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D O U T R I N A S E P R O B L E M A S

C oleção d irigid a por fr. B en ev en u to d e S a n ta Cruz


— 3 —

JULIÁN MARÍAS

A
ESTRUTURA
SOCIAL
TEORIA E MÉTODO
T ra d u ç ã o d e
D iv a R. de T oledo P iza

A p re s e n ta ç ã o
de
G ilb e rto F re y re

DUA S C ID A D E S
TITULO DO ORIGINAL CASTELHANO
La estructura Social
Revista de Occidente — Madrid

LIVRARIA DUAS CIDADES


Av. 9 de julho, 40 — Caixa Posta! 433
São Paulo

Livraria Duas Cidades. Todos os direitos reservados para a língua


portuguêsa.
Êste volume nasceu de uma projetada investigação
sôbre a estrutura social da Espanha romântica. As neces­
sidades teóricas desta investigação empírica obrigaram à
formulação prévia e de certa maneira rigorosa, do tema da
estrutura social e da questão do método exigido para co­
nhecê-la. Êste estudo permite penetrar, com alguma
clareza e precisão, na realidade concreta de qualquer estru­
tura social pretérita ou presente, e portanto daquela cujos
problemas fizeram com que eu o escrevesse.

JULIÁN MARÍAS.

Madrid, 7 de janeiro de 1955.


APRESENTAÇÃO

EM TÔRNO DA IM PO R TÂ N C IA PA N IB É R IC A DA
OBRA D E JU L IÁ N M ARÍAS

Não fa z muito tempo, certo cientista social anglo-americano,


cm comentário a um livro brasileiro aparecido em língua
inglesa, estranhava, no autor do livro, o uso de certos conceitos
científicos de modo diferente do que está hoje em voga nos
meios anglo-americanos. Parecia-lhe evidentemente crime de
lesa-ciência.
A tendência de certos cientistas sociais anglo-americanos
c, com efeito, ainda esta: considerarem científica apenas a
sua ciência social, isto é, a academicamente dominante nos
Estados Unidos. Isto num a época em que dentro da própria
ciência física há, pelo menos, duas orientações, um a determ i­
nista, outra indeterm inista, que sendo diferentes são até contra­
ditórias. O que não impede a Física moderna de vir senão a
mais avançada das ciências atuais.
A o provincialismo — mau provincialismo — em que ainda
se fecham, talvez mais por simples conforto m ental do que por
militante sectarismo metodológico, de caráter etnocêntrico,
alguns sociólogos, antropólogos e psicólogos anglo-americanos,
não pode deixar de apresentar-se incômoda e até inquietante a
sociologia, Intim am ente ligada, ora à antropologia, ora à histó­
ria, para que nos inclinamos, à revelia daqueles especialistas a
seu modo ortodoxos n u m sociologismo horizontal ou num antro-
pologismo linear seguido por êles quase sectàriamente, vários
homens de estudo, no já não de todo desprezível, nesses setores
de investigação ou de análise do Homem social, m undo ibérico.
Um dêsses homens de estudo, que a essa condições ju n ta a de
pensador arguto e a de escritor autêntico, é o Professor Julián
Marías, panibérico nas suas preocupações máximas e nas suas
atividades principais e já transib érico na repercussão de uma
obra que é hoje de importância para quantos, em qualquer pais,
se voltem para o estudo da Filosofia e das Ciências chamadas
do Homem.
Seu conceito de “estrutura social”, exposto no livro que
aparece agora em língua portuguêsa, por iniciativa inteligente
de um editor brasileiro, pode não coincidir, de modo perfeito,
com os dos sociólogos anglo-americanos mais convencionais em
seu sociologismo linear. N em seus métodos de análise, antes em
profundidade do que em superfície, de problema tão complexo,
tendo por ponto de partida um homem situado — o espanhol
da E spanha romântica — são os métodos mais em voga entre-
sociólogos anglo-americanos. N em por isto, é intelectual que
deixe de ser sociológico nas implicações da sua obra, embora
seja mais que sociológico na configuração da sua personalidade
de escritor alongado em filósofo ou em pensador, à base dos
seus estudos de situações especificamente ibéricas e de medi­
tações sôbre essas situações.
Dai, talvez, explicar o autor, no início do seu livro, que o
método — talvez fôsse mais justo dizer, no plural, os métodos
— por êle seguido, “sólo pude descubrirse y formularse m edi­
ante el análisis de una o varias estructuras concretas y reales”,
sem que isto impeça tal método de converter-se em “u n instru-
miento capaz de investigar la estructura de otras sociedades
diferentes”. E neste ponto Julián Marías se separa de Comte,
para quem a sociedade seria uma realidade estática cuja dinâ­
mica seria a história. Não — adverte, ao m eu ver, m uito ibéri­
camente, o sociólogo panibárico que é Marías: a sociedade,
existindo como u m sistema de forças operantes, é intrínseca­
m ente histórica. Mais: “su modo de existir es existir histori­
camente, y no sólo en el sentido de estar en la historia, sino
en el de “hacerse” y constituirse en el proprio movimiento histo­
rico. Por esta razón es ilusorio pretender estudar una socie­
dade en un momento del tiem po; si se hace en serio, en ese
momento aparecen inclusos otros, en distensión histórica”.
Diga que ao separar-se do Positivismo linear e, sob éste
aspecto, m uito francés, de Comte, Marías se exprime ibérica­
mente, porque a sua interpretação sociologia de estrutura social
parte, ao meu ver, de um conceito de tempo que é, em suas
dimensões, antes hispano-oriental do que norte-europeu ou
anglo-americano: assunto de que me ocupei há pouco em confe­
rência, em universidades alemães e na anglo-americana, de
Princeton; e acerca do qual acabo de publicar em língua
inglesa pequeno ensaio — nota prévia a um livro em preparo
— intitulado “On the Iberian concept of tim e”, que já mereceu
comentários os mais simpáticos de outro insigne pensador
espanhol dos nossos dias: o Professor Américo Castro, que vem
dedicando ao assunto o melhor, talvez, da sua atenção de ana­
lista do ethos ibérico. Êsse conceito hispano-oriental de tempo
parece-me que tende a superar, nos estudos pa/n-humanos de
sociologia, de antropologia e de histórias, o norte-europeu e o
anglo-americano, crescentemente arcaicos, em face de modernos
desenvolvimentos, quer tecnológicos, no sentido da automação,
quer teoricamente físicos, no sentido de novas interpretações
das relações entre espaço e tempo.
Tendo aqueles conceitos — o norte-europeu e o anglo-ame-
ricano — de espaço-tempo, se desenvolvido dentro de um sen­
tido cronométrico de vida, em correspondência com' um a eco­
nomia a um a só vez industrial e monetária — a do “time is
m oney” — e de um sentido lógico, de ordem, e cronológico, de
progresso — o comteano, Positivista, por um lado, e o ianquis-
ta, horizontal, por outro — são conceitos ameaçados de perder
seu prestígio, em conseqüência da crescente automação e do
também crescente desenvolvimento, nas áreas mais avançadas
do mundo, de economias de feitio mais cooperativo do qtie com­
petitivo. Menos comprometidos, por conseguinte, com a identi­
ficação da atividade econômica com o tempo cronométrico, por
motivos, em grande parte, competitivos, intra e internacio­
nalmente.
Folgo em encontrar, em págitias recentes de um intelectual
do porte de Mestre Julián Marías, como são as que constituem
o seu La E stru c tu ra Social — Teoría e Método, coincidencias
com modos de pensar que há anos venho exprim indo em ensaios
de menor repercussão que os seus. E que partindo da atitude
geral hispano-oriental, com que ambos nos situamos diante das
relações do Homem social com o Espaço-Tempo, vão a par­
ticulares dessas relações, sociológicamente significativos, como
o da distinção entre o que são vigencias regionais, de ação
imediata e profunda sôbre a vida e a cultura dos grupos huma­
nos, e o que, em algumas dessas culturas, é nacional, como
expressão ãe “pertinencias” do homem a regiões que são
‘'pertinencias” incompletas, tanto em relação com a cultura
constituida em complexo nacional como com relação a sociedades
pré-nacionais e transnacionais. A Europa, para, um francés
ou um alemão, por exemplo. E nquanto o que venho denomi­
nando de sociedade e cultura hispanotropicais, é, para um
brasileiro ou u m mexicano, para um venezuelano ou um cubano,
para um filip in o ou um luso-africano, complexo semelhante ao
que a E uropa é para um francés ou para um alemão, embora
não tanto para um espanhol ou para um português, talvez
menos europeus que um alemão ou que um francês. São relações,
essas, do regional com o nacional, inserção, como escreve Julián
Marías; e de im plantação do regional, através ou não do na­
cional, em complexo transnacional. Insersão e implantação que
se realizam — é na compreensão dêsse processo que vários so­
ciólogos ou antropólogos anglo-americanos se revelam deficien­
tes, ao que parece, por se conservarem demasiadamente ape­
gados a sentidos já obsoletos de espaço-tempo — através da
coexistencia do que Ju lián Marías caracteriza como “diversos
niveles historicos” que, entretanto, se completam em tempos
presentes, sôbre os quais tanto atuam, tempos pretéritos, con­
servados e atuantes, como o futuro, em form a de antecipação.
É urna coexistencia, essa de tempo, que o sociólogo moderno,
empenhado em análises em profundidade e, por conseguinte,
verticais, do Homem situado, não pode ignorar, como tendem a
ignorá-la varios dos sociólogos e antropólogos anglo-americanos.
Sob pena de resvalar naquela sociologia somente horizontal que,
por mais estatística, matemática, sociométrica, não atinge ao
“conhecimento real” — para usar-se outra expressão de Julián
Marías — de situações que considere sob a form a de relações
apenas abstratas. Pois, como salienta o insigne continuador de
Ortega y Gasset, não há, rigorosamente, estruturas sociais que
se sucedam umas a outras, porém estruturas, a qualquer mo­
mento que o sociólogo, ou o historiador sociológico, procure
estudá-las, constituídas por “una distensión dinamica”, pelo
fa to de cada estrutura dessas “venir de un pasado y estar ten­
diendo a u n futu ro , los cuales están, ambos, presentes”. Preci­
samente o critério sob o qual vimos, alguns ãe nós, no Brasil, há
anos procurando analisar e interpretar a formação brasileira,
ao considerá-la na expressão de alguns dos seus presentes — o
nau presente pré-nacional, o seu presente paleonacional, o seu
presente transicional, de paleonacional, para neonacional —
mais característicos. Com o que temos escandalizado alguns dos
cientistas sociais anglo-americanos mais apegados a sentidos
a/inda lineares, isto é, sucessivos, de tempo social. Parecem êles
enxergar no método de que Julián Marías apresenta brilhante­
mente a teoria, em suas páginas magistrais de sistemática
sociológica, e por nós seguido há anos, em obras de sociologia
ligada à antropologia ou associada à história e nada subordi­
nadas à ortodoxia acadêmica dos sociólogos anglo-americanos,
expressão de “anarquia ibérica” projetada m ticientificam ente
em, estudos sociais. Ou, então, de um generalismo, também
ibérico, qüe, com igual anticientificismo e até com escandaloso
literatismo ou esteticismo, comprometesse o especialismo verda­
deiramente científico a ser seguido, com absoluto rigor sectário,
por todo intelectual voltado para a análise e para a interpre­
tação do H om em social.
Também neste ponto é notável a coincidência de pensar
que aproxima alguns de nós, homens de estudo brasileiros vol­
tados há anos para a análise e para- a interpretação de estru­
turas sociais, do lúcido continuador de Ortega que é Julián
Marías; e ao qual porventura nos antecipamos em tentativas
de realização de obras — recomendadas pelo próprio Ortega a
editores de língua espanhola para tradução nessa língua — que
vêm encontrando em recentes teoria e metodologia dos estudos
das mesmas estruturas, empreendidas por Marías, vigorosa
justificação de caráter científico-filosófico. Fato expressivo é
que o nosso encontro pessoal — o do autor deste Prefácio com
Marías — tenha se verificado há dois anos, não no Brasil nem
na Espanha, mas na Alem anha, em universidade a que ambos
fomos convocados para expor a estudantes alemães nossas
interpretações de culturas e sociedades ibéricas: A Univer­
sidade de Heidelberg.
Observa Julián Marías, dos modernos homens de ciência,
<iue a regra é cada um dêles ter acesso apenas a um a parte
ínfim a da bibliografia científica, tal o especialismo — exagero
i/ue da Alemanha, onde já foi superado, comunicou-se aos
Mstados Unidos, onde está senão superado — atingido nos estu­
dos por êles, especialistas, seguidos com um fervor, no mesmo
especialismo, por vêzes sectário. Tendência que das ciências
físicas e naturais vem se comunicando às sociais; e separando
destas a Filosofia, também social, e a Filosofia das ciências, de
modo quase absoluto.
Mas, com êste corretivo, no campo das sociais: que as
formas mais recentes de filosofia — Heidegger e Jaspers, por
exemplo, e também George Santayana e B ertrand Bussell,
Sartre e Camus, M um ford e os H uxley — vêm se tornando, na
expressão pitoresca de Marías, “hermanas uterinas de ciertas
formas literarias, novelas y dramas, con frecuencia obra de los
mismos filosofos y que expresan la misma interpretación ge­
neral de la realidad.” Não só dos mesmos filósofos: também
de antropólogos-sociólogos que, como Frazer, na Inglaterra,
R u th Benedict, nos Estados Unidos, Simmel, na Alemanha,
vêm escrevendo, ao lado dos seus trabalhos científicos, ou
simultáneamente com êles, obras de expressão literária que os
ccloca na situação de generalistas, já antiga, entre intelectuais
do mundo ibérico: de Vives a Unamuno; de Menendez y
Pelayo a Ramón y Cajal; de Acosta a Gregorio Marañon. De
modo que quando Julián Marías escreve sobre “la novela como
método de conocimiento”, toca num a tradição ibérica — a do
d en tista recorrer, como recorreu G arda de Orta, a formas
literarias ou humanísticas de expressão — que hoje, em vez de
tradição degradada ou desprezível arcaísmo, anti-moderno e
anti-científico, renasce em obras modernissimas, como as dêsse
nôvo W ells, que é Snow ; como as de Aldous H u x le y; como
a de Lawrence da A rábia; em ensaios sociológicos ou biológicos
do valor literário dos de M um ford e de Rostand; em obras de
perspectivas humanísticas e, por conseguinte, generalísticas,
como as de Julián H u xley, biólogo, para não falarmos nas de
psicólogos como W illiam James e nos de psiquiatras como F reud
e como Jung. James, aliás, já aparece ñas historias da litera­
tura inglesa, ao lado do antropólogo Frazer e do arqueólogo
Lawrence.
Com inteira razão — a meu ver — Julián Marías destaca
que por toda a parte a vida do Homem — a vida que o psicólogo,
o antropólogo, o sociólogo, o historiador, o economista estu­
dam — se projeta, guiando-se por “figuras imaginárias” dela
própria: apólogos, fábulas, mitos, parábolas, historias, dramas,
novelas. São “figuras imaginarias” nas quais a mesma vida se
amplia. 8ão elas também “o instrum ento mais poderoso dr
paideia que o homem já conheceu”. Daí ao analista de uma
estrutura social interessar, nos caracteres ãe obras imaginárias,
as motivações de conduta que sejam mais valorizadas na estru­
tura analisada; e que projetam , nesse tipo de literatura —
rumo aliás projetam (acrescente-se a Marías) na literatura his­
tórica e na biográfia, ãe ordinário nacionalmente orientadas ou
isspiraãas — o que o sociólogo-pensador espanhol chama “rela­
ções entre a literatura e a viãa efetiva ãentro ãe cada socie-
<laãe”. Essas relações podem implicar, aliás, em desprezo, ãa
parte ãa sociedade que seja analisada por sociólogo ou antro­
pólogo, pela própria literatura lúdica, a leitura ãa qual seja
considerada, ãentro dos valores que predominem na mesma so­
ciedade — excessivo apreço ãa riqueza e excessiva valorização
do trabalho absorvente ou ãa ativiãade constante que conãuza
à riqueza — perãa, gasto ou desperdício de tempo. De tempo
economicamente precioso. Neste particular, é que me parece
poder opor-se um conceito ibérico de tempo — o que quebra
os meses de trabalho, com procissões, festas populares em tôrno
ãe santos, semanas santas como a de Sevilha, sábados ãe ale­
luia, dramas populares como o do bumba-meu-boi brasileiro,
pastoris, carnavais — ao conceito de tem po até há pouco domi
nante entre anglo-americanos e segundo o qual entendia-se por
tempo desperdiçado ou perdido o que não fôsse dedicado ao
trabalho, excetuado o domingo consagrado ao culto abstrato,
e nada lúdico ou festivo, ãe Deus. São estas intim idades dos
estilos ãe vida característicos ãe um a socieãade e ãa sua cultura
e as relações de tais intim iãaães com sentidos de tempo ecoló­
gica, social e culturalm ente diferentes, que o sociólogo ou o
antropólogo apenas estatístico ou sociométrico, jamais surpreen­
derá, prêso aos seus critérios quantitativos de objetividaãe ãe
superfície na ãescrição das sociedades que estude ou das cultu­
ras que ãescreva.
0 tempo, por exemplo, não se ãeixa analisar, nas expres­
sões psicossociais ou socioculturais que caracterizem o seu uso
por esta ou por aquela socieãade, senão através ãe formas ãe
análise que excedam as das invesiigações apenas quantita­
tivas. É o que reconhece lúcidamente Julián Marías ao escrever:
“Veinticuatro horas según parece, no son siempre el mismo
tiem po.” A o contrario: essa expressão quantitatw a de tempo
aparentemente susceptível ãe valiãade universal não é senão■
16 APRESENTAÇÃO

fictícia em seu quantitativism o, se se comparam os sentidos e


usos ãe tempo por diferentes sociedades em diferentes culturas.
Sobretudo os sentidos e usos ãe tempo livre ou degagé. Nesses
sentidos e nesses usos, e na ãistinção entre tempo engagé e
tempo degagé, é que se exprim e em cada sociedade, o que pode­
mos chamar, com Ju liá n Marías, ãe “pretensión vita l” : a que
seja própria ou característica ãessa socieãaãe.
Gomo alguém que vem há anos, ãedicanão o melhor ãe
sua atenção ãe investigador de assuntos humamos ao estudo
das relações do Homem, diversamente situado, com o tempo,
diversam ente vivido por diferentes sociedades e diversamente
valorizado por diferentes culturas, encontro nas páginas que
Ju liá n Marías ãeãica ao assunto um a das mais valiosas contri­
buições modernas — o assunto já preocupava Santo Agostinho
— para o esclarecimento do mesmo problema; e para o que o
sociólogo francês Boger Bastiãe, comentanão nos Caliiers
Intem acionaux de Soeiologie a orientação seguida pelo autor
do livro brasileiro Ordem e Progresso, no estudo sociológico ãe
três tempos, concentrados num , aparentemente, só critério com
que coincide o de Marías — chamou ãe nova sociologia que se
denominasse Sociologia ão Tempo. Sociologia que se presta a
numersos estudos ãe caráter quantitativo; mas que m uito terá
de depender, para o seu desenvolvimento em profundidade, ãe
análises e ãe interpretações ãe caráter qualitativo, através ãe
métodos principalm ente empáticos.
Não im porta que tal sociologia seja considerada pelos so­
ciólogos que se conservem objetivistas absolutos menos socio­
logia científica ão que filosofia social. Por que não sociologia
filosófica, através de um a já reconhecida sociologia psicológica
e de uma igualmente já reconhecida socilologia histórica —
ambas inevitavelm ente humanísticas em suas projeções?
É o critério sociológico sob o qual se desenvolve o que,
nos trabalhos ãe Ju lián Marías, ãeve ser considerado matéria
sociológica. Ou mista: sociológica ou filosófica.
Êsse critério fecundam ente misto se revela ãe moão vigo­
roso e até incisivo, nas páginas ãe La E s tru c tu ra Social que o
autor dedida a “La M uerte y el valor de la vida”. Move-se
nelas muito a vontade: em assunto quase especificamente ibé­
rico. Chega, por vêzes, a parecer mais continuador de Una-
APEESENTAÇÃO 17

mimo do que de Ortega, Gasset em seu modo em/pático de con­


siderar atitudes humanas, em geral, ibéricas, em particular, rela­
cionadas com uma sociologia que de sociologia do tempo se
alongasse, psicológicamente, em sociologia do além-tempo. Daí
a importancia que atribui à probabilidade com que é “vivida a
m orte” em cada sociedade; e que varia não só com o sentido
de tempo dominante nesta ou naquela sociedade como com
a media de vida que se apresenta hoje — note-se a determinação
de tempo histórico — tão alta, em sociedades como a dos E sta ­
dos Unidos e as do Norte da Europa, em contraste quer com
o que foi — outra vez o tempo histórico — no século X V I na
mesma Europa e, no século X V I I I , nos mesmos Estados Unidos,
quer com o que é, ainda agora, — o tempo diferente é n&ste
caso mais o social que o histórico — na in d ia e na Chima. A
morte se torna assim não só mais provável, como mais presente,
para uns do que para outros, em números sociológicamente
significativos, conforme condições socio-culturais, de vida, e
psicossociais, de existência, de uns em confronto com as de
outros. O contraste, en tretm to , entre a atitude do homem
medio dos Estados Unidos — que reduz ao mínimo a presença
da morte na sua vida e na sua cultura — e o das civilizações
ibéricas — em que não só toques de sino, velorios e ritos fu n e ­
rários imediatos à morte como missas de sétimo e trigésimo dia,
o luto durante meses e até anos, artes inspiradas pela morte sob
a form a de túmulos, jazigos, monumentos, pinturas, esculturas,
acentuam essa presença — não parece dever-se apenas a d ife­
renças entre médias de vida, que torne a morte mais provávl
em sociedades ibéricas do que na anglo-americana. Parece de­
ver-se também a u m sentido tanto coletivo como pessoal de
tempo mais favorável entre os hispanos, à meditação sôbre a
morte que o viver quase exclusivamente ativo ou dinâmico dos
anglo-americanos, sem tempo a não ser — para alguns ■— aos
domingos, para reflexões sôbre a morte. A s reflexões sôbre a
morte que dão u m sentido tão forte de além-tempo à literatura
mística nas línguas ibéricas, projetando-se também em monu-
mentos ibéricos de arquitetura de que o Escorial é o exemplo
ma/is expressivo, na arte de túm ulo desenvolvida magníficamen­
te pelos portugueses não só em Portugal como no Oriente e no
Brasil, em estátuas de santos e em imagens do Cristo em que
os artistas ibéricamente acentuam a presença da morte na vida
18 APRESENTAÇÃO

ãêsses santos e na do próprio Cristo, sob form as trágicas de


experiência humana, anterior à sobrenatural esperada pelos
crentes através, nuns de fé, noutros, apenas, ãe espera/nça.
Som ente pela sociologia que recorra a métodos empáticos
de compreensão do que seja Intim am ente psicossocial, no com­
portamento humano, além dos quantitativos, de descrição ão
que seja externa ou ostensivamente social nesse comportamento,
pode o sociólogo, sem tornar-se ãe todo filósofo, procurar res­
ponde a perguntas como as que, a propósito ãe “la perspectiva
de las ultim iãaães”, form ula Julián Marías: perguntas a res­
peito ãe atituães para com a morte que, senão socialmente
condicionadas, sejam tam bém culturalm ente significativas. Por
exemplo: “cual es en cada sociedad la estimación de la vida?”
Ou: “con cuanta imaginación o con que mecánico automatismo
se piensa (ainãa em cada sociedade, evidentem ente) en 1a,
m uerte?” 0 que Marías considera ser para certos individuos
ou certas sociedades sentido de conexão entre a vida terrena e
a ãe além, poâe, talvez, caracterizarse, de modo mais especifi­
camente sociológico, ãentro de uma sociologia que se especialize
em ser um a sociologia ão tempo, por um sentido ãe tempo que se
prolongue noutro, de além-tempo.
A respeito ão assunto pensa Marías — com o que concorão
— ser preciso colher, ãas várias socieãades cuja estrutura o
sociólogo consiãere, indo até ao que, nessa estrutura, seja a titu ­
de do homem por ela condicionado para com a morte, a voz dos
poetas, além da dos “hombres ãe teoria” : “es decir, una voz
cargada de concrecion humana, expresión de una sensibilidad
que no es solo inãividual, sino que descubre u n oculto latido
del tiem po”. Porque “hay una vigencia del tiem po” que faz
a viãa ãos membros de um a socíeãaãe; e ãa qual, poãendo des­
ligarse, com relativa facilidade, um teórico da sociologia que
estude apenas abstratamente ou objetivamente essa sociedade
através de extremos ãe alienação, não se desprende, quase
nunca, aquele cujos métodos ãe conhecimento, ou ãe tentativa
ãe conhecimento, de um a sociedade — a sua própria ou outra
com que procure iãentificar-se, antes de procurar analisá-la,
compreenãenão-a por métoãos empáticos e não somente ãescre-
vendo-a ou meãinão o que nela seja mensurável — sejam os
científicos perigosamente vizinhos ãos poéticos. Tais sociólogos,
antropólogos, historiadores sociais, tornam-se, como os próprios
APRESENTAÇÃO 19

poetas, vozes “cargadas ãe concreción hum ana” e “expresión


ãe una sensibiliãaã que nos es solo inãiviãual sino que descubre
un oculto latido ãel tiem po”.
Raros entre os anglo-americanos, ãesenvolveram-se urna
sociologia e um a antropologia extremamente quantitativistas e
exclusivamente objetivistas, contra as quais, desassombrad.a-
mente se levantaram, em anos recentes, urna R u th Beneãict e
um Robert R eãfielã, e se levantam, ainda agora, um- Lewis
M um forã, e um Gorãon A llport. Contrastam com aqueles extre­
mistas os sociólogos, antropólogos e historiaãores sociais que, no
mundo ibérico, vêm realizando obras sociológicas, antropoló­
gicas e histórico-socia/is, nas quais se exprim e seu modo ibérico
de ser analistas ão H om em e ãe suas socieãades, sem renun­
ciarem maciçamente, nas tradições ibéricas ãessa análise, a
herança hispano-árabe, para substitui-la maciçamente pela
ciência norte-européia. Renúncia que teria resultado em empo­
brecimento quer para o saber ibérico, em particular, — o saber
ibérico especializado na análise ão H om em — quer para a sabe­
doria pan-humana, em geral, voltada para essa análise. Pois
teria importado em ãesprêzo por métoãos específicos, li­
gados àquela espécie ãe saber, em benefício exclusivo ãe métoãos
ainãa difusos, em suas possibilidades ãe aplicações a toãos os
tipos ãe socieãade e não apenas aos inãustriais-capitalistas, por
um lado, e aos chamados prim itivos, por outro, com o homem
de estudo dos assuntos sociais ão m unão ibérico, passanão a ser
simples subsociólogos, sub-antropólogos, sub-historiaãores sociais
com relação a um feitio norte-europeu ou ãe um modelo anglo-
-americano, hoje, aliás, em crise — ou em revisão profunda —
entre os próprios norte-europeus e os próprios anglo-ameri­
canos. Crise no que se refere a ser possível atingir-se, através
de métoãos ape?ias objetivos e à base ãe resultados obtiãos
apenas em pesquisas reálizaãas, por sociólogos, em sociedades
do tipo industrial-capitalistas, por antropólogos em socieãaãees
das ãnominadas prim itivas, um saber verdadeiramente pan-
social e realmente pan-humano. N um a época em que à meãicina
européia os chineses e inãianos estão juntanão as suas tradi­
ções ãe saber médico, e ãelas aproveitando valores em certos
particulares, porventura mais efetivos que os europeus, não
é de estranhar que os analistas ibéricos ão H om em e das sua
sociedades apresentem-se, nos seus estudos sedais, fiéis à tra­
20 APRESENTAÇÃO

dições hispano-árabes, revistas e atualizadas, dessa espécie de


saber — o que procura analisar o Homem e estudar suas socie­
dades — sem que tal atitude im porte em repúdio sistemático
ao saber norte-europeu ou anglo-americano, tão ú til ao saber
pan-humano na matéria; e tão necessário à revisão e à atuali­
zação que se empreende dos saberes não-europeus.
O notável trabalho de Julián Marías, que agora aparece
em língua portuguesa representa o que a tradição ibérica de
análise do Homem e de suas sociedades, guarda de especifica­
m ente ibérico — herança dos Ramón Lulio e dos Vives, hoje
continuada pelos Américo Castro, pelos L ain Entralgo, pelas
Maria Zambrano, — sem que lhe falte aquela revisão ou aquela
atualização de saberes ibéricos, à base de conhecimentos e de
métodos de estudo assimilados de outras culturas. Atualização
que Ortega y Gasset empreendeu de modo tão vigoroso, talvez
até exagerando-se, na sua prim eira fase de jovem espanhol
impregnado, na A lem anha dos então mais modernos métodos
e saberes norte-europeus, em sua reação ao então igualmente
exagerado ünam uno. Exagerado, o por m uito tempo Reitor de
Salamanca, em seu repúdio às ciências e às técnicas que, vindo
do Norte da Europa, pudessem comprometer nos hispanos as
virtudes castiças do seu modo de serem hispanos e de se anali­
sarem como hispanos.
Tal não se vem verificando. E xiste hoje, decerto, um estilo
ibérico de estudos sociais que, sendo ibérico, inclui métodos
assimilados de outras culturas, onde êsses estudos tomaram.,
nos últim os decênios, notáveis impulsos no sentido da suc
sistematização em estudos científicos, pelo uso, por seus cultores,
de técnicas estatísticas, quantitativas, gráficas, matemáticas.
Mas essa cientifização com sacrifício, por vêzes, das relações
da Sociologia, da Antropologia, da Economia, com a História,
com a Filosofia, com os estudos humanísticos. Precisamente o
vigor dessas relações é que caracteriza o moderno desenvolvi­
mento dos estudos sociais no mundo ibérico, em obras de que
a de Ju liá n Marías — cujo critério é principalm ente o filosó-
fico-social sem deixar, entretanto, de ser sociológico — é exemplo
expressivo; e que na E spanha — para nos referirmos tão
somente à Espanha — caracteriza também os admiráveis tra­
balhos mais ostensivamente sociológicos apenas no sentido de
APRESENTAÇÃO 21

mais cientificamente sociológicos, que os de Julián Marías, de


um Echavarria, de um A yala, ãe um Becasen.
A obra, ainda em desenvolvimento, de Julián Martas, c
das que não podem ser ignoradas por nenhum intelectual ou
estudante do mundo ibérico, preocupado com assuntos sociais
e com problemas humanos. É completa e profunda. E stá
dentro do que há de mais genuinamente ou auténticamente
ibérico nas tradições de cultura das gentes hispânicas sem que
essa autenticidade comprometa o que nela é contribuição de
alto porte, por u m intelectual êle próprio complexo, para um
saber e, mais ão que isto, para um a sabedoria pan-humana
que tenha por seu principal objetivo ãe estuão e por seu cons­
tante ponto de referência o próprio H om em : sua chamada
natureza que é mais cultura ão que natureza sem ãeixar nunca
de ser natureza; seu com portamento; suas relações com am­
bientes ou meios diversos; suas diversas perspectivas de tempo.
Inclusive o sentido ibérico de tempo que talvez seja, como sen­
tido ãe tempo suceptível ãe transnacionalizar-se atualmente,
sob o favor da automação, o principal corretivo a ser oposto
àquele sentido de tempo soviético, estudado por outro agudo
pensador espanhol dos nossos ãias, Em ilio Garrigues, no seu
Los Tiempos en lucha; e por êle caracterizado como “tempo
frenético” : o “tempo frenético” com que a Bússia Soviética,
procurando superar entre os russos o tempo, como o hispánico,
semioriental, da Bússia pré-soviética, vem competindo com o
tempo ianque, igualmente frenético em seus extremos de ati-
vismo ou de produtivismo. H á indícios, porém, de que a Bússia,
hoje, ao que paree, em transformação, em sentido de algum
modo antisoviético, embora aparentemente só anti-stalinista,
recupere alguma coisa do seu tempo histórico, juntando-lhe
outro tanto do tempo adquirido com sacrificio, por vêzes brutal,
do seu passado e até áa seu presente, a u m fu tu ro ãe ãsenvol-
vimento excesivam ente económico. O que já vem acontecendo
vos Estaãos Vnidos onde o trabalho furiosa ou frenéticam ente
continuo está senão quebraão de vários modos: inclusive pela
adoção de um evidente brasileirismo ou hispanotropicalismo —
o cafezinho no meio das horas de trabalho burocrático, operário,
industrial. Não será surprésa para ninguém se à adoção, pelos
ianques, ãêsse hispanotropicalismo, se acrescentar outro: o da
siesta em rede, com o cigarro, frenética e até histéricamente
22 APRESENTAÇÃO

f umado pela gente anglo-saxônica mais exagerada no seu ati-


vismo — cigarro, aliás, já condenado pelos médicos ingleses
como particularm ente perigoso à saúde física dos fum antes —
substituido pelo menos pernicioso charuto, cubano, brasileiro
ou filipino, volutuosa e lentamente saboreado dentro ãe um
tempo mais aberto ao lazer e menos dominado pelo trabalho.
Precisamente o tempo hispano-oriental ou o hispanotropical
talvez capaz ãe corrigir — repila-se — no m unão atual, excessos
do “tempo é dinheiro” e de “ tempo é trabalho” ■ — inclusive
trabalho forçado — dos ianques, dos norteeuropeus e ãos russo-
-soviéticos. Isto sem ãesconhecermos o fato, de importância
sociológica, ãe que, ãentro do tempo hispanotropical, há tempos,
como o que tende a dominar São Paulo industrial, ianquizados,
dando ao Brasil atual aquele desequilíbrio de tempos notado
por Garrigues na Bússia, onde, pelo menos, ãois tempos sc
contradizem, no plano econômico ou tecnológico, com projeções
noutros planos: nos plano.s psicossociais e socioculturais, em
geral. Há, entretanto, um tempo predomiantem ente hispano-
oriental ou hispanotropical, ãe largas ãimensões espaciais e
aparentemente capaz ãe reabsorver os excessos ãos tempos ãêle
ãissiãentes ãentro ãêsse complexo ãe civilização. É o tempo que
tende a ser valorizado e atualizado pela automação, seguida ãe
maior lazer entre as populações moãernas: a mesma automação
e o mesmo lazer que tenãem a ãesvalorizar o tempo-trabalho
e a ãesatualizar o tem/po-dinheiro, isto é, os seus valores como
que absolutos.
Para o tempo dominado pelo lazer, que civilização — e
não apenas cultura — mais apta a contribuir com valores lú-
ãicos, festivos, religiosos ãe base mais popular do que erudita,
de feitio mais democrático do que hierárquico, do que a civili­
zação ibérica cujas origens espanholas vêm senão magistral­
m ente estudadas por Julián Harías em obras como L a estru ­
ctu ra social?
É problema, o ão tempo ibérico e da, sua atualidade, que
já vem sendo estuãaão, com particular interêsse, por pensa-
ãores, antropólogos e sociólogos brasileiros, com um a perspec­
tiva amplamente transnacional ão que naquela civilização é
comum a várias socieãaães, históricamente ãesiguais nos tempos
por ela já viviãos; mas, para os quais, as contribuições ãe
pensadores, antropólogos e sociólogos espanhóis, baseados no
APRESENTAÇÃO 23

flxtudo de origens e constantes espanholas de comportamento e


da cultura, se apresentam contribuições do maior valor: essen­
ciais. Indispensáveis, mesmo, ao alargamento de um a visão
espanhola dêsses problemas num a visão transnacionalmente
ibérica ou hispânica, que inclua aquela parte do mundo ibérico
nu hispânico que vem sendo chamada, por autores brasileiros,
hispanotropicál.
físte u m dos motivos de publicação em língua portu­
guesa de L a E stru c tu ra Social, de Julián Marías, apresentar-se
lão oportuna: o que traz de colaboração m agníficamente espa­
nhola para uma obra, necessária e até urgente, de ampliação
do que é apenas castelhano — ou apenas português ou apenas
galego, ou apenas catalão ou apenas ibero-americano, num com­
plexo objeto transnacional de estudo antropo-sociológico e de
consideração filosófica. É, essa, uma obra que talvez possa
realizar-se mais a-vontaãe no Brasil do que em qualqur outra
sociedade das qioe compõem o sistema transnacional de civili­
zação ibérica. A essa obra, livros como o de Julián Marías são
de tal modo essenciais que sem êles presentes tanto na língua
portuguesa como nas espanholas, não se concebe o desenvolvi­
mento da consciência que dê vigor filosófico, além de consis­
tência sociológica, àquêle sistema transnacional de civilização.

Gilberto Freyre
I

O TEMA DA INVESTIGAÇÃO
A ESTRUTURA SOCIAL

Este é um livro problemático em terceira potência. Hoje ê


normal que o sejam todos aquêles que pretendem conjugar
atualidade plena e rigor teórico, isto é, os que não são simples
produtos inertes, traçados segundo pautas recebidas de outras
situações, nem tão pouco um mero tatear arbitrário, ditado ape­
nas pelo capricho ou pela improvisação. O primeiro estrato de
problematicidade é inseparável de qualquer obra de doutrina:
seu conteúdo. Os dois restantes, porém, são mais profundos e
só aparecem em certas situações intelectuais — e dizer inte­
lectuais significa dizer históricas, pois que a “vida” intelectual
só é possível e tem sentido dentro da totalidade da vida real
e em função da mesma — ; destes dois estratos, um é a própria
figura do tema, o campo ou zona de realidade que se apre­
senta como tal e exige a investigação; o outro é o método dessa
mesma investigação e, portanto — interessa-me sublinhar esta
palavra — , o gênero literário que lhe pertence, sua realidade
final como tal livro.
O tema do estudo que êste volume inicia não pode ser
mais preciso: a estrutura social da Espanha romântica. Isto
envolve um a determinação geográfica, outra temporal e histó­
rica e uma terceira que delimita o propósito da investigação. No
entanto, o sentido desta não é óbvio e não lhe permite entrar
em moldes recebidos. Poder-se-ia pensar que se trata de um
estudo de história: história da Espanha na prim eira metade do
século XIX ; mas, por outro lado, como não se relata a guerra
da Independência, o levante de Riego ou a prim eira guerra
carlista, pode-se o reconhecer como sendo isso que os tratados
de História costumam denominar “história interna” , diferente-
'26 JULIÁN MARÍAS

mente da maioria dos capítulos que os integram e que pelo


visto são “historia externa” . É claro que ésse “dentro” e ésse
“fora” são, por sua vez, imensamente problemáticos porque não
se sabe dentro ou fora de que acontecem ou existem; além
disso, passando-se os olhos pelo índice dêste livro pode-se cons­
tatar que não se trata tão pouco de historia interna. É preciso
ficar claro, desde a prim eira página, que não é éste um livro de
história. De “pré-história” , talvez o seja: do mesmo modo pelo
qual se denomina pré-história a realidade anterior àquela que
conhecemos como historia, poder-se-ia assim denominar, con­
servando não acidentalmente sublinhado o prefixo, não à ciência
dessa realidade anterior à história e sim aquêle saber que deve
ser prévio à ciência histórica.
Se houvesse só um saber prévio à história, a coisa seria rela­
tivamente simples; mas existem vários, e sua conexão interna
representa por si mesma um problema delicado. Em primeiro
lugar, evidentemente, a historiologia; mas esta, entendida em
seu sentido estrito de análise da res gesta ou realidade histórica,
é um a teoria analítica geral dessa dimensão da vida humana
que é a “vida” histórica; e aqui também não se trata disto.
Desde que se fala de estrutura social, há um certo direito em
se supor que seu estudo constitui um capítulo da sociologia;
porém, também isto seria apressado e inexato, porque não se
trata de uma teoria das estruturas sociais e sim da investigação
de um a bem concreta: a da Espanha romântica. Há, pois, uma
dimensão empírica, concreta e histórica que não se pode passar
por alto; mas, ao mesmo tempo, é preciso acentuar que estamos
longe d a plena concretude fática da própria história. Trata-se
de uma estrutura social determinada, insistindo-se tanto no ca­
ráter estrutural como na determinação.
O sentido e o alcance preciso destas dificuldades revelar-
se-ão somente à medida em que por elas nos adentremos; mas,
desde já, seu simples enunciado é suficiente para m ostrar a trí­
plice problematicidade a que me refiro. E fica também justifi­
cada a necessidade de antepor a êste livro, em lugar de entrar
diretamente no estudo da realidade espanhola do século X IX ,
um a introdução metódica capaz de precisar e tom ar possível
a investigação a que me proponho. Creio necessário porém,
advertir que esta introdução de m an ara alguma é independente;
isto é, não é uma parte de doutrina sociológica ou gnoseológica
A ESTRUTURA SOCIAL 27

obtida através de um a via qualquer e que se possa “aplicar”


logo cm seguida a êsse estudo concreto; está em íntima conexão
com cie e sua origem se prende à própria análise dessa estrutura
que nos interessa, embora, por sua vez, somente esta introdução
metódica permitirá o levar a cabo. Trata-se, mais uma vez,
désse movimento de ida e volta que é característico de todo
conhecimento de realidade e, especialmente, dessa realidade que
conhecemos com o nome de vida humana.
Esta introdução, por seu lado, desenvolve um método de
investigação de estruturas sociais cujas possibilidades vão além
daquela que lhe deu origem. Em outras palavras, somente pela
análise de um a ou várias estruturas concretas e reais pode-se
descobrir e formular êste método; mas uma vez obtido e for­
mulado, se converte num instrumento de conhecimento capaz
dc investigar a estrutura de outras sociedades diferentes.
Por esta razão dei a esta introdução metódica tôda a sua
autonomia, em lugar de me limitar a indicar seus requisitos
capitais dentro do corpo da investigação empírica que se lhe
seguirá. Dêste modo, o leitor tem em mãos os recursos neces­
sários para ultrapassar o tema dêste livro, convertido assim em
uma primeira exemplificação de um tipo de estudos da vida
coletiva.

1. Sociedade e história

Imaginemos uma sociedade qualquer e tentemos estudá-la


r.um momento do tempo para determinar sua estrutura. Em
primeiro lugar, encontramos um certo âmbito de lugar e um
número de pessoas que nele convivem. Entre essas pessoas exis­
tem relações de índoles diversas: grande parte é inter-individual
c não pertence em sentido estrito à sociedade; outras são rigo­
rosamente sociais, isto é, afetam a vida coletiva, não nascem
como tais na vida pessoal dos indivíduos, não se podem redu­
zir a êstes mas transcendem cada um déles e a simples soma
dc suas vidas individuais. Estas últimas, por sua vez, se inserem
nas formas coletivas, estão feitas de substância social e sua
realidade concreta está condicionada por essas formas, as quais,
por seu lado, acontecem a cada homem, isto é, radicam na vida
individual; e esta é inexoràvelmente social. Em outros têrmos,
u única realidade efetiva numa sociedade é a das vidas indivi-
28 JULIAN MARÍAS

duais, mas nelas se dá necessàriamente a sociedade, isto é, as


vidas individuais são constitutiva e intrínsecamente sociais. As
interpretações das coisas, sua articulação num a figura de mundo,
a linguagem, os usos, crenças e idéias que me constituem na
realidade pessoal que me é própria, são ingredientes sociais da
mesma, cuja razão só se encontra na vida coletiva.
Tentemos estudar esta sociedade, assim compreendida,,
num determinado momento do tempo. É isso possível? Por
êste caminho, a única coisa que me é dada são os dados: pode­
rei saber que tal sociedade tem certo número de habitantes, que
êstes perfazem tantas famílias, que a riqueza total se eleva a
determinada quantia e se reparte de um a ou outra maneira; que
os recursos têm tal volume e distribuição; que a população se
agrupa em núcleos precisos — classes, estamentos, etc. — e
exerce um determinado repertório de atividades profissionais;
inclusive que as opiniões e preferências dominantes são estas
ou aquelas. Tudo isto, que pode ser objeto de estatística, me
informa sôbre uma série de fatos; porém êstes, como tais, são
ininteligíveis e, sobretudo, não constituem um a estrutura. Po­
deríamos dizer que as conexões entre êsses dados não são dados;
ou, se se prefere, não são dadas. E isto pela razão de que cada
um dêles é um resultado, m elhor ainda, um a resultante de fôrças
que atuam, que vêm de um passado e avançam para um futuro.
A condição econômica de uma sociecüide não é um fato puro
mas foi feita: chegou-se a ela em virtude de uma série de
vicissitudes pelas quais a sociedade passou; ou, em outras pala­
vras, tal condição vem de outra anterior, só em função da qual
é inteligível; e outro tanto ocorre com a divisão em classes
sociais, a forma da família ou as opiniões operantes. Somente a
variação que a sociedade foi experimentando explica que, neste
momento, seus diversos ingredientes sejam os que efetivamente
são e é êsse movimento que os liga e os enlaça numa estrutura
real. Para entender um a sociedade somos, pois, forçados a per­
corrê-la num a distensão temporal que parta do momento em
que a consideremos e alcance outros anteriores, que nos rem eta
da presente às sociedades pretéritas de onde “provém”; à histó­
ria, em suma.
É preciso corrigir a expressão que acabo de empregar: as
sociedades pretéritas de onde provém a atual são, pelo menos
em princípio, a mesma sociedade; esta está feita de passado, é
A ESTRUTURA SOCIAL 29

cNsencialmente antiga; tôda sua realidade procede do que antes


uconteceu; o que nela encontramos dependeu de que outras
collas anteriormente sucedessem; as raízes dos usos, costumes,
ercnças, opiniões, estimativas, formas de convivência, aprofun-
diun-se no passado. Por outro lado, tudo isso são módulos,
pautas, normas, possibilidades, pressões que condicionam a vida
ti a sociedade presente; mas como a vida é futurição, determi-
nnm o que esta irá ser amanhã, isto é, a sociedade futura; mais
rigorosamente, esta mesma sociedade que foi pretérita e é pre­
sente, no futuro. Encontramos, pois, em qualquer momento, a
complicação intrínseca da temporalidade. Não podemos enten­
der uma sociedade num momento do tempo, porque sua reali­
dade — e por conseguinte sua inteligibilidade — está consti­
tuida pela presença do passado e do futuro, isto é, pela historia.
Quando Comte se referiu a um a estática e a uma dinámica
social entreviu a condição móvel da vida coletiva, incorrendo po­
rém no êrro grave de fazer pensar que a sociedade é uma reali­
dade estática cuja dinámica é a historia. E tal realidade não exis­
te: a sociedade é por si mesma dinámica, é só dinamismo, existe
como um sistema de fôrças operantes, ou melhor, é intrínseca­
mente histórica. A sociedade não é separável da historia; seu
modo de existir é existir históricamente, e não apenas no sentido
dc estar na historia mas no de “fazer-se” e se constituir no pró­
prio movimento históricò. Por essa razão é ilusório pretender
estudar uma sociedade num momento do tempo porque, usando-
se de rigor, nesse momento aparecem inclusos outros, em dis­
tensão histórica. Em breve veremos o quanto é isto preciso e
radical, bem como afeta todos os ingredientes constitutivos de
uma sociedade qualquer. Mas isto significa que só se pode estu­
dar um a estrutura social historicamente, mesmo quando o resul­
tado dêsse estudo não fôr história. Em caso algum, pois, a
“unidade” elementar de que a teoria dispõe é um momento
único e sim a articulação temporal de vários em um período;
qual êste possa ser, já é outra questão, e, como logo veremos,
lambém não pode ser um período qualquer, escolhido arbitra­
riamente, mas sim dentro de certos limites cronológicos da inves­
tigação impostos pela própria estrutura da realidade estudada.
Parece clara a conexão entre sociedade e história: a pri­
meira não é separável da segunda e esta última constitui a m a­
neira de existir daquela. Porém, se invertermos os têrmos da
30 JULIÁN MARIAS

questão surge um novo problema. Com efeito, até agora demos


por suposta uma sociedade e nela descobrimos a história; ou
— o que é o mesmo — descobrimos sua historicidade intrínseca.
M as se partirmos agora da história, do acontecer histórico no
tempo, temos que perguntar a quem acontece tudo isso, de que
realidade dizemos com rigor que é histórica, mais exatamente
ainda, quem é o sujeito da história.

2. O sujeito da história

No capítulo X de minha Introdução à Filosofia, dedi­


cado à vida histórica, ao qual me remeto, apontei dois êrros
que dificultam sua compreensão. Ambos se referem à relação
da vida hum ana individual com a história ou, se se preferir, à
form a de historicidade da vida humana; a prim eira expressão
vai além do que seria o justo, e a outra, pelo contrário, é insu­
ficiente. Pode-se pensar, com efeito, que bastaria haver vida
hum ana para haver história; se assim fôsse, a simples tempo-
ralidade da vida individual, o caráter sucessivo e fluente da
mesma, bastaria para que o homem — mesmo que só houvesse
um único no mundo — tivesse história. Ora, isto não acontece,
porque o ser histórico significa estar adscrito a um a forma deter­
m inada de humanidade entre outras e portanto se dar em um
tempo qualificado, determinado por um nível, diferentemente
do tempo cósmico e do simples tempo biográfico — e digo
simples porque o tempo biográfico real é de fato histórico, já
que a vida hum ana se dá inserida na história a um certo nível
concreto — . Só há, pois, história se houver muitos homens, não
simultâneos mas sucessivos; e nem tão pouco absolutamente
sucessivos — isto é, em promoções sem imbricação — , mas
sim parcialmente coexistentes, de m aneira que o homem de
“outro tem po” — o ancião — conviva com o dêste e se encon­
trem êstes dois tempos, ou mais outros, qualificados num mesmo
presente. “A história — escrevi — afeta os homens enquanto
são um a pluralidade coexistente e sucessiva ao mesmo tempo;
a vida histórica é, pois, convivência histórica.”

(*) Introdução à Filosofia — Livraria Duas Cidades — 1960


(N. do T.).
A ESTRUTURA SOCIAL 31

Outro êrro possível, de sinal contrário, é aquêle que admite


que n¡lo é suficiente haver vida humana para haver história,
Inferindo daí que a vida individual não é histórica mas que
mmples,mente está na história, a qual se acrescenta à realidade
primária e essencial do homem. A história seria, por conse­
guinte, sobrevinda e consecutiva. Nada pode ser mais falso.
( )h ingredientes com que fazemos nossa vida individual — inter-
pietações das coisas, imagem do mundo, crenças, linguagem,
unos, etc. — são históricos, e, portanto, a vida mesma o é
porque sempre se realiza num a situação. Não há história sem
convivência sucessiva, mas não é menos certo que só há vida
individual humana dentro de uma convivência sucessiva; de
maneira que a história me acontece n a realidade radical e irre­
dutível de minha própria vida individual, transcendendo-a, po­
rem, essencialmente.
Isto esclarece o sentido da pergunta pelo sujeito da histó­
ria. Naturalmente, não é o homem individual e sim essa reali­
dade que denominamos “convivência sucessiva”; mas esta, é
claro, é de homens individuais, sem os quais nada pode ser.
I’erguntar-se pelo sujeito da história equivale a inquirir a estru­
tura e os limites da convivência sucessiva, mais concretamente,
das diversas unidades de convivência, isto é, das sociedades.
I')cve-se perguntar quais são estas; o que foi tomado como
ponto de partida e como dado tom a-se agora problemático.
Uma sociedade está definida por um sistema de vigências
comuns — usos, crenças, estimativas, pretensões — . Não basta,
pois, agrupar os homens de certa m aneira para obter um a socie­
dade: se dentro de um a agrupação arbitrária regem diversos
repertórios de vigências, há mais de um a sociedade; se, pelo
contrário, as mesmas vigências vigoram além da agrupação es­
colhida, a sociedade efetiva se estende fora dos limites que lhe
haviam sido fixados. Mas a noção de vigência — um a das mais
lérteis da sociologia orteguiana — não é tão simples; mais
adiante teremos que a estudar de perto, e veremos então como
il sua complexidade corresponde o fato manifesto que salta aos
olhos: a complicação das unidades de convivência ou socieda­
des, sua superposição em planos diferentes, a dificuldade de
determinar unívocamente seus limites. Desde logo é preciso
eliminar as sociedades abstratas, isto é, aquelas que são apenas
o resultado da consideração isolada de um a dimensão, faceta
32 JULIÁN MARÍAS

•ou atividade dos homens. Os semitas, os pintores, os maome-


tanos, os jovens, os casados, os proletários, as mulheres, os
ricos, os negros, os poetas líricos, os socialistas, os polígamos,
o s aristócratas, os sacerdotes, não constituem outras tantas so­
ciedades, sociedades reais quero dizer, por muito importantes
que sejam os princípios de sua agrupação — lembre-se, por
exemplo, as expressões “os homens” ou “as mulheres” — . Deve-
se excluir também as unidades em que, embora ocorrendo uni­
dade de convivência, esta as ultrapassa, assim como acontece
com a familia; pela razão contrária fica descartada a hum anida­
de em seu conjunto, em que a unidade não é precisamente de
convivência e onde falta — pelo menos até agora — um siste­
ma de vigências comuns.
Esclarecidas essas dificuldades mais elementares, resta
ainda outra de maior importância. Realmente, se definimos com
rigor as unidades de convivência ou sociedades pelo fato de
existir dentro délas o predominio de um sistema de vigências
básicas, advertimos no entretanto que, pelo menos na maioria
das situações históricas, se dá também um a convivência em
segundo grau: a convivência entre si dessas sociedades plurais.
Por exemplo, a dessas sociedades elementares que foram as cida­
de gregas dentro de um a “sociedade” que denominamos a Héla-
de; ou então a desta com a Pérsia, Egito ou Roma. Em que me­
dida esta nova “convivência” supõe vigências comuns e, portan­
to, forma um a nova “sociedade”? Todo trato ou relação entre
sociedades requer comunidade de vigências? No caso de não as
pressupor, não as produz? A relação de diversas unidades
sociais em presença é a mesma que sua convivência dentro de
um a unidade superior? Estas perguntas serão respondidas no
decurso dêste estudo.
E surge uma últim a questão. O nosso ponto de partida
foi a constatação de que tôda sociedade é histórica, isto é, de
que cada sociedade provém de outras pretéritas. Pode-se admi­
tir, dentro de certos ümites, que essa série de sociedades crono­
logicamente sucessivas são a mesma sociedade, isto é, diversas
situações históricas de um a única sociedade. Mas tomando-se
um prazo suficientemente longo, ou sendo a mudança histórica
bastante enérgica e rápida, chegar-se-á a um momento em que
não se poderá falar da “mesma” sociedade e sim de diferentes
sociedades engendradas umas de outras por processos diversos:
A ESTRUTURA SOCIAL 33

uniBo — e esta pode ser de várias classes: conquista, anexação,


incorporação, etc. — , divisão, alteração da estrutura interna,
migrações. E então se põe o problema da persistência dessas
sociedades visto que sua substituição não implica seu necessário
desaparecimento, e. dos modos de sua coexistência. Existe uma
ilinílmica das diversas unidades de diferente “nível” histórico
i|uc indubitàvelmente coincidem num a mesma época, e da qual
depende o esclarecimento do sujeito da história. Isto, porém,
demasiado abstrato para ser suficientemente inteligível. Con­
sideremos a situação dentro do cenário europeu.

3. Regiões, nações, Europa

As nações européias se constituem mediante a incorporação


de unidades menores de contexturas diferentes, que foram as
efetivas sociedades na Idade Média. Em tôda a época moderna,
as sociedades sensu stricto, as unidades de convivência, são as
nações; e, na medida em que certas zonas européias não são
estritamente nacionais, adotam pseudomorfoses históricas de
aparência nacional, determinadas ao mesmo tempo por uma
vigência inexpressa da nacionalidade e por um a vontade expressa
da mesma — procedente quase sempre de motivos diplomáticos
— que acabam por contribuir mais ou menos lentamente para
um processo de nacionalização efetiva. Porém , se é certo que a
Europa, do século X V I ao XX, está composta de nações, seria
inexato dizer que nela durante êsse tempo só h á nações. As uni­
dades prévias, os elementos incorporados na nacionalização,
persistem, não como unidades políticas — em todo caso, como
unidades políticas residuais — , mas sim como um a forma muito
peculiar e nova de “sociedade”: como regiões.
A região é algo bem diferente do Estado medieval, embora
seus limites coincidam. A região é um a sociedade insuficiente,
isto é, está definida por um repertório de vigências comuns mas
parcias e débeis, que deixam fora zonas decisivas da vida e que
além disso exercem pressão comparativamente leve. Podería­
mos dizer que os usos regionais tendem a se converter em
meros costumes. O homem não sente que sua vida esteja regu­
lada apenas pelas vigências regionais; tem êle que procurar a
orientação de sua conduta mais além de sua região, na socieda­
de geral — neste caso nacional — e ao mesmo tempo lhe vêm
34 JULIÁN MARÍAS

desta, queira êle ou não, as pressões e os estímulos mais enérgi­


cos. Tanto é assim, que as atitudes regionalistas apresentam
três característicos sumamente reveladores: 1) são voluntárias,
isto é, não se é regionalista sem mais, e sim quando se o quer
ser; enquanto é freqüente que um homem se sinta “irremedia­
velmente” espanhol ou alemão, inclusive mau grado seu e com
desapêgo, o regionalismo tem sempre a form a de “apêgo”, da
adesão voluntária e ainda do cultivo da pertinência regional;
2) dentro de certas medidas, são arcaicas, se referem a estratos
antigos e pretéritos d a vida, se nutrem de passado afirmado
ccmo presente e “conservado”; por isso os regionalismos de
todos os países são “tradicionalistas” e no fundo “reacionários”,
mesmo nos casos em que tàticamente adotem formas políticas
extremistas; 3) procedem de um movimento de retração, isto é,
vêm da sociedade geral, retraindo-se dela; nenhum a atitude re­
gionalista o é sem mais, ou seja prim ária e ingênuamente regio­
nalista, mas sim se apoia na nação e a partir dela se concentra
na região — daí o fato, tão interessante, da pseudomorfose na­
cional dos regionalismos, de seu disfarce como “nacionalismos”,
prova de seu caráter essencialmente derivado.
Não se confunda, porém, o regionalismo com a condição
regional; esta é plenamente atual, como forma de sociedade
secundária. Não digamos sociedade abstrata, porque se trata de
coisa bem diversa: não se é catalão, navarro, borgonhês ou
suévo como se é médico, radical socialista ou anglicano; a
região constitui o que poderíamos chamar um a sociedade “inser-
tiva” : funciona como componente ou ingrediente parcial, mas
não abstraído, portanto nem abstrato, da sociedade nacional; e
isto num a forma muito precisa: a inserção dos indivíduos na
mesma. Em outras palavras, o indivíduo — pelo menos em
muitos países e em longos períodos da história m oderna — não
é diretamente nacional e seu modo de pertinência à nação é
regional. Ser andaluz, vasco ou galego é, segundo o caso, o
modo de ser espanhol, e, igualmente ser bávaro ou westfaliano,
ser bretão ou provençal, são as formas concretas de ser alemão
ou francês.
Por isso, regionalismo ou antirregionalismo são duas for­
mas de abstração: o primeiro substantiva a região, simula que
ela é um a sociedade plena e suficiente, a desliga da totalidade
da qual é ingrediente e n a qual alcança sua realidade, e por
A ESTRUTURA SOCIAL 35

isso a deixa exangue; o segundo prescinde do estrato interm édia


que se coloca entre o indivíduo e a nação mediante o qual se
realiza a inserção qualificada e orgânica do indivíduo no todo
nacional, e com isso impõe uma uniformidade violenta e esque­
mática que empobrece a realidade e, ao mesmo tempo — mesmo
que o antirregionalismo não o suspeite — , debilita a pertinência
dos indivíduos à nação, cortando as vias naturais — quero
dizer históricas, é claro — de inserção e radicação na sociedade
geral. São duas formas de desarraigamento: o regionalismo
corta as raízes da região que se aprofundam na sociedade na­
cional e converte a região em uma planta de vaso, artificial, sem
suco e quase sempre exótica; a atitude antirregional — não an-
tirregionalista — desraiza os indivíduos de seu solo imediato
— a região — e com isso desvirtua e destrói a estrutura interna
da nação, sua constituição ou organização vívente.
Em outra perspectiva, a nação se articula com outra “so­
ciedade” : a Europa. Escrevo “sociedade” entre aspas porque
durante tôda a história m oderna — 1500-1900 em números re­
dondos — e ainda hoje apesar de nossos desejos., a sociedade
plenamente real não é a Europa, mas sim as nações, emborá;
estas vão sendo cada vez menos suficientes e, na data em que
escrevo, nenhuma sociedade nacional é um a unidade plena e
conclusa, e tão pouco o é a Europa. Porém é interessante notar
que desde que houve nações estas estiveram na Europa, isto é,
a Europa preexistiu como um âmbito prévio à constituição das
nacionalidades. Europa não é a soma das nações européias, não
é um agregado secundário em relação a elas, mas as procede e
as funda, embora sem constituir sociedade sensu stricto, pelo
menos até agora. Como isto é possível? E sendo as nações
insuficientes, tendo sua realidade efetiva na Europa, nela funda­
mentadas, como se pode dizer que são unidades reais de con­
vivência, sociedades efetivas e rigorosas?
Assim como antes me referi a sociedades “insertivas” —
regiões — e a um a função de inserção1 regional dos indivíduos
na nação, podemos agora falar de um a relação de implantação
das nações na Europa. As nações estão “feitas de” Europa, se
originaram em seu âmbito como as plantas nascem em um ter­
reno e dêle se nutrem, embora êste não seja um organismo.
Quando se diz nações européias, o adjetivo não é um a determi­
nação extrínseca ou de simples localização; as nações estão
36 JULIÁN MARÍAS

essencialmente referidas ao ámbito ou “m undo” europeu em que


se encontram, dentro do qual se engendram e convivem. Desejo
com isto exprimir um a condição fundamental de sua estrutura:
h á um a área de convivência das sociedades nacionais e, portan­
to, estas constituem algum tipo de sociedade, em bora não abran­
gendo a totalidade das dimensões da vida. Não se trata de
unidades sociais em presença — para usar o têrmo introduzido
anteriormente — mas sim de um a convivência dentro de um
âmbito comum, prévio às diversas unidades.
Isto esclarece, ao mesmo tempo, duas coisas: a primeira
é o fato da Europa não ser igual à soma das nações européias,
desde que é o solo prévio em que estas se originaram, do mesmo
modo que antes, na Idade Média, surgiram outras sociedades de
tipo diferente; a segunda é a diferença entre a relação m útua
de duas nações européias e a que existe entre um a delas, por
exemplo, e um país asiático: enquanto neste último caso não
há propriamente sociedade e portanto não são necessárias vigên­
cias comuns — salvo as muito abstratas e elementares que re­
gem todo trato humano — , no primeiro existe um a “sociedade”
parcial e mais tênue que as nacionais, porém definida por um
repertório de vigências. A relação de um a nação a outra é a de
estrangeiros entre si — diferentemente do que acontece, por
exemplo, entre os países hispano-americanos — , mas que não
o são de um modo absoluto. Tem-se apontado o caráter polê­
mico e de concorrência entre as nações européias, como “mo­
delos” ou “exemplares” que aspiram ao predomínio; porém o
essencial é a con-corrência, a comunidade dentro da qual — a
Europa — cada nação pretende ser a melhor. Decorre daí a
complexíssima dinâmica das vigências nacionais e européias,
cujo movimento expressa a história real da Europa e de seus
membros — e isto, e não meras partes, são as diferentes nações.
Isto explica também um fenômeno que de outro modo
pareceria paradoxal: o paralelismo entre o processo de nacio­
nalização e o de unificação da Europa. Se as nações e a Europa
fôssem realidades “opostas” — análogamente à contraposição
nacionalismo-internacionalismo — , a realização de um a delas
como sociedade só aconteceria a expensas da outra; isto é, à
medida que as nações fôssem sendo mais reais, a Europa desva-
necer-se-ia e só seria possível a unidade européia mediante a
volatização das nações. (Lembre-se a influência perturbadora
A ESTRUTURA SOCIAL 37

desta idéia na historia efetiva de nosso Continente e na dos


esforços em pról da unificação.) M as isto não ocorre. A apro­
ximação da Europa a urna figura de sociedade real só foi possí­
vel graças a um processo de “m aturação” das nações, de efetiva
nacionalização dos membros da Europa. Vimos que um a so­
ciedade está sempre em movimento, que sua realidade é intrín­
secamente histórica, que passa de um a situação a outra e —
tomadas as coisas com suficiente perspectiva — de um a socie­
dade a outra engendrada a partir dela. Pois bem, do mesmo
modo que o passado permanece conservado e atuante, o futuro
também opera em forma de antecipação. As sociedades existem
na forma da coexistencia presente de níveis históricos diferentes.
As regiões persistem no seio da nação que as incorporou, como
unidades parciais e “insertivas” que articulam a pertinência dos
indivíduos ao corpo nacional e a fazem qualificada e orgánica;
sistematizam também cronológicamente as vigências, represen­
tam a pervivência dos estratos antigos e arcáicos de tôda socie­
dade. Inversamente, a Europa representa o horizonte das nações,
seu terminus ad quem, seu porvir já presente como componente
seu. A europeidade das nações é a condição de seu futuro. E
por isso a unificação afeta zonas da vida que poderíamos cha­
mar prospectivas ou projetivas. Ao mesmo tempo que o substra­
to arcáico da nação vive em suas estruturas regionais — e
nunca é demasiado insistir sôbre sua im portância — , a dimen­
são programática das mesmas reside em sua condição européia.
N a Europa se descobre o “argumento” da vida de tôdas as
nações, e por isso a política foi sempre política exterior, como
se a tem chamado sem no entanto perceber bem o que isso
significa. Política européia, diríamos melhor; e na medida em
que uma nação afasta-se da Europa para se voltar sôbre si
mesma, perde sua dimensão de futuro. (Hoje, a cabo do duplo
processo de nacionalização na Europa e unificação da Europa,
descortina-se para esta em sua integridade, e ao mesmo tempo
para cada um de seus países, um novo horizonte, um novo
futuro, emprêsa ou programa, que se denomina Ocidente; e
desconhecer esta realidade mais ampla é a form a atual da de­
serção frente à E uropa antes indicada; e do mesmo modo que
a reclusão de um a nação em si mesma a desmembrava da
Europa e, mais ainda, lhe amputava seu futuro nacional, qual­
quer forma de clausura européia, de europeismo a todo transe,
38 JULIÁN MARÍAS

significa hoje a obstrução do futuro europeu, ou, em outras


palavras, a deseuropeização.)
Estas referências concretas a nosso mundo não têm aqui
outro intuito a não ser o de tom ar compreensível aquilo que,
metodicamente, procurava mostrar: a coexistência simultânea
e o dinamismo interno de diversos graus e estratos de socieda­
des, isto é, de unidades de convivência que correspondem a
distintos “níveis” históricos. Esta é a condição de tôda realida­
de humana, desde a família até a história universal. Mas, em­
bora possa parecer inacreditável, a sociologia, quando se trata
de realidade familiar, obstinadamente passa por alto sua com­
ponente histórica: estuda seu caráter biológico — união sexual
no matrimônio, geração dos filhos — , econômico, jurídico ou
contratual, porém se esquece de sua condição histórica, patente
no fato, tão elementar quanto inadvertido, de que seus membros
são de várias idades, isto é, procedem de níveis cronológicos
diversos, vêm de mundos historicamente distintos, de gerações
históricas diferentes. Êste “desnível”, esta simultaneidade em
um presente de tempos diversos, é o m otor da história e a con­
dição mesma de tôdas as estruturas, grandes e pequenas, em que
se articula e se realiza a vida humana.

4. Inseparabilidade de sociologia e história

Sociologia e história são duas disciplinas inseparáveis,


porque uma e outra consideram a mesma realidade, embora em
perspectivas diferentes. A história se encontra no próprio seio
da sociedade e esta só é inteligível historicamente; inversamen­
te, não é possível entender a história desconhecendo a que
sujeito ela acontece, e êste sujeito é um a unidade de convivên­
cia ou sociedade, com um a estrutura própria, tem a da sociolo­
gia. Sem esclarecer as formas e estruturas da vida coletiva, a
história é uma nebulosa; sem pôr em movimento histórico a
“sociologia”, esta é um puro esquema ou um repertório de
dados estatísticos inconexos, que não chegam a apreender a
realidade das estruturas e, portanto, a realidade social.
As dificuldades desta dupla exigência mútua fizeram com
que a sociologia e a história permanecessem muito tempo em
estado de imaturidade teórica. Quase tudo o que é relativa­
mente claro na historiografia dos últimos duzentos anos corres-
A ESTRUTURA SOCIAL 39

ponde a realidades históricas excepcionalmente definidas, em


que a sociedade sujeito dessa historia torna-se inequívoca;
assim, certos períodos da história de Rom a ou porções de his­
tórias nacionais européias na Idade Média. Quando se sai de
exceções felizes, a confusão é extrema: não falemos das cul­
turas orientais; em relação à Grécia as dificuldades são enor­
mes, e sobretudo logo que se deixa para trás as póleis, isto é,
a partir do século IV A.C.; a Idade M édia européia, desde seu
comêço, a história dos países mussulmanos, colocam dificul­
dades de princípio prévias a tôdas as questões de pormenor e
das quais estas dependem. Os esforços historiológicos contem­
porâneos têm tentado de fato — com consciência ou não —
estabelecer antes de tudo a realidade das unidades históricas; a
formulação temática disto se encontra, por exemplo, na idéia
de intelligible field of historical study de Toynbee (1), mas o
mesmo problema já fôra debatido por Spengler <2), e em formas
mais restritas, não referidas à história universal e sim a zonas
concretas da mesma, por H azard (8) e Américo Castro <4).
A falta de clareza sôbre o sujeito da história tem levado
inevitàvelmente a um a aceitação de unidades aparentes, por
exemplo, à projeção de unidades atuais no passado, ou então à
identificação das unidades políticas com as sociedades reais,
visto que algumas vêzes de fato coincidem; ou, finalmente,
quando se teve consciência do problema, a um simples empi­
rismo informativo — isto é, à renúncia à história — ou a um
“irracionalismo histórico” .
Vistas as coisas por outro lado, a sociologia sem história
cai num formalismo que só considera relações abstratas estan­
do assim longe de se converter em conhecimento real, ou então
engendra um empirismo paralelo ao histórico, no qual ao

(1) Estudio de la historia, Vol. I, I, B, Emecé Editores, Buenos


Aires 1951.
(2) La decadencia de Occidente, onde já é proposto a fundo o
problema das “culturas”.
(3) Sobretudo em La crisis de la conciencia europea (1680-1715).
Em El pensamiento europeo en el siglo XVIII se parte dos resultados do
primeiro livro.
(4) España en su historia. Os pontos de vista teóricos estão mais
acentuados em El enfoque histórico y la no hispanidad de los visigodos e
em Ensayo de hisoriología, onde já se introduz o termo “vividura”, e na
nova edição daquele livro, com o título La realidad histórica de España.
40 JULIÁN MARÍAS

acúmulo de acontecimentos corresponde um acumulo de dados.


Se na historia se costuma relatar que muitas coisas acontece­
ram, sem saber a rigor a quem, a sociologia corrente localiza
certos fatos ignorando que os mesmos acontecem, isto é, que
sua realidade consiste em ter acontecido. O resultado é o
mesmo em ambos os casos: a ininteligibilidade.
O problema só se esclarece um pouco se se tem presente
que “vida” histórica e “vida” social ou coletiva são duas di­
mensões que se complicam reciprocamente, e que ambas são
incompreensíveis se não se conhece primeiro o que é vida em
seu sentido primario e radical, isto é, vida hum ana individual.
A análise da vida hum ana nesta sua realidade efetiva descobre
nela a sociedade e a historia como seus constitutivos, nela
radicados; e sitúa em sua justa perspectiva as duas realidades
e, por conseguinte as duas disciplinas. A questão prévia que
surge diante de qualquer realidade é onde a pôr, isto é, em que
zona ou modo da realidade. A sociologia e a historia passaram
por alto o problema e, precipitadamente, tiveram por boas solu­
ções insuficientes. Os conceitos de “acontecimento”, “evento” ,
“fato social”, “relação social”, “ação recíproca”, “cultura”,
“civilização”, “nação”, “Estado”, etc. foram aceitos gratuita­
mente e por pura inércia ou tomados de impréstimo de zonas
diferentes de realidade — das ciencias da natureza, da política,
da biologia, etc. — Quando Ortega, em 1934-35, dirigiu na
Universidade de M adrid um seminário sôbre Estrutura da vida
histórica e social — note-se que se trata de vida e esta é ao
mesmo tempo adjetivada como histórica e social — apresen-
tou-o como parte de seu curso de Metafísica, cuja parte estri­
tamente teórica se formulava sob a epígrafe Principio de M e­
tafísica segundo a razão vital. Toda a obra de Ortega responde
a esta formulação do problema, renovada em seus cursos de
Buenos Aires (1940) e M adrid (Instituto de Humanidades,
1948-50), antecipações de seu livro — publicado pela Revista
de Ocidente em 1957 — El Hombre y la Gente. <*> Creio que
é dêste' ponto de vista que se tom a evidente a complicação da
sociologia com a historia e, ao mesmo tempo, se supera toda
confusão entre ambas.

(* ) O Homem e a Gente — Livro Ibero Americano, 1960


(N. do T.).
A ESTRUTURA SOCIAL 41

5. As estruturas sociais, definidas por tensões e movimentos

Uma estrutura social não é um a figura ou disposição


dc elementos quiescentes. As vidas humanas são trajetórias,
projetos, pressões exercidas em certo sentido; sua imagem po­
deria ser a flexa. U m a sociedade é, portanto, um sistema de
fôrças orientadas, um sistema “vetorial” . Os elementos reais da
sociedade não são “coisas” estáticas e sim pressões, pretensões,
insistências e resistências, com as quais se realiza a “consistên-
ciaj” da unidade social. Todos os seus ingredientes “vêm de” -e
“vão a”, estão em m dvim entcefetivo. Quando não há movimen­
to, não se trata de imobilidade e sim de repouso, de estabilização
— sempre passageira — de um sistema de tensões. O ¿jue
na sociedade não sofre mudança não é pelo fato de ser invariá­
vel e sim pelo fato de durar, de resistir e conservar sua figura,
graças a um a série de esforços combinados. O mesmo se dá
com o repouso de um ser vivo que é tudo o que se q u eira,
inenos inércia. É preciso notar, é claro, que as analogias ter­
minam aqui ou muito pouco além, e que tôdas as referências
aos organismos biológicos, quando se trata de realidades hum a­
nas, devem ser tomadas com alguns grãos de sal.
M as não se trata apenas de que a estrutura social seja
uma resultante de fôrças que atuam em determinada disposição*
e sim que, como essas fôrças não são constantes mas variáveis em
intensidade e direção, e com o além disso os ingredientes reais
de um a sociedade variam, a própria estrutura como conjunto,
está em movimento. Com o que não quero dizer somente que
a um a estrutura suceda outra, e -sim algo mais profundo e^ im­
portante: que a estrutura como tal possui também sua traje­
tória, que é, ela mesma, programática, que está constituida em
cada momento — e não só em momentos de substituição ou
crise — por uma distenção dinâmica, por vir de um passado e
estar tendendo para um futuro, os quais estão, ambos, presen­
tes. Conservação e antecipação são dois ingredientes essenciais
de tôda estrutura social, e se mostram em qualquer secção
intantânea que nela façamos. Um corte no tempo mostra a
temporalidade intrínseca da estrutura, como quando se corta
uma veia brota o sangue que por ela circula.
P or isso tôda estrutura social é “antiga” , no sentido de
que se chegou a ela, e é isto que a explica; por outro lado, ela
■42 JULIÁN MARÍAS

se conservou, durou, e é isto que a justifica — Aristóteles


advertía perspicazmente que para uma comunidade existir não
é suficiente permanecer um dia ou dois ou três, mas sim durar
— , e por isso tôda sociedade, dentro de certas medidas, é con­
servadora; porém ao mesmo tempo é essencialmente instável,
é constituida de futurição, e por isso lhe pertence inexoravel­
mente uma dimensão inovadora. Em qualquer momento que se
a tome, uma estrutura social está perdurando e inovando, está
retendo o tempo que se escapa e antecipando o futuro. A rigór,
passado e futuro se convertem nela em tradição e porvir: tra­
dição, porque o passado funciona como algo legado, transm iti­
do, entregue e de que o presente é depositário; porvir, porque
o futuro não é somente o que “será”, e sim o que está por vir,
o que está vindo, e mesmo sem ter chegado está presente no
presente verbal do “está” : está — atualmente — vindo, está
•não estando ainda, antecipado, postulado, em forma de expecta­
tiva e iminência.
tínicam ente esta condição faz com que uma estrutura so-^
ciai possa ser inteligível. Do mesmo modo deve-se entender
qualquer estrutura, inclusive a de um organismo biológico
um cachorro ou um ave — e até a de um artefato — m áquina
de escrever , fuzil, avião — , a partir da própria função, não a
partir dos componentes estáticos ou, melhor, estratificados arbi-
tràriamente. Porém a diferença fundamental está no fato de
que na máquina e mesmo no organismo, dada a estrutura fun­
cional, esta funciona, enquanto que no humano a estrutura
nunca é “dada” e se constitui em virtude de seu próprio fun­
cionamento. Em outras palavras, a estrutura social se define
por seu próprio “argumento”; não se trata de que, uma vez
existente, êste argumento lhe sobrevenha e sim de que ela con­
siste nele, s é tal estrutura determinada porque seu argumento
é êste e não outro. O que nos tf>a^ d e volta, a partir de um
novo ponto de vista, à evidência originária: a co-implicação
ou complicação da sociedade e da história, a intrínseca histo-
ricidade das sociedades. E só isto justifica que — embora seja
entre aspas — se possa falar com sentido de “vida” coletiva e
de “vida” histórica, ou melhor, de “vida” histórica e social.
A ESTRUTURA SOCIAL 43

6. O problema da “situação histórica”

Podemos agora entender o que é uma “situação histó­


rica” (5). A situação indica um certo lugar ou situs em que
alguém está; mas isto exige, a despeito da variação e histori-
cidade das situações, em que vou insistir imediatamente, uma
certa “permanência”, por precária que seja, uma certa duração
de tôda situação, ainda que sendo instável; logo veremos o
alcance disto e é preciso desde logo o ter presente. Em se­
gundo lugar, e para evitar uma confusão que pode ser perni­
ciosa, deve-se distinguir “circunstância” e “situação”, têrmos
que muitas vêzes são usados como equivalentes e que, com
eleito, em alguns contextos funcionam como tais sem incon­
veniente. A rigor, diferem no seguinte: a circunstância é tudò
aquilo que está em tôrno a mim, tudo o que encontro ou posso
encontrar à minha volta; a situação não compreende todos os
ingredientes da circunstância — muitos dêles são exclusiva­
mente individuais; outros, pelo contrário, são universais e
permanentes, pelo menos dentro de âmbitos muito vastos — , e
sim somente aquêles que nos “situam” num determinado nível
histórico, isto é, cuja variação define cada fase da história;
portanto, somente um a parte da circunstância — aquela que
tem, ao mesmo tempo, certa generalidade e m aior labilidade
— intervém na situação histórica. No entanto, enquanto que
tôda a circunstância é, naturalmente, circunstancial, h á um
elemento na situação que não o é: a pretensão que me cons­
titui e sem a qual não haveria situação; isto é, eu mesmo quando
se trata de uma situação vital individual; a pretensão coletiva
— realidade fugidia que será preciso perseguir mais adiante —
na situação histórica em sentido estrito.
Esse situs que é a situação é um entre um a pluralidade de
outros possíveis; isto quer dizer que um a situação única é
um contrasenso; se houvesse apenas uma, não seria situação
e sim uma simples determinação. A situação se constitui pela

(5) Em minha Introdução à Filosofia tratei reiteradamente do pro­


blema da situação. Cf., especialmente, os itens 9, 20, 21, 35, 68 e 79.
No presente livro limito-me a considerar as peculiaridades da situação
histórica, reduzindo ao mínimo indispensável as referências ao problema
prévio da situação vital, isto é, a situação em que se acha o indivíduo;
embora, é claro, esta situação vital seja sempre também histórica.
44 JULIÁN MARIAS

relação de complicação com as demais: isto é, as exige mas


não as inclui ou implica; não existe sem elas, mas não se
confunde com elas. P or isso, estar num a situação significa estar
em uma situação e não em outra, em um a de várias possíveis
e “presentes” enquanto orla virtual da efetiva em que estou.
M as isto é puramente formal e abstrato; ao concretizar-se,
esta pluralidade adquire um caráter mais preciso, não virtual e
sim real. A situação, que é intrínsecamente histórica, se apre­
senta afetada por um a instabilidade essencial; seu modo de
existir é a transição. O fato decisivo é que o homem que estava
em uma situação sai dela para ir a outra. Por que? deve-se
perguntar. Evidentemente não pode permanecer indefinida­
mente nela; primeiro, porque é provável que os ingredientes que
a compunham se modifiquem: alguns desaparecem, outros
irrompem, em todo o caso variam sua posição respectiva e sua
perspectiva; mas não só por isto e sim, sobretudo, porque o
homem pretende estar em outra situação. A pretensão não é
somente razão de mudança das situações mas a condição mesma
de que a situação exista, de que exista algo que se possa chamar
situação; demostrei isto há algum tempo com um exemplo ele­
mentar: se estou em uma sala com a porta fechada, posso definir
m inha situação como “estar encerrado”; mas isto só é certo
porque tenho a pretensão, próxima ou remota, ou pelo menos
como disponibilidade, de sair; se, de modo algum, não pre­
tendesse sair agora ou mais tarde, não teria nenhum sentido
dizer que estou encerrado; ainda mais: não o estaria. O homem
desde há muito se sentiu ligado ao solo, porque teve a pretensão
mais ou menos viva de voar, até que o conseguiu. Não teria
sentido dizer, porém, que está encerrado no planeta, ainda que
não possa sair dêle, porque não pretende sair; mas aguarde-se
um pouco e se verá como, por imaginar suficientemente as
viagens interplanetárias, começará o homem a sentir que lhe
assoma com alguma autenticidade — isto é inexcusável — a
pretensão de sair da Terra, e então sua situação será a de encon­
trar-se prisioneiro nela, servo da gleba terráquea, encerrado
rigorosamente no exterior de seu cárcere convexo; e muito
provàvelmente passará desta situação de clausura a outra de
liberdade interplanetária.
Portanto, um a situação não é inteligível isoladamente; só
se a entende comparando-a com outras; concretamente, não com
A ESTRUTURA SOCIAL 45

outras quaisquer e sim com aquelas que efetivamente a condi­


cionam e cuja referência real a ela é um constitutivo seu. As
«linações históricas se dão enlaçadas em uma sucessão, cujos
característicos principais são quatro: 1) Como o tempo é
Irreversível, a sucessão das situações não é uma simples série;
além de estar ordenada, só pode ser percorrida em uma direção,
em um sentido preciso. 2) Êsse tempo não é apenas sucessivo
o sim qualitativamente diferenciado; cada momento é insubsti­
tuível: não só está “localizado”, não só é “outro” tempo, como
também um tempo diferente; em outros têrmos, cada situação
ó um nível histórico concreto. 3) Cada situação histórica vem
de outra — de tôda sucessão delas, pôsto que o raciocínio se
aplica à imediatamente anterior — e é, portanto um resultado
de algo prévio a ela, sem o qual não é inteligível. 4) Por último,
como o que constitui cada situação é uma pretensão ou projeto,
o isto é o que leva a passar de uma situação a outra, a mudança
histórica é sempre inovação e invenção. Esta razão concreta
esclarece, de outro ponto de vista, as determinações que ante­
riormente apareceram como exigidas pela simples estrutura da
temporalidade.
Se simbolizarmos a continuidade histórica como um con­
junto de fios que se entretecem na tram a da vida, perceberemos
que êstes fios são “longos”, isto é, se dilatam no tempo, vêm de
longe e se afastam em direção do futuro. Pois bem, o que cor­
responde à situação, nesta imagem, é o nó. Os fios se atam
uns com outros mas não se acabam ao unirem-se, prolongando-se
mais além, em ambas direções. Não foi gratuitamente que desde
há muito se sentiu que a situação é algo que se “desenlaça”, nó
que se desata ou se corta — ou às vêzes sufoca. O desenlace
é a forma de solução — solução, isto é, desate — do drama; à
índole dramática da vida hum ana e da história corresponde sua
estrutura “nodosa”. E isto nos obriga a formular um a última
questão que, no entanto, só poderá ser tratada mais adiante: se
a história é continuidade descontínua — fios atados — , qual é
sua articulação? Como se atam e se desenlaçam os longos fios
temporais? Em outras palavras, o que determ ina a sucessão
concreta das situações; quais são, de fato — estando já suposto
que tenham de existir — as situações históricas. Sòmente escla­
recendo êste ponto poder-se-á saber com algum rigor em que
46 JULIÁN MARÍAS

consiste realmente um a estrutura social, desde que esta é —


repito mais urna vez — intrínsecamente histórica.

7. Elementos analíticos e empíricos da estruíura.

Poderíamos dizer que a estrutura social é a forma da vida


coletiva, desde que se entenda de um modo real e dinámico a
palavra forma: aquilo que informa e configura realmente essa
vida, não um simples esquema ou figura estática. Mas é neces­
sário fazér uma nova distinção: a forma de tôda sociedade não
é a mesma que a de um a sociedade determinada, isto é, os ele­
mentos que integram um a estrutura social podem ser agrupados
em duas classes: analíticos — aquéles que são encontrados
simplesmente mediante uma análise dos requisitos de qualquer
sociedade — e empíricos — aqueles outros que são descobertos
mediante a experiência, ao se considerar um a sociedade real e
concreta, mas que, no entanto, continuam sendo estruturais (6).
Alguns exemplos esclarecerão melhor isto. Tôda sociedade
é convivência, pluralidade de homens que vivem “juntos”, sub­
metidos a um sistema de vigências comuns; ?sto é válido para
tôda sociedade, decorre da análise de sua própria noção ou de
qualquer sociedade real, na forma de requisitos sem os quais
não existiria. Mas essa palavra que acabo de escrever, “juntos” ,
e que parece tão pouco comprometedora, encerra um problema:
significa “em presença” ou não? Estar juntos em um a peqúena
cidade, onde todos se conhecem, não é o mesmo que numa
giande capital, ou num pequeno Estado, ou numa nação, etc.
Os atenienses de Péricles estavam “juntos” num a acepção diversa
do estar juntos dos americanos de Eisenhower. Essa determi­
nação ou elemento estrutural que é o estar juntos, salvo um
núcleo abstrato e invariante, puramente formal, tem caráter em­
pírico; mas entenda-se bem: não quero dizer que seja um
“dado” empírico o fato de que os membros de um a sociedade
estejam “juntos” de um modo ou de outro, e sim que é um
elemento estrutural, que a estrutura em questão difere como
estrutura segundo sua concretude empírica.

(6) Cf. meu trabalho “La vida humana y su estructura empíric


(em Actas dei Congresso Internacional de Filosofia, Bruxelas, 1953),
incluído no livro Ensayos de teoria, Barcelona, 1954. {Obras, IV).
A ESTRUTURA SOCIAL

A temporalidade das sociedades apresenta uma série de


Clirneterísticos formais e a priori que indiquei no item anterior;
mus o fato empírico de que a vida hum ana tenha urna certa
duração média e certo ritmo de idades condiciona estrutural­
mente cada sociedade. As relações de subordinação ou coorde-
nnçfio entre sociedades diversas, o isolamento de uma délas, o
euráter colonial em relação a uma metrópole originária, etc.,
Nfio fatores decisivos da estrutura. Os aspectos aparentemente
quantitativos — nada o que é humano é somente quantitativo
— têm imediata repercussão estrutural: a magnitude do país, a
densidade da população — ainda que não deixe de ter alguma
relaçSo, isto não coincide com o que chamei antes o modo de
estar “juntos” — , as possibilidades — físicas, técnicas, econô­
micas, políticas — de percorrer o território, os graus de adscri­
t o — quaisquer que sejam as causas —• ao lugar em que se
vive. Outro elemento estrutural e empírico é o grau de “clau­
sura” de uma sociedade, e isto em muitas formas: para fora e
para dentro (dificuldades de sair ou de imigrar), por razões
geográficas (condição insular, montanhas, etc.), lingüísticas,
econômicas (pobreza ou riqueza), política. A combinação de
Iodos êsses motivos produz em cada caso um grau e uma forma
de relativa “clausura” que condiciona a estrutura inteira. A
pobreza, por exemplo, força a emigração e faz sair mas, em
outro sentido, não permite viajar e impede sair. A perseguição
política se tem exercido em ocasiões de um modo centrífugo,
tendo sido o m otor de grandes emigrações, mas em outras
formas — por exemplo, em muitas atuais — sua prim eira con­
seqüência é o “encerramento” dos indivíduos n a sociedade.
Imagine-se as diferenças de estrutura impostas por êste ele­
mento de clausura na França em 1910 e na União Soviética
dêstes anos, entre os Estados Unidos ou a Argentina de 1880
c o Tibet na mesma data.
A determinação de uma estrutura social supõe que esta
questão esteja suficientemente esclarecida e êste é, propriamente
c naquilo que tem de característico, o propósito da presente in­
vestigação. Não se trata de fazer um a teoria geral das estruturas
sociais e sim de compreender um a concreta e real; porém
diante dêstes adjetivos não se esqueça o substantivo: a concre-
tude e a realidade afetam um a estrutura, deixando intácto êste
caráter essencial. Os “"dados” empíricos, inclusive os fatos his-
43 JULIÁN MARÍAS

tóricos que será necessário levar em conta, só interessam na


medida em que determinam, empíricamente que seja, uma estru­
tu ra social. E, inversamente, as considerações teóricas e pura­
mente analíticas só intervém enquanto tornam efetivamente
possível a investigação de tal estrutura de que se trata.

8. Macroestratura e microestrutura da história: épocas


historicas e gerações.

O tempo histórico não é um contínuo homogêneo; possui


qualidade, mais ainda, consiste em sua qualificação, e esta e
não outra coisa é a condição histórica. Porém, tão pouco esta
qualificação é “contínua” , isto é, simplesmente gradual, mas
apresenta “descontinuidades” ou articulações. E estas de duas
índoles completamente diversas, cuja confusão ou interferência
tem perturbado muitas tentativas de ordenar a realidade histó­
rica, e que, no entanto, poderiam ter sido sumamente férteis.
Quando se fala de períodos históricos, é preciso distinguir se a
palavra é usada num sentido estrito — períodos regulares e que
se repetem automáticamente — ou em sentido muito vago e
lato — qualquer divisão do tempo histórico (7) — . É claro
que o primeiro só pode existir se há n a história algo de estru­
tura fixa e invariável — pelo menos dentro de espaços muito
dilatados — que justifique a reiteração e o mecanismo; se isto
não se dá, tôda periodicidade estrita será arbitrária, será imposta
à realidade violentamente e significará pura cabala.
Acontece isto com as tentativas de estabelecer um a unifor­
m idade na m acroestrutura da história, isto é, nas épocas histó­
ricas, onde falta um princípio geral de justificação. Isto não
acontece, pelo contrário, se passamos à microestrutura, fundada
em algo sumamente preciso e — dentro de certos limites —
invariável: a trajetória temporal da vida humana, sua duração e
o ritmo das idades. Aí se dá uma estrutura periódica rigorosa
e necessária, a das gerações, não entendidas biologicamente, é

(7) Informação muito ampla — embora não completa — no livro


recente de J. H. J. Van der Pot: De periodisering der geschiedenis (een
overzicht der theorieên), La Haya, 1951.
A ESTRUTURA SOCIAL 49

claro — gerações no sentido da genealogia — , mas sim histó­


ricamente (8).
O mundo se modifica — Ortega o mostrou — cada quinze
unos aproximadamente e contrapôs à afirmação de que algo
muda no mundo a de que é o mundo que muda, ainda que seja
bem pouco; a isto acontece a cada geração. Mas é preciso ficar
claro que quando se diz que “o mundo” muda, entende-se o
mundo de cada homem, isto é, a sociedade em que êle está inse­
rido; porque tomando-se a palavra “m undo” em sentido abso­
luto, não é exato que mude cada quinze anos, visto que — até
hoje — não se constitui um a sociedade com um único sistema
de vigências, e as mudanças “do m undo”, as mutações genera-
cionais, não são sincrónicas no mundo.
Feito êste esclarecimento, a questão se torna inequívoca:
cada quinze anos, aproximadamente, varia — quase sempre
muito pouco — o conjunto das vigências de um a sociedade;
isto determina um a articulação sumamente precisa do tempo
histórico, que em lugar de ser “retilíneo” é “ondulatorio”, com
um comprimento de onda de quinzie anos — não é preciso dizer
que estas imagens não são mais que isso e não permitem sua
“exploração”, isto é, delas não se pode tirar conseqüências
inertes, sem contrastá-las em cada caso com a realidade histó­
rica de que se trata — . E justamente quando várias unidades
sociais entram em contacto se produz um a “interferência” dêsses
diversos movimentos ondulatorios ou séries generacionais, que
levanta problemas especialmente delicados, sobretudo quando
não se trata de um a simples “relação” de sociedades que con­
tinuam sendo diferentes e sim da transformação de umas em
outras, por fragmentação, incorporação, anexação, fusão, emi­
gração, etc. Por outro lado, a coincidência ou desnível da escala
de gerações pode servir para determ inar com pequena margem
lie incerteza os limites de uma sociedade ou a pertinência de
várias sociedades a um a sociedade mais ampla. Um estudo
minucioso e preciso das gerações nos diversos países europeus
permitiria determinar, com o rigor de um estudo espectrográ-
fico, a m archa do processo de unificação da Europa, e isto nos

(8) Veja-se meu livro El método histórico de las generaciones,


Madrid, 1949 {Obras, VI).
50 ju l iá n Ma r í a s

diversos estratos sociais, desde as “sociedades” mais abstratas


— a vida intelectual ou um aspecto déla, a arte, etc. — até a
sociedade concreta e efetiva em sua integridade. Do mesmo
modo, a aplicação a fundo déste método poderia esclarecer
o difícil problema das sociedades medievais dentro daquilo que
depois se tom ou cada nação — por exemplo, Castela e Leão,
ou Castela e Aragão dentro da Espanha — ou, o que seria ainda
mais interessante, as relações entre a sociedade crista e a mussul­
mana entre o século V III e o XV.
Porém, a estrutura maior da historia, as “épocas” ou
“idades”, são coisas bem distintas. A suposição de que um
certo número de gerações constitui sempre um período histórico
maior é completamente gratuito, a menos que se a justifique, o
que até agora não foi feito. Tem-se salientado o fato surpreen­
dente e paradoxal de que a unidade mais arbitrária de tôdas, o
século, os cem anos “redondos”, tem, apesar de tudo, certa
realidade: uma fisionomia inequívoca distingue o século X V I
do X V II, êste do X V III e do X IX , etc. Parece que um a varia­
ção bem perceptível acompanha a m udança de século. Creio,
porém, que há uma explicação nada misteriosa dêsse “ritmo
secular” de que falou J o é l (9): a consciência que tem o homem
moderno de ter mudado de século, de estar estreando um século
novo. A vivência do “ano novo, vida nova”, literalmente centu­
plicada. Lembre-se — muitos o viveram, outros alcançaram
apenas a espuma deixada no mundo em que nasceram e na
memória pronta dos “mais velhos” — da passagem do século
X IX ao XX: já nos últimos anos do oitocentos se antecipava e
se preludiava “o século futuro” ; falava-se de fin de siècle, inau­
gurou-se o novecentismo; em redor de 1916, Ortega proclamou-
se “nada moderno e muito século X X ”; até os rótulos das
lojas chamaram a atenção para a mtfdança. Novas modas são
lançadas, os homens e as mulheres vestem-se de outra m aneira
e isto lhes dá consciência de “outro tem po” . Produz-se uma
rivalidade entre os dois séculos: os “velhos” e os “jovens”
discutem interminàvelmente sôbre as excelências do século fene­
cido e do recém-estreado, personalizando-os, porque para êles

(9) K. JOEL: Der sãkulãre Rhythmus der Geschichte (Jahrbuch


fãr Soziologie, 1925), e também Wandlugen der Weltanschaung, Tübin-
gen, 1928.
A ESTRUTURA SOCIAL 51

se trata de uma questão pessoal. Atribui-se a cada século carac­


terísticas próprias — o século das luzes, o século do vapor e do
bom tom — , rememora-se suas glórias, nasce assim um “patrio­
tismo secular”, e sua “xenofobia” conseqüente, inclusive seus
"chauvinismos” : o “estúpido” século X IX , o “maldito” século
XIX. Procura-se a “aliança” com outros séculos mais remotos
para desqualificar o presente ou, mais freqüentemente ainda,
para combater o próximo passado: condena-se o século X IX
talvez em nome do século XV I, ou mesmo “a partir dêste” . É
inegável que tudo isto tenha um a vertente cômica, em certas
ocasiões mesmo grotesca; mas o que não está dito é que o
cômico não tenha sua importância e eficácia. A “consciência
secular” é um a causa evidente de um “ritmo secular” incon­
fundível — epidérmico que seja — na história moderna; e a
prova disso a encontramos no fato de que desaparece quando
ultrapassamos o século XV: na história pretérita se produzem
Fenômenos análogos, porém, em outros momentos, em outras
voltas do caminho histórico, porque então o contar por séculos
não tinha a mesma presença no cenário.
A variação mínima — cada geração — funda-se n a esta­
bilidade do sistema de vigências enquanto um a geração está
“no poder”, e sua substituição por outra quando a seguinte a
substitui; estabilidade e descontinuidade são, pois, os caracte­
rísticos dessa microestrutura histórica — por isso é estrutura
articulada — , mas a elas soma-se a periodicidade. Enquanto
a vida hum ana tem a mesma duração média e a mesma con­
figuração de idades, a geração é uma unidade constante e ele­
mentar da mudança histórica; portanto, a unidade real de sua
cronologia. A geração pertence, pois, à “estrutura empírica” da
vida humana, é um a forma concreta da circunstancialidade da vi­
da hum ana e, nessa medida, está sujeita a um a possível variação.
A duração de quinze anos para a geração, é um a determinação
empírica, somente válida de fato, porém com um a significação
estrutural, visto que sua validez se estende a enormes ciclos
históricos.
O princípio daquilo que denomino m acroestrutura é total­
mente diverso. Em bora o sistema geral das vigências — crenças,
idéias, usos, estimativas, desejos, pretensões — mude para cada
geração, não se pode dizer que um a geração esgote essas vigên­
cias; estas — entenda-se, quase tôdas — continuam vigentes,
52 JULIÁN MARÍAS

perduram através de várias gerações. Entre uma e outra altera­


se sua configuração: algumas se debilitam, outras se intensifi­
cam, talvez alguma se volatilize e surja outra em seu lugar;
sobretudo a perspectiva se modifica; no entanto, persistem.
Tôda um a série de gerações vive fundando suas vidas em um
sistema de vigências que se conserva e perdura no que tem de
essencial; a isso denominamos um a época histórica.
Mas afirmando isto subentende-se que não se trata de um
conceito unívoco; a vida possui muitos planos e zonas diferen­
tes; as alterações que afetam um de seus estratos deixam intac­
tos outros; em outros têrmos, dentro de um a forma de vida so­
brevêm mutações parciais — com um a repercussão total, é claro
— talvez várias vêzes e com conteúdos diversos; uma mesma for­
ma de vida — em sentido muito lato — pode ser modulada de
diversas maneiras; as épocas históricas se “superpõem” em níveis
diferentes, não são tôdas da mesma “ordem” de profundidade
nem da mesma “magnitude” . Isto obrigaria a estabelecer um a hie­
rarquia das épocas e, de fato, assim se faz na historiografia —
distinguimos o mundo antigo da Idade Média, esta da época
moderna, etc., e dentro da mesma “idade” , por exemplo esta
última, o Renascimento do Barroco ou da Ilustração — ; falta
porém esclarecimento teórico sôbre seu princípio. Faltaria co­
nhecer a função das diversas vigências na vida, sua relação
efetiva — d a qual quase tudo se ignora, inclusive o próprio
problema — , as conexões de fundamentação que existem entre
elas. Só de posse dêste saber poder-se-ia determ inar a articula­
ção dos diversos “estratos” sociais, a relativa autonomia de uns
em relação a outros, a possibilidade, portanto, de que a varia­
ção de um dêles coexista com a perduração da situação em
outros, e, por conseguinte, de que a m udança de época aconteça
dentro de outra mais dilatada — idade ou como se a queira
chamar — que perdura.
A mudança de época significa sempre um a variação impor­
tante de estrutura, podendo se apresentar sob duas formas
muito diferentes. A primeira é a que em sentido mais próprio
denomina-se um a crise; o homem vive dentro de um sistema de
vigências, entre as quais são básicas as crenças no sentido estri­
to do têrmo orteguiano; sua vida tem um a figura, condicio­
nada por êsses pressupostos, e tem um horizonte de futuro que
lhe é essencial. Ora, com o correr do tempo, ao sucederem-se
A ESTRUTURA SOCIAL 53

as gerações, cada um a das quais altera um pouco a situação,


uma série de experiências e ensaios vão sendo feitos, bem suce­
didos uns, fracassados outros, que vão quebrantando parcial­
mente as crenças dominantes e diminuindo o futuro; não se
pense apenas no fracasso e sim também na realização: à me­
dida que a pretensão coletiva de uma sociedade se vai cumprindo
e se satisfazendo, se vai esgotando; o “horizonte” se apro­
xima, e no mesmo instante em que aparece accessível deixa de
ser horizonte e se converte no muro de um a prisão. É esta a
forma radical da crise, que bem poucas vêzes é notada: a crise
da ilusão. Nesse momento o homem se vê sem saída, sem
futuro, e sobrevêm o desencanto e a melancolia. Se não acon­
tece algo mais, então acontece alguma coisa paradoxal — na
11istória sempre acontece algo, e o acontecer máximo é que nada
aconteça, porque é o próprio nada que percorre a época em
que isto se dá e a nulifica — : tudo persiste, parece conservado
e estabilizado, inclusive seguro, mas muda de função na vida,
desaparece a incitação, o que estava diante jaz aqui, possuido
e inerte, ou então fica para trás. São estas as épocas desespe­
rançadas, não as desesperadas. Nestas se tem a impressão de
que “assim não se pode continuar” ; naquelas, pelo contrário,
se está persuadido de que se pode continuar assim indefinida­
mente. È por êsse motivo que nesse tipo de situações o desespére
é um raio de luz: só êle põe um limite à desesperança, lhe dá um
“prazo breve e perentorio”, e essa limitação dá novamente
figura ao tempo e lhe devolve sua função verdadeira, e com ela,
antes que tudo, sua dimensão de futuro.
Mas há outra form a de mudança de estrutura social e, com
cia, de época: quando a situação se modifica por inovação,
quando irrompe nela um elemento novo, suficientemente impor­
tante. Êste elemento pode ser das mais diversas índoles. Uma
ampliação do horizonte geográfico com a conseqüente alteração
econômica, política, histórica — assim o foi a descoberta da
América — ; uma transformação econômica — a industriali­
zação — ; uma fé religiosa — pense-se na inovação máxima do
Cristianismo ou. em menor escala, no Islam — ; um entusiasmo
ideológico, um “mito” — a nova imagem do mundo, entre os
humanistas e Galileu, a liberdade nos alvores do Romanticismo
— ; talvez um temor ou uma nova relação com a felicidade. Em
todos êstes casos sobrevêm uma crise, não tanto porque o
54 JULIÁN MARIAS

homem não saiba o que fazer e sim porque, sentindo-se outro,


não sabe o que fazer consigo mesmo; por exemplo, não conhece
seus limites, não sabe até onde pode chegar, necessita explorar­
se, saindo de sua própria forma de viver, de sua época, entran­
do no futuro com radicalidade desconhecida.
Não se esqueça, porém, de que tudo depende da pretensão,
da vocação. Uma mesma situação — por exemplo, a nossa —
permite duas orientações, duas “saídas” de sinal diferente.
Avalie-se o quanto é possível que nosso mundo se estratifique,
se massifique, se uniformize, fique dominado pela técnica e pela
administração, paralítico, sem ilusões nem promessas; assim o
estão anunciando, há alguns decênios, todo gênero de profetas
maiores ou menores. Porém é igualmente possível que o homem
de nosso tempo se convença de que ainda não deu a sua medida,
e isto na forma mais radical de tôdas: justamente por descobrir
que não tem medida dada; e então a vida se lhe apareceria
como um a emprêsa inesgotável, feita de risco, invenção, espe­
rança e fruição do real. Quando se fala de crise, quando se
anuncia o fim de uma época, quando se diz qualquer coisa de
uma situação, e se esquece de que o ingrediente mais im por­
tante da mesma é um a pretensão ou vocação aberta e livre,
realmente muito pouco se disse.
II

DINÂMICA DAS GERAÇÕES

9. Articulação das gerações.

Se a história é certo movimento descontínuo e qualificado,


articulado em um a série de situações sucessivas e ordenadas, de
modo que cada um a delas significa um nível determinado,
segue-se: 1) que nenhum a situação isolada é inteligível; 2)
que inclusive uma secção temporal — um momento — envolve
uma pluralidade de níveis, visto coexistirem nele homens de
diferentes idades. Isto significa que se queremos compreender
uma estrutura social temos que estudá-la em um a “época” —
maior ou menor — e que esta se nos aparece como um drama
cm diversos atos executado por certos personagens e, é claro,
com um argumento.
Em meu livro já citado El método histórico de Ias genera­
ciones tratei minuciosamente desta questão, e a êle me remeto.
Aqui apenas acrescentarei algumas precisões, não concernentes
agora à teoria das gerações em sua generalidade, mas sim à
função precisa destas dentros de um a estrutura social concreta.
Às gerações têm uma dupla dimensão: são ao mesmo tempo
“atos” e “personagens”, isto é, os “quem” e os “passos” da
história. O movimento histórico não é contínuo, como o de um
veículo que roda ou o de um avião, e sim descontínuo, como o
de um quadrúpede ou o caminhar de um homem; isto é, procede
gradualmente, ou seja por passos, por passos contados; e êstes
passos — aproximadamente de quinze anos — são os intervalos
das gerações. A história pode ser contada por gerações, que são
o presente elementar histórico: o prazo de relativa estabilidade
de uma figura de mundo, as fases da alteração desta e, portanto,
o ritmo temporal da variação histórica. Por outro lado, o ver-
56 JULIÁN MARIAS

dadeiro sujeito da historia é, como o vimos, um a sociedade;


porém uma sociedade intrínsecamente histórica, isto é, consti­
tuida pela presença em um “mesmo” tempo de vários tempos
diversos; e a form a real em que isto acontece é a convivência
de várias gerações, ou seja a contemporaneidade dos não coe­
táneos, unida à existência efetiva da coetaneidade. Coexistem,
pois, simultáneamente ou são contemporâneos, homens de idades
diferentes e, portanto, não coetáneos; mas o decisivo está no
fato de que os grupos de homens nascidos dentro da “zona de
datas” de um a geração — segundo o têrmo orteguiano — . no
mesmo presente elementar, têm sociológica e historicamente a
mesma idade, são coetáneos. Portanto a geração não é somente
um intervalo de tempo, uma unidade cronológica concreta e
efetiva, mas também e essencialmente um grupo de homens
dentro de uma sociedade, um dos personagens coletivos que
convivem em cada situação, um dos membros dêsse sujeito plural
da história que denominamos um a sociedade,
É possível estudar uma estrutura social em um dêstes pre­
sentes elementares, isto é, tomando como “época” o lapso de
uma geração? Não, naturalmente, porque as diversas gerações
coincidentes ficariam simplesmente justapostas ou superpostas,
mas dinámicamente inarticuladas. As gerações estão em movi­
mento: se sucedem no poder, umas deslocam outras, desapa­
recem umas e surgem outras no cenário histórico; o drama não
é compreensível em um só ato — a rigor, tratar-se-ia de uma
cena — . Uma “época”, ainda que seja da hierarquia mais ínfima,
compreende forçosamente várias gerações, porque, no caso con­
trário, permaneceríamos na micro-estrutura, que por si só é uma
abstração. Deve-se assistir, pois, a articulação real de diversas
gerações em um a época histórica se se quizer compreender em
sua efetiva realidade dinâmica — não esquemáticamente —
uma estrutura social.
Várias gerações, disse eu. Quantas? Vimos que o prin­
cípio de uma época nunca é formal ou estrutural, como o das
gerações, e sim de conteúdo e, portanto, empírico. Uma época
elementar está determinada pelo aparecimento na mesma de
“algo” — deixemos em suspenso o que possa ser êsse algo —-
condicionado por sua capacidade de dar uma nova figura à
vida. Ora, se essa nova configuração acontece de fato, isto é,
se chega a se dar essa época histórica, deve-se executar um
A ESTRUTURA SOCIAL 57

proccsso histórico no qual intervenham, com papeis diferentes,


várias gerações. Isto determina analíticamente os limites daquilo
que poderíamos chamar uma “época mínima” ou, se se prefere,
"época elementar”.
Esse “algo” novo, cuja presença irá modular a época, surge
pela primeira vez em determinado momento, como patrimônio'
ele uma geração cuja pretensão o inclui como elemento inovador;
esta geração tratará de impor ao mundo uma figura condicio­
nada — pelo menos parcialmente — por êsse “algo” . Quando
esta geração cumpre sua fase de “gestação” e inicia sua
“gestão”, isto é, quando chega à posição de “estar no poder’V
ao cabo de quinze anos mais ou menos, a geração seguinte já
encontra êsse “algo” fora de si mesma, prévio a ela, como alga
que existe ou “está aí”; êstes homens são depositários de algo
que a rigor não inventaram e diante do qual iniciam a repetição
e a modificação. Êsse algo, que começou por ser minoritário e
com a maturidade da prim eira geração só logrou um a vigência
minoritária, agora é vigente. Porém somente uma terceira gera­
ção terá esta vigência em forma plena, só então o mundo estará
já determinado por êsse “algo” : é a geração “herdeira”, a pri­
meira que nasce no mundo dessa época em questão, e se instala
no mesmo. Esta situação — mutatis mutandis — se pode reite­
rar: uma série de gerações pode viver abrigada na mesma
figura de mundo, cuja vigência perdura se bem que se alterando
em cada uma das que se sucedem. Mas pode ocorrer — e
leremos então o caso da época “mínima” — que a vigência
dêsse mundo comece a se quebrantar a partir da quarta geração;
nesta se pode dar o caso de que esteja dentro dêsse mundo defi­
nido pelo “algo” que é principio da época, mas sua pretensão
coletiva, sua vocação íntima já se desvie dêle; se assim acontece,
o “mundo” continua ainda afetado por essa determinação, porém
para esta quarta geração é só algo “recebido” , ao que não se
compartilha auténticamente; o eu social de cada homem que a
integra está ainda condicionado por êsse fato, mas sua pretensão
original é alheia; nesta geração se dá, pois, a crise da época, a
transição — entenda-se, o seu primeiro passo — a outra época.
Vemos, pois, que à primeira tentativa de olhar as coisas
mais de perto, captamos a estrutura e a duração daquilo que
denominei uma “época mínima” ou “elementar” : quatro gera­
ções, nem mais nem menos. O “campo inteligível” cronològi-
58 JULIÁN MARÍAS

camente é, em seu mínimo, quatro gerações, isto é, sessenta


anos mais ou menos. Abaixo dêsse prazo não há, a rigor, uma
época, se se entennde por êste têrmo um a forma de vida rea­
lizada e na qual participa tôda a sociedade, o corpo social em
sua integridade. Isto prova, seja dito de passagem, que não
podem ser consideradas como épocas as fases que se patenteiam
quando se faz a história de dimensões abstratas da vida — filo­
sofia, literatura, arte, política — e que freqüentemente duram
muito menos tempo, pelo fato de não intervirem nas mesmas,
com tôda a complexidade de sua estrutura, um a sociedade e sim
apenas grupos particulares dentro da mesma.
A rigor, quatro gerações não são um número suficiente
para um estudo a contento de um a época mínima, pois deveriam
ser levadas em conta as duas gerações que a delimitam: a ante­
rior, em contraste com a qual ela se inicia, na qual talvez se
preludie individualmente seu tema, e a seguinte, na qual se efe­
tiva a liquidação dessa época e se a vê em perspectiva, como
uma figura conclusa e fechada. Seis gerações, no mínimo, cons­
tituem pois os seis personagens com os quais se pode construir
e entender o drama mais elementar da história.

10. A determinação empírica das gerações.

De maneira alguma é fácil decidir quais são as gerações


concretas; que existem, qual é sua função e sua dinâmica, tudo
isto nos é ensinado pela análise da vida humana, individual e
coletiva; que a duração aproximada da geração é de quinze
anos — entendida esta cifra como “número redondo” que exclui
a exatidão — , é conseqüência da estrutura empírica da vida;
qual é a série efetiva das gerações, em que datas precisas se
produzem essas variações do mundo que são os passos da
história, só poderá ser decidido mediante uma investigação mi­
nuciosa e prolixa da realidade histórica. Tudo o que se afaste
disso só levará a verossimilhanças e será mero tatear. As deter­
minações de gerações concretas — sobretudo contemporâneas
— que nestes anos se multiplicam, especialmente em relação à
literatura espanhola, quase sempre são arbitrárias; quando se
percebe isso, é comum uma atitude de desconfiança e ceticismo
diante da possibilidade de decidir quais são de fato as gerações;
porém seria surpreendente que o primeiro ensaio, a primeira
A ESTRUTURA SOCIAL 59

conjetura levasse a resultados rigorosos. Imagine-se tudo o


que custou para esclarecer um pouco as leis da hereditariedade,
os milhares de experimentos e observações com a Drosophila
uicliinogaster ou com as ervilhas, os anos de paciente investi-
que requer o mais modesto conhecimento físico ou bioló­
gico, o qual absorve a atividade de equipes inteiras, por vézes
numerosas, e avalie-se a incongruência que significa pedir para
assuntos humanos, muito mais complexos, apenas algumas horas
do consideração improvisada. Somente de posse de um método
rigoroso e após uma série de indagações teóricas muito estritas,
cm presença de um material empírico copioso submetido a
comprovações precisas, poder-se-ia determinar com certeza a
NÓrie real das gerações num a sociedade determinada. Enquanto
isso não se alcance — e, é claro que nem de longe ainda se o
conseguiu — não se pode atribuir à teoria das gerações a
Inconsistência daqueles que fazem um a utilização arbitrária e
quase exclusivamente nominal da idéia de geração.
No capítulo V I do livro El método histórico de las gene­
raciones expus as indicações de Ortega sôbre o princípio de
determinação empírica das gerações: descoberta de uma “gera-
çiio decisiva” na qual a mudança do mundo é muito maior do
que costuma ser; localização de seu “epônimo” ou homem
representativo, estabelecimento de uma escala provisória e hipo­
tética, tomando como data central de uma geração aquela em
que êsse epônimo completa seus trinta anos — ou sua data
natalicia, o que é equivalente, visto que não se altera com isso a
série das gerações — ; por último, aplicação da escala assim
obtida, como um retículo, à realidade histórica, para que ela
a confirme ou a retifique, impondo deslocamentos em um ou
outro sentido, até que o retículo ideal coincida com o material
empírico.
No mesmo livro propus um modus operandi que faz uso do
mecanismo das gerações e de nossa própria ignorância relati­
vamente à sua escala efetiva; repeti-lo-ei em duas palavras,
remetendo para os pormenores à obra citada. Tome-se certo
número de figuras representativas, distantes entre si quinze
anos — uma ou mais por data ou várias, se possível — ; não
sabemos quais são os limites das gerações, nem quais são elas;
mas sabemos que tôdas estão representadas, que cada grupo de
nomes escolhidos pertence a uma geração diferente. Não co-
60 JULIÁN MARÍAS

nhecemos as gerações, mas as “capturamos” em representantes


inequívocos de cada um a delas. Se tomarmos agora nomes que
pertencem à série de anos imediatamente sucessivos a cada um
dos iniciais, provàvelmente pertencerão em cada caso à mesma
geração; procedendo assim metodicamente, iremos obtendo
núcleos ou agrupamentos de nomes nos quais irão se mostrando
e exemplificando característicos comuns às gerações em questão;
se, acrescentando um ano mais, chegamos à “fronteira” entre
duas gerações, isto é, se êste novo ano pertence à geração se­
guinte, teremos tropeçado com uma anomalia difícil de descobrir
em um caso isolado — existe uma ampla margem para dife­
renças individuais, irrelevantes quando tomadas do ponto de
vista daa gerações — , mas que se poderá descobrir ao se pro­
duzir simultáneamente ao longo de tôda a série, isto é, em tôdas
as gerações que foram ultrapassadas ao se lhes acrescentar êsse
novo ano; e êstes últimos nomes mostrarão, pelo contrário, sua
afinidade com aquêles que já havíamos selecionado e agrupado
na geração seguinte em cada caso, o que supõe uma dupla con­
firmação.
Êste método tem duas vantagens indiscutíveis: a primeira,
sua universalidade, visto poder ser aplicado a qualquer época,
seja ou não alguma das estudadas “geração decisivas”, seja fácil
ou difícil encontrar um “epônimo” da geração; a segunda, é o
seu resultado imediato: em todo caso, e embora não sabemos
quais são as gerações, as temos de certo modo exemplificadas
em seus “representantes”, os quais necessàriamente devem reve­
lar os característicos das mesmas e as diferenças que as separam.
M as êste procedimento, apesar de sua simplicidade e segurança,
não deixa de apresentar riscos e exigir precauções. A mais ele­
m entar é a que se refere à unidade da sociedade dentro da
qual se escolhem os “representantes generacionais” ; em caso
de dúvida, o melhor é pecar por menos, isto é, os tom ar dentro
de um âmbito social inequivocamente unitário, no qual a série
das gerações seja indubitàvelmente a mesma, e depois fazer os
ensaios de extensão ou ampliação que se tornarem necessários.
Esclarecerei com um exemplo: parece sumamente provável que
tôda a Europa, ou pelo menos a Europa ocidental, constitua a
partir do século X V III — talvez antes — um a sociedade com a
mesma escala de gerações; seria, porém, um êrro metódico
selecionar, sem mais, os “representantes” nessa sociedade mais
A ESTRUTURA SOCIAL 61

nmpla e a rigor hipotética, em lugar de se ater a uma naçãpi


— Iispanha, França, Inglaterra, etc. — ; urna vez obtida a escala
das gerações nacionais será o momento de averiguar se ocorre
o mesmo com as demais nações, isto é, se suas escalas coincidem
ou mostram um décalage; e precisamente estas duas possibilida­
des correspondem às duas situações de existência ou inexistên­
cia dessa suposta sociedade européia. A segunda precaução
refere-se ao tempo; como a cifra de quinze anos é — repito —
um “número redondo” procedente da estrutura empírica da
vida humana e, portanto, inseguro — quanto à sua exatidão
— e variável em princípio, não é prudente tom ar longos pe­
ríodos cronológicos; se êstes fôssem demasiadamente pro­
longados, poderia haver uma alteração tal da longevi­
dade e do ritmo das idades, que levaria também a variar a
duração da geração dentro do lapso estudado; isto é muito im­
provável, mas mesmo em se tratando de períodos menos dila­
tados subsiste o outro risco: se a duração de cada geração não
é exatamente quinze anos — uma investigação empírica minu­
ciosa poderia m ostrar que o número é outro, embora sempre
muito próximo — , o êrro, insignificante e de fácil descoberta
cm prazos de poucas gerações, seria grave e perturbador se se
tomasse vários séculos. A terceira precaução a observar é mais
sutil: examinando-se os “nomes” representativos temos, é claro,
vidas individuais; m as se examinamos os traços das mesmas
devemos nos ater àquêles que possuem caráter coletivo, isto é,
aos que acusam a presença nessas vidas individuais de um
sistema de vigências sociais, que constituem o perfil de cada
geração; os traços estritamente individuais, por importantes
que sejam, são irrelevantes do ponto de vista das gerações.
Portanto, o mais seguro para iniciar — acentuo expressa­
mente esta palavra — a determinação empírica das gerações,
e escolher uma sociedade concreta e indubitável, por exemplo,
uma nação européia; dentro de sua história, um prazo sufi­
cientemente longo para que várias gerações se sucedam e se
as possa ver em seu dinamismo efetivo, porém o bastante breve
para que permita uma visão de conjunto, e nele necessària-
mente não ocorra nenhum êrro numérico, isto é, um a “época
elementar” ou mínima; por último, na sociedade assim deter­
minada e demarcada, examinar as diversas dimensões da estru­
tura social em que estejam atuando os característicos coletivos
62 JULIÁN MARIAS

e, por conseguinte, generacionais. Portanto, se por um lado


não é possível estudar uma estrutura social sem conhecer as
gerações reais, o melhor modo de determ inar estas é sua inves­
tigação em um a estrutura precisa: um a vez mais, o movimento
de ida e de volta em que consiste o método do conhecimento de
realidades humanas.

11. Coexistência e sucessão das gerações

Quantas gerações coexistem num a sociedade, isto é, vivem


simultáneamente em um momento do tempo? Se prescindimos
de nossa época, na qual a situação está mudando, e nos refe­
rimos só à coexistência histórica das gerações, quer dizer,
àquelas que têm participação na vida coletiva, podemos distin­
guir três: as que estão compreendidas entre os quinze e os
sessenta anos. Antes dos quinze, na infância, não existe
nenhum gênero de atuação histórica; nem sequer a receptivi­
dade e a formação transcendem, em geral, a esfera da vida
privada; mas, por outro lado, porque se deter nos sessenta
anos? E os homens mais velhos?
Intervém aqui um fator quantitativo: as gerações não são
intervalos temporais e sim grupos de homens, isto é, de muitos
homens; as gerações articulam as grandes partes da população
de uma unidade social; um número relativamente pequeno de
homens, que represente uma exígua porção da sociedade, será
qualquer outra coisa; poder-se-á dizer que êsses indivíduos
pertencem a um a geração, porém subentendendo que essa gera­
ção já não existe. E foi isto que ocorreu, em tôda a história
passada conhecida, com os homens de mais de sessenta anos:
em sua maioria m orreram e só restam contados sobreviventes.
Não se trata de haver menos homens maiores de sessenta
anos do que, por exemplo, os compreendidos entre quarenta
e cinco e sessenta, mas sim de que há muitíssimo menos, num a
desproporção que altera a função do grupo dos anciãos. Além
disso, deve-se acrescentar que a idade avançada torna muito
menor a eficiência e a atividade; por último, os grandes
“claros” nas fileiras dos velhos faz com que suas formações
estejam desarticuladas, que hajam perdido a articulação que
haviam formado ao longo de suas vidas. Não constituem, pois,
um corpo social que atue como tal na mecânica da sociedade
A ESTRUTURA SOCIAL 63

i M i m sobreviventes, com um a função individual e qualitativa­

mente diversa.
No século XX, e não antes, a situação muda. O aumento
iln longevidade faz com que haja muitos velhos e que êstes
iilU> sejam tão velhos; isto é, lhes permite constituir uma
fruçío social coerente, ainda que nümericamente inferior às
nulrtis, dizimada pela morte ou pela invalidez mas ainda em
fl loiras ordenadas. Isto significa que a geração mais velha, a
doi dc mais de sessenta anos, persiste. E isto levanta um pro­
blem a delicado, que não cabe neste lugar, mas que não quero
deixar de, pelo menos, formular. A presença de um a geração a
mnis não é um fato desprezível porque significa um a alteração
na estrutura. As gerações têm funções precisas, e a intervenção
iilivu de quatro em lugar de três modifica as relações entre elas.
Significa, visto se tratar de um drama, a entrada em cena de
um novo personagem e como êste exige um papel, é necessário
proceder a uma redistribuição dêstes. Em que medida mudam
nu funções das três gerações mais jovens pela presença de outra
milis velha, plenamente ativa? O fato de que a função de “so­
breviventes” tenha sido assumida pelos indivíduos vivos de
uma quinta geração — no momento atual, a de 98 na Espanha
- faz com que esteja “presente”, em um momento da história,
uma zona mais ampla do tempo histórico e dilata a retentiva
CHHcncial a tôda sociedade. Estamos, pois, a caminho de uma
transformação profunda da estrutura social e do esquema das
gerações: se esta longevidade maior se confirma e se estabiliza
durante muito tempo — esta condição é inexcusável — , não
sabemos se se consolidará um novo esquema de relação inter-
Uencracional — quatro gerações ativas e um resto “sobrevi­
vente” — ou então se restabelecerá o anterior, reajustando-se
os “papeis” das gerações e a custa, é claro, de um a alteração
de seu ritmo e de um aumento do intervalo das mesmas e de
sua duração. Talvez o prazo de vigência de uma figura de
mundo aumente e se aproxime, em um futuro não muito remo­
to, dos vinte anos mais ou menos; alguns fenômenos de infanta-
lismo, prolongação da adolescência e da juventude, etc., fariam
pensar nesta solução; é prematuro, porém, decidir acêrca das
estruturas das sociedades que se seguirão à nossa.
Relativamente à sucessão das gerações, deve-se acrescen­
tar ainda uma palavra. Ortega distinguiu entre épocas cum u-
>84 JULIÁN MARÍAS

lativas e épocas eliminatórias e polêmicas; nas primeiras, a


geração mais jovem prolonga no essencial a tendência da ante­
rior; ñas segundas, discrepa da mesma e se rebela: uns são
tempos de velhos, outros tempos de jovens. Mas se se tom ar
um a época em sentido estrito, isto é, um mínimo de quatro
gerações, freqüentemente mais, teremos um ritmo que pode se
apresentar sob vários aspectos: com efeito, pode se reiterar a
tendência cumulativa em tôdas as mudanças de geração; pode
se dar com referência a um par de gerações mas inverter-se na
seguinte, etc.; quanto à tendência polêmica, pode ter um ritmo
alternado — discrepância com a geração imediatamente pre­
cedente e coincidência com a anterior a esta — ou consistir
num a série de sucessivas discrepancias inovadoras sem reite­
ração. No estudo de um a época, por conseguinte, é necessário
determinar êste ritmo que compõe uma determinada configura­
ção histórica. A continuidade, a estabilidade, a conservação ou
perda de equilíbrio, a celeridade da variação, são tantos outros
característicos condicionados pela forma da sucessão genera­
cional.
Ao dizer “sucessão” tenha-se presente, porém, que se trata
da sucessão das gerações no poder — ou em qualquer de seus
papeis ou funções — , não a sucessão das mesmas no mundo,
n a história; porque neste sentido não se sucedem, como viu
claramente Ortega e também M e n tré (1); recobrem-se ou se
entrelaçam, diz Ortega; estão imbricadas como as telhas num
telhado, isto é, se superpõem parcialmente, coincidem num
mesmo tempo, porém com funções diferentes, em nível diverso.
Coexistência e sucessão não constituem duas propriedades das
gerações e sim apenas uma: seu modo de existir é a coexis­
tência sucessiva, isto é, histórica.

12. As gerações e sua expressão

Um dos problemas mais delicados e difíceis da investi­


gação das gerações é aquêle que se refere ao seu modo de ma­
nifestação e presença. Como as encontramos? Tratando-se das
gerações atuais, o que acho à minha volta são indivíduos; neles

(1) Veja-se meu livro citado, cap. V.


A ESTRUTURA SOCIAL 65

posso descobrir certos característicos que os agrupam e, sobre­


tudo, os situam a um certo nivel. No trato com um contem­
poráneo, o sinto como coetáneo, como homem de meu tempo,
de minha idade ou não; no primeiro caso digo que pertence à
minha geração; no segundo, que é de outra, anterior ou poste­
rior. Mas esta “impressão” não é, naturalmente, suficiente,
embora de modo algum seja desprezível; deveria ser justificada,
e além disso ter-se-ia de descontar o coeficiente meramente
individual que poderia trazer consigo; em outras palavras, o
resultado da observação de um indivíduo, enquanto não trans­
cende do individual para nele descobrir estruturas tranpessoais,
nunca é suficiente para decidir sua adscrição a um a geração
determinada.
Isto faz com que não haja tanta diferença, como pareceria
à primeira vista, entre a investigação das gerações atuais e as
de uma sociedade pretérita; em ambos os casos é necessário
;ipelar às formas de vida coletiva, que não “aparecem” no sen­
tido em que o faz o indivíduo concreto. Isto é, as gerações se
manifestam ou se expressam, e me devo orientar a partir dessa
expressão à realidade que nela se denuncia.
Dos inúmeros homens que vivem num a época, só alguns
tantos são lembrados, talvez um por mil, ou por dez mil; isto
supõe um a qualificação dêsses indivíduos “acccessíveis”, que o
são por alguma coisa — incluindo entre os motivos possíveis
o acaso — . Geralmente êsses homens são lembrados, são per­
sonagens para nós porque fizeram algo concreto, cujo carac­
terístico comum é o de constar; alguma ação de índole — di­
reta ou indiretamente — expressiva: escrever um livro, pintar
um quadro, pronunciar discursos, ganhar ou perder um a bata­
lha, governar ou tentar governar, sublevar-se, cometer uma
traição, inventar ou pelo menos mover a pena ou os pincéis do
próximo, isto é, realizar um a ação “passivamente” expressiva.
Isto significa que a história está sempre manejando um
material “excepcional”; realmente, o tema da história foi a
princípio, e durante séculos, o excepcional como tal: o memo­
rável, isto é, o que merece ser lembrado, precisamente porque
não é o de todos os dias, aquilo que é digno de se Salvar dia
esquecimento e se conservar. Desde Heródoto até o século
XV III, a história se restrigiu ao excepcional; a partir de Vol-
taire seu esforço tem sido no sentido de superar esta limitação;
66 JULIÁN MARIAS

mas sua servidão diante do excepcional sobrevive no fato de


que déle é feito o material de que dispõe e maneja. N o entanto,
é necessário levar em conta outros indicios ou expressões que
se manifestam fora dessa órbita de valores. A idéia da intra-
história, na qual Unamuno (2) tanto insistiu, embora insuficien­
temente elaborada, era sumamente acertada; diríamos que,
mesmo não sendo um a solução adequada, é o título de um pro­
blema. Unamuno acentuava que falamos do “presente momen­
to histórico” e esta fórmula diz implicitamente que há outro
momento presente que não é histórico; ter-se-ia que perguntar
o que é então, e Unamuno responderia que é intra-histórico;
mas esta expressão é ambigua, porque se se entender — e a
isso propendía Unamuno — como algo que não é histórico, é
um êrro, desde que todas as formas da vida hum ana hão histó­
ricas; a fórmula que tantas vêzes empreguei, “intrínsecamente
histórico”, colhe da idéia de Unamuno o que ela tem de fecun
do, evitando qualquer evasão da historicidade.
Diante de um a manifestação accessível qualquer não po­
demos, portanto, nela permanecer simplesmente: temos que a
referir a um nível, colocá-la em certa zona da realidade, radicá-
la nos pressupostos que lhe servem de base e que lhe conferi­
ram sua possibilidade. É a isto que chamo a interpretação de
seu caráter expressivo. Êste apêlo constante do resíduo histórico
excepcional ao substrato relegado e esquecido que lhe dá reali­
dade, é a alma do método de investigação das gerações.
Consideremos o exemplo mais claro: um escrito. Aquilo
que nele é estritamente pessoal sustenta-se sôbre uma base
muito mais ampla de elementos prévios, que vêm da circuns­
tância: a lingua em que está redigido, o gênero literário, isto é,
a classe de “escrito” de que se trata, o título — entenda-se, o
tipo de título — , os recursos estilísticos que põe em jôgo, o
que não diz por “dar por suposto” , as idéias que efetivamente
mobiliza, as “instâncias” às quais apela automáticamente por
contar com sua eficácia na mente do leitor, etc. Tudo isto é
impessoal — pelo menos transpessoal — ; não procede do
autor, não se explica a partir do mesmo e sim a partir de seu
“mundo”. Mas aqui aparece o problema especificamente histó-

(2) En torno al casticismo, I: “La tradición eterna”.


A ESTRUTURA SOCIAL 67

rico, sobretodo do ponto de vista concreto em que nos situa­


mos: o das gerações. Explicar-me-ei.
Antes da irrupção da consciência histórica — que difere
do histerismo, porque éste é um a teoria e aquela um a situação
real — , o homem sentia-se instalado em um presente de duração
vagamente definida mas considerável, ao que se denominava “a
época atual’. Lembre-se quanto tempo persistiu a idéia de uma
“história contemporânea” iniciada em 1789: a suposta “época
atual” prolongou-se sem resistências por mais de um século. A
reação, provocada pela consciência histórica e reforçada por
uma interpretação historista do humano, conduziu ao extremo
oposto: a atomização do tempo e, portanto, a volatização do
presente: éste consistiria em cada ano, apurando-se melhor,
em cada instante. Ambas as posições são, no entanto, falsas,
porque o tempo tem qualidade e estrutura; e a prim eira missão
da historia que se impõe é, nesse caso, estabelecer esta, o que
significa “datar” os elementos que coexistem num a situação.
Todos os ingredientes que procedem da circunstância ou mundo
e que estão atuando impessoal ou transpessoalmente em um
escrito, não são do mesmo estrato temporal, do mesmo nivel.
Se o tomamos como expressão de algo que vai além de seu autor,
é necessário precisar positivamente expressão de que são éles.
E sómente um a parte désses elementos — ou alguns de seus
matizes— procedem da geração do escritor e, nesse sentido,
são expressão sua. Dentro do marco geral do que constitui o
patrimonio de um a época, cada geração inscreve sua modula­
ção peculiar, que se deve isolar e distinguir daquilo que é co­
mum a várias outras como também do que é privativo do autor.
Na realidade concreta e unitária de um escrito atuam desde as
estruturas mais universais e permanentes até a irredutível vo­
cação pessoal, insubstituível e única. Outro tanto ocorre com
um quadro, uma intriga política, a m aneira de ser rico ou de
amar. N a consideração de certas ações concretas de alguns
tantos homens, temos que discriminar o que nelas é expressão
não de um mas sim de muitos, daqueles que vivem no mesmo
mundo, isto é, dos que pertencem à mesma geração. É neces­
sário perguntar pelas estruturas mais sutis que justificam em
seu pormenor essas relações de expressão.
68 JULIÁN MARÍAS

13. Massas e minorias

Tôda sociedade —• Ortega o demonstrou há trinta e tantos


anos — é a articulação de um a massa com um a minoria. Po­
rém massa e minoria, embora sejam dois têrmos que indiquem,
a prim eira a coexistência de muitos homens, a segunda a de
poucos, não significam por isso, primàriamente, quantidade, e
sim duas funções recíprocas: a massa é organizada, estruturada
por uma minoria de indivíduos seletos. Sem massa, não há mino­
ria; a m inoria é a m inoria de uma massa — e para um a massa
— ; inversamente, a vida de uma massa é impossível sem uma
m inoria dirigente, e de um modo ou de outro, tôda sociedade
a organiza e a forma, porque sem a interação de ambas não é
possível a vida coletiva. Ortega dedicou um bom número de
páginas ao estudo desta articulação mostrando que a saúde de
um corpo social depende, em grande parte, da normalidade
dessa ação recíproca, que a demissão da minoria dirigente, sua
apatia ou seu fastio, ou, por outro lado, a indocilidade da
massa, provocam um estado de enfermidade social, de disso­
ciação.
Como se trata, porém, de um a função social recíproca, as
duas frações sociais — massa, m inoria — não coincidem for­
çosamente com a ordenação estamental de um povo. É normal
que coincidam grosso modo, porque a estratificação social é
originàriamente um a conseqüência da articulação dinâmica em
massa e minoria; mas mesmo no caso mais normal e bem ajus­
tado, trata-se apenas de uma coincidência de frações sociais,
não de indivíduos; em outras palavras, mesmo no caso de que a
aristocracia seja a “capa” social efetivamente dirigente, isso
não se pode estender a cada um dos homens que a compõem;
e de modo análogo, indivíduos das camadas sociais “inferiores”
assumem, inclusive nas sociedades mais estabilizadas, funções
de direção e orientação, para as quais a coletividade procura
sempre um “caminho” justificativo; pense-se, por exemplo, no
significado do acesso às hierarquias eclesiásticas e na faculda­
de régia do enobrecimento, no mundo medieval ou renascen­
tista.
Tudo isto é perfeitamente claro, mas é preciso levar em
conta outros dois pontos de vista, que complicam considerà-
velmente a questão. O primeiro é a interferência entre os con-
A ESTRUTURA SOCIAL 69

ccitos massa e minoria seleta, de um lado, e homem-massa e


liomem-distinto, de outro. Ortega insistiu enérgicamente no fato
de que a massa não está sempre formada de homens-massas;
o homem-massa é a degenerescência do homem que integra a
massa: o homem indócil, inautêntico, que não reconhece sua
própria condição, o “menino mimado” ou “rapazote satisfeito” ,
componente da massa rebelde — entenda-se, em rebelião con­
tra si mesma, contra sua condição de tal — . Em tôdas as
classes sociais há homens-distintos e homens-massas, porque
não se trata, diz Ortega, de classes sociais e sim de classes de
homens. Deve-se distinguir, pois, três pontos de vista: as duas
funções sociais necessárias, massa dirigida e m inoria dirigente;
a “solidificação” dessas funções em classes ou estamentos que
normalmente e de modo estatístco as exercem; a “classe de
homens” dos indivíduos pertencentes a qualquer dessas classes
sociais; no caso limite ideal, a massa de um a sociedade poderia
não possuir nem sequer um “homem-massa” ; êstes, no entanto,
se encontram em tôdas as camadas sociais, mesmo nas supe­
riores.
O segundo ponto de vista é ainda mais delicado. Poder-
se-ia pensar que há certos homens que por sua excelência,
esforço ou talento pertencem à minoria seleta ou elite enquanto
que os restantes simplesmente integram a massa, dirigida e
orientada por aquela. N a verdade, a coisa não é tão simples.
A perspicácia de Ortega não deixou escapar o fato que deno­
minou “a barbárie do especialismo” : o homem eminente em
um campo, que goza de autoridade legítima dentro do mesmo,
é propenso a se comportar, em geral, de acôrdo com essa auto­
ridade, portanto também nas outras dimensões de sua perso­
nalidade nas quais não está especialmente qualificado. Isto é,
comporta-se como um homem-massa, porque não aceita sua
função de massa, sua função passiva e dirigida, naquele ponto
onde é a única que lhe corresponde. Isto significa que, a rigor,
— salvo raras exceções — a m inoria dirigente não está cons­
tituida por indivíduos -— entende-se, em sua integridade — , e
sim por ações vitais de certos indivíduos, por funcionamentos
concretos dêstes na dimensão em que realmente são qualifica­
dos. O grande político, que constitui parte da minoria dirigen-
te por essa sua determinação, quando enfermo é apenas um
homem a mais, e não pode nem deve dizer ao médico como
70 JULIÁN MARIAS

éste o ckve curar mas pelo contrário, seguir dócilmente seus


conselhos ou — êste sim é um direito inalinável — m udar de
médico. O físico ilustre, se só entende de física, não poderá
dizer ao diretor de cena a maneira de m ontar um espetáculo,
embora lhe é lícito se abster de contemplá-lo se êste não lhe
agrada. O pintor genial não pode opinar sôbre a política inter­
nacional de scu país, entenda-se ativamente, isto é, dizendo o
que se deva fazer, ainda que evidentemente pode recusar o
programa político que um partido lhe apresente, preferindo
outro. Em outros têrmos, a pertinência à minoria dirigente não
é uma condição permanente de certos homens e sim uma função
que cada um exerce enquanto qualificado para isto, e tão de­
pressa acabe essa função o indivíduo deve reintegrar-se às fi­
leiras da massa e, portanto, ser dócil. Que a distinção aristo­
crática autorize a decidir sôbre política, que o poder econômico
implique orientação da literatura, que a condição sacerdotal
permita opinar sôbre filosofia, que o saber científico confira
licança para intervir na política estrangeira, são formas de
“barbárie do especialismo” e, portanto, casos de rebelião de
massas, isto é, indício d a condição de homens-massas daqueles
que assim o fazem.
A diferença entre massa e minoria possui, pois, um cará­
ter concreto e dinâmico. É um a função, repito; o fato de que
a sociedade cristalize suas funções, as solidifique e as estabilize
em magistraturas aproximadas, de exatidão apenas estatística,
nã.o deve fazer esquecer o núcleo decisivo da questão. Essa
solidificação é necessária, pertence à índole mesma da socieda­
de; e a margem de inadequação e “inexatidão” , que sempre
implica, expressa apenas a dimensão de inautenticidade —
m aior ou menor, algumas vêzes pràticamente desprezível, outras
vêzes preocupante — inseparável de tôdas as formas da vida
coletiva. O estudo d a estrutura social de um época concreta
exige que se pergunte por duas coisas: primeiro, pelos grupos
sociais que exercem titularmente as funções de direção, que
são oficialmente as minorias seletas; segundo, pela realidade
efetiva, isto é, pela exata medida em que êsses titulares são
realmente seletos e qualificados e, portanto, até que ponto de­
sempenham essa função; e se não a desempenham — entenda-
se, suficientemente, com certa plenitude — surge uma últim a e
delicada questão: saber se a sociedade é suficientemente vivaz
A ESTRUTURA SOCIAL 71

e sã para ter podido criar uma minoria dirigente “vicária” e


suplente, longe talvez daquela que aparentemente cumpre essa
função, ou se esta permanece vaga, como um puro vazio ou
então não cumprida, portanto se a sociedade está acéfala, de­
sorientada e inerte. Um diagnóstico preciso sôbre esta situação
é imprescindível para entender a estrutura interna de uma so­
ciedade num a época determinada e, por conseguinte, a signi­
ficação dentro dela de tudo o que acontece e, mais ainda, do
horizonte de suas possibilidades imediatas.

14. A estrutura “representativa” das sociedades européias

A articulação da massa com a m inoria tem um esquema de


relação invariável, porém que não passa de um esquema; seus mo­
dos de realização são muito variáveis. Um a prim eira determina­
rão, a mais elementar de tôdas, mas que precisamente por isso se
costuma passar por cima, é a quantitativa: as palavras “massa”
e “minoria” têm um a referência imediata à quantidade;
Aristóteles falava — em sentido não exatamente equivalente,
mas que aponta para o mesmo fato — “dos muitos” e “dos
poucos” . Até que ponto a minoria é minoritária? Essa porção
menor da sociedade é mínima ou consideràvelmente numerosa?
Cada povo, cada época apresenta um a proporção própria que
condiciona o funcionamento recíproco de seus dois compo­
nentes.
Porém, qualquer que seja a proporção em que se combi­
nem minoria e massa, há formas muito diversas de conexão e
ajuste entre elas; e um a de alcance especial, característica —
ainda que não exclusiva — das sociedades européias, é aquela
que denomino estrutura “representativa” . Neste caso, as mino­
rias não só mandam, dirigem, orientam, inventam, mas além
disso representam os grupos majoritários. A palavra “repre­
sentação” pode, no entanto, ser tom ada em dois sentidos dis­
tintos, que não se excluem, e as sociedades européias são repre­
sentativas em ambos. Em primeiro lugar, representação como
“delegação”, substituição ou lugar-tenência; as minorias
“estão pelas” maiorias, atuam como delegadas das mesmas,
são por elas “investidas no poder” porque é evidente que são
as maiorias que conferem o poder às minorias, embora sejam
estas as que mandem. Mas na verdade não é isto o mais im-
72 JULIAN MARÍAS

portante e peculiar; há um segundo sentido, o de “representa­


ção cênica” : as minorias representam, incam am e trazem à cena
o dram a majoritário das sociedades. A “pessoa” é o trejeito,
a máscara: esta representação é a que personaliza ou personi­
fica a vida coletiva. Fato êste que é prenhe de conseqüências.
Indiquemos algumas. Antes de tudo, a existência de um
“cenário”, isto é, o estabelecimento de um a perspectiva dentro
de uma sociedade. É necessário haver um a cena na qual as
minorias se encontrem, e que além disso seja visível. Estas
duas condições, ponto de encontro e visibilidade, são aquelas
que se procura realizar de muitas maneiras no decurso da his­
tória e conduzem à criação de uma “capitalidade”, cuja exis­
tência é menos óbvia do que hoje pode nos parecer. Pense-se
na função dos santuários ou lugares sagrados, nos jogos da
Grécia, nas assembléias excepcionais, cenários parciais ou tran­
sitórios. A existência de um cenário social está ligada à magni­
tude das sociedades: se estas são muito pequenas, estão sempre
presentes a si mesmas, não havendo, a rigor, cenário e sim con­
vivência atual e compartilhada; quando se diz que a democracia
ateniense não era representativa mas sim direta, deve-se com­
preender que o sistema político não era o decisivo e sim uma
estrutura social: a sociedade ateniense era, tôda ela, cenário,
ágora, e portanto não propriamente representativa ou cênica.
Se, pelo contrário, as sociedades são demasiado grandes, o
encontro e a visibilidade se tom am problemáticos, até por ra­
zões físicas e de comunicação; compare-se a situação européia
com a dos Estados Unidos: a “visibilidade” de Washington não
é comparável à de Paris ou Londres; os “representantes” acor­
rem a Washington como “delegados” ou substitutos dos cida­
dãos que os enviam, mas sua atividade tem um mínimo de re-
prentação cênica sendo esta função preenchida de formas muito
diversas; não vou tratar dêsse problema porque aqui não é o
lugar, porém constitui um tema tão apaixonante quanto pouco
estudado; lembre-se apenas que poderia ser o fio condutor para
se entender o êxito e o sentido d a televisão na América do
Norte (3).
A segunda conseqüência é o caráter público da vida nessas
sociedades, o que de maneira alguma constitui uma determina­

(3) Veja-se meu livro Los Estados Unidos en escorzo (Obras, III).
A ESTRUTURA SOCIAL 73

ção óbvia e necessária da vida coletiva. A publicidade é devida


a sua condição cênica ou representativa, mas não decorre,
entretanto, da simples visibilidade do cenário: reclama também
a presença virtual dos espectadores. Não se pode confundir,
pois, a publicidade com o mero conhecimento; todos nós espa­
nhóis, por exemplo, sabemos muitas coisas que, no entanto,
não são públicas; a notificação nunca é equivalente à publici­
dade. Se nós espanhóis recebêssemos amanhã um envelope con­
tendo uma notícia seria algo completamente diferente de a ter­
mos lido publicada no jornal; a rigor, nem sequer teria sido
necessário que a tivéssemos lido: bastaria que a tivéssemos
podido ler. De fato, só um a fração do país lê jornais; na hi­
pótese anterior, todos os indivíduos teriam recebido o envelope
com a notícia, e, no entanto, embora fôsse ela conhecida pela
totalidade, não seria pública; a do jornal, pelo contrário o seria.
Daí a perturbação que o desaparecimento da publicidade pro­
duz nas sociedades da Europa; sua falta não é uma simples
carência e sim uma privação efetiva; em outras palavras, quan­
do uma form a de vida deve ser pública e não o é, tom a-se
clandestina. Não é por acaso que a política européia tem
mostrado desde há muito uma tendência parlamentarista; e é
um êrro interpretar o parlamento do ponto de vista exclusivo
da soberania e portanto da democracia; a função prim ária do
parlamento — e a mais importante — é a que tem de “parla” ,
de falar publicamente, de cenário enfim. Que o parlamento
legisle ou não, certamente é importante, porém secundário; o
decisivo está no seu falar em público das coisas públicas. Esta
função de cenário da vida coletiva — que em determinado mo­
mento da Idade M édia foi exercida pelas Côrtes — é relegada
em outra época à Côrte; note-se que a decadência das primei­
ras é compensada pelo desenvolvimento da segunda; o estabe­
lecimento da capitalidade, isto é, o fato de que a Côrte se
lixe e se estabeleça num a cidade permanente, tem dois sentidos:
é, sem dúvida, condição para seu esplendor e plenitude, para
que se desenvolvam as formas da vida palaciana e se construa
o “teatro” em que consiste; além disso, tendo os países euro­
peus conseguido estruturas mais estáveis e rigorosas, é menos
necessário que a personificação dos mesmos, isto é, a realeza,
percorra o país, se faça presente em cada um a de suas comar­
cas. O reino adquire assim uma figura nítida, possibilita que
74 JULIÁN MARÍAS

seus membros se articulem e, naturalmente, surge a cabeça,


isto é, a capital; e todo um sistema de referências e comuni­
cações — materiais e sociais — põe os diferentes pontos do
território em relação com essa capital. Nesse cenário —
Madrid dos Austrias, Paris dos Valois e do Bourbons, Londres
dos Tudor ou dos Stuart — representam para si mesmos os
dramas nacionais, enquanto que os diferentes povos europeus
assistem a sua própria história.
A terceira conseqüência é imediata: a necessidade de um
“ argumento” da vida coletiva. Entenda-se bem: tôda vida,
individual ou coletiva, necessita argumento e sem êle propria­
mente não existe; mas, a vida de uma sociedade sendo repre­
sentativa, êsse argumento deve ser expresso, vivido e sentido
como tal pelos indivíduos. E isto por sua vez, requer duas
condições: ser entendido, por conseguinte ser inteligível e ser
compartilhado. Que significam estas duas últimas determina­
ções da representação? A primeira, que os indivíduos possam
compreender o que está acontecendo, que sejam capazes, em
certa medida, de prever e antecipar os movimentos do cenário;
isto é, que saibam “de que se trata” , “onde se quer chegar” .
A supremacia francesa na Europa por dois séculos aproximada­
mente, se deveu, em grande parte, a que sua história fôra,
então, a mais inteligível de tôdas (compare-se com a situação
atual e se verá onde se esconde o seu maior risco). A repre­
sentação potencia a dimensão projetiva de tôda sociedade, a faz
essencialmente futurista e portanto lhe impossibilita ficar redu­
zida ao funcionamento de suas propulsões tradicionais. Dever-
se-ia entender por isto e preferentemente do que por razões
m eram ente políticas, portanto relativamnte superficiais, a resis­
tência de todos tradicionalismos às formas parlamentares efica­
zes e, o que é ainda mais sintomático, à plenitude da vida
palaciana; não sei se foi estudado por êste ângulo a história
das m onarquias européias, mas me parece que seria fecundo
examiná-las dêste ponto de vista.
A segunda determinação, que se refere ao fato de ser
com partilhado o argumento da vida coletiva, significa que os
indivíduos estão “nele”, sentem-se pessoalmente afetados pelo
que acontece, mesmo no caso em que não tenha repercussões
diretas sôbre êles. N ão é de se estranhar que os impostos, as
convocações ou o recrutamento regular afetem os indivíduos,
A ESTRUTURA SOCIAL 75

como também é perfeitamente plausível que a guerra ou a paz,


a ordem do Estado ou os serviços públicos sejam considerados
por todos como coisa própria. É menos claro, porém, e muito
menos seguro, que os comerciantes possam falar de “nossos”
músicos, que os agricultores sintam que exista algo que se possa
chamar “nossos” escritores, que contem uns e outros não só
com “nossos costumes” como também com “nossa história” .
Isto requer um a participação ativa no dram a da comunidade;
note-se porém, que a qualificação ativa não significa “interven­
ção”: os camponeses não intervém absolutamente na marcha
das letras ou da ciência, os empregados ou os operários não
intervém na orientação da pintura, da música ou da retórica
nacional; trata-se da atividade do contemplador, do espectador,
que se sente complicado com o que acontece no cenário, tal­
vez em vão, mas que está fora do cenário — salvo quando
alguma vez, no teatro e na história, irrompe na cena com a
conseqüência ineludível de que ali mesmo acabará a represen­
tação — .
E isto nos conduz a um último ponto que gostaria de
insinuar. Tomei exemplos preferentemente da vida pública por
antonomásia, da vida política — res publica foi seu nome em
Roma, que entendia de política e de mando — , por ser mais
claro e mais simples. Mas é preciso afirmar enérgicamente que
a estrutura representativa das sociedades afeta outras dimensões
bem diversas. A arte e a ciência, os usos sociais, as modas, os
espetáculos, a linguagem, acusam a marca dêsse caráter re­
presentativo, quando êle existe. E não se pode entender uma
sociedade sem esclarecer em que grau e em que formas é repre­
sentativa.
Estas formas alcançam uma configuração precisa dentro
de um a época; funcionam então como automatismos, de ma­
neira que se conhece desde logo — com um saber implícito e
que não “consta” — o que cada coisa “representa” . Isto permite
avaliar, de um modo também automático, a im portância das
coisas, sucessos e pessoas, facilitando a marcha da vida cole­
tiva, em grande parte mecanizada. É a isto que se denomina
uma época “normal” . Essa função de aforamento da im portân­
cia, que é decisiva em tôdas as formas da vida — tam bém nai
vida dos organismos — , se executa então com plena naturali­
dade e sem problemas. Sabe-se o que “representa” um olhar
76 JULIÁN MARÍAS

do rei, um sorriso d a rainha, o sermão de um pregador, a pas­


toral de um bispo, um motim popular, a retirada de um embai­
xador, um baile, uma tertulia, a publicação de um livro, uma
elevação de impostos, — os impostos sempre se elevam — ,
um artigo de fundo, o gesto de um general, a mudança de um
ministério, um éxito no teatro, um prêmio, um a execução, um
discurso parlamentar, um auto de fé. A vida regula espontá­
neamente suas reações às coisas e as condutas se tom am , pelo
menos em principio, claras. Mas em certos momentos tudo isto
desaparece: diante de um a coisa, acontecimento ou pessoa,
não se sabe o que “representam”, e portanto, o que “significam”,
ou melhor, visto que se trata de realidades humanas, o que
“são” . Não se sabe como tom ar cada componente da vida
comum, porque não se tem uma idéia clara daquilo que existe
atrás, do que se expressa nessa aparência e de como se conca-
tenam umas coisas com outras, uns substratos com outros. Se­
gue-se daí a desorientação, a perplexidade, o enorme coeficiente
de desacerto que ameaça tôdas as condutas individuais. Quando
se alteram os esquemas das represntações, quase todos erram.
Paira a impressão de que a torpeza alcança e domina a socie­
dade inteira. Em uma palavra, a coletividade se desajusta;
somente muito poucos têm a serenidade e a perspicácia para
saber — entenda-se, não para já saber e sim para averiguar —
o que representa cada coisa; porém como os outros não o
sabem, o indivíduo, isoladamente, não pode orientar sua con­
duta contando com a dos demais e por isso os melhores são
como que tolhidos por um a “paralisia” aparente. Compare-
se a situação com a orientação de vários carros, pedestres ou
veículos por uma rua ou por uma estrada: não é suficiente que
eu veja e me oriente bem; a decisão de meus movimentos
depende do fato de que os outros me vejam e por mim regulem
os seus: diante do homem que caminha distraído, lendo ou de
costas, não basta que eu o veja; devo parar e me esquivar de
sua trajetória cega, se quero evitar a colisão. Esta imagem
esclarece o que acontece na vida social quando não se conhece
o esquema das representações.

15. O problema dos pressupostos


Tudo isto nos leva a um a conclusão metódica: a necessi­
dade de retroceder de cada realidade social a seus pressupostos.
A ESTRUTURA SOCIAL 77

Nada se esgota quando tomado isoladamente; cada ingrediente


da vida humana — neste caso da vida coletiva — se nutre, mais
ainda, é constituido pelo sistema de suas referências aos demais
e, sobretudo, à estrutura social. É necessário, pois, ultrapassar,
os limites de todo elemento concreto para chegar a suas vin-
culações reais. Em outros têrmos, cada um déles está susten­
tado por outras realidades, em princípio não aparentes, e que
lhes dão sua significação efetiva.
Isto afeta principalmente às expressões que mais fácil­
mente permitem conhecer uma realidade social: o que se diz.
Dizer é sempre “querer dizer” ; nunca podemos, pois, ficar sim­
plesmente no que alguém diz, sem já o saber ou então pro­
curar saber o que pretende dizer, dentro de que contexto suas
palavras funcionam, que propósito querem alcançar, a quem
são destinadas; que repercussões se lhes pode prever, em que
medida deixam transparecer sua intimidade, que grau de vera­
cidade possuem e pretendem ter, isto é, como pretendem “ser
tomadas” . Isto condiciona a significação de qualquer dizer hu­
mano, falado ou escrito, e ao mesmo tempo o configura, o faz
ser como de fato é (4).
Um exemplo esclarecerá isto. Pense-se na maneira habi­
tual em que a história é feita e nas exigências que uma verda­
deira explicação dos fenômenos literários impõe. Naturalmen­
te não é possível se restringir a um catálogo ou repertório de
autores e obras, e nesse ponto hoje todo o mundo está de
acôrdo; tão pouco não é suficiente a investigação das origens,
fontes, antecedentes e influências. Mais ainda, nem sequer
basta a análise tem ática e estilística das obras literárias. Evi­
dentemente tudo isso é necessário, porém não se terá chegado
todavia ao mais im portante e, o que é grave, àquilo que jus­
tifica tudo o mais.
A compreensão e utilização de um texto literário, especial­
mente se se o quer fazer funcionar historicamente — seja para
fazer “história da literatura” ou história geral em qualquer
forma — , requer a elucidação do que é “literatura” em cada
época. É preciso determinar, em cada etapa concreta, quem faz

(4) Veja-se meu estudo “Los géneros literarios en filosofía” (em


Ensayos de teoría, (Obras, IV ).
78 JULIAN MARÍAS

literatura, que pessoas ou que grupos de pessoas, e para quem.


Necessita-se, pois, precisar a personalidade social do escritor,
o conjunto de determinações — nada casuais, tão pouco cons­
tantes — que lhe conferem tal condição, e, não menos do que
isso, a área de seus leitores, tanto qualitativa quanto quantita­
tivamente. Não é indiferente — entenda-se bem, para a reali­
dade estrita da obra literária — quem escreve, se é um frade ou
um secular, um nobre ou um burguês, um homem que vive de
sua pena ou não — ou se esta o ajuda a viver — . Tão pouco
se pode passar por alto se se escreve para dezenas de cortesões
ou para as massas — e que massas — ; urge precisar quantos
— aproximadamente — são os leitores possíveis em cada
momento, e calcular quantos dêles lêm cada gênero literário
ou certas obras representativas. O número dos que sabem ler,
o dos que poderiam ler por ter capacidade de adquirir livros
ou ter acesso a êles; o número dos que por condição social
são leitores; a presença m aior ou menor de mulheres entre
êles, etc. O número e tiragem das edições de certas obras, a
freqüência de reimpressões, o incremento do ritmo de leitura
— ou sua diminuição — num período determinado, o prazo
de vigência de cada obra como leitura, antes de passar a ser
tema de estudo — funções totalmente díspares — , são ques­
tões de cujo esclarecimento depende o fato literário. E como,
salvo pouquíssimas exceções, não estão esclarecidas, pode-se
dizer que a maioria dos fatos literários não são entendidos e
nem é pouco o que falta para isso.
P or outro lado, é preciso ver com rigor o que a obra
literária, em cada caso, se propõe: ensinar, divertir, doutrinar,
iniciar em um mistério, tom ar “culto” , comover, provocar es­
tranheza, abêtir; e, em cada caso, como; e com que outras
atividades compartilha sua função respectiva. Por exemplo, com
a narração oral, com o culto religioso, com os espetáculos,
com a ciência, com a política, com a tertúlia; e concretamente
em que proporção se rivalizam ou se aliam. É urgente medir
com precisão a distância da literatura em relação à vida, os
graus de autenticidade, espontaneidade, originalidade — coisas
bem diversas — que em cada tempo e em cada gênero lite­
rário transparecem. Relativamente a êstes, se faz mister dar a
razão dos mesmos e explicar com rigor seu cultivo ou seu
abandono, sua fôrça em cada momento, a proporção em que
A ESTRUTURA SOCIAL 79

predeterminam o conteúdo da obra literária, seu coeficiente de


imprecisão, margem e folga. Deve-se averiguar também o pêso
e a influência da literatura na vida, a estratificação dos gêneros
literários — e dos autores — na sociedade, desde as obras desti­
nadas a minorias extremas até a literatura de quiosque, cujos ca­
racterísticos e recursos em cada época deveriam ser objeto de
investigação.
Por último, uma vez chegados à própria obra literária —
c há um longo caminho até ela — , é o momento de se perguntar
perentoriamente em que consiste, como alcança seus propósitos,
quais são suas possibilidades e recursos, como se serve da língua
e das formas literárias prévias para conseguir sua finalidade. A
análise da obra literária — estilística, é claro, mas não somente
isso — tem que responder a estas perguntas. Não basta, por
exemplo, estudar o ritm o da versificação, a estrutura das estro­
fes, a origem das metáforas empregadas pelo poeta. É preciso
saber de onde êle parte, de que linguagem já encontrada, de
que convenções vigentes, de que “regras do jôgo”, de que reper­
tório de formas literárias elementares que, em cada época, per­
tencem ao domínio público, bens comunais da literatura, cujo
inventário é indispensável fazer: provérbios, ou “tópicos” —
como na literatura renascentista — , ou “mitologias”, ou um
tom em falsete — 1790 — , etc. E isto, relativamente simples
cm poesia, deve-se estender também aos demais gêneros, em
formas mais complicadas. Em relação ao teatro, é presiso deter­
minar a parte que representa dentro déle a “literatura”, junto
a outros elementos. E em se tratando de nossa época, surgem
as questões concernentes ao rádio, à televisão e ao cinema, não
sòmente no sentido da adaptação das obras literárias a êstes
meios e dos problemas que isto suscita, como também quanto
aos característicos destas obras no mundo em que os autores e
os possíveis leitores freqüentam o cinema, ouvem o rádio e
assistem a televisão.
Do mesmo modo, a literatura só se tom a inteligível quando
se está bem esclarecido acêrca de sua importância: a que tem
a literatura — e o escritor — em certa época e a que tem cada
autor ou cada obra determinados. A vontade efetiva de com­
preender obriga, pois, a apelar dos fenômenos aparentes a seus
pressupostos latentes; dentro de uma época concreta, antes de
chegar àquilo que hoje se costuma fazer — exame de autores e
80 JULIAN MARÍAS

obras existentes — , dever-se-ia formular as questões prévias


antes enumeradas e outras mais: por exemplo, o que pode o
escritor fazer em cada caso, o que pretende conseguir — único
modo de saber o que quer dizer, concretamente, êxito ou fra­
casso — , quais são os gêneros vigentes e em que fase de vigência
se encontram, qual é a função real de cada um déles, que com­
ponente de inovação a produção literária possui — e em que
medida, por razões sociais, se sublinha e mesmo se simula a
inovação ou então se dissimula e se oculta — , em que medida
há um estilo dominante ou não, quais são as relações efetivas —
em autores e leitores — com literaturas antigas ou modernas
estrangeiras, e que papel desempenham (função uterina, imita­
ção, rivalidade, estímulo, etc.); quanto do passado literário
nacional sobrevive e em que grau de vitalidade; como é sentido:
como um lastro, um motivo de orgulho, um capital que garante
uma renda, um grilhão ou um vexame; a que ponto pode a lite­
ratura ser — ou deve ser — desagradável ou aborrecida, ou se
isto não é lícito. E outras inúmeras coisas que se poderia enu­
m erar e ordenar com igual precisão.
Todo dizer, portanto, — insisti no literário porque êste se
conserva e pode ser tratado de um modo geral — remete a tôda
uma série de pressupostos que o tornam possível, inteligível e
significativo. E êstes fundamentos o são por estarem em relações
mútuas de fundamentação, isto é, porque compõem uma estru­
tura, que por sua vez é um a parte ou esquema parcial da
estrutura social de cuja investigação se trata. Mais um a vez, o
círculo; porém, como já o mostrei em outra ocasião, não vicioso,
e sim um círculo de virtudes que se chama sistema.
E é preciso acrescentar que o dizer é, por si mesmo, apenas
um exemplo, embora de dimensões gigantescas. P ara exprimir
as coisas em sua generalidade, as poderíamos formular como
segue: a investigação encontra e m aneja diversos dados; porém
os dados são “dados” : por alguém, é claro, e a alguém, dentro
de uma situação; êstes ingredientes constituem a realidade do
dado enquanto tal, isto é, enquanto dado. Os dados requerem,
portanto, inexcusàvelmente, um a interpretação ou hermeneútica
e esta deve começar por determinar o âmbito em que êsses dados
A ESTRUTURA SOCIAL 81

funcionam. Ora, vimos que as gerações são, ao mesmo tempo,


os “quem” e os “passos” da historia, os personagens e os atos
do dram a em que consiste. Tôda hermeneútica, condição da
inteligibilidade dos dados, requer um a determinação da dinâmica
das gerações.
III

AS VIGENCIAS SOCIAIS

16. A idéia de vigencia

A palavra “vigencia” é um térmo técnico da sociologia de


Ortega, que me parece dificilmente substituível. Sua origem
etimológica é clara: vigência, em linguagem usual, é o estado ou
condição do vigente; o vigente “tem vigência” ou “está em
vigência”; e o vigente, vigens, é quod viget, o que está foem vivo,
o que tem vigor portanto, e num sentido secundário o que está
desperto, em estado de vigília ou vigilância. A palavra vigência
é usada sobretudo em linguagem jurídica: uma lei vigente é
uma lei que está em vigor, que tem “fôrça de lei”, que atual­
mente se impõe; essa mesma lei perde sua vigência quando já
não tem essa fôrça ou vigor; um a lei das Partidas é um a lei e
continua o sendo, mas não possui vigência, é inválida ou morta.
Ortega introduziu no uso do têrmo duas inovações: a primeira
é uma extensão do mesmo; em lugar de o restringir à esfera
jurídica, o emprega em todo o seu alcance; em segundo lugar,
designa com o substantivo “vigência” qualquer realidade vigente,
enquanto é vigente; refere-se assim às vigências de um a época,
às várias classes de vigências, isto é, aos conteúdos vigentes,
atentando à sua condição de tais, e portanto à sua função na
vida coletiva.
Vigência é, pois, o que está em vigor, o que tem vivacidade,
vigor ou fôrça; tudo o que encontro em meu contôm o social
e com o que tenho que contar. Nesse caráter se estriba o vigor
das vigências. Se em meu mundo social existe uma realidade em
relação à qual os indivíduos não necessitam tom ar um a posição,
à qual podem desatender, com a qual, em suma, não têm que
contar, não é uma vigência. Na sociedade, por exemplo, existem
84 JULIAN MARIAS

indivíduos e grupos de individuos que são vegetarianos; mas


não estou obrigado a me ocupar déles e de seu vegetarianismo,
não sou forçado a aderir ou discrepar, posso perfeitamente não
pensar nisso e não ter como problema a alternativa da conve­
niência ou inconveniência do vegetarianismo; isto significa que
não se trata de um a vigência. Inversamente, tenho que contar
com o fato de que outros indivíduos e outros grupos se entu­
siasmem pelo futebol: quando vou tom ar um ônibus em dia de
jogo percebo que não consigo, porque já está ocupado por
aquêles que o querem assistir; quando abro um jornal encontro
inúmeras páginas dedicadas a êsse espetáculo, o funcionário não
me atende porque está ocupado em predizer os resultados dos
jogos do domingo, se sou empresário de teatro constato que meu
público diminui pela paixão do futebol, etc.; isto significa que
é esta uma vigência diante d a qual devo tom ar posição, com a
qual tenho que me haver de um ou outro modo.
De um ou outro modo, porque o fato de algo ser vigente
não me obriga a aderir a êle; posso muito bem discrepar; mas
aí está o importante: tenho que discrepar. Se não sou vegeta­
riano, não discordo necessàriamente do vegetarianismo; simples­
mente não sou vegetariano, e aqui term ina a história, a rigor
sem ter começado. Quanto ao futebol, pelo contrário, não tenho
outro remédio a não ser ocupar-me com êle porque, em si mesmo
ou em suas conseqüências, vem a mim e tenho que fazer algo
que se relaciona com êle: convites para assistir o jôgo, apêrtos
nos veículos públicos, ausência de taxis quando déles preciso,
distração do empregado, conversa sôbre o tema no barbeiro,
imagens de futibolistas nas páginas do jornal que folheio e que
me interessam ou me aborrecem se, por exemplo, prefiro encon­
trar as de uma atriz de cinema ou de um prêmio Nobel; páginas
de notícias que tenho que ler ou saltar; têrmos futebolísticos que
irrompem na linguagem. É discordando que posso compreender
melhor a realidade da vigência, sua resistência, sua coação, à
qual me submeto ou tenho que repelir mediante um esforço.
Isto significa que o modo autêntico de realidade do social
não é o simples “estar aí” mas sim a pressão, a coação, o con­
vite, a sedução; o característico do social não é o “estar” e sim
o estar atuando. Por isso não há outra expressão melhor que a
de “vigência” : a vivacidade e o vigor são especialmente o que
os ingredientes que compõem a vida coletiva possuem de próprio;
A ESTRUTURA SOCIAL 85

porém é precso acentuar que não se trata de ações: seu vigor


se exerce com sua presença, por vêzes com sua simples resis­
tência inerte, como a do muro que me impede a passagem.
Convém prevenir um equívoco. Se afirmo que tenho que
contar com as vigências, poder-se-ia entender que ésse contar é
forçosamente ativo, que é um expresso atender a elas com clara
consciência. Mas não se dá tal coisa. Essa minha atitude só
se realiza em dois casos: quando a vigência não é plena ou
quando eu, pessoalmente, estou em desacordo com ela. Em
outros casos, conto com ela em forma passiva, sendo infor­
mado e conformado por ela, comportando-me de acórdo com
ela, submetido a sua influência tão imperiosa quanto automática.
Assim como estou sujeito à lei da gravidade ou à pressão atmos­
férica, estou submetido às vigências. Habitualmente não penso
n;i gravidade ou n a pressão do ar, mas no entanto me comporto
contando com ela: não deixo o livro no ar para que não caia;
não ponho sôbre meu pé um pêso muito grande para que não o
amasse; não me atrevo a transportar um piano, porque pesa
demasiado, vôo num avião contando com a resistência do ar.
Normalmente ando pela rua seguindo pela calçada, sem pensar
nisso, orientado em minha marcha pela sua estrutura prévia.
Quando vou beber água conto com que ela esteja fria, sem ter
pensado nisso nem um instante, e só noto sua tem peratura se
por acaso ela estiver quente; do mesmo modo, quando na rua
falo a um transeunte, tenho por certo que entenderá a língua
do país, e isso só se torna problemático se por acaso êle não
estiver submetido à vigência geral lingüística, o que acontece
expressamente no momento em que esta não fôr cumprida.
Isto significa que estamos inclusos num mundo social que
não se compõe de coisas e sim de certas realidades atuantes e,
como em seguida veremos, mais misteriosas e mais estranhas do
que parecem, que sôbre nós exercem pressão ativa ou passiva,
positiva ou negativa, e com as quais temos que contar, queira­
mos ou não, saibamos ou não. Esta atuação das vigências se
exerce segundo certas linhas estruturais e não de um modo uni­
forme; porém, vistas as coisas por outro lado, o que chamamos
estrutura consiste principalmente na disposição, conteúdo, inten­
sidade e dinamismo das vigências. Como sempre, encontramos
a impossibilidade de explicar os ingredientes fora de sua estru­
tura, e a estrutura sem nela incluir os ingredientes. Isto revela
86 JULIÁN MARÍAS

que as noções costumeiras — m atéria e forma, indivíduo e espé­


cie, elementos e movimentos, etc. — derivadas do pensamento
acêrca de coisas são dificilmente aplicáveis às realidades hum a­
nas, e no máximo podem “ser traduzidas” analógicamente e com
restrições. Se entendermos os indivíduos como “coisas” que
estão num “espaço”, ou então a sociedade como uma grande
coisa “composta” de elementos, jamais entenderemos o que é
vida coletiva, e portanto será inútil tentar penetrar no sentido de
uma estrutura social. Necessitamos pôr em jôgo todo o adqui­
rido até agora para esclarecer em que consistem as vigências e,
portanto, de que está feito nosso contôm o social.

17. Limites das vigências.

As vigências se exercem sôbre os indivíduos, são êstes que


devem contar com elas, mas estas nunca são de caráter indi­
vidual. A pressão não é o resultado direto de uma ação indivi­
dual mas se exerce a partir da sociedade e sempre através dela.
Quero dizer com isto que uma imposição de caráter estritamente
individual nunca é vigente, por exemplo, a decisão arbitrária de
um déspota; a menos que tenha vigência social a crença de que
os caprichos do déspota têm fôrça de lei, isto é, que através da
sociedade se lhe acrescente à simples fôrça uma “sanção”
peculiar que a converta em efetiva vigência. Isto é sumamente
importante para entender as estruturas do poder e do mando.
As vigências se produzem, pois, dentro de uma área deter­
minada e supõem um âmbito social dentro do qual são vigentes.
O “dentro” é uma dimensão essencial de tôda vigência. E corre­
lativamente o “fora”, isto é, a zona em que já não é vigente.
A vigência possui, portanto, certos limites que, por sua vez,
contam consideràvelmente na constituição da própria vigência.
Quando Pascal escrevia Vérité en deça des Pyrénées, erreur
au-delà, formulava precisamente um a condição das vigências. E
outro tanto poder-se-ia dizer do tempo. No sentido jurídico,
onde se emprega normalmente o têrmo, uma lei é vigente em
certo território e a partir de um certo momento até outro em
que é abolida, derrogada ou cai em desuso.
A diferença essencial, não obstante, está no fato de que as
vigências sociais não são promulgadas nem derrogadas; seria
por isto um êrro inferir da condição limitada das vigências um
A ESTRUTURA SOCIAL 87

caráter “convencional”. As vigências não são convenção, porque


não são convindas, não emergem de uma decisão de indivíduos;
acabamos de ver que mesmo no caso de que o conteúdo de uma
vigência proceda de uma vontade individual, para que alcance
caráter de vigência é necessário se interpor outra instância,
rigorosamente coletiva e impessoal, da qual se beneficia a von­
tade em questão. Quando o homem antigo se deu conta da limi­
tação de muitas coisas, sua restrição a certos tempos ou lugares,
as interpretou como convenções — esta é a história do cinismo
e, em bôa parte, de todo o pensamento helenístico — ; isto se
deveu, no entanto, à quase completa cegueira dos antigos para
o social; sua interpretação da sociedade como pólis, como
comunidade política, os fêz entender como nómos, convenção
ou lei, tudo o que não é natural, projetando assim sôbre as rea­
lidades sociais os característicos privativos das realidades políti­
cas. Aristóteles, com uma perspicácia que não se costuma se lhe
reconhecer, percebeu tão de perto o caráter do social que pouco
lhe faltou para fazer uma autêntica sociologia; porém, justa­
mente as vigências dominantes lhe impediram tirar todo o par­
tido de sua intuição e terminou por formular o problema em
lérmos de uma Política, deixando a meio de caminho suas idéias
mais penetrantes e profundas (1>.
As vigências não são convindas, não emanam da vida indi­
vidual enquanto tal; porém, tão pouco são naturais: são espe­
cificamente sociais e isto significa que são históricas. Mas o
mais importante está no fato de que a limitação das vigências
possui não só caráter negativo, no sentido de que “além” de
seus limites já não são vigentes, como também a vigência
enquanto tal está constituida por essa limitação positivamente
tomada. As vigências “vigem” em um âmbito, são pressões
exercidas dentro de um meio fechado, e estas pressões se exer­
cem a partir dos limites e por uma massa social determinada por
ôles. Os limites estão, pois, atuando sôbre o indivíduo subme­
tido a uma vigência, e na medida em que o homem a conhece,
ôsses limites lhe são obscuramente presentes. Se se pergunta
quem exerce as pressões sociais, quem dá vigor às vigências,

(1) Veja-se minha Biografía de la Filosofia (Obras, II), cap. II e


III, “El sentido de la filosofia da Aristóteles” e “Introducción a la filo­
sofía estoica”; veja-se também “Marco Aurelio o la exageración”, em
San Anselmo y el insensato, (Obras, IV).
JULIÁN MARÍAS

pode-se entender de duas maneiras: se se pretende aludir a


alguém individual, não tem sentido algum a pergunta e se deve
responder pela negativa ninguém — isto é, ninguém concreto
e pessoal — o faz; se se interroga pelo sujeito das vigências,
então é perfeitamente legítima e exige um a resposta precisa. O
homem não sente igualmente a pressão que lhe vem de sua
família — “nesta casa não se bebe álcool” — e a que procede
de um círculo amplíssimo — tal insulto é intolerável — ; uma
mulher não se sente submetida da mesma m aneira à moda que
começou a ser vigente no outono e à milenária obrigação social
de esperar a iniciativa amorosa do varão: se encurta intempes­
tivamente sua saia ou conserva o coque recém cortado em seu
meio social, terá que enfrentar as represálias de uma "sociedade”
de espessura tem poral mínima; se resolve declar-se ao homem
de quem está enamorada, terá que vencer a pressão de centenas
de gerações superpostas.
Não se trata apenas de mais ou menos. O como de pressão,
isto é, a qualidade da vigência, depende em grande parte de
seus limites. Talvez a pressão da vigência inveterada seja
“lenta”, e a represália à sua violação se execute tardiamente,
enquanto que a réplica à infração de uma vigência recém cons­
tituída é fulminante — por exemplo, ao uso de uma saudação
política, ao emprêgo de certa peculiaridade lingüística caída em
desprestígio, por parecer grosseira ou “cursi” (*); e no entanto,
é muito provável que com o tempo não seja possível faltar à
velha e tardia vigência, enquanto que a que se refere à saudação
ou ao modo de falar inverter-se-á dentro de poucos anos e será
substituída por sua contrária: o que antes era obrigatório será
pouco depois proibido e vice-versa.
D a mesma maneira, os limites atuam sôbre o que podería­
mos chamar o “ponto de aplicação” d a vigência (quando se
trata de fôrças e pressões, as imagens mecânicas são insubsti­
tuíveis, embora, é claro, devam ser tomadas apenas como
imagens). Dependendo de onde procedem, as vigências afetam
a um a ou outra dimensão da vida individual, a uns ou outros

(*) “Cursi” — adjetivo que se começou a usar na Espanha, em


meados do século XIX, para designar a imitação das formas superiores
e refinadas, com poucos recursos e falta de gôsto. (Nota do autor para
a tradução brasileira).
A ESTRUTURA SOCIAL 89

grupos sociais, talvez a todos. Isto significa que só poderemos


entender o fenômeo da vigência se percebermos quais são suas
diferentes espécies e as conexões que as ligam entre si e à estru­
tura social. Em outros têrmos, trata-se de averiguar se as vigên­
cias constituem um simples conjunto, soma ou repertório, ou
se se pode falar com rigor de um sistema de vigências como
componente de uma sociedade determinada e, portanto, como
condição de um a estrutura social.

18. A vigência geral e as fronteiras de uma sociedade.

Entendo por vigência geral aquela que se estende por tôda


uma sociedade, portanto com a qual têm que contar todos os
indivíduos que a compõem. Porém, como vimos antes, um a
sociedade não é primàriamente um conjunto de homens ou um.
território determinado mas está definida por certas vigências
comuns; parece, pois, que nos movemos num círculo: defini­
mos a generalidade da vigência pela sociedade e a unidade social
pelo império da vigência. Será fácil escapar a esta dificuldade?
Por outro lado, se escolhemos um a vigência, deve-se considerar
como um a única sociedade tôda a área dentro da qual ela do­
mina? Por exemplo, form ará um a sociedade a parte da humani­
dade onde é vigente que cabe ao homem declarar seu amor ou
onde se usa o matrimônio monogâmico?
É suficiente esta consideração para se ver que uma vigência
não pode definir um a sociedade; se é geral, terá que se estender
integralmente a um a sociedade, porém não está excluido que
seu domínio alcance diferentes sociedades. São necessárias, pois,
várias vigências comuns para que a área de um a unidade social
possa ser demarcada. Quantas? Esta pergunta, naturalmente,
não tem resposta; não é o número o que mais im porta ■ —
inclusive isolar numéricamente as vigências é uma operação que
pode ser metodicamente necessária, mas que envolve um coefi­
ciente considerável de abstração e esquematização da realidade
— , e sim a função e o valor das vigências. Uma sociedade está
definida pela comunidade de certas vigências básicas, isto é, que
determinam a conduta em seus traços gerais. Porém o têrmo
“conduta” é por sua vez muito vago: conduta é possuir uma
família monogâmica ou várias amantes, ganhar dinheiro mediante
um trabalho remunerado ou roubar, vestir-se de certo modo ou
90 JULIÁN MARÍAS

andar nu, fazer ciência ou metafísica, escrever poemas, ter


amigos, conspirar. . . A conduta que importa aqui é algo muito
preciso: os traços de conduta que interessam são aquêles que
afetam a convivencia e, relativamente a êles, as vigências têm
que ser comuns dentro de uma sociedade; caso contrário, não há
sociedade, porque a convivência é difícil ou impossível.
Mas é preciso notar mais duas coisas. Uma delas, a mais
simples, é que não im porta que as vigências sejam violadas -—
desde que a violação não seja demasiado freqüente — com a
condição, no entanto, de continuarem vigentes: o ladrão que
infringe a vigência de que se deve respeitar a propriedade, com
seu próprio ato — isto é, com o tipo de conduta (ilegal, furtiva,
excepcional, etc.) ao qual o ajusta — está afirmando a vigência;
o homem ou a mulher que são infiéis a seu cônjuge, precisa*-
mente na medida em que são infiéis, em que se comportam como
tais, implicitamente “colocam” a vigência da fidelidade, con­
dição sine qua non para que a infidelidade como tal seja pos­
sível. P or outro lado, as determinações que afetam a convi­
vência e em relação às quais se requer comunidade de vigências
não são as mesmas em tôdas as sociedades: por exemplo, na
Espanha dos Austrias era vigente a obrigatoriedade da religião
católica, porque não se podia conviver com o hereje; nos Estados
Unidos de hoje, pelo contrário, a diversidade religiosa não inter­
fere na convivência, e o vigente é justamente que se possa ter
uma ou outra religião; o intransigente, o que pretendesse impor
um a única religião, faltaria a uma vigência básica e acarretaria
precisamente um a crise à convivência normal. Isso que cha­
mamos convivência tem sempre um a figura determinada;
quando se convive, o “con” afeta umas ou outras das dimensões
do viver. Não se pode, portanto, tom ar a vigência como algo
inerte visto que — como todo o humano — depende de um
projeto ou pretensão, de um a figura de vida que se aspira rea­
lizar. Lembre-se que estar vigente significa estar vivo, - mais
ainda, “bem vivo”, cheio de vigor; encontro — à primeira vista
passivamente —- as vigências de meu contômo, tropeço com
elas como com uma cordilheira, mas se me pergunto por que são
vigentes, só poderei encontrar a explicação em sua gênese dentro
de certa pretensão ou projeto de vida coletiva; e não apenas
isto, mas também que sua vigência atual, isto é, o fato de que
ainda estejam vigentes, se funda na perduração dêsse projeto
A ESTRUTURA SOCIAL 91

ou na existência de outro que é coincidente com êle nessa


dimensão.
A primeira tentativa de precisar o que significa a expres­
são “vigência geral” descarta, portanto, a hipótese de que as
vigências ocorram como um simples repertorio ou conjunto; seu
caráter reclama uma série de relações de vmficação — a forma
mais profunda e rigorosa de “fundamentação”, pois é a funda­
mentação não simplesmente lógica e sim real — que emanam
da estrutura concreta da vida humana; e como esta é sistemá­
tica (2), as vigências existem de fato na forma de um sistema
coerente, entenda-se, vitalmente coerente, o que muitas vêzes
implica a incoerência lógica, por exemplo do ponto de vista
da “irracionalidade” dos usos.
Portanto, uma tram a de vigências básicas coincidentes cons­
titui uma sociedade; a área determinada por essa coincidência
marca sua extensão; as fronteiras de uma sociedade são traça­
das pelo dominio de um sistema de vigências comuns; a zona
de validez de algumas destas se estende além das ditas frontei­
ras; por vêzes não apenas uma e sim várias — mas não em
número suficiente para determinar um a unidade de convivência
real — se extravazam da sociedade efetiva e imperam fora de
seus limites; e isto significa que as fronteiras não são rígidas e
estritamente lineares mas que há certa labilidade e que, sobre­
tudo, se superpõem à sociedade sensu stricto outras que consti­
tuem unidades abstratas e mais tênues.
Se tomarmos uma sociedade inequívoca — por exemplo,
uma nação européia — , veremos que há dentro dela uma comu­
nidade de vigências básicas, mas, por outro lado, perceberemos
que muitas delas não são privativas da Espanha, França ou Ale­
manha, e sim comuns a várias ou a tôdas as nações da Europa,
talvez também a vários ou a todos os paíes americanos, provà-
velmente umas a tais grupos e outras a grupos diferentes, em
diversas configurações. Isto prova que existem, além das socie­
dades nacionais, outras mais amplas e menos compactas, cujas
fronteiras se pode reconhecer e delimitar estudando a área de
vigor das vigências. Se imaginarmos um mapa e nele simboli-

(2) Tema central da metafísica de Ortega: Cf. História como


sistema. Veja-se também minha Introdução à Filosofia, sobretudo o ca­
pítulo VI, “A estrutura da vida humana”.
92 JULIÁN MARÍAS

zarmos cada vigência mediante traços diferentes, a superposição


daquelas irá tom ando mais ou menos “espêsso” o traço de
cada parte do território. Obteríamos assim um a imagem plás­
tica e intuitiva do que poderíamos chamar a “densidade” ou
“consistência” das diversas sociedades. Um a cartografia social
— sit venia verbo — é perfeitamente possível, apesar das
dificuldades sôbre as quais me parece desnecessário insistir e
que se nunca consistiram um a objeção para a ciência, não se vê
porque o hão de ser para as ciências do humano; no entanto,
para estas, alguns parecem exigir a “facilidade” .
Só se poderá decidir, pois, se certos grupos humanos per­
tencem ou não à mesma sociedade, com a aplicação a fundo da
idéia de vigência e com uma determinação rigorosa do estado
delas em cada caso concreto. (Imagine-se, diga-se de passagem,
como as relações internacionais e as disciplinas teóricas que
tentam facilitá-las, se poderiam beneficiar dêste ponto de vista;
e quão longe estão hoje de encarar os problemas dessa maneira.)
Surge porém um a questão de sinal diverso: ao lado das vigên­
cias que se extravazam de um a sociedade efetiva e se estendem
por outras mais “tênues”, há outras que não são vigentes na
sociedade tôda mas apenas em um a parte dela. São ou não
vigências? Se o são, quais os seus característicos? E, em ter­
ceiro lugar, como se articulam entre si e com as mencionadas
vigências gerais?

19. O conceito de vigência parcial.

O caso mais simples é o das sociedades que denominei


“insertivas”, por exemplo as regionais. Indubitàvelmente há
vigências particulares andaluzes, catalãs ou navarras, que não
se estendem à totalidade da sociedade nacional. Poder-se-ia
pensar que com elas ocorre o mesmo que com as vigências espa­
nholas, alemãs ou italianas, frente às européias; no entanto, não
é exatamente isso por duas razões: as sociedades regionais sã o ’
sentidas como “insuficientes” ; além disso são como que
“abertas”. Com estas duas expressões quero significar: que o
homem de um a região qualquer sabe de princípio que a maior
parte das vigências que exercem pressão sôbre êle não são priva­
tivas de sua região e que não partem dela —- diferentemente do
membro de uma nação, que tom a tôdas as suas vigências como
A ESTRUTURA SOCIAL 93

nacionais e logo descobre (quase sempre com surpresa, se é que


as descobre) que “suas” vigências são vigentes além da linha
fronteiriça — ; e em segundo lugar, que sua região acolhe de
modo normal e não excepcional homens que procedem de
outras e que, portanto, não estão sujeitos às mesmas vigências,
e êle próprio tem que entrar em contacto freqüente com outras
regiões. Nossa língua distingue sutilmente entre “estrangeiro”
— que não pertence à mesma sociedade total — e “forasteiro”
— alheio à sociedade restrita e parcial — .
H á um fenômeno inequívoco que nos permite descobrir a
pertinência de um homem à nossa própria sociedade: a irrita­
ção ou a indignação que provoca a infração por sua parte dos
usos vigentes em nossa unidade social. Se nosso vizinho aparece
com brincos nas orelhas, suscita uma indignação vivíssima e
represálias sociais imediatas, porém contemplamos com absoluta
tranqüilidade os mesmos aros nas orelhas de um papua. Mais
ainda, se nos dizem que êsse papua come carne hum ana —
coisa mais grave, certamente, que o inofensivo uso de umas
argolas — , isto nos poderá parecer atroz, mas não nos “irrita”,
não nos deixa “indignados”; talvez nos repugne ou nos horro­
rize, o que é muito diferente. H á poucos anos, na Espanha,
m uita gente se irritava por ver uma mulher fum ar — o fenômeno
ainda persiste em certos meios, e sôbre isso tom arei a falar mais
adiante — ; ora, essa irritação se aplacava automáticamente se
se percebesse que se tratava de um a estrangeira. Então ficava
excluída a vigência proibitiva e, portanto, sua conduta era tida
como aceitável. A irritação crescente que os usos dos estran­
geiros provocam em muitos países, justamente num a época em
que se tom aram muito mais familiares, pela presença constante
em tôdas as partes do mundo, de pessoas de nacionalidades as
mais diversas, prova que são as mesmas tidas como muito
menos “estrangeiras” , como pertencentes a um a sociedade
comum, e portanto submetidas a um sistema de vigências coin­
cidentes. Isto ocorria entre europeus já h á alguns anos; nestes
últimos, esta atitude se estendeu aos americanos: porque foram
“adotados”, e porque aquilo que êles fazem não é mais visto
pelos europeus como “coisas dêles”, aquêles começam a contá-
los como membros da mesma “sociedade” ; nessa irritação — às
vêzes tão irritante — está incluída, entre outras coisas de origens
muito diversas, a afirmação do Ocidente como unidade social.
94 JULIÁN MARÍAS

Mas o caso da parcialidade “territorial” de urna vigencia é,


como antes dizia, o mais simples déles; as coisas são menos
claras quando se trata de um a vigência que impera num a fração
não geográfica de um a sociedade total. Estas vigências frag­
mentárias ou parciais currespondem às diversas formas de orga­
nização dos ingredientes que compõem uma sociedade, e
condicionam sua estrutura mais sutil, sua concreta articulação.
Neste ponto, entramos em contacto com matizes delicados que
exig m um tratamento meticuloso e portanto distinções inevi­
táveis.
A primeira, aparentemente tênue, é decisiva: há dois modos
de contar com um a vigência; um pleno, que consiste em estar
submetido a ela, e um secundário, mas sumamente importante,
que é conhecê-la, ter notícia da mesma, saber portanto que
outros membros da sociedade têm que a acatar. Um exemplo
poderá esclarecer melhor. As vigências de conteúdo especifi­
camente feminino ou masculino se impõem, é claro, ou só às
mulheres ou só aos homens, e o sexo contrário está respectiva­
mente isento de sua pressão; porém a maior parte dessas vi­
gências restritas são notórias ou públicas, isto é, os homens
sabem que as mulheres estão sujeitas a elas, e portanto a pressão
que exercem sôbre a metade feminina da sociedade conta com
a “fôrça” das duas metades, em bora não do mesmo modo nem
no mesmo grau, como acontece no caso de um a vigência gené­
rica e sem distinção sexual. Consideremos, inversamente, uma
vigência restrita e além disso notória apenas para um dos dois
sexos: sua pressão só “vem” do sexo ao qual ela afeta; sua
esfera de aplicação ou domínio coincide com o “dentro” em
que a sua pressão se origina. Há, por exemplo, certas vigências
que regulamentam a linguagem: temas de que “se pode falar” ,
rodeios, vocabulário, inclusive entonações e gestos expressivos;
fora os usos gerais de um âmbito lingüístico, o modo de falar
das mulheres e dos homens está regulado por usos peculiares: a
mulher pode usar um a quota de diminutivos que não se permi­
tiria ao homem, seu repertório de adjetivos não é exatamente o
mesmo, não se pode servir sempre das mesmas imagens ou
expressões, etc.; mas o problema não term ina aqui, nestas vi­
gências privativas conhecidas de todos e que se referem ao uso
varonil ou feminil da linguagem comum: além disso h á a
conversa “só de homens” ou “só de mulheres”, onde outros usos
A ESTRUTURA SOCIAL 95

bem diferentes imperam, aquêles conhecidos apenas do sexo


interessado; é um caso de uma nitidez especial, precisamente
porque exclui formalmente a intervenção do sexo oposto: os
homens não sabem o que as mulheres falam quando sós, porque
se o homem está presente já não o falam assim; e só se pode
penetrar no âmbito do falar do outro sexo em sua situação de
isolamento, mediante recursos excepcionais: “traição” de um
membro que o revela — indireta e interpretativamente, diga-se
de passagem — , infiltração ou “espionagem”, etc. E isto, que
em nossas sociedades tem um alcance muito limitado, em outras
foi ou é uma realidade enérgica e de suma importância (3).
As coisas são ainda mais complexas se descermos aos seus
pormenores. Consideremos uma fração social qualquer, uma
classe social — a aristocracia, por exemplo — ou um grupo
profissional — os sacerdotes, os militares, para que sejam bem
definidos — . As vigências particulares e privativas destas
frações são de dois tipos: umas, estritamente internas, são as
que se exercem sôbre cada indivíduo dentro de seu grupo; para
tom ar um exemplo trivial e especialmente claro, a saudação
militar que obriga os membros de certo exército enquanto tais
em relação a outros; porém, como o modo normal de cada
grupo ou fração da sociedade viver com o resto da mesma é a
convivência, a interação com as demais partes que a compõem,
há outro tipo de vigências particulares que não poderíamos, no
entanto, denominar externas ou de relação e que são as que
afetam os membros de um grupo enquanto êste se afirma como
tal entre os demais; por exemplo, os usos que regem o trato
dos sacerdotes com as mulheres, a figura que o militar deve
apresentar aos civis, os modos de comportamento do aristocrata
quando não está no “grão mundo” e sim no mundo, isto é, na
sociedade geral. Poucas coisas têm mais im portância do que
isto. A convivência, o equilíbrio, o funcionamento íntegro de
um país, dependem em grande parte da harm onia destas relações,
isto é, do acêrto e vigor das vigências correspondentes. A
quebra das vigências “internas” de um grupo o desmoraliza ou o
degenera, o faz perder personalidade e, portanto, priva a socie-

(3) Dois exemplos do teatro, recentes e interessantes, são The


Women, de CLARE BOOTH LUCE, e La casa de Bernarda Alba, de
FEDERICO GARCIA LORCA.
'96 JULIÁN MARÍAS

dade de sua função específica desarticulando-a: é, por exemplo,


o fenômeno da demissão das aristocracias. Porém, inversamente,
.a projeção automática sôbre a sociedade total das vigências
“internas”, em lugar de as substituir pelas de relação, rompe a
estrutura da sociedade, faz com que grupos invadam o campo
de outros, imponham a êstes formas e estilos que não lhes
pertencem, ou então se encerrem em si mesmos e se isolem
n a insolidariedade. Quase todos os “ismos” sociais — milita­
rismo, clericalismo, obreirismo, plebeismo, funcionalismo, etc.
— são conseqüências dêste extravazamento das vigências “inter­
nas” até a vida coletiva sensu stricto; e a resposta — os
“anti-ismos” correspondentes — costuma consistir na negação,
não do extravazamento indevido, mas sim das próprias vigências
internas, portanto da legítima peculiaridade do grupo. Exam i­
nadas dêste ponto de vista, as discórdias sociais européias
adquirem um realce especial, sobretudo a partir do século X V III,
no qual se quebra um antiquissimo sistema de vigências que
haviam sido acertadas em muitos séculos de fricção e lutas. A
época que nos interessa por ora, a transição do antigo regime ao
nosso tempo, foi a crise dêsse ajuste e exigiu a invenção de
novas formas e novas relações; e precisamente na Espanha, como
mais adiante veremos minuciosamente, houve uma constante
ruptura de equilíbrio nos dois sentidos, e por conseguinte uma
desarticulação social que ainda hoje é bem visível.
E para terminar, advirta-se que o mais grave está no fato
de que as vigências parciais são não só fragmentárias, privativas
de certas zonas da sociedade, como também incluem — não
forçosamente, mas com freqüência — um caráter polêmico: uns
grupos se afirmam ao lado dos outros, mas ao mesmo tempo
diante de outros; e, o homem individual que pertence a um
déles pode também pertencer a outro diferente — pode acon­
tecer a um aristocrata ser m ilitar ou financista, a um sacerdote
ser intelectual — , formando parte, e radicalmente, da sociedade
total. Como se articulam estas diferentes dimensões da vida
■coletiva?
20. As diversas dimensões da sociedade e
a pugna das vigências.
Numa sociedade de castas teríamos o caso extremo de vi­
gência parcial: cada casta está submetida a certas vigências
A ESTRUTURA SOCIAL 97

não só privativas dela como além disso exclusivas; isto é, que


não só não se impõem às demais como se lhe estão vedadas;
essa conduta determinada à qual cada casta tem que se sujeitar
está proibida às restantes. A vigência possui, pois, duas faces:
é ao mesmo tempo afirmativa e negativa, imperativa e proibi­
tiva; define uma fronteira social, para dentro e para fora.
Quando isto se dá, não há pugna entre as vigências; talvez,
poderá haver entre os grupos, porém cada um dêles com
suas vigências intransferíveis. Até certo ponto, esta situação se
conserva em outros tipos de sociedades, quando a articulação
dos estamentos ou classes é muito pronunciada e cada um dêles
repousa em si próprio: patrícios e plebeus, nobres e vilãos,
talvez ainda “usia” e “majos” (*); em forma diversa, quando
as relações entre homens e mulheres são claras, quando não há
dúvida acêrca das vigências humanas genéricas e as particulares
masculinas ou femininas. Não se pense que esta distinção de
frações sociais implique forçosamente separação; pode se dar
uma convivência muito próxima, porém de maneira que cada
indivíduo permaneça automática e inequivocamente referido a
seu sistema de vigências peculiares.
As coisas se alteram quando a pertinência de cada indivíduo
a várias frações é freqüente ou quando os limites entre elas se
tornam imprecisos. Isto acontece, e não por acaso, mas por
razões intrínsecas, com as classes sociais h á mais ou menos
século e meio, porém a coisa é tão importante que exige um
desenvolvimento à parte. Tomemos alguns exemplos de menor
vulto e que por serem mais simples são mais claros. Conside­
remos três: os militares, os eclesiásticos e as mulheres, e veja­
mos como se pode alterar em relação aos mesmos o esquema
geral das vigências.
Ser militar pode significar uma “condição” ou apenas uma
“profissão”. No primeiro caso, constitui um grupo social defi­
nido, determinado por um sistema de vigências suficientemente
“espêsso” para o delimitar claramente do civil ou do eclusiás-
tico. A pertinência ao grupo m ilitar envolve, pois, quase tôdas

(*) Em castelhano, “usia” é a síncope de Usiría, Vuestra Señoría;


indica portanto um tratamento dado à nobreza. “Majos”, pelo contrário,
se refere a pessoas que, pela maneira de se comportarem e se trajarem,
denotam vulgaridade. (N. do T.).
98 JULIÁN MARÍAS

as dimensões da pessoa, e mesmo as que não entram direta­


mente em jôgo ficam afetadas e matizadas por essa pertinência.
Não se esqueça que, durante séculos, o fato de seguir a carreira
das armas era quase absolutamente predeterminado por uma
situação social — por exemplo, pela nobreza de sangue, algumas
vêzes pela condição de segundo filho, mais tarde e como forma
transitória, um a tradição familiar — e não consistia numa
simples decisão privada do indivíduo. As armas eram, pois,
um mundo parcial e delimitado, constituído de funções muito
claras e com um repertório de direitos e obrigações, de modos
de conduta exigidos e autorizados, de vigências, em suma. Se,
pelo contrário, ser m ilitar é apenas um a “profissão” que qualquer
indivíduo elege — as três palavras são essenciais — , não quali­
fica primàriamente o homem. Êste se define primeiro por tôda
um a série de dimensões: país, sexo, idade, nível social, etc., e
ao lado destas determinações e das vigorosas vigências corres­
pondentes se encontram outras mais tênues que são as profis­
sionais. Um homem é m ilitar como poderia ser engenheiro, pro­
fessor, mecânico, pedreiro, advogado, médico, comerciante.
Nos países anglo-saxões isto acontece e é por êsse motivo que a
profissão militar é abandonada com tanta facilidade, por exem­
plo ao term inar um a guerra, sendo escolhida outra na vida civil
por ser mais interessante, adequada ou remuneradora em tempo
de paz. E o militar estritamente profissional tem consciência
de sua dedicação íntegra e absorvente a um a profissão entre
outras, como o homem de emprêsa, o professor full time ou o
investigador. Neste caso, o fato de ser m ilitar influi minima­
mente no repertório das vigências; estas são genéricas, portanto
civis, e apenas marginalmente deve-se-lhe acrescentar as priva­
tivas de cada profissão, e portanto da militar. As coisas se
complicam quando a situação não cabe em nenhum dos esque­
mas antes descritos. No primeiro caso, o m ilitar faz em prin­
cípio só certas coisas próprias de sua condição e está sujeito a
seu estatuto. No segundo, faz mais ou menos como todo o m un­
do e não apresenta nenhum característico excepcional e à parte.
Pode porém acontecer que, por não possuir um repertório sufi­
ciente de atividades, interêsses e formas de conduta especifica­
mente militares, saia de seu mundo parcial e atue na sociedade
geral; mas não, como no segundo caso, enquanto cidadão, isto
é, enquanto membro dessa sociedade geral, e sim como militar.
A ESTRUTURA SOCIAL 99

fora do corpo armado, poderíamos dizer, mas sem tirar o uni­


forme. Imaginemos que um militar escreva; pode o fazer como
militar, usando temas militares, em função de seus conheci­
mentos ou experiências; ou, em outro caso, abandonando
momentaneamente sua condição militar, se distraia ou descanse
da mesma em um a atividade literária (Ócios de um saldado é
um velho título, não me lembro de que autor); pode acontecer
também que o m ilitar de profissão, ao lado desta tenha outra,
a de escritor, e enquanto a exerce funciona como um escritor
qualquer, submetido às vigências que a própria atividade impõe
bem como as do grêmio literário. Até aqui tudo é claro, mas
não será assim quando o militar pretenda escrever -—- e não
sôbre assuntos militares mas sim científicos, políticos, filosó­
ficos, literários — do seio mesmo de sua milícia, apoiando-se
nela, projetando sôbre sua nova atividade essa condição e as
vigências que lhe são próprias; neste caso se produz um a inter­
ferência entre duas ordens de vigências diversas, e sobrevêm,
no mínimo, uma confusão. Outro tanto poder-se-ia dizer da
vertente política, da conduta na sociedade, etc. N a Espanha
romântica, não se pode entender um a palavra sem se observar
êste tipo de fenômenos, que deverão ser examinados em sua
concretude histórica.
Passando-se às vigências do grupo eclesiástico, as coisas
são ainda mais extremas, o que se poderá perceber com a
simples indicação das diferenças anotadas no caso anterior. O
sacerdócio não pode ser somente uma profissão; é um a condi­
ção inalienável — refiro-me aqui, é evidente, ao sacerdócio
cristão, único que interessa nas sociedades que se trata de es­
tudar — , escolhida, porém, livremente por um indivíduo qual­
quer, isto é, pertencente a qualquer estrato social. (O duplo
fato de que o clero seja recrutado preferentemente de um dêles
em certas épocas, e de que a decisão — pelo menos inicial —
proceda habitualmente da família, dada a extrema juventude,
melhor ainda a meninice, de muitos seminaristas, matiza decisi­
vamente a função sociológica do clero e sua projeção sôbre a
vida coletiva.) Em segundo lugar, do ponto de vista social há
uma distinção essencial entre os religiosos, que em princípio
constituem um grupo à parte, muitas vêzes definido por uma
literal clausura, isto é, um “mundo fechado”, e o clero secular,
isto é, o que está no mundo. Neste caso, que é o que aqui
100 JULIÁN MARIAS

interessa — se o outro grupo fica implicado é justamente na


medida em que se extravaza de sua condição e, portanto, se
assimila a éste — , a peculiaridade da condição eclesiástica não
leva, a não ser excepcionalmente, à constituição de um grupo
eclesiástico, e sim à convivencia diferenciada do sacerdote com
os seculares. Não se constituem, realmente, grupos de pastores
— sua reunião é momentánea e devida a causas excepcionais:
“reunião de rabadães, ovelha m orta”, diz um refrão — , mas
sim cada pastor forma grupo com suas ovelhas, e assume com
elas uma função muito precisa, naturalmente pastoral. Nesta
forma normal de sacerdócio, as vigências “internas” estão essen­
cialmente ligadas às “de relação” , visto que são estas as que
constituem e regulam a função ou ministerio sacerdotal; quero
dizer com isto que a diversidade das vigências não significa luta
entre elas mas, pelo contrário, condiciona e define a convivência
do sacerdote com seus fieis. A dificuldade aparece quando o
sacerdote assume funções de qualquer ordem, anólogas às que
os seculares desempenham — intelectuais, educativas, políticas,
econômicas, artísticas, literárias, de trabalho ou relação social
— , porém não à margem e à parte de sua condição e siirt a
partir dela. Isto se observou, por exemplo, no caso dos prêtres-
ouvriers francêses, só porém por se tratar de um fenômeno insó­
lito; a associação da condição sacerdotal com o exercício de
outros misteres ou ministérios não surpreende porque é habitual,
mas coloca o mesmo problema: a interferência de duas áreas
de vigências diversas. Recorde-se um porm enor sumamente
revelador: a “cotização” intelectual dos eclesiásticos dentro de
um a sociedade e suas dificuldades, a constante oscilação entre
o que poderíamos cham ar — sit venia verbo — o “mercado
livre” ou os mercados particulares. Note-se que êste último tem
sido normal e conta com um a tradição multisecular, ao ponto
de que depois da vida intelectual ter sido “clerical” ou mister
da clerezia, surgem marginalmente as “letras humanas” ou
“humanidades”, mercado particular dos escritores ou pensadores
laicos; quando a secularização da cultura européia fêz com que
esta fôsse em sua m aior parte profana e se regesse por vigências
“civis”, ficou sempre o domínio das “ciências eclesiásticas” como
âmbito autônomo e mercado particular; o grave, o que
suscita um problema de vigências — e portanto de convivência
— é o que poderíamos chamar uma transferência de cotizações:
A ESTRUTURA SOCIAL 101

cm lugar de existir uma geral no mercado aberto, ou então uma


particular no parcial, se obtém um a cotização neste e se transfere
ou se projeta seu resultada sôbre o mercado total da sociedade
inteira. (O fato de que fenómenos análogos se produzam hoje na
vida económica, de onde esta imagem foi tirada, é particular­
mente revelador de um a situação social, da qual o intelectual e
o econômico são apenas aspectos.)
Consideremos, finalmente, o sistema de vigencias que
afetam a porção feminina de um a sociedade. As mulheres estão
submetidas normalmente a três núcleos de vigências: as gerais
ou “hum anas” que imperam nessa sociedade; as “internas” ou
privativas da convivência feminina; as “de relação”, que regu­
lam seu trato com os homens. Em muitas formas sociais, não
há o menor equívoco; em algumas se produzem alterações —
cm geral, transições de uma situação a outra — que ocasionam
uma luta de vigências. Com efeito, pode ocorrer que se desloque
a fronteira entre as vigências “hum anas” e as “femininas”; no
capítulo I de minha Introdução à Filosofía insistí no fato capi­
tal que marca a nova condição das mulheres na Europa: à
vigência de que um a mulher só pode fazer aquilo sôbre o que
existe um acórdo social expresso, se está seguindo a vigência
— até agora só “masculina” — de que pode fazer tudo aquilo
contra o que não há veto social expresso. Isto é, enquanto
antes a mulher só podia fazer um repertorio de coisas definidas,
para as quais estava “autorizada”, num futuro bem próximo
poderá fazer qualquer coisa, desde que não esteja concretamente
proibida. Mas esta situação, para a qual caminhamos indubità-
velmente, não é ainda atual, pelo menos em muitas sociedades, e
o que se dá nelas é a ampliação do número de possibilidades ofe­
recidas às mulheres no que se refere ao estatuto de “vigências
humanas”. E isto, por sua vez, não ocorre simultáneamente nem
em igual medida em todos os estratos de um a sociedade. D u­
rante vários séculos, para citar um pequeno exemplo que não
deixa de ser significativo, a vigência impusera o fum ar como
uma possibilidade exclusivamente masculina — um fato bem
curioso, diga-se de passagem — ; neste século, éste costume se
tem ‘neutralizado”, e uma mulher pode fum ar sem se expor a
represálias sociais; porém, como isto não aconteceu de um modo
súbito e geral, não era ainda vigente nas pequenas povoações
ou em outros estratos da sociedade quando já o era nas grandes
102 JULIÁN MARÍAS

cidades ou nas classes superiores; e uma mulher que fuma


naturalmente um cigarro em seu próprio ambiente, tropeça com
a vigência oposta quando está em presença de outras porções da
sociedade, numa cidade provinciana ou num meio rural: sirva
êste como um exemplo mínimo da luta de vigências entre diver­
sos núcleos sociais. As possibilidades de trabalho, o trato social,
o viajar, a capacidade de iniciativa — isto sobretudo — , são
outros tantos pontos em que se repete a mesma situação.
Não é necessário advertir que em tôda “pugna de vigên­
cias” é decisivo o vigor que estas possuam, porque é precisamen­
te o que decide ou dá por encerrada a luta; mas é preciso consi­
derar ainda um aspecto aparentemente paradoxal das vigências
e que pode fácilmente ocasionar enganos: refiro-me ao tema da
discrepância como fator social.

21. A discrepância como ingrediente social

Deve-se distinguir várias dimensões do fenômeno geral da


discrepância, cuja confusão perturba enormemente a compreen­
são dos fatos sociais. Ortega mostrou satisfatoriamente e com
vigor (4) que os homens são ao mesmo tempo sociáveis e inso-
ciáveis, que estão cheios de impulsos antisociais, que a sociedade
tom ada como algo puramente positivo é um a utopia, e que a
realidade efetiva da convivênca hum ana é a luta sociedade-
dissociação . Terei que retom ar o assunto mais adiante, e com
maior insistência, porque se trata de um fato de grande monta
e que explica todo um lado da estrutura de qualquer sociedade.
Por ora, é suficiente apontá-lo para lembrar que a sociedade
não significa, de maneira alguma, unanimidade e sim que é
constituída também de discrepância, e portanto é sempre pro­
blemática e insegura, e sua existência consiste em a estar fazen­
do e defendendo.
H á porém outros estratos da discrepância que devem ser
levados em conta neste contexto. As vigências exercem uma
pressão sôbre os. indivíduos, no sentido de que êstes têm que
contar com elas, têm que tom ar posição diante delas. M as isto
não significa adesão, nem sequer aceitação, nem mesmo submis­

(4) Del Imperio romano. O. C., VI, p. 71-75.


A ESTRUTURA SOCIAL 103

são. Frente às vigências se pode tom ar atitudes muito diversas,


entre as quais evidentemente cabe a de discrepar. O que carac­
teriza as vigencias não é o fato de que exijam submissão e sim
que, se não se as acata, tem-se que discrepar; eu não uso urna
túnica nem pratico as abluções alcoránicas, sem que isto envolva
discrepancia, porque nenhum dêstes usos é vigente n a sociedade
era que vivo; porém se decido não pôr luto, não basta que
continue simplesmente usando quaisquer côres apesar da morte
de uma pessoa da família, e sim, pelo contrário, tenho que exer­
cer uma certa violência, tenho que executar um ato positivo e
que supõe um esforço para vencer uma resistência impessoal e
coletiva; em suma, tenho que discrepar. A discrepância é, por­
tanto, um dos modos possíveis de comportamento frente às
vigências, é um dos aspectos de sua função social. Mais ainda,
se não houvesse discrepância seria difícil perceber que h á vi­
gências; estas se fazem sentir quando a reação do indivíduo
não é dócil mas sim rebelde, quando a discrepância ao mesmo
tempo põe à prova e descobre o vigor das vigências.
Isto não dá por encerrado o assunto; h á um terceiro aspecto
da discrepância, mais sutil e, por isso, mais fácil de passar
desapercebido: é aquêle que eu chamaria a vigência polêmica de
conteúdos vigentes. Procurarei me explicar. A ninguém ocor­
rerá que sejam vigentes as opiniões, condutas e indumentárias
dos grupos “surrealistas” de Paris, ou “existencialistas” dêstes
últimos anos; pelo contrário, seu atrativo se estriba precisa­
mente em não serem vigentes, em se oporem às vigências. T ra­
ta-se de uma simples discrepância? Significa a mesma coisa ser
“existencialista” do café de Flore e omitir o luto, ser partidário
do rearmamento alemão, usar chapéu côco, preferir as obras de
Dumas às de Gide? Enquanto que nestes casos trata-se de uma
simples discrepância individual de certas vigências dominantes, a
qual não possui nenhuma vigência, a existência de grupos discre­
pantes dentro da sociedade, pelo contrário, é por si mesma uma
vigência. Isto é, não são vigentes os conteúdos— certa maneira
de pintar ou de entender a poesia, usar barba, não se maquilar,
pensar que tudo o que existe está de mais etc. — , mas sim
o fato de afirmá-los polémicamente frente ao sistema geral das
vigências imperantes; o que equivale a dizer que uma destas é
precisamente o fato de que sejam desafiadas, infringidas, nega­
das, com certos ritos e fórmulas, por exemplo, com publicidade,
104 JULIÁN MARÍAS

com espírito de novidade, com sujeição à moda — uma vigência


— e a certas normas estéticas — também vigentes — .
Quando as sociedades não possuem saúde e elasticidade sufi-
as vigências são sólidas e possuem seu pleno vigor, a discrepân­
cia pelêmica dêste tipo não só é tolerada como também exigida,
imposta pela vigência particular que reclama sua eventual infra­
ção. As sociedades débeis, dissociadas ou em discórdia, pelo
contrário, não podem nem aceitam êsses conteúdos discrepantes.
Um bom termômetro para julgar a estabilidade de um a sociedade
é a normalidade dêste tipo de fenômenos. Os excêntricos da
Inglaterra vitoriana, o mundo de Hollywood nos Estados Uni­
dos, os fenômenos análogois que vêm demarcando a vida francesa
entre os séculos X V III e o X IX constituem bons exemplos.
Quando a sociedade é muito firme e estável, isto é, quando
cientes — bastante vigor, em suma -—, duas coisas podem acon­
tecer: quando a organização estatal é enérgica ou, pelo menos,
aparece como tal, o luxo da discrepância polêmica é suprimido
pela violência ou asfixiado; quando nãc é assim, êsses fenô­
menos de discrepância surgem, mas “não têm graça” , não são
divertidos nem tonificantes, e precisamente pelo fato de não
haver uma sociedade forte e as vigências não terem um vigor
efetivo, também não o tem o esporte de discrepar delas; quar
do se pode fazer “qualquer coisa”, tanto dá fazer uma como
a outra: o frontão que não é rijo não devolve elásticamente as
bolas que se lhe atiram, e nesse caso, é evidente, não há jôgo
possível.

22. Vigência implícita e vigência explícita

Dizia antes que a discrepância descobre e revela as vigên­


cias, quando não se discrepa, talvez não se saiba que determi­
nado conteúdo é vigente; isto mostra que as vigências se fazem
sentir de duas formas: explicitamente umas, implicitamente
^outras. No primeiro caso o indivíduo sabe que está submetido
a uma vigência concreta, e é isto justamente o mais importante:
o fato de ser concreta, existir como uma unidade numéricamente
diversa de outras, estar formulada, ou, pelo menos, ser fácil­
mente fornrJável, exercer seu domínio apoiando-o — mais ou
menos claramente — em alguma razão. Isto significa que impe­
ra menos que as outras vigências: quando se dá razões, o
A ESTRUTURA SOCIAL 105

domínio não é absoluto, a justificação corrobora, sem dúvida,


uma vigência, porém o faz de fora; é, uma vez mais, o arco-
botante que se apoia em um contraforte exterior. Lembre-se
do caso pleno das vigências explícitas: as leis vigentes. Não
é por acaso que seja êste o uso normal das palavras vigência
e vigente, antes de que Ortega tivesse dilatado a área semân­
tica das mesmas até que dessem tudo o que levavam dentro de
si mesmas: a vigência da lei é vigência explícita, a lei é pro­
mulgada, apresentada como tal, “posta em vigor” por um poder
concreto; isto quer dizer que a lei por si mesma não possui
vigor algum e que necessita que êste lhe venha de fora. As
chamadas “leis não escritas” — as mais importantes, como o
sabia muito bem Aristóteles (5> — , a rigor não são leis, isto é,
aparecem como leis quando se percebe que estavam vigentes
sem que ninguém o soubesse, sem terem sido promulgadas; o
direito consuetudinário não tem caráter de “lei” a não ser quan­
do é reconhecido como tal, ou seja quando deixa de atuar con-
suetudinàriamente e é de algum modo “promulgado”, quando lhe
sobrevêm um novo caráter de vigência explícita que originà-
riamente não possuia.
As vigências mais fortes, sólidas e profundas não se apre­
sentam como tais, não se anunciam nem se enunciam; por isso
quase nunca há sentido em as “enum erar” , não são catalo-
gáveis, salvo em dois casos: retrospectivamente, isto é, quando
já não são vigentes, e por isso se pode encontrar suas pegadas,
ou de um ponto de vista analítico, isto é, decorrente de uma
atitude teórica que deixa em suspenso seu caráter vigente e
correlativamente em situação “isenta” do observador. Basta
apenas recordar que as vigências negativas não costumam con­
sistir em proibições formais e sim em uma pressão que regula
a conduta automaticamente, sem uma reflexão especial, nem
tão pouco com uma consciência explícita da mesma.
A pressão das vigencias implícitas, as mais importantes e
mais puras, isto é, aquelas em que se manifesta em tôda a sua
pureza o fenômeno da vigência, é uma pressão difusa — dife­
rentemente da constrição da lei, por exemplo, do mandamento

(5) Política, III, 16 1287 b 5-8: “As leis consuetudinárias são


mais importantes e versam sôbre coisas mais importantes que as escritas,
de modo que mesmo quando o homem que governa é mais seguro que
as leis escritas, não o é mais que as consuetudinárias.”
106 JULIÁN MARÍAS

religioso ou do principio moral como tais — ; porém o fato


de ser difusa não significa que seja vaga: não o é de modo
algum, porque essa pressão se exerce segundo linhas de fôrça
que determinam um a figura e um esquema de conduta. Não é
de outro modo que a pressão das águas ou do ar em movimento
decide a trajetória de um móvel sôbre o qual se exerce.
Tudo se esclarece ainda melhor se se distinguir nas vigên­
cias explícitas que acabo de indicar a fôrça imperativa de cada
■conteúdo — lei, mandamento ou preceito — da vigência gené­
rica e quase sempre implícita que os sustém: o respeito à lei,
a reverência à vontade divina, o acatamento à ordem moral.
Mais adiante veremos a repercussão que isto tem num a classe
de vigências que, por ter um conteúdo “ideológico” ou “intelec­
tual” , estão mais diretamente afetadas pelo equilíbrio entre a
implicitude e a explicitude: as crenças. E a tal ponto, que a
dinâmica destas consistem em bôa parte no grau de explicitude
que possuem em cada momento.
Este caráter explica a dificuldade da investigação das vigên­
cias e o fato de que sejam conhecidas tão pouco. Só podem
ser determinadas a partir da vida efetiva, isto é, dos esquemas
reais de conduta, os quais permitem descobrir, mediante uma
análise de suas “trajetórias” , as fôrças atuantes que as produziu.
Esta análise é qualquer coisa menos fácil e não nos devemos
surpreender pela insuficiência de seus resultados, a menos que se
a leve a cabo de um modo rigoroso e com um método adequado.
Felizmente, há casos mais simples do que a investigação das
vigências atuais; no passado atuaram sistemas de vigências,
de um modo geral implícitas, cujo perfil, no entanto, pode ser
delineado a partir do presente. Como? Pela razão de se ferem
originado e depois cessado. Se comparo diversas situa­
ções, descubro que em certa data começa a atuar sôbre os ho­
mens uma nova fôrça que antes não tinha vigor e que, embora
não visível para êles, o é para o espectador que contempla ao
mesmo tempo duas situações caracterizadas respectivamente por
sua ausência e sua presença. De um modo análogo, quando
um a vigência se debilita — i perde vigor — e finalmente se ex­
tingue, a situação fica alterada e a modificação revela que cessou
a sua atuação. Mais um a vez encontramos, e agora por um
caminho diverso, a impossibilidade de estudar uma situação
única, porque seus elementos operativos só se manifestam na
A ESTRUTURA SOCIAL 107

transição de uma situação para outra — e dada a superposição


de seus elementos, as duas situações entre as quais se transita
são, por sua vez, transitorias, consistem em transição — .
Com esta consideração deparamos com um novo aspecto
das vigencias. Até agora as havíamos tomado como certas rea­
lidades ou fôrças — vigores — , definidas por qualidade ou
conteúdo, área, intensidade, direção, sentido positivo ou nega­
tivo; porém esta maneira de as ver era ainda abstrata; essas
fôrças têm um ponto de aplicação concreto, que são os indi­
víduos aos quais afetam; uma vigência é concreta somente na
medida em que se exerce sôbre homens individuais precisos.
E pertence à sua realidade o modo com que os homens têm que
se haver com elas; seu funcionamento consiste em sua ação,
completada pela reação individual que suscitam. A explicitude
ou implicitude das vigências é um a vertente que está referida,
não a seu vigor intrínseco mas sim a seu modo de se exercitarem
— desde logo, de se apresentarem ou de não se apresentarem
aos indivíduos. Mas êste progresso em direção à concretude é
só um primeiro passo: a alternativa implícito-explícito é de­
masiado esquemática. Em primeiro lugar, porque a implicitude
admite graus muito diversos. A implicitude total é possível?
Se não é possível ou, pelo menos, não é necessária, onde se
coloca a linha divisória entre a implicitude parcial e a explici­
tude inequívoca? Em segundo lugar, e isto é ainda muito mais
importante, é insuficiente todavia dizer que algo é explícito:
quais são os modos de o serem? Em outras palavras, quais são
as formas possíveis e, em cada situação histórica, reais de rela­
ção do indivíduo com as vigências?

2 3. A relação do indivíduo com as vigências

A forma superior de implicitude das vigências é a igno­


rância em relação às mesmas; e esta só é possível na medida
em que as vigências às quais o indivíduo está submetido são
“únicas”, isto é, se apresentam como uma exigência automática
e não como uma forma particular de pressão entre outras pos­
síveis. Por isso, a ignorância das vigências — pelo menos do
grosso de seu repertório — só é possível num a sociedade que
esteja isolada. O indivíduo imerso num corpo social que lhe
parece “a sociedade” sem mais, propende a tom ar suas pres­
108 JULIAN MARÍAS

sões como a realidade mesma e não as percebe, como não cos­


tumamos reparar na pressão do ar a não ser quando êste se
agita. No momento em que os homens sabem que outros ho­
mens estão submetidos a vigências diferentes, as suas próprias
adquirem uma figura precisa e são sentidas como tais; e a con­
seqüência imediata é que o indivíduo tem que tom ar posição
frente a elas, tem que se comportar de algum modo, não agora
relativamente a sua pressão — com docilidade ou rebeldia — ,
mas sim em relação a sua idéia, sua figura mental. Em outros
têrmos, à reação estritamente social ao vigor das vigências se
acrescenta um a segunda reação de conteúdo mental e que con­
siste em opinar sôbre elas.
Porém, nesta questão todo o cuidado é pouco. A existência
dêste elemento de opinião não nos deve fazer pensar que as
vigências são opiniões; não me refiro a que se opine sôbre os
conteúdos das vigências — quando êste fato se produz, a rigor
não se trata de vigências — , nem tão pouco a que recebam sua
fôrça dessa opinião, e sim que, uma vez dado o fenômeno social
que estudamos longamente, o indivíduo está em certo estado
de opinião em relação a suas vigências, isto é, enquanto suas,
sente-se vinculado de um ou outro modo a seu conjunto e a
uma delas em separado. E isto significa uma maneira de se
sentir inserido na sociedade e, portanto, matiza o sentido de
sua pertinência.
A situação normal é de adesão; entenda-se, adesão ao re­
pertório de vigências em seu conjunto; nela se manifesta coleti­
vamente, ao mesmo tempo a personalidade e a propriedade:
assim somos “nós”, êstes são “nossos” costumes, valorizações,
preferências, etc. E sta adesão não exclui a discrepância, a qual
se nutre precisamente da adesão genérica: em nome da totali­
dade de nossas vigências discrepamos de um a concreta que nos
parece imprópria, postiça, talvez uma degenerescência ou uma
inovação improcedente. Quando o grupo social se afirma frente a
outros, mais ou menos polémicamente, esta adesão se converte
com freqüência em orgulho. Pouco im porta que se trate da
sociedade geral, do país, de um a classe ou uma fração social
de qualquer tipo. Mais que a mera propriedade, se afirma a
presumida superioridade; note-se porém que esta superioridade
não é, de um modo geral, concreta e, digamos assim, a poste­
riori mas, pelo contrário, a priori e genérica. As vigências são
A ESTRUTURA SOCIAL 109

superiores por serem “as nossas”, previamente a tôda considera­


ção de seu conteúdo; e isto pode chegar ao ponto de que se
encontrem homens que declarem que o que pertence ao seu país
é o melhor do mundo, que sua nação é admirável e incompará­
vel, e quando isto se aceita e se elogia pormenorizadamente o
que compõe essa vida nacional, se depara, com surpresa, com
uma repulsa freqüente a quase tudo. Todos nós conhecemos
indivíduos que exaltam hiperbólica e desmesuradamente a Espa­
nha, enquanto que, sem preconceito, trituram implacàvelmente
cada um dos valores espanhóis nos quais se poderia fundar essa
orgulhosa afirmação. Quanto isto acontece se insinua um traço
de insegurança na adesão monolítica que se torna suspicaz e in­
sincera, excessivamente sublinhada e agressiva, e se nutre princi­
palmente de negação dos demais.
O utra é a relação de complacência ou satisfação. O gôzo
do indivíduo nas vigências que integram sua sociedade total ou
fragmentária, sua sensação de estar “em casa” dentro dela, como
o peixe na água, inclusive o deleite vaidoso, são fenômenos que
matizam de um modo muito diverso a adesão normal. Esta foi,
por exemplo, a reação do andaluz diante do repertório de suas
vigências regionais, a do madrileño de quase todo o século X IX
— provàvelmente desde meados do século X V III até o primeiro
decênio dêste, atingindo um máximo na Restauração — , do
francês há muito tempo, pelo menos desde Luís XIV, até há
alguns decênios. Seria necessário seguir com precisão as mu­
danças desta atitude e sua variação nas diferentes classes sociais
e nos grupos particulares e mais lábeis.
Estas são tôdas relações positivas; mas não são de ma­
neira alguma, as únicas; um a das mais interessantes é aquela
em que o indivíduo se sente “am arrado” pelas vigências, por
elas confinado, e ná qual estas funcionam, portanto, como uma
limitação; esta atitude pode coexistir com um coeficiente maior
ou menor de adesão, viva às vêzes, residual mais freqüentemen­
te, mas na qual domina a consciência de que as vigências atuam
como um freio, um a trava, um embaraço. A pressão social tem
duas vertentes: é pressão contra ou barreira e pressão para ou
impulso; a conduta individual se regula na sociedade pelas vi­
gências em ambas dimensões e, é evidente, com o predomínio
da segunda: é sempre mais espora que freio, porque se trata de
se mover, e a principal missão da rédea é dirigir a marcha.
110 JULIÁN MARÍAS

Ora, em determinadas ocasiões as vigências atuam sobretudo


como inibições e cadeias; os homens que lhes estão submeti­
dos as sentem às costas, sem relação com o futuro, mais como
uma sobrevivência. O caráter de alheio se intensifica; muitas
vêzes se dá uma adesão resignada: a vigência se mostra como um
destino inevitável e aceito; por vêzes surge um a repulsa, com
diversos graus de intensidade e energia; quando esta situação
se produz, as vigências continuam fazendo sentir seu domínio,
porém com um profundo matiz de coação negativa. Esta atitude
se dá geralmente em relação a vigências isoladas e concretas,
no máximo frente a certas constelações das mesmas, localizadas
dentro do horizonte total da vida coletiva. Quando a repulsa se
generaliza e, sobretudo, quando se tem a impressão de que as
vigências, sem deixar de o serem — isto é decisivo — , se arras­
tam por um longo tempo com íntimo desagrado dos indivíduos,
com uma repulsão inequívoca, a relação com elas se converte em
vergonha. E uma situação extrema e muito reveladora do me­
canismo das vigências n a vida humana. Porque a vergonha nas­
ce do fato do indivíduo se sentir envolvido nas vigências, nelas
implicado, complicado com elas, se se prefere; são parte dêle,
isto é, de sua vida, são coisa sua, da qual não poderia prescindir
inteiramente, da qual não lhe é possível livrar-se por completo,
porque seu mundo e êle próprio, enquanto realidade social,
estão feitos delas. Ante um a pura constrição estranha, o indiví­
duo pode sentir hostilidade, divergência, desaprovação; a vergo­
nha só se dá quando, nesta ou naquela medida, é provocada por
algo que lhe é próprio.
E como as coisas são sempre complexas e muito intricadas,
a relação com as vigências quase nunca é unívoca; de um modo
geral, dentro de um a sociedade se dão atitudes diversas, segun­
do os grupos ou estratos de vigências de que se trata; é impres­
cindível isolar e filiar essas diferentes atitudes, por um lado, e,
por outro, determinar a dominante, aquela que dá o tom emo­
cional a cada corpo social e determina o modo de inserção dos
homens na sociedade a que pertencem.

24. Graus e fases das vigências

Se se contempla o horizonte geral das vigências, do ponto


de vista de uma vida individual determinada, nota-se em pri-
A ESTRUTURA SOCIAL 111

meiro lugar que a pressão exercida por elas sôbre o homem não
c homogênea. Tanto naquilo que têm de negativo — o que
chamei pressão contra — , como em sua vertente positiva —
pressão para — , mostram uma diferença de intensidade ou grau.
Esta intensidade tem que ver muito pouco com a “gravidade”
dos conteúdos das vigências; homens que não têm por excessi­
vamente inconveniente a infidelidade conjugal ou o apropriar-se
de bens alheios, por nada do mundo sairiam à rua com um laço
no cabelo ou um tem o amarelo, escreveriam sem ortografia ou
de sandálias compareceriam a um a festa. H á alguns decênios
atrás não teriam saído à rua sem chapéu, a não ser em caso de
incêndio ou de algo parecido. Uma mulher não sairia com saia
comprida pela manha; em muitos casos preferiria dizer uma
mentira a uma palavra grosseira, ser caluniada a deixar de ser
convidada.
Isto mostra precisamente o caráter da vigência como tal:
quando o indivíduo opina ou julga, reparte a gravidade de acor­
do com princípios de outra ordem; quando se trata dessa
prim eira regulamentação da conduta que é o ter que se haver
com um sistema de pressões, é a ordem própria das vigências
que decide. As vigências básicas são de tal m aneira fortes, que
mal se pode imaginar sua infração e, portanto, tão pouco seu
cumprimento: simplesmente se as executa. No outro extremo
se colocam as vigências débeis, sentidas somente como diferen­
ças de “densidade” no meio social, caminhos mais fáceis em
certas ocasiões, resistências para a m archa em outras, suaves
correntes que impulsionam em certo sentido, no caso das vigên­
cias para. Do mesmo modo com que a gravidade normalmente
retém no solo e ordena a posição dos objetos no mundo, as
vigências fundamentais estabelecem uma disposição geral da
vida coletiva, e sôbre êsse fundo atuam fôrças diversas que
determinam todo um sistema de campos.
Estes campos de fôrças têm, é claro, sua estrutura própria..
Em primeiro lugar, uma dupla estrutura temporal. Prim eira­
mente, a que corresponde às gerações; cada um a destas tem,
como vimos, suas próprias vigências peculiares, além daquelas
que são comuns a tôdas as que coexistem num a sociedade e
num dado momento do tempo. A isto deve-se acrescentar ape­
nas algo, mas de real importância: se tomamos as coisas
inversamente, não se pode dizer que sejam vigências de uma
112 JULIÁN MARÍAS

sociedade as privativas de qualquer das gerações contemporâ­


neas, porque só possuem essa condição aquelas próprias das
gerações plenamente atuais, isto é, as duas que estão em atuação
histórica, em suas duas fases de “gestação” e “gestão”, segundo
os têrmos de Ortega; isto é, entre os trinta e os sessenta anos.
(No século X X ter-se-ia que reconhecer também vigência geral
aos conteúdos próprios da geração mais velha, dos sessenta aos
setenta e cinco. Para tom ar um exemplo concreto, na Espanha
atual dever-se-ia incluir as três gerações cujas datas natalicias
centrais situo em 1886, 1901 e 1916; as vigências da geração
de 98 — isto é, a de 1871 — e a da última que entrou na vida
— os nascidos em tôrno de 1931 — não seriam agora ou ainda
vigentes na Espanha)*.
Em segundo lugar, as vigências não só estão afetadas por
fases generacionais, como também o estão do ponto de vista
da idade. Além das vigências que pertencem a cada uma das
gerações e a acompanham por tôda a sua vida — seria exato
dizer que constituem cada um a das gerações — , há outras que a
abandonam no transcorrer das idades, possivelmente para se exer­
cerem sôbre a geração seguinte. H á as vigências juvenis, que
perdem seu vigor com a juventude; as da maturidade, que se
debilitam e cedem o lugar a outras quando a velhice se aproxi­
ma; bem como há vigências “internas” masculinas ou femininas,
as interiores a cada idade, e análogamente outras “de relação”
que regulam o comportamento dos homens e mulheres de cada
idade frente aos demais.
Destas vigências, que exercem sua ação segundo fases,
umas estão adscritas à fase de uma geração — os jovens da
geração X, ou melhor, a juventude dessa geração — , e são
portanto fugazes, e outras têm um caráter esquemático e por
isso mesmo “iterativo”, isto é,' são típicas vigências “juvenis” ,
“ senis”, etc., que reaparecem, a cada novo afluxo de
homens da idade correspondente. Portanto não possuem vigên­
cia contínua e sim renovada, e em cada caso exercem sua pres­
são sôbre núcleos humanos diferentes; não se pode falar de
uma perduração ou persistência dessas vigências iterativas e sim
de uma peculiar recorrência em forma de descontinuidade.
O caráter fásico não se limita, porém, àquelas vigências
que são exclusivamente fásicas; mesmo nas persistentes, que

(*) Estas últimas começariam a o ser agora (Nota de 1960).


A ESTRUTURA SOCIAL 113

não estão adscritas nem a uma idade nem a um a geração, mas,


pelo contrário, afetam uma sociedade intera e às vêzes durante
um longo período, sua forma de existência histórica não é estri­
tamente uniforme e homogênea; apresenta matizes ao longo das
sucessivas gerações, e isto em dois sentidos: primeiro, porque
em cada uma delas coexiste com um repertório de vigências em
parte variável e representa conseqüentemente um papel diverso
em cada caso, dentro de um a figura total de vida; segundo,
porque o conteúdo e o vigor de um a vigência são afetados por
sua própria história; isto é, a sua própria duração a vai m ati­
zando e modificando. Assim como os homens, também as vi­
gências tem “idade” : são diferentes entre si um a vigência “jo­
vem”, que mal inicia sua influência, e outra já arraigada e in­
veterada ou uma terceira “imemorial” . E isto nos remte a uma
nova questão: o processo das vigências.

25. Gênese, declínio e substituição das vigências

A vigência é um caráter que sobrevêm a certos conteúdos,


pertencentes originàriamente à vida individual. Nestes se origi­
nam tôdas as realidades coletivas ou sociais, como o indicou
suficientemente Ortega; porém, enquanto não se transcende o
individual e ainda mesmo o interindividual, não existe realidade
social sensu stricto. Isto significa que, para que se dê a exis­
tência social de algo, é necessário que seja afetado um número
considerável de indivíduos, não bastando, no entanto, o mero
número: a simples freqüência não é condição suficiente para
que algo seja realidade social. Ainda mais, em muitos casos
a vigência precede a freqüência e é causa desta: porque certa
conduta é vigente, é ela seguida pela maioria dos homens e
dêsse modo torna-se freqüente. Isto introduz um ponto de
vista qualitativo que é essencial. Não é o número que decide
no social e sim a função que cada homem ou cada ação repre­
senta dentro da vida coletiva.
Consideremos um fenômeno relativamente simples, como
é o da moda. Antes de tudo, convem não confudir a moda com
o uso de vestir, etc., de certa maneira determinada. A moda
não é um simples uso; o princípio dêste é justamente que se
usa algo concreto e não significa a mesma coisa que estar na
moda alguma coisa; mais ainda: as coisas que estão verdadei-
114 JULIÁN MARIAS

ramente na moda não são muito usadas, e quando isto acontece


deixam de estar na moda. Não é, como se poderia pensar, um
uso restrito a um grupo e sim bem pelo contrário: a aceitação
da vigência inclui no grupo assim constituido por ela. A vigên­
cia que é a moda está ligada intrínsecamente a um a pretensão
muito precisa: a de seguir a moda; sem ela, a pressão que a
moda exerce se anula automáticamente, como no caso de inú­
meras mulheres de idade madura, dedicadas ao cuidado de sua
casa, para as quais a moda simplesmente não existe, enquanto
que os usos próprios do vestir sim: usarão saias de certo com­
primento, chapéu ou não segundo sua condição social, vestirão
luto, etc.
A moda se origina em virtude de um a ação individual
prévia a ela, isto é, que ainda não é moda e, consiste em inova­
ção. Essa inovação supõe a ruptura de um uso ou, pelo menos,
se se toma o fenômeno geral da moda, a sua infração; possui,
pois acentuado caráter negativo, pelêmico ou discrepante, e
supõe certa audácia; por êsse motivo a moda tem se originado,
quase exclusivamente, em certos meios sociais elevados — aris­
tocracia — ou marginais — o mundo do teatro, entre as mulhe­
res de conduta livre — ; teve, pois, seu nascimento sempre em
pessoas individuais capazes de pôr a descoberto sua iniciativa
e com freqüência desejosas de se distinguirem ou de atrairem
a atenção. Porém até aqui não há ainda a moda. Nem tão
pouco quando se dá um passo mais, bem conhecido e no qual
Simmel insistiu em seu penetrante estudo: a imitação individual.
É exigida mais um a dupla condição: que a adoção dêsse con­
teúdo se estenda a um número suficiente dentro de um grupo
social e que a êste se lhe reconheça um a vigência, isto é, a
de ser titular da elegância, do “bom tom ”, do “gôsto”, etc.
Nesse momento, e só então, se origina a moda como tal e exerce
sua vigência sôbre a sociedade: em primeiro lugar, sôbre todos
e sôbre cada um dos indivíduos do grupo social no qual se
gestou; em segundo lugar, sôbre os demais cuja pretensão inclui
o “estar na moda”, isto é, participar a um a distância maior ou
menor do núcleo criador; em terceiro lugar e por último, sôbre
o restante da sociedade, na medida em que a esta se apresentam
certos conteúdos como sendo “de moda”, ainda que sem aceita­
ção pessoal; isto é, a moda funciona relativamente a tôda a
A ESTRUTURA SOCIAL 115

sociedade, porém para um a parte dela somente como vigência


de relação.
Escolhi êste exemplo porque mostra com especial clareza
o caráter ao mesmo tempo quantitativo* e qualitativo da gênese
de qualquer vigência. O fato se torna ainda mais visível se se
considera a form a atual da moda, cujo mecanismo difere bas­
tante do tradicional. Em nossa época, a moda é “imposta” e
“lançada” por certos profissionais: engendra-se, pois, num meio
em que a iniciativa e a inovação estão previstas já de antemão;
paradoxalmente, conta-se com a inovação e em um a data fixa:
sabe-se que haverá um a moda de outono, isto é, que se inven­
tarão certas formas para serem seguidas; isto significa que nes­
te caso a vigência autêntica é a de “haver moda” e a de ter
esta seus órgãos sociais diferenciados e definidos; já não se
baseia na inspiração individual, no prestígio concreto e a pos*
teriori e na existência de um a fração social que confere vigên­
cia a um tipo de conduta, mas descansa num mecanismo recí­
proco: a “criação” profissional e planificada da moda e a do­
cilidade automática a ela. E aqui se tom a evidente o que afir­
mava anteriormente: o fato da vigência ser prévia à freqüência
desta. Porque algo aparece como moda é aceito por muitos; o
vigor lhe advém de um a qualificação prévia a seu conteúdo e
à opinião dos indivíduos sôbre êste: o prestígio de quem lança
a moda. Seria, porém, um êrro supor um automatismo absoluto,
visto que nem tôda moda “proposta” se realiza, isto é, se
“impõe”; e a razão é que a vigência que a apoia e a sustém
pode entrar em conflito com outras vigências: certo critério
estético, um preconceito nacional, um a resistência m oral ou reli­
giosa, etc. Nestes casos, o indivíduo fica submetido à pressão
oposta de duas vigências diferentes, e a resultante é problem á­
tica. E note-se um pormenor secundário mas muito significativo:
para que se efetive a vigência da moda, deve conservar uma
máscara de impersonalidade; vimos anteriormente que a moda
não se constituía simplesmente com o “exemplo” da pessoa indi­
vidual elegante; agora, o profissional que lança a moda mantém
uma ficção: a de que “profetiza”, anuncia, adivinha o que será
a moda, o que “se usará” na próxima temporada; sua “autori­
dade” é mais de descobridor e vaticinador do que de ditador;
não é o que m anda e sim o que sabe ou prevê o que estará em
moda; quando alguns dos seus “criadores” confunde a dimensão
116 JULIÁN MARIAS

em que se dá seu verdadeiro prestígio com a do “poder”, comete


um érro que expiará depois com o fracasso: a moda “ordenada”,
não prevista, revelada, comunicada antecipadamente, costuma
encontrar resistência, sendo por vêzes repelida com energia.
Pretendeu-se transportá-la para outra esfera, na qual não tinha
vigencia. Como confirmação histórica disso, tenha-se presente o
fracasso de todas as modas impostas autoritáriamente: pragmá­
ticas contra o luxo, afirmação de um traje nacional, proibição
de certas modalidades do vestir ou de maquilagem, etc.; e
quando algumas destas imposições se afirma — quase sempre
de modo muito passageiro — é apenas enquanto pura imposição,
nunca enquanto moda, desde o motim de Esquilache (*) até a
regulamentação oficial dos trajes de banho ou do comprimento
das mangas.
Éste exemplo pretende apenas fixar a atenção em algo
concreto para que se compreenda melhor o processo das vigên­
cias. O importante é advertir a constante relação recíproca entre
a vida individual e a coletiva, a função que a prim eira represen­
ta na gênese de qualquer vigência, mas, por outro lado, sua insu­
ficiência, isto é, a necessidade de que a ação individual se “socia­
lize” para que a vigência consiga nascer. Isto quer dizer que
um a vigência supõe outras, que sua constituição só é possível
dentro de uma sociedade, ou seja dentro de um repertório de
vigências relativamente variáveis e que se sucedem parcialmente.
Tôda vigência recebe seu vigor do restante das vigências domi­
nantes; por isso a energia de tôdas elas depende da solidez do
sistema geral das vigências; não do grau de “socialização” de
um a estrutura social — isto é outra coisa — , e sim do grau
de sociabilidade.
Mas tudo isto é apenas o comêço. Um a vez engendradas
e constituídas as vigências exercem sua pressão por um tempo
mais ou menos longo; sua intensidade é variável; finalmente,
há um momento em que declinam e se debilitam. Por que? E
como se dá esta fase do processo? Note-se que a discrepância
individual conta muito pouco; quase nada, se é minoritária;

(* ) O Marquês de Esquilache, ministro de Carlos III, proibiu aos


madrileños o uso dos chapéus “chambergos” (de abas largas) e das capas
longas. Os madrileños se rebelaram e depuzeram o ministro. (Nota do
autor para a tradução brasileira).
A ESTRUTURA SOCIAL 117

porém, inclusive no caso de que a maioria dos individuos como


tais sejam discrepantes, o vigor da vigencia em questão sofre
uma diminuição muito escassa. Mais um a vez, para conseguir
efeitos sociais é necessário passar pela sociedade. Imagine-se,
para voltar ao exemplo anterior, um a moda inadequada ou incô­
moda; há quinze anos atrás, nós homens espanhóis usávamos
no verão roupas de tecidos pouco mais frescos que os de inverno,
e de côres bastante escuras; dadas as temperaturas do país, nada
seria mais absurdo; também a vigência de trazer pôsto o poletó
era absoluta, e o resultando total não poderia ser mais incômodo.
Se se perguntasse a cada um dos espanhóis, todos teriam dito,
enxugando o suor da fronte, que tal vigência era lamentável; e,
no entanto, perdurou anos e anos com solidez monolítica. Como
entrou depois em declínio? O fato é tão próximo que está na
memória de todos. A guerra civil havia abolido, não a moda
em sentido estrito, mas os usos do vestir; a maioria dos espa­
nhóis havia se vestido durante três anos à militar — e não
me refiro ao uso do uniforme, porque precisamente a unifor­
midade brilhava por sua ausência — ; diversas classes de túni­
cas, jaquetões, “caçadoras”, “canadenses”, “saharianas” , cami­
sas, foram sucedendo umas às outras ou coexistindo. As vigên­
cias indumentárias ficaram pois em suspenso. Quando a vida
normal foi retomada, a coisa era tão literal que se pode dizer
que mal existia o traje “à paisana”; persistia o uso de peças
de vestiário militar, ou quase isso; introduziu-se o emprêgo de
tecidos leves e côres clara,s, procedentes dos uniformes de verão,
e no momento em que foram lançados no comércio os paletós de
seda ou linho e outras peças análogas originou-se uma nova
vigência: a de se vestir “à m aneira de verão”. Pôde-se assim
tom ar a Bastilha dos trajes de tecido azul ou cinza, graves e
severos. Insisto nestes exemplos triviais porque neles se dá
o fenômeno puro da vigência: o respeito à propriedade privada,
o matrimônio canônico, o sigilo da correspondência ou o com­
promisso do juramento têm demasiadas implicações e requere­
riam um estudo minucioso de tôdas as circunstâncias conexas.
Por último, as vigências podem “cessar” de duas maneiras:
por dissolução e por substituição. No primeiro caso, a vigência
se atenua e se debilita, perde “vigor”, exerce um a pressão cada
vez menor, acabando por desaparecer. A facilidade de se que­
brantar a vigência aumenta; a sociedade exerce, pouco a pouco,
118 JULIÁN MARÍAS

represálias mais suaves, e portanto é cada vez maior o número


dos que se atrevem a afrontá-las. Ao fim de certo tempo, alcan­
ça-se completa isenção: a conduta já não está, nessa ordem,
prescrita por um a pressão social, ou, o que significa o mesmo,
já não há vigência. Pode-se sair à rua sem chapéu como também
se pode continuar a usá-lo; não há vigencia a respeito do uso
do bigode, que há quarenta ou cinqüenta anos era quase obri­
gatório; diversamente do que aconteceu depois da primeira
G uerra Mundial, as mulheres podem optar pelo cabelo com­
prido ou curto, porque não existe um penteado vigente. Em
muitos países o luto não é mais vigente; em outros, como na
Espanha, possui uma vigência debilitada, residual nas grandes
cidades e ainda vigorosa no resto da nação; mas, em todo o
caso, a vigência parcialmente volatilizada, não foi substituída
por outra e o uso do luto continua sendo possível. E os exem­
plos poderiam ser multiplicados fácilmente.
No entanto, o que se dá com mais freqüência, é a substi­
tuição das vigências. Sôbre certos conteúdos sociais se pode
exercer uma ou outra pressão, mas sempre alguma. E esta cos­
tuma ser a forma de declínio da maioria das vigências: sua
rendição ou suplantação por outras, iniciadas por sua vez na
vida individual, que se apresentam polémicamente, alcançam
depois de algum tempo um a vigência reduzida a um grupo
particular e acabam por se estender à sociedade tôda. Deixar a
barba crescida ou fazê-la são vigências que se têm alternado
em períodos pouco menos que seculares, e sempre com caráter
de substituição efetiva. Quando a vigência do duelo desapa­
receu, não significou isto uma simples dissolução da vigência, no
sentido de que fôsse facultativo ao indivíduo o bater-se ou não:
trata-se de que a antiga vigência pela qual em determinados
casos “é preciso se bater” foi substituída por outra, cujo conteúdo
é que “as pessoaS não se batem mais”. A rigorosa vigência de
que um a jovem não podia sair sem que alguém a acompa­
nhasse foi substituída por outra, não menos enérgica, que lhe
veda sair com “governante” ou “dama de companhia” — nomes
correspondentes a outras tantas fases bem diferenciadas — .
Para terminar, deve-se considerar um caso limite muito
significativo. É o que eu denominaria “vigências vacantes” .
Como todo o social, as vigências1'são realidades que necessitam
estar “cheias” ou “vazias” (vacantes); e às vêzes acontece que
A ESTRUTURA SOCIAL 119

não existe nenhuma vigencia atual acêrca de um conteúdo que


a reclama. Um exemplo disso são as formas do trato social,
tais como o “tratam ento” ou o uso do vocativo. Note-se o que
se tem dado nos últimos tempos, na Espanha, com o modo de
se dirigir a uma senhora. Até há poucos anos, usava-se o nome
com a anteposição do “dona”; mas num belo dia começou a
parecer que isso, ao mesmo tempo que envelhecia, não era
amável: tomou-se difícil dizer “dona M aria” ou “dona Pilar” a
uma senhora sem lhe acrescentar anos e aburguesá-la excessiva­
mente. O uso do sobrenome com o tratamento de “senhora”,
normal na terceira pessoa, numa apresentação por exemplo,
nunca o foi no vocativo: “senhora” simplesmente, sem o nome,
soa demasiadamente cerimonioso. Só resta uma saída: o nome
de batismo sem mais; e esta é a solução preferida. Porém como
é excessivamente familiar, supõe também alguma violência;
então se opta por evitar o vocativo nos primeiros encontros e,
no momento em que se consegue um mínimo de familiaridade
ou amizade, se diz simplesmente “Carm en”, “Teresa” ou “Lo-
lita”; isto é, como não se conta com uma vigência suficiente,
supre-se a sua ausência com expedientes que, como tais, tornam-
sc insatisfatórios. Análogamente, começa a se produzir outra
vacante: a da vigência que regula o uso do “você” e do “o
senhor” ou “a senhora” .

26. A estrutura social e sua integração pelas vigências.

Ê conveniente que agora se experimente focalizar outro


aspecto da questão: uma vez analizado com minuciosidade o
fenômeno das vigências, é preciso, a partir de um ponto de
vista oposto, tentar ver como elas se integram num a estrutura
social. E é, precisamente, disso que se trata. No comêço dêste
capítulo assinalei que o mundo social não se compõe de coisas
e sim de realidades sumamente estranhas que consistem em
atuação positiva ou negativa, e que esta se exerce segundo certas
linhas estruturais; adverti, porém, logo a seguir, que a estru­
tura consiste principalmente “na disposição, conteúdo, intensi­
dade, e dinamismo das vigências” . Esta expressão era bastante
exata, porém ainda não de todo inteligível; agora, depois das
páginas anteriores, alcança um a evidência e um a plenitude que
antes não teria podido obter. Pode-se substituir essa expressão
120 JULIÁN MARÍAS

por outra mais breve: o sistema das vigências; mas com a con­
dição indispensável de que se tome ao pé da letra a palavra sis­
tema, como conjunto de elementos que se reclamam reciproca­
mente e se sustêm ou sustentam uns aos outros, mediante um
conjunto de tensões operantes. E isto nos esclarece de relance
algo de maior interêsse: o fato de que a estrutura social é preci­
samente um sistema de vigências, porém não uma sociedade.
Poderíamos dizer que a estrutura social é a sociedade
menos os homens e, portanto, o que de fato fazem. Com efeito,
as vigências são sempre para certos indivíduos, sôbre êles se
exercem, estão parcialmente constituídas pelas suas pretensões,
condicionam seu comportamento, o limitam ou o canalisam,
porém não o decidem. Com isto quero dizer duas coisas: 1)
que a estrutura social ou sistema das vigências não pode ter rea­
lidade — nenhum tipo de realidade — que não seja com os
homens, isto é, integrando uma sociedade, como estrutura de
uma sociedade; 2) que, dado êsse sistema estrutural, não está
dada a efetiva realidade histórico-social, a qual é livre, condi­
cionada, evidentemente, porém aberta, indecisa, imprevisível
enfim.
Vimos antes também que uma vigência nunca se pode
engedrar na vida individual, mas que a ação genética do indi­
víduo tem que passar pela “m atriz” da vida coletiva para que
a vigência se produza efetivamente; tôda vigência pressupõe a
sociedade e portanto outras vigências: omnis vigentia ex
vigentia, poder-se-ia concluir. É esta outra forma de enunciar
seu sistematismo, a m era impossibilidade de tom ar uma vigência
isolada das demais. Por êsse motivo também, muitas vigências se
tom am “inexplicáveis”; o são, evidentemente, a partir da vida
dos indivíduos e também a partir da sociedade,se se quer apenas
considerar a “sua linha” ; porque a sucessão das vigências não
tem caráter linear, não se vão substituindo em sua ordem e
dentro de cada um dos aspectos ou dimensões da vida, porque
isto constitui somente o excepcional. Normalmente, cada vi­
gência tem suas raizes na estrutura social íntegra e suas varie­
dades procedem dessa totalidade, não da vigência “homóloga”
precedente. D aí que se tom e impraticável a derivação das
vigências em linhas abstratas: uma “história da moda”, da
alimentação ou do direito, tomadas ao pé da letra, são impos­
síveis. Quero dizer que as mudanças da moda não procedem da
A ESTRUTURA SOCIAL 121

moda mas sim, da política talvez, ou da cultura; e as vigências ar­


tísticas podem muito bem depender mais do erotismo, do esporte
ou da religião, do que da crítica, das academias ou das expo­
sições. As vigências só se tornam inteligíveis a partir da forma
de vida em que surgem; e inversamente, qualquer pequena va­
riação nas mesmas, analizadas satisfatoriamente em tôdas as
suas conexões, descobre uma transformação da vida coletiva em
sua totalidade. Se se observa o fato de que, em certas ocasiõesr
as cartas que recebemos já foram lidas antes por outras pessoas,
ou se considera que num café há talvez dois têrços de mulheres,
e se examina bem tudo o que estas duas modestas realidades
implicam, se pode reconstruir um a bôa porção de nosso mundo.
Isto nos leva a pensar que para entender o social não há
outro remédio a não ser o recorrer à razão <6). Dizer isto parece
um simples gracejo, mas se se pensa um pouco ver-se-á que não
o é, que de fato a sociologia tem gasto anos tentanto dispensar
a razão, em muitas ocasiões proclamando isso como virtude e
até conferindo-lhe a posição de método. As conseqüências teó­
ricas começam a se mostrar claramente; as práticas custaram a
vida a alguns milhões de homens e ameaçam pôr têrmo à dos
que escaparam.
Talvez fique mais claro se dissermos que a vida só pode
ser entendida de dentro. Se nos situamos fora de uma estrutura
social, as vigências são ininteligíveis porque justamente lhes
falta seu vigor, visto que cada um a se exerce com as demais —
reforçada, acompanhada, contrapesada pelas demais — e, sobre­
tudo, sôbre um ponto de aplicação que é o indivíduo; porém
como êste, por sua vez, não é abstrato, não é um simples sujeito
gramatical ou “sociológico”, mas está definido por êsse horizonte
de pressões positivas ou negativas que atuam sôbre êle e, na
mesma medida pela pressão que exerce com sua pretensão ou
projeto vital, a intelecção está inexoràvelment ligada à presença

(6) No sentido em que a defini rigorosamente como “a apreensão


da realidade em sua conexão”. Veja-se minha Introdução à Filosofia,
sobretudo o capítulo V. Esta é a idéia que vivifica tôda a sociologia de
Ortega e faz com que ela seja muito mais do que usualmente se entende
por sociologia: uma teoria da vida coletiva, fundada numa teoria prévia
da vida humana efetiva, isto é, individual, à qual porém lhe acontece
inexoravelmente a sociedade; teoria possível somente mediante o uso da
razão vital, que em sua forma concreta é razão histórica.
122 JULIÁN MARIAS

dessa situação efetiva com todos os seus têrmos. O que equivale


a dizer que, se se trata de uma sociedade alheia — estrangeira
ou antiga — , o mais exaustivo acúmulo de materiais, as esta­
tísticas mais completas, tôda a informação, por ilimitada que a
suponhamos, é incapaz de nos fazer entender a realidade social.
O que faz falta em primeiro lugar — entenda-se bem, em
primeiro lugar — é a imaginação. É paradoxal e lamentável
que o pai da sociologia, Augusto Comte, pretendesse substituir
a imaginação pela observação e caracterizasse seu método
próprio pelo predomínio constante da segunda. O único meio
de que os dados, as informações e estatísticas sirvam para algu­
ma coisa é “se pôr a viver” imaginàriamente a sociedade que se
trata de estudar, receber dêsse modo o impacto das vigências,
reconstruir o mundo alheio ou pretérito, com seu to,m vital; e
ainda mais: projetar-se imaginativamente — novelescamente —
nesse mundo, assumir um a vida virtual que pudesse ter sido a
de um seu habitante, exercer ante essa circunstância uma pressão
“verossímil” ; com outras palavras, transmigrar hermenèutica-
mente à situação que se trata de entender. Por isto não deve
parecer estranho que até agora tenham sido as bôas novelas os
meios mais eficazes para penetrar em estruturas sociais alheias.
Com o que não quero dizer, é claro, que a sociologia se deve
identificar com a novela, porém que tem de ser mais, e em caso
algum menos do que ela. Deverá se integrar com todo o muito
que falta à novela, mas, naturalmente, sem renunciar às possi­
bilidades de conhecimento que ela enoerra (7).
É necessário, pois, dar mais um passo. Ao considerar a
estrutura social como efetivamente integrada pelas vigências,
deve-se ver estas em seu funcionamento real, isto é, exercendo-
se em interação com uma pretensão humana. Fazer isto requer,
como primeira etapa, atender a um tipo muito peculiar de vi­
gências que são as crenças; em segundo lugar, estudar a reação
individual às crenças coletivas, e especialmente o problema das
idéias — uso ambos os têrmos no sentido técnico proposto por
Ortega (8) — ; em terceiro lugar, a questão decisiva das pre-
)

(7) Veja-se meu estudo “La novela como método de conocimiento”


em La Escuela de Madrid ( Obras V ).
(8) ORTEGA Y GASSET: Ideas y creencias. (O. C., V, p. 375ss,).
A ESTRUTURA SOCIAL 123

tensões e o significado de um a problemática “pretensão cole­


tiva” . Sòmente assim se pode ir em busca dessa realidade, nem
individual nem “específica”, que denominamos estrutura social,
e com isso empreender o estudo das estruturas das sociedades
efetivas e concretas.
IV

CRENÇAS, IDÉIAS, OPINIÕES

27. As crenças básicas.

Como Ortega o demonstrou, das crenças não se costuma


ter “nem idéia”; especialmente quando se trata das crenças
básicas ou fundamentais nas quais nossa vida repousa. São as
vigências radicais acêrca da realidade e das coisas reais, as
interpretações recebidas nas quais nos achamos sem mais e
que significam para nós a própria realidade. O fato de que
estas crenças, quando formuladas — isto é, quando não fun­
cionam como crenças sensu stricto — existam com existência
mental, isto é, se apresentem num a forma análoga à das idéias,
tem levado a confundir êsses dois ingredientes que representam
tunções tão diferentes em nossa vida, e que são portanto duas
realidades diversas. A distinção entre idéias e crenças é uma
das contribuições capitais de Ortega, não só à sociologia como
também à metafísica, de onde se origina (1).
Quando se trata de compreender um a sociedade, é muito
mais importante — e mais difícil — averiguar quais são suas
crenças básicas do que saber quais são as idéias existentes. E é
difícil porque muito raramente se fala nelas, porque nem se pensa
nelas, já que — repito — não se tem, de um modo geral, “nem
idéia”. As crenças funcionam, atuam simplesmente; nós não as
temos mas são elas que nos têm ou nos sustêm, se está nelas,
não são conteúdos de nossa vida mas continentes. Só se as pode
descobrir por seus efeitos, isto é, o que acontece só acontece
porque as crenças vigentes estão aí, atrás ou sob, tornando-o

(1) ORTEGA: Ideas y creencias. Veja-se também minha Intro­


dução à Filosofia, especialmente os itens 4, 2?, 79, 30 e 43
126 JULIÁN MARÍAS

possível; os homens pensam e fazem determinadas coisas e não


outras porque estão em tais crenças concretas; o que dizem e
fazem nos pode remeter, antes da análise de suas condições e
pressupostos, às crenças fundamentais que, geralmente, não são
conhecidas. O problema se coloca, pois, nestes têrmos: de que
m aneira as crenças de um a sociedade devem ser para que suas
idéias e sua conduta sejam estas. Repito que raramente se
fala das crenças. Só excepcionalmente aparecem enunciadas ou
formuladas nos escritos da época. Denuncíam-se mais fácil­
mente em sua variação e movimento: quando as crenças mudam,
seu desaparecimento se acusa; o que costumamos perceber delas
é o seu ôco, o vazio que deixaram na sociedade; são como um
barco invisível, do qual se percebe apenas o sulco deixado na
água.
Isto significa que se nos limitássemos somente às idéias, a
sua própria história seria inexplicável — daí a insuficiência de
tóda tentativa de “história das idéias”, a menos que sub-repti-
ci ámente se dê mais do que êsse mero nome promete — ; as
idéias não se derivam umas de outras e sim de uma situação
total condicionada principalmente pelas crenças básicas. Justa­
mente as idéias se originam para suprir ou completar as crenças,
acorrem para encher seus ôcos, algumas vêzes para sustê-las,
raram ente para solapá-las, porque, em primeiro lugar, isto só se
faz quando já se está fora da crença, e em segundo lugar —• e
isto é mais im portante — , as idéias costumam ser ineficazes e
inoperantes frente às crenças, e quando parece que não o são
é por se estar em outra crença, que é o que realmente deslocou
aquela anterior. Mais adiante veremos como, paradoxalmente,
o que costuma ameaçar e debilitar as crenças é defendê-las e
sublinhá-las explicitamente.
As crenças são sempre um tipo particular de vigências:
aquelas que se referem à interpretação da realidade. Seguem,
pois, no essencial, a dinâmica que estudamos antes. Diferente­
mente das idéias, que sempre se originam na vida individual, que
são algo que eu penso, as crenças existem no âmbito da vida
coletiva, as encontro na sociedade, nelas estou imerso, e nessa
medida me constituem. O homem, em cuja vida individual
se dá a sociedade, isto é, lhe acontece ser social, está “feito”
parcialmente das crenças, que são um a das dimensões essenciais
de seu mundo. Daí a dificuldade de penetrar em estratos tão
A ESTRUTURA SOCIAL 127

profundos e que só excepcionalmente afloram à luz. O único


modo relativamente fácil de ter acesso às crenças básicas é a
historia; não só no sentido de que, ao deixarem de ser vigentes,
as crenças põem a descoberto seu vazio, que é ocupado por
outras diferentes, e certas estruturas que pareciam ser a própria
realidade revelam seu caráter interpretativo, como também de
outra maneira. As variações históricas, o movimento da histo­
ria mesma são o modo das crenças fundamentais aparecerem,
sua forma normal de manifestação. Pertence a sua condição
subterrânea êsse modo de acusar-se indiretamente na face da
vida coletiva; corresponde a seu caráter operante o revelar-se
apenas no movimento, na própria ação vital. Se se procura
entender o que acontece na história, é preciso reconstruir a si­
tuação efetiva em cada momento seu e as tensões que obrigam
ir de uma situação a outra, e mais a outra; e essa recons­
trução, feita primàriamente com os elementos visíveis, com o
que poderíamos chamar os dados, tom a-se deficiente — e corre­
lativamente, a situação incompreensível, se se dá um sentido
rigoroso à palavra “entender” — ; êsses ôcos de intelecção que
clamam por encher-se para que a compreensão seja possível,
mostram o lugar de outros elementos não manifestos e patentes,
que são os pressupostos; e entre êstes, primordialmente, as
crenças. Se desejo entender o que um homem faz, necessito ter
presente por que e para que o faz; e percebo que é em vista de
tôda uma conjuntura de circunstâncias, experiências, recursos,
necessidades, projetos; mas, além disso, movido a tergo pelo
fato de encontrar-se — provàvelmente sem o saber — instalado
em uma série de crenças básicas pelas quais nem ao menos per­
gunta e que são as que conferem um sentido concreto a todos
os elementos patentes e fazem, em suma, que se ache num a si­
tuação determinada e não em outra diversa, que com os mesmos
ingredientes visíveis seria igualmente possível.
O mais im portante é que a coincidência das crenças for­
muladas com as idéias pode levar à confusão. O “conteúdo” de
um a crença, quando é conhecido e enunciado, é uma idéia, tem
um a realidade mental, intelectual; parece um a afirmação,
opinião ou tese que a lógica pode manejar, da qual tem sentido
perguntar se é verdadeira ou falsa. Mas acontece que a crença,
quando é conhecida e enunciada, não funciona como crença;
cu seja que esta, em sua realidade própria, é outra coisa, e o
que dizemos dela como idéia pouco tem que ver com suas ope-
128 JULIÁN MARIAS

Tações autênticas. A dificuldade está pois no fato de que só


podemos “conhecer” as crenças formulando-as ou “ideifican-
do-as”, se se permite a expressão; e urna vez executada esta
operação intelectual, propendemos a fazê-las entrar no mundo
das idéias, mesclá-las com elas, julgá-las a partir do ponto de
vista que a estas é adequado. Em primeiro lugar, em relação à
importancia; em segundo lugar, quanto à sua solidez; por últi­
m o, pelo que se refere a suas relações internas, isto é, às conexões
das crenças entre si. Se se toma nos três aspectos o ponto de
vista das idéias, fatalmente se erra. Porque a importância das
crenças não é intelectual e sim vital; não é tão im portante numa
•crença permitir entender o real mais ampla e profundamente,
quanto condicionar mais decisivamente urna vida; e sua solidez
n ão é matéria de “evidência” ou “demonstração” mas sim de
lugar de “implantação” em um ou outro estrato da vida indi­
vidual e da sociedade, de antiguidade ou novidade, de “fase”
em que se encontre, de ámbito a partir do qual — como vimos
em geral a propósito das vigências — exerça sua pressão; e
finalmente, as conexões entre as crenças não são relações “lógi­
cas” como as que ligam entre si as diversas proposições de
um a ciência, e sim vínculos de fundamentação vital ou, para
utilizar um têrmo que me parece expressivo, de vivificação —
em bora, em última análise, seja a vivificação a forma superior
de fundamentação lógica, quando se dá a esta palavra todo o
seu alcance, que raramente é conhecido <2) — . Temos, pois,
sem esquecer de que se trata de crenças e não de idéias, de
perguntar por sua importância, solidez e conexões ou, em outras
palavras, se as crenças constituem ou não um sistema e em que
sentido, e qual sua ordenação ou hierarquia.

28. Sistema hierárquico das crenças.

Para as crenças o decisivo é serem cridas; perdôe-se esta


introdução acaciana inevitável. Realmente, tôda consideração
que passe por alto esta função intrínseca escamoteia o tem a das
crenças e, a rigor, trata de outra coisa: dos esquemas concei­
tuais que funcionam como seus ingredientes, de seus resíduos
quando desaparecem, de seus “conteúdos”, que podem ser coin-

(2) Cf.: Introdução à Filosofia, V, 42.


A ESTRUTURA SOCIAL 129

cidentes com os de muitas outras realidades humanas que não


são crenças. Se queremos entender o fenómeno das crenças
deve-se ter em conta dois principios metódicos: primeiro, sur­
preendê-las in fraganti, isto é, enquanto cridas, em sua função
própria; segundo, atender inicialmente a crenças relativamente
simples e elementares, sem demasiadas implicações nem inter­
ferências que turvem sua realidade.
Por isso parece-me sumamente perigoso pensar nas
“crenças” religiosas quando se investiga a realidade das crenças;
porque embora indubitàvelmente existam crenças religiosas, uma
grande parte do conteúdo da religião não constitui crenças no
sentido técnico que aqui damos à palavra. Não o são, por
exemplo, os dogmas enquanto tais, que são formulados, definidos
e propostos à adesão; esta adesão, que por um lado é intelectual
e por outro voluntário, estará vitalmente mobilizada — não
resta dúvida — por uma crença em que se está, mas o próprio
dogma, precisamente no que tem de dogma, não é “crença”.
Não é uma crença a adesão à tese de que “Deus está em tôda
a parte, por essência, presença e potência”; é um a crença, no
entanto, e decisiva, o sentir-se na vida sob os olhos de Deus,
em suas mãos; contar com que êle está vendo o que fazemos e
o que pensamos; o não estarmos sós; referir-nos tácitamente
a êle no sentido de “contar com êle” ao fazer o que fazemos.
E desta crença em sentido estrito participam não só muitos
homens que nunca ouviram nem formularam a tese enunciada
acima, como também outros que “não crêm” em Deus, que ne­
gariam essa tese e mesmo aquela que afirma a existência de
Deus.
Seria preferível usar a palavra “fé” para se referir à reli­
giosa — o conteúdo da fé estaria integrado por crenças e por
outros elementos distintos, desde a inspiração sobrenatural até a
adesão voluntária e livre ou a persuasão — e procurar a peculia­
ridade das crenças nos casos em que estas se apresentam em
sua simplicidade e pureza, isto é, em suas formas elementares.
As crenças se referem primàriamente ao comportamento
da realidade; as interpretações básicas do real, justamente na
medida em que “funcionam”, em que não são pensadas como
interpretações, constituem as crenças fundamentais. P or isso as
crenças não se originam no indivíduo propriamente por persua­
são, não são rigorosamente “convicções”, mas são como que
130 JULIÁN MARIAS

“injetadas” pela m archa da vida mesma. O funcionamento da


realidade que nos rodeia desde o nascimento, a apresentação de
cada luna das coisas como “tal coisa”, como “tal m aneira de
ser e se com portar” decanta em cada um de nós a crença subter­
rânea correspondente. O uso livre e incontrolado do ar, ao lado
do uso cheio de restrições dos alimentos, provoca em nós
crenças definidas relativamente à inesgotabilidade, segurança,
gratuidade do primeiro, e à limitação, incerteza e custo dos se­
gundos; o caso da água esclarece melhor: enquanto nas grandes
cidades civilizadas de nosso tempo a água — que existe sem
mais nas torneiras — funciona quase como o ar, em outras
formas de cultura se converte num a realidade escassa, im pro­
vável, difícil e valiosa; quando um corte do fornecimento de
água suspende sua fluência nas torneiras, a crença em que se
estava tom a-se problemática, é necessário reconsiderá-la e
sobrevêm um a pequena crise. As crenças a respeito do próximo
— por exemplo, confiança ou desconfiança, etc. — originam-se,
não em virtude de alguma ideologia ou persuasão mental, mas
sim apenas pelo modo de tratá-los; o uso de fechaduras, ferro-
lho.s, correntes, a vigilância das janelas ao cair da noite, etc.,
injeta n a criança um repertório de crenças a respeito do homem,
muito diversas das que adquire nas sociedades em que a porta
não se fecha, não se confere o trôco e se aceita automáticamente
a palavra alheia. As crenças concementes à condição masculina
ou feminina procedem da form a de relação entre os sexos que
funcionam de fato na sociedade em que se nasce. A origem
hum ana da crença em Deus não é uma argumentação doutrinai
feita à criança, nem ao menos a proposição formal de que Deus
existe, e sim algo mais simples e profundo: a introdução de
Deus em sua vida, a apresentação de mais uma realidade em
seu horizonte; a criança aceita em princípio as realidades de
que falam seus pais, toma-as como efetivas — só tardiamente
começará a desqualificar algumas, e desde ,logo apenas quando
não são apresentadas “a sério” — ; ao falar de Deus, êste fica
automáticamente incluido no mundo infantil, e precisamente na
forma em que é “tratado” : com veneração, com temor, com
amor, com frivolidade, com “partidismo” e “beligerância”, se­
gundo os casos. As crenças negativas — tão importantes —
têm sua origem n a aversão, temor, ódio ou desprêzo com que
são vividas no meio familiar ou social certas realidades, quer
se trate da serpente ou do negro, do burgaês ou da bruxa, do
A ESTRUTURA SOCIAL 131

judeu ou da prostituta, da torm enta ou do eclipse, às vêzes do


defeituoso físico, do enférmo — o “tísico”, o leproso— , do
herege ou do “papista”, hoje ainda melhor do comunista ou
do fascista.
As crenças são, portanto, as formas mais profundas e ele­
mentares de inclusão das diversas realidades na vida; são as
grandes interpretações funcionais do real, das que se lança mão,
por conta das quais, a crédito — por isso são crenças— s«
vive. E é isto que condiciona seu caráter sistemático e sua
hierarquia.
Quero dizer que a vida — que é a organização real da
realidade (3) — impõe em cada caso uma perspectiva determi­
nada, possui diversas “amplitudes” e figuras, um a economia
entre seus elementos que não é sempre a mesma. P or conse­
guinte, o sistema das crenças não é um sistema teórico e sim
vital (evidentemente, os sistemas teóricos — no plural, porque
são históricamente muito diferentes — são também vitais, mas
só de certas formas de vida definidas pelo pressuposto básico da
atitude teórica). Refere-se, pois, somente àquelas zonas do real
que intervém na vida, e justamente na' perspectiva e proporção
em que intervém. A começar, naturalmente, pelo espaço e
tempo: numa sociedade primitiva e sedentária, por exemplo
entre os habitantes de um vale, o “m undo” é, a rigor, ésse vale,
e todo o restante um vago “transmundo” ; para o homem oci­
dental de hoje, que percorre de fato todo o planeta, que está
afetado por tudo quanto nele acontece e tem presente o com­
plexo que vai desde o sol e a lúa até remotas galáxias, o mundo
espacial tem característicos radicalmente diversos. Outro tanto
acontece com o tempo: a mínima margem da memoria no
homem primitivo — e também nas formas mais simples da vida
atual — se desvanece rápidamente na penum bra do “imemorial” ,
enquanto que o homem com consciência histórica, e ainda com
mentalidade historicista, move-se em um horizonte temporal
dilatadíssimo, cronológico e, o que é mais, históricamente quali­
ficado. Compreende-se que as crenças suficientes em um e outro
caso não são as mesmas — e note-se que as crenças estão re­
gidas por um princípio de “economia vital” e, portanto, de

(3) Cf. minha Idea de la Metafísica, cap. VII e ss. (Obras, II).
132 JULIÁN MARIAS

suficiência e necessidade, diferentemente do caráter essencial­


mente “luxuoso” e vitalmente “excessivo” d a teoria — ,
Enquanto que as crenças são sumamente precisas, sólidas
e eficazes em relação a certos aspectos ou zonas da realidade,
são vagas e tênues em relação a muitos outros, faltando em
absoluto a respeito de outros mais. As crenças não são um
repertório de respostas a um questionário formal e em princípio
invariável; são os modos interpretativos das realidades funcio­
nalmente presentes em cada vida. Se se investiga uma estrutura
social, portanto, o método não pode constituir em procurar
quais são as crenças dessa sociedade acerca de uma série de
pontos que nos parecem importantes; é necessário, antes que
isso, determinar acêrca de que são as crenças dessa sociedade;
isto desenha o perfil de sua forma de vida e nos dá o esquema
do sistema dessas crenças, ainda mais importante do que seu
conteúdo concreto.
Êste sistema, é claro, é pendente das relações efetivas de
fundamentação vital entre seus ingredientes; isto significa que
não só não é teórico no sentido de responder a um a imagem
logicamente coerente do mundo, como também não está deter­
minado por meras conexões estáticas e que sua articulação se
sustém por um projeto ou pretensão constitutiva da forma de
vida correspondente; o repertório das crenças só é sistemático
em função do dram a vital ao qual serve; porém, visto a partir
desta perspectiva, não pode deixar de ser sistemático, porque se
não o fôra a vida não seria possível. Evidentemente, quando se
diz que “é sistemático” significa dizer que “tem que o ser” ;
a quebra ou falha do sistema — que só é possível, é claro, por­
que “há sistema” — determina um a alteração ou interrupção
da fluência normal da vida, ou, em outras palavras, um a crise
das crenças.
Fica assim insinuado que a hierarquia das crenças depende
justamente dessa pretensão e da figura de vida. O sistema, por
ser orgânico, é hierárquico; e são as funções que decidem essa
hierarquia. A s crenças acêrca do espaço e a estrutura local do
mundo, que são decisivas em um povo nômade, são irrelevantes
em uma sociedade sedentária e isolada, no caso extremo de um
povo ilhéu e não navegante. Imaginè-se a diversidade da im­
portância das crenças acêrca do misterioso mundo animal entre
os “tuaregs” do Sahara e entre os habitantes da selva brasileira;
A ESTRUTURA SOCIAL 133

no primeiro caso se trata de um mundo patente, definido pela


visibilidade e minimamente povoado; no segundo, do latente,
oculto e impenetrável enquanto tal, e além disso constituido pela
pululação de mil espécies animais desconhecidas; daí o enorme
interêsse entre os caboclos brasileiros, das crenças sôbre os
“bichos” (4). Procurei êstes exemplos extremos para ser fiel à
elementaridade metódica que me parece imprescindível; mas,
encurtando-se as distâncias, o mesmo fenômeno aparece quando
se compara duas sociedades nacionais européias ou duas etapas
históricas de um a sociedade; por exemplo, a Espanha rom ân­
tica e a de nosso tempo.

29. Duas formas de atenuação das crenças:


a volatilização e a adesão intelectual.

A imagem de um a ideologia que mina e destrói as crenças


de um a sociedade é bastante pueril. Ortega insistiu suficiente­
mente sôbre isso, e mostrou como as idéias são, pelo contrário,
recursos de que o homem lança mão para sustentar suas crenças
em crise ou para suprir sua falta (5). Como idéias e crenças
não se dão no mesmo plano, é difícil o ataque ideológico
às crenças, a menos que se faça um a operação prévia: a
“ideificação” das crenças, sua “tradução” em têrmos de idéias,
sua transformação em idéias cujos conteúdos coincidem com
os das crenças. Mas quando isto se fêz, antes que se realize o
ataque, as crenças deixaram de funcionar estritamente como
tais, isto é, estão em crise prèviamente a serem hostilizadas.
Logo veremos o quanto isto é delicado.
O modo mais freqüente de diminuição, debilitação ou ate­
nuação das crenças, de seu desaparecimento em último caso, é
o que poderíamos chamar sua “volatilização” . Um a crença que
antes possuia um papel decisivo n a vida, que a determinava em
seus estratos mais profundos, começa a empalidecer, a ser cada
vez menos intensa, a condicionar a conduta de um modo decres­
cente, até se desvanecer por fim, dissipar-se, evaporar-se. Note-

(4) Veja-se, por exemplo, o famoso livro de GILBERTO FREYRE,


Casa-grande & Senzala.
(5) Sobretudo veja-se o prólogo à Historia de Ia Filosofia, de
BRÉHIER (O. C., V .).
134 JULIÁN MARIAS

se que isto não significa que seu conteúdo não seja crido. A
evaporação da crença deixa de pé a questão de ser ou não
recusado o seu conteúdo: não se trata, de modo algum, de
afirmações ou de negações. A crença nos deuses pagãos se vola-
tizou em um longo processo, ao têrmo do qual ninguém mais
acreditava na existência dêsses deuses. A crença no progresso,
que a Europa sustentou durante mais de um século, se volati-
lizou como tal crença, nela não mais fundamos nossa vida, mas
isso não significa que os europeus atuais neguem o progresso; a
maioria déles o afirmam, com mais ou menos restrições,
opinam que o progresso existe e determina em boa parte o
curso da historia. O mesmo se dá se se compara a crença me­
dieval no sepulcro de Santiago de Compostela com a opinião
atual, compartilhada por muitos, de que ali efetivamente está
enterrado o Apóstolo, sem que dessa opinião decorram as
conseqüências que aquela crença tinha para os castelhanos do
século XII.
Se a “volatilização” de uma crença não significa, pois,
forçosamente sua negação, como se produz e qual o seu sentido
concreto? Trata-se de uma mudança de estrutura, e esta traz
consigo um deslocamento de seus ingredientes, entre os quais
figuram as crenças. Se um povo deixa de viver na selva para
viver em cidades, devido talvez a um rápido processo de indus­
trialização, as crenças sôbre o mundo animal se tornam inope­
rantes, ficam para trás, sem que se produza um a “mudança de
opinião” sôbre seus conteúdos. As crenças quase sempre se
dissipam por uma modificação da orientação, por um a variação
da perspectiva, que retira a atenção daquilo que anteriormente
a absorvia. N a maior parte dos homens modernos, a crença no
“mau olhado” foi substituída pela crença nos micróbios; note-se
que o decisivo não está na opinião de que o mau olhado é im­
possível — ninguém se preocupou em o demonstrar, nem a
questão se propõe nesse sentido — ; a volatilização da crença
na possessão diabólica não exclui o fato de que muitos milhões
de homens atuais pensem que é possível e mesmo que se dê em
certas ocasiões; esta idéia não evjta que efetivamente não
contem com a possessão, e quando deparem com alguém que
apresenta os sintomas que tradicionalmente se lhe atribuiam,
não se lhes ocorra exorcizá-lo e sim levá-lo ao psiquiatra.
Muito freqüentemente uma nova crença eclipsa literalmente
A ESTRUTURA SOCIAL 135

outras, e vitalmente as anula, ainda que lógicamente não as afete


de maneira alguma. Do mesmo modo o sol faz desparecer as
estréias do céu visível, embora estas continuem ardendo no es­
paço e, portanto, brilhando com a mesma intensidade que du­
rante a noite; e a lua, que não é suprimida, empalidece e se
atenua, passa a um segundo plano, não se conta com ela para
ver, como no meio da noite, embora esteja aí e possa ser vista.
Quando o homem começa a viver de urna nova crença básica
que irrompe em seu horizonte, ainda que esta não atue de ma­
neira alguma sôbre as anteriores, altera seu significado e sua
função, talvez as potencie, as atenue ou as aniquile. Dever-se-ia
estudar a dinâmica história das crenças dêste ponto de vista,
como história das formas de vida, entendidas como unidades
complexas, orgánicamente articuladas e movidas por um a certa
pretensão. Assinalava antes que, como já mostrou Ortega, não
há “história das idéias”; deve-se acrescentar que também não
há “história das crenças”, como em geral de nenhum elemento
parcial e abstrato da vida humana. É esta, em sua realidade
concreta e íntegra, que possui história.
Às vêzes as crenças se atenuam e se debilitam, mas não
por êste processo de volatilização e desatenção, e sim precisa­
mente pelo caminho inverso: pela adesão intelectual. O fenô­
meno é complexo e delicado. Ê arriscado falar muito das cren­
ças, porque para isso é preciso enunciá-las, formulá-las, expres­
sar em forma de tese ou idéia seu conteúdo; e isto já é um
primeiro passo para que deixem de funcionar como crenças
sensu stricto. A rigor, não se afirma as crenças; se está nelas;
quando são afirmadas, quando se adere intelectualmente a sua
substância, começam a atuar em outra dimensão da vida, em
outro estrato indubitàvelmente mais superficial. Poderíamos
dizer, embora pareça paradoxal, que a afirmação explícita das
crenças é o primeiro passo para sua debilitação. Por isto já
dissera que antes de que as crenças sejam atacadas, sua simples
expressão em têrmos de idéias as põe em crise. Isto é, esta
“ideificação” das crenças já é sua atenuação, enquanto que é
relativamente secundário que sejam atacadas ou defendidas.
As idéias são muito mais epidérmicas do que as crenças;
além disso, são flutuantes e instáveis, variam, se retificam e se
matizam. Ainda mais: as idéias, como realidades intelectuais,
se movem no âmbito da questão e do problematismo, enquanto
136 JULIÁN MARÍAS

que as crenças funcionam como o inquestionável. Poderíamos


dizer que tôda idéia é problemática, simplesmente por ser idéia;
logo que se enuncia um a idéia, surge com ela sua questionabili
dade; a “pretensão de verdade”, que acompanha o juizo lógico
como tal, nela introduz a possibilidade da falsidade e, portanto,
a exigência de justificação. Enquanto a crença repousa em si
mesma, segura e quiescente, a idéia tem que se justificar a cada
instante, tem que estar provando sua verdade. Form ular ideolò-
gicamenae um a crença significa, intrínseca e inexoravelmente,
pô-la em tela de juizo.
Além disso, enquanto que a crença tem certa vagueza —
isto é, do ponto de vista das idéias, porque como crença pode
ser o próprio rigor — , sua formulação requer precisões de
ordem intelectual, introduz tôda um a série de dificuldades, de
possíveis contradições, de arbitrariedades, cuja justificação se
converte em um grave — e talvez desnecessário — problema.
Vou tom ar um exemplo que me parece revelador. Conta-se no
Gênese que Deus tomou uma costela de Adão, enquanto êste
dormia, e com ela formou Eva; crer nisso, dado o pressuposto
religioso em que se move o Gênese, não apresenta a menor
dificuldade, e tem um a série de sentidos profundos e admirá­
veis: a mulher, feita do próprio homem, carne de sua carne e
osso de seus ossos; a mulher, feita também de um a m atéria
mais refinada e mais nobre do que a terra originária, etc. Com
a condição de não lhe dar demasiado alcance de “tese” , de não
tentar apresentar essa crença como idéia ou pseudo-idéia, de
não se perguntar, com minúcia e com um suposto rigor intelec­
tual, “como” aconteceu aquilo e o que foi que pròpriamente
sucedeu: se Adão tinha um a costela a mais ou se ficou com
uma a menos; se Deus lhe recriou um a costela suplementar;
se o espaço ôco se encheu de carne; como se formou o corpo
íntegro da mulher a partir da costela, etc., etc. Tôdas as coisas
que indagaram minuciosamente — com um a frivolidade incrível
— muitos teólogos, inclusive os g/andes, pondo em perigo a
crença neste ponto concreto e, incidentalmente, a totalidade da
fé cristã. Poder-se-ia centuplicar os exemplos, muitos dêles em
m atéria grave.
Daí os perigos evidentes da apologética. Quando se for­
mulam como teses ou idéias os conteúdos da crença, é necessá­
rio justificá-los; para isso se lança mão de “razões”; e como
A ESTRUTURA SOCIAL 13T

freqüentemente estas são inconsistentes, a crença, perfeitamente


justificável como tal, dentro da economia vital que lhe é pró­
pria, nada necessitada de demonstração ou prova, tom a-se inva­
lidada e destruida por sua “transplantação” a um terreno ina­
dequado e seu cultivo no mesmo por procedimentos intelectuais
insuficientes.
A conseqüência d a “ideificação” das crenças é, em pri­
meiro lugar, que se transladam para um a zona distinta e mais
superficial da vida; secundàriamente, nelas se introduz a pro-
blematicidade; em terceiro lugar, ficam inestabilizadas, sujeitas
sempre a prova ou comprovação; por último, vitalmente atenua­
das, qualquer que seja sua justificação intelectual, porque esta
opera sempre a menor profundidade que as crenças básicas.
Pense-se na intensidade vital de nossa adesão a um a verdade
perfeitamente demonstrada, por exemplo, que num triângulo re­
tângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados
dos catetos, e de nossa crença — indemonstrada e indemonstrá-
vel — de sermos filhos de nosso pai e de nossa mãe; enquanto
nesta crença se funda normalmente tôda uma parte decisiva
de nossa vida, a certeza intelectual do teorema de Pitágoras nos
é — salvo algum caso excepcional — perfeitamente inoperante.
H á ainda outra conseqüência, indireta mas de extrema im­
portância. As crenças “¡deificadas” se debilitam; às vêzes, se
desvaneçem e se perdem; em outros casos, pelo contrário, quan­
do apesar de sua atenuação ideológica, se sustentam em alguma
vigorosa crença autêntica, ou então em um complexo de inte-
rêsses vitais independentes, suprem a energia que perderam
como crenças com uma exasperação como idéias, isto é, com
um a “intensificação” do tipo que corresponde às idéias: o par­
tidismo, a beligerância, o fanatismo. A crença, convertida em
idéia, mas deficiente como tal, degenera em “ideologia”, se
transform a em um “ismo” . A fôrça que já não tem de estar
sustentando e impulsionando a tergo a vida, é procurada na
agressividade com que é sustentada. D aí a típica beligerância e
a tendência polêmica das crenças delibiltadas, inseguras, que se
afirmam suspicazmente frente a um horizonte de hostilidade
abstrata.
Quando se considera o conjunto das crenças de um a socie­
dade, deve-se levar em conta evidentemente sua hierarquia;
porém não só aquela que como crenças lhes pertence mas tam -
138 JULIÁN MARÍAS

bém a que possuem na fase de que se trata; isto é, o estado


do “crédito” em que consistem. Junto às crenças em pleno
vigor há as atenuadas; é preciso determ inar “quantitativamen­
te” — ou em relação ao grau vital de intensidade — o estado
das crenças; mas isso ainda não é suficiente: é necessário
discriminar por que caminho se chegou a ésse quantum de in­
tensidade e solidez e, por conseguinte, para onde se move essa
crença. Não tem o mesmo significado que esteja empalidecendo
gradualmente por um a mudança de perspectiva que origine um
desinterêsse crescente pelo “tem a” da crença, que tenha sido
“ideificada” e logo depois minada por uma crença de sinal
oposto, ou finalmente que tenha sido desvirtuada pelo zélo de
seus defensores, e que apareça como um a ideologia prepotente,
agressiva e explícita, internamente esvaziada de conteúdo e
substância de crença como tal. Pode acontecer — e éste é um
caso especialmente interessante — que uma crença, esgotada
como crença, tenha um a vida ulterior como ideologia dentro
de um a sociedade determinada; como também é possível que
uma idéia nascida em urna mente individual seja depois de al­
gum tempo um a crença no sentido rigoroso do têrmo. E isto
nos remete ao problema da relação de umas com as outras.

30. Interação de idéias e crenças

Até agora insisti na diferença entre idéias e crenças, em


sua relativa independência, inclusive na dificuldade de que se
estabeleça relação de ataque entre um as e outras, enquanto per­
maneçam integralmente em seus planos respetivos. A esta altura
iniciaremos uma nova consideração. As conexões entre idéias e
crenças são múltiplas. Primeiro que tudo, umas e outras se dão
em nossa vida, isto é, nela convivem, dentro de seu âmbito têm
suas raízes e seu desenvolvimento; isto traz consigo uma relação
sumamente elementar, porém por isso mesmo decisiva, que é
a de sua coexistência. Em uma vida hum ana funcionam umas
e outras: em que proporção? H á formas de vida nas quais as
crenças constituem o fundo a partir do qual se vive; sôbre êle,
um repertório mínimo de idéias secundárias orientam o homem,
esporádicamente, sôbre questões muito restritas e de pouco
alcance. Em outras sociedades — ou em outros indivíduos — ,
a vida está determinada por um complexo de idéias de alto
bordo, sistemáticamente concatenadas, por uma multidão de
A ESTRUTURA SOCIAL 139

idéias menores que respondem a quase tôdas as perguntas ima­


gináveis e compõem um a rêde espêssa que envolve o viver; tudo
isso, é claro, baseado em certas crenças fundamentais, quase
mudas, talvez ignoradas ou pouco menos, que permanecem no
fundo, como um solo nutriz. Entre êstes dois extremos se dão
inúmeros graus — e estruturas — intermediários. E a investi­
gação de um a estrutura social tem que tom ar claro qual o es­
tado preciso dessa coexistência e tratar de avaliar essa propor­
ção. Pense-se, por exemplo, na significação dêste problema
para um a compreensão da Idade Média; quando se considera
a época medieval, se oscila entre a atenção às idéias — a Es­
colástica, a organização eclesiástica, o pensamento político, etc.
— e o apêlo às crenças subjacentes, que se expressam e se
denunciam de mil modos distintos. Qual é o pêso real da cul­
tura em latim, frente a das línguas vulgares? Seria quimérico
tentar um a “avaliação” em sentido estrito, com parar o “valor”
de Abelardo com ô da Chanson de Roland, o de Pedro Lom­
bardo com o Poema del Cid, das Summulae logicales de Pedro
Hispano com o Libro de buen humor, Duns Scott com o Ro­
mancero, Dante. . . consigo mesmo, isto é, discriminar o pêso
das idéias e das crenças no mundo da Divina Comédia. N atu­
ralmente seria êste último, o caminho para entender a época
como tal e suas diversas fases: um a análise da função res­
pectiva de uns e outros elementos na vida do homem medieval,
independentemente daquilo que intresse a nós se somos histo­
riadores da filosofia ou da teologia ou da arte, ou se preten­
demos averiguar a constituição, a partir da Idade Média, dos
povos europeus de nosso tempo.
E não seriam poucas as surprêsas que êste traria. Costuma-
se pensar que o Renascimento significa um triunfo das idéias;
não é de meu feitio antecipar os resultados de um a investigação
que não fiz — e que está por se fazer — ; mas se se considera,
como é necessário, a fase final da Idade M édia “lindante” com
o Renascimento, e não — o que é absurdo, porém se faz — o
século X I imediatamente ao lado do final do século XV, não
será inverossímil que a época renascentista apareça como um
período de crise de idéias e vigência plena de duas ou três
crenças fundamentais. D e um modo análogo, ter-se-á que ver
como o século X IX se inicia com um reverdecer das crenças e,
além disso, com um processo inverso àquêle que antes denomi-
140 JULIÁN MARÍAS

nei “ideificação das crenças”: um funcionamento “credencial”


— sit venia verbo — de muitas idéias do século XVIII.
A proporção em que as idéias e as crenças funcionam den­
tro da economia de uma forma de vida, determina uma série de
característicos da mesma. P or exemplo, o ritmo de sua variação
histórica; uma vida em que as idéias têm um papel mínimo é
forçosamente lenta em sua evolução, quaisquer que sejam as
crenças em que esteja assentada; pelo contrário, o predominio
das idéias assegura um a mudança rápida. A causa da prodigio­
sa aceleração do tempo da variação histórica na Idade M oderna,
sobretudo nos últimos cem anos, tem um a de suas causas prin­
cipais no deslocamento do equilíbrio em direção às idéias. Mas
ao se falar de mudança histórica não se disse o suficiente; é
preciso saber o que muda, isto é, que zonas da vida são afeta­
das pela mudança; quando as crenças básicas são muito sólidas
e autênticas, quando as raízes da pessoa nelas mergulham vivaz
e enérgicamente, é possível um a estrutura social em que a m uta­
ção seja muito rápida mas que não impeça uma grande estabili­
dade social; parece-me ser éste o caso dos Estados Unidos.
É possível, inversamente, que um a sociedade em que a variação
é de pequeno volume ou bastante lenta, seja a própria instabili­
dade, por ser muito tênue ou vacilante o subsolo de crenças:
não se esqueça de que os movimentos rápidos e as grandes
edificações requerem um solo firme, enquanto que sôbre areia
movediça ou lodo só se pode construir choças, e em nenhum
outro lugar os movimentos são mais difíceis, lentos e penosos.
O fato conhecido da relativa estabilidade da vida campes­
tre, frente à mobilidade da urbana, corresponde à diversa pro­
porção em que idéias e crenças intervém em uma e outra. De-
vería ser estudado, dêste ponto de vista, a variação maior ou
m enor das diversas classes sociais, a diíérença entre o homem
da plebe e o proletário, a surpreendente inalterabilidade das
aristocracias de linhagem, frente aos demais grupos superiores
de uma sociedade (intelectuais, profissionais de primera ordem,
homens de emprésa). Éste fator é também característico
dos diversos movimentos políticos, que têm seus acionadores
em diferentes pontos, que recebem sua fôrça de certas crenças
subterrâneas e às vêzes nada aparentes. Só isto pode explicar
inúmeros fenômenos da vida política que, de outro modo, são
incompreensíveis. Mas não se pense na alternativa tradiciona-
A ESTRUTURA SOCIAL 141

lismo-revolucionarismo, porque um e outro podem ser, indife­


rentemente, questão de idéias ou m atéria de crenças básicas.
O estudo da vida política espanhola do século X IX — e, é
claro, do século X X — é extremamente revelador.
O processo pelo qual se passa de uma idéia, originada
como tal em uma mente individual, a um a crença, se reduz ao
que já estudamos ao tratar da gênese das vigências. Não se
pense, porém, que as crenças necessàriamente se originam de
idéias individuais; isto é relativamente infreqüente e quase
nunca é o caso das crenças básicas; as crenças assim engendra­
das conservam sempre uma proximidade maior em relação às
idéias; as crenças formuladas, explícitas, são por êsse motivo
mais fáceis de serem confundidas com idéias, porém diversas
das mesmas por seu modo de funcionar na vida. Refería-me
antes à idéia de progresso, nascida no século X V III, na mente de
Turgot e de Condorcet; no século X IX , converteu-se numa
crença coletiva na qual estavam os europeus e os americanos,
que a encontraram vigente em seu mundo, como idéia recebida,
como uma interpretação que expressava a própria realidade.
Estas duas notas caracterizam as crenças procedentes de idéias:
apresentar-se como a própria realidade, porém em form a expres­
sa. Nas crenças originárias falta êste último característico: as­
sim na solidez do solo, n a inesgotabilidade do ar, n a agressivi­
dade do que nos cerca e nos é desconhecido, na pertinência
a um a família ou a uma tribu, na existência de poderes supe­
riores. Estas crenças não começam por ser idéias mas nascem
de uma peculiar vivência da realidade, em relação à qual é
sempre secundária sua formulação e expressão mental. P or isso,
nas crenças primordiais, sempre se tem a impressão de que
nunca se esgotaram em suas fórmulas ou enunciados; quando
um a crença autêntica é expressada, quando se diz em que se
crê, sempre se diz menos daquilo que é real. Isto expüca o fato
— surpreendente, mas do qual quase ninguém se surpreende
— de que se possa cantar o Credo, enquanto seria perfeitamen­
te absurdo cantar o teorema de Pitágoras, as leis de Maxwell
ou as categorias kantianas — ou as vinte e quatro teses tomistas
— ; quando se canta o Credo, se executa um a operação bem
diversa de sua simples recitação ou leitura, e que lhe acrescen­
ta algo importante, não no campo das significações, é claro,
mas sim como crença. Trata-se do sentido geral da liturgia e
142 JULIÁN MARÍAS

do culto, como forma de vida das crenças religiosas — e corre­


lativamente de vivificação das mesmas — ; graças a êstes recur­
sos se supre mais ou menos a deformação e mutilação que a
fórmula impõe; o “plus” essencial que o crer tem sôbre o dizer
aquilo que se crê, o “diz” ou pelo menos o sugere a música e,
em conjunto, o que poderíamos chamar a “têmpera litúrgica” .
(Qual seja esta, é outra questão, e nada simples; seja suficiente
dizer que não é qualquer uma, e que, com freqüência, as formas
degeneradas destroem o conteúdo da crença, em lugar de po-
tenciá-lo; muitas formas habituais de piedade constituem a
suma impiedade: o canto fanhoso ou arrastado, a pieguice, a
cantilena intrínsecamente escarnecedora, o abuso do superla­
tivo, análogamente os altares de confeitaria, as imagens tolas,
etc. E o que expressa acertadamente o ditado popular: “O
Padre-nosso posto em solfejo é solfejo” .)
A passagem de um a crença a um a idéia já está conside­
rada. O exemplo do progresso é excelente, porque serve para
os dois processos: da idéia de progresso se passou à crença
nele, e desta, novamente, a sua idéia em sua fase atual. Na
vida religiosa são freqüentes os casos de crenças que deixam
de funcionar sensu stricto como tais e pervivem em forma de
idéias ou teses às quais se adere intelectualmente, isto é, aderem
os crentes; mas êste nome é algo equívoco, porque sugere que
a tudo quando adere o crente, adere como crença, e não é isso
que se dá: porque é crente, isto é, porque está em uma crença,
afirma como idéias recebidas muitas idéias, teses ou dogmas
com os quais não tem a relação de crença no sentido rigoroso
desta palavra. A distinção teológica entre fé explícita e fé im­
plícita é acertada, mas não suficiente par£ explicar isto. Aquêle
que crê “tudo o que a Igreja ensina”, o crê com fé implícita,
porque tem fé explícita na Igreja, e naturalmente não sabe o
que é isso que a Igreja ensina. Imaginemos agora que se lhe vão
propondo êsse,s conteúdos; dir-se-á que agora, à medida que
êles são enunciados e apresentados, vai crendo nos mesmos com
fé explícita; mas não por isso deixa de continuar a faltar a
crença no sentido estrito, no sentido em que dizíamos antes ter
crença na Igreja. Pense-se, por exemplo, em um dogma recém
definido, como o da Assunção; antes da definição dogmática,
muitos católicos — mas não todos — estavam na crença de
que a Virgem havia sido elevada aos céus, sem demasiadas
A ESTRUTURA SOCIAL 143

precisões quanto ao “como” e em que forma; a partir da defini­


ção, todos os católicos, os que já estavam nessa crença e os
que não estavam nela, crêem no dogma definido, isto é,
concordam com a definição, a afirmam, aderem a ela: não
teria sentido porém dizer que agora todos estão nesta crença;
mais ainda, nos que nela já estavam, se distingue essa
vaga crença tradicional da precisa adesão à definição dog­
mática; e ainda que um a e outra se refiram ao mesmo, não são
idênticas como realidades religiosas n a vida individual do crente.
Assim, não se eqüivalem a crença no Purgatório e nas almas,
tal como se dá por exemplo no povo, com a “crença” nos di­
reitos da Igreja em m atéria de ensinamento. Não é a mesma
coisa a crença na Eucaristia — que Cristo está verdadeiramente
na hóstia consagrada — , e a adesão intelectual porque se está
nessa crença à doutrina da transubstanciação. Tudo isto, seja
dito de passagem porque não é nosso tema, tem a máxima impor­
tância para o ensino da religião e para a vida religiosa em sua
integridade, tão freqüentemente desvirtuada e deslocada do plano
da crença por uma liturgia descuidada, pelo excessivo manuseio,
pela proliferação de minúcias piedosas, pela inserção de outras
coisas (política, teorias intelectuais, etc.), pela adição do que
poderíamos chamar um a “crosta ideológica” de supostas preci­
sões doutrinais obtidas mediante um pensamento inerte que
opera automáticamente e no vazio, apoiando-se num mínimo de
“dados” religiosos autênticos, pelo afã de “demonstrar” o que
não pode ou não necessita ser demonstrado, esquecendo ou
menospresando a função essencial da crença enquanto tal.
Porém, à parte das transições possíveis de idéias a crenças
ou vice-versa, existe outra questão decisiva para a compreensão
de uma sociedade: a interação efetiva, em cada momento, entre
as idéias e as crenças atuais. Crenças e idéias são, ambas,
órgãos de certeza; as primeiras, em sua função própria, da cer­
teza em “que se está”; as últimas, da certeza “a que se chega” (6).
A certeza total em que repousa nossa vida é, pois, um a resul­
tante da convivência e interação do sistema das crenças com o
repertório das idéias — porque, paradoxalmente, as crenças bá­
sicas devem constituir um sistema, embora vital e não “lógico”,

(6) Veja-se minha Introdução à Filosofia, cap. II, “A função vital


da verdade”.
144 JULIÁN MARIAS

enquanto que as idéias dominantes em um a sociedade podem


m uito bem não ter caráter sistemático — . E sta interação é ne­
cessária, porque as crenças nunca são suficiente, visto
que as situações se sucedem umas a outras e trazem consigo
inovações em relação às quais deve-se saber a que se ater. A
função prim ária e norm al das idéias — portanto, em todo gê­
nero de sociedades e não só nas excepcionalmente intelectuali­
zadas como as nosas — é suprir os vazios, falhas ou fissuras do
sistema de crenças e fazer frente à novidade, diante da qual as
crenças se sentem relativamente indefesas. Por isso, como antes
afirmei, a função das idéias é esporádica e muito reduzida nas
sociedades que denominamos primitivas — ou nos estratos
“primitivos” das sociedades complexas e intelectualizadas — ,
e portanto na grande maioria das sociedades, se se tom a o volu­
me total da humanidade em tôda sua história, ainda que a si­
tuação seja diversa na pequena fração que, por razões claras,
conhecemos melhor e costuma nos interessar mais. O funcio­
namento autônomo das idéias, com vida própria e independên­
cia, é um fenômeno histórico absolutamente insólito.
N a sociedade mais firmemente regida por um sólido e com­
pacto sistema de crenças, a intervenção das idéias é, porém,
inexcusável. Porque as crenças, que não se formaram lógica­
mente, não têm entre si coerência lógica mas sim vital; e como
não estão tôdas na mesma fase nem no mesmo grau de inten­
sidade, sua hierarquia se tom a problemática, os deslocamentos
de umas e outras provocam vazios e fissuras, e diante dêles o
homem se vê na necessidade de se pôr a' pensar para chegar a
saber novamente a que se ater; isto é, mobiliza suas idéias,
desde logo na medida em que as vicissitudes das crenças o tor­
naram necessário.
M as não é só. As experiências históricas, os fracassos
acumulados, quebrantam as crenças; as idéias se encontram com
o fato desta falha, e operam sôbre a nova situação; é indiferente
que a crítica das idéias confirme a falha e apresse o desapare­
cimento da crença, apoie e sustenha esta ou, por último, a ul­
trapasse conduzindo a uma nova formulação da questão; em
todo caso, a intervenção das idéias é novamente exigida pela
situação assim originada.
Referi-me até aqui a um a situação esquemática e irreal:
uma sociedade isolada. N a verdade, as diversas sociedades estão
A ESTRUTURA SOCIAL 145

quase sempre e,m presença umas de outras, e irrompem cons­


tantemente na área de umas, crenças que procedem de outras,
nas quais, portanto, não se está mas se sabe que outros estão.
Esta situação que é decisiva, é talvez a que reclama com maior
vigor o apêlo às idéias. Se se quer entender um a estrutura so­
cial, sobretudo quando se trata de sociedades superiores, deve-se
atender enérgicamente a êste aspecto da interação idéias —
crenças.
E a outro, que talvez é o radical: a situação total das idéias,
isto é, sua relação com as crenças vista a partir destas últimas.
Em outras palavras, a crença nas idéias, a fé variável na razão
que cada sociedade tem e condiciona, em segundo lugar, suas
diversas formas, isto é, a crença em cada uma das maneiras em
que as idéias se realizam: oratória, narração, poesia, dialética,
ciência; e, por sua vez, as diferentes ciências. Quando se per­
gunta pela função efetiva das idéias n a história, a resposta não
pode ser unívoca. São as idéias que movem o mundo ou a quin­
ta roda do carro, talvez a “mosca do carro”, como um a vez per­
guntou Ortega da filosofia? Isto é o que se deve determ inar em
primeiro lugar, mas, entenda-se, para cada sociedade e cada
forma ou possibilidade das idéias. Esta é a dimensão decisiva
em que se move a interação entre idéias e crenças.

31. O sistema da estimativa

Como a vida hum ana consiste em preferir umas possibili­


dades a outras e realizar-se mediante a escolha de uma linha
tem poral que traça sua trajetória em um campo definido por
um a situação, o mundo não é só um conjunto de elementos dota­
dos de certas qualidades mas aparece como um a estrutura de
caráter estimativo. A coisa é decisiva, porque afeta a própria
apresentação das realidades. Quase tanto quanto o aparelho
perceptivo humano, essa estrutura condiciona o horizonte do
mundo que se oferece ao homem. Note-se que da infinidade de
elementos que existem em nosso meio, só um a pequena parte
nos são realmente presentes, isto é, são notados e aparecem
como tais. A disposição de nossos órgãos sensoriais e os hábitos
de seu uso são, é claro, os fatores que em primeiro lugar deí-
terminam essa seleção; mas, a seguir, um a série de valorizações
que nos fazem atender ou postergar os ingredientes perceptíveis
de nosso mundo. O contôm o aparece constituido por um pano
146 JULIÁN MARÍAS

de fundo indiferente, sôbre o qual se recortam os objetos valo­


rizados positiva ou negativamente, dentro de um a hierarquia
variável mas existente em cada caso. A vida hum ana está con­
dicionada, pois, por um sistema da estimativa, que varia histó­
ricamente e que é um dos fatóres constitutivos de uma estrutura
social.
No fundamental, trata-se de crenças. Desde a prim eira in­
fancia, as coisas são apresentadas à criança marcadas por um
valor; o alimento e a chupeta, pouco depois o chocalho e os
brinquedos, lhe são mostrados como algo positivamente valio­
so, se lhe induz a ter um trato favorável com êles, enquanto que
se lhe carregam de emoção negativa os objetos sujos ou perigo­
sos, provocando a aversão em relação a êles; e, em terceiro
lugar, em relação a inúmeras realidades se a deixa em atitude
neutra; é verdade que costuma se tratar de realidades distantes,
ou tão próximas que não chegam a funcionar como objetos: as
roupas, o berço, etc. À medida que a criança vai crescendo e
se vai ampliando seu horizonte perceptivo, se vai enriquecendo
seu mundo com mais elementos, êstes ingressam nele com sua
carga emocional correspondente, se lhe injeta um esquema de
comportamento determinado por um a estimativa. Quando entra
propriamente no mundo — isto é, no mundo comum ou social
— , encontra um sistema de valorizações vigentes, cujo torso
geral coincide com as de seu ambiente familiar, embora não
integralmente. H á valorizações privadas, recebidas pela criança,
não originais, mas também não vigentes na sociedade, que só
pertencem a seu ambiente pessoal; h á também as valorizações
com vigência limitada — a uma classe social, a um a tendência
política, a um a região, etc. — , interpostas entre as privadas e
as da sociedade geral. Por último, começa a atuar a capacidade
estimativa do próprio indivíduo, que modifica êsse sistema rece­
bido com o qual se defronta, primeiro passivamente, logo depois
com um a independência cuja amplitude é muito variável, e pre­
cisamente um dos fatores que urge determ inar para entender
uma estrutura social.
A estimativa se estende desde a m atéria até as relidades mais
abstratas. C ada substância física, desde o ouro ou as pedras
preciosas até os excrementos, está afetada por coeficiente esti­
mativo, que a apresenta como “nobre” ou “vil” . E especial­
mente, é claro, as realidades viventes, vegetais ou animais: a
orquídea e o cardo, o trigo e a cizânia, o cavalo e o verme, o
A ESTRUTURA SOCIAL 147

cordeiro e a serpente, a pomba e a aranha, o leão e a hiena,


a águia e o abutre, o rouxinol e o morcêgo, o delfim, o tu­
barão, a sardinha ou o polvo: todos com seu halo emocional,
com sua valorização adscrita, que provoca em nós um “primeiro
movimento” e condiciona a vigência que dêles temos, e portanto
sua realidade.
E no humano, em grau extremo. Aparecem estimativa­
mente qualificadas as raças, os tipos físicos, as profissões, as
regiões de um país, as religiões. E tudo isso varia historica­
mente. Desde o desdém pelo trabalho nos fidalgos do ano 1.600
até a beatice do trabalho das ideologias proletaristas há um
abismo. A atitude ante os negros, o semitismo ou anti-semitis­
mo, a valorização ou o desprêzo pelo militar, a veneração ou o
escám eo do sacerdócio, a “cotização” social do ser castelhano,
galego, andaluz ou catalão dentro da Espanha — e análoga­
mente nos demais países — , a estimativa diversa dos dois sexos,
a muito variável da criança; tôda a realidade hum ana está di­
retamente constituida pela valorização.
Imagine-se a distância que separa a estimativa de um gla­
diador romano da de um a primeira figura do futebol em nosso
tempo. Avalie-se o que medeia entre a atitude de um nobre do
século X, que se envergonharia de saber ler, e a estimativa vi­
gente no século X IX em relação ao homme de lettres ou o Herr
Professor — e compare-se estas estimativas com as espanholas
do mesmo tempo sôbre o mesmo tipo de homens — . Com pa­
re-se a valorização da condição sacerdotal em 1.400, em 1.580,
em 1.780, em 1.900, em 1.935, em 1.954. Recorde-se o que
significava na Espanha — como facilidade, estima prévia e
simpatia — ser andaluz ao redor de 1.890, e a desvantagem de
ser galego ou talvez estremenho; e esta situação alterou-se pro­
fundamente em meio século.
O estudo de um a estrutura social deve incluir um a deter­
minação dêsse sistema estimativo; só em função do mesmo tor-
na-se compreensível o que se passa, isto é, a m archa efetiva da
história, a estratificação social, a industrialização ou o abandono
da produção, a tem peratura do patriotismo, o tom da religiosi­
dade — influído decisivamente pela estima ou desestima do
clero — , a seleção das profissões e, por conseguinte, a com­
posição da sociedade, as relações entre os sexos, a tolerância
para os vícios e, portanto, as formas morais dessa sociedade,
148 JULIÁN MARÍAS

etc. Pode-se ir da máxima indulgência à mais áspera intransi­


gência para com os pecados da carne, da aceitação da im ora­
lidade econômica à rigidez em questões de dinheiro; pode-se
tolerar a covardia pessoal ou a tom ar como algo que desquali­
fica socialmente; a sensibilidade moral para com a traição admite
graus muito diversos; a condição de homosexual pode ser atroz
ou muito cómoda, inclusive privilegiada. Se não se está escla­
recido a respeito de todos ésses pontos dentro de um a sociedade,
nada se entende.
Mas empreguei, el não casualmente, a palavra “sistema”; a
estimativa, com efeito, o constitui necessàriamente, visto ser
um mecanismo regulador da vida. P or isso não se pode entender
o que é dominante< em urna época e em um a sociedade determi­
nada mediante um simples catálogo de valorizações particulares;
tôdas elas compõem um a figura, que é necessário descobrir e
desenhar, que expressa aquilo que, em um de seus estratos mais
profundos, significa para aquêles homens o verbo “viver” . (Vi­
ver, para o homem, quer dizer principalmente “valer a pena
viver” : lembre-se o velho propter vitam, vivendi perdere causas;
e se não se quer um texto tão elevado, o comentário popular a
um a form a de vida desvalorizada ou desapreciada: “isto não é
viver” .) Daí a valorização aparecer sempre como um mecanismo
ajustado de compensações, e que as crises históricas começam
por um desajuste que costuma levar ao desconcêrto. A meu en­
tender, a função social do duelo, vigente n a Europa do século
X IX , foi principalmente a de manter certa necessidade de valor
pessoal em um mundo excessivamente seguro, aprazível e tran­
qüilo, demasiadamente pouco perigoso — refiro-me sobretudo à
segunda metade do século, talvez até a guerra de 14 — ; a
perda de vigência do duelo sobreveio rápidamente quando o
mundo se tom ou perigoso, quando se necessitou de considerável
valor pessoal para viver com dignidade média, sem necessidade
de acrescentar complicações supérfluas. O duelo mais antigo,
por seu lado, o medieval ou o moderno até o século X V II, re­
presentava um a parte da educação nobiliária e cavalheresca,
um atributo dessa condição, uma escola de treinamento, como
o esporte ou a aprendizagem das línguas modernas em outras
sociedades. Análogamente, a tolerância moral para certos vícios
e pecados costuma compensar excessos de rigidez em outro se­
tor; e ter-se-ia que perguntar a sério pela função, dentro do
sistema total da estimativa, do afrouxamento em seu conjunto
A ESTRUTURA SOCIAL 149

ou do rigorismo; e certamente ver-se-ia que significavam, den­


tro da economia vital, compensações de outros fenômenos, que
não são necessàriamente de índole moral.
Como, por um lado, a estimativa interessa vivamente os
homens, porque colore o mundo, lhe d á vivacidade, relêvo e
dramatismo, e por outro lado a ação individual é nela muito
enérgica, apresenta uma considerável labilidade. Diferem entre
si consideravelmente, não apenas sociedades distintas, mas tam ­
bém as muito próximas; e a variação tem poral é grande de
uma geração à seguinte. Isto significa que a rigor não se pode
“descrever” ou traçar estáticamente o sistema valorativo de
um a sociedade e sim que é preciso contá-lo. A tentativa de
filiá-lo e o expor conduz a fazer sua história. Ainda no caso
daquilo que denominei um a “época mínima”, o essencial é des­
cobrir e narrar o argumento da estimativa, que projeta como sô­
bre uma tela, a figura do homem nesse tempo e o perfil daquilo
que, nele, se entende por felicidade.

32. A ideologia dominante ou imagem intelectual do mundo

Cada sociedade possui um a ideologia dominante, que pro­


duz o que chamo “imagem intelectual” do mundo, para não
sobrecarregar excessivamente de teoria a realidade a que me
refiro; isto é, quero dizer que ainda em se tratando de idéias
e de conteúdos de caráter intelectual, o que tem vigência geral
num a sociedade não é a rigor uma idéia do mundo, menos ainda
o que se costuma denominar uma “concepção” do universo, e sim
um a imagem relativamente vaga, por certo não justificada cienti­
ficamente, e que dista bastante do que, nessa mesma sociedade,
pensam os homens dotados de saber teórico. A origem dessa
“imagem intelectual” não é exclusivamente científica; impor­
tantes ingredientes, de outras zonas alheias à ciência, vêm inte­
grar essa imagem. Por exemplo, da religião. Não é necessário
dizer que uma religião não é uma ideologia; porém, não é menos
certo que em tôda religião existe, mais ou menos implícita, uma
ideologia acêrca da realidade. Consideremos, para recorrer ao
mais próximo, o cristianismo contemporâneo tal como se ensina
em suas formas mais elementares no catecismo e em qualquer
manual escolar de “história sagrada” . Dêste ensinamento de­
corre uma noção imprecisa de mundo criado, em relação com
Deus criador, um a cosmogonia, um a idéia do homem como
150 JULIÁN MARÍAS

realidade corpórea e anímica, urna mínima doutrina psicológica


— os sentidos corporais que se enumeram no catecismo, as “po­
tências da alma”, os vicios e as virtudes, as noções de arrepen­
dimento, atrição, contrição, “dor de coração”, devoção, etc.
— , um a idéia hierárquica da sociedade — pais, mestres, supe­
riores “em idade, saber e govêmo” — , um a visão da história —
povo eleito, profetismo, plano providencial, juízo final — , uma
idéia muito definida do “lugar do homem no cosmos”, em
relação com as plantas, os animais, os espíritos angélicos e a
Divindade, um a noção do milagre e, portanto, de um a ordem
“natural”, quase de “leis da natureza”, tudo isto sem contar
as idéias especificamente religiosas e teológicas, que têm uma
vertente ideológica geral e contribuem também para form ar
essa imagem do mundo: o natural e o sobrenatural, a Encarna­
ção, a idéia de pecado, a noção de eficácia — por exemplo,
sacramental — , a idéia de espírito, a visão escatológica, a inter­
pretação da morte e da imortalidade, os princípios de justiça,
mérito, prêmio e castigo, a oposição do tempo e da eternidade,
etc. Este, e muito mais, é o fabuloso, riquíssimo repertório in­
telectual em que, sem o menor propósito científico, é introdu­
zido o menino da última escola rural espanhola através do ca­
tecismo do P. Ripalda e do modesto compêndio de história
sagrada de Fleury ou qualquer outro: o dilúvio e os sacrifícios;
judeus, filisteus, babilônios, fenicios, macedônios, gregos, ro ­
manos; Baltasar, Nabucodosor e Alexandre Magno; o Nilo, o
M ar Vermelho, o Sinai; a idolatria e o bezerro de ouro; formas
sociais — tribus, poligamia e monogamia, concubinato — ; os
Magos do Oriente; o homicídio — Caim e Abel — , a sedução
— Sansão e Dalila — , o mundo dos sonhos — José — , a insta­
bilidade dos impérios, as paixões da alma, o destino que se
anuncia e se cumpre — Mane Tecei Fares — .
Isto é apenas um exemplo. O que nele me interessa é mos­
trar um a das vias de formação não científica da imagem intelec­
tual do mundo. Os relatos, as lendas, as novelas, o teatro —
— em nosso tempo o cinema e os meios modernos de com u­
nicação — ; os provérbios e refrãos; as tradições, a conver­
sação familiar, a tertúlia de café; as narrações dos viajantes;
os jornais desde que há jornais; tudo isso contribui em diversa
proporção para a constituição dessa ideologia. Compreende-se
que, ao lado disto, toma-se relativamente secundário o ensina­
mento científico como tal: quatro quintos de nossas idéias não
A ESTRUTURA SOCIAL 151

procedem da instrução científica; isto em nossas sociedades ar-


qui-intelectualizadas; em outras, a proporção da ciência será
de uns dez por cento ou de um por mil.
Com isto quero apontar que em tôda sociedade há uma
imagem do mundo ou ideologia básica que é comum a tôda ela,
não privativa das classes cultas ou dos homens de formação
científica; porque todos, inclusive êstes, participam de uma
idêntica imagem à qual se agregam e se superpõem certos ele­
mentos, particulares a cada um dos grupos sociais. Portanto,
é possível se referir a êsse conjunto de elementos comuns que
constituem o torso d a ideologia geral, a qual, por sua vez, é
um dos componentes mais importantes de qualquer estrutura
social.
Porém, depois de frisar enérgicamente êste ponto, é neces­
sário insistir sôbre um aspecto bem diferente: a variação^ histó­
rica dessas ideologias, suas diferenças de um a sociedade a outra,
inclusive próximas, C ada país, por exemplo, sabe suas coisas
próprias, tem suas doutrinas prestigiosas, suas tradições familia­
res, seus autores lidos por “todo o m undo” . E isto varia com
o tempo e com o espaço de poucos anos irrompem em um a
sociedade novas idéias, novas modas, ungidas pelo prestígio do
desconhecido — freqüentemente do exótico, às vêzes do proi­
bido — , pelo afã de novidade dos homens, especialmente de
alguns grupos influentes, imitados depois pelos demais. Por
isto, a imagem intelectual do mundo é — sôbre um fundo “es­
tável” — variável, e certamente em um ritmo muito mais acele­
rado do que o das crenças básicas.
Naturalmente, o saber científico — no mais amplo sentido
do têrmo — é um fator decisivo na formação dessa ideologia do­
minante. Se pode parecer que subestimei sua influência, foi
sómente para evitar o êrro, tão difundido, de querer derivar
da ciência a ideologia que tem vigência em um a sociedade. O
papel da ciência dentro dela não é sempre o mesmo; nem tão
pouco o de cada uma das ciências: a teologia, a astronomia,
a filosofia, a biologia, a história, a física foram condicionando
decisivamente a imagem que o homem médio reteve da reali­
dade, em interação mas com fases de indubitável predomínio
de umas ou outras. Acrescente-se a tudo isto a influência da
técnica na idéia do mundo: não é o mesmo esta quando o
homem se comporta passivamente frente à realidade, quando a
152 JULIÁN MARÍAS

sofre ou, no máximo, quando a utiliza seguindo dócilmente suas


estruturas e disposições, do que quando se serve originalmente
dessas disposições para seus próprios fins pessoais, em prin­
cípio indepententes da realidade que encontram à sua volta, ou
ainda quando vai além e produz êle mesmo essas disposições na
medida em que as necessita para realizar projetos que nada têm
que ver com as possibilidades “naturais” , com que contou tra­
dicionalmente. Para tom ar um exemplo mínimo, pense-se na
“idéia” da realidade que decanta no homem o fato de vestir-se
com a pele de um animal recém caçado, com um traje de lã
ou algodão, ou com um tecido de nylon, dacron ou orlon que,
para começar, não sabe o que é, de onde procede nem como se
faz, mas que é um a realidade produzida “a medida dos desejos” ,
precisamente para satisfazer certos anseios e condições imagi­
nados prèviamente à sua existência. Tôda a técnica dêste século
anterior — tem êste caráter e está produzindo alterações deci­
sivas em nossa imagem do r e a l(7).
A ciência que intervém na constituição dessa ideologia
geral não é, por certo, a atual, e sim a de anteontem. Note-se
que inclusive a instrução cietífica é sempre inatual: os manuais
de bacharelato representam o estado das disciplinas intelectuais
uma ou duas gerações antes; a pretensão de “estar com a últi­
m a” costuma ser inoperante, porque não é suficiente “falar”
das coisas mais recentes ou nomeá-las; são freqüentes, por
exemplo, os livros filosóficos atuais que não pordôam o último
existencialista, mas que jamais conseguiram chegar ao nível
histórico que significou Kant, sendo, pois, intrínsecamente
“pre-kantianos”, talvez pre-cartesianos. À medida que foi au­
mentando a velocidade de notificação e comunicação, que as
idéias “chegam” mais depressa, sobreveio uma aceleração p a­
ralela da variação científica; isto sem levar em conta que não
é suficiente que as idéias “cheguem” , mas que faz falta uma
peculiar impregnação e assimilação, o que examinarei porm e­
norizadamente mais adiante.
A investigação de uma estrutura social deve atender, pois,
a êsse fundo geral de caráter ideológico, porém não obtido ou
possuído intelectualmente, que dá a “imagem do m undo” domi­
nante. Deve reconstruí-lo, assinalar suas linhas diretoras, traçar

(7) Veja-se minha Introdução à Filosofia, cap. I


A ESTRUTURA SOCIAL 153

seus limites — essa imagem é sempre limitada, e não sempre


por igual — , filiar seus diferentes ingredientes, avaliar a impor­
tância e volume de cada um. E, sobretudo — mais um a vez — ,
pôr tudo isso em movimento: mostrar qual está sendo, em cada
instante, essa imagem, para onde vai, em que medida gravita
passivamente sôbre as mentes ou as mobiliza para o futuro. A
realidade não é somente o que “está aí”; é sempre o que “está
vindo”, e também o que “está indo”; e o coração do homem
costuma estar distendido entre ambas as coisas; umas das ca­
racterísticas mais sutis e profundas de um a época está em sua
atitude em relação a isto: se olha com melancolia as coisas que
se afastam no passado ou se lhe arde o desejo ante a iminência
das que estão assomando no horizonte. A realidade efetiva de
uma sociedade e a orientação que tome na história pode depen­
der de pequenas variações dessa sensibilidade; e é essencial que
se oriente definitivamente em um ou outro sentido, ou que oscile,
indecisa e distensa, sem poder renunciar a nada.

33. O que “se” sabe e “quem” o sabe

A função social do saber estritamente intelectual e cientí­


fico está condicionada pela determinação de seu sujeito. Até
o século X V III, pelo menos em seus primeiros anos, o saber
tinha um caráter diretamente pesssoal: o sabido era sabido por
alguém concreto, por um homem individual, que por isso era,
na plenitude do têrmo, sábio; assim Leibniz. Talvez a situação
se prolongue, com menos segurança, até fins do século: Kant.
Depois, a pretensão de saber o que se sabe torna-se quimérica;
e então surge uma nova questão que até então não havia tido
sentido: isso que se sabe, quem o sabe?
O que aqui me interessa não é o aspecto intraintelectual
da questão, isto é, a exigência de especialização, e sim suas re­
percussões sociais. À medida que a totalidade do saber vai
sendo inaccessível, se vai de,spersonalizando e vai sendo, cada
vez mais, assunto de crença. Não é a mesma coisa, de modo
algum, a “fé n a razão” e a “fé na Ciência”; a prim eira atitude
leva a crer que eu posso conhecer tudo, pelo menos qualquer
coisa, se me proponho e persevero o suficiente; entenda-se bem,
não se supõe que tudo é sabido e sim que se pode saber. A
“fé na Ciência”, pelo contrário, implica que se sabe tudo ou
logo se saberá, embora eu exclua o chegar pessoalmente a êsse
154 JULIÁN MARIAS

saber. A Ciência — sempre com maiúscula — tem a resposta;


constitúi-se um a instância impessoal, depositária do saber, de
caráter institucional — as Universidades, as Academias, os la­
boratórios — e que se materializa em bibliotecas: ai, nos livros,
reside o saber.
A coisa é um pouco mais complexa do que parece à pri­
meira vista. Note-se que, ao longo da historia do Ocidente, a
imensa maioria dos homens permaneceram fora do âmbito
geral da ciência. Esta era assunto de muito poucos, que tinham
acesso a ela, conheciam certas técnicas e por isso podiam culti­
vá-la e conhecê-la. A começar pela leitura, e costumamos esque­
cer demasiadamente a universalidade do analfabetismo durante
milênios; sem chegar a tanto, e ainda na Idade Moderna, em
que aumenta consideràvelmente o número de pessoas que sabem
ler, o latim é ainda um a fronteira que separa duas zonas enor­
memente desiguais da sociedade; e em todo caso, inclusive de­
pois de que as línguas vulgares invadem as disciplinas científicas,
o acesso real aos centros de estudo, bibliotecas, etc., fica redu­
zido a muito poucos. Desde o século X V III, sobretudo já quan­
do entrado o X IX , a situação muda. U m número muito maior
de pessoas adquire familiaridade direta com o mundo d a cul­
tura superior; estas pessoas têm um a nova relação com a ciên­
cia: em lugar de ser para elas um a instância alheia e superior,
começam a saber “de que se trata”. Isto é, a ciência se aproxi­
ma, se faz inteligível no sentido de que os cientistas entendem
o que é ciência, têm a impressão de participar dela; inicia-se
um a peculiar comunicação que consiste em que grupos muito
amplos se associam a uma realidade que excede suas possibili­
dades, que conserva um a grande margem de inaccessibilidade e,
portanto, um máximo prestígio; é um a verdadeira “iniciação
nos mistérios”, acentuando tanto a persistência do mistério
quanto a efetividade da iniciação. É o momento em que o
impacto social da ciência é mais forte e eficaz, em que a E uro­
p a vive mais profundamente sob a vigência do saber científico.
E sta situação já se alterou. As razões são muito diversas
— Ortega insistiu nisso, sobretudo em Reforma de Ia inteli­
gencia, Historia como sistema, Apuntes sobre el pensamiento,
e mostrou como o fracasso da ciência nos problemas humanos
foi um fator decisivo na debiütação de sua vigência — . Quero
focalizar aqui o aspecto concernente ao “sujeito” da ciência, e
•que não me parece desdenhável. A complexidade crescente das
A ESTRUTURA SOCIAL 155

disciplinas científicas fez com que se tom em muito mais inacces-


síveis que no século X IX . Esta época foi — não o esqueçamos
— a da “vulgarização”, iniciada já no século X V III, mas domi­
nante no X IX , sobretodo na segunda metade; pois bem, a par­
tir de certa data — diversa segundo as disciplinas, porém apro­
ximadamente a princípios de nosso século — a vulgarização
tom a-se pouco menos que impossível. Enquanto a imagem físi­
ca do mundo no século passado era fácilmente traduzível em
forma elementar — pense-se no que significou durante mais de
cinqüenta anos a Física de Ganot e suas versões mais sus-
cintas — , a teoria da evolução e o darwinismo toleravam uma
exposição aproximada para uso das multidões, a astronomia é
perfeitamente compatível com o P. Secchi e com Flammarion,
as teorias geológicas, “neptunistas” e “vulcanistas”, e geográ­
ficas se transvasam sem muita dificuldade para os livros de
Malte-Brun ou Elisée Reclus, alguns decênios mais tarde as
coisas vêm abaixo. O modêlo atômico de Bohr talvez haja sido
a última teoria científica vulgarizável e vulgarizada; a grande
quebra sobreveio com a teoria da relatividade; provàvelmente
com nenhuma outra tantas vêzes se tenha enfrentado o propó­
sito vulgarizador; tudo foi inútil: os que não conseguiram,
com um a preparação intelectual bastante séria, entender de
dentro a teoria de Einstein, tiveram que se contentar com a;
magnífica fulguração de seu prestígio misterioso e com a tra­
dução — escassamente utilizável — de que “tudo é relativo” .
Outro tanto aconteceu — menos a fulguração — com a teoria
dos quanta, e daí em diante em proporção crescente. Os nomes
dos grandes cientistas deixaram de ser populares e nem sequer
o prêmio Nobel os faz famosos entre as multidões; quando os
jornais indicam que lhes foi concedido por seus trabalhos neste
ou naquele tema, os leitores nem apenas entendem qual é êste.
Embora o caso seja diverso, em füosofia gerou-se uma situação
que apresenta certas analogias: o positivismo parecia ter nas­
cido precisamente para a vulgarização — assim aconteceu ao
extraordinário pensamento de Comte em mãos de seus seguido­
res — , e não é de se estranhar que um de seus lemas terminasse
na bandeira do Brasil — “Ordem e Progresso” — e que ainda
subsistam em vários países — no Brasil e no Chile, por exemplo
— positivistas que praticam a “religião da Hum anidade” ; a
voga das filosofias de Schopenhauer e Nietzsche, por seu atra­
tivo literário, conservou a popularidade do pensamento filo-
156 JULIÁN MARIAS

sófico até os primeiros anos de nosso século; porém a fenome­


nología impôs um esoterismo que desafiava tôdas as vulgariza­
ções; outro tanto ocorre com o simbolismo da lógica moderna
e de tôda a filosofia epistemológica afim. (O que acontece nos
últimos trinta anos e culminou no existencialismo í um tema
delicado, do qual terei que dizer uma palavra um pouco maisl
adiante. )
As massas se sentem, pois, alheias à ciência. Qaando hoje
se fala popularmente de seus resultados, o leitor tem flena cons­
ciência de que isso que tem entre as mãos não é a ciência, mas
sjm um produto especialmente elaborado para êle e que preci­
samente acentua a distância e a inaseqiiibilidade dc científico
em sentido estrito; pense-se na série publicada pela revista
americana Life, com o título The World we live in, “O mundo
em que vivemos”, em que curiosamente se aliam a intervenção
de uma preparação científica amplíssima em sua redação e o
caráter explicitamente “incientífico” do texto obtido. Nada mais
diferente da atitude dos leitores de Flammarion ou Echegaray,
que tinham a impressão de estar nas próprias en-ranhas da
Ciência, menos o esforço e o aparato matemático: “a Ciência
sem lágrimas”.
Mas não é só isso. A ciência não é alheia apenas aos que
não são cientistas como também a êstes mesmos. A proliferação
da produção intelectual tem sido de tal volume, e >eu conhe­
cimento tem exigido, cada vez mais, conhecimentos tão espe­
ciais, que cada homem de ciência tem somente acesso a uma
parte ínfima da bibliografia científica. A ciência havia passado
da personificação no “sábio”, de caráter atual, à impeisonalidade
dos “livros”, só potencial, porque os livros estão aí, porém é
preciso que se vá até êles, que se os leia, para que o saber que
êles contêm se realize e se atualize em alguém; pois bem: esta
atualização tom a-se agora problemática, impossível ein seu con­
junto; isto é, ninguém pode percorrer essa bibliografia, possuir
êsses livros que “estão aí”, porém com um a disponibilidade di­
minuida e em crise. A questão de “quem” sabe o que “se” sabe
sofre uma inflexão: não apenas já não é ninguém concreto,
como também se pensa que não pode ser ninguém eifl absoluto.
E então o “se” toma-se, por sua vez, equívoco. C on o que, as
multidões começam a não saber bem o que fazer com a ciência;
esta, que por um lado está mais perto e mais pateitte do que
A ESTRUTURA SOCIAL 157

nunca — ai está a incrível técnica contemporánea, nos últimos


anos a surpreendente realidade das bombas nucleares, a medi­
cina recente, com seu fantástico progresso, etc. — , por outro
lado é alheia, incompreensível e dificilmente localizável. A coisa
é sutil mas de sumo alcance; se se pensa nas implicações polí­
ticas da física atual ver-se-á como um dos componentes da
situação criada em tôrno à investigação nuclear é a perplexidade
em que se sentem os homens não cientistas e muitos que o são
em relação à realidade pessoal da ciência — e, portanto, em
relação a suas condições, exigências, riscos, possibilidades de
desenvolvimento ou paralização, promessas, ameaças — . Cada
sociedade representa um a posição frente à articulação do sabido
com seu sujeito humano, e a nossa é particularmente instável
e confusa.

34. Os modos de difusão das idéias.

De quatro pontos de vista, pelo menos, pode-se estu­


dar o processo de difusão das idéas, que é condição de sua
eficácia social, portanto, de que se convertam em um ingre­
diente da estrutura de um a sociedade determinada. O primeiro
é o que poderíamos chamar a origem social das idéias; o se­
gundo, suas vias de comunicação e penetração; o terceiro, a
velocidade e a amplitude dessa difusão; o quarto, as transfor­
mações sobrevindas às idéias ao se difundirem num a sociedade.
Entendo por “origem social” das idéias o ponto da socie­
dade em que se engendram e a partir do qual se difundem. O
mais importante é que êsse ponto se encontre dentro da socie­
dade de que se trata ou fora dela; não se pense que êste último
caso seja infreqüente: em inúmeros casos, as idéias são “impor­
tadas”, a ponto de que essa importação é a condição de sua
importância; em muitas sociedades, as idéias têm um prestígio
que lhes vem de serem estrangeiras; assim ocorreu com Roma
em relação à Grécia e o mesmo aconteceu dentro d a Europa
m oderna com muitas nações em relação a outras, por exemplo,
a importação de idéias políticas inglesas no século X V III, de
idéias francesas em quase todo o resto da Europa durante os
séculos X V III e X IX , de idéias alemãs entre 1870 e 1930, etc.
(A Espanha teve suas fases de “exportação” para a Europa,
porém não estritamente de idéias mas de formas de vida, esti­
mativas, estilos, etc.) Em volume considerável, a América
158 JULIÁN MARÍAS

recebeu da Europa, sobretudo da Inglaterra, França e Espanha,


a maior parte das idéias que se foram difundindo no Novo
M undo até ainda neste século; agora começa a surgir a questão
da origem interna de certas idéias americanas, de sua localização
e de sua articulação com as chegadas do exterior.
Nos casos em que a origem das idéias está fora da socie­
dade sôbre a qual atuam, o segundo ponto de vista — vias de
comunicação e penetração — é o decisivo, posto que essas vias
são a condição mesma de tôda realidade de tais idéias nessa
sociedade; mas há outro aspecto que não pode ser passado por
alto. Refiro-me ao fato de não se poder aceitar sem mais a tese
de que as idéias de um a sociedade se engendram “fora” dela;
que isto seja assim implica que duas sociedades concretas e efe­
tivas (a “exportadora” e a “im portadora”) estão dentro de um a
“sociedade” mais ampla, sem dúvida abstrata e parcial, porém
não menos existente (a Hélade, o mundo greco-romano, Europa,
Ocidente, etc.). Avalie-se como isto é decisivo para entender
fenômenos como a colonização e suas diversas formas e também
para processos do tipo de “japonização”, em que a índole da
“sociedade” abstrata, da que formam parte as concretas que
exportam e importam idéias, é problemática. Poder-se-ia fazer
uma história da colonização dêste ponto de vista, isto é, da
constituição de “sociedades” mais ou menos tênues, capazes
de englobar a metrópole e cada um a das colônias, ou estas
entre si; e isto, por sua vez traria não pouca luz sôbre a reali­
dade social dos países que um dia foram colônias e sôbre suas
relações atuais com os antigos colonizadores. Outro tema, seja
dito de passagem, que deveria ser tratado a fundo para chegar
a um a compreensão decente do têrmo “Ocidente”,
De qualquer modo, esteja a origem das idéias dentro ou
fora da própria sociedade, existe sempre uma origem interna:
aquêle “lugar” da sociedade em que se engendram ou onde
acontece o fato de sua introdução a partir do exterior. Êsse
lugar é sempre de um a extensão muito reduzida; um a fração
extremamente m inoritária do corpo social desempenha essa
função; mas à parte dessa precisão quantitativa — que, além
disso, não é tão precisa, pois a ordem de magnitude dessa fração
pode ser consideràvelmente variável — , o mais im portante é
saber que pessoas e com que figura social compõem essa m ino­
ria criadora ou introdutora das idéias. Pode se tratar de indi­
víduos como tais, isolados; pode se dar que se trate de corpo­
A ESTRUTURA SOCIAL 159

rações como as escolas, os conventos, as instituições universi­


tárias; é também possível que se estabeleceça um sistema de
relações que levam à constituição daquilo que se chama “mundo
intelectual”, “vida literária”, etc.; não é indiferente que em urna
sociedade a origem das idéias seja um ponto único, pelo menos
com predomínio opressor — o caso de París dentro da França
— , ou uma pluralidade de centros parciais com locaüzações
distintas, como ocorreu na Grécia e sucede na m oderna Ale­
manha. Outra determinação que tem grandes conseqüências é
o nível social dessa zona em que se leva a cabo a gestação das
idéias; e isto em dois sentidos: o estrato social de que proce­
dem as pessoas que assumem essa função e a hierarquia social
que lhes pertence por havê-la realizado; pense-se nos monges
medievais, nas côrtes renascentistas italianas, na Universidade
européia do século XIX.
As vias de comunicação e penetração das idéias no corpo
de uma sociedade, partindo do ponto em que originaram ou de
fora de onde chegaram, diferem enormemente. Não é o mesmo,
é claro, uma sociedade de dimensões reduzidas — um a cidade
grega — e um a enorme — os Estados Unidos — ; a situação
varia segundo o grau de homogeneidade da sociedade, mas sobre­
tudo segundo sua estrutura: distribuição em cidades e relações
entre estas, existência de um a elite ou minoria intelectual dire­
tora, capacidade de irradiação desta, prestígio de que goze,
interferências com o poder público ou eclesiástico, margem de
liberdade, número e importância das intituições docentes, meios
de difusão — imprensa, livros, revista^, jornais; hoje cinema,
rádio, televisão — e função social que cada um dêles desem­
penhe. Alguns exemplos esclarecerão o modo de atuação dêstes
fatores tão diversos.
A maior parte dos livros francêses são impressos em Paris;
os espanhóis, desde o século X V II, em M adrid, e a partir do
X IX , também em Barcelona; os alemães, diferentemente, em
inúmeras cidades, das quais Berlim é apenas um a e não a
primeira: Leipzig, Munich, Frankfut, Hamburgo, Halle, Tubin-
gen, Paderbom, Heidelberg, Stuttgart. Se pensamos na América,
enquanto a produção editorial dos Estados Unidos se distribui
em muitas cidades — Nova Y ork, Chicago, Boston, Cambridge,
Filadélfia, Washington, Los Angeles, Berkeley, New Haven, etc.
— , a argentina se concentra em Buenos Aires, a mexicana na
cidade do México, e quase se pode dizer que a de tôda a H ispa­
160 JULIÁN MARIAS

no-américa nestas duas cidades. E não se trata só de centros


editoriais, porque a organização da vida intelectual não coincide
com êles de maneira uniforme: enquanto em alguns lugares as
Universidades estão nas cidades importantes, portanto em rela­
ção imediata com a vida social e com o que se denomina
“círculos literários” — o caso máximo disso é Paris — , em
outros países, como na Alemanha, existem as pequenas cidades
universitárias a partir das quais se realiza uma peculiar “irra­
diação” de vida intelectual sôbre o conjunto da sociedade; e
uma terceira forma é constituída pelas muitas Universidades
dos Estados Unidos — a forma intermediária está representada
pela maioria das inglêsa,s — em que o “mundo” intelectual é
realizado pela própria Universidade, com seu campus, suas resi­
dências, etc., a qual está “localizada” em uma cidade, quase
sempre pequena, relativamente independente e da qual só em um
sentido muito remoto se pode dizer que seja um a cidade univer­
sitária. Isto faz com que a vida intelectual e literária seja máxi­
mamente pública n a França, de um modo menos direto na
Alemanha e decididamente menos na Inglaterra, enquanto que
nos Estados Unidos seja profissional e exerça sua influência sôbre
a sociedade através do prestígio das instituições.
Por outro lado, enquanto que o número de centros docentes
de caráter universitário conta-se, no máximo, por dezenas nos
países da Europa, nos Estados Unidos se eleva, desde há muito,
a várias centenas e atualmente ultrapassa consideràvelmente o
milhar, o que significa que a difusão das idéias na sociedade
norte-americana se faz muito mais em form a de college instru-
ction do que de participação de uma vida acadêmica — Ale­
m anha — ou literária — França, Espanha, Itália, Hispano­
américa — , relativamente inconcreta e que se realiza em bôa
parte no jornal diário — que trata de temas intelectuais e
publica artigos de escritores não jom aüstas — e nos cafés.
Porém dever-se-ia acrescentar, por sua vez, que essa “instrução
universitária” americana não corresponde exatamente à européia
continental mas que é em sua parte principal educação, forma­
ção pessoal, isto é, que leva a cabo — como era de se esperar —
uma função que em ampla proporção se parece mais a dessa
transmissão difusa do jornal e da tertúlia, do que aquela reali­
zada no centros de ensino europeus.
Diferenças análogas se dão na form a de se conseguir os
prestígios, necessários por sua vez para a penetração das idéias
A ESTRUTURA SOCIAL 161

na sociedade. N a França foi inexcusável, há muito tempo, o


triunfo e a consagração em Paris; na Alemanha, o mundo dos
Gelehrte, mais fechado sôbre si mesmo, uniu o prestígio a certos
títulos acadêmicos de hierarquia rigorosa; na Inglaterra esteve
vinculado em grande proporção à vida política — a qual, por
sua parte, era uma escola de manners — e a prolongação natural
dos centros de ensino; isto é, enquanto na Alemanha o que
realmente dava prestigio era ser ordentlicher Professor (Ordina-
rius) em lena, Tubingen, M arburg ou Berlim, na Inglaterra se
tratava mais de ter estudado em Eton, Harrow, Oxford ou
Cambridge do que de ensinar nessas instituições, e o desenvol­
vimento do que ali se adquiria não levava normalmente à ativi­
dade acadêmica e sim ao Parlamento, ao Civil Service ou a
uma personalidade de escritor que unia a erudição clássica e
a pureza de estilo a um afetado descuido e um humour rigoro­
samente oposto à Gründlichkeit do professor alemão. Na Espa­
nha as coisas foram demasiado variáveis para que se as possa
caracterizar de um modo simples, e será necessário investigar
com cuidado êste mecanismo social na transição do século
X V III à metade do século XIX, em que êste consolida uma
primeira figura própria neste aspecto.
Os característicos e os modos de influência das publicações
estão em íntima conexão com tudo isto e com a margem de
liberdade de que disponham. Em sociedades em que esta é
muito precária, a palavra falada adquire uma importância incom-
paràvelmente m aior, e como desaparece ao cabo de algum
tempo, isto dificulta extraordinàriamente o estudo posterior de
uma sociedade em tais condições. Até o século X IX , a influên­
cia das publicações jornalísticas foi muito escassa para a difu­
são das idéias; há uns cento e cinqüenta anos, a existência de
um sem número de revistas e jornais, muitos com grande
circulação, fêz com que êstes se convertessem em um meio de
primeira ordem e, em certos países, espantosamente superior a
todos os demais. Naturalmente, o tipo de publicação de jornal
que serve de veículo para a penetração das idéias varia segundo
as sociedades; nos países latinos é, sem dúvida, o diário; na
Inglaterra, a revista highbrow e alguns diários do mesmo teor,
como o Umes; na Alemanha, algumas revistas intelectuais e um
ou outro diário, mas em conjunto com menos fôrça de pene­
tração do que os livros; nos Estados Unidos, sem dúvida os
magazines, com um a hierarquia muito matizada entre êles: não
162 JULIÁN MARÍAS

é a mesma coisa atualmente The New Yorker e o Collier’s, o


Time e o Newsweek, o Life e o Harper’s Magazine ou o Atlantic
Monthly. Na Espanha, durante os últimos quinze anos produ-
ziu-se uma baixa rapidíssima da influência e eficácia dos jomáis
— e das revistas — para a difusão das idéas, e isto se compen­
sou com um incremento surpreendente da fôrça social do livro.
Quando os poderes públicos intervém ativamente na difu­
são das idéias, isto é, quando não se limitam a proporcionar os
instrumentos para sua difusão — por exemplo, os estabeleci­
mentos de ensino, bibliotecas, ,m useus, etc. — , mas limitam
positiva ou negativamente o conteúdo dessas idéias, as conse­
qüências são várias e, se bem se vê, desorientadoras. Porque,
naturalmente, o Poder assegura e intensifica a propagação me­
cânica das idéias, isto é, sua notificação, porém ao mesmo tempo
sua intervenção as disvirtua como idéias, as coloca em uma
dimensão que não é a sua própria e automáticamente lhes faz
perder eficácia. As idéias impostas não valem como idéias, e
embora circulem o fazem fora de suas próprias vias, extrava­
sadas, e produzem efeitos sociais de outra ordem. Um caso espe­
cialmente claro e interessante é o das autoridades religiosas, so­
bretudo quando têm caráter eclesiástico: quando a intervenção
se mantém fiel a sua própria esfera, isto é, a do poder
espiritual, põe em jôgo o sistema de crenças religiosas vigentes
e as idéias conexas com elas, e, portanto, se move no âmbito
próprio das idéias e sua função social; (e digo crenças vigentes,
porque êste efeito se estende inclusive aos indivíduos que pes­
soalmente não aderem a elas). Com efeito, quando a autoridade
eclesiástica se comporta como tal, como autêntico poder espiri­
tual, tem autoridade até para os não crentes; pelo contrário,
quando em virtude de conexões com o poder temporal utiliza
os recursos dêste último, perde sua autoridade, qualquer que
seja sua fôrça, ao abandoná-la para lançar mão dos instrumen­
tos próprios do Estado; e com isso sai do âmbito genuino das
idéias e perde sua gravitação sôbre êle. Os exemplos concretos
de tôdas estas variações, em sociedades definidas por diversas
religiões e relações muito diversas com diferentes poderes, po­
deriam ser acumulados sem dificuldade. Dentro da época
atual se dão formas extremamente diversas, se bem que as dife­
renças estejam atenuadas — sobretudo, tendentes a atenuar-se
— pelo fato de que hoje todos os países vivem “em presença”
uns de outros e as conexões entre potestades em um ponto do
A ESTRUTURA SOCIAL 163

mundo são “patentes” em todos os demais e secundáriamente


exercem ali sua influência.
Quanto à velocidade e amplitude com que se opera a difu­
são das idéias, a variação é sobretudo histórica. Uma e outra
têm aumentado em incrível proporção a partir do final da
Idade Média, com etapas claramente definidas: a introdução da
imprensa, a fins do século XV; o aparecimento, a partir dos
últimos anos do século X V II, de Gazetas eruditas que põem
em comunicação os homens cultos da Europa, combinado com
a fundação de Academias e a publicação de dicionários de
grande difusão — Chambers, Moreri, Bayle — , sobretudo a
Enciclopédia e com ela a constituição dos grupos sociais “ilus­
trados” em todos os países, ao mesmo tempo que dominam as
línguas vulgares em tôdas as disciplinas científicas e o francês
funciona como meio de comunicação internacional; o estabe­
lecimento da Imprensa diária em começos do século X IX , unida
ao triunfo geral do parlamentarismo na Europa, a industriali­
zação, a constituição de uma burguesia próspera e numerosa
e a aceleração das comunicações: ferrovias e telégrafos; por
último, a incorporação ativa da América — secundáriamente de
outras zonas extra-européias — , unida à sucessão vertiginosa
dos progressos técnicos da comunicação: telefone, rádio, cinema,
televisão, automobilismo, aviação.
Seria porém um êrro supor que é suficiente levar em conta
os meios de comunicação; o decisivo é o uso que se faça dêles,
isto é, a atitute dos homens. Lembre-se a rápida difusão de
idéias nos meios humanísticos até meados do século XV I, e
compare-se com o crescente isolamento da Espanha, por exem­
plo, desde essa data e sobretudo desde 1640 aproximadamente
— o que Valera chamava “a muralha da China” de que se rodeou
a Espanha no século X V II, e Ortega denominou “a tibetização
da Espanha em tempos de Felipe IV ” — . Por outro lado, tão
pouco é certo que a proibição e os entraves diminuam a velo­
cidade de difusão: depende de como se reaja a êles, isto é, da
atitude daqueles que os sofrem; enquanto no século X V II, sobre­
tudo em sua segunda metade, as restrições são efetivas, um
século depois persistem igualmente — tenha-se em mente os
malogros de Jovellanos e as dificuldades incríveis que encontrou
para importar livros e formar a biblioteca em Gijón — , porém
são burladas, e os escritos introduzidos ilegalmente compensam
a escassez de seu número com a rapidez em passar de mão
164 JULIÁN MARÍAS

em mão e com o crédito automático que logra o clandestino. E


de um terceiro ponto de vista, o que as comunicações conse­
guem é anulado talvez em grande parte pelo nacionalismo: en­
quanto os humanistas ou os ilustrados constituem uma só
familia intelectual em tôda a Europa, que se corresponde
e lê m útua e ávidamente os escritos, no século passado e
em nosso atual produzem-se situações em que, por espírito na­
cionalista, vaidade local ou partidarismo político não se lê os
livros que se tem ao alcance da mão e se ignora a produção
intelectual do outro lado da linha fronteiriça.
Tudo isto, que se refere primàriamente à comunicação
entre países diferentes, vale, com mínimas correções, para a di­
fusão das idéias dentro de uma sociedade particular; dêste
ponto de vista, deve-se dar um valor especial à extensão da
cultura média e à existência de minorias intelectuais prestigio­
sas; neste sentido, a comparação entre o primeiro têrço do
século X IX e o primeiro têrço do século X X não pode ser mais
esclarecedora; e assim, enquanto na prim eira destas etapas se
consuma o grande atraso intelectual da Espanha e sua desar­
ticulação da comunidade européia, na segunda se realiza, com
celeridade quase imcompreensível, a reintegração à “altura dos
tempos” .
Por último, — e isto é o mais interessante e o mais deli­
cado — deve-se considerar as transformações que as idéias ex­
perimentam ao se difundirem no seio de uma sociedade. Antes
de tudo, alterações de seu repertório e da figura que em seu
conjunto compõem. Se se fala das idéias de uma época, se
propende a pensar na totalidade das idéias que compõem a men­
talidade de uma grande figura representativa: Santo Tomaz,
Erasmo, Descartes, Locke, Leibniz, Voltaire. Porém as idéias
de uma sociedade, nesses mesmos tempos, são outras: em pri­
meiro lugar, mais antigas, porque a lentidão da vida coletiva
impõe um décalage entre o grande intelectual e o corpo social
em que vive; mas é preciso analisar em cada caso qual é êsse
desnível, que medida exata tem essa “antiguidade” das idéias
da sociedade em questão. Em segundo lugar, nem tôdas as
linhas do que escreve o intelectual criador transcendem a cole­
tividade; e ao faltarem algumas — mais ou menos — modifica­
se sua perspectiva e sua hierarquia, e por conseguinte o con­
junto de suas relações, isto é, constituem outro sistema vital. Em
terceiro lugar, há um a grande diferença em sua expressão, e a
A ESTRUTURA SOCIAL 165

expressão é componente intrínseco das idéias; e ao falar de


expressão refiro-me a duas coisas: um a delas é a necessária
“vulgarização” ou “popularização” das idéias, que têm que se
verter em forma mais fácilmente exeqüível; é a diferença que
vai dos Philosophiae naturalis principia mathematica ao New-
tonisme pour dames do cavalheiro Francisco Algorotti; a outra
vertente da variação expressiva é a devida a todo género de
precauções; não se esqueça que a liberdade intelectual quase
nunca e em quase nenhuma parte existiu, e, portanto, a diferen­
ça entre o que “se diz” e o que “se quer dizer” é normalmente
muito grande, desde logo em todos os escritos destinados a
uma ampla difusão; geralmente, o autor não diz o que quer e
sim o que pode, o que é outra coisa; o leitor, que tradicional­
mente soube disso — só agora o esquece, após a experiência
do século em que a liberdade intelectual teve bastante reali­
dade (1815-1914) — , não conseguiu entender o que o autor
disse e sim o que “crê que quer dizer” ; porém como é suma­
mente improvável que acerte de todo, estamos diante de três
instâncias: 1) o que o autor pensa e quer dizer; 2) o que diz;
3) o que a sociedade entende; se não se leva em conta isso,
difícilmente se pode saber quais são as idéias de uma sociedade
determinada.
Porém, descontado tudo isso, o decisivo é ainda o fato de
que as idéias não têm a mesma função vital nos intelectuais e
nos que não o são. Por isso, em mãos dêstes últimos perdem
agudeza, precisão, rigor teórico, degeneram como tais idéias; e
isto não só por um a deficiência de nível intelectual das mutli-
dões, como também por algo mais profundo: porque isso, o
rigor teórico, não lhes interessa; as multidões usam as idéias
para outros fins e em suas mãos — em suas mãos mais que
cm suas mentes — perdem suas arestas, sua transparência e sua
exatidão, quase sempre também sua verdade; mas, como estão
em suas mãos, adquirem o que na mente dos homens teóricos
nunca tiveram: fôrça. Para que as idéias de Descartes, Leibniz,
Locke e Newton a tivessem, para que fôssem uma potência his­
tórica, tiveram que deixar de ser as suas próprias para serem
as do homem médio de 1790, passando pelas de Voltàire,
d’Alembert, Holbach, Destutt de Tracy; para que as idéias
de Hegel se convertessem em um elemento transform ador das
estruturas políticas e sociais do mundo tiveram que se trans-
166 JULIAN MARIAS

formar elas próprias, e através, não do O Capital mas do Ma­


nifesto comunista, chegar às ideologias dos partidos marxistas
e anti-marxistas.
Dizia mais acima que as formas do pensamento atual são
tão esotéricas e difíceis que a vulgarização se tom a quase impos­
sível, e dava como exemplo a teoria da relatividade ou a feno­
menología; mas advertia também que nos últimos trinta anos se
estava produzindo um fenômeno sumamente curioso; êste é o
momento de dizer uma palavra sôbre êle. As formas mais re­
centes de filosofia, que, por certo, são de grande dificuldade
— os nomes de Heidegger ou Jaspers bastam para prová-lo, e
não fica atrás L’étre et le néant — , são irmãs uterinas de certas
formas literárias, novelas e dramas, com freqüência dos mesmos
filósofos, e que expressam a mesma interpretação geral da
realidade. Pois bem: creio que isto significa, ao mesmo tempo,
a possibilidade de difusão social dilatada de doutrinas em. si
mesmas muito pouco accessíveis e o recurso para que essas dou­
trinas não degenerem ao passar para as multidões, visto que
se difundem e se transmitem em forma não teórica (8).

35. A opinião e sua dinâmica

Com o que foi dito até agora não se obteve ainda uma
teoria suficiente das idéias, das crenças e de suas relações,
porém se definiu as linhas de seu funcionamento dentro de
uma sociedade e, portanto, determinou-se as possibilidades m e­
tódicas efetivas de estudar uma estrutura social. Mas as crenças
e as idéias como tais não bastam, e é necessário levar agora
em conta o fenômeno da opinião.
Disse crenças e idéias como tais, porque é preciso saber se
as opiniões são em si mesmas diversas de umas e outras, ou ape­
nas um a forma de seu funcionamento. As opiniões são expressas,
e nisso se diferenciam das crenças em sentido estrito; não se “está
em uma opinião”, como se está em uma crença, e sim se “tem”
um a opinião como se tem uma idéia. Mas, por outro lado, não
deixa de ser sintomático que se use o verbo “crer” muitas vêzes
para manifestar as opiniões: “creio que amanhã fará bom tem-

(8) Sôbre isto, veja-se meu estudo “La novela como método de
conocimiento”, incluído no livro La Escuela de Madrid (Obras, V ).
A ESTRUTURA SOCIAL 167

po”, “creio que tal política é ,mais favorável” . As opiniões têm


algo que ver ao mesmo tempo com as idéias e as crenças, mas
não se confundem nem com umas nem com outras. Em que
se baseiam as conexões e as diferenças?
A crença em sua forma plena e rigorosa é o inquestioná­
vel; tanto o é, que não só não se enuncia como nem sequer
dela se tem consciência expressa; orienta a vida na medida em
que nos apresenta a realidade de certo modo, e de maneira al­
guma enquanto enuncia algo sôbre um objeto. A opinião tem
també;m uma função orientadora; porém, longe de ser inques­
tionável, lhe pertence intrínsecamente a questionabilidade e pre­
cisamente na forma de ser uma entre várias opiniões possíveis.
Poder-se-ia pensar que se trata de um a crença insegura ou de­
bilitada; tal não se dá: a opinião mais enérgica conta com
outras, às quais se opõe enérgicamente, e a opinião exclusiva
ou única se desvanece como tal opinião; na política, por exem­
plo, quando se opina uma só coisa, a rigor não se opina essa
coisa, desaparece o fenômeno da opinião, substituido pela sub­
missão, a indiferença ou o enfado. Algo parecido acontece com
as estimativas literárias, estéticas, etc.: quando são sólidamente
vigentes, quando são pràticamente homogêneas ou únicas, dei­
xam de ser opiniões; e assim, nos é difícil dizer que opinamos
que Velasquez era um grande pintor, que Napoleão entendia de
guerra, que Homero escreveu poemas interessantes.
Por outro lado, embora as opiniões, por serem expressas
e enunciadas, se assemelham às idéias, apresentam diferenças
importantes. Compare-se uma pesquisa do Instituto Gallup com
um exame. A primeira inquere acêrca das opiniões dos sujeitos
interrogados; o segundo, acêrca das idéias. Quando se pergunta
quem é o “homem do ano” ou se a política que se segue no
Oriente é acertada, há uma porcentagem de respostas em um
ou outro sentido, e sempre um tanto por cento dos que “não
têm opinião”. O aluno examinado, quando o professor pergunta
qual é a fórmula do volume da esfera, a capital de Honduras,
os caracteres dos equinodermes, a data da batalha de Lepanto
ou as leis do silogismo, responde ou não, mas nunca se lhe
ocorre dizer que “não tem opinião”; no máximo, dirá que
não tem “nem idéia” . É o mesmo? O examinando supõe que
“se sabe” o que se lhe pergunta, ainda que êle próprio não o
saiba; portanto, que o poderia saber, provàvelmente deveria
saber e que não pode dizer outra coisa, porque seria uma falsi-
168 JULIAN MARIAS

dade e o suspenderiam. O interrogado acêrca de suas opiniões


parte da “opinabilidade” dos temas, isto é, de sua insegurança
e da pluralidade de opiniões sôbre êles: uns opinam que o
“homem do ano” é Adenauer, e outros, que é Mendés-France;
um terceiro grupo é unánime em que é M cCarthy, e um quarto
Einstein, e um quinto Gina Lollobrigida; qualquer destas coi­
sas e outras mais — ainda que não qualquer — se pode opinar,
e nem sequer tem sentido pensar que haja uma resposta única,
como para a fórmula do volume da esfera ou a data da batalha.
Quando alguém declara que não tem opinião, não quer dizer que
não sabe e sim que não tomou posição por falta de interêsse
ou por não ter presentes as possibilidades de opinar ou por não
contar com os elementos suficientes para que sua adesão se mo­
bilize até um a delas. Isto significa que não se tem opinião
sôbre qualquer coisa, mas somente sôbre certos temas que inte­
ressam para orientar a vida. Quando leio um jornal, me infor­
mo que tal equipe de futebol ganhou um a partida, e então tenho
idéia disso, porém falta-me qualquer opinião esportiva, porque
minha atividade não se põe em marcha, e não me oriento sôbre
o futebol porque na economia de minha vida não surge a neces­
sidade nem a fruição de saber a que me ater sôbre as probabili­
dades de que uma ou outra equipe vença o campeonato.
O que primeiro se deve determinar, se se quer investigar
a função das opiniões como componente de um a sociedade, é
o que poderíamos denominar sua “área”; e isto em vários senti­
dos. Antes de tudo, sôbre que temas se opina em um sociedade
concreta: quantos e quais. As diferenças são enormes; há so­
ciedades em que relativamente se opina sôbre poucas coisas;
há outras, pelo contrário, dominadas por uma febre de opinião.
H á muitos temas sôbre os quais não se opina, não por acaso mas
porque uma vigência imperante assim o estabelece; sôbre ou­
tros, por sua vez, a opinião é socialmente exigida, no sentido
de que se conta com ela: a ideologia da moda, seja o rom anti­
cismo, o surrealismo, ou o existencialismo; os candidatos às
eleições, o livro discutido, as personalidades rivais, as belezas
mais famosas, os atores, etc.
Em segundo lugar, deve-se precisar quem opina em cada
caso. Não me refiro só ao número dos opinantes, embora seja
êste muito variável e oscile entre extremos muito distantes, mas
sim à sua estrutura. (Naturalmente, ao dizer que o número dos
opinantes varia, não quero dizer dos que opinam, porque todo
A ESTRUTURA SOCIAL 169

o mundo opina alguma vez, e sim dos que, num certo sentido,
fazem profissão de opinar, daqueles que normalmente opinam
sôbre as coisas e, portanto, contribuem para formar a opinião,
isto é, a opinião dominante na sociedade.) Com efeito, os opi­
nantes podem ser uma massa amorfa ou constituir um conjunto
ou uma série de conjuntos articulados. Quando se fala, por
exemplo, da existência de um público, indica-se ésse fato — e
também outro que veremos depois — . Em algumas sociedades
existem núcleos de “entendidos” ou connaisseurs que opinam de
maneira coerente sôbre política, literatura, música, teatro, ele­
gância; êsses núcleos podem ser mais ou menos incomunican­
tes, e, portanto, as opiniões se articulam entre si em diverso
grau: talvez os que opinam sôbre a ópera não têm conexão
com os que opinam sôbre a literatura, mas sim com os que
regem as opiniões sôbre a beleza feminina ou a elegância; e
em outros momentos ou em outros países é nos salões onde se
opina sôbre literatura. A estimativa geral em uma sociedade de­
pende, em grande parte, desta estrutura da opinião; e portanto,
o que Ortega denominou o “poder social” que possui cada
profissão ou cada indivíduo: os escritores, o clero, os militares,
os ricos, os políticos e cada um dêles em particular. Quando
a opinião está dividida em compartimentos estanques não é
fácil uma valorização genérica, e o trato social torna-se titu­
beante e difícil, a menos que exista uma estimativa geral de
tudo o que é particularmente estimado; isto é, as valorizações
estritas, procedentes de círculos parciais, contarão, nesse caso,
com uma “cotização” n a sociedade que permite estimar o que
é “importante” em qualquer campo; então o grande físico goza
de estima entre os que nada entendem de física, e o grande mú­
sico entre os que dormem em um concêrto, e o grande toureiro
entre os que são incapazes de distinguir um “miura” de uma
vaca holandêsa, não porque êles opinem e sim porque os cír­
culos respectivos opinem que uns e outros são eminentes.
A opinião dominante quase sempre nasce em círculos redu­
zidos; muito freqüentemente procede de indivíduos: um crítico
provoca a opinião literária ou musical, uma dam a define a
opinião sôbre a elegância, uma revista inicia a opinião intelec­
tual que vai dominar num a extensa zona, um jornal de especial
prestígio configura um setor de opinião pública. Um núcleo
m aior “segue” essas opiniões, porém ativamente; isto é, os in­
divíduos que o compõem opinam também, porque entendem
170 JULIÁN MARÍAS

do assunto, porém orientados, dirigidos por aquéle individuo


ou aquéle grupo exiguo. Urna zona social muito mais ampia
aceita e faz sua a opinião, sem “entrar nela” . É decisivo para
o equilibrio das opiniões que éste esquema se cumpra mais ou
menos perfeitamente dentro de uma sociedade, dependendo pois
da existência désses fermentos prestigiosos — e de sua liberdade
de expressão — , por um lado, e por outro da docilidade do
resto do corpo social.
Aludi ao equilíbrio das opiniões; não quero dizer com isso
estabilidade, porque as opiniões devem ser instáveis. Sua pró­
pria multiplicidade essencial, a insegurança que as afeta intrín­
secamente — há uma íntima conexão entre opinião e o parecer
(assim a dóxa grega) — , o ser objeto de atos explícitos de
opinar, tudo isso introduz uma considerável mobilidade e labi-
lidade das opiniões. A opinião rígida e imutável é indício de
anquilosamento social; sua absoluta fugacidade, sintoma de
inconsistência; a variação com ritmo das opiniões, sua fácil
contraposição, a flexibilidade com que se discutam, se enfren­
tem e se corrijam, a passagem de cada indivíduo de uma para
outra são fenômenos que denunciam a vitalidade e a saúde de
um organismo social, como o pulsar do sangue nas artérias.

36. Opinião privada e opinião pública

A opinião é um dos grandes reguladores da vida coletiva.


A vida intelectual e artística, a convivência social, a economia,
a política sobretudo, se fundam na dinâmica das opiniões. Mas
é necessário introduzir ainda uma última distinção, sem a qual
se pode incorrer em graves confusões e, portanto, não entender
bem como funciona a opinião enquanto ingrediente de uma
estrutura social. Refiro-me à contraposição entre opinião priva­
da e o que se chama “opinião pública” .
A opinião consiste em que eu opino; é, pois, um ato
individual que o indivíduo executa como tal indivíduo. Uma
mesma opinião pode ser compartilhada por outros vários in­
divíduos, talvez por muitos; num limite, por todos os membros
de uma unidade social; neste caso diremos que se trata da
opinião geral ou comum; evidentemente não é preciso que seja
a opinião de todos mas sim da maioria. (Deixo aqui em sus­
penso o que significa neste contexto a palavra “maioria” . É
algo apenas quantitativo? É suficiente a metade dos indivíduos
A ESTRUTURA SOCIAL 171

mais um? É necessário a metade mais um? E a metade de que?


Da totalidade da população ou dos que denominei “os opinan­
tes”? Como se vê, a coisa não é muito simples; mas não se
pode responder a essas interogações neste momento, porque in­
tervém na questão elementos que só aparecerão no capítulo VI).
Temos que evitar, porém, um érro: considerar equivalentes a
opinião particular e a privada, a geral e a opinião pública.
Considere-se que quando há opinião pública há várias opiniões,
tôdas igualmente públicas; isto é, as opiniões minoritárias e
até singulares podem ser perfeitamente públicas. Não é, pois,
um caráter quantitativo a condição que se trata de precisar.
Nem sequer é bastante o caráter social ou coletivo. Isto
é, não é suficiente que a opinião seja o que “se” opina, dife­
rentemente do que opina cada individuo como tal. Nem ainda é
suficiente que a êste caráter se acrescente o de sabido por todos,
ou seja que cada um saiba que os demais o sabem, que cada
individuo saiba que a opinião de cada um dos demais é igual
à sua. Falta uma condição sutil, porém de suma importância:
que isso conste. Quando num a assembléia alguém pede que algo
“conste em ata”, o que pede? Que os demais se enterem? Não,
porque o acabam de ouvir. Que o subscrevam ou o apoiem? De
modo algum. Simplesmente, que tenha existencia pública, que
não pertença ao mundo privado das vivências de cada um, mas
que ingresse no mundo de todos, que “esteja aí” , no âmbito co­
mum, que fique em disponibilidade, que seja, em suma, urna
instancia à qual se possa recorrer. Todos sabem que aconte­
ceram ou acontecem muitas coisas perfeitamente conhecidas, e
no entanto não constam, não se pode apelar a elas, não se conta
com elas para estabelecer uma ação social de nenhum tipo, não
têm existência em uma zona da realidade que é justamente a
vida pública.
Como algo pode constar é outra questão. Os modos da
publicidade ou da publicação são muitos e mudadiços. Em
certas formas de sociedade, basta que algo seja dito em público
— naturalmente esta expressão não quer dizer sempre o mesmo;
às vêzes, o que se diz em um café tem essa condição; outras,
não a tem o que se diz em um Parlamento ou Côrte — ; em
certas ocasiões, o pregoeiro é o órgão da publicidade; em outras,
um pasquim, talvez uma facção m ilitar ou as 95 teses de Lutero
na porta da catedral; em outros tempos, é necessária a interven-
172 JULIAN MARÍAS

ção da Imprensa e do rádio, ainda mais da primeira: enquanto


algo não estiver impresso parece não constar de verdade.
Em muitas circunstâncias não existe opinião pública, o
que constitui uma das mais graves anormalidades que podem
sobrevir a uma sociedade. Mesmo se houvesse nela um reper­
tório de opiniões dominantes, com esmagadora maioria, ou uma
opinião pràticamente unânime, tudo isso não passaria de opinião
privada. E note-se que quando num corpo social não há publi­
cidade, não a há em absoluto; isto é, não a possuem tão pouco
as opiniões que são materialmente “publicadas”, porque então
esta publicidade se converte em simples “notificação” ; em
outras palavras, quando as opiniões não podem constar, aquelas
que excepcionalmente constam deixam de funcionar como
opiniões. A vida política, sobretudo desde a Idade Moderna,
mas de um modo geral sempre, não pode ser compreendida
senão quando esclarecida a respeito desta situação.
E existe um processo cujos mecanismos são muito com­
plexos, mas que pelo menos deve ser mencionado: a publicação
das opiniões privadas. Em um momento determinado, uma
opinião que era apenas a de muitos indivíduos, possivelmente a
da maior parte dêles, mas que era absolutamente inoperante,
é publicada. Surge então uma nova realidade, diversa da ante­
rior, que adquire eficácia num a esfera em que antes não contava
e atua em dimensões da vida coletiva inaccessíveis à opinião
privada, por muito compartilhada que esta seja. Só com esta
idéia em mãos se pode compreender a história política da E spa­
nha desde princípios do século X IX , e à luz dela se tom am
inteligíveis muitos fenômenos que não têm sido interpretados
corretamente.
V

PRETENSÃ O E FELIC ID A D E

37. A pretensão coletiva e suas versões individuais

A pretensão, projeto ou programa vital é o que existe de


mais pessoal e próprio em cada vida humana; ser eu consiste
em exercer certa pressão sôbre as circunstâncias, oprimi-las para
nelas abrigar — no futuro — uma figura programática de exis­
tência. Portanto é essencial a dimensão de futuro e imaginação
que intervém na constituição de tôda v id a (1). Por isso insisti,
ao longo de todo êste estudo, em que uma estrutura social não
está composta de elementos quiescentes, mas se define por ten­
sões e movimentos — e quando êstes parecem faltar trata-se de
repouso, nunca de imobilidade — . Mas a esta altura é preciso
proceder com cuidado: o que é relativamente claro quando se
trata de vida individual, torna-se sumamente problemático
quando nos referimos à vida coletiva, e êste é o caso relativo
a estruturas sociais; o eu imaginário e programático, a vocação
pessoal, é uma realidade unívoca e precisa; outra coisa é a
pretensão coletiva, conceito ambíguo e cheio de dificuldades.
Em primeiro lugar, a relação da vocação ou pretensão
pessoal com as formas da vida social é íntima (2); a figura im a­
ginada para a qual nos projetamos se encontra — pelo menos
esquemáticamente — no contôm o social, e por outro lado sua
projeção só tem concretude, relêvo e fôrça de incitação se se
aloja nas formas precisas de um mundo, que naturalmente é

(1) Cf. minha Introdução à Filosofia, sobretudo os capítulos VI e


IX; e também meu livro La imagen de la vida humana (Obras, V ).
(2) Cf. Introdução à Filosofia item 76, “O pessoal e o histórico
na vocação”.
174 JULIÁN MARÍAS

o nosso, salvo em casos muito excepcionais. A pretensão se


nutre, pois, de estruturas coletivas que a tornam possível. O
fato de nascer em uma sociedade determinada — país e época
— ja limita o horizonte de pretensões normalmente possíveis,
aumenta a probabilidade de um reduzido repertorio délas, que
serão as pretensões “típicas”, e, portanto, freqüentes; por úl­
timo, introduz em tôda pretensão certos traços parciais em que,
sob suas diferenças, coincidirão.
Mas não é só isso. É necessário articular êste ponto de
vista com outros dois. Antes de tudo, impõe-se uma distinção
importante: a expressão “pretensão coletiva” encerra um equí­
voco, que interessa descobrir e talvez não eliminar, porque há
uma conexão nada acidental entre seus dois sentidos. Com
efeito, pode-se entender a pretensão estatisticamente dominante
entre os indivíduos de uma coletividade, portanto, um certo
tipo ou esquema, de vigência coletiva, que informa as pretensões
dos indivíduos como tais; porém pode-se entender também a
pretensão coletiva em sentido estrito, isto é, a pretensão da co­
letividade, da unidade social de que se trata em cada caso; por
exemplo, a pretensão de Israel como povo eleito, a missionária
da Espanha do século X V I, a revolucionária da França em fins
do X V III e começos do XIX. Estes dois sentidos são diversos,
mas não separáveis; porque como o indivíduo só se pode proje­
tar concretamente, ao projetar-se individualmente o faz como
membro de sua unidade social respectiva, e, por conseguinte, em
função da pretensão coletiva no segundo sentido, qualquer que
seja a posição pessoal que tome frente a ela, julgue-a bôa ou
não, a apoie ou a combata, identifique-se com ela ou a consi­
dere uma loucura. O espanhol de 1580 podia muito bem não
sentir a menor vocação missionária ou evangelizadora, podia
ser luterano, talvez incrédulo, porém só podia imaginar e reali­
zar sua pretensão individual como espanhol, portanto, em vista
de um esquema que incluía como elementos decisivos a evan-
gelização das índias e o triunfo da Contra-reforma; ao conviver,
tropeçava com essas vigências; frente a um estrangeiro, sabia
que, desde logo, era considerado como um membro da comuni­
dade definida por êsses traços, ao ponto de que os seus próprios
só se acrescentariam como retificação a êsse perfil geral de
“espanhol” que inevitàvelmente lhe seria adscrito; e assim nos
demais casos. A idéia das sociedades nacionais européias cons­
titui-se assim, em grande parte baseando-se na imagem dos
A ESTRUTURA SOCIAL 175

estranhos, que atua enérgicamente sôbre o interior; e uma das


diferenças mais importantes entre as diversas sociedades é o
grau em que isto suceda, o mais e o menos de presença recí­
proca de urnas unidades em relação a outras e, portanto, de
explicitude e consciência da pretensão da coletividade como tal.
Nenhuma biografía é inteligível se se prescinde desta dimensão;
mas, por sua vez, é preciso considerar o modo de presença
dessa pretensão nos indivíduos, o estado de sua influência sôbre
êles — fôrça, autenticidade, adesão — . É evidente que a pre­
tensão coletiva de Castela enquanto foi Castela, isto é, até a
unidade nacional, foi a Reconquista — diferentemente de Ara-
gão, por cuja história “passou” a pretensão reconquistadora,
sem nunca identificar-se com ela; mas não é menos evidente
que desde Fernando III — no máximo desde Afonso X I — os
indivíduos sentem de modo inerte essa pretensão, sem que por
isso deixem de “estar” nela; a coisa chega até os reis: basta
lembrar João II.
O outro ponto de vista que se deve conjugar aos anterio­
res é o seguinte: dada a pretensão coletiva, sensu stricto, isto é,
o que pretende ser a unidade social, e independentemente da
relação de cada indivíduo com ela — podemos supor, para sim­
plificar, que é aceita de maneira autêntica — , ainda não esta-
riam dadas as pretensões individuais determinadas por ela, ou
seja, estatisticamente dominantes, já que não se pode aplicar
de um modo homogêneo e automático a cada uma das vidas
concretas. A pretensão estritamente coletiva, pois, só é transfe-
rível ao individual mediante um a diversificação nos “papéis” .
Com outras palavras, intercala-se aqui uma nova estrutura, que
poderíamos chamar de participação, segundo a qual os diferentes
indivíduos de uma unidade social participam na pretensão coleti­
va. E não somente cada indivíduo participa de maneira pessoal
e diferente, como também existe em cada sociedade um esque­
ma de participação peculiar. Isto é, por um lado os diversos
indivíduos “transladam ” a seu programa próprio a pretensão
comum em função de sua idade, sexo, condição social e voca­
ção íntima; por outro, os esquemas ou módulos segundo os
quais isto se realiza não são sempre os mesmos: maior ou menor
homogeneidade, grau diverso de presença mental da pretensão
coletiva nos indivíduos, nível de publicidade da vida, consciên­
cia histórica. Compare-se — para tom ar exemplos extremos —
176 JULIÁN MARÍAS

a China imperial com os Estados Unidos de hoje; ou, se se pre­


fere, a Roma de Augusto com as Gálias de Vercingétorix.
A pretensão coletiva em sentido estrito tem, pois, um
modo de existência difícil de se precisar. Em primeiro lugar, como
vigencia social, com a qual cada um dos indivíduos se encontra
e tem que contar; isto é, como sistema de usos, pressões, valo­
rizações, relações efetivas, atividades, etc., cujo fundamento é
a dita pretensão. Até aqui, esta não é “visível”; é encontrada
ao viver-se, ao atuar-se, em forma de impulso, resistência ou
orientação; o espanhol de meados do século X V I — para voltar
ao exemplo anterior — encontrava uma organização eclesiástica,
Ordens religiosas em alto grau de atividade, a Inquisição, gas­
tos de guerra na Europa, ida e vinda de frades às índias, estudos
etnológicos americanos, dízimos, prestígio e influência dos ecle­
siásticos, teólogos, místicos, um estilo literário, autos sacramen­
tais no teatro, alianças políticas e inimizade com a Inglaterra;
e através de tudo isso — não diretamente — acontecia para
êle o modo radical de contato com a pretensão evangelizadora
e católica da Espanha.
Só em segundo têrmo funciona como idéia, isto é, essa pre­
tensão tem existência mental, à qual, neste sentido, se pode cha­
mar programa. Então é algo de que se fala, e sua realidade
torna-se delineada e acentuada por uma atenção expressa; po­
rém, ao mesmo tempo, opina-se acêrca dessa pretensão explícita
e isso significa sempre debilitação; pelo menos, no sentido
de que se a vê de fora, em lugar de se a viver de dentro. A
“participação” toma agora um caráter mais ativo, mas em certo
modo planificado, que é o de “tom ar parte”, em vez do irrefle­
xivo — e mais radical — “ser parte” . Essa m aneira program á­
tica da pretensão existir pode ter diversos matizes; porque falta
saber em que mentes tem existência mental e quais são os modos
da mesma; desde a “consignação” em que a pretensão plani­
ficada por alguns poucos é notificada — talvez imposta — ao
corpo social, até a “emprêsa” em que os indivíduos se sentem,
solidàriamente, implicados e embarcados.
E, evidentemente, como a pretensão coletiva é um tipo
peculiarissimo de vigência complexa, tudo o que dissemos delas
se pode aplicar a esta; especialmente o que se refere a seus
graus e fases, e, naturalmente, a sua gênese, declínio e substi­
tuição. O decisivo, o que mais im porta reter, é que a pretensão
coletiva não possui simplesmente uma existência psicológica,
A ESTRUTURA SOCIAL 177

mas sim estritamente social. Existe coletivamente como pre­


tensão, isto é, como sistema de tensões operantes e,m direção
ao futuro, que põem em marcha o corpo social numa direção
determinada, independentemente de que seja pensada por cabe­
ças individuais; e mesmo o seu m odo de aparecer como idéia
tem caráter coletivo, não — é claro — no sentido de que a
pense um inexistente Volkgeist ou espirito nacional ou do povo,
mas sim no sentido de que não funciona como pensamento origi­
nal de alguém determinado: trata-se de um conteúdo vigente
com o qual os indivíduos têm que se haver, o que quer que
pensem — originalmente — sôbre êle. Enquanto não se dê
esta situação, poderá haver planos, ordens, decisões, declarações,
porém nada que mereça chamar-se pretensão coletiva.
Mas dizia antes que esta existe diversificando-se. O modo
de participação real nela é sua fragmentação e articulação em
projetos vitais individuais, mediante os quais cada homem assu­
me um “papel” na emprêsa comum. Não é preciso dizer que
entre êstes papéis constam o de objetante, o de crítico, o de
adversário — a intolerância em relação a êstes é o sintoma mais
inequívoco de inautenticidade da emprêsa, de falta de fé na
mesma —•. A emprêsa ou pretensão distende tôdas as formas do
corpo social, nelas se verte e as enche, e só assim se concretiza,
se diversifica e se realiza; é a isto que denomino as versões
individuais da pretensão coletiva. Estas podem ser mais ou
menos esquemáticas; se podem ajustar a uns poucos tipos rígi­
dos ou admitir grande riqueza e variedade. Em todo caso, o
interessante é que se opera um a “passagem a outro gênero” :
da “vida” coletiva à vida individual; nela, ao mesmo tempo,
se realiza e se expressa a pretensão coletiva em que definitiva­
mente consiste isso que temos chamado uma estrutura social.

38. As “novelas” em que se expressa a pretensão comum

A trajetória da vida hum ana se projeta, antecipando-a


imaginativamente, e só assim é possível realizá-la. Faz-se esta
projeção, evidentemente, com os materiais que se encontram na
circunstância; porém não só com os materiais no sentido de
coisas, recursos ou ingredientes, mas sim muito especialmente
em relação a certos esquemas. O verbo “viver” tem em cada
sociedade um sentido, que cada indivíduo recebe, que lhe é
“injetado” pelo contômo social. Quaisquer que sejam as m odu­
178 JULIÁN MARÍAS

lações que cada homem ou mulher imponha a êsses esquemas,


as trajetórias vitais se ajustam, quase sem exceção, a certas
pautas de origem social e, portanto, histórica. Poucas vêzes a
vida humana nos é accessível em sua realidade com sua figura
completa; só o ancião pode contemplar, íntegras, outras vidas
efetivas, ao mesmo tempo que a sua se vai consumindo — daí
a importância dos anciãos e de todos os “senados” ijas socie­
dades primitivas e nas que, sem o serem, não estão muito inte­
lectualizadas — ; o modo de presença da vida como totalidade
é, pois, a ficção imaginativa cum fundamento in re <3).
Neste sentido, todo homem é novelista de si mesmo, origi­
nal ou plagiário, como costuma dizer Ortega; a vida é “faina
poética”. M as estas novelas que os homens têm que imaginar
individualmente, cada um a sua, partem de certos pressupostos
dados; assim como o escritor se acha entre alguns gêneros lite­
rários possíveis, que normalmente tem que seguir — ou então
inovar em relação a êles, o que consiste outro modo de os ter
em conta — , o homem, em cada caso, aloja a trajetória de sua
vida num certo “gênero literário” vigente na sociedade a que
pertence. Em princípio, a “novela” que configura cada vida
individual já está dada, antes de que se imagine seu conteúdo
concreto, seu argumento e, portanto, a realidade precisa de seu
personagem — o homem que vai vivê-la — .
Falo de “novela” porque me refiro especialmente à época
moderna, e sobretudo ao século X IX ; tomada a coisa em tôda
a sua amplitude, dever-se-ia falar de “histórias” ou “relatos”
em geral. Porém o que importa sublinhar é o fato de que a
relação entre a pretensão real dos homens e a ficção imagina­
tiva é íntima e bilateral: os relatos se fundam em um a certa
apreensão da vida humana, na idéia que o verbo “viver” possui
na sociedade em questão; e, por outro lado, a vida se projeta
guiando-se pelas suas figuras imaginárias — apólogos, fábulas,
mitos, parábolas, enxemplos, histórias, dramas, novelas — , que
têm sido um dos motores mais formidáveis de realização e
ampliação da vida humana, e o instrumento mais poderoso de
paideia que o homem jamais conheceu.

(3) Veja-se La imagen de Ia vida humana e também “La novela


como método de conocimiento” (em La Escuela de Madrid).
A ESTRUTURA SOCIAL 179

Por isso os “tipos” de vidas têm um ar de familia em cada


unidade social: há vidas primitivas, gregas, romanas, cristas
medievais, árabes do .mesmo tempo; européias românticas,
norte-americanas de meados do século XX, definidas todas,
previamente a sua realidade concreta e a sua biografia precisa,
por um modêlo ao qual todas, mais ou menos, se ajustam. A
vocação pessoal em tôdas as ordens — profissional, econômica,
amorosa, prazerosa, de convivência — , partindo de um impulso
íntimo muito vago, se vai tornando explícita, se vai realizando
— primeiro imaginativamente, como vocação concreta, logo de­
pois de fato — em vista de certos modelos presentes, de uma
certa linguagem, de um sistema de valorizações, da idéia domi­
nante do que pode ser um a trajetória vital ou “carreira” bem
sucedida. Quando se fala de um curriculum vitae, deve-se ter
em conta, antes que seus conteúdos efetivos, os designios ou as
metas que nele se distingue; isto é, o que em cada sociedade se'
considera relevante e, portanto, digno de ser alcançado e de
constar no curriculum. Quando se traça em poucas linhas a
biografia de uma pessoa, o que se considera? Entre os inúmeros
“dados” que integram uma trajetória vital seleciona-se uns
tantos, diversos segundo as circunstâncias, precisamente por se­
rem os que articulam uma “novela” do tipo das dominantes
no momento; e, vistas as coisas a priori e previamente a sua!
realização, o indivíduo se esforça por fazer e para que lhe
ocorram certas coisas que darão realidade a sua “novela” pes­
soal, a uma figura de vida bem sucedida, harmoniosa ou galhar­
da. Compare-se a relação com o amor na biografia de um grego
do século IV antes de Cristo e na de um europeu de 1830; a
necessidade de executar atos de valentia pessoal é perentória
para o nobre de 1550 ou para o romântico; porém não tanto
em 1770, menos ainda na Inglaterra vitoriana; os motivos não
econômicos — novelescos, imaginativos, líricos — para enri­
quecer, quase sempre esquecidos de um modo incrível, são
muito débeis em 1600 na Espanha, extremamente enérgicos na
Alemanha ou na Inglaterra ou nos Estados Unidos entre 1850 e
1900. E se se pensa na diferença enorme de pretensão que exis­
te entre “ser rico” e “enriquecer”? Pode o ser de tal ordem que,
enquanto em certas sociedades é extremamente apetecível uma
das duas coisas, em outras é mal vista e é a outra que se almeja.
A investigação de um estrutura social deve deixar claro
quais são os característicos das “novelas” em que se prefigura,
180 JULIÁN MARIAS

expressa e depura a pretensão comum. P ara isso é necessário


ter em conta uma série de aspectos sumamente precisos: 1) o
número de “esquemas” genéricos ou tipos de “novela”; en­
quanto em certas sociedades há um repertório amplíssimo de
módulos biográficos, em outras a escolha se limita a duas, três
ou quatro possibilidades. 2) a maior ou menor permanência da
adscrição a um esquema escolhido; isto é, a possibilidade de
mudar, alterar ou retificar a trajetória vital, de preferir um novo
“personagem” não é sempre a mesma; às vêzes as pressões so­
ciais são tão fortes, que o indivíduo mal pode contar, pràtica-
mente, com a eventualidade de um a retificação substancial;
cutras vêzes é perfeitamente normal que um homem inicie dois
ou três caminhos divergentes, que esboce uma série de figuras
inconclusas — como o gênero literário ao qual os românticos
gostavam de chamar “fragmento”, e que é revelador — . 3) O
grau de minúcia dos modelos ou pautas; as “novelas” podem
ser relatos muito suscintos ou narrações prolixas e circunstan­
ciadas; isto é, oscilam entre m arcar uns tantos pontos, entre os
quais desenha-se imprecisa a trajetória, ou determinar por-
menorisadamente a linha inteira da biografia. 4) A maior ou
menor inclusão da exigência de “originalidade” nesses esquemas
genéricos: pode ser norm a imposta e, portanto, regularidade
estatística que cada indivíduo pretenda ser “único”, ainda que
todos coincidam monotonamente nessa pretensão; mas pode se
dar também que o pressuposto tácito dessas novelas consista
em que cada um é “como todo o m undo”, embora logo isso
se mostre impossível e que o indivíduo se esforce em vão e
originalmente em não ser apenas o que os demais o são. 5) O
grau de autenticidade dessas novelas; e isto em vários sentidos:
a) essas pautas podem ser criação original de uma sociedade
determinada ou então podem vir de um a fase anterior e con­
servarem sua vigência, com intensidade variável; b) podem ser,
de outro ponto de vista, de origem interna à sociedade de que
se trata ou, pelo contrário, tomadas de empréstimo de uma so­
ciedade estranha — por exemplo, a França no século X V II
começa a “exportar” modelos de trajetórias vitais, que no
século X V III alcançam vigência em quase tôda a Europa; do
mesmo modo que antes havia sucedido em relação à Espanha,
depois à Inglaterra e talvez hoje comece a se esboçar em rela­
ção aos Estados Unidos, se bem que com menos generalidade
nestes últimos casos — ; c) essas novelas podem ser imediatas
A ESTRUTURA SOCIAL 181

e expressadas em linguagem espontânea, ou então aparecer


como formas “retóricas”, tomadas de uma forma de vida alheia
e remota: pense-se na gravitação de gregos e romanos sôbre as
formas da vida européia no Renascimento e no tempo da Revo­
lução Francêsa, no impacto bíblico sôbre os puritanos ingleses
do século X V II e, portanto, sôbre uma parte da sociedade
norte-americana; d) por último, o coeficiente variável de auten­
ticidade com que cada indivíduo vive, em um a sociedade, as
vigências coletivas e, por conseguinte, o repertório de “novelas”
ou trajetórias biográficas.
É preciso fazer constar que isto é excessivamente esque­
mático. Para que adquira concretude suficiente e seja metodi­
camente eficaz, deve-se acrescentar outros pontos de vista. O
primeiro se refere às idades: embora em princípio tôda trajetó­
ria vital compreende tôdas as idades da vida, de fato raramente
assim se comporta uma pauta biográfica genérica; o que po­
deríamos cham ar o “ argumento” da vida, o núcleo em tôrno ao
qual se ordena a trajetória e que “justifica” seus conteúdos,
está adscrito a certa idade determinada; há trajetórias “juvenis”,
as há “senatoriais”, por vêzes — se bem com matiz socialmente
patológico — “senis”; tudo isso introduz um peculiar articula­
ção qualitativa no tempo vital; pode haver longos anos de pre­
paração para chegar a ser “alguém” , enquanto que em outros
casos a vida esgota muito depressa seu argumento, a continua­
ção não está prevista, não se a imaginou, e não há outras so­
luções a não ser a morte prem atura ou um longo declínio
passivo.
O segundo ponto de vista concerne ao sexo. Até agora
falamos de “pessoas” sem mais, não de homens e mulheres.
Não resta dúvida que as trajetórias têm um núcleo idêntico;
porém, precisamente enquanto são imaginadas, enquanto “nove­
las” de personagens concretos, envolvem um a distinção de
sexo; pois bem, os diversos aspectos que antes indiquei não
se aplicam igualmente a um e outro. Lembre-se de que há
poucos anos o número de esquemas femininos era reduzidíssimo,
e do mesmo modo eram sumamente limitadas as possibilidades
de mudança de trajetória; e isto por duas razões: a m aior pres­
são social sôbre a mulher, e a escassez do tempo “ativo” e
com iniciativa de que dispunha, o qual se esgotava na primeira
figura pretendida; em compensação, provàvelmente a mulher
tem tido durante muitos séculos um a margem de originalidade
182 JULIAN MARÍAS

maior em certos estratos profundos, porque muitos gestos ínti­


mos não eram considerados “relevantes” e, portanto, não esta-
vam prescritos. Em relação à autenticidade, as “novelas” que
denominei retóricas tiveram, sem dúvida, menos influência sôbre
as mulheres; porém, a tiveram enorme as tradicionais, isto é,
as procedentes de gerações anteriores. E pelo que se refere ao
tempo, as “novelas” de personagem feminino costumaram estar
articuladas a um esquema muito simples: predomínio juvenil,
com uma fase muito rápida centrada em torno ao tema do amor;
e estabilização brusca em uma forma de vida definida pela
falta de argumento. O fato literário de que uma imensa porcen­
tagem das obras de ficção terminem em casamento não faz
senão assinalar esta situação real, e ao mesmo tempo contribuir
para produzi-la; e dêste duplo ponto de vista deve ser interpretada
a crise atual dêsse caráter da literatura de ficção, o caráter' de
“tópico” que lhe sobreveio e a iniciação de formas novas; isto
ê, a necessidade — na “novela” e na vida efetiva — de prolon­
gar os argumentos.
Falta ainda acrescentar mais uma palavra, a que se
refere ao desenlace. Qual é a “expectativa” normal nas “no­
velas” de cada país e de cada época? Como devem acabar?
Desde a tragédia até o happy end há um longo percurso. Mas,
embora suposto o happy end, quando se acha que um final é
efetivamente feliz? E até que ponto está excluída a felicidade do
final trágico? Podemos ver que nada do humano é em última
instância inteligível, se não o referimos a êsse tema que sc
chama felicidade.

39. Prazer, diversão e felicidade

Poucas coisas são tão difíceis de descobrir como a preten­


são vital. As razões são muitas: seu caráter irreal e imagina­
tivo, que sempre se altera e muda ao realizar-se; a dificuldade
de formulação, por sua contextura programática e total; sua
complexidade, por constar de inúmeros elementos em uma co­
nexão que é decisiva mas que pouco se revela; seu modo de
ser “vago”, do ponto de vista racional e lógico, ao lado de seu
rigor extremo e precisão em têrmos vitais; sua intimidade, e,
portanto, o pudor nas alusões a ela; a insinceridade freqüente
— sobretudo em algumas épocas — , em virtude da qual os
A ESTRUTURA SOCIAL 183

homens mascaram, inclusive para si mesmos, suas autênticas


apetências, inclinações e esperanças.
Por isso a novela — em geral a ficção — é um instru­
mento precioso de investigação, com a condição de esclarecer
primeiro as relações entre a literatura e a vida efetiva dentro de
cada Sociedade. Isto é, em bora a ficção sempre oriente sôbre
quais são as pretensões reais, nem sempre o faz in modo recto,
mas sim com maior freqüência deve-se tom á-la in modo obliquo
e prévia determinação ou mensuração do ângulo dessa obliqui­
dade — gigantesco tem a da ciência literária, sôbre o qual, infe­
lizmente, ainda falta qualquer esclarecimento — .
Os prazeres oferecem um pista importante. Ao dedicar-se
a um a atividade prazerosa, o homem põe a descoberto —
inclusive se põe a decoberto, e às vêzes com surpresa — sua
efetiva pretensão. Dir-se-á — e com razão — que também em
relação aos prazeres o homem é insincero; que às vêzes procura
ocupações que na realidade não o interessam; mas, se bem se
vê, se descobre que aquela ocupação a que se dedica não lhe
produz o prazer que oficialmente nela procura, mas sim outro.
Seria, por exemplo, uma ingenuidade crer que a enorme pro­
pensão pela ópera no século X IX significava desde logo fruição
musical; seria, porém, um êrro desqualificar em vista disto a
propensão pela ópera e supor que não era um a fonte de prazer;
o era, e muito grande, embora não fôsse apenas nem sequer
principalmente musical; por isso deve-se tom ar os prazeres em
concreto, na forma precisa em que funcionam. Os prazeres da
mesa significam o mesmo em um convivium da Rom a imperial
e num pequeno restaurante de Bilbao ou Pamplona? O prazer
da bebida é equivalente no inglês solitário que bebe whisky em
sua casa, de sábado para domingo, na cervejaria bávara ou
entre as hastes de camomila de uma taberna sevilhana? E se
dêstes prazeres elementares se passar para outros mais com­
plexos ou mais ligados com a biografia, as diferenças são ainda
maiores.
As diversões normais em um a sociedade, nela vigentes, são
reveladoras; porém sempre com a condição de não as tomar
pelo seu “valor facial” ou nominal. Isto é, depois de inquerir
se a situação das diversões nessa unidade social é “sã”, e isto
em vários sentidos: de que as diversões realmente apetecidas
sejam permitidas — ou de que a sociedade tenha suficiente vita­
lidade e iniciativa para proporcioná-las — ; de que não tenham
184 JULIÁN MARÍAS

demasiada fôrça as inhibições que impeçam os homens de se


divertirem, ou pelo menos desviem da diversão realmente dese­
jada para outra simplesmente substitutiva; de que, pelo contrário,
não exista uma convenção de diversão excessiva, capaz de si­
mular um excesso de frivolidade ou até de libertinagem; sobre­
tudo, de que não haja crise de imaginação prazerosa ou atrofia
dos desejos; isto é, que a diversão tenha o papel que realmente
lhe corresponde na economia vital.
E isto nos leva a um a questão delicada. Qual é êsse papel?
Que lugar ocupam o prazer e a diversão — que não coincidem
exatamente — na vida de cada sociedade, de cada classe, de
cada grupo? Qual é o nível de exigência, isto é, aquele abaixo
do qual o indivíduo se sente em situação deficiente? N orm al­
mente, qual a freqüência da atividade prazerosa? Tradicio­
nalmente distinguiu-se as pessoas que levam uma vida “de pra-
zeres” — do bíos apolaustikós de Aristóteles em diante — e as
demais; enquanto prazer e diversão apareciam como o patri­
mônio de alguns estratos sociais, sobretudo das aristocracias, e
muito especialmente da idade juvenil, sua presença na vida dos
demais era excepcional, infreqüente, reduzida a certas festas;
porém, ao tom ar-se mais freqüente, o program a prazeroso não
terá perdido em intensidade? A expectativa da diversão, seu
caráter insólito, carregava-a de energias concentradas, que a
diversão quotidiana exclui em absoluto. Não é o mesmo receber
c prazer em “doses maciças”, como dizem os médicos, e em
pequenas doses diárias, quase mesclado ao trabalho e às ocupa­
ções habituais. A decadência do carnaval, por exemplo, é bem
significativa. Não se entende qual é a pretensão vigente em
uma sociedade, e portanto qual é sua estrutura, se não se escla­
rece a questão da exigência do prazer, sua dosificação e suas
formas.
Mas como o prazer, a diversão e, em geral, o que Ortega
chama “ocupações felicitárias” afetam a estratos muito diver­
sos da vida, é preciso investigar, em relação a cada sociedade,
a localização dessas ocupações e sua direção. O fato de que
uma unidade social se distraia particularmente com a caça ou
com a tertúlia, com o galanteio ou com as glutonerias, com o
esporte ou com os jogos de cartas, verte um a súbita luz sôbre
quem é o homem dessa sociedade, isto é, sôbre quem pre­
tende ser.
A ESTRUTURA SOCIAL 185

E deve-se acrescentar ainda um ponto de vista que me


parece decisivo: aquêle que se refere ao que poderíamos chamar
o “direito” ao prazer. A coisa é bastante complexa. Em pri­
meiro lugar, os prazeres e diversões estão muitas vêzes afeta­
dos por um coeficiente de “ilicitude” ; o ponto de partida é
que há prazeres evidentemente ilícitos; daí se passa aos casos
duvidosos, em que o rigorismo vê imoralidade mais ou menos
mascarada; em conexão com isso, a consciência de “periculo-
sidade” das atividades prazerosas, inclusive inocentes, as rodeia
de um halo de desconfiança e suspeição; o fato de que os
prazeres custem dinheiro e ademais tempo, de que suponham uma
perda econômica e subtraiam horas do trabalho, nas sociedades
inspiradas por uma elevada estima da riqueza e da laboriosidade,
dá um matiz “pecaminoso” a tôda forma de diversão; é bem
conhecida a animosidade de muitos moralistas contra todo
espetáculo e principalmente contra a literatura de ficção, consi­
derada, pelo menos, como uma m aneira de perder o tempo (4).
É conhecida a pilhéria que se repete nos Estados Unidos: “Tudo
o que é agradável, é imoral, ilegal, ou engorda.” Porém,
se é bem certo que êste ambiente de “illicitude” dificulta o
prazer e as diversões, não se pode desconhecer que também os
estimula e lhes dá um incentivo peculiar. E logo que a diversão
aparece como permitida, normal e sem problemas, começa a
perder atrativo e fôrça, embota-se, diminui seu impacto sôbre
a sensibilidade, é menos desejada, portanto corresponde muito
menos ao perfil de uma pretensão vital. É antes recebida ou
usada passivamente, como algo que está aí, no que intervém
muito pouco a imaginação e a faculdade de apetecer do indivíduo.
Quando esta situação está suficientemente estabelecida, se
produz uma curiosa inversão da primeira: da negação da “íici-
tude” do prazer se passa à reinvidicação positiva do direito ao
prazer e às diversões. O homem de nosso tempo, por exemplo,
que freqüenta pouco os espetáculos esportivos, as touradas, o
cinema, o bar, sente-se privado disso. Se sua condição econô­
mica, a falta de tempo, ou as formas de vida ■ — distribuição
das horas do dia, residência afastada dos centros urbanos, etc.
— lhe impedem o acesso freqüente aos prazeres — quero dizer
aos prazeres oficialmente reconhecidos como tais — , sua reação

(4) Em meu livro La imagen de la vida humana mostrei que, pre­


cisamente, com a ficção há um ganho de tempo condensado e acumulado.
186 JULIÁN MARÍAS

vital é o descontentamento, e isto na forma precisa de conside­


r a r l e injustamente tratado, isto é, lesado em um direito.
Ao fazer tácitamente um balanço vital, o homem de um a so­
ciedade determinada traça uma linha e obtém um resultado. Qual
é êste? H á épocas satisfeitas, épocas descontentes, épocas irrita­
das, épocas aborrecidas. Éste balanço vital não se justifica —
salvo casos extremos — pelos “dados” objetivos acêrca de como
transcorre a vida para êstes homens; é preciso articular êstes da­
dos com a pretensão de cada um e, sobretudo, com a pretensão
coletiva, com o que é vigente como pretensão dentro de cada so­
ciedade. Somente isto dá um valor real e efetivo às condições
materiais dominantes. O homem é, segundo o país e a época em
que vive, mais ou menos feliz, e com uma forma concreta de
felicidade ou infelicidade — e, dever-se-ia acrescentar ainda, com
graus diferentes de consciência e “reconhecimento” disso — .
Naturalmente, a felicidade é assunto estritamente pessoal e que
depende da biografia intransferível de cada um; mas a “proba­
bilidade” e portanto a normalidade ou freqüência da felicidade
e as formas de sua realização, dependem das estruturas sociais;
e, inversamente, o que poderíamos chamar a “felicidade média”
é um ingrediente decisivo de cada estrutura social.

40. A noção de “felicidade média” em uma época.

A felicidade está condicionada pela realização de nossa


pretensão pessoal; esta é sempre irrealizável, pelo menos na
medida em que a escolha em que nossa vida consiste implica,
a cada momento, a preferência de um a possibilidade e a
conseqüente preterição de outras que também são apetecíveis,
cuja renúncia é dolorosa. O homem é ,ao mesmo tempo, o que
necessita ser feliz e o que, desde logo, não o pode ser neste
mundo. Poder-se-ia definir formalmente a vida hum ana pelo
descontentamento, cam a condição de tom ar a palavra a sério,
isto é, sem ficar somente com a negação: à vida hum ana per­
tence o contentamento, ela se move em seu âmbito ou “ele­
mento”, mas em forma sempre deficiente. C am outras palavras,
ela é, desde logo, infeliz, porém isto significa que seu modo de
A ESTRUTURA SOCIAL 187

ser é a felicidade, a qual funciona como ingrediente decisivo de


cada vida individual e de tôda forma de vida (5)
Em poucos assuntos, porém, é tão difícil e perigosa como
neste, a transição da vida individual à coletiva, sobretudo porque
não é suficiente executá-la uma só vez e em um único sentido;
há um movimento de ida e volta particularmente dificultoso e
passível de êrro. Quando se fala de “um povo feliz”, de uma
época feliz ou desventurada, quando se sentencia que “os povos
felizes não têm história”, o que isto significa? Talvez se rea­
lize a assimilação da história de um a socedade a uma biografia
individual, se compare o relato das vicissitudes pelas quais passa
um povo como unidade de convivência com a trajetória da vida
de um homem singular. Mas isto leva a duas questões espinho­
sas: em primeiro lugar, falta o “quem” da vida coletiva; en­
quanto que no caso do indivíduo a coisa é clara e unívoca, aqui
o mais problemático é saber de quem se predica a felicidade ou
a desdita; em segundo lugar, a noção de felicidade tem sido
referida comumente à vida inteira; entre os gregos chegou a
ser obsessiva a convicção de que enquanto o homem vive não
pode dizer se é feliz ou não, porque a fortuna pode sempre
mudar com um revés inesperado (a idéia de salvação introduz
um ponto de vista análogo, ainda que mais vigorosamente, em­
bora com diferenças essenciais que aqui não cabe mencionar);
ora, enquanto que a trajetória vital do indivíduo conclui na
morte, a vida de uma sociedade não tem têrmo assinalado, e
em princípio pode prolongar-se indefinidamente; tom a-se, pois,
necessária uma articulação das etapas históricas, para cada uma
das quais tem que se supor um caráter analógicamente “bio­
gráfico”, cujo fundamento é, como acabamos de ver, mais que
duvidoso.
O outro ponto de vista possível considera a felicidade dos
indivíduos como tais. Naturalmente, não se trata da felicidade
de cada um, o que levaria a um casuismo que não teria lugar
aqui, e sim de uma freqüência que não é meramente estatística
mas estrutural. Em certa ocasião falei do “alvéolo material” da
vida humana, no qual se aloja a possível felicidade ou infeli­

(5) Sôbre o problema da felicidade individual, veja-se meu estudo


“La felicidad humana: mundo y paraíso”, em Ensayos de teoria
(iObras, IV) .
188 JULIÁN MARÍAS

cidade pessoal. As estruturas sociais determinam parcialmente


a possibilidade, as formas e os conteúdos concretos das traje­
tórias felizes das vidas individuais.
À primeira vista, a coisa é simples: se a felicidade con­
siste na realização da pretensão vital, a relação entre felicidade
e estrutura social será definida pela facilidade que esta ofereça
para aquela realização, e por conseguinte pela “probabilidade”
de que se cumpra. A situação efetiva é, porém, mais compli­
cada: essa consideração é puramente formal e abstrata, visto
que coloca a questão em têrmos de simples realização de uma
pretensão qualquer; e pode-se perguntar: 1) Tôdas as preten­
sões são equivalentes do ponto de vista da felicidade? 2) Em
que medida a estrutura social intervém na realidade de umas e
outras pretensões, e na realização concreta das mesmas?
Além da aproximação com que de fato se realizem, os pro­
gramas vitais têm diferente conteúdo, estrutura e argumento,
que não são inoperantes do ponto de vista da felicidade. Não
se pense sequer no grau de riqueza e variedade dos recursos
vitais com os quais se imagina o programa; há algo mais pro­
fundo e prévio: o que a pretensão vital tem de pretensão de
felicidade. Isto é, tôda vida hum ana se inicia com um a certa
expectativa em relação a si mesma, com uma avaliação prévia
do que pode “dar de si” ; e isto é, em princípio, anterior às
diversidades individuais, e procede de um a sensação geral
diante da vida, coletiva, portanto com partilhada inicialmente
pelos indivíduos e com a qual êstes se encontram — com a
reserva, é claro, de reagir de maneira pessoal frente a ela — .
Poucas coisas há que caracterizem mais profundamente uma
sociedade ou uma época do que esta expectativa frente ao que
a vida traz. Exorbitando a questão para, exagerando os seus
têrmos, esclerecê-la, poderíamos dizer que o animal não é infeliz
porque sua expectativa é mínima, enquanto homem é intrínse­
camente descontente porque não se contenta com menos do que
ser feliz. Compare-se o cachorro com a criança: o primeiro,
desde que as condições necessárias para sua vida se cumpram
— temperatura, alimento, etc. — , salta satisfeito; a criança,
com incrível freqüência e mesmo em plenà saúde, se aflige e
chora; a razão decisiva é que se aborrece, isto é, o desnível entre
sua pretensão imaginativa — desde os primeiros mêses de sua
vida — e os recursos de que dispõe — começando pelo uso do
corpo e da circunstância imediata — é desde logo muito grande.
A ESTRUTURA SOCIAL 180

A criança deitada no berço, de barriga para cima, muito de­


pressa esgota as possibilidades que sua situação lhe oferece:
olhar o teto, espernear, chupar os dedos; uma vez “visto” tudo
isso, sente que já não dá mais de si, que não pode repertir-se
indefinidamente; o programa continua dilatando-se imaginati­
vamente, e ao falhar a possibilidade de continuação, sobrevêm
a prim eira forma de infelicidade: o aborrecimento. A necessi­
dade de companhia que a criança sente tão violentamente não
é tanto quanto se pensa necessidade de segurança e amparo,
mêdo da solidão, etc.; é, sobretudo, aborrecimento, desejo de
anexar a si própria as potências imaginativas e físicas do adulto
para, com elas, desenvolver a pretensão germinal. Em bora se
pense o contrário, os adultos são as “colônias” da criança
pequena.
Este exemplo mostra, num a forma extrema, o que quero
dizer. A pretensão de felicidade de que se parte pode ser mí­
nima — e, portanto, muito fácil de se satisfazer — ou altíssima
e improvável; entre os dois extremos colocam-se todos os graus
e múltiplas formas concretas. H á sociedades aborrecidas, so­
ciedades resignadas, sociedades moderadas, sociedades exalta­
das, sociedades delirantes. Como se pode determinar o que de­
nominei “felicidade média”? Deve-se ter em conta a “pretensão”
média ou a “realização” média dessa pretensão? Evidentemente,
ambas as coisas em sua articulação concreta. Porque a pre­
tensão já coloca a felicidade a um nível determinado, de m a­
neira que mesmo seu fracasso — a “infelicidade” — significa
já certo grau de felicidade positiva; e, inversamente, o cumpri­
mento de um a pretensão excessivamente pobre, modesta, estrei­
ta, mesmo quando vivido pelo sujeito como “felicidade” , repre­
senta uma forma deficiente da mesma.
Isto nos leva à conclusão de que nosso juízo sôbre a feli­
cidade de uma sociedade alheia à nossa não coincide com o
que os indivíduos dessa sociedade tiveram ou têm sôbre si mes­
mos. Talvez nos pareçam dignos de compaixão homens suma­
mente satisfeitos com seu destino, e precisamente por se conten­
tarem com êle, pois nos parece isso a maior infelicidade; ou,
pelo contrário, sentimos inveja ante a figura de vidas que se
julgaram irremediàvelmente desgraçadas. Mas deve-se distin­
guir, em segundo lugar, entre o que os homens “julgam” acêrca
de sua felicidade e o que “sentem” dela: quando em uma socie­
dade domina a idéia de que a vida é dor e desventura, ninguém
190 JULIÁN MARÍAS

concordará que é feliz; porém talvez se sinta, por trás disso,


de posse de uma intensa e saborosa felicidade que não conhecem
sociedades nas quais se decreta que a ventura existe sôbre a
terra e está ao alcance de todos.
A estrutura social inclui entre seus ingredientes isso que
chamo expectativa ou pretensão específica de felicidade; deter­
mina, pois, o “nivel” em que se vai formular a questão, e com
isso o grau de tensão nessa ordem das vidas individuais. Por
outro lado, essa mesma estrutura torna possível em uma ou
outra medida o acesso efetivo a essa felicidade, ou seja a reali­
zação da pretensão vital concreta. E antes de tudo em um
aspecto decisivo: a possibilidade de tentá-lo. Talvez um a so­
ciedade proteja seus indivíduos com uma grossa carapaça de
dispositivos sociais que lhes dão segurança, enquanto outra os
deixe à intempérie, indefesos e abandonados. Se no primeiro
caso a vida envolve um mínimo de riscos, no segundo está
exposta a tôdas as adversidades. Mas a contrapartida é que
naquele as possibilidades de procurar a felicidade, sobretudo de
inventá-la e tratar de a realizar, são muito reduzidas, e neste
talvez o homem sinta-se livre para tentar ser feliz, por sua
conta e risco.
Quando se fala de “felicidade média” de uma época ou
sociedade, não se pense em estatísticas: a felicidade é assunto
demasiado complexo e sutil para as tolerar. Trata-se mais do
nível médio em que o homem coloca sua pretensão de felicidade,
e da normalidade — e portanto freqüência — com que essa
pretensão possa realizar-se decentemente. Mas aqui tom a a
surgir, e mais enérgicamente que antes, a estrutura social como
tal: porque o decisivo é a margem de folga e franquia com que
tal emprêsa possa ser acometida. É necessário que se pergunte,
pois, pelas possibilidades que cada sociedade oferece, e isto de­
senha ao fundo o perfil dessa realidade, que vem se denun­
ciando vagamente em muitas formas, e que se chama o Poder.
VI

O PO D ER E AS POSSIBILIDADES

41. Sociedade e Estado

O estudo de uma estrutura social compreende naturalmen­


te a determinação dos característicos do Estado; não é possível
entender a estrutura social de um cidade grega, de um império
oriental, de um reino medieval, de uma nação moderna, sem
que se tom e clara a índole dos Estados correspondentes. Mas,
para o que aqui interessa, uma consideração direta e exclusiva
dos Estados não é suficiente; ainda mais, pode levar a érro, por­
que um “mesmo” Estado, isto é, uma estrutura política idén­
tica, pode afetar sociedades diversas muito diferentemente, ou
a uma mesma em vários momentos de sua historia. A indepen­
dência dos países hispano-americanos, por exemplo, conduziu ao
estabelecimento de Estados muito semelhantes; como, apesar de
certas semelhanças muito profundas, as diferenças entre a Argen­
tina e o México, o Uruguai e o Perú, são consideráveis, o “mes­
mo” Estado intervém de várias formas na constituição das res­
pectivas estruturas sociais. Outro tanto poder-se-ia dizer dos Es­
tados nacionais europeus depois das guerras napoleónicas, e ainda
muito mais do que hoje se chama genéricamente “Estados de­
mocráticos”, desde a Suécia até a Birmânia, desde os Estados
Unidos até a Finlândia, desde a India até a Alemanha ocidental.
Confusão análoga seria passar por alto a transformação que, sob
a mesma figura de Estado, tem lugar em urna determinada socie­
dade; por exemplo, na Espanha de Carlos V a Carlos II, na
Inglaterra de Vitoria a Isabel II, não digamos nos Estados Uni­
dos, onde persiste o mesmo sistema político e a mesma Consti­
tuição desde a Independência até hoje.
192 JULIÁN MARÍAS

O que interessa, do nosso ponto de vista, é a relação entre


a sociedade e o Estado. É isto que, a rigor, constitui uma deter­
minação decisiva da estrutura social. Mas não convém simpli­
ficar demais as coisas, embora uma primeira consideração dos
fatos possa levar nessa direção. Refiro-me ao fato de que, ao
lançarmos os olhos sôbre a história pretérita a partir de nosso
ponto de vista atual, temos sempre a impressão de que o Estado
era bem pouca coisa. A reação ante essa evidência é pensar que
o Estado tem se desenvolvido com ritmo acelerado nos últimos
tempos; que vai sendo cada vez mais; e, por último, que êsse
crescimento se efetuou a expensas da sociedade, a qual, progres­
sivamente, vai sendo invadida, dominada, às vêzes suplantada,
em ocasiões absorvida e anulada pelo Estado.
Sem dúvida, tudo isso é, em bôa medida, certo. Mas não
é exato, porque as determinações “quantitativas” costumam ser
bastante indeterminadas. Com efeito, é evidente que até o século
X IX o Estado era extremamente restrito; suas atribuições eram
mínimas; seus instrumentos, elementares e escassos; só um pro­
cesso de desenvolvimento técnico e administrativo permitiu o
intervencionismo crescente do Estado, até chegar a essas formas
de hipertrofia que se costuma chamar, com têrmo muito vago
mas de algum modo acertado, totalitarismo. Porém, depois de
afirmar tudo isso que é indubitàvelmente verdadeiro, percebemos
que, no entanto, o Estado do antigo regime — Isabel I da In­
glaterra, Felipe II da Espanha, Luís X IV da França, José II da
Áustria, Frederico o Grande da Prússia — era uma realidade
enérgica e forte, a tal ponto que mal se podia imaginar a resis­
tência frente a êle; resistência que, pelo contrário, começa a
ser freqüente e mesmo fácil a partir de 1789, coincidindo para­
doxalmente com o crescimento do Estado. Isto nos obriga a dar
um passo atrás e tentar formular a questão com mais rigor.
Com efeito, trata-se de não tom ar o Estado por si mesmo
e sim em conexão com a sociedade. O Estado é um instrumento
seu, em certa medida uma função sua e, ao mesmo tempo,
um constitutivo da própria sociedade — pelo menos de muitas
sociedades — . Quando tôda uma série de regulações correm
a cargo da sociedade como tal, o Estado não tem motivo para
se ocupar delas; sua “impotência” em muitos aspectos — do
nosso ponto de vista atual — significa apenas que êsses aspectos
não são assunto seu. O Estado exerce, pois, um controle sôbre
A ESTRUTURA SOCIAL 193

a sociedade, normalmente limitado em dois sentidos: 1) estende-


se só ao que lhe importa (por exemplo, à religião mas não à
higiene, ou vice-versa); 2) utiliza as estruturas e os recursos
da sociedade e não os duplica, isto é, atua através dêles (um
dos sintomas mais alarmantes que revelam a anormalidade da
relação sociedade-Estado é a duplicação ou multiplicação de
funções e organismos). Isto significa que o Estado maneja a
sociedade servindo-se desta, apoiando-se em sua estrutura e
coerência; se a sociedade é um todo compacto, coerente e só­
lido, a ação estatal sôbre uns tantos pontos da mesma pode
mover e reger todo o corpo social. Daí a impressão — real —
de fôrça que produz o tênue estado nacional europeu do antigo
regime; e no momento em que a sociedade européia se sente
menos una, homogênea, o Estado, em bora sendo em absoluto
mais forte, começa a acusar um a evidente debilidade.
Poder-se-ia interpretar isto supondo que se trata de um
equilíbrio de dois poderes, a sociedade e o Estado: se a socie­
dade é débil, o Estado será forte; se aquela é forte e enérgica,
O Estado, por grande que seja seu desenvolvimento, aparecerá
sempre como subordinado a ela, débil comparativamente. Êste
modo de ver a situação peca por se basear em um pressuposto
sumamente discutível: a “rivalidade” ou oposição entre a so­
ciedade e o Estado. Quando isto acontece, ocorre assim efeti­
vamente: só um a sociedade débil e enfêrma suporta a imposi­
ção de um Estado, cuja prepotência é apenas um a das
manifestações dessa enfermidade social; porém o fato de que
esta situação seja freqüente em nosso tempo não nos deve levar
a considerá-la como normal, menos ainda como constitutiva
da relação sociedade-Estado (1). A “docilidade” de um a socie­
dade em relação a seu Estado pode significar duas coisas com­
pletamente diferentes: a “entrega” de um a socedade dividida,
dissociada, desmoralizada, a um a fôrça coativa que nem sequer
necessita ser realmente muito grande, ou então a . adequação
entre um a sociedade sã e enérgica e um Estado que é só o ins­
trumento diretor e executor, ao mesmo tempo, da pretensão
autêntica dessa sociedade.

(1) No estudo de Ortega Del Imperio romano encontrar-se-á uma


visão extraordinariamente penetrante dêste problema.
194 JULIAN MARIAS

Se procuramos estabelecer com precisão o ponto em que


o Estado do antigo regime era “forte”, percebemos que se tra­
tava do Poder mesmo, isto é, do m ando como tal. Não era
admitida a menor dúvida a respeito do poder real e seus orga­
nismos; mas isto não queria dizer que o Rei tivesse grandes
fôrças — por exemplo, militares ou policiais — a seu serviço,
e sim que, como a sociedade estava de acôrdo e esclarecida a
respeito de que o mando pertencia ao Rei, tôda possível dis-
cepância estava localizada dentro dêsse acôrdo social, e, por­
tanto, reduzida de antemão a um mínimo sôbre o qual se apli­
cava com total decisão e folga a fôrça coativa do poder real,
bem seguro de seu direito e do assentimento do corpo social.
E relativamente ao que não era o mando, em sentido estrito, o
antigo regime não costumava se ocupar muito; a regulação da
convivência ficava a cargo da sociedade, mediante um sistema
de vigências muito enérgicas e compactas. Não sei se se assi­
nalou suficientemente que um primeiro processo de “interven­
cionismo” do Estado se produz já sob o anden régime, no
século X V III: multiplicam-se as prescrições e pragmáticas, re­
gulam-se a partir do Poder atividades que sempre foram espon­
tâneas, proibem-se uma infinidade de coisas. Vejo a explicação
dêste fato em uma dupla causa: em primeiro lugar, já começa
a se produzir um crescimento do Estado, que aperfeiçoa seus
instrumentos — fazenda, burocracia, censos — e sente a fruição
de exercê-los; em segundo lugar, inicia-se a crise da concórdia
social, se está menos certo de que a questão de quem tem auto­
ridade para m andar é coisa resolvida de um a vez para sempre,
e então o Estado, inquieto, se afirma fazendo-se presente onde
antes não sentia necessidade de o estar.
Quando a crise do antigo regime, patente desde 1789, põe
em tela de juízo as relações de mando, quando não se sabe
bem quem deve m andar nem porque nem até onde, origina-se
uma debilitação do poder do Estado sôbre a sociedade, embora,
em absoluto, aquêle seja muito mais forte. E, com efeito, en­
quanto antes as subversões eram extraordinàriamente raras e
condenadas a um fracasso imediato, se inicia agora um a era de
revoluções, rebeliões e motins, com freqüência triunfantes, que
não tem semelhante na história dos três séculos anteriores, isto
é, desde a constituição das monarquias nacionais em fins do
século X V e comêço do XVI. A compreensão da história
A ESTRUTURA SOCIAL 195

européia — e em form a extrema da espanhola — nos ultimos


anos do século X V III e nos primeiros terços do X IX , é suma­
mente difícil se não se tem presente esta mudança de situação;
porque é precisamente nesse tempo quando se realiza o grande
aperfeiçoamento do aparelho estatal e o desenvolvimento de
scus instrumentos mais eficazes: exército, polícia, organização
administrativa, estatística, publicidade, meios econômicos,
ensino.
Esta consideração da “fôrça” do Estado não como uma
magnitude absoluta mas sim em relação com a sociedade e, por­
tanto, como um ingrediente da estrutura desta, nos levaria a
introduzir uma distinção entre o poder e as potências do Estado.
O primeiro consistiria em sua firmeza, solidez e plenitude de
autoridade e mando; as segundas, nas capacidades efetivas de
realizar determinadas funções e atuar em diversas zonas do
corpo social. O que caracteriza o Estado dos últimos cento e
cinqüenta anos é o fabuloso incremento de suas potências, rela­
tivamente independente do que se passe com seu poder. D u­
rante parte dêste tempo — não os mesmos anos em todos os
países — existiu um desnível entre ambas as coisas, que é um
dos fatores decisivos da história dessa época. A confusão dos
dois aspectos da “fôrça” do Estado obscurece por completo a
idéia de sua realidade, sua função, suas possibilidades e seus
riscos. E, sobretudo, a imagem da estrutura social, a qual está
condicionada justamente por essas relações. O Estado posterior
à Revolução francesa — a rigor, repito, a tendência se inicia
alguns decênios antes — é crescentemente intervencionista, isto
é, desenvolve suas potências e as leva a todos os estratos da
sociedade. Não foi outro o propósito do “despotismo ilustrado”,
que em tantos sentidos antecipa possibilidades políticas poste­
riores, maduras somente no século X IX , porém afetadas nele
pela crise do poder, no sentido que dou a esta palavra neste
contexto. E talvez não fôsse infecundo estudar a história dos
últimos tempos dêste ponto de vista: como o esforço por al­
cançar um Estado “potente” e ao mesmo tempo “poderoso”,
isto é, que se realize em múltiplas eficácias e maneje recursos
antes inimagináveis, ao mesmo tempo que se assegura a pleni­
tude e segurança do mando. Mas como isto se funda, por sua
vez, na própria sociedade sôbre a qual se exerce o domínio do
Estado, isto é, como o Estado deriva sua energia e suas capaci­
dades da sociedade, a formulação da questão em têrmos de
196 JULIÁN MARIAS

“domínio” da sociedade pelo Estado acarreta a debilitação e


quebrantamento do corpo social e, por conseguinte — passada a
eficácia momentânea que proporciona o uso ilimitado dos re­
cursos de um a unidade social — , a decomposição do próprio
Estado. P or ésse motivo foi ilusoria a pretensão de assegurar
a plenitude do poder estatal mediante um a destruição das fôrças
sociais, em lugar de tentar alcançá-la em virtude de um a intensi­
ficação e correta articulação das mesmas, que conduzisse a um
acórdo sólido sôbre o mando, e, portanto, sôbre o próprio Poder.
42. O Poder político e asi fôrças sodais

Até aqui empreguei em um sentido deliberadamente vago


a expressão “fôrças sociais”; agora é o momento de precisar
a sua significação. A realidade social — o vimos insistentemen­
te — nunca é estática, nem sequer é composta de elementos
estáticos que depois entrem em movimento, mas é constituida
por tensões, pressões, pretensões; é um sistema de fôrças ope­
rantes e que atuam em todo momento, e a própria estrutura
não é separável delas nem delas diferente, mas consiste na forma
dessa atuação de fôrças. Ora, essas fôrças, ainda que em última
instância sejam de caráter individual, isto é, ainda que se fun­
dem na realidade efetiva das vidas humanas individuais, não são
meramente individuais: entre a sociedade e os indivíduos se
interpõem realidades intermédias para as quais os indivíduos
convergem, e cujo sistema integra a sociedade total. Pode-se
pensar que se trata do que se costuma chamar “grupos sociais” ;
esta denominação seria aceitável se não fôsse o risco de um
equívoco que passaremos a examinar.
Se se entende por “grupos” os grupos concretos, isto é,
os que agrupam e portanto dividem uma sociedade, é preciso
dizer que não se trata déles. Por exemplo, as unidades territo­
riais inferiores — regiões, províncias, comarcas — internas à
sociedade total; ou os estamentos ou classe sociais, na medida
em que efetivamente unem diversas porções da população e as
isolam ou segregam umas em relação a outras; ou os dois sexos,
naquelas sociedades em que os esquemas de vida são muito di­
ferentes e não existe um a convivência geral em tôdas as ordens,
mas só pontos de contacto concretos entre homens e mulheres; ou
as idades, quando a articulação delas é muito marcada e defi­
nida e, portanto, os jovens, adultos ou anciãos vivem de algum
A ESTRUTURA SOCIAL 197

modo “em grupo” . Todos ésses grupos concretos, cujo interes­


se 6 evidente, são apenas urna parte — e não a decisiva -—
dessas realidades intercaladas entre a sociedade geral e os ho­
mens individuais.
Quando se dá conta de que êsses grupos se entrecruzam,
isto é, de que se pertence parcialmente a vários déles, que, por­
tanto, não se pode tom ar isoladamente nenhuma das organiza­
ções e divisões que impõem ao corpo social, chega-se à noção de
“grupo abstrato” . Simmel, sempre tão penetrante, estudou com
extrema agudeza o que denominou “o entrecruzamento dos cír­
culos sociais” . Um nobre pode ser oficial de exército, pertencer
à região de Westfália, ser luterano, homem maduro, sócio de
um clube de esgrima e membro de um grupo musical. Sua rea­
lidade pessoal está adscrita fragmentàriamente a diversos “gru­
pos” , todos os quais o contam entre seus componentes, sem
que, naturalmente, fique inteiramente incluído em nenhum.
Mas isto ainda não é o bastante. Se apenas se tem em
conta os “grupos” , concretos ou abstratos, deixa-se de lado algo
decisivo que deve ser acrescentado a êles, e que chamo fôrças
sociais. As duas notas que as definem são: 1) transcender o
individual e o simplesmente interindividual; 2) ter caráter di­
nâmico e operante. Explicarei. A ação de cada indivíduo ou de
vários indivíduos como tais não alcança o limiar do que se
pode chamar “fôrça social”; para que esta exista é necessário
uma convergência qualquer de indivíduos, que funcionem de
modo impessoal e portanto intercambiável (por exemplo, que
sejam desconhecidos entre si). Essa convergência tem que ser
ativa; não se trata de que êsses indivíduos “estejam juntos”
ou “coincidam” em um a semelhança de caráter comum; seu
vínculo é funcional: um a pressão, um desejo, um a opinião, uma
estimativa, a organização de algo, a oposição a outra coisa,
uma diversão coletiva, etc. Isto quer dizer, por outro lado,
que as fôrças sociais não têm razão para adquirir caráter ins­
titucional e permanente; pelo contrário, em seu estado de pureza
são essencialmente transitórias: se fazem e se desfazem, se
constituem e se dissolvem, sem deixar resíduos inertes; uma
parte — embora não todos êles — dos “grupos sociais” são
o precipitado, a cinza poderíamos dizer, de fôrças sociais ope­
rantes, um a vez que sua atividade se suspendeu ou se canalizou
em um funcionamento mecânico. Compare-se um partido po­
d U J-iJ.rt.lN 1V U U U A O

lítico com o que se chama um movimento de opinião: quando


em um a sociedade há fôrças operantes no campo da política,
formam-se núcleos de opinião espontâneos, fugazes, que se ori­
ginam em vista de um a situação concreta, se condensam sem
implicações alheias, se desvanecem tão depressa quanto a oca­
sião passe, sem que os indivíduos que formaram êsse movimento
fiquem depois disso ligados entre si; os que coincidiram em um
determinado momento e juntos exerceram sua pressão, no dia se­
guinte voltam a um a indiferença mútua ou a uma rivalidade; o
apôio circunstancial a um homem público não continua perm a­
nentemente adscrito a êle, mas pode mesmo se converter em re­
pulsa quando sua próxim a gestão suscite repugnância. O mesmo
ocorre com qualquer outra atividade ou aspecto da vida social.
Imagine-se a atividade desenvolvida por ocasião do Carnaval,
nas sociedades em que o Carnaval está vivo: energias de tôda
índole — econômicas, fisiológicas, imaginativas — se acumu­
lam na breve emprêsa; milhares de indivíduos concorrem na
organização dêsse festival coletivo: carros, fantasias e máscaras,
bailes, músicas, engenho, tensão pessoal, esforços de tôda índo­
le; não se intervém nisso a título pessoal mas coletivo: o ano­
nimato da máscara sublinha isto expressamente; nada disso
porém se perpetua: não se constitui um a “comissão permanente”
do Carnaval — quanto isto se dá é indício de que o Carnaval
está morto, que não há fôrças sociais que o sustenham, que
não há Carnaval e sim outra coisa (por exemplo, decisão oficial
de que haja Carnaval) — ; a quarta-feira de cinzas dissolve au­
tomáticamente tôda a energia — às vêzes enorme — acumulada
nos três dias de regozijo. Outro tanto ter-se-ia que dizer das
tertúlias, nos casos em que têm alcance social, isto é, que vão
além do círculo de seus tertulianos; dos salões quando são
órgãos da opinião ou aprêço coletico; do teatro, se êste é real­
mente um a realidade pública; da “fam a”, do “êxito” , do “pres­
tígio”, na medida em que funcionam auténticamente e não são
suplantados por fenômenos falsos, de aparência análoga, origi­
nados em um a vontade individual concreta e com recursos pri­
vados ou estatais.
Ora, a vitalidade de uma sociedade como tal se manifesta
em suas fôrças sociais. As energias dos indivíduos em sentido
estrito são outra coisa: pode haver homens sumamente enérgi­
cos, dotados de capacidades criadoras extraordinárias, e serem
precárias as fôrças sociais; pode acontecer, pelo contrário, que
uma sociedade vivaz e elástica não conte com indivíduos ex­
cepcionais em nenhum a ordem. A facilidade, rapidez e intensi­
dade com que em um a sociedade determinada se constituem e
se desvaneçam êsses movimentos a que me refiro, é o critério
que melhor permite medir sua vitalidade e vigor, isto é, a norm a­
lidade e saúde do corpo social. E acrescentei “e se desvaneçam”
porque a propensão à petrificação das iniciativas, à sua conser­
vação, um a vez passada a ocasião, a necessidade ou o entusias­
mo, é um inequívoco sintoma de esclerose do organismo coletivo,
devida quase sempre a uma crise da imaginação e, portanto, da
faculdade de desejar.
Na sociedade, as fôrças sociais são com o fluxo e o refluxo
das águas; em certos casos, êsse movimento é determinado por
ventos dominantes, que o definem em um a direção precisa e
lhe dão certa duração, um a relativa estabilidade — por exemplo,
quando se trata de ventos periódicos — ; e, na sociedade como
no mar, é o fator que evita a putrefação das águas estagnadajs.
Mas, por outro lado, para que as águas sejam navegáveis é
necessário que êsse pream ar e baixa-mar se regule por um siste­
ma de pressões: a massa d a água, a gravidade do ar que pesa
sôbre ela, a estrutura da costa que lhe d á forma. Esta função
é a que corresponde ao Poder público.
Quando êste é suficientemente enérgico, todo o vaivém
das fôrças sociais encontra prontamente seu equilíbrio; há um
sistema de compensações que impede o desajuste do corpo
social; se o Poder é débil, as fôrças sociais, abandonadas a si
mesmas, sem corretivo, se fazem espasmódicas e perturbam a
convivência. Por vêzes, um incremento da vitalidade social, que
em princípio seria excelente, se converte em um fator negativo,
simplesmente por falta de um aparelhamento de Poder adequado
a essa vitalidade e capaz de canalizá-la, com o que essas ener­
gias sociais acabam por se esterilizar e se consumir. Em outros
casos, pelo contrário, um Poder público prepotente e extrava­
sado afoga a vitalidade social ao pretender aplicá-la diretamente
a seus fins, isto é, à emprêsa estatal planejada. Com mais fre­
qüência ainda, um Estado inseguro de si mesmo e afetado por
um a debilidade interna se afirma enérgicamente e sente receio
de qualquer fôrça que não seja a sua, e, portanto, das fôtrças
sociais; não pode suportar seu jôgo livre e, como medida de
200 JULIÁN MARÍAS

segurança, as sufoca, afoga e paraliza — por exemplo, median­


te um sistema de travas burocráticas muito densas, proibições,
trâmites, dilações, etc., que dissipam o entusiasmo e suspendem
o desenvolvimento de tôda iniciativa — . Por último, algumas
vêzes o Poder público conserva-se adscrito a uma fôrça social
particular — ou, o que é o mesmo, uma fôrça social, institucio­
nalizada, se erige em Poder público ou se identifica com êle — ;
esta fôrça, então, em virtude de seu caráter “privilegiado”, não
joga livremente com as demais mas atua desde logo com uma
vantagem prévia, alterando portanto as “regras do jôgo” ; po­
deríamos dizer que as funções sociais estão perturbadas por
handicap não reconhecido, que adianta o resultado e conserva
a ficção do jôgo. Seria fácil alojar nas diversas possibilidades
que acabo de assinalar as situações efetivas que a história nos
m ostra e parece evidente que não se pode entender uma estru­
tura social se não se esclarece qual é a situação e o funciona­
mento das fôrças sociais nela e quais as relações que com as
mesmas tem o Poder público.

43. A liberdade e as pressões

Isto nos leva a tocar um tema de grandes proporções: o


da liberdade e sua relação com as pressões. A tocá-lo e não
a tratá-lo, porque aqui apenas assinalo os pontos de vista que
a investigação de um a estrutura social deve pôr em jôgo. Em
outras palavras, o que interessa neste contexto é determinar
em que medida a articulação da liberdade dos indivíduos ou
das agrupações transitórias ou permanentes, com o sistema de
pressões sociais ou estatais, constitui um ingrediente preciso
dessa forma de realidade que se chama um a sociedade.
O homem de fins do século X V III e, ainda mais, do século
X IX , ao voltar os olhos para a hjstória pretérita, tinha a im­
pressão de que a liberdade não havia existido antes dêle; no
máximo, a reconhecia em algumas épocas da vida da Grécia
antiga — e quase exclusivamente em Atenas — , talvez na R e­
pública romana. No momento em que o sentido histórico inter­
vém, se percebe que semelhante impressão corresponde escassa­
mente à realidade. Não só é inverossímil a descoberta da
liberdade em fins do século X V III, como, pelo contrário, se vê
A ESTRUTURA SOCIAL 201

o quanto a liberdade foi inseparável da história européia (2).


Sem dúvida, resta explicar, para não empregar só em parte o
sentido histórico, o porquê dessa impressão errônea de nossos
avós.
A liberdade não é fácilmente perceptível; vê-se melhor a
falta de liberdade. Êste fato elementar tem um a conseqüência
que vai muito longe: a propensão a uma interpretação negativa
da liberdade, como ausência de travas, coações ou pressões.
Suposta esta imagem, a atenção se concentra sôbre aquelas limi­
tações em relação às quais se é, em cada caso, mais sensível, e
de acôrdo com elas se julga a liberdade. O homem europeu
desde a crise do antigo regime teve como idéia da liberdade sua
realização em uma tantas liberdades que se esforçou por con­
quistar e — mais ou menos — alcançou no século X IX . Sem;
elas, sentia-se oprimido e em servidão; e assim considerava a
todo aquêle que, em outros tempos ou em outras sociedades*
estava privado delas. Mas o problem a é se a expressão que
acabo de escrever é justa. É certo que o homem medieval esta­
va privado da liberdade de expressão? Se empregamos a fór­
mula, tão usada, “liberdade de imprensa”, salta à vista o ana­
cronismo; porém, além dele, cabe dizer que na Idade M édia
existia essa privação? P ara isso, teria sido necessário que pre­
viamente a ela os homens daquele tempo tivessem tido a preten­
são de expressar-se — no sentido que se dá a esta palavra-
nos tempos modernos — . Isto significa que se torna necessário
funcionalizar a idéia de liberdade — ou de falta de liberdade
— , considerá-la, não como um conjunto de “determinações”,,
por exemplo jurídicas, mas sim como uma situação; e aplicar
a ela, por conseguinte, tudo o que é verdade dentro de uma
situação dada.
Antes de tudo, sua dependência de uma pretensão. Não-
poder votar é um a falta de liberdade. . . se se pretende votar.
Durante milênios não se o pretendeu; a partir de certa data, isto
começou a ser freqüente — embora menos do que se pensa — ;
porém só entre os homens. Em uma data muito mais tardia,
ocorreu a um grupo reduzido de mulheres que era ilógico que
só votasse a metade da humanidade — de fato, era ilógico — ;
e como estas damas possuiam um a sensibilidade especial para;

(2) Remeto nóvame,nte ao estudo de Ortega Del Imperio romano..


202 JULIÁN MARÍAS

a lógica, isto lhes pareceu uma monstruosa privação de liberda­


de; lembre-se qual foi a reação da imensa maioria das mulheres:
um a surpresa um pouco divertida, porque a falta de lógica não
as alvoroçava excessivamente e, sobretudo, porque nunca lhes
apetecera depositar papeletas nas um as eleitorais. E quando
se foi estabelecendo sucessivamente em muitos países o sufrágio
feminino, a reação sincera da maioria das mulheres foi esta:
“Que aborrecimento, ter que votar!”. Isto é, o direito de voto,
a liberdade de votar, se apresentam primàriamente como uma
imposição, como uma falta de liberdade, a saber, a de ficar
em casa e não se preocupar com as eleições; e não se diga que
isto era devido somente à “obrigatoriedade” teórica do voto, já
que esta nunca foi efetiva, mas sim que o próprio direito obriga
a tom ar posição, a votar ou não, sendo esta últim a não a sim­
ples ausência de ação, mas sim a ação positiva e talvez penosa
dc abster-se.
A história da liberdade de expressão e de suas privações
teria que ser feita paralelamente àquilo que se tem entendido por
“expressar-se” e às próprias técnicas expressivas. Em certas
épocas, “expressar-se” significa falar na taberna ou no café; em
outras, publicar livros; em algumas, escrever nos jornais; às
-vêzes, falar nos Parlamentos; agora, em alguns países, significa
uma privação de liberdade expressiva não dispor de meia hora
de televisão. O que num a certa data e lugar parecia — e era —
plena liberdade, em outra situação é opressão e cativeiro. A
liberdade de cátedra e a liberdade de greve interessam a zonas
.muito diversas do corpo social, pela razão de que os homens
que anseiam pela primeira não saberiam o que fazer com a se­
gunda, e vice-versa. Só é possível um interêsse abstrato na
liberdade não pretendida, por razões de solidariedade ou pela
crença de que as liberdades estão em conexão e a supressão de
uma ameaça as demais. Mas ainda isto dever-se-ia tom ar com
muitas restrições; concretamente, restrições circunstanciais;
isto é, sente-se como elementos de um “sistema” certas liberda­
des que, por relações de funcionamento ou de origem histórica
— isto é sumamente importante — , parecem efetivamente liga­
das a uma mesma figura de vida. É possível, por exemplo, que
a liberdade de greve seja reinvindicada por aquêles aos quais o
que na verdade interessa é a liberdade de culto; e que reclamem
a liberdade de Imprensa os que pretendem gozar a liberdade
A ESTRUTURA SOCIAL 203

de comércio; mas é sumamente improvável que alguém dentre


cíes exija a liberdade de circulação por qualquer ponto da rúa,
a liberdade de não vacinar-se, de não ir à escola, de não decla­
rar seus vencimentos, liberdades de que gozava ilimitadamente
c homem medieval, “privado” por outro lado daquelas antes
mencionadas.
A liberdade não se opõe às pressões, isto é, a tôdas as
pressões; sem muitas delas, a vida social não é possível, e por­
tanto, nem tão pouco a liberdade. E sta se realiza entre pres­
sões; em parte graças a elas, em parte também deslizando-se
entre elas, traçando sua trajetória na estreita margem, espaço
ou “jôgo” que as pressões limitadas e de certa maneira contra­
postas deixam livre; em alguma proporção contra as pressões,
voltando a atuar sôbre elas, vencendo-as em alguns pontos, des­
viando-as ou modificando-as. Para tom ar o exemplo mais gros­
seiro, a política só existe como jôgo com e entre diversas pres­
sões; sem elas, não há política; quando são incoercíveis e esma­
gadoras, quando não se moderam nem toleram o jôgo, a política
desaparece do cenário histórico e é substituida por outras coisas.
(Quais? Seria interessante averiguar o que aparece em lugar da
política quando esta deixa de existir; creio que nunca esta
questão foi apresentada a sério e com rigor teórico; e valeria
a pena).
Porém tão pouco é suficiente um critério quantitativo,
isto é, aquêle que reconhece a liberdade como compatível com
pressões limitadas e moderadas, mas não com as violentas e
irreprimíveis. Não porque isto não seja verdade, naturalmente,
mas por ser uma verdade demasiado elementar e tosca. Em
primeiro lugar, a intensidade das pressões não pode ser medida
de um modo absoluto e sim em proporção com a energia das
pretensões e a vitalidade das fôrças sociais; a “mesma” pressão
pode funcionar de maneira distinta na Roma de Sila ou na
Bélgica de Leopoldo II. Em segundo lugar, assim como a pre­
tensão de felicidade pode ser mais ou menos elevada, a de
liberdade varia enormemente na história. O programa vital do
indivíduo apresenta em cada sociedade um catálogo de requi­
sitos de amplitude e conteúdo muito variável, que significam
outras tantas exigências frente ao contôrno para realizar-se. A
liberdade real depende do que se intenta. Mas como o hori­
zonte das pressões, presentes com mais ou menos precisão na
mente dos indivíduos, faz com que êsses intentos cheguem a
204 JULIÁN MARÍAS

ter existência ou se asfixiem mesmo como intentos, deve-se ter


em conta o que poderíamos chamar o nível de pretensão. Às
vêzes o Poder não tem nada que reprimir, apenas se exerce,
rara vez descarrega o péso de seus recursos coativos sôbre os
indivíduos; e isto não significa existência de liberdade e sim pre­
cisamente o contrário: sua privação é tal, que inclusive chegou
a obliterar a pretensão a ela; são as situações de resignação, en­
trega ou desespéro — que não são exatamente o mesmo — ; em
forma extrema provocam o aviltamento; só isto explica a m a­
nutenção de certas formas de vida particularmente opressivas,
durante anos e anos, talvez durante séculos. No Dictionnaire
philosophique de Voltaire, o Conde M edroso pergunta a Lord
Boldmind: Vous croyez done que mon áme est aux galeres?,
e Boldmind responde: Oui; et je voudrais la délivrer. Mas M e­
droso insiste: Mais si je me trouve bien aux galeres? E então
Boldmind: En ce cas vous méritez d’y étre.
O decisivo, pelo menos do ponto de vista que aqui nos
interessa, que é o d a liberdade como ingrediente da estrutura
social, é, a meu entender, o seguinte: a vida é possível como
liberdade quando as pressões, embora sendo enérgicas, não
destróem a figura que a unidade social pretende ter, e portanto
fazem normalmente possíveis as trajetórias individuais definidas
pelas pretensões vigentes. Em outras palavras, a falta de liber­
dade aparece como contradição interna da sociedade que a pa­
dece. Alguns exemplos esclarecerão o que quero dizer. Se a
crença dominante em um a sociedade é que o poder pertence ao
monarca e êste o exerce, isto não significa falta de liberdade, e
os indivíduos se sentem livres nessa ordem, embora submetidos
ao poderio de uma monarquia absoluta; se o pressuposto de
um corpo social é, pelo contrário, que a soberania reside no
povo, e êste não tem possibilidade de exercer o mando, esta
situação é de estrita privação de.liberdade. A falta de liberdade
de Imprensa requer, em dito acaciano, que haja Imprensa, isto
é, jornais em que se expressa “opiniões”, em que se “julga” e se
“critica”, em que se informa do “que se passa” , etc. Uma situa­
ção em que não há jornais ou êstes possuem um a simples função
notificadora não admite “privação de liberdade de Im prensa” ;
porém se se conserva a aparência da informação e esta não
se pode realizar, se se imprime coisas que parecem opiniões
mas que não o são, porque ninguém as opina, se se aparenta
A ESTRUTURA SOCIAL 205

discutir coisas que não se permite discutir, etc., então surge essa
privação. Quando Sevilha ou Cádiz tinham o privilégio do
comércio com as Indias, isto não implicava falta de liberdade
mercantil; como não é falta de liberdade que só o Banco da
Nação possa emitir notas ou que únicamente o Estado possa
cunhar moeda; mas se existem as estruturas exteriores da in­
dustria e do comércio, se se organizam emprêsas de produção
e intercâmbio de produtos, e de fato não lhes é permitido fazer
isso que em princípio fazem, nesse momento se produz a priva­
ção de liberdade econômica. De um modo análogo, se a crença
dominante é que cada pessoa as organize como puder, trabalhe
ou não, ganhe mais ou menos, viva a um nível ou a outro, se­
gundo o possa alcançar efetivamente, esta situação poderá ser
boa ou má, talvez lamentável ou inclusive atroz, porém é de
liberdade; enquanto que se existem estruturas trabalhistas —
sindicatos, escalas de salários, inspeção do contratos, direitos
adquiridos, associação à emprêsa, etc. — e não podem se pôr
eficazmente em funcionamento, nisto precisamente se estriba a
destruição da liberdade, visto contradizer a situação vigente. O
serviço militar obrigatório, embora o sendo, é conciliável com
a liberdade; porém não o é — ainda que seu volume seja enor­
memente inferior — o sistema de recrutamentos forçados, em
virtude do qual se contradiz o pressuposto de que o cidadão não
está obrigado a servir no exército ou na marinha. E assim su­
cessivamente.
Dêste ponto de vista deveria ser estudado o difícil tema da
liberdade intelectual, que costuma ser muito escassamente es­
clarecido. . Quando existe um consensus efetivo em um a so­
ciedade a respeito de que algo é indiscutível, não é supressão
da liberdade o não se o poder discutir. É evidente que quando
é êste o caso, o Poder não precisa incomodar-se em proibi-lo,
porque é a pressão social como tal — a pressão intelectual
quando se trata de um tema de pensamento — aquela que
adequadamente o impede; e a intervenção dos poderes tempo­
rais quase sempre corresponde à não existência dêsse consensus
na sociedade. Por outro lado, na maioria das épocas históricas
não houve liberdade de cátedra, nem de pubücação, nem de
expressão oral pública; e, no entanto, seria inexato dizer que
nunca houve liberdade intelectual; do ponto de vista do século
X IX , isto é, entendendo-se por liberdade intelectual o que se
206 JULIÁN MARÍAS

entendia então na Europa ocidental, seria efetivamente assim;


porém dentro dos pressupostos dominantes em cada caso, al­
gumas vêzes houve liberdade e outras não, segundo tenha sido
possível, de fato, realizar o que em princípio era reconhecido
como função normal da inteligência. A falta de liberdade con­
siste na conservação de todos os dispositivos deuma forma de
vida intelectual — por exemplo, Universidades públicas, edi­
toras privadas, revistas, jornais, associações de cultura, con­
gressos, centros de investigação, prêmios, etc. — com supressão
das condições efetivas de seu funcionamento, isto é, dos requi­
sitos inerentes a sua figura e, portanto, do que se supõe que sig­
nificam. Por incrível que pareça, os estudos históricos que pre­
tendem contar e explicar a produção intelectual de qualquer
ordem nas diversas épocas pretéritas somente uma vez ou outra
e em algum ponto excepcional levam em conta êste aspecto
decisivo, do qual depende, rigorosamente, a significação e com
isso a própria realidade da ciência, filosofia, literatura e inclu­
sive da arte.
Em uma palavra, o esclarecimento de uma estrutura social
exige que se defina em têrmos precisos o grau em que as for­
mas tôdas que as constituem podem ou não se realizar, e em
virtude de que jôgo de pressões. Com o qual se desenha uma
idéia de liberdade, segundo a qual esta não consiste em um mais
ou menos de constrições particulares, mas sim no grau de au-i
tentícidade de um a unidade de convivência coletiva.

44. A margem de individuação

Até aqui me referi à liberdade como condição de uma


sociedade e, portanto, de cada uma das vidas dos indivíduos
que a ela pertencem, porém só enquanto determinadas por essa
pertinência. Isto significa que se trata de uma liberdade gené­
rica e em certa medida abstrata; em outras palavras, embora
o que denominei “privação de liberdade” a exclui desde logo, a
situação contrária, a “vida como liberdade” , não se identifica
sem mais com a existência de uma liberdade efetiva; apenas
proporciona sua possibilidade, estabelece seu âmbito ou alvéolo;
para que a liberdade de fato exista, não é suficiente que seja
possível: é necessário realizá-la, porque a liberdade não é algo
que “se tem ” e sim que “se faz” . E isto nos leva a outro tipo
de considerações.
A ESTRUTURA SOCIAL 207

A liberdade concreta não consiste, é claro, na ausência de


constrição mas sim n a possibilidade real de projetar e realizar
a vida assim projetada; sua primeira condição é, pois, a imagi­
nação; quanto menor é esta, menor é o âmbito da liberdade. O
caso limite é naturalmente, o animal; embora não pese sôbre
êle a menor pressão exterior, sua fantasia mínima anula suas
possibilidades de liberdade (3>. Dentro do humano, quando a
imaginação é muito reduzida, a liberdade se move em uma
margem sumamente estreita; entenda-se bem, o homem é sem­
pre livre, e o é forçosamente; mas isto não quer dizer que o
seja de todo e sim que, pelo contrário, pode ser muito pouco
Mvre. E ao falar de graus de imaginação, não se pense em uma
“faculdade” ou potência imaginativa abstrata; a imaginação real
está condicionada pelos materiais que maneja: lembranças, ex­
periências, amplitude do horizonte mental, etc. Esta situação,
na qual se pensa poucas vêzes, é o primeiro fator que intervém
no que se poderia denominar uma quantificação da liberdade.
Em segundo lugar, a liberdade requer para seu desenvolvi­
mento um certo grau de complexidade de convivência. Robin-
son Crusoe tinha um a liberdade absoluta, no sentido de ausência
ds pressão ou coação social; porém o âmbito de sua liberdade
real era extremamente reduzido. Por estar só, Robinson t inha
que fazer tudo por si mesmo; mas isto significava automática­
mente que o programa mínimo exigido por sua subsistência
física absorvia quase integralmente suas possibilidades. Quero
dizer que a figura de Robinson estava já predeterm inada por
sua situação; ser Robinson é equivalente a realizar um reper­
tório de condutas pràticamente invariáveis e que deixam pouca
margem para algo mais; por isso o “tipo” do Robinson tem

(3) Evidentemente, não se trata apenas da fantasia; porém basta a.


carência dela para determinar a inexistência da liberdade. Tão pouco
é suficiente a fantasia para que haja liberdade; mas dadas as outras
condições que não cabem neste contexto — , sua realização concreta é
função dela. Ainda mais: na medida em que o animal é capaz de ima­
ginação ou fantasia, há nele uma “quase-liberdade”, isto é, alguma deter­
minação que é “homóloga” daquilo que é a liberdade humana; no outro
extremo, se pode ter algum sentido inteligível a expressão “liberdade”
aplicada a Deus, é porque atribuimos a êle, por via de eminência, algo
também homólogo de nossa imaginação.
208 JULIÁN MARIAS

validez universal, salvo os matizes (4), ou seja que a margem


de individualização apenas existe. Não se é livre para ser um
ou outro Robinson; e justamente, quando surgem na ilha dois
homens, aparece a possibilidade de duas “versões” diferentes
do solitário — precisamente porque já não o é tanto — : R o­
binson ou Sexta-feira.
O terceiro aspecto condicionante da liberdade é a existên­
cia de recursos suficientes. Primeiramente, na sociedade; mais
concretamente, à disposição de cada indivíduo. Por isso, a liber­
dade, quaisquer que sejam suas demais possibilidades, está
am eaçada e restringida por tôdas as formas de primitivismo. A
simplicidade da articulação social, por exemplo, faz com que se­
jam muito poucos os modelos accessíveis a cada indivíduo entre
os quais escolher; a escassez de meios técnicos restringe a li­
berdade: de viajar, de alimentar-se, de realizar expriências de
tôda ordem; as dificuldades econômicas reduzem o raio de ação
de cada indivíduo e elimina de seu horizonte um sem-número
de possibilidades que estão “aí”, a saber, na sociedade geral,
mas que não são efetivamente accessíveis ao homem concreto,
isto é, não são possibilidades suas.
O enriquecimento e complicação das sociedades multipli­
cam, pois, as figuras humanas que dentro delas são possíveis e
ao mesmo tempo os atos, condutas e experiências que se podem
dar em cada um a delas. A liberdade real é multiplicada, por
conseguinte, graças a êsse crescimento, por uma segunda potên­
cia. A realidade hum ana individual admite muito mais versões,
e em cada um a cabem mais concretudes diversas; a margem de
individuação se dilata e se amplia; a diferença entre situações
extremas é de magnitude incrível; daí que não se possa enten­
der uma sociedade, um a situação histórca — ou dentro dela a
biografia de um homem individual — , sem tentar “quantificar”
— sit venia verbo, porque essa quantificação, como tôdas as
humanas, é intrínsecamente qualitativa — o âmbito de suas
possibilidades e, portanto, a margem de individuação.

(4) Aludi, uma vez, às diferenças — sutis, mas significativas —


entre o Robinson Crusoe de Daniel Defoe e o “robinson” espanhol Pedro
Serrano, um século e meio anterior ao inglês, cuja história é narrada
pelo Inca Garcilaso de la Vega nos Comentarios reales. (Veja-se “El Otro
en la isla”, em El oficio del pensamiento, Obras, VI)
A ESTRUTURA SOCIAL 209

Seria porém um êrro deixar que o pensamento seguisse


mui inérica e avançasse mecánicamente. E isto porque preci­
samente a intensificação dos fatores que fazem possível e au­
mentam a liberdade e a individuação, a partir de certo grau as
ameaça, as diminui e as pode anular. Êsse grau, por seu lado,
não é fixo nem determinável abstratamente, e sim só dentro
ile uma constelação ou sistema de elementos estruturais. Os
Irês aspectos considerados, ao alcançarem um limite variável
cm cada caso, dão m archa à ré e desempenham a função con-
li ária da que em princípio lhes corresponde. Assim, um excesso
“imaginativo”, isto é, uma riqueza de lembranças, experiências,
ensaios, projetos, teorias, restringe a liberdade, porque diante
de qualquer figura imaginada surgem as dificuldades, as reser­
vas, a memória de fracassos, a necessidade de levar em conta
mais fatores, até o ponto de produzir um a paralisia. É o caso
das épocas de acúmulo e amaneiramento, das sociedades “de­
cadentes”, nas quais se chega a uma situação que, pelo caminho
oposto, se liga ao “primitivismo” — e como reação costuma
provocá-lo — . Análogamente, quando a convivência se tom a
muito densa — por exemplo, quando a população aumenta em
excesso — , a fricção é tal, que o “raio” de ação de cada
indivíduo se reduz; enquanto Robinson mal podia ser êle mes­
mo, porque seus dias se esgotavam em ser homem, isto é, em
continuar vivendo, aquêle que vive em um a sociedade super-
povoada e de estrutura muito complicada quase não pode fazer
outra coisa a não ser “continuar aonde está” , adscrito ao ponto
em que a sociedade o tem situado; e isto num sentido às vêzes
literalmente material: alojamento, um “pôsto” ou “colocação”
de trabalho, etc. P or último, a abundância de recursos, que
inicialmente amplia o horizonte, pode chegar a reclamar ela
própria uma atenção que antes se dirigia aos projetos, e provoca
assim uma retração em relação a êstes. O homem muito pobre
quase nada pode fazer; porém o homem muito rico dificilmente
pode fazer mais do que um a coisa: cuidar de sua riqueza; êste
exemplo basta para esclarecer o que pretendo dizer.
Trata-se, em suma, de uma questão de máximos e mínimos.
A vida como liberdade, para realizar-se de fato, sobretudo na
forma de tolerar um a ampla margem de individuação, requer
um grau de “densidade” e complexidade da convivência e das
formas sociais. Porém se a sociedade se faz demasiado “densa” ,
210 JULIÁN MARÍAS

os fios que são as trajetórias vitais começam a embaraçar-se,


e estas perdem sua figura. Não seria impossível, ainda que de
um a dificuldade teórica considerável, determinar, em cada um
dos estratos da vida, o grau ótimo de intensidade e complicação.
Em todo caso, é inexcusável uma avaliação dessa complexidade
e, correlativamente, das possibilidades do indivíduo, dentro de
cada estrutura social.

45. O sistema dos usos como facilidade e limitação

No program a de um curso sôbre O homem e a gente, dado


em Buenos Aires em 1939, Ortega escreveu estas teses concisas
sôbre a realidade e a função dos usos:

“Os usos produzem no indivíduo três categorias principais


de efeitos:
“ 1.° São pautas do comportamento, que nos permitem
prever a conduta dos indivíduos que não conhecemos e que,
portanto, não são para nós indivíduos determinados. A relação
interindividual só é possível com o indivíduo a quem conhe­
cemos individualmente, isto é, com o próximo. Os usos nos
permitem a quase convivência com o desconhecido, com o
estranho.
“2.° A pressão, ao impor um certo repertório de ações
— de idéias, de normas, de técnicas —•, obriga o indivíduo a
viver à altura dos tempos e injeta nele, quer queira quer não,
a herança acumulada no passado. Graças à sociedade, o homem
é progresso e história. A sociedade entesoura o passado.
“3.° Ao automatizar uma grande parte da conduta da
pessoa e lhe dar resolvido o programa de quase tudo o que tem
que fazer, lhe permite que concentre sua vida pessoal, criadora
e verdadeiramente humana, em certas direções, o que, de outro
modo, seria impossível ao indivíduo. A sociedade situa o homem
em certa franquia frente ao porvir e lhe permite criar o novo,
racional e mais perfeito.”
Nestas poucas linhas está encerrada in nuce tôda uma so­
ciologia; convém, pois, as ter presentes em sua expressão literal.
Mas o que aqui concretamente nos interessa é ver como uma
estrutura social inclui entre suas determinações capitais a m a­
neira segundo a qual os usos afetam o indivíduo em suas possi­
bilidades.
A ESTRUTURA SOCIAL 211

Para começar, os usos apresentam um caráter duplamente


quantitativo: primeiro, quanto a seu número, “área” ou campo
de aplicação; segundo, em relação à sua intensidade. Com
eleito, os usos podem ser muitos ou poucos, mais ou menos;
cada época tem a impressão de que o número de usos vigentes
aumentou ou diminuiu em comparação com a época anterior;
provàvelmente as duas coisas, porque a área dos usos se “des­
locou”, e afeta zonas que antes estavam isentas de regulação
por um uso, enquanto outras, antes “cobertas”, ficam em fran­
quia ou vacantes; e êste deslocamento mascara a alteração
quantitativa e tom a difícil determiná-la. E sta impressão reapa­
rece quando se passa de um a sociedade contem porânea a outra:
os, usos dominantes na Espanha talvez não têm vigência na
França ou nos Estados Unidos, e isto faz pensar que “se pode
lazer qualquer coisa”; mas em seguida se percebe que em certos
temas em que a sociedade espanhola não prescreve nada con­
creto, a francesa ou a americana exercem um a pressão suma­
mente precisa. É indispensável, pois, para entender um a so­
ciedade, fazer um “balanço” dos usos vigentes, que não
pretenderá a exatidão e sim um conhecimento aproximado —
e, é claro, comparativo — de seu volume; isto é, trata-se de
precisar se um a sociedade está muito ou pouco determinada
pelos usos, em outros têrmos, se dêste ponto de vista é mais
ou menos “densa” ou abandonada à espontaneidade e à impro­
visação.
Mas não é suficiente especificar o número dos usos; êstes
são pressões, fôrças que se aplicam sôbre o indivíduo. Com
que intensidade? H á sempre usos fortes e débeis, que obri­
gam sub gravi ou sub levi, como com outro propósito costumam
dizer os teólogos morais. H á sociedades em que o sistema in­
teiro dos usos é predominantemente enérgico; em outras é
lasso; isto é, a vigência dos usos é mais ou menos enérgica,
prèviamente à quantificação da vigência de cada um em parti­
cular. A mensuração — repito que sempre aproximada e
comparativa — dessa intensidade e das porções do sistema se­
gundo as quais varia, nos daria um “m apa métrico” dos usos
de um a sociedade, análogo aos que indicam em um a carta geo­
gráfica a distribuição das chuvas ou a densidade de população;
e não seria impossível — tomando a expressão cum grano salis
— traçar um m apa de “linhas isobáricas” , que unissem os
212 JULIÁN MARÍAS

pontos de igual pressão — entenda-se, social — . E isto, feito


com algum rigor, permitiria predizer os movimentos sociais, ao
desenhar dentro do corpo social as figuras de maior ou menor
pressão e, portanto, mais ou menos propícias a cederem e a
se modificarem.
Isto traz consigo a necessidade de determinar claramente
as zonas da vida afetadas preferentemente pelos usos. Mas
não se pense que isto significa que urnas zonas são reguladas e
outras não; o que varia é o princípio da regulação: algumas
vêzes, os usos, outras, o direito, em certas ocasiões o simples
costume. Enquanto em algumas épocas o modo de vestir era
prescrito legalmente — pragmáticas sôbre o luxo, determinação
do atavio dos nobres ou dos plebeus, das mulheres solteiras ou
casadas, etc. — , em outras se rege por usos estritamente sociais,
em que o Estado não intervém; assim, por exemplo, o uso do
primeiro vestido de baile para a apresentação das jovens à
sociedade, o emprêgo do traje de etiqueta, da gravata, dos de­
cotes, das diversas côres e classes de tecidos segundo os sexos,
idades e condição social. Quando os usos são muito débeis,
tudo está permitido — dentro de certos limites —-, a obrigação
fica reduzida ao mínimo, e em seu lugar aparece o critério de
freqüência, princípio do costume. É talvez um costume tom ar
café com leite, pela manhã, em alguns países, mas se em vez
disso alguém come mariscos, nem por isso está violando um
uso: apenas executa uma ação não costumeira, que não desen­
cadeia represálias sociais sérias, como acontece com as infrações
dos usos, por exemplo, se alguém am arra o guardanapo ao
pescoço ou tom a champanha às colheradas; ou se na Espanha
— mas não na França — uma operária usa chapéu; ou então
se na França — mas não na Espanha — se chama a uma senho­
ra por seu nom e de batismo.
Em alguns casos, nessas mesmas zonas intervém ao mesmo
tempo como reguladores o uso e a lei: enquanto o traje civil
se orienta pelo uso, o uniforme e o hábito são determinados por
um a ordenação jurídica de natureza pública; quando certos ali­
mentos estão proibidos pela religião, ou não podem ser comidos
em certas ocasiões — “dia sem carne” — , “dia sem sobremesa”
em alguns países, etc. — , os usos como tais deixam de atuar,
e são substituidos pelo mais forte que é o direito; outro tanto
se dá com o tratamento quando não é simples assunto de corte-
A ESTRUTURA SOCIAL 213

níu — isto é, socialmente imposto pelo uso — , mas legalmente


exigido; ou com a saudação ou outros fenômenos análogos.
Quando os usos são numerosos e enérgicos, a vida fica in­
formada por êles e deixa uma margem muito acanhada à es­
pontaneidade, à improvisação e à invenção. Se, pelo contrário,
há uma quebra geral dos usos, isto é, se êstes perdem em
grande parte sua vigência ou a têm atenuada, as condutas são
imprevisíveis e se produz uma desorientação em relação aos
demais e também acêrca do que cada um deve fazer. Em certas
ocasiões, algumas formas de vida ficam asfixiadas pela pressão
de usos excessivamente invasores e opressivos; pense-se, por
exemplo, nas relações entre homem e mulher em muitas socie­
dades; a impossibilidade da amizade intersexual, as dificuldades
da relação amorosa, o desvirtuamento do matrimônio — du­
rante longas épocas o consentimento foi fictício, inexistente do
ponto de vista atual, devido aos usos vigentes — , tudo isso
como conseqüência da pressão indiscreta de usos desorbitados.
Porém, pelo contrário, a crise dos usos nessa mesma zona da
vida conduz a um a falta de regulação dessas relações que as
perturba e as anula no mesmo grau, se bem que em outro
sentido.
Isto significa que a vida hum ana é invenção, mas que não
se pode começar do zero; o “nível” do qual parte a invenção
individual é justamente o definido pelo sistema dos usos;
apoiando-se neles, o homem inova e traça sua trajetória pessoal;
êles são, pois, ao mesmo tempo facilidade e limitação.
Ter-se-ia que acrescentar ainda uma palavra sôbre uma
classe de usos sumamente estranhos: os usos negativos. A rigor,
não é próprio chamá-los usos, porque o peculiar neles é preci­
samente o fato de que não se usam; nem tão pouco costumes,
porque não acostumam; no entanto, se alguém executa uma
ação que infringe um “uso negativo”, a sociedade exerce suas
represálias habituais, e então funciona a mecânica dos usos,
que revela a condição latente daquele. Eu proporia para esta
classe de usos o têrm o soências; (*> o uso negativo nada impõe,
tão pouco proibe algo expressamente, apenas as coisas soem

(*) Paralelamente ao têrmo “solencia”, derivado do verbo “soler”,


usado no texto original castelhano, em português pode-se ter a palavra
“soência ”, derivada do verbo “soer”. (N. do T.).
214 JULIÁN MARÍAS

ser assim, tal ação ou tal gesto soem ser omitidas. Não é casual
e sim muito significativo, que a palavra soência não exista, nem
em latim nem nas línguas románicas; o que existe é o têrmo in­
solência, precisamente porque a “soência” aparece ao ser nega­
da, violada por um ato insólito; e êste é o primeiro sentido que
tem em latim insolentia ou insolens: não o des-usado (que se
deixou de usar), mas sim o desabitual, desacostumado, que não
se sói fazer, estranho, extravagante; e por isso irritante, im per­
tinente, perturbante, insolente em sentido moderno. A insolentia
é a novidade imprevista; diz-se de um nome muito extrava­
gante, insolentissimum. E como isto exaspera e parece uma
agressão ao social, a insolência se carrega de associações pejo­
rativas: é descaramento, falta de respeito, desejo de se distin­
guir, falta de vergonha. Se bem se observa, se vê que a maioria
das condutas que parecem insolentes são violações de usos ne­
gativos e, portanto, raram ente formulados; digo a maioria porque
a linguagem possui certa elasticidade que impede a exatidão,
porém se pode perceber que a tendência geral é inequívoca.
As mulheres, concretamente, estão submetidas, em quase
tôdas as sociedades, a um acúmulo de usos negativos ou “soên-
cias” ; foi isto que formulei outras vêzes dizendo que a situação da
mulher tem sido a de não poder fazer nada, a menos que houvesse
acôrdo social expresso de que se tratava de algo lícito. Em prin­
cípio, nada era possível; um a “soência” geral gravitava sôbre
a porção feminina da humanidade, que se ia descobrindo e se
tom ando concreta à medida que as mulheres iam tentando com­
portamentos que se revelavam “insolentes”, qualquer que fôsse
seu conteúdo: isto ocorreu com as primeiras mulheres que qui-
zeram estudar nas Universidades; nem sequer estava proibido,
porque não estava previsto; mas aí estava latente o uso negativo
de que as mulheres não iam à Universidade. O mesmo se deu
quando algumas mulheres começaram a sair à rua sozinhas, ou
ir ao café, ou exercer certas profissões. Idêntica impressão de
insolência produziu quando um a mulher se pôs a nadar, a
acender um cigarro, ou cruzar as pernas. Poder-se-ia multipli­
car os exemplos. E note-se que quando se trata de um uso
positivo, sua infração não é considerada especificamente como
insolência: há sessenta anos parecia insolente a mulher que se
pintava, mas não a que era infiel a seu marido; hoje o parece
em alguns países a que usa calças compridas, mas não a que
A ESTRUTURA SOCIAL 215

dispensa o chapéu, as luvas ou o traje de festa em circunstancias


cm que o uso estabelece que se traga uns ou outros.
É necessário determinar, pois, em tôda estrutura social, a
proporção em que se distribuem os usos positivos e os negativos
ou “soências”, e sua localização n a vida coletiva. Somente isto
permite entender o coeficiente de “elasticidade11 ou “rigidez” e
paralização de um a sociedade concreta.

46. A riqueza e a estrutura econômica

O ponto de vista a partir do qual se deve considerar aqui


a situação econômica de um a sociedade não é interno à própria
economia, mas determinado pela necessidade de esclarecer em
que medida e forma a condição econômica afeta a estrutura
social, e mais concretamente o âmbito de possibilidades dos in­
dividuos ou dos grupos. Isto quer dizer que as considerações
quantitativas, embora sendo evidentemente essenciais, não po­
dem ser as únicas que entrem em conta, e só constituem o ponto
de partida.
Portanto, deve-se começar, em bora não se possa aí parar,
pela avaliação da riqueza total de um a sociedade, que é o
ponto de referência para tôda determinação ulterior, a que tom a
possível qualquer gênero de qualificações. H á sociedades mais
ou menos pobres, mais ou menos ricas, e em muitos graus;
porém não é suficiente tão pouco um a averiguação da quantia
absoluta dessa riqueza; porque esta, socialmente, tem sempre
caráter comparativo: um a sociedade é rica ou pobre em com­
paração com as demais sociedades — um a nação européia, por
exemplo, medindo-se pelo nível de outras — ou consigo mesma
em outro tempo: sente-se empobrecida ou enriquecida, arrui­
nada ou próspera. Em segundo lugar, a consciência econômica
de um a unidade social não depende só de suas riquezas atuais
mas de suas potencialidades: a impressão de riqueza dos povos
jovens, de economia colonial, tem se fundado mais naquilo
que esperavam do que no que de fato possuiam; às vêzes uma
enorme carência se tem aliado a um a ilimitada confiança no
futuro econômico imediato; e, inversamente, muitos países —
por exemplo, da América do Sul — começaram a se sentir
pobres ou, pelo menos, não tão ricos, justamente quando che­
garam a dispor de riquezas consideráveis, porque isto coincidiu
216 JULIÁN MARIAS

com a descoberta da limitação de suas possibildades, com urna


retração do horizonte.
Por outro lado, não se pode tom ar a riqueza de uma so­
ciedade sem mais localizações precisas. E isto em dois sentidos:
o primeiro, pelo fato das unidades econômicas não coincidirem
forçosamente com as sociais, quer sejam as primeiras mais am­
plas ou mais acanhadas que as segundas; a economia das diver­
sas regiões de um a nação, por exemplo, tiveram durante muito
tempo relativa autonomia e apresentaram diversos níveis e
estruturas; por outro lado, ao mesmo tempo que esta situação
persiste residualmente, a complicação progressiva da vida eco­
nômica fêz com que funcionem realmente como unidades gran­
des porções do mundo, sob êste ponto de vista solidárias, mas
que incluem sociedades diferentes. O outro sentido em que se
deve localizar a riqueza é o de sua distribuição interna; a quan­
tia total da mesma, o fato de que um a sociedade seja rica ou
pobre, não adianta ainda muito sôbre sua estrutura; pode estar
concentrada em um número muito reduzido de indivíduos ou
repartida igualitàriamente, e entre, os dois extremos podem se
dispor inumeráveis pontos intermédios; porém tão pouco o
quantitativo é suficiente, e por isso as estatísticas econômicas
não são uma explicação mas apenas dados necessários para ela;
esteja a riqueza em poucas ou muitas mãos, o decisivo é saber
quais são: não é indiferente que seja o Estado, um estamento
nobiliário, as ordens religiosas, uma classe financeira, indivíduos
relativamente isolados e independentes. É evidente, para tom ar
um exemplo espanhol e da época romântica, que a desamorti-
zação de M endizábal não representou em princípio uma altera­
ção substancial da riqueza, mas determinou variações decisivas
na estrutura social da Espanha.
Suposto um determinado volume de riquezas e uma distri­
buição da mesma dentro de um a sociedade, um fator estrutural
importante é o que poderíamos chamar a accessibilidade à ri­
queza. Com efeito, os bens econômicos podem estar adscritos
a seus possuidores em diferentes graus; a “fortuna” e o “ganho”
são as duas formas capitais em que a riqueza se apresenta. E
em ambas podem se dar formas muito distintas. Em alguns
casos, a riqueza está invariàvelmente unida a outras condições
sociais; por exemplo, reside em um estrato social único, talvez
com vinculações individuais muito precisas; em outros casos, a
A ESTRUTURA SOCIAL 217

riqueza é adquirida ou perdida com facildade, muda de mãos,


c está menos unida à condição social de que ao trabalho —
combinado em qualquer dose com o acertó e a sorte — ; en­
quanto em algumas sociedades a riqueza é fortuna inerente a
uma posição social, por exemplo em forma de possessão, em
outras é m atéria de ganho, e existe a vigência — não importa
a exatidão real disto — de que é resultado do trabalho, com
c qual na maioria das sociedades teve muito pouco que ver.
A idéia de que o pobre, por muito que se esforce, não pode
deixar de ser pobre, de que se é rico ou pobre desde logo e
provávelmente para sempre, determina uma estrutura social em
forma bem diversa da convicção de que cada individuo tem um a
“oportunidade” de acesso à riqueza, e ainda de que em principio
essas oportunidades são iguais para todos. Paralelamente à de-
samortização, a desvinculação significou na Espanha do século
XIX uma transformação gravíssima da estrutura econômica e,
portanto, da social. E na medida em que a liberdade econômica
se restringe — seja pelo intervencionismo do Estado ou pela
pressão de fôrças sociais (monopolios, trusts, etc.), a possibili­
dade real de acesso à riqueza se reparte desigualmente, segundo
as localizações concretas dos indivíduos em relação a êsses po­
deres, e provoca um a nova forma de privilégio, quase sempre
mascarado e que não “consta”, portanto não de caráter público.
Em relação com êste aspecto do econômico há mais dois
outros, que contribuem enormemente na articulação das socieda­
des: o coeficiente de segurança e a normalidade do contenta-
mento ou descontentamento com a situação econômica. De
fato, na maior parte das sociedades humanas, há menos de dois
séculos, a segurança econômica foi patrimônio de muito poucos;
e, no entanto, não seria exato dizer que os homem europeus
anteriores a 1800 viveram em situação de insegurança; e isto
por um a dupla razão: uma, aparentemente formal, está no fato
de que a vivência da insegurança supõe o se mover em uma
prévia segurança, que, em geral, lhes era desconhecida; a outra,
de que aquêles homens tinham presente uma “ segurança do
pior”, e que, portanto, as piores formas do desamparo — más
colheitas, enfermidade, invalidez, orfandade — pareciam “nor­
mais” à condição da vida, e não um a situação anômala e excep­
cional; por isso a consciência de insegurança nasce em épocas
de relativo bem-estar e de prévia estabilidade do nível econô-
■218 JULIÁN MARÍAS

mico; assim, para trazer um exemplo especialmente claro, na


Alemanha e em geral na Europa Central depois de 1918, ou nos
Estados Unidos, quando se produziu a depressão de 1929, de­
pois dos anos de prosperity, que não foi uma prosperidade
qualquer — um a aventura ou “bons ventos” da sorte — , mas
que pareceu permanente e definitiva. Em têrmos gerais, uma
vez que se alcança um apreciável nível de segurança, tudo o
que o ameaça se m ostra como perigo e insegurança, e a cons­
ciência desta última depende da apetência daquela. Não se en­
tende a vida espanhola do século X IX se não se tem presente
o fantasma da “aposentadoria” ; mas êste, por sua vez, é incom­
preensível se se prescinde da avidez pelo trabalho seguro, per­
m anente e sem riscos, ao qual se chama, significativamente,
"“colocação” ou “emprêgo” . Por outro lado, embora a evolu­
ção econômica tenda a diminuir os riscos mais graves — a
fome coletiva, por exemplo — , em compensação, a elevação
do nível econômico e do bem-estar aumenta as possibilidades de
insegurança: uma vida economicamente ínfima está exposta ao
desastre, talvez à morte por inanição, mas não a outra coisa;
enquanto que um a vida montada sôbre probabilidades mais
altas, sem chegar a êstes extremos, está ameaçada por uma
queda dificilmente suportável sem um a transformação de tôdas
as estruturas e disposições; por isso a insegurança é mais pró­
pria das classes superiores e médias do que das inferiores, jus­
tamente porque nestas é menos provável e menos intenso o
“piorar”. A freqüência com que em uma sociedade se prefere
as “colocações seguras” mas mal remuneradas a posições mais
brilhantes, porém apenas prováveis, é um dos traços mais reve­
ladores — pela multiplicidade de suas conexões com outros ele­
mentos — de um a estrutura social e, portanto, de uma forma
de vida coletiva.
Análogamente ocorre com o descontentamento, que supõe
a comparação com um nível, alcançado ou pelo menos imagina­
do e desejado concretamente, ao qual de fato não se chega —
mas se poderia chegar — ou do qual se decaiu. Em outros
têrmos, contentamento e descontentamento se referem mais à
situação do que à condição; enquanto esta é o modo de ser ou
viver que tocou por sorte a alguém, ao ponto de quase se con­
fundir com êle mesmo, a situação é por essência uma entre vá-
xias, esta e não outra, e portanto intrínsecamente comparativa e
A ESTRUTURA SOCIAL 219

qualificada, por conseguinte estimada em mais ou em menos.


Inúmeros homens viveram sôbre o planeta sem descontenta­
mento econômico, não porque estivessem imersos em bem-estar,
mas porque sua infelicidade econômica — que é outra coisa —
lhes parecia algo unido inexoràvelmente a sua condição, indu-
bitàvelmente desditosa, desgraçada, desventurada, etc. — pala­
vras que remetem a outras zonas da realidade não incluidas na
expresão “descontentamento” — . O descontentamento, para
dizer em poucas palavras, supõe o contentamento, pelo menos
em forma de possibilidade accessível; e surgiu como fenômeno
coletivo precisamente graças a se ter conseguido um mínimo
bem-estar econômico para amplas zonas da sociedade. Além
disso, enquanto o homem se atém a um mínimo, definido pelas
mais perentorias necessidades, a satisfação destas parece sufi­
ciente; mas quando se vai elevando o nível de existência, e
êste alcança o que não é estritamente imprescindível para subsis­
tir, é difícel fixar seus limites, e então intervém positivamente
o desejo daquilo que se imaginou e, por ser possível em princí­
pio, aparece como privação se de fato não se o possui. Daí a
tendência à concorrência ou rivalidade que surge em tôdas as
formas sociais caracterizadas por alguma margem de desafogo
econômico: o luxo, as festas, os criados, os veraneios dispen­
diosos no século X IX , as carruagens, a aquisição dos novos mo­
delos e dos aparelhos recentes nos Estados Unidos atuais (o
que ali chamam “to keep up with the Joneses”). Como isto
supõe um elemento de presença mútua e de comparação, nos
conduz a outras facetas da estrutura econômica: o nível da
vida e a existência de um a sociedade no sentido de “vida social” .
O nível de vida define um âmbito de possibilidades. O
“teclado” destas está em bôa parte determinado pela amplitude
econômica; em primeiro lugar, da sociedade como tal, porque
se esta é pobre, as possibilidades existentes são muito reduzidas;
em segundo lugar, dos indivíduos, pôsto que essas possibilidades
que “estão aí” não são sem mais disponíveis para cada um dos
homens. Não é necessário insistir no fato de que o fabuloso in­
cremento da riqueza na época industrial dilatou incrivelmente
o horizonte das possibilidades genéricas do homem e, em pro­
porção ainda maior, o das possibilidades médias dos indivíduos
na Europa e América. Porém, por outro lado, não se costuma
considerar o quanto a elevação do nível de vida implica de li­
220 JULIÁN MARÍAS

mitação e servidão. Por exemplo, o confort, que faz sentir como


penosas muitas situações e experiências, antes sentidas como
normais e às quais costuma renunciar o homem habituado a
viver bem: viagens incômodas, alojamentos insatisfatórios, tem­
peraturas extremas, m á alimentação, falta de diversões, etc.
(O espírito esportivo funciona de fato como “antídoto” — isto
é, compensação vital — da apetência e exigência de confort e
comodidade: um caso exemplar de como a economia vital pro­
cura seu equilíbrio por vias aparentemente inconexas e nada
“lógicas” .)
A amplitude econômica, isto é, a elevação do nível de vida,
tem além disso a conseqüência de ampliar também o âmbito de
convivência e dilatar assim a “vida social” ou de relação. A
facilidade das viagens faz com que as relações humanas se tom em
muito mais ampliadas do que nos casos em que cada indivíduo
vive adscrito — ou pouco menos — ao lugar em que reside;
ainda n a residência habitual, o número de pessoas com quem
se trata está em parte condicionado pelo nível econômico. Por
outro lado, o mesmo fenômeno influi no fato de que o mundo se
vai convertendo progressivamente em uma estrutura intrínseca­
mente econômica, isto é, que funciona somente por meio do
dinheiro. Não se costuma avaliar suficientemente o que isto
tem de constrição e limitação: nas sociedades economicamente
muito desenvolvidas, quase nada é gratuito; o mínimo progra­
ma vital requer para sua realização a intervenção de quantida­
des maiores ou menores de dinheiro: o deslocamento nas gran­
des cidades, que depende de meios de comunicação; a utilização
de todo gênero de serviços, o acesso a monumentos, museus,
etc.; o sentar-se em muitos lugares, pràticamente tôdas as ativi­
dades, requerem dinheiro; o símbolo dêste mundo é a máquina
automática que só funciona quando nela se desliza uma moeda.
Por isso a probreza é mais dificilmente suportada neste tipo de
sociedades do que nas economicamente mais primitivas (hoje é
mais penosa nos Estados Unidos do que na Espanha, por exem­
plo, porque está menos prevista, porque na Espanha ainda se
pode executar certas ações gratis, enquanto que o mundo norte-
americano — e análogamente os países industrializados da
Europa — está articulado por molas econômicas e se mobilizam
em cada detalhe mediante pagamentos).
A ESTRUTURA SOCIAL 221

Tudo isto não esgota os aspectos econômicos da estrutura


social; deve-se levar em conta outros que também influem deci­
sivamente nas formas que a vida adota dentro de cada sociedade.
Em primeiro lugar, um fato de extraordinário volume e que ul­
trapassa por seus efeitos sua aparência mais visível: refiro-me
a que em muitas sociedades, desde logo nas modernas e, so­
bretudo nos últimos tempos, o modo de existência efetiva dos
bens econômicos é o “estar a venda” (5). O que implica que
funcionam dentro de um “mercado” no sentido mais lato do
termo e que, por conseguinte, a cada um dêles se lhe fixa um
“preço”. E por extensão, esta mesma estrutura “contagia” rea­
lidades que diretamente não têm caráter econômico mas que,
no entanto, são vividas como determinadas por um coeficiente
de preço; e isto impõe uma estranha quantificação a quase
todos os ingredientes da vida, e estabelece um princípio abstra­
to de comparação entre êles, que em outras formas de vida não
tiveram; em que grau isto acontece é um a determinação im­
portante de tôda estrutura coletiva; e não me refiro, ao falar
de grau, somente à extensão em que os preços se apliquem
às coisas, mas sim à plenitude da função do preço; normal­
mente, êste é um uso, procedente como tal da sociedade; em
certas situações, quando o Estado intervém em forma de taxa,
o preço deixa de funcionar como uso e se converte em lei;
mas como isto implica uma alteração de sua realidade própria,
dá origem ao estabelecimento de um “preço” também inade­
quado, de procedência interindividual, que é o do “mercado
negro” em qualquer de suas versões. Isto deixa em suspenso a
função própria do preço, mas não a existência e a aplicação
universal dos mesmos, e incidentalmente provoca, em um
exemplo imediatamente accessível para todos, a quebra de um
uso e, no que êste tem de exemplar, um a debilitação do uso,
com tôdas as conseqüências sociais e morais nele implicadas (6).
E , pelo contrário, note-se o que significou a implantação pro­
gressiva do “preço fixo” , diferentemente do preço “fixado”
em cada caso, partindo de uma procura e uma oferta iniciais,
mediante a delicada articulação interindividual do “regateio” .

(5) Cf. minha Introdução à Filosofia, cap. I, 15.


(6) Cf. meu artigo “Un aspecto social de los precios’ (1948), in­
cluído em Aqui y ahora (Obras, III).
222 JULIÁN MARÍAS

Frente aos bens econômicos cabem, porém, duas atitudes


bem diversas: a propriedade e o gozo. Em que medida interessa
em cada caso possuir as coisas como propriedade, portanto de
maneira permanente e em disponibilidade, ou então usá-las,
gozá-las, consumi-las? Cada época, cada país, cada classe
social, de certo modo cada indivíduo dá sua solução particular
a ésse equilibrio entre a propriedade e o gozo da riqueza. E
isto influi em mil aspectos da vida: a conservação ou dissipação
das fortunas, o valor comercial de certo tipo de bens preferen­
temente a outros, as inversões, a atitude política frente à pro­
priedade, a estima menor ou maior da térra, das casas, com
relativa independência de sua renda, o fato de que se procure
mais um ordenado elevado do que um a fortuna; e tudo isso
se traduz no ritmo e nos freios psicológicos da aquisição e do
gasto, na poupança, na estabilidade econômica -— e, é claro,
não sòmente econômica — das sociedades (7).
Finalmente, convém introduzir metódicamente um con­
ceito sem o qual a consideração econômica não pode ser rigo­
rosamente aplicável à compreensão da estrutura de uma forma
de vida: o de folga. Por não se levar em conta as pretensões
humanas e por se limitar ao intra-econômico, costuma-se refe­
rir a folga, sem mais, à quantia da riqueza e ao nível de vida;
viver com folga quereria dizer ter as necessidades cobertas com
alguma sobra e falta de folga significaria algum grau de po­
breza. Creio que a coisa é mais complicada. A folga é, com
efeito, certo desafogo, amplitude ou margem que as coisas dei­
xam, e que tom a possível seu “jôgo”, isto é, a liberdade de
movimentos. Mas isto implica um a peculiar — e positiva —
falta de exatidão, que em questões econômicas fica no rol do
“dá no mesmo”; e isto, é evidente, é o contrário de tôda bôa
contabilidade e de todo espírito rigorosamente econômico; para
o contador nada “dá no mesmo” : um só centavo de diferença
perturba seu balanço tanto quanto um milhão. Nas sociedades
muito evoluidas economicamente — que costumam ser, e não
por casualidade, as mais ricas — , é freqüente a falta de folga:
espera-se o trôco de um pequeno pagamento; não é indiferente
pagar ou não o ônibus ao amigo, ou o taxi utilizado em comum;
conta-se com o pagamento da pequena encomenda trazida a

(7) Cf. Introdução à Filosofia, I, 21.


A ESTRUTURA SOCIAL 225

outra pessoa; só se convida ficando cada um por sua própria


conta. O espanhol, por exemplo, ainda agora, sente-se cons­
trangido — qualquer que seja o nível de riqueza — ante essa
atitude tão exata; não respira bem se não possui um pouco de
folga; por isso permite a si mesmo gastos que outros homens
não se concedem, a menos que se movam em um nível econô­
mico muito superior; o espanhol sente mais ou menos confusa­
mente que em bôa economia cinco centavos são cinco centavos,
mas que quando isto tem que ser assim, a vida se tom a triste.
Por isso diante de muitos estrangeiros costuma parecer “gene­
roso” — “m ão-aberta” — , impressão que não é exclusiva­
mente positiva, porque as vigências econômicas são m uito
fortes, mas que suscita certa admiração involuntária. O que
ocorre é que o espanhol pensa ou pelo menos sente que a folga
é uma forma vital de riqueza, não um a conseqüência da ri­
queza, ou um sintoma da mesma; justamente a riqueza vital -—
por isso a palavra “folga” não se limita ao econômico, e tem
sua aplicação mais justa às formas totais da vida; há a folga
de tempo, de atenção, de afeto, de compreensão — ; em suma,
o luxo da vida, a forma concreta, não abstrata e quantitativa,
das possibilidades.
E se se fala de possibilidades e folga, é necessário acres­
centar uma última precisão que consiste em saber de quem são
as possibilidades. Propende-se a pensar, no início, que dos in­
divíduos; a coisa não é porém tão simples e clara. É um fato
surpreendente que as sociedades de outros tempos, evidente­
mente muitíssimo menos ricas do que as nossas, com um poder
econômico incomparàvelmente inferior, “se permitiam ” gastos
que hoje se tom am impossíveis, mesmo nos países de potência
econômica mais alta: deixaram por exemplo, tôda a Europa
repleta de catedrais e outros edifícios esplêndidos, com uma
“densidade” que mostra que o fenômeno não foi uma coisa
excepcional. E o mesmo se poderia dizer de outros gastos de
sociedades pobres: monumentos, palácios, a Corte, etc. Dir-se-á
que estas possibilidades eram da sociedade como tal, e que esta
— ou certos poderes, o Rei, o Estado, a Igreja — as permitia
à custa dos indivíduos. Porém êste modo de apresentar a ques­
tão revela até que ponto não estão esclarecidos inúmeros pro­
blemas: as relações entre o indivíduo e a sociedade, a m edida
224 JULIÁN MARÍAS

em que o individuo goza dêsses gastos que a sociedade como


tal se permite, a variação histórica do que é de “interêsse
geral”, a função que as diversas realidades têm na vida dos
homens. O exemplo mais clamoroso de opressão econômica e
de trabalho dos indivíduos particulares foi a construção das
pirâmides do Egito, cifra da inutilidade; parece, pelo contrário,
óbvio o interêsse de um serviço de estradas, de um a instituição
docente ou de um museu; no entanto, ter-se-ia que examinar
a fundo o papel representado pelas pirámides para os egipcios,
a satisfação, o orgulho, o prazer, o ânimo, o otimismo que délas
lhes veio; e uma vez feitas as contas — bem feitas — poder-
•se-ia talvez chegar à conclusão de que foram um a excelente
inversão. Para nos atermos ao nosso mundo mais próximo,
consideremos a irritação que produz em nossa epiderme moral,
mais ou menos intensamente, o espetáculo dos vilarejos mise­
ráveis de muitas zonas da Espanha apinhados em tôrno a uma
esplêndida igreja de pedra, que levanta para o firmanfento suas
torres poderosas; porém — descontando-se o fato de que pro­
vavelmente quando se construiu a igreja o vilarejo não era mí­
sero e por isso se a pôde construir — , quando se viajou por
outros lugares e se comprovou a desolação de outras povoações
análogas, onde a alma não tem apoio, porque sua silhueta
rasa e achatada deprime infinitamente e não tolera o menor
Impulso ascensional, não se pode deixar de perguntar se a or­
gulhosa e petulante construção, que tanto nos irritara, não será
talvez artigo de prim eira necessidade — e me refiro ao pura­
mente humano, não à significação religiosa da igreja, porque
o que interesa neste contexto é independente do caráter do mo­
numento — ; isto é, a construção das igrejas medievais ou dos
palácios renascentistas talvez tenha sido algo justificado em boa
economia vital, inclusive do ponto de vista dos individuos.
Naturalmente, as questões que a estrutura econômica apre­
senta dentro de uma sociologia digna dêste nome são incontáveis
e espinhosas. Aqui não era possível — nem necessário —
entrar nas mesmas: bastava assinalar uns tantos pontos deci­
sivos em que a estrutura econômica funciona como ingrediente
direto da estrutura social, e que, portanto, devem ser tomados
metodicamente em conta para a investigação desta última.
A ESTRUTURA SOCIAL 225

47. As classes sociais e seu princípio

Não cabe aqui um a teoria das classes sociais; por outro


lado, quero advertir que emprego êsse têrmo em seu sentido
mais lato, prévio às distinções entre castas, estados, estamentos
ou classes em sentido estrito. Pertence-se desde logo à classe,
não se ingressa nela — apenas secundàriamente isto é possível,
e na form a de mudança de classe — ; isto é, é ela um a socie­
dade parcial, não um a associação. Essa sociedade não é geográ­
ficamente fragmentária em relação à sociedade total — como
acontece com as regiões ou comarcas — , mas significa um
estrato daquela; note-se, no entanto, que é secundário que êstes
estratos apareçam como horizontais, isto é, uns mais altos que
outros e, portanto, afetados por um coeficiente hierárquico e
estimativo; isto é assim, mas não representa o decisivo e sim
sua diferença e “paralelismo” . Em cada um dêsses estratos o
indivíduo encontra-se de início instalado. Por essa palavra en­
tendo aqui um repertório de elementos que constituem uma
“m orada” ou “residência” imediata, na qual e com os quais se
faz a vida. A classe é para cada homem uma prim eira concre-
tude de sua circunstância social: usos, crenças, idéias, modos de
expressão, estilos, notícias, hábitos, gestos; tudo isto é o que
constitui, num a prim eira aproximação, uma classe social. E por
isso, o que se teria de dizer desde logo é que dentro da própria
classe cada indivíduo sente-se cômodo; duas determinações que
se aplicam perfeitamente à casa, m orada ou residência. Repare-
se em que esta peculiar comodidade não implica satisfação; o
fato de que uma casa seja muito pouco confortável não interfere
minimamente em que o dono sinta-se cômodo em sua casa, num
sentido em que não está em nenhum outro lugar. “Como em
casa não se está em nenhum lugar”, costuma-se dizer; e não
se entende que não se esteja melhor em outros lugares e sim
que não se está “assim”, cômodo, instalado, literalmente chez-
soi, at home. Em outra classe social se está sempre “em casa
alheia”, por esplêndida que possa ser a casa; a expressão
“estar como galinha em curral alheio” reflete admiràvelmente a
situação.
Por esta razão, em princípio, o indivíduo não deseja sair
de sua classe; a rigor, não pode, porque é a sua, porque per­
tence a ela, porque em certo sentido “está feito” dela: dêsses
226 JULIÁN MARÍAS

hábitos, formas, estilos, gostos e preferências. Em uma socie­


dade em que as classes existam de verdade e em forma sadia,
p o d é í^ haver hostilidade entre as classes um a ou outra vez,
cada uriia-poderá desejar coisas que a outra tenha — riqueza,
poder, etc. — , mas para si mesma, isto é, dentro de sua própria
condição. Quando aparece outra coisa é porque são tomadas
como classes grupos sociais abstratos, definidos por uma deter­
minação teórica ou, embora sendo real, unidimensional — por
exemplo, a condição de “trabalhador assalariado” — , que não
coincide co,m a realidade hum ana de uma classe social efetiva.
Assim, a divisão marxista — e antimarxista — dos homens em
burguêses e proletários não coincide com a divisão real em
classes dos povos europeus modernos, mas sim com um esquema
ideológico ao qual se pretende que os indivíduos se ajustem;
de fato, ao grupo “burguês” pertencem homens de diversas clas­
ses sociais, outro tanto corre com o grupo “proletário” , e final­
mente, homens de uma classe são “burguêses” ou “proletários”
indistintamente.
Ê uma relação de “estrangeiros” a que existe entre as diver­
sas classes sociais de uma sociedade, que naturalmente admite
graus muito diferentes, mas que por sua vez supõe “contar com”
as outras classes. Isto é, cada classe existe como tal porque há
outras, das quais necessita para ser tal classe. É, pois, uma
realidade relativa; mas se se leva isso a sério, é necessário exa­
m inar em que consiste a relação, porque quando se diz que
entre duas coisas há uma, se disse pouco mais que nada. Isto
obriga, pois, a inquerir sôbre o princípio das classes sociais, ou
seja, ao mesmo tempo pelo vínculo de pertinência dos indivíduos
a cada uma delas e pela relação concreta que as distingue e as
une entre si.
Quando se percebe que a maior dificuldade entre classes
sociais sobrevêm ao entrarem estas em certo tipo de conexões,
compreende-se que a peculiaridade de cada uma afeta um a zona
ou dimensão da vida. Enquanto a cooperação econômica entre
homens de diversas classes não apresenta obstáculos importantes,
bem como sua colaboração política ou a participação comum em
um a emprêsa militar, é muito mais difícil organizar com mistura
de classes um jantar, um jôgo, uma tertúlia ou um casamento.
Isto é, nas formas de convivência é que a fricção das classes se
faz mais patente. Mas aqui deve-se evitar dois êrros muito
A ESTRUTURA SOCIAL 227

possíveis. O primeiro seria crer que se trata de dificuldades


¡ntcrindividuais, isto é, que surgiriam ao se estabelecer o contato
dos individuos como tais. Mas não é assim, porque precisa­
mente no âmbito estritamente interindividual é possível a convi­
vencia entre classes diferentes, justamente quando o individual
é o decisivo, quando a personalidade insubstituível de A e B
eclipsa a diferença social de classe. Dois homens de classe social
diversa podem ser amigos íntimos; um homem e um a mulher
podem apaixonar-se profundamente, apesar da diferença de
classe social. A dificuldade nasce quando se estabelece um con­
tato concreto de quaisquer indivíduos — ou seja não interin­
dividual — ; a relação “comensais” ou “companheiros de jôgo”
não é estritamente interindividual, mas supõe um contato efetivo
e concreto de homem para homem, cada um com seu “estilo”
de classe; análogamente, me referi à dificuldade do casamento
e não do amor, porque enquanto êste pode nutrir-se de subs­
tância individual, aquêle supõe a inclusão de modos coletivos; o
Marquês de Santilhana pôde enamorar-se das serranas e vaquei­
ras, e talvez estas dêle; porém se lhe tivesse ocorrido casar-se
com uma delas, teriam entrado em colisão seus mundos ou estilos
respectivos, que, naturalmente, não estavam mutuamente enamo­
rados. O segundo êrro estaria em crer que a dificuldade se deve
ao fato de haver classes inferiores e superiores; que não se
trata disso, isto é, que não é isto o decisivo, o demonstra a reci­
procidade do desconforto ou malestar: tão incômodo se sente o
aristrocrata na taberna ou na partida de mus quanto o aldeão no
salão ou num jantar de gala; e a serrana e o marquês sentiriam
igualmente a fricção da côrte e do rebanho.
As classes sociais correspondem, pois, a certas figuras de
vida que envolvem a totalidade da pessoa e não somente uma
atividade desta. O fato das classes propenderem a tom ar um
aspecto profissional se deve simplesmente a que, nas sociedades
pouco evoluídas, em que o repertório de profissões é muito limi­
tado, as figuras possíveis coincidem com aquelas; a prova disso
está em que, no momento em que as profissões se multiplicam,
já não correspondem às classes mas cada um destas compreende
muitas profissões, e no máximo se identifica com um “tipo de
profissões”; e ainda isto não é bem exato, porque um exame
mais atento mostra o contrário: que o fato de que certas pro­
fissões sejam usualmente exercidas por pessoas da mesma classe
228 JULIAN MARÍAS

projeta alguma analogia sôbre elas, embora intrínsecamente


pouco tenham que ver umas com as outras: por exemplo, o
médico e o escritor, o mineiro e o cobrador do ônibus, a telefo­
nista e a costureira.
Mas isto significa, por outro lado, que as classes têm que
ser poucas. Quantas? Não se pode dar um número limite,
porém se êste aumenta, automáticamente as classes se esfumam
e começam a ser outra coisa; por exemplo, profissões ou níveis
econômicos. A articulação de uma sociedade em classes depende
de um princípio aglutinante dentro das mesmas, diversificador
dentro da sociedade; mas é preciso acrescentar que êsse princípio
não é mais que um princípio: isto é, por êle começa a consti­
tuição das classes, mas nele elas não se esgotam. As diversas
figuras de vida que são possíveis em cada caso estão centradas
em um princípio diretor, se organizam em tôrno a êle, mas o
ultrapassam em muitas direções. E êsse núcleo ou princípio
costuma ser aquela dimensão da vida que em certo momento é
relevante (e digo em certo momento, não em cada momento,
porque, como a sociedade é sempre algo que vem do passado, é
muito provável que o princípio gerador da classe atual já não
seja a dimensão mais relevante da vida, e sim que o foi em outro
tempo e a inércia coletiva prolonga suas conseqüências). Êsse
princípio pode ser religioso — castas, patrícios e plebeus em
Rom a — , de origem racial, de linhagem, econômico, etc. Os
diferentes modos de se haver cam êsses aspectos da vida engen ­
dram a pluralidade das classes ou figuras de vida, e a coinci­
dência em um dêsses modos produz a vinculação dos indivíduos
a cada um a das classes. E todos os demais aspectos adquirem
um a convergência em função dêsse ponto originário. De modo
idêntico em que num cristal as moléculas se ordenam em tôrno
a um núcleo de cristalização e segundo certas linhas de “sistema” ,
as figuras vitais se condensam nos princípios geradores das
classes.
Porém a justificação última das classes, a razão de que se
consolidem e perdurem, é que cada um a delas representa um
membro da estrutura social, com uma função determinada dentro
da sociedade. Por isso as classes são insubstituíveis, e isto é a
compensação vital e histórica de sua ordenação hierárquica.
E sta é inevitável, não porque se trate de uma simples situação
de “privilégio” de umas classes em relação às demais mas porque
A ESTRUTURA SOCIAL 229

a ordenação e a hierarquia são condições de todo complexo


funcional, e portanto de uma estrutura de vida coletiva, qualquer
que esta seja, com uns ou outros presupostos; e, naturalmente,
essa ordem hierárquica não autoriza a desdenhar nenhum dos
elementos, menos ainda a considerá-lo prescindível, porque é êle
precisamente que exclui essas possibilidades: com efeito, em um
conjunto desorganizado e amorfo, pode-se eliminar algum de
seus elementos — um a porção de água de um volume dado, um
fragmento de um pedaço de tecido — , porém nunca um a peça de
máquina, menos ainda um membro de um organismo vivo.
O estudo concreto de uma estrutura social exige portanto
lucidez em relação às classes sociais; deve-se determinar quan­
tas e quais são, qual é seu princípio gerador, em que medida
êste é atual ou simples pervivência, em que grau a divisão
em classes afeta profundamente os indivíduos, quais são as re­
lações entre as classes e as dos indivíduos de umas com os
que pertencem a outras; por último, quais são as conexões
de movimento no interior de cada um a e de umas em relação
a outras; isto é, sua rigidez, estabilidade ou labilidade; e, em
conexão com isto, como se sente a si mesma cada uma das
classes.

48. Labilidade das classes

A fôrça das classes é variável; de uma sociedade a outra,


de um tempo a outro, as diferenças podem ser muito grandes.
Entre outros fatores, isto se deve à modificação que diversos
ingredientes da vida social imponham a essas “figuras de vida”
básicas. O predomínio de um déles pode ter como conseqüên­
cia a atenuação do relêvo das classes; mas o que mais se dá
é, um a vez mudado o princípio gerador das classes, sofrerem
estas ao mesmo tempo um a transformação e um deslocamento:
não só as classes adquirem contextura diversa como também a
redistribuição dos homens nas mesmas se executa de outra for­
ma. As épocas em que isto acontece se apresentam como uma
crise das classes sociais, estas se esfumam, tem-se a impressão
de que se desvanecem, porém o que realmente acontece é esta­
rem se gestando outras novas. Por vêzes, trata-se de um sim­
ples êrro de ótica: quando se tem um a noção inexata das cias
ses, procura-se entendê-las a partir do que se supõe ser seu
230 JULIÁN MARÍAS

princípio; e então, vendo-se que a realidade social não se


ajusta a êsse esquema, pensa-se que as classes se desarticularam
ou se extinguiram; mas o que efetivamente sucede é ser outra
sua figura, é estarem presentes mas não no lugar em que se
as procura.
Isto significa que em muitos casos a atenuação das classes
é só aparente; mas fica de pé a questão da possibilidade de ser
eletiva e de chegar a ser total; isto é, de se caminhar para uma
“sociedade sem classes”, ou inclusive chegar a ela. Talvez o
único fator que realmente pode atenuar as classes é sua multi­
plicação; é essencial às classes o serem poucas; quando é
assim, têm um perfil bem definido e assumem papeis precisos
na convivência geral. Mas se as classes são mais numerosas,
suas diferenças são forçosamente menores, sua justificação in­
terna menos clara, suas funções sociais mal definidas. Então
sua labilidade aumenta, tanto no sentido de que sua figura se
desloque de uma para outra, como no de que é fácil para um
indivíduo passar de sua própria classe originária para outra
diferente.
Cada homem nasce dentro de um a classe social, instalado
nela, constituido parcialmente por seu estilo; tomando as coisas
a rigor, o trânsito de um a classe social a outra é impossível,
se se entende que o indivíduo deixa de pertencer à primeira e
passa a pertencer à segunda; poder-se-ia falar, de preferência,
de “acesso” ou “ingresso” : um homem da classe A entra na B,
inclui-se nela, atua em seu interior, porém conservando traços
de sua classe nativa. Quando o princípio das classes não é
estritamente intrasocial, mesmo isto é impossível; assim se
dá com um regime de castas: pertence-se a uma delas de uma
vez para sempre e sem remissão. Em um a organização esta­
mental, quando o princípio gerador é a linhagem, tão pouco tem
sentido a transição: pertence-se sem mais à linhagem dentro
da qual se nasceu, e não se nasce mais que uma vez; porém
a rigidez dêste esquema é m oderada por duas instâncias: a
primeira, porque se tem consciência de que êsse princípio da
linhagem não é absoluto; isto é, ainda que não seja um a condi­
ção social em sentido literal, o foi em sua origem; em uma
sociedade cristã, por exemplo, a consciência da comunidade
de origem modera o rigor da linhagem: o nobre é nobre a
nativitate, mas se sabe que êle e o último plebeu descendem
A ESTRUTURA SOCIAL 231

de Adão e Eva; portanto, isso que ocorre ao membro de uma


linhagem não se aplica à própria linhagem: esta não é nobre
a radice e sim como conseqüência de um enobrecimento, de
de um acontecimento histórico-social. A segunda instância de
atenuação é a seguinte: enquanto está viva a consciência de
nobreza de linhagem, está viva também a potestade dêsse eno-
brccimento; por exemplo, a realeza continua tendo a faculdade
de enobrecer; portanto, a transição de um a classe a outra é
possível, não espontáneamente, mas recorrendo ao princípio
gerador das classes como tais; poderíamos dizer que não se
passa de uma classe a outra, mas sim de uma delas à potestade
que as pode engendrar, e através dela à segunda.
A grande peripécia que aconteceu às classes é o se funda­
rem em um princípio econômico e o se ordenarem segundo a
riqueza. Dir-se-á que em todo o tempo isto se deu; mas não
é exato: sempre houve diferenças de nível econômico, houve
ricos e pobres, e as classes coincidiram mais ou menos com
êsses níveis de fortuna; porém não é esta o princípio gerador
das classes e não se era nobre por ser rico, mas ao contrário:
porque se era nobre — e se tinha tôda uma série de determi­
nações sociais — se possuia a riqueza. No Guzmán de Alfara-
che, Mateo Alemán lamenta que a honra, a hierarquia social,
esteja sendo suplantada pela riqueza: “O filho de ninguém,
que se levantou do pó da terra, sendo vasilha quebradiça, cheia
de buracos, partida, sem capacidade para conter alguma coisa
de importância, o favor a tendo remendado com trapos, já se
tira água com ela usando a soga do interêsse e agora parece
de proveito. O outro filho de Pero Alfaiate, porque seu pai,
como pôde ou soube, mal ou bem, lhe deixou o que gastar,
e o outro que, roubando, teve o que dar e com que subornar,
já são honrados, falam de cúpula e se introduzem em círculos
seletos. Aquêles que antes não os teriam para semeadores, agora
lhes oferecem a cadeira ao lado. Veja quantos bons estão
postos a um canto, quantos hábitos de Santiago, Calatrava e
Alcântara, cosidos com linho branco e outros muitos d a enve­
lhecida nobreza de Laín Calvo e Ñuño Rasura, ultrajados. Di­
ga-me: quem dá a honra a uns e a outros a tira? O mais oil
menos possuir” (8). Porém ao mesmo tempo está afirmando o

(8) Guzmán de Alfarache, I parte, livro II, cap. IV.


232 JULIÁN MARÍAS

antigo principio, porque o mais ou menos possuir não é honra


mas apenas a dá, isto é, faz ingressar no marco da nobreza:
“lhes oferecem a cadeira ao lado”, já os admitem em um cír­
culo social que não é econômico, e então como se pertencessem
a êste, “falam de cúpula”, isto é, com autoridade, e “se intro-
duzem em círculos seletos”, se intalam no ámbito ou morada
da classe alheia, à qual tiveram acesso por sua riqueza.
Como antes indicava, é diferente quando o princípio de
articulação das classes é a riqueza; porque o dinheiro pertence
àquilo que os matemáticos chamam “magnitudes contínuas es­
calares”, e admite todos os graus: não se é simplesmente rico
ou pobre, mas se pode ser muito rico ou muito pobre, mais
ou menos rico, mais ou menos pobre, em inúmeros graus; e
como, por outro lado, êsses graus não são fixos e a riqueza se
adquire e se perde e se torna a adquirir, as classes econômicas
seriam pràticamente indefinidas, e se transitaria de um a a outra
segundo os vaivéns da fortuna. O que significa que se as
classes fôssem efetivamente econômicas, muito depressa deixa­
riam de existir, pois sua extrema labilidade as anularia.
Dizer que as classes tenham um enérgica dimensão eco­
nômica, é coisa diferente; mas o que não têm de econômico e
sim de estilo social é precisamente o que introduz a desconti-
nuidade no contínuo econômico, e, portanto, define os estratos
diferenciados que são, a rigor, as classes. Se entendemos por
classes os níveis econômicos, então é imaginável uma sociedade
sem classes — apenas digo imaginável — . Mas essa assimi­
lação é uma arbitrariedade; e a tal ponto, que a anulação das
supostas “classes econômicas” enquanto tais se obtém indistin­
tamente ou por unificação dos níveis ou por introdução de uma
mobilidade ilimitada: em uma sociedade em que todos têm o
mesmo, não há “classes econômicas” ; porém em uma socie­
dade em que todos têm acesso à riqueza segundo suas possibili­
dades pessoais, e portanto a alcançam em todos os graus possí­
veis e não se instalam em um nível fixo, peregrinando durante
tôda a vida de um para outro, também não as há. E então —
à parte dos nomes que se usem — os homens se instalam em
figuras ou estilos de vida só parcialmente condicionados pela
riqueza, e a sociedade se articula funcionalmente em vista dêstes
estilos; ou, o que é o mesmo, origina-se uma nova estrutura
de classes como membros do corpo social.
A ESTRUTURA SOCIAL 233

49. Perfil de cada uma das classes sociais e grau de adesão


a si mesmas

Definidas as classes como modos de instalação na sociedade


c portanto como figuras de vida ou estilos, a compreensão con­
creta de uma estrutura social requer, por sua vez, a determinação
também concreta de suas classes. Não basta para isso a sua enu­
meração: não é suficiente, com efeito, dizer que numa sociedade
há tais classes; por exemplo, que na Atenas de Solon há pentako-
siomedínuioi, hippeís, zeugítai e thêtes; nem sequer acrescentar a
determinação quantitativa dos haveres, princípio da classifica­
ção; é necessário chegar a precisões de outro tipo, a saber, re­
ferentes a êsses diversos tipos de instalação: a isto denomino o
perfil das classes sociais.
Em sociedades estabilizadas, não afetadas por crises agu­
das, as classes existem com uma figura já antiga; consistem em
um repertorio de formas de vida, composto de elementos de
origens e funções diferentes: vigências, usos, “soências”, costu­
mes, preferências, gostos, valorizações, notícias, coisas por todos
sabidas, formas de expressão, matizes lingüísticos — às vêzes
muito acentuados — , diversões, escala de hierarquias internas.
Com tudo isso, cada indivíduo faz sua vida; e o verbo viver
tem para êle um sentido muito preciso, condicionado por essa
figura; assim, a vida das outras classes se lhe apresenta como
“outra vida”, melhor ou pior que a sua, mas que não é a sua;
cm outros têrmos, sujeita a esquemas segundo os quais não pode
projetar a que lhe é própria. Dentro da fronteira de sua classe
social, portanto, cada indivíduo imagina a vida pessoal que
pretende realizar, julga o seu êxito ou o seu fracasso, sua felici­
dade ou sua infelicidade; com as formas de outra classe, a rigor
não teria nada que fazer. E a tal ponto é assim, que para êle
não tem realidade autêntica. Isto explica o fenômeno histórico
— nada claro — de que em certas épocas se tenha vivido outra
classe como “jôgo”; por exemplo, é uma das razões que expli­
cam a novela pastoril no Renascimento, mais ainda o jôgo de
pastor e pastoras entre a aristocracia do século X V III: o ima­
ginar-se pastor significa estar de férias, em bora de um modo
irreal, da própria condição, a saber, a de cavalheiro ou dama
de Versalhes; tão inexoràvelmente se é êste e não o outro, que
o simulá-lo é um deleite; e o deleite — e portanto a vontade
'234 JULIÁN MARÍAS

de jógo — term ina no momento em que as coisas são menos


alheias: desde a queda do antigo regime, os pastores estão
assustadoramente próximos, e não ocorre aos cortesãos de Luís
Felipe, nem por um só instante, ter como um folguedo o ima-
ginarem-se tecelões de Lyon.
Cada classe significa um esquema argumentai da vida, um
“ tipo” de pretensão, dentro do qual cabem as formas plenas e
as deficientes, a felicidade e a desgraça, a perfeição e a torpeza,
o atrativo e o enfado. Um a investigação de uma sociedade con­
creta tem que descobrir e filiar êsses esquemas, surpreender a
pretensão genérica que os anima, os requisitos que dentro de
cada um déles medem o sucesso ou o fracasso. Em outros têr-
mos, deve desenhar o perfil das classes atendo-se a elas mesmas,
não confrontando-as cam um esquema alheio, por exemplo
comparando-as com o que são — ou se crê que o sejam — as
•classes atuais. Ainda no caso de que se justifique estabelecer
uma conexão entre as classes presentes e as do passado, essa
vinculação tem que ser ao mesmo tempo histórica e funcional;
isto é, é preciso levar em conta a derivação efetiva das classes
— que uma classe de hoje venha realmente de outra pretérita
— , e a situação “homóloga” de umas em relação a outras, ou
seja o fato de que desempenhem papeis funcionalmente análo­
gos — direção, exemplaridade, defesa, sustentação econômica,
etc. — . As ideologias propenderam a tom ar um esquema — ge­
ralmente unidimensional e abstrato — e a passeá-lo sem mais
ao longo da história; assim acontece, por exemplo, quando se
tenta projetar sôbre as sociedades o esquema explicativo bur-
guesia-proletariado, útil, no máximo, para interpretar um aspec­
to das classes sociais européias a partir do século X IX .
Naturalmente, ao dizer que se deve traçar o perfil das
classes atendo-se a elas mesmas, não quero dizer somente a
partir de dentro; porque é essencial às classes, como antes
mostrei, o serem várias e constituirem-se como tais em relação,
umas diante de outras. Pertence, pois, a cada classe sua figura
externa, a face com a qual se apresenta às demais, e portanto
o esquema de suas relações: relativa proximidade ou distância,
conhecimento mútuo, exatidão maior ou menor da imagem que
cada uma tem das demais, hostilidade ou afeto, admiração ou
desdém, imitação, contatos interindividuais entre os membros
das mesmas, confiança ou temor mútuos, impressão de “im­
A ESTRUTURA SOCIAL 235

portância”, vivência de cada classe camo “ascendente” ou decli­


nante, etc.
E se consideramos agora o vínculo de pertinência dos in­
dividuos a sua classe, temos que abordar um último ponto,
especialmente delicado: o grau de adesão de cada classe a si
mesma. Não se trata de satisfação; esta se refere à situação da
classe, a “como lhe vão as coisas”; a adesão, em vez disso,
depende da sensação mais ou menos profunda de pertinência
e da afirmação desta. Um aristocrata pode estar desconsolado
da situação da aristocracia em certa sociedade; pode estar to­
talmente pessimista em relação a seu porvir; e, não obstante,
sentir-se radical e inevitàvelmente aristocrata, chegando até à
consciência — talvez angustiante — de “não poder ser outra
coisa”; e porventura também — isto não se segue forçosamente
do anterior — afirmar-se enérgicamente como aristocrata,
manter positivamente essa pretensão, não desejar ter sido outra
coisa.
Quando isto acontece, os indivíduos se sentem instalados
cm sua classe, nela alojados, com um a peculiar comodidade
vital, independente, repito, de que as coisas lhes corram bem
ou mal; porque mesmo nos casos extremos de uma classe opri­
mida, sente-se o penoso da opressão, deseja-se superá-la, mas
justamente a partir da classe: no cativeiro babilônio, os israe­
litas sentiam-se infelizes e oprimidos, porém absolutamente
israelitas e decididos a o serem até o fim; situação análoga se
pode dar na convivência das classes sociais.
Quando o princípio das classes é duvidoso, a instalação
c muito mais difícil. O que se chamou “consciência de classe”
costuma ser a afirmação deliberada de pertinência a um grupo
ideológicamente definido, e que supre precisamente a deficiência
da instalação. É necessário que o “proletário” tenha “cons­
ciência de classe”, justamente porque não se sente espontânea e
efetivamente proletário, e sim outra coisa — talvez plebe, povo,
etc. — ou nenhuma com clareza suficiente. Como o conceito
de proletário é abstrato e fundado em uma dimensão exclusiva
da vida, não traz consigo um estilo, um repertório dos ingre­
dientes que fazem possível um a figura de vida. Ninguém pode
ser proletário — entenda-se, viver proletàriamente — , porque
de um certo esquema de condição econômica não se segue uma
forma de vida íntegra. Outro tanto ocorre com o “burguês” .
236 JULIÁN MARIAS

Ambos os têrmos, então, se definem pelo vazio, um por refe­


rência ao outro, e negativamente: ser proletário significa não
ser burgués; ser burguês, não ser proletário. Porém como nin­
guém pode fazer sua vida à base do não ser, como ninguém
se pode instalar na negação de um a figura de vida que por sua
vez é a negação da primeira, éste esquema — e, é claro, todos
os análogos, porque trata-se de um exemplo particularmente
volumoso — é a própria fórmula do descontentamento.
Certa ocasião empreguei o têrmo “proletarização” como o
fenômeno geral d a perda da forma social e, com isso, da impos­
sibilidade de instalação, que provoca um inevitável descontenta­
mento. Nesse sentido se pode falar de proletarização de todas
as classes sociais, inclusive da aristocracia; e de fato se dá em.
muitas sociedades. Pense-se, por exemplo, na freqüência de
“proletarização” — neste sentido — do exército ou do clero;
na proletarização dos intelectuais, que não consiste na condição
de assalariados ou num baixo nivel de vida e sim n a perda da
adesão à sua própria figura, na dúvida a respeito de seu sen­
tido e justificação. Fenômenos análogos se dão com os grupos
minoritários — raciais, religiosos, políticos — quando por
qualquer razão deixam de estar “instalados” em seu alvéolo
peculiar.
Pois bem, não é inteligível uma estrutura social sem uma
idéia suficientemente clara do grau em que cada classe adere
a si mesma e se encontra instalada em seu próprio alvéolo.
Porque só dentro do mesmo a sociedade pode alcançar sua con-
cretude última, isto é, aquela em que de fato as vidas indivi-
dauis funcionam, as conexões entre os individuos como tais
e, finalmente, os modos de realização dessas vidas; em um a
palavra, as relações humanas.
VII

AS RELAÇÕES HUMANAS

50. Pessoas, homens e mulheres

Os indivíduos humanos que compõem uma sociedade estão


divididos em duas metades aproximadamente iguais: homens
e mulheres. Êste fato radical significa um a das determinações
constitutivas da convivência; porém como é constante e se dá
cm tôda sociedade, parece que, um a vez registrado, pode ser
deixado à margem, o que freqüentemente se faz. Mas na ver­
dade as coisas não sucedem de m aneira tão simples. Com efei­
to, o que é constante nessa situação? Somente os elementos
abstratos: que das “pessoas”, metade são “homens” e metade
“mulheres” . Porém estas três palavras sempre significam o
mesmo? E, em segundo lugar, estão sempre na mesma relação,
ou para dizer melhor, nas mesmas relações?
A diferença mais profunda, ainda que aparentemente sutil,
está em que homens e mulheres são secundàriamente pessoas,
ou bem que as pes,soas sejam, em um a segunda determinação,
homens e mulheres; isto é, que a primazia corresponda à dimen­
são comum, pessoal, ou, se se prefere humana, ou pelo contrá­
rio à disjunção sexuada — homem, mulher — em que a con­
vivência se oferece (1). Em cada unidade social é decisivo o
estado dêste equilíbrio: vencido nitidamente de um lado ou
de outro, ou flutuante entre os dois.
Do ponto de vista pròpriamente social, isto é, no que se
refere às formas de vida coletiva, a diferença principal con­
siste em que as vigências mais fortes sejam parciais ou de

(1) Cf. Introdução à Filosofia, I, 16.


238 JULIÁN MARÍAS

grupo — quando o primário é a diferença entre homem e


mulher — , ou, pelo contrário, as gerais — quando os homens
são antes de tudo pessoas — . O mais freqüente, sem dúvida, é
que as vigências gerais coincidam quase totalmente com as
masculinas — salvo uma porção de pequeno volume — e que
as vigências de grupo ou parciais sejam femininas em sua maio­
ria. Isto tem conseqüências imediatas. A primeira, que o mundo
— em seu sentido de realidade social — é primàriamente mas­
culino, isto é, que o mundo é “o m undo dos homens”, no qual
há, é claro, tantas mulheres quanto êles. (Ainda que do nosso
ponto de vista atual propendamos a considerar isto lamentável
e quase monstruoso, não se deve passar por alto o sentido de
que a mulher lavre “seu mundo” dentro dêsse mundo dos ho­
mens; seria urgente medir com certa meticulosidade as inven­
ções de humanidade, as criações sutis e deliciosas que se deve
à adatação milenar da mulher a essa estrutura que hoje nos
parece abusiva, sobretudo porque nossa época é uma das épocas
que a percebeu. E m outra ocasião empreguei a expressão “a
metade feminina dos Estados Unidos” para designar as mulhe­
res dêsse país; e ao fazê-lo tive que advertir que a usava deli­
beradamente, para sublinhar que as mulheres não são simples­
mente a metade da população dos Estados Unidos, a metade
dos indivíduos americanos, mas sim a metade da sociedade —
pelo menos — (2).
A segunda conseqüência é que, sendo os usos genéricos
predominantemente usos masculinos, a mulher fica submetida,
salvo um pequeno repertório de usos especificamente femini­
nos, derivados de sua condição biológica ou de suas repercus­
sões pessoais ou sociais imediatas, a um vago e indeterminado
horizonte de usos negativos, daquilo que denominei anterior­
mente “soências” . A pressão exercida habitualmente sôbre a
mulher é negativa; não a leva a fazer tal ou tal coisa mas á
não fazer, a menos que haja um acôrdo social expresso de
que cada ação ou conduta é socialmente lícita. O que isto tem
de limitação, paralisia e empobrecimento, nem se torna neces­
sário encarecer; seria, porém, um êrro considerar apenas êsse
lado negativo: ao lado do mesmo deve-se considerar o que tem
de seleção, de renúncia; durante milênios, a mulher não pôde

(2) Veja-se Los Estados Unidos en escorzo (Obras, III).


A ESTRUTURA SOCIAL 239

l'azer qualquer coisa — constrição pavorosa — ; mas isso a


eximiu da trivialidade, da degradação, da vulgaridade que im­
plica o estar disposta a fazer qualquer coisa. Essa seleção im­
posta à mulher pela sociedade, êste “eleger” rigoroso a que
se viu obrigada, à parte sua decisão pessoal, produziu nela
essa elegância peculiar que a mulher possui quando com parada
ao homem, prèviamente a todas as diferenças e qualificações
individuais. •
A terceira conseqüência é que, sendo os usos genéricos
aproximadamente os masculinos, a mulher fica um pouco “à
parte”, diferente — por isso, além de “elegante”, a mulher
como tal torna-se “distinta” — , diferenciada, e por isso atrai
a atenção sôbre ela. À primeira vista, poder-se-á pensar que
a .mulher, submetida a um rêde apertada de usos negativos,
tornar-se-á vaga, enquanto que nas situações em que goza
de franquia desenvolverá suas possibilidades e adquirirá fôrça
e realce. Isto se dá quando se trata de indivíduos egrégios, isto
é, a mulher com engenho inventivo e capacidade criadora tor-
nar-se-á mais real, de personalidade mais evidente, quando;
dispõe de liberdade e folga; porém consideradas as mulheres
em seu conjunto, a situação se inverte, porque as inqualificadas
— que são, naturalmente, a maioria (, ao deixarem de ser mo­
deladas pela constrição dos usos e não sendo capazes de inven­
tar, se apagam, como acontece com uma silhueta pouco firme
e abandonada a si mesma. E de fato, as sociedades em que a
mulher está submetida à pressão de usos negativos enérgicos
são aquelas em que suscita uma atenção mais viva e, portanto,
em que estatisticamente — à parte, pois, de exceções indivi­
duais — pesa mais na vida coletiva.
É claro que na m aior parte da história conhecida, pode-se
dizer que em quase tôda a história m oderna até nosso século,
a prioridade correspondeu, no Ocidente, à dimensão sexuada,
isto é, bisexual, preferentemente à pessoal ou humana. Mas
dentro dessa situação genérica, as diferenças de um a sociedade
para outra e de um a a outra época têm sido consideráveis;
as alterações dêsse equilíbrio em m atéria tão delicada e de am­
plitude tão absoluta, pois afeta em sua própria raiz a todo o
corpo social, tom am -se decisivas por pequenas que sejam. Uma
das primeiras tarefas que se apresentam num estudo de estru­
tura social é a determinação da situação vigente neste ponto,.
240 JULIÁN MARÍAS

por comparação com as etapas anteriores, e, sobretudo, a


•averiguação da direção em que êsse equilíbrio se desloca.

51. Os modelos

O que anteriormente denominei “novelas” em que a preten­


são comum se expressa (V,38) tem, além dos característicos já
•estudados, outro, decisivo do ponto de vista que agora nos
interessa, isto é, o das relações humanas. Com efeito, ao
lado daquilo que as “novelas” biográficas têm de novelas, deve-
se ter em conta o que nelas não é própriamente um ingrediente
imaginário: suas fontes de inspiração reais; com outras pala­
vras, seu condicionamento pelas vidas efetivas que cada um de
nós encontra em seu contôm o social.
Esta é a função dos modelos, a exemplaridade. C ada pessoa
se orienta em um projeto vital partindo de formas realizadas
em outros; naturalmente, como ninguém pode ser seu próximo,
êste só pode significar um a pauta de acôrdo com a qual o indi­
víduo inventa ou imagina sua própria e circunstancial biografia.
As formas da exemplaridade são muito diversas e requerem
condições que exigem ser enumeradas brevemente. Em primeiro
lugar, a presença dos modelos. Esta pode ser direta ou não; na
m aioria das sociedades anteriores ao século X IX , e nele ainda, a
presença imediata foi predominante; isto tem a conseqüência de
que seu campo de ação é restrito; porém, em compensação, sua
influência mais completa, rica e vivaz. Normalmente, a exem­
plaridade se exerce dentro de um a classe: as formas mais per­
feitas e brilhantes assinalam um nível para o qual tendem os
demais indivíduos; entre classes diversas, a projeção não é
fácil, porque a circunstância própria impede ser como o é o
modêlo, e nem sequer alguém pode imaginar-se concretamente
realizando êsse modêlo humano. Isto é, não é possível a exem­
plaridade integral, mas a parcial ou fragmentária; e de fato
é decisiva esta exemplaridade de umas classes sôbre outras:
certos aspectos das aristocracias podem ser realizados pelas
classes médias; algumas facetas dos intelectuais se podem incluir
na figura dos aristocratas; êstes talvez achem que podem enri­
quecer sua realidade com traços tomados das formas próprias
da plebe. Para citar dois exemplos de vulto, o snobismo e o
A ESTRUTURA SOCIAL 241

plebeismo têm sido dois fatores decisivos na organização de


diversas sociedades européias.
A presença direta supõe cenários. A chamada “vida social”
— salões, teatros — , as festas populares, as ruas e, sobretudo,
essa esplêndida realidade que se chama a Praça Maior, cenário
básico em que se tem representado o drama da vida coletiva eu­
ropéia, desde a Grécia até hoje. Em que medida as formas urba­
nas facilitam ou dificultam a presença mútua das diversas classes
sociais, é outra questão que deverá ser considerada mais adiante
(VII, 54). Quando as formas da convivência se complicam,
como acontece em nosso tempo, a presença imediata se faz mais
difícil, porém o horizonte da presença indireta se amplia enor­
memente. Não se pense, no entanto, que, em sociedades despro­
vidas de meios técnicos de difusão, o mecanismo da exempla-
ridade ficava reduzido à área da presença física e, portanto,
interno a uma dada sociedade; porque certos indivíduos, perten­
centes a alguns grupos sociais privilegiados, saiam de sua própria
sociedade para ter contatos diretos com outras; e, ao voltarem,
traziam a seu mundo a influência e a atração dos modelos
alheios; assim se realizou durante tôda a Idade M oderna — e
com menor volume e um ritmo mais lento durante a Idade
Média também — a exemplaridade de umas comarcas européias
sobre outras: os embaixadores, os nobres, os militares, os artis­
tas, os humanistas, os artistas, os monges, os estudantes que
saiam de Salamanca, de Burgos ou de M adrid para ir à França
ou à Itália, os que iam de Paris a Londres ou de Londres à
Holanda, ou de Berlim a París ou a Roma, levavam consigo os
modelos próprios e voltavam enriquecidos com os alheios; não
resta dúvida de que a amplitude e o tempo desta exemplaridade
não eram os que permitem os meios de comunicação atuais, mas
indubitàvelmente também se obtinha um a presença viva, direta
no caso das minorias em que entravam em contato' efetivo,
mediata porém interpretada e vivificada nas maiorias, que
através das minorias privilegiadas tinham acesso aos modelos
exóticos.
Em segundo lugar, a exemplaridade dos modelos deve ser
facilitada por uma interpretação prévia, isto é, por seu apare­
cimento em um escôrço preciso, no qual se tom am exemplares.
Por isso é necessário um sistema de valores vigentes — o que
não significa forçosamente “reconhecidos” — , de acôrdo com
242 JULIÁN MARÍAS

o qual são os modelos aquilatados. Ora, o sistema das prefe­


rências humanas concretas é a tal ponto íntimo e radical dentro
de cada sociedade, que os nomes que o designam são quase
intraduzíveis, e dentro de uma só língua é problemática sua trans­
posição para outra época. Enquanto as “qualidades” ou “virtu­
des” são relativamente abstratas e se podem transferir de uma
situação a outra, as figuras humanas concretas respondem a
um a secreta aspiração, quase incomunicável, de cada unidade
social. São notórias as dificuldades de tradução dos nomes
gregos ou latinos referentes às virtudes e aos vícios — a começar
pela própria palavra areté, que significa outra coisa que virtus,
a qual, por sua vez, é algo bem diverso de virtude — ; porém se
se chega à palavra grega decisiva para designar o hum ana­
mente estimável — kalón — , a dificuldade aumenta de volume;
e quando esta noção funciona em concreto, como no nome
kalokagathós, que é precisamente o homem “exemplar” ou
“modêlo”, a palavra é simplesmente intraduzível. Outro tanto
acontece com expressões como bem nascido, fidalgo, honnête
homme, gentleman, galantuomo, modelos humanos históricos,
concretudes circunstanciais da exemplaridade. Em muitas socie­
dades, os nomes dos modelos são tomados de empréstimo e inau-
tênticos; a rigor, se se quer entender nelas o mecanismo e os
conteúdos da exemplaridade, deve-se fazer apêlo aos nomes
próprios. Quais são, em cada unidade social, os nomes que
incitam,, espicaçam, alentam, comovem, despertam o desejo de
ser como aquêle homem ou aquela mulher? Sem isto, não se
conhece a que se ater em relação a um dos dínamos mais pro~
fundos e eficazes de uma forma de vida.
Em terceiro lugar, deve-se levar em conta as dimensões
em que a exemplaridade se apresenta. Em sociedades de estru­
tura muito simples e com pouca diversificação de tipos humanos,
os modelos podem funcionar como um mostruário breve de
versões íntegras do homem: o guerreiro, o religioso, o sábio, o
magnata, a matrona; quando a complexidade é maior, a atração
dos modelos se exerce em direções independentes, segundo
dimensões que não são sempre as mesmas. Houve épocas sensí­
veis à exemplaridade física: bôa parte da história grega, o
Ocidente de nosso tempo; outras muitas — assim a Idade Média
européia — não tiveram essa sensibilidade ou a possuiram em
grau mínimo e de form a excepcional. Talvez haja modelos se-
A ESTRUTURA SOCIAL 243

j;undo a eficácia e não segundo a piedade, ou inversamente;


será a ciência ou o valor pessoal o que mais sinceramente
comove os homens de um a comunidade. Ê necessário inquirir
das dimensões humanas vivazes nesta ordem, da hierarquia exis­
tente entre elas, em terceiro lugar dos conteúdos que em cada
uma se dão como exemplares.
Por último, há a considerar a visibilidade dos modelos.
Antes de tudo, não é o mesmo a visão direta e a indireta dos
modelos vivos. Tem idéntico significado para a jovem atual a
imagem de Ingrid Bergman ou de Ava Gardner n a tela, que
para a jovem rom ántica ver a duqueza de Frías em seu salão ou
110 palco da Ópera, ou para a jovem francesa de 1860 seguir
as idas e vindas da imperatriz Eugênia e de sua córte? É com­
parável ver Napoleão entrar a cavalo, depois de um a vitória, à
leitura das memórias de Einsenhower ou de Rommel? É o
mesmo para o intelectual ver e ouvir no Ateneu V alera ou Cas-
telar que ler os livros de um autor contemporâneo, ou
talvez uma sua entrevista em um jornal? Lembre-se o que
acontece com os modelos religiosos; à parte a exemplaridade
permanente de Cristo — que é de um a ordem superior e muito
mais delicada — , a vida cristã se tem nutrido ao longo da his­
tória da contemplação exemplar dos santos como modêlo de
perfeição religiosa hum ana — sem esquecer nenhum dos dois
adjetivos — ; pois bem, durante muito tempo, certo “intempo-
ralismo”, para o qual propenderam tôdas as formas da cultura,
permitiu que funcionem como modelos vagamente atuais figuras
de outros tempos remotos; em alguns casos, a irradiação delas
é tal que seu fulgor perdura sem eclipses; mas em sua maioria
não são traduzíveis para a nossa condição, não nos dizem nada:
serão veneráveis, mas não “modelos” utilizáveis, isto é, neces­
sitamos figuras suscetíveis de serem revividas dentro de nossa
própria situação, nesse sentido atuais; e acontece que as imagens
que nos oferecem os santos contemporâneos — digo as
imagens, não sua realidade efetiva como pôde ser patente para
outros — não costumam ser incitantes, não nos movem à admi­
ração positiva e concreta, portanto à imitação. U m a razão disto
é, quase sem exceção, o se tratar de homens e mulheres dedi­
cados diretamente à vida religiosa, sacerdotes, frades, monjas,
fundadores de institutos de obras pias, isto é, “profissionais” da
religião, entendendo acertadamente essa palavra — para maior
244 JULIÁN MARÍAS

clareza, diga-se “religiosos professos” — . Trata-se pois de


pessoas que não estão em circunstancias comparáveis à da quase
totalidade dos fieis, e portanto suas figuras não afetam nossa
sensibilidade nas fibras em que seriam operantes. A rigor, em­
bora o homem ou a mulher sinta o apêlo da santidade dos santos
contemporâneos, a figura concreta dessa santidade não lhes atrai,
não lhes é accessível e imitável; não a vê como um a figura
hum ana semelhante à sua, instalada no mesmo mundo, com os
mesmos problemas, gozos e dores, com os mesmos desejos e
estimativas, porém dotada de perfeição religiosa; isto é, não
encontra um modêlo próximo, imediatamente inteligível e eficaz
em nosso tempo, definido pela consciência histórica e, sob seus
graves pecados, rebelde à inautenticidade.
Os modelos vão modelando a vida. Pela sua atração e seu
prestígio, sob seu poderio suave, tôdas as formas do humano se
organizam. A mulher se penteia, se veste, se move observando
de soslaio outra mulher de atrativo exemplar; o jovem faz os
gestos do ator, do esportista, do escritor ou do político a quem
admira; os gestos modulam as ações: o modo de estender a
mão ou tirar o chapéu preludiam a m aneira de amar; a cadên­
cia da frase leva em si o germe de um a forma de poesia e um
estilo de pensamento; o modo de vestir ou a escolha de um
presente, prolongados, nos levam a um a determinada sensibi­
lidade econômica, moral, talvez política; a fruição ou o desa­
grado ante uma imagem, uma devoção, um vocabulário reli­
gioso ou uma forma litúrgica comprometem em um grau incrível
uma trajetória religiosa inteira.
O esclarecimento de uma form a de vida coletiva requer
uma indagação temática de seus modelos — dimensões em que
atuam, conteúdos, grau de vivacidade, modo de presença —
e, não menos, de suas falhas: daqueles aspectos em que sim­
plesmente não há modelos; daqueles outros em que os modelos
propostos — e em cada caso é preciso perguntar propostos por
quem e a quem — , talvez impostos, não funcionam como tais,
porque lhes falta exemplaridade.

52. O am or

As relações humanas concretas se definem não só pelas


condições formais em que se dá o encontro dos indivíduos e
A ESTRUTURA SOCIAL 245

por sua instalação em grupos sociais, e especialmente em classes,


como pelos seus conteúdos. Uma enumeração suficiente déstes e
ama análise de suas respectivas realidades seria assunto de
uma antropologia ou de uma sociologia; como aqui se trata
— não o esqueçamos — de precisar os métodos que permitirão
investigar efetivamente uma estrutura social, basta levar em
conta, e só dêste ponto de vista, algumas das relações humanas
que condicionam intrínsecamente a estrutura de cada sociedade.
As duas metades da Humanidade estão divididas e ao
mesmo tempo vinculadas entre si por sua condição sexuada; a
diferença do sexo não é específica nem um a simples determi­
nação adventicia; pertence ao que chamei a estrutura empírica
da vida humana (3) e, portanto, sem ser um requisito necessário
desta, é um constitutivo daquilo que denominamos o homem (4).
Essa condição sexuada — diversa da dimensão estritamente
sexual, que é apenas uma atividade particular e limitada dentro
da economia total da vida — é o modo radical de instalação
de cada individuo, mais profundo que o das classes, porque
afeta os estratos mais íntimos da pessoa e, a partir déles, im­
pregna e penetra todos os demais. A “vida hum ana” , pois, em
sua concretude empírica, se realiza em urna dualidade disjun-
tiva: homem ou mulher. Advertia, porém, que se trata, tanto
de um a divisão como de uma vinculação: o sexo não é um a
simples “diferença” mas sim uma relação, mais precisamente
uma polaridade; cada um dos sexos co-implica ou complica
o outro; em cada um vai incluido o outro, justamente na forma
da referência polar. A condição sexuada não consiste, pois,
nos têrmos da disjunção e sim na própria disjunção, vista alter­
nativamente a partir de cada um de seus têrmos. Por isso a
vida hum ana se projeta a partir do sexo próprio em direção ao
outro; a divisão sexuada, longe de ser um a “separação” entre
duas metades da Humanidade, faz com que a vida consista em
cada fração “se haver” com a outra, introduz um a espécie de
“campo magnético” na sociedade e faz com que a convivência,
em lugar de ser inerte, tenha configuração e estrutura dinâmica
e funcione desde logo como “emprésa” . O homem e a mulher,

(3) Cf. meu estudo “La vida humana y su estructura empírica’


(em Ensayos de teoría, Obras, IV).
(4) Cf. minha Idea de la Metafísica, cap. X (Obras, II).
246 JULIÁN MARIAS

instalados em seu respectivo sexo, vivem a realidade total —


não só a hum ana — a partir do mesmo; e a convivência apa­
rece cindida em duas formas radicalmente diversas: dentro do
próprio sexo e com o sexo oposto. Tudo o que, bem entendido,
é prévio a tôda ocupação, relação ou atividade particularmente
sexual, que é consecutiva a essa instalação dinâmica muito
mais ampla e, é claro, permamente, que constitui por assim
dizer o âmbito em que se originam os comportamentos sexuais
e inclusive os “assexuais” — que nunca podem ser “assexua­
dos” — .
Sôbre êste pressuposto é que comparece todo tipo de
relação amorosa. Isto é, as determinações anteriores estão ao
nível da estrutura empírica, e esta é a margem de possível va­
riação histórica; em outras palavras, as diversas formas sociais
são variantes desta estrutura, que se realiza em cada caso se­
guindo um a peculiaridade circunstancial. Realmente, essa re­
ferência de cada sexo ao outro não acontece sempre do mesmo
modo. Em primeiro lugar, a presença; é inexato dizer que os
homens sempre convivem com as mulheres, porque isto é excep­
cional: segundo as sociedades, há um a “distância” maior ou
menor entre o homem e a mulher; ou melhor, rompendo seus
isolamentos respectivos, há “encontros” esporádicos entre êles;
êstes encontros podem ser relativamente freqüentes e fáceis,
porém quase nunca merecem chamar-se convivência no
sentido de convivência habitual; nossa época é uma exceção, e
as conseqüências — boas ou más — a que isto vai levar não
são ainda claramente previsíveis. A “distância” social entre os
sexos é o primeiro fator a determinar; e com ela, as formas,
lugares e freqüências dos “encontros” : não é o mesmo entre-
ver-se fugazmente na igreja ou ao passar o carro, que con­
templar-se morosamente no teatro, dançar, ver-se sem testemu­
nhas, trabalhar frente a frente em um a mesa de escritório,
sentar-se ao lado em um a aula de Universidade, em um bar,
em um carro, passear pela rua. Não se trata apenas de dife­
renças quantitativas e sim de formas de trato: solidão ou pre­
sença de testemunhas, que êstes sejam conhecidos ou público
anônimo, normalidade ou clandestinidade das relações, calma ou
sobressalto, facilidade ou dificuldade de consegui-las, iniciativa.
Isto condiciona as formas da sensibilidade do homem e da
mulher em relação ao outro. A configuração que o sexo impõe
A ESTRUTURA SOCIAL 247

¡\ convivencia determina modalidades perceptivas sôbre as quais


não se tem suficiente clareza: é surpreendente a “orientação”
sexuada do campo perceptivo e a conseqüente “percepção da
beleza”. Em um a sala cheia de gente, em um carro do metrô
abarrotado de passageiros, em uma fotografia em que se aglo­
meram muitas pessoas, o olhar percebe subitamente a mulher
bela antes de saber qualquer coisa dos demais presentes; às
vêzes passa ante nós, em um carro rápido, um a mulher a quem,
a rigor, não vimos: não sabemos como ela é, não poderíamos
dar nem a mais sumária descriação, não a reconheceríamos se
a encontrássemos minutos depois; só sabemos que é bonita.
Quando se lê os novelistas ou autores dramáticos do século XVI
ou X V II, nos surpreendem os amores súbitos que ali se con­
tam: o cavalheiro entra no jardim ao encalço de um falcão;
encontra inesperadamente uma jovem, a vê e a partir dêsse m o­
mento sente-se frenéticamente enamorado; êle se chama Ca­
li sto; ela, Melibea. Outras vêzes o amor surge ao ver a dama,
entre veus, rezar devotamente na igreja; talvez seus olhos fo­
ram vistos num a fração de segundo, ao oferecer-lhe água benta;
ou, por acaso, apenas se viu da mulher sua mão branca, entre
as cortinas da litera, e essa mão já não pode ser esquecida; ou,
por último, a donzela se inflama e se lança em mil loucuras
amorosas porque, de sua gelosia, percebeu um a figura embuçada
e o estremecimento galante da plum a de um chapéu que cum­
primenta. Tudo isto — dir-se-á — é coisa de novelas e comé­
dias. Seja; tire-se-lhe porém quanto se queira de exagêro lite­
rário, ficará sempre um fundo de realidade sem o qual essas
cstilizações literárias não teriam sido socialmente toleradas,
tom o não o seriam hoje. Lembre-se o que nos contam da sen­
sibilidade orgiástica dos árabes diante da beleza física, e pense-
se se tudo isto é invariável, se se pode operar com isso como
se se tratasse de “constantes”. E se se repassa um tratamento
de teologia moral percebe-se imediatamente que está expondo
com freqüência coisas que, sob as mesmas palavras, significam
algo bem diverso do que nós o entendemos.
A maneira de ver a mulher e a tratar dependem em grande
parte da freqüência e proximidade de sua presença. Quando
foi algo mais ou menos “insólito”, o homem se enfrentava com
a mulher como algo literalmente “amável” e se considerava obri­
gado — diante dela e de si próprio — a fazer um gesto “amo-
248 JULIÁN MARÍAS

roso”, pelo menos na forma de tendencia e propensão; é esta


a significação da galantería. Em um a época como a nossa, em
que qualquer homem vê todos os dias, durante várias horas, de­
zenas de mulheres, a atitude tradicional é impossível por razões
quantitativas; não apenas, é claro, pela atenção e esforço que
isso requeriría, como também porque o gesto “amoroso” repe­
tido centenas de vêzes perde tôda verossimilhança, que é pre­
cisamente o que o justificava, o que lhe dava sentido, visto não
se fundar em verdade alguma que nem possuia nem era suposta
por ninguém. (Um dos problemas mais delicados da convivência
entre homem e mulher em nossa época é encontrar o substitu­
tivo ou “vicário” dessa galantería; porque essa é impossível;
porém como tinha um a função muito importante, ao desapare­
cer levou Consigo uma delicada engrenagem da vida que urge
ser recuperada, embora se a movimente a partir de outros dí­
namos.) É necessário averiguar em cada sociedade o estado das
relações nesse ponto.
Porém há coisas ainda mais graves. O próprio conteúdo
do amor efetivo é historicamente variável. Não se ama de modo
idêntico em todos os tempos, em tôdas as sociedades, ainda que
haja um núcleo funcional e alguns elementos naturais que reapa­
reçam em tôdas as situações. Ama-se a partir de certos pressu­
postos; em primeiro lugar, em vista de certas figuras de homem
e mulher que são precisamente os modelos no sentido mais enér­
gico da palavra; em segundo lugar, de acôrdo com um re­
pertório de gestos, emoções, estimativas que caracterizam cada
forma de vida coletiva; em terceiro lugar, há fatores “quanti­
tativos”, isto é, uma determinada intensidade do amor — tal
tem peratura ou outra diferente — , uma certa vigência dêle —
em certas ocasiões o que se faz é enamorar-se, em outras não
“está na moda” o amor, e em cada caso trata-se de determinado
tipo — , uma certa freqüência estatística.
Não esqueçamos que isso que se chama “amor” é uma
interpretação de certas realidades vitais — e emprego o plural
porque são várias e bastante diversas — , interpretação que
desde logo o indivíduo que as experimenta encontra “vigentes”
em seu contorno. Mais exatamente, encontra primeiro a inter­
pretação, e depois descobre em si mesmo — ou procura — a
realidade correspondente. O jovem sabe que “há am or”, que
os homens e as mulheres “se enamoram” — e isto se lhe apre-
A ESTRUTURA SOCIAL 249-

scnta com difrentes característicos de forçosidade, beleza, in-


terêsse, mistério, temor, cinismo — ; lê historias de amor ou
“assiste” o amor em suas representações imaginativas, e o en­
tende previamente a o ter experimentado realmente (5); e quando
lhe acontece, efetivamente, algo que “tem que ver” com aquilo, o
interpreta como amor; o mecanismo consiste em referir a nova
realidade pessoal a essas noções recebidas e a fazer entrar em
seu esquema, forçando-a — dentro de certos limites — a ser
assim. Isto significa que o amor real está condicionado por suas
formas vigentes em uma sociedade, sobretudo por suas formas
imaginárias e de ficção; somente sôbre êsse pressuposto geral e
coletivo podem existir os matizes auténticamente pessoais do
amor individual.
Pela mesma razão, o amor é inseparável de uma “lingua­
gem”, de uma retórica e uma poética, de um modo de dizer
à amada ou ao amado, e de dizer-se mütuamente na relação
amorosa; e é preciso entender que tudo isso lhe pertence intrín­
secamente, que forma parte de seu conteúdo. Mas por outro
lado é preciso fazer constar que o amor nunca é precisamente o
que “se diz”, porque também lhe pertence uma dimensão se­
creta. Juntamente às formas públicas do amor, vigentes em
uma sociedade, há suas formas reais. É necessário determinar
a dose de lirismo e sensualidade, por exemplo, que se encontra
na retórica amorosa e na realidade efetiva; a proporção em que
o homem e a mulher se repartem em relação à iniciativa; a
margem de liberdade de expressão e comportamento que cada
um tem; a estima ou desdém que sentem um pelo outro; a
fugacidade normal ou a normal permanência da realidade amo­
rosa; a maior ou m enor pretensão de “exclusivismo” e seu
cumprimento; a importância ou trivialidade do fenômeno amo­
roso. Este pode ser um assunto puramente epidérmico, relati­
vamente inconexo, que pouco afete os estratos mais profundos
da pessoa, ou bem um acontecimento radical que envolve o
homem ou a mulher, ou os dois até o centro de si mesmos
e os condiciona decisivamente. Em sociedades em que existe
“facilidade” amorosa, normalmente o amor perde temperatura,
gravidade e, portanto, interêsse. E, correlativamente, diminui
seu poder, sua violência, sua delícia. Em sociedades em que

(5) Veja-se meu livro La imagen de la vida humana.


250 JULIÁN MARIAS

a liberdade amorosa é grande e que estão dominadas pelo que


poderíam os chamar um a “sensualidade difusa”, os atos concretos
de amor, de qualquer índole, perdem seu valor, intensidade e
capacidade de comoção. Pondo-se à parte tudo o que se tenha
como retórica, apesar disso torna-se incompreensível em uma
clima de “inflação” o valor do beijo romântico, tal como se
expressa em Victor Hugo — Enfant, si j’étais roi, je donnerais
Vempire. . . — em uma Oriental de Zorrilla — Dueña de la
negra toca — ou no relato de Azorín, em que o beijo de dona
Inés e o poeta Diego, de Garcillán, na Segóvia de 1840, se
dilata em ondas concéntricas que agitam a cidade inteira e a
sacodem com um vendaval apaixonado de erotismo, murmura-
ções, inveja, ciumes, admiração, remorso, sacrifício. E en­
quanto não se percebe tudo isso claramente, não se sabe o que
significa a palavra “ amor” em uma situação concreta e, por­
tanto, qual é a realidade dessa forma de vida coletiva.

53. Matrimônio e família

Não é necessário insistir em que as formas do matrimônio


e da famíüa constituem elementos decisivos de tôda estrutura
social, ao ponto de que as sociedades se classificam com fre­
qüência dêste ponto de vista: monogâmicas e poligâmicas, etc.
Isto é tão óbvio, que sua determinação nem sequer faz parte
daquilo que merece o nome de método de investigação de es­
truturas sociais; aqui se trata de variações históricas mais tê­
nues, daquelas que se dão dentro de um “tipo” geral de orga­
nização matrimonial e familiar, por exemplo dentro das socie­
dades ocidentais modernas; e se se tom a outro esquema, seja
a família poligâmica mussulmana, a tibetana ou qualquer orga­
nização primitiva, o investigador, um a vez nstalado nele, teria
que chegar a precisões análogas, com conteúdos diversos. P or­
tanto, ficaremos circunscritos às formas existentes dentro de
nosso mundo ocidental moderno.
Antes de tudo, convém distinguir entre matrimônio e fa­
mília; o fato elementar de que o matrimônio costuma produzir
uma família e de que, portanto, ambas as coisas estão ligadas,
leva muitas vêzes a considerá-las do mesmo ponto de vista e a
as igualar. Ora, enquanto o matrimônio é uma relação inter-
individual, na qual entram dois indivíduos a ela preexistentes
A ESTRUTURA SOCIAL 251

e que funcionam como tais, a familia deve ser vista primária-


mente de baixo para cima; isto é, não em sua gênese a partir
do par conjugal, mas sim a partir dos filhos: a familia é, princi­
palmente, os pais e os irmãos — em suas formas amplas, também
os avós, tios e primos — ; só secundariamente é a esposa e os
filhos. “Alguém se acha” na família sem a ter escolhido; justa­
mente ao contrário do matrimônio, que se funda em um a escolha,
não é prévio e possui um caráter rigorosamente pessoal. A
fusão do matrimônio e da família em uma só consideração é
simplesmente uma forma de coáfusão de ambos, que perturba a
compreensão dos dois. As conseqüências teóricas são graves, e
delas decorrem não poucas que afetam as próprias coisas em
sua realidade; por isso, já há anos assinalei entre as causas da
crise da família, alguns dos defensores que lhe têm aparecido
nos últimos tempos.
Dos muito aspectos do matrimônio, apenas alguns tantos
intervém diretamente na constituição de um a estrutura social
concreta; sem dúvida, os demais podem repercurtir nela, porém
investigar minuciosamente estas repercussões seria um nunca
acabar; limitar-me-ei, portanto, a assinalar concisamente os
pontos em que as formas de matrimônio condicionam imediata­
mente as da sociedade.
Em primeiro lugar, a freqüência estatística do matrimônio.
Casam-se continuamente inúmeros homens e mulheres, mas não
com igual grau de “normalidade”; enquanto em algumas socie­
dades o solteiro é absolutamente excepcional, em outras há um
número considerável de pessoas que, sem razões demasiado
precisas, de fato não se casam. Isto costuma estar em estreita
relação com a idade do matrimônio; o primeiro tipo de socie­
dades propende ao matrimônio precoce; quando por razões
econômicas ou de qualquer outra índole o casamento se atrasa,
quando deixa de haver um a idade normal de se casar, as
exceções começam a ser freqüentes e acabam por deixar de ser
exceções.
Por outro lado, falando-se de idade deve-se distinguir: do
homem, da mulher, ou dos dois? Durante longos períodos da
história européia, os homens casaram-se com mulheres muitos
anos mais jovens; em outros tempos, as idades se aproximam,
as diferenças normais são muito curtas ou nulas. São muitas as
conseqüências disso: nível ou desnível das gerações, economia,
252 JULIÁN MARÍAS

grau de independência da mulher, fecundidade, etc.; uma delas


me parece especialmente importante: que o matrimônio seja ou
não uma relação de igual nível pessoal e histórico; isto é,
quando marido e mulher têm mais ou menos os mesmos anos,
as relações de subordinação tendem a desaparecer, e a “ ami­
zade” é mais provável; além disso, o repertório de lembranças,
estimativas, experiências, etc. é sensivelmente o mesmo, enquan­
to que quando as idades distam mais, há muitas coisas que têm
uma significação pessoal para o marido e nenhuma para a
mulher — e em proporção diferente também o inverso — .
Isto, por sua vez, influi decisivamente na margem de liber­
dade e de escolha que corresponde ao matrimônio em cada caso.
Somos levados a esquecer em nosso tempo que em muitas outras
sociedades o casamento pouco teve que ver com a escolha dos
contraentes — especialmente da mulher — , ao ponto de que
seria possível perguntar-se com certa seriedade pela freqüência
ou infreqüência de um consentimento efetivo. Em longos perío­
dos da história, os casamentos foram arranjados pelas famílias
sem intervenção dos interessados, das interessadas também
evidentemente, e por razões de linhagem ou clase social, de
fortuna, de política, por preferências endogâmicas, às vêzes
raciais ou religiosas; naturalmente, nestes casos o amor tinha
um a parte muito diminuta no matrimônio. Destas formas ex­
tremas à escolha recíproca livre e espontânea de duas pessoas
individuais, com mínima intervenção familiar ou social, há uma
longa distância, e em cada sociedade domina um certo estado
da questão, que é im portante conhecer.
E na medida em que o matrimônio é alheio ao amor e à
preferência pessoal o que acontece com êstes? Tem seu curso
independente, em relações estranhas ao matrimônio? Prescin-
de-se dêles e se convertem em exceções fortuitas? Ou para o
homem se dá o primeiro caso e para a mulher o segundo? O
mesmo ter-se-ia que perguntar para as relações amorosas e para
as sexuais prévias ao matrimônio, sobretudo nos casos em que
êste é tardio; em algumas sociedades, a “liberdade” é limitada
ao homem, enquanto que a mulher fica reduzida na maioria dos
casos ao amor matrimonial ou pré-matrimonial; em outras
formas de vida coletiva, a diferença entre os dois sexos é menor;
em algumas chega-se a uma situação de equiparação de ambos.
A ESTRUTURA SOCIAL 253

O que tem conexão evidente com a existência e importancia da


prostituição e outras formas sociais análogas.
Em todo caso, o matrimonio tem significação desigual do
ponto de vista da pertinencia a éle de cada um dos cônjuges.
Pode acontecer que os dois — ou só a mulher — fiquem absor­
vidos na unidade superior e já não tenham mais vida autônoma;
no extremo oposto, cada um dos esposos continuam mais ou
menos “em si mesmo”, prolonga sua trajetória vital, que sim­
plesmente fica “associada” à outra. Isto é, às vêzes o m atri­
mônio significa uma anulação da mulher; talvez, pelo contrário,
seu “lançamento em circulação” social — assim naqueles meios
em que a mulher solteira “não conta”, e só a casada tem acesso
ao “mundo” — ; possivelmente a constituição de uma nova em-
prêsa dual e uma potenciação recíproca; certas ocasiões, muito
pouca coisa, uma associação relativamente epidérmica e — com
certa probabilidade — passageira.
E isto remete à questão decisiva da estabilidade do matri­
mônio. Esta, do ponto de vista das estruturas sociais, não coin­
cide exatamente com sua indissolubilidade, porque há sociedades
em que, sem divórcio, o matrimônio é instável, enquanto que em
outras, existindo a possibilidade de separação legal, há estabi­
lidade estatística, porque o divórcio é pouco usado, ou em todo
caso com caráter excepcional e em vista de uma nova situação
que em princípio pretende ser também estável. Naturalmente,
a estabilidade é maxima quando, dadas certas condições sociais
de firmeza, estão reforçadas pela vigência da indissolubilidade
religiosa e legal; a qual, por seu lado, freia e restringe — ainda
que não impeça — a instabilidade procedente de causas estri­
tamente sociais.
Por último, dever-se-ia levar em conta outro fator: a “du­
ração” do matrimônio, que nada tem que ver com o que acabo
de dizer. Refiro-me a que a relação especificamente matrimo­
nial como forma de convivência entre homem e mulher tem
possibilidades muito diversas: freqüentemente se a considera
como um simples trâmite para a “fundação de um a família” —
êste ponto de vista domina as teorias da chamada “sociedade
conjugal”, quase sempre cegas para o matrimônio em si mesmo
— ; em outras palavras, a vida do matrimônio como tal é efê­
mera e se prolonga na realidade bem diferente da família. Pode
acontecer porém que isto não seja assim, que o matrimônio
254 JULIÁN MARIAS

tenha “argumento” e, portanto, capacidade de perduração como


algo que, ainda que dando origem a um a família e existindo
dentro dela, não se reduz à família. É evidente que um estudo
da estrutura social requer uma série de cortes na mesma, porque
as sociedades não são homogêneas e a condição do matrimônio
quase nunca é a mesma em tôdas as classes ou grupos sociais,
nas grandes cidades e nas aldeias, talvez, dentro de um mesmo
tempo, nos casais pertencentes a gerações diferentes.
Quanto à família, insisto em que, vista a partir do indivíduo
que “se encontra nela”, portanto primàriamente a partir dos
filhos, é uma sociedade parcial, justamente o modo de inserção
normal na sociedade em sentido estrito. Que a origem dessa
“sociedade” seja um a associação — a dos esposos — não auto­
riza a entender a família como associação, porque esta — o
matrimônio — ainda não é família. E o marido ou a mulhex
formam parte da família, são “da família”, só enquanto lhes
sobrevêm uma condição secundária, resultante de sua inserção
na família dos filhos (ou então, em algumas formas, sua incor­
poração à família das gerações anteriores, à qual já pertencia
como filho o outro cônjuge).
A família sensu stricto é, pois, uma realidade social, porém
peculiarissima, porque seu funcionamento efetivo é constituido
por relações interindividuais. O filho, desde seu nascimento, en-
contra-se em e com um a família que não escolheu nem procurou
ter, e que está definida por um repertório de usos coletivos e vi­
gências; de certo modo, se pode dizer o mesmo dos pais em
relação aos filhos: também “se encontram ” com êles; e outro
tanto acontece aos irmãos entre si. Mas, por outro lado, a
enorme proximidade da relação familiar faz com que a maneira
concreta de existir seja pessoal, isto é, que nela, junto às
“funções” ou “papeis” pai, mãe, filho, irmão — em princípio
assimiláveis às relações sociais mestre, discípulo, companheiro,
juiz, acusado, eleitor, deputado, etc. — se dá a realidade indi­
vidual e hum ana de cada um dos que assumem essas funções.
Esta dupla face ou vertente da famüia se apresenta em
tôdas as suas formas; mas segundo estas, predomina uma ou
outra daquelas. Principalmente, segundo a amplitude do âmbito
familiar; quando se trata da famüia como linhagem, entram
nela talvez três ou quatro gerações — no sentido genealógico,
não no histórico — : avós, pais, filhos, netos, com todos os
A ESTRUTURA SOCIAL 255

colaterais e provàvelmente os criados; e o mais importante é


então sua dimensão de “sociedade”, isto é, o que tem de insti­
tuição coletiva. Através de um a série de etapas intermédias,
chega-se ao outro extremo: a família definida pela convivência
estrita, os que se reunem na sala de jantar ou na cozinha: pais,
filhos, irmãos; como aqui a proximidade é máxima, a substân­
cia desta forma de família é sobretudo individual e pessoal.
Poderíamos dizer que esta é função do matrimônio e depende:
decisivamente dêste.
Porém não são êstes os únicos aspectos a serem levados em
conta. Dentro da família há diversas relações que em cada socie­
dade variam: econômicas — vinculação, morgadios, existência
freqüente de capital de cada um dos esposos ou preponderância!
dos vencimentos e, portanto, dos bens de renda; dependência
mais ou menos longa dos filhos, etc. — ; de autoridade — do
pai sôbre os filhos, do marido sôbre a mulher, eventualmente dos
dois sôbre os filhos, e tudo isso em graus muito diversos; de
continuidade — normalidade da residência na mesma cidade, da
continuação da profissão paterna — ; de classe social — perti­
nência da geração jovem à mesma que a dos pais ou freqüência
do “ascenso” dos filhos, por exemplo, nos países de imigração
ou de economia colonial — ; quantia e figura do coeficiente de
discrepância normal entre os filhos e os pais; sentido vivo ou
atenuado da linhagem ou do sobrenome, etc.
Todos êstes elementos permitem precisar em que grau a
família cumpre em um a sociedade concreta sua função prim á­
ria, a de ser a grande facilidade elementar que encontram os
indivíduos desde que nascem. E deve-se ainda perguntar: desde
que nascem, sim, porém até quando? Até que idade a família
acompanha e sustenta o indivíduo, a partir de quando o deixa
só — ou quase — abandonado a si mesmo, ou então invertem-
se os têrmos e se converte no primeiro problema sério com que
cada um tem que se haver? Como a família é a form a elementar,
não de sociedade, mas de articulação do indivíduo na sociedade,
sua organização e estado se converte em um fator decisivo de
tôda estrutura social.
54. A amizade.

A amizade é, evidentemente, um a relação interindividual;


porém, como tôdas, está condicionada pelos usos e vigências;
•258 JULIÁN MARÍAS

coletivos; e ela, por sua vez, em sua realidade íntegra, funciona


como um elemento componente das formas de vida coletiva. E,
sobretudo, ao lado da amizade em sentido rigoroso, se dão
também as formas “socializadas” dela, em peculiar interação
ío m seus modos mais autênticos, e que são diretamente um
ingrediente da sociedade.
A amizade sensu stricto se dá em um a zona muito precisa
de nossa vida, que é a intimidade; é um fenômeno íntimo — e
nisto se assemelha ao amor — ; porém, por outro lado, é feito
de respeito; creio que estas duas notas são essenciais ao fenô­
meno amistoso. Quando se fala de respeito, entenda-se bem:
respeito à intimidade; o amor também respeita a pessoa amada,
m as não sua intimidade, pois a invade e penetra com uma vio­
lência intrínseca, por doce que o seja, que lhe é essencial. O
m odo de trato do amor consiste na irrupção dentro da intimidade
da pessoa a quem se ama, e na exigência de ser invadido de
forma análoga. N a amizade isto não se dá; nutre-se de reserva;
•disse eu, uma vez, que é sempre um pacto tácito de não^agressão.
Isto é, os amigos têm um a “folga” —- esta é inseparável da ami­
zade, e onde faz falta há uma grave deficiência — , mas não
“abandono”; há sempre entre êles um freio, e precisamente a
delícia da amizade consiste em boa parte em sua livre limitação,
nesse gesto de ter as rédeas nas mãos e refreá-las, elásticamente,
para manter a efusão interior em seu justo limite. Enquanto
pertence ao amor o ser desmedido, a amizade é sempre medida,
tem que ser feita de mesura e ajuste; poderíamos dizer que é
um sentimento exato.
Não se pense que a amizade autêntica é por isso coisa fria
ou pelo menos feita de tibieza. Pelo contrário, para que a ami­
zade alcance sua medida justa, isto é, para locupletar-se e ser em
form a plena, tem que extravasar-se de um ímpeto que, preci­
samente porque se extravasa, pode inverter parte de seu im­
pulso em refrear-se, limitar-se e permanecer como amizade;
caberia dizer que a amizade é um sentimento que inclui seu
próprio limite ou dique; o ponto em que termna o constitui e
o faz ser precisamente amizade, nem mais nem menos. É claro
que aí reside a dificuldade do fenômeno amistoso, e é a causa
de sua relativa infreqüência: a maioria das amizades são mais
ou menos. Isto é, sob o nome de amizade — como acontece
com o amor — se ocultam suas aproximações ou modos defi­
A ESTRUTURA SOCIAL 257

cientes: os chamados amigos são muitas vêzes companheiros,


camaradas, simples conhecidos, ou também amigos pretéritos,
residuais.
Tudo isto pertence à vida individual em seu sentido mais
estrito; porém os modos da amizade, todos êles, e não somente
os inautênticos, se dão em virtude de certas condições sociais.
Primeiramente, alguns característicos quantitativos. Em cada
sociedade há enormes diferenças individuais, mas por baixo das
mesmas há uma normalidade em relação ao número de amigos
que cada pessoa costuma ter. H á sociedades que vivem “em
amizade” ; outras, pelo contrário, se caracterizam por ser insó­
lita nelas a relação amistosa. O grau de “proximidade” social,
que se viva em solidão ou em presença mútua — em parte devido
à estrutura das cidades, da qual logo será preciso dizer uma
palavra — , determina a probabilidade e, portanto, a freqüência
do vínculo amistoso. Para se entender uma forma de vida cole­
tiva, é necessário determinar o círculo de amigos que é normal
ter dentro dela; e em seguida traçar um mapa, isto é, precisar
suas hierarquias e distâncias.
Em segundo lugar, deve-se ter um conta a origem das ami­
zades. Algumas procedem da infância, e existe o tópico de que
os amigos mais antigos são os mais amigos; diz-se às vêzes:
“Somos amigos desde crianças; amigos íntimos”. É pouco pro­
vável que isto seja verdade, porque as amizades infantis são ante­
riores ao nascimento da intimidade nos indivíduos; isto é, o
amigo de infância, se é apenas isso, não é um amigo íntimo,
mas sim provàvelmente trivial, familiar, inerte; para que a ami­
zade infantil seja autêntica e íntima, deve ser renovada e “riva-
lidada” depois. A quadra natural em que as amizades se engen­
dram é a adolescência e a primeira juventude, os anos de estudo
ou aprendizagem; então, o indivíduo já está “feito” como pessoa,
mas ainda tenro, poroso, sem cascas isolantes, sem precauções;
como cada um é ainda pouca coisa, como não possui sequer
lembranças nem passado, não pode viver a partir de si mesmo
e vive com os demais, em companhia fácil e espontânea — o
fenômeno freqüente do adolescente arredio e “retraido”, soli­
tário, não altera a situação, porque é seu modo de viver os
outros, e quase sempre demonstra uma sensibilidade exacerbada
para a amizade, e em especial para a amizade íntima — ;
quando a trajetória pessoal se inicia, liga-se normalmente com
258 JULIÁN MARIAS

as outras, e se realiza na convivência. Isto não significa que


não se possam dar depois amizades muito vivas; possuem porém
um caráter agora muito individual e concreto, e por isso são
mais improváveis e escassas. Depois da juventude, a amizade
é sempre um dom inesperado, com o qual não se pode contar,
e depende das ocasiões; portanto, da configuração da vida. Isto
é, tem condições que se cumprem em diversos graus e modos:
folga de tempo — a ameaça mais grave que hoje paira sôbre a
amizade — , um mínimo de folga econômica, confiança — o re­
ceio e a desconfiança coletivos são uma enfermidade social que
quase impossibilita a criação de novas amizades e corroi as
antigas — ; e, sobretudo, concórdia; porque quando uma socie­
dade está profundamente dividida, quando diante do próximo
se pergunta antes de tudo qual a sua opinião, a que ideologia
política ou religiosa pertence, a amizade fica automáticamente
comprometida e adulterada; dir-se-á que dentro do próprio
grupo é mais fácil e mais forte, mas não é assim, porque a re­
lação feita em uma ou outra medida de partidarismo não é
propriamente amizade, justamente porque se nutre de coinci­
dências exteriores, públicas, e não de pequenas afinidades pri­
vadas e entranháveis, isto é, de intimidade. Mas fique bem
claro que a palavra concórdia não significa unanimidade ou uni­
formidade; as mais variadas diferenças de opinião, estimativas
ou gôsto não impedem a amizade, mas sim costumam estimulá-la,
com a condição de não afetarem os estratos mais profundos da
pessoa, deixando uma zona radical isenta e livre para a intimi­
dade. A diferença religiosa ou a oposição política não são um
estôrvo para a amizade; porém o politicismo ou o fanatismo,
pelo contrário, a desalojam de seus redutos, e, diga-se de pas­
sagem, contradizem intrínsecamente a amizade na medida em
que são constituídos temáticamente pela ausência de respeito.
Até aqui, porém, não fiz menção de um ponto delicado: o
sexo. E é necessário notar que quase sempre se entendeu a ami­
zade como um a relação dentro do próprio sexo; ainda mais, é
muito difundida — sobretudo, o foi — a opinião de que a ami­
zade intersexual é impossível, de que ou é menos que amizade,
isto é, muito pouca coisa, ou é simplesmente amor. E, com efeito,
na grande maioria das sociedades conhecidas a amizade entre
A ESTRUTURA SOCIAL 259

homem e mulher tem sido considerávelmente infreqüente(6).


Eu creio que, longe de ser impossível, a amizade intersexual é
a culminância do fenómeno amistoso, sua forma mais intensa e
pura; que nossos melhores amigos quase sempre são nossas
amigas, e que se alguém entende um pouco o homem ou a mulher,
é uma pessoa de outro sexo. Mas é preciso acrescentar que o
nascimento normal da amizade entre homem e mulher requer
condições sociais improváveis, que raramente se dão — nos últi­
mos trinta ou quarenta anos, por exemplo, graças às quais houve
um reflorescimento de amizade entre homens e mulheres que
constitui uma das criações ou recreações do meio século que
acaba de passar — . Convém recordar as dificuldades que
alguns indivíduos, com um a singular vocação para isso, encon­
traram em outros tempos para estabelecer relações de amizade
com pessoas de outro sexo; como esbarraram com a inexistência
de moldes coletivos para abrigá-las; como foram levados a uma
adulteração de seus próprios sentimentos pela pressão das vigên­
cias e pela interpretação que êles mesmos, movidos por essas
vigências, lhes emprestavam. Nada esclarece melhor certos ma­
tizes delicados de estrutura social do que a história de algumas
destas amizades e de seu desvirtuamento quase fatal e conse­
qüente fracasso.
Tudo isto nos obriga a procurar esclarecer os mecanismos
da interação constante entre o individual e o coletivo, que é
precisamente aquilo em que consiste a realidade social. Em
outras palavras, perguntar pelas formas de convivência, ou seja
pela efetividade imediata da vida social.

55. A vida social.

Cada indivíduo vê certo número de pessoas. A grande


parte delas, simplesmente vê: são os desconhecidos que encontra
na rua, na igreja, no teatro, no café. Outra porção é composta
de pessoas às quais vê e, por exemplo, cumprimenta: são os
simples conhecidos, vizinhos, comerciantes habituais, clientes,
com os quais “tropeça” ocasionalmente porque suas trajetórias
vitais respectivas se cruzam. Um terceiro grupo é formado pelas

(6) Veja-se o artigo “Una amistad delicadamente cincelada”, em


meu livro Ensayos de convivencia (Obras, III).
260 JULIÁN MARÍAS

pessoas com as quais trata, isto é, aquelas para as quais se


volta com atos concretos de convivência, que lhes estão indivi­
dualmente destinados. Esta última fração contém zonas muito
diversas; deveriam ser demarcadas levando em conta a freqüên­
cia e a proximidade do trato: há pessoas com as quais se convive
uma vez por ano; outras, cada dois meses; outras, tôdas as se­
manas; algumas, diàriamente; e, com relativa independência
disto, em graus diversos de intimidade. .
A primeira tarefa que se apresenta, se se quer determinar
as condições da convivência em uma sociedade, é uma avaliação
média do volume de cada um déstes grupos em cada um dos
estratos sociais. Se se comparar várias unidades, achar-se-á dife­
renças quantitativas enormes, que chegam a ter significação estru­
tural. Por exemplo, do ponto de vista do “balanço vital” e,
portanto, da felicidade. Quando se compara as condições de
vida de diferentes países e de diversas épocas, poucas vêzes se
tem em conta, ao lado do nível econômico, da segurança, do
processo técnico, o que significa a amplitude e intensidade da
convivência; as condições econômicas de muitos povos latinos
seriam insuportáveis com as formas de “vida social” e conver­
sação de alguns povos nórdicos. E às vêzes se procura um a me­
lhoria material, sem perceber que traz consigo uma perturbação
de um estilo de convivência, de conseqüências dificilmente pre­
visíveis, sobretudo porque não se costuma fazer esforço mental
algum para imaginá-las. Quais são os resultados — bons ou
maus — de substituir a casa de habitação coletiva, com seu
pátio comum e suas galerias que se seguem umas às outras,
pelo bairro de pequenas casas proletárias? Qual é a conexão do
clima com as formas de convivência? Como repercute sôbre as
formas reais da vida o fato de que as mulheres de uma aldeia
ou de uma cidade deixem de ir com seus cântaros à fonte, porque
dispõem de água nas torneiras de suas casas? Qual o significado
da substituição parcial dos teatros pelos cinemas, ou dos cafés
pelos bares? Será o mesmo passar o serão no jôgo de prendas,
escutando o rádio ou contemplando a televisão?
Em segundo lugar, ter-se-ia que determinar a articulação
da “distância social” . Diferem entre si uma sociedade sem
cerimônia e outra cheia de etiqueta: apresentação, tratamento de
“senhor” ou seus equivalentes, reserva entre vizinhos, inaccessi-
bilidade normal do lar alheio, ausência de mulheres na convi-
A ESTRUTURA SOCIAL 261

véncia extra familiar, isolamento das classes. Quantos são os


“próximos” em cada caso, e o que se denomina proximidade?
Uma terceira precisão necessária é a que se refere às di­
mensões da vida em que se dá a convivência. Até que ponto se
tem relações “integrais” , que envolvem a pessoa inteira? Ou
predominam mais os “compartimentos estanques”, incomuni­
cáveis, dentro de cada um dos quais acontece, inconexa, a vida
social? H á o companheirismo de trabalho, que não transcende
a vida familiar; companheiros de oficina ou de escritório que
não vão juntos ao teatro, que não conhecem as respectivas fa­
mílias; relação quotidiana entre jogadores que nada sabem da­
quele que senta à sua frente durante três horas diárias; tertúlias
de “homens sós” que começam e terminam à volta da mesa do
café ou no próprio círculo, sem se projetarem em nenhuma
outra esfera.
O mais im portante é, sem dúvida, a mescla ou separação
dos dois sexos na vida social. As diferenças entre sociedades,
épocas, classes, cidades, são neste ponto extremas e abso­
lutamente decisivas. Entre as “cidades com ruas sem mulheres”
da Andaluzia que cantou Antônio Machado, e as cidades dos
Estados Unidos, a distância é máxima. Entre M adrid e a
pequena cidade provinciana espanhola de hoje, é ainda consi­
derável.
Cada sociedade articula suas formas de convivência; muitas
não podem ser compreendidas se não se tem presente que cons­
tituem expedientes para suprir ausências ou falhas de outras
formas. As “visitas” do século X IX e princípios dêste, os entre-
atos dos espetáculos, o carnaval, as romarias, os parques de di­
versões, a toilette quase pública das damas do século X V III, o
“rosto velado” das do século X V II, tudo isso são formas que
não se explicam diretamente, por seu “valor facial”, mas sim
as remetendo a uma situação total, na qual adquirem seu senti­
do, a partir da qual se tornam compreensíveis e plenas de signi­
ficado, talvez condições de certas parcelas ou matizes da feli­
cidade.
Essa conexão sistemática das possibilidades e modos de
convivência se materializa, por assim dizer, na forma das cidades;
e adquire vitalidade e movimento — portanto, inteligibilidade
plena — no uso das mesmas: isto é, no emprêgo e destribuição
do tempo e na articulação da vida quotidiana. Vejamo-lo.
262 JULIAN MARÍAS

56. As cidades.

Um dos temas mais sugestivos — Ortega há muito o acen­


tuou — é a morfología das cidades. Em poucas coisas a forma
da vida coletiva se revela melhor. E a razão é clara: a cidade
é em certo modo “utilitária”, está destinada a cumprir funções
vitais, desde as mais elementares até outras muito complexas;
corresponde, pois, de fato, àquilo que os homens fazem, isto é,
aos conteúdos reais de suas vidas; além disso, como se trata de
uma criação coletiva, não depende do capricho pessoal, nem
sequer da inspiração; em terceiro lugar, como a cidade requer
um longo tempo para se fazer, não reflete uma tendência pas­
sageira, uma improvisação ou as conseqüências de um ato ;de
vontade individual (salvo poucas exceções, que por sua vez
são reveladoras, porque manifestam estruturas coletivas que as
tornaram possíveis). Porém, por outro lado, a cidade não é
apenas utilitária, como um simples instrumento ou um meca­
nismo; tôda cidade é também artística — por isso pode ser
bela ou feia, o é uma das duas coisas irremediàvelmente, ou as
duas em certa proporção — , isto é, expressiva, e o que se ex­
pressa é um estilo, uma estrutura de alma, uma pretensão que
vai além do meramente funcional e utilitário — quando a cidade
se reduz a isto, significa que essa e não outra é a pretensão im a­
ginativa dessa sociedade, ou seja, que o fato de que algo seja
somente utilitário não é utilitário: vai mais longe e descobre
zonas muto profundas do homem que assim se apresenta.
Por tudo isto, uma cidade é o texto em que se pode ler a
contextura de uma alma. Mas deve-se acrescentar uma nota im­
portante: a cidade que demora em fazer-se — por isso não é
caprichosa — , dura muito tempo; exceto em sua fase de fun­
dação, quando ainda não é cidade, é sempre antiga. Normal­
mente o indivíduo vive em uma cidade que não fêz, que nem
sequer seus coetáneos fizeram, mas sim seus antepassados; é
verdade que a transforma e a modifica, sobretudo a usa a seu
modo, descobrindo nisso sua vocação peculiar; porém, desde
logo, é uma realidade recebida, herdada, histórica. Isto é, nada
mais nada menos do que a própria sociedade. Por isso é defícil
de entender; por isso é profunda, radicalmente reveladora.
'• O que primeiro se tem a dizer quando se estuda a estru­
tura de uma sociedade do ponto de vista das cidades é que pode
A ESTRUTURA SOCIAL 263

não as haver. Isto é, há formas de convivência que não são cida­


des — normalmente coexistentes com estas — ; a isto se denomi­
na ruralismo, e nada é mais urgente do que determinar a propor­
ção de ruralismo em uma sociedade concreta e sua função dentro
dela; evidentemente, incluindo nessa função o estado dinâmico
do ruralismo: que esteja em situação estacionária, que seja um
resíduo em vias de desaparecer ou, pelo contrário, que esteja
em um processo de ruralização.
Naturalmente a oposição entre cidade e campo não é abso­
luta; o ruralismo requer as cidades (eu diria mais, se manifesta
nas cidades, é propriamente uma afecção das cidades); porque
se não houvesse estas, dificilmente se poderia falar com rigor
de uma sociedade. O campo como “m undo” humano não exclui
a existência de “povoações” e nem sequer impõe que estas
sejam muito pequenas; o são o rancho, a granja, o casario vasco,
a aldeia galega ou asturiana; porém não o pueblo castelhano,
ainda menos o andaluz — não digamos algumas povoações afri­
canas — e que, no entanto, são formas estritas de vida rural. O
característico desta é sua radicação no campo, e isto em três
sentidos: primeiro, a localização em um a comarca determinada,
naquela em que alguém nasceu ou se estabeleceu — por exemplo,
em virtude de um a colonização — ; segundo, a profissão de
camponês, lavrador, agricultor ou pecuarista; terceiro ,a pro­
priedade da terra. Pode-se ver que é relativamente secundário
que o camponês “viva no campo” ou “vá ao campo” — como é
freqüente em Castela, em Andaluzia, em grande parte da França
— , a partir da povoação rural em que esteja. E a convivência
se determina por uma série de usos comuns — antes de tudo os
usos agrícolas, o que se costuma chamar em cada região “uso
de bom lavrador”, mas também tradições, divertimentos, cantos
e bailes, costumes, alimentos — . Por último, é característico do
mundo camponês o ser composto de poucos indivíduos, conhe­
cidos pessoalmente, dos quais se sabe os nomes, entre os quais
se percebe imediatamente o “forasteiro” ; é, pois, um mundo
fechado, finito e definido, e além disso conhecido por todos.
Mas ainda há mais: êste mundo mínimo se articula com
outros semelhantes, com os quais entra em comunicação infre-
qüente e excepcional — festiva ou econômica, ou ambas ao
mesmo tempo: a feira — ; são as demais unidades rurais, as
outras povoações ou aldeias, que são outras, mas que possuem
264 JULIÁN MARIAS

uma afinidade essencial, princípio da comarca ou da região —


segundo os casos — . E diante a isto, o outro, o mundo alheio e
em princípio oposto, a cidade. A cidade que pode estar local­
mente próxima, vitalmente é muito distante, porque está definida
por outra forma de vida e por conseguinte por outro tipo hum a­
no. Daí o não ser fácil a “instalação” ; o camponês sente-se
cheio de desconfiança em relação à cidade, vê-se nela como
“galinha em curral alheio”, olha com desconfiança e hostilidade
o homem urbano, pensa que vai ser por êle enganado e escar­
necido. Na cidade, por sua vez, é freqüente o desdém pelo
“m atuto”, ou “caipira” — nomes significativos — , e se propende
a considerá-lo como um tipo cômico, desajeitado e embaraçado,
que se move na cidade como uma ave aquática sôbre o solo.
Esta situação nada tem de comum com as rivalidades e hostili­
dades entre homens rústicos, fundadas precisamente na comu­
nidade de pressupostos e no que, se entendem muito bem. Daí
o êrro abstrato de considerar como uma classe única — os pro­
letários — “operários e camponêses”, cuja distância social é
enorme, muito maior que entre o peão agrícola e o proprietário,
ou os diversos habitantes da cidade ,7)
Tôdas as sociedades são, em maior ou menor proporção,
rurais; a função recíproca do urbano e do campestre nas mesmas
é uma questão delicada e que importa muitíssimo entender. Há
cidades de costas voltadas para o campo; outras orientadas para
êle. Em algumas comarcas se dão graduações desde a cidade
rural até a cidade pura, que ignora o campo, o nega, e no má­
ximo entra em relações com êle mediante a “excursão” .
Falta ainda tratar das cidades mesmas. A razão de que
as cidades sejam decisivas em tôda sociedade, até naquelas de
predomínio rural, está no fato de serem o órgão da socialização
ou, se se prefere, da sociabilidade. Uma sociedade é sociedade
e, sobretudo, é uma graças a suas cidades. E as formas destas
refletem admiràvelmente a estrutura social. Não pretendo fazer
aqui uma morfología ou tipologia das cidades; assinalarei apenas
uns tantos pontos de vista metódicos que se orientam nessa dire­
ção ou, de um modo mais restrito, na da interpretação do que
significam as cidades dentro de uma unidade social.

(7) Veja-se meu artigo “El campasino y su mundo” em Aquí y


ahora (Obras, III).
A ESTRUTURA SOCIAL 265

O primeiro ponto de vista a considerar é o tamanho das


cidades, que tanto preocupou os gregos, sobretudo os autores de
tratados políticos ou politeíai. Abaixo de um certo tamanho,
a cidade não é possível, porque não atinge o desenvolvimento,
a diversificação de tipos, profissões e serviços que a vida urbana
requer. Se, pelo contrário, ultrapassa certa magnitude, a unidade
se tom a problemática. Naturalmente, não se trata de constan­
tes: o limite da cidade antiga, na qual se caminha a pé, no m á­
ximo a cavalo, em liteira ou em carro, não coincide com o da
cidade moderna, com meios de transporte freqüentes e rápidos;
indubitàvelmente, êstes meios de fato são muito limitados,
porque sua multiplicação os complica e os dificulta: as grandes
cidades atuais tendem a se dividirem em bairros, dentro
dos quais a vida se dá, apenas com saídas esporádicas até outros
alheios. Dentro de um país, é importante a graduação das mag­
nitudes das cidades — Alemanha, Itália, os Estados Unidos —
ou a descontinuidade em que se passa de cidades pequenas ou
medianas a algumas imensamente maiores — Paris na França, a
grande distância de tôdas as demais, Viena, Buenos Aires, Rio
e São Paulo no Brasil, inclusive M adrid e Barcelona na
Espanha — .
O critério social para distinguir entre grandes e pequenas
cidades é que os habitantes delas sejam conhecidos individual­
mente entre si ou não; que a rua seja um mundo conhecido —
ou pelo menos em grande proporção — , em que se sabe quem
é cada um, ou no máximo baste perguntar para o saber, ou
então um âmbito de desconhecidos. Ainda mesmo nas cidades
relativamente grandes funciona a relação de conhecimento mútuo
em grupos parciais: a aristocracia, os intelectuais e artistas, a
grande burguesia, os moradores de um bairro. Quando se passa
de certa magnitude, entra-se inexoràvelmente no anônimo,
inclusive dentro das minorias, a não ser exíguas e especialmente
qualificadas.
Um segundo ponto de vista é o da clausura das cidades. O
caso extremo é o da cidade murada. Porém mesmo sem mura­
lhas, a cidade pode estar fechada e isolada, ou porque esteja
“absorta” em si mesma — como, segundo Ortega, o M adrid de
266 JULIÁN MARIAS

Felipe IV ou o de La Verbena de la Paloma (*) — , ou porque


fora dela haja um contorno inóspito e pouco atraente. Mesmo
as grandes cidades dos Estados Unidos são muito mais abertas
do que as européias e as sulamericanas. Como extremo oposto
à cidade m urada está a pequena cidade norteamericana — assim
em New England — , que propriamente “está no campo”, onde
a vegetação penetra por tôdas as partes, que pode ser interpre­
tada igualmente como uma cidade cheia de jardins comuni­
cantes ou como um parque ou campo com pequenas casas; de
contorno indeciso, que se prolonga com menor densidade de
vivendas ao longo das estradas e se une quase tão impercepti-
velmente a outras cidades que estas se apressam a avisar em uma
tabuleta: Welcome to X ou You are entering Z.
Em terceiro lugar, as cidades apresentam diversas estru­
turas internas. O característico das cidades mediterrâneas clás­
sicas, também das medievais de tôda Europa, embora em me­
nor grau, foi o estarem definidas por um centro, quase sempre
uma praça — ágora, foro, praça pública, praça maior — ; são
cidades cefálicas, se cabe a expressão, com uma cabeça em que
se condensa a vida e em que, sobretudo, a cidade inteira se faz
presente a si mesma. Quando é muito grande, se pode dar uma
multiplicação dêsses centros: é a cidade policéfala, em que há,
por exemplo, duas, três, quatro praças, em tôm o das quais a
vida se organiza; às vêzes essas praças são simplesmente centros
de partes da cidade, com diversidade apenas topográfica; em
certas ocasiões implicam uma diferenciação de funções: pode
haver um centro da vida mundana, um centro econômico, talvez
um terceiro popular, possivelmente um outro político; final­
mente, existem cidades acéfalas, nas quais falta o centro da con­
vivência, e esta é inorgânica; são cidades com menos unidade
e, sobretudo, com menor publicidade; cidades sem “Praça
M aior”, geralmente minimamente políticas — as cidades dos
Estados Unidos em sua maioria — . Algumas vêzes a organi­
zação da cidade não se faz à volta de praças e sim linearmente,
ao longo de ruas centrais: é a “Rua M aior” — Main Street das

(*) Trata-se de uma pequena peça musicada — sainete ou zarzuela


—, de 1894, muito popular na Espanha. A letra é de Ricardo de la
Vega, e a música de Tomás Bretón (Nota do autor para a tradução
brasileira).
A ESTRUTURA SOCIAL 267

cidades americanas — das cidades sem cabeça mas com uma


espinha dorsal, vertebradas ou cordadas, possivelmente com
algumas praças secundárias como centros subordinados, por
exemplo nos extremos da rua principal (assim Sória na Espanha).
Um quarto aspecto é a organização social das cidades, isto
é, a distribuição urbana das classes sociais. Existem bairros
precisamente definidos, como na Idade Média ou no Renasci­
mento: bairro nobre, bairros ou ruas gremiais — bordadores,
latoeiros, curtidores, ferreiros, tecelães, lupanares — , bairro
judeu ou ghetto. Estas frações relativamente isoladas e indepen­
dentes se encontram em certos pontos: catedral, mercado, praça,
e só ali se vêm e convivem. Porém, embora persistindo uma,
diferença de bairros de diferente nível social, há uma convivência
nos mesmos de várias classes sociais; assim, no século X IX foi
freqüente que se estratificassem em planos horizontais, isto é
nos diversos andares das mesmas casas: no sub-solo de um edi­
fício vivia um médico — em favor da clientela para quem era
penoso subir escadas — , no principal um aristocrata, no se­
gundo um notário, no terceiro um funcionário, no sótão uma
costureira, e nos cômodos interiores um sapateiro e um cordoeiro
ou um aguadeiro. Nos últimos tempos se encaminhou para uma
divisão por bairros, e as diversas classes sociais só se vêm excep­
cionalmente, já não convivem nessa forma mínima do encontro
e do cumprimento na escada ou à porta da casa comum — as
conseqüências políticas e sociais disto são especialmente graves
— . (Muito recentemente, quando as dificuldades de encontrar
m oradia forçaram as pessoas a viverem onde a encontram, em­
bora fora de seu gôsto ou conveniência, um a nova mescla de
classes sociais se produziu, porém com o caráter de confusão
inorgânica e ao acaso. E para a época estritamente atual é pre­
ciso levar em conta as cidades nas quais não se reside e que
estão destinadas a funções de convivência — centros industriais
ou financeiros, escritórios públicos e privados, casas de espe­
táculo, comércio — , ao lado de bairros ou cidades residenciais,
dedicadas apenas à vida privada e familiar — assim os suburbs
das cidades norte-americanas — , o que dá origem a um a cisão
das agrupações urbanas e a um constante tráfego entre as duas
partes das mesmas — os commuters dos Estados Unidos, que se
dirigem pela manhã à cidade grande e voltam à tarde, depois do
trabalho, à casa de madeira com gramado e árvores de seu
268 JULIÁN MARÍAS

suburb, a dez, vinte ou cinqüenta milhas talvez — . Na Espanha,


à medida em que algo análogo se passa, é justamente o contrário:
o funcionário que presta seus serviços em um a cidade pequena
vive em M adrid ou em Barcelona e vai trabalhar no lugar de
seu “destino”; é o se chamou originàriamente “guadalajarismo”,
e, à medida em que as comunicações foram melhorando, se vai
estendendo até Sória, Saragoça, Oviedo, Murcia ou Granada).
Nas cidades em que estão centralizados os serviços de todo
gênero, as diferentes partes urbanas entram obrigatòriamente em
relação. E ra o que se dava com as catedrais na Idade M édia e
em bôa parte dos séculos modernos; foi o caso normal do co­
mércio, centralizado em poucas ruas onde se comprava; dos
espetáculos, concentrados em pequeno número de locais pró­
ximos; dos Bancos — há poucos anos todos os de M adrid esta-
vam na calle de Alcalá — ; dos cafés acumulados em certas
partes da cidade. Porém em outras estruturas urbanas, e a elas
se tende de modo crescente, tôdas essas funções se dispersam:
multiplicam-se as igrejas, deixa de haver um a à qual afluem
todos os fiéis e se vai, às pressas, à mais próxima; pode-se
com prar quase tudo n a sua própria rua ou na imediata; vai-se
ao cinema do bairro, onde são passados os mesmos filmes que
em dez outros; freqüenta-se o café onde se pode ir caminhando,
sem necessidade de transportes públicos; utiliza-se os serviços
da sucursal mais próxima do Banco, que as estabeleceu em tôdas
as zonas da cidade.
Por último, a partir da época industrial, deve-se levar em
conta as cidades com um a periferia proletária, que em alguns
casos é simplesmente de caráter operário, em outros tem um ca­
ráter de regressão e degenerescência social, e finalmente em
outros ainda, de bairros “marginais” não assimilados ao con­
junto social urbano: bairros judeus, negros, índios; de imi­
grantes incorporados deficientemente; de discrepantes ou ven­
cidos. São as formas diversas de arrabalde, subúrbio — no
sentido espanhol recente — , banlieue, slum.

57. O tempo e a vida quotidiana.

O caudal de tempo que cada homem possui vai sendo inver­


tido nas ocupações da vida quotidiana. Uma forma de vida
coletiva é, entre outras coisas, uma maneira peculiar de consu-
A ESTRUTURA SOCIAL 269

mir o tempo de que se dispõe. E a porção dêsse tempo e seu


uso revelam a pretensão do homem em cada sociedade. Sua
porção? — poder-se-á dizer — . Não é esta invariável todos os
dias, exatamente vinte e quatro horas? Poucos exemplos mos­
tram tão claramente quanto êste, como no homem nada é natural
— entenda-se, nada é só natural — , e que o humano reclama
sempre uma intervenção livre e imaginativa da pessoa, que
transforma os “dados” físicos e faz dêles ingredientes de uma
vida pessoal.
Os homens costumam se queixar — pelo menos em nossa
época — de falta de tempo; em compensação, sabemos de outros
que sentiram a penosa necessidade de “m atar o tempo” que,
pelo visto, lhes sobrava e lhes era um estorvo. Vinte e quatro
horas, segundo parece, não são sempre o mesmo tempo. Desde
logo, não é indiferente que o tempo esteja ou não quantificado
no sentido estrito; em formas de vida primitivas, o tempo se
divide em duas partes, dia e noite; e a segunda tem significado
apenas para o descanso; a primeira, por vez, se divide e se
articula segundo a altura do sol sôbre o horizonte, porém muito
vagamente. Entre os povos antigos e medievais, ainda hoje na
vida do campo, as horas são aproximadas e impõem apenas uma
elástica “configuração” ao dia, que não chega a ser estrita quan­
tificação. E sta só aparece com os relógios exatos, quando cada
hora se abre e lança sôbre nós, como uma granada, seu con­
teúdo terrível: sessenta minutos, cada um dos quais encerra — e
isto é simplesmente pavoroso — sessenta segundos. A partir
daí o tempo, em lugar de fluir mais ou menos depressa, ou
então nos banhar vagaroso no remanso do deleite, ou tom ar-se
compacto e resistente na espera, se converte em um a magnitude
mensurável e exata que chega, passa, se acaba, se desfaz e nos
faz viver sobressaltados e descontentes.
A “hora fixa”, a interferência das séries de ações, a neces­
sidade da simultaneidade, isto é o grave. Que a minha chegada
à estação tenha que coincidir com a pressão do vapor nos^ ém­
bolos da locomotiva; que tenham de ser simultâneos minha
chegada ao escritório e a vertical do ponteiro do relógio; que
os aplausos no teatro tenham que preceder a passagem do últi­
mo ônibus que me conduzirá à minha casa. Creio que as estra­
das de ferro foram os fatores da primeira quantificação do
270 JULIÁN MARÍAS

tempo humano; as conseqüências foram — e continuarão a


ser — tremendas.
Não é apenas isto. Do tempo de que dispõe — mais ou
menos quantificado — , o homem faz duas partes: o que con­
sidera seu e o que lhe parece alheio; aproximadamente, esta
divisão coincide com aquela introduzida por Ortega a respeito
das ocupações: trabalhosas e felicitárias. O tempo que cada
um “vende” para viver não é “seu”; é tempo “alienado”, que
se sente como perdido; o “próprio” é o resto livre, daquele que
se pode dispor para o que se queira. Em que proporção em
cada sociedade se dividem ambos, em cada forma de vida, em
cada classe? Salvo formas de trabalho excessivamente opressor
— assim como o trabalho forçado dos escravos, galeotes, presi­
diários, ou de formas econômicas excepcionalmente penosas — ,
sempre resta uma margem “livre”. Porém a decisão de se um
tempo é livre ou não, depende de como é vivido subjetivamente,
isto é, da pretensão vital. É o grande problema do “ócio” —
palavra quase inútil no espanhol; dever-se-ia perguntar sèria-
niente por que — , o loisir ou leisure, do otium latino (oposto
ao negotium) ou da skholé grega (de onde vem, não as férias
mas sim a escola). Ao homem do povo parecem “ócio” muitas
ocupações que não são seu trabalho — freqüentemente todo
trabalho que não é muscular — ; desde logo, as ocupações da
aristocracia, que é interpretada como “classe ociosa”, embora
ela mesma considere que êsses afazeres constituam uma tarefa
penosa, um a corvée, ainda que de fato exijam grande esforço.
Pelo contrário, talvez o escritor, o artista, o investigador, ainda
que sinta a fadiga e necessite exercer violência sôbre si para
levar a cabo sua obra, não a vê como “trabalho” no sentido de
tempo alienado, e sim como o que é mais seu, e lamenta não
ter tem po. . . para isso.
Em nossa época, entre o tempo próprio e o alienado ou
vendido utilitàriamente para se poder subsistir, deve-se levar em
conta um a terceira fração que poderíamos chamar o tempo de
ninguém; e êste absorve uma parte considerável de nossas
vidas, as mutila e as recorta, as diminui. É o tempo que “se
perde”: em primeiro lugar, em se deslocar — não viajar, nem
passear, que são duas formas de “inverter” o tempo — ; as
horas e horas consumidas diàriamente nos bondes, nos ônibus,
nos metrôs, nos trens suburbanos; as que desaparecem diante
A ESTRUTURA SOCIAL 271

das bilheterias dos teatros e cinemas; os infinitos minutos que


se desvanecem diante do disco vermelho dos cruzamentos; as
horas inumeráveis aniquiladas nos trámites burocráticos, que
são a forma atual dos sacrificios humanos, nos quais a vítima
é diretamente o tempo, substância da vida biográfica. E esta é
a razão de que, depois de ter sido conseguida em todos os lugares
a redução do dia de trabalho, quando se passou da labuta de
sol a sol às onze ou dez horas, depois à quase mítica oito horas,
por último às quarenta horas semanais ou menos talvez, se oiça
uma perpétua queixa de falta de tempo.
A distribuição do dia é um dos fatores que mais sutil e
profundamente condicionam um a forma de vida. Madrugar ou
tresnoitar, comer a tal hora ou outra, concentrar o trabalho em
uma primeira parte do dia para deixar uma livre margem ao
fim do mesmo, ou então fazer com que o trabalho se estenda
menos premente e com descansos, da m anhã à noite; tudo isto
revela um a pretensão média dominante em uma sociedade, um
repertório de desejos, uma idéia do que é a vida feliz. O homem
que se levanta ao amanhecer, corre pressuroso ao seu trabalho,
o interrompe por meia hora, um a no máximo, para fazer um al­
moço rápido, depois se esforça para term inar às cinco da tarde
e ficar com um fragmento de dia exclusivamente seu, possui
outra contextura que aquêle que prefere permanecer n a cama
até que o dia se levante de todo, ir à sua casa almoçar lenta e
copiosamente, conversar à sobremesa, talvez dormir um pouco
a sesta, voltar ao local do trabalho outra vez, terminá-lo já à
noite, sem tempo de iniciar qualquer outra atividade a não ser
passear, tomar um aperitivo com os amigos, assistir um cinema.
De quanto tempo livre dispõe o homem médio de cada
grupo em uma sociedade determinada? Em que o inverte? O
que lhe parece “perder o tempo” , e o que, pelo contrário, apro­
veitá-lo? São estas as perguntas que se deve responder em cada
caso. E precisar também se em um a época concreta essa
articulação da vida quotidiana que está vigente corresponde às
apetencias autênticas dos indivíduos, ou se êstes a sentem como
uma imposição coletiva, como um a organização que perdura por
inércia e que se desejaria mudar. Qual é o lugar sentimental
das “diversões” oficiais, do passeio, da tertúlia, do não fazer
nada a não ser, por exemplo, tom ar sol. Quantas horas de so­
lidão o homem possui, quantas a mulher? O que representam
272 JULIÁN MARÍAS

o jôgo, a leitura, o esporte, o galanteio? Qual é o lugar do


aborrecimento em um a sociedade? E éste, a que conduz? Talvez
a fazer ciência, ganhar dinheiro, conspirar, ou possivelmente a
tomá-lo como a própria condição da vida. P ara sermos sinceros,
teremos que reconhecer que a sociologia e a historia não nos
permitem, até hoje, responder suficientemente estas perguntas
em relação a quase tôdas as sociedades, incluindo a nossa
própria; e que sem as responder não sabemos o que significou
para êsses homens “viver”, menos ainda “ser feliz” .

58. As idades e a trajetória vital.

Não só o tempo de cada dia, o da vida quotidiana, pode


ser ordenado de diversas maneiras; o tempo total de que o
homem dispõe em sua vida terrena se ordena de maneiras dife­
rentes, e esta sua disposição interna afeta a melodia vital em
seus estratos mais profundos. Desde logo, a trajetória vital pode
ser mais ou menos longa; não apenas de fato e em cada indivi­
duo, como também estatisticamente e como determinação da
estrutura empírica da vida. Em bora a morte seja certa e a hora
incerta, conta-se — vaga e inseguramente, mas com firmeza —
com uma duração aproximada de nossa permanência neste
mundo. Os homens vivem, de um modo geral, tantos anos;
podem m orrer antes, porém sente-se que morreram “antes do
tempo”, que sua morte foi prematura; podem também morrer
depois, porém se pensa que é uma sorte ou dom inesperado que
não lhe é devido, com o qual não se pode contar. A economia
vital se ajusta a um horizonte provável e opera em função déle
e — repito — de sua insegurança.
Mais acima (11,11) me referi à repercussão sôbre as gera­
ções do fato comtemporâneo da longevidade média humana.
Em cada vida individual e nas relações interindividuais reper­
cute análogamente. O horizonte da vida, que há bem pouco
tempo se fechava aos sessenta anos, hoje se dilata, pelo menos,
quinze ou vinte anos mais. E sendo a trajetória vital mais longa,
é mais “distendida”, isto é, possui outra curva, outra figura di­
ferente; e suas articulações, as idades, variam de duração abso­
luta e de função no conjunto.
Em cada sociedade há uma idade que é considerada adulta
— e costuma ser diferente para os dois sexos -— . A infância
A ESTRUTURA SOCIAL 273:

pode ser muito rápida ou bastante longa; a juventude também.


Mas não seria suficiente uma simples determinação cronológica
de sua duração; ter-se-ia que precisar tôda uma série de di­
mensões reliativamente autónimas. Por exemplo, em algumas
sociedades a iniciação sexual é precoce — pelo menos é mais
precoce do que na época anterior ou na sociedade vizinha — ;
pode porém acontecer que a dependência econômica do jovem
em relação a seus pais se prolongue mais; se de um lado, pois,
parece que a infância se abrevia, de outro, pelo contrário, se
dilata. Talvez o jovem se sinta apto para ocupar postos im­
portantes, sente-se porém justificado por longos anos não fa­
zendo obra intelectual, literária ou artística importante, madura,
adulta — talvez seja esta a situação nos últimos anos — ; pode
ocorrer que desde muito cedo o jovem tenha que enfrentar os
perigos da guerra, porém um sistema de autoridade senatorial
o exclui até bem tarde da intervenção na vida pública.
A juventude é às vêzes fugaz; ou então se estende elástica­
mente durante decênios; e isto pode ser — e é preciso deter­
minar do que se trata em cada caso — vitalidade, flexibilidade,
necessidade de perpétua provisoriedade. Com a maturidade
lidarizar-se com uma atitude ou forma de vida, insegurança e
necessidade de perpétua provisioridade. Com a maturidade
acontece algo semelhante: o homem se instala nela longos anos,
como em uma idade que simula uma ilusão de permanência e
estabilidade, ou pelo contrário se lhe apresenta como a anuncia­
ção de próxima e inevitável decrepitude. E a velhice, por últi­
mo, funciona algumas vêzes como simples espera insubstantiva
da morte, enquanto que em outras sociedades se converte em
um a idade com atributos positivos, segura de si mesma, talvez
orgulhosa e cheia de esperança.
O esquema das idades afeta ainda mais profundamente a
mulher. Do ponto de vista biológico se admite que a mulher
é mais precoce que o homem e que seu envelhecimento é mais.
rápido; porém, mesmo que seja assim efetivamente, parece
problemático que se trate apenas de um ritmo biológico; será,
talvez, uma estrutura vital traçada por uma situação social con­
creta, embora não reste dúvida qué fundada nas condições bio­
lógicas. De fato a infância se prolongou: as mocinhas de
quatorze anos, que em outros tempos muito freqüentemente já
estavam casadas, hoje, salvo exceções, nos parecem meninas..
274 JULIAN MARIAS

A juventude, em compensação, que há um século terminava


pouco depois dessa idade, dura incrivelmente mais — ainda
que a expressão sôe insólita, ouve-se dizer com perfeita natu­
ralidade “uma moça de quarenta anos” , enquanto que o ouvido
não protesta mas sim a intuição quando se fala de “um ancião
<le sessenta anos” — . A mulher adquiriu, também, o que
muito raramente teve: uma maturidade duradoura, análoga à
do homem, na qual se instala e que tem uma significação de
plenitude, não de iminente decadência. Finalmente, a mulher
vive mais que o homem, em média três ou quatro anos.
Isto tudo significa que se alterou profundamente o “argu­
mento” da vida feminina para poder sustentar a nova trajetória.
Em muitas sociedades a mulher viveu em absoluta subordinação
e dependência até o momento em que começou a funcionar como
mulher; o período de vigência como tal era nessas situações
muito curto, teóricamente talvez oito ou dez anos, de fato muito
menos: o casamento precoce — quase sempre com homens de
muito mais idade — , a maternidade imediata, repetida a inter­
valos muito próximos, tudo isso impunha uma “jubilação” social
muito rápida, acompanhada na maioria dos casos por um aban­
dono da pretensão especificamente feminina e pela decadência
física (8). Amiúde a mulher ficava reduzida a uma fulguração
de três ou quatro anos, desde seu aparecimento na sociedade até
uns mêses depois do casamento. Deve-se acrescentar que por
longas épocas, sobretudo em algumas sociedades, a maternidade
dizimou as mulheres, pelo menos as expôs a enfermidades e
achaques em idade que hoje consideramos juvenil.
Tôdas as engrenagens da convivência ficam afetados por
tudo isso. Somente a prolongação da juventude e da m aturidade
plena da mulher pode fornecer a base real suficiente para o
funcionamento normal do matrimônio monogâmico entre pes­
soas de idade próxima, isto é, em pé de igualdade de nível. Nas
sociedades em que a mulher se consome depressa, a solução
mais freqüente é uma grande diferença de idade entre marido
e mulher; mas isto tem as seguintes conseqüências: impossi­
bilidade do casamento precoce para o homem e, portanto, exis­
tência de um longo tempo de “vida de solteiro”; marcada su­

(8) Leia-se no livro de Gilberto Freyre Casa-Grande & Senzala


-que é relatado do Brasil colonial e da primeira metade do século XIX.
A ESTRUTURA SOCIAL 275

bordinação da mulher a um marido muito mais velho e experi­


mentado; falta de comunidade de “nivel histórico”, por per­
tencer a diferentes gerações; menor probabilidade da “amizade
inerente ao casamento, não só pela diferença de idade como
sobretudo pela falta de maturação independente da mulher,
quando passa da infância ao casamento quase sem transição.
Nossa época se situa em um extremo de “durabilidade”
da mulher e de “paralelismo de idade” entre os sexos; seria
porém um êrro supor que tôdas as sociedades anteriores se
ajustaram ao mesmo esquema; as diferenças são muito impor­
tantes, e sòmente uma mensuração meticulosa de cada uma das
idades e sua articulação entre si pode permitir reconstruir a
figura efetiva da trajetória vital.

59. A morte e o valor da vida

Em bora a morte possa parecer um elemento constante e


invariável, sendo como é inevitável para todos e têrmo da vida,
dá-se absolutamente o contrário: é difícil encontrar outra rea­
lidade a respeito da qual variem tão profundamente as interpre­
tações e que condicione em tal medida a perspectiva em que
as demais se apresentam. As razões pelas quais a morte é
previvida de diferentes maneiras são várias. Uma delas sua
freqüência, isto é, aquela com que aparece diante de nós; todos
os homens morrem, e a morte se dá, portanto, uma vez em
relação a cada um; como a vida média na Europa em redor
de 1500 era calculada em vinte e dois anos, e nos Estados Uni­
dos em 1953 em sessenta e nove, isto significa que a morte feria
antes com freqüência mais de três vêzes maior; se em lugar
de tomar as condições européias se compara com as da Índia
ou da China, que em tôdas as épocas tiveram enorme m ortali­
dade, se vê a que ponto pode se mostrar diversa a vivência
do fenômeno m ortal como algo que acontece no mundo em
que vivemos. E isto leva à modificação da consciência de “cer­
teza” da morte: em certas formas de vida, ela é sempre imi­
nente; conta-se com ela como podendo sobrevir a qualquer
momento, como algo que nos pode alcançar quando menos
esperemos, a nós ou às pessoas que não nos são indiferentes;
em outras situações, pelo contrário, a morte parece mais lon­
gínqua; podemos dizer que é certa, porém em cada caso e em
276 JULIÁN MARÍAS

cada momento improvável; certa e inevitável, mas concreta­


mente inverossímil. A determinação do grau de probabilidade
com que a morte é vivida em cada sociedade, é um requisito
imprescindível para entender essa forma de vida e tôda uma
série de comportamentos humanos.
A mortalidade infantil elevada, o desaparecimento de mi­
lhares de pessoas por fome, epidemias, inundações e qualquer
gênero de desastres; a facilidade do falecimento “inexplicado”,
por enfermidades vagas que não são localizadas, são fatores que
levam a uma fácil aceitação coletiva da morte como algo que
pertence à própria condição da vida em seu pormenor, por­
tanto, dentro de sua tram a quotidiana, não como um pano de
fundo que a limita no futuro. Em outras formas de vida, porém,
a morte está mais ou menos “localizada”, contida dentro de
certas fronteiras e as grandes calamidades parecem descarta­
das: espera-se que não haja fome, nem peste, nem terremoto,
nem — em algumas fases da história — guerra. A morte se
racionaliza, se reduz a medida; as companhias de seguros a pre-
vém e a calculam estatisticamente; e até para cada indivíduo
avaüa-se sua probabilidade: uma estipulação de sua idade e um
reconhecimento médico fixam a importância da apólice que se
deve pagar, isto é, a verossimilhança da morte. Explica-se cada
óbito, sabe-se — ou se pretende saber, pelo menos — porque
m orreu cada homem; da vaga “dor de costas” que acabava
com tantas vidas há meio milênio e mesmo há um par de
séculos, às precisões do diagnóstico atual há um longo caminho;
cada vida é definida incrivelmente melhor; luta-se com a morte
como se em princípio fôsse possível vencê-la; onde antes deixa­
va-se a foice trabalhar, agora são tentados remédios extraordi­
nários: operações, transfusões, transplantes de órgãos; os mé­
dicos vôam de avião até pacientes remotos; êstes acorrem de
continente a continente em busca de hospitais famosos; os “pul­
mões de aço” vão e vêm céleremente, competindo em velocidade
com a morte. E como conseqüência disso, esta parece sempre,
e cada vez mais, acidental e violenta, em vez de ser inevitável
e natural. Ainda não podemos medir a transformação que isto
produzirá na sensibilidade vital, no modo de sentir-se instalado
na vida. Nós os homens de hoje, pelo menos os que já somos
adultos, não nos sentimos muito afetados, porque estamos sub­
metidos às vigências anteriores — do mesmo modo com que a
A ESTRUTURA SOCIAL 277

segurança da aviação está minada subjetivamente pelas recor­


dações de um tempo ainda muito próximo, em que voar era
simplesmente dispor-se a cair — ; dentro de poucos decênios,
se outros fatores não vierem alterar esta situação, ver-se-á a
enorme transformação operada. E faço esta restrição porque a
ameaça de guerra, e sobretudo das armas atômicas, está intro­
duzindo nas mentes a noção da probabilidade da morte com
uma fôrça desconhecida no Ocidente há séculos; talvez se trate
de um a compensação necessária para a boa economia da vida.
M as não se trata apenas da freqüência ou probabilidade da
morte; uma vez que ela se dá ou na medida em que ameaça,
o que faz o homem com ela? Ao longo da história, a ocupação
hum ana com a morte varia em intensidade e em conteúdo. Não
se pense na “preparação para a morte” mas sim em coisas mais
triviais. Por exemplo, nesse tipo de mulher espanhola, tão fre­
qüente no século passado e que perdurou por êste a dentro, que
se poderia chamar “pré-viuva” , que passava a vida antecipando
a morte de seu marido, prevendo-a e contando com ela. Pense-
se igualmente na reação diante da morte alheia: cabalas a res­
peito da data em que se dará, toque de finados na igreja, ve­
lório, entêrro com cerimônia coletiva, ritos funerários, luto
longuíssimo e tétrico com suspensão da vida social e quase da
vida privada. Compare-se êstes usos com a redução ao mínimo
da presença e do aparato da morte, quase sitiada em algumas
sociedades — é a tendência dominante nos Estados Unidos — ,
onde mal se a aponta, se abreviam trâmites, se localiza o luto
à função de traje de cerimônia fúnebre, sem repercussão sôbre
a vida quotidiana, tende-se a “norm alizar” a situação logo que
a morte se tenha dado — pelo menos na dimensão da convi­
vência e, portanto, de sua repercussão social — . Desde a mu­
lher indú, para quem a morte do marido significa o fim de
sua própria vida na fogueira, até a situação daquele que desa­
parece quase “pé ante pé”, inadvertidamente e sem perturbar
a ninguém, a distância é tão grande como só o pode ser no
humano, isto é, no histórico.
Isto é suficiente para o que aqui me interessa: m ostrar que
um a estrutura social está parcialmente definida pela realidade
que a morte possui dentro dela e assinalar quais são os pontos
de vista a partir dos quais se a deve considerar para determinar
sua função concreta. E um estudo minucioso disso revelaria
278 JULIÁN MARÍAS

que as diferenças entre sociedades, muito próximas no restante,


podem ser grandes e, sobretudo, que a variação é às vêzes muito
rápida dentro de um a sociedade, perceptível talvez de um a ge­
ração à seguinte.
Em conexão com isto, deve-se acrescentar uma palavra
sôbre um tema muito próximo, mas que se deveria tom ar inde­
pendentemente e não em estrito paralelismo: o valor que a
vida humana tem em cada sociedade, portanto a resistência
que nela provoca a ação violenta, sobretudo quando com caráter
individual, como por exemplo o crime; mais ainda quando não
é algo fortuito e acidental mas simplesmente deliberado e volun­
tário, como a pena de morte. Em grandes períodos da história
ocidental — para não trazer exemplos mais remotos — , esta
não teve demasiada importância; foi aplicada com certa libera­
lidade, porém, sobretudo, com perfeita naturalidade, como algo
que está dentro da ordem e acêrca do qual não há porque fazer
demasiada algazarra. Não se pense sòmente em crueldade e
dureza de coração, porque o grave está no fato de que dêsse
estado de espírito participavam em certa medida as vítimas:
ser enforcado ou decapitado era certamente algo lamentável, que
se devia evitar se possível; um contratempo grave, um mau
trago, um revés da sorte; salvo exceções, nada mais. Tenha-se
presente as Memórias do capitão Alonso de Contreras; lembre-
se o procedimento da Santa Irmandade nos tempos dos Reis
Católicos; o hum or com que os escritores do século X V I e
X V II se referem a um a execução, tanto quando se trata da
realidade — Cartas de Jesuítas, Barrinuevo, Cartas de Madame
de Sévigné — como quando se trata de ficção — Cervantes,
Quevedo — . Enquanto o verdugo Alonso Ramplóm escreve a
atroz carta burlesca a seu sobrinho Pablos contando-lhe como
acaba de enforcar seu pai e esquartejá-lo depois, e quão galhar­
damente se portou, Victor Hugo escreve Le demier jour d’un
condamné à mort, L ara y Espronceda El reo de muerte, Dickens
subleva a opinião inglêsa contra as execuções. Lembre-se o p a­
tetismo, o lirismo, a retórica com que se antecipa, descreve e
lamenta em vários capítulos a morte na forca da ciganinha
Esmeralda, em Notre Dame de Paris, e compare-se com êste
parágrafo de Salas Barbadilho, desenlace de sua novela La hija
de Celestina, onde se conta a execução dos protagonistas: “ [A
Perico]. . . a graça tornou-se amarga; porque, dentro de dois
A ESTRUTURA SOCIAL 219'

dias, o fizeram adorno da forca, dependurando-o nela, com sa­


tisfação de tôda a Córte. Elena não o acompanhou, porque à
tarde a levaram — causando nos corações mais empedernidos
lástima e sentimento doloroso — ao rio Manzanares, onde dan-
do-lhe um garrote, conforme a lei, a encubaram ” .
Qual o valor que se confere à vida, dentro de uma determi­
nada sociedade? Com que imaginação ou com que mecânico
automatismo se pensa na morte? Isto é provávelmente o deci­
sivo, não uma simples questão de “crueldade” ou “ternura” .
O que leva a perguntar, um pouco mais sériamente, como fun­
ciona a morte no horizonte vital, qual é seu lugar e seu péso
na perspectiva das ultimidades e, portanto, como se organiza a
figura total da vida.

60. A perspectiva das ultimidades

As últimas palavras que acabo de escrever levariam talvez


a pensar que o referir-se à morte em virtude de um ato de
simples menção, sem plenitude imaginativa, a liberta de seu as­
pecto de realidade tremenda, enquanto que a consideração que
põe efetivamente em jôgo a imaginação lhe dá uma feição pa­
vorosa e angustiante. E sem dúvida normalmente é assim;
mas, a rigor, as coisas são bastante mais complicadas. Porque
o que de fato acontece é que a falta de imaginação esquematiza
a morte, a reduz a suas conseqüências — entenda-se a algumas
de suas conseqüências — e, sobretudo, a aliena, a converte em
morte de qualquer um, de ninguém determinado, e nessa mesma
medida a trivializa.
P ara bem e para mal; isto é, para lhe tirar horror e ao
mesmo tempo atrativo. Porque não se pode desconhecer que
a morte pode excercer — e muitas vêzes o fêz — uma singular
fascinação sôbre os homens. Temos que prescindir aqui, é
claro, das atitudes individuais que, como componentes de uma
estrutura social, não são relevantes; o que interessa são as
vigências nesta dimensão da vida, aquelas que cada indivíduo
encontra e que exercem sua pressão sôbre êle, qualquer que
seja sua posição pessoal; porque esta tropeça com a atitude do­
minante, da qual cada membro da sociedade, enquanto tal, par­
ticipa, embora como indivíduo singular reaja contra ela e seja
um discrepante.
'280 JULIÁN MARÍAS

Imagine-se uma sociedade definida pelo esquecimento co­


letivo da morte. Todos os homens sabem, naturalmente, que
têm que morrer, e a realidade se encarrega de o recordar a cada
passo; não obstante porém, os conteúdos da vida omitem a
morte, esta permanece exterior a êles, inconexa, como término
extrínseco da vida, “fora déla”. Em tal situação, o individuo
mais intimamente ocupado e preocupado com a morte não tem
suportes coletivos para sua atitude pessoal; na medida em que
se move entre estruturas sociais, em que põe em jôgo as molas
comuns — crenças, usos, estimativas, modos de expressão — ,
sua vida transcorre “alheia” à morte, e sòmente em virtude
de uma violência interna pode reinvidicar para si próprio um
reduto em que a morte propriamente existe; o que implica que
essa existência terá, inclusive para êle, caráter excepcional. Pelo
contrário, o indivíduo menos propenso a orientar sua vida para
a morte, cujas crenças o levam a um máximo de indiferença,
se está submerso em uma sociedade que faz da morte seu centro,
não terá outro remédio a não ser o de se haver com ela a cada
passo, e portanto, ainda que sua vocação o leve em outro sen­
tido, sua vida estará constituída, em proporção apreciável, de
diversos afazeres em tôm o ao morrer.
Porém a morte funciona em dois sentidos bem diversos,
cada um dos quais, por sua vez, se desdobra em duas possibili­
dades diferentes. A inda que de m aneira excessivamente esque­
mática, poderíamos distinguir quatro perspectivas em que a
m orte pode aparecer; indubitàvelmente são muitas mais, e êste
esquematismo é insuficiente; mas como aqui não se trata da
vida individual e sim da função da morte como ingrediente das
diversas estruturas sociais, é justamente êsse esquema o que
interessa e se tom a coletivamente operante.
A morte é um a fronteira e, portanto, tem dois “lados” :
para cá é o término ou o acabar-se da vida; para lá é, desde
logo, um mistério que se pode interpretar de muitas maneiras:
o aniquilamento, a reencarnação, diversos graus e formas de
imortalidade, a dúvida. As duas vertentes, os dois “lados” da
fronteira são inseparáveis; porém a atenção se orienta muitas
vêzes preferentemente para um dêles, em certos casos com quase
absoluto exclusivismo. Em certas sociedades o que conta é a
finiíude da vida; esta se acaba em um dia mais ou menos re­
moto, e a êsse dia chamamos o de nossa morte. Outras vêzes,
A ESTRUTURA SOCIAL 281

suposto isto, se pensa e se sente que “a vida” é só “esta vida”,


trajetória provisoria e fugaz que nos leva à outra através de uma
porta chamada morte; a outra vida exerce sucção sôbre esta, a
atrai para si e faz com que a morte não funcione como um muro
ou barreira, e sim como uma passagem — porta mais ou menos
estreita — ou como um poço negro que não leva a nada, quando
se espera o aniquilamento no outro lado da linha fronteiriça.
Não é necessário insistir na gravidade que tem, para um a forma
de vida e de convivência, o fato de ter um ou outro sinal a
crença dominante em um a sociedade: a perspectiva de todos
c de cada um dos elementos que estudamos neste livro, se altera
em função desta última vigência decisiva que volta a atuar
sôbre todo o restante e lhe dá um a concretude precisa.
E não só isso. Estas duas interpretações da morte, a cis-
mundana e a transmundana, deixam abertas, por sua vez, duas
possibilidades respectivamente: as determinadas pela conexão
da morte com a vida. Explicar-me-ei.
Partam os da atitude cismundana. A vida é finita, os dias
estão contados, um déles será o último. O que quer que faça
o homem, por fim morrerá: adoecerá incuràvelmente, sofrerá
um acidente, poderá ser assassinado. Em todo caso, o homem
viverá dia por dia, e um dêstes não terá amanhã. E sta atitude
se move sôbre a crença em um a faticidade da morte, que a faz
inevitável e independente da vida. Chamo a isto a morte cis­
mundana inconexa. Propriamente, nada tem que ver com a
vida; esta transcorre a seu modo, até que termine; talvez a
vida possa ser mais ou menos exposta à morte, mais ou menos
perigosa: um a vida que se abstém de excessos, riscos, aven­
turas, oferece menos vulnerabilidade, tom a a morte, em cada
momento, menos provável. Isto é tudo. E por conseguinte, a
vida aparece como indiferente vista a partir da morte, e esta
como “inorgânica”, isto é, não se articulando com a vida nem
tão pouco conferindo articulação alguma a ela.
Dentro da mesma atitude cismundana, as coisas podem ser
de outra maneira: Basta que se sinta a morte como algo que
forma parte da vida. Se se pensa que a vida termina positiva­
mente na morte, que esta lhe confere unidade e figura, a vida
tôda se orienta para o morrer, cada ato vital preludia um
modo de morte, o postula, o exige por um a lógica interna, não
aceita qualquer morte. Inversamente, esta volta a operar sôbre a
282 JULIÁN MARÍAS

vida anterior, a configura, a “explica” e interpreta, isto é, dá sua


verdadeira significação a cada um dos atos vitais que estavam
incompletos, inconclusos, imperfeitos, à espera de que a morte
lhes desse o último toque e a plenitude de sua realidade. Então
a vida se orienta para a morte; não no sentido de que a busque
ou procure, mas sim no de que a escolha; a vida se converte na
busca de uma boa morte, e isto, repito, em sentido cismundano.
Por isso a morte aparece como um a boa ocasião' ou oportuni­
dade, que se deve aproveitar. Ninguém expressou éste modo
melhor do que Quevedo, ao idealizar nostálgicamente a atitude
vital dos espanhóis anteriores a seu tempo:

Y aquella libertad esclarecida,


que en donde supo hallar honrada muerte,
nunca quiso tener más larga vida.
Y pródiga del alma, nación fuerte,
contaba por afrentas de los años
envejecer en brazos de la suerte.
Del tiempo el ocio fuerte, y los engaños
del paso de las horas y del dia,
reputaban los nuestros por extraños.
Nadie contaba cuánta edad vivía,
sino de qué manera; ni aun un hora
lograba sin afán su valentía (9).

(E aquela liberdade esclarecida,


que onde soube achar honrada morte,
jamais quiz possuir mais longa vida.
E pródiga de alma, nação forte,
contava como afronta das idades
envelhecer no âmbito da sorte.
Do tempo o ocio forte, e os enganos
do tránsito das horas e do dia,
reputavam os nossos como estranhos.

(9) Quevedo: Epístola satírica y censoria contra los costumbres


presentes de los castellanos, v. 34-35.
A ESTRUTURA SOCIAL 283

Ninguém contava o quanto que vivia


senão de que maneira; nem só uma hora
usava sem afã sua valentia).

Quando a morte honrada se apresenta, urge aproveitá-la


em lugar de querer prolongar a vida envelhecendo de modo
inerte, sofrendo as “afrontas das idades”, que desfiguram a
silhueta harmoniosa de um a vida bem acabada; e frente à quan­
tificação da idade, a forma, a figura, a maneira. Sòmente isto
permite entender a vida espanhola do Século de Ouro e, em
certo modo, a vida espanhola de qualquer idade, porque quando
vivemos de outra maneira nos sentimos “em falta” , privados
de nosso autêntico modo de ser.
A mesma dualidade se pode dar na atitude transmundana
diante da morte. A consideração do lado de lá da fronteira
mortal pode ser positiva ou negativa, segundo se espere ou
não; porém em ambos os casos se abrem duas possibilidades de
inconexão ou conexão com a vida terrena. Aquêle que pensa que
ao fim de tudo será aniquilado, o que quer que faça, ainda que
disso se angustie, desliga a morte da figura de sua vida, e uma e
outra são mutuamente “indiferentes” . Pelo contrário, a posição
desconfiada de Sénancour, que tanto comovia Unamuno, é ra­
dicalmente oposta: “L’homme est périssable, il se peut; mais
périssons en résistant, et si le néant nous est réservé, ne faisons
pas que ce soit une justice” (10).
E outro tanto se pode dizer da atitude esperançosa, in­
clusive da crença firme na imortalidade. Quando esta fé se
mecaniza — a isto se dá em muitas formas sociais — , a “outra
vida” parece assegurada pelo cumprimento de certas condições,
de algum modo abstratas, isto é, desligadas da figura total e
concreta da vida terrena. Se se cumprem certos requisitos —
moralidade, ritos, sacramentos, etc., segundo os casos — , será
alcançada um a vida ultraterrena, em uma ou outra forma, se­
gundo as diversas crenças; e isso com relativa independência
da vida que se levou a cabo no mundo; digo relativa, porque
se reduz aos pontos que são objeto dessa exigência a vinculação
entre esta vida e a outra. Portanto dá no mesmo ter vivido de
um modo — humano — ou de outro; é indiferente que a vida

(10) Sénancour: Oberman, lettre XC.


284 JULIÁN MARÍAS

dêste mundo haja tido ou não figura, beleza, plenitude, inten­


sidade, autenticidade, desde que se abra a porta da perdurável.
Chamo a isto a morte inconexa, porque não conhece entre as
duas vidas outra conexão a não ser um condicionamento, e em
caso algum a vida futura se apresenta como um a m aturação ou
perfeição, como uma culminância coerente desta.
Frente a esta atitude há, não obstante, aquela que afirma
essas conexões. Ainda que nas Danzas de la Muerte se vê des­
filarem todos os tipos humanos do tempo — o Papa, o Im pera­
dor, o Condestável, o Físico, o Cura, o Lavrador, a Donzela,
etc. — e são mencionados seus respectivos ofícios ou modos
de viver, a substância é igualitária e, nesse sentido, abstrata:
todos acabam igualmente, todos morrem sem distinção, sem
mais diferença que o prêmio ou o castigo, segundo tenha agido
“bem ” ou “mal”; salvo isto, à hora da morte todo demais é
indiferente, tanto dá ter sido um pontífice ou uma jovem,
cavaleiro ou labrego, tal pessoa individual ou outra diversa.
Não é êsse pressuposto que vivifica as Copias de Jorge M anri­
que, embora assinale que tudo passa, que a morte tudo destroi,
encerra e transpõe. Em primeiro lugar, a evocação de todo
êsse mundo fenecido está penetrada de seu colorido, sabor e
perfume; tudo está individualizado, vivido concretamente; é
irreparável, insubstitúível, mesmo quando perecível e destinado
a passar; daí a fruição e a melancolia que impregnam as es­
trofes:

¿Qué se fizieron las damas,


sus tocados, sus vestidos,
sus olhares?
¿Qué se fizieron las Damas,
de los fuegos encendidos
de amadores?
¿Qué se fizo aquel trovar,
las músicas acordadas
que tanían?
¿Qué se fizo aquel danzar,
aquellas ropas chapadas
que traían?
A ESTRUTURA SOCIAL 285

(O que foi feito das damas,


de seus tocados, vestidos,
seus perfumes?
O que foi feito das chamas,
dos fogos mui inflamados
de amantes?
Que foi feito do cantar,
das músicas harmoniosas
que soavam?
Que foi feito do dançar
daqueles ricos brocados
que trajavam?)

E quando Jorge Manrique vai narrar a morte de seu pai,


o mestre don Rodrigo, cuida bem de traçar seu perfil, de ex­
plicar quem o foi, de apresentar a morte como cumprimento
e coroação suprema de sua trajetória mundana, de sua biografía;
a ponto de fazer entrar em jôgo, além da vida terrena, a da
honra e da fama, e ambas são, não desprezadas nem desquali­
ficadas, mas apenas menos-prezadas (prezadas, embora menos)
ao lado da vida eterna sobrenatural; e esta se põe em íntima
conexão com a que o mestre está terminando em sua vila de
Ocaña, histórica e circunstancialmente:

Después de puesta la vida


tantas veces por su ley
al tablero,
después de tan bien servida
la corona de su rey
verdadero,

después de tanta hazaña


a que no puede bastar
cuenta cierta,
en la su villa de Ocaña
vino la Muerte a llamar
a su puerta. . .
286 JULIÁN MARIAS

(Depois de jogada a vida


tantas vêzes por sua lei
ao tabuleiro,
depois de tão bem servida
a corôa de seu rei
verdadeiro,

depois de tanta façanha


a que não pode bastar
conta certa,
em sua vila de Ocaña
veio a Morte o chamar
à sua porta. . .)

A M orte o anima concretamente, apoiando-se, em sua per-


suação e em seu convite para a grande viagem, no que Don
Rodrigo foi, quiz ser, preferiu e estimou:

No se os faga í a n amarga
la batalla temerosa
que esperais,
pues otra vida más larga
de fama tan gloriosa
acá dexáis.

Aunque esta vida de honor


tampouco no es etemal
ni verdadera,
mas con todo es muy mejor
que la otra temporal
perescedera.

El vivir que es perdurable


no se gana con estados
mundanales,
ni con vida deleitable,
en que moran los pecados
infernales;
A ESTRUTURA SOCIAL

mas los buenos religiosos


gánanlo con oraciones
y con lloros,
los caballeros famosos
con trabajos y aflicciones
contra moros.

Y pues vos, claro varón,


<tanta sangre derramastes
de paganos,
esperad el galardón
que en este mundo ganastes
por las manos;

y con esta cofianza,


y con la fe tan entera
que tenéis,
partid con buena esperanza,
que estotra vida tercera
ganaréis.

(Não vos faça tão amarga


a batalha temerosa
que esperais,
pois outra vida mais longa
de fama tão gloriosa
aqui deixais.
Em bora esta vida de honra
tampouco não seja eterna
nem verdadeira,
contudo é muito melhor
que aquel’outra temporal
perecedora.
O viver que é perdurável
não se ganha com estados
.mundanais,
nem com vida deleitável
em que moram os pecados
infernais;
288 JULIÁN MARÍAS

mas os bons religiosos


ganham-no com orações
e com choros,
os cavaleiros famosos
com trabalhos e aflições
contra mouros.
Pois vós, preclaro varão,
tanto sangue derramastes
de pagãos,
esperai o galardão
que neste mundo ganhastes
pelas mãos;
e com esta confiança,
e com a fé tão inteira
que possuis,
partí com bôa esperança,
que est’outra vida terceira
ganhareis).

E ainda com mais concisão e com dilacerado apégo, Que-


vedo exprime esta conexão da morte com a vida, em seus
sonetos amorosos:

Cerrar podrá mis ojos la postrera


sombra, que llevare el blanco dia;
y podrá desatar esta alma mía
hora a su afán ansioso lisonjera;
mas no de esotra parte en la ribera
dejará la memoria, en donde ardía:
nadar sabe mi llama la agua fria,
y perder el respeto a ley severa.
Alma a quien todo un Dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
medulas que han gloriosamente ardido,
su cuerpo dejarán, no su cuidado:
serán ceniza, mas tendrá sentido;
polvo serán, mas polvo enamorado.
A ESTRUTURA SOCIAL 289

(Venha fechar meus olhos a postreira


sombra, que me trouxer o branco dia;
e venha desatar a minha alma
hora a seu afã ansioso lisonjeira;
mas não dess’outra parte na ribeira
deixará a memória, aonde ardia;
transporá minha chama a água fria,
perdendo o respeito à lei severa.
Alma a quem todo um Deus prisão há sido,
veias que humor a tanto fogo hão dado,
medulas que hão gloriosamente ardido,
seu corpo deixarão, não seu cuidado:
serão cinza, mas terá sentido;
pó o serão, mas pó enamorado). (

E talvez de um modo mais explícito, com plena cons­


ciência da finitude da vida, mas sem que isto lhe sirva de
pretexto para renegá-la e não lhe ser solidário:

No me aflige morir: no he rehusado


scabar de vivir; ni he pretendido
alargar esta mueftre, que ha nacido
a un tiempo con la vida y el cuidado.
Siento haber de dejar deshabitado
cuerpo que amante espíritu ha ceñido;
desierto un corazón, siempre encendido,
donde todo el Amor reinó hospedado.

(Não me aflige morrer; não hei recusado


acabar de viver; e nem pretendido
alongar esta morte, que há nascido
igualmente com a vida e o cuidado.
Sinto ter que deixar desabitado
corpo que amante espirito há cingido;
deserto um coração sempre acendido,
onde todo o Amor reinou hospedado).
290 JULIÁN MARÍAS

Poder-se-á perguntar por que êste estudo termina com o


testemunho dos poetas. Interessa-me demonstrar que não se
trata de meras possibilidades e sim que essas quatro maneiras
da morte funcionar, realmente se deram em diversas circunstân­
cias históricas, que as diferentes perspectivas assinaladas não
são simplesmente imaginadas; e por isso foi mister trazer aqui a
voz dos poetas, não a dos homens de teoria; isto é, uma voz
carregada de concretude humana, expressão de uma sensibili­
dade que não é somente individual mas que descobre a pulsa­
ção oculta do tempo.
Deve-se porém ter em conta que as atitudes individuais
são muitas e muito diferentes e que nenhuma delas é suficiente
para caracterizar o que uma sociedade é. Ao lado daquilo que
cada um de nós pense, sinta e acredite, existe a vigência do
tempo, com a qual todos nós deparamos, com a qual temos
que fazer nossa vida. Como se acha nosso mundo — não
apenas nós mesmos — frente à morte, ao aniquilamento, à
imortalidade? Em que medida se desinteressa, se angustia, du­
vida, confia na vida perdurável? Com profundo acêrto, Una-
muno entitulou seu livro Del sentimiento trágico de la vida en
ios hombres y en los pueblos; porque talvez o possua um povo,
embora possam déle carecer muitos de seus homens, ou o sin­
tam apenas alguns indivíduos, estrangeiros junto a outros que
nem sequer o suspeitam. Urge investigar, com o máximo escrú­
pulo e rigor, qual é o estado, vigor e autenticidade das vigências.
Porque éste é o ponto crucial da questão, e sem que isto se
esclareça nunca se poderá pesquisar a sério um a estrutura social.
s

INDICE

Pág.

APRESENTAÇÃO .................................................................... 9
I. O tema da investigação: a estrutura social
1. Sociedade e história ..................................................... 27
2. O sujeito da história ................................................... 30
3. Regiões, nações, Europa ............................................. 33
4. Inseparabilidade de sociologia e história .................. 38
5. As estruturas sociais, definidas por tensõese movi­
mentos 41
6. O problema da “situação histórica” .......................... 43
7. Elementos analíticos e empíricos da estrutura ......... 46
8. Macroestrutura e microestrutura da história:
épocas históricas e gerações ...................................... 48

II. Dinâmica das gerações

9. Articulação das gerações ............................................... 55


10. A determinação empírica das gerações .................... 58
11. Coexistência e sucessão das gerações ........................ 62
12. As gerações e sua expressão ....................................... 64
13. Massas e minorias .......................................................... 68
14. A estrutura “representativa” das sociedadeseuropéias 71
15. O problema dos pressupostos ..................................... 76

•III. Às vigências sociais

16. A idéia de vigência ........................................................ 83


17. Limites das vigências ...................................................... 86
18. A vigência geral e as fronteiras de umasociedade 89
19. O conceito de vigência parcial ..................................... 92
20. As diversas dimensões da sociedade e a pugna das
vigências ............................................................................ 96
292 INDICE

21. A discrepância como ingrediente social ...................... 102


22. Vigência implícita e vigência explícita ................... 104
23. A relação do indivíduo com as vigências ............... 107
24. Graus e fases das vigências ......................................... 110
25. Gênese, declínio e substituição das vigências ......... 113
26. A estrutura social e sua integração pelas vigências 119
27. As crenças básicas ......................................................... 125
28. Sistema hierárquico das crenças ................................ 128

IV. Crenças, idéias, opiniões

29. Duas formas de atenuação das crenças: a volatiliza­


ção e a adesão intelectual ....................................... 133
30. Interação de idéias e crenças .................................... 138
31. O sistema da estimativa ............................................... 145
32. A ideologia dominante ou imagem intelectual do
mundo ............................................................................... 149
33. O que “se” sabe e “quem” o sabe .......................... 153
34. Os modos de difusão das idéias ................................ 157
35. A opinião e sua dinâmica .......................................... 166
36. Opinião privada e opinião pública ............................ 170

V. Pretensão e felicidade

37. A pretensão coletiva e suas versões individuais .. 173


38. As “novelas” em que se expressa a pretensão . . . . 177
39. Prazer, diversão e felicidade ...................................... 182
40. A noção de “felicidade média” em uma época ......... 186

VI. O poder e as possibilidades

41. Sociedade e Estado ........................................................ 191


42. O poder público e as fôrças sociais ........................ 196
43. A liberdade e as pressões ......................................... 200»
44. A margem de individuação ........................................ 206**
45. O sistema dos usos como facilidade e limitação .. 210
46. A riqueza e a estrutura econômica ........................ 215
47. As classes sociais e seu princípio .............................. 225
48. Labilidade das classes ................................................... 229
49. Perfil de cada uma das classes sociais e grau de ade­
são a si mesmas .......................................................... 238
ÍNDICE 293

VII. As relações humanas


50. Pessoas, homens e mulheres ..................................... 237
51. Os modelos ........................................................ 240
52. O amor ........................................................................... 244
53. Matrimônio e família ............................................... 250
54. A amizade ........................................................ 255
55. A vida social ........................................................ 259
56. As cidades ........................................................ 262
57. O tempo e avida quotidiana ...................................... 268
58. As idades e a trajetória vital ................................... 272
59. A morte e o valor da vida ......................................... 275
60. A perspectivadas ultimidades ...................................... 279

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