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Ilustração por Raquel Thomé.

As fogueiras ainda estão acesas. Mulheres ainda se tornam vítimas pela menor ação fora do
rígido código de condutas vigente. Desde linchamentos públicos por roupas curtas — sejam eles
como o caso de Geyse Arruda, ou online, como aconteceu com a saltadora Ingrid Oliveira — aos
chamados estupros corretivos. Dos crimes passionais à jornada dupla de trabalho e cuidados em
casa. Das mulheres caladas em palestras àquelas que não chegam aos cargos mais altos das
empresas. Qualquer uma que subverta, deliberadamente ou não, o que se espera de uma
mulher, está sujeita. O caminho da fogueira se transformou no destino de milhares de mulheres
na Europa, no fim, pelos mesmos motivos por quais as mulheres dos nossos tempos encontram
fogueiras simbólicas diferentes no decorrer de suas vidas: a misoginia. Elas eram e são as
hereges da ordem patriarcal.

A caça às bruxas não acabou em 1700, como datam historiadores. As bruxas não mais são
queimadas em espetáculos públicos. As fogueiras de hoje são outras. Se no fim da Idade Média e
início da Idade Moderna as Igrejas Católica e Protestante, com amparo jurídico do Estado,
estabeleceram uma cruzada pela manutenção da ordem patriarcal, hoje não é diferente.
Personagens e métodos diferem daqueles do passado, mas as mulheres que ousam questionar o
regramento vigente não deixam de ser perseguidas. Esse paralelismo pode ser observado diante
de poucas buscas na internet, em pesquisas em matérias e textos publicados sobre o assunto.

Pelas estimativas feitas em mapeamentos do genocídio de mulheres na Europa,


aproximadamente 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas no período. Mais de
80% eram mulheres, incluindo crianças e moças que haviam “herdado o mal” das mães. As
perseguições não foram, ao contrário do que se imagina, exclusivas da Idade Média. A "idade
das trevas", sob o pretexto de acusações de bruxaria, executou a jovem Joana D’Arc. Em 30 de
maio de 1431, na cidade de Rouen, então sob domínio inglês, a heroína francesa foi levada à
fogueira. No entanto, na Idade Moderna que as perseguições ganharam viés institucionalizado,
mais forte e organizado.

O mesmo período que deu aos europeus a descoberta do novo mundo — ou significou o início
dos saques e colonização das Américas —, a ascensão da burguesia comercial, viu crescerem as
cidades-Estados, em detrimento do antigo modelo feudal, mostrou a força do medo e do ódio
contra as mulheres. Uma perseguição sistemática deu lugar às crendices populares. Muitas
condenadas eram assassinadas depois de confissões, conquistadas graças a torturas.

Durante mais de 300 anos, dezenas e até centenas de pessoas se reuniam em torno de pilhas de
lenha para aguardar o ritual. A multidão atacava a condenada com objetos, palavras de ódio,
piadas. Como hoje, as diferentes putas e vadias, mulheres que não reprimem a própria
sexualidade, mães solteiras, ou simplesmente aquelas que não se enquadram no esterótipo da
mulher doce e resignada ao seu papel de quem cuida do lar e é mãe exemplar. São essas que
hoje vão parar nas rodas de conversas, que são apontadas por dedos que chegam de todos os
lados. Inclusive de outras mulheres que podem acreditar que, assim, serão aceitas pelo sistema
e se verão livres elas próprias do risco de serem o centro das acusações.

O sistema de caça às bruxas foi tão eficiente que a própria população era responsável por
entregar vizinhas, amigas, conhecidas, na tentativa de livrar a própria pele de potenciais
acusações. As vítimas eram acusadas de praticar crimes sexuais contra os homens e terem
firmado um pacto com o demônio. Também eram culpadas por se organizarem em grupos —
geralmente reuniam-se para trocar conhecimentos acerca de ervas medicinais, conversar sobre
problemas comuns ou notícias. Outra acusação era de que possuíam poderes mágicos, os quais
provocavam problemas de saúde na população, problemas espirituais e catástrofes naturais.
Hoje, as feministas são amplamente acusadas de serem contra a vida, por defenderem a
legalização do aborto. São também aquelas que decretaram o fim da gentiliza, quando se
levantam contra o cavalheirismo, querem assumir o poder quando pedem espaços de fala, são
radicais por não aceitarem piadas machistas.
No Brasil, a bruxa famosa mais recente é Simone de Beauvoir, depois de ter sido mote de uma
questão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Até de “baranga francesa que não toma
banho, não usa sutiã e não se depila” ela foi chamada por um promotor de Justiça (!).
Vereadores de Campinas aprovaram moção de repúdio à filósofa e à questão da prova por,
segundo eles, “afrontar esse conjunto de fundamentos jurídicos e o próprio Estado Democrático
de Direito”.

A perversidade feminina era a tese em voga durante o período do genocídio feminino — e não
deixou de ser. Mulheres eram o sexo frágil e, portanto, eram mais suscetíveis aos mandos do
demônio. Essa tendência precisava ser contida a qualquer custo. De 1450 a 1750, poucas
pessoas ousariam contradizer essa doutrina, repetida em tom de ameaça nos púlpitos dos
pregadores católicos, assim como nos sermões protestantes depois da Reforma religiosa de
Martinho Lutero no século XVI.

A vinculação entre religião e Estado também propaga tabus, preconceitos e atravanca debates
na sociedade atual. Vários integrantes da bancada evangélica da Câmara dos Deputados têm,
capitaneados pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), apresentado e aprovado
projetos que são retrocessos nos direitos das mulheres. O que pretende o Projeto de Lei 5069,
de autoria de Cunha e patrocinado pela bancada religiosa, aprovado recentemente na Comissão
de Constituição e Justiça e de Cidadania (CDHM) é justamente complicar o acesso legal ao
aborto. Depois de ser violentada pela primeira vez, a mulher será violentada pelo Estado, que
passa a exigir que ela prove o que aconteceu. Avanços não são sequer discutidos. As energias
precisam se voltar para a contenção desses retrocessos e garantia dos direitos conquistados.
Séculos atrás, não era preciso muito, ao contrário, para provar que a ação infernal promovida
pelas mulheres estava em andamento. Ainda assim, a guerra santa contra as mulheres contava
com fundamentação teórica. Publicado em 1486, o livro Malleus Maleficarum, ou o Martelo das
Bruxas, escrito pelos inquisidores papais alemães Heinrich Kramer e James Sprenger, se tornou
um instrumento eficaz nos tribunais para consolidar a crença de que uma grande conspiração
arquitetada por Satã e suas seguidoras, as bruxas, tomava conta do mundo. A obra virou um best
seller. Possuía valor legal e religioso. Por ser aceito por católicos e protestantes, o livro serviu nos
dois séculos seguintes como manual para identificar e eliminar bruxas.

Kramer e Sprenger não pouparam esforços para mostrar que a mesma mulher que provocou a
expulsão do homem do paraíso ainda era uma ameaça presente. A identidade com o pecado
original, principalmente na história do cristianismo, foi um fardo pesado para a mulher até o
século XVII. Para provar a propensão natural da mulher à maldade não faltavam argumentos, a
começar por “uma falha na formação da primeira mulher, por ser ela criada a partir de uma
costela recurva, ou seja, uma costela no peito, cuja curvatura é, por assim dizer contrária à
retidão do homem”.

Com seu “furor uterino”, para o homem a mulher era uma armadilha fatal, que podia levá-lo à
destruição, impedindo-o de seguir sua vida tranquilamente e de estar em paz com sua
espiritualidade. Mais uma vez, o paralelismo com a nossa sociedade. Em todo caso de assédio,
dos mais cotidianos aos mais graves, a culpabilização das vítimas. A mulher, com sua roupa
curta, sua embriaguez, por andar sozinha à noite, é que provoca a ausência de controle
masculino. Pobres homens diante de tantas artimanhas femininas. Ainda são acusados se algo
acontece!

Profissões tipicamente femininas no período também se tornaram alvo da caçada. A militante


feminista e então doutoranda em Ciências Jurídicas na Universidade de Osnabrück, na
Alemanha, Rosângela Angelin, publicou artigo, em 2005, em que afirma que muitas vezes as
mulheres eram a única possibilidade de atendimento médico nas comunidades locais. “Ao
analisarmos o contexto histórico da Idade Média, vemos que bruxas eram as parteiras, as
enfermeiras e as assistentes. Conheciam e entendiam sobre o emprego de plantas medicinais
para curar enfermidades e epidemias nas comunidades em que viviam e, consequentemente,
eram portadoras de um elevado poder social. Elas foram por um longo período médicas sem
título. Aprendiam o ofício umas com as outras e passavam esse conhecimento para suas filhas,
vizinhas e amigas.” As cozinheiras também viviam sob constante desconfiança.

O fato dessas mulheres usarem seus conhecimentos para a cura de doenças e epidemias
ocorridas em seus povoados acabou despertando a ira da instituição médica masculina em
ascensão, que viu na Inquisição um bom método de eliminar as suas concorrentes econômicas.
Rosângela Angelin afirma que a perseguição foi uma causa das classes dominantes pela
manutenção dos seus privilégios. Nada diferente do que temos hoje. Além disso, a união de
mulheres já era visto como a algo a ser temido, desde aqueles tempos. As redes formadas por
elas para troca de conhecimento e apoio ganhavam status de perigo a ser combatido, um risco à
ordem.

Outro grupo perseguido era daquelas com práticas sexuais opostas à heterossexualidade, ou que
viviam de forma autônoma. Também das mulheres bonitas que haviam ferido o ego de
poderosos ou que despertavam desejos em padres celibatários ou homens casados.

Há quem diga que caça às bruxas foi a base do estabelecimento da sociedade ocidental
moderna. Foi sem dúvida o extermínio de antagonistas e desertoras à norma. A caça às bruxas
deu-se de modo total: militar, ideológica, cultural, de gênero, sexual, territorial, econômica; de
forma a garantir o status quo.
“Com a ascensão da Igreja Católica, o patriarcado imperou, até mesmo porque Jesus era um
homem. Neste contexto, tudo o que a mulher tentava realizar, por conta própria, era visto como
uma imoralidade”, coloca Angelin. Imoralidade é bem a palavra usada ainda hoje para refrear
tentativas de empoderamento feminino em diferentes setores e diferentes envergaduras. Da luta
em movimentos sociais propriamente dita a uma atitude mais independente em ambientes
privados. E o feitiço mais efetivo para isto é nos assumirmos e nos reconhecermos como bruxas:
feministas. Perceber quão antigo é o sistema que move as engrenagens ainda hoje em operação,
dar nome ao machismo para então nos opor a ele

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