E DIREITO AMBIENTAL
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade discutir a questão relativa ao direito de cons-
truir e ao direito adquirido em face de alterações legislativas e administrativas que
ampliem o âmbito de incidência e de proteção do meio ambiente. Parece-nos cor-
rente a confusão que se faz entre direito adquirido e expectativa de direito. Além
disso, há posições extremadas no sentido de que o direito ambiental prevalece so-
bre direito adquirido e vice-versa. Contudo, entendemos que é possível harmonizar
a aplicação do direito adquirido com o direito ambiental, distinguindo as hipóteses
em há uma expectativa de direito daquela em que há de fato um direito adquirido.
PALAVRAS-CHAVE
Direito de construir. Direito adquirido. Expectativa de direito. Direito ambiental.
Meio ambiente. Normas ambientais.
ABSTRACT
The present article has by meaning to discuss the question related to the right of
construction and to the assured rights in face of the legislation and administration
alterations amplify the incidence and protection of the environment. It seems right
the confusion made between the assured right and expectation of right. Besides that,
there are extremes positions in the sense that environmental rights go over assured
rights and vice-versa. Although, we understand it is possible to harmonize the
application of assured rights and environmental rights, distinguishing the possibilities
where there is a expectation of those where actually have a assured right.
KEYWORDS
Right of construction. Assured right. Expectation of right. Environmental right.
Environment. Environmental rules.
SUMÁRIO
Introdução – 1. Conceito de direito adquirido – 2. Direito de propriedade e
direito de construir – 2.1. Ausência de licença para construir – 2.2. Obra devida-
mente licenciada para a construção, mas que ainda não se iniciou – 2.3. Obra
devidamente licenciada em que já houve a construção – 3. Licença de constru-
ção e licença ambiental – 3.1. Licença de construção emitida em desconformi-
dade com normas ambientais – 3.2. Licença de construção e licença ambiental
devidamente emitidas, sem que fosse erigida a construção – 3.3. Licença de
construção e licença ambiental devidamente concedidas, tendo o proprietário
erigido a sua construção. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Tem sido frequente, nas ações judiciais em defesa do meio ambiente, a ale-
gação de direito adquirido de construir por parte do poluidor. Há duas posições:
uma que entende que sempre há um direito adquirido, como se o direito de cons-
truir fosse inerente ao direito de propriedade; outra que afirma que não se pode
alegar direito adquirido em face de normas de proteção ao meio ambiente, por
se tratarem de normas de interesse público. Assim, há duas posições radicalmente
opostas, ora para sustentar a prevalência do direito adquirido, ora para sustentar a
prevalência do direito ao meio ambiente saudável.
De início é necessário lembrar que a proteção ao direito adquirido é prevista
no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito adqui-
rido...”. No mesmo artigo, no inciso XXII, é previsto que “é garantido o direito de
propriedade;”. Ainda no citado artigo, no inciso XXIII, também há a previsão de que
“a propriedade atenderá a sua função social;”.
De igual forma, a proteção ao meio ambiente também é prevista na Consti-
tuição Federal, no art. 225 e seus parágrafos. Diz o caput do citado artigo que: “To-
dos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à co-
letividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Assim, é possível harmonizar tais normas, a fim de que uma não prevaleça
incondicionalmente sobre as outras. Contudo, para se chegar a essa conclusão, é
necessário ter em mente o correto conceito de direito adquirido. Além disso, não
poderão ser deixados de lado, no que tange à interpretação das normas infralegais,
os textos constitucionais relativos à função social da propriedade e à obrigação co-
letiva de preservação do meio ambiente.
1. Citando o conceito de Francesco Gabba, retirado de seu livro Teoria della Retroattività delle
Leggi, o mesmo Caio Mário da Silva Pereira afirma que:
“Na definição de Gabba, é adquirido um direito que é consequência de um fato idôneo a
produzi-lo em virtude da lei vigente ao tempo em que se efetuou, embora a ocasião de fazê-
-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação da lei nova, e que, sob o império da lei
então vigente, integrou-se imediatamente no patrimônio do seu titular.
Da análise da definição de Gabba resulta:
A) Como todo direito se origina de um fato – ex facto ius oritur –, é preciso que o fato gerador
do direito adquirido tenha decorrido por inteiro. Se se trata de um fato simples, é facílimo
precisá-lo; mas se é um fato complexo, necessário será apurar se todos os elementos cons-
titutivos já se acham realizados, na pendência da lei que é contemporâneo.
B) Não se confunde com direito adquirido o direito totalmente consumado, pois que este
já produziu todos os seus efeitos, enquanto que o direito adquirido continua tal, muito
embora venha a gerar consequências posteriormente ao tempo em que tem eficácia a lei
modificadora.
C) Para que se tenha como adquirido, é mister, ainda, a sua integração no patrimônio do
sujeito”(obra citada, p.149).
que esse fato foi realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tivesse
apresentado antes da existência de uma lei nova sobre o mesmo, e que, nos
termos da lei sob o império da qual se deu o fato de que se originou, tenha
entrado imediatamente para o patrimônio de quem o adquiriu. Manuel A.
Domingues de Andrade esclarece-nos que o patrimônio vem a ser o conjunto
das relações jurídicas (direitos e obrigações), efetivamente constituídas, como
valor econômico, da atividade de uma pessoa física ou jurídica de direito
privado ou de direito público. Portanto, o que não pode ser atingido pelo
império da lei nova é apenas o direito adquirido e jamais o direito ‘in fieri’ ou
em potência, a ‘spes juris’ ou simples expectativa de direito, visto que ‘não se
pode admitir direito adquirido a adquirir um direito’. Realmente, expectativa
de direito é a mera possibilidade ou esperança de adquirir um direito, por es-
tar na dependência de um requisito legal ou de um fato aquisitivo específico.
O direito adquirido já se integrou ao patrimônio, enquanto a expectativa de
direito dependerá de acontecimento futuro para poder constituir um direito”
(in Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 12. ed., Ed. Sarai-
va, São Paulo, 2007, p. 194-5).
sua função social. Para isso, a lei cria mecanismos para atingir esse fim, para evitar
abusos por parte do dominus, conforme o citado art. 182, §4º, da Constituição Federal.
Sendo uma faculdade, estará sujeita às mudanças legislativas posteriores,
não podendo se falar em retroatividade. Neste sentido, há que se lembrar da lição
de Caio Mário da Silva Pereira:
A faculdade legal traduz um poder concedido ao indivíduo pela lei, do qual
ele não fez ainda nenhum uso.
Igualmente são reguladas pela lei moderna as faculdades legais, que haviam
sido instituídas pela lei morta, mas de que não havia o indivíduo feito uso,
embora estivesse ao seu alcance (obra citada, p. 149-150).
3. Neste caso, há, na verdade, uma alienação de uma expectativa de direito, ou seja, da possibili-
dade de construção já licenciada no local. Não é pelo fato de o novo proprietário ter adquirido
a licença de terceiro que ele terá direito líquido e certo de fazer a construção. Se a licença não
integrava o patrimônio do antigo proprietário, com maior razão não integrará o patrimônio
do atual. Embora mensurável essa licença de construção, sendo passível de alienação, tal fato
não se constitui em patrimônio, tanto que não é passível de penhora, de ser objeto de herança
etc. Outro exemplo de venda de uma expectativa de direito ocorre na hipótese de alienação
de um bem imóvel em litígio, em que se questiona o domínio: o adquirente compra um risco,
podendo se tornar ou não o proprietário do bem; o imóvel só será incorporado ao patrimônio
do adquirente após sentença transitada em julgado que reconhecer o seu domínio.
Tanto não há direito adquirido que o proprietário não pode se opor à decisão
administrativa de revogação, salvo quanto à legalidade do ato. Sendo a revogação
um ato legal, leia-se não arbitrário, ao particular prejudicado caberá apenas exigir
uma indenização, se houver prejuízo.
Portanto, não está preenchido um dos requisitos para se admitir o direito ad-
quirido, eis que a licença pode ser alterada ao arbítrio de outrem. Se a revogação é
cabível, por uma questão lógica, igualmente a licença concedida não fica imune às
eventuais alterações legislativas posteriores em prol do interesse público.
Por fim, voltamos a frisar que no nosso sentir a licença para construir é uma
autorização administrativa. Contudo, com isso, não negamos a possibilidade de que
a revogação da autorização possa gerar a obrigação da Municipalidade de indenizar,
desde que tenha provocado prejuízo para o particular interessado, como já visto.
Assim, concluímos que o alvará de construção, uma vez emitido, gera ape-
nas uma expectativa de direito.
permanente, qual seja, topo de morro ou às margens de curso d’água. Uma vez pro-
cessados, pois não tinham a licença ambiental exigível, tais proprietários alegaram
que teriam o direito adquirido de construir, vez que o loteamento foi aprovado na
década de 1970, sendo a construção aprovada pela Prefeitura Municipal. Assim, tais
defesas, como visto, baseiam-se na alegação de que o direito de construir é inerente
ao direito de propriedade, o que é um erro. Outro raciocínio equivocado ocorre em
relação à alegação de que a licença de construir gerou um direito adquirido. A nor-
ma de direito ambiental aplicável na presente hipótese é aquela da época do início
da construção, porque o proprietário não obteve a licença ambiental exigível. Logo,
seu ato é ilegal e não pode ser acobertado pelo manto do direito adquirido. Não
existe direito adquirido quando a parte nem sequer direito tem.
Neste sentido, podemos citar o seguinte acórdão:
LOTEAMENTO APROVADO E REGISTRADO - obtenção de várias autorizações
para desmatamento na área do empreendimento -posterior negativa para novo
desmatamento - área situada em local de preservação permanente - alegado
direito adquirido ao desmatamento - descabimento - prevalência do interesse
público e imediata aplicação da legislação protetora do meio ambiente5.
5. Apelação Cível n. 147.488-1/2 – São Paulo 4ª Câmara Civil – TJ-SP Apelante: Hidro Volt
– Engenharia e Construções Ltda. – Apelados: Diretor da Divisão de Proteção de Recur-
sos Naturais – DPRN – Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de S. Paulo
Rel. Lobo Júnior – j.12-9-91.
para a alegação de direito adquirido, como visto. Ademais, embora possa gerar alguma
situação injusta em algum caso específico, o fato é que o particular deverá observar as
regras de direito ambiental, sacrificando até mesmo seu patrimônio em prol da coleti-
vidade. Além disso, o particular prejudicado terá meios para se ressarcir dos danos pa-
trimoniais que tenha suportado, podendo requerer uma ação indenizatória em face do
loteador, do vendedor, ou até mesmo do Poder Público, se for o caso (no caso de revoga-
ção, por exemplo). Logo, o proprietário do terreno, ainda que esteja impedido de cons-
truir em todo o seu imóvel, por estar integralmente em área de proteção ambiental, não
estará totalmente desamparado pela lei. Como dito, o prejuízo do proprietário impedido
de construir pode vir a ser ressarcido monetariamente, pelos meios legais cabíveis.
Não é possível aceitar que um prejuízo individual, decorrente de um ato que
passou a ser considerado ilegal, se sobreponha a uma norma de direito ambiental
que tem por fim a proteção de um bem de interesse metaindividual, visando preser-
var o meio ambiente inclusive para gerações futuras.
Uma segunda hipótese nos ocorre.
É possível que o proprietário obtenha a licença ambiental e posteriormente
o alvará de construção para erigir um prédio. Então, suponha-se que sobrevenha
alteração normativa em que se vede a construção no local anteriormente autorizado
ou licenciado. Dessa forma, poderia o proprietário dar início à sua construção, não
obstante a vedação legal posterior?
Parece-nos que a resposta é a mesma do caso anterior, ou seja, já não mais
poderá o proprietário erigir a construção. Como a licença anteriormente concedida
passou a contrariar texto expresso de uma norma de direito ambiental, o proprietário
deverá revalidar a sua licença junto ao órgão ambiental que a concedeu. Por outro
lado, o órgão ambiental deverá, de ofício ou de forma provocada, revogar ou anular
a licença anteriormente concedida. Se as novas normas de direito ambiental permi-
tirem que haja a construção no local, o proprietário deverá atualizar a sua licença,
o que implica dizer na emissão de uma nova licença, vez que a anterior perdeu a
validade em virtude de sua contrariedade às normas de direito material. Somente
assim poderia dar início à construção, sob pena de ser responsabilizado pelos danos
ambientais que provocar no local.
Veja que na presente hipótese parte-se da premissa de que a licença ambiental
anteriormente concedida é válida. Isso porque, se o órgão emitir uma licença em con-
trariedade com as normas vigentes da época de sua emissão, estará praticando um ato
ilegal. Ex.: na época da licença a lei exigia que fosse protegida uma área de preservação
permanente de trinta metros de curso d’água. Se o órgão ambiental emitir uma licença
ambiental permitindo a construção particular na faixa de dezesseis metros do corpo
d’água e esta licença não abarcar nenhuma hipótese de interesse público previsto em lei
(art. 3º, §1º, c. c. o art. 4º, ambos do Código Florestal), tal licença será nula, pois ilegal.
Nem se argumente a questão da boa-fé do proprietário. Tal elemento não in-
tegra o conceito de direito adquirido. Por mais incauto e honesto que seja o proprie-
tário, por mais que atue de boa-fé ao iniciar a construção, tem ele o dever legal de
Assim, uma coisa é entender que uma norma de direito ambiental sempre e
em qualquer situação prevalece sobre o direito adquirido. Outra coisa é entender
que a não ocorrência de uma hipótese de direito adquirido permite a sobreposição
das normas de direito ambiental sobre o interesse particular, ainda mais quando
esse interesse individual não é amparado por lei. Portanto, não vemos até aqui, nas
hipóteses tratadas, uma sobreposição do direito ambiental sobre o direito adquirido.
Ao contrário, vemos que não há situação que permita o reconhecimento do direito
adquirido. Em virtude disso, deverá o particular sujeitar-se às normas de direito am-
biental, pois a lei tem caráter coercitivo, devendo ser obedecida por todos. Jamais
poderá o particular pretender que seu interesse individual se sobreponha à lei, ale-
gando que a norma é injusta, sob o seu ponto de visto. Do contrário, não teremos
um estado democrático de direito, mas um estado anárquico.
6. Não é demais ressaltar que estamos aqui falando de construções devidamente licenciadas,
pois do contrário há hipótese de ilegalidade, não havendo que se falar em direito adquirido.
Por exemplo: um morador constrói, sem qualquer licença, no interior de uma unidade de
conservação. Não sendo uma construção antiga, leia-se, antes da criação do parque, não
pode ele alegar direito adquirido, ainda que o Estado tenha sido omisso na fiscalização.
7. Não estamos ignorando a hipótese prevista no art. 3º.,b, item I, da Resolução CONAMA n.
04/1985. É que, no caso proposto, o rio tem trinta metros de largura, devendo ser preservada
a faixa marginal de quinze metros, segundo tal resolução.
8. Sobre o tema, vale a pena a leitura do título IV, itens 3 e 4, do livro Tutela dos interesses
difusos e coletivos, Editora Juarez de Oliveira, da Professora Consuelo Yatsuda Moromizato
Yoshida, em que relata as situações teratológicas ocorridas na chamada “indústria de inde-
nizações milionárias” no Estado de São Paulo.
CONCLUSÃO
Concluímos que o direito de construir é uma faculdade legal do proprietário,
podendo ser exercitável ou não. Para poder exercer tal faculdade, o proprietário de-
verá obter a licença de construção, devendo observar as normas vigentes da época
em que pretende construir.
9. Evidentemente que estamos tratando aqui de situações em que a área é de interesse ambiental.
Se já perdeu tal característica, como, por exemplo, nas áreas de perímetro urbano já antigas
e sem características que a tornem um bem ambiental, esse raciocínio não é aplicável. Um
exemplo bem ilustrará o que se propõe. Suponha-se que a Avenida Paulista, encravada na cida-
de de São Paulo, esteja em área que hoje poderia ser considerada topo de morro. É óbvio que
os proprietários dos imóveis desta avenida não necessitariam de qualquer licença ambiental
para usar o seu bem, salvo se fosse um bem de interesse histórico ou cultural (mas neste caso
o fundamento é diverso). Isso porque tal lugar não possui característica de área de proteção
ambiental, constituindo-se em uma situação absolutamente diversa da acima tratada.
REFERÊNCIAS
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de construir. Disponível em:www.justicaesolidariedade.com.br/index.jsp? Acesso
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DINIZ, Maria Helena . Lei de Introdução do Código Civil Brasileiro interpretada. 12. ed.
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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 17. ed. São Paulo: Ma-
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21. ed. Rio de Janeiro:
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PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
SARAI, Leandro. Direito adquirido. Disponível em: www1.jus.com.br/doutrina/texto.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, v. V. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 1.
ed., 2. tir. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006.