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PAISAGENS EM DEBATE revista eletrônica da área Paisagem e Ambiente, FAU.

USP
1
artigo publicado em novembro/2005

PRAÇA: A FORMA MAIS QUE DIFÍCIL


Vladimir Bartalini
Professor Doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Trabalho apresentado no Fórum da Paisagem Praça e Cidade em 2005, organizado
pelo Laboratório Gestão e Projeto do Espaço, FAU.USP.

É de se perguntar se, hoje em dia, ainda faz sentido falar de praças e, com mais motivos, da
forma praça. Comumente se entende forma como oposição a conteúdo, como simples
aparência, epiderme sob a qual jazem as verdadeiras razões, ou as razões profundas dos
fatos. Formalista é alguém dado a superficialidades, a futilidades, ao não necessário. No
entanto, precisamos criar formas para tudo: para comer, dormir, trabalhar, para manifestar
prazer ou pesar, para reter algo na memória, para imaginar o futuro.
De fato, diante de certas premências, pensar na forma parece supérfluo. No entanto, mesmo
em condições de extrema precariedade, a prática das ações mais corriqueiras se dá em
obediência a certos códigos, convenções, ou seja, formalidades. Tais códigos, convenções,
ou formas, nasceram de alguma necessidade. Pode-se questionar o grau de prioridade desta
ou daquela necessidade, ou seja, a urgência disto ou daquilo, mas qualquer que ela seja não
poderá prescindir de uma forma para ser satisfeita.
As praças também nasceram de necessidades: de espaço para abrigar as atividades de
troca e para a tomada de decisões coletivas; de endereço para os encontros, para as
festividades; de um símbolo para a comunidade, enfim, de um “centro” facilmente acessível
para a realização das mais variadas funções.
A representação da centralidade, na história, se deu por meio de formas específicas,
correspondentes aos diferentes tipos urbanos. Henri Lefèbvre nos lembra que na cidade do
Oriente, que é “razão e resultado do modo de produção asiático”, o domínio da cidade sobre
o território é representado pelo Palácio do Príncipe, que é o “recinto sagrado”, o “umbigo”, o
“centro do mundo”. Pelo “caminho triunfal”, conectado ao recinto sagrado, “vão e vêm os
exércitos que protegem e oprimem o território agrícola que a cidade administra”. É nele que
ocorrem os desfiles militares, as procissões religiosas. Onde o caminho triunfal intersecta o
recinto sagrado há uma Porta, “monumento entre os monumentos”. Se o “centro do mundo”
não está aberto ao território, a Porta converte-se no verdadeiro centro urbano.
Ao redor da Porta, continua Lefèbvre, reúnem-se os guardas, os caravanistas, os errantes,
os ladrões. É aí a sede do tribunal urbano e é aí que se encontram os habitantes para
conversas espontâneas. É o lugar da ordem e da desordem urbanas, das revoltas e das
repressões.1

1
Henri Lefèbvre, O direito à cidade, trad. bras. T. C. Netto, São Paulo, Editora Documentos, 1969, p. 119.
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Já na cidade grega e, mais tarde, na romana, a centralidade será expressa por um vazio. A
forma praça, como centralidade, é portanto uma criação do ocidente e, mais especificamente,
do mundo em volta do Mediterrâneo que, numa exorbitância, poderia ser considerado um
mar-praça.
Mas a formação deste vazio não ocorreu fortuitamente. Jean-Pierre Vernant, no seu
cuidadoso estudo sobre a organização do espaço na Grécia nos informa que o nascimento
da ágora
Liga-se a determinados costumes característicos dos gregos indo-europeus, entre os quais
existe uma classe de guerreiros separada dos agricultores e dos pastores. Encontra-se em
Homero a expressão laon ageirein, isto é, reunir o exército. Os guerreiros reúnem-se em
formação militar: formam o círculo. No círculo assim formado constitui-se um espaço em que
se dá um debate público, com o que os gregos denominam iahgoria o direito à livre palavra.
No início do canto II da Odisséia, Telêmaco convoca deste modo a ágora, isto é, ele reúne a
aristocracia militar de Ítaca. Estabelecido o círculo, Telêmaco avança para o interior e se
coloca em mesw, no centro; segura o cetro na mão e fala livremente. Quando ele termina, sai
do círculo, um outro toma seu lugar e lhe responde. Esta assembléia de ‘iguais’, que constitui
a reunião dos guerreiros, desenha um espaço circular e centrado em que cada um pode
dizer livremente o que lhe convém. Este ajuntamento militar tornar-se-á, depois de uma série
de transformações econômicas e sociais, a ágora da cidade em que todos os cidadãos (de
início uma minoria de aristocratas, depois o conjunto do demos) poderão debater e decidir
em comum os negócios, que lhes concernem coletivamente.2
A existência da ágora pressupõe, portanto, um sistema de vida social implicando, para todos
os negócios comuns, um debate público. Eis porque vemos aparecer a praça pública
somente nas cidades jônicas e gregas. A existência da ágora é a marca do advento das
instituições políticas da cidade.3
A praça nasce assim de uma necessidade _a de reunir as pessoas_, mas também de uma
escolha, que se traduz num princípio de relacionamento entre as pessoas _o igual direito à
palavra. Mas esta necessidade e esta escolha poderiam se realizar mediante outra “forma”,
ter uma outra gênese formal que não a do vazio de um círculo. Poderia ser na forma de
platéia e palco, no qual os oradores se sucederiam e de onde falariam aos demais. Por sinal,
a origem etimológica da palavra praça é o vocábulo latino platea, ou rua larga.
No entanto, escolheu-se o círculo. Vernant propõe a hipótese de que tenham existido, entre
os gregos, correspondências muito fortes entre a organização do espaço social no meio
urbano _consolidadas por Hipódamo de Mileto, arquiteto do século V a. C._ e a
reorganização do espaço físico nas concepções cosmológicas de Anaximandro, filósofo
jônico, que viveu entre os séculos VII e VI a. C. De acordo com a concepção de Anaximandro,
a explicação para o fato da terra manter-se imóvel no centro da “circunferência celeste” (sic)
está na igual distância que ela mantém em relação a todos os seus pontos. Por estar situada
no centro, não é dominada por nada, não está sujeita a nenhum poder.
“Que vem fazer neste esquema astronômico esta idéia de ‘dominação’, que é de ordem
‘política’ e não de ordem física”? pergunta-se Vernant. E responde:

2
Jean-Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, trad. bras. Haiganuch Sarian, Difusão Européia do Livro e
EDUSP, 1973, p. 163.
3
Ibid.
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3
É que na imagem mítica do universo, a terra, para permanecer estável, devia apoiar-se
sobre qualquer outra coisa que ela mesma e da qual, por conseqüência, dependesse. O fato
de que a terra tinha necessidade de uma base implicava que ela não era inteiramente
independente, que estava sob o poder de uma realidade mais forte. Pelo contrário, em
Anaximandro, a centralidade da terra significa sua ‘autonomia’. (...) ”4
Analisando o paralelismo no “vocabulário, nos conceitos, na estrutura do pensamento”,
Vernant conclui pela existência dos elos entre a “nova imagem esférica do mundo” e “a nova
imagem da sociedade humana no quadro das instituições da polis.”5
Mudaram os modos de produção, mudaram os sistemas sociais. O vínculo que relacionava a
forma praça ao reconhecimento das relações simétricas e recíprocas entre as pessoas
enfraqueceu-se ou desapareceu, mas a praça continuou a representar a centralidade urbana
ainda na Idade Média. Ela é, segundo Lefèbvre, uma centralidade “funcionalizada”, uma
centralidade que “acolhe os produtos e as pessoas” e que “proíbe seu acesso àqueles que
ameaçam sua função essencial, que passa a ser a função econômica”6.
Entretanto, prossegue Lefèbvre, a centralidade assim funcionalizada e estruturada continua a
ser objeto de todos os cuidados. É ornamentada. A menor aldeola (...) possui arcadas, uma
praça monumental, edifícios municipais tão suntuosos quanto possível, lugares de prazer.7
À centralidade condensada na praça medieval sucedeu-se, ainda segundo Lefèbvre, o
“centro de consumo” da cidade capitalista, uma centralidade dupla onde se dá ao mesmo
tempo o “lugar de consumo e o consumo do lugar”. Esta centralidade se instala
preferencialmente
nos antigos núcleos, nos espaços apropriados no decorrer da história anterior. (...) Nesses
lugares privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço. (...) Nesses lugares
privilegiados, o consumidor também vem consumir o espaço; o aglomerado dos objetos nas
lojas, vitrinas (...) torna-se razão e pretexto para a reunião das pessoas; elas olham, vêem,
falam, falam-se. E é o lugar de encontro, a partir do aglomerado das coisas. Aquilo que se
diz e se escreve é antes de mais nada o mundo da mercadoria, a linguagem das
mercadorias, a glória e a extensão do valor de troca. Este tende a reabsorver o valor de uso
na troca e no valor de troca. No entanto, o uso e o valor de uso resistem obstinadamente:
irredutivelmente (...).8
No caso em que o centro de consumo não se instala nos antigos núcleos, isto é, nos
“espaços apropriados no decorrer da história anterior”, ele os inventa, e que forma lhes dá? A
de ruas com lojas e praças de alimentação.
Desprezar ou minimizar a discussão sobre a forma praça parece assim implicar na aceitação
de que se pode dispor de uma forma para qualquer finalidade, mesmo que isto signifique
realizar simulacros de espaços e não espaços reais. Conseqüentemente, esta indiferença
abona que se chame de praça qualquer espaço livre.
Remontar aos gregos não é querer recuperar a forma e o uso originais da praça, o que seria
ingenuidade, mas afirmar que as formas não são ingênuas.

4
Jean-Pierre Vernant, op. cit., p. 165-166.
5
Ibid., p. 166.
6
Henri Lefèbvre, O direito à cidade, op. cit., p. 120.
7
Ibid.
8
Ibid.
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4
Assim, não é em absoluto uma perda de tempo indagar-se profundamente sobre a forma e
também sobre a localização das praças. Se elas existem, é inevitável que tenham uma forma.
Não indagar sobre ela é aceitar passivamente o que o costume determina, e o habitual nas
nossas cidades é a praça ser residual, ou seja, ter a forma, se assim se pode dizer, da sobra,
do resto. E, se as praças existem, elas estão situadas, localizadas, estão em algum lugar.
Não dar importância a isso é novamente aceitar o costume, que é a praça estar na margem,
à margem. Remanescente e marginal. São esses os adjetivos que acompanham a forma e a
localização (o lugar) da grande maioria das nossas praças, o que de certo modo é coerente
com os usos que muitas delas acolhem.
De certo há “práticas de espaço” 9 que testemunham a inteligência, a astúcia do homem
comum, que o desvencilham das constrições da cidade oficial. Não há porque tais práticas
não ocorrerem também nos espaços livres públicos, qualquer que seja sua forma. Mas tudo
isso sucede independentemente da ação de arquitetos, de urbanistas ou de paisagistas.
Aliás, por sua própria natureza, estes espaços dificilmente se deixam capturar, e quando
neles se dá alguma interferência oficial, não raro esvai-se o sopro que os anima.
Não se trata aqui, portanto, destes espaços, e sim daqueles que, além de oficiais, também
contam, para o seu projeto, reforma ou adaptação, com a presença de algum “operário que
conhece bem o seu ofício”. A iniciativa pode vir do estado, de uma associação de moradores
ou de qualquer outra instituição. O “operário” pode ser individual ou coletivo, diplomado ou
não. Em qualquer caso haverá uma forma, ela terá uma materialidade e uma duração, ela
“dirá” algo. A alternativa a não refletir sobre esta forma é adotar alguma disponível nos
catálogos e aceitar o que ela “diz”.
Dispor os soldados em círculo e fazer do oco um lugar de expressão dos iguais foram, como
vimos, gestos cheios de significados, associados a preceitos de relação entre as pessoas e
até mesmo a uma nova concepção do cosmo. Dar forma, portanto, implica também numa
visão de mundo, deste nosso mundo, na variedade em que ele se apresenta; implica no
reconhecimento de finalidades e na assunção de princípios de relacionamento social.
Tarefa nada fácil. Rodrigo Naves, em seus ensaios sobre a arte brasileira, fala na dificuldade
de forma que acomete até nossos melhores artistas:
A relutância em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência
mais positiva e conflituada com o mundo, leva-os a um movimento íntimo e retraído, distante
do caráter prospectivo de parcela considerável da arte moderna. Este recolhimento contudo
não livra os trabalhos da realidade. Ao contrário, essas estruturas frágeis se deixam envolver
de maneira complexa e inesperada. Sua natureza remissiva _a necessidade de
constantemente devolver as aparências a um tímido questionamento de sua existência_
evoca uma sociabilidade de ordem semelhante, pouco definida, doce e reversível.10
O que não se dirá em relação aos nossos espaços públicos? Não tivemos a praça típica da
Europa meridional (o que mais se aproximou dela foram os adros das igrejas). A praça
republicana mais enalteceu as instituições e seus edifícios, do que atendeu ao povo, do qual
não nasceu. A não consolidação deste tipo de espaço público permite que se chame de
praça uma rotatória, um trevo viário ou qualquer nesga de terra pública. No entanto, a
despeito da impropriedade do nome, estes espaços estão presentes nos centros e nas
periferias de nossas cidades e, alguns deles, são até objeto de cuidados. A questão é sobre

9
Michel de Certeau, A invenção do cotidiano, trad. bras. Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis, Vozes, 1994.
10
Rodrigo Naves, A forma difícil – ensaios sobre a arte brasileira, São Paulo, Editora Ática, 2001, 2a edição, p. 21.
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que cuidados, que tratamento, que formas dar a eles. Eles não são nada, coisa alguma.
Eles são, significam algo, ainda que este significado seja “o que sobrou”. Portanto, mesmo
nestes casos extremos, é preciso buscar uma forma condizente que expresse esta condição.
Voltemos aos gregos, que criavam formas ou entidades para lidarem, no domínio do real,
com o que se lhes oferecesse à reflexão. Mais uma vez vale recorrer ao estudo de Jean-
Pierre Vernant, no que se refere à expressão do espaço e do movimento. Para isto ele evoca
a associação entre Hermes e Hestia, presente tanto em poesia _como no Hino homérico a
Hestia_, quanto em imagens _como na base da estátua de Zeus, esculpida por Fídias.
Vernant comenta que esta associação entre Hermes e Hestia
(...) não se baseia nos laços do sangue, nem do casamento, nem da dependência pessoal.
Ela corresponde a uma afinidade de função: as duas forças divinas, presentes nos mesmos
lugares, desenvolvem lado a lado atividades complementares. Nem parentes, nem esposos,
nem amantes, nem vassalos, _ poder-se-ia dizer de Hermes e de Hestia que são “vizinhos”.
Com efeito, tanto um como outro referem-se à extensão terrestre, ao habitat de uma
humanidade sedentária. “Ambos, explica o Hino, habitais as belas moradas dos homens que
vivem na superfície da terra (epicqonioi), com sentimentos de mútua amizade”.11
Hestia, que designa também a lareira no centro da casa, é símbolo da permanência, da
fixidez. Ela nunca deixa o seu lugar, que é o espaço doméstico. Hermes também freqüenta
“as casas dos mortais”, como Hestia, mas diferentemente desta, ele o faz “como um
viajante”12.
A polaridade Hermes-Hestia é assim resumida por Vernant:
Como o seu quinhão é permanecer para sempre no trono, imóvel, no centro do espaço
doméstico, Hestia implica, em solidariedade e em contraste consigo mesma, o deus veloz
que reina sobre o espaço do viajante. A Hestia o interior, o recinto, o fixo, a intimidade do
grupo em si mesmo; a Hermes o exterior, a abertura, a mobilidade, o contato com o outro.
Pode-se dizer que o casal Hermes-Hestia exprime, em sua polaridade, a tensão que se
observa na representação arcaica do espaço: o espaço exige um centro, um ponto fixo, com
valor privilegiado, a partir do qual se possam orientar e definir direções, todas diferentes
qualitativamente; o espaço porém se apresenta ao mesmo tempo como lugar do movimento,
o que implica uma possibilidade de transição e de passagem de qualquer ponto a um outro.13
No entanto, adverte Vernant, não se pode deduzir, de um modo simplista, que os gregos
tenham visto nestas divindades os símbolos do espaço e do movimento como os
entendemos hoje. Nem é tão linear esta associação, pois os pólos masculino e feminino
_Hestia permanece em casa, Hermes se desloca e se relaciona com os de fora_ se invertem
no casamento: a mulher muda de casa, o homem permanece. Além disso, é Hestia quem
recebe o estrangeiro, que é conduzido à lareira de modo a ser integrado ao espaço
doméstico:
A relação com o estrangeiro, xenos, é pois da alçada de Hestia, tanto quando se trata de
receber um hóspede em casa quanto ao voltar à sua própria casa ao fim de uma viagem ou
de uma embaixada ao exterior. (…) O centro que simboliza Hestia não define pois somente
um mundo fechado e isolado; ele pressupõe também, correlativamente, outros centros

11
Jean-Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, op. cit., p. 114.
12
Ibid., p. 115.
13
Ibid., p. 117.
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análogos; pela troca de bens, pela circulação das pessoas (…) uma rede de “alianças” se
tece entre grupos domésticos; sem fazer parte da linhagem familiar um elemento estrangeiro
pode assim se achar, de maneira mais ou menos durável, ligado e integrado a uma outra
casa que (não) a sua.14
De certo, seria inadequado aplicar literalmente aos nossos casos os achados dos antigos
gregos, mas não parece sem interesse observar os expedientes por eles criados para dar
conta das situações de razoável complexidade com que se deparavam, fazendo uso das
formas e mesmo do antropomorfismo. Quantas de nossas chamadas praças não apresentam
as polaridades local-exógeno, permanente-transitório? Como resolvemos, como
representamos, como evidenciamos, enfim, como formalizamos estas dualidades, que não
são apenas dualidades funcionais, mas de sentido? Ou ainda, que deuses presidem as
nossas “sobras” de espaço e que rito a eles se aplica?
Num mundo dessacralizado estas perguntas talvez soem estranho e, de fato, não devem ser
respondidas ao pé da letra. No entanto, refletir sobre elas pode valer a pena. Se virão
respostas válidas de uma reflexão sobre o sentido das formas (morphe) empregadas nos
espaços públicos, não é possível prever, mas é bem menos provável que elas venham da
simples sujeição ao habitual ou vernacular, ou do mero elogio à espontaneidade, e muito
menos de propostas edulcorantes.
Para dar sentido a uma investigação sobre a praça na nossa contemporaneidade é preciso,
antes de mais nada, reconhecer a necessidade de um lugar onde possam se expressar,
publicamente, determinadas relações entre as pessoas, sendo esta inter-pessoalidade
característica distintiva, embora não exclusiva, da praça. Para isso pode-se contar com os
estudos e pesquisas que trazem à tona a vitalidade presente nos espaços de encontro e
inter-relacionamento, mesmo que improvisados e precários.
Reconhecida a necessidade ou importância destes espaços, é igualmente preciso entender a
sua forma como uma questão, sentir-se inquieto, incomodado diante dela, para não repetir
automaticamente fórmulas não condizentes com as situações atuais. As mudanças que
ocorrem no modo de ver o mundo caminham junto com as mudanças nas suas formas
representação, mas isso não acontece se o problema da forma não se coloca, se não há
determinação e um desejo forte de investigar novos modos de expressão.
Giulio Carlo Argan, num ensaio sobre o significado da cúpula de Santa Maria Del Fiore,
projetada por Brunelleschi., comenta a descrição interpretativa que Alberti fez da “grande
calota que havia aparecido (quase que por milagre, mas por um milagre da inteligência
humana) no céu de Florença”15:
Dizer que a cúpula “erguia-se acima dos céus” era sem dúvida uma figura literária, mas não
um contra-senso (...). Falar de céus, em vez de céu, era, para um literato leitor de Dante,
como Alberti, mais do que natural; contudo, isso não exclui o fato de que, no plural, céus
compreenda (...) o céu físico e o céu metafísico. Uma vez que este último não tem limites,
erguer-se acima dele, delinear um limite visível para o infinito, significa compreendê-lo, defini-

14
Ibid., p. 131.
15
Giulio Carlo Argan, “O significado da cúpula”, in História da Arte como História da Cidade, trad. bras. Píer Luigi Cabra,
São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 95.
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lo, representá-lo e, já que o céu metafísico compreendia o físico, representar o espaço em
sua totalidade.16
Tratava-se, portanto, de uma forma “representativa (e não puramente simbólica) do espaço
universal”17. Para chegar a isso, foi preciso que Brunelleschi não se contentasse com as
formas e com o processo tradicional de construção das grandes coberturas.
Uma cúpula que tivesse crescido sobre poderosos suportes desde o chão não iria ser, como
ele queria, magnífica e “inchante”, um particípio que, empregado pelo próprio Brunelleschi
em sua planta de trabalho, demonstra claramente que a estrutura devia equilibrar-se, não
pesar e ser animada por um impulso expansivo.”18
Não teríamos também renovação estética na pintura, ou seja, ela não seria capaz de
expressar novos modos de perceber o mundo, se os pintores não pesquisassem novas
formas de registro. Segundo Merleau-Ponty, quando Cézanne dizia que “à medida que se
pinta, desenha-se”, ele se contrapunha ao ensinamento clássico que distinguia o desenho da
cor (primeiro desenha-se o contorno do objeto para só depois preenchê-lo com cores), pois
esta norma não correspondia à percepção que ele tinha do mundo.
Cézanne quer gerar o contorno e a forma dos objetos como a natureza os gera diante de
nosso olhos: pelo arranjo das cores. E daí decorre que a maçã que ele pinta, estudada com
uma paciência infinita em sua textura colorida, acaba por inflar-se, por romper os limites que
o desenho bem comportado lhe imporia.19
Embora estes exemplos se refiram à edificação e à pintura, não há porque não fazê-los valer
também para os espaços públicos, o que implica captar seus sentidos atuais com um olhar
profundamente inquiridor, e numa vontade de dar a eles formas sintonizadas com o novo
modo de vê-los.

setembro / outubro 2005

Nota dos Editores

16
Ibid., p. 95-96.
17
Ibid., p. 97.
18
Ibid., p. 98.
19
Maurice Merleau-Ponty, Conversas – 1948, trad. bras. Fábio Landa e Eva Landa, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 12.
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