Cristiano Paixão
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
Procurador Regional do Trabalho em Brasília-DF
Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
Uma parte expressiva dos estudos sobre a história dos direitos sociais no Brasil
concentra-se, como não poderia deixar de ser, no período compreendido entre 1930 e
1946. Naquele intervalo de tempo, acelerou-se o tempo da transformação: fim de um
modelo agrário-exportador, necessidade de modernização, centralização política, início
da construção de uma estrutura de proteção social, normas regulamentando a relação
entre trabalhador e empregador e, por fim, a institucionalização da Justiça do Trabalho e
sua constitucionalização em 1946. É compreensível que a história do direito do trabalho
tenha esse período como eixo de gravidade, considerando que a Consolidação das Leis
do Trabalho, editada em 1943, vigora até os dias de hoje e subsistiu a três constituições
distintas.
Campinas, 1917
1
Não há maiores dúvidas sobre a centralidade do ano de 1917 na organização e
realização de atos visando à melhoria de condições de trabalho no Brasil. Muitas greves
foram desencadeadas em várias cidades do País, e com elas foi construído um forte
aparato repressivo pelo governo federal e pelas administrações estaduais, em forte
associação com os grupos empresariais afetados pelos movimentos. Uma importante
questão, que já permeava os movimentos sindicais desde o início do século, assumiu um
papel vital nos enfrentamentos que se seguiram: o problema dos trabalhadores
estrangeiros. Muitos dos líderes de grupos anarquistas tinham nacionalidade espanhola
ou italiana, e isso desencadeou uma série de ações governamentais voltadas à expulsão
desses trabalhadores. Não era uma questão simples, considerando que a Constituição de
1891, então em vigor, era relativamente liberal em relação às condições para obtenção
da nacionalidade brasileira por estrangeiros, e tentativas posteriores de estabelecer
parâmetros mais rígidos que facilitassem a expulsão – como, por exemplo, na Lei
Adolpho Gordo, de 1907 – desencadeavam, inevitavelmente, uma discussão jurídica
sobre a constitucionalidade dessas iniciativas. E, ao contrário do que possa parecer à
primeira vista, houve de fato vários processos em que essa questão foi colocada,
inclusive em habeas corpus impetrados perante o Supremo Tribunal Federal. Uma
original e articulada pesquisa feita sobre essas discussões revela que o uso das normas
constitucionais era feito de forma plural pelos grupos envolvidos (associações e
sindicatos, por um lado, e órgãos de repressão do Estado, por outro), sendo
acompanhado também pela mídia impressa1.
Segundo noticia a cobertura atenta feita pelo jornal “O Estado de São Paulo”,
um incidente que se iniciou com uma greve na Companhia Mogiana, em Campinas,
rapidamente fugiu ao controle das autoridades e transformou-se numa tragédia. E é
1
Cf. a dissertação de mestrado de Maria Pia Guerra (2011).
2
As principais fontes para este tópico do texto são notícias dos jornais “O Estado de São Paulo”, “Correio
da Manhã”, “Gazeta de Notícias” e “O Paiz” no período compreendido entre 17 e 21 de julho de 1917. O
autor registra, ainda, seus agradecimentos a Gilberto Gatti, economista e jornalista, exímio conhecedor da
história dos movimentos sociais na Primeira República, especialmente na cidade de Campinas, pelas
informações prestadas e documentos fornecidos.
2
interessante situar a origem do conflito, que envolve um trabalhador imigrante. Foi
determinada, em julho de 1917, a prisão de Angelo Soave, italiano residente em
Campinas e liderança entre os trabalhadores da cidade. Os órgãos policiais decidiram
pela transferência de Soave para a cidade de São Paulo. No dia 16 de julho, quando
Soave embarcou num trem para a capital, alguns trabalhadores decidiram bloquear a via
férrea, para impedir a partida da composição. Naquele mesmo momento, chegavam da
capital, também por via ferroviária, tropas da polícia para reforçar a repressão à greve
em Campinas. Numa localidade intitulada “Porteira da Capivara”, essas mesmas forças
tentaram desobstruir a ferrovia e três trabalhadores desarmados foram mortos na ação.
Dois deles eram empregados da Companhia Mac-Hardy – Antonio Rodrigues Magotto e
Tito Ferreira de Carvalho, que tinham respectivamente, 23 e 32 anos de idade. O outro
trabalhador vitimado, Pedro Alves, tinha 18 anos e era empregado da Companhia
Mogiana de Estrada de Ferro. O episódio ficou conhecido como o “massacre da Porteira
da Capivara”.
Por outro lado, há uma evidente mudança de ênfase nos textos na medida em que
os fatos ocorrem. A matéria publicada no dia imediatamente subsequente à ação da
polícia transmite uma clara proximidade com a situação vivida. O texto é rápido, as
frases são curtas e a tensão fica evidente na maneira pela qual o autor comunica o
desenlace (trágico) da ação. Nos dias seguintes, há uma sensível modificação no tom
dos textos, que passam a adotar um estilo impessoal, informativo e objetivo. Não há
indicação de autoria em nenhuma das matérias, mas é razoável supor que a mudança no
enfoque da cobertura do jornal tenha relação com o impacto do episódio. O que antes
era um conflito trabalhista de cunho localizado se transforma em notícia de interesse
3
nacional, considerando as três mortes. Não é absurdo supor que essa ampliação da
repercussão tenha atraído um maior controle do texto pelos editores da sede do jornal.
O evento teve repercussão nacional e foi noticiado por vários jornais, inclusive
do Rio de Janeiro. Houve um acirrado debate na Câmara dos Deputados, que colocou,
de um lado, o deputado Maurício Lacerda, denunciando os excessos da ação policial e,
de outro, o deputado Álvaro de Carvalho, que defendeu a atuação das forças policiais.
3
A principal fonte utilizada para a discussão dos eventos de São Luís é a dissertação de mestrado de
Wagner Cabral da Costa (2001). Revelou-se útil, igualmente, a consulta aos jornais “O Imparcial” e
“Jornal Pequeno” ao longo do ano de 1951.
4
Em ambos os períodos de conflito, as forças estaduais de segurança não
lograram pacificar minimamente a cidade. Foi necessário convocar o Exército. Tropas
federais assumiram a segurança pública, porém tiveram postura ambivalente: ao mesmo
tempo em que concordaram com a convocação feita pelo Governador, evitaram reprimir
diretamente os movimentos rebeldes. Na verdade, essa postura envolvia, antes de tudo,
um cálculo político: Vargas aguardava uma resolução política do conflito. E isso acabou
ocorrendo. Numa manobra de cooptação de vários setores pelas forças políticas no
poder, houve um gradativo esvaziamento da revolta, com o retorno à normalidade em
outubro de 1951.
5
Confrontos com a polícia foram comuns naquele período. Como registrado em
diário pelo general Edgardino Pinta – responsável pelas forças do Exército –, estavam
no hospital, recuperando-se de ferimentos causados pela repressão da polícia, nada
menos do que 39 pessoas.
4
A principal fonte de informações para este ponto do artigo é o texto de Cristiano Paixão e Ricardo
Lourenço Filho (2014). Foram utilizadas, ainda, as obras de Edilson Graciolli (1997) e Wilma
Mangabeira (1993).
6
posse por meio de uma ordem exarada pelo juiz da 3ª Vara Cível de Volta Redonda para
desocupação da usina. Mas, segundo informado pelo Jornal do Brasil no dia 10 de
novembro de 1988, a decisão de invadir a aciaria e retomar o controle da usina foi
tomada numa reunião realizada entre o Presidente da República, José Sarney e os
generais Rubem Denys (ministro-chefe do Gabinete Militar), Ivan Mendes (ministro-
chefe do SNI) e Leônidas Pires Gonçalves (ministro do Exército).
E essa não foi a única atuação das tropas. Consoante noticiado, com grande
destaque, pelos jornais da época, a cidade de Volta Redonda foi igualmente vitimada
pela repressão. Naquele mesmo dia 9 de novembro, um batalhão do Exército uniu-se a
soldados da Polícia Militar e então foi desencadeada uma ação repressiva contra a
população que estava no centro da cidade, mobilizada em apoio ao movimento grevista.
A imprensa da época registrou várias agressões à população civil, assim como a
depredação, pelas forças repressivas, de agências bancárias e estabelecimentos
comerciais.
7
concretizou-se por solicitação do Poder Judiciário da comarca de Volta Redonda,
dentro da nova ordem constitucional vigente5.
Possibilidades de leitura
1.
Num estudo tão clássico como desafiador, Walter Benjamin propõe uma crítica
da violência que articula, num texto denso, a gênese do direito, a prevalência do uso da
ação racional com relação a meios e fins, as manifestações da violência na história e as
possibilidades de transformação social e política. Concebido no momento de crise da
República de Weimar, ainda sob os efeitos (distintos) das revoluções proletárias na
5
Cf. Paixão e Lourenço Filho (2014, p. 339).
6
Informações obtidas em: http://www.stm.jus.br/o-stm-stm/memoria/ministros-aposentados/texto-
integral-7344 (acesso em 20.04.2015)
8
Rússia e na Alemanha, o ensaio de Benjamin continua a colocar perguntas aos leitores
contemporâneos. E é interessante que o autor dedique uma parte significativa do artigo à
discussão sobre o direito de greve. Ao diferenciar as formas de greve, destacando a
“greve geral revolucionária”, Benjamin, sob a influência de pensadores como Georges
Sorel e Erich Unger, suscita a possibilidade de a ação coletiva significar uma ruptura
com a violência fundadora do direito. Com isso, a greve geral revolucionária poderia ser
qualificada como uma espécie de abertura para a rediscussão das relações éticas numa
dada sociedade, por meio de uma violência “pura” que desafiaria a racionalidade com
relação a meios e fins7.
2.
Qual a relação que pode ser estabelecida entre a observação da greve como
prática social e a história constitucional?
7
Cf. Benjamin (2004), Honneth (2009) e Seligmann-Silva (2007).
9
caso de uma restauração, o mesmo fenômeno se seguia: para afastar os resultados de
uma revolução pretérita – ou, ao menos, combiná-los com elementos do regime anterior
ao movimento revolucionário – era igualmente necessário traduzir juridicamente a
atitude restauradora. Para tanto, uma nova constituição deveria ser produzida.
Não foi difícil, então, estabelecer uma relação estreita entre a transformação
política e o ato constituinte. Seria igualmente válido imaginar que, após todo o
processo, houvesse uma estabilização recíproca e simétrica. O novo sistema político
tenderia à estabilidade, assim como o novo sistema jurídico – ambos os sistemas
instituídos pela nova constituição.
10
também gerou replicações dessas comunicações. Sem a necessidade de basear sua
legitimidade – sua fundação – num acordo político ou num valor estipulado de modo
externo, o direito pode gerar sentido a partir de seus próprios elementos.8 E criar tempo.
Cada processo judicial possui sua temporalidade própria. A prática de atos, recursos,
pedidos e demandas em geral é ordenada no tempo. A princípio, poderíamos interpretar
essa observância aos rituais como uma forma de autolimitação do sistema, já que os
ritos e prazos processuais precisam ser previstos em lei. Mas isso não significa muito,
pois o tempo do direito não é apenas o tempo de cada processo. É também o tempo
produzido pela memória do direito.9
Como visto pela extensão temporal dos casos aqui tratados, a greve, no contexto
do direito brasileiro, foi durante muito tempo, desde a primeira República, vista como
uma transgressão. Em momentos de tensão e crise, verificamos a presença da
mobilização de trabalhadores por meio da paralisação: seja nas indústrias em 1917 ou
nas campanhas salariais e políticas do início da década de 1960, a greve persistia a
desafiar os órgãos de repressão. Não à toa, um dos primeiros atos legislativos
produzidos pelo regime militar foi um rígido decreto-lei que recebeu a apropriada
alcunha de “Lei Antigreve”10. Isso não impediu o protagonismo político de
trabalhadores e sindicatos na segunda metade da década de 1970, por meio de greves
bem articuladas. Mas, para o sistema do direito, o elemento político deveria ser isolado.
Interessava o elemento da conduta jurídica – portanto, foi construída uma jurisprudência
marcada pela expressiva declaração de ilegalidade das greves desencadeadas a partir de
1964.
8
Cf. Niklas Luhmann (2008, 1996) e Cristiano Paixão e Renato Bigliazzi (2011).
9
Ver, a respeito, Raffaele De Giorgi (2006).
10
Lei nº 4.330, de 1º de junho de 1964.
11
quebra de hierarquia e trazia em sua ativação um perigo à sociedade. Nos documentos
militares que precedem a deflagração do golpe de 1964, fica clara a condenação de seus
líderes em relação ao excesso de greves. Um dos setores mais perseguidos nos
primeiros dias do golpe militar foi o movimento sindical.
3.
11
Cf. Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho (2009, 2010).
12
O que é interessante, sob a perspectiva da história constitucional contemporânea,
é a transformação no sentido do conceito de greve a partir da promulgação e vigência da
Constituição da República de 1988. É inegável o aspecto prospectivo e procedimental
do direito de greve estabelecido na Constituição. Numa redação concisa e econômica, o
art. 9º do texto constitucional limita-se a afirmar que “É assegurado o direito de greve,
competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os
interesses que devem por meio dele defender”.
12
Cf. José Geraldo de Sousa Junior (2002, 2005).
13
A escolha dos casos aqui abordados sugere a existência de uma premissa:
existe, na prática das forças militares e policiais, uma forte construção de sentido que
indica a greve como um comportamento a ser reprimido. Esse construto pode ser
ativado em diferentes circunstâncias, e pode inclusive ser negado e ultrapassado (como
já ocorreu em outros casos).
Mas ele continua a ser dotado de enorme fôlego e sua presença continua a se
fazer sentir. Nos fragmentos de fundamentação aqui recuperados, pode-se sentir a
presença de um corpo argumentativo sólido e coerente. Em síntese: vislumbra-se uma
dada mentalidade em relação à greve – os conflitos aqui analisados revelam importantes
manifestações dessa mentalidade.
Conclusões parciais
14
existência de uma relação entre a história constitucional brasileira e o uso da greve
como meio de reivindicação.
Nos eventos vividos na São Luís de 1951, dois pontos chamam a atenção. O
primeiro deles é a questão federativa: entre autodeterminação do ente federativo – com
seu aparato administrativo, sua Justiça Eleitoral, suas lideranças políticas – e
intervenção da União (seja por meio de tropas federais, seja sob a perspectiva de
decretação de uma intervenção direta), percebe-se uma frágil tensão entre os planos
local e federal. Além disso, a centralidade adquirida pela situação da Justiça Eleitoral é
bastante reveladora de certa atitude em relação ao passado (da primeira República) com
suas práticas permeáveis à fraude e à subversão do respeito ao critério do sufrágio
universal.
Por fim, quando se fala na greve da CSN em 1988, fica ainda mais evidenciada a
dissonância entre um “tempo curto” da Constituição, como ordem normativa que estava
em curso (sem regulamentação legislativa do direito de greve) e um arcabouço de
práticas repressivas pelo Poder Público que antecedia, em muito, a promulgação e
vigência da Constituição de 5 de outubro de 1988. Mas isso não é tudo. A observação
das fontes denota a dificuldade de enfrentamento da delicada relação entre a democracia
em construção à época e o passado autoritário. A mobilização de forças militares, a
presença de vários generais na cadeia de comando que deliberou pela intervenção na
15
usina, o discurso de manutenção de ordem e a completa ausência de punição e/ou
responsabilização daqueles que executaram, com evidente excesso e desproporção, a
decisão de retomar o controle da fábrica são fatores indicativos da fragilidade e do
caráter autoritário da transição política brasileira.
Referências bibliográficas
COSTA, Wagner Cabral da. Sob o signo da morte: decadência, violência e tradição em
terras do Maranhão. Dissertação (Mestrado) – Departamento de História, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.
LE GOFF, Jacques. “As mentalidades: uma história ambígua”. In: Jacques Le Goff;
Pierre Nora (org.). História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1995, p. 68-83.
16
LUHMANN, Niklas. “A Constituição como aquisição evolutiva”. Trad. de Menelick de
Carvalho Netto (para fins acadêmicos). In Gustavo Zagrebelsky; Pier Paolo Portinaro;
Jörg Lüther (Orgs.). Il Futuro della Constituzione. Torino: Einaudi, 1996.
________. Law as a Social System. Trad. Klaus A. Ziegert. Oxford: Oxford University
Press, 2008.
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