Eu canto Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
SOLANO TRINDADE
Como ponto de partida, o excerto de “Canto dos Palmares” (1961) traz a voz
daquele que melhor produziu a poesia negra das Américas: Solano Trindade. No
entanto, como qualquer outro escritor negro brasileiro, o poeta não teve o
reconhecimento da crítica literária, tampouco seu nome reverenciado nos livros
didáticos de literatura brasileira. A riqueza poética de Trindade ficou especialmente
registrada em “Canto dos Palmares”. Nessa obra, além de evocar o orgulho de suas
raízes africanas e exaltar a luta do povo negro pela liberdade, o poeta buscou
“desconstruir” o esquema da epopeia tradicional. Isso quer dizer que, entre outras
especificidades, Solano transformou os quilombolas – conhecidos como “vencidos e
humilhados” (BERND, 2011) – em heróis da sua narrativa épica. Mas quem foi
Solano Trindade? Qual a sua contribuição para a poesia negra brasileira? Quais
elementos caracterizam sua produção literária? Quais poetas mais se destacaram
nessas últimas décadas?
Entre esses críticos, a pesquisadora Zilá Bernd (2011) acredita que o conceito
de “literatura afro-brasileira” associa-se a uma articulação entre textos dada por um
modo negro de ser e sentir o mundo, transmitido por um discurso caraterizado por
determinados elementos, como, por exemplo, a escolha lexical, os símbolos
utilizados, a construção do imaginário e o desejo de resgatar uma memória negra.
Ainda segundo a pesquisadora, a importância do uso da expressão “literatura afro-
brasileira” está no fato de permitir nomear uma arte literária que carrega uma
condição específica e diferenciada no âmbito da literatura nacional.
Por outro lado, uma parte da crítica e a maioria dos escritores negros
defendem o uso da expressão “literatura negra”. Entre eles, ressalto a escritora
Miriam Alves. Conforme esclarece a autora, a expressão “literatura negra” surgiu
num momento sociopolítico de posicionamento e autoafirmação dos valores do povo
negro em âmbito nacional e mundial. Tal movimento, segundo Alves (2002), estava
conectado a um contexto de “grito” contra o racismo. No Brasil, as denúncias e os
protestos organizados por militantes negros ganharam força. Nesse período, final da
década de 70, em que emergia o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial, o termo “literatura negra” teve seu uso defendido pela primeira
edição da coletânea Cadernos Negros:
Considerando toda uma produção literária que vem, ao longo das últimas
décadas, dando visibilidade à vivencia do negro brasileiro, Alves (2002) argumenta
que a crítica, ao renomear o já autodenominado, “destoa do processo de
singularização porque, ao fazê-lo, está, na verdade, identificando todo o processo a
uma subjetividade dominante” (p. 232-233). Para a escritora, a existência de uma
literatura especifica, neste caso, a “literatura negra”, se dá através de um conjunto
de significados, intenções, símbolos, padrões estéticos, visões de mundo etc. Logo,
o termo “negro”, aqui, não designa a cor epidérmica de alguém. Trata-se, de acordo
com Alves (2002), de um termo tido como pejorativo num contexto cultural para
diminuir e inferiorizar. Portanto, a “literatura negra”, diante desse contexto, tem a
intenção de ressignificá-lo. Deve ser enfatizado que a autora não se refere apenas à
“inversão” do sentido negativo do termo, mas ao modo de olhar o brasileiro negro e,
ainda, à necessidade de arrancar a “máscara da invisibilidade”.
Considerando que a produção literária negra não pode ser pensada sem o
respaldo da experiência histórica do negro, Maria Nazareth Soares Fonseca (2006)
afirma que os escritores afrodescendentes, por motivações próprias, têm se
empenhado em reconstituir narrativas (ou produções poéticas) sem apagar as
tradições herdadas dos seus antepassados. Para a autora, tal empenho justifica-se
pela intenção de não apenas denunciar a violência e a exclusão sofridas no
passado, mas de também exaltar a profusão de vozes silenciadas e as expressões
culturais do povo negro. Assim, utilizando o espaço da literatura, suas vozes podem
assumir diferentes tons, ritmos, sonoridades, entre outras especificidades advindas
especialmente da predominância oral africana.
Sou negro
Sou negro
Meus avós foram queimados
pelo sol da África
minha alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malés
ela se destacou
(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 74).
Em “Sou Negro” (1961), a “consciência resistente” constitui-se através de três
principais elementos: o resgate da memória ancestral, as contradições históricas
(aquelas pelas quais o discurso hegemônico exclui a experiência negra) e a
exaltação dos seus heróis. Sobre a primeira, é possível perceber que o “eu
enunciador que se quer negro”1 (BERND, 1988) manifesta um sentimento de
nostalgia em relação ao solo africano e aos caminhos percorridos pelos seus
antepassados (representados na figura dos avós). Ao registrar que sua alma
recebeu o batismo dos tambores2, também revela que carrega consigo a força e a
coragem daqueles que enfrentaram um longo processo de escravização e que, no
entanto, não deixaram de lutar pela liberdade e pela preservação de suas raízes e
tradições.
1 De acordo com Zilá Bernd (1988), o que define a poesia negra não é o fato de o autor/enunciador
ser negro, mas o fato de situar-se como negro para que a poesia possa exprimir uma fala própria,
com uma intenção negra.
2 Dentro do universo africano, o tambor – assim como atabaques, gonguês e agogôs – , é um
período Regencial. O levante reuniu cerca de 600 negros, sendo que alguns já desempenhavam
atividades livres (como alfaiates, carpinteiros e artesãos). O mote da revolta era a libertação dos
escravos de origem muçulmana, já que esses dispunhavam de relativa autonomia por dominar a
leitura e a escrita em árabe (Fonte: www.palmares.gov.br).
Dessa forma, a referência a Zumbi, mais do que uma exaltação ao
emblemático herói negro (terceiro elemento comentado), propõe um questionamento
acerca dos discursos históricos oficiais. Nessa direção, Zubaran e Vargas (2016),
num estudo sobre a Imprensa negra, explicam que, durante muito tempo, no Brasil,
as memórias e as histórias dos afro-brasileiros limitaram-se à reiteração do estigma
da escravidão, isto é, o negro foi representado predominantemente como vítima
submissa dos castigos e dos infortúnios sofridos pela sociedade escravista. Assim,
de acordo com as autoras, suas lutas, conquistas e, sobretudo, sua história, foram
sendo negligenciadas e esquecidas pela narrativa “oficial”.
Outro escritor selecionado para este estudo, Luiz Silva (Cuti), nascido em São
Paulo, no ano de 1951, vem produzindo um tipo de poesia classificada por Bernd
(2011) como “a consciência trágica”. Os escritores engajados nesse tipo de
produção, conforme a autora, tendem, por um lado, a atrair a “piedade” ou a
“simpatia” do leitor; por outro, provocam a “angústia” e o “terror”, despertando “uma
repulsão em face à injustiça da discriminação e do preconceito de que os poetas (e
toda a comunidade negra) ainda são vítimas, mesmo após mais de 100 anos de
abolição” (BERND, 2011, p. 110). A consciência trágica também surge relacionada a
uma tomada de consciência que procura transformar o estigma da escravidão em
resistência:
Sou negro
Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
- Negro e pronto! -
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
E não me prego em ser preto
Negro pronto
Contra tudo o que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo – sangue sem regra feita
Grito – negro – força
Contra grades contra forcas
Negro pronto
Negro e pronto.
(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 145).
Vozes-mulheres
(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 158.
Olho-me
espelhos
Imagens
que não me contêm.
Decomponho-me
apalpo-me
Perdem-se
as palavras.
Volatilizo-me.
Transpasso os armários
soltando sons abertos
na boca
fechada.
A emoção dos tempos
não registro
no
meu ouvir
desmancho-me nos espaços.
Decomponho-me.
Recomponho-me
sentada
na
sala
de espera
falando com
meus
fantasmas.
(Fonte: Antologia de Poesia Afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil. BERND, Zilá
(org.) Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011, p. 168).
Considerações finais
Por fim, este estudo procurou mostrar que a voz e a escrita daqueles que, por
muito tempo, ocuparam o lugar da subalternidade e foram (ou ainda são) excluídos
da formação histórica e cultural brasileira vêm se projetando, gradativamente, no
cenário literário nacional. Seus discursos, dentro de uma vertente poética, revelaram
que eles não trazem apenas um desejo de problematizar o passado, mas de permitir
que seja construído um novo modo de olhar para os sujeitos negros. Diante disso, a
poesia negra se faz presente como um modo de questionar os discursos
hegemônicos e, acima de tudo, de ascender as memórias negras contra o racismo
que estrutura a sociedade brasileira.
Referências
ALVES, Miriam. Cadernos Negros (número 1): estado de alerta no fogo cruzado.
In: FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lanna; FONSECA, Maria Nazareth Soares (org).
Poéticas afro-brasileiras. Belo Horizonte: Mazza PUC Minas, 2002.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e Cabelo como símbolo da
Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.