Considerações Históricas
Conta Jorge Mello, biógrafo de Garoto1, que Badeco2 lhe disse que a peça Gente
Humilde foi composta por Garoto por volta de 1945, inspirada por frequentes incursões
que o violonista fazia nos subúrbios cariocas entre 1945 e 1946.
Esta primeira versão é uma pequena peça para violão solo que iria fazer parte
de uma suíte, juntamente com Meditação e Vivo Sonhando. Tornou-se uma peça
individual que, segundo consta no diário de Garoto, foi apresentada ao público pelo
compositor ao violão no dia 18 de setembro de 1945, em um programa radiofônico que
Garoto dirigia na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A primeira apresentação ao vivo
deu-se em um recital de violão solo apresentado por Garoto na Associação Cultural de
Violão de São Paulo, em evento organizado por Ronoel Simões3 em 16 de março de
1950.
colecionadores de música para violão do Brasil. Seu acervo, que desde seu falecimento está em poder da
Prefeitura Municipal de São Paulo, conta de mais de 50.000 itens.
4 Em 1984, Bellinati já tinha gravado algumas obras de Garoto pelo selo Discos Marcus Pereira.
5 Moacir Portes era cantor do conjunto vocal Os Uyrapurus e conviveu com Garoto e Badeco nos anos 1940
e início de 1950.
Esta primeira letra de Gente Humilde é atualmente conhecida através da
partitura de um arranjo para coro misto a quatro vozes realizado por Badeco para a
apresentação do grupo coral Cantores do Céu, no programa Ondas Musicais da Rádio
Nacional, em 1951. Nesta partitura de Badeco, a letra que consta é a seguinte:
Baden me deu essa música do finado Garoto, esse que ele considerava o
grande mestre do violão de sua época. Eu fiquei condicionado pelo título por
muito tempo, pois eu não queria trair a ideia do tema de Garoto. [...] Eu sentia
aquele tema tão ligado àquele mundo empoeirado, àquela gente sem vez,
àqueles velhinhos de pijama nas varandas. Eu sentia que, naquele tema,
Garoto queria falar daquela gente do subúrbio e eu só sei que um dia, há três
anos, fui a Roma receber minha afilhadinha, a filha de meu compadre e querido
amigo Chico Buarque e, nessa ocasião, um dia, em casa de Chico, o tema
veio, as palavras saíram, eu chamei meu compadre, a gente juntou as cabeças
e a canção saiu (MORAES apud MELLO, 2012).
6 Muitas vezes, esta versão é erroneamente atribuída a Chico Buarque de Hollanda, que, como será
demonstrado, teve pouca participação na criação da canção, pois apenas acrescentou dois versos.
7 José Menezes França (1921-2014), músico, amigo de Garoto, cuja residência Baden Powell frequentou
na juventude.
primeira versão da letra, escrita pelo “autor desconhecido”. Apenas conheciam a versão
violonística da peça na interpretação de Baden Powell.
8 SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
9 HOMEM, Wagner. História das Canções. São Paulo: Leya, 2009.
ANALISE COMPARATIVA
Harmonia
Até o c. 11, não há diferenças substanciais entre as duas músicas, sendo que o
que difere está há harmonia, já que as melodias são idênticas.
Powell: I biiiº7 | ii7 | V7 | I [V2] | [I] biiiº7 | ii7 | _ subV7 | I | I biiiº7 | ii7 | V7
É interessante perceber a coincidência da substituição de acordes feita por
Garoto no c. 5 – I iii7 biiiº7 subV7 I – com a prática do jazz da mesma época,
especificamente no estilo Be Bop da década de 1940, em que é frequente a substituição
da sequência harmônica básica – I ii7 V7 I – pelo uso de acordes alterados para
alcançar o segundo grau – I iii7 biii7 subV7 I.
Por outro lado, nos trechos de Baden Powell em que a função de dominante
aparece sem substituição, isto é, com o acorde de D7, a harmonização de Garoto tende
a intensificar mais as dissonâncias pelo uso de acordes estendidos de décima terceira
e de nona maior (no c. 3) e de nona menor (no c. 11).
3 11
| V7 | [...] | V7 |
Garoto: D7(13) D7(9) D7(b9)
Powell: D7 D7
ii
| ii7 V7 | I
Powell: Dm7 G7 C7M
IV
Na versão de Baden Powell ocorre uma função comum que ainda não havia
aparecido nesta harmonização: a dominante da dominante, acorde de A7. Isso não
deixa de ser uma alteração da cadência ii7 V7 I, já que a dominante da dominante é um
II7, ou seja, um acorde com sétima sobre o segundo grau do qual a terça foi alterada
ascendentemente. O acorde de dominante que conduz à tônica final aparece estendido
pela primeira vez na harmonização de Baden Powell. Isso ocorre por dois motivos: a
nona menor acrescentada na harmonia e a décima terceira que ocorre na melodia.
Assim, apesar do acompanhamento ter um acorde de D7(b9), na prática ouve-se um
acorde mais expandido – D7(1b93) – já que o si, que é a 13ª de ré, também é escutado,
na melodia.
Melodia
Assim, a primeira parte da melodia, que é a mesma nas duas versões de Gente
Humilde, é construída com base em um motivo básico, que é elaborado através de
transposições (início dos grupos melódicos nas notas: si, mi e ré), expansões e
contrações intervalares (graus conjuntos, terças menores, terças maiores e quintas
justas). Além disso, o ritmo está organizado em grupos de colcheias, com exceção das
cadências, das quais a primeira e a terceira finalizam a nota sol rebatida em semínimas
e a segunda e a quarta finalizam com fá# em mínima.
O segundo grupo, que inicia na anacruse ao compasso 11, tem uma expansão
de dois tempos e se estende até o final do c. 12.
Neste segmento, são acrescentados dois recursos que ainda não tinham sido
utilizados nesta canção: o uso de bordaduras inferiores (BI) na elaboração melódica e
o salto de quarta justa ascendente para preparar o último compasso. Com a soma
desses recursos (extensão melódica de meio compasso, bordaduras e salto de 4ªJ),
este grupo melódico produz uma transformação profunda na melodia de Garoto.
Posteriormente, será visto como essa transformação melódica melodia exige uma
modificação na estrutura métrica da letra escrita pelo “autor desconhecido”.
Estrutura métrica
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 -
Em um su- búr- bio a- fas- ta- do da ci- da- de
Tem cer- tos di- as em que_eu pen- so_em mi- nha gen- te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 -
ou- ve_ao lon- ge_o ge- mer de_um vi- o- lão que_a- com- pa- nha
b) Esta métrica é, ainda, adaptada para conter dezessete notas, através da quebra
de elisões:
1 2 2a 3 4 4a 5 6 7 8 9 10 11 11a 12 13 -
ou- ve ao lon- ge o ge- mer de_um vi- o- lão que a- com- pa- nha
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 -
a voz da Ri- ta nu- ma can- ção do- len- te
No último trecho da canção há outra quebra na poesia, desta vez sem ajuste à
proporção geral do poema. O último verso é um decassílabo, com acentuação na
segunda, na sexta e na décima sílaba, escrito dessa forma para se adaptar à anacruse
de apenas uma colcheia (em vez de três colcheias, como ocorre nos trechos com versos
dodecassílabos).
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
é_a voz da gen- te_hu- mil- de que_é fe- liz.
10 É necessário lembrar que aquilo que na língua portuguesa é percebido como acentuação, isto é,
distribuição de sílabas tônicas e átonas, na prosódica da poesia clássica grega era entendido como
duração, ou seja, sílabas longas e breves. Na prática, as sílabas tônicas são mais longas e as sílabas
átonas, breves.
Versão de Garoto e “autor desconhecido”, conforme arranjo coral de Badeco.
11
Na terminologia da Retórica Clássica, segundo Quintiliano, Inventio é a primeira dimensão retórica que
se refere à definição dos conteúdos a serem abordados. Em outras palavras, seria o “tema” ou “assunto”
elaborado no discurso.
12 Na Semiótica Narrativa do linguista lituano Algirdas Greimas, o ponto de origem da narrativa é
denominado topus (ou espaço tópico), isto é, o local onde se encontra o narrador ou o protagonista.
Heterotopos refere-se a situações que ocorrem fora do topus. Neste caso, o narrador é um passante que
admira uma situação de pureza e ingenuidade à qual não pertence, que se encontra fora de seu lugar de
origem.
13 Dispositio é a dimensão retórica que se refere à organização do discurso, isto é, a estruturação do
clara e distinta.
Diferentemente, a versão de Moraes e Buarque, coloca o eu lírico em primeiro
plano, que se torna o locus (local da narrativa) e o espaço tópico original, ou seja, o
“aqui e agora” a partir do qual a narrativa acontece: “eu penso em minha gente”.
1. Subúrbio afastado
2. João e sua esposa
3. Moram em um casebre
4. Onde chegou a felicidade (para ficar)
A segunda parte do poema muda o foco narrativo para um estranho que passa
e percebe a situação:
1. Casas simples
2. Cadeiras na calçada
3. Na fachada, está escrito que é um lar
4. Flores na varanda
O último verso deste trecho realiza um transitus, isto é, uma ponte para voltar ao
espaço tópico principal (o eu lírico), pois deixa a descrição naturalista (casa, cadeiras,
fachada, varanda) para a expressão do afeto carregado por esses objetos: “como a
alegria que não tem onde encostar”.
17Apostrophe é uma figura de digressão retórica, isto é, possibilita um afastamento momentâneo do assunto
principal da narrativa.
No nível macroestrutural, desta forma:
anacruse c.13 c. 14 c. 15 c. 16
eu lírico gente humilde eu lírico
CONSIDERAÇÕES FINAIS
18Entre os autores que trabalham com esses conceitos estão Ferdinand de Saussure, Roland Barthes,
Tzvetan Todorov, Jean Molino, Nicolas Ruwet e Jean-Jacques Nattiez.
Provavelmente, os aspectos similares entre as duas versões da canção têm sua
origem na peça instrumental de garoto, sua melodia e harmonia, como também no título,
que determinou a colocação posterior da letra por diferentes autores.
Quando cancionistas atuais realizam esta estrutura, não significa que se referem
à Retórica Clássica ou buscam nela meios e elementos para a sua expressão; isso quer
dizer que a tradição retórica vem sendo transmitida espontaneamente através das
gerações pelas práticas poéticas e musicais que transitam por diferentes épocas e
regiões.
19
Entre as figuras da retórica barroca que se dão pelo uso de notas melódicas dissonantes estão: parrhesia,
pathopoeia, ellipsis e heterolepsis.
20 Garoto empregava escalas de tons inteiros para produzir um efeito melódico de dominante; outros
músicos passaram a utilizar escalas modais (principalmente os modos mixolídio, lídio e dórico) como
referência ao populário nordestino. Inúmeras melodias brasileiras cadenciam em notas dissonantes em
relação à harmonia, sendo que Gente Humilde é um exemplo disso. Também é comum o uso de
encadeamentos cromáticos entre acordes, ultrapassando as fronteiras da estrutura tonal diatônica.
21 Marcus Fabius Quintilianus (35-100 d.C.) figura, juntamente com Horacio, Cicero e Longino, entre os
mais importantes teóricos da retórica latina. Sua influência se deu na música da Idade Média e do
Renascimento através da obra Institutio Oratoria (95 d.C.). O estudo sua obra fazia parte da formação dos
músicos da época. Tratadistas da música do Renascimento e do Barroco chegaram a atribuir algumas de
suas contribuições às obras de Aristóteles (Retórica e Poética).
REFERÊNCIAS & BIBLIOGRAFIA CONSULTADA