[ Organizadores ]
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2014
Seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
18 a 20 de março de 2014
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
[ Reitor ]
Jaime Arturo Ramírez
[ Vice-reitora ]
Sandra Regina Goulart Almeida
[ Diretor da FAFICH ]
Fernando de Barros Filgueiras
[ Vice-diretor da FAFICH ]
Carlo Gabriel Kszan Pancera
[ Comissão organizadora ]
[ Apoio ]
Seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não
esquecer (2014 : Belo Horizonte, MG)
S471a Anais eletrônico do Seminário 1964-2014 : um olhar
crítico, para não esquecer [recurso eletrônico] / Organizado
por Rodrigo Patto Sá Motta, Miriam Hermeto Sá Motta,
Gabriel Amato Bruno de Lima . - Belo Horizonte :
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2014.
ISBN: 978-85-62707-55-1
CDD: 981.063
CDU: 981.063
[ Sumário ]
Apresentação ........................................................................................................................ 3
Textos .................................................................................................................................... 6
“É o caos, o caos que está instaurado em volta e dentro de mim”: Dias Gomes e as
reflexões sobre o papel dos artistas e intelectuais após 1985 – Aline Monteiro de
Carvalho Silva ........................................................................................................... 26
O Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) nos autos dos Inquéritos Policiais
Militares (IPMs) produzidos pelo Regime Militar Brasileiro (1964-1985) – Fábio Silva
de Souza...................................................................................................................189
Leonel Brizola: rumo a Guanabara (1962) – Graziane Ortiz Righi .......................... 273
Os Clubes 4-S de jovens rurais durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil
(1964-1970) – Leonardo Ribeiro Gomes.................................................................. 313
Reparação e afeto: a luta pela memória no documentário feito por parentes de presos
políticos no Brasil – Luciana Carla de Almeida........................................................ 336
[ Apresentação ]
Neste momento – em que se completa o cinquentenário do Golpe de 1964 – vivemos
condições propícias para análises menos afetadas pelo calor de um dos eventos políticos
mais traumáticos da história brasileira do século XX. O distanciamento no tempo favorece
um olhar mais analítico e menos passional, ainda que interessado politicamente e
compromissado com o repúdio à violência e ao autoritarismo.
Em que pese essa constatação sobre o distanciamento temporal, os temas
relacionados ao Golpe e à Ditadura continuam plenos de atualidade, já que alguns aspectos
do seu legado seguem nos interpelando e permanecem à espera de soluções satisfatórias:
o autoritarismo que continua impregnando certas relações sociais; a democratização
incompleta do Estado e da sociedade, parte dela ainda incapaz de exercer a cidadania
plena; os níveis elevados de violência social e policial que nos assolam; as desigualdades
sociais (de renda, de educação, de acesso à justiça) extremas que ainda caracterizam a
paisagem brasileira. Seria um equívoco atribuir à Ditadura a culpa pelo surgimento de tais
problemas, visto que eles fazem parte das estruturas da nossa sociedade há muito tempo.
No entanto, o Golpe interrompeu um processo político que poderia ter levado ao
enfrentamento de algumas dessas questões, já que segmentos populares estavam se
organizando e demandando sua inclusão política e social. Mais ainda, as políticas
implantadas pela Ditadura contribuíram para agravar sobremaneira as desigualdades
estruturais da sociedade brasileira.
A atualidade da Ditadura deve-se também ao impacto duradouro, portanto, ainda
visível entre nós, das políticas de modernização implantadas naqueles anos, que, até certo
ponto, distinguem o caso brasileiro dos regimes políticos semelhantes vigentes nos países
vizinhos pela mesma época. Os militares brasileiros e seus aliados civis lograram
deslanchar um processo de modernização que implicou mudanças importantes na
infraestrutura do país, com repercussões principalmente na economia, nas comunicações,
no aparato tecnológico e científico, na indústria cultural, entre outros. No entanto, tal projeto
modernizador teve como par inseparável a conservação dos pilares tradicionais da ordem
social, cuja base é a exclusão (política e social) perene das camadas subalternas. Uma
modernização conservadora, portanto, e acima de tudo autoritária, já que os projetos de
desenvolvimento foram comandados pela tecnocracia civil e militar, e as dissensões que
não eram passíveis de cooptação foram entregues à máquina repressiva (também ela
modernizada naqueles anos).
O contexto atual é também propício para esta reflexão, tendo em vista o
aquecimento das “batalhas de memória” sobre o período. Há alguns anos vem sendo
debatida uma espécie de vitória simbólica dos “vencidos”: se os militares venceram no
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campo político durante os anos da ditadura, a memória social que se construiu sobre o
período, no processo de redemocratização, tem marcas mais presentes das esquerdas,
tanto no que tange ao reforço do par resistência/dominação, quanto na construção de um
imaginário que encerra nos anos 1964-1985 certos males da sociedade brasileira – como a
tortura, a violência do estado, as políticas públicas que fomentam a desigualdade social. No
campo da historiografia, essa vitória simbólica vem sendo questionada há alguns anos com
estudos que tratam da temática de maneira mais complexa. No que tange à memória social,
no entanto, esse debate ganhou corpo mais recentemente, especialmente em função da
política de memória que vem sendo implementada, em níveis federal e estaduais, nos
últimos anos, com a tentativa de rever os processos de anistia e a construção de uma justiça
de transição – com instituição de comissões de verdade.
Exatamente por sua atualidade e relevância, a Ditadura Militar tem sido objeto de
inúmeras investigações (acadêmicas e jornalísticas), atraindo cada vez mais jovens
pesquisadores formados nas Universidades. O incremento nas pesquisas com enfoque na
Ditadura salta aos olhos, se comparamos o quadro atual com a última efeméride relevante,
a dos quarenta anos do Golpe em 2004. Nos últimos anos, muitos trabalhos têm aparecido
no cenário acadêmico, por vezes explorando sendas originais a partir de novos enfoques,
em outros casos baseando-se nos acervos documentais abertos recentemente à pesquisa.
Tendo em vista esse cenário acadêmico e político, propomo-nos a organizar o
seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em História da FAFICH/UFMG. Nosso propósito foi o de reunir
pesquisadores da casa com convidados externos, na expectativa de contribuir para o debate
acadêmico sobre o tema. Entre os dias 18 e 20 de março de 2014, cerca de trezentos
inscritos assistiram a seis mesas redondas sobre os temas do golpe; da ditadura e o cenário
internacional; dos embates culturais e intelectuais; das relações entre a história e a
memória; dos movimentos sociais e ativistas contra a ditadura; e, por fim, da transição e dos
desafios da democratização.
Em contraste com eventos anteriores, desta feita decidimos abrir inscrições para a
apresentação de trabalhos de pós-graduandos e pós-graduados cujas pesquisas
abordassem temas relacionados ao evento. Esse gesto deveu-se à percepção do
incremento nos trabalhos acadêmicos sobre o golpe e a ditadura, e também à convicção de
que os jovens pesquisadores têm muito a oferecer à historiografia dedicada a tais objetos.
Selecionar os trabalhos inscritos foi uma tarefa árdua, já que recebemos um número
elevado de propostas (140, no total), provenientes de todas as partes do país. Mas ficamos
contentes pelo interesse despertado pelo evento, e pela oportunidade de reunir tantos
pesquisadores engajados no estudo do golpe e da ditadura. Diante do espaço e tempo
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[ Textos ]
Introdução
Durante os conturbados anos 60, a Música Popular Brasileira (MPB) traz para seu
âmbito questões ideológicas, sociais e políticas, que muitas vezes se confundem com as
discussões estéticas da canção. Expressão artística com uma grande potencialidade para
se comunicar com as “massas” ela era pensada como algo que poderia contribuir de forma
eficaz para formação de uma brasilidade autêntica e legítima; era essa a percepção dos
agentes envolvidos na construção dessa instituição1.
1
A questão da MPB ser uma instituição, mais que um gênero musical, é colocada por Marcos
Napolitano em seu livro Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). Para ele a MPB consegue agregar inúmeros ritmos e gêneros musicais diferentes. Assim o
que faz com que toda essa diversidade seja agregada em apenas uma sigla se da muito mais em um
nível sociológico e ideológico.
2
O espetáculo Opinião foi uma tentativa de unir esses dois mundos e a classe média, visto que em
seu projeto, original, unia Nara Leão, representando a classe média, João do Vale representando o
nordeste e Zé Keti representando o samba do morro carioca.
3
Tal análise é baseada na teoria do romantismo revolucionário, criado por Michel Lowi e Robert
Sayre, citado por Marcelo Ridenti em seu livro Em busca do povo brasileiro: Artistas da revolução, do
CPC à era da TV.
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Para o autor, não se deve pensar o Nordeste como um espaço geográfico possuidor
de uma realidade pura e simples, a qual artistas, cientistas e políticos se debruçam para
alcançá-la; não se deve pensar que existe um verdadeiro Nordeste a ser alcançado pela
produção intelectual. Antes disso deve-se analisar a região como algo que se constrói e se
reconstrói a cada discurso que toma o tema como ponta de partida.
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projeto musical brasileiro, o outro sente que o seu trabalho foi derrotado, o que significa isso
para história musical, cultural e política do Brasil? Vale ressaltar que tanto Vandré como Gil
são nordestinos, e trazem memórias e referências artísticas do lugar onde nasceram, mas
trabalham cada um a seu modo sobre um mesmo material.
Uma análise sobre a produção desses artistas pode iluminar questões relevantes
sobre a história dos anos iniciais da ditadura militar brasileira. Para tal análise e para o
entendimento mais fácil do trabalho irei analisar as canções de Geraldo Vandré primeiro,
depois as de Gil, para que posteriormente seja traçado um paralelo entre as obras. Vale
ressaltar que no trabalho de conclusão de curso apresentado em, 2013, para o curso de
especialização, História e Culturas Políticas, da UFMG, do qual esse artigo é derivado,
foram analisadas 12 canções, aqui serão analisadas apenas 4.
Rimar amor e dor é uma constante para Vandré como ele mesmo deixa claro na
primeira faixa Terra Plana, que abre sendo declamada tendo uma viola ao fundo:
Meu senhor, minha senhora // Me pediram pra deixar de lado toda tristeza /
pra só trazer alegrias e não falar de pobreza / e mais, prometeram que se eu
cantasse feliz / agradaria com certeza / eu não posso enganar / misturo tudo
que vi / canto sem competidor / partindo da natureza do lugar onde nasci /
faço versos com clareza; / a rima, belo e tristeza / não separo dor de amor /
deixo claro que a firmeza do meu canto / vem da certeza que tenho / de que o
poder que cresce sobre a pobreza / e faz dos fracos riqueza / foi que me fez
cantador.
Nesse trecho podemos verificar várias características de sua obra. A arte para ele
possui um imperativo ético de denunciar a miséria do povo brasileiro, para se fazer esse
trabalho ele parte da terra onde nasceu, a Paraíba:
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O Nordeste é o espaço em que se encontra uma gente pobre, mas forte, capaz de
lutar e de oferecer resistência, e o que é mais interessante é que ele enxerga nos
nordestinos um povo querendo se organizar como é característico da visão do romantismo
revolucionário que imperava nos anos 60:
Logo em seguida a canção vai tocar em outro tema recorrente nas produções
voltadas para a temática nordestina, a religiosidade:
A primeira canção de Gil a ser analisada será Coragem pra Suportar, ela trata do
sertão nordestino e ainda é bem calcada no estilo de canção típico do nacional-popular. O
nordestino nesta canção é visto como forte e valente, lembrando a consideração de Euclides
da Cunha que cunhou a célebre frase; “O sertanejo é antes de tudo um forte” aproximando-
se das composições de Vandré e de tantos outros artistas da MPB. Mesmo porque a letra
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10 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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data de 1964, período em que Gil ainda era claramente influenciado pelo nacional-popular
em seu trabalho. O que é inovador nessa canção é a presença da expressão do som
universal, marcada pela guitarra de Sérgio Dias e na melodia que o baixo faz ao fundo. Tal
composição melódica é permeada da influência dos Beatles.
A letra também carrega a influência de João Cabral de Mello Neto, passando uma
mensagem direta sem rodeios, “uma coisa tosca, esculpida brutalmente, bonita” (Gil, apud
Rennó, 2003, p,61):
Lá no sertão quem tem /Coragem pra suportar/Tem que viver pra ter
/Coragem pra suportar/E somente plantar/Coragem pra suportar (...)//Ou
então vai embora/Vai pra longe e deixa tudo/Tudo que é nada.
A canção Procissão, talvez seja uma das mais estudadas obras de Gilberto Gil, ela já
havia sido lançada em seu disco anterior, mas com um arranjo totalmente diferente do disco
de 1968. A sua produção antiga ainda é bem calcada nos moldes do nacional-popular, ela
reproduz a religiosidade presente no interior nordestino e tem como inspiração a sua
memória pessoal, já que na sua cidade natal era recorrente essa manifestação religiosa.
Portanto a referência dele não era apenas feitas em cima de discursos realizados por
outros artistas, mas de uma memória pessoal. No entanto a segunda versão, apresentada
no disco em questão, parece parodiar a primeira, ao colocar distorções de guitarras e ritmos
pop, que foram acrescentados pelos Mutantes. Gil ainda sobrepõe a sua visão infantil sobre
as procissões religiosas acrescentando uma visão esquerdista a essa:
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Assim o que era arcaico na cultura nordestina, o que era tradicional, não era
rechaçado pelos tropicalistas, mas comentado em suas canções de maneira distinta das
composições tipicamente nacionalistas. O Nordeste aqui não é avesso à modernidade, mas
também não existe uma divisão clara entre o arcaico e o moderno: antes uma comunhão
entre os dois elementos. A procissão, arcaica, junto a uma crítica esquerdista contra
alienação, e a modernidade cosmopolita pop, se une em torno de uma mesma canção.
(...)Muita gente se arvora a ser Deus/E promete tanta coisa pro sertão/que
vai dar um vestido pra Maria/Que vai dar um roçado pro João/Entra ano e sai
ano e nada vem/Meu sertão continua a Deus dará,/Mas se existe Jesus no
firmamento,/Cá na terra isso tem que se acabar.
Isso nos remete à crítica feita por Albuquerque Jr, ao afirmar que o Nordeste surge
do reconhecimento da derrota e que por isso existe a necessidade de tutelá-lo.
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Conclusão
(...) Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela
se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os
que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se as classes
dominantes, como seu instrumento. Em cada época é preciso arrancar a
tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar
no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(BENJAMIN, 1994, p. 224).
Geraldo Vandré, mesmo não sendo o historiador a quem Benjamin faz referência,
trabalha com o passado e a tradição e tenta resgatá-la como uma forma de luta contra o
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opressor - que para ele seriam as forças capitalistas estrangeiras que atuavam em diversas
áreas, inclusive na esfera cultural exportando para as regiões periféricas do capitalismo
suas formas. Na música isso se daria na influência do pop britânico e norte americano que a
cultura nacional estava sofrendo. Trabalhar sobre o material tradicional brasileiro, mais
especificamente o nordestino, era reacender a centelha da esperança, era criar uma contra-
hegemonia cultural, capaz de combater o imperialismo yankee.
Referências
1) Bibliografia
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife:
Massangana; São Paulo: Cortez.
BASTOS, Elide Rugai; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e
política, Brasil-França. São Paulo: Cortez, 2003.
BENJAMIN, Walter. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá; NASCIMENTO, Adalson de Oliveira; COSTA, Adriane Aparecida
Vidal; et al. Culturas políticas na história: novos estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.
ISBN: 978-85-62707-55-1
14 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
RENNÓ, Carlos (org). Gilberto Gil, todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
RISÉRIO, Antônio. O solo da sanfona: contextos do Rei Baião. Revistausp, São Paulo,
1989/1990
SILVEIRA, Dalva. Geraldo Vandré: a vida não se resume em festivais. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2011.
2) Discografia
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Introdução
1
O Estado de Pernambuco está dividido em 5 Mesorregiões: Metropolitana do Recife, Mata
Pernambucana, Agreste, Sertão e São Francisco.
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Tão logo o golpe de 1964 tornou-se vitorioso, a reforma agrária, como política de
desenvolvimento do campo, seria abortada, o governo militar expressaria um novo momento
da discussão nacional sobre distribuição das terras. Inicialmente, encamparia o discurso da
reforma agrária, mas, ao mesmo tempo, apaziguaria os ânimos dos latifundiários, ao torná-
la de difícil execução.
Vale salientar que a intensa essão das elites rurais contra qualquer processo que
visasse uma melhor distribuição de terras ocorreu em todo o território nacional, e não só no
“Nordeste oligárquico e atrasado”. Contendo em seu texto diferenciações entre as regiões, o
Estatuto da Terra parecia confirmar que o problema agrário se concentrava na região menos
desenvolvida, quando, de fato, a luta pela terra se desenrolava de norte a sul do país.
A Agricultura do Sertão
2
No sistema gado/algodão o algodão ocupava as áreas mais úmidas da propriedade, deixando para
a pecuária extensiva à zona mais seca. Em geral, após a colheita, os resíduos eram transformados
em pasto para os animais. As relações de trabalho eram diversificadas. Havia a sujeição, em que o
trabalhador morava na terra e dispunha de uma pequena área para plantar e pagava por esse
“arrendamento” com parte dos bens produzidos e com trabalho para o latifundiário. Na parceria, o
aluguel da terra era pago com apenas um produto: o algodão, ficando vetadas outras culturas por
serem menos rentáveis. No arrendamento propriamente dito, o pagamento era em dinheiro, mas, só
na aparência, o rendeiro tinha mais liberdade, uma vez que não podia plantar o que quisesse e sua
renda monetária era tão escassa que apenas pagava o arrendamento e, em geral, terminava por ter
que trabalhar para o proprietário alguns dias por semana, em troca de um pequeno salário ou comida.
Por fim, havia o trabalho assalariado.
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agrícolas. Esse processo ganharia força durante o regime militar, ficando conhecido como
“modernização conservadora”. Martins (2008, p. 49) define bem o fenômeno:
Essa assimetria entre o grande e o pequeno proprietário, não foi, todavia, fruto,
apenas, da disparidade de renda, o fato do Estado ter sido capturado pelas oligarquias, que,
aliás, sempre ocuparam uma posição central na estrutura do poder, aumentou essa
disparidade, ao concentrar os investimentos na grande propriedade. A forma da relação do
Estado com os diversos agentes sociais e a estrutura agrária, então existentes, parecem ter
sido elementos decisivos para que a tecnologia fosse relativamente neutra na questão da
concentração de renda ou até na amplificação desse processo. O ineficiente acesso a bens
imateriais, como educação, foram mais importantes, sobretudo num ambiente de maior
intensidade tecnológica.
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O Projeto Sertanejo
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produtores com pouco menos de 100 ha e, sobretudo, produtores que possuíam entre 100 e
500 ha. Os produtores não proprietários e os trabalhadores sem terras foram, logo de início,
excluídos, não tinham como oferecer garantias ao sistema de crédito. Segundo Carvalho
(1987, p. 211) o Projeto Sertanejo,
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Por sua vez, o Ministério do Interior (VASCONSELOS, 1983), chamou atenção para
uma série quase interminável de deficiências de ordem técnico-administrativas que
prejudicavam ainda mais o Projeto Sertanejo, destacando, entre elas: i) instabilidade
funcional do pessoal contratado, ii) diferentes normas administrativas no tocante a salários,
diárias, etc, iii) localização inadequada de algumas sedes de núcleos, iv) tetos financeiros
definidos de forma aleatória sem prévio estudo, v) utilização de recursos do programa como
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A partir de 1983, o Projeto Sertanejo deveria ser absorvido pelo Projeto Nordeste, o
que não ocorreu. O Projeto Sertanejo foi um conjunto de oportunidades perdidas. Lutando
contra a falta de recursos financeiros que terminaram por decretar sua extinção.
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3
Os dados desse tópico estão em Departamento Nacional de Obras Contra as secas – DNOCS,
1977a e DNOCS, 1977b.
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Com isso, as poucas oportunidades que surgiam não podiam ser bem aproveitadas
pela população de baixa renda, espremida entre o latifúndio, o analfabetismo e as péssimas
condições de saúde. O sistema de Extensão Rural não era capaz de superar essas
deficiências e, talvez, nem almejasse, ligado que estava aos grandes proprietários de terras.
Tendo por base esse contexto o Projeto Sertanejo visava “a reestruturação das explorações
familiares de tamanho adequado, previamente estabelecidos, capaz de serem explorados
racionalmente, dando melhores condições ao pequeno e médio agricultor de resistir aos
períodos de estiagem” (DNOCS, p.62, 1977a)
Isso, por si só, não seria fácil, pois os projetos desenvolvidos pelo Sertanejo
envolviam vários órgãos e empresas federais e estaduais: DNOCS, EMBRATER, BB, BNB,
INCRA, entre outros –, totalizando 14 entidades diferentes que teriam que funcionar
interligadas com bastante precisão. Evidente que os projetos desenvolvidos em Custódia e
Salgueiro, como outros do Sertanejo, não atingiram os objetivos do programa, não lograram
alcançar a reestruturação fundiária nem mudar a realidade do pequeno agricultor.
Considerações Finais
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Referências
CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de. O Nordeste e o Regime Autoritário: discurso e prática
do planejamento regional. São Paulo: Hucitec, 1987.
FOLHA DE SÃO PAULO. Tecnologia sofisticada contra as secas do NE. Folha de São
Paulo, São Paulo, 12 de maio. 1976, primeiro caderno, p. 13.
ISBN: 978-85-62707-55-1
25 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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MELO, Mário Lacerda de. Regionalização Agrária do Nordeste. Recife. SUDENE, 1978.
ISBN: 978-85-62707-55-1
26 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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“É o caos, o caos que está instaurado em volta e dentro de mim”: Dias Gomes e as
reflexões sobre o papel dos artistas e intelectuais após 1985
Este artigo pretende versar brevemente, através da obra Meu Reino por um Cavalo,
sobre a produção de Dias Gomes no período da redemocratização e restabelecimento da
democracia plena no país. O dramaturgo era, nos anos de 1950, 1960 e 1970, conhecido
por suas obras teatrais e televisivas críticas a situação do país, ao governo, a política, e etc..
Nos anos de 1980 e 1990, refletiu, através da ficção e da literatura sobre o papel dos
intelectuais e artistas atuantes no período anterior e sua função dentro da nova realidade do
país.
Escrita em 1988, Meu Reino por um Cavalo foi uma das primeiras obras produzidas
pelo autor durante as duas últimas décadas de vida, onde apareceram questões que
mostravam como o autor lidava com a nova realidade que se apresentava a ele, ao país, ao
mundo. A questão da memória, da trajetória de Dias Gomes, das preocupações do presente
em relação ao passado, da função do artista e intelectual no pós-ditadura militar, tanto
através da personagem fictícia e quanto a do próprio dramaturgo, são caras a este trabalho.
Pretendo então pensar os cruzamentos entre a trajetória do autor, os questionamentos
sobre sua função na nova realidade política e social brasileira dentro do contexto da
redemocratização e consolidação da democracia.
Dias Gomes nasceu na Bahia, em 1922, mudando-se com a mãe para o Rio de
Janeiro ainda na adolescência. Escreveu sua primeira peça aos quinze anos; aos dezoito
anos já estava escrevendo para a companhia de teatro de Procópio Ferreira. Poucos anos
depois saiu da companhia e começou trabalhar em São Paulo na emissora de rádio de
Oduvaldo Vianna (Pai). Foi nesse período na capital paulista que filiou-se ao Partido
Comunista Brasileiro, de onde viria a se retirar na década de 1970. A carreira do dramaturgo
ganhou vulto concomitantemente ao crescimento e a afirmação do Teatro Brasileiro
Moderno e sua vertente mais popular.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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de reconhecido teatrólogo a escritor de telenovelas. Em fins dos anos de 1980, Dias Gomes
decidiu parar de escrever novelas, voltando dedicando-se ao teatro e às minisséries
televisivas. Morreu em 1999, em meio adaptação de sua peça Dr. Getúlio, sua Vida, sua
Glória para a tevê.
1
Otávio Santarrita é assim descrito pelo autor: “[...] Otávio Santarrita tem mais de cinquenta anos,
mas aparenta bem menos. Espírito inquieto, ultra exigente consigo mesmo, obcecado pela ideia fixa
de se superar sempre e consciente de sua responsabilidade como intelectual. A crise em que se
debate advém de tudo isso”. Ressalto que a questão do intelectual, de sua função na sociedade, a
autocrítica ao seu papel, tem espaço nas obras de Dias Gomes desde fins dos anos de 1960, em
peças como Amor em Campo Minado (ou Vamos Soltar os Demônios) (1969) e Campeões do Mundo
(1979). (GOMES, 1989, p. 13.)
2
“Selma é uma mulher bonita, nos seus quarenta e cinco anos, elegante, inteligente, personalidade
ofuscada pela personalidade mais forte de Otávio. Tem consciência disso, o que motiva um tom
sempre crítico e ressentido em relação a ele”. (GOMES, 1989, p. 14.)
3
“É uma bela mulher de quarenta anos, com o fascínio pessoal das primeiras atrizes. Alia beleza e
sensualidade. O fato de colocar tudo em função de sua carreira não faz dela uma pessoa calculista
ou interesseira”. (GOMES, 1989, p. 22.)
4
O filho do casal é inserido na peça e descrito de maneira a mostrar rebeldia, revolta: “Entra um rock
pauleira. Som altíssimo. [...] Tavinho entra dançando. Vamos chamá-lo de um típico representante da
juventude desengajada pós-moderna”. (GOMES, 1989, p. 27.)
5
Soninha tem catorze anos, está grávida e não sabe qual dos namorados é o pai: “Volta o rock
pauleira. Soninha entra dançando alucinadamente com os três namorados. Quando cessa a música
ela está diante de Otávio e Selma. Namorados saem”. (GOMES, 1989, p. 38.)
6
É interessante ver como Dias Gomes retrata o Imortal, como uma personagem arrogante, que se
sente superior aos outros, de forma a parecer um idiota através de suas falas (GOMES, 1989, p. 67-
80). Anos mais tarde, o novelista viria fazer parte da Academia Brasileira de Letras.
7
A peça estreou em 17 de maio de 1988, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro. No elenco
estavam nomes consagrados – Paulo Goulart, Nicete Bruno e Ângela Leal – como as personagens
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Era latente para Dias Gomes e Antônio Mercado que o teatro nacional precisava
transformar-se, criando novas encenações, ideias e conceitos.
principais. Contava ainda com Benjamin Cattan, Jandir Ferrari e Kiki Lavigne nos papéis secundários
e com um elenco de apoio. O diretor dessa versão foi de Antônio Mercado, sendo a música e a trilha
sonora de Guilherme Dias Gomes, filho do dramaturgo. Ao falar sobre a encenação da peça em sua
autobiografia, Dias Gomes disse que a peça ”não foi entendida pelos críticos dos grandes jornais,
muito pouca gente mesmo a entendeu. O espetáculo foi remontado em São Paulo, excursionou a
Salvador, e o equívoco continuou. Sim, um grande equívoco, sustento com absoluta convicção. Tive
outros fracassos em minha carreira, todos justificados – este totalmente injusto. A fúria niilista com
que alguns críticos o atacaram faz me pensar. E me traz à memória o desabafo de Tchecov: ‘Se eu
tivesse dado ouvido aos críticos, tinha morrido bêbado na sarjeta’”. (GOMES, 1998, p. 344.)
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devido a sua confusão mental, está compondo quatro peças ao mesmo tempo. Em sua
volta, há uma mistura de realidade e delírio, e é onde desenrolam-se seus problemas, suas
crises e sua relação com as demais personagens.
Em uma das cenas escritas por Dias Gomes, surge, em meio a uma das alucinações
da personagem Otávio Santarrita, a figura de Vianninha, sendo travado o seguinte diálogo
entre eles:
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Neste trecho aparece a ideia de aquela geração, da qual Otávio fez parte, lutou, correu atrás
de seus ideais, não escreveu sua história da forma que desejaram, que lutaram, o que
levara o protagonista a fazer indagações, refletir sobre o passado, o presente e as
possibilidades de futuro.
O dramaturgo fictício reflete sobre o mundo em que está vivendo, sobre os novos
padrões, sobre as certezas inabaláveis que caíram por terra. O teatrólogo questiona-se:
OTÁVIO – Será que só eu sou assim? Você. Você não tem dúvidas?
Ninguém tem dúvidas? Todo mundo sabe para onde ir, o que fazer, por que
lutar? Será que todo mundo acorda de manhã, escova os dentes, sai de
casa, sabendo exatamente como ocupar o resto do dia de uma maneira que
dê sentido à sua vida? Houve um tempo em que eu sabia, sim. O mundo
era dividido em dois, preto e branco. Nada de semitons. Os que queriam
mudar tudo e os que não queriam mudar porra nenhuma, Uma linha clara
demarcando os dois campos. Ou se estava de um lado ou se estava do
outro. E o sentido da História nos parecia cristalino. Tínhamos grandes
causas, grandes bandeiras. A campanha do petróleo... a luta pela paz... as
Ligas Camponesas... o CPC... a luta contra a ditadura.(GOMES, 1989, p.
16.)
Dias Gomes fala, em alguns trechos da peça, sobre a situação vivida no país, como
a questão econômica, as altas e as constantes mudanças nos preços dos produtos; trata da
questão do crescimento da violência, da necessidade de segurança privada, dos assaltos,
etc.. O país é, para Otávio,
um trânsito muito louco, um país muito louco, ninguém respeita sinais, mão
e contramão... “proibido estacionar”... “proibido ultrapassar”... “proibido
dobrar à esquerda”... “proibido matar índios”... “proibido derrubar árvores”...
“velocidade máxima de 60 quilômetros”... inflação: mil por cento ao ano!
Onde vou aplicar meu dinheiro? Bolsa, dólar, overnaite... Para onde vai este
país e para onde vamos todos nós? Roleta-russa! (GOMES, 1989, p. 84)
A juventude daquele período era desengajada, não lutava por seus ideais, por suas
opções, sendo alienada em relação à condição política do país, do mundo, e da sua própria
situação. Essa falta de engajamento aparece bem no trecho em que há o diálogo entre pai e
filho:
[...]
TAVINHO – Acho que é por sua posição política meio babaca.
OTÁVIO – Babaca?
TAVINHO – Isso de engajamento. Já era.
OTÁVIO – Engajamento não é sectarismo político, maniqueísmo ideológico,
realismo socialista, essas bobagens. Nunca embarquei nessa. Mesmo
quando militava no Partido, sempre preservei a minha liberdade de criação.
Nunca submeti uma peça minha à apreciação de qualquer Comitê. Sempre
8
fui um indisciplinado e me orgulho disso . E hoje sou um livre-atirador.
8
Dias Gomes sempre disse em entrevistas e em sua autobiografia que o Partido Comunista
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TAVINHO – E por que você precisa ser atirador? Atirar em quê? Por quê?
Pra que?
OTÁVIO – Porque do contrário não tem sentido... Tudo passa a ser inócuo.
TAVINHO – Atira pro alto, velho.
OTÁVIO – Isso é alienação.
TAVINHO – É... Alienação é o grande barato do pós-moderno. Para com
essa babaquice de querer retratar o mundo, conscientizar pessoas, teatro
social, esse troço. Isso é papo dos anos 60, quando vocês pensavam que
iam mudar tudo. Não mudaram porra nenhuma. Ninguém mais tem saco pra
isso.
OTÁVIO – (Profundamente chocado.) Me deixa olhar bem pra você... Sabe
que às vezes custo a acreditar que você seja meu filho?
TAVINHO – Isso é problema teu lá com a velha... (Sai.) (GOMES, 1989, p.
85-86)
Está claro ao leitor – e expectador – de Meu Reino por um Cavalo que Otávio
Santarrita não se identifica com os padrões e modelos atuais, com o que ele considera
alienação e desengajamento, com a falta de objetivos, de motivos para lutar. O dramaturgo
não compreende mais o teatro, ele já não é mais como conhecia, é sem engajamento, não
busca mostrar a realidade nem transformar o mundo, o país, a sociedade. Para ele o “nosso
mundo atual já não se ajusta ao drama, então o drama já não se ajusta ao mundo. Foi
Brecht quem disse isso, ou algo parecido. É preciso ajustar o teatro ao mundo, dando a ele
a dimensão do nosso tempo” (GOMES, 1989, p. 28).
Um dos grandes motes deste texto era a tentativa de Dias Gomes – e Otávio
Santarrita – de se adaptar a nova realidade do país, do mundo e do teatro. Em 1985, havia
se encerrado o governo militar que havia ficado vinte e um anos no poder; o país estava em
um processo de redemocratização. Em 1988, ano em Dias Gomes escreveu a peça, essa
nova democracia estava consolidando-se, a nova constituição saia do papel, e o povo
estava aprendo a lidar com as mudanças políticas e sociais que vinham ocorrendo. Para os
dois teatrólogos – tanto o da ficção, quanto o real – que vinham de certezas e lutas nos anos
de 1950, 1960, e 1970, aqueles anos de 1980 estavam recheados de incertezas e poucas
resoluções. Dias Gomes afirmou, em sua autobiografia, que sua personagem estava
baleada pela confusão ideológica do final do século XX (GOMES, 1989, p. 344.), assim
como o autor de Roque Santeiro estava.
Brasileiro, do qual fazia parte, nem nenhum de seus Comitês culturais o havia obrigado a escrever
sobre nenhum tema, censurado ou vetado nenhuma de suas peças. Sobre ser um indisciplinado,
também é uma referência constante quando fala sobre sua trajetória de vida, tanto que o título de sua
autobiografia é Apenas um Subversivo. Segundo o próprio, “em disciplina deixava muito a desejar,
como sempre, já que a rebeldia se afirmava como traço marcante de meu caráter”. (GOMES, 1998, p.
31.)
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As duas últimas décadas da vida de Dias Gomes, sua produção artística foi
desenvolvida em um ritmo menos intenso. A queda de sua produção ocorreu paralelamente
ao final do governo dos militares; ao processo de redemocratização; ao fim da chamada
“grande família comunista” 9. Houve, para o autor e outros que compartilhavam as mesmas
ideias, a perda das bases políticas, sociais e econômicas do projeto comunista internacional
e com o fim do PCB; além do aparecimento de novos atores políticos, sociais e intelectuais,
entre outras questões.
Após ter entrado para a Rede Globo no ano de 196910 e ter criado, durante a década
de 1970, alguns de seus maiores sucessos televisivos, como o Bem Amado e Saramandaia,
tendo se afastado por alguns anos da cena teatral, voltou a escrever peças em 1977 (As
Primícias), nos anos de 1980 a produção do dramaturgo foi arrefecendo. Naquele período,
em que já era um reconhecido e badalado autor de telenovelas, decidiu por questões
pessoais e pela doença e morte de sua esposa Janete Clair, distanciar-se das telenovelas,
com exceção das produções de Roque Santeiro e Mandala. Em inícios de 1980 lançou uma
série baseada em sua novela O Bem Amado, tendo sido refúgio para aquele período
conturbado.
9
Este termo foi cunhado por Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do Povo Brasileiro. O autor
considera que esta “grande família comunista” foi um grupo de intelectuais e artistas que pensou e
produziu, ao longo de várias décadas, especialmente os anos de 1950, 1960 e 1970, para um
determinado Brasil e utilizou a arte para tal produção. (RIDENTI, 2000.)
10
Segundo ele, dois motivos o levaram a aceitar a proposta de trabalho na Globo, emissora
identificada com o governo militar e que sofria duras críticas por parte de seus pares: a sua situação
econômica e a oferta de uma “uma plateia verdadeiramente popular” (GOMES, 1998, p. 255-256.)
11
Dias Gomes adaptou um bom número de suas peças para a televisão, como O Berço do Herói, que
se tornou Roque Santeiro, O Bem Amado, O Pagador de Promessas, entre outras.
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Gomes era a análise crítica da política, das questões sociais, do governo. Com o fim do
regime, a volta da democracia, o fim do Partido Comunista, a queda do muro de Berlim,
entre outros fatores, houve, para o dramaturgo e outros artistas, a necessidade de habituar-
se aos novos desafios apresentados por aquele contexto.
Para além, temos que pensar a relação entre esta produção e o que se objetiva
passar a posteridade. Como afirma Pierre Laborie (2009, p. 92) em suas discussões acerca
da questão da memória, “cada memória social transmite ao presente uma das múltiplas
representações do passado que ela quer testemunhar. Entre diversos outros fatores, ela se
constrói sob influência dos códigos e das preocupações do presente, por vezes mesmo em
função dos fins do presente”. Mais do que isso, a memória acaba por afetar a construção de
opiniões e de visões posteriores do passado, que é estabelecido por conta de apreensões,
percepções, intenções, etc., vindas do presente. A memória surge através de múltiplas
representações do passado, acabando por ser exacerbada, com sua natureza militante e
justiceira, “ainda mais quando ela se faz portadora de questões ou mesmo de reivindicações
identitárias, leva a raciocinar sobre o passado em função unicamente de fins do presente”
(LABORIE, 2009, p. 94).
Dias Gomes escreve suas peças e obras literárias, utilizando-se da ficção e das
experiências que estavam ocorrendo em um determinado momento para representar a
realidade, mas também é influenciado por pensamentos e códigos que derivam do passado.
Não é a toa que em Meu Reino por um Cavalo, a geração de Otávio era militante, engajada,
que lutava por seus objetivos, por um teatro engajado, enquanto a geração de seus filhos,
ou melhor, a imagem que ele tem de Tavinho, Soninha e da juventude em fins dos anos de
1980, é de alienação, desengajamento, de desinteresse sobre os rumos do país, da política,
da sociedade. É interessante observar a visão do autor, através de suas personagens, sobre
a geração que nasceu e começava a crescer e amadurecer após o fim do governo dos
militares. Se sua geração lutou, enfrentando as pressões políticas e muitas vezes físicas de
um regime de exceção em busca de seus objetivos, a geração de seus filhos, que vivia as
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vésperas do novo milênio já não tinha pelo que lutar, pelo que combater, sem empenhar-se
– talvez vocação para tal – na luta por seus objetivos.
Para Ênio Silveira, amigo e editor de várias peças do teatrólogo, e que escreveu a
orelha da peça, Meu Reino por um Cavalo é uma comédia que reflete sobre como nossos
valores, muitas vezes considerados irrefutáveis, podem ser relativos. Senso assim, Dias
Gomes era coerente com os propósitos que fizeram escrever esta obra, como
Antonio Mercado era partidário da mesma ideia que Ênio Silveira e destacava que as
fórmulas consagradas e os valores absolutos não eram mais realidade, estando em falência.
Reforçava que
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decepção com sua morte; pelo governo de José Sarney; pela eleição, mandato e
impechamant de Fernando Collor e a subida a presidência do seu vice, Itamar Franco; e
pela eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, acabam sendo inspiração e estão
representadas em suas peças e projetos televisivos. No plano mundial, a crise do
comunismo internacional, o fim da URSS, a queda do muro de Berlim, também
influenciaram nas suas produções.
Meu Reino por um Cavalo, apesar de seu final – Otávio Santarrita finalmente
consegue escrever sua peça, acabando com sua crise criativa, e se separando da mulher,
ficando com sua amante – é uma obra pessimista com uma conclusão satisfatória. Há, em
seu fim, um sinal de esperança para Otávio e para Dias Gomes. Em outras de suas
produções posteriores, esse tom pessimista ganhará destaque novamente, como na obra
Derrocada, na minissérie e, posteriormente, livro, Decadência. Em 1995, em entrevista ao
programa Roda Viva, o dramaturgo reafirma que a dramaturgia, e as outras artes, estavam
em crise, que provavelmente só passaria no início do século XXI. Para ele, vivíamos “um fim
de século, um característico fim de século, em que realmente não há nada. Nós esperamos
que vá acontecer alguma coisa, e certamente irá acontecer” (GOMES, 2012, p. 152.).
Aquele fim de século, para o novelista, decadência era a palavra que melhor definia o
momento histórico brasileiro e mundial; ela era ética, estava ligada a economia, às artes, e
etc.. Afinal, aquele era um característico momento de transição.
Referências
DELGADO, Lucilia A. Neves & Ferreira, Jorge Luiz (horas.). O Brasil Republicano: o Tempo
da Ditadura. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2003, v. 4.
___________ . Meu Reino por um Cavalo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
GOMES, Luana Dias; GOMES, Mayra Dias (org.). Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2012.
LABORIE, Pierre. “Memória e Opinião”. In: AZEVEDO, Cecília; BICALHO, Maria Fernanda
Baptista; KNAUSS, Paulo; QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise. Cultura
Política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
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Partindo dos conceitos de Koselleck (2006) e suas reflexões sobre a “semântica dos
tempos históricos” o que este estudo pretende analisar é, em uma espécie de prelúdio às
comemorações do golpe, como a grande imprensa escrita de nosso país acabou por
instaurar certo “horizonte de expectativa” frente às efemérides. A forma como estas
empresas vêm se utilizando do passado para legitimar acontecimentos no presente são,
infere-se aqui, pensados a partir de estratégias que, muitas vezes, podem acarretar em
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daqueles que aspiravam liberdade. Escolheu-se desta forma outro caminho, “mais tranqüilo
e seguro, avaliado politicamente mais eficaz, o de valorizar versões memoriais
apaziguadoras onde todos possam encontrar um lugar.” (AARÃO REIS, 2014, p. 7)
Mas a busca de reconciliação pela memória “liberal” não se daria mais a partir do
esquecimento. Pelo contrário, é preciso que se lembre. Que se lembre para que não mais
aconteça. Para que, enfim, os erros do passado possam ser apreendidos e aprendidos por
uma lembrança daquele sombrio regime ditatorial. É preciso que, na balança conciliatória da
memória, a lembrança se dê por uma política que exuma o peso dos rastros conflituosos. No
entanto, por mais que estas memórias sejam hegemônicas, existe uma série de outras,
subterrâneas, que caminham à margem, clamando por legitimação. Vide, por exemplo, as
diversas manifestações desencadeadas em decorrência das efemérides dos 50 anos do
golpe, muitas favoráveis a uma nova intervenção militar, que chegou inclusive a desenterrar
a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, notória manifestação conservadora em
1964. A própria imprensa, em geral, cede espaço para articulistas que defendem este viés
de interpretação do passado, apesar de que, em muitos casos, são contundentemente
criticados e até ridicularizados, como que portadores de uma espécie de memória
anacrônica e desvirtuada.1
Há, portanto, lutas nesta arena da memória e a imprensa não passa ilesa às críticas
enquanto detentora de uma suposta memória “liberal”. Ao mesmo tempo em que entra em
disputa a busca por uma “verdade” histórica, é preciso considerar que este passado é
muitas vezes rememorado de forma seletiva, visando, sobretudo, um caráter conciliador da
1
A volta da Marcha da Família foi amplamente divulgada pela imprensa, muitas vezes de forma
irônica, como na coluna “Marcha a ré” de Ruy Castro, publicada na Folha em 19 de março de 2014.
Disponível em: www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2014/03/1427499-marcha-a-re.shtml Acesso
em: 3 de abril de 2014.
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memória pautado em objetivos particulares. Essas críticas são geralmente partilhadas por
agentes da mídia alternativa, historiadores e pesquisadores que, em vários momentos,
ganham espaço na própria grande imprensa para partilhar suas opiniões, muitas vezes
conflituosas entre si. Este constante embate de memórias conturba o processo de
reconfiguração do passado, uma vez que amplia a complexidade do processo de
apaziguamento dos rastros memoriais, refutando um pouco a tese, muito difundida hoje
pelos grandes órgãos de imprensa, - apesar da mea culpa já assumida por alguns deles,
como veremos adiante, - ao assumirem-se como grandes protagonistas da resistência e da
democracia em um período de trevas em que, quando não agiam, era porque nada poderia
ser feito para enfrentar as garras de um regime truculento e opressor.2
Versão atualmente refutada de forma contundente como podemos observar, por
exemplo, no recente livro publicado pelo jornalista e professor da PUC-RS Juremir Machado
da Silva. Sua obra “1964: o golpe midiático-civil-militar” é enfática em denunciar o apoio de
praticamente toda grande imprensa à deflagração do golpe que depôs Goulart e que,
posteriormente, atuou em um sutil e bem articulado trabalho de apagamento dos rastros:
2
Ver, por exemplo, entrevista recente de Carlos Heitor Cony à revista Veja: “Tem muita mistificação.
Muita gente que ficou dentro do armário, debaixo da cama, e hoje é vendida na televisão como herói
da resistência. Não houve essa resistência toda, pelo contrario. A turma toda aceitou o golpe ou ficou
em cima do muro.” Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/entrevista/muita-gente-
ficou-dentro-do-armario-e-hoje-e-vendida-como-heroi-da-resistencia-diz-carlos-heitor-cony/ Acesso
em: 1 de abril de 2014.
3
www.averdadesufocada.com
ISBN: 978-85-62707-55-1
40 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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4
www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br
5
Disponível em:
www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=5&Itemid=6 Acesso em
04 Abril 2014.
ISBN: 978-85-62707-55-1
41 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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dois dos principais órgãos da grande imprensa de nosso país. Em 16 de maio, editorial da
Folha de S. Paulo pede “mais luz” afirmando que a Comissão, ao buscar analisar os crimes
precisa “transcender debate viciado sobre revanchismo e reforçar o valor dos fatos contra
toda forma de obscurantismo.”6 O editorial mostra-se cético, ao afirmar que antes mesmo de
empossada, a Comissão já estava envolta em polêmicas, o que atestava a “impropriedade”
de seu nome. De acordo com o jornal, não será possível excluir da análise os casos de
crimes cometidos pelas esquerdas, que lutando contra o regime, vitimaram inocentes. Ao
final, afirmava: “duvidoso que a comissão consiga produzir grandes revelações. No quarto
de século transcorrido, muita documentação já veio à luz, e o que não veio pode estar
perdido.” 7
6
MAIS LUZ. Folha de S. Paulo, ano 92, nº 30.359, p. A2, 16 de maio de 2012.
7
Idem.
8
O QUE SE ESPERA da Comissão da Verdade. O Globo, ano LXXXVII, n º 28.772, p. 6, 16 de maio
de 2012.
9
Em editorial recente, O Globo posicionou-se mais uma vez de forma contrária à revisão da Lei de
Anistia ao afirmar que esta tem “legitimidade política e histórica”. Para o jornal, a discussão a respeito
de sua revogação “não se sustenta, mas que, infelizmente, ainda alimenta tentativas de uma revisão
tão impossível quanto indesejada. [...] E é indesejada porque o Brasil hoje é uma nação pacificada,
em plena democracia.” (ANISTIA tem legitimidade política e histórica. O Globo, ano LXXXIX, n º
29.45, p. 16, 2 de abril de 2014.
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42 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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órgãos de nossa imprensa. Se nos atermos no caso da grande imprensa escrita, foco de
nossa discussão, podemos situar como marco o exemplo pioneiro e aparentemente trivial da
Folha de S. Paulo que, ao completar 90 anos, em 2011, digitalizou todo seu acervo para
consulta10. O Estado de S. Paulo11, em maio de 2012 e O Globo, em 2013, também se
utilizaram da mesma política 12.
Acredita-se que estas ações, muito mais do que realizar um trabalho memorialístico,
tem o evidente interesse de construir uma história particular para os referidos periódicos,
com objetivos estritamente político-identitários levando em conta as situações atuais. Com a
proximidade das “comemorações” dos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil e as
investigações da Comissão Nacional da Verdade há, supõe-se aqui, a articulação de uma
política de memória clara desses jornais, buscando um desvencilhamento de seu passado
político de apoio ao regime militar. A disponibilização – por parte das próprias empresas - de
toda sua trajetória em um simples clique, para qualquer leitor interessado, evidencia que
suas histórias e identidades podem ser postas à prova a qualquer momento e já não é mais
possível uma tática de apagamento dos rastros deste passado. A preocupação agora é de
uma apropriação seletiva destas lembranças, visando objetivos atuais e particulares.
Assim, a forma como estas empresas midiáticas vêm articulando sua relação com o
passado ganha outros contornos, pautadas sob demandas conjunturais. Na Folha, o caso
da ditabranda, polêmico editorial publicado pelo jornal em 2009 e que repercute –
negativamente - até hoje, gerou uma série de manifestações a respeito dos usos políticos do
passado na imprensa e de como este processo de uso e apropriação da memória coletiva
caminha intrínseca e ambiguamente relacionado à construção da identidade de seus
10
http://acervo.folha.com.br/
11
http://acervo.estadao.com.br/
12
http://acervo.oglobo.globo.com/
ISBN: 978-85-62707-55-1
43 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
13
discursos. No Estado de S. Paulo, a morte de Ruy Mesquita, então diretor da empresa,
em maio de 2013, evidenciou, em vários textos, um exacerbado discurso de autodefesa
pelos princípios da “liberdade democrática” de cunho fortemente político.14 E mais
recentemente presenciou-se o caso emblemático de O Globo que, em uma atitude até então
inédita na grande imprensa de nosso país, procurou efetivar uma autocrítica em relação ao
seu apoio ao golpe militar de 1964.
13
Para uma análise a respeito das “políticas de memória” utilizadas pela Folha ao longo da história e
suas repercussões no caso da ditabranda, consultar Dias (2014).
14
Vale uma consulta à edição imprensa de 22 de maio de 2013, onde o jornal publicou um caderno
especial contendo diversas matérias e artigos, vários de forte tom memorialístico, relembrando
qualidades ímpares do ex-dirigente.
15
APOIO EDITORIAL ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de agosto de 2013. Disponível em:
www.oglobo.globo.com/pais/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604 Acesso em 10 set
2013.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
16
adesismo e covardia do último grande jornal carioca.” Na Folha, único jornal entre os
grandes que possui um ombudsman ativo, Suzana Singer, responsável pela sessão, chegou
a afirmar que este fora um caso em que, pela primeira vez se viu “tamanho ato de contrição
na imprensa brasileira. Trata-se do principal conglomerado de mídia assumindo um erro
editorial -não de informação- sobre um momento decisivo da história recente do país.”17
Atitude que, segundo a jornalista, a própria Folha “o jornal mais aberto a críticas” não tivera
a coragem de assumir, mesmo durante as polêmicas envolvendo a ditrabranda, em 2009.
Se há interesses ou não, em virtude das vésperas dos 50 anos do golpe, este ato de
“estrondosa mea-culpa” é um importante passo a caminho da transparência, acredita a
jornalista: “Quem sabe “o futuro já começou”, como diz o slogan de fim de ano da
emissora.”18
Um prognóstico só pode ser inferido a partir daquilo que Koselleck (2006) denomina
de “espaço de experiência” – o passado “atual, aquele no qual acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados” (p. 309) - e um “horizonte de expectativa” – que se
“realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado,
16
NOSSA OPINIÂO – equivoco, uma ova! Disponível em: http://clubemilitar.com.br/nossa-opiniao-
equivoco-uma-ova/ Acesso em 10 set 2013.
17
SINGER, Suzana. Fantasmas do passado. Folha de S. Paulo. 08 de setembro de 2013. Disponível
em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsman/127978-fantasmas-do-passado.shtml Acesso em 10 set
2013.
18
Idem. Vale ressaltar que no último dia 30 de março a Folha assumiu publicamente, pela primeira
vez, seu erro em editorial. O texto, mantendo o caráter “liberal” sob o qual já problematizamos,
afirmava: “O regime militar (1964-1985) tem sido alvo de merecido e generalizado repúdio. [...] às
vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência,
tornado-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de
hoje, aquele apoio foi um erro. Este jornal deveria ter rechaçado toda violência, de ambos os lados,
mantendo-se um defensor intransigente da democracia e das liberdades individuais." (1964. Folha de
S. Paulo, ano 94, nº 31.042, p. A2, 30 de março de 2014)
ISBN: 978-85-62707-55-1
45 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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para o que apenas pode ser previsto.” (p. 310) Desta forma, prognósticos estão
relacionados diretamente ao presente, onde se entrelaçam relações de ação concreta entre
passado e futuro. São as experiências que orientam os prognósticos, mas estes também
são determinados pela necessidade de se esperar algo. “Voltada para um campo de ação
mais amplo ou mais estreito, a previsão libera expectativas, a que se misturam também
temor ou esperanças.” (KOSELLECK, 2006, p. 313) É pensando justamente nesta
confluência temporal dos prognósticos que, acredita-se aqui, políticas de memória estão
sendo articuladas. A ação revisionista de O Globo, decorrente de um amplo projeto de
resgate e preservação de sua história19 foi, antes de tudo, uma tentativa particular de
construção identitária que visa, a partir da resignificação da memória, afirmar seus valores
em um presente particular. Estas questões evidenciam como são constituídos,
politicamente, os embates comunicacionais a respeito da legitimação de uma “verdade”
sobre o passado por parte destas empresas. O que estes grupos almejam é elaborar um
discurso hoje aceito como “verdadeiro”, impedindo outras “verdades” de emergir, em um
constante jogo de disputas e negociação de sentido. 20
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recepção e influência, mas também “transforma sua natureza fazendo da verdade sobre o
passado uma questão de opinião [...] O que era uma narrativa, uma representação ou um
ponto de vista sobre o passado torna-se a história desse passado (LABOIRE, 2009, p. 92).
Como portadora de uma opinião em particular e construtora de memórias, a imprensa
deveria estar atenta a estas ambíguas relações. Até que ponto os textos propagados por
esses jornais estão confundindo memória e opinião? Há a busca por uma verdade histórica
sobre este passado? Como vimos, neste embate sempre conflituoso de legitimação das
memórias da ditadura, vários pontos de vista buscam, a partir de suas lembranças, uma
“verdade” sobre os fatos do passado. Esta questão é crucial para se pensar a problemática
política da memória coletiva em um contexto comunicacional.
O objetivo desse texto não foi analisar as efemérides em si. Procurou-se apenas
delinear um horizonte, elucidar expectativas para análises futuras. É pensando estas
questões, aqui problematizadas de forma breve, que se buscará, em análises posteriores,
perceber como os acontecimentos referentes ao passado da ditadura militar no Brasil serão
lembrados, noticiados e enquadrados frente a políticas próprias de articulação e legitimação
de um presente particular que, como vimos, parece ser uma preocupação evidente de certas
empresas. Analisar os “usos” deste passado pela imprensa em relação a uma preocupação
intrinsecamente relacionada à verdade que estas pretendem legitimar sobre o (seu)
passado. O que, para estas empresas, é considerado digno de ser lembrado e como elas
relacionam estas questões à memória do acontecimento? 21
Referências
21
Reflexões que pretendem ser respondidas pelo autor em sua tese de doutorado a ser defendida no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.
ISBN: 978-85-62707-55-1
47 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
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ISBN: 978-85-62707-55-1
48 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Este artigo tem como objetivo uma introdução aos resultados das pesquisas que
venho realizando sobre os ministros do Superior Tribunal Militar (STM) no período entre
1974 e 1979, anos do governo Geisel, quando teve início o processo de distensão do regime
militar brasileiro. Tenho como objetivo compreender as flutuações do projeto de
institucionalização da ditadura, da abertura e da redemocratização, através de um estudo
sobre as decisões dos ministros do STM, onde são analisadas suas ambivalências, a
diversidade entre eles e se essas decisões mantinham uma relação harmônica com a
dinâmica do período, exercendo influência nesse projeto de liberalização ou ainda se
deixando influenciar por ele.
A Justiça Militar foi organizada ainda no século XIX, em 1808, ano da chegada da
Família Real. Sua atuação nunca se deteve apenas ao julgamento de crimes cometidos por
militares, “ao longo de sua existência, prevaleceu certa fluidez na definição dos crimes
políticos que ora pertenciam à alçada da justiça comum, ora da militar” (SILVA, 2010, p. 17).
Também não foi nova a atribuição de atuar no julgamento aos opositores de um regime de
exceção. Durante o Estado Novo (1937-1945), o STM atuou como um tribunal de segunda
1
As Leis de Segurança Nacional foram formuladas pelo Executivo através dos Decretos-Leis n° 314
de 13 de março de 1967, n° 510 de 20 de março de 1969, n° 898 de 29 de setembro de 1969 e pela
Lei nº Lei 6.620 de 17 de dezembro de 1978.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Para estudar o STM é necessário que ele não seja visto tão somente como mais um
órgão da repressão a serviço do Executivo. Os ministros atuavam com base nas leis de um
estado de exceção, mas alguns deles tentaram minimizar o autoritarismo desses
instrumentos legais de modo que pudessem julgar como no período anterior ao golpe de
1964, quando vigorou um Estado democrático (1945-1964), garantindo direitos mínimos aos
cidadãos, como pude concluir nas pesquisas feitas nos processos do STM disponíveis no
Fundo Brasil Nunca Mais no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL/Unicamp).
A pesquisa que viso realizar é uma ampliação daquela que foi feita durante o
mestrado, na qual analisei a trajetória de um de seus ministros no STM, o General de
Exército Rodrigo Octávio Jordão Ramos, de 1973 a 1979 (COITINHO, 2012). As conclusões
às quais cheguei me fizeram optar por continuar a estudar o mesmo tema, ampliando-o para
o conjunto de ministros desse Tribunal. Naquela ocasião pude concluir que o referido
General foi um exemplo de um projeto de abertura fracassado, já que seus constantes
pedidos para a apuração de denúncias de torturas e as críticas aos procedimentos
realizados durante os Inquéritos Policiais Militares (IPM) e nos julgamentos, em sua maior
parte, não foram considerados pelos outros ministros.
O General Rodrigo Octávio, na maioria dos julgamentos, mas não em todos, esteve
atento aos formalismos jurídicos, considerando fundamental a manutenção do poder
Judiciário, atribuindo um papel de extrema importância a essa instituição tanto na
institucionalização do regime quanto no caminho rumo a um Estado de direito. Apesar de
reconhecer que os juízes atuavam sobre os “escombros da ordem jurídica desmoronada”,
acreditava que cabia a ele e aos seus pares julgar da maneira mais honesta possível, dentro
dos limites de uma legislação excepcional, tentando corrigir os seus possíveis erros e
excessos que causavam uma “violência inútil” (RAMOS, 1975, p. 16).
Analisando os processos, notei que não era somente o General Rodrigo Octávio que
pensava dessa maneira. Outros ministros fizeram declarações de cunho crítico sobre os
procedimentos antijurídicos, como as torturas e as confissões extrajudiciais que muitos
insistiam em usar para confirmar uma condenação, e as conclusões às quais o STM
chegava. Havia também, não podemos esquecer de maneira alguma, aqueles ministros que
destoavam desse conjunto e acreditavam que os limites da oposição ao Estado eram
mínimos. Por isso, considerei necessário ampliar a pesquisa para o conjunto de ministros
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
que atuaram no Tribunal castrense durante o governo Geisel, quando teve início o processo
de liberalização do regime.
Além das conclusões, há algumas hipóteses às quais cheguei após a análise dos
documentos utilizados durante a pesquisa realizada no mestrado, que servem como ponto
de partida para desenvolver os objetivos desse trabalho. Primeiro, avalio que os ministros
influenciaram diretamente no projeto de abertura política, uma vez que podiam definir os
limites entre o arbítrio do Estado e os direitos dos cidadãos, no tocante à aplicação da
legislação em vigor. Em segundo lugar, considero ainda que muitos ministros ora tendiam
para um lado, ora para outro – atentando sempre para uma pluralidade de posições políticas
e ideológicas e que nenhum permanecia estaticamente em qualquer uma delas - pois havia
a interpretação que podiam fazer do texto jurídico. Por isso, é importante não polarizá-los ou
encaixá-los em quaisquer definições que poderiam empobrecer a análise dessa instituição
durante o período em questão.
Após a análise dos acórdãos realizados entre os anos de 1973 a 1979, nos quais
havia justificativas de votos do ministro General Rodrigo Octávio, pude concluir que é
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51 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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importante considerar os embates que se travavam entre os ministros até que chegassem a
um veredicto. As decisões eram repletas de nuances ou discordâncias nada sutis que
evidenciavam as disputas existentes no Tribunal e a diversidade entre os ministros no que
diz respeito às interpretações jurídicas e sobretudo aos seus pensamentos sobre a
sociedade e o regime em vigor. Por isso, considerei ser importante dar continuidade ao
trabalho para que pudessem ser analisados não somente os ministros que se
harmonizavam com as decisões de Rodrigo Octávio, mas também aquelas vozes
dissonantes, considerando o processo de liberalização em curso.
O estudo dos militares nas ciências humanas e sociais vem despertando cada vez
mais o interesse daqueles que pesquisam a História do Brasil, desde o Império até a
República, passando pelos tempos de ditadura que o país viveu durante o século XX.
Novas abordagens vêm sendo realizadas a partir de diferentes enfoques metodológicos,
como o uso dos processos criminais e da história oral, dando lugar a trabalhos que analisam
o papel das Forças Armadas, das instituições militares e dos indivíduos que as integraram,
bem como a relação dessas instituições e dos militares com a sociedade civil. Mais
recentemente, um novo tema vem ganhando espaço: a Justiça Militar.
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Apesar de neste artigo ter tratado apenas do período que já venho pesquisando há
algum tempo, referente ao governo Geisel, considero que as tensões pela condução do
projeto de abertura não terminaram em 1979, muito menos houve a finalização desse
processo com a entrada de Figueiredo na presidência. Deste modo, a pesquisa que realizo
é dividida em três períodos Um primeiro de 1974 a 1979; um segundo que compreende
1979, envolvendo especificamente o período posterior à decretação da Lei de Anistia; e um
terceiro de 1980 a 1984. Esses períodos foram divididos com base no contexto político e
jurídico do regime militar, que influenciaram nos julgamentos do STM, ou seja, na maneira
como os juízes julgavam os opositores do regime. Considero, ainda, que essas decisões
influenciavam e mostravam as disputas existentes em torno do projeto de distensão,
institucionalização do regime e de redemocratização, que não foi feito sem tensões. O STM
constituía uma arena de disputa pelo “direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 2010, p. 212) e
ainda contribuía para o poder de legitimação do regime, já que dava um aspecto de
normalidade ao julgamento de civis acusados de crime contra o Estado; por outro lado, o
processo constituía uma garantia para os presos políticos de que não mais seriam mortos
nos porões da ditadura militar.
2
Entre os autores que analisam a Justiça Militar, podemos citar: OLIVEIRA (1980, 1994); PEREIRA
(2010); SILVA (2007, 2010, 2012); LEMOS (2004); MACIEL (2003); D’ARAUJO (2006); ALVES (2009);
MATTOS (2002); WANDERLEY (2012).
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Esse processo de liberalização não se deu, no entanto, sem conflitos, até mesmo
entre os ministros do STM havia aqueles, tanto civis quanto militares, que se opunham ao
ritmo desse processo. Essas divergências podem ser sentidas nos processos criminais e
também nos artigos que os ministros escreviam. Alguns acreditavam na eficácia do projeto
de liberalização, outros o consideravam um risco à institucionalização do regime e à
consecução dos objetivos de 1964, como muitos ministros diziam. Tais “contradições
continuariam a se manifestar por longos anos, até início dos anos 1980” (REIS FILHO, 2014,
p. 102).
Uma instituição não é algo abstrato ou que possa ser analisado como um corpo
homogêneo, pois são os indivíduos que a constroem. É preciso analisar os embates
travados no interior do próprio STM, ou seja, entre os indivíduos que ali exerciam funções
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54 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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jurídicas, para que se possa compreender como chegavam a uma decisão, considerando
suas ideias sobre a sociedade e a política naquele contexto. Essas foram as primeiras
observações feitas a partir dos documentos já analisados, servindo para nortear a pesquisa
e estabelecer o quadro teórico para direcionar o trabalho com os documentos, verificar o
funcionamento do Tribunal e a própria dinâmica entre os juízes militares.
Ao estudar as vozes dos ministros, ou seja, o que falavam nos processos e nas suas
publicações poderemos compreender os militares em sua pluralidade, não os identificando
em grupos fechados nem em um mesmo grupo a todo momento. Nesse sentido, parto do
princípio de que não há como polarizar os militares em composições ideológicas e políticas
bem delimitadas, indo ao encontro das conclusões do cientista social João Roberto Martins
Filho, que procura “trazer à luz as características de heterogeneidade, divisão e fluidez
especificamente militares que caracterizam as práticas políticas castrenses” (MARTINS
FILHO, 1995, p.36).
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55 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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sua legitimidade perante a sociedade, objetivando que essa veja os acórdãos apenas como
resultados das interpretações da legislação, sem qualquer conotação de ordem política. É
correto afirmar, no entanto, que os juízes podiam aproveitar-se de toda a subjetividade
presente na interpretação do corpus legislativo, uma vez que utilizam técnicas que “tendem
a tirar o máximo partido da elasticidade da lei e mesmo das suas contradições, das suas
ambiguidades ou das suas lacunas” (BOURDIEU, 2010, p. 214). Nesse sentido, Bourdieu
mostra que o direito e a prática jurídica são dois processos arbitrários. Essa última porque é
fruto da interpretação dos juízes, dotada de condicionantes sociais e culturais. Mas há
também casos em que os valores dos juízes terão que se sujeitar aos ditames da lei, como
conclui o autor:
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56 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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relação entre os indivíduos e o contexto no qual estão inseridos, pensando quais lógicas
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58 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Angélica MÜLLER
Professora do Mestrado de História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira e
pesquisadora-associada ao CHS/Paris 1.
angelicamuller@usp.br
---
1
Entendo como “ordens do tempo” ou “regime de historicidade”, referência empregada por François
Hartog, a “costura” de diferentes regimes de temporalidade que traduz e ordena as experiências do
tempo articulando passado, presente e futuro e dando sentido à relação entre as diferentes
temporalidades. Hartog refere-se a um regime de historicidade entendido como a maneira pela qual
uma sociedade trata seu passado e como se propõe a utilizá-lo. HARTOG, François. Regimes
d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 19.
ISBN: 978-85-62707-55-1
59 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Com receio de que a polícia sumisse com o corpo, os estudantes levaram-no para a
Assembleia Legislativa (o lugar previsto para o término da manifestação do dia).
Organizaram um “Comando Informal do Calabouço” constituído das entidades
representativas dos estudantes, parlamentares e intelectuais/artistas. Segundo a lembrança
de Vladimir Palmeira, entre os nomes escolhidos estavam José Américo Pessanha,
professor da Faculdade Nacional de Filosofia, pelos professores; Hélio Pellegrino,
psicanalista e escritor, pelos intelectuais e o senador Marcello Alencar, que teve seus
direitos cassados em 1969, pelos políticos3.
2
Entrevista de Jean Marc von der Weid concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Rio
de Janeiro, 07.10.2004.
3
Entrevista de Vladimir Palmeira concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Rio de
Janeiro, 12.09.05.
ISBN: 978-85-62707-55-1
60 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Momento em que caixão com o corpo do estudante sai da Assembleia Legislativa. Foto: Arquivo Nacional.
O papel da imprensa
4
VALLE, Maria R. do 1968: o diálogo é a violência. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
ISBN: 978-85-62707-55-1
61 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
morte de Edson Luís encontrou eco nas páginas dos jornais e revistas da Grande Imprensa
liberal (bem como da oposicionista), o que levou o evento a ter uma grande repercussão,
tornando-o um ponto de memória, não somente na história do ME, como também lembrado
pela sociedade em geral.
ISBN: 978-85-62707-55-1
62 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
qualquer palavra. E não só nos comoveu, mas nos moveu. E nos move. Sua
5
morte é herança nossa. De todo o povo brasileiro.”
Quando da morte de Edson Luís, o jovem jornalista Arthur Poerner já estava com
os originais prontos do livro O Poder Jovem (1968), cujo conteúdo apresenta a trajetória do
movimento estudantil no Brasil desde a colônia. Foi quando seu editor Ênio Silveira, da
Civilização Brasileira, pediu à Poerner para escrever uma nota suplementar para ser
anexada ao final do livro. Redigida em cinco páginas, a nota, datada em 03 de abril de 1968,
inicia com a constatação das previsões feitas pelo autor sobre o aumento da violência contra
os estudantes. Poerner descreve os principais momentos do velório, cortejo e enterro de
Edson Luís. Em suas conclusões, o tom militante, que prevalece em toda obra, continua
presente:
5
Correio da Manhã, 07 de abril de 1968, p. 4, 4º Caderno.
6
LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In: JELIN,
Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos juveniles. Buenos
Aires: Siglo XXI, 2006. p. 21-62. (Colección Memórias de la Represión). p. 4.
7
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011. 7ª ed. p. 37.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
O trabalho/dever de memória
8
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 367.
9
LAVABRE, Marie-Claire. Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste. Paris: Presses de
Sciences Po, 1994.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Ainda, Joffily, como outros, não estava presente quando aconteceu o crime. Soube
depois, sem saber de quem se tratava. Porém, através de sua lembrança, uma lembrança
compartilhada, pode traçar os acontecimentos do fatídico dia. A memória coletiva sobre a
morte de Edson Luís relembrada, passa fazer parte de um histórico pessoal, remetendo ao
“fenômeno de projeção” defendido por Michel Pollak, gerando, dessa maneira, uma
afirmação ainda maior para seu presente. Toda a “geração 68” relembra dos
acontecimentos mesmo sem os ter vivenciado no ato. É o que Pollak define como
“acontecimentos vividos por tabela”, dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que,
no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela
consiga distinguir se participou ou não.11
10
Entrevista de Bernardo Jofilly concedida ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. São Paulo,
08.11.2004.
11
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
FGV, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. p. 2.
ISBN: 978-85-62707-55-1
65 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
“Nesse caso, não poderíamos deixar de homenagear aqueles que, com sua
vida, defenderam nossos ideais na luta por liberdade. Quinze nomes foram
escolhidos para representar as centenas de vítimas deste período negro de
nossa história. Nomes que conferem uma importância suprema para o
movimento estudantil. Nomes de jovens heroicos que foram presos,
torturados e mortos por uma ditadura. O túnel mostra a passagem do
tempo; a ponte une passado e presente. E se no passado vivemos uma
escuridão, a travessia nos leva ao presente de esperanças renovadas e ao
13
futuro desenhado pelos traços de Niemeyer”.
12
DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In: História
Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral. nº 6. São Paulo: 2003. p. 9-25.
13
Convite Ato UNE 75 anos. Acervo pessoal.
ISBN: 978-85-62707-55-1
66 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
...
Mais que uma homenagem aos mortos, Edson Luís é evocado no discurso do
presidente da UNE, Daniel Iliescu:
14
Gravada em 1972 pelo grupo MPB-4, a música Pesadelo driblou a censura e causou grande efeito
por apresentar, sem meias palavras, a realidade vivida nos porões do regime então vigente.
Importante ressaltar que parte da estrofe desta música foi usada no convite das comemorações
organizadas pelos estudantes paulistas nos 10 anos da morte de Edson Luís e 5 anos da morte do
estudante da USP, Alexandre Vannucchi Leme, em 1978. Maiores informações sobre as
comemorações de 1978, ver: MÜLLER, Angélica. "Você me prende vivo, eu escapo morto": a
comemoração da morte de estudantes na resistência contra o regime militar. Rev. Bras. Hist., 2011,
vol.31, no.61, p.167-184.
15
Discurso de Daniel Iliescu, Presidente da UNE, durante o ato de comemoração dos 75 anos da
entidade em 11 de agosto de 2012. Retirado do site da UNE: http://www.une.org.br/2012/08/leia-o-
discurso-de-75-anos-da-une-por-seu-presidente. Acessado em 05/11/2013.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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A morte de Edson Luís exerce a função de símbolo do ME, seu conceito de luta,
peça fundamental de identidade para seus militantes. Lembrando que na Grécia antiga a
representação de símbolo se apresentava através de um objeto cortado em duas partes que
foram separadas (pelo tempo) e que, posteriormente, se encontraram permitindo aos seus
detentores se reconhecerem. E o símbolo de Edson Luís, apresenta, assim, um regime de
historicidade encampado pela UNE.
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2011. 7ª ed.
DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. In:
História Oral. Revista da Associação Brasileira de História Oral. nº 6. São Paulo: 2003. p. 9-
25.
LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In:
JELIN, Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos
juveniles. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006. p. 21-62. (Colección Memórias de la Represión).
LAVABRE, Marie-Claire. Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste. Paris: Presses
de Sciences Po, 1994.
MÜLLER, Angélica. 1968: memória dos atores e seus reflexos. História Oral: Revista da
Associação Brasileira de História Oral, Rio de Janeiro, n. 10, p. 51-64, dez. 2008.
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes
brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Introdução
No final dos anos de 1970, quando a ditadura militar brasileira anunciava as
primeiras medidas de distensão democrática, os regimes militares dos países do Cone Sul
praticavam medidas de recrudescimento do autoritarismo e de intensificação do aparato
repressivo. Prisões arbitrárias, eliminação sumária de militantes políticos, cassações, exílio,
banimentos políticos, invasões de domicílios, sequestros e desaparecimento de crianças
filhas de militantes políticos ou opositores do regime eram práticas que endossavam a
repressão política nos países do Cone Sul e usurparam os direitos humanos de milhares de
brasileiros, chilenos, argentinos, paraguaios e uruguaios. Essas práticas foram denunciadas
por sobreviventes, refugiados e familiares de presos políticos durante os anos de 1970 e
1990, ao Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor),
com sede na cidade de São Paulo, Brasil.
O objetivo deste artigo é apresentar uma análise dos casos de sequestro, tortura e
desaparecimento de crianças e adolescentes, filhas de militantes políticos durante as
ditaduras militares no Cone Sul e Brasil, registrados no Fundo Clamor, localizado no Centro
de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate
da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes,
durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.
1
Esta pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de História da
Universidade Federal de Minas Gerais, em nível de Pós-Doutorado, com a supervisão da professora
doutora Heloísa Maria Murgel Starling.
ISBN: 978-85-62707-55-1
69 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de
Alfredo Stroessner no Paraguai.
O fundo Clamor
O fundo Clamor encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas para
periódicos e 1 pasta para arquiteto. Reúne documentos textuais, orais e iconográficos. Os
documentos foram adquiridos através de doação do Centro Ecumênico de Serviços à
Evangelização e Educação Popular (CESEP), em 1993.
Esta documentação foi reunida durante a atuação do Comitê de Defesa dos Direitos
Humanos para os países do Cone Sul2 (CLAMOR), fundado em 1978 por três pessoas
ligadas a defesa dos direitos humanos: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e Jaime
Wright. Os três se reuniram em São Paulo para verificar a possibilidade de divulgação das
atrocidades cometidas contra os direitos humanos dos argentinos, uruguaios, paraguaios,
chilenos e brasileiros durante o regime militar desses países. Procuraram o Cardeal
Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns para comunicar a presença no Brasil de refugiados
políticos que relatavam histórias de desrespeito aos direitos humanos. Dom Paulo acolheu a
ideia e solicitou que o Comitê, por motivos de segurança, permanecesse vinculado a
Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, da
Arquidiocese de São Paulo.
O nome “Clamor” foi o nome dado ao boletim do Comitê de Defesa dos Direitos
Humanos para países do Cone Sul, cujo primeiro volume foi publicado em junho de 1978. O
nome foi inspirado no Salmo 88,2 – “Ó Senhor, deus da minha salvação, diante de ti clamo,
de dia e de noite. Chegue a minha oração perante a tua face; inclina teu ouvido a meu
clamor”. A intenção dos fundadores do Comitê era denunciar as contínuas violações dos
direitos humanos ocorridas na América Latina.
A imagem que marcava o símbolo do Clamor era um desenho de uma chama que
brilha através das grades de uma prisão, criado pelo ex-preso político Manoel Cirilo de
2
Organização civil, informal e clandestina, fundada na cidade de São Paulo em 1978 e encerrada em
1991.
ISBN: 978-85-62707-55-1
70 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Oliveira Neto, que foi libertado em 1979. Além do símbolo, o Comitê também possuía um
slogan “Direitos Humanos não tem fronteiras”. Com esse slogan o Comitê percorreu todos
os países do Cone Sul e buscou auxílio financeiro e político junto a organismos
internacionais como o Conselho Mundial das Igrejas, a Anistia Internacional, Nações Unidas
e Banco Mundial.
Os arquivos do terror
A base de dados dos Arquivos do Terror contém cerca de 60.000 registros dos
documentos localizados no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos
Humanos (CDyA) do Supremo Tribunal de Justiça do Paraguai . Esta base de Base de
dados foi desenvolvida através do Projeto Memória Histórica, Democracia e Direitos
Humanos (MHDDH), acordo firmado entre o Supremo Tribunal de Justiça, da Universidade
Católica de Assunção e da ONG The National Security Archive . Cada registro inclui o
código para imagens de microfilme, data do documento, tipo de documento, linha e nome; e
se for o caso, a origem, as organizações e localização geográfica. São fichas policiais, listas de
3
Ação conjunta das forças repressoras dos países Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai,
criada em 1975. A função principal dessa operação era neutralizar e reprimir os grupos que se
opunham aos regimes militares montados na América do Sul. O nome da operação faz referência a
uma ave andina, símbolo de astúcia na caça às suas presas.
4
Estas informações foram retiradas de documentos encontrados no Fundo Clamor, Arquivo do
Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e
Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.
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71 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Uma das vítimas da ditadura paraguaia durante o governo do general Stroessner foi
o advogado Martín Almada que, desejoso de conhecer detalhes das acusações que o
colocara preso entre 1974 a 1977 e da morte de sua esposa, solicitou um habeas data às
autoridades judiciais paraguaias. Em 1992, atendendo ao pedido de habeas data5 do
advogado, as autoridades encontraram em Lambaré, cidade que fica a vinte quilômetros de
Assunção, um acervo composto de cerca de 60.000 registros de documentos contendo
informações sobre a ditadura do general Stroessner. Entre os documentos encontrados
ressaltam-se os documentos relativos ao funcionamento da Operação Condor com a ação
conjunta dos países Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina. Segundo López (2010),
antes de assumir a presidência Stroessner se reuniu secretamente com membros do
Comando Sul dos Estados Unidos. Nesta reunião foi assinado um pacto com altos oficiais
americanos e brasileiros, como parte do plano dos aliados anticomunistas durante a Guerra
Fria e a Doutrina de Segurança Nacional, implantada na década de 1960, por meio da
ditadura militar brasileira (LÓPEZ, Miguel H, 2010: p. 437-470).
Memórias resgatadas
Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando
me llevan a arriba con la niña en brazo y también me hacen preguntas, y la
niña se pone mal porque me empiezan a pegar estando la niña en mis
brazos. Entonces yo para calmarla a niña le doy el pecho. Es más me dolió
6
porque para mi más le torturaron a la niña delante de mí.
O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à
Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Ela foi presa e
torturada durante a ditadura do general Strossner, junto com sua filha. Ações como essas
eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas
5
O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si
mesma.
6
Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no
dia 11 de novembro de 2006.
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72 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no
Brasil.
Hasta los 17 años creí que me llamaba Daniela Furci. Después de recuperar
mi identidad el proceso de adaptación fue bastante lento, yo no me quería
hacer cargo de mi historia. Pero cuando nació mi hija, todo empezó a fluir
7
Organização de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade localizar e
restituir às suas famílias legítimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a última
ditadura militar argentina (1976-1983).
ISBN: 978-85-62707-55-1
73 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
8
Disponível em: http://plansistematico.blogspot.com.br/2011_11_01_archive.html. Acesso em: 18 de
abr. 2014.
9
Abuelas de la Plaza de Mayo. Testemonios de Netos. Disponível em:
http://www.abuelas.org.ar/areas.php?area=testimoniosNietos.php&der1=der1_mat.php&der2=der2_m
at.php. Acesso em 19 de abr. 2014.
10
Associação civil, criada em 1979, por avós de crianças desaparecidas que iniciaram uma luta pela
defesa da vida e pelo direito de manter unidos os membros oriundos do mesmo sangue. Essas avós
ficaram conhecidas no mundo inteiro como símbolo da luta contra a ditadura em defesa dos direitos
humanos e do direito de voltar a ter o convívio com seus netos e netas.
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74 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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advogados que defendiam prisioneiros políticos e juízes também eram alvos da repressão
argentina. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura argentina expressou uma “quebra radical
com a legalidade anteriormente vigente e num ataque em grande medida extrajudicial aos
oponentes do regime” (PEREIRA, 2010: p. 44). A nova “constituição” proibia a atividade dos
partidos políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políticos dos cidadãos,
em função de um constante Estado de Sítio.
No Paraguai, umas das principais estratégias utilizadas pelas forças repressivas para
obtenção de informações consideradas relevantes a respeito das ações praticadas pelos
“terroristas”11 era a prisão e tortura de filhos de militantes políticos durante a realização dos
interrogatórios. Tortura psicológica e física era praticada com as crianças, filhas de
militantes políticos, como mecanismo de obtenção de informações. A citação que segue
subsidia essa informação:
11
Designação dada pelas militantes aos militantes políticos contrários ao governo de Alfredo
Stroessner.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
vítimas de violência sexual, que até a idade adulta mantiveram um sentimento de culpa e
vergonha pelo que passaram. O testemunho abaixo subsidia essa informação:
...Ya tenía 12 años cuando eso… después a las niñas que sacaron... una es
mi prima, y que dicen que fue violada, yo no sabía cuando eso que le
sucedió, pero vi que sangraba y vinieron a meterla otra vez con el grupo.
C.F., Caaguazú, Costa Rosado, 1980 (COMISIÓN DE VERDAD Y
JUSTICIA, 2008: p. 93).
No dia 30 de setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva Filho foi preso junto com
sua mãe e mais dois irmãos. No dia anterior seu pai Virgílio havia caído nas mãos dos
agentes da repressão e foi assassinado. Sua mãe e irmãos foram presos quando estavam
hospedados em uma casa praiana em São Sebastião / SP. Na época, seu irmão mais velho
Vlademir tinha oito anos, Virgílio seis anos e Isabel, sua irmã mais nova tinha somente
quatro meses. Todos foram detidos na sede da Operação Bandeirantes (OBAN). As três
ISBN: 978-85-62707-55-1
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crianças foram arrancadas de sua mãe Ilda e levadas para o Juizado de Menores, onde
permaneceram por dois meses. Antes disso passaram por vários interrogatórios. Ilda
permaneceu presa até o ano de 1979, permanecendo incomunicável a maior parte do
tempo. As crianças foram separadas e cada uma delas foi morar com um tio. Às vezes elas
se reuniam e ficavam paradas em frente a um poste onde sua mãe, ainda presa, poderia
avistá-los. Após ser libertada e reunir sua família, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba
onde permaneceram até concluírem o curso universitário(PIMENTA e TEIXEIRA, 2009).
12
Morre em São Paulo homem torturado pela ditadura quando tinha um ano. Disponível em: <
http://noticias.terra.com.br/brasil/,ead367d062fec310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>. Acesso
em 01 mar. 2013.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Considerações finais
Há um consenso na historiografia sobre o protagonismo do Brasil em ações de apoio
e sustentação das ditaduras que se instalaram no Cone Sul após 1964. Este protagonismo
incluía ações de repressão, sobretudo troca de informações, fornecimento de documentos,
troca de prisioneiros, treinamento em área de inteligência e em técnicas de “interrogatório”
com a colaboração dos serviços secretos norte-americanos e britânicos. A historiografia
analisa que esse processo se expandiu e intensificou ao longo de quase 20 anos e identifica
pelo menos três estágios distintos de colaboração entre as ditaduras, com participação
brasileira. O primeiro estágio começa a partir de 1964; o segundo, após o início da ditadura
chilena, um estágio que passa a incluir troca de prisioneiros sem registro, seqüestros e
assassinatos. O terceiro estágio, a Condor, a partir de 1975. O Acervo Clamor é importante
porque ele permite analisar e perceber essas ações e o protagonismo brasileiro nelas.
O resgate do conteúdo deste Fundo e de outros semelhantes é crucial para
percebermos a política de cooperação adotada entre os países do Cone Sul e Brasil, bem
como o protagonismo brasileiro nas ações de repressão, troca de prisioneiros e treinamento
em áreas de inteligência e técnicas de interrogatórios. Relatar essa história é contar casos
de lutas em defesa dos direitos humanos, mas também de casos de usurpação desses
direitos, com a utilização clandestina, mas explícita, de métodos de barbárie, de violência
física, psicológica e cultural, capaz de gerar uma cultura do medo alimentada pelo terrorismo
de Estado vigente nesses países. Conhecer essa história é garantir o não esquecimento de
fatos que desonraram a humanidade, que alimentaram o silêncio e a inação política e social.
Recordar esses fatos é oferecer à sociedade a chance de conhecer seu passado, aprender
com ele e, a partir disso, desenhar o seu futuro.
Referências
ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. Dor e desamparo– filhos e pais, 40 anos
depois. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20,n. 2, p. 75-87, 2008.
ISBN: 978-85-62707-55-1
78 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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DINGERS, John. Os anos do Condor: uma década de terrorismo internacional no Cone Sul.
São Paulo: Cia das Letras, 2005.
FERNANDES, Ananda Simões. “Esta guerra nos es contra los niños”: o sequestro de
crianças durante as ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul. In: PADRÓS, Enrique
Serra; NUNES, Cármen Lúcia da Silveira; LOPES, Vanessa Albertinence; FERNANDES,
Ananda Simões (Orgs.). Memória, Verdade e Justiça: as marcas das ditaduras do Cone Sul.
Porto Alegre: ALRS, 2011.
LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva,
2003.
LÓPEZ, Miguel H. ”Stroessner e “Eu”: a cumplicidade social com a ditadura (1954-1989)” In:
ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. A construção Social dos Regimes
Autoritários: Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Brasil e América
Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. v. 1. p. 437- 470.
MADONADO, Carmen Urzola. Mariana Zaffaroni Islas: “Yo no me quería hacer cargo de mi
historia” . Disponível em:
<http://plansistematico.blogspot.com.br/2011_11_01_archive.html>. Acesso em: 18 de abr.
2014.
Morre em São Paulo homem torturado pela ditadura quando tinha um ano. Disponível em: <
ISBN: 978-85-62707-55-1
79 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
http://noticias.terra.com.br/brasil/,ead367d062fec310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>.
Acesso em 01 mar. 2013.
PADRÓS, Enrique Serra. A Operação Condor e a Conexão Repressiva no Cone Sul: a luta
pela Verdade e pela Justiça. Organon. Porto Alegre, n. 47, jul./dez. 2009, p. 115-138.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guina subjetiva. São Paulo:
Companhia da Letras, 2007.
ISBN: 978-85-62707-55-1
80 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Bruno de BARROS
Mestrando pela Universidade de São Paulo (USP)
bruno_de_barros@yahoo.com.br
Introdução
1
Sobre a história dos jornais, muito foi publicado em materiais comemorativos dos mesmos. Alguns
livros – como o de José Aleixo Irmão (1996) - trouxeram informações relevantes sobre um dos jornais
estudados, porém, por estar vinculado ao grupo, ou a direção da folha, acabou por reproduzir o
discurso publicado nos textos comemorativos de fundação do jornal. Em contrapartida, procurou-se
comparar alguns destes textos, escritos em épocas diferentes e por diferentes autores para observar
distinções e contradições entre os mesmos. No mesmo sentido, se fez uma análise da primeira
edição de cada jornal na qual foi expresso o conteúdo programático das folhas estudadas.
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do controle político local é uma das principais características das folhas do interior, outra é
voltar-se para as questões da sociedade em que esta inserida, com a valorização de
notícias sobre município e estado, em maior grau, que as informações sobre o contexto
nacional (LUCA, 2005, CAETANO, 1981).
Em um país onde os jornais tem forte tendência a se autopromoverem como porta
vozes do povo, a força e a expressividade da imprensa se amplifica. Assim, esta se torna
importante instrumento de veiculação de ideias e doutrinas, elaboradas por sujeitos e
agentes políticos (MOTTA, 2002, CAPELATO, 1994, AQUINO, 1990 e 1994).
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bombas atômicas” e “O terrorismo implantado pela nova internacional”. Neste ano a cidade
recebeu as visitas de Luís Carlos Prestes e Jorge Amado, em apoio aos candidatos
comunistas locais. Com a ilegalidade do PCB, a estratégia dos candidatos locais foi de
agremiarem-se no Partido Social Trabalhista (PST). A contrapartida anticomunista veio em
forma de panfleto, na qual, se explorava uma situação pessoal de um deputado do Partido
Comunista e procurava estabelecer relações entre, a filiação ou simpatia, pelo comunismo,
como principio de derrocada e perdição moral (CAVALHEIRO, 2001).
O candidato comunista a prefeito ficou em segundo lugar nas eleições de 09 de
novembro de 1947 e foram eleitos 14 vereadores dessa sigla, para uma Câmara com 31
vereadores, inclusive a primeira mulher eleita como vereadora em Sorocaba (também pelo
PST). Entretanto, todos estes vereadores foram cassados pelo Tribunal Regional Eleitoral
que negou a existência do diretório do partido (Cruzeiro do Sul,15 de nov. de 1947, p. 1).
No início da década de 1960 nota-se que grupos conservadores reivindicavam para
que todos estivessem “De pé e a ordem”, pois, a “nação estaria em perigo”, e, por tal razão,
não se furtariam a intervir na vida política. Por outro lado, sindicatos locais, com lideranças
de esquerda, organizaram longas greves, da qual a principal, em 1963, foi a da E.F.
Sorocabana. Em meio a isso, um dos jornais locais, orientava seus eleitores para os perigos
da vitória do materialismo comunista ateu ou do laicismo maçônico, para o cargo de prefeito
ou vereador. Estes elementos demonstram as circunstâncias político-sociais pela qual
passava a cidade e indicam alguns matizes, da opinião da imprensa local2 (ALEIXO IRMÃO,
1996 e GUARINO, 1987).
2
Ver as seguintes edições dos jornais - Folha Popular: 30 de nov. de 1963, p. 1, 11 de out. de 1963,
p. 1 e 06 de out. de 1963, p. 1. No Diário de Sorocaba: 11 de out. 1963, p. 1 e 26 de nov. de 1963, p.
1.
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3
Os nome dos jornais Cruzeiro do Sul, Folha Popular e Diário de Sorocaba serão nas citações trados
por suas respectivas iniciais.
4
Para a portaria baixada pelo delegado regional e a integra dos critérios para integrar o grupo de
voluntários, ver as edições dos jornais Cruzeiro do Sul (este disponível on-line), Diário de Sorocaba e
Folha Popular dos dias 18 e 19 de mar. de 1964. A respeito da perda de representatividade do
governo Goulart, produzida por um discurso estratégico para esta finalidade, e seu resultado efetivo
ver Luiz Fiorin (1988).
5
Algumas das notas publicadas na imprensa, antes e depois do golpe, identificaram as ações e
objetivos de João Goulart como uma ação de levar o país ao comunismo. Daí expressões como
“comunização” ou “comunizantes” para fazer referencia a ação de Goulart. Ver: Diário de Sorocaba,
19 de mar. de 1964 e 03 de abr. de 1964.
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O Brasil não merecia essa situação. Sair das comedias políticas de Jango
Goulart para cair nesse regime de terror e estupidez, positivamente não
agrada a ninguém. A não ser aos pescadores de águas turvas. (FP,
04/03/1968)/ Uma das características mais tristes da realidade brasileira
atual é o silencio das classes assalariadas. (...). É o medo da prisão
também, por subversivo... (FP, 20/04/1968, p.1)
As alegações prévias para o golpe de 1964 foram reinvocadas, nos editoriais dos
jornais Cruzeiro do Sul e Diário de Sorocaba - O comunismo como sinônimo de ateu, a
preocupação com a desordem social, o desrespeito à hierarquia - a serviço de Cuba e seu
projeto revolucionário - foram readaptados para momento atual. Já o principal argumento
utilizado pelos jornais como o causador da crise política em 1968 foi a infiltração comunista
no meio estudantil.
O jornal Folha Popular, nos últimos meses do ano, teve sua circulação,
continuamente interrompida, e em dezembro foi anunciada sua venda.
A edição do Ato Institucional nº 5 foi justificada como uma resposta do regime a
reorganização das forças comunistas, infiltradas na oposição, política ou estudantil. Da
mesma maneira, após algum tempo, como em 1964, as justificativas para o AI-5, nos artigos
e editoriais, ou, em forma de charges, voltaram-se para o combate a corrupção.
Por fim, a análise dos três jornais demonstrou a permanência, mesmo em jornais que
publicaram artigos de opinião contrários ao regime militar, de discursos ou alusões
anticomunistas, entre 1964 e 1968. Creditou-se a onda anticomunista local em 1964 não
apenas a conjuntura nacional, com grande polarização política, mas, também, a um histórico
de mobilização e reivindicação ativa de partidários da esquerda na cidade.
Referências
1) Jornais
Cruzeiro do Sul
Diário de Sorocaba
Folha Popular
2) Bibliografia
ALEIXO IRMÃO, José. A Perseverança III e Sorocaba (Do suicídio de Vargas à Sagração do
Templo), Sorocaba-SP, Fundação Ubaldino do Amaral, 1996.
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CAETANO, Kati Eliana. História, sociedade e discurso jornalístico: análise de alguns jornais
veiculados em Corumbá-MS durante o Estado Novo. Dissertação, 192 f., Dissertação de
Mestrado na área de linguística, Faculdade de Filosofia E Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, 1981.
CAPELATO, Maria Helena, PRADO, Maria Lígia. O Bravo Matutino (Imprensa e ideologia no
jornal “O Estado de S. Paulo”), Editora Alfa-Omega, São Paulo,1980.
FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 24, nº 47, 2004.
FIORIN, José Luiz. O regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo, Atual, 1988
LUCA, Tania Regina de. História dos nos e por meio dos periódicos, In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
SANTOS, Guarino Fernandes dos. Nos Bastidores da Luta Sindical. São Paulo, Ícone
editora, 1987.
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Assim, num deslocamento de objeto do grupo da resistência, que seria uma parcela
menor da sociedade brasileira ou mesmo algo exógeno a ela (REIS, Daniel Aarão, 2010),
passam a enquadrar as análises, sobretudo, sob as classes médias que teriam se
beneficiando do regime, justificando estudos em torno do que foi chamado de criação de
“consenso” na construção social do nosso regime autoritário, conforme obra organizada por
Denise Rollemberg e Samantha Quadrat (2011). Nesta nova abordagem, que renomeou a
natureza da ditadura como “civil-militar”, destacou-se também estudos sobre o período do
“milagre econômico” que, se era chamado de “anos de chumbo” pela memória de
resistência (por ser o mais repressivo do regime), é recordado como “anos de ouro” para
muitos, inclusive pela forte aprovação ao governo Médici. Embora tal apoio ou respaldo de
setores da sociedade sejam evidentes para se pensar qualquer regime de exceção que dure
tanto tempo (21 anos), tais aspectos aparentemente encontravam-se à margem da memória
e historiografia sobre o período, justificando o destaque das recentes abordagens1. No caso,
faço uma ressalva, “anos de ouro” para os setores que se beneficiaram, já que podemos
relembrar aqui que foi um período de grande arrocho salarial e de enorme aumento da
desigualdade social, com intensa concentração de renda. Tudo isso submetido à forte
controle da circulação de informação, através de censura, e constantes e densas
1
Sobre o respaldo popular ao governo Médici, um interessante artigo é o de Janaína Martins Cordeiro, Anos de
chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o governo Médici. Publicado in: Revista Estudos Históricos,
Vol. 22, No. 43, 2009, p.85-104.
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Compacto - single - e o Long Play, ou Álbum) de novembro de 1970. Chamadas pelo próprio
Simonal de músicas “nativistas”, as canções presentes no EP – das quais nenhuma
apareceu em um álbum regular do artista – causaram furor na crítica da época, sendo
escorraçadas por veículos de informação. Como a revista Veja que comparou as canções
lançadas no EP com o velho livro Por que me ufano do meu país (ALEXANDRE. 2009: 179).
Das quatro canções presentes, três já haviam aparecido em outros EPs lançados nos dois
meses anteriores, sendo a única inédita a canção “Resposta”.
No que se refere às capas com um trabalho gráfico, essa relação se torna ainda mais
evidente. O uso de um trabalho gráfico pensado para as capas de disco advém da década
de 1930, com inspiração do layout publicitário, conforme as dissertações do historiador Erick
de Oliveira Vidal (2008) e do designer gráfico Jorge Caê Rodrigues (2007). Mas a partir dos
anos 1950 que vemos a presença de um trabalho gráfico mais cuidadoso nas capas de
disco, inclusive com o uso de fotografias, algo de custo elevado no período. No entanto, com
um caráter artístico pouco reconhecido. Ainda assim, a partir dos anos 1960 e a solidificação
do consumismo pela Cultura Jovem, segundo Rodrigues, a arte gráfica dos discos aparece
como um importante mercado de trabalho para vários designers e mesmo artistas plásticos
renomados, como Andy Warhol (que nos anos 1950 já era o principal ilustrador dos discos
de jazz do selo Blue Note) nos EUA ou Cândido Portinari, no Brasil. Neste período também
vemos a elaboração de capas mais complexas, conceituais, embora sempre comerciais.
Afinal, conforme a visão de um destacado design de capas brasileiro do período, César
Villela: “Não se pretende que alguém ‘entenda’ uma capa de LP mas sim que sinta
decisivamente atraído por ela” (Cesar Villela em LAUS, Egeu. Apud. VIDAL. 2008: 87).
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Além de um objeto para a história social, acredito que as capas também possam
contribuir no trabalho do historiador do político. Casos como o LP Sandinista lançado pelo
grupo The Clash em 1980, é ilustrativo, com o titulo em vermelho sugerindo um apoio ao
governo revolucionário nicaraguense vitorioso no ano anterior sob uma das ditaduras mais
ferozes da América Latina. Doze anos depois, o álbum de estreia da engajada banda
estadunidense Rage Against the Machine também impacta pela famosa capa, com o monge
em chamas, chamando atenção aos problemas tibetanos e já antecipando o ouvinte para o
som pesado, incendiário, e as letras altamente politizadas que caracterizam o grupo.
Seguindo essa linha de raciocínio, diversas capas do músico e ativista nigeriano Fela Kuti
também são representativas de possibilidades de análises políticas.
Como sabemos, o cartaz original não é o que retrata o símbolo estadunidense, mas
sim um que apresenta o sisudo e destacado general inglês Lord Kitchener e com os dizeres
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“seu país precisa de você” (fig.1). Lançado em setembro de 1914, antes da adoção do
alistamento obrigatório, com colaboração do efeito do cartaz, contam-se cerca de 35 mil
alistamentos ao dia, chegando à surpreendente cifra total de dois milhões e meio de homens
alistados (GINZBURG. 2003: 15). Tal fenômeno de resultado contribuiu para o que foi
chamado de triunfo da imagem, o cartaz, sobre o personagem real, Kitchener. Como
comprovação do feito, ainda durante a Primeira Guerra Mundial e imediatamente depois,
“versões mais ou menos reelaboradas do pôster de Lord Kitchener foram feitas na Itália,
Hungría e Alemanha. Nos Estados Unidos e na União Soviética, Lord Kitchener reapareceu
representado como Tio Sam (fig. 2) e como Trotsky, respectivamente” (idem. Pg.18). Esse
resultado é interessante para pensarmos no que o historiador Eric Hobsbawm diagnosticou
como o processo de “lealdade e da subordinação voluntária dos cidadãos ao seu governo”,
que não é uma lealdade às elites, “mas ao Estado e à nação”. (HOBSBAWM. 1999: 36).
Uma diferença, ainda seguindo o argumento de Hobsbawm, entre as guerras atuais e as
anteriores à idade contemporânea, na qual o Estado conseguiu o feito (considerado por
Hobbes impossível mesmo para o Leviatã) de convencer o cidadão a “estar pronto para o
ato supremo de abdicar de sua liberdade e de sua vida” em nome do Estado (idem, ibidem).
Tamanho sucesso do cartaz foi relatado já em sua época como efeito do olhar
penetrante de Kitchener e a estratégia de comunicar diretamente com o público alvo. A partir
daí, Ginzburg promove uma sugestiva abordagem sobre as tradições de que seria devedora
a potência narrativa da imagem. Ele conclui que remete a duas tradições interconectadas: a
das figuras com o olhar “de frente”, capazes de aparentemente ver a tudo; e às figuras com
dedos apontando em relevo. Além dessas tradições, existentes desde antes do século XV, o
pôster bebe amplamente da linguagem da publicidade, conforme exemplos da primeira
década do século XX, nos quais já apareciam tanto o dedo indicador apontado para “fora do
quadro”, quanto às recomendações do uso de um invasivo “tu” (ou “você”) para reforçar a
mensagem, através de um caráter pessoal, como em uma carta. Aliás, seguindo no
argumento de Ginzburg, um estudo publicitário publicado em 1910 trazia analogias entre a
publicidade e a guerra. Curiosamente, as técnicas utilizadas para alcançar o objetivo
comercial, foram empregadas para vender a guerra, no pôster e suas apropriações
(GINZBURG. 2003: 29).
O uso de técnicas que remetem a uma sólida tradição artística e também às fórmulas
da publicidade parecem muito propícias para pensar o LP de Simonal. Aliás, inclusive como
metáfora da própria música do cantor, transitando sempre entre a sofisticação nos arranjos
das canções que, segundo o próprio artista, lhe seria uma tendência íntima (ALEXANDRE:
180) e o caráter comunicacional, comerciável, que sempre buscou empregar. A expressão
facial de Simonal na capa (fig. 3), no entanto, não parece transmitir uma convocação sisuda
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como a dos cartazes de guerra citados, mas sim a transmissão de uma mensagem, que
seria essa expressa nas canções.
Fig. 1: Alfred Leete. Lord Kitchener, “Seu país precisa de você”, cartaz de recrutamento, Inglaterra,
1914. Fig. 2: Flagg. J.M. “Eu quero você para o exército dos Estados Unidos”, cartaz de recrutamento,
Estados Unidos, 1917.
Fig. 3: Wilson Simonal, Extended Play, novembro de 1970. ODEON. Arte não creditada.
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Mas, escolhendo uma canção para melhor representar a postura de adesão à visão
do regime neste EP, seria a agitada “Brasil, eu fico”, composta, assim como a outra canção
“nativista” do álbum, “Resposta”, por Jorge Ben. Nela, a primeira consideração está no seu
próprio título, dialogando com o famoso slogan do período, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, criado
pela Operação Bandeirantes - OBAN (FICO, 2004: 273), e que virou relativa febre nacional,
inclusive como adesivo de carros. A OBAN foi “uma organização paraestatal e extralegal
financiada pelo capital privado nacional e multinacional para colaborar com o Estado na
repressão à esquerda armada” (ALONSO, 2011: 93) – mais uma vez nos remetendo à
participação de setores da sociedade civil, neste caso, em um dos exemplos extremos. A
canção tem por refrão: “esse é o meu Brasil, cheio de riquezas mil. Quem não gostar ou for
do contra que vá pra...” Seguindo um naipe de metais censurando, mas sugerindo, o famoso
palavrão.
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citando Simonal e incluindo uma referência ao futebol, sem sofrer aparentemente nenhuma
grande contestação.
A música restante do disco, “Resposta”, também é de Jorge Ben e também traz forte
carga ufanista, contando com versos como “pois eu sou um amante, um amante do meu
país, eu sei onde é meu lugar e sei onde eu ponho o meu nariz”, fechando o bloco de
músicas “nativistas”. E através dela, é propício fazer uma importante ressalva. Embora a
ênfase deste trabalho seja no momento em que a obra de Simonal (sob composição de
Jorge Ben) esteve dialogando com a propaganda do regime, seria reducionista analisa-las
apenas sob essa perspectiva. As duas canções ufanistas não foram compostas
“gratuitamente”, mas fizeram parte de mais um debate musical brasileiro, como houve antes
famosos debates quanto à concepção de “malandragem” entre Noel Rosa e Wilson Batista e
o debate conjugal do casal recém-separado Dalva de Oliveira e Helivelton Martins. Neste
caso, um debate entre Jorge Ben e Simonal contra Juca Chaves.
Juca Chaves, então exilado, compôs uma sátira chamada “Paris Tropical”, citando
nominalmente Simonal (“alô Brasil, alô Simonal, moro e namoro em Paris tropical”) e
ironizando os versos da canção satirizada. Esta foi respondida por Jorge Ben, na voz de
Simonal, com a já citada “Brasil, eu fico”. A contra resposta de Juca Chaves foi uma
divertida canção chamada “Take me back to Piauí”, que contém os versos “Adeus Paris
Tropical, adeus Brigitte Bardot. O champanhe me fez mal, caviar já me enjoou. Simonal
estava certo na razão do patropi, eu também que sou esperto vou viver no Piauí.”.
“Resposta” parece encerrar a disputa, retomando e respondendo, inclusive, aspectos da
canção “Paris tropical” – o que deixa a dúvida se ela teria sido uma reposta composta antes
de “Brasil, eu fico”. Aqui, parto das datas de lançamento das canções para a construção da
hipótese quanto a ordem das respostas.
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O cantor Simonal, portanto, se não parece ter demonstrado em outras canções uma
real sintonia com o regime, nesse EP aparece como um difusor de um tipo de “Brasilidade
conservadora” 3, uma visão de nacionalidade e patriotismo compartilhada com vários
brasileiros na época e que era expresso pelo governo em slogans como “esse é um país
que vai pra frente” e “ninguém segura este país”. Seria o caso de comparar uniformemente a
posição adesista de Simonal aqui apresentada com o geral dos artistas e a maioria dos civis
que participaram, por exemplo, das comemorações do sesquicentenário da independência?
Ou os que comemoraram a vitória da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de
1970 ou a aquisição de uma televisão ou um carro, ainda que em um contexto repressivo e
autoritário, mas demarcado por forte controle de informação e difusão de propagandas
apologéticas ao regime? E destes todos com figuras como a do empresário Henning Albert
2
Ambos os livros sobre Simonal citados trazem referências a entrevistas do cantor nas quais tal
identificação pode ser confirmada. Destaco a concedida à Folha de São Paulo, 22 de agosto de 1982,
p. 176, na qual afirma que o golpe militar era a única saída naquele contexto; e a para a Veja, 25 de
novembro de 1970, p.179, na qual defende sempre ter sido “meio ufanista”, referindo-se às canções
aqui trabalhadas.
3
Marcelo Ridenti, na introdução desta obra, apresenta a “Brasilidade”, termo comum para os
brasileiros, conforme seu sentido corrente, como “’propriedade distintiva do brasileiro e do Brasil’,
fruto de certo imaginário da nacionalidade próprio de um país de dimensões continentais, que não se
reduz a mero nacionalismo ou patriotismo, mas pretende-se fundador de uma verdadeira civilização
tropical. (...) [encontrada] de formas distintas e variadas à direita, à esquerda, conservadoras,
progressistas, ideológicas ou utópicas.” No decorrer da obra o autor, no entanto, debruça-se sobre a
vertente revolucionária, à esquerda do espectro político, dessa proposta de brasilidade. In: RIDENTI,
M. Brasilidade Revolucionária. Editora UNESP, 2010. P. 09.
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4
Boilesen ou das casas de tortura civis? Ou ainda planificar, partindo de todos esses, as
camadas da população que não tomaram uma posição abertamente combatente ao regime
como apoiadoras do governo? Acredito que não. Há diversas gradações de cinza nesta
“zona cinzenta” 5 entre a adesão e a resistência. Os limites e possibilidades da relação entre
a sociedade civil e a ditadura militar brasileira ainda aguardam muitos debates da memória e
da historiografia. 6
Referências
ALEXANDRE, Ricardo. Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal. São
Paulo. Globo. 2009. 390 p.
ALONSO, Gustavo. Simonal. Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga:
Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical. Rio de Janeiro, Record, 2011. P. 477.
_______________. Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser a bode
expiatório. In: ROLLEMBERG & QUADRAT (Org.) A construção social dos regimes
autoritários. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2011. Vol. 2. P. 175-218.
BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília et alii. Cultura
Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. P. 29-46.
_______________. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre & SIRINELLI, Jean François
(org.). Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998a. P. 349-363.
CORDEIRO, Janaina Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o
governo Médici. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.22, No. 43, 2009. P. 85-104.
FELIX, Raoni, EMY, Tamara (Org). Bambas do Samba. A arte das capas dos LPs. Captado
em: http://www.academiadosamba.com.br/memoriasamba/bibliografia/pdf/Livro-Bambas-do-
Samba.pdf. Captado 04/09/2013, 20h10.
4
Henning Albert Boilesen foi um empresário de destaque, presidente do Grupo Ultra e grande
incentivador e financiador da OBAN. Foi assassinado por “justiçamento” em uma ação conjunta de
grupos de guerrilha em 1971. O empresário ficou conhecido por um gosto sádico de assistir
pessoalmente a sessões de torturas no DOPS. Informações sobre ele podem ser vistas no
documentário Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litewski, 2009.
5
O termo “zona cinzenta” surge inicialmente com Primo Levi, sendo utilizada para descrever os
prisioneiros de campos de concentração colaboradores ou mediadores de nazistas na obra I
sommersi e i salvati. Alonso utiliza a definição de Pierre Laborie, pensando a França sob ocupação
nazista. Laborie define “zona cinzenta” como um “’lugar social’ no qual os indivíduos se portam, ao
mesmo tempo, entre as luzes da resistência e as trevas da colaboração” (ALONSO, 2011: 299-300).
O autor propõe o uso do termo para trabalhar as complexidades de Simonal, momento de sua
argumentação com qual concordo.
6
A relação entre memória e história, enquanto questão basilar do estudo historiográfico é bastante
presente em diversos trabalhos. Deste modo, muitos dos textos nesta bibliográfica abordam o
assunto. Para uma discussão mais direta quanto a memória neste trabalho foram utilizados os textos
Ulpiano Bezerra de Menezes, Maria Inés Mudrovic e os artigos de Michel Pollak de onde foi retirado,
aliás, a expressão “enquadramento da memória” aqui utilizada.
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FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. In: AARÃO REIS;
RIDENTI; MOTTA (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004)
EDUSC, 2004. P. 265-275.
GINZBURG, Carlo. “Tu País Te Necesita”: Un estúdio de caso sobre iconografia política. In:
Prohistoria. Año VII, número 7, 2003, pp. 10-36.
HARTWIG, Adriane Malmann Eede. A pérola negra regressa ao ventre da ostra: Wilson
Simonal em suas relações com a Indústria Cultural (1963 a 1971). (Mestrado em História) -
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Programa de Pós-graduação em História,
Marechal Cândido Rondon, 2008. 157 p.
HERMETO, Miriam . Canção popular brasileira e ensino de História: palavras, sons e tantos
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Introdução
Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob uma ditadura civil-militar. Com o final da
ditadura, mas, sobretudo a partir da primeira década dos anos 2000, questões relacionados
ao saldo da repressão política volta e meia têm vindo à tona, chamando à atenção para a
necessidade de se pensar e implementar políticas destinadas ao enfrentamento das marcas
que o autoritarismo deixou na história recente do país. Uma política pública específica
formulada em países que viveram experiências autoritárias diz respeito à criação de uma
Comissão da Verdade. Dito isso, neste trabalho estudamos a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) brasileira, seu surgimento, e sua atuação.
Para melhor organizar a exposição, dividimos o estudo em três seções. Na primeira,
fazemos uma breve retrospectiva de alguns pontos da história recente que consideramos
essenciais para compreensão da problemática a ser trabalhada. Na sequência, nos
detivemos na análise do processo de elaboração do 3º Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3) e do Projeto de Lei que criou a CNV. Na terceira e última parte,
analisamos os resultados até agora produzidos pelos trabalhos da Comissão da Verdade,
atentando para os percalços surgidos em sua trajetória.
Antecedentes históricos
O primeiro dos países do Cone Sul a sofrer um Golpe
de Estado no contexto da Guerra Fria e vinculado à Doutrina de Segurança Nacional (DSN)
foi o Brasil, onde, entre os dias 31 de março de 1º de abril de 1964, foi iniciada uma ditadura
civil-militar que se estenderia até 1985. Embora seja complicado afirmar com certeza a
variável que levou ao Golpe, é possível observar que a tomada do poder pelos militares teve
seu acontecimento relacionado à motivações econômicas (MARTINS, 1988) e anti-
comunistas (MOTTA, 2002), sendo a intervenção das Forças Armadas frequentemente
associada, na época, a um cenário político marcado pela instabilidade gerada a partir de
agosto de 1961, quando ocorreu a renúncia do presidente Jânio Quadros (SKIDMORE,
1988).
Em 1964, os mesmos setores das Forças Armadas que em 1961 haviam tentado
impedir a posse do vice-presidente eleito, porque viam nas suas ações uma aproximação
com o comunismo (quando Jânio renunciou, Jango estava em viagem oficial à China
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processos que tramitaram na Justiça Militar por crimes contra a Segurança Nacional; 4
sentenças de morte (não consumadas); 130 desterrados; 4.862 cassados; 6.592 militares
atingidos por atos do regime; milhares de exilados políticos; e centenas de camponeses
assassinados (ALMEIDA; et al., 2009, p. 21; ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985).
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1
“Retomando a experiência da primeira conferência, realizada em 1996, esta edição teve por objetivo
principal discutir propostas para subsidiar a elaboração do PNDH. Contando com a participação de
1.228 delegados em sua etapa nacional, a conferência foi precedida por etapas em todas as
unidades da Federação (UFs), por sua vez precedidas por 137 conferências municipais, territoriais e
livres” (IPEA, 2010, p. 284).
2
Os meios de comunicação deram ampla cobertura às polêmicas em torno do PNDH-3. No jornal
Zero Hora, por exemplo, no período que vai de 9 a 15 de janeiro de 2010 (referências completas ao
final do trabalho), quando as polêmicas atingiram seu auge, reportagens e editoriais deram destaque
às discussões. No auge das polêmicas, inclusive, Nelson Jobim (Ministro da Defesa) e Paulo
Vannuchi (da Secretaria de Direitos Humanos) ameçaram renunciar aos seus cargos.
3
In: “Lula assina novo decreto sobre Comissão da Verdade”, notícia de 13 de janeiro de 2010
disponível em: <http://www.bbc.co.uk/blogs/portuguese/br/2010/01/lula-assina-novo-decreto-
sobre.html>. Acesso em 09 de março de 2014.
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Nesse sentido, ainda que graves violações tenham, com efeito, ocorrido no cenário
político imediatamente posterior ao final do Estado Novo no país, não parece acertado
esperar que uma Comissão da Verdade analise fatos do período democrático
concomitantemente aos fatos ocorridos durante a ditadura, já que não se tratam de
situações que fazem parte de um mesmo contexto.
A CNV foi oficialmente instalada em cerimônia realizada em Brasília no dia 16 de
maio de 2012, em um ato que contou com a presença de todos ex-presidentes da Nova
República (José Sarney, Fernando Collor de Melo, Fernando Henrique Cardoso e Luís
Inácio Lula da Silva). A partir de então, outras questões foram despontando como limites ou
possibilidades a serem trabalhadas por seus membros. Nomeados pela Presidência da
República, compuseram originalmente a Comissão: Cláudio Fonteles, ex-Procurador Geral
da República durante o Governo Lula; Gilson Dipp, Ministro do Superior Tribunal de Justiça;
José Carlos Dias, ex-Ministro da Justiça durante o Governo Fernando Henrique Cardoso;
José Paulo Cavalcanti, jurista e escritor; Maria Rita Kehl, psicanalista; Paulo Sérgio Pinheiro,
diplomata; e Rosa Maria Cardoso, advogada de presos políticos.
Em maio de 2013, ao completar 1 ano de funcionamento, a CNV publicou um
relatório resumindo as atividades realizadas no período4. Essa publicação possibilitou, por
um lado, que a Comissão deixasse claros os conceitos-chave que instrumentaliza na análise
dos dados que vem coletando, tendo viabilizado, por outro lado, que os interessados em
geral pudessem entender como seus trabalhos estão sendo realizados, quais suas
principais linhas de atuação, e seus recortes temáticos. Embora seja importante para dar
ideia do que fora feito, e traçar um panorama daquilo que já foi mapeado pelos membros e
funcionários a serviço da Comissão, os dados apresentados no relatório se resumiram, em
sua maioria, à referência a dados numéricos informando a quantidade de arquivos
identificados ou catalogados, além do número de audiências realizadas e de depoimentos
coletados, entre outras informações.
De acordo com Edson Teles e Renan H. Quinalha5:
4
O relatório, “Balanço de Atividades: 1 ano da Comissão Nacional da Verdade”, encontra-se
disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>.
5
In: “O trabalho de Sísifo da Comissão Nacional da Verdade”, artigo publicado no periódico Le Monde
Diplomatique, edição de setembro de 2013, e disponibilizado no blog da Boitempo.
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Bastante plural em sua composição, e, num outro sentido, a CNV veio enfrentando,
desde 2012, problemas relacionados à perspectiva que cada um dos seus membros possui
a respeito de questões importantes como: 1) entendimento sobre a possibilidade de punição
dos agentes da repressão; 2) visão sobre divulgação de dados parciais e prestação de
contas dos trabalhos realizados; 3) publicidade de dados coletados; 4) participação da
população. Ainda que possa ser considerada como algo natural, a existência de
divergências internas entre os integrantes da Comissão passou a ganhar destaque nos
meios de comunicação em 20136.
Em junho, a situação se agravou, culminando com a demissão de Cláudio Fonteles
da CNV. O estopim para saída desse membro, foi a veiculação de sua declaração favorável
à revisão da anistia e à punição das pessoas envolvidas com a repressão política (a
declaração foi publicada no site da CNV). Ao manifestar-se publicamente sobre a questão,
Fonteles chamou a atenção do público em geral para os problemas internos enfrentados
pela CNV, demonstrando que, além de divergências internas a respeito de temas
específicos, parecia haver entre seus integrantes uma divisão em torno da figura Paulo
Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão.
Em “Carta Aberta à Comissão Nacional da Verdade”7 redigida e assinada por um
grupo formado por familiares de mortos e desaparecidos, ex-presos políticos, entidades
vinculadas à luta por Memória, Verdade e Justiça, e militantes de direitos humanos, o
relatório foi criticado. No documento, publicado em 15 de julho de 2013, foram realizadas
críticas ao “Balanço de Atividades”, às limitações da CNV, e ao comportamento de alguns
dos seus integrantes.
A partir do segundo semestre de 2013, a atuação da CNV, apesar das limitações
apontadas, ganhou destaque na mídia, possibilitando alguns avanços positivos na árdua
tarefa de recomposição do passado recente do país. Fatos significativos, nesse sentido,
são: a) a exumação, em novembro de 2013, dos restos mortais do ex-presidente João
Goulart, falecido no exílio, na Argentina, em dezembro de 1976; b) a realização de audiência
pública, no dia 27 de fevereiro de 2014, na qual foram prestados esclarecimentos sobre o
caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Beirodt Paiva, ocorrido em janeiro de
1971, após terem-no levado para o DOI-CODI do Rio de Janeiro8.
A realização do traslado, da exumação e da cerimônia fúnebre (com honras de Chefe
de Estado) para o segundo sepultamento dos restos mortais do ex-presidente deposto foi
6
Em notícia veiculada pelo jornal Zero Hora (referência completa no final do trabalho) sobre
dificuldades enfrentadas pela CNV, consta que “o novo coordenador [José Carlos Dias] também
comentou recentes rusgas entre membros da CNV. Ele disse que não há desavenças, mas
‘temperamentos diferentes’”.
7
A Carta Aberta circulou pelas redes sociais, podendo também ser encontrada em diversos sites de
organizações de direitos humanos.
8
Ver “Relatório parcial sobre o caso Rubens Paiva” disponível em: <http://www.cnv.gov.br/>.
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No que se relaciona ao caso Rubens Paiva, após terem acesso a documentos que
por mais de 40 anos foram sonegados, e terem ouvido o depoimento de militares da
Reserva, foram finalmente esclarecidas algumas questões importantes a respeito das reais
circunstâncias da morte do ex-deputado. integrantes da Comissão afirmaram ter reunido
prova documental e testemunhal suficiente para declarar: 1) que as versões apresentadas
pelos órgãos da repressão, que negavam resposabilidade pela prisão, tortura, morte e
desaparecimento do ex-Deputado, são falsas; 2) que a identidade de pelo menos dois
agentes da repressão envolvidos no caso haviam sido descobertas. Embora assumir
publicamente que o desaparecimento foi causado pelo aparato repressivo pareça algo que
não era essencial na atual conjuntura9, combinada com a declaração e publicização dos
nomes dos envolvidos no caso, a atitude da Comissão sugere que alguns avanços em
direção à Memória e à Verdade reiteradamente demandadas por vítimas da repressão e por
militantes de direitos humanos em geral podem ser esperados.
Afinal, a divulgação de “novidades” por parte da CNV seja limitada, ela sinaliza uma
ruptura com a estratégia assumida (na prática) em seu primeiro ano de atividades. Ou seja,
em vez de manter em sigilo dados obtidos com a realização de audiências, busca de
documentos e tomada de depoimentos, ou, então, limitar-se à reprodução de dados
disponibilizadas em livros e relatórios organizados por grupos de vítimas da repressão (caso
dos relatórios organizados por familiares de mortos e desaparecidos políticos) e organismos
oficiais (caso dos informes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
e da Comissão de Anistia / Ministério da Justiça), a CNV potencializa seu papel de
9
Desde a edição da “Lei dos Mortos e Desaparecidos”, a Lei nº 9.140 de 1995, já havia sido
reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de Rubens B. Paiva, logo,
embora seja importante reafirmar publicamente a responsabilidade do Estado por esse tipo de crime
cometido pelo aparato repressivo, deve-se atentar para o fato de que um dos principais objetivos dos
trabalhos da CNV é o esclarecimento de fatos novos ou que até hoje não foram solucionados.
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Considerações finais
Enfrentando antes, durante, e depois da aprovação da Lei que a
instituiu, a resistência de setores vinculados ao período autoritário e/ou comprometidos com
o conteúdo dos pactos que possibilitaram uma transição “lenta, gradual e segura”, a
Comissão da Verdade teve que lidar, ainda, com uma série de problemas de ordem técnica,
como o número limitado de integrantes, o prazo exíguo para a investigação das violações, e
a dificuldade de dialogar com a sociedade e com os comitês regionais e locais criados em
todas regiões do Brasil.
Se tem sido possível, por um lado, ampliar a visibilidade sobre aspectos
gerais da ditadura brasileira junto à população em geral, fomentando-se de alguma maneira
o debate e a reflexão sobre o que ocorreu entre 1964 e 1985, são visíveis, por outro lado,
limites na atuação da CNV. Combinada com a existência de divergências internas, que
expuseram para sociedade a “divisão” entre seus poucos integrantes, as limitações
decorrentes de uma complicada aplicação da nova política nacional de sigilo também tem
contribuído negativamente com os trabalhos em busca da verdade.
Fazer previsões a respeito do que se pode esperar até a apresentação do
relatório final da Comissão, é complicado. De qualquer forma, e, tendo em vista o que se
tem assistido a partir de maio de 2012, acredita-se que, embora tímida, até sua extinção a
CNV terá contribuído, sim, para que se lance um olhar menos condescendente e mais
comprometido com o resgate da memória da repressão política, servindo de base, quem
sabe, para a formulação de políticas mais efetivas com vistas à garantia dos postulados da
Memória, da Verdade, e, finalmente, da Justiça.
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II – Notícias de jornal:
Plano de direitos humanos provoca onda de protestos. Zero Hora, Porto Alegre, 9 jan. 2010, p. 6.
Racha no governo faz presidente rever plano. Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 6.
Editorial: A construção da verdade histórica (R.Fraga). Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 12.
Editorial: Plano funesto (P.Brossard). Zero Hora, Porto Alegre, 11 jan. 2010, p. 13.
Lula tende a desidratar programa. Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 6.
Editorial: Direito à memória e à verdade (D.Galimberti). Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 15.
Editorial: As “crises” e os direitos humanos (A.Silva). Zero Hora, Porto Alegre, 12 jan. 2010, p. 15.
Lula vai reeditar plano para contornar crise. Zero Hora, Porto Alegre, 13 jan. 2010, p. 12.
Sob pressão, Lula altera plano de direitos humanos. Zero Hora, Porto Alegre, 14 jan. 2010, p. 28.
Grupos de direitos humanos defendem saída de Jobim. Zero Hora, Porto Alegre, 15 jan. 2010, p. 29.
Novo comando: Comissão da Verdade admite dificuldades. Zero Hora, Porto Alegre, 28 agosto 2013,
p. 18.
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Direitos Humanos, 2002. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh/pndhII/Texto%20Integral%20PNDH%20II.pdf>. Acesso em 28 de
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_____. Projeto de Lei nº 7.376, de 20 de maio de 2010. Cria a Comissão Nacional da Verdade, no
âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>.
Acesso em 28 de fev. de 2014.
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Em ambos, apesar da forte politização das narrativas e das diegeses, o Rio não
aparece como uma cidade particularmente engajada, o que soa como uma ausência
significativa. Afinal, às vésperas do Golpe de 1964, a população carioca apresentava
expressiva polarização política. Em 1960, havia elegido, para o cargo de governador, a
Carlos Lacerda, um dos bastiões do conservadorismo político nacional, mas também lotaria
o Comício da Central, em que o presidente João Goulart receberia apoio às propostas
reformistas, dias antes do Golpe.
1
As reflexões contidas neste trabalho derivam da tese “Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a
representação da modernidade urbana carioca (1955-1970)”, que contou com bolsa CAPES nacional
e sanduíche no exterior.
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cotidianos da cidade, ao mesmo tempo que realizavam críticas ao status quo – o que, a
priori, os deixaria alertas para a dimensão politizada da ex-capital da República.
O desafio
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cidade: “Urbano, lembrava ele, significa também uma pessoa ‘cortês, afável, civilizada’, bem
comportada. Acho que eles querem esse tipo de cinema. Mas vamos ao cinema urbano: a
gente aproveita, faz filme na cidade e manda brasa” (VIANY, 1999, p. 121).
Note-se a utilização do pronome pessoal “eles” para se referir a uma demanda por
filmes urbanos, exatamente como na fala de Carlos, quando diz que, se “eles querem
assunto urbano, nem é preciso sair do Rio”. Em ambas as situações, a construção aponta
para um desejo geral, sem sujeito determinado. Quem quer cinema urbano “comportado”? A
crítica? O público? Os governantes? Todos, talvez. Pelo paralelo que se estabelece entre o
livro que Marcelo pretende escrever e o filme que Saraceni realizou, subentende-se que,
para ambos, o papel do artista deveria ser filmar na cidade, mas sem atender a essa
demanda. Por este motivo Marcelo se lamenta, dizendo não acreditar no projeto, por ainda
ver “tudo escuro”.
Saraceni, por seu turno, em vez de somente filmar a “chamada classe privilegiada” da
Zona Sul, representada por Ada, a contrapõe ao amante de classe média baixa, ativista
político, deprimido por conta da ditadura e da crise em seu relacionamento. Este dualismo
pode ser observado nas duas sequências analisadas abaixo, inseridas no filme após o
rompimento do namoro dos protagonistas.
Na primeira, Ada circula em torno da piscina de sua casa, apresentando uma postura
desolada, que a música extradiegética sublinha. Minha desventura (Carlos Lyra/Vinícius de
Moraes), canção com andamento lento e melodia triste que lembra um acalanto, é
executada por Carlos Lyra, se iniciando com os seguintes versos: “Ah, doce sentimento lindo
e desesperador/ Ah, meu tormento infindo que vai me matar de dor”. Depois de contemplar a
paisagem natural através da grade de segurança que circunda o pátio, segurando-se nela,
Ada é mostrada dirigindo pelas ruas da cidade, à noite. A câmera captura, através da janela
do carro – e sempre tendo o close do rosto de Ada em primeiro plano – o mobiliário urbano,
como placas luminosas, vitrines e painéis de lojas, quase sempre desfocados. Um dado
interessante é a montagem “picotada”, reforçando o sentimento de angústia e agitação
emocional da personagem, que termina escrevendo um bilhete para Marcelo, passado por
baixo da porta de seu apartamento.
No dia seguinte, depois de ler o bilhete, Marcelo caminha por uma feira livre, filmado
num plano-sequência. A câmera segue o personagem por trás, sempre num plano médio, o
que faz com que a visualização do espaço seja interceptada por sua figura. Enquanto ele
caminha, se ouve Arrastão (Edu Lobo/Vinícius de Moraes), na voz de Elis Regina, que
entoa: “Eh! Tem jangada no mar/ Eh, eh, eh! Hoje tem arrastão/ Eh! Todo mundo pescar!”.
Marcelo observa as barracas e as pessoas, principalmente os trabalhadores, sem se deter
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em nenhum lugar, nem parecer interessado em comprar nada. Diferente de Ada, que
permanece protegida por grades e janelas, se poderia afirmar que ele se mistura à
população, mas não de forma evidentemente proativa. Ainda, o fato de Marcelo usar um
terno escuro, que ocupa boa parte do quadro, cria um contraste entre sua figura e o
ambiente diurno – como se ele e o espaço se opusessem mutuamente. Ele caminha quase
até o fim da feira e da música, quando um corte seco (abrupto) leva a outra cena.
A partir dessas sequências é possível afirmar que Ada esteja presa em um arranjo
social do qual gostaria de se desprender, o que é visualmente reforçado pela barreira das
grades e dos vidros e musicalmente tematizado pela canção romântica, vinculada à Bossa
Nova (associada, no imaginário, ao refinamento das classes mais abastadas); Marcelo, por
sua vez, preso em uma capa de racionalidade quase patológica – um jovem
caricaturalmente moderno, se a racionalidade for entendida como elemento basal da
modernidade – não consegue “tocar” nada do que o circunda. A sua relação aparentemente
apática com a feira, espaço popular por excelência na vivência urbana, é rebatida pela
canção – também ela se refere a uma universo popular diferente do que é associado aos
compositores e a sua intérprete (artistas urbanos e de classe média) e não parece conseguir
“tocar” essa realidade de que se aproxima.
No entanto, em ambos os casos, não significa que não haja interação. Afinal, grades e
janelas, funcionando como molduras, “se voltam para a cidade a partir de um padrão de
interação constante” (DEVRIES, 2005, p. 1732), já que apenas se emoldura o que se deseja
exibir. Já no caso de Marcelo, mesmo que não toque com as mãos, o personagem percorre
a materialidade da urbe com o olhar – não se dá o acesso, mas a busca permanece.
Interessante também é o fato de haver muitas cenas escuras no filme e de que, mesmo
quando filmada de dia, a cidade pareça sombria. Isso é devido, em parte, ao
enquadramento fechado que comentei acima, como no caso de Marcelo andando pela feira.
Ali, o tom escuro de sua roupa, ocupando a maior parte do quadro, também acaba por
aumentar essa impressão. O fato de Marcelo ver “tudo escuro”, como ele mesmo dissera
cenas atrás, está relacionado diretamente à política. A sua reação ao Golpe é de paralisia.
2
Livre tradução de: "renvoient à la ville selon un schéma d’intéraction perpétuelle".
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Nesse sentido, chama atenção um dado que pode ser observado na comparação entre
o filme e um esboço de seu roteiro, que apresenta diferenças flagrantes em relação ao
resultado final3. Inicialmente, existiam muitas cenas em que Marcelo seria enfocado como
um militante. A cidade, por sua vez, apareceria como o espaço propício à política. Um bom
exemplo é uma sequência ambientada nas areias da praia do Leblon, à noite, em que
Marcelo participaria de um interrogatório improvisado, de um possível traidor que teria
facilitado o fechamento da UNE. No filme, não há nada parecido: os personagens
conversam sobre política, mas não se envolvem em militâncias.
Apesar de a política ser um dos temas centrais, ela não aparece, ao menos não em sua
vertente institucional (passeatas, protestos, comícios, greves etc). O que se vê de político
está vinculado às artes e aos meios de comunicação, nas inúmeras referências à cena
cultural carioca dos anos 1960 (CAMPO, 2011; PINTO, 2013b). É evidente que estes
também estão na cidade, mas ao fim a impressão é de que a materialidade das ruas não é
tomada como espaço da política, como poderia ter acontecido a partir do esboço do roteiro.
A grande cidade
Uma das reações ao universo urbano mais evidente no filme é o temor. A personagem
Luzia se mostra nitidamente amedrontada em seu primeiro dia na cidade. Depois, em
momentos distintos, pergunta a cada um dos outros três se também têm medo. As
respostas variam: para Calunga, o medo é o que permite a ele sobreviver; para Jasão, é
algo a ser evitado, pois representaria sua derrota; para Inácio, é o que o liga a todos os
outros – o medo e a fraqueza diante das agruras da vida. Os comentários deste
personagem em especial formam um panorama interessante da vida no Rio em 1965:
3
Disponível na pasta “O desafio” dos arquivos da FUNARTE no Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Um pouco antes, ele e Luzia passeiam pelo Monumento aos Pracinhas, no Aterro (e
Parque) do Flamengo, localizado no Centro, à beira da Baía de Guanabara. Embora o
Monumento fosse anterior, o aterro e o parque haviam sido inaugurados um ano antes,
como “coroação” do governo de Carlos Lacerda (1960-65), que tomara posse prometendo
devolver à ex-capital a sua modernidade perdida (PINTO, 2013a). Em seus planos, Lacerda
incluía a erradicação de favelas localizadas em áreas nobres e a consequente expulsão de
seus moradores (muitos deles, migrantes nordestinos). Daí, o posicionamento crítico que o
filme – identificado com o olhar dos excluídos – lança aos novos espaços construídos por
Lacerda.
Uma imagem de Luzia refletida numa das paredes de mármore negro do monumento é
exibida, enquanto ela se contempla. Parte do relevo presente no horizonte da baía está
visível por trás de seu rosto. No som extradiegético, Maria Bethânia canta Anda Luzia (João
de Barro): “a vida dura só um dia, Luzia/ E não se leva nada desse mundo”. Luzia vira-se, se
encostando à parede e perguntando para Inácio se ele seria capaz de dormir com ela. A
câmera, que a enquadrava num plano médio, aproxima-se, oscilando levemente. Corta para
um close dele: “Hein!?” A câmera volta a buscar o rosto de Luzia e ela responde “Nada”,
olhando para outro lado e sorrindo com um toque de malícia. Um conjunto de cinco caças
sobrevoa o Aterro.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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No entanto, mesmo possibilitando outras leituras, não se pode dizer que as sequências
sejam de todo “inocentes” no que se refere à representação da ditadura. Afinal, os cinco
caças, a referência geral e difusa à “guerra” e o próprio Monumento aos Pracinhas remetem
às Forças Armadas, se configurando em opções no mínimo capciosas. Contudo, assim
como em O desafio, o tom assumido parece querer reforçar as reflexões intimistas diante da
crescente militarização e menos uma resposta explícita a ela – a política também está
ausente do Rio de Janeiro representado aqui.
Em depoimento a Silvia Oroz, Cacá Diegues disse que A grande cidade era “uma
tentativa de desmitificar aquela visão de ‘cartão-postal’ e mostrar certos aspectos do Rio de
Janeiro menos preciosos” (OROZ, 1984, p. 36). Ainda, o comparava com o seu filme
anterior, Ganga Zumba (1964), que possuía uma leitura mais “ideológica”, enquanto aqui a
leitura seria “emocional mesmo” (OROZ, 1984, p. 36). Em resumo, tratava-se de fazer um
“acerto de contas” afetivo com a cidade que o recebera quando criança (Cacá migrara com
a família, vindo de Alagoas, com seis anos de idade, sempre morando em bairros de classe
média da Zona Sul carioca).
Em A grande cidade, o Rio dos cartões-postais ainda está presente, embora filmado a
partir de uma perspectiva crítica, que o associa a elementos negativos da diegese. Do lado
oposto, a favela da Mangueira aparece carregada de valores positivos, identificados, em
alguns momentos, ao sertão (PINTO, 2013a). Logo, o esforço em realizar uma
representação mais realista convive com uma dimensão simbólica, conseguida através da
evocação de leituras pré-estabelecidas. Além da favela como um lugar de pureza, há
também o Centro como espaço de memória (locus do Carnaval, da religião e da cultura
popular) e o Aterro como índice da modernização.
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Em termos narrativos, esta camada simbólica é evidenciada por planos bem estudados
e falas solenes; uso de gruas para filmar a cidade do alto, conferindo um tom mais “clássico”
a seus enquadramentos e certo esquematismo na escolha dos personagens – migrantes
sertanejos, marginais, favelados, burgueses. Contudo, estes mesmos personagens – de
forma a reforçar certa ambiguidade que se configura em traço estilístico do filme – se
retraem diante da política e da violência, buscando se realizar no plano da intimidade, em
sequências menos monumentais, com a câmera na mão. Porém, como já apontado,
acabam destruídos, apesar desta fuga.
Logo, mais que apenas uma mudança de escala – do local para o nacional – as
escolhas narrativas de O desafio também evidenciam a lógica da representação urbana. A
partir do contraste entre a cidade no filme e os traços que a historiografia aponta para ela,
enfatizo que o ponto de vista privilegiado é o dos personagens, e não o dos governos (ou
das ideologias). Marcelo, principalmente, encontra-se descrente de todo movimento popular,
ou dos estilos artísticos que se apoiem neles. O seu olhar rejeita essa porção da urbe,
evidenciando-se uma cidade verticalizada pelo modernismo, escura e fria, mimetizando
seus temores de militante em crise. A mesma focalização funciona para Ada, vivenciando
igualmente um momento crítico em sua busca pela realização pessoal.
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Cinema Novo estariam dizendo da vida urbana carioca no pós-Golpe? Marcelo e Ada
poderiam ser condenados por não fazerem nada diante da nova situação? Luzia e Jasão
teriam sido mortos por conta de sua inação, por terem sentido medo – e apenas medo? E
Calunga e Inácio, seriam corresponsabilizados por estas duas mortes, por se dedicarem
apenas a uma realização pessoal, sem se importar muito com o medo que se espalhava
pala cidade?
Defendo que a resposta seja “não” a todas as perguntas. A partir das análises, percebo
que, menos que apatia, os cineastas (também roteiristas) parecem querer representar a
perplexidade – esta que tomou conta das esquerdas, dos intelectuais e artistas
comprometidos com a lógica nacional-popular. Através de personagens que poderiam
representar a eles mesmos (como Marcelo, o intelectual) ou o Outro, tanto o condenado
(Ada, a burguesa) quanto os admirados (Luzia, Jasão, Calunga e Inácio, os migrantes
nordestinos favelados) – procuram tematizar menos as ruas da cidade mesma, mas as ruas
de suas intimidades tomadas de assalto por um evento sobre o qual ainda sabiam pouco,
mas já lhes causava perplexidade e paralisia.
Referências
CAMPO, Mônica B. O desafio: filme reflexão no pós-1964. In: CAPELATO, Maria Helena et
al (orgs.). História e cinema. São Paulo: Alameda, 2011.
MAUAD, Ana Maria; NUNES, Daniela Ferreira. Discurso sobre a morte consumada:
Monumento aos Pracinhas. In: KNAUSS, Paulo (coord). Cidade vaidosa: imagens urbanas
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
OROZ, Silvia. Carlos Diegues: os filmes que não filmei. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
PINTO, Carlos Eduardo P. de. Governo Lacerda versus Cinema Novo: A grande cidade
como arena de embates simbólicos. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), v. 26, p. 154-172,
2013a.
ISBN: 978-85-62707-55-1
120 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
SKINNER, Quentin. Visions of politics. Cambridge: Cambridge University Press, v.I, 2002.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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A canção e o censurável
ISBN: 978-85-62707-55-1
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representou mais de 70% dos vetos contabilizados por esta pesquisa, motivação seguida
apenas pela censura de músicas que contivessem críticas diretas ao regime militar.
Sob outra perspectiva, a questão da defesa dos bons costumes estava, ainda,
atrelada à tentativa de manter a ordem pública e, consequentemente, política, através de
vetos a músicas que, por exemplo, influenciassem, na ótica da censura, a prática de crimes.
Dentro deste quadro – no qual, para a censura, as informações veiculadas pelas músicas
passariam a ser consideras normais e cotidianas por parte do público1 – estão presentes
canções censuradas por descreverem carros em alta velocidade – contrariando,
supostamente, as leis de trânsito –, por abordarem o tema do aborto ou por relatarem
crimes passionais.
O ato, portanto, de proibir uma letra em virtude de seu conteúdo imoral estaria
intrinsecamente ligado à defesa da segurança nacional e da ordem vigente, o que
demonstra a mescla que ocorreu na censura musical, deste período, entre uma tradicional
preocupação brasileira com a conservação dos bons costumes da sociedade e os interesses
coercitivos específicos do regime então vigente. As palavras do censor da música “Menino
Jesus” – “defender os valores morais para o curso da Revolução Brasileira”2 – mostram que
os técnicos tinham consciência de que, ao proibirem mensagens contrárias aos bons
1
Parecer da censora Arlete Aparecida Corrêa, 17 de jun. de 1977, São Paulo. In: Processo de
censura da música “Psicologia”, de Ubiratam Mariano. FUNDO “DIVISÃO DE CENSURA DE
DIVERSÕES PÚBLICAS” ARQUIVO NACIONAL, COORDENAÇÃO REGIONAL DO ARQUIVO
NACIONAL, SÉRIE “CENSURA PRÉVIA”, SUBSÉRIE “MÚSICA”, CAIXA 725.
2
Parecer de censor desconhecido, 18 de mar. de 1971, Guanabara. In: Processo de censura da
música “Menino Jesus”, de Chico Buarque. DCDO/CP/MU.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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costumes, tanto as famílias quanto o regime estariam “a salvo” dos “planos subversivos”, o
que fazia desta proibição um ato político.
Mas, se, por um lado, esta preocupação moral está ligada à censura política
realizada durante a ditadura militar, em defesa da ordem vigente, por outro, devemos levar
também em consideração que a censura de costumes, na ótica dos próprios técnicos, era
aquela legitimada pelos setores mais conservadores da sociedade e estava arraigada a uma
tradição missionária presente no histórico da censura brasileira, configurando-se, assim, em
uma prática transparentemente institucionalizada.
O mesmo não pode ser dito, por sua vez, da censura estritamente política realizada
no seio da DCDP. Segundo Miliandre Garcia (2008), esta prática seria a maior amostra da
existência de uma grande conexão entre censores e governos militares. Consequentemente,
muitos técnicos negavam publicamente que faziam esta censura, pois “denunciar tal prática
significava assumir que a entidade, que se projetava como guardiã dos valores éticos-
morais da sociedade, feria tanto os princípios básicos da Constituição como também servia
aos interesses políticos dos governos” (GARCIA, 2008, p. 36). Além do mais, ao defender os
interesses políticos do Estado, os censores encobriam os crimes cometidos e as mentiras
sustentadas pelo regime, traindo também, desta forma, sua suposta missão de tutelar e
proteger a sociedade.
Mas, apesar deste esforço, por parte dos censores, em evitar assumir publicamente
que vetavam temas políticos, negando assim uma aproximação com o autoritarismo vigente,
eles não tinham a preocupação de esconder esta posição de defesa do regime em seus
pareceres, principalmente naqueles que abordavam as “canções de protestos”. Estas obras
mostraram-se, nos documentos analisados, uma categoria musical com características
temáticas, e mesmo estéticas, muito bem delimitadas, que, a todo o momento, eram
“reconhecidas” pelos técnicos durante o exame. Seu conteúdo ideológico estava
relacionado, por exemplo, à utopia, luta armada, conscientização política, inconformismo e
críticas diretas ao regime; sua linguagem seria marcada pela astúcia e pelo simbolismo
(elementos constitutivos da chamada “linguagem da fresta”3) e sua sonoridade estaria
relacionada a uma moderna música brasileira, com sons irreverentes, atrelados a um
público jovem. No parecer da música “Campos”, o censor expõe que
3
Linguagem oblíqua, utilizada principalmente na imprensa crítica, que, segundo Vasconcellos (1977),
era a única capaz de driblar a censura.
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A citação concomitante destas três letras do artigo 41, por sua vez, – proibindo,
respectivamente, qualquer obra que fosse “capaz de provocar incitamento contra o regime
vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes”, ferisse “de qualquer
forma, a dignidade ou interesses nacionais” ou induzisse “ao desprestígio das fôrças
armadas” –, mostra as instituições específicas ameaçadas com a canção de protesto, às
quais a censura demonstrava abertamente salvaguardar.
4
Parecer de censor desconhecido, 16 nov. 1971, Brasília. In: Processo de censura da música
“Campos”, de Tetê Catalão e Luiz Maranhão. DCDO/CP/MU/CX 714.
5
Parecer da censora Jacira da Costa França, 4 jul. 1973, Brasília. In: Processo de censura da música
“Gozação n° 1”, de autor desconhecido. DCDO/CP/UM/CX 643.
6
Parecer da censora Avelita Barros, 2 set. 1977, Brasília. In: Processo de censura da música “Victor,
Victória”, de autor anônimo. DCDO/CP/UM/CX 725.
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Outro artigo, utilizado com menor frequência, para corroborar esta decisão censória
era o n° 4 do Decreto 5536/1968: “Os órgãos de censura deverão apreciar a obra em seu
contexto geral levando-lhe em conta o valor artístico, cultural e educativo, sem isolar cenas,
7
Parecer do censor Sebastião Minas Brasil Coelho, 13 de julho de 1972, Brasília. In: Processo de
censura da música “Mariza”, de Osvaldo Barbosa da Silva. DCDO/CP/MU/CX 716.
8
Parecer da censora Selma Chaves, 3 de jan. de 1976, Guanabara. In: Processo de censura da
música “Mais beijinhos”, de João Barone. DCDO/CP/MU/CX 736.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Há, ainda, dois outros aspectos considerados pela censura ao vetar letras em
decorrência da questão ortográfica/gramatical. O primeiro era a não compreensão do
sentido e da mensagem transmitidos pela música, o que ocorria, segundo os técnicos,
justamente pelos erros de português da letra. Já o segundo, remetia à construção e
preservação de uma imagem de eficiência da censura perante a sociedade, conforme
explica o parecer da canção Maria das Graças:
Por fim, uma última temática relativa ao “censurável” será destacada nesta
comunicação, também apontada no primeiro parecer do processo de “Tiro ao Alvaro”. Ao
vetarem canções em decorrência de seu “mau gosto”, por possuírem “linguagem
irreverente”, falta de sentido, ausência de mensagem ou mesmo pelo fato do autor
supostamente não ter conseguido expressar a mensagem que gostaria de transmitir através
9
Parecer dos censores Onofre Ribeiro da Silva e Florialdo de Carvalho Queiroz, 7 de jul. de 1975,
Brasília. In: Processo de censura da música “Alegria”, de Aparecida Graudi. DCDO/CP/MU/CX 653.
10
Parecer da censora Jacira da Costa França, 27 de jun. de 1974, Brasília. In: Processo de censura
da música “Maria das Graças”, de José de Ribamar Oliveira Sousa. DCDO/CP/MU/CX 736.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Referências
GARCIA, Miliandre. Ou vocês mudam ou acabam: teatro e censura na ditadura militar. Tese
(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.
ISBN: 978-85-62707-55-1
129 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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VASCONCELLOS, Gilberto. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Cristina FERREIRA
Doutoranda em História Social pela UNICAMP e professora titular de Pesquisa em História e
História do Brasil do Dep. de História da Universidade Regional de Blumenau – FURB
cris@furb.br
Introdução
Em meio aos eventos de transição e alternância de poder da esfera executiva do
Brasil na década de 1960, chama atenção a importância que as cidades do interior
assumem no cenário político nacional, pois se tornam alvo da presença, em carne e osso,
de autoridades públicas. Diante de tal problemática de pesquisa, este artigo tem o objetivo
de analisar e discutir os propósitos, interesses, jogos de poder e bastidores políticos
atrelados à visita do primeiro Presidente Militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, à
cidade de Blumenau-SC, com a finalidade de problematizar sua eventual representatividade
na constituição das Culturas Políticas, elaboradas em sociedade a partir do Golpe Civil-
Militar de 1964.
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Institucional nomeou, sem eleições diretas, o novo Presidente do Brasil: General Humberto
de Alencar Castelo Branco.
Por outro lado, convém frisar que, logo nos primeiros meses de seu mandato,
Castelo Branco promoveu ações na contramão desses rótulos, em especial a prorrogação
de seu próprio mandato de Presidente, em Julho de 1964 e a imediata criação do Serviço
Nacional de Informação (SNI), responsável pela formulação de um aparato repressivo de
identificação e a ordenação de prisão aos cidadãos considerados contrários ao regime.
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No dia seguinte, rumou para Itajaí no avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e o
percurso até Blumenau foi feito de automóvel oficial. Durante o trajeto, o esquema de
segurança foi reforçado pelo 23º Regimento de Infantaria de Blumenau. As atividades
programadas na visita, de aproximadamente quatro horas, foram as seguintes: 1) Recepção
do Prefeito e demais autoridades em frente à Prefeitura Municipal; 2) Desfile pela Rua 15 de
Novembro até a Matriz São Paulo Apóstolo e passagem pela Igreja; 3) Visita ao parque
industrial, Electro Aço Altona S/A e Artex S/A, dos ramos metalúrgico e têxtil,
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trajados com seus ternos escuros, designados para assegurar a ordem, em um perfeito
aparato de construção da representação simbólica do poder político vigente.
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crianças que se dirigiram a seu encontro abraçando-o demoradamente” (A Nação, Ano XXI, n.
116. Blumenau, 23/Maio/1965, p. 1). Um gesto aparentemente simples, mas com um
significado de apelo à figura da autoridade, não apenas como representante do poder
político da nação, mas também como pai de família e ser humano que, por sinal, viajou ao
Estado acompanhado de sua filha, Antonieta Castelo Branco (A Nação, Ano XXI, n. 115.
Blumenau, 22/Maio/1965, p. 1-6.). Esta situação traduz com evidência a necessidade do
governo autoritário de investir na obtenção do consentimento da população civil, intenção
corroborada por intermédio da aproximação com seu governante máximo.
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processo de interpretação
ção de eventos históricos pela via imagética deve considerar não
apenas as evidências e destaques óbvios, mas também os pormenores negligenciados e os
silenciamentos intrínsecos às fontes escritas e/ou em formato de imagem.
Acervo: Arquivo
Arquiv Histórico “José Ferreira da Silva” – Blumenau.
Na ocasião, o jornal A Nação registrou que havia papel picado, foguetes e uma
“ovação popular”, com destaque para senhoras e crianças que burlaram “o “cordão de
isolamento” [e] apressavam-se
apressavam em cumprimentar o presidente daa República, oferecendo
[uma] corbelha de flores” (A
A Nação,
Nação, Ano XXI, n. 116. Blumenau, 23/maio/1965, p. 1-6).
1 Esta
menção da imprensa às crianças e mulheres é uma espécie de referência às saudações
representativas das famílias locais, com o intuito de propor
propor uma suposta identificação dos
habitantes da cidade com as decisões governistas e seu presidente, Castelo Branco, para
gerar aprovação e apoio às ações impositivas do governo autoritário e incutir uma ordem
pública vinculada aos poderes militares.
As autoridades
oridades eclesiásticas, presentes nas Figuras 2 e 4, apareceram alinhadas com
o Presidente neste evento, principalmente, diante do fato do novo governo instaurado
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Considerações Finais
As viagens de Castelo Branco imediatamente após assumir a Presidência da
República em abril de 1964 não se restringiram somente aos grandes centros urbanos e
capitais. Essa ação está interligada com estratégias políticas elaboradas no afã de conduzir
a opinião pública a uma visão positiva quanto ao regime instaurado. O interesse na
legitimação do governo dos militares convergia também com as questões ligadas ao
potencial desenvolvimentista do Brasil que, no caso de Blumenau, foi articulado com sua
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presença nas indústrias do setor têxtil e metalúrgico, onde esteve em contato com
autoridades locais, trabalhadores e sindicalistas.
Todavia, a análise destes deslocamentos do Presidente não pode ser feita por uma via
reducionista, que se restringe à mera estratégia de autoridade política, com objetivos
puramente oficiais. O cerne das visitas visava a legitimação da autoridade do governo
militar, com um grau de intencionalidade específico em torno do desenvolvimentismo
econômico e da entronização, em território brasileiro, do reconhecimento e aproximação
entre as autoridades e a população.
Referências
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François.
Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e histórias interfaces. In: Tempo, Niterói,
v. 1, n. 2, 1996. p. 73-98.
MAUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. História e Fotografia. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Novos domínios da História. Rio de Janeiro:
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Daniela de CAMPOS
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e docente
no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
dcampos7@hotmail.com
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A principal virtude que o operário deveria demonstrar era sua dedicação ao trabalho.
Para comprová-la, seu depoimento ou documentos funcionais não eram suficientes.
Segundo regulamento do concurso, isso deveria ser atestado pela chefia imediata. Logo, se
não houvesse a concordância dos seus superiores hierárquicos, o trabalhador não
participaria do concurso.
Para além do que estava aparente, havia um discurso subjacente que desejava
promover a adequação do conjunto do operariado segundo padrões estabelecidos pelo
empresariado nacional: vida exemplar, apego às relações familiares (família de tipo
patriarcal), práticas religiosas cristãs, preferencialmente católicas e valorização do progresso
material obtido através do trabalho. A disciplina inerente ao concurso deveria, conforme
Gaudemar, “construir y dar continuidad a un determinado orden productivo, a un sistema de
autoridad, dominio y jerarquia aplicado a la producción” (MENDOZA, 1991: p. 19).
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Assim, também é preciso pensar de que forma a noção de tempo, fabril, maquínico,
disciplinado, relacionava-se com os objetivos da Campanha Operário Padrão. À primeira
vista, estabelece-se uma relação na valorização dos itens “assiduidade” e “pontualidade”
para o trabalhador participante. Como, num primeiro momento, a indicação do OP nas
empresas era realizada pelas chefias, a escolha do trabalhador estaria adequada a essas
normas.
O discurso da Campanha não era eliminar os “maus”, mas sim fazer com que, a
partir de um dado exemplo, também se conformassem a realidade que se pretendia.
Segundo Foucault, “a divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel:
marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também
castigar e recompensar. [...] A disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções
que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando” (FOUCAULT, 1987: p.
151).
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Pode-se pensar que a Campanha Operário Padrão, sob a ótica dos mecanismos de
disciplinamento, atuava pedagogicamente sobre os trabalhadores, ao ensiná-los como agir,
dentro e fora da fábrica, a fim de alcançar sucesso, material e social. Assim, a partir do que
foi referido sobre a disciplina, ou poder disciplinar, segundo Foucault, é possível entender os
objetivos dos mecanismos que agem nesse sentido: extrair do corpo o máximo de suas
forças, produzindo ações e comportamentos de ajustamento, submetendo e sujeitando os
corpos, mas também indivíduos capazes e com aptidões determinadas (ARAÚJO, 2012: p.
31). De outra parte, também se compreende que o operário padrão representava um modelo
que atingiu relativa estabilidade material, mesmo porque não se tratava de um simples
operário, mas sim de trabalhadores que desempenhavam algum cargo de chefia. A
perspectiva de melhoria de vida ou padrão social podia ser o maior atrativo para os demais
trabalhadores. A mensagem revelada pelo concurso era a de que, se o trabalhador seguisse
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1
Em 1976, o estado de São Paulo, por meio de decreto, estabeleceu apoio institucional e monetário
ao concurso. Em 1984 publicou novo decreto atualizando o valor do prêmio pago ao OP estadual.
ESTADO DE SÃO PAULO. Decreto 8.660, de 27 de setembro de 1976. Prevê o apoio da
Administração Estadual à “Campanha Operário Padrão” e institui prêmio referente ao certame. No
Rio Grande do Sul, a prefeitura municipal de São Leopoldo, cidade com maior número de operários
eleitos no concurso no estado outorgou títulos de cidadãos leopoldenses a dois operários padrão
daquele município. Como na época pesquisada a sede do Departamento Nacional do SESI se
localizava no Rio de Janeiro, fazia parte da programação do concurso em sua fase final a visita ao
governador daquele estado. O OP RS do ano de 1984, Sr. Antonio Luiz Rodrigues da Silva relatou
em entrevista concedida para esta pesquisa que “apertar a mão do governador Brizola foi a maior
emoção” de sua vida.
2
Arnaldo da Costa Prieto foi Ministro do Trabalho de maio de 1974 a março de 1979.
3
Além do presidente da República estavam presentes na solenidade o Ministro do Trabalho, o Chefe
do Gabinete Civil, Chefe do Gabinete Militar e o Chefe do SNI, o que pode denotar a importância que
o governo atribuía ao concurso. O GLOBO, novembro de 1973.
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Sinto satisfação e orgulho e dou tanto valor a essa promoção que no ano
passado incluí o Operário Padrão na delegação brasileira que nos
representou na Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra. Foi
uma representação brilhante com os melhores homens do trabalho do
Brasil, acrescida ainda do Operário Padrão, mostrando a perfeita integração
que existe hoje em nosso País entre empregados e empregadores. E é
exatamente essa perfeita integração que tem permitido que o Brasil cresça
nas proporções em que está crescendo (O Globo, novembro de 1973, grifo
nosso).
4
Gaudemar e, especialmente, Foucault indicaram a apropriação de modelos da disciplina militar para
eficácia da disciplina fabril, no início da “era da disciplina”.
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por setores hierárquicos mais altos da empresa e, depois disso, poderia haver eleição entre
os trabalhadores ou se aclamava o indicado pelas chefias. Com o advento de manifestações
sociais pela aprovação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, concentrada na
Campanha Diretas Já!, em 1983, tornava-se difícil para os meios de comunicação ou outras
instituições a continuidade do apoio antes dado ao regime ditatorial5. A COP mais uma vez
acabou por incorporar o que ocorria na sociedade como tentativa de se modernizar.
Ao findar o período da ditadura, o concurso não teve duração mais prolongada, pois
se questionava a validade desse tipo de iniciativa, inclusive no próprio âmbito empresarial.
Referências
ARAÚJO, Inês Lacerda. Vigiar e punir ou educar? Biblioteca do Professor: Foucault, São
Paulo, n. 3, p. 26-35, 2012.
WEINSTEIN, Barbara. The model worker of the paulista industrialists: The “Operário Padrão”
Campaign. Radical History Review, Durham, NC, p. 92-123, Winter 1995.
5
A própria Organizações Globo, em sua página institucional, menciona a necessidade que teve no
período de se adequar à nova realidade brasileira, ainda que, de acordo com o explicitado na página
“a pressão dos militares sobre a Rede Globo atingiu o seu ápice”, tomando “a forma de intimidação
pessoal”. Antes apoiadora e alvo de benefícios do regime, em seguida, adapta seu discurso por ser
repreensível a continuidade do apoio. MEMÓRIA GLOBO. Diretas Já. Disponível em:
<http://memoriaglobo.globo.com/erros/diretas-ja.htm>. Acesso em: 20 dez. 2013.
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Nas pesquisas feitas até o momento, não foram encontrados trabalhos que
tratassem da luta feminina especificamente em Minas Gerais, tampouco em Belo Horizonte.
A partir dessa averiguação, iniciou-se uma busca por fontes documentais – arquivos do
DOPS e entrevistas – que indicaram que a quantidade de mulheres na luta contra a ditadura
na capital mineira foi abundante, principalmente, na Ação Popular. Notou-se ainda, que
escolher a AP como meio de luta foi o resultado de múltiplas circunstâncias, vivências e
sentimentos, entre eles a paixão e a compaixão.
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Nesse ínterim desenvolvia-se a Ação Popular, que teve em sua base a ideologia
cristã humanitária. O histórico de formação da organização foi permeado por diversas
transformações e alterações de pensamento, estando intimamente ligado a três processos
de mudanças em diferentes instituições: Igreja Católica, Movimento Estudantil e Esquerda,
neste caso, o Partido Comunista (PC).
Para compreender porque os ideais da JUC conseguiram ser difundidos com tanta
amplitude na UNE, é necessário entender que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), desde
1958, passava por reformulações políticas, consideradas reacionárias pelos mais radicais. O
pensamento dos estudantes não ia ao encontro do pensamento do PCB, que buscava o
reformismo e o distanciamento da radicalização. Este posicionamento fez com que o
“Partidão” perdesse expressividade, dando espaço para o amplo crescimento da JUC, e por
consequência, criando condições para a formação da AP. A organização crescia, entretanto,
cresciam também as contradições internas, e com a Igreja, que questionava a extrema
aproximação dos jucistas com ideais marxistas. Tais divergências culminaram no
surgimento da Ação Popular, conduzida pela ala mais esquerdista da JUC, que buscava
criar uma organização independente. Assim, os limites impostos pela Igreja Católica, a
expressividade do pensamento marxista humanista no Movimento Estudantil e a
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Principalmente entre os anos de 1962 e 1964, a história do Brasil foi marcada pela
busca por transformações estruturais, gerando uma grande efervescência dos movimentos
de massa, com caráter nacional-reformista, que reivindicavam a Reforma Agrária, melhores
condições de trabalho e aumento de salário, ampliação de vagas nas escolas e
universidades, principalmente através de sucessivas greves de trabalhadores rurais e
urbanos e de estudantes. Este era também o posicionamento de diversas mulheres
brasileiras e Gilse, Delsy e Magda partilhavam dessa ideia, pois nesse período, ambas já
realizavam trabalhos voltados para a justiça social, tanto nas favelas, quanto em fábricas e
escolas.
Observa-se que, as mulheres aqui estudadas, iniciaram sua militância antes do golpe
e atuavam principalmente na Juventude Estudantil Católica e na Juventude Universitária
Católica, em manifestações nas ruas, na conscientização trabalhista e política nas fábricas,
alfabetizando as favelas, e buscando reformas no âmbito cultural e educacional. Segundo
Gilse, é nesse período que inicia sua luta na JEC, em Belo Horizonte, cidade que a essa
época possuía somente três escolas de ensino secundário gratuito, o Instituto de Educação,
o Colégio de Aplicação e a Escola Estadual Central. Segundo Gilse: “Era o período de
Jango, um período onde estava efervescente a mobilização no Brasil. E os estudantes, a
UNE e a UBES, também puxavam uma luta pela reforma da educação, pelo direito a
educação”1.
1
COSENZA. Entrevista concedida à autora em 29/08/2013.
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Verificou-se que tais escolhas se deram por caminhos diferentes, misturando acaso,
entusiasmo, amor, amizade, influências, ideologia política e religião. No caso de Gilse
Cosenza, um dos caminhos que a levou a optar pela AP, partiu de questões ideológicas e
da necessidade de atuação menos passiva e mais ativa. Gilse foi uma das primeiras
mulheres a dirigir um DCE na Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG), hoje PUC-
Minas. Inicialmente atuava na Ação Católica (AC), especificamente na Juventude Estudantil
Católica (JEC), e depois na Juventude Universitária Católica (JUC). Posteriormente, no dia
primeiro de abril de 1964, dia do Golpe, fez sua escolha pela AP. Ela afirma que nesse
mesmo dia saiu da faculdade em direção a Praça Sete, no centro da capital, na intenção de
encontrar alguém que a orientasse sobre como agir a partir desse momento. Entretanto,
chegando ao local, encontrou apenas militares armados e estudantes perdidos. Em sua
narrativa diz:
[…] nesse dia eu cheguei a conclusão de que não bastava eu estar na Ação
Católica. Eu sabia que existia a Ação Popular, mas nunca tinha me
interessado em entrar para a Ação Popular. A Ação Católica, a JEC e a
JUC, estavam me bastando. Mas nesse dia eu falei: não, agora a história é
outra. Eu preciso estar organizada, em uma organização independente de
religião, que possa ajudar todos aqueles... e lutar contra a ditadura. Então
nesse dia eu procurei a Helena Paixão e falei: eu quero entrar hoje na Ação
Popular. (COSENZA. Entrevista concedida à autora em 29/08/2013)
No caso de Delsy, a luta pelos problemas sociais já fazia parte da sua vida. Após se
formar no ensino secundário, permaneceu na Ação Católica até ingressar na universidade,
em 1966. Durante este período, a mesma participou de passeatas, manifestações,
panfletagens, pichações durante a madrugada, e atuava como professora de jovens e
adultos em uma Escola Estadual, no bairro São Gabriel. Posteriormente, no final de 1966,
foi dar aulas no Colégio Municipal de Contagem, no bairro Eldorado. É neste momento que
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ingressa na AP, fundando, junto a alguns operários e militantes, uma célula da AP. Neste
sentido, nota-se que sua escolha veio pelo afeto, no sentido literal da palavra, aquilo que a
afetava. Segundo Delsy:
[...] Eu tô te contando essa história pra você entender que eu num entrei na
AP primeiro para depois saber o que que eu ia fazer. Cê entendeu? Eu fui
fazendo as coisas que eu achava que devia fazer. Como eu estava com
uma dificuldade econômica muito grande, porque eu tava dando aula, o
Estado ficou oito meses, sem pagar, a minha situação assim de
sobrevivência era uma situação muito complicada. Então ele (um padre
amigo) me ofereceu no final de 66, pra eu poder trabalhar no colégio,
situado na Cidade Industrial, Colégio Municipal de Contagem, e eu comecei
a dar aula lá. E aí, quando eu comecei a dar aula lá, aí então eu encontrei
um pessoal da AP, que eram também meus amigos e nós nos reunimos. Aí
sim, aí eu comecei a me sentir dentro de uma organização. (DELSY.
Entrevista concedida à autora em 26/10/2013)
Magda Maria Bello de Almeida Neves nasceu no Rio de Janeiro e aos sete anos
mudou-se para Juiz de Fora, cidade em que concluiu seus estudos até a graduação.
Sempre estudando em colégios católicos e em contato com as atividades da Ação Católica,
se aproximou inicialmente a JEC em 1962. Influenciada pelos ideais progressistas de
justiça social dos religiosos dominicanos, começou a trabalhar principalmente na
arrecadação de alimentos e roupas para levar para as favelas da cidade. Em 1964
ingressou no curso de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e
como era de praxe, ingressou na JUC e assumiu o Diretório Acadêmico do seu curso. A
direção da entidade a aproximou da Ação Popular, que neste momento já estava atuante na
universidade. Mudou-se para Belo Horizonte em 1969, trabalhou como Assistente Social
durante um ano, e ingressou no Mestrado em Ciência Política na Universidade Federal de
Minas Gerais. Na capital mineira se encontrou com algumas amigas juiz-foranas militantes
da AP.
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Compreende-se por meio das falas das militantes e dos documentos, que existia
nelas um desejo profundo de transformação da realidade social brasileira, o que vai atraí-las
para essa organização, no entanto, o que se verifica, é que outros fatores contribuíram para
essa adesão: a religião, a base de formação da AP – Juventudes Católicas -, o curso
universitário, os ofícios e a ideologia apista.
Considerações finais
Ser mulher militante nos anos de 1960 demandava o rompimento com múltiplos
padrões, com a família, com sua feminilidade, com sua privacidade. Era preciso reivindicar
para os outros o fim da ditadura, e para si mesmo o direito de ser livre, de ser independente,
de ser considerada ser pensante e capaz de “fazer política”.
Os “anos dourados” ditavam que a mulher dessa época deveria simplesmente ser:
bonita! Essa propaganda de um creme facial, presente na Revista Capricho de 1958 mostra
isso:
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Durante a investigação, percebeu-se que Belo Horizonte foi campo de agitações que
modificaram o cenário político e cultural brasileiro, sendo berço, juntamente com outros
estados, do surgimento da Ação Popular, organização que militou ativamente contra a
ditadura. Viu-se ainda que a presença de mulheres que romperam com as “regras” de
gênero de sua época e com a ordem política e legal que estava em vigor, foi intensa nessa
organização, contribuindo na luta para o fim do estado ditatorial militar.
2
CORDEIRO, Janaina Martins. Femininas e formidáveis: o público e o privado na militância política da
Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE). Revista Gênero. v.8. p. 175-208, 2009.
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A luta contra a ditadura, a luta pelo socialismo, etc. e tal, não abarcava, não
pegava como programa a questão da mulher. Não tinha como programa,
vamos dizer. Era uma luta de todos, homens e mulheres, de pessoas, de
povo. Agora, a gente enfrentava, em qualquer, todos os nossos atos do dia-
a-dia, da vida privada, da vida pública, a gente enfrentava o fato de ser
mulher. E nós tínhamos de não só lutar com a família, como nós tínhamos
de lutar com a sociedade, com os valores da sociedade e tínhamos de lutar
entre os próprios companheiros homens, pra que eles nos respeitassem
como tendo tanta capacidade como eles, entende? Nas mínimas coisas.
Então nós fazíamos essa luta assim, junto. Mas pra fazer essa luta assim,
nós sabíamos que nós tínhamos que diante dos companheiros, ser capazes
de tratar, discutir, opinar, saber, e ser capaz de dirigir, é, a luta. Nós
tínhamos que saber muito mais do que eles pra conseguir ser aceita. Então
nós estudávamos MUITO, nós mulheres estudávamos mais do que os
companheiros. Eles não precisavam provar nada, nós precisávamos.
Por fim, considera-se que todo esse engajamento feminino, essa luta, e por
consequência, esse sofrimento, contribuíram para uma infinidade de mudanças. Duas delas
em especial constituíram-se como decisivas, o fim do governo ditatorial, levando em
consideração que suas ações resultaram pelo menos, na desestabilização do regime militar,
e para a emancipação feminina. No período em que agiam, talvez essas mulheres não
tivessem consciência de que suas práticas, suas vivências e seu comportamento,
contribuiriam para a liberdade feminina. Entende-se que suas atuações estabeleceram-se
como um momento de experiência de conquistar um novo lugar para atuar politicamente,
socialmente e culturalmente.
Referências
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É com essa analogia que o colunista descreve a situação agrária na Paraíba na década
de 1960. Os piratas seriam os proprietários de terra, “Todo o mundo vive com as vistas
sôbre êsses homens. Tôda a acusação de exploradores para eles.” (BARRETO, A
Imprensa, João Pessoa, 10 de junho de 1962, p. 1). E Alexandre, O Grande, representaria
os camponeses, trabalhadores rurais assalariados, que “Ninguém lhes aponta os males.
Ninguém se apercebe do que vivem praticando. O dinheiro lhes chega às mãos (Deus sabe
como), e não há quem diga que são exploradores.” (BARRETO, A Imprensa, João Pessoa,
10 de junho de 1962, p. 1).
Pode parecer sem nexo ilustrar nessa analogia o poderoso conquistador macedônico
representando os camponeses, que lutavam não só por um pequeno pedaço de terra para a
sobrevivência, mas por igualdade e justiça nas relações de trabalho no campo. Porém é
assim que o discurso anticomunista do jornal vai ser pautado. A força que os camponeses
estavam ganhando dentro do estado deixava os grupos latifundiários paraibanos em alerta,
mostrando-se necessária uma desconstrução da luta dos trabalhadores rurais em benefício
da manutenção da estrutura agrária excludente em que vivia nordeste. Assim, no meio da
luta agraria, colocava-se o grande latifundiário como vítima do camponês. Uma forma de
desvirtuar a interpretação do leitor que passou a ver o camponês como um inimigo que o
governo reformista de Goulart estava criando.
O problema agrário no estado é polarizado pelas Ligas Camponesas e pelos
proprietários de terras, mais especificamente no chamado Grupo da Várzea ou bloco
agroindustrial. Esse último era um grupo formado pelos latifundiários e usineiros da
chamada zona da várzea, ou zona da mata. Suas atividades econômicas estavam ligadas à
exportação de produtos como a cana-de-açúcar e seus derivados, abacaxi e à pecuária
extensiva. A principal zona de influência desse grupo eram os municípios de Sapé, Marí,
Mamanguape, Araçagi, Pilar, São Miguel de Taipu, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e
Caldas Brandão. Um grupo bastante fechado, no qual se utilizava de casamento entre
membros das famílias para manter o sistema de hereditariedade das terras.
Sobre a questão agrária na Paraíba, Cesar Benevides (1985) relata que na década de
1960 ocorreram uma série mudanças na estrutura agrária. Houve o início da mecanização
do trabalho rural e o aumento da quantidade de terras destinadas à prática da pecuária
extensiva. O camponês, que antes trabalhava no latifúndio para poder morar e usufruir de
um pequeno pedaço de terra, era, como relata o autor, substituído pelo trabalhador sazonal.
As relações entre trabalhador e empregado no campo não eram semelhantes às dos
centros urbanos, pois a legislação trabalhista não havia chegado ao âmbito rural. Antes do
surgimento das Ligas Camponesas, as discursões políticas não eram pautadas junto aos
trabalhadores rurais. A falta de conhecimento dos trabalhadores rurais era um fator que
contribuía para o atraso do campo em relação às cidades.
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1
As primeiras Ligas Camponesas foram organizadas pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, mas
foram desativadas devido o partido ter sido colocado na ilegalidade. Mais tarde, no final da
década de 1950, as organizações camponesas voltam em Pernambuco, no Engenho da Galiléia,
tomando grandes proporções por todo o nordeste.
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Ou seja, para os católicos, toda a reivindicação camponesa deve ser feita desde que
não modifique a estrutura agrária vigente, que é excludente, elitista e violenta, mas altere o
comportamento e o pensamento do proprietário. Quando as lutas dos trabalhadores do
campo são pautadas para o fim do latifúndio, elas perdem toda a sua legitimidade. As Ligas
2
De acordo com Cittadino (1998), Pedro Gondim foi eleito com o apoio popular que conquistou com o
movimento “queremista” e com o apoio financeiro e político de sua campanha pelos políticos da
UDN
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Camponesas são contra o latifúndio, portanto, o problema não são os trabalhadores rurais,
sim as Ligas, formadas pelos agentes comunistas infiltrados.
Mas o que neste trabalho classifico como um sistema excludente, elitista e violento, o
jornal entende como ordem. As invasões de propriedades na luta pela democratização da
terra, propostas que são direcionadas ao benefício da sociedade como um todo, são
consideradas apenas agitação e desordem:
Julião, ao qual o autor se refere é Francisco Julião, político pernambucano líder das
Ligas Camponesas. Ele é colocado como o personagem que mais incentiva a desordem das
Ligas Camponesas, pregador a ideologia comunista. Para o jornal, “Quer Deus para si e o
diabo para os outros” (A denúncia... 15 de abril de 1962, p. 8), pois defende a divisão das
terras, mas é dono de uma vasta propriedade rural. O interesse de Julião é fazer da classe
camponesa massa de manobra para suas pretensões comunistas.
Que confiança nos pode merecer a massa numerosa, guiada pela bandeira
de um Julião? Certamente ele não falará nessas comemorações de 1º de
maio. Aqui ou ali estará presente, não para mostrar as possibilidades do
nosso progresso, com o trabalho dos operários; mas para pregar as suas
ideias revolucionárias, de agitador maníaco e desorientado para que os que
dele se querem aproveitar. E para dizer que o caminho da salvação
nacional é o da escravização soviética, sob as leis draconianas, ora em
vigor na infeliz república cubana. (MENDONÇA, A Imprensa, 29 abr 1962, p.
1)
Os expedientes violentos, que o jornal aponta, não são via de mão única. A luta do
camponês através das Ligas é uma forma de resistir à violência empregada pelos grupos
latifundiários. Quanto a essas práticas contra o trabalhador rural eu destaco duas ocorridas
na Paraíba. A primeira ocorreu em 1962, foi o assassinato do líder camponês João Pedro
Teixeira, em uma emboscada da estada de Café do Vento, que liga os municípios de Sapé a
João Pessoa. O ocorrido gerou grande revolta dos setores de esquerda que passaram a
protestar contra o ocorrido. Em resposta aos manifestantes, o jornal publica o seguinte
depoimento:
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É enaltecido o espirito de caridade cristã que deve prevalecer nas relações trabalhistas e
políticas. Aquilo que o “matuto” vê como bondade, uma análise mais afastada daquela
relação entre o trabalhador-patrão, é entendida como exploração.
O discurso católico prega o clima de paz entre os indivíduos no campo. Muitos
problemas precisam ser resolvidos na relação entre trabalhador e empregado no meio rural,
mas sem dar margem aos agentes do comunismo, devendo ser vistos de cima para baixo. A
classe dominante tem de reavaliar suas atitudes e reformular sua relação com a classe
trabalhadora. O clima de agitação que os comunistas provocam não vai levar às verdadeiras
mudanças que o campo precisa. Para o jornal, os comunistas não desejam a reforma
agrária:
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A paz agrária, neste momento (1963) já está estava em crise. A atuação das Ligas
Camponesas colocava toda a classe conservadora em estado de alerta. A elite nacional já
começava a flertar com aqueles que sempre que necessário mostravam-se dispostos a frear
o avanço dos progressistas que pautavam mudanças sociais no Brasil: os militares.
Chegado o ano de 1964 na Paraíba, o segundo caso de violência aqui destacado, uma
tragédia ocorrida na cidade de Marí, na zona da mata paraibana, colocou novamente a
violência no campo em discussão. O episódio que ficou conhecido como “chacina de Marí”,
ocorreu no dia 15 de janeiro envolvendo camponeses e jagunços, quando os primeiros
teriam invadido uma propriedade dos Ribeiro Coutinho, importante grupo usineiro do Estado.
Cesar Benevides (1985; 120) narra o ocorrido, mostrando que aqueles camponeses não
haviam invadido a propriedade dos Ribeiro Coutinho, eles estavam fazendo um trabalho na
propriedade do senhor Nezinho de Paula, na estrada que liga Marí à cidade de Guarabira,
quando um grupo invadira a propriedade agindo com agressão contra os camponeses. Entre
as pessoas envolvidas na invasão estavam o chefe de uma companhia agroindustrial de
Sapé e membros da polícia militar do Estado.
Do conflito resultou uma série de mortes que abalou o estado, em sua maioria homens
ligados aos grandes proprietários rurais. Seguindo a linha dos principais jornais, o A
Imprensa, condenou o ocorrido, jogando a culpa da tragédia para o camponês, além de
aproveitar o incidente para renovar o discurso anticomunista no meio rural.
Não sei se estão olhando para essa vanguarda vermelha que se levanta
organizada pelos campos. Trata-se dessa nova forma de organização
comunista segundo o plano geral que deu bons resultados na China. O
plano de aproveitar toda a gente disposta a um movimento de renovação,
para sublevar as massas, em direitura ao ponto final, onde seja possível os
sobas da russificação assumirem as rédeas do governo. É isso mesmo, sem
tirar nem botar, o que estamos vendo nesse movimento de ligas
camponesas.
Reparemos bem na organização que se forma, aqui ou acolá. Os
comunistas de primeira linha – de real confiança para o partido, ou de
gabarito, como se diz – não aparecem. Ficam de fora, na direção geral,
tangendo as massas para ganharem terreno.
Não vamos pensar que Julião ou outros agitadores desse estofo tenham
prestígio para o partido comunista. São apenas elementos de choque que
prestam bons serviços para a causa da russificação, mas sem nenhum
compromisso dos mandões soviéticos para serem aproveitados, depois de
preparado o banquete. É o contrário do que podemos dizer. Serão os
primeiros sacrificados. Irão para a depuração, na certa.
Consideramos esse trabalho das ligas a serem formadas no interior. Nem
um elemento do partido comunista propriamente dito se acha filiado ao
quadro dos novos componentes. Fazem tudo – esses inspiradores
vermelhos – mas nada de figurarem no fim. Isto quer dizer que os nossos
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Diante do ocorrido em Marí, dois pontos importantes sobre o texto do autor é passível de
debate. O primeiro é como é colocada a ideia de manipulação dos camponeses por parte
dos supostos “agentes comunistas” através das Ligas Camponesas. O colunista aparenta
não ter noção da consciência de classe que o trabalhador rural tomou nos últimos anos. A
classe camponesa mais uma vez é vista como massa de manobra de alguma força superior,
a dos agentes comunistas, que quer desvirtuar sua luta. E o segundo ponto vem para
reforçar um fato que já era pauta no periódico católico: a necessidade da presença dos
militares para resolver a crise no país.
O ocorrido em Marí repercutiu por meses nos meios de comunicação do Estado. No final
do mês de março o governador Pedro Gondim reforçou o aparato policial na Zona da Mata,
área de grande conflito entre camponeses e jagunços, no intuito de intimidar a atuação das
Ligas. J. Barreto, que se tornou o porta-voz oficial do anticomunismo do A Imprensa, vai
novamente defender a estrutura agrária em favor dos latifundiários, acusando de comunistas
aqueles que subvertem essa ordem:
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Considerações finais
Diante de tudo o que foi mostrado e discutido neste texto, podemos perceber alguns
pontos fundamentais no problema agrário paraibano. A alienação do homem do campo é
fundamental para a manutenção da ordem. O clientelismo que sustenta o poder de grupos
da elite local, com as reinvindicações das Ligas Camponesas tende a enfraquecer. A
consciência de classe que se criou no meio camponês é, sem dúvida, favorável para
aqueles que lutam contra a estrutura agrária paraibana. O comunismo e seus supostos
“agentes” tinham o interesse na organização camponesa, mas isso não anula o fato dos
camponeses se colocarem na luta por interesses próprios, não por mera alienação.
A questão do campo foi um dos principais alvos da cassação de políticos paraibanos no
pós-golpe. A importância que os militares deram às Ligas e aqueles que se envolveram com
suas atividades é grande quando analisamos outras fontes como os Inquéritos Policiais
Militares. A luta dos movimentos sociais do campo não era incorporada apenas por
trabalhadores rurais, uma série de profissionais estavam vinculados diretamente às Ligas,
como advogados, professores e funcionários públicos. Esses foram desvinculados de seus
cargos públicos, tiveram seus direitos políticos cassados e foram presos ou exilados do
país.
E no pós-golpe para onde foi o camponês comum? A tão sonhada reforma de
mentalidade do senhor latifundiário mudou? O camponês continuou à margem das mesmas
práticas eleitoreiras, subjugados às práticas de trabalho que vigoravam no século XIX e
vigoram até os dias de hoje.
Diante do exposto, a Igreja Católica, mesmo com o crescimento de grupos progressista
no interior da instituição, serviu como porta-voz dos interesses daqueles que mantinham a
ordem política excludente no nordeste. Ela utilizou-se de um discurso contra a violência para
reforçar o poder daqueles que empregam uma violência não só física e psicológica, mas
conjuntural no meio agrário paraibano. E, por consequência, agregou força no movimento
civil-militar que pôs fim à mais um período democrático brasileiro.
Referências
1) Hemerográficas
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
2) Bibliográficas
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho. São Paulo: Perspectiva,
2002.
RÉMOND, René. Uma história presente. In: RÉMOND, René. (Org.). Por uma História
Política, Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996a
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Introdução
Contudo, a partir do final dos anos 1970, sobretudo após a Lei de Anistia de 1979,
com o processo de abertura política no país e o retorno de muitos daqueles que haviam sido
exilados, a narrativa sobre o regime ganhava novos contornos. A ditadura que outrora era
sinônimo de prosperidade e segurança, após 1979 foi sendo vista como sinônimo de
repressão e violência sobre uma sociedade que apenas resistia. Era uma memória que
sublinhava as arbitrariedades dos militares que, desde 1964, esmagaram a sociedade
brasileira como uma espécie de "trator".
De acordo com o historiador Daniel Aarão Reis Filho (2010, p. 171) o que
aconteceu foram verdadeiros “deslocamentos de sentidos”, os quais se fixaram na memória
nacional como verdades irrefutáveis. Seriam, esses deslocamentos, marcados por três
silêncios que fundamentaram e se estabeleceram em torno da Lei de Anistia de 1979. O
primeiro diz respeito ao silêncio em torno da tortura e dos torturadores. O segundo silêncio
refere-se às propostas revolucionárias das esquerdas entre 1966 e 1973. O terceiro e último
silêncio, talvez o mais importante para a discussão que pretendo neste texto, refere-se ao
apoio de parcela importante da sociedade brasileira ao regime civil-militar. O que ficou
cristalizado é que a sociedade brasileira, sempre prezando pela democracia, viveu a
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ditadura como um “pesadelo que é preciso exorcizar, ou seja, a sociedade não tem, e nunca
teve, nada a ver com a ditadura” (2010, p. 178). Tal abordagem esquece as diversas
manifestações de adesão e simpatia que floresceram durante o regime, como as Marchas
da Família com Deus pela Liberdade, ocorridas antes e após o 31 de março de 1964, a
popularidade do general Garrastazu Médici e as expressivas votações obtidas pela Aliança
Renovadora Nacional (ARENA).
A ARENA gaúcha
A ARENA embora tenha sido um partido que colaborava com a ditadura, dando
sustentação e legitimidade a vários atos dos governos dos cinco generais-presidentes, sua
trajetória não deve ser resumida a de um partido que servia aos interesses do regime. Pelo
contrário, é importante pensar, antes de tudo, que na ARENA ocorreram disputas e
discordâncias em relação a diversas medidas adotadas pelo governo federal, além de
cisões e discussões acaloradas que permearam os partidos nas esferas estaduais e
municipais, como é caso da ARENA gaúcha.
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Entre o final dos anos 60 e início dos anos 70 a ARENA demonstrava ser um
partido de peso no cenário político do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, por exemplo,
com nove vereadores eleitos em 1972, a ARENA figurava como um partido que disputava
eleitores e conquistava parcela importante da capital. Dos vereadores arenistas eleitos no
pleito de 1972, nos chama atenção a expressiva votação de Dercy Furtado, com mais de
dez mil votos. Da mesma forma que muitos dos políticos arenistas da época, Furtado atuava
em áreas que, de certa forma, seriam estratégicas para os êxitos do partido na capital.
Como ela aponta em uma entrevista concedida quarenta anos depois,
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1
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.
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Por sua ligação com a Igreja e, especialmente pela assistência dada às domésticas,
Furtado ganhou notoriedade e foi convidada para participar de programas de rádio e
televisão. Segundo Furtado, “graças a todo este trabalho, em torno da família é que
lembraram (seu) nome para a Câmara de Vereadores” (FURTADO, 1984). Em 1972,
segundo Furtando, a convite do então prefeito de Porto Alegre, Telmo Thompson Flores se
filiou à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e se candidatou à vereança, sendo eleita em
1972 com mais de dez mil votos, a mais votada do partido. A expressiva votação de Dercy
Furtado não foi apenas o resultado de uma campanha voltada para as mulheres,
especialmente para as domésticas e donas de casa. Além do que já foi exposto acima, o
resultado nas urnas de 1972 demonstra também o peso que o partido havia adquirido na
capital gaúcha desde o seu surgimento, elegendo inúmeros vereadores.
Sua atuação política foi também acompanhada pela defesa de seus ideais relativos
à promoção da mulher e a valorização da família cristã em programas de rádio e televisão,
além de uma coluna no jornal Zero Hora, denominada Opinião e a publicação de livros de
memórias2. Nesses espaços, mostrava-se ligada fortemente pelos ideais da "Revolução" de
1964, as iniciativas do partido e as realizações da ditadura.
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pela qual sentiu-se uma arenista convicta, alinhada aos propósitos do partido e ao governo
"revolucionário".
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até a rosa, que estará à mesa de todos os funcionários para dar aquela
acolhida fraterna e amiga de todos nós que lá estamos para servir.
Como "slogan" para todos os cartazes, painéis e carros, adotando o
seguinte - vou lançá-lo hoje, aqui, pela primeira vez -: "A ARENA É POVO
SEMPRE". Além deste "slogan", teremos ainda sub-"slogan", como outros
que poderão ser usados, "A ARENA CRESCE EM PORTO ALEGRE". Este
"slogan" se baseia no fato real e verídico que desde a eleição passada a
ARENA vem crescendo em Porto Alegre, tanto que, já na gestão do Prefeito
Dr. Telmo Thompson Flores, passamos de oito para nove Vereadores na
Câmara, com o que demos aos Sr. Prefeito a oportunidade de ter o seu veto
assegurado. [...]. Temos ainda outro "slogan", para reavivar a mente de
muitas pessoas que estavam esquecendo: "A ARENA É MAIORIA NO
BRASIL". Estes são os "slogans" da ARENA para esta campanha.
O fato de Dercy Furtado ter assumindo posições de comando no partido não
significava que era obediente a tudo o que o Diretório Nacional definia, nem mesmo um
apoio irrestrito aos mandos do executivo.
Quem ouvia sempre os meus discursos? Leonel de Moura Brizola. Ele vivia
me ouvindo, e um dia o que fez? Chamou-me ao Palácio da Guanabara. Eu
fui, pois o admirava muito. Aliás, fomos eu e o Jorge.
– Deputada, eu a estou convidando a entrar no PDT.
– No PDT? Mas eu sou da Arena!
– Mas o seu discurso é de oposição. A senhora está mal. A senhora tem de
entrar é no PDT.
– Olha, eu entro com uma condição: se o senhor for lá em casa me buscar e
me levar até a Assembleia para eu entrar no PDT.
– Não há problema nenhum.
Um dia ele marcou, foi lá em casa me buscar – eu tenho todas as fotos em
que nós aparecemos juntos –, e eu vim de carro com ele. (Entrevista
concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto
Alegre).
Em 1986 tentou reeleger-se deputada estadual pelo novo partido, mas não obteve
sucesso. Talvez, a nova sigla partidária, o PDT, não tenha oferecido base política suficiente
para a sua mais nova candidata. Provavelmente as antigas alianças políticas tecidas anos
atrás, quando militava na ARENA, tenham se afastado da candidata que aproximava-se do
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trabalhismo de Leonel Brizola, um dos grandes inimigos dos golpistas de 1964. Mas o
contexto político era outro, era de abertura política, era o momento propicio para se
esquecer antigas desavenças e seguir a vida.
Sempre fui mais de esquerda. Entrei na Arena por causa do Dr. Telmo
Thompson Flores, mas eu me sentia mal, às vezes, junto com coronéis e
outras pessoas do partido. Eu queria um partido formado mais por
operários, por trabalhadores sem-terra. Meus discursos eram muito de
oposição. (Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na
cidade de Porto Alegre).
Furtado narra sua trajetória como arenista descolada do partido. Ou seja, ela
pretende imprimir a imagem de que o partido utilizava estrategicamente do potencial
eleitoral de seus candidatos, sem que esses tivessem necessariamente vinculações
ideológicas e políticas com as ideias da "Revolução" de 1964 e consequentemente com a
ditadura civil-militar. Cito para exemplificar dois trecho da entrevista, em que Furtado
superdimensionou sua luta pelos direitos das mulheres e donas de casa, que, por sua vez,
servira a interesses de partidos e políticos:
O Pedro Simon, que era meu vizinho, ou melhor, que é meu vizinho [...] me
dizia: Meu Deus, como é que eu nunca te enxerguei, Dercy? Como é que tu
3
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.
4
Idem.
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estavas ali? Depois fomos deputados juntos. Isso do Dr. Telmo foi muito
interessante. Ele teve visão. Foi ele quem me disse: Tu vais lutar pela
mulher. Eu concordei: Ah, ótimo! Mas eles eram muito bons. Não tenho
queixa. O Marchezan foi uma pessoa maravilhosa, assim como o Faccioni.
Foram todos muito bons, mas eu não me sentia assim tão bem. (Entrevista
concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto
Alegre).
Foram poucas as falas em que Furtado destaca sua participação na organização do
partido, na montagem de congressos femininos, na sua atuação frente à presidência do
diretório municipal do partido em Porto Alegre. Sobre os congressos femininos lembra que:
5
Entrevista concedida ao autor em 09 de novembro de 2012, na cidade de Porto Alegre.
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que sofreram com cassações, banimentos, expurgos, torturas e exílios. Da mesma maneira,
é compreensível que, diante das “investigações” da Comissão da Verdade, sintam-se
também constrangidos a expor suas trajetórias políticas durante os “anos de chumbo”.
Penso que esse uso pragmático da memória não significa maquiavelismo ou oportunismo,
mas está relacionado a um cenário de luta entre diferentes atores que atribuem diferentes
sentidos ao passado. O objetivo do texto, dentro dos limites apresentados, não foi o de
"desmentir" as memórias de Dercy Furtado, mas mostrar, em certa medida que essas
construções de memória estão inseridas no tempo presente, momento no qual aparecer
como arenista torna-se constrangedor. Da mesma forma, a finalidade aqui não foi o de
"compreender" a postura de Dercy Furtado como ex-arenista sem inseri-la num contexto
político atual que condena a ditadura e seus agentes.
Referências
CASTELLO BRANCO, Carlos. Os militares no poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.
CORDEIRO, Janaina Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o
governo Médici. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.22, n.43, p.85-104, 2009.
FLACH, Ângela, HEINZ, Flávio Madureira, VARGAS, Jonas Moreira, MILKE, Daniel Roberto.
O Parlamento nem tempos interessantes: breve perfil da Assembléia Legislativa e de seus
deputados (1947-1982). Porto Alegre: CORAG, 2005, p. 55-56.
FURTADO, Dercy. Orações que mamãe me ensinou. Porto Alegre: Editora da FEPLAN,
1984.
______________. Construindo catedrais: ideias para viver bem. Porto Alegre: Badejo
Editorial, 2009.
ISBN: 978-85-62707-55-1
180 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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GREEN, James N. Apesar de vocês: a oposição a ditadura militar brasileira nos Estados
Unidos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
KINZO, Maria D’Alva Gil. “Novos partidos: o inicio do debate”. LAMOUNIER, Bolívar (org.).
Eleições e mudança política no Brasil (1970-1979). São Paulo: Vozes, Cebrap, 1980, p. 219.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005. p.70.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Em 1964, Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte contava com cerca de
200 mil habitantes; uma cidade que pela distância dos grandes centros urbanos nacionais,
sofria com os precários serviços de comunicação, acesso à cultura acadêmica ou diversão
de melhor qualidade. Ao mesmo tempo em que guardava ares ainda interioranos e
costumes provincianos, a cidade do Natal mesmo ao longe, acompanhava o ritmo de
mudanças que se processavam no Brasil desde meados da década de 50, do século
passado sob a égide e influência do “Desenvolvimentismo” capitaneado pelo Governo
Juscelino Kubitschek.
1
O título remete as últimas palavras do “Relatório Veras” resultado das investigações feitas no Rio
Grande do Norte a respeito de supostas atividades subversivas, por ordem do governador potiguar
Aluízio Alves à época e simultaneamente ao livro de memórias de Mailde Pinto Galvão, que foi
indiciada neste mesmo relatório tendo por base o Ato Institucional nº1(AI-1) de 09 de abril de 1964.
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“Os 45 anos que vão do lançamento das bombas atômicas até o fim da União
Soviética não formam um período homogêneo único na história do mundo.
[...]. A Segunda Guerra Mundial mal terminara quando a humanidade
mergulhou no que se pode encarar, razoavelmente, como uma Terceira
Guerra Mundial, embora uma guerra muito peculiar. [...] A Guerra Fria entre
EUA e URSS, que dominou o cenário internacional na segunda metade do
Breve Século XX, foi sem dúvida um desses períodos. Gerações inteiras se
criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, podiam estourar a
qualquer momento, e devastar a humanidade” (HOBSBAWN, 1995: p. 223-
234).
Este mesmo contexto teria outro elemento como protagonista, que seria a crise do
modelo político ou prática política que se convencionou na historiografia brasileira a se
denominar como “Populismo”. O termo foi e é alvo de inúmeras controvérsias (Cf.
FERREIRA, 2013), mas de uma forma geral adotaremos a perspectiva que este fenômeno
brasileiro foi contemporâneo e associado à emergência do trabalhismo e das suas
reivindicações no campo social nacional a partir da industrialização brasileira, num cenário
de políticos de carisma, de demagogia, do assistencialismo, principalmente em relação aos
trabalhadores e às camadas médias. Podemos também acrescentar as ideias de
“personalização do poder, a imagem, meio real e mística da soberania do estado sobre o
conjunto da sociedade e a necessidade da participação das massas urbanas” como
assinala o cientista político Francisco Weffort.
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A prática populista no Estado do Rio Grande do Norte teve como expressão máxima
a figura do governador Aluízio Alves que tinha sido eleito em 1960 em uma coligação
denominada “Cruzada da Esperança” que contava com o apoio dos partidos PSD, PTB,
PTN e PDC, derrotando a oligarquia Bezerra de Medeiros, da qual fazia parte o Governador
Dinarte Mariz, assim como seu candidato ao governo estadual Djalma Marinho; ambos eram
membros da UDN. Segundo Wesley Garcia Ribeiro Silva (2011), em sua campanha:
Aluízio Alves realizou uma gestão de prestígio e que teve força no seio da
população, a quem ele chamava de “minha gentinha2“, todavia muito de seu sucesso se
deveu a realizações de caráter estrutural no Estado do Rio Grande do Norte como
eletrificação, melhorias em telecomunicações, habitação popular com verbas oriundas da
“Aliança para o Progresso”, programa norte americano instituído pelo Governo John
Kennedy que tinha como pano de fundo o combate ao comunismo e que também serviu
como força contrária ao avanço de movimentos populares apoiados pela esquerda política
nacional.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Antes que as comissões investigativas fossem instaladas, Natal viu sua prefeitura ser
invadida por tropas do Exército, seu prefeito eleito Djalma Maranhão ser aprisionado e sofrer
um processo ilegal de impeachment, além da câmara de vereadores eleger um novo prefeito
sob coação militar.
Aluízio Alves apoiando-se no Ato Institucional Nº 1, instituiu uma comissão de
inquérito estadual paralela às que que haviam sido criadas pelos militares em todo o Brasil.
No Estado do Rio Grande Do Norte, ao lado da Comissão Geral de Investigação criada
pelos militares, havia duas comissões ditas de “alto nível” chefiadas pelos policiais
pernambucanos José Domingos da Silva e Carlos Moura Morais Veras, além das outras
implantadas nas diversas repartições públicas nas esferas federal, estadual ou municipal.
Desta forma foi armada a maior rede de investigação policial e militar em terras potiguares e
aí teve início o cabedal de arbítrios contra trabalhadores, intelectuais e estudantes. O
historiador Marcos Silva (2007: p. 183) relata que naquele contexto houve:
3
Esta galeria seria demolida em 1977, na administração do prefeito Vauban Bezerra. Ver em SOUZA.
Bernadete de Lourdes Queiroga. A Praça André de Albuquerque/Natal-RN, na Visão de Seus
Frequentadores. Natal, RN:2004. Encontrado em:
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sua maioria eram livros doados pelo Exército Brasileiro às bibliotecas volantes, da Diretoria
de Documentação e Cultura. Argumentavam os novos donos do poder que aqueles livros
eram provas incontestes de preparação de guerrilha urbana e rural por parte da prefeitura
natalense; esse argumento demonstra que os novos mandatários também eram donos de
uma ignorância sem par.
Ao fim e após cinco longos meses, em 15/09/1964 os inquéritos estaduais de
suposta subversão foram entregue ao governador Aluízio Alves, resultando de imediato em
demissão do serviço público, aposentadoria compulsória, dentre outras medidas. O
governador potiguar publicou no Diário Oficial um decreto com a demissão sumária de “82
funcionários públicos.” As personalidades mais proeminentes que tinham sido presas como
o ex-prefeito Djalma Maranhão, seu irmão o ex-deputado Luís Maranhão Filho, os também
ex-deputados Aldo Tinoco e Floriano Bezerra foram encarcerados em Fernando de
Noronha; posteriormente Djalma e Luiz Maranhão teriam destinos trágicos. O 1º morreria no
exílio no Uruguai sem jamais retornar a Natal, e o 2º caiu na clandestinidade da luta armada
e foi trucidado pela repressão da década de 70, sendo um desaparecido político até o
presente momento.
Os outros envolvidos no “Inquérito Veras”, sem emprego deixaram o país ou
mudaram de Estado procurando reconstruir suas vidas interrompidas pelo golpe militar; O
educador Marcos Guerra, que coordenava a aplicação do método Paulo Freire no interior do
RN, se refugiou em Paris, assim como Maria Laly Carneiro que militava na Juventude
Universitária Católica. Nei Leandro de Castro, que se tornaria célebre posteriormente com o
livro “As pelejas de Ojuara”, e que havia sido detido por conta de um texto poético chamado
“Canto Geral” foi trabalhar com jornalismo e publicidade no Rio de Janeiro, seguindo o
Advogado e Jurista Hélio Vasconcelos. São alguns exemplos de pessoas que foram
duramente atingidas pelo arbítrio das primeiras horas de 1964.
Entre 1965 e 1966, os implicados no “Relatório Veras” seriam julgados pela Justiça
Militar; contudo, as implausíveis acusações, a falta de provas, associadas a falhas jurídicas
processuais, permitiu que uma grande parte daqueles fossem excluídos dos processos em
que estavam inseridos através de Habeas-Corpus.
Com a implantação da ditadura, os projetos educacionais e culturais da Prefeitura do
Natal, como o “De pé no chão também se aprende a ler” e “As Praças de Cultura” foram
extintos; a Galeria de Arte Popular sobreviveria mais alguns anos, mas foi sendo lentamente
obliterada em suas funções, tendo até mesmo exposições censuradas pela ação repressiva.
As bibliotecas volantes foram desmanteladas nos bairros periféricos da capital potiguar.
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187 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Referências
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: As Lutas Sociais no Brasil, 1961-
1964. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
FERREIRA, Jorge (org.). O Populismo e sua História, Debate e Crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.
GALVÃO, Mailde Pinto. 1964: Aconteceu em Abril. Natal, RN: EDUFRN, 2004, p. 29-30 e
213.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. O Breve Século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 223-234.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O Anticomunismo Militar in O Golpe de 1964 e o Regime Militar:
Novas Perspectivas (Organização de João Roberto Martins Filho). São Carlos: Edufscar,
2006, p.09-26.
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188 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
SILVA, Marcos. 1964 e Outras Correntezas (Um Coração nas Trevas) in Câmara Cascudo,
Dona Nazaré de Souza & Cia. Natal: EDUFRN, 2007, p.183.
SILVA, Wesley Garcia Ribeiro. A Cidade como Arena Política: Cultura Política e Espaços
Urbanos na Cidade do Natal (década de 1960). Encontrado em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/srh/article/view/12446, acesso em 22/11/2013.
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Os caminhos da repressão
Para abordar a abrupta interrupção das atividades do Movimento de Cultura Popular
do Recife, é pertinente alagarmos o escopo e contemplarmos outros olhares sobre os
motivos que levaram os militares, quando da instauração do Golpe Civil-Militar, a
interromper aquela experiência cultural no dia 31 de março de 1964. Sem nenhuma
pretensão de realizar, stricto sensu, uma exegese da lógica do ethos conservador da
sociedade pernambucana de meados do século XX, cabe realizarmos nossas reflexões
buscando responder uma questão. Por que os empreendimentos educacionais e culturais do
MCP se configuravam em ameaça aos promotores do Golpe de 1964?
Embora possa parecer acaciana, uma assertiva precisa ser retomada: o conflito entre
grupos sociais com projetos distintos de sociedade e de cultura era o maior problema do
Brasil nos idos dos anos 1960. Desse modo, a resposta para a nossa pergunta deve ser
buscada naquilo que mais refletia o estado de espírito daqueles anos. Ou seja, como a
cultura anticomunista dos militares procurava criminalizar os projetos que colocavam em
xeque um sistema de artes, de leis e costumes e de ordem social que privilegiava um
pequeno nicho abastado da sociedade, característica ainda mais forte em regiões
empobrecidas do Brasil, como o Nordeste.
Nesse sentido, a partir dos IPMs instaurados após o Golpe para investigar a atuação
política e cultural do MCP, buscaremos destacar o ponto de vista dos militares no que tange
àquela experiência. Esse caminho vai nos conduzir a melhor compreender quais eram as
preocupações das elites conservadoras acerca daquela nova forma de conceber a
sociedade brasileira levada a cabo pelos militantes em cultura do MCP.
A produção da culpa
Em 1967, foi publicado pela editora do Exército brasileiro (BibliEx) o terceiro volume
da coleção de livros que apresentava de forma didática as conclusões do inquérito policial
militar (IPM) sobre as atividades comunistas no Brasil. Tratava-se de mais um livro da
coleção organizada pelo coronel Ferdinando de Carvalho, cujo objetivo era levar ao grande
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público a visão dos militares acerca da efervescência política e cultural do período anterior
ao golpe de 31 de março de 1964.1
1
“Ferdinando de Carvalho, nascido em 21/08/1918. Formado em 1962 no curso de Estado Maior e
Comando das Forças Armadas (CEMCFA) da Escola Superior de Guerra (ESG), integrava o corpo
permanente da ESG por ocasião do movimento político-militar de 1964. A sua permanência como
coronel responsável pelo IPM do PCB causou uma série de problemas. Ele era identificado com a
“linha dura” e estava interessado em comprovar as ligações de Negrão de Lima (governador recém-
eleito pelo Estado da Guanabara no ano de 1965) com o comunismo. Por conta disso, houve conflito
entre setores militares que defendiam a permanência de Negrão de Lima, criando impasses entre a
Presidência da República e a comissão de investigação militar. Finalmente, depois de inúmeras
discussões entre a cúpula militar, Ferdinando de Carvalho solicitou a prisão do governador ao STM,
em resposta à ordem que recebera do governo de concluir as investigações. Com essa ordem, o
governo pretendia encerrar o IPM nº 709 como um instrumento de opressão contínua nas mãos da
“linha dura”. Ao pedir a prisão preventiva do governador eleito, Carvalho também ignorou a
advertência de Costa e Silva (então ministro da Guerra) aos encarregados de inquéritos no sentido de
que não tomassem medidas isoladas capazes de retardar as providências a serem tomadas até o
desfecho das investigações. O pedido de prisão foi julgado improcedente. Posteriormente, a
tendência que se impôs para resolver as dificuldades que o governo enfrentava com a “linha dura” foi
a do apaziguamento, sendo mantidos os comandos de unidades na Guanabara e confirmando o
coronel Ferdinando na chefia do IPM do PCB. Desse modo, o coronel foi considerado um
“especialista” na repressão ao comunismo, sendo promovido a general de brigada em 1973.” Cf.
verbete do Dicionário histórico brasileiro pós-1930, 2. Ed., Rio de Janeiro, FGV, 2001 apud CZAJKA,
2013: p. 247.
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regime democrático brasileiro, ao depor o presidente João Goulart (1961-1964).2 Essa tarefa
propõe trazer à tona como os militares viam aquela ebulição política e cultural, além de
identificar os elementos que os militares elegiam como “subversivos”, bem como discutir
como os militares lidaram com esses projetos e atores político-culturais após o golpe. Ao
considerarmos os IPMs uma investigação cujo resultado é buscado intencionalmente e com
clara consciência dos seus fins, nossas análises partirão das acusações que os militares
imputaram ao movimento pernambucano, bem como do argumento que fundamentava
essas inculpações.3 Esse procedimento nos conduzirá a compreender a cultura militar
anticomunista e de que forma o MCP se apresentava como uma ameaça ao projeto
encampado pelos militares em 31 de março de 1964.4 Dito isso, passemos a analisar o
conceito e a finalidade dos IPMs.
Dito de outra forma, essas normas caracterizaram-se como uma espécie de “sinal
verde” para que os militares instaurassem, em qualquer tempo, contra qualquer pessoa e/ou
instituição, um IPM. Desse modo, embora a lei não previsse, os inquéritos foram utilizados
2
Ver, a respeito do Golpe de 1964, os trabalhos de RIBEIRO, 2013; BARRETO, 2004.
3
Os argumentos que desenvolvemos neste capítulo, intenciona destacar como o mecanismo da
“repressão preventiva”, foi utilizado pelo Regime Militar para criminalizar o MCP. Essa perspectiva se
fundamenta nas ideias elaboradas por Marionilde Dias Brepohl acerca da lógica da suspeição no pós-
golpe. Ver, a respeito da lógica da suspeição durante o Regime Militar brasileiro, BREPOHL, 1997.
4
A respeito da cultura anticomunista dos militares, trabalhamos a partir das definições elaboradas por
MOTTA, 2002.
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Nesses termos, uma assertiva nos parece sintomática: o IPM não tinha o mero
caráter de uma instrução provisório à ação penal. O conjunto de provas obtido pelos
militares, independente de sua natureza, era considerado isoladamente e como sendo
idôneo para a elucidação de possíveis crimes. Sendo assim, suficiente para produzir a
convicção de culpa perante o juiz. Isso significava que as provas produzidas pelos inquéritos
embasavam de forma exclusiva as sentenças condenatórias levadas a cabo pela justiça
militar. Portanto, não havendo espaço para o contraditório, para a ampla defesa dos
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Desse modo, a agitação e a propaganda foram apresentadas nos IPMs como sendo
a sensibilização dos setores populares em torno de uma determinada ideia. Uma espécie de
5
Para um detalhamento mais acurado sobre diretrizes formais da instauração dos IPMs durante o
Regime Militar, sugerimos a leitura de CZAJKA, 2010.
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convite ao levante das paixões as mais calorosas das massas urbanas e camponesas.
Embora possa parecer que não haja nenhum tipo de nuança interpretativa nessa
argumentação, frisamos por um lado que, na ótica dos militares, o perigo não estava só em
despertar as paixões das massas, mas também, nos motivos da mobilização e de sua
decorrente ação social, e por outro, o latente desejo de criminalizar as ações do MCP pelas
suas possíveis vinculações ao comunismo internacional.
O teor da citação nos informa que para os militares, os métodos utilizados pelo MCP
fundamentavam-se, essencialmente, na sobreposição da ideologia de fundo marxista aos
processos de ensino. Para eles, os procedimentos de ensino-aprendizagem eram utilizados
como uma corrente de transmissão para a doutrinação política dos setores populares de
Pernambuco. Em matéria de agitação e propaganda, não existia nada comparável no
território brasileiro, no entendimento dos militares exposto a partir dos IPMs.
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Por que?
12. Você acha que, havendo possibilidade, seria melhor educar ou ensinar às
pessoas.
– individualmente (uma por uma) Por que?
– em grupos. Por que?
13. Você acha necessário criar um programa de educação de adultos para
Pernambuco especialmente, ou acha mais prático trazer um, já em uso
noutro Estado e aplicá-lo aqui?
Por que?
14. Se lhe coubesse sugerir aos Pôderes Públicos medidas indispensáveis à
proteção da saúde dos habitantes de sua localidade, que sugeriria de mais
6
urgente?
Nessa perspectiva dos militares, entretanto, não existia liberdade ideológica nas
fileiras do movimento pernambucano. Todos os seus empreendimentos estavam
subordinados às necessidades e aos interesses do comunismo, cujo objetivo, segundo
argumentos constantes nos IPMs, versava em depreciar a ordem estabelecida por meio da
manipulação da alfabetização dos setores populares. No cerne dessa ideia estava a
intenção de caracterizar o processo de educação desenvolvido pelos militantes do MCP,
como uma estratégia, uma espécie de técnica criada, tão somente, para ampliar o campo de
ação da propaganda e da agitação daqueles que eram tidos como comunistas.
6
Trecho de sondagem Apud Inquérito Policial Militar nº 709-3. O comunismo no Brasil: a agitação e a
propaganda. Op. Cit. pp. 573-575
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CONSINTRA
EEUU
SUPRA
SUDENE
URSS
IAA
IAPI
UNE
CODEPE
SAI
2. Numere a segunda coluna de acôrdo com a primeira
(01) Democracia ( ) Govêrno de uma classe
(02) Reforma de Base ( ) Grupo de pressão popular
(03) Revolução ( ) Forma de governo
(04) CGT ( ) Govêrno do Povo
(05) IBAD ( ) Partido político
(06) PTB ( ) Mudança lenta de estrutura
(07) Presidencialismo ( ) Grupo de pressão internacional
(08) Ditadura ( ) Transformação parcial da estrutura
(09) Evolução ( ) Obstáculo ao desenvolvimento do país
(10) Imperialismo ( ) Transformação rápida da estrutura (...)
Vale a pena destacarmos mais uma vez essa atividade dentre todas as que foram
arroladas pelos IPMs. A partir dela, observamos com mais nitidez o distinto caminho trilhado
pelas interpretações que os militares desenvolviam acerca do comunismo e seus objetivos
nas obras do MCP. Analisemos as inculpações:
Essa prova, demonstra em seu texto claro, o sentido político subversivo do
Movimento de Cultura Popular, em virtude da base esquerdista e comunista
do seu material e dos seus processos de ensino.
A terminologia usada, as definições sugeridas, as idéias que procura
desenvolver, os assuntos encarados, todos os aspectos, em suma, que
podemos encontrar nesse documento significativo demonstra a sua
vinculação comunista (...) (Atividade do programa educacional do MCP
Apud IPM 709-3. Op. Cit., p.570 -572).
Conforme indica essa citação, não havia nenhum tipo de tergiversações. Todos os
argumentos procuravam associar as atividades do MCP ao comunismo, sinônimo de traição,
crime de lesa-pátria e subversão da ordem social e das tradições “cristãs”. O documento
analisado pelos militares mudava, mas a interpretação, como algo já viciada, era a mesma –
o MCP era um instrumento da propaganda ideológica comunista. E foi nesse sentido que as
resoluções dos inquéritos caminhavam. Na ótica dos militares, as condições de atraso e
pauperismo da Região Nordeste contribuíam para a infiltração das ideias bolchevistas no
território brasileiro. Sendo necessário barrar toda e qualquer experiência que contribuísse
para “insuflar um ideal revolucionário” nos setores menos abastados daquela sociedade.
Desse modo, cortar os laços de uma determinada intelectualidade de esquerda com os
setores populares fazia-se imprescindível ao projeto levado a cabo pelo Golpe Civil-Militar
em 31 de março de 1964. No próximo item, analisaremos, pormenorizadamente, a
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Dito isso, vale a pena entendermos essa leitura realizada pelos militares a partir dos
próprios empreendimentos do MCP. Para esse fim, vejamos o que versava seu hino,
simbólica fonte das principais diretrizes seguidas pelo movimento.
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Referências
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2) Bibliografia
BARRETO, Túlio Velho; FERREIRA, Laurindo. (Orgs.). Na trilha do golpe: 1964 revisitado.
Recife: Massangana, 2004.
Dicionário histórico brasileiro pós-1930, 2. Ed., Rio de Janeiro, FGV, 2001 apud CZAJKA,
Rodrigo. “A LUTA PELA CULTURA”: Intelectuais comunistas e o IPM do PCB. In:
Napolitano, Marcos; CZAJKA, Rodrigo;
MOTA, Rodrigo Patto Sá. (Orgs.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção
cultural. Belo Horizonte: EDUFMG, 2013, v. 1, p. 247.
RIBEIRO, David. Da crise política ao golpe de estado: conflitos entre o poder executivo e o
poder legislativo durante o governo João Goulart. 2013. 231 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2013.
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Fabrício TREVISAN
Mestre em História pela UNESP-Franca
fabricio_trevisan@yahoo.com.br
O presente texto tem por objetivo contribuir com estudos e pesquisas acerca da
reconstrução do passado recente do Brasil, especialmente no que condiz ao período dos
governos militares brasileiros (1964-1985). A temática de assuntos relacionados com Estado
autoritário que vigorou no país por mais de vinte anos, especificamente em relação à
preservação da memória de indivíduos que foram alvos da repressão e sofreram com a
tortura, bem como, aos familiares que reivindicam os desaparecimentos e/ou mortes de
entes queridos, está em voga atualmente. Podemos elencar diversos fatores que
contribuíram para tornar esta discussão sempre presente: a ascensão à presidência da
República de Dilma Rousseff, ex-guerrilheira da Vanguarda Armada Revolucionária-
Palmares (VAR-Palmares); a constituição de núcleo de preservação da memória dos que
lutaram contra os militares, em parceria com o Arquivo Nacional, denominado Centro de
Referência das Lutas Políticas no Brasil – “Memórias Reveladas”; a instituição da Comissão
Nacional da Verdade (CNV) que irá trabalhar no sentido de elucidar (e não punir) violações
dos Direitos Humanos por órgãos governamentais de 1946 a 1988, com ênfase no períodos
dos governos militares brasileiros; e a reestruturação dos prazos de disponibilização de
documentos considerados “secretos” oriundos dos órgãos de repressão e informação
durante o regime militar.
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no editorial1 do jornal Folha de São Paulo, em fevereiro de 2009. O tema era sobre Hugo
Chávez e seu poder no controle do Estado venezuelano, o qual foi comparado com os
governos militares no Brasil, classificando-os e equivalendo-os como “ditabrandas”,
expondo, de certa maneira, a versão oficial dos militares em relação às atitudes tomadas
pelo regime.
1
O editorial da Folha de São Paulo não leva a assinatura de nenhum jornalista específico, portanto a
opinião é oriunda de toda a redação, ou melhor, da cúpula política-administrativa do jornal.
2
Torna-se necessário frisarmos que a essência político-partidário do DEM é oriundo da própria
ARENA. Este último foi o partido de sustentação do regime militar.
3
O “nacionalismo conservador” foi representado pelo Partido de Reedificação da Ordem Nacional
(PRONA) de caráter fascista por volta de 20 anos no Brasil.
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204 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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Sobre o assunto, a cientista política Maria Helena Moreira Alves (1984), em sua obra
intitulada Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), revela-nos que a composição de
recursos para a constituição do Estado militar estava sendo desenvolvida há tempos no
âmago das Forças Armadas nacionais. No exórdio do decênio de 1960 foi organizada uma
complexa estrutura de coleta de informações, tanto por instituições civis, tais como o
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
4
Qualquer ação oriunda de apenas um único indivíduo ou um grupo que pudesse se tornar pública a
fim de descaracterizar o governo, na concepção do mesmo, era considerado como um ato
subversivo, uma subversão. Dessa forma, portanto, após o golpe de Estado em 1964, toda e
qualquer pessoa poderia ser considerada como um “subversivo em potencial”, sendo sujeito à prisão
e, se necessário, à tortura e à coerção.
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205 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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(IBAD); como por organizações militares, tal como a Escola Superior de Guerra (ESG). Este
esquema tinha o intuito de aperfeiçoar, cada vez mais, a Doutrina de Segurança Nacional
(DSN).
A DSN possibilitou subsídios para a sustentação do Estado militar, tendo como maior
expressão nacional o general Golbery do Couto e Silva, coordenador responsável pela
principal tarefa atribuída ao complexo ESG/IPES/IBAD: a de criar e implantar eficazes redes
de informação consideradas imprescindíveis para a instalação de um Estado centralizado e
que estivesse de acordo com os novos preceitos militares. Golbery foi apontado por Alves
(1984: 35-46) como o mais influente teórico brasileiro do Exército. Em suas obras,
grandemente utilizadas pela ESG, o general desenvolveu o conceito de vários tipos de
guerras, preocupando-se em compor estratégias que informassem a melhor maneira de
lutar contra os “inimigos internos” e a “pressão psicológica” (SILVA, 2001, p.105).
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206 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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A disputa pelo significado de guerrilha pode ser percebida, em nossa opinião, por meio
do embate discursivo entre a direita e a esquerda, não apenas durante os governos de
Castello Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967-1969), mas durante todo o período em
que o militarismo esteve no controle do Estado brasileiro. No entanto, faz-se essencial
endossar que ambos os grupos políticos carregaram uma densa pluralidade de aspectos,
elementos e sentidos que não nos permitem, como já apontado acima, categorizá-los
apenas como ideológicos. Logo, o objetivo de nossa pesquisa é analisar a incompatibilidade
de identidade entre a tradição rural representada pela teoria da guerrilha no campo e as
práticas urbanas dos guerrilheiros no Brasil pós-64.
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Todavia, apesar de nos referirmos ao termo discurso, convém informar que não
pretendemos fazer análise do discurso propriamente dita. Consideramos algumas de suas
abordagens oriundas do alongamento do debate sobre análise do discurso e atualmente
consideradas com a denominação genérica de análise de conteúdo, expressão que
incorpora elementos para além da Linguística.
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
constante estado de correlação de forças. Tal embate almeja a imposição de sua vontade a
outras pessoas e grupos políticos.
Gomes (2005, p.28) acredita que o conceito de cultura política concebe uma
considerável abrangência de interpretações e explicações das concepções políticas de
“atores individuais e coletivos, privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas
vivências, suas sensibilidades”.
Dessa forma, portanto, a Cultura Política pode se manifestar de maneira concreta por
meio de projetos de sociedade, projetos de Estado, pela leitura compartilhada de um
passado comum ou pelo posicionamento em relação às culturas políticas estrangeiras.
Metodologicamente, o documento passa a ser visto como outro acontecimento, uma
materialidade construída por camadas sedimentares de interpretações, tornando-se um
objeto histórico discursivamente construído, influenciado pela intervenção subjetiva de seu
narrador.
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Referências
1) Documentação
MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella, São Paulo: Editorial Livramento, 1979.
2) Bibliografia
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984), Petrópolis: Vozes,
1984.
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política, São
Paulo: Editora UNESP, 1995.
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de
classe, Petrópolis: Vozes, 1981.
SILVA, Márcia Pereira da. Em busca do sonho: História, Juventude e Repressão. Franca,
1960-1970, Montes Claros: Unimontes, 2001.
VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria: memórias y olvidos, Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2009.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Fernando SELIPRANDY
Doutorando em História social pela USP
seliprandy@usp.br
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Todavia, para além das apropriações locais e da crítica teórica à noção, o que diz
Marianne Hirsch sobre a pós-memória? Em artigo de 2008 intitulado “The generation of
postmemory”,1 a autora dedica-se de modo mais metódico a definir o termo. Hirsch – ela
mesma filha de sobreviventes do Holocausto – reconhece de saída que o debate está
pontuado por controvérsias. Afinal, ela escreve: “O que está em questão é precisamente a
‘salvaguarda’ de um passado traumático pessoal e geracional com o qual alguns de nós
possuímos uma ‘conexão viva’, bem como o deslocamento desse passado para o campo da
história.” (HIRSCH, 2008, p. 104, tradução nossa). Para Hirsch, as polêmicas e mesmo a
profusão de termos voltados à definição do fenômeno da memória de segunda geração de
algum modo estão ligadas à contradição que lhe é inerente:
1
Uma versão ligeiramente reformulada desse artigo foi posteriormente publicada em HIRSCH, 2012.
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A autora esclarece ainda que o prefixo “pós” não sugere meramente uma
posterioridade temporal. No fundo, ela afirma, a pós-memória compartilha as complexas
sobreposições da “era dos pós” que caracteriza a virada do século XX para o XXI, “refletindo
uma complicada oscilação entre continuidade e ruptura” (2008, p. 106, tradução nossa).
Enfim, após as ressalvas, Hirsch define o termo com as seguintes palavras:
Hirsch insiste que aquilo que é “pós” é ainda memória justamente porque fica assim
destacada “essa presença da experiência corporificada (embodied) no processo de
transmissão”, sinalizando “um laço afetivo com o passado, precisamente o sentido de uma
‘conexão viva’ corporificada (embodied ‘living connection’)” (2008, p. 111, tradução nossa).
Quando se dedica ao pressuposto familiar da noção de pós-memória, Hirsch segue
ancorando seus argumentos em ideias ligadas ao corpo e à corporificação. Ela escreve: “A
linguagem da família, a linguagem do corpo: atos de transferência não verbais e não
cognitivos ocorrem mais claramente dentro de um espaço familiar, frequentemente na forma
de sintomas.” (2008, p. 112, tradução nossa). Mas agora essa memória corpórea, somática,
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Ou ainda:
Através do nexo indicial que une a fotografia a seu objeto (subject) – aquilo
que Roland Barthes chama o “cordão umbilical” feito de luz –, a fotografia
[…] pode aparecer para solidificar os tênues laços que são moldados pela
necessidade, pelo desejo e pela projeção narrativa. (2008, p. 111, tradução
nossa).
A fotografia, para Hirsch, é o ingrediente que traz à tona de maneira mais direta a
materialidade da pós-memória: “Ela nos permite, no presente, não apenas ver e tocar o
passado, mas também tentar reavivá-lo ao desfazer o caráter definitivo da ‘tomada’
fotográfica.” (2008, p. 115, tradução nossa). Tanto mais ao se tratar de uma fotografia de
família: “Diferentemente das imagens públicas ou das imagens da atrocidade, contudo, as
fotografias de família, bem como os aspectos familiares da pós-memória, tenderiam a
diminuir a distância, a recobrir a separação, além de facilitar a identificação e a afiliação.”
(2008, p. 116, tradução nossa). A fotografia, enfim:
A insistência nas citações de Marianne Hirsch até este ponto é proposital. Trata-se
aqui de prestar atenção aos pressupostos da noção de pós-memória, e não apenas de
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evocar o termo, como comumente ocorre nas análises dedicadas às obras de “segunda
geração”. Levando em conta a descrição que faz Hirsch das três premissas centrais de sua
proposição, chega-se a algumas conclusões. Quanto à defesa de que a pós-memória é
ainda uma memória, nota-se que o cerne do argumento é a capacidade da memória de
estabelecer uma “conexão viva” com o passado. No que toca ao aspecto familiar da pós-
memória, o foco da autora está nos laços carnais, consanguíneos. No que diz respeito à
função da fotografia nesse processo, evoca-se abertamente a força do nexo indicial da
imagem com o passado fotografado. Juntos, a conexão viva da memória, os laços
consanguíneos e o nexo indicial da fotografia seriam como que os elos da transmissão da
memória de geração a geração. Esses três elos, porém, estão fundados em uma concepção
demasiadamente objetiva da memória, uma espécie de reificação que faz daquilo que se
lembra algo com corpo, carne, sangue, matéria, uma coisa que pode ser vista, sentida,
tocada. Na pós-memória de Hirsch, a memória que se transmite é como uma herança
palpável que avança no tempo, sempre adiante, obturando a cisão do trauma, um dom ou
um fardo que, apesar dos pesares, as gerações seguintes recebem em suas mãos.
É claro que Marianne Hirsch não ignora a problemática da representação do trauma,
muito menos a da representação de um trauma vicário. Ela menciona os impasses e
encruzilhadas desse terreno, evocando os autores já clássicos, mas as balizas de sua
proposição seguem firmes até o fim. A fórmula que Hirsch apresenta para essa
problemática, os três elos da pós-memória, parece dar uma resposta demasiadamente
simples – e talvez por isso mesmo tão sedutora – sobre as possibilidades de transmissão de
uma memória que, a despeito de tudo, está atada a um referente bem concreto. Diante da
aporia da representação do trauma, Hirsch busca encontrar uma solução de objetividade,
descrevendo aquilo que seria palpável na transmissão geracional da memória.
Frente a esse limite conceitual, é importante voltar agora a atenção para as imagens
dos documentários. Dois exemplos servem aqui para se pensar o fenômeno da memória de
segunda geração no Brasil: Diário de uma busca (Flavia Castro, 2010) e Marighella (Isa
Grinspun Ferraz, 2011).
A princípio, pode-se ter a impressão de que se trata de dois filmes análogos. De um
lado, a filha que busca resgatar a memória da militância, do exílio, do retorno e da estranha
morte do pai. De outro, a sobrinha que reconstrói a história de vida, engajamento e
assassinato do tio líder guerrilheiro.
Os minutos iniciais de cada um desses filmes pode reforçar essa sensação. Afinal,
há um paralelismo evidente na primeira sequência dos documentários: as vozes em off das
diretoras que dizem em primeira pessoa “meu pai” ou “meu tio”; a alusão a um mistério em
torno dos personagens centrais; as inserções de fotografias e de notícias de jornal.
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Entretanto, apesar desses paralelismos iniciais, o desfecho de cada um dos filmes toma
rumos opostos.
Nos últimos minutos de Diário de uma busca, a diretora se expõe em sua fragilidade,
quando não consegue ler a carta do pai e chora diante da câmera e de seu entrevistado. No
fim, a voz off de seu irmão termina a leitura da carta, na qual o pai escreve sobre suas
dificuldades de adaptação no retorno do exílio, suas neuroses e sua angústia, sua
transformação em um “cara amargo”, cético, que reconhece sua fraqueza. No plano final, o
irmão e a irmã, que durante todo o filme discordaram sobre os rumos da narrativa, seguem
para lados distintos. Flavia fica só no quadro, os sinos tocam, escurece. Restam as
inquietações, as suspeitas, as incongruências.
No documentário Marighella, o desfecho tem um tom oposto, beirando o apoteótico.
Em um registro bem convencional das entrevistas, ilustradas por imagens de arquivo, as
testemunhas afirmam o heroísmo do “santo do socialismo”, “um dos melhores quadros
políticos do Brasil no século XX”, aquele que cometeu erros, sim, tal como os Inconfidentes,
os alfaiates negros da Bahia, como Frei Caneca, os camponeses de Canudos ou de Santa
Catarina. Erraram, mas o Brasil seria muito mais pobre sem eles. Os artifícios estilísticos da
busca e da intimidade, tímidos e esparsos ao longo do filme, não passam de recursos
ornamentais, um esforço de inserir-se no documentarismo contemporâneo empreendido por
uma diretora ainda aferrada às convenções do documentário convencional de entrevista. No
fundo, o “tio Carlos” nunca deixa de ser Marighella, o herói guerrilheiro.
A diferença de tom no desfecho desses filmes indica que a distância geracional é
cruzada de maneiras distintas em cada obra. A introspecção de Diário de uma busca em
alguma medida conota um distanciamento com relação ao horizonte épico que pautava o
engajamento político da primeira geração. Mas, como em Marighella, a segunda geração
pode buscar também uma aproximação, uma adesão à perspectiva épica, adotando um
olhar monumentalizante para o passado.
Concluindo, a dinâmica que atravessa a distância geracional é complexa. Há
diferenças entre o olhar de uma filha e de uma sobrinha, mas tais diferenças dizem respeito
também às opções estéticas e narrativas de cada obra. Vê-se que a “guinada subjetiva” no
documentário brasileiro contemporâneo sobre a ditadura não implica necessariamente o
abandono das convenções da monumentalização. O foco introspectivo e o olhar
monumental são observáveis ao mesmo tempo no interior da tendência brasileira atual dos
documentários de segunda geração.
É difícil identificar, portanto, uma característica intrínseca à memória de segunda
geração no documentário, uma qualidade “pós” que estaria na essência dessa memória, um
traço palpável que garantiria a transmissão em nova chave. Enfim, não há uma substituição
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
em bloco do épico pelo íntimo. O que existe são distintas perspectivas, ou, antes, as
tensões de memórias que ainda seguem em aberto, 50 anos após o golpe.
Referências
______. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New
York: Columbia University Press, 2012.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia.
das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
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Flávio de ALMEIDA
Jornalista e pós-graduado em Culturas Políticas, História e Historiografia pela UFMG
flavioalmeida.bh@gmail.com
Introdução
1
Este trabalho é uma síntese de monografia defendida no curso de Especialização em Culturas
Políticas, História e Historiografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG em
fevereiro de 2014.
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Globo), Luiz Fernando Perez (TV Itacolomi e O Estado de São Paulo), Manoel Hygino dos
Santos (O Diário), Roberto Elísio (Estado de Minas) e Washington Melo (Diário da Tarde),
além do empresário Afonso Paulino.2
A história oral foi o principal recurso metodológico e seu emprego está associado a
duas motivações. De um lado, a escassez de documentos escritos sobre a censura em Belo
Horizonte. Uma das poucas fontes materiais é uma pasta do Dops guardada pelo Arquivo
Público Mineiro, que contém as primeiras instruções para aplicação do AI-5 e da censura na
imprensa mineira. Por outro lado, a história oral não pode ser vista como recurso
sobressalente ao qual se recorre apenas porque faltam referências escritas mais robustas..
Conforme argumenta LOZANO (1996, p.24), trata-se de ferramenta fundamental para
construir a experiência humana, principalmente quando esta tem a memória como elemento
essencial.
Manual de instruções
2
Por limitações de espaço, nem todos os entrevistados tiveram depoimentos registrados nesta
síntese. Pelo mesmo motivo, a análise está concentrada em Estado de Minas e O Diário, ficando de
fora os outros veículos que integram o trabalho original: Jornal de Minas, De Fato e as sucursais que
atuavam em Belo Horizonte na época.
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As entrevistas feitas para este trabalho indicam dois caminhos que permitiram a esse
conjunto de normas chegar aos jornais belo-horizontinos. Um deles foi a distribuição pura e
simples nas redações, como se recorda Carlos Lindenberg, que trabalhou como repórter de
polícia e redator de primeira página do Estado de Minas.
3
Entrevista com Carlos Lindenberg concedida em 18/04/2013.
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CPOR.4 O confronto de testemunhos dos jornalistas entrevistados para este trabalho com a
documentação reunida pelo APM sobre a censura permite supor que inicialmente o controle
da imprensa em Belo Horizonte foi feito pela ID-4 ou por unidades por ela designadas. O
jornalista Adval Coelho recorda-se, por exemplo, da presença de professores e instrutores
do CPOR na redação de O Diário5, enquanto seu colega Afonso Celso Raso informa que
nas primeiras edições logo após o AI-5 os originais do jornal eram levados à sede da ID-4,
onde havia um censor à espera do material. Posteriormente, diz ele, os censores, ligados ao
exército, passaram a frequentar a redação.6
Ele nunca mexeu em nada. Até porque o Estado de Minas foi muito
favorável ao golpe militar. Era quase porta-voz (...) O Estado de São Paulo
depois começou com uns ‘furinhos’ de independência e eles começaram a
censurar. O Estado de Minas, pelo menos enquanto eu fui editor de política,
7
nunca foi censurado [grifo meu].
Se a censura prévia ou presencial praticamente não deu o ar de sua graça no
principal jornal de Minas Gerais, como explicar a adesão quase incondicional às diretrizes
do regime militar? Além da vocação governista do jornal – historicamente o veículo sempre
se alinhou com o Palácio da Liberdade –, o Estado de Minas também foi alvo de um
4
Entrevista com Manoel Hygino dos Santos concedida em 17/06/2013
5
Entrevista com Adval Coelho concedida em 13/05/2013
6
Entrevista com Afonso Celso Raso concedida em 03/05/2013
7
Entrevista com Roberto Elísio. 18/04/2013
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8
O conceito de autocensura tem caráter polissêmico. Para AQUINO (1999, p.222), trata-se de uma
capitulação, já que o papel de censurar teria sido transferido do Estado para a direção do jornal.
SMITH (2000, p.136) considera imprópria a expressão autocensura, pois não se tratava de uma
sanção imposta pelos jornalistas a si mesmos, mas pelo regime às empresas de comunicação e a
seus profissionais. Já SOARES (1989, p.38) classifica a autocensura em duas modalidades: a
institucional, em que as empresas de comunicação acatavam as proibições recebidas, livrando-se da
presença de censores nas redações e do ônus de submeterem sua produção aos órgãos de Estado,
e a individual, que alcança, em maior ou menor grau, todas as pessoas que lidavam com a produção
de bens culturais, já que poderia desencadear demissões e atos de repressão.
9
Entrevista com Roberto Elísio. 5/4/2013
10
Entrevista concedida por Dídimo Paiva em 22/3/2013
11
Entrevista com Dídimo Paiva. 22/03/2013
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foi, durante décadas, um dos mais tradicionais veículos do Estado, rivalizando em alguns
momentos com o Estado de Minas na preferência dos leitores. Começou a circular em 1935
e foi controlado pela Cúria da capital mineira até outubro de 1969, quando em grave
situação financeira acabou vendido a um grupo empresarial.
Aqui cabe uma reflexão sobre a decisão de se publicar uma nota com esse teor.
Apesar de censurados, alguns dos principais jornais do Brasil não costumavam se
manifestar explicitamente. Receitas de bolos, versos de Camões e previsões meteorológicas
sombrias introduzidos no lugar de material interditado funcionavam como mensagens
cifradas que os jornais emitiam na expectativa – vã em muitos casos – de que seus leitores
desconfiassem de que algo anormal estava acontecendo.12
12
A publicação de receitas de bolo e do poema épico Os Lusíadas, de Camões, foram expedientes
adotados, respectivamente, pelo Jornal da Tarde e pelo Estado de São Paulo, pertencentes à família
Mesquita. Já o Jornal do Brasil publicou, em sua edição de 14 de dezembro de 1968, uma previsão
meteorológica alegórica, que fazia alusão aos tempos sombrios que se avizinhavam com o AI-5:
“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes
ventos. Máx.:38, em Brasília. Min.:5, nas Laranjeiras”
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Um fato ocorrido dias antes da edição do AI-5 e que pôs O Diário no fogo cruzado de
uma crise entre o regime e a Igreja é indício de que a censura ao jornal talvez tenha
ganhado contornos próprios. A Arquidiocese da capital mineira era comandada na época por
Dom João Resende Costa e Dom Serafim Fernandes de Araújo, acabaram se chocando
com o regime por conta da prisão de quatro religiosos. No dia 28 de novembro de 1968, três
padres franceses – Michel Marie Le Ven, Francisco Xavier Berthou e Hervé Crogrense –,
além do diácono brasileiro José Geraldo da Cruz, que atuavam na paróquia do Horto, foram
presos pelas forças de repressão, acusados de práticas subversivas.
A partir daí, o assunto ganhou destaque crescente nas páginas do jornal, com
matérias e editoriais publicados diariamente, culminando com reportagem de tom mais
crítico em 12 de dezembro, dia do aniversário da capital mineira. Na ocasião, o então
presidente Costa e Silva visitou Belo Horizonte para paraninfar uma turma de economistas e
para a inauguração do Centro de Processamento de Dados do Governo de Minas. (O
DIÁRIO. Costa chega hoje, mas não falará da prisão de padres. 12/12/1968, p.1)
13
Entrevista com Manoel Hygino dos Santos. 17/06/2013
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Considerações finais
Este trabalho representa uma incursão inicial pelo tema da censura aos jornais
baseados em Minas Gerais a partir da visão de profissionais que aqui atuaram durante a
vigência do AI-5 (1968-1978). Em certos aspectos, o presente estudo sobre o cerceamento
à imprensa mineira no período constatou práticas, desdobramentos e relações entre
jornalistas e censores que se aproximam daqueles identificados por trabalhos já canônicos
no país. Um dos pontos convergentes é a mistura de acomodação e constrangimento que
tende a marcar a complexa relação entre censores e produtores de bens simbólicos,
incluindo aí jornalistas e jornais, naquilo que DARNTON (1992) define como um sistema
cultural em que “o censor se torna um colaborador do autor e o autor um cúmplice do
censor”.
Sob a perspectiva da resistência, tudo indica que a imprensa mineira não teve muito
do que se orgulhar. Aqui, em vez de publicar receitas ou poesias, o jornal católico O Diário
preferiu informar que estava sendo censurado nas duas edições seguintes ao AI-5,
outorgado em 13 de dezembro de 1968. No entanto, tal gesto não pode ser interpretado
apenas como pura submissão. Como argumentou seu então diretor de redação, Manoel
Hygino dos Santos, a decisão de estampar em primeira página os dois avisos de censura
pode ter sido uma forma de sinalizar ao leitor que o jornal vivia um estado de exceção e que
o que seria publicado a partir dali talvez não refletisse a política editorial do veículo.
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jornal assume uma postura de franca cooperação com os interesses da ditadura, a ponto de
reproduzir, em setembro daquele ano, um ofício em que a cúpula militar de Belo Horizonte
registrava sua gratidão pela colaboração prestada por O Diário.
Referências
1) Bibliográficas
CARRATO Ângela. A “amena” casa de Assis. Papel e atuação do jornal Estado de Minas
na década de 60. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília, 1996, 144 p.
RABELO, Ernane C. De fato: o jornal que enfrentou a censura em Minas Gerais. In: MELO,
José Marques de (org). Síndrome da mordaça: mídia e censura no Brasil. São Paulo:
Editora Metodista Digital, 2007, p.237-250
SILVA, Camila Gonçalves. A censura veste farda: elites conservadoras, policiais militares e
o consentimento da imprensa escrita à censura, durante o governo militar em Montes Claros
de 1964-1985 (dissertação de mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF, 2011, 215p.
ISBN: 978-85-62707-55-1
230 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
SOARES, Gláucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n. 10, jun. 1989, p. 21-43
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou (edição revisada). São Paulo: Editora
Planeta, 2008, 284p.
2) Arquivos
Arquivo Público Mineiro: Arquivo da Polícia Política (Dops). Disponível em
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops_docs/photo.php?numero=4153.
3) Jornais
Estado Minas
O Diário
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231 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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232 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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A rádio Paz e Progresso, alvo do protesto de Bernardo Cabral, era uma das
emissoras de ondas curtas do chamado “mundo socialista” que mantinha uma frequência
radiofônica em português nas décadas de 1960 e 70. Sob a vigilância e censura da Polícia
Federal, os ouvintes brasileiros chegavam até a enviar cartas para a sua sede em Moscou,
solicitando boletins de programação e revistas especializadas, mas nunca recebiam
respostas dos soviéticos.2 Ao menos na memória social, as rádios estrangeiras que
transmitiam em português ou espanhol durante o período são lembradas por terem
denunciado as prisões arbitrárias e a violência política do Brasil da ditadura militar. Para os
objetivos deste trabalho, entretanto, cabe muito mais a reflexão acerca dos
entrecruzamentos entre os imaginários nacionalista e anticomunista no bojo do Projeto
1
Na historiografia brasileira sobre o período, o ano de 1968 é, em geral, recordado pela variedade de
movimentos contrários à ditadura militar que tomaram as ruas das principais capitais do país entre
março (morte do estudante Edson Luís) e junho (passeata dos Cem Mil) daquele ano. A juventude
universitária tem um lugar de proeminência nestas narrativas, já que, segunda esta perspectiva, “o
tufão estudantil varreu democraticamente todos os quadrantes da geografia mundial.” (MARTINS
FILHO 1996: p. 14).
2
Cf. o depoimento de José Marcos Lorente, disponível em
<http://www.sarmento.eng.br/Saudosismo.htm>. Acesso em 16 mar. de 2014.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Também a revista Veja publicou matéria sobre o assunto no mesmo tom, alguns
meses depois do discurso de Cabral e da declaração de Rodrigues ao Correio da Manhã.
Em sua edição de primeiro de janeiro de 1969, os repórteres da publicação semanal
descreviam a atividade extensionista como sendo
apoiada pelos jornais americanos e combatida pela rádio Paz e Progresso, de Moscou,
que acusou as Operações Rondon anteriores de desviarem os estudantes da Amazônia,
‘com receio de que êles [sic] descobrissem lá as jazidas e aeroportos clandestinos
explorados pelos trustes americanos’... (Veja, edição nº 17, 1/1/1969, p. 15)
3
O entendimento de imaginário aqui empregado aproxima-se daquele defendido por Cornelius
Castoriadis, para quem “é de maneira imanente, no seu ser em si e para si, que ele [o “real humano”]
é categorizado pela estruturação social e o imaginário que este significa; relações entre indivíduos e
grupos, comportamentos, motivações, não são somente incompreensíveis para nós, são impossíveis
em si mesmos fora deste imaginário.” CASTORIADIS, 1982: p. 193. Grifado no original.
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lembrar ao jovem que êle [sic] é responsável por tudo contra o que protestava; que não
deve ter medo de conquistar o País; que não adianta gritar que a Amazônia está sendo
vendida, se a condição que exige para ir para lá é de lhe pagarem 3.000 cruzeiros novos
por mês (Veja, edição nº 49, 13/08/1969, p. 5.)
4
Ação semelhante mas voltada para estudantes entre 16 e 18 anos foi, de fato, promovida pelos
militares argentinos anos depois, já no período da ditadura instaurada com o golpe de 1976. O projeto
foi criado em 1979, chamava-se ¡Argentinos! Marchemos hacia las fronteras e era organizado em
conjunto pelo Ministerio de Cultura y Educación e pela Gendarmería Nacional. Se no Projeto Rondon
as áreas a serem “integradas” eram o interior e as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil;
no caso do programa argentino a preocupação central se voltava para as regiões de fronteira em que
as distinções entre argentinos e estrangeiros eram mais fluídas. Sobre o tema, cf. RODRIGUEZ,
2010: p. 1.257-1.264.
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Mas, afinal, qual lugar ocupava o Projeto Rondon na conjuntura brasileira de fins dos
anos 1960? Como tem sido afirmado pela historiografia contemporânea sobre o período, as
relações entre a ditadura militar e as comunidades universitárias brasileiras nesses anos
foram caracterizadas pela ambivalência. Se, por um lado, o regime ampliou o número de
vagas nas instituições de ensino superior e modernizou as estruturas de ensino, pesquisa e
extensão; por outro, os militares buscaram vigiar e censurar o cotidiano universitário com o
objetivo de calar as vozes dissonantes. Se o movimento estudantil protestou contra a
ditadura em momentos como as manifestações de rua em 1968, houve estudantes que
procuravam levar as suas vidas apesar da ditadura ou mesmo nela se inserir. Para além da
dicotomia entre resistência e repressão, recorrente em certa memória social sobre o
período5, uma grande variedade de práticas foi acionada por universitários, militares e
professores. Com o slogan “Integrar para não entregar”, o Projeto Rondon foi um campo
profícuo para essas práticas. O programa de extensão foi criado entre os anos de 1967 e 68
e funcionou sob a coordenação do Ministério do Interior até 1989. Cerca de 130.000
estudantes-voluntários de diversas áreas do conhecimento e de diferentes Estados da
federação participaram de suas atividades, que envolviam principalmente ações realizadas
em regiões do interior do país durante as férias escolares.
5
Segundo as pesquisas que tomam a memória social sobre o período como objeto de estudo,
constituiu-se, a partir de fins dos anos 1970, uma memória segundo a qual “a sociedade brasileira
viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso exorcizar, ou seja, a sociedade não tem, e nunca
teve, nada a ver com a ditadura” (REIS, 2002: p. 9). No caso específico do Projeto Rondon, a quase
ausência de estudos historiográficos sobre o tema talvez seja explicada pela predominância desta
memória. Cabe ressaltar, todavia, que as memórias sobre as ações dos rondonistas são mais
complexas, como evidencia a nova edição do Projeto realizada desde 2005 e iniciativas como o
Memorial Projeto Rondon da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
ISBN: 978-85-62707-55-1
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entretanto, não era compartilhada por todos os atores que, de uma forma ou de outra,
faziam parte do governo brasileiro durante a ditadura. A “nova forma de ocupação do
Estado” (NAPOLITANO, 2011: p. 215) instaurada com o golpe de 1964 abarcava também
grupos como liberais-conservadores, parcelas das classes médias, setores da Igreja
católica, dentre outros. A unificá-los, estava o outro imaginário que instituía o Projeto
Rondon: o anticomunista (MOTTA, 2002: p. 231-278). No caso do programa de extensão,
este imaginário expressava-se por meio da preocupação com o combate às atividades de
oposição ao regime ditatorial entre os estudantes universitários.
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Referências
1) Acervos pesquisados
2) Fontes
FILHO, Gastão Patusco. “Entrevista: Mauro Costa Rodrigues. ‘Não queremos moços
conformados’”. Veja, São Paulo, Edição 49, 13 de agosto de 1969, p. 3-6.
3) Bibliografia
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MARTINS FILHO, João Roberto. A rebelião estudantil: 1968 – México, França e Brasil.
Campinas: Mercado das Letras, 1996.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil.
São Paulo: Perspectiva, 2002
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2002.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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mantido principalmente pela coerção física. É nesse contexto que ocorre a reestruturação
das forças policiais, que origina a PMESP (PINHEIRO, 1982, p. 74).
Por fim, existem ainda alguns livros escritos por policiais. Assumindo um discurso
abertamente conservador, há as obras de Conte Lopes (1994) e Paulo Telhada (2011)
ambos oficiais da ROTA, conhecidos por possuir um extenso número de cadáveres em seus
currículos. O livro de Conte Lopes, Matar ou Morrer, foi escrito como forma de defesa contra
as acusações de Caco Barcellos (1992) de que ele não passaria de um "matador de
inocentes". O livro está repleto de histórias de sua carreira, envolvendo, em geral,
dramáticas cenas de tiroteios contra bandidos inescrupulosos que ameaçavam vítimas
indefesas. Já o livro do Coronel Telhada, apesar de conter vários casos de "heroísmos" de
policiais mortos em serviço, concentra-se em traçar uma cronologia do 1° Batalhão da PM,
de forma bem convencional, narrando mudanas organizacionais e burocráticas. Em ambos,
é bem perceptível a ideia, muito forte na PM, de que o policial é uma reserva moral em
guerra permanente contra o crime e contra detratores (de esquerda).
No campo político oposto, há o livro do Coronel Vicente Silvestre (1985). Silvestre
era parte do "setor militar" do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que se articulava dentro da
Guarda Civil e da Força Pública desde os anos 50. O grupo conseguiu maner a articulação
mesmo após o golpe, sendo desmantelado apenas em 1975.2 O livro de Silvestre, apesar de
não abordar a sua militância, mas sim narrar uma história da Guarda Civil, deixa bastante
evidente uma diferença de visão do trabalho policial para com Telhada e Conte Lopes. Não
há violentos confrontos heróicos, tiroteios ou perseguições. O trabalho da Guarda Civil é
descrito muito mais como um serviço à população do que como uma "guerra contra o crime".
Há também uma ênfase nos clubes e associações de policiais (ausentes nos outros
trabalhos) onde se reforça o papel do nacionalismo de esquerda na sua constituição.
O sistema de segurança pública brasileiro tem suas principais corporações no âmbito
estadual. Até 1970, o sistema de segurança pública do estado de São Paulo era composto
basicamente por três corporações: a Força Pública, a Polícia Civil e a Guarda Civil.
A Polícia Civil exercia funções de polícia administrativa e judiciária, ou seja, era
responsável por instaurar inquéritos, realizar o cadastro e identificação de pessoas e
organizações, fiscalizar hotéis e pensões, licenciamento de veículos, realizar investigações,
além de diversas tarefas de assistência social. O delegado, bacharel em Direito, era a
principal autoridade a coordenar as tarefas de policiamento, realizado pelas outras
corporações. A Polícia Civil possuía ainda diversas delegacias especializadas, voltadas a
questões de costumes, menores, jogos, etc, das quais a mais importante era, sem dúvida, o
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) (Battibugli, 2010, pp. 43-48)
2
Dossiê 50-D-18-2458 ao 2431 "Subversão na PM". DEOPS/SP. Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
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A Força Pública (FP) era a maior corporação do estado, com um efetivo três ou
quatro vezes superior ao da Polícia Civil, dependendo do ano, e em média duas vezes maior
que o da Guarda Civil. Era a corporação responsável pela maior parte das tarefas de
policiamento, executando-o nas áreas onde a Guarda Civil não atuava, além de fazer
escoltas, controle do tráfego, serviço de guarda de edifícios públicos e incluía ainda o Corpo
de Bombeiros. Era uma corporação com forte caráter militar, com uma hierarquia
estruturada nos moldes do Exército, dividida entre praças e oficiais. Apesar disso, até a
segunda metade dos anos 60, não havia nenhuma subordinação de fato da Força Pública
às Forças Armadas.
A Guarda Civil (GC) era uma corporação civil fardada, com função de fazer
policiamento de rua e guarda de trânsito. Diferente da Força Pública, a Guarda Civil possuia
uma estrutura de carreira única, não tendo sendo sbordinados a nenhum código militar. Nos
anos 60, a sua atuação restringia-se ao centro da capital e a algumas das principais cidades
do interior, ficando as demais localidades com policiamento exclusivo da Força Pública
(BATTIBUGLI, 2010, p.55).
Em Abril de 1964, tanto a Guarda Civil quanto a Força Pública colaboraram com o
golpe. Os boletins de ambas as corporações trazem notas dede celebração do golpe,
indicando o total apoio da cúpula.3 No caso da Guarda Civil, o apoio não partiu somente da
instituição, mas de parte dos policiais, através do Centro Social dos Classes Distintas, que
lançou um Manifesto.4 No documento, os guardas apresentam a visão de 31 de março não
como um golpe ou uma revolução, mas como um ato de defesa da legalidade e da
liberdade. Ao fim conclamam todas as pessoas a colaborarem, principalmente os demais
guardas, pois “a luta pela Lei e Pela Ordem está inciada. Os Classes Distintas estão nas
trincheiras da Legalidade”.5
Por outro lado, se o comando das corporações estava totalmente alinhado ao golpe,
o mesmo não ocorreu com a totalidade dos soldados. O Boletim da Força Pública de 23 de
Abril de 1964 informa que, na noite do dia 1 de abril, foi distribuído em algumas unidades da
corporação, um manifesto do Centro Social dos Cabos e Soldados (CSCS), assinado pelo
seu presidente, Oirasil Werneck, incitando “as praças da Corporação à desordem e à
indisciplina”, opondo-se ao golpe. Foi aberto Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar o
caso, chegando ao nome de seis soldados, inclusive do diretor do CSCS, que foram
3
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo nº 68, 10 de abril de 1964, Anexo. Museu
de Polícia Militar; Boletim Geral da Guarda Civil de São Paulo nº 62, 3 de abril de 1964, Anexo.
Museu de Polícia Militar.
4
O equivalente militar do cargo Guarda Civil de Classe Distinta seria, a patente de Sargento, um dos
maiores postos entre os praças. Eram a classe mais alta da Guarda Civil a fazer policiamento de rua,
fiscalizando os demais guardas.
5
Boletim Geral da Guarda Civil de São Paulo, nº 60, 1º de abril de 1964, Museu de Polícia. página
sem número
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
enquadrados no art. 7 do Ato Institucional nº1, que prevê demissão de funcionários públicos
vitalícios ou estáveis, caso atentem contra o regime. Diante disso, o Comandante Geral da
Força Pública decidiu encaminhar o caso, em primeiro lugar ao Governador do Estado, em
segundo lugar à Justiça Militar do Estado, e, por último, encaminha cópia ao comandante de
um quartel da aeronáutica citado na investigação. Estando sujeitos ao Código de Justiça
Militar, os seis policiais tiveram prisão decretada por 30 dias, a partir de 20 de abril.6
Até 1967, não houve nenhuma grande mudança na estrutura policial. A “eleição” de
Costa e Silva marca a chegada da “linha-dura” ao poder, que possibilita uma radicalização
do projeto repressivo. É promulgada uma nova Constituição, uma nova Lei de Segurança
Nacional (LSN), uma nova Lei de Imprensa e se inicia uma reforma administrativa. É
promulgada também a nova Lei Orgânica da Polícia (Decreto-lei nº 317, de 13 de Março de
1967) que institui a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), ligada ao Ministério da
Guerra (HUGGINS, 1998: 151). A retomada das manifestações de rua, principalmente na
primeira metade de 1968, coloca a Força Pública e a Guarda Civil em confroto direto com
setores da classe média nos grandes centros urbanos. A guerrilha urbana inicia suas
primeiras ações, se tornando mais ativa após a promulgação do AI-5, em dezembro de
1968. Diante dessa crise, em 1969, são elaborados um novo Código Penal e um novo
Código de Processo Penal Militar, mais rigorosos e é alterada a LSN. Em São Paulo, é
criada a Operação Bandeirantes (Oban), um novo órgão da repressão, que unia membros
das Forças Armadas e das polícias. A sua estrutura unificada e centralizada, pensada para
um combate mais eficiente à guerrilha, foi depois transportado para o resto do país sob a
forma do DOI/CODI (FICO, 2001, p. 118).
Em Julho desse mesmo ano, ao mesmo tempo em que se cria a Oban, seria
promulgado mais um decreto (Decreto-lei nº 667), que atribuiu exclusividade do policiamento
de rua às policias militares. Avança o processo de centralização das forças policiais, com a
unificação da Guarda Civil com a Força Pública, o que, após mais algumas leis reguladoras,
culmina com a criação da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP), em abril de
1970. Esse processo não foi bem recebido pelo conjunto das duas corporações. Relatórios
do DOPS apontam que oficiais da Força Pública de São Paulo e de Minas Gerais estariam
fazendo reuniões secretas para se articular contra a nova Lei Orgânica da Polícia, pela
extinção da IGPM e pela volta do comando às mãos de um integrante da corporação e não
mais do Exército. Um relatório do Serviço Secreto do Estado Maior da PM de Minas Gerais
mostra grande preocupação diante da possibilidade de levante armado da polícias militares
paulista e mineira, porém, ressalta que o movimento não tem um caráter “esquerdista”, mas
6
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo, nº 74, 20 de abril de 1964, Museu de
Polícia. pp. 1012-1013
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
que os policiais apenas temem que o Exército tire suas armas.7 O próprio Comandante
Geral da Força Pública, José Antônio Barbosa de Moraes, chegou a encaminhar um ofício
ao Secretário de Segurança Pública se posicionando contra o ante-projeto de lei orgânica da
polícia.8
Na Guarda Civil a situação era ainda mais tensa, pois a perspectiva de seus
membros era de que a corporação estava sendo dissolvida. Vicente Silvestre relata uma
sensação de humilhação perante o descaso geral do governo do Estado com as demandas
da GC ao longo de 1969 (SILVESTRE, 1985, p. 103). O debate sobre a unificação das
polícias precede em muito o golpe. No entanto, ele apontava para a unificação em torno de
um único corpo policial civil (BATTIBUGLI, 2010, pp. 179-188). A unificação de 1969
representou, na prática, a dissolução da Guarda Civil, tendo como resultado o aumento do
poder da Polícia Militar, em detrimento da Polícia Civil, particularmente nas operações de
rádio-patrulha, o que, inclusive, causou desconfortos e protestos entre estes (HUGGINS,
1998, p. 153).
A nova corporação é fortemente subordinada ao Exército, tendo seu comandante
como obrigatoriamente um oficial da ativa do Exército e não mais da própria corporação. O
Secretário de Segurança Pública passa a um militar nomeado somente com autorização do
Governo Federal. Segundo Cristina Neme, “se até 1967 as polícias estaduais eram
empregadas na repressão física através da Secretaria Estadual de Segurança Pública, com
a reorganização das forças policiais, em 1969, as polícias militares foram diretamente
envolvidas na repressão à dissensão popular, sob controle operacional do Exército” (NEME,
1999, p. 53).
Assim, o policiamento foi colocado sob a lógica da Doutrina de Segurança Nacional.
A Polícia Militar, teria como uma de suas funções o combate à guerrilha urbana, evitando
assim o desgaste da presença do Exército nas ruas (HUGGINS, 1998, p. 201-202). No
entanto, alguns autores ressaltam que não se deve superestimar a influência da Doutrina de
Segurança Nacional na polícia. Paulo Sérgio Pinheiro afirma que a Doutrina não alterou o
caráter da antiga Força Pública, que continuou violenta, mas serviu como uma nova
justificativa para os abusos (PINHEIRO, 1982, pp. 60-61). No livro Operários da Violência, a
socióloga Martha Huggins e os psicólogos Mika Haritos-Fatouros e Phillip Zimbardo (2006),
analisando o treinamento a que eram submetidos os ingressantes na PM, concluem que a
Doutrina de Segurança Nacional era “culturalmente difusa”, não sendo abraçada
automaticamente por todos e não implicando necessariamente na generalização da prática
de atrocidades contra criminosos. Muitos policiais, inclusive, se lembram com desdém
7
DEOPS. Relatório. 50-D-18-1020, Arquivo Público do Estado de São Paulo, 28/01/1968
8
DEOPS, 50-D-1018, Arquivo Público do Estado de São Paulo. O ofício original não tem data, mas foi
arquivado pelo DEOPS em 8 de Abril de 1968.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
desses ensinamentos. No geral, não há uma reflexão sobre ameaças a segurança nacional
por parte dos policiais, somente a ideia de que bandidos devem ser combatidos.
A guerrilha urbana, no fim dos anos 60 e início dos 70, fazia parte do cotidiano
policial, misturando-se com as operações contra o crime comum. O Boletim da Força
Pública de 9 de abril de 1970 apresenta três pedidos da Comissão de Promoção de Praças
(CPP) ao Comandante Geral. O Soldado PM Djalma Oliveira da Silva, do 1º Batalhão
“Tobias de Aguiar” recebeu uma proposta de promoção a cabo por ter colaborado na ação
que culminou na morte de Carlos Marighela, no dia 4 de novembro de 1969. O soldado
tornou-se um “exemplo vivo a ser seguido” quando, “agindo com desassombro e bravura”
utilizou seu cachorro adestrado para impedir a fuga de Frei Ivo, um frade dominicano que,
após ter sido torturado no DOPS, serviu de isca para Marighela. Já o Cabo PM Jorcelino
Santos da Silva e o Soldado PM Edwin Obst, ambos do 9º Batalhão Policial, foram
contemplados com pedidos de promoção após captura de “uma quadrilha de perigosos
assaltantes” liderados pelo bandido “Caveirinha”. A prisão envolveu perseguição e tiroteio,
onde o Cabo foi ferido. O terceiro caso também diz respeito à prisão de guerrilheiros.9 A PM
se envolveu diretamente no combate à guerrilha e seus soldados também eram alvo dos
ataques dos guerrilheiros. Um acontecimento pouco comentado pela bibliografia, mas que
teve grande impacto sobre a polícia militar foi a morte do Tenente Alberto Mendes, do 1º
Batalhão “Tobias de Aguiar”, em abril de 1970. O Tenente foi morto a coronhadas pela
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo de Carlos Lamarca, após ter sido
capturado em um conflito entre os guerrilheiros e a PM. A sua morte causou grande
comoção, e o Tenente foi nomeado “Herói Símbolo da Polícia Militar”. Essa fato, no entanto,
só é comentado em algumas memórias de policiais e de outros agentes da repressão.10
Ao longo dos anos 70, diversos oficiais vão realizar treinamentos com as Forças
Armadas, além dos currículos de formação passarem a incluir disciplinas sobre Segurança
Nacional e Guerra Revolucionária.11 As Tropas de Choque, que antes permaneciam
aquarteladas, aguindo apenas em casos de "distúrbios civis" são colocadas para realizar o
policiamento. Algumas delas, com função primordial de combate à guerrilha. Em 1970, o 1º
9
Boletim Geral da Força Pública do Estado de São Paulo, nº 66, 9 de abril de 1970, pp. 19-22
10
O seu cortejo foi seguido por mais de 10 mil pessoas, de acordo com o Jornal do Brasil, contando,
inclusive com a presença do Governador. Ver, Ulstra, 1987, p. 84 e Memorial do Cap. Alberto Mendes
Júnior situado no Museu de Polícia. Ustra ressalta bastante o impacto público de sua morte na época.
O autor, tenente-coronel do Exército e integrante do DOI/CODI paulista no início dos anos 70,
escreveu o livro numa tentativa de se defender das acusações de torturador que pesam contra ele.
Argumentando que todo o trabalho da repressão foi com o sentido de combater o “terrorismo”, ele
mostra diversos casos de vítimas dos grupos guerrilheiros, em geral militares ou policiais. São
apresentados como “Vítimas do Terror”, em oposição às “Vítimas da Tortura”, e mártires da
democracia. O caso também é comentado no livro do ex-policial da ROTA , Conte Lopes (1994)
11
Por exemplo, Boletim Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, n° 11, 16 de Janeiro de
1973; n° 122, 4 de Julho de 1973; n° 14, 21 de Janeiro de 1974; n° 62, 3 de abril de 1974;
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Batalhão “Tobias de Aguiar”, foi convertido nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA),
para cumprir função de Ronda Bancária contra os assaltos a banco da guerrilha. Era
constituído por equipes motorizadas de quatro homens com armamento pesado. Com a
derrota da guerrilha, ainda no início dos anos 70, as Tropas de Choque foram mantidas no
policiamento e na repressão ao crime comum. Já existiam rondas semelhantes desde o fim
dos anos 50, mas elas ficavam a cargo da Polícia Civil. Muitos autores consideram que foi a
partir dessas Rondas que surgiu o Esquadrão da Morte (PINHEIRO, 1982, p. 70; HUGGINS,
1998, pp. 158-159).12 A ROTA se tornou célebre devido à sua grande violência e número de
mortos, tudo sob a conivência do Estado, que garante a impunidade. Isso levaria alguns
autores a classificá-la como a “institucionalização” do Esquadrão da Morte (PINHEIRO,
1982, p. 72; BARCELLOS, 1992, p. 119).
O discurso de Segurança Nacional é utilizado para legitimar a violência policial contra
grupos que não tem nenhuma relação com a subversão. Através da documkentação é
possível observar como a lógica da Doutrina de Segurança Nacional é absorvida e
instrumentalizada pela PM.
No fim dos anos 70, os jornais mostram uma grande preocupação com os
“trombadinhas” no centro de São Paulo. A solução posta em prática pela PM é utilização de
caratecas – policiais à paisana com treinamento em caratê – que farão patrulhas a pé pelas
ruas, em busca dos bandidos (em geral menores de idade). O que chama atenção (além da
heterodoxia da proposta) é a associação permanente feita com o combate à guerrilha do
início da década de 70. O idealizador da ação é o delegado Mitsuyuki Taniguchi, faixa preta
em caratê e ex-membro do Batalhão de Choque da PM, que promete usar a sua experiência
no combate à subversão nesta nova empreitada13. A relação de fato entre essa operação e o
combate à guerrilha não é explicada nos recortes existentes no Dossiê. A “contraguerrilha”
parece ter muito mais sentido como legitimação da prática, para policiais e para o público,
do que modelo de repressão neste caso. A relação que de fato ocorre com frequência é a
utilização do problema dos trombadinhas para reivindicar um endurecimento na legislação e
no sistema de segurança pública.14
Outro caso emblemático abordado pela imprensa aconteceu em março de 1973
quando, durante um jogo de futebol, o torcedor José da Silva cruzou a linha do campo e foi
12
Antes de ser promovido ao DOPS, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, conhecido por seu
envolvimento no Esquadrão da Morte paulista, era membro de uma dessas Rondas, as Rondas
Noturnas Especiais da Polícia Civil (RONE). Martha Huggins mostra indícios de que, em algum
momento, no início dos anos 60, Fleury foi estimulado por seus superiores a montar o Esquadrão da
Morte.
13
JORNAL DA REPÚBLICA 20/12/79. DEOPS. OP 1161 Trombadinhas. APESP.
14
JORNAL DA TARDE 09/09/77. DEOPS. OP 1161 Trombadinhas. APESP. O artigo, entre outras
coisas, acusa a esquerda internacional de fazer uma campanha para desarmar as polícias, deixando-
as indefesas.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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atacado por oito soldados da PM, que o espancaram até a morte. A indignação popular foi
tamanha que os PMs foram cercados pelos torcedores, tendo que que solicitar reforços para
conseguirem sair do estádio. Questionado posteriormente sobre o ocorrido, o comando da
PM alegou, inicialmente e sem apresentar nenhuma prova, que José da Silva era um
subversivo.15 Desta forma, o suposto crime político, visto como principal ameaça no início
dos anos 70, é utilizado na tentativa de legitimar o arbítrio policial.
O projeto repressivo e conservador, no entanto, não era aceito sem resistências
dentro da corporação. O caso mais notável foi a denúncia, em 1974, contra um grupo de
policiais militares de integrar o PCB. Foi aberto um processo na Comissão Estadual de
Investigações (CEI)16 que apontava para a atuação dos antigos membros da já extinta
Guarda Civil, liderados pelo Ten. Cel. Vicente Sylvestre, que, através do Centro Social dos
Guardas Civis de São Paulo e da Polícia Militar, fariam “política classista”.17 Um ano depois,
o “setor militar” do PCB seria desmantelado com a prisão preventiva de 24 policiais militares,
incluindo Vicente Sylvestre, além de vários outros indiciados, totalizando 76 envolvidos,
inclusive no 1º Batalhão “Tobias de Aguiar”.18 No relatório do DEOPS sobre a questão nota-
se a grande preocupação com a possibilidade de perda de controle da Polícia Militar.
Sylvestre, “Doutrinador do PC”, é acusado de, desde de seus tempos na Guarda Civil, tentar
montar um “poderoso exército paralelo às Forças Armadas”, conspurcando “ (…) os
sagrados solos das casernas, onde se cultua precipuamente o amor à Pátria e às
19
Instituições”.
O caso atraiu atenção da imprensa nacional e internacional, que questionou o
tratamento dado aos policiais e a validade das confissões obtidas através de interrogatórios
com suspeita de violência. Um dos policiais presos, o Tenente José Ferreira de Almeida, 63
anos, morreu na prisão, supostamente por suicídio, de acordo com a versão oficial.20 No
Jornal do Brasil de 26 de maio de 1976, Vicente Sylvestre relata que foi torturado no DOI-
CODI, confessando a sua relação com o PCB.21 Em seguida foi expulso da PM, condenado
a dois anos de prisão e relegado à condição de “morto-vivo, proibido de exercer quaisquer
atividades públicas ou privadas e sua mulher foi conduzida à condição de viúva de marido
15
O GLOBO. 20/03/73. DEOPS. 50-D-18-2342. APESP
16
A CEI foi instituída através do Decreto-lei nº 6, de 6 de março de 1969, do Governador Abreu
Sodré. Estava sobre a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública e tinha a função de
investigar denúncias contra servidores públicos estaduais, civis e militares, incluindo denúncias de
subversão.
17
DEOPS. Relatório: Militares envolvidos em processos na CEI. 1974. 50-D-18-2318. APESP
18
DEOPS. Inquérito do PCB (PMs). 1975. 50-D-18-2476
19
DEOPS. Inquérito do PCB (PMs). 1975. 50-D-18-2458
20
DEOPS. Relatório: Jornal 'Los Angeles Times” publica prisão de comunistas. 1975. 50-D-18-2408.
APESP
21
JORNAL DO BRASIL 26/5/76 DEOPS. 50-D-18-2480
ISBN: 978-85-62707-55-1
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vivo para receber uma pensão do Estado”.22 A utopia autoritária não poderia tolerar
subversão dentro do aparato repressor.
Além disso, as divergências entre os policiais, principalmente nas disputas de poder
entre a Polícia Civil e a Polícia Militar, indicam a dificuldade de se realizar plenamente o
projeto repressor. Os relatórios do DEOPS trazem registros dos conflitos entre as
corporações policiais. Brigas entre PMs e investigadores civis eram comuns.23 Chama
atenção o caso ocorrido em 16 de março de 1973, quando o investigador do DEOPS José
Roberto de Arruda parou o seu carro próximo ao DETRAN porque estava passando mal,
quando foi abordado por uma Ronda da PM. Ao descobrirem que se tratava de um agente
do DEOPS, os PMs o levaram até o pátio do DETRAN e chamando “reforços”. Arruda foi,
então, espancado por nove policiais militares. No mesmo dia o investigador se queixou ao
DEOPS e foi aberto um inquérito para apurar os fatos.24 O DEOPS era o Departamento da
Polícia Civil que gozava de maior prestígio durante a ditadura. Portanto, é provável que a
punição pela agressão fosse algo esperado. Mesmo assim, a oportunidade de espancar um
investigador pareceu compensar o risco para os PMs.
Apesar disso, a violência policial mostra um recrudescimento ao longo do período. A
sua impunidade era facilitada pelo fato dos PMs gozarem de foro militar. Assim, crimes
cometidos durante o serviço eram julgados pela Justiça Militar Estadual (JME), órgão
acusado várias vezes de corporativista, que, em geral, inocentava policiais de crimes
cometidos contra civis. Neme mostra que havia grande controvérsia sobre este ponto, pois
havia divergência de jurisprudência, o que permitia que PMs fossem também processados
na Justiça Comum.25 Essa divergência só foi “resolvida” em 1977, quando o general
presidente Geisel editou a Emenda Constitucional nº 7, conhecido como “Pacote de Abril”.
Editado após a derrota do Arena nas eleições, o “Pacote” declarou o fechamento do
Congresso por 14 dias, instituiu os senadores “biônicos” (nomeados pelo Governo Federal)
e também introduziu pela primeira vez de forma explícita na Constituição a competência da
JME para julgar crimes cometidos por policiais militares. A partir daí o STF passou
22
Battibugli 269. Sylvestre relata ainda que seu processo foi revisto em 1984 e anulado. Voltou ao
serviço da ativa, foi promovido a coronel, mas não teve disposição de continuar, solicitando
passagem à reserva (aposentadoria para militares).
23
Ver, por exemplo, DEOPS. Mensagem nº 5644/74. 50-D-18-2321. APESP. Trata-se de uma
briga entre um policial militar e um policial civil.
24
DEOPS. Mensagem 567. 1973. 50-D-18-2310. Ao informe seguem diversos recortes de jornal,
indicando a grande repercussão na imprensa.
25
A lei federal nº 192/36 e a lei estadual nº 2.856/37 já definiam a competência da JME para julgar
“crimes militares definidos em lei”. No entanto, a Súmula 297, editada pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) em 1963 considerava policiamento uma atividade civil, estando os seus crimes sujeitos à
Justiça Comum. Depois do golpe foram editados os decretos nº 317/67, nº 667/69, nº 1072/69 e nº
66. 862/70, que definiam os crimes praticados durante o policiamento como sob jurisdição da JME. O
STF, no entanto, mantinha o seu entendimento de que se tratava de assunto civil (NEME, 1999, p. 70-
72).
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FICO, Carlos. Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio
26
Um exemplo é o caso ROTA 66, onde processo na Justiça Comum, que apontava para a
condenação de uma equipe da ROTA pelo assassinato de três jovens da classe média paulistana. O
caso aconteceu em 1975, mas se estendeu por anos. Em abril de 1979, os acusados tiveram seu
recurso extraordinário, alegando incompetência da Justiça Comum, negado pelo STF. Em outubro do
mesmo ano, o foi impetrado um pedido de habeas corpus sob o mesmo argumento, sendo que dessa
vez foi aceito, com base na Emenda nº 7, e o processo civil foi anulado. (NEME, 1999, p. 74-75;
BARCELLOS, 1992, p. 77-92).
27
Prisão sem flagrante ou mandato, ilegal, mas praticada abertamente pela polícia até meados
dos anos 80.
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Entre os anos de 1964 e 1979, estima-se que 600 mulheres estiveram distribuídas
entre quase todas as organizações de esquerda no Brasil (LIMA, 2000, p. 206), sendo que,
nos grupos armados, elas representaram cerca de 18% do número total de militantes
(RIDENTI, 1990, p.1). Em geral jovens, solteiras e integrantes das camadas mais
intelectualizadas do país (LIMA, 2000, p. 209), essas mulheres foram, sem dúvidas, sujeitos
importantes no cenário de reivindicação política durante a realidade instaurada a partir de
1964, assim como peças-chave para chacoalhar os estranhamentos e limitações que se
impunham à atuação feminina na sociedade. Uma notícia publicada no jornal Folha de São
Paulo em 13 de outubro de 1968, sobre o desfecho do 30º Congresso da União Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, destaca a presença de mulheres no grupo: “os presos são
estudantes de várias regiões do país. Todos jovens. Um terço, pelo menos, é constituído de
moças”.
1
O conceito de representação é aqui entendido com base nos estudos desenvolvidos por Moscovici
(2003) e Jodelet (1989) e, portanto, entendido como processo de constituição e construção de
percepções, ideias, imagens e paradigmas por parte dos indivíduos, as quais irão guiá-los na maneira
de nomear e definir os aspectos da realidade. Segundo Moscovici (2003, p. 32), “essas
representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como
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E para dar início à discussão sobre o primeiro desses padrões, trazemos aqui as
palavras de Ana Maria Colling (2004): ao afirmar que “a repressão caracteriza a mulher
militante como Puta Comunista”, a autora exemplifica claramente a associação difundida
pelo regime militar entre as mulheres que integravam partidos de esquerda e a libertinagem.
Ou seja, tais mulheres representavam um contraponto à virgindade e ao recato que marcava
os tradicionais padrões afetivo-sexuais femininos, das “moças de família". Uma “possível
associação com a prostituição” (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 19) era, assim,
muito comum quando tratava de referir-se às militantes.
Zuenir Ventura traz importante relato de como, em determinado momento do ano de 1968, o
governo “comprovou” a vida desregrada das militantes:
Contra a pílula havia resistências que iam do terror natural dos seus efeitos, não
de todo conhecidos, até o preconceito que via nela um instrumento de promoção
da promiscuidade. Em outubro, ao desmantelar o congresso da UNE em Ibiúna,
as forças policiais exibiram como troféu de guerra uma razoável quantidade de
caixas de pílulas apreendidas. Como se a pílula fosse um preservativo de uso
imediato como a camisinha, a polícia acreditava que a exibição provaria à opinião
pública que as moças tinham ido ao encontro preparadas para algo mais do que
discutir as questões estudantis (VENTURA, 2008, p. 38).
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Para João Batista de Abreu (2000, p. 133), confundir a censura política com a
censura de costumes - definindo comportamentos comprometedores do modelo
conservador - era uma estratégia do governo para enfraquecer os valores da sociedade.
Assim, seria muito maior o número de “opositores” ao regime e muito menores as
explicações a serem dadas em razão das prisões feitas pela repressão, já que as ameaças
ao bem-estar social estariam sempre onipresentes.
E a construção que se fazia em torno de uma alegada falta de moral das mulheres
militantes era tão intensa que, muitas vezes, elas próprias tinham problemas em se
reconhecer como tal em razão justamente do medo da exclusão moral e social que lhes
poderia ser imposta por fazerem parte de um grupo de esquerda. Era esse o caso de
Rosane2, que conta a opinião que tinha a respeito das mulheres militantes antes de
ingressar no movimento: “outra coisa também que eu não gostava [...] era que as mulheres
eram muito liberais. Pra mim, eram muito galinhas, muito piranhas” (GIANORDOLI-
NASCIMENTO et al., 2007, p. 368).
Exemplo das restrições a que estavam sujeitas, Sônia conta que quando ingressou na
universidade não ia a nenhum bar - considerado um “reduto masculino” - porque as colegas,
por proibição familiar, não podiam frequentá-los. Até que um dia ela resolveu deixar aquela
restrição de lado: “Eu falei: ‘Suzana, isso não tem cabimento não. Nós vamos lá’”
(GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 131).
Mas, dentro da militância, não era só entre os homens que predominavam o preconceito e
os estereótipos: é interessante pensar ainda que, na luta para se mostrar como uma
militante “direita”, como apontou um dos depoimentos citado há pouco, muitas mulheres
2
Os nomes utilizados pelas autoras em questão para nomear as militantes são todos fictícios
(GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2007; 2012).
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desvalorizavam suas próprias colegas. Ou seja: para se afirmar, elas utilizavam os mesmos
argumentos a partir dos quais eram desvalorizadas e, portanto, desejavam se manter
afastadas. Suzana explica que havia um grupo “tradicional” - “havia um certo preconceito em
relação a nós, era...o grupo, por exemplo, de mulheres que seguiam o modelo tradicional.
Elas percebiam que nós éramos diferentes” - e outro, das “radicais” - “esse outro grupo já
era um grupo muito mais avançado, mais livre. Então, eram outros valores do ponto de vista,
é... da sexualidade” (GIANORDOLI-NASCIMENTO et al., 2012, p. 287). O exemplo
evidencia como os processos identitários são complexos e se constituem a partir da
oposição inclusão versus exclusão, ou seja, o desejo de pertencer a um determinado grupo
faz com que os indivíduos busquem se diferenciar, excluir os demais grupos e transformá-
los naquilo que lhe é exterior3.
As mulheres na esquerda sempre seguiam uma linha bem definida. [...] elas em
geral se dividiam da seguinte maneira: quanto mais barra-pesada fosse uma
organização, mais feias eram as mulheres e menos havia; e quanto mais de
proselitismo fossem, mais mulheres havia e mais jeitosinhas eram. [...] Naquela
época não se falava de feminismo, e as mulheres da esquerda, que estavam
rompendo com montões de dogmas e tabus ao mesmo tempo, precisavam de um
braço peludo paras as horas de desamparo (GUARANY, 1984 apud RIDENTI,
1990).
Outro exemplo é dado por Zuenir Ventura, mas pode ser facilmente encontrado em
diversos trabalhos e estudos que tragam referências à militância feminina durante o regime
militar no Brasil: a personagem é Iara Iavelberg. “Iara não tinha muito a ver com suas
colegas de militância. Além de bonita, loura, alta, olhos claros e um sorriso aberto, era muito
vaidosa. Cuidava do corpo talvez com o mesmo zelo com que cuidava do fuzil” (VENTURA,
2008, p. 40). Iara, que integrou a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária, a
Polop, é apresentada, assim, como uma exceção diante das demais mulheres militantes,
aquela que fugia à regra: “Bonita, charmosa, atrevida, prestes a completar 25 anos, Iara
3
Sobre este assunto, para mais detalhes ver HALL, 2000, p. 103-133.
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Iavelberg era uma lenda na esquerda. [...] Estava desquitada de um casamento precoce
quando entrou na Faculdade de Psicologia da USP” (AMARAL, 2011, p. 59).
4
Disponível em SOIHET, 2008, p. 13.
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grupos e, inclusive, das ações armadas. Por isso Lúcia Murat completa: “salto alto não
combina com assalto”.
Pensar em atributos femininos, por sua vez, nos remete a outro ponto importante do
nosso debate: a maternidade. E, para começar, citemos o documentário “Que bom te ver
viva” (1989), protagonizado por Irene Ravache e com roteiro e direção de Lúcia Murat - a
mesma citada anteriormente -, onde o assunto é recorrente nos depoimentos das
entrevistadas. O que vemos é que se o fato de ser mulher em diversos momentos foi o que
mais trouxe adversidades para a vida das militantes, foi ao mesmo tempo o que as fez
sobreviver e continuar lutando em várias ocasiões.
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que a vida tá aí”. No caso de Criméia de Almeida, embora a experiência não tenha se
mostrado fácil, foi também uma forma de sobrevivência: “a gravidez marcou muito [...]. Foi
uma situação difícil ter um filho na prisão, mas foi uma sensação gostosa. [...] Uma segunda
gravidez jamais”.
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Leônidas Pires Gonçalves, militar oriundo do Rio Grande do Sul, mas que também atuou em
São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais, diz que “as mulheres são de uma violência incrível.
E outra coisa: elas não perdoam. Os nossos agentes sempre tinham muito cuidado para
tratar com as mulheres. Mais cuidado do que com os homens. Eram brabas, sabe?” (ibidem,
p. 245).
Assim, as militantes eram caracterizadas pela bravura, pela coragem, mas em uma
referência ao perigo que representavam. Na verdade, não havia valorização deste destemor
das militantes: ao invés disso o que havia era uma oposição a um ideal de fragilidade e
delicadeza femininas, de tal forma que as características da personalidade se associam
diretamente aos já comentados padrões físicos - tamanha bravura correspondia à falta de
feminilidade, à masculinização.
Acerca desta visão castrense sobre as militantes vale comentar brevemente sobre
como atuou a ditadura contra as mulheres que integraram os grupos de resistência, pois os
depoimentos e entrevistas de ex-militantes evidenciam que a repressão utilizou-se o tempo
todo das diferenças biológicas entre homens e mulheres para praticar os atos mais
repugnantes e desumanos como forma de “punição” às militantes. Aqui vem à tona,
novamente, a ideia de dupla transgressão cometida pelas mulheres que faziam parte dos
grupos de resistência. De acordo com Zuenir Ventura, nas fotos que mostram a atuação da
polícia militar em junho de 1968, quando cerca de 400 estudantes foram presos no Rio de
Janeiro depois de uma assembleia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, é
possível ver “soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as
pernas das moças” e “fotografias de moças de quatro” (VENTURA, 2008, p. 126, 133).
Naquela ocasião, os estudantes haviam sido levados para o campo do Botafogo. Esse
exemplo nos traduz em imagens as palavras de Rosalinda Santa Cruz, no seu depoimento
ao documentário “Que bom te ver viva”: “o nosso corpo era um objeto de tortura”.
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palavras sussurradas em torno dela: ‘a cada momento que a gente pedir pra tirar a roupa
vamos chegar mais e mais perto...’”. Rita também contou que durante os interrogatórios os
militares sempre faziam insinuações que deixavam claro para ela a ameaça de violência
sexual: “Porque é tudo um jogo, né? Você, uma menina..., mulher bonitinha” (ibidem, p.
171).
A militante Sônia contou que “mulher era espancada muito no peito”, (GIANORDOLI-
NASCIMENTO et al., 2012, p. 121). Dilma Rousseff, em trechos de entrevista concedida a
Luiz Maklouf Carvalho e publicados pelo jornal Folha de São Paulo em 2005, falou sobre a
tortura que viveu na prisão e revelou onde os choques eram dados: “Em tudo quanto é
lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, na orelha. Na cabeça é um horror. No
bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, uma coisa que prendia, segurava”
(AMARAL, 2011, p. 73).
Ao final, portanto, da análise de cada um dos padrões identificados por nós com
relação às imagens que circulavam durante a ditadura sobre as mulheres militantes, fica
evidente que não havia referências, por exemplo, à capacidade intelectual delas ou mesmo
ao potencial que tinham para atuar estrategicamente nas organizações. Ou seja, não havia
valorização dos atributos que as militantes possuíam, mas apenas um reforço das noções
que se vinculavam à transgressão, como comentamos no início deste estudo, dos
comportamentos tidos como adequados às mulheres. E a reiteração de todos esses
padrões, os quais circulavam não só entre os militares, mas também entre as próprias
militantes e seus colegas da esquerda, dava a muitas mulheres a ideia de uma atuação
“desviante”, assim como acontecia no caso da luta por mais igualdade em relação aos
homens e do feminismo:
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263 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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No entanto, existe uma lacuna na história deste cineclube, que vai de 1968 a 1979,
justamente e curiosamente no período em que vigorou o Regime Ditatorial no país. Neste
período, o CEC interrompeu suas atividades, ficando este espaço em sua trajetória.
Origens do CEC
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Após uma referência a este clube pelo crítico Jacques do Prado Brandão, na Folha
de Minas, Carlos Armando informa que “a turma o procurou e assim tomou conhecimento de
um outro grupo de rapazes, também aficionados por cinema em Belo Horizonte, que
planejavam criar um clube de cinema” (ARMANDO, 2004: p. 27). O autor indica os
integrantes do clube, que era composto por “José Morais, Sílvio Vasconcelos, Oscar
Mendes, Edmar Fonseca, Cephas Siqueira e Wilson Figueiredo. Os dois grupos se
aproximaram e assim no dia 21 de novembro de 1947 foi criado o ‘Clube de Cinema de
Minas Gerais’” (ARMANDO, 2004: p. 27-8).
Foram então promovidas várias sessões pelo Clube de Cinema de Minas Gerais em
cinemas da cidade, como o Cine Guarani e o Cine Paissandu. Além disso, segundo Carlos
Armando, o Clube começa a ganhar espaço, e, no dia 31 de outubro de 1948, nas páginas
do jornal Estado de Minas, o Clube de Cinema de Minas Gerais publica então uma
“Declaração de Princípios”, que reproduzimos:
A partir de então, o CCMG, de acordo com Armando, ganha espaço nos jornais da
cidade (Folha de Minas, O Diário e o Estado de Minas), com direito a colunas para
publicação de críticas. No entanto, devido ao alto preço dos aluguéis dos filmes e os
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impostos das empresas distribuidoras, o autor ressalta que o CCMG tem suas atividades
paralisadas por mais de um ano, retomando em 1949, com sessões no auditório da sede da
Cultura Inglesa (ARMANDO, 2004: p. 30).
Nesta mesma época, o CCMG, ainda de acordo com Carlos Armando, ganha um
concorrente em Belo Horizonte, “trata-se do Cineclube da Cultura Francesa, que lançou em
sua programação uma série de filmes franceses inéditos na cidade, que passaram a atrair a
atenção dos próprios integrantes do CCMG” (ARMANDO, 2004: p. 31).
No que se refere ao fim do CCMG, este não tem explicações muito claras, como
afirma Mário Alves Coutinho (COUTINHO & GOMES, 2001: p. 24). As mais plausíveis são
as dificuldades financeiras e o êxodo de intelectuais mineiros para Rio de Janeiro e São
Paulo (ARMANDO, 2004: p. 25). Elysabeth Senra de Oliveira também compartilha desta
opinião (OLIVEIRA, 2003).
Fernando Pires da Fonseca nos informa também que Cyro Siqueira, recém chegado
do interior e estudante de medicina, começa então a frequentar este grupo, estando aí o
início da mobilização que culminaria no cineclube. Os irmãos Santos Pereira foram estudar
cinema em Paris, no conceituado IDHEC (Institute Des Hautes Études
Cinematographiques), e a vaga por eles deixada na crítica do jornal Estado de Minas foi
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então ocupada por Cyro Siqueira, com apenas 19 anos (COUTINHO & GOMES, 2001: p.
24).
Embora o seu estatuto o definisse como uma instituição sem filiação político-
partidária ou religiosa – o que implica uma posição neutra diante desses assuntos –,
Elysabeth Senra de Oliveira considera que “o CEC foi palco de memoráveis polêmicas e
discussões que iriam contrapor católicos e ateus, formalistas e esteticistas, marxistas e
liberais” (OLIVEIRA, 2003: p. 42-50).
O CEC, no decorrer de sua existência, segundo Elysabeth Senra, foi mantido pela
taxa de manutenção de seus aproximadamente 2.000 sócios, que possuíam uma carteirinha
e pagavam a cada mês uma mensalidade (OLIVEIRA, 2003: p. 46). Eram esses mesmos
sócios que, de acordo com o estudo da autora, elegiam a diretoria de 2 em 2 anos
(OLIVEIRA, 2003: p. 46). A respeito da hierarquia no CEC, Senra nos informa que esta “era
composta de um presidente (o primeiro foi Jacques do Prado Brandão), um vice-presidente
(o primeiro foi Cyro Siqueira), um primeiro secretário e um tesoureiro. Nas eleições,
geralmente, havia duas chapas, oposição e situação” (OLIVEIRA, 2003: p. 46).
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Nos dizeres de Carlos Armando, o CEC sempre teve como objetivo a difusão da
cultura cinematográfica propriamente dita, fazendo com que o espectador nunca ficasse
passivo diante do filme ao qual estava assistindo. Este autor aponta inclusive a meta do
CEC: “formar cinéfilos lúcidos e conscientes, gerar espectadores ativos, criar um público
instruído. O CEC foi um cineclube na verdadeira acepção da palavra, uma escola onde se
aprendia a ver um filme” (ARMANDO, 2004: p. 21).
Este autor nos apresenta um terreno fértil para que possamos compreender qual era
a proposta de educação cinematográfica difundida pelo CEC, uma vez que, nos seus
dizeres:
O CEC manteve suas atividades até 1968, voltando a funcionar em 1979, sendo este
período de inatividade intrinsecamente associado à situação política do país, quando
atividades culturais não eram aceitas nem toleradas pelo novo regime militar que subiu ao
poder em 1º de abril de 1964.
1
Para maiores informações sobre as atividades do CEC desde sua fundação até seu fechamento em
1968, consultar: CHAVES, 2010.
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2
NORONHA, Ronaldo. Entrevista concedida no dia 10/08/2010.
3
NORONHA, Ronaldo. Entrevista concedida no dia 14/03/2014.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Outro ex-integrante do CEC que nos concedeu gentilmente seu depoimento foi
Geraldo Veloso:
4
VELOSO, Geraldo. Entrevista concedida em 17/03/2014.
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Salientamos que, durante este período, vários associados do CEC foram presos e
cassados (RIBEIRO, 1997: p. 46). Neste trabalho, não é o nosso intuito discutir
especificamente as situações em que estes cineclubistas se encontraram diante do Regime
Militar estabelecido no Brasil pós 1964, talvez isto seja analisado em uma próxima pesquisa.
No entanto, dos cineclubistas e críticos colaboradores do CEC, citados neste texto ou não,
todos estes que seguem, possuem referências nos arquivos do DOPS de Minas Gerais, que
podem ser acessadas no Arquivo Público Mineiro. Foi um período onde a militância política
e a cinefilia se complementavam para muitos destes cineclubistas. São eles:
- Cyro Siqueira (pasta 0011 (2) movimento estudantil – documento 25) e (pasta 0106 –
comunismo – documento 7).
- Flávio Pinto Vieira (pasta 0120, congressos, conferências e atos públicos – documento
127).
- Fritz Teixeira de Salles (pasta 106, comunismo - documento 42), (pasta 0068, movimento
estudantil e operário – documento 112) e (pasta 0067, investigações e suspeitos –
documento 231).
- Geraldo Veloso (pasta 011 (2), movimento estudantil, documento 123) e (pasta 0088,
Jornal Novos Rumos e Partido Comunista – documento 8).
- Guy de Almeida (pasta 0120, congressos, conferências e atos públicos – documento 127)
e (pasta 0088, Jornal Novos Rumos e Partido Comunista – documento 8).
- Haroldo Pereira (pasta 5291, relações de presos políticos - documento 169) e (pasta 0106,
comunismo – documento 7).
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- Silvio Vasconcelos – (pasta 5291 / relação de presos políticos – documento 44, 46 e 49).
Referências
FERRO, Marc. Cinema e História. Trad. de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
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Introdução
*
Este texto é o resultado dos primeiros levantamentos realizados para a minha dissertação. Assim,
aqui apresentamos resultados parciais, pois se trata de uma pesquisa em andamento.
1
Sobre as características da ditadura brasileira ver: BAUER, Caroline Silveira. Avenida João Pessoa,
2050 – 3° andar: Terrorismo de Estado e ação política do Departamento de Ordem Política e Social
do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
2
Sobre as semelhanças entre as ditaduras do Cone Sul e a revisão conceitual desses regimes ver:
PÁDROS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado e Segurança Nacional, Uruguai
(1968-1985): do Pachecato à Ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História). Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
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3
Estes jornais estão digitalizados e disponíveis no sítio da Fundação da Biblioteca Nacional, setor
Hemeroteca Digital Brasileira, no seguinte link: http://hemerotecadigital.bn.br/.
4
Estes jornais estão disponíveis no acervo de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da
Costa, localizado em Porto Alegre.
5
É importante destacar que os jornais analisados até o momento não trataram exclusivamente da
campanha de Leonel Brizola com suas estratégias políticas ou suas propostas eleitorais, pois,
obviamente não era este o objetivo das publicações. Não cabia a eles fazer propaganda política dos
candidatos. O que foi possível encontrar foram notícias sobre os atos de Brizola que de forma indireta
estavam relacionados à sua campanha eleitoral. A falta de divulgação da campanha nos jornais
selecionados, com panfletos apresentando propostas, por exemplo, foi uma opção do governador
gaúcho que priorizou o rádio como veículo propulsor de suas ideias.
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6
Os jornais Correio do Povo, Jornal do Brasil e Correio da Manhã, se posicionavam contrários às
ideias de Leonel Brizola, enquanto a Última Hora apoiava o trabalhista.
7
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro, CPDOC,
1982. p. 112.
8
Idem, p. 111.
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outra, e depois as duas em conjunto, a partir de fins da década de 50” (D’ARAÚJO, 1996,
p.62). Em síntese, o Partido Trabalhista Brasileiro da Guanabara na eleição de 1962 era
marcado pela luta nacionalista e antilacerdista.
Diante do cenário eleitoral os dirigentes do PTB guanabarino perceberam a
necessidade de convidar alguém de fora do estado com forte cacife político para tentar
quebrar a supremacia udenista. A ideia era trazer algum governador petebista em final de
mandato, situação em que se enquadrava Leonel Brizola. Inicialmente, o primeiro nome
pensando tinha sido o governador do Ceará, José Parsifal Barroso; entretanto, o partido
considerou que ele tinha assumido um comportamento pouco coerente com as diretrizes do
PTB, com uma postura conservadora após chegar ao governo, fato que provocou seu
descarte.
Talarico, então, propôs o nome de Brizola e veio até o Rio Grande do Sul convidar o
governador gaúcho, mas este, como citado acima, estava comprometido com o PTB
paranaense. O secretário insistiu e apresentou uma proposta de apoio à campanha de
Leonel Brizola onde ele próprio abriria mão da sua candidatura a deputado federal e
oferecia, também, o apoio de dez a quinze deputados estaduais petebistas em torno do
nome do político rio-grandense e apoio de alguns candidatos de outros partidos, como o
Partido Socialista Brasileiro (PSB) que viria coligar-se ao PTB nas eleições. Ao final, Brizola
contou com o apoio de cerca de 25 deputados estaduais, realmente uma campanha bem
elaborada, ou nas palavras de Talarico: uma “candidatura praticamente concretizada”9.
No que se refere à projeção nacional de Leonel Brizola, embora se argumente que
ele teria decidido concorrer pela Guanabara para ganhar maior destaque nacional e
futuramente concorrer à eleição presidencial, José Talarico defende outra hipótese: “ele
(Leonel Brizola) já estava projetado, desde a hora em que assumiu a liderança do
10
movimento pela posse do Jango, ele tinha se tornado a grande figura do PTB” . Marly
Motta (2004), quando analisa o sucesso da votação de Brizola também afirmou que o
candidato vindo de fora do estado já possuía expressão no quadro político nacional.
Todavia, não deve ser menosprezado o fato de a Guanabara ser, em grande parte,
ressonância da política brasileira. Por mais que tenha perdido destaque com a mudança da
capital federal, suas decisões políticas ainda eram repercutidas em todo o país. Brizola estar
situado naquela região o fortalecia politicamente.
Sobre a motivação de Leonel Brizola concorrer pela Guanabara, Motta defende que
isso se devia ao intuito pessoal de medir forças com Carlos Lacerda - considerado o maior
9
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro, CPDOC,
1982. p. 113.
10
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro,
CPDOC, 1982. p. 115.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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A Campanha Eleitoral
O pleito eleitoral na Guanabara em 1962 ficou centrado na disputa entre o PTB, que
apresentou uma estratégia mais audaciosa com a incorporação de Leonel Brizola, e a UDN,
encabeçada por Carlos Lacerda que pretendia concorrer à presidência em 1965 e que por
esse motivo partiu para uma manobra política de diálogo, contrariando sua postura de pouca
afeição a negociações. Novamente o cenário político carioca se desenhava para os
tradicionais componentes: nacionalização, polarização e a personalização (MOTTA, 2001, p.
190). Para Versiani essa disputa se desenrolava pela rivalidade entre as correntes políticas
comprometidas com o Governo Jango e as de oposição. As correntes estavam dividas entre
os identificados com as forças de apoio ao trabalhismo e as Reformas de Base, que tinham
como símbolo Brizola e os correligionários das forças liberais e de oposição aos herdeiros
políticos de Getúlio Vargas, que encontravam no governador da Guanabara, Carlos
Lacerda, seu representante (VERSIANI, 2007, p. 70).
Ao longo do ano de 1962 o nome de Leonel de Moura Brizola foi repetidamente
comentado nas páginas dos jornais cariocas Jornal do Brasil e Correio da Manhã: seja por
sua função à frente do governo rio-grandense, quando nesse ano desapropriou terras para a
uma incipiente reforma agrária; por suas atitudes de relevo nacional, como na influência da
escolha de Francisco Brochado da Rocha como primeiro ministro11; pela pressão que
exerceu para realização do plebiscito para a escolha do novo regime governamental12 e por
fim, pela sua campanha a deputado federal pela Guanabara.
O grau de parentesco entre o governador gaúcho e o presidente da República foi
várias vezes motivos de críticas por parte dos opositores que, em algumas situações,
tentaram impugnar a candidatura de Brizola. É desse período a famosa frase “cunhado não
é parente, Brizola presidente” 13.
11
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1° de julho de 1962, p. 3.
12
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de julho de 1962, p. 3.
13
O advogado Vitor do Espírito Santo entrou com um requerimento no Tribunal Regional Eleitoral
impugnando a candidatura de Leonel Brizola, segundo o Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de julho
de 1962, p. 3. O mesmo advogado, em 25 de setembro, entrou novamente com pedido no Tribunal
Superior Eleitoral, mesmo o TRE já tendo registrado a candidatura. O também advogado Luiz Mendes
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Neste mesmo pronunciamento Brizola fez críticas a Carlos Lacerda alegando que o
governador da Guanabara pregava abertamente a guerra civil e criticou o embaixador
americano, Lincoln Gordon. Além disso, ele convocou os trabalhadores a fazerem greve
geral caso tivesse golpe15. Cabe aqui destacar que a expressão golpe era frequentemente
utilizada tanto pela mídia quanto pelo próprio Leonel Brizola, com a diferença do viés político
do “golpe”: a imprensa conservadora noticiava a possibilidade de um golpe tanto da direita,
quanto da esquerda; por outro lado, Brizola afirmava o risco de um golpe da direita.
de Morais Neto (candidato a deputado federal pelo PDC) entrou com pedido de impugnação alegando
o parentesco de Brizola com o presidente João Goulart. No pedido ele afirma: “antes de tudo o Sr.
Leonel Brizola, protegido pelo seu cunhado, presidente João Goulart, é uma ameaça ao regime e
inimigo declarado das instituições”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 28 de agosto de 1962, p. 14.
Esses dois últimos pedidos de impugnação também foram divulgados em Porto Alegre: “Impugnada a
candidatura Brizola na Guanabara”, Correio do Povo. Porto Alegre, 28 de agosto de 1962, p. 7. Outro
pedido veio do ex-interventor do Rio de Janeiro, na época de Getúlio Vargas, o Sr. Asdrubal Geyer
quem deu entrada a um pedido de impugnação à candidatura de Leonel Brizola. Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 29 de agosto de 1962, p. 3. Também divulgado no Correio do Povo, Porto Alegre, 30 de
agosto de 1962, p. 14. Em setembro ocorreram novos pedidos de impugnação com a justificativa que
Leonel Brizola era comunista. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1962, p. 4. Esses
casos também foram noticiados no Correio da Manhã.
14
Brizola queria a volta do presidencialismo, pois a creditava que a solução parlamentarista adotada
em 1961 tratava-se de um “golpe branco”.
15
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 e 03 de setembro de 1962, p. 3.
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que era a realização do plebiscito para o dia 07 de outubro para solucionar a grave crise
institucional que o país enfrentava desde o golpe branco de 196116.
O candidato rio-grandense correspondeu às expectativas do seu partido no que
tangia sobre a dualidade de força com Carlos Lacerda. O chefe do executivo gaúcho por
várias vezes acusou Lacerda de interferir na campanha da Guanabara, apoiando seus
correligionários, com recursos do estado e pronunciamentos, subindo em palanques, por
exemplo. Brizola apresentou representação contra Lacerda no Tribunal Regional Eleitoral
(TRE) sob a alegação de que a conduta do governador guanabarino interferia na campanha,
viciando o processo eleitoral17.
Ao longo de sua campanha, Brizola fez denúncias de que poderes econômicos
estariam influenciando a campanha dos candidatos. A partir dessa denúncia o Ministro da
Justiça anunciou que iria divulgar os valores investidos nas campanhas eleitorais18. Na
contramão da informação, o deputado estadual da Guanabara, Amaral Neto, denunciou que
Leonel Brizola roubou dinheiro do Rio Grande do Sul para financiar sua campanha19.
Entretanto, o governador gaúcho continuou com as acusações em seu pronunciamento pela
rádio, ocorrido no dia 02 de setembro, também divulgado pelo jornal Correio da Manhã. Na
mesma publicação, a coluna Mundo Político, crítica Brizola por esquecer-se de comentar
sobre os gastos da campanha do PTB e da sua própria campanha que, segundo o
periódico, é bem cara20.
Essas denúncias de influência econômica na campanha não eram infundadas. Em
trabalho clássico sobre o golpe de 1964, René Dreifuss (1981) constatou o investimento de
recursos nas campanhas de políticos identificados com a ideologia liberal por parte do
complexo IPÊS/IBAD. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) era uma
organização que reunia a elite empresarial nacional e também internacional, criada em
1959. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), criado em 1962, também reunia
empresários, inicialmente do Rio de Janeiro e São Paulo, mas logo em seguida agregou as
classes produtoras de outros estados. O autor referido informou que foi justamente durante
a campanha para as eleições de 1962 que o complexo influenciou mais incisivamente,
especialmente com recursos financeiros, sendo que a maior parte deles advinha de
empresários e do governo norte americano.
16
Última Hora. Porto Alegre, 11 de setembro, p.4.
17
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1962, p. 4 e Correio do Povo. Porto Alegre, 19
de setembro de 1962, p. 16.
18
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1962, p. 6.
19
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1962, p. 7.
20
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1962, p. 6.
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Verificou-se que o método de comunicação mais utilizado pelo petebista foi o rádio,
especialmente a Mayrink Veiga21, de onde se pronunciava com muita frequência. Esses
áudios não existem no acervo da rádio que está localizado no Arquivo Nacional. Seus
pronunciamentos nessa rádio eram constantes e constituía uma prática recorrente em sua
trajetória política desde seu governo no Rio Grande do Sul e que permaneceu durante sua
campanha para a Guanabara e durante seu mandato como parlamentar. O uso do rádio lhe
possibilitava um alcance maior entre as classes populares, que era a maioria do seu
eleitorado22, pois nem todos sabiam ler. Além do fato de Brizola utilizar melhor sua
capacidade de oratória e seu carisma que ficavam mais evidentes nos pronunciamentos
orais.
Segundo Lopes, outra estratégia de campanha de Leonel Brizola foram os comícios,
embora em menor quantidade. Alguns deles ocorreram antes mesmo da oficialização da sua
candidatura. Os comícios de maior destaque foram os realizados dias 07 de setembro no
Largo do Machado, zona sul da Guanabara e o do dia 05 de outubro, em Bangu, zona
oeste. Para o autor
No dia das eleições, o Jornal do Brasil em uma análise sobre as eleições afirma que a
disputa na Guanabara será entre PTB e UDN. Afirma, também, que Leonel Brizola seria o
mais votado no seu partido23. Durante reportagem sobre os novos governadores o jornal
considera que o governador gaúcho “deixa o governo com amplo prestígio no plano
21
Fundada no Rio de Janeiro em 1926 e fechada em 1965 pela ditadura civil-militar, justamente por
ter participado da Cadeia da Legalidade em 1961. Foi líder de audiência na década de 1930 e reduto
de grandes nomes do rádio, como Carmem Miranda e Noel Rosa. A rua onde a rádio foi instalada
recebeu o nome de Mayrink Veiga. Foi ao lado da Rádio Nacional uma das duas mais importantes
emissoras do período que ficaria conhecido como a "Era do Rádio".
22
Uma evidência dessa afirmação são os dados de uma pesquisa realizada pelo Jornal do Brasil para
intenção de votos à presidência da República no pleito eleitoral de 1965. A publicação em questão
apresentou, hipoteticamente, os candidatos, eram eles: Leonel Brizola, Juscelino Kubistchek, Carlos
Lacerda, Jânio Quadros e Carvalho Pinto. Nesta pesquisa, Leonel Brizola obteve os melhores
resultados entre os pobres: “embora com ínfima penetração na classe rica (4%), o governador do Rio
Grande do Sul elimina essa desvantagem com os votos da classe pobre, na qual obtém sozinho
quase tanto (37%) quanto os Srs. Juscelino Kubistchek (23%) e Carlos Lacerda (16%) reunidos”.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 e 16 de julho de 1962, p. 59.
23
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1962, p. 4.
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A vitória
Num panorama geral acerca da situação do PTB na Guanabara, pode-se afirmar que
foi justamente com a eleição e a vinda de Leonel Brizola para o estado que o partido
começou a adquirir certa autonomia. O partido saiu forte das eleições: teve grande vitória
para a Câmara dos Deputados com a votação recorde de Brizola (269.383 votos ou 26,4%) -
o deputado mais votado do país – e a eleição de poucas cadeiras para a UDN.
24
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1962, p. 5.
25
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1962, p. 1.
26
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1962, p. 4.
27
Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 11 de outubro 1962, p. 14.
28
TALARICO, José Gomes. José Gomes Talarico I (depoimento, 1978/1979). Rio de Janeiro,
CPDOC, 1982. p. 114.
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O quadro eleitoral na Câmara dos Deputados ficou assim: dez cadeiras do PTB, seis da
UDN, duas do PSD, uma do PSB, uma do Partido Democrata Cristão (PDC) e uma do
Partido Social Trabalhista (PST), (VERSIANI, 2007, p. 76).
Sobre a configuração da bancada federal guanabarina, Motta analisa:
No Senado, Juracy Magalhães (UDN) ficou apenas com o terceiro lugar, perdendo para
Aurélio Viana, da coligação Aliança Socialista Trabalhista, sendo o mais votado, e para
Gilberto Marinho (PSD), que foi reeleito. No âmbito estadual o vice-governador escolhido foi
o petebista Eloy Dutra (47%), que derrotou o pessedista Lopo Coelho (39%), o candidato de
Lacerda; o terceiro candidato Mário Martins (PL) fez 4% dos votos (MOTTA, 2004, p. 160).
No legislativo estadual, onde o partido de Brizola apresentava maus resultados, também
obteve vitória: José Talarico candidatou-se a deputado estadual para fortalecer a legenda e
com o apoio do PSB, que conquistou 3 cadeiras, conseguiram maioria na Assembleia
Legislativa, dificultando a administração lacerdista. Embora a UDN tivesse elegido 14
deputados contra 13 do PTB, a oposição a Lacerda estava mais organizada. O legislativo da
Guanabara em 1962 ficou marcado pela fragmentação partidária, pois abrigava 11 partidos.
Conclusões Parciais
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campanha eleitoral se mostrou bem estrutura, com uma base forte de apoio fruto do
sucesso da aliança com o Partido Socialista Brasileiro.
Como se utilizou exclusivamente de jornais como fontes, ainda que tivesse havido
uma busca com o intuito de diversificá-las e contrapô-las, a análise dos jornais foi pertinente
para compreender o papel que a imprensa teve no período imediatamente anterior ao golpe
de 1964. Ficou evidente que os jornais utilizados na pesquisa, a exceção da Última Hora,
não eram apoiadores de Brizola e, dessa forma, suas publicações eram tendenciosas,
sempre privilegiando as criticas ao candidato e ressaltando seu discurso radical que
amedrontava as classes conservadores. Entretanto, perceber essa falta de imparcialidade
nos jornais estudados não pode nos levar a afirmar que eles “manipulavam as massas” sem
essas questionarem o que estavam lendo, claro que a imprensa exerce influencia nas
decisões dos leitores, mas não é o único fator determinante na escolha de um candidato.
Um exemplo claro foi o fato de mesmo a imprensa guanabarina analisada tecer duras
críticas a Leonel Brizola sua votação foi a maior da época, com a ressalva de que o público
leitor do Jornal do Brasil e Correio da Manhã não serem os principais eleitores de Brizola.
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Um dos alvos de repressão pelo CSN foi o movimento estudantil. O Conselho atuou
decisivamente na edição do Decreto-Lei 477 em fevereiro de 1969, tema das próximas
páginas.1
Ainda no governo de Castelo foram editadas duas normas legais sobre os órgãos de
representação estudantil: a Lei Suplicy (N. 4.464, de 9 de novembro de 1964) e o Decreto-
Lei 228, de 28 de fevereiro de 1967, que levaram ao fechamento formal da UNE, UME,
UBES, AMES e assemelhadas. Não encontrei evidências de participação do CSN na
elaboração dessa legislação e, portanto, não a abordarei neste trabalho. Vale registrar,
apenas, a insatisfação de uma Comissão formada para tratar da política estudantil durante a
presidência de Costa e Silva, com a “flagrante desobediência às exigências contidas nesses
diplomas legais” (BR_AN_BSB_N8_0_PSN_EST_326, p. 597). Ou seja, as entidades
estudantis extintas insistiam em funcionar, mesmo na clandestinidade.
1
O estudo da participação do CSN na preparação do Decreto-lei 477 me foi sugerido pelo professor
Rodrigo Motta, orientador de minha pesquisa de doutorado em andamento. Ele trata do assunto em
Motta (2014).
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Costa e Silva. A preocupação com a “agitação estudantil” como uma ameaça ao regime
aparece constantemente em documentos da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança
Nacional desde abril de 1967, um mês após a posse do novo presidente. Um ponto
fundamental desta parte da apresentação é que a SG/CSN, mais do que o Ministério da
Educação e Cultura, teria sido o organismo central do governo no acompanhamento do
tema estudantil e nas propostas para lidar com ele desde então. Afinal, naquele momento
tratava-se progressivamente do estudante como uma ameaça à segurança nacional, não
apenas como um objeto de políticas públicas.
2
Criado por Getúlio Vargas em 1940.
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Sobre o movimento estudantil, os membros da Comissão concluíam que a Lei Suplicy e sua
sucedânea (ambas do governo Castelo Branco), que reorganizavam os órgãos de
representação dos estudantes, não haviam sido obedecidas em várias unidades do ensino
superior e sugeria (i) formar uma liderança estudantil democrática (através de cursos) e (ii) à
base dessa liderança, atuar decisivamente nas disputas eleitorais a fim de conquistar os
diretórios de representatividade da classe.
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mostrar, prolongou-se por quase dois anos, desde a primeira manifestação mais vigorosa da
SG/CSN sobre o movimento estudantil até a edição do “477”.
Referências
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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Dito isso, passemos aos romances. Em Dois irmãos, Nael, filho da índia Domingas,
empregada de Zana e Halim, busca a identidade paterna, um dos irmãos, Yaqub, o mais
velho, e Omar, o Caçula. À família soma-se Rânia, a irmã mais nova. Para escrever a sua
história, nosso narrador utilizará das histórias de Halim, Domingas, dos escritos do professor
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Laval e de sua própria vivência, perpassando assim boa parte de história do Brasil no século
XX, tendo como foco principal as disputas dos irmãos, inimigos desde a infância. Os dois
irmãos, inimigos e díspares, representam dois modos de vida: Yaqub, engenheiro, militar da
reserva, vai embora para São Paulo nos anos 50, vivendo uma era de progressos; já Omar
opta pela boemia manauara, e pelos mimos da mãe e da irmã. De um lado, a São Paulo
progressista; de outro, a Manaus atrasada. Desde o princípio da narrativa Nael é simpático
ao irmão mais velho, sendo a recíproca verdadeira. Já Omar é mal visto pelo narrador pelos
comportamentos boêmios e despreocupados, mas também pela forma como é tratado e
trata as mulheres das casa, mantendo uma relação de tensão com o Caçula, enquanto com
Yaqub o que se percebe é uma relação afetiva. Mas um acontecimento irá desequilibrar a
balança dos sentimentos de Nael em relação aos gêmeos: a morte do professor de francês
Antenor Laval pelos militares em abril de 1964:
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processo de mudanças: ao perceber a proximidade de Omar com o Mestre (até então não
bem esclarecida), perdoa o Caçula, mesmo que por um instante:
Por uma vez, só, não hostilizei o Caçula, não pude odiá-lo naquela tarde
chuvosa, nossos rostos iluminados por tochas, nossos ouvidos atentos às
palavras de um morto, nosso olhar na fachada do liceu, na tarja preta que
descia do beiral à soleira da porta. Um liceu enlutado, um mestre
assassinado: assim começou aquele abril para mim, para muitos de nós.
Já Cinzas do Norte, com enredo muito similar a Dois irmãos, será escrito por Lavo
agregando a sua própria vivência a manuscritos de seu tio Ranulfo e aos pertences de
Mundo, incluindo aqui cartas de ambos. Diferentemente de Nael, que narra a sua própria
busca, Lavo narra a vida do amigo Mundo, um artista incompreendido pela família e
insatisfeito com seu tempo: “Medo...” (...) “Só se fala nisso... Toda frase começa com essa
palavra. Tanto medo assim, melhor morrer” (HATOUM, 2005, p.165). A narrativa centra-se
na amizade entre os dois meninos, que inicia em 64, até o presente, no qual Mundo não
está mais vivo: falece no final dos anos 70, de uma doença misteriosa. Ao contar essa
história, concentra-se sobretudo nos 60/70 e na difícil relação entre o amigo e seu pai
autoritário Jano, um admirador dos militares. Soma-se a Mundo como personagem com
verve libertária tio Ran, um representante do que poderíamos chamar da “esquerda festiva”:
sem filiações políticas e um boêmio, mas repleto de ideias libertárias:
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Pelas vozes dos narradores e pelas construções feitas sobre Laval, Mundo e tio Ran
podemos levantar algumas hipóteses sobre a construção do passado feita nos romances e
sobre a visão trazida sobre uma certa intelectualidade. Para isso, centraremos
primeiramente na posição desses narradores. Nael, sem nome até quase o final do
romance, constitui-se, como todo narrador, em um mediador entre os leitores e a
experiência estética, falando em primeira pessoa, mas ao mesmo tempo de um lugar
periférico, já que a mãe é uma agregada da casa e ele um filho não reconhecido. Ao mesmo
tempo, sua narrativa é terceirizada, pois a constrói também com a ajuda de Domingas,
Halim e Laval, em um jogo de memória/esquecimento, vivência e poesias:
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irmãos, o medo que Lavo sentia de Jano, etc., nuances que acabam por se revelar na voz
da primeira pessoa narrativa.
No caso de Nael, a sua posição ainda é mais suspeita e ao mesmo tempo válida pelo
alto envolvimento com a história narrada, a busca paterna. Ao mesmo tempo, funciona como
uma espécie de fusão de narradores: ao recontar as histórias de Halim e Domingas,
podemos encontrar vestígios da narrativa oral, calcada na experiência e na sabedoria. Ao
mesmo tempo, conta a sua vivência e se utiliza dos escritos do professor Laval, transmitido
a nós pela escrita solitária do romance. Já Lavo participa de processo semelhante ao
construir a narração via cartas de tio Ran, a carta de Mundo, a sua vivência e os relatos dos
tios sobre o passado. Podemos perceber, assim, que Milton Hatoum arquiteta um colcha de
retalhos ao trazer para o romance, de fato, muitos narradores: oficialmente Nael e Lavo,
mas que se valem de outros narradores traduzidos por eles via forma romanesca,
permitindo que tenhamos acesso a ângulos diferenciados, principalmente no caso de Cinzas
do Norte, no qual as cartas de tio Ran e Mundo estão inseridas no corpo do texto, sem
mediação direta de Lavo.
1
Ampliando o espectro podemos inserir nessa discussão a posteriori romances da literatura brasileira
contemporânea (entendendo contemporânea como a partir da abertura política) que problematizam a
ditadura brasileira seja como presente ficcional, seja como memória, em maior ou menor grau. Ver:
BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; BRACHER, Beatriz. Não
falei. São Paulo: Editora 34, 2004 (2004). ______. Antonio. São Paulo: Editora 34, 2007; HATOUM,
Milton. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. KUCINSKI, Bernardo. K.
Relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. LEVI, Tatiana Salem. A chave da casa. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2007; LISBOA, Adriana. Azul-corvo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010;
OLIVEIRA NETO, Godofredo de. Amores exilados. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.
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Nenhum dos três intelectuais aparece em cena como militante, mas são condenados
via regime militar e via sociedade opressora provinciana. O primeiro, professor; o segundo,
artista; o terceiro, um leitor e um escritor deflagrador de ideais libertários. Não há mais
problematização de conversão do intelectual à militância, o tempo já passou e a avaliação
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agora é outra: os problemas vividos por esses “desajustados” é trazido à tona com um olhar
entre complacente e admirador de nossos narradores que não se posicionam abertamente
sobre política em nenhum momento. Podemos ler essas estratégias como uma retomada
daquele romantismo revolucionário pela idealização desses intelectuais, injustiçados em seu
tempo e/ou como uma forma de prestar homenagens ao mesmo tempo em que serve como
uma oferta de luto e acerto de contas com um passado marcado pela violência física e
simbólica da repressão.
Soma-se ainda à discussão a análise feita por Schwarz (1999) no texto “Fim de
Século”, que avaliaria o impacto das mudanças socioculturais brasileiras na década de
1990. Segundo ele, a “falência do desenvolvimentismo, o qual havia resolvido a sociedade
de alto a baixo, abre um período específico, essencialmente moderno, cuja dinâmica é a
desagregação” (p.160). Desagregada, engolida pelos grandes da economia, fetichizada no
consumo de mercadorias, chega-se ao final do século com a pertinente pergunta de
Schwarz (1999, p.162):
o que é, o que significa uma cultura nacional que já não articule nenhum
projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar
publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como
um estilo de vida simpático a consumir entre outros?
Considerações finais
Ao tratarmos de uma categoria como memória, temos que perceber que ela é
individual. Segundo Seligmann-Silva (2012, p.64):
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autorizados a falar sobre uma memória do período da ditadura, mas antes sobre várias e
conflitantes memórias.
Se o futuro é uma falácia, via Nael, e não sabemos o que vem aí depois dos
militares, via Lavo, o trabalho intelectual parece uma saída. A escrita sobre Mundo parece
ser um alento na medida em que permite a expurgação de velhos fantasmas e a
transmissão do relato da vivência através da literatura. Consciente de seu papel de escritor
e propagador daquelas trajetórias, esse narrador contemporâneo percebe a cisão a que fora
exposto e faz da escrita uma forma de resolução de impasses. Assim como Nael, que
resolve o seu passado individual levado ao plano coletivo: pela escrita daquelas memórias
dá vida aos narradores orais Halim e Domingas e ao professor morto pelos militares Laval.
Pela via intelectual, a escrita, (re)elabora a memória e o trauma, e, concomitantemente,
presta uma espécie de homenagem àqueles intelectuais derrotados pela ditadura.
Referências
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e histórica da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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_____. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras (Companhia de bolso), 2006
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política: 1964-69. In: O pai de família e outros estudos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
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______. Fim de século. In: Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a
ficção. Revista de Mestrado em Letras UFSM (RS) janeiro/junho/1998. Disponível em
http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r16/1_marcio_silva.pdf Acesso em 18 de fevereiro de
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______. Literatura e Trauma: um novo paradigma. In: O local da diferença: ensaios sobre
memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
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Kelly YSHIDA
Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Catarina, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
kellyshida@gmail.com
Lourenço Diaféria foi cronista da Folha de S. Paulo nos anos da ditadura militar
instaurada com o golpe de 1964. No dia primeiro de setembro de 1977 publicou uma crônica
intitulada Herói. Morto. Nós, em vias do processo de reabertura politica manejada pelo
presidente Ernesto Geisel. Neste texto, enquanto elogiava um sargento capaz de pular num
fosso de ariranhas para salvar uma criança, criticava a figura de herói de Duque de Caxias –
patrono do Exército e, consequentemente, símbolo caro aos militares - enquanto um objeto
estático e sem aparente função social. O texto que é o cerne da disputa é uma crônica
jornalística: ficcional, efêmera e de poucas linhas. Contudo, mesmo parecendo uma
narrativa de improviso, este gênero conta, por vezes, com críticas bem elaboradas de
quadros políticos e sociais. Assim, permite também a compreensão do cotidiano: pautado
por relações entre atores sociais, seus sentimentos, entendimentos do mundo e manejos
com as dificuldades e benefícios do dia-a-dia, em geral, urbano.
1
DIAFÉRIA, Lourenço. Duas ou três palavras de saudade. Folha de São Paulo, 10 de maio de 1975.
Folha Ilustrada, p.29
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banais não significam coisas desimportantes. São apenas coisas que nunca chegam às
manchetes da imprensa e ao horário nobre da televisão”2.
2
DIAFÉRIA, Lourenço. A longa busca da comodidade. 1988, p.12
3
Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 1977, p.01
4
Folha de S. Paulo, 31 de agosto de 1977, p.01
5
DIAFÉRIA, Lourenço. Herói. Morto. Nós. Folha de S. Paulo, 1 de setembro de 1977, Folha
Ilustrada, p. 44
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Cabe atentar que no momento do golpe a Folha havia compactuado com o ato, o que
correspondia a determinados interesses e negociações, especialmente em relação à
manutenção do mercado. Por outro lado, a tentativa de posturas críticas em relação ao
regime era dificultada pela ação da censura política onde, em determinados momentos e
empresas, contava com censores dentro das próprias redações. De acordo com Maria
Aparecida Aquino (1999), a censura política, diferente da censura empresarial, é aquela
“exercida pelo Estado que, para proteger seus interesses, interfere na divulgação de
informações, determinando o que pode ou não ser veiculado.” (p.222). Contudo, na
produção de Mota e Capelato (1981, p.207) afirma-se que não havia censores na Folha , a
relação dos temas proibidos era recebida por telefone, vinda da Polícia Federal. Convivia-
se, assim, com ameaças.
6
Alguns exemplos são: o Movimento Democrático Brasileiro, a Igreja Católica, o Movimento
Estudantil e as Greves no ABC. A Igreja Católica, principalmente através das Comunidades Eclesiais
de Base (CEB), ganhou destaque na luta pelos direitos humanos e o Movimento Estudantil se
rearticulou na retomada de suas mobilizações políticas realizando, em 1977, as primeiras passeatas
em oposição ao regime após 1968. Em 1978, 1979 e 1980, foi a vez de os trabalhadores ocuparem a
cena pública com a volta atuante do sindicalismo, nas greves do ABC paulista e, de certo modo, na
greve dos jornalistas de 1979.
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No dia 15 de setembro, o jornalista foi detido em sua residência na rua Piauí, em São
Paulo, por volta das 17 horas, como noticiou o próprio jornal em que trabalhava7.
Referências sobre o ocorrido com Diaféria estão presentes nos acompanhamentos dos
relatórios do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) mesmo
antes de sua prisão. O caso já havia repercutido também na imprensa e ganhava
notoriedade na medida em que, também devido ao momento político em que a ditadura
passava, a situação do jornalista tornava-se cada vez mais exposta e menos aceita.
Diminuindo, de certa forma, as manobras do governo que tinha cada vez menos respaldo
em um momento de aparente esgotamento das possibilidades de forjar o “otimismo”8.
7
Folha de S. Paulo, 16 setembro de 1977, p.1
8
Otimismo que o historiador Carlos Fico apresenta em seu livro: Reinventando o otimismo: ditadura,
propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997
ISBN: 978-85-62707-55-1
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A mudança na postura da Folha de S. Paulo acaba por ter duas faces: enquanto
agradava um determinado público leitor que percebia, nas vias da redemocratização,
maiores chances e necessidades de questionamentos e uma emergência de
descontentamentos e reclames por novas estruturas políticas, encontrava um embate com
as Forças Armadas e seus órgãos de repressão, que outrora estiveram lado a lado. Dentro
da redação não apenas o cronista foi afetado, as mudanças foram significativas para além
9
Presente no Decreto-Lei nº 898, de 29 de Setembro de 1969.
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10
Nesse momento, foram criadas, por exemplo, as páginas 2 e 3 como espaço para opiniões e
críticas, com artigos de posições políticas contrárias entre si, incluindo textos de oposicionistas, além
de colunas vindas de São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras capitais e frases de
figuras públicas acerca da política.
11
Em sua ficha no Deops/SP, por exemplo, está que em 1975 estava como Repórter Convidado da
Revista Repórter Três, publicação mensal da Editora Três, sob o comando do Diretor de Redação
Paulo Patarra, conhecido criador da Revista Realidade.
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Aparecia, neste momento, não apenas como alguém injustiçado, mas como um
caso demonstrativo do perigo da livre interpretação possível na LSN. Incluindo nisso a
crítica aos aparatos legais elaborados durante o período para subsidiar as ações de
repressão. Tornava-se uma figura a ser utilizada como bandeira em um momento de euforia.
A Pontifícia Universidade Católica (PUC), onde se locava o Centro Acadêmico, foi invadida
no dia 22 do mesmo mês pelos militares, chefiados pelo Secretário de Segurança Erasmo
Dias. No dia seguinte à invasão, a Folha trazia em sua capa “Presos 1.000 na PUC”12, onde
estudantes festejavam a reorganização da União Nacional dos Estudantes. A reitora Nadir
Kfouri se demonstrava contra a ação violenta e o vice-reitor, Edênio Vale, questionava que
em uma instituição onde “vários alunos estavam assistindo aula. Como é que vocês querem
que eu me sinta com a Polícia invadindo assim o campus? Como é que pode?”. Contudo, o
Secretário afirmava que a dissolução da manifestação que ocorria era legal pois “o ato
público está proibido” e todos seriam enquadrados na criticável LSN. Diaféria era uma parte
de um cenário maior de questionamentos e embates.
12
Folha de S. Paulo, 23 de setembro de 1977, p.1
13
Art. 219. Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito
das fôrças armadas ou a confiança que estas merecem do público.
14
Processo de 17 de janeiro de 1978, da Justiça Militar Federal. Presente no acervo do Deops/SP,
número: 50Z-9-42152
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de uso desgasta e deteriora as palavras, e essa palavra é usada para certos indivíduos
que nada têm de heróis, tal como heróis das pistas e herói do futebol’”. Respostas que
pareciam mais uma continuação da ironia que levou a crônica a desencadear todo o
processo.
Além disso, afirmava que sua preferencia pelo Sargento ao Duque era porque
aquele estava mais perto de sua própria emoção e escreveu impulsionado pelo
sentimento daquela tragédia. Diz também ter posto em seu texto sobre o cansaço do
povo em relação a cavalos e espadas, pois “o povo não mais se emociona ou se
sensibiliza tanto com estátuas” e sobre a frase que “o povo urina nos heróis de pedestal”.
Afirma ter pensado sobre a falta de respeito e sensibilização com monumentos e bustos,
até mesmo por falta de formação ou informação sobre os heróis representados. Quanto
a referencia à “revolução de bar”, usa de argumentos que parece não levar a sério,
dizendo que se referia aos que queriam melhorar os problemas no conforto das mesas
de bar e em conversas fiadas. E que, por fim, sua crônica “teve o objetivo de,
ressaltando o feito dêsse soldado, lançar uma ponte de compreensão, afetividade e
ternura entre civis e militares e todos os brasileiros”.
De acordo com o Juiz Nelson da Silva Machado Guimarães não houve delito, pois
teria que ocorrer propalação dos fatos, que o agente saiba que sua fala é inverídica e
que estas inverdades “sejam capazes – objetivamente – de ofender a dignidade ou
abalar o crédito ou a confiança que as forças armadas merecem do público”. Isto não se
concretiza para o mesmo, uma vez que
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Assim, com base no artigo 22115 do Código Penal Militar, estabelece-se que no
caso previsto no artigo 219, se o acusado fosse chamado para dar explicações e estas
fossem satisfatórias, a questão tornar-se-ia encerrada e sem instauração de ação penal.
Por fim questiona para defender sua posição, “como, pois, pretender-se a instauração de
uma ação penal e a inflição de pena privativa de liberdade ao acusado, com base,
exclusivamente, nas pelas que constituem esse inquérito?”. Rejeita a denúncia
confirmando que o fato não constitui “evidentemente, crime de espécie alguma”.
15
Art. 221. Se a ofensa é irrogada de forma imprecisa ou equívoca, quem se julga atingido pode pedir
explicações em juízo. Se o interpelado se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá
satisfatórias, responde pela ofensa.
16
Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 1980, p.6
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Referências
CAPELATO, Maria Helena; MOTA, Carlos Guilherme. História da Folha de S. Paulo (1921-
1981). São Paulo: IMPRES, 1981
FROTA, Sylvio. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,. Carla
(org). Fontes históricas. 2 a ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 111-153
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Os Clubes 4-S de jovens rurais durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil
(1964-1970)
Os Clubes 4-S (Saber, Sentir, Saúde, Servir) constituíam-se de jovens do meio rural
que tinham idade entre 8 e 25 anos de idade e que eram filhos de mutuários da Associação
de Crédito e Assistência Rural – ACAR-MG1. O primeiro clube do Brasil foi fundado em 15
de julho de 1952 no município de Rio Pomba, zona da mata mineira. A partir da experiência
dos clubes de Minas Gerais o movimento quatroessista se espalhou por várias partes do
interior do país. Nos clubes os jovens desenvolviam projetos visando à melhoria da
produção agrícola, pecuária e das condições de vida das suas comunidades. Deviam ter em
torno de 10 a 20 sócios e apresentavam em sua organização básica uma diretoria composta
por presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro. Os meninos desenvolviam projetos
relacionados à introdução de técnicas agrícolas como uso de sementeiras, plantio de milho
híbrido e soja, horticultura, técnicas para a criação e desenvolvimento de aves, cabras, gado
leiteiro e suíno. Já as meninas recebiam instruções referentes à administração e
melhoramento do lar, alimentação, vestuário, higiene e saúde. A partir dos conhecimentos
transmitidos pelos extensionistas, os quatroessistas2 deveriam convencer os adultos que a
modernização das formas de produção, bem como de práticas culturais diversas era o
caminho a ser seguido para o pleno desenvolvimento das relações sociais e econômicas do
meio rural. A década de 1960 foi a da consolidação desse trabalho, bem como do seu
apogeu. Com o Golpe Civil-Militar de 1964, o trabalho com a juventude rural também sofreu
interferências, seja de desconfianças do que realmente se tratava os tais clubes, seja de
apoios explícitos ou não tanto do Governo quanto de políticos e empresários
comprometidos com o regime instaurado. Neste artigo procuramos demonstrar um pouco da
trajetória dos clubes durante os anos iniciais da Ditadura Militar no Brasil, principalmente na
relação entre os objetivos dos clubes para os jovens e os valores morais e cívicos
defendidos pelos promotores do regime político instaurado em 1964.
1
A ACAR-MG foi criada em 06 de dezembro de 1948 por meio de convênio celebrado entre o
Governo de Minas Gerais e American International Association – AIA, entidade ligada aos interesses
do empresário e político norte-americano Nelson Aldrich Rockefeller. A ACAR-MG foi a entidade
responsável por desenvolver o Serviço de Extensão Rural no estado. Buscava-se por meio de suas
ações garantir a melhoria das condições de produção e de vida do meio rural mineiro.
2
Expressão pela qual os integrantes dos clubes eram chamados e que adotaremos também neste
texto.
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3
Seu primeiro presidente foi Antônio Secundino de São José, Diretor Presidente das Sementes
Agroceres S.A./ São Paulo e o vice-presidente foi Francisco de Castro Neves da Confederação
Nacional da Indústria/ Guanabara. Algumas das entidades que colaboravam com o CNC 4-S foram:
Agência norte-americana para o desenvolvimento Internacional USAID/ Brasil; AIA; Banco Agrícola
Mercantil S.A; Banco da Lavoura de Minas Gerais S.A; Banco do Nordeste do Brasil S.A; Companhia
Industrial e Comercial Brasileira de Produtos Alimentares – NESTLÉ; Esso Brasileira de Petróleo
S.A.; Federação das Indústrias do Estado de São Paulo; Ford Brasil S.A; Produtos Alimentícios
Fleischmann Royal Ltda; Seares Roebuck S.A. Comércio e Indústria; Singer do Brasil S.A.; Unior
Carbide do Brasil S.A. Indústria e Comércio; Viação Aérea Riograndense – Varig S.A. dentre outras.
4
Minas Gerais tinha um Comitê Estadual de Clubes 4-S desde 1959.
5
Em 25 de julho de 1972 o Presidente Médici assinou no Palácio do Planalto o Decreto nº70874 que
declarou como utilidade pública o CNC 4-S. Tal fato ocorreu diante de empresários e jovens rurais
que participaram do V Encontro Nacional de Clubes 4-S (EXTENSÃO EM MINAS GERAIS, jul/ Ago/
1972, p.4).
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Antes disso, o CNC 4-S organizou no Rio de Janeiro a Primeira Convenção Nacional
de Clubes 4-S do Brasil entre 12 e 15 de julho de 1965. Teve como coordenadora Terezinha
Mariz6, que exercia o cargo de secretária da Diretoria do CNC 4-S. Contou com a
cooperação da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural - ABCAR, do Programa
Interamericano para a Juventude Rural - PIJR, além de outras entidades. Participaram cerca
de cento e cinquenta pessoas entre sócios de Clubes 4-S, líderes e extensionistas de onze
estados brasileiros, além de representantes de clubes de cinco países americanos: Uruguai
(Movimiento de La Juventud Agrária), Paraguai (Clubes 4-C), Chile (Clubes 4-C), Argentina
(Clubes 4-A) e Estados Unidos, pelos Voluntários da Paz, EFYE´s (International Farm Youth
Exchange) e sócios de Clubes 4-H.
A Convenção teve como objetivo comemorar o Dia Nacional de Clubes
4-S (Dia 15 de julho), oferecer aos participantes oportunidades
educacionais nos aspectos técnico, social e cívico, dar oportunidade de
confraternização entre os sócios e líderes de vários Estados e países.
Ofereceu ainda oportunidades de contato direto dos patrocinadores
com jovens rurais, além da divulgação da ideia e das atividades de
Clubes 4-S. (O TREVO, ago/1965, p.1-5).
O tema central da Convenção foi Saber mais para melhor Servir o Brasil. As sessões
solenes de abertura e encerramento ocorreram no salão do Ministério da Educação e
Cultura e contaram com a presença de várias autoridades, inclusive Ministros de Estado.
Houve hasteamento das bandeiras do Brasil e dos Clubes 4-S, horas recreativas, jantar de
confraternização entre os participantes e patrocinadores. Foi realizada uma excursão cívica
e recreativa pelos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. Encerrando a excursão, os
sócios dos 4-S, representados pela Presidente da Convenção, depositaram uma coroa de
6
Segundo a edição 94 de O Trevo, Terezinha Mariz foi fundamental para que a Comissão Filatélica
do Departamento dos Correios e Telégrafos aprovasse a emissão selo oficial comemorativo ao Dia
Nacional de Clubes 4-S em 1967. Ela era casada com o diplomata Vasco Mariz e ambos, segundo
essa edição iriam passar longa temporada nos Estados Unidos, pois seu marido iria representar o
Governo Brasileiro na Organização dos Estados Americanos – OEA. (O TREVO, abr/1967, p.1 e 2).
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flores no monumento aos brasileiros mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Presentes
em outros momentos da nossa história, incluindo períodos democráticos e ditatoriais, esse
tipo de prática fazia parte de uma tradição que buscava valorizar e propagar o sentimento
cívico e nacionalista.7
Segundo Auckje Mary Werkema, uma das principais extensionistas no trabalho com
a juventude rural, a relação entre funcionários da ACAR-MG e da ABCAR, bem como das
outras filiadas do Sistema de Extensão Rural, foi marcada por tensões com os membros do
governo durante os períodos iniciais da Ditadura Militar no país. Sobre isso ela nos disse em
entrevista:
Quando planejamos a atividade cívica, porque toda Convenção deveria
ter uma atividade cívica, eu sugeri: “Nós vamos fazer uma visita ao
Túmulo do Soldado Desconhecido no Aterro do Flamengo. [riso] Vamos
colocar umas coroas lá no monumento. Vamos convidar as
autoridades, que muitas serão militares, mas esta vai ser a atividade
cívica da Convenção”. Foi uma saída, não foi? Porque ninguém naquela
convenção ia dar medalha para nenhuma daquelas autoridades militares.
Eu falei: “Por cima do meu cadáver, ninguém põe medalha no peito
deles não”. Estavam lá, tanto que a abertura foi lá no Ministério da
Educação e o Ministro da Educação naquela época era o Ney Braga, que
já foi militar e está muito ligado aos militares, então ele não vai receber
medalha não. Só vamos agradecer demais. Vai haver todo tipo de
agradecimento e tudo mais, mas o Trevo de Ouro dos 4-S não vai ficar
no peito desses militares. (WERKEMA, 2012).
7
Um exemplo desse tipo de prática foi destacado por MOTTA (2002), ao tratar do combate ao
comunismo no Brasil, principalmente após a tentativa de levante em 1935. O autor salientou que em
1938 foi encomendado pelo governo e inaugurado em 1940 no cemitério São João Batista no Rio de
Janeiro um memorial aos mortos pelo lado oficial. “Era ao pé do monumento que as autoridades se
reuniam para discursar, prantear os mortos e fazer as regulares profissões de fé anticomunista. (...).
Entre os anos de 1940 e 1970, quando foi mais intenso o empenho anticomunista das autoridades e
dos grandes veículos de comunicação (em comparação com o período posterior), o monumento
certamente era bem conhecido do público instruído”. (MOTTA, 2002, p.116-117).
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8
Sobre esse argumento ver GOMES, 2013. Na dissertação entrevistamos outra extensionista -
Marisa Dulce Pereira - que teve estreita ligação com o trabalho com a juventude quatroessista. As
duas entrevistadas concordaram que houve “suspeitas” dos militares do que se tratava realmente os
Clubes 4-S. Entretanto, depois que foram “esclarecidos” não teria havido interferências que chegaram
a influenciar negativamente o trabalho com os jovens. Mas, se por um lado, os militares
supostamente não interferiram e prejudicaram o trabalho com os Clubes 4-S, conforme defenderam
as entrevistadas, por outro isso não excluiu a presença de membros do Governo em eventos,
cerimônias e outras estratégias para divulgação das atividades da juventude rural. Nossa pesquisa de
Mestrado demonstrou que os 4-S não foram uma “ilha isolada” em meio ao contexto político social
brasileiro do período estudado.
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Neves, destacava o trabalho associativo da juventude rural e afirmava que este visava “dar à
mocidade do campo um sentido novo de coletivismo” (O RURALISTA, 2ª quinzena
jun/1966, p.2). Tendo em vista o contexto político brasileiro podemos dizer que o
“coletivismo” presente na fala do presidente do CNC ia ao encontro da ideia de uma
juventude unida em prol do desenvolvimento da Pátria. O “coletivismo” não teria nenhuma
ligação a movimentos de transformação da estrutura agrária e sim a um sentimento de união
dos jovens rurais formados em uma mentalidade pacífica, ordeira e obediente para o “bem
do País9”.
Os anos de 1967 e 1968 foram, em termos de movimentos juvenis espalhados pelo
mundo, bastante frutíferos, devido às questões estudantis sobre o acesso e democratização
do ensino e aos relacionados às transformações culturais daquele período. Um novo jeito de
ser e agir dos jovens frente às sociedades passava a incomodar cada vez mais o status quo
e nesse cenário essa faixa etária foi considerada potencialmente revolucionária. Cinema,
teatro, moda e principalmente a música apresentavam um outro modelo de jovem do que
até então era observado, principalmente a partir da emergência de uma chamada “cultura
jovem” consubstanciada em produtos destinados a essa faixa etária. HOBSBAWM (1998)
escreveu, inclusive, que esta
tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma
revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer e nas
artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera
respirada por homens e mulheres urbanos. Duas de suas características
são portanto relevantes. Foi ao mesmo tempo informal e antinômica,
sobretudo em questões de conduta pessoal. Todo mundo tinha de “estar
na sua”, com o mínimo de restrição externa, embora na prática a pressão
dos pares e a moda impusessem tanta uniformidade quanto antes,
pelo menos dentro dos grupos de pares e subculturas. (HOBSBAWM,
1998, p.323).
9
A edição 87 de O Trevo (set/1966) também deu ampla cobertura aos eventos realizados no Rio de
Janeiro que congregou jovens e técnicos rurais de vinte países latino-americanos.
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de jovem preconizado por esses setores pode ser aferido a partir da tese de doutorado de
BRAGHINI (2010). Nele a autora demonstrou como os artigos presentes na Revista da
Editora do Brasil S.A. apresentavam um modelo a ser seguido, no qual o jovem estudioso,
trabalhador, ordeiro, seriam responsáveis pelo engrandecimento do país, pois
comprometidos com o futuro da pátria. Naquele período ocorreram movimentos
relacionados aos jovens e, claro, cada um com suas características próprias, incomodavam
os mais velhos, principalmente aqueles que se intitulavam detentores dos “bons costumes”.
Poderíamos incluir, movimentos de conotação artística, como também outros de cunho
político. No caso latino-americano o melhor exemplo foi a Revolução Cubana de 1959.
Tendo como suas principais lideranças, jovens militantes em sua maioria na casa dos 30
anos de idade, serviu de exemplo para movimentos políticos que questionavam a ordem
estabelecida nos diversos cantos do continente. A experiência de Sierra Maestra10 teria
influenciado muitos jovens brasileiros que passaram após 1964 a lutar contra a ditadura
instaurada pelos militares. Para RIDENTI (2000) no imaginário contestador nos anos
sessenta
havia exemplos vivos de povos subdesenvolvidos que se rebelavam
contras as potências mundiais, construindo pela ação as circunstâncias
históricas das quais deveria brotar o homem novo. Especialmente a
vitória da revolução cubana, no quintal dos Estados Unidos, era uma
esperança para os revolucionários na América Latina, inclusive no
Brasil. (RIDENTI, 2000, p.34).
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13
Algumas dessas publicações são os trabalhos de STARLING (1986), FURTADO (1997 e 2004),
TOLEDO (1997), GASPARI (2002, 2003 e 2004), FERREIRA (2003), VENTURA (2008). São estudos
que abordaram o contexto do golpe de 1964 no Brasil do ponto de vista político ou que remeteram às
discussões artísticas e culturais da década de 1960 com destaque ao ano de 1968.
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Referências
1) Fontes
COMITÊ NACIONAL DE CLUBES 4-S. Relatório dos Clubes 4-S à Nação – 1970. Rio de
Janeiro, 1971.
14
Essa mesma informação consta na edição 88 de O Trevo publicado em outubro de 1966.
15
Para aprofundamento em relação a influência da USAID na educação brasileira consultar
ARAPIRACA (1982).
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323 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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O TREVO. Belo Horizonte, Ano IX, nº74, agosto de 1965. O TREVO. Belo Horizonte, Ano X,
nº 88, outubro de 1966. O TREVO. Belo Horizonte, Ano XI, nº94, abril de 1967.
WERKEMA, Auckje Mary. Entrevista concedida a Leonardo Ribeiro Gomes. Belo Horizonte,
17 de outubro de 2012.
2) Bibliografia
AARÃO REIS F., Daniel; MORAES, Pedro de. 1968: a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
CASTAÑEDA, Jorge G. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
FERREIRA, Jorge. O governo João Goulart e o golpe civil militar de 1964. In: FERREIRA,
Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano. O tempo da
experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil militar de 1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v.3.
FURTADO, João Pinto. A música popular brasileira dos anos 60 aos 90: apontamentos para
o estudo das relações entre linguagem e práticas sociais. In: PÓS-HISTÓRIA, Assis – S.P.,
v.5, p.123-143, 1997.
ISBN: 978-85-62707-55-1
324 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GOMES, Leonardo Ribeiro. Progredir sempre: os jovens rurais mineiros nos Clubes 4-S:
Saber, Sentir, Saúde, Servir – 1952-1974. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em
Educação – FAE/UFMG, 2013. (Dissertação de Mestrado).
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, 2ª edição. (Cap. 11: Revolução Cultural, p. 314-336).
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964: Visões críticas do Golpe. Democracia e Reformas
no Populismo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. São Paulo: Editora Planeta do Brasil,
2008. 3ª edição (a).
VENTURA, Zuenir. 1968: o que fizemos de nós. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008
(b).
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Introdução
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Havia também uma ampla inspiração no exemplo da Revolução Cubana (SADER: 1991), o
que acalorava ainda mais os conflitos com o governo. No entanto, alguns professores
também eram vistos como perigosas influências para os estudantes, incluindo aqueles que
não eram ligados à esquerda, mas que eram contra a ditadura e a censura. Desta maneira,
“no seu eixo conservador, a política do regime militar para as Universidades implicou o
combate e a censura às idéias de esquerda e tudo o mais considerado perigoso e
desviante.” (MOTTA: 2008, p. 32) Isso, obviamente, incluía os professores, ainda que de
uma maneira menos intensa se comparada ao movimento estudantil.
1
Para uma análise completa sobre a relação entre o regime militar e as universidades públicas em
todo país Cf. MOTTA: 2014.
ISBN: 978-85-62707-55-1
327 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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- De uma maneira mais reduzida, até o que era reproduzido na mídia em relação às
universidades faz parte do acervo de algumas AESI, o que proporciona uma pequena visão
do posicionamento da imprensa (sob censura em vários casos) sobre o trâmites na
universidade.
A AESI UFMG
ISBN: 978-85-62707-55-1
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lista de comunistas que deveriam ser procurados e presos, feita por integrantes de grupos
conservadores2 - às vezes da própria universidade – passando pela proibição de certos
paraninfos, como ocorreu no caso do impedimento de Carlos Heitor Cony, chamado para
ser paraninfo de uma turma de formandos em jornalismo, justamente por ser considerado
inimigo do regime, até casos mais sérios e de intervenções mais diretas como as que
ocorreram em junho de 1964 na FAFI3 e em julho do mesmo ano na reitoria. Em relação a
FAFI a intervenção durou 5 dias, enquanto a da reitoria, que afastou o reitor Aluísio Pimenta,
durou 48 horas. No mesmo ano vários professores da UMG4 foram presos, como Simon
Schwartzman, Marcos Rubinger, Sylvio de Vasconcellos, Henrique de Lima Vaz, Celson
Diniz, entre outros. Inquéritos foram abertos e comissões de sindicâncias foram requisitadas
aos reitores das universidades em todo o Brasil. Havia muitas vezes um despreparo das
forças repressivas em identificar quem eram as verdadeiras "ameaças", como mostra o
próprio professor e ex-reitor cassado, Aluísio Pimenta:
Apesar da AESI na UFMG somente ter surgido em 1971, o acervo reunido pela
agência contém documentação desde 1964. Muitas das situações iniciais de repressão
citadas anteriormente aparecem nos documentos do acervo. Como já apresentado, a partir
da análise feita na AESI/UFMG foi possível perceber algumas possibilidades de pesquisa
passíveis de serem realizadas em todas as AESI universitárias. Concentrando-se na
AESI/UFMG foi feito um rápido levantamento dos assuntos que poderiam ser abordados e
pesquisados partindo das possibilidades já mencionadas. No entanto, o foco maior estará no
objeto de pesquisa realizada pelo autor, que são os professores da referida universidade.
2
Para saber mais sobre os grupos de esquerda e de direita no contexto do Golpe de 64 em Minas
Gerais cf.: STARLING: 1986.
3
Antiga Faculdade de Filosofia, hoje atual FAFICH, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
4
Só foi acrescentado a palavra “Federal” no nome da Universidade em 1965.
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Figura 2 - Charge do Cartunista Henfil em Jornal Estudantil. Arquivo AESI, Caixa 68.
Figura 3 - Charge do cartunista Henfil em jornal estudantil. Arquivo AESI, Caixa 68.
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Figura 4 -Documentação
interna da UFMG. Arquivo AESI, Caixa 67. O documento mostra o interesse do SNI em saber as atividades
realizadas pelos professores em nome da Segurança Nacional.
A atuação de três reitores, que são evidenciadas nos documentos da AESI, ajuda a
compreender outro ponto de pesquisa destacado, que é a atuação dos professores e de
como foi dada a resposta às demandas do regime. Gerson Boson foi cassado pelo AI-5
justamente por não coibir ações estudantis, diferentemente do que fez algumas vezes o
reitor Osório Cisalpino. Marcelo Coelho, por sua vez, já manteve uma postura mais crítica e
de negociação frente a reitoria. Os documentos da AESI revelam a postura de muitos
professores frente ao Golpe. No conservatório de música da UMG foi proposta uma moção
de aplausos. Pouco tempo depois, o seu diretor seria presidente de uma comissão que
investigaria possíveis subversivos dentro da UMG. Outros professores optaram por não
apoiarem o regime, apesar de a maioria não ter entrado em confronto direto com os
militares. O diretor da FAFI, Pedro Parafita de Bessa, foi cassado pelo AI-5 por defender a
liberdade de expressão dos estudantes, apesar de não possuir nenhum passado ligado a
esquerda. Já Amilcar Martins, professor da Medicina, é apresentado como tendo um
passado de esquerda, tendo participado de comícios do Partido Comunista e da reunião que
implantou o PCB em Minas Gerais, segundo o DOPS.5 No entanto, o motivo de sua
cassação parece ser a proximidade e o bom diálogo que mantém com os estudantes,
principalmente aqueles que ocuparam a Faculdade de Medicina em 1968. Na
5
Pasta 4905, Rolo 073, imagem 202; Pasta 0514, Rolo 023, imagens 2 a 21; e Pasta 0022, Rolo 002,
imagem 115 a 122. Arquivo DOPS. Arquivo Público Mineiro.
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Conclusão
Referências
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do regime militar brasileiro nos campi. As assessorias
de segurança e informações das universidades. Topoi, v. 9, n. 16, jan.-jun. 2008.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
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ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil. Rio de Janeiro, Mauad,
2001.
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Reparação e afeto: a luta pela memória no documentário feito por parentes de presos
políticos no Brasil
Introdução
A memória social sobre a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) é um rastro
tenebroso e ainda entreaberto. O projeto de pesquisa, aqui apresentado em formato de
artigo, pretende discutir como se travaram as batalhas de memória da segunda geração
narra a experiência sobre a ditadura civil-militar, no campo documentário, consolidando
determinados mitos e constituindo inúmeros silêncios. Entre ditos e não ditos prevaleceu o
Estado de Exceção apoiado pelo setor empresarial e sistemáticos auxílios dos Estados
Unidos com a Operação Condor (DREIFUSS, 1964). A sociedade civil teve sua convivência
nem sempre conflituosa com a ditadura e com seus arbítrios.
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Os filmes aqui selecionados vão além do registro historiográfico, eles são evidências
de discursos, reflexões, perspectivas íntimas, subjetividades sobre os presentes-futuros.
Para o documentário ligado ao realismo, seus autores trataram a estética como fato e uma
política da imagem como abordagem sobre a barbárie. Aliás, reiterou-se a reunião das
imagens de arquivo, permitiu-se um retorno do acontecimento passado para evidências de
um debate que o torna presente. No que diz respeito ao estudo da voz off e do comentário
reflete-se também sobre as diferenças entre os gestos de apropriação, de citação ou de
reconfiguração. O que ocasiona uma leitura crítica da literatura referente ao cinema visto
como imenso arquivo audiovisual, o problema anacrônico das imagens, bem como a
sobrevivência das mesmas (DIDI-HUBERMAN, 2013).
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Portanto, considero que os filmes feito por filhos e ou parentes de presos políticos
refletem um mundo de afeto, melancolia e distopia que almejam, através do documentário,
um pertencimento com o ideário de passado. É com essa intenção, por vezes perseverança,
que os filmes inicialmente recolhidos para tal pesquisa foram elencados. Neles estão
capturados fatos, ideias, sentimentos, isto é, o momento onde se manifestaram a
abordagem entre trajetórias geracionais. Tal cinematografia documental foi determinada, por
agora, como percurso de encontro e reconstituições de narrativas ocultadas, seja como
denúncia e/ou seja, como reminiscência das violações até hoje impetradas.
Dentre os filmes levantados pretendo levantar minha análise neste corpus: “15
filhos”, Dir. Maria Oliveira e Marta Nehring (Brasil, 1996); “Projeto 68”, Dir. Júlia Mariano
(Brasil, 2008), “Diário de uma busca”, Dir. Flávia Castro (Brasil-França, 2011), “Vou contar
para os meus filhos” (2010) e “Mesa Vermelha” (2013), Dir. Tuca Siqueira (Brasil);
“Marighella”, Dir. Isa Grinspum Ferraz (Brasil, 2012), “Em busca de Iara” Dir. Flávio
Frederico (Brasil, 2013), “O dia que durou 21 anos”, Dir. Camilo Tavares (Brasil, 2013).
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sobre a verdade no Brasil devem começar a ser fomentadas até como enfrentamento e
estímulo a políticas públicas em defesa aos direitos humanos. Há um sentimento pós-
ditadura de combater o que nos restou dela em termos éticos. Portanto, se valida o estudo
da produção audiovisual feita por artistas, cineastas e familiares sobre um momento político
de extrema mitificação da barbárie. Pensar, refletir, denunciar os atos de violência da
ditadura civil-militar estimula uma consciência ética por justiça. Cabe, também, aos
estudiosos na área de Comunicação a responsabilidade de criar espaços na pesquisa
acadêmica como novas formas de narração da trajetória política dos sujeitos afectivos.
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de narração, gesto político da imagem, escrita da História. Para Giorgio Agamben (2008) “o
gesto abre a esfera do éthos como a esfera mais própria do homem”. A raiz do éthos, tanto
em termos de “caráter” como no de “modo de vida habitual”, propõe uma vocação
“ethográfica” do cinema, que exprime melhor que quaisquer outros meios a variedade de
modos de ser e modus de fazer (CERTEAU, 1994) para o julgamento ético. Ou seja, o
cinema e sua experiência cinematográfica condensa no corpo social um local privilegiado da
enunciação do seu próprio discurso. Toma seu corpo, contudo, “não como corpo individual,
mas como corpo coletivo, corpo global”. E no caso das gerações que foram filhos da
censura ou ausentes das reparações, o cinema e sua experiência espaço-temporal infere
uma instância sobre uma nova memória que se recria, reinaugura, gera novas narrações e
sensibilidades sobre a imagem ausente e pregressa.
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Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa
maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência,
e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo [...].O ato de
resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte.
Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra
de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens (DELEUZE, 1999).
Deleuze nos mostra como a arte em sua relação privilegiada com o tempo permite ao
artista/pensador/sujeito reconstituir sua trajetória, isto é, atingir os diversos mundos e
pontos-de-vista que o constituem, mostrando assim que a obra de arte revela um processo
ou processos de subjetivação que, ao menos inicialmente, são imperceptíveis àqueles que
os vivenciam. A obra de arte é ato de resistência no sentido em que desobedece sempre,
ignora palavras de ordem, não pretende transmitir nada e ainda dilui as informações que a
envolvem. Por outro lado, é importante lembrar que nem todo ato de resistência é uma obra
de arte. Pensar esteticamente as micropolíticas de resistência implica em pensar o “estado
de exceção como regra” no Brasil. Agamben (2004) credita que o estatuto da resistência
política no cenário contemporâneo passa pelo estado de exceção na modernidade através
dos óculos da normalidade. E, onde há poder há resistência. O documentário feito por
aqueles que sobreviveram as atrocidades da ditadura é um método de profanação
(AGAMBEN, 2007).
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como uma intensificação do próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao
sofrimento dos demais (AVELAR, 2003).
De certa maneira, esse projeto de pesquisa pretende dar uma leitura sobre essa
produção documental política. Não como tentativa de generalizar uma interpretação,
tampouco um método de análise, mas na procura de ler o filme como uma fala, uma
narração, um rastro de memória. Aquilo que Marc Ferro (1992) trata das vinculações entre o
cinema e a história como um agente, uma contra análise da sociedade, em uma instância
entre o visível e o não visível.
E o que seria este olhar político? É o preparo para disputar a hegemonia das
grandes linhas culturais, para questionar a legitimidade de sua imposição, embora talvez
nunca chegue a completar essa batalha simbólica (SARLO, 1997). Este jogo de
dissidências, nessa espécie de descoberta das fissuras no consolidado, as rupturas indicam
mudanças estético-políticas. A memória opera também com seu saber construindo
hipóteses narrativas que, de maneira silente, criticam o presente e opinam sobre as noções
narradas, sobre o passado e suas utopias. O que vale, nesta proposta de pesquisa, é o
impulso ético e estético do cinema documental. Afinal, como afirma Beatriz Sarlo (1997), “a
arte não tem que ser otimista e sim oferecer uma perspectiva de verdade”.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o Gesto. In: Artefilosofia, n. 4, jan. 2008. Ouro Preto:
Tessitura, 2008.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da
Cultura. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
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DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de
Classe. Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 2002.
TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (org.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo,
2010.
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Para ser compreender o Amapá nesse cenário nacional ditatorial, acredito que é de
suma importância fazer um breve histórico sobre sua origem enquanto entidade política-
administrativa. Deve-se considerar que a convivência com práticas autoritárias, privações de
liberdades, subordinação, coerção, censura à liberdade de expressão, faziam partes das
políticas institucionais do Território muito anterior ao ano de 1964. As explicações para esse
cenário podem ser encontradas no processo que o originou.
Até início da década de 40, o Amapá ainda estava vinculado ao Estado do Pará. Sua
criação, como Território Federal, ocorreu através do Decreto-Lei nº. 5.8121, de 13 de
setembro de 1943, com partes desmembradas do Estado do Pará, como justificativa para
garantir a proteção e a ocupação de regiões fronteiriças que apresentavam grandes “vazios
demográficos”.
1
RIO DE JANEIRO (Capital Federal). Decreto-Lei nº 5.812, de 13 de setembro de 1943. Dispõe
sobre a criação dos Territórios Federais do Amapá, do Rio Branco, do Guaporé, de Ponta Porã e
do Iguaçu, com partes desmembradas dos Estados do Pará, do Amazonas, de Mato Grosso, do
Paraná e de Santa Catarina, respectivamente.
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2
BRASIL (Capital Federal). Constituição dos Estados Unidos do Brasil(1937).
Brasil(1937) Casa Civil da
Presidência da República. Arquivo Nacional. In: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados.
Disponível em: http://bd.camara.gov.br.
http://bd.camara.gov.br Acesso em: 25 abr. 2014.
3
A criação de Territórios Federais no Brasil
Brasil foi inspirada no direito americano. Como o Governo
Federal não sabia ao certo o que fazer com o Acre, quando da sua incorporação, resolveu
transformá-lo
lo em Território copiando o modelo dos Estados Unidos. Pedro Calmon (apud (
MEDEIROS, 1944, p.87), esclarece
esclarece que “A figura do Território nacional é norte-americana.
norte De
começo, os Estados eram apenas 13. À medida que os pioneiros ganharam o oeste, ou que o
governo da União adquiriu por compra ou conquista, faixas territoriais que arredondaram a área
geográfica da nação, foram sendo instituídos os “Territórios”, e em seguida, tanto que se povoaram e
enriqueceram, erigidos em Estado”. Segundo Michel Temer (1974, p. 124), “Os Territórios norte- norte
americanos tiveram sempre poder acentuado de auto-administração”.
auto
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Esse breve relato, exemplifica, que o tratamento dispensado aos Territórios Federais
pelo Estado brasileiro seguiram um direcionamento muito aproximado ao longo de suas
existências. Mesmo em momentos de grande abertura política, ainda eram vistos com os
mesmo fundamento de sua origem, como lugares em que a “defesa do território” imperava
sobre ás necessidades da população. Por outro lado, a ausência de uma política
governamental mais efetiva para essas regiões, tomando como exemplo a experiência do
Amapá, favoreceu a prática do improviso, da exacerbação da autoridade e centralização
política, a ponto de ampliar o grau de atuação das representações administrativas territoriais
para muito além de suas funcionalidades, bem como nos lembra René Remond, quando o
4
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (Capital Federal). Anais da Assembleia
Constituinte (1946). Vol. V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. In: Biblioteca Digital da
Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/deputados/discursos-e-notas-
taquigraficas. Acesso em: 08 abr. 2014.
5
Pelo alvará de 28 de setembro de 1736 D. João V cria a Secretaria de Estado dos Negócios
Interiores do Reino, que com o advento do Império e da República, passou a denominar-se,
sucessivamente, Secretaria de Estado dos Negócios do Império e Ministério da Justiça e
Negócios Interior. Em 25 de fevereiro de 1967, pelo Decreto-lei nº 200, de 25.02.1967 esse
Ministério é desmembrado em Ministério da Justiça e Ministério do Interior. A Lei nº 8.028, de 12
de abril de 1990, extingue o Ministério do Interior.
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político “se dilata até incluir toda e qualquer realidade e absorver a esfera do privado: este é
um dos traços das sociedades totalitárias”6
No Amapá, no recorte que se inicia com o pós 45, a administração pública muito se
assemelhava a política estado-novista, assumindo características muito aproximada às
apontadas pela historiadora Lucília Almeida Neves Delgado para o Brasil do período pós-30,
de “um paternalismo autoritário, implantado em consonância com a concepção tutelar, que
se orientava por objetivos simultaneamente modernizantes e conservadores”7. Esse período,
que conforme recorte da história política, encerrar-se-ia em 1964, ainda é predominante
pesquisado pela ótica do Estado Novo na historiografia amapaense, assim como os que se
seguiriam a Ditadura Militar são pouco ou quase nada pesquisado, corroborando com a uma
memória que reforça que no Amapá Território a mudança de “regime” transcorreu sem
grandes abalos.
Daniel Arão Reis, vem chamando atenção a bastante tempo para uma cultura
autoritária que permeiam as relações políticas do presente no Brasil, herdada em grande
parte da dicotomia entre o Estado de Direito regido pela Constituição de 1946, em contraste
com a herança ditatorial aberta do Estado Novo; um regime democrático, mas limitado,
marcado pela tradições autoritárias da ditadura que o antecedera, nos parâmetros da cultura
política nacional- estatista. Mesmo concordando, que a "A instauração da ditadura, em 1964,
destruiu tudo isso: o estado de direito, a democracia limitada e a versão trabalhista do
nacional-estatismo"8, o autor destaca, que esse momento de ruptura do regime não pode
ser entendido somente como um marco divisor, pois segundo Reis“ A Ditadura resultou de
uma conjunção complexa de condições, de processos e de ações, cuja a compreensão
permite elucidar o que deixou surpresos e complexos os contemporâneos vencidos e
vencedores".9
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10
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico de 1960: Rondônia,
Roraima e Amapá. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional. Vol. I, TOMO I, 1ª Parte,
p. 227.
11
SANTOS, Fernando Rodrigues. Da autonomia Territorial ao fim do janarismo (1943-1970). Macapá:
Editora Gráfica O DIA S.A., 1998.
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torno dos que defendiam ou não as “reformas de base” em um momento, em que segundo
Daniel Arão Reis, “acumularam as forças que se enfrentaram num grande embate, o mais
complexo e violento, e de maiores dimensões sociais, que até então conhecera a república
brasileira”12, na leitura do historiador Dorival Santos, o “janguismo” não enfrentava
resistência entre os amapaenses, “No Amapá, as forças políticas, agrupadas em torno do
Partido Socialista Democrático – PSD e do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB alinhavam-
se incondicionalmente às “reformas de base”. Digladiavam-se para definir quem era mais
“janguista”.13
(...) o sr, Janary Nunes pretende lançar o nome do Presidente João Goulart,
como candidato a senador pelo Amapá em 1966.
A ideia do sr. Janary seria a mais louvável possível, se não fôra as
intenções maquiavélicas que se esconde atrás dêsse véu de ingenuidade.
O presidente João Goulart tem o seu partido, o PTB e não precisará do sr.
Janary Nunes nem do PSP a quem está vinculado o deputado, para ser
14
candidato a senador pelo Amapá.
12
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: D. A. Reis, M. Ridenti
e R. P. Sá Motta (orgs.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc,
2004, p.30-31.
13
SANTOS, Dorival da Costa. “O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação
1964-1974” (Dissertação de Mestrado). Campinas: Unicamp, 2001, p. 43.
14
"A chantagem do coronel" In: Folha do Povo, edição de 26 de janeiro de 1964.
15
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. “Cidadania: Dilemas e perspectiva na República brasileira”.
Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 4, 1997, p.128.
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16
GONSALVES, Elfredo Távora. Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os meus filhos.
(Memória). Impressão Gráfica Papers Brasília, 2010, p. 72-73.
17
PORTO, Terêncio Porto. NOTA OFICIAL."Armas da República". GOVERNO DO TERRITÓRIO
FEDERAL DO AMAPÁ. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Gabinete do Governador.
Macapá, 01 de abril de 1964. (Rádio Difusora de Macapá).
18
TERRITÓRIO FEDERAL DO AMAPÁ. Inquérito Policial referente ao crime de subversão.
Indiciados: José Alves Pessoa, Janary Gentil Nunes e Mário Luiz Barata. DIVISÃO DA
SEGURANÇA E GUARDA. Macapá, 16 de maio de 1966.
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19
SANTOS, Dorival da Costa. “O regime ditatorial militar no Amapá: terror, resistência e subordinação
1964-1974” (Dissertação de Mestrado). Campinas: Unicamp, 2001.
20
Amapá, edição de abril de 1964.
21
GONSALVES, Elfredo Távora. Folhas Soltas do Meu Alfarrábio: um livro para os meus filhos.
(Memória). Impressão Gráfica Papers Brasília, 2010, p.75.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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No dia 04 de abril, logo após o golpe, a Folha do Povo, fez uma breve reportagem
sobre o clima político instável e repressivo que a pacata capital do extremo norte do país
vivenciava, com o seguinte título "Prisão de líderes".
22
PAZ JR., Adalberto Júnior Ferreira. Os minérios da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira
da mineração industrial amazônica. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2011, p.152.
23
PAZ JR, Op. Cit, p. 154.
24
" Prisão de líderes. In: Folha do Povo, 04 de abril, 1964.
25
Fatos narrados pelo jornalista Hélio Pennafort no livro Amapaisagens, Macapá, 1992.
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Referências
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Introdução
No contexto da chamada “transição democrática” brasileira (1979-1988)1, verifica-se
um embate entre duas formas opostas de se lidar com a violência política que ocorrera no
país desde 19642. De um lado, a ditadura, as forças armadas e boa parte da sociedade
civil, ancoradas na lei de anistia de 19793, pregavam que era o momento de se esquecer
aqueles episódios e “recomeçar tudo como se nada houvera antes”4. De outro, militantes de
esquerda e organizações de defesa dos direitos humanos lutavam pela apuração das
responsabilidades pelas torturas e execuções sumárias, como forma de inibir a
possibilidade de repetição daquelas práticas.
As denúncias de Inês Etienne Romeu, formuladas em 1981, bem como as reações
que se verificaram contra elas, ajudam-nos a compreender os embates políticos do início da
transição brasileira. Nesta comunicação, procuraremos entender aquele embate a partir das
noções de testemunho e de esquecimento, conforme formuladas por Paul Ricoeur.
1 Acompanhamos, aqui, a periodização proposta por Daniel Aarão Reis Filho (2014, pp. 125-8).
2 Referimo-nos, principalmente, aos movimentos guerrilheiros de esquerda e à brutal repressão
desencadeada contra eles. Ver Gorender, 2003.
3 Sobre a anistia, ver Greco (2005) e Fico (2011).
4 “Respeito à anistia”. Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 1981, p. 2.
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dezembro de 1970. Sua pena foi mais tarde revista, à luz da nova Lei de Segurança
Nacional, sendo reduzida para oito anos. Foi libertada em agosto de 19795.
No período entre o término de seu sequestro e a formalização de sua prisão, Inês esteve
internada em uma casa de saúde de Belo Horizonte. Ali, escreveu um relato denunciando o
sequestro e as torturas que havia sofrido, bem como as ameaças de morte que continuava
a sofrer, para ser anexado a seu processo judicial. Neste relato, advertia que um
depoimento contendo nomes e feitos de seus torturadores havia sido encaminhado a
diversas pessoas no Brasil e no exterior. Fazia isso por temer ser objeto de “queima de
arquivo” por parte de seus captores, mas também “para que se esclareçam fatos obscuros
e se registre na história do Brasil os nomes e as patentes dos torturadores que se
escondem sob a proteção do governo”6.
Quase dez anos depois, o depoimento prometido em 1971 foi publicado na íntegra por O
Pasquim7. É este relato que pretendemos tratar em sua dimensão testemunhal. A
publicação do texto nos remete a algumas considerações de Paul Ricoeur, que chama a
atenção para o “momento do testemunho recebido por outrem; este é o momento no qual
as coisas ditas oscilam do campo da oralidade para o da escrita, que a história não mais
deixará8.” Ao ser impresso nas páginas do semanário carioca, o “Relatório Inês” ganhava
um potencial que ultrapassava em muito o campo da mera denúncia, chegando a colocar
em questão o próprio modelo político da transição, como demonstraremos.
Para Ricoeur, a operação testemunhal se desdobra em seis componentes. Este esquema
analítico se revela útil para que melhor compreendamos a amplitude do impacto do
depoimento de Inês.
O testemunho, em primeiro lugar, narra uma realidade, uma coisa vivida, distinta da
ficção; este primeiro componente nos leva ao segundo: o que atesta esta veracidade é
justamente a presença do depoente no cenário daquilo que ele narra: “Deste acoplamento
[entre a asserção da realidade e a autodesignação da testemunha] procede a fórmula típica
do testemunho: eu estava lá. O que se atesta é indivisamente a realidade da coisa passada
e a presença e a presença do narrador nos locais da ocorrência.9”.
No caso em questão, o depoimento de Inês é estritamente limitado ao que ela viveu
e presenciou entre sua captura e a formalização de sua condição de presa política. Outro
aspecto que nos chama à atenção é que não há, no depoimento, os “enunciados
5 “Ex-presa política narra como escapou da morte”. Folha de S. Paulo, 09 de fevereiro de 1981, p. 5;
ROMEU, 1981, p. 26.
6 Processo “Brasil Nunca Mais” nº 047, fl. 594. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/.
7 ROMEU, 1981.
8 RICOEUR, 2007, p. 155.
9 Ibidem, p. 172.
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10 Ibidem, p. 173.
11 Ibidem, p. 173.
12 A título de exemplo, ver “A casa dos horrores e o médico da tortura”. IstoÉ, 11 de fevereiro de
1981 (disponível em: http://ditacasa.wordpress.com/about/ - acesso em 24/08/2013); “Tortura era feita
em Petrópolis”. Folha de S. Paulo, 04 de fevereiro de 1981, p. 4; “Presos políticos apontam médico
que os atendia”. Jornal do Brasil, 07 de fevereiro de 1981, p. 5; “Elas lembravam”. Veja, nº 649, 11 de
fevereiro de 1981, pp. 20-1.
13 RICOEUR, 2007, p. 174.
14 “Tortura era feita em Petrópolis”. Folha de S. Paulo, 04 de fevereiro de 1981, p. 7.
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Lobo também confirmou, em linhas gerais, o relato de ex-presa política15. Ela ainda
concedeu depoimento formal à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados
do Brasil e ajuizou ação declaratória contra Lodders e os demais envolvidos em seu
sequestro16.
Para Ricoeur, o quinto componente da operação testemunhal é a disposição do
depoente para reiterar seu relato: “A testemunha confiável é aquela que pode manter o seu
testemunho no tempo. Essa manutenção aproxima o testemunho da promessa, mais
precisamente da promessa anterior a todas as promessas, a de manter sua promessa, de
manter a palavra.17” No caso de Inês, esta reiteração se fez várias vezes ao longo dos anos
1980, e mesmo nas décadas seguintes. Foi o que fez, por exemplo, ao ser entrevistada
pela Folha de S. Paulo por ocasião da comemoração dos vinte anos da anistia, em 199918.
Mais recentemente, em 2012, anunciou sua disposição em colaborar com a Comissão
Nacional da Verdade, criada para apurar as violações de direitos humanos cometidas pela
ditadura19.
Por fim, a operação testemunhal possui, para Ricoeur, um sexto componente, que é
a institucionalização: “O que faz a instituição é inicialmente a estabilidade do testemunho
pronto a ser reiterado, em seguida a contribuição da confiabilidade de cada testemunho à
segurança do vínculo social na medida em que este repousa na confiança na palavra de
outrem.20” No caso em questão, os testemunhos de vítimas de atrocidades políticas têm o
potencial de reforçar os vínculos sociais, na medida em que são o primeiro passo que para
que este tipo de experiência possa superar as pressões pelo esquecimento e acessar a
história “oficial”.
Ao firmar-se como um depoimento verídico, fruto de um testemunho ocular, respaldado
pelos receptores, debatido no espaço público e reiterado em diversos momentos, o relato
de Inês alcançou esta institucionalização, transformando-se em evidência de aspectos da
repressão que, embora conhecidos, poderiam, sem ele, ter permanecido carentes de
comprovação.
Além disso, o relatório punha em xeque a imagem de heroísmo com a qual o regime
buscava envolver os agentes da repressão. A tentativa de construção desta imagem pode
15 “Psiquiatra afirma que trabalhou em casa de tortura”. Folha de S. Paulo, 06 de fevereiro de 1981,
p. 6.
16 “Advogados respondem”. O Globo, 11 de abril de 1981, p. 4.
17 RICOEUR, 2007, p. 174.
18 “Na prisão, historiadora tentou quatro vezes cometer suicídio”. Folha de S. Paulo, 28 de agosto de
1999, p. 8.
19 “Única sobrevivente da Casa da Morte relata tortura, estupro e humilhação”. O Globo, 24 de junho
de 2012, p. 4.
20 RICOEUR, 2007, p. 174.
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ser demonstrada pelo discurso do General Walter Pires de Carvalho ao assumir o Ministério
do Exército, cerca de dois anos antes, quando já havia algumas denúncias de torturas
circulando:
Ao receber o Ministério do Exército do General Fernando Belfort Bethlem, numa clara alusão ao noticiário sobre torturas em dependências militares, o
general Valter [sic] Pires de Carvalho de Albuquerque afirmou: “Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade,
cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores e terroristas, de armas na mão, para que a Nação não fosse levada à anarquia.”21
A realidade que aparece nos depoimentos de Inês é bem diferente da que a retórica do
ministro buscava construir. Ela identifica os responsáveis pelas atrocidades que sofreu em
dois níveis. O primeiro deles é o institucional: em mais de um momento, fica bastante claro
que sua captura fazia parte de uma política de Estado, não podendo ser creditada a
“excessos” ou “abusos”, explicações então correntes para a brutalidade da repressão. O
segundo é pessoal:
dos vinte indivíduos que estiveram na casa durante sua permanência ali, oito estão
identificados no relatório, havendo ainda elementos para a identificação de vários outros.
A revelação da existência de locais clandestinos de tortura evidenciava a atuação da
comunidade de segurança ao arrepio da lei. Embora não fosse a primeira vez que se
denunciava a existência deste tipo de “aparelho” clandestino22, a autoria da denúncia cabia
agora a uma testemunha ocular, sobrevivente de um daqueles locais e capaz de dar
detalhes irrefutáveis, a tal ponto que seu depoimento foi corroborado, como já colocamos,
pelo dono da casa e pelo médico que a atendeu dentro dela. Este nível de denúncia gerava
perturbação nas Forças Armadas em virtude da exposição a um público amplo de
características indefensáveis na atuação dos órgãos de segurança.
Porém, não eram só os meios militares que ficariam melindrados com a publicação do
depoimento de Inês. A identificação de Mário Lodders expunha a participação de setores
civis no apoio à repressão, o que danificava o mito, repetido até hoje, de uma ditadura
univocamente militar que exerceria um poder incontrastável contra uma sociedade indefesa.
Além disso, ao perturbar o arranjo de memória que o regime buscava forçar desde a
promulgação da anistia, punha em guarda a grande imprensa e os políticos civis que
funcionavam como garantias da transição conservadora.
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3 – Reagem os militares
As denúncias de Inês geraram algo próximo a uma crise institucional. Na mesma semana
em que O Pasquim trazia o depoimento, os três ministros militares, em duras notas oficiais,
reagiram à publicação, a começar por Walter Pires, que não se furtou à promessa feita em
1979. Após exaltar a “insuperável dignidade” da repressão, colocava:
O Exército repele energicamente, portanto, as malévolas insinuações suscitadas por contumazes sublevadores da ordem, que procuram agora lançar à
execração pública aqueles que se bateram, em verdadeiras operações de guerra, pela preservação da paz e da tranquilidade da família brasileira.23
A narrativa da ex-presa política precisava ser repelida justamente porque, envolvendo não
só a tortura, mas também sequestro, estupro e execuções, comprometia a legitimidade das
instituições castrenses para conduzir o processo de democratização.
Na nota da força terrestre, pode-se observar uma disposição de se garantir um
esquecimento seletivo do passado, em função das conveniências políticas do presente.
Para Ricoeur, o esquecimento aparece, nesta modalidade, como manipulação da memória:
“O recurso à narrativa torna-se assim a armadilha, quando potências superiores passam a
direcionar a composição da intriga e impõem uma narrativa canônica por meio de
intimidação ou de sedução, de medo ou de lisonja.”24
Um movimento convergente, porém distinto, pode ser observado na nota oficial divulgada
pelo Ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos. Em primeiro lugar, tratava
de deixar bem claro seu entendimento acerca da lei de anistia de 1979: "Se terroristas
anistiados podem hoje, com a tranquilidade de homens livres, reescrever a história
dos vencidos, é porque aos vencedores mais importava o reencontro histórico que
hoje vivemos que a lembrança estéril e sem futuro"25
Note-se que a tranquilidade dos vencidos – os guerrilheiros, ou os “terroristas anistiados” –
se devia a uma aparente magnanimidade dos vencedores, a quem importava – é
fundamental o uso do verbo no passado – mais a reconciliação do que uma lembrança que,
para o ministro, nada poderia trazer de bom.
Importava sugere que talvez, no presente da nota (1981), esta hierarquia de importância
pudesse ter se alterado, de acordo com o comportamento da esquerda. A fala do Brigadeiro
contém um aviso: a "tranquilidade de homens livres" – a anistia – e o "reencontro histórico"
– a abertura – não se faziam de forma incondicional. Dependiam, entre outros fatores, da
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3 – Reagem os civis
Esse entendimento da anistia como esquecimento, conforme frisamos na seção 1, não era
apenas das Forças Armadas. Por isso, a reação às denúncias de Inês não esteve apenas
nas instituições militares, mas também em setores expressivos da sociedade, como se
evidencia em parte da grande imprensa. Ao noticiar o desagrado dos ministros militares
com aquela questão, Veja teceu suas próprias considerações a respeito:
Inês (...) participou de um grupo que cometeu crimes de sangue. A anistia, que tirou da cadeia os
vencidos,foi conseguida ao preço do esquecimento. (…)
É improvável que o país, depois de virar a página de horrores nos anos 70, deseje sua releitura, até
porque, na reprise, o filme é o mesmo.
28
A revista semanal da Editora Abril chegava mesmo a repetir, por outras palavras, a fala do
ministro da Aeronáutica, ao erguer o esquecimento ao status de condição de possibilidade
para a anistia. O texto de Veja continha um tom de ameaça, como se a insistência na
punição dos culpados acarretasse, automaticamente, um novo fechamento e a repetição
dos horrores: “na reprise, o filme é o mesmo”.
Por sua vez, a Folha de S. Paulo, em editorial, ia pelo mesmo caminho:
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contudo, havia a opção de aderir ou não a esta “narrativa canônica” e ao projeto político ao
qual ela subjaz. A opção pela adesão nos parece, pelo descrito acima, evidente.
Ao tratar da construção deste tipo de narrativa, Ricoeur adverte que
Está em ação aqui uma forma ardilosa de esquecimento, resultante do desapossamento dos
atores sociais de seu poder originário de narrar a si mesmos. Mas esse desapossamento não
existe sem uma cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um comportamento
semipassivo e semi-ativo, como se vê no esquecimento de fuga, expressão da má-fé, e sua
estratégia de evitação motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não
investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma por um querer não
saber.
33
Esse esquecimento semi-ativo, esta obstinação por não saber, por esquecer o passado
violento, pode estar vinculada, como insinuam editorialistas e políticos, ao temor do retorno
do fechamento ditatorial. Entretanto, esta explicação não basta para entender a postura
destes agrupamentos. É preciso levar em consideração também a posição que uns e outros
pretendiam manter no regime que viria a se seguir à transição.
É bastante conhecido o apoio da maior parte da imprensa não só ao golpe de 1964, mas
também, de forma nuançada e não linear, ao regime autoritário que ele instalou. Na
verdade, alguns desses órgãos, como a Folha de S. Paulo34 e O Globo35 já reconheceram
publicamente este apoio, inclusive com laivos de autocrítica. Segundo nosso entendimento,
a transição pautada no esquecimento das atrocidades, se este fosse efetivado, era
altamente conveniente para a manutenção da credibilidade daqueles veículos em um futuro
Estado de Direito. Depoimentos como o de Inês perturbavam um arranjo que pretendia (e
conseguiu, em larga medida) manter um alto grau de controle da opinião pública por umas
poucas empresas de comunicação.
Quanto aos políticos civis acima citados, isso se faz ainda mais evidente: ou foram próceres
do próprio regime responsável por graves violações de direitos humanos, como Sarney,
Passarinho e Antônio Carlos Magalhães, ou foram líderes oposicionistas que patrocinavam
a transição calcada no silenciamento da violência, como era o caso de Tancredo Neves.
É justo lembrar que não houve unanimidade na defesa do esquecimento por parte de
lideranças parlamentares. Modesto da Silveira e Marcelo Cerqueira, deputados federais do
PMDB, acompanharam Inês desde o início de suas denúncias36. Ralph Biasi e Freitas
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Considerações Finais
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promovidos por particulares – guarda uma relação íntima com nossa disposição de silenciar
a violência política do passado.
Referências
AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2014.
CARVALHO, Luiz Maaklouf. Mulheres que foram à luta armada. Rio de Janeiro: Globo,
1993
CHACEL, Cristina. Seu amigo esteve aqui. A história do desaparecido político Carlos
Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
GRECO, Heloísa Bizoca. A dimensão trágica da luta pela anistia. In: Cadernos da Escola
do Legislativo. Belo Horizonte, v. 8, n. 13, jan/dez de 2005, pp. 85-111.
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Mélanie TOULHOAT
Doutoranda em História pela Universidade de Paris 3/Universidade de São Paulo.
melanie.toulhoat@wanadoo.fr
Entre os atores das oposições políticas e culturais ao regime militar brasileiro, a imprensa
independente, dita alternativa, destacou-se como um núcleo de crítica do autoritarismo : “[...]
os jornais alternativos cobravam com veemência a restauração da democracia e do respeito
aos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico.” (KUCINSKI, 1991: p.5). O
jornais Pasquim ou Pif-Paf, por exemplo, são considerados ainda hoje como alguns
símbolos de resistência ao regime militar. Essas visões elogiosas são frequentemente
alimentadas pelas declarações e depoimentos de varios ex-jornalistas ou pela publicação de
antologias e livros autobiográficos.
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para configurar o notável apoio civil conferido ao Golpe de 1964.” (PATTO SA MOTTA,
2013: p.63). O historiador francés François Bédarida, numa tentativa de aplicação da noção
weberiana de “idéaltype” à analise da resistência francesa durante a ocupação nazista,
mencionava esse primeiro elemento fundamental, o aspecto de recusa voluntária e
assumida de uma postura de colaboração e apoio ao regime : “Au point de départ, on trouve
un geste de base : dire non. Un non symbolique à la soumission et à l’asservissement. Un
non qui témoigne d’une volonté de principe. Là est l’essence de la résistance.” (BEDARIDA,
1995 : p.47).
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Não existe humor a favor. O humor sempre tem que ser contra. O próprio
Freud falava uma coisa do tipo “o humor não se resigna, ele enfrenta”. Ele
desafia. O humor gráfico tem que ser sempre desafiante, nunca se resigna.
[...] O caricaturista nasce com um pouco dessa verve e esse espírito de
denúncia e oposição. [...] Uma charge “a favor” perde o caráter resistente,
.
vira uma cartilha institucional, não é mais uma charge (NANI, 2013).
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Tentando definir a censura estabelecida pelo regime autoritário brasileiro, Beatriz Kushnir
questiona a violência incluída no “ato de coibir unilateralmente a expressão livre de ideias e
ações políticas, sonegar informações comprometedoras, calar tudo e todos que não
comungassem as posições das forças vencedoras.” (KUSHNIR, 2004: p.11). Se a censura
desenvolvida pelo regime militar escolheu como uns dos seus principais alvos as várias
publicações alternativas, era sem dúvida com o fim de dificultar a transmissão de
mensagens opostas às normas ideológicas, culturais ou estéticas estabelecidas.
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À escala do jornal Pasquim, a própria escolha do nome poderia ser considerada como o
primeiro passo desta inversão de valores, necessária condição à recuperação de sistemas
de representações e de significações. A palavra “pasquim” tinha, nos anos 60, uma
conotação negativa e definia um tipo de publicação sem análise nem qualidade no
tratamento da informação. Assumindo plenamente esse nome, os jornalistas operaram uma
recuperação do termo e acabaram se protegendo, escondendo o conteúdo publicado atrás
da marca “Pasquim”. Juan Sasturain, jornalista argentino que trabalhou na revista satírica
Humor –nascida em junho de 1978 no auge da ditadura militar dirigida por Jorge Rafael
Videla- propõe uma análise muito semelhante : “Es síntomatico el nombre de la publicación.
Es casí una salvedad, una marca que avisa, abre el paraguas sobre su contenido, se cura
en salud: esto es humor (no otra cosa).” Numa escala maior e segundo Kucinski, é na
própria existência de tal possibilidade de expressão num contexto repressivo, que existe a
primeira inversão permitindo a emergência de experiências coletivas :
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Num nível mais interno, as próprias técnicas solicitadas pelos desenhistas do jornal
participavam desta inversão. Os chargistas mencionam nos depoimentos as possibilidades
pensadas para driblar a censura e inverter, de fato, as regras do “jogo”: “Aprendemos a
burlar as proibições, usávamos muitas metáforas [...]. O nosso jogo era driblar a censura,
fazíamos charge de militância para derrubar a ditadura.” Mobilizando um núcleo de
referências comum ao leitor, necessário à transmissão, e exagerando certas caraterísticas
físicas ou comportamentais, o desenhista é um perigo pelas pessoas que representa: elas
se tornam ridículas e consequentemente, risíveis. No desenho abaixo, o lápis irônico do
Millôr Fernandes representa os próprios censores se precipitando para ver as matérias,
como num espetáculo. A inversão satírica é visível na hipocrisia e na atitude dos censores
que manifestam um forte interesse pelas produções normalmente cortadas.
Para lograr seu maior objetivo -a crítica da política governamental- mesmo com as
limitações impostas à liberdade de criação e expressão, a redação do Pasquim atacava
principalmente os pontos nevrálgicos do poder, carregados de autoridade :
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Algumas conclusões
Os próprios desenhistas, nos depoimentos realizados a posteriori assim como nas matérias
publicadas durante o regime militar, definem as diferentes formas de humor gráfico
solicitadas como os instrumentos ao serviço da expressão de uma postura de oposição ao
autoritarismo. Nosso proposito, além de propor uma reflexão sobre o trabalho dos
cartunistas no jornal Pasquim, foi também de questionar a universalidade de um esquema
de análise pensado em outro contexto.
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Referências
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Diante desta vasta trajetória, optamos por analisar nesse ensaio um pequeno
fragmento de sua produção, que pudesse se explicitar a relação entre arte, política em sua
produção artística. O fragmento teatral ao qual nos referimos trata-se da peça curta O
quintal, escrita por João das Neves em 1977.
João das Neves nasceu no Rio de Janeiro, em 1934. Durante sua longa trajetória
profissional, o artista exerceu praticamente todas as funções do campo teatral: direção,
dramaturgia, cenografia, iluminação, atuação, produção, entre outras. No decorrer de sua
trajetória profissional, o autor esteve vinculado a importantes manifestações artísticas da
História do Teatro Brasileiro. Participou do CPC da UNE, foi integrante do Grupo Opinião,
além de dirigir diversas encenações em vários estados brasileiros. Atualmente tem feito
muitas direções relacionadas à temática da exploração do negro, como Besouro Cordão de
Ouro (2008), Galanga, Chico Rei (2011) e Zumbi (2012). Durante toda sua trajetória é
possível perceber que sua produção contempla a questão política, mas o refinamento
estético também pode ser notado. Entendemos que seus espetáculos visavam tanto à
questão estética, quanto o engajamento político.
Um bom exemplo desse engajamento pode ser percebido na peça analisada nessa
comunicação. O texto teatral O quintal foi escrito em 1977 e publicado no livro Feira
Brasileira de Opinião: a feira censurada1, editado pela Editora Global em 1978, compondo a
coleção Teatro Urgente. A peça foi solicitada por Ruth Escobar (coordenadora da coleção
Teatro Urgente) e integraria a montagem teatral Feira Brasileira de Opinião, proibida pela
1
O livro conta com uma apresentação de Ruth Escobar, um prefácio em forma de peça intitulado A
censura e a auto-censura ou o que não se pode dizer, não se deve dizer, escrito por Décio de
Almeida Prado, além de dez cenas curtas de proeminentes dramaturgos brasileiros: Carlos Henrique
Escobar, Carlos Queiroz Teles, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro César
Muniz, Leilah Assunção, Márcio Souza, Maria Adelaide Amaral, além do próprio João das Neves.
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censura antes da estreia. De acordo com Ruth Escobar, “A Feira Brasileira de Opinião
cumpre um papel importante no teatro no Brasil de hoje, acendendo a questão: “Quem
somos, a que vimos, quem é nosso povo?”. (ESCOBAR, 1978:7). Pensando em tais
perspectivas, todos os autores que participaram no projeto tentaram responder ou
problematizar os aspectos propostos pela produtora cultural.
Para discutir tais questões, João das Neves escreveu O quintal, peça de apenas um
ato que buscou discutir o golpe civil-militar de 1964 e a atuação de três importantes
entidades da esquerda nesse período: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a União
Nacional dos Estudantes (UNE) e o Centro Popular de Cultura (CPC). Nessa análise, nos
ateremos principalmente ao Centro Popular de Cultura, por entendermos que se trata de uns
dos principais eixos de compreensão da peça em questão.
Ainda que a imagem construída pela direita tentasse mostrar tais instituições (CPC,
UNE e PCB) como blocos homogêneos ideologicamente, é importante reiterar que se
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tratavam de instituições distintas e com diferentes polos de atuação, ainda que alguns
artistas e militantes de esquerda estivessem vinculados a mais de uma instituição.
No momento que a UNE foi invadida, na hora que a UNE foi invadida, nós
havíamos passado a noite anterior lá, a UNE estava cheia de gente,
inclusive alguns soldadinhos da aeronáutica estavam lá na UNE para nos
proteger (de grupos civis), porque o golpe estava em andamento, a gente
não sabia o que ia acontecer. A UNE estava cheia de gente, gente de
esquerda, intelectuais, jornalistas, gente de teatro, de cinema. O Teatro
CPC que ia ser inaugurado na semana seguinte, com uma peça do
Vianinha, chamada Os Azeredos Mais Os Benevides que estava sendo
dirigido pelo Nelson Xavier, eu fazia assistência de direção. (DAS NEVES.
2
Entrevista concedida à autora em 22/06/2013 ).
2
Para uma maior compreensão dos dias finais do CPC, encontramos informações valiosas no livro:
BARCELOS, Jalusa. CPC: uma História de Paixão e Consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994. O livro conta com mais de trinta depoimentos sobre o CPC da UNE e permite-nos entender (a
partir de depoimentos pessoais) os poucos e intensos anos que o Centro Popular de Cultura exerceu
suas atividades.
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A primeira cena inicia-se com dois pintores realizando o seu trabalho no espaço do
cenário. Em um breve diálogo discute-se a cor da tinta, a situação do transporte público e a
ingenuidade dos “meninos” da esquerda. No final da cena, eles saem pela frente do prédio.
No início da segunda cena, a rubrica indica que os pintores foram metralhados. Inicia-se o
diálogo entre dois jovens, onde Luiz pretende voltar para dentro do teatro e Clara tenta
dissuadi-lo. Ele volta para o teatro e é metralhado, Clara foge pela escada dos fundos. A
terceira cena é uma espécie de repetição da primeira, com a diferença que os pintores
percebem que podem ser metralhados e saem pelos fundos, com a ajuda de uma escada.
Com essa breve explanação podemos perceber que trata-se de uma cena muita
curta e com um enredo relativamente simples, se tivermos informações anteriores aos
eventos trabalhados nas cenas. Para um leitor que desconhece o contexto histórico que o
3
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006. 311-315.
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autor pretendeu demonstrar, talvez a cena não seja tão facilmente assimilada. Feita essa
primeira localização dramatúrgica, nos interessa verticalizar a discussão das cenas.
Inácio: Bom, pelo menos foi o que o velhote disse. Dizem que é informado.
Inácio parece se sensibilizar mais com a atuação dos jovens, indicando inclusive que
o “velhote” parece ser bem informado e os “meninos” são sinceros. De acordo com as
entrevistas realizadas com João das Neves podemos sugerir que o “velhote” mencionado no
texto, refere-se ao historiador Nelson Werneck Sodré, presença constante nos últimos
momentos vivenciados na sede da UNE e um dos grandes defensores da possibilidade de
reação da esquerda (DAS NEVES. Entrevista concedida à autora em 22/06/2013.). Em
contraposição, José tem uma postura muito crítica aos jovens e a capacidade de obter
informações seguras através deles. O argumento para justificar sua posição é colocado no
momento que é reiterado que eles fazem apenas “barulho” e são “filhinhos de papai”.
Percebe-se claramente a impossibilidade de diálogo entre classes sociais tão díspares.
Talvez o objetivo do autor seria lembrar que a aliança operário- estudantil, muito proclamada
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pela esquerda vinculada ao nacional-popular, não foi concretizada nos anos anteriores ao
golpe.
Durante toda a cena, a rubrica indica um enorme barulho de multidão vindo da parte
externa do palco, mas tal fato não parece ser percebido pelos pintores. Eles se lavam
tranquilamente, pegam sua marmita e saem pela entrada principal do teatro, onde são
metralhados pelos invasores. Na documentação localizada e nos depoimentos não foram
encontrados nenhuma referência a presença dos pintores no local, ou mesmo mortes que
tenham ocorrido no momento da invasão da UNE. Trata-se de um momento onde História e
Ficção se unem na construção de uma obra artística e na possibilidade de reinterpretação
do passado através da ficção.
Clara: Luiz, o que é que nós sabemos? Nada. A não ser que eles estão na
frente, armados até os dentes e querendo nos eliminar. Que eles sempre
estiveram na frente armados até os dentes. Enquanto isso nós falávamos,
cantávamos, representávamos e nem fomos capazes de ao menos prevenir
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dois pobres diabos que não tinham nada a ver com isso. [...] Eles nem
sequer sabiam do que se tratava. Nós mentimos. Mentimos sempre.
Sempre. Como eles sempre mentiram a nós. Eles, os cretinos que falavam
na merda da legalidade, na merda da luta pelo povo. Como se esqueceram
de deixar ao menos uma merda dum revolver nas nossas mãos. [...]
Luiz: Clara, é preciso confiar, Clara. Eu não acredito que eles vençam. Você
está desesperada, por isso não vê objetivamente a situação.
Clara: Deixa de ser burro, Luiz. Você confunde lucidez com desespero. Eu
estou lúcida. Os caras que nos mandaram resistir estão longe há muito
tempo. Será que você não reparou como tudo ficou vazio de repente? Você
não viu o silêncio, a ausência à nossa volta?
Clara: Preservar é o cacete. Eles tinham que estar aqui, conosco. E não
sumirem de circulação na hora do perigo. Eles por acaso são melhores,
mais idealistas, mais inteligente que você ou qualquer um de nós? Os
dirigentes somos nós, Luiz. Eles apenas nos representam. E têm que estar
ao nosso lado ou não passam de filhos da puta. Tão filhos da puta como os
que estão aí na frente, invadindo o prédio. Só que esses nós sabemos
quem são. (DAS NEVES, 1978:117-118).
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Outra reportagem informava que a Marcha da Família com Deus pela Liberdade
realizada no dia 02 de abril, durou quatro horas e exaltou a invasão e o posterior incêndio da
sede da UNE. Numa das faixas podia-se ler: “Estudantes autênticos saldam a defunta UNE
desejando-lhe estada feliz nas profundezas do inferno”. (Correio da Manhã, 03/04/1964).
Tais exemplos nos permitem perceber tanto a exaltação de algumas parcelas da sociedade
civil após o golpe militar, quanto à vitória política da direita golpista sob a esquerda. Mesmo
soando com ares de ficção, tais fatos compõem um amplo mosaico da reação de uma
parcela da sociedade civil diante do golpe.
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O que eu não imaginava era que o golpe ia vencer ,“né”? Ia vencer, que não
iria haver reação, também é isso, “né”? Não houve reação, se o Jango
tivesse convocado a reação, se tivesse havido reação, eu não sei o que
aconteceria, uma desgraça, mas desgraça maior do que aconteceu no
Brasil, vinte anos depois, não poderia ter existido. Mas, enfim, o Jango
pensou de uma outra maneira e tinha lá suas razões para pensar, não estou
condenando ele não. Mas ele acho que ele achou que iria poupar a vida dos
brasileiros, etc, talvez ,“né”? Deve ter achado, com razão até, mas não
poupou, não é? Não foi naquele instante, mas ao longo de vinte anos, mas,
enfim, a gente não sabia o que iria acontecer. (DAS NEVES. Entrevista
concedida à autora em 22/06/2013).
Referências
1) Bibliografia
BARCELLOS, Jalusa. CPC: Uma História de Paixão e Consciência. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1994.459p.
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NEVES, João das. O Quintal. In: Escobar, Ruth Escobar. Feira Brasileira de Opinião: a feira
censurada. São Paulo, 1978.230p.
MARQUES, Maria do P. Socorro Calixto. O outro lado do quintal. In: Simpósio Nacional de
História – ANPUH, XXII, 2013, Natal, RN. Anais (on-line).Disponível:
http://www.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares#M. Acesso em 17/04/2014.
2) Entrevistas Orais
DAS NEVES. João. Lagoa Santa/MG, Brasil, 22 junho. 2014. Mp3, 80 minutos. Entrevista
concedia à Miriam Hermeto e Natália Cristina Batista.
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O circuito artístico de Belo Horizonte, a partir da década de 1950, esteve associado aos
Salões Municipais de Belas Artes da Prefeitura (SMBA-BH). A inexistência de galerias ou de
um mercado de arte consolidou a concorrência dos Salões como a única possibilidade de
conferir tanto visibilidade como reconhecimento para os artistas. Na década de 1960 ocorreu
um fenômeno para as artes plásticas de Belo Horizonte que se repetiu em outros circuitos
artísticos: a transformação de um salão regional em um espaço de relevância nacional.
Assistiu-se a participação de artistas reconhecidos nacionalmente, proporcionando um
momento de reflexão tanto para a arte tradicional mineira como para as novas
possibilidades que caracterizaram a arte na década de 1960.
A pesquisa sobre a produção e a crítica de obras nos SMBA-BH entre os anos de 1964 a
1968 tem como principal intuito, conhecer a diversidade das propostas artísticas da capital
neste período. Além disso, ao pensar a obra de arte como principal objeto de estudo da
história da arte, com todas as suas potencialidades visuais e materiais, a pesquisa pretende
também levantar questões e problemáticas sobre os marcos e definições institucionais
estabelecidos para a história da arte na cidade.
Diante da leitura de algumas referências importantes sobre a arte no Brasil deste período,
muito se encontra sobre o círculo social dos artistas, sobre a atuação da crítica de arte,
sobre as instituições provedoras dos salões e bienais, mas poucos estudos apresentam
análises aprofundadas dos aspectos visuais das obras. Em certa medida, esta tendência de
estudos gerou generalizações no reconhecimento da influência Pop entre os artistas
brasileiros, desconsiderando suas peculiaridades e suas distinções com a Pop Art e os
vários movimentos da década de 19601. Neste viés, o temário reconhecido por estes
estudos dá destaque às questões sócio-políticas, engrossando a tese da militância e
engajamento de esquerda dos artistas da época2. Desconsidera-se muitas vezes que esta
realidade social era permeada pela posição crítica do artista ao seu cotidiano mais direto,
expressando aspectos da vida íntima e dos problemas artísticos enfrentados rotineiramente.
1
Assim como fez Aracy Amaral ao desenvolver textos memorialísticos e de análise sócio-cultural em
Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira: 1930-1970 (1987).
2
Conceitos comuns às ciências humanas que foram adotados pela estudiosa Marília Andrés Ribeiro
em sua tese, publicada como livro em “Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60. C/Arte, 1997
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Na análise das obras de arte dos Salões de 1964 a 1968, foram surgindo questionamentos
sobre as propostas artísticas que evidenciaram a diversidade de métodos, temas e
perspectivas da arte, não só da capital como de todo o país. No desenvolvimento de uma
pesquisa com ferramentas teóricas metodológicas próprias da história da arte, tendo como
foco a análise da visualidade da obra, esta determinação temática temporal da história da
arte com a história política do Brasil é questionada, tanto para reavaliar a aplicabilidade de
conceitos de engajamento, militância e utopia no circuito artístico da época, como também
para ampliar a percepção de temas e propostas dos artistas, reconhecendo a variedade de
suas experimentações. Lembrando que, neste período, a arte foi demarcada pela difusão de
diferentes linguagens e suportes, em esfera internacional.
Ao que tudo indica, o que a história da arte, institucionalizada pela academia e pelas
exposições retrospectivas, desejou confirmar é que as artes plásticas no Brasil da década
de 1960 foram engajadas, contestatórias e neo figurativas3. As obras analisadas no Museu
de Arte da Pampulha (MAP) que participaram dos Salões da capital demonstram que estas
generalizações precisam ser revistas, não só pelo combate aos estereótipos, mas, todavia,
pelo ostracismo e subjugação das propostas e problemas artísticos empreendidos nas
obras. Desta maneira propõe-se uma visão crítica desta interpretação institucionalizada da
história da arte, que teve também como característica a concentração de análises voltadas
para o circuito artístico brasileiro como advindo do eixo Rio-São Paulo, visto como centro
disseminador das manifestações artísticas internacionais do momento e como delimitador
de parâmetros produtivos para outros núcleos do país.
3
Como bem tentou expressar as exposições em Belo Horizonte Neovanguardas, Museu de Arte da
Pampulha, 2007/2008, e 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú, Palácio das Artes,
2011.
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1897 membros de grupos armados urbanos eram artistas, ou seja, um número que não
ultrapassa 18 pessoas. É claro que devemos considerar que se trata de um levantamento
numérico com base em processos judiciais, não sabemos, portanto, quais foram os critérios
e as atividades específicas ligadas às artes para definição deste número de profissionais.
Mas em certa medida, não deixa de confirmar o que RIDENTI aponta, “vários artistas e
intelectuais no período tinham uma simpatia difusa pela esquerda armada, sem que seja
possível dizer que eram propriamente militantes” (RIDENTI, 2000, p. 180).
Mesmo que os registros documentais, como é o caso dos processos judiciais, apontem
reduzido número de artistas participantes no combate ao regime ditatorial, as interpretações
de obras de arte do período tendem a relacioná-las a conceitos de engajamento e de
militância de esquerda. Aracy Amaral também afirma que entre os artistas plásticos não
ocorreu o engajamento político comum na área do teatro, cinema e música. “O político
tocaria o artista plástico ‘de leve’” (AMARAL, 2003, p. 329). Para AMARAL esta “apatia”
estaria relacionada ao caráter elitista das artes plásticas.
Além de ser um argumento generalista da condição social dos artistas plásticos e das
instituições de arte, não contribui para a análise e discussão da materialidade e visualidade
das obras produzidas no momento. Diante disso, Artur Freitas alerta para os cuidados das
correlações entre cenário político e artes.
Desse modo, mesmo que aceitemos que nesses tempos, nas diversas
produções dos artistas plásticos, grosso modo, tenha havido uma certa
abertura aos problemas políticos e sociais brasileiros, é imprescindível ter
em mente que essa porosidade heterônoma só possui sentido se
compreendida a partir das discussões internas ao meio artístico, o que faz
indispensável uma incursão nas condições de possibilidade que se
apresentavam – em termos de linguagem e de história das formas – aos
artistas dos maiores centros brasileiros. (FREITAS, 2004, p. 72)
Os textos de Aracy Amaral são referenciados em diversos estudos das artes no Brasil da
década de 1960, muito até pelo tom memorialista da autora que presenciou e acompanhou
vários eventos na época. Mas podemos perceber que a autora desenvolve seu texto como
se estivesse à procura de um tipo ideal de artista militante político. Cita alguns artistas e
suas obras como se enquadrassem-se no sentido semântico de rebeldia contra o regime
vigente e de crítica contra o status quo. Porém, o fechamento de cada uma dessas
passagens é carregado de um ar de frustração por não encontrar entre os artistas um
genuíno guerrilheiro, revolucionário de esquerda, engajado politicamente contra a ditadura.
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A importância que a história da arte oferece aos artistas que rompem com a tradição e
postulam novas ideias e manifestos vinculados aos questionamentos acerca dos cânones
artísticos e à institucionalização das artes, muito criticada neste período, parece estar
subjugada para a autora a uma participação política literal. O olhar que lançamos a algumas
obras do período, revelam sim, que muitos dos artistas foram militantes e revolucionários,
lutando contra as situações de opressão estabelecidas, atuando dentro do seu próprio
campo de conhecimento e produção, as artes plásticas, sem ser prioritariamente neo-
figurativo ou performático, reencenando torturas, símbolos militares ou coisas do tipo. A
própria materialidade, a efemeridade, a repetição da forma e do gesto, símbolos e sinais do
meio urbano, enfim, são vários sentidos impressos em obras que nos demonstram que as
propostas artísticas perpassaram a realidade brasileira em suas várias esferas sociais. O
que é preciso pensar é a obra enquanto vestígio, fonte e testemunho e não como ilustração
de uma narrativa institucionalizada pela voz dos vencedores da pós-ditadura.
Manifestos e escritos de artistas confirmam o que já podemos ver em obras da época: uma
influência do ideário neo-figurativo internacional, expressando na arte as contestações
sociais. Desta maneira, a contestação pode sim ser uma chave de compreensão dos
aspectos semânticos de muitas obras do período, mas não pode ser uma regra de
acessibilidade a todas as propostas artísticas do momento. Entre os anos de 1964 a 1969, o
país assistiu uma produção cultural de oposição, sendo consumida e disseminada com
relativa eficácia nas manifestações de cultura de massa. Sobre isso, Artur Freitas
argumenta:
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Estas discussões sobre a arte estiveram presentes em eventos que entraram para a história
da arte brasileira como definidores de uma nova postura do artista, mais socialmente
engajado e crítico às institucionalizações da arte. Entre 1964 e 1968, a liberdade de
expressão não estava inteiramente cerceada, o que ocorreu mais efetivamente após o Ato
Institucional Nº 5, de 13 dezembro de 1968, que aparelhou e institucionalizou a máquina de
repressão e tortura. Ocorreram neste período Opinião 65 e 66, Proposta 65 e 66, Vanguarda
Nacional Brasileira, Nova objetividade brasileira4. O intuito de Opinião 65 foi instigar a
manifestação política entre os artistas e a posição perante a situação social da arte, além
disso, teria sido importante para inserir no espaço museológico novas linguagens da arte. Já
Proposta 65, apresentou a discussão sobre o Novo Realismo, comunicação e cultura de
massa na arte (ALVARADO, 1999). Opinião 66, Proposta 66 e Nova Objetividade Brasileira,
reforçaram o discurso de combate às categorias de arte. Vários artistas participaram
ativamente destes eventos estabelecendo discussões estéticas e ideológicas incorporando a
crítica à violência, ao capitalismo, à cultura de massa e defendendo a liberdade de
expressão, principalmente pelo uso de novos e diversificados materiais e suportes.
Por toda esta extensa narrativa, caracterizada pelo diálogo crítico das artes com o cenário
social vigente, a história da arte da década de 1960 foi institucionalizada com vários marcos
estabelecidos entre eventos de arte e momentos político e econômicos do país. Mas resta-
nos questionar: em que medida estes marcos representam as obras produzidas no período?
Entre os vários eventos, os salões estaduais e municipais concentram importantes
referências dos momentos da história da arte no Brasil, pois eram propagadores de valores,
movimentos e tendências impressos em obras compondo o acervo de vários museus
brasileiros por meio dos prêmios e aquisições. Desta maneira, buscar analisar as obras que
circularam nos SMBA-BH contribui para a releitura da história da arte no Brasil e para um
questionamento crítico acerca das correlações causais entre arte e cenário sócio-político.
Os Salões eram promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte desde 1937, sendo
realizados, desde 1957, no Museu de Arte da Pampulha. Este evento era o principal
4
Ocorridos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1965 e 1966; Fundação Armando
Álvares Penteado, em São Paulo, em 1965 e 1966; na Reitoria da UFMG em Belo Horizonte, em
1966; e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967; respectivamente.
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definidor do circuito artístico do estado de Minas Gerais, fazendo parte também, desde a
década de 1960, do círculo de eventos nacionais por contar com a participação de críticos
de renome nacional no júri, como Mário Pedrosa, Frederico Morais, Walter Zanini e também,
pelo fato de contar com a participação de artistas reconhecidos nacionalmente. O período
que abrange os Salões de 1964 ao de 1968 demarca a transição da arte moderna para a
arte contemporânea, assistindo a emergência de novas referências visuais e de variadas
proposições artísticas que influenciaram a formação de um ideário de arte nacional. Neste
período o SMBA-BH passou por reestruturações que refletem as mudanças nas artes e no
cenário político social da cidade.
O ano de 1964 foi marcante, pois divulgou no XIX SMBA-BH, o rompimento com o estilo
mineiro de pintar, expressa por um dos artistas participantes do Salão, Jarbas Juarez. A
obra Composição em Preto nº 1 será aqui analisada focando principalmente seu caráter de
marco definidor do início da arte contemporânea, tese defendida por Marília Andrés Ribeiro
(1997), e seu provável aspecto de contestação ao regime ditatorial, recém instaurado
durante a criação e inserção da obra no Salão, inaugurado em 12 de Dezembro – data
oficial de abertura dos Salões por fazer parte das comemorações do aniversário da capital
mineira. Dando um salto para o XXII SMBA-BH, apresenta-se a obra Máquina de Triturar
Homens, de 1967, do artista mineiro Getúlio Andrade Starling, que demarca as discussões
entre as divisões tênues entre as categorias de arte, inaugurando as construções
escultóricas como nova determinação de arte objeto. No XXIII SMBA-BH destaca-se a obra
de Teresinha Soares, intitulada Guerra é Guerra vamos sambar, que dialoga com os
formatos de pinturas tridimensionais e com as sequencias narrativas comuns às obras da
pop art, trazendo um diálogo sútil e ao mesmo tempo insinuante da condição política do país
e do ufanismo das festas populares.
O artista, autor de Composição em Preto nº 1, Jarbas Juarez, era até então mais conhecido
por seus desenhos. A adoção da pintura marcou sua trajetória como sendo questionador,
combativo, e vanguardista por definir em suas obras posições de ruptura com as tradições
da arte mineira e por suscitar temas de oposição à situação social vivida no país (RIBEIRO,
1997). A obra em questão é uma pintura à óleo e tinta esmalte automotiva, com colagens de
papel corrugado e papel higiênico sobre tela. Foi confeccionada na vertical com a
composição em dois paralelos. A tela é monocromática em preto, aparentando distinção de
tons e brilhos pela aplicação de duas tintas diferentes e de texturas com materiais diversos.
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A inserção de produtos pouco comuns aos cânones da pintura sobre tela demarca o
rompimento de Jarbas Juarez com as tradições artísticas. Contudo, por mais que pareça
novidade no campo da experimentação enunciada pelo artista, e perceptível na análise de
suas obras na opinião dos críticos da época, é importante ressaltar que tanto a tinta
automotiva quanto o uso de colagens já estavam presentes em obras pelo menos desde a
década de 1950, entre os cubistas, inclusive no Brasil. É claro que não podemos
desconsiderar o rompimento de Jarbas Juarez com a figuração paisagística, estilo comum
entre os alunos e seguidores de Guignard, mas essa obra ainda mantém características
tradicionais de pintura se comparada às determinações da arte contemporânea.
O que chama atenção nas colagens de Juarez não é simplesmente a agregação de papéis e
sim a diversidade dos mesmos. São utilizados papel higiênico, papel corrugado e papelão,
tipos de papéis desprezíveis na arte por sua efemeridade e sua função prática associada ao
cotidiano. Teria sido intencional esta escolha de Jarbas Juarez associando os papéis
5
BENTO. Diário Carioca, Cortes Drásticos do Salão Mineiro. Rio de Janeiro, 11/12/1964.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Apesar de o Brasil já viver sob suas reminiscências desde o fim da 2º Guerra Mundial, num estado
democrático de direito que vivia sob suspeições e vigílias da polícia política diante da polaridade entre
capitalismo e socialismo vivido na Guerra Fria.
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400 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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A obra da artista Teresinha Soares, Guerra é Guerra – Vamos Sambar, foi selecionada
como 2º prêmio de pintura. Trata-se de um quadro montado com partes de compensado de
madeira colados e encaixados, estilo tela-caixa. A volumetria desta montagem e as cores
vibrantes chamam a atenção do espectador que a princípio aproxima-se envolvido por um
torpor de agitação e da combinação exultante de cores. Mas logo ao se deter na imagem à
sua esquerda percebe que a montagem em formato de filme fotográfico em preto e branco
demonstra uma cena dramática: uma figura humana carregando uma maca com uma
pessoa desfalecida. Os quadros do filme fotográfico são cortados e enquadrados numa
sequencia de ângulos que demonstram movimento.
À direita os quadros coloridos (nas cores da bandeira nacional) são uma sequencia narrativa
na vertical, demonstrando cenas de festa e rostos mascarados. Uma alusão às festas
carnavalescas tipicamente brasileiras. A temática da brasilidade, ufanismo e demarcação de
emblemas da cultura nacional rivalizam com a denúncia da violência e a escuridão do
regime militar que esconde a repressão e impõe medidas compensatórias de incentivo à
cultura carnavalesca.
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Referências
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(1951 – 2001). São Paulo: Boitempo, 2004.
ALVARADO, Daisy Valle Machado Peccinini de. Figurações Brasil anos 60: neofigurações
fantásticas e neosurrealismo, novo realismo e nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural;
Edusp, 1999.
LUZ, Angela Ancora da. Salões Oficiais de Arte no Brasil – um tema em questão. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2006.
RIBEIRO, Marília Andrés. Arte e política no Brasil : A atuação das neovanguardas nos anos
60. In. FABRIS, Annateresa (org.). Arte e Política: algumas possibilidades de leitura. São
Paulo: FAPESP; Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
VIVAS, Rodrigo. Por uma História da Arte em Belo Horizonte: artistas, exposições e salões
de arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.
ISBN: 978-85-62707-55-1
402 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Introdução
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A versão apresentada traz reflexões atuais do autor no momento, mas também não
deixa de atualizar aspectos já levantados no livro Um pequeno guia sobre o movimento
estudantil e o golpe de 1964 em Ouro Preto, Minas Gerais, que foi publicado em 2013 pela
Editora Prospectiva.
A entidade estudantil que mais teve peso político na história do movimento estudantil
da Universidade Federal da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) foi o Diretório
Acadêmico da Escola de Minas (DAEM). Criado em 1931, teve sua primeira reunião em 1º
de novembro de 1932. O DAEM realizou inúmeras atividades ao longo de sua história.
Criou, em 1936 a Revista da Escola de Minas (existente até hoje), que é uma publicação
técnico-científica na área de Engenharia, cuja comissão inicial foi composta de Jardel
Borges, Raymundo Campos Machado, Walter José Von Kruger e Amâncio Lemos
Figueiredo.
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“Desde a década de 1940, é provável que os alunos tenham sido o elemento mais
dinâmico (da Escola de Minas de Ouro Preto). A eles está afeta a publicacao da Revista
da Escola de Minas, hoje o único veículo de divulgação dos trabalhos científicos
produzidos na Escola. Deles também foi a iniciativa de criar a SICEG, já mencionada,
que até hoje mantém suas atividades” (CARVALHO, 1978, p. 143).
O Brasil vivenciou uma forte tensão política a partir da renúncia de Jânio Quadros,
em 1961. A política brasileira ficou marcada com aquele episódio, inclusive com o
impedimento da posse de João Goulart (Jango) por forças militares. Em 1964, porém, nos
momentos próximos ao golpe tais fatos puderam ser percebidos com os desdobramentos do
Comício de 13 de Março, que sinalizou a existência de um golpe em marcha há algum
tempo e que dificilmente poderia ser interrompido. Associado à inexistência de uma
resistência efetiva e sistemática pelos militantes de esquerda, que ficou confirmada em
seguida, entre 31 de março e 1º de abril de 1964, o golpe pôde ser constatado com a
movimentação das primeiras tropas em Minas Gerais. O Presidente João Goulart deixava o
poder e se exilava no Uruguai.
A pequena cidade de Ouro Preto foi marcada desde os primeiros dias do golpe com
uma série de pichações e brigas entre os estudantes, bem como das primeiras prisões
políticas. O delegado da cidade, que estava devidamente munido de uma lista dos
“subversivos” rascunhada por setores conservadores ou reacionários de Ouro Preto, iniciou
nos três primeiros dias – com a ajuda de milícias civis armadas – diversas prisões de
estudantes, políticos, operários e tantos outros que foram considerados “perigosos”.
Algumas prisões ocorreram dentro das próprias repúblicas estudantis.
A bipolarização dos estudantes entre “comunistas” e “reaça” ficou mais clara após o
golpe. Para Márcio Pereira, que foi preso em 1964, nos informou como as prisões foram
realizadas: “começaram a ir na casa de um a um, fizeram uma milícia e os direitistas se
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Os militantes estudantis que haviam sido presos em Ouro Preto nos primeiros dias
do golpe começaram a ser soltos após as comemorações do dia 21 de abril de 1964. O
Presidente Castelo Branco foi homenageado pelo Governador Magalhães Pinto em
solenidade na Praça Tiradentes quando das comemorações cívicas em memória a
Tiradentes e aos demais inconfidentes.
1) Políticos: Benedito Gonçalves Xavier, Antônio Cardoso Roriz, Sebastião Francisco (Maria
Preta), Júlio Armando Fortes, Kirki Gerônino e Aderilho Fernandes (todos vereadores);
3) Estudantes: Nuri Andraus Gassani, Antônio Carlos Moraes Sarmento, Eduardo Teles de
Barros (Amazonas), Ney de Almeida, Wagner Geraldo da Silva, Marco Antônio Pereira,
Rômulo Freire Pessoa, José de Paula Vasconcelos, Frank Ulrich Helmuth Falkenheim,
Osamu Takanohasi, Haroldo Pereira da Silva, Jacques Herskovic, Nelson Maculan Filho,
Sergio Antônio Pretti Maculan e Ivan Antônio de Tássis.
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a) “[...] é elemento que sempre declarou ser comunista, constando em comentários, sem
nenhuma prova, que teria ele um transmissor e que em certa época alguem da cidade teria
ouvido o mesmo [...], pelo rádio falando em linguagem que tinha a aparência de um código
que não chegara a ser decifrado” (Relatório de Crimes Contra a Segurança Nacional – Ouro
Preto).
b) “O depoente auxiliou várias prisões, como voluntário (...) que [...] era doutrinador
comunista, constando mesmo que tinha contactos direots com o Kremlim, em Moscou, de
onde recebia instruções” (idem).
Porém, o que é mais interessante nos relatórios são as conclusões que os seus
autores chegaram sobre a revolta estudantil de Ouro Preto, o que de imediato não
concordamos:
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“Valho-me da feliz oportunidade para levar ao conhecimento de Vv. Excias e dos dignos Diretores
da Escola de Minas, a meritória, patriótica e abnegada atuação de vários estudantes aí
matriculados que, conosco, permaneceram noites e noites constante vigília a lares de varias
famílias e autoridades desta cidade, na fase aguda da revolução de 31.3.64. Na qualidade de
prefeito municipal e um dos responsáveis pela ordem e tranqüilidade da família ouropretana,
mister se torna proclamar alto e a bom som a dívida insolvável de gratidão que a comunidade,
onde vivemos, contraiu para com estes jovens que deixaram o comodismo, o conforto e suas
primeiras obrigações para, patriótica e corajosamente, ajudar-nos no policiamento da cidade.
Creia Vv. Excias que a nossa grande Pátria e os pósteros hão de agradecer os esforços e
desprendimentos com que, honestamente, estão Vv. Excias. cuidando de averiguar se, na
Comunidade da benemérita Escola, existem elementos nocivos que desejam deslustrar o
ambiente democrático e saturado de sublimes lições e sublimes exemplos de brasilidade, que
sempre foram o apanágio do velho glorioso solar de Gorceix” (Carta de José Benedito Neves –
Prefeito de Ouro Preto – à Comissão de Inquérito, Ouro Preto, 14 de maio de 1964, grifos nossos
no Documento).
“E teve uma reunião do Diretório em que eles não podiam mais ser chamados de
colegas, mas de “senhores”. E houve na assembléia o pessoal de direita que nos
defendeu, porque não gostavam deste tipo de negócio. E: “fulano, fulano e fulano não
são mais colegas, e sim, senhores”. Deve ter sido em maio ou em agosto de 64”
(MACULAN, 2003).
“Eu tenho certeza que eles (voluntário da ´revolução´) achavam que estavam fazendo o
bem, que nós realmente éramos ´perigosos`. Não tiveram a capacidade de verificar que
estavam sendo usados, que eram instrumentos da elite da sociedade (...) Mas a nossa
volta foi um sucesso. Foi festa. Aí você vê o que mais me magoou foi o pessoal que foi
preso. E eu fiquei muito magoado com a atitude de colegas. Uma coisa é brigar. Mas
prisão é uma coisa que saí do seu nível de conhecimento” (MACULAN, 2OO3).
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“Alguns poucos daqueles que eram ligados a esses dedo-duros nas repúblicas
começaram a ser discriminados por uma maioria que foi formada após o golpe militar e
de antipatia aquela situação. Muitas daqueles que eram de direita, manifestadamente da
direita e que não tinham participado do golpe nem de formação de nenhum bloco que
apoiasse o movimento militar, ficaram de certa forma contrários ao que nos foi feito como
prisões, acusações e não sei o que”.
O DAEM na gestão de 1965 teve poucas condições de atuar, pois além da ameaça
de intervenção, o seu funcionamento dependia de ajustes de estatutos e da devida
aprovação das autoridades acadêmicas. O Diretório 1965-66 foi composto pelos seguintes
membros: Presidente: Cleverson Cabral; Vice-Presidente: Ivan Antônio de Tassis; 1º
Secretário: Benoni Torres; 2º Secretário: Jacques Herskovic; Tesoureiro: Rogério Vasques
Benezath.
Mas o movimento estudantil foi reconquistando um pouco mais a sua força em 1966.
A UEE de Minas Gerais, em ofício, convocou todas as entidades estudantis para as suas
eleições que ocorreriam durante o XX Congresso dos Estudantes Mineiros. E com a palavra
de ordem contra a Lei Suplicy: “Temos hoje fôrça bastante para reafirmar nossa denúncia à
Lei Suplicy, instrumento atentatório à livre organização dos estudantes. Força que provém
dos próprios estudantes e de sua consciência democrática, que não aceita as imposições
ministeriais” (Ofício de 15 de maio de 1966).
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de 1966 ficou na história. Costa e Silva era Ministro da Guerra e veio até Ouro Preto. E foi
realizada uma manifestação, onde vários estudantes em muitos ônibus vieram dispostos
inclusive a ser presos, conseguiram surpreender e saíram daqui sem serem presos. Aí teve
uma assembléia no DCE da Gonçalves Dias em Belo Horizonte com o povo que chegou de
Ouro Preto. E dali ocorreu uma arrancada para uma chapa da UEE/MG (União Estadual dos
Estudantes de Minas Gerais) muito combativa, que é muito vinculada ao 21 de abril de Ouro
Preto. Ali também era um lugar de manifestação que fazia o Governo Militar. Sempre fez
manifestações de apoio à ditadura utilizando o 21 de abril. Portanto, os estudantes se
mobilizavam para protestar no 21 de abril” (Depoimento de Nilmário Miranda a Otávio Luiz
Machado).
Ainda durante o ano de 1966 Minas Gerais contribuiria para o movimento estudantil
brasileiro ao presidir o 28º Congresso Nacional de Estudantes da UNE que, mesmo
oficialmente proibido pelo regime militar, funcionou com o apoio dos órgãos estudantis. A
UNE realizava suas reuniões e eleições clandestinamente. O 28º Congresso foi realizado
num convento.
Considerações Finais
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Por outro lado, o crescimento vertiginoso do mercado de trabalho não era acompanhado do
debate de novas propostas de formação profissional.
Referências
____. Atas das reuniões do Conselho de Representantes dos alunos da Escola Nacional de
Minas e Metalurgia da Universidade do brasil, 15 de maio de 1957 a 26 de outubro de 1962.
____. Atas das reuniões do Conselho de Representantes dos alunos da Escola Nacional de
Minas e Metalurgia da Universidade do Brasil, 15 de maio de 1957 a 26 de outubro de 1962.
2) Bibliografia
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CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da Glória. São
Paulo: Editora Nacional; Rio de Janeiro: Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), 1978.
____. “As repúblicas estudantis da Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil”. In: Revista
Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Portugal, Centro de Estudos Sociais, Universidade de
Coimbra, p. 197-199, outubro de 2003.
____. Um pequeno guia sobre o movimento estudantil e o golpe de 1964 em Ouro Preto,
Minas Gerais. Frutal: Prospectiva, 2013.
POERNER, Arthur José. O poder jovem – história da participação política dos estudantes
brasileiros. 2ª ed. Ilustrada, revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 1993.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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Introdução
“se as coisas são inatingíveis... ora! Não há motivos para não querê-las...Que tristes
os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas” (Mario Quintana)
Durante 21 anos o Brasil viveu em um regime ditatorial, marcado por constantes violações
aos direitos humanos, dentre eles o desaparecimento forçado de pessoas e a violação à
dignidade da pessoa humana, o que deixou resquícios até os dias de hoje. Entretanto esse
período veio em voga com o Debate acerca do Direito à Verdade e à Memória e a
necessidade de instauração de uma Comissão para averiguar as violações à época e
(re)construir a memória “apagada” da sociedade.
A aprovação da lei de anistia no Brasil em 1979, durante o regime militar, é o marco jurídico
fundante do processo de redemocratização. A forte e histórica mobilização social da luta
pela anistia e pela abertura política é de tal sorte que do conceito de anistia emana toda a
concepção da Justiça de Transição no Brasil. O conceito de anistia enquanto “impunidade e
esquecimento” defendido pelo regime militar e seus apoiadores seguiu estanque ao longo
dos últimos anos, passando por atualizações jurisprudenciais. Por outro lado, o conceito de
anistia defendido pela sociedade civil na década de 1970, anistia enquanto “liberdade”,
seguiu desenvolvendo-se durante a democratização, consolidando-se na ideia de anistia
enquanto “reparação” constitucionalizada no artigo 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias de 1988. Portanto, quanto ao déficit de juridicidade, a questão
que se apresenta é a seguinte: acordos políticos do passado autoritário podem ter o condão
de afastar o exercício de direitos humanos na democracia? Existe democracia sem direitos
humanos? (Abraão e Torelly, 2012).
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Deste modo, esse artigo vem trabalhar a importância do (re)memorar, ou para alguns, tomar
conhecimento, em especial a juventude brasileira que carece de conhecimento acerca
desse período tendo em vista a escassa quantidade de livros didáticos sobre o tema da
Verdade e da Memória e a consolidação da Democracia no Brasil.
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Para compreendermos o Direito à Verdade e à Memória devemos ter em mente que ela
constitui-se como um dos elementos da Justiça Transicional. O conceito de justiça
transicional surgiu no final da década de oitenta e início da década de noventa,
principalmente em resposta às mudanças políticas ocorridas na América Latina e no Leste
Europeu. Da junção de demandas por justiça e por transição democrática, o termo justiça
transicional foi cunhado para expressar métodos e formas de responder a sistemáticas e
amplas violações aos direitos humanos. Assim, justiça transicional não expressa nenhuma
forma especial de justiça, mas diversas iniciativas que têm por intuito reconhecer o direito
das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da
democracia.
Em 1988, esta área ganhou importante fundamento no direito internacional. Parte disto em
função da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativa ao caso
Velásquez Rodríguez vs. Honduras, em que ficou definido que todos os Estados estão
sujeitos a quatro obrigações: a) tomar medidas para prevenir violações aos direitos
humanos; b) conduzir investigações quando as violações ocorrerem; c) impor sanções aos
responsáveis pelas violações e d) garantir reparação para as vítimas. Estes princípios foram
reafirmados em decisões subsequentes e adotados também por decisões da Corte Europeia
de Direitos Humanos e por tratados e resoluções da ONU (Pinto, 2010).
Desta forma, o Direito à Memória e à Verdade deve ser entendido como algo vivo e como
um instrumento que sinalize à sociedade que num passado recente ela estivera presa à
dominação estatal. A memória é fundamental para a ressignificação social e temporal das
pessoas e segundo Hannah Arenth é “o elo que liga o passado ao futuro, tencionando e
agregando significado ao momento presente”( ARENTH, 2000). Ela deve ser tratada como o
dever de não esquecer, deste modo, este direito consiste em uma obrigação estatal de criar
espaços públicos, a fim de propiciar o debate e contribuir para emancipação política dos
indivíduos. Além disso, mais importante do que a memória individual construída tem-se a
memória coletiva como direito e constructo para a construção e fortalecimento da nossa
sociedade.Desta feita, a memória é um dever-direito, necessáriocomo fator cultural, social e
emancipatório do povo.
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O conselho almejava que o artigo 1º fosse revisto com base na Constituição Federal de
1988, bem como pelos tratados ratificados e vigentes no País. Partindo do pressuposto que
a Constituição tem como princípios fundamentais o direito à vida, à integridade física e
pessoal, bem como o livre acesso à informação pública. Requeria do STF uma análise
hermenêutica, conforme a Constituição Federal, tendo em vista que ele é o guardião da
mesma e uma análise axiológica, a fim de possibilitar uma efetiva justiça de transição no
Brasil.
Entretanto a rejeição do ADPF 153 representou um enorme retrocesso para a sociedade
brasileira, uma vez que reiterou a impunidade dos crimes cometidos na ditadura, como
assim também fez a Lei de Anistia, e, deste modo um retrocesso ao processo democrático.
A decisão não levou em consideração a relevância da temática para a consolidação de um
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Ab initio faz-se mister salientar que o Estado brasileiro já havia se considerado, de certo
modo, responsável pelo assassinato de opositores políticos, quando em 4 de dezembro de
1995 promulgou a Lei 9.140/95. Esta lei reconheceu a responsabilidade objetiva estatal
sobre cerca de 138 casos de desaparecidos, bem como o pagamento pecuniário para as
vítimas.Entretanto cada uma delas deveria demandar de forma particularizada para receber
o que lhe é de direito. Porém, quando da edição da decisão da ADPF 153, o Estado
brasileiro demonstrou falta de compromisso com o avanço do direito à verdade e à memória
e a consolidação da democracia no País.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é unânime no entendimento
de que o desaparecimento forçado constitui grave e múltipla violação dos direitos humanos,
em especial de distintos dispositivos da Convenção Americana (Caso Anzualdo Castro
versus Peru. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas. Sentença).A Corte
reconheceu a responsabilidade do Estado no caso da Guerrilha do Araguaia, reiterando o
desaparecimento forçado de pessoas como uma violação a privação da liberdade
resguardada no artigo 7º da Convenção Americana, conforme vislumbra do entendimento
abaixo:
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Esta obrigação implica o dever dos Estados Parte de organizar todo o aparato
governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício
do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e
pleno exercício dos direitos humanos. Como consequênciadessa obrigação, os Estados
devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela
Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e,
se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. É
importante a responsabilização para o processo de amadurecimento da história política e
constitucional do País e para que se fortalece a democracia.
O Direito à Verdade e à Memória ainda não se concretizou no Brasil e, por isso, pensar em
educação em direitos humanos se mostra relevante, principalmente porque está em pauta a
votação de uma Comissão da Verdade e da Memória, que irá contribuir para a construção
da memória no País.
É verdade que os acontecimentos ocorridos entre 1964 e 1985 criaram uma apatia na
sociedade brasileira em relação à política e,tão somente, a educação em Direitos Humanos
é necessária para a reconstrução do ideário social e político. Conforme afirma Vera Maria
Candau, a Educação em Direitos Humanos engloba a formação de sujeitos de direito, o
empoderamento dos atores sociais e influi nos processos de mudanças necessários para a
construção de uma sociedade democrática.
A Educação em Direitos Humanos visa sanar com o desconhecimento do passado-
presente1e contribuir parara a formação de valores e de novas práticas sociais. Nesse
sentido, a ação educativa deve ser promovida de maneira curricular e extracurricular,
propiciando lugares de debate e reflexão para a sociedade. Pois a educação consiste em
um instrumento que possibilita aos indivíduos descobrirem novas formas de luta e de
resistência. Compreender o Direito à Memória e à Verdade como integrante fulcral da
Educação de Direitos Humanos é repensar a construção da sociedade brasileira e
reconstruir uma memória política necessária para a efetiva democracia no Brasil e, dessa
forma, possibilitar que novas atrocidades não ocorram, bem como consiste em um direito
dos jovens conhecerem e evitarem o discurso do desconhecimento acerca desse período
mitigado pelos livros didáticos.
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Passado-presente no sentido em que até os dias de hoje a questão da ditadura é
rememorada.
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Por fim, construir uma sociedade sem memória é torná-la incapaz de sustentar um regime
democrático. A memória e o conhecimento da verdade não é recordar o passado, mas
consiste em pensar um futuro democrático, bem como educar em direitos humanos é
emancipar para a construção política e social, redefinir o passado, refletir o presente e
projetar um futuro com a racionalidade devida.
Considerações finais
Referências
1) Bibliografia
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CANDAU, Vera Maria. Educação em direitos humanos: desafios atuais. In: Educação em
Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológico. João Pessoa: Ed.Universitária UFPB,
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
Cf. Caso Anzualdo Castro versus Peru. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 22 de setembro de 2009. Série C No. 202,
Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24, par. 197.
C.A.T., Caso Saadia Ali versus Tunísia. Comunicação No. 291/2006, Decisão de 21 de
novembro de 2008, par. 15.7,
Cf. E.C.H.R., Case of Aksoy v. Turkey. Application No. 21987/93, Judgment of 18 December
1996, para 98;
E.C.H.R., Case of Selçuk and Asker v. Turkey. Applications Nos. 23184/94 and 23185/94,
Judgment of 24 April 1998, para 96,
E.C.H.R., Case of Keenan v. United Kingdom. Application No. 27229/95, Judgment of 3 April
2001, para 123.
Cf. A.C.H.P.R., Case of MouvementIvoirien des Droits Humains (MIDH) v. Côte d’Ivoire,
Communication No. 246/2002, Decision of July 2008, paras. 97 and 98.
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Esse rico campo dos estudos lexicais, encontra-se dividido em dois ramos
paralelos. De um lado, ao estudo do topônimo (nome próprio que se atribui ao lugar) situa-
se a Toponímia; de outro, o ramo da ciência, que lida com o estudo dos nomes pessoais, é
conhecido como Antroponímia.
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425 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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sociais com o próprio fenômeno de nomear; com o ato de dar nome ou de emprestar um
nome ao “corpora toponímico”.
O ponto de partida da ideia apresentada pelo autor, que ele considera uma
constatação banal, é de que “as trocas historiográficas entre a Itália e a França foram
fortemente desequilibradas”. Aparentemente simples, a observação de Ginzburg tem o
objetivo de apresentar uma sutil crítica à história da historiografia.
Por meio dessa constatação, o autor aponta requintada análise acerca das
relações existentes entre a História e a Antropologia. Enquanto se observa, no
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“Os registros civis apresentam-nos os indivíduos enquanto nascidos e mortos, pais e filhos; os
registros cadastrais, enquanto proprietários ou usufrutuários; os autos, enquanto criminosos,
enquanto autores e testemunhas de um processo. Mas assim corre-se o risco de perder a
complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade determinada”. (Ginzburg,
1995, p.173)
“Mas o centro de gravidade do tipo de investigação micro nominal que aqui propomos encontra-
se noutra parte. As linhas que convergem para o nome e que dele partem, compondo uma
espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social em que o
indivíduo está inserido”. (op.cit, 1995, p.175)
Em resumo, para o autor, por meio desse método seria possível, para além da
documentação, “atingir aquele nível mais profundo, invisível, que é constituído pelas regras
do jogo, a história que os homens não sabem que fazem”.
Após essa breve introdução, poderíamos ainda nos questionar em que sentido
a utilização da pesquisa onomástica, proposta por Ginzburg, acrescentaria algum diferencial
às pesquisas tradicionais que continuam sendo realizadas diariamente? Ou ainda, em que
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sentido se pode afirmar que a utilização do método micro nominal representa instrumento de
configuração de redes sociais mais abrangentes na narrativa histórica sobre um dado
indivíduo?
1
Para este estudo, entende-se Justiça de Transição como o conjunto de mecanismos que buscam
propor soluções para o enfrentamento do legado de violações de Direitos Humanos que
ocorreram em um dado momento da história. Sobre o conceito de Justiça de Transição ver
BICKFORD, Louis, “Transitional Justice”, in: The encyclopedia of Genocide and crimes against
Humanity, Macmillan Reference USA, 2004, Vol. 03, pp. 1045-1047.
2
É importante destacar que abordagem histórica mais recente procura desvincular o processo de
reparação aos perseguidos políticos do marco instituído em torno do ano de 1979. Essa nova
historiografia em consolidação, tem trabalhado com o intuito de identificar uma luta política,
construída ao longo de anos, como substrato das conquistas que culminariam na Lei de Anistia.
Para este trabalho, utilizaremos a data de 1979. Ao longo da pesquisa será proposta reflexão
mais aprofundada, com o propósito de identificar as escolhas historiográficas que estão por trás
dessa opção.
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Nesse ano, introduz-se aquele que tem sido apontado como o primeiro
instrumento de reparação aos perseguidos políticos: a Lei nº 6.683 – a Lei de Anistia. Dessa
forma, justifica-se a escolha do ano de 1979 como marco inicial da pesquisa proposta.
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Ainda que o conteúdo do folheto, por si só, simbolizasse uma curiosa fonte
para a análise historiográfica, havia, para além dessa primeira perspectiva de estudos, uma
espécie de história subterrânea que demandava atenção mais cuidadosa. O historiador
Carlos Fico, em importante trabalho publicado no ano de 2001, dedicou-se a escavar os
subterrâneos dessa história aparentemente simples.
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que “lograram situar-se como produtores especializados do discurso que sustentou suas
próprias ações (espionagem, violência), quanto a conduta omissa dos moderados que os
toleravam”. (21)
É precisamente esse aspecto que merecerá destaque nas análises que aqui
serão apresentadas. O conjunto documental produzido pelos agentes da ditadura militar, no
exercício de suas funções de inteligência e repressão foi capaz de configurar uma “rede
intertextual” que, em última instância, foi a responsável pela produção dos discursos que
justificavam e reforçavam as ações repressivas. Essa atribuição de sentido ao “outro”, ao
“inimigo”, ao “indesejável” constitui, ao mesmo tempo, o sentido do agir e a convicção da
necessidade das ações adotadas. Na sofisticada expressão de Carlos Fico, “gerava efeitos
extra discursivos, podendo ser analisados como a narrativa de uma infâmia ou o poder
simbólico do algoz”. (21)
3
Em junho de 1964, terminou o prazo estabelecido pelo Ato Institucional para as cassações e
suspensões de direitos políticos. Dois dias antes dessa data, a 13 de junho, foi criado o Serviço
Nacional de Informações (SNI). Projeto do General Golbery do Couto e Silva que, de acordo
com Fico, durante a “conspiração, montou uma rede de informações que preparou dossiês sobre
mais de 400.000 pessoas”.
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lançadas as bases para que esses homens pudessem não apenas investigar, mas também,
prender e interrogar. Era o primeiro passo decisivo para a formação de uma polícia política.
Diz-se algumas vezes: “A história é a ciência do passado”. É [no meu modo de ver] falar errado.
[Pois, em primeiro lugar,] a própria ideia de que o passado, enquanto tal possa ser objeto de
ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer de fenômenos que não
têm outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um
conhecimento racional? (Bloch, 2001, p.52)
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Introdução
O Brasil não foge a essa regra, e, por mais de uma vez, teve a retórica e simbologia
constitucional presentes em cartas e regimes não democráticos, como foi o caso do Estado
Novo e do momento político a partir do Golpe de 1964; da Carta Constitucional de 1967 e da
Emenda Constitucional n. 1 de 1969. De fato, os contextos históricos e semânticos em que
determinadas categorias são utilizadas variam muito, mas é necessário identificar alguns
elementos básicos que são definidores a essas categorias. Por exemplo, para ser rigoroso,
é difícil dizer que em 1964 o Brasil passou por uma verdadeira revolução e não apenas por
um mero golpe de Estado1, bem como, é absolutamente impossível dizer que entre 1964 e
1985 tivemos uma Democracia2. De mesmo modo, entendemos que as experiências e a
dinâmica política da época não podem ser ditas constitucionais, tão pouco se pode dizer que
as cartas política desse momento se caracterizam enquanto Constituição.
1
Sobre o movimento de 1964 ser ou não uma revolução, o próprio General Ernesto Geisel,
Presidente da República entre 1974-79, admitiu que o movimento civil-militar brasileiro de 1964 não
se tratou de revolução: “O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por
uma ideia, em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar João
Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a subversão, contra a
corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas
não as destruirá. Era algo destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução”
(GASPARI, 2002, p. 138). Para um conceito de revolução remetemos à definição de PASQUINO
(BOBBIO et al., 2010).
2
Qualquer que seja o conceito de Democracia que se pretenda, quer mais alinhada a perspectivas
procedimentalistas, quer a perspectivas mais substantivistas (BIELSCHOWSKY, 2013), não resta
dúvidas que o regime político brasileiro de 1964-85 definitivamente não foi democrático.
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uma experiência estatal de Estado Constitucional. É neste sentido que é útil a classificação
ontológica das constituições sugerida por LOEWENSTEIN (1982, p. 217) – em Constituições
normativas, nominativas ou semânticas –, bem como a dicotomia entre “ter e estar em
constituição” sugerida por LUCAS VERDÚ (1998, p. 44).
“Ter constituição” significa que um Estado tem um corpo normativo positivado que
pode ser considerado uma Constituição em sentido estrito. Enquanto “estar em constituição”
significa que uma sociedade vive dinâmica e dialeticamente sua constituição, trabalhando
para fazê-la efetiva. Nesse contexto, este trabalho toma por base uma concepção cultural de
Constituição delineando alguns parâmetros para um conceito em sentido estrito e material.
A partir disso, faz-se uma análise para identificar se durante o regime militar o Brasil
“teve constituição”. Em outras palavras, o objetivo deste trabalho é – de forma mais teórica
que analítica – observar se a Carta Política de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1 de 1969
efetivamente poderiam ser aproximadas do conceito de Constituição.
3
De fato, a posição aqui apresentada, em que se fixa em um conceito um tanto mais preciso de
Constituição, dificilmente pode ser dita majoritária no Brasil. Especificamente sobre o momento
político do regime militar brasileiro, há quem trate dos arranjos político-institucionais utilizando o termo
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Constituição de modo bastante mais genérico, falando, por exemplo, em “engenharia constitucional”
(BARBOSA, 2012, p. 49).
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Assim, para a análise do Regime político Brasileiro instaurado desde 1964, partimos
da compreensão que efetivamente nunca estivemos em constituição durante os anos da
Ditadura Militar. Portanto, nos termos colocados por LOEWENSTEIN, almejamos identificar se
vivemos um momento de Constituição nominativa ou de Constituição semântica. Logo, é
preciso estabelecer um conceito de Constituição enquanto “Código fundamental
sistemático”, formal e materialmente constituído.
Constituição e constitucionalismo
4
Destaque-se que por uma perspectiva positivista um texto axiologicamente descompromissado
poderia também ser chamado Constituição (KELSEN, 2006, p. 221), entretanto, a nosso ver uma
Constituição – sobretudo a partir das formulações feitas no segundo pós-guerra em resposta às
atrocidades do Terror – necessariamente tem de ser comprometida com a ordem democrática, com a
liberdade, igualdade, enfim, com a dignidade da pessoa humana, portanto, não basta uma
perspectiva semântica da Constituição, mas sim, tem de lhe ser reconhecida uma ontologia.
5
Há ainda uma quarta hipótese que não seria contemplada pela classificação de LOEWENSTEIN, mas
que pode ser bem melhor compreendida a partir do mecanismo de LUCAS VERDÚ, que é o caso da
Inglaterra. Os Ingleses não têm Constituição (ao menos enquanto código organizado e uno, apesar
das várias espécies de “normativas constitucionais” possíveis em seu sistema), mas estão em
Constituição.
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6
E que, apesar de sua indispensável contribuição à cultura constitucional, também permitiu o
crescimento do totalitarismo na Europa.
7
“A questão do primado da Constituição, como norma fundamental do Estado, que garante os direitos
e liberdades dos indivíduos, foi desenvolvida no decorrer do século XIX, com a consolidação dos
regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós-revolucionários. O constitucionalismo foi
utilizado, de um lado, para contrapor ao contratualismo e à soberania popular, idéias-chave da
Revolução Francesa, os poderes constituídos no Estado. De outro, utilizou-se a Constituição contra
os poderes do monarca, limitando-os. Dessa forma, a Constituição do Estado evitaria os extremos do
poder do monarca (reduzido à categoria de órgão do Estado, portanto, órgão regido
constitucionalmente) e da soberania popular (o povo
passa a ser visto como um dos elementos do Estado). Embora liberais, as Constituições não serão,
ainda, democráticas. E, mais importante, a Constituição não é do rei ou do povo, a Constituição é do
Estado, assim como o direito é direito positivo, posto pelo Estado” (BERCOVICI, 2004, p. 5).
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Direito Constitucional que já identifica novos direitos fundamentais bastante diferentes, ainda
que complementares, aos Direitos de Liberdade e aos Direitos de Igualdade do
constitucionalismo clássico e do constitucionalismo social. Fase nova sim, mas não de
ruptura com esse passado. Nova fase da velha caminhada do mesmo constitucionalismo,
este sim, interrompido pelas atrocidades do século dos extremos. Um fenômeno cultural que
delineia a Constituição em determinados parâmetros que também foram sendo consolidados
e, mesmo, redesenhados à medida que no ocidente foram caindo os regimes autocráticos
do século XX, quer no continente Europeu – Portugal em 1974 e Espanha em 1975, por
exemplo –, quer na América Latina – com o fim dos Regimes de Militares no Brasil,
Argentina, Uruguai ou Chile, por exemplo.
Contudo, como dito, não raro essas ditaduras tentaram utilizar-se da retórica
constitucional para dar ares de legitimidade a suas instituições. Por vezes formalmente
reconhecendo um rol de Direitos Fundamentais, quase nunca respeitados ou reconhecidos,
também expedindo inúmeros instrumentos normativos formalmente adequados para todas
as ordens e desmandos do regime.
O regime instaurado com o golpe de 1964 conviveu com três documentos que se
pretendiam constitucionais. O primeiro deles a Constituição democrática de 1946; segundo a
Carta Política de 1967; e, por fim, a Emenda Constitucional n. 1 de 1969.
A Constituição de 1946 sem dúvida foi uma Constituição. Para JOSÉ AFONSO DA
SILVA, inclusive, 1946-1964 foi o único período, efetivamente, democrático no Brasil, antes
de 1985 (SILVA, 2011). Documento anterior à Lei Fundamental alemã – paradigmática
dessa nova fase do constitucionalismo – essa Constituição trazia um rol de Direitos
Fundamentais, uma clara estrutura de divisão dos poderes e instituições democráticas. A
princípio, o discurso do golpe de 1964, de certo modo, propagava como programa do
movimento a defesa da ordem constitucional de 1946. Nessa linha, o primeiro Ato
Institucional (ainda não numerado), ao “reconhecer a exceção”, mantinha a Constituição de
1946. Entretanto, de fato, o primeiro Ato Institucional, e os que o seguiram, passaram a viger
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Aos poucos a Constituição de 1946 foi sendo deformada. Entre 1964 e dezembro
1966 foram nada menos que quatro Atos Institucionais e quinze emendas constitucionais.
Com os Atos Institucionais, dentre outras coisas, suspenderam-se garantias constitucionais;
permitiu-se a desfiguração do Congresso e das casas legislativas estaduais e municipais por
meio de cassações; extinguiram-se os partidos políticos; outorgaram-se amplos poderes ao
Poder Executivo Federal em nome da “elástica” motivação da “segurança nacional”;
ampliaram-se severamente as competências legislativas do Executivo; estabeleceram-se
eleições indiretas para Presidente e Vice-Presidente, Governadores e Vice-Governadores.
Quanto às emendas sofridas, entre 1946 e 1963, a Constituição tinha recebido apenas seis
emendas, enquanto de 1964-1966 foram quinze, que promoveram diversas mudanças no
Poder Legislativo, no Poder Judiciário, no sistema financeiro e tributário.
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Quase dois anos após a entrada em vigor da Carta de 1967, em dezembro de 1968,
é publicado o A.I. 5 que reforça o Estado de Exceção. De fato, a Carta de 1967 já não mais
atendia ao regime. Quer pelo trabalho feito pela oposição durante o Congresso Constituinte
(BONAVIDES; PAES DE ANDRADE, 1991, p. 436); quer pelo fato de a linha dura do regime
ter feito a sucessão de Castello Branco com Costa e Silva; quer pelo fato de um regime de
exceção ser, ele mesmo, contraditório à normalidade de uma carta jurídica. De fato, a Carta
de 1967 era mais liberal do que desejava o Governo Militar em 1968. E assim, “o Presidente
Costa e Silva encarregou seu Vice-Presidente, Dr. Pedro Aleixo, de redigir uma emenda à
Carta de 1967, já em desuso pelos inúmeros atos de exceção. A exceção passou a ser
regra” (RAMOS, 1987, p. 93).
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Nesse sentido, o artigo 1° da Emenda era claro: “Art. 1º. A Constituição de 24 de janeiro
de 1967 passa a vigorar com a seguinte redação”. É marca dessa nova Carta o ainda maior
fortalecimento do Poder Executivo, com mais intensa concentração do Poder e ainda
maiores e mais fortes ilegítimas restrições aos direitos e garantias individuais em nome da
segurança nacional. Enfim, esse documento representava a tentativa de institucionalização
do recrudescimento do regime que já estava em curso desde o A.I. 5. Institucionalmente
exacerbou os fundamentos do Golpe: o anticomunismo desmedido; o conservadorismo à
direita, sem o mínimo respeito aos direitos humanos mais básicos; política econômica a
partir de teses monetaristas, dentre outros; enfim, essa nova carta “é pior que a Constituição
de 1967. Malfeita, autoritária, centralizadora, praticamente entregou todos os poderes ao
Executivo. Esvaziou o Poder Legislativo. Retirou-lhe as prerrogativas de independência”
(SILVA, 2011, p. 80). Portanto, se não podemos identificar a Carta de 1967 como uma
Constituição menos ainda podemos dizer isso da Carta de 1969:
Considerações Finais
Por mais contraditório que possa soar, regimes autoritários precisam de liberalidades
institucionais para implementar seus programas. Portanto, geralmente têm se demonstrado
improváveis as tentativas de adoção eficaz de cartas políticas estáveis por ditaduras. Os
documentos outorgados tendem a rapidamente perder sua essência, ou mesmo, nunca ter
qualquer vigência, quanto menos, eficácia. Pois o autoritarismo não consegue conviver com
limitações a seu poder, e, por isso, é sempre antagônico ao constitucionalismo.
Aos regimes autoritários, sempre é necessária mais uma lei, mais uma norma, mais
uma emenda, mais uma “constituição”. É verdade que mesmo bons textos constitucionais
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não são capazes de, de forma demiúrgica, estabelecer um regime de liberdade. Ser e dever
ser não podem ser compreendidos ou postos de forma isolada. A norma constitucional não
tem existência autônoma à realidade e sua prestenção de eficácia não pode estar separada
das condições históricas de sua realização (HESSE, 1991, p. 14). Todavia, não estar em
Constituição geralmente faz com que Constituições, quer nominativas, quer semânticas,
tenham vida curta. Assim, quando regimes políticos fazem cartas políticas, querendo-lhes
apenas semanticamente chamar Constituição, é um bom indício de que essa comunidade
não vive em Constituição, não consegue limitar o poder, nem respeita com os direitos,
liberdades e garantias, tão pouco seus cidadãos,
Referências
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Lua Nova, São Paulo, n.
61, 2004, p.5-24.
BOBBIO, Noberto et al. Dicionário de Política. 13 ed. Brasília: Editora da UnB, 2010 (Vol. 2).
DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2010.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
ISBN: 978-85-62707-55-1
448 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
LUCAS VERDÚ, Pablo. Teoría de la Constituición como ciência cultural. Madrid, Dykinson,
1998.
SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro: evolução institucional. São Paulo:
Malheiros, 2011.
SMEND, Rudolf. Constitución y Derecho Constituiconal. Tradução José M.ª Beneyto Pérez.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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acumulados nos arquivos policiais eram representativos de uma lógica da suspeição. Ali, os
valores endossados pelas autoridades policiais “hierarquizavam as idéias submetendo-as,
diariamente, a um objetivo de purificar a sociedade. Definiam até décadas atrás, segundo
sua lógica, os limites entre o lícito e o ilícito” (p.21). As informações contidas nestes acervos,
antes de ser uma transparência da sociedade e de suas relações, explicitam um lugar social
legitimado para reprimir práticas políticas.
Ao tomar o “Inquérito DVS 096” como o cerne do corpus documental constituído para
escrever esse artigo, tentaremos nos reportar a essas duas dimensões conectadas da
produção da fonte: ela informa sobre a prática policial e as categorias de acusação
construídas a partir de relações transversais estabelecida com setores da sociedade. Para o
melhor rendimento de nossa análise, o texto está dividido em duas partes: numa primeira,
analisamos o movimento social dos “trabalhadores favelados”, organizado pela FTFBH, e,
numa segunda, verticalizaremos a discussão sobre o inquérito.
A Federação dos Trabalhadores Favelados existiu entre 1959 e 1964, sendo fruto de
uma rede articulada dentro e fora das favelas. Segundo seu estatuto, poderiam ter voz e
deliberar nas reuniões da Federação, os moradores que contribuíssem ou participassem de
alguma associação civil de favela, representando o interesse do lugar em que residiam.
Eram excluídos os atores externos e os moradores que não estivessem envolvidos nas
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associações civis do seu local de moradia1. A rede articulada pela FTFBH era a expressão
do gozo dos direitos civis, da liberdade dos indivíduos reunirem-se para defender seus
interesses. A solidariedade tecida entre as associações postulava a não-discriminação
quanto a “credos religiosos ou políticos”, visando a reunir o maior número de moradores2. As
situações que motivavam a mobilização eram contextualizadas por inúmeras relações com
partidos políticos, sindicatos, autoridades públicas e outras instituições religiosas e laicas
que tinham o foco de ação em áreas pobres.
1 Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. Cartório Gero
Olíva.
2 Estatuto da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte, 27/01/1960. Cartório Gero
Olíva.
3 O Barraco, [?/01/1962]. Arquivo Público Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 0119.
4 OLIVEIRA, Samuel. Política urbana e movimento de favelas em Belo Horizonte (1947-1964).
Saeculum – Revista de História, nº24, p.39-54, jan./jun.2011.
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da FTFBH representou uma alteração na forma como estes movimentos de luta pela
moradia se organizaram, pois eles passaram a se reunir de forma federativa.
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constante nos anos 1950. Antes de ser um sinal da “evolução” das favelas de Belo
Horizonte, a formação da FTFBH estava inserida na circulação de um tipo de repertório da
ação coletiva6 em escala nacional. Em 1954, foi fundada a União dos Trabalhadores
Favelados no Distrito Federal; em São Paulo, criou-se a Federação das Sociedades de
Amigos de Bairros e Vilas de São Paulo (Fesab); em 1959, encontrei o registro de um
evento que congregava as Sociedades de Bairros na cidade de Salvador7. Em todas essas
capitais, surgiam movimentos de moradores que reuniam mais de um bairro ou favela
politizando o cotidiano urbano.
6 O conceito de “repertório” tem como objetivo tornar inteligível como os personagens históricos
fazem protestos. Como usam de certo conjunto de “performances relativamente familiares e
modulares na qual um ator político faz reivindicações a outro”. Os meios de ação contra determinados
adversários não existem em número irrestrito e não são inventados a cada novo contexto de luta.
Elas se organizam como rotinas de protesto: constituem-se um aprendizado que envolve a escolha e
a legitimação no grupo social de um número limitado de formas de ação para reivindicar certas
demandas. Em conjunturas particulares, operam-se inovações nos protestos e a adaptação de
performances modulares. O repertório da ação coletiva é “uma combinação paradoxal de ritual e
flexibilidade”, variando de acordo com o ator que se estuda e com a conjuntura sócio-política. Cf.
TILLY, Clarles & TARROW, Sidney. Contentious Politics and Social movements. In: BOIX, Carles,
STOKES, Susan Carol (Eds.). The Oxford handbook of comparative politics. Oxford: Oxford University
Press, 2007, p.440-442.
7 LIMA, Nísia Trindade Verônica. O movimento de favelas no Rio de Janeiro: políticas do Estado e
lutas sociais (1954-1973). 1989. 230 f. (Dissertação de Mestrado em Ciência Política) - Instituto
Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ), Rio de Janeiro, 1989; FONTES, Paulo. Um
nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel, Rio de Janeiro: ed.FGV, 2010.
p.276 ; Sociedade de Bairros realiza congresso – declaração de princípios nacionalista. Novos
Rumos, Rio de Janeiro, 7 a 13/8/1959, p.10.
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Ainda que não existisse uma coesão entre os golpistas quanto ao projeto político
para o Brasil, configurando uma heterogeneidade de propostas e conflitos na disputa pelo
poder, havia o intento de desconstrução da legitimidade do governo João Goulart. As
imagens de “desorganização”, “comunista”, “corrupto” difundiram-se em diversos vetores de
socialização como forma de justificar a luta contra as elites políticas ligadas ao presidente
Jango, bem como dos movimentos que apoiavam as reformas de base. Para além do
governo de João Goulart, uma série de ações que tiveram vez e voz no Brasil entre 1945 e
1964, politizando a sociedade e as desigualdades de classe na cidade e no campo, poderia
serem taxadas como “subversivas”, como fora dos limites legais do regime.
A historiografia tem tomado esses eventos como o início de uma primeira “onda
repressiva” sobre a sociedade brasileira no contexto da ditadura civil-militar. As análise
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desse processo tomam os IPMs como signo do princípio da federalização dos órgãos de
segurança e momento privilegiado montagem do aparato repressivo da ditadura. A lógica de
instauração de IPMs responde à ascensão dos militares e civis ligados ao golpe e ao
processo de centralização do poder vivenciado de forma acelerada naquele período
(BRASIL NUNCA MAIS, 1985; ALVES, 1987; FICO, 2001). Essas análise tem o mérito de
anunciar a robustez do aparato repressivo que se constituiria a partir da centralização do
poder, mas perdem de vista nuances que são importantes. Afinal, se consultarmos os
acervos das polícias políticas estaduais, veremos que nem todos os inquéritos foram “IPMs”.
Existem outros que foram produzidos e estimulados pela onda repressiva decorrente do
Golpe de 1964, mas que respondiam a conflitos e lógicas localizadas em cidades ou regiões
específicas.
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O Inquérito DVS nº 096 foi instaurado em quatro de maio de 1964. A peça jurídica de
acusação incorporou ao discurso anti-comunista que organizava as perseguições aos
“inimigo interno” da “Revolução de 1964”. Segundo portaria do delegado de Segurança
Pública, Raimundo Tomaz, “elementos conhecidos nos núcleos favelados nesta Capital
vêm, já de algum tempo, organizando invasões de terrenos, criando novas favelas com
propósitos ainda não de todo esclarecidos, porquanto, segundo suspeita, este movimento
integrava plano de subversão da ordem e comunização do país”10.
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alicerçava-se numa reciprocidade com um grupo social que observava as favelas como uma
agressão ao direito de propriedade na cidade e a pressupostos estéticos que deveriam
prevalecer na expansão da cidade.
Referências
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1985). Petrópolis: Vozes,
1987.
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goular: Lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros Proibidos, Ideias Malditas. São Paulo: FAPESP,
2002.
FERREIRA, Jorge. Imaginário Trabalhista: Getulismo, PTB e cultura política popular. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a História. Rio de Janeiro:
FGV, 2006.
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel, Rio
de Janeiro: ed.FGV, 2010.
MOORE JR., Barrington. Injustiça – as bases sociais da revolta e da obediência. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
TILLY, Clarles & TARROW, Sidney. Contentious Politics and Social movements. In: BOIX,
Carles, STOKES, Susan Carol (Eds.). The Oxford handbook of comparative politics. Oxford:
Oxford University Press, 2007.
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Talita HANNA
Mestranda na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
hannahistoria@gmail.com
Para o Brasil, a primeira metade da década de 1970 esteve diante de uma esquerda
desmobilizada devido a repressão institucionalizada através do Ato Institucional n° 5. Com a
oposição dispersa, o poder militar sentiu-se mais confiante para reduzir o aparato repressivo
e dar margem a algumas mudanças políticas, até futuramente culminar na abertura política,
na figura de João Batista Figueiredo. Geisel, alinhado a posição de Castelo Branco,
concordou em estabelecer direcionamentos tênues e um regime militar mais tolerante,
porém dentro de um processo de distensão política cuidadosamente planejada para ser
“lenta, gradual e segura”. Outro elemento que contribuiu para o planejamento e execução da
distensão política foi a preocupação em preservar a corporação militar. A permanência
1
Informações contidas no livro de Luiz Gutemberg “Moisés, codinome Ulisses Guimarães” citado por
Elio Gaspari (2004).
2
Em entrevista ao jornal O Momento: 23 a 29 de fevereiro de 1976.
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Também um dos maiores parceiros das ditaduras militares na América Latina havia
mudado seu posicionamento em relação aos governos repressivos. Os Estados Unidos
passa, na figura do presidente Jimmy Carter, a posicionar-se em favor dos Direitos
Humanos, incentivando os países sob regime ditatorial a aderirem a uma política
democrática. No Brasil, A Igreja e a Ordem dos Advogados do Brasil já se posicionavam em
favor dos Direitos Humanos. Geisel também põe em pauta:
A distensão política, mesmo atuando com o Ai-5 em vigência até o fim do governo
Geisel, alimenta a esperança dos brasileiros, sobretudo daqueles que integravam
3
Os órgãos de espionagem e repressão chegaram a ter certa autonomia, porém sob subordinação
hierárquica (base das normas militares). Ao final do governo de Castelo Branco, os exaltados passam
da condição de grupo de pressão para “sistema de segurança”, com permissão para investigar,
prender e interrogar. Surge, assim, a polícia política. Para uma melhor leitura sobre órgãos de
espionagem e polícia política, ver: FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura
militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.
4
Os coronéis foram presos após um fracassado golpe no Chipre.
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UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
5
Por alguns autores chamada de “elite oposicionista”.
6
Em pequenos grupos ou em ações relâmpagos houve no Brasil, dentre outros, protestos contra a
presença de Nelson Rockefeller, em 1969; segundo aniversário da morte de Edson Luís, em 1970;
manifestação contra as arbitrariedades e a morte do estudante Alexandre Vannucchi na USP, em
1974. Já meados de 1974 – 1975 ocorrem diversas greves pelas universidades públicas do país.
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Nesse sentido, tendo por base pesquisa em jornais, é possível perceber que o
movimento estudantil na UFPB utilizou, ao menos nos primeiros anos de distensão do
governo Geisel, a cultura como meio de burlar a repressão na tarefa de aglutinar os
estudantes, trazendo-os cada vez mais ao campo da consciência política. Tais atividades se
davam, inicialmente, dentro do espaço acadêmico.
Nos jornais pesquisados, entre 1974 a 1975 não há registros de atividade
contestatória no meio estudantil acadêmico da UFPB. Já de 1976 a 1979 há registros de
algumas atividades estudantis em torno da cultura, rumo a vias mais amplas: O Momento
publicou, na edição 113 de fevereiro de 1976, o lançamento do jornal Gênese7, que tinha por
intuito divulgar os problemas sócio-político e econômico do nordeste brasileiro e das
universidades. Este não foi o único jornal produzido por estudantes na UFPB deste período:
os estudantes de comunicação lançaram o jornal Bocão, cuja finalidade era fazer uma
análise do jornalismo na Paraíba. Outro jornal promovido por estudantes foi O Berro, com
conteúdo que assemelhava-se ao jornal Gênese, com uma exceção: procuravam ater-se
aos problemas cotidianos da cidade de João Pessoa, desde matérias sobre infraestrutura,
excluídos (idosos, prostitutas, mendigos ...) e deficiência dos transportes coletivos.8
Apesar de representar uma boa circulação de notícias e ideias, a mobilidade
estudantil não converteu-se apenas em jornais. O jornal A União registrou na edição de 18
de julho de 1976, a realização de ciclo de debates sobre arte e cultura realizado pelo DCE-
UFPB, em conjunto com diversos diretórios acadêmicos. Realizados semanalmente, eram
debatidos temas ligados a música, teatro, cinema e literatura. Este também foi o ano do
sucesso nacional da peça Gota d’Água, de Chico Buarque e do teatrólogo paraibano Paulo
Pontes. Ano também em que Vladimir de Carvalho teve seu documentário “O país de São
Saruê” (de 1971)9 interditado e sob a censura da Divisão de Censura de Diversões Públicas.
É possível que esses fatores tenham engrossado o caldo de ideias entre os estudantes
acadêmicos de João Pessoa, sobretudo também alinhados as novas tendências
reivindicatórias entre os estudantes do Brasil. Se nas ruas estava difícil, era através da arte
e cultura que poderiam transformar algo.
No ano de 1977 houve novamente a proibição de passeatas estudantis por todo o
Brasil. O ministro Armando Falcão tomou medidas para que todos os estados brasileiros
7
Apesar de estar ligado ao DCE “diretório não participativo dos processos eletivos”, seus editores
(Paulo Tavares, Romero Antônio Leite e Carlos Tavares) alegam que é um jornal independente.
Edição 113 do jornal “O Momento” – 23 a 29 de fevereiro de 1976.
8
Transporte coletivo era um grande problema da população pessoense, principalmente dos
estudantes. Além da reduzida frota, era comum o não cumprimento ao direito estudantil da meia
passagem.
9
Documentário sobre a vida de lavradores, garimpeiros e outros moradores do nordeste brasileiro, da
área conhecida como polígono das secas (Paraíba, Pernambuco e Ceará). Foi censurado devido ao
teor de denúncia contra a exploração dos trabalhadores pelos donos de terra, sendo oficialmente
lançado em 1979, quando acabou premiado pelo júri do Festival de Brasília.
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bipartidaristas (MDB e Arena). O próprio teor publicado é outro e quem ler percebe que não
há intenção de agradar governantes vigentes. Em março de 1977, O Momento informa que
o DCE, presidido por Severino Dutra, promove a inauguração do Cineclube-UFPB, que
priorizava a exibição de filmes paraibanos. Em conjunto com a inauguração do cineclube
houve a campanha pela construção e publicação do Caderno de Poesia Marginal, com
intuito de incentivar os estudantes a expressarem suas angustias cotidianas, individuais ou
coletivas a partir da poesia.
É possível também ler a notícia sobre o ciclo de debates, também promovidos pelo
DCE-UFPB, com jornalistas dos jornais alternativos O Movimento, O Pasquim e Versus:
Jaguar, o cartunista Henfil, Antônio Carlos Carvalho e Marcos Faernann fizeram parte de
uma roda de debates como parte da calourada.12 Esses são registros que não devem ser
passados despercebidos, em se tratando de ações que visavam aglutinar estudantes a
refletir e agir para além dos interesses estudantis e profissionais.
A presidência de Severino Dutra no DCE (de 1976 a maio de 1977) esteve
bastante articulada a cultura. Em junho de 1977 tomam posse novos dirigentes no DCE-
UFPB. A entidade passa a ter como representante Walter Oliveira e a partir deste
momento percebe-se os primeiros passos de atuação estudantil fora do eixo acadêmico-
cultural. Há manifestações pela manutenção da meia passagem a partir da segunda
metade do ano de 1977, contra a campanha da Associação dos Transportes Coletivos
pela extinção da meia passagem estudantil. As movimentações estudantis receberam o
apoio da Arquidiocese da Paraíba, através da figura do arcebispo Dom José Maria Pires,
noticiado pelo O Momento em sua edição 188, de agosto de 1977. Temos aqui a saída
de estudantes do espaço acadêmico para as ruas, mesmo sob a vigência do AI-5.
Contudo, é a partir de 1979 que o movimento estudantil acadêmico de João
Pessoa toma a iniciativa de atuar em conjunto com outros setores da sociedade civil
paraibana13 em luta não apenas por causas estudantis. O DCE-UFPB apoia os
agricultores de Coqueirinho e Cachoeirinho, no município de Pedras de Fogo na
Paraíba, que estavam sendo violentamente despejados pela Usina Central Olho d’Água.
Este também foi o ano em que os estudantes da UFPB estiveram mobilizados em apoio
aos professores da rede pública estadual de ensino, por melhores salários e condições
de trabalho. Paralelamente em apoio aos professores, as atenções também estiveram
voltadas para o 31° Congresso da UNE, a ser realizado na Bahia. Sônia Maria Germano,
enquanto presidente do DCE, cedeu coletiva a imprensa local explicando a importância
12
Semana de arte e cultura promovida por entidades de representação estudantil acadêmica, como
parte da recepção aos novos estudantes acadêmicos, ou chamados feras.
13
Atuam em conjunto com o Centro de defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese da Paraíba,
Diretório Acadêmico 11 de agosto de Campina Grande, ADUF-PB, setor jovem do MDB-PB,
Movimento Feminino pela Anistia-PB.
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Considerações finais
Referências
1) Bibliografia
GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
ISBN: 978-85-62707-55-1
467 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
UFMG, Belo Horizonte – 18 a 20 de março de 2014
PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos
anos 70. 1997. 282 p. Dissertação de mestrado: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas.
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes
brasileiros. São Paulo: Centro de memória da juventude 1995.
2) Periódicos
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Tásso BRITO
Mestrando no PPGH-UFPE e bolsista CAPES.
tasso.brito@gmail.com
O filosófo Walter Benjamin é enfático quando diz “A tradição dos oprimidos nos
ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.” (BENJAMIN,
1994 p.226), as práticas de um estado exceção como no caso brasileiro seriam
endurecimento de práticas já existentes. Uma vez que este estado não seria o rompimento
das lutas e tensões que existiam antes deles, mas sim o acirramento destas, na medida em
que uma parcela da sociedade passa a exercer mais poder sobre outra.
Não sendo diferente a vida de outros membros do Partido Comunista ou que eram
nomeados de comunista por aquele órgão, eram vigiados e presos pelo governo
democrático então vigente. Na década de 1950, muitos membros do Partido Comunista
foram presos, depois de uma investigação empreendida pelo DOPS. Segundo Breyner
(1989), a operação policial e a prisão de vários membros do partido quase levou este ao fim
em Pernambuco.
A lei que vai servir de base de acusação para essas prisões durante o regime civil
militar não data do golpe de 1964, mas de 1953, a Lei de Segurança Nacional servirá de
base de acusação para os crimes considerados políticos pela ditadura civil-militar.
Então, podemos começar a pensar que as vidas desses homens filiados ao Partido
Comunista ou que eram denominados de comunistas pelos órgãos de repressão já eram
sujeitadas as práticas que comumente dizemos se tratar de um estado exceção. Não que o
período que existia antes do golpe de 64 fosse um estado de exceção, mas é inegável que
algumas de suas práticas eram tão autoritárias que muitas pessoas já viviam em seus
direitos em suspensão tal como será na ditadura que se seguiu no pós-golpe. Eram práticas
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que foram muitas vezes exacerbadas pela ditadura, mas que já existiam antes e por vezes
existirão depois do fim da ditadura.
Podemos pensar, como este período antes de 1964 trazia práticas que seriam
territorializadas com a ditadura. E não criadas com o golpe, assim partimos para outra noção
sobre as leis, sobre a justiça e sobre o direito que não é a do contrato social iluminista. As
leis não são a pacificação do homem lobo do homem, mas sim fruto da força, da guerra, do
vencedor do conflito.
Tendo isso em mente podemos pensar como o sistema jurídico se exerce com e na
violência, assim não podemos cair na simplória critica do justo e injusto quando tratamos
dos sistemas de justiça. Principalmente ao pensarmos o sistema jurídico brasileiro durante a
ditadura civil-militar.
II
ISBN: 978-85-62707-55-1
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algumas vezes ao longo de sua trajetória de vida, sua prisão durante os primeiros dias do
golpe marcou a memória sobre o golpe na cidade de Recife.
No dia 2 de Abril de 1964, Gregório Bezerra recebeu voz de prisão. Sua prisão foi
efetuada por um capitão da polícia militar (PM) de Pernambuco, sua ordem era apresentar o
preso ao Coronel da PM Ivan Rui, chefe de segurança do estado de Pernambuco naquele
momento. Sua prisão se deu no interior do estado. Quando este estava sendo conduzido a
Recife, no município de Ribeirão, encontram-se com um destacamento do 20º batalhão de
caçadores de Alagoas que retira a posse do detento do oficial da PM. Então, Gregório
Bezerra é trazido à Recife, mas não é apresentado mais ao secretário de segurança do
estado, ele foi levado ao comando do IV exercito.
Três anos depois, ele ainda se encontrava sem uma acusação formalizada, porém
preso. Dentro de um senso da normalidade jurídica, isto seria impossível. O que sempre era
lembrado por sua advogada nos pedidos de habeas corpus, porém constantemente o
habeas corpus era negado. Em certo grau, isto se deu pelo redesenho dos quadros do
judiciário empreendido pelo executivo pós 64.
O AI-1 com seus expurgos puderam redesenhar os quadros de juízes pelo país,
alijando aqueles que eram tidos como contrários ao novo regime. Já o AI-2 modificara a
estrutura do Superior Tribunal Federal (STF), aumentando o número de cadeiras de onze
para dezesseis1 (MACIEL, 2006 p.16), o mesmo AI-2 ainda levava os julgamentos de crimes
contra a segurança nacional para a esfera da justiça militar, fossem os réus civis ou
militares.
1
Vale lembrar aqui que os ministros que ocupariam estas cadeiras foram indicados pelo poder
executivo, ou seja, pela ditadura vigente.
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III
Os advogados também tinham outras formas de ajudar seus clientes que muitas
vezes beiravam a ilegalidade ou eram de fato ilegais. Faziam parte de uma rede de
solidariedade que pregava muitas vezes o discurso dos direitos humanos, e através disso
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encontravam justificativas para ações como ajudar em fugas de foragidos ou até mesmo
retirar da cadeia, manifestos de presos políticos que faziam greve de fome em São Paulo2.
Porém, estas ações por conta de sua própria natureza não foram tão documentadas a não
ser involuntariamente, quando um destes advogados era preso por alguma ação que era
considerada ilegal aos olhos da maquinaria jurídica e policialesca do regime. Por isso, este
artigo com pesar as ignorará, para focar nas ações legais.
Mércia ao defender Gregório se esforça para que este seja tratado como preso
político. O preso político é uma figura do direito que se encontra em uma dupla exclusão,
estão excluídos da sociedade liberta e do sistema prisional mesmo estando preso. Esta
dupla exclusão são inclusivas, garantem um lugar único, inclui o preso neste lugar, assim
aqueles que são nomeados pela justiça de preso político ocupa este lugar daquele que é
preso, mas não está sujeito ao sistema prisional, ou seja são excluídos para que possam ser
incluído nos cálculos de poder de outra forma.
Pois, a construção de uma identidade de preso político era buscada por aqueles
homens acusados de subversão. Para Umberto Eco (1989, p.07) as vestimentas são uma
forma de comunicação não verbal, a recusa do uniforme pode ser entendido desta forma.
Pois, ao se recursar a usar o uniforme, podemos ler os presos dizendo que não são presos
comuns, que não estão lá como os outros.
Usar roupas comuns na prisão, enquanto que os presos comuns usavam uniformes,
foi uma das ferramentas encontrada para que a identidade de preso político possa ser
criada. Assim, como parece ser o desejo do IV exército, da advogada Mércia Albuquerque e
de seus clientes.
2
Nove advogados chegaram a ser preso por levar a imprensa um manifesto de presos políticos que
faziam greve de fome em uma prisão de São Paulo em 1972.
3
No arquivo público estadual de Pernambuco, mais especificamente no fundo relativo aos prontuários
dos presos da Casa de Detenção não há registros de atos considerados de indisciplina, como a
recusa do uso do uniforme.
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Além do não uso dos uniformes, os presos políticos ainda tinham o direito de ter um
espaço separado dos presos comuns. Ocupando a ala Sul da Casa de Detenção, os presos
políticos também se diferenciavam dos comuns por seu lugar de moradia dentro da prisão.
Vale lembrar aqui que oficialmente o governo ainda não admitia a existência de
presos políticos. Mas, dentro da lógica de governabilidade o que relatamos aqui parece
apontar na direção que internamente o poder estatal admitia a existência do preso político
ou que o IV exército assim o fazia. Podemos pensar assim como era dinâmico o regime, que
hora aceitava a existência do preso político e hora negava a depender dos interesses, das
relações de força estabelecidas a cada momento. Por isso, que nunca podemos olhar para o
regime de forma monolítica, pois cada trama histórica faz emergir novos sujeitos, sejam eles
homens ou instituições.
Assim, podemos ver como além de ser excluídos da sociedade pela prisão, eles
também são excluídos do sistema prisional. Mas, esta dupla exclusão é o que garante a
entrada dessas vidas no sistema judicial, no próprio regime ditatorial ali implantado. É o
estado de exceção que assume esta força de alocação de cálculos sobre a vida, essa força
que permite a vida ou autoriza o seu sacrifício.
IV
Mas, a construção desta imagem, desta identidade de preso político, não é uma
construção do regime civil militar. Gregório Bezerra que foi preso algumas vezes, sempre
construiu para si esta identidade, posicionando-se sempre no lugar de preso político. Ou
seja, não se trata de uma construção iniciada com o regime iniciado em 1964.
Desta vez, o próprio Estado garantiu a existência de tal figura. Assim, podemos
pensar como a estrutura política jurídica dava conta de manter a existência de algo que data
de antes do golpe. O estado de exceção então vigente é algo que atua em dois sentidos, no
primeiro ele cria o novo para depois manter uma ordem que data de antes dele mesmo. A
implantação do estado de exceção vem como criação do novo na medida em que rompe
com o estado democrático então vigente, mas este novo existe para conservar uma ordem
política e social que se encontrava em xeque por novas forças e novos agentes que
emergiam da trama histórica dos período comumente chamado de “período de experiência
democrática”.
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subversão da ordem com auxílio de potência estrangeira, não a ordem do estado exceção,
mas a ordem política e social do período anterior ao golpe. Não é de se espantar que na
sentença de Gregório o auditor militar relembre de ações como o levante comunista de 35 e
uma acusação de incêndio a um quartel do exército no estado da Paraíba. Atos estes que
Gregório já havia respondido e ou inocentado na justiça.
Estes atos foram levados em conta, mas formalmente não foram julgados pelo
processo 8868, no qual eram réus Gregório Bezerra, Francisco Julião, Miguel Arraes e
outros. Mas, desde sua captura Gregório era interpolado por esses atos, em seu primeiro
interrogatório o coronel Ibiapina o acusava de ter matado um oficial em 1935. Só depois de
várias perguntas sobre este suposto assassinato, o general Justino Alves Bastos começar a
interrogar Gregório a respeito de armamentos que supostamente estavam sob a
responsabilidade do interrogado.
Então, mais do que fundar o novo o regime tentava manter uma ordem. Por isso que
retornamos a tese de Walter Benjamin, o estado de exceção é a regra para aqueles que
detém menos força. Aqueles interessados em manter o status quo faziam o máximo para
manter a ordem, a própria prisão de Gregório aponta para esta direção. Como já foi relatado
no começo deste artigo, a prisão de Gregório foi tomada da policia militar pelo exército, mas
o 20º batalhão de caçadores encontrava-se auxiliado por José Lopes Siqueira, dono da
Usina Estreliana4 com seu grupo de homens armados, uma espécie de milícia privada
comumente chamada de jagunços. José Lopes ao ver Gregório queria assassiná-lo, porém
os membros do 20º batalhão resolveram levar o líder comunista a presença do general
Justino Alves Bastos, comandante do IV exército.
Este tipo de ameaça não era apenas dos civis, mas de militares também. Mas,
segundo Pereira (2010) e Montenegro (2012) localizar e colocar aqueles que foram detidos
na malha judicial era ter garantias da sobrevivência daqueles que foram detidos. Assim,
podemos pensar que a justiça militar era interessada em cria a figura do preso político,
mesmo depois de 69, quando ela tem o poder de condenar a morte, tal sentença nunca foi
executada, mesmo tendo alguns casos de condenação, como o caso de Teodomiro Ramos5.
4
Antes do golpe houve uma chacina de cinco trabalhadores rurais daquela usina, durante um
protesto no qual eles tentavam fazer valer decisões da justiça do trabalho. Eles foram mortos
pelos funcionários de José Lopes Siqueira. Para mais detalhes ver Porfírio (2009)
5
Teodomiro aderiu ao movimento armado, comumente chamado de Guerrilhas Urbanas, na operação
que este foi preso ele matou a tiros um oficial do exercito e feriu outro. Seu crime foi julgado e ele
condenado a morte, mas tal sentença não chegou a ser executado. Seu relato se encontra no
arquivo Marcas da Memória – Memória da Anistia, no Laboratório de História Oral e Imagem
(LAHOI) UFPE.
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475 Anais eletrônicos do seminário 1964-2014: um olhar crítico, para não esquecer
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A justiça, assim como no Processo de Kafka, não tem um objetivo final. Esta captura
a vida para fazer dela coisa sua, sem oferecer outro fim a não ser a própria captura da vida.
Desta forma a figura do preso político é aquele que tem seu lugar dentro do ordenamento do
estado de exceção fixado como uma vida capturada.
E neste sentido a lei se confunde com a vida, numa vigência sem significado, pura
forma, o modo de viver que se impõe como lei tende a se dizer como vida e esta capturada
ou transformada nada pode dizer, está entregue aqueles dispositivos que a transforma, no
caso em tela a justiça militar.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
BRNJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume 1: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1994.
ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge. In Psicologia do Vestir. Lisboa Assírio e Alvim,
1989
FICO, Carlos. Como Eles Agiam. Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia
Política. Rio de Janeiro: Record, 2001
MACIEL, Wilma Antunes. O Capitão Lamarca e a VPR. Repressão Judicial no Brasil. São
Paulo, Sp: Alameda, 2006.
ISBN: 978-85-62707-55-1
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1
Jornal do Brasil, 22.10.1961 e Ação Democrática, novembro de 1961. p. 19.
2
Ao contrário do que dizem as escassas informações existentes sobre a ADP, ela não era composta
majoritariamente por udenistas. Numa lista nominal de aderentes, aparecem 49 pessedistas, 38
udenistas, 16 trabalhistas e ainda outros 35 de partidos menores, perfazendo 138 deputados. Ver
COSTA FILHO, João Mendes da. Ação Democrática Parlamentar: seus objetivos. Brasília:
Departamento de Imprensa Nacional, 1961.
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e explosivo elemento no cenário da Guerra Fria, cujos efeitos na América Latina ainda eram
imprevisíveis. Essa conjugação de elementos internos e externos fica bem evidente num
discurso pronunciado, em março de 1961, pelo deputado João Mendes da Costa Filho
(UDN-BA), principal liderança do movimento conservador no Congresso:
Sr. Presidente, o silêncio dos democratas nesta Casa, diante das monstruosidades de
Fidel Castro, que depois de assassinar os seus adversários vem mandando ao
“paredon” companheiros de revolução, poderia dar a impressão de que as esquerdas
dominaram inteiramente o Parlamento Nacional, o que não é exato porque há nesta
casa democratas que acreditam numa democracia sem adjetivações, regime que, não
sendo de força, é todavia suficientemente forte para se defender dos seus inimigos,
ostensivos ou disfarçados. O País conhecerá, dentro de mais alguns dias, a ação
democrática, neste Parlamento, de conservadores que não tem constrangimento,
3
espécie de respeito humano, em dizer que são conservadores
Falcão insistia que era preciso “uma definição sem disfarces, com o estabelecimento
de um divisor de águas” que pusesse fim “às atitudes de meia-cor”5. A ideia de uma “união
sagrada” entre os partidos conservadores para defender a democracia, supostamente
ameaçada pelas forças de esquerda e sem possibilidade de “harmonização” com elas,
estava na raiz do surgimento da ADP no Congresso. Para João Mendes, o maior mérito do
3
Diário do Congresso Nacional, 21.03.1961. p. 1945.
4
Falcão defende união do centro para preservar democracia. Jornal do Brasil, 20.05.1961.
5
Idem.
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movimento era justamente “delimitar os campos”. Segundo ele “na luta travada entre a
democracia e o comunismo” não havia “lugar para os indecisos, os acomodatícios, os
‘pacifistas’, os ‘neutralistas’, inocentes úteis ou criptocomunistas”6. Na perspectiva
conservadora, o campo nacionalista era cada vez mais identificado com o comunismo e as
bandeiras nacionalistas, como a reforma agrária distributivista e a limitação das remessas
de lucro, eram tidas como “comunizantes”. A revista Ação Democrática, periódico
anticomunista vinculado ao IBAD, assim se referiu ao surgimento da ADP, como contraponto
à FPN:
A Ação Democrática Parlamentar foi ideada por um grupo de democratas que, liderados
pelo Sr. João Mendes, já naquele mês de março, sentiam que a democracia podia ser
traída a qualquer momento [...] Já então novamente se articulavam os elementos da
Frente Parlamentar Nacionalista, onde um pequeno grupo de deputados manobrava às
escâncaras suas teses comunistas, tudo sob a capa do nacionalismo entre aspas. Esse
pequeno grupo, ativista e atuante, fazia crer aos menos avisados que no Congresso
Nacional renascia com redobrada força a histeria nacionalista, duramente batida a 3 de
7
outubro [de 1958]
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acusando o deputado baiano de ter “compromissos com as classes privilegiadas, com todas
as injustiças, com todos os privilégios que as classes dominantes até hoje tem tido em
nosso país” e lamentava que "nessa hora desaparecem os partidos e veem-se
representantes da União Democrática Nacional, aliados a representantes do PSD e a alguns
mesmo do meu partido, o PTB"9.
9
Diário do Congresso Nacional, 25.05.1961. p. 3510.
10
Idem.
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Cumpre [...] defender a democracia contra aqueles que nela não acreditam e se valem
de suas franquias para a sua própria destruição. Neste passo nos defrontamos com um
ponto nevrálgico [...] que reside na utilização pacífica dos direitos democráticos dentro
do parlamento e fora dele pelos encarregados da aplicação concreta das categorias do
materialismo dialético. Passa-se pacificamente, como o indica o exemplo de vários
países da Europa Central, do funcionamento da máquina parlamentar para alguma
forma de ditadura do proletariado e portanto para o Estado Socialista, estágio
11
necessário mas jamais superado para alcançar a sociedade comunista
A partir da crise originada pela renúncia de Jânio Quadros e resolvida, em parte, com
a adoção do parlamentarismo, a estratégia de mobilização popular para pressionar o
Congresso em busca das reformas de base e na defesa de um gabinete nacionalista, se
tornaria um problema cada vez maior para os conservadores e até mesmo para a esquerda
mais moderada. Em outubro de 1961, os governadores Leonel Brizola (PTB-RS) e Mauro
Borges (PSD-GO), que haviam participado da Campanha da Legalidade, fundaram a Frente
de Libertação Nacional (FLN), que contou com a participação de Miguel Arraes (PTB-PE),
então prefeito do Recife. Juntos eles lançaram a Declaração de Goiânia, que conclamava os
diferentes setores da sociedade a se unirem em prol da reforma agrária, da limitação das
remessas de lucro e da nacionalização de companhias estrangeiras. Visava também obter
uma grande bancada nacionalista nas eleições legislativas do ano seguinte. A atuação
dessas lideranças era considerada subversiva e até mesmo revolucionária, nas palavras de
João Mendes:
11
Diário do Congresso Nacional, 25.08.1961. p. 6175 (grifo meu).
12
Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro (DHBB).
13
Diário do Congresso Nacional, 25.08.1961. p. 6175.
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Mauro Borges, chefia naquele Estado a Frente Nacional Libertadora ou que outro nome
tenha o movimento de caráter revolucionário, inspirado e supervisionado em todo o País
pelo Governador Leonel Brizzola. Com a agravante de ser oficial do Exército Nacional, o
14
Senhor Mauro Borges prepara a força de ligação dos guerrilheiros do Norte e do Sul
Embora possa parecer absurda, de uma perspectiva atual, a ideia de que havia uma
revolução em marcha não estava presente somente na imaginação ou nas alucinações da
direita conservadora. Nas palavras do deputado Sérgio Magalhães (PTB-GB), importante
líder do campo nacionalista, “o processo da crise social e os movimentos de massa”
estariam se adiantando e ultrapassando as lideranças políticas, levando o país a uma
“situação de fato”:
“Não somos nós que fazemos a revolução. A revolução está em curso, está nas ruas e
só nos caberá uma tomada de posição [...] se o Conselho de Ministros não resolve os
problemas do povo – água, escola, vida barata, torna-se inevitável a revolução,
independentemente da vontade de quem quer que seja”. [...] Fez ver que há uma
radicalização das forças políticas e que “estamos sentados sobre um vulcão”. Declarou,
por fim, que “o processo está muito adiantado” e que “só há uma alternativa para o
Conselho de Ministros: tomar enérgicas providências, fazer o que o povo espera e
deseja ou cair, arrastando consigo o sistema parlamentarista e talvez o próprio regime”.
E arrematou que, embora tenha lutado para resolver legalmente os problemas do país,
15
ficará “ao lado do povo e à frente da revolução” .
Se V. Exª me tem no conceito de homem que pelas posições que assume colabora com
interesses antinacionais, se V. Exª assim pensa e assim diz, me dá também o direito de
dizer que para mim V. Exª se coloca na posição de quem, dentro do Brasil, é o seguidor
do ditador Fidel Castro; V. Exª, para mim, é um homem que quer chefiar no Brasil uma
revolução semelhante à cubana e que, dentro de mais algum tempo, quando
terminarem os prazos que V. Exª vez por outra assina ao Congresso, deixará crescer a
16
barba, Sr. Deputado Leonel Brizzola .
Para João Mendes, embora Brizola não fosse necessariamente “comunista”, era ao
menos um agitador e um elemento “subversivo”, que prestaria “o maior serviço possível” ao
partido comunista:
É através de elementos como o Sr. Deputado Leonel Brizola que o Partido Comunista
chega ao poder. [...] Declarei alto e bom som, para que a Nação saiba qual de todos os
agitadores o mais perigoso: aquele que está preparando o assalto a este Parlamento,
14
Diário do Congresso Nacional, 27.02.1962. p. 683.
15
Diário de Notícias, 24.10.1961.
16
Diário do Congresso Nacional, 21.03.1963. p. 761.
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aquele que nos marcou prazo para que votemos lei, prazo curto, sabendo ser
17
impossível elaboração de estatuto como o da reforma agrária dentro de 40 ou 60 dias .
Num primeiro momento, o presidente João Goulart era relativamente poupado das
críticas mais pesadas que eram dirigidas a outras lideranças nacionalistas. Jango era visto
como um latifundiário que não teria uma “autêntica” vocação esquerdista. O maior problema
de seu governo residiria no fato de que “por sua origem política e por seus compromissos
eleitorais”, ele estaria “impedido de agir contra os agitadores”19. A inércia do presidente e a
consequente “ausência de autoridade” seriam mais um elemento a justificar uma
intervenção militar na vida política do país. Porém, com o passar do tempo, especialmente a
partir do segundo semestre de 1963, Jango passa a ser acusado de tentar solapar as
instituições democráticas, dividir as Forças Armadas e dar proteção a entidades
consideradas subversivas e que estariam agitando o país, como o Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT)20.
Em nota oficial da ADP rejeitando o pedido de estado de sítio feito pelo presidente
em outubro de 1963, João Mendes argumento que, se aprovado, seria “o mais eficiente
instrumento com que ele poderia consolidar a sua república sindicalista ou encaminhar-se
para a ditadura”.21 Em dezembro, João Mendes considerava que o Brasil vivia um momento
de “revolução iniciada” com depredações e invasões de prédios públicos e propriedades
privadas, lamentando que as Forças Armadas estivessem “confundindo a legalidade com a
conduta do Sr. Presidente da República, quando são duas coisas profundamente
diferentes”22. Já em março de 1964, ironizando a postura legalista ainda mantida por parte
da oficialidade, João Mendes leu em plenário uma nota do O Globo em que dizia que
17
Idem, 02.04.1963. p. 1128.
18
Diário do Congresso Nacional, 27.02.1962 (grifo meu).
19
Idem.
20
Idem, 26.09.1963.
21
Idem, 07.10.1963. p. 7543.
22
Idem, 17.12. 1963. p. 10111.
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23
Idem, 02.03.1964. p. 1283.
24
Diário do Congresso Nacional, 06.05.1964.
25
Idem.
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Talvez esse seja um exemplo bem acabado do que George Orwell chamava de
“duplipensar”27. O fato é que as ideias expostas por Clemente Mariani na Constituinte de
1946 completavam seu ciclo com João Mendes, em 1965. O que, antes do golpe, poderia
ser classificado como a defesa de uma "democracia intolerante" tornava-se, a partir de
então, a defesa pura e simples de um regime abertamente autoritário e repressor. Devido a
seus posicionamentos, bastante afinados com os da linha-dura militar, não é de surpreender
que João Mendes tenha sido convidado pelo marechal Artur da Costa e Silva, sucessor de
Castelo Branco, para integrar o Superior Tribunal Militar (STM), em junho de 1968. Com seu
desprezo pelos formalismos e pela tolerância política - que marcaram sua trajetória como
parlamentar - ele estava credenciado a ser um intérprete, no Judiciário, da nova "legalidade
revolucionária".
Referências
DREIFUSS, René Armand: 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de
classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil
(1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002
26
Diário do Congresso Nacional, 18.08.1965. (grifo meu).
27
“Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças
contraditórias e aceitá-las ambas”. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
2004. p. 206.
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Considerações iniciais
O período de 1969 a 1973, durante o governo Médici, foi marcado pela expansão do
crescimento econômico - “milagre econômico” -, propaganda ufanista, repressão, uso
generalizado da tortura e rígida censura, sendo caracterizado como “os anos de chumbo”.
Período marcado pela “cultura do medo”1, que impossibilitava as manifestações públicas de
protesto contra o autoritarismo implantado, configurando, dessa forma, o retraimento da
oposição.
Por outro lado, alguns jovens, também, radicalizavam sua postura frente ao
autoritarismo vigente. Mas, ao invés do enfrentamento direto, optaram pela via pacífica e
escolheram a “marginalidade”, entendida como recusa ao sistema, ou seja, preferiram o
distanciamento:
1
Termo utilizado por ALVES: 2005, p. 205.
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[...] Antes que alterar o sistema de poder, ele [o jovem - hippie] pretendia,
pela transformação interior e da conduta cotidiano, “mudar a vida”, quem
sabe construindo-se como novo ser de uma Nova Era, espécie de
amostra grátis do Futuro. [...] Luiz Carlos Maciel morou numa
comunidade, Rogério Duarte foi monge budista, Roberto Pinho montou a
Guariroba, a “refazenda” da canção de Gilberto Gil, prevendo desde uma
economia de subsistência até contato com extraterrestres”. (RISÉRIO:
2005, p. 25)
É importante ressaltar que a contracultura não deve ser entendida como uma
resposta à ditadura militar brasileira. Pois, conforme destaca Risério, o movimento era
internacional, com ramificações no Brasil e existiu “não por causa, mas apesar da ditadura”.
(RISÉRIO: 2005, p. 26)
Geleia Geral
A coluna Geleia Geral, de Torquato Neto, publicada no jornal Última Hora, foi porta-
voz do movimento da contracultura. Divulgava as atividades e os locais de encontro do
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grupo com quem dialogava, apresentava os projetos e as parcerias. Utilizava nos textos as
gírias e expunha o comportamento e as atitudes, consideradas subversivas que
escandalizavam parte da sociedade.
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Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode
chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de
quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos
da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de
apartamentos. Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar
atenção. Enquanto eu estiver atento, nada me acontecerá. Enquanto
batiza a fogueira – tempo de espera? Pode ser – o mundo de sempre
gira e o fogo rende. O pior é esperar apenas. O lado de fora é frio. O
lado de fora é fogo, igual ao lado de dentro. Estar bem vivo no meio das
coisas é passar por referência, continuar passando. Isso aí eu li uma vez
no Pasquim [...] (TORQUATO NETO, Última Hora, 19 ago. 1971).
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sobretudo, reinventar, conforme destacou na coluna: “se não tem forma nova não tem nada
de novo, não requente coisa alguma, veja de novo, faça outra vez, invente a diferença”.
(TORQUATO NETO, Jornal Última Hora, 20 jan. 1971.)
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Considerações finais
Enfim, nota-se pela análise da produção cultural brasileira na década de 1970 que,
apesar da intensa censura, em especial dos anos de 1973 e 1974, artistas e intelectuais
encontraram as “brechas” e “ocuparam o espaço”, conforme solicitava Torquato Neto em
sua coluna. Continuaram a produzir, mesmo nos “anos de chumbo”, criando “situações e
segurando as pontas”. E dessa, forma confirmaram a afirmativa de Torquato: “Criar é
resistir”.
Referências
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DUARTE, Ana Maria S. de Araújo e SALOMÃO, Waly (org.) Os últimos dias de paupéria. (do
lado de dentro) Torquato Neto. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1982.
NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano /
SENAC, 2005.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5ª ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
PIRES, Paulo Roberto. (Org.) Torquato Neto: Torquatália – do lado de dentro. Rio de
Janeiro: Rocco, 2004.
_______ Torquato Neto: Torquatália – Geléia Geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
RISÉRIO, Antônio et all. Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras / Itaú Cultural, 2005.
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______ e GIL, Gilberto. O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
______ Hélio Oiticica: qual é o parangolé? e outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura
(1934-45 / 1969-78). 2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
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1. Introdução
Tal afirmação nos leva a indagar: qual o papel das audiências públicas no trabalho
da Comissão Nacional da Verdade? O que significa dar voz? Quem tem sua voz ouvida? O
que é feito com que é escutado a partir dessas vozes? Qual o papel das histórias de vida
expostas nas audiências públicas para a luta pelo reconhecimento dos crimes cometidos
pelo Estado durante o regime militar?
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Já algum tempo, diversos autores vêm trabalhando, ainda que com perspectivas e
questões diferentes, com discussões que configuram uma teoria do reconhecimento
(TAYLOR, 1994, HONNETH, 1995; FRASER, 2000, TULLY, 2000; HONNETH, FRASER,
2003; ZURN, 2005; DERANTY, 2009; MAIA, no prelo). Para os nossos interesses, nos
parece profícua a perspectiva trabalhada por Axel Honneth (2003). Isso se deve ao fato do
autor ressaltar que a partir de um conflito e de um processo intersubjetivo, os sujeitos
podem construir uma semântica coletiva a qual é a base para a atuação de uma luta social
que visa um aprendizado coletivo. No nosso caso, os atores da luta pelo reconhecimento do
direito à memória e à verdade no Brasil almejam uma evolução moral da sociedade
brasileira, no sentido de que ela nunca mais aceite que um Estado seja o executor de
práticas de tortura, de privação de direitos e de assassinatos.
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O que pretendemos destacar aqui é essa produtiva articulação entre histórias de vida
e reconhecimento. A partir da perspectiva de Honneth, entendemos que o processo de uma
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In my view the fit is not too bad. If indeed the empirical analyses hold
up that storytelling contributes to increased reciprocity, to more
equality, and to lesse animosity, the picture looks favorable from a
deliberative perspective. To be sure, the negative sides are that
stories may be used in a manipulative way and that they can take the
discussion away from the issue under discussion. (STEINER, 2012,
p.86)
Nossa intenção neste trabalho é analisar como as histórias expostas nas audiências
públicas podem produzir efeitos na condução dos trabalhos da Comissão da Verdade.
Acreditamos que essas experiências pessoais, ao se tornarem públicas, desempenham
certos objetivos na construção da semântica da luta pelo reconhecimento à memória e à
justiça no Brasil, e assumem certos papéis simbólicos e estratégicos nessa questão.
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“Eu não esperava passar por aquela situação, tendo em vista que a ditadura
acabou, mas não tinha acabado. Eu tive que continuar naquela situação só
porque eu era amante de um professor, que era o Darcy Ribeiro, e eu não
podia ler Darcy Ribeiro dentro do alojamento. Estava lendo um artigo de
jornal do Darcy Ribeiro, e de repente eu tava sendo acusado de pertencer a
partido político, de ser subversivo.” (Luís Cláudio Monteiro, estudante do
Corpo de Bombeiros do RJ no início dos anos 80 - Audiência Pública
do Rio de Janeiro-RJ,23/3/13 )
“Meu pai morreu poucos dias após o fechamento da Panair. Disse para ele,
antes de morrer, que nunca mais voltaria ao Brasil, mas ele olhou nos meus
olhos, segurou minhas mãos e disse para que eu amasse o Brasil, pois os
homens passam, mas o Brasil fica. E eu concordo com ele e hoje entendo o
que ele falava. Ele disse também que a verdade é como um sol, por mais
que as nuvens possam cobrir, um dia vai aparecer. E isso pautou sempre a
vida dele”. (Marylou Simonsen, filha de Mario Wallace Simonsen, sócio
da Panair, empresa que foi fechada pela ditadura - Audiência Pública
no Rio de Janeiro-RJ, 23/3/13)
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“Eu sofri uma violência ou, melhor, várias violências sexuais. Toda a nossa
tortura era feita nós nuas, todas as mulheres nuas, os homens também
ficavam nus, e toda a sala cheia de homens. Choques pelo corpo todo,
inclusive na vagina, no ânus, nos mamilos, boca, ouvidos.” (Amélia Teles,
ex-presa política - Audiência Pública “Verdade e Gênero” em São
Paulo-SP, 25/3/13)
De modo semelhante, essas falas podem servir também para reiterar (5)
informações, demandas e denúncias já feitas em momentos interiores, como no caso
abaixo. Essa é uma característica recorrente, dado que pelo tempo transcorrido desde a
redemocratização brasileira, vários casos de mortes e de desaparecimentos políticos foram
investigados em outras instâncias ou por mecanismos paralelos, já existindo, portanto,
indícios que poderiam agilizar o processo judicial. No caso que ilustra esse tipo de
contribuição das histórias de vida, um especialista em direitos humanos (assim identificado
pela CNV) cobra informações acerca de um caso que já foi inclusive contado em um livro.
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Podemos afirmar que um mesmo testemunho pode ter mais de um dos objetivos
apresentados nesta seção. Eles podem, por exemplo, ter a intenção de exemplificar o dano
e com isso também sensibilizar a audiência. Ressaltamos, ainda, que esses objetivos são
identificados por nós, em uma análise, ou seja, não é necessariamente a intenção daquele
que conta sua experiência pessoal. De tal forma, o que buscamos destacar nesta parte do
trabalho é que as histórias de vida que ganham publicidade nas audiências públicas e
acabam por atingir objetivos como denunciar situações, sensibilizar a sociedade, detalhar as
formas do dano, reivindicar soluções e reiterar posições, e que tais características
identificadas nos depoimentos compõem a semântica coletiva envolvendo a luta da memória
e justiça no Brasil.
A função institucional
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A função de visibilidade
A função pedagógica
Uma última função identificada até o momento nas audiências públicas diz respeito
ao caráter pedagógico. As histórias de vida permitem que a sociedade se aproxime mais do
tema e possa inclusive produzir uma memória coletiva. No documento de balanço das
atividades de um ano da CNV, os membros destacam que
Por fim, destacamos que neste trabalho buscamos identificar algumas características
das histórias de vida presentes nas audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade
a fim de apontar alguns possíveis papéis dessas experiências pessoais na constituição do
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processo político em torno da luta pelo direito à memória e à verdade. Essa perspectiva
permite examinar empiricamente problemas e possibilidades da construção de uma luta por
reconhecimento da memória e justiça no Brasil, e, ainda, apontar as implicações dessa
dinâmica para o desenvolvimento das atividades da Comissão Nacional da Verdade e para
a formação e visibilidade de uma memória coletiva do país sobre o período de repressão
militar.
Referências
BRASIL, Comissão Nacional da Verdade (CNV). Balanço de Atividades: 1 ano de Comissão
Nacional da Verdade. Brasília: 2013
DERANTY, Jean-Philippe. The morality of recognition. Leiden and Boston: Bril, 2009.
FRASER, Nancy. Rethinking recognition. New Left Review (II) 3, p.107-120. 2000
HONNETH, Axel (1995). Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
Ed. 34, SP: 2003 (versão em português)
MAIA, R. Recognition and the Media. London: Palgrave McMillan (no prelo)
POLLETA, F. Is Telling Stories Good for Democracy? Rhetoric in Public Deliberation after
9/11. American Sociological Review, 71 (5), p. 699-723, 2006.
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Vitor CEI
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Bolsista da
FAPEMIG.
vitorcei@gmail.com
1. Prelúdio
O ano de 2013 evoca não apenas os 50 anos do golpe militar de 1964, aniversário que
motiva a organização deste seminário, como também os 25 anos da morte do cantor e
compositor Raul Seixas. O legado do maluco beleza e a sua relação com a ditadura civil-
militar já foram abordados em minha dissertação de mestrado, Novo Aeon: Raul Seixas no
torvelinho de seu tempo, defendida em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Espírito Santo, e publicada em 2010 pela editora Multifoco, do Rio
de Janeiro (SANTOS, 2010).
Hoje, faço uma releitura da minha dissertação em nova perspectiva, à luz da teoria do
testemunho. Isto posto, o objetivo geral desta comunicação é identificar o teor testemunhal
das canções de Raul Seixas a partir das críticas que o compositor faz da experiência política
de seu tempo.
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Novo Aeon apresentada pelo ocultista inglês Aleister Crowley (2012) para formular o seu
próprio projeto de uma Sociedade Alternativa.
Na terceira parte mostro que a década de 1980 jogou para escanteio a insatisfação
radical que existia por trás do desejo utópico presente nas sociedades capitalistas durante
as décadas de 1960 e 70. Nesse contexto, a obra de Raul Seixas passou a apresentar um
caráter melancólico, de certo modo resignado, marcando o aspecto traumático das suas experiências. Ele
passou a abordar temas como frustração, internação, doença e alcoolismo. Entre o tom
melancólico e o irônico, a obra de Raul produzida nos anos 1980, apesar de manter acesa a
quase apagada chama da utopia, projeta um mundo dilacerado e de valores degradados,
manifestando instabilidades, como tudo que é reprimido ou contestado.
2. Autoritarismo
Entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, o Brasil fruiu um período
de intenso desenvolvimento econômico, que a propaganda do regime militar chamou de
“milagre brasileiro”. Uma característica notável do “milagre” é que o rápido crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), com taxas de 11,1% ao ano, veio acompanhado de inflação
declinante e relativamente baixa para os padrões brasileiros, além de superávits no balanço
de pagamentos (VELOSO et al, 2008, p. 222).
Enquanto os brasileiros “comiam alpiste”, para nos servirmos de uma expressão muito
usada por Raul Seixas, a vida político-social passou pela mais terrível coerção militar da
história do país. O AI-5, expedido pelo general-presidente Costa e Silva em 13 de dezembro
de 1968 (com vigência até 1979), inaugurou no país um novo ciclo de autoritarismo.
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O título da canção faz referência à pirita, mineral de pouco valor que por apresentar
coloração dourada e brilho metálico é conhecido popularmente como “ouro de tolo”. O nome
popular do minério pode ser lido como uma metáfora para o processo de modernização que
ocorria no Brasil.
De acordo com Luiz Lima (2006), “ouro de tolo” também era o nome que se dava, na
Idade Média, às falsas promessas de pseudo-alquimistas que prometiam fabricar o metal
precioso. Por outro lado, na linguagem simbólica dos autênticos alquimistas, a
transformação de outros metais em ouro era uma metáfora para a transformação espiritual
do ser humano, de um estado energeticamente pesado, o “chumbo”, para outro de
iluminação, o “ouro”. No caso de Raul, dos anos de chumbo aos anos dourados da
Sociedade Alternativa.
Chato, inoportuno, assim devia ser visto o cantor-compositor por certa parte do
público, fascinado com as belezas naturais (praia), as novidades tecnológicas (carro do
ano), a indústria cultural (jornal) e o lazer (tobogã e zoológico). Podemos compreender o
desencanto de Raul no sentido apontado por Adorno e Horkheimer, para quem a
mercantilização da vida reificou até mesmo o lazer: “A diversão é o prolongamento do
trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de
trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 128).
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Ainda em 1973, a economia mundial foi abalada pelo aumento do preço do barril de
petróleo gerado pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que
funciona como um cartel para controlar o suprimento mundial do ouro negro. O Brasil, que
na época importava mais de 80% do petróleo consumido, viu a prosperidade ruir. Assim, a
Crise Internacional do Petróleo mostrou que o ouro da ditadura era de tolo.
3. Redemocratização
Lá vou eu de novo
um tanto assustado
com Ali-Babá e os 40 ladrões
Já não querem nada
com a Pátria Amada
e cada dia mais
enchendo meus botões
Lá vou eu de novo
Brasileiro nato
Se eu não morro eu mato
essa desnutrição
Minha teimosia braba de guerreiro
é que me faz o primeiro dessa procissão
Fecha a porta!
Abre a porta!
Abre-te Sésamo!
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Vamos na gangorra
no meio da zorra
desse vai e vem
É tudo mentira
Quem vai nessa, pira
atrás do tesouro de Ali-bem-bem
Fecha a porta!
Abre a porta!
Abre-te Sésamo! (SEIXAS, 1980).
Hei anos 80
Charrete que perdeu o condutor
Hei anos 80
Melancolia e promessas de amor (SEIXAS, 1980).
traumático das experiências de violência política. Por exemplo, a expressão “sonho de um sonhador”, que
compõe o último verso da canção, pode ser lida como uma amarga auto-ironia,
demonstrando desesperança com a realização da Sociedade Alternativa.
Raul Seixas se defrontou com o desafio de não deixar a melancolia provocada pela
situação vigente deteriorar-se em resignação. Nesse sentido, o deboche e a ironia presentes
nas canções “Abre-te Sésamo”, “Anos 80” e em outros trabalhos da década parecem ter o
intuito de romper com a gravidade dos momentos de crises e incertezas que marcaram a
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Ernildo Stein (1996) indica que essa melancolia de ocaso, de fim de século,
representa mais do que um elemento de desânimo e desesperança. Sofrendo com o caos
vigente e frente a um mundo esvaziado de sentidos, o melancólico é impelido a recriar
novos mecanismos de significação, sonhando com outra ordem, vislumbrando horizontes
onde aparecem novas possibilidades e, no caso de Raul Seixas, a utopia de uma Sociedade
Alternativa inserida em novos valores socioculturais.
Referências
CROWLEY, Aleister. Liber Al Vel Legis: The Book Of The Law. London: Global Grey 2012.
LIMA, Luiz. Vivendo a Sociedade Alternativa: Raul Seixas e o seu tempo. São Paulo:
Terceira Margem, 2006.
PASSOS, Sylvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
SANTOS, Vitor Cei. Novo Aeon: Raul Seixas no torvelinho de seu tempo. Rio de Janeiro:
Multifoco, 2010.
STEIN, Ernildo. Órfãos de utopia: a melancolia de esquerda. Porto Alegre: UFRGS, 1996.
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