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AS VERSÕES DE GENTE HUMILDE

Fernando Lewis de Mattos

Considerações Históricas

Conta Jorge Mello, biógrafo de Garoto1, que Badeco2 lhe disse que a peça Gente
Humilde foi composta por Garoto por volta de 1945, inspirada por frequentes incursões
que o violonista fazia nos subúrbios cariocas entre 1945 e 1946.

Esta primeira versão é uma pequena peça para violão solo que iria fazer parte
de uma suíte, juntamente com Meditação e Vivo Sonhando. Tornou-se uma peça
individual que, segundo consta no diário de Garoto, foi apresentada ao público pelo
compositor ao violão no dia 18 de setembro de 1945, em um programa radiofônico que
Garoto dirigia na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A primeira apresentação ao vivo
deu-se em um recital de violão solo apresentado por Garoto na Associação Cultural de
Violão de São Paulo, em evento organizado por Ronoel Simões3 em 16 de março de
1950.

A primeira gravação comercial da peça violonística foi realizada por Geraldo


Ribeiro, em um LP de 1980, intitulado Garoto por Geraldo Ribeiro, pelo selo Arlequim,
com direção musical de Ronoel Simões. Segundo texto do encarte do CD, a versão
apresentada de Gente Humilde teria por base uma gravação doméstica feita por Walter
Souto, com Garoto ao violão. Simultaneamente, Ribeiro também fez a primeira
publicação de partituras transcritas da obra de Garoto para violão solo, no Álbum para
Violão dos Grandes Sucessos de Aníbal Augusto Sardinha (Garoto), que saiu pela
editora Pierrot. Posteriormente, em 1991, Paulo Bellinati4 lançaria, pela editora norte-
americana Guitar Solo Publications, um CD com a obra completa de garoto em 24
faixas, juntamente com a edição de partituras, em dois volumes, com transcrições da
obra de Garoto.

Segundo Badeco, a história da canção começa por volta de 1951, quando o


cantor Moacir Portes5 interessou-se por duas melodias de Garoto: Meditação e Gente
Humilde. Pediu que escrevesse as músicas, pois iria a Minas Gerais onde mostraria a
um amigo poeta, que acrescentaria uma letra para poder apresentá-las como canção.
Ao retornar ao Rio de Janeiro, Portes mostrou as letras ao compositor, que as aprovou.
Ao perguntar quem era o letrista, para constar nas publicações e audições as canções,
o cantor teria dito que se tratava de um amigo sem maiores pretensões, que não se
interessava em aparecer como autor de canções; bastava mencionar o letrista como
“autor desconhecido”. Assim nascia a primeira versão de Gente Humilde no formato de
canção.

1 Aníbal Augusto Sardinha, violonista, multi-instrumentista e compositor (1915-1955).


2 Emanuel Barbosa Furtado, cantor e arranjador que fez parte do grupo vocal Os Cariocas e conviveu com
Garoto na década de 1940.
3 Pesquisador, violonista e historiador, Ronoel Simões (1917-2010) foi um dos mais importantes

colecionadores de música para violão do Brasil. Seu acervo, que desde seu falecimento está em poder da
Prefeitura Municipal de São Paulo, conta de mais de 50.000 itens.
4 Em 1984, Bellinati já tinha gravado algumas obras de Garoto pelo selo Discos Marcus Pereira.
5 Moacir Portes era cantor do conjunto vocal Os Uyrapurus e conviveu com Garoto e Badeco nos anos 1940

e início de 1950.
Esta primeira letra de Gente Humilde é atualmente conhecida através da
partitura de um arranjo para coro misto a quatro vozes realizado por Badeco para a
apresentação do grupo coral Cantores do Céu, no programa Ondas Musicais da Rádio
Nacional, em 1951. Nesta partitura de Badeco, a letra que consta é a seguinte:

Em um subúrbio afastado da cidade


Vive o João e a mulher com quem casou
Em um casebre onde a felicidade
Bateu à porta, foi entrando e lá ficou.

E à noitinha alguém que passa pela estrada


Ouve ao longe o gemer de um violão
Que acompanha a voz da Rita numa canção dolente
É a voz da gente humilde que é feliz.

A única informação sobre qualquer apresentação pública de Gente Humilde em


forma de canção, nessa versão original de Garoto e o “autor desconhecido”, é aquela
realizada pelo coro Cantores do Céu, na Rádio Nacional, em 1951.

Sobre a forma definitiva e mais difundida da canção6, conta Vinícius de Moraes


que Baden Powell teria lhe mostrado a versão instrumental da peça, para violão solo,
por volta de 1961 ou 1962. As versões tocadas por Baden e registradas em gravações
na época diferem daquela publicada por Geraldo Ribeiro em disco e partitura. O parceiro
de Vinícius conheceu a música através de Zé Menezes7. É possível que algo se
modificasse no processo de transmissão oral da música ou que Baden Powell tivesse
preferido interpretar alguns trechos de forma diferente daquela gravada por Garoto e,
posteriormente, tornada pública por Geraldo Ribeiro. De qualquer forma, essa nova
versão de Baden foi apresentada a Vinícius, que disse em um depoimento:

Baden me deu essa música do finado Garoto, esse que ele considerava o
grande mestre do violão de sua época. Eu fiquei condicionado pelo título por
muito tempo, pois eu não queria trair a ideia do tema de Garoto. [...] Eu sentia
aquele tema tão ligado àquele mundo empoeirado, àquela gente sem vez,
àqueles velhinhos de pijama nas varandas. Eu sentia que, naquele tema,
Garoto queria falar daquela gente do subúrbio e eu só sei que um dia, há três
anos, fui a Roma receber minha afilhadinha, a filha de meu compadre e querido
amigo Chico Buarque e, nessa ocasião, um dia, em casa de Chico, o tema
veio, as palavras saíram, eu chamei meu compadre, a gente juntou as cabeças
e a canção saiu (MORAES apud MELLO, 2012).

Entre o fato de Vinícius de Moraes tomar conhecimento da melodia e a criação


da nova letra em parceria com Chico Buarque de Hollanda, passaram-se quase dez
anos, pois a afilhada a quem Vinícius se refere é Silvia Buarque de Hollanda, que nasceu
em março de 1969, e a visita de Vinícius a Chico Buarque, que estava exilado em Roma,
deu-se em 1970. Certamente, Vinícius e Chico Buarque não tinham conhecimento da

6 Muitas vezes, esta versão é erroneamente atribuída a Chico Buarque de Hollanda, que, como será
demonstrado, teve pouca participação na criação da canção, pois apenas acrescentou dois versos.
7 José Menezes França (1921-2014), músico, amigo de Garoto, cuja residência Baden Powell frequentou

na juventude.
primeira versão da letra, escrita pelo “autor desconhecido”. Apenas conheciam a versão
violonística da peça na interpretação de Baden Powell.

A nova letra da canção seria esta:

Tem certos dias em que eu penso em minha gente


E sinto assim todo o meu peito se apertar,
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar.
Igual a como quando eu passo no subúrbio,
Eu, muito bem, vindo de trem de algum lugar,
E aí me dá como uma inveja dessa gente
Que vai em frente sem nem ter com quem contar.

São casas simples, com cadeiras na calçada,


E na fachada, escrito em cima que é um lar.
Pela varanda, flores tristes e baldias
Como a alegria que não tem onde encostar.
E aí me dá uma tristeza no meu peito
Feito um despeito de eu não ter como lutar,
E eu, que não creio, peço a Deus por minha gente,
É gente humilde, que vontade de chorar.

Segundo os autores Jairo Severiano, Zuza Homem de Mello8 e Wagner Homem9,


a contribuição de Chico Buarque para a criação da letra de Gente Humilde resume-se
aos versos:

Pela varanda flores tristes e baldias,


Como a alegria que não tem onde encostar

Assim, deu-se a parceria inesperada entre músicos e poetas, ao longo de 25


anos (1945-1970), para a criação de uma das canções brasileiras mais difundidas no
Brasil e no exterior: uma peça instrumental de Garoto que recebe a letra de um “autor
desconhecido”. Esta versão da canção permaneceria quase inédita, mas a versão
instrumental seguiu sendo tocada. Posteriormente, Baden Powell aprende a música
com Zé Menezes, sendo que a tocaria com algumas diferenças em relação ao original.
Powell apresenta a melodia a Vinícius de Moraes, que fica quase uma década para
acrescentar a letra. Esta lhe vem à mente em Roma, na residência de Chico Buarque,
que acrescenta dois versos à segunda estrofe do poema de Vinícius. Esta versão da
canção aparece como quinta faixa do LP Chico Buarque de Hollanda Nº 4, gravado e
lançado em 1970 na Itália. Na ficha técnica do disco de Chico Buarque consta a autoria
da canção: Garoto, Vinícius de Moraes, Chico Buarque – sem mencionar a participação
de Baden Powell, pois acreditavam que a versão para violão solo tocada por Baden
fosse ipsis litteris a música original de Garoto. Na voz de Chico Buarque, Gente Humilde
passa a ser internacionalmente conhecida.

8 SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.
9 HOMEM, Wagner. História das Canções. São Paulo: Leya, 2009.
ANALISE COMPARATIVA

Harmonia

A análise comparativa entre as melodias de Garoto e Baden Powell demonstra


quais são os aspectos similares e quais se diferenciam entre as duas canções.

Até o c. 11, não há diferenças substanciais entre as duas músicas, sendo que o
que difere está há harmonia, já que as melodias são idênticas.

Abaixo, estão as músicas até o c. 11.

a) melodia de Garoto com letra do “autor desconhecido”;


b) melodia de Baden Powell, com letra de Vinícius de Moraes e Chico Buarque.

Se, até o c. 11, a melodia de Baden Powell segue a mesma de Garoto, há


algumas variações na harmonia. Essas variações ocorrem mais na sonoridade dos
acordes do que na função dos mesmos em relação à estrutura tonal.

Neste trecho, o fundamento harmônico é o mesmo em ambas as músicas. As


poucas diferenças estão no uso do acorde de dominante com sétima em terceira
inversão, no c. 4, para preparar a frase do c. 5, na harmonização de Baden Powell. No
c. 5, na versão de Garoto o acorde de Bm7 (iii grau) aparece como substituto de G6 (I
grau), ao passo que Baden Powell mantém a mesma harmonia do início: I biiiº7 . No
exemplo abaixo, as diferenças de harmonização estão marcadas entre colchetes.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Garoto: I biiiº7 | ii7 | V7 | I [V2] | iii7 biiiº7 | ii7 | _ subV7 | I | I biiiº7 | ii7 | V7

Powell: I biiiº7 | ii7 | V7 | I [V2] | [I] biiiº7 | ii7 | _ subV7 | I | I biiiº7 | ii7 | V7
É interessante perceber a coincidência da substituição de acordes feita por
Garoto no c. 5 – I iii7 biiiº7 subV7 I – com a prática do jazz da mesma época,
especificamente no estilo Be Bop da década de 1940, em que é frequente a substituição
da sequência harmônica básica – I ii7 V7 I – pelo uso de acordes alterados para
alcançar o segundo grau – I iii7 biii7 subV7 I.

Esse procedimento não aparece na harmonização de Baden Powell.

As demais modificações operadas por Powell na harmonia referem-se apenas à


sonoridade dos acordes. No c. 1, acrescenta-se maior índice de dissonância à harmonia,
já que um acorde com sexta adicionada – G6 – é substituído por um acorde maior com
sétima maior em primeira inversão – G7M/B. Além disso, a inversão produz um baixo
cromático descendente, pelo encadeamento de acordes:

Esse procedimento, que é característico em harmonizações de melodias, na


música brasileira, desde a geração de Pixinguinha e Radamés Gnattali, aparece
intensificado, tanto na harmonia de Garoto – indicado com a) – quanto na de Powell –
indicado com b) –, pelo cromatismo estendido a cinco notas em quatro compassos.

Neste trecho, além do primeiro acorde, também há uma diferença na sonoridade


do subV7, que na harmonia de Garoto aparece como uma Sexta Francesa (acorde de
sétima com décima primeira aumentada) e na versão de Powell aparece como um
acorde de sétima com nona aumentada, o que é outra intensificação de dissonâncias
na harmonização de Powell.

Por outro lado, nos trechos de Baden Powell em que a função de dominante
aparece sem substituição, isto é, com o acorde de D7, a harmonização de Garoto tende
a intensificar mais as dissonâncias pelo uso de acordes estendidos de décima terceira
e de nona maior (no c. 3) e de nona menor (no c. 11).
3 11
| V7 | [...] | V7 |
Garoto: D7(13) D7(9) D7(b9)

Powell: D7 D7

As diferenças mais significativas na harmonia, entre as duas versões de Gente


Humilde, ocorrem entre o c. 12 e o c. 15.
Nos c. 12-13, apesar das diferenças entre as harmonizações, ambas estão
embasadas em um mesmo princípio: o movimento ii V I empregado para tonicizar
determinado acorde do campo tonal.

Na harmonização de Garoto, é realizado o movimento harmônico iiØ7 V7 i para


preparar o acorde de Am, que é o ii grau, a relativa da subdominante na tonalidade de
Sol Maior. Na versão de Baden Powell, o mesmo princípio ocorre para preparar o acorde
de IV grau, isto é, a própria subdominante: ii7 V7 I.
12 13
| iiØ7 V7(b9) | i
Garoto: BØ E7(b9) Am7

ii

| ii7 V7 | I
Powell: Dm7 G7 C7M
IV

Na versão de Garoto, logo após o movimento de tonicização, na segunda metade


do c. 13, aparece o acorde de Cm6, obtido por empréstimo modal. Este acorde poderia
ser interpretado como apropriação de Sol Menor de duas formas: a) como um acorde
de iv grau com sexta adicionada (que é a interpretação mais comum atualmente); b)
como um acorde de iiØ7 em primeira inversão (interpretação pelo ponto de vista da
Harmonia Tradicional, em que todos os acordes devem ser redutíveis à sobreposição
de terças).

Neste mesmo ponto (segunda metade do c. 13), na harmonização de Baden


Powell aparece um acorde menos comum, o acorde de F7(#11). Com a sonoridade de
Sexta Francesa, presente em um ponto diferente da harmonia de Garoto, este acorde
tem função ambígua e poderia ser interpretado de diferentes maneiras. Formado pelas
notas fá-lá-si-mib, o acorde possui dois trítonos. Um deles é o trítono principal que forma
as notas atrativas (notas: fá-si) que conduz ao acorde de C. Sob este aspecto, o acorde
pode ser interpretado como dominante secundária alterada que prepara C, que é
subdominante no tom de Sol Maior. Como o acorde de F7(#11) conduz para G7M/B
também poderia ser interpretado como uma dominante alterada para preparar o acorde
de G, através do trítono lá-mib. Neste contexto, o mib seria interpretado como uma
sensível superior de ré, que é a quinta do acorde de G. Essa interpretação é reforçada
pelo movimento mib-ré da melodia, na passagem do c. 12 ao c. 13. Por ser uma
característica de acordes com dois trítonos, as duas interpretações do acorde de
F7(#11) podem ser consideradas corretas, pois pode ser percebido como uma
dominante secundária alterada quando é apresentado e como uma dominante alterada
no momento em que resolve na tônica. Assim, explica-se a ambiguidade deste tipo de
acorde: é alcançado como uma função e resolvido como outra função.

Na cadência final (c. 15-16), também há um encadeamento de acordes com base


no movimento ii V7 I com alterações.

Na versão de Garoto, o segundo grau é tomado de empréstimo do homônimo,


Sol Menor, perfazendo uma rima com o acorde de Cm6 que apareceu no c. 13, já que
ambos possuem as mesmas notas, em diferentes posições: lá-dó-mib-sol e dó-mib-sol-
lá. O acorde de dominante que prepara a tônica final incorpora a nota da melodia, já que
o si da melodia é a 13ª do acorde de D7(13).

Na versão de Baden Powell ocorre uma função comum que ainda não havia
aparecido nesta harmonização: a dominante da dominante, acorde de A7. Isso não
deixa de ser uma alteração da cadência ii7 V7 I, já que a dominante da dominante é um
II7, ou seja, um acorde com sétima sobre o segundo grau do qual a terça foi alterada
ascendentemente. O acorde de dominante que conduz à tônica final aparece estendido
pela primeira vez na harmonização de Baden Powell. Isso ocorre por dois motivos: a
nona menor acrescentada na harmonia e a décima terceira que ocorre na melodia.
Assim, apesar do acompanhamento ter um acorde de D7(b9), na prática ouve-se um
acorde mais expandido – D7(1b93) – já que o si, que é a 13ª de ré, também é escutado,
na melodia.

Abaixo, estão reduções harmônico-melódicas das duas versões da canção


Gente Humilde. A análise comparativa destas reduções possibilita perceber as
semelhanças e diferenças existentes entre as duas versões, tanto do ponto de vista da
construção melódica, quanto da estrutura harmônica.

Gente Humilde, redução a partir da versão original de Garoto, conforme a versão


para violão solo e o arranjo de Badeco para coro.
Gente Humilde, redução a partir da versão de Baden Powell, com base na sua
interpretação da peça em formato para violão solo e na canção gravada por Chico
Buarque de Hollanda, no disco Chico Buarque de Hollanda Nº 4.

Melodia

Se do início ao c. 11 as linhas melódicas das duas versões de Gente Humilde


são idênticas, no trecho entre os c. 12-16, as melodias das duas versões da canção
diferem substancialmente.

A análise da melodia desde o início da canção demonstra o processo de


elaboração existente. O primeiro período da melodia criada por Garoto (c. 1-8) é
formado por quatro grupos frásicos organizados com base no mesmo material melódico-
rítmico, apresentado nos c. 1-2.

Este segmento é construído com notas rebatidas em todos os seus elementos:


(a) anacruse com a nota si, repetida três vezes em colcheias; (b) segmento
intermediário, com a nota ré e com a nota mi, repetidas quatro vezes cada uma, em
colcheias; (c) finalização, com a nota sol repetida, em semínimas.

O desenho melódico perfaz uma linha ascendente de si a sol (sexta menor


acima), com predomínio de graus conjuntos, um salto de terça menor (mi-sol) e
permanece estática no sol para finalizar.

No processo de elaboração melódica, este grupo melódico sofre inúmeras


variações. É interessante notar como o desenho melódico vai-se tornando mais
elaborado ao longo do primeiro período (c. 1-8), sendo quase idêntico nos dois últimos
grupos melódicos, diferindo apenas no salto de (a) para (b), que no terceiro grupo
melódico é de 5ªJ e no quarto grupo é de 3ªm.

A análise mais detalhada deste período demonstra que a linha melódica é


construída com base em notas rebatidas e movimentos por graus conjuntos entre um
grupo de notas rebatidas e outro. São utilizados apenas saltos de terça e quinta, nesta
proporção: seis saltos de 3ªm, quatro movimentos por graus conjuntos, dois saltos de
3ªM e dois saltos de 5ªJ. Os intervalos de 3ªm e 5ªJ são empregados como impulso
inicial, na preparação da anacruse ao tempo forte. A 3ªm aparece no primeiro e no último
grupo frásico, o intervalo de 5ªJ ocorre nos dois grupos intermediários. A 3ªm também
aparece para preparar o movimento cadencial, dividindo com a 3ªM a função de
preparar a nota cadencial. A 3ªm aparece nos três primeiros grupos e a 3ªM no quarto
grupo. Se os saltos aparecem para dar impulso inicial e cadencial à melodia, os graus
conjuntos dão movimento ao interior dos grupos melódicos.

Assim, a primeira parte da melodia, que é a mesma nas duas versões de Gente
Humilde, é construída com base em um motivo básico, que é elaborado através de
transposições (início dos grupos melódicos nas notas: si, mi e ré), expansões e
contrações intervalares (graus conjuntos, terças menores, terças maiores e quintas
justas). Além disso, o ritmo está organizado em grupos de colcheias, com exceção das
cadências, das quais a primeira e a terceira finalizam a nota sol rebatida em semínimas
e a segunda e a quarta finalizam com fá# em mínima.

A segunda parte da melodia de Garoto inicia com o mesmo grupo melódico do


primeiro período (c. 8-10), com movimento ascendente de si a sol. Após esse início, a
estrutura da segunda parte é profundamente modificada em suas proporções, pois os
grupos são alterados em sua extensão de tempo.

O segundo grupo, que inicia na anacruse ao compasso 11, tem uma expansão
de dois tempos e se estende até o final do c. 12.
Neste segmento, são acrescentados dois recursos que ainda não tinham sido
utilizados nesta canção: o uso de bordaduras inferiores (BI) na elaboração melódica e
o salto de quarta justa ascendente para preparar o último compasso. Com a soma
desses recursos (extensão melódica de meio compasso, bordaduras e salto de 4ªJ),
este grupo melódico produz uma transformação profunda na melodia de Garoto.
Posteriormente, será visto como essa transformação melódica melodia exige uma
modificação na estrutura métrica da letra escrita pelo “autor desconhecido”.

Também no grupo melódico seguinte, que se estende entre os c. 13 -14, se


efetiva uma transformação significativa, que ocorre na estrutura métrica. O elemento
(a), que, até então, apareceu como anacruse, agora ocorre no início do compasso, como
ritmo acefalo. Isso gera um deslocamento de meio compasso em toda a linha melódica,
fazendo com que os elementos que apareciam no tempo forte se desloquem ao tempo
fraco, e vice-versa.

A única alteração significativa na métrica do último grupo do segundo período


ocorre na anacruse, que agora não é mais formada por três notas rebatidas, mas
somente por uma colcheia. Isso é devido à necessidade de readaptar a linha melódica
para ser novamente encaixada na métrica original, para que cada um dos elementos –
(a), (b) e (c) – retorne à sua posição métrica de origem. Neste grupo, a principal
diferença, em relação ao restante da melodia, é o uso do intervalo de quinta aumentada
(mib-si) que ocorre no interior do elemento (b), segmento que se caracteriza por graus
conjuntos nos outros grupos melódicos. Provavelmente, isso se deve ao uso do acorde
de AØ, obtido a partir de Sol Menor (tom homônimo) por empréstimo modal. O final do
segundo período é idêntico ao final do primeiro, com o salto de terça maior descendente
(notas: si-sol).

Na versão de Baden Powell, a segunda parte da melodia de Gente Humilde,


difere bastante da estrutura melódica de Garoto. Em primeiro lugar, as estruturas
melódica, métrica e frásica mantêm-se da mesma forma que o primeiro período, isto é,
não há transformação ou extensão melódica, nem deslocamento dos elementos
fraseológicos em relação à sua posição no compasso. Os elementos (a), (b) e (c)
seguem em sua posição original. O que gera movimento neste trecho da melodia é o
uso de novas variações, ocorrentes no interior da mesma estrutura.
Da mesma forma que na versão de Garoto, na versão de Powell, o primeiro grupo
do segundo período (c. 8-10) apenas repete o primeiro período. O segundo grupo é
quase igual ao de Garoto, diferindo apenas na cadência. Onde a linha melódica de
Garoto se estende até o final do compasso c. 12, a frase de Powell finaliza com uma
nota longa, atacada na cabeça do compasso, conforme ocorre nos grupos pares da
primeira parte da canção. A variação mais importante, em relação à primeira parte, é o
acréscimo da bordadura inferior (BI) no final do grupo.

Se na versão de Garoto a bordadura é transposta à quarta justa superior (ré-dó-


ré, no c. 12), produzindo a extensão melódica já comentada, a elaboração da bordadura,
na versão de Powell, encontra-se no início do próximo grupo, que se encontra da
anacruse do c. 13 ao c. 14. Neste ponto, a bordadura é invertida como bordadura
superior (BS) e serve de impulso para o movimento melódico. A variação mais
significativa da segunda parte da canção, na versão de Powell, ocorre nesta frase. Trata-
se do movimento por graus conjuntos descendentes que percorre a segunda metade do
c. 13, em direção ao c. 14. Esta é a segunda vez em que o segmento (b) da melodia é
elaborado sem uso de notas rebatidas. A primeira vez foi no final do grupo anterior, pelo
uso da bordadura. O único salto deste segmento é uma terça maior descendente (sol-
mib) que encaminha a resolução da sensível superior (mib-ré), na passagem do c. 13
ao c. 14.

O final da canção não apresenta novidade substancial. O mais importante a ser


comentado é a diferença em relação à melodia original de Garoto, onde o salto de quinta
aumentada é marcante. Na melodia de Powell, este salto é evitado pelo uso da nota mi
natural. O que gera um salto de quinta justa (notas: mi-si) no interior do segmento (b).

Nota-se, neste sentido, uma simplificação da melodia em relação ao original de


Garoto. Assim, em comparação ao original, por um lado, a versão de Baden Powell
tende a intensificar a elaboração harmônica pelo acréscimo de dissonâncias mais
ásperas, através dos acordes: G7M, Ab7(#9), F7(#11) e D7(b9). Por outro lado, a
construção melódica tende a ser mais convencional, mantendo a quadratura e sendo
organizada através de variações do mesmo material, sem alterar a sua estrutura de
fundo como ocorre na segunda parte da melodia de Garoto.
Poesia

Estrutura métrica

A melodia de Garoto, desde seu início, propicia a construção da letra da canção


com base em versos dodecassílabos trímetros, com acentos nas sílabas de número 4,
8 e 12. Isso acontece nas duas poesias, tanto na primeira versão, escrita pelo “autor
desconhecido”, quanto naquela escrita por Vinícius de Moraes e Chico Buarque de
Hollanda.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 -
Em um su- búr- bio a- fas- ta- do da ci- da- de
Tem cer- tos di- as em que_eu pen- so_em mi- nha gen- te

Como a melodia de Baden Powell não contém qualquer quebra da estrutura, a


poesia escrita por Vinícius de Moraes e Chico Buarque segue a mesma estrutura
métrica até o final da canção.

Ao contrário, é necessário que a métrica poética do “autor desconhecido” seja


modificada para se adaptar à segunda parte da música de Garoto, com fraseologia
musical irregular. No segundo verso da segunda parte, a adaptação ocorre em dois
níveis:

a) A métrica poética é alterada para um verso de treze sílabas poéticas:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 -
ou- ve_ao lon- ge_o ge- mer de_um vi- o- lão que_a- com- pa- nha

b) Esta métrica é, ainda, adaptada para conter dezessete notas, através da quebra
de elisões:

1 2 2a 3 4 4a 5 6 7 8 9 10 11 11a 12 13 -
ou- ve ao lon- ge o ge- mer de_um vi- o- lão que a- com- pa- nha

No segmento seguinte, a adaptação da poesia se dá pelo uso de um verso


hendecassílabo com acentos na quarta, nona e décima primeira sílabas.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 -
a voz da Ri- ta nu- ma can- ção do- len- te

Com a melodia deslocada no compasso, a acentuação poética gera


deslocamento métrico em dois níveis: a melodia e a poesia ficam atravessadas em
relação à estrutura de compasso do início da canção. Não ocorre problema de prosódia
musical, na colocação da letra em música, neste contexto, por duas razões:
a) o ouvinte já está habituado que a relação letra-música ocorra desta forma,
nesta canção;
b) a sílaba “Ri-“ do nome próprio Rita cai em uma nota de maior duração, o que
facilita a sua compreensão como sílaba tônica10.

Ao utilizar um verso de treze sílabas e, em seguida, outro de onze sílabas, os


dois somam vinte e quatro sílabas. Assim, até aqui, a poesia mantém a proporção geral
dos versos dodecassílabos da primeira parte da canção (12 + 12 = 24; 13 + 11 = 24),
através de uma estrutura de proporções assimétricas.

No último trecho da canção há outra quebra na poesia, desta vez sem ajuste à
proporção geral do poema. O último verso é um decassílabo, com acentuação na
segunda, na sexta e na décima sílaba, escrito dessa forma para se adaptar à anacruse
de apenas uma colcheia (em vez de três colcheias, como ocorre nos trechos com versos
dodecassílabos).

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
é_a voz da gen- te_hu- mil- de que_é fe- liz.

A construção fraseológica irregular da melodia composta por Garoto exige que


a poesia se adapte às quebras existentes na melodia, tanto do ponto de vista de sua
extensão no tempo quanto de sua colocação métrica (prosódia). Assim, a poesia escrita
pelo “autor desconhecido” segue, na primeira estrofe, uma métrica regular com versos
dodecassílabos, ao passo que a segunda estrofe segue o princípio do verso livre
característico da poesia modernista, o que é incomum na canção popular brasileira das
décadas de 1940 e 1950.

Os Quadros de Segmentação de cada uma das versões da canção, com a


colocação da letra em relação à melodia, apresentados a seguir, demonstra as
diferenças nas construções poético-melódicas nas duas versões de Gente Humilde.

10 É necessário lembrar que aquilo que na língua portuguesa é percebido como acentuação, isto é,
distribuição de sílabas tônicas e átonas, na prosódica da poesia clássica grega era entendido como
duração, ou seja, sílabas longas e breves. Na prática, as sílabas tônicas são mais longas e as sílabas
átonas, breves.
Versão de Garoto e “autor desconhecido”, conforme arranjo coral de Badeco.

Versão de Baden Powell, Vinícius de Moraes de Chico Buarque, conforme


consta no disco Chico Buarque de Hollanda Nº 4.
Retórica

Em ambos os poemas, o eu lírico está na voz de um transeunte que percebe a


vida suburbana à distância e com empatia: de forma idealizada no poema do “autor
desconhecido” e de forma lamentosa e resignada no poema de Vinícius de Moraes e
Chico Buarque. Assim, a dimensão retórica de inventio11 define-se por uma relação
heterotópica12 entre o autor-narrador e a situação narrada, em que o narrador percebe
a vida da gente humilde fora de sua realidade particular (o cotidiano do narrador).

A dimensão retórica de dispositio13 se dá de forma diferente nas duas canções.


Na versão de Garoto com o autor desconhecido, a canção acontece como um processo
contínuo, com invenção melódica do início ao fim, na forma de um Período Composto
Paralelo.

Ao repetir a letra com base na mesma melodia, a versão de Vinícius de Moraes


e Chico Buarque se apresenta como uma canção estrófica, em que a melodia é repetida
para dar lugar à segunda estrofe, a qual tem a mesma estrutura métrica da primeira.
Assim, apesar da invenção melódica ter a mesma dimensão, com 16 compassos nas
duas versões, a canção de Moraes e Buarque tem o dobro de duração pelo fato de
repetir toda a estrutura musical com nova letra.

Em uma análise mais detalhada, percebe-se a organização do discurso em


forma bipartida em ambas as canções, já que a versão de Garoto divide o conteúdo em
dois grupos de 8 compassos e a versão de Moraes e Buarque organiza o discurso em
dois grupos de 16 compassos.

O exordium14 dá-se no primeiro grupo melódico de dois compassos com


anacruse. A percepção idealizada da situação suburbana é realizada através de uma
anabasis, figura de retórica musical caracterizada pelo movimento melódico
ascendente. Tradicionalmente, a anabasis representa situações de ascendência
espiritual, transcendência ou superação de situações adversas.

Na versão de Garoto em parceria com o autor desconhecido, o primeiro


momento da canção apresenta a locação da cena, isto é, o locus ou o espaço narrativo
onde a situação acontece: em um subúrbio afastado do centro urbano.

11
Na terminologia da Retórica Clássica, segundo Quintiliano, Inventio é a primeira dimensão retórica que
se refere à definição dos conteúdos a serem abordados. Em outras palavras, seria o “tema” ou “assunto”
elaborado no discurso.
12 Na Semiótica Narrativa do linguista lituano Algirdas Greimas, o ponto de origem da narrativa é

denominado topus (ou espaço tópico), isto é, o local onde se encontra o narrador ou o protagonista.
Heterotopos refere-se a situações que ocorrem fora do topus. Neste caso, o narrador é um passante que
admira uma situação de pureza e ingenuidade à qual não pertence, que se encontra fora de seu lugar de
origem.
13 Dispositio é a dimensão retórica que se refere à organização do discurso, isto é, a estruturação do

conteúdo em uma forma determinada.


14 Exordium é a primeira parte da dimensão de dispositio. Trata-se da introdução do conteúdo de forma

clara e distinta.
Diferentemente, a versão de Moraes e Buarque, coloca o eu lírico em primeiro
plano, que se torna o locus (local da narrativa) e o espaço tópico original, ou seja, o
“aqui e agora” a partir do qual a narrativa acontece: “eu penso em minha gente”.

Assim, há uma diferença essencial em relação ao foco narrativo: na versão do


autor desconhecido, o discurso está centrado no espaço suburbano; na versão de
Moraes e Buarque, o foco está na percepção subjetiva do eu lírico.

Nas duas versões da canção, a análise de sentido designativo (relação entre o


poema e a melodia) denota um caráter cinestésico, isto é, a sensação de deslocamento;
o que é melodicamente determinado pelas notas rebatidas em movimento ascendente
e pelo fluxo rítmico em colcheias em andamento médio. Em ambos os casos, o fluxo
melódico inicial antecipa a imagem de um transeunte sensibilizado pela cena
suburbana, o que será apresentado posteriormente no texto. A representação de
alguém que passa pelo subúrbio e percebe a gente humilde aparece nos compassos 9
a 11, quando o segmento melódico inicial da canção é repetido, gerando uma rima
melódica que reforça a sensação cinestésica do trecho.

Abaixo, estão as duas versões da canção, desde a anacruse para o compasso


9 até o compasso 11.

Versão de Garoto e autor desconhecido

Versão de Moraes e Buarque


Nesta canção, em ambas as versões, o exordium acumula a função de narratio,
pois ao mesmo tempo em que introduz a temática poético-musical, apresenta o ponto
de vista do autor em relação ao assunto.

Logo após a introdução e a apresentação do assunto da narrativa, segue a seção


de argumentatio a partir da anacruse que prepara o compasso 3. Neste segmento, o
motivo principal é elaborado em diferentes direções. Os principais elementos da
argumentação são o propositio, isto é, a proposição dos princípios norteadores do
discurso, e o confutatio, que é erigido através de argumentações que refutam
proposições opostas e reforçam o argumento principal. Na canção Gente Humilde, a
seção de argumentatio é elaborada através da técnica de gradatio15, ou seja, um
processo de argumentação em que os elementos do discurso são apresentados
paulatina e cumulativamente. Nas duas versões da melodia, a gradação se dá através
das diversas transposições e variações do material melódico apresentado nos primeiros
compassos16.

Na versão de Garoto e o autor desconhecido, o processo de gradatio ocorrente


na linha melódica é reforçado pelo desenvolvimento narrativo do poema, em que cada
verso acrescenta novos aspectos da cena, montando o sentido geral da canção na
mente do ouvinte, através desta sequência de imagens, na primeira parte:

1. Subúrbio afastado
2. João e sua esposa
3. Moram em um casebre
4. Onde chegou a felicidade (para ficar)

A segunda parte do poema muda o foco narrativo para um estranho que passa
e percebe a situação:

1. Alguém passa pela estrada


2. Ouve o canto acompanhado ao violão
3. É uma canção tristonha
4. Que representa a voz da gente humilde

Percebe-se, desta forma, como o autor desconhecido percebeu (intuitivamente)


a gradação na melodia criada por garoto e acrescentou o mesmo princípio retórico à
construção do poema. Isso não significa que o poeta tivesse a intenção explícita de
realizar esse procedimento, mas que este processo de gradação se torna perceptível
sob o prisma da análise retórica.

A estrutura narrativa do poema de Vinícius de Moraes e Chico Buarque difere da


versão do autor desconhecido. Toda a primeira estrofe tem o foco narrativo no eu lírico,
centrada na sensibilidade do narrador, o que se torna explícito pelo uso de verbos
conjugados na primeira pessoa do singular:

15 No campo musical, a gradação normalmente se dá através de sequências melódicas ou, no caso da


música polifônica, sequência e imitação (como ocorre nos episódios de muitas fugas, por exemplo).
16 Para verificar em detalhe este aspecto, conferir a seção sobre análise da Melodia.
1. Penso em minha gente
2. Sinto o peito apertar
3. Desejo de viver sem me notar
4. Passo no subúrbio
5. Me dá uma inveja dessa gente

Na primeira parte da segunda estrofe, a narrativa muda de foco, pois passa da


sensibilidade subjetiva (o eu lírico) à descrição imagética da cena no subúrbio:

1. Casas simples
2. Cadeiras na calçada
3. Na fachada, está escrito que é um lar
4. Flores na varanda

O último verso deste trecho realiza um transitus, isto é, uma ponte para voltar ao
espaço tópico principal (o eu lírico), pois deixa a descrição naturalista (casa, cadeiras,
fachada, varanda) para a expressão do afeto carregado por esses objetos: “como a
alegria que não tem onde encostar”.

Após a transição (transitus), o foco narrativo retorna ao eu lírico, com a repetição


do segmento melódico inicial da canção.

Desde então, nesta versão da canção, permanece o foco no eu lírico. Um breve


desvio do eu lírico se dá através de uma apostrophe17 que novamente traz à tona a cena
suburbana, ao mencionar: “peço a Deus por minha gente, que é gente humilde”. Trata-
se apenas de um desvio do foco narrativo principal, pois o retorno à noção de gente
humilde está emoldurado pelo eu lírico. O trecho inicia com um aspecto do ethos do eu
lírico – “e eu que não creio” – e finaliza com a expressão de seu sentimento em relação
à gente humilde: “que vontade de chorar”.

A moldura do eu lírico em torno de sua sensibilidade com relação à gente


humilde ocorre em dois níveis da estrutura da canção.

17Apostrophe é uma figura de digressão retórica, isto é, possibilita um afastamento momentâneo do assunto
principal da narrativa.
No nível macroestrutural, desta forma:

Primeira Estrofe Segunda Estrofe


Período I Período II Período I Período II
eu lírico (c. 1-16) gente humilde (c. 1-8) eu lírico (c. 9-16)

No nível microestrutural, no final da segunda estrofe:

anacruse c.13 c. 14 c. 15 c. 16
eu lírico gente humilde eu lírico

No peroratio, as duas versões da letra denotam sensibilidades distintas do


narrador em relação à gente humilde. Na versão do autor desconhecido, há um
distanciamento em relação ao foco da narrativa e uma percepção idealizada da
felicidade. O narrador passa à distância e tem sua percepção da situação:

“é a voz da gente humilde que é feliz”

Na versão de Moraes e Buarque, ocorre uma aproximação em relação à gente


humilde que transfere uma empatia lamentosa e resignada ao eu lírico.

“minha gente, que é gente humilde, que vontade de chorar”

Os distintos posicionamentos do narrador em relação à gente humilde -


distanciamento e aproximação – podem resultar da diferença substancial entre as duas
versões no final da melodia.

Na versão de Garoto, o salto de quinta aumentada ascendente (mib-si) seguido


pelo salto de terça maior descendente (si-sol) perfaz, na melodia, um arpejo sobre um
acorde de quinta aumentada: Eb(#5). Trata-se de um acorde cíclico que não se fixa em
nenhuma de suas notas como referência ou som fundamental. Isso pode ter levado o
autor desconhecido a incorporar um distanciamento narrativo em relação à cena.

Na versão da melodia de Baden Powell, o movimento melódico de quinta justa


ascendente (mi-si) e o salto de terça maior descendente (si-sol), na melodia, geram um
arpejo sobre a tríade de Em. É possível que uma linha melódica com ênfase sobre um
tipo de acorde (tríade menor) tradicionalmente relacionado à representação da
melancolia tenha influenciado Vinícius de Moraes à conclusão da cena com um caráter
triste e lamentoso.
Outro fator interessante nesta versão da canção é a inter-relação entre a melodia
e a harmonia que produzem o peroratio. O acorde final, que é um G6 (notas: sol-si-ré-
mi) aparece como uma síntese do último grupo melódico já que contém todas as notas
dos três últimos compassos (ré-mi-si-sol). Assim, a canção se completa como um
epítome, isto é, um resumo ou sinopse que se dá pela confluência entre a dimensão
horizontal (melodia) e a dimensão vertical (harmonia) da música. Em algumas teorias
linguísticas e semiológicas, os aspectos horizontal e vertical representam,
respectivamente, as dimensões de espaço e tempo no ato comunicativo ou os eixos
paradigmático e sintagmático da estrutura narrativa18.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação da canção Gente Humilde percorreu um caminho de 25 anos, desde


sua gênese por Garoto, em 1945, até sua versão de 1970, que se tornou conhecida na
gravação de Chico Buarque.

A elaboração da canção, através de inúmeras parcerias descontínuas e


inesperadas, passou pelas seguintes fases:

1. criação original de Garoto para violão solo, datada de 1945;


2. por volta de 1951, o “autor desconhecido” acrescentou a primeira letra à
música de Garoto;
3. no início dos anos 1960, Baden Powell passa a tocar a peça para violão solo
com mudanças na harmonia e alteração de algumas notas da melodia no
final do segundo período;
4. em 1970, Vinícius de Moraes e Chico Buarque acrescentam a letra definitiva
que difundiria a canção.

A análise das diferentes versões da música demonstra grande quantidade de


similaridades entre elas; o que se dá pelo fato de que Baden Powell acreditava estar
tocando a versão original de Garoto. Por outro lado, há diferenças substanciais entre as
duas poesias que foram acrescentadas à melodia. Provavelmente, isso ocorreu pelo
fato de que Vinícius de Moraes e Chico Buarque não conheciam a versão da letra pelo
autor desconhecido.

Mesmo com as diferenças existentes entre as duas versões da letra, há aspectos


coincidentes que podem ser revelados através de uma análise do sentido designativo
existente entre diferentes elementos das versões da canção: melodia, ritmo, harmonia
e letra.

18Entre os autores que trabalham com esses conceitos estão Ferdinand de Saussure, Roland Barthes,
Tzvetan Todorov, Jean Molino, Nicolas Ruwet e Jean-Jacques Nattiez.
Provavelmente, os aspectos similares entre as duas versões da canção têm sua
origem na peça instrumental de garoto, sua melodia e harmonia, como também no título,
que determinou a colocação posterior da letra por diferentes autores.

A principal diferença entre as duas versões da letra, aquela do autor


desconhecido e a de Vinícius de Moraes e Chico Buarque, está no foco narrativo. A
primeira coloca o foco na cena suburbana percebida à distância por um transeunte; a
segunda põe o eu lírico em primeiro plano, tomando a sensibilidade do narrador como
o principal elemento da narrativa.

Nesta canção, assim como em inúmeras outras canções do repertório brasileiro,


o uso de notas melódicas dissonantes sem preparação ou resolução, inclusive nas
cadências, não pode ser atribuído exclusivamente à utilização de determinadas figuras
de retórica musical, como era comum na música europeia dos séculos XVII e XVIII19, já
que desde pelo menos a década de 1940, tornaram-se comuns, no cancioneiro popular,
o uso de acordes estendidos, escalas não tonais, linhas melódicas independentes da
harmonia e sequências harmônicas não funcionais20.

De qualquer forma, é possível perceber no repertório da canção popular


brasileira o uso de inúmeras figuras de retórica que têm sua origem mais remota na
Retórica Clássica greco-latina, passando pela Teoria dos Afetos do período Barroco e
pela Teoria das Paixões do Romantismo. Isso não quer dizer que os cancionistas
brasileiros tenham conhecimento teórico sobre a Retórica e suas figuras poéticas e
musicais. Significa, contudo, que elementos de expressão retórica têm passado de
geração a geração através da prática poético-musical apreendida pelos músicos em sua
vivência artística.

Isso é demonstrável pela comparação da estrutura típica de uma canção


estrófica contemporânea com a estrutura retórica clássica do dispositio, conforme
apresentada por Quintiliano21:

Introdução 1ª Estrofe Ponte 2ª Estrofe Ponte 3ª Estrofe Coda


Exordium Narratio Transitus Argumentatio Transitus Confirmatio Peroratio

Quando cancionistas atuais realizam esta estrutura, não significa que se referem
à Retórica Clássica ou buscam nela meios e elementos para a sua expressão; isso quer
dizer que a tradição retórica vem sendo transmitida espontaneamente através das
gerações pelas práticas poéticas e musicais que transitam por diferentes épocas e
regiões.

19
Entre as figuras da retórica barroca que se dão pelo uso de notas melódicas dissonantes estão: parrhesia,
pathopoeia, ellipsis e heterolepsis.
20 Garoto empregava escalas de tons inteiros para produzir um efeito melódico de dominante; outros

músicos passaram a utilizar escalas modais (principalmente os modos mixolídio, lídio e dórico) como
referência ao populário nordestino. Inúmeras melodias brasileiras cadenciam em notas dissonantes em
relação à harmonia, sendo que Gente Humilde é um exemplo disso. Também é comum o uso de
encadeamentos cromáticos entre acordes, ultrapassando as fronteiras da estrutura tonal diatônica.
21 Marcus Fabius Quintilianus (35-100 d.C.) figura, juntamente com Horacio, Cicero e Longino, entre os

mais importantes teóricos da retórica latina. Sua influência se deu na música da Idade Média e do
Renascimento através da obra Institutio Oratoria (95 d.C.). O estudo sua obra fazia parte da formação dos
músicos da época. Tratadistas da música do Renascimento e do Barroco chegaram a atribuir algumas de
suas contribuições às obras de Aristóteles (Retórica e Poética).
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