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O MINISTRO BARROSO E A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

CRIMINAL

Bruno Torrano
Assessor de Ministro. Professor no Instituto
Brasiliense de Direito Público (IDP).
Mestre em Direito.

Working Paper
Para sugestões e críticas: bruno.torrano@gmail.com

I
INTRODUÇÃO

Neste artigo, trato, mais uma vez1, do assunto do momento: execução


provisória da pena criminal. Tenho como objetivo examinar, em especial, o julgamento,
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do pedido de medida cautelar formulado
nas ADCs 43 e 44 e do pedido de habeas corpus nº 126.292, os quais serviram de
parâmetro para a reafirmação (equivocada, embora não objeto deste estudo) da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no Tema nº 925 de Repercussão Geral. A
tese a ser sustentada é a de que a orientação firmada pelo STF no caso da execução da
pena criminal constitui mais um claro exemplo de retórica subversiva de magistrados,
em aberto desrespeito à normatividade jurídica. Em suma, a nova orientação bem ilustra
a posição daqueles julgadores que fantasiam suas decisões criativas com palavras
bonitas e atraentes com o estrito propósito de conferir aparência de legitimidade a
entendimentos que não se ajustam às opções políticas já assentadas pelo Constituinte e
pelo legislador ordinário.
Ao menos na composição atual do STF, o estrago parece consumado. Há
especulações sobre eventual mudança de entendimento na direção de considerar a
execução possível após o julgamento do Superior Tribunal de justiça — o que não

1
Sobre a violação ao texto do art. 5º, inciso LVII, da CF, escrevi o artigo intitulado “STF não fez uma
leitura honesta do artigo 5º, inciso LVII da CF”, disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-
08/bruno-torrano-stf-nao-fez-leitura-honesta-cf-antecipar-pena.
invalida nenhum dos argumentos deste artigo. Espero estar equivocado, mas penso ser
improvável que o STF, em curto prazo, venha a reconhecer que cometeu um dos piores
erros hermenêuticos de sua história institucional — ou, de forma mais realista e
diplomática, que ao menos volte para o entendimento consignado no belo voto proferido
pelo Ministro Eros Grau no HC 84.078-7/MG. A esperança, que deverá aguentar mais
um bocado, é a renovação institucional: uma nova leva de ministros, em nova reunião
plenária, e o tempo há de fumigar os fundamentos que negaram vigência ao art. 5º,
inciso LVII, da CF.
Minha ideia, aqui, é examinar, com uma boa dose de filosofia do direito e
da autoridade, os principais argumentos do voto2 proferido nas ADCs 43 e 44 que
considero mais perigoso para a democracia (sim, para a democracia, em seu aspecto de
accountability3): o do Ministro Luís Roberto Barroso. Perigoso por quê? Primeiro,
porque a argumentação seduz. É bem articulada. É bem escrita. Possui inúmeros apoios
em expressões emotivamente carregadas — e, como não poderia deixar de ser, vagas e
manipuláveis a contento. Segundo, e mais importante: como dizia Ronald Dworkin, “a
doutrina é a parte geral da jurisdição, o prólogo silencioso de qualquer veredito”. O voto
de Barroso é um dos melhores exemplos práticos de como nossas respostas à pergunta
“o que é o direito?” influenciam decisivamente a qualidade das práticas jurisdicionais e
o bem-estar geral da comunidade. (No limite, algumas respostas podem jogar, a partir
de uma canetada, milhares de indivíduos na cadeia mesmo antes do trânsito em julgado
da condenação criminal. Outras, não.)

II
PERIGOS DO PÓS-POSITIVISMO IDEALISTA

Destacado e inteligente teórico do direito, Barroso há muito tem


sustentado uma concepção pós-positivista do direito que, em determinadas causas, atrai
ao aspecto subjetivo e criativo da interpretação jurídica peso muito maior – eu arriscaria
dizer “quase absoluto” — quando comparado a seu aspecto objetivo e conservador. Não

2
Haverá, naturalmente, atenção ao voto proferido no HC 126.292, que traz outros detalhes e explicações.
3
WALDRON, Jeremy, Accountability: Fundamental to Democracy (April 1, 2014). NYU School of
Law, Public Law Research Paper No. 14-13. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2410812 or
http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2410812.
à toa, em outro trabalho4 qualifiquei sua teoria do direito com o rótulo de “pós-
positivismo idealista”5 — justamente com o fim de enfatizar o apelo a-criterial que se
faz à “justiça” das decisões, por vezes com explícita deferência à “moralização cima-
baixo” da sociedade por intermédio do ativismo político de uma cúpula concentrada de
11 magistrados (função “iluminista” do STF), mesmo ao custo de superar escolhas
públicas realizadas após o devido processo legislativo.
O enaltecimento da dimensão criativa da interpretação deve ser mais bem
esclarecido: o pós-positivismo de Barroso tem a preocupante característica de estar
comprometido com uma noção de “progresso moral” que varia ao sabor dos
sentimentos pessoais de justiça do intérprete6. Isso, claro, nunca aparece de forma
clara e assumida nas decisões judiciais — e dificilmente será confessado por algum
adepto do pós-positivismo idealista. Nada felicita mais um juiz ativista do que a
ilusão reconfortante de ser a voz iluminada daquilo que a sociedade deseja: o
afastamento do texto da lei sempre se pretende justificado por afirmações vagas e não
verificáveis de que a solução mais criativa reverbera na mesma frequência da
“moralidade comunitária” ou da “evolução dos tempos”.
Uma primeira característica do pós-positivismo idealista, portanto, é esta:
retórica abstrata. Indague a um juiz o que é, em termos concretos, a “vontade da
sociedade” ou o “senso comum de justiça” e ele não poderá fazer mais que coçar
confusamente a cabeça ou proferir novos termos abstratos para encobrir os anteriores.
Se ele esboçar a resposta padrão de que se trata de uma visão “evidentemente”
majoritária em uma sociedade composta por mais de 200 milhões de pessoas, basta
retrucar: (i) com base em que estatística?; ou, se o interlocutor for uma daquelas pessoas
que andam com pesquisas do IBGE debaixo do braço: (ii) as visões majoritárias devem
ser canalizadas como força criativa nas grandes assembléias do povo (Legislativo) ou
ser identificadas e aplicadas por magistrados?
Uma segunda característica é esta: seletividade. O pós-positivismo
idealista coloca nas mãos do magistrado o poder de escolher quando é mais ou menos
conveniente seguir com mais ou menos fidelidade os limites semânticos da lei. As
4
TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à Lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2015.
5
Conforme argumentei em TORRANO, Bruno. Democracia... ob. cit., o pós-positivismo idealista deve
ser diferenciado, e até mesmo contrastado, com o pós-positivismo hermenêutico defendido por Lenio
Streck e seus seguidores. Este último pós-positivismo estabelece diversos critérios interessantes para a
contenção do poder judicial e para a crítica doutrinária ao ativismo. Aquele não.
6
Cf. a versão preliminar de “Contra A 'Função Iluminista' Do Supremo Tribunal Federal”. Disponível em
SSRN: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2705223.
soluções legislativas em questões moralmente sensíveis devem ser obedecidas?
Geralmente sim, mas desde que não se afastem muito daquilo que se considera ser a
direção ética para a qual a sociedade como um todo deve ser “empurrada” (o termo é
usado por Barroso).
E, por fim, a terceira característica que se pode atribuir ao pós-
positivismo idealista é esta: manipulabilidade. A não ser que a teoria queira
comprometer-se com algum tipo de hierarquia abstrata de valores morais (o que não
parece, felizmente, ser o caso de Barroso), o pós-positivismo pode ser considerado “um
corpo sem alma”: diferentes magistrados possuem diferentes concepções pessoais de
Bem e diferentes noções sobre que decisões políticas levam ao “progresso moral” da
sociedade. Nesses termos, com o objetivo de ver suas práticas ativistas e decisionistas
justificadas, tanto magistrados “de direita” quanto magistrados “de esquerda” (para usar
ligeiramente esse lastimável reducionismo político) podem lançar mão da teoria de
fundo do pós-positivismo idealista. Não custa lembrar, no ponto, que os argumentos da
eficiência penal e da lei e ordem geralmente são vistos como “progresso social” por
indivíduos que se inserem no âmbito da direita moral, e que jamais compactuariam com
a posição do próprio Barroso em outras questões moralmente controversas como aborto,
casamento homossexual e direitos de transgêneros.
Os traços do pós-positivismo idealista acima citados, que não são de
modo algum exaustivos, levam à enfermaria uma vítima bem determinada: o Estado de
Direito. As críticas que aqui direciono ao voto do Ministro estarão assentadas sobre
outra concepção de direito: o positivismo jurídico excludente7, com muitos de seus
conceitos trazidos do plano descritivo para o normativo — positivismo normativo ou
ético —, especialmente na variante defendida por Jeremy Waldron8 e Tom Campbell9,
mas com os contributos imprescindíveis da noção de preempção autoritativa de Joseph
Raz10 e de planejamento compartilhado de Scott Shapiro11 (planning theory of Law). É
dizer: argumentarei que essa é a concepção do direito que nos confere as respostas
mais atraentes12 para questões como “o que é o direito?” e “quais as funções sociais do

7
Para um resumo rápido das principais teses e argumentos do positivismo excludente, cf. esta coluna que
escrevi: http://emporiododireito.com.br/positivismo-juridico-excludente-um-guia-rapido/
8
WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 1999.
9
CAMPBELL, Tom. Prescriptive legal positivism: Law, Rights and Democracy. Portland: UCL Press,
2004.
10
RAZ, Joseph. A moralidade da liberdade. 1. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
11
SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
12
Minha ideia é fazer, aqui, “apropriações teóricas” para resolução de problemas concretos, como
sugerido por Richard Rorty.
direito?”, bem como que empregar seus principais conceitos (autoridade alegada, razões
protegidas, planejamento compartilhado, economia da confiança, determinação objetiva,
circunstâncias da juridicidade, etc.) em nosso contexto democrático produz, na maior
parte do tempo, e muito especialmente na questão particular da execução provisória da
pena, melhores consequências práticas do que qualquer alternativa disponível no
“menu” atual das teorias do direito.

III
ATIVISMO JUDICIAL COMO “REPONDERAÇÃO”

Como dito, a análise específica do entendimento externado por Barroso


constitui empreendimento doutrinariamente interessante sobretudo pelo fato de
demonstrar que a variação de nossas concepções sobre o direito não raro implica
variação também na qualidade das respostas judiciais dadas aos jurisdicionados. O
Ministro Barroso é o exemplo paradigmático dessa afirmação na medida em que já há
muito tem sustentado uma concepção do direito bem conhecida em terras brasileiras: o
pós-positivismo idealista. Referida teoria, no entanto, padece de sérios problemas
quando cotejada com a accountability que se espera dos oficiais do sistema de uma
democracia em funcionamento: ela permite que magistrados, a partir de juízos pessoais
de aprovação e desaprovação ética, escolham se, como e quando respeitar ou não textos
legais elaborados após o devido processo legislativo, tudo a depender de esses textos
estarem em consonância com uma noção vaga e manipulável de “progresso moral”.
Pior: a prática ativista admitida pelo pós-positivismo idealista geralmente pretende-se
legitimada por um tipo de retórica abstrata caracterizada pelo emprego de palavras de
efeito que, embora belas, empáticas e emocionalmente apelativas, não representam
argumentos jurídicos replicáveis (v.g. “vontade da sociedade”, “anseios de justiça”,
“evolução dos tempos” “aproximação entre direito e ética”, “interesse público”,
“moralidade comunitária”, e assim por diante).
Mas passemos à análise do voto de Barroso. O Ministro divide sua
decisão em três partes. Na primeira, ele esclarece, desde logo, que as premissas de que
partirá não estão relacionadas à maximização da proteção do indivíduo em face do
poder penal do Estado — o que, conforme veremos, é demandado pela economia da
confiança (economy of trust) do nosso sistema constitucional —, e sim da constatação
empírica de que “o sistema penal não tem funcionado adequadamente”13 e que, por isso,
a proteção aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal encontra-se “demasiadamente
enfraquecida”. Em suma, Barroso está expressamente preocupado com a “confiança da
sociedade na Justiça Criminal” e com o “sentimento social de ineficácia da lei penal”.
Para exemplificar suas afirmações, Barroso cita, de início, uma
amostragem de casos penais relevantes que, em sua visão, servem como exemplo
privilegiado no sentido de que o “sistema que tínhamos” (sic – antes da decisão
corretiva do STF) “não era garantista”, e sim “grosseiramente injusto”, seja por
“estímulo à vingança privada”, seja por difundir “a impressão de que o crime
compensa”, seja por ser “um golaço da impunidade” (sic...!), seja por estimular um
“primitivismo puro” ou por “desmoralizar o país perante a comunidade internacional”.
Logo a seguir, o Ministro elenca alguns “fatores importantes na construção de um país”
(“educação de qualidade”, “distribuição adequada de riquezas” e “debate público
democrático e de qualidade”) e argumenta que o direito penal foi negligenciado pelos
juristas após o advento da Constituição de 1988, sendo esta uma das razões para termos
criado “um país no qual o crime frequentemente compensa”. No fim da primeira parte
do voto, Barroso esclarece que o número de recursos extraordinários defensivos
providos no STF é irrisório e assevera que “o tratamento de desprezo e desprestígio que
tem sido dado aos tribunais estaduais e aos tribunais regionais federais, como instâncias
incapazes de aplicar o direito com competência e seriedade, é preocupante”. Reparem
bem em um detalhe importante: todas essas ponderações são realizadas com o fim
manifesto de “explicitar como o art. 283 deve ser interpretado para que possa subsistir
validamente”.
O que podemos deduzir disso tudo? Algo parece bem claro: para
interpretar o que demanda a Constituição da República na questão relativa à execução
da pena criminal, Barroso não parte do texto do art. 5º, inciso LVII, da CF/88, e sim de
uma realidade institucional (fatos) por ele considerada extremamente grave: a
disfunção do sistema penal brasileiro. É certo que, na segunda parte do voto, inicia por
citar o referido artigo. Mas o faz tardiamente, já imbuído da vontade de servir aos
alegados anseios difusos da comunidade. Em outros termos, a argumentação de Barroso
examina a normatividade constitucional a partir do inconformismo pessoal do Ministro

13
Nos próximos parágrafos, as expressões dentro de aspas foram retiradas do próprio voto de Barroso.
quanto a questões como impunidade e descontentamento social. E não o contrário.
“Golaço” (sic) para quem? Para o subjetivismo. Quando se trata de pós-positivismo
idealista, não há nada mais típico: primeiro vejo o que é justo; depois arranjo um jeito
de conformar as normas jurídicas àquilo que escolho como moralmente superior. Ou
Barroso fez algo diferente quando explicitou que toda sua preocupação pessoal (e “da
sociedade”) serve de premissa para conferir uma “interpretação conforme à
Constituição” do art. 283 do CPP?
Aqui, calha trazer a lume um ensinamento do positivismo jurídico que,
do ponto de vista teórico, consegue proteger os direitos de cidadãos sem recair na
radical afirmação de que toda e qualquer decisão judicial deve ser baseada, somente, em
argumentos de princípio — o que é um exagero descritivamente equivocado e
normativamente indesejável. Trata-se do conceito de economia da confiança. Segundo
Scott Shapiro14, sistemas jurídicos não são apenas instituições planejadoras complexas
destinadas a distribuir competência e autoridade. Sistemas jurídicos têm outra
característica fundamental: o gerenciamento de confiança dentro da extensa cadeia de
oficiais do sistema que lidarão com a norma jurídica criada. Legisladores, ao
promulgarem leis, estabelecem implícita ou explicitamente o grau de discricionariedade
admitido no momento da interpretação dos textos legais. Em determinadas áreas, é
possível que os legisladores entendam ser adequada para o ideal funcionamento das
instituições sociais a atribuição de maior confiança no caráter e na competência dos
magistrados e de outros oficiais encarregados de dar concretude à norma. Argumentos
consequencialistas podem fazer parte do jogo decisório desde que estejam em
consonância com a abertura admitida pela norma predecessora: em setores de direito
econômico, direito concorrencial, direito empresarial, direito regulatório, direito
falimentar, e assim por diante, geralmente fundamentos pragmáticos são legalmente
válidos em razão da natureza da matéria tratada e dos efeitos econômicos envolvidos.
Em outras áreas, todavia, o legislador opta por conferir menor ou quase
nenhuma confiança à criatividade do aplicador do direito, de modo a preservar o
aspecto objetivo e conservador da interpretação jurídica. Nessas hipóteses, a escolha
legislativa é pelo entrincheiramento de direitos individuais mesmo quando
confrontados com clamor público contrário ou mesmo quando sua preservação leve a
consequências consideradas como injustas por parcela razoável da população. Note-se

14
SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
bem: a opção legislativa é realizada após o devido juízo de ponderação entre os
interesses individuais e sociais conflitantes. Legisladores criam proteções a direitos
individuais apenas depois de sopesarem os custos de deixarem à mercê de flutuações
oportunistas a garantia de tais direitos com os custos que o entrincheiramento induz na
proteção da segurança coletiva. Não é função do magistrado reponderar a solução
entendida pelo Parlamento como a mais adequada. Leia-se: sob pena de violação à
lógica do planejamento jurídico-constitucional, em um ambiente permeado por
legitimidade democrática não cabe ao magistrado reabrir a controvérsia moral que
ensejou, em um primeiro momento, a edição da própria norma jurídica garantidora de
direitos: “a existência e conteúdo de um plano não podem ser determinados por fatos
cuja existência o plano objetiva assentar”15. Em suma, a norma deve agir como uma
razão excludente16 para a ação, isto é, uma razão preemptiva capaz de afastar ou
substituir os juízos pessoais do magistrado (razões de primeira ordem) sobre o que é
justo, adequado, eficiente, digno, desejável, etc.
Mas, ora: “reponderar” uma escolha legislativa não foi exatamente o que
Barroso fez? Sim, foi. Ao estabelecer, no art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, o
Constituinte optou por uma solução jurídica que pode até não ser considerada, por
alguns ou muitos, a mais adequada. Todavia, tal escolha não deixa margem para
dúvidas: a prisão por força de reconhecimento de culpa (execução de pena, pois)
somente é cabível após esgotados todos os meios de impugnação legalmente previstos.
Em processo penal, antes do trânsito em julgado são possíveis apenas prisões cautelares.
Não há vagueza. Não há ambiguidade. Não há textura aberta do direito.
Sim, eu sei que tudo o que está escrito na primeira parte da decisão de
Barroso ilustra fatos relevantes sobre os quais devemos refletir. Não que suas premissas
estejam corretas: há dados contrários, citados pelos próprios amici curiae, que apontam
que a ineficiência do sistema penal está relacionada a fatores muito mais complexos e
problemáticos do que a simplória afirmação de que existe quantidade desarrazoada de
recursos.
A escolha do constituinte presente no art. 5º, inciso LVII, da CF/88 dói?
Pode doer à vontade: direito e decepção andam de mãos dadas. O importante é que
saibamos os caminhos e procedimentos corretos para a mudança de nossas frustrações e

15
SHAPIRO, Scott. Legality..., ob. cit., p. 135.
16
RAZ, Joseph. Practical reason and norms. Oxford: Oxford University Press, 1999.
a melhoria da realidade. Uma emenda constitucional seria possível? Sim. Não há
proibição abstrata (e sim concreta, deduzida da atual redação do texto constitucional) à
execução da pena após a confirmação, em segunda instância, da sentença condenatória.
A “PEC dos recursos” apresentada em 2011 pelo Ministro Cezar Peluso pode até não
ser a melhor solução possível, mas foi pensada exatamente nesse espírito de respeito a
procedimentos. E o ativismo do STF? Nada disso. Não é função de um Ministro do
Supremo Tribunal Federal nos ensinar, em decisões judiciais, como se constrói um país
melhor. Mormente se essa lição cívica é proferida com o intuito de mitigar — ou, no
caso, aniquilar — direitos e garantias individuais na seara penal.
Resumindo este tópico: (i) juízo de reponderação, prática corrosiva ao
direito em ambientes permeados por legitimidade democrático-procedimental, é a
atitude judicial que se propõe a substituir, por outra considerada melhor pelo intérprete,
a solução jurídica já escolhida pelo legislador como a mais adequada para resolver uma
questão política ou moralmente controversa; (ii) há no art. 5º, inciso LVII, da
Constituição da República duas características que tornam dispensáveis e
inconstitucionais quaisquer fundamentos consequencialistas ou pragmáticos em
contrário: (a) os custos sociais do entrincheiramento do direito individual à execução da
pena apenas após o trânsito em julgado foram devidamente balanceados pelo legislador
constituinte quando da elaboração da norma. Eventual rediscussão da matéria deve
ocorrer no Parlamento, por meio de emenda constitucional. Reabrir o mérito da questão
dentro dos limites institucionais do Poder Judiciário significa ofender a lógica do
planejamento jurídico-constitucional. E (b), o dispositivo constitucional cuida de
matéria relativa à intervenção estatal em direitos e garantias criminais, seara jurídica à
qual o legislador não deposita no magistrado grau suficiente de confiança que o autorize
a realizar grandes digressões argumentativas sobre a desejabilidade da solução
legislativa. A interpretação deve, no ponto, ser a mais literal possível.

IV
ATIVISMO JUDICIAL E ARTIFÍCIOS RETÓRICOS)

Alertei, em outro estudo, que “a maior parte das afrontas do Poder


Judiciário à Constituição ou à lei vem acompanhada por algum tipo de invocação
principiológica ou sistemática que tenta conferir aparência de legitimidade ao raciocínio
criativo”17. Creio ser importante, neste artigo, brindar o leitor com a análise de algumas
estratégias argumentativas utilizadas por Barroso como meio de tentar emprestar
legitimidade postiça à interpretação antijurídica que fez do art. 5º, inciso LVII, da
Constituição da República. Esta parte do ensaio deve ser, portanto, lida em sua forma
negativa. É dizer: um guia de como não se fundamentar uma decisão judicial. De
nenhuma maneira pretendo ridicularizar o ato jurisdicional em apreço. A crítica é dura?
Claro que é. A academia serve para isso. Mas, por detrás do voto ora atacado está um
grande teórico do direito de terras brasileiras: Barroso. Respeito-o profundamente. Mas
também discordo profundamente. Desejo, apenas, dar sequência à tese de que a
concepção pós-positivista do citado jurista colide frontalmente com noções caras ao
Estado de Direito — tais como planejamento compartilhado, pesos e contrapesos,
circunstâncias da política e accountability. Em uma palavra: o pós-positivismo de
Barroso, que em alguns casos mais parece uma ode à argumentação moralmente
corretiva de magistrados, derrota os objetivos centrais de um Estado de Direito.
O caráter exaustivo da Constituição brasileira e a existência de inúmeras
normas de textura aberta são excelentes subterfúgios para aqueles que tencionam dobrar
o direito à imagem e semelhança daquilo que pensam ser justo. Há muitas estratégicas
retóricas capazes de tentar conferir legitimidade constitucional a um posicionamento
antijurídico. Ao examinar a segunda parte do voto de Barroso, creio ser possível sugerir
que foram utilizadas, ao menos, três delas:

(i) Transformação oportunista de uma regra jurídica em princípio ponderável.

No item 41 da decisão, Barroso sustenta que “a presunção de inocência é


princípio (e não regra) e, como tal, pode ser aplicada com maior ou menor intensidade,
quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”.
Essa tese já havia sido proposta, com mais detalhes, na ocasião em que o Ministro
examinou o HC nº 126.292. No entanto, o art. 5º, inciso LVII, da Constituição, que é
uma norma garantidora de direitos, só poderia ser considerado “princípio” ao preço
de rasgar-se toda a dogmática jurídica que sustenta as distinções analíticas entre
princípio e regra. Como vimos na coluna passada, o referido dispositivo advém de uma

17
TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico e pós-positivismo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2015, p, 273.
opção constitucional por uma entre diversas soluções possíveis na temática da
construção jurídica da culpa e respectiva execução de pena. Há, portanto, um juízo de
ponderação legislativo precedente, entre princípios colidentes (garantia da liberdade
individual versus efetividade da lei penal), que estabelece um comando determinado
em favor da espera do trânsito em julgado. Dado que não se trata de um texto normativo
que admite a produção de efeitos em variadas medidas, mesmo na difundida teoria dos
direitos fundamentais de Robert Alexy dificilmente alguém poderia sustentar que a
presunção de não culpabilidade enquadra-se na categoria de “princípio”. Trata-se, muito
claramente, de uma regra. E regras não possuem a propriedade de ponderabilidade 18. O
pós-positivismo de Barroso, todavia, parece não ter critério outro para distinguir
princípios e regras do que a vontade subjetiva e oportunista do julgador. Para conferir
ares de legitimidade a uma postura ativista, basta chamar o significante de “princípio” e
ponderá-lo a gosto.

(ii) Afastamento consciente da literalidade do texto do art. 5º, inciso LVII, da


Constituição.

No tópico 32 da decisão, Barroso deixa claro que, em 2009, no HC n.


84.078, ao ter alterado a jurisprudência para o fim de consignar a inviabilidade da
execução provisória da pena criminal, o STF posicionou-se “em favor de uma leitura
mais literal do art. 5º, LVII”. O Ministro, portanto, confessa estar afastando-se de uma
“leitura extremada e conservadora” (item 38 do voto) de um dispositivo que garante
direito individual em matéria penal e deixa-se levar, expressamente, por uma “leitura
sistemática dos incisos LVII e LXI do art. 5º da Carta de 1988, à luz do princípio da
unidade da Constituição”. Há cartas marcadas bem conhecidas na argumentação
daqueles que, insatisfeitos com alguma solução jurídico-penal, querem alterá-la via
ativismo judicial: uma delas é, exatamente, afirmar que a nova solução não constitui
ilegalidade por retratar, tão-somente, uma visão sistemática do direito. Antonin Scalia e
Bryan Garner têm algo a dizer sobre isso: “A liberação dos textos [...] faz bem aos

18
Cf. o texto esclarecedor de Ivan Rodrigues intitulado “Levando Robert Alexy a sério (i): a
imponderabilidade das regras”, disponível em http://institutoconceito.com/?p=234606. O uso equivocado
e acriterioso do termo “princípios” na teoria de Alexy foi denunciado ainda em 2002 por SILVA, Virgílio
Afonso da. O proporcional e o razoável. RT, São Paulo, ano 91, n. 798, p. 23-50, abr. 2002.
juízes. Ela aumenta suas habilidades de fazerem o que pensam ser bom”19. Isso, como já
afirmei, é especialmente grave quando se trata de normas garantidoras de direitos.

(iii) Utilização inadequada de institutos da dogmática constitucional (mutação da


mutação).

No item 34 de seu voto, Barroso reitera, na linha do que sustentou no HC


126.292, “a ocorrência de uma mutação constitucional, isto é, de uma transformação,
por mecanismo informal, do sentido e do alcance do princípio constitucional da
presunção de inocência, apesar da ausência de modificação do seu texto”. Acrescenta,
ainda, que, “na matéria, tinha havido uma primeira mutação constitucional em 2009,
quando o STF alterou seu entendimento original sobre o momento a partir do qual era
legítimo o início da execução da pena”. Há, desde logo, uma impropriedade técnica
nessa parte do voto do Ministro. Embora exista muita confusão a respeito, o fato é que a
mutação constitucional não se confunde com mera alteração de sentido do texto. Um
mesmo texto pode dar ensejo a mais de uma norma. A delimitação daquilo que está
dentro da moldura normativa faz parte do processo interpretativo comum. Na mutação,
todavia, a atribuição de novo sentido não se opera dentro de um mesmo significante: ao
contrário, cria outro. Em outros termos, a mutação resulta na criação, por via
hermenêutica, de um novo texto, o qual, no plano normativo, substitui o primeiro —
embora, por se tratar de método informal, não haja alteração do texto físico constante do
corpo da Constituição.
Exemplo paradigmático de mutação constitucional foi explicado pelo
Ministro Eros Grau na Rcl n. 4335, quando examinou o art. 52, inciso X, da CF:

“Aqui passamos em verdade de um texto


[compete privativamente ao Senado Federal suspender a
execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal]
a outro texto
[compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à
suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal
Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em
parte, por decisão definitiva do Supremo].”

19
SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading Law: the interpretation of legal texts. Minnesota:
Thomson/West, 2012, p. 10.
A afirmação de Barroso de que houve uma “primeira mutação
constitucional em 2009” é, portanto, equivocada. Ela não pode conviver com a outra
afirmação, também feita por ele, no sentido de que a interpretação de 2009 foi “literal”:
ora, se aquele entendimento do STF não conduziu a um novo texto, não foi mutação. Da
mesma forma: se a nova interpretação do STF (HC 126.292 e ADCs 33 e 34) recai sob
o rótulo de mera “interpretação sistemática” do direito, não se está diante de mutação.
Para manter-se fiel à tese, Barroso deveria ter admitido que o que pretendia fazer não
era uma mera atribuição de sentido suportado pela própria moldura textual do art. 5º,
inciso LVII, da Constituição, e sim a criação de um novo texto. Ao invés de insistir
que sua interpretação é meramente “sistemática” e, portanto, “menos literal” do que a de
2009, devia ter explicitado que, onde se lê “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, passar-se-ia a constar “ninguém
será considerado culpado até o acórdão que confirma a sentença condenatória, ainda que
sujeito a recurso especial e extraordinário”. Sem delongas: Barroso fez uma mutação do
próprio conceito de mutação constitucional (uma mutação da mutação). E, logo após,
utilizou essa falsa mutação como premissa para conferir interpretação conforme ao art.
283 do Código de Processo Penal, mantendo a constitucionalidade do dispositivo
enquanto, ao mesmo tempo, indeferia o pedido cautelar dos autores da ação — os quais
pediam justamente a declaração de constitucionalidade do dispositivo... Confuso? Sim.
Muito.
Há mais. A mutação, como se sabe, deve ser informada pelo
reconhecimento de mudanças subjacentes ocorridas no contexto social. É dever do
magistrado demonstrá-las. Esperava-se que Barroso, ao suscitar tal tese, comparasse a
“nova realidade” com a realidade anterior a fim de demonstrar qual mudança fática
legitima a nova postura hermenêutica. Não há dúvidas: no voto, houve a tentativa. No
entanto: (i) Barroso afirma que houve “poderoso incentivo à infindável interposição de
recursos protelatórios”, mas não se desincumbe de trazer os dados da realidade pré-2009
capazes de demonstrar que, antes, as coisas eram diferentes — para não mencionar,
aqui, a questionável interpretação que Barroso faz das estatísticas sobre o destino que os
meios de impugnação defensivos têm no STF; (ii) Barroso sustenta que o entendimento
de 2009 “reforçou a seletividade do sistema penal”, mas limita-se a exarar, de forma
genérica, a afirmação de que “os réus mais pobres não têm dinheiro (nem a Defensoria
Pública tem estrutura) para bancar a procrastinação [dos processos]”; (iii) por fim,
Barroso assevera, mais uma vez genericamente, que a decisão de 2009 contribuiu para o
“descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade”, sobretudo por estar
conduzindo “massivamente à prescrição da pretensão punitiva”, sem, novamente, trazer
dados pré-2009 demonstrativos de que isso já foi diferente. (Convenhamos: antes de
2009 o sistema penal funcionava bem? Ou, ao menos, melhor do que hoje? O que
perdi?)
Em suma: Barroso, de um lado, sustenta a ocorrência de alteração fática
relevante em um período estreito de sete anos, sem a contrapartida de demonstrar (i) que
as coisas já foram diferentes do que são hoje e (ii) o efetivo vínculo causal entre o
entendimento proferido pelo STF no HC n. 84.078 e o cenário catastrófico de
impunidade que é desenhado na primeira parte de seu voto. O apelo à mutação
constitucional, tal como as teses da presunção de inocência como “princípio” e da
“interpretação sistemática”, consiste em apenas mais uma tentativa retórica de justificar,
do ponto de vista constitucional, a negativa de vigência ao art. 5º, inciso LVII, da CF.

V
INCONFORMISMO PSICOLÓGICO E LEGITIMIDADE PUTATIVA

Já examinamos, nos tópicos anteriores, as partes um e dois do voto do


Ministro Barroso. Seria intuitivo que esta parte do artigo guardasse pesadas e
demoradas críticas aos fundamentos constantes no terceiro excerto da decisão. Mas isso
seria dignificar o raciocínio do Ministro com o selo de plausibilidade jurídica.
Plausibilidade, todavia, não há. Por que não? Conforme discutimos acima, as premissas
de que parte Barroso não são normativas e institucionais, e sim psicológicas,
derivadas de análise crítica de fatos sociais. Não se iniciam pela análise da configuração
linguística do art. 5.º, inciso LVII, da Constituição e do art. 283 do Código de Processo
Penal, a fim de decifrar aquilo que, no texto, repousa em estado de potência — e aquilo
que, ao revés, porventura lhe ultrapassa a moldura. Advêm, ao contrário, de mero
inconformismo com a solução previamente dada pelo Constituinte e pelo Legislador.
Mais do que rebater, em si mesmos, os argumentos ativistas mediante
referência a grandes teses filosóficas e jurídicas em contrário — em aproximação àquilo
que Richard Posner chamou de “moralismo acadêmico” —, talvez seja chegada hora da
doutrina nacional privilegiar caminhos estratégica e pragmaticamente orientados,
vinculados, sobretudo, à denúncia implacável dos estratagemas usualmente utilizados
para tentar conferir ares de adequação constitucional àquilo que, em verdade, não passa
de uma vontade individual juridicamente subversiva e, não raro, autoritária. A
elaboração de teorias da decisão baseadas em aprofundamento filosófico tem,
evidentemente, grande serventia. Mas se a ideia é combater de modo efetivo o ativismo
judicial, o constrangimento epistêmico, que constitui função precípua da doutrina, tem
mais chances de sucesso caso também saiba jogar com grandezas humanas e
concretas, relacionadas a estudo de casos e a referências a erros de julgadores
individualizados que têm nome e sobrenome a zelar.
Podemos, aqui, aprofundar o modus operandi corriqueiro do ativismo
judicial substantivo. Reparem: o inconformismo psicológico, como energia psíquica
subversiva, trama, de antemão, o resultado prático desejado. Barroso, ao elencar na
Parte I de seu voto suas premissas fáticas, esclareceu a quem quisesse entender que não
estava disposto a seguir nenhuma outra orientação normativa que, de alguma forma,
viesse a colidir com suas opiniões pessoais acerca do estado calamitoso do sistema
penal. Sabia o Ministro, em sua consciência, qual o caminho que deveria ser trilhado em
prol daquilo que ele, pessoalmente, considerava mais adequado para a realidade
brasileira. Faltava-lhe, apenas, colher os argumentos. Primeiro decidiu, para somente
depois fundamentar. Nessa dinâmica, a literalidade do art. 5.º, inciso LVII, da
Constituição jazia tal como um pedregulho facilmente contornável pela autoridade de
“dizer o que o direito é” atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Contornável como? Por
outro método que já estudamos: emprego, consciente ou não, de artifícios retóricos (no
caso: reponderação, interpretação sistemática e mutação da mutação). Tendentes a que?
A conferir aparência de legitimidade constitucional a um raciocínio que não se
coaduna com o ponto de vista jurídico (legal point of view). Legitimidade putativa,
portanto.
Eis um exemplo paradigmático constante do voto: Barroso afirma que, na
sistemática constitucional, existe relevante distinção entre “regime da culpabilidade” e
“regime da prisão”. O Ministro sustenta, no tópico 40, que “a Constituição brasileira
não condiciona a prisão — mas, sim, a certeza jurídica acerca da culpabilidade — ao
trânsito em julgado da sentença penal”. E, no item 49, acrescenta que “o inc. LXI que
trata da prisão e este, diferentemente do anterior, não exige o trânsito em julgado para
fins de privação de liberdade, mas, sim, determinação escrita e fundamentada expedida
por autoridade judiciária”.
Já vimos que Barroso não tinha legitimidade constitucional nem sequer
para começar a tecer “interpretações sistemáticas” com o fim de afastar garantia penal.
Por um lado, o sistema não lhe confere confiança (economy of trust) para inovar
argumentativamente contra direitos individuais entrincheirados. Por outro, a opção
legislativa já estava assentada: custe o que custar, execução da pena depende do trânsito
em julgado. A reponderação é constitucionalmente vedada. Em termos positivistas, o
art. 5º, inciso LVII, da Constituição representa uma razão excludente — razão de
segunda ordem que preclui quaisquer razões morais de primeira ordem em contrário. Se
a Constituição tem alguma autoridade moral — e ela tem, não tem? —, pouco importa à
resolução do caso em apreço o que Barroso, ou qualquer outro ministro, pensa ser “mais
justo” a respeito. Não lhes cabia reabrir a controvérsia moral que ensejou, em um
primeiro momento, a edição da norma. Não lhes cabia, enfim, trazer ao debate razões
primárias afastadas pela autoridade do texto constitucional.
Com a retórica da “interpretação sistemática”, Barroso abriu caminho
para legitimar, de forma putativa, seu raciocínio criativo. A literalidade do art. 5º,
inciso LVII, da Constituição — que, como ele próprio afirma, foi levada a sério em
2009, no HC n. 84.078, quando o STF reconheceu ser impossível a execução provisória
da pena — não colabora com as premissas estabelecidas na Parte I de seu voto.
Restava alternativa ao Ministro que não fosse garimpar a Constituição em busca de
algum fundamento que desse respaldo àquilo que já havia sido reputado como desejável
em sua consciência? Não. E, lá onde está escrito “ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária
competente” (inciso LXI do art. 5º), Barroso encontrou o que entendeu ser a chave para
levar adiante sua tese. O inciso LXI demonstra que a Constituição não condiciona a
prisão de alguém ao trânsito em julgado da sentença, afirmou o ministro. Mas ora! É
claro que não condiciona. Afinal, existe prisão cautelar. É disto que o inciso LXI trata.
E não de prisão definitiva, derivada da imutabilidade do juízo penal condenatório.
Ademais, a distinção entre “prisão” e “culpabilidade” é dissolvida pela literalidade do
texto do art. 283 do CPP: “Ninguém poderá ser preso [e não meramente considerado
culpado] senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade
judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em
julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária
ou prisão preventiva” (grifos meus). Nada que está normativamente posto pelo direito,
em suma, colabora, neste caso particular, com as convicções pessoais de Barroso sobre
o que é melhor para a sociedade brasileira.
“Trânsito em julgado da sentença penal condenatória” e “reconhecimento
de culpa”, alguém poderia lembrar, são termos que parecem suficientemente graves para
demandar alguma consequência prática relevante. No limite, todavia, Barroso está-
nos a esclarecer que tais conceitos têm o mero efeito de obrigar algum servidor público
a apor nos autos uma “certidão de trânsito em julgado”. O art. 5º, inciso LVII, para o
Supremo Tribunal Federal, tem a força coercitiva de um carimbo. Conforme argumentei
em outro estudo, “a antecipação da execução penal não permite discernir a diferença
prática que posteriores ‘trânsito em julgado’ e ‘formação jurídica de culpa’ podem
conferir à situação prisional do réu que já se encontra, desde o julgamento da apelação
criminal, cumprindo pena com base na ‘presunção de culpa’ criada pelo Supremo
Tribunal Federal. De forma mais direta: em termos de execução de pena, o STF
equiparou o grau de intervenção estatal destinado a uma classe específica de réus ‘não-
culpados’ — mas ‘presumivelmente’ culpados por construção jurisprudencial — com o
grau máximo de intervenção estatal destinado aos réus ‘já culpados’: o início imediato
da execução penal. Não há nada, no artigo 5º, inciso LVII, da CF, que permita isso”20.

VI
CONCLUSÃO

A “juristocracia”, no Brasil, não surgiu por acaso. Ao contrário, foi


paulatina, política e conscientemente construída21, durante mais de vinte anos, com a
colaboração relevante de teorias do direito nacionais apologéticas ao deslocamento das
escolhas públicas do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, mediante ênfase
desmedida em coisas como “princípios”, “reaproximação entre direito e ética”, e até
mesmo “integridade” (Como me disse certa vez André Coelho, em brincadeira com

20
Cf. “STF não fez leitura honesta do art. 5º, inciso LVII, da Constituição”, disponível em
http://www.conjur.com.br/2016-mar-08/bruno-torrano-stf-nao-fez-leitura-honesta-cf-antecipar-pena
21
“Um provável elemento em comum entre o caso brasileiro e outros processos similares de expansão do
poder judicial ao redor do mundo está no fato de que o ativismo do Supremo de hoje é politicamente
construído” (ARGUELHES, Diego Werneck. O Supremo na política: a construção da supremacia
judicial no Brasil. In: Revista de Direito Administrativo – RDA, São Paulo, n. 250, 2009, p. 07).
fundo de verdade: no Brasil não sabemos nem o que é legalidade, e já estamos dispostos
a discutir integridade).
Uma dessas teorias encontra na figura de Barroso o mais destacado
defensor: o pós-positivismo idealista. Neste, conforme visto acima, a justificativa para
a supremacia do Judiciário varia a gosto. Abusa de fórmulas vazias (mais princípios do
que regras; mais juízes do que legisladores; reaproximação do direito e da ética; etc.)
para exagerar, a ponto de descontrole racional, o viés criativo do ato interpretativo;
flerta com a ideia de que magistrados são seres mais bem preparados para lidar com
raciocínios morais sofisticados; aposta no Supremo Tribunal Federal como uma
instituição “iluminista” (sic) que tem, dentre suas funções institucionais, “empurrar”
(sic), de cima para baixo, a sociedade para o progresso social; e assim por diante.
Ora. Era natural que uma teoria com semelhante textura fosse
prontamente aceita pelo Poder Judiciário como aquilo que, supostamente, há de mais
avançado na filosofia do direito. Veja-se: o alegre rubor nas faces dos magistrados22 foi
tamanho que não permitiu, nem mesmo, que eles percebessem a existência, dentro do
próprio pós-positivismo, de uma ala hermenêutica refratária a voluntarismos (pós-
positivismo hermenêutico). Mas a tenra acolhida jurisprudencial de uma teoria ativista,
em verdade, não deve surpreender ninguém. Além de, como dizia Mark Tushnet23,
tornar o trabalho dos juízes muito mais interessante, o afastamento dos limites
semânticos dos textos legais permite-lhes, porventura, alcançar fama e reputação pelo
emprego de interpretações heterodoxas ou revolucionárias, tidas por tal ou qual grupo
de interesses, ou pelo grosso da sociedade e da mídia, como mais “justa” ou
“moralmente próspera”. Muitas vezes, para que bem compreendamos o fenômeno do
ativismo judicial, coisas tão humanas como ego e vaidade devem ser adicionadas à
equação. Com considerável peso.
Do ponto de vista profilático, o voto proferido pelo Ministro Barroso
incorpora riquezas infinitas: permite-nos aclarar, em comparação ao positivismo
normativo ou ético, a que conduz a concepção pós-positivista de direito; aponta-nos
algumas estratégias retóricas que são recorrentemente utilizadas para conferir aparência
de legitimidade a raciocínios antijurídicos; demonstra-nos que pouco podemos fazer,

22
Cito inúmeras decisões judiciais que mencionam os “tempos pós-positivistas”, publicadas durante o
longo período de 20 anos, em TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei: entre positivismo jurídico
e pós-positivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
23
TUSHNET, Mark. Taking the Constitution away from the Courts. New Jersey: Princeton University
Press, 1999.
além de uma crítica ex post concreta e direcionada, quando magistrados arrogam para si
o direito de proclamar à sociedade quais são os verdadeiros caminhos para a
prosperidade; e confirma-nos como é importante lutar pelos valores políticos intrínsecos
ao Estado de Direito — peso e contra peso, accountability, previsibilidade, segurança
jurídica, intersubjetividade, etc. —. Do ponto de vista da teoria da decisão, todavia, o
voto não nos brinda com nenhum ensinamento relevante acerca da maneira pela qual
magistrados devem interpretar o direito. Ao contrário, a despeito da qualidade e
inteligência de Barroso, apenas ratifica aquilo que Richard Posner já havia alertado:
“Juízes não são uma vanguarda moral, e as palavras chiques que usam tendem a ser
rótulos para convicções baseadas em palpites e emoções”24.

24
POSNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p.
67.

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