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FILOSOFIA ÁRABE ... ... ... ...

Caracteres do misticismo medieval ... ... ... ... ... ...

Caracíceristicas e origens ... ... Al-Kindi ... ... ... ... ... ...

Bernardo de CJáraval ... ... ...

284

285

§234. AI Farabi ... ... ... ... ... 188 §235. Avicena: a
Metafisica ... ... 191 §236. Avicena: a Antropologia
... ... 198 §237. AI Gazali. ... ... ... ... ... 201 §238.
Ibn-Badja ... ... ... ... ... 204 §239. Ibn-Tofail ...
... ... ... ... 205 §240. Averróis: Vida e Obra ... ...
207 §241. Averróis: FiIosofia e Religião ... 209 §242. Averróis:
a Doutrina do Intelecto 211 §243. Averróis: a Eternidade do
Mundo 215

Nota bibliográfica ... ... ... ... 219

XI -A FILOSOFIA JUDAICA ... ... ... 223

§244. A cabala ... ... ... ... ... ... 223 §24,5. Isaque Israeli
... ... ... ... 225 §246. Saadja ... ... ... ... ...
... 226 §247. Ibn-Gebiroil: Matéria e Forma ... 227 §248. Ibn-
Gebirol: a Vontade ... ... 228 §249. Reacção contra a Filosofia
... 230 §250. Maimónidas: a Teologia ... ... 231
§251. Maimõnidas: a Antropologia ... 235

Nota bibliográfica ... ... ... ... 238

A FILOSOFIA ÁRABE

§ 232. FILOSOFIA áRABE: CARACTERíSTICAS E ORIGENS

Entre as causas que mais eficazmente estimularam a actividade cultural do


Ocidente no século XII, estão as relações com o mundo oriental sobretudo com
os Árabes. Com efeito, o mundo árabe tinha já assimilado, nos séculos
precedentes, a herança da filosofia e da ciência gregas, que ainda
permaneciam em grande parte, ignoradas pela cultura ocidental: esta conhecia
delas apenas o que tinha conseguido filtrar-se através da obra dos autores
latinos e dos Padres da Igreja. Por outro lado, e sobretudo por isso, a
filosofia árabe surgia aos olhos dos pensadores ocidentais como a própria
manifestação da razão e, por isso, como uma força de libertação dos entraves
postos pela tradição. Adelardo de Bath não hesitava em contrapor o que tinha
aprendido " com os mestres árabes, orientado pela razão", ao "cabresto da
autoridade" a que estavam submetidos os que seguiam a tradição (Quaest. nat.,
6). Em terceiro lugar, a filosofia oci-

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dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seus
problemas. Também a

filosofia árabe é uma escolástica, isto é, uma ten-


tativa para encontrar uma via de acesso racional à verdade revelada; e a
verdade que se pretende alcançar, a que está contida no Corão, tem muitas
características semelhantes à verdade cristã. Em suma, tal como a filosofia
cristã, a escolástica árabe vive à custa da filosofia grega, especialmente do
neoplatonismo e do aristotelismo.

Tudo isto explica a influência e a profunda penetração que o pensamento árabe


exerceu na escolástica cristã no século XIII e XIV. Todavia, em certos
pontos, as duas escolásticas deviam revelar-se inconciliáveis. A síntese a
que chegaram os maiores representantes da escolástica árabe, Al Farabi,
Avicena e Averróis, surge-nos de acordo com o principio da necessidade. A
necessidade domina o mundo divino e humano; tal é a convicção dos grandes
filósofos árabes. E a isso não se furta o mundo das coisas finitas que é
necessário não por si, mas pela sua dependência de Deus: nem mesmo a vontade
humana, dominada por uma cadeia causal que, através dos acontecimentos do
mundo sublu. nar e dos movimentos da esfera terrestre, tem como motor o Ser
necessário. A escolástica latina, ainda que tenha recebido o aristotelismo
através dos árabes, deverá no entanto tentar subtrai-lo ao princípio da
necessidade e introduzir nele um princípio de contingência quepermitisse
salvar, ao mesmo tempo, a liberdade criadora de Deus e o livre arbítrio do
homem.

A primeira actividade filosófica nasceu entre os Árabes da tentativa de


interpretar certas crenças fundamentais do Corão. Assim a seita dos
Quadáries, afirmava o livre arbítrio do homem perante a vontade divina,
enquanto que a dos Jabaries defendia o fatalismo absoluto. No século 11 da
FIégira

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(732-832),. expande-se a seita dos Motazeis ou dissidentes, que afirmavam


enèrgicamente os direitos da razão na interpretação da verdade xeligiosa.
Foram eles que divulgaram o Kalam. (ciência da palavra), ou seja, a teologia
racional. A partir do califado de Haroun al-Raschid (785-809), os árabes
começaram a familiarizar-se com a cultura grega. As traduções árabes das
obras de Aristóteles e dos outros autores gregos deveram-se, em geral, a
sábios cristãos sírios ou caldeus, que viviam, em grande número, como médicos
na corte dos Califas. As obras de Aristóteles foram traduzidas em grande
parte das traduções sírias que, desde a época do imperador Justiniano, tinham
começado a difundir no Oriente a cultura grega. Entre as obras que exerceram
mais profunda influência no pensamento árabe conta-se uma Teologia atribuída
a Aristóteles, que é formada por uma centena de passagens tiradas das Eneadis
de Plotino, e o Liber de causis, que é a tradução dos Elementos de teologia
de Próculo. Além destes textos e das obras de Aristóteles, contribuiram para
formar o pensamento árabe, os comentáfios de Alexandre de Afrodísia, os
diálogos de Platão, especialmente a República e o Timeu, e as obras
científicas de Euclides, Ptolomeu e Galeno.

Uma reacção da ortodoxia religiosa contra as novidades introduzidas pelos


filósofos foi desenvolvida pelos Mutakallimun (os que discutem). A afirmação
fundamental dos Mutakallimun é a novidade e discontinuidade do mundo, que
toma necessária a existência de um Deus criador. Adoptam a doutrina atómica
de Dernócrito, que provàvelmente conhecem através da exposição de
Aristóteles. Segundo eles, os átomos não têm nem quantidade nem extensão, e
são criados por Deus sempre que ele quer. As coisas resultam da agregação dos
átomos e as suas qualidades não poderão durar dois

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instantes, ou seja, dois átomos de tempo, se Deus não interviesse


continuamente na sua criação. Quando Deus deixa de criar, as coisas, as suas
qualidades e os próprios átomos, deixam de existir. A discontinuidade toma
necessária a acção incessante e criadora de Deus o garante a liberdade na
criação. A reforçar esta tese, os Mutakallium negavam a relação de
causalidade entre as coisas. As coisas criadas não têm, entre si, relações de
causa e efeito.
O fogo tende a afastar-se do centro da terra e a produzir calor; mas a razão
não se nega a admitir que o fogo poderá mover-se em direcção ao centro e a
produzir frio, ainda que permaneça fogo. Os nexos causais não têm qualquer
necessidade intxínseca; são estabelecidos únicamente por Deus. Mais que causa
primeira, Deus é causa agente e eficiente e produz directamente todos os
efeitos do mundo criado.

No princípio do século estas doutrinas dos Mutakallium foram retomadas por


uma outra seita, a dos Asharies, assim chamados devido a Abul-Hassan AI-
Ashari (873-935), de Bassora. Os asharies exageram ainda a doutrina da
criação directa por parte de Deus, afirmando que todas as qualidades
acidentais nascem e desaparecem únicamente por um acto de criação da vontade
divina. Assim, por exemplo, quando um homem escreve, Deus cria quatro
acidentes que não estão ligados entre si por nenhum nexo causal: a verdade de
mover a pena, a faculdade de a fazer mover, o movimento da mão, o movimento
da pena.

O movimento filosófico determinado pelas posições destas seitas vem a ser


substituído a seguir pela acção de verdadeiras e próprias personallidades
filosóficas que, em parte, utilizam e continuam as doutrinas das próprias
seitas, e em parte se opõem a elas na tentativa de se manterem ficis à
doutrina dos filósofos gregos e especialmente a Aristóteles.

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§ 233. AL.XINDI

A,I-,Kindi é o primeiro dos filósofos árabes que se relaciona explicitamente


com a tradição grega. Viveu em Bagdad, e devia ter falecido em 873. Escreveu
um grande número de obras de filosofia, matemática, astronomia, medicina,
política e música. Foi um dos autores que o califa AI-Mamún encarregou de
traduzir as obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos. Os Árabes
deram-lhe o título de Filósofo por execelência. Foi autor de numerosos
comentários aristotélicos.

Gerardo de Cremona traduz no século X11 um texto seu com o título Verbum
Jacob Al Kindi de intentione antiquorum in ratione. Um outro texto foi
traduzido com o título De intellectu. A parte do comentário aristotélico de
AI-Kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que diz
respeito à doutrina do intelecto. Al-Kindi teve a pretensão de expor as
opiniões de Platão e Aristóteles, mas, na verdade, segue de perto a
interpretação de Alexandre de Afrodísia (§ 111). Enumera quatro intelectos:
"0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potência
na alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; o
quarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, Aristóteles
assimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e em
comunicação com ela". Destes quatro intelectos os três primeiros correspondem
respectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós de
Alexandre; o quarto é a alma sensitiva. Em AI-Kindi surge pela primeira vez,
de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribui
directamente ao intelecto de Deus a iniciativa do processo de conhecer do
homem. "A alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a ser
inteligente de modo efec-

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fivo pela acção do Intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este.
Quando uma forma inteli-

1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser uma
só e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que à
conhecido. Mas o Intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para a
converter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não se
identifica com o que é conhecido. Em relação ao Intelecto primeiro, portanto,
o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; em
relação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são a
mesma coisa". Está implícita nesta doutrina de AI-Kindi a separação entre o
Intelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios do
homem.

§ 234. AL FARABI

AI Farabi, assim chamado por ser natural de Farab e que foi célebre entre os
muçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemático
o médico, continua a tradição enciclopédica de AI-Kindi. All Farabi ensinou
em Bagdad e morreu em Dezembro do ano de 950. Escreveu uma obra sobre as
ciências, De scientiis, um texto sobre o intelecto, De intelectu, e ainda
outras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamento
aristotélico.

Em AI Farabi, encontra-se pela primeira vez a distinção entre a essência e a


existência e que iria ter uma tão grande Importância na filosofia de S.
Tomás. Averróis faz Temontar esta distinção aos Mutakallimun, que teriam sido
os primeiros a distinguir o ser em possível e necessário e teriam afirmado
que para se pensar num ser possível há que pressupôr a existência de um
agente que o

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faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que o
agente do mundo seja um ser necessário (Destr. destruct. Algazelis, 1, 4, 5).
Na realidade, a primeira origem desta distinção está no Liber de causis que,
como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulação
árabe.
O Liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma,
ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro Ser pela via da
criação; a forma das Inteligências subordinadas pela via das impressões. Mas
no Liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, por
isso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamento
árabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada como
matéria ou possib',lidade e a existência como acto.

Segundo AI Farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. Ao afirmar-


se que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncia
nenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa de
uma causa. Uma coisa possível não pode passar ao número das coisas
necessárias, senão através da acção de um ser nocessário. Pelo contrário, se
afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda,
pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. O ser
necessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância:
escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma.
"É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeito
pensante. Nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente e
vivente. Tem actividade perfeita e perfeita vontade. Goza de uma imensa
felicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiro
amado". (Dieterici, Alfarabis philos. AbhandIungen, p. 93-96).

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A distinção entre o ser necessário e o ser possível será fundamental para


todo o pensamento árabe e também para a escolástica latina posterior. Do ser
necessário, e precisamente do acto com que o ser necessário se pensa a si
próprio (segundo o esquema de Plotino), nascem, afirma AI Farabi, os vários
intelectos, que se relacionam entre si como a matéria e a forma, a potência e
o acto. Do Ser necessário enquanto se conhece a si próprio, nasce o primeiro
Intelecto, que por sua vez conhece o Ser necessário e a si próprio. E na
medida em que conhece o Ser necessário, produz um segundo intelecto; no
entanto, enquanto se conhece a si próprio, produz o primeiro céu na sua
matéria e na sua forma, que é a alma. Do segundo intelecto dimana, do mesmo
modo, um outro intelecto e um outro céu que se situa abaixo do primeiro. E
assim, de cada intelecto nasce sempre um intelecto o um céu, até se chegar a
um intelecto privado de matéria e que por si não pode originar a formação de
uma nova esfera celeste. Este último intelecto é a causa da existência das
almas humanas e, em colaboração com as esferas celestes, é a causa dos quatro
elementos que compõem o mundo sublunar. Trata-se do intelecto agente, do qual
dependem os outros três intelectos (própriamente humanos): em potência, em
acto e adquirido, cuja distinção AI Farabi retoma de AI Kindi. O princípio
eficiente de todo o conhecimento humano é o Intelecto agente. À alma humana
pertence o intelecto em potência, que pela acção do intelecto activo, se
transforma em intelecto em acto e conhece as formas inteligíveis das coisas,
formas que se identificam com ele. A elaboração destas formas conceptuais,
dirigindo-se a noções mais gerais e mais elevadas é obra do intelecto
adquirido. Deste modo o intelecto adquirido é forma do intelecto em acto,
que, por sua vez, é forma do intelecto em potência (lb., p. 71-72). O total
meranismo do conhecimento vem assim a ser dependente

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da acção do Intelecto agente. A esta acção AI Farabi faz ligar também a


qualidade mais elevada que o homem pode alcançar, a sapiência e a profecia.
Com efeito, quando o Intelecto agente consegue transportar o intelecto
potencial de um homem ao seu grau mais alto, que é o intelecto adquirido,
então o homem torna-se num sábio-filósofo; mas quando o próprio Intelecto
agente actua, não sobre o Intelecto, mas sobre as faculdades representativas
de um homem, este homem pode transformar-se num profeta, num iluminado, num
vidente e esperar ser chefe na cidade ideal; porque nenhum está em posição de
o dirigir mas ele está em posição de dirigir todos (lb., p. 59). De tal modo
o Intelecto agente é considerado por AI Farabi que o considera um dom da
iluminação divina, fazendo do homem um profeta ou um chefe; e o mecanismo
atribuido ao intelecto é utilizado também para uma explicação racional da
revelação religiosa original.

Mas o Intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do Ser necessário: e
assim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. A
necessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que o
Ser necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própria
essência e não separa a necessidade (1b., p. 96). A necessidade reflecte-se
portanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surge
determinada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial a
causa absoluta. O Ser necessário.

§ 235. AVICENA: A METAFíSICA

Ibri-Sina, que os escolásticos latinos cognominaram de Avicena, era persa de


origem e nasceu em Afshana (perto de Bokara) em 980. Dotado de inteligência
precoce, aos 17 anos era já famoso como

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médico e teve a sorte de curar o príncipe de Bokara, que o colmou de favores


e pôs à sua disposição a imensa biblioteca do seu palácio. Mais tarde,
Avicena foi para Sorsan, onde abriu uma escola pública e deu início ao seu
célebre Cânone de medicina. Obrigado a abandonar a cidade em virtude das
desordens que surgiram, dirigiu-se para Hamadan, onde foi designado Visir do
príncipe dessa localidade. A sua actívidade como tal quase o levou à morte,
porque as tropas descontentes com
ele, haviam-no prendido e pedido a sua morte. No entanto, o príncipe salvou-
lhe a vida e manteve-o junto de si como médico. Avicena compõe então várias
partes da sua grande obra sobre A Cura (AI Scifà). Depois da morte do seu
protector, partiu para Ispahan, onde se torna secretário do príncipe, que
acompanhou frequentemente nas suas expedições. Estas viagens contribuiram
para perigar a sua saúde, já de si comprometida por uma vida agitada e
laboriosa: Avicena amava a vida, e dedicava-se de bom grado ao amor e à
bebida. Tendo acompanhado o seu príncipe numa expedição contra Hamadan, caiu
enfermo e morreu naquela cidade em 1307, com a idade de 57 anos. A Wa de
1bn-Sina, escrita pelo seu discípulo Sorsanus foi traduzida para o latim e
imprimida no início de diversas edições das suas obras.

A actividade de Avicena estende-se a todos os campos do saber. O seu Cânone


de medicina foi a obra clássica da medicina medieval. As obras que interessam
à filosofia são o Livro da Cura (AI Scífà) e o Livro da Libertação (AI-
Najah): o primeiro era uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas em
dezoito volumes; o segundo, dividido em três partes, era um resumo do
primeiro. As edições latinas das obras de Avicena são traduções de uma ou de
outra parte das suas obras principais. No fim do século XII Gerardo de
Cremona traduz o Cânone de medicina; Domingo Gundisalvo e o judeu Avendeath

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traduzem a Lógica, uma parte da Física, a Metafisica, o De caelo e muitos dos


escritos científicos. Rápidamente, entre o fim do século X11 o o princípio do
século XIII, o Ocidente cristão vem a conhecer, através destas traduções de
Avicena, quase toda a obra de Aristóteles, de que apenas conhecia a lógica.
Mas com tudo isto, o ocidente latino conhece bem pouco a obra de Avicena. Com
efeito, a sua obra é vastíssima (provàvelmente mais de 250 obras); e o
reconhecimento da sua importância, quer pela filosofia oriental, como pela
ocidental e ainda pela ciência (e especialmente pela biologia e medicina),
levaram os estudiosos modernos a publicar e a traduzir algumas partes
inéditas. Entre estas têm importância para a filosofia: Tratados místicos;
Epístola das definições, Livro de ciência; Livro das directivas e das notas;
Lógica oriental, que é parte de uma grande obra perdida, Juizo imparcial
entre os orientais e os ocidentais. O título desta última obra levou a pensar
num ramo teosófico ou místico da filosofia de Avicena em contraste com as
directrizes filosóficas e racionalistas das obras que conhecemos. Na
realidade não existe qualquer base para uma tal laipótese: que é desmentida,
não só pelos fragmentos das suas obras que temos sobre a lógica, como também
pelo conteúdo do Livro das directivas que pertence aos últimos anos de
Avicena e que não testemunha qualquer mudança sensível nas conclusões da sua
filosofia. As fontes desta filosofia são Aristóteles, Plotino (que Avicena,
contudo, não distingue do primeiro e a que atribui a Theologia, e uma centena
de passagens das Eneadis) e AI Farabi; mas é sobretudo dos Estoicos que se
aproxima o seu conceito do mundo como o domínio de uma força racional que o
orienta com infalível necessidade.

Avicena descreve em termos nitidamente escolásticos o objectivo da filosofia:


o de demonstrar e esclarecer racionalmente a verdade revelada. Os fun-

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dadores da fé ensinaram e transmitiram a sua doutrina por virtude da


inspiração divina. Os filósofos acrescentaram à doutrina transmitida o
discurso e as considerações demonstrativas. Os fundadores da fé não
distinguiram nem esclareceram o conteúdo das suas doutrinas, definiram apenas
os princípios e os fundamentos: cabe aos filósofos expôr e elucidar
claramente o que está obscuro e oculto (De defin. et quaest., fol. 138, p.
1). Mas se a filosofia vem acrescentar à tradição religiosa as
considerações demonstrativas, por outro lado a tradição religiosa,
representada pelos profetas, estende o domínio da verdade humana para lá
dos limites que a demonstração necessária pode alcançar. Com efeito, é ela
que permite afirmar com certeza a Tealídade das coisas que o intelecto não
pode demonstrar ou apenas pode reconhecer a possibilidade (De divis scient.,
fol. 144, p. 2).

O princípio da especulação de Avícena é, tal como o de AI Farabi, a


necessidade do ser. Todo o ser enquanto tal é necessário. "Se uma coisa não é
necessária em irelação a si própria, afirma Avicena, necessita que seja
possível em relação a si própria e necessária em relação a uma coisa
diferente (Met.,
11, 2, 3). A propriedade essencial do que é possível é precisamente esta: a
de exigir necessàriamente uma outra coisa que a faça existir em acto. O que é
possível perinanece sempre possível em relação a si próprio, mas pode
acontecer sê-lo de modo necessário em virtude de uma coisa diversa (1b., 11,
2, 3).

A existência em acto é portanto necessária.


O possível mantém-se como tal até ter existência em acto: quando recebe a
existência em acto, recebe ao mesmo tempo a necessidade. Isto implica, em
primeiro lugar, que todo o possível exige e ff-eclama o ser necessário como
causa da sua existência actual. E, em segundo lugar, implica que o ser
necessário exista por si, em virtude da sua própria essência;

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sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos,
sem deficiências e sem matéria. No Livro das directívas, Avicena insiste na
superioridade desta prova de Deus extraída da simples consideração do ser:
"Quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de si
enquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a ter
existência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., P. 371-372).

Se o ser necessário é absolutamente simples, o que é possível e existe apenas


em virtude do ser necessário já não é simples e implica em si dois elementos:
aquele pelo qual é possível em relação a si mesmo, e aquele pelo qual é
necessário em relação a outra coisa. A possibilidade e a necessidade
conjugam-se na formação da sua natureza respectivamente como a matéria e a
forma. Com efeito, Avicena interpreta a distinção aristotélica de matéria e
forma como distinção entre o possível e o necessário: a matéria é
possibilidade, a forma, como existência em acto, é necessidade. O que não é
necessário por si, ner-essáriamente é formado por matéria e por acto, por
isso não é simples. O ser que é necessário por si é, no entanto,
absolutamente simples, mesmo privado de possibilidade ou de matéria (Met.,
11, 1, 3).

Este conceito do ser necessário (necesse esse) é o ponto de referência de


toda a especulação de Avicena. Em primeiro lugar, ele é fundamento da
distinção real entre a essência e a existência que viria a tornair-se um dos
maiores temas especulativos da escolástica cristã no século XIII e
especialmente do tomismo. Com efeito, o ser necessário é o ser que existe por
essência ou cuja essência implica a existência; em consequência, o ser que
não existe em virtude da própria essência existe apenas como efeito do ser
necessário. Esta distinção será o fundamento do princípio da analogicidade do
ser, fundamental para o tomismo. Em segundo lugar, o ser

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necessário introduz em todos os ramos e formas da existência a sua própria


necessidade. Toda a contingência ou possibilidade real fica excluída uma vez
que o possível não pode passar ao ser sem ser através da acção do necessário;
mas com esta acção toma-se ele próprio necessário na sua existência (ainda
que o não seja na sua essência). Esta eliminação radical da contingência do
ser (implica, além do mais, a necessidade da própria criação divina) é o
ponto fundamental em que a doutrina de Avicena surgia contrastante das
exigências da escolástica cristã, interessada em manter a liberdade da
criação e na

criação. Convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todo
o possível da realidade, Avicenaexpõe um conceito do possível bastante mais
preciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por Aristóteles.
Avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. No primeiro sentido
possível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível é
impossível e portanto o próprio necessário é possível. No segundo sentido,
que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e,
do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem o
impossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (Livre des directives,
p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido o
possível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. de
Aristóteles (§ 85).

A absoluta simplicidade do ser necessário consente em Avicena que seja


entendido como absoluta unidade, e com maior razão com a própria Unidade no
sentido neo-platónico. Avicena, tal como acontecia já com AI Farabi, liga o
conceito platónico do uno ao conceito aristotélico do Acto puro; e ao mesmo
tempo identifica o Uno e o Intelecto, que os neo-platónicos distinguiam.
"Como princípio de toda a

existência, o Uno conhece por si as coisas de que é

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princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na sua
singularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas à
geração e à corrupção. Estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s das
suas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quando
conhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectiva
mutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê ncia
individual" (1b., VIII, 6).

A derivação de todos os seres do Ser necessário não é uma criação


intencional. Não subsiste uma intenção criadora na Causa primeira: esta
intenção implicaria uma multiplicidade de elementos na natureza do Uno, que
ao invés é siraplicíssimo. Seria necessário que a ciência e a bondade da
Causa primeira a coagissem a ter essa intenção ou que a mesma lhe fosse
sugerida pela consideração de uma utilidade ou de uma vantagem que lhe
poderia advir; e tudo isto é absurdo. Não existe em Deus nem desejo, nem
necessidade, nem intenção: Deus é causa em virtude da sua própria essência.,
e aquilo de que é causa, o mundo, procede necessàriamente da essência divina.
O mundo é assim tão eterno como Deus. A derivação do mundo provemente de Deus
verífica-se (como Ail Farabi havia dito, reproduzindo Plotino) através do
pensamento isto é, através da ciência que Deus tem de si, da auto-reflexão
divina. "A Causa primeira é uma inteligência única, que se conhece a si
própria: daí o conhecer necessáriamente tudo o que de si resulta; sabe que a
existência de todos os seres surge de si, que ela é principio e que não há
nada na sua essência que impeça às coisas de derivarem de si. A sua essência
sabe pois que a sua própria perfeição e a sua própria excelência consistem
nisto: que o bem deriva dela" (lb., IX, 4). Também a Providência, ou seja o
governo do mundo, se exercita do mesmo modo: Deus conhece a ordem,segundo a
qual o bem

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se distribui no mundo e por este simples conhecimento o próprio bem deriva


d'Ele de tal forma que d'Ele deriva a ordem mais perfeita possível (Ib., W,
6).

Avicena é verdadeiramente o filósofo da necessidade absoluta. Para ele, nada


escapa ao princípio de que todo o ser é necessário: nem mesmo a vontade
humana. As decisões da nossa vontade devem ter uma causa, como tudo o que
passa da simples possibilidade ao ser. Mas a série das causas que o produzem
remonta mais além da própria alma, remonta aos acontecimentos terrestres. Ora
os acon-

os celesLecimentos terrestres são determinados pel tes; portanto a série de


todos os efeitos depende necessàriamente da necessidade da vontade divina.
"Se fosse possível a um homem conhecer, afirma Avicena, todas as coisas que
acontecem no céu e na terra na sua natureza, conheceria todos os
acontecimentos futuros e também o modo como aconteceriam" (Metaf., X, 1).
Donde se deduz a justificação das predicções astrológicas. É claro que o
astrólogo não pode pela simples observação do movimento dos corpos celestes
obter predicções infalíveis, mas isso deve-se à multiplicidade das
circunstânoias de que depende o acontecimento futuro, muitas das quais se
subtraem às suas considerações, não se tratando portanto de falsidade ou
insuficiência da ciência astrológica.

§ 236. AVICENA: A ANTROPOLOGIA

O que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados é
o poder de conhecer as formas inteligíveis. Este poder é a alma racional a
que se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto em
potência ou intelecto possível. As formas inteligíveis formam a alma de três
modos distintos. Em primeiro lugar, mediante emanação

198

ou infusão divina, sem qualquer ensinamento ou qualquer aquisição de origem


sensível: é deste modo que ao homem é dado o conhecimento dos primeiros
princípios. Em segundo lugar, por meio do raciocínio discursivo e do
pensamento demonstrativo: deste modo a alma conhece as espécies inteligíveis
que são objecto da consideração lógica. Em terceiro lugar, e através dos
sentidos, com a ajuda de uma capacidade natural e inata. Mediante as espécies
inteligíveis que assim advêm à alma, o intelecto em potência transforma-se em
intelecto em acto, idêntico com as próprias espécies, de tal modo que é ao
mesmo tempo sujeito e objecto de conhecimento (intelligens et intellectum).

A inteligência em potência, a simples substância intelectual, encontra-se


apenas nas crianças, que estão ainda privadas de toda a forma ou espécie
inteligível. Em seguida, sem a ajuda de qualquer ciência ou de qualquer
meditação, obtém-se o conhecimento dos primeiros princípios. Tais princípios
são as verdades imediatamente evidentes, a que se dá o assentimento de forma
imediata como, por exemplo "0 todo é maior que a parte" ou "Dois contrários
não podem simultâneamente pertencer a uma única coisa". Não podem derivar
esses princípios da experiência sensível: não podendo portanto serem
fundamento de um juízo necessário, porque não excluem o juizo contrário
àquele que sugerem. Estes princípios devem ser portanto o produto de uma
imanação divina à qual a alma se encontra unida continuamente ou de forma
interrupta. Uma vez que, em virtude de tal imanação, a alma adquire o
conhecimento dos primeiros princípios, o intelecto está já em acto e a sua
actividade pode enriquecer o património inteligível que lhe foi
subrainistrado pelo alto. Intervém então a actividade discursiva do
intelecto, que procede por composição e divisão, isto é, por análise e
síntese, e este exercício é determinado pelos primeiros princípios que a alma

199

possui. As outras formas inteligíveis ou conhecimentos racionais são


adquiridos pela alma por via de abstracção da experiência sensível. A
abstracção e a

actividade discursiva que compõem e dividem, são pois os dois meios


fundamentais pelos quais a alma humana adquire e enriquece os seus
conhecimentos racionais e constituem o intelecto adquirido. Existe uma via
directa de aquisição, mas é excepcional e

reservada a poucos: "Em alguns homens a vigília prolongada e uma certa união
íntima com o Intelecto universal (isto é, o Intelecto em acto de Deus)
conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional destes
homens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou do
socorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. A esta disposição
dá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada.
Mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aos
apóstolos, nos quais se encontra a

salvação" (De an., 8, fol., 24).

Mas isto é sem dúvida uma excepção: para os

outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem é
limitada e não constante porque o corpo o impede. Desta situação Avicena
extraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " Quando a alma se
encontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao Ser que a
aperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. A união continua com a
realidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando a
coberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nem
mesmo quando se

afasta ou separa dessa mesma realidade. Por conseguinte a alma permanece


depois da morte sempre imortal, na dependência da substância superior que se
chama Intelecto universal e que os doutores das diferentes religiões designam
por Sapiência de Deus" (De an., 10, fol 34).

200

MAIMõNIDAS

Deste modo, Avicena relaciona a imortalidade, tal como a santidade e a


sabedoria, com a acção do Intelecto divino, isto é, com o Ser necessário. Mas
uma vez que o Ser neccssário é também o bem, a felicidade consiste na
contemplação do ser necessário, ou seja, na ciencia deste ser, que é
proporcionada pela filosofia. Através da filosofia o homem aproxima-se
do Bem supremo que é também a sua origem; e do bem supremo aproximam-se
igualmente todas as coisas criadas, cada uma de acordo com o modo ou via que
lhe são próprios.
O amor de que Avicena fala nos Tratados místicos é portanto, e de harmonia
com as concepções aristotél;cas a tendência das coisas para o bem, para o fim
supremo, tendência que garante a ordem e a perfeição de tudo. No homem e
sobretudo no sábio, este amor é desejo de contemplação do ser necessário.
Avicena insiste em sublinhar a superioridade do sábio sobre os outros homens:
o sábio actwa desinteressadamente com o único objectivo de se

ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espécie
de troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois a
recompensa na outra (Livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485-487).
A via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se opõem
todas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo Avicena,
não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524).

§ 237. AL GAZALI

Em oposição ao espírito filosófico de Avicena surge-nos o espírito xeligioso


de AI Gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. AI Gazali, chainado
pelos escolásticos latinos Algazel, nasceu em Tous do Khorasan, em 1059.
Ensinou, em primeiro

201

lugar no colégio de Bagdad, depois em Damasco, Jerusalém e Alexandria. Mais


tarde retirou-se para Tous, sua cidade natal, onde se dedicou a vida
contemplativa dos Súfi (místicos) e compõe grande número de escritos com o
objectivo de estabelecer a superioridade do Islamismo sobre todas as outras
religiões e sobre a própria filosofia. O mais célebre destes textos
teológicos, intitula-se, Restauração das ciências religiosas, obra de
teologia e de moral dividida em quatro partes que tratavam das cerimónias
religiosas, das prescrições relativas às diversas circunstâncias da vida, dos
vícios e das virtudes. Tendo abandonado o seu retiro, AI Gazali retoma a
direcção do colégio de Bao,,dad, mas nos últimos tempos da sua vida, regressa
novamente a Tous, onde funda um mosteiro para os Súfi e passa o resto dos
seus dias na contemplação e nas práticas religiosas. Morre em 1111.

Em meados do século XII, Domingo Gundisalvo traduz duas obras de AI Gazali:


As tendências dos filósofos e A destruição dos filósofos. Na primeira, AI
Gazali não faz mais que expor em síntese os resultados da filosofia do seu
tempo, principalmente de AI Farabi e de Avicena. Neste livro, evita fazer
críticas, de qualquer género, e limita-se a fazer um inventápio das doutrinas
destes filósofos. Na segunda obra, pelo contrário, propõe-se apresentar
certos raciocínios que se opõem à argumentação dos filósofos e que pretendem
demonstrar a nulidade destes. No final desta segunda obra, AI Gazali mostra-
se essencialmente negativo. Na parte positiva do seu sistema remete para a
sua obra sobre a Restauração das ciências religiosas.

A única filosofia que AI Gazali toma em consideração, na sua Destruição dos


Filósofos, é a de Avicena. E compreende-se. A doutrina de Avicena é uma
filosofia da necessidade: Deus é o próprio ser necessário, e também o mundo
como

202

realidade em acto é necessário em relação a Deus. AI Gazali, pelo contrário,


ao ligar-se à tradição dos Mutalcallimun, dispõe-se a afirmar enérgicamente a
liberdade da acção divina, pressuposto de toda a atitude religiosa. As suas
críticas devem portanto dirigir-se no sentido de desmantelar as razões dessa
ordem necessária, a que Avicena tinha reduzido tanto Deus como o mundo. Com
efeito, AI Gazali combate, em primeiro lugar, o conceito de necessidade no
próprio ser necessário, isto é, em Deus. Se este ser fosse, como Avicena
afirma, absoluta necessidade, dele não poderia derivar a multiplicidade das
emanações e das coisas criadas. Segundo Avicena, tudo é produto da causa
primei,ra, mediante o simples conhecimento que a mesma tem de si. Mas
conhecendo-se a si própria, conhece também todas as coisas criadas, o que
significa que contém em si essas mesmas coisas e que, portanto, não é assim
tão simples e necessária como se afirma. O mundo foi criado por um-a vontade
eterna que tinha decretado a existência e que tinha atribuído a tal
existência limites definidos no tempo. Segundo Avicena, isso implicaria uma
alteração na vontade divina, alteração que não pode conciliar-se com a sua
necessidade eterna. Mas, para AI Gazali, esta alteração não oferece apoio a
qualquer objecção, uma vez que ele não vê em Deus o ser necessário.

A crítica de AI Gazali à necessidade própria da essência divina, à


necessidade e também à eternidade do mundo, culmina com a crítica ao próprio
conceito de necessidade, expresso no piincípio causal. Não parece que seja
necessário existir entre as coisas que acontecem, isoladamente, uma relação
causal. Causa e efeito são perfeitamente distintos uma do outro e não estão
ligados entre si quanto às respectivas existências. A relação existente
entre o fogo e a combustão de um objecto qualquer, não

203

é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de Deus. "0 fogo é
algo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. Porque razão
haveríamos nós de o considerar activo? Os fi-lósofos não têm outra razão para
afirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisa
do fogo se verifica a combustão. Mas esta evidência apenas se refere ao facto
de que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha do
fogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (Destr.
destruct., 1, dub. 3). Esta outra causa, a única verdadeira causa, é Deus.
Mas a acção de Deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. A
possibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida.
A figura de AI Gazali representa a reacção da teologia muçulmana à filosofia
da necessidade defendida por AI Farabi e por Avicena. A parte positiva da
doutrina de AI Gazali é a que trata da mística: AI Gazali atribui o máximo
valor à prática da religião. Essa a razão porque as suas obras fundamentais
são as de moral-para ele "a ciência é a árvore, mas a prática é o fruto".

§ 238. IBN-BADJA

Ibn-Badja, que os escolásticos latinos cognominaram Avempace é o primeiro


filósofo famoso entre os Árabes de Espanha. Nasceu em Saragoça no final do
século X1; em 1118 encontrava-se em Sevilha. Esteve também em Granada e mais
tarde dirigiu-se a África onde alcançou grande consideração junto da corte
dos Almorá vidas. Morreu relativamente novo em Fez, no ano de 1138. Alguns
autores árabes relatam que ele foi envenenado por médicos que o invejavam.
Avempace escreveu numerosas obras de ciência e de filosofia. Averróis cita

204

dele uma carta Sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia parte
do seu escrito Sobre a alma e uma Carta de despedida (Epistola expeditionis).
A sua obra principal é o Regime do Sol;tário, hoje perdida mas da qual existe
um resumo elaborado por um filósofo do século XIV, Moisés de Narbona,
incluído no seu comentário à obra de Ibrt-Tofail.

No Regime do Solitário, Avempace propunha-se dar a entender o modo como o


homem pode chegar a identificar-se com o intelecto em acto, mediante o
sucessivo desabrochar das suas faculdades. Avompace considerava o homem
isolado da sociedade, ou seja, livre dos seus vícios, mas participando das
suas virtudes. O objectivo final do solitário é o de conseguir alcançar as
formas inteligíveis isto é, a verdade especulativa; e as acções que
correspondem a este objectivo integram-se no domínio do intelecto. Esse
objectivo é atingi-do, quando o homem consegue ser intelecto adquirido ou
imanado. Este intelecto consiste na consideração das formas inteligíveis em
si, isto é, separadamente da matéria a

que estão ligadas nas coisas terrenas. O intelecto adquirido é o único que
pode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo mais
alto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de Deus.

Na obra de Avempace o problema aristotélico do intelecto passa a ser uma via


de elevação e de purificação humana e deste modo se transforma de problema de
especulação lógica e metafísica em problema religioso.

§ 239. IBN-TOFAIL

Ibn-Tofail ou Abubekr nasceu à volta de 1100 em Uadi-Ash (Guadix), na


Andaluzia, e foi célebre como médico, matemático, filósofo e poeta. Minis-

205

tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e,
entre eles, Averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigir
uma análise clara exacional de Aristóteles. Abubekr morreu em 1185, em
Marrocos.

Tal como aconteceu com lbn-Badja, também ele levantou o problema de encontrar
a via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal.
Mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema um
verdadeiro romance filosófico intitulado O vivente, filho do vigilante (Hajj-
Jaqzân). lbn-Tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilha
desabitada do Equador. A criança nasce da terra e uma gazela encarregi-se de
alimentá-la. com o seu leite. Os diversos períodos da sua -idade são
assinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. Partindo do
conhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta da
unidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a
primeira a da espécie. Debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na sua
fflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, Hajj chega ao
conhecimento de um Ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe em
movimento. O regresso a este Ser supremo torna-se então o objectivo da sua
vida. Pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se no
pensamento, para poder identificar-se com ele. No grau mais elevado da
contemplação descobre o reflexo de Deus no universo e a proximidade da esfera
celeste. Finalmente, no êxtase, vê a Deus dele dimanando diversas esferas
celestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos,
outros impuros e condenados.

Para demonstrar o acordo entre a sua doutrina e a crença da religião


islâmica, Ibri-Tofail imagina o seu protagonista encontrando-se, aos
cinquenta

206

anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente consegue
chegar às mesmas conclusões que ele. Os dois juntam-se para criar uma
comunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade de
comunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para o
isolamento, para viverem uma vida contemplativa.

O romance de Ibn-Tofail exprime uma posição que é comum a todos os filósofos


árabes: a de que a filosofia conduz a um resultado idêntico ao da religião,
mas por uma outra via, que é a da busca individual e da demonstração. Além
disso, a obra de Ibri-Tofail é também como que um resumo das doutrinas
correntes na filosofia árabe sobre o intelecto. O verdadeiro agente do
conhecimento humano é o intelecto universal, a última emanação do Ser
supremo. O @ntelecto humano ou potencial está dominado e dirigido por Aquele.

§ 240. AVERRóIS: VIDA E OBRA

Ibn-Ruslid ou Averróis, o mais célebre dos comentadores árabes de


Aristóteles, nasceu em Córdova em 1126. O avô e o pai eram jurisconsultos e
juízes, e à mesma carreira estava destinado Averróis, que no entanto se
dedicou com grande entusiasmo à medicina, à matemática e à filosofia. Sabemos
já como ele foi apresentado por Ibri-Tofail à corte do rei Yussuf. Este rei
confiou-lhe numerosos cargos políticos que o obrigaram a viajar
frequentemente pela Espanha e por Marrocos. O sucessor de Yussuf, Almansur,
protegeu igualmente Averróis. Mas quando este foi acusado por suspo*,ta de
heresia e, Ial como muitos outros sábios árabes da época, de promover o
estudo da ciência e da filosofia dos gregos, em detrimento da religião

207

muçulmana, Almansur desterrou-o para a cidade de El-isana (Lucena), perto de


Córdova, proíbindo-o dela sair. Averróis teve então de suportar os insultos
dos fanáticos. Ele próprio nos conta que uma vez, indo com o filho à mesquita
para assistir à oração da tarde, a turba o expulsou do lugar sagrado. Mais
tarde, foi enviado para Marrocos e não voltou mais a Espanha. Morreu em 10 de
Dezembro de 1198, com a idade de 73 anos. Por ordem de Almansur, as suas
obras foram todas destruídas e o Ocidente teve delas conhecimento através de
versões hebraicas.

Entre as obras de Averróis podemos destacar, em primeiro lugar, os


Comentários a Aristóteles e que se distinguem em grandes comentários,
comentários médios e paráfrases ou análises. Pelas referências contidas
nestas obras podemos supor que Averróis tenha redigido os comentários médios
primeiro que os grandes e as paráfrases e análises contemporâneamente ou
quase com os comentários médios. Além destes comentários, Averróis escreveu:
1.` A destruição da destruição dos filósofos de Algazali e que é uma
refutação da obra de Algazali; 2. Questões ou dissertações sobre diversas
passagens do Organon de Aristóteles; 3. Dissertações físicas ou pequenos
tratados sobre diversas questões da física de Aristóteles; 4. Duas
dissertações sobre a união do intelecto separado com o homem; 5.O Uma
dissertação sobre o problema de se saber "se é possível que o intelecto
(intelecto material ou hílico) compreenda as formas separadas ou abstractas"-
,
6.O Uma refutação do texto de Avicena Sobre a divisão dos seres; 7.O Um
tratado sobre o acordo da religião com a filosofia; 8. Um tratado sobre o
verdadeiro significado dos dogmas da religião, escrito em Sevilha em 1179.

208

§ 241. AVERRóIS: FILOSOFIA E RELIGIÃO

A intenção declarada de Averróis não é a de construir um sistema próprio, mas


apenas a de esclarecer o significado autêntico da filosofia de Aristóteles,
que para ele é a expressão máxima do pensamento humano. "Aristóteles, afirma
Avicena, é a regra e o exemplo criados pela natureza para demonstrar a máxima
perfeição humana. A doutrina de Aristóteles é a verdade máxima, porque a sua
inteligência reflecte o ponto mais alto do intelecto humano. E bem se pode
afirmar que foi criado e oferecido aos homens pela Divina Providência, para
que os homens pudessem saber tudo o que lhes é dado sabem (De an., 111, 14).
Com tais considerações sobre o valor de Aristóteles e sobre a verdade da sua
doutrina, Averróis evidentemente não pretende ter a presunção de ultrapassar
o seu mestre ou de se afastar do caminho por ele traçado. No entanto, na sua
obra de ilustração e de wmentários aos textos aristotélicos, perpassam os
resultados fundamentais de toda a especulação árabe anterior; ele próprio se
move dentro do clima dessa especulação, que é substancialmente uma
interpretação neoplatonizante do oristotelismo.

Não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, Averróis não concebe
a investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. Em primeiro
lugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "Na
verdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar o
estudo de tudo o que é, não se poderá render a Deus um culto melhor do que
aquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento do
próprio Deus em toda a sua realidade. Esta é, aos olhos de Deus, a acção mais
nobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de

209

acusar de erro e de presunção vã aquele que se consagra a esse culto, que é o


mais nobre de todos, o que adora Deus com esta religião, que é a melhor de
todas" (Muiik, Mélanges, p. 456). Por outro lado, no entanto, a investigação
filosófica não pode ser de todos, a religião do filósofo não pode ser a
religíão do vulgo. Tal como certos alimentos são bons para certos animais e
maus para outros, também os processos dos filósofos que são utilíssimos nas
suas investigações são, no entanto, funestos para os não-filósofos. Se os
filósofos viessem demonstrar junto do vulgo as suas dúvidas e as suas
demonstrações, isso poderia dar aso aos incompetentes de levantar ainda mais
dúvidas e argumentos sofísticos e de caírem em erro. Por isso, a religião que
é feita para a maioria, segue e deve seguir outra via, uma via "simples e
narrativa" que ilumine e dirija a acção. Este é o verdadeiro domínio da
razão. À filosofia cabe o mundo da especulação, e à rehgião o mundo da acção.
Quem nega, ou simplesmente duvida, dos princípios enunciados pela tradição
religiosa, tornaria impossível o agir humano, do mesmo modo que tornaria
impossível a ciência aquele que negasse ou duvidasse dos princípios básicos
em que ela se fundamenta (Destr. destruct., disp. 6, fol. 56, 79). AverrÓis
pretende nos seus livros "falar livremente com os autênticos filósofos" e não
opor-se aos ensi-namentos da tradição religiosa.

Não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que os
escolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. Para ele não
existe uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. A verdade é
uma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crente
recebe-a da tradição religiosa (a lei do Corão) numa forma simples e
narrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. Mas não existe
um contraste entre as duas vias, nem dua-

210

lismo na verdade. Averróis escreveu, como já dissémos, dois tratados que se


destinavam a demonstrar o acordo que existe entre a verdade religiosa e a
filosófica.

Todos os que são estranhos à especulação devem aproximar-se da forma que a


verdade recebeu por obra da tradição religiosa, para que assim possam ser
iluminados e guiados nas suas acções. Mas para os filósofos, ao invés, a
verdade adquire o aspecto severo da demonstração necessária e passa a ser o
termo de uma investigação que é a melhor e mais elevada de todas as acções
humanas.

§ 242. AVERRóIS: A DOUTRINA DO INTELECTO

A doutrina que os escolásticos latinos recolheram como sendo típica do


averroísmo é a do intelecto. Com ela, Averróis, distingue-se das
interpretações que dominam a filosofia árabe de Al Kindi a Ibrí-Tofail. Para
estes filósofos, o Intelecto agente é a última emanação divina e é por isso
uma

substância separada de toda a matéria e da própria alma humana, pertencendo


ao número das substâncias divinas. Ointelecto potencial ou material (hílico)
é, pelo contrário, para eles, o intelecto prè@prÍamente humano, a parte
racional da alma humana. Este último, passa a acto por obra do primeiro,
tornando-se assim intelecto em acto; por sua vez, o intelecto em acto,
aperfeiçoando-se com o exercício do raciocínio discursivo, transforma-se em
intelecto adquirido (adeptus). A esta doutrina que se encontra exposta e
defendida, com poucas variantes, nos filósofos tratados atrás, Averróis vem
trazer uma modificação substancial: o intelecto material ou hílico não é a
alma humana. E não é pela mesma razão porque não o é o intelecto activo: uma
vez que as formas inteligíveis que são o seu objecto

211

potencial são universais, eternas, indestrutíveis e não o seriam se seguissem


a sorte da alma humana, que é diferente nos diferentes indivíduos; que
algumas vezes pensa e outras não; e que pensa diferentemente em cada
indivíduo. Por esses mesmos motivos também o intelecto adquirido ou
especulativo (adeptus, speculativus) que resulta da acção do intelecto agente
sobre o íntelecto material ou possível é uno em todos os homens e separado da
alma humana. Mas este último pode ter a participação da alma humana na sua
multiplicidade e mutabilidade; e essa participação pode ter a forma de um
hábito, de uma disposição, ou de uma preparação (habitus, dispositio,
preparatio) e que constituem a perfeição da própria alma: uma preparação que
segue os acontecimentos, desde o nascimento à morte, da própria alma, porque
pertence à sua capacidade imaginativa (que é dada ao corpo). O intelecto
especulativo, no entanto, pode ser considerado por um lado como ú nico, por
outro como múltiplo; como eterno ou como gerador corruptível. Em si próprio,
é único e eterno. Como disposição e preparação da alma é múltiplo e submetido
ao nascimento e à morte.

Segundo Averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades que
a doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seus
predecessores. "Se o objecto inteligível, afirma Avarróis, fosse
absolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse,
tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. Por outro lado, se o
objecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos,
aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplo
naindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outro
por sua vez um outro e assim sucessivamente. Seria ainda impossível neste
caso que o discípulo aprendesse,

212

o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja uma
virtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmo
modo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível.
Mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e em
ti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formas
da imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente e
material, tais questões acabam totalmente por desaparecem (Comm. inagiuim De
an., 111, 5). Portanto, segundo Averróis, a virtude cognitiva própria do
homem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formas
extraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação do
Intelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a receber
a obra do artífice (1b., 111, 20).

Deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potência


ao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que se
limita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. O processo integral é posto
directamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. A acção deste é
comparada por Averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do sol
enquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado à
capacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis
(verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores.
Tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduz
ao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar o
intelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que esta
possa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdades
universais. Por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além do
material das representações; mas é ela que abstrai

das referidas representações os conceitos, ao unir-se ao intelecto potencial;


e este une-se a ela quando a ele se une o Intelecto agente.

Desta doutrina resulta toda uma série de consequências paradoxais que


desencadearam uma polémica acalorada por parte da escolástica latina. Em
primeiro lugar, o intelecto material é único em todos os inffivíduos porque é
a disposição que o Intelecto agente comunicou às respectivas almas.
Multiplica-se nos diversos indivíduos como a luz do sol se multiplica ao
distribuir-se sobre os diversos objectos que ilumina. Como S. Tomás explica
(C. gent.,
11, 73), a diversidade dos intelectos humanos é determinada pelo facto de
que, actuando o intelecto material sobra as imagens, que não existem todas em
todos os indivíduos, nem são igualmente distribuídas por todos, as coisas que
um certo homem pensa não são as mesmas que são pensadas por um outro homem.
Em segundo lugar, não pode acontecer que umas vezes o intelecto material
compreenda e outras vezes não, salvo no caso de determinado indivíduo e nunca
no que se refere à espécie humana. Por exemplo, pode acontecer que Sócrates
ou Platão umas vezes compreendam e outras vezes não o conceito de cavalo;
mas, no conjunto da espécie humana, o intelecto compreende sempre este
conceito, a menos que a própria espécie venha a desaparecer, o que é
impossível. Disto resulta que a ciência não pode reproduzir-se nem corromper-
se, porque é eterna. Morre a ciência que existe em Sócrates ou em Platão com
a morte do indivíduo: mas não morre a ciência em si, porque está ligada a uma
disposição universal, essencialmente conexa com toda a espécie humana.

Nesta natureza do intelecto se fundamenta o destino da alma humana. A


felicidade do homem consiste em cultivar e ampliar a disposição que constitui
o intelecto material, a fim de aperfeiçoar
214

e ampliar a capacidade especulativa e conhecer as substâncias separadas e


finalmente o próprio Deus. Averróis retoma, na sua totalidade, a doutrina
aristotélica da superioridade da vida teorética. "0 intelecto prático,
segundo ele, é comum a todos os homens, todos o possuem, uns em maior grau
que outros; mas o imelecto especulativo é uma faculdade divina, que se
encontra apenas nos homens excepcionais" (De an., 111, 10, fol. 494 a). A
ciência é a única via da beatitude humana: uma beatitude que se atinge nesta
vida, através da pura investigação especulativa, uma vez que a vida humana
não continua para além da morte. Com efeito, a única parte da alma humana que
não está ligada ao corpo e não se encontra portanto submetida à reprodução e
à corrupção é precisamente o intelecto material. Mas esse intelecto se como
simples disposição faz parte da alma humana, como realidade substancial
subsiste separadamente e não é mais que o próprio intelecto agente. Na alma
humana mantem-se apenas o intelecto aquisitivo ou especulativo; mas este,
condicionado como está pela parte sensível que lhe fornece as imagens das
quais são abstraídas as formas inteligíveis, está ligado ao corpo, nasce e
morre com ele (1b., 111, 1). Averróis é levado a negar a imortalidade da alma
e a colocar o fim último do homem na bealitude que se pode alcançar nesta
vida mediante a investigação especulativa e a contemplação das realidades
supremas.

§ 243. AVERRóIS: A ETERNIDADE DO MUNDO

Sobre o problema do intelecto e sobre as questões com ele conexas, entre as


quais está a imortalidade humana, Averróis entra em contradição com os
pensadores anteriores e especialmente com

215

Avicena que identificava o intelecto material com o humano e sustentava a


imortalidade própria da natureza e do destino da alma humana. Mas, no que diz
respeito às relações entre Deus e o mundo,

e em especial à criação, Averróis não faz mais que retomar a doutrina dos
seus predecessores. A necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida por
Avicena, é também a pedra angular da metafísica de Averróis. É de notar que
tal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível em
relação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. Mas
esta criação é apenas, como já notou S. Tomás (§ 278), a dependência causal
do ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro que
é Deus. Exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, e
nada tem a ver com a criação tal como é concebida na Bíblia e no Corão. Esta
depende de um acto de vontade do Criador, que dá início no tempo ao mundo e
prescreve ao mesmo limites temporais definidos. Mas contra este conceito,
Averróis Emita-se a repetir as objecções de Avicena. Se Deus criou o mundo do
nada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho à
sua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que de
certo modo o haja determinado à criação. Ora ambas estas alternativas são
impossíveis. Nada existe fora de Deus, excepto o mundo, por isso Deus não
pôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. Por outro lado, nenhuma
coisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de Deus não
pode também sofrer alteracão. Além disso, se a criação significa uma escolha
áivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifique
algum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. Mas não
podemos falar em obstáculos em relação a Deus, nem se pode conceber uma
alternativa melhor na

216

criação do mundo. A escolha de Deus deve ser por isso eterna e contínua e não
se pode falar de um princípio do mundo (Dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2).
Averróis aceita a doutrina de AI Farabi e de Avicena, de que o mundo dimana
necessàriamente da ciência de Deus e que esta dimanação não é motivo ou
intenção particular, porque procede da natureza de Deus, na medida em que
este se conhece a si próprio (Ib., disp. 3, dub. 2). Deve por isso afirmar-se
que a acção de Deus na formação e na conservação do mundo não é comparável à
acção de nenhum agente Enito, nem natural nem voluntário, uma vez que Deus
formou o mundo e mantem-no de um modo que não tem paralelo na acção das
coisas o dos homens.

O mesmo deve afirmar-se da acção de Deus ao governar o mundo. Deus dirige o


mundo com a sua ciência, mas a ciência de Deus nada tem a ver com a humana.
Deus apenas se conhece a si próprio; mas ao conhecer-se a si próprio, conhece
tudo. A sua ciência não diz respeito às coisas particulares porque está para
além dos limites das mesmas. Mas o facto de não conhecer as coisas
individuais deste mundo na sua essência individual, não significa um defeito
do conhecimento divino, pois não é um defeito não conhecer de forma
imperfeita aquilo que se conhece de um modo mais completo (Epit. metaf., IV,
p. 138). A providência divina segue a ciência divina. Como Deus não conhece
as coisas indâviduais também não as d-Jrige e governa com a sua acção
providencial. A injustiça e o mal que existem no mundo demonstram clara-mente
que, nem Deus nem as outras substâncias separadas que dimanam dele
directamente e regem as órbitas celestes, governam directamente as
vissicitudes e o destino dos seres singulares (1b., IV, p. 155). Através do
movimento dos corpos celestes Deus regula também os acontecimentos do mundo

217

sublunar. Com efeito, o movimento do sol, ao determinar a sucessão dos dias e


das noites e a alterriância das estações, regula a geração das plantas e dos
animais. Deus rege deste modo todo o mundo segundo uma ordem necessár@a e
infalível. Mas o que é puramente individual ou casual, o que não se integra
na ordem necessária de tudo, escapa à providência, assim como à ciência de
Deus (Ib., IV, p. 152).

A própria vontade humana é determinada, na medida em que as suas deliberações


estão sujeitas à ordem necessária do mundo. Averróis sustenta que as nossas
acções dependem,pelo menos em parte, do nosso livre arbítrio, mas afirma que,
por outro lado, elas não podem furtar-se ao determinismo da ordem cósmica. A
vontade humana é em si um agen!e livre; mas a sua acção manifesta-se no mundo
que é regulado pela ordem necessária e eterna de Deus. A relação da vontade
com as causas externas é determinada pelas leis naturais: por isso o Corão
fala de uma predestinação infalível do homem (Munk, Mélanges, p. 457-458).

A condenação pronunciada em Paris nos anos de


1270 e 1277 contra o averroísmo, referia-se às seguintes proposições: o
intelecto de todos os homens é numèricamente uno e idêntico; o mundo é
eterno; a alma, que é a forma do homem enquanto homem, corrompe-se com a
corrupção do corpo-, Deus não conhece as coisas singulares; o livre arbítrio
é uma potência passiva, não activa, movida necessàriamente pelo objecto
apetecido; a vontade do homem escolhe por necessidade (Denifle, Chart.
Univers. Paris, 1,
486-487). Estas proposições incluem aquilo que aos escolásticos latinos
surgia como típico do averroísmo e em contraste irremediável com o dogma
cristão. Mas o significado do averroísmo não reside apenas nestas
proposições. Apresenta-se também como a ,grande tentativa de reconquistar,
com o regresso a Aristóteles - o filósofo por excelência - a liberdade

218

da investigação filosófica; o de dirigi-Ia no sentido de esclarecer essa


ordem necessária do mundo, cuja contemplação pareceu a Averróis ser o mais
alto dever e a felicidade perfeita do homem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 232. MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabel Paris, 1852, 1927;
DIETERECI, Die Philosophie der Arabern in Jahrhundert, 4 vol., Leipsig, 1865-
1870; CARRA DE VAux, Les penseurs de LlIstam, Paris, 1921; M. HORTEN, Die
Philosophie des Islams, Mónaco, 1924; G. QUADRI, La filosofia degli Arabi nel
suo fiore, Florença, 1939, 2 vols. Da Teologia, a tradução Ia-tina feita
sobre a tradução italiana do texto árabe (descoberto em Damasco em 1516, pelo
humanista Francesco Rosso) foi publicada em Roma em 1519. O texto do Liber de
causis, comentado, a partir do século XM por numerosos autores, encontra-se
numa recolha de opúsculos de S. Tomás, Pedro de Auvernia e Egídio Romano,
publicada em Veneza em 1507.

Sobre as escolas teológicas: HORTEN, Die philosophischen Probleine der


spekulativen Theoloqie in Islam, Bonn, 1912; MACDONALD, Development of Muslim
TheoZogu, Jurisprudence and Constitutional Thenry, New York, 1903; GARDET-
ANAWATY, Introduction à Ia thèologie musulmane, Paris, 1948. -Sobre os
Mutakal!Iimun: S. PINES, Beitrãge zur islamichen Atomenlehre, Berlim
1936.

§ 233. Os escritos de AI Kindi foram publicados pela primeira vez por ALBINO
NAGY, Die philosophischen AbhandIungen des AI-Kindi, em (Beitrãge" de
Baeumker, 11, 5, 1897. Um escrito de introducão ao estudo de Aristóteles foi
publicado por GUIDI e WALZER, em "Atti Aec. dei Lincei", 1940, série VI, vol.
VI. Um escrito moral de WALzER e RITTER, V01. VIII.

AI Kindi foi também autor de escritos sobre astronomia, medicina e óptica: De


astrorum indiciis, Veneza,
1507: Liber novem indicum, Veneza, 1509; De rerum gradibus, Argentorati,
1531; De temporum mutationibus
8ive de imbribus, Paris, 1540; De aspectibus, ed. Bjoernbo-Vogl, Leipsig,
1912.

Sobre a doutrina do intelecto: GILSON, Les sources gréco-arabes de


Ilaugustinisme avicénnisant, em "Arch. d'Hist. doctr. et @it. du m. â.",
1930.

219

§ 234. De AI Farabi: De scientiis, De intelectu, Paris, 1638; ed. com trad.


frane. de Gilson, em "Arch. £I,Hist. doetr. et lit. du m. á.", 1929-30;
Philosophische AbhandIungen, texto árabe, ed. Dieteríci, Leiden, 1890; Das
Buch der Ringsteine, cd. Horten, em "Beitrãge", V, 3, 1906; De ortu
scientiarum, ed. B&euml-er, Munster,
1916; ed. com trad. ingl. ed. Harmer, Glasgow, 1934; De arte poetica, com
trad. ing1. ed. Arberry, em "FUvista di Studi Orientali", 1930; De Platonis
philosophia, ed. Rosenthal-Walzer, Londres, 1943; Compendium legum Piatonis,
texto árabe e trad. lat., ao cuidado de Gabrieli, Londres, 1952.

MADICOUR, La place d'Al Farabi dans Fécolé philosophique musulmane, Paris,


1934.

§ 235. De Avicena: a parte do Cânone de medicina traduzida na Idade Mádia, em


Opera Omnia, Veneza,
1495, 1508; Metafísica, trad. alemã, Horten, Lcíp@ig,
1913, 1960; Compendium metaphysicae, ed. Carame, Roma, 1926; De anima, ed.
Rahman, Londres, 1959; Traités mystiques, trad. frane. Mehren, Leiden, 1889-
1899; Logica oriental (Mantigual-masriqiyyah), Cairo,
1910; Epitre des définitions, trad. frane. Goiclwn, Bey- rut-Paris, 1951;
Livre de sciences, trad. frane. Massé, Paris, 1955; Poème de Ia mèdicine,
texto árabe com trad. frane. e lat,, ao cuidado de Jahier e Novreddine,
Paris, 1956. -Bibliografia: SA'TI) NAFICY, Bib. des principaux travaux
européens sur A., Teerão, 1953; PUR-E SINA (A., his life, Works, Thought and
Time) Teerão,
1954; ANAWATI, Chronique avicénnienne, 1951-1960, em "Rev. Thomiste", 1960.
CARRA DE Vxux, A., Paris, 1900; SALIBA, Mudes sur métaphysique d'Avicenna,
Paris, 1926; GoiCHON, La distinction de Vessence et de rexistence d'après Ibn
Sina, Paris, 1937; La phil. dA. et son influence en Europe médiévale, Paris,
1944, 1951; GARDET, La pemée religieuse d'A., Paris, 1951; La connaissance
mystique chez Ibn-Sina, Cairo, 1952; RAHMAN, Avicenna's Psychology, Oxford,
1952; AFNAN, A., His Life and Works, Londres-New York, 1958.

§ 237. De AI-Gazali: As tendências dos filósofos foram publicadas na trad.


lat. com o título Logica et philosophiae, Veneza, 1516. A trad. lat. da
Destructio philosophorum tem sido sempre editada juntainente com a
Destructio, destructionum de Averróis; Tendentiae philosophorum, Leiden,
1888; Destructio philosopharum,

220

Cairo, 1888; Metaphysic. A Medieval Transtation ed. Muckl.e, Toronto, 1933.

ASIN PALACIOS, Algazei: Dogmatica, Moral, Ascética, Saragoça, 1901; CARRA DE


VAux, Gazali, Paris,
1902; OBERMANN, Der philosophie und religiose Subjektivismus Ghazalis, Viena-
Leipsig, 1921; WATT, The Faith and Practice of al-Gazali, Liondres, 1953;
FARID YABRF, La notion de certitude selon Ghazali dans ses origmes
psychologiques et historiques, Paris, 1958.

§ 238. De Avempace: De plantis, Continuatio intellectus cum homine, Epistola


expeditionis, Regime del solitario, textos árabes e= trad. espanhola a cargo
de Asin Palacios em "Al-Andalus", 1940, 1942, 1943.

MUNK, Mélanges, cit. p. 386-410; FARRUKH, Ibn Baajja (Avem pace) and the
Philosophy in the Modern West, Beirute, 1945.

§ 239. De Ibn Tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é Hajj ibn Jaqzân, vem
publicado no original e numa tradução latina de E. Pococke, Oxford, 1671, com
o título: Philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo ex
inferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. O
texto árabe com tradução francesa foi publicado por Gauthier, Argel, 1900, e
teve numerosas traduções em outras línguas.

GAUTI-11ER, Ibn Tofail, Paris, 1909. § 240. De Averróis: a tradução latina


dos seus escritos foi editada pela primeira vez em 1472 e depois editada em
Veneza, várias, dezenas de vezes, juntamente com as obras aristotélicas: a
melhor edição é a de 1552 a qual existe, uma reedição, Froncoforte do Meno,
1962. Commentarium magnum in De anima, ed. Crawford, Cambridge (Mass.), 1953;
Traité dé~f sur l'accord de Ia religion et de Ia philosophie, texto árabe e
trad. frane. de Gauthier, Argel, 1942; trad. alem. Müller, Mónaco, 1875;
trad. ing1. Jamil-ur-Rehman, Baroda, 1921; trad. esp. Alonzo, Madrid 1947; De
generatione et corruptione, ed. Kurland, Cambridge (Mass.),
1958; Parva Naturalia, ed. ShieIds, Cambridge (Mass.),
1949.

RENAN, Averroes et Faverroisme, Paris, 1851, 1869; GAUTHIER, Ibn Roschd,


Paris, 1948; ALLARD, Le rationalisme dAverràes d'après une étude sur Ia
création, Paris, 1955.

221

xI

A FILOSOFIA JUDAICA

§ 244. A CABALA

Como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres em
comum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século XIII, uma
das componentes fundamentais da escolástica latina. Como acontece com a
filosofia árabe e a filosofia cristã da Idade Média, a filosofia judaica é
uma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemas
fundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre Deus e o mundo, entre o
intelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou com
dados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. Mais
próximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamente
filosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crenças
religiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma da
Cabala.

A Cabala (que significa tradição) é uma doutrina secreta que a principio se


transmitia oralmente e mais tarde foi recolhida num certo número de trata,

223

dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o Livro da Cri4ção (Sefer
Yetsirá) e"o Livro do Esplendor (Zohar). Trata-se de escritos em cuja
composição entram elementos heterogéneos. Se bem que alguns destes elementos
sejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o Zohar, na
forma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade do
século XIII. Tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista,
substancialmente semelhante à dos Neopitagóricos e dos Neoplatónicos dos
primeiros séculos. Neles se afirma que Deus é ilimitado (En Sof.), isto é,
inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. Como tal, é a
negação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o não-
ser ou o Nada. A criação do mundo surge mediante a aparição de substâncias
intermédias chamadas Números (Sephiroth) que são, no tempo, os atributos
fundamentais de Deus e as forças através das quais se realiza a criação
divina. A mediação dos Sephiroth serve para garantir a Deus a absoluta
unidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, e
neste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios do
Esplendor divino. Os Sephi -

roth são dez: I.'- A Coroa; 2.'-A Sabedoria;


3.'-A Inteligência; 4.'-a Graça; 5.'-a Justiça;
6.'-a Beleza; 7.0-o Triunfo; 8.o-a Glória:
9.---o Fundamento; 10.'-a Realeza. A acção destas substâncias produz toda a
realidade do mundo visível, as três primeiras constituem o mundo inteligível,
segundo o esquema da trindade neoplatónica.
O munIo visível e o inteligível têm a sua proveniência comum no amor e tendem
a aproximar-se e a unir-se. O impulso deve provir do mundo inferior que deve
tender para o superior; em resposta a este impulso, o próprio mundo superior
deseja e ama o mundo inferior. Deus não ama senão aqueles que o amam.

224

A alma humana -reproduz as três primeiras substâncias emanadas: em primeiro


lugar está o espírito vital, depois o espírito intelectual, e finalmente a
alma verdadeira e própria, que domina sobre as duas precedentes e é o orgão
da santidade e da virtude superiores.

A Cabala não tem intentos filosóficos e à expressão ceptual prefere a


concepção imaginativa ou alegórica. A posição que pretende suscitar é a do
misticismo, a base doutrinal que pretende defender é a ortodoxia judaica
tradicional. Ainda que tenha extraído os seus conceitos do helenismo e da
própria obra dos filósofos judeus da Idade Média, os defensores ou
expositores que teve nos séculos XIII e XIV entendem fazer dela uma
alternativa às obras dos filósofos e -polemizam com eles. Todavia, no
Renascimento os próprios filósofos iriam buscar à Cabala parte da sua
inspiração e utilizaram-na frequentemente como instrumento de interpretação
dos livros sagrados.
§ 245. ISAQUE ISRAELI

Como já se disse, a filosofia judaica consiste substancialmente num encontro


da tradição judaica com o helenismo; e sob este prima o mais antigo filósofo
judeu da Idade Média é Isaque Ibri Salomão Israeli, que viveu no Egipto entre
845 e 940. As suas obras de medicina foram traduzidas para o latim por
Constantino Africano; os seus escritos filosóficos, Livros das Definições e
Livro de Elementos, foram traduzidos do árabe para o latim, por Gerardo de
Cremona. Isaque não é um filósofo original, mas apenas um compilador que se
serve sobretudo de fontes neoplatónicas, especialmente do Livro de Causas.
Muitos latinos do século X111,

225

entre os quais S. Tomás, foram buscar a Isaque a definição de verdade como


"adequação entre o intelecto e a coisa".

§ 246. SAADJA

O verdadeiro fundador da escolástica hebra-ica é Saadja, que foi célebre


corno filósofo e teólogo, mas também como poeta. Nasceu em Fajjoum, no
Egipto, em 892 e em 928 foi designado dirigente da academia de Sora (perto de
Bagdad) que era então a sede principal do rabinismo. Morreu em Sora em 942. A
mais notável das suas obras é o Livro da Fé e da Ciência que escreveu em
árabe, e em

verso, em 932.

Ao lado da autoridade da escritura e da tradição, Saadja reconhece a da razão


e afirma não apenas o direito, mas também, o dever, de compreendermos a
verdade religiosa para assim a consolidarmos e defendermos dos ataques que
lhe são dirigidos. A razão ensina-nos as mesmas verdades que a revelação, mas
esta é necessária para que o homem possa atingir de modo mais rápido a ver-

dade que a razão, abandonada a si própria, só teria podido alcançar depois de


um longo trabalho. Os pontos sobre que se debruça a especulação de Saadja
são: a unidade de Deus, os seus atributos, a criação, a revelação da lei, a
natureza da alma humana, ete. A propósito de Deus, Saadja afirma que as
categorias aristotélicas lhe são aplicáveis. Defende a criação do nada,
refutando os sistemas contrários a este dogma. Defende também a liberdade
criadora de Deus e reconhece ao homem o livre arbítrio. Verificamos, no
entanto, que no seu pensamento ainda não se faz sentir a influência do
aristoteliismo: isso só vem a acontecer nos filósofos judeus de Espanha e, em
primeiro lugar, em Ibri- -Gebirol.

226

§ 247. IBN-GEBIROL: MATéRIA E FORMA

Salomão Ibn-Gebirol, foi reconhecido por Munk como o autor da Fons Vitae,
aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de Avicebron como
sendo árabe. Nasceu em Málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em Saragoça
e viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. Foi célebre como poeta e, segundo uma
tradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio.
A figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordinários
que atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado a
corifessar o crime. A sua obra, A Fonte da Vida, escrita em árabe, foi
traduzida para o Iatim por João Hispano e Domingos Gundisalvo. Está composta
em forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros.

A especulação de Ibn-Gebirol é dominada pelos conceitos aristotélicos de


matéria e forma. O princípio de que parte é o da composição hilomórfica
universal; tudo o que existe, é necessàriamente composto de matéria e forma.
Começa por reduzir a uma matéria única as díversas matérias e a uma única
forma as diversas formas existentes. Com este objectivo, começa por reduzir à
unidade a matéria e a forma das coisas sensíveis. Nestas, as várias espécies
de matéria, quer as artificiais, por exemplo, o bronze, quer as naturais (os
quatro elementos), quer as celestes, têm todas a mesma natureza, que é a de
substracto da forma. Por outro lado, todas as formas sensíveis têm em comum a
característica de serem formas corpóreas. Nas coisas sensíveis, portanto,
existe uma só matéria, o corpo, e uma só forma, a forma corpórea ou
corporeitas.

Mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a ela
se junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro

227

lado, a forma não é apenas corporeidade porque esta é apenas a determinação


de uma forma mais universal. Uma matéria que seja maas universal que a
matéria corpórca deve ser comum não só aos corpos como também aos espíritos:
é uma matéria que entra na composição quer das substâncias espirituais quer
das corpóreas. As substâncias espirituais não são simples, são também
compostas de matéria e forma. Nos escolásticos latinos, a doutrina de Ibri-
Gebirol aparece tipificada neste princípio da composiçao hilomórfica das
substâncias espirituais.

Se se trata de uma matéria universal, comum também às substâncias


espirituais, então tratar-se-á de uma forma universal comum a todos os seres.
Esta forma universal é o conjunto das nove categorias de Aristóteles, que
constituem precisamente as determinações mais gerais do ser. A matéria
universal é a primeira das categorias aristotélicas, a substância, que
sustenta (sustinet) as outras nove categorias (Fons vitae, 11, 6).

Assim unificadas e universalizadas, a matéria e a forma não subsistem em si,


mas na mente do Criador. Na Sabedoria de Deus, matéria e forma subsistem na
sua distinção. A criação comiste na união, determinada pela vontade divina,
entre a matéria e a forma. Mediante ela, a forma une-se à matéria e
determina-a, comunicando-lhe, pouco a pouco, as suas sucessivas
determinações: as qualidades primárias, a forma mineral, a forma vegetativa,
a forma sensitiva, a forma racional, a forma inteligível. Mas o pressuposto
desta união entre a matéria e a forma, e em que consiste a criação, é a
vontade de Deus.

§ 248. IBN-GEBIROL: A VONTADE

A matéria e a forma têm em comum entre si o desejo de se unirem uma à outra.


A matéria

228

anu a forma e deseja gozar a alegria que experimenta ao unir-se a ela; a


forma deseja realizar-se na matéria para nela produzir a sua acção, segundo o
impulso que lhe é transmitido pelo próprio Criador (Fons vitae, 111, 13). O
amor e a tendência recíproca, que existem entre a matéria e a forma, devem
derivar de uma substância superior de que ambas participam. Esta :substância
espiritual, e más que espiritual, é o Verbo agenie (Verbum agens) ou vontade
de Deus. "No ser, afirma Ibn Gebirol, apenas existern três coisas: a matéria
e a forma, por um lado, a Essência primeira, por outro; e a Vontade que é o
meio entre os dois extreinos". A Vontade cria a matéria e a forma universais
e por conseguinte, todos os seres que resultam da união da matéria e da
forina. A Vontade está ligada à matéria e à forma tal como a alma está ligada
ao corpo: funde-se nelas, penetrando-as completamente (1b., V, 36). Essa é a
virtude da Essência primelira, de Deus, e por conseguinte, a intermediária
entre essa mesma essência o a matéria e a forma.

No entanto, entre a Essência primeira ou Verbo agente, e a matéria, Ibn-


Gebirol admite uma série de formas ou substâncias separadas, inspirando-se
evidentemente no neo-platonismo do Liber de causais. Estas substâncias, de
acordo com a ordem que vai do menos perfeito e menos simples ao mais perfeito
e mais simples, são as seguintes: a natureza, as três almas (vegetativa,
sensitiva e racional), a inteligência. A inteligência compreende todas as
formas e conhece-as. A alma racional compreende as formas inteligíveis e
conhece-as mediante um movimento discursivo que a faz passar sucessivamente
de uma para outra. A alma sensitiva percebe as formas corpóreas e conhece-as.
A alma vegetatíva apodera-se do corpo e faz com que este se mova. A natureza
une as partes do corpo, gera entre elas

229

a atracção ou a repulsa e alterna-as entre si. Estas substâncias intermédias


são menos perfeitas à medida que se afastam da sua forma comum, a vontade
criadora de Deus. A sua crescente imperfeição explica-se com a diminuição do
poder da Vontade criadora, que, sendo infinita em si, é finita na sua acção e
por isso vai enfraquecendo (como um ra;o luminoso que se afasta do centro que
o produz) à medida que vai avançando (lb., IV, 19).

A filosofia de lbn-Gebirol apresenta, no seu conjunto, uma originalidade e


uma força que lhe asseguraram grande influência nos séculos seguintes. A
parte históricamente mais importante da mesma é a afirmação da matéria
universal. Combatida por S. Tomás, esta afirmação virá a ser retomada por
Giordano Bruno que fará dela o pressuposto do seu panteísmo.

§ 249. filosofia judaica: REACÇÃO CONTRA A FILOSOFIA

A reacção da ortodoxia judaica contra a Elosofia é representada por algumas


figuras que têm escasso relevo especulativo. No final do século XI, Baclija
lbn-Pakudia, num texto seu, Deveres dos corações, coloca a moral prática
acima da especulação e representa na tradição hebraica o que Algazel
representa no mundo árabe. Em 1140 o poeta Yehuda Halevi num livro intitulado
Kuzari parte de uni facto histórico: a conversão ao judaísmo de um rei dos
Jazares (séc. VIII), para fazer a

apologia do judaísmo e uma condenação da investigação filosófica. Abraão Ben


David, de Toledo, escreveu em 1161, em árabe, um livro chamado A fé sublime
para demonstrar o acordo entre a teologia liebraica e a filosofia
aristotélica. Mas esta tentativa teve pouca fortuna; e o único que consegue
entre os Judeus alcançar um lugar importante na investigação filosófica é
Maimónidas.

230

§ 250. MAIMóNIDAS: A TEOLOGIA

Moshé lbn Maymon, chamado Maimónidas, nasceu em Córdova a 30 de Março de


1135. Por causa da intolerância dos almohades, a sua família foi obrigada a
abandonar a Espanha e a fixar-se, primeiro em Fez, Marrocos, e depois na
Palestina. Daqui, Moisés passou para o Egipto, instalando-se na velha Cairo.
Ao mesmo tempo que se dedicava ao comércio de pedras preciosas, dava cursos
públicos que lhe granjearam fama como filó sofo e teólogo, mas sobretudo como
médico. O rm,nistro do célebre sultão Saladino, que naquele tempo tinha
estendido o seu -Poder ao Egipto, assegurou-lhe os meios necessários
pararenunciar ao comércio e dedicar-so apenas à ciência, nomeando-se médico
da corte. Ma-imónidas consegue então obter grande celebridade e fortuna, e
pôde, com a ajuda do seu protector, furtar-se às acusações que lhe foram
feitas de haver regressado ao judaísmo depois de ter aceitado, durante a sua
estadia em Espanha quando jovem, a fé muçulmana. Morreu em 13 de Dezembro de
1204.

Maimónidas é autor de numerosos textos médicos e teológicos. Entre estes


últimos tem importância fLUosófica um chamado Oito capítulos. Um seu
Vocabulário da lógica foi traduzido para latim por Sebastião Munster. Mas a
sua obra fundamental é o Guia dos perplexos, na qual procurou levar a cabo a
conciliação entre a Bíblia e a filosofia, a revelação e a razão. A obra está
dirigida àqueles que rejeitam tanto a irreligiosidade como a fé cega e que,
ao encontrarem nos livros sagrados coisas contraditórias ou na aparência
impossíveis, não ousam admiti-Ias para não irem contra a razão, nem rejeitá-
las para não menosprezarem a fé; ficando por isso dominados por uma
perplexidade dolorosa. A estes perplexos se dirige Maimónidas, com o

231

propósito de utilizar todas as armas dialécticas, proporcionadas pela


filosofia árabe e judaica na defesa da fé tradicional.

Vimos já que o resultado substancial da filosofia árabe desde AI Kindi a


Averróis foi a elaboração do princípio da necessidade do ser, princípio que
tem como imediata consequência a eternidade do mundo. É certo que contra esse
mesmo princípio se fez sentir a reacção dos Mutalcalli-mun, dos Asharias e de
Algazel; mas esta reacção, que partia da ortodoxia -religiosa, era estranha à
filosofia e por isso contrária a todas as filosofias. Parecia que a defesa da
novádade do mundo e da criação não podia ser feita a não ser em nome da fé e
com a renúncia de todas as vantagens que a investigação filosófica tinha
trazido à própria compreensão da verdade revelada. A originalidade de
Maimónidas que, no entanto, se apresenta de início como defensor do mundo e
da criação, reside no facto de ele não renunciar ao processo demonstrativo e
aos resultados da filosofia da necessidade. Uma vez que a existência de Deus
e as outras verdades fundamentais não permitem ser demonstradas rigorosamente
a não ser através dos processos dessa mesma filosofia e na base do princípio
que a mesma defende, parece ser de utilizar este princípio para se
estabelecer as verdades fundamentais, para em seguida submeter a uma análise
o referido princípio. "Creio, diz Maimónidas (Guia, 1, 71), que o verdadeiro
modo, o método demonstrativo que elimina a dúvida, consiste em estabelecer a
exigência de Deus, a sua unidade e a sua corporeidade de acordo com o
procedimento dos filósofos, procedimento esse que se baseia na eternidade do
mundo. Não ,porque eu creia na eternidade do mundo ou faça a este propósito
qualquer concessão; mas porque só com este método a demonstração se torna
segura e se obtém uma certeza perfeita sobre estes pontos:

232

que Deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o
que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. Uma vez
resolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves e
importantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo e
para isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". Noutros termos,
Maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidade
do ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando para
depois, num

segundo momento, a discussão do corolário fundamental daquele princípio, a


eternidade do mundo.

Sob esta base, Maimónidas procede à demonstração da existência, de Deus e dos


seus atributos fundamentais, a unidade e a corporcidade: e as suas
demonstrações não fazem mais que seguir de perto o que disse Avicena. Supondo
que alguma coisa existia (e para que qualquer coisa exista. bastam os nossos
sentidos para o demonstrar), existe necessàriamente um Ser necessário. Já que
aquilo que existe, ainda que seja apenas como possível, é necessário em
relação à sua causa; e esta causa é precisamente o Ser necessário (1b., 11,
1). Deus conhece todas as coisas, mesmo as particulares; mas conhece-as com
um único e imutável acto de ciência. A multiplicidade das coisas conhecidas
não implàca a multiplicidade do saber divino, que permanece único porque não
depende das coisas, que por seu lado dependem dele (1b., 111, 20-21).

Estabelecida a existência de Deus, Maimónidas passa a considerar o problema


do mundo. O argumento mais forte adoptado por Avicena a favor da eternidade
do mundo era o seguinte: o mundo, antes de ser criado, era possível; mas toda
a possibilidade implica um substrato material; por conse- ,guinte, antes da
criação subsistia a matéria do mundo. Mas nenhuma matéria existe privada de

233

forma; por conseguinte, antes da criação, subsistiam a matéria e a forma do


mundo, ou seja, o próprio mundo na sua totalidade. A este argumento e a todos
os outros da mesma espécie, Maimónidas opõe que é impossível raciocinar sobre
as condições em que se encontrava quando começava a nascer, uma coisa que
agora está acabada e perfeita. Não podemos recuar do estado em acto de uma
coisa para o seu estado potencial; por conseguinte, todos os argumentos que
se servem desta forma de agir são viciosos e não têm qualquer força
demonstrativa. Se a tese da eternidade do mundo não pode ser demonstrada, a
tese oposta, da criação é, pelo menos, possível. Mas Maimónidas sustenta que,
mais que possível, é certa e dá-nos disso a razão.

Essa razão consiste substancialmente no reconhecimento da liberdade do acto


criador, liberdade que rompe com a necessidade do mundo, da qual derivaria a
sua eternidade. Pela negação da necessidade do ser, Maimónidas pretende
chegar à negação da eternidade do mundo; e consegue chegar à negação da sua
necessidade ao reconhecer em determinado momento do processo criativo uma
liberdade de escolha por parte de Deus, uma decisão contingente, não
rigorosamente determinada pela exigência de garantir a ordem necessária do
todo. De qualquer modo, o mundo teria podido ser diferente do que é; no
entanto ele é aquilo que é devido a uma livre escolha de Deus que exclui a
necessidade absoluta e, por conseguiinte, a eternidade. "Se debaixo da esfera
celeste existe uma tal disparidade de coisas, não obstante a matéria ser uma
só, poderás dizer que essa disparidade se deve à influência das esferas
celestes e às diferentes posições que a matéria assume perante elas, como
ensinou Aristóteles. Mas a diversidade que, existe entre as esferas celestes,
quem poderá determiná4a senão Deus?

234

Se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nada
explicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posição
relativamente à esfora. Porque razão o desejo que atrai cada uma das esferas
para a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outra
para oeste? Por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta e
outra mais rápida?" (-1b., 11, 19). A única resposta possível a estas
perguntas é, segundo Maimónidas, a contingência do mundo. "Deus determinou
como quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nós
ignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". E deste
modo, Maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a Deus
mediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese e
inutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era o
resultado fundamental da especulação árabe.

§ 251. MAIMóNIDAS: A ANTROPOLOGIA

Tal como a metafísica de Maimónidas é dorninada pela exigência de ressalvar a


liberdade criadora de Deus, ainda que nela não se negue a ordem do mundo nem
se faça da realidade um milagre contínuo, também a antropologia é dominada
pela exigência de ressalvar a liberdade humana, quer no

domínio do conhecimento quer no domínio moral. Vim-os já como a filosofia


árabe tinha constantemente atribuído ao Intelecto agente, separado e divino,
a total iniciativa do conhecer humano. Ma,imónidas, ainda que reproduzindo
nos seus traços fundamentais a doutrina de Avicena sobre o intelecto,
modifica-a no sentido de reservar ao homem e ao seu esforço de
aperfeiçoamento a verdadeira e própria iniciativa do conhecer. A alma
racional do homem
235

é o intelecto hilico, material e potencial, que se encontra no corpo, tal


como as almas das esferas celestes se encontram nos corpos das próprias
esferas. Este intelecto passa a acto e eleva a alma ao conhecimento
verdadeiro e próprio das formas inteligíveis, por acção do Intelecto
agente que não é múltiplo, nem se encontra nos corpos diversos, como a
inteligência hílica, mas único e separado de todos os corpos (1b., 1, 50-52).
Até aqui nada de novo: trata-se da reprodução da doutrina de Avicena. Mas
Maimónidas acrescenta que para o Intelecto poder fazer passar a acto o
intelecto hílico, precisa de encontrar uma matéria preparada para receber a
sua expansão. Conforme a alma racional esteja ou não convenientemente
disposta, assim receberá ou não a influência do Intelecto agente, passará ou
não a acto, e o realizar-se numa ou noutra das alternati,vas não depende do
Intelecto agente, que permanece sempre idêntico, mas apenas no homem,
Maimónidas retira assim ao Intelecto agente a iniciativa de conhecer e
restitui-a ao homem. Consoante o grau de preparação da sua alma racional,
assim recebe o homem mais ou menos a acção do intelecto agente e se ergue
mais ou menos para a perfeição; já que para ele a perfeição consiste em
tornar-se inteligência em acto e em conhecer, de tudo o que existe, aquilo
que lhe é dado conhecer (1b., 111, 27). A maior parte dos homens recebe do
Intelecto agente apenas a luz que chega para alcançar a perfeição individual;
outros recebem uma acção mais abundante, que os estimula a criar obras e a
comunicar aos outros homens a sua própria iluminação. Quem recebe a imanação
do Intelecto agente na alma racional é um sábio que se dedica à especulação.
Quem a recebe não só na alma racional, mas também na capacidade imaginativa,
é um profeta. A profecla representa (como já acontecia em AI Farabi e em
Avicena) a mais elevada

236

perfeição do homem, porque só na alma melhor disposta a influência do


Intelecto agente se expande para lá da razão, na faculdade imaginativa (1b.,
11,
36-37).

Maimónidas, assim como defende a actividade humana no domínio do con-


heoimento, também defende a liberdade humana no domínio da acção. É certo que
a providência divina se estende a todo o futuro e por conseguinte determina
também as acções humanas que irão acontecer. Mas não se pode renunciar a
admitir a liberdade que é o princípio da acção e a condição da
responsabilidade humana. É preciso portanto afirmar que a predeterminação
divina e a liberdade humana são conciliávèis; só a forma como o são é que nos
escapa. A própria providência exerce-se tendo em conta a liberdade, a razão e
os méritos do homem, e não se deve impor ao homem o peso de uma ordem pré-
constituída que lhe tolha a liberdade (1b., 111, 17-18).

Da sua doutrina do intelecto, Maimónidas deriva a da imortalidade. A


imortalidade não é para todos os homens, está reservada aos eleitos, àqueles
a que a Bíblia chama as "almas dos justos" (1b., H, 27;
1, 70). Mas não se trata de uma imortalidade singular. Maimónidas admite o
princípio aristotélico de que a diversidade entre os ind,ivíduos de uma mesma
espécie é devida à matéria. Para as inteligências separadas, este princípio
não vale: estas são distintas únicamente pela razão causal, pela qual uma é
causa e outra efeito. Mas as almas dos homens são distintas entre si apenas
pelos corpos: e uma vez corrompido o corpo, a distinção entre os indivíduos
desaparece, pois apenas fica o puro intelecto (1b., 1, 74). A imortalidade do
homem não é mais que a sua participação na eternidade do Inteler-to separado.
O homem não é verdadeiramente, segundo Maimónidas, imortal como homem, mas

237

apenas, como parte do Intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade é


devida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida da
sua elevação espiritual.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 244. Sobre a filosofia judaica: MUNK, Méianges, cit., p. 461-511; STOCKL,


Geschichte der Phil. des Mittelalters, II, p. 227-305; NEumARK, Geschichte
der judischen Phil. des Mittelalters, Berlim, 1907-1928; HuSIK, A History of
Medieval Jewish Philosophy, New York, 1918; GUTTMANN, Die Philosophie, des
Judentums, Munique, 1933; BERTOLA, La filosofia ebraica, Milão, 1947; ADLER,
Philosophy of Judaism, New York, 1960.

O Livro da Criação foi imprimido em Basileia em


1567, numa recolha com o título de Artis cabbalisticae scriptores; outra ed.
Amesterdão, 1642, reeditada por GoIdschmidt, Francor-f do Meno, 1894. O Livro
do EsvIendor, impresso pela primeira vez em Mântua,
1558-1560, teve depois várias edições com a tradução latina de Amesterdão, de
1670 em diante. Traduções francesas de DE PAULY, Paris, 6 vols. 1905-
1911.FRANK, Système de Ia Eabbale, Paris, 1842; PicK, The Cabala, Londres,
1914; BOSKER, From the World of the Cabbalah, New York, 1954; SEROUYA; La
Kabbale, Paris, 1957.

§ 245. As obras de Isaque com o titulo Opera Omnia, editadas em Lyon em 1515;
esta edição compreende a tradução latina do Livro das Definições e do Livro
dos Elementos; ed. Muckle, in "Archiv. d'Hist. doctr. et litt. du m. â."
1937-38; trad. ing. de Stern, Londres, 1958.

GuTTMANN, Die philosophischen Lehren des Isaac, em "Beitrage", X, 4, 1911.

§ 246. De Saadja: Ouvres complètes, ed. Derenbourg, 6 vols., Paris, 1893-


1896.

GRVNFELD, em "Beitrage", VII, 6, 1909; MALTER, Saadia Gaon, Filadelfia,


1921; VENTURA, La phil. de S. G., Paris, 1934; FREIMANN; Saadia's
BibUography, New York, 1943.

238

§ 247. O Fons Vitae de Ibn-Gebirol foi editado nas partes fundamentais em


árabe e traduzido para francês por MUNK, Mélanges, cit. A tradução latina de
João Hispano e Domingo Gundisalvo, por Ba,eumker, nos seus "Beitrage", 1, 2-
4, 1892-1895.

MUNK, Mélanges, cit., p. 151 e sgs.; GUTTMANN, Die Philosophie des Salomon
von Gebirol, Cottingen, 1889; BERTOLA, Salomon ibn Gebirol (Avicebron),
Pádua, 1953.

§ 249. O livro de Bachja Sobre os deveres dos corações teve idêntica edição
na tradução hebraica; Nápoles, 1490; Leipsig, 1846; Viena, 1854. Com tradução
alemã de STERN, Viena, 1856; tradução alemã de FURRSTENTHAL, 1836.

O livro Alcharari de Gluda Halevi foi publicado com a tradução latina em


Basilei-a em 1660; com tradução alemã em Leipsig, 1841-1853, 2.1 ed., Leipsig,
1869.

O livro de Ben David A fé sublime, na tradução hebraica acompanhada da


tradução alemã, foi publicado por WeiJ, Franefort do Meno, 1852.

§ 250. A tradução latina do Guia dos Perplexos de l@faimõnidas com o título


Dux seu doctor dubitantium seu perplexorum, foi editada em Paris em 1520. O
texto árabe foi publicado com tradução francesa por S. MUNK com o titulo Le
guide des égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols. Paris, 1856,
1861, 1866; trad. ing. edlãnder, Londres, 1881, 1885; 2.1 ed. New York,
1925.
LEVY, Maimónide, Paris, 1911, reedição em 1931, com bibl.; SÉROUYA,
Maimónide, Paris, 1951; ZEITLING, Maimónides,. New York, 1955.

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