INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Dissertação de Mestrado
1
INTRODUÇÃO
da obra de Freud, estes termos aparecem, muitas vezes, empregados como sinônimos ou
acoplados em uma única expressão: "depressão melancólica”2.
De acordo com Peres, podemos dizer que a melancolia é um termo que aparece,
com freqüência, no mundo grego – em Hipócrates e em Aristóteles –, sendo também
utilizado pelos autores clássicos da psiquiatria. Já o termo depressão surge mais tarde,
juntamente com a psiquiatria clássica alemã, advinda do francês a partir do latim.
Podemos constatar que, atualmente, o termo depressão vem ocupando um espaço cada
vez maior em nossa cultura, na medida em que toda e qualquer tristeza passa a ser
chamada de “depressão”.
Ainda no terceiro capítulo, tomamos a depressão como “covardia moral”, tese de
Lacan (1974), a partir de Dante e Espinosa, que consideramos central para nossa
discussão:
2
Termos utilizados em: - FREUD, S. “Rascunho N”, AE, v. I, p. 298; ESB, v. I, p.307; “O método
psicanalítico de Freud”, AE, v. VII, p. 241; ESB, v. VII, p. 240. “Uma neurose demoníaca do século
XVII”, AE, v. XIX, p. 82; ESB, v. XIX, p. 96.
5
3
LACAN, J. Televisão, p.44. O grifo é nosso.
6
4
objeto a no lugar de agente, o sujeito é instigado a falar e a produzir significantes.
Operando através da ética do bem-dizer, a falta pode ser reintroduzida e o sujeito vir a
se deparar com o seu desejo. É, justamente, nessa direção que Lacan propõe “o discurso
do psicanalista como única saída para a ausência de saída do discurso capitalista”5.
Indagamo-nos se a depressão não seria justamente uma forma do sujeito de dizer “estou
fora” dessa cultura que toma ares de maníaca e onipotente no contexto do discurso
capitalista.
Em “O mal estar na cultura” (1930), podemos reconhecer que o “mal-estar” é
inerente ao sujeito, manifestando-se através da angústia, da tristeza e, até mesmo, da
própria “dor de existir”6. Atualmente, o sujeito, ao dizer “estou deprimido”, é como se
nada mais tivesse a dizer, não precisando deparar-se com o próprio desejo e,
conseqüentemente, com a falta que lhe é estrutural.
Consideramos que a tendência à “medicalização” da depressão é enganosa, no que
diz respeito aos “sujeitos deprimidos”, na medida em que se trata de uma promessa
ilusória de retorno a um estado de “felicidade absoluta”, ou seja, em que nada falta.
4
Este conceito será abordado no decorrer da dissertação.
5
ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e
pesquisa em psicanálise, p.46.
6
Este conceito será abordado no decorrer da dissertação.
7
A questão que resta é: se, para Lacan, o desejo advém da falta, o que acontece com
o sujeito que se diz “deprimido” e que evita lidar com a falta que lhe constitui? Se não
há falta, ou melhor, se a falta vem a faltar, como o desejo pode se fazer presente?
8
CAPÍTULO I
7
KAPLAN, H. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica, p. 289.
8
Anamnese – histórico de sinais e sintomas apresentados ao longo da vida, antecedentes pessoais e
familiares, assim como os do meio social. Inclui: identificação do paciente, queixa principal e história da
doença atual, sintomas, antecedentes mórbidos pessoais, hábitos, antecedentes familiares, relacionamento
e dinâmica familiar, exame físico, exame neurológico, exame psíquico, história de vida e resultado das
avaliações complementares. (DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
mentais, p.45).
10
9
CID 10 – Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento, no Código Internacional de
Doenças
10
DSM IV – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 4ªed.,1994.
11
Foraclusão – forclusion – termo francês, retirado do âmbito jurídico, que designa um processo
prescrito, sobre qual não se pode falar mais, pois já não existe legalmente. Estaria “incluído fora”, logo,
foracluído, sem registro.
11
12
Síndromes – “agrupamentos relativamente constantes e estáveis de determinados sinais e sintomas; é
uma definição puramente descritiva de um conjunto momentâneo e recorrente de sinais e sintomas”. In:
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p.21.
12
13
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p.192.
13
14
Idem, p.192.
15
Ibidem, p. 193.
16
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais, p. 193.
14
“angústia intensa” associada aos sintomas depressivos. Em tal quadro, há um sério risco
de suicídio.
E, por fim, a depressão secundária é definida como uma síndrome depressiva
causada, ou fortemente associada, a uma doença ou quadro clínico somático, seja ele
primariamente cerebral ou sistêmico. Acompanham, com relativa freqüência, síndromes
e doenças como o hipo ou hipertireodismo, lúpus eritematoso sistêmico, doença de
Parkinson e acidente vascular cerebral (AVC).
A classificação das “síndromes depressivas”, acima brevemente retomada, é
trazida por Dalgalarrondo, existindo, ainda, outras classificações psicopatológicas e
psiquiátricas sobre a depressão – “transtorno afetivo bipolar, ciclotimia, mania mista
(sintomas maníacos e depressivos)”17.
No DSM IV, “os transtornos depressivos” são assim listados: 1) transtorno maior
(depressão maior); 2) transtorno dístímico (distimia); e 3) transtorno depressivo, sem
outra especificação. Já no CID 10, encontramos os “transtornos do humor ou afetivos”,
dentre eles: 1) transtorno afetivo bipolar; 2) episódio depressivo; 3) transtorno
depressivo recorrente; 4) transtornos persistentes do humor (afetivos) – ciclotimia,
distimia etc; 5) outros transtornos do humor (afetivos).
17
Termos extraídos da Psiquiatria geral (Kaplan & outros).
15
18
FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à
estrutura”, p. 68.
19
ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e
pesquisa em psicanálise, p. 53.
17
sujeito falar tudo aquilo que lhe vier à cabeça, já que através dessa livre associação
podemos ter acesso ao inconsciente.
Em seu trabalho clínico, Freud começou a perceber que precisava deixar falar seus
pacientes, sem fazer-lhes muitas indagações ou interpretá-los a todo instante. Ao
indagar a sua paciente Emmy Von N. sobre a origem de suas dores gástricas, ela
retrucou que ele não deveria perguntar tanto de onde provinha isso ou aquilo, mas que a
deixasse contar o que tinha a dizer. A partir de então, Freud começou a perceber que era
importante e fundamental deixar os seus pacientes associarem livremente, expressando
tudo aquilo que quisessem, pois tal expressão estava sujeita à influência do
inconsciente.
Freud dizia a seus pacientes, logo no início do tratamento:
“diga tudo o que lhe passa pela mente. Aja como se, por exemplo, você fosse
um viajante sentado à janela de um vagão ferroviário, a descrever para
alguém que se encontra dentro as vistas cambiantes do que vê lá fora.
Finalmente, jamais esqueça que prometeu ser absolutamente honesto e nunca
deixar nada de fora porque, por uma razão ou outra, é desagradável dizê-
lo.”20
20
FREUD, S. “Sobre o Início do Tratamento”, AE, v. XII, p. 136; ESB, v. XII, p.150.
18
Dessa forma, propor ao paciente falar tudo aquilo que lhe ocorrer, sem qualquer
julgamento de valor, delimita, assim, uma regra fundamental do trabalho analítico. A
atualização do inconsciente na superfície do discurso indica que um trabalho
psicanalítico foi instaurado, quando, por exemplo, o paciente começa a trazer seus
sonhos para a análise.
E é, justamente, a partir do discurso do sujeito, no que este mostra de sua posição
subjetiva, que o analista pode fazer uma suposição diagnóstica. Os ‘tropeços e atos
falhos’21 apontam para a presentificação do inconsciente, constituindo suas formações.
Se a psicanálise trabalha com o discurso do sujeito, o que abre a uma pluralidade
de sentidos, a interpretação é uma ferramenta que permite destacar os significantes –
22
“aquilo que representa um sujeito para outro significante” . Nesse sentido, não há
apenas um significante que possa representar o sujeito como um todo, mas significantes
que se associam à cadeia simbólica, produzindo novos significantes. Retomaremos a
definição de sujeito mais adiante.
21
Os ‘tropeços’ e os ‘atos falhos’ irrompem, quando o sujeito, ao falar, percebe que algo saiu sem que ele
tivesse percebido, soando como algo estranho, não pensado. É esta estranheza que permite que o paciente
comece a se questionar e a trabalhar em análise. (Vide Freud – “Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana”
–1901).
22
LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, p.11. Excluído: ,
19
23
DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica, p.21.
20
24
FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à
estrutura”, p. 67.
25
LACAN, J. Écrits, Seuil, Paris, p.617. apud: QUINET, A. As 4 + 1 Condições de análise. p. 20.
21
26
DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica, p. 15.
22
Marco Antonio Coutinho Jorge (1983) afirma que há, no discurso médico, uma
objetividade científica que exclui a subjetividade do sujeito, tanto daquele que o enuncia
como daquele que o escuta. A fala do sujeito é ouvida para ser descartada em seguida,
depreendendo-se daí a função silenciadora do discurso médico, que, ao se valer apenas
de seus próprios elementos, abole tudo o que nele não possa se inscrever. Ou seja, o
discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é
27
CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p.9.
23
passível de ser neste inscrito. Uma "falta de ar”, juntamente com uma “dor no peito” e
“uma angústia por dentro”, podem ser reduzidos ao sinal clínico da dispnéia. Do mesmo
modo, “um peso na cabeça”, “uma ardência na testa” e “um latejamento na cabeça”,
“um pensamento que não pára de martelar” são reduzidos ao sinal clínico da cefaléia.
Lacan já afirmava que “não existe relação médico-doente”, pois, assim como o
doente é definido, no discurso médico, como “homem + doença” 28, o homem torna-se o
“doente – doença”; aliás, não haveria, nem mesmo, a "relação médico-doença”. Apenas
seria possível a “relação instituição médica–doença”, na medida em que médico e
doente são destituídos de sua subjetividade. A instituição médica – lugar da totalidade
do discurso médico – prevalece sobre a figura do médico, que é apenas seu anônimo
representante, bem como a doença – objeto constituído pelo discurso médico –,
enquanto o homem seria, unicamente, o "anônimo terreno no qual a doença se
instala”29. Dessa forma, o médico não se dirige ao doente, mas ao homem
presumidamente “normal” e “são” que ele era e que deve voltar a ser.
Se há uma dessubjetivação presente na relação entre médico e doente, o primeiro
somente intervém e fala enquanto lugar-tenente da instituição médica, ou seja,
enquanto instrumento do discurso médico. O médico só existe, portanto, em sua
28
JORGE, M. A. C. “Discurso médico e discurso psicanalítico”. In: CLAVREUL, J. A ordem médica:
poder e impotência do discurso médico, p. 13
29
Idem, p. 13.
24
referência constante ao saber médico e à instituição médica. Sendo assim, Jorge (1983)
afirma que o médico se anula enquanto sujeito perante a exigência de objetividade
científica, na qual só se autoriza por ser “ele próprio o menos possível”30.
Posteriormente, veremos que o analista tampouco está implicado como sujeito, mas sim
como objeto a, diferença fundamental da posição de objetividade científica adotada pelo
médico.
O apagamento da subjetividade do médico31 pode ser melhor percebido na lógica
institucional asilar, no caso da psiquiatria, considerando que o estilo das observações do
prontuário do doente é impessoal, independente do sujeito que o entrevistou. A
dessubjetivação também é revelada pela rareza do encontro entre médico e doente, este
último ficando sob os cuidados de uma equipe médica.
Jorge afirma que a receita médica é, também, uma ordem médica, no sentido em
que prescreve um enunciado dogmático: “coma isso, não beba aquilo, não fume,
30
CLAVREUL, Jean. “Nosologies et strustures”. In: Lettres de l’ École freudienne, nº 21. Les mathèmes
de la psychanalyse, Paris, 1977, p.261, apud: JORGE, M. A. C. “Discurso médico e discurso
psicanalítico”. In: CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico, p.11.
31
Certamente, nem todos os médicos (psiquiatras) agem dessa forma. O que pretendemos enfatizar é a
oposição radical entre os discursos do mestre e do analista. E, como veremos mais adiante, o discurso do
mestre não eqüivale, necessariamente, ao do psiquiatra, mas aquele que, no lugar de agente, adota a
posição de mestria frente ao outro. O discurso do mestre é mais comum entre os médicos “cientificista”.
25
33
LACAN, J. “La méprise du sujet supposé savoir”, Scilicet, nº 1, Seuil, 1968, p.39. apud: QUINET, A.
As 4 + 1 Condições de análise, p.31
34
Idem, p.31.
35
Ibidem, p.31.
36
Idibidem, p.31.
27
o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes
ditos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no mesmo. Tal operação visa
estabelecer uma identidade e podemos pensar no quanto o discurso em torno da
“depressão” apaga as diferenças entre sujeitos, englobando-os em uma mesma categoria
– “deprimidos” –, que deve ser tratada da mesma forma. Para a psicanálise, por outro
lado, é a singularidade que está em jogo, devendo a queixa de “depressão" ser escutada
em sua dimensão significante.
A psicanálise privilegia a alteridade, já que o sujeito está sempre na relação com
37
o Outro – sejam seus pais, a lei, o laço social – desde seu advento. Já o discurso
médico/psiquiátrico é baseado na univocidade, em detrimento da pluralidade de sentido
– característica da língua e, portanto, da psicanálise. A medicina utiliza-se dos signos –
“aquilo que representa alguma coisa para alguém que saiba lê-lo”38 – e precisa,
portanto, do médico para decifrá-los em sua relação com um código que remete a uma
compreensão unívoca. Os sinais e sintomas significam, assim, alguma coisa apenas
para o médico, que sabe ler, olhar e decodificar o que significam.
37
O Outro é um termo utilizado por Lacan a fim de designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a
linguagem, o inconsciente – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-
subjetiva em sua relação com o desejo. O Outro, com letra maiúscula, é o grande Outro (A), opondo-se ao
pequeno outro (a), lugar da alteridade especular, referindo-se, portanto, ao outro imaginário.
38
LACAN, J. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, p. 11. Excluído: – O
28
__agente__ _outro__
verdade produto
29
O discurso do mestre:
S1 S2
S a
Quando o mestre fala no lugar do agente (S1), ele precisa do outro (S2), do escravo
(Hegel) – que detém o saber sobre sua posição para produzir a mais-valia (Marx) – o
30
objeto a, o resto, ou o gozo que o mestre retira do trabalho do outro. Segundo Alberti, o
lugar do escravo seria o de identificar-se com o lugar do outro, ou seja, ocupando-se do
saber, trabalhando e estudando para o mestre. O sujeito aparece no lugar da verdade,
porém, através do sujeito barrado, dividido. A existência do discurso do mestre implica
em que o sujeito, por definição barrado, tenha, no laço social, o lugar da verdade – “não
a verdade única, mas sim uma verdade que surge no instante em que desaparece em um
intervalo de significantes (S1-S2)” 39.
A noção de sujeito barrado, fendido ou dividido, é bastante utilizada por Lacan,
40
pois, para o autor, o sujeito não é senão sua própria divisão . Freud já falava em
clivagem do eu, termo introduzido em 1927 para designar um fenômeno próprio do
fetichismo e da psicose. Designa a coexistência de duas atitudes contraditórias no eu,
uma que leva em conta a realidade e outra que a nega, colocando, em seu lugar, a
produção do desejo. Não é raro utilizarmos a expressão sujeito do desejo, quando nos
referimos ao sujeito da psicanálise – o sujeito é o desejo, na medida em que ele é
determinado pelos seus desejos, pelo inconsciente, fundado pelo Outro. O sujeito
aparece, para Lacan, no intervalo entre dois significantes, sendo impossível destacar
apenas um significante que o determine – o sujeito se encontra no ‘pequeno’ espaço que
separa o S1 do S2.
39
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 166.
40
FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo, p. 67.
31
O discurso do analista:
a S
S2 S1
41
“falta-a-ser” – lugar ético, que diz respeito ao desejo do analista e implica que sempre há algo a saber.
In: ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p.169.
32
O objeto a foi considerado pelo próprio Lacan como sua única e verdadeira
invenção. Designado pela primeira letra do alfabeto, nomeação mínima que se pode dar
a algo42, é o objeto essencialmente perdido, impossível de ser simbolizado e pertencente
ao real. Instaura a falta estrutural do sujeito, advinda de sua entrada no campo da
linguagem, em que algo se perde, ocorrendo a interdição da plena satisfação, limitando
a libido à legalização do desejo. O objeto a circunscreve a perda, sendo a condição para
o surgimento do desejo, pois, para Lacan, é da falta que o desejo pode advir. A falta,
como objeto a, é “apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud,
por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido,
a minúsculo”43. A partir de então, tal objeto passa a ser o objeto causa de desejo, pois é
esta falta fundamental e instituinte que movimenta o ser humano a estar sempre
desejando.
Segundo Alberti, ao situar o saber no lugar da verdade, no discurso do analista,
Lacan coloca que “este saber tem a estrutura da ficção, como toda e qualquer verdade,
pois o saber que efetivamente está em jogo é o discurso do analista, que é o saber do
próprio sujeito, que questionado, fabrica o produto: significantes seus, próprios, que no
42
JORGE, M.A.C. Seminário Teórico-Clínico de Psicanálise do Mestrado da UERJ, no segundo semestre
de 2004.
43
LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 170.
33
percurso vai deixando cair” 44. É, por essa razão, que a psicanálise só pode ser realizada
através da fala, já que supõe o sujeito falante. Ou ainda: “O analista fica no lugar de
45
‘simples’ objeto, ou seja, é o analisando, o verdadeiro sujeito da operação” . É
importante ressaltarmos que o analista não está no lugar de qualquer objeto, mas de um
objeto causa de desejo, já que se ocupa do objeto a. Segundo Alberti, “o desejo do
analista é exclusivamente o de fazer com que a análise se produza, tal como um artista
que, através de sua obra, quer produzir efeitos em seu leitor ou observador” 46. O desejo
do psicanalista implica que sempre há um saber a ser construído pelo sujeito.
O discurso do analista é constituído e fundamentado no fato de se dirigir ao
sujeito, pois “o sujeito é o outro ao qual o agente do discurso endereça seu ato” 47, ou
seja, o sujeito em questão é o próprio analisando.
Podemos considerar que “a função eminentemente silenciosa do analista não
apenas faculta, mas também promove a proliferação da fala do sujeito, o analista não
constituindo, pois, obstáculo à emergência do desejo”48. Pois, o analista deve instigar o
44
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p 168.
45
Idem, p 168.
46
Ibidem, p. 168.
47
ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e
Pesquisa em Psicanálise, p.51.
48
JORGE, M.A.C. O discurso médico e discurso psicanalítico. In: CLAVREUL, Jean. A ordem médica:
poder e impotência do discurso médico, p. 19.
34
sujeito a produzir suas próprias associações, operando pela via do desejo – ética da
psicanálise – ética de bem-dizer a relação do sujeito com o seu desejo.
É o discurso do analista o avesso do discurso do mestre, ou, como é possível
dizer, a psicanálise é, antes, o avesso da medicina 49, não apenas pelas suas posições
(agente, outro, produto e verdade) literalmente ao avesso nos discursos, nas quais o
discurso do analista é o avesso do discurso do mestre, mas, porque essa ‘inversão’
produz resultados divergentes e opostos.
É importante ressaltar que tanto o discurso do mestre, aqui tomado como
referência do médico psiquiatra, como o discurso do psicanalista, têm sua importância,
lembrando que a psicanálise nasceu da medicina, conforme afirmava Lacan:
“Freud pensava que ele fazia ciência. Ele não fazia ciência, ele estava
produzindo certa prática que pode ser caracterizada como a última flor da
medicina. Essa última flor encontrou refúgio aqui porque a medicina tinha
tantos meios de operar, inteiramente repertoriados de saída, regrados, que ela
teve que se encontrar com o fato de que havia sintomas que não tinham nada
a ver com o corpo, mas somente com o fato de que o ser humano é afligido,
se eu posso dizer, pela linguagem50”.
49
Idem, p. 9.
50
LACAN, J. “Entretien avec des étudiants”, p. 18. apud: ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da
medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e Pesquisa em Psicanálise, p. 49.
35
Devemos voltar à questão que orienta este capítulo e que diz respeito ao enfoque
da depressão como um fenômeno ou como uma estrutura propriamente dita.
Nossa proposta é explorar, inicialmente, o que entendemos por fenômeno em
psicanálise. Freud parte do fenômeno, mas este não está no fundamento de sua
teorização, ao menos não exclusivamente. Em “As pulsões e suas vicissitudes”, Freud
afirma que o “verdadeiro início da atividade científica consiste sobretudo na descrição
dos fenômenos que são em seguida reunidos, ordenados e inseridos em relações”51.
Excluído: In: FIGUEIREDO,
Em “Construções em análise”, Freud também assinala que: A.C. & MACHADO, O.M.R. “O
diagnóstico em Psicanálise: do
fenômeno à estrutura”, p. 68.
Excluído: In: FIGUEIREDO,
A.C. & MACHADO, O.M.R. “O
diagnóstico em Psicanálise: do
51
FREUD, S. “As pulsões e suas vicissitudes”, AE, v. XIV, p. 113 ; ESB, v. XIV, p. 123. fenômeno à estrutura”, p. 68.
36
“não são os fenômenos que são confirmados ou infirmados pela clínica, mas
sim as construções do analista, naquilo que elas têm de uma certa apreensão
do que acontece com o paciente e naquilo em que elas, como toda construção,
são obra também do analista e estão sujeitas à revisão”52.
52
FREUD, S. “Construções em análise”. apud: FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O
diagnóstico em Psicanálise: do fenômeno à estrutura”, p. 69/70.
53
QUINET, A. “Fenomenologia e psicanálise” In: LIMA, J.C. Psicoses entre nós, p. 37. Excluído: P
54
Idem, p.37.
37
fenômeno remete à própria estrutura” 57. Exemplifica com um caso de psicose, no qual a
alucinação verbal – “aparição do significante no real”58 – é um fenômeno que remete à
59
estrutura psicótica, baseada na foraclusão do Nome-do-Pai , uma vez que o que foi
foracluído do simbólico retorna no real.
Assim, é a partir do fenômeno que podemos pensar em uma estrutura.
Retomaremos tal elo, quando discutirmos a depressão como um estado ou um
fenômeno, distinção que remete, em última instância, a uma determinada estrutura
clínica – neurose ou psicose.
Lacan propõe uma maneira de pensar e fazer o diagnóstico a partir dos modos de
amarração dos três registros - real- simbólico-imaginário - no nó borromeano.
Sua teorização referente a uma tripartição estrutural – real, simbólico, imaginário
(RSI) –, presente desde uma conferência de 1953, realizada na fundação da Sociedade
Francesa de Psicanálise e intitulada “O simbólico, o imaginário e o real”, foi objeto de
contínua investigação e reelaboração até o fim de seu ensino. Vale ressaltar que a ordem
57
Idibidem, p. 43.
58
Idibidem, p. 39.
59
Foraclusão (forclusion) - termo francês usado no âmbito jurídico para designar um processo prescrito
(preclusão - preclusion), do qual não se pode mais falar, pois o mesmo não mais existe legalmente.
Conceito utilizado por Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se
produz a rejeição de um significante (Nome-do-Pai), que está, portanto, foracluído. Vide página 6.
39
de apresentação dos três registros foi alterada desde a conferência inicial (SIR) até o
seminário de 1974-75, (RSI).
Em RSI, Lacan mostra que os três registros não podem ser isolados, pois são
indissociáveis entre si, trazendo, portanto, um novo conceito: o nó borromeano ou
cadeia borromeana. Delimita a propriedade borromeana da estrutura psíquica como um
tipo de nodulação entre os elos. São pelo menos três elos e amarrados uns aos outros de
forma tal que, se cortarmos apenas um, os demais se desligam simultaneamente. O nó
borromeano serve para demonstrar o caráter indissociável dos três registros e sua
articulação na estrutura. Lacan afirmou que o nó borromeano lhe caiu como um “anel
no dedo”, “na medida em que, através dele, pôde demonstrar algo que seria impossível
expressar com palavras: a propriedade (ou a qualidade) borromeana demonstra o fato de
que tudo começa no três, de que é preciso pelo menos três para que a estrutura se dê”60.
O real é um termo utilizado como substantivo por Lacan, introduzido em 1953 e
extraído, simultaneamente, do vocabulário da filosofia e do conceito freudiano de
realidade psíquica, para designar uma realidade fenomênica, que é imanente à
representação e impossível de simbolizar. O real designa a realidade própria da psicose,
na medida em que é composto dos significantes foracluídos do simbólico. Ele diz
respeito ao que não possui representação possível, que está fora do simbólico, não
60
JORGE, M.A.C. “Inconsciente e linguagem: o simbólico”. In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a
Lacan: as bases conceituais, p. 94/95.
40
61
JORGE, M.A.C. “Inconsciente e linguagem: o simbólico”. In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a
Lacan: as bases conceituais, p. 96.
62
Idem, p. 94.
63
Ibidem, p. 94.
41
instaura a falta estrutural, presente para cada sujeito a partir de sua entrada no mundo da
linguagem – com exceção do psicótico, para o qual a falta está foracluída. Assim, é em
torno da falta na estrutura que o sujeito se organiza.
É no contexto do complexo de Édipo que, dependendo de como o sujeito lida com
a castração, o resultado será distinto e se delimitarão as diferentes estruturas clínicas na
psicanálise. Logo, é importante retomar, brevemente, os três tempos do Édipo, divisão
proposta por Lacan no Seminário 5, na seção intitulada "A lógica da castração”.
No primeiro tempo do Édipo, há uma atribuição fálica da criança pela mãe, que a
toma como “objeto de desejo”. Reconhecida na posição fálica, a criança assim se
identifica imaginariamente como objeto de desejo materno, tentando satisfazer o desejo
da mãe. Ao mesmo tempo, a criança vai realizando uma atribuição fálica ao mundo que
lhe cerca – primazia do falo. A castração remete à descoberta progressiva da criança de
que é insuficiente para recobrir totalmente o desejo materno. Se a criança se identifica
ao "ser o falo” para a mãe, é, somente, em um momento posterior, através do Nome-do-
Pai 64, que a criança terá acesso à referência fálica.
64
Nome-do-pai: termo criado por Lacan em 1953 e conceituado em 1956, designando o significante da
função paterna. É o significante primordial que representa a função paterna, que barra o acesso ao gozo
entre mãe e filho, delimita uma lei, um inscrição que implica em uma subtração do gozo. O sujeito passa
a ser marcado pela falta, pela impossibilidade de ter tudo, de gozar de tudo, o que viabiliza,
paradoxalmente, o acesso ao próprio desejo.
44
65
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 191. Excluído: –
66
Idem, p. 199. Excluído: - As
45
Não obstante, tanto para a menina quanto para o menino, é preciso a ‘aceitação’
de que não se tem: “... para tê-lo, primeiro é preciso que tenha sido instaurado que não
se pode tê-lo, de modo que a possibilidade de ser castrado é essencial na assunção do
fato de ter o falo”.67
A ameaça de castração é, portanto, um ato simbólico que diz respeito a uma
ameaça imaginária, onde o agente é real – o pai ou a mãe.
Freud ressalta que: “enquanto que nos meninos, o complexo de Édipo é destruído
pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido pelo
complexo de castração”.68 Ou seja, o menino sai do complexo de Édipo pela ameaça da
castração – de ser castrado pelo pai – e a menina entra, justamente, após constatar o
“não ter” e dirigir seu apelo ao pai. A saída da menina do complexo de Édipo seria,
então, algo mais enigmático, “obscuro e cheio de lacunas”69.
Lacan postula que “a terceira etapa é tão importante quanto a segunda, pois é dela
que depende a saída do Édipo” 70. Aqui, o falo aparece como o objeto desejado pela mãe
67
Ibidem, p. 200.
68
FREUD, S. “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, AE, v. XIX, p.
275; ESB, v. XIX, p. 285.
69
FREUD, S. “A dissolução do complexo de Édipo”, AE, v. XIX, p. 185; ESB, v. XIX, p. 197. Excluído: –
70
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 200. Excluído: - A
46
e não apenas como objeto do qual o pai pode privar. Nesse sentido, “o pai pode dar à
mãe o que ela deseja e pode dar porque o possui”71.
O pai aparece aqui como um pai potente e real, como aquele que tem. A saída do
Édipo ocorre pela identificação com o pai, como aquele que tem o falo. Lacan afirma:
“É por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como
Ideal do eu – I(A), e que, a partir daí, não nos esqueçamos, o complexo de Édipo
declina” 72.
O desfecho é distinto na menina e no menino. Para Lacan, o caso da menina é
mais simples: “Ela não tem que fazer uma identificação, nem guardar esse título de
direito à virilidade (menino). Ela, a mulher, sabe onde ele está, sabe onde deve ir buscá-
lo, o que é do lado do pai, e vai em direção àquele que o tem”73. O menino, por sua vez,
se identifica com o pai como o “possuidor de pênis” e sua saída do complexo de Édipo
se faz possível pela ameaça de ser castrado pelo pai.
Para Lacan, o “não-ter” da mulher lhe confere certas vantagens no amor, situando-
a na ordem da sublimação ou da criação. Esta teria uma facilidade maior para criar algo
em torno do nada, sendo a sublimação ligada à capacidade de “elevar o objeto à
dignidade da Coisa” (1959/60).
71
Idem, p. 200.
72
Ibidem, p. 201.
73
Idibidem, p. 202.
47
74
Recalque – designa o processo que visa a manter, no inconsciente, todas as idéias e representações
ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psíquico,
transformando-se, portanto, em uma fonte de desprazer. Para Freud, o recalque é constitutivo do núcleo
original do inconsciente.
48
75
LIMA, J.C.S. Psicoses entre nós, p. 15.
76
FIGUEIREDO, A.C. & MACHADO, O.M.R. “O diagnóstico em psicanálise: do fenômeno à estrutura”,
p. 81.
49
Para Quinet (1999), o que encontramos, na clínica, são “estados depressivos”, que
ocorrem em algum momento na vida de um sujeito e apresentam uma história subjetiva
precisa. Em outras palavras, não há como falar em “a depressão”, principalmente dentro
da perspectiva estrutural da psicanálise. Freud, no entanto, não deixou de fazer alusão à
depressão, como veremos no próximo capítulo.
A depressão seria, assim, um fenômeno que pode ser analisável, na medida em
que se apresente como um sintoma diante do qual o sujeito se interroga. Pode aparecer
nas diferentes estruturas clínicas – neurose e psicose –, ligando-se a um momento
significativo para o sujeito.
Se a depressão, como fenômeno, pode remeter a uma determinada estrutura
clínica, elegemos, em nossa pesquisa, tomar como ponto de partida a depressão,
apresentando-se numa estrutura clínica vinculada à neurose, associando com o caso
clínico, que relatamos no próximo capítulo.
50
CAPÍTULO II
A DEPRESSÃO NA VELHICE
51
2.1 - Apresentação do caso clínico: “ou eu mato meu marido ou ele me mata”
77
Essa frase da paciente será retomada posteriormente na discussão do caso.
53
D. relata que, inúmeras vezes, pensou em se suicidar, acreditando que esta seria a
única forma de eliminar seu sofrimento. Ao ser indagada sobre se havia pensado em
como realizaria este ato, ela responde que sim – com um tiro na cabeça, pois no coração
poderia “errar”.
O risco de um suicídio, remetendo a uma possível gravidade do caso, acarretava
preocupação e instigava à reflexão. Uma pergunta começou a se impor: ao risco de
suicídio, poderíamos contrapor a possibilidade de um trabalho pela palavra que
viabilizasse uma mudança de posição?
Outra pergunta surgiu posteriormente: até que ponto a preocupação com a
gravidade do caso, ligada ao risco de suicídio, poderia ser articulada a própria
insistência da paciente em torno deste tema? D. costumava perguntar à analista se a
gravidade do seu caso lhe causava preocupação. Sua insistência no tema do suicídio
também começou a sugerir uma estrutura neurótica – histérica, o que discutiremos
mais adiante.
Não descartada a gravidade de seu sofrimento, bem como o próprio risco de
suicídio, a analista oferece sua escuta, deixando em suspenso as questões relacionadas
ao tema.
Se, no início de seu tratamento, D. apenas afirmava “estou deprimida", "a vida não
tem graça e não tenho mais vontade de viver”, sem implicação subjetiva,
54
fortaleza e que este fazia tudo por ela. Logo que ele faleceu, havia depositado a mesma
expectativa no neto, já que havia cortado relações com o seu filho.
“Quem é a minha fortaleza agora?”, D. pergunta à analista, revelando o lugar
desta na transferência, desejando que a analista viesse a ocupar este lugar de ser a sua
“fortaleza”. Evidentemente, não cabe à analista responder ou oferecer qualquer
asseguramento, mas acolher esta fala e poder fazer prosseguir o trabalho analítico.
D. relata que tem uma neta, também psicóloga e, provavelmente, da mesma idade
que a analista. Acha que deve ser muito difícil ouvir tantas “coisas pesadas” dos outros,
sendo ainda tão jovem. Estaria a analista aberta a escutar aquilo que tinha a dizer, eis a
indagação implícita. De início, a resistência era revelada pela falta de confiança na
analista e, muitas vezes, por uma certa ironia presente na observação sobre a idade da
analista, demonstrando não acreditar que alguém da idade da neta poderia tratá-la.
Do lado da analista, houve, por algum tempo, uma preocupação relacionada à
expectativa de demovê-la da idéia de suicídio, portanto, de salvá-la. Na medida em que
estes aspectos foram sendo trabalhados tanto em supervisão como em análise pessoal, o
trabalho analítico desliza da fala sobre suicídio para outras questões, até então não
faladas.
Em um momento delicado, quando D. faz girar, enfaticamente, seu discurso em
torno do tema do suicídio e chega a afirmar que quer se matar para se juntar ao marido,
56
a analista a encaminha para atendimento psiquiátrico, que será mantido ao longo de seu
percurso analítico. O psiquiatra receita um antidepressivo tricíclico (Nortriptilina) e
mantém o acompanhamento médico em paralelo ao trabalho analítico. Durante o
período mais crítico, o atendimento psicanalítico passa a ser realizado duas vezes por
semana, assegurando à paciente um espaço de fala, em que pudesse ser acolhida.
Sobre a consulta com o psiquiatra, D. diz que não conseguiu “enganá-lo”, pois
este disse que ela não havia ainda enterrado o seu marido. Ela se emociona ao falar
disso e acha que ele tem razão, que precisaria enterrá-lo.
D. canaliza para sua análise a questão que surge no contato com o psiquiatra, cuja
intervenção lhe faz enigma, questionando-se sobre o porquê de não conseguir ‘enterrar’
o seu marido. Até então, a morte do marido era encarada como um abandono, o qual
tinha muita dificuldade de aceitar.
Cabe dizer que a paciente sentiu-se acolhida pelo psiquiatra, que, além oferecer
uma resposta medicamentosa (que veio a viabilizar, ainda mais, a análise), faz uma
intervenção que lhe “faz questão”. Podemos dizer que o psiquiatra usou o discurso do
analista, que instiga e causa desejo, e não o discurso do mestre, extremo do discurso do
“médico cientificista” e da lógica da medicalização, que responde ao “mal-estar” do
sujeito tentando tamponá-lo.
57
No caso de D., havia uma enorme dificuldade de elaboração do luto pela morte do
marido, uma vez que esta não conseguia nem chorar sua perda. Estava sempre bem
vestida e bonita, com um sorriso um pouco irônico, sem poder demonstrar seu lado mais
fraco e triste. Mesmo quando passou a chorar em suas sessões, ao final enxugava as
lágrimas e perguntava: “estou bem?”.
Se, de início, a insistência de D. em torno do tema do suicídio era sua única forma
de tentar eliminar sua dor, ao longo do trabalho ela deixa de falar em “matar” e passa a
utilizar a palavra “enterrar” – “eu preciso enterrar o meu marido”, demonstrando
diferentes posições do sujeito nesta árdua tarefa de elaborar um luto.
Este giro (“matar – enterrar”) revela sua entrada em um trabalho de luto, e, a partir
de então, D. muda seu discurso em relação ao início, quando sentia-se “congelada”.
sua mandíbula e, logo depois, perde o neto mais querido, filho de Sophie, com apenas
quatro anos e meio, com meningite tuberculosa. Aos sessenta e cinco anos, Freud afirma
a Ferenczi ter entrado na velhice, data que prenuncia o início de seu câncer. E ainda,
conforme lembra Mannoni, Freud confessa, também em carta a Ferenczi, sofrer de
depressão. Em 1939, Freud solicitou antecipadamente ao médico e a sua filha, Anna,
que sua vida fosse abreviada, quando se tornasse impossível suportar o desespero e a
dor. Assim foi feito e ele recebeu uma injeção de morfina, entrando em coma e
morrendo em seguida.
Apesar do desejo de “morrer sem preâmbulos”, Freud continuava a escrever,
realizando contribuições importantíssimas neste período e nunca deixando de responder
ao real 78 por um desejo decidido.
Mucida afirma que, embora seja possível encontrar, na obra de Freud, algumas
contra-indicações da psicanálise para o idoso, devemos considerar que estas foram
proferidas em um determinado contexto teórico-clínico do autor. Em vários momentos
de sua obra, ao contrário, Freud convoca o analista a desenvolver o dispositivo clínico
por ele criado.
Dentre as contra-indicações referentes aos idosos, encontramos, em “A
sexualidade na etiologia das neuroses” (1898), a afirmação freudiana de que, não sendo
78
Real – refere-se aos três registros propostos por Lacan: real, simbólico e imaginário; o real diz respeito
ao inassimilável, impossível de simbolizar, traumático. Vide página 22.
60
aplicável em todos os casos, a terapia psicanalítica teria algumas limitações, entre estas
a exigência de um certo grau de maturidade e compreensão – não seria, portanto,
adequada a jovens ou adultos mentalmente débeis ou incultos. Freud observa, ainda, que
“fracassa com pessoas idosas, porque o tratamento tomaria tanto tempo, devido à
acumulação de material, que ao fim elas teriam chegado a um período de vida em que
nenhum valor atribui à saúde nervosa”79 Após arrolar outras contra-indicações, conclui
“[...] finalmente, o tratamento só é possível quando o paciente tem um estado psíquico
normal a partir do qual o material patológico pode ser controlado” 80.
Em seu texto “Sobre a psicoterapia” (1905 [1904]), Freud afirma que a idade dos
pacientes deve ser considerada quando da indicação para o tratamento psicanalítico, já
que em pessoas próximas ou acima dos cinqüenta anos, não haveria mais a plasticidade
dos processos anímicos de que depende este tipo de trabalho. As pessoas idosas não
seriam mais educáveis e, além disso, o material a ser elaborado prolongaria
indefinidamente a duração do tratamento.
No mesmo texto, Freud afirma que as psicoses, os estados confusionais e a
depressão profundamente arraigada seriam impróprios para a psicanálise. Ressalta que
não considera uma impossibilidade absoluta, pois uma modificação apropriada do
método poderia levar a superar a contra-indicação no caso das psicoses.
79
FREUD, S. “A sexualidade na etiologia das neuroses”, AE, v. III, p.274; ESB, v. III, p.268.
80
FREUD, S., op. cit, AE, v. III, p. 274; ESB, v. III, p.268.
61
Da mesma forma que com relação ao caso da psicose, Freud mostrou-se um pouco
“resistente” na indicação da psicanálise para os idosos, ao longo de sua obra. Porém,
em alguns momentos, parece repensar o assunto, como em seu texto “Sobre a
transitoriedade” 1916[1915]), em que observa que “a limitação da possibilidade de uma
fruição eleva o valor dessa fruição”81, referindo-se a uma flor que, por durar apenas uma
noite, não deixava de ser bela. Comenta que, enquanto a transitoriedade diminui a
beleza da flor para uns, para outros esta seria ainda mais apreciada.
Podemos pensar que, estando o sujeito mais em contato com a própria finitude, o
suposto pouco tempo para trabalhar em uma análise seria, talvez, facilitador. É o que
Freud observa, de forma poética, no texto acima referido. Mucida, a partir dessa
afirmação freudiana, ressalta que para alguns idosos o limite do tempo para se definir
algumas posições subjetivas provoca a emergência do tempo de compreender e de
concluir, ou seja, podendo usufruir ainda mais do curto período de uma análise. Nesse
caso, tendem a se defender menos, resistindo menos que outros adultos ao tratamento
analítico.
Se para a psicanálise há o sujeito do inconsciente e do desejo, logo, independente
da idade cronológica, pode haver uma aposta em uma análise. A tese principal de
Mucida, em O sujeito não envelhece, está, justamente, apoiada no estatuto do sujeito
81
FREUD, S. “Sobre a transitoriedade”, AE, v. XIV, p. 309; ESB, v. XIV, p. 317.
62
Segundo Mucida, há diferentes posições subjetivas que o idoso pode ocupar frente
ao próprio desejo e a velhice implicaria “um saber vestir esse desejo”82. O que acontece,
na maioria das vezes, é que a entrada da velhice implica em uma ruptura com o desejo,
uma vez que é marcada por aspectos puramente negativos. A depressão seria, então,
uma possível ‘saída’, uma retirada estratégica para evitar o real em cena. A velhice
poderia atualizar a problemática da castração a partir do luto do que já se foi e de
diferentes perdas significativas. A aposentadoria, por exemplo, pode significar uma
perda de poder e prestígio e de laço social83, podendo até mesmo ocasionar uma ferida
narcísica grave. Para a autora, não há velhice sem luto, ou seja, a velhice implica em
poder realizar lutos, ainda que nem sempre aquele que envelhece consiga elaborar as
perdas.
Ainda em “Sobre a transitoriedade”, Freud indaga por que é tão penosa a retirada
da libido dos objetos perdidos. Sua observação o conduz a considerar que a libido se
apega a seus objetos e não renuncia àqueles que foram perdidos, mesmo quando um
substituto já lhes acena. Ou seja, há uma grande dificuldade no abandono de uma
posição libidinal, o que explica o tempo bastante variável para realizar um trabalho de
luto. Dessa forma, o luto refere-se a um trabalho – Trauerarbeit –, com início, meio e
82
MUCIDA, A. O sujeito não envelhece, p.31.
83
A própria palavra aposentadoria que significa “ir para os aposentos”, implica diretamente nessa quebra
dos laços sociais. (Observação de Marco Antonio Jorge).
64
fim. Uma vez que o eu fica livre, pode voltar a investir em novos objetos libidinais.
Retomaremos esse ponto no terceiro capítulo, quando nos detivermos na distinção entre
o luto e a melancolia.
As perdas advindas da velhice exigem, assim, um trabalho de luto, pois é um
momento no qual os rearranjos que o sujeito realizou para enfrentar o real tendem a
desmoronar, assim como muitos de seus ideais. Não podemos negar que, apesar da
perda não ser um corolário da velhice, estas tornam-se mais freqüentes a partir de certa
idade – variável para cada um –, impondo elaborações para a construção de outros
ideais. Nesse sentido, a depressão aparece como uma resposta possível ao trabalho
inoperante do luto, devendo ser tomada sempre como singular, ou seja, em relação ao
sujeito que se diz “deprimido” e ao que seus significantes apontam.
Consideramos que o significante depressão está cada vez mais acoplado ao
significante idoso, como se envelhecer ou tornar-se “velho” significasse ser deprimido.
Com isso, o velho acaba por ser duplamente excluído.
Para Mucida, o mercado da juventude e a ciência ocupam-se da velhice da mesma
forma que se ocupam de tudo aquilo que expõe o real, tentando escamotear os furos.
Atualmente, a proposta é seja sempre jovem, viva a melhor idade com juventude, além
da oferta de artefatos e objetos que visam prolongar a aparência de juventude e afastar a
imagem de velhice, para que jamais se pareça ser velho.
65
Mucida assinala que Lacan observa que a ciência não trata o real, apenas o
silencia, ou seja, escamoteia aquilo que falta, o impossível, o traumático e o
inassimilável, enfim, a própria castração. A fim de melhor compreender a ciência,
abordaremos a contribuição lacaniana sobre o discurso capitalista.
84
MUCIDA, A. O sujeito não envelhece, p. 70.
67
S S2
S1 a
85
Vide páginas: 16-20.
68
86
LAIA, S. “Sulcos (e depressões) da aletosfera”, p. 37.
69
internet, enfim os gadgets. O autor destaca que trata-se de um termo híbrido: osfera nos
remete aos nomes das regiões que, segundo a ciência, se estendem em volta da terra e
alet vem de aletéia, essa palavra que Heidegger escavou em um grego como Heráclito e
que muitas vezes é traduzida por “não-ocultação”.
É como se o sujeito fosse capturado por esses “pequenos” objetos e sentisse que,
somente ao obtê-los, poderia ser feliz. Na ótica capitalista da nossa sociedade de
consumo, o ter se confunde com o ser, como se fosse preciso ter para ser. É possível
afirmar que o sujeito, ao ser capturado por tais objetos, confunde o desejo com a
demanda, ou seja, acredita que, ao ter tal objeto, será mais feliz. Assim, devemos
distinguir melhor as relações entre o desejo (d) e a Demanda (D) na ótica lacaniana.
Pois, para Lacan, é da demanda que nasce o desejo e, mais particularmente, da demanda
do Outro. No último capítulo, abordaremos a relação entre a demanda e o desejo em
Lacan.
Retomando a contribuição de Lacan, parece-nos que a aletosfera em que vivemos
tem, como proposta, escamotear o desejo e sua causa. Pois, para que o desejo possa
existir, é preciso que haja a falta. Há uma relação intrínseca entre a falta e o desejo.
Voltaremos a essa relação posteriormente, no último capítulo.
Laia ressalta a questão do silêncio na clínica da depressão, caracterizando-o como
um silêncio muito peculiar e distinto daquele que se presentifica entre as associações do
70
sujeito. Trata-se de um “silêncio vão”, pois, ao dizer que está “deprimido”, é como se o
sujeito dissesse tudo e não tivesse mais nada a dizer.
O autor conclui que algumas depressões que tanto aparecem na clínica, nos dias de
hoje, são latousas, tendo a depressão se tornado objeto de consumo – não no sentido de
que “está na moda ter depressão” –, mas os sujeitos que a possuem “se calam porque
essa palavra ‘depressão’ se tornou nos nossos dias uma coisa tão propalada na
aletosfera que ela pode aparecer como um objeto que lhes tampona o vazio da boca que,
num tom enfatuado de tanto saber, diz tudo sem nada dizer.”87
Mucida também faz uma observação semelhante, ao enfatizar que não são raros os
diagnósticos voltados para a oferta de objetos fabricados pela ciência e pelo capitalismo
moderno. Ou seja, após o surgimento dos antidepressivos, tais como o Prozac, é que
muitos sujeitos começaram a se ver como “deprimidos”. Seria a depressão fabricada
pela cultura como uma reposta, quase automática, dos sujeitos aos produtos ofertados
pela ciência?
Certamente, cabe ao analista investigar as particularidades que marcam a relação
de cada sujeito com suas latousas. Diante da fala sintomática e fechada do paciente,
“tenho depressão”, o analista deve se deixar surpreender no sentido de abrir espaço para
87
LAIA, S. “Sulcos (e depressões) da aletosfera”, p. 38.
71
que o sujeito possa questionar sua identificação com tal significante, por exemplo,
indagando ao paciente, “mas o que é depressão?” ou “fale-me mais sobre isso”.
Constatamos, também em nossa experiência, que o discurso do analista tem como
característica levar o sujeito a produzir outros significantes, confirmando o
assinalamento de Lacan sobre este ser a única saída para o discurso capitalista. Segundo
Alberti:
88
ALBERTI, S. “Psicanálise, a última flor da medicina”. In: ALBERTI & ELIA, L. (org.). Clínica e
pesquisa em psicanálise, p. 46.
72
moral, presente na depressão, faz furo à exigência capitalista atual, na qual os sujeitos
devem gozar sempre, felizes e satisfeitos.
Assim, a depressão é uma das figuras presentes na inibição; surgindo diante de
perdas reais ou não, tem como característica um sujeito imerso no gozo. Frente a tal
retração libidinal, a saída seria promover retificações no sentido de implicar o sujeito
com sua queixa para que este possa encontrar novas vestimentas para o desejo.
Podemos concluir que, apesar de Freud ter, em alguns momentos, contra-indicado
o tratamento analítico para os idosos, cada vez mais constatamos o quanto o idoso pode
se beneficiar deste, uma vez que a escuta é dirigida ao sujeito do inconsciente, que,
como vimos, não envelhece jamais. Para que haja um trabalho analítico, é preciso que
exista um desejo para tal, não importando a idade em que se dê o tratamento. Ao jovem
ou idoso, a psicanálise oferece uma escuta dirigida ao sujeito do desejo em sua
singularidade.
Se na época em que Freud viveu, a velhice não era uma questão a ser discutida, na
atualidade, quando as pessoas vivem até os oitenta, noventa ou cem anos, a escuta da
singularidade não deve excluí-las.
Após Freud, Abraham, em 1920, no texto “O prognóstico do tratamento
psicanalítico para os sujeitos de determinada idade” posiciona-se a favor do
atendimento aos idosos, afirmando que “pode-se igualmente dizer que a idade da
74
89
ABRAHAM, K (1920). apud: MUCIDA, A. O sujeito não envelhece, p. 187.
75
CAPÍTULO III
LUTO, MELANCOLIA, DEPRESSÃO.
92
FREUD, S. “Manuscrito G, Melancolia”, AE, v. I, p. 240; ESB, v. I, p. 247.
93
CASTRO, M.V. Depressão: a nova cultura do mal-estar ou melancolia no campo da clínica
diferencial. Dissertação Mestrado, UERJ, 2002, p.31.
78
luto como “uma reação à perda de um ente querido, à perda de uma abstração que a
represente, como a pátria, a liberdade ou ideal de alguém, e assim por diante”94.
Assinala que o luto não é, necessariamente, um processo patológico, pois, após
realizado o trabalho de luto – Trauerarbeit –, o sujeito, em geral, pode voltar a investir
em outros objetos. O uso da palavra Trauerarbeit remete à possibilidade de elaborar
uma perda. Ou seja, “se o termo usado é trabalho, há uma aposta da reconstrução do
objeto via linguagem, uma simbolização da perda implicada no luto, que seria pela
palavra”95. Logo, o trabalho de luto é o de elaboração de uma perda significativa na
vida do sujeito e a psicanálise opera, justamente, com a fala, apostando em que a
palavra pode vir a realizar tal tarefa.
97
FREUD, S. “Luto e Melancolia”, AE, v. XIV, p. 242; ESB, v. XIV, p. 250.
98
FREUD, S., op. cit, AE, v. XIV, p..242/243; ESB, v. XIV, p.250/251.
80
99
Livre tradução feita por Jésus Santiago, em seu texto “Melancolia: pura pulsão de morte”. Papéis do
Simpósio, n.18. Publicação Periódica do Simpósio do Campo Freudiano, Belo Horizonte, nov/1990. In:
CASTRO, M. V. Depressão: a nova cultura do mal-estar ou melancolia no campo da clínica diferencial.
Dissertação Mestrado, UERJ, 2002, p.46.
100
FREUD, S. “Luto e Melancolia”, AE, v. XIV, p. 242; ESB, v. XIV, p.. 250.
82
101
FREUD, S., op. cit, AE, v. XIV, p. 243; ESB, v. XIV, p. 251.
102
FREUD, S., op.cit, AE, v. XIV, p. 243; ESB, v. XIV, p. 251.
103
FREUD, S. op. cit, AE, v. XIV, p. 243; ESB, v. XIV, p. 251.
104
FREUD, S., “Luto e Melancolia”, AE, v. XIV, p. 243; ESB, v. XIV, p. 251.
83
105
FREUD, S., op.cit,, AE, v. XIV, p. 244; ESB, v. XIV, p. 252.
84
podemos entender a famosa frase freudiana: “a sombra do objeto caiu sobre o eu, e este
pode, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o
objeto abandonado”106.
Se uma forte fixação no objeto amado deve ter estado presente, o investimento
libidinal, por outro lado, deve ter tido pouco poder de resistência. A hipótese de Freud é
que tendência a adoecer de melancolia reside na predominância do tipo narcisista da
escolha objetal. Haveria uma regressão do investimento objetal para a fase oral ainda
narcisista da libido.
Castro (2002) observa que, enquanto “no trabalho do luto, o trabalho é para que o
eu desista do objeto, passando a depreciá-lo e denegri-lo a partir do sentimento de ódio
em relação ao objeto; na melancolia, o eu é engolfado pelo objeto e alterado pela
identificação, o que permite que o eu venha a ser tratado como objeto, de tal forma que
o sujeito escolhe a si mesmo como objeto de sua hostilidade, ficando o Outro livre desse
‘ataque’”.107 Assim, na melancolia, o sujeito passa a sentir ódio por si mesmo,
degradando-se, em função da identificação narcísica com o objeto.
106
FREUD, S., op. cit, AE, v. XIV, p. 246; ESB, v. XIV, p. 254.
107
CASTRO, M. V. Depressão: a nova cultura do mal-estar ou melancolia no campo da clínica
diferencial. Dissertação Mestrado, UERJ, 2002, p.41.
85
108
FREUD, S. “Luto e Melancolia”, AE, v. XIV, p. 249; ESB, v. XIV, p. 285.
86
109
JORGE, M.A.C “A pulsão de morte”, 21 de fevereiro de 2003, p. 38.
110
JORGE, M.A.C. “Luto e culpa na análise e na vida”. In: Documentos, Revista do Corpo Freudiano do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 6, nº 14, junho de 2000, p.22-34.
88
“Ambos os casos me fizeram indagar se a culpa não é algo que surge quase
que invariavelmente no trabalho de luto, seja como forma de o supereu
atacar o mundo como sendo a fonte de tanto sofrimento e da perda de um
ente querido, seja como forma de atacar o eu que se presta em grande
número de vezes a ser alvo das condenações e recriminações”.111
O autor destaca que a culpa teria uma função no trabalho de luto. Se, em alguns
casos, a angústia decorrente da perda é tão grande que a culpa é preferível à angústia,
como uma tentativa de contornar o furo produzido no real, inassimilável, isso se dá
porque a culpa teria a função de dar sentido, imaginarizar – encontrar um “possível
culpado”.
A culpa poderia ser um primeiro tempo do luto, necessário para que o sujeito
possa sair da angústia e dar conta do real em jogo na situação traumática. O trabalho de
111
JORGE, M.A.C. “Luto e culpa na análise e na vida”. In: Documentos, Revista do Corpo Freudiano do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, ano 6, nº 14, junho de 2000, p.25.
89
análise, como tentativa de elaborar a culpa diante de uma perda, tem um papel
importante, sendo que, nesse caso, seria identificado ao próprio trabalho de luto.
para si”113, na medida em que o eu não tenta contradizer o supereu, não se arrisca a fazer
qualquer objeção, reconhecendo-se culpado e submetendo-se aos castigos.
Assim, o melancólico representa seu eu como sendo desprovido de valor, incapaz
de qualquer realização e moralmente desprezível; ele repreende e envilece a si mesmo,
esperando ser punido. Não há sentimento de vergonha, porque o eu encontra satisfação
em se desmascarar. As auto-recriminações são, originariamente, dirigidas ao objeto,
mas redirecionadas ao eu via identificação.
Na neurose obsessiva, diferentemente, há uma intensa preocupação em esconder o
sentimento de culpa e há um sentimento de vergonha em relação a atos e pensamentos.
Predominam os fenômenos de formação reativa, que têm a finalidade de suprir as
pulsões que provocaram desprazer constituindo diques psíquicos, como asco, vergonha
e moral.
Para Freud, a questão primordial está centrada no ideal do eu, que, em ambas as
patologias, é extremamente severo. O sentimento de culpa é a percepção do eu,
decorrente do supereu rígido e severo, que dirige sua ira e sadismo com violência para o
eu. Assim, o componente destrutivo do supereu volta-se contra o eu.
O sentimento de culpa, presente em ambas as patologias, diferencia-se pela forma
como o eu vai reagir. Na melancolia, o supereu apodera-se da consciência, o que leva o
113
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 88.
92
Como os objetivos de destruição não foram adotados pelo eu, este luta contra eles
com formações reativas e medidas precautórias, permanecendo os impulsos recalcados
no isso. O supereu, contudo, comporta-se como se o eu fosse responsável por eles e
demonstra, ao mesmo tempo, pela seriedade com que pune, que as intenções destrutivas
não são meramente provocadas pela regressão, mas uma substituição do amor pelo ódio.
Aqui, a desfusão do amor em agressividade não foi efetuada por ação do eu, mas é o
resultado de uma regressão que ocorreu no isso.
A melancolia tem a tendência a se transformar em mania ou hipomania, devido à
influência sofrida pelo supereu, o que não ocorre na neurose obsessiva, pois não há
transformação de humor. Em alguns casos, a transformação em mania é lenta, enquanto,
em outros, abrupta, constituindo uma preocupação no manejo da indicação
medicamentosa. Se, por um lado, a melhora súbita do melancólico constitui alívio, por
outro, uma mudança abrupta é preocupante, porque, envolvendo maior disposição física,
pode culminar no suicídio.
Alberti (1999) considera a tentativa do suicídio no neurótico (neurose obsessiva) e
114
no psicótico (melancolia) como possíveis vias de alienação e separação . Para a
114
Alienação e separação - Para Lacan, o sujeito, desde que nasce, está alienado ao Outro, na medida em
que, antes mesmo de falar, já é falado pelo Outro, o que marcará seu desejo. Se é o Outro que nomeia,
inicialmente, para o sujeito, o seu desejo (ex. ao bebê que chora, a mãe responde dando-lhe o seio, logo,
dizendo-lhe que ele quer mamar, nomeando o seu desejo), o desejo é o desejo do Outro, como diz Lacan.
No decorrer da vida, o sujeito neurótico transita por estas posições, tentando, ora separar-se do Outro, ora
94
alienar-se ao Outro, logo, para a psicanálise, o sujeito é marcado pela Ichspaltung, é um sujeito dividido
e, portanto, nunca irá se individualizar por inteiro. Há sempre esta dialética entre alienação e separação.
115
Afânise – conceito introduzido por Ernest Jones, que significa, em termos lacanianos, “a petrificação
do sujeito sem saída, petrificação ante sua representação por outro significante, o que demarca seu caráter
letal’. Ocorre quando o sujeito sai de cena. (ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente – p. 89).
116
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 89.
95
Para Laurent (1988), o suicídio melancólico é um ato fatal que, sem apelo, barra o
gozo do Outro, o próprio sujeito, no lugar de objeto, paga com sua vida. Portanto, não
deixa de ser uma tentativa de cura, ali onde a função paterna faltou para sustentar o
sujeito.
De acordo com Alberti, “onde não há o Nome-do-Pai, o Outro não barrado não é
senão o supereu que exige um gozo do sujeito, um gozo imperativo que retorna no
ponto em que falta um gozo fálico”118. Após o percurso que realizamos buscando fazer
uma certa delimitação entre melancolia e neurose obsessiva, abordaremos a discussão
em torno da pulsão de morte em Freud e em alguns textos de Lacan.
117
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p.90.
118
Idem, p.90.
96
121
FREUD, S. “Mais-além do princípio de prazer”, AE, v. XVIII, p. 43; ESB, v. XVIII, p. 55.
122
JORGE, M.A.C. “A pulsão de morte e a repetição”. In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a
Lacan: as bases conceituais, p. 62.
123
RUDGE, A. M. “A pulsão de morte como efeito do supereu”, In: Revista Àgora, estudos em teoria
psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa. IP/UFRJ, v. IX, nº 1, jan/jun de 2006, p. 79-89.
124
Idem, p. 80.
99
125
FREUD, S. “Análise terminável e interminável”. apud: RUDGE, A.M. “A pulsão de morte como
efeito do supereu”, p. 80.
126
ALBERTI, S. “Os quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva” In: Extravios do
desejo: depressão e melancolia, p. 225.
100
Freud prossegue: “Temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar
a uma compreensão da condição geral que caracteriza estados de depressão, inclusive a
mais grave de sua formas, a melancolia”128.
Seria a melancolia uma forma mais grave de depressão de acordo com Freud?
Haveria, portanto, gradações de depressão? O que a psicanálise entende por depressão?
Vimos que não se trata de uma estrutura clínica, mas de um fenômeno que pode remeter
a uma determinada estrutura.
Urania Tourinho Peres, em seu livro “Depressão e melancolia”, situa a depressão
129
como o “mal do século” . Segundo a autora, vários relatórios de órgãos oficiais
consideram a depressão como a “quarta causa mundial de deficiência”130, com a
127
FREUD, S. “Inibições, sintomas e angústia”, AE, v. XX, p. 86; ESB, v. XX, p.94.
128
FREUD, S., op.cit, AE, v. XX, p. 86; ESB, v. XX, p.94.
129
PERES, U. T. Depressão e melancolia, p.8.
130
Idem, p. 26.
102
estimativa de que, nos próximos vinte anos passará ao segundo lugar. A Organização
Mundial de Saúde prevê que a depressão seja um dos dois grandes problemas de saúde
pública, podendo mesmo ultrapassar as doenças cardiovasculares.
Peres acredita que a depressão estaria ligada a um “vazio da existência ” 131, a uma
perda de sentido da vida diante de uma homogeneização da cultura, na qual a
singularidade do sujeito encontra pouco espaço de sobrevivência. Vincula a depressão à
cultura atual e explora os fatores que a determinam historicamente, a fim de demonstrar
como as diferentes formas de subjetividade interferem diretamente no olhar sobre a
depressão e a melancolia.
O tema da depressão é abordado, pela autora, a partir da psicanálise e da
psiquiatria biológica. Para a psicanálise, a questão gira em torno da relação do sujeito
com a perda e com a falta – vazio estrutural do ser humano –, sendo que a depressão só
pode ser compreendida através da história de vida contada pelo sujeito que a vivencia.
Para a psiquiatria, diferentemente, há uma explicação biológica, ligada a um déficit
neuro-hormonal e que, portanto, deve ser tratado com medicamentos antidepressivos.
Para a psicanálise, a depressão constitui um fenômeno que pode se manifestar,
tanto em sujeitos neuróticos, como psicóticos, diante de uma perda. O termo aparece em
diversos textos freudianos, integrando diferentes expressões: “depressão melancólica,
131
PERES, U. T. Depressão e melancolia, p.57.
103
mal-estar diz respeito ao preço que pagamos para que se possa viver em uma cultura –
uma perda de felicidade e um ganho de culpa, tão presente nos melancólicos.
As inúmeras mudanças na cultura atual, as crises econômicas e o desemprego,
somente acentuam o sentimento de desamparo, que seria responsável por uma
verdadeira epidemia em um momento definido como fortemente “depressor”. O sujeito
conquista a sua liberdade para tornar-se artífice de seu próprio destino, mas depara-se
com a insegurança e o desamparo. Assim, o sujeito acaba culpando-se pelo insucesso e
entrando em um discurso de auto-recriminações – ponto nuclear do estado depressivo.
Peres considera que o crescente mal-estar que a civilização provoca, a excessiva
medicalização da vida e o papel da força publicitária dos grandes laboratórios e do
mercado dos psicofármacos atuam como fortes elementos propiciadores da transmissão
de um mal-estar psíquico. A autora destaca uma curiosa “coincidência”: com o
surgimento do antidepressivo chamado Prozac, há um aumento de casos diagnosticados
como depressão. Podemos nos perguntar se o discurso capitalista não estaria, de alguma
maneira, “fabricando/produzindo” sujeitos deprimidos.
Segundo a mesma autora, atualmente a melancolia tem sido relacionada,
preferencialmente, com as formas mais graves de padecimento, adjetivando, em geral,
uma modalidade de psicose. A depressão, por sua vez, designa uma maneira do ser
humano situar-se na vida, sendo caracterizada pela insuficiência e pela perda de sentido
107
134
LACAN, J. Televisão, p. 44. O grifo é nosso.
109
135
ALBERTI, S. “A depressão: o que o afeto tem a ver com isso?”, p. 102-9.
110
perigo que o antecipa – castração –, ficando ‘paralizado’ diante disso. Há uma tentativa
de se antecipar frente ao perigo da castração.
Ao se referir às inibições generalizadas do eu, Freud afirma o seguinte:
No mesmo parágrafo, Freud destaca que deve ser possível chegarmos a uma
compreensão da condição geral que caracteriza os estados de depressão, inclusive a
mais grave de suas formas, a melancolia. A depressão seria, então, um estado ou um
fenômeno, que aparece vinculado a uma determinada estrutura clínica e que diz respeito
a uma inibição generalizada, na qual o eu evita lidar com o conflito.
Para Freud, portanto, a depressão é uma inibição generalizada, ou seja,
“limitações das funções do eu, fugas – por precaução ou por empobrecimento de
136
FREUD, S. “Inibições, sintomas e angústia”, AE, v. XX, p. 86; ESB, v. XX, p. 94.
111
Como vimos, na inibição, o sujeito evita lidar com o conflito, fugindo na direção
de um “não querer saber” e, com isso, levando a um empobrecimento do eu, que
mantém, no entanto, sua supremacia sobre o recalcado. Já o sintoma, que é uma
formação substitutiva, aparece, muitas vezes, como um “corpo estranho para o eu –
corpo ancorado no recalcado – e a coisa culmina no fato de que o compromisso entre
137
FREUD, S. “Inibições, sintomas e angústia”, AE, v. XX, p. 86; ESB, v. XX, p. 94.
138
LACAN, J. Televisão, p. 44 apud: ALBERTI, S. “A depressão: o que o afeto tem a ver com isso?”,
p.103. O grifo é nosso.
112
moção pulsional e defesa – compromisso que se constitui como sendo o próprio sintoma
139
– é seguido por uma luta interminável do eu contra o sintoma” . Essa luta, que é da
ordem da extraterritorialidade, funda-se sobretudo no fato do eu sempre ser levado a se
defender. Na angústia, no entanto, o sujeito seria surpreendido por algo que lhe escapa,
invasão que não pode ser evitada por ser da ordem do real.
De acordo com Marco Antonio Coutinho Jorge, dando prosseguimento às
observações de Lacan no Seminário R.S.I, na inibição, há a invasão do imaginário sobre
o simbólico, ou seja, há uma imaginarização do simbólico, e, portanto, uma redução do
duplo-sentido e da ambigüidade, com o estabelecimento do sentido unívoco. Podemos
nos perguntar se, na clínica, a queixa dos ‘deprimidos’ a respeito da falta de sentido da
vida não seria uma forma de ficar “preso” ao sentido dado da depressão – signo?
Podemos dizer que a depressão é um afeto que aparece no momento em que o
sujeito evita sua própria determinação inconsciente, cede de seu desejo, abre mão dele,
“não quer saber”, representando, portanto, como afirmava Lacan em Televisão, uma
“covardia moral”.
Na depressão, o eu para não correr o risco de se deparar com a castração,
entristece – sendo a tristeza o afeto da depressão, qual seja, uma baixa de energia
psíquica –, se deslibidiniza. Há uma perda da libido, como vimos anteriormente, a partir
139
ALBERTI, S. “A depressão: o que o afeto tem a ver com isso?”, p.103
113
reconhece o outro como objeto total. Escolhemos dar maior ênfase à posição depressiva,
correlacionando-a com o tema da dissertação.
A posição depressiva é, para Klein, o momento em que o bebê reconhece um
objeto total e se relaciona com o mesmo. O bebê percebe o objeto como uma totalidade
corpórea e também como aquele que pode ser, simultaneamente, amado e odiado.
Começa a ser capaz de discriminar que suas experiências boas ou más não procedem de
um seio ou mãe somente bons ou ruins, mas que uma mesma pessoa (a mãe) pode lhe
oferecer experiências agradáveis e desagradáveis.
O reconhecimento da figura materna, como uma pessoa total, tem implicações
importantes, pois abre novas possibilidades de relacionamento e experiências no mundo.
O bebê torna-se capaz de perceber que sua mãe tem sua própria vida e é uma pessoa
separada dele mesmo, mantendo relação com outras pessoas e compromissos. Além
disso, o bebê se depara com uma descoberta fundamental: o seu próprio desamparo.
Esse momento eqüivale a uma percepção de objetos menos deformada, mais próxima da
realidade e ainda ao reconhecimento da possibilidade de amar e odiar uma mesma
pessoa, que, no caso do bebê, é, inicialmente, a mãe. Tal fato gera ambivalência e novos
conflitos relacionados.
A ambivalência implica, então, o surgimento de novas angústias, porém
diferentes das observadas na posição anterior. A principal delas é o temor da criança de
116
que seus próprios impulsos destrutivos tenham lesado ou destruído o objeto que ela ama
e do qual depende.
Quando o bebê se encontra melhor integrado, é capaz de lembrar e reter o amor
pelo objeto bom, mesmo quando sente ódio, uma nova experiência em relação à posição
esquizo-paranóide. É novo o luto e o anseio pelo objeto bom, que é sentido como
perdido e destruído, assim como a culpa. Quando o bebê sente que seus impulsos e
fantasias de destruição são dirigidos contra a pessoa completa de seu objeto amado, a
culpa surge com toda a força. É uma experiência depressiva resultante da sensação de
ter perdido o objeto por conta da própria destrutividade.
Os sentimentos característicos da experiência depressiva mobilizam no bebê o
desejo de reparar os objetos destruídos. Temos, então, como principal defesa da posição
depressiva, a reparação. É o anseio do bebê de compensar o dano que infligiu aos
objetos em sua fantasia onipotente e o desejo de restaurá-los e recuperá-los, uma vez
que são sentidos como objetos amados perdidos. Por acreditar que seus impulsos
destrutivos lesaram seus objetos, o bebê passa a sentir que, com o seu amor e cuidado,
irá recuperá-los, desfazendo os efeitos de sua agressividade. Quando o bebê ama e odeia
o mesmo objeto, ele está em conflito, porque experimenta a ambivalência. Esse conflito
depressivo é caracterizado por uma luta constante entre a sua destrutividade e o seu
amor, juntamente com os impulsos reparadores.
117
O desejo de poupar seus objetos leva-o, por outro lado, a sublimar os impulsos
sentidos como destrutivos. Essa preocupação com o objeto fará com que o ego se torne
mais organizado, diminuindo as projeções e substituindo o splitting (divisão) pelo
recalque. Assim, os mecanismos psicóticos dão lugar aos neuróticos, que seriam a
inibição, o recalque e o deslocamento.
A posição depressiva nunca é plenamente elaborada, segundo Klein, pois
persistem angústias relativas à ambivalência e à culpa, bem como novas situações de
perda recolocam o ego diante de experiências ou lembranças depressivas anteriores.
Para a autora, a forma pela qual o sujeito passou pela posição depressiva é determinante
na maneira pela qual irá elaborar um luto diante de uma perda significativa no percurso
de sua vida posterior. Assim, para a autora:
142
KLEIN, M. “Algumas conclusões teóricas sobre a vida emocional do bebê” In: Os progressos da
psicanálise, p. 229.
119
Podemos concluir que a posição depressiva, teorizada por Melanie Klein, aponta
para uma outra perspectiva. Remete a um processo que ocorre na vida do sujeito e que é
não apenas necessário, mas fundamental, para um bom desenvolvimento do ego (eu) e
até mesmo determinante na maneira pela qual o sujeito irá elaborar perdas posteriores.
Acreditamos que a posição depressiva se aproximaria mais do luto: um trabalho
que ocorre diante de uma perda e que é fundamental para que o sujeito continue a
investir libidinalmente em outros objetos, não sendo, portanto, patológico.
CAPÍTULO IV
O DESEJO, A FALTA E A LEI
A questão inicial que surge para nós é a seguinte: qual é a relação existente entre o
desejo, a falta e a lei? Para responder, escolhemos estudar, no grafo do desejo, proposto
por Lacan, a relação entre desejo e demanda para, então, chegarmos à discussão da
relação entre depressão e desejo e, conseqüentemente, com a falta. Finalmente,
tomaremos a ética do bem-dizer a relação do sujeito com seu desejo para pensar o que o
discurso do analista pode fazer pelo sujeito “deprimido” na clínica dos dias de hoje.
Para a psicanálise, o desejo tem uma significação única e particular, pois,
conforme observa Lacan “é com os efeitos do desejo, num sentido muito amplo – o
desejo não é um efeito colateral – que temos, na psicanálise, que lidar”143.
143
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 261. Excluído: – A
121
sujeito ao seu desejo. Abordaremos o mito de “Totem e tabu” para verificar tal
consideração.
Em 1913, Freud escreve “Totem e tabu” para chamar a atenção para uma lei
primeira, básica e fundamental – a lei da interdição do incesto –, sendo considerada o
código de leis, não escrito, mais antigo do homem. O Direito e as leis não teriam
surgido em razão daquilo que é justo ou injusto, mas de cultos religiosos de povos
primitivos. Conseqüência direta e necessária da crença, da própria religião, aplicada às
relações dos homens entre si, o que possibilitou a passagem da natureza para a cultura.
Totem e tabu é considerado como o mito fundamental da psicanálise, no sentido
de articular uma verdade; supõe uma tribo primitiva, onde o pai todo-poderoso –
Urvater –, ciumento, violento, onipotente e temível, detém o poder de possuir todas as
mulheres. Em conseqüência, todos da tribo são tidos como seus filhos e devem obedecer
e não contrariar este pai.
O Urvater é aquele que impõe a lei, sem estar submetido a ela. Ao ditar a lei para
os outros, iguala-se a ela: ele é a “lei fora-da-lei”. Para os outros, a castração, enquanto
que para ele, o gozo. Esse pai daria "consistência imaginária a um gozo que pelo-
menos-um poderia ter e guardar somente para si, sem dividi-lo com mais ninguém”.144
144
QUINET, A. “O gozo, a lei e as versões do pai” In: GROENINGA, G. C. & PEREIRA, R. C Direito
de família e Psicanálise, p. 60.
122
145
FREUD, S. “Totem e tabu”, AE, v. XIII, p. 12; ESB, v. XIII, p. 22.
123
146
Vide página 25.
124
147
FREUD, S. “Totem e tabu”, AE, v. XIII, p. 74; ESB, v. XIII, p. 81/82.
148
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 209/217. Excluído: – A
149
RINALDI, D. A ética da diferença, p. 69.
125
assim, a Lei da castração, que está inscrita na fala, e não a proibição presente na
tragédia edípica, que aparece através de uma rivalidade imaginária:
152
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da Psicanálise, p. 87 Excluído: – A
153
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia, p. 119. Excluído: - A
128
154
Idem, p. 166.
129
155
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 189.
130
156
Metáfora paterna – operação simbólica entre o Nome-do-pai (NP) e o desejo da mãe (DM), em que o
significante pai vem no lugar da mãe, interditando a mãe, de tomar a criança como seu objeto de desejo.
157
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 142.
158
LACAN, J. Escritos, p. 839.
131
SIGLAS:
S - sujeito barrado;
i(a) – eu ideal;
A – grande Outro, Outro da linguagem, tesouro dos significantes (simbólico);
d – desejo;
S ◊ D – relação do sujeito barrado com as demandas (do Outro) – fórmula da pulsão;
134
O grafo do desejo indica a relação do sujeito com seu desejo, a partir de uma
pergunta dirigida ao grande Outro: Che vuoi? (O que queres de mim? ou O que o Outro
quer de mim?). É, justamente, na ausência de uma resposta do grande Outro, que a
angústia surge. É o “eu não sei o que o Outro quer de mim” – resposta insuportável –,
que se introduz a castração do Outro enquanto desejante. A fantasia aparece como uma
maneira de obturar a castração, essa falta no Outro, como um suporte do desejo. É
importante destacar que não abordaremos a fantasia no presente trabalho, visto que tal
temática daria abertura a uma nova dissertação.
No primeiro andar do grafo do desejo (parte inferior do grafo), o A – grande
Outro, Outro da linguagem – que aparece inicialmente como a mãe, interpreta,
nomeando para a criança o seu desejo, o que vem a produzir valor de significado – s(A)
é o significado vindo do Outro (sintoma).
Nesse sentido, a partir do grafo, Lacan mostra como o desejo se constitui como
desejo do Outro, pois é o Outro que interpreta inicialmente, para o sujeito, o seu desejo,
devolvendo sua própria mensagem de forma invertida. Abordaremos melhor essa parte
do grafo, no item sobre a demanda e o desejo.
Já no segundo andar do grafo, encontramos a operação da castração, através do
significante do Outro barrado – S (A).O falo aparece como significante fundamental,
que introduz algo novo, marcando uma barra no grande Outro (A) – castração
simbólica. Por essa razão, o desejo é marcado como “não-todo”. Sendo assim, a falta
estrutural é o que permite ao sujeito advir como desejante, como já vimos
anteriormente.
Sendo assim, o S maiúsculo do A barrado, ou seja, o significante do Outro barrado
é, exatamente, a operação que o falo realiza. Dito de outra forma, o falo é o significante
pelo qual é introduzido no A, como lugar da fala, a relação com o a – pequeno outro–,
na medida em que o significante remete a isso. É o significante particular que se
135
159
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 405. Excluído: – As
160
Idem, p. 406.
161
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 476. Excluído: – As
162
Idem, p. 467.
163
Ibidem, p. 285.
136
164
O pai exceção – É a “ex-sistência” desse Um pai que leva Lacan a derivar as fórmulas da sexuação:
existiu pelo menos um pai para a qual a castração não valeu – Urvater de Totem e tabu. É o pai que faz
exceção a toda regra, detendo o falo.
165
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 99.
166
Idem, p. 147.
167
LACAN, J. “A significação do falo” In: Escritos, 1998.
168
Idem, p. 697.
137
169
Ibidem, p. 700.
138
que remete a essa barra no grande Outro, sendo o resultado da operação simbólica da
castração – do Nome-do-Pai e da referência fálica.
Podemos concluir que o falo é um significante fundamental, na medida em que
instaura uma falta, uma marca, que jamais poderá ser apagada, estando presente, desde
sempre, para todos, constituindo, dessa maneira, o sujeito desejante.
170
s(A) – “aquilo que, no Outro, adquire para mim valor de significado”. Vide: Grafo do desejo –
Seminário 5 e Escritos– Lacan
171
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, p. 407.
139
172
Idem, p. 267.
173
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 103.
174
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente, p. 126.
140
Sendo assim, podemos concluir que o analista não deve responder às demandas do
sujeito para que o desejo possa advir, já que são sempre, em última instância, demandas
de amor.
175
Idem, p. 194.
141
A depressão, como “covardia moral”, diz respeito ao sujeito evitar lidar com a
falta estrutural própria a todo ser falante. Como vimos no grafo do desejo, o desejo se
constitui a partir da falta e, quando o sujeito cede de seu desejo, é como se tentasse
anulá-la, evitando lidar com a falta, como se ela não existisse. Sendo assim, a depressão
não estaria situada no grafo do desejo, na medida em que “abafa” o inconsciente, “não
quer saber” da castração177.
Conforme observamos, a palavra covardia, no Dicionário Aurélio, alude à “falta
de coragem, medo, timidez, fraqueza de ânimo”. Enquanto que para o leigo a depressão
remete a uma “fraqueza de ânimo”, para a psicanálise, diz respeito a uma perda libidinal
ou, ainda, perda na vida pulsional – Verlust.
Podemos dizer que o sujeito deprimido furta-se ao próprio desejo e,
conseqüentemente, a sua determinação inconsciente.
Em A dor de existir, Stella Jimenez (1999) afirma que “renunciar ao desejo tem
um preço, ainda mais caro: implica ficar triste, sem apetite e, ainda pior, esta renúncia é
a causa última das auto-recriminações, já que aquilo de que o sujeito se sente realmente
culpado é de haver cedido em seu desejo”178. Retomando Lacan, assinala que a culpa
advém, justamente, dessa renúncia ao desejo.
A autora observa que, “nestes casos, o que o deprimido não quer saber é a falta da
onipotência do Outro”179, já que desejar aponta justamente para essa falta, que é
estrutural. Podemos observar que os sujeitos deprimidos não querem renunciar ao “ideal
do tudo” – não lidando com a falta no Outro, obtura a sua própria falta.
No seminário sobre A Angústia, Lacan (1962/63) ressalta:
176
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 9.
177
Observação de Sonia Alberti. (orientação )
178
JIMENEZ, S. A dor de existir, p. 202.
179
Idem, p. 203.
142
“não estamos de luto, senão de alguém de quem podemos dizer: eu era sua
falta. Estamos de luto de pessoas que tratamos bem ou mal, e diante de
quem não sabíamos que representávamos essa função de estar no lugar de
sua falta. O que damos no amor é essencialmente o que não temos e
quando o que não temos nos retorna, há seguramente regressão e, ao
mesmo tempo, revelação daquilo em que nós falhamos a essa pessoa para
representar sua falta”180.
O sujeito estaria de luto por aquele para quem foi, sem saber, o objeto de sua falta.
Quando o Outro não está mais presente, a falta pode retornar ao sujeito, fazendo com
que o mesmo se depare com saber em que faltou ao Outro para representar a sua falta.
Reconhecer-se como sujeito faltoso, remete, portanto, à castração.
Com Lacan, que se apoia em Freud, aprendemos que o sujeito constitui, a partir do
Ideal do Eu – I(A) –, o eu ideal – i(a) –, ou seja, é a partir do Outro que o sujeito se
sustenta.
Quinet (2002) comenta que a perda da pessoa amada ou de um ideal remete ao
significante ligado ao Ideal do eu – I (A) –, lugar de onde o sujeito se vê como amável.
Segundo o autor,
Excluído: (1962-1963)
180
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a Angústia , p. 364. Excluído: L
181
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 132. Excluído: , A
143
a falta está colocada para todos, desde sempre, a partir da entrada do sujeito na
linguagem.
Para Jimenez, a depressão aparece na clínica, nos dias de hoje, como uma forma
desesperada e radical de apelo para que a falta seja reintroduzida e que nem tudo seja
permitido, pois “se tudo é permitido, nada é permitido”182.
Podemos pensar que o “tudo é permitido” diz respeito à falência da função paterna
na atualidade, ou ainda, como já vimos, ao momento do “Totem e tabu”, quando o pai
(Urvater) é assassinado e o caos se presentifica, já que tudo passa a ser permitido, ou
seja, “nada é permitido”.
A função paterna, muito antes de ser autoritária, sustenta a lei do desejo, para o
sujeito. Se há a falência da função paterna, a referência à lei fica prejudicada e,
conseqüentemente, o desejo do sujeito.
Para Rodrigo da Cunha Pereira, há um “declínio do pai” ou “crise da
paternidade”183. Também Alberti (2004) observa que vivenciamos, hoje, os efeitos das
modificações ocorridas nos dois últimos séculos quanto ao lugar da autoridade paterna.
A mudança da estrutura social que era patriarcal, os movimentos feministas e a criação
das ciências humanas, que começaram a ditar aos pais como deveriam educar seus
filhos, são alguns exemplos. A autora retoma a referência de Lacan a Claudel, que fala
da “humilhação do pai”184, mas, defende que o pai (Nome-do-Pai) é uma instituição tão
vigorosa que pode renascer novamente, demonstrando sua verdadeira potência.
Quinet considera que, se a depressão é uma falta moral que não cumpre o dever
ético de bem-dizer, o mal-dizer corresponderia ao calar-se, ao refugiar-se no silêncio e
no isolamento.
Sérgio Laia, em Sulcos e depressões da aletosfera, observa que alguns sujeitos se
apresentam dizendo “tenho depressão” ou “estou deprimido”, ficando em silêncio
depois. Não se trata, entretanto, de um silêncio em que é possível escutar o sujeito no
intervalo dos significantes, mas um “silêncio vão”, vazio. É como se o sujeito não
tivesse mais nada a dizer, diferentemente do silêncio que se apresenta como interrupção
das associações e que remete, em última instância, à presença do analista.
Retomando Quinet, o sujeito deprimido se distancia do Outro do desejo, do
inconsciente. Por isso, Lacan afirma que se trata de uma “dupla falta moral, pois, na
182
JIMENEZ, S. A dor de existir, p. 205.
183
PEREIRA, R. da C. “Pai, por que me abandonaste?” In: Direito de família e psicanálise, p. 224.
184
ALBERTI, S. O adolescente e o Outro, p. 19.
144
tristeza, o sujeito além de ferir a ética do bem-dizer, também cede de seu desejo”185.
Quem está triste não apenas deixa de agir, como também tem dificuldade em pensar. A
recusa de saber seria o avesso da virtude própria em Espinosa – a virtude remetendo ao
bem-pensar articulado ao desejo.
186
Lacan (1974), em Televisão, observa que o oposto da tristeza é o gaio saber ,
que seria uma virtude ética do bem-dizer. Diante disso, podemos perguntar: por que
alguns sujeitos renunciam ao seu desejo – “primeira e única riqueza do ser humano”187?
Como já vimos, o desejo do sujeito surge no ponto de falta no Outro. A criança se
identifica, inicialmente, no lugar de objeto de desejo da mãe, ou seja, na posição de falo,
a criança tenta recobrir a falta no Outro (mãe). Mais tarde, quando percebe que algo
também falta a essa mãe, a criança começa a buscar um terceiro – o pai, o que faz toda a
diferença na constituição psíquica do sujeito, pois inaugura a via do desejo.
Se considerarmos a relação intrínseca entre o desejo (d) e as demandas do Outro
(D), quais seriam, nos dias atuais, as Demandas do Outro que tendem a obturar o desejo
do sujeito?
Podemos pensar que, em uma cultura caracterizada como consumista e inserida
em uma lógica capitalista (ter para ser), as demandas do Outro apontam para objetos
que escondam a falta. Assim, o sujeito possui a ilusão de que ao obter tais objetos (de
consumo), a falta não existirá. No discurso capitalista, a falta fica foracluída e não há
qualquer relação entre o agente e o outro. Não havendo laço social, a castração fica
excluída e o sujeito fixado no lugar em que o S1 (significante mestre) determina.
Na atualidade, há uma demanda que podemos nomear como universal e que se
expressa como: GOZE! Frente ao imperativo do gozo, o sujeito é empurrado a gozar a
qualquer preço. Lacan denomina latousas os “miúdos objetos pequenos a, que
encontramos por todo lado, atrás de todas as vitrines, na proliferação destes objetos
feitos para causar.”188 Ao ser capturado por esses “pequenos” objetos, o sujeito
confunde o desejo com a demanda, ou seja, acredita que ao ter tais objetos será mais
feliz, por exemplo; porém, isso não se constitui como um desejo de fato e sim como
185
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da Psicanálise (1959-1960). apud: QUINET, A. Extravios Excluído: – A
do desejo: depressão e melancolia, 2002, p. 12.
186
Gaio saber – le gay savoir – além de uma referência a Nietzsche, o gaio saber, maneira lacaniana de
grafá-lo, é uma alusão aos trovadores. Sua poesia é evocada por Lacan, em O seminário, livro 7: a ética
da psicanálise (1959-60), para mostrar o lugar vazio de Das ding - a Coisa, como impossível de alcançar
e simbolizar. – vide QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 14.
187
JIMENEZ, S. A dor de existir, p. 202.
188
LAIA, S. “Sulcos (e depressões) da aletosfera”. p. 37.
145
uma demanda. A oferta promovida pelo discurso capitalista estabelece a crença de que
há tal objeto. E, como diz Lacan, com a oferta a demanda se estabelece.
Em Sociedade de Consumo (1974), Baudrillard, segundo Quinet, observa que
vivemos em uma espécie de evidência do consumo e da abundância, criada justamente
pela multiplicação dos objetos (latousas). Feitos para causar, não causam desejo e sim
demanda. Há uma deterioração dos laços sociais, já que os sujeitos se cercam de objetos
– carros, televisões, computadores, lap tops, fax, mp3, pen drive, celulares etc (gadgets)
–, e não de outras pessoas, havendo o empuxo ao prazer solitário. O desemprego e a
competitividade crescentes, em um mercado cada vez mais feroz, associados ao
imperativo do gozo de uma cultura produtora de gadgets (que acenam com a promessa
de satisfazer o desejo e de felicidade total) podem contribuir para “o estado depressivo
de um sujeito desorientado em relação a seu desejo, perdido de seus ideais”189.
As mudanças culturais, bem como as crises econômicas, contribuem para acentuar
o sentimento de desamparo, que seria responsável pela verdadeira epidemia de
depressão em um tempo pode ser definido como fortemente “depressor”.
O sujeito busca conquistar sua liberdade para tornar-se artífice de seu próprio
destino, o que gera insegurança e desamparo. Talvez a questão não seja apenas tomar a
depressão como “covardia moral”, mas destacar a confusão entre a demanda (do Outro
– da cultura) e o desejo. E o sujeito, este, coitado, já não sabe mais o que fazer com o
seu desejo, ficando desorientado em relação ao mesmo.
Há ainda o boom dos medicamentos antidepressivos. Retomando as contribuições
de Urania Tourinho Peres, considera curiosa a “coincidência” entre o surgimento de um
novo antidepressivo (Prozac, fluoxetina) e um aumento dos diagnósticos de depressão.
Podemos pensar que a depressão é um produto da cultura. O surgimento dos
medicamentos antidepressivos criaria a demanda da depressão, em que o sujeito
responde cedendo de seu desejo.
De acordo com Serge Cottet, em Algumas idéias diretivas para um congresso
sobre a depressão, a invenção da depressão teve pleno êxito. O autor observa que “a
promoção médica e farmacológica da entidade vem de fato ao encontro de uma
demanda social que de modo espontâneo não está absolutamente decidida a incluir a
189
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 90.
146
190
COTTET, S. “Algumas idéias diretivas para um congresso sobre a depressão”. In: Opção Lacaniana,
nº 17, novembro de 1996, p. 29.
191
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 93.
192
Vide página 18.
193
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 101.
147
Podemos pensar que se o sujeito assim responde, pode ser a sua única maneira de
dizer “estou fora” dessa cultura maníaca e onipotente ou “eu não quero gozar assim”.
Ao mesmo tempo em que é excluído da cultura, o sujeito também pode sentir-se
incluído e “protegido”, através desse significante. Tem uma “desculpa” para não
produzir e trabalhar, dormir o dia inteiro, saindo um pouco da cultura cada vez mais
maníaca, que renega a falta, como se isso fosse possível. É interessante destacar que, na
palavra “desculpar”, está implícito o desculpabilizar, ou seja, tirar a culpa, ver-se livre
da mesma. E, como analisamos anteriormente, a culpa decorre justamente do fato de o
sujeito ceder de seu desejo.
Em “O Mal-estar na cultura” (1930), Freud considera o sentimento de culpa,
presente na humanidade, como o preço que torna possível a vida em uma cultura,
relacionando-o a uma perda de felicidade, tão comum nos melancólicos. Logo, a única
maneira do sujeito fugir à culpa seria não abrir mão do seu desejo, tarefa cada vez mais
difícil na cultura de hoje.
O que pode a psicanálise fazer pelo sujeito que se encontra deprimido e que
aparece na clínica nos dias de hoje? Como resgatar o desejo do sujeito?
Para tentar encaminhar uma resposta, articularemos a ética da psicanálise, ligada
ao bem-dizer o desejo, e o discurso do analista em oposição ao discurso capitalista para
dar continuidade à discussão do tema da depressão. A pergunta seria: pode o discurso
do analista fazer frente ao discurso do capitalista?
194
BARROS, R. do R. “Tríptico sobre a depressão”. In: EBP, Seminário “A clínica da depressão”, ICP-
EBP/RJ, 2003.
195
Vide página 18.
148
196
ALVARENGA, E. “A depressão sob transferência”. In: Opção lacaniana, nº 17, nov/ 1996, p. 27.
197
Idem, p. 27.
149
inassimilável, enigmático, impossível de ser simbolizado. Lacan afirma que “das Ding é
essa Coisa que do Real primordial padece do significante”198.
No núcleo do real, estaria das Ding, responsável pela insaciabilidade do desejo
humano. Lacan ressalta que a psicanálise não é um idealismo e sua ética não é a “ética
do bem”, na tentativa de alcançar algum bem ou produzir algum bem para o sujeito.
Não propõe qualquer forma de universalização moral. É antes uma “ética do bem-
dizer”, em que cada um, em sua singularidade, deve buscar seu caminho desejante.
À função fundamental que sustenta um processo analítico, Lacan nomeia como
"desejo do analista", que remete a um “desejo de que haja análise”199. Implica na
presença do analista, com sua escuta atenciosa e intervenções necessárias, mas, acima
de tudo, exige deste que não responda às demandas do sujeito para que o desejo possa
aparecer. O analista, no lugar de objeto a, deve, portanto, causar desejo, instigar o
desejo do sujeito – única via possível para o tratamento analítico.
Assim, indagamos: como o psicanalista opera diante de um sujeito que diz
“estou deprimido?”. Primeiramente, o analista deve instigar o sujeito a falar, fazendo
com o mesmo possa perceber por que se atrelou a esse significante, e o que isso remete
na sua história subjetiva, abrindo a novas significações, permitindo que o sujeito possa
resgatar o seu desejo, ainda que tenha que pagar um preço por isso – lidar com a falta.
Mais do que nunca, o analista deve ficar no lugar de objeto a, causando desejo, não
respondendo às demandas do sujeito deprimido, que, aliás, podem ser muitas.
Como vimos, a depressão não é uma estrutura, mas um fenômeno que remete a
determinada estrutura clínica. Logo, é importante, acima de tudo, que o psicanalista
fique atento à estrutura que se apresenta na clínica, já que é com o diagnóstico estrutural
que a psicanálise opera.
Sonia Alberti ressalta que em Televisão, Lacan (1974) propõe “o discurso do
psicanalista como única saída para a ausência de saída do discurso capitalista”200. O
analista, no lugar do objeto a, causa de desejo, permite fazer frente a um discurso que,
como vimos, não faz laço social.
198
LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p.149. apud: JORGE, M.A.C. “O Objeto
perdido do desejo” In: Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais (vol. I –
3ª ed.), p. 140.
199
JORGE, M. A.C. “Luto e culpa na análise e na vida” In: Revista do Corpo Freudiano do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, ano 6, nº 14, junho de 2000, p. 25
200
LACAN, J. Televisão. apud: ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S
& ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise, p.46
150
Devemos lembrar dos inúmeros objetos (latousas) que agem de forma a capturar
o sujeito, alimentando o engano e a confusão entre demanda e desejo. Trata-se de uma
promessa ilusória de felicidade, que tenta excluir qualquer referência à falta, mas que
acaba por excluir o sujeito do desejo.
Podemos pensar que a função da análise é a de que o sujeito possa lidar com a
castração como falta estrutural e, assim, administrar melhor o seu desejo. Logo, a
própria análise propicia um certo “efeito depressor”, um momento de “não querer saber
disso”, de lidar com a falta.
De acordo com Elisa Alvarenga, “a questão da depressão faz parte do cotidiano
da clínica analítica, ela pode ser a posição do sujeito que chega, daquele que entra em
análise e daquele que está prestes a terminar”202. A autora sublinha que o final da
análise é sempre vivido como luto, no sentido de uma imaginarização da perda.
Em “Luto e culpa na análise e na vida”203, Marco Antonio Coutinho Jorge
aproxima o trabalho da análise ao do luto, na medida em que ambos são simbolizações
da experiência da perda originária do objeto. O autor observa:
201
ALBERTI, S. “Psicanálise: a última flor da medicina”. In: ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e
pesquisa em psicanálise, p.46.
202
ALVARENGA, E. “A depressão sob transferência”. In: Opção lacaniana, nº 17, novembro de 1996, p.
24.
203
JORGE, M. A. C. “Luto e culpa na análise e na vida” In: Revista do Corpo Freudiana do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, ano 6, nº 14, junho de 2000, p.22-34
204
Idem, p. 25.
151
205
Ibidem, p. 25.
206
QUINET, A. Extravios do desejo: depressão e melancolia, p. 93.
207
Idem, p. 91.
152
CONCLUSÃO
Lembramos que a inspiração de nossa pesquisa foi a clínica, da qual partimos para
tentar encontrar subsídios na teoria psicanalítica, na medida em que a teoria e a clínica
são indissociáveis entre si. Foi a partir da fala de uma analisanda – “estou deprimida” –,
que começamos a esboçar algumas questões. A questão fundamental foi: o que é a
depressão? Ao retomar as contribuições do fundador da psicanálise, Freud, de Lacan e
Melanie Klein, assim como de outros autores da psicanálise, fomos levados a um
enfoque particular da depressão. Como vimos, esta constitui não uma estrutura clínica,
mas um fenômeno atual de nossa cultura. Assim, nos interrogamos também sobre o
lugar e a relação da depressão com a cultura, já que tal fenômeno vem aparecendo de
forma cada vez mais perceptiva na clínica, nos dias de hoje.
Discorremos sobre a importância do diagnóstico psiquiátrico e psicanalítico da
depressão, associando a psicanálise ao discurso do psicanalista e a psiquiatria ao
discurso do mestre. A depressão revelou-se como um fenômeno clínico, que aponta para
uma estrutura – neurose ou psicose. Enquanto a psiquiatria trabalha com o olhar clínico,
a psicanálise opera com a escuta analítica. Se a primeira responde, na maioria das vezes,
com o medicamento que visa tamponar a dor – “um comprimido para o deprimido”208 –,
a psicanálise abre a possibilidade do sujeito remediar o próprio sofrimento com a
palavra.
Apresentamos um caso clínico, do qual destacamos uma fala importante da
paciente que remetia a uma perda: “ou eu mato meu marido ou ele me mata”. Este dizer,
inicialmente, apontava para uma identificação narcísica da paciente com o marido, já
falecido, e, como vimos, essa identificação ocorre comumente na melancolia, levando,
naquele momento a uma hipótese diagnóstica clínica – psicose (melancolia). O trabalho
analítico, porém, possibilitou a abertura ao luto, permitindo repensarmos a hipótese
diagnóstica inicial. Concluímos que a paciente apresentava traços melancólicos em uma
estrutura clínica de uma neurose, mais especificamente, histérica.
Destacamos a importância de um diagnóstico estrutural na psicanálise, que só
pode ser realizado a partir da transferência, na medida em que a transferência atualiza
em uma sessão de análise um modo de incidência da relação do sujeito com o seu
desejo. E a partir dessa preocupação que pensamos em como situar a “depressão” que
tanto aparece na clínica atualmente como um fenômeno que pode remeter a uma
determinada estrutura.
208
Observação de Marco Antonio Coutinho Jorge (orientação).
154
abarcando qualquer queixa de tristeza, na medida em que toda e qualquer tristeza toma
ares de “depressão”, devendo ser devidamente tratada e na melhor das hipóteses,
medicada.
O ponto central de nossa dissertação foi a abordagem da depressão como
“covardia moral”, formulação de Lacan, a partir de Espinosa, que exigiu que
retomássemos a relação do sujeito com o próprio desejo, já que o sujeito deprimido cede
de seu desejo, acovardando-se diante dele.
Realizamos, ainda, uma breve incursão sobre a teoria da posição depressiva em
Melanie Klein, associando o trabalho do luto a um processo que integra a constituição
do sujeito, não sendo, portanto, patológico, e que influencia a maneira pela qual o
sujeito poderá lidar com perdas futuras. Para a autora, a posição depressiva seria,
portanto, estruturante, como formadora da constituição do eu.
Chegamos na articulação fundamental de nossa pesquisa, focalizando a relação
intrínseca entre o desejo, a falta e a lei. Se a depressão se instala, justamente, quando o
sujeito abre mão de seu desejo, como afirma Lacan, perguntamo-nos o que a análise
propõe ao sujeito que se diz “deprimido”? Certamente, o desejo constitui “a primeira e
única riqueza do ser humano”209, como observamos anteriormente. Ao operar pela via da
palavra, a psicanálise propõe ao sujeito a ética de bem-dizer o seu desejo.
Em oposição à ética defendida pela psicanálise, o discurso capitalista exclui o
sujeito, ao tentar renegar/foracluir a falta – da ordem da impossibilidade. A depressão,
então, aparece como um produto da cultura que, ao oferecer um verdadeiro arsenal de
medicamentos antidepressivos, produz a oferta que cria uma demanda de sujeitos que se
‘encaixam’ nessa categoria, digamos assim.
Ao mesmo tempo em que aparentemente ‘acolhe’ o sujeito, que se agarra a tal
significante – tomado mais como signo – irá excluí-lo, já que a depressão contraria os
ideais de produtividade e do capitalismo da nossa cultura. Ou seja, da mesma forma que
há uma exclusão pela própria cultura, o sujeito sente-se incluído, “protegido” através
desse signo – a depressão. Tal fato demonstra claramente como opera, de forma
paradoxal, o discurso capitalista que “inclui para excluir”, propiciando uma aparente
proteção, deixando o sujeito desorientado em relação a sua riqueza maior – o seu desejo.
Assim, o sujeito neurótico histérico, “ficando deprimido”, encontraria uma
maneira de dizer “estou fora” dessa cultura maníaca e onipotente, de dizer “eu não
209
JIMENEZ, S. A dor de existir, p. 202.
156
quero gozar assim”. Pode se “des-culpabilizar” por não ter que responder aos ideais de
produtividade, podendo então, não trabalhar e dormir o dia todo. Na verdade, porém, a
única maneira do sujeito não se sentir culpado seria não abrindo mão do seu desejo, já
que toda a vez que o sujeito cede diante do desejo, a culpa advém. Em outras palavras,
sustentar o próprio desejo, tarefa essa já considerada difícil, tem se tornado quase que
impossível na nossa cultura.
Conforme vimos, o discurso do analista pode, no entanto, vir a ser a “única saída
para a ausência de saída do discurso capitalista”210, no sentido de subvertê-lo ao
reinstaurar a falta e permitir que advenha o desejo. Mas, para que isso aconteça, o
sujeito precisa ter coragem, em oposto à covardia do deprimido e pagar um preço por
ser desejante.
A psicanálise põe em cena o desejo, possibilitando ao sujeito redimensionar sua
forma de lidar com a castração e assumir pagar o preço de sustentar a singularidade de
seu desejo.
Pois, como já vimos no decorrer da dissertação, partindo do legado de Freud,
Lacan considera a castração como o ponto a partir do qual a estrutura se organiza e toma
o complexo de Édipo como um ‘operador da estrutura’. A castração passou a ser vista
como uma lei e o falo como um significante – da falta. A lei à qual o significante está
submetido é a lei da castração simbólica, que instaura a falta estrutural, presente para
cada sujeito a partir de sua entrada no mundo da linguagem.
Podemos reconhecer que a “depressão” não é apenas um produto da cultura, que
fabrica sujeitos que se encaixem sob esse signo, mas, essencialmente, uma maneira do
sujeito evitar lidar com o desejo, não respondendo à demanda do Outro social – “Goze!”
Imerso no mundo da linguagem, o sujeito se depara com a falta, a todo instante, até
mesmo sob a forma de uma “depressão”, que diz tudo sem nada dizer.
Se a medicina tende a oferecer respostas quase automáticas, na forma de tentar
medicar o mal-estar que deve ser eliminado a qualquer custo – como se isso fosse
possível –, a psicanálise convida o sujeito a falar, fazendo vigorar a falta. É interessante
observarmos que, apesar do avanço da terapêutica antidepressiva, o sujeito continua
buscando um acolhimento diverso da medicalização, que a psicanálise pode oferecer.
Acreditamos que a psicanálise ocupa, na atualidade, um lugar ímpar: acena com o
caminho do desejo como o melhor remédio para tratar da angústia que é inerente ao ser
210
ALBERTI, S & ELIA, L. (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise, p.46.
157
humano. Pois, como já nos dizia Lacan (1962-63), “o melhor remédio para a angústia é
o desejo”211.
Encerramos nosso trabalho, considerando que a depressão é o oposto do desejo.
Enquanto o sujeito deprimido cede de seu desejo, a psicanálise começa por ajudá-lo a
sair desse estado de ‘letargia’, efeito de evitar a falta. Certamente, não há como falar em
desejo sem considerar a falta, a angústia, enfim, o mal-estar, sempre presente para o ser
falante, que, ao falar, reencontra continuamente a falta.
A articulação entre depressão e desejo, que buscamos trabalhar na presente
dissertação, é uma questão que exige a atenção do psicanalista, seja pela atualidade do
tema, seja pela discussão sobre o que esta pode revelar acerca do lugar do analista em
sua função de instigar o desejo, função esta que consideramos não apenas fundamental,
mas única na nossa cultura.
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