Conhecimento para
tomada de decisões
Iniciativa da OMS, EvipNet subsidia com
evidências científicas políticas de saúde no país
SAIBA MAIS Elisa Batalha e público interessado no problema.
R
Os temas para os quais são elaboradas as sínteses
EVIPNet Brasil eunião a portas fechadas, em que não são são definidos pelo Conselho Consultivo da EVIPNet
brasil.evipnet.org permitidos celulares e ninguém pode foto- Brasil, formado por setores da gestão em Saúde,
grafar ou ser fotografado, e onde só se entra sociedade civil e academia. Entre as organizações e
Conselho Consultivo
após assinar um termo confirmando a leitura instituições que fazem parte do conselho consultivo
http://bvsms.saude.gov.br/
bvs/saudelegis/gm/2009/ de documentos apresentados previamente. Parece estão Fiocruz, Associação Brasileira de Saúde Coletiva
prt2363_07_10_2009.html segredo de Estado, mas é a metodologia dos Diálogos (Abrasco), Conselho Nacional de Secretários da Saúde
Deliberativos, uma atividade da Rede para Políticas (Conass) e Conselho Nacional de Secretários Municipais
Informadas por Evidências (EVIPNet, sigla em inglês da Saúde (Conasems). Após a produção e validação
para Evidence-Informed Policy Network), iniciativa da síntese, realiza-se a reunião com representantes de
desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde diferentes setores sociais interessados e potencialmen-
(OMS), para promover o uso sistemático de evidências te afetados pelas decisões que vierem a ser tomadas,
de pesquisas na formulação de políticas de saúde, com relativas ao tema abordado. “Trata-se de mecanismo
vistas a melhorar a qualidade do trabalho e a aplicação interativo de compartilhamento. A composição dos
de recursos. “O conhecimento tem que ser usado no diálogos é de justa representatividade”, explica Barreto.
dia a dia”, resume Jorge Barreto, coordenador geral de A tecnologia dos Diálogos Deliberativos, com ên-
Gestão do Conhecimento em Ciência e Tecnologia do fase na representatividade e foco na síntese da evidên-
departamento responsável pela rede colaborativa no cia para discussão, foi desenvolvida na Universidade
Ministério da Saúde (CGGC/DECIT/SCTIE/MS). “O Brasil McMaster, no Canadá, e é utilizada em diferentes
é bastante avançado na pesquisa sobre tecnologias instituições mundiais. “No Canadá, por exemplo, foi
organizacionais e de sistemas e intervenção, mas a de- abordado o envelhecimento populacional”, relatou
Relatório da primeira síntese volutiva não alcança os gestores”, diagnostica Barreto. Nathan. O Brasil produziu sua primeira síntese de evi-
de evidências científicas: Mortalidade materna e perinatal, crack e proble- dências em 2010. O foco foi a redução da mortalidade
mortalidade perinatal no mas nutricionais foram alguns dos temas que impac- perinatal nas regiões Norte e Nordeste. Em 2013, novas
Norte e Nordeste; Diálogo
Deliberativo: metodologia
tam as políticas de saúde sobre os quais os gestores sínteses foram produzidas sobre mortalidade materna
da EVIPNet para melhorar puderam ser subsidiados de evidências científicas com e near miss (complicações no parto ou pós-parto, que
a qualidade do trabalho e a o uso das ferramentas tecnológicas da EVIPNet. Para poderiam ter levado à morte), carência de vitamina A
aplicação de recursos os Diálogos Deliberativos, uma equipe técnica sintetiza e enfrentamento do crack. Foi feita também a revisão
as evidências científicas locais ou globais relaciona- da primeira síntese sobre mortalidade perinatal.
das ao tema definido, em documentos chamados Cada integrante dos diálogos, “seja ele minis-
REPRODUÇÃO
síntese de evidências, como explicou o consultor do tro, conselheiro de Saúde, representante da Opas
Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria [Organização Pan-Americana da Saúde]”, é ouvido
de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos do sob as mesmas condições, como observa Barreto. “Só
Ministério da Saúde, Nathan Mendes, durante a 13ª entra na sala quem tiver lido a evidência científica.
Conferência Internacional sobre Comunicação Pública É um espaço protegido, e ninguém pode associar
da Ciência (PCST 2014), realizada em maio de 2014, o que é dito por uma pessoa a instituições que ela
em Salvador. Existem versões da síntese de uma, três represente”, reforçou. Os diálogos não visam ao
ou 25 páginas, preparadas para os formuladores de consenso e funcionam em três etapas: caracterização
políticas de acordo com suas ocupações e a forma do problema, opções de ações políticas que tenham
como lidarão com elas, sejam gestores, pesquisadores evidências que as embasem, e subsídio para tomada
de decisão, em que o gestor visualiza como imple-
FOTO: EVIPNET BRASIL
Saúde Mental (Abrasme) as razões da direito universal à saúde, uma produ- Cartum 3
persistente ênfase na medicalização e ção acadêmica e científica a serviço da
a volta à demanda por internação em sociedade e a defesa permanente da Voz do leitor 4
comunidades terapêuticas e instituições democracia como princípios.
religiosas, após décadas de reflexão Depoimentos impactantes, regis- Súmula 5
sobre a importância da desinstitucio- trados nesta edição, relembram his-
nalização. Reunidos em Manaus, em tórias de repressão aos defensores da Radis Adverte 8
setembro, defenderam trocar o foco na saúde pública após o golpe civil-militar
Toques da Redação 9
doença, controle bioquímico e tutela de 1964, retratam casos de injustiça
permanentes pela atenção integral e o ambiental por todo o país e denunciam
Capa / Saúde Mental
investimento na autonomia dos usuá- a criminalização de movimentos sociais
rios, a serem respeitados como sujeitos e militantes políticos, ainda hoje, em • Novas formas de prisão 10
de direitos, diversos sob o aspecto “pleno” estado de direito. • Caps do Oiapoque ao Chuí 13
existencial e cultural. O resultado das eleições para o • Entrevista – Paulo Amarante: ‘Queremos
Em entrevista à equipe da revista Congresso Nacional preocupa pelo diminuir a apropriação que a medicina faz
da vida cotidiana’ 14
Radis, Paulo Amarante, presidente da crescimento da bancada conservadora,
Abrasme e um dos pioneiros no movi- geralmente obstáculo à defesa e amplia-
60 anos da Ensp
mento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, ção dos direitos essenciais à saúde. Após
fala sobre a história do movimento uma campanha com propostas e dis- • Seis décadas de ciência, saúde e cidadania 18
antimanicomial e de seu engajamento cussões insuficientes sobre políticas de • Da inclusão pelo consumo à inclusão
pelos direitos 23
pessoal com a Saúde Mental – desde saúde, como analisou o Centro Brasileiro
a denúncia das condições desumanas de Estudos de Saúde (Cebes) em nossa • Estado de direito para quem? 25
dos tratamentos na década de 1970, edição de setembro, a definição da dis- • Documentários retratam injustiça
passando pela confluência com o mo- puta presidencial também não garante, ambiental 27
vimento sanitário dos anos 1980, até de forma automática, os avanços que o
50 anos do golpe
as visões divergentes sobre os rumos setor requer. É fundamental que a im-
que devem tomar as políticas atuais de plementação de qualquer nova proposta • Histórias de repressão na Saúde 28
acolhimento. Ele questiona a apropria- fortaleça o aspecto público e universal
ção e medicalização da vida cotidiana do SUS, sem recorrer à “cobertura” uni- Ciência, Tecnologia & Inovação
por parte da medicina e da indústria versal com repasses de recursos públicos • Área estratégica para a saúde 31
farmacêutica e defende uma mudança para prestadores ou gestores privados,
na base conceitual das novas redes de que tenham o objetivo de lucrar com Serviço 34
serviços, as noções de doença, terapia, a saúde. Alternativas assim não serão
Pós-Tudo
cura e tratamento. soluções permanentes, nem alinhadas
A trajetória de 60 anos da Escola com o ideário da Reforma Sanitária. • Carta de apoio ao processo de
desinstitucionalização de Sorocaba 35
Nacional de S aúde Públic a Sergio
Arouca (Ensp) coincide com a constru- Rogério Lannes Rocha
ção do pensamento sanitário crítico no Editor-chefe e coordenador do Programa Radis
Capa Arte: Felipe Plauska, em homenagem
à produção artística de Arthur Bispo do
Rosário (1909-1989), que viveu por 50 anos
CARTUM na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro,
onde passou a criar, usando sobras de materi-
ais do hospital, obras que seriam classificadas
C.N como arte de vanguarda.
o mapa de atuação das ONGs no Brasil? ir e vir cerceado), fiquei preocupado com
Antirretrovirais Desde já agradeço a atenção! as interpretações que têm sido dadas às
Ciências Biológicas e sempre uso as ma- trapassadas... Ao mesmo tempo, agradecer Caro Ricardo, levaremos sua sugestão
térias da revista como recurso para as o envio da tão conceituada revista Radis, à nossa reunião de pauta. Um abraço!
aulas. Gostaria de sugerir um tema para há quase 20 anos! Formado em Medicina,
ser abordado. Tenho um trabalho sobre a em 15/12/52, exerci a profissão durante dez
atuação das ONGs em temas relacionados anos no interior do Rio Grande do Norte, NORMAS PARA CORRESPONDÊNCIA
a bioética e venho enfrentando dificul- ingressando na FMURN em 1963, como A Radis solicita que a correspondência
dades para encontrar material conciso. professor. Apesar dos quase 62 anos de dos leitores para publicação (carta,
Algumas ONGs me respondem que esse conclusão do curso médico, continuo estu- e-mail ou facebook) contenha nome,
não é o foco do trabalho delas. Vejo que dando e exercendo minha atividade profis- endereço e telefone. Por questão de
algumas só se manifestam quando o sional diariamente. Na Radis nº 143 (pág. 8, espaço, o texto pode ser resumido.
assunto lhes dá visibilidade. Como está Prisões arbitrárias, agressões e direito de
EXPEDIENTE
www.ensp.fiocruz.br/radis
® é uma publicação impressa e online da Documentação Jorge Ricardo Pereira e Sandra
Fundação Oswaldo Cruz, editada pelo Programa Benigno
/RadisComunicacaoeSaude
Radis de Comunicação e Saúde, da Escola Administração Fábio Lucas, Natalia Calzavara e
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp). Osvaldo José Filho (Informática)
USO DA INFORMAÇÃO • O conteúdo da
Presidente da Fiocruz Paulo Gadelha revista Radis pode ser livremente reproduzido,
Diretor da Ensp Hermano Castro acompanhado dos créditos, em consonância com
Assinatura grátis (sujeita a ampliação de
a política de acesso livre à informação da Ensp/
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Rogério Lannes Rocha ou citarem nossas publicações que enviem
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Subcoordenadora Justa Helena Franco Fale conosco (para assinatura, sugestões e
críticas) • Tel. (21) 3882-9118 | Fax (21) 3882-9119 Ouvidoria Fiocruz • Telefax (21) 3885-1762
Edição Eliane Bardanachvili • E-mail radis@ensp.fiocruz.br • www.fiocruz.br/ouvidoria
Reportagem Adriano De Lavor (subedição), • Av. Brasil, 4.036, sala 510 — Manguinhos,
Bruno Dominguez (subedição interina), Elisa Rio de Janeiro / RJ • CEP 21040-361
Batalha, Liseane Morosini e Ana Cláudia Peres
Arte Carolina Niemeyer e Felipe Plauska
REPRODUÇÃO
mil quilômetros, informou O Dia online empresariais e um hotel), além de muitas
(23/9). De acordo com o diretor do Parque “caixas de garagem”.
Nacional da Serra da Canastra, Luiz Arthur O empreendimento imobiliário prevê,
Castanheira, a seca na nascente foi percebi- ainda, um centro educacional ocupando o
da por funcionários do parque, que fazem Francisco, as consequências da seca já são espaço da fábrica. “O projeto é vendido
vistorias no local. “O pessoal mais antigo sentidas. “Com o nível baixo, o oceano está como um grande presente para a cida-
aqui do parque está assustado”, disse. invadindo o rio e salinizando a água doce”. de, uma promessa de modernidade que
Ele explicou que “a situação não chegou A expectativa é que a situação me- esconde sérios problemas”, alerta Lucas,
a esse ponto da noite para o dia. Foi de lhore com a ocorrência de chuvas fortes. explicando que a fábrica é parte da história
forma gradativa”, acrescentando, que, no Para Miranda, não se deve contar apenas da cidade, tratando-se de edifício importan-
entanto, nunca tinha visto a nascente secar. com isso, mas mexer no modelo da bacia te da arquitetura industrial. Foi construída
O presidente do Comitê da Bacia enérgica do rio, realizando “um grande nas terras do Engenho Camaragibe, que
Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), pacto das águas”. Para ele, o poder pú- data de 1549, e a casa grande, conheci-
Anivaldo Miranda, classificou a situação de blico deve tratar a bacia do São Francisco da como Casa de Maria Amazonas, é o
preocupante, informou o portal de notícias como prioridade. “O rio atravessa quase maior símbolo do município, reconhecido
G1 (23/9). “Isso não é comum. Não há 1 milhão de quilômetros quadrados de como patrimônio histórico pela Fundação
dúvida de que algo em grande escala está região semiárida, atende a região Nordeste do Patrimônio Histórico e Artístico de
mudando em nosso ecossistema”, disse. Ele e grande parte de Minas, onde há vulnera- Pernambuco (Fundarpe) e em processo de
lembrou que a redução de volume de água bilidade hídrica”, lembrou, acrescentando tombamento pelo Instituto do Patrimônio
no São Francisco afeta a diversidade bioló- que o Comitê da Bacia do São Francisco Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com
gica e o funcionamento das barragens no vai realizar audiências públicas envolvendo a fábrica, foi criada uma das primeiras vilas
leito do rio. “As principais barragens do Alto Governo Federal, municípios, usineiros, operárias da América Latina. “Se o projeto
São Francisco, Três Marias e Sobradinho, es- mineradores, pescadores e população das for levado adiante, sua paisagem será des-
tão sendo ameaçadas e perto do limite de comunidades ribeirinhas, para discutir o caracterizada”, escreveu Lucas.
volume útil de água”, alertou. No Baixo São futuro da bacia. A importância da fábrica estaria
também em seu legado social, tendo pro-
movido a criação da Corporação Operária
WWF: cresce destruição da biodiversidade de Camaragibe de onde surgiria a primeira
legislação sindical urbana do Brasil, e pre-
REPRODUÇÃO
um poste, espancado e tendo parte da Federal. “Essa ação acaba tendo efeito
orelha arrancada (Radis 138). A âncora educativo não só para a sociedade, mas
afirmou em rede nacional terem sido para as empresas que detêm concessões
“compreensíveis” as práticas do grupo. Na públicas de radiodifusão”.
ação, o MPF pede a veiculação, por dois
dias, durante o mesmo telejornal, de um
quadro com retratação das declarações
A ação ainda seguirá rito judiciário
até um desfecho jurídico definitivo. Mas
sua repercussão, aponta o Intervozes,
E stão definidos os quatro grandes temas
de debates a serem realizados no 11º
Abrascão, em Goiânia (GO), de 27 de julho
de hostilidade contra o adolescente, reaviva na sociedade o debate sobre os a 1º de agosto de 2015: Saúde da popu-
esclarecendo à população “que sua pos- limites do direito à opinião e à expressão, lação brasileira; Saúde, desenvolvimento e
tura de violência e violação da dignidade seja individual, coletivo ou empresarial. democracia; Estado democrático e gestão
humana não encontra legitimidade no A íntegra da ação civil pública pode ser pública da Saúde; e O desafio do SUS uni-
ordenamento jurídico”, registrou o site acessada em: www.prsp.mpf.mp.br versal: rumo a 15ª Conferência Nacional
de Saúde. O congresso se realizará com
novos governantes no país e durante a
Comunicação estratégica elaboração novo Plano Plurianual (2016-
2019) do Governo Federal, tendo-se, hoje,
horários de pico, pode ser necessário que a saúde na pauta da sociedade, após as
você deixe outras pessoas sentarem no seu manifestações de 2013, como lembrou o
colo”. Embaixo, as devidas logomarcas da presidente da Abrasco Luis Eugenio Souza.
Supervia e dos governos estadual e mu- Ele apontou uma dupla missão para o
nicipal, como se fosse uma peça oficial. A congresso: ser espaço de acolhimento de
empresa informou, em nota, que o cartaz pesquisadores, estudantes e professores,
resultou de um dos atos de vandalismo abrindo espaço para que todos os grupos
praticados contra seus trens, cuja segu- e linhas de pesquisa se encontrem; e indi-
REPRODUÇÃO
rança cabe ao Estado, e uma investigação car prioridades do ponto de vista da ação
foi aberta. A repercussão, no entanto, foi política, sintetizando uma orientação para
rápida. O cartaz ganhou as redes sociais, que “os abrasquianos” ocupem lugares de
com milhares de compartilhamentos, intervenção na política pública do país.
Bruno Dominguez
E
nquanto ainda leva à frente o processo de desinstitucionalização, a saúde mental enfrenta novas
formas de prisão: a medicalização e os conhecimentos de uma psiquiatria “vazia”, como afirmaram
referências internacionais no tema durante o 4º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, organizado
pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), entre 4 e 7 de setembro, em Manaus. Em
entrevista à Radis o presidente da Abrasme, o pesquisador da Fiocruz Paulo Amarante, reforça que o que
se busca agora não é eliminar os medicamentos antipsicóticos. “Queremos diminuir a apropriação que a
medicina faz da vida cotidiana”, diz (ver pág. 14).
Sobre medicalização, falou principalmente o jornalista norte-americano Robert Whitaker, na palestra
Anatomia de uma epidemia global: História, ciência e efeitos a longo prazo das drogas psiquiátricas.
Para ele, quanto mais as sociedades usam essas drogas, mais parece haver problemas psiquiátricos. Autor
do livro Mad in America: Bad Science, bad Medicine, and the enduring mistreatment of the mentally
Ill (Loucura na América: Ciência ruim, Medicina ruim, e os contínuos maus tratos ao doente mental),
Whitaker partiu da informação de que, em 1987, 1,2 milhão de adultos recebiam pensão por incapacidades
causadas por transtorno mental nos Estados Unidos; hoje, esse número é de 5 milhões. “E foi exatamente
CRISE DO CONHECIMENTO
Quem também pediu uma sociedade “centra-
da nas pessoas” foi o psiquiatra espanhol Manuel
Desviat, considerado personagem fundamental
no processo de reestruturação da assistência em
saúde mental em seu país. “Imaginar um futuro
diferente para a saúde mental é imaginar uma
sociedade diferente”, disse, sem separar as lutas.
A reforma psiquiátrica planejada 50 anos atrás,
observou, previa um processo social complexo de
Segundo ele, a Finlândia já adota esse método reconstrução de conhecimentos e técnicas. “A crise
desde 1992, com os melhores resultados em longo da saúde mental hoje é a crise do conhecimento,
prazo no Ocidente: usam as drogas de forma sele- porque não conseguimos construir um novo saber”,
tiva e focam nos cuidados psicossociais. Passados avaliou. “Em vez de um lugar para juntar, temos hoje
cinco anos da primeira crise, 80% das pessoas estão pessoas separadas por cor, religião e patologias”.
trabalhando ou estudando — somente 20% estão Na opinião de Desviat, a sustentabilidade do
incapacitados. E com baixa medicalização: dois atual modelo de cuidado depende de novas práxis,
terços nunca foram expostos a medicamentos e se enraizadas na autonomia do paciente e em sua
recuperaram. “Se queremos um sistema de cuidado liberdade, capazes de tomar conta do mal estar
que ajude as pessoas nas crises e também a recu- dos sujeitos. Mas há riscos para o desenvolvimen-
perar suas vidas, temos que repensar a necessidade to de uma “psiquiatria pública alternativa”, como
do uso das drogas”, concluiu. ele mesmo designou: a atuação dos Estados está
Em outra mesa, Imaginando um futuro di- condicionada a interesses de fundos internacionais,
ferente para a saúde mental, Whitaker foi além e os programas de saúde mental têm caminhado
destacou a importância de haver uma mudança to- para ser simplesmente novos ordenamentos de
tal de paradigma. “É preciso reconceber o que é ter territórios e a comunidade não está empoderada
um problema mental”, disse, pedindo humildade suficientemente para participar dessa construção.
DIVULGAÇÃO
D
ção que talvez não pudesse acolher adequadamente
esde o início da década de 1970, o presi- nem a metade disso. Muito mau cheiro, ausência de
dente da Associação Brasileira de Saúde condições mínimas de habitação, descaso, boa parte
Mental, Paulo Amarante, acompanha de dos pacientes nus – isso era comum em hospitais e um
perto as mudanças no cuidado às pessoas dos argumentos era que os pacientes não gostavam
com transtornos mentais. Mais do que isso, parti- de usar roupa, uma verdade, depois de tantos anos
cipa ativamente dessas mudanças, como um dos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa
pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega,
instituições, como ele mesmo afirma, Paulo orientou- João Batista Magro, que também éramos músicos,
-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer começamos a reunir os internos para ouvir música,
uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. quando ainda não se falava em musicoterapia. Então,
“David Cooper observava que a psiquiatria usava o fui chamado por um diretor, que disse não ser digno
mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para um médico tocar violão em uma instituição,
para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi
tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta entrevista que falta de seriedade era aquilo que acontecia no
à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas,
Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial mal cuidadas.
(Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da refor-
ma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. A atividade com música foi intuitiva ou já es-
E defende uma reforma da cultura. “É culturalmente tavam influenciados por autores?
que pessoas demandam manicômio, exclusão, limi- Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco
tação do outro”. Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido,
mas dentro da faculdade certamente não – não se
“A psiquiatria errou por Como surgiu seu interesse pela tocava e ainda não se toca praticamente no nome
psiquiatria? desses autores. Quando apresentei o trabalho de
focar na doença, fato Começou cedo, durante a conclusão da minha especialização em 1978, no Rio,
abstrato, que tomou faculdade [de Medicina], porque fui advertido por estar usando autores contrários
meu irmão já era psiquiatra. Meu pai à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald
como fato objetivo” brincava que a Reforma Psiquiátrica Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando
era uma briga minha com meu irmão, que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas.
já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos
sou um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa
aversão muito grande às instituições. Fui do diretório de ser supostamente homossexual. Como não havia
acadêmico, do movimento estudantil secundarista, fui ninguém para dar lhe alta e, depois, sob o argumento
expulso do colégio... Aliás, tenho uma história longa de que não poderia ser cidadão responsável, ficou
de expulsões; na escola, por causa do movimento décadas internado. Também fiz um filme sobre ele,
estudantil e porque escrevia um jornalzinho com um dos primeiros sobre loucura. O contato com os
questionamentos, denúncias de situações do colégio, autores aconteceu quando vim para o Rio, na Uerj, e
em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde
para mim ser enquadrado. nos reuníamos em grupos de estudos.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Veio para o Rio imaginando que aqui seria
Botelho, onde travou seu primeiro contato diferente?
com a Psiquiatria?
Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, Participaram Rogério Lannes, Eliane Bardanachvili,
periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto Elisa Batalha e Justa Helena Franco
Como lidar com o que se chama de epidemia E como está a rede de atenção psicossocial
de depressão? hoje?
Temos que pensar até que ponto o próprio Desde o início desse processo, levantei a
aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia preocupação com os Caps funcionando em horário
— uma discussão central, que não é feita devido comercial, descontextualizados do território, como
ao controle da produção de conhecimento pela ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma
Psiquiatria e pela indústria farmacêutica. Boa parte oficina de teatro dentro do Caps em vez de usar o
da chamada crise mundial de aumento da depressão teatro da cidade? E não basta transformá-los em
é produzida pela Psiquiatria, que não está se prepa- Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios, quando
rando para evitar, mas para produzir a depressão. Os deveriam ser a substituição. É necessário mudar as
relatórios contribuem para que pessoas se identifi- bases conceituais dos serviços: as noções de doença,
quem como depressivas. Os intelectuais orgânicos terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão
da indústria farmacêutica têm muito claro que é total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou
possível aumentar o número de diagnósticos de sem medicamento. Sempre se tem a ideia de uma
depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar,
muito? Tem ideias de morrer?”. Isso produz identi- apontar que a doença é do indivíduo, está nos
ficação e as pessoas não dizem que estão tristes e neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e
sim que estão depressivas. [Michel] Foucault ensinou tutelar pelo resto da vida.
que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a
produção social da doença. Que reflexões sua doença recente, um câncer
e complicações decorrentes, provocou sobre
No final dos anos 1980 começam a surgir ini- a institucionalização?
ciativas alternativas ao manicômio: em 1987 A doença me marcou muito, por minha posi-
o primeiro Caps e, em 1989, a reforma em ção anti-institucionalizante. Minha experiência com
Santos (SP). Como se pensavam essas novas hospitais é muito negativa: a relação do aparato
formas de cuidado? médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei,
As alternativas — ambulatórios, hospitais-dia, pela perda de autonomia, de identidade. Os profis-
centros de convivência — começaram a aparecer sionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei
no início dos anos 1980, quando deixamos de ser se a expressão é humanizar, porque humanização
oposição e fomos para o Estado de alguma forma. me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a
Em 1987, foi criado o primeiro Caps, em São Paulo, mudança profunda na qualidade da relação com as
com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando
essa concepção de rede, território e integralidade. O nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam,
marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. as pessoas foram voltando para o atendimento clí-
A cidade tinha sua primeira prefeita eleita democra- nico e eu segui com a discussão do direito à saúde.
ticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes A ideia de reforma psiquiátrica é limitada, porque
havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela o que eu buscava era uma reforma da cultura. É
fez uma revolução na prefeitura, nas políticas públi- culturalmente que pessoas demandam manicômio,
cas como um todo. Na saúde, o secretário era David exclusão, limitação do outro. Busquei a transforma-
Capistrano Filho (Radis 143), mentor intelectual do ção da relação da sociedade com a loucura. E mudar
Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele cultura é um processo longo, muito demorado.
U
ma trajetória de seis décadas que se confunde com a história do pensamento sanitário brasileiro:
as comemorações dos 60 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz),
em setembro, foram um convite a olhar para o futuro, sob a inspiração do legado daqueles
que militaram por uma saúde universal no país. O cenário no qual a escola nasceu e viveu suas
primeiras décadas foi contextualizado, em especial, no seminário Nascer e crescer em tempos difíceis,
dividido em dois painéis: Do nascimento à violação, que abordou o período 1954-1969, do suicídio de
Getúlio Vargas à chegada de Médici ao poder na ditadura militar; e Do esvaziamento à retomada, que
se referiu ao período 1970-1979, tratando de Médici à anistia.
A lei que criou a Ensp data de dez dias após o suicídio de Vargas, em momento delicado de crise e
instabilidade política. Ao longo desses 60 anos, o país viu 17 presidentes da República e uma junta militar
chegando ao poder, um golpe de Estado, um impeachment e a morte de um presidente eleito, em uma
caminhada de surpresas, traumas e conquistas para a saúde, trazidos à tona por meio de depoimentos,
OBSCURANTISMO E RESISTÊNCIA
O segundo painel do seminário, abrangendo
o período 1970-1979 e coordenado pelo ex-
-diretor da Ensp Arlindo Gomes de Souza, reuniu
a palestra Da Ensp à Fiocruz, do pesquisador e
ex-professor da escola Akira Homma; dos também
ex-professores Hélio Uchoa, Os cursos descentra-
lizados de saúde pública, e a pesquisadora Ana
Maria Tambellini, O grupo de Campinas, sobre
FOTO: CAROLINA NIEMEYER
O
tituições como Banco Mundial e Fundo Monetário
Brasil fez grandes conquistas na área social, Internacional, entre elas, juros de mercado, privati-
vive um crescimento econômico “menos zações, câmbio flutuante e independência do Banco
perverso”, mas ainda está longe de um Central. “O capital com direito
REPRODUÇÃO
Liseane Morosini auditório e deixaram emergir, não sem dificuldade,
R
memórias de um período que, para eles, equivale
elatos de dor e angústia vieram à tona a uma ferida aberta, já que muitos tiveram o curso
com emoção, na instalação do Núcleo de suas vidas alteradas, sem obter reparações.
da Fundação Oswaldo Cruz da Comissão Convidado pela Comissão a dar seu depoimento,
da Verdade da Reforma Sanitária, em 29 Antônio Ivo de Carvalho, pesquisador e ex-diretor
de setembro. O núcleo, que se juntará aos oitos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
já existentes no país, visa investigar as violações Arouca (Ensp/Fiocruz), relatou que foi preso aos
de direitos humanos ocorridas entre o golpe civil- 21 anos, quando cursava o 3º ano da Faculdade
-militar, em 1964, e a abertura democrática, em de Medicina da Universidade Federal do Rio de
1985. Por meio de depoimentos, vai levantar os Janeiro. “Era início dos anos 1970, a ditadura en-
inúmeros atos de violência física e psicológica durecia à medida que aumentava a resistência”,
promovidos pelo Estado contra trabalhadores da contou. “Quando entrei na faculdade, já havia um
área da Saúde, de forma que se obtenham infor- clima de radicalismo no ar, mas éramos inocentes.
mações sobre aqueles que não tiveram seus direi- Não tínhamos ideia do que era ficar preso, por
tos políticos restaurados, seguem desaparecidos exemplo. Quando nos prenderam, foi como se
ou ainda não foram identificados. Além disso, o tivéssemos sido abduzidos. Nos levavam para
grupo vai relacionar quem são os profissionais que um lugar desconhecido, com capuz. Tomávamos
estiveram do lado do regime militar, colaborando choques, nos jogavam água gelada, sofríamos
de diferentes formas com o aparato de repressão agressões e nunca víamos o torturador”.
do Estado, e aqueles que se organizaram e estabe- O pesquisador disse ainda que sua prisão se
leceram uma rede para atender quem necessitava deu na Rua São Francisco Xavier, na Tijuca, Rio de
de cuidados médicos. Muitos desses médicos eram Janeiro, e que foi pego após a prisão de um amigo
militantes e encontravam lugares para os detidos que, pressionado, delatou os demais. “Fui preso
fazerem exames e serem atendidos em hospitais. com mais de 12 alunos da Faculdade de Medicina,
Ex-presos políticos estiveram presentes no e fiquei seis meses no DOI-Codi [Destacamento de
Operações de Informações do
Centro de Operações de Defesa
Interna]”, revelou, ressaltando
que fez o que achava que devia
ser feito.
Segundo Umberto
Trigueiros, diretor do Instituto
de Comunicação Científica e
Tecnológica (Icict/Fiocruz) que
integra o núcleo da Fiocruz, somente agora as a finalidade é a mesma: colocar o cidadão como
pessoas começam a superar traumas e a ganhar alguém inferior”.
confiança para contar suas versões sobre a dita- Segundo a presidente da Comissão da
dura. “É neste momento também, com grande Verdade da Reforma Sanitária, Ana Maria
dificuldade, que as comissões da Verdade estão Tambellini, ela mesma ex-presa política, a justiça
tendo acesso às instituições militares, indo fazer será feita apenas quando o dedo for colocado
reconhecimento dos locais de onde pessoas desa- na ferida. “A verdade vai aparecer se os cidadãos
pareceram ou foram vítimas de tortura, segundo brasileiros derem seus depoimentos. Por meio de-
os relatos históricos”, disse. les, nós já sabemos que a tortura foi praticada em
A violência e o cerceamento de liberdade no hospitais, mas os torturados ainda têm receio de
presente também foram mencionadas. O diretor contar suas histórias. Temos que ter força e encarar
da Ensp, Hermano Castro, lembrou a prisão do essas questões, exercer nosso direito democrático.
professor da escola Paulo Bruno, que registrava É por isso que estou nesta comissão”, afirmou.
as manifestações, e de um grupo de pessoas que . Ana Maria lembrou da intervenção militar
foram perseguidas e presas na véspera da Copa do sofrida pela Fiocruz no episódio do Massacre de
Mundo. “Eles tiveram seus direitos civis ignorados. Manguinhos, em 1970, em que dez pesquisadores
Hoje, temos pequenas variações tecnológicas, mas foram compulsoriamente aposentados. “Eles eram
crevendo a lápis e apagando com os relatos. “Só assim teremos uma história que
borracha, o tempo inteiro. Só que corresponda minimamente aos fatos, que é o que
eles não escreveram a lápis, escre- não temos hoje”, disse Nadine.
veram a caneta”, comentou. Fazendo uma relação entre passado e pre-
De acordo com Nadine, todo o sente, ela vê hoje também um não registro oficial
material levantado será registrado e por parte do Estado de ordens de prisão, blitzes
vai ser entregue ao Arquivo Público da polícia e mandatos de segurança expedidos.
do Estado do Rio de Janeiro e ao “Nas comunidades sequer há necessidade desse
governo do Estado, aos quais se- tipo de ordem”, observou. Para Nadine, o Estado
rão feitas também recomendações não dá oficialidade a essas ações para que não
para que preservem a memória da se responsabilizar pelas violações ocorridas. Ela
ditadura por meio, por exemplo, da criticou, ainda, a militarização ocorrida no Rio
indicação dos logradouros públicos de Janeiro. “Se não julgarmos esses casos, tere-
que funcionaram como aparelhos mos outros Amarildos”. Nadine criticou também
da tor tura. Será recomendado aqueles que dizem que os torturados também
também que o período da dita- devem ser julgados. “Os torturadores nunca foram
dura seja inserido em conteúdos julgados, ao contrário dos opositores do regime
didáticos visando à formação de militar, que foram presos, sofreram tortura, foram
estudantes. “É preciso colocar nos assassinados ou estão sumidos até hoje”.
ÁREA ESTRATÉGICA
PARA A SAÚDE
Atividade preparatória Elisa Batalha
U
da 15ª CNS, seminário m grande balanço da trajetória e um debate
sobre o futuro marcaram o seminário 20 anos
faz balanço da de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde,