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Resenha: O mundo codificado / Uma filosofia do design

19/09/2010 POR MARCOS BECCARI 1 COMENTÁRIO

[Resenha de Marcos Beccari - parte de sua dissertação de mestrado(p. 125-135). Os livros resenhados
são: “O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação” (São Paulo, Cosac Naify, 2007)
e “Uma Filosofia do Design: A Forma das Coisas” (Lisboa, Relógio D'Água, 2010). O segundo livro é a
tradução integral de “The Shape of Things: A Philosophy of Design” (1999), enquanto que O mundo
codificado reúne apenas alguns textos do The Shape of Things e outros textos do livro “Writings”(2002).]
Flusser (2007) encara a imagem e o artefato como princípios básicos da existência humana. Mas
diferentemente de outros pensadores de mídias (como Barthes, McLuhan, Baudrillard, etc.), Flusser
ultrapassa muitas limitações metodológicas a favor de uma reflexão aberta do pensamento humano (no
sentido mais amplo que isso possa ter). Isso porque, de fato, Flusser nunca publicou um tratado filosófico,
nem construiu algo que se assemelhe a um sistema filosófico – ao invés disso, escrevia somente na
forma de ensaios. Ainda que seja influenciado por um discurso positivista e lógico, sua reflexão
transcende qualquer tentativa de categorização, adquirindo um tom “absurdo” que o leva muitas vezes a
ser desconsiderado enquanto filósofo. Encarando seu próprio trabalho enquanto mídia, Flusser (2002) se
justifica ao considerar que qualquer mídia possui uma lógica própria, transmitindo informações sobre a
realidade segundo leis próprias. Neste sentido, se mudamos a estrutura da mídia, mudamos também a
realidade percebida. Em função da experiência do autor com textos jornalísticos – sempre curtos e
provocativos –, suas frases são diretas e taxativas. Assemelha-se a uma fala nietzschiana, isto é,
quase profética. Porém, por mais nebulosa que sua leitura possa parecer, sua postura localiza-se
majoritariamente entre o ceticismo e a fenomenologia. Segundo Gustavo Bernardo (apud SILVEIRA,
2007), um dos principais intérpretes de Flusser no Brasil, teríamos três fenomenologias: a
transcendentalista (como em Husserl); a existencialista (como em Sartre e Merleau-Ponty); e a
hermenêutica (como em Heidegger e Gadamer). Flusser transitaria vagamente entre elas, aproximando-
se mais da última.
Design e comunicação são, para ele, desdobramentos interdependentes de um mesmo fenômeno; a
saber, o processo de codificação da experiência [1]. Significa que projetar é in-formar, isto é, dar forma à
matéria seguindo uma determinada intenção. Para melhor compreendermos estes conceitos, podemos
recorrer aos primeiros capítulos do livro Uma Filosofia do Design (2010), onde o filósofo trilha uma
investigação etimológica sobre forma e matéria. A palavra morphé (forma em grego) é oposta
a hyle (matéria em grego), mostrando-nos que o mundo material é amorfo e o mundo formal é imaterial,
podendo ser descoberto somente através da intencionalidade (uma espécie de acesso às formas). Se
interpretarmos a palavra alemã Materie como Stoff (material, substância), retomaremos o
verbo stopfen(embutir, encher), deduzindo que o mundo material é aquilo que é introduzido nas formas,
de modo a preenchê-las como em um recipiente. Logo, a oposição matéria-forma equivale à oposição
conteúdo-recipiente: quando vemos uma mesa, por exemplo, vemos na verdade madeira com a forma de
mesa. Isto é, a madeira estaria em uma forma transitória, mas a forma que temos da mesa seria eterna.
Por isso, a forma da mesa seria real e o seu conteúdo (a madeira), só aparente – um copo d’água não
indica que a água possui aquela forma, mas atribui a ela uma condição provisória. Assim, deduzimos que
a Forma é o “como” da matéria e a Matéria é o “quê” da forma. Flusser (2010) conclui que as formas não
são descobertas, ou mesmo invenções, ideias platônicas, ficções, mas sobretudo “recipientes” para os
fenômenos (entendidos aqui como modelos), sendo o Design, portanto, não uma ciência verdadeira nem
falsa, mas antes disso um método Formal (projetar modelos).
Pois o Design, tal como todas as expressões culturais, mostra que a matéria não aparece (não é
ostensiva), senão na medida em que é in-formada, e que, uma vez in-formada ou “informada”, começa a
aparecer para nós (torna-se um fenômeno). Assim, a matéria é também o modo como aparecem as
formas, ou vice-versa. Isso desemboca em duas diferentes abordagens ao Design: a material, que encara
a matéria como origem das representações, e a formal, que encara a forma como modelo ou esquema
que precede a matéria. O primeiro modo de ver dá ênfase na matéria que aparece na forma, e o segundo
modo, na forma daquilo que aparece na matéria. A posição de Flusser consiste, seguindo esta linha de
raciocínio, no fato de que, enquanto nos tempos de Platão tentava-se “fazer aparecer” toda a matéria
disponível, hoje tentamos encher de matéria um dilúvio infinito de formas que, por sua vez, emergem em
nossas incontáveis perspectivas teóricas e nos aparelhos de informação, de modo a “materializar” as
formas. Retomando a questão da codificação da experiência, significa que, ao contrário de encarar a
realidade como dado a ser in-formado (em teorias e modelos), hoje estaríamos projetando formas e mais
formas, como um esboço da matéria, para se produzir “mundos alternativos”.
Fato é que o produto de design seria ao mesmo tempo modelo (forma materializada)
e informação (matéria formalizada): ao transformar as relações entre o homem e seu entorno, atribui uma
função e um significado ao mundo. Embora isso pareça simples, o paradoxo do Design se revela em sua
ambiguidade de ser simultaneamente uma atividade natural e artificial. Se por um lado configura uma
habilidade imanente ao homem (natural), por outro, compõe um universo codificado (artificial) regido por
uma semântica e uma dinâmica próprias. Tal dinâmica manifesta-se nassuperfícies (imagens) que, antes
mesmo da invenção da escrita, sempre foram mediações decisivas na comunicação. “O homem pré-
moderno vivia num outro universo imagético, que tentava interpretar o mundo” (FLUSSER, 2007, p. 130).
Depois, com a invenção da imprensa, as superfícies foram codificadas linearmente, transformando-se
emsímbolos (como o alfabeto), seguindo o propósito de dar sentido às imagens. Mas se outrora
perdemos a fé nas imagens para nos conduzirmos à ciência e à tecnologia, hoje estaríamos, segundo
Flusser (idem), perdendo a crença nos textos (explicações, teorias, ideologias) que, assim como as
imagens, também podem ser reconhecidos comomediações (mídias). Não estaríamos, no entanto,
retrocedendo ao mundo primitivo das imagens, estaríamos na verdade em direção ao mundo
das tecnoimagens, isto é, modelos tecnológicos e imagéticos que explicam textos (que outrora
explicavam as imagens).
Para resumir isso, faremos uma pequena digressão sobre os códigos: um código é um sistema de
símbolos. Seu objetivo é possibilitar a comunicação entre os homens. Como os símbolos são fenômenos
que substituem (significam) outros fenômenos, a comunicação é, portanto, uma substituição: ela substitui
a vivência daquilo a que se refere. Os homens têm de se entender mutuamente por meio dos códigos,
pois perderam o contato direto com o significado dos símbolos. O homem é um
animal alienado (verfremdet) e vê-se obrigado a criar símbolos e a ordená-los em códigos, caso queira
transpor o abismo que há entre ele e o mundo. Ele precisa mediar (vermitteln), precisa dar um sentido
ao mundo (FLUSSER, 2007, p. 130).
Seguindo este raciocínio, quando nós codificados a experiência, estamos apenas exercendo o propósito
humano (oartifício) de dar sentido ao mundo. A imagem seria, nas palavras de Flusser (idem), a “forma
mágica da existência”: ela ordena as coisas de modo que possamos atribuir um sentido a elas através
dos símbolos. “E o mundo desse modo codificado, o mundo das imagens, o mundo imaginário,
programou e elaborou a forma de existência (Daseinsform) de nossos antepassados” (FLUSSER, op. cit.,
p. 132). Para eles, o mundo era um amontoado de cenas que exigiam um comportamento mágico,
imagético. Os símbolos que substituíam (davam significado) às imagens eram os gestos, as falas, as
crenças, etc. A invenção da escrita, por sua vez, não se deve simplesmente à invenção de novos
símbolos, mas sim ao desenrolar da imagem em linhas. “Os textos, com relação às imagens, estão a um
passo mais afastado da vivência concreta, e conceber é um sintoma mais distanciado do que imaginar”
(FLUSSER, op. cit., p. 133). Com a invenção da escrita, o homem teria conquistado aquilo que Flusser
denomina de consciência histórica, não porque a escrita grava os processos, mas porque ela transforma
as coisas em processos lineares. Evidentemente, a consciência histórica não venceu imediatamente a
consciência mágica ou imagética. Ao longo da Antiguidade e da Idade Média, a consciência histórica
pertencia apenas a uma elite de literatos. Platão, por exemplo, desprezou a pintura, e os profetas
iconoclastas lutaram contra a idolatria pagã. Porém, a grande maioria da população persistiu com a
consciência mágica. Somente com a invenção da tipografia que a burguesia em ascensão, por exemplo,
pôde usufruir da consciência histórica da elite aristocrática. Com a Revolução Industrial, que arrancou a
população pagã dos campos (e de sua existência mágica), a grande massa teve acesso aos códigos
lineares, graças à imprensa e à escola primária. No decorrer do século XIX, finalmente o alfabeto
começou a funcionar efetivamente como código (sistema de símbolos) universal.
Entretanto, “…a vitória dos textos sobre as imagens, da ciência sobre a magia, é um acontecimento do
passado recente, que está longe ainda de poder ser considerado algo garantido e seguro” (FLUSSER, op.
cit., p. 134). Pois a escrita pode ser considerada uma intenção de regressão às imagens, uma vez que ela
permite que as analisemos. E seguindo seu próprio percurso, alcançaria um novo grau de distanciamento,
a imagem eletrônica. Retornaremos “do mundo linear das explicações para o mundo tecnoimaginário
dos modelos” (FLUSSER, op. cit., p. 136). Neste sentido, modelos significam conceitos, isto é, são
estruturas imagéticas que ilustram textos (que outrora explicavam as imagens). Esta imaginação
tecnológica estaria, pois, descartando os antigos modelos (a política, a filosofia, a ciência) e solicitando
novos modelos que impeçam a falta de sentido implícita em um mundo cada vez mais codificado pelo
homem. A grande provocação de Flusser (idem) torna-se então evidente nas entrelinhas: caberia ao
Design este recomeço dos novos modelos? Ou seria o Design um dos modelos a serem substituídos?
De todo modo, a cada dia se torna mais inesgotável a variação de forma/aparência entre objetos
destinados a uma mesma utilização. Dado que projetar e in-formar são aspectos de uma única ação,
Flusser (idem) postula que o Design deve rejeitar a dicotomia clássica entre representação e referente,
signo e objeto, teoria e prática, etc. Afinal, o Design se torna indistinguível
de comunicação ou linguagem na medida em que sinaliza a singular tentativa humana (natural) de impor
sentido ao mundo por meio de códigos e técnicas (artificiais). Em outras palavras, significa enganar a
natureza por meio da tecnologia – ou simplesmente produzir cultura (idem). No entanto, este poder
cultural acaba enganando a nós mesmos: mundos alternativos àquilo que consideramos realidade,
quando vivenciados coletivamente, se tornam reais a partir de palavras, imagens e artefatos.
Não se trata de um mundo à parte, mas da reconstrução de um mesmo mundo cuja lógica permanece à
margem da distinção material-imaterial. Revela-se, com isso, outro paradoxo: embora o ato de in-
formar seja natural ao ser humano, o excesso de informação nos conduz à desagregação de sentido.
Trata-se daquilo que Flusser (2010) chama de não-coisas. “E estas não-coisas são simultaneamente
efêmeras e eternas” (FLUSSER, op. cit., p. 103), materiais e imateriais, reais e irreais. Após
inaugurarmos, no século retrasado, o admirável mundo novo da industrialização e da imagem técnica
(como a fotografia), temos que lidar com um crescente acúmulo de lixo (mesmo que eletrônico)
proveniente de nossa tentativa natural de superar a natureza. De fato, conseguimos alterar a paisagem,
tanto quanto o nosso destino. Os designers são portanto deuses, profetas, Prometeus roubando o fogo
divino… enfim, aqueles que direcionam a tecnologia para manipular a eternidade, isto é, seus próprios
destinos.
Retomando o raciocínio das não-coisas, contudo, nossas mãos tornam-se supérfluas (não
podemos pegar uma não-coisa), ao passo que as pontas dos dedos se tornam nosso instrumento
de decisão. Por exemplo: se eu aperto o gatilho de um revólver apontado para mim mesmo, significa que
decidi tirar-me a vida. Aparentemente, esta é a máxima liberdade humana: sou capaz de me libertar de
qualquer dificuldade apertando um gatilho/tecla/botão. Mas um olhar mais atento perceberá que, ao
apertar o gatilho, eu apenas aciono um processo pré-programado no revólver. A liberdade de decidir
apertar uma tecla com a ponta dos dedos revela-se uma liberdade programada, uma escolha entre
possibilidades predefinidas. Este quadro sugere que o futuro da cultura não-material será dividido em
duas classes: os que programam e os que são programados. Mas novamente um olhar mais atento
perceberá a possibilidade de meta-programas, revelando infinitos níveis de programadores de
programadores. Logo, o cenário do futuro imaterial sinaliza uma sociedade de programadores
programados.
No entanto, os programas estão cada vez melhores, com possibilidades de escolha que superam
astronomicamente a capacidade humana de tomar decisões. Temos a sensação de tomar decisões de
forma absolutamente livre. O programa então se torna invisível – ele só era visível em seu estado
embrionário (FLUSSER, 2010). Pois o indivíduo emancipado, capaz de tomar decisões livremente,
representa o programa utópico com que a humanidade sonhou desde sempre. Seria esta a nossa
programação original? Se sim, o maior erro de programação ainda não resolvido é, consoante Flusser, a
nossa própria condição humana, “aquela que é a condição emocional fundamental da existência, isto é, o
ser para a morte, independentemente do fato de a morte ser vista como coisa última ou como não-coisa”
(FLUSSER, op. cit., p. 100). Somos coisas perecíveis e materiais, ainda que nossas decisões fiquem
eternizadas na efemeridade imaterial de nossos programas. Substituímos a vida por um outro programa,
mas não conseguimos substituir aquele que nos programou.
Por outro lado, o designer é também uma fonte de possibilidades. A crença na tecnologia como algo
controlável, tangível e linear, que teoricamente existe a serviço de nosso bem-estar, atribui autonomia
àquilo que foi construído artificialmente. Máquinas tão eficientes e inteligentes passam a reger a
paisagem, reformulando nossa experiência e nossa percepção que, deste modo, assumem outros
códigos e convenções. Mesmo se abrirmos mão de nossa consciência histórica (no sentido de
cronológica e mecanicista) e deixarmos de tentar controlar a realidade, continuaremos inevitavelmente
transformando a própria noção de “realidade”. A única certeza é o aumento, em escala geométrica, da
complexidade do mundo. O que era solução se torna obstáculo (e vice-versa), confundindo construção e
desconstrução e coadunando informação e falta de sentido. Pois a paisagem moderna da cultura material
certamente não corresponde ao paraíso que nossos bisavôs pensavam que fosse – e agora estamos, aos
poucos, recusando esta materialidade, deixando de manusear concretamente as coisas. Flusser (idem)
nos lembra do quanto as noções de produtividade, utilidade, trabalho e experiência prática estão
mudando de sentido radicalmente. O autor não mais enxerga o designer apenas como um homo
faber (um homem de ação), mas também como um homo ludens (um jogador). E acredita ainda que os
projetos dramáticos, com ações e soluções, estão perdendo espaço para os projetos trágicos, feitos de
sensações, como em um espetáculo. Afinal, não haveria mais sentido em fazer ou ter, mas sim em
conviver, conhecer, compartilhar, vivenciar.
À parte disso, não é difícil notar que toda discussão trazida pelo filósofo carrega um questionamento ético
nas entrelinhas. No ensaio “A guerra e o estado das coisas”, Flusser (2010) nos lembra de que o escritor
alemão Goethe proclamava que o homem deve ser nobre, generoso e bom. Aproveitando-se de tal
prerrogativa, o autor “adapta” esta premissa ao Design e, ao mesmo tempo, o coloca em cheque:
“o designer deve ser nobre, generoso e bom?” (FLUSSER, op. cit., p. 23). Supomos que temos que
projetar uma faca de cozinha (o exemplo de Flusser é de um cortador de papel). Deve ser uma
faca nobre na medida em que seja fácil de ser manuseada, não exigindo nenhum conhecimento prévio
para isso – portanto, uma faca generosa também. Sobretudo, a faca deve ser boa para cortar alimentos
de maneira eficaz e sem dificuldades. No entanto, se ela for boa demais, pode cortar também os dedos
de quem a utiliza. Concluímos então que o Design deve ser nobre, generoso e bom, mas não
demasiado bom. E quanto aos revólveres? São objetos nobres, “elegantes e podem ser considerados
típicas obras de arte contemporânea” (FLUSSER, op. cit., p. 24). São generosos também, qualquer
criança analfabeta é capaz de utilizá-los. Por fim, sãobons projetos de Design: não apenas matam com
eficácia, como geralmente desencadeiam a reação de outros usuários que, por sua vez, matam aqueles
que atiraram primeiro. “Isso é o que se chama precisamente de progresso” (idem): graças ao Design, os
homens se tornam cada vez mais nobres, generosos e bons.
Há pessoas, contudo, que são contra a guerra: estão dispostas, em nome da paz, a aceitar
um mau design. Trata-se de pessoas boas num sentido completamente diferente do que se entendeu até
agora. Enquanto designers, podemos projetar objetos intencionalmente ruins a favor da paz, ou
objetos bons e alheios às suas consequências. Temos que escolher entre a guerra que traz uma
vida nobre, abastada e rodeada de objetos funcionais; e a paz de uma vida miserável, desconfortável e
com objetos ruins. Flusser (op. cit., p. 26) então propõe um meio-termo: que o Design seja
“nobre, generoso, relativamente bom e, à medida que o tempo passa, cada vez mais nobre e generoso”.
Porém, entre o bem categórico (o bem em si, puro) e o bem aplicado (funcional, pragmatista) não há
nenhum compromisso, pois “tudo que é bom no caso do bem aplicado é mau no caso do bem categórico”
(idem). Por exemplo, se o designer toma uma decisão em detrimento do bem puro e resolve projetar um
cigarro menos nocivo à saúde, não adianta recorrer ao âmbito do bem funcional, pois inevitavelmente ele
chegará à conclusão que, na verdade, o cigarro nunca deveria ter sido projetado. Isso implica que o
compromisso do Design com o progresso pragmatista (bom e funcional) não faz sentido, tanto quanto
falar de um Design ético ou santo: “onde quer que haja um objetivo, está odiabo no meio” (FLUSSER, op.
cit., p. 27). Afinal, tudo que é funcional e bom para alguém, inevitavelmente prejudica e não funciona para
outrem.
Flusser (idem) exemplifica este fato com os designers nazistas que tiveram que pedir desculpas
ao patrão, pois as câmeras de gás que eles projetaram não matavam os usuários suficientemente rápido.
Não é preciso, contudo, apontar um exemplo tão incisivo, podemos falar dos designers que projetam a
amplitude do som ensurdecedor das festas raves(ao ar livre) ou a potência dos alto-falantes de carros
customizados, ou mesmo aqueles que atuam por detrás das eleições brasileiras que tanto poluem
(material e imaterialmente) nosso cotidiano. Em qualquer caso, a prioridade do designer é fazer funcionar.
De acordo com Flusser (idem), se a funcionalidade do Design é sua função primeira, o “ser humano” de
cada designer se perde, bem como sua própria identidade sociocultural. O homem do século XIX, o
senhor de si do modernismo, estaria hoje saturado da função que lhe é inerente, enquanto que o homem
contemporâneo deverá passar por um processo de desindividualização, isto é, de valorização do papel de
cada pessoa enquanto um todo coletivo. Significa reconhecer, enquanto é tempo, aquilo que está por
detrás do conceito de bom design. Embora Flusser (op. cit., p. 28) acredite que tal reconhecimento não
contraria o desejo por objetos funcionais, elegantes e cômodos, o autor se limita a repetir: “Pretendemos,
apesar do que sabemos sobre o diabo, que o designer seja nobre,generoso e bom”.
Ainda se referindo a questões éticas e funcionais do Design, em “Abrigos, guarda-ventos e tendas”
Flusser (2010) reflete sobre o guarda-chuva, objeto este que ele considera demasiado estúpido: recusam-
se a funcionar quando mais precisamos deles (quando há vento), são difíceis de transportar, dificultam o
tráfego das pessoas na calçada e, não obstante, podem furar olhos distraídos. Além disso, “não foram
alvo de progressos técnicos desde os tempos dos antigos Egípcios” (FLUSSER, op. cit., p. 53). Partindo
deste exemplo, Flusser nos ensina que Gegenstand (objeto em alemão) significa algo que está
contra (em latim obiectum, em grego probléma), um estorvo ou obstáculo que foi lançado em nosso
caminho. O produto de Design configura então uma contradição: um obstáculo que serve para remover
obstáculos. Depois que a chuva cessa, por exemplo, o guarda-chuva se torna um grande estorvo para
seu usuário e para as demais pessoas.
Ademais, um duplo estorvo: ele também se torna problemático na medida em que há a necessidade de
usá-lo. Na tentativa de sair deste círculo vicioso, o designer elabora um novo projeto, algo inovador,
lançando um obstáculo diferente no caminho das pessoas. Mas como estorvar as pessoas o mínimo
possível? Não por acaso, esta questão configura a problemática central daquilo que hoje
denominamos Sustentabilidade na produção de objetos, um dilema simultaneamente político e
pragmático. Para Flusser (idem), essa questão confronta-se fatalmente com o tema daresponsabilidade e
da liberdade, então encaradas como sendo os dois lados de uma mesma moeda. A responsabilidade é a
decisão que o designer tem de responder por algo em nome de outras pessoas, isto é, a “lealdade em
relação aos outros” (FLUSSER, op. cit., p. 59). Deste modo, a ênfase de um projeto sustentável é dada ao
seu aspecto intersubjetivo (entre sujeitos) e não no objetivo. Se a ênfase é dada ao objeto, significa
irresponsabilidade, pois será apenas mais um estorvo que reduzirá a liberdade das pessoas.
Mas se voltarmos ao exemplo do guarda-chuva, o verdadeiro progresso sustentável seria abolir a
existência deste objeto, atitude esta que contraria o progresso científico e técnico, além de levar as
fábricas de guarda-chuvas à falência. A solução mais razoável, para o bem de todos, seria projetar um
guarda-chuva que também pudesse ser usado, por exemplo, como bolsa ou mochila, feito de material
biodegradável. Nota-se que o estorvo é inevitável, revelando-nos que o princípio sustentável tende ao
imediatismo, ao efêmero, ao tapa-buraco. A sustentabilidade, portanto, nunca é radical (no sentido
de cortar o mal pela raiz), ela consegue apenas podar os galhos. A responsabilidade categórica que um
projeto sustentável pressupõe, deste modo, seria tecnicamente e mercadologicamente um retrocesso.
Alguns ambientalistas, conforme descreve Flusser (idem), colocam a culpa em nossa cultura materialista,
dizendo que os objetos são os ídolos pagãos contemporâneos. Trata-se de um argumento equivocado,
haja vista a crescente produção de objetos imateriais: design de serviços, softwares, sistemas de
comunicação, etc.
Contudo, não significa que a cultura imaterial seja um estorvo menor, pelo contrário, “restringe ainda mais
a liberdade do que a cultura material” (FLUSSER, op. cit., p. 60). Como vimos anteriormente, a
imaterialidade configura uma crescente necessidade humana, sendo por isso um obstáculo também
crescente: quanto mais necessitamos de objetos imateriais, mais eles serão consumidos – e vice-versa. O
círculo vicioso permanece, com a diferença que os obstáculos imateriais são mais difíceis de serem
descartados. A segunda lei da termodinâmica, “segundo a qual toda matéria tende a perder sua forma (a
sua in-formação)” (FLUSSER, op. cit., p. 61), não se aplica aos objetos imateriais – suas formas não são
descartáveis.
Por exemplo: um novo serviço/software/sistema sempre solicita alguma coisa do serviço/software/sistema
anterior, ainda que seja apenas um determinado conhecimento. Isso gera um acúmulo de formas, isto é,
informações que atuam como obstáculos na medida em que, acumulando-se cada vez mais, diminuem a
nossa liberdade.
Um típico projeto sustentável é fazer as coisas transformadas pelo homem retornarem a seu estado inicial
– por exemplo, filtrar e tratar a água suja para que ela volte a ser limpa. Porém, no caso de um objeto
imaterial, é a sua forma que é transformada pelo homem, não a matéria. Assim como o objeto material,
que nunca desaparece, a informação não pode ser anulada, mas ao invés disso ela é capaz de ser
gerada sem depender da matéria. Eis a segunda contradição da sustentabilidade: a própria liberdade, que
é um acúmulo imaterial de informações, é um estorvo e, portanto, uma atitude irresponsável. A pura
sustentabilidade então seria, em última instância, a inexistência do homem. Trata-se, na verdade, de uma
luta contra a entropia natural do mundo, não passível de ser julgada – não há valores na entropia, apenas
fatos. E como parte destes fatos entrópicos, o meio natural de sobrevivência do homem é alterar as
coisas, adaptá-las para si, de modo material ou imaterial. Sobreviver é um ato sustentável ao mesmo
tempo em que é também não sustentável e irresponsável: o fato de estarmos vivos agora significa que
milhares de outros seres vivos estão morrendo por nossa causa.
A conclusão é “cada um por si e Deus contra todos”? Não, responderia Flusser, pois a ação humana é (ou
deveria ser) resultado do pensamento racional. Pensar na sustentabilidade, nas relações interpessoais e
na responsabilidade envolvida nisso é uma atitude racional. Mas quando uma atitude racional se torna
uma intenção emancipadora, no sentido de tentar controlar completamente o entorno no qual estamos
submetidos, confrontamos a natureza geral das coisas que são, à priori, irracionais. A verdadeira
sustentabilidade, portanto, é a liberdade humana que, por si só, é insustentável. Neste sentido, a
responsabilidade ética no Design acaba sendo um guarda-chuva que, embora seja necessário, é também
um estorvo.
Essa questão, se colocada um pouco antes, teria sido supérflua. (…) O designer tinha como meta
principal a produção de objetos úteis. As facas, por exemplo, tinham de ser concebidas para cortar bem
(inclusive a garganta dos inimigos). E ainda qualquer construção que fosse de utilidade também devia ser
realizada com exatidão, isto é, tinha que estar de acordo com os conhecimentos científicos. Devia ter
também um aspecto bonito, ou seja, devia estar apta a se converter em uma experiência para o usuário.
O ideal do construtor era pragmático, quer dizer, funcional. Considerações morais ou políticas raramente
estavam em jogo. As normas morais foram fixadas pelo público (por uma instância supra-humana, por
consenso ou por ambos). E tanto os designers como os usuários do produto estavam submetidos a essas
normas, sob pena de serem castigados – nesta vida ou na próxima (FLUSSER, 2007, p. 200).

No entanto, o autor observa que atualmente não há mais nenhum âmbito público que estabeleça normas.
Por mais que ainda haja autoridades de natureza política, religiosa e moral, suas respectivas
competências estão perdendo credibilidade. “Então, revelada como incompetente, toda universalização
autoritária de normas inclina-se mais a inibir ou a desorganizar o progresso industrial do que a lhe
fornecer uma diretriz” (FLUSSER, op. cit., p. 201). A única exceção seria a ciência que, embora também
forneça normas técnicas, não fornece normas morais. Além disso, no âmbito da produção industrial,
tornou-se necessária a atuação em grupos e equipes compostas de elementos humanos e artificiais, o
que impede que o resultado seja atribuído a um único autor. Consequentemente, não é possível
responsabilizar uma só pessoa pelos erros de projeto. E se no passado o Design era visto como uma
espécie de atividade pré-ética – a culpa de se cortar com uma faca, por exemplo, era do usuário e não do
designer que projetou a faca –, hoje o Design já estaria totalmente isento de responsabilidade. Pois é
praticamente impossível determinar se um erro provém do projeto em si ou das máquinas que fabricaram
o produto, da programação dessas máquinas, da empresa que fabricou essas máquinas, do complexo
industrial em sua totalidade ou até do sistema a que pertence esse complexo.
“Isso já ficou evidente (…) em 1945, quando se questionava quem deveria ser responsabilizado pelos
crimes dos nazistas contra a humanidade” (FLUSSER, op. cit., p. 203). As câmaras de gás que não
“funcionavam direito” revelaram que não existe mais norma alguma que se possa aplicar sobre a
produção industrial, nem mesmo um único causador de um delito. Mas embora a responsabilidade esteja
diluída a tal ponto de representar os primeiros estágios de uma autodestruição, “O fato de que
começamos a fazer perguntas é motivo de esperança” (FLUSSER, op. cit., p. 204).
Ainda assim, é difícil reconhecer em Flusser uma esperança definitiva de um final feliz. Segundo ele, por
mais que alguém tenha consciência de todo o sistema já construído, ainda estará longe de controlá-lo
frente à falsa impressão humana de usufruí-lo. E talvez seja justamente esta tentativa de entender a
complexidade de um mundo tumultuado que, de um modo geral, resume a obra deste filósofo. Quase
como um órfão da modernidade em meio ao desabamento das antigas certezas do esforço humano,
Flusser foi um profético pensador que elegeu o Design enquanto objeto de análise e que, conforme o
historiador Rafael Cardoso nos confirma (apud FLUSSER, 2007), permanece sem a atenção merecida
por parte da grande maioria dos designers brasileiros. Cardoso ainda nos alerta: “Que ninguém se
engane com a aparência amena dessa água, cuja superfície transparente esconde a profundidade vivente
de um oceano!” (CARDOSO, op. cit., p. 11-12).
Em outras palavras, os postulados de Flusser podem ser provocativos, mas não são ingênuos. Por certo
este é um dos motivos que levou sua obra a ser amplamente divulgada e estudada no Brasil e em
diversos outros países, ainda que ela não seja considerada, por muitos, como objeto que mereça atenção
filosófica. Isso se deve à sua aparente falta de método científico/filosófico e ao fato de que o autor
questiona muito e responde pouco, deixando muita coisa no ar e não chegando a lugar algum. Em nosso
entendimento, contudo, Flusser nitidamente confia no potencial e na inteligência dos designers, não os
subestimando com fórmulas e respostas fáceis. Ao invés disso, o filósofo nos ensina a também não
subestimarmos a nós mesmos, sobretudo ao deixarmos de pensar ingenuamente no Design como uma
atividade recente na história.
Necessário ainda acrescentar que, embora a obra de Flusser não seja muito estudada no campo do
Design, os estudiosos de Comunicação e Artes têm se aprofundado bastante no legado flusseriano.
Especificamente no Brasil, é possível notar uma atenção bastante atual no que diz respeito às discussões
em Flusser – apenas para mencionar dois eventos recentes, em 2008 o Centro Interdisciplinar de
Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC) promoveu o 1º Simpósio Internacional “ReVer Flusser” junto ao 4º
Congresso Internacional de Comunicação, Mídia e Cultura (CoMcult) [2]; e em 2011 o Instituto de
Filosofia, Artes e Cultura (IFAC) da Universidade Federal de Ouro Preto promove o Congresso
Internacional Imagem, Imaginação, Fantasia – Vinte anos sem Vilém Flusser [3]. Além disso, consta no
Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq o Núcleo Vilém Flusser (NVF), coordenado pelo Prof. Dr.
Michael Hanke, que conduz uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa dedicada ao tema “Vilém Flusser e
a Comunicologia”. Entre os principais pesquisadores nacionais em Flusser, destacamos Machado (2002),
Batlickova (2010), Krause (2000; 2002) e Mendes (2001).
No campo do Design, recentemente Neto et. al. (2010) procurou estabelecer uma relação entre alguns
conceitos flusserianos e as atividades projetuais envolvidas na indústria gráfica, concluindo que no futuro
vislumbraremos “um horizonte onde (…) os meios de produção estarão nas mãos dos designers, para o
bem e para o mal” (NETO, op. cit., p. 11). De modo semelhante, Schoenacher et. al. (2010, p. 7) compara
a filosofia de Flusser com os estudos em Design e Emoção, afirmando que atualmente há “evidências
científicas que confirmam a teoria de que os objetos possuem um componente intersubjetivo,
comunicativo tão ou mais relevante que seu aspecto objetivo, útil”. Finalmente, a pesquisa mais completa
e direcionada que encontramos entre as atuais publicações em Design foi a dissertação “Vilém Flusser e
o debate do design no Brasil” (SHIMODA, 2008). Com o objetivo de estabelecer um panorama nacional
sobre o termodesign seguindo a concepção de Flusser, Shimoda investiga o contexto histórico, social e
econômico do Brasil no século XX e estabelece um debate polarizado sobre a definição de design como
profissão e como disciplina de ensino. Por fim, o pesquisador posiciona a teoria de Flusser frente ao
Design brasileiro e propõe um modo flusseriano de pensamento que oriente o emergente processo de
emancipação científica do Design.
Notas:
[1] Considerando que a comunicação humana é um processo artificial, a codificação da experiência, em
linhas gerais, se refere ao artifício humano de dar significado ao mundo através de códigos,
transformando a natureza em fenômenos.
[2] Cf. http://www.belasartes.br/comcult/ (acesso em 15 de maio de 2011).
[3] Cf. http://www.abrestetica.org.br/abrestetica/vilem.html (acesso em 15 de maio de 2011).
Referências utilizadas:
BATLICKOVA, E. A época brasileira de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume, 2010.
FLUSSER, V. The Shape of Things: A Philosophy of Design. London: Reaktion Books, 1999.
____________. Writings. Org. Andreas Ströhl. Minnesota: Univ. Minnesota Press, 2002.
____________. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Org. Rafael Cardoso.
Trad. Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
____________. Uma Filosofia do Design: A Forma das Coisas. Trad. Sandra Escobar. Lisboa: Rológio
D’Água, 2010.
KRAUSE, G. B. A dúvida de Flusser: filosofia e literatura. São Paulo: Globo, 2002.
KRAUSE, G. B.; MENDES, R. (orgs.) Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
MACHADO, A. Repensando Flusser e as imagens técnicas. In: O quarto iconoclasmo e outros ensaios
hereges. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002.
MENDES, R. Vilém Flusser: uma história do diabo. São Paulo: Edusp, 2001.
NETO, A. M. da F.; LIMA, G. S. da C.; LIME, E. L. O. da C. Ferramentas, Máquinas e Aparelhos. Designer
Gráfico & Indústria Gráfica. In: Anais do 9º P&D Design – Congresso Brasileiro de Pesquisa e
Desenvolvimento em Design. São Paulo: AEnD-BR, 2010. Disponível
em: http://blogs.anhembi.br/congressodesign/anais/ferramentas-maquinas-e-aparelhos-designer-grafico-
industria-grafica/. Acesso em 15 mai. 2011.
SILVEIRA, F. Flusser codificado. In: Revista Fronteiras – estudos midiáticos, v. IX, n. 2. Unisinos, mai/ago
2007, p. 135-138.
SCHOENACHER, R.; NIEMEYER, L. Reflexões sobre a filosofia de Vilém Flusser e possíveis inspirações
de seu trabalho para pesquisas voltadas ao design e a emoção. In: Anais do 9º P&D Design – Congresso
Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Paulo: AEnD-BR, 2010. Disponível
em:http://blogs.anhembi.br/congressodesign/anais/reflexoes-sobre-a-filosofia-de-vilem-flusser-e-possiveis-
inspiracoes-de-seu-trabalho-para-pesquisas-voltadas-ao-design-e-a-emocao/. Acesso em 15 mai. 2011.
SHIMODA, F. Vilém Flusser e o debate do design no Brasil. Dissertação de Mestrado em Design.
Orientador: Jofre Silva. Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2008.

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