INTRODUÇÃO
O estudo sobre Hierarquia Social é um tema clássico no campo das Ciências Sociais.
Relacionado, sobretudo ao campo de estudo sociológicos nomeados como Estratificação
Social, esta área de compreensão das sociedades está baseada no estudo de suas complexidade
e relação com formas de categorização desigual de lugares, poder e posições sociais. No
campo de estudos sobre estratificação social, a hierarquização não se relaciona somente a
posições de sujeitos e grupos sociais, mas está sobretudo relacionada à correlação entre o
estoque total de bens e valores e sua distribuição e valoração desigual.
Karl Marx é um dos teóricos que mais se preocupou com os estudos das hierarquias
sociais a partir de sua teorização sobre o capitalismo. Partindo do ponto de observação das
classes como realidades objetivas, suas posições são lidas como derivadas dos lugares que
ocupam na esfera produtiva a partir da posse ou não do capital. Deixando clara a importância
da construção de atribuições de valor distintas sobre bens e produtos sociais. Assim se destaca
ainda que o conceito de hierarquia só ganha sentido a partir de uma teoria social, e não
necessariamente de categorias nativas ou de hierarquias definidas no cotidiano de relações.
Essa ressalva destaca o conceito de hierarquia como um conceito analítico e não somente
descritivo. No mesmo sentido de uma teoria social analítica Max Weber amplia o debate na
inserção de outras dimensões de poder, como dimensões econômicas, políticas e sociais.
Essa ampliação de debate revela, antes de tudo, a relação dos estudos sobre hierarquia
social e sua íntima relação com a valorização desigual de uma amplitude recursos e bens
sociais. Tomando esse aspecto, destaca-se que, sendo esse processo de valorização de
recursos contingente, a historia que constitui tais distinções, assim como os mecanismos que
as legitimam e sustentam, são prerrogativas na compreensão das formas de hierarquia social.
Assim esse campo também se dedica a compreensão das regras de atribuição que distribuem
esses produtos em várias posições, assim como deixa explícito os mecanismos de mobilidade
entre indivíduos e grupos na geração de controle desigual sobre os recursos valiosos.
Outra importante referencia à hierarquia presente nos estudos sobre estratificação está
na relação entre hierarquia, naturalização e privilégio. Entendendo que os sistemas de classifiç
ão repousam em certo ordenamento social, sua forma de perpetuação garante a reprodução
social a partir da naturalização de lugares no sistema e a pouca variabilidade de distribuição
de poder.
Mayorga & Prado (2010), no texto intitulado “Democracia, instituições e articulação
de categorias sociais”, em que analisam processos de hierarquização social em contextos
institucionais, propõem a análise de, pelo menos, três elementos que funcionam como
dispositivos de hierarquização social: a) a naturalização das desigualdades, que se refere à
negação da historicidade, da contingência e das relações de poder que constituem as relações
sociais; b) a relação entre público e privado, que se revela “por um movimento duplo de
alargamento do privado e do encolhimento do público através da gramática de moralização
do limite tênue e histórico que os separa” (p. 56) e; c) a tensão entre igualdade e diferença,
que produz lógicas de fomento da diferença, criando processos de fixação de identidades
através da noção de certo diferencialismo que exclui a possibilidade de reconhecimento da
igualdade. Ambiguamente, a tensão entre igualdade e diferença permite-nos visualizar
movimentos de universalização de sujeitos, hierarquizando e/ou invisibilizando diferenças e
deslegitimando a voz de determinados grupos e experiências. Para esses autores, estes três
dispositivos são comuns à dinâmica de fixação das categorias sociais, e sua análise se torna
extremamente importante para compreender a forma como se articulam.
Outro componente da proposta analítica de Mayorga e Prado (2010) é a compreensão
da articulação entre categorias sociais como uma funcionalidade subordinada:
Na lógica da subordinação, a ordem social não é tomada como uma ordem historicamente
construída e contingente à ação humana, portanto ela aparece como sendo consequência natural da
organização social e da gestão classificatória dos corpos, mostrando-se como uma hierarquia necessária
para a produção e reprodução da sociedade, fazendo com que alguma reciprocidade simbólica entre os
agentes sociais seja garantida e mantida (p. 58).
Essas articulações subordinadas podem ser verificadas, por exemplo, através do estudo
realizado em 1965 pelo governo estadunidense sobre a “família negra”, que vinculou
diretamente as posições de classe dos negros e negras à organização matriarcal de suas famí
lias (Davis, 1981). Tem-se também uma tradição conservadora que busca justificar o processo
de “feminização da pobreza” no suposto desmantelamento da organização familiar nuclear e
na ausência da figura masculina nesses grupos familiares (Castro, 2001). Outro exemplo são
alguns dos estudos psicológicos de famílias homoparentais que avaliam negativamente a
educação de crianças nessas famílias, em função de uma suposta ausência de referências
masculinas ou femininas para as crianças (Tarnovski, 2004). No mesmo sentido, alguns
apontamentos dos estudos de Mattos (2009a, 2009b) propõem que o não reconhecimento e a
desqualificação da mulher prostituta se dá em função das interdições que lhe são imputadas
por suas predisposições de classe sem, contudo, historicizar a desqualificação social da
prostituição como prática sexual específica, ou ainda, sem apresentar um mapa teórico de gê
nero capaz de considerar sua condição de mulher na dinâmica de subalternidade. Essas
pesquisas, que ora articulam posições de classe, gênero e raça, ora cruzam marcadores de gê
nero e orientação sexual, apresentam evidências de práticas articulatórias que funcionam
numa lógica da subordinação, conforme afirmam Mayorga e Prado (2010).
A partir dessa posição, propomos para o debate a leitura teórica de três formas mais
clássicas de hierarquia social, quais sejam raça, classe e gênero. Pretendemos com isso
privilegiar as perspectivas que elaboram o histórico de produção, naturalização e manutenção
de hierarquias a partir de suas relações com as posições de Mayorga e Prado (2010).
O uso primário do termo raça é dado como originário das formas de classificação das
ciências naturais, sobretudo da Botânica e Zoologia (Munanga, 2004). A designação de raça
como forma de classificação da experiência humana, é, no entanto, considerada uma
reconstrução da ideia de humanidade a partir do iluminismo e forjada à luz de uma nova
racionalidade, essa importante para a superação de fundamentos teológicos (Munanga, 2004).
Contudo, tal caráter biologicista presente na origem da palavra não esteve sempre atrelado à
ideia de raça utilizada para grupos humanos.
Ao realizar uma revisão bibliográfica sobre os distintos conceitos de raça, Guimarães
(2005) retoma os usos que a categoria teve ao longo da história. O autor recupera registros do
termo que, até o século XVI, não faziam referencia a fatores biológicos. Seu uso servia a
designar grupos humanos conectados pela mesma origem. É no século XIX que esse termo
ganha algum tipo de conotação biológica, advinda de teorias poligenistas (Guimarães apud
Banton,1994, 2005). Nesse período raça é utilizada na distinção entre tipos de seres humanos
a partir de suas características físicas e capacidades mentais.
Mesmo que já utilizada como classificação com referência às diferenças de origem
biológica, é somente no século XX que raça adquire um efeito hierárquico mais denso, pois
passa a marcar uma divisão da humanidade a partir da ideia de isolamento e inferioridade. É
com o advento da modernidade que a formulação de concepções individualistas e igualitárias
circunscreve a interpretação das classificações humanas ao plano das diferenças hereditárias,
de atributos biológicos, psíquicos e morais dos grupos humanos (Guimarães, p. 10, 2004b).
Esses fatores, tidos como incontestáveis, pois naturais, ganham grande força no discurso
cientifico como forma de explicar a base das diferenças (ou inferioridade) humanas.
O mesmo sentido de inferiorização pode ser encontrado na posição de Quijano (2005)
a respeito do termo. Para compreender a constituição de países com histórico de colonização,
o autor argumenta que foi no dispositivo da racialização dos povos, que um projeto hegemô
nico de poder encontrou formas de subjulgar os colonizados. A ideia de classificação natural
organizada pela ideia de raça institui, portanto, um lugar de domínio inquestionável ao
europeu ao mesmo tempo em que atende a necessidade de fundamentar diferenças entre os
europeus e outros povos. Para Quijano raça é então critério fundamental para distribuir a
população mundial em níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade
mundial, dada sua amplitude e capacidade de classificar de forma universal as populações a
partir de um único referencial central, o europeu.
Tanto nas analises de Guimaraes (2004b, 2005) quanto na posição de Quijano (2005) e
Munanga (2004), podemos perceber que o termo “Raça” serviu à inauguração tanto de uma
forma de hierarquia e dominação quanto de uma nova forma de justificação dessa ordem. A
teorização científica que fundamentou a validade dessa forma de classificação pode ser
nomeada como racismo científico. Por meio de um desenvolvimento teórico e experimental
que passava por medição de cérebros, análise da capacidade intelectual, avaliação de práticas
sociais, entre outros procedimentos, a ciência racialista desenvolveu explicações que
pudessem racionalmente sustentar e afirmar o caráter de inferioridade dos povos não europeus
por meio de uma ideia de natureza diferencial. Assim, sob o discurso da necessidade de
civilizar novos povos, práticas de exploração, genocídio e expropriação cultural eram
justificados.
A reinterpretação do termo, aplicado à experiência humana, cria novo sentido para
relações de poder até então inexistentes e marca de forma rígida uma classificação humana
dicotomizada. A ideia de “raça” tanto cria como sustenta o lugar inferior de um “outro”, o não
europeu. “Outro” que tem sua diferença inferiorizada e marcada a partir da afirmação natural
do poder da civilização ocidental. É na racialização dos povos, portanto que se reconhece o
instrumento moderno mais eficaz e durável de dominação social, dada sua condição
normativa e estável como empreendimento de poder (Quijano, 2005).
O que fica latente nessas análises do uso da categoria é sua perenidade e elasticidade
na construção de lugares sociais desiguais. Ou seja, a racialização tem um efeito de poder
constante e duradouro e todo grupo humano está passível de ser categorizado racialmente.
Porém, essa dimensão versátil da categoria deve ser compreendida dentro da variedade de
contornos que os processos coloniais de poder tiveram ao longo da historia. É exatamente por
seu caráter flexível em transformar diferenças em desigualdades naturais que a racialização da
humanidade deve ser entendida de forma contextual. Reconhecendo que a invenção das raças
se deu na história como mecanismo de hierarquização, é preciso explorar, portanto as bases
comuns desse mecanismo e sua forma de atuação. Nosso interesse é discutir o potencial
normativo da categoria, ou seja, sua forma especifica de naturalização da desigualdade.
1
“Um argumento fundamental para os defensores da tese do personalismo e do culturalismo essencialista nas
suas versões tradicionais e contemporâneas é de que o Brasil seria uma continuação cultural de Portugal. Afinal,
de lá viriam o patrimonialismo transplantado, como em Raimundo Faoro, ou o homem cordial e familisticamente
emotivo de Sérgio Buarque. Também em Gilberto Freyre temos a afirmação da continuidade essencial com
Portugal como a base de seu projeto ideológico da singularidade universal do legado luso-brasileiro” (Souza,
2003, pp.101-102).
2.1 Fundamentos morais de um processo de hierarquização social
é concebido pela família de concepções de mundo baseadas na noção de natureza como fonte
interna de significado e moralidade. A idéia [sic] central, por oposição ao tema da dignidade... é a
originalidade de cada pessoa, aqui o tema é a ‘voz’ particular de cada um, enquanto [sic] tal, única e
inconfundível (p. 32).
Souza busca em Pierre Bourdieu o que, segundo ele, falta em C. Taylor: sua obra não
demonstra de que forma a hierarquia moral intransparente, inarticulada e opaca da
modernidade se legitima no cotidiano e nas práticas sociais. A partir de sua crítica à “
ideologia da igualdade de oportunidades”, P. Bourdieu busca compreender as formas que
assumem, na modernidade tardia, as lutas de classe e as frações de classe – ele não corrobora
com a suposta superação, nas sociedades avançadas, das clássicas lutas de classe do
capitalismo. Este autor busca também enfrentar a tensão entre objetivismo e subjetivismo que
atravessa fortemente o desenvolvimento das ciências sociais. E como resposta a esse dilema,
sugere a articulação entre estrutura, habitus e prática (Bourdieu, 1979/2006).
O habitus é, certamente, o conceito mais importante, e que confere originalidade ao
trabalho de Bourdieu. Pode ser definido como
2
P. Bourdieu busca na ideia de gosto a compreensão do que ele chama de “economia dos bens culturais”. O
gosto representa a competência estética como elemento generativo das distinções sociais no capitalismo avanç
ado. O ataque de P. Bourdieu à definição “idealista” de estética de Kant – faculdade compreendida como dádiva
para este filósofo – se concentra em mostrar o quanto este gosto é socialmente construído e demonstrar e íntima
relação entre gosto e classe social. O que Kant chamava de faculdade do gosto é o que P. Bourdieu chamará de
competência estética.
Para demonstrar de que forma o habitus se articula na produção de distinção social e
na invisibilidade da desigualdade brasileira, Souza (2003, 2006) propõe uma concepção
diacrônica de sua constituição, conferindo-lhe historicidade. Ele sugere a possibilidade de
uma “pluralidade de habitus” que extrapole o aspecto genérico e sincrônico presente no
habitus de P. Bourdieu. Assim, ele propõe uma subdivisão interna à categoria do habitus,
tentando contemplar as mudanças qualitativas que esta reflete, a partir de uma situação
socioeconômica estrutural: habitus primário, habitus secundário e habitus precário. O “
habitus primário” corresponde às predisposições psicossociais que permitem o
compartilhamento do self pontual de C. Taylor e de sua concepção de dignidade. Através de
um aprendizado coletivo, a posse de uma economia emocional – que pressupõe autocontrole,
flexibilidade e cálculo instrumental, por exemplo – subsidia o reconhecimento de sujeito útil,
produtivo – digno. O compartilhamento e generalização desse tipo de dignidade a
determinada classe permitiu a eficácia da regra jurídica de igualdade e, por fim, da noção
moderna de cidadania; esse compartilhamento, na vida cotidiana, se torna factível através do
habitus primário (Souza, 2003).
Souza (2003) toma a noção de “ideologia do desempenho” proposta por Reinhard
Kreckel para demonstrar de que forma o habitus primário articula a regra jurídica de
igualdade com a noção moderna de cidadania. A “ideologia do desempenho” seria a “tentativa
de elaborar um princípio único... a partir do qual se constitui a mais importante forma de
legitimação da desigualdade no mundo contemporâneo” (p.168). Ela articula qualificação,
posição e salário, chamada por Kreckel de “tríade democrática”, na produção de
reconhecimento diferencial aos indivíduos. A partir desses três elementos, a ideologia premia
e estimula as capacidades objetivas de desempenho, assim como legitimam o acesso
diferencial a oportunidades e aos bens escassos. Indivíduos bem qualificados, em posições
profissionais socialmente reconhecidas e com ganhos econômicos relevantes são considerados
merecedores de reconhecimento e, como tal, legitimam seu status de produtivo e cidadão.
Já o “habitus precário” seria
... o limite do “habitus primário” para baixo, ou seja, seria aquele tipo de personalidade e
disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indivíduo,
seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil em uma sociedade de tipo moderno e
competitivo, podendo gozar de reconhecimento social com todas as suas dramáticas consequências
existenciais e políticas (p. 167).
El reino de la sexualidad posee también su propia política interna, sus propias desigualdades y
sus formas de opresión específica. Al igual que ocurre con otros aspectos de la conducta humana, las
formas institucionales concretas de la sexualidad en cualquier momento y lugar dados son productos de
la actividad humana. Están, por tanto, imbuidas de los conflictos de interés y la maniobra política, tanto
los deliberados como los inconscientes. En este sentido, el sexo es siempre político, pero hay períodos
históricos en los que la sexualidad es más intensamente contestada y más abiertamente politizada. En
tales períodos, el dominio de la vida erótica es, de hecho, renegociado (Rubin, 1984/1989, p.114).
La mayor parte de la tradición cristiana, siguiendo a San Pablo, mantiene que el sexo es en sí
pecaminoso. Puede redimirse si se realiza dentro del matrimonio para propósitos de procreación, y
siempre que los aspectos más placenteros no se disfruten demasiado. A su vez, esta idea descansa en la
suposición de que los genitales son una parte intrínsecamente inferior del cuerpo, mucho menos sagrada
que la mente, el "alma", el "corazón" o incluso la parte superior del sistema digestivo (el estatus de los ó
rganos excretores es similar al de los genitales). Tales ideas han adquirido ya una vida propia y no
dependen solamente de la religión para su supervivencia (s/p).
Verás, Tim – dijo Phillip de pronto –, tu argumento no es razonable. Supongamos que admito
tu primer punto de que la homosexualidad es justificable en ciertos casos y bajo ciertos controles.
Entonces viene la trampa: ¿dónde termina la justificación y dónde empieza la degeneración? La
sociedad debe condenar para poder proteger. Concedámosle el respeto incluso al homosexual intelectual
y la primera barrera habrá caído. Después caerá la siguiente y la otra hasta que el sádico, el que azota y
el loco criminal exijan lo mismo, y la sociedad dejará de existir. Así que pregunto otra vez: ¿dónde
colocar la frontera? ¿Dónde comienza la degeneración, sino en el comienzo de la libertad individual en
estos asuntos? (s/p)3
3
Rubin (1984/1989) cita James Barr, Quatrefoil, New York, Greenberg, 1950, p.310.
sexualidades desviantes. Esses processos identitários podem ser vislumbrados também nas
dinâmicas de resistência e enfrentamento desses grupos. M. Foucault já nos demonstrou que a
experiência da homossexualidade como uma experiência identitária é extremamente recente
em nossa história.
Rubin (1984/1989) sugere que “una moralidad democrática debería juzgar los actos
sexuales por la forma en que se tratan quienes participan en la relación amorosa, por el nivel
de consideración mutua, por la presencia o ausencia de coerción y por la cantidad y calidad de
placeres que aporta” (s/p). Dessa forma, o sistema sexual se pareceria menos ao sistema racial
e caminharia para uma semelhança com a verdade ética.