no mesmo ano por Marcuse como resposta a
77
Horkheimer.
Página
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
constatação de que uma sociedade sem exploração é a única alternativa para que
canonizado.
algumas teorias e as diferentes análises de uma teoria, cada qual avocando para
78
discordância quanto ao caminho e aos meios para se chegar ao poder: pela via das
Para compreender o mundo, Horkheimer (1972; 1974; 1990) julgava, como Lukács
que veio a se tornar extremamente relevante nos anos 1930 (BRONNER, 1997) e que,
da reificação.
Para Adorno (1994) “a investigação social crítica deve mostrar como nas relações
A Economia Política do Poder é uma teoria crítica que não se vincula diretamente
6
É sempre necessário algumas cautelas na incorporação dos conceitos. Lacan (2008), por exemplo,
sugere o conceito de mais-de-gozar como uma homologia ao conceito de mais-valia de Marx. Lacan se
permite uma “licenciosidade poética” e, nesse sentido, desenvolve um conceito que do ponto de vista
80
epistemológico, metodológico e teórico, não tem relação com o conceito de mais-valia. O problema
Página
assume contornos teóricos graves quando os conceitos originários de uma Epistéme são
incorporados diretamente por outra sem qualquer mediação.
JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
constitui-se em uma teoria não apenas da economia (das relações de produção das
Política do Poder. Desta forma, os estudos atuais sobre a vida nas organizações
finalidades. Entende-se que isto pode conferir qualidade à teoria, criar condições
seja capaz de responder às questões que afetam a vida cotidiana dos sujeitos das
função de organizações ou delas dependem, como sugere Etzioni (1976), todos vivem
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
controle, incorporando o que não pode ser dito e o que se reproduz em seus porões,
ao que é possível falar, ao que pode ser manifesto às claras, de maneira a criar um
pesquisador, como pela condição do objeto de pesquisa, ou seja, não existe uma
Economia Política do Poder, quanto mais amplo o acesso aos dados do campo
será a análise.
indicadas, ainda que sucintamente, cumpre agora definir que o objeto a ser
Página
apontado no início, sugere que estas organizações devem ser analisadas nos
reconheça que este esquema proposto possa ser utilizado para análises
este tipo de estudo pretende se concentrar, pois é nele que estão mais evidentes as
Como se sabe deste Marx (1904; 1977), a produção social na qual os sujeitos estão
que “não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, ao contrário, é sua
sobre a mesma não pode ser definida e sequer determinada apenas pela
consciência decorrente da sua existência social, pois por mais importante que esta
seja (como de fato é), não é a única forma de existência. O conjunto dos processos
do sujeito e é esta totalidade que constrói sua consciência. De igual maneira, tal
mesmos. Para os propósitos do Grupo de Pesquisa EPPEO, isto significa que se está
crítica trata de investigar este problema teórico e prático cuja formulação está
não poderia surgir ao acaso. Como afirma Marx (1904, p.165), o problema apenas
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ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
processo de formação.
descoberta difere da lógica de exposição. A pesquisa começa pelo real para chegar
aos conceitos e teorias que o expliquem. A exposição segue o caminho inverso, indo
dos conceitos mais simples que ajudam a “iluminar” o modo como a realidade
forma teórica (ideal). A lógica da exposição formal dos conceitos não pode ser
confundida com uma proposição apriorística, segundo a qual o real deve ser
organizado de explanação.
metodológicos próprios. A EPPEO propõe uma teoria crítica, mas não se vincula à
Com este propósito é que foi criado, em 2001/2, o Grupo de Pesquisa Economia
mestrado e doutorado que a pesquisa tem que ser teoricamente coerente. Sem
Página
dúvida. Mas para que isto ocorra é necessário, antes, que ela seja
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
coerência epistemológica que tem que ser garantida. Para o EPPEO não existe
trabalho teórico relevante se não existir uma epistemologia que guie este
trabalho. Apesar do Grupo ter preferência por um tipo de análise, não pode negar
a existência de outras formas, não pode deixar de reconhecer que elas têm seus
méritos, seus fundamentos. Pode-se não concordar com elas, mas não lhes negar
Cada uma tem as sua racionalidade, sua maneira de explicar a realidade. Quando
se escolhe uma linha de trabalho, esta é a sua linha. Todas têm suas limitações e
tipo de respostas que se procura, pelo desafio ou pelo conforto, entre outros fatores
objetivos e subjetivos.
Por isso, algumas vezes, quando se “como é que é isto pra administração?”, é preciso
uma verdade, uma única teoria, uma única forma de ver o mundo. Mas nas
uma escolha epistêmica (que permite optar pelo ponto de vista do trabalho ou do
capital) e uma escolha teórica (que permite optar, dentro da escolha pelo capital,
comportamento). Não se pode dizer que uma abordagem está certa ou está errada,
afirma que vai “testar a teoria”, em uma perspectiva popperiana, mas na verdade
Página
o que vai testar é a sua ideia, ainda que esta se apoie em teorias. O que pode
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
realidade para caber na teoria. Ambas as opções são uma forma de falsear o real,
SPSS, de onde saem gráficos, tabelas, etc. O pesquisador, enfim, analisa os dados em
para apreender esse real e poder traduzi-lo. A relação do pesquisador com o real
etc., acaba por conhecer apenas a parte superficial da organização, aquilo que é
procura extrair dele o não manifesto. Este saber é assimilado pelo pesquisador de
pensamento já não é mais o mesmo, pois incorpora elementos que o real forneceu.
Com esta nova mediação, o sujeito percebe o real de uma forma mais ampla, que
antes não era possível. Se o pesquisador não compreender que este processo está
descrever, já não será mais como era. O pesquisador não vai escrever o
movimento como se fosse um diário, vai escrever o processo, até onde investigou. O
move-se à medida que investiga, de forma que é preciso ter clareza sobre como
está pronta antes da investigação, o pesquisador, que neste caso faz uma mera
sujeito pesquisador não tem condições pessoais para ler o que o real lhe fornece,
leitura do real precisa estar também no sujeito e não apenas em seu conhecimento
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
teórico, em sua condição racional. Se fosse tão simples, uma pessoa poderia ler um
teria resolvido suas crises, angústias, etc. Conhecimento teórico é importante, mas
processo dinâmico, de forma que não há uma compreensão final e absoluta sobre
REFERÊNCIAS
94
FARIA, J. H. (Org.). Análise crítica das teorias e práticas organizacionais. São Paulo: Atlas,
2007. 342 p.
HORKHEIMER, M. Critical theory: selected essays. New York: Seabury, 1972. 312 p.
LACAN, J. O seminário livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
416 p.
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MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. Livro I. 574 p.
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977. 432
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ECONOMIA POLÍTICA DO PODER EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 616 p.
ROUANET, S. P. Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998. 380 p.
96
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JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
Resumo
Palavras-chave
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JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
Abstract
develop a critical theory of organizational practices (public and private one) from
work; Organization, work and subjectivity; Urban policies, planning and Power.
Keywords
episthemology of concrete.
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Resumen
control en la gestión de los procesos de trabajo por las unidades de producción, las
emancipada.
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JOSÉ HENRIQUE DE FARIA
Palabras-clave
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AUTORIA
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Artigo convidado, aprovado em 19 ago. 2014. Editor: Luiz Alex Silva Saraiva.
Revista Eletrônica de Ciência ISSN 1677-7387
Administrativa (RECADM)
* Contato Principal: Rua José de Alencar, 248 – ap. 05. Cristo Rei, Curitiba - PR, Brasil. CEP: 80-050-240.
RESUMO
Este artigo apresenta resultados e discussão de um estudo de caso em profundidade em que se buscou
identificar e analisar as avaliações dos trabalhadores da linha de produção de uma empresa do setor
automotivo, aqui denominada Gama, em relação ao seu contexto de trabalho, às vivencias de prazer e
sofrimento e os custos e danos decorrentes do trabalho. Nesta pesquisa foi possível identificar diferenças nas
avaliações entre grupos de trabalhadores de diferentes idades e tempos de empresa. Fundamenta-se a análise
na teoria da Economia Política do Poder para analisar as tecnologias de gestão e controle que compõe o
contexto de trabalho e na da Psicodinâmica do Trabalho, para analisar a dinâmica do sofrimento, resistência,
prazer e adoecimento dos trabalhadores inseridos neste contexto. As técnicas de pesquisa utilizadas foram de
natureza “quali-quanti”, a partir da observação sistemática e de entrevistas, bem como por meio da aplicação
do Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento – ITRA.
Palavras-Chave
Prazer e Sofrimento; Mecanismos de Controle; Tecnologia de Gestão; Relações de Poder; Conflitos de Geração
no Trabalho.
THE PROBLEM OF THE YOUNGER: A CASE STUDY ON THE CONFLICT OF GENERATIONS IN THE
PRODUCTION LINE OF AN AUTOMOTIVE ASSEMBLER FROM CURITIBA METROPOLITAN REGION
ABSTRACT
This research presents the results and discussion of a case study in depth in which it sought to identify and
analyze the evaluations of the production line workers of a company in the automotive sector, here named
Gama, relative to its context, the experiences of pleasure and suffering and the costs and damages arising from
the work. In this research it was possible to identify differences in the ratings between groups of workers of
different ages and times. The analysis is based on the theory of Political Economy of Power to review the
management and control technologies that make up the work, and the context of the Psychodynamics of the
Work, to analyze the dynamics of grief, endurance, pleasure and illness of workers entered in this context. The
research techniques used were of nature Qualitative-Quantitative, from the systematic observation and
interviews, as well as through the application of the Inventory of Work and Risks of Illness – IWRI.
Keywords
Pleasure and Suffering; Control Mechanisms; Management Technology; Power Relationships; Generation
Conflicts at Work.
1 Introdução
A pesquisa aqui apresentada constitui uma parte de um estudo de caso em profundidade realizado em
uma empresa do setor automotivo da Região Metropolitana de Curitiba que é denominada de Gama1. A
pesquisa foi realizada durante cerca de seis meses, com autorização da empresa, em sua planta fabril. Neste
artigo, especificamente, o objetivo é discutir as diferentes avaliações atribuídas ao contexto de trabalho, às
vivências de prazer e sofrimento, e aos custos e danos decorrentes do trabalho por grupos de trabalhadores de
diferentes idades e tempos de empresa.
Duas teorias de natureza crítica do trabalho embasam esta análise: a Economia Política do Poder e a
Psicodinâmica do Trabalho. Por meio da Economia Política do Poder visa-se analisar o contexto de trabalho, as
tecnologias de gestão utilizadas pela empresa em estudo e as questões relacionadas ao controle social que
estas exercem sobre os trabalhadores. Por meio da Psicodinâmica do Trabalho visa-se analisar questões
relacionadas à articulação entre o contexto de trabalho encontrado na empresa em estudo e os processos de
subjetivação de seus trabalhadores.
O interesse em se desenvolver um estudo de caso em uma empresa do setor automotivo se justifica por
pelo menos três motivos relevantes. Pela importância desse setor na economia local e mundial; por sua
influência no desenvolvimento e utilização de tecnologias físicas e de gestão na organização do processo de
trabalho (Faria, 2004); pela sua condição de disseminação de práticas para outros setores devido a
características peculiares da indústria automobilística em relação às demais.
A pesquisa, cujos resultados são aqui apresentados, foi desenvolvida no âmbito de um Grupo de
Pesquisa registrado no Diretório de CNPq e responde aos objetivos expressos em suas linhas pesquisa no que se
refere à análise das práticas organizacionais do ponto de vista das relações de poder e trabalho que se
desenvolvem nas organizações. A ênfase é sobre as novas formas de organização do processo de trabalho nas
organizações contemporâneas, com especial destaque para aquelas que incorporam modernas e inovadoras
tecnologias físicas, de gestão e de processo nas unidades produtivas, com a finalidade de compreender o
movimento destas no cenário nacional e internacional, seus impactos e tendências.
O embasamento epistemológico que orienta a pesquisa considera que: “O método de produção do
conhecimento tem por fundamento a primazia do real sobre a ideia, entendendo, contudo, que o real para ser
apropriado pela consciência necessita da mediação do pensamento, ou seja, recusa-se aqui tanto o empirismo
quanto o idealismo. A inscrição da matéria na consciência mediada pelo pensamento não se constitui nem em
uma tradução direta, sem intermediação, nem em uma elaboração metafísica, mas em uma interação dialética,
tensionada e dinâmica, marcada pela complexidade e pelas contradições entre o sujeito e o objeto” (Faria,
2011, p. 3).
A fundamentação teórica que embasa as análises é a da Economia Política do Poder, no que se refere à
integridade do objeto, e a Psicodinâmica do Trabalho, no que se refere à técnica de coleta de dados (inventário)
e à análise do trabalho.
A pesquisa é um estudo de caso aprofundado, com utilização de técnicas de coleta de dados
qualitativas (entrevistas e observações) e quantitativas (Inventário de Trabalho e Riscos de Adoecimento). O
nível de análise é o da unidade produtiva, uma planta industrial de grande porte, pois se pretende compreender
como características da estrutura organizacional se relacionam com processos de subjetivação de trabalhadores
nela inseridos.
2 Quadro Teórico
Utiliza-se neste estudo duas teorias como embasamento teórico: a teoria da Economia Política do Poder,
por meio da qual são analisadas as tecnologias de gestão e o controle social, a Teoria da Psicodinâmica do
Trabalho, por meio da qual são analisados os processos de subjetivação decorrentes do encontro entre sujeitos
e contexto de trabalho, a seguir são apresentados os principais conceitos utilizados neste enquadramento
teórico.
1
No protocolo de pesquisa a empresa optou por não ter seu nome e sua marca expostas. Gama é, portanto, um nome fictício.
As vivências de prazer e sofrimento, de acordo com Tamayo (2004), são o resultado de três diferentes
dimensões: a da subjetividade do trabalhador, que corresponde à pessoa singular, com sua história, desejos e
necessidades; o contexto do trabalho, que corresponde às normas e padrões de conduta e à exigência da
eficácia; e a coletividade, que corresponde às relações interpessoais entre iguais e hierárquicas e aos valores
de convivência social no trabalho.
Para Dejours (1987, 1997, 2000), do confronto entre estrutura psíquica e contexto do trabalho emergem
dois tipos de contradição entre indivíduo e organização: (i) a relativa ao encontro entre o registro imaginário,
produzido pelo sujeito, produto de sua história individual com o registro da realidade, produzido pela situação
de trabalho; (ii) a relativa ao encontro entre o registro diacrônico, a história singular do sujeito, seu passado,
seus projetos e desejos, com o registro sincrônico, constituído pelo contexto material, social e histórico no qual
se encontram inseridas as relações de trabalho.
Além disso, para Dejours (1997) o trabalho possui duas dimensões: uma temporal e uma espacial. A
dimensão temporal articula dados relativos à história singular e situação atual do sujeito, já que este parte de
uma subjetividade anterior à situação de trabalho ontogeneticamente construída. A dimensão espacial se
reflete no fato de que os processos são vividos não apenas no interior das organizações, mas também fora da
empresa, tendo impacto no espaço social e doméstico do trabalhador.
Isto implica que, ainda que as condições vividas na organização do trabalho sejam semelhantes para
vários trabalhadores, e que as pressões advindas do trabalho os atinjam de maneira também semelhante, cada
indivíduo irá reagir de maneira singular, conforme a constituição de sua personalidade. Os impactos dessa
relação ao equilíbrio psíquico não ficarão restritos ao ambiente de trabalho, pois são parte constituinte de sua
condição global de existência.
Tem-se de modo geral que uma contradição ou incongruência entre as dimensões diacrônica e
sincrônica acarretam sofrimento e podem desembocar em doença mental e psicossomática conforme a
organização da personalidade de cada indivíduo. Por outro lado, a ressonância entre estes registros possibilitam
vivências prazerosas. A maneira como os trabalhadores vivem a seu modo as pressões advindas do trabalho
decorrem nas vivências de prazer e sofrimento que experimentam, e a maneira como lidam com estas
vivências se expressam nas estratégias que utilizam para suportá-las (Dejours, 2000).
Sobre as vivências de sofrimento e estratégias de defesa, tendo em seus extremos a doença mental de
um lado e a sensação de bem estar psicológico do outro, pode-se dizer que para que o trabalho permita uma
condição de equilíbrio, são necessárias duas condições: a primeira é que as exigências intelectuais, motoras ou
psicossensoriais da tarefa estejam de acordo com as capacidades do indivíduo, podendo ser fonte de prazer; a
segunda é que o conteúdo do trabalho deve ser fonte de satisfação sublimatória (Dejours, 2000).
O entrave para a sublimação ocorre quando não há condições organizacionais para o estabelecimento
da ressonância simbólica. Desta forma, o sujeito não pode beneficiar-se do trabalho para dominar seu
sofrimento e transformá-lo em criatividade. Quando isso acontece, a única saída é o círculo vicioso em que o
sofrimento contribui para desestabilizar o sujeito e impeli-lo à doença. No entanto, uma alternativa que permite
ao trabalhador suportar o sofrimento sem adoecer são as estratégias de defesa (Dejours, 2000).
Mendes (2007) apresenta um resumo das estratégias de defesa propostas por Dejours definindo-as
como regras de conduta construídas e conduzidas pelos trabalhadores, que variam de acordo com as situações
de trabalho e que são caracterizadas pela sutileza, engenhosidade, diversidade e inventividade dos mesmos, de
modo que consigam suportar o sofrimento sem adoecer.
Conforme aponta Mendes (2007), Dejours categoriza três tipos de estratégia de defesa: defesas de
proteção, defesas de adaptação e defesas de exploração. As defesas de proteção consistem em modos
compensatórios de pensar e agir, isto é, nesses casos as situações que geram o sofrimento são racionalizadas.
Desse modo evita-se o sofrimento alienando-se de suas causas. Já as defesas de adaptação tem em sua base a
negação do sofrimento, o que exige grande investimento físico e sociopsíquico do trabalhador. Por fim as
defesas de exploração relacionam-se com o mecanismo de defesa do ego de submissão. Em ambos os casos
ocorre “uma articulação entre um funcionamento perverso da organização e o comportamento neurótico que os
trabalhadores passam a assumir, submetendo seu desejo ao desejo da produção” (Mendes, 2007, p. 39).
Para Dejours (1987, p. 22): “a sublimação, diferentemente de outras defesas, garante, frente ao
sofrimento, uma saída pulsional não destruidora para o funcionamento psíquico e somático, enquanto que a
repressão é limitante para o jogo pulsional”. Assim, pode-se afirmar que conforme esta proposta o trabalho tem
efeitos amplos sobre o sofrimento psíquico, podendo contribuir para agravá-lo, levando-o à possível
somatização e doença, ou subvertê-lo em prazer, contribuindo para um sentimento de bem-estar ou ao menos
de aceitação e resignação.
Já as vivências de prazer, conforme Ferreira e Mendes (2003) apresentam as seguintes características:
(i) originam-se no bem que o trabalho causa no corpo e nas relações com as pessoas; (ii) suas principais causas
encontram-se nas dimensões da organização, das condições e das relações de trabalho que estruturam os
contextos de produção de bens e serviços; (iii) constituem indicadores de bem-estar no trabalho sob a forma de
uma avaliação consciente de que algo vai bem e, consequentemente, é um indicador de saúde psíquica; (iv)
manifestam-se por meio da gratificação, da realização, do reconhecimento, da liberdade, da valorização e da
satisfação no trabalho.
Para Ferreira e Mendes (2003) as vivências de prazer constituem um dos sentidos do trabalho por
possibilitar o equilíbrio e a estruturação psíquica ao criar identidade e permitir a expressão da subjetividade
construída com base no confronto entre o psíquico e o social.
Dejours (1997) afirma, como já exposto anteriormente, que há pontos de congruência entre a dimensão
diacrônica e a sincrônica na relação do indivíduo com o contexto de trabalho, o que cria espaço para a
ressonância simbólica, permitindo que seja revivida a ambiguidade entre o teatro da infância e o teatro do
trabalho. A ressonância simbólica “exige condições muito particulares de concordância entre o teatro real e o
teatro interno dos fantasmas e da história singular [...]. É necessário que a tarefa tenha sentido para o sujeito,
tendo em vista sua história singular” (Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 1994, p. 134).
Pela intermediação do trabalho, o sujeito se engaja nas relações sociais, para as quais transfere
questões herdadas do passado e de sua história afetiva (Dejours, 1994). Para que essa transferência seja
ativada no encontro com a situação de trabalho, é necessário que a tarefa tenha um sentido para o indivíduo.
Ao reviver esse teatro psíquico o sujeito busca a sua autorrealização através do reconhecimento no campo
social. “O reconhecimento é a retribuição fundamental à sublimação” (Dejours, 1997, p. 158).
A sublimação tem como propósito a realização de uma atividade útil e socialmente valorizada, a fim de
fornecer ao sujeito a sensação de completude e de amor do início de sua infância. Tem-se, portanto, que a
sublimação, uma vez que visa objetos socialmente valorizados, é um processo social e historicamente situado.
O julgamento de valor social só pode ser dado por outro, que não o próprio sujeito. Desse modo, toda criação
vai pressupor um confronto entre a ação e o reconhecimento do outro em dois registros na organização do
trabalho: através da hierarquia e através do reconhecimento pelos pares (Dejours et al, 1994; Dejours, 2000).
Do ponto de vista da psicossociologia, é vital para todo o sujeito ser reconhecido para a afirmação de
sua existência, identidade e autoestima, ou seja, para existir o sujeito necessita ser reconhecido, e valorizado
pelo outro, pois esta se constitui na garantia real da sua própria existência como uma individualidade Como
sugere Lacan (1966), o sujeito se reconhece no Outro e por meio do Outro. É o reconhecimento que permitirá
ao trabalhador tornar-se um sujeito único, cada vez que o mesmo resolve os problemas que lhe são colocados e
obtém reconhecimento social de seu trabalho. Contudo, é também, ao mesmo tempo, o sujeito do sofrimento
que recebe um reconhecimento subjetivo de sua capacidade para exorcizar sua angústia e dominar seu
sofrimento.
2
Para informações completas sobre o inventario ver Mendes (2007). Para informações mais detalhadas sobre a utilização do inventário ITRA
neste estudo de caso, ver Bruning (2010).
representa 16,14% de sua população total, e por fim, a amostra de 63 questionários obtida da fábrica GMO
representa 18,10% do número total de trabalhadores desta fábrica.
POPULAÇÃO E AMOSTRAGEM
GVP GVU GMO
Montagem Veículos de Passeio Montagem Veículos Utilitários Fabricação de Motores
1656 trabalhadores 573 trabalhadores 348 trabalhadores
Número de trabalhadores por departamento por fábrica
• Carroceria: 844 • Carroceria: 253 • Usinagem: 116
• Montagem: 589 • Montagem: 240 • Cabeçote: 116
• Pintura: 223 • Pintura: 80 • Montagem: 116
Amostragem: 361 questionários = nível de confiança 95% da população total
12,42% 16,41% 18,10%
(do total desta fábrica) (do total desta fábrica) (do total desta fábrica)
Tabela 1: População e Amostragem da pesquisa.
trabalho na linha de produção da Gama, enquanto os mais velhos de empresa apresentam avaliação mais
negativa, considerando o custo afetivo do trabalho moderado a crítico.
Em relação ao custo cognitivo do trabalho na linha de produção da empresa Gama verificou-se que a
média atribuída pelos trabalhadores foi de 3,07, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007) indica
uma avaliação moderada a crítica deste fator, não sendo identificadas diferenças nas avaliações de diferentes
grupos em relação a este fator.
Já em relação ao custo físico envolvido no trabalho na linha de produção da empresa Gama verificou-se
que a média atribuída pelos trabalhadores foi de 3,45, o que, conforme a avaliação proposta por Mendes (2007)
indica uma avaliação moderada a crítica deste fator.
Merece destaque o fato de que em relação ao tempo de empresa e à idade dos trabalhadores verificou-
se que os respondentes mais novos apresentaram avaliações mais graves do custo físico, enquanto os
respondentes mais velhos apresentaram médias menores, o que indica uma avaliação mais positiva. Além disso
verifica-se que o grupo dos funcionários com mais de 5 anos de casa se diferencia dos demais na avaliação do
custo físico, estes funcionários atribuem avaliação mais leve ao custo físico de se trabalhar na linha de
produção da Gama.
das entrevistas. Foram selecionadas oito tipos de manifestação que autorizam a análise das contradições
encontradas:
i. Aparentemente o “problema dos mais novos” se relaciona mais com o problema que os operadores
mais velhos, supervisores e demais gestores enfrentam ao lidar com os funcionários mais novos do
que com queixas dos mais novos em relação ao trabalho em si;
ii. Os funcionários mais novos e com menos tempo de empresa são vistos pelos demais como
“reclamões”, mas não porque reclamam do trabalho em si, e sim porque “enfrentam a autoridade”
e se “comprometem menos” do que os demais;
iii. Na visão dos funcionários mais velhos e com mais tempo de empresa os mais novos são “menos
comprometidos”, “não levam o trabalho a sério” e ainda “esperam ser promovidos logo”. No
entanto são os próprios funcionários mais velhos que se mostram mais insatisfeitos em relação ao
reconhecimento profissional. Nas entrevistas percebe-se que isto ocorre devido ao fato de que
estes já estejam na empresa a mais tempo esperando por oportunidades de crescimento e
percebem que operadores mais novos estão competindo com igualdade de condições com os mais
antigos por promoções. São os mais velhos e mais antigos de casa que se mostram mais
insatisfeitos em relação ao crescimento profissional;
iv. Em relação à opinião dos gestores o mesmo argumento parece ser válido. Estes relatam que os
trabalhadores mais novos são mais insatisfeitos em relação ao trabalho, quando o que se percebe
nas entrevistas é que são os gestores que estão insatisfeitos com o comportamento dos mais
novos. Um exemplo disso é a questão do comprometimento.
v. Embora em relação à produtividade, tanto mais velhos quanto mais novos sejam considerados
igualmente produtivos, parece haver uma opinião geral dentre os gestores entrevistados que os
mais novos (de idade e de tempo de empresa) não se comprometem com o trabalho como os
demais. Eles “fazem sua parte e pronto”, “só fazem quando são cobrados”, “não pensam na
empresa como um todo, não vestem a camisa da empresa, querem seu salário e sair daqui para ir
para a balada”. Este não comprometimento é visto como um aspecto negativo do comportamento
dos “mais novos”. É interessante retomar neste ponto o argumento de Faria e Meneghetti (2007)
segundo o qual o comprometimento e o vínculo do trabalhador com a empresa, proporcionados por
práticas de gestão que acarretam o “sequestro da subjetividade do trabalhador”, levam-no a
enfrentar de forma mais resignada as condições físicas e psicológicas de trabalho que são cada dia
mais precárias. Deste modo é compreensível a preocupação da gestão quando se depara com
trabalhadores que não se comprometem;
vi. Os gestores, quando indagados sobre o motivo pelo qual acreditam que os mais jovens não se
comprometem, entendem que “essa nova geração não respeita a autoridade”, que “a nova
geração espera crescimento muito rápido e quando não encontra se desmotiva” e que “os mais
novos não tem família para sustentar, precisam do emprego, mas não tanto quanto os mais velhos,
por isso não se preocupam tanto”.
vii. As queixas dos gestores em relação aos mais novos parecem relacionar-se com inabilidades destes
em gerir e controlar o comportamento dos operadores, tal como acreditavam conseguir com os
operadores mais velhos e, embora para a produtividade isto não incorra em nenhum déficit, para
os gestores este parece ser um motivo de preocupação;
viii. O único fator em que se constatou que trabalhadores mais novos da pesquisa apresentam
avaliação mais negativa que os demais foi quanto ao Custo Físico no Trabalho. Verificou-se que os
trabalhadores mais novos apresentaram avaliações mais graves, enquanto os mais velhos
apresentaram médias menores, o que indica uma avaliação mais positiva.
Pelos resultados da pesquisa, duas interpretações de caráter fenomênico são possíveis: (i) a falta de
conhecimento dos mais novos em relação ao contexto de trabalho na empresa Gama; (ii) o relato dos mais
velhos que admitem “já estarem acostumados” com as exigências físicas do trabalho. No campo empírico, em 5
das 32 entrevistas foi relatado que os funcionários mais novos “não tem noção do que é o ambiente da Gama”,
“tem uma visão glamourosa porque se trata de uma multinacional e se chocam quando chegam à linha de
produção”, “não tem conhecimento da realidade de uma operação industrial”, “esperavam um trabalho mais
cabeça na Gama” entre outros.
Conforme Dejours et al (1994) e Dejours
(1997), de modo geral há uma contradição ou incongruência
entre as dimensões diacrônica e sincrônica, ou seja, entre as expectativas, desejos e planos individuais e a
realidade vivenciada no trabalho acarretam sofrimento. Assim, o contraste entre as altas expectativas dos mais
jovens e a realidade do contexto de trabalho encontrado por estes na Gama parece ser um fator de relevância
para a avaliação negativa apresentada pelos trabalhadores mais novos e mais recentes na empresa em relação
ao custo físico.
Quanto à avaliação menos grave atribuída ao custo físico pelos trabalhadores com mais tempo de
empresa, esta parece se relacionar ao fato de “já estarem acostumados”. No entanto, embora os mais velhos
atribuam avaliação mais leve ao custo físico de se trabalhar na linha de produção da Gama, quando se tratam
dos danos físicos eles apresentam maior ocorrência de danos já instalados.
Pelas observações realizadas durante a pesquisa na empresa, pode-se sugerir que este discurso se trate
de uma defesa coletiva compartilhada pelos mais velhos, que, em face da competição com os mais novos,
alegam ser essa uma qualidade que só se adquire com a experiência. As estratégias de defesa, como se sabe,
são regras de conduta construídas e conduzidas pelos trabalhadores de forma que consigam suportar o
sofrimento sem adoecer (Mendes, 2007). Percebem-se, na maneira de atuação dos trabalhadores mais velhos,
duas formas de estratégia de defesa: a de proteção e a de adaptação.
As defesas de proteção se mostram nos modos compensatórios de pensar e agir, ou seja, verifica-se
que os trabalhadores mais velhos racionalizam o sofrimento, alienando-se de suas causas (Mendes, 2007).
Assim, se força e resistência física são itens valorizados na linha de produção da Gama e se trabalhadores mais
novos, que pelo senso comum deveriam ter mais força e resistência que os mais velhos, competem pelos
mesmos objetivos que estes últimos, então não é estranho que os mais velhos se sintam ameaçados pela
presença dos mais novos. É assim que a racionalização entra em jogo na criação coletiva de um argumento que
equilibra a balança para o lado dos trabalhadores mais velhos: ainda que os mais novos tenham mais força, os
mais velhos reclamam menos e são mais comprometidos.
Percebem-se também defesas atuantes de adaptação (Mendes, 2007), que têm em sua base a negação
do sofrimento. Desta forma, não basta perpetuar o discurso coletivo de que os mais novos não se
comprometem e reclamam mais. Para a negação do sofrimento é necessário que os mais velhos reclamem
menos, a ponto de negarem o sofrimento até para si mesmos. É isto que se percebe na avaliação positiva que
os trabalhadores mais velhos fazem em relação ao custo físico do trabalho, o qual consideram satisfatório,
mesmo que estejam apresentando maior índice de danos físicos já instalados.
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o nome da revista, a edição, o ano e as páginas nas quais o artigo foi publicado originalmente, mas sem sugerir que a
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distribuição para terceiros. Não é permitido o uso para fins comerciais.
• FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI • JOSÉ HENRIQUE DE FARIA •
RESUMO
O homem constitui-se como homem porque é capaz de produzir seus meios de
sobrevivência, dentre os quais o trabalho tem lugar central na constituição da
sociedade. É por meio dele que os homens “dominam” a natureza e colocam-se
na posição de senhores diante dela. A pesca artesanal pode ser considerada uma
atividade “secundária” nos interesses de acumulação do capital e é justamente
por isso que o estudo da comunidade dos pescadores artesanais da cidade de
Matinhos, estado do Paraná, configura-se um dos locais privilegiados para se
verificar como o trabalho (englobando a divisão do trabalho, a tecnologia e a
forma de gestão) e a mercadoria (englobando a propriedade privada e o fetiche
da mercadoria) se constituem nas múltiplas determinações do real e estão rela-
cionadas ao processo de reificação social. Assim, o objetivo deste trabalho é com-
preender como ocorre o processo de reificação dos pescadores artesanais, pela
análise das categorias definidas como múltiplas determinações do real, tendo em
vista sua inserção econômica e sua exclusão social no sistema de capital. A base
teórica do trabalho é constituída de autores como Marx, Lukács, Adorno, Faria,
Horkheimer e Meszáros, entre outros. Esta é uma pesquisa qualitativa em uma
comunidade de pescadores artesanais. Foi possível verificar na pesquisa que a
reificação, entre os pescadores mais jovens, dá-se pelo conjunto dos elementos
(relacionados ao trabalho e à mercadoria) responsáveis pela transformação do
sujeito em instrumento do capital. É a transformação da condição de produtor
para a de mercadoria, com todas as suas propriedades. A reificação está relacio-
nada, ainda, ao trabalho alienado e, apesar da tendência hegemônica do sistema
capitalista de produção, é possível identificar resistências em relação a esse pro-
cesso de reificação.
16
PALAVRA S - C H AV E
Gestão; Pesca artesanal; Reificação; Alienação; Trabalho.
1 INTR O D U Ç Ã O
Para Marx (1983b), o homem necessita produzir seus próprios meios de sub-
sistência material, ou seja, constitui-se como homem porque é capaz de produzir
as condições materiais de sua existência por meio do trabalho. Nesse sentido, a
categoria trabalho, entendida em sua materialidade histórica e dialética, permite
definir o homem (ser humano) em sua identidade geral como expressão de sua
condição ontológica. Essa condição, segundo Lukács (1979), confere ao trabalho
lugar central na constituição da sociedade. É por meio da produção das condições
sociais de existência, ou seja, do trabalho, que os homens “dominam” a natureza.
Assim, historicamente, em cada modo de produção, o trabalho se apresenta não
como trabalho em si, não em sua condição ontológica, mas como um elemento
que engloba as relações coletivas de ordem social. Dessa forma, sob o modo
capitalista de produção, o trabalho é caracterizado pelo fato de ser submetido à
lógica do sistema de capital. A estrutura econômica configurada por esse sistema
mascara, de diversas formas, as relações de subsunção formal e real do trabalho
ao capital.
Em alguns setores de atividade ou áreas da economia, o sistema de capital
(MÉSZÁROS, 2002) não apenas abdica de promover o que se chama de “alto
grau de desenvolvimento das forças produtivas” ao não investir nestas, especial-
mente em razão de suas baixas taxas de acumulação, como também imprime sua
ideologia em práticas que aparentemente não se enquadram como organizações
produtivas tipicamente capitalistas. Tais atividades, para garantir a tendência
de controle hegemônico do capital, são mantidas de forma periférica ou subor-
dinada. Esse é o caso da pesca artesanal, como atividade componente de uma
forma social de produção. A manutenção da pesca artesanal não intervém nega-
tivamente no processo de acumulação do capital ao não concorrer com este, ao
mesmo tempo que sua produção excedente de valor de uso e de troca de subsis-
tência é destinada a empreendimentos capitalistas a baixo custo.
Pela sua especificidade, o objeto deste estudo são os pescadores artesanais
da cidade de Matinhos, estado do Paraná, pois estes não estão imunes às influên-
cias das transformações resultantes dos investimentos do sistema de capital em
todas as áreas (economia, política, cultura e demais setores da vida social). A pesca
artesanal, pensada ontologicamente, pode ser considerada atividade “secundária”
nos interesses de acumulação do capital. Contudo, considerada sua atividade prá-
tica, ela compõe um sistema que se integra ao capitalismo. Justamente por isso, 17
2 A CO M U N I D A D E D E P E S C A D O R E S
Quadro 1
PERFIL DA COMUNIDADE DOS PESCADORES DE
MATINHOS POR TEMPO DE EXPERIÊNCIA (2009)
Tempo médio de experiência,
Faixa de tempo de experiência, em anos
em anos, dos entrevistados
Teste F 1692,561
Significância p < 0,001 19
Eta² 99,2%
Eta2: Percentual de explicação das categorias em relação a variável quantitativa. O alto valor do Eta2
está associado à grande homogeneidade das faixas.
Fonte: Elaborado pelos autores.
3 MÉT O D O D E P E S Q U I S A
A escolha dos pescadores para a realização das entrevistas foi definida por
adesão voluntária deles, observando o critério da participação das faixas de tempo
na definição dos entrevistados. Contudo, foi necessário optar por enfatizar os
resultados das entrevistas dos pescadores mais jovens e dos mais experientes,
já que as respostas dos pescadores com experiência intermediária foram pouco
relevantes em relação aos objetivos da pesquisa. Isso se deu porque os pescado-
res dessa faixa, embora entrevistados, não apresentaram nenhuma questão que
não tivesse mais bem esclarecida ou com os mais jovens ou com os mais expe-
rientes. Dessa forma, essas entrevistas foram descartadas do conjunto, restando
apenas as 29 mencionadas. No texto, os pescadores mais experientes serão indi-
cados pela sigla PE e os pescadores mais jovens pela sigla GPJ.
Esta é uma pesquisa que se enquadra em um estudo de caso, sendo a técnica
de coleta e análise das informações de natureza qualitativa, a partir da análise
dos depoimentos, segundo procedimentos recomendados por Bardin (1979).
Nas entrevistas realizadas com pescadores com menor tempo de experiência foi
necessária, inicialmente, uma conversa informal. Após realizar algumas entre-
20
vistas individuais, percebeu-se que os pescadores, tanto os mais novos como os
mais experientes, ficariam mais à vontade e predispostos a responder com mais
efetividade às perguntas caso estivessem em grupo.
Foram realizadas seis entrevistas individuais e três procedimentos de entre-
vistas coletivas. Nos três procedimentos em instância coletiva, as questões for-
4 DESC R I Ç Ã O D O S M E I O S E D A
ORG A N I Z A Ç Ã O D O T R A B A L H O :
AS E M B A R C A Ç Õ E S E E Q U I PA M E N T O S
E OS T I P O S D E P E S C A
5 REIF I C A Ç Ã O E A L I E N A Ç Ã O N O
TRAB A L H O
6 GENE A L O G I A D A S M Ú LT I P L A S
DETE R M I N A Ç Õ E S D O R E A L D O S
HOM E N S D O M A R
6.1 TRABALHO
concepção de Marx, com base na divisão clássica entre trabalho manual e intelec-
tual. Uma das condições do processo de reificação é a confirmação e sedimentação
dessa divisão. De fato, é possível perceber que na atividade dos pescadores ocorre
“certa” separação entre essas duas formas. No entanto, a natureza artesanal da
atividade impossibilita a intensa divisão entre trabalho manual e intelectual.
É possível perceber suas situações claras em relação a essa temática. Para os
pescadores mais jovens, a aceitação dessa dissociação entre trabalho manual e
intelectual é aceita com maior facilidade. Exemplo disso encontra-se nas obser-
vações de um dos pescadores entrevistados:
Esse pessoal mais novo tem força, mas nem sempre sabe onde colocar a rede.
Às vezes, eles colocam quase um quilômetro de rede, mas o lugar não é bom.
Outros, mais experientes, colocam duzentos metros e pegam a mesma quantidade
de peixe. É por isso que nós velhos ainda sobrevivemos nesse ramo da pesca
artesanal. A experiência e o tempo de mar nos possibilita saber pensar nas coisas
antes de fazer. Eles ainda estão na fase de fazer mais para aprender a saber (PE).
29
A sociedade, em razão da necessidade cada vez maior de domínio da natu-
reza, fomenta o alargamento dos mecanismos de divisão do trabalho. A especia-
lização tornou-se regra inquestionável na esfera da vida social comum. Ela apre-
senta-se como condição essencial para que os homens invistam sobre a natureza,
dominando-a cada vez mais. Assim, para os pescadores mais novos, a aceitação
Nós sabemos que os mais velhos conseguem ter mais produtividade individual.
Por isso mesmo que os barcos que levam um deles acabam voltando com mais
pescados. Mas hoje existem poucos mestres (pescadores mais experientes). Para
eles, a pesca é sua própria vida. Para a maioria dos mais jovens é apenas uma
forma de ganhar a vida (GPJ).
Eu sei que meu filho vai acabar em outra profissão. Ele está fazendo faculdade e
agora está trabalhando com o comércio de peixe. Dá mais dinheiro. Ele não terá
a mesma vida que eu. Daqui a dois ou três anos, talvez ele nem suba mais no
barco para pescar. Ele não vai passar seus quarenta e cinco anos indo e voltando
do mar. Por isso, eu não faço questão que ele aprenda tudo que eu aprendi no
mar (PE).
Os mais velhos conseguiram criar bem suas famílias indo e voltando do mar.
Mas nós sabemos que não conseguiremos isso. Daqui a dez anos, acho que nem
vai ter mais espaço para a pesca artesanal. Os barcos grandes acabam com os
peixes e são muito mais produtivos. Aprender tudo não vale a pena, o trabalho na
pesca artesanal não terá futuro. Muitos já estão fazendo outras coisas paralelas.
Alguns são pintores, outros têm restaurantes. E assim vai, até acabar tudo (GPJ).
Há uma descrença quanto ao futuro da pesca artesanal, por isso, não é moti-
vadora a ideia de aprender todo o processo produtivo da pesca. A divisão do tra-
balho, nesse sentido, acaba sendo a opção mais viável para os pescadores mais
30 jovens, porque para eles o conhecimento de todo o ofício não será útil em um
futuro próximo.
Essa perspectiva cria condições mais concretas para a instrumentalização
dos pescadores mais jovens. O trabalho e seus parcelamentos são cada vez mais
técnicos e instrumentais, com o objetivo único de garantir produtividade. A falta
Se eu soubesse que a pesca artesanal iria garantir uma vida boa para mim eu
continuaria nela. Eu vejo o meu tio contando suas histórias e vejo como ele é
feliz sendo pescador. Mas fazer o quê? Nós temos necessidades que só a pesca
não garantirá que elas sejam realizadas. Esse tempo do meu tio acabou. Para
ele, que é mais velho, a pesca é sua vida, para nós é apenas um momento pas-
sageiro (GPJ).
6.2 TECNOLOGIA
Hoje se pesca em barcos movidos a motores. Quem não quer ter um motor
Yamaha? Em pouco tempo, você está em alto-mar. Mas só isso não é suficiente.
Tem que saber como incorporar esses avanços na sua atividade. Hoje se fala
tanto nos sonares, que eles ajudam saber onde tem cardumes de peixes. Mas
quem garante que o peixe vai cair na rede? Na pesca próxima da praia, pega
mais quem tem mais experiência! (PE).
O sonar ajuda nos casos de pesca em alto-mar. Esses grandes pesqueiros vão
direto ao cardume. Só que o equipamento não é capaz de diferenciar os tipos de
peixes que estão lá embaixo. Nós não sabemos, mas a máquina também não (PE).
Vou te dizer uma coisa. Eu sei que no futuro a pesca será bem diferente. Mas
32 o pescador tradicional existe desde a época de Jesus. Claro, quem quer ganhar
dinheiro não pode viver nessa forma de trabalho. Mas ainda dá para defender
sua família. Tem muito pescador jovem que leva no barco essas novas máquinas,
mas também sei que muitos deles voltam com menos peixe do que os velhos da
pesca. Tem conhecimento que máquina nenhuma consegue pegar! (PE).
Para mim, que daqui a pouco não vou conseguir nem subir no barco, não adianta
nada querer aprender com essas novas máquinas. Tem umas que têm muitos
números. Não sou bom na matemática. Hoje eu saio para o mar e pego peixe
para viver. Está bom demais. Pescar para um velho do mar é a mesma coisa que
viajar para um velho da estrada. É a vida! É a nossa história! (PE).
É difícil concorrer com esses grandes barcos de pesca que vêm do Rio Grande
do Sul ou de Santa Catarina. Eles têm equipamentos que dão autonomia de vinte 33
dias, um mês no mar. Eles pescam com sonares e suas malhas [redes de pesca]
levam tudo. Principalmente, quando eles fazem o arrasto noturno. De manhã,
não sobra nada (GPJ).
Quadro 2
MODELOS DE FORMAS E MODOS DE GESTÃO
Formas de
Gestão Gestão
Gestão/ Heterogestão Cogestão Autogestão
Participativa Cooperativa
Modos
No barco trabalham eu, meu filho e meu genro. Apesar de eu ser o mais antigo
neste trabalho, todos podem dizer o que pensam. Fica fácil, porque nós temos
mais liberdade. Mas nem sempre isso acontece porque, mesmo sendo da família,
as coisas podem não dar certo. No meu caso e dos meus compadres mais velhos,
não temos do que reclamar porque o negócio anda (PE).
É engraçado que apesar das brigas que temos com nossos pais, as coisas se ajeitam.
Ele cede um pouco e eu também. [...] É melhor trabalhar assim. Se eu tivesse um
patrão não poderia dizer a metade do que digo para o meu pai (GPJ).
Não dá para dizer que você sai para o mar e vai voltar cheio de peixe. O mar não
é uma prateleira de pequenas peças para montar um motor, por exemplo. Tem
dia que não adianta, o peixe não vem. Só quem está no mar entende isso (GPJ).
36
Observa-se, portanto, que as formas de gestão são diferenciadas. Essa infor-
mação implica vínculos diferentes com o trabalho.
Quadro 3
PESCADOS E SEUS RESPECTIVOS VALORES COMERCIAIS
Tipos de Mercadorias Mercadorias
Todo mundo sabe que se não preservar agora, no futuro será difícil a pesca da
maneira como fazemos. Mas se nós não capturamos os peixes, os grandes barcos
fazem por nós. Garanto que a grande maioria prefere um churrasco a um peixe.
A maioria até gosta do seu trabalho, mas se tivesse chance de fazer outra coisa,
faria. Tem gente que vê o peixe como um número. Esse número é melhor se você
pegar mais camarão e linguado do que cação e tainha. É assim, quem pega mais
e melhor chora menos na praia (GPJ).
[...] quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coi-
sas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos,
e mais a sua mente se transformará num autômato da razão formalizadora.
Eu gosto de pescar, mas também estou preocupado em pegar bastante peixe para
poder dar um bom estudo para meus filhos. Digo para eles que eles devem res-
peitar o mar, porque é de lá que vem o que eles comem e as regalias deles (PE).
Em ambas as situações,
Quem é dono do barco, da licença, manda. Quem não é, trabalha por jornada ou
por produtividade. Nesse caso, o que vale é a quantidade de peixe que você traz
para o mercado. Chegando à terra, vem o dono do barco e define quanto a gente
vai ganhar. Se a pescada foi boa a gente ganha mais, se não foi tem que ir para o
mar tentar novamente. Assim, a gente continua vivendo (PE).
[...] é, porém, essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que
realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as
relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência.
O trabalho é legal, mas confesso que nem sempre sinto prazer no que faço. O
que interessa para mim, muitas vezes, é pegar o máximo de pescados possível e
pegar meu dinheiro. Tem época que nem como peixe de tão enjoado que fico em
olhar para eles (GPJ).
Acho legal estar com outras pessoas trabalhando, mas tem dia que vamos e vol-
tamos do mar sem trocar uma palavra entre nós. É como se fôssemos máquinas.
[...] percebo que os mais velhos sempre estão contando suas histórias. Entre os
mais jovens, o que nós queremos é falar de carro, futebol, mulherada. Tenho
certeza de que os velhos são felizes no trabalho, os mais novos gostam, mas não
amam como eles! (GPJ).
Nós gostamos do mar. Tem algo de misterioso nele. Eu entro em transe. Não sei
o que faria se não pudesse mais pescar. A vida no mar é uma integração com a
natureza. Tudo isso vai acabar um dia. Eu conheço um pintor que sente o mesmo
em relação ao seu trabalho. Eu fico arrepiado todas as vezes que acordo e vejo
aquele mundão de água. O mar é minha vida (PE).
Para mim um peixe é um peixe, somente isso. Não sei como meu pai conseguiu
viver tantos anos fazendo a mesma coisa. Pior, ele adora comer peixe. Gosta de
uma feijoadinha também, mas tem que ter peixe com pirão pelo menos umas
três vezes por semana. Eu estou enjoado (GPJ).
7 CONC L U S Ã O : O A RT E S Ã O D O M A R N A S
REDE S D A R E I F I C A Ç Ã O
Em Dialética negativa, Adorno (1975) afirma que somente aqueles não com-
pletamente moldados pelo mundo administrado podem resistir ao processo de
reificação. Esta pesquisa mostra que, apesar do processo crescente de raciona-
lização da produção capitalista, ainda há espaços de trabalho em que reificação
não se instalou tal como no modelo capitalista de produção de mercadorias. É
essa a realidade que expressam os pescadores mais experientes. Não se trata de
uma forma de resistência com base em uma consciência de classe ou mesmo
em uma consciência crítica do lugar que eles ocupam no sistema de produção
capitalista. O trabalho realizado pelos pescadores mais experientes foge à regra
do trabalho alienado, pois eles trabalham para si e não para alienar o produto de
seu trabalho para outro.
É possível, assim, definir uma hipótese, que é bastante provável, para enten-
der essa situação: a pesca artesanal é uma atividade secundária, subordinada,
periférica aos interesses da acumulação capitalista e, por isso, não é objeto de
sua exploração.
A reificação, entre os pescadores mais jovens, dá-se pelo conjunto dos ele-
mentos (relacionados ao trabalho e à mercadoria) responsáveis pela transformação
do sujeito em instrumento do capital. É a transformação da condição de produtor
para a de mercadoria, com todas as suas propriedades.
Em relação ao trabalho, sua organização, sua constituição formal e divisão
são elementos importantes para a definição do trabalho alienado. Praticantes de
uma forma de gestão participativa, os pescadores mais experientes, na sua ori-
gem, estão menos suscetíveis à reificação. Todavia, a tendência hegemônica do
modo de produção capitalista e do sistema de capital manifesta-se não somente
pela organização do trabalho, mas também pela ideologia materializada na cons-
ciência dos indivíduos, e impõe aos pescadores mais experientes a certeza de que
a pesca artesanal está em vias de chegar ao seu fim.
A tecnologia física é outro elemento que contribui para intensificar a reifi-
cação. Se, por um lado, os pescadores mais experientes podem ser considerados
mais produtivos, por outro, tanto eles quanto os mais jovens conhecem “o poder
das grandes embarcações”. Não é possível assegurar que a pesca artesanal vai
43
acabar e que não haja solução para essa provável ocorrência. Porém, consideran-
do a perspectiva histórica do desenvolvimento das forças produtivas, a atividade
de pesca artesanal, como uma das mais antigas, pode resistir ao modo capitalis-
ta de produção. O mesmo não se pode dizer da atividade de pesca.
ABSTRAC T
A man is as man because he is able to produce his means of survival, among
which work plays a central role in the constitution of society. It is through it that
men “dominate” nature and place themselves in the position of lords before it.
The fishing activity may be considered “secondary” in the interests of capital
accumulation and it is precisely the reason why the study of the community of
fishermen from the town of Matinhos, Paraná State, constitutes one of the prime
locations to see how work (comprising the division of labor, technology and
management form) and goods (comprising private property and the commodity
fetish) constitute the multiple determinations of the real and are related to the
process of social reification. The aim of this work is to understand the process of
reification of traditional fishermen, the analysis of the categories defined as mul-
tiple determinations of the real, in view of its economic integration and social exclu-
sion in the system of capital. The theoretical basis of the work consists of authors
such as Marx, Lukács, Adorno, Faria, Horkheimer, Meszáros, and others. This is a
qualitative research carried out in a community of fishermen. It was possible to
verify that the reification among the younger fishermen takes the set of ele-
ments (related to labor and goods) responsible for the transformation of the sub-
ject into an instrument of capital. It is the transformation of the condition of the
producer into the commodity, with all its properties. Reification is also related to
the alienated labor and that, despite the hegemonic tendency of the capitalist sys-
tem of production, it is possible to identify a resistance in relation to this process
of reification. In short, there would be a reification which is related to the alienated
labor and, despite the hegemonic tendency of the capitalist system of production,
it is possible to identify a resistance against this process of reification.
KEYWORD S
Management; Artisanal fisheries; Reification; Alienation; Work.
45
RESUMEN
El hombre es hombre porque es capaz de producir sus medios de superviven-
cia, entre los cuales, el trabajo ocupa un lugar central en la constitución de la
sociedad. Es a través de lo que los hombres “dominan” la naturaleza y se ponen
en la posición de los Lores antes que ella. La actividad pesquera se puede consi-
derar una “secundaria” en aras de la acumulación de capital y es precisamente
por qué el estudio de la comunidad de pescadores de la ciudad Matinhos, el
estado del Paraná, parece una de las mejores ubicaciones para ver cómo trabajo
(que incluye la división del trabajo, la tecnología y la forma de gestión) y bie-
nes (que comprende la propiedad privada y el fetiche de los productos básicos)
constituyen las determinaciones múltiples de lo real y están relacionados con
el proceso social de reificación. El objetivo de este trabajo es entender cómo es el
proceso de la reificación de los pescadores tradicionales, el análisis de las catego-
rías definidas como múltiples determinaciones de lo real, en vista de su integra-
ción económica y la exclusión social en el sistema del capital. La base teórica de
la obra se compone de autores como Marx, Lukács, Adorno, Faria, Horkhei-
mer, Meszaros y otros. Se trata de una investigación cualitativa en una comuni-
dad de pescadores. Se pudo ver en la investigación que la reificación, entre los
pescadores más jóvenes, se lleva a cabo por todos los elementos (en materia de
trabajo y bienes) responsables de la transformación del sujeto en un instrumento
de capital. Es la transformación de la condición de que el productor de la mercan-
cía, con todas sus propiedades. La reificación está también relacionada con el tra-
bajo alienado y que, a pesar de la tendencia hegemónica del sistema capitalista
de producción, es posible identificar la resistencia en relación con este proceso de
reificación. En pocas palabras, no habría una reificación que esté relacionado con
el trabajo alienado y que, a pesar de la tendencia hegemónica del sistema capita-
lista de producción, se puede identificar la resistencia ese proceso de reificación.
PALABRA S C L AV E
Gestión; Pesca artesanal; Reificación; Alienación; Trabajo.
46
REFERÊN C I A S
47
RESUMO
O objetivo central deste trabalho consiste em analisar a e de Prestes Motta. São levados em consideração nas
forma como Maurício Tragtenberg e Fernando Cláudio análises dos autores e do conceito de burocracia: a
Prestes Motta concebem a burocracia. Os objetivos es- trajetória intelectual; a ordem das produções; as epis-
pecíficos são: compreender as principais características temologias; o espaço e o tempo histórico; a dimensão
da burocracia segundo Weber, autor central que orien- semântica, ideológica e cultural; questionamentos que
ta as obras de Tragtenberg e de Prestes Motta; atingir se revelam importantes para se compreender o desen-
o entendimento de burocracia expresso na obra de volvimento teórico do conceito. Chegou-se à conclusão
Tragtenberg; apreender o entendimento de burocracia de que, apesar das diferenças nas trajetórias intelectuais
segundo a obra de Prestes Motta; analisar as relações de Tragtenberg e Prestes Motta, a burocracia é enten-
entre os entendimentos de burocracia de Tragtenberg dida por ambos como organização, poder e controle.
PALAVRAS-CHAVE Burocracia, poder, controle, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.
Abstract The main objective of this work is to analyze the way in which Maurício Tragtenberg and Fernando Cláudio Prestes Motta conceived
bureaucracy. The specific objectives are: to understand the main characteristics of bureaucracy according to Weber, the author who has
most influence on the work of Tragtenberg and Prestes Motta; to arrive at an understanding of bureaucracy as expressed in the work of
Tragtenberg, to learn how bureaucracy is understood in the work of Prestes Motta and to analyze the relationships that exist between
the understanding of bureaucracy in Tragtenberg and Prestes Motta. In analyzing the authors consideration was given to their concept of
bureaucracy, their intellectual trajectory, the order of their production, epistemologies, space and historical time, the semantic, ideological
and cultural dimension and questions that are important for an understanding of the theoretical development of the concept. The conclusion
was reached that, despite the differences in the intellectual paths of Tragtenberg and Prestes Motta, bureaucracy is understood by both as
being organization, power and control.
keywords Bureaucracy, power, control, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.
Resumen El objetivo central de este trabajo consiste en analizar la manera como Maurício Tragtenberg y Fernando Cláudio Prestes Motta conciben la
burocracia. Los objetivos específicos son: comprender las principales características de la burocracia según Weber, autor central que orienta las obras de
Tragtenberg y de Prestes Motta; lograr la comprensión de burocracia expresa en la obra de Tragtenberg; aprender la comprensión de burocracia según la
obra de Prestes Motta; analizar las relaciones entre entedimientos de burocracia de Tragtenberg y de Pestes Motta. Se tienen en cuenta en las análises
de los autores y del concepto de burocracia: la trayectoria intelectual; el orden de las producciones; las epistemologías; el espacio y el tiempo histórico; la
dimensión semántica, ideológica y cultural; cuestiones que se presentan importantes para que se comprenda el desarrollo teórico del concepto. Se llegó a
la conclusión de que, a pesar de las diferencias en las trayectorias intelectuales de Tragtenberg y Prestes Motta, la burocracia es comprendida por ambos
como organización, poder y control.
Palabras clave Burocracia, poder, control, Maurício Tragtenberg, Fernando Claudio Prestes Motta.
Todo estudo teórico exige método e procedimen- Weber analisa o processo de racionalização da
to, diferente de simples revisão teórica. Este estudo sociedade na passagem da Idade Média para a Idade
tangencia a história dos conceitos, alicerçado nos pres- Moderna. O desencantamento do mundo, baseado
supostos de que: a trajetória intelectual dos autores no cálculo utilitário de consequências, substitui a
contribui para o entendimento do conceito estudado; mediação das relações sociais que antes estavam ba-
a ordem das produções dos autores é importante para seadas na tradição e no carisma. Uma racionalidade
a compreensão do conceito em análise; as epistemo- instrumental-legal se institui e modifica as relações na
logias estruturantes do conceito apresentam impor- sociedade, fazendo com que a burocracia moderna
tante relevância para se compreender seu significado; se consolide como razão materializada desse proces-
o estudo de todo conceito deve ser compreendido so histórico. Para chegar a essa compreensão, Max
em seu espaço e seu tempo histórico; todo conceito Weber analisou a burocracia do sistema de produção
tem sua dimensão semântica, ideológica e cultural; asiático e de outras sociedades deslocadas e dentro
determinados questionamentos (Para quem o autor de seu tempo histórico. Entretanto, as características
escreve? Baseado em que perspectiva teórica? Qual o da burocracia moderna são próprias de uma raciona-
posicionamento político do autor? De onde escreve? lização estabelecida dentro do sistema capitalista de
Quais são seus interesses?) são importantes para se produção. Dessa forma, mesmo em Weber, a buro-
compreender o desenvolvimento teórico do conceito. cracia, quando analisada isoladamente, ou seja, como
fenômeno atemporal, perde sentido, pois é por meio
da racionalidade oriunda de um modo de produção
específico que uma estrutura se ergue e se instaura.
A BUROCRACIA SEGUNDO WEBER: A vantagem técnica da organização burocrática no ca-
PONTO DE PARTIDA DE TRAGTENBERG E pitalismo é a superioridade puramente técnica sobre
qualquer outra forma de organização. O mecanismo
PRESTES MOTTA burocrático plenamente desenvolvido compara-se às
outras organizações exatamente da mesma forma pela
Para Max Weber o “objeto da sociologia é a captação qual a máquina se compara aos modos não mecânicos
de sentido da ação humana, à medida que o conheci- de produção (WEBER, 1982, p. 249).
Segundo Weber (1982, p. 229), a burocracia mo- administração burocrática, tende a ser uma estrutura
derna funciona sob formas específicas. A burocracia organizada de pequenas sessões secretas, na medida
está sob a regência de áreas de jurisdição fixas e em que oculta conhecimentos e ações. Dessa forma, o
oficiais, ordenadas por leis e normas administrativas. poder do perito, ou funcionário especializado, é aqui-
Ela estabelece relações de autoridade, delimitada por latado e, por esse motivo, a qualificação como forma
normas relativas aos meios de coerção e de consen- de especialização crescente resulta muito valorizada.
so. Uma relação hierárquica se estabelece, definindo A burocracia, portanto, “tem um caráter ‘racional’:
postos e níveis de autoridades, além de um sistema de regras, meios, fins e objetivos dominam sua posição”
mando e subordinação com gerência das atividades (WEBER, 1982, p. 282). Assim, para Weber “a burocra-
e tarefas delegadas por autoridade. Nesse contexto, a cia descansa na aceitação da validez de algumas leis
administração é formalizada por meio de documentos, não excludentes [em que o] processo administrativo,
que acabam por regular a conduta e as atividades das dentro dos limites especificados nas ordenações sig-
pessoas. O treinamento é fundamental nas burocracias nifica a busca racional de interesses, de forma que as
especializadas devido às especificações das atividades atividades destinadas a atingir os objetivos organiza-
e dos trabalhos. O treinamento especializado volta-se cionais apresentam-se aos executores como ‘deveres
para generalizar o cargo e transformá-lo em profissão. oficiais’” (FARIA, 1983, p. 27). Para Weber, portanto, a
As atividades e tarefas de um trabalho transformado burocracia é um eficiente instrumento de poder. Esta
em profissão, que podem ser apreendidas por qual- concepção de burocracia enquanto poder e dominação
quer trabalhador, são descritas e delimitadas pela cria- vai fazer parte constitutiva, ainda que não exclusiva,
ção de cargos mais ou menos estáveis. A ocupação de das análises de Tragtenberg e Prestes Motta.
um cargo configura uma profissão de ordem impessoal
e transitória. A posição pessoal de um funcionário é
desfrutada e estimada em um contexto social espe-
cífico, sempre em comparação aos demais funcioná-
A PERSPECTIVA DA BUROCRACIA EM
rios e em relação à estrutura social. Os funcionários TRAGTENBERG
recebem salários (compensação pecuniária) regula-
res, criando-se certa segurança social em troca das A concepção de Tragtenberg em relação à burocracia
atividades exercidas por ele. Esse salário é definido é essencialmente weberiana. Assim como Marx, Weber
pela tarefa realizada, por suas particularidades e pela está entre os autores mais estudados em sociologia.
posição hierárquica do funcionário. A burocracia cria Particularmente em relação a Weber, existem diversas
uma carreira dentro da ordem hierárquica estabelecida. leituras e interpretações. “Assim, temos o Weber de
Para Weber (1974), o cumprimento dos objetivos Talcott Parsons, quase um ‘sociopsicólogo’; o Weber
efetiva-se por tarefas definidas, que devem ser calcula- positivista de Adorno/Horkheimer, um apologista do
das e precisam ser realizadas independentemente das status quo; o Weber fenomenológico de Alfred Schutz;
características das pessoas, ou seja, o cumprimento das e o Weber preso à ilusão objetivista de Lucien Gold-
mesmas deve se revestir de impessoalidade. mann e Michael Löwy” (LAZARTE, 1996, p. 27).
A estrutura burocrática concentra os meios mate- Maurício Tragtenberg, sobretudo pela sua fluên-
riais de administração nas mãos das elites detentoras cia com a língua alemã, que lhe possibilita inclusive
do capital, mediante o desenvolvimento das grandes a tradução dos textos de Weber para o português,
empresas capitalistas. Quando a burocracia se estabe- pôde fazer uma análise acurada das ideias originais
lece plenamente, ela se situa entre as estruturas sociais de Weber. Uma compreensão importante em relação
mais difíceis de serem destruídas, configurando-se um a Weber, como intelectual, é “pensar e refletir criti-
meio de transformar ação comum em ação societária, camente com Weber e não polemizar contra Weber,
racionalmente ordenada. Dessa forma, constitui um sem subterfúgios, escamoteação dos problemas cen-
instrumento de poder, de dominação, pois, ninguém trais, penetrando na reflexão efetiva para superar,
pode ser superior à estrutura burocrática de uma so- isto é, absorver a contribuição de Weber e excedê-la”
ciedade. (TRAGTENBERG, 1974, p. 156). Muitas divergências
Outra característica descrita por Weber (1982, ocorridas em relação às ideias de Weber se efetivaram
p. 269) em relação à burocracia é que ela poten- porque vários acadêmicos e intelectuais, municiados
cializa os segredos, conhecimentos e intenções. Na dos seus pressupostos teóricos, não compreenderam o
contexto histórico em que a teoria da burocracia foi es- burocracia, o que lhe permite vislumbrar as caracte-
crita. Tragtenberg, nessa situação, convida os estudiosos rísticas do modo de produção asiático na perspectiva
interessados na compreensão da teoria weberiana para do poder político. A base de sua argumentação criará
“superar em Weber as limitações do tempo e contexto as condições analíticas para a crítica da burocracia nos
social em que se situa a sua obra; discuti-la sem com- regimes de Estado, e, ao fazer tal crítica, Tragtenberg
promissos ideológicos que impliquem o sacrifício do antecipa o que se tornará a prática dominante das em-
intelecto com o respeito que uma obra do porte da que presas capitalistas contemporâneas no que se refere ao
ele nos legou implica” (TRAGTENBERG, 1974, p. 157). controle sobre a organização e o processo de traba-
Sem desconsiderar o rigor epistemológico, Weber lho. Para Tragtenberg (1974, p. 22), “a administração,
contribui para a compreensão do processo de racio- enquanto organização formal burocrática, realiza-se
nalização, em que a sociedade tradicional, baseada plenamente no Estado”, razão pela qual, “o segredo
nas crenças, valores e em uma economia atrelada da gênese e estrutura da teoria geral da administração,
ao período da Idade Média, transforma-se em uma enquanto modelo explicativo dos quadros da empresa
sociedade baseada nas relações em que os fins são capitalista, deve ser procurado onde certamente seu
mais importantes que os meios e em que o desen- desenvolvimento mais pujante se dá: no âmbito de
cantamento do mundo é uma realidade permanente. Estado”. A teoria administrativa fornece ao capitalismo
A obra de Weber segue a tradição da filosofia alemã, industrial modelos de transição do liberalismo para o
e sua teoria da burocracia ocorre em um período de capitalismo monopolista e a “emergência da burocracia
formação econômico-social do capitalismo. Antes como poder funcional e político”.
dele, Hegel já procurara entender a burocracia por Apesar de os estudos de Weber serem considera-
outras categorias de análise. Ambos, Weber e Hegel, dos o ponto de partida sobre o estudo da burocracia,
procuraram compreender a burocracia prussiana no este tema aparece direta (MICHELS, 1968) ou indire-
contexto do processo de racionalização do mundo tamente (PROUDHON, 2007) em estudos clássicos no
capitalista, por vias diferentes. “Diferentemente das campo da política ou da filosofia. No campo da análise
burocracias patrimoniais do Egito, da China, de Roma das organizações, diversos são os direcionamentos
e de Bizâncio, a burocracia capitalista na Europa oci- adotados sobre essa temática, que é amplamente es-
dental fundara-se na economia capitalista, transpondo tudada sob múltiplos recortes teóricos e perspectivas
a área administrativa à crescente divisão de trabalho epistemológicas. Entre estes se destacam dois autores
e à racionalização” (TRAGTENBERG, 1974, p. 93). fundamentais na compreensão da burocracia: Mauri-
Tragtenberg tem ciência de que a burocracia es- cio Tragtenberg e Fernando Cláudio Prestes Motta.
tudada por Weber é um processo marcado por carac- A partir deles, outros pesquisadores relacionados
terísticas determinadas por um período histórico em aos estudos críticos na administração ou mesmo de
que o capitalismo é a forma econômica dominante. A outras abordagens teóricas e epistemológicas foram
análise de Tragtenberg é, antes de tudo, uma avaliação e são influenciados por suas análises sobre a buro-
de caráter histórico, não se podendo negar, em razão cracia. É exatamente pela importância dos estudos de
disso, que o fundamento epistemológico que acompa- Tragtenberg e Prestes Motta que a presente análise se
nha Tragtenberg seja o materialismo histórico. É com justifica. O tema da burocracia, além disso, pode ser
base no marxismo que Tragtenberg dialoga com We- considerado como um pressuposto elementar para a
ber, na medida em que parte do fato histórico de que existência da teoria das organizações, especialmente
a burocracia é consequência de uma forma específica a partir da perspectiva behaviorista (FARIA, 2004). É a
de racionalização, originária da divisão do trabalho no partir da burocracia enquanto forma de racionalização
contexto do capitalismo. Marcuse (1998), que na intro- que as organizações complexas modernas (ETZIONI,
dução de um estudo de Weber (1973) considera que 1973; 1974) se efetivaram como objetos de análise.
as ideias weberianas comprometidas com o liberalismo Na atualidade, conforme questiona Tragtenberg, é
burguês chocam-se com sua pretendida neutralidade preciso entender como é possível se defender do
axiológica, chegou com propriedade à conclusão do avanço implacável da burocracia. “Esta é a preocupa-
caráter histórico da burocracia estudando o processo ção central de Weber que não se esquece de advertir
de burocratização na sociedade industrial. que a burocracia é uma máquina de difícil destruição”
Conforme Faria (2009), Tragtenberg busca em (TRAGTENBERG, 1974, p. 144). Burocracia é o opos-
Hegel a concepção inicial da relação entre Estado e to de autonomia, tanto individual como coletiva. O
ção da economia) dos meios de produção na posse versais e particulares como elemento de mediação.
de um Estado proletário implica, necessariamente, Nesse sentido, a burocracia, nos regimes de Estado,
aumento da burocratização. A ditadura do proletariado constitui-se para Tragtenberg como classe dominante,
seria, inevitavelmente, transformada em ditadura do pois detém os meios de produção e, nessa medida,
burocrata, do funcionário do Estado. possui o poder de exploração, cumprindo funções de
Diante dessa análise, a eliminação do capitalismo organização do monopólio do poder político. Desse
não seria suficiente para resolver o problema da buro- modo, Tragtenberg (1974, p. 28) encontrará em Hegel
cratização, mesmo com o Estado sendo dirigido pelos “as determinações conceituais que permitem a análise
operários (TRAGTENBERG, 1974, p. 142). da burocracia do Estado, da burocracia enquanto po-
Resta evidente que a superação da burocracia não der político que antecede em séculos a emergência da
pode ocorrer apenas por meio da consciência política burocracia determinada pelas condições técnicas da
dos trabalhadores. A própria estrutura econômica na empresa capitalista, oriunda da Revolução Industrial”.
sua unidade elementar, que é o modo de produção, Ao examinar o modo de produção asiático, Trag-
consolida essa burocracia como forma específica de tenberg afirma que, neste, o Estado extrai sob a forma
organização da produção e, consequentemente, da de impostos a mais-valia da economia de subsistência
sociedade em geral. Na fase atual de desenvolvimen- das aldeias. Sua concepção, nesse sentido, é muito
to das forças produtivas, não há como negar a exis- particular. Não no que se refere ao fato de o Estado
tência de uma forma de burocracia que estrutura o apropriar-se da mais-valia na forma de impostos, mas
aparato administrativo das unidades produtivas, uma de considerar a economia de subsistência das aldeias
vez que ela apenas consolida uma forma específica uma forma de organização do trabalho que gera mais
de produção. Todavia, quando a “burocracia participa valor. Para sustentar esse argumento, Tragtenberg
da apropriação da mais-valia, participa do sistema de entende que “o povo cria pelo trabalho” e sua “re-
dominação. [...] Em suma, ela une a sociedade civil muneração” é o conjunto dos bens de consumo. A
ao Estado” (TRAGTENBERG, 1974, p. 190). mais-valia decorre, dessa forma, da renda da terra, da
Tragtenberg recorre a Hegel (2000) exatamente qual o Estado se apropria para a realização de obras
para analisar a burocracia como poder administrativo e e para a manutenção da burocracia. As forças pro-
político, a partir do conceito deste de que o Estado é a dutivas desse modo de produção são mais intensivas
organização (burocracia pública) acabada, a síntese do de trabalho humano do que de meios de produção,
substancial e do particular, a integração dos interesses o que “pressupõe uma superexploração da força de
individuais e particulares. Assim, o Estado é visto em trabalho que compensa a subutilização das possibi-
sua representação instrumental, pois a burocracia é lidades tecnológicas” (TRAGTENBERG, 1977, p. 29).
o formalismo de um conteúdo que se encontra fora Em que medida, neste ponto, se encontra o trabalho
dela, que é a corporação privada. É como instrumento objetificado e alienado?
das classes dominantes que a burocracia tem efeitos Tragtenberg trata dessa questão ao abordar a filo-
de permanência com relativo nível de autonomia. sofia do conflito social em Marx, na qual o trabalho
Estado e sociedade civil se encontram separados na aparece como fator de mediação que enriquece o
visão hegeliana, pois o primeiro contém o interesse mundo dos objetos e empobrece a vida interior do
universal e a segunda o interesse particular, mas é no trabalhador na medida em que este não é dono de
interesse geral que reside a conservação dos interes- si mesmo. O resultado do trabalho é estranho ao tra-
ses particulares. balhador e surge como um poder independente dele
Tragtenberg (1974, p. 23) reconhece que a teoria (TRAGTENBERG, 1974, p. 69). Essa análise permite
de Hegel é sustentada em “um formalismo político compreender as relações de trabalho para além da
que encobre a realidade que ele desnatura, reduzindo burocracia. Para tanto, é necessário entender que em
arbitrariamente a oposição e traindo o real”. Por esse Hegel (2001) a história do homem é a história do espí-
motivo, buscar em Hegel uma base analítica não é rito absoluto, uma consciência que se revela de forma
simplesmente incorporar uma concepção hegeliana. O progressiva por meio de uma série de contradições
recurso a Hegel é para afirmar sua convicção de que dialéticas em direção a um autoconhecimento cada
as finalidades do Estado são aquelas da burocracia e vez maior, pois a consciência ilimitada é o estado su-
as desta são as do Estado, de forma que a burocracia premo em que o espírito se encontra com o mundo
se fundamenta na separação entre os interesses uni- ético (SWINGEWOOD, 1978, p. 107).
ção evidente e clara da ação racional-legal de como os cipais análises (PRESTES MOTTA, 1981, 1982, 1989,
meios de produção se organizam e se constituem. Para 1990, 2001; PRESTES MOTTA e BRESSER-PEREIRA,
Tragtenberg, “[...] as lutas sociais podem tender à buro- 1980; PRESTES MOTTA e VASCONCELOS, 2004).
cratização e à perda de suas finalidades iniciais, mas há Em seu primeiro livro, de 1972 (PRESTES MOTTA,
sempre alguém – a classe trabalhadora – que reage a 1989), que se tornou leitura obrigatória nos cursos de
isso criando suas entidades igualitárias e novas relações graduação em administração, “a forma de tratamento
sociais antagônicas à burocratização” (ACCIOLY, 2001, da teoria da administração revela que, em todas as
p. 80). Tragtenberg considera o processo de burocrati- abordagens, o que se encontra são relações de domi-
zação um fenômeno social em consequência, também, nação das mais variadas espécies, indicando como os
do grau de complexidade das forças produtivas em diferentes enfoques reproduzem uma visão segundo
uma sociedade que passa a quantificar-se em todas as a qual é da gerência o papel fundamental na coorde-
dimensões da vida social, inclusive da educação. nação das organizações. Tanto que Motta sugere que
Tragtenberg era um crítico intransigente de toda apenas uma autogestão seria capaz de propor estrutura
a forma de autoridade, de poder, de burocracia e de de poder diferenciada” (FARIA, 2003, p. 164). Assim
dominação. Sua vinculação não dogmática ao anar- é que, ao tratar especificamente da teoria das orga-
quismo não era apenas uma questão política, porque nizações, Prestes Motta (2001) afirma que as teorias
Tragtenberg não separava a ação do pensamento. organizacional e administrativa devem ser analisadas
Tragtenberg analisava a realidade de um ponto de como “ideologia do poder”, pois ocultam o próprio
vista marxista, mas não se deixou dogmatizar por isso. poder e as contradições que lhes são inerentes, bem
Vinculava-se ao anarquismo, mas não se deixava en- como a forma como a tecnoburocracia vê a organiza-
cantar por suas utopias. Suas escolhas eram escolhas ção, “base última de seu poder”.
teóricas, sem dúvida, mas eram também políticas e, Prestes Motta, um estudioso das obras de Weber
principalmente, assumiam uma posição epistemoló- e de Marx, procurou esclarecer como a relação do
gica, porque sua forma de produzir conhecimento, sistema de produção capitalista com os elementos
sua forma de transmiti-lo mediante uma pedagogia da infraestrutura pode formar a burocracia. A ligação
libertária, condicionaram sua interpretação do real. advém de um processo de racionalização, provocada
A perspectiva de Tragtenberg (1977, p. 16) é a de por condições específicas da produção. Prestes Motta
uma análise com fundamento na sociologia do conhe- (1981, p. 7) afirma que a “burocracia é uma estrutura
cimento, do “estudo da causação social das teorias da social na qual a direção das atividades coletivas fica
administração como ideológicas”. Tal análise é cate- a cargo de um aparelho impessoal hierarquicamente
górica, baseada em textos e se opera em três níveis: organizado, que deve agir segundo critérios impesso-
(i) lógico: como administração significa burocracia, ais e métodos racionais”.
Tragtenberg recorre a Hegel; (ii) histórico: sendo as A burocracia nasce das relações de produção,
teorias administrativas transitórias (ideológicas) por- consolida-se no Estado como forma organizada de
que refletem interesses econômico-sociais transitórios, controle social e amplia-se com as organizações de
Tragtenberg recorre à dialética; (iii) lógico-histórico: modo geral. Assim, a sociedade moderna tornou-se
como as teorias administrativas, embora refletindo uma “sociedade de organizações burocráticas subme-
momento histórico-econômico específico, trazem em tidas a uma grande organização burocrática que é o
seu interior conhecimentos cumulativos, Tragtenberg Estado” (MOTTA, 1981, p. 8). Adotando-se as orienta-
recorre a Marx para examinar a autonomia relativa ções de Weber e Marx, segundo Prestes Motta (1981,
da produção teórica em relação às determinações p. 8-9), a burocracia apresenta algumas características.
econômico-sociais (FARIA, 2009, cap. 1). Mantém-se um estado de segurança e conformismo
em troca do trabalho assalariado de boa parte das pes-
soas. As pessoas participam de grandes organizações
impessoais e a vida em comunidade perde sentido.
PERSPECTIVA DA BUROCRACIA EM O próprio trabalho perde significação intrínseca nas
PRESTES MOTTA organizações burocráticas. As necessidades das pes-
soas são manipuladas por meio das relações entre
Para adequar as contribuições de Prestes Motta aos produção e consumo, orientando a vida das pessoas.
propósitos deste trabalho, utilizam-se as suas prin- Com isso, o comportamento passa a ser disciplinado
e caracterizado como irresponsabilidade social, caso é estabelecida de acordo com os interesses do capital.
o comportamento padrão não seja seguido. Tudo isso ocorre por causa da eficiência, res-
Na esfera política, a participação das pessoas perde ponsável por aumentar a produção da mais-valia
sentido, sobretudo, porque as pessoas não participam e, consequentemente, de aumentar a taxa de lucro.
de fato das decisões relevantes. É fortalecida a apa- Concentra, ainda, o “poder de decisão”, já que o novo
rência de que a democracia é efetivamente o regime agrupamento retira da maioria tal poder por meio da
político dominante. Isso ocorre por meio dos partidos expropriação do planejamento, da criatividade e do
políticos e sindicatos, vistos como organizações bu- conhecimento amplo e integral.
rocráticas que criam a falsa sensação de participação Tudo isso se faz sob o comando das funções di-
democrática nas decisões políticas da sociedade. retivas, que coordenam o processo. [...] É por essa
As análises de Prestes Motta em geral (1981, 1982, razão que as técnicas de organização, que começam
1989, 1990) apresentam uma concepção marxista em a ser necessárias com a divisão do trabalho, são téc-
relação à burocracia, porém, ao tratar deste tema na nicas capitalistas, que visam ao aumento da mais-
perspectiva weberiana, Prestes Motta adota uma po- -valia. Racionalizar o trabalho significa aumentar a
sição na qual as categorias são construídas no plano mais-valia relativa, isto é, a mais-valia que se obtém
abstrato arbitrário, o que não significa uma recusa à com a intensificação do trabalho (PRESTES MOTTA,
história. De fato, para chegar à afirmação sobre as 1981, p. 20-21).
características descritas anteriormente, Prestes Motta A unidade de poder da burocracia é a organização,
entende a burocracia de três formas: como poder, representada principalmente pela empresa capitalista. A
como controle e como alienação. integração dessa unidade é feita pelo Estado, que de-
Assim, a burocracia como poder só pode ser com- sempenha papel fundamental para manter a concentra-
preendida “na medida em que analisamos a sua história” ção de poder. Assim, a empresa burocrática pressupõe,
(PRESTES MOTTA, 1981, p. 12). O processo de burocra- para Prestes Motta, o Estado burocrático responsável
tização no contexto do sistema de produção capitalista por manter a ordem e o controle social. O Estado apa-
é um fenômeno universal e, como tal, é parte de um rece dessa forma como uma organização burocrática
sistema antagônico próprio do sistema de capital. A fundamental, consolidando uma elite política normal-
burocracia é um instrumento da classe dominante que mente associada à classe dominante e criando, além
impõe sua ascendência sobre as demais classes. Essa disso, um corpo de funcionários hierarquicamente orga-
dominação é feita pelas organizações (empresas, escola, nizados para se ocuparem da administração. Procura-se
partidos, sindicatos e outros) e pelo Estado, por meio manter, com essa organização, a ordem interna, além
do estabelecimento de um modo de vida específico, de proteger o Estado constituído das ameaças exter-
de acordo com os interesses do capital. nas. Essa organização estatal burocrática utiliza-se do
O “modo burocrático de pensar leva o homem ao seu poder disciplinador, de políticas que promovam
vazio e à luta por pequenas posições na hierarquia consenso social e, também, o monopólio da violência,
social de prestígio e consumo” (PRESTES MOTTA, visando manter a própria burocracia.
1981, p. 13). Levando-se em consideração a história, Utilizando a categoria weberiana, Prestes Motta
outro fato importante é que a da burocracia é a his- afirma que o poder do Estado e da burocracia em
tória do afastamento entre trabalho manual e trabalho geral está associado principalmente a uma forma es-
intelectual, cuja separação entre os que pensam e os pecífica de dominação: a racional-legal. Estabelece-se
que executam estabelece uma relação hierárquica bem uma acreditação em relação às leis e à ordem legal,
definida, adequada aos interesses do capital. Para tan- cujos principais instrumentos de controle, dentro de
to, as operações no trabalho são isoladas em parcelas uma estrutura social específica, se constituem nas
que, posteriormente, são aprimoradas, classificadas e próprias regras, que necessitam de caráter impessoal
agrupadas, obedecendo à lógica da separação entre para serem aceitas pela coletividade.
concepção e execução. A partir disso, Prestes Motta Prestes Motta e Bresser-Pereira (1980), em um
considera que se cria uma nova lógica para o pro- estudo específico sobre a organização burocrática,
cesso de qualificação dos trabalhadores, passando o indicam que essa organização é o tipo de sistema so-
trabalhador coletivo a desempenhar atividades siste- cial dominante nas sociedades modernas e, como tal,
matizadas, racionalizadas e previsíveis, cujo controle trata-se de uma estratégia de administração e de domi-
não detém mais. Dessa forma, uma nova cooperação nação. Na mesma linha argumentativa de Poulantzas
(1977), Prestes Motta e Bresser-Pereira argumentam ocorrem entre desiguais. As organizações burocráticas
que a burocracia pode se constituir em um grupo ou servem de unidades de dominação, sendo, igualmente,
uma classe social. Além disso, é também uma forma responsáveis pela inculcação ideológica, pela adoção
de poder que se estrutura por meio das organizações da submissão, pelos comportamentos controlados e
burocráticas. Nesse estudo de Prestes Motta e Bresser- socialmente aceitos, todos entendidos como naturais.
-Pereira (1980), o conceito central da abordagem de Assim, a organização burocrática configura-se numa
Prestes Motta é que a burocracia é dominação, é poder. estrutura de controle e poder.
Tal expressão explicita-se no prefácio de outro texto Importa perceber “que, enquanto estruturas de do-
(PRESTES MOTTA, 1982), em que Prestes Motta afirma minação, as organizações burocráticas contêm em si um
que “o autoritarismo é, por todas as razões, a essência conflito latente, e para abafá-lo todas as instâncias são
do fenômeno burocrático”, sendo a burocracia uma manipuladas. Isso quer dizer que há mecanismos eco-
forma de dominação e a “dominação uma forma de nômicos, políticos, ideológicos e psicológicos utilizados
poder” (FARIA, 2003, p. 164-165). para a neutralização do conflito”. (PRESTES MOTTA,
Outra característica da burocracia é que ela é con- 1981, p. 48) As organizações burocráticas, destarte,
trole. De acordo com Prestes Motta (1981, p. 33), “as procuram garantir o controle social, o monitoramento
organizações burocráticas estão veiculadas à estrutura dos comportamentos, as padronizações e o consenso.
social. Elas reproduzem uma estrutura social caracterís- A terceira característica apresentada por Motta
tica de uma formação social. Essa reprodução significa incide na burocracia como alienação. A dominação
uma recriação ampliada das condições de produção se apresenta como um “‘estado de coisas’ no qual as
em uma dada sociedade, em um dado sistema econô- ações dos dominados aparecem como se estes hou-
mico”. Como consequência, reproduzem-se também vessem adotado como seu o conteúdo da vontade
as classes sociais dessa mesma estrutura. Sem embar- manifesta do dominante” (PRESTES MOTTA, 1981, p.
go, na organização do trabalho, a especialização das 59). De acordo com Mészáros (2006) Marx apresenta
tarefas faz com que o trabalhador domine de forma a mais conhecida teorização sobre a alienação, que
insignificante o processo produtivo, permitindo ao ca- não parte da burocracia, mas do trabalho. A teoria da
pitalista controlar o produto final. Assim, o expediente alienação do trabalho apresenta a contradição fun-
de controle do produto passa a ser do capitalista, e o damental da produção capitalista de mercadorias, no
trabalhador vende sua força de trabalho em troca de sentido de que o trabalhador torna-se mais pobre na
sua autonomia. A hierarquia burocrática nasce, por medida em que produz mais riqueza; torna-se mer-
conseguinte, na fábrica, contexto em que “hierarquia e cadoria tão mais insignificante quanto mais riqueza
divisão parcelar do trabalho se conjugam como molas produz. Dessa forma, enquanto cria valor no mundo
propulsoras de uma forma de produção e reprodução das coisas, o mundo da vida dos homens aumenta em
do capital” (PRESTES MOTTA, 1981, p. 37). razão direta de sua depreciação.
A hierarquia exerce significativo papel na institui- O trabalhador depara-se com o produto como um
ção da burocracia como controle, estabelecendo uma objeto estranho, com o qual não se identifica, uma
relação de vigilância e de disciplinamento essencial vez que a apropriação do objeto é feita pelo capital.
para garantir a submissão do trabalhador, além de ou- A alienação do trabalhador quanto ao produto de seu
tro elemento importante: o salário. “Como os salários trabalho implica, também, a alienação em relação à
não estão relacionados com o valor que produzem, natureza, por meio da qual ele garante os meios de
mas sim com a reprodução de sua subsistência, estão sua subsistência física. Trabalhar o conceito de alie-
garantidas as condições para a reprodução do capital” nação no interior da burocracia significa configurar a
(PRESTES MOTTA, 1981, p. 38). alienação como um elemento da superestrutura que
O papel das organizações burocráticas não está garante a separação entre produtor e produto. No
associado apenas à produção de riqueza, de capital âmbito da teoria da gestão do processo de trabalho,
e das demais mercadorias e serviços, e, tampouco, à significa intensificar a separação entre os que pensam
reprodução da mão de obra como força de trabalho e os que executam, fator condicionante na relação de
ou garantia da sobrevivência do trabalhador por meio posse do produtor e do produto.
do salário. O papel das organizações burocráticas “A burocracia implica [também] que os indivíduos
constitui-se em garantidor do controle social por meio não se possam inserir na sociedade de acordo com
do estabelecimento das relações de poder, que sempre suas necessidades e seu bem-estar pessoal. Daí a
relação decisiva entre burocracia e alienação. Nessa quanto maior for a utilização da tecnologia como
ordem de ideias, a alienação é tão necessária quan- meio de controle. As análises de Prestes Motta rela-
to o for a burocracia, e não são poucos aqueles que cionando a tecnoburocracia com o Estado, a escola e
nos afirmam que esta última é um aspecto imutável as organizações mostram a dialética do fortalecimento
da tecnologia industrial”. (PRESTES MOTTA, 1981, p. da burocracia na medida em que ela está subsumida
76). A burocracia garante a separação entre produtor à lógica do sistema de capital e de sua tendência a
e produto, da mesma forma que garante a separação estabelecer suas formas específicas. Diante do exposto
entre homem e natureza por meio do afastamento sobre o entendimento de burocracia nas perspectivas
físico, psíquico e social. de Tragtenberg e de Prestes Motta, faz-se necessário
Para compreender criticamente a análise de Pres- compreender o que há de comum e de diferente entre
tes Motta, dois conceitos precisam ser destacados: (i) elas. Primeiro, a burocracia e sua forma de gestão, a
alienação enquanto um processo no qual o homem se heterogestão, constituem forma de poder, e a auto-
torna cada vez mais estranho no mundo criado pelo gestão, de não poder. Segundo, o conceito de poder
seu trabalho e (ii) objetificação enquanto forma de o com que Motta trabalha refere-se a uma radical se-
homem exteriorizar-se na natureza e na sociedade pelo paração, nos processos decisórios, entre dirigentes e
seu trabalho, um processo em que este se torna um dirigidos, cuja superação não depende da integração
objeto para os outros na estrutura das relações sociais, dessas categorias, mas da superação da divisão, que
construída com base nas relações de produção. Marx não se poderá realizar no interior de uma burocracia,
e Engels (2007) criticam Hegel por tornar iguais dois mas unicamente com sua supressão. Por fim, Motta
conceitos diferentes. A alienação, para Marx e Engels, vai analisar o poder como forma de dominação de
ocorre quando o homem objetificado encontra sua uma burocracia – uma heterogestão –, ou seja, como
atividade operando nele como um poder estranho, uma prática que separa artificialmente dirigentes de
opressivo, externo. No capitalismo a objetificação im- dirigidos. O poder é, assim, um processo de exclusão
plica alienação, pois o capitalismo, ao dominar com- dos dirigidos dos mecanismos decisórios, ainda que
pletamente o trabalho humano, o aliena totalmente. sua inclusão não venha a significar sua liberdade, mas
Ao contrário do que defendia Marcuse (1982), a teoria apenas um acordo civilizado, cujos termos não são
da alienação em Marx não é uma teoria do poder to- garantia de permanência.
tal. O poder sempre se defronta com outros poderes,
pois para ser poder é preciso que esteja em relação,
em prática de classes (FARIA, 2004, v. 1). Tal poder
total, como a coisificação plena da sociedade burgue-
BUROCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO,
sa proposta por Marcuse, significaria uma forma de PODER E CONTROLE: REFLEXÕES
fatalismo insuperável, um mundo sem contradição e
sem história, em que a emancipação seria impossível.
PROVISÓRIAS
O que Prestes Motta chama de alienação, portanto, do
ponto de vista marxista, é objetificação. Examinando o percurso teórico de Prestes Motta e
Prestes Motta (1990, p. 133) apresenta o surgi- Tragtenberg, pode-se verificar que leituras diferencia-
mento de uma nova categoria no sistema de capital, das sobre a concepção de burocracia são possíveis,
os tecnoburocratas, os quais atendem aos interesses como já havia sido observado por Paes de Paula (2002,
do capital, pois exercem atribuições de gestores. Na 2008), por exemplo. Exatamente por existirem essas
tecnoburocracia, a tecnologia é incorporada na lógica diferentes interpretações é que se torna importante
da burocracia vigente, potencializando o controle das resgatar o pensamento original desses autores.
organizações sobre os indivíduos. Dessa forma, “o Tragtenberg e Prestes Motta remetem suas análi-
controle social concentra-se cada vez mais nas mãos ses, enquanto escrevem, para os trabalhadores, para
da tecnoburocracia, tanto pública quanto privada” administradores, educadores, sociólogos, enfim, para
(PRESTES MOTTA, 1990, p. 135). sujeitos que se vinculam a uma prática social centrada
Nessa perspectiva, Prestes Motta considera que a no trabalho. Além deles, seus escritos também influen-
burocracia exerce dominação pela sua superioridade ciam os estudiosos – intelectuais e pesquisadores – das
técnica comparativamente a outras formas de raciona- áreas de humanidades e de ciências sociais. Embora
lização do trabalho, tornando-se ainda tão mais forte Prestes Motta tenha sido professor da área de Edu-
cação na USP e da de Administração da FGV-EAESP, Dessa forma, a burocracia configura-se uma forma es-
são os trabalhos de Tragtenberg que possuem maior pecífica de racionalização que tem como sustentação o
penetração nas áreas de Educação, Gestão e Ciência que acontece no âmbito da produção, especialmente
Política, principalmente pela sua atuação como mili- na divisão técnica e social do trabalho.
tante político. Prestes Motta não teve uma militância Tragtenberg busca compreender como se dá a
prática no campo político. construção histórica da burocracia tendo por referên-
Essa é uma característica material que diferencia cia as análises de Weber, a quem via como pensador
os trabalhos de Tragtenberg dos de Prestes Motta. crítico da burocracia. Por isso, suas críticas à tendência
Devido a sua participação ativa como intelectual e burocratizante da modernidade incorporam o mesmo
também por seu permanente contato com a classe tipo de preocupação que Weber. Prestes Motta procu-
trabalhadora em seus escritos em jornais populares, ra estudar os efeitos da burocracia sobre as relações
as obras de Tragtenberg apresentam conteúdos mais sociais e como ela se consolida na modernidade sob
intensos de militância. Ainda que ambos se dirijam a égide do sistema capitalista de produção.
aos intelectuais e à área acadêmica, Tragtenberg tem A diferenças das trajetórias intelectuais e políticas
de fato uma atuação mais intensa junto à classe tra- entre Tragtenberg e Prestes Motta é outro fator im-
balhadora, inclusive em sua formação acadêmica, portante. Tragtenberg teve uma formação autodidata,
como é o caso de Antonio Ozaí da Silva, trabalhador diferentemente da de Prestes Motta. As origens pes-
do ABC paulista que atualmente é professor doutor soais e o percurso de ambos foram distintos. Todavia,
na Universidade Estadual de Maringá. As diferenças a aproximação com a teoria marxista e anarquista é
de práticas políticas se refletem nas análises teóricas. um ponto de convergência que aproxima as análises
Tendo em vista que Prestes Motta é um dos três de ambos do ponto de vista político. Contudo, ainda
discípulos citados por Tragtenberg (1991) na área de que Prestes Motta seja um seguidor das análises de
estudos organizacionais (ainda que este nunca tenha Tragtenberg, isso não o impediu de construir uma
concordado em formar discípulos), o posicionamento obra diferenciada e original, especialmente no que
político de Tragtenberg e Prestes Motta é de oposição se refere à sua aproximação com a psicossociologia,
ao capital em defesa do trabalho. A burocracia, para à psicodinâmica do trabalho e aos temas da cultura.
ambos, tem como finalidade política a instituição de um Suas trajetórias são marcadas por problemas en-
aparelho de dominação com base em uma racionalidade frentados no interior das grandes estruturas burocrá-
que separa os que pensam dos que executam, consequ- ticas da educação. Percebem ambos que a tendência
ência elementar da divisão técnica e social do trabalho. à burocratização afeta diretamente a produção de co-
O posicionamento político de Tragtenberg, com relação nhecimento. Por isso, explicitam a resistência em acre-
a essa temática, sempre foi publicamente mais explícito ditar na capacidade emancipadora da educação em
porque seus escritos nos jornais No Batente, Folha de um sistema educacional burocraticamente estruturado.
S.Paulo e Notícias Populares, por exemplo, tinham como Ambos conviveram com o regime militar. Porém,
objetivo formar o pensamento crítico entre os trabalha- para Tragtenberg esse período foi de longe muito mais
dores, enquanto Prestes Motta dirigiu suas publicações problemático, pois implicou uma intervenção direta
exclusivamente para a área acadêmica. em sua atividade docente, intelectual e política. Ambos
Outro fato importante é que ambos elegeram o são fortemente influenciados pelas ideias e práticas
materialismo histórico como uma dimensão episte- políticas de oposição ao Estado autoritário, entretanto
mológica relevante, notadamente quando analisam a não caem na fascinação ingênua do discurso das eli-
questão da centralidade do trabalho. Assim, mesmo tes políticas dos partidos comunistas. Tragtenberg foi
quando suas análises se referem à burocracia, no sen- inclusive confrontado pelos partidos por sua posição
tido weberiano, é a categoria trabalho que permanece claramente contrária à burocratização e à violência
como orientadora de seus estudos. Pode-se especu- empreendida por partidos de esquerda em nome da
lar que esse fato ocorra porque Prestes Motta adota luta a favor do proletariado. Ambos perceberam que
os estudos sobre a burocracia de Tragtenberg como tais regimes políticos não passavam de empulhação
ponto de partida para suas próprias análises sobre o ideológica ou de um regime baseado no capitalismo
fenômeno, ou seja, a burocracia é concebida por am- de Estado. Por esse motivo, veem na burocracia desses
bos como uma superestrutura originada das relações regimes políticos os mesmos pressupostos burocráticos
materiais e sociais que se estabelecem na produção. instituídos nos países capitalistas autoritários.
controle político-social, influenciando diretamente a uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora
reprodução das demais organizações na sociedade. Unesp, 2001.
A burocracia é capaz de estabelecer relações de con-
trole, seja por vias objetivas ou pelo domínio inter- CAMPOS, E. (Org) Sociologia da burocracia. Rio de Ja-
subjetivo. A tecnologia que se emprega no interior da neiro: Zahar, 1978.
racionalidade burocrática, bem como as normas, as
regras formais e os procedimentos são exemplos de ETZIONI, A. (Org) Organizações modernas. São Paulo:
meios instituintes de controle. Agregada à ideologia, Atlas, 1973.
a burocracia é capaz de criar costumes, normas infor-
mais, ideias e imaginários, tornando-se responsável ETZIONI, A. Análise comparativa das organizações com-
pelo controle intersubjetivo. Segundo os argumentos plexas. Rio de janeiro: Zahar; São Paulo: Edusp, 1974.
desenvolvidos nos estudos de Prestes Motta, o salário,
o disciplinamento dos trabalhadores no ambiente de FARIA, J. H. Weber e a sociologia das organizações. São
trabalho e a cooptação ideológica são instituidores de Paulo: Revista de Administração, v. 18, n. 2, p. 23-29,
controle no cotidiano dos indivíduos. Por isso, a alie- abril-junho, 1983.
nação se confirma na medida em que e o indivíduo
interioriza o modo burocrático de pensar. A relação FARIA, J. H. O poder na obra de Fernando Prestes Motta.
entre burocracia e alienação é, então, ressaltada. A EccoS Revista Científica, v. 5, n. 1, p. 139-172, 2003.
inculcação ideológica, a submissão, os comportamen-
tos padrão e o disciplinamento não são decorrentes FARIA, J. H. Economia política do poder. Curitiba: Juruá,
apenas da forma objetiva como a burocracia se insti- 2004. 3 volumes.
tui na organização. A burocracia investe também no
controle intersubjetivo, e esse movimento é essencial FARIA, J. H. Gestão participativa: relações de poder e de
para que o controle possa ser efetivo. trabalho nas organizações. São Paulo: Atlas, 2009.
Nos estudos de Tragtenberg e de Prestes Motta,
é possível perceber nuances em relação à burocracia HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Pau-
como organização, poder e controle. Em cada um de- lo: Martins Fontes, 2000.
les, a burocracia das organizações (privadas ou públi-
cas) ou do Estado pode ser percebida como resultado HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis:
de uma forma específica de organização da produção Vozes, 2001.
da vida dos sujeitos. Ergue-se um grande aparelho
com todas as suas racionalidades fundamentais capaz LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio
de estabelecer a organização, o poder e o controle de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
sobre as práticas dos indivíduos ou dos grupos que
participam das formas organizadas de produção e de LAZARTE, R. Max Weber: ciência e valores. Rio de Janei-
ação política. Em síntese, o presente estudo indica ro: Cortez, 1996.
que, tanto nos trabalhos de Tragtenberg como nos de
Prestes Motta, a burocracia apresenta-se em três for- MANNHEIM, K. Ideologia e utopia. 3. ed. Rio de Janeiro:
mas: organização, poder e controle. Essa orientação irá Zahar, 1976.
inspirar diversos estudos no campo das organizações,
tais como as análises críticas, a economia política do MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o ho-
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tora, 2002.
Resumo
Bacon afirma que saber é poder. Tragtenberg contesta. Essa discussão, na contemporaneidade, faz-se mais importante
do que se possa imaginar. Por isso, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder, na
atualidade, levando em consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos
objetivos específicos deste estudo, destacam-se:
compreender o sentido da filosofia e da ciência e suas relações com a ideologia;
verificar como o discurso da neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e
como se dá a presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade;
refletir sobre a consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico;
destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais estudos
científicos;
entender o processo de racionalização, avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia universitária
como afirmação da ciência na atualidade.
O texto conclui que tanto é possível a existência de saber como poder (Bacon) como a de não saber, mas com poder
(Tragtenberg) para compreendermos a relação entre saber e poder.
Palavras-chave: estudos organizacionais; poder; saber; ciência; teoria crítica.
Abstract
Bacon claims that knowledge is power. Tragtenberg disagrees. This debate is now more important that can be
imagined. Therefore, the main aim of this article is to examine the relationships between knowledge and power
nowadays, taking into consideration the role of science and the elements immediately related to it. The most specific
objectives of this study are: to understand the meaning of philosophy and science and their relationship with ideology;
to examine how the discourse of the axiological neutrality of science is presented as a modern myth and how “faith” fits
into philosophy and science nowadays; to reflect on the consolidation of science as a productive force and/or as a
commodity in the current economic system; to highlight the importance of the military industrial complex as a financer
of many current scientific studies; to understand the reasoning process, evaluating the importance of pragmatism and
university bureaucracy as a statement of science nowadays. The text concludes that both knowledge as power is
possible (Bacon) and the lack of knowledge, but with power (Tragtenberg) when it comes to understanding the
relationship between knowledge and power.
Key words: organizational studies; power; knowledge; science; critical theory.
* Uma versão preliminar deste estudo foi apresentada no XXXIII Encontro da Anpad (Enanpad) 2008.
1 Pós-Doutorado em Labor Relations pel ILIR - University of Michigan e Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo- Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP. Professor Titular do Programa de Mestrado Interdisciplinar em
Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário; Professor Titular Sênior do Programa de Pós Graduação em Educação – PPGE (Mestrado e
Doutorado) da UFPR; Pesquisador PQ do CNPq; Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e Estudos Organizacionais. Endereço: Rua Itupava,
1.299 - Sala 103 - Hugo Lange – Curitiba- PR – Brasil – CEP: 80.040-000. E-mail: jhfaria@gmail.com.
2 Administrador (UFPR), Mestre em Administração pela Universidade Federal do Paraná –UFPR - e Doutor em Educação Universidade Federal do Paraná –
UFPR .Professor Titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Positivo.Endereço: Rua Professor Rua Prof. Pedro Viriato
Parigot de Souza, 5300 - 5° andar - Prédio da Biblioteca da Universidade Positivo. Campo Comprido – Curitiba/Paraná – Brasil. CEP: 81280-330 E-mail:
fkmeneghetti@gmail.com
Introdução
Marx afirma que a maneira como as coisas se apresentam não é a maneira como elas realmente são, uma vez
que, se as coisas fossem como se apresentam, a ciência não existiria. Popper entende que, por ser
necessariamente humana, a ciência é falível. Em ambas as informações, constata-se a necessidade de ir além do
imediato e do aparente, além de apreender as relações sociais na produção da ciência, ponto central para a
compreensão da forma do saber instituído. / Ambas as informações indicam a necessidade de ir além do
imediato e do aparente. Além disso, mostram que apreender as relações sociais na produção da ciência é o
ponto central para a compreensão da forma do saber instituído. Se, por um lado, de forma geral, as
epistemologias de Marx e de Popper são divergentes, por outro, é inegável que ambos concebem a ciência
como caminho para o domínio crescente do homem sobre a natureza. Assim, a relação entre ciência e poder é
uma discussão constante, não só porque esteja intimamente relacionada à ideologia, mas também por estar
associada à força produtiva, às condições materiais de existência, às relações de produção e assim por diante.
Portanto, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder na atualidade, levando em
consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos objetivos específicos
deste estudo, eles são:
compreender o sentido da filosofia e da ciência e suas relações com a ideologia;
verificar como o discurso da neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade
e como se dá a presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade;
refletir sobre a consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico;
destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais
estudos científicos; e
entender o processo de racionalização, avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia
universitária como afirmação da ciência na atualidade.
O que há de comum entre Marx e Popper? Quais são as semelhanças entre Rousseau e Hobbes? Entre os dois
primeiros transparece a crença de que a ciência seja a forma mais “confiável” para a compreensão da realidade,
ao mesmo tempo em que ambos demonstram “desconfiança” quanto à própria ciência simplesmente, porque
está é feita pelos homens. A convergência entre Rousseau e Hobbes reside na importância da sociedade na
constituição do indivíduo, mesmo que por vias diferentes. Enquanto o primeiro acredita que o homem nasce
bom, mas que a sociedade o corrompe, o segundo acredita que o homem é o “lobo do homem” e que a
sociedade acaba por regular as relações entre eles, possibilitando sua convivência social.
É fato que, apesar de divergências entre filósofos e também entre cientistas, desde o século XVI, a razão
iluminista manifesta-se como consequência de uma nova organização socioeconômica. As relações entre os
indivíduos e entre estes e a sociedade passam a se modificar em decorrência de novas formas de relações de
produção.
Desde essa época, uma nova racionalidade passa a ser dominante, transformando cientificamente a relação do
homem com o meio em que vive. Com a força dessa racionalidade científica, os indivíduos intensificam a
separação entre homem e natureza, tornando-a mais evidente. A ciência vai se transformando, na medida em
que vai produzindo transformações na realidade. Torna-se, dessa forma, força produtiva no capitalismo, por se
apresentar justamente como o principal instrumento da separação entre o pensar e o agir, ou seja, entre trabalho
intelectual e trabalho manual.
Mesmo a filosofia, na atualidade, é influenciada pela ciência moderna. Assim,
a filosofia oficial serve à ciência que funciona dessa maneira. Ela deve, como uma espécie de
taylorismo do espírito, ajudar a aperfeiçoar seus métodos de produção, a racionalizar a estocagem
dos conhecimentos, a impedir o desperdício de energia intelectual. Ela encontra seu lugar na divisão
do trabalho, assim como a química e a bacteriologia. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.226)
O cânone da quantidade (promovido pela necessidade de generalizações para que algo possa ser concebido
como cientifico) e, posteriormente, o pragmatismo (em que tudo deve ter uma utilidade) fizeram da filosofia
uma “erudição”, um conhecimento para indivíduos excêntricos que procuram na teoria explicações oriundas de
divagações quase sempre entendidas como caprichos de poucos. Por isso,
existe hoje um acordo quase geral em torno da ideia de que a sociedade nada perdeu com o declínio
do pensamento filosófico, pois um instrumento muito mais poderoso de conhecimento tomou seu lugar,
a saber, o moderno pensamento científico. (HORKHEIMER, 2000, p.65)
Não que a filosofia seja capaz dessa neutralidade ou que incorpore a “razão autêntica e verdadeira”, pois, assim
como o próprio Marx definiu, a filosofia também se manifesta como ideologia. O declínio da filosofia, no
entanto, é a derrota da possibilidade da consolidação do “pensamento unidimensional”, entendido aqui como a
capacidade de questionamento e de elaboração do pensamento de protesto.
A filosofia, em outro sentido, procura mais a compreensão da totalidade (sobretudo, por meio dos grandes
filósofos) do que a ciência moderna.
Sem dúvida nenhuma, o progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de
intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao quais algumas pessoas
adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. (WEBER, 2003, p.37)
Grande parte dos intelectuais considera o aparecimento e a consolidação da ciência moderna os elementos
centrais do progresso. É como se o passado não abrigasse transformações ou mudanças significativas
decorrentes de formas organizadas de superação e de modificações da realidade concreta da sociedade. Criou-
se um imaginário de que a ciência moderna seja a única possibilidade de “salvação dos homens” de uma vida
mundana, ou de uma vida condenada a insignificâncias intercambiáveis na sociedade. Todavia, “a ciência
também é uma supraestrutura, uma ideologia” (GRAMSCI, 1975, p.1457), ou seja, é um conjunto de
imaginários, de racionalidades e subjetividades com correspondência na realidade concreta.
A ciência vem associada ao progresso. Este é compreendido como a superação de estados mais primitivos para
os mais avançados, tanto nos aspectos quantitativos como nos qualitativos. O progresso é correspondente à
noção de “melhoria”, de mudança para um estágio “superior”. A sensação criada é a de que antes da ciência
não havia progresso. Apenas com os avanços oriundos de um domínio maior sobre a natureza é que a sociedade
teria passado a se modificar. Esse imaginário é manifestação clara e direta do empreendimento do
esclarecimento, movimento de tendência ideológica que procura se apresentar como potência social. Assim, “o
progresso é uma ideologia, o vir-a-ser é uma filosofia” (GRAMSCI, 1975, p.1335).
A concretização da ideologia como ciência, na concepção do próprio Gramsci (1975, p.507), ocorre quando a
ideologia assume a “hipótese científica de caráter educativo energético”. Na sociedade contemporânea, a
ciência é associada ao ensino, relação entendida como indissociável. O fato é que essa associação tem
fundamento econômico imediato: o interesse da indústria da educação em vender o ensino. A ciência (embora
independente em muitas situações da relação direta com o ensino) é “prejudicada” na sua formação de origem e
na sua “neutralidade”. A indústria do ensino apropria-se da ciência porque é também no processo de geração de
novos conhecimentos que se presencia o processo de aprendizado no mais alto grau de aprendizagem.
A consolidação da indústria do ensino faz das universidades fábricas da mercadoria “conhecimento”. Pesquisas
efetivam-se como linhas de produção gerando o produto ensino. Toda a estrutura burocrática da universidade
assemelha-se à de uma fábrica ou à de uma indústria. Mesmo nas instituições públicas, veladamente, a figura
do aluno é transformada em cliente. O professor passa a ser prestador de serviço. A diferença consiste na figura
do professor como monopolista da prática avaliativa dos alunos. A burocracia do ensino ganha corpo e
transforma a universidade em “multiversidade” . Dessa forma,
uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da
discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no
mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da
neutralidade do conhecimento e seu produto. (TRAGTENBERG, 2004, p.16)
Nesse processo, a sociedade passa a ser o principal “cliente”. Na realidade, a sociedade torna-se o ideal do
“cliente”, pois sob qualquer suspeita ou ferimento da ética coletiva, a sociedade apresenta-se como “superior”
ou “acima” de qualquer interesse individual. Entretanto, o fato é que essa sociedade nada mais representa do
que o ideal capitalista, em que o cliente individual se potencializa no discurso do cliente coletivo, a sociedade,
isenta de suspeita em qualquer condição. Não se questiona o quanto de particular há no discurso coletivo do
social.
De fato, sutilmente e por meio da ideologia, a ciência se constrói na direção dos interesses da classe
economicamente dominante. Essa construção dá-se lentamente, “tijolo por tijolo”, sem maiores
questionamentos. A ciência da “neutralidade científica” é utópica, porque toda ciência é sempre uma ciência de
classe ou de grupo dominante, mesmo havendo contradições no seu interior; até mesmo porque
os alunos da rede escolar recebem também conteúdos científicos. Eis que o processo de escolarização
contribui para a reprodução das condições materiais de produção, uma vez que a produção social é
uma transformação material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas
formas. (TRAGTENBERG, 2004, p.54)
Para esconder a influência e a força com que a ideologia está presente na ciência, vários são os cientistas e
filósofos que anunciaram a neutralidade científica; muitos deles, inclusive, apresentando estudos e reflexões
logicamente fundamentados. Entretanto, é importante ressaltar que mesmo a lógica tradicional se rende à
apresentação formal. Nem sempre as contradições estão no nível da percepção ou do aparente, pois, se assim o
fosse, não haveria contradição na ciência.
Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que o mito já é esclarecimento. Na era da quantificação, a ciência
(resultado do pensamento iluminista) esconde a barbárie por meio de discursos fundamentados numa suposta
neutralidade, além de mascarar interesses econômicos, estando supostamente desvinculada de tendências
ideológicas ou políticas. Revestida da afirmação da neutralidade “a ciência ocupa hoje o lugar do Verbo
Divino. A casta dos cientistas substitui a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra
superior e a coletividade humana” (TRAGTENBERG, 2004, p.64).
O entendimento de Tragtenberg em relação à ciência não deixa de ser uma crítica à tendência de dogmatizar a
ciência e de elevá-la comparativamente às demais formas de mitologização. Dessa forma, Tragtenberg é mais
Marx e menos Weber, pelo menos nesse quesito. Assim, tal como Marx, que vê na ciência uma concepção
iluminista na maior parte, Tragtenberg acredita na ciência como força progressista, potencial e esclarecedora,
pois proporciona aos homens maior poder sobre a natureza, contribuindo para o direcionamento do destino dos
mesmos.
Apesar disso, Tragtenberg não se ilude com ela, pois sabe da perversidade da burocracia e como ela é capaz de
retirar a autonomia dos indivíduos e dos grupos organizados, aspecto pelo qual Weber está presente na crítica
da ciência burocratizada. Assim, se Tragtenberg, por um lado, não concorda com o sentido de “neutralidade
axiológica” presente em Weber, por outro, recusa a apologia da ciência, sobretudo, recusando o otimismo dos
que “louvam a ciência – isto é, a técnica de controlar a vida baseada na ciência – como o caminho para a
felicidade” (WEBER, 2003, p.177).
A ciência, como fenômeno social, não está isenta de certa tendência à personalização. Diferente em alguns
aspectos das demais atividades produtivas, o domínio técnico e de conhecimentos específicos faz do cientista
um indivíduo que centraliza poder por estar dotado de metodologia para a compreensão da realidade e por
concentrar técnicas que possibilitam o domínio sobre a natureza.
Apesar disso,
a importância da ciência para a humanidade não se encontra vinculada ao papel dos cientistas. Estes,
na maioria das vezes, restringem-se ao papel de novos sacerdotes à procura de rebanho para ser
cuidado. [Tragtenberg] sabia e procurava reafirmar constantemente que os saberes não se
restringiam à ciência, que esta não ocupava uma posição superior ante os demais saberes e que
tampouco teria condições de disciplinar a todos. (PASSETTI, 2001, p.106)
No entendimento de Tragtenberg, a ciência é mais uma forma de saber, que se torna dominante porque é
apropriada e utilizada pelas classes dominantes, efetivando-se, além disso, como principal instrumento técnico
no incremento produtivo, no processo de circulação das mercadorias, no ato de consumo e no fomento
ideológico necessários para intensificar a relação produção-consumo. A neutralidade anunciada, portanto, está
camuflada.
Mesmo os apontamentos de Weber em relação aos limites da ciência, não deixam de ser criticados por filósofos
ainda mais radicais (no sentido de ir à raiz) em relação ao papel da ciência na contemporaneidade. Entre esses
filósofos, destaca-se Mészáros:
Weber justifica sua “análise científica tipológica” a partir de sua pretensa “conveniência”. Sua
cientificidade só existe, porém, por definição. De fato, a aparência de “cientificidade tipológica
rigorosa” surge das definições “inequívocas” e “convenientes” com que Max Weber sempre
empreende a discussão dos problemas selecionados. Ele é um mestre sem rival nas definições
circulares, justificando seu próprio procedimento teórico em termos de “clareza e ausência de
ambiguidade” de seus “tipos ideais”, e da “conveniência” que, segundo se diz, eles oferecem. Além
disso, Weber nunca permite que o leitor questione o conteúdo das próprias definições nem a
legitimidade e validade científica de seu método, construído sobre suposições ideologicamente
convenientes e definições circulares “rigorosamente” autossustentadas. (MÉSZÁROS, 2007, p.72)
A crítica de Mészáros a Weber caracteriza-se pela sua natureza ideológica. O entendimento de “tipo ideal”1
manifesta a tentativa de absolver a ciência de qualquer interferência de ordem econômica ou pessoal. A suposta
ciência neutra existe como uma representação idealizada, mesmo que conceitualmente haja uma circularidade
criada pelo próprio Weber para “purificá-la”. A tentativa de criar uma ciência neutra, sem influência dos
interesses ou vieses que contaminem seus pressupostos de neutralidade, é tão dogmática quanto a tentativa dos
sacerdotes de afirmar a existência de uma religião salvadora.
A crença dos cientistas na neutralidade científica é a mesma da dos fiéis em relação às suas religiões. A
necessidade da existência de um ente superior manifesta-se com racionalidades diferentes, mas que procuram
aconchegar os mesmos temores humanos. A via para essa tentativa é distinta. Os resultados podem ser
diferentes, mas o que se procura, tanto em uma quanto em outra, é a consolidação de uma elite específica.
Tanto a elite dos sacerdotes como a dos cientistas procura essa diferenciação no interior da sua própria classe. É
importante ressaltar, também, que, apesar dessa “corrida” pelas diferenciações, ocorrem lutas ideológicas, cada
qual com seus pressupostos, premissas e verdades.
tecnologias, na biologia e em boa parte das ciências. Na sociedade atual, o conhecimento instrumental é
apropriado, basicamente, pelo capital. Da tecnologia da informação, passando pela engenharia genética, até os
treinamentos gerenciais que transmitem as “competências gerenciais”, cria-se uma economia do conhecimento
“imaterial” (GORZ, 2005), cujo valor gerado é apropriado pelo capital. Apesar disso, a dialética da produção da
vida impede que o “capital fixo material” seja completamente substituído pelo “capital humano”, pelo “capital
do conhecimento” ou pelo “capital da inteligência”.
Geralmente, as forças produtivas estão associadas aos meios de produção, materiais ou não. Entretanto, a
ciência pode ser considerada força produtiva? Ou é uma mercadoria? A ciência como instrumento de
modificações da natureza e do domínio sobre ela deve ser entendida como força produtiva. No entanto, quando
se apresenta como resultado de trabalho realizado (ou trabalho vivo), equivalente a uma propriedade privada, a
ciência torna-se mercadoria.
A ciência despida da sua suposta neutralidade axiológica constitui instrumento de dominação e manifestação do
resultado do trabalho socialmente despendido. Todavia, é importante ressaltar que não há uma ciência, mas
várias. A ciência é resultado das relações sociais de produção e manifesta-se como elemento impossível de ser
separado das atividades humanas ocorridas no trabalho. Principalmente, porque, no atual momento de
desenvolvimento das forças produtivas, não é mais factível a separação do que é ciência do que é ideologia.
A dita neutralidade científica é consequência da necessidade de esconder a quem realmente a ciência serve,
tanto na sua forma de força produtiva como na de mercadoria. Se o passado procura isentar a tentativa de
Weber em relação à neutralidade da ciência, o presente cria a necessidade de desconfiar de todas as tentativas
de “purificação” existentes. Assim, como Kant afirma, não é possível pensar sem as operações dos conceitos,
pois, mesmo o mais simples pensamento não se isenta dessa necessidade. Da mesma forma, os conceitos não
implicam total isenção de valores, pois resultam das relações sociais, neles estando presentes pelo menos duas
figuras: quem conceitua e quem opera os conceitos.
Por essa perspectiva, todas as derivações da ciência e da produção de conhecimento estão dentro do princípio
da ciência, seja como forças produtivas ou como mercadoria. Os discursos derivados dessa lógica (inovação
tecnológica, desenvolvimento sustentável e demais) são, na realidade, discursos para o controle do capital. De
tal modo, “a inovação tecnológica e a pesquisa científica confluem para um estuário: a acumulação da mais-
valia relativa e a reprodução ampliada do capital” (TRAGTENBERG, 1974, p.216).
A subordinação da ciência ao capital é uma realidade. Se não ao capital privado, pelo menos, ao capital estatal.
Eis que a ciência não se isenta nem mesmo da formação das elites da burocracia estatal. Em regime de capital
planificado, a ciência cria a própria metodologia e procedimentos para enquadrar as regras definidas
externamente a ela. Manifestação disso é a existência de uma ciência exclusiva para o controle do capital sobre
a ciência: as ciências contábeis.
Mesmo referente às ciências tidas como as mais técnicas e pragmáticas possíveis, sua criação é
sempre um fenômeno social, sujeita à reprodução sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2001). A
contradição é que, mesmo
o fato de a ciência ser força produtiva e meio de produção que coopera para o processo de vida da
sociedade, não justifica, de forma alguma, uma teoria pragmática do conhecimento. [...] Sem dúvida, a
própria ciência se modifica no processo histórico, mas a referência a isso nunca pode valer como
argumento para a aplicação de outros critérios de verdade que não aqueles que correspondem ao
nível de conhecimento no grau de desenvolvimento alcançado. (HORKHEIMER, 1990, p.7)
O pragmatismo da ciência é consequência do seu atual desenvolvimento como força produtiva ou do seu
resultado como mercadoria de pertencimento privado. Não é estranho, portanto, que
o conhecimento aparece como força produtiva, a produção se dá como objetivação do conhecimento,
a produção e reprodução da vida social dependem da inteligência coletiva, o tempo livre se torna
medida da riqueza e não mais o tempo de trabalho; este adquire aspecto lúdico. (TRAGTENBERG,
1974, p.214)
O conhecimento científico, nos seus diversos níveis e formatações, está presente nas relações entre os
indivíduos. Seja como produtores ou como consumidores, diretos ou indiretos, desse conhecimento, o fato é
que a razão científica está presente na organização da sociedade, na forma como ela se reproduz, no fomento
para uma sociedade que domine a natureza para sua utilidade. A razão por trás desse conhecimento é o
direcionador da forma como os indivíduos devem interpretar grande parte do mundo e das relações que o
cercam. Por exemplo:
É fácil identificar o lugar da ciência na divisão social do trabalho. Ela tem por função estocar fatos e
conexões funcionais de fatos nas maiores quantidades possíveis. A ordem do armazenamento deve ser
clara. Ela deve possibilitar às diversas indústrias descobrir prontamente a mercadoria intelectual
desejada, na especificação desejada. Em larga medida, a compilação já é feita em vista de
encomendas industriais precisas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.226)
O conhecimento científico não tem preferências, mas está sob orientação da produção em escala industrial. As
amarras da ciência, como produtora de conhecimento específico enquadrado em procedimentos e formatações
possíveis de serem vendidas, fazem dela um processo de produção e não um fim em si mesmo, em que os
indivíduos são beneficiários do continuo processo de dominação da natureza por parte da razão científica. Em
outros tempos, mais especificamente nos anos 1940 e 1950, Horkheimer afirmou que a ciência estava em crise:
Por mais que se fale com razão de uma crise da ciência, ela não pode separar-se da crise geral. O
processo histórico trouxe consigo um aprisionamento da ciência como força produtiva, que atua em
suas partes, conforme seu conteúdo e forma, sua matéria e método. Além disso, a ciência como meio
de produção não está sendo devidamente aplicada. A compreensão da crise da ciência depende da
teoria correta sobre a situação social atual, pois a ciência como função social reflete no presente as
contradições da sociedade. (HORKHEIMER, 1990, p.12)
A sugerida existência de uma crise é de ordem ética, mais especificamente, de uma ética coletiva, pois sob a
ótica da ética do capital, em que a moral é o lucro, a ciência jamais passou por momentos de crise. De certa
forma, em grande parte é a ciência que garante a contínua reprodução do capital, por meio das técnicas
desenvolvidas, dos sistemas criados e da tecnologia da informação. Sem os avanços da ciência, portanto, a
reprodução sociometabólica poderia gerar uma crise de fato. Na atualidade, a sociedade detém suficiente
conhecimento científico para garantir tanto a produção com mais qualidade e controle como, também, técnicas
de vendas para aperfeiçoar a compra das mercadorias geradas pelo próprio sistema produtivo de base científica.
A crise, portanto, atinge aqueles que entendem que a ciência tem de estar a serviço da maioria; não, de uma
minoria. Nunca a ciência foi tão importante para a reprodução do sistema capitalista; nunca se investiu tanto
para a geração de novas técnicas, novos procedimentos, novos sistemas produtivos como na atualidade. Se não
fosse em grande parte a contribuição dos cientistas, a crise causada pela falta de controle (pelo desencontro) do
capital como força destrutiva seria muito mais evidente e problemática.
A ciência, nas suas variadas formas e concepções, é um produto histórico. Em cada época, vem para atender
aos interesses dos grupos dominantes, mas, ao mesmo tempo, atende a outros grupos, porque a própria ciência
precisa se apresentar como fonte mediadora dos conflitos e dos diversos grupos que compõem a sociedade. Por
isso, “ainda que a ciência esteja compreendida na dinâmica histórica, ela não deve ser destituída do seu caráter
próprio e utilitariamente mal interpretada. [...] a ciência é um fator do processo histórico” (HORKHEIMER,
1990, p.7-8). Persiste a esperança.
Como processo histórico, as descobertas científicas e o conhecimento gerado por ela são utilizados de diversas
formas. A ciência tanto pode ser um instrumento para o “bem” quanto para o “mal”. Todavia, o capital que
orienta grande parte da produção científica se tornou o principal instrumento de repressão ou de sublimação da
atual sociedade. Assim, a ciência serve, também, tanto para libertar os homens como para aprisioná-los. Apesar
das duplas possibilidades, não é possível negar que o capitalismo seja um sistema econômico bastante
confluente com o lado “sombrio dos homens”, com a perversidade coletiva e com a pulsão de morte.
“Matar e morrer” com as armas da ciência: o complexo industrial militar como financiador da
destruição
O capital se apropria de todas as forças produtivas, desenvolvendo-as de acordo com seu interesse, inclusive,
em relação à ciência. Dessa forma, uma parte da ciência é estranha ao operário da produção e, até mesmo, aos
indivíduos que trabalham para a manutenção e o controle do capital. A outra parte é incorporada pelos
operários como ideologia, conforme o próprio Maurício Tragtenberg afirma: a teoria geral da administração é
ideologia. Nas escolas de administração, os alunos dos primeiros períodos a concebem na aprendizagem como
ciência. Isto porque a literatura que aborda a temática apresenta a história da administração e as escolas
componentes de forma funcionalizada e pragmática, ou seja, como conhecimento instrumental de base para as
disciplinas específicas de natureza técnica, tais como administração da produção, de recursos humanos,
financeira e demais. É por isso que a ciência é contraditória, pois, ao mesmo tempo em que liberta, aprisiona.
Assim, a ciência pode ser considerada um instrumento de opressão de uma classe ao mesmo tempo em que é
um instrumento de dominação de outra. A ciência não pode ser definida como uma categoria moral, mas tem
sua dimensão política e ideológica.
Não é a ciência (e os conhecimentos gerados por ela) que destrói. É sua utilização política em favor de
determinadas classes para exercer opressão sobre outras. A bomba nuclear, as armas químicas, as armas de
fogo e todos os “produtos” resultantes dos conhecimentos científicos aplicados não podem ser
responsabilizados pelas matanças ou genocídios praticados na história da humanidade. Uma simples faca de
cozinha também pode matar. A questão também não é responsabilizar o indivíduo isolado, pois, apesar da sua
parcela de responsabilidade em razão de seu livre-arbítrio, a formação do seu Ser é resultado das relações
sociais.
A correta utilização da ciência torna-se cada vez mais clara, à medida que se desmistifica a própria ciência. A
substituição dos mitos antigos pelo mito da ciência como “salvador dos indivíduos” contém o mesmo gérmen
da dominação e da diferenciação entre classes. A contemporaneidade apenas consolida no tempo presente a
ideia de Habermas (1997, p.98-99):
Esse domínio, inevitavelmente, também recai naquele que o homem exerce sobre si próprio. Se antes a
dominação era exercida pelo poder de violência e de coerção, hoje, o capitalismo traz outras formas até mais
“requintadas” de dominação; muitas, inclusive, de natureza psíquica. Todavia, o requinte e a mudança da
natureza da dominação não levam, necessariamente, à ausência de alguma forma de violência. O poder de
destruição persiste e potencializa-se, porquanto o que antes estava centrado na ação dos sujeitos (soldados,
policiais, fundamentalistas e outros), hoje, está disseminado no conhecimento ou nas técnicas utilizadas nas
formas de gestão, nos produtos gerados pela ciência e nos mecanismos de controle psicológico encomendados e
produzidos pela psicologia. Há evidente concentração das grandes violências, o que não impede que as de
menores consequências devam ser negligenciadas ou mesmo desconsideradas.
A concentração de poder de destruição ainda está, inevitavelmente, no complexo militar industrial. Por isso,
nos países capitalistas avançados, todos os ramos da ciência e da tecnologia são levados a funcionar
em auxílio aos objetivos das poderosas estruturas econômicas e político-organizacionais. As linhas
tradicionais de demarcação entre “ciência pura” e “ciência aplicada” – assim como entre os
negócios e o universo cada vez mais desdenhado da “academia” – são radicalmente retraçadas para
adequar todas as formas de produção intelectual às necessidades do complexo militar-industrial.
(MÉSZÁROS, 2007, p.287)
Habermas (1982) opõe-se ao cientificismo positivista de Karl Popper, Carl Hempel e Paul Oppenheim, ao
pretenderem definir os critérios de “toda verdade científica”. Habermas faz uma reconstrução histórica
defendendo a particularidade das ciências sociais. A tese defendida pelo frankfurtiano é a de que há um vínculo
entre conhecimento (ciência) e interesse (no sentido do interesse universal). As ciências consideradas exatas
são orientadas por procedimentos empírico-analíticos, que não podem ser generalizados ou adotados como
procedimento para as ciências sociais.
A discussão do domínio das ciências pragmáticas e a forma como suas características e pressupostos são
incorporados pelas ciências sociais não é uma preocupação somente de Habermas. Vários outros intelectuais
entre eles Adorno, Bourdieu, Touraine e Tragtenberg alertaram para a tendência totalitária de transformar as
ciências sociais em uma extensão das ciências pragmáticas.
A influência das ciências experimentais ou racionalistas, baseadas em cálculos e modelos de natureza
matemática, está presente em grande parte das formas de saber. Nem mesmo a filosofia escapa a essa regra,
conforme afirma Horkheimer (2000, p.51):
Como a ciência, a própria filosofia tornou-se não um exame contemplativo da existência nem uma
análise do que se passou e foi feito, mas uma visão das possibilidades futuras com a indicação de que
se alcance o melhor e se evite o pior. Probabilidade, ou melhor, o cálculo, substitui a verdade, e o
processo histórico que na sociedade tende a tornar a verdade uma expressão vazia recebe as bênçãos
do pragmatismo, que transforma isso numa expressão vazia dentro da filosofia.
O pragmatismo incorporado pela ciência, aliado à influência do capital na constituição de redes de criação de
conhecimento para produção de produtos passíveis de serem comercializados, fomenta investimentos
específicos em determinados projetos científicos. Exemplo disso são os investimentos na tecnologia de guerra,
na ciência do espaço, na engenharia genética, na nanotecnologia ou na física quântica aplicada.
Todavia,
tentar transformar a física experimental num protótipo de todas as ciências e modelar todas as esferas
da vida intelectual segundo as técnicas do laboratório, pragmatismo torna-se o correlato do
industrialismo moderno, para quem a fábrica é o protótipo da existência humana, e que modela todos
os ramos da cultura segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório racionalizado.
(HORKHEIMER, 2000, p.57)
O pragmatismo divide a realidade em “mundo prático” e em conhecimento teórico, potencializando a
compreensão da realidade em frações e fronteiras científicas. Assim,
o chamado mundo prático não tem lugar para a verdade, e, portanto, divide-a em frações para
conformá-la à sua própria imagem: as ciências físicas são dotadas da chamada objetividade, mas
Tragtenberg (2004, p.25-27) afirma ainda que as universidades americanas estão a serviço do capital, inclusive,
as frentes de ciências responsáveis por colocar em risco a própria condição de segurança da humanidade. Todo
programa nuclear foi desenvolvido em universidades e institutos de tecnologia americanos. A Guerra Fria,
dessa forma, foi nutrida pela ciência dessas instituições. Os princípios da energia nuclear e o projeto Manhattan
(de desenvolvimento da bomba atômica) foram criados pelos cientistas da física. Aos sociólogos americanos
coube a missão de criar uma “engenharia do consenso”, necessária para justificar a utilização da bomba
atômica contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Dessa forma,
econômicas dominantes. A subordinação é clara e direta. As regras para receber o fomento variam de acordo
com os interesses da economia. Poucas bolsas de estudos ou recursos são destinados a pesquisas que não
privilegiem o interesse do capital. A existência delas é meramente ilustrativa e com a finalidade de “anunciar” a
ilusória democracia do conhecimento. Os malefícios da burocracia do ensino e da ciência, somados à rede
privada, potencializam a indiferença real com o cientista, transformando-o em mero instrumento de meio,
pouco relacionado com os fins da ciência. O cientista torna-se um trabalhador da ciência que não dispõe, na
realidade estatal,
de recursos que não os instrumentos de trabalho que o Estado põe ao seu alcance. Nesse sentido, ele
depende de seu patrão – já que o diretor de um instituto pensa, com total boa-fé, que aquele é seu
instituto. Daí passa a dirigi-lo a seu bel-prazer, de modo que a posição do assistente, nesses institutos,
é, normalmente, tão precária quanto à de qualquer outra existência „proletaroide‟, ou até quanto à dos
assistentes das universidades norte-americanas. (WEBER, 2003, p.27-28)
Mesmo os cursos de pós-graduação, responsáveis pela formação de cientistas e pesquisadores, não ficam fora
dessa regra. Conforme Tragtenberg (2004, p.80) afirma,
o curso de pós fica reduzido a ser pós-de-coisa-alguma.3 A universidade, controlada em sua função
pedagógica pela burocracia, por ter sua função de pesquisa redefinida fora de seu meio, por agências
de financiamento nacionais e internacionais, é “domesticada”. Reduz-se à criação de mão-de-obra
“superior” requerida pelo sistema, sem mais nada, sem fantasia.
De fato, não ocorre a suposta neutralidade axiológica, pois as ideologias estão o tempo todo permeando o
espaço, os procedimentos e os recursos financeiros do pesquisador. Sua subordinação à burocracia científica
limita-o na sua jornada pela busca do conhecimento científico. É nesse sentido que a pós-graduação se tornou,
segundo o próprio Tragtenberg (1974), o “bode expiatório” da ciência.
Conforme Uhle (2001, p.153) afirma,
Há crimes lógicos e passionais; a distância que os separa é incerta, são definidos os primeiros pela
existência da premeditação. Da mesma forma que a existência do carrasco pressupõe a vítima, o
poder monocrático e vertical implica bodes expiatórios. Essa é a função da pós-graduação nos
discursos do Poder, através de seus representantes mais autorizados. Justamente numa época em que
cursos de pós-graduação difundiram-se pelo território nacional, e nesse sentido democratizaram-se,
são taxados de elitistas e como tais voltados à extinção decretada pelos donos do poder.
O suposto poder da elite intelectual é reduzido à burocracia estatal direta ou indireta, presente tanto nas
instituições públicas quanto nas privadas. A abertura de vagas na pós-graduação sofre dupla contradição:
é alvo de reserva quanto à possibilidade de abertura de novas vagas, denotando certo movimento para
reservar o mercado para os cientistas e pesquisadores já atuantes; e
é defendida para consolidar a “democracia” e a universalização do conhecimento.
A burocracia apresenta as contradições do sistema no seu interior. Assim, é necessária a “produção do
conhecimento e, para isso, [é imprescindível apostar] na liberdade do pesquisador para buscar problemas
socialmente relevantes para seus estudos. Por essa crença na necessidade de autonomia de pesquisadores e
instituições de pesquisa é que [Tragtenberg] criticou sempre os acordos de interesse, os grandes financiamentos
que fecham a agenda do pesquisador, os célebres convênios com as empresas privadas ou com as fundações
Ford, Rockfeller e tantas outras. Daí porque sua história mostra o currículo de um intelectual que nunca teve
uma bolsa de estudos, nunca fez um estágio internacional, mas nem por isso deixou de ser cosmopolita”
(UHLE, 2001, p.165).
O processo de racionalização no ensino e na ciência não é um evento à parte. É parental com o mesmo
fenômeno ocorrido nos processos de trabalho. A especialização extrema aliena o cientista do fato gerador do
conhecimento. O controle financeiro subordina a pesquisa aos interesses econômicos. As normas, regras e
procedimentos engessam a ação do cientista e do pesquisador. Para aceitar essas condições sem maiores
“traumas” ou sofrimentos, cientistas e pesquisadores aceitam as regras impostas pelas fontes financiadoras. As
universidades nada mais são do que grandes organizações burocráticas, organizadas de forma a garantir a
reprodução das suas elites internas. O processo de racionalização das universidades está em concordância com
o processo já definido por Weber como “desencantamento do mundo”, pelo qual o próprio conceito weberiano
de neutralidade axiológica perde sentido. Porquanto não é possível neutralidade em um processo cuja forma
mais comum de racionalização não seja um fim em si mesmo, mas tão somente um meio para a realização das
elites orientadas e motivadas para o acúmulo permanente de capital, nem que seja por meio de uma economia
militar orientada mais para a destruição do que para a melhoria da sociedade.
(Sem) saber e (com) poder: Francis Bacon e o mito do “o conhecimento é em si mesmo um poder” por
uma breve conclusão?
Francis Bacon é considerado o precursor do racionalismo. A ruptura com a tradição filosófica anterior
possibilitou o surgimento de uma nova filosofia. O aparecimento do pensamento imanentista (a construção da
filosofia por meio da razão, ao invés de admitir a prevalência do real) é responsável por focar o indivíduo do
saber como detentor do poder: “a ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada,
frustra-se o efeito. Pois, a natureza, não se vence, se não, quando se lhe obedece” (BACON, 1988, p.13).
Bacon, na época em que fez suas reflexões, conseguiu imaginar em que medida a ciência, como força
transformadora da realidade, iria se desenvolver. Mais do que isso, imaginou a força destrutiva, por meio do
complexo industrial militar, como orientadora da ciência e de grande parte das pesquisas aplicadas. Conforme
afirma Passetti (2001, p.108),
em “O saber e o poder” [Tragtenberg], localiza as orientações de Bacon como investimento, num
saber que se disponibiliza de maneira serviçal à dominação. Seu foco atinge em especial as conexões
científicas com o colonialismo e as guerras, mostrando como os intelectuais se transformam em “parte
integrante do complexo militar-industrial-acadêmico”, orientado pela especialização e criação de
modas universitárias que se impõem pela tirania. Receber financiamento implica ajustar-se às teorias
definidas pelas agências, num complexo desenho de engenharia social: “na medida em que os
cientistas propõem terapia de controle sobre os que estão abaixo, eles servem aos que estão acima”.
A realidade de Bacon era diferente da atual. A passagem da filosofia para a ciência ocorreu e sedimenta-se na
noção de materialidade da ideologia. A filosofia, a sociologia e todas as ciências humanas apresentam-se como
produtoras de racionalidades que justificam a utilização da ciência como meio de dominação, não só da
natureza como também dos próprios homens. Essas racionalidades e imaginários vêm amparados pela ideia de
que a ciência é neutra. Uma mitificação ocorre por conta disso e cria uma “fé” na filosofia e na ciência, como
libertadora dos homens em relação a todas as formas de sofrimento e angústias existenciais.
Nessa relação de fé há um equívoco de concepção. A ciência é, na atualidade, uma força produtiva ou uma
mercadoria. Constitui força produtiva quando transforma materialmente a realidade ou quando serve para
promover e intensificar o acúmulo do capital, seja por meio da exploração crescente da mais-valia absoluta ou
pela intensificação da mais-valia relativa. Constitui mercadoria quando apropriada por indivíduos ou grupos
dominantes que monopolizam sua utilização ou quando exercem as propriedades fetichistas tal como Marx
abordou e, ainda, mercadoria quando de fato é apenas a extensão da propriedade privada. A ciência, seja ela
força produtiva ou mercadoria, é fator importante nas relações de produção existentes.
Além disso, a ciência pode ser força produtiva de destruição. A humanidade vivencia uma relação entre “matar
e morrer” gerada pelas armas que a ciência disponibiliza por meio de um complexo industrial militar cada vez
mais crescente. A ciência, como força produtiva dessa natureza torna-se, na realidade, financiadora da
destruição. Nessas circunstâncias, inexiste a neutralidade da ciência porque a ideologia atua com força material
ou como formadora do imaginário da dominação.
A forma mais perversa de sedimentação da ciência como força produtiva destrutiva consolida-se, em grande
parte, nas racionalizações que geram o pragmatismo ou a universidade burocrática. Essa burocracia é
construída para a manutenção dos privilégios da elite intelectual que a ocupa. A universidade como local de
produção da ciência apresenta-se como a consolidação dos interesses do capital, uma vez que aprisiona e
transforma a maior parte da produção científica em mercadoria ou força produtiva.
Pelas contradições que a sociedade capitalista apresenta é possível viver sem saber e com poder, pois no
capitalismo, o que confere poder nem sempre é o domínio do saber científico. Da mesma forma, o inverso pode
ser verdadeiro: com saber e sem poder, o primeiro como consequência e o segundo como resultado. Assim, a
afirmação dogmática de que saber é poder não passa, em algumas situações, de um mito presente na sociedade.
O poder, conferido por determinados conhecimentos, ganha força e importância de acordo com os interesses
defendidos ou o grupo dominante.
Algumas reflexões precisam ser feitas com base em afirmações de Tragtenberg:
quando passaremos a nos preocupar de fato “com as finalidades sociais do conhecimento”, evitando,
assim, “a „delinquência acadêmica‟ ou a „traição do intelectual‟?” (TRAGTENBERG, 2004, p.16);
uma nova organização do trabalho, diferente da existente no modo de produção capitalista, é suficiente
para “elevar” a ciência a uma nova ética centrada nos interesses dos indivíduos e seus coletivos, ao
invés dos interesses das elites dominantes?
Nem toda pesquisa ou reflexão precisa acabar com certezas ou afirmações. A grande propriedade do saber,
incluindo a ciência em todas as épocas, é a capacidade de elaborar suas questões, de levantar as problemáticas
que permeiam a sociedade, de questionar a própria razão vigente, embora, nem sempre, chegue a respostas
definitivas. Dessa forma, quais questões o leitor pode criar após esta leitura?
Referências
ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.
BACON, Francis. Novum organum. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores).
GRAMSCI, Antonio. The formation of intellectuals. London: Lawrence and Wishart, 1975.
HORKHEIMER, Max. Teoría crítica I – Max Horkheimer. São Paulo: Perspectiva; Editora da USP, 1990.
PASSETTI, Edson. Maurício Tragtenberg, um socialista heterodoxo. In: ACCIOLY; SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício
Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
______. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
UHLE, Agueda Bernardete Bittencourt . Tragtenberg e a educação. In: ACCIOLY; SILVA, Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício
Tragtenberg: uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2003.
1
O tipo ideal weberiano é um instrumento de análise sociológica para a compreensão da realidade social. É um mecanismo de criação de
tipologias puras, supostamente destituídas de “valores avaliativos”. Seu distanciamento da realidade é tido como fundamental para a
sua compreensão.
2
Tragtenberg (1984).
3
“Na realidade, o que os subdesenvolvidos aprendem a respeitar na ideia de ciência são os conceitos abstratos, as realizações
experimentais que não podem ser reproduzidas por eles e que não têm relação com sua cultura. Ficam em estado de impotência
intelectual em relação à Metrópole, que capta os melhores estudantes para o doutorado, na sua maioria, oriundos da América Latina”.
(TRAGTENBERG, 2004, p.33)
Toda a produção acadêmica é, necessariamente, o resultado de uma produção coletiva. O autor expressa, de
forma organizada e sistematizada, a partir de reflexões e pesquisas, aquilo que foi produzido social e
historicamente. Assim, ao escrever na primeira pessoa do singular, procedimento que não costumo adotar, não
pretendo negar esse fato, mas apenas assumir inteiramente a responsabilidade pelo texto; ou seja, falo por mim.
O que escreverei aqui é a minha avaliação, fruto de mais de 30 anos de estudos e pesquisas nessa área. Por isso,
ainda que muitas das concepções sejam originárias de outras reflexões, apenas em casos extremamente
necessários, quando a autoria da concepção não for de domínio público, farei referência à bibliografia.
Vou procurar argumentar, neste artigo, que a teoria crítica, entendida como marxismo ocidental, somente agora
tem, no Brasil, na área de estudos organizacionais, uma produção sistemática relevante. Ao contrário das
crenças fixadas na academia, no Brasil, não houve nessa área de estudos uma linha de pesquisa com substância
histórica. Isso não será feito de forma exaustiva, primeiro de tudo, porque não é o propósito dessas reflexões e,
em segundo lugar, porque muitas das questões que serão aqui abordadas já foram tratadas em outros textos.
Para facilitar minha exposição, procurarei explorar o tema a partir de quatro questões: Teoria Crítica; Teoria
Crítica em Estudos Organizacionais; Critical Management Studies; Análises Críticas em Estudos
Organizacionais. É importante considerar que as mesmas não esgotam o conjunto das abordagens necessárias
ao esclarecimento do tema do estado da arte da teoria crítica no Brasil, mas oferecem uma boa pista de
investigação e um proveitoso motivo para polêmicas, que espero possam ocorrer.
Esclarecimentos iniciais
Antes de apresentar as questões anunciadas, acredito ser necessário explicitar, a título de esclarecimento, alguns
pontos que servem para fundamentar o desenvolvimento da argumentação que se segue. Em linhas gerais,
entendo que:
I. existe uma diferença substantiva entre (a) teoria crítica, segundo a tradição da Escola de
Frankfurt, (b) teoria crítica em estudos organizacionais (TCEO), que agrega outras dimensões à
teoria crítica frankfurtiana, (c) estudos gerenciais críticos, segundo os parâmetros do critical
management studies (CMS) e (d) análises críticas em estudos organizacionais (ACEO);
II. a teoria crítica frankfurtiana possui três gerações: a primeira, original, filiada ao marxismo,
formada por Pollock, Bloch, Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse e Fromm, entre outros; a
1
Pós-Doutorado em Labor Relations pel ILIR - University of Michigan e Doutorado em Administração pela Universidade de São Paulo-
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP. Professor Titular do Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Organizações e Desenvolvimento da FAE Centro Universitário; Professor Titular Sênior do Programa de Pós Graduação em
Educação – PPGE (Mestrado e Doutorado) da UFPR; Pesquisador PQ do CNPq; Líder do Grupo de Pesquisa Economia Política do Poder e
Estudos Organizacionais. Endereço: Rua Itupava, 1.299 - Sala 103 - Hugo Lange – Curitiba- PR – Brasil – CEP: 80.040-000. E-mail:
jhfaria@gmail.com
segunda, liderada por Habermas, que se afasta do marxismo; e a terceira, liderada por Axel
Honneth, que se dedica ao estudo da luta pelo reconhecimento na perspectiva crítica hegeliana e
habermasiana (inclusive, criticando essas perspectivas). Portanto, falar em teoria crítica
frankfurtiana implica identificar também sobre qual das três gerações se fala;
III. a teoria crítica frankfurtiana tem alcance social e é identificada como marxismo ocidental, ou
seja, não se vincula ao stalinismo, ao leninismo, ao maoismo e a outros desvios políticos
impetrados em nome do marxismo e que resultaram em regimes totalitários, em práticas de
autoritarismo, violência, centralismo burocrático e formação de oligarquias, entre outras;
IV. a teoria crítica em estudos organizacionais segue os pressupostos frankfurtianos, mas não se
esgota neles. Trata-se de uma teoria que se baseia na dimensão epistemológica do materialismo
histórico e no método dialético. Isso significa dizer que a TCEO utiliza-se, ao mesmo tempo, de
referenciais do marxismo, das análises frankfurtianas de primeira geração, dos estudos sobre
Estado, poder e classes sociais, da psicologia sócio-histórica, da sociologia clínica crítica (ou
psicossociologia crítica) e da psicanálise freudiana. A TCEO caracteriza-se por permitir um
amplo diálogo com outras teorias, assegurado sua vinculação à dimensão fundante do
materialismo histórico. Dada sua dimensão e alcance, bem como sua expressão no campo
empírico, tenho identificado, desde 2001, a TCEO como uma economia política do poder em
estudos organizacionais (EPPEO);
V. a linha de trabalho identificada por estudos críticos em gestão ou critical management studies,
por mais que seus proponentes insistam em referenciar reflexões marxistas, não tem qualquer
semelhança ou proximidade com a teoria crítica ou com a TCEO. Trata-se, apenas, de uma linha
de usuários eventuais de conceitos marxistas, aos quais faltam metodologia, epistemologia,
teoria e ontologia marxistas;
VI. a incorporação do pós-estruturalismo foucaultiano nas análises organizacionais, segundo uma
concepção arqueológica, por mais importante que seja (como de fato é), não tem relação com a
teoria crítica ou com a TCEO. A tentativa de fazer dos estudos foucaultianos elementos
constitutivos da teoria crítica ou da TCEO é um equívoco teórico e epistemológico, ainda que o
próprio Foucault, em suas últimas obras, tenha buscado certa aproximação com o marxismo;
VII. a produção acadêmica brasileira que mais se identifica com a teoria crítica na tradição da Escola
de Frankfurt é a realizada por Maurício Tragtenberg. Ele foi o precursor e, arrisco afirmar, o
fundador da teoria crítica em estudos organizacionais no Brasil, o que se evidencia na publicação
de Burocracia e ideologia. Como a direção dada por Tragtenberg aos estudos na área das
organizações fixou-se nos referenciais weberianos, marxistas e anarquistas e não teve inspiração
em Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm ou em Habermas, pode-se dizer que Tragtenberg
traçou uma linha própria de pensamento e que a proximidade com a teoria crítica não fez dele
um intelectual frankfurtiano, mas um estudioso da burocracia, do poder e da dominação, em suas
diversas formas de manifestação, pela via do marxismo-anarquismo. É, portanto, com
Tragtenberg que foi estabelecida a TCEO como referencial nesse campo de estudos, no Brasil,
por meio de uma concepção original. Para diferenciar a teoria crítica da TCEO, segundo a
concepção fundada por Tragtenberg, é que, como já afirmei anteriormente, conceituei a TCEO
como uma EPPEO;
VIII. a produção acadêmica de Fernando Prestes Motta teve contatos importantes com a teoria crítica,
especialmente, com a TCEO. Muitas vezes, no entanto, afastou-se dela ao se aproximar dos
estudos sobre a cultura pela perspectiva de Schein e não pela de Walter Benjamin e por buscar
inspiração na autogestão proudhoniana (socialismo utópico), não na autogestão social ou no
socialismo democrático (socialismo científico). Tal afastamento igualmente decorre do fato de
procurar em Jung explicações que não estavam na agenda da concepção pulsional da teoria
crítica derivada de Freud (psicossociologia crítica) ou na psicologia social-histórica da
Vygotsky. Isso não significa que Motta não possa ser considerado um analista crítico. Ao
contrário, para ser justo com Fernando Motta, suas incursões na psicossociologia crítica, no pós-
estruturalismo de Foucault e nos estudos sobre simbolismo, imaginário e ideologia forneceram
uma base nova para a análise crítica em estudos organizacionais. Suas tentativas de buscar
explicações em outras dimensões teóricas e epistemológicas indicam tanto sua insatisfação com
o estado da arte das explicações, quanto sua ousadia em procurar alternativas de análise;
IX. a produção acadêmica de Guerreiro Ramos, ao contrário do que tem sido afirmado alhures, não
tem qualquer relação com a teoria crítica. Guerreiro Ramos é um fenomenólogo crítico, não
marxista, não frankfurtiano;
X. na atualidade, a TCEO tem encontrado respaldo em algumas linhas de pesquisa, mas outras, que
se autodesignam como tributárias da teoria crítica, de fato, não o são, pois não seguem os
pressupostos da mesma. Especificamente, chamo a atenção para estudos fenomenológicos,
estruturalistas, pós-estruturalistas e da teoria da complexidade de Edgar Morin, entre outros. Não
me sinto à vontade para enquadrar esses estudos como teoria crítica quando se utiliza um critério
científico de classificação. Proponho, desse modo, que esses estudos sejam considerados uma
quarta linha, à qual chamarei de análises críticas em estudos organizacionais.
As quatro grandes áreas dos estudos organizacionais críticos
Com base nas observações precedentes, proponho, esquematicamente, uma organização no campo de estudos
organizacionais críticos em quatro grandes áreas:
I. teoria crítica frankfurtiana − que se baseia em estudos sociais e segue as orientações teóricas e
filosóficas da Escola de Frankfurt, independentemente de qual seja a geração a que se filia;
II. teoria crítica em estudos organizacionais − que se baseia no marxismo em seus estudos e
pesquisas no campo das organizações, com ênfase na centralidade do trabalho (processo e
relações de trabalho, divisão do trabalho e gestão do processo de trabalho), contemplando, além
dos estudos frankfurtianos, outras dimensões, tais como a psicologia sócio-histórica, a
psicossociologia crítica, as formas democráticas de gestão (autogestão social e organizações
coletivistas de trabalho), as análises sobre Estado, poder e classes sociais etc., área essa à qual
denomino “economia política do poder em estudos organizacionais”;
III. critical management studies − que se baseia em estudos críticos em gestão na perspectiva da
gestão, cuja referência encontra-se nos estudos conduzidos principalmente por Alvesson, Deetz e
Willmott;
IV. análise crítica em estudos organizacionais − que se baseia em estudos segundo novas dimensões,
como o pós-estruturalismo de Foucault, o pós-modernismo de Lyotard, as análises institucionais
de Lourau e Lapassade, o simbolismo de Bourdieu, o imaginário de Castoriadis e a teoria da
complexidade de Morin, entre outros. São análises críticas não marxistas e não frankfurtianas
que estudam as organizações, do ponto de vista das relações de poder.
Adiante, a figura 1 resume o esquema proposto.
Vou me ocupar, a seguir, da teoria crítica frankfurtiana e sua relação com a TCEO e as ACEO, pois os CMS
estão bem definidos na literatura e sobre eles já disse o que havia para dizer. De fato, indicadas essas quatro
áreas − que constituem, em minha concepção, a matriz do que se pode chamar genericamente de estudos
organizacionais críticos −, convém analisar os fundamentos da teoria crítica e sua apropriação pela área.
Começo lembrando que no campo dos estudos organizacionais, a teoria crítica ainda tem sido identificada
como simples crítica teórica ou como abordagem crítica que articula uma crítica à teoria das organizações,
embora permaneça prisioneira dos fundamentos epistêmicos desta. Essa inadequação tem permitido classificar
como teoria crítica textos que não se enquadram em seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, o que
sugere ser necessário demarcar o alcance dessa teoria nos estudos organizacionais, desvinculando-a da mera
crítica teórica e dos estudos críticos em gestão.
Figura 1
Áreas de estudos organizacionais críticos
Horkheimer já sugeria encorajar a elaboração de uma teoria da sociedade em sua totalidade, que fosse
precisamente crítica e dialética, de forma a fazer emergir as contradições da sociedade capitalista. Desse modo,
caberia à teoria crítica, como indicou Adorno, investir contra as imagens deformadas da realidade que
desenvolvem a função de servir ao poder, não dando voz à realidade desordenada do capitalismo. Assim, ao
denunciar o eclipse da razão, Horkheimer afirmava que por detrás da pura lei econômica, da lei do mercado e
do lucro encontrava-se a pura lei do poder de uma minoria, baseada na posse dos instrumentos materiais de
produção, de forma que a tendência ao lucro acabava sendo o que sempre foi, ou seja, a tendência ao poder
social. No âmbito do estatismo de inspiração soviética, o lucro foi substituído pelo plano, mas as pessoas
continuaram objetos de uma administração centralizada e burocrática: tanto os controles sobre o lucro como os
controles sobre o plano geraram formas cada vez mais agudas de repressão. É nesse sentido que argumentei já
em 2001 que a teoria crítica se constituía não somente em uma teoria da economia, mas do poder: uma
economia política do poder. Aplicada à área das pesquisas em organizações, a teoria crítica constitui uma
economia política do poder em estudos organizacionais.
sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos,
sujeitos absolutos, entidades plenamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas construções
sociais dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas objetivas e subjetivas, manifestas e ocultas,
concretas e imaginárias, cabendo à TCEO a atribuição política de investigá-las além de seu aspecto
fenomênico. Como afirma Kosik, é preciso, mais do que a coisa, conhecer a estrutura da coisa.
O problema central de uma teoria crítica, portanto, consiste em esclarecer em que medida as instâncias obscuras
(que se operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e
manifestas (especialmente, as referentes ao regramento e às estruturas formais) dão conteúdo às configurações
do poder nas organizações do ponto de vista do sujeito coletivo do trabalho. É preciso revelar em que medida as
organizações definem seus mecanismos de poder e de controle sobre o processo e as relações de trabalho,
incorporando o que não pode ser dito, que se reproduz em seus porões, ao que é possível falar, ao que pode ser
manifesto às claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de racionalidades (de regras, objetivos,
políticas, processos produtivos, planos, estratégias etc.) e de (inter)subjetividades (símbolos, ritos, imaginários
e mitos), com seus paradoxos e contradições.
A TCEO não é completa e definitiva, mas precisa assumir seu compromisso histórico com a denúncia da
repressão, do controle e da exploração, baseada na convicção de que uma sociedade igualitária é a única
alternativa para que se estabeleçam os fundamentos da justiça, da liberdade e da democracia. Portanto, cabe à
TCEO desenvolver formulações que expliquem o real em sua forma e em sua substância, que permitam
compreender além do que pode ser visto e imediatamente entendido pela sociedade. A TCEO constitui-se,
assim, a partir das análises do materialismo histórico e do método dialético, para apreender os processos de
transformação que se operam no modo de produção para estabelecer as relações entre os sujeitos da ação e a
própria ação. Desse modo, TCEO não pode se contentar com as análises que se encerram no plano da
macrossociedade e tampouco com as que pretendem explicar o mundo a partir do sujeito individual (do
comportamento, da cognição, do conhecimento, da liderança e de outros atributos pessoais), reclamando a
construção de uma epistemologia que possa tratar de ambas as representações.
Por não servir aos interesses dominantes no campo teórico da análise organizacional, a TCEO tem sido
classificada como radical, em seu sentido pejorativo. Porém, ao examinar a ética e a moral da sociedade, ao
interrogar as práticas sociais, ao questionar as relações de poder, ao investigar as formas de controle social, ao
revelar a psicodinâmica do trabalho, ao trazer à tona a constituição do processo de trabalho sob o capital e as
formas de exploração aí encontradas, a TCEO é de fato radical, no sentido de que pretende ir à raiz dos
problemas, de que não se satisfaz com o que é dado pelas constatações resultantes das pesquisas, de que não lhe
basta compreender a forma sem o conteúdo e a aparência sem a essência. O pensamento radical é a busca
incessante das contradições sociais, em que a realidade aparente passa a ser questionada e torna-se objeto de
investigação.
Sem embargo, o que se deve buscar no estudo das organizações são as relações internas e externas de poder,
manifestas tanto em suas formas de controle e em sua ação mediadora de objetivos e desejos, quanto em sua
inserção dinâmica e contraditória na sociedade globalizada. As relações de poder têm como finalidade a posse
política, o domínio das estruturas organizadas da sociedade, daí a razão de se falar em uma economia política
do poder, pois se trata de compreender, ao mesmo tempo: (i) a interação entre o movimento da sociedade, do
ponto de vista do modo de produção, e do Estado capitalista contemporâneo e (ii) as lógicas internas da
dinâmica organizacional. Essa interação é necessariamente contraditória, paradoxal e, jamais, definitiva. A
análise deve estar fundamentada no entendimento das relações entre os sujeitos coletivos, seja no campo do
trabalho, da produção, da realização, do imaginário ou dos afetos, em seus aspectos objetivos e subjetivos; ou
seja, nas relações de poder.
A economia política do poder é, portanto, a forma que assume a teoria crítica, fundada no materialismo
histórico marxista, no método dialético e na interdisciplinaridade. No campo das organizações, a EPPEO leva
em conta tanto os movimentos internos e contraditórios destas (nos quais se contemplam as realidades
manifestas e ocultas, compartilhadas ou não pelos sujeitos), como suas interações com a totalidade social
(interações igualmente complexas e contraditórias), nas quais se contempla o sociometabolismo do capital,
conforme conceitua István Mészáros. As organizações, como unidades de análise, não podem ser tomadas
independentemente, tanto do lugar que ocupam nas relações de produção e na ampla superestrutura social,
quanto das relações objetivas e subjetivas que se estabelecem no interior da mesma.
Entretanto, é necessário colocar com clareza que há uma importante diferença epistemológica, com
consequências teóricas e metodológicas, entre estudar as organizações a partir das suas interações contraditórias
com a totalidade social e estudá-las a partir dos efeitos do ambiente externo sobre a realidade interna e dos
efeitos da realidade interna sobre o ambiente. Para a EPPEO, não se trata de estudar os efeitos, sejam quais
forem as direções destes, mas as relações, e não apenas as relações presentes nas estruturas e que as constituem,
mas as relações dialéticas: essa diferença marca profundamente o campo da TCEO/EPPEO e da teoria crítica
frankfurtiana, distinguindo-as tanto das ACEO − que se fundamentam no estruturalismo, no pós-estruturalismo
(inclusive, o foucaultiano), na fenomenologia crítica, no pós-modernismo, no estruturacionismo e na teoria da
complexidade −, quanto dos estudos críticos em gestão (CMS), que se fundamentam na teoria institucional
clássica, no funcionalismo, no positivismo, na teoria dos sistemas, na metafísica (neo)kantiana, no pragmatismo
e no empirismo, ainda que sejam usuários de conceitos neomarxistas e foucaultianos, entre outros.
No Brasil, a adoção da teoria crítica em estudos organizacionais foi magistralmente realizada por Maurício
Tragtenberg no início dos anos 1970. Em Burocracia e ideologia, seu mais conhecido trabalho, Tragtenberg
ousa um pensamento interdisciplinar e lança as bases de uma verdadeira transformação nesse campo de
estudos, no qual se evidencia um fundamento de importância nuclear: o que marca a TCEO é a coerência
epistemológica.
A questão posta por Maurício Tragtenberg é a do poder e, assim, a da recusa a toda a forma de dominação, a
crítica à violência, a denúncia ao burocratismo, o apontamento à ideologia gerencialista que predomina na
chamada teoria geral da administração e, ao mesmo tempo, a defesa intransigente da democracia e do projeto
libertário. São os estudos de Tragtenberg que inspiraram Fernando Prestes Motta, Fernando Coutinho Garcia e
a mim, como o próprio Maurício indica em seu memorial, a levar adiante essas investigações no campo
organizacional.
Cabe à teoria crítica questionar a si mesma, fazer uma teoria crítica de si e se perguntar: quais suas
perspectivas diante do capitalismo contemporâneo do terceiro milênio, em que as relações de poder se tornam
cada vez mais sofisticadas, em que o imperialismo se autointitula globalização, em que as condições de vida da
classe trabalhadora se deterioram diante de uma reestruturação produtiva do capitalismo, em que profetas
recém-saídos do forno anunciam a impossibilidade concreta de um socialismo democrático, em que novos
filósofos desacreditam das grandes teorias e se contentam com explicações particulares sem projetos?
Os que postulam por transformações radicais sempre constituíram uma minoria no mundo dos estudos
organizacionais, mas nem por isso deixaram de produzir suas críticas. Atualmente, no Brasil, os pesquisadores
ligados à teoria crítica propriamente dita, à teoria crítica em estudos organizacionais e às análises críticas em
estudos organizacionais já formam um grupo bem mais consistente do que o que havia nas décadas de 1970 e
1980, quando Tragtenberg dá impulso a essa área. Não se pode dizer que seus componentes têm a mesma
orientação teórica, mas possuem grande proximidade. Refiro-me, apenas a título de ilustração, aos grupos
atuantes nas universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), de Santa Catarina (UFSC), do Paraná
(UFPR), de Minas Gerais (UFMG), do Espírito Santo (UFES) e de Pernambuco (UFPE), na Universidade de
Brasília (UnB) e na FGV (São Paulo e Rio de Janeiro), entre outras instituições de ensino. Apesar da existência
desses grupos e do fato dos pesquisadores que os compõem terem algum grau de proximidade de interesses,
não existe uma rede acadêmica de teoria e análises críticas no Brasil, o que promove a contenção dos avanços
nessa área de investigação. O estabelecimento de uma rede acadêmica de teoria e análises críticas é, na minha
avaliação, necessária e urgente.
Ao mesmo tempo, entendo que a linha dos critical management studies constitui-se como a crítica não crítica
de estudos críticos. Trata-se de uma abordagem na qual o papel da crítica não tem um caráter revolucionário,
mas reformador. Não estou, com isso, pretendendo significar que esses estudos sejam inúteis, inadequados,
inapropriados etc. Apenas, não considero essa linha parte da teoria crítica ou das análises críticas, porque não
partilha de seus fundamentos. Os CMS têm seu lugar no campo organizacional, têm seguidores e adeptos de
renome e apresentam interessantes contribuições. Entretanto por uma questão de coerência, não se pode
considerá-los vinculados à teoria crítica ou às análises críticas.
Procurei, nessas reflexões, explicitar minha avaliação quanto ao estado da arte da teoria crítica no Brasil na área
de estudos organizacionais. Para tanto, procurei distinguir as várias formas que assumem as vertentes da teoria
crítica e, em seguida, propus um esquema no qual classifico os estudos organizacionais críticos em quatro
grandes áreas: (i) teoria crítica, segundo a tradição da Escola de Frankfurt; (ii) teoria crítica em estudos
organizacionais; (iii) critical management studies ou estudos gerenciais críticos; e (iv) análises críticas em
estudos organizacionais. As duas primeiras áreas constituem a teoria crítica, e embora não comunguem da
mesma linha teórica e epistemológica que a das análises críticas, entendo que possam dialogar. Os CMS,
contudo, pertencem à outra face da matriz dos estudos organizacionais críticos.
Embora seja uma área ainda incipiente, a mesma vem aparecendo com cada vez mais força e consistência nos
Enanpads e nos Eneos. Novos pesquisadores, mestrandos, mestres, doutorandos e recém-doutores estão se
incorporando à área, graças ao esforço dos orientadores nos programas de mestrado e doutorado e aos seus
projetos de pesquisa, o que cria uma expectativa de que, embora em minoria, os grupos atuantes em teoria e
análises críticas continuarão resistindo e apostando na transformação do status quo. Daí que a formação de uma
rede acadêmica de teoria e análises críticas, composta por pesquisadores e programas, torna-se estrategicamente
fundamental para o fortalecimento e a continuidade da área.
Abstract: This article seeks to understand the "origins" and "fundamentals" that make up the
design of bureaucratic organization in Mauricio Tragtenberg’s studies. Thus, the overall
sociedade. Assim, o problema que norteia este trabalho é: Qual a gênese e de que forma se
de Maurício Tragtenberg. Para tanto, os objetivos específicos são: (i) Analisar a organização
de Tragtenberg (constantes das referências) e sua produção nas colunas dos jornais –
realizadas com base em leituras de textos que atendem às categorias da pesquisa. As citações
específico.
divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho
material e o trabalho intelectual. A partir desse momento, a consciência pode de fato imaginar
que é algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo,
sem representar algo real.” De fato, a divisão entre trabalho material e trabalho intelectual está
separando os indivíduos em duas categorias. “Uns, serão os pensadores dessa classe (os
ideólogos ativos, que teorizam e fazem da elaboração da ilusão que essa classe tem de si
mesma sua substância principal), ao passo que os outros terão uma atitude mais passiva e
mais receptiva em face desses pensamentos e dessas ilusões, porque eles são na realidade os
membros ativos dessa classe e têm menos tempo para alimentar ilusões sobre suas próprias
sobretudo, porque nenhuma forma de produção subdividiu antes o trabalho de forma tão
produção. Assim como na indústria, procedeu à divisão técnica do trabalho por meio do
expositivas, por exemplo, o professor que reproduz o conhecimento gerado por outro,
exigindo dos seus alunos a absorção literal dos conhecimentos de terceiros, na realidade está
reside no fato de que as “mãos” dos professores são suas falas repetitivas, aula após aula. Seus
disponíveis nas prateleiras da fábrica de ensino. Nada muda quanto à natureza intrínseca da
atividade, pois o conhecimento reproduzido tem o mesmo sentido que as máquinas têm para
os operários.
mental porque são os criadores das teorias, dos conceitos e dos conhecimentos que asseguram
daquele para com este, à medida que este produz o que aquele reproduz. De fato, essa
dependência faz com que “os próprios indivíduos sejam completamente subordinados à
divisão do trabalho e, por isso mesmo, colocados em dependência uns dos outros”. (MARX,
2001, p. 80)
(2001), a divisão social do trabalho é “a totalidade das formas heterogêneas de trabalho útil,
que diferem em ordem, gênero, espécie e variedade”. A distinção entre a divisão social do
divisão social do trabalho é aparentemente inerente característica do trabalho humano tão logo
ele se converte em trabalho social, isto é, trabalho executado na sociedade e através dela.
trabalhadores”.
técnica do trabalho, por meio do parcelamento das atividades, faz do homem um ser alienado.
Enquanto a divisão técnica do trabalho é o gérmen das diferenças, a divisão social é sua
conseqüência, ou seja, enquanto a primeira é a ação que leva as diferenças sociais, a segunda
é sua manifestação. A divisão do trabalho implica uma separação entre o esforço produtivo e
É a partir destas bases que Tragtenberg desenvolve seus argumentos. Na sua obra,
tanto nos escritos considerados acadêmicos como na sua militância política na coluna “No
sociais é uma realidade consistente. É importante salientar, ainda, que, para Tragtenberg, a
complexidade das organizações em sua materialidade histórica. Por isso, “a grande divisão de
trabalho entre os que pensam e os que executam se realiza na grande empresa. Aqueles fixam
uma das quatro funções essenciais da administração, é a técnica de racionalização que garante
crescente. Com a harmonização necessária causada pela divisão entre os que “pensam” e os
planejamento chega à menor unidade produtiva, à ilha ou célula de produção (FARIA, 2004.
Vol. 2). Ainda que “descentralizado” operacionalmente, esse tipo de planejamento não
realização da tarefa, porque a separação entre os que “pensam” e “executam” ganha nova
conotação. Instados a planejar suas atividades diretas, porém segundo parâmetros, metas e
realmente importantes.
externas) para além das ações diretas da produção, são criticados por Tragtenberg de forma
sua denúncia para dirigida a quem estava diretamente no processo (os operários) é uma
das relações entre capital e trabalho (SILVA, 2001, p. 209). Entre as formas de gestão, o
Tragtenberg a insistir na tese de que a origem das desigualdades e dos grandes problemas no
sistema capitalista está na divisão do trabalho que este instaurou. Segundo Tragtenberg (1974,
cronômetro. Taylor determina o tempo médio para cada elemento de base do trabalho,
agregando os tempos elementares e mortos, para conseguir o tempo total do trabalho, com a
consciência dos que estão inseridos na feitura do trabalho. O taylorismo implica, ainda, na
razão do homem como agente das relações, tendendo a identificar a natureza humana com a
força de trabalho simples, onde se dá o processo de valorização do capital pelo trabalho [em
que] o operário não utiliza os meios de produção. São estes que o utilizam. O taylorismo
capitalismo industrial, onde a ética da classe dominante surge como a ética da eficiência, que
ela traduz.” (TRAGTENBERG, 1974, p. 194). A divisão do trabalho, por meio da separação
entre trabalho manual e trabalho intelectual, define os que fazem e os que pensam. Todas as
implicações ideológicas (morais, culturais, políticas e demais) são sedimentadas por meio de
uma burocracia erigida para garantir a separação e a distinção entre os que executam e os que
decidem. Por isso é que “as pessoas alienam-se nos papéis e estes se alienam no sistema
divisão do trabalho possibilita sua convicção de que a educação, nas suas diversas formas de
aprendizagem, não constitui uma dimensão separada das demais. Pelo contrário, tais
fábrica com todos os seus problemas e deficiências. Todavia, essa semelhança entre a fábrica
microcosmo do que ocorre na sociedade. Essa idéia é ingênua e contraditória. Embora não se
ideologia dominante. Sua perspectiva difere destes pensadores, pois para Tragtenberg mesmo
relação ao todo.
evidente também na educação. A escola é a fábrica, cujo produto – a educação formal – pelos
taylorismo, com todas as suas características, apresenta-se como o modelo a ser seguido.
Apesar dessa semelhança, a educação formal tem outro papel, também alinhado com a
ocupação ociosa e sim uma fábrica de homens utilizáveis2.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 46)
em função das mudanças sociais ou organizacionais. O saber ler, escrever e contar é, portanto,
um saber que se constitui como um meio, ou seja, um instrumento que viabiliza a adaptação
dos trabalhadores às regras definidas pela organização capitalista e dentro de uma ideologia
do sistema de capital que precisa ser seguida. Em algumas situações, “não interessam, pelo
trabalho passa a ser controlada por este [o capital]. Na medida em que o capital detém o
conhecimento, ele funda uma distribuição diferencial de saber que legitima a existente na
trabalho intelectual. Sua constituição pedagógica está muito mais voltada para a “preparação”
ideológica do que para o aprendizado do trabalho propriamente dito. No ensino superior, por
o local da prática, é uma constante. A teoria da administração que se ensina nos cursos da área
2
O taylorismo tem a finalidade de eliminar o poder de decisão do operário, transformá-lo numa máquina. A
organização moderna é a instituição em que se realiza a relação de produção que constitui a característica de
todo o sistema social, é o mecanismo de exploração e se rege pela coerção e manipulação. A substância da
organização não é um conjunto funcional, mas sim a exploração, o boicote e a coerção. (TRAGTENBERG,
2004, p. 46)
outros, são jargões da moda. Os alunos que não os internalizam terão dificuldades para
ainda, num instrumento de criação dos elementos que intensificam e justificam as diferenças
sociais. Se, por um lado, Tragtenberg analisa o avanço do taylorismo na educação, por outro,
Além disso, é necessário conhecer como a ideologia criada e reforçada pelas organizações
3
Tragtenberg apresentou esta tese no início da década de 1970 (TRAGTENBERG, 1971), respondendo a uma
pergunta que ele mesmo se propos. A tese é de que a Teoria Geral da Administração é uma Ideologia. Esta tese
voltou a aparecer em outros momentos em outros textos de Tragtenberg (1974; 1980), mas sua originalidade
permaneceu inabalável. Embora possa parecer apenas uma entre tantas contribuições de Tragtenberg, a tese
serviu de orientação para muitas reflexões de diversos pesquisadores, às vezes como algo já dado, outras como
pressuposto.
oportunidades econômicas e sociais são desiguais. Por isso, mantida a exploração do trabalho
pelo capital, a chamada ‘igualdade de oportunidades’ garantida pela lei no acesso à educação
que “a separação entre ‘fazer’ e ‘pensar’ se constitui numa das doenças que caracterizam a
estruturas de ensino em que os meios (técnicas) se tornam fins, os fins formativos são
para o trabalho, no taylorismo, é caracterizada por uma pedagogia prática, que exige muito
mais destrezas manuais do que mentais. É por isso que “o método Taylor é oriundo da
presidindo tudo, está uma atitude descritiva onde o importante é o como e não o porquê da
Especialização do Trabalho
adaptações dos trabalhadores aos parcelamentos das tarefas de tal ordem que as minúcias são
pressupõe alta divisão de trabalho que contribui para facilitar a tarefa e constante troca de
de trabalho.”
como ocorre nos cursos da área de gestão. A qualificação, portanto, resulta de um processo
está associada à necessidade da execução de uma tarefa no interior de uma divisão específica
percepção”. A “atenção, mais do que da habilidade profissional, [inaugura] a atual era pós-
industrial. O conjunto volta, na empresa, a ter prioridade sobre as partes: então, ela alcança
qualificar os trabalhadores para saber controlar duas dimensões essenciais: o tempo e o espaço
(HARVEY, 1998).
Por isso, o toyotismo não deve ser qualificado como um modelo produtivo inovador,
mas apenas como uma forma específica de produção em que espaço e tempo são modificados
2004. Vol. 2)
embora outros ofícios, que continuam qualificados, percam parte de seus valores. Os novos
maquinaria específica dessa nova divisão de trabalho é o trabalho coletivo, como continuidade
dos trabalhos parciais. A especialização impede que o aprendiz passe a ajudante e este a
na realidade, decorre de uma necessidade e tem por objetivo criar condições de adaptações
197)
subsunção, real ou de caráter subjetivo (FARIA, 2004. Vol 1), do trabalhador em relação ao
capital4. Em relação ao trabalho, se, por um lado, ele é condição ontológica na formação do
4
É importante observar que as análises de Tragtenberg são datadas nos anos 1970, 1980 e inicío dos anos 1990.
Assim, as críticas precisam ser contextualizadas àquele período histórico.
do pensar. A divisão do trabalho se reflete na alienação dos indivíduos e esta não exclui
Tragtenberg.
autogestão5 como ponto de inflexão para as transformações no plano econômico, entendia que
um “projeto socialista está vinculado à autogestão da luta pelos próprios trabalhadores, assim
como pela autogestão da economia da base ao topo e das demais instituições: hospitais,
uma nova organização política do trabalho. Por exemplo, Tragtenberg via crédito na
5
É importante considerar que Tragtenberg defendia o socialismo como projeto, mas tinha o anarquismo como
ideal de sociedade. A autogestão, para ele, não tinha nenhuma relação com as formas vulgares que esta
expressão tomou recentemente, sendo confundida com fábrica recuperada, cooperativa, etc. Para Tragtenberg, a
autogestão era uma autogestão social, conforme conceituado em Faria (2009)
6
TRAGTENBERG, M. Trabalhador não ganha “boas-festas” nem “feliz ano novo”. São Paulo: Folha de São
Paulo, 23/12/1981.
formação e crescimento do sindicato Solidariedade. Porque, através dele, era a própria classe
que dirigia sua luta, sem tutela de ninguém, de nenhum grupúsculo vanguardista ou de
intelectuais que além da ditadura científica almejam o poder de Estado para exercerem-na no
plano político-econômico7.”
constantes na coluna operária. Por várias vezes alertou sobre a interferência de pessoas que,
por força dos interesses particulares, acabavam se aproveitando da força e da estrutura criada
internacional fora corroído por homens da classe média encastelados nos Comitês Centrais
Estado, se convertiam nos maiores carrascos dos trabalhadores, pretextando serem sua
médio10”, o qual está presente em todos os indivíduos por meio de sua condição histórica.
7
Ibid.
8
“A luta dos trabalhadores poloneses reunidos em torno do sindicato ‘Solidariedade’ é a luta de todos aqueles
que pretendam que a classe operária em qualquer lugar do mundo tenha voz e seja ouvida. Nesse sentido, diz
respeito aos trabalhadores brasileiros que lutam também pela autonomia e liberdade sindical ante o Estado e
quaisquer partidos, independente da fachada ‘operária’, que tenham que lutar por melhores condições de trabalho
e contra a condenação dos sindicalistas do ABC. A repressão polonesa encerra uma grande lição: na sua luta pela
sua classe o trabalhador só pode confiar em si e nas comissões surgidas da base”. Ibid.
9
Ibid.
10
“O homem médio é o indivíduo representante de grande parte dos homens e mulheres que compõem a massa
social, elemento da engrenagem do sistema de produção e consumo que o capitalismo vem sedimentando na
consciência desses sujeitos. A subsunção ao capital, seja de forma direta ou indireta, consciente ou não
consciente, confirma a vitória do processo de racionalização da sociedade. A informalidade por meio da
burocracia e da impessoalidade com que o capital se apresenta no cotidiano das pessoas passa a ser aceita como
natural. O domínio da natureza passa, então, a ser a dominação do homem pelo homem.” (BAIBICH-FARIA;
MENEGHETTI, 2005, p. 72-73)
sedução do capital e com a invasão da burocracia nas organizações sindicais. Para ele, a
unidade da classe é sempre vista como um meio e não um fim. A unidade sindical, portanto, é
uma manifestação da tendência de dominação de uns por outros no interior da própria classe
trabalhadora12. Não quer dizer que não se possa pensar em unidade sindical, mas, em muitas
Por isso, Tragtenberg tem ressalvas em relação à atuação dos sindicatos. Afirma ele:
11
Ainda a Mercedes Benz e a Reifenhausen não assinaram igual acordo. Razão pela qual os membros da
diretoria cassada, tendo o Jair Meneguelli à testa, esperam pressioná-las para que aceitem igual acordo. Essa
vitória dos metalúrgicos de SBC mostra que é a organização do trabalhador, a partir do local de trabalho, a
condição básica que lhe permite iniciar, desenvolver e controlar o processo de sua luta e reivindicações. Mostra a
importância da existência de Comissões de Fábrica representativas no interior das empresas, capazes de falar
realmente em nome do trabalhador. TRAGTENBERG, M. Vitória dos metalúrgicos do ABC derruba “pacotes”
governamentais. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 20/11/1983.
12
TRAGTENBERG, M. Sem consulta ao peão de nada adiantam receitas de “iluminados”. No Batente. Unidade
ou unicidade sindical? São Paulo: Notícias Populares, 27/06/82.
representá-lo 13.
A autonomia constrói-se, dessa forma, no plano das comissões de fábrica 14. Toda
estrutura surgida da organização dos trabalhadores na base da produção precisa ser um meio e
políticos, são instituições burocráticas que incorporam a mesma lógica das empresas
propaganda são semelhantes às das empresas, ou seja, carregam no seu cerne os mesmos
qualificação formal atua como um “reforço ideológico”, pois nem sempre os treinamentos ou
processos educativos têm relação direta com as competências necessárias para que o
trabalhador desenvolva seu trabalho. Por isso, “predominando o capitalismo, nas chamadas
só para produzir mesmo no plano simbólico, como para conduzir a direção moral e intelectual
da sociedade de classes, legitimando com seu saber o poder existente e sua distribuição
desigual15.”
princípio educativo, que surge como legítimo e necessário para sua emancipação. Por esse
13
TRAGTENBERG, M. Ainda sobre a tão falada unidade sindical. No Batente. São Paulo: Notícias Populares,
30/06/82.
14
Uma pesquisa sobre as Comissões de Fábrica no ABC pasulista entre 1980 e 1985 mostra que as mesmas
foram ao mesmo tempo formas de luta dos operários e mecanismos utilizados como elementos estratégicos da
gestão das fábricas por sua direção (FARIA, 1987).
15
TRAGTENBERG, M. Universidade e Hegemonia. São Paulo: Folha de São Paulo, 24/12/1981.
situações Tragtenberg faz críticas aos grupos organizados, mesmo que a intenção seja de
ajudá-los a conquistar novos espaços. Por exemplo, ao afirmar que “o movimento negro
precisa de negros com consciência social e política e não de jaboticabas” que é um “negro que
reproduz relações sociais de exploração e dominação, que tem alma branca ou vota no PDS”,
Tragtenberg está fazendo uma defesa de classe e não de etnia. Diz ele que “negro jaboticaba é
aquele que é negro por fora, branco por dentro, com caroço duro de engolir 17”, ou seja, que
não assume sua condição de classe ao se identificar com o agressor, com o opressor,
explorador. Como judeu, vítima de preconceito, Tragtenberg sabe exatamente do que fala
sindical, quando o tensionamento entre capital e trabalho foi marcante, no período entre
1970 e 1980, e o poder da classe social foi posto à prova. Seu argumento era de que o que “o
trabalhador metalúrgico e a classe trabalhadora como um todo deve cobrar de seus dirigentes
ou líderes sindicais- não importa a fantasia com que se apresentem – é que as negociações ou
Essa relação entre Estado, partidos políticos e organizações de uma forma geral é
16
TRAGTENBERG, M. A Nova República. No Batente, São Paulo: Notícias Populares, 17/03/1985.
17
TRAGTENBERG, M. Movimento Negro. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 09/06/1982.
18
TRAGTENBERG, M. A importância do Conclat em São Bernardo do Campo. No Batente, São Paulo:
Notícias Populares, 28/08/1983.
uma revolução, tenha ela o nome que tiver, se cria uma máquina
Revolução19.
dominação de uma classe sobre outra. Em suas argumentações não havia argumentos para a
falsas e às aparências. Para Tragtenberg o grau de burocracia desenvolvido constituía uma das
acompanhado de uma ditadura amparada por uma ideologia repressora. Aquilo que
19
TRAGTENBERG, M. A China de Mao na pior. No Batente. São Paulo: Notícias Populares, 14/06/89.
Esse fenômeno ocorre nesse país devido às suas condições materiais históricas, uma
vez que, desde o regime dos mandarinatos, a população em geral era “doutrinada” para
realizava pelo controle burocrático instituído no plano micro, ou seja, nas organizações
pacificação dos indivíduos. A utilização dos sindicatos21 foi um meio para promover a ilusão
classes trabalhadoras nos países que se definem socialistas reais ou comunistas. A prática
mostra que em tais países, conforme indica Tragtenberg, o que prevalece é o modelo
democracia.
“é que o Estado é propriedade de uma casta de funcionários estatais e do partido único (...).
violenta22.” Dessa forma, não se pode esperar que os sindicatos sejam necessariamente formas
20
Recentemente (junho de 2009), em um programa na TV Educativa apresentado no Paraná, o apresentador
indicou a China como um país socialista, componente do que ele denominou de Bloco Progressista, juntamente
com a Rússia, Venezuela, Cuba e Irã. A irresponsabilidade conceitual é o apanágio da ideologia.
21
TRAGTENBERG, M. Polônia, ano zero. São Paulo: Folha de São Paulo, 11/07/1986.
22
TRAGTENBERG, M. O Socialismo Blindado do General Jaruzelski. São Paulo: Folha de São Paulo,
16/12/1981.
da mão-de-obra. Noventa por centro das entidades, grupos ou partidos que trazem o nome
No plano do discurso coletivo, parte dos que estão no comando das organizações
trabalho, sem perseguir objetivos mais elevados, como o de uma sociedade mais solidária”
cálculo de custo-benefício.
instrumental invade a consciência dos indivíduos por meio das próprias relações sociais. “O
fato é que a mão-de-obra sai da empresa para entrar no sindicato burocratizado, ou frequenta a
Igreja ou frequenta um partido, os dois estruturados em forma de pirâmide, com níveis de staff
e linha, com regras rígidas interpretadas legitimamente por outros elementos treinados nesse
manter a unidade sindical favorece o controle efetivo sobre as ações e idéias que dominam o
homem. A força produtiva de um trabalhador hoje não é apenas induzida pela fábrica e nem
apenas subordinada pela liderança dos sindicatos operários.” (HORKHEIMER, 2000, p. 150)
Com os sindicatos agindo e operando nos mesmos moldes das empresas capitalistas,
profissionais, cujos pressupostos são os mesmos utilizados nas negociações entre empresários.
escola.
Humanos, portanto, não pode ser considerada como um simples departamento operacional ou,
em uma visão romântica, como uma área de administração de conflitos entre “dirigentes e
dirigidos”, um “algodão entre cristais”. Tal área, hoje denominada de Gestão de Pessoas, tem
23
A classe patronal para manter sua dominação, às vezes, usa a tática da unicidade sindical. É o caso de Salazar,
Mussolini e Vargas. (...) O que importa é que unidade sindical ou pluralismo sindical não sejam vistos como
questões fechadas, mas como recursos táticos que o movimento operário pode utilizar conforme as situações
concretas aconselharem. TRAGTENBERG, M. Unidade sindical e democracia. No Batente. São Paulo: Notícias
Populares, 09/12/81.
estar atentos aos mecanismos cada vez mais sutis de controle e dominação (FARIA, 2004.
Vol. 3). Entretanto, não é isso que ocorre. Ao contrário, conforme Tragtenberg afirma, os
Mesmo assim, é importante considerar que a classe operária não se integra totalmente
à ideologia dominante. Para cada ação do capital há uma ação de resistência, ainda que esta
não seja imediata. Grupos de trabalhadores conscientes de sua posição de classe combatem
práticas dos “pelegos do sindicato”. Na coluna “No Batente”, por várias vezes relatou atitudes
24
“O sistema educacional define o papel do indivíduo no sistema industrial. Os CQCs que lá se constituíram,
atualmente, estão sendo trazidos para cá. Porém, nenhum partido está prestando atenção nisso, da mesma forma
como nenhum sindicato está prestando atenção que deveria prestar ao peso da Seção de Recursos Humanos e
Treinamento, como área vital, cujos dados são importantíssimos para a ação sindical, razão pela qual os partidos
devem deixar de “dormir deitados eternamente em berço esplêndido”, e olhar mais dentro da fábrica e ver o que
lá está ocorrendo, antes que seja tarde demais.” TRAGTENBERG, M. Da “fechadura” à “Abertura”. São Paulo:
Notícias Populares, 03 /06/1982.
incorporada nas relações que governam o interior dos sindicatos. As associações escusas são
imperativos das gerências.” (BRAGA, 1996, p. 272). A consolidação da burocracia retira dos
indivíduos o domínio sobre suas ações. Assim, estes, despersonalizados e transmutados, são
absolvidos pela prática destas ações. Em boa medida, as ações dos “pelegos sindicais” são
reforçadas pela omissão, uma vez que grande parte da burocracia está amparada na ausência
trabalhadora parte da base, ou seja, da organização coletiva dos trabalhadores a partir do chão
pelas práticas burocráticas semelhantes às empresas não passam de formas organizadas para
25
TRAGTENBERG, M. HP e pelegos sindicais, a nova face da repressão. São Paulo: Folha de São Paulo,
13/07/1981.
26
TRAGTENBERG, M. Declínio da liberdade sindical. São Paulo: Folha de São Paulo, 06/11/80.
empresa capitalista, deve ser procurado onde certamente seu desenvolvimento mais pujante se
que encobre a realidade que ele desnatura, reduzindo arbitrariamente a oposição e traindo o
uma concepção hegeliana. O recurso a Hegel é para afirmar sua convicção de que as
finalidades do Estado são aquelas da burocracia e as desta são as do Estado, de forma que a
elemento de mediação.
por um lado, a burocracia estatal é a garantia de controle de uma minoria sobre a maioria por
meio de um discurso de dissuasão dos interesses particulares ante o coletivo, a burocracia das
organizações privadas precisa, também, de alguma forma seguir a mesma lógica sem,
seus interesses econômicos. Tragtenberg argumenta que o Estado serve às classes dominantes,
mesmo nos países tidos como socialistas ou comunistas, pois se apresenta como meio de
192)
Nos escritos de Tragtenberg, as análises referentes ao Estado mostram que essa forma
burocrática passa a existir porque se faz necessária uma organização maior para garantir a
principalmente porque na sua concepção não se implanta um regime, mas se lhe conquista, e
não é possível passar de um modo de produção para outro com a permanência de um Estado
27
TRAGTENBERG, M. O Estado Capitalista. São Paulo: Folha de São Paulo, 24/10/1977. Tragtenberg
apresenta uma concepção polêmica aqui ao afirmar que o “Estado, no modo de produção capitalista, tem por
função zelar pela manutenção das relações de produção dele derivadas”. Ao contrário, entende-se que o Estado
capitalista é resultado do Modo de Produção Capitalista e, por isto, seu fiador institucional. O Estado não é
instituinte e, portanto, dele não derivam relações de produção (FARIA, 2004. Vol. 1. Cap. 3).
um discurso ideológico.
um destino melhor. Em parte, a criação imaginária de uma outra sociedade aparece como uma
necessidade para o próprio capitalismo, caso contrário, não seria possível viver com as
De fato, uma das formas como as elites dominam as massas é a representação política,
da qual o partido político é a forma organizada mais efetiva. Tragtenberg critica os partidos
pela separação existente entre os discursos destes e a realidade que pretendem representar, ao
afirmar: “há inúmeros partidos falando em nome do povo ou do trabalhador, porém, a classe
trabalhadora não os conhece, nem de vista. Ela trabalha no interior das oficinas, fábricas, na
exploração mineira do subsolo, na exploração florestal e não tem tempo a perder com palavras
Os partidos tendem a ser representantes das elites, sobretudo, porque “são dirigidos
por castas, intelectuais e políticos profissionais. Não são democráticos, porque neles domina
professado. A sociedade elege os eleitos, ou seja, elege aqueles que foram definidos nas
28
“Porém, é necessário esclarecer, nem tudo que reluz é ouro e, estatizar, sob o Estado capitalista, mesmo
Mitterrand no topo, não significa socializar, significa transformar o Estado em ‘capitalista coletivo real’. É
necessário ressaltar que a economia francesa é estruturalmente capitalista, articulada no Mercado Comum
Europeu. Nesse tipo de economia, a função do Estado é distribuir a parte do trabalho não paga ao operário, que é
apropriada pelo capitalista, à classe capitalista no seu conjunto que assume as formas de: empresa comercial,
industrial, bancária ou fazenda. Estruturalmente, portanto, não há uma ruptura com o sistema capitalista de
produção.” TRAGTENBERG, M. A vitória de Mitterrand na França. São Paulo: Folha de São Paulo, 23 a
25/08/81.
29
TRAGTENBERG, M. Congresso Constituinte é safadeza da Nova República. São Paulo: Notícias Populares,
22 /11/1986.
eleições, neste sistema partidário, segue a lógica da escolha dos escolhidos, ou seja, os
eleitores escolhem os seus candidatos entre aqueles previamente escolhidos pelo partido em
sociedade que será representada nas esferas de decisão. Os interesses das elites, ao contrário,
são garantidos neste sistema de burocracia eleitoral. Os “donos do poder” (para usar a
expressão de Raimundo Faoro) perpetuam-se pela alienação do trabalhador, pois estes não
cidadãos tinham direito a voto, o que significava excluir mulheres e escravos desse processo,
pois estes não eram considerados cidadãos. Hoje, a exclusão é refinada e acompanhada de
de que a participação efetiva não depende da mera vontade do trabalhador. Isto porque na
“democracia política, o programa de cada partido somente é conhecido por uma minoria; a
democracia parlamentar, a decisão é tomada por uma minoria, que, assim sendo, se corrompe
Weber (1974) para tratar o fenômeno da burocracia, especialmente em seu estudo seminal
“Burocracia e Ideologia”. Sua articulação entre esses dois teóricos é mantida por uma
coerência epistemológica. Apesar de ter clareza dessa relação entre o plano da infra-estrutura
com maior clareza de que forma sua obra adquire consistência e importância na área dos
estudos organizacionais.
trabalho por meios cada vez mais sistematizados e baseados em cálculos de eficiência
produtiva e com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, cria os trabalhadores
instala-se como meio para subdividir a sociedade não apenas em classes sociais, mas
Condicionada pelo modo de produção capitalista, ergue-se uma estrutura social e uma
instrumental, esta, portanto, igualmente originaria da dinâmica das relações de produção. Esta
de controle não só sobre o “corpo” do trabalhador, mas também sobre sua “mente”,
Vol. 3). Associada à ideologia que se forma originariamente com a separação entre os que
torna-se cada vez mais intenso, os trabalhadores especializam-se mais na função. Entretanto,
seu conhecimento sobre o todo se torna menor, reduzindo-o na razão proporcional a mero
ambiente produtivo. Assim, “corpo” e “alma” estão adequados a nova estrutura social. A
também são vistas por Tragtenberg a partir do crescente processo de burocratização. Elas
origem na separação entre os que “pensam”, e que se colocam como os intelectuais da classe
dos operários na incorporação das regras e normas burocráticas que passam a dominar as
relação instrumental, baseada no cálculo econômico das relações no interior dessas mesmas
organizações.
reprodução da lógica das relações de produção e da permanência das elites que se forma a
ou seja, do aparelho de governo, e para isto garante a permanência das formas de produção
específico cria uma burocracia para perpetuar as relações de dominação e poder das elites que
reproduz essa mesma lógica, seja por meio das organizações de natureza privada ou por meio
de trabalho que subjaz à sua concepção teórica e política. Evidencia-se sua proximidade com
o pensamento anarquista e libertário, para quem toda burocracia é uma forma de dominação, e
Doris; MARRACH, Sonia Alem. Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências
84, 2005.
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_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
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FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
RESUMO
O presente artigo procura mostrar as contradições e conflitos inerentes às relações de trabalho
submetidas à lógica do sistema capitalista de produção por meio do controle social no trabalho. Esse
controle foi analisado a partir de quatro instâncias organizacionais – mítica, sócio-histórica,
organizacional e grupal – de base psicossociológica, com o intuito de ampliar uma matriz teórico-
metodológica utilizada nos estudos organizacionais na linha de pesquisa Economia Política do Poder.
Na presente pesquisa foi possível identificar dissonâncias entre o ambiente prescrito e o real, bem como
o exercício do controle social por resultados por meio do estímulo à competição interna, à
individualidade e à busca da identificação individual ao sucesso organizacional. Es ses mecanismos de
controle correspondem a valores intrínsecos do sistema capitalista de produção enquanto estratégia s de
gestão empresarial.
PALAVRAS-CHAVE
Controle social, relações de trabalho, poder, instâncias psicossociológicas, dominação.
ABSTRACT
This article analyses the type of social control, in function of results that can be encountered in
working relations today. Analyses were done from the point of view of four psycho-sociological
instances related: mythical instance, social-historical instance, organizational instance and group
instance. The methodological choice intended to analyze a theoretical matrix developed in Brazil and
an international industry was chosen. Administrative contradictions, generated from conflicts during
working relations, were observed. Data does not show a democratic firm environment, but an
atmosphere of strongly controlled freedom. By departing from these indicators it will be possible to
gather elements to find innovative solutions enhancing quality in the firm’s management and in the
relationship with employee. For both, management and employees, the common goal is to face through
success and good strategies the challenging global economy.
KEYWORDS
Social control, working relations, power, psycho-sociological instances, domination.
© RAE- eletrônica - v. 5, n. 1, Art.5, jan./jun. 2006 www.rae.com.br/eletronica
FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
INTRODUÇÃO
O controle social é o elemento central da gestão organizacional (Faria, 2002b), sendo exercido sobre os
indivíduos e grupos internos de trabalho de uma determinada empresa como fundamento de sua
produtividade e competitividade. O ambiente globalizado tem exigido das empresas agilidade e
flexibilidade nas ações gerenciais com reflexos no plano psicológico dos indivíduos. Embora o controle
seja fundamental para o desenvolvimento dos processos produtivos, essa função administrativa
desencadeia mecanismos objetivos e subjetivos de exploração no ambiente laboral.
Este estudo, que apresenta parte de uma pesquisa empírica realizada em uma indústria do ramo
automobilístico na Região Metropolitana de Curitiba, tem como objetivo identificar as formas de
controle social que se articulam no modo capitalista de produção tendo como foco a busca do sucesso
econômico empresarial. Para tal finalidade, buscar-se–á compreender os mecanismos de controle, a
forma como são exercidos no ambiente de trabalho, a dinâmica das relações de poder nas dimensões
individuais e grupais, de maneira que se possa, ao final, falar do exercício do controle social nos
processos e nas relações humanas e de trabalho.
A problemática do controle sobre as relações de trabalho compreendidas no âmbito das relações
de poder tem sido tema recorrente nas pesquisas organizacionais, no intuito de aumentar a
compreensão desse universo socioprofissional em que os indivíduos se encontram inseridos. No nível
organizacional, percebe-se uma tendência ao aumento do controle indireto e sutil sobre o trabalho com
o advento das inovações tecnológicas dos processos empresariais. Sendo preciso estar em constante
mudança para que os resultados econômicos sejam alcançados, as organizações produtivas
desenvolvem diversos mecanismos de controle, o que suscita as seguintes questões: (i) de que maneira
as organizações gerenciam o processo de trabalho de forma a manter o indivíduo comprometido com
esses resultados? (ii) Quais os impactos dos processos de controle sobre a relação do indivíduo com o
seu trabalho? (iii) Quais os conflitos surgidos pela ruptura do vínculo social? (iv) De que maneira o
controle se manifesta em suas formas aparente e oculta frente às manifestações do corpo social da
organização? As respostas a essas questões permitem definir a problemática do controle social no
ambiente psicossociológico e suas manifestações na organização.
METODOLOGIA
Para Marx (1988), o ser humano se apropria dos recursos da natureza e os transforma de acordo com as
suas necessidades de subsistência, tendo a capacidade de projetar as suas operações e ordenar o
trabalho em diversas atividades e pessoas, construindo uma consciência clara da sua capacidade de
execução.
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FÓRUM – NOVOS MODELOS ORGANIZACIONAIS: PARADOXOS E CONTRADIÇÕES ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
CONTROLE POR RESULTADOS NO LOCAL DE TRABALHO: DISSONÂNCIAS ENTRE O PRESCRITO E O REAL
Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
Nesse sentido, a diferença entre o homem e os outros seres vivos é a sua capacidade de construir
o resultado no plano do pensamento, antes de executar a transformação do objeto. Dessa forma, o
trabalho é concebido pelo sujeito antes da sua concretização no real. Por ter o homem essa habilidade,
as tarefas de concepção e execução do trabalho, que deveriam ser realizadas pelos indivíduos
coletivamente, são feitas por indivíduos diferentes, que ocupam diversos lugares no processo de
trabalho. Assim, o indivíduo poderá ser senhor do trabalho de outros bem como do seu próprio (Marx,
1988; Braverman, 1987). Es sa é à base do sistema capitalista de produção, em que o trabalho humano é
o resultado do conjunto das relações e comportamentos sociais.
Mesmo pesquisadores mais vinculados a uma visão institucionalista, como Castells (2000),
reconhecem que as novas tecnologias exigem novas qualificações e ocupações técnicas a partir das
necessidades do processo produtivo, como, por exemplo, as novas tecnologias da informação na década
de 1990. O trabalhador inserido nesse ambiente de mudanças recebe uma “mensagem” enviada pelo
sistema do capital, no sentido de procurar uma “atualização profissional” para não ser excluído do
processo de trabalho.
As relações sociais, estruturadas no início em um processo mais simples de acumulação, se
modificam, pois as necessidades de expansão do capital se tornam mais importantes do que as
necessidades e os desejos individuais. Quanto mais fragmentado o processo de trabalho, menos
valorizadas serão as atividades originadas por ele: esse é o “segredo” da organização do trabalho.
Essa divisão de tarefas pode ser percebida no movimento da gerência científica iniciado por
Taylor no século XIX, o que, para Braverman (1987), culminou com a aplicação de métodos científicos
sobre o controle do trabalho nas empresas industriais. Movida pelo objetivo de resolver os conflitos nas
relações de trabalho, a gerência, como é conceituada atualmente, busca controlar a força de trabalho,
sem procurar confrontar as causas dos conflitos, e aceitando as diferenças como “naturais”.
A dinâmica social do capitalismo implica uma ação coercitiva da gerência sobre o indivíduo, na
medida em que este precisa se adaptar ao tempo de produção, à cadeia de montagem, à fragmentação
das tarefas e à subordinação à hierarquia patronal. Tal ação indica que o controle não é um mecanismo
da administração ou da gestão capitalista, mas um mecanismo de poder (Faria, 1987).
Elton Mayo (1960) e outros pesquisadores já se interessavam, nas décadas de 1920-1930, pelos
estudos sobre os indivíduos nas organizações, relativamente aos ajustamentos decorrentes de contínuas
mudanças nos processos produtivos, bem como com relação à imposição, ao trabalhador, da forma
como ele deve executar o trabalho. Essas pesquisas, posteriormente conhecidas como enfoque das
relações humanas, tinham inicialmente o objetivo de estudar a fadiga no trabalho e reduzir as taxas
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turn-over. Tratava-se, então, de compreender as conseqüências dessa mudança sobre a produtividade.
O indivíduo aparece como um elemento constituinte de grande efeito e não como centro da
investigação. O saber que o trabalhador detinha sobre todo o processo produtivo foi sendo
continuamente expropriado pelo capital e incorporado na funcionalidade da máquina.
Castells (2000), contudo, acredita que as organizações não utilizam a plena capacidade
produtiva das novas tecnologias e que a difusão da tecnologia informacional nas fábricas e escritórios
exige trabalhadores instruídos e autônomos, com plenos conhecimentos do processo produtivo. Essa
visão é controversa. Sabe-se que a qualificação exigida na fábrica moderna é instrumental e não de
ofício, ou seja, exigem-se trabalhadores preparados tecnicamente para operar as máquinas (Faria,
2004).
Para Harnecker (2000), o sistema capitalista, a partir dos anos de 1970, apresenta um novo
paradigma tecno-econômico, baseado na revolução tecnológica, envolvendo áreas como a informática e
as telecomunicações. Embora seja questionável que a produção moderna se constitua em um novo
paradigma, é correto considerar que o mesmo interage de forma bem-sucedida com a utilização dos
chamados “modelos gerenciais japoneses”, como o toyotismo, caracterizado pelos programas jus-in-
time, kanban, qualidade total e outros. Essas alterações modificam o processo produtivo, inserindo
técnicas de adaptabilidade e flexibilidade de processos, com a conseqüente transformação de estruturas
organizacionais que antes se apresentavam hierarquizadas e verticalizadas em estruturas flexíveis e
descentralizadas, com “grande autonomia para os trabalhadores”. O desenvolvimento dessa
“autonomia” parece ser restrito ao posto de trabalho, e tem seu exercício condicionado à aprovação
superior (Faria, 2004), sugerindo uma análise mais profunda quanto à estratégia da organização em
conceder “porções de poder” e sua conseqüência nas relações de produção.
O sistema fordista não apenas foi uma resposta às necessidades de reprodução de um sistema de
controle, mas se constituiu em um forte instrumento de política macrossocial, servindo de guia às
mudanças tecnológicas e organizacionais, por meio do monopólio de mercado, da negociação coletiva
entre as classes sociais e da manutenção do equilíbrio entre a produção e o consumo de massa. Sempre
é conveniente lembrar que o fordismo foi compatível com o modelo econômico keynesiano, enquanto
solução do capital para enfrentar a primeira grande crise de acumulação, que ocorreu em 1929,
conhecida como a Grande Depressão.
Com a internacionalização do capital, as organizações buscam alcançar níveis internacionais de
produtividade e competência por meio de inovações tecnológicas e mudanças nas relações e processos
de trabalho. No ambiente organizacional, as experiências sociais e políticas tomam forma sob o
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aumento do desemprego estrutural, ganhos salariais modestos em setores específicos, desqualificação
do trabalhador e diminuição do poder sindical (Berberoglu, 2002).
Esse movimento permite sugerir o aparecimento de um sistema neofordista, que apresenta um
processo de trabalho adaptado às novas exigências de acumulação do capital, sendo flexível e integrado
a um novo modelo de relações entre produção e consumo. Um sistema atualizado e comprometido com
a busca da livre competição no mercado entre as organizações e com a desregulamentação do Estado
capitalista contemporâneo. Em síntese, as organizações perceberam que precisam aprimorar as suas
formas de controle nas relações de trabalho para garantir uma competitividade internacional (Amin,
1994).
O desenvolvimento das formas, mecanismos e instrumentos de controle tem acompanhado o
desenvolvimento das tecnologias físicas de diversas maneiras, porque há uma relação entre estas e as
de gestão (Faria, 2002a). Desde a criação da organização científica do trabalho (OCT), as organizações
têm procurado exercer a sua dominação, além de outras formas, também por meio das relações de
posse (processo de trabalho e de produção) para poder se apropriar da maior margem possível dos seus
custos. O controle sobre o processo de trabalho tem aumentado com as inovações tecnológicas por
incrementar o domínio físico e mental sobre o trabalho e o trabalhador (Dejours, 1999). A insatisfação
no trabalho pode remeter a novos aspectos sociais, que demandam perspectivas não lineares de análise
dos fenômenos organizacionais. É necessário buscar uma melhor compreensão da dinâmica social, das
relações de poder que atravessam as relações sociais e que culminam no que se pensa que as
organizações são e quais seus objetivos.
A perda do controle para a organização capitalista seria fatal à sua sobrevivência, ou seja, ao seu
processo de acumulação ampliada. Nesse sentido, ela precisa reinventar periodicamente os seus
sistemas de trabalho para sustentar a dominação nas relações de produção, por meio da desqualificação
e requalificação do trabalhador (Faria, 2002a). Alguns estudos organizacionais mostram, sob diversos
ângulos, as maneiras pelas quais as organizações estão ampliando suas formas de controle social: (i)
domínio e controle sobre o corpo (Foucault, 2000); (ii) manipulação do vínculo social (Freud, 1997;
Enriquez, 1974); (iii) desenvolvimento da afetividade no trabalho (Codo et al., 1998); (iv) banalização
da injustiça social (Dejours, 1999); (v) desenvolvimento do individualismo e da opressão (Chanlat,
1992); (vi) carga psíquica no trabalho (Dejours, 1999); (vii) corrosão do caráter (Sennet, 1999), entre
outras.
Uma abordagem que considere a subjetividade no trabalho exige uma concepção teórico-
metodológica fundamentada em uma teoria analítica que não se contente apenas com as aparências dos
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fenômenos, visto que procura compreender “o que não é visto ou percebido, o que não se pode nomear
e que, de alguma forma, tende a aparecer” (Motta, 2000, p. 81).
Tal abordagem remete a um questionamento sobre os aspectos sociais, políticos, culturais
(Motta, 1986; Mezan, 1985), ideológicos (Althusser, 1999), imaginários (Castoriadis, 1982) e
simbólicos (Enriquez, 1997) que revestem o controle exercido pela organização do trabalho. Trata-se
de analisar os princípios gerais que regem o funcionamento das organizações, no sentido de levantar
questões sobre os indivíduos e grupos em relação ao reconhecimento de si e para si, e do outro (de seus
papéis e da sua identidade no plano social), o seu lugar na hierarquia, a estrutura das relações sociais e
as vivências das relações violentas e amorosas.
Motta (2000) salienta que as organizações podem ser mais bem compreendidas por meio da análise dos
processos sociais entre os quais estão as formas de controle social. O controle é um conjunto de ações
que visa fiscalizar as atividades das pessoas e empresas para que não se desviem das normas
preestabelecidas. O controle social é um conjunto de regras que codificam o campo de atividade de
cada indivíduo, bem como seu campo de relações sociais internas (estrutura hierárquica) e externas
(clientes, fornecedores e governo) à organização (Pagès et al., 1993). É também uma estratégia de
gestão organizacional que busca novas formas de expansão do capital envolvendo aspectos manifestos
e ocultos no âmbito das relações de trabalho e das relações de poder (Faria, 2002b). Enriquez (1999)
distinguiu sete formas de controle social cuja utilização, coletiva ou individual, tende a garantir a
manutenção do sistema vigente na organização.
O foco deste estudo é o controle social por resultados que busca superar as metas e objetivos
organizacionais por meio da competição econômica. Sob esse enfoque, a organização precisa ser
melhor do que seus concorrentes para alcançar o sucesso e manter a competitividade. A ideologia da
materialidade da sociedade capitalista pode ser observada nessa forma de controle, pois demonstra o
desejo das organizações de serem reconhecidas e valorizadas pelo ambiente no qual estão inseridas,
independentemente dos ideais de origem.
As organizações têm seu foco na livre competição e na idéia de que “os melhores” vencerão, e
aplicam esses conceitos no seu ambiente interno (Enriquez, 1997), incentivando a busca do sucesso nas
unidades, entre grupos ou indivíduos. O clima de competição interna cria processos conscientes e
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inconscientes, que mantêm os indivíduos presos à idéia de sucesso, podendo transformar a organização
numa prisão psíquica (Morgan, 1996). Dessa forma percebe-se a vida como um grande espetáculo
(Debord, 1997) no qual o prazer é prometido, mas jamais realizado.
Os estudos organizacionais identificam muitas maneiras pelas quais se pode analisar uma organização.
Para Weber (1991), os fenômenos sociais, como as organizações, são constituídos a partir de
significados comuns e subjetivamente compartilhados, quer seja em estruturas burocráticas de
dominação ou nas instituições públicas pertencentes ao Estado moderno. Berger e Luckmann (1995)
definem o mundo segundo múltiplas realidades, dentre as quais ocupa posição destacada a vida
cotidiana, percebida pelo observador como ordenada e objetivada, associada a um forte sentimento de
intersubjetividade. Por outro lado, Enriquez (1999) sugere que a representação que uma organização
faz de si mesma, por meio de significantes e significados, pode não ser o que ela pensa que é. Assim
sendo, a psicossociologia nos remete ao escuro, ao inominável, ao inconsciente organizacional. Da
mesma forma, alguns fundamentos da psicologia e da sociologia foram aplicados na análise
organizacional nos estudos de Codo, Dejours (psicodinâmica do trabalho), Enriquez, Foucault
(microfísica do poder), Motta, entre outros.
Contudo, a perspectiva sobre as categorias manifestas e ocultas na organização mereceu um
estudo mais minucioso, conduzido por Enriquez (1994). Para verificá- las, ele propõe um corte
analítico, definindo sete instâncias de análise organizacional. Esse método de análise e intervenção foi
utilizado nesta pesquisa, na qual foram escolhidas quatro instâncias, com a finalidade de fundamentar a
abordagem teórico-metodológica utilizada para analisar as formas de controle.
As instâncias são níveis que procuram apreender a realidade organizacional por meio da análise
de seus sistemas cultural, simbólico e imaginário, com seus paradoxos e contradições (Enriquez, 1997;
Faria, 2002b). Podem ser compreendidas como um conjunto de categorias que se originam em
fenômenos manifestos ou ocultos, no nível consciente ou inconsciente, que atuam com uma força e
intensidade próprias, e cujos efeitos sobre as condutas individuais e coletivas persistem, ainda que as
causas tenham desaparecido, obedecendo a uma lógica própria. (Freud, 1997; Enriquez, 1997). Para
Enriquez (1997), trata-se de distinguir os princípios gerais que norteiam o funcionamento das
organizações, e ele propõe, para a realização dessas pesquisas, as seguintes instâncias de análise:
Eu queria trabalhar numa empresa que tinha gente do mundo inteiro, que tinha possib ilidades
de crescimento, que tinha um intercâmbio cultural enorme, uma imagem maravilhosa. Nossa,
eu pensei que era o lugar que eu tinha pedido a Deus. E eu realmente quis muito no processo
de seleção. Hoje eu sei que não é isso.
Essa valorização da imagem que a organização aparenta ser refere-se ao mito de grandeza que a
empresa estudada reforça a todo momento no seu interior. Ela reforça uma identidade que não possui e
uma consistência existencial não verdadeira. Durante todo o período da pesquisa de campo, observou-
se que os funcionários, em sua maioria, sentiam-se desmotivados com o futuro deles dentro da
empresa, resignados, sem perspectiva de crescimento profissional, e confusos com a realidade
ambiental, pois não conseguiam compreender por que a realidade atual era diferente daquela imaginada
inicialmente. Um entrevistado manifestou opinião, confirmando a existência de uma contradição entre
o que ele imaginava que seria e a sua percepção do que a empresa realmente é: “A gente sente um
pouco a falta da empresa na sociedade, ninguém fala da empresa enquanto ente assim”. Aqui o
entrevistado se refere aos valores difundidos pela empresa sobre sua inserção na comunidade local,
promovendo eventos e ações na área social da região. Na segunda opinião do mesmo entrevistado, o
mito da empresa maravilhosa é desfeito, pois a percepção da realidade atual é contrária à idéia inicial
de grandeza e sucesso prometido, o que vem corroborar a concepção de Enriquez (1997) de que as
A empresa parece que é uma garagem que retifica motores, uma coisa assim. E isso choca um
pouco a gente. A gente se mata de trabalhar aqui, estou falando dos colegas da minha
geração, que começaram no barracão. A gente fez um processo de seleção muito rigoroso e
muito demorado e, de repente, parece que você está trabalhando numa oficina de fundo de
quintal.
A empresa construiu uma imagem de sucesso e futuro grandioso, quando da sua instalação em 1998,
para atrair talentos nacionais que se dispusessem a contribuir para a construção e o crescimento de algo
realmente importante para a sociedade. Verificou-se que vários funcionários ainda estavam engajados
no trabalho, na esperança do cumprimento das promessas iniciais. Observou-se que os funcionários
acreditam (51%) que os discursos feitos pelos dirigentes da empresa são compatíveis com as
expectativas e as promessas feitas na ocasião da instalação da Alfa. Enquanto alguns esperam que tais
promessas sejam cumpridas, outros não acreditam mais nelas, pois a prática mostrou serem elas
inócuas, como afirmou um dos entrevistados:
Eu entrei quando ainda era o escritório provisório. Isto criou uma expectativa muito grande e
isto é muito frustrante hoje. Entramos numa das maiores empresas de motores do mundo e
fica claro que nós agora estamos trabalhando no plano real e não mais aquele sonho, como se
via. A empresa está mudando o perfil, as pessoas boas estão saindo e entram outras com um
nível mais baixo no lugar. Isto é visível.
A entrevista acima confirma a idéia de Dejours et al. (1994) de que trabalhar em uma organização de
sucesso é uma realização imaginária a ser cumprida pelo sujeito, mesmo que o trabalho acarrete uma
carga psíquica que afete a sua saúde física e mental. O entrevistado E07, que acompanhou o
nascimento da empresa e que tinha uma expectativa em relação ao seu crescimento e desenvolvimento
profissional, atrelado ao crescimento da empresa, percebeu que o seu desejo de reconhecimento jamais
seria atendido, o que ocasionou a sua saída imediata da empresa. Essa decisão foi tomada após uma
conversa com o nível estratégico. Esse fato confirma a idéia de Enriquez (1997) de que a empresa
constrói uma realidade aparente que os sujeitos assumem como verdade. Porém, quando cai a máscara,
Verificou-se que a empresa possui normas e regras internas que têm por objetivo propiciar aos
funcionários um desenvolvimento constante dentro da estrutura organizacional. Porém, a essa intenção
não corresponde uma efetividade no trabalho, como ficou demonstrado nas entrevistas realizadas,
corroborando o conceito de Enriquez (1997) de que a ideologia que a empresa prega no seu ambiente é
freqüentemente desmascarada pelos membros da organização. Contraditoriamente, é possível sugerir
que a própria empresa não está seguindo o melhor caminho para a construção da sua cultura
organizacional.
Concordância
Questões:
%
1.A criatividade é permitida livremente dentro da empresa. 71,9
2.As ações criativas no trabalho são reconhecidas pela empresa. 62,3
3.As pessoas que são produtivas no trabalho são valorizadas pela empresa. 55,3
Fonte: Hopfer (2002).
Mesmo tendo sido confirmada a existência da criatividade por todos os níveis hierárquicos, um
entrevistado declarou que a empresa não estimula tal atributo, pois prefere que seus funcionários
trabalhem inseridos na rigidez da estrutura: “Acho que você precisa usar a criatividade, senão você fica
como executor. Mas, para a empresa, você precisa ser um executor”. As organizações permitem que os
indivíduos tenham liberdade parcial no trabalho, desde que controlada pela estrutura. Um dos controles
é exercido sobre a livre expressão, que amedronta as organizações, sendo substituída pela palavra
vigiada. A pesquisa confirmou que existe a percepção dessa prática, pois os funcionários afirmaram
que é preciso ter cuidado com o que se fala dentro da empresa.
Não existe uma competição interna, pois existem dois grupos bastante distintos. Um grupo
que entrou bem no início da empresa, por um processo de seleção bastante feliz, atingiu bem
os objetivos, conseguiu trazer grandes profissionais. Outro que ainda está começando a sua
atividade profissional. Então, a competição não existe.
A declaração acima remete à questão abordada por Enriquez (1994) de que o caos desorganizador que
remonta à origem da empresa tende a retornar em alguns momentos na vida dela. Verificou-se que
alguns entrevistados fizeram analogias entre o passado e o presente da organização, principalmente por
ser um passado recente, afirmando que havia mais liberdade de ação, que se tinha o sonho de construir
uma grande empresa, que as pessoas assumiam múltiplas funções e que as tarefas não eram muito
organizadas, o que exigia iniciativa para tomar decisões. Nesse sentido, os funcionários concordaram
que a desorganização no trabalho ajuda as pessoas a terem mais liberdade. Diferentemente das outras
questões, a contradição apareceu no nível estratégico, em que 66,7% dos gerentes e diretores
discordaram da opinião de que uma desorganização parcial seja algo positivo e que estimule a
liberdade e a criatividade. Sendo os dirigentes os portadores dos ideais e objetivos das organizações,
esse posicionamento confirma o entendimento de Enriquez (1994) de que as organizações têm medo do
desconhecido, do imprevisível, temendo uma ameaça à estrutura organizacional.
Um entrevistado do nível estratégico asseverou que a desorganização do início da empresa
estava acabando e que coisas e pessoas estavam se adequando à nova realidade: “Acredito que agora as
pessoas estejam definindo o seu lugar na organização, o seu papel na relação com ao outro”. Quando
uma empresa permite a existência de um espaço criativo, significa que ela não apenas aceita coisas
novas, como quer incentivá- las. Os funcionários, em todos os níveis hierárquicos, afirmaram que a
Eu pedi para ter espaço de atuação com a saída do gerente, pois queria mostrar o que era
capaz de fazer. Então a empresa não contratou um novo gerente. O momento para mim é
bastante desafiador e inovador. Mas não acho que reconhecer o trabalho criativo seja política
da empresa.
A empresa não vê com bons olhos o trabalho criativo, mas não que isso sirva de recompensa.
O trabalho tem que ser criativo principalmente na nossa área porque se ele não for criativo ele
não pode ser realizado.
CONCLUSÃO
Esta pesquisa teve como objetivo ident ificar, entre várias, uma das formas de controle social presentes
na empresa Alfa a partir de indicadores desenvolvidos na matriz teórico-metodológica da Economia
Política do Poder. Optou-se por trilhar o caminho das relações sociais no trabalho, investiga ndo a
percepção dos funcionários sob o prisma de quatro instâncias de análise, tendo como objeto o controle
dos resultados, o qual é exercido por meio do estímulo à competição interna, à individualidade e à
busca da identificação do sucesso individual vinc ulado ao sucesso da organização. Essa forma de
controle foi encontrada, pois os funcionários acreditam na imagem de grandeza da empresa que está
sendo projetada na sociedade. A missão da empresa, que é ser referência mundial, estimula construções
imaginárias nos sujeitos, como a criação de expectativas e projeções de um sucesso no futuro a ser
alcançado. Porém, a pesquisa demonstrou que esse ideal não tem correspondido ao imaginário após a
entrada do funcionário na empresa. Com o passar do tempo, a expectativa de sucesso provoca um efeito
contrário ao desejado pela empresa, desmotivando as pessoas para o trabalho e destituindo-as do sonho
de um futuro almejado.
A projeção de realização do sonho do sujeito deveria ser uma conquista cada vez mais palpável.
O resultado buscado pela empresa, contudo, tem sido atrelado à produtividade, o que significa a
supremacia da razão sobre o imaginário, da acumulação ampliada do capital sobre as relações humanas.
A Alfa, sendo uma empresa nova, está tentando construir uma identidade própria, através de políticas
internas que vêm sendo desenvolvidas conjuntamente com o crescimento da empresa. A pesquisa
permitiu perceber que há restrições a mudanças e uma tendência à centralização dos processos por
meio das estruturas e regras gerais da organização. Nesse enfoque, os processos de controle aqui
analisados, a despeito de seu foco principal, acabam sendo permeados por uma rigidez burocrática, ou
seja, pela formalização, a qual acaba por definir as partes do trabalho que serão executadas pelas
pessoas envolvidas no processo. O mito do sucesso mundial deve ser propagado à exaustão, utilizando
diversas ações organizacionais que promovam um controle social, com foco nos resultados desejados,
corroborando a idéia de Enriquez.
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Kátia Regina Hopfer - José Henrique de Faria
SENNET, R. A corrosão do caráter. São Paulo: Record, 1999.
Antonio Kremer 1
Rua Dr. Faivre, 405 - Sala 501 - Centro
CEP: 80060-150 Curitiba/PR Brasil
E- mail: antonio_kremer@uol.com.br
1
Universidade Federal do Paraná – UFPR
Setor de Ciências Sociais Aplicadas
Departamento de Administração Geral e Aplicada
CEP: 80060-150 Curitiba/PR Brasil
Resumo:
Este artigo analisa as relações entre os processos de reestruturação produtiva e de
precarização do trabalho. As dimensões de aná lise privilegiadas são: (i) desemprego; (ii)
vínculos empregatícios; (iii) preço da força de trabalho; (iv) qualidade dos postos de trabalho.
Os resultados indicam que a base técnica característica do regime de acumulação flexível é
poupadora de mão-de-obra, o que contribui para o aumento do desemprego estrutural. Os
vínculos empregatícios formais tendem a se tornar mais tênues, assim como, a participação do
trabalho informal no total da mão-de-obra ocupada apresenta uma trajetória de crescimento.
No que se refere ao preço da força de trabalho, é observado uma tendência declinante no
decorrer da última década. O processo de reestruturação produtiva contribui para a
deterioração da qualidade dos postos de trabalho, através da intensificação do trabalho nos
espaços fabris, promovida pela redução dos ciclos de operação, operação simultânea de um
conjunto de máquinas, entre outros. A intensificação do trabalho, aliada a extensão da jornada
contribui para elevar o risco do trabalhador desenvolver doenças ocupacionais relacionadas à
LER/DORT.
1. Referencial Teórico
O processo de reestruturação produtiva, de forma estrita, refere-se à incorporação, nas
plantas produtivas, de novas tecnologias físicas de base microeletrônica e de novas formas de
organização e gestão do trabalho. Tal processo, porém, inscreve-se em um quadro de
transformações mais profundas, que envolvem não apenas o processo de produção de
mercadorias, mas todo um arranjo societal. Estas transformações vêm a ser uma resposta do
capital frente à crise do modelo fordista de acumulação, que é a base da expansão econômica
registrada nos países capitalistas centrais após a segunda guerra mundial. No final dos anos
1960, este modelo começa a apresentar sinais de exaustão, não apenas no que se refere à
capacidade de geração de taxas crescentes de lucro, mas também de organização social,
fazendo emergir crises nos estados capitalistas centrais (crise do Estado de bem estar social).
As considerações precedentes indicam que o processo de reestruturação produtiva é
um fenômeno que transcende a categoria de novas formas de organização do trabalho, estando
inscrito em uma reordenação das forças produtivas, dos padrões de concorrência e dos
próprios estados nacionais.
O fordismo, visto como modo de produção, combina a administração científica -
gerência racional do trabalho - ao uso de novas tecnologias representadas pela linha de
montagem e pela padronização das peças, aliados a um sistema de remuneração mais
agressivo, oferecendo salários acima da média de mercado e um conjunto de benefícios que
não são oferecidos até essa ocasião (DRUCK, 1999). O trabalho torna-se extremamente
parcelado e ocorre a transferência da dimensão intelectual deste para os profissionais técnicos
e a gerência. Estas transformações engendram um processo produtivo altamente verticalizado,
bastante homogêneo, tendo por fim a produção de mercadorias em massa (ANTUNES, 1999).
Segundo Alain Lipietz, um dos expoentes da escola da regulação, o fordismo deve ser
entendido como “um regime de acumulação e um modo de regulação” (1991: 31). Como
regime de acumulação, apresenta os seguintes pontos centrais:
• Produção em massa de mercadorias, em que ocorre separação entre a concepção e
a execução, aliada à crescente mecanização do processo produtivo, levando à
elevação constante dos níveis de produtividade;
• Crescente poder aquisitivo dos trabalhadores de acordo com o aumento de sua
produtividade;
regulação deste mesmo regime de acumulação não só tornava possível, mas também
necessária a satisfação de alguns de seus interesses mais imediatos: aqueles ligados
precisamente a sua ‘seguridade social’ (...). Em outras palavras, a acumulação com
característica dominante intensiva só podia desenvolver sua dinâmica de expansão
contínua com base no quadro institucional definido no compromisso entre burguesia e
proletariado. (BIHR; 1998: 43-4)
gerada pelo desemprego estrutural que então começa a se manifestar; aumento da esfera
financeira, que inicia um processo de autonomização frente aos capitais produtivos, tornando-
se o campo prioritário para a especulação; concentração do capital gerada pelas fusões de
empresas; crise do estado de bem estar social levando à retração dos gastos públicos.
Alain Bihr indica que o enfraquecimento do fordismo está associado a: (i) diminuição
dos ganhos de produtividade; (ii) elevação da composição orgânica do capital; (iii) saturação
da norma social de consumo; (iv) desenvolvimento do trabalho improdutivo (1998).
Para Coriat, o modelo fordista “entra em crise relativa, devido a uma instabilidade
social” aliado ao fato de este modelo de organização produtiva ter-se tornado
contraproducente, tendo em vista que “uma grande quantidade de tempos ‘mortos’ e de
tempos ‘improdutivos’ eram gastos com técnicas complexas de balanceamento das cadeias de
produção” (1988: 16). Este autor argumenta também que os mercados, até então regidos pela
demanda - oferta de produtos menor que a demanda - passam a ser regidos pela oferta -
demanda de produtos inferior à oferta. Esta mudança faz com que o foco dos processos
produtivos seja deslocado da quantidade e homogeneidade dos produtos para a diferenciação
e qualidade (CORIAT, 1988), o que não está alinhado aos fundamentos do modelo vigente.
Da crise atravessada pelo regime de acumulação fordista emerge um processo de
reestruturação que, por um lado, procura dotar os espaços fabris de características mais
flexíveis para a produção de mercadorias, através da utilização de novas tecnologias físicas de
base microeletrônica e pela implementação de novas formas de organização e gestão do
trabalho, com especial ênfase no modelo toyotista. Por outro lado, o “estado providência”,
desenvolvido em maior ou menor escala nos países capitalistas centrais durante os anos de
expansão do fordismo, para garantir a reprodução da força de trabalho, passa a ser
progressivamente desarticulado, assim como o poder dos sindicatos passa a ser
sistematicamente enfraquecido (McILROY, 2002), levando a uma redução de sua capacidade
de mobilização e, conseqüentemente, do poder de resistência dos trabalhadores.
Não se deve interpretar, contudo, que o processo de reestruturação desencadeado pela
crise do fordismo tenha seguido uma trajetória idêntica nos chamados países desenvolvidos.
Houve, isto sim, um conjunto variado de experiências e caminhos trilhados. Para Harvey,
estas experiências estariam levando à constituição de um novo regime de acumulação, por ele
denominado de “acumulação flexível” (2002: 140). Seu traço constitutivo principal é a quebra
da rigidez que caracterizava o modelo fordista.
Leite (1994b) propõe uma periodização que identifica três momentos do processo de
reestruturação produtiva. O primeiro período compreende o final dos anos 1970 e início dos
anos 1980, concentrado na implementação dos círculos de controle de qualidade, CCQ´s, sem
que alterações significativas nas formas de organização do trabalho ou investimentos
intensivos em equipamentos de base microeletrônica fossem implementados. Esta estratégia
mostra-se um fracasso já em meados nos anos 1980 com a desativação de diversos programas.
No segundo período, que se inicia na metade da década de 1980 e estende-se até o seu final, é
observada uma rápida difusão de equipamentos de base microeletrônica, tendo ocorrido
também iniciativas de implementação de novas formas de organização do trabalho,
principalmente aquelas de inspiração toyotista, sem que estas iniciativas, no entanto, venham
a se generalizar nas indústrias. O terceiro período proposto por Leite, que inicia nos anos
1990, quando “vem se detectando uma nova fase em que as empresas estão concentrando seus
esforços nas estratégias organizacionais, bem como na adoção de novas formas de gestão da
mão-de-obra, mais compatíveis com a necessidade de flexibilização do trabalho e com o
envolvimento dos trabalhadores com a qualidade e a produtividade.” (1994b: 573). Para esta
autora, embora as estratégias adotadas variem significativamente entre as empresas, possuem
como elemento comum “o caráter limitado e reativo” (1994b: 565).
Como vimos, diferentes autores apontam a existência de um aprofundamento do
processo de reestruturação produtiva ocorrido no início da década de 1990. Este
aprofundamento é impulsionado, de um lado, pelo incremento no processo de mundialização
dos capitais, internacionalização dos mercados e integração informacional, e de outro, pelas
reformas de cunho neoliberal implementadas no governo Fernando Collor e intensificadas nos
governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. As reformas implementadas por
Fernando Collor expõem as empresas nacionais à concorrência estrangeira através da redução
ou mesmo eliminação de tarifas de importação, ao mesmo tempo em que criam o Programa
Brasileiro de Qualidade e Produtividade, com o objetivo de estimular a modernização do
parque fabril brasileiro. Esta exposição abrupta à concorrência descortina de forma dramática
a defasagem competitiva existente entre a indústria nacional, por anos protegida, em relação
aos concorrentes internacionais. Já na gestão de Itamar Franco, seguida pela de Fernando
Henrique Cardoso, o plano de estabilização econômica conhecido como Plano Real promove
uma sobrevalorização artificial da moeda nacional frente à moeda norte-americana, a
chamada âncora cambial, que torna a importação de mercadorias extremamente atraente, em
detrimento da indústria nacional que, além disto, vê frustradas suas possibilidades de
exportação.
2.1. O Desemprego
Nesta categoria de análise, é verificada a relação existente entre o desemprego e o
processo de reestruturação produtiva, seja pela incorporação de novas tecnologias de base
observa-se que houve um aumento constante em valores reais deflacionados, tendo sido
registrada queda em relação ao ano anterior nos anos de 1995 e 2001.
180,00
160,00
140,00
Número Índice
120,00
100,00
80,00
60,00
40,00
20,00
0,00
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Vendas Reais Pessoal Empregado
14,0
12,0
10,0
2,0
0,0
-2,0
-4,0
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001
Fonte: IBGE/MDIC
Elaboração do autor
Os dados da indústria de transformação, analisados até aqui, indicam que a nova base
técnica implementada pelo processo de reestruturação produtiva é poupadora de mão-de-obra,
fazendo com que o regime de acumulação flexível venha a demandar uma quantidade cada
vez menor de trabalhadores em relação àqueles que são ofertados pela população
economicamente ativa, o que configura a expansão do desemprego estrutural.
10 anos ou mais
Temos, então, um cenário no qual o vínculo formal de trabalho se mostra muito tênue,
fazendo com que o trabalhador tenha sempre presente a possibilidade de perda do emprego e
de sua incorporação ao contingente de trabalhadores desempregados, que vão alimentar o
trabalho temporário ou, em situação ainda mais precária, o trabalho informal, sem qualquer
tipo de garantia e excluídos de todos os benefícios sociais.
Postos de trabalho que anteriormente compunham o centro do processo produtivo das
empresas são deslocados para a periferia, através dos processos de desconcentração produtiva,
tendo como motivação principal a busca constante por redução de custos. Trata-se de um
processo que atinge as indústrias de uma forma global, levando a um aumento do contingente
de trabalhadores que podem ser facilmente incorporados ou desligados pelas empresas.
Dadas as características do processo de industrialização no Brasil, onde deu-se a
implementação de um fordismo parcial, sem a rede de proteção social na forma do estado de
bem estar social que caracteriza o compromisso fordista nos países capitalistas centrais, a
sociedade convive com um contingente de excluídos do mercado formal de trabalho e de
consumo (DRUCK, 1999). O trabalho autônomo e sem carteira assinada passa a ser o destino
dos excluídos da expansão capitalista brasileira. Os anos 1990, sob a intensificação do
processo de reestruturação produtiva, registram o crescimento destas formas de trabalho e,
através da flexibilização da legislação trabalhista patrocinada pelo Estado, vêem surgir novas
formas de contrato de trabalho, tais como o contrato de trabalho com jornada de trabalho
parcial, e o contrato de trabalho por prazo determinado, conhecido como trabalho temporário.
Estas formas de contrato de trabalho fazem emergir um contingente de trabalhadores
que convivem com uma grande instabilidade e têm os seus direitos trabalhistas bastante
reduzidos, como é o caso do contrato temporário. Nesta modalidade de contrato de trabalho, o
aviso prévio de desligamento é eliminado, a multa de 40% sobre o FGTS é extinta e a
contribuição deste é reduzida de 8% para 2% sobre o salário (FREITAS, 2002).
A contratação de trabalhadores com vínculos informais apresenta uma tendência de
crescimento no decorrer da última década. Na região metropolitana de São Paulo, onde o
acompanhamento da situação do emprego e desemprego do DIEESE é realizado há mais
tempo, permitindo uma comparação histórica, o número de trabalhadores sem carteira
assinada do setor privado aumenta em 6,3 pontos percentuais, passando de 11,6% dos postos
de trabalho em 1989 para 17,9% em 1999 (Tabela 1). Na categoria "contratação
flexibilizada", que envolve os trabalhadores sem carteira do setor privado e público, os
trabalhadores assalariados que possuem vínculo com outras empresas (terceiros) e os
autônomos que prestam serviço a uma única empresa, a região metropolitana de São Paulo
registra um crescimento de 12,2 pontos percentuais, passando de 20,9% em 1989 para 33,1%
em 1999. As regiões metropolitanas de Recife e de Salvador apresentam os maiores
Gráfico 4 - Pessoal Empregado por Faixas de Salário Mínimo Ind. de Transformação - Brasil
2001
1997
1992
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
0,00 - 0,50 0,51 - 1,00 1,01 - 2,00 2,01 - 3,00 3,01 - 4,00 4,01 - 5,00
5,01 - 7,00 7,01 - 10,00 10,01 - 15,00 15,01 - 20,00 Mais de 20,0 Ignorado
60,0%
50,3%
46,6%
50,0% 43,5% 45,3%
35,2% 35,9%
40,0% 32,8%
30,0%
20,0% 14,6%
10,0%
0,0%
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Fonte: DIEESE
Tabela 2 – Rendimento Mensal Médio (em índice) Segundo Formas de Contratação - 1999
responsável pela qualidade do produto e pela manutenção preventiva das máquinas e dos
equipamentos, aliada às técnicas de movimentação de materiais dentro do processo produtivo,
fazem com que os tempos mortos sejam revertidos de forma a aumentar a produtividade do
modelo toyotista. Kamata, citado por Antunes, argumenta:
3. Encaminhamento Reflexivo
O processo de reestruturação produtiva, através das novas tecnologias físicas de base
microeletrônica e de novas formas de organização e gestão do trabalho, promove a
implementação de uma nova base técnica que é poupadora de mão-de-obra, levando ao
crescimento do desemprego estrutural. Ao analisar faturamento, produção industrial,
produtividade, PIB e o nível de emprego para a indústria de transformação, foi possível
observar o descompasso entre estes indicadores ao longo da década de 1990. Embora o
crescimento da produção industrial tenha sido comprometido pelo cenário macroeconômico
adverso, este indicador apresentou crescimento no período. A mão-de-obra empregada, a
despeito do crescimento da produção industrial observado, apresenta uma redução expressiva
no mesmo período, indicando a existência de um processo de crescimento sem trabalho
(jobless growth). Assim sendo, mesmo com um vigoroso aumento na produção industrial,
possibilitado por um hipotético cenário macroeconômico favorável, o aumento na mão-de-
obra empregada dar-se-á num ritmo inferior.
Os vínculos empregatícios sob o regime de acumulação flexível tornaram-se mais
frágeis. Esta fragilidade decorre de um duplo movimento. Em primeiro lugar, articulações na
esfera jurídico/política fazem emergir novas modalidades de vínculos formais de trabalho,
como o trabalho em tempo parcial e o trabalho temporário, com significativa redução nos
direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que os vínculos tradicionais de trabalho
tornam-se mais tênues, devido à intensificação na rotatividade da mão-de-obra. É observado,
no período compreendido entre os anos 1992 e 2001, um crescimento desproporcional do
número de trabalhadores da indústria de transformação com menos de um ano de trabalho
(36,14%) relativamente ao total de trabalhadores (5,58%).
Em segundo lugar, ocorre uma expansão do trabalho informal. Alimentado pelo
excedente de mão-de-obra que é descartado do processo formal de venda da força de trabalho,
o trabalho informal, anteriormente restrito às franjas da economia brasileira, passa a ocupar
um lugar cada vez mais central. A terceirização de fases do processo produtivo encontra neste
contingente uma mão-de-obra preparada para produzir fora do espaço fabril das empresas
centrais o que, anteriormente, era produzido dentro.
A terceira dimensão de análise utilizada nesta pesquisa é o preço da força de trabalho.
A partir dos dados analisados, é possível perceber um nítido processo de redução do preço de
venda da força de trabalho. No trabalho formal, é observada uma migração dos trabalhadores
de faixas de remuneração mais elevadas para as faixas de remuneração menores. O controle
da massa salarial é efetuado, de um lado, pela renovação do quadro de trabalhadores, através
da demissão daqueles com mais tempo de trabalho e, portanto, com mais vantagens
acumuladas. De outro lado, a livre negociação estabelecida pelo governo, no âmbito do Plano
Real, abre a possibilidade de redução salarial via reposição parcial da inflação acumulada no
período entre as datas-base. A redução do preço da força de trabalho ocorre, também, pela
migração de postos de trabalho das empresas centrais para empresas terceirizadas, seja
utilizando mão-de-obra formal, seja informal. Além disto, segundo dados do DIEESE (2001),
a remuneração do trabalho sem carteira assinada é 40% inferior em média, comparativamente
à remuneração do trabalho com carteira assinada, para a região metropolitana de São Paulo.
A qualidade dos postos de trabalho, analisado sob o ângulo do ritmo de trabalho, da
jornada e das condições de saúde do trabalhador, apresenta um quadro de degradação. Por um
lado, a nova base técnica, através das novas tecnologias físicas de base microeletrônica e das
novas formas de organização do trabalho, permite a intensificação do trabalho, via redução
dos ciclos de operação, redução dos tempos mortos, operação simultânea de mais de uma
máquina, entre outros. Por outro lado, dispor da força de trabalho além da jornada semanal
normal vem se configurando uma prática comum. Deste duplo processo de superexploração
da força de trabalho, resulta uma situação de risco para o desenvolvimento de doenças
ocupacionais, principalmente as chamadas LER e DORT, que assumem a proporção,
utilizando a linguagem dos especialistas da área, de uma verdadeira epidemia.
Estas dimensões, separadas no âmbito desta pesquisa de forma a possibilitar uma
melhor aproximação ao processo de precarização do trabalho, possuem uma profunda
interdependência, e sua dinâmica vem provocando mudanças fundamentais no mundo do
trabalho. O trabalho precário, instável, intenso, mal remunerado, com poucos ou mesmo sem
direitos e, muitas vezes, agressivo à saúde, antes características associadas ao trabalho
desenvolvido nas franjas do tecido social, vem se tornando a realidade dos demais
trabalhadores envolvidos nas principais cadeias produtivas da economia brasileira. Trata-se de
um movimento em que a distância que separa o trabalho informal do trabalho formal vem
sendo combatida não com um esforço de inclusão dos trabalhadores informais, mas através da
degradação das condições de trabalho e emprego do trabalhador formal.
1
“Contingente de pessoas em condições de participar do processo de produção
social”. (POCHMANN, 2001: 78)
2
Conforme jornal Folha de São Paulo, de 16 de Fevereiro de 2003, em reportagem
intitulada “No mundo, há 180 milhões sem emprego”.
3
As regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE são: Belo Horizonte, Porto
Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
4
Conforme base de dados da PME, disponível em <http://www.ibge.gov.br>,
acessado em 17 de outubro de 2003.
5
Conforme base de dados da PED, disponível em www.dieese.org.br, acessado em
20 de outubro de 2003.
6
Indicadores Industriais CNI - Resultados Brasil - Série Histórica, disponível em
<www.cni.org.br>, acessado em 05 de Março de 2003.
7
Boletim Estatístico de 2001, disponível em <www.mdic.gov.br>, acessado em 06
de Março de 2003.
8
LER - Lesão por Esforço Repetitivo; DORT - Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho.
9
Sinovite: processo inflamatório agudo ou crônico da membrana das cápsulas
articulares; Tenossinovite: processo inflamatório agudo ou crônico do tendão e da membrana
que o envolve.
10
Agentes etiológicos são os agentes causadores de uma doença.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Negociações Coletivas Entre os Metalúrgicos Paulistas. Chicago: XXI Congresso
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BIHR, Alain. Da Grande Noite À Alternativa – O Movimento Operário Europeu em
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Produção. In SCHMITZ, Hubert; CARVALHO, Ruy de Quadros. Automação
Competitiva e Trabalho: A Experiência Internacional. São Paulo: Ucitec, 1988.
COUTO, Hudson de Araújo. Limites do Homem. Revista Proteção. Porto Alegre: MPF, p.
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DIEESE. A Situação do Trabalho no Brasil. São Paulo: DIEESE, 2001.
DRUCK, Maria da Graça. Terceirização: (Des)Fordizando a Fábrica - Um Estudo do
Complexo Petroquímico. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
FARIA, José Henrique de. Tecnologia e Processo de Trabalho. Curitiba: Editora da UFPR,
1997.
FREITAS, Carlos Eduardo. Levantamento Sobre Normas do Direito do Trabalho Durante
o Governo Fernando Henrique Cardoso. [Texto da Internet]: URL:
<http://www.pt.org.br/assessor/LevantaPrecariza.htm>, Acesso em 12/09/2002.
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
Este texto trata da contribuição de Maurício Tragtenberg em um tema que marca sua
obra. Analisar seu trabalho é um desafio permanente, porque quanto mais se estuda, mais se
descobrem relações novas e mais se percebe o quanto são atualizadas suas reflexões.
Tragtenberg percorreu um caminho no qual se encontram três temas principais: (i)
organização e burocracia, (ii) poder e saber e (iii) educação, trabalho e pedagogia libertária.
Todos relacionados entre si, como não poderia deixar de ser em se tratando de Tragtenberg.
Ainda que escrevesse sobre planificação, ideologia ou sobre o movimento operário (nos
jornais O Batente, Folha de São Paulo, entre outros), era sobre estes temas que ele se
debruçava.
É voz corrente nas ciências que uma teoria enquanto for capaz de explicar a
realidade sobre a qual foi construída continua válida. Porém, existem aqueles intelectuais
que são capazes de retirar da realidade, mais do que apenas sua aparência, a essência no
âmbito do movimento complexo e contraditório. Este é o caso de Tragtenberg.
Basta ver que no quadro da política atual, em que o poder instituído mostra sua face
perversa; em que um projeto de sociedade tão duramente construído é desmontado
favorecendo o pensamento conservador a posar de guardião do templo da ética, da
moralidade e dos bons costumes; em que a razão assume sua forma cínica; em que
justamente um governo que se anunciava popular propõe uma reforma do ensino superior
que, como já denunciava Maurício, não passa de uma restauração, é bastante oportuno
revisitar Tragtenberg e redescobrir sua atualidade.
Com efeito, suas reflexões parecem ter vindo a lume apenas há poucos meses,
convidando todos a percorrê-las atenciosamente. Neste texto, porém, resistindo à tentação
de abordar mais amplamente os seus três temas principais, procurar-se-á direcionar a
análise especialmente ao tema da relação entre poder e saber, tendo como campo empírico
a universidade pública. Como já foi dito, não sendo possível eleger um tema sem atravessar
os outros, a escolha de um deles é apenas para marcar a ênfase da abordagem.
1. Razão cínica e poder
Como já exposto em outro texto (FARIA, 2004), poder é a capacidade coletiva de
definir e realizar interesses objetivos e/ou subjetivos específicos. O poder é uma construção
social e não um atributo genético. O exercício desta capacidade se torna mais efetivo e
importante quando resulta do acesso do grupo social ao comando das principais estruturas
organizacionais da sociedade (partidos, sindicatos, governos, universidades, etc,), pois estas
1
Texto elaborado para o III Seminário de Ciências Sociais, promovido pela Universidade Estadual de
Maringá de 26 à 30 de setembro de 2005, cujo tema foi O saber e a produção do conhecimento nas Ciências
Sociais. Apresentado na mesa redonda intitulada Maurício Tragtenberg: poder e saber. Publicado na Revista
Eletrônica Espaço Acadêmico. Maringá, volume 53, número 10, pp. 06-20, 2005.
2
fornecem, tendo em vista sua constituição, elementos estratégicos e operacionais mais bem
estruturados. Não é sem razão que os grupos desencadeiam confrontos políticos para
ocupar estes lugares institucionais. O poder não é absoluto, mas relativo, não é monolítico,
mas apresenta rupturas, não é total, mas pressupõe a existência de outros poderes ou de
contra-poderes. Deste modo, o poder somente tem existência real enquanto relação de
poder e é nesta relação que se organiza o processo de dominação.
Contudo, se o contra-poder, que não é senão um outro poder que se constrói
contrariamente ao dominante, é incapaz de estabelecer bases sólidas para seu exercício, ou
seja, se ele se estrutura sem um saber socialmente referenciado, o mesmo fornece, a este
poder dominante, recursos de que ele originalmente não dispõe. Diz a razão instrumental
que a definição e a realização dos interesses se constitui sobre um arcabouço racional
devido à tendência de que se opere, no coletivo, um cálculo utilitário de conseqüências.
Mas é justamente aí que o problema reside. Como é que o próprio coletivo se constrói? Na
objetividade encontra-se a subjetividade, pois estas não são duas instâncias, mas uma
unidade de contrários. Aqui se encontra o sujeito e suas idiossincrasias. Como o interesse
individual não consegue expressar-se como tal no plano coletivo, ele atua como um vírus
oportunista, a espera de uma brecha nas defesas coletivas para se colocar, como se coletivo
fosse, apropriando-se do discurso que o mesmo legitima.
É aí que o interesse individual pode se expressar por outros meios que não os seus,
pois o que ele não quer é expor a si e às suas fragilidades e contradições. Para cada situação
objetiva e/ou subjetiva é necessário encontrar um argumento objetivo aceito coletivamente.
Diferenças pessoais tornam-se incompatibilidades políticas; invejas tornam-se
discordâncias de procedimento; questões menores se transformam em argumentos
plenipotenciários. Enfim, sempre será preciso pronunciar as palavras certas, que não
denunciem a expressão individual oculta ou subalterna.
A garantia que a organização coletiva contém é a de que ela tanto depende quanto
fornece um vínculo social comum, o qual assegura, em larga medida, os níveis de
comprometimento dos sujeitos com os princípios agregadores que guiam as ações. Em não
se observando ou em não existindo tais princípios, qualquer atitude pode ser justificada,
qualquer posição pode ser racionalizada, qualquer política pode ser burocratizada. Desta
maneira, o sujeito pode passear por coletivos opostos, incorporar discursos diversos,
defender propostas contrárias, sem culpa, vergonha ou sofrimento, porque o que lhe orienta
é o hedonismo. O que ontem era a favor, hoje pode ser contra; o que ontem era princípio de
conduta, hoje pode ser fora de moda.
Todo o projeto coletivo deve admitir divergências internas para se fortalecer. Sem a
crítica coletiva, a organização opta pela pulsão de morte, pela onipotência narcísica, sempre
defendida pelos conservadores como princípio de fidelidade ao compromisso original,
quando este, de fato, só pode ser resultado de uma construção dinâmica, complexa e
contraditória, exposta à pulsão de vida, à dor da mudança e da transformação. O que faz
com que a organização coletiva se fortaleça não é a manutenção de suas crenças primevas,
mas a sua capacidade de renovar-se diante do movimento da realidade, para resguardar seus
princípios. As divergências internas podem provocar cisões, às vezes inconciliáveis, dando
vida a novos coletivos, os quais somente podem ter nascido do parto doloroso da matriz
original. Trata-se, assim, de saber até que ponto este DNA herdado é suficientemente
consistente para permitir alianças estratégicas entre sucessores de uma mesma matriz. Para
tanto, é necessário, especialmente diante de um quadro de aniquilamento dos princípios
3
2
Vide Folha de São Paulo de 25 de agosto de 2005, p. E10.
5
É muito cômodo, portanto, para esta razão, cobrar as ações dos que agem. Com
efeito, confinados em suas divagações oníricas, omitem-se da constituição do espaço
coletivo organizado, mas se acham plenos de direitos de cobrar o que poderia ter sido se já
não tivesse sido diferente, o que deveria ser se já não fosse de outro modo. Esta é a forma
de ser do idealismo, que acredita que a realidade existe a partir da consciência que dela se
tem e não que a consciência existe a partir da interação do sujeito com o real.
Se o sujeito não constrói a razão coletiva e, portanto, não vive a dinâmica, a
complexidade e as contradições deste processo, que tipo de razão o impulsiona se não a
razão moderna em sua versão cínica? A conquista desta razão, como afirma Calligaris, se
transforma em miséria “por causa de um estranho espírito de porco que conclui: quem se
mete é sempre sujo; melhor não se meter e reservar-se assim o direito de berrar”. Para os
donos desta razão “quem age é verdadeiramente interesseiro e quem não age é covarde”.
Deste modo, apenas aqueles que protestam contra os dois é que se consideram ungidos pela
sublime providência política.
Pois esta razão, que se considera plena de razões, é também aquela que julga o
contra-poder como interesseiro, pois é somente o poder que tem projetos, que tem meios,
competências, experiências e facilidades. O poder pode tanto que até faz com que suas
realizações vulgares pareçam grandes conquistas, que sua ineficácia pareça estratégia
política, que seu autoritarismo pareça disciplina democrática, pois o seu compromisso é
com o discurso, com a aparência, com o simbólico. E para mostrar as razões desta razão,
nada como uma boa logística, um marketing político eficiente, o uso não ético das
estruturas e recursos, os acordos políticos ilegítimos. Tudo porque o poder se considera
detentor do único projeto possível, da única verdade, da única política, do único modo de
pensar e agir. Para o poder, que sempre pretende se perpetuar, não há nada mais
interessante do que o esfacelamento do contra-poder, pois assim ele pode ser exercido com
baixa ou com desorganizada resistência.
Desta forma, se o contra-poder não se estrutura como saber e não se organiza para
além do discurso, das aparências e dos simbólicos unívocos, se o mesmo se faz prisioneiro
de antigas diferenças de segunda categoria, se ele se acredita o lugar de todo o
descontentamento, se considera que nada é puro senão seu moralismo e que nada é viável
senão sua proposta, então o poder se enraíza. E se enraíza também no contra-poder, na
medida que este, na eventualidade de suceder-lhe, assume sua identidade exatamente pela
prática que condenava.
Ao mesmo tempo e contraditoriamente, a razão cínica sempre se mostra disponível
para manifestar-se com seus surrados argumentos. Ainda que esta razão possa se colocar
contra o poder, não consegue ser um contra-poder, pois nem um e nem outro são
suficientemente bons para ela. Mais do que isto, a razão cínica pode se colocar ao lado do
poder, que nos bastidores ou em segredo combate, simplesmente porque não consegue
suportar romper com as pequenas diferenças, já que para esta razão cínica o projeto
coletivo é um discurso que cumpre pronunciar, mas não necessariamente assumir.
De fato, quando a razão cínica age com a hipocrisia que lhe é própria, não é
necessário que haja motivos pertinentes para a sua ação. Qualquer motivo serve, porque a
ação já se encontrava previamente definida antes de se apresentar e ser executada. Neste
sentido, o que precisa ser observado com redobrada atenção pelo contra-poder é tanto o
movimento coletivo, pois nada se realiza sem ele, quanto aquelas questões que afetam os
sujeitos no plano individual e que são transportadas para o plano coletivo como se a ele
pertencessem, porque, ao final, poderão mesmo acabar sendo assumidas coletivamente.
6
tornem imutáveis. De fato, como analisa Engels (1979), em sua crítica ao Senhor Düring, se
o produto do exercício do pensamento pudesse reivindicar a validez soberana das
verdades, a sociedade alcançaria um nível tal que se teria esgotado a infinidade do mundo
intelectual. Se tudo já estivesse pronto, nada mais haveria a produzir. Se tudo já se
soubesse, nada mais haveria a investigar.
Entretanto, é interessante verificar que mesmo em situações que se caracterizam
pela renovada produção intelectual e pela permanente investigação também acabem
emergindo estes axiomas, definitivos e inapeláveis, dos quais se extraem as deduções da
existência humana, do poder-ser e do dever-ser. E é interessante observar que justamente aí
é que alguns membros das organizações acadêmicas asseguram, em seus discursos, que só a
sua concepção é aceitável, que tudo o mais é equívoco e, como profetas recém saídos do
forno, trazem em sua mochila, pronta para ser posta em circulação, a única verdade e a
eterna justiça (FARIA, 2004).
Neste sentido, a relação professor-aluno é sempre uma relação de poder quando tem
como suporte os aparatos da coerção institucionalizada e o domínio de um saber
inacessível. Tragtenberg (1979c, p.18) observa bem estas práticas, indicando que “o mestre
possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória: não há saber absoluto, nem
ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor: a
separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada”.
Deste modo, ao examinar a crise da universidade, que ocorre porque a “sociedade
está em crise”, Tragtenberg (1979c:15) percebe que, ao contrário do que afirmam alguns
acadêmicos, a universidade “não é uma instituição neutra; mas sim de classe, onde as
contradições aparecem. Para obscurecer estes fatores, a universidade desenvolve uma
ideologia do saber neutro, científico, uma neutralidade cultural e um mito de saber
‘objetivo’ acima das contradições sociais”. De fato, a universidade desenvolve
determinadas práticas acadêmicas e administrativas que, por vezes, escondem,
deliberadamente ou não, movimentos contraditórios. O processo de seleção dos membros
de sua comunidade é um exemplo destas práticas. “Quem é escolhido econômica e
socialmente tem potencialidades em termos de habilidade intelectual de verbalização, de
raciocínio abstrato, de passar pelo chamado filtro aparentemente educacional ou cultural
que é o vestibular”. A “seleção, educacional, mascara uma seleção social preexistente”, de
forma que a educação “apenas confere um poder simbólico a quem já tem poder real”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 130). A seleção dos alunos da graduação e da pós-graduação,
caracterizada pela igualdade de oportunidades, disfarça o fato de que em cursos de alta
demanda as maiores oportunidades são conferidas aos que tiveram acesso prévio a um
ensino privilegiado (ZANDONÁ, 2005)3.
Tragtenberg (1979c:20-2) percebe criticamente este movimento. Sobre a ética e a
função social, afirma que “uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto
a pagá-las perde o senso de discriminação ética e da finalidade social de sua produção: é
uma ‘multiversidade’, que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o
fim da encomenda, acobertada pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu
produto”.
3
Isto sem falar que “a seleção dos docentes através de concursos, às vezes esconde a preferência das bancas
pelo conteúdo teórico e político dos candidatos, quando não por relações interpessoais”. Maurício foi uma das
vítimas deste processo (TRAGTENBERG, 1999).
8
poder só podem contribuir a uma educação opressiva”. Muitas universidades tiveram seu
comando entregue àqueles que possuíam como título maior sua cumplicidade com o poder,
muito mais do que sua qualificação científica. Estas parcerias entre o poder e a direção da
universidade, as diversas formas de submissão dos dirigentes às determinações do poder, os
vínculos destes dirigentes com agremiações políticas e as trocas de favores, aliados à
inépcia e à incompetência na gestão, aos modos autoritários e excludentes no trato dos
interesses das comunidades interna e externa, entre outros, vêm se constituindo em fatores
de transformação do campus universitário em cemitério de esperanças perdidas, vulnerável
à politicagem local, onde o regime da “incompetência treinada” é o predominante. Como
afirmava Shakespeare, “é lamentável que na nossa época loucos dirijam cegos”.
Enquanto grupos com intimidade com a burocracia se aplicam com diligência nos
escaninhos do poder, a pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre
o parco conhecimento produzido pela universidade. Com isto, aponta Tragtenberg (1981),
se processa a passagem da universidade que se pretendia humanística à universidade
tecnocrática, em que se aplicam os critérios lucrativos privados, que funcionam voltados
para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e
dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o
diplomado universitário.
A universidade tende a reproduzir não apenas ideologicamente o modo de produção
capitalista, mas, também o faz pelos servos que ela forma. Desta maneira, como enfatiza
Tragtenberg, a não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se
constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou de “traição intelectual”. Deste modo,
cabe compreender que poder se enfrenta com contra-poder e se paga com saber,
especialmente porque, como lembra Tragtenberg (1981, p. 135), no país se tem uma relação
em que geralmente existe muito saber sem poder e muito poder sem nenhum saber.
3. O intelectual docente, o saber e a política do poder.
“Os professores servem para reproduzir o poder na medida em que determinam as
questões que [seus alunos devem] estudar”, afirma Tragtenberg (1981, p. 24). “Como os
dados empíricos são influenciados pelo instrumental metodológico, o contexto social
obviamente afeta as teorias e metodologias” (Ibid, p. 21) e conduz a compreensão da
realidade para onde o professor deseja construí-la. O significado basilar desta trama é que o
intelectual docente, dependendo de sua vinculação, articulará a explanação do mundo para
onde aponta seu lugar de pertença nas relações de classe. Isto exige, de imediato, que se
possa compreender que o papel do intelectual não é unívoco.
Classificações não são formas de analisar o mundo histórico e dialético, mas podem
ajudar a organizar didaticamente uma exposição. Nestes termos, sem fugir do conhecido
risco da simplificação, trata-se de aceitar as evidências empíricas que confirmam que os
intelectuais docentes não podem ser agrupados em um mesmo quadro. Na universidade se
encontram e se produzem alguns tipos de intelectuais, caracterizados por suas atividades,
que podem ser dispostos em quatro categorias4:
a. Intelectual orgânico (no sentido usado por Gramsci): é o que se relaciona
diretamente com uma classe social pela função e pelo lugar que ocupa nas
4
Desculpo-me pela generalização e pela ironia com que apresento criticamente alguns tipos de intelectuais,
pessoas cujo objeto de trabalho é a idéia. Entretanto, não apenas é difícil evitar uma análise tragtenberguiana
em se tratando de Tragtenberg, mas igualmente evitar apontar para as diferenças entre os intelectuais
(orgânicos) e seus similares.
10
5
No Paraná, foi criada a Academia Paranaense dos Doutores para o Desenvolvimento, ligada ao Instituto
Paranaense do Desenvolvimento - IPD. Segundo seu site, sua maior contribuição é “potencializar o
conhecimento acadêmico”, dando “mais visibilidade aos trabalhos acadêmicos” e levando “seus resultados ao
setor industrial como forma de contribuir para o desenvolvimento econômico, social e ambiental”. A
Academia pretende compor “cenários que reúnam conhecimentos e agreguem inovações, tanto no âmbito de
desenvolvimento do conhecimento e pesquisa quanto na aplicação prática”. Seus objetivos são os de “reunir a
comunidade de doutores do Paraná, descobrir competências, dialogar e buscar soluções para contribuir com o
futuro do desenvolvimento do Estado, usando o conhecimento para ajudar na construção de uma comunidade
sustentável e melhor de se viver”, tendo como prioridades o “mapeamento das competências e áreas de
atuação dos profissionais do meio acadêmico” e “das necessidades das Indústrias na área de inovação
tecnológica” e a “avaliação contínua do processo de interação academia-empresa-comunidade”.
11
6
Os comitês acadêmicos valorizam a especificação de “que um verdadeiro professor deve publicar em inglês”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 27).
12
7
Eu tenho medo, de tudo o que concentre poder, medo da concentração de saber, também medo da
Pedantocracia, da chamada ditadura científica exercida pelo braço secular apoiada em tecnocratas “com
boa consciência”, que conseguem tranqüilamente penalizar até a classe média-média, e a média-alta, com a
redefinição de imposto de renda, e dormir tranqüilamente. Eles acreditam que cumprem uma missão de
salvação nacional. (Tragtenberg, 1981, p. 136).
13
“poder” somente se efetiva quando entra em cena sua generosidade. Tampouco sabem que
ser o “dono do campinho universitário” não é suficiente para determinar o andamento do
jogo. Não sabem, porque não lhes interessa saber, que cargos de direção somente têm
sentido acadêmico quando têm sentido histórico.
O docente da educação libertária não pode muito, porque a transformação do mundo
não está contida em si, mas nas relações sociais e de produção. Neste sentido, ele pode
contribuir decisivamente para o processo libertário quando se afirma criticamente contra a
dominação, contra a distribuição desigual do poder. Para tanto, não basta o simples domínio
de técnicas que favoreçam a pedagogia libertária. É preciso que o sujeito docente, ele
mesmo, tenha um envolvimento consciente, crítico, autônomo e, ao mesmo tempo, afetivo,
contra a educação bancária (para usar uma expressão de Paulo Freire), a pedagogia
autoritária e burocrática. Um docente que não for internamente generoso na socialização de
seu saber, não alcançará a condição política libertária.
Se na universidade é necessário haver uma recepção afirmativa às práticas
democráticas, é necessário ter claro que, afirma Tragtenberg (1981), somente a partir de
uma mudança profunda na área econômico-social e de distribuição desigual do poder
existente hoje é que se terá condição de alcançar uma democratização real da universidade.
O problema educacional é aparentemente educacional. Na realidade é econômico-social e
político. Somente países que realizaram profundas transformações sociais e econômicas
chegaram a universalizar o ensino a toda a população, sem discriminação.
A universalização da educação em todos os níveis, continua Tragtenberg (1981, p.
152-3), pressupõe a supressão de uma estrutura social baseada na desigual distribuição de
renda. “É impossível oportunidades educacionais iguais para todos se as oportunidades
econômicas e sociais são desiguais. Mantida a exploração do trabalho pelo capital, a
chamada ‘igualdade de oportunidades’ garantida pela lei no acesso à educação se reduz a
uma farsa”. A universidade se desenvolve sob o signo da contradição. Ela reproduz o
sistema na medida que forma pessoas para assumirem posições de mando, ao mesmo
tempo em que é um espaço onde a crítica ao sistema se dá e igualmente a resistência.
É exatamente por ser também um espaço do contra-poder, a exigir daqueles que
possuem uma responsabilidade política e social que assumam sua condução, que a
universidade deve combater, sem transigência, a pedagogia burocrática que acentua o
conformismo, o espírito acrítico do aluno, formando a futura mão-de-obra dócil que nada
reivindicará nas empresas ou no Estado, formando os “servos” do capital que docilmente
contribuirão para sua reprodução ampliada. “Na medida em que o mercado de trabalho é
dinâmico e muda, a universidade não pode ser uma mera agência de adequação a esse
mercado de trabalho”. “Quanto menos os interessados e os objetos dessa política
educacional participarem das definições, maior será o retardamento e a disfunção da
universidade em relação ao todo social” (TRAGTENBERG, 1981, p. 140)
O problema entre o saber e o trabalho, continua Tragtenberg (1981, p. 141-149), é
que “as estruturas de trabalho, no nosso mundo, são profundamente burocráticas e
hierárquicas e a elas se acoplam, aparentemente, estruturas de saber diferenciadas”,
enquanto a relação entre poder e educação encontra-se no fato de que as medidas que
afetam profundamente a educação são “tomadas com absoluta desconsideração pela
comunidade acadêmica brasileira, por ‘sábios’ que curtem mordomias em Brasília”, que se
acostumaram a emitir diktat’s (ordens) de cima para baixo, desconsiderando interesses de
professores e estudantes, “porém a serviço dos grandes grupos empresariais privados que
14
FARIA, José Henrique de. Comissões de fábrica: poder e trabalho nas unidades produtivas.
Curitiba: Criar, 1987.
_____. Economia Política do Poder. Curitiba: Juruá, 2004. 3 Volumes.
MARX. K e ENGELS, F. A ideologia alemã. 3a ed. Lisboa: Presença, 1976.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. 2a ed. São Paulo: Ática, 1977.
_____. Francisco Ferrer e a pedagogia libertária. Educação & Sociedade. São Paulo:
Cortez e Moraes, 1(1):17-49, set. 1978.
_____. Violência e trabalho através da imprensa sindical. Educação & Sociedade. São
Paulo: Cortez e Moraes, 1(2): 87-120, jan. 1979.
_____. A delinqüência acadêmica. Educação & Sociedade. São Paulo: Cortez e Moraes,
1(3):76-82, maio, 1979.
_____. A delinqüência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo:
Rumo, 1979.
_____. O conhecimento expropriado e reapropriado pela classe operária: Espanha 80.
Educação & Sociedade. São Paulo: Cortez e Moraes, 2(7):53-62, set. 1980.
_____. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Moraes, 1980.
_____. Educação e política: a proposta integralista. Educação e Sociedade. São Paulo:
Cortez e Moraes, 3(8):97-110, mar. 1981.
_____. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982.
_____. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.
_____. Memorial. Pro-Posições. Campinas: Cortez/Unicamp, 4:79-87, mar. 1991.
_____. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo: Escuta, 1999. (Organizado por Sonia
Alem Marrach).
ZANDONÁ, Norma da Luz Ferrarini. O espaço do contrapoder: o acesso à universidade pública
e o perfil socioeconômico educacional dos candidatos ao vestibular da UFPR. Curitiba:
UFPR, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2005. Tese de Doutorado.
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172
O PODER NA OBRA DE
FERNANDO PRESTES MOTTA
*Professor Titular na José Henrique de Faria*
Universidade Federal do Paraná
– UFPR.
Introdução
Existem temas nas Humanidades e, particularmente, no estudo das
Organizações, cuja abrangência e complexidade ultrapassam a discussão teórica
1
FARIA. José Henrique de. Poder e entram no sempre difícil terreno epistemológico. Um desses é o do poder.
e relações de poder. Curitiba:
UFPR, 2002. Como já tive a oportunidade de me referir,1 não é raro ouvir expresso, pelo senso
comum ou mesmo nos círculos acadêmicos, que:
a) determinada pessoa tem poder ou que um certo grupo chegou ao poder. O que
se pretende dizer com isso? Que o poder é propriedade ou atributo de um
indivíduo? Que um indivíduo tem poder ou que pode vir a obtê-lo? Que o poder
E se encontra em algum lugar e que, para obtê-lo, deve-se alcançar este lugar?
C
C b) poder é uma atitude ou ação coercitiva. Pergunta-se: quando alguém ou um
O grupo age de forma repressiva é porque possui poder? O poder é
S incompatível com a democracia?
R c) Quem tem informação (ou dinheiro) tem poder. Neste caso, a informação
E (ou o dinheiro), ou sua posse bastam para identificar o detentor do poder?
V. d) poder é a condição de mandar ou decidir. Quem manda ou decide tem
C poder? Tal poder seria exercido em quaisquer circunstâncias, ou apenas sobre
I os subordinados?
E e) poder é a capacidade de influenciar. Seria o poder, então, uma condição de
N
T. liderança ou carisma cujo resultado é o fato de algumas pessoas realizarem
algo por indução de outras?
f ) todos têm poder, mas só alguns sabem exercê-lo. Poder é um atributo inato
n. 1
v. 5
que pode ser desenvolvido a partir de qualificação formal ou de práticas
políticas?
jun. g) poder é o governo ou o Estado. O poder é uma entidade abstrata ou uma
2003 instituição política?
162
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Conclusão
Os estudos de Fernando Prestes Motta têm o tema do poder como seu
objeto central, seguindo a linha de estudos críticos sobre organização na tradição
tragtenberguiana. A burocracia e suas formas organizacionais são os pontos de
referência em suas análises, que transitam, com desenvoltura, entre diversos
autores – Weber, Marx, Gramsci, Althusser, Poulantzas, Proudhon, Ansart,
Freud, Foucault, Enriquez e Dejours. Resumidamente, na trajetória de Motta
observam-se quatro abordagens e duas fases. Na primeira fase, Motta trabalha
numa perspectiva do poder enquanto burocracia e organização burocrática,
manifestando-se a administração como dominação, uma heterogestão. Nesta
fase, elabora três abordagens: da organização burocrática e sua administração; da
E ideologia e hegemonia política, tendo como lócus o Estado; das formas de
C
C
gestão, em que se debruça sobre a autogestão e a co-gestão. Na segunda fase,
O Motta trabalha o poder como controle social que se manifesta no conjunto dos
S valores e crenças, indicando a ação da organização sobre a vida psíquica. Nesta
R
fase, procura estudar, especialmente, a questão da cultura, encontrando, neste
E tema, campo para uma investigação decorrente da sociologia clínica. Enquanto
V. na primeira fase o poder é analisado a partir da racionalidade burocrática, na
C
segunda, é discutido na perspectiva da subjetividade, compondo, dessa maneira,
I um quadro teórico que leva em conta tanto os elementos objetivos da
E dominação quanto os decorrentes de suas formas ocultas, que atingem o sujeito
N
T.
em sua dimensão psicossocial.
Para finalizar, apresento quadro ilustrativo, sintetizando os principais
aspectos teóricos desenvolvidos por Fernando Motta em suas obras:
n. 1
v. 5
jun.
2003
168
Seção Especial – Homenagem a Fernando Cláudio Prestes Motta
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo; n.1, v.5 p. 139-172
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In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, 2., 2002, Recife. Anais... Recife: Observatório da
Realidade Organizacional : PROPAD/UFPE : ANPAD, 2002. 1 CD.
Resumo
O presente artigo procura, tendo como referência o pensamento de Marcuse, estudar o
conteúdo de alguns elementos constitutivos da sociedade unidimensional, a saber, repressão
social, aniquilamento do pensamento de protesto, tolerância repressiva, introjeção das normas
sociais, formas de controle, supressão do individualismo, alienação, instrumentalização do
homem, incorporação da competição, relação entre ciência e interesse, advento das
necessidades falsas e perda da autonomia, relacionando-os à formação do pensamento
democrático, crítico e reflexivo, enquanto contribuição à análise das organizações. Defende a
tese de que apesar da sociedade industrial e pós-industrial caminhar em direção à
unidimensionalidade, à perda da dimensão da autonomia, suas próprias contradições apontam
para a possibilidade da emancipação e do processo auto-reflexivo, permitindo à teoria a
incorporação de uma concepção que considere a organização como o local privilegiado para o
estudo da dominação e, igualmente, de seu enfrentamento.
Abstract
This article intends, having as reference the Marcuse’s thoughts, to study the content
of some constitutive elements of the one-dimensional society such as, social suppression,
annihilation of the protest’s thoughts, repressive endurance, introjections of the social norms,
ways of control, deletion of the individualism, alienation, instrumentalization of the mankind,
incorporation of competition, relation between science and interest, relating to the formation
of democratic thought, critic and reflexive, as contribution to analysis of organizations.
Defends the thesis that despite the industrial society and post-industrial step goes towards
one-dimensional, the loss of autonomy’s dimension, its own contradictions aim to the
possibility of the emancipation and of the auto-reflexive process, allow ring the theory to the
incorporation of one conception that considers the organization as a privileged to the study of
domination and, likewise, its confrontation.
Introdução
O pensamento filosófico de Hebert Marcuse tem muito a contribuir com os Estudos
Organizacionais, embora não tenha se destacado neste campo. Sua busca incessante pela
emancipação, pela ética coletiva, pela luta contra qualquer forma de totalitarismo e pela
autonomia do indivíduo, faz dele um dos importantes teóricos do pensamento crítico da
sociedade. Sua vinculação com a Escola de Frankfurt e com a Teoria Crítica permite localizar
suas reflexões no âmbito de uma retomada do pensamento marxista original em plena
Segunda Guerra, no momento em que se tornava explícita a luta contra a dominação do
homem pelo homem. Seu engajamento político permitiu aliar a reflexão à ação, legitimando-o
como um dos grandes expoentes da práxis de seu tempo.
Seus temas vão desde a repressão social, abordado em “Eros e Civilização”
(MARCUSE, 1975), em que o autor procura fazer uma interpretação do pensamento de Freud,
até sua obra mais reconhecida, que trata do homem unidimensional em uma sociedade
industrial (MARCUSE, 1999a), na qual Marcuse se indaga sobre se o pensamento perdeu uma
das suas dimensões: a da autonomia. Portanto, através de temas específicos incorporados nas
contribuições mais expressivas de Marcuse - a repressão social, o aniquilamento do
pensamento de protesto, a tolerância repressiva, a introjeção das normas sociais, as formas de
controles, a supressão do individualismo, a alienação, a instrumentalização do homem, a
incorporação da competição, a relação entre ciência e interesse, o advento das necessidades
falsas e a perda da autonomia - procurar-se-á fazer neste artigo uma análise voltada à Teoria
das Organizações, de forma a verificar suas inserções e contribuições no processo de
formação do pensamento democrático e reflexivo. O objetivo específico pontual é permitir
uma análise que seja capaz de ampliar, do ponto de vista marcuseano, o campo de ação dos
estudos organizacionais, contribuindo para com o debate sobre se a Teoria das Organizações
dirige seu foco para a emancipação dos indivíduos ou para a perpetuação de uma sociedade
unidimensional.
1. A Sociedade Repressiva
Em “Eros e civilização”, Marcuse (1975) aborda um dos pensamentos mais
importantes da teoria freudiana, segundo o qual a civilização se baseia na repressão
permanente dos instintos humanos. A felicidade, para Marcuse, estaria subordinada à
disciplina monogâmica, a um trabalho que ocupa toda a jornada, às leis e ordens instituídas,
aos sacrifícios metódicos da vida cotidiana. Ao mesmo tempo em que a sociedade impõe
constrições sociais e biológicas, estas se tornam premissas necessárias para o progresso.
Assim, o indivíduo se vê obrigado a renunciar aos seus instintos primários em prol da
convivência social civilizada. Para vencer estes instintos, o indivíduo obriga-se aos “desvios
dos instintos”, através do processo de mudança do princípio do prazer em princípio da
realidade. Deste modo, “a convicção de que é impossível uma civilização não repressiva
representa pedra angular da construção teórica freudiana” (MARCUSE, 1975).
Marcuse tenta demonstrar que as teorias psíquicas, a partir de Freud, permitem
analisar a sociedade contemporânea, reafirmando a importância da psicanálise como
instrumento de análise da Teoria Crítica. Marcuse (1999c:109) credita à psicanálise destaque
dentro das teorias que se propõem a compreender a dinâmica dos indivíduos na sua relação
com o capitalismo.
(...) a abordagem freudiana pode e deve entrar nessa teoria, pois abriu uma dimensão no que se
refere à determinação social do ser humano que, em grande parte, havia ficado à margem na
teoria marxista. Freud mostrou quão profundamente as relações sociais são produzidas nos
próprios indivíduos e através dos indivíduos, quer dizer, a própria sociedade co-determina em
alto grau a estrutura pulsional dos indivíduos
A aceitação dos indivíduos por esta ação e sistema produtivo se dá pelo autocontrole e
pelo controle da dinâmica do grupo. Há, portanto, uma descentralização do controle coercitivo
direto, de moldes tayloristas, para o autogerenciamento, responsável pela manutenção das
taxas de produtividade. Assim, evidencia-se como são articuladas novas formas para
manutenção das relações sociais no trabalho, na qual o controle do imaginário torna-se um
fator importante na subsunção dos indivíduos ao capital. Estas novas formas de controle,
diferente das anteriores que eram de natureza direta e que envolviam um agente coercitivo
direto, são percebidas como natural. Isto só é possível devido a três elementos:
a. Introjeção das normas e dos controles. Este processo se refere não apenas à
internalização das normas, responsáveis por reproduzir e perpetuar os controles antes
externos, exercidos pela sociedade, como também sugere um conjunto de mecanismos e de
processos relativamente espontâneos “pelos quais um Eu (Ego) transfere o exterior para o
interior” (MARCUSE, 1999a:40). Alguns elementos psicológicos contribuem para esta
introjecão: (i) o controle imaginário: a sociedade e as organizações são responsáveis por
articular “promessas” de ascensão material e social para os indivíduos. Através das
articulações simbólicas, é possível a criação de determinadas imagens ou projeções de cenas
vividas, aceitas como verdadeiras. Assim, as promessas imaginárias de sucesso,
reconhecimento social, grandiosidade e vitória são constantemente afirmadas como o caminho
mais curto, se os indivíduos estiverem dispostos a incorporar os valores ideológicos. Na
relação ideologia e imaginário, a deformação imaginária propicia não as relações de produção
existentes, mas antes de qualquer coisa, as relações derivadas delas. A ideologia apresenta-se,
assim, não como sistema de relações reais que governam os indivíduos, mas de relações
imaginárias dos indivíduos com as relações reais em que vivem (ALTHUSSER, 1999): (ii) o
enquadramento dos comportamentos sociais: trata-se da limitação de comportamentos
concreta ou imaginariamente aceitos pela sociedade. Convém observar que existem normas
comportamentais “implícitas” permitidas, que devem ser obedecidos pelos indivíduos e que
não podem ser transgredidas para não colocar em risco o controle das relações sociais entre os
diversos atores sociais. Os enquadramentos sociais têm sua correspondência nas relações
materiais que permeiam na sociedade. Desta forma, é possível afirmar a existência de
estratificação das classes sociais levando-se em consideração as funções que cada indivíduo
desempenha na sociedade; (iii) o fornecimento de identidades e papéis sociais: têm certa
correspondência com os enquadramentos sociais. Uma identidade criada a partir de uma
posição relacionada com o trabalho possibilita a identificação do indivíduo com o seu
enquadramento social. O discurso ocorre de forma coordenada atendendo ao pressuposto de
que a profissão requer esta forma de conduta. As normas de condutas comuns e
compartilhadas pelos indivíduos de uma mesma profissão são responsáveis por criar um
vínculo identificatório que limita e ordena um controle implícito nos indivíduos. O
fornecimento de identidades e de papéis sociais específicos ocorre sutilmente. Os valores
ideológicos são incorporados pelos indivíduos sem a percepção de que se configuram como
uma “violência simbólica” imposta silenciosamente e sem dor. Destarte, não é difícil
encontrar uma categoria de profissionais que compartilham de um mesmo discurso, possuem
o mesmo vocabulário e as mesmas argumentações, configurando uma "sinfonia muito bem
ensaiada";
b. Derrota do pensamento de protesto: na sociedade contemporânea o pensamento de
protesto tem sido tratado como inapropriado, promovido por "radicais de esquerda", "xiitas",
"retrógrados inconformados" e sem condições de adaptação social. Afirmar que as
manifestações de protesto foram derrotadas é um exagero, como o demonstram os fatos,
entretanto é preciso reconhecer que se deu uma transformação qualitativa e quantitativa nas
formas de protesto, o que tem acentuado a precarização do trabalho, a perda da identidade
coletiva e a redução do pensamento crítico das práticas sociais. Os elementos mais
importantes que contribuíram para esta modificação foram o avanço da racionalidade
tecnológica, a afirmação do protesto como sinônimo de desordem, o discurso ilusório da
negociação democrática e a expansão do individualismo. É verdade que o avanço da
racionalidade tecnológica trouxe contribuições significativas para a qualidade de vida dos
indivíduos. O desenvolvimento das engenharias, da física, da química, da biotecnologia, etc.
contribuíram significativamente para o domínio da natureza. Entretanto, as ciências sociais e
humanas não tiveram, nos seus avanços, o mesmo reconhecimento, na medida em que se
desenvolveu uma associação entre progresso e racionalidade tecnológica, pois na nova
sociedade, como alerta Marcuse (1999a:125), "o universo totalitário da racionalidade
tecnológica é a mais recente transmutação da idéia de razão". Segundo Rouanet (1987) é uma
ilusão que se alimenta nas esperanças, desde o Iluminismo, de uma sociedade que tende à
igualdade. A crença de que apenas as ciências baseadas na racionalidade tecnológica venham
resolver os problemas de ordens humanas da sociedade, promove a perda da elevação do
pensamento crítico voltado para os interesses coletivos. Como se sabe, os crescentes avanços
das engenharias na formulação de novos processos produtivos não trouxeram o progresso
prometido em termos de qualidade no trabalho: a precarização (ALVES, 2000), a
intensificação (FARIA, 1992; FARIA e MENEGHETTI, 2001), o sofrimento (DEJOURS,
1988 e 1994) são elementos que permeiam o ambiente de trabalho, não obstante os avanços
das tecnologias físicas e de processo.
Os protestos em prol de melhores condições de trabalho têm sido alvo de mecanismos
que visam atribuir à esta prática a conotação de desordem. Protestar por melhores salários,
ambiente físico de trabalho, qualidade de vida, segurança, são ações amplamente apoiadas nos
manuais administrativos voltados aos "colaboradores", especialmente na chamada área de
"gestão de pessoas", mas a prática gerencial aponta em outra direção, especialmente quando
os protestos atingem a assim dita "individualidade". O culto ao individualismo tornou-se uma
regra que não deve ser ferida. "A partir do individualismo pode-se demonstrar a necessidade
de nenhum sistema particular de valores. O indivíduo adequa-se a qualquer sistema de moral e
valores. A impossibilidade de mostrar no interior da visão racionalista a necessidade de
valores, quaisquer que sejam, é a base epistemológica do niilismo" (TRAGTENBERG,
1974:182-3). Assim, quando há uma paralisação dos meios de transporte de uma cidade, ou de
uma instituição de ensino, como ocorreu recentemente, as manifestações mais freqüentes
divulgadas pela mídia são as afirmações e indagações que se baseiam em perdas de interesses
individuais: "como é que eu vou me locomover agora?"; "ninguém tem nada a ver com os
problemas deles, não é justo que eu pague por um problema que não é meu!"; "vou perder a
minha formatura"; "levei um ano preparando-me para o vestibular e quem é que vai me
reembolsar por isto?". A paralisação é associada imediatamente ao caos. Cria-se uma falsa
sensação de desordem, de irresponsabilidade por prejuízos à sociedade, sem que se faça
qualquer esforço empático. O primeiro pensamento é centrado nas próprias dificuldades. Os
motivos que levaram à paralisação configuram-se como secundários. É a elevação dos valores
do imediatismo e do utilitarismo, em que não há o reconhecimento da dificuldade do outro
como sendo possível, em algum momento, ser o seu.
Aliado a estes fatores, encontra-se a sociedade de consumo, alimentada por bem
sucedidas estratégias de marketing, atraentes procedimentos de comunicação visual, imagens
e textos convincentes, a acentuar a fragmentação da sociedade. Há um crescente ambiente
competitivo entre as organizações produtivas ao mesmo tempo em que o consumo torna-se
objeto de fetiche, pois a preocupação se consolida na perspectiva de sempre poder consumir o
produto reconhecido pelo outro como portador simbólico de status, aquele cuja posse causa
inveja. Enquanto há esperanças em atingir esta promessa imaginária (possibilidade de
consumir o que o outro já tem), o pensamento do indivíduo estará voltado para aquilo que
acredita ser necessário para a manutenção das suas necessidades.
Delas, faz parte, por exemplo – e aqui evidentemente falo apenas dos países
industriais altamente desenvolvidos, a situação é essencialmente diferente no
Terceiro Mundo – a necessidade, que já se tornou imperiosa, de, a cada ano, ou
comprar um aparelho de televisão maior ou mais sofisticado, a necessidade de
ficar sentado durante horas na frente desse aparelho de televisão, a necessidade
de comprar todas as mercadorias que hoje são vistas como símbolos de status.
São necessidades negativas, que satisfazem de fato uma necessidade que se
tornou real, mas ao satisfazê-la retardam a emancipação do homem do trabalho
alienado, de todo o sistema de valores do capitalismo, e trabalham contra essa
emancipação (MARCUSE, 1999b:113).
as questões sobre as quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida
pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando eles tiverem livres
para dar a sua própria resposta. Enquanto eles forem mantidos incapazes de serem autônomos,
enquanto forem doutrinados e manipulados (até os próprios instintos) a resposta que derem a
essa questão não poderá ser tomada por sua (MARCUSE, 1999a, p. 36).
Para Marcuse, os indivíduos não são capazes de definir quais são as suas necessidades
falsas e, conseqüentemente, as verdadeiras, sem que haja a prática democrática da reflexão.
Mesmo que estas reflexões sejam influenciadas pela ideologia dominante, é somente pela
prática livre do diálogo, do debate aberto e democrático que os indivíduos chegarão a uma
opinião alicerçada no pressuposto coletivo e emancipado. Não há autonomia sem sua origem
na mesma, pois é o próprio exercício da autonomia que a eleva a graus superiores. Autonomia
não pressupõe liberdade absoluta. As leis, normas e regras explícitas ou implícitas, quando
advindas da prática reflexiva e dos interesses coletivos são, em si mesma, a expressão da
autonomia. Assim, diferentemente da liberdade absoluta, a autonomia é a prática das relações
que nem sempre são expressas no rompimento das estruturas regimentais da sociedade. Sua
função, muitas vezes, é de colocar limites para as atitudes humanas.
As necessidades humanas, principalmente as referentes à sobrevivência, são
impulsionadoras dos atos não reflexivos. Na manutenção da vida, o indivíduo submete-se à
intensificação do trabalho, aos trabalhos insalubres, às mandos coercitivos dos seus
superiores. Contudo, não são somente estes indivíduos que são submetidos. As promessas
imaginárias de sucesso financeiro, status social, reconhecimento social etc., para os
indivíduos dispostos a enquadrar-se no controle social, são outros elementos implícitos
capazes de subordina-los. Tais indivíduos, sujeitos econômicos “livres”, “tornam-se objeto de
organização e coordenação em larga escala, em que o avanço individual transformou em
eficiência padronizada. (...) O indivíduo eficiente é aquele cujo desempenho consiste numa
ação somente enquanto seja a reação adequada às demandas objetivas do aparato (...)”
(MARCUSE, 1999b:78). A lógica da dominação econômica impõe sobre os indivíduos
padrões comportamentais baseados na ética do desempenho, ou seja, a mensuração através do
utilitarismo. Esta concepção está de acordo com o a afirmação de Marx segundo a qual as
relações de produção das condições materiais de existência constituem-se no suporte das
relações sociais. Em “Materialismo histórico e existência”, Marcuse (1968) sugere que como
decorrência da sociedade industrial, a competição torna-se um valor. Vários são os teóricos
que creditam a ela o motor propulsor do progresso da sociedade. Os que afirmam que as
competições - individuais, grupais, organizacionais e entre nações - são as engrenagens para
o sucesso, são quase sempre os mesmos que afirmam que os protestos e as manifestações são
atos radicais, prejudiciais à coesão social. “A competição livre confronta os indivíduos entre
si como compradores e vendedores de força de trabalho. A abstração pura a que os homens
são reduzidos em suas relações sociais se estende ao relacionamento com os bens reais”
(MARCUSE, 2001:15). O engajamento do indivíduo para vencer as competições sociais,
desloca-o de uma posição mais reflexiva para uma mais passiva. Toda sua energia é
direcionada a tarefas e funções que proporcionem ganhos instrumentais para obtenção do seu
sucesso. Assim, às vezes sem perceber, o indivíduo torna-se meio na realização dos interesses
de uma minoria, ganhando, em troca, algumas realizações individuais e promessas
imaginárias de sucesso. Para Marcuse, a sociedade, em grande medida, vende ilusões.
Assim, a ética na sociedade industrial é aquela que incorpora o indivíduo como
instrumento, reduzindo as relações humanas a poucas brechas do cotidiano. As racionalidades
possíveis são as que justificam o uso das técnicas científicas para o progresso da sociedade,
que, em última instância, são desprovidas do pensamento crítico. Desta forma, um cientista é
capaz de ajudar a projetar uma arma nuclear ou um coração artificial. Para Marcuse, a questão
está em saber qual o nível de consciência dessas criações, de forma que a postura reflexiva
possa ser capaz de mover o indivíduo da posição de instrumento de criação para senhor desta,
saber mensurar para qual finalidade será usado o seu conhecimento. Como reconhece
Habermas (1997:68) "a técnica e a ciência cumprem também hoje a função de legitimação da
dominação, proporcionando a chave para a análise da constelação que foi alterada”. É ainda
Habermas (1997:73) quem afirma que
Referências:
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Documento
Maurício Tragtenberg
PODER E PARTICIPAÇÃO:
A DELINQÜÊNCIA ACADÊMICA NA
INTERPRETAÇÃO TRAGTENBERGUIANA
“Quanto menos poder o sujeito tem, de (Tragtenberg, 1991, 1999). A organização universi-
mais ele se atribui poder simbólico.” tária, sua gestão, as relações de poder que a atraves-
Maurício Tragtenberg sam e a vida psíquica que se desenvolve em seu interi-
or oferecem-se ao pesquisador como um palco para re-
flexões acerca de uma “economia política do poder”
(Faria, 2001), que Tragtenberg soube explorar com
INTRODUÇÃO maestria. Nesse sentido, procurando retomar as orien-
tações tragtenberguianas, este artigo pretende analisar
Em abril de 1978, o professor Maurício Tragtenberg a relação entre administração, poder e participação no
foi a Porto Alegre ministrar um curso sobre poder e âmbito da delinqüência acadêmica, segundo a ótica do
sindicalismo. Sua análise da situação, tendo como objeto referido professor.
as greves do ABC paulista, compunha uma crítica sem
concessões de qualquer espécie. A certa altura de sua ex-
posição, ao avaliar as relações entre o poder e o uso de SOBRE O PODER
artifícios para obtê-lo, Tragtenberg propôs uma distinção,
que iria aparecer em seus textos posteriores – especial- Tomando por base uma rápida revisão da literatura
mente nos que se referiam à sua crítica à delinqüência em seus enfoques mais significativos para o estudo do
acadêmica –, entre o poder que decorria da dominação, e, controle social nas organizações, bem como análises efe-
portanto, das relações de autoridade e coerção, daquele tuadas sobre as relações de poder (Faria, 1985a, 1985b,
que decorria do uso de símbolos e de articulações políti- 1987; Tragtenberg, 1977, 1979a, 1980b), pode-se afirmar
cas. Não se tratava, para Tragtenberg, de tipos de poder, que poder é a capacidade que possui uma classe social
mas de instâncias de manifestação das relações. (ou uma de suas frações ou segmentos), uma categoria
A passagem referida no preâmbulo resume, de cer- social ou um grupo (social ou politicamente organizado),
ta forma, uma concepção teórica que se traduziu em de definir e realizar seus interesses objetivos específicos,
uma inovação na área de estudos organizacionais, não mesmo contra a resistência ao exercício dessa capacida-
pelo fato de que ambos os conceitos eram, em si mes- de e independentemente do nível estrutural em que tal
mos, novos, mas em função de oferecer aos pesquisa- capacidade esteja principalmente fundamentada. O exer-
dores um outro paradigma de interpretação, no qual o cício do poder adquire continuidade e efetividade políti-
real e o simbólico fazem parte de uma mesma realida- ca por ocasião do acesso do grupo ou da classe social ao
comando das principais organizações, das estruturas ins- do tomadas pelo grupo como interesse coletivo no âmbi-
titucionais ou políticas da sociedade – inclusive aquelas to de suas práticas1.
criadas como resultado de um processo de transformação Assim, o exercício do poder é a sua concretização, de
– de maneira a pôr em prática ou a viabilizar tal exercí- maneira que o sentido do poder somente pode ser com-
cio. Nesse sentido, o poder é uma capacidade coletiva e, preendido por ocasião das relações de poder, por ocasião
como tal, deve ser adquirido, desenvolvido e mantido, das práticas. Desse modo, é oportuno fixar que a capaci-
inserindo-se os indivíduos em suas relações a partir de dade de definir os interesses depende de um conjunto de
funções que desempenham no âmbito coletivo, de forma fatores, os quais podem ser genericamente agrupados em
orgânica ou não, podendo influir, coordenar, liderar, re-
presentar, organizar e conferir legitimidade.
O conceito proposto diz respeito aos efeitos produ- NÃO SE PODE FAZER DO PODER O
zidos pelas práticas sobre a unidade das estruturas orga-
nizacionais. Esses efeitos se manifestam tanto sobre os CENTRO DAS RELAÇÕES SOCIAIS,
elementos que constituem seus suportes e garantem sua
coesão, com base ou não na legitimidade, quanto sobre
POIS, DESSE MODO, AINDA QUE ELE
aqueles que implicam sua reestruturação ou mesmo seu ESTEJA EM TODA PARTE, ACABA-SE
aniquilamento, pois, ainda que haja vínculos promoto-
res de uma unidade coesa, ela é passível de rompimento POR COLOCÁ-LO EM PARTE ALGUMA.
parcial, total ou definitivo: um grupo não possui poder
para sempre e tampouco seus interesses, estratégias e
direção são sempre os mesmos. O que vai determinar a quatro grandes categorias totalmente interdependentes: (I)
permanência e a direção são as práticas. as motivações subjetivas dos sujeitos que constituem o
A capacidade de definir e realizar interesses depen- grupo; (II) a condição de elaboração teórica e conceitual
de das condições internas do grupo e igualmente da ca- que permita a leitura da realidade, a identificação e a aná-
pacidade de outros grupos. Assim, pode-se afirmar que: lise das dificuldades, das oportunidades, riscos e estraté-
a) um grupo definirá e realizará seus interesses devido gias de ação política; (III) a capacidade de estabelecer
às relações que se desenvolvem entre os sujeitos que o relações entre a própria condição de manutenção da orga-
constituem – em um processo dinâmico e dialético, no nização e a realidade; (IV) a necessidade de preservar o
qual as contradições vão dando forma a essa unidade caráter de identidade do grupo e a reafirmação do senti-
não monolítica, pois não só os indivíduos formulam e mento de pertença de seus membros.
mantêm tal capacidade quanto são determinados por ela A capacidade de realizar os interesses definidos, por
(o que garante a coesão da unidade) –, ao mesmo tempo seu turno, também depende de um conjunto de fatores,
em que, por força das relações e das práticas de grupo chamados bases ou recursos do exercício do poder. Tais
ou de conflitos internos, podem reformular ou reestru- bases podem ser agrupadas, essencialmente, em três di-
turar essa capacidade – redefinindo uma nova coesão da mensões ou instâncias, não excludentes, mas não neces-
unidade do grupo ou desagregando-o definitivamente; sariamente dependentes e tampouco seqüencialmente or-
b) a capacidade de um grupo de definir e realizar seus denadas. São elas: (I) as articulações políticas: suas estra-
interesses – condição necessária para o exercício do tégias e programas – ao que corresponde o desenvolvi-
poder desse grupo – depende das capacidades de outros mento de competências políticas – e o conjunto simbóli-
grupos de definirem e realizarem os seus, de forma que co-imaginário; a divulgação, por meio dos aparelhos, da
a efetividade do poder de um grupo depende diretamen- ideologia – ao que correspondem toda a trama da posse,
te da efetividade do poder de outros grupos no âmbito uso e disseminação de informações e o domínio do siste-
da determinação das práticas e nos limites fixados pelas ma de comunicação; as atitudes obscuras e ocultas que se
práticas de outros grupos. processam à margem do sistema institucional, nos basti-
Os interesses, da maneira aqui empregada, são inte- dores, em “segredo”, que dizem respeito ao psiquismo
resses objetivos relativamente autônomos e referem-se à dos sujeitos e do grupo ou aos compromissos não forma-
sua expressão coletiva, à prática coletiva, e não à conduta lizados que visam garantir apoio político e que não po-
ou a motivações de comportamentos dos sujeitos. O inte- dem ser manifestos na instância coletiva; (II) a autorida-
resse individual, embalado pelo sujeito, seu papel ou po- de legítima, tal como definida por Weber (1974); (III) a
sição no interior do grupo a que pertence, consiste em coerção (direta, indireta e sutil) – geralmente utilizada
expectativas de ação que somente adquirem sentido quan- quando os demais mecanismos ou bases não lograram
RAE • RAE
©2001, v. 41- Revista
• n. 3de •Administração
Jul./Set. 2001
de Empresas/FGV/EAESP, São Paulo, Brasil. 71
Documento
Maurício Tragtenberg
garantir a consecução dos objetivos, pois se trata de uma relações de poder. Se as relações de poder se desenvol-
base politicamente muito onerosa. vem dessa forma, isso não significa que sejam totalmente
O exercício do poder, quando se utiliza desses recur- visíveis todo o tempo para todas as pessoas. É um equí-
sos da articulação política, da autoridade e da coerção, voco supor que, uma vez desvendados os mecanismos do
não o faz apoiado em uma única base. O recurso da arti- poder, já se pode enxergá-lo às claras. É certo que as rela-
culação, ainda que muitas vezes possa ser utilizado como ções de poder estão em toda a parte, ainda que não se
um anteparo com relação ao emprego da autoridade legal pretenda reconhecê-las; que entram pelos olhos, ainda que
ou da coerção, não pode prescindir totalmente de uma não se queiram vê-las; que estão presentes nos discursos,
estrutura legal ou coercitiva que venha a garantir perma- ainda que não se queira falar delas.
nência institucional às metas perseguidas pelo grupo ou No entanto, não se pode fazer do poder o centro das
classe social. As relações de poder não são apenas resul- relações sociais, pois, desse modo, ainda que ele esteja
tado de práticas racionais conscientes voltadas ao inte- em toda parte, acaba-se por colocá-lo em parte alguma.
resse coletivo. De fato, não é propriamente no plano ma- Como sugere Bourdieu (1998), “é necessário saber des-
nifesto das relações que se devem procurar as motiva- cobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
ções subjetivas, pois elas se encontram expressas tanto completamente ignorado, portanto, reconhecido”. Por isso,
nas formulações quanto nas realizações, de forma que todo é preciso compreender o caráter simbólico do poder, essa
o aparato objetivo racional constitui um momento do pro- forma invisível de seu exercício que somente pode ser
cesso, que é aquele da legitimação, da “publicização”, do exercida “com a cumplicidade daqueles que não querem
próprio manifesto. É dessa dinâmica oculto-manifesto que saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. É
se definem os termos da operação dos controles sociais, com este sentido, ou seja, é a partir da definição e da rea-
ou seja, são as relações de poder que permitem operar as lização de interesses específicos por parte de grupos no
diversas formas de controle social nas organizações. interior das organizações acadêmicas, fundados em uma
É preciso observar, igualmente, que o emprego de ins- racionalidade política e em uma subjetividade psíquica,
trumentos ideológicos e ocultos de articulação política pos- que se irá percorrer a perspectiva de Tragtenberg.
sui caráter muito próximo ao do coercitivo sutil, pois, não
pertencendo à ordem da violência explícita ou recalcante,
não deixa por isso de fazer uso de elementos trabalhados DA ACADEMIA DELINQÜENTE:
nos bastidores, de desejos inomináveis e de intenções que PODER E PARTICIPAÇÃO NA
não podem ser explicitadas, bem como da manipulação na ANÁLISE TRAGTENBERGUIANA
divulgação da ideologia dominante mediante aparelhos
específicos, instituições e mecanismos organizacionais in- Maurício Tragtenberg é um pioneiro nos estudos crí-
ternos, que são do mesmo modo efetivos. É esse conjunto ticos sobre poder, administração universitária e delinqüên-
que Tragtenberg chamará de delinqüência e é aí que estão cia acadêmica, oferecendo não apenas um legado, mas
também todos os ordenamentos que, ainda que tomem a uma história. A teoria das organizações e a educação, no
forma jurídica – que aparentemente poderia conferir legiti- Brasil, podem ser divididas em antes e depois de Buro-
midade à ordem legal –, não têm resultado de um processo cracia e ideologia (Tragtenberg, 1977). Crítico do auto-
democrático. Tal problema evidencia que, do assentimen- ritarismo e defensor da pedagogia libertária, Tragtenberg
to à autoridade, está se passando ao assentimento da mani- expõe a contradição entre a utopia que precisa ser reali-
pulação de consciências, em que os verdadeiros poderosos zada e a realidade que teima em aperfeiçoar seus meca-
não são conhecidos, pois o poder deslocou-se do visível nismos de dominação, seguindo a tradição daqueles cuja
para o invisível, do conhecido para o anônimo. prática intelectual correspondia a enfrentamentos revolu-
Essa análise sugere que há uma dinâmica pela qual as cionários (Tragtenberg, 1978,1979b,1979c,1980a,1981).
estruturas legais podem ser desfiguradas pelas estruturas Tomando como ponto de referência a mesma linha
autoritárias dando origem a uma “nova legalidade”, em sugerida há mais de um século e meio – em que dois jo-
que a função da lei é substituída por um novo ordenamento vens filósofos, Marx e Engels (1976), ao analisarem a
que serve de instrumento ao exercício do poder, confe- contradição entre Estado enquanto sociedade política e
rindo-lhe a aparência de legalidade e legitimidade. Isso sociedade civil, mostraram que, em uma democracia, seus
não significa que as estruturas sejam meros instrumentos membros, para manterem a unidade universal, não po-
de exercício do poder. As estruturas não podem ser dire- dem atribuir-se ou conquistar importância diferente da-
tamente tomadas senão como campos em que se operam quela que lhes compete –, Tragtenberg investe contra os
as relações sociais – essas, sim, espaços de realização das usurpadores, os delinqüentes, os repressores de toda a
espécie. Em suas análises, explicita-se com clareza tanto tros centros educacionais, se reproduz a universidade
como o exercício da democracia supõe responsabilidade mandarinal do século passado ao inculcar “normas de
política, quanto como, no cumprimento das suas atribui- passividade, subserviência e docilidade através da repres-
ções, deve-se garantir a função social do universal e do são pedagógica”. Mesmo nos “cursos críticos”, a univer-
particular acima de quaisquer interesses específicos. sidade dominante prevalece mediante o juízo professoral
Tragtenberg, ao mostrar como o poder encontra-se incrus- hegemônico exercido sobre os estudantes em um proces-
tado nas instituições e nas organizações, indica como se so de “contaminação”. “Essa apropriação da crítica pelo
dá a apropriação do saber e a perpetuação dos sistemas de mandarinato universitário, mantido o sistema de exames,
dominação nos diferentes poros do tecido social. a conformidade ao programa e o controle da docilidade
De suas análises, pode-se deduzir um entendimento do estudante como alvos básicos, constitui-se numa far-
de que a prática autoritária é assumida sem crítica, de que sa, numa fábrica de boa consciência para a delinqüência
na democracia o processo formal supera o conteúdo, de
que o coletivo é um agregado de muitos singulares, e não
uma unidade substancial. É nesse prisma que circulam A SELEÇÃO DOS ALUNOS DA
livremente, especialmente no interior das instituições aca-
GRADUAÇÃO E DA PÓS-GRADUAÇÃO,
dêmicas, ao sabor dos contextos, textos e discursos sobre
democracia, participação e autoritarismo2, muitos deles CARACTERIZADA PELA IGUALDADE
defendendo a idéia de que a própria universidade é um
locus privilegiado da prática democrática, uma salvaguar- DE OPORTUNIDADE, ESCONDE O
da da neutralidade e da defesa do conhecimento científi-
co – tudo se dá como se a universidade fosse uma insti- FATO DE QUE, EM CURSOS DE
tuição homogênea, coesa, sem contradições e absoluta-
mente desenvolvida e democrática. Ao examinar a crise ALTA DEMANDA, AS MAIORES
da universidade, que ocorre porque a “sociedade está em
crise”, Tragtenberg (1979c, p. 15) percebe que, ao con- OPORTUNIDADES SÃO CONFERIDAS
trário do que afirmam alguns acadêmicos, a universidade
AOS QUE TIVERAM ACESSO PRÉVIO
“não é uma instituição neutra; mas sim de classe, onde as
contradições aparecem. Para obscurecer estes fatores, a A UM ENSINO PRIVILEGIADO.
universidade desenvolve uma ideologia de saber neutro,
científico, uma neutralidade cultural e um mito de saber
‘objetivo’ acima das contradições sociais”. acadêmica representada por aqueles que trocam o poder
De fato, a universidade desenvolve determinadas prá- e a razão pela razão do poder.”3
ticas acadêmicas e administrativas que, algumas vezes, Quando a “unidade coletiva” da universidade é
escondem movimentos contraditórios. O processo de se- ameaçada por desvios particulares ou corporativos e por
leção dos membros de sua comunidade é um exemplo críticas que revelam suas fragilidades, observa-se que a
dessas práticas. A seleção dos alunos da graduação e da defesa do instituído diante das possibilidades de sua trans-
pós-graduação, caracterizada pela igualdade de oportuni- formação democrática reafirma a existência de um uni-
dade, esconde o fato de que, em cursos de alta demanda, versal totalmente aparente que, de novo, é somente a soma
as maiores oportunidades são conferidas aos que tiveram de infinitas particularidades, cada qual sem abdicar de
acesso prévio a um ensino privilegiado; a seleção dos seus interesses privados e encerradas em sua esfera, ca-
docentes por meio de concursos, às vezes esconde a pre- racterizando o coletivo como elemento particular, essen-
ferência das bancas pelo conteúdo teórico e político dos cialmente “desorgânico”, em que a união se realiza ape-
candidatos, quando não por relações interpessoais. nas inconscientemente, nas costas dos indivíduos. Tal con-
Essa situação vem reforçar o que Tragtenberg (1979c, cepção do ethos singular embutido na estrutura coletiva,
p. 16-17) chama de “complô de belas almas”, “recheadas tomada como princípio genérico, afirma, em nome do
de títulos acadêmicos, de doutorismo (...), de uma nova todo, que a sociedade é apenas um conjunto de pessoas
pedantocracia, da produção de um saber a serviço do po- ou grupos privados, que a organização é simplesmente a
der, seja ele de que espécie for”. Nas escolas de educa- soma dos seus “colaboradores” e que todos, defendendo
ção, formam-se, desse modo, tecnocratas aptos a “con- seus interesses particulares, os transformam em coleti-
feccionar reformas educacionais que, na realidade, são vos, em metas e objetivos comuns. Com esse sentido, o
verdadeiras ‘restaurações’”, da mesma forma que, em ou- universal torna-se não uma construção, mas uma soma;
Maurício Tragtenberg
não um fim, mas um meio; não um valor, mas uma ins- des ou comportamentos agora necessários e, portanto,
tância de legitimação dos agregados particulares. aceitos. Tais alterações não se processam, destarte, ape-
Se cada circunstância pudesse reivindicar uma verda- nas pela dinâmica das relações, pela dialética da nature-
de, nenhum código seria produzido, nenhuma sociedade za, mas por interesses particulares. Como bem aponta
seria organizada e nada seria instituído. Isso não significa Tragtenberg (1979c, p. 19), “em nome do ‘atendimento à
que, uma vez definidas, as verdades, assim como os prin- comunidade’ e em nome do ‘serviço público’, a universi-
cípios de conduta, se tornem imutáveis. De fato, como dade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a
analisa Engels (1979) em sua crítica ao Senhor Düring, quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos
se o produto do exercício do pensamento pudesse reivin- hegemônicos”. “A escolha das pesquisas depende dos fi-
dicar a validez soberana das verdades, a sociedade alcan- nanciamentos possíveis; por outro lado, a ‘moda’ acadê-
çaria um nível tal que se teria esgotado a infinidade do mica impõe sua tirania. Uma pesquisa é determinada não
mundo intelectual. Se tudo já estivesse pronto, nada mais porque se é obrigado a ter essa ou aquela orientação te-
haveria a produzir. Se tudo já se soubesse, nada mais ha- órica para receber financiamento, mas recebe financia-
veria a investigar. Entretanto, é interessante verificar que, mento por ter essa ou aquela orientação teórica. Trata-
mesmo em situações que se caracterizam pela renovada se de uma determinação que opera com alto nível de su-
produção intelectual e pela permanente investigação, tam- tileza” (Tragtenberg, 1979c, p. 30).
bém acabem emergindo esses axiomas, definitivos e Assim, os princípios que guiam esses filantropos da
inapeláveis, dos quais se extraem as deduções da existên- intelectualidade no interior das academias aparecem sem
cia humana, do poder ser e do dever ser. estilo e sem densidade política, porque resolvem suas
E é importante observar que é justamente aí que al- carências com frases tradicionais e com bordões; sem
guns membros das organizações acadêmicas asseguram, conteúdo, porque, sendo vazios de teoria, preenchem suas
em seus discursos, que só a sua concepção é aceitável, falas com estéticas duvidosas; sem horizonte, porque sua
que tudo o mais é equívoco e, como profetas recém-saídos visão de mundo não ultrapassa a porta da sala de reu-
do forno, trazem em sua mochila, pronta para ser posta niões, e sem compromissos, porque legitimam práticas
em circulação, a única verdade e a eterna justiça. A re- organizacionais com superficialidade e, às vezes, com a
lação professor–aluno é sempre uma relação de poder profundidade da banalização. São princípios nos quais não
quando tem como suporte os aparatos da coerção insti- cabe a sabedoria e nos quais o sujeito não vale pelo afeto
tucionalizada e o domínio de um saber inacessível. que cultiva, mas pela esperteza capaz de lhe conferir van-
Tragtenberg (1979c, p.18) observa bem essas práticas, tagens competitivas. A introdução do ensino pago nas
indicando que “o mestre possui um saber inacabado e o universidades públicas, a realização de quaisquer cursos
aluno uma ignorância transitória: não há saber absoluto, a qualquer clientela que por eles se disponha a pagar, as
nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui atividades de prestação de serviços em que o que mais
a diferença entre aluno e professor: a separação entre importa são os recursos, e não a qualidade acadêmica ofe-
aluno e professor opera-se através de uma relação de recida e resultante dos serviços, o financiamento da pes-
poder simbolizada”. quisa por organizações de interesses privados, a realiza-
A vida cotidiana nas academias passa a ser, assim, ção de encontros em que se operam vendas de conheci-
preenchida por vários espaços em que o falso toma a for- mento científico ou em que se constroem palcos nos quais
ma do verdadeiro, instituindo um pacto no qual ali tudo é os pares se apresentam para sua autopromoção, estas se
aceito como norma, como próprio da natureza, de manei- constituem em graves ameaças ao ensino público libertário
ra que as verdades impostas e a ética conceituada não na perspectiva tragtenberguiana.
venham a provocar, nos sujeitos, incômodo, envolvimento Tragtenberg (1979c, p. 20-22), de fato, percebe criti-
ou dor. Os grupos e alguns de seus líderes, visando man- camente esse movimento que atualmente ganha contor-
ter uma unidade competitiva na luta pelo poder, desfilam nos cada vez mais definidos. Sobre sua ética e sua função
um conjunto de regras, de comportamentos e de condutas social, afirma que “uma universidade que produz pesqui-
administrativas e morais, a partir do qual julgarão outros sas ou cursos a quem é apto a pagá-las perde o senso de
grupos ou seus membros mais destacados. Entretanto, o discriminação ética e da finalidade social de sua produ-
que deveria ser princípio e compromisso, não passa de ção: é uma ‘multiversidade’, que se vende no mercado ao
discurso. Na medida em que aquilo, antes definido como primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda,
ético ou democrático, venha a se constituir em obstáculo acobertada pela ideologia da neutralidade do conhecimen-
ao exercício ou à luta pelo poder, toda a lógica passa a ser to e seu produto”.
reconstruída, de maneira a abarcar as novas regras, atitu- Sobre as avaliações de desempenho, sugere que “a
política das ‘panelas’ acadêmicas de corredor universitá- de ensino, os quais revelam fragilidades que, para eles,
rio e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer seria melhor que permanecessem escondidas. Esses cír-
constituem-se no metro para medir o sucesso universitá- culos interpretam o movimento dialético da vida coletiva
rio”. Sobre as valorizações simbólicas, observa que “a como um simples avanço da competitividade capitalista
maioria dos congressos acadêmicos universitários serve no espaço público, tomando este como se fosse o altar da
como ‘mercado humano’, onde entram em contacto pes- justiça social, e não a sua coxia. Assim, defendem a ausên-
soas e cargos acadêmicos a serem preenchidos”, pois o cia de critérios e de atitudes não porque estes sejam impró-
“mundo da realidade concreta é sempre muito generoso prios, mas para esconder suas segundas intenções, para abrir
com o acadêmico” na medida em que o título conferido espaço de manobra política às suas velhas e surradas práti-
pela academia torna-se “o passaporte que permite o (seu) cas de distribuição de favores, totalmente incompatíveis
ingresso nos escalões superiores da sociedade”, o que re- com qualquer projeto democrático. Os discursos, cobertu-
força o problema da desvinculação da universidade com ras que sustentam essa tese, contudo, parecem, ao público,
os processos de transformação social e a tese de que “a ter saído dos mais puros manuais de democracia política.
ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia: faz
fé de apolítico, isto é, serve à política do poder”. “Cober-
tos pelo ideal de ‘neutralidade ante valores’, a maioria AS DIMENSÕES DA ÉTICA E DA
dos acadêmicos universitários vegetam no conforto inte-
lectual, agasalhados pelas sinecuras burocráticas e legiti- DEMOCRACIA, QUE TODOS OS
mados ideologicamente pelo apoliticismo: a ideologia dos
que não têm ideologia. Na verdade, esse apoliticismo con- MEMBROS DA UNIVERSIDADE
verte-se na ideologia da cumplicidade trustificada. Sem
dúvida, o cultivo de ideologia livre de valores é paralelo DEFENDEM EM PÚBLICO, NEM
à despreocupação sobre as implicações éticas e políticas
do conhecimento”(Tragtenberg, 1979c, p. 28).
SEMPRE POSSUEM A MESMA
As dimensões da ética e da democracia, que todos os CONSISTÊNCIA NA PRÁTICA PRIVADA
membros da universidade defendem em público, nem sem-
pre possuem a mesma consistência na prática privada dos DOS GRUPOS OU DOS INDIVÍDUOS.
grupos ou dos indivíduos. As interpretações produzidas
nos princípios formulados por esses membros da intelec-
tualidade acadêmica, independentemente do lugar que Tragtenberg (1979c, p. 22-23) assegura que “a valo-
ocupem na estrutura formal – por estarem voltadas aos rização do que seja um homem culto está estritamente vin-
seus interesses específicos, aos seus objetivos e à sua con- culada a seu valor na defesa de valores de cidadania essen-
cepção de mundo –, pretendem se constituir em uma pa- ciais, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas
nacéia que, aplicada em qualquer condição, impõem, por sua existência e ação”. Para que a universidade possa
como sendo fruto maduro do pensamento soberano, um participar do desenvolvimento desse sujeito, Tragtenberg
mero encadeamento de frases com muito mais que um (e, acredita que “a alternativa é a criação de canais de partici-
em alguns casos, sem nenhum) sentido. Esse tipo de prá- pação real de professores, estudantes e funcionários no meio
tica, muito adequada a impactos momentâneos, na reali- universitário que se oponham à esclerose burocrática da
dade, não é senão uma nova versão do velho e favorito instituição. A autogestão pedagógica teria o mérito de de-
método apriorístico, que consiste em estabelecer e provar volver à universidade um sentido de existência”. Observa,
propriedades de um objeto partindo não dele mesmo mas finalmente, que “a participação discente não se constitui
do conceito que dele antes se formou. Assim, não é o num remédio mágico aos males (...) apontados, porém a
conceito que se ajusta ao objeto mas este que se ajusta experiência demonstrou que a simples presença discente
àquele (Engels, 1979), segundo uma lógica previamente em colegiados é fator de sua moralização”. Porém, essa
definida, na qual os conceitos de democracia e ética aca- crença exposta por Tragtenberg nos canais de participação
dêmica cabem onde se deseja pô-los antes até de os cons- real, com a qual se pode concordar em tese, tem se mostra-
truir: a realidade é deduzida não de si mesma, mas da do, concretamente, um engodo. Os canais de participação
idéia, por isso não é senão ideologia. real existem, a participação discente é assegurada, mas a
Um exemplo (Faria, 2000) é a crítica que certos cír- democracia, a ética e a justiça não são garantidas por esses
culos progressistas fazem à adoção de critérios em pro- dispositivos.
cessos de avaliação institucional em instituições públicas Se forem superadas as dificuldades de organização dos
Maurício Tragtenberg
professores, funcionários e estudantes, se for superada a permite ao MEC desqualificar suas próprias universida-
falta de motivação, de participação política e de valoriza- des, a falta de uma política pública verdadeiramente com-
ção das representações, ainda restará vencer a máquina prometida com a educação, a diminuição dos recursos e o
trituradora da burocracia pública, o conservadorismo obs- sucateamento das instituições públicas de ensino, os víci-
curantista da academia, as práticas destrutivas e intesti- os corporativos, as práticas pedagógicas coercitivas (“ban-
nas de poder que não se manifestam nos canais de parti- cárias”, diria Paulo Freire), a vinculação de pesquisas a
cipação, mas nos bastidores, a preservação das corpora- interesses particulares, a individualização da produção do
ções de ofício e de suas práticas instaladas na academia, a conhecimento, tudo isso contribui, sem dúvida, para a
mediocridade dos processos de avaliação da produção aca- reprodução da injustiça, do autoritarismo, da despolitiza-
dêmica. ção intelectual e do conservadorismo.
Até que ponto a motivação participativa pode valori- Mas é ainda no interior desse ambiente desfavorável
zar os fins para definir os meios, transformar os proble- que se produzem as melhores pesquisas, que se faz a
mas técnicos em problemas também políticos, preferir a melhor extensão, que se pratica o melhor ensino, que se
consulta pública a soluções de gabinete, substituir a in- pode democratizar o acesso ao conhecimento, que as crí-
dignidade intelectual pela dignidade da inteligência? A ticas podem ser formuladas, que a autonomia intelectual
simples existência de mecanismos formais de participa- pode ser exercitada, enfim, que se pode encontrar uma
ção não garante a plena prática da democracia. A máqui- produção intelectual libertária como a do professor Mau-
na burocrática, os jogos de interesses, a mídia oficial que rício Tragtenberg.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FARIA, José Henrique de. Ética moral e democracia: os Paulo : Escuta, 1999.
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TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica: WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de
FARIA, José Henrique de. Economia política do poder. o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo : sociología compreensiva. México : Fondo de Cultura
Curitiba : UFPR, 2001. Paper. Rumo, 1979c. Económica, 1974. 2 v.
NOTAS
1. Nenhum indivíduo, no grupo, expressa seu interesse em uma formulação reconstruída. Não raro, quando o mesmo significado que democracia. Para uma crítica
como sendo propriamente seu. Os indivíduos formulam interesses conflitantes são expostos, o grupo é levado a esses “modelos”, ver Tragtenberg (1980b) e Faria
seus interesses a partir de um discurso coletivo, a decidir a alternativa que melhor convém, com todas (1987, 1992).
tentando traduzir seu desejo no desejo do grupo, em as implicações daí decorrentes (Faria, 2000).
busca de uma legitimidade e de uma impessoalidade
que venham a garantir que seu interesse seja adotado 2. Estas concepções invadiram a literatura 3. O que dizer, então, a propósito, do Exame Nacional
pelo grupo como sendo interesse do grupo, seja em organizacional sob a forma de defesa de modelos de de Cursos (o “Provão”), instituído pelo MEC para
sua formulação original, proposta pelo indivíduo, seja “Gestão Participativa”, em que a participação assume avaliar os cursos e as universidades?
36
José Henrique de Faria
1. INTRODUÇÃO
36
Professor Titular Doutor da UFPR
37
Para maiores detalhes acerca da metodologia empregada bem como dos dados
obtidos, consultar Loyola (1995).
1.2 DA QUALIFICAÇÃO
A nova tecnologia coloca em pauta a velha discussão a respeito da
questão da qualificação do trabalhador. Desde o princípio do século
dezenove, quando trabalhadores se opuseram à introdução de novas
máquinas de tecelagens de meias destruindo-as (LYON, 1992), ficou
evidente que a percepção do trabalhador em relação à tecnologia foi a de
que esta representava uma ameaça ao emprego e às qualificações: até
hoje os debates quanto à questão da qualificação admite opiniões
favoráveis (“a tecnologia é qualificadora”) e desfavoráveis (“a tecnologia
desqualifica o trabalhador”).
Quando a automação é introduzida no âmbito da produção
industrial, provoca transformações no processo produtivo que,
consequentemente, se refletem na necessidade de qualificação do
38
Entende-se por saber de ofício ou saber profissional o conjunto de
conhecimentos que o trabalhador detém, inerentes às suas condições cognitivas
internas e desenvolvidas a partir de suas relações sociais e de produção e por
saber instrumental aquele que o trabalhador adquire, desenvolve e dele se
apropria na efetivação do processo de trabalho e no manuseio de seus
instrumentos de trabalho. O primeiro possui um caráter coletivo, na medida em
que decorre de uma práxis social, e o segundo possui um caráter individual, na
medida em que decorre de uma atividade particular. Não se trata, no entanto, de
saberes excludentes, pois um interfere no desenvolvimento do outro e o constitui e
vice-versa. ( Cf. FARIA, J. H. Educação, trabalho e desenvolvimento tecnológico.
Simpósio Paranaense de Educação e Trabalho. Curitiba,1993).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
4. BIBLIOGRAFIA
Resumo
O presente ensaio teórico pretende argumentar a favor da não distinção entre poder
real e simbólico desde uma perspectiva segundo a qual o poder simbólico é uma forma de
expressão do poder real. Trata-se, portanto, de uma visada propriamente epistêmica que
procura trazer, para o interior do debate, a perspectiva da psicologia social quanto ao tema do
real-simbólico-imaginário no que se refere às relações de poder. Neste sentido, entende-se que
para compreender as formas de confronto e de associação entre o real e o simbólico-
imaginário, especialmente na gestão das unidades organizacionais produtivas, é fundamental
trazer à tona, para a discussão mesma sobre poder real e poder simbólico, outra referência.
Isto não significa que gestão e exercício do poder sejam equivalentes práticos ou conceituais,
mas que ambos são práticas de poder. Para efetivar a proposta deste ensaio, procurar-se-á
primeiramente esclarecer as diferenças e a integração entre o real, o simbólico e o imaginário
social para, logo na sequência, abordar o tema do imaginário social e do recalcamento. Em
seguida, tratar-se-á do poder real e do poder simbólico, de maneira a mostrar como as relações
entre o real e o simbólico, mediadas pelo imaginário social, manifestam-se na prática das
unidades organizacionais.
Palavras-chave: poder real; poder simbólico; imaginário social; psicologia social;
estudos organizacionais críticos.
Introdução
As discussões sobre poder real e poder simbólico têm origem em diferentes
perspectivas. Por exemplo, Korda (1976) observa que muitas empresas encorajam o jogo do
poder, sentindo-se perfeitamente felizes em dar poder e prestígio aos que nela trabalham,
agindo como uma corretora, oferecendo símbolos de poder aos que têm fome de poder. Já
Bourdieu (1998) sugere que o poder não é totalmente visível todo o tempo para todas as
pessoas, sendo um equívoco supor que uma vez desvendados os mecanismos do poder já se
pode enxergá-lo às claras. Embora as relações de poder estejam em toda a parte, é necessário
saber descobri-lo onde ele é menos visível, onde é ignorado e não reconhecido, ou seja, em
seu caráter simbólico. Por outro lado, são muitos os que argumentam que o poder é
necessariamente real, pois é exercido em situações de disputa por algo que interessa a os
oponentes (LUKES, 1974). Trata-se, então, de questionar se existe esta diferença entre o
poder real e o poder simbólico. Paço-Cunha e Bicalho (2008), argumentam, com propriedade,
a partir de categorias marxianas e frankfurtianas, que poder simbólico é poder real.
O presente ensaio teórico pretende argumentar a favor da não distinção entre poder
real e simbólico, porém desde uma perspectiva argumentativa diferente, que se espera
complementar, daquela proposta por Paço-Cunha e Bicalho (2008), ou seja, uma perspectiva
segundo a qual o poder simbólico é uma forma (não a única, certamente) de expressão do
poder real. Trata-se, portanto, de uma visada propriamente epistêmica que procura trazer, para
o interior do debate, a perspectiva da psicologia social quanto ao tema do real-simbólico-
imaginário no que se refere às relações de poder. Neste sentido, entende-se que para
compreender as formas de confronto e de associação entre o real e o simbólico-imaginário,
especialmente na gestão das unidades organizacionais produtivas, é fundamental trazer à tona,
para a discussão mesma sobre poder real e poder simbólico, outra referência. Isto não
significa que gestão e exercício do poder sejam equivalentes práticos ou conceituais, mas que
ambos são práticas de poder (FARIA, 2004). Também é preciso marcar a posição
epistemológica e teórica: poder real e poder simbólico não são dois poderes, mas duas formas
concretas, que embora se apresentem fenomenicamente diferentes, referem-se concretamente
1
à mesma realidade fundamental da materialização do poder. Neste sentido, as tecnologias de
gestão em prática nas unidades organizacionais produtivas se constituem em manifestações
que se revelam plenamente no interior mesmo das relações de poder (“poder real” e “poder
simbólico”).
Para efetivar a proposta deste ensaio, procurar-se-á primeiramente esclarecer as
diferenças e a integração entre o real, o simbólico e o imaginário social para, logo na
sequência, abordar o tema do imaginário social e do recalcamento. Em seguida, tratar-se-á do
poder real e do poder simbólico, de maneira a mostrar como as relações entre o real e o
simbólico, mediadas pelo imaginário social, manifestam-se na prática das unidades
organizacionais.
Antes de avançar na exposição, é fundamental indicar que se entende por poder a
capacidade coletiva de definir e realizar interesses objetivos e subjetivos específicos, mesmo
contra a resistência ao exercício desta capacidade e independentemente da estrutura em que
a mesma esteja principalmente fundamentada (FARIA, 2004). O poder é concretamente seu
exercício (relações de poder) e se constitui sobre, simultaneamente, dois eixos ou
fundamentos: pela prática política (econômica, jurídica, ideológica) e pelo imaginário (social
ou restrito). Para indicar desde logo, o poder real materializado pela prática política será
chamado aqui de poder real politicamente objetivado ou, simplesmente, de poder real. O
poder real materializado no plano simbólico pelo imaginário (social ou restrito), será chamado
aqui de poder real de caráter simbólico ou, simplesmente, de poder simbólico. Convém
insistir no fato de que o que é imaterial não é necessariamente subjetivo e o que é subjetivo
não é necessariamente incognoscível, podendo, portanto, ser também objeto de apreensão
pelo pensamento como realidade concreta.
Ao contrário do senso comum, que entende que o simbólico é criado a partir da
fantasia e só tem sentido para a imaginação que o cria, ou seja, que é apenas uma ficção que
não tem relação com a realidade, considera-se aqui que o simbólico recorre ao real, (i) seja
para diretamente representá-lo de uma forma particular, (ii) seja para indiretamente criar algo
que o explique. O plano simbólico se constitui de maneira a conferir ao sujeito que dele se
vale um conforto no que se refere à interpretação da realidade, consciente ou imaginária.
Mas o plano simbólico também pode refletir a realidade a partir de uma ansiedade ou
temor devido à alteração do estado afetivo-emocional. Portanto, embora o simbólico seja
produzido pela ideia a partir de fatos reais, pode não corresponder inteiramente aos elementos
fornecidos pela realidade ou pode dar margem a diferentes interpretações da mesma segundo
uma condição histórico-social determinada.
O simbólico como forma de expressão à qual recorrem os sujeitos para representar o
real pode, portanto, indicar uma relação convencionada com aquilo que pretende referir
(letras, algarismos, sinais de trânsito, figuras, bandeiras, escudos), um sistema instituído de
signos (palavras, imagens) que designam um fato ou objeto, ou ainda uma alegoria
reconhecida (em que as coisas são representadas de forma figurada). O simbólico pode ser ou
amplamente aceito no espaço social que o reconhece ou pode ser aceito e reconhecido apenas
em campos reduzidos (uma formação social, região, comunidade, unidade produtiva).
O plano simbólico é desenvolvido a partir de um imaginário, o qual pode ser social ou
restrito. O imaginário social tem como característica o predomínio da relação coletivamente
construída e aceita (que a literatura gerencial tem muitas vezes denominada equivocadamente
de cultura). O imaginário restrito é criado pela imaginação individual e só existe neste nível (a
criação pode ser desenvolvida como uma fantasia ou pode refletir a necessidade de
interpretação do ininteligível). Nos dois casos, a compreensão mais acurada do imaginário
pertence ao campo psicanalítico, seja o restrito, seja o social ou ambos.
A questão que se pode formular a partir desta concepção é: como saber se o simbólico
corresponde exatamente às coisas ou aos fatos que pretende representar? Como confrontar os
2
símbolos produzidos pela leitura consciente do real para representá-lo, com os símbolos
produzidos arbitrariamente? Como separar a forma consciente de interpretação da realidade
das formas fantasiosas, fictícias, ilusórias?
Há, de fato, uma linha tênue que destaca o simbólico decorrente da leitura consciente
da realidade, do simbólico originado pela leitura ficcional, já que em ambos os casos se trata
da criação de uma abstração presumida. O que os diferencia não é o fato da produção
imaginária ser coletiva ou individual, pois esta diferença indica apenas se se trata de um
imaginário social (coletivo) ou restrito (individual). É indispensável, portanto, diferenciar o
plano simbólico produzido a partir de abstrações arbitrárias (de simbólicos originados pela
fantasia, pela ficção) do plano simbólico produzido a partir de abstrações conscientes do real
(simbólico como recurso de representação do real pensado) para tentar compreendê-lo.
Outra questão que precisa ser esclarecida desde logo é: como associar e dissociar o
imaginário social do imaginário restrito? São duas instâncias do imaginário e, portanto, não
podem ser tratadas analiticamente como sendo de mesmo fundamento, ou seja, são criações
que recorrem a fontes diferenciadas de produção, sendo necessário, do ponto de vista da
análise do poder, dissociar uma instância da outra. Todavia, não se pode desconsiderar que
embora sejam instâncias analiticamente diferentes as mesmas estão concretamente associadas,
de tal forma que a produção da cada uma delas não está isenta da presença da outra, ainda que
seus resultados não sejam os mesmos. É deste plano simbólico produzido a partir de
abstrações conscientes do real, admitindo sua associação e sua dissociação com o simbólico
produzido a partir de abstrações arbitrárias, que se tratará aqui ao discutir o poder simbólico e
o poder real.
5
construção que lhe antecede, uma memória, que torna disponíveis fragmentos do passado e
transforma-se em um novo método de amalgamar as experiências com os fatos presentes.
Finalmente, Ansart (1977), ainda que trate dos bens simbólicos uniformes, naquilo que
constituem uma linguagem coletiva, está mais interessado no campo simbólico como uma das
variáveis da ação suscetível de intervir na mudança social. Por isso, Ansart (1977, pp. 212-
219) relaciona o simbólico ao ideológico, no sentido de mostrar como a ideologia ganha corpo
e se fortalece visando aprofundar e orientar um conflito ou impedir a irrupção de conflitos, a
partir da “eficácia do simbólico”. O trabalho de persuasão ideológica precisa se valer de
esquemas simples e afirmativos que autorizem uma interpretação, que permitam vencer as
dúvidas e projetar a “unidade tranquilizadora do sentido”, ultrapassar as dissonâncias e fazer
com que os sujeitos pensem por si mesmos para que adquiram a satisfação de “dominar
simbolicamente a realidade”. “Os esquemas ideológicos comportam a sedução especial que
livra das ambiguidades”, instaurando um acordo coletivo sobre os significados globais,
produzindo “consciências falantes, sujeitos que, encontrando no sentido recebido os meios de
domínio simbólico, sentem sua vivência ideológica como a sua verdade”, gerando um acordo
entre os sujeitos no terreno simbólico “pela linguagem interiorizada, pela reprodução dos
significados”. Dessa forma, o sujeito, na concepção de Ansart, reafirma sua identidade, firma-
se no seu lugar e nos seus valores, ao mesmo tempo em que “confirma sua inserção e
participação no grupo”.
Os bens simbólicos, continua Ansart (1977), que constituem a “linguagem coletiva”
tornam-se meios de comunicação entre os membros do grupo, pois manejam o mesmo código.
São estes bens simbólicos que, usando a “verdadeira linguagem” e divulgando as palavras
indiscutidas carregadas de significados, definem os termos dos acordos, designa o que não se
pode contestar codificando eficazmente as relações. Esta linguagem induz, no plano das
trocas de significado, uma sociabilidade original, gera a comunicação entre os sujeitos que
encontram nesta rede de sentidos as condições de sua identidade: “quanto mais o sujeito
encontra em sua crença as condições de conciliação consigo mesmo, tanto mais sensível será
às ameaças simbólicas e desejoso de reviver o acordo com o bom senso” (ANSART, 1977, p.
214). O sistema simbólico, portanto, não apenas participa da orientação das ações como da
orientação e elevação das energias coletivas, ao fazer agir, fazer crer e fazer amar.
Como se pode notar, as relações entre o real, o simbólico e o imaginário colocam o
problema da distinção entre (i) a condição objetiva (econômica, política, espacial, geográfica,
física) do real, (ii) as formas de compreendê-la e de nela intervir pelo recurso da significação
(plano simbólico do imaginário social ou restrito) e (iii) e a imaginação proporcionada pelas
fantasias, ficções (plano simbólico arbitrário). Ao mesmo tempo, colocam o problema da
integração, pois a condição objetiva não pode ser compreendida fora do sistema de
significação, sistema este no qual também está contida justamente a fantasia, os fantasmas e a
imaginação (social ou restrita). Este campo que o sistema de significação contém, contudo, só
pode ser e só é instituído como aquele do imaginário social, o qual se relaciona com o
ordenamento econômico, jurídico, político e ideológico do próprio sistema simbólico que o
contém. Convém insistir, também, que ainda que o imaginário restrito componha
objetivamente o sistema de significação, sua eficácia se encontra apenas quando reconhecido
no plano simbólico do imaginário social, pois é somente neste nível que ele adquire
importância nas relações de poder.
O simbólico, portanto, para também ocupar um lugar nas relações de poder, precisa
possuir qualidades distintas daquelas do imaginário ficcional, sendo capaz de fornecer
elementos precisos que o caracterizem como expressão destas relações, ou seja, como
imaginário social compartilhado. Da perspectiva das práticas organizacionais, o simbólico-
imaginário se apresenta como ordenamento, como lei e ordem e, deste modo, pertence à
6
esfera do recalcamento, do fetiche imposto como regra da vida social, sendo, assim, oportuno
explorar a relação entre esta esfera e o imaginário social.
2. O imaginário e o recalcamento
Para compreender a presença do imaginário social nas organizações produtivas é
importante estabelecer sua relação com o recalcamento. Para tal, há que se recorrer à
psicanálise freudiana em sua ligação com o marxismo, tal como proposto por Reich (1972)
Fromm (1979), Marcuse (1975) e Rouanet (1998). Embora este tema do recalcamento e do
imaginário social não tenha sido abordado por Enriquez (1974) segundo uma leitura da
chamada psiquiatria dialética do Freudo-Marxismo, convém explorá-lo desde esta
perspectiva, dada sua originalidade.
Enriquez introduz o tema pela via das relações duais que se estabelecem entre o
dirigente e os dirigidos nas organizações, relações em que se sobressai a onipotência. De fato,
na relação de onipotência, o Outro não é o portador dos desejos, mas instrumento de
satisfação do sujeito e é por essa razão que neste caso o sujeito onipotente vai tentar apanhar o
Outro nas suas redes, podendo olhá-lo como a si mesmo, como alguém que nada tem a
ensinar além do que o sujeito já sabe. Ao contrário da promoção da experiência e da
autonomia do Outro, o que se dá neste caso é a castração do Outro, como forma de evitar a
castração de si. “Neste momento, o imaginário enquanto logro triunfou definitivamente. Não
se trata mais de olhar o que ocorre, basta mostrar o que deve ocorrer, a realidade deve se
dobrar à palavra geradora (ENRIQUEZ, 1974, p. 64).
Nas situações em que se evidencia a onipotência narcísica no âmbito simbólico do
poder, o sujeito se apega à sua própria imagem. Exceto em momentos de crise, nos quais
aqueles aos quais se negou o plano simbólico do poder o tomam para si, os sujeitos apanhados
em uma relação de dualidade “serão incapazes de se libertar e de colocar em causa aquele (ou
aqueles) que os incorporaram na sua própria imagem. Ao contrário, aquele que tiver
conseguido exprimir seu desejo de potência se encontrará protegido da interrogação dos
outros e estará ao mesmo tempo forçado a repetir, por seus atos ou pela colocação na
estrutura, seu projeto inicial de ser reconhecido, valorizado, amado” (ENRIQUEZ, 1974, p.
65).
Para Enriquez (1974, p. 66), a relação de dualidade, no que se refere ao caráter
simbólico do poder, promete o discurso da paixão, para que todos os sujeitos possam se
identificar com um só, “para que o tomem como exemplo”, conferindo a este discurso “uma
importância privilegiada”, de forma que os sujeitos se sintam “em estado de dependência com
relação a ele”. Para isso, “é necessário que essas relações sejam cimentadas pelo que Freud
chamou ‘o laço libidinal’”, inaugurando o reinado da afetividade entre os sujeitos e aquele
que eles tomam como seu chefe. “Não seria necessário, no entanto, acreditar que aqueles que
vão ser submetidos não tirarão nenhum benefício de sua incondicionalidade”.
O poder que se assenta no plano simbólico, especialmente aquele constituído pelo
imaginário restrito, não pretende apenas a proximidade com o poder real, com seus
privilégios, pois o restrito aspira ao social. A luta insistente por alcançá-lo tem como motivo o
desejo prazeroso de que o sujeito se ajuste, se afine ao seu “chefe”, de forma a viver o mesmo
imaginário socialmente atribuído a ele. Esse status quo permite ao sujeito não ser interrogado
por ninguém, pois se torna semelhante a quem primeiramente caberia interrogar. Por isso é
que para que tal relação prospere, não basta a semelhança, sendo necessário que uma parte
importante dos membros da organização produtiva reconheça no onipotente a representação
do poder real, que também alimente o desejo de se identificar com tal poder para se sentir
mais poderosa em sua submissão, ou seja, é necessária a produção de um imaginário social.
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Contudo, como a vida organizacional em torno do poder simbólico não se esgota nas
relações de identificação, submissão e vassalagem, sempre existirão aqueles sujeitos dispostos
a um enfrentamento. Para estes, o poder deve surgir com sua imponência, despido de pudores
e aparências, desnudado dos símbolos, para ser exercido plenamente até que obtenha adesão
daqueles contra quem investiu. Assim o poder, tanto no plano real quanto no simbólico, de
diferentes formas, arremete contra os que pretendem dominar o ambiente coletivo, a partir
tanto das relações de afeto dos que se identificam com tal poder, quanto das relações
coercitivas impostas por este poder. Assim, igualmente no plano simbólico como no plano
real “a paixão inerente à relação dual acaba por se traduzir em exploração” (ENRIQUEZ,
1974, p. 66).
As relações favorecidas pela busca do poder simbólico se intensificam quanto mais
propício for o terreno libidinal. Tal terreno, entretanto, é um campo de batalha, um lugar de
conflitos, em que tudo pode ser dito e no qual a coesão da organização é posta em risco pela
fragmentação. Tal prática libidinal necessita ser, deste modo, exorcizada e o é por práticas
variáveis, mas que têm o mesmo sentido, que é o de não permitir que as paixões conflitantes
possam “colocar em perigo a coesão da organização”.
Se o imaginário social se apresenta para os membros da organização em seu aspecto
cobertura e se é colocado em uma situação em que o desejo não deva surgir, continua
Enriquez (1974, 0. 74) “é porque um único desejo pode ser considerado, é aquele da
organização; e se não devem realizar projetos pessoais, é porque a organização propõe um
ideal comum para o qual devem concorrer todas as condutas individuais”.
Também no âmbito simbólico, a organização produtiva oferece um sistema de
legitimidade já definido e sistematizado. Como insiste Enriquez (1974, pp. 75-76), “os
valores, os ideais que ela propõe, na medida em que vão ser interiorizados, vão servir de
normas de comportamentos aos indivíduos que não irão mais se interrogar sobre o sentido de
sua ação. O sentido já está aí. Basta fazê-lo seu. A partir desse momento os atos não levam
mais consigo sentimentos de incerteza (a exploração é normal já que permite tirar lucro)”.
Porém, “o desejo não é ocultado (recalcado) para todo mundo”.
Essa ocultação favorece, pelo contrário, a irrupção do desejo de
alguns: aqueles que estão habilitados a definir o ideal do ego da
organização, aqueles que lhe dão a palavra, que vão também
construir os significantes fundamentais da organização (seu
sistema simbólico, sua lei, aos quais os membros da organização
estarão presos) e que vão tentar fazer passar para o real (através
das estruturas colocadas e da ação quotidiana) seus desejos de
poder total. Aqueles então que instauram a relação de submissão
e que vão institucionalizá-la: o superego da organização (seu
sistema de valores e de proibições) tornando-se o superego do
conjunto dos atores sociais. (ENRIQUEZ, 1974, pp. 76-77)
É nesta institucionalização, afirma Enriquez (1974, p. 77), “que se faz a junção entre
identificação a uma pessoa central e identificação à organização, entre instauração da relação
dual fusional e instauração da fantasia da organização protetora”. Desta forma, o poder real de
caráter simbólico pode criar “um objeto comum ao qual todo mundo deve estar submetido,
identificado e deve amar”, ou seja, pode criar um símbolo e a ele atribuir poder, de onde
emanará um poder simbólico artificialmente criado, enquanto elemento resultante da adição
de substâncias que formam uma massa relativamente uniforme de características específicas
para atingir o fim a que se destina, que é a dominação.
8
3. Poder Real e Poder Simbólico
Entende-se, como já exposto, que o poder pode e deve ser entendido como uma práxis
não apenas relacional, mas uma práxis cuja natureza fundamenta-se em uma interação,
complexa e contraditória, entre os sujeitos coletivos da ação e refere-se, neste sentido, a uma
capacidade ou condição de mobilização, pois não há como dissociar o poder de seu exercício
(sua cristalização), ou seja, das relações de poder.
Mas é preciso ir além deste ponto. Há um conjunto de múltiplas vinculações e
interações que atravessam o campo do exercício do poder. Primeiramente, o fato de o poder
não ser uma capacidade e nem um atributo individual não deve significar a exclusão do
sujeito das relações de poder e, portanto, também a exclusão do imaginário restrito. O sujeito
pode ser oculto na oração, na liturgia, na gramática do poder, mas não está ausente. O desejo,
as emoções, o pensar, o sentir, são fenômenos psicológicos ao mesmo tempo sociais e
individuais. De outra forma, haveria uma impossibilidade concreta de um encontro entre os
sujeitos individuais e o plano coletivo que os mesmos constituem.
Do mesmo modo que as contradições são inerentes às relações objetivas, sociais,
econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas e culturais, também são inerentes às condições
humanas individuais. As contradições compõem ao mesmo tempo o campo coletivo,
individual e o das interações dinâmicas entre eles. A compreensão do poder e de suas relações
não pode separar de um lado o que é objetivo (econômico, jurídico, ideológico) e de outro o
que naturalmente é subjetivo (psicológico), pois tal cisão remeteria à exclusão ou negação da
consciência que atua simultaneamente em ambos os campos. Mas é preciso deixar claro que
tanto para a prática quanto para a análise, é necessário levar em conta que a consciência do
poder pelos sujeitos não exclui o fato da vivência contraditória ser “ausente e até mesmo
intolerável” (PAGÈS, et alii, 1987, p. 216) nas manifestações, nos discursos, falas, expressões
ou textos. Portanto, também não é demais reafirmar que o poder se encontra em um plano
pluridimensional da prática tanto quanto, inevitavelmente, da sua análise.
De mesmo modo, se a fala, o discurso, o texto (linguagem e seus signos e símbolos),
são expressões do poder (mas não só dele), também o são todas as formas que não se
manifestam necessariamente pela palavra (desejos, sentimentos, percepções). Se a expressão
verbal (discursos, manifestações, textos) se constitui enquanto veículo de instrumentalização
do poder, da dominação, da autoridade, dos códigos e normas de conduta, o que não é verbal
ou verbalizado pode também expressar, no plano simbólico e imaginário, a realidade coletiva.
Neste sentido é que se pode entender que as relações de poder se inscrevem no corpo dos
sujeitos e moldam as atitudes, comportamentos, manifestações e expressões (simbólicas,
imaginárias e reais) (REICH, 1972; FOUCAULT, 1977; PAGÈS et alii, 1987). Dito de outro
modo, as relações de poder não só não são invisíveis (pois que concretas) para todos os
sujeitos, como tampouco são plenamente visíveis (inteligíveis) o tempo todo, mesmo para os
sujeitos para quem tais relações são visíveis.
Sendo o poder, então, a capacidade dos grupos sociais de coletivamente definir e
realizar seus interesses específicos, as relações de poder são o exercício ou a prática concreta
desta capacidade, ou seja, são a cristalização do poder. Mas, como foi observado
anteriormente, é um equívoco supor que uma vez desvendadas as relações de poder e as bases
de seu exercício, já se pode enxergá-las às claras. Não se pode fazer das relações de poder o
centro monolítico das relações sociais, pois deste modo, ainda que estas relações estejam em
toda a parte, acabar-se-ia por colocá-las em parte alguma.
Para Bourdieu (1994), os símbolos, ou sistemas simbólicos, são representações de
práticas, de posições sociais ou de funcionamento diferenciados de agentes ou classe de
agentes, de forma que os que aderem ao sistema de símbolos precisam partilhar de seus
significados. É desta maneira que Bourdieu (1988, pp. 9-15) argumenta que os sistemas
simbólicos “só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder
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simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnosiológica”. A força dos sistemas simbólicos se deve ao fato de que as relações de força
que neles se exprimem somente se manifestam “em forma irreconhecível de relações de
sentido”. O poder simbólico não reside, para Bourdieu, nos sistemas simbólicos, enquanto
força ilocucionária, mas como uma relação determinada entre os que exercem o poder e os
que lhes estão sujeitos na estrutura de um campo em que se produz e se reproduz a crença.
Para Bourdieu, o poder simbólico é um poder subordinado, uma forma transformada,
“irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder”. A concepção de
poder simbólico em Bourdieu, portanto, repousa “em uma teoria da produção da crença,
aspecto responsável pela convicção do pertencimento a um campo social” (MEDEIROS,
2006, p. 36). A convicção de Bourdieu de que o poder simbólico é uma forma subordinada de
poder decorre exatamente de sua consideração de que o poder simbólico não é real. Esta
concepção de Bourdieu que reconhece o símbolo como uma realidade e, imediatamente,
suprime da realidade o que nela reconhece, é uma evidente contradição que precisa ser
superada.
De fato, sem abandonar de todo o argumento de Bourdieu, entende-se que enquanto o
poder real em sua manifestação política refere-se a uma capacidade coletiva de definir e
realizar interesses objetivos e subjetivos específicos, em sua manifestação simbólica refere-se
a uma relação de força em um campo de crenças, de ideologias, de modelos de referência, de
representações e códigos. Desta forma, no plano simbólico o poder somente se concretiza
quando os símbolos, que constituem o sistema imaginário social (crenças, ideologias,
modelos, códigos, etc.) que certifica tal poder, podem ser efetivos e reconhecidos pelos
sujeitos da relação como manifestação de sentido compartilhado. O símbolo de poder não se
constrói por si mesmo, mas é construído pelos sujeitos de maneira que se o mesmo tem
significado é porque este possui o mesmo sentido para todos os sujeitos da relação de poder.
A organização produtiva, na medida em que favorece a mediação dos interesses em
jogo, é o lugar privilegiado das tramas, dos conluios, da dupla linguagem, das encenações,
construídas pelas intrigas que se operam em seus bastidores e que emergem disfarçadas no
plano formal. Com efeito, as atividades formais, as reuniões, os trabalhos em equipes, podem
ser, em larga medida, teatralizações, em que os indivíduos não são apenas seres-em-si-
mesmos mas também seres-para-outro, porque se colocam como objetos da interpretação pelo
outro, interpretação esta para a qual o desempenho na cena é relevante. Neste teatro os
poderes real e simbólico se apresentam em grande estilo.
A organização produtiva permite o desenvolvimento do poder simbólico através de
redes simbólicas invisíveis, que funcionam como autênticos subterrâneos, em cujos dutos
comunicantes (que Lacan chama de cadeia de significantes) circulam os que habitam o mundo
que não pode ser pronunciado, que não pode vir à luz, por onde escorrem as alianças e as
armadilhas, onde habitam os fantasmas que precisam ser destruídos, onde podem viver às
escondidas os paradoxos. É aí, neste mundo dos bastidores, que proliferam as tramas, que se
propaga o fantasmático, que as mentiras (que são do campo do imaginário) pretendem se
transformar em fatos (campo do real), que se constroem as aparências do que pode ser dito,
que se afirmam as poses e os símbolos, que se justificam as cenas, que se elaboram as normas
(e assim, o recalque), que se definem os inimigos reais e imaginários, que se aditam vínculos
em segredo.
Quanto mais politicamente desorganizados os grupos sociais nas organizações
produtivas, tanto menor é a possibilidade de sua democratização e tanto maior é o espaço dos
bastidores. Entretanto, são justamente nos bastidores que se desenvolvem as formas e os
obstáculos à organização política. As contradições estão desnudadas:
i. A primeira indica que o que deve ser enfrentado (a prática dos bastidores) é que
estabelece as regras dos combates que visam desarticulá-lo;
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ii. A segunda, na mesma ordem, indica que a organização produtiva é também o lugar
das tramas, as quais, para serem desembaralhadas, demandam uma organização dos
grupos políticos, de maneira que esta, para cumprir seu papel, desenvolverá suas
próprias tramas, necessárias para entrar no jogo e para torná-la habilitada na disputa,
pois os que não tramam pouco podem fazer para compreender as tramas e agir contra
elas;
iii. A terceira revela que o mundo das aparências precisa parecer o mundo real (daí que se
investe tanto no acobertamento, no disfarce, nas encenações, na “mentira
institucional”). Contudo as aparências são construídas tendo como formulação valores
tidos como inquestionáveis, os quais assim permanecerão enquanto a realidade visível
não puder ser pronunciada, pois se tratam de valores fundados no encobertamento.
O funcionamento dos grupos sociais organizados, que se põem em movimento no jogo
dos bastidores, deve ser mais bem compreendido caso se pretenda compreender tais
contradições. A ideia segundo a qual os interesses de um grupo social, ou sua ideologia, têm
origem apenas em suas relações com outros grupos sociais, seja do ponto de vista do
confronto ou das alianças, remete às formulações do modelo empirista da mente que enfatiza
que a gênese das ideias se dá a partir de sensações produzidas por estímulo do ambiente (pela
experiência). Nesse sentido, é preciso compreender, em outra dimensão, como os sujeitos
agem no interior do grupo social ao qual pertencem, especialmente quando participam
ativamente da definição e da realização dos interesses do mesmo ou apenas quando, de
maneira direta ou indireta, conferem legitimidade política a tal definição.
O grupo social, no entanto, seja através de sujeitos individuais ou de frações, pode ter
igualmente outros desejos que, do mesmo modo, irá colocar em exposição, seja para compor,
aprimorar ou modificar aquele então exposto. Tal processo, independente do resultado
específico, opera uma transformação no grupo social, nas relações intrapessoais e no
desenvolvimento intrapessoal, que, por seu turno, resultará em novas formas e em novos
conteúdos de intervenção. Isto se dá justamente porque a estrutura formal de autoridade (que é
da ordem do recalcamento e uma das bases das relações de poder) alimenta no imaginário dos
grupos sociais em confronto a necessidade de “estar bem com o poder”, de receber seus
benefícios, de serem seus filhos prediletos (em um sistema simbólico). Como a leitura desta
relação simbólica perpassa o inconsciente grupal, cada grupo social buscará seu lugar ao lado
do “Pai” (chefe, gerente, diretor, presidente, etc.), que é o símbolo do poder, que representa os
investimentos libidinais, que reafirma o simbólico (as relações de trabalho em um sistema de
regras, de trocas, de signos comuns).
Considerações Adicionais
O poder simbólico é, como exposto, um poder real (realmente existente), ou seja, os
símbolos que compõem a realidade e que fundamentam o exercício deste poder não são meras
abstrações sem sentido e significado. O simbólico não deve ser tratado, portanto, como um
fenômeno irreal ou inexistente. O que aqui se chama de poder simbólico é uma forma que
assume o poder real ao se revestir de um caráter simbólico criado pelo imaginário social ou
restrito em sua definição e realização. O que se chama de poder real é uma forma objetivada
de poder revestida pela luta concreta de grupos sociais em confronto e que se manifesta como
capacidade coletiva de definir e realizar interesses a partir de práticas políticas. As expressões
“poder real” e “poder simbólico” não significam uma separação entre o que é real e o que não
é real, mas uma indicação de que há uma diferença entre o plano simbólico do poder real e o
plano politicamente objetivado deste mesmo poder real.
Um dos modos de exercício do poder real é o que se reveste de uma forma simbólica
(poder simbólico), ou seja, do exercício concreto do poder real que opera no plano do
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simbólico, que se serve da criação, pelo imaginário social e restrito, de símbolos que possuem
sentido e significado coletivamente aceitos. Na base das tecnologias e práticas de gestão
abarcadas pelas relações de poder encontram-se tanto os conflitos ou as intrigas que compõem
a vida dos sujeitos nas organizações (unidades produtivas), quanto, por exemplo, a questão da
ética que vai servir de escudo ao exercício do poder em sua manifestação tão perversa quanto
sutil. Assim, a distinção entre poder real e poder simbólico não se refere à discussão sobre a
concretude ou não de ambos, mas aos elementos objetivos e subjetivos que constituem as
condições de formulação e realização dos interesses coletivos, isto é, as relações entre as
singularidades imediatas e mediações que a mesma contempla.
No âmbito das singularidades, as relações de poder são reduzidas superficialmente às
intrigas, conquanto estas são aspectos relacionais conflitivos inerentes aos grupos sociais e,
por extensão, às unidades organizacionais. Alguns ambientes são, por suas características,
mais e outros menos propícios às intrigas, mais ou menos favorecidos pelas relações
interpessoais e intergrupais, pela disputa de "espaços de poder" (na verdade, espaços de
comando, de dominação das estruturas, cuja posse política confere consideráveis vantagens na
realização de interesses objetivos e subjetivos específicos), pelo baixo comprometimento e
pelos vínculos frágeis. As intrigas utilizam-se de vários fatores, dentre os quais se destaca
exatamente uma luta permanente pela ocupação de lugares estratégicos no comando das
estruturas, pois "espaço vazio de poder" é espaço de disputa, espaço de luta, campo de
conflito.
As organizações despendem uma extraordinária energia alimentando, em seus
bastidores, intrigas que geralmente são baseadas em elaborações imaginárias, restritas e
sociais. Tais intrigas, que ocorrem entre sujeitos ou entre grupos, têm como motivação (i) o
comando real das estruturas de poder ou a garantia de proximidade com o mesmo e com seus
privilégios (ii) e/ou a posse de elementos simbólicos de poder no espaço das influências, o
qual poderá servir de “moeda de troca” no jogo daqueles privilégios. A intriga compõe a
estrutura dramática do mundo organizacional, tornando-se um elemento que se desenvolve
insidiosamente e que culmina em um clímax, um desenlace, durante o qual se desenvolvem os
caracteres e incidentes imaginados ou pretendidos por seus autores.
É com este sentido que este ensaio teórico trata da luta pelo poder por parte dos grupos
sociais que coloca frente a frente o poder real que se exerce a partir de uma realidade
objetivada pelas práticas (poder real), com o poder real que se exerce a partir de formulações
concretas produzidas no plano do imaginário social e restrito (poder simbólico). Esta é a
mediação aqui pretendida. Sendo grupos sociais em confronto (em disputa, em luta), a
apropriação, por estes grupos dos recursos objetivos e subjetivos (tanto reais como
simbólicos) do exercício do poder tem como meta o controle social sobre as estruturas
coletivamente instituídas e reconhecidas por estes grupos sociais em luta como espaço de
exercício privilegiado do poder.
O que confere a esta luta um aspecto singular que cumpre destacar são as tentativas
malogradas de se construir uma linguagem uniforme, de se perpetrar valores partilhados e de
se cultuar formas unívocas de simbolismo. Tais tentativas fracassam porque longe de obter
uma única interpretação da realidade, as mesmas favorecem a reprodução de um imaginário
multifacetado que se opera nas relações de poder como um discurso ambíguo e ininteligível
dando curso às intrigas e tramas. De fato, o poder real de caráter simbólico ao mesmo tempo
em que constitui a prática política do poder real, o ameaça, pois introduz nesta prática política
do poder real, elementos do imaginário social e restrito. Em muitos momentos, por exemplo,
em nome da competitividade, da “seletividade dos colaboradores” e das avaliações de
fidelidade e compromisso, o poder real assume o lugar de incentivador, ainda que velado,
destes procedimentos que são próprios do poder simbólico. O poder real atua desta maneira
para, propriamente, conter aquelas manifestações que possam vir a ameaçar seu exercício.
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Investindo no poder real de caráter simbólico como se este fosse o poder real
objetivado pela prática política, os sujeitos desenvolvem uma rede de relações construtoras de
significados, no interior da qual medram conflitos que, para mais além dos fundamentais, são
permanentemente adubados pelas ciladas, pela insídia e pela traição a partir de conluios, de
conspirações e de métodos ardilosos. É neste espaço que se reproduzem relações de
dominação e dependência entre o real objetivado pela prática política e o real de caráter
simbólico, onde os dramas existenciais constroem o cotidiano do trabalho.
Em 1879, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (2001) publica “Os Irmãos Karamázov”,
um romance em torno do parricídio, mas que explora a fundo este tipo de drama existencial.
Recorrendo a este romance, que embora seja do plano do imaginário ficcional retrata com
clareza o drama humano, pode-se observar como o mesmo refere-se ao mesmo tempo ao real
objetivado pela prática política e ao real de caráter simbólico.
Ao receber de nós os pães, eles verão que tomamos os deles, que
eles mesmos ganharam com seu próprio trabalho, para distribuí-
los, sem nenhum milagre. Entretanto, o que lhes dará maior
prazer do que receber os pães é recebê-los de nossas mãos.
Assim, eles compreenderão o valor da submissão definitiva. E
enquanto não a tiverem compreendido, serão infelizes. Sabemos
que o rebanho se dispersou e se dividiu por estradas
desconhecidas, mas voltará a se recompor e nós daremos e eles
uma felicidade mansa e humilde, adaptada a criaturas fracas.
Eles ficarão tímidos, sentirão uma surpresa medrosa e terão
orgulho de toda aquela inteligência que nos permitiu domar os
rebeldes (DOSTOIÉVSKI, 2001, pp. 270-271).
Os rebeldes são domados pelos seus próprios discursos. Os que partem voltam
humildes para a casa do grande “pai” em uma felicidade mansa. Os bravos batalhadores que
tiveram o resultado de seu trabalho surrupiado nas intrigas e tramas da política
organizacional, terão prazer em aceitar que irão receber o que lhes foi tirado exatamente por
quem lhes tirou. Os que se associam ao caráter simbólico do poder comemoram ao som da
hipocrisia e deslocam-se como em um desfile de modelos ultrapassados na esperança de
sempre ser parte do imaginário social valorizado no plano simbólico.
Mas, o poder real, ao mesmo tempo em que não se descarta das armadilhas e
artimanhas do poder simbólico, precisa dele, depende dele e não pode abrir mão de seus
favores. O poder real, ao tentar negar a ameaça do poder simbólico, assim se expressaria, nas
palavras de Ivan: “Nem por um instante eu o considero uma realidade. Você é uma mentira,
um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como livrar-me de você, vejo que será
preciso sofrer algum tempo”. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 619). Este é o drama da Política
Karamázov nas Organizações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PODER, IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO:
a construção do real e do imaginário na organização
Resumo
Este ensaio de natureza teórica tem como propósito apresentar elementos norteadores
relacionados a poder, ideologia e alienação para o estudo das relações de trabalho em uma
unidade industrial de processo contínuo. O interesse está em verificar como estes elementos
se fazem presentes tanto durante a jornada formal de trabalho como igualmente no tempo de
trabalho disponível. A conclusão é a de que da perspectiva das relações de poder pode-se
verificar se o aparato organizacional da unidade produtiva industrial (composto por novas e
refinadas formas de gestão do processo de trabalho) atua como instrumentos de poder e
controle nas atividades laborais.
1
Introdução
O presente ensaio de natureza teórica tem como propósito apresentar elementos
norteadores relacionados a poder, ideologia e alienação para o estudo das relações de trabalho
em uma unidade industrial de processo contínuo, prevista no projeto do Grupo de Pesquisa. O
interesse está em verificar como estes elementos se fazem presentes não apenas durante a
jornada formal de trabalho, mas igualmente no tempo de trabalho disponível, ou seja, no
tempo de trabalho formal e extraordinário (no e fora do ambiente físico da organização).
Desta forma, não será objeto do presente ensaio, dadas as limitações de espaço, apresentar um
modelo exaustivo e profundo sobre estas categorias, mas expor os conceitos de poder,
ideologia e alienação, em uma perspectiva interdisciplinar, tendo como referência empírica o
campo da organização produtiva e suas dinâmicas complexas e contraditórias.
Para isto, a base conceitual que dará suporte para sustentação deste capítulo levará
em consideração a Teoria da Economia Política do Poder, caracterizada como uma concepção
crítica das formas de poder e controle nas organizações concretas, objetivando esclarecer em
que medida as “instâncias objetivas e subjetivas, reais e imaginárias, se operam na realidade
organizacional”, dando conteúdo às configurações de poder e de controle nas organizações
(FARIA, 2004).
Para Faria, deve-se buscar nos estudos das organizações:
As relações internas e externas de poder, manifestadas em suas formas de controle e
em sua ação mediadora de objetivos e desejos, e em sua inserção dinâmica e
contraditória na sociedade globalizada, tendo como suporte de análise as relações
entre os sujeitos coletivos, no campo do trabalho, da produção, da realização, do
imaginário ou dos afetos, em seus aspectos objetivos e subjetivos, ou seja, as
relações de poder (FARIA, 2007, p.11).
Deste modo, entende-se que o estudo do controle, suas formas e mecanismos, do
ponto de vista gestão de organizações concretas, demanda a compreensão de três Categorias
de Análise: (i) poder: porque o controle é um modo de exercício do poder; (ii) ideologia:
porque o controle exige um sistema de ideias articulado e eficaz; (iii) alienação: porque no
exercício do controle, a incorporação da ideologia que o sustenta corresponde a pelo menos
algum “grau” de alienação. As relações de poder estão na raiz das práticas de controle, na
medida em que o asseguramento da realização dos interesses definidos por um grupo
encontra-se na efetividade dos mecanismos de controle e de sua gestão. Portanto, as relações
de poder, em suas formas distintas de exercício, dão suporte aos mecanismos e às formas de
controle. A ideologia e a alienação, por seu turno, apresentam-se como condições necessárias
(porém, não suficientes) para a garantia desta efetividade de forma eficaz.
As relações de poder assumem um lugar central nas práticas, na medida em que
“nenhuma classe ou grupo social aplicaria mecanismos de controle se não fosse para garantir
a realização de seus interesses objetivos e subjetivos específicos [seu poder]. O controle é a
mais bem estruturada garantia de permanência do poder” (FARIA, 2004, p.150). Tendo em
vista que as relações de poder, a ideologia e o processo de alienação serão considerados neste
estudo tendo como referência empírica uma organização produtiva, é necessário, antes de
tratar destes três elementos, indicar a concepção de organização aqui adotada.
2
1. A Concepção de Organização
De acordo com Faria (2004), organizações são:
Construções sociais e históricas que adquirem autonomia relativa em relação aos
sujeitos coletivos que a constituíram e que se consolidam como instâncias de
mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para os
quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos,
entidades plenamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas
construções sociais dinâmicas e contraditórias, nas quais convivem estruturas
objetivas e subjetivas, manifestas e ocultas, concretas e imaginárias, cabendo à
teoria crítica a atribuição política de investigá-las além de seu aspecto fenomênico
(FARIA, 2004, p. 31).
Desta forma, não se considera, aqui, “a organização” em seu sentido abstrato, mas
em sua concretude, enquanto unidade produtiva inserida em um modo específico de produção
e em uma dada formação social. Sendo assim,
As organizações são conceituadas a partir de sua materialidade objetiva e histórica,
na medida em que são unidades produtivas capitalistas [...]. Assim, pode-se afirmar
que existem, ontologicamente, dois tipos básicos de organização: (i) as categóricas,
que na sociologia são denominadas de organizações formais: (ii) as políticas ou de
pertença. As formais são aquelas unidades complexas que se estruturam de acordo
com uma finalidade (econômica, política, cultural, etc.) [...]. Como organização
formal, as unidades produtivas possuem como finalidade controlar para produzir sob
a lógica da repetição [...]. Há, aqui, uma lei histórica: toda organização formal
corresponde a uma forma de poder e de controle. Mas é necessário precisar: as
organizações e as formas de poder e controle correspondem aos momentos históricos
objetivos do modo de produção e não podem ser tratadas em sua generalidade
abstrata. É com esta concepção que uma organização deve ser entendida em sua
materialidade histórica como um sistema social ao mesmo tempo objetivo e
subjetivo, ao mesmo tempo simbólico e imaginário, cujos contornos somente são
possíveis de precisar em sua atividade prática no interior dos estágios do modo de
produção ou das formações sociais (FARIA, 2012, pp. 16-17).
O presente estudo, portanto, como já indicado, tem como referência no campo
empírico uma organização formal, especificamente uma unidade produtiva industrial, ou seja,
uma organização concreta, social e historicamente construída.
Uma vez exposta a concepção de organização, trata-se agora de explorar os conceitos
de Relações de Poder, Ideologia e Alienação procurando dar conta de esclarecer estas
instâncias sem perder sua condição de abrangência para a apreensão da realidade objetiva e
subjetiva, de maneira a dar sustentação às ações que assegurem às organizações buscarem
seus resultados independente das práticas que tenham que adotar.
2. As Relações de Poder
Poder será entendido, aqui, como a capacidade que um grupo social ou politicamente
organizado possui “de definir e realizar seus interesses objetivos específicos, mesmo contra a
resistência ao exercício desta capacidade e independentemente do nível estrutural em que tal
capacidade esteja principalmente fundamentada” (FARIA, 2004, p. 141). Os interesses
objetivos específicos podem possuir natureza econômica, jurídico-política, ideológica e
psicossocial, conforme a definição estabelecida pelo próprio grupo. O exercício do poder
pode adquirir continuidade e efetividade por ocasião do acesso do grupo ao comando das
organizações. Nesse caso, o que vai determinar a sua permanência e a direção que toma são as
práticas grupais, em que também estão contidas ações individuais.
Nessa perspectiva, o poder não é entendido como um jogo de forças que resulta em
uma soma zero, ou seja, um espaço político em que a “variação da quantidade de poder” de
um grupo corresponderia a uma “variação inversa da quantidade de poder” de outro grupo,
mas como um fenômeno relacional recíproco, geralmente assimétrico, ou seja, um fenômeno
3
que em determinadas condições práticas encontra-se em desequilíbrio do ponto de vista da
dominação ou da gestão das organizações concretas, indicando um confronto de interesses
entre o(s) grupo(s) dominante(s) e o(s) grupo(s) dominado(s). Desde este ponto de vista, a
dominação pode ser temporária, a favor de um ou de outro grupo no comando das estruturas
organizacionais. Portanto, é uma concepção que não nega o poder da outra parte envolvida na
relação social concreta, pois se tratam necessariamente de relações de poder.
Esse caráter relacional recíproco supõe, de acordo com Melo (1991), uma
“circulação do poder”, uma “flexibilidade e processo contínuo de negociação”, de forma a
estruturar uma dinâmica política própria no bojo das organizações. Para Melo (1991), a
capacidade de exercício do poder depende das características do tipo de organização, tanto de
sua estrutura formal, como da cultura organizacional, bem como das possibilidades que o
trabalhador tem de se “coligar com seus colegas”, de “mobilizar a solidariedade do grupo”, de
“construir e estabelecer relações e alianças”, de “suportar tensões psicológicas” e também da
estratégia que ele venha a traçar diante de cada situação.
Ao se admitir que as organizações, em sua dinâmica, são arenas políticas, é possível
reconhecer que nelas vários agentes ou protagonistas das relações sociais organizadas
apresentam as mais variadas estratégias. Tais estratégias são traçadas no sentido de constituir as
suas capacidades em termos políticos, fazendo valer os objetivos de grupos ou de coalizões de
interesses. Ao fortalecerem as suas posturas estratégicas, esses atores inseridos em
determinados grupos, fortalecem, portanto, o seu “poder” (BRITO et alii, 2008).
Considerando este processo e uma vez percebidas as contradições e os paradoxos
decorrentes da análise crítica do conteúdo de entrevistas concedidas por trabalhadores da
organização pesquisada, é preciso esclarecer “em que medida as instâncias obscuras (que se
operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e
manifestas (referentes ao regramento e às estruturas formais) dão conteúdo às configurações
do poder nas organizações do ponto de vista do sujeito coletivo do trabalho” (FARIA, 2004, p.
32). Em outras palavras, torna-se necessário revelar em que medida os mecanismos de
controle, como expressão de poder, manifestam-se através do dito, das regras, códigos,
políticas, processos produtivos, planos, estratégias, como também nas formas de subjetivação
relacionadas ao trabalho (símbolos, ritos, imaginários e mitos).
É preciso revelar, portanto, como as organizações definem seus mecanismos de poder
e de controle, “incorporando o que não pode ser dito, que se reproduz em seus porões, ao que
é possível falar, ao que pode ser manifesto às claras, de maneira a criar um mundo ao mesmo
tempo de racionalidades (de regras, objetivos, políticas, processos produtivos, planos,
estratégias etc.) e de subjetividades (símbolos, ritos, imaginários e mitos), com seus
paradoxos e contradições” (FARIA, 2004, p.148). Trata-se, assim, de compreender as
dualidades experienciadas por esse sujeito coletivo que cria e reproduz coalizões e estratégias
de poder e controle organizacional, ao mesmo tempo em que também se angustia, sofre,
desenvolvendo mecanismos de defesa ou até mesmo demonstrando manifestações de
enfrentamento com relação às formas imediatas e gerais de produção e às relações de
trabalho.
Nesse sentido, a pesquisa deve permitir constatar se todo o aparato organizacional da
unidade produtiva industrial é composto por novas e refinadas formas de gestão do processo
de trabalho e se atua em última instância como instrumentos de poder e controle nas
atividades laborais fortalecendo, através de mecanismos sutis de sedução, as condições de
engajamento com a organização, potencializando (i) o controle da subjetividade e (ii) a
manipulação dos desejos e necessidades dos sujeitos trabalhadores. A análise crítica de
conteúdo das entrevistas deve permitir verificar como e se o poder se consolida através de
regras, dispositivos e técnicas consentidas mediante uma lógica racional, para fins de
4
melhoria do desempenho organizacional e/ou através de mecanismos de controle da
subjetividade.
Não se trata de medir o poder da gestão ou de uma atividade, pois como já indicava
Foucault (1977): “o poder não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma
proibição, aos que ‘não têm’; ele os investe, passa por eles, e através deles; apoia-se neles, por
sua vez nos pontos em que ele os alcança” (FOUCAULT, 1975, p. 29). Isto significa dizer que
o poder vai além da relação entre acionistas e trabalhadores, entre gestores, administradores e
demais subordinados, pois se enraíza na prática cotidiana da organização, encobrindo o
espaço em sua totalidade (PAGÈS et alii, 1987, p. 66; 98). Em síntese, o poder está em “todo
o lugar”, expandindo seu domínio para muito além das relações de produção: na ordenação do
espaço (LEFÈBVRE, 1999), na distribuição e na produção do saber e da norma (FOUCAULT,
1977), independentemente do nível estrutural em que tal capacidade esteja principalmente
fundamentada (FARIA, 2004), nas engrenagens e regras da organização e até no inconsciente
(PAGÈS et alii, 1987).
De acordo com o obtido da análise crítica de conteúdo das entrevistas será possível
verificar se a eficácia dos sistemas e das formas de gestão utilizadas para controlar e que são
amplamente disseminadas nos discursos derivados da função gerencial dos gestores,
dependem ou não exclusivamente de imposição, obediência ou de formas autoritárias de sua
aplicação. Para Pagès et alii (1987)h há outras formas de exercício do poder. De fato, estes
pesquisadores já haviam retratado de forma contundente como o novo “aparato de regras”
(não formais) entra em contradição com o antigo sistema baseado na autoridade pessoal do
chefe. “Assim, o poder não está mais fixo em uma rede de relações hierárquicas interpessoais,
mas encarna o conjunto da organização e se define como a capacidade da organização em
submeter os indivíduos a uma lógica abstrata de lucro e expansão” (PAGÈS et alii, 1987, p.
67).
Levando em consideração tanto o exposto teoricamente, como também os
depoimentos dos gestores, entende-se ser possível verificar se e como trabalhar em uma
organização industrial implica a adesão a um sistema de crenças, cultura e valores, a uma
filosofia de vida, a uma formação específica e diferenciada. Entende-se que esta adesão
ideológica alicerça as energias e incita o sujeito a se dedicar de “corpo e alma” a seu trabalho,
a ponto de não só aceitar, mas desejar constantes mudanças, sujeitando-se voluntariamente ao
projeto estratégico da empresa. Partindo deste referencial, espera-se que a análise detalhada
do campo empírico permita observar se os sujeitos sentem-se capazes e desejosos de cooperar
e de se sacrificar, se preciso for, para o cumprimento de metas e resultados, de forma a
enfrentar novos e constantes desafios, naturalizando uma jornada de trabalho que ultrapassa,
muitas vezes, 12 horas diárias (comprometendo parte do tempo livre: sábados, domingos,
feriados, folgas) em prol dos assuntos e interesses estratégicos da unidade produtiva.
Entende-se que é justamente essa adesão, este “vestir a camisa da empresa” o
elemento fundamental para legitimar o exercício do poder, potencializando o sistema de
dominação e alienação. Portanto, para responder de que forma os mecanismos de controle
como expressão do poder expandem suas amarras para além do tempo formal da jornada de
trabalho – questão central da pesquisa – torna-se necessário incorporar nestas reflexões os
conceitos de ideologia e alienação, sendo este o propósito dos próximos itens.
5
3. A Ideologia
O conceito de ideologia possui muitas vertentes (CENTRE, 1980). Uma das maneiras
pela qual se pode conceber a ideologia é que ela seria um reflexo invertido, mutilado,
deformado do real, na medida em que significaria um conjunto abstrato de ideias,
representações e valores de determinada sociedade. No entanto, esta é uma concepção abstrata,
no sentido de que designa que todo e qualquer conjunto de ideias pretende explicar fatos
observáveis sem vincular essa explicação às condições sociais, históricas e concretas em que
tais fatos foram produzidos. Apesar da desvinculação, essas ideias seriam transmitidas e
absorvidas como se fossem reais (FRANCO, 2004).
Ao criticarem a ideologia alemã, Marx e Engels (2007) expressam de início a
concepção de ideologia como uma abstração deformada do real. À medida que desenvolvem
suas argumentações, a concepção de ideologia passa a ser definida como uma forma de
consciência social. De fato, para Mészáros (2004),
A ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal orientados, mas
uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada.
Como tal não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência se deve ao
fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída) como
consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a articulação
de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social
em todos os seus principais aspectos (MÉSZÁROS, 2004, p. 65).
Segundo Mészáros (2004), o conflito mais fundamental na arena social refere-se à
própria estrutura social que proporciona o quadro regulador das práticas produtivas e
distributivas de qualquer sociedade específica, cujo objetivo é manter ou, ao contrário, negar
o modo dominante de controle sobre o metabolismo social dentro dos limites das relações de
produção estabelecidas. Tal conflito encontra suas manifestações necessárias nas “formas
ideológicas (orientadas para a prática) em que os homens se tornam conscientes desse conflito
e o resolvem pela luta”. Ou seja, as diferentes formas ideológicas de consciência social têm
implicações práticas de longo alcance em todas as suas variedades, independentemente de sua
vinculação sociopolítica a posições progressistas ou conservadoras (MÉSZÁROS, 2004, pp.
65-66).
Neste sentido, não se pode reduzir o conceito de ideologia como simplesmente uma
“falsa consciência”. O que define a ideologia como ideologia não é seu suposto desafio à
“razão” ou seu afastamento das regras preconcebidas de um “discurso científico” imaginário,
mas sim sua situação real - materialmente fundamentada - em um determinado tipo de
sociedade. As funções complexas precisam focalizar a atenção nas exigências práticas vitais
do sistema de reprodução (MÉSZÁROS, 2004, pp. 472-473).
Nesta mesma linha de argumentação, Pagès et alii (1987) alertam que:
Quando se evoca a ideologia que uma instituição produz, geralmente se refere a um
sistema de representação do qual se servem os detentores do poder para mascarar e
ocultar a realidade. Ainda que a ideologia se ocupe de tais funções, esta leitura
torna-se muito simplista, tendo em vista que não explica o domínio profundo que
uma organização pode exercer sobre seus membros (PAGÈS et alii, 1987, p.74).
Para compreender tal fenômeno, Pagès et alii (1987) apontam a necessidade de
renunciar à visão ingênua da ideologia que corresponde apenas aos interesses das classes
dominantes, ou seja:
A ideologia predominante num grupo social ou em uma instituição constitui de
fato uma “bricolagem” de elementos disparatados resultante de influências
variadas, heranças de períodos diferentes. Uma classe, ainda que dominante, só
pode impor uma ideologia conforme seus interesses particulares na medida em que
consegue integrar as ideologias próprias daqueles que ela quer submeter. Deve
oferecer uma interpretação do real relativamente coerente com as práticas sociais
dos membros da instituição e fornecer-lhes uma concepção do mundo conforme
suas aspirações (PAGÈS et alii,1987, p.74).
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Tomando como referência o discurso ideológico como veículo da manifestação
expressa do poder, seja para convencer, seja para impor ou para estabelecer acordos, tem sido
possível constatar que de uma forma especial os modelos e as formas de gestão implantados
pelas organizações incorporam um conjunto de conteúdos de ordem prática, política e
ideológica, historicamente relacionado com os interesses econômicos do capital. Ou seja, é
principalmente a existência de um sistema estruturado, de uma filosofia global, de um
conjunto de princípios nos quais os sujeitos podem acreditar, que leva à adesão dos mesmos
ao conjunto de valores da organização produtiva.
Sendo assim, uma análise crítica das entrevistas deve evidenciar se, na avaliação dos
gestores, a unidade industrial atua como uma organização apenas dirigida para gerir
racionalmente as suas atividades, segundo a lógica de acumulação inerente ao modo de
produção capitalista, a mesma suscitaria a admiração e a adesão maciça da maior parte de
seus trabalhadores e poderia submetê-los profundamente ao seu grandioso sonho de ser a
“preferida” por seu público de interesse. É justamente pelo fato de construir um apelo
ideológico amalgamado no imaginário heroico, ser motivo de orgulho e de pertencimento,
como também oferecer ao seu corpo técnico e gerencial, além das condições materiais,
satisfações de ordem psicossocial e elementos de vínculos sociais, que os gestores se
reconhecem na organização a ponto de se engajarem à mesma, empregando toda sua energia
física e emocional.
Pagès et alli (1987) indicam que a ideologia da empresa, tal qual ela difunde e pratica
e tal qual o indivíduo reproduz, ampliando, não funciona apenas como uma compensação
frente à dureza e à submissão ao trabalho. “Ela só é tão eficaz porque vai de encontro e
mobiliza aspirações profundas, valores, que transcendem o interesse individual” (PAGÈS et
alii, 1987, p. 94).
Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels (2007) já apontavam a ligação entre ideologia,
alienação, mistificação e coisificação. Como interpreta Swingewood (1978. p. 76), uma
“consciência social alienada é aquela que passou a ser dominada por um mundo de coisas, no
qual a realidade não é mais considerada como uma realidade humana, mas uma ideologia de
atributos humanos”. A ideologia, portanto, entre tantas “funções”, como as de cooptação,
engajamento, legitimação, interpretação, etc., também está na base da alienação conduzindo
os sujeitos à uma estrutura de crenças desfigurada, alicerçada na transferência a outros
sujeitos daquilo que lhe pertence.
4. A Alienação
O conceito de alienação, bem como de estranhamento, encontra-se primeiramente
exposto em Hegel (2008), mas é em Marx (2007; 2010) que o mesmo ganha importância no
estudo sobre o trabalho. É na relação entre o trabalhador e o produto do seu trabalho e na
relação entre o trabalhador e a atividade produtiva que este desenvolve sob o modo capitalista
de produção que se pode compreender tanto a alienação, em que o trabalhador não se apropria
do resultado de seu próprio trabalho (alienando-o ao capital), como o estranhamento, em que
o resultado de seu trabalho aparece como algo externo ao trabalhador e não como parte de si,
7
ou seja, sua atividade não lhe pertence, é estranha a ele. Isso acontece, entre outras questões,
porque a força de trabalho é vendida como mercadoria.
Neste sentido, o trabalhador é estranho ao produto de seu trabalho na medida em que
aquilo que produz apresenta-se para ele como detentor de um poder independente, pois quanto
mais o trabalhador executa sua atividade, mais o mundo lhe parece estranho, o que intervém
em sua consciência e em sua vida emocional. A alienação se dá em relação à sua atividade
produtiva e ao que produz, pois o trabalho deixa de ser uma atividade essencial para satisfazer
suas necessidades de existência e se transforma em um meio para satisfazer necessidades que
lhes são estranhas.
Marx (2010) trata do trabalho estranhado a partir de quatro dimensões (formas): (i) a
relação entre o trabalho e o produto do trabalho: o objeto produzido se torna estranho ao seu
produtor, torna-se independente dele, ainda que seja sua atividade cristalizada. O que o
produtor produz não lhe pertence (MARX, 2010. p. 80); (ii) autoestranhamento: o
estranhamento “não se mostra somente no resultado (...), mas também, e principalmente, no
ato de produção, dentro da própria atividade produtiva” (MARX, 2010. p. 83). Sendo o
produto estranho ao trabalhador, isto significa que nem sua própria atividade lhe pertence; (iii)
negação genérica do homem: a vida produtiva é a vida genérica do homem, é a vida que
engendra sua vida, ou seja, é a relação do sujeito com sua existência vital. Porém, “o trabalho
estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque é consciente, faz
de sua atividade vital de sua essência, apenas um meio para sua existência” (MARX, 2010. p.
85); (iv) Estranhamento do outro: o homem somente se reconhece como tal defrontando-se
com outro homem (MARX, 2010. pp.85-86).
Para melhor compreender o conceito de alienação, que é o que interessa neste estudo,
convém destacar os conceitos de mediação de primeira e de segunda ordem, conforme
proposto por Marx (1983). A mediação de primeira ordem é a forma como o homem se
relaciona com a natureza e com o próprio homem, ou seja, é a forma que permite ao homem
compreender o mundo através de sua atividade produtiva. Na mediação de primeira ordem o
homem se relaciona diretamente com a natureza e com os outros homens. No sistema de
capital, contudo, estas relações homem-natureza e homem-homem são mediadas pelo capital,
ou seja, são mediações de segunda ordem. De acordo com Mészáros,
As mediações de segunda ordem do capital – ou seja, os meios alienados de
produção e suas ‘personificações’; o dinheiro; a produção para troca; as variedades
da formação do Estado pelo capital em seu contexto global; o mercado mundial –
sobrepõe-se, na própria realidade, à atividade produtiva essencial dos indivíduos
sociais e na mediação primária entre eles (MÉSZÁROS, 2002, p. 71).
As mediações de segunda ordem constituem, portanto, a condição do processo de
alienação do trabalho. Entretanto, o conceito de alienação não é pacífico. Ao analisar as
diferentes formas de entendimento da alienação, conclui-se que além de sua caracterização
econômica que significa a transferência, pelo trabalhador, da propriedade do fruto de seu
trabalho ao capital, a mesma também se refere à forma de inserção dos sujeitos no mundo e à
concepção daí decorrente. O mundo é visto pelo sujeito alienado não em um plano concreto,
mas como uma fantasia que direciona a maneira de ser, de pensar e de agir dos sujeitos. A
realidade não é compreendida pelo sujeito alienado em sua complexidade, em seus
movimentos contraditórios, em seu dinamismo, mas é naturalizada como sendo tal como
parece ser, simplificada e destituída de sua história. Neste sentido, o sujeito projeta a si
mesmo como um ser de qualidades segundo aquilo que dele se espera e passa a agir de acordo
com estas qualidades. Com isto, o sujeito aliena-se de sua própria existência real, doando sua
vida a uma ideia dela, a um tipo idealizado. Este tipo é referido pelo sujeito como sendo a
configuração das exigências da realidade, de onde advém a concepção fantasiosa do que deve
ser o “trabalhador ideal”, o “chefe competente”, o “gestor democrático”, a “equipe unida”, “o
trabalho eficaz”, a “qualidade reconhecida”, entre outras. Em síntese, há uma elaboração
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maniqueísta do bom trabalhador (gerente, chefe) e do mau trabalhador (gerente, chefe). O
bom é o ser do elogio, da aceitação, da admiração, do sucesso. O mau é o ser da crítica, da
exclusão, do desprezo, do fracasso. Esta dicotomia que sustenta a construção do tipo
idealizado esconde o sujeito alienado de si, incapaz de desenvolver uma consciência crítica da
realidade e de seu lugar nela (FARIA, 2004).
Segundo John Holloway (1997), como condição, a alienação se expressa da seguinte
forma:
Se a humanidade é definida como atividade – pressuposto básico de Marx – então
alienação significa que a humanidade existe sob a forma de inumanidade, que os
sujeitos humanos existem como objetos. Alienação é a objetificação do sujeito. O
sujeito (homem ou mulher) aliena sua subjetividade, e essa subjetividade é
apropriada por outros. [...] Ao mesmo tempo, como o sujeito é transformado no
sujeito da sociedade. A objetificação do sujeito implica também a subjetificação do
objeto (HOLLOWAY, 1997, p. 146).
Seguindo a mesma linha teórica, Antunes (1999), ao retratar as formas de alienação
nas empresas flexíveis, aponta que o estranhamento do trabalho encontra-se em sua essência
preservado. Isto porque a subjetividade que emerge na fábrica ou nas esferas produtivas
contemporâneas é expressão de uma existência inautêntica e estranhada, em relação ao que se
produz e para quem se produz (ANTUNES, 1999, p. 130). Isto significa dizer que os
benefícios aparentemente obtidos pelos trabalhadores no processo de trabalho são largamente
compensados pelo capital, uma vez que a necessidade de pensar, agir e propor dos trabalhadores
deve levar em conta prioritariamente os objetivos intrínsecos da empresa, que aparecem muitas
vezes escamoteados pela necessidade de atender aos desejos do mercado consumidor
(ANTUNES, 1999, pp. 130-131).
Além deste aspecto, alguns estudos têm tratado dos chamados infoproletários,
trazendo à tona a discussão sobre a “associação oculta entre o uso de novas tecnologias e a
imposição de condições de trabalho” em uma área que simboliza a chamada moderna
economia, que é aquela que emprega exatamente tecnologias físicas informacionais, seja na
produção direta, seja nos processos de terceirização, tanto em setores industriais quanto de
serviços. Esta associação tem indicado uma “tendência crescente de alienação do trabalho em
escala global” (ANTUNES; BRAGA, 2000).
As investigações no campo empírico da organização produtiva devem permitir indicar
como se materializam as inúmeras práticas por ela disseminadas objetivando estabelecer maior
vínculo, envolvimento, adesão aos projetos e programas da empresa e dedicação permanente
dos trabalhadores na execução e planejamento de atividades. Estudos realizados mediante a
participação e discussões coletivas, oriundas de reuniões de análises críticas, indicam que os
gestores dedicam suas melhores ideias, iniciativa e criatividade em prol do resultado
organizacional. Existe, assim, tanto incentivo à criação de comitês internos e grupos de
trabalho, como também estímulo à qualificação e desenvolvimento profissional, utilizando para
isto o tempo livre do gestor (RAMOS, 2013).
Práticas como estas, já relatadas por Pagès et alii (1987, p. 75), implicam, em última
instância, em uma adesão ideológica, a um sistema de valores que galvaniza as energias e incita
as pessoas a se dedicarem de corpo e alma a seu trabalho. “Esta adesão é um elemento
fundamental para o poder da empresa e para seu sistema de dominação e alienação dos
indivíduos” (PAGÈS et alii, 1987, p. 75).
Assim, é possível verificar se, por detrás do sistema de crenças, valores, planos e
estratégias de atuação gerencial, existem mecanismos de controle e dominação que orientam e
condicionam a atuação e discurso gerencial para interesses do capital. Pagès et alii (1987, p.
78) já relatavam que o indivíduo só pode aderir a um sistema de valor coerente com sua
experiência própria se este lhe permitir ao mesmo tempo torná-lo inteligível e valorizá-lo.
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Neste sentido, pode-se observar se o diferencial da organização está em canalizar a
pulsão e energia do sujeito trabalhador por meio do engajamento, da persuasão e do
convencimento de que suas atividades são fundamentais para o sucesso e alcance dos seus
resultados. Mesmo os gestores convivendo com dificuldades em gerir suas equipes de trabalho,
com aumento das cobranças por resultados e também forte exigência especialização e
automação no ambiente laboral, seus discursos geralmente retratam orgulho de pertencimento,
pois “graças à organização”, os mesmos se sentem “participantes de um processo social que os
transcende e lhes permite identificar-se com seu poder, mesmo que este poder os destruam”
(PAGÈS et alii, 1987, p. 78).
Faria (2004) afirma que, subjetivamente, a organização contemporânea se vale da
crença no pertencimento, na associação, na unidade da organização, no projeto compartilhado,
na destituição psíquica, na competição intergrupal, na entrega dos sentimentos e do afeto à
valorização do trabalho do grupo (equipe) e no sequestro da subjetividade. Assim, embora o
trabalho se intensifique com as novas práticas de administração, as estratégias e as tecnologias
de gestão procuram fazer com que os trabalhadores mostrem-se mais motivados e satisfeitos
(ADLER, 1993).
A crença no pertencimento, na vida organizacional, no projeto compartilhado e na
unidade da entrega dos sentimentos e afetos, compõe o quadro do sujeito alienado. Segundo
Faria (2004), objetivamente, a alienação se dá pela (i) manutenção da forma assalariada de
trabalho como mecanismo de “liberdade”, (ii) introdução de vantagens, prêmios, benefícios e
outros aliciantes, (iii) participação direta nos resultados relacionados à intensificação do
trabalho, (iv) valorização dos resultados da produção em detrimento das condições de
trabalho, (v) utilização de programas de premiação por produtividade, (vi) destituição material
dos resultados individuais de produção, (vii) apropriação cada vez mais significativa de
resultados pela empresa, (viii) criação de incentivo ao melhor desempenho (eficiência, eficácia,
produtividade) devido a ameaças reais (flexibilidade da jornada, terceirização, subcontratação).
Diferentemente de Adler (1993), Faria (2004) não entende que a alienação resulta da
imposição de padrões externos à força de trabalho (o “mau taylorismo”) e que na produção
flexível, a mesma tenha se descaracterizado pelo fato dos padrões serem definidos pelos
próprios trabalhadores nas equipes de trabalho (o “bom taylorismo”) resultando de uma
aderência aos mesmos. Para Faria (2004), não é a origem do padrão que define a alienação,
mas a da apropriação do resultado objetivo e subjetivo. Este é um dos motivos, por exemplo,
pelos quais o investimento das empresas no trainee se dá na medida em que esta compreende
que o mesmo deve compor uma categoria de trabalhador “destinada a vencer, uma elite
preparada para o sucesso, disposta a abrir mão de sua vida pessoal pela prosperidade da
organização e de sua carreira, ensinada a reproduzir os valores que expressam os interesses da
empresa” (LEAL, 2003).
Do ponto de vista clássico do marxismo, portanto, a alienação refere-se à
apropriação, pelo capital, do resultado do trabalho do sujeito trabalhador. Em outras palavras,
o trabalhador é alienado do produto do seu trabalho, o qual é transferido ao capital que dele se
apropria e dele dispõe. Entretanto, é necessário considerar que o sujeito trabalhador não aliena
apenas o fruto do seu trabalho (físico ou intelectual), mas igualmente parte do processo de
trabalho (as habilidades, o conhecimento técnico, o saber abstrato) e não só o processo como a
si mesmo como força de trabalho e como comprometimento, sentimentos, afeto, engajamento
e subjetividade. (FARIA, 2004).
Diante disto, é possível afirmar que as bases que alicerçam a adesão e o apego dos
gestores ao sistema de poder e os meios que estes utilizam para integrá-los, consolidam-se
numa forte estrutura ideológica ligada ao mais profundo estágio de alienação, que é a
alienação ideológica, conforme explicitada por Pagès et alli, (1987, p. 95). É neste sentido que
os gestores, dominados por seus desejos de onipotência e pautados pelo imaginário de
10
sucesso, aprisionam-se numa espiral que os envolve de todos os lados e os toma totalmente,
algemando o que eles possuem de mais precioso: seus valores, seus sentimentos, seu corpo e
sua mente.
5. Considerações Finais
O presente ensaio teórico procurou discutir três categorias de análise com o objetivo
de respaldar uma investigação sobre as relações de trabalho tanto no tempo formal da jornada
como no tempo extraordinário (dentro e fora do ambiente físico da organização) no campo
empírico de uma unidade produtiva industrial: relações de poder, ideologia e alienação.
Da perspectiva das relações de poder, pretende-se verificar se o aparato organizacional
da unidade produtiva industrial (composto por novas e refinadas formas de gestão do processo
de trabalho) atua como instrumentos de poder e controle nas atividades laborais fortalecendo,
através de mecanismos sutis de sedução, as condições de engajamento com a organização,
potencializando (i) o controle da subjetividade e (ii) a manipulação dos desejos e necessidades
dos sujeitos trabalhadores. Em outras palavras, a partir desta categoria pode-se verificar como
e se o poder se consolida (i) através de regras, dispositivos e técnicas consentidas mediante
uma lógica racional e/ou (ii) através de mecanismos de controle da subjetividade.
O estudo das relações de poder permite, assim, verificar se a eficácia dos sistemas e
das formas de gestão utilizadas para controlar (presentes nos discursos de gestão) (i)
dependem exclusivamente de imposição, obediência ou de formas autoritárias de sua
aplicação, ou (ii) se entra em contradição com o antigo sistema baseado na autoridade pessoal
do chefe, submetendo os indivíduos a uma lógica abstrata de lucro e expansão. Em outros
termos, o estudo das relações de poder devem permitir verificar se e como trabalhar em uma
organização industrial implica a obediência exclusiva às regras ou se igualmente compreende
a adesão a um sistema de crenças, cultura e valores, a uma filosofia de vida, a uma formação
específica e diferenciada.
Da perspectiva da ideologia, deve ser possível constatar como os modelos e as
formas de gestão implantadas pela organização incorporam um conjunto de conteúdos de
ordem prática, historicamente relacionado com os interesses econômicos do capital. Em
outras palavras, esta categoria de análise permite verificar a existência de um sistema
estruturado, de uma filosofia global, de um conjunto de princípios nos quais os sujeitos
podem acreditar: construção de um apelo ideológico amalgamado no imaginário heroico;
motivo de orgulho e de pertencimento; além das condições materiais, oferta de satisfações de
ordem psicossocial e elementos de vínculos sociais; elementos de reconhecimento com a
organização a ponto de promover o engajamento à mesma com o emprego de toda energia
física e emocional disponível.
Da perspectiva da alienação pode-se verificar como a fantasia (o imaginário)
direciona a maneira de ser, de pensar e de agir dos sujeitos trabalhadores, tendo em vista que a
realidade passa a ser compreendida pelo sujeito alienado como sendo tal como parece ser,
simplificada e destituída de sua história, de forma que este sujeito projeta a si mesmo como
um ser de qualidades segundo aquilo que dele se espera e passa a agir de acordo com estas
qualidades, alienando-se de sua própria existência real, doando sua vida a uma ideia dela, a
um tipo idealizado: “trabalhador ideal”, “chefe competente”, “gestor democrático”, “equipe
unida”, “ trabalho eficaz”, “qualidade reconhecida”, entre outras. O estudo sobre a alienação
pode indicar a existência de uma elaboração maniqueísta do bom (ser do elogio, da aceitação,
da admiração, do sucesso) e do mau (ser da crítica, da exclusão, do desprezo, do fracasso)
trabalhador. Além deste aspecto, pode-se também analisar a associação entre o uso de novas
11
tecnologias e a imposição de condições de trabalho. O estudo da alienação no trabalho deve
permitir verificar como se materializam as inúmeras práticas organizacionais com o objetivo de
estabelecer maior vínculo, envolvimento, adesão aos projetos e programas e dedicação
permanente dos trabalhadores na execução e planejamento de atividades. Assim, será possível
verificar se, por detrás do sistema de crenças, valores, planos e estratégias de atuação
gerencial, existem mecanismos de controle e dominação que orientam e condicionam a
atuação e discurso gerencial para interesses do capital, canalizando a pulsão e energia do
sujeito trabalhador por meio do engajamento, da persuasão e do convencimento de que suas
atividades são fundamentais para o sucesso e alcance dos seus resultados.
Objetivamente, o estudo da alienação permite analisar (i) a manutenção da forma
assalariada de trabalho como mecanismo de “liberdade”, (ii) a introdução de vantagens,
prêmios, benefícios e outros aliciantes, (iii) a participação direta nos resultados relacionados à
intensificação do trabalho, (iv) a valorização dos resultados da produção em detrimento das
condições de trabalho, (v) a utilização de programas de premiação por produtividade, (vi) a
destituição material dos resultados individuais de produção, (vii) a apropriação cada vez mais
significativa de resultados pela empresa e (viii) a criação de incentivo ao melhor desempenho
(eficiência, eficácia, produtividade) devido a ameaças reais (flexibilidade da jornada,
terceirização, subcontratação).
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Dissertação de Mestrado.
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13
Resumo
A história intelectual é frequentemente associada à história das ideias ou, ainda, história das
mentalidades. Isto porque a história intelectual é praticada de muitas maneiras, não possuindo
uma metodologia específica consolidada e nem mesmo uma linguagem teórica considerada
padrão. Como na área de estudos organizacionais, a história intelectual não se apresenta como
“temática” sistematizada de conhecimento, os artigos, textos ou mesmo teses de intelectuais
que influenciaram ou influenciam essa área ainda se mostram metodologicamente frágeis. As
discussões resumem-se a práticas ideológicas, apropriações indevidas dos pensamentos de
intelectuais, biografias comuns ou apologias mistificadas das suas práticas intelectuais.
Assim, o objetivo geral deste estudo é apresentar alguns elementos, que compõem a
elaboração da história intelectual e sua relevância para os estudos organizacionais,
fundamentados na trajetória de Maurício Tragtenberg. Quanto aos objetivos específicos, tem-
se: (i) Analisar a história pessoal e profissional de Maurício Tragtenberg; (ii) Apresentar os
aspectos metodológicos que devem ser levados em consideração na elaboração da história
intelectual; (iii) Refletir sobre a importância da história intelectual nos estudos
organizacionais. A base de sustentação teórica relacionada à história intelectual é formada por
Altamiro (2007), Silva (2002) e Carvalho (1998). Para compreender a importância de
Tragtenberg na área de estudos organizacionais, utilizam-se autores como Paula (2001, 2008,
2009), Faria (2001), Valverde (2001), Motta (2001), Maranhão et. al. (2010). Os fundamentos
para compreender a história de Tragtenberg se encontram em autores como Resende (2001),
Antunes (2001), Löwy (2001), Morel (2001), Uhle (2001). Além disso, os livros e artigos de
jornais de Tragtenberg constituem os pilares para entender sua história intelectual. A ideia,
portanto, é promover uma primeira reflexão sobre os cuidados que a história intelectual exige
dos pesquisadores no percurso de elaborá-la. Apresentam-se reflexões sobre a metodologia
utilizada para elaboração da história intelectual, sem, contudo, apresentar modelos definitivos,
uma vez que não há unanimidade em relação à metodologia mais adequada. Várias são as
técnicas que podem ser utilizadas e quase todas elas relacionadas à abordagem qualitativa de
pesquisa, no entanto, encontram-se alguns estudos de história intelectual que podem servir de
base para o pesquisador que se decida pelos estudos organizacionais. Por fim, são
apresentados alguns elementos que refletem sobre a importância da inserção da história
intelectual nos estudos organizacionais. O aparecimento sistemático de estudos de história
intelectual tem auxiliado a clarificar e corroborar linhas de pensamentos, concepções
epistemológicas e posicionamentos políticos na área de enfoque, ocorrendo da mesma forma
com concepções metodológicas. A história intelectual nos estudos organizacionais pode abrir,
caso seja feita com rigor, novas perspectivas para a área, sobretudo, no mapeamento
qualitativo das concepções dominantes e sua evolução histórica.
1
Introdução
A história intelectual é praticada de muitas maneiras, não possuindo uma metodologia
específica consolidada e nem mesmo uma linguagem teórica considerada padrão
(ALTAMIRO, 2007), assim, a história intelectual é frequentemente associada à história das
ideias ou, ainda, história das mentalidades. Na França, por exemplo, não há “padrões” bem
definidos que delimitem a história intelectual. As temáticas, os objetos de estudo, os métodos
de análise ainda não estão fixados (SILVA, 2002).
No Brasil, a história intelectual é basicamente dividida em dois tipos de abordagem
(CARVALHO, 1998, p. 149). O primeiro, mais tradicional, aproxima-se da prática em
Filosofia de expor o pensamento isolado de cada pensador, procurando-se estudar seu
pensamento e analisar de que forma ele é influenciado ao longo da sua vida por outros
pensadores. O segundo, mais recente, estuda um grupo de pensadores que cria um conjunto de
pensamentos influentes em uma época ou determinado contexto social.
Percebem-se, contudo, divergências conceituais a respeito da definição de história
intelectual. Vários autores, escolas (francesa e anglo-saxônica), linhas de pensamento fazem
da temática algo a ser amadurecido, refletido, dependentes de as áreas de conhecimento, como
a Filosofia, a Educação e as Ciências Políticas (mais adiantadas nessa discussão) e outras
novas desenvolverem pesquisas e expressivos estudos de boa qualidade.
Na área de estudos organizacionais, a história intelectual não se apresenta como
“temática” sistematizada de conhecimento, visto os artigos, textos ou mesmo teses de
intelectuais que influenciaram ou influenciam a área serem ainda metodologicamente frágeis.
As discussões resumem-se a práticas ideológicas, apropriações indevidas dos pensamentos de
intelectuais, biografias comuns ou apologias mistificadas das suas práticas intelectuais.
Logo, o objetivo geral deste estudo é apresentar alguns elementos que compõem a
elaboração da história intelectual e sua relevância para os estudos organizacionais com fulcro
na trajetória de Maurício Tragtenberg.
Para tanto, tem-se como objetivos específicos: (i) Analisar a história pessoal e
profissional de Maurício Tragtenberg; (ii) Apresentar os aspectos metodológicos que devem
ser levados em consideração na elaboração da história intelectual; (iii) Refletir sobre a
importância da história intelectual nos estudos organizacionais.
A opção por apresentar os aspectos metodológicos e a importância da história
intelectual para a área de estudos organizacionais com base na obra de Maurício Tragtenberg
deve-se a alguns fatores. Primeiro, porque o pensamento do autor vem sendo ou foi estudado
por alguns pesquisadores da área de organizações, destacando-se, entre eles, José Henrique de
Faria, Ana Paula Paes de Paula, Fernando Claudio Prestes Motta, Antonio José Romera
Valverde, Carolina Machado Saraiva Maranhão. Segundo, porque Tragtenberg influenciou
expressivamente outras áreas, como a Educação e a Sociologia, motivando pesquisadores
dessas áreas a elaborarem materiais que enriquecem a análise no âmbito da história
intelectual. Terceiro, pela vasta e expressiva obra intelectual do autor, que influenciou
expressivamente as áreas de Estudos Organizacionais, Administração, Educação e Sociologia.
Quarto, pelos registros e relatos pessoais de quem conviveu com Tragtenberg, possibilitando
clareza e comprovação de fatos vividos por ele no âmbito pessoal, profissional e acadêmico.
ponto de convergência com o entendimento de Gramsci utilizado aqui para atribuir tal
qualidade a Tragtenberg é que “longe de encobrir sua situação de classe e acenar com uma
fala ‘em nome da comunidade em geral’, eles fazem seus apelos diretamente em nome de uma
modernidade fundada em interesses de classe, que deixam transparecer ao invés de disfarçá-
los” (GONZALES, 1981, p. 93). Tragtenberg é um intelectual porque representa “o máximo
grau de consciência de um intelectual sobre sua própria situação na sociedade.”
(GONZALES, 1981, p. 94). O “próprio Gramsci põe à margem as funções conectivas dos
‘grandes intelectuais’, as pessoas ‘especialmente preparadas’ para a vida do pensamento. Eles
não poderiam ser qualificados nem de ‘tradicionais’, nem de ‘orgânicos’. São aqueles que às
vezes ‘influem mais do que toda uma universidade inteira’. (...) Não teria sentido aplicar-lhes
o rótulo”. (GONZALES, 1981, p. 99) Tragtenberg é um intelectual orgânico da classe
trabalhadora, porque mantém uma relação orgânica com os problemas dessa classe, da qual é
procedente, pautando sua atuação política por contínuo combate em relação à exploração do
capital sobre o trabalho. Em suma, Tragtenberg é um intelectual tanto no sentido atribuído por
Gramsci como por Sartre, porque
O intelectual é o homem que toma consciência da oposição, nele
e na sociedade, entre a pesquisa da verdade prática (com todas
as normas que ela implica) e a ideologia dominante (com seu
sistema de valores tradicionais). Essa tomada de consciência –
ainda que, para ser real, deva se fazer no intelectual, desde o
início, no próprio nível de suas atividades profissionais e de sua
função – nada mais é que o desvelamento das contradições
fundamentais da sociedade, quer dizer dos conflitos de classe e,
no seio da própria classe dominante, de um conflito orgânico
entre a verdade que ela reivindica para seu empreendimento e os
mitos, valores e tradições que ela mantém e que quer transmitir
às outras classes para garantir sua hegemonia.” (SARTRE, 1994,
p. 30-1)
Apesar das convicções teóricas, Tragtenberg não é um intelectual dogmático. Sua
vasta leitura, sua vivência e convivência com a diversidade, sua tolerância com os que menos
têm, sua disponibilidade com aqueles que desejam aprender, mas, principalmente, a coerência
entre teoria e prática caracterizam-no um intelectual diferenciado. A sua orientação baseada
na dúvida, com a formulação de questionamentos cada vez mais profundos e pertinentes, com
o compromisso de aproximar-se da verdade sem dogmatismo torna-o um intelectual no
sentido pleno.
Avesso à burocracia da academia e questionador das regras burocráticas que
direcionam o ensino, não se importava com as disputas de “quantificação curricular”, com os
títulos acadêmicos. É um intelectual diferenciadoi. Sem se apegar ao mainstream acadêmico
ou ser um acadêmico programado, Tragtenberg é um intelectual radical. Tragtenberg teve
posicionamento político claro e objetivo até mesmo quando defendia a classe trabalhadora
contra as investidas do poder das elites capitalistas sempre compromissado com suas
convicções. Falava para a classe trabalhadora, seja pessoalmente ou por meio de colunas de
jornais, de tal forma que suas falas estão sempre, direta ou indiretamente, associadas a sua
história de vida. A forma como cresceu e aprendeu influencia diretamente na sua visão de
educação, em cujo potencial de emancipação sempre acreditou, apesar de ser um crítico dela.
Tragtenberg é neto de imigrantes judeus que se instalaram no Rio Grande do Sul e
viveu em uma fazenda de agricultura de subsistência. Desde cedo, começou a aprender
português, espanhol, esperanto e russo, o que veio a lhe ajudar futuramente nos estudos.
Frequentou o grupo escolar em Porto Alegre, mas só cursou até a terceira série do primário.
3
Sua pouca experiência como aluno desde os anos iniciais do sistema tradicional de
ensino provavelmente influenciou na compreensão de que nem sempre o ensino tradicional é
a única forma de educação. Cria, desde cedo, a noção de que a educação acontece de diversas
formas e por vias nem sempre institucionais ou organizadas. Assim, sua experiência com a
Educação ocorre de forma não convencional, distante das vias da estrutura escolar tradicional.
Com a morte prematura do seu pai, transferiu-se para São Paulo, onde foi adotado pela
família Abramo, depois de ter vagado por alguns dias pelas ruas paulistanas. Essa família
iniciou-o na formação autodidata, proporcionando-lhe o afeto e o exemplo necessários. Nas
suas palavras: “Então, essa família [família ABRAMO] foi uma das minhas universidades.”
(MARRACH, 2001, p. 17).
A condição de judeu, de “desabrigado” e de estrangeiro no próprio país faz com que
Tragtenberg entenda o mundo com o sentimento de não aceitá-lo como ele se apresenta.
O autodidatismo é outro ponto central para compreender a relação que Tragtenberg faz
entre a aprendizagem e a educação. Para ele, sobretudo pelas suas atitudes com os próprios
alunos e orientandos de mestrado e doutorado, todo indivíduo é potencialmente autodidata e
capaz de estabelecer as próprias condições e metodologias de aprendizado. A liberdade em
poder escolher o que estudar é outro importante pressuposto que acompanha a vida de
Tragtenberg. A liberdade de escolha e a procura por aprender aquilo que realmente deseja sem
estabelecimento de regras ou metodologias pré-definidas e presentes nas organizações
escolares tradicionais são permanentes na obra e atitudes desse professor autodidata.
O ingresso na Universidade de São Paulo ocorreu após a realização da monografia sob
a orientação de Antonio Candidoii. Escreveu sobre o texto “Planificação - Desafio do século
XX” (TRAGTENBERG, 1967), que, posteriormente, foi transformado em livro.
Com a aprovação da monografia pela USP, prestou vestibular e, como o mesmo
Tragtenberg afirma, “ficou universitário”, iniciando o curso de Ciências Sociais, de que,
todavia, desistiu para cursar História e tornar-se bacharel nessa área. Essa formação permitiu
que tivesse embasamento consistente para analisar as mudanças ocorridas na sociedade.
Doutorou-se em Ciência Política também pela Universidade de São Paulo.
Mesmo sendo um combativo crítico ao processo de diplomação, Tragtenberg
beneficia-se dele para conseguir os títulos acadêmicos. Assim, de alguma forma, a mesma
burocracia e o formalismo que tanto critica nas organizações escolares acabam por afirmar
sua condição de professor universitário, burocraticamente formalizado.
Presta diversos concursos para o magistério, logrando êxito em todos. Lecionou no
Ensino Médio e em diversos cursos de graduação e pós-graduação de universidades como a
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade de São Paulo, Universidade
Estadual de Campinas e da Fundação Getúlio Vargas.
Suas relações com o trabalho sempre foram conturbadas, pois sua postura anarquista e
de ativista político causaram vários conflitos e demissões, sobretudo na época do Regime
Militar. Questões internas, de ordem pessoal, causaram certas dificuldades na condução da
sua vida profissional. Tragtenberg, em muitas situaçõesiii, era anarquista na escolha dos temas
das aulas e nas discussões promovidas para debater sobre vários livros, nem sempre mantendo
coerência epistemológica. Em outras situações, gostava de manter a ordem na sala de aula e o
disciplinamento, de forma que todos os alunos prestassem atenção nas suas exposições.
Observa-se não ser possível definir o que é real e o que é imaginário social na sua vida
acadêmica, sobretudo, nos tempos em que Tragtenberg é estudado e homenageado
frequentemente.
Outra experiência bastante marcante foi o tempo em que frequentou a Biblioteca
Municipaliv, onde iniciou sua formação heterodoxav, conciliando seu trabalho (na Companhia
de Água do Estado de São Paulo, local onde conheceu a burocracia de perto) e a leitura. É
importante ressaltar, aqui, o frequente equívoco com a noção de heterodoxia. Uma formação
4
heterodoxa não está, necessariamente, associada à quantidade de livros lidos ou estudados por
alguém, mas principalmente reflete a capacidade analítica de um estudioso em compreender
as diversas leituras e a realidade por meio de embasamento teórico consistente. Tragtenberg
pode ser considerado heterodoxo, caso o critério seja a quantidade e qualidade das suas
leituras, entretanto, se forem levadas em consideração as análises sob o ponto de vista da
coerência epistemológica ou das temáticas desenvolvidas por ele (o tema da burocracia é o
objeto central de estudo), deve-se ser prudente nessa afirmação. Frequentando a referida
biblioteca, conheceu os grandes pensadores de Aristóteles a Splenger, tendo sido leitor atento
de todos os clássicos da Filosofia, da História e da Sociologia, mas também da Literatura,
como as obras de Dostoievski. Essa aproximação com diversos autores, contudo, não
dificultou Tragtenberg na sua opção quanto à linha de pensamento que guiaria seus escritos.
Mesmo quando faz “conversar” Marx e Webervi, o faz com extrema competência,
definindo, por meio da dialética e de uma sociologia compreensiva, Marx como um crítico da
infraestrutura e Weber (1979a, 1979b, 2003b), da superestruturavii. Apesar dessa suposta
separação, não deixa de avaliar e criticar o entendimento de Weber em relação à sua
compreensão da economia e às suas posições políticas. Suas críticas e observações são
fundamentadas no capítulo “Max Weber”, do seu livro “Burocracia e Ideologia”
(TRAGTENBERG, 1974, p. 108-185).
Igualmente, é importante observar que, mesmo qualificando Weber na crítica da
superestrutura, em referência ao processo de racionalização consolidada na formação de uma
burocracia de dominação, Tragtenberg não abandona, no plano da superestrutura, as
contribuições de Marx principalmente, quanto à ideologia. Seu estudo que comprova tal feito
é “Administração, poder e ideologia” (TRAGTENBERG, 1989), obra em que afirma que a
Teoria Geral da Administração não passa de ideologia presente, como forma de controle nas
grandes organizações e de sedimentação da exploração e da dominação decorrentes da
organização e das relações de produção no plano da divisão do trabalho. Weber e Marx são,
evidentemente, os autores que mais influenciaram Tragtenberg, embora muitas tenham sido
suas leiturasviii. Ele leu desde os autores europeus (Althusser, Foucault e outros) até os
anarquistas, os socialistas libertários, Freud e muitos outros, dos quais muitos eram moda em
seu tempo e outros, quase desconhecidos pela maioria dos leitores. Além de Weber e Marx,
outras importantes influências foram: Kropotkin, Bakunin, Trotski e os literatos Tolstoi e
Dostoievski.
De Kropotkin (2001, 2005, 2007), Tragtenberg (1987) absorveu as contribuições
relacionadas ao “comunismo libertário”, cuja concepção central é a de que o critério para o
consumo seja a necessidade e não o trabalho, sem que isso implique deslocar o trabalho do
foco central, pois, sem ele não há consumo. Para isso, fazia-se necessário um sistema de
distribuição livre da produção, o que provoca o raciocínio de que não se poderia medir a
contribuição – na administração atual, a produtividade – do indivíduo na produção social.
Kropotkin, dentro do entendimento socialista, defende a coletivização dos meios de produção,
fato que leva, consequentemente, a uma transformação social orientada para a inevitável
distribuição livre e extinção de qualquer forma de salário.
O pensamento e escritos de Tragtenberg recebem também a influência de Bakunin
(1999, 2001, 2003a, 2003b), que conheceu Marx e Proudhon. Suas principais ideias
consistiam na defesa de que as energias revolucionárias devem se centrar na destruição das
“coisas”, inclusive do Estado, e não dos indivíduos. Bakunin foi um crítico de Comte, pois,
em suas obras, este defende a centralização da autoridade e do Estado, enquanto o primeiro
(Bakunin) impediria a evolução dos Estados e dos indivíduos. Chegou a defender inclusive a
ideia do fim do Estado, não deixando, no entanto, de fazer críticas ao Estado Comunista. Ao
passar à compreensão antiautoritária com suas ideias, influenciou várias organizações de
proletariados de países como Rússia, Itália, Espanha e também do Brasil, procurando unir os
5
7
Era dotado de memória privilegiada, sabia onde estava determinada citação, sempre
mencionando o nome do livro, o autor e, em muitos casos, a página. Sua autonomia estava
ligada diretamente à leitura, reconhecendo seu papel diferenciado como orientador da
aprendizagem, convicção que pode ser confirmada com a biblioteca adquirida durante sua
vida. Preservava livros de diversas línguas, muitos dos quais viviam empilhados por falta de
espaçoxv. A experiência com os livros sempre foi mais prazerosa do que a experiência com
seus professores ou nas organizações burocráticas em que trabalhou. Assim, para
Tragtenberg, submeter-se a uma situação hierárquica em Educação era difícil.
Em suas obras, depreende-se que é possível educação para além das fronteiras da
escola tradicional, acontecendo oportunidades de aprendizagem, momentos de articulação da
teoria e das ações necessárias para mudança real do cotidiano até mesmo em reuniões
informais com a participação de pessoas da família, em momentos de descontração e lazer,
por meio de debates, críticas e questionamentos. Assim, transformava articulação política em
aprendizagem, ou seja, estabelecia a relação entre teoria e práticaxvi.
A vocação de educador é fortemente inerente em Tragtenberg, para quem não eram
necessárias salas de aula para ensinar e aprender, pois, se valia de reuniões em locais pouco
convencionais para apresentar suas convicções e articulações políticasxvii. Todavia, exerceu a
docência no ensino secundário e universitário, sempre ensinando de acordo com suas
convicções políticasxviii, sem, no entanto, ter o objetivo de criar discípulosxix.
Preferia compartilhar conhecimentos a tornar-se um mito e, de forma coerente, não se
veiculava a grupos políticos, não seguia modismos acadêmicos e nem cedia à sedutora
“indústria intelectual” para obter prestígio ou vantagens profissionais tão comuns nos dias
atuais. No meio acadêmico, Tragtenberg ficou conhecido como autodidata (o que era apenas
parcialmente verdadeiro, embora ele próprio costumasse alardear, provocativamente, o seu
"primário incompleto"), por agir como pessoa com capacidade de aprender algo sem ter um
professor ou mestre lhe ensinando ou instruindo mediante aulas. O autodidata, por meio do
próprio esforço, busca e pesquisa o material necessário para sua aprendizagem, aprende por
si, sem auxílio de professores. Suas aulas eram frequentadas não só por alunos regulares, mas
também por numerosos ouvintes não matriculados. Por seu espírito rebelde e senso de humor
sempre sarcástico, mas sobretudo por sua profunda generosidade intelectual, Maurício
Tragtenberg foi muito admirado pelos alunos.
Ele é um crítico diferenciado e de vanguarda em relação às novas formas de produção
do trabalho, tendo sido pioneiro na crítica ao toyotismoxx. Sua crítica era compartilhada com
os trabalhadores, a serviço de quem sempre esteve xxi, antes mesmo de compartilhar com os
intelectuais. Crítico e cético, porém combativo e engajado politicamentexxii, sua pretensão
sempre foi a de contribuir para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de
qualquer forma de dominação e exploração, embora nunca tenha se iludido em relação à
condição humana.
Tragtenberg é um crítico democrático, não restringindo suas exposições, aulas ou
debates ao meio acadêmicoxxiii. Suas observações superam o provincianismo e a possibilidade
de enclausuramento do pensamento crítico às instâncias da academia ou de uma elite letrada.
Sua crítica vai além da moralxxiv, caracterizada como refúgio da hipocrisia, sobretudo,
quando o debate tinha como centralidade o mero comportamento em detrimento das
motivações que levam os indivíduos a se comportarem de determinada forma. Sua
preocupação, destarte, é em relação à práxis revolucionária. Essa postura, como crítico, faz de
Tragtenberg um revolucionário coerente entre o pensamento e a ação, ou seja, entre o que é
dito e o que é feitoxxv. Profundo conhecedor da história e convicto da superação do sistema
capitalista, postulava-se um socialista libertário e heterodoxoxxvi, deixando clara a influência
de Bakunin e Kropotkin no seu pensamento.
8
10
Referências
11
12
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TROTSKI, Leon. Escritos sobre la cuestion feminina. Espanha: Anagrama, 1977.
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13
marxista weberiano; assim como Marcuse, Maurício também procurou juntar Marx e Weber.”
(LOUREIRO, 2001, p. 95).
vii
“O pensamento crítico de Maurício Tragtenberg é constituído através de Marx e Weber,
numa combinação da dialética com a sociologia compreensiva. Combinação – sempre
problemática – que Maurício vai assumir com a idéia de ser Marx o portador da penetrante
crítica da infra-estrutura do capitalismo e, Weber, o da superestrutura.” (FERREIRA, 2001, p.
197)
viii
“Maurício passou pelos modismos acadêmicos europeizantes: Lukács, Sartre e A questão
de método, Althusser, Foucault, etc. Não ficou com nenhum deles. E, mesmo dominando
cabalmente o marxismo, jamais fez dele um modelo redutor para as suas análises e críticas da
administração e da burocracia. Fez, sim, do anarquismo, marxismo, Weber, os teóricos da
administração, Marcuse, dos socialistas libertários, escadas de subir. Uma vez apoderado
dessas correntes de pensamento, lidava com elas com a maior liberdade possível.”
(VALVERDE, 2001a, p. 61-62)
ix
“Fortemente influenciado por Marx, Weber, pelos anarquistas e também por Trotski. Disso
resultou um autor criativo e agudamente crítico da sociabilidade contemporânea, agudamente
anticapitalista e contrário às formas de opressão antioperária. Ele atava vivamente sua
reflexão teórica ao solo societal brasileiro marcado por iniquidades que até hoje se
prolongam.” (ANTUNES, 2001, p. 101)
x
“Em primeiro lugar, descobri que guardei uma imagem do Maurício que a documentação de
sua produção intelectual não confirma. Por exemplo, eu tinha para mim que não encontraria
escritos sobre escola a não ser o clássico ‘A escola como organização complexa’. Engano.
Que eu encontraria muito poucas teses e dissertações orientadas por ele que tratassem de
escola ou de educação no sentido mais estrito do termo. Novo engano. São muitas as teses
sobre experiências educacionais, política educacional e educação em instituições não-
escolares. Estas últimas, sim, eu esperava encontrar, mas não as outras.” (UHLE, 2001, p.
149)
xi
“Observei que a maioria dos artigos escritos no final da década de 1970 e início da década
de 1980 tem uma característica comum: são textos de militâncias, ou textos de combate,
melhor dizendo. Neles, o autor analisa políticas de governo, de universidades e programas
oficiais. Os textos que estou chamando aqui de textos de combate são pequenos artigos
escritos com o objetivo de participar de um debate público ou mesmo de estabelecer um
debate, provocando os responsáveis pela educação, sejam eles do poder público ou de
empresas privadas. Trata-se sempre de manifestação do intelectual sobre os problemas mais
relevantes no seu campo de trabalho.” (UHLE, 2001, p. 152)
xii
“No caso de Tragtenberg, a situação é diferente, mas permite um certo paralelo. Ele foi
expulso da escola, na infância, só voltando a ela depois de adulto, passando por exames de
reingresso e toda sorte de concursos, seja como estudante, seja, depois, como professor. Esse
aspecto pode ter contribuído para que sua concepção de escola não fosse naturalizada como o
é a da maioria dos autores que escrevem sobre o tema.” (UHLE, 2001, p. 160)
xiii
“A cada pai que inscrevia [na escola] filho homem, Ferrer pedia que inscrevesse também
as do sexo feminino, tornando pública a intenção de co-educação na Escola Moderna,
evitando assim os temores de crítica do ambiente à co-educação, à coexistência dos dois sexos
numa sala de aula... Ferrer pregava um tipo de mulher não limitada à casa. Para que tal fosse
possível, os conhecimentos, em nível de qualidade e quantidade, deveriam ser idênticos aos
recebidos pelos homens. Tanto mais que a mulher poderia acompanhar a evolução e o
desenvolvimento da ciência, beneficiando-se da aplicação do método científico.”
(TRAGTENBERG, 1982, p.107)”
15
xiv
“Em poucas palavras, Maurício ensinava a ensinar, ensinava a ler, ensinava a pensar e
ensinava a selecionar obras importantes e obras desimportantes e desnecessárias. Dava pouca
ênfase à transmissão de informações e de conteúdos; dava muita ênfase à interpretação crítica
e, sobretudo, à indicação das obras primordiais, imprescindíveis, conforme o interesse de cada
um, independentemente do campo de estudo. Não existia área de conhecimento em que ele
não trouxesse contribuição segura, válida, atual, referente a qualquer época. Tal abrangência
relativa a obras, a artigos, a edições raras ou não, em diferentes línguas, vem confirmada nos
escritos, especialmente nos livros.” (LÖWY, 2001, p. 50)
xv
Relato conforme depoimento espontâneo do professor Doutor José Henrique de Faria, de
quem foi informalmente orientador.
xvi
“Maurício, sua companheira e seus filhos estiveram presentes em muitas dessas reuniões;
discutia-se muito, não apenas teoria, mas também os rumos práticos do movimento e, num
clima bastante informal, aprendia-se tanto na convivência despretensiosa quanto nas ocasiões
mais formais, nas reuniões, palestras e nos debates que organizávamos. Eu mesmo aprendi
muito de Maurício tomando caipirinha à espera da feijoada, de calção e admirando um belo
panorama: um chiste, uma confidência, uma pergunta e uma resposta sobre um tema
específico ou candente podem nos iluminar mais a razão que um longo e elaborado
argumento.” (MOREL, 2001, p. 279)
xvii
“Francisco Cuberos conta que, por volta de 1948, muitos desses jovens operários,
incluindo Maurício, associaram-se ao E. C. Corinthians Paulista, então um clube popular,
instalado às margens do Tietê, que fazia às vezes de piscina, e em cujas várzeas estavam
localizados os campos de futebol, para poderem reunir-se e discutir à vontade, dado o clima
repressivo reinante nos sindicatos. As reuniões do grupo se davam no campo de futebol; todos
se sentavam e colocavam uma bola no meio do círculo e começavam a discutir; quando
chegava alguém estranho, ou um ‘olheiro’, eles mudavam de assunto e começavam a falar de
futebol, retomando as deliberações quando o ‘perigo’ passava.” (MOREL, 2001, p. 271 e 272)
xviii
“A docência no ensino secundário e no ensino superior, por décadas, significou para
Maurício Tragtenberg um lugar de trabalho e de estudo, mas não significou seu único lugar,
talvez não tendo sido nem sequer o principal lugar da ação intelectual. Falou em muitos
recintos deste país, tendo apenas como recompensa a convicção ética e política de mudá-lo,
tirando-o do domínio das oligarquias, das tecnoburocracias e dos salvacionistas.” (LÖWY,
2001, p. 51)
xix
“Maurício Tragtenberg não cultivou discípulos, mas dividiu seus conhecimentos com
outras pessoas; não se ligou a grupos de nenhum tipo, mas manteve sua opção política de
vanguarda; não se sujeitou aos esquemas e aos modismos acadêmicos, mas procurou expor
suas análises com originalidade; não se preocupou em conceder entrevistas capazes de
arrumar sua vida e sua trajetória política e intelectual, o que não é comum nos dias que
correm.” (LÖWY, 2001, p. 51)
xx
“Também nesses artigos de imprensa foi pioneiro, entre nós, na crítica ao toyotismo, antes
que esse ideário e essa pragmática se tornassem lugar-comum na empresa moderna e viessem
a substituir e/ou mesclar-se ao taylorismo, ao fordismo e à Escola de Relações Humanas de
Elton Mayo.” (ANTUNES, 2001, p. 101-102)
xxi
“É o acadêmico diferenciado, fora do percurso de rotina, sem pergaminhos de escola.
Consta de seu currículo o notório saber. É o judeu sem templo. O militante sem partido, o
intelectual sem cátedra.” (RESENDE, 2001, p. 137)
xxii
“Tragtenberg, contudo, nunca foi sectário. Assim, embora crítico e cético, sempre que
pôde contribuiu com as oposições sindicais e os partidos políticos, em especial o PT [Partido
dos Trabalhadores]. Mas seu horizonte estava muito além da mera conquista do sindicato ou
da eleição do maior número possível de candidatos. Tragtenberg representa a utopia libertária
16
de uma sociedade sem exploração e explorados, sem dirigentes e dirigidos, portanto, sem
partidos, Estado ou governos.” (SILVA, 2001, p. 132)
xxiii
“Maurício deu a oportunidade a todos que foram seus leitores, alunos, ouvintes de suas
palestras e amigos de superar o provincianismo, assim como a pretensão, as consequências
diretas, que dominam o chamado ‘pensamento crítico’ na academia e fora dela.” (BRUNO,
2001, p. 115)
xxiv
Tragtenberg, no entanto, nunca aceitou o relativismo e a tolerância, tão em voga hoje. O
primeiro era por ele entendido como uma forma de descompromisso com os problemas de
nossa época. O relativismo nega as cisões profundas em que se estrutura a sociedade em que
vivemos e se sustenta na crença do compromisso entre as classes e na possibilidade de
consenso, que na realidade nada mais é que uma forma de exercício do poder, em que o
diferente, o dissonante, é subordinado aos interesses do dominante, apresentado como
maioria. A tolerância, por sua vez, inscreve-se na ordem da moral, do dever-ser. Tragtenberg
nunca foi um homem da moral, refúgio último da hipocrisia. Sob a capa tolerância reafirma-se
todo tipo de discriminação colocando-a aparentemente em suspenso. É o recurso utilizado por
aqueles que são incapazes de compreender e aceitar que todas as pessoas são diferentes e que
a consciência da diferença é a aceitação da liberdade. Ou ainda, a igualdade é a liberdade de
ser diferente.” (BRUNO, 2001, p. 117-118)
xxv
“A obra de Maurício Tragtenberg constitui-se como orientação no pensamento e na ação.
Cidadão do mundo e cidadão do espírito. Foi puro de coração e íntegro de caráter.” (MATOS,
1999)
xxvi
“Bakunin lembrava que a história da humanidade somente será desvendada quando a
humanidade acabar; não há finalidade na história, apenas a certeza, como Maurício sublinhou
acompanhando Marx, de que ‘o modo de produção capitalista’ não é eterno.” (PASSETTI,
2001, p. 111)
xxvii
“Penso que na obra de Maurício não se encontra uma teoria mítica dos trabalhadores.
Parafraseando J.-J. Rousseau, pode-se dizer que ele não pretendeu uma rediviva ‘teoria do
bom operário’.” (FERREIRA, 2001, p. 201)
xxviii
“Ainda nesse ponto, citamos um último exemplo. Em 1987, um jovem escritor, de origem
operária e autodidata, procura o mestre para pedir-lhe ajuda para a divulgação de seu livro.
Esse jovem esperava encontrar um intelectual dentro do figurino: uma estrela, alguém que
aparenta situar-se acima dos comuns dos mortais. Surpreso, constatou que a vaidade não é
uma ‘qualidade’ inerente ao intelectual. Com seu exemplo, Tragtenberg mostrou-lhe que os
mestres, doutores e outros titulados no meio universitário podem ser pessoas simples,
humildes e honestas e solidárias. Referimo-nos à humildade sincera e desinteressada, e não
àquela que é própria dos demagogos.” (SILVA, 2001, p. 125)
xxix
RESENDE (2001, p. 138), citando Tragtenberg em artigo publicado no jornal Notícias
Populares: “Para Freud, a maior perda do ser humano é a morte do pai. É o que sinto com a
morte de Sacchetta [ao qual muito deve de sua] cultura política, no sentimento de
solidariedade com os que nada têm; a noção de luta como integrante do cotidiano contra a
exploração e opressão; o ódio ao carreirismo político e o desprezo aos canalhas, que usurpam
a fala do trabalhador, para legitimar suas prebendas burocráticas; o desprezo pelos heróis sem
caráter, os macunaímas, que servem a todos os governos, ontem à ditadura, hoje à
democracia.”
xxx
“O que mais caracterizava Maurício como pessoa, como orador e como militante era o
humor, a auto-ironia, a falta de agressividade – e, ao mesmo tempo, a intensidade do
compromisso com a causa dos explorados.” (LÖWY, 2001, p. 32)
17
Bacon Versus Tragtenberg: “(Sem) Saber e (Com) Poder” nos Estudos Organizacionais
Autoria: José Henrique de Faria, Francis Kanashiro Meneghetti
Resumo
Francis Bacon afirma que saber é poder. Tragtenberg contesta. Essa discussão, na
contemporaneidade, se faz mais importante do que se possa imaginar. Por isso, o objetivo
central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder, na atualidade, levando em
consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela relacionados. Quanto aos
objetivos específicos deste estudo, destacam-se: (i) Compreender o sentido de filosofia e
ciência e sua relação com a ideologia; (ii) Verificar como o discurso da neutralidade
axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e como se dá a presença da “fé”
na filosofia e na ciência, na contemporaneidade; (iii) Refletir sobre a consolidação da ciência
como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema econômico; (iv) Destacar a
importância do complexo industrial militar como financiador de grande parte dos atuais
estudos científicos; (v) Entender o processo de racionalização, avaliando a importância do
pragmatismo e da burocracia universitária como afirmação da ciência na atualidade. O texto
conclui que tanto é possível a existência de saber como poder (de acordo com a idéia de
Bacon) como a de não saber, mas com poder (conforme as contribuições de Tragtenberg) para
a compreensão da relação entre saber e poder.
Introdução
Marx afirma que a maneira como as coisas se apresentam não é a maneira como elas
realmente são, uma vez que, se as coisas fossem como se apresentam, a ciência não existiria.
Popper entende que, por ser necessariamente humana, a ciência é falível. Em ambas as
informações, a necessidade de ir além do imediato e do aparente e além de compreender as
relações sociais na produção da ciência é o ponto central para a compreensão da forma do
saber instituído. Se, por um lado, de forma geral, as epistemologias de Marx e de Popper são
divergentes, por outro, é inegável que ambos concebem a ciência como caminho para o
domínio crescente do homem sobre a natureza. Assim, a relação entre ciência e poder é uma
discussão constante, não só porque esteja intimamente relacionada à ideologia, mas também
por estar associada à força produtiva, às condições materiais de existência, às relações de
produção e assim por diante.
Portanto, o objetivo central deste artigo é verificar as relações entre saber e poder na
atualidade, levando em consideração o papel da ciência e dos elementos imediatos a ela
relacionados. Quanto aos objetivos específicos deste estudo, eles são: (i) Compreender o
sentido de filosofia e ciência e sua relação com a ideologia; (ii) Verificar como o discurso da
neutralidade axiológica da ciência se apresenta como mito da modernidade e como se dá a
presença da “fé” na filosofia e na ciência, na contemporaneidade; (iii) Refletir sobre a
consolidação da ciência como força produtiva e/ou como mercadoria no atual sistema
econômico; (iv) Destacar a importância do complexo industrial militar como financiador de
grande parte dos atuais estudos científicos; (v) Entender o processo de racionalização,
avaliando a importância do pragmatismo e da burocracia universitária como afirmação da
ciência na atualidade.
O que há de comum entre Marx e Popper? Quais são as semelhanças entre Rousseau e
Hobbes? Entre os dois primeiros, transparece a crença de que a ciência é a forma mais
“confiável” para a compreensão da realidade, ao mesmo tempo em que ambos demonstram
“desconfiança” em relação à própria ciência simplesmente porque é ela feita pelos homens. A
1
convergência entre Rousseau e Hobbes reside na importância da sociedade na constituição do
indivíduo, mesmo que por vias diferentes. Enquanto o primeiro acredita que o homem nasce
bom, mas a sociedade o corrompe, o segundo acredita que o homem é o “lobo do homem” e
que a sociedade acaba por regular as relações entre eles possibilitando sua convivência social.
É fato que, apesar de divergências entre filósofos e também entre cientistas, desde o
século XVI, a Razão Iluminista manifesta-se como conseqüência de uma nova organização
sócio-econômica. As relações entre os indivíduos e entre estes e a sociedade passam a se
modificar em decorrência de novas formas de relações de produção.
Desde essa época, uma nova racionalidade passa a ser dominante, transformando
cientificamente a relação do homem com o meio em que vive. Com a força dessa
racionalidade científica, os indivíduos intensificam a separação entre o homem e a natureza
tornando-as mais evidentes. A ciência vai se transformando na medida em que vai produzindo
transformações na realidade. Torna-se, dessa forma, força produtiva no capitalismo, por se
apresentar justamente como o principal instrumento da separação entre o pensar e o agir, ou
seja, entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Mesmo a filosofia, na atualidade, é influenciada pela ciência moderna. Assim, “a
filosofia oficial serve à ciência que funciona dessa maneira. Ela deve, como uma espécie de
taylorismo do espírito, ajudar a aperfeiçoar seus métodos de produção, a racionalizar a
estocagem dos conhecimentos, a impedir o desperdício de energia intelectual. Ela encontra
seu lugar na divisão do trabalho, assim como a química e bacteriologia.” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 226)
O cânone da quantidade (promovido pela necessidade de generalizações para que algo
possa ser concebido como cientifico) e, posteriormente, o pragmatismo ( em que tudo deve
ter uma utilidade) fizeram da filosofia uma “erudição”, um conhecimento para indivíduos
excêntricos que procuram na teoria explicações oriundas de divagações quase sempre
entendidas como caprichos de poucos. Por isso, “existe hoje um acordo quase geral em torno
da idéia de que a sociedade nada perdeu com o declínio do pensamento filosófico, pois um
instrumento muito mais poderoso de conhecimento tomou seu lugar, a saber, o moderno
pensamento científico.” (HORKHEIMER, 2000, p. 65)
Não que a filosofia seja capaz dessa neutralidade ou que incorpore a “razão autêntica e
verdadeira”, pois, assim como o próprio Marx definiu, a filosofia também se manifesta como
ideologia. O declínio da filosofia, no entanto, é a derrota da possibilidade da consolidação do
“Pensamento Unidimensional”, entendido aqui como a capacidade de questionamento e de
elaboração do pensamento de protesto.
A filosofia, em outro sentido, procura mais a compreensão da totalidade (sobretudo
por meio dos grandes filósofos) do que a ciência moderna. “Sem dúvida nenhuma, o
progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de intelectualização a
que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao quais algumas pessoas adotam,
atualmente, posição estranhamente negativa.” (WEBER, 2003, p. 37)
Grande parte dos intelectuais considera o aparecimento e a consolidação da ciência
moderna os elementos centrais do progresso. É como se o passado não abrigasse
transformações ou mudanças significativas decorrentes de formas organizadas de superação e
de modificações da realidade concreta da sociedade. Criou-se um imaginário de que a ciência
moderna é a única possibilidade de “salvação dos homens” de uma vida mundana, ou de uma
vida condenada a insignificâncias intercambiáveis na sociedade. Todavia, “a ciência também
é uma supra-estrutura, uma ideologia” (GRAMSCI, 1975, p. 1457), ou seja, é um conjunto de
imaginários, de racionalidades e subjetividades com correspondência na realidade concreta.
A ciência vem associada ao progresso. Este é compreendido como a superação de
estados mais primitivos para os mais avançados, tanto nos aspectos quantitativos como nos
qualitativos. O progresso é correspondente à noção de “melhoria”, de mudança para um
2
estágio “superior”. A sensação criada é a de que antes da ciência não havia progresso. Apenas
com os avanços oriundos de um domínio maior sobre a natureza é que a sociedade passou a se
modificar. Esse imaginário é manifestação clara e direta do empreendimento do
esclarecimento, movimento de tendência ideológica que procura se apresentar como potência
social. Assim, “o progresso é uma ideologia, o vir-a-ser é uma filosofia” (GRAMSCI, 1975,
p. 1335)
A concretização da ideologia como ciência, na concepção do próprio Gramsci (1975,
p. 507), ocorre quando a ideologia assume a “hipótese científica de caráter educativo
energético”. Na sociedade contemporânea, a ciência é associada ao ensino, relação entendida
como indissociável. O fato é que essa associação tem fundamento econômico imediato: o
interesse da indústria da educação em vender o ensino. A ciência, embora independente em
muitas situações da relação direta com o ensino, é “prejudicada” na sua formação de origem e
na sua “neutralidade”. A indústria do ensino apropria-se da ciência porque é também no
processo de geração de novos conhecimentos que se presencia o processo de aprendizado no
mais alto grau de aprendizagem.
A consolidação da indústria do ensino faz das universidades fábricas da mercadoria
conhecimento. Pesquisas efetivam-se como linhas de produção gerando o produto ensino.
Toda estrutura burocrática da universidade assemelha-se à de uma fábrica ou de uma
indústria. Mesmo nas instituições públicas, veladamente, a figura do aluno é transformada em
cliente. O professor passa a ser prestador de serviço. A diferença consiste na figura do
professor como monopolista da prática avaliativa dos alunos. A burocracia do ensino ganha
corpo e transforma a universidade em “multiversidade”. Dessa forma, “uma universidade que
produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e
da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao
primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da
neutralidade do conhecimento e seu produto.” (TRAGTENBERG, 2004, p. 16)
Nesse processo, a sociedade passa a ser o principal “cliente”, sob pena de ser isentada
da relação mercantil. Na realidade, a sociedade torna-se o ideal do “cliente”, pois sob
qualquer suspeita ou ferimento da ética coletiva, a sociedade apresenta-se como “superior” ou
“acima” de qualquer interesse individual. Entretanto, o fato é que essa sociedade nada mais
representa do que o ideal capitalista, em que o cliente individual se potencializa no discurso
do cliente coletivo, a sociedade, isenta de suspeita em qualquer condição. Não se questiona o
quanto de particular há no discurso coletivo do social.
De fato, sutilmente e por meio da ideologia, a ciência se constrói na direção dos
interesses da classe economicamente dominante. Essa construção dá-se lentamente, “tijolo por
tijolo”, sem maiores questionamentos. A ciência da “neutralidade científica” é utópica, porque
toda ciência é sempre uma ciência de classe ou de grupo dominante, mesmo havendo
contradições no seu interior e até mesmo porque “os alunos da rede escolar recebem também
conteúdos científicos. Eis que o processo de escolarização contribui para a reprodução das
condições materiais de produção, uma vez que a produção social é uma transformação
material da natureza, supondo o conhecimento objetivo sob as mais variadas formas.”
(TRAGTENBERG, 2004, p. 54)
Para esconder a influência e a força com que a ideologia está presente na ciência,
vários são os cientistas e filósofos que anunciaram a neutralidade científica, muitos deles,
inclusive, apresentando estudos e reflexões logicamente fundamentados. Entretanto, é
importante ressaltar que mesmo a lógica tradicional se rende à apresentação formal. Nem
sempre as contradições estão no nível da percepção ou do aparente, pois, se assim o fosse, não
haveria contradição na ciência.
3
Mito da Neutralidade da Ciência e a Fé Filosófica e Científica
14
REFERÊNCIAS
i
O Tipo Ideal weberiano é um instrumento de análise sociológica para a compreensão da realidade social. É um
mecanismo de criação de tipologias puras, supostamente destituídos de “valores avaliativos”. Seu distanciamento
da realidade é tido como fundamental para a sua compreensão.
ii
TRAGTENBERG, Maurício. A nova eugenia. Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 23/12/1984.
iii
“Na realidade, o que os subdesenvolvidos aprendem a respeitar na idéia de ciência são os conceitos abstratos,
as realizações experimentais que não podem ser reproduzidas por eles e que não têm relação com sua cultura.
Ficam em estado de impotência intelectual em relação à Metrópole, que capta os melhores estudantes para o
doutorado, na sua maioria oriundos da América Latina”. (TRAGTENBERG, 2004, p. 33)
15
O Discurso e a Prática da Ética nas Relações de Trabalho:
os Paradoxos da Práxis de uma Organização Bancária
Resumo
O ressurgimento da questão da ética no campo administrativo trouxe novos desafios
para a gestão das organizações, principalmente àquelas inseridas em um sistema capitalista
onde predomina a lógica produtiva e a racionalidade instrumental. A necessidade de adaptação
decorrente das novas exigências profissionais e sociais, em virtude das novas reflexões éticas,
fez com que as organizações buscassem legitimar suas ações com base em um código de
conduta, entendido aqui como o discurso formal1 da organização, capaz de regulamentar o
comportamento dos indivíduos, “sugerindo” condutas “eticamente corretas”. Porém, o que se
verifica empiricamente é que nem sempre tal discurso corresponde à prática administrativa.
No campo organizacional, isso é percebido quando o compromisso com as regras instituídas
permanece somente até o ponto onde elas não comprometam as práticas ou os interesses
particulares de alguns, tornando-se comum, em muitos casos, as organizações adaptarem as
regras às práticas. Portanto, quando não há coerência entre o discurso e a prática
administrativa, tornam-se evidentes alguns paradoxos nos quais se observam que as ações dos
indivíduos não correspondem aos princípios éticos que deveriam embasá-las e/ou justificá-las,
convergindo para relações de trabalho fundamentadas em uma ética convencionada.
1. INTRODUÇÃO
O tema da ética ressurgiu no campo administrativo com uma relevância inquestionável,
principalmente para as organizações em que a lógica de ação está subordinada ao sistema
econômico. Para essas organizações tornou-se um grande desafio integrar a questão da ética
em suas práticas administrativas, visto que as relações de trabalho precisam “obedecer” a
lógica do mercado, na qual a racionalidade instrumental impera como a única racionalidade
possível para a sobrevivência das empresas.
Para Enriquez (1997), é justamente o triunfo da racionalidade instrumental (através do
seu cálculo utilitário das conseqüências), o responsável pelo profundo mal-estar em que se
encontra a nossa sociedade e, portanto, pelo reaparecimento das reflexões a respeito da
ética.De fato, como lembram Séguin e Chanlat (1987), muitas vezes os indivíduos são
considerados apenas como “recursos” com os quais as organizações precisam contar. Segundo
Enriquez (1997), em muitos casos, quando os indivíduos são designados como responsáveis
pela realização de alguma tarefa, a única intenção das organizações é obrigá-los a prestarem
conta do seu desempenho aos seus superiores e aceitar o julgamento dos mesmos. Nesse
sentido, o indivíduo torna-se um “objeto manipulável”, ou seja, alvo de uma sanção externa e
sem possibilidade de avaliar a sua própria ação.
No entanto, a busca incessante das organizações é fazer com que os indivíduos creiam
que ela considera suas opiniões, seus sentimentos, e que pode realizá-los plenamente. Sem
dúvida, o ideólogo organizacional (FARIA, 2001a, p.13), “deseja construir princípios da
ética, da moral, do direito, da democracia e do comportamento, que devem ser respeitados na
organização, não baseados na realidade das condições sociais que lhe dão suporte, mas
partindo de um conceito já previamente formulado no interior de sua corporação”.
Quando os princípios são conceituados sem conexão com a realidade, e segundo uma
lógica previamente definida, os mesmos cabem onde se deseja pô-los antes mesmo de os
construir; ou, em outras palavras, quando a realidade é deduzida não de si mesma, mas de uma
idéia, a mesma não passa de uma ideologia (FARIA, 2001a). Conforme Chauí (2001), a
ideologia representa um mascaramento da realidade social que lhe permite a legitimação da
1
exploração e da dominação, onde, por intermédio dela, tomamos o falso pelo verdadeiro, o
injusto pelo justo.
Pode-se constatar que, agindo dessa forma, as organizações têm como objetivo
desenvolver um forte consenso em torno de seus próprios ideais. Sendo assim, as normas e
princípios a serem “respeitados” pelos indivíduos da organização podem representar aquilo
que for mais conveniente aos seus elaboradores e não aquilo que deve realmente ser
observado na prática organizacional. A fim de atingir objetivos e interesses particulares, o
código de conduta da organização pode ser utilizado como um instrumento sutil de controle,
avaliação e punição. Conforme afirma FARIA (2001a, p.3):
A concepção de ética, moral e democracia nas organizações é sustentada por um discurso coerente com os
princípios éticos e morais e com o exercício da democracia e da justiça, como a recusa às atitudes
preconceituosas, desonestas, injustas e infiéis; e, por uma prática que, negando o discurso, estabelece
atitudes diferentes, a referendar, conteúdos e comportamentos que o próprio discurso entende não éticos,
de moral coercitiva e autoritária, os quais são observados e aceitos neste ambiente enquanto portadores de
uma lógica competitiva, de sobrevivência e de esperteza.
Este estudo pretende investigar os possíveis paradoxos existentes entre o discurso e a
prática administrativa de uma organização bancária. Entende-se que, em uma organização
onde a lógica de ação está subordinada ao sistema capitalista, as relações de trabalho devem
ser sustentadas por um discurso que seja capaz, ao mesmo tempo, de justificar a prática de
algumas ações e encobrir algumas de suas conseqüências.
2
Portanto, a relação entre ética e moral se põe de forma a tentar compreender as razões
pelas quais uma pessoa ou um grupo venha a agir ou não de determinada maneira, dada às
alternativas possíveis (FARIA, 2001a). Como em um mecanismo de influências recíprocas, a
moral constitui-se, então, na matéria de reflexão da ética (VAZQUEZ, 2002).
3
presentes na ética da convicção através de leis morais que não toleram desvios ou ideais de
vida coletiva a serem realizados. Esta ética, absoluta, presume o caráter universal de suas
obrigações e se apresenta de forma incondicional e unívoca, dito de outro modo, uma
convicção não se negocia.
A ética da convicção está relacionada à abordagem deontológica (deón em grego ou
dever) e corresponde ao estudo dos princípios e fundamentos da moral ou tratado dos deveres,
em que o padrão para a decisão moral pode ser obrigatório ou correto pelo bem que promove
ou, igualmente, por sua natureza (ENRIQUEZ, 1997; MOREIRA, 2000; SROUR, 1998;
WEBER, 1999).
4
de trabalho são embasadas por uma ética convencionada entre aqueles que detém o capital e
os meios de produção, representados pela figura dos gestores.
5
2.4. A Relação entre a Ideologia e os Discursos Organizacionais
Segundo Faria e Meneghetti (2001, p.90), “o discurso está presente em todas as esferas
sociais, tendo um papel extremamente importante no ambiente organizacional. Todo discurso
esconde uma rede simbólica de relações de dominação ideológica e de poder. Cada palavra
expressa no ambiente organizacional está, de alguma forma, sendo monitorada e classificada”.
Castoriadis (1995) acredita que existe uma delimitação imaginária na qual o indivíduo
pode aventurar-se com o uso de palavras, diálogos e argumentações, devendo, contudo, estar
atento para que seu discurso não ponha em risco os interesses do grupo dominante e a
ideologia vigente na organização. Entende-se pertinente descrever sobre algumas das
modalidades do discurso organizacional encontradas, e que fazem parte do imaginário
coletivo dos indivíduos que “pertencem” à organização; visto que, como lembra Enriquez
(1996), quanto mais o indivíduo inclui-se em uma formação coletiva, mais ele será contido em
um jogo fechado de obrigações e trocas, mais ele se sentirá unido a um chefe e aos
companheiros e, menos a neurose poderá alcançá-lo. Desta forma, é criada uma identidade
compacta onde não existe questionamentos nem opiniões formadas a respeito do
funcionamento do sistema (ENRIQUEZ, 2001).
Funcionando como uma instância mediadora ideológica, a organização fornece respostas
às suas contradições inerentes, encarnando concretamente os valores de consideração pela
pessoa, do serviço e da eficácia, que legitimam todas as práticas organizacionais e ocultam os
objetos de lucro e de dominação (PAGÈS et al., 1993). A grande questão é que esse
“sentimento de pertença” não garante a permanência do indivíduo na empresa e tampouco o
permite avaliar suas próprias ações. Vale lembrar que o indivíduo sofre uma avaliação
externa, ficando sujeito a um julgamento que o torna responsável por qualquer conduta que
não aquela estipulada pelo discurso vigente.
6
uma organização ou a uma sociedade em geral, aceito por todos e legitimado como padrão de
conduta a ser adotado pela maioria, com a finalidade que os atores sociais evitem o conflito
entre si.
Desse modo, a prática discursiva atinge a todos os setores da empresa, que passam a
estabelecer entre si relações do tipo comercial, “vendendo” sua imagem através da divulgação
de suas habilidades, competências e resultados. Essa valorização impõe uma disciplina que
consiste em defender e sustentar a mensagem difundida, bem como de abster-se a qualquer
crítica, em nome da união e da solidariedade.
Porém, apesar do discurso ser dirigido, preliminarmente, a todos os membros da
organização, independente da posição hierárquica que ocupem, sugerindo condutas
“eticamente corretas” nas relações interpessoais e de trabalho, percebe-se que a prática
administrativa geralmente não é condizente com tal discurso. O discurso torna-se, portanto,
instrumento ideológico ausente de ética e dirigido aos interesses da organização e de seu
grupo dominante.
7
Desse modo, o discurso posto pelas empresas, de que a automação é necessária e
imprescindível, que irá trazer benefícios ao trabalhador, tornando-os mais qualificados,
garantindo seu posto de trabalho frente a um mundo competitivo e globalizado, flexibilizando
as suas tarefas e alinhando-as à produção, é “mascarado” pelo interesse do sistema de capital.
Considerando o exposto e com base na análise de Thiry-Cherques (1997), é possível
identificar alguns pressupostos a respeito das relações de trabalho produtivas. São eles:
! A percepção do eticamente justificável é condicionada pela obsessão com as leis do
mercado;
! Os valores éticos não racionalmente justificáveis (relação meio-fim) são considerados
hierarquicamente inferiores (não prioritários);
! Os atores econômicos professam uma ética de dupla face: certos preceitos (que
constituem a memória ética da formação e garantia da sobrevivência do capitalismo) são
mandatários para uso geral e (pela necessidade de sobrevivência no capitalismo) são
facultativos para uso privado;
! A vida afetiva e a vida social dos atores envolvidos no processo de produção são
sacrificadas em função da vida econômica e da sobrevivência no sistema capitalista.
Thiry-Cherques (1997) salienta que o estilo de vida é condicionado pela força da lógica
capitalista, que por sua vez produziu e validou um código de ética particular, lógico em
relação ao funcionamento da economia, mas descabido em relação à vida social.
Os pressupostos apresentados, aliados às análises teóricas anteriores, permitem a
identificação de alguns paradoxos da práxis organizacional no que tange à ética nas relações
de trabalho.
3. METODOLOGIA DA PESQUISA
Além de sua fundamentação teórico-empírica, um trabalho científico deve sustentar-se
em procedimentos metodológicos adequados, de modo que trate as categorias analíticas, os
conceitos e os fenômenos estudados de forma coerente e consistente.
A especificação da metodologia é a que abrange o maior número de itens, pois responde
detalhadamente como será feita a pesquisa. O problema de pesquisa a ser respondido e o
atendimento dos objetivos propostos também dependem da metodologia a ser utilizada, visto
que a mesma deverá possibilitar um desenvolvimento harmônico entre a teoria e a verificação
empírica dos dados coletados.
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contexto da vida real, em situações onde os limites entre o fenômeno e o seu contexto não
estão claramente estabelecidos.
A meta abrangente do estudo de caso, contudo, mesmo que não seja alcançada, tem
conseqüências importantes e úteis: prepara o investigador para lidar com descobertas
inesperadas e, de fato, exige que ele reoriente seu estudo à luz de tais desenvolvimentos;
força-o a considerar, por mais que de modo rudimentar, as múltiplas inter-relações dos
fenômenos específicos que observa; e, evita que ele faça pressuposições que podem se revelar
incorretas sobre questões que são relevantes, ainda que tangenciais, para seus interesses
principais. Isto acontece porque um estudo de caso quase sempre fornece alguns fatos para
guiar estas pressuposições, enquanto os estudos com procedimentos de coleta de dados mais
limitados são obrigados a pressupor o que o observador, que faz o estudo de caso, pode
verificar.
A abordagem descritivo-qualitativa é considerada propícia para capturar o fenômeno
estudado, visto que busca observar os fenômenos, procurando descrevê-los sem interferir ou
manipular a realidade.
Segundo Bogdan (apud TRIVIÑOS, 1987), esta abordagem apresenta as seguintes
características: caráter descritivo; o ambiente natural como fonte direta dos dados e o
pesquisador como instrumento-chave; a preocupação do pesquisador com o processo e não
simplesmente com os resultados; a análise indutiva dos dados; e, o significado, como sendo a
preocupação essencial.
O propósito deste trabalho é o de investigar as relações entre o discurso e a prática no
que tange à ética nas relações de trabalho, a fim de evidenciar possíveis paradoxos na práxis
organizacional. Para isso, utilizou o código de conduta aliado às entrevistas coletadas com os
gestores da organização.
A fim de garantir credibilidade e base para se fazer generalização científica, fatores
alvos de preconceitos em relação à estratégia de estudo de caso (YIN, 2001), o presente estudo
não utilizou nenhum tipo de amostragem por julgamento, o que garantiu uma visão mais
ampla e imparcial dos fatos, e uma isenção ou neutralidade na condução ou influência do
significado das descobertas e conclusões. Neste caso, pode-se recorrer à noção de
transferibilidade, adotada no âmbito da pesquisa qualitativa como equivalente ao conceito de
validade externa, podendo-se alegar a possibilidade de acomodação dos resultados obtidos no
contexto original a outros contextos, no qual sejam observados padrões e características
semelhantes ao caso original.
9
verificar se o conteúdo da análise documental será condizente com os resultados obtidos pelo
levantamento dos dados primários.
Na análise documental, o pesquisador estuda e analisa um ou vários documentos para
descobrir as circunstâncias sociais com as quais podem estar relacionados (RICHARDSON,
1989). A análise documental consiste em “uma operação ou um conjunto de operações
visando a representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim
de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” (BARDIN, 1979, p.45).
Bardin (1979), destaca ainda que o objetivo da análise documental é a representação
condensada da informação para consulta e armazenagem, enquanto o da análise de conteúdo é
a manipulação de mensagens para evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre outra
realidade que não a da mensagem. Neste sentido, a análise documental trabalha com
documentos e análise de conteúdo com mensagens.
Todos os dados coletados sofrerão uma análise descritivo-qualitativa. Os procedimentos
qualitativos, segundo Richardson (1989), têm como objetivo: descrever a complexidade de
determinado problema; analisar a interação das categorias analisadas; compreender e
classificar processos dinâmicos vividos pelos grupos sociais; possibilitar, em maior nível de
profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos e das
organizações.
Foi utilizada a técnica de triangulação (TRIVIÑOS, 1987), a fim de se obter uma maior
abrangência na descrição, explicação e compreensão do foco em análise. Sendo assim, este
processo procurou ampliar o reforço recíproco das fontes de dados e sua correlação, no intuito
de compreender melhor o fenômeno estudado.
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O que justifica a prática de uma ética em desacordo com os códigos morais pode ser ou a falta de
condição da norma para continuar a oferecer um guia seguro, ou as apreciações de caráter avaliativo, tanto
da ética como da moral. Neste segundo caso, a prática é aquela em que a qualificação da ética passa a ser
assegurada pelo desenvolvimento de padrões de excelência, os quais definem o sucesso esperado,
tornando-se regras aceitas por uma certa coletividade organizacional e interiorizada por seus membros.
Tal prática resulta em atividades com regras socialmente estabelecidas, cujos padrões têm sua própria
história a justificar os critérios do que é uma organização bem sucedida e do que são os seus melhores
colaboradores. Na prática organizacional, estes padrões, nem sempre escritos, mas usualmente sugeridos
nas definições das estratégias, levam os sujeitos a conviver com conjuntos diferentes de códigos: os do
dever-ser e os do ser, o que os leva a valorizar mais o parecer-ser do que o de-fato-ser (FARIA, 2001a,
p.7).
Acredita-se que com o arcabouço teórico construído, que possibilitou a identificação de
alguns pressupostos, aliado a uma pesquisa empírica realizada com os gestores, que tomou por
base a ética, a moral e a democracia no ambiente organizacional, seja possível identificar
alguns paradoxos na práxis administrativa da organização em estudo4.
Como o tema do presente estudo trata da ética nas relações de trabalho, entendeu-se
relevante investigar, num primeiro momento, qual a concepção dos gestores a respeito da
ética, bem como da sua aplicabilidade nas relações de trabalho.
Os gestores entrevistados entendem a ética como sinônimo de verdade, de exemplo, de
princípios, de valores, enfim como base de todo profissional. Como exposto na
fundamentação teórica, nota-se que, muitas vezes, o conceito de ética é confundido com o de
moral, e que o julgamento ético para os valores morais está condicionado com o que a
organização entende como verdade, como exemplo, como princípios e como valores, enfim
como base de todo o profissional, como confirmam as entrevistas:
E1. Hoje eu entendo a ética como sinônimo de verdade. Se eu trabalhar corretamente com o meu cliente,
tanto interno quanto externo, dizendo para ele as conseqüências disso, os benefícios, os prós, os contras, e
trabalhar com a verdade, acredito eu que estou sendo ética. Para mim está muito ligada à verdade, porque
daí você é que vai decidir, e não eu, eu mostro para você a verdade. Para mim, ser ético é ser verdadeiro.
E2. Eu acho que ética são atitudes que a gente deve ter, que não fere, não afeta princípios e nem invade
espaços de outra pessoa. Eu entendo por ética algo que é limpo, é claro, ou seja, bons princípios. Eu acho
que a ética é regida por normatização, você tem regras dentro da empresa que você deve seguir.
E3. Eu penso que ser ético é ser exemplo. Passar os conceitos corretos que a empresa pede para a gente,
ser transparente, não dar privilegio a ninguém, tratar todos os funcionários de forma igual, da forma que a
empresa pede, e ser totalmente transparente com o cliente.
E4. Eu acho que ética é algo que você pratica no dia-a-dia, aliado ao Código de Conduta que a empresa te
apresenta no ato que você se predispõe a ser funcionário dela. Já que nós temos um Código de Conduta,
seja ele de ordem financeira ou individual, você deve colocá-lo em prática.
E5. Eu entendo a ética da seguinte forma: tudo aquilo que você faz, tanto no seu lado pessoal, como no
seu lado profissional, que entra em conformidade com aquilo que você acha que é correto e que não fere
nenhuma das partes.
E6. Para mim ética é tudo, é como se fosse a base de um profissional.
Em contrapartida, quando questionados sobre a aplicabilidade da ética nas relações de
trabalho, os gestores responderam que a ética deve ser difundida através da verdade, do
exemplo, dos princípios e dos valores, tornando-se assim um indicador de respeitabilidade e
um parâmetro pelo qual os direitos e os deveres de cada um devem ser respeitados. A prática
da ética nas relações de trabalho é entendida como uma prática baseada na transparência entre
as ações dos indivíduos, o que os torna responsáveis pelas conseqüências dessas ações,
isentado dessa forma a organização de qualquer responsabilidade. A seguir, alguns trechos das
entrevistas que corroboram esta leitura:
E1. Seguindo a mesma linha da verdade, mostrando para os meus clientes internos e externos quais as
conseqüências e os benefícios de uma determinada ação. A ética nas relações de trabalho é mostrar
aquelas pessoas responsáveis pela decisão tudo o que é isso e quais as conseqüências disso, porque cada
ação vai ter uma conseqüência.
E2. Deixando claro para os funcionários a questão de direitos e deveres de cada um. Eu acho que quando
a organização pressiona muito por resultados, ela acaba, muitas vezes provocando, esquecendo um
pouquinho o espaço do outro, enfim, o mercado é uma selva, seja aqui ou aí fora, enfim, todo mundo tem
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que sobreviver.
E3. Dando exemplos, sendo positivo nas ações, fazendo o possível para não se cometer injustiça
nenhuma. Acho que o principal ponto é dar exemplo, não adianta eu falar e não fazer.
E4. Acho que a primeira coisa a respeitar é aquele que está do seu lado, entendendo que você já esteve na
função que hoje ele está, você sabe o que é necessário para aquela função e deve ouvir antes de tomar uma
definição. Mesmo que você já a tenha definida ou traçada, antes de você colocar a aplicabilidade dela,
você deve ouvir, e aí você consegue fazer com que a equipe venha para o teu lado. Isso para mim é uma
questão necessária e que está diretamente ligada à ética nas relações de trabalho.
E5. Eu acho que ética a gente aplica todos os dias, a todos os minutos e a todos os instantes. Por que?
Quando você atende um cliente, por exemplo, e ele vem te expor um problema, ele tem uma necessidade.
A ética manda que, primeiro eu lhe escute, entenda o que ele precisa e coloque a disposição dele um
produto, não que me interesse [ao banco], mas que realmente seja a necessidade dele, aí entra a tal da ética
profissional. Eu entendo assim, você não consegue construir nada se não houver confiança, aí entra
também a confiança e a credibilidade que você passa para os seus colegas de trabalho, aí entra também o
comprometimento.
E6. Eu acho que enquanto líder de agência, enquanto gerente de agência, é uma coisa incrível: os seus
funcionários olham a sua atitude. A ação, o exemplo, a condução de um titular faz quase que totalmente o
time te seguir ou não. Se você enquanto titular preza por isso, se você faz reuniões, se você orienta seus
funcionários, se você busca informações, juntada a sua própria atitude, isso faz com que o teu funcionário
seja ético e siga nessa linha de transparência. E, isso é ética nas relações de trabalho.
Além da análise dos paradoxos em si, este estudo se propôs a identificar o embasamento
e a justificativa das práticas organizacionais; em outras palavras, buscar um entendimento de
como a organização justifica uma prática em desacordo com o próprio discurso. Justificar,
segundo Heemann (1993), significa apontar os motivos e razões para uma decisão ética.
Com base em Srour (1998), que faz uma distinção entre racionalização, que são
situações em que o agente sabe o que é certo fazer, mas deixa de fazê-lo mediante situações
ad hoc, e dilemas, que são situações em que o agente não sabe o que é certo fazer e patina na
incerteza moral, acredita-se que, em defesa de seus interesses, as organizações procuram
encarar os problemas que nascem da própria prática administrativa através de fórmulas que
giram em torno da eficiência e da competitividade.
Quando questionados sobre quais os valores éticos e morais deveriam permear uma vida
em sociedade, a maioria dos gestores acredita que os mesmos valores que são observados na
organização devem ser observados nas relações sociais, e entende que a vida fora da empresa
é uma extensão da vida na empresa, e que a honestidade, a credibilidade, a autenticidade e a
transparência são valores necessários para os relacionamentos sociais e de trabalho, como
revelam os trechos das entrevistas:
E1. Na verdade eles estão ligados com os da empresa. Quem faz a organização são pessoas e são pessoas
que vivem socialmente. O que eu entendo hoje é que dentro da organização não se tem muito mais tempo
para se cultivar amizades e relacionamentos. Hoje eu tenho um tempo muito curto para uma série de
coisas que eu tenho que fazer, então eu preciso ser rápida, eu preciso decidir rapidamente.
E3. Eu acho que a vida fora da empresa, eu entendo que é uma extensão da empresa, eu preciso ser aqui
dentro, ou ser lá fora o que eu sou aqui dento, e vice-versa.
E5. A ética entra numa série de fatores, por exemplo, nas relações entre as pessoas, na forma como você
se coloca. Nós vendemos uma imagem, e você não consegue dissociar isso, eu como profissional e eu fora
do banco sou a mesma pessoa, tanto aqui como lá fora, e isso é que é o mais importante.
E6. Credibilidade, no sentido de dizer a verdade. Autenticidade. Honestidade. Transparência. Se tiver que
dizer não, dizer não e o por quê do não, se tiver que dizer sim, dizer sim e o por quê do sim. Mas, sempre
conduzido com bases sólidas, concretas, verdadeiras.
Por outro lado, todos os gestores concordaram que os valores necessários para uma vida
em sociedade devem ser adaptados à situação particular de cada organização, o que comprova
que em determinadas situações, os mesmos valores servem para legitimar a prática de algumas
ações e encobrir algumas de suas conseqüências. A seguir, alguns trechos transcritos das
entrevistas realizadas com os gestores que corroboram esta concepção:
E1. Eles têm que ser adaptados, eu não consigo trazer as mesmas coisas do social para o profissional. No
profissional eu tenho que ser fria nas minhas decisões. Eu nunca vou conseguir agradar gregos e troianos.
Se eu for muito para o social, eu vou acabar tomando decisões moralmente aceitas pela sociedade, no
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entanto com prejuízo para instituição onde eu trabalho.
E2. Acho que devem ser adaptados. Em determinados segmentos, em determinadas situações você pode
estar criando condições muito mais maleáveis para os funcionários ou para a comunidade, fazendo com
que aquela empresa contribua para o desenvolvimento da economia do país como um todo.
E4. Quando você vai para o mercado externo, você nota que o mercado não tem muita conduta ética, e aí
você se depara com certas situações: todos aqueles valores morais que você aprendeu, que você trás da
sua família, como é que você faz quando você sai da porta da empresa para fora? O mercado está como se
fosse uma selva, ou seja, quem pode mais, engole o outro. Então, eu acho que você deve usar a
moralidade, a ética que você aprendeu, aliado ao Código de Conduta do que a empresa espera de você, e
aí você vai para o mercado.
E5. Vamos imaginar o seguinte: o que é um sigilo dentro de um banco? É não comentar a situação
financeira de um cliente com outro. Quando você leva isso para fora, lá na sociedade, muitas vezes você
acaba comentando, por exemplo, coisas pessoais de uma pessoa com outra, coisas que não dizem respeito,
e aí entra na quebra do sigilo. Existe dentro de uma empresa a ética das leis, aquilo que você pode fazer
dentro das normas do banco, então, claro que são coisas adaptadas.
E6. Eu acho às vezes pode ter uma variação Como a gente está em uma instituição financeira, enquanto
cliente, eu não empregaria o meu dinheiro aplicado naqueles bancos onde aqueles diretores no exterior
fraudaram o balanço, eu não confiaria mais nisso. Então, eu acho que essa honestidade em termos de
transparência, de confiabilidade, de realmente prezar pelo que é certo, devido alguma especificação tem
que ser adaptados para aquele estilo de negócio.
Paradoxalmente, a maioria dos gestores concorda que nas organizações com fins
lucrativos, especificamente nas organizações bancárias, a observância de padrões éticos e
morais torna-se mais difícil. Ainda assim, alguns gestores atribuem a normatização imposta
pelo Banco Central e a própria essência dos indivíduos como imposições para uma gestão
pautada em valores éticos e morais socialmente aceitos, o que comprova, mais uma vez, a
isenção da organização quando se ferem princípios éticos e morais. A seguir, alguns trechos
transcritos das entrevistas realizadas com os gestores que corroboram esta visão:
E1. É mais complexo. Porque eu tenho que ver um leque muito grande de conseqüências para cada ação, e
hoje esse tempo é curto para eu ver tudo isso. Então, vai depender muito do indivíduo e da concepção
dele, porque a organização é feita de pessoas, e as pessoas são diferentes.
E2. O ABCD, como todos os bancos, segue a normatização do Banco Central. A intermediação financeira
está normatizada por taxas que são definidas pelo próprio mercado. O aspecto social são os benefícios
para os próprios funcionários, dependentes, ou até o banco como patrocinador de entidades, esse tipo de
coisa acaba dando um aspecto um pouco mais social para uma atividade que é toda ela de ganho
financeiro.
E3. Talvez você esteja falando porque eu trabalho em um banco e aqui se cobra juros. Eu acho que na
verdade, o que a gente tem é preço de mercado, o cliente é soberano para decidir se o que a gente pratica é
o melhor para ele, ou se não é melhor para ele, mas eu acho que isso não é ser menos ético. Você
seguindo os padrões de mercado em si, você não está roubando ninguém, ofendendo ninguém.
E6. Eu acho que é mais difícil. Eu acho assim, qualidade e quantidade, se eu posso usar essa analogia, são
retas opostas. Se eu trabalho com quantidade, velocidade, meta, pressão, eu estou sujeito a que os meus
profissionais possam fugir um pouco da ética para atingir isso daí. Se eu trabalho numa organização onde
eu não tenha talvez uma velocidade tal alta, uma meta não tão inatingível, e talvez, no caso de uma ONG,
eu não tenha nem que dar um resultado, um lucro, e isso não é cobrado de mim, é lógico que a ética é
muito mais fácil de ser seguida, eu percebo assim.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo procurou, através da sua fundamentação teórica, discorrer a respeito
da ética e das relações de trabalho produtivas. Foram efetuados cruzamentos entre o código de
conduta de uma organização bancária, entendido aqui como o discurso formal da organização
que regulamenta as relações de trabalho (indicando a conduta esperada dos indivíduos) com
entrevistas realizadas com os gestores dessa organização, indicando as ações e atitudes
praticadas pela administração da mesma. O intuito era o de identificar paradoxos na práxis
organizacional no que tange a ética nas relações de trabalho.
Foram identificados alguns paradoxos na práxis administrativa da organização em
estudo, sendo que a ética nas relações de trabalho, objeto da pesquisa, é sustentada por um
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discurso que expressa a garantia de interesses gerais, mas que resulta na garantia de interesses
particulares.
Porém, como exposto anteriormente, além da identificação e análise dos paradoxos, este
estudo tem como objetivo identificar o embasamento e a justificativa das práticas
administrativas da organização referida. Entendeu-se que, em uma organização bancária, em
que a lógica de ação está subordinada ao sistema econômico e em que a racionalidade
predominante é a racionalidade instrumental, a eficácia, o desempenho e a competitividade
justificam ações administrativas que o próprio discurso entende como práticas ausentes de
ética.
Concluiu-se que a concepção dos gestores a respeito da ética e da sua melhor aplicação
nas relações de trabalho, bem como seus entendimentos de quais valores éticos e morais
deveriam permear uma vida em sociedade, não condiz com a prática administrativa da
organização em estudo, visto que as justificações às suas ações e atitudes são legitimadas de
acordo com a lógica pela qual tal organização está subordinada, a saber, a lógica do mercado.
Portanto, a fim de legitimar as suas ações, a organização utiliza-se de um discurso que
serve, ao mesmo tempo, para justificar algumas práticas administrativas e legitimá-las como
condutas eticamente corretas, tendo em vista a necessidade de sobrevivência no mercado.
Trata-se de uma ética convencionada por aqueles que se beneficiam das relações que ocorrem
no interior da organização.
A análise dos paradoxos evidenciou que as ações praticadas pela organização eram
contraditórias ao seu próprio discurso, tornando os vínculos e os relacionamentos entre os
sujeitos nulos de verdade e de juízo. Os paradoxos indicaram:
! Que a concepção dos gestores a respeito da ética converge para uma idéia do que seja o
bem, o correto, o verdadeiro, tanto na vida organizacional quanto na vida social; porém,
quando aplicados à prática administrativa, estes mesmos valores são adaptados à situação
particular da organização;
! Que a prática da ética nas relações de trabalho não pode ser generalizada para todas as
organizações, tendo em vista que nas organizações com fins lucrativos, especificamente nas
instituições financeiras, como no caso estudado, os padrões éticos tornam-se mais difíceis de
serem observados;
! Que a conduta moral observada nas relações de trabalho não expressa elementos
presentes no discurso formal da organização, em outras palavras, que o discurso do que se diz
não é garantia do que se faz;
! Que as relações de trabalho devem ser pautadas na transparência e na confiança; porém,
que a necessidade de sobrevivência da organização garante ações e atitudes administrativas
que não devem ser observadas em outras práticas sociais;
! Que a ética convencionada pela organização é subordinada à lógica de ação que ela
reproduz, ou seja, à lógica capitalista;
! Que as relações de trabalho da organização convergem para o mesmo sentido que o
sistema social que ela reproduz, a saber, o sistema capitalista.
Finalmente, cabe salientar que, embora não fosse objetivo do presente trabalho defender,
em particular, nenhuma linha filosófica a respeito da ética, nem tampouco prescrever normas
ideais de comportamento moral, é de grande interesse compreender que, se a ação humana não
se dissocia do pensamento que a projeta, o juízo que a torna boa ou má está, ao mesmo tempo,
nas causas e nos efeitos que lhe dizem respeito.
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1
O discurso é, genericamente, uma forma manifesta de expressão de idéias, valores e sentimentos. Ainda que
discursos ocultos ou implícitos possam existir, o seu significado pretende sempre ser alçado à esfera que melhor
seja interpretada pelo outro. Portanto, em sua forma mais comum, o discurso é encontrado na linguagem falada
ou escrita (FARIA e MENEGHETTI, 2001).
2
Alteridade, segundo Enriquez (1996), é a modalidade específica com a qual entramos em contato com o outro
ser, aceitando vê-lo em sua singularidade, e onde aparecemos para o outro em nossa diferença e unicidade.
3
Visto que na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis (CHAUÍ, 2002).
4
A organização pesquisada não foi identificada a pedido da mesma. Trata-se de uma agência de grande porte de
um banco privado.
16
Controle Social no trabalho e novas perspectivas de análise organizacional.
Resumo
O presente artigo procura mostrar as contradições e conflitos inerentes nas relações de
trabalho submetidos à lógica do sistema capitalista de produção por meio do controle social
no trabalho. Este controle foi analisado a partir de quatro instâncias organizacionais (mítica,
social-histórica, organizacional e grupal) de base psicossociológica, com o intuito de ampliar
uma matriz teórico-metodológica utilizada nos estudos organizacionais na linha de pesquisa
Economia Política do Poder. Na presente pesquisa foi possível identificar dissonâncias entre o
ambiente prescrito e o real, bem como o exercício do controle social por resultados por meio
do estímulo à competição interna, à individualidade e a busca da identificação individual ao
sucesso organizacional. Estes mecanismos de controle correspondem a valores intrínsecos do
sistema capitalista de produção enquanto estratégica de gestão empresarial.
1. Introdução
Para Marx (1985, 1988, 1998), o ser humano se apropria dos recursos da natureza e o
transforma de acordo com as suas necessidades de subsistência. O homem tem a capacidade
de projetar as suas operações (o que deseja fazer) e ordenar o trabalho em diversas atividades
1
e com diversas pessoas, construindo uma consciência clara da sua capacidade de execução.
Nesse sentido, a diferença entre o homem e os outros seres vivos é a sua capacidade de
construir o resultado no seu imaginário, antes de executar a transformação do objeto. Dessa
forma, o trabalho é concebido pelo sujeito antes da sua concretização no real. Por ter essa
habilidade, as tarefas de concepção e execução do trabalho, que deveriam ser realizadas pelos
indivíduos coletivamente, não apenas são feitas por indivíduos diferentes como por indivíduos
que ocupam diferentes lugares no processo de trabalho. Assim, o indivíduo poderá ser senhor
do trabalho de outros bem como do seu próprio (MARX, 1988; BRAVERMAN, 1987). Esta é
a base do sistema capitalista de produção, em que o trabalho humano é o resultado do
conjunto das relações e comportamentos sociais.
De acordo com Castells (2000), as novas tecnologias exigem novas qualificações e
ocupações técnicas a partir das necessidades do processo produtivo como, por exemplo, as
novas tecnologias da informação na década de 90, com a difusão dos computadores em rede
que revolucionaram o processamento, armazenamento e a forma de acesso à informação. O
trabalhador inserido nesse ambiente de mudanças recebe uma “mensagem” enviada pelo
sistema do capital, no sentido de procurar uma “atualização profissional” para não ser
excluído do processo de trabalho.
As relações sociais capital–trabalho ou capitalista–trabalhador se modificam, pois as
necessidades de expansão do capital se tornam mais importantes do que as necessidades e os
desejos individuais. Quanto mais fragmentado o processo de trabalho, menor valor terão as
atividades originadas por ele: esse é o “segredo” da organização do trabalho. Quanto maior a
divisão de tarefas em trabalhos simples, maior a submissão do indivíduo ao sistema capitalista
de produção.
Essa divisão de tarefas pode ser percebida no movimento da gerência científica
iniciada por Taylor no século XIX, o que, para Braverman (1987), culminou com a aplicação
de métodos científicos sobre o controle do trabalho nas empresas industriais. Movida pelo
objetivo de resolver os conflitos e as contradições nas relações de trabalho, a gerência como é
conceituada atualmente, busca controlar a força de trabalho sem procurar descobrir e
confrontar as causas das contradições, aceitando as diferenças como “naturais”.
Na ótica de Faria (1987), a dinâmica social do capitalismo implica uma ação coercitiva
da gerência sobre o indivíduo, na medida em que este precisa se adaptar ao tempo de
produção, à cadeia de montagem, à fragmentação das tarefas e à subordinação à hierarquia
patronal. Tal ação indica que o controle não é um mecanismo da administração ou da gestão
capitalista, mas um mecanismo de poder.
Elton Mayo e outros já se interessam, no início do século XX, pelos estudos dos
indivíduos nas organizações, relativamente aos ajustamentos decorrentes de contínuas
mudanças contínuas nos processos produtivos, bem como a imposição ao trabalhador sobre a
forma como ele deve executar o trabalho (MAYO, 1960). Com a divisão do trabalho, o
indivíduo passou a executar tarefas repetitivas, gradualmente substituídas pelas novas
tecnologias. O saber que o trabalhador detém sobre todo o processo produtivo é
continuadamente expropriado pela máquina. Braverman (1987) afirmou que a revolução
tecnológica marcada pela automação de máquinas e equipamentos, com conseqüente
desenvolvimento da tecnologia de informação pela utilização em massa do computador,
transformaria os homens em robôs de segunda ordem.
Em sentido contrário, Castells (2000) acredita que as organizações não utilizam a
plena capacidade produtiva das novas tecnologias, e que a difusão da tecnologia
informacional nas fábricas e escritórios exige trabalhadores instruídos e autônomos, com
plenos conhecimentos do processo produtivo.
Na mesma linha de Castells, Harnecker (2000) afirma que o sistema capitalista, a
partir dos anos 70, apresenta um novo paradigma tecno-econômico, baseado na revolução
2
tecnológica, envolvendo desde áreas como a informática e telecomunicações até a utilização
dos novos modelos gerenciais japoneses, como o toyotismo, caracterizado pelo sistema just in
time, kan-ban, qualidade total e outros. Essas alterações visam modificar o processo
produtivo, inserindo técnicas de adaptabilidade e flexibilidade de processos, com conseqüente
transformação de estruturas organizacionais, que antes se apresentavam hierarquizadas e
verticalizadas, para estruturas flexíveis e descentralizadas, com grande autonomia. O
desenvolvimento da autonomia sugerida por Castells e Harnecker induz ao questionamento
quanto à estratégia da organização em conceder porções de poder advindas dessa autonomia e
sua conseqüência nas relações sociais de produção.
O sistema fordista veio ao encontro das necessidades de reprodução de um sistema de
controle, constituindo-se num forte instrumento macrosocial, servindo de guia às mudanças
tecnológicas e organizacionais, por meio do monopólio de mercado, da negociação coletiva
entre as classes sociais e a manutenção do equilíbrio entre a produção e o consumo de massa.
Com a internacionalização do capital, as organizações buscam alcançar os níveis
internacionais de produtividade e competência por meio de inovações tecnológicas e
mudanças nas relações e processos de trabalho. No ambiente organizacional, as experiências
sociais e políticas tomam forma sob o aumento do desemprego estrutural, ganhos salariais
modestos em setores específicos, desqualificação do trabalhador e a diminuição do poder
sindical (BERBEROGLU, 2002).
A partir dessas considerações é possível sugerir que se apresenta um novo sistema
pós-fordista como um processo de trabalho adaptado às novas exigências de acumulação do
capital, sendo flexível e integrado a um novo modelo de relações entre produção e consumo.
Um sistema atualizado e comprometido com a busca da livre competição no mercado entre as
organizações e a desregulamentação do Estado como um todo. As organizações perceberam
que precisam aprimorar as suas formas de controle nas relações de trabalho para garantir uma
competitividade internacional (AMIN, 1994).
As formas de controle têm acompanhado o desenvolvimento tecnológico de diversas
maneiras. Desde a criação da organização científica do trabalho - OCT, as organizações têm
procurado exercer a sua dominação por meio da propriedade dos meios de produção, para
poder se apropriar da maior margem possível dos seus custos. O controle sobre o processo de
trabalho tem aumentado com as inovações tecnológicas na área de microeletrônica,
principalmente por incrementar o domínio físico e mental sobre o trabalho como um todo
(DEJOURS, 1999). A insatisfação no trabalho pode remeter a novos aspectos sociais que
precisam de perspectivas não lineares de análise dos fenômenos organizacionais. É necessário
buscar uma melhor compreensão da dinâmica social, das relações de poder que atravessam as
relações sociais e que culminam no que se pensa que as organizações são e qual seu objetivo
maior. Uma possível perda do controle para a organização capitalista seria fatal à sua
sobrevivência. Nesse sentido, ela precisa reinventar periodicamente os seus sistemas de
trabalho para sustentar a dominação nas relações de produção, por meio da desqualificação e
requalificação do trabalhador (FARIA, 2001). Estudos na linha da psicossociologia
demonstram as maneiras pelas quais as organizações estão ampliando suas formas de controle
social. Citam-se os estudos do domínio e controle sobre o corpo (FOUCAULT, 2000), da
manipulação do vínculo social (FREUD, 1997; ENRIQUEZ, 1974), do desenvolvimento da
afetividade no trabalho (CODO et alii, 1998); da banalização da injustiça social (DEJOURS,
1999), do desenvolvimento do individualismo e da opressão (CHANLAT, 1992), da carga
psíquica no trabalho (DEJOURS, 1999), da corrosão do caráter (SENNET, 1999) e outros.
Essa subjetividade no trabalho exige uma abordagem teórico-metodológica de base
psicossociológica fundamentada em uma teoria analítica que não se contenta apenas com as
aparências dos fenômenos, visto que procura compreender “o que não é visto ou percebido, o
que não se pode nomear e que, de alguma forma, tende a aparecer” (MOTTA, 2000:81). Para
3
Enriquez (1999) o perfil que o social oferece ao indivíduo é um mundo fetichizado, submetido
a um Estado que tende a se tornar cada vez mais tentacular e a encobrir a sociedade civil,
apesar dos esforços que estas fazem para conservar suas margens de autonomia, sendo o
indivíduo continuamente submetido ao poder na vida econômica e na vida política.
Tal abordagem remete a um questionamento sobre quais aspectos sociais, políticos,
culturais (MOTTA, 1986; MEZAN, 1985), ideológicos (ALTHUSSER, 1999), imaginários
(CASTORIADIS, 1982) e simbólicos (ENRIQUEZ, 1997) revestem o controle exercido pela
organização do trabalho. Trata-se de analisar os princípios gerais que regem todo o
funcionamento das organizações, no sentido de levantar questões sobre os indivíduos e grupos
em relação ao reconhecimento de si e para si e do outro (de seus papéis e da sua identidade no
plano social), o seu lugar na hierarquia, a estrutura das relações sociais e a vivências das
relações violentas e amorosas.
Motta (2000) salienta que as organizações podem ser mais bem compreendidas por
meio da análise dos processos sociais entre os quais estão as formas de controle social. O
controle é um conjunto de ações que visa fiscalizar as atividades das pessoas e empresas para
que não se desviem das normas preestabelecidas. O controle social é um conjunto de regras
que codificam o campo de atividade de cada indivíduo, bem como seu campo de relações
sociais internas (estrutura hierárquica) e externas (clientes, fornecedores e governo) à
organização (PAGÈS et alii, 1993). É também uma estratégia de gestão organizacional que
busca novas formas de expansão do capital envolvendo aspectos manifestos e ocultos no
âmbito das relações de trabalho e das relações de poder (FARIA, 2002b). Enriquez (1999)
distinguiu sete formas de controle social cuja utilização, coletiva ou individual, tende a
garantir a manutenção do sistema vigente na organização.
O foco deste estudo será o controle social por resultados que busca superar as metas e
objetivos organizacionais por meio da competição econômica. Sob esse enfoque, a
organização precisa ser melhor do que seus concorrentes para alcançar o sucesso e manter a
competitividade. A ideologia da materialidade da sociedade capitalista pode ser observada
nesta forma de controle, pois demonstra o desejo das organizações de serem reconhecidas e
valorizadas pelo ambiente no qual estão inseridas, independente dos ideais de origem.
As organizações têm o seu foco na livre competição e na idéia de que "os melhores"
vencerão, e aplicam esses conceitos no seu ambiente interno (ENRIQUEZ, 1992),
incentivando a busca pelo sucesso nas unidades, entre grupos ou indivíduos. O clima de
competição interna cria processos conscientes e inconscientes, que mantém os indivíduos
presos à idéia de sucesso, podendo transformar a organização numa prisão psíquica
(MORGAN, 1996). Por meio desses processos, a organização administra as relações de poder
com seus grupos internos, pois incentiva o reconhecimento pela aparência e não pela essência,
possibilitando a construção de uma realidade aparente, cheia de ilusões, que os indivíduos
assumem como verdade. Nesse sentido, Morgan afirma que "enquanto [as empresas] criam
um modo de enxergar e sugerem uma forma de agir, tendem também a gerar maneiras de não
ver e de eliminar a possibilidade de ações associadas a visões alternativas da realidade"
(MORGAN, 1996:208). Dessa forma percebe-se a vida como um grande espetáculo
(DEBORG, 1997) no qual o prazer é prometido, mas jamais realizado.
4
4. Perspectivas psicossociológicas na análise organizacional
5
que se dedica totalmente ao trabalho sofrendo um aumento da carga psíquica
(DEJOURS et alii, 1994), pois precisará reafirmar constantemente a sua submissão ao
mito;
b.) instância social-histórica: analisa de que forma a organização garante o cumprimento
desta missão. Portanto, sabendo o que quer ser e onde quer chegar, a organização
define uma ideologia que indica o modo de acontecer no tempo e no espaço, criando a
forma de ser da organização (ENRIQUEZ, 1994, 1997; SCHIRATO, 2000). A
ideologia serve para consolidar a dependência ao mito original. É um sistema que
oferece diversas interpretações de mundo. Assim constrói uma realidade de acordo
com as necessidades da organização. O indivíduo deixa de buscar a verdade
temporariamente, pois a organização oferece uma a ele. Como o mito, a ideologia fala
ao afetivo, ao consciente e inconsciente, pois realiza o desejo do indivíduo de ser
guiado, reconhecido e amado. Faz de cada trabalhador um filho, um ser com prestígio,
alimentando o imaginário e o simbólico, pois cada um se sentirá tão competente,
importante e famoso como o seu senhor [a organização]. Portanto, a ideologia permite
racionalizar os desejos mais secretos dos indivíduos, que é o de ser amado, aceito e
reconhecido pelo outro. Com isso, a ideologia quer esconder os conflitos e ocultar as
relações de dominação demonstrando na aparência uma certa homogeneidade do
grupo. Mostra e mascara a realidade ao mesmo tempo, ou seja, oferece uma forma às
práticas sociais existentes. A organização define como quer construir o seu
desenvolvimento produzindo ideologias para mostrar a realidade das relações sociais,
mascarando as relações de poder, pois dessa forma manterá a sua supremacia,
dominação e controle social. A ideologia é a guardiã da ordem sempre pronta para as
lutas sociais presentes nas relações de trabalho;
c.) instância organizacional: analisa o nível das estruturas, da divisão do trabalho, dos
sistemas de autoridade e das relações de poder. É o lugar das práticas sociais, das lutas
e das estratégias. Nesse aspecto, a organização é mais do que a tecnologia que possui
em máquinas e equipamentos, em processos e métodos de trabalho, também se
apresenta como o lugar da realização dos desejos e projetos individuais e grupais, da
realização das condições de trabalho. Para Enriquez (1997) as estruturas
organizacionais têm por objetivo lutar contra seis angústias fundamentais:
i. Medo do informe: a estrutura procurará se defender da turbulência da vida,
do espontâneo, do imprevisto, isto é, do informe. Refere-se ao caos
desorganizador que estava na origem da organização e que tende a retornar
periodicamente;
ii. Medo das pulsões: a organização lutará contra a pulsão de morte que
poderia abalar a sua estrutura. Para isso, ela limitará a competição interna
dividindo o poder e as funções. A pulsão de vida só é permitida se auxiliar
na coesão do grupo e for voltada para o trabalho produtivo;
iii. Medo do desconhecido: o incerto sempre gera receios. A organização
utilizará instrumentos de análise para tomar decisões que diminuam as
incertezas;
iv. Medo dos outros: a organização estimula a coesão grupal, porém incentiva
a individualização e a competição para não correr o risco de uma ameaça
de diversos indivíduos sobre sua estrutura de dominação;
v. Medo da livre expressão: a palavra livre é vista como ameaça. Portanto, é
permitida a livre expressão por meio da palavra vigiada;
vi. Medo do pensamento: o ato de pensar, o livre pensamento que pode levar a
uma tomada de consciência ou a um julgamento são desestimulados, pois
poderiam levar a um questionamento do sistema utilizado. Nessa acepção
6
há pouco espaço para a criatividade. A organização tem por objetivo
funcionar de acordo com um modelo previamente determinado se tornando
o lugar da pulsão de morte representada pela compulsão a repetição e não
um processo vivo;
d. instância grupal estuda os grupos dentro da organização. Para Enriquez (1997), é
preciso estudar tanto os grupos formais, criados através da administração por equipes,
com funções pré-determinadas e atividades controladas, como os grupos informais,
que advém de uma associação espontânea entre os seus membros. Os indivíduos se
reúnem em grupos para tentar resolver problemas comuns dentro da organização do
trabalho. Ali, eles discutem, divergem e lutam contra as agressões do trabalho.
Castoriadis (1982) afirma que o grupo é o lugar onde os indivíduos expressam os
sentimentos de solidariedade em prol do objetivo comum, da luta e resistência operária
contra a direção da empresa. A cada dia a organização impõe normas e regras que
tentam transformar o indivíduo num trabalhador mais produtivo e submisso.
Diariamente o trabalhador reage às formas de dominação e controle da organização,
procurando tomar consciência da situação e desenvolvendo a vontade de mudar a
realidade que se apresenta. Assim, Enriquez (1997) afirma que o grupo é sempre
portador de um projeto comum que define a sua ação, seus objetivos e seu sistema de
valores. Com essa unidade, os grupos poderão transformar as suas idéias em ação.
Tendo um objetivo, o grupo se apóia num imaginário social comum discutido por
Castoriadis, isto é, uma representação coletiva do ideal do ego daquilo que ele quer
ser. Esse sistema de valores representa o tipo de organização que o grupo gostaria que
existisse. Um grupo tem uma causa comum a defender que procura ir contra os valores
e a ordem instituída. Transgredir é questionar as instituições e as condutas em vigor; é
utilizar a criatividade para propor novas idéias. A organização do trabalho luta contra
a formação de grupos que no seu interior não tenha o interesse da própria organização.
Para tanto, procura reduzir o grupo de trabalho a uma simples formação de equipes,
com tarefas bem definidas, com funções rígidas e bastante automatizadas. Isso
impede o desenvolvimento das relações humanas e de trabalho e o aparecimento de
situações novas e criativas que poderiam auxiliar no crescimento da própria
organização.
5. Procedimentos metodológicos
7
Quadro 1: Controle Social por resultados e níveis de análise nas organizações
SOCIAL
MÍTICO ORGANIZACIONAL GRUPAL
HISTORICO
As estruturas se
Ideologia.O indivíduo
Níveis de Análise defendem da
Uma idéia na qual se sente guiado,
/ desorganização e
todos acreditam e reconhecido e amado. Não há estímulo
Formas de limitação da competição
que justificam as Homogeneizar as para formação de
Controle por interna. Diminuição das
ações e decisões da relações. Esconder os grupos informais
Resultados incertezas, palavra é
empresa. Objetivo conflitos e ocultar as e espontâneos.
vigiada, o livre
em comum relações de
pensamento é
dominação
desestimulado.
Organização
portadora do ideal Competência como Competição interna Incentivo à
Ideologia da
do ego. (o sucesso valor amoroso. limitada. competição entre
competição
da organização é o Competição como Competição interna os grupos
econômica.
sucesso do prática humana. dentro das regras. formais.
empregado)
Sucesso entre Sucesso atrelado
Competitividade Ideologia do sucesso.
indivíduos ou x à estrutura
interna Harmonia e sucesso
grupos. formal.
Identificação e Desorganização
Relações de poder Grupos buscam vínculo aos grupos. favorecendo a
manipuladas entre afirmar-se. Organização como manipulação. x
os grupos internos. (Afirmação de si) esconderijo dos Manipulação pela
conflitos. palavra vigiada.
Ideologia do belo
Reconhecimento Valorização da
(estética). Aparente incentivo à
pela aparência e imagem do grupo e x
Valorização das criatividade.
não pela essência. da organização.
relações harmônicas
Ilusão da troca afetiva
Ilusões construídas Crença no discurso
entre organização e Ilusão pela criatividade
aceitas como como portador da x
indivíduo. vigiada.
verdadeiras. verdade.
Ilusão da integração.
Fonte: Elaborado por Faria e Hopfer (2002) a partir da proposta de Faria (2002b).
8
ou alguma empresa, de ultrapassar os limites e fazer o que for necessário para atingir os
objetivos definidos e de buscar a vitória dentro de um mercado competitivo e globalizado.
Para Enriquez (2000), a busca pelo sucesso implica a existência e aceitação de um
ambiente de competição entre empresas e entre sujeitos envolvidos no processo
organizacional. A pesquisa mostrou que os funcionários aceitam a existência de competição
entre os membros da empresa considerando o fato como normal no ambiente de trabalho. Este
resultado quanto ao fato de ser “normal” pôde ser confirmado por meio da declaração de um
dos entrevistados, que afirmou: “Acho que o relacionamento é bom, é profissional. Não é um
problema conviver com as pessoas aqui na empresa. Acho que é profissional, mas acaba
sendo pessoal com algumas exceções”(E07).
9
ser a sua existência enquanto organização é o modo como ele espera um reconhecimento
como um ser laboral dessa organização. Os dados apontam como é importante para os
funcionários a imagem externa da empresa, o que ela parece ser para os outros, pois ele se
identifica e se apóia nessa imagem.
Verificou-se nesta pesquisa que a imagem projetada pela organização e percebida
pelos funcionários foi um fator determinante para a sua entrada na empresa. Houve motivação
inicial, pelos funcionários, de fazer parte de algo diferente, moderno e dinâmico nas suas
relações sociais. Essa motivação foi caracterizada pela diversidade cultural apresentada pela
Alfa. Esse comportamento é corroborado nas afirmações de dois entrevistados, transcritas a
seguir:“Eu queria trabalhar numa empresa que tinha gente do mundo inteiro, que tinha
possibilidades de crescimento, que tinha um intercâmbio cultural enorme, uma imagem
maravilhosa. Nossa, eu pensei, que era o lugar que eu tinha pedido a Deus. E eu realmente
quis muito no processo de seleção. Hoje eu sei que não é isso”(E07). “A empresa surgiu
naquela época como uma possibilidade de trabalho, de experiência profissional incrível, duas
grandes empresas criaram uma nova, então, o próprio marketing, a imagem que ela tem no
mercado foi incrível”(E12).
Essa valorização da imagem que a organização aparenta construir refere-se ao mito de
grandeza que a empresa estudada reforça a todo o momento, dentro do seu ambiente de
trabalho. A organização reforça uma identidade que não possui, uma consistência existencial.
Durante toda a pesquisa, observou-se que os funcionários, em sua maioria, sentiam-se
desmotivados com o futuro deles dentro da empresa, resignados, sem perspectiva de
crescimento profissional e confusos com a realidade ambiental, pois não conseguiam
compreender porque a realidade atual era diferente daquela imaginada inicialmente, quando
ingressaram na Alfa. Acerca disso, um entrevistado manifestou opinião em dois momentos
distintos - confirmando a existência de uma contradição entre o que ele imaginava que seria e
a sua percepção do que a empresa realmente é: “A gente sente um pouco a falta da empresa na
sociedade, ninguém fala da empresa enquanto ente assim”(E07). Aqui o entrevistado se refere
a um dos valores difundidos pela empresa que é a inserção dela na comunidade local,
promovendo eventos e ações na área social, contribuindo para o desenvolvimento sustentado
da região onde está instalada a fábrica. Na segunda opinião do mesmo entrevistado, o mito da
empresa maravilhosa é desfeito, pois a percepção da realidade atual é contrária à idéia inicial
de grandeza e sucesso prometido, que vem ao encontro da concepção de Enriquez (1997) de
que as organizações ocultam a sua história real, conduzindo os sujeitos a se tornarem
membros da equipe e a se sentirem partes de algo maior do que eles. “A empresa parece que é
uma garagem que retifica motores, uma coisa assim. E isso choca um pouco a gente. A gente
se mata de trabalhar aqui, estou falando dos colegas da minha geração, que começaram no
barracão. A gente fez um processo de seleção muito rigoroso e muito demorado e de repente,
parece que você está trabalhando numa oficina de fundo de quintal”(E07).
A empresa construiu uma imagem de sucesso e futuro grandioso, quando da sua
instalação em 1998, para atrair talentos nacionais que se dispusessem a contribuir para a
construção e o crescimento de algo realmente importante para a sociedade. Verificou-se que
muitos funcionários ainda estavam engajados no trabalho na esperança do cumprimento das
promessas iniciais. Observou-se, que os funcionários acreditam que os discursos feitos pelos
dirigentes da empresa são compatíveis com as expectativas e as promessas feitas na ocasião
em que a instalação da Alfa se fazia perceber. Alguns esperam que tais promessas sejam
cumpridas no futuro. Por outro lado, outros funcionários não acreditam mais nas promessas da
empresa manifestadas nos discursos dos dirigentes, pois a prática mostrou serem essas
inócuas, como afirmou um dos entrevistados: “Eu entrei quando ainda era o escritório
provisório. Isto criou uma expectativa muito grande e isto está muito frustrante hoje.
Entramos numa das maiores empresas de motores do mundo, com duas gigantes do setor. Fica
10
claro para a gente que nós agora estamos trabalhando no plano real e não é mais aquele sonho,
como você via. A gente vê que a empresa está mudando totalmente o perfil. A gente fica
falando que as pessoas boas estão saindo e vem pessoas com um nível muito mais baixo para
substituir. Isto é visível. A gente sente isso e comenta”(E07).
A entrevista acima confirma a idéia de Dejours et alii (1994) de que trabalhar em uma
organização de sucesso e multinacional, aceita como sendo a ideal pela sociedade capitalista,
é uma realização imaginária a ser cumprida pelo sujeito, mesmo que o trabalho acarrete uma
carga psíquica que afete a sua saúde física e mental. O entrevistado E07, que acompanhou o
nascimento da empresa, tinha uma expectativa grande em relação ao seu crescimento e
desenvolvimento profissional, atrelado ao crescimento da empresa, e percebeu que o seu
desejo de reconhecimento jamais seria atendido, o que ocasionou a sua saída imediata da
empresa. Essa decisão foi tomada após uma conversa com o nível estratégico. Esse fato
confirma a idéia de Enriquez (1997) de que a empresa constrói uma realidade aparente que os
sujeitos assumem como verdade.
Com base na filosofia de avaliação e promoção interna dos funcionários, desenvolvida
pela empresa, este estudo pôde mostrar que os entrevistados acreditam que a empresa valoriza
as pessoas que são competentes. Porém, quando se analisou a resposta entre os níveis
hierárquicos, houve discordância por parte de 50% dos respondentes do nível tático quanto à
vinculação da valorização à competência. Para compreender melhor essa contradição,
apresentam-se informações de empregados do nível tático com o fito de comprovar ou refutar
tal vinculação. Com base nas respostas, concluiu-se que a empresa não segue as normas e
regras internas definidas por ela, o que causou frustração e descontentamento por parte de
diversos funcionários. A empresa se propõe a criar uma cultura de confiança,
comprometimento e participação coletiva no ambiente prescrito, porém isso não se efetiva no
ambiente real, onde as coisas acontecem de uma forma completamente diferente e inesperada
nas relações de trabalho. O quadro 2 apresentado abaixo indica as contradições e
inconsistências dessa forma de gestão onde a teoria aparece desvinculada de uma prática
coerente com ela.
Verificou-se que a empresa possui normas e regras internas que tem por objetivo
propiciar aos funcionários um desenvolvimento constante dentro da estrutura organizacional.
Porém, a essa intenção não corresponde uma efetividade no trabalho, como ficou
demonstrado nas entrevistas realizadas. Os fatos relatados nas entrevistas vêm ao encontro do
conceito de Enriquez (1997) de que a ideologia que a empresa prega no seu ambiente é
freqüentemente desmascarada pelos membros da organização. Também é possível inferir que
a empresa não está seguindo o melhor caminho para a construção da sua cultura
organizacional, pois como afirmou Drucker (2000:39), “a prática da gerência, e não apenas
para empresas, terá que ser definida operacionalmente e não politicamente”.
11
7. Práticas da dominação por meio das estruturas e das políticas internas
Tabela 2 - Formas de Controle por Resultados por meio das estruturas e políticas em %
Questões: Concordância Discordância
1. A criatividade é permitida livremente dentro da empresa. 71,9
2. As ações criativas no trabalho são reconhecidas pela empresa. 62,3
3. As pessoas que são produtivas no trabalho são valorizadas pela empresa. 55,3
12
A declaração acima remete à questão abordada por Enriquez (1992) de que o caos
desorganizador que remonta à origem da empresa tende a retornar em alguns momentos na
vida dela. Verificou-se que alguns entrevistados fizeram analogias entre o passado e o
presente da organização, principalmente por ser um passado recente, afirmando que havia
mais liberdade de ação, que se tinha o sonho de construir uma grande empresa, que as pessoas
assumiam múltiplas funções (o que elevava o grau de motivação para o trabalho) e que as
tarefas não eram muito organizadas, o que exigia uma certa iniciativa para tomar decisões, por
parte das pessoas envolvidas no processo. Nesse sentido,os funcionários concordaram que a
desorganização no trabalho ajuda as pessoas a terem mais liberdade. Diferentemente das
outras questões, a contradição apareceu no nível estratégico, em que 66,7% dos gerentes e
diretores discordaram da opinião de que um certo grau de desorganização seja algo positivo,
que estimule a liberdade e, conseqüentemente, a criatividade. Isso confirma o entendimento
de Enriquez (1992) de que as organizações têm medo do desconhecido, do imprevisível,
temendo uma ameaça à estrutura organizacional.
Um entrevistado do nível estratégico asseverou que a desorganização do início da
empresa estava acabando e que coisas e pessoas estavam se adequando à nova realidade:
“Acredito que agora as pessoas estejam definindo o seu lugar na organização, o seu papel na
relação com o outro”(E06). A organização sempre que possível irá tentar diminuir as
incertezas nas tomadas de decisão. Quando uma empresa permite a existência de um espaço
criativo, significa que ela não apenas aceita coisas novas, como quer incentivá-las. Os
funcionários, em todos os níveis hierárquicos, afirmaram que a empresa estudada reconhece
as ações criativas no trabalho. Porém, no decorrer da pesquisa foram identificadas duas
opiniões contrárias ao resultado do questionário. Esses entrevistados afirmaram que a empresa
permite ações criativas, mas não as reconhece nem as valoriza dentro da estrutura. Essas
percepções evidenciam um dos medos organizacionais referenciados por Enriquez (1992): o
medo do pensamento, no qual uma certa liberdade pode levar o sujeito a tomar consciência e
questionar o sistema no qual está inserido: “Eu pedi para ter espaço de atuação com a saída do
gerente, pois eu queria mostrar do que era capaz de fazer. Então a empresa não contratou um
novo gerente. O momento para mim é bastante desafiador e inovador. Mas não acho que
reconhecer o trabalho criativo seja política da empresa”(E07); “A empresa não vê com bons
olhos o trabalho criativo, mas não que isso sirva de recompensa. O trabalho tem que ser
criativo principalmente na nossa área porque se ele não for criativo ele não pode ser
realizado.”(E12). A busca pela produtividade é fundamental para as empresas competitivas da
era globalizada. A pesquisa mostrou que a crença na valorização individual está atrelada à
produtividade no trabalho.
13
Verificou-se que a idéia de Enriquez (1992) de que as organizações controlam a
competição existente no seu ambiente foi confirmada na empresa pesquisada. Os funcionários
afirmaram que percebem a competição entre os departamentos dentro da empresa, porém
declararam não haver estímulo por parte da empresa para esse comportamento. Essa falta de
estímulo se deve ao “medo do outro”, em que os grupos formais são controlados pela
estrutura e os informais são desmontados, para que não ameacem o controle instituído.
9. Conclusão
Esta pesquisa teve como objetivo identificar uma das formas de controle social
presentes na Empresa Alfa a partir de indicadores desenvolvidos na matriz teórico-
metodológica da Economia Política do Poder. Optou-se por trilhar o caminho das relações
sociais no trabalho, investigando a percepção dos funcionários sob o prisma de quatro
instâncias de análise, tendo como objeto o controle por resultados, o qual é exercido por meio
do estímulo à competição interna, à individualidade e à busca da identificação do sucesso
individual vinculado ao sucesso da organização. Essa forma de controle foi encontrada na
empresa Alfa, pois os funcionários acreditam na imagem de grandeza da empresa que está
sendo projetada na sociedade. A missão da empresa, que é ser a melhor do mundo, estimula
construções imaginárias nos sujeitos, como a criação de expectativas e projeções de um
sucesso no futuro a ser alcançado. Porém, a pesquisa demonstrou que essa imagem não tem
correspondido ao imaginário após a entrada do funcionário na empresa. Com o passar do
tempo, a expectativa de sucesso provoca um efeito contrário ao desejado pela empresa,
desmotivando as pessoas para o trabalho e destituíndo-as do sonho de um futuro almejado.
A projeção de realização do sonho deveria ser, para a organização, jogada para
adiante, alimentando o sonho sempre latente, a conquista cada vez mais palpável. O resultado
buscado pela empresa, contudo, tem sido atrelado à produtividade, o que significa a
supremacia da razão sobre o imaginário. A Alfa, sendo uma empresa nova, está tentando
construir uma identidade própria, através de políticas internas que vêm sendo desenvolvidas
conjuntamente com o crescimento da empresa. A pesquisa permitiu perceber que há restrições
a mudanças e uma tendência à centralização dos processos por meio das estruturas e regras
gerais da organização. Nesse enfoque, os processos de controle aqui analisados, a despeito de
seu foco principal, acabam sendo permeados por uma rigidez burocrática, ou seja, pela
formalização, a qual acaba por definir as partes do trabalho que serão executadas pelas
pessoas envolvidas no processo.
A organização será sempre um lugar de conflitos e os indivíduos enfrentam esses
conflitos quando desenvolvem construções imaginárias e vínculos afetivos em relação à
empresa na qual trabalham. A organização não deseja mudanças, mas precisa delas para
sobreviver; da mesma maneira que necessita buscar uma homogeneidade no trabalho,
definindo zonas onde será possível trabalhar. A pesquisa permitiu perceber as formas pelas
quais a empresa utiliza o seu “poder de dona” dos processos organizacionais, para tomar
decisões contrárias às próprias políticas internas previamente definidas. As organizações,
como se sabe, não apenas estão inseridas em um processo histórico da sociedade como
também se transformam e evoluem para manter um crescimento sustentado ao longo da sua
existência. O objetivo de sucesso contínuo contribui para a formação de uma ideologia
própria da organização que vai conduzir as decisões e definir os caminhos que ela deverá
percorrer para conquistar o seu espaço no mercado competitivo. Nesta pesquisa ficou
evidenciado que a ideologia (o sistema de idéias que a organização toma como referência) se
propõe a apreender os fatos e dar conta do real em uma representação única, que oferece as
respostas adequadas para os conflitos nas relações sociais. Nesse sentido, ao mesmo tempo
14
em que enfrenta a realidade do ambiente organizacional, a empresa também a esconde dos
sujeitos, sugerindo uma que a liberdade de interpretação das práticas sociais só pode ser
manifesta se o sujeito consegue identificar seu lugar na organização e identificar-se com ela.
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1
O presente estudo apresenta uma parte de uma pesquisa realizada em uma indústria do ramo automobilístico.
16
COMPROMETIMENTO: uma avaliação crítica sobre a práxis organizacional
RESUMO
O estudo sobre comprometimento vem se tornando cada vez mais freqüente pelos
interesses que seu conteúdo desperta para as organizações. No entanto, esta área de estudo
vem sendo marcada por uma clara dispersão conceitual e analítica, reconhecida por parte
significativa dos pesquisadores. No intuito de contribuir teoricamente para com a análise do
comprometimento nas organizações, este trabalho, baseado em uma avaliação crítica da práxis
organizacional, procura sugerir uma maior precisão conceitual, melhor definição das bases e
indicar as condições possíveis em que o comprometimento pode ser melhor investigado e o
que deve ser levado em conta nas pesquisas empíricas.
INTRODUÇÃO
1
É interessante observar, de saída, a partir do levantamento e da análise dos estudos
acerca do comprometimento, que os mesmos não têm levado em conta os diversos tipos de
organizações e/ou suas peculiaridades e/ou as diversas instâncias dentro das quais os sujeitos
se movem ou a que são submetidos, o que faz com que as possibilidades da existência de
vários níveis de comprometimento sejam ignorados e com que predominem os estudos nos
quais as organizações são tratadas como entes monolíticos, estruturados segundo uma razão
objetiva e despidos de contradições.
Não se pode descartar a possibilidade de que atividades diferentes nas organizações
possam resultar em naturezas diferentes de comprometimento, da mesma maneira como
formas diversas de gestão e de relações de trabalho e fins organizacionais possam provocar ou
favorecer comprometimentos específicos. A idéia de um comprometimento genérico com a
organização torna-se inconsistente com a realidade se for levado em conta o fato de que a
organização é um conjunto complexo e contraditório de sujeitos e grupos, com aspirações,
experiências, valores, códigos e interesses heterogêneos, vinculados a projetos nem sempre
claramente explícitos e agrupados segundo uma forma estrutural obstativa das relações
interpessoais ou institucionais, participando, na maior parte do tempo, de atividades isoladas,
departamentalizadas e com divisões que operam com metas e objetivos predominantemente
operacionais. Tais objetivos, ainda que possam vir a estar relacionados com as estratégias
organizacionais e com suas metas – competitividade, reconhecimento, lucratividade,
produtividade, realização mercadológica –, constituem-se em fatores limitadores da ordem
organizacional, transformando-se na própria realidade dos sujeitos, em suas referências,
ligadas antes às tarefas e às atividades do que a considerações de natureza organizacional, as
quais se encontram, não raras vezes, muito longe da realidade diária de grande parte de seus
membros.
A noção de um comprometimento genérico, portanto, tende a ser teórica e empiricamente
inconsistente na medida em que é mais fácil o sujeito estar comprometido com os objetivos e
metas de seu departamento ou setor, de determinados trabalhos, atividades ou tarefas que deve
realizar e pelas quais será avaliado objetiva e subjetivamente, do que com a organização como
um todo. De acordo com Reichers (1985), a organização, para muitos empregados, é uma
abstração; é algo que representa na realidade os seus colegas de trabalho, seus chefes e
supervisores, os clientes e outros indivíduos e grupos que compõem as relações imediatas no
trabalho. Esta forma de conceber as organizações, facilitada por sua própria natureza,
funcionamento e estrutura, não permite que se possa desconsiderar as possibilidades de uma
teoria sobre comprometimento que seja capaz de incorporá-la.
Em estudo recente Bastos (1997) propôs uma discussão sobre comprometimento no
trabalho, organizando as principais pesquisas efetuadas na área conforme os enfoques em que
se basearam. Concluiu que existe uma vasta fragmentação e redundância conceitual entre as
pesquisas realizadas, tanto no exterior quanto em âmbito nacional. A razão para tal
fragmentação e redundância apoia-se no fato de que se observa a “predominância de uma
abordagem metodológica dominantemente quantitativa e extensiva” (BASTOS, 1997:106), o
que favorece o aparecimento de diversas dimensões que, pela necessidade de nomenclaturas
específicas, contribuem para o surgimento de vários constructos, muitas vezes muito
próximos entre si. A partir disso, escalas e instrumentos são desenvolvidos para investigar os
novos constructos, o que faz com que a contribuição teórica acabe perdendo escopo.
Um outro estudo efetuado por Bastos, Brandão e Pinho (1997), aponta para o fato de que
uma das dificuldades encontradas para o avanço da pesquisa sobre comprometimento se
encontra na inexistência de concordância conceitual entre os pesquisadores. Uma vez havendo
discordância a respeito do que se deve entender por estar comprometido, a dispersão de
modelos teóricos leva ao desenvolvimento de diversas análises, nas quais pelo menos dois
conjuntos de fatores tendem a ocorrer: (a) antecedentes e conseqüentes do comprometimento
2
se mostram indefinidos e ambíguos; (b) as bases do comprometimento são confundidas com o
próprio.
A dispersão conceitual pode também provocar certa confusão entre as bases do
comprometimento e seus focos. Morrow (1983) examinou a diversidade conceitual e
metodológica sobre o que seria considerado como comprometimento no trabalho, fixando
cinco grandes focos de comprometimento utilizado pelos trabalhadores: a organização, o
trabalho, os valores, a profissão ou carreira e o sindicato. Em estudo mais recente, Morrow
(1993:107) considera “como formas universais de comprometimento, a ética no trabalho, o
comprometimento com a carreira ou profissão, o envolvimento com o trabalho e o
comprometimento organizacional”, o qual posteriormente divide em duas vertentes: uma
atitudinal (afetiva) e a outra relacionada à continuação do indivíduo na organização
(instrumental). Além destes pontos, Morrow (1993:107) organiza sua análise de forma a
distinguir os elementos que representam a natureza do vínculo individual ou, como
usualmente se denomina na literatura, as bases do comprometimento: “identificação, apego,
envolvimento, comprometimento, saliência, centralidade, entre outros”.
Alguns estudos ampliaram o escopo de análise acerca do comprometimento introduzindo
reflexões sobre o sindicato e a carreira, por exemplo. Todavia, a maioria dos trabalhos aborda
a organização como foco do comprometimento (ALLEN e MEYER, 1990; BORGES-
ANDRADE, 1994; MOWDAY, PORTER, STEERS 1982; BECKER, 1992). Os estudos que
se debruçam sobre a organização demonstram a predominância do comprometimento sob o
enfoque afetivo. Isso ocorre pelo fato de ser, o comprometimento afetivo, o mais desejado nas
organizações e devido ao fato de que trabalhos multidimensionais sobre o comprometimento
são ainda muito recentes (ANTUNES e PINHEIRO, 1999). Entretanto, como alertam Meyer e
Allen (1997), todos os esforços gerados no sentido de angariar uma forma de
comprometimento inevitavelmente impulsionam o desenvolvimento de outras formas.
As bases de comprometimento propostas nas pesquisas têm-se proliferado, pelas razões já
referidas, mas pode-se observar certo consenso em pelo menos três delas: (a) afetiva, em que
o vínculo se estabelece pela presença de sentimentos de afeição, apego, identificação
reconhecimento e lealdade, entre outros; (b) instrumental, em que o vínculo se estabelece pela
observação de custos e benefícios relacionados à ação; (c) normativa, em que o vínculo se dá
pela internalização das normas, valores e padrões estabelecidos, criando uma concordância
moral com os valores e objetivos da organização. A concordância com relação a estas três
bases parece estar relacionada à existência e à influência de componentes tidos como
motivadores do vínculo indivíduo-trabalho.
As abordagens desenvolvidas pelo conjunto dos pesquisadores, entretanto, independente
das suas especificidades, acabam por considerar implicitamente a organização como um ente
monolítico e estático. Ainda que na forma possam admitir que as organizações sejam
entidades dinâmicas, complexas e contraditórias, que possam não ignorar as articulações entre
as suas várias instâncias, nas quais os sujeitos atuam e se envolvem, ou que admitam a
possibilidade de coexistirem diversos níveis de comprometimento, o que se observa é que o
conteúdo da investigação adotada, das questões propostas e dos pressupostos teórico-
metodológicos de referência, toma a organização como um objeto inerte e sem movimento,
como fica evidenciado, por exemplo, nos estudos realizados por Bastos, Brandão e Pinho
(1997). Uma das decorrências mais importantes de tais abordagens está na tendência a
explicar antes os motivos pelos quais os sujeitos permanecem na organização do que os que o
levam a adotar, como seus, metas e objetivos organizacionais.
De fato, o comprometimento afetivo com a organização pode explicar a permanência nela
dos sujeitos, mas esse desejo de permanecer não garante, por si só, qualquer disposição para o
trabalho como se procura deduzir. O sujeito pode apenas participar sem sequer se envolver,
sendo que esse apego afetivo pode fazer, e muitas vezes faz, com que os sujeitos se prestem
3
mais à preservação da imagem organizacional do que à execução comprometida de suas
tarefas. Além desta questão, é preciso considerar que o fato do sujeito não querer sair da
organização não significa necessariamente que ele esteja comprometido com a mesma, não
sendo raras as situações em que os sujeitos estão comprometidos com suas próprias
aspirações, interesses e desejos, os quais podem ser, e freqüentemente o são, realizados no
âmbito da organização. Quando questões como estas não são consideradas na construção
teórica e também nos instrumentos de investigação empírica, o conceito de comprometimento
adotado acaba ficando reduzido à concepção de permanência do indivíduo na organização,
empobrecendo e limitando o entendimento das diversas faces do processo no interior das
organizações.
Neste sentido, o próprio conceito de comprometimento deve ser esclarecido ou
reelaborado. Bastos, Brandão e Pinho (1997) sugerem que à medida que o conceito é adotado
na linguagem científica, sua amplitude torna-se reduzida e o seu significado limitado ao de
“engajamento do indivíduo com variados aspectos do seu ambiente de trabalho” (p.100).
Todavia, ao conviver com outros conceitos como identificação, envolvimento moral e afetivo,
vínculos formais ou subjetivos, por exemplo, o conceito de comprometimento adquire outros
significados - algumas vezes muito próximos e outras diversos e ambíguos - o que acaba
contribuindo para a diversidade de conceitos na área e, em conseqüência, pela imprecisão da
análise e, portanto, pela ineficácia de atitudes gerenciais capazes de fortalecer situações de
comprometimento.
A respeito disso, Senge (1998) afirma que o comprometimento verdadeiro é algo pouco
observado nas organizações. Para ele, na maior parte das vezes o que se considera como
comprometimento não passa de aceitação. Na falta de uma conceituação precisa do constructo
teórico, elementos como engajamento e participação são confundidos com comprometimento.
As pessoas aderem às metas e objetivos organizacionais e muitas vezes até participam
ativamente na execução destes, todavia, deduzir daí que se comprometam verdadeiramente é
reduzir não apenas o alcance do conceito, mas sua efetividade analítica e prática.
Segundo Senge (1998:246), o comprometimento pressupõe “um sentimento total de
responsabilidade na transformação das metas e objetivos em realidade”; para tanto, os
indivíduos valem-se da criatividade e inovação, desenvolvem alternativas e procuram os
meios mais eficientes para garantir o sucesso do que se propuseram a fazer. As pessoas
comprometidas não seguem metas ou visões, elas acreditam em sua legitimidade. Como
apontam Kiesler e Sakamura (1996:296), “comprometimento pode ser equiparado com
sentimentos de auto responsabilidade por um determinado ato, especialmente se eles são
percebidos como livremente escolhidos, públicos e irrevogáveis”.
Comprometimento poderia ser identificado, neste sentido, como engajamento ou
disposição plena e espontânea para trabalhar, sentimento de responsabilidade pelo resultado e
aplicação de esforços, criatividade e inovação para contornar os problemas e garantir o
sucesso e o resultado. Estar comprometido significa estar movido pelo desejo de ver o
trabalho concluído e o objetivo atingido da melhor, mais eficiente, eficaz e efetiva maneira. É
sentir-se realmente responsável e demonstrar desejo de ver o sucesso da ação.
Segundo Allen e Meyer (1991:1), as bases do comprometimento organizacional são
identificadas pelos componentes afetivo, normativo e o de permanência. O “componente
afetivo refere-se ao apego emocional, identificação e envolvimento dos empregados para com
a organização. O componente de permanência se refere ao comprometimento baseado sobre
os custos associados a deixar a organização. O componente normativo se refere ao sentimento
de obrigação em permanecer na organização”. Analisando a proposta destes autores, percebe-
se que o conceito de comprometimento está relacionado principalmente à taxa de turnover:
“empregados comprometidos são aqueles que apresentam a mínima probabilidade de deixar a
organização” (ALLEN e MEYER, 1991:1).
4
O comprometimento baseado no componente de permanência tem sido comparado ao que
Becker (1992) definiu como os custos associados à atitude de se deixar a atividade ou a
organização, ou “lost side-bets”, sendo operacionalizado por alguns pesquisadores brasileiros
como um componente instrumental - como pode ser visto no trabalho de Antunes e Pinheiro
(1999). Contudo, algumas ponderações devem ser feitas a respeito dessa conceituação dada
tanto aos componentes da base, como ao próprio conceito de comprometimento. A maioria
dos trabalhos - como defende também Bastos (1997) – analisa os componentes do
comprometimento como sendo motivos que explicam por que os sujeitos, diante da avaliação
de alternativas, escolhem não deixar a organização, ao invés de explicar os fatores que os
motivam a engajar-se nas atividades ou permanecer na organização mesmo havendo
alternativas mais atraentes. Uma consideração que pode ser levantada a respeito da definição
dada ao componente afetivo é a de que, de uma forma geral, vem-se considerando o
componente afetivo como sendo um mero apego afetivo - ou uma simples necessidade de
reconhecimento por parte do indivíduo para com a organização - ou ainda, na melhor
hipótese, admitindo uma certa satisfação psicológica no cargo ou ocupação - a qual depende,
como se sabe pela literatura, de recompensas e fatores oferecidos pela organização. No
entanto, o que não é levado em conta nessa abordagem é a possibilidade de se ter
comprometimento motivado por apego ou ligação afetiva do sujeito para com o grupo ou
colegas de trabalho ou pela lealdade – classificada como um componente normativo pela
maioria dos autores. A lealdade, ao contrário do que se defende, é mais um componente
afetivo que normativo, à medida que significa uma ligação afetiva originada pela troca e não
uma congruência de valores morais (que constituiria um componente normativo de fato).
Parece mais claro entender que o sujeito é leal não porque o conjunto de valores aceitos
socialmente definem que assim deva ele ser, mas porque desenvolveu-se entre ele e o outro
(seja este outro a organização ou seus trabalhadores, clientes, usuários, etc.) um sentimento de
cumplicidade fundado na troca. O dever aqui é mais de ordem afetiva que moral.
Um dever moral poderia ser exemplificado através do caso de um sujeito em uma
organização voltada ao trabalho social com relação a seu chefe, que ele sabe não ser
envolvido com as finalidades desta atividade e que a utiliza apenas para fins de promoção
pessoal. Embora possa não existir nenhuma ligação de caráter afetivo entre eles - pelo fato do
sujeito não admirar nem concordar com o seu chefe ou pela inexistência de apoio deste com
relação ao desenvolvimento dessas atividades - ele pode assim mesmo se comprometer com o
trabalho que executa porque sente sua importância para a comunidade atendida, independente
das intenções de seu superior. O sujeito pode perfeitamente estar em desacordo com o seu
chefe, não estar muito satisfeito com as suas condições de trabalho, mas pode estar
comprometido com a sua atividade por considerá-la válida e seu resultado importante ou
necessário.
Nota-se, na análise de casos como este, que existe uma diferença entre lealdade e dever
moral, o que permite observar que há, de fato, uma certa confusão entre o conceito de
lealdade, a qual se dá pelo fato desta ser um valor cultivado socialmente, embora não se possa
ignorar que seu princípio seja afetivo. É bastante provável que essa confusão explique a razão
do alto coeficiente de correlação existente entre esses dois componentes nas pesquisas levadas
a efeito por Allen e Meyer (1990:08 e 13).
A grande diferença entre o componente afetivo e o normativo se concentra basicamente
no fato de que o primeiro não significa obrigação. Pelo contrário, a ligação afetiva possui um
caráter voluntário, enquanto o componente normativo pressupõe a obrigação moral de agir
conforme as normas e leis estabelecidas no momento que o sujeito concorda com elas. No que
diz respeito ao componente instrumental (ou de permanência), a capacidade de explicar o
comprometimento detém-se nas razões pelas quais o sujeito decide ficar na organização ou
subordinar-se às prescrições estabelecidas. No entanto, em muitos casos examinados percebe-
5
se que nenhum esforço se dá no sentido de explicar porque realmente o sujeito se
compromete, ou seja, embora o mesmo tenha motivos para sair da organização ou motivos de
insatisfação naquele ambiente, ainda assim ele decide permanecer e propõe-se a melhorar a
situação.
Do modo como o comprometimento tem sido abordado na literatura, estar comprometido
parece estar ligado coercivamente a algo cuja separação acarretaria prejuízo para o sujeito.
Mesmo quando as pesquisas dizem respeito ao comprometimento de base afetiva, o sentido
dado pelas pesquisas correntes deixa a impressão de que o indivíduo avalia racionalmente os
benefícios obtidos naquela organização para decidir se comprometer. Entretanto, o
comprometimento deve ser observado não como uma troca eminentemente racional, em que o
sujeito elabora uma relação custo-benefício ou faz para si uma proposição do tipo perdas e
danos, mas um processo que precisa ser analisado como uma resposta na qual são decisivas as
manifestações inconscientes do sujeito, dadas a existência de fatores nem sempre racionais ou
percebidos. Isso é evidente na definição dada por Meyer, Allen e Smith (1993) do
componente afetivo e do componente de permanência. Segundo estes autores, se o
comprometimento é afetivo, o indivíduo não deixa a organização porque suas necessidades
(psicológicas e materiais) estão sendo satisfeitas e ele não possui garantias de que em outra
organização terá as mesmas condições; em contrapartida, se o comprometimento é o de
permanência (instrumental) ele permanece na organização porque, embora outra alternativa
até seja mais compensadora, o custo de integração e aprendizagem inicial é alto ou, no
mínimo, indesejado.
O comprometimento normativo é o único (entre os demais) que parece realmente estar no
caminho de explicar as razões ou motivações do comprometimento. Isso porque ele supõe, na
abordagem dada pelos citados autores, que o indivíduo permanece na organização por
lealdade ou obrigação moral em função do investimento realizado ou da confiança depositada
sobre ele pela organização, ou seja, de atitudes guiadas por motivos não racionais. Nestes
casos, a avaliação de alternativas privilegia o outro e não a si próprio, o que permite presumir
um indício de comprometimento.
Entende-se que o comprometimento não é movido por pressões coercitivas, o que parece
ser característico de aceitação ou subordinação mas, pelo contrário, por um caráter voluntário,
no qual é possível ao sujeito abrir mão do benefício próprio em detrimento do benefício do
outro, consciente ou inconscientemente. O conceito de comprometimento corrente, entretanto,
tem acentuado mais sentido de aceitação, de subordinação e de concomitância. De acordo
com Hirschman (1973), a existência de uma lealdade inconsciente leva o membro de uma
organização a não considerar uma eventual deterioração da sua situação na mesma,
permanecendo ali apenas pelo sentimento de dever para com o outro embora a situação, se
analisada racionalmente, motivasse sua saída.
Como pode ser percebido, o problema mais crítico no estudo do comprometimento nas
organizações se encontra nas diferenças existentes entre as várias definições utilizadas.
Definições estas que envolvem o estado psicológico refletido nas atitudes e comportamentos e
as condições antecedentes que levam ao seu desenvolvimento. Mottaz (1988), a este respeito,
mostra em seu estudo que boa parte dos trabalhos tem se preocupado com o que a organização
pode oferecer e com o que os indivíduos esperam e desejam, mas que estas questões têm sido
abordadas separadamente nas análises. Mottaz entende, porém, que é teoricamente
impraticável analisar o comprometimento sem abordar estas questões juntas, pois a
congruência entre ambas é que vai realmente possibilitar entender o comprometimento.
A partir desse ponto é possível identificar um novo elemento na análise: para se
identificar as bases do comprometimento, a direção deve ser dada pelos valores e motivações
dos sujeitos e não pelas condições externas oferecidas pela organização ou grupo. Ao mesmo
tempo, fica evidente que, uma vez identificadas as bases, o foco do comprometimento será
6
facilmente determinado pelas próprias atitudes indicadoras de comprometimento e/ou pelas
condições externas congruentes com a base identificada. Como afirma Mottaz (1988: 470):
“comprometimento organizacional representa uma adequação indivíduo-ambiente”.
A partir das análises mencionadas, constata-se que os conceitos que a literatura oferece a
respeito do comprometimento com a organização indica, em geral, muito mais o atendimento
a interesses próprios de indivíduos ou grupos do que aos organizacionais. Desse modo,
analisar o comprometimento organizacional torna-se menos importante que o
comprometimento localizado que o sujeito desenvolve em seu cotidiano.
Deste modo, é oportuno indicar que para além destas situações descritas, o que pode ser
encontrado nas relações entre os sujeitos e os grupos/organizações é a aceitação da relação,
seja por imposições coercitivas diretas (explícitas, repressivas) ou indiretas (recalcantes,
implícitas), presentes na organização ou no ambiente, seja por interesses secundários,
avaliados como realizáveis na relação. Neste caso, o sujeito pode se engajar na ação sem
comprometer-se com ela ou com a organização onde a mesma se efetiva. Segundo Senge
(1998), as possíveis atitudes de um indivíduo diante de uma meta ou visão são: (a)
comprometimento: sentimento total de responsabilidade na transformação da meta em
realidade, o que implica a livre escolha do sujeito em participar; (b) aceitação genuína: o
sujeito compreende os benefícios da meta e participa, mas não a toma como sua; (c) aceitação
formal: o sujeito compreende os benefícios e faz o que se espera dele; (d) aceitação hostil: o
sujeito faz o que se espera dele porque tem algo a perder; deixando claro que está contra; (e)
não-aceitação: o sujeito não vê benefícios e não faz o que se espera dele.
As observações listadas sugerem que se torna importante analisar o comprometimento a
partir de múltiplos ângulos, relacionando-o com diferentes partes e processos organizacionais:
relações de trabalho; níveis hierárquicos e de responsabilidade; graus de envolvimento com a
definição e a implementação de objetivos e estratégias; relações interpessoais e grupais;
posturas, atitudes, comportamentos, entre outros. Além disto, é preciso considerar que se o
comprometimento relaciona-se com afeto, códigos, vínculos e interesses, a existência de uns
não necessariamente implica a existência de outros, o que confere ao comprometimento um
caráter adverbial e contextual, de forma que seu conceito deve ser reavaliado, apresentando
elementos próprios que o diferenciem de não só de afeto, código, vínculo e interesse, mas
igualmente de aceitação ou envolvimento, que são os intercâmbios mais comuns na literatura.
Tomando por base estas discussões conceituais, é necessário fazer uma avaliação crítica
dos estudos sobre comprometimento e demais conceitos relacionados que se encontram na
literatura, buscando averiguar se os mesmos têm logrado êxito em superar as dificuldades
apontadas ou se se corrobora a hipótese sugerida no início de que está havendo, além de uma
discordância conceitual entre os diversos trabalhos na área, uma interpretação equivocada do
que realmente seja comprometimento e do que poderia incitá-lo. Três pontos foram escolhidos
para essa análise: o conceito de comprometimento, as bases do comprometimento e o(s)
foco(s) do comprometimento.
2.1. Allen e Meyer e os três componentes do comprometimento
O trabalho de Allen e Meyer (1990) foi, certamente, um dos mais influentes nos estudos
sobre comprometimento. Embora suas idéias estejam baseadas nos estudos de Kanter (1968),
Mowday, Steers e Porter (1979), Buchanan (1974) e Becker (1960), os seus três tipos de
comprometimento podem ser encontrados como fundamento em grande parte dos trabalhos,
sobretudo dos autores brasileiros. Contudo, o conceito de comprometimento em si mesmo não
é a preocupação central desses autores, que definem a tipologia a partir de argumentos
7
fundados em suas próprias bases, que de fato acabam sendo os pontos mais importantes de
suas análises.
No entanto, como pode ser observado neste estudo de Allen e Meyer, para cada base tem-
se uma definição diferente para o constructo teórico sobre comprometimento, de forma que a
questão conceitual torna-se ainda mais vulnerável. De fato, na medida em que estes autores
iniciam a análise do comprometimento sem defini-lo, as explicações que são oferecidas ao
longo do texto acabam por criar dificuldades. Isso ocorre porque os autores concebem o
comprometimento como sendo apenas uma atitude, deixando as dimensões organizacional e
psicossociológica de fora da análise, o que faz com que se dê uma confusão analítica entre as
bases e o próprio constructo teórico. Mesmo a definição mesmo dada para cada “tipo” deve
ser melhor avaliada.
O comprometimento afetivo caracteriza a ligação afetiva/emocional à organização com a
qual o indivíduo vai se envolver, identificar e apreciar o fato de ser seu membro. Neste caso, o
indivíduo não deixa a organização por estar afetivamente ligada a ela. O comprometimento de
permanência (chamado por alguns de instrumental), indica que o indivíduo permanece na
organização pelo reconhecimento dos custos associados a deixá-la. E o comprometimento
normativo indica a permanência do indivíduo na organização pela obrigação que este sente
pelo fato de, uma vez internalizadas as metas e regras organizacionais, acreditar ser certo ou
moral fazê-lo.
Na verdade, Allen e Meyer entendem que o sujeito se compromete quando permanece na
organização. Segundo os autores, como já foi observado anteriormente, na avaliação de
alternativas presentes o indivíduo decide permanecer na organização: a) porque incorrerá em
custos e prejuízos se deixá-la, ou b) porque sente-se na obrigação de ficar, ou ainda c) porque
está afetivamente ligado à organização. O conceito de comprometimento é utilizado com o
mesmo sentido do de permanência. Entretanto, é preciso insistir na observação de que
permanecer na organização com base em escolha entre alternativas não significa
necessariamente comprometer-se: o sujeito pode estar comprometido consigo mesmo, com
seus interesses e necessidades. Assim, se ele permanece na organização porque ali possui
melhores condições de trabalho, de satisfação pessoal e porque os custos associados à sua
saída são altos demais para suportar, não se pode dizer categoricamente que está
comprometido com a organização.
Uma segunda crítica a este estudo está relacionada com os componentes do constructo,
mais propriamente com as bases do comprometimento. A base afetiva pode, de fato, ser
considerada como um dos fatores que levam os indivíduos a se comprometer. Todavia, a base
instrumental do componente de permanência, tal como proposta, não pode ser utilizada para
explicar o comprometimento. É preciso considerar que se o indivíduo pode fazer uma
avaliação racional entre alternativas para escolher a que melhor represente suas expectativas,
também pode decidir pela permanência não porque esteja realmente comprometido mas em
troca de benefícios que deseja obter. A questão é que o comprometimento muitas vezes
independe das alternativas presentes na escolha.
Quanto ao componente normativo, entende-se que é possível que o indivíduo se
comprometa quando internaliza as normas e padrões adotados pela organização, pois haverá
então a congruência entre valores pessoais e organizacionais, entre os desejos inconscientes e
imaginários do sujeitos e aqueles representados na e pela organização. Mas, no que se refere à
lealdade (o sentimento de obrigação moral aludido pelos autores concernente ao investimento
percebido sobre si), é necessário, como foi exposto, considerá-lo antes como parte do
componente afetivo do que do componente normativo.
A terceira crítica ao trabalho de Allen e Meyer está relacionada ao foco do
comprometimento. Os autores, em toda a sua análise, referem-se ao comprometimento com a
organização enquanto totalidade, ignorando a possibilidade de haver comprometimento com
8
partes da mesma, com grupos de interesse ou de trabalho, com projetos ou tarefas, ou ainda de
haver a ocorrência de comprometimentos múltiplos e simultâneos. Ademais, está presente no
estudo uma concepção de que o comprometimento é uma atitude permanente, ou seja, uma
vez comprometido, o indivíduo permanecerá assim até que alternativas melhores lhe
apareçam. Esse tipo de raciocínio deixa antever a própria inexistência de comprometimento,
podendo ser melhor caracterizado como envolvimento e aceitação.
2.2. Kanter e o conceito de controle social
Rosabeth M. Kanter (1968:499-500) entende comprometimento como sendo a disposição
para ceder energia e lealdade aos sistemas sociais, sendo que a ligação de sistemas pessoais a
relações sociais são vistas como auto-expressivas. Em outras palavras, comprometimento
significa o processo pelo qual interesses individuais se atrelam aos padrões sociais de
comportamento que são vistos como “adequados aos interesses daqueles, como expressando a
natureza e necessidades da pessoa”. Na visão de Kanter, os atores podem se comprometer não
apenas a normas e padrões mas também a outros aspectos do sistema social. Assim, Kanter vê
a possibilidade de vários focos de comprometimento além do grupo. As bases observadas pela
autora são a cognitiva, avaliativa/normativa e a gratificação emocional (cathectic
orientations). Através das bases, Kanter identificou três tipos de comprometimento:
9
permanecer ou se deixar uma posição, Stebbins (1970) vai definir o comprometimento como
um estado psicológico que surge da presença de ou da iminência de penalidades, associadas
com a tentativa ou desejo de deixar uma posição específica. Na verdade, Stebbins entende o
comprometimento como uma ação para evitar uma penalidade, conceito este que parece mais
apropriado a avaliar a obrigação ou aceitação de uma determinada situação para evitar os
custos envolvidos com a saída.
Além disto, Stebbins utiliza o conceito de permanência tendo como foco não apenas a
organização mas tratando também da idéia de permanência da identidade, o que permite
aceitar a concepção de múltiplos focos. Neste sentido, qualquer situação que coloque em risco
a identidade individual pode ser considerada como o foco – o grupo, a relação social, o cargo,
etc.. A questão crítica, neste caso, está não só na definição de comprometimento adotada,
como igualmente na base proposta, que leva em conta apenas a avaliação de custos
envolvidos, ignorando as demais possibilidades.
2.4. Congruência de valores e interesses: aproximando-se do sentido
Mottaz (1988) procurou demonstrar em seu estudo que, embora haja uma extensa
divergência entre os diversos estudos no que tange aos determinantes do comprometimento
(se são fatores pessoais ou organizacionais), o mesmo é dado em função de ambos:
recompensas organizacionais e valores pessoais. Desse modo, “quanto maior a congruência
percebida entre os valores pessoais e as recompensas maior será o comprometimento. Assim,
o comprometimento organizacional representa uma adequação pessoa-ambiente” (p.470).
Embora não chegue a estabelecer uma tipologia e nem separar bases de comprometimento,
mas apenas a sugerir a importância das expectativas pessoais no desenvolvimento da atitude
de estar comprometido, Mottaz deixa implícita a definição de comprometimento como sendo
uma forma de lealdade oferecida pelo indivíduo à medida que suas satisfações psicológicas e
suas expectativas (que chamou de valores pessoais – work values) são atendidas pelas
recompensas oferecidas pela organização. Diante disso, o comprometimento teria apenas uma
base: a afetiva. O foco da abordagem de Mottaz, a princípio, parece centrar-se ainda na
organização, todavia pode-se interpretar que outros poderiam ser considerados, uma vez que
se parte de expectativas e satisfações.
Contudo, a análise de Mottaz incorre em problemas já mencionados: considerar a base
afetiva do comprometimento (relação expectativa-recompensa) como a única possível; não
partir de uma definição completa do seu constructo teórico, avaliando-o apenas como uma
ligação afetiva do indivíduo à organização, ou seja, uma resposta afetiva (atitude) resultante
de uma avaliação da situação de trabalho.
Esse tipo de concepção também é encontrada no trabalho de Mowday, Porter e Steers
(1979), bastante influente na área, sobretudo pelo seu modelo de investigação empírica,
largamente utilizado. O conceito de comprometimento é visto por esses autores como sendo a
força relativa de identificação e envolvimento de um indivíduo com uma organização,
caracterizada pela aceitação de valores e objetivos organizacionais, pelo desejo de exercer um
esforço considerável pela organização e um forte sentimento de pertença. Para esses autores, o
constructo teórico é atitudinal, ou seja, o comprometimento é uma disposição individual
ativada pela existência de elementos contextuais. Sendo assim, também partem da base do
comprometimento para posteriormente defini-lo. Esta forma de tratar a elaboração conceitual,
muito comum nos autores examinados, é tautológica e, como afirma Becker (1960:35), uma
das formas de evitá-la é “especificar as características do ‘estar comprometido’
independentemente do comportamento comprometido que servirá para explicá-lo”.
2.5. Os pesquisadores brasileiros: os problemas subsistem
No Brasil, autores como Borges-Andrade e Pillati (1999), Bastos (1997), Medeiros et alii
(1999), Antunes e Pinheiro (1999), entre outros, vêm desenvolvendo pesquisas e discussões a
respeito desse assunto, muitos deles baseados nos trabalhos anteriormente analisados.
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Em recente trabalho Borges-Andrade e Pillati (1999) tentaram identificar a influência de
suporte e imagem organizacional sobre o comprometimento atitudinal e comportamental.
Definem o conceito de comprometimento como um vínculo afetivo no qual o indivíduo
compartilha valores, defende e oferece lealdade e interesse para a organização que lhe confere
suporte (atende às suas necessidades materiais e psicológicas). O foco analítico é estritamente
organizacional e a base exclusivamente afetiva, de forma que a análise não leva em conta
outras condições presentes no âmbito organizacional, como as relações pessoais e de trabalho,
as tarefas locais, os envolvimentos grupais, o inconsciente e o imaginário dos sujeitos e outros
fenômenos aos quais os mesmos estão submetidos e/ou comprometidos. Uma análise que
considera apenas o foco organizacional, amplo e indefinido, dificulta as conclusões que se
pode obter a respeito do comprometimento, o que pode ser agravado pela ausência de uma
definição clara e completa do que é estar comprometido. O comprometimento pode ser muito
mais que um vínculo afetivo e, em alguns casos, pode sequer sê-lo.
Medeiros et alii(1999), baseados no trabalho de Allen e Meyer (1990) e de Meyer, Allen
e Smith (1993) afirmam ter encontrado um quarto componente para o comprometimento, o
qual denominam de componente afiliativo. Na verdade, esta quarta dimensão se inclui na base
afetiva pois relaciona-se com o sentimento de pertença e a necessidade de identificação, que é
uma característica do afeto, desde que o conceito deste não seja também reduzido a uma parte
apenas de sua manifestação. O conceito de comprometimento proposto também é tratado com
o sentido de permanência ou vínculo afetivo, o que sugere que aqui também se vai encontrar o
mesmo problema já mencionado de que o conceito do fenômeno é tomado pela sua base.
Bastos, Brandão e Pinho (1997) desenvolveram um trabalho com vistas a construir uma
definição do conceito através dos próprios sujeitos envolvidos. Realizaram uma pesquisa com
servidores universitários buscando determinar, de acordo com o foco, quais eram os
indicadores de comprometimento. Alguns dos indicadores, porém, não logram atingir os
objetivos propostos pelos autores, na medida em que não indicam exatamente o
comprometimento mas diferentes reações do sujeito diante de situações tais como aceitação,
consentimento, interesses pessoais e subordinação consentida, como se pode ver nos
exemplos a seguir:
a. trabalho como foco: os autores incluem neste item cumprir as obrigações e deveres,
realizando tarefas; fazer o que lhe é solicitado; ser pontual e assíduo. Há, neste caso,
uma certa confusão entre comprometimento e consentimento, concordância com
regras gerais, necessidade de ser reconhecido no grupo como seu membro ou mesmo
receio ou medo de sanções punitivas;
b. organização como foco: os autores incluem neste item respeitar a hierarquia, normas e
procedimentos institucionais e obedecer à chefia; buscar crescer profissional e
pessoalmente; ter um contrato de trabalho. Aqui aparece uma confusão entre
comprometimento e obediência, obrigação contratual, interesse pessoal;
c. grupo como foco: os autores incluem neste item o bom relacionamento com os
colegas, o que sugere uma confusão entre características pessoais ou de personalidade
ou de comportamento social com comprometimento.
O problema central neste tipo de análise é de caráter teórico e metodológico. É
questionável que se possa construir uma referência teórica ou conceitual a partir da percepção
que os sujeitos têm de sua ação sem que se tenha pelo menos penetrado na análise do discurso
e de suas motivações inconscientes. Tampouco é recomendável que o que se deseja avaliar
seja estabelecido após a avaliação. Em ambos os casos, os riscos são o de reduzir o real à sua
percepção consciente por parte de determinados sujeitos e o de confundir as medidas do
fenômeno com o próprio fenômeno, riscos estes cuja conseqüência mais evidente é a de
imprecisão conceitual.
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Já o estudo de Antunes e Pinheiro (1999) incorre no mencionado equívoco de considerar
o comprometimento como tendo o mesmo significado que envolvimento – outro conceito de
múltiplos significados. Além disto, os autores adotam o sentimento de obrigação como uma
definição da base normativa de comprometimento. Na afirmação de que os “empregados mais
atentos com as despesas de treinamento ou os que apreciam as habilidades que adquiriram
poderiam desenvolver uma sensação de obrigação” (p.4) para com a organização, pode-se
perceber mais um elemento de gratidão, pelo sentimento de apreço, agradecimento ou
lealdade, ou seja, valores relativos ao afeto, que uma ligação de base normativa. Entretanto, o
fato mais discutível, encontrado de forma menos explícita em outros trabalhos, está na
tentativa de demonstrar que as organizações podem desenvolver políticas e práticas de
envolvimento para comprometer os trabalhadores. Esta conclusão dos autores merece pelo
menos duas ordens de reparos: (a) a primeira refere-se ao fato de que todos os esforços
analíticos na área, como reconhece a quase totalidade dos autores, não foram capazes de
definir com uma certa precisão o que de fato é estar comprometido e quais são
definitivamente as bases e princípios do comprometimento, o que, sem sombra de dúvida,
constitui um sério impedimento para a adoção de estratégias para provocá-lo; (b) a segunda e
principal razão refere-se à suposição de que políticas e práticas de envolvimento possam ser
adotadas com efetividade quando a literatura já tem farta e felizmente demonstrado que os
efeitos das relações reais, simbólicas e imaginárias sobre o ego e o id não geram padrões
comportamentais definidos e homogêneos (DAMÁSIO, 1998 e 1999)
Como se pode deduzir destas observações, o estudo sobre o comprometimento nas
organizações é ainda um processo em construção e que deve estar aberto a outras
contribuições.
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Na segunda situação, o comprometimento se dá pela congruência dos códigos morais e
éticos e dos valores individuais correspondentes, com os códigos e valores correspondentes
pertencentes ao grupo ou à organização, ou ainda pela confirmação desses códigos e valores
através dos resultados, gerando satisfações também à medida que o sujeito sente-se
importante (auto-estima, status) em participar da ação. Segundo Schwartz (1973) a ativação
das normas pessoais se dá quando o indivíduo se torna consciente das conseqüências
benéficas de sua ação; quando as conseqüências de sua ação reforçam suas convicções
pessoais, ou quando o sujeito sente alguma responsabilidade pessoal sobre a ação ou suas
conseqüências.
Na terceira situação, o comprometimento será resultado da satisfação de interesses
objetivos, explícitos ou não, do sujeito (racionalidade instrumental), sendo que neste caso a
remuneração, a premiação e o reconhecimento tornam-se insuficientes para gerar o
comprometimento, de forma que somente o beneficio direto sobre os resultados é que é capaz
de motivar o sujeito a se comprometer com a ação.
No quarto caso, o comprometimento resulta da crença na condição da organização poder
realizar ela mesma, ou de que será através dela que se torne possível realizar, desejos e
idealizações, de forma que o que assegura as relações são os interesses subjetivos, a
identificação e os vínculos estabelecidos pelo sujeito com o grupo ou a organização.
Em síntese, a manifestação do comprometimento está relacionada, de forma não
excludente, ao afeto, aos códigos (valores), aos vínculos e aos interesses subjetivos e
objetivos, desde que, em todos os casos, o que esteja em pauta sejam os objetivos e as
finalidade da ação e o envolvimento do sujeito com a ação e com seus resultados. Entretanto,
estas considerações por si só não são satisfatórias. É fundamental, ainda, considerar que os
estudos sobre comprometimento devem levar em conta pelo menos quatro aspectos:
a. a organização é um sistema vivo, ao mesmo tempo cultural, simbólico e imaginário,
no qual desejos, projetos e fantasias se entrecruzam de forma dinâmica e contraditória
(ENRIQUEZ, 1997);
b. os sujeitos não são seres abstratos movidos por interesses e desejos perceptíveis
apenas nas aparências, na medida em que o jogo entre pulsões existentes na dinâmica
inconsciente também ocorre nos grupos/organizações (KAËS, 1997; KERNBERG, 2000);
c. as relações entre os sujeitos e os grupos/organizações variam conforme os movimentos
de ambos (ZIMERMAN e OSORIO, 1997) ;
d. fatores ambientais, concretos ou imaginários, muitas vezes incontroláveis, são capazes
de alterar, inclusive completamente, as relações dos sujeitos entre si e com os
grupos/organizações (ANZIEU, 1993; CASTORIADIS, 1982).
A proposta apresentada, portanto, assume que o conceito de comprometimento não
pode ser intercambiável com outros conceitos correlatos ou com os derivados de suas bases e
enfatiza dois elementos inseparáveis de um mesmo processo: os referentes às relações em si e
para si mesmas (as situações ou bases) e os referentes aos aspectos relacionais presentes na
manifestação destas relações (as condições). As bases e as condições de manifestação são,
portanto, os elementos constitutivos do comprometimento, de forma que a ausência dos
mesmos nas investigações diminui a capacidade explicativa do fenômeno estudado. Estes
elementos constitutivos são dinâmicos e sua evidência às vezes é contraditória e paradoxal, já
que, ainda que se refiram ao mesmo fenômeno e a ele estejam vinculados, movem-se muitas
vezes independentemente uns dos outros, o que permite sugerir que os estudos acerca do
comprometimento organizacional serão necessariamente prejudicados caso estes elementos
sejam considerados de forma estática e/ou desintegrada nas análises e nas investigações
empíricas.
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CONCLUSÃO
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