da Costa
Décio Krause
NOTAS DE LÓGICA
Parte I:
Lógicas Proposicionais Clássica e
Paraconsistente
(Texto Preliminar)
? ? ?
Grupo de Lógica e Fundamentos da Ciência, UFSC/CNPq
Núcleo de Epistemologia e Lógica
Departamento de Filosoa
Universidade Federal de Santa Catarina
florianópolis
2004
ii
Prefácio
Prefácio iii
1 Sistemas Formais 1
1.1 Dos sistemas axiomáticos aos sistemas formais . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1.2 Sistemas Formais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1.2.1 O conceito formal de prova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.3 O Sistema MAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
1.3.1 Indução sobre teoremas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
1.3.2 Teoremas e metateoremas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
1.3.3 Provas, demonstrações e outras coisas . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
1.4 Dedução a partir de um conjunto de premissas . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1.4.1 Raciocínios Derrotáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
vii
viii Prefácio
Apêndice A
Reticulados e Álgebras de Boole 115
5.3 Reticulados como sistemas ordenados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
5.4 Álgebras de Boole . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
5.5 Álgebra de Lindenbaum associada ao Cálculo Proposicional Clássico . . . . 124
5.6 Digressão: Sobre a algebrização da lógica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Apêndice B
Indução e Recursão 127
5.7 Indução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
5.8 Recursão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
5.9 O Teorema da Recursão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Apêndice C
Uma visão geral de alguns sistemas proposicionais 133
5.10 A lógica intuicionista e a física atual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Capítulo 1
Sistemas Formais
1
2 Sistemas Formais
usa formas de inferência de modo informal e intuitivo, sem que tenha sido
feita qualquer análise prévia desses procedimentos. Isso no entanto tem a sua
razão de ser, pois exigiria do cientista que aplica o método axiomático a uma
determinada área, como a física ou a biologia (ou mesmo à matemática), uma
regressão que em muito o desviaria de seus propósitos. Assim, quando se fala
acima que nada é pressuposto que não tenha sido explicitamente declarado
nos postulados, deve-se fazer certas concessões. Tomemos um exemplo.
Considere um sistema axiomático cujos conceitos primitivos sejam ponto
e reta.5 Os postulados sâo: (1) Toda reta é uma coleção (conjunto) de pontos;
(2) Há pelo menos dois pontos; (3) Se p e q são pontos distintos, então há
uma e somente uma reta que os contém; (4) Se r é uma reta, então há pelo
menos um ponto que não pertence a r.
Obviamente, temos aqui uma idéia intuitiva do que ponto e reta sig-
niquem, o que provavelmente trazemos de nossas aulas de geometria da
escola elementar. Com efeito, dando a esses conceitos precisamente esses
signicados ou interpretações, pode-se vericar sem muita diculdade que os
postulados (1) a (4) são 'verdades geométricas', o que signica que podem ser
derivados dos postulados da geometria euclidiana. No entanto, no espírito
do método axiomático moderno ou abstrato, podemos dar a esses conceitos
outras interpretações. Por exemplo, imagine uma universidade, que chamare-
mos de U , que tenha pelo menos dois alunos, de tal forma que cada um dos
alunos de U cursa pelo menos uma disciplina, mas de sorte que, para cada
p em U , há uma e uma só disciplina que ele cursa. Agora deixe 'ponto' sig-
nicar 'aluno de U ' e 'reta' signicar 'disciplina que os alunos de U cursam'.
Isso posto, os postulados (1) a (4) tornam-se igualmente 'verdadeiros'.
Exercício 1.1.1 (a) Verique o que foi dito acima, ou seja, que os postulados
(1) a (4) são vericados para a interpretação envolvendo U e seus alunos. (b)
Acrescente ao sistema acima o seguinte postulado: (5) Se r é uma reta e p um
ponto que a ela não pertence, então existe uma e somente uma reta contendo
p e que é paralela a r. Convença-se que os postulados (1) a (5) do texto são
teoremas da geometria euclidiana. No entanto, tendo em vista a segunda
interpretação (a dos alunos e disciplinas), (5) falha. Explique porquê.
Os exemplos dados acima mostram que, ainda que possamos dar aos
conceitos primitivos de um sistema axiomático variadas interpretações, há
coisas que ainda cam subentendidas, como (nos postulados (1) a (5) acima),
5 Este exemplo é adaptado de [Wil65, Cap. 1].
Dos sistemas axiomáticos aos formais 5
Exercício 1.1.2 Pense um pouco no que foi feito. O que justica podermos
somar r a ambos os membros da equação m + k = n + k ?
Fica claro agora o que signica dizer que Z, munido das operações de
adição e de multiplicação, é um domínio de integridade: é um modelo da ax-
iomática precedente. De modo mais geral, podemos então entender quando
uma certa estrutura hA, ∗, •i o é (esta notação quer dizer, em resumo, que
se está considerando o conjunto A munido de duas operações ∗ e •) é um
domínio de integridade. O teorema acima (devidamente adaptado) pode
agora ser derivado a partir dos axiomas (1')-(7'), valendo para todos os
domínios de integridade.
S = hF, A, Ri,
onde:
6 Mais
precisamente, uma teoria axiomática é um sistema formal cujo conjunto de ax-
iomas é recursivo , e uma teoria é axiomatizável se o conjunto de seus axiomas for recur-
sivamente enumerável . Para detalhes sobre esses conceitos, ver [Men87, p. 211].
O conceito de prova 11
`S α,
x+y =z x+y =z
(R1) e (R2).
x ∗ +y = z∗ y+x=z
teoremas de MAIS são M-verdadeiros. Para tanto, usamos uma técnica bas-
tante comum e importante, conhecida como Indução sobre Teoremas de um
sistema formal, e que consiste basicamente no seguinte.
Exercício 1.3.1 Refaça com detalhes o argumento que justica serem todos
os teorema de MAIS M-verdadeiros.
caso contrário, mas Joshu está comentando sobre o sistema, de uma posição
externa a ele. Assim são os metateoremas; são formulados para armar fatos
sobre os sistemas formais, mas via de regra são formulados e demonstrados
com recursos externos a eles, em geral usando-se o aparato matemático da
teoria de conjuntos. Hofstadter chama a questão acima mencionada de se
saber se MU é um teorema de MIU de 'o quebra-cabeças de Mu', pondo-
o da seguinte forma (ibid, p. 259): Será que MU tem a natureza de um
teorema?"('Has MU theorem-nature, or not?').
nos referimos acima. Com efeito, em geral usam-se os resultados das teorias
matemáticas sem que, em princípio, eles tenham sido vericados. Já imag-
inaram termos que checar cada resultado da aritmética, ou da mecânica de
Newton antes de usá-los? Acreditamos na autoridade, nos matemáticos e
demais cientistas que nos antecederam, e procedemos da mesma forma que
eles, ou seja, informalmente, exceto quando absolutamente necessário.
Por exemplo, o maior sistematizador da matemática depois de Euclides
é sem dúvida Nicolas Bourbaki (trata-se do pseudônimo de um grupo de
matemáticos, principalmente franceses, que produziu, e vem produzindo,
uma obra magistral de sistematização e desenvolvimento de várias áreas da
matemática). Pois bem: o livro de Bourbaki, que deveria fundamentar to-
dos os demais, é aquele sobre teoria de conjuntos [Bou68]. Nele, a teoria
Zermelo-Fraenkel, a mais conhecida entre os matemáticos, é apresentada for-
malmente. Em princípio, seria seguindo tais métodos e sobre um tal alicerce
que o restante do edifício da matemática deveria ser construído. Porém não
é isso o que acontece de fato. De uma altura em diante, Bourbaki simples-
mente abandona o procedimento formal que exibe e passa a proceder como
o matemático praticante, informalmente. Pode-se dizer que há uma lacuna
entre o Théorie des Ensembles e o restante de sua obra no que concerne ao
modo de proceder. No entanto, o que deve ser entendido é que Bourbaki nos
mostra, no livro de teoria de conjuntos, qual é a base lógica e matemática
que sustenta todo o resto, mas não pede que procedamos de tal modo em
geral.
Nas ciências empíricas o modo de proceder é ainda mais exível. Não
se pode dizer que não haja precisão, por exemplo em física, que sem dúvida
é a ciência mais rigorosa depois da matemática, mas praticamente não se
encontram nos textos de física 'demonstrações' no sentido dos matemáticos
(enunciados de teoremas e suas subseqüentes demonstrações), mas apenas
uma exposição informal de fatos que se encadeiam na medida em que pres-
supostos, denições e outras coisas vão sendo introduzidos. O físico procede
ainda mais informalmente que o matemático.
O interessante é notar que sempre há um notável grau de comprometi-
mento, ou de consentimento, em tudo isso. Os cientistas estabelecem resul-
tados nos quais passamos a acreditar por um momento, estabelecendo o que
seguindo as idéias de Thomas Kuhn poderíamos chamar de 'patamar de nor-
malidade', no qual passamos a trabalhar, até que alguém venha a mostrar
que certos resultados (ou hipóteses) não são válidos e precisam ser revisa-
dos. Por exemplo, trabalhava-se no 'paradigma newtoniano', caracterizado
18 Sistemas Formais
Γ`α
12 O desenvolvimento mais detalhado desta concepção pode ser visto em [Cos97, Cap.
1].
Dedução a partir de um conjunto de premissas 19
β1 , . . . , β n ` α
ao invés de
{β1 , . . . , βn } ` α
Se Γ = ∅, escreve-se simplesmente
`α
ao invés de
∅`α
e neste caso α é um teorema (formal) de S , conforme denição dada anteri-
ormente.
14 Pode-se ver o No. 4, Vol. 1 (1991) da revista Minds and Machines , dedicado ao defea-
sible reasoning .
Capítulo 2
Os alicerces da lógica
proposicional clássica
21
22 Os alicerces
A não -A
1 0
0 1
A B A ou B
1 1 1
1 0 1
0 1 1
0 0 0
Se A, então B,
A B Se A, então B
1 1 1
1 0 0
0 1 1
0 0 1
(4) B , se A
A B A se e somente se B
1 1 1
1 0 0
0 1 0
0 0 1
4Écomum em alguns contextos distinguir entre o uso de uma expressão e a sua menção.
Por exemplo, se digo que 'Pedro tem 5 letras', isso é falso, pois a pessoa Pedro não tem
cinco letras, mas o seu nome. Para distinguir isso, escrevemos ' 'Pedro' tem cinco letras'.
Ou seja, as aspas indicam o nome da expressão entre elas; 'Pedro' é o nome de Pedro.
Simbologia 27
2.2 Simbologia
Várias questões relacionadas aos conectivos, como por exemplo as relações
que há entre eles, podem ser melhor apreciadas se introduzirmos alguma
notação simbólica. O uso do simbolismo aqui facilita enormemente, estando
em pé de igualdade com o que ocorre em matemática; pense por exemplo
em se dizer que a diferença entre os quadrados de dois números é igual ao
produto de sua soma pela sua diferença na ordem em que a diferença dos
quadrados é tomada. Não seria muito mas fácil escrevermos simplesmente
'a2 − b2 = (a + b)(a − b)' ? O mesmo vai ocorrer aqui.
Assim, usaremos o símbolo ∧ para escrevermos as conjunções (abaixo,
há uma tabela que indica algumas das variações usadas na literatura); ∨
indica a disjunção, ¬ a negação, → a implicação material (o condicional) e
↔ o bicondicional. Assim, temos as seguintes expressões e suas repectivas
tabelas-verdade:
A ¬A
1 0
0 1
Exercício 2.3.1 Encontre outros exemplos de situações que não são exten-
sionais. Uma dica: nas lógicas modais usuais, analise a este respeito a ex-
pressão ¤α, que se lê 'necessário α'.
Porém, a nalidade aqui é dupla: (1) aprender mais sobre 'provas' em sis-
temas formais e sobre 'demonstrações' em geral e (2) começar a praticar com
as regras básicas da lógica clássica.
Nos exemplos, muitas vezes faremos uso de suposições que pertencem a
outras teorias, como a aritmética, mas o leitor deve aceitar o fato de que
estas partes da matemática também podem ser devidamente formalizadas
(tratadas via sistemas formais).
A lógica proposicional, cálculo proposicional ou ainda lógica sentencial é
o ramo da lógica que se ocupa das propriedades lógicas das sentenças obtidas
mediante a aplicação dos conectivos lógicos a sentenças mais elementares (que
podemos chamar de 'proposições'). Os conectivos lógicos que consideraremos
são a conjunção (∧), a disjunção (∨), a negação (¬), o condicional (→) e o
bi-condicional (↔).
Algumas das principais regras da lógica proposicional clássica são as
seguintes:
Introdução do ∨ (I∨)
α β
,
α∨β α∨β
α∨α
α
Leis Comutativas (Com)
α∧β α∨β
,
β∧α β∨α
Leis Associativas (Ass)
α ∧ (β ∧ γ) (α ∧ β) ∧ γ α ∨ (β ∨ γ) (α ∨ β) ∨ γ
, , ,
(α ∧ β) ∧ γ α ∧ (β ∧ γ) (α ∨ β) ∨ γ α ∨ (β ∨ γ)
Bicondicional (Bi)
α ↔ β α ↔ β α → β, β → α
, ,
α→β β→α α↔β
Autodedutibilidade (Au)
α
α
Leis de De Morgan (DM)
α∨β α∧β ¬(α ∨ β) ¬(α ∧ β)
, , ,
¬(¬α ∧ ¬β) ¬(¬α ∨ ¬β) ¬α ∧ ¬β ¬α ∨ ¬β
Contraposição (C)
α → β ¬α → ¬β
,
¬β → ¬α β → α
Clássica
¬α → ¬β, ¬α → β
α
Intuicionista
α → β, α → ¬β
¬α
Princípio de Saccheri
¬α → α
α
Forma Simples
α → ¬α
¬α
Substituição por equivalentes (Taut)
Γ, α ` β, α ↔ γ
Γ, γ ` β
Exemplo 2.4.1
(1) Deduzir R a partir das premissas P , P → Q e Q → R
Solução: Consiste em exibir uma seqüência de fórmulas, cada uma das quais
sendo uma premissa ou conseqüência de precedentes da seqüência por uma
das regras de inferência vistas acima, de forma que a última fórmula seja a
que se quer demonstrar. Neste exemplo, somente Modus Ponens é usada.
A dedução pode ser a seguinte:7
1. P Premissa
2. P → Q Premissa
7 Emgeral, nos casos mais complexos, não há uma única dedução possível. A cria-
tividade e a intuição valem bastante aqui, e a maior ou menor destreza em se obter as
derivações depende quase que geralmente do treino.
Dedução 33
3. Q → R Premissa
4. Q 1, 2, MP
5. R 3, 4, MP
1. P → (Q → R) Premissa
2. P Premissa
3. ¬R Premissa
4. Q → R 1, 2, MP
5. ¬Q 3, 4, MT
1. (A → B) ∧ (C → D) Premissa
2. B ∨ D → E Premissa
3. ¬E Premissa
4. ¬(B ∨ D) 2,3,Com
5. ¬B ∧ ¬D 4, DM
6. ¬B 5, E∧
7. ¬D 5, E∧
9. ¬A ∨ B) 8, E∧
10. ¬C ∨ D 8, E∧
11. ¬A 8, 9, SD
34 A base intuitiva da Lógica clássica
13. ¬A ∧ ¬C 11,12,I∧
Exercício 2.4.2 Nos três primeiros exercícios, use I∧ e E∧ (além das regras
usadas acima); nos dois últimos, use TP:
1. Deduza ¬S a partir de ¬R ∧ T e S → R.
2. Mostre que B ∧ C, B → D ` B ∧ D
3. Idem para ¬S → Q, ¬(T ∧ R), S → T ∧ R ` ¬S ∧ Q
4. Idem para P ∨ Q , ¬T , Q → T ` P
5. Idem para B , B → ¬D , A ∨ D ` A ∧ B
Outros exemplos:
1. P → Q ` ¬Q → ¬P
1. P →Q P
2. ¬Q P
3. ¬P 1,2, MT
4. ¬Q → ¬P 2,3,PC
1. P → (Q → R) P
2. Q P
3. P P
4. Q→R 1,3,MP
5. R 2,4,MP
6. P →R 3,5,PC
7. Q → (P → R) 2,6,PC
1. Q → R) P
2. ¬Q → ¬P P
3. P P
4. ¬¬P 3,4,DN
5. ¬¬Q 2,4,MT
6. Q 5,DN
7. R 1,6,MP
8. P →R 3,7,PC
9. (¬Q → ¬P ) → (P → R) 2,8,PC
Exercício 2.4.3 Qual a justicativa que você daria para o seguinte argu-
mento? Pedro está ensinando a Paulo que se x é ímpar, então x + 1 é par
(como vimos há pouco). Mas Paulo retruca: Mas, se x = 6, então x + 1 não
á par, pois x + 1 = 7, que é ímpar". O que há de errado com o raciocínio de
Paulo?
Dedução 37
Exercício 2.4.4 Mostre que a armativa: Todo número par é maior do que
4" é falsa. Justique sua resposta.
Assumimos ¬β
..
.
Derivamos ¬α
Logo, ¬β → ¬α
Portanto, α → β
1. P →Q Premissa
2. P → ¬Q Premissa
3. P Premissa (negação da tese)
4. Q 1,3,MP
5. ¬Q 2,3,MP
6. Q ∧ ¬Q 4,5, I∧
7. ¬P 1,6,RA
C ¦ §D
¡
¡
¡
¡ ¡
¡
¡
¡
A B
paralelas de Euclides podia ser derivado dos demais. Seus resultados foram
publicados em um livro intitulado Euclides ab omni naevo vindicatus, publi-
cado em Milão em 1733, algo como 'Euclides livre de qualquer defeito'. Em
seu trabalho, Saccheri utiliza uma forma equivalente daquilo que acima de-
nominamos de princípio de Saccheri. Segundo R. Bonola, o seu raciocínio
consistia em mostrar que assumindo como hipótese a falsidade da proposição
que se pretende demonstrar, chega-se a concluir que ela é falsa [Bon06, p.
20].
Saccheri aceita as primeiras 28 proposições (teoremas) dos Elementos de
Euclides, as quais não requerem o postulado das paralelas para suas demon-
strações. Com a ajuda dessas proposições, estuda o caso de um quadrilátero
birretângulo isósceles (veja a gura 2.1), ou seja, um quadrilátero ABCD,
no qual AC = BD e os ângulos A e B são retos. Traçando as diagonais AD
e BC , e usando resultados simples acerca de congruências (que estão entre
as 28 proposições aceitas), Saccheri mostra que os ângulos C e D são iguais.
No entanto, nada pode ser dito acerca da medida desses ângulos. Ele formula
então três hipóteses, dependendo do que podem ser estes ângulos: a do ân-
gulo reto, a do ângulo obtuso e a do ângulo agudo. O seu objetivo é afastar
as duas últimas, mostrando que, assumindo-as, somos conduzidos a absur-
dos. Assim, segundo ele, teríamos que car com a primeira, que equivale ao
quinto postulado de Euclides.
Assumindo a hipótese do ângulo obtuso (que é uma forma de negar o
quinto postulado), ele engenhosamente mostra que ela implica o quinto pos-
tulado, que por sua vez implica que a soma dos ângulos internos de um
Dedução 43
α → β, β
(M M ).
α
Um exemplo de Modus Moron é o seguinte raciocínio: Se o governo é bom,
então o povo admira o Presidente. O povo admira o Presidente. Portanto, o
governo é bom. Você pode encontrar outros exemplos.
2.5 Teorias
Nesta seção, vamos assumir que S é um sistema formal, como na seção 1.2.
Cn pode ser visto como um operador que atua sobre conjuntos de fór-
mulas, que caracteriza a noção de dedutibilidade (como fez Tarski, [Tar83],
[Tar83a]), ou seja, Cn (que é dito 'operador de conseqüência') é uma apli-
cação de P(F) em P(F), que associa conjuntos de fórmulas a conjuntos de
fórmulas, satisfazendo os postulados do teorema anterior. Deste modo, isto
é, a partir de Cn dado axiomaticamente, podemos denir o conceito de de-
dutibilidade ` facilmente, pondo Γ ` α see α ∈ Cn(Γ). Qualquer uma das
abordagens é lícita.
L = hF, `F i,
3.1 O cálculo C
Chamaremos de C a teoria formal que corresponderá ao Cálculo Proposi-
cional Clássico. A linguagem de C será denotada por L. Conforme o que se
estabeleceu no capítulo anterior, iniciaremos descrevendo o alfabeto básico
51
52 O Cálculo Proposicional Clássico
e seu caráter operacional será especicado pelos axiomas que virão, os quais
procurarão reetir o que na lógica tradicional (aristotélica) é conhecido como
'condicional de Filo', atribuído a Filo de Mégara, como veremos abaixo (à
frente, veremos uma outra forma de caracterizar os conectivos, fazendo uso
de 'matrizes lógicas').
Uma vez descrito o alfabeto básico de nossa linguagem, passaremos ao
segundo passo na descrição de uma teoria formal, qual seja, o de 'aprender
a escrever' com a linguagem L, ou seja, denir as expressões bem formadas
(ou fórmulas ) de L. Lembremos que uma expressão é uma seqüência nita
de símbolos da linguagem. No nosso caso, exemplos de expressões são:
¬¬(((→→ ABA((¬
→→→ AAA)))¬)¬
(A → (A → ¬B))
(iii) Uma expressão é uma fórmula se e somente se for obtida por uma das
duas cláusulas precedentes.
A, B, (A → (A → (¬B))) e
3.2 Semântica
Seja V um conjunto qualquer de variáveis para proposições. Chamamos de
valoração , ou interpretação de V a uma aplicação v de V no conjunto {0, 1}.4
O valor v(X), para X ∈ V é dito valor-verdade de X . Se V (X) = 1, dizemos
que X é verdadeira com respeito à valoração v , e que é falsa em caso contrário
(ou seja, se v(X) = 0).
Se V 0 é o conjunto das fórmulas de L gerado a partir das fórmulas do
conjunto V mediante a denição acima (isto é, aplicando-se os conectivos
lógicos),5 então podemos denir uma aplicação v 0 de V 0 em 2 = {0, 1} do
seguinte modo:6
α1 , . . . , αn |= β
¬A ∨ B |= A → B.
A B
v1 1 1
v2 1 0
v3 0 1
v4 0 0
A B ¬A ∨ B A→B
1 1 1 1
1 0 0 0
0 1 1 1
0 0 1 1
8 Por
indução, é fácil mostrar que se há n variáveis proposicionais envolvidas, haverá
2 valorações possíveis, logo, 2n linhas na tabela-verdade.
n
60 O Cálculo Proposicional Clássico
A ¬A
1 0
0 1
3.4 Decidibilidade
Acima, vimos o conceito de sistema formal decidível. Por um método de
decisão para um sistema formal F entende-se, grosso modo, um método por
meio do qual podemos decidir em um número nito de passos se uma dada
fórmula é ou não um teorema de F. O chamado problema de decisão de F é
encontrar um tal método, ou provar que ele não existe. O problema reside em
que é preciso denir de modo sensato o que signica ter-se um método , o que
se faz com o auxílio da Teoria da Recursão, uma das mais importantes áreas
da lógica atual, mas que não abordaremos aqui;9 em vez disso, suporemos
que os conceitos acima são intuitivamente claros, e o que interessa enfatizar
é que as tabelas-verdade fornecem um método de decisão para o Cálculo
Proposicional Clássico.
Observa-se que esse resultado se assenta no fato de que mediante o uso de
tabelas-verdade podemos determinar (em um número nito de passos, pois
9 Isso
daria signicado preciso ao acima referido 'número nito de passos'. Informal-
mente, iso quer dizer algo como que o resultado pode ser alcançado com o uso de um
computador.
`Implicação Física' 61
Exemplo 3.6.1
Para xi ∈ {0, 1}, i = 1, . . . , n, denimos Iin (x1 , . . . , xn ) = xi .
Nota-se por outro lado que dar uma função booleana n-ária é nada mais
do que dar uma tabela-verdade com n linhas. Por exemplo, a tabela seguinte
dene uma função booleana ternária:
O Teorema de Post 65
x1 x2 x3 f (x1 , x2 , x3 )
1 1 1 0
1 1 0 1
1 0 1 1
1 0 0 0
0 1 1 1
0 1 0 1
0 0 1 0
0 0 0 1
O problema interessante é estabelecer o inverso: dada uma tabela, achar
uma fórmula que tenha tal tabela como tabela-verdade. Essa questão foi
resolvida por E. Post em 1921, e será visto abaixo.
A B ¬A ¬B A ↔ A A ↔ ¬A A↔B A ↔ ¬B
1 1 0 0 1 0 1 0
1 0 0 1 1 0 0 1
0 1 1 0 1 0 0 1
0 0 1 1 1 0 1 0
A B A↓B
1 1 0
1 0 1
0 1 1
0 0 1
A B A|B
1 1 0
1 0 0
0 1 0
0 0 0
A B A¯B
1 1 0
1 0 a
0 1 b
0 0 1
73
74 O Cálculo Proposicional Clássico
β → (β → β)
α → ((α → α) → α)
Se tivéssemos empregado símbolos básicos de L na formulação dos ax-
iomas, por exemplo escrevendo A → (B → A) para (A1), e fazendo coisa
análoga com os demais axiomas, teríamos que introduzir uma outra regra
de inferência, dita Regra de Substituição (ou da Extensionalidade ), a qual
assevera que 'se em uma proposição válida algumas ocorrências de uma dada
variável proposicional forem substituídas por uma mesma fórmula, o que se
obtém é ainda uma proposição válida'.1 Contextos nos quais uma tal regra
é válida são denominados de truth-functional (ou `extensionais'). Já vimos
1 Esta
formulação não é muito precisa, mas serve aos nosso propósitos. Para mais
detalhes, consultar [Tar66, p. 47].
Axiomatização 75
que na linguagem natural é fácil dar exemplo de contextos que não são es-
tensionais nesta acepção. Vemos mais um caso: considere uma proposição
da forma Os medievais acreditavam que a Terra é plana, que é verdadeira
(feitas algumas restrições óbvias); substitua agora a proposição 'a Terra é
plana' por 'o poder de Deus não está acima do poder dos homens', que para
eles era falsa (restrições idem).
Os conceitos de teorema , de conseqüência de um conjunto de premissas
etc. aplicam-se aqui da mesma forma como introduzidos anteriormente. Ve-
jamos alguns exemplos mas, antes, insistamos na distinção fundamental entre
teorema do Cálculo Proposicional e de teorema sobre o Cálculo Proposicional,
ou seja, entre teorema e metateoremas. O contexto deixa clara a diferença
entre eles, mas é interessante que percebamos a sua distinção no caso partic-
ular do cálculo em estudo.
Teorema 4.0.1 ` α → α
Prova:
1. α → ((α → α) → α) (A1)
2. (α → ((α → α) → α)) → ((α → (α → α)) → (α → α)) (A2)
3. (α → (α → α)) → (α → α) 1, 2, MP
4. α → (α → α) (A1)
5. α → α 3, 4, MP
Prova:
1. α → (β → γ) Premissa
2. β Premissa
3. (α → (β → γ) → ((α → β) → (α → γ)) (A2)
4. (α → β) → (α → γ) 1, 2, MP
5. β → (α → β) (A1)
6. α → β 2, 5, MP
7. α → γ 4, 6, MP
(2) α → (β → γ) ` β → (α → γ)
(3) ¬¬α ↔ α
Axiomatização 77
6. ¬γ → ¬¬β 2, 5, MP
7. (¬γ → ¬¬β) → ((¬γ → ¬β) → γ) Axioma A3
8. (¬γ → ¬β) → γ 6, 7, MP
9. γ 4, 8, MP
10. β → γ, ¬β → γ ` γ 19
11. β → γ ` (¬β → γ) → γ 10, TD
12. ` (β → γ) → ((¬β → γ) → γ) 11, TD.
M = hA, B, f, gi,
84 O Cálculo Proposicional Clássico
Exercício 4.3.1 Justique em detalhes o que foi dito acima acerca da con-
sistência e da completude do cálculo C por meio do método das matrizes.
Como dito anteriormente, a noção de matriz lógica dada acima pode ser
generalizada para quando utilizam-se outros conectivos lógicos como prim-
itivos, bastando que se denam outras funções nos moldes de f e g . Das
mesma forma, muitas vezes não se exige que A e B sejam disjuntos, mas
que B seja um subconjunto próprio de A; por exemplo, na matriz acima,
poderíamos ter colocado A = {0, 1} e B = {1}, adaptando-se conveniente-
mente os demais conceitos.
4 Segundo Tarski, esta terminologia se deve a Paul Bernays.
O método das matrizes 85
α 1 1/2 0
Nα 0 1/2 1
A 0 1 2
¬A 1 1 0
A 0 1 2 0 1 2 0 1 2
B 0 0 0 1 1 1 2 2 2
A→B 0 2 0 2 2 0 2 0 0
Agora, basta ver que os axiomas (A2) e (A3) tomam sempre valor distin-
guido (0) independentemente dos valores assumidos pelas variáveis proposi-
cionais que os compõem, e que Modus Ponens preserva os valores distingui-
dos, mas (A1) não assume valor distinguido.
Outras axiomatizações 87
Para provar por este processo que (A2) e (A3) são independentes dos
demais, outras matrizes precisam ser denidas (ver [Men87, loc. cit.]). A
denição das matrizes depende muito da engenhosidade dos lógicos. No
capítulo seguinte, esta técnica será utilizada para provarmos que algumas
fórmulas não são teoremas de certos cálculos, e que outras são.
(1) α ∨ α → α
(2) α → α ∨ β
(3) α ∨ β → β ∨ α
(4) (α → β) → (γ ∨ α → γ ∨ β)
(1) α → (β → α)
(5) ¬¬α → α
(6) α → ¬¬α
(2) ¬¬α → α
(3) α → (¬α → β)
(1) α → (β → α)
(3) α ∧ β → α
(4) α ∧ β → β
Outras axiomatizações 89
(5) α → (β → (α ∧ β))
(6) α → α ∨ β
(7) β → α ∧ β
(10) ¬¬α → α
(A|(β|γ))|((δ|(δ|δ))|((²|β)|((α|²)|(α|²))))
5.1 Paraconsistência
Vamos iniciar comentando dois fatos importantes. O primeiro é que, em
1997, realizou-se em Gent, na Bélgica, o Primeiro Congresso Mundial sobre
Paraconsistência. O segundo congresso foi realizado em São Sebastião, São
Paulo, em Maio de 2000 e o terceiro em Toulouse, França, em Julho de 2003,
cada um deles atraindo um número maior de pesquisadores e demais inter-
essados no 'fenômeno da paraconsistência'; um quarto congresso está sendo
programado para a Austrália em futuro breve.1 O outro fato está ligado ao
célebre periódico Mathematical Reviews. A partir de 1991, esta publicação
mensal da American Mathematical Society, que traz resenhas (descritivas ou
críticas) de artigos das mais importantes publicações (revistas, livros, atas de
congressos) do que se considera matemática presentemente, e que apresenta
uma detalhada subdivisão da matemática nas suas diversas áreas,2 passou
a contar com a seção sobre lógica paraconsistente. Após 2000, a referida
seção foi incorporada a uma mais ampla, intitulada Lógicas admitindo incon-
sistências (lógicas paraconsistentes, lógica discussiva etc.)", agregando uma
variedade maior de sistemas. Cabe esclarecer que mudanças deste tipo são
comuns; de tempos em tempos, o comitê editorial de Mathematical Reviews
1O leitor interessado pode consultar o endereço www.cle.unicamp.br/wcp3/ do Ter-
ceiro Congresso, no qual há rotas para as páginas dos demais.
2 Para ver as diversas áreas da matemática contemporânea, consultar www.ams.org/msc.
91
92 O Cálculo Proposicional Paraconsistente
quem apresentou em 1948 uma lógica que poderia ser aplicada a sistemas
envolvendo contradições, mas sem ser trivial. O sistema de Ja±kowski, con-
hecido como lógica discussiva, ou discursiva, limitou-se a uma parte da lóg-
ica, que tecnicamente se denomina de cálculo proposicional, não tendo ele se
ocupado da elaboração de lógicas paraconsistentes em sentido forte (envol-
vendo quanticação, por exemplo). Um dos autores deste trabalho (Newton
da Costa), então professor da Universidade Federal do Paraná foi quem, in-
dependentemente de Ja±kowski (cujos trabalhos haviam saído em polonês
em uma publicação sem circulação internacional), iniciou a partir da dé-
cada de 50 estudos no sentido de desenvolver sistemas lógicos que pudessem
envolver contradições, motivado por questões de natureza tanto losócas
quanto matemáticas. Os sistemas de da Costa (ele deniu uma hierarquia
com uma innidade de sistemas, as 'logicas-C ') se estenderam muito além do
nível proposicional. Foram desenvolvidos cálculos proposicionais, de predica-
dos com e sem igualdade, cálculos com descrições, teorias de conjuntos (mais
tarde desenvolveu vários outros sistemas), e é reconhecido internacionalmente
como o criador das lógicas paraconsistentes (aliás, o termo paraconsistente,
que literalmente signica ao lado da consistência, foi cunhado pelo lósofo
peruano Francisco Miró Quesada em 1976, em uma correspondência com da
Costa).
Dito de modo não muito rigoroso, uma lógica é paraconsistente se pode
fundamentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam teses
contraditórias, e em particular uma contradição) mas que não sejam triviais,
no sentido de que nem todas as fórmulas (expressões bem formadas de sua
linguagem) sejam teoremas do sistema. Em um sistema dedutivo S baseado
em uma lógica paraconsistente, pode haver dois teoremas da forma α e ¬α,
sem que com isso toda fórmula da linguagem de S seja derivada como teorema
do sistema. Como campo de pesquisa, a lógica paraconsistente desenvolveu-
se extraordinariamente a partir de então, tendo atraído a atenção de um
grande número de pensadores em todo o mundo. No Brasil, originou-se uma
forte escola de lógica, inicialmente em São Paulo e Campinas, mas hoje se
estendendo por quase todo o país, havendo surgido lógicos que granjearam
reputação internacional. Nos anos 50, da Costa era o único lógico brasileiro
que publicava em revistas internacionais; hoje, estima-se que há perto de
150 pesquisadores ativos nas várias áreas da lógica. Presentemente, a lógica
paraconsistente constitui tema obrigatório de estudo de qualquer estudante
de lógica, losoa ou ciência da computação; devido às aplicações recentes
cada vez mais interessantes que tem encontrado, interessa também a estu-
Paraconsistência 95
senso.4
As aplicações da lógica paraconsistente não se limitam a aspectos teóri-
cos ou losócos. Um dos campos mais férteis de aplicações tem sido a
ciência da computação e, hoje, a engenharia e mesmo a medicina. Por ex-
emplo, em Inteligência Articial, essas lógicas foram usadas na década de 80
por V. S. Subrahmanian (da Universidade de Siracusa, nos Estados Unidos)
e colaboradores na elaboração de sistemas especialistas para serem usados
especialmente em medicina. Simplicando, pode-se imaginar situações em
que um paciente pode 'entrevista-se' com um computador e, mediante per-
guntas e respostas, o computador pode chegar a diagnosticar e até mesmo
medicar o paciente, ou remetê-lo ao médico nos casos mais sérios (isso pode-
ria reduzir consideravelmente as las nos postos de saúde). O fato é que, na
elaboração de tais sistemas, que devem ser erigidos em linguagens nas quais
se possa fazer determinadas inferências (em suma, tirar conclusões a partir
de certas premissas), os cientistas em geral entrevistam vários especialistas
(médicos). O que acontece é que, para o programa funcionar, cria-se um
banco de dados contendo as opiniões dos diversos médicos entrevistados, e é
a partir desse banco de dados que o sistema vai tirar conclusões, valendo-se
das regras de alguma lógica. Porém, como se sabe, devido principalmente à
grande complexidade envolvida com a ciência médica, os médicos podem ter
opiniões divergentes (e mesmo contraditórias) sobre um certo assunto ou so-
bre a causa de um certo mal. Logo, se no banco de dados há duas informações
que se contradigam, reetindo opiniões contraditórias de dois especialistas,
se o sistema operar com a lógica clássica, pode ocorrer a dedução de uma
contradição, o que inviabiliza (tornando trivial) o sistema como um todo.
Para se poder considerar bancos de dados amplos, eventualmente contendo
informações contraditórias e sem que se corra o risco de trivialização, a lógica
a ser utilizada deve ser uma lógica paraconsistente.
Pode-se ainda demonstrar que as lógicas paraconsistentes (na verdade,
certas teorias de conjuntos que delas se originam) generalizam a teoria de
conjuntos nebulosos (fuzzy sets ). Isso traz uma outra variedade de apli-
cações, permitindo que se construam mecanismos (para-analisadores e para-
processadores) que permitem considerar uma variedade de comandos muito
mais abrangentes do que 'sim' e 'não'. A partir disso, têm sido feitos ensaios
de aplicações (principalmente por cientistas brasileiros e japoneses) ao con-
4 Um
tratamento detalhado das inconsistências em ciência pode ser visto em [?], espe-
cialmente no capítulo 5.
Paraconsistência 97
1. α → (β → α)
3. α ∧ β → α
4. α ∧ β → β
5. α → (β → α ∧ β)
6. α → (α ∨ β)
7. β → (α ∨ β)
8. (α → γ) → ((β → γ) → (α ∨ β → γ))
9. α, α → β β
¬¬α → α. (5.2)
Podemos raciocinar heuristicamente como segue: se α é bem-comportada,
supomos que obedece à lógica clássica e assim (5.2) vale; se α é mal-comportada,
então tanto α quanto ¬α são verdadeiras e então, pelos postulados da impli-
cação segue que qualquer proposição implica α, em particular ¬¬α. Assim,
(5.2) deve ser aceita.
Finalmente, levando em conta o que se disse acima, adotamos o pressu-
posto de que as fórmulas obtidas (pelas regras gramaticais especicadas) a
partir de fórmulas bem-comportadas são também bem-comportadas, isto é,
αo ∧ β o → (α ↔ β)o .
αo → (¬α)o ,
uma vez que isso pode ser provado dos postulados acima. Assim, temos os
seguintes postulados para C1 :
[Postulados de C1 ]:
(→1 ) α → (β → α)
(→3 ) α, α → β β
(∧ 1 ) α ∧ β → α
102 O Cálculo Proposicional Paraconsistente
(∧ 2 ) α ∧ β → β
(∧3 ) α → (β → α ∧ β)
(∨1 ) α → (α ∨ β)
(∨2 ) β → (α ∨ β)
(¬3 ) α ∨ ¬α
(¬4 ) ¬¬α → α.
Pode-se mostrar que C1 possui uma semântica bivalente, masi isso não
será apresentado aqui (veja-se no entanto as referências). No que se segue,
exploraremos algumas das principais propriedades de C1 .
O conceito de dedução (formal) a partir de um conjunto de premissas, bem
como o de prova, são os usuais; usando a notação padrão, Γ ` α signica que
α é conseqüência sintática das fórmulas de Γ. As demais notações seguem o
que foi introduzido nos capítulos anteriores. Assim, temos em C1 :
Metateorema 5.1
(a) α ` α,
(b) Γ ` α implica Γ ∪ ∆ ` α,
Demonstração: Imediata.
Aqui, como na lógica clássica, dizemos também que α é um teorema
de C1 see ` α e, como usual, ` α signica ∅ ` α. Os símbolos ⇒ e ⇔
são abreviações metalingüísticas para a implicação e para a bi-implicação
respectivamente.
(c) α, β ` α ∧ β ; α, β ` α; α, β ` β
(d) α ` α ∨ β ; β ` α ∨ β
2. ¬α → (α → ¬β)
3. α → (¬α → β)
4. α → (¬α → ¬β)
5. α ∧ ¬α → β
6. α ∧ ¬α → ¬β
7. (α → β) → ((α → β) → ¬α)
9. α → ¬¬α
10. (α ↔ ¬α) → β
11. (α ↔ ¬α) → ¬β
104 O Cálculo Proposicional Paraconsistente
Exercício 5.2.2 Mostre que os esquemas acima (veja 5.3) não valem em C1 .
Γ, ¬α ` β o ; Γ, ¬α ` β; Γ, ¬α ` ¬β ⇒ Γ ` ¬α.
2. α ↔ α
3. α → β, β → γ ` α → γ
4. α → (β → γ) ` β → (α → γ)
5. α → (β → γ) ` α ∧ β → γ
6. α ∧ β → γ ` α → (β → γ)
7. α → β ` (β → γ) → (α → γ)
8. α → β ` (γ → α) → (γ → β)
9. α → β ` α ∧ γ → β ∧ γ
10. α → β ` γ ∧ α → γ ∧ β
11. α → β ` α ∨ γ → β ∨ γ
12. α → β ` γ ∨ α → γ ∨ β
13. α ↔ β ` β ↔ α
14. α ↔ β, β ↔ γ, γ ` α ↔ γ
106 O Cálculo Proposicional Paraconsistente
15. ` (α ↔ β) ↔ (β ↔ α)
16. ` (α → (α → β)) → (α → β)
18. ` (α → . . . (α → β) . . .) → (α → . . . (α → β) . . .)
| {z } | {z }
n+1 vezes n vezes
2. β o , α → ¬β ` β → ¬α
3. β o , ¬α → β ` ¬β → α
4. β o , ¬α → ¬β ` β → α
5. (α → ¬α) → ¬α
6. (¬α → α) → α
Demonstração: ` αoo signica ¬(αo ∧ ¬αo ), isto é, ¬(αo ∧ ¬¬(α ∧ ¬α)). Mas
αo ∧ ¬¬(α ∧ ¬α) ` αo e αo ∧ ¬¬(α ∧ ¬α) ` α ∧ ¬α, portanto ` ¬(αo ∧ ¬¬(α ∧
¬α)), isto é, ` αoo .
Demonstração: Temos
α → β, α → ¬? β, αo ` ¬? α, mas (1)
α → β, α → ¬? β, α ∧ ¬α ` β,
α → β, α → ¬? β, α ∧ ¬α ` ¬β e
α → β, α → ¬? β ` αo . Então,
α → β, α → ¬? β, ¬αo ` α,
α → β, α → ¬? β, ¬αo ` ¬α,
α → β, α → ¬? β, ¬αo ` αo , e
10 Ayda Ignes Arruda foi uma das primeiras pesquisadoras a se dedicar à lógica paracon-
sistente, quando ainda era professora da Universidade Federal do Paraná, na década de
1960, como orientada, colega e colaboradora do primeiro autor deste livro. Posteriormente
transferiu-se para a Universidade Estadual de Campinas. Lá, foi uma das fundadoras do
Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), tendo sido sua Coorde-
nadora. Presidiu ainda a Sociedade Brasileira de Lógica e contribuiu signicativamente
para o desenvolvimento e divulgação dessas lógicas. Faleceu em 1983.
Os cálculos Cn 109
α → β, α → ¬? β, ¬αo ` ¬? α. (2)
De (1) e(2), usando prova por casos e o princípio do terceiro excluído, temos
α → β, α → ¬? β ` ¬? α, portanto
` (α → β) → ((α → ¬? β) → ¬? α).
Demonstração: Temos:
α, ¬α ∧ αo , ¬β ` α,
α, ¬α ∧ αo , ¬β ` ¬α,
α, ¬α ∧ αo , ¬β ` αo , então
α, ¬α ∧ αo ` ¬¬β,
α, ¬α ∧ αo ` β e α, ¬? α ` β. Assim,
` α → (¬? α → β).
Teorema 5.6 ` α ∨ ¬? α
Demonstração: Temos:
` (α ∨ ¬? α) ↔ α ∨ (¬α ∧ αo ),
` (α ∨ ¬? α) ↔ (α ∨ ¬α) ∧ (α ∨ αo ), e
` (α ∨ ¬? α) ↔ (α ∨ αo ).
(α → β) → ((α → ¬? β) → ¬? α),
110 O Cálculo Proposicional Paraconsistente
α → (¬? α → β) e
α ∨ ¬? α.
α ↔ α ∨ (α → (α → . . . (α → β) . . .),
Teorema 5.12 Em C1 ,
5.2.1 A hierarquia Cn , 0 ≤ n ≤ ω
O cálculo C1 não é o único que satisfaz as condições I e II acima (página
96). Entre outras oluçõe spossíveis, indicaremos uma hierarquia de cálculos
que satisfazem tais condições, com a exceção do primeiro deles, o qual por
simplicidade será tomado como sendo o cálculo proposicional clássico. A
hierarquia é a seguinte:
C0 , C1 , C2 , . . . , Cn , . . . , Cω , (5.4)
onde C0 é o cálculo proposicional clássico e os restantes são caracterizados
somo segue.
Denição 5.5
(i) α(1) =def αo
O leitor deve notar que estamos fazendo uso de uma notação algo distinta
para o conjunto das conseqüências de um conjunto de fórmulas, já introduzido
antes na seção2.5, onde escrevíamos Cn(∆) em vez de ∆. Obviamente, é
apenas uma questão de notação.
Teorema 5.15
(i) ∆ ⊆ ∆
(ii) ∆ ⊆ Γ ⇒ ∆ ⊆ Γ
(iii) ∆ ⊆ ∆
Teorema 5.16 C1 pode ser usado como lógica subjacente de teorias paracon-
sistentes.
O perigo da trivialização
É interessante observarmos o seguinte. Pelo que se viu acima, se funda-
mentamos uma teoria tendo Cn por lógica subjacente, haverá maior risco de
trivialização do que se usarmos Cn+1 . O 'máximo de segurança' em se evitar
a trivialização em alguma teoria seria alcançado de usássemos Cω como sua
lógica subjacente mas, como vimos acima, na medida em que a avançamos
na hierarquia dos cálculos paraconsistentes, obtemos cálculos cada vez mais
fracos. Assim, ainda que dito aqui de forma imprecisa, concluímos que, na
medida em que vamos aumentando nossa capacidade dedutiva, mais próxi-
mos da trivialização vamos cando.
(i) x u y = y u x e x t y = y t x (comutatividade)
(ii) x u (y u z) = (x u y) u z e x t (y t z) = (x t y) t z
(associatividade)
(iii) x u x = x e x t x = x (idempotência)
(iv) x u (x t y) = x e x t (x u y)x (absorção)
117
118 Apêndice A
xuy (xty ) é dito produto , ínmo , encontro (respect., soma , supremo , junção )
de x e y . Os termos `produto' e `soma' serão usados alternativamente para
denotar tais elementos, no que se segue.
Pode-se mostrar que qualquer conjunto nito x1 , . . . , xn de elementos
Wn de
X tem uma soma e um produto, denotados respectivamente por i=1 xi e
V n
i=1 xi .
Exemplo 5.2.2 Tome X como sendo o conjunto dos números naturais não
nulos 1, 2, . . . e dena x u y =def mdc(x, y) e x t y =def mmc(x, y) para
quaisquer x e y em tal conjunto.12 Neste caso, também resulta que a estrutura
assim obtida é um reticulado (exerçícios).
x ≤ y see x u y = x see x t y = y
Exercício 5.2.10 Conrme o que se disse nos exemplos 1.1 e 1.2 acerca das
estruturas em questão serem reticulados. Prove que a relação ≤, tal como
denida no parágrafo precedente, é de fato uma relação de ordem parcial
sobre X .
12 Usaremos p símbolo `=def ' para denotar `igual por denição'.
Reticulados como Sistemas Ordenados 119
É imediato provar que todo reticulado nito (i.e., tal que X é um conjunto
nito) é completo.
Teorema 5.3.1
(i) (x u y) t (x u z) ≤ x u (y t z)
(ii) x t (y u z) ≤ (x t y) u (x t z)
na qual:
(iv) 0 e 1 pertencem a B
(i) x t y = y t x e x u y = y u x (comutatividade)
(ii) x t (y t z) = (x t y) t z e x u (y u z) = (x u y) u z (associatividade)
(iii) x t (y u z) = (x t y) u (x t z) e x u (y t z) = (x u y) t (x u z)
(distributividade)
(iv) (x t y) u x = y e (x u y) t x = x (absorção)
(v) x u x = x e x t x = x (idempotência)
(vi) x u x∗ = 0 e x t x∗ = 1 (complementaridade)
(vii) x t 1 = 1, x u 1 = x, x t 0 = x e x u 0 = 0
x≤y ↔xuy =x
ou equivalentemente
x≤y ↔xty =y
É de fácil vericação que para todo x ∈ B tem-se que x ≤ 1, que 0 ≤ x
e que x ≤ y see x u y ∗ = 0, ou seja, 0 e 1 tornam-se ínmo e supremo de B
respectivamente.
Álgebras de Boole 123
Exemplo 5.4.2 Seja hX, τ i um espaço topológico tal que x denota o fecho de
x ⊆ X e xo denota o interior de x. Um conjunto x ⊆ X é uma aberto regular
se x = (x)o (ou seja, x é um aberto `sem buracos'). Denotando por Ro(X) o
conjunto de todos os abertos regulares de X , denimos sobre este conjunto
as operações seguintes, para todos u e v em Ro(X): u t v =def (u ∪ v)o ,
u u v =def u ∩ v , u∗ =D X − u. Isto posto, consideramos ainda 0 =D ∅ e
1 =D X . Basta agora comprovar (exercício) que Ro(X) é uma álgebra de
Boole completa.
A ≡ B see ` A ↔ B
F/≡ = {[A] : A ∈ F}
Denimos agora
[A] ≤ [B] see ` A → B
19 Nãodaremos todas as denições dos conceitos utilizados aqui. O leitor pode encontrar
as denições pertinentes nos bons livros de álgebra.
Apêndice B
Indução e Recursão
5.7 Indução
Um tipo de construção muito útil em lógica e em matemática é aquela que nos
permite 'construir' um certo subconjunto de um dado conjunto X partindo
de um elemento qualquer de X (ou de alguns elementos) e, aplicando certas
operações, exprimir a idéia do "e assim por diante". O conjunto procurado
é o 'menor' conjunto que contém o(s) elemento(s) destacado(s) e é fechado
para as operações em questão. Qualquer elemento deste subconjunto será
um elemento de X que pode ser obtido a partir do(s) elemento(s) inicial(ais)
pela aplicação das operações em selecionadas um número nito de vezes.
Por simplicidade, consideremos um caso particular no qual há conjunto
inicial
B⊆X
e uma classe F de funções com pelo menos dois elementos f e g , sendo
f : X × X 7→ X e g : X 7→ X.
b, f (b, b), g(a), f (g(a), f (a, b)), 'e assim por diante '
129
130 Apêndice B
xi ∈ B ou
h0i
h0, 1i
h0, 1, 2i
20 A palavra 'nita' foi colocada aqui entre parênteses porque há outras formas de indução
distintas da que estamos considerando, como a indução transnita.
Indução 131
..
.
Então, sendo Cn como acima para n ∈ N, temos que o conjunto resultante
C é o próprio conjunto N, ou seja,
[
C= Cn = N.
n
ξ¬ (α) = ¬α
ξ∧ (α, β) = α ∧ β
ξ∨ (α, β) = α ∨ β
ξ→ (α, β) = α → β
ξ↔ (α, β) = α ↔ β
5.8 Recursão
Como anteriormente, são dados X e B ⊆ X , além de duas funções f e g como
acima (como acima, caremos restritos a este caso particular mais simples).
Seja C o conjunto gerado por B a partir de f e g . O problema agora é denir
uma função h sobre C qua aja resursivamente. Intuitivamente, isso funciona
do seguinte modo: supomos que seja dados
2. Regras para computar h(f (x, y)), fazendo uso de h(x) e de h(y)
f (0) = a
f (Sn) = h(f (n)), para todo n ∈ N
135
136 Apêndice C
23 O leitor deve atentar para o caráter de resumo do que estamos armando. A losoa
do intuicionismo é por demais complexa para ser explanada em espaço tão restrito; assim,
algumas imprecisões de nossa parte devem ser toleradas pelo leitor criterioso.
138 Apêndice C
1. α → (β → α)
3. α ∧ β → α
4. α ∧ β → β
5. α → (β → α ∧ β)
6. α → (α ∨ β)
7. β → (α ∨ β)
8. (α → γ) → ((β → γ) → (α ∨ β → γ))
11. α ∨ ¬α
(MP) α, α → β β
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