ALGUNS PENSAMENTOS
SOBRE UMA ESTRANHA CUMPLICIDADE *
Peter Geschiere**
*
Este artigo é uma versão parcialmente reescrita do artigo em francês intitulado “Sorcellerie et
Modernité: retour sur une étrange complicité”, publicado em Politique Africaine, 79 (2000),
pp. 17-33, numa edição especial de Pouvoirs sorciers, editada por Florence Bernault e Joseph
Tonda. Agradeço enormemente aos editores deste número, e a Jens Anderson, Adam Ashforth,
Jean-François Bayart, Patrick Chabal, Jean e John Comaroff, Jan Kees van Donge, James
Ferguson, Mariane Ferme, Lisa Malkki, Achille Mbembe, Birgit Meyer, Peter Pels e Janet
Roitman por seus proveitosos comentários a respeito das várias versões deste texto. Traduzi-
do do inglês por Fábio Baqueiro Figueiredo.
**
Universidade de Leiden e Universidade de Amsterdã.
1
Ver, por exemplo, a coleção editada por Jean e John Comaroff, Modernity and its Malcontents,
Chicago, University of Chicago Press, 1993; para um panorama recente dos estudos sobre
feitiçaria na década de 1990, ver Diane Ciekawy e Peter Geschiere, “Containing Witchcraft.
Conflicting Scenarios in Postcolonial África”, African Studies Review, vol. 41, no 3 (1998),
pp. 1-14; e Blair Rutherford, “To Find an African Witch: Anthropology, Modernity and Witch-
Finding in North-West Zambia”, Critique of Anthropology, vol. 19, no 1 (1999), pp. 89-109.
2
Em francês no original. (N. T.)
3
Harri Englund e James Leach, “Ethnography and the Meta-Narratives of Modernity”, Current
Anthropology, vol. 41, no 2 (2000), pp. 225-248.
7
Em francês no original. (N. T.)
8
O caráter secreto da feitiçaria — ainda que seja “um segredo público” — torna qualquer tipo
de mensuração ou quantificação bastante precário. Cf. o velho debate antropológico sobre se
a feitiçaria havia aumentado ou, ao contrário, diminuído com a “pacificação” colonial (ver
por exemplo Mary Douglas, “Introduction”, in: Mary Douglas (org.), Witchcraft, Confessions
and Accusations (Londres, Tavistock, 1970), pp. xiii-xxxviii.
9
Radio trottoir (“rádio da rua”, numa tradução livre) é uma expressão utilizada nos países
africanos francófonos para designar um meio informal de comentário político, intriga e fofoca
que se difunde de boca em boca nas ruas e que pode ser considerado como uma variante da
história oral. (N. T.)
10
Em muitas línguas bantos, nganga é utilizado indistintamente para o singular e o plural, em-
bora exista também a forma banganga para o plural. Na tradução portuguesa se optou por
pluralizar a forma do singular com um “s” final. O mesmo critério foi aplicado com os etnônimos
africanos. (N. T.)
11
Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz, Africa Works: the Political Instrumentalization of Disorder,
Oxford, Currey, 1999. Há uma tradução em espanhol, Africa camina: el desorden como ins-
trumento político, Barcelona, Bellaterra, 2001.
12
Peter Geschiere, The Modernity of Witchcraft: Politics and the Occult in Postcolonial Africa,
Charlotsville, University of Virginia Press, 1997.
13
Precisamente devido ao fato de que termos como “tradicional” e “moderno” são tão centrais
para explicações disseminadas sobre a crise na África — o tipo de explicação de que Chabal e
Daloz querem manter distância — parece que eles estão brincando com fogo ao continuarem a
fazer um uso tão amplo dessas noções em seu livro. O leitor pode ignorar as aspas e se sentir
confortável em suas formas familiares de olhar para a África e seus problemas contemporâneos.
14
O título da versão francesa era Sorcellerie et politique en Afrique Noire (“Feitiçaria e política na
África Negra”). Mas o subtítulo, mais intrigante, la viande des autres (“a carne dos outros”),
emergiu de uma forma igualmente espontânea: após ouvir os comentários de Achille Mbembe
sobre diversos capítulos desse livro, Mamadou Diouf afirmou com grande segurança que este
tinha de ser o título. Ainda estou incerto sobre seu significado exato, mas as pessoas parecem
gostar. Quem sabe livros sobre feitiçaria precisem de títulos enigmáticos para fazer justiça às
ambigüidades do tema?
15
Para um tratamento mais detalhado do tema ver Peter Geschiere, “Witchcraft and New Forms
of Wealth: Regional Variations in South and West Cameroon”, in Paul Clough e Jonathan P.
Mitchell (orgs.), Powers of Good and Evil: Social Transformation and Popular Belief (Oxford,
Berghahn 2001), pp. 43-77; e também Geschiere, The Modernity of Witchcraft, em especial o
capítulo 5. Ver também o artigo pioneiro de Edwin Ardener, “Witchcraft, Economics and the
Continuity of Belief”, in Douglas (org.), Witchcraft, Confessions and Accusations, pp. 141-
160, sobre representações similares entre os bakweris do sudoeste de Camarões.
16
Ver especialmente Eric de Rosny, Les yeux de ma chèvre: sur les pas des maîtres de la nuit en
pays Duala, Paris, Plon, 1981; e L’Afrique des guérisons, Paris, Karthala, 1993.
17
René Bureau, “Ethno-sociologie des Duala et apparentés”, Recherches et études camerounaises,
7-8 (1962), p. 142. Eric de Rosny (em uma comunicação oral) duvida que a hipnose tenha um
papel importante uma vez que esta prática não é muito difundida entre os dualas. Mas, tam-
bém para ele, a noção de que se precisa “vender” um dos pais para ter acesso às riquezas do
ekong é o padrão básico nessas representações.
18
De Rosny, Les yeux de ma chèvre, p. 93.
19
Ibid. Nessas regiões a expressão “la sorcellerie des Blancs” (feitiçaria dos brancos) tem por-
tanto um tom muito menos positivo que em outras áreas de Camarões. Por exemplo, os makas,
de Camarões Oriental (onde eu fiz a parte principal de meu trabalho de campo), opõem a
“sorcellerie des Blancs” à “sorcellerie des Noirs” (feitiçaria dos negros). Acredita-se que a
primeira sirva para “construir coisas”, e a segunda “para matar” — uma dicotomia conceitual
grosseira, para não dizer racista. De acordo com Robert Pool, Dialogue and the interpretation
of illness: conversations in a Cameroonian village, Oxford, Berg, 1994, os mbuns dos limites
noroeste das campinas (perto da fronteira com a Nigéria) fazem um contraste similar. Nas
regiões tocadas pelo ekong pouco resta da associação positiva entre brancos e feitiçaria.
20
De Rosny, Les yeux de ma chèvre, p. 92.
21
Ibid.
22
S. N. Ejedepang-Koge, The Tradition of a People: Bakossi, Iaundê, [s.n.], 1971, p. 200; e
Tradition and Change in Peasant Activities, Iaundê, [s.n.], 1975.
23
Apud Heinrich Balz, Where the Faith has to Live: Studies in Bakossi Society and Religion,
Basel, Basler Mission, 1984, pp. 327-28.
24
Charles Alobwede d’Epié, “The Language of Traditional Medicine: a Study in the Power of
Language”, (Tese de Doutorado, Universidade de Iaundê, 1982), p. 80.
25
Ibid.
26
Ejedepang-Koge, The Tradition, p. 202.
27
Balz, Where the Faith has to Live, p. 331.
28
Em inglês, o termo designa uma categoria social específica: aqueles que vivem das rendas
auferidas de propriedades distantes de cuja administração não se inteiram. (N. T.)
29
Michael D. Levin, “Export Crops and Peasantization: the Bakossi of Cameroon”, in Martin A.
Klein (org.), Peasants in Africa: Historical and Contemporary Perspectives (Londres, SAGE,
1980), pp. 221-243, pinta um quadro fascinante de um tipo de farra alcoólica entre os bakossis
durante a disseminação do cultivo do cacau: “A época mais vividamente lembrada é o período
do pós-guerra, com o cacau a preços altos e nada com que se gastar dinheiro. As pessoas
recordam que se compravam lotes contrabandeados de gim e conhaque espanhóis para serem
31
Na década de 1980, a bancarrota e o subseqüente fechamento de diversos bancos foram atri-
buídos de modo geral às retiradas de dinheiro em larga escala dos circuitos oficiais pelos
njangi. Sobre o papel dos njangi na ascensão dos homens de negócios das províncias Ociden-
tal e Noroeste, ver Jean-Pierre Warnier, L’esprit d’entreprise au Cameroun, Paris, Karthala,
1993; e Jean-Pierre Warnier e Dieudonné Miaffo, “Accumulation et ethos de la notabilité chez
les Bamiléké”, in Peter Geschiere e Piet Konings (orgs.), Les itinéraires d’accumulation au
Cameroun (Paris, Karthala, 1993) pp. 33-71. Warnier, L’esprit d’entreprise, p. 198, observa
que, entre os bamiliquês, de maneira característica, o famla é algumas vezes descrito como
“um njangi dos ricos”. Ver também Michael Rowlands, “Economic Dynamism and Cultural
Stereotyping in the Bamenda Grassfields”, in Geschiere e Konings (orgs.), Les itinéraires
d’accumulation, pp. 71-99.
32
Warnier, L’esprit d’entreprise; Warnier e Miaffo, “Accumulation et ethos de la notabilité”; e
Charles-Henry Pradelles de Latour, Ethnopsychanalyse en pays bamiléké, Paris, EPEL, 1991,
todos mencionam o famla, mas apenas brevemente. Patrick Mbunwe-Samba, que produziu o
mais longo texto sobre o famla, tem uma explicação original sobre o motivo de o tema ser tão
pouco estudado: “a palavra famla ganhou uma força mística tamanha que ninguém se atreve a
escrever ou a falar do assunto com medo de morrer”: Patrick Mbunwe-Samba, Witchcraft,
Magic and Divination: a Personal Testimony, Bamenda e Leiden, Afrikastudiecentrum, 1996,
p. 75.
33
Mbunwe-Samba, Witchcraft, pp. 39 e ss.
34
O famla pode portanto ser visto como uma trama oculta na epopéia do “dinamismo bamiliquê”:
cf. o clássico de Jean-Louis Dongmo, Le dynamisme bamiléké, Iaundê, CEPER, 1981. Está
claro que as migrações maciças dos bamiliquês para outras partes do país desempenharam um
papel crucial na ascendência econômica deste grupo, mas os jovens tendem a associar essas
migrações ao famla e aos novos ricos que reinvestem o dinheiro, acumulado na diáspora, em sua
terra natal; para um rapaz, a única solução para escapar a essa pressão é emigrar ele próprio.
35
Mbunwe-Samba, Witchcraft; Cyprian Fisiy, Power and Privilege in the Administration of Law:
Land Law Reforms and Social Differentiation in Cameroon, Leiden, Afrikastudiecentrum,
1992; Fisiy e Geschiere, “Sorcery, Witchcraft and Accumulation: Regional Variations in South
and West Cameroun”, Critique of Anthropology, vol. 11, no 3 (1991), pp. 251-278.
36
Ver Warnier, Echanges, développement et hiérarchies dans le Bamenda précolonial
(Cameroun), Stuttgart, Steiner, 1985.
37
Para um tratamento detalhado das relações complexas entre o fon e o sem (força oculta — em
alguns contextos identificada com feitiçaria, mas nunca com relação ao fon), ver o recente
estudo de Miriam Goheen sobre os nsos (a maior chefia no noroeste de Camarões): Men Own
the Fields, Women Own the Crops: Gender and Power in the Cameroonian Highlands, Madison,
University of Wisconsin Press, 1996. Ver especialmente sua análise matizada sobre o papel de
tais idéias no precário pacto do fon com as novas elites.
38
Em francês no original (N. T.)
39
Ver também Fisiy, Power and Privilege.
40
Warnier, L’esprit d’entreprise, p. 221; e comunicação pessoal, 02/11/1992.
41
Goheen, Men Own the Fields, pp. 145-161.
42
Ver também um texto interessante de Basile Ndjio, “Sorcellerie, pouvoir et accumulation en
pays bamiléké: cas du Ngru”, Yaounde, inédito, 1996, sobre uma série recente de representa-
ções do ngru, um ritual de purificação bamiliquê. Aparentemente esse velho ritual foi subita-
mente revivido em 1994 em diversas chefias rurais na província Ocidental, assim como no
bairro bamiliquê da cidade de Duala. Ndjio interpreta a representação renovada do ritual como
uma tentativa algo desesperada dos chefes de reaver sua autoridade, severamente solapada
por sua estreita colaboração com o regime. De maneira típica, os chefes parecem ter organiza-
do esse ritual com forte apoio das “elites externas” (os “novos ricos” da cidade) e das autori-
dades administrativas. Igualmente típico é o papel desempenhado pelos ngangas (curandei-
ros) como um tipo de intermediários entre esses dois grupos. Um ano mais tarde, Ndjio voltou
aos mesmos lugares e descobriu que, apesar de os chefes e alguns notáveis ainda demonstra-
rem estar satisfeitos por terem executado o ritual, as pessoas em geral se mostravam mais
céticas. Para muitos tratava-se de uma trapaça, que servira apenas para enriquecer os chefes e
os ngangas, e para fortalecer seus laços com as elites externas.
43
Ver também um artigo recente de Jean Comaroff e John Comaroff, “Alien-Nation: Zombies,
Immigrants and Millennial Capitalism”, Bulletin du Codesria, 3-4 (1999), pp. 17-29, sobre o
crescente medo de “zumbificação” na África do Sul; os Comaroff ligam esse medo às preocu-
pações acerca do influxo de força de trabalho de outras partes da África.
44
Bogumil Jewsiewicki, “Pour un pluralsime épistémologique en sciences sociales”, Annales –
Histoire, Sciences sociales, vol. 56, no 3 (2001), pp. 625-643. A citação é da p. 639.
45
Geschiere, The Modernity of Witchcraft; e Ciekawy e Geschiere, “Containing Witchcraft”.
47
Sobre a “globalização” como uma “dialética de fluxo e fechamento”, ver Birgit Meyer e Peter
Geschiere (orgs.), Globalization and Identity: Dialectics of Flow and Closure (Oxford,
Blackwell, 1999).
48
Ver, por exemplo, Florence Bernault e Joseph Tonda, “Dynamiques de l’invisible en Afrique”,
Politique africaine, 79 (2000), pp. 5-17.
49
Michael Taussig, Shamanism, Colonialism and the Wild man: a Study of Terror and Healing,
Chicago, Chicago University Press, 1987.
51
Entretanto, não apenas antropólogos de gerações anteriores tentaram impor classificações rí-
gidas. Em uma recente contribuição, o cientista político francês Comi Toulabor me critica
severamente por negligenciar a distinção terminológica que muitas línguas africanas fazem
entre “feiticeiro” e “mago” — o primeiro inequivocamente maligno, o segundo (na caracteri-
zação de Toulabor) capaz de usar seus poderes especiais de forma mais positiva: Comi Toulabor,
“Sacrifices humains et politique: quelques examples contemporains en Afrique”, in Piet Konings
et al., Trajectoires de libération en Afrique contemporaine (Paris, Karthala, 1999), pp. 207-
223. Em minha experiência tais distinções são certamente enfatizadas em um nível normativo,
mas são sempre muito precárias e circunstanciais quando aplicadas à prática cotidiana. Será
que Toulabor não tende a tomar essa distinção terminológica de forma demasiado definitiva?
52
Ver Geschiere, The Modernity of Withcraft, especialmente o prefácio “The Meanderings of
Anthropological Discourse on Witchcraft” (“Os meandros do discurso antropológico sobre a
feitiçaria”), pp. 215-225.
53
Favret-Saada, Deadly words, que defendeu esses pontos de vista já na década de 1970 (o original
em francês de seu livro é de 1977) — ou seja, consideravelmente mais cedo que as publicações dos
gurus pós-modernos da Antropologia norte-americana (Tyler, Rabinow, Clifford e outros). É sin-
gular que Favret-Saada tenha chegado a tal relativização da realidade antropológica — ela insistia
notavelmente no papel do pesquisador e nas formas com que ele estava implicado por seus infor-
mantes em suas construções da realidade — em um estudo executado “em casa” (na França).
54
Jewsiewicki, “Pour un pluralsime épistémologique”.
55
O artigo de 2001 de Jewsiewicki, “Pour un pluralsime épistémologique”, foi originalmente
escrito como um comentário ao bem conhecido Relatório Gulbenkian sobre o mesmo tema: cf.
I. Wallerstein, C. Juma, E. F. Keller, J. Kocka, D. Lecourt, V. Mudimbe, K. Mushakoji, I.
Prigogine, P. Taylor e M-R. Trouillot, Para abrir as ciências sociais: relatório Gulbenkian
sobre a reestruturação das ciências sociais (Lisboa, Publicações Europa-América, 1996).
56
Para uma discussão mais detalhada dos perigos dessa supersistematização dos estudos so-
bre a feitiçaria e os problemas epistemológicos envolvidos, ver Geschiere, “Regard
académique, sorcellerie et schizophrénie”, Annales – Histoire, Sciences sociales, vol. 56, no
3 (2001), pp. 625-643. O último livro de Jean-François Bayart, L’illusion identitaire, Paris,
Fayard, 1996, mostra com uma avalanche de exemplos bem escolhidos que um problema
epistemológico mais amplo está em jogo aqui; cf. sua caracterização do imaginaire como “o
próprio princípio da ambivalência”.
57
Em francês no original (N. T.).
58
Em francês no original (N. T.).
59
Chabal e Daloz, Africa Works.
60
Ver, por exemplo, o artigo escrito por Jean Comaroff em 1997, que compara explosões recen-
tes de pânico relacionadas a abuso contra crianças e a satanismo — em seu ponto de vista
partes integrais da modernidade no ocidente — à feitiçaria na África: Jean Comaroff,
“Consuming Passions: Child Abuse, Fetishism and the ‘New World Order’”, Culture, 17 (1997),
pp. 7-19. Ver também Comaroff e Comaroff, “Alien-Nation”, e Geschiere, “Of Witch-Doctors
and Spin-Doctors: the Role of ‘Experts’ in African and American Politics”, in Birgit Meyer e
Peter Pels (orgs.), Magic and Modernity: Interfaces of Revelation and Concealment (Stanford,
Stanford University Press, 2003).
61
Jewsiewicki, “Pour un pluralsime épistémologique”.