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A Escola Histórica
Graças ao emprego correto de instrumentos específicos de trabalho, o
praticante da nova ciência pensava se afastar de incômodas interferências:
primeiro, do diletante, que confundia história e ficção, nela introdt1zindo a
fantasia sobre o longínquo no tempo e no espaço; segundo, do filósofo, cuíos
pressupostos metafísicos sobre o destino da humanidade passavam por cima
do individual, tema por excelência da História; e, finalmente, do teórico de
outras ciências humanas, para quem esse elemento individual seria apenas
Fonte, ~i,êóricas
exemplo de leis sociais, seu verdadeiro objeto. Contrariando esses três tipos
de intronússão, o historiador deveria partir de documentos autênticos da
época estudada, de cuja análise rigorosa obteria informações verdadeiras sobre
o acontecido, considerado na sua singularidade absoluta. Era a culminação,
na Escola Histórica alemã, que surgia com Savigny, Niebuhr e Ranke, de um
longo processo de desenvolvimento dos procedimentos para o estudo dos
vestígios de épocas antigas, processo iniciado, na verdade, na Renascença,
mas que avançou depois, sob o impacto do sucesso alcançado pelas ciências
naturais, com a aplicação do chamado método experimental.
Ora, os criteriosos procedimentos elaborados e defendidos por esses
historiadores eram concebidos justamente como o correlato do método
experimental invejado aos cientistas da natureza. Assim como estes possuíam
um guia prático para orientar-se em meio à confusão dos dados empíricos
variados, organizando-os em regularidades elevadas em seguida à condição
de leis, o historiador tinha meios para ordenar seu disperso material, datando-
º e periodizando-o. Apesar de lidar com o individual, irredutível a leis gerai~,
ele também poderia afirmar a verdade em seu campo de estudo e atingi-la
com um grau de certeza razoável.
Toda a confiança nas potencialidades do método repousava, então, no
fundo, na idéia da verdade como propósito a distinguir a História, em primeiro
lugar, da ficção, do romance histórico, que não pretenderia o relato de fatos
verdadeiramente ocorridos. Nesse gênero literário, o passado é mero contexto
de wna ação imaginada de personagens imaginados, sem a necessidade de o
argumento corresponder a nada de real. Na História, ao contrário, seria
imprescindível tal correspondência. De modo que a correspondência constitua
o elemento-chave na definição de semelhante conceito de verdade, mais uma
vez emprestado das ciências naturais: verdade seria a correspondência, a
adequação entre as proposições cientificamente formuladas e apresentadas
pelo sujeito do conhecimento e o objeto real descoberto pela pesquisa empírica.
Nenhuma hipótese explicativa ou descritiva poderia se furtar ao confronto
com os fatos, instância decisiva dos valores de verdade.
Tal definiçãodeverdade-adequação de enunciados subjetivos a objetos
reais - pressupõe, contudo, a diferença fundamental entre sujeito e objeto,
pois o acordo deles só ocorreria numa correspondência proporcionada em
certos casos e justamente pelo método. A auf:enticídade das fontes, a sua análise
correta, a seleção dos fatos individuais relevantes, em todas essas tarefas do
método revela-se uma idéia de verdade que não está garantida de antemão,
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Considerações ,obre o m~todo
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Fo1>fes l,;stó,icas
As críticas do século xx
Todas essas formulações metodológicas desenvolveram-se até mais ou
menos o começo do século xx. Depois dos exageros a que chegou, na pretensão
d e objetividade típica de uma época otimista em relação ao progresso humano
p ela ciência, a História foi se desvencilhando de suas convicções cientificistas,
de um modo bem conhecido por qualquer historiador atual.
Em primeiro lugar, os historiadores passaram a reconhecer ser
impossível aquela atitude de neutralidade d iante do objeto, o abandono antes
recomendado de teorias prévias à pesquisa empírica. Formar expectativas
em relação ao que será encontrado nos documentos não só é inevitável como
desejável, pois são as conjecturas que orientam a própria pesquisa,
permitindo a seleção do acervo onde buscar as informações necessárias, e
constituindo os critérios da coleta, reunião e análise do material. Toda a
experiência é construída pela atividade do sujeito que a realiza, sabemos
d esde que se "voltou a Kant".~
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' Histórica? Afinal, são conceitos vindos de fora da disciplina, de que ela se
apropria, mas não produz nem aperfeiçoa. E se não são apenas externos,
meios de trabalho, mas desenvolvidos também pela História com as
disciplinas afins, então onde começa a tarefa de uma e acaba a de outia?
Em outras palavras, a combinação das diversas perspectivas na inter-
disciplinaridade criou um novo e grave problema: como delimitar e
diferenciar agora os "territórios" de historiadores e cientistas sociais?
Mas é fundamental reconhecer onde está a verdadeira questão em meio a
todas essas interrogações. Não é que um pesquisador deva cruzar fronteiras
epistemológicas na busca pelo seu objeto,mantendo-se incólume como sujeito do
conhecimento - historiador ou antropólogo -e mantendo também incólumes as
fronteiras entre as disciplinas percorridas; posto nesses termos, o problema é
praticamente insolúvel. O decisivo, porém, é questionar a integridade do sujeito
edoobjeto: o que a interdisciplinaridadeimpõe, mas que transcende a perspectiva
que a criou, é a redefinição completa e profunda dos campos de saber delimitados
ainda no século XIX, é a redistribuição do trabalho intelectual. Sintoma dessa nova
divisão, que já vem ocorrendo há algum tempo, é a contínua multiplicação dos
objetos históricos e, conseqüentemente, das formas de estudá-los. Falta ainda
wna reflexão abrangente sobre todo esse processo, do qual percebemos apenas
os indícios, mas já se pode prever que a transformação nos conteúdos e formas de
estudo implica redefinir também a relação entre teoria e método.
Assim como cria um problema insolúvel se posto nos termos da integridade
dos atuais sujeitos e campos do saber, a interdisciplinaridade também produz
uma dificuldade intransponível se mantida a concepção presente do método.
Esta repudiou, como vimos, a pretendida neutralidade metodológica pregada
no século XIX, afirmando que, ao contrário, a forma de pesquisa deveria ser
adequada a seu objeto e, portanto, elaborada ao mesmo tempo em que se
formulam as questões e selecionam as fontes. Contudo, levar tal concepção às
suas últimas conseqüências, como fizeram alguns críticos, implica inscrever o
método de tal maneira no bojo da teoria que os objetos descobertos por ele não
poderiam se afastar daquilo que era teoricamente previsto. Em outras palavras,
não seria possível descobrir nada realmente de novo, de surpreendente, nada que
contrariasse a teoria, tendo esta já predeterminado a forma da pesquisa. E, com
isso, cada teoria seria sempre verdadeira para si mesma, impossível de ser
refutada com os únicos meios que ela aceita como válidos para o teste empírico;
outras teorias, que definiriam métodos diferentes e inaceitáveis para ela,
chegariam com eles a resultados igualmente inaceitáveis, sendo assim incapazes
de contestá-la. Nos termos da total introjeção do método na teoria, deve-se
concluir pela chamada incomensurabilidade das teorias6 • É o extremo oposto ao
da concepção tradicional, mas configura um problema igualmente insolúvel,
agora nos termos da crítica atual.
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Considerafõ~s sobre o método
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font~ hi~tóric~s
O lugar do método
Para além de qualquer discussão adicional, interessa-nos aqui ressaltar
que a dificuldade presente nessa formulação ainda é igual a da
incomensurabilidade das teorias, assinalada acima: se o defeito do conceito
de verdade na base da concepção tradicional do método era supor uma
diferença abismal entre o sujeito e o objeto, todo o nó estaria desatado se essa dife-
rença fosse eliminada. A Escola Histórica também procurava urna ponte sobre o
abismo, que seria justamente o método de neutralização do sujeito e afirmação
do objeto. Os seus críticos do século xx apenas invertem a polaridade, ao recusar
a objetividade do conhecimento e afirmar radicalmente a sua subjetividade.
É o caso da primeira posição examinada, quando concebe o método
totalmente determinado por uma matriz teórica que prefiguraria a pesquisa
empírica e seus achados;nãohaveria adequação do sujeito ao objeto, pois a ciência
inteira estaria contida no primeiro. Também é o caso da segunda posição, que se
distancia da própria ciência e do seu ideal de objetividade do saber. O problema
para ela não é nem tanto o método, mas o conceito mesmo de verdade, do qual
suspeita na medida em que ele se funda na possibilidadedeconhecimentoobjetivo,
da realidade em si. Não há mais nitidez daí sobre a diferença entre o que é ou foi
verdadeiro e o que somente se imaginou como tal, i11terpretou-se subjetivamente
como tal. Como agora também levam em conta até mesmo a intuição e a fantasia,
as teorias históricas - ou melhor, os estilos de escrever a história - são mais do que
antes imunes aos testes da verificação ou falsificação empúica, a qualquer critério
de objetividade de suas proposições. Não há mais verdade fora do circuito fechado
do discurso histórico-literário; em cada teoria ou visão lústórica é que seencontram
as nonnas que atribuem sentido a suas proposições.
Embora sucinta, essa análise da sua articulação lógica já permite
visualizar acertos e exageros nessa perspectiva subjetivante.
Depüis de décadas de crítica, sabemos hoje que não há verdades absolutas
e afirmamos apenas as relativas. Mas a questão precisamente é: "relativas" a
quem ou a quê? Se forem às distintas visões de mundo, que devem ser
respeitadas em sua diferença por se organizarem em códigos mutuamente
incompreensíveis, então temos aí configurado de maneira exemplar o
problema da incomparabilidade das teorias, que vimos levar aos impasses
do relativismo. Sem ser absol1.tta, a verdade não pode simplesmente ser
relativa. Ocone1 porém, que tanto na forma absoluta como na relativa a
verdade está definida nos termos da polaridade sujeito-objeto, que é preciso
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Con~iderdÇ~$ sobe o mêlodo
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Fonte. histórias
1 N a feliz e sintomática expres..<liio de l.aduríe, título de um de seus mais conhecidos livros: Emmanud
Le Roy Lad urie, Le tenitoire de l'hísto rien, Pad s, Gallima rd, 1973.
2 A frase famosa aparece já em 182•1 n~ Introdução de ~u estudo sobre 0$ povos latinos e gen:nânicos.
Cf. Leípold Ranke (org.), Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, Ática, 1979, col. Grandes
Cientistas Sociais, v. 8.
~ Cf. Heinrich Rickert, Ciencia cultural y cie11da natural, 2. ed., Buenos Aires,
Espasa-Calpe, 1945.
4 Num movimento filosófico importante de reação ao positivismo que entrava na Alemanha pela
França de Comte e prinápalmente pela !J1glaterra de Stuart Mill, houve, no fim do século XIX,
uma redescoberta da crítica kantiana .i. ciência que tinha por lema a "volta a Kant" ("zurü<:k zu
Kant"). Os autore~ imp o r tantes ainda d o século x1x foram Windelband, Natorp e Cohen, lá' no
século xx, Rickert e Cassiier. Esse movimento, contudo, exerceu ínfluênàa tardia e indireta sobre
os historiadores, que continuaram seguindo os cânones da Escola Histórica até o começo do século
xx e receberam seu impacto por meio, principalmente, da Sociologia.
5 Cf. Fernand Braudel, La Mediterranee et le monde mediterrenéen a l'époque de Philippe 11,
2. ed., Paris, Armand Colin, 1966. Pal'ticulam,ente, o conceito de ''longa duração", ruja articulaçâ!)
com a ''curta" e a "média" dinação representou grande sofisticação na ídéia de temporalidade e
de historictdacte, superando a idéia de tempo linear, configurou-se pela incorporação de conceitos
da Geografia e da Sociologia e respondeu a invasões do domínio d.o histórico pela "estrutura'' .
Sobre isso, cf. Fra nçois Desse, A história à prova do temp o, São Paulo, Edunesp, 1999.
~ O problema, já apontado por Thomas Kuhn no sei, clássico Estn.th.1ra das revoluções científicas,
aparece como conseqüência indesejável em várias formulações criticas da tradição, como no
também clássico de Fo1.1cault: As palavras e as coisas.
1 Hayden White, Meta-história: a imaginação histó rica no século XIX, São Paulo, Edusp, 1995;
o original americano data de 1973.
Bibliografia
B R AUDEL, Fem and. La M edilerrnnee e.t le monde mediterreneéri a l'epoque de Philippe 11. 2. ed .
Paris: Armand Colin, 1966.
DossE, François. A história à prom do tempo. São Pa ulo: Edunesp, 1999.
HoLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). Leopold von Ranke. Sâo Paulo: Átíca, 1979. (Coleção
Grandes Cientistas Sociais).
LADURJE, Emmanuel Le Roy. Le ten-ítoire de l'historien. Paris: Gallimard, 1973.
lliCKl!RT, Heinrich. Ciencía c11/t1tral y cíencia natural. 2. ed. Buenos Aires: Espasa-C alpe, 1945.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século x1x. São Paulo: Edusp,
1995 [1973}.
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