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OFICINA LITERÁRIA

autor do original
ALESSANDRA FÁVERO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2015
Conselho editorial  comitê editorial, magda maria ventura gomes da silva, rosaura de
barros baião, gladis linhares

Autor do original  alessandra fávero

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  rodrigo azevedo de oliveira

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  fabrico

Revisão linguística  aderbal torres bezerra

Imagem de capa  nome do autor  —  shutterstock

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2015.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F273t Fávero, Alessandra


Oficina literária / Alessandra Fávero.
Rio de Janeiro : SESES, 2014.
144 p. : il.

isbn: 978-85-60923-50-2

1. Literatura. 2. Gêneros literários. 3. Poesia. 4. Prosa.


I. SESES. II. Estácio.
cdd 808.07

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 7

1. Obra Literária e Literatura 12

A obra literária 13
Literatura: arte da palavra? 16
O que é literatura? 22

2. Texto e Discurso 36

Texto 37
A composição do discurso 40
Discurso literário e histórico 42
Texto literário e não literário 44
Linguagem especial 51
Subjetividade x objetividade 52
Forma e conteúdo: informação e criatividade 53

3. Introdução aos Gêneros Classicos:


a Diferença entre Tragédia e Epopeia 60
Considerações iniciais 61
Poética: introduzindo os gêneros clássicos 66
4. O Texto Dramático 78

Introdução ao drama: Representação da realidadee


algumas definições. 79
A teoria dramática 83
A tragédia 87
A comédia 96

5. Representação da Realidade em Verso e Prosa 104

Representação da realidade em prosa 105


Representação da realidade em verso 116
Prefácio
Prezados(as) alunos (as)

Nesta disciplina, estudaremos os conceitosbásicos que a teoria literária


proporciona para a abordagem da literatura. Veremos conceitoscom os quais
precisaremos nos familiarizar,uma vez que que fazemos referência a eles quan-
do estamos estudando a literatura teoricamente.
No Ensino Fundamental e no Ensino Médio, entramos emcontato com a li-
teratura. Quem de nós nunca leu uma obra,um livro, um romance, um poema?
Todos nós já tivemos esse tipo de contato, logo já conhecemos razoavelmente
o que vamos estudar aqui. No entanto, muito do que conhecemos está ligado
aos saberes pertencentes ao senso comum. Sendo assim, todo o nosso percurso
nesta disciplina será no sentido de aprimorar, ampliar e aprofundar o conheci-
mento que já temos sobre o fenômeno literário.
Nosso objetivo será acrescentar saberes que normalmente estão além do
que é acessível ao senso comum: conhecimentos produzidos do ponto de vista
da teoria da literatura.
Como será nosso estudo?
Primeiramente, questionaremos por que houve a necessidade de se criar
um estudo teórico da literatura: afinal, o que o senso comum sempre soube
sobre ela já não era o suficiente? A seguir, trataremos do conceito de literatura,
discutindo suas diferentes definições.
Quanto aos textos literários, abordaremos as características específicas,
tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo. Questões como lingua-
gem literária, literariedade e recursos expressivos serão tratadas ao lado de as-
pectos como originalidade, universalidade, ficção etc.
Outra discussão importante recai sobre o cânone literário, isto é, o grupo
de obras consideradas clássicas, grandiosas, indispensáveis à cultura da hu-
manidade. Tentaremos descobrir como se forma o cânone: com base em que
critérios de valor certas obras são elevadas ao status de obras-primas, enquanto
outras são menosprezadas e até esquecidas.
O próximo passo é abordar o papel da literatura na sociedade, sua função
social, isto é, as relações entre a literatura e a história, a sociedade, a cultura, as
outras formas de manifestação de arte etc.

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Por fim, chegaremos ao estudo dos gêneros literários, as formas específicas
de texto em que a literatura se manifesta: prosa e poesia; os gêneros narrativo,
dramático (teatro), lírico e ensaístico; romance, novela, conto e crônica.
Como você pode perceber, ao longo de todo o nosso percurso, será impor-
tante compararmos o nosso conhecimento prévio sobre a literatura (nosso co-
nhecimento prático enquanto leitores) com os saberes produzidos pela teoria
literária. Tal comparação é importante, pois nem senso comum nem teoria li-
terária são saberes absolutos: é do confronto entre os dois pontos de vista que
surgirão os conhecimentos que desejamos cultivar aqui.

Resumindo, os objetivos da disciplina Oficina Literária são:


•  diferenciar discurso literário e histórico;
•  diferenciar os conceitos de literatura (gênero textual) e Literatura (cânone
literário);
•  observar as relações entre a literatura e as ideologias sociais;
•  diferenciar, teoricamente, literatura e outros tipos e gêneros textuais;
•  identificar as características do texto literário por comparação a outros
gêneros;
•  verificar a presença da linguagem criativa como um dos elementos carac-
terizadores do texto literário;
•  refletir sobre a finalidade estética da literatura como fator diferencial em
relação a outros gêneros textuais;
•  identificar obra literária e literatura;
•  definir e reconhecer obra literária;
•  entender a literatura como arte da palavra;
•  diferenciar texto e discurso;
•  definir o que é texto;
•  verificar a composição do discurso;
•  diferenciar discurso literário e histórico;
•  diferenciar texto literário e não literário;
•  observar que a Literatura possui uma linguagem especial;
•  distinguir subjetividade e objetividade do discurso;
•  adentrar a forma e o conteúdo das obras, observando informação e cria-
tividade;
•  conhecer os gêneros clássicos, diferenciando tragédia de epopeia;
•  observar a poética como elemento dos gêneros clássicos;

8
•  reconhecer o texto dramático como representação da realidade;
•  estudar a teoria dramática;
•  conhecer a tragédia e sua composição;
•  verificar a comédia como forma de reflexão;
•  conhecer as formas de representação da realidade;
•  verificar que a representação da realidade em prosa se dá por meio do ro-
mance, da novela, do conto e de outras formas de narrar, como crônica e ensaio;
•  verificar que a representação da realidade em verso se dá por meio da po-
esia épica e da poesia lírica;
•  resgatar a poesia épica de Homero;
•  emocionar-se com a poesia lírica, conhecendo a tradição e a ruptura na
poesia;
•  ser capaz de identificar e empregar as características e elementos formais
do gênero lírico.

Que tal adentrarmos o mundo fantástico da literatura?

9
1
Obra Literária e
Literatura
1  Obra Literária e Literatura
Neste primeiro capítulo, definiremos o que é obra literária e qual o conceito
de literatura. Levando em consideração nossos conhecimentos práticos sobre
livros, obras e literatura, já que somos leitores e consumidores de livros e litera-
tura, examinaremos o conceito de literatura à luz da teoria literária.
Diferentes definições de literatura serão analisadas para que possamos con-
ceber o que é o fenômeno literário, discutindo as noções apresentadas e mos-
trando os pontos de contato e de distanciamento entre elas.
Por fim, faz-se necessário que você construa o seu próprio conceito de literatura.

OBJETIVOS
• Definir o que é obra literária e o conceito de literatura.
• Levar em consideração nossos conhecimentos práticos sobre livros, obras e literatura,
já que somos leitores e consumidores de livros e literatura, examinaremos o conceito de
literatura à luz da teoria literária.
• Diferentes definições de literatura serão analisadas para que possamos conceber o que
é o fenômeno literário, discutindo as noções apresentadas e mostrando os pontos de
contato e de distanciamento entre elas.
• Construir o seu póprio conceito de literatura

REFLEXÃO
Você se lembra de ter lido livros ao longo de sua vida?
Você se lembra do último livro que leu? E do penúltimo? Lembra-se de outros?
Você se lembra do assunto dos livros lidos?
Você se lembra dos temas que mais lhe agradaram?
Se você respondeu sim a qualquer das perguntas acima já é um bom começo.
Então, com base no que você se lembra acerca das obras lidas por você, tente encontrar
características comuns entre elas.
Conseguiu identificar algo comum?
Sim? Excelente.
Faça anotações acerca do que se lembrou em um cantinho do seu material e guarde-as
para futuras reflexões, pois elas serão úteis logo mais, quando estivermos refletindo sobre o

12 • capítulo 1
conceito de literatura.
Você se lembra do que é obra literária, o que a diferencia de outras obras? Não?
Por acaso, já tinha pensado sobre tais questionamentos? Não?
Então, é chegada a hora!

1.1  A obra literária

Quando você lê a expressão obra


literária, a correspondência ma-
terial imediata é livro, best-sel-
ler 1de gêneros como romance,
drama, teatro, poesia, certo?
Cuidado, pois nem todo livro ou
best-seller é propriamente uma
“obra literária”.
Guarde essa dúvida e outras que ainda surgirão para esclarecê-las ao final
do curso, com a certeza científica de que lhe será solicitada, como futuro pro-
fessor de literatura do ensino fundamental e médio.

CONEXÃO
Se ficou curioso em saber quais são os best-sellers mais recentes, dê uma olhada na lista da
REVISTA VEJA, disponível em <http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/secao/best-sel-
ler/, com>. Acesso em: 28 abr. 2014.

Literatura é um campo vasto para ser trilhado, há questões de como e por


que Paulo Coelho (1948) já vendeu quase 90 milhões (Folha Ilustrada – Folha de
S.Paulo, 08/jan./06) de livros, certamente mais que Machado de Assis (1839-1908)
em vida e, no entanto, Machado é mais respeitado nos círculos intelectuais uni-
versitários que Paulo Coelho. Vá anotando esses questionamentos... Quando o

1  Best-seller significa mais vendido, em inglês. É um livro considerado extremamente popular entre os leitores, além

de ser incluído na lista dos mais vendidos no mercado editorial. Best-sellers são normalmente considerados como litera-

tura de massa, ou seja, para um público chamado pelos críticos de semicultos. Disponível em <http://www.significados.

com.br/best-seller/>. Acesso em: 28 abr. 2014.

capítulo 1 • 13
assunto é literatura2, você deve ter claro que tratamos de um tema atual e muito
interessante para muitas pessoas – espero que para você também, graduando de
Letras, já que sua formação lhe dará o direito de ministrar tal disciplina.
Podemos confirmar a importância da Literatura ao vê-la como assunto nas
revistas de conteúdo geral (Veja, Época, IstoÉ etc.), nos jornais de circulação na-
cional que destinam seções a ela, e até em cadernos de resenha (Ilustrada e Fo-
lha Mais – Folha de S.Paulo, Caderno 2 – O Estado de São Paulo etc.).
Só no Google (www.google.com.br) há, aproximadamente, 11.400.000 pági-
nas em português sobre esse assunto, sem contar as várias revistas, escritas ou
on-line, especializadas (Bravo, Cult, EntreLivros etc.).
Não esqueçamos, por fim, que literatura brasileira e portuguesa é disciplina
obrigatória no ensino médio e é conteúdo cobrado na maioria dos vestibulares
para ensino superior no Brasil, além de, em breve, somarem-se aos currículos
do ensino médio e superior as literaturas africanas de língua portuguesa.
Estudar a literatura de forma introdutória é conhecer seus conceitos, suas
características e seus elementos. Estudo introdutório é nossa tarefa neste cur-
so, porque não será esse um curso exclusivo de Teoria da Literatura ou de Te-
oria Literária (que não são a mesma coisa), de Crítica Literária ou de História
da Literatura, mas um curso em que serão explanados os princípios fundantes
e elementares sobre esses vários segmentos dos estudos literários. Veja uma
definição dessa complexa ciência humana:

No sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são
todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral, dora-
vante consignada). Essa acepção corresponde à noção clássica de “belas-letras” as quais
compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas
também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda, toda a eloquência. Contudo, assim enten-
dida, como equivalente à cultura, no sentido que essa palavra adquiriu desde o século XIX,
a literatura perde sua “especificidade”: sua qualidade propriamente literária lhe é negada.
Entretanto, a filologia do século XIX ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma
cultura, da qual a literatura, na acepção mais restrita, era o testemunho mais acessível.

2  Literatura (Do lat. litteratura.] S.f. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2. O conjunto
de trabalhos li­terários dum país ou duma época. 3. Os homens de letras: A literatura brasileira fez-se representar no coló-
quio de Lisboa. 4. A vida literá­ria. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores
literários: estudante de literatura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7. Qualquer dos usos estéticos da linguagem:
literatura oral [p.v.] 8. Fam. Irrealidade, ficção: Sonhador, tudo quanto diz é literatura. 9. Bibliografia: Já é bem extensa a lite­
ratura da física nuclear. 10. Conjunto de escritores de propaganda de um produto industrial. (Dicionário Aurélio Eletrônico)

14 • capítulo 1
No conjunto orgânico assim constituído, segundo a filologia, pela língua, pela literatura,
pela cultura, unidade identificada a uma nação, ou a uma raça, no sentido filológico, não
biológico do termo, a literatura reinava absoluta, e o estudo da literatura era a via régia
para a compreensão de uma nação, estudo que os gênios não só perceberam, no qual
também forjaram o espírito. No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literário e o
não literário) varia consideravelmente segundo as épocas e as culturas. Separada ou ex-
traída das belas-letras, a literatura ocidental, na acepção moderna, aparece no século XIX
com o declínio do tradicional sistema de gêneros poéticos, perpetuado desde Aristóteles.
(COMPAGNON. 2003. p. 31-32).

CONEXÃO
Para saber mais sobre obra literária, acesse: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9158/1/
CAP%C3%8DTULO_IntroducaoTeoriaPratica.pdf>. Acesso em: 05 maio 2014.

Filósofo grego Aristóteles

Examinemos outras definições de literatura, dadas pelo dicionário:

capítulo 1 • 15
Literatura (Do lat. litteratura.] S.f. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em
prosa ou verso. 2. O conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época. 3. Os ho-
mens de letras: A literatura brasileira fez-se representar no colóquio de Lisboa. 4. A vida
literária. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos
autores literários: estudante de literatura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7.
Qualquer dos usos estéticos da linguagem: literatura oral [p.v.] 8. Fam. Irrealidade, fic-
ção: Sonhador, tudo quanto diz é literatura. 9. Bibliografia: Já é bem extensa a literatura
da física nuclear. 10. Conjunto de escritores de propaganda de um produto industrial.
(Dicionário Aurélio Eletrônico)

1.2  Literatura: arte da palavra?

Qual é, afinal, a definição de literatura? Você já se tinha imaginado pensando


nas variadas possibilidades dessa terminologia? Imagine fazer o que faremos:
estudá-la enquanto teoria e prática. A primeira motivação para tratarmos de
um tema tão amplo é ler uma obra literária e refletir sobre o tema (assunto) que
ela traz por meio da narrativa (história).

CONEXÃO
Curiosidades acerca desse maravilhoso escritor? Acesse Machado de Assis: um mestre na periferia.
(Mestres da Literatura), disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.
do?select_action=&co_obra=20766>. Acesso em: 25 abr. 2014.

16 • capítulo 1
Ideias do canário

Machado de Assis

UM HOMEM dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns


amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a
supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um
tílburi à disparada quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma
loja de belchior3. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez
levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir.
Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gor-
ro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele
nenhuma história, como podia ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia
a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enfer-
rujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem pró-
pria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa,
tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e
de pelo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par
de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides,

3  Belchior: vendedor de objetos velhos usados.

capítulo 1 • 17
um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson,
um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o
mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta,
encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para den-
tro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos
grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto,
para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava
vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam
àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último pas-
sageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que
olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se
quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo
essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não
pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer
que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei
baixinho palavras de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer
dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar
esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu
para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono exe-
crável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa
doente; vai-te curar, amigo...
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono
não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este
cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do pri-
meiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono
foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos
os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com
pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade
dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

18 • capítulo 1
Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as
ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em
trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua
era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a
um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades
do espaço azul e infinito...
— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?
— O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja
de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um pre-
go; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é
ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria com-
prar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que
sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e
arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa,
donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a nin-
guém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Co-
mecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações
com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências.
Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos caná-
rios, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele
tinha conhecimento da navegação etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo
as notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dous criados, ordenava-lhes que não me interrom-
pessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de im-
portância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a
ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite,
passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acres-
centar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido
mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma
delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me

capítulo 1 • 19
repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores
e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do
mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais
é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me ti-
nham parecido simples, vi que eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória
que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades
alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as obser-
vações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não
quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados
tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia
nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Tam-
bém o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico orde-
nou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia
saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sex-
to levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira
da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me,
caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o
passarinho é que fugira por astuto...
— Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele
fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde
ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude
sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e
nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e
incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e
grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi
trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe
disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuida-
dos de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a con-
versação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola

20 • capítulo 1
branca e circular...
— Que jardim? Que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, con-
cluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já
fora uma loja de belchior.
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de
belchior?

Fixemo-nos nesta última parte:


“Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele
nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.
— Que jardim? Que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, con-
cluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já
fora uma loja de belchior.
— De belchior? Trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de
belchior?”

CONEXÃO
LINK: Curiosidades acerca desse maravilhoso escritor? Acesse HYPERLINK “<http://www.
dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=20766” \t “_
blank>” Machado de Assis: um mestre na periferia. (Mestres da Literatura), disponível em <http://
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=20766.
com> acesso em 25-04-2014.

O que você entendeu desse conto? Ora, um canário não poderia falar; então,
o homem era louco? Essa é apenas uma das possibilidades de interpretação da
narrativa. Outras formas de interpretar são igualmente possíveis.

capítulo 1 • 21
Essa costuma ser uma das características muito evocadas quando se dese-
ja dar uma definição de literatura: a plurissignificação4 ou polissemia. Muitos
definem a literatura como um tipo de linguagem que está sempre aberto a di-
ferentes interpretações. Será que é isso que define o que é literatura? A polisse-
mia seria uma característica suficiente para encerrar a polêmica? Voltaremos a
essa questão mais à frente.
Mas, voltando ao texto “Ideias do canário”, de que outras maneiras pode-
mos interpretá-lo?
Poderíamos pensar no canário como sendo uma metáfora5. Essa metáfora sig-
nifica que a visão de mundo das pessoas varia de acordo com o lugar que cada uma
ocupa no espaço geográfico, econômico etc. A concepção de mundo que o canário
apresentava ia-se alterando conforme as modificações que ocorriam em suas con-
dições de vida. Ao mudar de espaço, de ambiente, de condições, o canário tinha
a sua visão do mundo influenciada por fatores diferentes, novos, que interferiam
e modificavam sua forma de conceber o que era o mundo. De forma semelhante,
podemos pensar em nós mesmos, cujas opiniões, ideias, pensamentos podem ser
alterados conforme as modificações no ambiente à nossa volta, conforme as alte-
rações em nossas condições e modo de vida.
A ideia de que uma concepção de mundo pode variar, conforme as condições
de quem elabora o conceito, remete-nos de volta à questão: o que é literatura?
Se a visão de mundo pode ser pessoal, então será comum pessoas inseridas em
contextos diferentes terem definições, opiniões, pensamentos, teses e conceitos
vários. Assim também ocorre com o conceito de literatura.

1.3  O que é literatura?

Retomemos essa indagação. Não se pode querer estudar os chamados textos li-
terários se não definimos o que os faz literários. No entanto, estamos certamen-
te diante de uma grande polêmica teórica que não se iniciou no nosso século.
Primeiramente, poderíamos tentar definir o que é literatura a partir de nosso pró-
prio conhecimento, ou melhor, conhecimento prático, empírico. Para isso, a leitura
dos textos indicados que estão nos anexos nos ajudará nesse exercício de reflexão.

4  Polissemia ou plurissignificação: qualidade dos textos que possuem mais de um sentido e, consequentemente, mais
de uma interpretação correta possível (poli = vários; semia = sentido).
5  A metáfora opera por semelhança de características entre a palavra usada e a palavra significada. Exemplo: “Amor
é fogo que arde sem se ver” (Camões). Aqui, a palavra “fogo” não possui o seu sentido habitual de “chama”. Fogo possui
características que podem ser comparadas por semelhança às características do amor, como a ideia de que tanto o
amor quanto o fogo podem ferir, machucar.

22 • capítulo 1
Texto 1:
A uma passante

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.


Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! — Fugitiva beldade


De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!


Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!
(Charles Baudelaire)

E os demais? Compare-os.

Texto 2:
Instruções para entender um relógio

Pensa nisto: quando te presenteiam com um


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relógio dão-te um pequeno inferno, uma cadeia


de rosas, masmorra de vaidade. Não te dão so-
mente um relógio que, esperam, te agrade como
objeto e possa durar por muito tempo, porque é
uma boa marca, suíço, com rubis; não te presen-
teiam somente com um pequeno ornamento que,
atado a teu pulso, passeará contigo. Te presen-

capítulo 1 • 23
teiam, mas não sabem, e o terrível é que não sabem, com algo que não é simplesmen-
te um objeto, mas com um novo, frágil e precário apêndice, uma coisa que é tua mas
não pertence, de fato, ao teu corpo e, no entanto, tu mesmo vais passar a correia,
tu mesmo ajustarás a fivela do vigilante desesperado que doravante terás colado
ao teu ser. Deram-te de presente a necessidade de dar corda todos os dias para que
a engenhoca não perca seu caráter de relógio; te presenteiam com a obsessão de se
curvar à hora exata e conferir os minutos cada vez que te deparares com a vitrine de
uma joalheria, com os informativos radiofônicos ou quando, ainda, assaltado pela
dúvida, discares para o serviço telefônico. Te presenteiam com o medo de perder o
relógio, de que o roubem, de que venha cair e quebrar-se no chão. Presenteiam-te
com a marca e a certeza de que teu relógio é o melhor e sentes a tendência perversa
de compará-lo com os outros relógios. Não! Não te presenteiam! És tu que entregam
como um presente para servir ao relógio; tu és o regalo, escravo das horas ditadas
silenciosamente pelo relógio.

Julio Cortázar.
Tradução: Ligia Cabús

Texto 3:
Trezentas onças

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca
empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais
perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos
vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombi-
lho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando so-
bre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui-me
à água que nem capincho!
Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e
sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.
E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei. Daquela ve-
reda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça
e meia de sol.

24 • capítulo 1
Ah!…esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco
mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-me para acompanhar-me,
e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas via-
gens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite...
Mas isto é outra cousa; vamos ao caso.
Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e
latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco
sobre o rastro; — parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia,
ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.
Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da es-
tância, ao tempo que dava as — boas-tardes! — ao dono da casa, aguentei um tirão
seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados
que ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a
roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...
Eu era mui pobre — e ainda hoje, é como vancê sabe... ¾ ; estava começando a
vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas
e brabo como uma manga de pedras...
Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
Então, patrício? Está doente?
Obrigado! Não, senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça:
perdi uma dinheirama do meu patrão...
A la fresca!...
É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...
É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem!
Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo,
e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...
Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo.
[...]
João Simões Lopes Neto
Excerto extraído de Contos Gauchescos, Disponível em <http://stat.correioweb.com.br/arquivos/
educacao/arquivos/JooSimesLopesNeto-ContosGauchescos0.pdf >. Acesso em: 2 maio 2014.

capítulo 1 • 25
CONEXÃO
Conheça um pouco mais sobre este autor visitando a página <http://www.joaosimoeslopesneto.
com.br>. Acesso em: 28 abr. 2014.

ATENÇÃO
SOARES FEITOSA, Francisco José. 19.01.44, Ipu, CE. É o editor do Jornal de Poesia. Aposen-
tado da Receita Federal, auditor, estabeleceu-se advogado tributarista. Publicou em 1997 Psi,
a Penúltima, poesia e ensaio, esgotado. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/feito.
html,html>. Acesso em: 28 abr. 2014.

TEXTO 4:

Millenium

Nem anzóis, nem redes.


Sequer ele próprio, em boa culinária,
aos molhos, azeites, azeitonas,
numa manhã de folguedos. Não.
Nem isto. Peixe algum te chegue à boca.
Que seja teu,
permanente, ainda que escuro seja
o dia —
espelho e face, a ti, o Retrato do Peixe.

Soares Feitosa
(Fortaleza, 22.12.00, de tarde)

Refletiu?
Como você deve ter notado, são quatro textos diferentes, mas todos deno-
minados, tanto pelo senso comum quanto por especialistas, como literatura.
Após sua leitura, você conseguiu perceber a presença de elementos como:
versos; cópia da realidade; rima; exagero; palavras bonitas; mimese; ficção;
mentira; emoção?

26 • capítulo 1
Se você percebeu que os textos indicados possuem tais características, per-
cebeu então algumas características que normalmente o senso comum costu-
ma atribuir aos textos literários.
Entretanto, o que o senso comum pensa é uma das possíveis visões sobre o
que seja literatura. Tal visão pode ser amplamente aceita e compartilhada por
muitas pessoas (afinal, é isso que se entende por senso comum). No entanto,
essa visão pode conter algumas imprecisões ou problemas, que não são difíceis
de apontar. Poderíamos questionar, por exemplo: Se literatura é ficção (histó-
rias inventadas), biografias não são literatura? Poemas sem rimas não são lite-
ratura? Como equacionar duas características aparentemente tão contraditó-
rias como “cópia da realidade” e “ficção, mentira”?
E as perguntas não parariam por aqui...
Uma das razões para que tenha ocorrido o surgimento de uma teoria da li-
teratura é justamente a preocupação em se fazer um estudo científico desta,
um estudo rigoroso, metódico, que procurasse responder satisfatoriamente
aos questionamentos feitos anteriormente, bem como explicar a contento uma
série de outras questões um tanto intrigantes a respeito do fenômeno literário.
Já vimos a visão do senso comum. Vamos agora conhecer algumas das vi-
sões presentes na teoria da literatura, visões essas que, devido ao poder insti-
tucional da teoria, costumam ser classificadas como definições “oficiais” de
literatura, definições “corretas”.

CONEXÃO
Para efetuarmos o estudo teórico da literatura, é necessário nos familiarizar com alguns
termos específicos utilizados nesse estudo. No link a seguir, encontramos o E-dicionário de
termos literários, que disponibiliza definições de vários termos ligados à teoria da literatura:
<http://www.edtl.com.pt/>

Leia esta reflexão sobre a terminologia, elaborada por Afrânio Coutinho:

A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada atra-
vés do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os
gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra
vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio.

capítulo 1 • 27
Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e adquiriram
outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra natureza, diferentes dos
fatos naturais objetivados pela ciência ou pela história ou pelo social.
O artista literário cria ou recria um mundo de verdades que não são mensuráveis pelos
mesmos padrões das verdades factuais. Os fatos que manipula não têm comparação
com os da realidade concreta. São as verdades humanas gerais, que traduzem antes um
sentimento de experiência, uma compreensão e um julgamento das coisas humanas,
um sentido da vida, e que fornecem um retrato vivo e insinuante da vida, o qual sugere
antes que esgota o quadro. A Literatura é, assim, a vida, parte da vida, não se admitindo
possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras literárias, tomamos contato
com a vida, nas suas verdades eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque
são as verdades da mesma condição humana. (COUTINHO, 1978)

Que aspectos dessa definição podemos apontar como características do


conceito de literatura? Indiquemos dois deles: mimese6 e expressão de verdades
humanas eternas. A primeira característica tem a ver com a forma; a segunda,
com o conteúdo. Coutinho é, portanto, um teórico que busca articular forma
e conteúdo na sua definição de literatura. Há outros que julgam a literatura
como definível somente por suas características formais, não levando em con-
ta o conteúdo de suas ideias, ou o sentido dos textos. Será que é possível definir
algo tão complexo como a literatura sem fazer menção a um destes dois aspec-
tos: forma e conteúdo?
Em Culler (1999), temos outra definição de literatura:

Agora, as narrativas literárias podem ser vistas como membros de uma classe mais
ampla de histórias, “textos de demonstração narrativa”, soluções cuja relevância para os
ouvintes não reside na informação que comunicam, mas em sua “narratividade”. Quer
esteja contando um caso a um amigo ou escrevendo um romance para a posteridade,
você está fazendo algo diferente, digamos, de testemunhar no tribunal: está tentando
produzir uma história que parecerá “valer a pena” para seus ouvintes, que terá algum
tipo de finalidade ou importância, divertirá ou dará prazer.

6  Mimese: palavra originária do grego, que significa imitação (ou recriação) da realidade. Segundo certos filósofos
da Grécia Antiga, a arte, em geral, e a literatura, em particular, deveriam ser uma espécie de “cópia” da realidade, para
que as histórias contadas fossem parecidas com a realidade, próximas dela, ou pelo menos críveis, isto é, dadas pelos
espectadores como histórias possíveis de acontecerem na realidade.

28 • capítulo 1
Culler também parece optar pelo caminho que define literatura com base
apenas nas questões formais. Ele lança mão do conceito de “narratividade” para
tentar caracterizar o fenômeno literário. Outro aspecto importante a ser notado
na definição proposta por Culler é o fato de os textos literários não terem uma
função prática (útil), não terem uma importância pragmática para os leitores, vis-
to que a relevância das narrativas “não reside na informação que comunicam”.
Muitos teóricos seguem a mesma linha de Culler ao propor que a diferença
fundamental entre o texto literário e o não literário é que o primeiro visa apenas
divertir, entreter, dar prazer, enquanto que o último possui finalidades práticas,
como transmissão de uma informação ou de um conhecimento úteis no dia a dia.
Se concordarmos com Culler que o conteúdo dos textos literários não teria
tanta importância para os leitores, como conciliar essa definição de literatura
com a posição defendida por Coutinho (1978), segundo o qual a literatura re-
vela verdades humanas eternas? Tais verdades não poderiam ser consideradas
como uma informação ou conhecimento extremamente valiosos e úteis às vi-
das dos leitores?
Vemos, então, que, no interior da própria teoria literária, não há consenso
em torno da definição de literatura. Não existe uma resposta perfeita e defini-
tiva. Então, a pergunta agora passa a ser outra: por que é impossível dar uma
“definição definitiva” de literatura?
O problema parece girar em torno de duas posições teóricas distintas:
uma que defende a especificidade da literatura, especificidade que estaria lo-
calizada exclusivamente na forma, ou seja, no tipo especial de linguagem que
a literatura parece representar quando comparada aos outros tipos de textos,
cuja linguagem é simples, comum, habitual, trivial.
A outra posição é aquela que não enxerga a literatura como uma dimensão
isolada das outras esferas da vida humana. Para essa segunda posição, é preci-
so levar em conta o conteúdo dos textos literários para se definir o que é litera-
tura. Avaliar o conteúdo significa abandonar a ideia de que somente a forma é
relevante para caracterizar o literário.
O conteúdo dos textos literários nos remete para fora da literatura, para fora
dos textos. Ao avaliar o conteúdo, somos levados a considerar a realidade ex-
traliterária e tudo que ela contém. Somos forçados a olhar para as relações da
literatura com o mundo que a cerca e que ela representa em seus textos.
Por isso, dizemos que analisar a literatura sob o ponto de vista do conteúdo
significa também reconhecer que a literatura não será julgada apenas por cri-

capítulo 1 • 29
térios formais, exclusivos e restritos ao aspecto linguístico dos textos, mas por
critérios que ultrapassam a dimensão linguística, critérios que têm a ver com
as preferências pessoais, sociais, políticas, culturais, religiosas, morais, filosó-
ficas, estéticas, psíquicas dos indivíduos.
Toda e qualquer definição de literatura é influenciada e determinada pelas
preferências de cada indivíduo. Alguns valorizam mais o aspecto formal, ou-
tros, o aspecto conteudista. Vai depender da visão de mundo (ideologia / siste-
ma de preferências e crenças) de cada um (aliás, como o texto Ideias do canário
já nos indicava). Segundo Compagnon (2003, p. 226), “todo estudo literário de-
pende de um sistema de preferências, consciente ou não”.
Com base no que acabamos de discutir, podemos concluir que as mudanças
da terminologia literatura são geralmente justificadas por Compagnon (2003)
como disputas ideológicas sobre a conceituação. Quando aponta o esgotamen-
to de uma acepção até então vigente, é porque discorda de algum aspecto ou
enxerga alguma insuficiência no conceito anterior. Nesse caso, ocorre a redefi-
nição do conceito pelo viés da ideologia (ponto de vista) de quem fez a crítica ao
conceito antecedente.
Em suas considerações, Eagleton (2006) nos apresenta um problema para a
definição sobre literatura, que é a presença do juízo de valor, certamente variá-
vel, basta que nos lembremos do conto de Machado de Assis, Ideias do canário.

A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa,
de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente
variáveis os juízos de valor.... Diferentes períodos históricos construíram um Homero e
um Shakespeare “diferentes”, de acordo com seus interesses e preocupações próprios,
encontrando-se em seus textos elementos a serem valorizados ou desvalorizados, em-
bora não necessariamente os mesmos. Todas as obras literárias, em outras palavras, são
“reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade,
não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. Nenhuma obra, e
nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos grupos de pes-
soas sem que, nesse processo, sofra modificações, talvez quase imperceptíveis. E essa é
uma das razões pelas quais o ato de se classificar algo como literatura é extremamente
instável. (EAGLETON. 2006. pp.15 e 17 – grifo nosso em negrito)

30 • capítulo 1
Percebemos que Eagleton (2006) “define” a literatura como sendo “qualquer
tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada” (p.14). Podería-
mos emendar essa tentativa de definição substituindo a expressão “por alguma ra-
zão” por “pelas mais diferentes razões”. Essa substituição mostra que a valorização
da literatura ocorre devido a diferentes fatores, ligados às diferentes ideologias ou
visões de mundo de quem avalia a literatura.
O fato de as definições de literatura variarem conforme as ideologias dos su-
jeitos não significa que podemos conceituar literatura como “qualquer coisa”.
Compagnon (2003) alerta-nos para os perigos do pluralismo e do ecletismo:

A teoria da literatura é uma lição de relativismo, não de pluralismo: em outras palavras,


várias respostas são possíveis, não compossíveis; aceitáveis, não compatíveis;
ao invés de se somarem numa visão total e mais completa, elas se excluem mutuamente,
porque não chamam de literatura a mesma coisa; não visam a diferentes aspectos do
mesmo objeto, mas a diferentes objetos. (COMPAGNON, 2003, p. 26 – grifo nosso)

A teoria da literatura, como toda epistemologia, é uma escola de relativismo, não de plu-
ralismo, pois não é possível deixar de escolher. Para estudar literatura, é indispensável
tomar partido, decidir-se por um caminho, porque os métodos não se somam, e o
ecletismo não leva a lugar algum. (COMPAGNON, 2003, p.262 – grifo nosso)

ATIVIDADE
1.  O que é obra literária?

2.  Quais são as várias definições sobre literatura?

3.  Elabore uma síntese que defina o termo literatura.

capítulo 1 • 31
REFLEXÃO
Agora que você já conhece um pouco acerca da literatura, recomendamos a leitura de A
obra literária como leitura/ interpretação do mundo, de Hermenegildo Bastos.
Você poderá verificar que, simplificando, obra literária é o termo designado para definir, su-
mariamente, uma composição específica da literatura pelo emprego da linguagem criativa,
com uma presença transfiguradora do real, que vai além da simples fusão ficção e história.
Pode-se entender que uma definição única sobre literatura certamente será uma tentativa
frustrada, uma vez que o conceito de literatura sempre vai variar segundo as ideologias e os
pontos de vista de cada grupo social.
Mais importante do que buscar uma definição única (universal, definitiva), é construir o nosso
conceito de literatura. É necessário construir um conceito, pois é ele que vai orientar a nossa
relação com a literatura (enquanto leitores) e a nossa prática pedagógica com ela (enquanto
professores).
O conceito de literatura que temos certamente determina nossa forma de lê-la e nossa forma
de ensiná-la. Daí a necessidade da conceituação.
Agora, você deve ser capaz de elaborar uma definição sobre o termo Literatura que dê
conta de englobar todos os elementos abordados neste capítulo.

LEITURA
BASTOS, Hermenegildo. A obra literária como leitura/ interpretação do mundo.
Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9158/1/CAP%C3%8DTULO_
IntroducaoTeoriaPratica.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9. ed., Porto Alegre: Globo, 1976 (Col.
Provínci).

32 • capítulo 1
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cle-
onice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
(título original: Le démon de la théorie: littérature et sens commun, 1998).

COUTINHO, A. Notas de teoria literária. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Pro-
duções Culturais Ltda., 1999.

EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. (título original: Literary Theory, 1983).

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. 9. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. (Col. Provínci)

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No capítulo seguinte, abordaremos a distinção entre texto literário e não literário sob o ponto de
vista dos estudos linguísticos. Abordaremos, também, elementos específicos dos textos literários.
Por fim, veremos que a literatura tal como definida pela Linguística equivale a um tipo ou
gênero de texto, enquanto a Teoria Literária preocupa-se em definir os critérios de valor res-
ponsáveis pelo juízo sobre as obras e, consequentemente, pela definição do cânone literário.

capítulo 1 • 33
2
Texto e Discurso
2  Texto e Discurso
Neste segundo capítulo sobre texto e discurso, estabeleceremos os debates en-
tre texto e discurso, texto literário e não literário.
Para que tal estudo seja profícuo, recorreremos ao auxílio dos estudos lin-
guístico-discursivos sobre tipologia textual e gêneros discursivos, bem como a
elementos do discurso literário e histórico, ou seja, mesclaremos elementos da
Linguística e da Teoria literária.
Abordaremos o ponto de vista da Linguística sobre a literatura que se diferen-
cia do ponto de vista da Teoria da Literatura: enquanto a Linguística se dedica a
compreender a literatura em geral, a Teoria da Literatura se volta mais para o es-
tudo das obras canônicas, aquelas consideradas verdadeiro patrimônio cultural
e intelectual da humanidade, salientando a presença da linguagem criativa como
uso especial da linguagem e um dos elementos caracterizadores do texto literário.
Veremos as características dos textos literários em comparação e em oposi-
ção às características de outros gêneros. Abordaremos a linguagem criativa e a
finalidade estética da literatura como fatores de sua especificidade.
Enfim, interrogaremos a forma e o conteúdo sob a perspectiva de informa-
ção e criatividade.

OBJETIVOS
• Conceituar texto e discurso.
• Observar a composição do discurso.
• Diferenciar discurso literário e histórico.
• Diferenciar literatura e outros tipos e gêneros textuais.
• Identificar as características do texto literário por comparação a outros gêneros.
• Verificar a presença da linguagem criativa como uso especial da linguagem e um dos
elementos caracterizadores do texto literário.
• Entender a subjetividade no discurso.
• Analisar forma e conteúdo sob a perspectiva de informação e criatividade.

REFLEXÃO
Você se lembra das obras literárias que leu?
Você se lembra das obras literárias das quais já ouviu falar ao longo de sua vida (escolar ou não)?

36 • capítulo 2
Faça um exercício de autorreflexão e tente recordar!
Você se lembra como é a linguagem dessas obras?
Você se lembra se há algo de especial nelas, em comparação com a linguagem que usamos
em nosso cotidiano?
Você se lembra com que objetivo um escritor produz um texto literário?
Você se lembra para que serve a literatura?
Você se lembra por que lemos obras literárias?

2.1  Texto

Como já foi dito, dominar a leitura, saber reconhecer, perceber o sentido do


texto e produzir textos escritos são condições básicas para o sujeito enfrentar
o desafio no mundo e, assim, o construir. Os textos como ação do sujeito têm
uma significação e levam a mudanças em nosso conhecimento (crenças, atitu-
des, valores etc.). Pode-se dizer que poderíamos argumentar, iniciar guerras ou
contribuir para transformações educacionais, sociais, empresariais, políticas
por meio da produção de textos orais ou escritos. No entanto, os textos preci-
sam ser compreendidos e qualificados, assim, podemos fazer a seguinte per-
gunta: o que é texto afinal?
Já se tem estudado a origem de algumas palavras usadas ao longo dos sé-
culos. Palavras que vão tomando sentido diferente do que tiveram na origem e
que, às vezes, passam a ter outros significados.
De acordo com documentos históricos, a origem da palavra “texto” é muito
antiga e começa, no século XII, com o significado “livro de evangelho”. No sécu-
lo XIII, passa, então, a designar qualquer texto, sagrado ou profano. Do mesmo
modo, no meio do século XII, temos a palavra interpretar, assim como a palavra
interpretação. Cabe notar que a interpretação era única e cabia apenas ao mestre
fazê-la e jamais podia ser contestada. O sujeito leitor “o intérprete” somente apa-
rece no século XIV.
No latim, passou a designar também texto textum (tecido), quaestio (per-
gunta simples), “disputatio” (questões alternativas) e “determinatio” (resposta
objetiva). Porque, segundo alguns estudiosos, esses exercícios de interpretação
apenas possibilita um modo de relação do sujeito com o signo, com a escrita,
mas não modifica o conhecimento.

capítulo 2 • 37
Assim se desencadeiam novos estudos sobre a linguagem e começa, então,
a aparecer um sujeito explícito somente no século XIX. “Século do individualis-
mo triunfante” (ORLANDI, 1988, p.48).
Essas definições, com o tempo, passam a ter novos significados. O texto é
uma unidade básica de organização e transmissão de ideias, conceitos e in-
formações. Seja uma escultura, um quadro, um símbolo, um sinal de trânsito,
uma foto, um filme, uma novela etc. Todos esses objetos de análise geram uma
produção de sentido.

O cartum acima é constituído apenas de linguagem não verbal (imagens) mas


é capaz de transmitir informação. A leitura que se faz dele dependerá, como vimos
anteriormente, do conhecimento de mundo, mas fica clara a intenção do autor
de demonstrar pessoas caminhando para um mesmo destino. Ao observarmos o
segundo quadrinho, verificamos pessoas lendo em uma biblioteca. Desse modo,
podemos inferir que a leitura nos leva ao caminho do conhecimento, do saber.
Para tanto, o texto deve ser definido “como gerador de sentido”. Uma pala-
vra ou frase não possui independência e não podem ser analisadas isoladamen-
te, pois uma parte liga-se a outra e fora do contexto a palavra pode fugir de seu
sentido pretendido pelo autor. Um texto sempre revela perspectivas (a visão de
mundo) que o autor constrói da realidade e são dotados de intencionalidade.
Traz consigo valores, ideologias, cultura, formação histórica e social. Pelo fato
de ser um produto de uma época e de um lugar, deixa marcas de tempo e espaço
determinado. Sendo assim, nenhum texto é isolado, ele sempre dialoga com ou-

38 • capítulo 2
tros textos e com o contexto. Eni Orlandi afirma que “para se compreender um
discurso é importante se perguntar: o que não está querendo dizer ao dizer isto?”.

2.1.1  Texto enunciado, enunciação

Todo texto, além de dialogar com diferentes vozes por meio de vá­rios meca-
nismos linguísticos, dialoga também com os dizeres da socieda­de, na medida
em que o enunciatário, ao depreender os sentidos, julga-os em função de seu
repertório e conhecimento adquirido.
O texto é, em princípio, um signo, possui um significado, um conteúdo vei-
culado por meio de uma expressão, que pode ser verbal, visual, entre outros
tipos. No texto verbal escrito, temos as ideias expressas em frases encadeadas
em parágrafos, os quais, por sua vez, também se encadeiam entre si. No texto
visual, temos as ideias expressas num conjunto formado pelas combinações de
cores, distribuição de formas, jogos de linhas e volumes, unidades todas enca-
deadas no espaço da tela, do papel, da madeira etc. Um único texto pode apre-
sentar a união de vários tipos de expressão, como a verbal e a visual. O texto é
dito sincrético, se juntar em si dois meios diferentes de expressão. O anúncio
publicitário, que na maioria das vezes, une o verbal para construir sentido, é
um exemplo de texto sincrético.
O texto, seja verbal, visual ou sincrético, não pode, entretanto, ser visto
apenas como signo, união de um veículo significante e de um conteúdo signi-
ficado. Primeiro, porque tanto o conteúdo como a expressão, constituintes de
qualquer significado, supõe cada qual relações internas de sentido. Segundo,
porque o próprio texto deve ser considerado situação de comunicação, o que
supõe um enunciado em relação com uma enunciação. A enunciação, sempre
pressuposta ao enunciado, compreende o sujeito do dizer, que se biparte entre
enunciador, projeção do autor, e enunciatário, projeção do leitor.
Compete ao analista descrever e explicar os mecanismos de construção do sen-
tido, observando as relações dadas no plano do conteúdo e no plano da expressão
dos textos, bem como as relações entre um plano e outro. Também compete ao
analista observar as relações entre enunciado e enunciação, para recuperar não
apenas o que o texto diz, mas o porquê e o como do ato de dizer. (DISCINI, 2005).

capítulo 2 • 39
2.2  A composição do discurso

Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova


luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens.
(Fernando Pessoa, em “O Eu Profundo”).

O tempo todo, estamos pronunciando sobre fatos que ouvimos ou que pre-
senciamos em nosso meio, com a intenção de produzir efeitos sobre os interlo-
cutores que também produzem efeitos sobre nós. Renovamos sempre os co-
nhecimentos, passamos a nos conhecer melhor e entramos em conflito. Todas
essas manifestações concretizam-se por meio da linguagem. Os nossos discur-
sos em conflito com o discurso do outro têm sua base nos textos.
Para apreender um texto, é preciso analisar
as suas condições de produção e, com sensibi-
lidade, perceber os mecanismos estruturado-
res do texto, organização sintática, as figuras,
os temas, produtores de significação. “Em
todos há um olhar analítico diversificado, se-
mântico e sintático, mas esse olhar não pres-
supõe a obrigatoriedade de uma disposição
linear e ordenada de sentidos, pois se norteia
pelo paralelismo do plano de expressão (signi-
ficante) e do plano de conteúdo (significado)”
(VASCONCELOS, 2003).
Vejamos uma poesia de Charles Baudelaire, poeta francês:

O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem


Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,


O monarca do azul, canhestro e envergonhado,

40 • capítulo 2
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça


Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura


Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado ao chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Charles Baudelaire

Se lermos este poema apenas uma vez, sem ter em mente que se trata de
um texto literário, que trabalha mais com a sugestão do que a informação, que
presa mais a forma do que o conteúdo, é muito pro­vável que não atribuamos
sentido algum a ele. Toda vez que formos interpretar um texto, devemos seguir
os passos logo descritos, de acordo com Platão e Fiorin (2005):
•  Nenhum texto é um evento isolado, ao contrário, é marcado pelo mo-
mento histórico; por isso, pesquise as condições de produção.

•  Há mecanismos de produção de sentido, mas não há receita.

•  Cada texto é uma realidade única: exploram-se elementos fônicos, oposi-


ções temporais, similaridade etc.

•  Quem analisa um texto, deve debruçar-se sobre ele, lê-lo muitas vezes,
apreender seus mecanismos estruturadores e ir pacientemente organi-
zando o sentido que dele vai emergindo.

•  O leitor precisa ter sensibilidade para encontrar a chave do texto, ou seja,


seu princípio estruturador básico: ora a organização sintática ora a co-
bertura figurativa etc.

Realizando uma boa interpretação, a partir dos dados elencados anterior-


mente,, você deve estar intrigado, pensando em como fará para conseguir reali-
zar uma compreensão perfeita. Não se desespere! Muitos conceitos e definições,

capítulo 2 • 41
como, por exemplo, a conotação, as figuras de linguagem, dentre outros, serão
bem trabalhados, para que ao longo da disciplina você tenha recursos para com-
preender bem um texto. Ao mesmo tempo, você deve ter percebido também que
a leitura e o conhecimento de mundo são essenciais para uma boa compreensão.
Passemos agora à diferenciação do discurso literário e do histórico.

2.3  Discurso literário e histórico

Após essa reflexão, pode-se concluir que “o texto hoje é considerado “naquilo
que é dito; no como é dito; no porquê do dito; na aparência; na imanência;
como signo; como História (...). Texto é entendido como discurso, se observa-
do como enunciado em relação com o sujeito da enunciação. (DISCINI, 2005,
p.13). O texto é produzido por um sujeito que pertence a um determinado gru-
po social num espaço e tempo determinado, expõe suas ideias, insatisfações,
medos e suas expectativas. Todo texto tem caráter histórico, revelando seus
ideais numa determinada época.
Façamos algumas considerações acerca do discurso literário levando em con-
ta os apontamentos de Moacir Dalla Palma, no estudo Discurso literário: lingua-
gem intrinsecamente diferenciada ou texto institucionalmente determinado?

[...] a linguagem de forma criativa, porque utiliza os interstícios para enriquecer as possi-
bilidades de leitura. O que se pretende evidenciar é que a literatura não é um fenômeno
independente, ela é criada dentro de um contexto; numa determinada língua, num de-
terminado país, numa determinada época, onde se pensa de uma determinada maneira,
carregando em si marcas desse determinado contexto a linguagem de forma criativa, por-
que utiliza os interstícios para enriquecer as possibilidades de leitura. O que se pretende
evidenciar é que a literatura não é um fenômeno independente, ela é criada dentro de um
contexto; numa determinada língua, num determinado país, numa determinada época,
onde se pensa de uma determinada maneira, carregando em si marcas desse determi-
nado contexto. Nesse sentido, o discurso literário pode não ser apenas ligado aos proce-
dimentos adotados pelo autor, mas também, e talvez mais diretamente do que se pensa,
ligado ao contexto sóciocultural no qual está inserido, evidenciando-se, nem sempre cla-
ramente, uma influência das instituições que o cercam na escolha de determinados pro-
cedimentos de linguagem. Para tanto, pretende-se, num primeiro momento, discutir al-
guns aspectos do discurso literário visto como linguagem intrinsecamente diferenciada.

42 • capítulo 2
Por outro lado, num segundo momento, discutir o discurso literário entendido como tex-
to institucionalmente determinado. Enfim, pensa-se em fazer um paralelo entre ambos,
com intuito de demonstrar que o discurso literário é constituído histórica e socialmente,
sem, no entanto, deixar de ter elementos que o diferenciam de outras formas de discur-
so, tais como: discurso histórico, discurso filosófico, discurso jornalístico etc.

CONEXÃO
Leia o texto integral de Moacir Dalla Palma, Discurso literário: linguagem intrinsecamente
diferenciada ou texto institucionalmente determinado?, disponível em <http://www.uel.br/pos/
letras/terraroxa/g_pdf/vol9/9_7.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014.

Como podemos observar, a literatura possui uma linguagem diferenciada,


criativa, mas isso não a torna independente ou autônoma. Por isso, costuma-
mos observar sua existência em diálogo com o discurso histórico, que também
narra fotos sob ângulos diversos, realizando certos recortes. Vejamos um excer-
to do texto Narrativa histórica e narrativa literária: pontos e contrapontos, de
Lílian Gonçalves de Andrade, disponível em pdf em: <www.seer.furg.br/biblos/
article/download/95/49>. Acesso em: 5 maio 2014.

Esses chamados recortes são mais do que intencionais, constituindo-se como frutos da
necessidade do sujeito, por ser impossível “dar conta” e abarcar tudo o que se passou –
tanto por ser impossível apreender-se “o tudo” que se passou, mas também porque, ain-
da que se considerasse essa possibilidade, impossível seria conseguir contar “o tudo”:
seria algo sem fim.
Tal característica – de realizar recortes – é peculiar à natureza do relato que um histo-
riador venha a realizar, uma vez que este é um sujeito que se encontra temporalmente
– e muitas vezes também espacialmente – localizado em outro tempo, que não o do
fato – tempo de impossível retorno.
Consequentemente, essa experiência é impregnada de subjetividade e de envolvimento
do historiador, que olha hoje para um “ontem” novamente dizendo que olha o passado
com os olhos da atualidade. Assim, temos um ângulo/foco de análise que é outro, ad-
verso àqueles inicialmente concebidos.

capítulo 2 • 43
Imprescindível, pois, é que seja realizado um discurso plausível e convincente, que siga
à risca tais características. Importante, também, é o reconhecimento de que cada indi-
víduo escreve de uma maneira, através de reconstruções, mas o que é essencial é a
questão da plausibilidade.
Todavia, é com o “presentismo”, como o próprio nome já nos alude e incita alguma ideia,
que teremos a tendência mais caracterizadora de uma narrativa histórica, uma vez que
esta será efetivamente tratada – como já dissemos, e repetindo, – a partir de um olhar
do indivíduo de hoje sobre um passado, com a visão de um sujeito da atualidade – o
historiador – para um passado reconstruído, ou em fase de reconstrução, por parte do
presente historiador.
Essa será a visão de um sujeito que está século(s) à frente do que se sucedeu, ou
seja, numa perspectiva altamente abarcadora de interesses que advêm do homem con-
temporâneo – ou “pós-moderno” – que mira um “ontem” através de características de
subjetividade e seletividade que correspondem a este ser em um tempo e um espaço
distintos, e não em busca de uma única verdade – mas uma provável e mais próxima
verdade possível, construindo, assim, não a verdade em si, mas uma de suas possíveis
versões em meio a tantas outras plausíveis.
Daí é que se torna possível tanto o surgimento quanto a realização do espaço denomi-
nado “distância crítica” entre um leitor/receptor e o que um historiador narra; isto é, há
a oportunidade de interpretações e pensamentos acerca de um mesmo fato histórico.

Após detalhada leitura e análise, verificamos que o discurso histórico tam-


bém é passível de criatividade e certa subjetividade no emprego da linguagem,
já que privilegia certos fatos em detrimento de outros.
Partindo dessas reflexões, atentemos para os textos classificados como lite-
rários ou não.

2.4  Texto literário e não literário

Antes de definirmos qualquer termo, leiamos os textos a seguir:

Texto 1:
Precariedade das bibliotecas brasileiras é determinante na fraca produção inte-
lectual do país, em que especialistas, desprovidos de livros, são obrigados a escrever
cada vez menos ou a diluir suas ideias.
Folha de S.Paulo, 11/09/05 – Folha Mais

44 • capítulo 2
A ficção acadêmica
Luiz Costa Lima
Colunista da folha

Se este texto houvesse sido escrito há alguns meses, teria provavelmente um ca-
ráter reivindicatório. Remeteria às várias matérias publicadas nos últimos anos por
jornais de São Paulo e do Rio sobre as condições em que se encontram as bibliotecas
universitárias. Não precisaria citá-las para dizer o que ressaltavam: tetos desabando,
paredes infiltradas, coleções encaixotadas, livros umedecidos, estragados, desapare-
cidos. Provavelmente acrescentaria advertência publicada, em 3 de outubro de 2004,
neste caderno: “Os acervos das bibliotecas de duas das maiores instituições univer-
sitárias do país, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro, dispõem de parte dos 50 livros indicados pelos dez especialistas ouvidos pelo
Mais!”. Alguém saberá se isso teve algum efeito? Como se fizesse parte dos estigmas
nacionais, as bibliotecas das maiores capitais do país – e não falo das outras porque
não devo prejulgá-las – permanecem em estado precário, cada vez mais desfalcadas.
A descrição que Borges fizera – “O universo (que outros chamam a Biblioteca) com-
põe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais (...)” – antes
nos parece parte de suas “ficciones”. É evidente que a “ficção” da biblioteca brasileira
não é de hoje. (Em sob o peso das sombras [Planeta], romance de Francisco Dantas,
encontro uma variante que desconhecia: famílias que obrigam seus velhos parentes
a se desfazerem das bibliotecas que tinham amealhado). Desde que me entendo, sei
que aqueles que precisam de livros, no Brasil, precisam tê-los em suas casas. Partindo
da premissa de que serão professores, e não empresários, como os terão? Por suposto,
hão de ter herdado alguma casa ou apartamento espaçoso, para que caibam estantes
bastantes e ainda haja lugar para outras. Mas as heranças não costumam ser recebi-
das pelo tipo dos que veem os livros como matéria de primeira necessidade. Na falta
de herança, tenho de presumir que os que deles precisam dispõem de bons salários. E,
como desde o século 19, os especialistas em matérias contidas em livros são sobretudo
professores, devo imaginar que, para o funcionamento de nosso sistema intelectual,
os professores sejam bem pagos. Ora, alguém que cogite disso seria digno não de Bor-
ges, mas de uma fantasia de Walt Disney.

capítulo 2 • 45
ATENÇÃO
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de “O redemoinho do horror”
(ed. Planeta) e “Intervenções” (Edusp), entre outros.

Lembro-me, a respeito, do que ouvi há alguns anos. Durante uma de nossas in-
termináveis greves universitárias, um grupo de professores conseguiu ser recebido
pela máxima autoridade competente. Depois de ouvir os argumentos dos grevistas,
o ilustre “representante do povo” teria respondido: “A quantos por cento do eleitora-
do os senhores correspondem?”.
A resposta era irretocavelmente “democrática”: as reivindicações não podiam
ser levadas a sério, pois os grevistas representavam um número ínfimo da popula-
ção. Mas, sem entrada de caixa – e sequer se imagina algum “caixa dois”–, como os
especialistas podem exercer sua função?
Toda espécie de perversão torna-se viável. A mais espantosa: quanto mais amadure-
ce, tanto menos escreve nosso especialista. As outras fazem parte da comitiva: reescreve
o que fizera e, como o número de leitores é pequeno e sua capacidade de saturação facil-
mente atingida, nosso especialista tende a diluir o que, em princípio, já nascera diluído;
ou, empunhe ou não uma bandeira nacionalista, restringe-se a tratar de bibliografias
existentes em português, quando não referentes a temas de sua cidade.
Mesmo assim, a solução não está alcançada: como saberá ele o que está publi-
cado sobre certo tema ou autor, se, além das bibliotecas carentes, não dispõe de pu-
blicações que registrem, sistematicamente, o que se tem editado? E como saberá se
um determinado livro merece ser comprado?
Inevitavelmente, há de se guiar pelo renome do autor, o que, dadas as dificulda-
des de informação, suporá a passagem de muitos anos. Em suma, ou o nosso especia-
lista “entra na real” e reconhece que não tem condições de acompanhar a bibliogra-
fia, ou já existente ou que se acumula sobre seu objeto, ou procura uma janela para
o estrangeiro “civilizado”.

O mundo de fora

Manter contato com o mundo de fora torna-se uma questão de sobrevivência. A


perda de um desses contatos será quase igual a um desastre amoroso. Mas, cuidado,
não se deve aproveitar do contato para exagerar no luxo bibliográfico. Isso criaria,

46 • capítulo 2
entre seus pares, a suspeita de tratar--se de um erudito, palavra que equivale a “pes-
soa sem inspiração”.
De todo modo, quaisquer que sejam os cuidados suplementares, a janela para
fora dos trópicos é imprescindível. Daí a genialidade do anônimo inventor do que
se chama bolsa-sanduíche. É verdade que serve apenas aos doutorandos. Mas, sem
ela, como os doutorandos que tenham escolhido um tema não brasileiro poderiam
lhe dar profundidade?
A bolsa-sanduíche lhes permite passar alguns tantos meses em uma instituição
acadêmica (norte-americana ou europeia) com livre acesso a livros e revistas es-
pecializadas. Embora isso tenha certos pré-requisitos, em princípio, o mecanismo
funciona bastante bem. Se o nosso bolsista for esperto, aproveitará a oportunidade
para criar uma base lá fora ou, mais pragmaticamente, um sistema de trocas – “tu
me convidas e eu te convido” – que lhe permitirá voltar a lugares em que os livros
não são raridades. Retornará então ao Brasil com os olhos assentes na troca futura.
Pois isso de globalização deve funcionar para os que mexem com coisa mais volátil.

Sem exílio

Como no mundo dos homens há sempre os retardados, só agora entendo o que


se passou comigo há 20 anos. Cansado da ditadura, me candidatara a um posto em
universidade norte-americana. Como era uma posição que, depois de alguns anos,
podia se tornar permanente (tenure-track1), ao chegar o momento de pedi-lo, preferi
não o fazer. Depois de dois anos e tantos meses, decidi não passar o resto da vida
como imigrante. Ademais, a ditadura desmoronava.
Só agora entendo a reação dos colegas de então. Durante dias, tive de explicar que
minha recusa não tinha a ver com alguma ofensa; que era uma decisão pessoal etc.
Simplesmente não se convenciam de que alguém, por espontânea vontade, resolvesse
voltar a uma universidade brasileira.
Agora devo concluir que meus ex-colegas compreendiam melhor do que eu mesmo
o que me esperava: terminada a ditadura, já tivemos governos de centro, de centro(?)-
direita, de centro-esquerda(?), e a situação das bibliotecas e o exercício de atividade in-
telectual permanecem inalteráveis. Houve, por certo, alguma mudança, mas por conta
do desenvolvimento da eletrônica: as livrarias virtuais tornaram mais fácil o acesso a
obras que nos faltam, e as bibliotecas virtuais oferecem um socorro que se desconhecia.

1  Tenure-track: período inicial na carreira de um professor em universidades canadenses e estadunidenses.


Normalmente, dura cerca de 5 anos, até que o professor atinja o direito de estabilidade no emprego. Podemos
comparar o tenure-track ao período de estágio pro­batório nas repartições públicas no Brasil.

capítulo 2 • 47
Mas a ressalva tem claros limites. Dada a estreiteza de nossos bolsos, não pode-
mos encomendar às livrarias virtuais senão parca e modestamente. As bibliotecas
virtuais são bastante úteis, mas, exceto para as profissões técnicas mais bem ampa-
radas, quase se limitam aos clássicos. As soluções não seriam complicadas, se não
fôssemos, como dizia a autoridade, mais do que uma ínfima parcela do eleitorado.

Texto 2
O Brasil que cai no vestibular
Gilberto Dimenstein

Um sinal da crise brasileira aparece numa linha quase imperceptível no ranking,


divulgado na semana passada, dos cursos mais disputados da Universidade de São
Paulo. Essa linha mostra que cada vez menos jovens se sentem atraídos para a pro-
fissão de engenheiro – é o que se vê na relação candidato/vaga da Politécnica, uma
instituição de prestígio mundial.
Esse desinteresse está associado a décadas de baixo crescimento econômico,
acompanhado pelo sucateamento da infraestrutura como portos, aeroportos, estra-
das e usinas hidrelétricas. Está associado também aos mais diversos obstáculos, a
começar dos impostos altos, para quem deseja produzir. Por consequência, escasse-
aram e pioraram os empregos no setor.
Tanto se pode perceber a crise social pela baixa aprovação dos alunos de escolas
públicas – e isso todos já sabem – como pela preferência profissional dos estudantes.
É grave, por exemplo, o desinteresse por engenharia; afinal, essa categoria é cha-
ve para o desenvolvimento econômico e, se não atrai os melhores talentos, reduz a
oportunidade de novos projetos.

ATENÇÃO
Gilberto Dimenstein é vencedor de alguns dos principais prêmios brasileiros de Jornalismo e
de Literatura. Foi apontado pela revista Época em 2007 como umas das cem figuras mais in-
fluentes do país. Autor de reportagens de repercussão nacional e internacional sobre violência
contra crianças, coleciona em sua jornada a criação da entidade Cidade Escola Aprendiz, o site
Catraca Livre e o programa Mais São Paulo.

A Politécnica está abaixo, no ranking, até mesmo de licenciatura em química; li-


cenciatura, como se sabe, não é exatamente das áreas mais atrativas, uma vez que
forma professores. Está quase empatada com letras e não fica muito longe da filosofia.

48 • capítulo 2
Deve-se fazer a ressalva de que a Politécnica oferece mais vagas do que muitos dos
cursos que estão à sua frente e isso altera a relação candidato/vaga. Mesmo levando
em conta essa diferença, a queda é contínua, visível, aliás, já no ensino médio; escolas
procuradas tradicionalmente por candidatos a engenharia perceberam como os alu-
nos optam por outras carreiras.vocação, moda e prestígio. “Se faltam empregos e os
salários são baixos, é normal que a procura não seja tão intensa”, analisa.
O topo do ranking reflete o crescente apelo da comunicação, sintoma da chama-
da sociedade de informação; o primeiro lugar foi para publicidade. Está próximo de
jornalismo e de audiovisual. O curso de design foi lançado neste ano e estreou em
quinto lugar.
Também na frente, refletindo as mudanças do mercado e de comportamento dos
consumidores, aparecem relações internacionais (efeito da globalização), educação
física e fisioterapia (efeito do envelhecimento da população e da tendência por vida
mais saudável ou do medo da obesidade).
Num sinal das conquistas da mulher, o segundo curso mais concorrido (54 can-
didatos por vaga) é o de oficial feminino da Polícia Militar; uma relação cinco vezes
maior do que a da Politécnica.
Se a baixa procura pelos cursos de engenharia sinaliza a persistente crise provo-
cada pelo baixo crescimento, a crise social está estampada na base do ranking. En-
tre os cursos menos procurados, estão as licenciaturas, responsáveis pela formação
de professores. Tão grave quanto a procura é a qualidade dos candidatos, muitos
dos quais só conseguem entrar numa universidade pública apenas por essa porta e
não demonstram nenhuma vocação para o magistério.
Segundo estatísticas oficiais, existe atualmente, na rede pública, um déficit de 235
mil professores no ensino médio; e mais 500 mil de quarta a oitava séries. O déficit é
especialmente agudo em matemática, física, química e biologia. Há dados ainda pio-
res – aliás, muito piores. Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Educação, realizada em dez estados, em todos os níveis e redes de ensino, indica
que 53% dos professores em atividade estão na faixa dos 40 aos 59 anos e 38,4% têm
entre 25 e 39 anos. Só 3% dos professores em atividade têm entre 18 e 24 anos.
Por isso se diz, ironicamente, que o professor é uma espécie em extinção. E daí
se entende, em parte, por que somos uma nação de analfabetos e semianalfabetos.
Fala-se muito, e em todos os lugares, em crescimento sustentável. O ranking da Fu-
vest revela obstáculos para a prosperidade de uma nação. Um país em que as carreiras
de magistério e de engenharia não são atraentes sempre terá dificuldades de construir
um desenvolvimento econômico, social e político, seja por não criar trabalhadores qua-
lificados ou profissionais capazes de adaptar e desenvolver novas tecnologias.

capítulo 2 • 49
PS – Por essas e outras, uma das maiores obtusidades aparece numa pesquisa
divulgada na semana passada: cerca de 80% dos alunos do ensino médio técnico da
rede pública em São Paulo conseguem emprego, a imensa maioria deles com cartei-
ra assinada. Investir nesse segmento é tão importante quanto abrir vagas em uni-
versidades – afinal, cria emprego e mão de obra qualificada.

Folha de S.Paulo, 07/11/2005 – Cotidiano

Pergunta-se agora: o que faz os textos 1 e 2 não literários? Quais são as carac-
terísticas que os tornam não literários? Pense de forma prática, não é necessá-
rio teorizar isso. Leia e observe as diferenças, compare a linguagem, o conteú-
do, o tema, a veracidade dos fatos etc.
O que você encontrou poderia ser descrito da seguinte forma: eles não são
literários por trazerem: referência a fatos concretos; objetividade no tratamento
do tema; emprego de linguagem culta ou padrão; respeito à estrutura padrão da
página: linhas, parágrafos etc.; abordagem da realidade; apresentação e comen-
tário de notícias; construção, argumentação e defesa de opiniões; entre outras.
Observe que o texto 1 narra fatos (para explicar a situação das bibliotecas
universitárias) como um texto literário também faz (retome, por exemplo, o tex-
to de Machado de Assis, Ideias do canário).
E no texto 2? O autor faz uma reflexão pessoal sobre a crise profissional no
Brasil projetada pelos dados dos vestibulares, mas o texto Instruções para en-
tender um relógio, de Julio Cortázar, também traz uma reflexão sobre o papel
tirano exercido pelo relógio na modernidade. E agora, o que você me diz das
diferenças entre literatura e não literatura?
Esses questionamentos, feitos a partir da comparação entre textos literários
(vistos no capítulo 1) e não literários (vistos neste capítulo), servem para nos alertar
de que a distinção, embora possa parecer simples, é um pouco mais complexa.
À primeira vista, não temos dúvida em indicar quais textos são literários e quais
não são. É fácil reconhecê-los, mas não é nada fácil explicar por que são diferentes.
Já vimos que a narração não é característica exclusiva de texto literário, pois ela apa-
rece também em textos jornalísticos, notícias, reportagens. Vimos também que a
reflexão (o tratamento com as ideias) não serve para diferenciar o texto literário do
não literário, uma vez que ela pode aparecer nos dois tipos de texto.

50 • capítulo 2
2.5  Linguagem especial

Diante dessas dificuldades em se definir que fator seria capaz de distinguir tex-
to literário e não literário, há quem diga que a resposta pode ser encontrada no
tipo de linguagem empregada por cada espécie de texto.
Nessa linha de raciocínio, muitos (dentro e fora da teoria literária) argumen-
tam que o que faz um texto ser literário é o fato de ele apresentar uma linguagem
criativa, diferenciada, especial, incomum, se comparada à linguagem dos textos
não literários, considerada comum, padronizada, sóbria.
Será que a linguagem diferenciada dos textos literários seria a resposta que
tanto procuramos? Para tentar responder a isso, vamos recorrer a um gênero de
texto não literário: a propaganda.
Observe o texto abaixo:

UniSEB Interativo, a nova marca da Faculdade a Distância Interativa COC

Observe o jogo de palavras que compõe a mensagem. O slogan da propa-


ganda é inteligente e criativo, porque explora a ambiguidade (duplo sentido) da
expressão “nova marca” no enunciado.
“Nova marca” significa que a Faculdade Interativa COC é uma instituição que
oferece educação e ensino na modalidade “a distância” e que agora aparece com
uma nova logomarca. Na verdade, nossa instituição atua no mercado há tempos,
mas agora assume “nova marca” perante o público.
Mas o que isso tem a ver com nosso estudo sobre as características do texto
literário?
Se acabamos de ver que a propaganda também explora a linguagem no sen-
tido de torná-la especial e criativa, não podemos concluir que esse emprego
diferenciado da linguagem seja uma característica exclusiva da literatura em
relação aos outros tipos de texto (não literários).

capítulo 2 • 51
Certamente a linguagem especial, diferenciada ou criativa caracteriza a li-
teratura, mas esse tipo específico de linguagem não é responsável unicamente
pelo status literário de um texto.
Que outros elementos, além da linguagem criativa, podem ser apontados
como caracterizadores do fenômeno literário?

2.6  Subjetividade x objetividade

Para continuar nosso percurso, vamos recorrer a outro teórico da literatura,


Antônio Soares Amora, que nos oferece as seguintes definições introdutórias
(AMORA, 1973, p. 50):

[...] texto literário – transmite ao leitor concepções de uma realidade, subjetiva ou física,
a partir da visão particular do autor sobre algo vivenciado ou intuído por ele;
texto não literário – transmite ao leitor concepções de uma realidade, subjetiva ou fí-
sica, a partir da visão geral (racional e universal) do autor resultante de pesquisas com
base científica.

Segundo essas definições, a diferença entre o literário e o não literário esta-


ria em que o primeiro traz uma visão subjetiva do autor, enquanto o segundo
traz uma visão objetiva.
Primeiramente, é preciso lembrar que muitos textos não literários trazem vi-
sões subjetivas do autor (citemos os textos argumentativos, por exemplo, como edi-
toriais jornalísticos, críticas de arte, só para mencionar alguns).
Em segundo lugar, podemos fazer referência aos estudos de história da li-
teratura que realizamos desde o ensino médio, quando aprendemos que certas
escolas literárias se caracterizam por serem mais objetivas, enquanto outras
são mais subjetivas: nos dois casos, trata-se de estilos de literatura.
Portanto, nem a objetividade está completamente excluída da literatura
nem a subjetividade é privilégio exclusivo dos textos literários.
Quando se fala em objetividade e subjetividade nos textos, há que se pensar
sobre essa questão sempre pelo viés da predominância. Dificilmente encontra-
remos um texto somente objetivo ou somente subjetivo. Subjetividade e obje-
tividade se misturam, em graus e proporções variadas, dependendo do tipo de
texto. Por isso, devemos falar em predominância de uma ou de outra.

52 • capítulo 2
2.7  Forma e conteúdo: informação e criatividade

Podemos dizer que o texto não literário é informativo, diferentemente do


texto literário? Então, vamos ler o poema abaixo.

Poema tirado de uma notícia de jornal


Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no


morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

O poema anterior narra uma história, oferecendo informações precisas so-


bre ela; lendo-o, qualquer um sabe que João Gostoso tinha como profissão ser
carregador na feira, que morava no morro da Babilônia, em um barracão sem
número, que certa noite bebeu no bar Vinte de novembro, saiu de lá aparente-
mente feliz e que logo depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu.
Então, por que será que este é considerado um texto literário e as notícias ante-
riormente apresentadas não? Para isso vamos tomar emprestadas as palavras
de José Luís Fiorin e de Francisco Platão Savioli:

Quem escreve um texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas
palavras, de forma que, nele, importa não só o que se diz, mas também o modo como
se diz. A mensagem literária é autoconcentrada, isto é, o autor procura recriar certos
conteúdos na organização da expressão. Múltiplos recursos são usados para isso: rit-
mos, sonoridades, distribuição de sequências por oposições e simetrias, repetição de
palavras ou de sons (rimas) etc. [...[ falando do texto literário, [...] o que o distingue do
não literário é que, quando se resume este, apanha-se o essencial; quando se resume
aquele, perde-se o essencial. (PLATÃO & FIORIN, 2002, p.363)

Quando se resumiu o poema de Manuel Bandeira, perdeu-se o essencial.


Além da composição formal do poema que coloca as palavras “Bebeu, Cantou,

capítulo 2 • 53
Dançou”, em versos distintos, oferecendo, além de ritmo, a intenção simbólica
de gradação do estado de felicidade de João Gostoso; há também a utilização
de recursos linguísticos que dão literariedade ao texto, como, por exemplo, o
nome do sujeito – João Gostoso –, que conferem a ele um ar malandro, boêmio.
Já temos, então, uma ideia, mesmo que intuitiva, do que diferencia um texto
literário de um não literário.
O texto literário, como o poema que acabamos de ler, possui uma elabora-
ção estética especial. Há uma preocupação em ser criativo com a forma do tex-
to, utilizando recursos expressivos. Já vimos que essa elaboração especial não é
exclusiva da literatura, uma vez que aparece também em outros tipos de texto,
como a propaganda, as piadas, as tirinhas ou histórias em quadrinhos etc.
Pensemos, então, da seguinte maneira: se já conseguimos diferenciar os textos
literários daqueles cuja preocupação principal não é com a criatividade da forma,
o que diferencia a literatura dos textos que também apresentam essa criatividade?
Ao responder a essa pergunta, cairíamos na questão da finalidade ou da fun-
ção de cada gênero de texto nas interações verbais. O que não é nosso intuito,
por enquanto...

A pró-reitora de graduação da USP, Sônia Penin, avalia que a escolha profissional


dos alunos é baseada em alguns pontos: empregabilidade2,

ATIVIDADE
4.  Olhe atentamente a imagem abaixo a fim de refletir sobre a nossa realidade. Pense: o que
este texto não verbal revela a você?
© SOMYOT CHAMNANRITH | DREAMSTIME.COM

2  Empregabilidade: s. f.
1. Qualidade do que é empregável.
2. Capacidade para arranjar um emprego ou para se adequar profissio­nalmente a um emprego.
Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (http://www.pribe­ram.pt/dlpo/ )

54 • capítulo 2
5.  Crie um texto (narrativo, descritivo, dissertativo ou injuntivo – escolha a tipologia que pre-
ferir) e compartilhe-o com seus colegas.

1.  Defina o que é texto e explore sua composição.

2.  Diferencie:
a) texto literário e não literário
b) discurso literário e histórico
c) texto e discurso

3.  Explane sobre Literatura:


d) a linguagem especial
a) a subjetividade
b) a forma criativa
c) o conteúdo que informa

REFLEXÃO
Ao longo do capítulo, vimos que é necessário entender o que é texto para sermos capazes
de diferenciar texto e discurso.
Vimos também que o discurso pode ser, dentre outros, literário e histórico.
Estes elementos nos ajudam a entender a diferença entre texto literário e não literário.
Porém, vimos que o texto literário possui certas características específicas, como: uso especial
da linguagem, presença da subjetividade no discurso e forma criativa que informa pelo conteúdo.
De modo resumido, podemos reforçar as definições sobre o que diferencia um texto literário
de um não literário:
• Texto literário – finalidade estética; elaboração especial da linguagem, da forma, da expres-
são;
• Texto não literário – finalidade utilitária (prática, pragmática); elaboração predominante-
mente convencional da linguagem.

capítulo 2 • 55
LEITURA
Para ampliar as discussões realizadas neste capítulo, observando como o texto pode ser explo-
rado, sem perder de vista a perspectiva da leitura como construção de sentidos, leia o primeiro
capítulo do livro indicado a seguir. Ele aborda questões essenciais de como compreender um
texto, fornecendo-nos informações e dicas imprescindíveis, como, por exemplo, o fato de não ser
conveniente analisar partes isoladas do texto, e sim sua totalidade. Desenvolva mais seus estudos
lendo A lição 20, que trata de informações implícitas, as quais também foram estudadas aqui.
PLATÃO & FIORIN. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2005.

Leia também:
PALMA, Moacir Dalla. Discurso literário: linguagem intrinsecamente diferenciada ou
texto institucionalmente determinado? Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/
terraroxa/g_pdf/vol9/9_7.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014.

Veja ainda:
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Tradução de Cle-
onice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
(título original: Le démon de la théorie: littérature et sens commun, 1998).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Cultrix, 1973.

ANDRADE, Lílian Gonçalves de. Narrativa histórica e narrativa literária: pontos e contrapontos.
Disponível em: <www.seer.furg.br/biblos/article/download/95/49>. Acesso em: 5 maio 2014.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Tradução de Cle-


onice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
(titulo original: Le démon de la théorie: littérature et sens commun, 1998).

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo:
Beca Produções Culturais Ltda., 1999.

56 • capítulo 2
MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979.

DISCINI, Norma. Comunicação nos textos. São Paulo: Contexto, 2005.

FERRARI, M. Lev Vygotsky: O teórico do ensino como processo social. Nova Escola on line.
Edição especial, 10/2008. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-
-pedagogica/levvygotsky-teorico-423354.shtml >. Acesso em: 29 jun. 2010.

FIORIN, José Luiz. & PLATÃO, Francisco. S. Lições de texto: leitura e redação. Ática Univer-
sidade, 2002.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

GERHARDT et al. A cognição situada e o conhecimento prévio em leitura e ensino. In: Ciên-
cias & Cognição, vol. 14 (2): 74-91, 2009.

KATO, M. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1995.

WEEDWOOD, B. História concisa da linguística. São Paulo: Parábola, 2002.

MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979.

PALMA, Moacir Dalla, Discurso literário: linguagem intrinsecamente diferenciada ou texto


institucionalmente determinado? Disponível em: <http://www.uel.br/pos/letras/terraro-
xa/g_pdf/vol9/9_7.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014.

PLATÃO & FIORIN. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2005.

_________. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 2006.

VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brazileira. H. Garnier, 1907.41

SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José, José Paulo
Paes, Isidoro Blikstein. 25.ed. São Paulo: Cultrix, 1999.

capítulo 2 • 57
NO PRÓXIMO CAPÍTULO
De uma maneira muito simplificada, veremos assuntos relacionados à composição do texto literá-
rio sob a perspectiva aristotélica, diferenciando textos dramáticos e épicos, em especial a tragédia
e a comédia.

58 • capítulo 2
3
Introdução aos
Gêneros Classicos:
a Diferença entre
Tragédia e Epopeia.
3  Introdução aos Gêneros Classicos:
a Diferença entre Tragédia e Epopeia

Neste terceiro capítulo, vamos fazer algumas reflexões sobre os estudos de


Aristóteles, conhecendo um pouco de suas reflexões acerca da retórica e da
poética1, ressaltando que esta última obra é uma reflexão acerca dos gêneros
dramático e épico.
É importante pensarmos um pouco sobre os gêneros poéticos que ele cita,
como a tragédia e a epopeia, bem como atentar para as suas semelhanças e
diferenças, para que sejamos capazes de elaborarmos nosso conhecimento,
construindo nosso saber, a partir de elementos tão significativos da produção
humana desde à época da antiguidade clássica greco-romana.
Convidamos você, aluno e estudante, a enriquecer sua alma com mais cultura e
a viajar conosco por meio deste capítulo.

OBJETIVOS
• Tomar conhecimento acerca da obra O nome da Rosa, de Umberto Eco.
• Conhecer parte do repertório de textos representativos da antiguidade greco-romana de
forma a propor aos alunos matéria de reflexão sobre questões literárias e linguísticas.
• Apresentar e analisar aspectos relevantes do imaginário greco-romano documentados no
teatro.
• Que você seja capaz de conhecer um discurso poético e seus gêneros dramático e épico.
• Diferenciar tragédia e epopeia.

REFLEXÃO
Você se lembra de algum escritor chamado Aristóteles?
Você se lembra de que ele escreveu uma obra chamada a Retórica?
Você se lembra que ele escreveu outra obra chamada de Poética?

1  O termo “poética” deve ser entendido aqui, como arte da palavra.

60 • capítulo 3
Que tal você relembrar sua vida familiar e escolar? Com certeza, constatará que várias obras
pertencentes ao estudo dos clássicos esteve presente desde nosso tempo de criança até
a juventude.

3.1  Considerações iniciais

Aristóteles escreveu as obras Retórica e Poética, sendo esta segunda obra


importantíssima para a crítica literária, pois trabalha a arte da palavra. As duas
obras tratam da arte em sua dimensão de discurso e narrativa, por isso são es-
senciais para o estudante do curso de Letras.
A arte retórica é considerada a mais antiga disciplina relacionada à lingua-
gem e diz respeito à capacidade da eloquência, atividade muito importante na
Atenas dos séculos V e IV a.C.
A Retórica estabelece as linhas essenciais da prática discursiva e dos proces-
sos da oratória, bem como a forma de racionalidade. O tratado analisa a fundo
as diversas partes do discurso.

ATENÇÃO
A Retórica é uma obra dividida em três livros.
Livro I – Quinze capítulos. A primeira parte estabelece a relação entre retórica e dialética. A
segunda dedica-se às provas técnicas presentes no interior do discurso e a terceira, capítulo
final, analisa as prova extratécnicas, que são independentes do discurso (leis, depoimentos,
testemunhas, juramentos, torturas etc.).
Livro II – São vinte e seis capítulos dedicados aos outros tipos de provas do discurso, as mo-
rais e subjetivas e as lógicas. Estas últimas são para Aristóteles as mais importantes.
Livro III – Os dezenove capítulos deste livro são dedicados ao estudo da forma, ao vocabulário
oratório e à análise da frase em diferentes formas.

Aristóteles também escreveu outra obra importantíssima para a crítica lite-


rária, chamada de Poética, pois trabalha a arte da palavra. Você sabia que, com
o passar do tempo, não sobrou quase nada da Poética?
Quanto à Poética, não sobrou quase nada, em razão dos passar dos tempos.
Você já deve ter ouvido falar na obra O nome da Rosa, do escritor Umberto Eco.

capítulo 3 • 61
Vejamos um excerto desta obra:

Chegado ao fim da minha vida de pecador, enquanto velho encanecido como o mundo,
à espera de me perder no abismo sem fundo da divin-
dade silenciosa e deserta, participando da luz incomu-
nicável das inteligências angélicas, retido agora pelo
meu corpo pesado e doente nesta cela do querido
mosteiro de Melk, disponho-me a deixar neste velo tes-
temunho dos admiráveis e terríveis eventos a que na
juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim
quanto vi e ouvi, sem ousar tirar daí nenhum desígnio,
como para deixar àqueles que hão-de vir (se o Anticris-
to não os preceder) sinais de sinais para que sobre eles
se exercise a prece da decifração.

O Senhor me concede a graça de ser testemunha transparente dos acontecimentos


que tiveram lugar na abadia de que é bom e piedoso calar agora o próprio nome ao fin-
dar o ano do Senhor de 1327, em que o imperador Luís desceu à Itália para reconstituir
a dignidade do sacro Império Romano, segundo os desígnios do Altíssimo e para con-
fusão do infame usurpador simoníaco e heresiarca que em Avinhão cobriu de vergonha
o santo nome do apóstolo (digo, a alma pecadora de Jacques de Cahors, que os ímpios
veneraram como João XXII).

Disponível em <http://gephisnop.weebly.com/uploads/2/3/9/6/23969914/o_nome_da_
rosa_-_umberto_eco.pdf>. Acesso em: 2 maio 2014.

Há um filme baseado no livro, com o mesmo nome, escrito pelo escritor


Umberto Eco.

CONEXÃO
O livro O nome da Rosa está disponível em:
<http://gephisnop.weebly.com/uploads/2/3/9/6/23969914/o_nome_da_rosa_-_umber-
to_eco.pdf >. Acesso em: 2 maio 2014.

62 • capítulo 3
© PETITFRERE | DREAMSTIME.COM
Você sabia que, no filme, o livro que aparece como proibido é a parte da Poéti-
ca que, supostamente, trataria da comédia e que foi destruído por ser considera-
do “perigoso” sob a perspectiva religiosa, pois poderia abalar o poder da Igreja?
Com certeza, você se lembra de Sean Connery, que representa a parte reli-
giosa da obra...
© CARRIENELSON1 | DREAMSTIME.COM

capítulo 3 • 63
Para termos uma visão mais detalhada da obra do escritor Umberto Eco e
ainda saber o motivo do título do livro, vamos ler o artigo de O nome da Rosa, de
Ebrael Shaddai.

Este foi o romance que deu a conhecer Umberto Eco ao grande público, constituindo
um enorme êxito de vendas no Brasil desde que foi publicado pela primeira vez, e con-
tinua ainda a ser uma obra bastante popular. E não é de espantar: escrito com imenso
humor, o romance dá-nos a conhecer de uma forma expressiva o que era viver num
mosteiro medieval. O tema central do romance é a liberdade de estudo e de ensino, a
livre circulação do conhecimento. Mergulhada em obscurantismo durante séculos, os
mosteiros cristãos constituíam fortalezas onde o conhecimento era preservado com
imensas dificuldades. Dada a inexistência da imprensa, os livros tinham de ser copiados
à mão por monges dedicados; em consequência, os livros eram bastante raros e de
difícil acesso. A ideia ainda hoje popular de que os antigos eram muito sábios resulta
em parte da falta de circulação do conhecimento que persistiu até a revolução científica
dos séculos XVII e XVIII. Newton, por exemplo, teve por várias vezes a experiência de
fazer redescobertas matemáticas que tinham sido conhecidas séculos antes, mas que
entretanto se tinham perdido por falta de circulação do conhecimento.
Evidentemente, havia outros obstáculos à livre circulação do conhecimento, na Idade Mé-
dia, além do problema tecnológico de não existir ainda a imprensa. Um dos mais impor-
tantes, tema central deste livro, era o dogmatismo religioso, que encarava o conhecimento
como potencialmente perigoso. O romance de Umberto Eco apresenta-se como um livro
de detetives: uma série de misteriosas mortes afetam um mosteiro e o protagonista tem
por missão descobrir a verdade, um pouco ao estilo de Sherlock Holmes. O contraste
entre as novas ideias mais abertas e racionais, mais voltadas para a experiência empírica,
e os velhos hábitos fechados e místicos, de costas voltadas para a informação que pode-
mos obter pela experimentação cuidadosa, desempenha também um importante papel
no romance. Como é também costume nas histórias de Sherlock Holmes, as mortes a
investigar têm à primeira vista um aspecto sobrenatural, mas no fim acaba por haver uma
explicação muito humana, demasiado humana, de todas as mortes. Entretanto, o leitor fica
preso da primeira à última página, precisamente para saber como se resolve o mistério.
As mortes são o resultado do dogmatismo religioso de um monge, apostado em impedir
que um livro julgado perdido de Aristóteles, sobre o riso, possa ser conhecido. E este é
um dos aspectos mais profundos e bem conseguidos do romance: poderia pensar-se
que matar outras pessoas por causa de um livro sobre o humor não passa de invenção

64 • capítulo 3
de um romancista ocioso, mas isso seria ignorar que a maior parte dos crimes que
assolam a humanidade têm por base o dogmatismo intolerante de quem pensa ter o
monopólio da verdade e o direito de a impor aos outros.
Alguns aspectos do romance poderão ser menos simpáticos. O autor parece apostado
em atirar aos olhos do leitor uma imensidão de conhecimento histórico, o que por vezes
acaba por tornar a leitura menos agradável, apesar de fazer as delícias dos diletantes. A
imaginação fervilhante do autor acaba por vezes por ser labiríntica, levando a que quase
se perca o fio da história. Mas a bondosa relação do protagonista com o seu discípulo,
a sua defesa da racionalidade límpida e sem cedências, a oposição ao dogmatismo que
procurava fazer paralisar o conhecimento — todos estes elementos fazem deste romance
uma experiência inesquecível.
O título do livro surge na última frase do livro, “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda
tenemus”, que se pode traduzir do seguinte modo: “A rosa antiga permanece no nome,
nada temos além do nome”. A ideia é que mesmo as coisas que deixam de existir ou
que nunca existiram deixam atrás de si um nome. Eco refere-se talvez ao fato de o Livro
do Riso, de Aristóteles, no centro da ação, não ter existido realmente, ou apenas ao fato
de, ficcionalmente, ter deixado de existir, deixando apenas o seu nome.

SHADDAI, Ebrael. O nome da Rosa. Disponível em <http://ebrael.wordpress.com/2009/02/23/


o-nome-da-rosa-umberto-eco-com-link-para-download/>. Acesso em: 4 de maio 2014.

Como podemos verificar em nossas considerações introdutórias, a literatu-


ra clássica faz parte de nossas vidas e nós nem nos damos conta disso.
Nesse capítulo, refletimos sobre esse tesouro cultural que nos é mantido
através dos tempos, reencontrando os estudos clássicos de forma sistematiza-
da e ainda mais interessante.
Importante destacar que a literatura clássica universal é o clássico que está ain-
da mais presente e revigorado a cada dia, a cada leitura, a cada nova descoberta.
Desse modo, estudar os clássicos de forma diferenciada é de extrema valia.
Por isso devemos, no momento de leitura, ter atenção às situações de criação
das obras, principalmente às habilidades de nossos escritores imortais, para
que seja despertada em nós, educadores e futuros educadores, toda a magia e
grandeza da literatura universal.
Nossa finalidade maior é contribuir para uma boa formação humanística, tanto
no que diz respeito à sua vida acadêmica, à sua vida profissional e, principalmente,
à sua vida enquanto pessoa que luta e preza pela cultura de nossos antepassados.

capítulo 3 • 65
Nesse capítulo, tratamos de aspectos teóricos e práticos da literatura consi-
derada clássica e fizermos algumas reflexões sobre a humanidade.
Aspectos práticos da construção de alguns gêneros literários clássicos,
como a epopeia, a tragédia e a comédia, bem como da interpretação de nossas
ideias e ideais que são refletidos nas obras em análise também fazem parte de
nossas reflexões e estudo.

CONEXÃO
Acesse < http://depositfiles.org/files/2i3fx2908>, para fazer o download do filme O nome da
Rosa, de Umberto Eco.

Autores e os temas que fazem parte produções épica e dramática serão revi-
sitados. Num passe de mágica, faremos algumas viagens pelo mundo clássico
greco-romano.
Dentro dessa perspectiva, haverá espaço para reflexões e orientações sobre
os gêneros clássicos. Vamos ainda abordar a literatura em sua concepção histó-
rica, com sugestões para uma boa compreensão do que somos hoje.

3.2  Poética: introduzindo os gêneros clássicos

Neste item, apresentaremos explicações e comparações de Aristóteles acerca


dos gêneros dramático e épico. Abordaremos as diferenças entre:
•  Tragédia e epopeia;
•  Tragédia e comédia.

A Poética é uma obra mutilada. O que chegou dela até nós são, em grande par-
te, excertos recuperados de seu primeiro livro, que trata da tragédia2 e da epo-
peia. O Livro II, que, segundo alguns estudiosos, referia-se à comédia, perdeu-se.

2  Tragédia: (grego tragodía, -as) s.f.


1. Peça de teatro cujo desfecho é um acontecimento funesto.
2. Género trágico.
3. Fig. Cena ou acontecimento triste, grave ou perigoso = catástrofe, desgraça
Epopeia: s. f.
1. Poema que tem por assunto ações ou acontecimentos grandiosos.
2. Fig. Série de grandes acontecimentos.
Hexâmetro: adj. s.m. adj. s.m.
De seis pés (verso).
Disponível em <http://www.priberam.pt/DLPO/Default.aspx>. Acesso em: 25 fev. 2010.

66 • capítulo 3
Assim acredita-se, pois, em vários momentos do primeiro livro, faz-se referência
ao fato de se tratá-la mais adiante, como demonstra Aristóteles:“Falaremos mais
tarde da imitação por meio do verso hexâmetro e da comédia.” (p. 246)
Não se sabe ao certo se a Poética foi escrita antes ou depois da Retórica, mas
acredita-se que tenha sido anterior, devido às diversas referências que Aristóte-
les faz a ela nos livros da Retórica.
Por poética entende-se, segundo o pensamento grego, tudo aquilo que é
criação humana em sua capacidade de imitar pela voz, por isso existem dife-
rentes formas de poéticas: dança, lírica, tragédia, comédia, diálogos, elegias3,
épica, música vocal etc.

Notável filósofo grego, Aristóteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, colônia de ori-
gem jônica encravada no reino da Macedônia. Filho de Nicômaco, médico do rei Amin-
tas, gozou de circunstâncias favoráveis para seus estudos.
Em 367 a.C., aos seus 17 anos, foi enviado para a Academia de Platão em Atenas, na
qual permaneceu por 20 anos, inicialmente como discípulo, depois como professor, até
a morte do mestre em 347 a.C.
O fato de ser filho de médico poderá ter dado a Aristóteles o gosto pelos conhecimentos
experimentais e da natureza, ao mesmo tempo em que teve sucesso como metafísico.

Disponível em:<http://www.pucsp.br/pos/cesima/schenberg/alunos/paulosergio/biografia.
html>. Acesso em: 2 maio 2014.

Aristóteles, no que chegou até nossos dias, ocupa-se em analisar a tragédia


e a epopeia, entendendo-as como arte por seu ritmo e sua linguagem, por isso é
uma obra de extrema importância para a crítica literária.
Aristóteles começa dizendo que a arte não está subordinada à moral, mas
em nenhum momento dissocia uma da outra. Dentre as formas de imitação
da arte estão a narrativa e a dramática, sendo que o drama tem sua ação imita-
da pelas personagens, enquanto que a narrativa (nesse caso está se referindo à
epopeia) não. Entre os dois tipos de drama – comédia e tragédia – Aristóteles

3  Elegia: s.f. 1. Liter. Poema sobre assunto triste ou lutuoso. 2. Liter.


Poema constituído por hexâmetros e pentâmetros alternados. 3. Fig. lamentação.
Pentâmetro: adj. s.m. adj. s.m.
Verso grego ou latino de cinco pés.
Disponível em:<http://www.priberam.pt/DLPO/elegia>. Acesso em: 25 fev. 2010.

capítulo 3 • 67
elege a tragédia como gênero superior, mesmo quando relacionada à epopeia.
Veja a abertura de seu primeiro capítulo.

Propomo-nos a tratar da produção poética em si mesma e de seus diversos gêneros,


dizer qual a função de cada um deles, como se deve construir a fábula, no intuito de ob-
ter o belo poético; qual o número e natureza de suas diversas partes, e falar igualmente
dos demais assuntos relativos a esta produção. Seguindo a ordem natural, começare-
mos pelos mais importantes [...]. A epopeia e a poesia trágica e também a comédia [...].
Contudo há entre estes gêneros três diferenças: seus meios não são os mesmos, nem
os objetos que imitam, nem a maneira de os imitar.
[...] Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser senão
bons ou maus [...] daí resulta que as personagens são representadas ou melhores ou pi-
ores ou iguais a todos nós [...] e também nas obras em prosa, nos versos não cantados;
por exemplo, Homero pinta o homem melhor do que é. [...] A mesma diferença distingue
a tragédia da comédia: uma propõe-se a imitar os homens, representando-os piores, a
outra melhores do que são na realidade.

Após algumas considerações sobre as diferentes formas de imitação e suas


especificidades segundo o gênero poético, Aristóteles faz uma comparação en-
tre a tragédia e a epopeia. Ocupa-se em diferenciar a primeira (tragédia) da se-
gunda (epopeia), esclarecendo que aquela possui uma unidade de tempo que
não ultrapassa um dia, enquanto que esta não está sujeita ao tempo.

Quanto à epopeia, por seu estilo corre parelha com a tragédia na imitação dos assuntos
sérios, mas sem empregar um só metro simples e a forma narrativa. Nisto a epopeia difere
da tragédia. [...] E também nas dimensões. A tragédia empenha-se na medida do possível,
em não exceder o tempo de uma revolução solar, ou pouco mais. A epopeia não se limita
assim em sua duração; e esta é outra diferença. [...] Se bem que, no princípio, a tragédia,
do mesmo modo que as epopeias, não conhece limite de tempo. [...] Quanto às partes
constitutivas, umas são comuns à epopeia e à tragédia, outras são próprias desta última.
[...] Por isso quem numa tragédia souber discernir o bom e o mau, sabê-lo-á também na
epopeia. Todos os caracteres que a epopeia apresenta encontram-se na tragédia, mas
nem todos os caracteres desta última encontram-se na epopeia. (ARISTÓTELES, p. 246).

68 • capítulo 3
O que nos restou da Poética de Aristóteles, ainda que na esperança de recuperação da
parte perdida no futuro, constitui um preciosíssimo estudo de duas formas célebres da
poesia – a trágica e a épica – caracterizado pela clareza e o tratamento sistemático e
meticuloso do Estagirita. Como a Retórica, a Poética dirige-se a um público muito mais
amplo do que o dos tratados acroamáticos de Aristóteles. Assim, não só aqueles que
são classificados atualmente por nós como estudantes e estudiosos de filosofia e de
poesia obtêm de sua leitura atenta um grande e indiscutível proveito, como também os
interessados na literatura em geral, na crítica literária, no teatro, no jornalismo e todos
que se ocupam da linguagem e da comunicação humanas.

Disponível em: <http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3672824?PAC_ID=18675>. cesso


em: 2 maio 2014.

Após uma breve explicação sobre os gêneros poéticos, Aristóteles vai, então,
dedicar-se à análise da estrutura da tragédia, dividindo-a em três unidades bá-
sicas: tempo, espaço e ação. Unidades que precisam estar bem delimitadas no
drama trágico.

[...] convém que a imitação seja uma e total e que as partes estejam de tal modo entrosa-
das que baste a suspensão ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique
modificado ou confundido. (ARISTÓTELES, p. 251).

Segundo ele, a tragédia é sempre a imitação de uma ação completa, com


começo, meio e fim.

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão [...] como a
imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem, é absolutamente
necessário que estas personagens sejam tais ou tais pelo caráter e pelo pensamento [...]
e de acordo com estas influências o fim é alcançado ou falhado. (ARISTÓTELES, p. 250).

capítulo 3 • 69
CONEXÃO
Para saber mais sobre a imitação, acesse O conceito de mimesis na Poética de Aristóteles, dis-
ponível em <http://www.geocities.ws/ferreavox/mimesis.html>: com acesso em 2-5-2014.

Sobre a epopeia, o pensador discorre um pouco menos, aliás, bem menos.


Além das diferenças que tece anteriormente, dedica somente três capítulos ex-
clusivamente a esse gênero.

A epopeia deve apresentar ainda as mesmas espécies que a tragédia: deve ser simples
ou complexa, ou de caráter, ou patética. Os elementos essenciais são os mesmos, salvo
o canto e a encenação [...]. Todos estes méritos, Homero foi o primeiro que os teve à
disposição e os empregou de maneira conveniente [...] a epopeia goza de uma vantagem
peculiar no concernente à sua extensão: enquanto na tragédia não é possível imitar, no
mesmo momento, as diversas partes simultâneas de uma ação, exceto a que está sendo
representada em cena pelos atores; na epopeia, que se apresenta em forma de narrativa,
é possível mostrar conjuntamente vários acontecimentos simultâneos, os quais, se esti-
verem bem conexos com os assuntos, o tornam mais grandioso. (ARISTÓTELES, p. 280).
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Estátua de Aristóteles

70 • capítulo 3
Isso ocorre porque ele acredita ser a tragédia muito superior ao gênero épi-
co. Dedica, inclusive, um capítulo inteiro – o último – para comprovar a supe-
rioridade da tragédia sobre a epopeia:

[...] Acresce que a tragédia, mesmo não acompanhada de movimentação dos atores,
produz seu efeito próprio, tal como a epopeia, pois só a leitura permite avaliar-lhe a
qualidade [...] Em seguida, ela contém todos os elementos da epopeia; com efeito pode
utilizar o metro desta última, e, além disso – o que não é de pouca importância – dispõe
da música e do espetáculo, que concorrem para gerar visivelmente o mais intenso praz-
er que lhe é peculiar. Além disso, sua clareza permanece intacta, tanto na leitura, como
na representação. De mais a mais, com um desenvolvimento menor, ela alcança seu
objetivo, que é imitar; ora, o que é mais concentrado proporciona maior prazer do que é
diluído por longo espaço de tempo – pense-se o que seria de Édipo tratado no mesmo
número de versos que a Ilíada. Além disso, a imitação em qualquer epopeia apresenta
menor unidade que na tragédia [...]. Portanto, se a tragédia se distingue por todas estas
vantagens e mais pela eficácia de sua arte [...] é evidente que, realizando melhor sua
finalidade, ela é superior à epopeia. (ARISTÓTELES, p. 287-288).

Vale dizer, então, que Aristóteles considera a tragédia superior por produzir
um prazer maior e mais “concentrado” do que a epopeia. Isso pode parecer
estranho aos olhos de sujeitos “pós-modernos” do século XXI como nós, mas
para um grego, em Atenas, era óbvio.
© SPROD | DREAMSTIME.COM

capítulo 3 • 71
© SERGII KORSHUN | DREAMSTIME.COM
Curiosidade
Tanto a sociedade espartana quanto a ateniense entendiam o prazer como ob-
jetivo do ser humano (que para eles era o cidadão ateniense do sexo masculi-
no), buscavam este prazer de várias formas: na modelagem de seus corpos no
ginásio, na arte da política e da retórica, na arquitetura e na arte poética.
© VALERY109 | DREAMSTIME.COM

72 • capítulo 3
The Temple of Olympian Zeus also known as the Olympieion or Columns of the Olympi-
an Zeus, is a colossal ruined temple in the centre of the Greek capital Athens that was
dedicated to Zeus, king of the Olympian gods. Construction began in the 6th century BC
during the rule of the Athenian tyrants, who envisaged building the greatest temple in the
ancient world, but it was not completed until the reign of the Roman Emperor Hadrian
in the 2nd century AD some 638 years after the project had begun. During the Roman
periods it was renowned as the largest temple in Greece and housed one of the largest
cult statues in the ancient world.

Disponível em <http://www.dreamstime.com/royalty-free-stock-images-atens-temple-olympian-
zeus-also-known-as-olympieion-columns-colossal-ruined-centre-image35780899>, com acesso
em 2 maio 2014.

ATIVIDADE
6.  Quais são as obras aristotélicas que tratam da arte da palavra apresentadas neste capítulo?

7.  O que é tragédia?

8.  O que é comédia?

9.  Diferencie tragédia de epopeia.

10.  Por que Aristóteles considera a tragédia superior à comédia e à epopeia?

REFLEXÃO
Como vimos, Aristóteles se dedica ao estudo da arte da palavra em duas obras. A retórica
aborda a arte do convencimento por meio do emprego correto da linguagem, com técnicas
argumentativas capazes de convencer um público.
Apreender que Aristóteles se debruça sobre a criação poética é importante, pois acredita
ser ela uma manifestação natural e um instinto fundamental do homem em relação ao belo.
Como remate, vale observar que o pensador não examina, em nenhum momento, as condições
individuais da produção artística do poeta, pois ele não está preocupado com o gênio artístico,

capítulo 3 • 73
ou seja, com o poeta e sua inspiração, sua história. Ele entende que a arte possui como fim
em uma obra algo que é exterior ao artista e isso é o que lhe interessa: verificar como o belo é
produzido, sua grandeza, sua unidade (coordenação, proporção, simetria) e sua precisão.
Aristóteles acredita, então, que a poesia é uma forma de externar a beleza, e que o drama,
por sua caracterização, é a mais eficiente, mais hábil em tratar das coisas humanas.

LEITURA
ARISTÓTELES. Arte poética. Disponível em:<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2235>. Acesso em: 2 maio 2014.

ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Record, s/d.

SÓFOCLES. Édipo rei. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Deta-


lheObraForm.do?select_action=&co_obra=2255>. Acesso em: 4 maio 2014.

SÓFOCLES. Édipo rei, Sófocles. Paulo Neves (trad.). Porto Alegre: L & PM, 1998.

VERNANT, Jean-Pierre. VIDAL – NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. São
Paulo: Perspectiva, 1999. (Coleção Estudos).

Sugestão:
Você também pode assistir a um filme disponível sobre a tragédia de Sófocles: Édipo Rei, de
Pier Paolo Pasolini, de 1967. O filme envolve a seguinte trama: antes da Segunda Guerra, na
Itália, um casal de jovens tem um menino e, tentando fugir, a criança é tomada dos pais no
deserto para ser assassinado. Mas a criança acaba nos braços do Rei e da Rainha de Corin-
tho, que lhe dão o nome de Édipo (Franco Citti). O que Édipo não espera é que seu destino
está traçado e envolve uma terrível tragédia em sua família.

74 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Ediouro. (Clássicos de bolso).

ECO, Umberto. O nome da rosa. Disponível em: <http://gephisnop.weebly.com/uploads/2/3/9


/6/23969914/o_nome_da_rosa_-_umberto_eco.pdf>. Acesso em: 2 maio 2014.

SHADDAI, Ebrael. O nome da Rosa. Disponível em: <http://ebrael.wordpress.com/2009/02/23/


o-nome-da-rosa-umberto-eco-com-link-para-download/>. Acesso em: 4 março 2014.

VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. São Paulo: Edusp,2002.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No capítulo 4 estudaremos a gestão de projetos, vamos conhecer suas principais características,
analisar a gestão de projetos, discutir o papel do gerente de projetos, sua representação por meio
do diagrama de rede, assim como apresentar alguns exemplos de aplicação prática e algumas
convenções para sua utilização.

capítulo 3 • 75
4
O Texto Dramático
4  O Texto Dramático
Os gêneros literários, classificados por Platão e Aristóteles, mantêm-se (apesar
de controvérsias) inabalados; são ainda: os gêneros lírico, épico e dramático.
O primeiro é considerado mais subjetivo, a distância entre sujeito e objeto
não se define.
O gênero épico caracteriza-se por sua objetividade, pela distância entre o
narrador e o mundo narrado.
O terceiro gênero, dramático, é ainda mais objetivo, ou melhor, indepen-
dente de um narrador e de um eu lírico. Mas tal caracterização não pode ser
entendida de maneira categórica, rígida.
Neste capítulo, vamos nos dedicar ao estudo do drama como gênero e suas
espécies, com destaque para a tragédia e comédia.

OBJETIVOS
•  Definir o que é drama.
•  Diferenciar o gênero dramático de outros.
•  Identificar e reconhecer a tragédia e sua composição.
•  Identificar e reconhecer a comédia e sua composição.
•  Diferenciar a tragédia da comédia.

REFLEXÃO
Você se lembra de ter ido algum dia ao teatro?
Você se lembra de que a arte dramática é milenar?
Você sabia que a maioria dos temas que hoje estão presentes nas novelas (amor, traição, vin-
gança, incesto, desavenças familiares) televisivas já eram discutidos em profundidade pelos
dramaturgos gregos?

78 • capítulo 4
© ALEXANDRE FAGUNDES DE FAGUNDES | DREAMSTIME.COM

Teatro Massimo by Night Sicily Italy

Você se lembra de quantas vezes riu, chorou, emocionou-se com as personagens em cena?
Você se lembra de que o gênero dramático, na Antiguidade Clássica, teve grande importân-
cia, pois, em suas origens, tanto gregas e latinas, como medievais, está associado aos rituais
em culto ao deus Dioniso, deus do vinho, da máscara e da metamorfose?
Você se lembra de que esse gênero envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno
literário, temos o texto e a linguagem, de outro, as técnicas de representação, o espetáculo,
que tem como referência a peça escrita (texto literário). Existem, portanto, opiniões diversas
sobre o gênero dramático e seu caráter literário.
Você se lembra de que o texto dramático só pode ser caracterizado como tal no instante em
que ultrapassa seu gênero literário, no momento em que extravasa a literatura?

4.1  Introdução ao drama: Representação da realidade


e algumas definições.

O gênero dramático, desde a Antiguidade clássica, teve grande importância,


pois, em suas origens tanto gregas e latinas como medievais, está associado aos
rituais em culto ao deus Dioniso, deus do vinho, da máscara e da metamorfose.

capítulo 4 • 79
Esse gênero envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno literário, te-
mos o texto e a linguagem; de outro, as técnicas de representação, o espetáculo,
que tem como referência a peça escrita (texto literário). Existem, portanto, opini-
ões diversas sobre o gênero dramático e seu caráter literário.
A peça é um elemento importante para o teatro, mas não é indispensável.
Segundo Anatol Rosenfeld, “o fenômeno fundamental do teatro é a metamor-
fose, o mimus, nada de literário, portanto. há formas de teatro – e de grande
teatro – que não se apoiam em textos fixos e há teatro que nem sequer recorre à
palavra.” (ROSENFELD; 1993, p. 35).
Palco e literatura estabelecem uma relação complexa, e o teatro não pode
ser reduzido somente à literatura. Há uma lógica diferente, pois, enquanto
na literatura os personagens são dependentes da palavra, no teatro a palavra
depende dos personagens. O trabalho do ator e a cena são fundamentais para
evidenciar, de imediato, o imaginário – na literatura, o universo imaginário se
mostra de maneira indireta, tendo, como via intermediária, a palavra.
No texto teatral, a palavra apresenta-se de forma expressiva, apoiada pelos
atores e inserida no espaço cênico. “A palavra contribui em seguida para defi-
nir, ampliar e enriquecer o mundo imaginário já constituído e dado à visão”
(1993; p. 37). O teatro constitui-se, assim, em uma arte audiovisual.
No entanto, para o drama rigoroso, a extrema objetividade dramática é fun-
damental. A ausência de intermediários faz com que a realidade seja imediata e
subjetiva – as personagens são sujeitos manifestantes desta realidade. “Ao fato
de no palco a personagem constituir a língua (e não esta a personagem) corres-
ponde na peça o curioso fenômeno de a personagem, produzindo a língua, se
produzir a si mesma ou as personagens se produzirem mutuamente no diálo-
go” (ROSENFELD; p. 40).
A peça rigorosa seria construída por um diálogo, que não constituiria mera
comunicação. O diálogo seria a ação projetada para o futuro, ou seja, o diálogo
é que dá o movimento à ação dramática, que estabelece o conflito e os momen-
tos de tensão em busca do equilíbrio. As personagens são autônomas, o mundo
exterior faz parte de sua consciência e se reduz ao diálogo.
O drama1 puro não pode ser encontrado; deparamo-nos apenas com aproxi-
mações deste ideal, assim como não encontramos o tipo ideal do drama aberto
– com tendência épica. Mas ambos os tipos de drama pretendem perceber o

1  Drama: gênero de texto literário produzido para ser representado no teatro.

80 • capítulo 4
homem e sua relação com o mundo. O drama rigoroso estabelece uma relação
antropocêntrica e individualista e o drama aberto relaciona o homem de ma-
neira a minimizá-lo perante o universo.
O mundo atual impossibilita a visão fechada do drama rigoroso, obrigando-
-o a uma abertura e, assim, o diálogo necessita de recursos cênicos e da mimese
do ator. O teatro retrata aquilo que é imperceptível ao diálogo: a loucura, o uni-
verso inconsciente, “isto é, o infrapessoal (...); o coletivo, isto é, o não pessoal ou
o mito, isto é, o suprapessoal.” (ROSENFELD, 1993; p. 45). O drama, como ação
e movimento, capta a crise moderna e a transporta para o teatro; este, por sua
vez, repensa o próprio drama e estrutura-se conforme as novas contradições.
Se pensarmos o gênero dramático em sua história e modernidade, temos, no
final do século XIX e início do XX, transformações ocorridas no campo das ar-
tes decorrentes de mudanças na esfera científica e social, as quais determinam
um novo conceito de homem e outra posição do ser no universo, portanto uma
nova concepção deste gênero. Como reflexo da passagem de séculos, o teatro so-
fre também influências desse tempo em transformação e rompe com as formas
tradicionais de sua arte. O teatro moderno que se anuncia no século XX não tem
mais a pretensão de ser cópia da realidade, na medida em que procura estabe-
lecer uma relação estreita entre palco e plateia, quebrando, assim, a ilusão, ao
confundir o espaço e o tempo da ação dramática com o presente da plateia.
Essa nova orientação do teatro corresponde a uma nova concepção de ho-
mem: ser que não possui mais um ego coeso capaz de se deixar governar por si
mesmo, de modo racional. O herói incorpora a complexidade do novo tempo: a
irracionalidade interior e exterior a esse homem que, diante da complicação do
mundo capitalista, perde sua autonomia. O diálogo, sem assimilar o inconscien-
te, entra em crise e, consequentemente, o teatro (e as artes em geral) tem que
adquirir novas maneiras de se comunicar.
O palco torna-se “espaço interno de uma consciência” e o tempo deixa de
ser sucessivo, para se construir como um ir e vir que se representa cenicamente.
“O retrocesso cênico, plástico e visual ao passado [...] rompe naturalmente a
estrutura tradicional do tempo linear e com isso também o espaço cênico tradi-
cional” (ROSENFELD, 1993; p.110). O palco passa, então, a representar.
Superando as vontades individuais, o mundo moderno torna-se um univer-
so complexo de desejos e anseios. Em meio às alterações e às inde­finições des-

capítulo 4 • 81
se nosso tempo, o teatro moderno recorre à narração (teatro épico) e no palco
passa-se a narrar para “ampliar o mundo além do diálo­go interindividual” (RO-
SENFELD, 1993; p.111). A concepção sobreindi­vidual não significa a desvalori-
zação do indivíduo, mas antes a superação do teatro tradicional que não conse-
gue incorporar a amplitude narrativa do teatro moderno. O novo teatro permite
ao espectador “elevar a emoção ao raciocínio” (ROSENFELD, 1993; p.112).
No gênero dramático, as personagens aparecem dotadas de caracterís­
ticas marcantes, representando realidades humanas concretas. Contudo, a
ca­racterização será indireta, uma vez que se devem sugerir ao público os tra-
ços peculiares das personalidades representadas, sendo que o autor não pode
imis­cuir-se na ação. Assim, o teatro exige um esmerado juízo seletivo, pois cada
um dos fatos ocorrentes deve, pela concisão e pela síntese, ser capaz de des­
pertar emoção. A obra dramática não apresenta descrições nem dissertações,
mas busca acentuar a ação. O texto é, então, representativo, em que o diálogo
é fundamental, em contraposição ao romance, à novela, ao conto, cujos textos
visam a apresentar, e em que o diálogo, se houver, é bastante acessório.
É importante observar ainda que, no teatro, o autor faz uma tenta­tiva de re-
presentar mais a língua falada do que a escrita. Daí os recursos próprios para
enfatizar a entonação, a voz, a mímica, os gestos etc.
Na Idade Média, o teatro tinha as modalidades de auto (milagre ou mistério)
e farsa. No Classicismo, predominaram a tragédia e a comédia, de cuja fusão
surge, no Romantismo, o drama.
Hoje, o teatro assumiu uma posição crítica com relação aos pro­blemas polí-
tico-sociais, o que mostra que ele não é apenas uma forma de diversão, mas sim
um poderoso meio de contestação social.
Espécies do gênero dramático:
•  Tragédia,
•  Comédia,
•  Tragicomédia,
•  Farsa,
•  Auto.

82 • capítulo 4
Tragédia: Gênero dramático que trata das ações e dos problemas humanos de natureza
grave. A tragédia envolve questões sobre a moralidade, o significado da existência humana,
as relações entre as pessoas e as relações entre os homens e seus deuses. Geralmente, no
final das tragédias, o personagem principal morre ou perde seus entes queridos.
Comédia: Peça de teatro cujo assunto é tirado de fatos ridículos e jocosos da vida
social.
Tragicomédia: Obra dramática que participa da tragédia e da comédia.
No séc. XVII, tragédia amenizada e cujo desenlace é feliz. Fig. Mistura de coisas sérias
e cômicas.
Farsa: Peça teatral de poucos atores apresentada através de um simples diálogo, ação
trivial ou burlesca, gracejos, situações cômicas, ridículas etc.
Ato ridículo, coisa burlesca. Fingimento
Auto: Peça teatral em forma poética, de origem medieval, que focaliza temas religiosos
e profanos. Criação essencialmente popular, apresenta uma linguagem que integra vo-
cabulário e expressões consagradas pelo povo. Divide-se em partes declamadas, baila-
dos e cantos, geralmente acompanhados por pequenos conjuntos musicais

Diante das reflexões iniciais, devemos recorrer aos filósofos Platão e Aristó-
teles, para entender como se representa a realidade por meio da arte.
Platão via a arte como mimesis da natureza e, por isso, imperfeita e deturpada.
Aristóteles a arte era a criação daquilo que faltava à natureza, em suas diver-
sas manifestações: música, poesia, teatro, arquitetura, escultura, oratória, etc.
Ou seja, mimesis é a representação da realidade por meio da arte.

4.2  A teoria dramática

Antes de entrarmos na discussão sobre a tragédia e a comédia na Grécia Antiga,


vamos emprestar as ideias de Renata Pallotini – em Introdução à dramaturgia
– para averiguarmos algumas características da arte dramática, desde sua cria-
ção na Antiguidade até os elementos que foram incorporados historicamente
por autores também considerados clássicos, ou seja, vamos debater, em linhas
gerais, a teoria dramática.

capítulo 4 • 83
A partir de alguns teóricos, a autora levanta os elementos essenciais para a
construção de uma obra dramática. Citando Aristóteles e a lei das três unidades:
tempo, lugar e ação dramática, esta que, segundo Aristóteles, “deve ser completa,
tendo começo, meio e fim, e uma certa grandeza ideal”, destaca ação dramática
como a vontade humana intencionada, concepção que já vimos anteriormente.
Para aprofundar a questão, a estudiosa recorre a Hegel, que vê a ação dra-
mática como parte fundamental do gênero dramático. A ação, segundo Hegel,
é representada pelo conflito (na ideia de conflito está implícita a teoria dialéti-
ca do autor: tese, antítese e síntese) e “tem como base uma pessoa moral. Os
acontecimentos parecem nascer da vontade interior e do caráter das persona-
gens” (PALLOTINI, 1998). Assim, a pessoa moral possui uma vontade conscien-
te que representa a vontade humana – a ação e o conflito. Portanto, a persona-
gem, na concepção de Hegel, possui responsabilidade por aquilo que pratica,
ela possui, em geral, três características: “a liberdade, a consciência e a respon-
sabilidade”, ou seja, liberdade de ação, consciência de sua vontade e responsa-
bilidade pelos atos praticados.
Hegel define o gênero dramático como a síntese entre o gênero lírico e o épico. O
gênero dramático “reúne em si a objetividade da epopeia com o princípio subjetivo da
lírica” (PALLOTINI, 1998). Retomando a ideia de síntese, que para Hegel tem sentido
positivo e progressivo, o gênero dramático seria, então, superior ao épico e ao lírico, por
apresentar em sua síntese os elementos mais significativos de ambos, deixan-
do de lado aquilo que não é relevante – veja como Hegel, já na era moderna,
repete as ideias clássicas de Aristóteles.
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O que – para Hegel – assegura a supe-


rioridade do gênero dramático é o equi-
líbrio entre subjetivo e objetivo. Na ação
dramática os sentimentos devem objeti-
var-se, ao mesmo tempo em que as ações
externas devem interiorizar-se e, para
que isso ocorra, é preciso que haja con-
flito, pois “a finalidade de uma ação só é
dramática se produzir outros interesses
e paixões opostas” (PALLOTINI, 1998).
Encontra-se, nesse fato, a ideia hegeliana
de dialética, que também está presente
Georg Wilhelm Friedrich Hegel na própria ação dramática.

84 • capítulo 4
Segundo Hegel, o conflito gera ação dramática. Portanto, o interesse dramáti-
co está na ação em si, que é gerada pelo conflito e que pode levar à tragicidade ao
apresentar um fim legítimo que necessita de resolução – provisória ou definitiva.
A ação dramática é, sem dúvida, o elemento fundamental do gênero dramático
para Hegel, lembre-se de que Aristóteles também privilegia a unidade de ação. E
no interior da ação dramática está a personagem – retentora da liberdade de ação.

ATENÇÃO
A ação só é completa quando realizar a totalidade dos movimentos, vale dizer, quando pro-
mover a síntese dos elementos quantitativos e qualitativos, dada pela progressão dos acon-
tecimentos e pela dinâmica do conflito que se intensifica até a resolução (síntese) – o que
vimos em Aristóteles como catarse.

A personagem possui conflitos internos responsáveis pela ação dramática, “o


movimento interno do drama” (PALLOTINI, 1998). As personagens caracteriza-
das por Hegel são “livres, conscientes, responsáveis, têm vontade e podem dispor
dela, conhecem seus objetivos e os perseguem através de um todo que inclui ou-
tras vontades e outros objetivos colidentes com os primeiros” (PALLOTINI, 1998).
É justamente por ser incorporada por personagens que o pensador grego Aristóte-
les afirma ser a tragédia superior à epopeia.
Ao discutir a ação dramática, Renata Pallotini cita outros teóricos. Comentan-
do Goethe, destaca que para ele a ação deve ser representada como atual – está
acontecendo; diferente de Schlegel: que vê a ação como modificação por meio do
diálogo, movimento que deve estar repleto de subjetividade e de conflito.
Brunetiére interpreta o drama como sendo o exercício de uma vontade es-
pecífica que visa a um objetivo, mas essa vontade não pode ser entendida como
um simples desejo, pois é ela que conduz a ação. O gênero dramático, para Bru-
netiére, diferencia-se do épico, pois, nesse último, a personagem é passiva, ela
recebe as ações.
Brunetiére distingue, também, ação de movimento dizendo que a primeira
é consciente e o segundo é “mera agitação” (PALLOTINI, 1998). Sendo a von-
tade o “carro - chefe” da ação, a ela são impostos alguns obstáculos (sociais ou
morais) que podem originar a tragédia, a comédia, o drama ou a farsa.
A tragédia é resultado de obstáculos como o destino, a providência, as leis da
natureza, as paixões violentas, ou seja, “obstáculos intransponíveis” (PALLOTI-

capítulo 4 • 85
NI, 1998). A comédia resulta de vontades opostas e do equilíbrio conquistado
para que a vontade transponha o obstáculo. No drama, o “preconceito e a von-
tade de outros homens” se colocam como obstáculos “dificilmente transponí-
veis” (PALLOTINI, 1998). E, por último, a farsa é dada por uma ironia da sorte,
por um preconceito ridículo ou por uma desproporção entre os meios e os fins.
Renata Pallotini, ao caracterizar o texto dramático, procura evidenciar dois
elementos, indiscutivelmente importantes: o conflito e a ação dramática. O
drama, segundo Henry A. Jones, é uma sucessão de conflitos e o teatro é ação, e
necessariamente ação dramática, portanto geradora de conflitos e de vontades
que buscam soluções. Na visão de Baker, a emoção é o elemento definidor do
drama e qualquer assunto é válido para um texto dramático.
Na definição do drama, o conflito social representa, segundo alguns teóri-
cos, o conflito mais significativo e caracterizador do texto dramático. Segundo
Lawson, o conflito dramático gera necessariamente um conflito social porque
nele há envolvimento humano e vontade consciente e, nessa vontade conscien-
te, devem estar implícitos a qualidade e o grau de consciência, para que haja a
possibilidade de se ter em mãos um texto dramático.
O conflito dramático envolve também preparação: indicações para o públi-
co do desenvolvimento do drama, para que haja aceitação da solução (desfe-
cho). A preparação deve ser medida para que não se percam as expectativas;
na preparação está outro elemento importante para o conflito: a contraprepa-
ração, as falsas pistas oferecidas – presentes geralmente em suspenses poli-
ciais. É nesse quadro (preparação/contrapreparação) que se constrói a crise, ou
melhor, o “descompasso entre seu objetivo e o seu destino final” (PALLOTINI,
1998), que conduzirá a explosão dramática – o ápice do conflito.
Após retomar pontos de vista de teóricos estrangeiros sobre o drama, Rena-
ta Pallotini trabalha as ideias de Augusto Boal sobre as leis dramáticas. As leis
do drama – inspiradas em Hegel – são indiscutivelmente dialéticas. Ao sinteti-
zar tendências, transportando-as para o contexto dramático, Boal propõe: a lei
do conflito, a lei da variação quantitativa, a lei da variação qualitativa e a lei da
interdependência, como os pilares do drama.
A primeira lei é o esqueleto de uma peça teatral, a estrutura, e pressupõe sem-
pre um conflito central. A lei da variação quantitativa diz respeito aos conflitos su-
bordinados ao conflito central, que devem crescer em quantidade e realizar, assim,
a ação dramática (movimento). A terceira lei, a da variação qualitativa, representa
um salto na ação dramática, uma nova posição, resultante do conflito intenso (da

86 • capítulo 4
lei de variação quantitativa). Finalmente, a lei da interdependência fornece à ação
dramática sua unidade: “tudo deve estar relacionado” (PALLOTINI, 1998). Todo
esse movimento das leis tem como fio condutor a ação dramática.
Retornando a questão dos gêneros, a autora acrescenta que o gênero lírico
pressupõe a inclusão do sujeito. No épico, o sujeito está fora do texto e, no dra-
mático, não existe um sujeito, mas sim o objetivo do drama; os acontecimentos
se desenvolvem por si mesmos – a ação existe objetivamente e é imediata.
De todas as teorias consultadas, Renata Pallotini destaca como importante
para um texto dramático o resultado por ele obtido – “o resultado artístico, o
resultado de qualidade, do texto ou do espetáculo que dele venha a ser feito”
(PALLOTINI, 1998). Percebemos, no entanto, que todas as teorias sobre o dra-
ma ocidental têm por base a tragédia e comédia gregas, sua estrutura literária e
estilística, que veremos em seguida.

4.3  A tragédia

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Existem divergências quanto ao nascimento da tragédia enquanto gênero dramáti-


co. No entanto, ela adquire sua forma clássica no século V a. C.
A tese aristotélica afirma que a tragédia se origina em um ritual dedicado a
Dionísio, deus relacionado à máscara e à metamorfose – elementos indispen-
sáveis ao teatro.

capítulo 4 • 87
ATENÇÃO
A palavra tragédia tem sua origem ligada aos sátiros – demônios silvestres – que faziam
parte do cortejo de Dionísio.
A tragédia grega define-se pela situação trágica, “muito mais frequente, porém, é o conflito
trágico em si concluso – um conflito sem saída. Esmagado pela fatalidade ou por forças
desencadeadas por ele mesmo, o herói sucumbe, não raro porque, por certo excesso ou
soberbia ‘desmedida’, desequilibram a ‘medida’, a lei ou a harmonia da pólis e do universo: lei
natural e lei moral” (ROSENFELD, 1993).

Foi Téspis quem, na direção de um festival, dramatizou intensamente o diti-


rambo (canto hínico de um coro dançante), contrapondo “ao coro e seu corifeu
um ‘respondedor’ [...], isto é, um ator” (ROSENFELD, 1993). A tragédia clássica
homenageia Dionísio, com o coro sendo o ponto central do culto e os diálogos
interindividuais enfocando o destino dos heróis gregos.
O desenvolvimento da tragédia se dá, supostamente, a partir da competição em
festivais anuais. A máscara animalesca é substituída pela humana e os temas
míticos e históricos ganham ênfase em uma “elaboração de fábulas coerentes,
conclusas” (ROSENFELD, 1993). Os elementos satirescos não fazem mais parte
da tragédia, são como epílogos apresentados antes da competição.
A fase clássica da tragédia nos deixou três grandes autores: Ésquilo, Sófo-
cles e Eurípedes. O primeiro representa o início da tragédia clássica, já que é
Ésquilo quem introduz o segundo ator e enfatiza a dramatização, diminuindo
o número do coro e enriquecendo cenograficamente o palco. Os atores passam
a usar túnicas até os pés, um penteado altíssimo, a máscara é feita de uma es-
pécie de linho. O que existe de comum entre os autores clássicos é o que faz a
essência da tragédia grega. O teor trágico está, basicamente, na morte do herói.
Ao lado de Ésquilo, Sófocles é o segundo tragediógrafo clássico. Introdu-
zindo o terceiro ator e elaborando enredos mais complexos, Sófocles limita o
papel do coro fazendo com que se intensifiquem os conflitos interindividuais.
Do mesmo modo que Ésquilo, possui uma visão teocêntrica do mundo, mas em
suas peças, o homem é solitário, diferentemente do homem no teatro esquilia-
no, que está com os deuses.
O terceiro tragediógrafo clássico é Eurípedes. Restringindo ainda mais o pa-
pel do coro, Eurípedes apresenta uma outra visão do mundo – antropocêntrica
– e, por isso, é mal recebido pelos conservadores de sua época: “a isso corres-
ponde a veemente crítica aos deuses, o tratamento livre dos mitos e a psicologia

88 • capítulo 4
quase realista com que diferencia suas personagens, por vezes de tendências
patológicas” (ROSENFELD, 1993).

WIKIMEDIA
Lembra-se da Medeia, que matou os
filhos para se vingar do marido? Aristó-
teles considera Eurípedes o dramaturgo
mais trágico entre os três, e escreve frases
como “O destino, antes sagrado passa a
ser mero acaso. Seu teatro é ‘sem fé, sem
esperança, sem graça divina’” e “A obra
de Eurípedes, sem dúvida extraordinária,
por vezes já fascina pela beleza fosfores-
cente da dissolução”, confirmam o cará-
ter inovador desse autor.
A tragédia grega clássica é detentora
de uma estética perfeita, na qual o coro
permanece como parte importante, fa- O ator inglês Charles kean em Maibeter,
vorecendo a dinâmica e representando de William Shakespeare.
o coletivo, o universal – a opinião públi-
ca. A unidade da ação é a que realmente importa na tragédia. A tragédia grega é
o modelo da dramaturgia ocidental.
O teatro latino não escapa a essa influência. Sêneca é o maior representan-
te desse teatro. Suas tragédias se apoiam na mitologia grega, mas, no entanto,
afastam-se da tragédia clássica no restante. Suas peças influenciaram o teatro
renascentista e barroco, oferecendo um modelo alterado da tragédia grega.
O próprio Shakespeare, e suas tragédias, com personagens realescas, é um
representante da tradição grega, não obstante se afaste do modelo clássico. Ao
seu lado estão Corneille e Racine que, ao contrário, tentam reproduzir o mode-
lo grego ao máximo.
O dramaturgo inglês, apesar de não respeitar as regras do modelo clássico,
tornou-se um dos maiores autores trágicos. As diferenças em relação ao primei-
ro modelo decorrem de um número maior de personagens pertencentes a vá-
rias camadas sociais, e de ação dramática envolver espaços e tempos amplos.
Suas peças apresentam, ainda, cenas cômicas ou grotescas e misturam verso e
prosa. Pode-se dizer que as semelhanças estão na substancialidade do mal e no
“questionamento dos valores tradicionais, teocêntricos, em face do surgir de
novos valores seculares” (ROSENFELD, 1993).

capítulo 4 • 89
Em relação à concepção do gênero trágico, existe uma enorme influência da
teoria da tragédia clássica. O principal representante desta abordagem teórica
é, como vimos, Aristóteles, que, definindo a tragédia, afirma que ela, ao suscitar
“terror e piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”, ou seja, a catar-
se. Para atingi-la são necessárias uma fábula conclusa, ordenação e economia,
isto é, que a obra forme um todo coerente e coeso. Ainda segundo Aristóteles,
a ficção é mais filosófica que a própria história, que só faz imitar a realidade.
Mas, vale lembrar, que a verossimilhança é essencial para que a fábula conven-
ça: “sem essa identificação emocional com os heróis e seus destinos (a mercê
da coerência da ação) o espectador não chegará à catarse” (ROSENFELD, 1993).
WIKIMEDIA

Hamlet por Eugène Delacroix.

ATENÇÃO
Relembrando
Aristóteles, mais uma vez, a ação é o elemento mais importante porque é ela que determina
o destino das personagens. A unidade do tempo não deve exceder a um ou dois dias e a do
espaço não deve extrapolar um mesmo lugar.

90 • capítulo 4
PHOTO12 / AFP

Romeu e Julieta.

Há ainda a figura do herói, que deve possuir qualidades semelhantes às nos-


sas. O herói deve cair no infortúnio não por uma maldade inerente a ele, mas
por ignorância, caso contrário não haverá compaixão.
Horácio, outro teórico importante, acrescenta a relevância dos cinco atos,
a importância de a violência ocorrer fora da cena e da utilidade moral da obra
literária pelo impacto emocional que ela proporciona.
As teorias existentes divergem em alguns aspectos, mas são unânimes ao es-
tabelecer que, na tragédia, somente as classes sociais mais altas devem figurar
– já que a queda será mais trágica para quem ocupar o lugar mais alto.
Em meio aos debates teóricos, ao longo dos séculos, as três unidades (ação,
tempo e espaço) provocaram sempre discussão sobre sua importância e utili-
dade. A catarse é outro aspecto debatido constantemente: para Aristóteles, as
emoções necessitam de vazão para que sejam sublimadas. A catarse aristotéli-
ca se aproxima de um significado medicinal, de limpeza dos elementos noci-
vos, para que se possa atingir o equilíbrio.
Estabelecendo que “a tragédia é imitação dos padrões universais do com-
portamento humano” (ROSENFELD, 1993), conclui-se que o homem, ao assis-
tir o espetáculo trágico, adquire sabedoria – a mesma dos heróis a que assiste.
O que caracteriza o fato trágico é a desproporção entre o castigo e a culpa do
herói. Portanto, na tragédia, a relação homem/natureza, quando o primeiro su-
bestima a segunda, esta deve ser restabelecida em equilíbrio.
Apesar de Aristóteles ter estabelecido uma teoria da tragédia, não encontramos
em sua Poética um pensamento sobre o fenômeno trágico. Não se pode pensar que
o triste é necessariamente trágico nem que a tragicidade está exclusivamente liga-
da à tragédia – encontramos o elemento trágico também na vida de pessoas reais.

capítulo 4 • 91
ATENÇÃO
Fábula: é a história propriamente dita. Segundo Aristóteles, é uma parte essencial na tragé-
dia, pois as peripécias e os reconhecimentos da fábula influem no ânimo e, consequentemen-
te, no efeito da tragédia.

Nesse capítulo, ele ainda divide a tragédia em seis partes – a fábula, os carac-
teres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto. Vejamos.
•  Caracteres: são as características das personagens, que estão intrinse-
camente ligadas às suas ações. Somente os caracteres não são capazes
de determinar a felicidade ou a infelicidade do homem, isso depende de
suas ações.
•  Elocução: compreende a escolha dos termos, ou seja, das palavras e sua
organização; é o que fornece o poder de expressão à tragédia.
•  Pensamento: diz respeito ao que se pronuncia nas palavras e que é capaz
de exprimir o que quer que seja, de encontrar a maneira de expressar o
conteúdo que deseja.
•  Espetáculo apresentado: é a encenação propriamente dita, mas, se-
gundo o pensador, não tem relação com a poesia. Aí Aristóteles foi
de extrema importância para a teoria literária, pois considera o texto
dramático como poesia, obra literária que independe da encenação
para produzir efeitos.
•  Canto: é um objeto da imitação trágica. Compõe a encenação.

Os elementos para que a tragédia atinja seu objetivo são: a intriga, segundo
Aristóteles o mais importante de todos, o caráter, a ideia, a dicção, a melodia e o
espetáculo – sendo que os três últimos pertencem ao âmbito da encenação. Para
que os elementos surtam efeito, a tragédia deve se dividir em partes distintas.

Tratamos anteriormente dos elementos da tragédia, dos quais se deve usar como de
suas formas essenciais. Quanto ao número das partes distintas em que se divide, são
elas: prólogo, episódio, êxodo, canto coral, [...] compreendendo este último o párodo
e o estásimo* [...] o prólogo é uma parte da tragédia que a si mesmo se basta, e que
precede o párodo (ou entrada do coro). O episódio é uma parte completa da tragédia
colocada entre cantos corais completos; o êxodo (ou saída) é uma parte completa da
tragédia, após a qual já não há canto coral [...]. (ARISTÓTELES, p. 257)
*  Estásimo: canto coral.

92 • capítulo 4
As partes e os elementos da tragédia é que são capazes de produzir o efeito
esperado, ou melhor, o inesperado. Uma boa tragédia apresenta sempre uma
reviravolta da fortuna ou a descoberta de uma identidade, isto é dado por uma
intriga complexa, como a de Édipo rei, de Sófocles, por exemplo, em que o filho
mata o pai, casa-se com sua mãe, tem filhos com ela e, só então, descobre sua
verdadeira identidade, cegando-se para não ver mais o que fez.
No entanto, vários teóricos escreveram sobre o trágico, entre eles estão He-
gel, Schiller, Schopenhauer, Nietzsche e Hartmann. Todos esses teóricos não
abrem mão de um elemento essencial ao drama: o conflito, desencadeador da
ação dramática.
Por ser a tragédia um fenômeno histórico, ela está intimamente ligada a
esse fato sociocultural, portanto, segundo Anatol Rosenfeld, a tragédia atinge
sua plenitude em somente duas fases – isso não impossibilita o fenômeno trá-
gico de estar presente em outras épocas.
As fases em que a tragédia alcançou suas maiores glórias foram a da Gré-
cia Antiga (tragédia clássica) e a do fim do século XVI e início do XVII (em que
Shakespeare é o maior representante).
Os momentos citados são períodos de grande questionamento, o que per-
mite supor que as fases mais favoráveis para a tragédia são aquelas “em que
uma certa unidade de cosmovisão se desfaz ante o advento de atitudes, crenças
e filosofias novas” (ROSENFELD, 1993). No caso da Grécia, a passagem do ritu-
al para o espetáculo, o que gera uma crise estética. Esses momentos de profun-
da contradição – em que floresce a tragédia – são raros, por isso é muito difícil
encontrar a tragédia em sua forma plena.
O verdadeiro sentido do gênero trágico é dado pelo fundo mítico, pela pro-
jeção dos conflitos humanos para uma dimensão metafísica, pelas “colisões
inexoráveis, eternas, sem saída, desde sempre ligadas à posição do homem no
universo” (ROSENFELD, 1993), ainda pelo tom solene e pela tendência ao verso.
Apresentaremos, a seguir, uma breve biografia dos três maiores tragedió-
grafos gregos.
•  Ésquilo – viveu entre 525 e 456 a.C., participou dos concursos trágicos
e obteve sua primeira vitória aos 41 anos, combateu contra a Pérsia em
Maratona e Salamina. A tradição atribui ao autor cerca de 90 tragédias,
das quais nos restaram 7; alguns fragmentos de peças perdidas já foram
encontrados, mas nenhuma peça na íntegra. As sete conservadas são: Os

capítulo 4 • 93
Persas, Os sete contra Tebas, a trilogia Orestia (Agamêmnon, Coéforas e Eu-
ménides), As suplicantes e Prometeu. Seus dramas celebram a justiça di-
vina e a tomada de consciência dos limites humanos perante os deuses.

Na tragédia Os sete contra Tebas, temos um enredo em que Etéocles defende


a cidade de Tebas, que foi cercada por seu irmão Polinices, ambos são filhos
de Édipo, frutos do amor incestuoso entre mãe (Jocasta) e filho. A tragédia vem
confirmar a maldição do rei de Tebas, os irmãos lutam e morrem nas mão um
do outro. Ésquilo confirma a realização da vontade divina, vê-se isso pelas refe-
rências constantes a diversas divindades nas falas das personagens.

CONEXÃO
Acesse <http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0663>, para saber um pouco mais sobre
tragédia Os sete contra Tebas, de Ésquilo. Acesso em: 7 maio 2014.

A estrutura do drama confirma a inovação de Ésquilo em colocar dois atores


dialogando, mas o coro ainda tem uma grande importância, a forma lírica ain-
da é muito presente na poesia dramática do tragediógrafo.
•  Sófocles – viveu entre 496 e 406 a.C., ocupou cargos públicos diversas vezes
e era amigo de Heródoto. Venceu Ésquilo, em 468, com a tragédia Triptóle-
mo, e depois de então só conheceu glórias, nas vinte e quatro vezes que foi
vitorioso e das outras que só conheceu o segundo lugar (nunca ficou abaixo
dele). Não se sabe ao certo quantos dramas escreveu, falam em cento e vin-
te três, sendo que nos restaram somente sete, entre eles: Antígona, Electra,
Ájax, Rei Édipo, Filoctetes, Édipo em Colono e Traquínias. As inovações intro-
duzidas por Sófocles foram os cenários pintados, a diminuição da impor-
tância do coro e valorização do diálogo e o emprego de um terceiro ator.

Édipo rei é considerada por Aristóteles a obra prima de Sófocles. Sua narra-
tiva gira em torno da revelação dos crimes involuntários de Édipo – a morte do
pai e o casamento com a mãe – e do castigo que se impõe – a cegueira. Édipo é
uma vítima do destino, porém foi sua vontade que o levou até ele.

94 • capítulo 4
CONEXÃO
Leia Rei Édipo, disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000024.
pdf>, acesso em 7-5-2014.

•  Eurípedes – poeta que viveu entre 480 e 406 a.C., estreou em 455, porém foi
premiado treze anos depois, e somente recebeu prêmio três vezes, isso por-
que causava muita controvérsia por seus temas e inovações. Era chamado
de “o filósofo da cena”, colocava no palco todos os problemas religiosos, po-
líticos e sociais de sua época, punha em questão a relação do homem com
as divindades, a escravatura, a riqueza e a pobreza. Utiliza-se dos mitos mas
humaniza suas personagens. A ele foram atribuídas noventa e duas peças,
completamente conservadas nos restaram dezoito. Entre elas estão: Alceste,
Medeia, Hipólito, Troianas, Helena, Fenícias, Orestes, Ifigênia em Aulis, As Ba-
cantes, Heraclidas, Héracles, Suplicantes, Íon, Ifigênia em Tauros e Electra.

A tragédia eupediana Medeia, é um exemplo de como este dramaturgo hu-


manizou suas personagens. Mulher traída pelo marido que ajudou enganando
seu próprio pai, vinga-se de Jasão matando a rival, o pai dela e seus próprios
filhos. As angústias, reviravoltas, hesitações fazem de Eurípedes o primeiro dra-
maturgo psicológico. As figuras divinas estão presentes, mas a vontade huma-
na é superior à divindade.

CONEXÃO
Acesse <http://www.lendo.org/wp-content/uploads/2007/06/medeia.pdf>, para ler o texto
integral Medéia, de Eurípedes, acesso em: 5 maio 2014.

A cena/peça não apresenta nenhuma referência divina, não apresenta ne-


nhuma referência divina, é um diálogo entre a mulher traída e seu marido ten-
tando convencê-la de que a traiu pelo bem da família, que não há amor, o único
interesse é a posição social e a riqueza. Eurípedes coloca em discussão a ques-
tão social grega, os casamentos por conveniência, além do drama feminino de
se subjugar ao homem, temas que até hoje são considerados modernos. En-
tende-se, portanto, porque foi tão rejeitado em seu tempo, afinal, o povo grego
assistia a um espelho em suas tragédias.

capítulo 4 • 95
Além da tragédia, tenho certeza de que você gosta de uma boa comédia! Já re-
parou que as comédias geralmente ridicularizam nossa própria sociedade? O que
é Dona Nenê de A Grande Família senão o estereótipo da mãe e da dona de casa? Ao
rirmos dela, rimos de nossas mães e de nós mesmos! E os filmes do estilo “bestei-
rol” do tipo Corra que a polícia vem aí, ou Todo mundo em pânico? Rimos das situa-
ções e, principalmente, da paródia feita de outros filmes. Veremos que esse mode-
lo que provoca o riso hoje foi herdado dos grandes comediógrafos da Grécia Antiga,
que as situações e as temáticas, em muitos casos, ainda são as mesmas.

4.4  A comédia
© VIACHESLAV BELYAEV | DREAMSTIME.COM

Aristóteles deixou órfãos os teóricos no que diz respeito à comédia. Consideran-


do-a um gênero menor, dedicou poucas palavras à sua composição na primeira
parte da Poética. Sabe-se que tanto a tragédia quanto a comédia nasceram do
mesmo culto dionisíaco, porém, segundo as poucas informações que nos res-
tam, o gênero cômico é resultante dos cantos fálicos, erguidos em homenagem
a Dionísio (Baco) nos festejos em louvor à chegada da primavera.

ATENÇÃO
Dionísio é o deus do vinho e da inspiração poética, seus seguidores
saíam em procissão e conduziam um enorme fálus enquanto todos can-
tavam em gratidão ao mesmo tempo que dançavam e bebiam vinho em
abundância. Esses movimentos deram origem a cantos satíricos. O que
© ONDACARACOLA | DREAMSTIME.COM

se imagina é que algum poeta trágico resolveu agrupar essas manifes-


tações em uma única peça, modelo que viria se transformar no gênero
cômico após sucessivas adaptações..

96 • capítulo 4
Segundo Aristóteles, a comédia é uma imitação de personagens de tipo in-
ferior, que apresentam algum tipo de defeito ou fealdade, não dolorosa nem
destrutiva. O pensador justifica sua posição dizendo que as transformações so-
fridas pelo gênero “estão ocultas, pois que delas se não cuidou desde o início:
só passado muito tempo o arconte concedeu o coro da comédia, que outrora
era constituído por voluntários. E também só depois que teve a comédia algu-
ma forma é que achamos memória dos que se dizem autores dela. Não se sabe,
portanto, quem introduziu máscaras, prólogo, número de atores e outras coi-
sas semelhantes”, para ele, então, a comédia é um gênero menos elaborado,
menos sério do que a tragédia.
Os teóricos de todos os tempos, depois de Aristóteles, tentaram definir a
comédia. Um dos consensos é que nesse gênero não encontramos a dimensão
transcendente da tragédia. As personagens cômicas representam tipos gerais
que se encontram no nível da plateia, mais uma vez diferente da tragédia, que,
com suas deidades, é vista de baixo para cima.
Mesmo quando uma comédia traz personagens pertencentes a classes so-
ciais elevadas, estas se ocupam com problemas menores, cotidianos. E os deu-
ses, quando figuram no drama cômico, são reduzidos à condição humana. O
que dá caráter à comédia é seu tom burlesco e irônico, e o fato de ser, geralmen-
te e principalmente quando falamos da comédia clássica, a paródia de uma tra-
gédia e, ao contrário desta, que não admite solução, o gênero cômico apresenta
sempre uma resposta. Os teóricos modernos chamam a comédia de metatea-
tro, por sua característica de paródia.
Na comédia encontramos ainda o caráter dúplice, de ambiguidade e inver-
são de uma ordem estabelecida, assim como diferentes pontos de vista. Os co-
mediógrafos da Antiguidade grega foram geniais ao colocarem em seus dramas
o sarcasmo e a ironia do cotidiano da pólis.
A comédia, na Grécia Antiga evoluiu em três fases.
11.  A comédia antiga, estruturada em quatro partes (prólogo, párodo – in-
terrupção festiva do coro – episódios e êxodo), tratava de assuntos polí-
ticos ou sociais; seu maior representante é Aristófanes;
12.  A comédia mediana, com assunto mitológico ou literário em seu início
passando, no decorrer da ação, para assuntos de caráter social, não pos-
sui o coro; seus representantes são Antífanes e Alexis;
13.  A comédia nova, que gira em torno das paixões e do amor, possui sim-
plicidade na construção das cenas e emprega principalmente o diálo-

capítulo 4 • 97
go; seu maior representante foi Menandro, que influenciou, posterior-
mente, a comédia em Roma, após o declínio do gênero na Grécia.

Dentre as fases e os comediógrafos citados, Aristófanes é considerado o maior


de todos. Nasceu em Atenas em 457 a.C., presenciou em sua juventude o esplendor
do Século de Péricles e testemunhou do início do fim da grande Atenas. Suas co-
médias tratam dos elementos que ele julgava serem responsáveis pela decadência
da cidade-Estado. Detestava e criticava Eurípedes, porém utilizava os recursos por
ele criados. Foi um comediógrafo de sucesso, vencendo vários concursos, tendo in-
clusive, na encenação de As rãs, um pedido de bis da plateia, um privilégio restrito
somente às tragédias. Para se ter dimensão do sarcasmo e ironia do autor, vamos
observar um trecho de Lisístrata, também traduzida como A greve do sexo.

CONEXÃO
Acesse: <http://212.55.162.100/biblioteca/livros/teatro/lisistrata.pdf>, que disponibiliza a
comédia, Lisístrata, de Aristófanes. Acesso em: 7 maio 2014.

A comédia de Aristófanes possui, em geral, todos os elementos pertinentes


ao gênero, inclusive o final conciliador.
Para termos um parâmetro de comparação com um modelo mais próximo
do moderno, sem deixar de ser um clássico, vamos prestar atenção em alguns
excertos da comédia shakespeareana A megera domada. Esta é também uma co-
média em que os costumes relativos à posição da mulher são questionados com
muito humor e, assim como em Lisístrata, o final é reconciliador e não fere, em
última instância, os costumes questionados; trata-se da história de Catarina,
moça fina de gênio infernal que não quer se casar e de Petrucchio, pobre e gros-
seirão. Essa história já foi parodiada várias vezes, inclusive em telenovelas.

CONEXÃO
Acesse: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/megera.pdf>, que disponibiliza em for-
mato de e-book a comédia A megera domada, de Willian Shakepeare.

98 • capítulo 4
ATIVIDADE
1.  O que é drama?

2.  O drama estabelece a relação do homem com o mundo? Explique.

3.  Quais as perspectivas do herói dramático?

4.  O que é tragédia?


5.  O que é comédia?

REFLEXÃO
Desde a Antiguidade clássica, o gênero dramático teve grande importância, pois, em suas
origens tanto gregas e latinas como medievais, está associado aos rituais em culto ao deus
Dioniso, deus do vinho, da máscara e da metamorfose.
O gênero dramático envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno literário, temos o
texto e a linguagem; de outro, as técnicas de representação, o espetáculo, que tem como
referência a peça escrita (texto literário).
Refletimos sobre a importância do gênero dramático para os gregos da Antiguidade; os con-
cursos anuais das dionisíacas movimentavam Atenas.
A tragédia e a comédia clássicas são o modelo para os dramaturgos que sucederam este
tempo, inclusive para aquele que é considerado o maior de todos: Shakespeare.
Colhemos os frutos do gênero poético ainda hoje, pois tratou com propriedade os dramas
sociais e humanos, coletivos e individuais, seja glorificando-os ou zombando deles. Refletir
sobre o gênero dramático é interiorizar nossas origens é manter contato com personagens
que trazem à tona nossas angústias, nossos sofrimentos, nossas dúvidas e aflições.
Como pensar a tragédia sem seu tom altivo e sem considerar seu universo?
No entanto, a comédia clássica é o modelo para os dramaturgos que vieram depois desse
tempo, inclusive Shakespeare, como vimos. As situações, as ironias, o tempo das respostas,
a ambiguidade e descontinuidade dão forma às obras que nos fazem rir até os dias de hoje.
Não podemos esquecer que a historicidade também influencia a recepção de uma comédia,
o próprio Shakespeare é vítima disto O Mercador de Veneza foi escrito quando ainda não

capítulo 4 • 99
existiam judeus na Inglaterra, era, portanto, uma comédia, mais tarde, quando os judeus fu-
gidos da inquisição aportaram na ilha, sua representação gerou comoção e o que era para
provocar o riso suscitou lágrimas.
Como entender a comédia sem sua ambiguidade?
Este gênero poético tratou, na Antiguidade, com propriedade as questões sociais e os costumes,
zombando deles ou parodiando grandes políticos e autores... atitude até hoje repetida por nós!

LEITURA
ARISTÓFANES. Lisístrata. Jardim Junior, (trad.) Brasil, Assis (pref.); Rio de Janeiro: Tec-
noprint, 1988.

ÉSQUILO. Os sete contra Tebas. trad. Evandro Luís Salvador. Dissertação de Mestrado:
Unicamp (disponível no banco de teses on-line da Unicamp).

EURÍPEDES. Medeia. trad. Edvanda Bonavina de Rosa. Araraquara: FCL/UNESP;1995.


(Coleção Giz-em-scène, 4)

ROSENFELD, A. Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva: Ed. USP, 1993. (Debates, v. 256).

SHAKESPEARE, William. A megera domada. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/


adobeebook/megera.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2010.

SÓFOCLES. Édipo rei. Paulo Neves (trad.) Porto Alegre : L & PM, 1998.

Dicas de filmes:
A dica é assistir a um grande drama, para que você possa sentir o tratamento dos temas e
a densidade das emoções despertadas. Por isso, fica como sugestão: Fale com ela – uma
tragédia em comum une dois homens que não se conheciam, quando eles precisam cuidar
de duas mulheres que estão em coma no hospital. Dirigido por Pedro Almodóvar (Tudo
sobre minha mãe) e com Geraldine Chaplin e Paz Vega no elenco. Vencedor do Oscar de
Melhor Roteiro Original.
Outra dica é assistir a uma grande comédia, para que você possa sentir as diferenças em
relação à tragédia. A sugestão é: Noivo neurótico, noiva nervosa: uma inteligente comédia
de Wood Allen sobre um humorista judeu cheio de problemas, que se apaixona por uma

100 • capítulo 4
cantora em início de carreira. Vencedor de 4 Oscar importantes, como Melhor Filme, Diretor,
Atriz e Roteiro Original.
Mais recentemente, a famosa história de amor, Romeu e Julieta, criada por William Shakes-
peare ganhou mais uma versão com cenas gravadas em Verona e Mantova, na Itália, inspi-
rada no filme clássico de 1968

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓFANES. Lisístrata. Jardim Junior (trad.) Brasil, Assis (pref.); Rio de Janeiro: Tec-
noprint, 1988.

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Ediouro (Clássicos de bolso).

ÉSQUILO. Os sete contra Tebas. trad. Evandro Luís Salvador. Dissertação de Mestrado: Uni-
camp (disponível no banco de teses on-line da Unicamp).

EURÍPEDES. Medeia. trad. Edvanda Bonavina de Rosa. Araraquara: FCL/UNESP;1995 (Co-


leção Giz-em-scène, 4).

EURÍPEDES. Medeia. Disponível em: <http://www.lendo.org/wp-content/uploads/2007/06/


medeia.pdf>Acesso em: 5 mar. 2010.

PALLOTINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo:Ática, 1988 (série Princípios).

ROSENFELD, A. Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva: Ed. USP, 1993. (Debates, v. 256).

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001..

NO PRÓXIMO CAPÍTULO
No capítulo 5, abordaremos outras formas de representação da realidade em verso e prosa.

capítulo 4 • 101
5
Representação da
Realidade em Verso
e Prosa
5  Representação da Realidade em Verso e
Prosa

Neste capítulo sobre a representação da realidade, vamos explorar gêneros em


verso e prosa e adentrar o mundo do gênero da poesia.
Nosso objeto de estudo é o gênero épico e lírico.
Numa segunda etapa, partiremos rumo aos caminhos da prosa.
Iniciaremos os nossos estudos com os seguintes gêneros literários: romance,
novela conto e outras formas de narrar.

OBJETIVOS
Sobre a representação da realidade em verso e prosa, objetivamos que você seja capaz de:
•  Identificar composições em verso;
•  Identificar obras em prosa;
•  Distinguir verso e prosa;
•  Identificar e reconhecer gênero épico, um dos mais importantes da Antiguidade Clássica;
•  Conhecer as características do gênero épico;
•  Identificar e reconhecer gênero lírico;
•  Adentrar o gênero lírico em suas especificidades;
•  Conhecer as espécies de composições em prosa;
•  Saber a composição do romance;
•  Saber a composição da novela;
•  Saber a composição do conto;
•  Conhecer outras formas de narrar.

REFLEXÃO
Você se lembra de que vimos, anteriormente, que Aristóteles se ocupou em explicar e anali-
sar dois gêneros literários clássicos?
Você se lembra de quais são eles?
Você se lembra do que é o gênero retórico?
Você se lembra do que é o gênero poético?
Você se lembra de que não foi aleatoriamente que o nobre pensador grego se dispôs a clas-
sificar tais gêneros e a teorizar sobre eles?

104 • capítulo 5
Você se lembra de que isso se deu ao fato de estes gêneros literários clássicos (o retórico e
o poético) terem sido os mais praticados na Antiguidade Clássica?
Você se lembra do que é uma epopeia?
Você se lembra de quais são as características de um

© GEORGIOS KOLLIDAS | DREAMSTIME.COM


poema épico?
Você se lembra de ter ouvido falar de Homero ou, mais
recentemente na história, de Luiz de Camões!
Você se lembra de que Homero viveu há mais de dois
mil e trezentos anos?
Você se lembra de que Camões viveu há cerca de qui-
nhentos anos?
Você se lembra de que os dois são grandes poetas
épicos?
Luiz de Camões
Você se lembra do que é poesia?
Você se lembra de qual é a temática abordada?
Você se lembra da diferença entre os gêneros em prosa?
Você se lembra de qual é a diferença entre romance e conto?
Você se lembra de outras formas de narrar em prosa?
Você se lembra de quais são elas?
Você se lembra do que é conto, crônica, novela, ensaio?
Você se lembra, enfim, do que é a representação da realidade em verso e prosa?
Para evitar esse tipo de problema é que as estruturas comissionadas surgiram, permitindo a
distribuição de poder de decisão e autoridade, evitando assim as armadilhas da acumulação
individual de poder.

5.1  Representação da realidade em prosa

5.1.1  Romance

É a modalidade narrativa de maior vulto, em que a visão do mundo do autor


se manifesta pelo forte conflito das personagens. O romance aborda os mais
variados assuntos. Assim, podem ser históricos, psicológicos, experimentais,
científicos, policiais etc.
É um gênero herdado da epopeia clássica, que, no entanto, se dá em forma
de prosa; é, portanto, um gênero épico em primeira instância, porém apresenta
a ruptura em sua natureza dialética, em que o herói aparece de forma degrada-

capítulo 5 • 105
da. E, pelo fato de este herói estar inserido em um novo imaginário, o de uma
sociedade individualista, diferente da epopeia clássica, que tem como foco a
narrativa dos feitos de uma nação, o romance está centrado nos feitos de uma
ou outra personagem, em seus dramas individuais. Não é à toa que o gênero
ganha adeptos no Romantismo (daí o nome romance), período histórico de
grandes transformações sociais e culturais, em que uma nova classe social as-
cendente (a burguesia) tem como fomento ideológico o individualismo.
São exemplos de romances: O Guarani, de José de Alencar; Memórias pós-
tumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; O cortiço, de Aluísio Azevedo; São
Bernardo, de Graciliano Ramos, O quinze, de Rachel de Queirós etc.
Há certos romances que, pela grandiosidade de sua narrativa, podem ser
considerados como epopeias em prosa. Os exemplos mais conhecidos são: Os
sertões, de Euclides da Cunha, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
Leia o excerto abaixo, de O cortiço, de Aluísio Azevedo, e observe como é im-
pregnado de uma realidade representada.

João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enri-
queceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro
do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao
retirar--se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem
só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais
ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras
privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo
travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante
quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, es-
crava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que
tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro.
De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu
dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para
a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga
superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma
besta. João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante
direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mu-
lher o escolheu para confidente das suas desventuras.

106 • capítulo 5
Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor co-
mia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali,
todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para
a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já
de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.
Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula.
No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era
também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter
ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira,
quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o
das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente
essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal es-
crito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta
afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio.
Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao
trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão.
Quando deram fé estavam amigados.

Disponível em: < http://educarparacrescer.abril.com.br/livros-vestibular/download/cortico.pdf>.


Acesso em: 15 maio 2014.

5.1.2  Novela

O termo “novela” refere-se a uma forma literária que ainda não se encontra de-
finida ou configurada, pois os estudiosos possuem divergências quanto à sua
caracterização e aos critérios que devem ser utilizados para tanto. Comumente
adota-se um critério baseando-se no número de páginas ou de palavras; seria
uma espécie de texto que se encontra entre o conto e o romance. Porém diversos
textos-embuste são gerados por esse tipo de classificação. Os teóricos preferem,
então, apontar algumas características que diferenciam a novela de outros tex-
tos qualitativamente. Esse gênero narrativo existe desde a Idade Média, mas foi
o Romantismo que fez da novela um gênero de grande veiculação, com a ascen-
são da burguesia e das horas ociosas das “donas de casa” abastadas.

capítulo 5 • 107
Assim se explica a voga das narrativas em folhetim, que cruzou todo o século XIX e
permaneceu até bem recentemente. Mesmo os escritores mais exigentes não ficaram
imunes ao fascínio exercido pela novela. E, quase sem exceção, caldearam em suas
obras recursos narrativos peculiares à novela. (MOISÉS, 1974).

Por suas características peculiares, a novela continua presente, enquanto


gênero literário, até nossos dias. Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssi-
mo, entre outros, são exemplo disso, e, devido aos recursos tecnológicos de que
dispomos, a novela ultrapassou o texto literário e se apresenta de forma audio-
visual, vejam-se as inúmeras adaptações para o cinema e a televisão.
Leia o excerto abaixo, de Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e observe
a realidade nela representada e sua estrutura.

Primeira parte

Aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) na cidade de Ilhéus,


em 1925, quando florescia o cacau e imperava o progresso com amores, assassina-
tos, banquetes, presépios, histórias variadas para todos os gostos, um remoto passado
glorioso de nobres soberbos e salafrários um recente passado de fazendeiros ricos e
afamados jagunços, com solidão e suspiros, desejo, vingança, ódio, com chuvas e sol e
com luar, leis inflexíveis, manobras políticas, o apaixonante caso da barra, com prestidi-
gitador, dançarina, milagre e outras mágicas ou um brasileiro das arábias.

Capítulo primeiro

O langor de Ofenísia (que muito pouco aparece mas nem por isso é menos importante).
Neste ano de impetuoso progresso... (de um jornal de Ilhéus, em 1925)

Rondó de ofenísia

Escutai, ó meu irmão, Luiz Antônio, meu irmão: Ofenísia na varanda na rede a se balan-
çar. O calor e o leque, a brisa doce do mar, mucama no cafuné. Já ia fechar os olhos o
monarca apareceu: barbas de tinta negra, ó resplendor!

108 • capítulo 5
O verso de Teodoro, a rima para Ofenísia, o vestido vindo do Rio, o espartilho, o colar,
mantilha de seda negra, o sagui que tu me deste, tudo isso de que serve Luiz Antônio,
meu irmão?
São brasas seus olhos negros, (– São olhos do imperador!) incendiaram meus olhos.
Lençol de sonho suas barbas (– São barbas imperiais!) para o meu corpo envolver. Com
ele quero casar (– Com o rei não podeis casar!) com ele quero deitar em suas barbas
sonhar. (–Ai, irmã, nos desonrais!) Luiz Antônio, meu irmão, que esperais pra me matar?
Não quero o conde, o barão, senhor de engenho não quero, nem os versos de Teodoro,
não quero rosas nem cravos nem brincos de diamante. Tudo que quero são as barbas tão

Disponível em: < http://www.valdiraguilera.net/bu/gabriela-cravo-e-canela.pdf>. Acesso em: 15


maio 2014.

A novela possui as seguintes características:


•  Estrutura: sua ação é plural, ou seja, possui uma série de unidades dra-
máticas, que possuem começo, meio e fim, sendo que estes diversos con-
tos estão, em maior ou menor grau, entrelaçados, e este entrelaçamento
determina as características do conjunto e a retirada de uma das unida-
des comprometeria o restante da obra;
•  Sucessividade: as unidades dramáticas dispõem-se linearmente, uma
após outra, porém vale dizer que essa sucessividade não é rigorosa, “o
novelista não esgota o conteúdo de uma unidade antes de passar à se-
guinte; via de regra, deixa uma semente de drama, que virá a constituir
os episódios subsequentes” (MOISÉS, 1974) – são as “cenas do próximo
capítulo”, que conhecemos nas novelas televisionadas; por isso, as uni-
dades dramáticas da novela estão sempre em aberto;
•  Tempo da narrativa: geralmente acompanha a estrutura linear, no en-
tanto, não há restrição cronológica; o tempo da ação pode ser arbitrário,
porém concentrado no momento da ação propriamente dita;
•  Tempo histórico: apresenta-se sempre o tempo presente, convencionado
socialmente (calendário, relógio etc.); é esse tempo que permite os efeitos
de surpresa, uma revelação do passado ou um acontecimento inesperado.
•  Espaço: está vinculado, necessariamente, ao tempo, sendo que a plura-
lidade dramática leva à pluralidade espacial. É da novela a tendência ao
deslocamento contínuo das personagens. E o narrador se sente livre para
o fazer, sem qualquer respeito às leis da verossimilhança: num breve lapso

capítulo 5 • 109
de tempo, faz que a personagem se transfira para lugares remotos e por vezes
inacessíveis. [...] a geografia novelística é quase sempre fictícia, não tendo
tanta importância quanto a ação em si; (MOISÉS, 1974)
•  Linguagem: o gênero caracteriza-se por suas metáforas diretas, despoja-
das, que se fazem entender imediatamente; qualquer tipo de insinuação
ou mistério é colocado claramente ao leitor, e utiliza-se o diálogo como
principal recurso expressivo;
•  Personagens: por se estruturar em diversas unidades, a novela apresenta
um grande número de personagens centrais e um maior ainda de coad-
juvantes; são personagens estereotipadas, sem grandes dramas psicoló-
gicos ou interiores.

O gênero apresenta diversos tipos, como: novela de cavalaria, novela sentimen-


tal e bucólica, novela picaresca, novela histórica, novela policial e de mistério.
A título de exemplo de novelas, pode-se mencionar: Amor de perdição, de Ca-
milo Castelo Branco, e A metamorfose, de Franz Kafka, dentre outras.
Para efeito de esclarecimento, costuma-se utilizar o termo “telenovela” para
nos referirmos às novelas da televisão. Assim, diferencia-se o gênero literário,
novela, do gênero televisivo, que é tão popular no Brasil.

5.1.3  Conto

Termo de origem latina comentum, que significa invenção, ficção, proveniente


do verbo contueor, eris ou olhar atentamente para, contemplar. O conto pode
ser uma narrativa oral ou escrita verdadeira ou ficcional. Entendido enquanto
obra literária, o conto tem caráter ficcional. Se nos remetermos às origens da
atitude, diremos que o contar é primordial ao ser humano, e que, desde sua
aquisição verbal, o homem tem necessidade de se comunicar e dizer (contar)
seus desejos, seus anseios e o que se passa em sua vida.
A tradição de contar se fundamenta historicamente na prática de escrever e co-
piar os contos provindos da tradição oral, por isso dizemos que o conto é um dos
gêneros literários mais antigos, por estar ligado à nossa vida, intrinsecamente. Te-
mos que o conto, como o conhecemos ocidentalmente, tem sua origem nos contos
hindus: Pantschatantra (Os cincos livros) e o Hitopadexa (A instrução útil), ambas
com gênese em séculos antes de Cristo e de Buda. Esses contos espalharam-se pelo
mundo e ganharam traduções chinesas, árabes, gregas, latinas e muitas outras.

110 • capítulo 5
Esta disseminação foi possível, pois, originalmente, esse gênero literário foi
definido por sua brevidade, sendo considerado uma narrativa curta e linear na
qual figuram poucas personagens. O conto concentra-se em uma única ação de
curta duração temporal e situada num só espaço. É justamente esta brevidade
do conto que faz com que o escritor seja um grande artista da palavra.
O conto é a expressão de um momento da vida de um ou outro personagem,
que, no entanto, representa um todo. Por isso, o conto apresenta uma concen-
tração de elementos em uma só unidade dramática e com um único eixo temá-
tico e um único conflito, ou seja, apresenta os mesmos elementos básicos do
romance (personagens, fatos, ambiente e tempo), porém de forma condensa-
da, indo direto ao desfecho final.
Esse gênero surge no Brasil, como narrativa escrita, na primeira metade do
século XIX e era publicado em jornais e revistas, tendo como grandes represen-
tantes Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu. Temos como primeiro grande
contista brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis, que apresenta uma obra
essencialmente contemporânea, apesar de escrita no final do século XIX.
Entre seus contos mais famosos estão: O alienista, Missa do galo, A cartoman-
te e Uns braços.
Leia um excerto de O alienista, Machado de Assis:

Capítulo primeiro
De como Itaguaí ganhou uma casa de orates

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médi-
co, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil,
de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos
regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo
a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência,
alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. [...]

Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn003.pdf>. Acesso


em: 15 maio 2014

capítulo 5 • 111
O Modernismo brasileiro faz com que o gênero ganhe prestígio com autores
como Antônio Alcântara Machado (Brás, Be­xiga e Barra Funda) e Mário de An-
drade (Contos novos, 1947).

5.1.4  Outras formas de narrar

5.1.4.1  Crônica
A palavra crônica é derivada do latim (Chronica) e do grego (Khrónos), que tem
como significado a ideia de tempo. A crônica, em sua origem, registrava os acon-
tecimentos históricos em ordem cronológica, relatando, além dos fatos mais im-
portantes, acontecimentos sem grande relevância. É na Idade Média que o gênero
começa a ganhar recursos estilísticos e características de autoria. A partir da pro-
pagação dos impressos periódicos no séc. XIX, surgiu a crônica como conhecemos
hoje. Passando de nota introdutória a folhetim, o gênero iria ganhar espaço nos jor-
nais e a simpatia de literatos, conquistando o status de literatura. O caráter autoral
é um dos elementos classificadores do gênero. O escritor busca na realidade social,
política, cultural, econômica o pretexto para escrever, fornecendo ao texto mais do
que mera informação; a crônica distingue-se pelo trabalho estilístico do autor.
Vejamos a crônica No restaurante, de Carlos Drummond de Andrade:

– Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos, no máximo, desabrochando na ul-
traminissaia – entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisa-
va de mesa, não precisava de nada.
Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu
para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
– Meu bem, venha cá.
– Quero lasanha.
– Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
– Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada – lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em
sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
– Vou querer lasanha.
– Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
– Gosto, mas quero lasanha.

112 • capítulo 5
– Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana
de camarão. Tá?
– Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
– Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
– Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
– Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
– Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada. A coisinha amuou. En-
tão não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer la-
sanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham
reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
– Moço, tem lasanha?
– Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
– O senhor providenciou a fritada?
– Já, sim, doutor.
– De camarões bem grandes?
– Daqueles legais, doutor.
– Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
– Uma lasanha.
– Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para
surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não
foi recusada pela senhorita.
Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma
vez, no mundo, a vitória do mais forte.
– Estava uma coisa, hem? – comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. –
Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
– Agora a lasanha, não é, papai?
– Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
– Eu e você, tá?
– Meu amor, eu...
– Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.

capítulo 5 • 113
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha,
bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garo-
tinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força
total, o poder ultrajovem.

Disponível em: <http://files.comunidades.net/7underground/PARA_GOSTAR_


DE_LER_VOLUME_1__CRONICAS.pdf>. Acesso em: 15 maio 2014.

SAID TAYAR SEGUNDO


Apesar de sua aparente sim-
plicidade, a crônica não deixa
de utilizar os recursos artísticos.
Outra característica do gênero é
seu caráter efêmero de publica-
ção diária em jornais. Podemos
resumir a definição de crônica
como uma espécie de narrativa
curta e condensada que capta
um flagrante da vida, pitoresco e atual, real ou imaginário, com uma ampla va-
riedade temática.
Os jornais veiculam textos informativos. Mas há também espaço para o lite-
rário, através das crônicas. No passado, havia também os folhetins, cujos capí-
tulos eram publicados um por dia. Muitos vieram a se tornar depois romances
editados na forma de livros.

5.1.4.2  Ensaio e artigo


A palavra “ensaio” vem do francês “essai”, que significa “tentativa”.
Normalmente, quando ouvimos a palavra “ensaio”, pensamos nos prepara-
tivos realizados por artistas cênicos (músicos, atores, cantores, dançarinos etc.)
tempos antes de sua apresentação para o público.
No entanto, quando se trata do gênero literário “ensaio”, devemos pensar
em textos que apresentam a discussão de algum assunto, buscando aprofundar
o conhecimento sobre tal assunto, tentando revelar aspectos ainda não explo-
rados com relação a um determinado tema.
Diferentemente dos tratados filosóficos, que têm o objetivo de esgotar um
assunto, e apresentam um rigor praticamente científico na abordagem do
tema, o ensaio não tem nem o compromisso de esgotar o assunto nem esse
rigor metodológico próximo dos métodos científicos.

114 • capítulo 5
O ensaio representa uma forma intelectual de abordar o conhecimento,
apresentando um ponto de vista específico (o do autor) acerca do tema que
aborda. Sendo a expressão de um ponto de vista pessoal do autor, o ensaio se
caracteriza por apresentar certa subjetividade na escrita.
O ensaio também possui uma forma

WIKIMEDIA
mais livre no que se refere à sua linguagem
e expressão: em vez de ter o compromisso
de empregar conceitos teóricos bem de-
finidos, o ensaio explora as potencialida-
des de significação da linguagem verbal,
fazendo uso inclusive da criatividade e da
linguagem metafórica.
Devido a essas características (presen-
ça de subjetividade e emprego mais livre
e criativo da linguagem), o ensaio, que
poderia ser considerado um texto filosó- O filósofo francês Michel de Montaigne
fico, vem sendo considerado pela crítica
recente como uma forma de expressão literária.
O gênero surge na cultura ocidental com a publicação, em 1580, do livro do
pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), cujo título é justamente En-
saios, com textos comumente curtos e fragmentários, desconectados, sobre te-
mas diversos: tristeza, desigualdade entre os homens, canibais etc.
Atualmente, o ensaio é visto como uma atitude de suspeita, investigação,
diante de saberes constituídos, é a opção por uma lógica experimental; um en-
saio não tem caráter de texto acabado.
O ensaio seria, então, um espaço de resistência, incompleto e fragmentado.
Talvez por isso seja considerado um gênero misto, dedicado à reflexão crítica, ao
mesmo tempo em que divide com a arte a possibilidade de autonomia estética. É
considerado gênero literário por permitir a convergência da racionalidade com a
imaginação criativa.
Por não estar obrigado a possuir coerência, o ensaio pode recorrer à imagem
e à metáfora, porém não deixa de lado o trabalho com o conceito. Apropria-se dos
conceitos científicos mais diversos, mas não se insere nos padrões frios da descri-
ção analítica. Tem como características a cordialidade, a abertura e a polêmica.
O ensaio é o gênero em que a literatura encontra a filosofia.

capítulo 5 • 115
VLADIMIR LIVERTS / DREAMSTIME.COM

Diferentemente do ensaio, o artigo não é con-


siderado texto literário, sua extensão é variável e
trata de um assunto em particular ou de uma va-
riedade de assuntos. Suas aplicações são também
variadas: a entrada de um dicionário ou enciclo-
pédia, uma peça jornalística, um texto científico,
um texto de opinião.
O artigo não possui nenhuma forma de liris-
mo ou estilística primorosa, porque privilegia a
objetividade do comentário. Porém, o artigo obri-
ga um compromisso do autor com o texto, o artigo
A escultura O pensador, exige a marca do sujeito que o escreve. O articulis-
de Auguste Rodin.
ta possui sempre uma posição de autoridade, por
isso o artigo tem, quase sempre, caráter profissional ou científico, e o redator
deve ser habilitado para ser responsável por seu texto.

5.2  Representação da realidade em verso

5.2.1  Poesia épica


A poesia épica ou epopeia é também conhecida como poesia heroica. Por ser
uma narrativa de grandes feitos, podemos encontrar a designação pura e sim-
ples de épica.
Como já foi dito, o poema épico é, predominantemente, narrativo e se ocu-
pa de glorificar fenômenos históricos, míticos e lendários que representam
uma cultura, tendo entre as personagens desde indivíduos reais até os que
nunca existiram nem em lendas nem em mitos. A função da epopeia é eter-
nizar as personagens lendárias e as tradições preservadas através dos tempos
pela tradição oral ou escrita.
Os eventos narrados pelas epopeias são sempre de cunho ideológico, como
é o caso da honra dos gregos em Homero, ou das glórias portuguesas em Ca-
mões. Assim, a epopeia ganha corpo em feitos e fatos documentáveis, deixando
de ser, principalmente a partir do período clássico grego, simplesmente mítica
e dando lugar à imagem de um tempo heroico particular, comumente ligado ao
passado de uma nação e ao prognóstico de seu futuro.

116 • capítulo 5
CONEXÃO
Para saber mais, acesse: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes>, dicionário de termos lite-
rários em versão para Internet, muito útil para buscar definições específicas da crítica e da
teoria literária.

Vale dizer que esse gênero se confunde com o surgimento da literatura oci-
dental. Portanto, por sua complexidade e historicidade, é um gênero que pro-
vém da tradição oral e das primeiras narrativas escritas.
Poucos são os conjuntos de textos considerados “verdadeiras” epopeias, já
que o reconhecimento de uma epopeia, pela crítica literária, requer um instru-
mental específico que passa pela análise do próprio gênero e sua gênese, os
textos que deram origem aos principais poemas épicos e toda a riqueza e diver-
sidade envolvidas, bem como sua inter-relação.
Homero foi o primeiro, de que se tem
WIKIMEDIA

notícias, a compilar a tradição dos versos


cantados em um grande poema, preocu-
pando-se não somente em narrar os feitos
heroicos, mas também em estabelecer um
certo rigor literário e um cuidado estilísti-
co, apesar de sua aparente espontaneidade.
Podemos dizer que Homero foi o pre-
cursor (sem rejeitar as fontes em que o poe-
ta bebeu, é claro!) de uma tradição literária
que permite, progressivamente, o alastra-
mento da tradição escrita como condutora
da expressão artística a partir de então.
A epopeia, embora se fundamente
em eventos históricos, não os representa
Busto do antigo lendário poeta épico
com fidelidade, a este universo pertence
grego, Homero.
um passado absoluto, de gênese quase
mitológica, cujo ser humano comum não tem acesso, sempre carregado
com conceitos morais e atitudes exemplares que servem como modelo com-
portamental. Desse modo, podemos afirmar que a epopeia é um gênero
híbrido, porque mescla literatura e história, ou seja, ficção e realidade.

capítulo 5 • 117
Homero tem seus seguidores em Virgílio, Ovídio, Dante Alighieri, Luiz Vaz
de Camões e, nos tempos mais modernos, Marcel Proust.

© KARAYUSCHIJ | DREAMSTIME.COM
Marcel Proust.
Disponível em <http://www.dreamstime.com/stock-photo-marcel-proust-tomb-pere-lachaise-ce-
metery-paris-france-image34592650>, com acesso em 15-5-2014.

Marcel Proust nasceu em Auteuil, subúrbio de Paris, em 1871. De saúde frágil, teve
uma infância cheia de cuidados. Durante a adolescência, viveu nos Champs-Élysées,
em Paris, onde o ar saudável lhe ajudava a diminuir os efeitos da asma.
Em 1891, ingressou na Faculdade de Direito da Sorbonne; preparou-se para seguir a
carreira diplomática, da qual desistiu para dedicar-se à literatura. Seus primeiros escri-
tos datam de 1892, quando, com alguns amigos, fundou a revista Le Banquet. A seguir,
passou a colaborar em La Revue Blanche, freqüentando ao mesmo tempo os salões
aristocráticos parisienses, cujos costumes forneceram material para sua obra literária,
iniciada com Os Prazeres e os Dias (1896).
A morte da mãe, em 1905, fez dele herdeiro de uma fortuna razoável. Com a saúde
cada vez mais debilitada, Proust acaba isolando-se dos meios sociais para dedicar-
se exclusivamente à criação de Em Busca do Tempo Perdido, publicado entre 1913
e 1927, em oito volumes: No Caminho de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor,
O Caminho de Guermantes (1 e 2), Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O
Tempo Redescoberto.

118 • capítulo 5
Seu romance é tido por consenso como um dos maiores não apenas do século passa-
do, mas de toda a história da literatura. Proust morreu em Paris, em 1922.

Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/marcel-proust.jhtm>, acesso em: 15


maio 2014.

É claro que não podemos querer que o gênero tenha se mantido imutável du-
rante esses mais de dois mil anos. Na Idade Média, por exemplo, os feitos heroicos
e a exaltação das nações são substituídos pela relação do homem com Deus e pela
indicação do caminho da salvação, mas não podemos tomar esse modelo como
regra, devido tanto à complexidade do gênero quanto às transformações sociais e
históricas do período. Exemplo disso é A divina comédia, de Dante Alighieri.
Muito se teorizou sobre o gênero épico, muitas são as concepções historica-
mente constituídas, todas elas estão, é claro, ligadas às transformações sociais
e ideológicas de cada período.

CONEXÃO
Acesse: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf> para ler a
obra integral A divina comédia, de Dante Alighieri.

Na Idade Média, por exemplo, como permitir, diante da luta contra os hereges,
a existência de poemas que utilizassem o maravilhoso mitológico? Algo que con-
tradizia a doutrina cristã tanto para os reformistas quanto para os católicos. Assim,
temos que a teoria e a prática sempre estiveram associadas e, vale dizer que, qual-
quer que seja o período histórico do qual estejamos falando, Aristóteles sempre
surge como referência, seja para atacá-lo ou para se juntar a ele. Sendo que, nunca
foi negado ao gênero sua capacidade de definir e compreender uma cultura.
Então, para definirmos em poucas palavras o poema épico (ou epopeia), po-
demos dizer que se trata de um poema extenso e predominantemente narrativo
– mas não só isso, pois envolve descrições também, por exemplo – no qual os
elementos divinos se confundem com a realidade e as lendas com os fatos his-
tóricos, ou seja, ele mescla literatura e história.

capítulo 5 • 119
Via de regra, o poema invoca algo ou alguém de valor extraordinário, cujos
atos possuem características grandiosas e heroicas. Os poemas épicos clássi-
cos foram escritos em versos hexâmetros e, para se ter uma ideia de quão longo
é um poema épico, basta observarmos que a Ilíada, de Homero, possui mais de
quinze mil versos.
Para que possamos visualizar a teoria apresentada anteriormente, obser-
vemos alguns excertos do poema épico consagrado historicamente A divina
Comédia, Dante Alighieri. Leia-o com muita atenção e procure identificar as
características apresentadas.

A Divina Comédia, Dante Alighieri

Inferno

Canto I
Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda

© FEDERICOFOTO | DREAMSTIME.COM
a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por
uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma
pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a
selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que
o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o pas-
sar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o
guiará ao Paraíso. Dante o segue.

Da nossa vida, em meio da jornada,


Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;


Mas para o bem narrar lá deparado
De outras cousas que vi, direi verdade.
Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
Quando hei o bom caminho abandonado.

120 • capítulo 5
Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,


Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,


Que do peito no lago perdurava,
Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava


Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,


Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,


Segui pela deserta falda avante;
Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante


Assoma ágil e rápida pantera
Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;


E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.
No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
Seus sócios, quando o Amor divino um dia

capítulo 5 • 121
A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.


De um leão de repente surge o aspecto,
Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;


Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;


De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia


Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,


Se acaso o tempo de perder lhe chega,
Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;


Pouco a pouco me investe até lançar-me
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me


Alguém fraco de voz diviso perto,
Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,


— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

122 • capítulo 5
“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,


Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo


Filho de Anquíses, que de Troia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?


Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte


Donde em rio caudal brota a eloquência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!


Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;


Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;


Sábio famoso, acude ao perseguido!
Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;


“Te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido.

capítulo 5 • 123
“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,


Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,


Há-de a outros se unir té ser chegado
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado


Saber, virtude, amor terá por norte,
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,


Por quem Camila a virgem dera a vida,
Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida


Irá lançar-se no infernal assento,
Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento


De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,


Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura


Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prêmio da imortal ventura.

124 • capítulo 5
“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia


Minha à lei castigando, não consente
Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,


Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,


Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,


À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

Move-se o Vate então, após o sigo.


Notas explicativas de alguns versos:
1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300,
ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebro-
sa etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e
da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da
violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da inconti-
nência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro,
símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro.
— 122.Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.

Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/divinacomedia.html>. Acesso


em: 15 maio 2014.

capítulo 5 • 125
Acima temos alguns versos do Canto I, do
WIKIMEDIA

Inferno, do poema épico de Dante Alighieri, es-


crito em plena Idade Média.
Você percebeu alguma característica do gê-
nero? Vamos a algumas dicas: quem seria o Jú-
lio? E Virgílio, poeta romano símbolo da razão
humana, escritor de Eneida, grande epopeia
baseada nos versos de Homero?
Percebeu que além da métrica dos versos,
Dante se remete ao originário de um passado
greco-romano heroico quando se diz descen-
dente de Júlio César e dos ancestrais troianos
que constituíram Roma. Por exemplo, Anquíses
Dante Alighieri. é pai de Eneias, importante chefe troiano que,
após a derrota de Troia, cumpre as profecias e
constrói uma nova Troia, que hoje conhecemos por Itália. Daí a referência a
Virgílio, construtor dos versos que narram a saga de Eneias. Vemos, portanto,
nesse pequeno trecho, a referência a um passado histórico grandioso e longín-
quo, a exaltação da nação por meio de seus heróis, características incontesta-
velmente épicas.
Que tal pensarmos um pouco sobre a questão homérica, já que há uma dis-
cussão acerca da autoria da Ilíada e da Odisseia?

CONEXÃO
Acesse: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/divinacomedia.html> ,para ler a obra integral
A divina comédia, de Dante Alighieri, acesso em: 15 maio 2014.

5.2.2  A poesia épica de Homero.

Não podemos falar da Ilíada e da Odisseia sem antes entrarmos em uma dis-
cussão polêmica: a verdadeira autoria dessas duas grandes obras. Essa já é uma
discussão milenar. Eram chamados de Corizontes aqueles estudiosos que, na
Antiguidade Clássica, atribuíam autoria diferente à Ilíada e à Odisseia.

126 • capítulo 5
WIKIMEDIA
Apotheose Homero por Jean Auguste Dominique Ingres.

É isso mesmo que você acabou de ler! Não se sabe, com certeza, se foi Homero
quem escreveu as duas epopeias, não se sabe nem se Homero realmente existiu
com esse nome. Julga-se que ele era cego e que viveu por volta do século VIII a.C.,
na Jônia (atualmente uma região da Turquia), mas não existem provas documen-
tais (a não ser os próprios poemas) de que esse homem tenha existido.

Homero (séc. VIII a.C.) foi um poeta grego, um dos maiores da Antiguidade, a quem se
atribuem as obras-primas Ilíada e Odisseia. Sobre a data da elaboração das epopeias,
sabe-se apenas que ocorreu entre os séculos IX e VIII a.C. e que a Ilíada precedeu a
Odisseia em 50 anos. A Odisseia conta a aventura do herói Ulisses, até a sua volta para
a ilha de Ítaca. Na Ilíada Homero narra os acontecimentos da Guerra de Troia, no século
IX a.C., e as proezas dos heróis gregos e troianos. [...]
No século VI a.C., quando as obras passaram da forma oral, original, para a forma es-
crita, pensou-se que a Ilíada e a Odisseia poderiam ser obras de autores diferentes.
Depois passou-se a duvidar da própria existência de Homero.

Disponível em: <http://www.e-biografias.net/homero/ >. Acesso em: 15 maio 2014.

capítulo 5 • 127
Isso ocorre porque os poemas épicos atribuídos a Homero são, na verdade,
provindos de um material preexistente: poemas menores, sagas, lendas e mitos
da tradição oral que foram incorporados tanto a uma quanto a outra obra épica.
Os estudiosos discutem não só se Homero realmente existiu, mas se foi o feito de
um só poeta a escritura da Ilíada e da Odisseia.
Há uma tendência em se acreditar que a Ilíada foi escrita por um único poeta,
isso devido à sua unidade e ao seu contexto histórico. Alguns dos fatos narrados
já puderam ser comprovados pela arqueologia, inclusive a recente descoberta da
cidade de Troia, que até então se acreditava ser mitológica.

CONEXÃO
Para conhecer um pouco sobre a cidade de Troia, acesse <http://www.infoescola.com/mi-
tologia-grega/troia/>. Acesso em: 7 maio 2014.

THE ART ARCHIVE / GIANNI DAGLI ORTI / THE PICTURE DESK / AFP

Muralhas da cidade de Troia descobertas após escavação.

Já quanto à Odisseia, um certo número de estudiosos tende a achar que foi es-
crita por vários autores e que Homero (ou o poeta a quem se usou chamar assim)
somente compilou os poemas. Isso se verifica, segundo os críticos e tradutores,
pelas incongruências históricas, psicológicas e estilísticas presente na epopeia.

128 • capítulo 5
Você sabia que Troia fica localizada na Turquia?
Com o lançamento do filme “Troia” nos cinemas em 2004, as pessoas começam a re-
lembrar a legendária história desta cidade. Muitos porém não sabem que esta cidade
fica localizada no território Turco. Troia foi identificada no final do século XIX por Heinrich
Schliemann, no monte Hissarlik, na planície dos Dardanelos, na costa noroeste da Turquia.
Esta área contém uma sucessão de várias cidades que foram sendo construídas em um
mesmo lugar durante séculos, uma destas cidades seria Troia. Entretanto, a lenda de Troia
é ainda um mistério com poucas possibilidades de ser solucionado pelos arqueólogos,
não havendo perigo que o romântico enigma de Troia seja destruído. Hoje não se vê qua-
se nada da época de glória de Troia, mas ruínas da cidade podem ser visitadas.

Disponível em: <http://www.business-with-turkey.com/guia-turismo/troia_turquia.shtml>.


Acesso em: 7 maio 2014.

A Ilíada relata os acontecimentos da Guerra de Troia. Composta por 24 cantos, as pro-


ezas dos heróis gregos e troianos são minuciosamente narradas. Homero não foi tes-
temunha dos fatos, pois viveu quatro séculos depois. Sem se preocupar com a verdade
histórica, transformou a história num poema. [...]
Foram dez anos de luta quando Ulisses resolve presentear Troia com um gigantesco
cavalo de madeira, com grande número de soldados no seu interior. Troia foi invadida e
incendiada e Helena reconduzida a Esparta. A expressão “presente de grego” é sinôni-
mo de cavalo de Troia.
Disponível em: <http://www.e-biografias.net/homero/>. Acesso em: 15 maio 2014.

Não vamos entrar, aqui, na discussão dessa polêmica, o que nos interessa
é saber que a questão existe e que ela é fruto de um aspecto peculiar à tradição
grega: a oralidade. Homero, seja ele quem for, conseguiu consolidar a tradição
escrita e “inaugurar” a literatura ocidental.

CONEXÃO
Acesse: <http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/odisseia/index.html> , para conhecer excer-
tos da obra Odisséia, de Homero.

capítulo 5 • 129
5.2.3  A lírica

O adjetivo lírico é derivado de lira, instrumento musi-


cal de cordas da antiguidade, semelhante a uma har-
pa, presente na cultura helênica (civilização grega).
Nas origens da poesia, os versos eram cantados e
acompanhados por música. Por essa razão, o gênero
lírico, que é basicamente constituído por poesia (à
exceção da muito recente prosa poética), acabou her-
dando a sua denominação desse instrumento musical Estátua do deus Apolo,
de posse de uma lira
arcaico, a lira.

A Odisseia é composta de 24 cantos ou rapsódias, divididas em três partes, embora


não apresente separação explícita. A primeira parte abrange os cantos I e IV, trata de
Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope. [...] Telêmaco luta contra as investidas dos que
pretendiam conquistar sua mãe, que resistiu tenazmente. Penélope declarou que elege-
ria um pretendente quando terminasse de tecer a mortalha de Laertes, pai de Ulisses.
Durante o dia tecia e de noite desfazia. Na segunda parte que abrange os cantos V a
XIII, as aventuras de Ulisses são relatadas [...]. A terceira parte relata a vingança de Ulis-
ses que, de volta a Ítaca, após vinte anos, disfarçado de mendigo, mistura-se ao povo e
aos poucos vai se informando das traições ocorridas na sua ausência. Aos poucos vai
se revelando, primeiro ao filho e depois a Penélope. Luta contra seus traidores, aniquila
os inimigos e volta para seu palácio.

Disponível em: <http://www.e-biografias.net/homero/ >. Acesso em: 15 maio 2014.

5.2.3.1  Características do gênero lírico.


O que define, então, o gênero lírico?
A sua principal característica é a expressão das emoções interiores de um eu
(chamado pela teoria da literatura de eu lírico ou também de eu poético). Essa
expressão da alma de um eu fictício (mas que não pode ser confundido com um
personagem) pode expor ao leitor sentimentos, emoções, pensamentos, ideias,
visões de mundo, ou seja, tudo aquilo que puder pertencer à vida interior de um
indivíduo humano.

130 • capítulo 5
Para simplificarmos a questão, podemos definir a lírica como gênero que
“essencialmente expressa sentimentos” (GANCHO, 1989, p. 4).
A subjetividade lírica é estruturada com ideias, sentimentos, emoções, re-
cordações, desejos, profundos estados de espírito que, em muitos casos, ro-
çam o indefinível, o inefável e que só podem ser expressos pela musicalidade,
pela metáfora e pela poesia. Por essa razão é que o lirismo encontrou, durante
a evolução histórica, a sua mais perfeita e generalizada forma de expressão no
verso, com seu ritmo e rima próprios. Se a prosa rejeita a rima, o verso a busca
exatamente como instrumento de expressão das emoções, as quais se afirmam
mais pela repetição e pela simbologia do que pela descrição ou pelo recurso à
caracterização ambiental. Consequentemente, no poema lírico, não há prota-
gonistas, como na literatura de ficção, não há ambiente físico caracterizado,
nem episódio, nem enredo, nem temporalidade defini­da. As emoções profun-
das do poeta, seu “eu”, sua visão do mundo (e não o mundo) são o que vale.
(Disponível em: HYPERLINK “<http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/
sub.php?op=literatura/docs/generos>” <http://www.portrasdas­letras.com.br/
pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/generos>)
Retomemos o seguinte trecho da citação, aquele que diz que no lirismo a
visão de mundo do eu (e não o mundo) é o que vale. Essa é uma ótima definição
do gênero lírico, porque permite diferenciá-lo de outros gêneros, cuja principal
preocupação é representar o mundo através da imitação (mimese): os gêneros
narrativo e dramático.
Enquanto os gêneros narrativo e dramático apresentam histórias com per-
sonagens e cenários semelhantes à realidade exterior (o mundo), o gênero líri-
co volta-se para a expressão de uma realidade interior: sentimentos, emoções,
pensamentos e sensações do eu.
Quando o texto lírico fala do mundo, da realidade exterior (a natureza, o es-
paço, a sociedade), a visão pessoal do eu se sobrepõe à realidade objetiva a que se
refere. Tal realidade é expressa não como ela efetivamente é, mas recriada pela
visão pessoal do eu, modificada por seu estado de espírito. Por exemplo, se o eu
encontra-se numa situação de profunda tristeza e melancolia, tende a expressar
sua visão da realidade de modo pessimista, tende a enxergar na realidade apenas
os seus aspectos mais negativos.
Quando o texto busca ser fiel à descrição de uma realidade exterior, dizemos
que ele é objetivo. Em contrapartida, quando o texto recria essa realidade exte-
rior a partir das impressões pessoais de um eu, dizemos que o texto é subjetivo.

capítulo 5 • 131
CONEXÃO
O site poesia.net disponibiliza vários textos poéticos de autores consagrados e de escrito-
res menos conhecidos do grande público. Acesse pelo endereço eletrônico: <http://www.
avepalavra.kit.net/poesia.htm>

A subjetividade é mais uma marca do gênero lírico, pois nele contam mais
as impressões pessoais do eu sobre a realidade do que a própria realidade em
si mesma. Por isso, podemos dizer que no lirismo a visão de mundo (e não o
mundo) é o que vale.

Por exemplo, o poema de Florbela Espanca:

A minha dor

À você

A minha Dor é um convento ideal


Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias


Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios


Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,


Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/livrodemagoas.htm>.


Acesso em: 15 maio 2014.

132 • capítulo 5
5.2.3.2  Elementos formais no gênero lírico
Podemos perceber que o poema é a principal forma como a lírica se expressa.
Para isso, vamos rever algumas terminologias com as quais você já deve ter tido
contato desde o ensino fundamental e médio:
Poesia: essa palavra pode ser compreendida com, no mínimo, três sentidos
distintos. Primeiramente, poesia significa arte de escrever em versos (diferen-
temente da prosa, que vem a ser a escrita em parágrafos).
Numa segunda acepção, a poesia pode ser compreendida como expressão
de beleza, de encanto, de ternura e comoção. Esses sentimentos são muito liga-
dos aos efeitos provocados pelos textos líricos nos leitores.
A palavra “poesia” também pode ser usada para fazer referência ao conjunto
da obra de um poeta (obra completa), por exemplo, “a poesia de Drummond”.
Poema é o nome que se dá a um texto poético (se, por um lado, o termo “po-
esia” refere-se ao conjunto da obra do poeta, por outro lado, o termo “poema” é
empregado para nos referirmos individualmente a um único texto específico).
Por exemplo: o poema Soneto da fidelidade é de Vinícius de Moraes.
Verso é o nome que damos a cada linha de um poema. A palavra “verso” sig-
nificava em sua origem histórica “volta”. O verso é um enunciado que volta (que
retorna) ao lugar de onde partiu (o lado esquerdo da página) antes de chegar ao
fim da folha (lado direito). Essa interrupção característica do verso é utilizada
pela poesia como recurso para criar certo ritmo ao texto poético.
Estrofe é o conjunto de versos, que pode ser variável; em um soneto, como o
de Vinícius de Moraes, temos duas estrofes de quatro versos (quartetos), segui-
das de duas estrofes de três versos (tercetos).
Métrica é o termo utilizado pela teoria para denominar o tamanho (ou me-
tro) dos versos. Estes são medidos pelo número de sílabas poéticas que contêm.
Rima é o nome dado à coincidência de sons que ocorre nos poemas, em es-
pecial ao final dos versos. Nada impede, contudo, que haja rimas no interior dos
versos, ou até mesmo entre o fim de um verso e o meio de outro.
Além dos elementos citados acima, a poesia caracteriza-se por três ele-
mentos que devem sempre estar associados, em maior ou menor grau: a sub-
jetividade, a estrutura em versos e a musicalidade.
A subjetividade é, como vimos, caracterizada pelo fato de o texto estar volta-
do mais para o autor (sujeito) do que para a realidade objetiva.
A contradição entre o plano formal (harmonia, perfeição) e o plano do con-
teúdo (desarmonia, imperfeição) realça ainda mais o drama vivenciado pelo eu.

capítulo 5 • 133
Um poema apresenta-se estruturado em versos, que orientam a leitura a se-
guir um determinado ritmo. Tal ritmo pode provocar um efeito estético no lei-
tor por causa de sua musicalidade, mas também pode ser um elemento a mais
a ser considerado na interpretação do poema. Não é raro que isso aconteça: o
ritmo querer dizer alguma coisa ao leitor.
Assim, devemos buscar relações de sentido entre a estrutura dos versos (ta-
manho, disposição das palavras, presença ou ausência de rimas, tipo de ritmo)
e as significações que os enunciados trazem no plano do conteúdo. Os versos
são uma síntese entre forma e conteúdo para a expressão estética de um pensa-
mento. Eles fornecem ao poema uma forma particular de apresentação.
A rima também pode colaborar para a criação do ritmo, contudo é possível
determinar o ritmo do poema justamente pela ausência de rimas. Assim, o ritmo
fica “quebrado”, desajeitado, em desarmonia, e essas qualidades podem ter a ver
com o sentido do poema, ajudando a provocar o efeito estético nos leitores.
O ritmo é produzido intencionalmente pelo poeta, pelo arranjo linguístico:
dos sons, das pausas e da tonicidade das sílabas. Segundo o escritor mexicano
Octávio Paz, no ritmo há um:

[...] “ir em direção a”, que só pode ser elucidado se ao mesmo tempo, se elucida quem
somos nós. O ritmo não é medida, nem algo que está fora de nós; somos nós mesmos que
nos transformamos em ritmo e rumamos para “algo”. O ritmo é sentido e diz “algo”. Assim,
seu conteúdo verbal e ideológico não é separável. Aquilo que as palavras do poeta dizem
já está sendo dito pelo ritmo em que as palavras se apoiam. (PAZ, O. 1982; pp. 69-70)

Ao dizer que “ritmo é sentido”, Octavio Paz reforça a ideia de que, em po-
esia, e principalmente no gênero lírico, os recursos formais interagem com o
conteúdo (significação) das palavras, produzindo sentidos de modo criativo.
A linguagem poética é, assim, muito particular. Se quisermos entendê-la, é
preciso que nos familiarizemos com ela, e isso só será possível mediante uma
leitura cuidadosa e frequente de poemas.
Atualmente, esse gênero está muito presente nas letras de músicas, que são
poemas cantados. De certa forma, as canções da música popular brasileira re-
presentam uma volta às origens da poesia e do gênero lírico, quando os ver-
sos eram cantados em vez de declamados, porque sempre apresentados com
acompanhamento musical.

134 • capítulo 5
CONEXÃO
Visite o site do poeta Ferreira Gullar, onde são disponibilizados seus e-poemas: <http://
literal.terra.com.br/ferreira_gullar/epoemas/index.shtml?epoemas>

ATIVIDADE
6.  O que é romance?

7.  O que é novela?

8.  Qual é a estrutura da novela?

9.  O que é conto?

10.  Defina crônica.

11.  Ensaio e artigo são a mesma coisa?

12.  Qual é definição de epopeia?

13.  Qual é o objetivo de um escritor ao compor uma epopeia?

14.  Podemos classificar a epopeia como um gênero híbrido? Explique.

15.  É comprovada a existência de Homero?

16.  Teça seus comentários após ler estudos sobre a Ilíada.

17.  Leia excerto da Odisseia e anote suas impressões e compreensões.

capítulo 5 • 135
REFLEXÃO
Vimos, neste capítulo a representação da realidade, gêneros em verso e prosa.
O narrativo, aquele em que se contam histórias e no qual o narrador é a figura central, é mui-
tas vezes mais importante que o personagem protagonista.
Dentre os gêneros narrativos, vimos: romance, novela, conto, crônica e ensaio.
Depois, adentramos a representação da realidade com os gêneros em verso. Vimos a epo-
peia e a lírica.
O gênero épico, então, percorreu toda a história da literatura ocidental e seu modelo perdura
até os dias de hoje, se pensarmos em Marcel Proust. É claro que, como você deve ter per-
cebido, os elementos linguísticos e literários se transformam, mas a estrutura e a temática
continuam, em essência, as mesmas.
O gênero lírico é predominantemente expresso pela poesia. No entanto, esses termos não são
sinônimos: existem outros gêneros literários que também se manifestam na forma de versos.
A poesia é a forma natural de expressão do lirismo, uma vez que os elementos sonoros,
musicais e rítmicos que o verso propicia auxiliam o texto a expressar as emoções e o estado
de alma do eu lírico.
Desse modo, ao realizarmos uma análise literária de poemas, devemos sempre levar em
consideração os elementos formais, pois estes costumam estar associados à produção de
sentidos e à promoção de efeitos estéticos nos leitores.

LEITURA
O Guarani, de José de Alencar
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
O cortiço, de Aluísio Azevedo
São Bernardo, de Graciliano Ramos
O quinze, de Rachel de Queirós
Os sertões, de Euclides da Cunha
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa
Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco
A metamorfose, de Franz Kafka
O alienista, Missa do galo, A cartomante e Uns braços, de Machado de Assis

136 • capítulo 5
Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio Alcântara Machado
Contos novos, de Mário de Andrade

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Cultrix, 1973.

GANCHO, Cândida Vilares. Introdução à poesia: teoria e prática São Paulo: Atual Editora1,
989 (Tópicos de linguagem).

GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de estudos literários. 1974.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Col. Logos.

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Difel, 2001..

capítulo 5 • 137

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