RESUMO
ABSTRACT
(1)
Departamento de Psicologia, UFSM.
(2)
Departamento de Psicologia, UFSM.
Apoio FAPERGS e CNPq
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Se voltarem o olhar para a vida de seus conseguirem dar conta daquilo que deles se
pais, novamente se depararão com uma esperaria como sujeitos, os pais vivem um
perspectiva empobrecida caracterizada pela sentimento de inferioridade social e uma
realização de trabalhos desvalorizados e mal sensação de fracasso pessoal, pelo qual se
remunerados, por uma vida sem conforto, acusam e são, ao mesmo tempo, acusados.
situação tal que culmina com a ausência de Esse processo de não reconhecimento
expectativa de mudança. social, que se traduz por uma representação
Segundo Guerra (1998), isso tem gerado de inutilidade aos olhos da sociedade de
uma crise na identidade dos pais, que se vêem produção, pode ser, segundo Carreteiro (1999),
enfraquecidos, em seu papel de sujeitos o resultado do receio de perder a condição de
capazes de se converterem em suporte “trabalhador”, cuja conseqüência seria a de
identificatório para seus filhos. Ao serem pertencer à esfera da inutilidade, podendo,
considerados insignificantes no trabalho, ainda, ser o fruto de uma prática de trabalhos
insignificantes no lar, esses pais acabam socialmente desvalorizados e fisicamente
tornando-se fragilizados como modelo de desgastantes. Soma-se a esse desgaste, o
identificação. fato de esses sujeitos experimentarem,
Nesse sentido, Costa (1989) refere a profissionalmente, uma vivência de relações
crise de identidade psicológica por que passam de submissão, humilhação e menosprezo cuja
os homens trabalhadores, a ponto de não natureza evidencia que tais trabalhos são
mais poderem dar conta de suas famílias, considerados de segunda categoria, isto é,
levando-os a enfrentar a própria acusação de são vistos como ofícios inferiores e pouco
serem fracassados, inferiores, incompetentes, qualificados.
incapazes de atender àqueles atributos que os Ainda segundo Giddens (1996), os “novos
tornariam homem, termo que traduz a condição pobres” são aqueles que se encontram em
de um trabalhador capaz de manter a casa e a uma situação frágil, ou de completa exclusão
família. Assim, parece que essa situação, em no mercado de trabalho, ou que foram
virtude de não ser assumida pela estrutura completamente excluídos dele.
social, passa a ser automaticamente Dentro desse panorama social, a
considerada um problema individual, perspectiva de futuro é, com certeza, muito
determinando que os pais por ela acometidos
difícil para esses adolescentes, os quais se
de fato não possam oferecer-se como suporte
encontram à margem das possibilidades mais
identificatório, devido à sua própria situação
positivas que a sociedade oferece; vivem
de precariedade e fragilidade como sujeitos
quotidianamente a exclusão e, concretamente,
sociais.
possuem poucas esperanças de se inserirem
O conceito de desqualificação social, dignamente no mundo do trabalho.
elaborado por Paugam (1999), permite entender
esse processo de enfraquecimento da Passam, então, a viver na periferia das
identidade paterna. Segundo o autor, a grandes dimensões institucionais de saúde,
experiência de desclassificação social é uma educação e trabalho, mantendo com estas
experiência humilhante que produz uma relações de muita fragilidade, o que permite
desestabilização nas relações com o outro e entender a situação de exclusão em que se
afeta as relações familiares, convertendo-se encontram e de acordo com a qual, ora são
muitas vezes num incremento ao sentimento mantidos fora da rede de suporte social, ora
de culpa experimentado pelos pais ao se são iludidos, pela própria sociedade, de que
depararem com a impossibilidade de vencer dela fazem parte em condições de igualdade
os obstáculos encontrados. Assim, ao não em relação aos demais.
mãe, aumentou também o tempo que as Dessa forma, entende-se que o fato de a
mulheres, na condição de mãe, permanecem mãe assumir sozinha a manutenção da família
sem cônjuge e com filhos. a sobrecarrega muito, o que a deixa mais
“As taxas crescentes de famílias com volúvel, e reduz o tempo destinado a si e aos
chefes mulheres nas áreas urbanas filhos, trazendo-lhe mais preocupações e
assumem dimensões dramáticas quando angústias, situação que, sem dúvida, se reflete
se tem presente a associação entre em sua relação com os filhos.
famílias chefiadas por mulheres e pobreza Moura (1996) destaca a importância
urbana” (Goldani, 1994, p.118). dessa problemática, observando que a família
Alves-Mazzotti, ao falar sobre a situação apresenta cada vez mais uma estrutura
das famílias de meninos e meninas na rua, diz matrilinear, na qual cabe à mãe a responsa-
que: bilidade pelo crescimento econômico da família,
fato que vem modificando a dinâmica dos
“Dentre essas características, desta-
papéis familiares.
cam-se a extrema pobreza, a condição
de migrante e a desagregação familiar – ge- A experiência de trabalho junto a
ralmente representada pela ausência do adolescentes tem evidenciado essa realidade,
pai, transferindo à mãe o papel de chefe que pode ser exemplificada, por meio do
da família” (1996, p.118). depoimento da mãe de um dos adolescentes,
a qual atribui as falhas da educação dada ao
Nesse tipo de relação, a mãe é a figura de
filho ao fato de tê-lo criado sozinha, sem a
autoridade na casa, e o fato de ser, não raro,
importante figura do pai. Hoje, teme as atitudes
ainda bastante jovem, torna-lhe difícil o
do filho que, segundo relata, não consegue
gerenciamento de todos os problemas e
controlar. Esse aspecto é evidenciado por
dificuldades decorrentes de ser pobre, ter
Zaluar ao referir que:
muitos filhos e precisar mantê-los e, ao mesmo
tempo, garantir a manutenção da casa (Sarti, “A diminuição acentuada da presença
1994). O mecanismo de controle encontrado paterna, quer por abandono físico, quer
por essas mães no cumprimento de sua função por indiferença moral e psicológica,
doméstica é a imposição da violência; elas significou um acúmulo das funções
precisam “manter as rédeas”, pois temem maternas, agora também apontada como
que, na ausência de um “pai”, as filhas e os a responsável pela moralidade da família”
filhos não venham a respeitá-las e conhecer as (1994b, p.264).
noções de limites necessárias.
Percebe-se, nas palavras da mãe
Nesse sentido, a ausência da figura anteriormente citada, que ela sente que faltou
paterna acaba construindo uma relação a “figura forte” (Moura, 1996), aquela que se
diferente no conjunto da vida familiar, o que
reveste de autoridade e com a qual os filhos se
leva a mãe a ser mais “durona” na intenção de
identificam e respeitam; aquela pessoa que,
preencher o vazio deixado pelo pai na relação
de posse de autoridade, pode orientar e, enfim,
com os filhos. A família monoparental,
controlar. Tal figura, devido a sua condição de
matrilinear, coloca a mãe nessa dupla função
poder leva à incorporação das regras de
de mulher mãe e trabalhadora, de modo que
convivência, à internalização de valores e
ela passa a exercer parte da tradicional
normas na socialização dos integrantes da
autoridade masculina para evitar fragilizar ainda
mais sua família, uma vez que não há um família.
homem para prover teto, alimento e respeito, O que se pode constatar nessa situação
ficando por conta dela a economia da família é a presença de uma noção de disciplina
(Sarti, 1994). ligada à idéia de autoridade, de força, de
violência. Para muitas mães, e mesmo pais, a presença de um forte preconceito em relação
forma de ensinar e disciplinar passa pela às famílias das classes populares e, por
violência física, pelo medo, de modo que bater conseqüência, ao seu modo de vida.
num filho é a forma de ensinar-lhe o que é certo Segundo Neder (1994), é possível
e bom. Trata-se sempre de um ato corretivo e identificar, ainda, a permanência do preconceito
preventivo de que as mães lançam mão para nas políticas públicas em relação às famílias
evitar que percam o controle da situação, e o populares, pois estas são ainda consideradas
qual reflete a necessidade de sentirem que bestiais/bestializadas.
dominam seus filhos, domínio esse que se
É preciso, sem dúvida, adotar um outro
exerce pela força, pela ameaça ao abandono
modo de conceber a relação família/pobreza,
como forma historicamente conhecida na
no sentido de afastar-se da idéia de que os
educação dos filhos (Fonseca, 1987).
pobres são desqualificados e que os pais
Moura (1996) descreve a “síndrome da pertencentes a esse grupo são incapazes de
casa vazia”, em que a ausência dos pais, de oferecer afeto, proteção e amor a seus filhos.
acordo com a necessidade de trabalhar para Precisa-se repensar essa institucionalização
manutenção e sobrevivência familiar, priva as da concepção de família, evitando reproduzir o
crianças de uma figura de referência na tipo de relação que a sociedade estabelece
organização de seu dia-a-dia, fazendo com com essa população e com as instituições
que essas se aproximem gradativamente do que a abrigam.
mundo da rua. Existe, segundo Moura (1996),
Entretanto, percebe-se que, além de não
algo que é muito significativo na vida da criança
proporcionar as condições consideradas
que não está dado apenas pela presença
física; faz-se necessário aquilo que o autor básicas para que esses grupos possam
chama de “presença psicológica”, a qual talvez enfrentar os desafios sociais, a sociedade,
possa garantir a essa criança melhores insistentemente, os culpa por sua situação de
condições de vida, sobretudo por meio da fracasso, desamparo e passividade. Ela
possibilidade de relações de solidariedade, de individualiza cada um sem, porém, conhecer a
afeto, de proteção. história que os une e os coloca na situação de
exclusão e risco em que se encontram,
Os adolescentes de grupos populares
processo que também é individualmente vivido
evidenciam carecer do aspecto teoricamente
por seus pais e suas famílias. Como observa
considerado fundamental à formação da
Erikson (1987), a mudança desejável é
identidade. Percebe-se, portanto, que esse
concebida como uma simples questão de boa
modelo familiar, esse mito familiar já não se
vontade ou de força de vontade, ao passo que
sustenta e, embora a sociedade crie alguns
espaços sociais para dar conta dos que não a resistência a tal mudança é percebida como
uma questão de má vontade, de inferioridade
podem viver em família, isso é feito a partir de
hereditária ou de outro tipo.
uma postura de descrédito em relação a essa
população, as quais são vistas como pessoas Nas palavras de Erikson:
de segunda categoria, que devem ser “E, com efeito, é o potencial ideológico
assistidas, mas de quem não se espera um de uma sociedade que fala mais
futuro promissor. Daí deriva a crença de que se claramente ao adolescente que está tão
trata de indivíduos em que não vale a pena ansioso por ser afirmado pelos seus
investir com seriedade, mas apenas o suficiente pares, confirmado pelos professores e
para prestar contas a uma sociedade que, em inspirado por “modos de vida” que valham
sua maioria, também não espera muito mais a pena ser vividos. Por outro lado, se
do que isso. Esse fenômeno evidencia a um jovem pressentir que o meio tenta
Por outro lado, a mesma sociedade que CIAMPA, A. C. (1998). A estória do Severino
os generaliza, quando trata de estabelecer um e a história da Severina (6ª ed.). São Paulo:
Brasiliense.
diagnóstico e compará-los com o ideal definidor,
é a que estabelece uma forma de tratamento COSTA, J. F. (1983). Ordem Médica e Norma
diferenciada ao considerar seus espaços e Familiar (2ª ed.). Rio de Janeiro: Edições
oportunidades em relação a emprego, estudo, Graal.
formação e tratamento. Com isso, fica explícito COSTA, J. F. (1989). Psicanálise e Contexto
que a própria sociedade se contradiz ao exigir Cultural: Imaginário Psicanalítico, Grupos
uma aproximação quando se trata de avaliar e e Psicoterapias. Rio de Janeiro: Campus.