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Edições UFC
" Conselho Edito:rial ·· Linda Maria de Pontes Gondim
(Organizadora)
Prof. !talo Gurgel
(Presidente)
Prof. Dimas Macedo
Isaurora Cláudia Martins de Freitas
Prof. Eduardo Diatahy Bezeíta de Menezes
Leonardo Damasceno de Sá
Prof. José da Rocha Furtado Filh<?: Ci·,, ·
Adriana Maria Simiào da Silva
Prof. Luiz Tavares Júnior · ~ '
Raquel Maria Rigotto
Profa. Olga Maria Ribeiro Guedes
Marinina Gruska Benevides Prata
Prof. Vinicius Barros Leal

Série Percursos
A Série Percursos, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do
Departamento de Ciências Sociais e Filosofia da UFC, visa a divulga.r
trabalhos desenvolvidos pelos seus corpos docente e discente. A
responsabilidade pela seleção dos textos que integram cada um dos ·PESQUISA ElVI CIÊNCIAS SOCIAIS:
volumes da Série Percursos é dos respectivos organizadores, cabendo a O PROJETO DA DISSERTAÇÃO
aprovação final à comissão editorial do Programa.
DE MESTRt\.DO
Coordenação do PPGS
Profa. Júlia Miranda (Coordenadora)
Prof. Daniel Lins ·~ • •
Profa. Ir.lys Alencar Firmo Barreira
í~

Comissão Editorial
Prof. César Barreira
Prof. Ismael ·P,ordeus Jr.

~~
Profa. Júlia Miranda
Profa. Linda Maria de Pontes Gondim
UFC
EDIÇÕES

Porta!eza

1999

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Q/.,c~ /I
Esta coletâ11ea constitui o terceiro
CóCt~) ~)
volume da série Percursos, cujo objetivo é
divulgar a produção de docentes e discen-

.
;e:./<~~
~
tes do Programa de Pós-Graduação em
.

~ ·~7 ·'~
Sociologia (PPGS) da Universidade
Federal do Ceará (UFC). .

)'·./.N'
I
A idéia de publicar textos que
abordam, especificament.::, a preparação e
3. execução do projeto de dissertação de
nestrado atende a uma carência constata- ,;7
h na bibliografia sobre metodologia de
)esquisa em Ciências Scciais, qual seja, a
A. . "':.
!scassez de obras que se atenharn aos pro-
PESQUISA EM CIENCIAS SOCIAIS:
:edimentos necessários à construção do
lbjeto e à preparação do plano de investi-
O PROJETO DA DISSERTAÇÃO
~ação. Em geral, o projeto de pesquisa é DE MESTRADO
ratado apenas corno um produto, enfati-
:ando-se os aspectos formais de sua apre-
entaçào e negligenciando-se os passos
netodológicos dos quais ele resulta. Além
.isto. é raro que se publiquem projetas de
,esquisa na íntegra, o que priva os mes-
·andos do acesso a modelos para a fonnu-
lÇào de seus próprios trabalhos. Também
scassos são os textos que abordam os
1étodos e as técnicas de pesquisa no con-
:xto de investigações realizadas para·
issertações de mestrado, exceto quando
;tas são transformadas em livros. incluin-:
::> descrição ex post factum dos procedi-
tentos utilizados- como é o caso das teses •
dissertações premiadas pela Associação
acional de Pós-Graduação e Pesquisa em
iências Sociais (ANPOCS).
Universidade Federal do Ceará
V( SUMÁRIO
Reitor
di
te:
Prof. Roberto Cláudio Froca Bezerra

Vice-Reitora
1
• . -
INTRODUÇAO- O LUGAR DA PESQUISA EMPI-
'

Se Prof' Maria d::~ Silva Pitombeira • RICANAPÓS-GRADUAÇÀO EM CIÊNCIAS SOCIAIS


Fe Linda M. P. Gondim .... ............................................... . 9
Edições UFC
Av. da Universidade, 2995 -Benfica
ab F011aleza- CE- Brasil '

a c CEP 60020··181 PARTE I- O PROJETO DE PESQUISA PARA


ffi( TEL/FAX: (085) 283.4069 DISSERTAÇÃO DE M~~TRADO NA ÁREA DE
!1ttp://elis.npd.ufc.br/eufc.htm
da edítufc@ufc.br CIÊNCIAS SOCIAIS ... ~.' ......................................... . 15
pe: Editor
~se
Prof. !talo Gurgel
Editora Adjunta • 2 . O PROJETO DE PESQUISA N'b CONTEXTO DO
::e< Carmina Dias PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
)bj Dirctor da Imprensa Universitária
Prof. Geraldo J.esuino da Costa
Linda M. P. Gondim ......................................................... . 17
~aç
2.1 ESTRUTURA E CARACTERÍSTICAS DE UM PROJETO DE
ra1
© 1999 by Linda Maria de Pontes Gondím
PESQUISA ....................................................................................... . 18
!:ar Direitos reservados em língua. portuguesa a Edições UFC
:en Ficha c.atalográfica elaborada por 2.2 A CONSTRUÇÃO DO ÜEJETO E A ETAPA EXPLORATÓRIA

ne Perpétua Socorro Tavares Guimarães DA PESQ"G1SA................................................................................. . 21


Reg. C.B.R. 3 no 801/98
lis1 2.2.1 Critérios para a escolha do tema e do objeto
G 637p GOND!M, Linda. Maria ,de Pontes (Org.)
1es Pesquisa ·enfÇjê,ndas Sociais: o projeto da dissenação de pesquisa ...................... . 22
rar • ae mestrado I Linaa Maria de Pontes Gondim.
(Organizadora). Fortaleza: EUFC, 1999. 2.2.2 A ruptura com o senso comum como condição para
lÇi
se: 146 p.
(Série Percursos) 2.2.3
.
a construção de objetos de pesquisa ...................... .
Sugestões metodológicas para a construção de
26
lét
!xt I. Metodologia da pesquisa cientifica 2. Métodos e objetos de pesquisa................................................ 29
iss tecnicas 'Je pesquisa social 1. Projeto de pesquisa 2.2.4 A etapa exploratória de pesquisa, o levantamento
I. Título ·
5ta CDD 001;4.2 bibliográfico e a revisão da literatura....................... 30
o( CDU 001.31
2.3 CONCLUSÃO............................................................. 34
ter ~--------------------------------------------------
Printed in 3razil
-
ISBN 857282-054-X
di:
ac
iêr
3 PROJETO DE PESQUISA 5.1 ANTECEDENTES DE UMA ESCOLHA: AS LIDERANÇAS

DA PERJFERIA AO PALCO: O PROJETO EDISCA E A FEMININAS COMO ÜBJETO ......................................... 73


DANÇA PELA CIDADANIA 5.2 DELINEAMENTO EMPÍRICO E TEÓRICO ........................ 75
!saurora Cláudia Martins de Freitas .......................... . 39 5.2.1 Movimentos sociais, organizações populares e
3.1 JUSTIFICATIVA ... 39 Estado ..................................................................... 75
~ I
.),_ 0 PROBLEMA DE PESQUISA ....... 41 5.2.2 A participação feminina nos movimentos sociais
3.2.1 A qucstãü da cidadania e a problemática da criança e urbanos ......................................... :·... :...................... 78
do adolescente carentes ........................... .. 41 5.2.3 Demarcando espaços: o público e o privado .............. 80
3.2.2
___ "
~ ") .)
.)
.
Arte c cidadania .............................. .
A dança pela cidadania na EDISCA .................... .
45
47
5.3 BuscANDO REcoNSTRUIR TRAJETóRIA:>: A EscoLHA

DOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .............................. 84


-'~ ,.)" ÜBJETIVO E METODOLOGIA ................... .. 51 •
PARTE II - MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA
4 PROJETO DE PESQUISA
COMO "TEORIAS EM ..t\_TO"
,. ............................................ 89
DE ASPIRANTES A CORONÉIS: A CONSTRUÇÃO DA
SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO DE FORMAÇÃO
6 RELATOS ORAIS: NA ENCRUZILHADA ENTRE
DOS OFICIAIS DA POLÍCIA MILITAR (F...STillX) DE CASO
INDIVÍDUO E SOCIEDADE EM UM ESTUDO DAS
DA ACADEMIA MILITAR GENERAL EDGARD FACÓ)
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE SAÚDE
Leonardo Damasce,110 de Sá .......................................... .. 58
Raquel M Rigotto ......... :................. .................................... 91
-+.! DEFINIÇÃO DO ÜBJETO ................................... . 58
6.1 HISTÓRICO DO USO DE RELATOS ÜRAIS NA PESQUISA
'")
"T.- CO:\'TEXTUALIZ.-\ÇÃO E JUSTIFICATIVA ............... . 61 •
SOCIAL ...................................................................... 91
-+.3 REVISÃO DE LITERATURA ........ .. ó2
6.2 CONCEITOS E DEFINIÇÕES ........................................... 93
4.4 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO ............................... . 64
6.3 PRESSUPOSTOS ............................................................ 95
4.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............ . 66
6.4 A VALIANDO A ADEQUAÇÃO DAS TÉCNICAS DE
.:; PROJETO DE PESQqiSA
RELATOS ORAIS AO ESTUDO DE REPRESENTAÇÓES
DE LIDERAJ\ÇA A CANDIDATA: TRAJETÓRiA
SOCIAL E POLÍTICA DE LIDERANÇAS FEMININAS
SOCIAIS EM SAÚDE ................................................... 100
DOS BAIRROS DE FORTALEZA 6.4.1 Apresentando brevemente o objeto ......................... 100

A.driana Maria Simi:io da Silva .................................... . 73

6,4.2 Casando objeto-metodologia .................................... .. 101 INTRODUÇÃO -- O LUGAR DA PESQUISA EMPÍRICA
YO Í\ ',.
NA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
di c6.43 ... por suas compatibilidades ........................................ . 103
te~ · 6.4~4 ... embora possa prever dificuldades ............................ .. 104 Linda Maria de Pontes Gondim
So 6.5 AsP~c;os ÜPERACIONAÍS ;A ExEcuçÃo DA PESQutSA
Fe A pesquisa empírica' constitui o cerne do processo de construção
.I!:MPÍRICA COM AS TÉCNICAS DOS RELATOS ÜRAIS ............ .. 105 do conhecimento em ciências sociais. Pesquisar, porém, só é possÍ\'el
6.5.1 Procedimentos iniciais ............................................... .. 106 mediante um "recorte" da realidade, a fim de que se possa proceder à
ab·
6.5.2 A :ealização da entrevista........................................... 106
construção de um obje~o de estudo, que áeve ser abordado na perspecti\'a
a t de um corpo teórico específico. Por sua vez, as técnicas utilizadas para
!Ilt 6.5.3 Procedimentos posteriores à entrevista......................... 107 o estudo empírico desse objeto decorrem de uma opção teórico-
' ""
. I
metodológica- nem sempre explicitada-, a qual implica dctmnin:1da
:la ~. )c,

:>e~
7 TRABALHO DE CAMPO: MITOLOGIA, METODO- visão da reaEdadc social e dos modos adequados de conhecê-la. Como
LOGIA E AUfO-ANÁLÍSE EM UMA PESQUISA bem coloca BOURDIEU (1989), as técnicas são "teorias em ato''.
~se
Sem negar a importância da reflexão' teórica e epistemologica para
~e<
SOBRE "DELINQÜENTES JUVENIS PdBRES"
a pesquisa social, parece-me que, nos cursos de pós-graduação em
?bj Marinina Gruska Benevides Prata................................. 111 ciências sociais, tem havido uma ênfase excessiva nesses aspectos, cm
~aç 7.1 0 PESQUISADOR: TAL QUAL O MITO.............................. 113 detriinento do estudo dos métodos e das técnicas de investigação. 2 Via
de regra, há apenas uma disciplina obrigatória na área de metodologia.
Tal 7.2 o CAMPO- AFIRMANDO A VmA DIANTE DA MoRrE........ I
119
apesar de todos os programas de pós-graduação strictu sensu terem corno
:ar 7.2.1 Triagem ou casa? A passagem pelo Abrigo ...................... ;- 120 requisito para a obtenção dos graus de mestre ou de doutor a elaboração
:en de um trabalho de pesquisa de grande envergadura, a dissertação e a
7.2.2 Entre o céu e o inferno: a passagem pelo São Miguel...... 129
ne tese, respectivamente. Mesmo quando o objeto desse trabalho é um
7.3 SUJEITOS ÜBJETIVADOS: QUEM SÃO OS ÜUTROS?.:......... 136 problema teórico, seu autor tem que ser capaz de defini-lo de forma
lis
7.3.1 A abordagem dos sujeitos e a delimitação da amostra...... 136 clara e precisa, elaborar um projeto de pesquisa e realizar um
•es
7.3.2 Os procedimentos utilizados......................................... 140
levantamento bibliográfico ou documental. Por outro lado, instituições
rat
de finànciamento como o CNPq tendem a incentivar a fom1açào de
içi grup6s;~e pesquisa em áreas temáticas, 'J que confere especial rcle\·ància
se à capacitação de mestrandos e de doutorandos como pesquisadores.
lél
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!Xl
1 Note-se que a pesquisa empírica não compreende apenas o trabalho de campo, ou SCJa. a
is~
obte:1ção ac informações mediante contato dircto com o grupo ou a ir.stituiçào estudada. o
)!é: levantamento de dados secundários oJ de documentos lambém constitui, obviamente. urna
investigação empírica, pois refere-se a uma re? !idade social concreta.
Ót 2 Não caberia, nos iimitcs desta colctànca, discutir como essa questão se coloca nos cursos de

graduaçã". cujos objctivos c .:aractcristicas são distintcs dos da pós-graduação. merecendo.


1e1
portanto, um: reflexão especifica.
di
,1
ac ;f. 9

É provável que o relativo descaso conferido aos métodos e às estavam preparados para esse ~ipo de investigação·, que exige o qo~ínio
técnicas de pesquisa reflita uma atitude crítica ao pa1adigma positivista e das técnicas de observação participante e de relatos orais.~, Con1 efeíto,
à concepção estereotipada de metodologia associada a esse paradigma, ainda que Valéria Pena mencione a obra de Engels The conditivns of
que preconiza uma abordagem "neutra" da realidade, tendo as ciências the working cla.ss in Englarzd como "um primor de pesquisa em'pírica e
naturais corno modelo. Mesmo reconhecendo a validade dessa crítica, quase uma descrição etnográfica dos efeitos da Revolução Industrial"
pode-se dizer que ela acabou por rejeitar, junto com o positivismo, a (PENA, 1990, p. 150), sempre foi muito limirada a utilização de técnicas
atitude de busca ao rigor científico, que só pode vicejar no contexto da qualitativas de cunho etnográfico por pesquisadores deformação marxista.
experiência de pesquisa, acompanhada pela reflexão sobre os métodos e Não é de admirar, portanto, que boa parte dos alunos que
as técnicas específicas utilizadas. ingressaram nos cursos de pós-graduação em ciências sociais tenha pouca
A resistência à aprendizagem desses métodos e dessas técnicas ou nenhuma experiência em pesquisa empírica, ~m· geral, e em trabalho
reflete, também, a influência, sobretudo na década de 1970, do paradigma de campo, em particular. Nesse contexto, a dissertação de mestrado
marxista em sua vertente althusseriana, o qual nega a importância da constitui ..se oportunidade ímpar para a iniciação na "arte da pesquisa",
pesquisa empírica e dos estudos de caráter histórico. 3 Por outro lado, na medida em que propicie a realização de um tr.1balho empírico de
mesmo no caso de pesquisadores que Sl!guiarn outras correntes de grande envergadura. 5 Na verdade, corno destaca MEZAN (1995, p. 5-6),
pensamento, a preferência por temas de caráter macroestmtura! (e.g., diante da realidade do ensino médio e de graduação no Brasil, o mestrado
relações capitalistas no campo, efeitos da industrialização na. consciência se toma "o 'locus' de dois aprendizados, o da escrita e o• da pesquisa".
de classe) parece ter inibido a prática do trabalho de campo, fazendo Sim, porque às dificuldades decorrentes do despreparo e da inexperiência
com que viesse a predominar a utilização de dados secundários, muitas erÁ lidar com processos de investigação social, soma-se o fato de que
vezes apenas para comprovar o que já se sabia de antemão. nossos alunos não estão habituados à redação de textos longos e
A partir do final da década de 1970, outras abordagens começaram de boa ·qualidade.
a predominar nas ciências sociais, devido à necessidade de se explicar Para auxiliar o árduo trabalho de mestrandos, professores de
um fenômeno inédito: a emergência de movimentos sociais fora do lugar metodologia e orientadores de dissertações de mestrado, existe uma vasta
da produção, que colocavam na ordem do dia questões de ordem cultural, bibliografia sobre aspectos epistemológicos e teórice-metodológicos da
ligadas ao cotidiano dos e.ujeitos sociais. Tem-se aí um caso típico em investigação social. Entretanto, poucas são as obras que se atêm aos
que mudanças nos problemas substantivos estudados levaram a alterações passos iniciais de construção .,do objeto e à montagem do projeto de
nas estratégias metodológicas adotadas: com efeito, para ter acesso ao pesquisa. Este último, em geral, é tratado apenas como um produto,
universo cultural e ao dia-a-dia daqueles sujeitos, o trabalho de campo enfatizando-se os aspectos formais de sua apresentação e negligenciando-
de caráter etnográfico revelou-se -o método mais adequado, dada a sua •
ênfase na convivência intensa do pesquisador com as pessoas pesqui-
s:das, como base p:u-aestabclecerem relações de empatia e de confiança.
1\o entanto, como mostrou DUIUIAM (1986), os estudiosos áos
4
Essa situação ocorreu, basic:lmcntc, na sociologia c na ciência politi.:a, jà que na antropologia
mo\·imcntos sociais, em boa parte egressos da militânch política, não - onde a pratica da etnografia é a regra - a influência do paradigma marxista parece ter sido
bem menor. Note·sc, também, que um <Ji!lro fator inibidor da aprendizagem .das técnicas de
pesquisa etnográfica pode ter ~ido a resistência ao funcionalismo, de onde se originou o
cânone do trabalho de campo etnográfico, via MAL!NO WSKI ( 1929).
'A tese de dou~orado, evidentemente, também cc-nstitui uma oportunidade para a realização
'\'cr, a esse respeito, a critica que o historiador inglês THOMPSON (1981)- por sinal, um de pesquisa empírica, mas, como nprescnta especificidades cm relação à dissertação dr mestra :lo.
mar:<1sta - faz às formulações de Althusscr. mereceria, oo minimo, um capítulo c,;pccial, o que não é possível nos linútcs de espaço deste li\TO.

10 11
Neste livro, estão presentes idéias, críticas e sugestões de mui~as
se os pas.sos metodológicos dos quais ele resulta. Além disto, é raro que
outras p~ssoas, além de seus autores diretos. Como organizadora c
c se publiquem projetes de pesquisa na íntegra, o q•Je priva os mestrandos
coautora, meu maior debito é para com os alunos dos diversos cursos c
li do acesso a mo de los para formulação de seus próprios trabalhos. Também 1
seminários de metodologia de pesquisa que tenho ministrado no Programa
escassos são os textos qu,e abordam os métodos e as técniças de pesquisa ·
!~ de Pós-G'.'aduação em Sociologia da UFC, desde 1993. A lista com seus
no contexto de investigações realizadas para dissertações de mestrado,
c exceto nos casos, felizmente cada vez mais frequentes, e~, que estas
nomes é excessi%mente longa para ser incluída aqui, mas não poderia
e deixar de mencionar os participantes do seminário realizado no primeiro
são transformadas em livros, incluindo descrição ex post fac tum dos
semestre de 1996, que me proporcionaram momentos muito especiais
procedimentos utilizados. 6
de trocas intelectuais e afetivas: George Bloc Boris, Jos~ Meneleu ?\eto,
b- Este livro objetiva suprir as lacunas acima indicadas, reunindo
Raquel Rigotto, Therezinha (Téca}Fraxe e Zelma Cantuária. Devo muito.
textos elaborados pela organizadora e por alunos do Programa de Pós-
também, a meus colegas pesquisadores, professores de metodologia de
Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. A primeira
l( pesquisa-ou filósofos, da UFC e de outras universidades, especialmente
parte é dedicada à elaboração do projeto de pesquisa para diss-ertação de
a All;>a Pinpo de Carvalho (UFC), Antonio Carlos Witkoski (UFC). Ati la
mestrado, considerando-o em suas dimensões de produto e de processo.
...'" O artigo de Linda M. P. Gondim discute tanto o conteúdo e a forma q ~e
Brilhante (UFC), César Barreira (UFC), Eduardo Chagas (UFC), Inês
Detsi (UNifOR), Irlys Barreira (UFC), Lucia Cony (UnB), Rosângela
;c o projeto de pesquisa deve ter, como os passos necessários para a
Fernandes (UNIFOR e UECE), Su\~mita de Almeida Vieira (UFC) e
~(
preparação desse documento, enfatizando a construção do objeto de
Sylvia Cavalcante (UNIFOR), com qtiem tenho compartilhado experiên-
investigação. As diretrizes aprc5.entadas nesse primeiro texto foram •
b~ cias e de quem tenho recebido incentivo para o meu trabalho. A convivên-
concretizadas nos pmjetos de pesquisà de lsaurora Freitas, Leonardo Sá
a< cia com essas pessoas me fez entender a profunda importância da inter-
e Adriana da Silva, apresenmdos como trabalhos finais da disciplina
subjetividade na formação de pesquisadores e na prática de pesquisa.
31 Métodos de Investigação Social, ministrada pela professora L.inda
u Gondim no segundo semestre de 1997. Abordando temas variados e
~r.
apresentando estruturas diversificadas, esses trabalhos têm em comum
a clareza na definição do objeto, ·ó domínio da literatura básica e a
te
pertinência·dos procedimentos metodológicos escolhidos, traços que os
is tomam exemplares.
es A segunda parte desm coletânea tre.ta de métodos e técnicas Referências Bibliográficas
ru utilizados em pesquisas para a realização de dissertações de mestrado~
lÇi
O texto de Raquel Rigotto apresenta uma discussão das técnicas dos BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. ln:
relatos orais, anafisando as dificuldades e facilidades para a aplicação O PODER simbólic~. Lisboa: Di fel, 1989. p. 17-58.
;c
das mesmas ao estudo das representações sociais dos trabalhadores sobre
té~ saúde. Já o trabalho de Mailniná Prata aborda aspectos existenciais, DURHAM, Eunice. A pesquisa antropológica com populações urbanas:
:x1 éticos c metodológicos envolvidos no trabalho de campo realizadc junto problemas e perspectivas. ln: CARDOSO, Ruth (Org.). A avenlura
is! a "delinqüentes juvenis pobres". antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 17-37.
;U
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts ofthe western paciflc. Londres:
:>•
6
Routledge and Kegan Paul, 1922.
1e1 Ver, por exemplo, MANGABEIRA (1993)
,,.
di L 13
1ac
12


MA:t\GABEIRA, Wilma. Questões de método e o trabalho de campo
em Volta Redonda. h: . Os dilemas do novo sindicalismo:
democracia e política em Volta,Redonda. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1993. p. 35-62.

MEZAN, Renato. A universidade mi:limalista. Folha de São Paulo,


São Paulo, 16 jul. 1995. Cademo Mais, p. 5-3.

PEr\ A, Maria Valéria Junho. Fontes pouco convencionais na Sociologia



Brasileira: uma avaliação da produção recente. Dados -Revista de
Cf,?ncias Sociais, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 147-174, J 980.

THO~lPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros.


Rio de Janeiro: Zahar, 1981. PARTE I

O PROJETO DE PESQUISA PARA DISSERTAÇÃO DE


MESTRADO NA ÁREA DE CIÊNCIAS SOCIAIS

'f .

I',..'"

14
2 O PROJETO DE PESQUISA NO CONTEXTO DO PROCESSO
c .DE CONSTRUÇÃO DO C01';HECIMENT0 1
~

~ Linda Maria de Pontes Gondim


c r a_.

e
• O projeto de p!!squisa para dissertação de mestrado 2 é um texto
.. que tem por objetivos comunicar a outrem (o orientador. a banca
examinadora, uma instituição financiadora, etc.) o que se pretende fazer.
b :71: e nortear a preparação da investigação a ser feita. Ele " ...... resume
,!
I todas as atividades desenvolvidas durante o período de preparação da
H pesquisa e serve de referência e orientação no decorrer das fases
seguintes, isto é. durante o trabalho de campo, a análise e inte1pretaçcio
a
~
dos dados e a constmção do relatório de pesquisa" (CAVALCAl\TE
M
[1997?], p. 1) (grifos criginal).
K Qualquer que seja sua forma de apresentação, o projeto tem que
~ ..
, responder às seguintes questões: o que será feito; por que e a partir de
que se pretende fazê-lo; como e onde será realizada a pesquisa; quando
~
• será feita (GONDIM, 1987a). A precisão das respostas é fundamental,
~
pois propiciará uma qualidade indispensável a qualquer trabalho
~
científico: a clareza. Para tanto também contribui, evidentemente, a
u linguagem utilizada, que deve primar pela correção gramatical e pela
~ concisão, evitando-st:. jargão e outros defeitos estilísticos. 3
~

$
...~·' -,

!\.
-------------------------
1 Este texto bcncfici0u-sc dos comentários críticos dos alunos da disciplina \létodos de

Investigação Social, ministrada pela autora no Programa de Pós-Graduação cm SociologiJ da


~ UFC, no primeiro scmcstr·: ictivo de 1998. Sou particularmente grata aos colegas Antonio
Carlos Wi:kú!.ki, Eduardo Chagas c Sulamita de Acmeida Vieira, professores do Departamento
~
de Ciências Sociais c Filosofia da UFC, pelas suas argutas c brilhantes sugestões. algumas J.l>
quais não foi possível atender, d-:vido a lim;taç0es de tempo c espaç0.
~ 2 Ad0ta-sc, aqui, a distinção entre dissertação de mestrado c tese de doulorado. cstabelectdJ

~ por SOUZA (1991, p. 153): "(dissertar sign'fiea discorrer sobre determinado tema. de for~3
abrangente c sistemática. Assim sendo, a dissertaç~o ...... normalmente. n;ICl requer
b originalidade, mas revisão bibliográfica acurada, 1:órica c empírica. c fistem;lliz.l(io ck cckt.l>
~ c cor.clusõcs acerca de determinado tema. A tc<c, associada aos trabalhos de doutoramcnlo
ou' de Íi~~c-docência, tem um rigor mt•ito maior, tanto do ponto de vista metodológico.
Sl como teórico".
3 Sobre a ,importância da utilização dr linguagem adequada cm trabalhos cientificos. ver. entre
u outros CASTRO ( 1978); GONDIM ( 1987a); MILLS ( 1969). Not<;-sc que, além disto. o
) c mcstrando deve dominar as rcgra5 de aprcsctí'tação de trabalhos científicos. sobretudo as
relativas a citações. notas de rodapé c referências bibliográficas. A esse rcspeilo. ver. entre
~ outros: ECO (1977); MTNAYO (19Cl4); UNESP (199-la) c UNESP (1994b).
di
ac 17
~

. ~'I

~ .. cíl i·-
• •
2.1 ESTRUTURA E CARACTERÍSTICAS DE UM PROJETO DE PESQUISA
que se poderá trazer para urna :nelhor compreensão ou para a solução
Em geral, as respostas às questões acima referidas são distri- de um problema social. Esses aspectos serão retomados quando forem
buí das nos seguintes itens, que constituem a estruturado projeto de pesquisa: discutidos os critérios para a escolha do objeto, mas convém ressaltar,
a) Definição do objeto (o que será feito); desde agora, a pertinência de se explicitar as razões do interesse do
b) Justificativa (por que); mestrando pelo objeto cm causa, incfusive para evidenciar sua experiência
c) Revisão da literatura pertinente e quadro referecial teórico prévia em trabalhos sobre o tema ç os seus possíveis viezes.
(a partir de que); A revisão da literatura é necessária para situar o problema em
d) Metodologia (como e onde); relação a outros trabalhos pertinentes ao tema, apontando-se afinida,des,
e) Cronograma (quando). 4 e divergências e ressaltando-se lacunas que podem serpreenchidas,p,ela
investigação proposta. Es~e item é pertinente porque o conhecimento
O texto deve ser precedido por uma folha de rosto, indicando título
sociológico nunca é obra de indivíduos isolados; quer seja entendido
da pesquisa, autor, orientador, instituição, local, mês e ano da conclusão
como um processo cumulativo, quer seja concebido como fruto de
do projeto. Ao final, coloca-se a bi,bliografia, abrangendo, além das obras
rupturas (KOYRÉ 1982), tem sempre um caráter relacional, na medida
citadas, aquelas que serii.o consultadas no decorrer da pesquisa.
em que não é construído em àecorrência dé "atas inaugurais" ocorridos
Antes de discutir cada um dos elementos mencionados acima, é
num vazio histórico e epistemológico BOUR.DIEU ( 1989). A revisão da
preciso ressaltar que não há formatos "certos" ou "errados" de projetas.
literatura deve, pois, indicar como o problema tem sido tratado por autores
Na verdade, uma das qualidades a ser buscada neles é precisamente uma
diver$OS, comparando diferentes enfoques e perspectivas teóricas e
estrutura flexível, adaptável ao tema e à metodologia da investigação.
indicando aqueles que prometem ser mais relevantes para a pesquisa
Assim. não é necessário que o texto apresente todos os itens citados, na
proposta. Estes aspectos, acrescidos das categorias e conceitos que serão
ordem indicada; eles podem ser agregados de diferentes maneiras, receber
utilizadas na análise, constituem o quadro referencial teórico, que pode
títulos de acordo com aspectos substantivos pertinentes ao objeto, 5 ou
ser objetó de item específico, dependendo de seu grau de complexidade
ainda, ser acrescidos de outros itens. 6 .
e de sua extensão.
J\o item definição do objeto de pesquisa, expõe-se, de maneira
A metodologia explicita as questões norteadoras e as estratégias
clara e concisa, qual o problema que será pesquisado. Este é, talvez, o
que serão utilizadas para a abordagem empírica do objeto, as quais devem
componente mais importante e mais dificil do projeto, merecendo, por
ser articuladas ao quadro teórico adotado. Esse.s questões - que já
isso, discussão detalhada ~m seção específica deste texto.
aparecem, implícita ou explicitamente, na defi.nição do o·ojeto- devem
Na justificativa, deve-se dizer como ~e escolheu o objeto e
ser recolocadas ou reddinidas em termos da estratégia metodológica
demonstrar por que é importante pésquisá-lo, em temws da contribuição
que se pretende seguir, articulando-a com o quadro referenci.al teórico
(como o faz, por exemplo, Isaurora C. M. de Freitas em seu projeto de
' Projctos de~ submetidos a instituições financiadoras tem que conter, além d:sto, um orçamento.
' \'er os exemplos de projetas apresentados após este capítulo. pesquisa, incluído nessa coletânea). Nesse como em outros aspectos,
' ;o-..;otc·se que não foram incluídos aqui os itens objetivos e hipóteses, oniprescmcs nos não se pode evitar uma certa regú'ndância, uma vez que, a rigor, a
roteiros para elaboração de projetas de pesquisa CAVALCANTE (1997?); PINTO (1992);
RICHARDSON ct ai., (1985); SOUZA (1991). Pode ser útil formular os primeiros para
metodologia está presente desde o início do projeto, na medida em que é
ststcmanzar ou rcswnir os elemento~ essenciais do projeto, porém corre-se o risco de incorrer muito dificil separar o que tàzer, do como fazer. 7
cm redundâncias, uma vez que os objetivos listam o que se pretende fazer e indicam para que Conforme a natureza da estratégia metodelógica adotada, as
a pesquisa será realizada, confundindo-se, assim, com a definição do objeto c com ;.; justificativa.
Quanto às hipóteses, trata-se de um item opcional, pois não está presente er:t pesquisas questões norteadoras podem ou não assumir a forma de hipóteses. Isso
exploratórias de qualquer natureza, nem, via de regra, em pesqutsas qualitativas. · 7
Agradeço a Sulamita de Almeida Vie;ra por ter chamado a minha atenção para estes
aspectos da metodologia.
18 1 ().
j.
raramente ocorre em pesqu~~~s <ll.u~l!tativas ou exploratórias, nas quais é onde se realizará o trabalho de campo. Essas escolhas terão que ser
extremamente dificil aDtecipaâ'e~pôstas para as perguntas iniciais. Daí justificadas, com base não só cm sua relevância para a melhor
porque a metodologia a ser utilizada nesses casos é muito mais flexível compreensão do objeto da pesquisa, como cm considerações de ordem
do que nos estudos de caráter hipotético-dedutivo. Nas palavras de prática (facilidade de acesso ao local, neces.>idade de considerar pessoas
NEEDLEMAN & NEEDLEMAN (1974, p. 6). (Tradução minha), com diferentes tipos de envolvimento no fenômeno que se quer analisar etc.).
O cronograma deve indicar 3 duração prevista de todas as etapas
No inicio de um tstudo exploratório, o pesq1lisador não está numa posição da pesql.!isa, ir.cluindo não só a coleta de dados, mas o levantamento
que lhe permtta ?rever quais aspectos do seu tema se revelarão mais
bibliográfico complementar, o planejamento detalhado do trabalho de
interessantes e imF!Q~tante~. Hipóteses precisas desenvr)lvidas ~ partir de
campo, a análise de dados e a redação do "relatório" da pesquisa - no
informações incomple;:as podem facilmente se transformar ~uma espécie de
leito de Procusto, no qual o pesquisador tenta encaixar su';s descobertas, caso, a própria dissertação de mestrado. A estimativa de tempo deve ser
mesmo que elas n:i.o se ajustem. Metodologias de pesguisa muito precis·as se feita de forma realista, consid.:;rando a efetiva disponibilidade do
tornam armadilhas e não instrumentos, potque pressupõem uma estabilidade pesquisador para o trabalho e a complexidade deste (que irá variar de
nas categorias básicas de pesquisa, que raramente é encontrada em estucio~ acordo com o objeto e com as circunstâncias especificas da pesquisa,
exploratórios....... De fato, tais estudos, frcqüe:1temente, <:omeçam com uma tais como, distância do local pesquisado e acessibilidade dos informantes).
falta de clareza e imprecisão deliber .1clas em seu planejamento e metodologia, Deve-se Cll. lcular os prazos de modo a permitir ajustes decorrentes de
a firn de permitir um máximo de flexibilidade, pror,iciando revisões e o even~ais imprevistos, sem esquecer o tempo necessário para revisões e
desenvolvimento, no curso da pesquisa., de idéias· fragmentadas e de
mqdific~ç;ões sugeridas pelo orie?tador.
9
observações que possam levar a descobertas acider.tals (screndipidade).

A metodologia define, também, os procedimentos que serão 2. 2 ACoNS1RUÇÀOOOÜBJETO E A ETAPA EXPLORATÓRIA DA PESQUISA
seguidos na coleta e na análise das informações. É preciso explicitar se
se trabalhará somente com dados secundários, ou se será feita p~squisa Como foi dito, na definição do ~bjeto deve-se apresentar o problema
de campo, e qual a natureza da mesma (quantitat!va ou qualitativa). Deve- sociológjco que será pesquisado e o que se pretende descobrir mediante
se também dar indicações sobre os instmmentos que serão utilizados a investigação. É importante, aqui, não confundir tema com objeto de
. (questionários, entrevistas não-diretivas, observação participante, pesquio;a; o primeiro tem caráter mais amplo e constitui, na verdade, uma
. documentos e outros), bem como sobre o número e tipo de informantes, área de (,interesse do pesquisador - como, por exemplo, a questão da
e sobre o local e o período em que será realizada a coleta de dados. prostitui~:ã~. Já o objeto é resultado de um "rec~rte" do tema, a partir de
Ainda que nesse momento da 'c9nstrução do objeto não se tenha, por uma problematização da realidade que: se quer investigar. No exemplo
vezes, coudições de decidir q!1àntos serão os informantes e onde, em pauta, um objeto de pesquisa poderia ser o estudo da prostituição do
exatamente, será.r(;:ali~ada a pesquisa, é essencial dar indicações sobre • ponto de vista dos clientes de bordéis, a fim de compreender o que leva
o tipo de pessoas que serão incluídas na amostra, 8 e os prováveis locais estes últimos a recorrer aos serviços de prostitutas. 10
Delimitar um objeto é necessário mesmo que o mestrando não
~ 1'\1\o é obrigatório definir, no projeto de p~squisa, a amostra que será utilizada. Note-se que
pretenda realizar pesquisa empírica, pois é essa delimitação que toma
é inadequado falar de ','amostra representativa" cm estudos de natureza qualitativa, pois
nestes, os informantes nao são sclccionados j)Or critélios estatísticos que garantam a
aleatoriedade. A1ém disto, tais estudos dificilmente podem estabelecer, de antemão, o número
• Os projctos d·~ pesquisa apresentados nrsta coletânea não incluem cronograma. por se
de pessoas que serão pesqui;adas, uma: }t~~:<JJtç 1:~stc número vai depender da qualidade das
informações fornecidas pelos próprios iflformanntcs, o que só se pode aferir ao longo da tratar, ainda, de versões p:~ssívcis Jc modificações
10 Este foi o ohjcto da tese de mestrado de Francisca llnar ae Sousa, defendida junto ao
própria pesquisa. Sobre ?S especificidades. da metodologia qualitativa, ver BECKER (1993),
c LOFLAND & i..OFLAND ( 1995). Programa de Pós-Gr:.:duaçào cm Sociologia cm outubro de 1996 (SOUSA. 1996).

• 21
20

'*'t~
uma dissertação diferente de um manual, uma enciclcpéc:!ia, uma por modismos intelectuais, nem por imposição de professores ou de fontes
compilação de dados ou um tratado teórico ECO (1977, _R. 10). Nessa de financiamento. Ressalte-se que é não só admissível, como recomen-
perspectin, é importante distinguir entre a contextualização do objeto e dável, que o aluno tenha em conta questões de ordem prática (tais como
o objeto propriamente dito. Assim, o contexto considerado pode incluir disponibilidade de um professor-orientador ou possibilidade de obtenção
um quadro muito amplo, mas somente os aspectos diretamente pertinentes de recursos para a pesquisa), mas essas não devem determinar a eleição
ao objeto serão contemplados na pesquisa. No exemplo d2. dissertação de determinado objeto. A escolha da perspectiva empíúca e teórica que
sobre prostituição, anteriormente citada, pode:se considerar as mudanças orientará a delimitação do tema comporta um grau de ~exibilidade
na localização dos cabarés como parte de um processo de renovação suficiente para permitir adequar a definição de um objeto a circ.unstâncias
urbana em Fortaleza, mas o objeto de investigação não é esse processo. variadas. Por exemplo, alunos interessados em trabalhar com questões
Nas palavras de ECO ( 1977, p. 10), "[s]ó explicamos e entendemos um de gênero podem fazê-lo por meio de estudos que se ir1tercruzem com
autor [ou um tema] quando o inserimos num panorama. Mas uma coisa outras áreas do conhecimento, como é o casÓ de trabalhos· sobre imagens
é usar um panorama como pano de fundo, e outra eiaborar um do feminino nos meios de comunicação de massa ou sobre presença ·de
quadro panorâmico". mulheres nos movimentos sociais, 12 entre outros.
É preciso ter cuidado, porém, para não exagerar na restrição do O segundo critério a ser considerado é a relevância do objeto
tema a ponto de cair na trivialidade o~ mesmo produzir verdadeiras da investigação. Isso depende, antes de mais nada, da forrr.a como é
idiossincrasias empíricas (como no caso de um estudo descritivo sobre construído o problema, pois mesmo que o terna, em si, seja importante
"os trabalhadores do algodão no Município de Senador Pompeu na década social e politicamente, nem toda;p~squisa sobre ele é necessariamente
de 1960"). 11 É imprescindível inserir o monográfico em wn quadro teórico relevante. Por outro lado, mesmo um objeto aparentemente banal pode
13
ou histórico; mesmo o estudo de caso limitado no espaço c no tempo se tomar importante, dependendo do enfoque do pesquisador. Essa
deve ser concebido de tal fonna que lar1ce luz sobre questões gerais, • questão é muito bem colocada por um mestre francês que é,
relevantes para as ciência:, sociais. Este ponto será retomado adiante. simultaneamente, um grande produtor de teoria sociológica e de trabalhos
Ao escolher o seu tema e definir o seu objeto, o mestrando precisa de natureza empírica:.
ter em mente que "uma boa idéia só não basta" (CASTRO, 1978, Tem-se dem:.siada tendênci2. para crer, em ciências sociais, gue a importância
p. 314). É preciso que essa idéia atenda a determinados critérios, si
social ou política do objeto é por. me;;,mó suficiente par~ dar fundamento
examinados a seguir. à impor~ncia do discurso que Íh~. é consagrado - é isto sem dúvida que
explica que os sociólogos mais inclinados a avaliar a sua importância P,eiâ
2.2.1 Critérios para a escolha do tema e do objeto de pesquisa importância dos objetos que- estudam, como é o caso daquéles 'qtte,
actualmente, se interessam pelo Estado ou pelo poder, se mostrem militas
O interesse do mestrando pelo assunto deve ser o pnmeiro critério vezes os ml!nos atentos aos procedimentos metodológicos. O que conta, na
norteador d~ éscolha do tema de sua dissertação. Trata-se de uma realidade, é a cor:strução do objeto, e a eficácia de um método de pensar nunca
precedência não só cronológica, como também epistemológica, na medida se manifesta tão bem c:omo na sua capacidade de constituir objectos
socialmente ins:gnificantes em objectos cientíticos ou, o que é o mesmo, na
em que se concebe o proc.::sso de, pesquisa como uma intetaç,lio iniciada
a partir de inquietações de um sujeito cognoscente que problematiza a
realidade social. Isso significa que a escolha do tema não deve ~er ditada
12 Ver o .projeto de pesquisa de Adriana Sim!ào da Silva, nesta coletânea.
13 Um exemplo de como um tema .1parentemcnte irrelevante pode ser trl\nsformado em um
objeto sociológir.o da maior \mpo:Uncia encontra-se no estudo que Mac~ado da Silva fez
: · Exemplo fictício. sobr<> "O significado do botequim" (MACHADO DA SILVA, 1969).

22 23
~
sua capacidade de reconstnúr ciencific~mente os grandes objectos socialmente ; Em se tratando de dissertação na área de ciências sociais, impõem-
'( importantes, apreendendo-os de um ângulo imprevisto- ~orno e1.1 procuro ~ se dois outros critérios: que o problema escolhido seja de natureza social.
fazer, por exemplo, ao partir, para compreender um dos efeitos maiores do isto:é~\:)_ue não se limite a idiossincrasias individuais, e que seja referido a
monopólio estatal da violência simbólica, de uma análise muito precisa do ~Ima r.ealidade empiricamente' observável. O primeiro destes critérios
que é um certificado: de invaEdez, de ap::idào, de doença, etc." (BOURDIEU, decoi'l'~ do pressuposto de que: a atividade científica busca generalizações.
1989, p. 20). Ainda que, no estudo dos fenômenos sociais, seja impossível faú-l.1s
num sentido estrito, devido à natureza histórica dos mesmos, não se de\·e
Aqui, toma-se pertinente uma comparação entr.;! a dência social e a arte.
perder de vista a intenção de se chegar a resultados generalizáveis.
modema: segundo o mesmo autor,
Segundo BOURDIEU (1989, p. 32), "(t]rata-se de intemogar sistema-
O sociólogo encontra-se hoje numa ~ituação perfeitamente semelhante- ticamçnte o caso particular, co~stituído em 'caso particular do possível'.
' ' ' !)
mutatis 11/ltfandis- à de :Manet cu de flaubert qne, para exercerem em pleno comodiz Bachelard, para retirar dele as propriedades gerais ou invariantes
.; 15
[sic.] o modo de construção da realidade que esta\'am a inventar, o aplicavam que só se denunciam mediante uma investigação assim conduzida''.
a projetos tradicionalmel)lt!! ef'cluídos da ?.rte acadêmica, exdu3ivamente O outro critério que dissertações de mestrado na área de ciências
conságrados às pesso:is e à;;ê~isas socizlmen~e designadas como importantes
sociais devem, necessariamente, atender, diz respeito à "tradução" do
_.:_o que leYou a·il~usá-lo~.de 'realismo'. O sociólogo poderia tornar sua a
objeto em um fenômeno identificável .por outras pessoas, tomando
fórmula de Flaubert: 'pintar bem o medíocre' (BOURDIEU, 1989, p. 20).
públicos os parâmetros de sua definição ECO (1977, p. 28). MILLS
Um terceiro critério- de fundamental importância não só p~ra a (1969, p. 221) apresenta vários exemplos de como isso pode ser feito
boa qualidade do projeto de pesquisa, como para a própria consecução, com relação ao terna "a elite do poder", dos quais este é o mais smtético:
em prazo hábil,'da ~i~sertação de mestrado-, é a viabilidade do estudo, "Projeto: selecionar 3 ou 4 dt!cisões da última década -lançar a bomba
em termos dos recursos e do, tempo disponíveis para a realização da atômica, reduzir ou elevar a produção de aço, a greve da GM [General
pesquisa. Tais recursos inciuert;r_,tanto a disponibilidade de financiamento Motors] em 1945 -·e traçar [identificar] em detalhe o pessoal que
para o trabalho de campo (viagens, impressão de questionários, atxiliares participou de cada uma de~as".
de ~esquisa, etc.), como as aptidões e a experiência do rnestrando nos Há que considerar, ainda, como parâmetro fundamental para
aspectos pertin~ntes à execução da pesquisa e à preparação da assegurar a qualidade da investigação na área de ciências sociais, o
dissertação. Há que se conside\·ar, aí, a maior ou menor aptidão para o esforço de objetivid:tde que deve ser envidado pelo pesquisador. no
trabalho de campo ou para a utilização de fontes sc~cundárias; inclusive, sentid9 de minimizar a influência de suas preferências valorativas e de
dada a rigidez dos prazos das instituições que concedem bolsas e auxílios se!ls vieses, tanto na fase de definição do objeto, como no processo de
para pesquisa, é precis5·ponderar as vantagens e desvantagens de colctar colcta e de análise das informações. Dito de maneira simplista, trata-se
seus próprios dados, sobretudo se existir a possibilidade de utilização de de formular um problema de pesquisa cm termos "do que é", c não
infOI'mações produzidas em outras pesquisas. 14 daquilo que o pesquisador gostaria que fosse. Em outras palavras. o objcto
não deve ser uma q.uestão para a qual o pesquisador já tenha uma
" O il,,ercssante artigo d.: Maria Valéria Junho Pena, ''Fontes pouco convencionais na explicação definitiva, o que transformaria a pesquisa num mero exercício
sociologia brr,• i!eira - u'lla .1valiação da produção recente" ( 1990), L:Ontém várias indicações
de objctos de pesquisa c de .:stratégias metodológicas definidos de forma criativd c acessível
a pesquisadores com r-arcos recursos, cm termos dl: tempo c de dinhriro. A mesma autora
constata. na produção sociológica analisada. "uma orcfcrcncia pela virgindade dos dados"
( 1990, p. 168): é pouco frcqt•cntc a utílização de arquivos c a utilização de nados colctados 15 Um exemplo magistral de como o estudo de um único indivíduo pode ser feito numa
por outros pesquisadores, dando-se preferência à r~alização de entrevistas, que nem sen~prc Pff~pccttya social é a pesquisa histórica sobre um moleiro perseguido pela inquisição. cujos
garantem a profundidade das informações colctadas. · rcr.ultados foram publicados na obra O queijo e os 1·ermes (GINZBURG. 1987).
'
24 25
1,,,
1

I
para confirmar o que ele já sabe, ou seja, na exemplificação de um para o estudo científico dos fatos sociais, denominada imaginação
conhecimento pré-construído. Sem dúvida, a pesquisa empírica admite soâológica (MILLS, 1969): a capacidade de enxergar nos problemas
pressupostos teóricos e ernp1ricos, mas esses constituem o pano de fundo, individuais e nas situações cotidi:;Uilas uma dimensão coletiva e histórica
e não o cerne do conhecimento que se deseja produzir mediantí:: o contacto (e vice-versa). Pesquisar ê ,pro~urar, .indagar, questionar o mundo,
com a realidade sccial. principalmente aquele que está ao nosso redor. Assim, o primt::iro passo
Não se trata de buscar a "neutralidade" preconizada pelos da ~tividade do cientista social, enquanto tal, consiste em dirigir à realidade
positivistas, uma vez que é impossível abordar a realidade sem a um olhar crítico, inquisidor, de modo a "desnaturalizar" os fatos sociais.
intermediação do sujeito cognoscente que, por ser situado social e Mas há uma pré-condição para isto: é a ruptura com o senso comum,
historicamente, jamais conseguirá desvencilhar-se da teia de significados • de que fala BOURDIEU ( 1989). . ... _
e de valores na qual o seu objeto também está inserido (GEERTZ, 1978). E o que é o senso comum? l'~ra BOURDIEU (19:89, p. 34), este
o '

Mas reconhecer a impossibilidade de um conhecimentocompletamente inclui tanto "os lugares comu~s da existência vulgar" como "as
independente das preferências e das condições histórico-sociais do representações oficiais" e aquelas vigentes no próprio mundo acadê~ic·o
pesquisador, bem como do contexto da· inv~5tigação, não implica uma (o "senso comum douto"). Daí porque é preciso desconfiar·.pa:s
licença para transformar a prática de pesquisa num exercício de mera explicações fáceis e das unanimidades: "toda unanimidade é burra\l;>cómo
subjetividade ou de militância político-ideológica. Assim, rejeitar o dizia Nelson Rodrigues. Note-se que, geralmente, as unanimidades são
positivismo como ori~ntação teórico-metodológica não significa, construídas no interior de detemlinadas correntes ou grupos (esquerda,
necessariamente, abandonar a busca de padrões inter-subjetivos de rigor, neoli~erais, partidos, a própria comunidade acadêmica)~
que caracteriza a atividade cientifica. 16 Nas palavras de GEERTZ (1978, ·:Para romper com o senso comum, o.sociólogo deve exercitar a
p. 40), "[n]unca me impressionei com o argumento de que, como é "dúvida radical", questionando todas as pré-noções, 17 a fim de escapar
impossível uma objetividade completa ...... é melhor pemlitir que os da ''persuasão clandestina" que se efetiva via meios de comunicaÇão de
sentimentos levem a melhor. Como observou Robert Sol~w. isto é o massa, trabalhos de colegas e de alunos, etc. BOURDIEU (1989, p. 37)
mesmo que dizer que, como é impossível um ambiente perfeitamente r.ugere que se tàça "a história social da emergência do problema", uma
asséptico, é válido fazer cirurgi2. num esgoto". vez que todo "problema social" é socialmente produzido, por meio de
-. "reuniões, comissões, requerimentos, programas, projetas, pesquisas de
2.2.2 A ruptura com o senso comum como coudição para a construção opinião, etc." Esse trabalho coletivo faz com que questões "privadas"
de objetos de pesquisa como a violência contra a mulher, o homossexualismo, o menor
abandonado, o desemprego e outras, venham a ser encaradas como
A construção de objetos de pesquisa que atendam aos critérios questões "públicas", ou mesmo "oficiais", isto é, objeto de políticas públicas
apresentados acima não depende 1penas do esforço c da boa-vontade e até mesmo de legislação específica (BOJ)RDIEU, 1989, p. 37). Cabe
do pesquisador. Requer, antes de mais nada, uma qualidade essencial ao sociólogo definir suas próprias questÕ~s de pesquis~. e não acêÍtar
passivamente aquelas que lhe são colocadas pelos campos político,
'' A esse respeito, vale mencionar a distinção que faz BERNSTEIN (197E) entre objetividade burocrático, legal, acadêt!lico e outros.
e objetiv1smo. Para ele, objetivismo é a crença de que "há um campo de tàtos b~.sicos, É preciso, sobretudo, tomar cuidado com a linguagem- os "ídolos
c\idcntes, cxatos, que serve de fundamento a todo o conhecimento empírico" (1978. p. 1.11;
tradução minha). Já a objetividade consiste na busca de "padrões in!ersubjetivos de racionalidade
do foro",como·dizia BACON (1988 [1620]). Segundo BOURDIEU
ou normas de investigação pelas quais po:;samo3 distinguir entre preconceitos, vieses,
superstições c falsas concepções, de um lado, e asserções objetiva~ de outro" (BERNSTEIN,
1978, p. III) ltradução minha). 17
:::=--:-___ __;__!,•'f--
Esta foi a postura adotada por DESCÁR.TES (Í99i [1637]J, o fundador da filosofia modema.

26 27
( 1989, p. 39), ela é "um enorme depósito de pré-construções naturalizadas, ... [o pesquisador) dt!ve obrigatoriamente rentar compreender o uni\·erso
portanto ignoradas como tal, que funcionam como instrumentos incons- dos babilónios ou dos bororos .. , tal como era vivido por eles, tentando
cientes de construç~o [do conhec;imento]". Por isso é tão important~ o explicá-lo, abster-se (sic.] de iMroduzir determinações que não existem para
rigor na definição dos conceitos; o cientista social não deve aceitar esta cultura [sicl ( ... ) Mas ele não pode ficar nisso. O etnólogo que:
assimilou do bem a visão do mundo dos bororos a ponto de só poder \'ê-
nenhur.:1a definição como "óbvm'ç' .. ,
.... (,I.,,

o
Ainda segundo BOURDIEÜ, processo de ruptura epistemológica
los à sua maneira, não é mais um etnólogo, é um bororo- e os bororos não

.
requerido para a construção de um objeto de pesquisa .
verdadeira "conversão" do pesquisador a um novo modo de ver a
implica uma
~iio etnol0gos. Sua [elos etnólogos) razão dt ser não é assimilar-se :~os bororo>.
mas explicar aos parisienses, ao~ londrinos, aos novaiorquinos ... [de noSSJ
época) esta octra humanidade que os bororos representam .. E isso, ele só
realidare. Nas palavras do mestre francês, pode fazê-lo na /ingu{/gem, no sentido mais profundo do termo, no sistem:~
:\ força ·do pré-construído está em que, ac.hando-se inscrito ao. mesmo tempo categoria! dos parisienses, londrinos, etc. (CASTORIADIS, 1986, p. 195;
nas coisas e nos cérebros, ele ~e apresenta com as aparências da evidência, que (grifo no original).
passa desapercebidapórque é perfeitamente m.tural. A ruptura é, com efeito, Nessa perspectiva, a maior contribuição que o pesquisador pode
uma conversão do olhar e pode-~e dizer do ensino de pesquis~,em sociologi3.
dar para mudar o mundo reside no trabalho que realiza para tomar esse
que ele deve, em prirr.eiro lugar, 'dar novos olhos', como dizem por vezt:s os
filósofos iniciáticos. Trata-se de produzir, ~enão 'um homem novo', pelo mundo comprensível.
menos 'um novo olhar', um olharsocio/Cgico. E isso não é po:>sível sem uma
Yerdadeira conversão, uma1netanoia, uma re·.rolução mental, uma mudança de 2.2.3 Sugestões metodológicas para a construção de objetos de pesquisa
toda a \'isão do n:undo social (BOURDIEU, 1989, p. 49) (grifos no original).
No item anterior, mostrou-se que a construção de um objeto de
DA MATTA (1987, p. 157) refere-se a es,se processo de pesquisa é um processo lento, vinculado tanto aos interesses do pesqui-
"conversão" com uma expressão muito interessante: é preciso, dtz ele, sadpr, Ço~no à sua capacidade de proceder a rupturas epistemológicas
"transformar o familiar em exótico" e "transforrpar o exótico no familiar". com o seu próprio universo social. Por isso, depende ClãO só d.l história
No primeiro caso, trata-se de distanciar-se intele~tual e emocionalmente intelectuaJ e das circunstâncias pessoais de cada um (inserção profissional
do universo social que nos cerca. Para conhecer um fenômeno ou grupo, e opções:políticas, estilo de vida, etc.), como de considerações de ordem
na perspectiva do antropólogo, é necessário assumir um distanciamento prática, como tempo disponível e ad~so a fontes de financiamento.
critico com relação a ele, reconhecendo que o fato de ocon·er à minha Segundo PINTO (1992, p. 4), a formulação do problema de
volta, no meu cotiáiano, não significa que me seja conhecido. Por outro pesquisa "é a cruz dos pesquisadores, sobretudo quando se iniciam na
l~do, 'b conhecimer.to do mundo soci.al requer uma identificação intelectual dificil prática da produção do conhecimento". Sendo tarefa intrinsc-
c e111ocional coil) ~s fenômenos e, grupos que parecem estranhos, ou camente'complexa e demorad~. essa etapa não se realiza isoladamente
mesrpo exóticos. É preciso ter ,capacidade para entender o ponto de de outros aspe.:tos da p~squisa, uma vez que envolve um conhecimento
vista 'do outro, superando a tendêí1ci.a a julgá-lo em termos dos nossos prévio mínimo daquilo que se quer investigar -- daí porque a própria
próprios valores (etnocenttismo}. ' elabcração do projeto requer uma investigação exploratória. da qual ~c
1'\ào se deve, porém, cair nà tentação de "tomar-se nativo'', co,mo tratará adiante. Por outro lado, é preciso ter em mente que a definição do
dizem os antropólogos, pois esta é também uma forma de perder a objeto é um processo que não se conclui senão com a própria pesquisa.
objetividade, afogando-se num outro tipo de senso comum, incompatível pois as informações e os insights advindos da coleta e análise de dados
com a produção do conhecimento científico. CASTORIADIS (1986, propiciarão novos ângulos de abordagem e redefinições do problema.
p. 195) critica essa~atitud~ com rara felicidade, afirmando que U!na boa forma de se p:oceder é tentar cransforrnar o tema cm

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wna pergunta de partida, ou seja, em uma questão que resuma a ant~riores, experiência profissional, prática política, vivência pesseal;-letc.)
inquietação que levou o pesquisador a querer estudar aquele tema. Quívy constituem uma fonte importante de idéias, que devem ser trabalhadas
e Van Campenhoudt desenvolvem esse método no seu livro Manual de mediante a orga.1ização de notas e dos documentos porventura já obtidos.
Investigação em Ciências Sociais (1992), apresentando vários exemplos Aproveitam-se, também, informações e reflexões procedentes de leituras
e discutindo-os a partir de alguns critérios definidores de uma boa de livros e periódicos (inclusive obras de ficção), notícias publicadas nos
pergunta, os quais podem ser resumidos nos seguintes: meios de comunicação de massa e mesmo observações do senso comum
a) clareza: a pergunta não deve ser vaga, nem muito complicada; (conversas ouvidas na rua, por exemplo). É indispensável, porém, recorrer
b) exeqüibilidade: deve-·se colocar uma questão P'ossível de ser a procedimentos mais sistemáticos, os quais incluem, necessariamente,
respondida com os recursos materiais e intelectuais do pesquisador; levantamento bibliográfico e documental, entrevi~ta~ exploratórias e
c) pertinência: é necessário que se coloque uma verdadeira indaga- contactos com a realidade empírica a ser investigada.
ção, e não algo que o pesquisador já sabe; ou seja, deve-se evitar O objetivo precí.puo do levantamento bibliográfico é o "conhe-
transformar pressupostos em perguntas que sejam apenas retóricas. cimento dos trabalhos anteriores que se debruçam sobre objectos
comparáveis", de modo a subsidiar a preparação da revi~ão da literatura
2.2.4 A etapa exploratória de pesquisa, o levantamento bibliográfico e (QUIVY & VAN CAMPENHOUDT, 1992, p. 48). É importante incluir
a revisão da literatura autores com aborgadens diferenciadas, com relação aos quais o
pesquisador fará a discu~são do seu objetb, indicando convergências e
A preparação de um projeto de pesquisa, por si só, requer um divergências. Trata-se de reconhecer o caráter cumulativo da produção
mínimo de familiaridade com o objeto a s~r investigado-, uma vez que, científica e de situar-se como membro de uma comunidade de
como já foi indicado, este só pode ser definido ao longo de um processo investigadores, ao invés de conformar-se com a medíocre posição de
de construção do conhecimento, mediante sucessivas aproximações com um consumidor de idéias alheias.
a realidade empírica e com a construção de elaborações teóricas sobre o Nessa fase, a revisão da literatura não precisa ser exaustiva, sendo
fenômeno pesquisado. Daí porque antes de se proceder, de modo mais recomendável utilizar um critério"J\.~l,!alitativo para a seleção das leituras,
sistemático e aprofundado, à investigação, impõe-se a realização de tendo a "pergunta de partidcl!:. coihp .fio condutor. Deve-se evitar tanto
estudos exploratórios pará'subsidiar a elaboração de todos os componentes os "calhamaços" teóricos, como os estudos Il).eramente descritivos, que
do projeto de pesquisa: a definição ào objeto, a revisão da literatura, a se limitam a compilar dados; é .preferível consultar estudos de caráter
escolha do referencial teórico e a formulação da metodologia. sintético, interpretativos. Teses ou dissertações defendidas, assim como
Trata-se de obter urna c~racterização geral e provisória do estudos clássicos publicados em data recente, revelam-se, por vezes,
fenômeno a ser estudado, constituindo, assim, a "matéria-pri:na" para a muito úteis, pois costumam incorporar contribuições de trabalhos anteriores.
construção do conhecimento científico. Este morn~nto preliminar e É absolutamente essencial ,tntercalar as leituras ..corn reflexões
preparatório da pesquisa é indispensável, pois é impossível pensar pessoais c discussões com coleg~.ou pe::>soas experi~ntes. No dizer qe
teoricamente um fenômeno sobre o qual não se tem informações básicas. QUIVY & VAN CAMPENHOUDT (1992, p. 19), trata-se de "réaprefl~r
Afmal, "todo o nosso conhecimento começa com a experiência", como • a refletir em vez de devorar, a ler em profundidade poucos ~e~~t~~
afim10u KANT (1987 [1781]), p. 25). cuidadosamente escolhidos e a interpretar judiciosamente alguns,cl.ados
As informações que servem como ponto de partida para a estatísticos particularmente eloquentes". Uma boa estratégia é org~cizar
preparação do projeto de pesquisa são oriundas de diversas fontes. Sem um programa de leituras em etapas, intercalando "levas';' de três a cinco
dúvida,
.
os contactos préviosJ do pesquisador com o terna (estudos livros c artigos com períodos de reflexão e organização de notas, o que

<n 31
peanite corrigir erros de orientação na escolha do material bibliográfico.
Antes de consultar fontes mais abrangentes, como o ac~rvo de
bib!Jotecas e a Intt:met, é conveniente pedir a especialistas indicações
i
~
de MlLLS (1969). A manutenção desse arquivo é uma estratégia para
estimular a escrita, sendo qt:e nele devem ser registradas também as
reflexões do pesquíst'.1or scbrc filmes, programas de TV. cenas do
de leituras básicas e: a-partir delas, identificar as obras citadas de forma
recorrente pelos autores'.~J~t~'sil'll:a.dos. 18 As resenhas e ensaios
bibliográficos também consHtuem um bom ponto de partida, com
destaque para a publicação BJB - Boletim Informptivo e Bibliográfico
I cotidiano etc. É igualmente importante manter e consultar um diário de
campo, onde se anotem as observações e reflexões sobre :1 pesquisa e o
andamento da dissertação, desde a fase dos estudos preparatórios.
O pesquisador não pode ser tímido, nem trabalhar isoladamente.

!
de Ciências Saciais, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Sendo a ciencia uma construção coletiva, a troca intelectual é
Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). 19 importantíssima., incbJsive do ponto de vista profissional (obtenção de
Note-se que o levantamento bibliográfico é um processo que se r bolsas, publicação de trabalhos, _apresentação dos mesmos em eventos
verifica ao longo de toda a elaboração da tese: irá continuar durante a I científicos, etc.). Faz parte do trabalho do mestrando inserir-se na
pesquisa de campo e,~ia fase de análise dos dados, e mesmo durante a comunidade científica em geral, e nos grupos que estudam o seu tema
redaçào dos capítulos da dissertação, quando se constatar a necessidade
de leituras complementares. Contudo, a preparação de um bom prqjeto
' de pesquisa, começando pelos próprios colegas e professores, não só do
mestrado, como de outros departamentos e universidades. Nesse sentido.
de pesquisa requer um volume razoável de ieituras, capaz de S'..lbsidiar a pa!.'ticipação em congressos e seminários é uma oportunidade
uma revisão de litera~ura que dê conta dos principais autores que particularrnente relevante para o pesquisador iniciante. o qual deve estar
estudaram o tema, tanto em termos teóricos, como empíricos. Um bom atento para as possibilidades de contactos diretos ou por meio de
critério que p~rmite avaliar se o conh~cimento da bibliografia apresenta correspondência (inclusive correio eletrônico ). Para os mestrandos em
suficiente abrangência é a recorrência das referências a obras já Sociologia, Antrop0logia e Ciência Política, recomenda-se.
consultadas: "podemos considerar que abarcamos o problema a partir do espec~alJ.Uente, a participação em discussões dos grupos ou seminários
momento em que voltamos sistematicamente às referência~· que já tetnáticôs ocorridas nos encontros anu::tis da ANPOCS.
conhecemos", comodizemQUIVY &VANCAMPENHOUDT(l992,p·; 53). Entre os contactos que o pesquisador deve realizar nessa etapa.
Como se lê é tão importante quanto o quê se lê; daí a necessidade são recomendáveis as entrevistas com especialistas ou pessoas envolvidas
de uma leiturá ativa e crítica, a qual implica !omar notas, articulando .. as com a temática em estudo, junto às quais se d-:ve obter não só indicações
ao obj~to da pesquisa (BARZUN & GRAFF, 1977; FREIRE, 1979). A bibliográficas, como "dicas" para o acesso a documentos e dados básicos
organização dessas notas, bem .como dos demais materiais coletados já existentes, e para a pesquisa de campo (sugestões sobre que áreas, ou
(te;\tos, recortes de jornais, documentos), em forma de um arquivo, é grupos, pesquisar; nomes de possíveis informantes-chave, etc.). Na fase
' ii{ão só uma forma de facilitar o trabalho de análise de dados e de redação de estudos exploratórios, pode-se realizar entrevistas com informantes-
da ciisscrtaçào,_ cqmo pode se constituir em fonte de ideias para outras chave, óu "testemunha3 privilegiadas" do fenômeno a ser investigado.
pesquisas, como mostra o inter~ssante texto "Do artesanato intelectual", mas, par.'l i~so, é preciso ter uma certa clareza sobre o objeto, c facilidade
:f de acesso ·a essas pessoas, de modo que se possa entrevistá-Ias
novamente na fase de coleta de dados, caso se faça necessário. Cabe
lembrar que "as entrevi~ tas exploratórias não têm como função verificar
" Essa estratégia é indispensável para 11 idcntifícaç2o de artigos publicados cm periódicos, hipótese;s nem recolher ou analisar dados específicos, mas sim abrir pistas
pois. como se sabe. esse ti!JO de material não consta dos catálogos das bibliotecas. '
'' O BIS já publicou ensaios bibliográficos so?rc temas ~orno industr:alização c classe de reflexão, alargar e precisar os horizontes de leitura, tomar consciência
traba~lwdora. reeslrul~,ração produtiva, poliricas públicas, intancia, violência, movimentos das dimen.sões e dos aspectos de um dado problema, nos quais o
sociais urbanos. gêne~o 'c ouJros.

· \lf>u·; ,...,
32 j~



investigador não teria decerto pensado espontaneamente" (QUIVY &
Referências Bibliográt1cas
VAN CAMPENHOUDT, 1992, p. 77).
É altamente recomendável, para a elaboração de pr0jetos de
pesquisa que incluirão trabalho de campo, que se realize um levantamento BACON, Francis.NovumorganunJ. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural,
empírico preliminar, por meio de observações sobre a instituic;ão, o grupo 1988. (Co!eção Os Pensadores).
ou as pessoas que se quer estudar. Se isso não for possível (por motivo BARZUN, Jacques & GRAFF, Henry. The modem researche1: 3. ed.
de custos associados à distância geográfica, por exemplo), uma alternativa Nova York: Harcourt Brace Joyanovich, 1977.
é tentar um contacto "simulado", ou 'seja, com instituições, grupos ou ' • • t ~' ' •.

pessoas com características semelhantes àqueles que serão efetivamente BECKER, Howard S. Métoaos aepesquisa em ciências sociais. São
pesquisados.~ 0 Nessa etapa, o contacto com o campo deve ser cercado Paulo: HUCITEC, 1993. . . -
de cuidados para se evitar a formulação de conclusões apressadas, devido • BERNSTEIN, Richard J. The reconstructing of social and politica/
à "ilusão da transparência", decorrente de uma excessiva familiaridade theory. [S.l.]: The University ofPennsylvania Press, 1978.
prévia com o objeto. Para minimizar esse risco, deve-se "deixar correr o
BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. ln: ___.
olhar sem se obstinar sobre- uma ú~1ica pista, ouvir à sua volta sem se
O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 17-58. '
contentar com wna só mensagem, apreender os ambi~ntes e, finalmente, ,,
procurar discernir as dimensões essenciais do problema c:;tudado, as CAMARGO, Aspásia. Qs usos da história oral e da história de .vida,:, _
suas facetas mais reveladoras e, a partir daí, os modos de abordagem ttabalhando com elites políticas. Dados - Revista de Ciêna}{ls
mais esclarecedores" (QUIVY & VAN CAMPENHOUDT, 1992, p. 81 ). Sociais, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 5-28, 1984. - -,--
• • ~ ~ 1,_,...... ,

CASTO RIAD IS, Comelius. A instituição imaginária da sociedade.


2.3 CONCLUSÃO
2. ed Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
O projeto é uma antecipação da pesquisa a ser realizada, mas, na CASTRO, Claudio de Moura. Estrutura e apresentação de publicaÇões
medida em que sua preparação'requer um conhecimentc.• prévio do tema cientificas. São Paulo: McGraw-Hill, 1976.

e uma certa familiaridade...com o objeto, é impossível con~ebê-lo isola-
____. Memórias de um orientador de tese. ln: NUNES, Edson de
damente do próprio processo àe investigação social. Por 04~r0 lado, este
Oliveira (Org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão,
tem no projeto um importante ponto de apoio, sobretudo no qu~ piz respei.to
improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
à definição do objeto de pesquisa. Ainda que se reconheça, com BOUR-
p.307-326. .
DIEU ( 1989, p. 27), que tal definição ''é um trabalho de grande fôlego,
que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos", o caminho da CAVALCAl\~'E, Sylvia. Modelo para estruturação de um projeto de
construção. do conhecimento pode se tomar menos árduo se o aprendiz pesquisa. Fmtalcza, [1997?]. (mimeo).
dispuser de boas ferramentas, entre as quais se mclui um bom DAMATTA, Roberto. Trabalho de campo. ln: . Relativizando:
projeto de pesquisa. uma introdução à antropologia social. 3. ed. Rio de Janeiro: Rocco,
I
1987.p.143-173. ..
:o Por exemplo, quando elaborei, no; Estados Unido~. projeto de pcsq•.lisa para a minha tese
.

\'

de doutorado sobre Os planejadores e o poder GONDIM (1987b), o qual previa a realização DESCARTES, René. Disc~,trso do método. 5. ed. São Paulo: Nova
de pesquisa de campo junto a técnicos que atuavam num órgão de plancjamento no Rio de
Janetro, entrevistei alguns colegas do doutorado que haviam aluado cm órgãos sim;la~cs cm Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).
São Paulo c cm Salvador.

1.:;
34
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36 \ 37
2
I:;
. ----- t·.. --- ... -----· ---·----. ---------------~--- ·-1
'~·- I
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THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e 3.i. JUSTIFICATIVA
enquete operária. São Paulo: Polis, 1988. A proposta de pesquisa aqui exposta tem como temática central a
UJ\1\'ERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (UNESP~. São Paulo. utilização da arte como instrumento educativo que se propõe à construção
Normas para publicações da Unesp. v. 2, Referências &ibliográficas. da cidadania. Inserindo-se dentro dos estudos de Sociologia da Aite,
São Paulo: UN"ESP, 1994a. constitui uma tentativa de discutir a função social dessa atividade humana,
através, sobretudo, da sua utilização político-pedagógica como mediadora
___ . São Paulo. Normas para publicações da Unesp. v. 4, Disser-
do processo de "conversão" de crianças e adolescentes da periferia de
tações e Teses. São Paulo: UNESP, 1994b.
Fortaleza à cidadania. O campo empírico escolhido para guiar tal discussão
ZALUAR, Alba (Org.). Desvendando máscaras sociais. Rio de foi a Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1990. - EDISCA. Criada em 1991, a EDISCA, como o próprio nome sugere, é
uma escora de ballet que congrega crianças e adolescentes de diversos
bairros pobres da cidade d:! Fortaleza e se propõe a "trabalhar a
constmção da cidadania"2 das mesmas através, principalmente, da dança.
Meu interesse pela temática surgiu a partir de duas grandes paixões
que se interpuseram ao longo da minha experiência de vida: a paixão
pela arte e a paixão pelo trabalho com crianças e adolescentes. A primeira
-. das paixões surgiu na infância, quando tive o primeiro contato com o
mundo das artes, mais especificamepte com a música, por :neio de aulas
de piano, instrumento que estudei•por alguns anos, o que me inspirou a
ingressar no curso superior de Música, da Universidade Estadual do Ceará.
Mesmo tendo optado, postf;riormente, pelo curso' de C.:ências Sociais,
continuei meu conta to com a música, através da patticipaçâo em alguns
corais em Fortaleza.

: Vers~.o p~chminar de projeto de pesquisa para &issertação de Mestrado cm Biologia, orientada


pela professora Irlys A F. Barreira, aprescntádl! como trabalho final da .disc:plina Métod')S de
Investigação Social, ministrada pela professor~ Linda Gondim no Programa de Pós-Gradua~ão
r.m Sociologia da UFC, no ~cgundo semestre lctivo de 1997. C.i 1,
2
A jlroposta de construção ou resgate da cidadai!ia está sempre presente nos discursos das
pessoas que fazem o Projc!o c pode ser encontrada cm diversas matérias de jornais. c, sotírc-
•ndo, nos folhetos de divulgação do mesmo, como, por exemplo, cm GUNTHER (1996).

'UI
A segunda das paixões começou a ser esboçaáa a partir da minha acerca dos conflitos, impasses ou dilemas que se interpõem na construção
experiência de trabalho como professora primária em uma escola de "experi~ncias de cidadania", efetivadas através da arte. com criançJ~
particular de Fortaleza e, mais t:1rde, como professcra de adolesce1des e· adolescentes de periferia. Questionamentos estes que serão colocados
dÚscolas públicas, passando p;la experiência de pesquisa com meninos ao longo dessa proposta de trabalho, no sentido de construir meu objcto
e menin(ls de rua e ~1-!lminati(;i'o cotJ;l. uma experiência de trabalho na de pesquisa.
qual as :luas paixões :sé encontraram: a experiência no Projeto Um Canto
em Cada Canto. 3 3.2 Ü PROBLEMA !)E PESQUISA
Trabalhei no projeto Um Canto em Cada Canto de 1992 a 1994,
primeiramente como auxiliar de regente e depois como socióloga 3.2.1 A questão da cidadania e a problemática da criança e do
(fazendo a mediação entre o Projeto e as comunidades atendidas, através adolescente carentes
de visitas aos "cantos"4 e às associações de moradores). Ao longo desses O termo cidadania tomou-se bastante corriqueiro atualmentc. nos
dois anos, tive a oportunidade:~,Hd,~r com crianças de diversos bairros meios de comunicação de massa, nas escolas ou nos espaços políticos.
da periferia da cidade, ::onhecdndo-lhes a realidade e, sobretudo, obser- Mas o que significa realmente ser cidadão num país de gritante~
vando a alegria e o intexesse que o trabalho com art~ lhes proporcionava. contradições sociais corno o Brasil? .
• Por essa época, as discussões acerca ca cida<tlania das crianças e O conceito de cidadania, tal como é entendido hoje, dcscnvol\ cu-
dos adolescentes estavam no auge, por conta do recém-aprovado Estatuto se no processo de formação do Estado liberal moderno, fundJment:tdL1
da C11ança e do Adolescente. No bojo dessas discussões, começaram a no prirrcípio da iguatdadP. entre todos os indivíduos que habitam um
surgir em ·Lodos os lugares do país diversos projetos voltados para a mesmo território. Durante a Revolução Francesa, aparece um dos ,
garantia de efetivaçãol,io's direitos previstos no Estatuto para esses atorcs primeiros empregos oficiais do vocabulo cidadão, na Declaração dos
sociais. Em Fm1aleza não foi diferente. Junto com a i~plantação do Direitos do Homem e do Cidadão, significando principalmente o homem
Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, surgiram diversas que se tornou livre c detentor de direitos políticos, em opo.;ição aos
iniciativas voltadas para a defesa ou construção da cidadania de crianças antigos súditos. Assim sendo, o termo cidadão passou a comportar uma
e adolescentes e, entre elas, as que utilizam a arte para atingir tal propó- dimensão política, de caráter nivelador, no sentido de que apontan para
sito, como é o caso dos projetos Circo Escola Respeitável Turma e EDISCA. a possibilidade de extinguir os privilégios que conferiam direitos
A proliferação de projetos dessa natureza, não só no Ceará, mas especiais à nobreza e ao clero.
em vários outms locais do país, aliada à minha experiênCia no Projeto Comentando a história social e po!ítica do movimento que deu
Um Canto em Cada Canto, despertou em mim algur\s questionamentos esse ~sÇ,ntido à cidadania, Roberto da Matta afirma qu.e "dentro da
dinâin&a política específica da Europa Ocidental, o conceito de cidadania
) Esse Projeto foi criado cm Fonalc;:a cm 1988, com a proposta de trabalhar a musicalizaçào foi um instrumento poderoso para estabelec~r o universal como um modo
de crianças c adolescentes pobres da periferia, através da formacào de corais. Hoje, .;onta de contrabalançar e até mesmo acaqar e compensar a teia de pri\'ilégios
com '27 co~ais infantis espalhado~ cm bairros como Jangurussu (onde ficava o aterro de lixo
da cidade), Pirambu (conhecido como um do~ bairros mais violentos de Fortaleza), Castelo que se eristalizavam em diferenciaçÕes e hierarquias locais" (DA ~v1ATT.-\.
Encantado (cuja população é composta predominantemente por famílias de pescadores), 1991, p. 7 6). Esse universalismo implícito no conceito de cidadania é
Fa\"ela do Trilho, cntn: outros, além de 90 ccrais no interior do Estado.
• Os ··cantos" são os locais ondz cada coral funciona. Geralmente, são locais públicos como
característica marcante das teorias liberais representadas, por exemplo.
igrcj'as. escolas, associações, centros comunitários. localizados nos bairros que são atendidos pelo clássico trabalho de MARSHALL ( 1967). Este autor trata a igual-
pelo Projeto. As visit:IS feitas a esses lugares tinham como obJctivo caracterizá-los no que <'.iz dade de direitos e deveres, sejam eles civis, políticos ou sociais, como
respeito ao público alvo, às condições de funcionamento dos corais c à repercussão (lo
trabalho na comunidade. , algo inerente à própria natureza do ser humano e considera que o status
~ ~ ~ ~

40
>~ . 41
'
de cidadão é atribuí do a todos os"membros integrais ôe tmmcomunidade".
as crianças e os adolescente carentes, 6 vitimas preferenciais desta
Apesar de estar contido em um "projeto" de modernidade, o ideal "cidadania às avessas", que já nascem herdeiras da miséria e da exclusão.
de .;idadania relacionado à igualdade natural de todos os homens, em
Na maioria das vezes, são obrigadas a buscar nas ruas a acolhida e os
todos os lugares, nunca se concretizotl, do ponto de vista da prática social.
meios de 1sobrevivência que a sociedaàe e a própria família lhes nega.
'i\ o caso do Brasil, então, acontece uma forma de "cidadania às avessas",
A problemática da "infância abandpnada" é histórica em nosso
segundo DA MATTA. Isso porque a nossa cidadania encontra-se muito país. PILOTTI & RIZZfNI ( 1995) salientam que,já em 152,1, registravam-
mais ligada a uma rede de relações na qual o que cor1ta é a proximidade
se vários casos de crianças abandonadas no Bra~il. Devido à pobret'a e
com o poder, con,ttgurando-se assim ~·um modo de organização à moral cristã dominante (que considerava ilegítimos o~ filhos nascidos
burocrática, no qum: o todo predomina sempre sobre as partes e a
fora do casarr.ento), crianças eram deixadas em lo.çai? púb:;cos, como
hierarquia é fundamental para a definição do significado do papel das
igrejas e p01tas de casas. Nesse mesmo ano, já surgiam também as
instituições c do~ indivíduos" (DA MATTA, 1991, p. 83). Ou seja,
primeiras tentativas de solucionar o problema, com a criação dê impostos
tem-se uma organização que ao invés de extinguir, cria privilégxos; ao
para que as Câmaras Municip~isp~~.sseJU cuidar das crianças abandonadas.
in\'és de nivelar os cidadãos em termos de direitos e deveres, produz
Apesar das inúmeras formas d~. tratamento dispensadas à
inúmeras fonnas de exclusão, ficando o acesso aos "direitos universais"
problemática da infância ao longo dos tempos, só r~centemente, na década
permitido apenas a alguns. "O cidadão é a entidade que está sujeita à lei,
de 1980, surgiram movimentos em defesa dos direitos e da afirmação da
ao passo que a família e as teias de amizade, as redes de relações, que
cidadania das crianças e dos adolescentes. Os marcos fundamentais desses
são altamente formalizadas política, ideológica e socialmente, são
movimentos foram os anos de 1985 e 1986. Em 1985, foram divulgados
entidades rigorosamente fora da lei;' (DA MATTA, 1991, p. 88).
os resultados de um dignóstico da Fundação Nacional do Bem-Estar do
O fato é que apesar de se ter uma Constituição que emprega o Menor (FUNABEM), realizado p~la Fundação João Pinheiro, o qual
termo cidadania no sentido liberal, a prática social inverte essa cor..cepção,
recomendava profundas modificaÇões na Política de Bem-Estar do Menor
re\ estindo-a de um individualismo negativo que ignora as leis
em todo o país. No a!lo seguinte, úma série de eventos rr.arcou a en~re.~a
totalizadoras, demonstrando o descompasso existente entre a nação e a
5 • em cena de novos e importantes atores sociais na luta por um m;Íhor
sociedade brasileira. A democracia brasileira dá-se apenas no piano
atendimento à infância brasileira. Dentre esses even~os, destacaram-se:
formal, característica marcante da versão que o liberalismo assumiu aqui.
a realização, em Brasília, do I Encontro do Movimento Nacional de
Em outras palavras, nossa igualdade é rr.era abstração, figurando apenas
Meninos e Menir..as de Rua (!v1NMMR); o IV Congresso "O Menor e a
cm leis que geralmente não sãq cumpridas, caracterizando, assim, o que
Realidade Nacional", promovido pela Frente Nacional de Defesa dos
DIMENSTEIN (1993) denomÚ~ou de "cidadania de papel".
Direitos da Criança (FNDC); e a criação da Comissão Nacional Criança
Inúmeros são os "cidadãos à~ papel" no Brasil. Dentr~ eles, destaco e Constituinte.
~ O principal fruto de toda essa mobilização foi a promulgação do
Estatuto da Crian'(a e do Adolescente, em 1990. A aprovação do Estatuto,
• apesar de não significar a resolução da problemática, trouxe consigo
--
< Roberto da Matta afirma que a nação brasileira opera fundada nos \cus cidadãos, mas a
aigumas contribuições importantes. Tem suscitado um amplo debate em
soc1cdadc brasileira funciona calcada nas mediações tradicionais, como as rcl.•rões àe a.niz:~de, 6 O termo carente ·aqui é utilizado não só para ccfinir uma situação de classe, mas também
compadrio c parentesco. E tomando como referência a& reflexões de Marcel Mauss cm La
.\"ac1Ú11 ( 19:?0), complementa: "'A rcvclução ocidco1tal modema eliminou estas estmturas de
para destgnar uma situação mais ampla que inclui não só a carêr.cia de recursos financeiros.
segmentação, mas elas continuam operando social c politicamente no caso brasileiro,- scnào mas a carência de afeto c inclusive a de reconhecimelllo como ··criança". visto que na
também parte de seu sistema social" (DA MATT.o\., 1991, p. 94). maioria dll$, vczc~ estas ctianças c adolescentes são denominados de ··menores", terminologia
dcsprcvid~ de qualquer sentido afetivo.

42
. '43
na Bahia; o Circo Escola Respeitável Turma, o Canto em Cada Canto e
, torno da questão, assim como modificado significativamente o trat~'llento
·dad'b à criança e ao adolescente, pnn.cipalmente por ter provocado reações o EDISCN em Fortaleza, já mencionados.
da sociedape civil no S~.."'ltiçk>de atitü8ésvoltadas para resolução do problema.
DUI:àhte mui.to tempo, as políticas sociais destinadas à crianÇa e 3.2.2 Arte e cidadania
ao adolescente carentes preocupavam-se muito mais em corrigir ou punir A arte, segundo Francisco Duarte Jr., possui várias características
aqueles que eram •tistos como ameaças para a sociedade, do que em pedagógicas. Dentre elas, destaca-se o elemento utópico envolvido na
• ou mesmo resolver o problema. Assim, desde o período colonial
prevenir criação artística, ou seja, a arte permite aos indivíduos "o despertar para
adotou-se a prática .áo recolhimento de crianças abandonadas cm asilos, o que pode ser co!lstruído, para um projeto de futuro, para u.ma utopia"
orfanatos, refonnatóriôs,'ahrigos, etc. Tal práttca, que só foi efetivamente (DUARTE JR., 1988, p.ill ). Nesse sentido, a criação artística possuiria
questionada a partir dos anÓs~dél98q;·pressupunha,
-"'11·-· ... ,.
segundo PILOTTI uma eminente função social, propiciadora de uma experiência social
& RIZZINI ( 1995, p.ll ), "o confinamento e a contenção espacial; o transfonnadora que extrapola a simples dimensão estética. 9 "Ao propor
controle do tempo; a submissão à autoridade- fonnas de disciplina- outras 'realidades' possíveis, a arte permite que, além de se despertar
mento do interno, sob o manto da prevenção de desvios ou da reeducação para sentidos diversos, se perceba o quão distante (ou não) se ercontra
dos degenerados". Os autores ressaltam ainda que a prática da institucio- nossa sociedade de um estado mais equili\2rado e hannonioso (mais
nalização de crianças e adolescentes, através de iniciativas públicas ou estético)" (DUARTE JR., 1988, p.lll). O mesmo autor ressaha ainda
privadas, constituiu,? na verdade, um instrumento-chave para a perpe- que tais possibilidades educativas referem-se aos adultos, enquanto
tuação das oesigualdades,Sodais, sobretudo quando, através dos progr~as "espectadores e fruidores de objetos estéticos". Para as crianças, a arte
de "educação/re-educação pelo e para o trabalho", exploram, ou preparam reveste-se de um caráter diverso, que inclui características lúdicas c a
mão-de-obra desqualificada e barata. possibilidade de organizar suas experiên ·ias, visto que pennite uma
É importante lembrar, também, a concepção de criança e a~oles­ comunicação significativa das crianças consigo mesmas e com o mundc.
cente que prt:!dominava na legislação brasileira antes da criação do' Esta- Duarte Jr. enfatiza que a diferença primordial entre o sentido da arte
tuto. Crianças e adolescentes eram tidos como "menores", termo que para o adulto e para a criança é que para ela, a arte não tem um valor
evoca uma identidade estigmatizada e preconceituosa que, na maioria estético. Assim, a experiência artística infantil não busca a produção de
das vezes, tennina por colocar as "vítimas" na condição de "culpadas" obras "bem acabadas" e "harmoniosac;", mas visa, sobretudo, a comunicação.
por sua própria situação. A partir da aprovação do Estatuto, q~e dissemi- Pe!ltro da tradição marxista, a a.rte sempre foi considerada como
nou a concepção da criança e do adolescente como "sujeitos de direitos revestidá;de um caráter engajado, possuindo não só uma função social.
portadores de uma condição peculiar de pe3soa em desenvolvimento", mas político-ideológica, que pennitiria aos indivíduos concretizar açõcs
multiplicaram-se as ações voltadas para esses ateres sociais, por parte socialmer..te transfonnadoras. Walter Benjamin, por exemplo. elege o
não só das esferàs governamentais, mas sobretudo de ONG's, empresas
privadas ou mesmo de indivíduos. Dentre estas ações, proliferaram proje- 9 A experiência estética é tomada aqui cm seu sentido estrito, referindo-se à r~alizaçào do
'tos que utilizam a arte, direta ou indiretamente, como instrumento belo, do inventivo, da criação individual.
8 É importante rc~saltar que, dos projctos citados, o EDiSCA é o que mais se difcrencta.
med.iador do processo de construção da cidadania, tais como o Axé,
l . Enquanto cs outros Projctos trabalham com o resgate de manifestações artisticas populares
como o batuqu:: &fro-brasilcir,) (Projeto Axé), a arte circense (Circo Escola Rcspcitá,·d
Turma), as cantigas folclóricas c músicas' populares (Um Canto cm Cada Canto). o EDISC\
traralha com um tipo de artc tida como clitizada: o ballet dássico. Outro jifcrcncial desse
7
A utilização do verbo no presente foi feiJ~., c;.om vistas a rcs;altar que essas !)rática~, aJ:csar Projeto é q~c o trabalho com r.s crianças é desenvolvido fora d0 bairro de origem das mcsmJs.
de questionadas c apesar dos avançqs. consçgtt)dos r.:om o Estatuto da Criança c do Adolescente, cnquar,to que eos outros o trabalho é feito nos bairros onde as crianças moram.
ainda são amplamcn'c utiliz:>das' rio Braslt ·

-+5
44 •
teatro como o contexto mais apropriado.para a educação de crianças que pressupõe uma consciência cidadã. Nesse sentido, considero
proletárias de quatro a 14 anos. Diz ele: ·•... um:~. vez que a totalidade da pertinente a afinr.ação de SOUZA (1994, p. 22), de que o cidadão é "o
vida. em sua inesgotável plenitude, aparece emoldurada e inserida em individuo~ que tem consciência de seus direitos e deveres "• participa
um âmbito única c exclusivamente no teatro, por esse motivo o teatro ativamente de todas as questões da sociedl}de".
infantil proletário é para a criança proletária o local de educação Assim sendo, a constmção da cidad~nia pressupõe a existência
determinado dialeticamente" (BENJAMIN, 1984, p. 84). de espaços de relações socialmente dadas, de onde os indivíduos ou
Alguns dos projetos que utilizam a arte para trabalhar com crianças ateres sociais apreenderiam formas.de pensar, sentir e agir garantidoras
e adolescentes em situação de pobreza, parecem acreditar nessas de práticas sociais voltadas para essa construção. Ou, para usar a
possibilidades sociais, políticas e ideológicas, principalmente quando terminologia de Bourdicu, a construção do papel social do cidadão
rei\'indicam para si a construção da cidadania através de atividades pressupõe a existência de campos disseminadores- de um habitus
artísticas. É o caso, por exemplo, do proJeto EDISCA, que coloca garantidor do exercício dess~pàpef.:'soeial.
claramente em seus objetivos esta pretensão: "a Proposta da EDISCA é No caso de alguns projetas voltados para crianças e adolescentes
fonnar para a vida, para enfrentar os problemas cotidianos com dignidade pobres, parece que os mesmos oferecem o campo da arte como espaço
c altivez''. As pessoa<; que fazem o projeto acreditam que "para que de relações por acreditarem que este campo permite a formação de um
nossas crianças possam exercer plenamente a sua cidadania, precisam • habitus propício à construção da cidadania. Que habitus é esse e de
di.! oportunidades hojc". 10 que fonna ele se impõe como construtor de cidadania? Que relações se
Mas em que medida e de que forma a arte realmente prepara os estabelecem entre condições de vida, ressocialização (incorporação de
indivíduos para o "exerc1cio pleno de ~ua cidadania"'? Desde já é habit~s) e produção artística? Enfjrlt, corno concretamente se processa
necessário esclarecer que estou me referindo à cidadania no sentido global a "educação pela arte" nesses prÓjetos, que dimensões ou percepções
que o termo comporta, não só nos sentidos jurídico, político ou moral, de cidadania estão pr~sentes nessas experiências? i . •::. )_
mas, também, no sentido sociológico, do qual Roberto Da Matta fala: Para tins de análise desta problemática, tomarei como referêrie1a
como "papel social que é demarcado por expectativas de comportamentos a EDISCA. A escolha deve-se a dois fatores: primeiro, entre os prÓjetos
singulares" DA MATTA (1991, p. 72). Ou, ainda, no sentido que Maria , que utilizam a arte, este é o que mais explicitamente coloca entre seus
de Lo urdes Manzini Covre coloca, como wn processo inventivo, no sentido •~ objetivos a construção da cidadania; segundo, esse projeto, dentté os
da tomada de atitudes frente 19~s desafios sociais, de cada um e de todos, J que trabalham com crianças e adolescentes da periferia de Fortaleza,' é o
que ''depende da ação dos sujéitos e dos grupos básicqs em conflito, e t que vem alcançando maior repercussão não só em nível local, como
também das condições globais da sociedade" (COVRE, •1 991, p. 63). nacional e internacionaL Prova disso são os inúmeros convites para
Se a cidadania é um pa?el social, ela não pode ser t~mada (como apresentação de espetáculos pelo Brasil e pelo mundo: o grupo já se
na acepção liberal moderna) como algo inerente à própria natureza apresentou mJtália, emBrasília, no Recife e em várias outras cida?es brasileiras.
humana, ruas sim, como algo socialmente construído e institucionalizado.
A meu ,·cr, o ser cidadão não requer apenas a existência de leis que
3.. 2.3 A dança pela cidadania na EDISCA
garantam direitos e deveres iguais, mas, sobretudo, a participação dos O projeto EDISCA surgiu em 1991, quando a bailarina e coreógrafa
indl\·iduos ncs processos sociais onde essa igualdade esteja em jogo, o Dora Andrade conseguiu, por intermédio do governador Ciro Gomes,
um patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado para sua companhia
de dança. ?m troca do patrocínio, o governador sugeriu que os bailarinos
''J C1taçõcs extraídas do panfleto "Nas Atividades do Dia a Dia um Passaport;;: pra a Cidadania"
da Compaf!lhia Dora Anárade ministrassem aulas de dança para crianças
(rnatcnal de divulgação do proj:to EDISCA) (GllNTHER. 1996).
dL!. periferia de Fortaleza. A partir destas aulas, nas~eu em Dora o desejo
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de criar um projeto só para elas, a EDISCA. 11 Este, que iniCialmente Secretaria de Cultura do Estado. Além rla SECULT, a EDISCA mantém
funcionou nos Centros de Educação, Lazer e Profissionalização (ABCs), parceria çom a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor do Ceará
construídos pelo Governo do Estado em .alguns bairros periféricos da (FEBEMCE), Secretaria de Saúde do Estado, Banco do Estado do
cidade, ocupa atualmente uma sede' alugada que se localiz.!:l na Praia de Ceará (BEC), Fundaçil.o Ayrton Senna, Fundação da Associação
n Brasileira das Indústrias de Brinquedos (ABRINQ) e com algumas
Iracema (zona leste de Fortaleza). Atende a cerca de 300'jovens com
idades entre 6 e 18 anos, oriundas dos bairros do Mucuripe (Morros de organizações de cooperação internacional, como: Projeto Prevenção
Santa Terezinha e do Teixeira), Jangumssu, Conjunto Palmeiras e Bom Orientada a Meninos e Meninas em Situação de Risco (P0Ml\1AR).
Jardim. O tempo de permanência dessas crianças na Escola é de, no programa financiado pela Agência Norte-Americana para o Desenvol-
máximo, um turno, duas a três vezes por semana, até completarem 18 anos. vimento Intemacional (USAID); Fundação Me Arthur; Fundação Ashoka
Para fazer parte do Projeto, as crianças passam por um processo e Fundo das Nações Unidas para- a Infância (UNICEF).
de seleção, conhecido como audição. A audição é uma espécie de aula ~Em conversa com Dona Gislene Andrade, pude perceber que o
,. li
de dança na qual as crianças são avaliadas a partir dos seguintes critérios: dia:-a~diá: d1s crianças é cercado de muita disciplina. Dona Gislene fez
ritmo, coordenação motora, t1exibilidade e capacidade de concentração. questão de dizer que dentro do espaço da Escola não se ouve um grito,
Para as audições, as crianças são levadas pelo::; pais ou vão sozinhas, uma gargalhada mais alta: "aqui dentro só se ouvem sussurros", diz ela
muitas vezes até escondidas da família. - o que é.de se admirar, em se tratandq de um espaço repleto de crianças.
O público-alvo é predominant<;!mente formado por meninas É ir.t!:ressante perceber, a partir da fala áe Dona Gislene, o apelo
(atualmente apenas dois meninos. freqüentam as auias) que, além de constante que se faz à dimensão sócio-educativa da arte: "através da
passar pela audição, devem estar r.1atriculadas na escola formal e cumprir arte as crianças desenvolvem uma outra percepção do mundo, uma auto-
:um estágio probatório de um mês. confiança. A arte resgata a capacidade de sonhar". No material de
Ao ingressarem no Projeto, as \;rianças recebem uniformes para div.1lgação do projeto este·apelo também se faz presente: "[a] dança é o
'as aulas de dança, "kit" com alguns produtos de higiene pessoal (toalha, ponto de ;>artida para um trabalho artístico e pedagógico onde crianças e
sabonete, remédios para piolhos e micoses, escova de dentes, pasta, etc.) adolescentes recuperam a auto-estima, a çapacidade de sonhar e de
e passam a(usufruir dos seguintes serviços: aulas de dançaduas ou três estabelecer laços afetivos. As3irn, çonstroem uma nova imagem de si e
vezes por semana, oficinas dé artes plásticas, teatro, mímica, atendimento do mundo".
de saúde, acompanhamento psicopedagógico, aulas de etiqueta social, Que nova imagem é essa de q·.:.e falam os responsáveis pela
inglês e reforço escolar, serviço de biblioteca, palestras educativas, e EDISCA? Que imagem essas crianças trazem de si e do mundo ao
uma refeição por dia (já que cada criança só permanece um turno). Para entrarem no Projeto, e por que essa imagem precisa ser mudada?
as mães que acompanham as crianças na. ida às aulas, são oferecida•s As crianças que freqüentam a EDISCA são todas advindas de
"oficinas de produç.ão" que vi:;am capacitá-las para produzir objetos bairros da periferia de Fortaleza. São filhos de lavadeiras, carpinteiros,
(embalagens, cartões, e~c.) que Çdssam ser nndidos para complementar pedreiros, pescadores, ou de desempregados. O cotidiano delas é
a renda familiar. permeado de miséria, fome e violência; 12 suas perspectivas de vida e de
O quadro de professores da Escola é formado p,elos bailarinos da futuro não oferecem muito alento. O campo social de onde provêm talvez
Companhia de Dança Dora Andrade, cujos salário& são ·pagos pela só tenha lhes permitido a apreensão de valores, gostos e atitudes

11 Todas ~ infonnaçõe5 sobre o Projeto foram obtidas através de pesquisa direta, feita a part!r az Violênc.i;t que muitas vezes ocCJrre dentro de casa c que deixam marcas profundas, como no
de \'isitas à sua sede c de depoim~qtos de Dona Gislcnc Andrade (mãe de Dora Andrad~). que caso de uma garotinha da Escola que viu o pai matar mãe a pauladas, ou da que foi surrada pela
também mmistra aul::s de artes. p!iistieas para as crianças da EDISCA. . mã~ por ter perguntado o que· é menstruação.
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considerados pela sociedade come "marginais", "inferiores" ou "pouco


civilizados": ouvem música "brega", alimentam-se de feijão com farinha campo artístico, não se desvinculam do seu espaço social de origem, até
(quando se alimentam ... ), andam sujas e mal vestidas, comem com a porque o tempo que passam na escola de dança é mínimo, se comparado
mão, falam alto ... ao tempo que passam em casa, no bairro, na escola, etc ... E também
Ao ingressarem na EDISCA, passam por uma série de adaptações_ porque ao atingirem determinada idade (18 anos), têm que se desligar
para que possam adentrar em um novo campo: o campo artístico, ou do Projeto, visto que o mesmo .,é d~stinado somen_te a crianças e
mais especificamente, o campo da dança. São advet1idas logo no dia da adolescentes. Sabe-se que o merc,ado de trabalho em arte é bas~af\te
seleção: "Aqui não gostamos de conversas durar/e ~'s aulas. E não restrito, o que dá a estas crianças poucas chances de, nÓ futuro,
esqueçam: antes das aulas devem tomar banho, se pentear e cortar as unhas." continuarem vivendo da arte e na ai1e, a não ser no caso daquetqSLt}úe
Nas aulas de etiqueta social, aprendem a se comportar de acordo forem absorvidas peJo próprio Projeto. 13 - - -. ,_ '.

com os padrões de civilidade hegemonicamente aceitos pela sociedade. Que possibilidades de futuro a EDISCA está construindo para
Diz Dona Gislene: "Na hora das refeições todas comem de garfo e faca. estas crianças? Que possibilidades estão sendo dadas, hoje, para que
afinal, quando viajam para apresentações fora, hospedam-se em hotéis "no futuro elas possam exercer plenamente a sua cidadania?''' Que cidadania?
e precisam aprender a se comportar." · Como utilizar o habitus construído no campo artístico (o gosto
Além de comer de garfo e faca, comem "comida de primeira erudito, a disciplina, a auto-estima, a criatividade, o senso de organização,
qualidade" (frutas, verduras, sucos, etc.), rezam e agradecem a Deus a técn-ica); para construir possibilidades de entrada em campos
antes das refeições e aprendem a ouvir música erudita. Enfim, ensina-se socialmente inacessíveis às meninas de famílias pobres?
a elas determinados padrões de comportamento, valores, sentimentos
que, aparentemente, entram em choque com o habitus de seu lugar 3.3 ÜBJETIVO E METODOLOGIA
social de origem.
Não quero dizer aqui que por serem pobres devam ter acesso A partir das questões colocadas anteriormente, retomo minha
apenas às mesmas coisas que têm onde moram. Minha preocupação vai preocupação central e destaco como objetivo de trabalho investigar como
no sentido de saber como se dá esse encontro entre duas experiências se dá o e1;1contro entre o campo artístico, ofereciào pelo Projeto EDISCA
distintas advindas de·Jugares sociais diferentes: a classe média às crianças e aos adolescentes da periferia de Fortaleza, c o lugar social
(representada aqui pelo mundo do ballet clássico) e os bairros da periferia de origem destes agentes sociais; e que cõnseqüências essa experiência
onde as meninas moram, e que tipo de conseqüências tal encontro acarreta provoca em termos de mudança de comportamento e de construção' de
em termos de mudança de co:.nportamento e, principalmente, em termos um habitus diferente do anterior, sobretudo levando em conta. que
de construção de um tipo de habitus (estruturas de percepção, pensamento .percepções de <::idadariia estão presentes nessa experiência. '.
e ação) que garanta o "pleno exercício da cidadania". Ao me dispor a investigar tal proble:nática social, tomo como válido
Os.comerciais da Escola dizem: "A EDISCA desmitifica e deselitiza o pressuposto levantado por Bourdieu de que o "real é relacional"
a dança. envolvendo-a num contexto social de ação transformadora". Que (BOURDIEU, 1989, p. 28),, ou,.~~,a., só se pode compreender uma dada
contexto social é esse? Afinal, que tipo de ação transformadora a arte da realidade se esta for consideráli~:hl'párth de um "espaço de possíveis"
EDISCA propicia? Será que o campo da dança se deselitiza pelo simples no qual está inserida, conferindo determinadas características aos agentes
fato de que agentes sociais de outros campos passem a fazer parte dele? sociais que de.la fazem parte. Assim sendo, o que o ci~ntista social tem
Ou será que se dá o inverso: a dança elitiza ·os "deselitizados", no caso
do Projeto EDISCA? u Este é o caso de uma jove~11 de 18 anos que participoa do Projeto c hoje dá aulas para as mais
novas. No entanto, essa possibilidade é mínina, pois até mcs.no as vagas pa:•1 ingressar no
As crianças da EDISCA, pelo fato de terem passado a habitar o Projeto são limitadas. ' -
..
50 :~

! '-( ~ ~~1
diante de si como realidade não são verdades absolutas e o~jetivas, mas
p. 36), e que tomarei como primeira·tarefa da pesquisa, de recorrer-se à
teias de relações estruturadas às quais os agentes sociais atribuem significados.
história social dos problemas, dos objetos e dos conceitos como fonna de
É por entender que a pesquisa social se concretiza como busca de
escapar às armadilhas dos obj,tos pré-construídos.
compreensão destas redes de relações e sigo ificados, que tomo como
c_~tegorias de análise as noções de campo e habitus (BOURDIEU). O Como já disse anterionnente, par~irei do princípio de que as falas
e ações dos agentes sociais que tomarei como informantes são frutos de
cámpo "é o lugar de relações de força e de lutas que visam transfonná-
represer.tações (porque construídas socialmente a partir de uma
JJ Ias ou conservá-las", e é no interior dos campos que se constrói ohabttus
adQtado pelos agentes soci~iS~énquanto esquemas de apreensão c
determinada posição em um determinado espaço) feitas sobre a realidade
social na qual estão inseridos. Assim, no sentido de reconstituir o habitus
percepçãp e como esquema de'produção d~ práticas que sempre revelam
desses agentes, buscarei captar as representações sociais que tanto as
"a posição social em que foram construídos"(BOURDIEU, 1990, p. 158).
Ainda segundo o mesmo autor, crianças e adolescentes da EDISCA, como os professores e diretores do
Projeto, têm de cidadania, arte, criança e adolescente e dos próprios
[a] noção de Campo é, em certo sentido, tlr.la e!:ttnografia conceptual de um campos que habitam. É importante ressaltar que tomo como represen-
modo de construção do objecto C)Ue vai comandar- ou orientar- todas as tações sociais os conceitos, noções, modos de ver que os indivíduos
opções práticàs da.pesC)uisa. Ela funciona como um sinal C)Ue lembra o C)Ue há
elaboram a partir de suas experiências cotidianas e, sobretudo, da irteraçào
que fazer, a saber, verificar _')qe o objt;!_cto em questão não está isolado de um
com os outros, ou seja, o tipo de conhecimento que a tradição sociológica
conjunto de re!açõe~ âe q.il:~,retira o essencial ele suas propriedades
(BOURDIEU, 1989, p. 27). (resguardadas as diferenças de abordagem) convencionou associar ao
senso comum. Como fonna de captar estas representações, trabalharei
Essa noção me pennitirá, assim, compreender'14s particularidades inicialmente com a análise de discurso, por considerar que é principal- ,
do can;tpo artístico (da dança), as~im como relacioná-lo a outros espaços mente através do discurso que os indivíduos expressam suas represen-
como, por exemplo, o lugar social de origen;_ c!os agentes sociais em tações da realidade. Assim sendo, serão utilizadas as seguintes técnicas:
questãc (no caso, tanto as crianças e adolescentes do Projeto EDISCA, 1, Entrevistas cem o corpo de profissionais do Projeto: professores,
como o coq:,·J de pessoas que àirigem as atividades do Projeto). coordenadores, psicólogos, profissionais de saúde e pessoas responsáveis
A noção de habitüs, de antemão, coloca-me a possibilidade de pela nutrição das crianças. Essa técr.ica pennitirá não só perceber as
partir do princípio de que as falas e formas de agir destes atores sociais representações citadas anteriormente, mas captar as especificidades do
referem-se aos esquemas mentais que a posição que ocupam num trabalho que cada um desses profissionais desenvolve a fim de
detenninado espaço social lhes permitiu construir. E mais ainda, coloca-
me também como sujeito habitante de um determinado campo (ou
campos) do qual (a partir da posição que ocvpo) retiro meus próprios
esquemas de perçepção e ação. .
I caracteri:T.ar a 01ientação pedagógica e o tipo de atendimento que a Escola
oferece às crianças.
2: Relatos de experiências c depoimentos das crianças e

Nesse sentido, não posso pretender construir um con..iecimento iI adolescentes que são atenáidas pela EDISCA, levando em conta a divisão
em dois grupos: um mais recente e outro mais antigo. Os relatos e depoi-
absolutamente objetivo sobre o objeto que tomo para investigação, pois ment~s}serão úteis ao entendimento de como as crianças percebem a
até mesmo os conceitos e categorias de análise que orientarão esta experiência na Escola e, sobretudo, à análise de uma possível variação
investigação são fiutos de uma escolha individual referente à concepção de percepção das crianças mais ncvas no Projeto em relação às mais antigas.
que tenho de pesquisa, de ciência e de verdade - conceitos estes que 3. Depoimentos dos familiares das alunas da Escola, para analisar
também foram construídos a partir àe um determinado olhar sobre a as mudanças percebidas pela família no que diz respeito ao comporta-
sociedade. Daí o encaminhamento apontado por BOURDIEU (1989, mento das crianças depois da entrada na EDISCA.
52
-.,
).)

....
~ ...-~ .. ~""!':!.'!'J\SSL - _
).
~

4. Análise de artigos de jornais, matérias televisivas e material de BECKER, Howard S. Arte como ação coletiva. ln: . UMA TEORIA
di\·ulgaçào (folhctos,fofders, cartilhas e vídeos) produzido'pe!o Projeto, da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
como forma de captar as imagens que a EDISCA tenta passar para o BENJAMIN, Walter. Oóras escolhidas: m1gia e técnica, arte e política.
público sobre si própria e a forma como essa imagem é pt ocesst>.da pela 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
mídia e pela sociedade. Através da mídia será possível também fazer um
____ .Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo:
levantamento da trajetória da Escola, para analisar como o trabalho
desenvolvido pela mesma foi ganhando corpo ao longo dos anos, até Summus, 1984.
alcançar o reconhecimento que tem atualmente. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
5. Histórias de vida com algumas das meninas mais antigas do
_ _ _ _ .0 poder simóúlfco. Lisboa: DIFEL, 1989_.
Proje~o, a começar pela garota que hoje faz parte do quadro de professores
da escola de dança. Através das histórias de vida serão levantadas as _ _ _ _. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, ! 996.
trajetórias dessas meninas com vistas a analisar o antes e o depois da CANCLINI, Nestór Garcia. As culturas pcpuiares no capitalismo.
experiência na EDISCA, sobretudo no que se refere à incorporação de
São Paulo: Brasiliense, 1983.
novas regras de conduta e práticas culrurais oc..•.:midas ao longo da pe!1Tia-
nência na Escola. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura
Além disto, lançarei mão de técnicas de observação de campo, popular no Brasil. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. •
' '''!,·~\
com anotações em diário, sobre o dia-a-dia da Escola, as audições de COVI}E, Maria de Lourdes Manzinr. O que é Cidadania. São Paulo:
seleçào de crianças e os ensaios e apresentações dos espetáculos Brasiliense, 1991 (Coleção Primeiros Passos).
montados pela EDISCA. a fim de estabelecer um diálogo entre o discurso
oral e escrito e as ações práticas e como forma de obter uma melhor
DA MATTA, Roberto. A Casa e a rua. Rio de Janeiro: Guanabara, 1991.
caracterização da dinâmica de funcionamente do Projeto. DlMENSTElN, Gilberto. O Cidadão de Papel. São Paulo: Ática, 1993.
Enfim, esta pesquisa irá privilegiar dados do trabalho de campo,
DUARTE JR., João Franci.;co. Fundamentos.estéticos da educação
através das técnicas já citadas e de outras que se façam necessárias no
2 ed. Campinas: Papiros, 1988. ,,
decorrer do processo. N~sse sentido, faço minhas as palavras de .~ ' . '
BOURDIEU (1989. p. 26): " ... a pesquisa e coisa demasiado séria e _ _ _ _ . Por que a11e-eduçação? · 7. ed. Campinas: Papiros, ·1994 ..
: Íl '
demasiado dificil para se poder tomar a liberdade de confundir a rigidez, DUARTE, Luiz Fernando D., et al.'Vicissirudes e limites da com;ers~g~..
que ~ o contrário da inteligência e da invenção, com o rigor, e se ficar • cidadania nas classes populares brasileiras. Revista Brasileira :de
pri\·ado deste ou daquele recurs.o entre os vários que podem ser
Ciências Sociais, São Paulo, n~ 22. ano 8, jun. 1993.
oferecidos pelo conjunto das tradições intelectuais da disciplina- e das
disciplinas vizinhas ... " EHRENFRIED, L. Da educação do corpo ao equilíbrio do espírito.
São Paulo: Summus, 1991. ·
Referências Bibliográficas
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Rio de Janeiro: Zahar, 1990 .
.-\RGAI\'. Giu!io Cario. Arte e crítica da arte. Lisboa: Estampa, 1988.
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4 PROJETO DE PESQUISA &


~ reproduzir-se, construindo os mecanismos a partir dos quais ela se torna
DE ASPIRANTES A CORONÉIS: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA
SUBJETIVIDADE NO CONTEXTO DE FORMAÇÃO DOS
f um meio eficaz do exercício de poder. Dentre esses mecanismos, destacà-
OFICIAIS DA POLÍCIA MILITAR (ESTUDO DE CASO DA
1 se a socialização de seus agentes no sentido de assumirem uma disposição
r corporal e mental que propicia ar~~~6ctuÇão de si mesmos como agentes
ACADEMIA DE POLÍCIA MlLITAR GENERAL EDGARD FACÓ) 1
~ da ordem e da lei: Destarte, trabalho desde já com a hipótese que a Aca-
l demia de Polícia Militar ocupa um lugar central nesse processo de socialização.
Leonardo Damasceno de Sá ' Os polieiais militares são socializados formal e inrànnalmente a
~·1rtir de certos princípios práticos de ação e de formas específicas de

l
RESUMO
classificação do mundo, capazes de torná-los úteis e obedientes ao mesmo
tempo, ou seja, disciplinados para oexerdcio do poder disciplinar e do
Desde 1929, a Polícia Militar do Ceará investe na formação poder sobre a vida. Esta pesquisa pre;tende explicitar os meandros deste
técnico-profissional de seus oficiais. Atualmente, a Academia de Polícia
processo de socialização, dando priJ;idade ao problema da construçãÓ
~1ilitar General Edgard Facó, responsável pela formação áe· oficiais de ou do modo específico de produzir a subjetividade social a partir da&\.
nível superior, dentre outros cursos de especialização, exerce uma
técnicas e dos mecanismos de individualizaçã.o exercidas no CurS9·.:~1:t
importante função no processo de reprodução social da corporação
Formação de Oficiais.
policial militar. Quer-se pesquisar a especificidade da :::onstruçã.o social
Parto do pressuposto de que bs sujeitos sociais não estão dados
da subjetividade no inte1ior do processo de formação dos oficiais, ou
desde sempre e que não são meros receptáculos de conteúdos
seja, o problema da constituição de sujeitos dispostos e disciplinados a
significativos, mas, sim, que eles são inventados a partir de determinadas
assumirem prática e teoricamente'o papel de agentes policiais do Estado. f relações de poder. Preocupo-me em explicitar os mecanismos de poder
Trata-se de descobrir o modo de produção da subjetividadt! dt~ oficial da
implicados no processo de subjetivação pelo qual passam aqueles
PM, a partir da experiência social da 'Academia.
indivíduos que são "5egüestrados" da vida social pelo aparelho policial
do Estado. Ademais, trata-se de compreender como se dá a interação
4.1 DEFTNIÇÀO DO ÜBJETO
entre os processos disciplinares e a construção do Eu no c:aso da
.. socialização dos oficiais da polícia militar. Ao se entender isso, poder-
A polícia militar representa um grupo específico do campo sc-á entender as condições sociológicas que possibilitam a existência de
burocrático do Estado que exerc:e um poder legal e extralegal sobre a trajetórias voltadas e dispostas, tanto prática, quanto teoricamente, ao
\·ida e sobre o cotidiano da população, principalmente cm se tratando da exercício policial do monopólio do uso da violência pelo Estado.
população urbana. Para que se possa entender o papel e o funcionamento O locus de realização da pesquisa é a Academia de Polícia Militar
da ati\·idade policial militar na sociedade cearense e brasileira, faz-se General Edgard Facó, uma instituição de ensino de nível superior,
nccess3rio refletir sobre o fato de que a corporação que ocupa um lugar localizada ern Fortaleza, Ceará. Dividida em três níveis de formação-.·,,
especifico na divisão do trabalho de c!ominação precisa e)a mesma Curso de Formação de Oficiais, Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais
c Curso Superior de Polícia-, esta Academia é responsável não apenas
pela formação de_ oficiais da Policia Militar do Estado do Ceará, mas
\'crsào preliminar de projeto de pesquisa para dissertação de Mestrado cm Sociologia. também de outros Estados da Federação. Não é, obviamente, a única
oncntada pelo professor César Barreira. Apresentada como trabalho final da disciplina
\létodos de Investigação Social. ministrada pela professor? !..inda M. P. Gondim '10 Progtama
Academia de formação de oficiais da PM, mas aáquiriu expressão
~: f\'s-Graduaçào cm Sociologia da l!FC, :10 segundo semestre de 1997. nacional em termos de ensino poHé.jal~militar, beneficiando-se do
.-"'r . .• . ', .

58
.r' .·\
i. J
I intercâmbio acadêmico que ocorre entre as polícias militares do Brasil, a ComExTuAuzAçÃo E JusTIFicATIVA
4.2
exemplo do que ocorre em outros países. "
Em 1835, foi criada a primeira corporação policial-militar do
Funcionando como um curso de nível superior, a Academia recruta
num primeiro nível (Curso de Fonnação de Oficiais- CFO) brasileiros Estado do• C~ará, denominada de Força Policial. Não se tratava de um
e brasileiras, solteiros - exceção feita para os praças 1 da própria fato isolado, pois as polícias militares de quase todos os Estados
corporação, que podem ser casados e prestar concurso para a Academia • brasileiros foram criadas na primeira metade do século XIX. A invenção
\,,com o 2° grau completo, por meio do vestibular da Universidade de organizações policiais-militares nesse período foi concomitante à
Estadual do Ceará, numa primeira fase, e de etapas aplicadas pela própria própria formação do Estado no Brasil. Durante todo o século XIX. as
i4: Polícia Militar, numa segunda fasf.:. O candidato deve ser maior de 18 I~ '
elites neocoloniais brasileiras. e~preenderam a construção de uma
anos e ter, no máximo, 26 anos (e~ceção feita, novamente, para os praças estrutura estatal que viesse a se sobrepor aos laços de poder já existentes,
da PM), gozar p1cnamenfé de ~~us direitos políticos e estar cm dia com baseados numa hierarquia exclusivtsta e numa dominação autoritária.
suas obrigações militár~s. Não deve apresentar antecedentes criminais Fo\ neste contexto que as instituições policiais brasileiras foram criadas
incompatíveis com a função, além de atender a outros critérios relativos (HOLLOWAY, 1997, p. 249).
De 183 5 até nossos dias, houve várias ~udanças nas denominações
à saúde e às condições risicas. 3
Os cursos da Academia estão em estreita ligação com a ascensão das corporações policiais militares do Ceará. Em 1929, ocorreu a
fundação da Escola de Formação Profissional da Força Pública, destinada
e com os postos '·scl,.\pados pe!os policiais militares r. o interior da
hierarquia e da carreira:'Há ba~icamep.te duas categorias de agentes: à formação profissional dos oficiais, a qual, entretanto, perm:1neceu
oficiais e praças. Como foi· indi~de anterionnente, os praças são os fechada entre 1931 e 1935. Somente a partir de 1940, com a fundação da
soldados, os cabos, os sargentos ·e os subtenentes, em ordem crescente t Escola de Formação de Oficiais, o processo pedagógico tomou-se um
elemento organizacional permanente. Em 1946, a Escola de Fonnação
de autoridade militar. Os oficiais da PM são tenentes, '.capitães, majores,
tenentes-coronéis e coronéis, igualmente, em ordem crescente de de Quadros - a denominação mudara já em 1941 -passa a se chamar
Grupamento Escola, denominação que se manteria até 1971, quando a
autoridade militar. O Curso de Fonnação de Oficiais (CFO) constitui o
primeiro momento da formação dos indivíduos que almejam fazer parte escola foi renomeada, passando a se chamar Academia de Polícia General
do quadro cie oficiais da PM. Os alunos desse curso são considerados Edgard Facó. A atual denominação, como já foi dito, data de 197 7.
· Para além da cronologia, a historiografia não parece ter produzido
alunos-oficiais, e quan'do terminam o curso são imediatamente
considerados como aspirantes a oficiais. Com duração de três anos, o muitos trabalhos, contextualizando a atuação das instituições policiais do
CFO funciona em regime de internato, nos dois primeiros anos, e semi-
De 1835 a 188:1, a ----------·-------
---------·
intemato, no último ano, com dedicação em tempo integral.
otganizaçào responsável pelo policiamento militar denominou-se Força
o• Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais (CAO) é dirigido aos l
Policial. Entre 1889 c 1892, t:-•..ssou a ser denominada de Corpo de Segurança Pública. Entre
capitães da PM qüe ·queiram obter ascensão ao posto de major, e tem 1892 c 1899, ganhou a alcunha de Batalhão de Segurança do Ceará. De 1899 até 1913
duração de sei~ meses. Já o Curso Superior de Polícia é destinado àqueles resumiu-se para Batalhão de Segurança. Em 1913·14, chamou-se Batalhão Militar c entre
1914 c.t921, de Regimento Militar do Estado. De 1921 a 1924. Força Pública Militar do
que almejam atingir a patente máxima na hierarquia da polícia militar Ceará. De;;l924 a 1929, mudoi!-SC sua denominação para Regimento Policial do Ceará. Entre
(Coronel), o que requer também um estágio num país estrangeiro. 1929 c 1932, chamava-se Força Pública do Estado, c nos dois anos seguintes. Corpo J.:
Segurança· Pública; De 1934 a 1~37, tomou-se novamente Força Pública do Ceará. De
1S3 7 a I 939. Polícia Militar do Ceará. De I 939 a 1947, Força Policial do Ceará. Finalmente.
desde \947 mantém··SC a denominação pela ~qual a conhecemos hoje, Policia Militar Jo
: São classificados como praças o soldado, o cabo, o terceiro, o scgu.ndo c o primeiro
Ceará lHOLANDA, 1987, p. 105-6).
sargentos. c o subt~nente.
61
60
l
•' "•

_., di:ú.
Estado do Ceará. Neste sentido, esta pesquisa terá como um de seus contexto sócio-histórico brasileiro, mas, considerando-se a releVáHCia
objetivos contribuir p<>.ra a histo!iografia de uma importante instituição de político-acadêmica do tema, pode-se afirmar que são poucos os trabalhos
ensino da polícia militar cearense. que se atêm a discutir o problema da formação de uma cultura policial
O meu interesse pelo problema de pesquisa começou a amadurecer ou, mais especificamente, de uma cultura política dos policiais.
a partir da elaboração de uma ~monografia, apresentada como requisito n BRETAS (i 997a e 1997b) preocupa..se, sobretudo, com a discussão
parcial à obtenção do bacharelado em Ciências Sociais, a qual versava da atividade policial como desenvolvida na vida cotidiana. Pergul}ta-se
sobre as rebeliões de prisioneiros no sistema prisional brasileiro (SÁ, quais são os contextos de interação existentes entre polícia e população
1996). A partir desse trabalho, pude perceber que a colnpreensão da e como esses contextos evoluíram na história das instituições policiais
realidade das prisões requeria o entendimento da inserção da instituição no Brasil. O autor cm causa volta-se para a formação das instituições
carcerária num circuito de mecanismos de poder, caracterizados por três policiais, do Primeiro Reinado às primeiras décadas de consolidação do
momentos solidários: sistema judiciário, sistema pri3ional e sistema período republicano, com o intuito de apresentar as relãções entre polícia
policial. A análise da açãg eas forças policiais na repressão às rebeliões e populaÇão, evitando caracterizar o passado a partir de realidades sociais
nos presídios e da utilizaçl!:o do saber classificatório, produzido graças do presente.
ao processo de encarceramento legal, me levou a buscar des·iendar os Baseando-se na tradição sociológica anglo-americana, Bretas
mecanismos de constituição da atividade policial ao desempenhar suas tcmatiza o problema da formação de uma cultura policial, ou seja, de
funções de poder específicas no interior do sistema justiça-prisão-polícia. um modo específico de classificar o mundo social derivado da atividade
policial nos diversos contextos históricos cm que se realiza. A conjunÇão
4.3 REVISÃO DE LITERATURA de uraa preocupação com os contextos interativos numa perspectiva
sociológica e a investigação histórica destes contextos é uma contribuição
Há uma certa unanimidade em apontar a escassez de estudos original para a pesquisa acadêmica.
históricos e sociológicos sobre as instituições e práticas policiais no Do ponto de vista da antropologia, LIMA (1995) oferece uma
Brasil. Pode-se, todavia, afirmar que tal escassez é um fenômeno muito excelente contribuição à discuss~oAQ tema. Para ele, as práticas policiais
mais geral e diz respeito também a outros países. No caso do Brasil, brasileiras são informadas··pór 'ltltna.longa tradição jurídico-penal,
BRETAS (I 977a, p.ll) ·ehega a afirmar que "[a]té a década de 1960, chamada por ele de tradição inquisitorial, e~-Iigadas a uma história de
praticamente nada sabíamos sobre o trabalho desenvolvido pela polícia autoritarismo político que remonta ao período colonial. Assim, a polícia,
especialmente nos interregnos entre as gre;tes". Os estudos históricos uma criação do ideário liberal, teria absorvido a conce1-ção hierárquica
existentes sobre a polícia até recentemente prendiam-se, segundo esse exclusivista que marca a sociedade brasileira. Para Kant de. Lima, "as
autor, a uma perspectiva quantitativo-institucional, ou seja, priorizavam práticas policiais no Brasil não representam up-1 fenômeno isolado, mas
a análise das estatístic.as criminais e da produção legislativa sobre a refletem as ideologias política, legal e judicial, bem como ô exercício
políci:.1. Tais enfoques tendem a adotar uma visão naturalizada do objeto, do poder e a administraçã.o da jus;Hça ria sociedade brasileira" (LIMA,
aceitando, por exemplo, os pressupostos teóricos e as representações 1995, p.143). ;
sociais dos próprios agentes policiais acerca de suas atividades. HOLLOWAY (1997), adotando a perspectiva da história sotijal,
Pesquisadores como Roberto Kant de Lima, Luciano de Oliveira, reconstitui a história da polícia do· Rio de Janeiro, de modo que se pode

I
Marcos Luiz Bretas, Paulo Sérgio Pinheiro, Guaracy Mingàrdi, Antônio ' perceber a forte ligação existente entre as instituições policiais e a
Luiz P:.1ixão e Heloísa Fernandes desenvolveram trabalhos que apontam construção do Estado brasileiro. As elites neocoloniais, durante todo o
para uma preocupação direta ~om o problema da cultura policial no século XIX, conjugaram esforços no sentido de sobrepor à estrutura de

62 ' 63
poder fonnada durante o período colonial, um E'ltado que garantisse os
de novas práticas penais e'judiciárias pôde-se desenvolver, no interior
anseios de controle social das oligarquias escravocratas brasileiras e os
interesses agro-exportàdores d~ capitalismo comercial. das mais diversas instituições sociais (escolas, prisões, fábricas, etc.).
1 formas específicas de.exerdcio do poder, capazes de criar subjetividades.
Uma das principais conc1usões de Holloway é apontar o lugar da
a um só tempo, politicamente dóceis e economicamente úteis. Tal equação
ideologia, defendida sobretudo pelos agentes que compõem o aparelho
policial, de que a polícia existe, essencialmente, para o co~batc da
é, justamente, o que distingue o poder disciplinar de outras fom1as de
exercício do poder que se lhe assemelham à primeira vista (escravização,
criminalidade. O autor mostra que, longe de combater o crime, a principal
domesticação, vassalRgem, ascetismo, controles monásticos, etc.).
ativid~de da polícia, no.processo cotidiano de renovação dos esforços
Segundo o mesmo autor, isso quer dizer que
de dominação social, é pôr sob controle os diversos segmentos das classes
popula.es que estão em permanente circulação pelos espaços urbanos O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte
nascentes n0 século XIX. No Brasil, especificamente, havia o objetivo do corpo humano, que visa nãci unicamente o aumento de suas habilidades,
histórico de vigilância da mão-de-obra escravizada c dos brasileiros Ii vres, r.err. tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que
mas pobres, que viviam nos cortiços das grandes cidades, como Rio de no mesrr.o mecanismo o torna tanto mais obediente quamo é mais útil, e
inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho
Janeiro e Recife. A obra de HOLLOWAY (1997) é um excelente exemplo
sobr~ o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de se lS gestos,
da possibilidade de se conjugar uma visão de conjunto- ou seja, do de ~eus comportamentcs. O corpo humano entra nwna maquinaria de poder
lugar que as instituições policiais ocupam no interior de uma sociedade que o esquadrinha, o desarticula r o recompõe (FOUCAULT, 199;, p. 12-;.
dada- e uma persp'!ctiva capaz de desvendar os contextos interativos
cotidianos, a partir dos quais se toma possível exercer um controle efetivo Assim, a sociedade disciplinar é a so..:iedade do controle social.
sobre a população dominada de uma sociedade. '
da "ortoredia social" (FOUCAULT, 1996, p. 86).
Bretas, Lima e Hoiloway representam três modelos de análise Apolícia, a prisão e ajustiça formam nessa sociedade disciplinar
possíveis em relação ao estudo da polícia. O primeiro prioriza os cqntex- um circuito de poder, baseado em técnicas específicas de sujeiçã0,
tos de interação, ou seja, o cotidiano da atividade policial; o segundo, técnicas· de construção do corpo disciplinado. Pará além da simples
além disso, faz ligações entre estes contextos e o contexto geral da cultura interiorização de conteúdos significâtivos e de formas de classificação
e da dominação na história brasileira. O modelo de Holloway permite do mundo ou de uma ordem social dada, por parte de um sujeito, tratado
conjugar as perspectivas de uma "macro" c de uma "micro-sociologia" como objcto de discipiinarização ou de sociaiização, o poder disciplinar
da ~Qlícia no Brasil, ainda que o autor não expresse essa intenção. constrói. o próprio sujeito. Foucault não admite a existência universal de
um sujeito humano sobre o qual se imprimiria um processo de socialização
~~!4 QUADRO REFERENCIAL TEóRICO
l,
qualquer, entendido como simples constituição de um universo simbólico
i'\. específico. Para ele, o processo de poder inventa o próprio sujeito: " ... as
Pretepde-se ·abordar o proqiema de pesquisa, descrito anterior- condições pol!ticas, econômicas de existência não são um véu ou um
mente, a partir da proble::niítica foucaultiana, tendo como eixos a disciplina- obstáculo para o s~ieito de conhecimento mas aquilo através do que se
rização e a genealogia do sujeito.
fonnam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de
Para Michel Fouca.ult, houve, nos séculos XVIII e XIX, concomi- verdade" (FOUCAULT, ~- 996, p. 27).
tantemente à consolidação das sociedades capitalistas modernas. a Para o filósofo francês, há relações intrínsecas entre o poder e o
formação de uma sociedade disciplinar, responsável, ainda hoje, pelas saber, relações de mútua positivação: este se constrói a partir de determi-
mais importantes fonnas de sujeição na~ sociedades
...
modernas. A partir
•.,_~
nados efeitos de poder, passando a atuar como um elemento importante
~....-_,.~..:,~ ....
na prod-.;.ção de tais efeitos, ou seja, no próprio exercício do poder.
64 •
65

j,
Os sujeitos sociais são inventados nas e pelas relações de poder,
f de interação, organizados a partir de práticas sociais e de relações de
na articul~ção entre determinados mecanismos (técnicos e discursivas), poder concretas.
capazes de engendrá-los. A geneaiogia é o caminho (método) pelo qual Nessa perspectiva, pretendo trabalhar, com a história de vida de
Foucault desconstrói teoricamente os sujeitos sociais, em suas identidades, alguns atuais coronéis de Polícia Militar do Estado do Ceará, priorizando
para buscá-los em seus processos de constituição, ou de subjetivação. o período em que cursaram a Academia de Polícia Militar. Venho fazendo,
Para tanto, há que se privilegiar não apenas as técnicas de dominação desde setembro de 1997, uma observação participante na Academi~ oda
(de disciplinarização ), elaboradas no interior de uma instituição social, Policia Militar General Ed~ard Facó, acompanhando cor.·. o ouvinte aulas
mas também as técnicas do Eu, ou seja, as técnir.ls pelas quais o indivíduo ministradas por e para oficiais da corporação. Além disso, venhJ reunindo
age sobre si próprio no processo social: artigos de jornais publicados nos m~is diversos órg~()~ da imprensa por
... se tem que levar em conta a interacção entre e~tes dois tipos de técnicas, os
membros da corporação policial:miljtar, os quais são uma fonte
pontos em que as tecnologias de dominação dos indivíduos uns sobre os importantíssima para o estudd d~'id~ologia específica dos oficiais da
outros recorrem a processos pelos quais o indivíduo age sobre si prt'"1prio e, PM, já que se projetam para fora da instituiÇão c.om perspectivas de
em contrapartida, os pontos em que as técnicas do eu são integradas ern justificação da função da mesma. Na academia para formação de oficiais
estruturas de coerção (FOUCAULT, 1993, p.207). da PM, são produzidos trabalhos monográficos em diversos níveis (CFO,
CAO e CSP) que me parecem uma fonte de pesquisa riquíssima, pois há
4.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS toda uma sociodicéia nela inscrita.
,,
Como toda instituição, a polícia militar precisa gestar, de alguma
maneira, as condições básicas de sua própria reprodução. Há. portanto, !I
toda uma economia de poder, ou seja, um conjunto de estrutwas objetivas,
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p.l33-5L mar./maio.
Mesclar etnografia e historiografia está entre as pretensões da
pesquisa. Acompanhar o processo de socialização na Academia, ao _ _ _ .Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos
mesmo tempo em que busco reconstituir a história do ens!no.policial- Esiudos Cehrap. São Paulo, v. 43, nov. 1995. p. 45-6~, nov.
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refletir sobre como se efetivou a atuação das mulheres nesses movimentos
____.& ZAUBERM~'N. R. Du côté des vic- . 1, e, mais especificamente, nas associações de bairro, onde é bastante
times: un outre regard sur la délinquance. Paris: L'Hannati~n, 1995. significativa sua presença, não só como panicipantes, mas também como
ROCHÉ, S. Le sentiment d'insécurité. Paris: Presses Universitair~s de líderes ·- fato observado por várias pesquisadoras (GOHN, 1985;
France, p. 311, 1993. ' · BLAY,l987; SAFFIOTI,l988; BRITTO DA MOITA, I 1991).
• Esse objeto tornou-se mais nítido quando, ainda como bolsista,
. Insécurité et libertés. Paris: Seuil, 1994. (coll. L'épreuvedes faits). tive a oportunidade de participar do planejamento, da elaboração e da
SÁ, L.D. Revolto. na. sociedade dos cativos: ás rebeliões de prisioneiros, aplicação dos questi01iários da enquete com presidentes de associações
no Brasil. Fortaleza, 1996. ( mimeo). de moradores de Fortaleza, na pesquisa já referida. De acordo com os
dado'~ ~oletados nesse período, observou-se uma significativa
SOARES, L.E. et ai. Violência e politica no Rio de Janeiro. Rio de partici~àção feminina nessas associações, ou seja, cerca de 50% destas
Janeiro: ISER, 1996.
eram, mi época (1995), presididas por mulheres. Além disto, foi possível
SOUZA, E. Hon-ticídios no Brasil: o grande vilão da saúde pública na notar ó crescente número de lideranças que se candidataram à Câmara
· década de: 198(f Caderncs de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. de Vereâdores. Segundo BARREIRA ( 1996, p.17), a eleição municipal
1O, p. 45-60, J 994. O impacto da violência social sobre a saúde. de 1989 em Fortaleza "foi a que mais acolheu candidaturas oriundas dos
Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. Escola Nacional de Saúde movimeiltos sociais da década de 1980, notadamente lideranças de bairros.
·fPiíbÍica, supl. 1.
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Pós-Gradu11ção cm Sociologia, no segundo semestre lctivo de 1997.
ZALUAR, A Condomínio do_ diabo . .Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. 2 Pesquisa ..:o ordenada pela professora Irlys Barrrcira.

72
73
·~ i'.

Já nas eleições de 1992, verificou-se mais de 30 candidaturas com essas de como irromperam no espaço público e conquistaram novas posições,
características, incluindo homens e mulheres". Apesar de não se ter e que significado esses fatos têm para o seu cotidiano em família.
ainda com exatidão a porcentagem de candidaturas populares tas eleições Considera-se importante enfocar a questão de gênero na pesquisa,
municipais de 1996, devido ao dificil acesso a esses dados, acredita-se para compreender a relação entre o espaço privado e o espaço público,
que um número significativo de candidatos provenientes de movimentos visto que não se trata apenas de descrever a trajetória política feminina;
de bairros tenham disputado um mandato de vereador. Essa constatação trata-se, principalmente, de verificar como se deu essa passagem da vida
teve por base o acompanhamento da campanha eleitoral desse período. em família para uma vida pública, primeiramente nas.mobilizaçÇ>es
Em relação à participação feminina nessas eleições, observol.!-se pontuais do bairro, e posteriormente como candidatas à Câmara
que 116 mulheres, de um total de 611 candidatos, concorreram a uma Munic::ipal, observando-se possíveis mudanças no âmbito doméstico:
\·aga na Câmara de Vereadores de Fortaleza. Vale ressa!tar que as eleições conflitos; dificuldades e conquistas, tanto com relação a sua condição
de 1996 trouxeram uma inovação: a lei nc. 9.100/95, que obrigou os parti- de gênero, como. em relação à sua condição de pessoa pública.
dos políticos a abrir vagas para candidatas, ou seja, cada partido ou coliga- Pretende-se compreender,· por meio dos depoimentos das
ção deveria apresentar, no mínimo, 20% de mulheres no total de candidatos. informantes, suas idéias, seu!l sent~ntentos e valores em relação à opção
De acordo com os resultados eleitorais de 1996, apenas quatro de ser líder de um bain-o e, posteriormen~e, tomar-se representante da
mulheres assumiram uma vaga na Câmara Municipal, nenhuma delas "comunidade" frente à política institucional. Além disso, buscar-se-á
advinda de rr.ovimentos de bairro. Duas conquistaram a reeleição: Magaly identificar como e em quais circunstâncias elas transitam de lideranças
Marques, eleita para o primeiro mandato em 1992, peio PPR, e reeleita de bairro a candidatas, que representações fazem desse fato e como
pelo PMDB; e Maria José ae Oliveira,.que conq_uistou o quinto mandato percebem a política, as eleições e sua campanha. Pretende ·se, ainda,
consecutivo, dessa vez pelo PPB. Outras d~as elegeram-se pela primeira observar como elas interpretam a derrota eleitoral e como esse
\·ez: Patrícia Gomes, do PSDB - a que conseguiu maior número de acontecimento repercutiu cm seu C(!~diano com a família': e nb bairro, e
votos - c Luizianne Lins, do PT. no seu papel de líder deste, já "Tli~·,, como foi mencionado, nenhuma
A pesquisa aqui proposta abordará a trajetória social e política candidMa proveniente de movimentos de bairro conseguiu eleger-se êrn
das lideranças femininas de bairro que se apresentaram corno éandidatas 1996. Daí a importânGia de se verificar o significado da lei que obrfk,'Qu.
à Câmara de Vereadores nas-:.eleições municipais de 1996. Denomina-se os partidos políticos a inscreverern, no mínimo, 20% de mulhere's'·.ém
d~ traJetória o caminho percorrido por essas lideranças desde suas suas chapas proporcionais. Nesse sentido, coloca-se a questão de como
primeiras experiências nos movimentos sociais, quando ainda não eram essas mulhers percebem o fato de suas candidaturas terem sido aceitas
reconhecidas como líderes, passando pelo momento em que se tomaram· em relação à legislação. Examinando-se essa problemátrca, poder-se-á
efetivamente lideranças, até a suâ participação como candidatas a um esclarecer alguns questionamentos acerca da influência dessa lei no
cargo eletivo, em busca de uma representação da "comunidad~"nos meios aumento de candidaturas femininas.
formais de fazer política. Esses momentos que marcam a pa~sagem de
uma vida privada para uma vida pública irão caracterizar essai trajctória 5.2 DELINEAMENTO EMPÍRICO E TEÓRICO
social e política. Portanto, o cbjetivo central da pesquisa é analisar o •
modo como as lideranças femininas nos movimentos de bairro passam a 5.2.1 Movimentos sociais, organizações populares e Estado
fazer política e como ~xplicam suas práticas efetivadas n.o cotidic.no do
bairro e no momento das campanhas políticas. Especificamente, busca- Sabe-se que a década de 1980, período que apresentou uma
se analisar as represeatações construídas por essas mulheres a respeito reordenação do cenári.o polí~ico nacional, foi um marco para o crescimento
dos movimentos sociais urbanos. Esse novo cenário político e social do

74 75
do Estado, como cambém no próprio modo de gerenciamento dos
Brasil é marcado por desigualdades e conflitos, que vão possibilitar o
programas· [governamen2is], que excluía a organização dos moradores
surgimento dt> movimentos sociais urbanos com tonalidades e formas
enquanto instância de consulta e execução" (SARREIRA & BRAGA,
específicas. E5t~s surgem cóm as novas práticas sociais, implpp1entando
"formas inusitadas de pensar e de fazer política. Esta, .não rest~ita aos 1991, p. 26).
Em meados da década de 1980, essa postura adquiriu novos
locais convencionalmente instituídos, mas, t;ava.ndo espaços outros de
contornos, devido, principalmente, ao fato de o Estado começar a
atuação, nos quais a esfera cotidiana passava a constituir parte integrante
reconhecer a importância e a força política dos movimentos sociais. Nesse
da ação social'' (BARREIRA, 1992, p.11 ).
contexto, observa-se, claramente, tentativas do Estado no sentido de se
É nesse espaço de mobilizações e reivindicações que a esfera
aproximar das organizações populc.res, passando a formular políticas
cotidiana ganha espaço e visibilidade, por meio dos movimentos que
sociais de:,caráter "participativo•' para atender a demandas provenientes
surgem nesse período nos locais de moradia, visando, basicamente, a
aquisição de serviços para os bairros, tais como luz, saneamento, dessas me5~ilizações.
Em Fortaleza, o percurso das organizações populares não se deu
transporte, creches, etc., os quais passam a ser reivindicados
de forma diferente, salvo algumas ..ec;pecificidades, decorrentes do
coletivamente. Nesse sentido, pode-se dizer que estes movimentos trazem
contexto social e político da cidade. Na àécada de 1980, seguindo a
para a esfera pública dificuldades próprias da vida privada, tornando-as,
tendência nacional, os movimentos de bairro irão ganhar mais
dessa forma, problemas de interesse coletivo.
expressividade. Com efeito, entre 1980 e 1990, o número de associações
Diante do procl!sso de crescimento dos movimentos de bairro e
de moradores aumentou de 26 para 414, segundo infonnações coletadas
da amplitude de suas demandas, tornou-se necessária uma organização
junto à Secretaria de Trabalho e Ação Social do Estado do Ceará.
rnaiS'fôtiúal, qut> se deu através da criação das associações comunitária:;.
É interessante notar que a aproximação entre o Estado e as
Assim, as reuniões infonnais do início deram lugar a entidades legali1.adas
organizações populares deu início a um processo de comunicação entre
J·e re~istradas com objetivos específiços, com uma divisão administrativa1 ambos, viabilizado pelos programas institucionais de âmbito nacional e
imema (presidentê, tesoureiro, secr.etãrio,:etc.).
estadual. Foram esses programas que incentivaram a proliferação de
Nos anos 1970, observa-se \.!.fi novo redimensionamento da
associações comunitárias nesse período, tanto que o número de entidades
estrutura organizativa dos movimentos de bairro, devido, principalmente,
fundadas em Fortaleza na década de 1980 foi quinze vezes maior do que
à solidez de novas reivindicações que se formam com base na
o da década de 1970, e mais de quatro vezes superior ao número verificado
problemática urbana, agravada na periferia da cidade, dado à falta de
no período de 1990 a 1995, segundo a fonte já citada.
moradia e à escassez de serviços urbanos. Nesse momento, observa-se
De acordo com SOUZA (1997, p. 56), a partir do momento cm
uma articulação desses mov1mentos com outras instituições, como igreja
que o Estado possibilita o gerenciamento de projetos associativos pelas
e partidos políticos que, ao apoiarem os.movÜnentos sociais, incentivaram • ~e moradores, observa-se a formação de tendências distintas
associações
"a reelaboração das práticas sociais r{o"~' bairros propiciando, inclusive,
no que diz respeito à "condução dos processos reivindicatórios". Diante
a construção de uma linguagem que buscava garantir a efetivação de um
dessa situação, "insinuava-se uma forma de participação e de adesão
espaço de legitimidade para os sujeiros nelas imersos. Esta relação
dos movimentos ao governo que ia de encontro à radicalidade anterior
possibilitou, portanto, uma maior visibilidade desses movimentos e criou
de negação da política" (SOUZA, 1997, p. 56-60). Nesse sentido,
pessoas nomeadas p~lo Governo do Estado para cadastrar demandas
vínculos de comunicação e solidariedade entre os bairros" (SOUZA,
1997,P· 53). . provenientes dos bairros, os chamados "agentes de mudanças", passaram
__ ,É importante destacar que, nesse período, os movimentos 4\ bairro
a assumir posições antes delegadas somente às lideranças comunitárias.
assumem um caráter de opositores em relação ao Estado. "Esse tàto
tem origem tanto no sentimento de descrença das políticas provenientes
77
76


, ~~mq)~.. , ,,
Essa situação ocorreu a partir de 1987, "início da gestão de Tasso se, "pela adesão que prov;ocaram", o movimento contra a caristia e o
Jereissati, quando o governo convocou pessoas de reconhecida inserção movimento de luta por creches {BLAY, 1987, p. 4 7). ,Ao longo das décadas
e legitimidade nos bairros, no sentido de envolvê-las nas mudanças por de 1970 e 1980, surgem outros movimento., sociais organizados nos locais
ele apregoadas, fazendo-as participarem efetivamente do processo" de moradia, cujo objeti \'O era, basicamente, ampliar os serviços de consumo
(SOUZA, 1997, p. 60). Dessa maneira, inicia-se uma nova fom1a de coletivo, como foi mencionado.
participação nos movimentos de bairro, que, apesar de criar divergências É interessante notar que à medida que esses movimentos iam se
interr1as entre lideranças, impulsionou a multtplicaçào de associações consolidando e ganhando visibi~idade frente às pol,íticas públicas, a
comunitárias e legitimou a atuação do Governo junto aos bairros. Com participação feminina também ia,crescendo e ganhando cada vez It!flis
efeito, de acordo com a Listagem das Entidades e Órgãos Sociais espaço no cenário social. Pode-se dizer que a presença das mulheJ'r,s
fome.:-ida pela Secretaria de Trabalho e Ação Social - S'IAS;observa-se nos movimentos sociais não só inaugura c;ua participação ef<:;~!x~~ no
que o número de bairros com entidades populares é bem maior do que o • espaço público, como também possibilita a inserção feminina nos meios
número de bairros sem essas entidades, ou seja, dos 124. bairros de formais de fazer política.
Fortaleza, 103 possuem associações e apenas 21 não as possuem. Em Diante dessas constatações, serge um questionamento: por que a
tem1os percentuais, os primeiroSC'constituem 83,1% dos bairros. participação das mulheres fci tão intensa nos movimentos sociais,
sobretudo de bairros, e não em outras formas de mobilizações ou
5.2.2 A participação feminina nos·movimentos sociais urpanos organizações, como pattidos políticos e sindicatos? BRITTO DA MOITA
(199 1, p. 7) aponta com~ um dos motivos o grau de informalidade que
1\ esse contexto de efervescência dos·movimentos socia~s urbanos,
perp~ssa as mobilizações de moradores, em contraposiÇão à formalidade
noYos personagens emergl!m no cenário social, entre' os quais se destacam
encoirtrada em outras organizações: "a explicação pode estar, em grande
as mulheres. Segundo BR1TTO DA MOTTA (199!, p. 2), foi devido à
parte, exata.mente aí, na informalidade, na possibilidade de constituição
grande participação feminina nos movimentos sociais pós-1964 que as
de outros laços, mais assemelhados aos primários" (BRITTO DA
manifestações públicas desse período não foram impedidas, pois as
MOTTA, 1991, p. 7). Ou seja, os movimentos sociais propiciariam o
mulheres "eram, então, desimportantes o bastante para noderem falar,
desenvolvimento de tarefas próximas das atividades desempenhadas no
ainda mais quando apoiadas, ou abrigadas, pela igreja". •
seu cotidi~no, como esposas, mães e donas de casa. Portanto, essa
A participação feminina nos movimentos sociais durante algum
valorização do infonnal por parte das mulheres supõe uma aproximação
tempo não foi percebida, mantendo, assim, "sua tradicional invisibilidade
com as experiências c vivências que marcam o seu cotidiano. ;'
social, apesar de falarem em algo inesperado, talvez até meia perigoso,
As necessidades de consumo de bens públicos também
como 'direitos', 'direitos humanos',' anistia',' igualdade', 'feminismo"'
impulsionam a participação feminina nessas mobilizações. Porém, não
(BRliTO DA MOITA, 1991, p. 2). Entretanto, ficou marcada a presença
das mulheres nesses movimentos "não como simples coadjuvantes, mas
e só a natureza dessas reivindicações, "ligadas à reprodução e
conseqüentemente próprias às mulheres" (SOUZA LOBO, 1987, p. 94)
tJm bém como atores centrais de lutas que trazem a marca da contestação,
que determina a consolidação da. participação feminina nos movimentos
da resistência a situações de violência, do afloramento da consciência de
de bairro; um fator igualmente"líti'plr~nte é a construção de um espaço
carências, da formulação de reivindicações (não apenas femininas)
social novo que possibilitou à~artidpáÇão de novos ator~s sociais, entre
mediadas pela afirmação de um direito, pela busca de uma cidadania
eles as mulheres. Dessá t@rma, a presença de homens e mulheres ncs
mais plena" (SAFFIOTI, 1986, p.l55).
movimentos configura o estabelecimento desse espaço social que surge
Dentre os primeiros movimentos sociais liderados por mulheres,
através de novas práticas implementadas pela articulação da vida privada
\'ale ressaltar o Movimento Feminino pela A:l.istia. Também destacam-

78 I ,. 79
cOm a vida pública. Então, "a emergência de tais movimentos 5e dá no
quadro de um espaço em que coincidem momentos de formação de uma assim interiorizando as norn1as tradicionais" (PERROT, 1988, p.l77).
identidade de grupo, experiências individuais e coletivas da vida politica, Esses argumentos foram bastante criticados, sobretudo a partir
W~gições e culturas atualizadas pela conjuntura". SOUZA LOBO da década de 1970, pelas autoras feministas, as quais rejeitavam a idéia
.~f987, p. 94) ressalta que "a participação das mulheres está cectamente de que a separação entr~ as esferas da vida social era decorrente de
~' l~~ad~
' 1;1:', à dinâmica interna dos m.ov.imentos,
• l' t a sua fonna participativa, características naturais dos sexos. Essas críticas mostram que "a divisão
rígida entre espaço público e espaço privado ignora a relação entre as
'pelo menos ,inicial, que nãq supo'e' uma direção já hierarquizada e
estabelecida·,c.omo no movimento'sindical". Pode-se dizer, assim, que esferas, não permitindo ver as similaridades ou as interconexões entre
esse foi o percurso que viabÜizou o ingresso das mulheres no espa.ço elas e d;sfllrça a desigualdade de gênero, 3 dificultando o entendimento
público, que "através de caminhos mais conhecidos, mais próximos da da experiência das mulheres" (BRITO, 1991, p. 3). A mesma autora
experiência cotidiana", deram início à ruptura com o tradicionalmente destaca que é importante compreender o que se convencionou considerar
estabelecido, ou sej~, à quebra das barreiras que mantinham afastadas corno espaço público e espaço privado, assim como suas interações.
as mulheres do mundo' público e consequentemente, da política (BRlTTO separações e conflito~, pois "a constituição destes domínios é resultado
DA MOTTA, 1991, p. 8). · . . 1 '. de uma definição histórica e social" (BRITO, 1991, p. 1)
• ~"'~}·. !.t
De acordo com ARENDT (1993.., p. 37), existe uma profunda
5.2.3 Demarcando espaços: o público e o privado diferenya entre as concepçê.es antiga e moderna acerca dos espaços
privado e público. Na antigüidade, esses espaços eram vistos como
Sabe-se que nem r.empre as mulheres tiveram acesso a cargos mutuamente excludentes, sendo que o espaço privado era por excelência
formais no espaço público, principalmente no que diz respeito à política, de domínio familiar, ''lugar de trabalho e da vida das mulheres, servos e
pois, durante muito tempo, o público foi e ainda é, de ce1ia forma, escravos,· espaço de reproduçã.o da vida" (ARENDT, 1993, p. 3 7). Já o
as~ociado ao sexo masculino, e o espaço privado, ao sexo femipino. • espaço público era o lugar do exercício da liberdade, "exclusivo dos
Essa associação se deu por ser "a mulher vista como naturalmrnte presa homens livres, proprietários que assumiam sua plena condiçãc humana
ao privado, às tarefas da reprodução, logo, na condição de alguém :i na ação política, expressa na palavra e no pensamento cultivado''.
margem da esfera pública e assim, estranha aos assuntos políticos" (BRITO, 1991, p. 2)
(BRITO, 1991, p. 2).
No mundo moderno, segundo ARENDT (1993, p. 47), esses
De acordo com PERROT ( 1988), os argumentos que justificam a espaços passam a ter uma proximidade maior, e os dois espaços
exclusão das mulheres do espaço público baseiam-se nas diferenças entre "constantemente recaem um sobre o outro··. Observa-se, portanto, que
os sexos. Essas diferenças, socialmente construídas, são apontadas com
bastante vigor pelas descobertas da medicina e da biologia de; século 3 "No scu.uso rcccmc mais simples, 'gênero' é sinõnimo de ·mulheres'. Livros c artigos de
XIX. Segundo ela, .esse "é um discurso naturalista, que insiste na todo o~fipq, q'Jc tmham como tema a história das mulheres substituíram durante os últimos
anos nos ~cus títdos os termos de 'mulheres' pelo termo de 'gênero,' mas isso é só um
existência de duas espécies com qualidades e aptidões particulares. Aos aspecto. 'Gcncro', como substituto de 'mulheres', é igualmente utilizado para sugerir que a
homens, o cérebro, a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens. que um
Às mulhere~•. o coração, a sensibilidade, os sentimentos" (PERROT, 1988, implica no estudo d:> outro. O gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais
entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas. O gênero se
p. I 77). Ela conclui
,; que "a idéia de que a política não é assunto das toma. aliás,, uma maneira de ind:car as çonstruçõcs sociais - a criação inteiramente social das
mulheres, qt.ç aí elas não estão em seu Jugar, permanece enraizada, até idéias sobre os pdpéi~ própr~.>s aos homens c às mulheres. É uma maneira de se referir às
origens cxdusivamcntc ~ociais da~ identidades subjctivas dos homens c das mulheres. o uso
muito recentemerice, nas opiniões de ambos vs sexos. Além disso, as do ·gênero' coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo. mas
mulhçrestendem a depreciar a política, a valorizar o social e o informal, que não é dirctamentc determinado pelo sexo nem dr.termina dirctamentc a sexualidade ..
•'f'
. -li·' (SCOTf, 1989, p. 4 c 5) .
80 o·~·
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81
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-~,,·_~

.. a passagem da sociedade do sombrio interior do lar para a luz da esfera pioneiramente porCA RDOS0(1983J, em que as mulheres participavam
pública não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o público, e assumiam a frente de movimentos porque, "não $endo atores políticos,
mas também, alterou o significado dos dois tetmos" (ARENDT, 1993, 'podiam perder' ou quando 'seguravam' o começo duvidoso do movi-
p, 47). Atualmente, o espaço privado é visto como lugar de intimidade, mento e, ~ucesso alcançado, passavam a dtreção aos homens" (BRITTO
do desenvolvimento da vida no lar e na família. Entretanto, a DA MOITA, 1991, p.12).
.. privatividade moderna" é oposta tanto à esfera social, "cuja origem • A participação ativa das lideranças femininas nos bairros de
coincidiu com o surgimento da era moáerna e que encontrou sua forma Fortaleza, aliada à própria consci~n'çia do valor c!e sua militância e do
política no estado nacional", como à esfera política, pois ambas seu trabalho, assim como o co~tatci(Jlireto com partidos é com o Estàdo;
constituem o espaço público propriamente dito. Nesse sentido. o espaço através do gerenciamento de progra~as govemameptais, impul'siortãrtf
público, "enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos essas lideranças a participarem dos meios formai~ fazer polí,fc~~·
de
outros e contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim. dizer" notadamente como candidatas à Câmara de Vereadores. ··e;:·ófuo
(ARENDT, 1993, p. 48). mencionado, nem sempre essas candidaturas ditas "populares" obtêm
A esfera social, à qual se refere Hannah Arendt, é apontada por sucesso. Entretapto, é crescente o número de lideranças que buscam se
alguns autores que abordam a participação feminina na polítiéa4 como eleger como .vereadores nas eleições municipais. Em relaçãÓ a
sendo o espaço onde se des~nvolvé:m os movirnentos sociais. Por ser um candidaturas femininas que alcançaram sucesso em eleições passadas,
~spaço intermediário entre o privado e o público, guarda elementos dos podem ser citados três casos de mulheres que assumiram uma vaga na
dois, permitindo, assim, o ingresso das mulheres das classes populares Câma~a de Vereadores de Fortaleza, ainda que tenham sido eleitas apenas

no espaço público. Essa participação se efetivou através dos mú,vimentos como :suplentes. 6 Esses casos específicos mostram, claramente, uma
sociais, mais especificamente dos movimentos de bairro, onde as tendência que vem crescendo a cada eleição municipal em Fortaleza,
mulheres despontaram não só como membros ativos, mas foram, gradati- corno já foi visto.
vamente, conquistando posições antes só ocupadas pelo sexo masculino. Devido ao dificil acesso aos dados das eleições de 1996, não se
Atualmente, a participação das mulheres nos movimentos de bairro tem ainda com precisão o número de candidaturas oriundas dos
está consolidada, como indica o número de lideranças femininas que movimentos de bairro; estima-se, porém, que esse número supere o
ocupam a posição de presidente das associações de bairro em Fortaleza: veriiicado nas eleições de 1992. Nesse sentido, acredita-se que seja
como foi mencionado, esse número chega a um percentual próximo a ba_stante oportuno fazer uma pesquisa que resgate a trajetória social e
50%. Chama a atenção não só o aumento do número de mulheres que política das lideranças femininas dos bairros de Fortaleza que se
assumem a diretoria dessas instituições, como a firmeza e candidataram nas eleições municipais de 1996. A opção por essas eleiçõês
responsabilidade com que passam a exercer essa função. 5 Este fato leva se justifica devido ao acompanhamento sistemático de algumas
a acreditar que a participação feminina nos movimentos sociais é uma candidaturas populares nesse período, basicamente candidaturas
realidade consolidada, com fortes raízes fincadas no compromisso com femininas. Nessa oportuni~ade, acompanhou-se a propaganda eleitoral
o bairro e com a associação da qual fazem parte. Portanto, como afirma
BRITTO DA MOTTA (1991, p.12), "fica longe o tempo retratado
' ' '~'t"(f}'.-~
' São elas: Ana Maria, liderança do LagamàiJquc ::an.didatou-sc à Câmara de Vereadores nas
eleições de !988, pelo PT c assumiu por dois meses a-spplência cm·l991; Maria da Hora,
' Sobre a participação feminina m esfera social, ver BRITO (1911) c BRIITO DA MOTii\ (1993). liderança do Henrique Jorge que canjidatou-sc também cm 1988,, pelo PSD, assumindo por
· Observação feita com base na leitura de algumas entrevistas rcalizad&S com lideranças de três mc~cs a Câmara de Vereadores; Raimundiuha. liderança d11 A.crolândia que candidatou-se,
bairro. as quais fazem parte do arquivo da pesquisa "Dos bastidcrcs à cena política; liderança3 cm 1992, pelo PSDB. assumindo a suplência cm 1994. Dados obtidos através do Relatório
populares urbanas c suas estratégias de delegação c representação", já mencionado. · Anual de Atividadcs da pesquisa "Dos Bastidores à Cena ?olitica ... "(BARREIRA, 1996).

82 83
. i,_.:
___ -- vw,.nayUC:i em COmíCÍOS e nOS COmitêS, além de breves
as lideranças fer.1ininas que se candidataram a vereadoras, e cujas
entrevistas com as candidatas. Na pesquisa a ser realizada, busca-se,
mpanhas eleitorais foram acompanhadas:
fundamentalmente, desvendar o contexto familiar, social e político em
que ocorrem essas candidaturas, procurando compreender como essas A?\0 DA
mulheres transitam de lideranças a candidatas. LÍDER BAIRRO PARTIDO
CA?\DIDATURA
R. Aerolándia ~992 e 1996 PSDB
5.3 BUSCANDO RECONSTITUIR TWETÓRIAS: A ESCOLH:,;.. DOS PRO- N. Jardim Guanabara 1996 PT
CEDIMENTOS METODOLÓGICOS R. R. Granja Portugal 1996 Pi\IDB
T. Serrinha 1996 PFL
No período da pesquisa do CNPq,já referida, foi possível obter a 8. Parque São José 1996 PSC
maior pétrte dos dados que serão utilizados. Nessa ocasião, foram
aplicados questionários com os presidentes de associações de moradores Pretende-se realizar entrevistas em profundidade com essas cinco
de Fortakza, com o objctivo de traçar c perfil político-cultural das lideranças po::-que acre.dita-se que suas experiências possam mostrar de
lideranças "populares". De um total de 470 associações, foram escolhidas maneira clara como se> dá a participação política de mulheres que
60, distribuídas nos àiversos bairros de fortaleza. Esse número foi adentram o espaço público através dos n"lovimentos de bairros.
detenninado pela amostra calculada pelo Laboratório de Estatistica e As entrevistas incluirão questões importantes para a reconstmçào
Matemática Aplicada da UFC, o qual utilizou a técnica de amostragem da trajctória social e política dessas lideranças. Vale lembrar que
casual simples com seleçãoproporcional ao número de associações existentes. a noção 'de trajetória aqui empregada diz respeito à relação de troca de
Entre os 60 questionários aplicados, 26 foram feitos com homens experiências entre o mundo privado e o mundo público. Portanto. a
e 34 com mulheres. Vale ressaltar que esse questionário é compo~to por utilização desse termo pretende enfocar o percurso feito por essas
43 perguntas, das quais 'pretendo analisar 12, que dizem respeito lideranças desde o momento de entrada no espaço público, através das
esn~cificamente ao tema da pesquisa. Além de questões relativas à mobilizações nos bairros, atentando, inclusive, para o momento específico
tr~etória da liderança, motivação para os trabalhos comunitários e de transição da vida privada para vida pública- quando decidem sair de
con:cepção de liderança, serão analisada~ aquelas referentes à participação casa e se engajam nos movimentos de bairro, passando pelas experiências
da mulher na politica, tais como: :. .
adquiridas com as lutas implementadas no bairro. Será considerado, ainda.
• Você acha que na vida· social homens e mulheres têm os mesmos o momento em que as atividades dessas lideranças passam a ser
direitos?
reconhecidas, dando legitimidade para o ingresso na política institucional.
• Por quê?
• Você acha que uma candidata tem possibilidade de ter mai6r apoio de
eleitores do sexo masculino, feminino ou c;le ambos os sexos?
o Dê três adjetivos para identific~r uma !jderança feminina. Referências Bibliográficas
Existem barreiras que impedem à participação d~ mulher na política?
Quais? ARENDT, Hannah. A Condição humana. Tradução de Roberto Raposo.
o Você sentiu alguma discnminação no trabalho cGmunitário ou Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
partidário? Se sim, quais?
Por ocasião da aplicação dos questionários, foi possível identificar BARREIRA, Jrlys Alencar Finno. O Reverso das vitrines: conflitos
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84
85
L: • •
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88
6 RELATOS ORAIS: NA ENCRUZILHADA ENTRE INDIVÍDUO
E SOCIEDADE EM UM ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕE_S
SOCIAIS SOBRE SAÚDE

Raquel M Rigotto 1

O propósito deste trab<llhb ~~nàlisar as técnicas de relatos orais,


amplamente utilizadas em estudo5. qualitativos, identificando seu
hi~tórico, apresentando seus conceitos e discutindo seus pressupostos
teórico-metodológicos. pretende-se também avaliar a adequação dessa
alternativa metodológica ao estudo de representações sociais sobre saúde,
tomand,o,como exemplo sua aplicação ao campo das relações entre saúde
e trabalho, proposta em projeto ,d.e pesquisa elaborado pela autora.
Finalmente, este texto dest.aca.41igumas' orientaçõ~s.práticas p~ra o
pesquisador que pretende aplicar as. técnicas dos relatos orais; /L .i,
6.1 'HISTÓRICO DO Uso DE RELATOS ÜRAíS NA
PESQUISA SOCIAL

· Ao reconstruir a história dos relatos orais, PEREIRA DE
QUEIROZ (1988) parte de um ponto muito interessante: o papel que
.. eles desempenharam, através dos séculos, na transmissão e na
conservação do conhecimento e, portanto, como fonte de dados para as
ciências em geral: ''o relato oral está na base da obtenção de toda sorte
de informações e antecede a outras técnicas de obtenção. e conservação
do saber; a palavra parece ter sido senão a primeira, pelo menos uma das
mais antigas técnicas utiJizadas para tal. Desenho e escrita lhe
sucederam" (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988, p.l6) .

• • l
1 Professo~~
do Departamento de Saúde Comunitária da UFC; aluna especial do Semi!lário CM
Métodos c 'Técnicas de Pesquisa, ministrado pela prqfÇlS,sora Linda Gondim no Programa de
f'ó~-Graduaçào cm Sociologia da UFC no primeiro semestre de 1996, no qual uma primeira
versão' do presente trabalho foi aJ:resentâ<.la. A autora agradece à profeSsora Edir Vascónce-
los, coordenadora da áisciplina Metodologia de Investigação Científica no Mestrado cm
Educação da UFMG, à época da elaboração da primeira versão deste trabalho. c à professora
Li~àa Gondim, pelos comentários c sugestÕes.

91
A utilização de relatos orais como técnica cie coleta de dados por t • •
No Brasil, as técnicas de relatos orais têm urn breve aparecimento
cientistas sociais remonta ao final do século XIX, com estudos
antropológicos como Race, language, and culture, de Franz Boas, o nos anos de 1940einício dos anos de 1950, com os trabalhos de BASTIDE
(1953), MOREIRA (1953), PEREIRA DE QUEIROZ (1953) c
qual recupera a memória tribal cl.e índios americanos. Kosminsky, citando
BASTIDE (1953), situa a origem. ~a .tfécnica de histórias de vida na
FERNANDES (1960)."Passam, em seguida, por período de eclipse.
justificado também aqui pelo encantamento com as técnicas estatísticas
psicologia (KOSMINSKY, 1986, p. 3 !)~as-primeiras décadas do século
XX, registram-se os trabaihos sociológicos de DOLLARD (1935) e da e pelo entendimento da subjetividade cJmo fator de desvio c de erro na
interpretação do real.
Escola de Chicago, entre os quais merece destaque a obra de THOMAS
O ressurgimento dos relatos orais, a partir dos anos de 1970. é
& ZNANIECKI (1927) a qualusou como fontes, também, documentos
pessoais (cartas e diários). marcado, na área de psicologia social, pelo estudo conduzido por BOSI
(l994 [ 1973 ]), sobre a memória enquanto atributo humano estreitamente
A partir da década de 1940, os relatos O(ais e as histórias de vida
foram ~elegados a segundo pla~p na pesql,lisa sociaF Olga Von Simon
dependente da vida social e por ela determinada. Ainda naquela década,
• o trabalho ·de campo de caráter etnográfico começa a ser utilizado por
atribui este fato à tentativa, levada a cabo pe!as ciências soci.ais, de
sociólogos, com ênfase na observação participante e na entrevista aberta.
aproximar-se dostatus das ciências exatas. Num contexto de valorização
Os relatos orais passam a ser considerados fontes confiáveis para a
das técnicas qua~titativas, tabelas .e gráficos dariam validade cientifica à
investigação sociológica, onde se busca "o esclarecimento de relações
pesquisa sociológica, fornecendo-lhe dados "objetivos", na medida em
coletivas entre individues num grupo, numa camada social, num contexto
que, supostamente, eliminariam deles a influência da psique individual,
profissional, noutras épocas e também agora" (PEREIRA DE QUEIROZ,
introduzida pelas histórias de vida. 3 A falácia dessa visão não tardou a '
ser percebida, cooo descreve QUEIROZ (1988, p. 15): 1988, p. 24). Entre os estudos representativos deste momento, situam-se
o de Eva Alterman Blay, intitulado "O~ judeus na memória de São Paulo";
Pouco a pouco se percebeu, no entanto, gue valores e emoção permaneci~m os desen~olvidos pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História
escondidos nos próprios dado.> estatísticos, ji que as def.tnições das fmalidades Contemporânea do Brasil- CPDOC (C AMARGO, 1986) e os ligados
da pesquisa e a formulação das perguntas estavam profundamente ligad2.s à ao Centro de Estudos Rurais e Urbanos - CERU (PEREIRA DE
maneira cie pensar e de sentir do pesquisador, o qual tr:-.nspunha assim para
QUEIROZ, 1981); DEMARTINI, 1.985). O relato oral e a história de
os dado~~ de maneira perigosa Forque invisível, sua própria percepção e seus
preconceitos. Os números perdiam sua auréola de pura objetivíd::.de,
vida renascem vigorosos, num contexto de avanço em relação às técnicas
patenteaudo-se dotados de viezes anteriores ao momento da coleta,
esc~~~ dos na t0rmulaçào do problema e do questionário; ocultos, pareciam
.
quantitativas e à abordagem da subjetividade.

i~,~~~~te.Jtes... Porém, influenciavam o levantamento, desviando-o muit:1s 6.2 CONCEITOS E DEFINIÇÕES


1
3:ezes do rumo que deveria seguir (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988, p. 15).
J I

. 1/ ,, ,•
~:;. <}·.
A bibliografia consultada apresenta uma série de denominações:
relato oral, história oral, história de vida, depoimento pessoal, etc., nem
sempre bem definidas e às vezes com conceitos pouco homogêneos entre
: \"ale notar auc os rclztvs orais c outras técnicas de pesquisa qualitati\<a continuaram bastante
os diversos autores. Verena Alberti atribui essa dificuldade ao fato de
utilizados na antropologia, talvez porque esta, até recentemente, tinha como objeto prcic- que os limites desta técnica estariam em "categorias de diversas
rido as sociedades não letradas, sobre as quais seria extremamente dificil realiur levantamen- disciplinas das ciências humanas.(... ) Sua especificidade está no próprio
tos quantitativos (BOGDAN & TAYLOR, 19'75).
; Conferencia proferida durante o Seminário de Metodologia realizado na Faculdade de fato de se prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno
Educação da UFMG, cm outubro de 1SÍ90. pluridisciplinar" (ALBERT!, 1989, p. 1).
., ·:·~f.~ .; 1'~
92
93
A característica básica do método designado pelos termos acima
é que a fala dos sujeitos constitui o ponto de partida para o p~squisador
. Assim, nesta técnica, o eixo do. relato situa-se
:
na .reconstrução
"~
trajetória de vida do indivíduo, de·sgc ~.infância até a at~alidade. Mas,
da

buscar respostas às questões. que formulou, como de resto se dá em outras aqui, o objetivo do pesquisador nãô~ê·;descrever um personagem-: co~~
técnicas qualitativas. Entretanto, no conjunto de instrumentos denomina- seria na biografia- e sim ultrapas~ar o caráter individual e singular'dd
, t"i ) ·~

dos relatos orais, esta fala gira em tomo da experiência de vida dos indi- que lhe é transmitido, rumo ao desvelamento das relações sociais nas
víduos, a qual pode ser recortada de mar.eiras distintas, demarc~mdo as quais o indivíduo se insere.
diferenças entre as divers::ts técnicas. A técnica de depoimentos pessoais, por seu turno, concentra o
Na história oral, o recorte se dá na coleta e registro de relatos relato na história do entrevistado focalizada sob um prisma de interesse
sobre fatos, acontecimentos ou mesp1o períodos histórico.; testemunhados definido pelo pesquisador. Nela, diferentemente da história de vida, este
pelo entrevistado, cujo conhecimento se deseja ampliar ou completar. tem um papel ativo na direção da narração, procuraiido aprofundar o
:\as palavras de ALBERT! (1989, p. 1-3), conhecimento sobre o recorte que elegeu, mantendo, entretanto, a
É um método de !Jesquisa (histórica, antropo!úgica, sociol0.gic~, etc.) que
preocupação de superar a dimensão individual do relato e encontrar nele
!'riYilegi:l a realizaçà0 ele entre,·istas wm pessoa~ que partici?r.m de, ou o co!etivo. PEREIRA DE QUEIROZ (1983, p. 147-8) nota, ainda, que o
testemunharam, acontecimento-;, conjunruras, visões de mundo, como forma depoimento concentra-se "sobre um lapso de tempo mais reduzido e
de se aproximar do objeto de esrudo. Trata-se de procurar compreender a permite aprofundar o número de informaç5es e de detalhes a respeito
sociedade atra,·és do indi,íduc que nela vivell; de esta.belecer relações entre o desse espaço preciso".
geral e o particular através da análise comparativa de diferentes versões No caso da autobiografia, o controle desloca-se para o narrador:
e testemunhos. " ... É bnarrador sozinho que manipula os meios de registro, quer seja a
Maria Isaura Pereira de Queiroz apresenta definição semelhante: escrita, quer o gravador. Foi ele também que, por motivos estritamente
[História oral] [é] termo amplo que recobre uma quanridade de re!atos a
pessoais, r~solveu narrar sua existência; deu-lhes o encaminhamento
respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja que melhor lhe pareceu ... " (PEREIRA DE QUEIROZ, 19?8, p. 23 ). l;al
documentação se quer completar. Colhida por meio de entrevisms de variadas não acontece com a biografia, que é definida pela mesma: autora como
formas, ela registra a experiência de um só indivíduo ou de djv..:rsos ;nruvíduos
... a história de um indivíduo redigida por outro. Existe aqui a dupla
de uma mesma coleti,·idade. Neste último caso, busca-se uma convergência
intermediação que::. aproxima da história de vida, ce>nsubstanciada na
de relatos sobre um mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo.
presença do pe~quis·ador e no relato escrito que sucede às entre,;stas. O
:\ História onl pode captar a experiência efeth·a dos narrad0res, mas também
recolhe destas trad1ções, mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no objetivo do pesqillsador é des\•endar a vida particular daquele que está
grupo... (PEREIRA DE QuEIRO~. 1988, p. 19). e~trevistando.' m~sn:o qu~ ner~e.rS~U~0 atinja a sociedade em que_ \'i\·e O
b1ogr:~.fado, o mruJto e, através dêh;'c~-plicar os comportamentos e as tases da
Enquanto "espécie" dentro do amplo quadro de história oral, a existc!ncia individual. A finalidade é sempre•um personagem ... (PEREIRA
história de vida, segundo a mesma autora,
DE QUEIROZ, 1988, p. 23) .
... se dctine como o relato de um narrador sobre sua e~:1stência através do
tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a
6.3 PRESSUPOSTOS
experiência que adquiriu. Narrativa linear e individual dos acontecimentos
que nele considera signiflcati,·os, através dela se delineiam as relações com os
membros de seu grupo, de sua sociedade global, q'.le cabe ao pesqui~3dor A validação das técnicas qualii;aHvas de pesquisa, em seu conjunto,
des,·endar. Desta forma, o interesse deste último está em captar algo que tem sido marcada por reflexões e.qá>ates sobre seus pressupostos, seja
ultrapassa o caráter inruYidual do que é transmitido e q11e se insere ms coletivi- em relação às técnicas quanthad.vas ·- às quais não se .opõ,em
dades a que o narrador pertence (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988, p. 20-1). necessariamente (CARDOSO, 1986, p. 96)- seja em relação à próptFia·
94 95
crítica teórico-metodológica que deve acompanhar, de fonna consistente, indivíduo, ou o seu relato sobre fatos que testemunhou, pode interessa
o desenvolvimento das técnicas de pesquisa. Delineando sua critica ao às ciências sociais? Como uma narração carregada de subjetivismo pod.
empirireismo, THIOLLENT (1987), apoiado por outros autores, destaca ser tratada como fonte de informação e, mais que isto, como técnica 01
dois pressupostos de repercussões profundas n~ concepção metodológica: método de investigação? Como outras questões de método, esta tambén
• A objeth:idade como mito: "a objctiviriade é relativa, na :nedida es!â ~niculaàa a un1a questão teórica. De fato, a polêmica, centrada n
que o conhecimento social sempre consiste em aproximações subj~tividade como fator de erro e desvio, ou de enriquecimento
sucessivas relacionad~s com perspectivas de manutenção ou de ampHação do conhecimento social, parece ser reflexo, no camp
transformação" (THIOLLENT, 1987, p. 28). Ou, no dizer de metodológico, do debate teórico acerca ::ia relação individuo-sociedadt
ALBERT! (1989, p. 6), ·~amais poderemos apreender o real tal como Apesar de sua complexidade, registra-se, a seguir, alguns pontos dcst
e!e é; apesar disso insi.;timos cm obter uma aproximação cada vez debate, pela importância que têm na discussão dos pressupostos da
mais acurada dele, para aumentar qualitativa e também técnicas dos relatos orais .
. . g~~ntitativamente o nosso conhecimento". Augusto dos Santos Silva recupera, no plano epistemológico.
~~'A neutralidade cientifica como mito: a idéta de objetividade supõe caminhada desta reflexão a partir do século XIX, quando a burguesr
l ~\~'a ~xistência de um sujeito cqgnoscente neutro, capaz de partir do liberal adotou o individualismo (e o ut(litarismo) como matriz ideológic
~ ·' fato bruto, observado sem a meS$~çio de categorias ou de um quadro para a implantação de seu sistema econômico e político, difundindo ..
idéia de que a sociedade é um agregado de indivíduos singulares e c
teórico pteexistente. Referíndó3se à "ilusão da imaculada percepção",
que a prossecução dos seus interesses por parte de cada um deles sen
o mesmo autor afinna que ''a neutralidade é falsa ou inexiste; na de melhor garantia para a harmonia coletiva" (SILVA, 1987. p. 39). Es'
medida em que qualquer procedimento de investigacão envolve postulado contamina as teorias científicas até o nascimento da sociolog
pressupostos teóricos .e práticos vari:iveis segundo os int~resses
-quando parece ir ao extremo oposto:
sócio-politi~os que estão em jogo no ato de conhecer" (THIOLLENT,
1987, p. 28). .. ...da tradição durkheimiana ao estruturalismo se tem procurado rc,;oh·cr
' problema (da relação entre indivíduos e sociedade) pela e\·acuaçào d0 ato r c
No tocante especificament~~.Qs ,reiatos orais, pode-se identificar objeto da análise.:, atar quase reduzido a mera consequênci:~ de determin!srr.,
os seguintes pressupostos: ·
sociais que escnpam :l sua consciência (SIL\'A, 1987, p. 40).
• "todos os seres humanos compreendem uma humanidade básica, isto
é, a identidade da natureza humana persiste, apesar das diferenças e No entanto, Eder Sader afirma com veemência que os consagrad,
~características pessoais" (YOUNG, apud KOSiv1INSKY, 1986, p. 32). esquemas explicativos dos processos sociais que os relacionam ,
• o indivíduo é ~e.J!1pre membro àe um grupo cultural ou comwlidade, e características estruturais não adicionam ·'uma vírgula" à comprccns:'
• 1 seu comportamento é uma resposta a estímulos sociais definidos
àe fenômeno tão importante como a eclosão de movimentos socia
(DOLLARD, apud KOSMINSKY, 1986, p. 33). -~;~ urbanos no Brasil: corno explicar que "as classes popt:larcs" brasileira
indu~itavelmente "subsumidas pela lógica do capital c do seu Estadl~
• através do estudo da vida dos indivíduos, é possível conhecer
características, valores e estruturas da sociedade na qual está inserido tenham• despontado com força no cenário político dos anos de 19-
(PEREIRA DE QUEIROZ, 1986, p. 28). (SADER, 1988, p. 38)? Também Ruth Cardoso aponta a insuficiência c
perspectiva estrutural, do ponto de vista da esquerda: por que não '
Estes pressupostos, entretanto, geram polêmicas desde os trabalhos encóntrava a "revolta esperada", dadas as precárias condições de vic
pioneiros de Dollard, Thomas e Znaniecki: como a história de vida de um "objetivas" da classe trabalhadora? E f'lla das tentativas de ''des\'end<

96 .··~

11: 9}
rJ
as teias que ligam os macroprocessos econômicos e os comportamentos o parto, os dejetos humanos, a doença, a morte, são tratados de fonna
concretos'' (C.ARDOSO, 1986, p. 96-7). Na mesma linha de raciocínio, diferente em cada culmra (RODRIGUES, 1983). A segunda linha de
cabe indagar por que, diante de situações estruturais de mis~ria e opressão, pensamento baseia-se em Jung, para quem a existência de algumas
as pessoas e os grupos reagem num leque matizado entre a submissão e representações simbólicas arquetípicas, comuns a todos os indivíduos
a revolta? MOORE JR. (1987, p.l3). Emerge, então, na trajetória das através dos tempos e em todas as raças, sugere a semelhança das estruturas
ciências sociais, a noção de sujeito, e com ela, a atenção para a cultura, mentais sobre as quais repousa o "inconsciente coletivo", demonstrando
o imaginário, o simbólico. Surge o interesse em conhecer como, a partir o caráter social do psiquismo.
de condiçõt>s históricas e estruturais específicas e das experiências Esta breve discussão nos pennite dizer que a compreensão dtis
vive:1ciadas coletivamente, os indivíduos constroem representações de fenômenos sociais tende agora a não mais concentrar-se quer no polo do
si e da realidade que os cerca, articulando, num sistema simbólico, valores, indivíduo, quer no poJo das estruturas sociais. O desàfio é romper com a
necessidades e desejos que nortearão· sua ação no mundo. idéia da sociedade enquanto aglomerado de indivíduos ou, ao contrário,
Parece ser neste contexto de emersão do sujeito e da cultura - do coletivo social como algo que paira, deser..ca.mado, sobre os indivíduos,
como elementos de peso na nova apreciação da relação indiví- determinando-os de maneira on,i.}l~e_nte. Trata-se de compreender a
duo-sociedade - que se situa, hoje, a discussão dos pressupostos dos dialética do indivíduo como.,pl'oditto•~so"cial, mas tamb.!m produtor da
rdatos orais. A posição de Augusto dos Santos Silva é que "indivíduos e sociedade; o desafio é exatamente situar-se·ua tensão sujeito-estrutura,
sociedade não são realidades separáveis (a não ser, decerto, logicamente) indivíduo-soéiedade.
de tal modo que se pudesse estudar um dos tennos evacuando o outro- Parece que isto não tem sido fácil, nem do ponto de vista teórico,
abordar o indivíduo independentemente do supra-individual (tentação do nem do ponto de vista metodológico. Maria Isaura Ferreira Queiroz, por
psicologismo) ou a sociedade omitindo a ação intencional dos sujeitos exemplo, embora argumente a favor da reçyperação da subjetividade
(risco do sociologismo)" (SILVA, 1987, p. 41). • nas pesquisas sociais e defenda as t~nicás qe ·relato oral por ..captarem
Segundo Maria Isaura Ferreira Queiroz, "todo fenômeno social é o que sucede na encruzilhada da vid:fmdividual com o so.cial" CP.EREIRA.
total. dizia Marcel Mauss na década de 1920. O indivíduo é também um DE QUEIROZ, 1988, p. 35), afi~~· com ênfase que . (: I
fenômeno social. Aspectos importantes de sua sociedade e de sct~ grupo,
comportamentos e técnicas, valores e ideologias podem ser apanhados o sociólogo vai na direção do ~ue é coleth·o, geral, não se detendo '~
particularismos(...). Nao ~;e trata de considerá-lo (o indivíduo) isoladamente,
através de sua história" (PERÉ.IRA DE QUEIROZ, 1988, p. 28). Esta
!lem de compreendê-lo em Rua unic:dade; o que se quer é captar, atra\·és de
autora defende que a vida do indivíduo assenta-se sobre duas perspectivas I
seus comportamentos, o que se p:-.ssa no interior das coletividades de que
-sua herança biológica, com suas peculiaridades; e sua sociedade, com participa. O indivíduo não é mais o "único"; ele agora é uma p.::ssoa
sua organização e valores específicos:- a.s quais, interagindo, desenham indeterminada, que nem mesmo é necess:irio nomear, é somente unidade
a personalidade. Daí adviria a validação das histórias de vida como objeto demro da coletividade (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988, p. 24-SJ.
das ciências sociais. Para sustentar que o subjetivismo não decorre
O tom destas linhas sugere que, para distanciar-se do "risco ·do
exclusivamente de bases biológicas e psicológicas, recon·e a duas lirijlas
de pensamento. A primeira defende que as funções vegetativas -
psicologismo", podemos cair' na "tentação do sociologismo" , ou
necessidades fisicas, inclinações, prazer e dor - geram sensações que, vice-versa (SILVA, 1987, p. 41 ). Apesar disto, permanece toda a potencia-
ao serem percebidas pelos indivíduos, passam pela mediação do que 1idade da técmca, bem expressa por Aspásia Camargo ao avaliar a
lhes é exterior, definido socialmente (PEREIRA DE QUEIROZ, 1988, experiência do CPDOC:
p. 38). A antropologia tem recolhico inúmeros exemplos de como a fome, "Foi possível também, de certa fcrma, rorr.per o enclausuraml!ntc acadêmico
que transfonnava a entrevista em simples suporte documental- e du,·idoso

98 99
- da pesguisa social I! histórica, para mostrar a rigucza inesgotável do
depoimento oral em si mesmo, como fonte não apenas informativa, mas, função d.,as interesses da produção e do lucro, pela divisão internacional
sobretudo, como instrumento de -::~mpreen.>ão mais ampla e globalizante do trap~l,ho (e dos riscos) etc. Mas a indignação e as perguntas persistem:
do significado da ação humana; de suas relações com a sociedade organizada, por que,'bs trabalhadores aceitam isto? Ou, ao contrário, como outros
com as redes de sociabilidade, com o poder e o contrapoder existentes, e com trabalhadores reagem contra isto?
os processos macroculturais gue constituem o ambiente dentro do qual se Se, por um lado, já foram construídas explicações "estruturais"
mO\·em os atores e os personagens deste grande drama ininterrupto -sempre para o problema, por outro lado, pouco se conhece aiP.da sobre como os
mal decifrado- gue é a Históri:~ Humana (CAi\!ARGO, 1989, p. 8).
trabalha~ores vêem esta questão. As respostas tradicionais- "aguentam
1
Nesta perspectiva, o que é visto por Guitta Debert como porque precisam do trabalho para sobreviver", "aceitam porque ignoram
"decepcionante"- o fato de os relatos orais estarem sempre convidando os riscos e consequências" - parecem-me, no mínimo, incompletas e
a discutir conceitos tidos corr.o definitivos, a rever interpretações, a insuficientes, já que não abrem perspectivas e deixam o futuro nas mãos
l ~..:. tie~b'nvolvcr ~ovas hipóte.>cs (DEBERT, 1986, p.lS0-6)- pode ser visto do avanço autônomo da economia e do "progresso". Toma-se essencial.
"~·· 'como vantagep.1. Esta problcmá:~i~~a terá reflexos na avaliação da pois, desvendar as respostas nos tennos dos próprios trabalhadores:
adequação dessas
I • técnicas a tneu óf;jeto 'de estudo, discutida a seguir. ...[s-::] os fuos humanos são sempre fatos interpretados, e se a consciê:1cil do> aro~e;
é o elemento ccnstituth·o dtcish·o do mund~social, inporta dar ronta daJ n:>rrstr.!:::ü..-
6.4 AVALIANDO A ADEQUAÇÃO DAS TÉCNICAS DE RELATOS ÜRAlS co1etivaJ, rotidianaJ, da Jbriedade- as imagens e as noções construídas no decurso à a
,;da de todos os dias e que configuram o patrimônio cogniti,·o partilhado pelos membros
AO ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM SAÚDE
de um dado grupo, as r.taneiras de pensar e de sentir._ (SIL\":\, 1987. p. 3!) (grifo meu .

6.4.1 Apresentando''bre.ve!Jlente ó objeto


É, portanto, no terreno das representações sociais que pretendo
' 1, r, ~ ,\ i• encontrar pistas para a compreensão das posturas dos trabalhadores diante
Pretenào, na pesquisa â-éJs·envolvida, 4 compreender as de sua sa~de (ou não-saúde). A experiência pregressa indica-me que
representações sociais sobre corpo e trabalho presentes no imaginário
estas po~turas são diversas: transitam num leque que vai desde a negação
de trabalhadores e que embasam seu discurso e sua ação no tocante à
do prvblen!a, até a assunção de si enquanto sujeito no processo coletiYo
saúde. Tal fonnulação surgiu de um sentimento de indignação, enquanto
de transformação da realidade. Vejo também que seu discurso c açào
profissional e ser humano, diante das precárias condições de saúde da são dinâmicos, alteram-se ao longo da existência de um mesmo indivíduo.
maioria da população brasileira e de uma convivência cotidiana, no
Parto, eo.tão, das seguintes perguntas:
Ambulatório de Doenças Pr,9fissionais da UFMG, 5 com os efeitos do
violento impacto do trabalho sobre a saúde dos trabalhadores. Um mínimo
• Corr..oos nabalhadores representam o corpo e sua rela;OO com o trabalho?
de conhecimento das ciências sociais permite-me elaborar uma explicação
• Como estas representações são construídas?
teórica para esta realidade, que passa pela organização da sociedade em
• Em que condições se modificam?

6.4.2 Cas:mdo objeto-!Iletodologia...


'Trata-se de pesquisa para tese de Mestrado cm Educação, intitulada "Não Somos Máqui-
nas": um estudo das açõcs sindicais cm defesa da saúde dos trabalhado.~cs na Grande BH, P q:~al
foi defendida na Universidade Federal de Minas Gerais, cm 27.04.1992 .. As reflexões apre- • A perspectiva de adotar o relato oral no estudo a ser desenvo1Yido
sentadas aqui foram retiradas do projeto de pesquisa.
ganho~ consistência ao longo da revisão bibliográfica. Caminhei no
! Na época de elaboração do projeto dessa pesquisa ( 1990), a autora trabalhava como médica
no referido ambuiatório. sentidblde definir-me pela técnica de depoimento pessoal, cruzando a
biografik dos entrevistados com o tema corpo e trabalho. Os sujeitos
100
t 101
'
.~.. "11ft.;~ '
entrevistados foram escolhi dos entre trabalhadores que conheço pemlÍtcm uma aproximação do conheciment'o-das representaç(ks sociais
profissionalmente (como pacientes, dirigentes sindicais, etc) I! que sobre corpo e trabalho e seu processo de construÇão/transformação.
apresçntavam, aos meus olhos, posturas diversas em relação à saúde-
classificadas, num primeiro momento, como tipos-ideais: 6.4.3 ... por suas compatibilidades ...
• o desenvolvimento de estratégias defensivas "eficazes" rle negação
da existência ou da gravidade do problema: por exemplo, eles Em que medida meus prM$.upostos teórico-metodológicos,
introjetam a idéia de que tomar leite '\:ombatc a intoxicação" ou que construídos através da vivência;-6.6· estudo e da reflexão não-neutras.
o acidente só acontece com os outros; são compatíveis com os que embas'am os depoimentos pessoais? Em
• o desenvolvimento de estratégias defensivas de negação, com cont1ito primeiro lugar, pelo próprio processo de .:-onstruç~o ~e meu opjetqf,àe
intra-psíquico: eles se esforçam para convencer-se de que as medidas estudo, tenho um interesse profundo em compreender como os indiwíduos
preventivas adotadas pela empresa são suficientes, mas pennanecern agem desta ou daquela forma em r~lação à sua saúde, ou seja, o processo
angustiados pelo medo da doença; .de construção do sujeito no tocante à saúde. E digo processo, porque
• o d~s~n\'olvimento de estratégias individuais de resistência à acredito que a explicação de idéias/condutas do indivíduo pode>ser
expropriação da saúde: alguns tr~balhadores intoxicados por chumbo, encontrada ao longo de sua história, numa trama que vai tecendo de
após o tratamento, observam as condições de trabalho ao procurar fom1a singular entre o que ouviu, viu, pensou, sentiu, acreditou, temeu:
novo emprego; sua vida. As técnicas de relatos orais, como um todo, colocam o sujeito
• o desenvolvimento de estratégias colctivas de resistência à num lugar de destaque, valcrizaP..do as experiências que viveu e o que
expropriação da saúde: várias trabalhadoras portadoras de lesões por tem~ dizer sobre elas. Pelas suas características, tanto a história de vida
esforços repetitivos procuraram seu sindicato e organizaram comissão como os depoimentos pessoais c a biografia, dariam acesso a este tipo
para debater seus problemas e enfrentar o desconhecimento dos de· informação.
médicos e peritos sobre sua patologia e para cobrar do sindicato ações Em segundo lugar, sei que as representações sobre corpo, saúde e
preventivas junto às empresas. trabaiho - assim como outras ·- enquanto conjunto complexo de
A ''vigilância epistemológica" aconselhada por BOURDIEU significados, são marcad&s pelo tempo e espaço histórico dos grupos
( 1989) permitiu, durante a co1eta dos depoimentos pessoais,•qt~estionar humanos',\ Sua produção dá-se exatamente na intersecção entre a
a adequação do leque de tipos-ideais, da classificação do indivíduo em singularidade do indivíduo e a cultura onde ele se insere. É possível- e
um deles e verificar a dinamicidade destas posturas, a rigor dassificávcis de~afiante- visualizar, nas histórias de vida e depoimentos pessoai~~'O
apenas num "flash" lógico, mas, na realiàade, profundamente imbricadas. espaço bifacetário e tenso indivíduo-sociedade.
A interpretação dos dados foi feita âtrávés da análise de <.·onteúdo, Como terceiro ponto de compatibilidade, aponto tanto o interesse
definida como em conhecer as formas particulares como os indivíduos constroem suas
um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por representações sobre corpo c trabalho, como também a possibilidade de
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdos elas aproximar-me, ainda que minim~~nte, de uma ampliação do que se
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferéncia de poderia chamar de "cultura sob~e é<:>qJq eJrabalho" num segmento social.
conhecimentos relatiYos às condições de produção/ recepção (variáveis Se este é o olhar do pesquisador, estas técJJicas permitem conhecer,
inferidas) destas mensagens (BARDIN,1979, p. 42). através das falas dos sujeitos, os valores, as crenças e os padrões que
constituem esta cultura e são por eles apropriados.
A partir da análise de conteúdo, pode-~e inferir resultados que Um quarto aspecto seria o próprio caráter de transição (no sentido

102 . ...
',

~·,_•··.· 103
de "estar entre") das duas categorias centrais no estudo proposto. De desenvolvl!m. Por que "uma pessoa que responde a um questionário
nada mais faz• do que escolher uma categoria de respostas; ela trans-
um lado, a categoria corpo, situada entre o biológico e o social, cn~re a
mite-nos uma mensagem particular. Transmite-nos seu desejo de \'eras
natureza e a cultura. De outro lado, a categoria representação, localizada
entre o psíquico e o social, entre a idéia e a ação, entre produto e produtora
• coisas evoluírem num sentido ou noutro" (MOSCOVICI, 1979, p. 49)
(grifo meu). Talvez este risco seja reduzido nos depoimentos pessoais,
da cultura. As técnicas de relatosor~is petmitiriam explorar exatamente
que não se limitam à emissão de opiniões sobre questões levantadas pelo
esta interseçào entre a trajetória dê ~i'dn do indivíduo, a percepção de
seu próprio corpo e os elementos que compõem a cultura do segmento pesquisador, mas estimulam o entrevistado a falar de como pensou c
como fez. Outra possibilidade é a complementação com dados de outras
social em que está inserido.
fontes, sugerida desde Thomas ~ Znaniecki: os próprios prontuários
Finalmente, aponto a relativa fa~ilidade de execução da técnica,
a
se comparada, por exemplo, observação etnográfica. Este fator pesa
médicos (por exemplo, documento de alta de tratamento sob
responsabilidade, 6 documentos dos sindicatos, etc.).
também na opção pelos depoimentos pessoais, em detrimento das
O último ponto é mais simples. Trata-se do fato de a maioria dos
hist6das de vida, cujas aplicações são muito semelhante5. É que aqueles,
• estudos já realizados com a utilização destas técnicas, conforme pode
além de demandarem um tempo menor de' trabalho de campo (duração ..; e
ser observado nos títulos do catálogo do CPDOC (ALBERTI,l989), ter
número de entrevistas, sua transcrição e análise), supõem um
um forte caráter de recuperação, registro e análise da memória, voltados
direcionamento na condução dos relatos, o qual pode permitir um
para o conhecimento da história de comunidades extintas, de segmentos
aprofundamento maior das questões que tenho e facilitar a ordenação
sociais específicos, de períodos determinados, não havendo estudos ante-
do trabalho, de modo a minimizar o risco de ficar, como Guita Debert, ,
riores voltados especificamente ao campo da saúde. Este carater de
decepcionada "diante de um monte de fragmentos desconexos,
"novidade" na aplicação da técnica a este campo trouxe-me certa insegu-
incoerentes e ambíguos" (DEBERT, 1986, p.150).
rança. Entretanto, parece-me que, por suas características e pressu:oostos.
esta na o s~ria uma dificuldade intrínseca aos relatos orais, que impediria
6.4.4 ... embora possa prever dificuldades
sua aplicação a um estudo contemporâneo na área de saúde c trabalho.
No projeto de pesquisa, previ algumas dificuldades metodológicas.
A primeira delas era o fato de ter um conhecimento prévio das. pessoas 6.5 ASPECTOS ÜPERACIONAlS DA EXECUÇÃO DA PESQUISA E~tPÍRIC.·\
que seriam ~ntrevistadas. Certamente os entrevistados já possuíam COM AS TÉCNICAS DOS RELATOS ÜRAIS
alguma imagem de mim, construída a partir dos contatos anteriores. Eu
estava ciente de qu~ esta imagem, que provavelmente variava entre eles Pontuo, a seguir, ·aspectos a serem considerados no plancjamcnto
(minhàÍ~êdica, professora universitária, participante da Escola Sindica!, e na execução da pesquisa empírica, com ba:;c na experiência do CERU
etc.).l,nfluiFia no que eles teriam a me dizer. Ouvindo Thiollent, tornou-se (VON s;(MON, 1988), do CPDOC (ALBERTI. 1989) c da autora
·necessário r,ealizar uma sociologia da situaç.ão' de entrevista, para avaliar (RIGOTTO, 1992).
e controlar, na medida do possível, as di~~orçõcs oriundas dos diferentes
tipos de relacionamentos. ·
A segunda era menos uma dificuldade e mais um "incômodo". É -
6
Trata· se de documento assinado pelo paciente quando ele deseja alta de tratamento a
que marcou-me muito, durante o contato com a teoria e a metodologia despeito de opinião contrária do médico que o awmpanha. No caso dos pacientes portadores
antropológicas, a importância de não se ter como base para o trabalho de doenças profissionais que acompanhei no Ambulatório. a alta era solicitada por medo de
perder o cmprrgo, ou por dificuldad~s de re~istir à pressão dos familiares, ou pela força das
empírico apenas o discurso dos atares, mas também a ação que estratégias psíquicas de ncgacào da doença, <.'ntrc outros.
··-
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...... • .l
105
104 . ' """" ,;
6.5.1 Procedimentos iniciais
horas; se for necessário mais tempo, deve-se marcarnovo encontro.
• Estudo exaustivo do tema da investigação. . • O pesquisador deve apresentar-se (vestir-se. falar, compo11ar-se)
• Escolha do tipo de entrevista, conforme sua adequaç[lc ~os obje- de forma a não chamar a atenção do entrevistado, tendo sempre
tivos da pesquisa: história de vida, depoimento pessoal ou Ôiografia. 7 em conta a situação social deste. É importante evitar a presença
• Preparação do roteiro geral da entrevista, contendo todos os tópicos de terceiros ou mesr.:1o eventuais interrupções do depoimento por
a serem considerados em cada relato. 8 outras pessoas.
• Preparação de roteiro individual de entrevista, conforme a • A situação da entrevista configura uma relação social, na q1,1al
biografia de cada entrevistado. sujeitos distintos, com visões de mundo, experiências, linguagem,
Preparação do equipamento de gravação: verificJr contatos elé- sab~r e idades diferentes, estão se encontrando.em torno de um
tricos, voltagem, cabeçote, volume, pilhas, aderências nas fitas, etc. tema. Cabe ao pesquisador exatamente conhecer essa alteridade,
• Conta to inicial com o entrevistado, tomando clara a relevància da respeitando-a, inclusive em seu ritmo, na forma de articular o
contribuição do mesmo e o respeilo do pesquü:ador pela sua pensamento. Como qualquer outra relação humana, ela parte 'de·
experiência. Descrever francamente os propósitos da pesquisa e um estranhamento inicial e progride, idealmente, rumo à empatia.
informar sobre o uso que será feito de seu re~ato. • Caso haja necessidade de outro(s) encontro(s), deve-se preparar
Preparar o caderno de campo, o qual servirá como um instrumento um roteiro.parcial de entr~vista, com base no roteiro individual e,
de crítica e avaliação do alcance e das limitações da pesquisa. se possíve1, da escuta ou leitura da(s) entrevista(s) anterior(es).
Nele, deverão constar: observações sobre o entrevistado; a relação
6.5.3 -: Procedimentos posterioreSjit;_'!~trevi_sta
com ele desde o contato inicial; pessoas que serviram de
mediadoras para o acesso a ele; descrição detalhada da situação
• As fitas de gravação dcvemserrl!bobinadàs;iJentificadas e duplicadas9.
de entrevista e das reações à mesma; impressões sobre o grau de • Idealmente, a transcrição deve ser feita pelo próprio pesquisador,
liberdade de expressão do entrevistado; informações fomecidas devendo-se registrar ênfases, silêncios, riso:; e emoções.
com o gravador desligado, etc. O pesquisador deve acrescentar a descrição de circunstâncias e

.. gestos, anotados no caderno qe campo, necessários para a com-
6.5.2 A realização da entrevista preensão do texto transcrito.-.SjglCJs e nomes próprios devem ser
conferidos com especial cui®kio. -; . ' ..
• A data, o horário e o local da entrevista devem ser estabelecidos • Finalmente, procede-si! à revisão do texto transcrito, çonferindohl,:>'"l
I ., ,
de comum acordo entre pesquisador e entrevistado, de forma a com a gravação. · . ,t:k
assegurar condições de conforto e de privacidade suficientes para
não perturbar a coleta do depoimento.
É aconselhável que a duração da entrevistâ não exceda a duas
:·:... ~
9 A transcrição da entrevista pelo própr!o pesquisador permite-lhe "mergulhar•· imediata-
mente no~ dados coletados, facilitando o trabalho de análise dos mesmos, sempre complexo
- :\s tccmcas da história de vida, do depoimento c da biografia, como já foi visto,' diferem cm pesquisa qualitativa. Ent•etamo, como se trata de um trabalho demorado c, com freqüên-
entre si, mas nào sào necessariamente incompatíveis. Porta11to, é possível combiná--las cia, mccànico c tedioso, é conveniente que o pesquisador faca uma avaliação dos custos desse
numa mesma pesquisa. ~ , :.
procedimento i:m termos do :;cu lcmpo ·c dos recursos disponíveis para remunerar outra
'};ote-sc que o uso de roteiro detalhado nào é obrigatório. Alguns pesquisadores preferem pessoa para fazê-lo. E111 qualquer caso, o pesquisador terá que conferir a transcrição, compa-
lançar mão de entrevistas nào-diretivas. Ver, a respeito, THIOLLENT (1987). rando-a com a gravação da entrevista.

106 tn7
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RODRIGUES, José Carlos. O tabJA do c01·pu. 3.' ed. Rio de Janeiro:
Achiamé, !983. Parece-me oportuna a referência ao mito de Édipo, tal qual
escreveu Sófocles, em Édipo-Rei, para demarcar os caminhos da
interpretação seguidos neste estudo qualitativo, na perspectiva de
SADER. Edcr. Quando no,·os personagens entraram em cena. Rio
BARUS-MICHEL (1980). A idéia da fatalidade--que transparece tão
de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
nitidamente na lenda de Édipo possibilita resgatar o ine·.ritável papel da
subjetividade na metodologia qi.iâtitativa,· a despeito da 11ecessária
SILVA, Augusto dos Santos. A ruptura com o senso comum nas Ciências insistência do pesquisador em prdtÚtàr a objetividade. ··. · .
Sociais. ln: SILVA, A. S. e PINTO, J. M. (Org.). Metodologia das Ao buscar o oráculo de Delfos tomo forma de resolver~ iíicertbzâ
ciências sociais. Porto: Apontamento, 1987, p. 29-53. suscitada por convecsas ouvidas num festim, Édipo tenta desvenda~'ó
segredo sobre seus verdadeiros pais. No entanto, o deus, ao invés de
THIOLLENT, Michel J. M. Crítica metodológica, investigação social esclarecer-lhe a dúvida; anunciou-lhe um destino pouco alentador: o
e enquete operária. 5. ed. São Paulo: Pólis, 1987. patri'cídio. e o incesto. É do próprio Édipo que o deus fala e não dos
outros por quem procurava. E nem mesmo a decisão de não mais regressar
THOMAS, W.I & ZNANIECKI, F. The Poltsh Peasant in Europe para perto dos pais que o criaram impede que Édipo, rumando por uma
and America. 2. ed. New York: DÇ>ver, 1927. 2 V. estrada oposta, a caminho de Tebas, torne-se o assassino do pai e seja
empurrado a encontrar respostas para situações crescentemente
i 1('
complexas. Na verdade, o caminho inverso vai afirmando um destino
VAN VELSEN, J. A análise situacional e o método de estudo de caso
profetizado. Embora Édipo negasse insistentemente a sentença que lhe
detalhado. ln: FELDMÀN-BIANCO, B. (Org.) A11tropo/ogia das
• fora anunciada pelo oráculo, continuava descobrindo o seu destino.
sociedades contemporâneas métodos. São Paulo: Global, J 987,
p. 345-74.
Sem saber que a decifração de um enigma corroborava a profecia
do incesto, Édipo põe-se diante da terrível esfinge, nascida de Titão e de
Equidna, para responder à pergunta: "Qual é o animal que, de manhã,
VON SIMON, Olga de Moraes (Org.). Experimentos com história de
tem quatrp pés, dois ao meio-dia, e três à tarde?" (SÓFOCLES, 1966,
,·ida (Itália-Brasil). São Paulo: Vértice, 1988.
p. 76). Quem melhor do que o neto de Labdáco, filho de Laio e nomeado
Édipo para saber que "pé" significava "homem"?~ E, mesmo sem saber,
';.<.!1

l
I
1
Este t~xto é uma versão ligcuamc:ntc modificada do·primciro capítulo da dissertação de
mcstmdo da autorà, orientada pela professora Linda M. P. Gondim c intitulada Entre ovelha

I negra e meu gurl: a construção da idl"midadc do dclinqücntc juvenil pobre no processo de


,soc!alizhção na fa.nilia, dcfcndid& junto ao Programa de Pós-Graduação cm Sociologia da
• UFC, cm 1996.
"- S":ll--,--;- ,.
11 o 111
aberta ou velada contra o pai, paralelamente à associação de mães a
Édipb v~i produzindo sentidos. Se a esfinge enganadJra dos horriens o
tllhos (Gaia e Crono; Rea e Zeus; e Jocasta e Édipo).
·eildp~rrou para sua fatalidade. também o permitiu ir ao encontro da solução
ditqdllo que antes ~ra incoerência. J v ; •
· Édipo é, póis, coroadorci;desfiÓs~ndo Jocasta, a mãe desconhe·· 7.1 o PESQUlSADOR: TAL QUAL o MITO
c ida, como prêniio pela decifração do enigma. Mas, face às numerosas
Sem dúvida, como nos chama a aten;:ão BARUS-MICHEL ( 1980).
calamidades que começaram a atonnentar Tebas, ele é levado pelo povo
Édipo inventou uma maneira interessante de pesquisar: perguntar sem
a ordenar uma consulta ao oráculo. Este, mais uma vez, não responde
se incluir na resposta, buscar os outros e encontrar a si, insistir na
claramente, o que leva Édipo a recorrer a Tiré.sias, o divino profeta:
significação para desvendar o objeto de sua pesquisa. Mas por que

... Apolo, conforme de\'es t.er sabido por meus emissários, declarou a nossos pesquisa o pesquisador? Para quep.1 pesquisa? O que privilegia? O que
, mensageiros que só nos libcr.:ar_e~ps ~o)lagelo que nos maltrata se os pode ser dito sobre o que, de alguma fonna, ele previamente sabe?
assassinos de Laio forem descdoert~~Nesta'cidade, e mortos c desterrados. BARUS-MICHEL (1980) entende que o pesquisador é o primeiro
Por tua vez, Tirésias, não nos recuse as re1relaçõcs oraculares dos pássaros,
objeto dc.sua pesquisa e, no meu caso, devo confessar que fatalmente
nem quaisquer outros recursos de nia arte divinatória; salva a ci.dade, a mim
cumpro uma•espécie de destino profetizado e que tenho parte da resposta
e a todos, eüminando este enigma que provém do homicídio. De ti nós
· dependemos agora!... (SÓFOCLES,'1966, p. 88-89).
em meu próprio nome. Como todo home;n e toda mulher, cheguei ao
mundo, por assim dizer, nomeada. Deram-me meus pais, como primeira
, Se a busca da significação leva Êdipo a cegar os próprios olhos e referênciá, um nome incomum, junção dos nomes deles. E, desta feita,
Jocàsta ao suicídio, sobra a certeza d:! ser ele mesmo, fatalmente, a, se cunãopodcrianegá-lospelo sobrenome, muito menos o fari.a pelo nome.
resposta, o começo e o fim dé sua pesqdsa, a medida de sua procura: Filha de um juiz, acostumei-me desde muito cedo a observar o ir e
Oh! Ai de mim! Tudo est~.daro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez! vir dos caso5 judiciais. Contudo, mudei de rumo. Preferi ser psicóloga e.
Todos agora sabem: tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar;me depois, aventurar-me pela Sociologia. Decerto, contrariei a sentença que
com quem casei ... e ... e... eu matei aquele a quem eu não poderia matar. meu !Jaime havia ditado.
(SÓFOCLES, 1966, p. 132). Segundo o dito popular, "o assassino sempre retoma ao local do
Certamente, esta lenda não termina aqui. Restam os filhos crime". Culpada ou inocente pela morte da juíza que não me tomei, sei
que, com esta pesquisa, de alguma fom1a, retomo um lugar significatiYo
recriando fatalidades e também a certeza de que para Tebas o pesquisador
• para rni~. aquele espaço primeiro da construção da minha identidade
jamais retomaria, preferindo, pois, falar da distância de seu exílio. Mas
fica também a certeza de que este mito denuncia a fragilidade das leis e social: a 1minha família. E foi por isso mesmo que eu escolhi pesquisar
umu questão que também se coloca no campo do Direito, privilegiando
das coisas humanas (CHAUÍ, 1994). Mas esta lenda também não começa
a família como espaço de construção da identidade social do delinqüente
do ponto em que a tomei. Como diz BOECHAT (1995), o "devoraniento
filicida" precede a busca da significação e Laio recapitula ancestrais juvenil pobre. '
Prematuramente, a m01te levou metade de meu nome (minha
míticos como Urano e Crcno. Édipo também os recapitulará, a seu modo, l' mãe, Nina), quando eu estava no auge de minha adolescência, cheia de
quando amaldiçoa os próprios filhos. No processo histórico que tanto se I
configura no panteão grego como na lenda de Sófocles, há sempre a luta planos, sonhos e incertezas. Não pretendo, pois, situar como mero acaso
.JO. ou sofisticar o. argumento na justificativa da minha escolha por enfocar
"~i~ I'·)~~~~' nesta pesquisa a identidade social de adolescentes. Creio que meu grande
: A. ~~~~osta ~'âo rodcria s1:r 'mais analógica, vez qyc o significado do nome do a·1ô é "coxo",
fascínio pela adolescência, a prática psicopedagógica com grupos de
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o do pai. "pé torto", .ê o de Édipo, ''pé irichadc''~(CHAUÍ, 1994).
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113
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adolescentes e famílias das comunidades carentes da periferia de certezas subjetivas. Em outras palavras, parece-me necessário, antc;~,f'de'
Fortaleza c a própria inclinação profissional para o atendimento clínico mais nada, desconfiar de si para desconfiar dos outros e colocar-Ümites
de adolescentes e famílias têm muito a ver com tudo isto. naquilo que representam nossos sentimentos e angústias. E, assim, poder
Da mesma forma, muito cedo, outras perdas familiares se fizeram alcançar os outros, como fragmentos daquilo que sempre somos e também
presentes para mim. De modo que esse jogo da vida e da morte, esses • daquilo que, por vários motivos, jamais poderíamos vir a ser. Como
estranhos crimes que a vida comete, destruíram laços significativos e escreveu DA MATTA ( 1984) sobre o oficio do etnólogo, este deve
fizeram-me assumir novas responsabilidades, ao mesmo tempo cm que aprender a. transformar o exótico no familiar e o familiar no exótico,
exigiram mudanças familiares adaptativas. Assim, não foi somente pelo sabendo que nem o familiar se converte complP.tarr:ente no exótico e
desejo de íàzer um esforço intelectual que resolvi me colocar nnht campo nem o exótico no familiar, porque há graus e modalidades de
onde a vida e a morte dançam juntas, num interjogo de prazer e dor, familiaridade e de dif~renciação. 3 ... • !
\·inudes e vícios, nessa espécie de estreito limiar entre a razão e a loucura. Certamente, não foi trágica como na fatalidade mitológica a minha
Como disse uma adolescente por mim entrevistada: busca como pesquisadora, quando parti a campo, querendo saber dos
Sou re\·oltada de\ido estar r: essa vida porque não tenho mãe. 1\cho que, se outros, com a pergunta: Como a identidade sccial do delinqüente juvenil
ti\·e~se, não taria n..1ma \·ida feito essa. Não taria sofrendo. r-.Ieus irmãos se pobre é construída no processo de socialização na família? Entretanto,
mandaram. Só Deus sabe pra onde! O que vai ser da mjnha vida? Mas eu fatalmen~e descobri que buscar os outros é também encontrar a si.
tenho que fazer a vida agora enquanto é tempo... Sei lá ... Pensi' cada coisa .. E~ meu diário de campo, em 28.2.1994, pouco mais de um mês
:\Ias tenho que fazer alguma coisa, porque, se eu não fizer, tô pas~ando por após ter iniciado minha pesquisa, escrevi: I···.
cima da ?rópria vida.l\inguém pode passar por cima da própria vida. Você
Ingenuidaàe p"!nsar que o vento sopra a .meu favor. A tod4 hora ele me
acha que pode? ... É mais ou menos como a vítima. Esperneou, morre•1! A
denuncia i!, a toda hora, eu persisto ajustando a~ velas. Nzvegando em meio
útima não pode reagir, desse jeito. Vou dizer uma coisa só pra vucê. El'. só
a tantos paradcxos e entrando 'em contato com o humano, ob\·iamente
matei porque ela reagiu, ficou esperneando, gritando... Olhe:: aqui, cu não tenho
àescubco-me humana no conta to, humanamente igual e desigual. Emociono-
nada a perder... A gente tá nessa vida mesmo é pra viver ou morrer... Acho
me, sinto raiva quando meus entrevista ::los parecem zombar de mim, sinto
que não sou nada.Achoquenãosouninguém .. Mas eu tenho um cot2.ção bom.
medo, alegro-me, canso-me. , E~tranho as coisas que não são de todo
J,j~ .1;,

Mesmo que só reste um coração bom, creio eu que ninguém pode .,.,
passar por cima da própria vida e muito menos dos próprios sofrimentos,
por menor que eles sejam, sem que para eles busque, de alguma forma, 1 Ao tomar emprestado da Dra ..rcan Cartcr o termo "anthropol0gicd blues", que propõe
englobar c desvendar os aspectos interpretativos do :>tido de ctn01ogo, de modo a in.:orporar
sentido. r\ essa busca dl" sentido, surge a atitude crítica, como a r1ão às rotinas oficiais da prática etnográfica o~ aspectos extraordinários que emergem do
aceitação do sofrimento, da incoerência; c, muito menos, de idéias e relacionamento humano, D:1 Malta entende que o etnólogo deve aprel'der a real:zar uma
sentimentos do cotidiano para, de forma positiva, interrogar "o que são dupla tarefa: transformar o c:<ótiro no familia-r c- o· familiar no exótico. A primeira
transfonnaçào refere-se ao movimento ,dcli~c&9o ~o ~tpêfogo de buscar compreender enigmas
(Js coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, sociais que estão cm universos de ~ignt!Ícaçào pnr ele incompre~ndidos. A segunda
nós mesmos. (CHAUÍ, 1994, p. 12.) (grifo no·original). transformação refere-se ao momento cm qu\:f,o
etnc'logo estranha à regra social familiar c
DuYido que qualquer pesquisador possa afirmar com total d~sco~rc ern si, de modo petrificado, o muhdo de práticas primitivas. Sobq: as J!~çqlcs
· dirâmicas de famiiiar ~ exótico, Da Matta explica que ambas trazem a idéia de que ~'fa~QS,
comicção que seu trabalho não é a priori e a posteriori para si. Isto as pessoa!~, as categor:as, as classes etc. podem fcr parte ou não do universo diârío do
não significa a caracterização de uma atitude meramente egocêntrica, pesquisador. Ao rião cquaci,Jnar as noções cm termos ~aquilo que é simplcsmente·''cbii'Itecido"
c "não conhecido", faz com que .o Intimo c o próximo estejam englobados nas noções,
no sentido da ausência de distinção entre a realidade pessoal e a realidade levando o etnólogo a refletir sobre a cotr.plexidade que C!!Voh·c a construçii() de interpretações
objetiva, ou de uma atitude ingênua, na qual prevaleçam as crenças em sobre •:nigmas sociais (DA MATTA, 1984, p.l56-16:!).

114 115
fa.niliares e até mesmo aquelas que são. Estrar1ho inclusive a mim mesma. ÇARDOSO (1986), ao discutir o lugar da subjetividade do
Transcrevi a entrevista de L. e, dentte outras co;sas, eu sublinhei: 'Você não pesquisador e a natureza intersubjetiva da relação pesquisador-
,, é como a gente ... Seus cabelos :nacios, suas roupas, tudo é diferente ... Por infmmante, adverte que a pesquisa qualitativa supõe que o pesquisador
que faz estas entrevispas? ... Vai ganhar dinheiro com isto? ...,. Por que tá analise o seu próprio modo de olhar. Para tanto, deve limitar as relações
interessada em ~aber coisa da gente, se não vai ganhar dinheiró~ ... Você ten' pessoais aos contextos da pesquisa e estudar as condições sociais de
medo de fechar a porra pra ;ne entrevistar? ... Eu não tenho um corpo assim
produção do seu próprio discurso e do discurso do infonnante. Somente
limpinho por fora como o seu (acha graça). Acho que por dentro também 4

não (gargalhada) ... Sem brincadeira, acho você boruta. Sua mão é macia. Olha assim pode-se produzir interpretações, e não "interpretoses".
aí! Se duvidar, o pé é também ... Com0 é sua famíli2.?'. É neste sentido que recorro mais uma vez ao meti diário de campo.
onde em 11.4.1994, ensaiei um poema e, logo abaixo, escrevi uma
Vejo com clareza que não há objeto que se explique por si, setn observação no mínimo esquizóide, entendida aqui como metáfora de
que se instaure uma relação, sobretudo quando pesquisador e objeto têm um ·p~radoxo:
·1. Enchendo ~folha vazia
a mesma natureza. Na trajetória do pesquisador, os significados não são
apreendidos isoladamente c toào conhecimento só é possível na Quando eu olho noS'-teus olhos
integração SUJeito-objeto. Isto não implica uma tendência psicologizante Pra desvendaheus segredos
ou meramente relativizadora do real, a ponto de destitui-lo de existência. Sinto que eles me perseguem
É, antes d~ mais nada. marca do caráter intersubjctivo de uma relação, Descortinando-me nesse brinquedo
onde as informações colhidas são fragmentadas e as perguntas feitas Onde finjo que te procuro
pelo pesqu;sador, da mesma forma, fragmentam aquilo que ele quer sab~r, ~eito viajante estrangeira
nãQ; somente pe!a forma como são colocadas, mas também por aquilo E, assim, vou preenchendo o vazio
, : •. que;-.ocultam ~o pesquisador. O informante, portanto, não só comJJnica De estar a um só tempo na proximidade e na distância
Daquilo que sou de ti e que tu podes de mim ser
aqüilo que o pesquisador busca apreender. Ele compartilha de um drama,
No território inexorável
onde igualmen,te busca entendimen~o'. ·
Da aventura da existência
Pensar 'a relação pesquisador-informante como um drama Onde buscamos significados
compartilhado é falar de uma interação face a face, que dá lugar a Para dominar a incoerência.
antinomias e que não se restringe a um simples diálogo ou à dialogicidade.
Se esta relação fosse a!:>sim pensada, o foco do interesse do pesquisador OBS.: Hoje não aconteceu nada de interessante em campo.
estaria na cadeia de- significantes ou na especificidade da forma de Nada que mereça registo. São três da madrugada. Há muito
comunicação entre pesquisador e informante, não englobando o contexto está na hora de dormir.
dos significados ou as outras inteFaçõ~~o'Íiiformante (ZALUAR, 1986).
Como entende DUVIGNAUD (1983), drama é um conceito operacional O interessante da minha observação final está justamente na
importante para que se compreenda que o ser humano é capaz· de contradição. Primeiro, se nada havia a registrar, por que fazê-lo? Segundo.
representar-se, de observar a conjuntun1 em que se inscreve e de agir em porque, considerado o que se afirma no ensaio poético, a obserYação
meiQ aos espetáculos que marcam o cotidiano. Isto porque a existência
coletiva põe em cena papéis sociais e objetiva-se em meio à dramatização, --__,...------
Neologismo utilizado frequentemente por psicólogos. para indicar intcrprctaçõ.:s
qu~ caracteriza a sociedade enquanto área de ação, onde o homem 4
amadorísticas, ou seja, desprovidas de cmbãSamento teórico c de atitude critica do profissional
conquista sua humanidade. cm relação a ~cu próprio discurso,
'::·1
\ 117
116
\
I
\

parece pura ingenuidade. Por outro lado, o que faz o eu poético em meio comportam e que determinam critérios de classificaçãJ e hierarquização
à madrugada senão ver o que, muitas ·vezes, o eu diurno do pesquisador de valores ou idéias. Portanto, se, de um lado, o caráter intersubjetivo da
se nega a enxergar? RESENDE (1993) ajuda a esclarecer esta questão, relação 'pesquisador-objeto é marca de uma mesma natureza que o
quando compara o olhar do poeta ao olhar de uma criança e artalisa o permite descobrir o outro, a própria insistêrtcia em garantir diferenciação
vazio do campo visual daqueles que não fazem uma autocrítica on olham e a forma como alude a seu objeto é marca de alteridade, no sentido de
o próprio mundo com indiferença: "Um poeta é só isto: um cr!rto modo que só assim poderá afirmar a existência de "outrem" que não é a sua
de \'Cr. O diabo é que de tanto ver, agente banaliza o olhar. Vê não vendo." própria pessoa.
Na verdade, a contradição não pode ser entendida como mero Se a prática do resquisador e toda a descoberta dela advinda é,
desacordo entre palavras e ações. Cabem aqui, portanto, algumas por assim dizer, detemânada por aquilo que ele quis saber e que, de
considerações metodológicas que constituem aspectos fundamentais da algum modo, previamente sabi~ •. ;~ exercício da lritêrsubjetividade não
relação sujeito-objeto e da natureza do conhecimento científico. e
se dá fora de um campo definido. E esse campo de outros atores sociais,
É interessante retomar o mito de Édipo, diante da ef>fingc onde se desenrola um drama, tal e qual o pesquisador jamais poderia ter
enganadora dos homens: aquela que pergunta e que também responde vivido, que determinará as respostas que ele obtém e as interpretações
ou tem a resposta. Um a zero para a Esfinge? Com certeza, ela empurrou que constrói. Neste sentido, GEERTZ toma emprestado de Gilbert Ryles
Édipo para a fatalidade. Mas um ponto também para Édipo: ele segue a noção de "descrição densa" para explicar o que é a rrática etnográfica,
alcançando o objeto de sua busca (BARUS-MICHEL, 1980). No a qual não se limita a uma questão de mét_ç>do, sendo, antes, um tipo de
interjogo da afirmação e negação da subjetividade do pesquisador, lado per~pectiva intelectual: ·
a lado com esse eu que jaz para se dizer diferente e que p<~.radoxalmente
trava diálogos internos consigo mesmo, há a subjetividade de outrem, "Se a interpretação Áfitropológi~a· e~tá CC'nstruindo uma lein:ra do q\le acq~t~çe,
ainda que parac.oxalmente ta.mbém negada, até porque objetivada, senão então divorciá-h do que acontece- do que, nessa ocasião, ou naquelejuj~r,
no todo, pelo menos em parte. E neste ponto é fundamental analisar esse pessoas específicas dizem, o que elas falam, o que é feito a elas, a,pãtfir de
jogo, onde a investigação do "diferente" estabelece o contato com a todo o vasto negócio rlÓ mundo- c! divorciá-la das suas aplicações·cndrná-la
dúvida dessa espécie de Esfinge que pergunta e coloca o pesquisador na vazia." (GEERTZ, 1978, p. 28).
posição daqueles que ocupam o lugar de objeto: no sen!ido de que são
pesquisados. Mas, acima de tudo, fica a insistência do pesquisador na 7.2 0 CAMPO- AFiRMANDO A VIDA DIANTE DA MORTE
posição de sujeito que pergunta, como forma pe garantir diferenciação e
não se incluir na resposta. · Onde pesquisa o pesquisador? Na lenda grega, é possível
Mas não é só a insistência na posição assimétrica que ül."staura a vislumbrar o campo como o lugar da constante tensão e das armadilhas
diferenciação no contato com o "diferente". É também a desiguáldadc imprevisíveis. Mas o que dizer do pesquisador mitol~gico diante da
no domínio, na alusão do pesquisador a seu objeto: ora um conceito, . surpresa. a-histórica de um contexto enigmático? Certamente, fica a idéia
como "identidade social"; ora uma categoria jurídica, como de que não apenas a persistência, a afi:mação da alteridade e a forma
"delinc;,üente"; ora uma condição na temporalidade da vida de qualquer como alude a seu objeto podem garantir seu êxito na busca da
sujeito, como "adolescente''; ora uma categoria social, como "pobre"; signiticação. Faz-se necessário desarmar as armadilhas daquilo que
ora parte de um processo, como "socialização"; e ora membro de uma apa.r~ce como situação nova, atravessada pela força que o coloca em
instituição social, como "família". E, dentre as inúmeras fonrtas de alusão risco:, di~te do inesperado e do estranho. É preciso, então, decifrar o
enigma, ~orque só assim viverá o pesquis~~or para garantir a existência
ao outro, figurarão todas as possíveis representações sociais que el;1s
I •
do objcto de sua pesquisa. PClr outro lado, vê-se que o pesquisador, mcs.mo

118 1 ;.119
escolhendo o objeto de sua busca, não possui o domínio sobre o que assinalavam o meu não pertencimento,..a certeza de que eu não era parte
privilegia. Ainda que parta de perguntas bem formuladas, embasadas daquela estrutura e estar!a ali de passagem:
em referenciais que inauguram o seu caminhar, é o campo, As vezes, o pessoal vem aqui e, como não \'i\·e a situação como a gente que
indubitavelmente, o local onde a capacidade de lidar com .a surpresa e está aq;.Ü todo dia, viven:lo isto, tira conclusões apressa2as... O problema~
de entendê:la determinará o êxito de seu investime:J.to. · que~ realid:1de é em geral pintada bem mais gra\'e do que é. :\ gente que~
·· ~ssi~, o que pode o campo dizer sobre a trajetória do pesquisador daqui sabe disto. Não é tão grande o número de infrarores, como dize:n per
rêi;pt1r ~xtensão, sobre o objeto de sua pesquisa? Se o campo é basicamente aí. S?o os Je sempre, na maior parte dos casos. É por causa da reincidénc11.
uma: novidade, é também o local do estfàrihamento, no sentido de que é Mas a periculosidade tem aumentado, porque agora com o Estatuto eles são
a priori uma expériência contrastante. 'Isto porque o campo por si não . utiliz:.dos pelos adultos. Tem também o caso das gangues. O promoto:- esri
autoriza o ingresso do pesquisador e, cm muitos momentos, ele se sendo mais rigoroso com isto; (Funcionário).
cristaliza de tal forma. que retroalimenta a dificuldade de acesso,
delimitando papéis e aütudes possíveis. Além do mais. cedo ou tarde, o Durante as visitas que fiz, tive a oportunidade de assistir, como
pesquisador vê-se diat~te de uma situação na qual precisa conquistar ouvinte, às audiências do Ministério Público, e de conversar com
espaço, confundindo-se comó se fosse um igual que, na verdade, jamais funcionários do Judiciário e do Estado. Também tive acesso aos Boletins
pode ser, ao mesmo tempo em que.·pre~sa- diferenciar-se, para garantir de Ocorrência e processos dos adolescentes infratores. Afastei-me do
alteridade e delimitar seu papel. Comot'"nêssa ~xperiência contrastante campo para concluir e defender meu projeto de pesquisa, retomando só
fatalmente são criadas distorções entre aquilo que constitui as em janeiro de 1994, quando havia sido transferida para lá a Delegacia
expectàtivas do pesquisador e os interesses dos atores sociais que da Infància e da Juventude. Também fôra construído o Abrigo Luiz Barros
compõem o campo, o pesquisador, parte dessa experiência, jogará um Montenegro, que substituiu o pequeno salão nas dependências do S.O.S.
jogo político. A saída possível é. compreender como funcionar no campo Criança, onde antes os adolescentes aguardavam as audiências. Passaram
e, sobretudo, como vencer dificuldades, tais como limitaç:ões colocad~s a funcionàr num complexo integrado a Delegacia, o Abrigo. o S.O.S.
pela instituição onde pesquisa, pr.oblemas de ordem-técnica e até pessoais. Criança, a Creche e a 3a Vara da Infância e da Juventude.
É nesta ótica que eu gostaria de introduzir minha aventura no cantpo, as Chamaram-me a atenção o colorido das paredes da Delegacia c a
barreiras que tive que enfrentar, os desv!os que precisei estabelecer. arquitetura dos novos prédios. As cores vivas que acompanhavam o
colorido da l!::reche em frente davam um tom alegre e lúdico ao local.
7.2.1 Triagem ou casa? A passagem pelo Abrigo Coadunavam-se com a simbologia da criança e do adolescente que a
nova lei tenta imprimir, embora não conseguissem ocultar a simbologia
No segundo semestre de 1993, com o objetivo de melhor delimitar do ''menor infrator". Olhando de perto, um buraco na parede do Abrigo
o objetq de meu estUdo:· bem como verificar a estratégia metodológica e as grades recém-fixadas contrastavam com as cores alegres. De fato.
que eu ado ta ria, cheguei, como uma estranha, à 3a Vara da Infância e da o efeitcr c.osmético da arquitetura e das nomenclaturas não conseguia
Juventude de Fortaleza, onde também funcionava o S.O.S. Criança e maquiar h distância entre o idealizado e o que materialmente se
uma creche. Meu acesso foi facilitado pela amizade com a juíza de direito concretizava, na tentativa de lidar com os delinqüentes:
que, então, respondia pela Vara. Isto, contudo, não descaracterizou a Aqui é a triagem. Só que agora não.é1mais pra chamar assim. Eles finm agui
experiência de estranhamento. Apesar de legalmente autorizada, a no Abrig~ aguardand0 a audiência. Aí, se o promotor liberar, eles Yào para
legitimidade da minha presença só seria aos _poucos construída. Eu mesma as famílias. Se não, elf'S são encaminhados para outras casas da FEBE.\!CE.
me sentia estranha e os próprios atore$ que ·compunham o campo •
121
120'
,(f~ç ~)~ !
• ...,;!,(..
\l ~
.,

Os mais gra\·es \·ão pro São :\liguei. Eles morrem de medo de ir pra lá. As enganar os meus sentidos, se o meu o Ifato aguçado me pro\·oca dor
meninas \·ào pro Aldaci Barbosa~ ~fas tem poucas meninas. Acho elas mais de cabeça e se o que eu vejo me remói o I!Stômago? Nunca \'i
difíceis, porque são mais escandalosas ... " (Funci~nária). pesquisador fa!ar sobre isto, mas tãl\·ez assim pro;.:edam para ocultar
o inevitáYel es:ranhamehto ou para não parecerem etnocêntricos.
.\!ais do que nunca, senti-me parte daq~ele contraste, tanto que De qaalque r forma, Ç~solvi o problema com· uma aspirina e dirigi-
escre\'i no meu Diário de Campo: me a um elos dormitóri?s para gra\·ar minha primeira e~tre,·ist~\ :: . '
-'Tia, a senhora vai fazer report~gem? Se for, não esqueça de coloC:tr'
o meu nome completo e também dizer o que esses policiai5,fiÍ~s da
O espaço físico foi moditicado. Aquilo que era um monte de tijolos
ptda fazem com a gente'- estas foram as primeiras pala nas que me
sobrepostos com argamassa \·irou um.1 colortda construção. fl.hs o
disse o meu entrevistado.
que a pinrura pode dizer da realidade? Será parte de uma visão diference
Não demorou muito e eu esta\·a cercada· por uns doze adoles-
do real que se tenra const~uir? .\las o que pode também oculta::?
centes.Todos falavam ao mesmo tempo, contando suas façanhas no
Dois passos na varanda e eu já estava na recepção do Abrigo,
mundo da delinqüência, enquanto o policial e a cozinheira ohserva\·am.
acompanhada pela escri\·ã do cartório da 3• Vara. Fui apr~sentada a
Com o tumulto geral do amíncio da chegada do promotor, parei
três policiais e a dois monitores como pesguisadora autor~z~da pela
de gravar. Os adolescentes ameaçavam fuga, rebelião, incêndio na
juíza. Da recepção a\-ista-se um saião com mesas, cadeiras, jõgcf, uma
corrente elúrica e escorament-:> de funcionários, se não fossem
televisão (estava ligada na rede Globo);jardim do:= inverno e portas de
liberados. Um deles duvidou de minha coragem e me chamou de
acesso a dom1itórios e banheiroz, além de uma cozinha separada por
"vacilona". Nada me ocorreu, exceto a dor de cabeça e a certeza do
um balcão de ah·enaria, onde a cozinheira colocav-a comida para os
adolescentes em utensílios de plástico. • estranhamento inscrito em meu corpo.
São quatro dormitórios com camas de alven:.ria em forma de
beliche; sobre elas há colchõ.e5 de esponja cobertos por lençóis A experiência contrastante que o car.1po propicia exac_erba no
coloridos. 1'\ão há travesseiros. Nas paredes caiada:. de branco no pesquisador tudo a que se pode dar significado. É assimilada pelo corpo.
interior do },brigo ha\-ia marcas de pés e rnãos e buracos pequeninos Aguça os} sentidos. Aos poucos, o probkma do estranhamento vai dando,
no reboco. Num dos quartos destinados a adole5centes ou crianças lugar ao' encantamento, traduzido por.:uma espécie de pseudo-
do sexo masculino h avi:. um burar.~ maior. A grade _sobre os pertencimento e pela constante busca de significações, na qual a própria
combogós estava explicada: - Pela liberdade a gente faz qualquer diferença entre pesquisador e outros sujeitos é, aparentemente, driblada.
negócio.- Disse-me um adolescente.
Mas nã.o é sempre que a legitimidade de sua presença em campo deixa
A porta do salão que dá acesso à rer.epção é de correr e só~ trancada
áe ser questionada:
à noite. Policiais e monitores a vigiam. A oarreira de acesso à liberdade
eram as pessoas. A pequena sat:-. com b:.nheiro anexo foi des~nada à A gente tem que zelar para que os adolescentes não sejam identiticados. A
cLretora, que havia saído para resoiver algum problema~ • nova lei é m:.is severa com estas questões. U;na \'ez fui ad\·ertida, porque
A alegria de estar ali, gravador na mão, iniciando minha aventura, u;n:~. pessoa dos Direitos·Hum~:ITos.:esteve aqui e publicou no jornal um
nJo anula\·a o incômodo que eu senti:.. Havia um cheiro para mim monte. de mentiras. Hoje, tenho o maior r.mipado, porque, se qualquer coisa
insuportá\·el. Não que o ambiente estivesze sujo. Mas era o c!leiro que dá errado, cai todo mundo em cima.Tendo ~utol:i2açào da juíza, aí, acho que
vinha dos adolescentes e crianças que ali esta\'am, daqueles corpos não tem problema nenhum. (Funcionária).
n~arcados de escoriações, hematomas. feridas abertas t recém-
cicatri<.adas, dentes pretos cariados, mal hálito e um catarro verde 1Quando, na experiência de campo, a legalidade é invocada, ela
escuro que o nariz não conseguia reter. Era o cheim do bicho homem, não apenas nos falr. das regras e hierarquias, como também da não
misturado com sabonete e desodorante baratos. pertença do pesquisador. Portant~~.devo dizer que não !bastou ter meu
~aquela hora, pensei cá com os meus botões: Como pos~o acesso legalizado por uma amiza'G1é ..pessoal, posto que também tive que
.f' ~(, .

122 '
hl;J>"
~--'
itt
jogar um jogo político e que este jogo
v#.ssavâ·1nclusive pela conquista do relatam, corno Da Matta, 5 as vezes em que foram capturados pelos atores
espaço, num sentido literal, uma vez que; apesar do esforço do arquiteto, de seu campo dP. investigação, acho importante lembrar que nem todo
o Abrigo só contava com um local realmente adequado para realizar dia é dia de pesquisador. Isto porque, assim como eu pesquisava. os
entrevistas sem que houvesse constantes interrupções- a sala da diretora. outros tamt,érp, de alguma fomta, faziam sua pesquisa.
No entanto, a limitação de espaço não era só para mim, e a ameaça do Quando cheguei no Abrigo, fizeram-me algumas recomendações
perigo, uma constante para todos: sobre o cuidado que eu deveria ter com meus objetos pessoais, inclusin:
quanto à possibilidade dt: serem usados para fuga, talvez porque cu
O médico não cem (lÜI'n uma sala para consultar o~ meninos. Era para
ter outra sala aqui. Ele vem, fica aí em pé aguardando esta sMa vagar.
normalmente era displicente com isto, e até me indicaram _um armário.
0Jào tem nem receituário. Outra coisa é a fuga. Ave M:tria, se um onde eu poderia guardar meus pertences. Mas, naquela manhã, eu estava
menino desses foge' Essa sala aqui não tem nem segurança. Já pedi com uma co1Tente de ouro no pescoço e alguns anéis e julguei. sem
par:: colocar grades. (Funcionária). ~nuito pensar, que poderiam parecer uma afronta no Abrigo; resolvi deixá-
los no porta· luvas do carro. Para minha surpresa, estava sendo observada:
Mas o jogo político não se expressava somente na conquista do
Tia, vi você chegando. Tirou o cor.:lào de ouro e os anéis. Só não tirou
espaço que eu precisava por uma imposição metodológica, posto que
fazer entrevistas~ nos dormitórios, além de não me parecer bem "isto esse !Jrinco aí, porque deve ser de ~f1chelin 1' (adolescente).

pelos funcionários, resultava em constantes interrupções. Este jogo • •,•


1
'
também implicava estrar.has negociações, que muitas vezes me atribuíam Apbservação do adolescente me deixou tão assombrada quanto
um poder que eu não tinha: GEERTZ (1989), ao se ver descrito com muitos detalhes por um balinês
que jamais havia lhe dirigido uma palavra. 7 Teria eu comedi to um deslize
Agora que a gente ajudou aí no seu trabalho, vá lá e de uma forcinha imperdoável e até infantil? Talvez. No entanto, foi assim que aprendi
com c promotor para o meu filho ser liberado." (Mãe de uin que, maior que o meu desejo de ser aceita pelos meus entrevistados, era
adolescente que aguardava audiência com o promotor). o meu incômodo de vê· los observar em mim aquilo que, provavelmente,
~~ <. ~' não poderiam ter por outra via que não a delinqüência. Era também em
mo~entos como estes que eu confirmava a oposição que interligaYa a
·'-'·'~A-experiência do trabalho de compo mostra que é impossível,
para'o pesquisador, evitar que os sujeitos pesquisados tentem influenciá·
lo oú mesmo manipulá·lo, de acord<>:dom interesses individuais ou ' Refiro-me ao rrlato sobre a situação que envolveu o ato do indiozinho Apinayé. ao

grupais. Impossível fugir dos· telacio~afnentos pessoais, pois, como


presentear o -antropólogo com um colar, enquanto este e~tava prestes a lhe propor uma
recompensa .. Mesmo tendo o pequeno nativo saído de sua casa sem olhar para trás, Da ~ !atta
mostra DA MÂITA (I 978), o antropólogo nunca está sozinho. Ao mesmo duvido•J daquele ato de bondade, entendendo que tal virtude não poderia existir numa sociedade
tempo em que está líg.aâo a sua cultura, relaciona-se a um sistema de onde os homcr.s são do mesmo valor: "Duvidei de tanta bondade porque tive que racionalizar
imediatamente aquela dádiva,.caso ·contrário não estaria mais solitário. ~las scr:i que o
regras exóticas que .•.risa tomar familiar. Assim, embora os manuais de etnólogo está rca!mcntc sozinho?" (DA M,\TTA, 1978, p. 33-34).
pesquisa social geralmente façam crer que é possível a solidão do 6
Michelin é um material folheado a ouro de dczesscis quilates.
7 Em suas netas sobre '1 briga de gales balincsa, Gecrtz conta a aventura de uma fuga. tenJo
pesquisador, é descobrindo o extraordinário na relação pesquisador· cm vista a batida p0licial na rinha cm que ele estava. juntamen~e com a esposa. :-;a fuga. o
nativo, em seu aspecto mais humanQ~,q~~J:;>.ii Matta se dá conta que não casal buscou abrigo no pátio da casa de um balinés também fugitivo. Ao ser abordado pela
é só o antropólogo que tenta identificar~seouinanter·se orientado para o polícia, GEERTZ ficou surpreso, quando o nativo partiu cm sua defesa: ··Nosso hos-,cdeiro J~
cinco minutos saltou instantaneamente cm nossa· defesa, fazendo uma descrição tão apaixonada
grupo que estuda. Há a identificação do nativ~ com o sistema que o de quem c do que éramos, com tantos detalhes c tão correta que cu, que mal havia me
pesquisador carrega consigo. Mas se, raramente, os pesquisadores comunicado com um ser humano vivo, a não ser o meu senhorio c o chefe da aldeia. durante
mais de uma semana, cheguei a ficar assombrado." (G EERTZ. 1978. p. 281 ).

124
125

,I
minha identidade e a deles e a certeza de que, no campo, eu era descoberta ele também estava presente e nem sempre era tarefa fácil contorná-lo:
e também me descobria. Vá lá, tia.. Tô sendo legal com a senhor::.. Tá ,·endo aquele policial ali?
Continuei as visitas ao Abrigo até o princípio do mês de maio Ontem de ncite ele chegou e pediu pra gente pegar nas 'coisas dele'
de 1994. Gravei onze entrevistas com adolescentes do sexo masculino, pelo buraco do cumb0gó. Bicho ~em Yergonha! Se a senhora disser
quatro com adolescentes do sexo feminino, quatro com famílias e uma pro promotor !iberar nós, eu lhe conto .nais coisa. (Adolescente, 16
com uma assistente sociaL Minha produção no campo foi extremamente anos, sexo feminino).
prejudicada pelas constantes viagens a serviço da empresa cm que
trabalho e pelo cansaço d~ acumular as responsabilidades inerentes aos i
I
A rpedida em que o tempo foi passando, a distância entre minha
casa e o Abrigo, situado num bairro periféri_ço de Fortaleza (O lavo Bilac),
papéis de mãe, esposa e trabalhadora, além da falta de qualqu.-r auxílio foi parecendo maior. O trânsito por si era·estressante e a isso se som~va
financeiro que me permitisse pagar algum colaborador ou mesrnn as
despesas de deslocamento e materiais necessários à pesquisa. Não foram I a dificuldade de conseguir espaço para gravar entrevistas, bem comó' as
freqüentes interrupções que elas sofriam. Quando não era a chegad,á ou
poucas as vezes que pensei em desistir, sobretudo quando eu sacrificava I saída de viaturas, o chamamento' para as audiências, o ir e vir dos
os meus fins de semana e a companhia da família. Neste sentido, o I funcionários e o clima de alvoroço, era a própria ten~ão dos adolescentes
campo estende-se para permear a vida do pesquisador e em casa são I ou de seus familiares na expectativa do destino que lhes seria dado.' Isto
recapituladas experiências vividas em campo:
Não sei porc,ue tá fazendo esta pesquisa. Pot acaso vai ganhar algum
l para não falar da indisposição clo~·adolescentes devido à ressaca das
drogas, à noite mal dormida·ou ã âor das marcas de agressão presentes
dinheiro com isto? Você vive estudando, 3entada aí :.~essa ..:adcira e a em seus corpos. Além do mais, dificilrnêntc meus entrevistados me
gente ainda tem que ficar ouvinc!o estas entrevistas. Não ~c;i pra que entendiam corno pesqui5adora. Se eu nlio era um tipo de investigadora
isto. Se fosse ao menos ganhar dinheiro. .. (minha filha mais velha, 14 anos). disfarçaáa ou repórter, deveria fazer o papel de monitora ou assistente
social da instituição, intercedendo por eles perante o promotor. Mesmo
Minha pesquisa também ganhou um· status de importância para '
as costumeiras chantagens infantis e, da mésma fonna que no campo,
foi objeto de negcciação:
i.I que eu tentasse explicar que não era aquele mçu papel, em geral a maior
parte do tempo das entrevista~ era5pm~da.em falas que yisavarn provar
a inocência do adolescente. Prefedam:osadolesccntes me contar;façanh(!.s
Se me botar de qstigo, vou gravar música baiana por cima der.sas que me pareciam irreais; poucas vezes at::eitavam falar de suas,fam{Jias,
fitas. E tem mais! Vou ligar é pro S.O.S. e denunciar você. Vou dizer 1
sobretudo quando as pessoas do Abrigo entravam na sala da diretorJi'krrt
pra todo mundo que ,·ocê não liga mais pra gente, que só quer saber
dessa droga de tese, desse negócio de mestrado que nem ganha/
busca de algum material de trabalho. Sempre que o assunto era,faniHia,
dinheiro. Você ,·ai passar a maior vergonha do mundo .. Vou dizer um silêncio se fazia, a expressãa..do rosto dos adolescentes mudava, os
também que minhas notas estão baJxas por sua culpa (minha rilha olhos· brilhavam, contendo a lágrima que nunca descia. No lugar dela,
mais no,•a, 12 aros). .J surgia qualquer palavra que desviasse o assunto, como uma coisa que se
punha no lugar daquilo que o não-verbal estava prestes a denunciar,
Se não comprar os meus Cavaleiros do Zodíaco hoje, vou esconder
suas fitas na última ga,·eta do meu guarda-roupa e você nunca mais
como alguma coisa que restava, quando o corpo era capturado pela dor
,.ai achar. Pra sempre! (meu filho caçula, 1Oanos). ~ ., e a ela tentava resistir:
1 "-.:!

Não meta minh:1 família nisso. A culpa é minha. Eu é que não presto.
Mas, se em casa era até divertido jogar este jogo, embora por trás
(Adolescente,14 anos, sexo mascuüno).
dele houvesse a dura consciência de que eu negl.igenciava meus filhos e
que suas falas eram verdadeiras denúncias de seus sentimentos, no campo

126 127
Família? Eu já passei por tanta coisa. Não quero falar disso. Tire rotina diária, que me fez abandonar por mais de um mês a pesquisa.
minha família dessa. Culpado so~ eu que nàc ouvi o conselho da .
Deixei o-~ 1hrigo
'
com o estranho seiltimento de quem ganha uma espécie
minha mãe. (Adolescente, 1S anos, sexo masculino).
de passapprte de liberdade.
Isto indica que o pesquisaáor deve estar atento às mensagens Vez por outra, em viagem de férias, irrompiam fortes as recorda-
·não-verbais que o campo emite por meio de seus atores, porque além ções õo Abrigo: o tal cheiro do bicho-homem, com o qual eu aprendi a
das palavras "está o solo firme sobre o qual se constroem as relações conviver sem aspirinas, e a última conversa que tive com uma funcionária:
humanas: a ~omunicação não-verbal" (DAVIS, 1979, p. 22). E, depois, É iinpressicn::nte o desejo de liberdade deles. Você acredita que já
como lembra GOFFMAN (1985), quando é nec.t:ssário. o indivíduo tenta fugiram até pelas pérgolas do jardim de inverno? \iou colocar um
· livrar~ll.~Ciara, manter cma fachada, dando a impressão de que é forte, rolicial aqui f~J corredor. Qualquer coisa, é só chamar. É ... dizem qt:e,
preseDiando a ima~em pública e não querendo parecer frágil ou estúpido. passando a cabeça, passa 'o resto. Será?
1 :i -~ Em síntese, o Abrigo revelou-se um "setting" inadequado para
·a pesquisa. Eu já havia pedido à juíi<(que me autorizasse o acesso ao Tive que segurar a risada, pois a presença de uma outra pessoa muito
São Miguel e ao Aldaci Barbosa/fo·cais sempre apontados pelos gorda na sala levou-me a imaginar que a "teoria da cabeça" comporta\·a
fur.cionários como mais adequáôos parà o meu trabalho, até pela questã.o algum quilos de exceção... •·
de espaço e pelo fato de que, lá, os adolescentes estavam menos tensos,
porque internados. Além do mais, eram locais referidos pelos 7.2.2 Entre o céu e o inferno: a passagem pelo São Miguel
adolescentes como prisão, inferno, escola de vagabundo, lugar de
marginal, ou, de acordo com os funcionários ,do Abrigo, um bani! de No princípio de julho de 1994, portando a autorização da juíza e
pólvora prestes a explodir. Por outro lado, lá se encontravam só aqueles um gravador, dirigi-me ao São Miguel. Em meio às recordações do Abrigo.
adolescentes que, por serem reincide'nfeS ou terem cometido delito de acabei passando cia entrada certa e fui bater num cemitério. Com todo o
natureza grave (homicídios, por exemplo), não recebiam o indulto da respeito aos mortos, inclusive aos meus. ria-me do engano, enquanto
remissão (perdão judicial que exclui adolesc~ntes da condição de pegava atalhos de areia batida e o carro caía nos buracos e nas poças
delinqüentes, pelo menos do ponto d~ vista legal). Os adolescentes do d'água fétida de uma grande favela. Não sei se pelo meu péssimo sentido
Abrigq não eram necessariamente infratores e, às vezes, ali estavam por de orientação espacial ou. se pelas informações confusas que me
uso de droga, por alguma acusação infundad~, por terem sido encontrados forneciarrt, acabei de volta ao cemitério e foi lá mesmo que pedi
perambulando pel~s ruas, por brigas com vizinhos e colegas, sem maiores informações. Um senhor que parecia ali trabalhar ensinou-me o caminho:
consequências, ou por alguma medida de precaução judicial, aguardando Indo por ali, a senho:a volta pra pista, pro mode drobar na entrada de
o encaminhamento da Justiça. pista desse lado de cá. Aí, vai todo tempo pelo rumo da \·enta e dá
Feita a minhã opção por deixar o Abrigo e consideradas as minhas num camínhozínho de calçamento e \·ai toda \ida. Quando a senh<.,r.l
.limitações pessoais, decidi dar preferência ao São Miguel como campo avistar um muw bem alto, é ali mesmo o inferno. Ali só tem menino
de pesquisa c também abandonar a idéia de entrevistar as adolescentes que não presta.
no Aldaci Barbosa, que ficava mais distante ainda da mmha casa. Além
disto, eu teria qu~ fazer muitas investidas ao local para consegu'ir uma N~p1a ruela de calpmento mal colocado, do lado esquerdo, avistei
amostra razoável de adolescentes do sexo feminino, porque muitas vezes, o Centro .J~ducacional Dom Bosco, casa para adolescentes em regime de
conforme me foi informado pelo pessoal da Justiça, o internato feminino seml-libef<iade. Mais adiante, deparei-me com um muro arruinado pelo
ficava vazio. Pesou em minha decisão também o cansaço da minha tempo, é~m •porteira de ferro aberta, onde havia a inscrição em azul,
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128 129

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desbotada: FEBEMCE- CENTRO EDUC. SÃO MIGUEL. Cerca de Como resultado, acabe! por deswvolver, além de muitos calos nos dedos,
cem metros depois. havia um muro alto pintado de branco com barras uma espécie de taquigrafia que só eu podia compreender.
cm dois tons diferentes de azul. A julgar pela cor, aquilo lá estava mais Acertados os detalhes de minha permanência em campo, fui
para o céu do que para o inferno, foi o pensamento que me ocorreu, conhecer as instalações, acompanhada :pela psicóloga, que funcionou
embora eu já estivesse familiarizada com o efeito cosmético da arquitetura corno minha aliada durante os meses que permaneci no São Miguel. A
e das nomenclaturas. Contudo, pela ~.ltura do muro e pelas duas guaritas ela, certamente, devo em muito a faciJidade do meu acesso aos
no alto dos cantos, onde as lâmpadas estavam acesa5. em plena luz do adolescentes e o desen.volvimentopa minha pesquisa, até porque passei
dia, ficava fácil identificar a "prisão", qualquer que tosse a cor que se a usar sua sala, sem sofrer as co~(~p1ciras interrupções do Abrigo., I~to
resolvesse pintar o prédio. Contornei o muro e dirigi-me à recepção, para não falar de nossl".S scmpr~ bcm-humoradas conversas. ·quct;j<\pl
sendo recebida por um policial que abriu o cadeado das grades de ferro. levantando detalhes importantes que eu passava .a invdtigar e doj~~~
Na recepção, o São Miguel, de certa forma, perde o ar de prisão, acesso aos resultados dos trabalhos de gmpc que ela desenvol:vj~\<r:Om
apesar das grades azuis, afixadas nas janelas das salas, or1de da ma podem os adolescentes, bem como aos processos, laudos e pareceres constantes
ser vistos os funcionários habalhando. A recepção tem jeito de sala de das pastas nos arquivos da sala das Assistentes Sociais.
Yisitas: sofá de alvenaria com almofadas, flores a:tificiais nos cántos em As instalações do São Miguel foram inaug\1radas er.1 3 de
forma de mesa e algumas cadeiras. Sobre o balcão, de onde saiu o policial novembro de 1986. Antes: ele funcionava vizinho ao ~resídio do
que veio me receber, havia uma prancheta com apontamentos sobre visitas Amanari, no então Distrito de Maranguape, na Região MetropoEtana de

Fortaleza. Em setembro de 1993, passou por uma reforma, quando foram
recebidas pelos adolescentes. Um corredor curto à direita da sala de
recepção abre-se em uma sala com uma mesa comprida de caddras altas coQ.stmídos o refeitório, as duas guaritas no alto do muro e o pátio
em estilo antigo. Desta sala, fica visível o portão de ferro que separa o decorado com as plantas.
pátio onde estavam inúmeros adolescentes uniformizados. À esquerda A capacidade do São Miguel é de 50 adolescentes, número em
fica a sala da diretora, para onde fui encaminhada em companhia da · geral ultrapassado. 8 Eles são distribuídos nos 12 alojamentos coletivos
psicólc ga da instituição, a quem havia sfdo apresentada rapidamente. com camas de alvenaria, cujos colchões são cobertos por lençóis. Há
Novamente, deparei-me com uma dificuldade metodológica: a banheiros fuiexos a cada um dos donnitórios. As grades dos alojamentos
diretora foi contra a permiss.ão de gravar entrevistas, apesar da gentil são trancadas à noite com parafusos de rosca para evitar que os
recepção e da tentativa da psicóloga em defender minha estri:itégia de adolesc~ptes enfiem palitàs, como é fácil fazer nos cadeados. As paredes
pesquisa. Insistir na questão não me pareceu acertado, pois eu poderia dos dor~uitórios são revestidas de a~ulejos brancos. Devido à
inviabilizar a minha nova opção. De fato, estava eu autorizada a efetuar superlotação . colchões são colocados no chão. Há também cinco celas
gravações e, desde pequena, aprendi que ordem de juiz tem força de lei. • individuais com banheiros anexos, sendo que duas delas funcionam éomo
:.Ias preferi resguardar a legitimidade da minha presença em campo, em depó.sito de material da instituição e, portanto, foram desativadas para o
detrimento da legalidade, pois, naquela altura do campeonato. cnt~ndi isolamento de adolescentes. Entre cs funcionários e adolescentes, elas
que um problema relacional poderia ser bem mais complicado de recebem o nome de tranca: · .
contornar. Além do mais, eu também sabia que o promotor dera parecer
~ .. ~ ~1~·!},
contrário às gravações, ao qual a juíza havia dado uma interpretação i
diferente, entendendo que a atividade era de interesse cultural e que se
tratava de concessão a pessoa idônea. A verdade é que preferi lidar com
a limitação metodológica, evitando questioná-la, do ponto de vista legal. ' Em: 1994, o número de internos situou-se entre 55 c 70 adolescente~ por mês, conforme me
~nformou uma das functonária!;.

130
r 131
• I ~

: 4,,! ·I
É cn:~mada assim porf.jUC é onde os meninof ficam trancados ... São No refeitório amplo, eles recebem cir.co refeições diárias: café da
isolados dos oucros lá, quando f::.zem alguma coisa errada. É um nianhã, almoço, lanche, jantar e ceia. A prefl!rência alimentar é o arroz.
castigo. Mas é por pouco tempo, só enguanto se acalmam. o feijão e a carne. Legumes, só quando misturados a esses alimentos. A
(Funcionário). comida deles é a mesma dos funcionários e a única reclama.;ào dos
adolescentes diz respeito à ceia, em geral uma sopa:
Os adolescentes sentenciadq.5 ~~·ç_uniprir internamento recebem .
do Estado uma "bolsa" de meio salário mínimo mensal. Os provisórios, Eks gostam é de arroz, feijão e carne. Comida para eles é is~o ... Sem
aqueles que aguardam audiência e decisão judicial srJbre a liberação brincadeira, eles são bem tratados aqui. 1\qui é como um hotel cinco
para a família ou a permanência no São Miguel, recebem o mesmo valor. estrelas. Eles comem melhor do que a gente come em casa. Tu tá é por
É uma contrapaz1ida salarial pelo trabalho qu~ executam, por meio foral Eles adoram a ço~da (funcionária).
período, nas três oficinas (serraria e vassouraria, cerâmica e flores, e·
prodqJos de limpeza). A produção das oficinas é assim distribuída: 70% Num amplo banheiro coletivo, verifica-se uma prática higiénica
dos p'rodutos são destinados a·butras ca.s·as da FEBEMCE, que pagam muito apreciada pelos adolescentes: o banho. Tomam em média três
ao São Miguel em forma de matéria-prima, para uso nas oficimis; 30% banhos por dia com um sabonete líquido medicinal (Asseptol), fornecido
são vendidos para a comunidade e outras empresas c o dinheiro pela FE~EMCE. No pátio, os adolesce'n.tes brincam nas quadras de
arrecadado é usado para o pagamento da bolsa dos provisórios. A esporte, agdardam o horário das refeições, sempre servidas antes das
participação dos adolescentes nas oficinas é de 100% e não há resistência àos funcionários, ou conversam à sol":lbra das plantas que o decoram.
nesse sentido por parte deles. Segundo os técnicvs da instituição, isto se , Há também uma sala onde assistem à televisão.
explica pelo dinheiro e porque o trabalho, para os adolescentes, é melhor A limpeza das instalações do São Miguel é feita duas vezes por
que o ócio. A vassouraria e serraria é a oficina que atrai o maior número dia pelp~ próprios internos. Pela manhã, só podem sair dos alojamentos
de internos e, inclusive, há disputa por vagas, porque os adolescentes para Ó q}fé, quando está tudo arrumado. Os lençóis das camas são
nela vislumbram a possibilidade maior de engaja,mento no mercado de mudados todas as segundas-feiras e os uniformes são trocados para
trabalho, quando de sua liberação. Em seguida, a preferência é pela oficina lavagem três vezes por se:nana. Quando chegam ao São Miguel alguns
de produtos de limpeza e, em último lugar, a de flores e cerâmica. só têm o ·calção e outros só o chinelo, a carteira e a roupa do corpo. Os
Com o dinheiro ganho no trabalho nas oticinas, os adolescentes pertences dos adolescentes são colocados em compartimentos de estantes
ajudam suas famíliC~.s e adquirem comida ou objetos. Todo final de semana reservados e numerados.
. é passada uma lista para que informem o que desejam que seja comprado Há uma sala de aula onde funcionam duas turmas (A e B), segundo
para co~umo pessoal, conforme me disseram duas funciOnárias: • o nível de escolaridade dos adolescentes. Em geral, estes são analfabetos
~~: ou deixaram os estudos antes mesmo da conclusão do primeiro grau. Se.
·~ ~+'Ç'A s:.~ . : Tu pensã qúe eles querem roupa sem marca? Tá por fora! Só querem por um lado, o São Migt~el é referido como escola de vagabundo. por
~~ ! • cois2. de. marca: é Pêr.alri, Altem~pya, Chinela Opanka, aquele biclúnho outro, ensinar nesta escola parece ter seu lado bom:
emborrachado de scgu~ar o óci1~los ... E!es usa:n tudo quando tem
passeio aqui do São Miguel, quando vão para praia, para as audiências Eu queria que as pessoas ti\·essem uma outra impressão daqui. Su
ou para casa. Eles também dão dinheiro para a familia e com o resto vêem o lado ruim. Não vêem o ladu bom que a gente faz. Quandl' eu
compram coisas sue gosram: é Bat-gut, Coca-cola, mortadela, queijo, digo que trabalho aqui, até o ressoai que me conhece diz: "\'iche~·· :\í
caixa de chocúlate, bolacha recheada, leite condensado... As vezes, eles eu tenho que explicar que não é bem assim como o pessoal pens.1.
Você achou ruim aqui? Pois é, às Yezes esse pessoal da imprensa ,-em
bebem a Coca quentinha. Não sei como conseguem.
e mete o pau. Sabe aquele ali? Já é bem a quarta Yez que Yem pra cá.

''• .. ;L..Ç:,~, 133


132
Aquele ali, que está todo queimado! É um dos que escaparam ào mesmo, 10 não posso dizer que tive grandes dificuldades de legitimar o
, incêndio. Pois é, quando ele aRrendeu a escrever, você pre~isava ver a
9
meu papel de pesquisadora. Contudo, foi difícil convencer a mim mesma
felicidade dele me agradecendo. Até hoje fico emocionad~, quando que a pesquisa há algum tempo estava concluída, porquanto eu me sentia
me lembro. Acho que foi a maior felicidade da vida dele. (FuAcró'nária). parte do campo. Creio que alguns fatores influenciaram decisivamente
nesta minha dificuldade: a angústia de separar..me das relaçõe~ que eu
As visitas não tinham restrição de horários nem de visitantes, até construíra com os adolescentes e os funcionários do São Miguel; a certeza
o final de abril de 1995. quando, por motivo de superlotação na recepção • de que, a partir desta separação, eu teria que realizar o esforço quase
e em face do número de orientadores disponíveis para acompanhá-las,· solitário de escrever minha tese; e a perspectiva de descobrir além daquilo
ficou proibida a visita de amigos desacompanhados do3 tamiliares dos que eu traçara como objetivo em meu projeto. Em síntese, nesta
adolescentes. A maior parte do~ familiares que visita os adolescentes é dificuldade, estava pres~nte o que é possível chamar de um rito de
do sexo feminino: mãe, tias, avós e irmãs. passagem, no sentido de que deixar o campo significava, ao mesmo
As fugas da instituição não são freqücntes. Em 1994, só três foram tempo, um novo começo e uma de5pedid;a: ·
registradas: uma num passeio na praia, outra numa escalada do muro e O fascínio que o campo me causou, provavelmente, tem muito a
outra pela cozinha, por ocasião da chegada de um can~inhão para ver também com a certeza de que era possível participar, de algum modo,
descarregar mercadorias. Mas os fugitivos, geralmente, não conseguem r.a transformação da realidade na qual se inserem os meus informantes.
ir muito longe: Embora, como pesquisadora, eu não pudesse ajudar diretamente àqueles
que ali estavam, incluindo adolescentes e funcionários, poderia, pelo
... pega tudo. É que para os orientadores é uma questão de brio, m~nos, esclarecer o que 5e passava no interior daquele muro alto da cor
porque, se fugirem no plantão deles, el~s não gostam~ E'e encaro a do-: céu, chamado de infernq. Ce~ecei a_falar para as pessoas do meu
fuga como normal. É o desejo de liberdade deles. Se fcsse eu,
círculo de amizades e para meus familiaressgbre identidades construídas
também fugia. (Funcionária).
cm meio a uma outra realidade, cujos significados remetiam não só às
sua5 condições materiais de existência, mas à importância da família e
O São Miguel me pareceu bastante diferente do inferno que eu do vínculo afetivo que está no bojo de todas as emoções humanas. Passei
vinha preparada para encontrar, tanto no que se refere às instàlações e a falar dos paradoxos que ligavam as concepções comuns sobre aqueles
ao tratamento dispensado ao!t adolescentes, como no que diz respeito a
que são uma espécie de lixo socj~l, embora capazes d~19rgulhar-se pela
estes. Durante os seis meses que lá estive pesquisando, contei com a boa
qualidade do trabalho que exeC\l~f:Ú na: fabricação de pt:odutos de liippeza
vontade dos funcionários e com seu interesse em colaborar para que eu
e de flores cuidadosamente co~struídas. Emocionava-me ao di#~r1 ~de
pudesse aprofundar os dados da minha pesquisa. Se eu os desapontei
suas idéias e ideais, do hábito de adoçar a vida com choc~J,~s,
por não fornecer informações além das que eles já sabiam, ou quando
refrigerantes, leite condensado ~ biscoitos recheados, esper~P9P um
me recusei a ajudar a assisknte social emitindo um laudo psicológico passaporte para a liberdade, fara uma vida melhor, enquanto, núnaioria
sobre um dos·adolescentes, do qual, em parte, dependia a liberação do das vezes, uma condenação à morte os espreitava, ao saírem dali.

· Ln: incêncio provocado por alguns adolescente~ internos, como tentativa de fu_ga, vitimou
o adolescente mencionado com queimaduras de primeiro grau, deformando s<;u corpo. A
1
oficina de Yassouraria c serraria também teve um incêndio provocado por ado~ccntes " Ex;>liquci à. funcionária que me. solicitou o laudo que não era aquele o nicu papel na

mle mos c, por isso, ficou seis meses desativada. instituição, c, portanto, o procedimento não seria ético, mesmo estando a psicóloga ausente.

134 135
7.3 SuJEITos 0BJETIVAoos: QUEM SAo os OUTROS? onde pesquisa. Tive, portanto, que fazer alguns ajustes: além de desistir
de entrevistar os ~epresentantes da Justiça, optei pela exclusão de
Há pesquisadores que reconstroem o passado a partir da análise adolescent~s do sexo feminino como sujeitos da pesquisa, pois. como já
do presente, enquanto outros reconstroem o presente a partir da foi mencionado, eu teria que faz~r muitas visitas ao Aldaci Barbosa
análi:;e do passado. Mas a escolha de uma dessas formas não foi a (internatO" f~minino) para conseguir uma amostra razoável. Contentei-
alternativa possível para Édipo. O que teria feito, portanto, o pesquisador • me em colhh as representações sociais que o delinqüente juvenil pobre
mitológico? Na vere ade, quando lidava com o passado, lidava igualmente constrói sobre si, sua família, a Justiça e os grupos extra-familiares dos
com o presente e v:ce-versa, não cristalizando a tendência de dissociá- quais ele participa, e aquelJs que a família do delinqüente juvenil pobre
los. Se, por um lado, é possível concluir que sua busca aponta para o constrói sobre esses mesmos atores. Cóino a pesquisa foi mediada pelas
passado, por outro lado, é igualmente válido afirmar que o passado está instituições pelas quais passei, .mantive a preocupação de registrar
contido no presente, posto que este vai repetindo c reconstruindo aquilo conversas que ouvia ou travava com os representantes da Justiça, o que
que. ,_: essencial à pesquisa. me foi extr~mamente útil para subsidiar minhas entrevistas, para checar
·:Pélra alcançar o objeto primeiro de sua busca, Édipo descobre que a validade do!> dados obtido!> na abordagem dos adolescentes e de suas
.·sllit~isrencia não pode ser compreendida senão a partir de sua verdade famílias, e para construir as interpretações .das informações coletadas.
históricà' e relacional. É sob este pontQ-'•de vista que eu gostaria de A Justiça foi, portanto, considerada na figura dos representantes do
introduzir os meus ~ujeitos, quanto aos C:11itérios metodológicos que usei Judiciário, do Ministério Público, da Defensaria, da Segurança Pública e
para abordá-lo,s e quanto à possibilida'de de compreendê-los como da Assistência Social.
identidade social sem dissociar suas verdades históricas, que, de alguma Por dclinqüente juvenil entendi o adolescente a quem se atribui a
forma, eram vedades também minhas. prática de ato infracional, verificado com o tránsito na Delegacia e na 3a
Vara da Infância e da JÜventude, conforme faixa etária definida no
7.3. I A abordagem dos sujeitos e a delimitação da amostra Estatuto da Criança e do Adolescente. 11 Quanto à definição de pobre.
por ser complexa e problemática, relutei desde o princípio a dar-lhe uma
Quando iniciei minha pesquisa, e~ c~ií'sonância com o projeto apre- abordagem mais precisa. Conquanto o termo pobre seja uma noção à
sentado,, pretendia realizara tarefa de colher as representações sociais que: qual todos os membros de nossa sociedade, pobres ou não, têm acesso, é
a) o delinqüente juvenil pobre constrói acerca de sua família, evice-versa; na medida em que se pode compreender o qu.:: é mais significativo para
b) o delinqüente juvenil pobre e sua família constroem acerca da Justiça uma classe que se faz possh·el não apenas caracterizá-la, como também
e aquelas que a Justiça constrói sobre ele e sobre o papel desempe- redefini-la. Se eu definisse pobreza simplesmente por critérios de renda.
nhado pela família na produção da delinqüência; e por exemp~o, correria o risco de esvaziar minha amostra ou perder a
c) o delinqüente juvenli"pobre, sua família e ,a Justiça constroem acerca oportunidade de aprofundar a discussão sobre o assunto, emborê. seja
dos grupos extra-familiares dos quais ele participa. imediatamente visível para qualquer observador que os adolescente~
que transitam pelas instituições onde pesquisei raramente pertencem às
Marinheira de primeira viagem, coloquei-me diante de um trabalho classes mais favorecidas. Deixei, portanto, para os meus sujeitos a
de grande envergadura, que implicaria lidar com três segmentos de
sujeitos: os delinqüentes, as famílias e os representantes da Justiça. Mas,
obviamente, nenhu:n:1 pesquisador vive só de pesquisa e muito menos 11 "Considera-se criança, para efeitos d<.'sta Lei, a pessoa de até doze anos de idade incomplelos.

está imune às limitações impostas por sua vida pessoal ou pelo campo c adolescente aquda entre doz.: c dezoito anos de idade." (Estatuto da Criança c do
Adolescente.: iu·t. 2").

136 (· 5
137
'1. ~
!

definição do que é ser pobre e, assim, pude colher significados mais de teses entre parGnteses e, da mesma forma, deixei de utilizar como recurso
acordo com seus próprios referenciais de vida. julgamentos espaço-temporais, ou seja, permitia que a experiência fosse
Foram consideradas como famílias as pessoas que compareciam dada ao que autenticamente era manifestado na minha relação com os
aos representantes da Justiça como pais ou responsáveis pelos sujeitos. Nesta experiência, sinteti~ados estavam o presente, o passado
adolescentes ou aquelas indicadas por eles como familiares, durante as e o futuro, já que "o 'lugar' do tempo é a existência ou melhor, o ser-no-
visitas à instituição em que eles se encontravam. Os grupos extra- mundo é temporalidade" (LUJJPEN, 1973, p. 241 ). Portanto, isent~i-me,
familiares não foram incluídos entre os sujeitos de minha amostra, sendo ao máximo, da tend-ência de explicar e estabelecer causalidades, enquanto
considerados apenas pelas referências feitas pelos adolescentes e seus pesquisava. Evidentemente, a redução completa r.ão foi possível:
familiares por ocasião das entrevistas. Dentre estas referências, figuraram O maior ensinarncr.to da redução é a impossibilidade àe uma redução
os amigos da rua, os colegas de escola e de trabalho, as pessoas da completa. Eis porque HU;~Serl se interrogava contipuamente sobre a
vizinhança e os adolescentes internos no São Miguel e, .'linda, aqueles possibilidade da cedu.ç.id;Estitnão seria probler;:iática se fôssemos
que estiveram junto com os adolescente no Abrigo, por ~erem praticado espírito absoluto, mas )ustámentc

porque
.
esta~os no mund.o, por.q)+e.
' . 'I
·
em conjunto o delito do qual estavam sendo·acusados. nossas reflexões nascem no fluxo temporal que procut'l\m ~~R{~.·
Quanto ao tamanho da minha amostra, foi definido de acordo com não há pensamento que abarque todos os nossos pensa~~tos.
critérios qualitativos, no decorrer do trabalho de campo. Só parei de (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 240).
abordar os meus sujeitos quando os dados colhidos começaram a se
repetir, como num process:) de saturação. Contudo, abordar as famílias Utilizando a atitude ingênua, realizei o contrário do exercício
foi mais complicado que abordar os adolescentes. Nem sempre minhas inte!ectua1, entreguei-me à emoção. Aberta aos fenômenos da minha
idas às instituições coincidiam wm a presença delas c nem todas as que aventura, despojada ao máximo de apreensões a priori, eu interrogava,
eu abordava dispunham de tempo para conversar corrugo, al~gando a via, ouvia, percebia e sentia os meus sujeitos. ao mesmo tempo em que
necessidade de retornar à casa ou ao trabalho. Além do mais, alguns dos também me interrogava, me via, me ouvia, me percebia e me sentia na
adolescentes entrevistados não contavam com a visita sistema{ica de relaç.ão com eles. Reportava..me sempre a mim mesma, porque, como
seus familiares, quando não eram liberados pela Justiça antes que eu humana que sou, jamais poderia, diante do mundo que a mim chegava,
tivesse a chance de abordar s~us visitantes. Por limitações pe$SOais, não deixar de ficar triste ou alegre, de sentir raiva ou e.nte.riiar-me. Sentia o
foi possível abordar as fa~ílias em outros ~ontextos que não o cheiro das pessoas e, por vezes, t~nha dor de cabeça. Viven,.iava o afeto
institucional. Mesmo assim, consegui fazer dezenove entrevistas com e tinha a consciência de que vivia uma experiência diferente de tudo o
familiares de adolescentes. que já vivera. Foi desta interseção do meu eu com os outros, t~o reconhe-
Seguindo o método fenomenológico-exü·.tencial, procurei cimentq1~a intersubjetividade e da subjetividade que pude construir uma
descrever primeiramente os fenômenos observados, na relação com os compreetlsão objetiva. Como afirmou lvlERLEAU-PONTY (1980,p. 240),
. 1"1'
meus sujeitos .. Só na medida em que a pe$quisa foi progredindó, minha O mundo fenomenológico não é o ser puro, rpas o sentid,p, que
análise foi-se aprofundanco. Registrava os dados colhidos a partir de transparece na interseçã_o de minhas experiências e na interseç"ão de
nossas conversas, limitando ao máximo qualquer inferência prévia e minhas expe;.;ências com a~ do o•1~ro, pela engrenagem ::le umas. sobre
e\'Ítando estabelecer quaisquer conclusões definitivas. Assinalava o que as outras, sendo, pois, inseparável da subjetividade e da intersubje-
costumeiramente se repetia e relacionava isto às evidências precedentes. ~vidade, cuja unidade advém da retomada de minhas experiências
Realizei, pois, o exercício da redução e ria atitude ingênua. Pelo passadas peh!. presentes e da experiência do outro pela minha.
exercício da redução coloquei, por um momento, o mundo fático e suas .-,:, J 'rnt)... : ...,

13S • 139
'··"''- us procedimentos utilizados proceder, os adolescentes me a.pontaram um possível talento para a
I: investigação criminal:
Além dos dezenove adolescentes (dos quais quatro eram do sexo Viche, tia! Ainda bem que a senhora não é delegada. Se fosse. os
feminino), das quatro famílias e da assistente·social que entrevistei no vagahundo ~do ta\'am era fudido n:t su:t mão. Entreg:~nm tudinho.
Abrigo; abordei um total de vinte e quatro adolescentes e quinze famíHás, Ainda bem que a senhora não é.
durante minha passagem pelo São Miguel. Nas entrevistas, que duravam,
em média, cinqücnta minutos, busquei, em primeiro lugar, obter O levantamento de percepções visou colher os significados que
infonnações longitudinais e retiospectivas da vida dos adolef:centes, com os sujeitos davam à realidade objetiva das definições, a partir de seus
ênfase nas relações familiares e nas relaçpes com a Justiça e com grupos próprios referenciais, bem como detectar concordâncias e discrepân,:ias
extra-familiares. Além disto, procurei identificar as percepções e entre as percepções dos diferentes sujeitos. Ji o levantamento das
expectativas de cada adolescente sobre a fonna como é definido pela expectativas buscou verificar como eram assimilados ou rejeitados os
família, bem wmo as interferências, nessa definição, da influência da significados das percepções, permitindo igualmente vcri ficar
Justiça e dos grupos extra-familiares. Por outro lado, tentei verificar as concordâncias e discrepâncias nas expectativas dos diferentes sujeitos.
percepções e expectativ2.s das famílias sobre a fonna como são definidas Observei, ainda, as atitudes e comportamentos dos sujeitos frente
pelos aqolescentes, e as interferências da Jt:stiça e dos grupos extra- a Justiça e às minhas intervenções, o que me possibilitou a análise do
familiares, na forma como os adolescentes se definem e são definidos conteúdo verbal e dos elementos analógicos (não-verbais) da
pelos outros. comunicação. Estes em muito me auxiliaram, por ocasião das entrevistas.
Através de perguntas abertas, busquei entender as relações do posto que me indicavam pontos-chave que eu deveria abordar em minhas
adolescente com a família, com a Justiça e com os grupos extra-familiares. perguntas, bem como o momento mais propício para isto, já que sempre
Comecei fazendo uso de um rot~iro mas, logo de início, ele me pareceq foi minha preocupação não ferir os meus sujeitos em suas suscepti-
inadequado à relação com os meus sujeitos. Estes forneciam-me muit~· bilidades e respeitá-los em seus limites.
mais dados quando eu optava por intervir de acordo com o que De posse dos dados colhidos através dos procedimentos acima
informalmente me ia sendo colocado durante nossa conversa inicial, sobrcr descri.tos,.f!l{liquei aos 24 adolescentes do São Miguel um teste psicológico
qualquer coisa que me servia de pretexto para iniciar a entrevista,. projetivo, ~(J Teste do Desenho da Família. Aprofundei com 15
Estabelecido o "rapport" da entrevjsta, onde eu explicava os propósitos adolescentes elementos rdativos às suas histórias de vida, atra\'és de
de tê-los abordado, procurava deixá-los à vontade para m~ perguntarem entrevistas torP1plementares, nas quais levantei mais detalhadamente as
sobre algo que não tivessem compreendido no que eu havia lhes falado informações longitudinais retrospectivas colhidas por ocasião das
e também para não. responderem o que não julgassem interessante • entrevistas com eles e com seus familiares.
I
responder. Deixava-os, .de início, falar à vontade sobre assuntos que O Teste do Desenho da Família consiste em solicitar ao sujeito
priorizavam, limitando-me a perguntar: "Por quê?", "Como assim?", que desenhe sua família, utilizando o tempo que julgar nece~;sário para
"Quando?···; "Onde?", "E aí?" etc. Por vez~s, apenas repetia em tom realizar tal farefa. 12 Durante a realização do desenho, c munida de uma
interrogativo algumas palavras de seus próprios discursos, que consistiam folha de anotações, eu ia -registrando as verbalizações dos sujeitos
em pup(õs-chave daquilo que eu buscava apreender: "Família?",
"JustiÇa?", "Polícia?", ·'Amigos?" etc. 0utras vezes, pedia que me
explicassem o que es~ayam dizendo: "Não entendi bem isto. Você poderia 12 O mataial ,utilizado para desenho é uma folha branca de 18x21cm, um lápis de grafite
número dois com ponta feita à mão (regular, nem grossa c nem fina) c uma borracha. da qual
me explicar?" "O que quer dizér isto?" de. De fato, poucas foram as
os sujci:os dc:vcm fazer o menor ~;so possível.
Yezes que precisei fazer perguntas mais diretivas. Talvez por assim
• l·H
140

'I" '•'<pr;.~- ~
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i·l·

enquanto desenhavam, os tiques, os movimentos, os ~lementos que Wartegg. 13 É importante mencionar que, embora fosse possível encadear
apagavam ou refaziam, bem como outras expressões não-verbais. uma entrevista a partir deste teste, não foi este o procedimento por mim
Tern1inado o desenho, eu os interro~ava sobre: adotado,já que adotei o Wartegg como um instrumento auX.iliar, no sentido
1. As pessoas que foram desenhadas, seus nomes e idades; de esclarecer e confirmar dados obtidos por meio de outros procedimentos.
2. As pessoas que não fora:.n desenhadas e o motivo pelo qual não A escolha dessas duas técnicas projetivas deu-se ~or p10tivo de
o foram; e ~· ' economia de tt'mpo e faciliclade de aplicação. Além do mais, dada a
3. O que se passava no seu pensamento enquanto estavam desenHar~ do dificuldade dos sujeitos em aplicar defesas estereotipadas a projcções
Tais perguntas eram o início das entrevistas complementares com grafo:.notoras, conforme observado por K. Machover (CAMPOS, 1982),
os 15 adolescentes, cujas famílias abordei. NeF.tas, ~u procedia da mesma o desenho, como fenômeno expressivo do modo co.!ll.O. o sujeito percebe
forn1a qut' nas entrevistas anteriores, desta feita enfatizando pontos-chave, e compreende a realidade, revela-se instrumento útil para a simbolização
visualizados em sua projeção, :1 saber: de experiências intimas, sentimentos, auto-imagem, autoconceito,
a) as figuras projetadas de maior e. menor valência afetiva, positiva projeção da agressividade etc.:
ou negativa; O indivíduo, pelo tamanho, localização, pressão no traço, conteúdo
b) a identificação do sujeito com detern1inada figura projetada; do desenho etc., comunica o que sente em adição ao que vê. Seus
c) a existência de subgrupos familiares na projeção; aspectos subjetivos definem e dão cor às suas intenções objeth•as.
d) os conflitos familiares projetados e a indicação cie dificÚldades (CAMPOS,1 982, p. 19).
de ajustamento dos adolescente à realidade familiar; • I

e) os problemas de restrição corporal e os sentimentos de aceitação ·. Além da observação, das entrevistas e dos testes projetivos, reali-
ou rejeição em relaç3o às figuras projetadas; zei, também, pesquisa documental junto aos processos, Boletins de Oco-
f) a figura de maior at:toridade social projetada; e rrência, relatórios de visitas domiciliares, pareceres dos técnicos e outros
g) a posição e/ou ausência do próprio sujeito na projeção. documentos relativos aos adoleS(\{'-~~~~q~~ eram mantidos nas instituições.
Isto me auxiliou na verificaÇão dos dado~ obtidos através dcs outros
Após os procedimentos acima mencionados, utilizei o Teste de procedimentos, e na própria dinâmica das entrevis~as complementares.
Wartegg, com o objetivo de ex:plorar a estrutura da personalidade dos Mantive o hábito de registrar em diário de campo as coisas que
sujeitos e esclarecer o seu funcionamento, bem como a fonua de cor..tato me pareciam significativas, as que me alegravam ou me inquietavam,
do indivíduo com a realidade e sua conduta social. Este teste é composto bem como as que diziam respeito à etnografia do espaço. Esse diário foi
de oito quadros, denominados "campos". Em cada campo há um estímulo um coi:npanheiro inseparável em todos os ,passos de mi.nha aventura,
·l . f .
que tem um caráter convidativo ao desenho, em fonua de siné\1 gráfico posto que nele também eu fazia ;J?e~s desabafos, fal~va dos meu~
(ponto. traços etc). Cada campo, com seu respectivo estímulo ao dêsenho, sentimentos, ensaiava minhas pó~~·l~S, registrava meu encantamentQ e,
fornece dados ~bre áreas vitais específi.::as em que o indivíduo está meu estranhamento. \ · ~\,d:·
sendo estimulado, bem como a representação da maneira pela c;pal se
comporta em relação a cada uma dessas áreas, quais sejam: a percepção
c a representação, o sentir e o agir. Dada a complexidade que envolve a
explicação de cada campo e suas respectivas representações e .inter-
relações na interpretação dos resultaqos, não é possível, aqui, dar mais
detalhes sobre os procedimentos utilizados na aplicação do.. Teste· 13
rara explicações mais detalhadas Sl)brc o teste, ver BIEDMA, C. & D' AFONSO, P., 1973.

142 \ ·, 143
\ :."'::
DAVIS, Flora. Comunicação não-verbal. Tradução Antonio Dimas.
A partir dos dados colhidos por meio ào conjunto de procedimentos
São Paulo: Summus, 1979.
acima descritos, foi possível reconstruir a carreira dos adolescentes na
dclinqüência. detectar coacordâncias e discrepâncias entre a assimila\·-ão
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações.'Tr'adução L. F. Raposo
e a rejeição de significados das percepções e expectativas dos sujeitos e
Fontenelle. Fortaleza: EUFC, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
traçar o perfil que me permitiu compreendê-los como iàentidade social, • •
construída no processo de socialização na fam!lia.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 .

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