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PRAXIS E FORMAÇÃO 2017

ANAIS DO XXI FÓRUM DA RESIDÊNCIA EM


PSICOLOGIA CLÍNICA INSTITUCIONAL

A clínica como política de resistência


desafios na formação do residente de Psicologia

Vorsatz, I. (Org.)

2017
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


Reitor
Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora
Maria Georgina Muniz Washington
Sub-reitora de Graduação
Tania Maria de Castro Carvalho Netto
Sub-reitor de Pós-graduação e Pesquisa
Egberto Gaspar de Moura
Sub-reitora de Extensão e Cultura
Elaine Ferreira Torres
Centro de Educação e Humanidades
Lincoln Tavares Silva
Instituto de Psicologia
Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota
Hospital Universitário Pedro Ernesto
Edmar José Alves dos Santos
Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico do HUPE
João José Caramez
Coordenação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde/COREMU-
UERJ
Ingrid de Mello Vorsatz
Coordenação do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar
Ingrid de Mello Vorsatz

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/NÚCLEO MID

F745
Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional (21:2017: Rio de
Janeiro)
Anais do XXI Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional:
A clínica como política de resistência; desafios na formação do residente de
Psicologia / Organização: Profª. Drª. Ingrid de Mello Vorsatz – Rio de
Janeiro: Rede Sirius – Rede de Bibliotecas, 2017.
130p.

ISBN 978-85-5676-021-0

1. Psicologia Clínica – Congressos – Brasil. 2. Assistência


hospitalar – Congressos - Brasil. I. A clínica como política de resistência. II.
desafios na formação do residente de Psicologia. III. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Vorsatz, Ingrid.
CDU 159.9

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

XXI FÓRUM DA RESIDÊNCIA EM PSICOLOGIA CLÍNICA INSTITUCIONAL


A clínica como política de resistência – desafios na formação do residente de Psicologia

PROMOÇÃO E ORGANIZAÇÃO
Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar
Instituto de Psicologia

COORDENAÇÃO GERAL
Profª Drª Ingrid de Mello Vorsatz

COMISSÃO ORGANIZADORA DO XXI FÓRUM DA RESIDÊNCIA EM PSICOLOGIA


Profª Drª Ingrid Vorsatz (coordenação)

Drª Ester Susan Guggenheim

Drª Glória Maria Castilho

Fernanda Barbosa dos Santos (R1)


Jahyne Aparecida Carvalho Silvestre (R2)
Laudy Gabriele Pereira Guimarães (R1)
Thamires de Souza Cardoso Mayrink Paiva (R2)

COMISSÃO EDITORIAL DOS ANAIS DO XXI FÓRUM DA RESIDÊNCIA

Ingrid de Mello Vorsatz (organizadora)


Aline Monteiro Pinheiro (R1)
Karina Barroso de Andrade (R1)
Marianna Miranda Bauerfeldt (R2)
Penélope Esteves Raposo Mathias (R2)

Apoio administrativo: Cecília Kabarite

3
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

SUMÁRIO

Apresentação 6

Trabalhos e pôsteres apresentados no XXI Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional


2017 7

Recepção de Psicologia: Avanços e impasses na implementação do dispositivo 11

A experiência de apropriação do trabalho de recepção clínica 20

A escuta psicanalítica nas primeiras entrevistas em saúde mental infanto-juvenil 28

Que lugar para o sujeito? Desafios no atendimento para além da Enfermaria de Psiquiatria 34

‘Se não for para comer muito eu nem como’: a implicação de um sujeito em seu adoecimento
orgânico 40
Prescindir do pai para servir-se dele 45

A clínica com o sujeito adolescente: Os desdobramentos das intervenções estéticas na atualidade50

A função da Psicologia na reabilitação cardíaca 58

Quando as coisas não vão bem: O trabalho do psicólogo diante do irrefutável da morte 65

O trabalho clínico como resistência 70

O feminino e a maternidade: Implicações clínicas 78

Da vacilação à demanda: Luto e entrevistas iniciais 84

Oficina terapêutica como expressão da subjetividade: A arte como forma de resistência 90

O trabalho de elaboração de uma criança (diante da verdade) sobre a morte do pai 96

Considerações psicanalíticas sobre o ato de comer na obesidade infantil 104

Mesa de ex-residentes:

A aposta na singularidade como direção de trabalho nas Políticas Públicas 110

Resumos de pôsteres:

O CAPS como dispositivo de cuidado: desafios no manejo da relação terapêutica 119

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A Psicologia no setor de cirurgia cardíaca e reabilitação 122

Uma experiência como estagiária e pesquisadora na clínica atual de saúde mental e de suas
contribuições à teoria psicanalítica 124

A experiência na supervisão da Residência em Psicologia Clínica Institucional na Enfermaria de


Psiquiatria do HUPE: Um segundo momento de trabalho 126

5
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

APRESENTAÇÃO

O tema do Fórum este ano é A clínica como política de resistência – desafios na formação
do residente de Psicologia. Entre as vinte acepções dicionarizadas do substantivo ‘resistência’,
encontram-se, por um lado: 1. Ação ou resultado de resistir; 2. Capacidade de suportar; 3.
Qualidade do que resiste a uma ação externa; 4. Defesa própria do que luta contra os elementos
externos; luta sustentada contra uma ação enérgica ou contra um ataque; 5. Força que anula os
efeitos de uma ação destrutiva. De outro, encontramos: 6. (Fig.). Embaraço, dificuldade, oposição,
recusa; 7. (Fís.). Força que se opõe ao movimento; inércia.

Já o verbo ‘resistir’2 comporta diferentes significados, entre os quais quatro indicam uma
mesma direção: 1. Opor resistência; não se submeter; não se dobrar; 2. Suportar; 3. Fazer face a
uma força superior; conservar-se firme e inabalável; 4. Superar dificuldades; sobreviver, subsistir.
A quinta e última acepção do verbo, ao contrário, é: 5. Negar-se, opor-se, recusar-se.

Como se trata de linguagem – condição do inconsciente -, cabe a cada sujeito escolher sob
qual significante se fará representar nesse momento em que tudo concorre para que conjuguemos o
verbo ‘desistir”: falta de repasses financeiros pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro à
Universidade e ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, condições precárias de funcionamento em
ambas as instituições, atrasos sistemáticos no pagamento de salários e bolsas auxílio.

Em suma, um cenário com o qual não havíamos sido confrontados até então, apesar das
enormes dificuldades que a educação superior pública vem enfrentando em diferentes momentos de
sua história, e, em particular, das inúmeras crises que vêm abalando o funcionamento da UERJ em
seus alicerces. Como, então, pretendemos conjugar o verbo ‘resistir’? Sustentando, a cada dia, o
trabalho no qual estamos concernidos, nos responsabilizando por ele? Ou – ao revés - recusando o
real que se impõe nesse árduo momento, permanecendo na dimensão da queixa?

De outra ordem é resistência como constituindo o próprio trabalho. Talvez não seja inútil
lembra que o antônimo do verbo ‘resistir’ é o verbo ‘ceder’ – não por acaso, justamente aquele
escolhido por Lacan para declinar a covardia moral: ceder em relação ao desejo. O desejo não se
confunde com a realização de um bem – é o que Lacan demonstra em seminário sobre a ética da
psicanálise; antes, é o que se coloca na contramão do princípio de prazer. Sustentar o desejo,
portanto, requer trabalho.

O duro desejo de durar, conforme o verso de Paul Éluard evocado por Lacan, cuja dimensão
não teleológica, mas, sim, ética, indica que o que está em jogo é um fazer. Reiterando aquilo que
fora sustentado por Freud desde 1900, ao se remeter, a propósito do trabalho de interpretação de
sonhos – por extensão, ao trabalho analítico tout court -, às palavras do fisiologista Claude Bernard:
travailler comme une bête. Vale dizer, se dedicar ao trabalho com a mesma tenacidade de um
animal e com a mesma indiferença pelo resultado.

Resta saber qual será a escolha de cada um: se a de resistir ao próprio trabalho de resistir -
perseverar, durar – logo, ceder; ou, antes, a de sustentar o desejo em ato.

Ingrid Vorsatz

2
[F.: Do lat. resistere. Ant.: ceder.]
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

XXI FÓRUM DA RESIDÊNCIA EM PSICOLOGIA CLÍNICA INSTITUCIONAL

A clínica como política de resistência – desafios na formação do residente de Psicologia

Apresentação de trabalhos - 16 de outubro de 2017

Mesa 1: A clínica da recepção em diferentes dispositivos de saúde mental da UDAPq-HUPE.


Coordenação: Profª Drª Ingrid Vorsatz

Recepção de Psicologia: Avanços e impasses na implementação do dispositivo

Marianna Miranda Bauerfeldt (R2) / Rafael Roland de Souza Mendes (R1)

A experiência de apropriação do trabalho de recepção clínica

Gabriela Klussmann (R1) / Penélope Esteves Raposo Mathias (R2)

A escuta psicanalítica nas primeiras entrevistas em saúde mental infanto-juvenil

Fernanda Barbosa dos Santos (R1) / Fernanda Nogueira Klumb (R1) / Karina Barroso de Andrade
(R1)

Que lugar para o sujeito? Desafios no atendimento para além da Enfermaria de Psiquiatria

Gabriela Klussmann (R1)

Mesa 2: O adolescente entre imagem e ideal. Coordenação: Profª Drª Sonia Alberti. Debatedora: Ms.
Selma Correia (NESA-HUPE)

‘Se não for para comer muito eu nem como’: a implicação de um sujeito em seu adoecimento
orgânico
Aline Monteiro Pinheiro (R1)

Prescindir do pai para servir-se dele

Juliana Nunes da Silva Baghdadi (R1)

A clínica com o sujeito adolescente: Os desdobramentos das intervenções estéticas na atualidade

Camila Cardozo de Melo Sales (R2)

Mesa 3: A psicologia no CTI Cardíaco – Coordenação: Prof. Dr. Alessandro de Magalhães Gemino

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A função da Psicologia na reabilitação cardíaca

Clareana Velasco Silva de Paula (R2)

Dispositivo de atendimento em grupo como estratégia frente à crise

Liana Ling Gonçalves Setianto (R2) / Narcisa Silveira de Paula Fonseca (R2)

Quando as coisas não vão bem: O trabalho do psicólogo diante do irrefutável da morte

Liana Ling Gonçalves Setianto (R2) / Narcisa Silveira de Paula Fonseca (R2)

Mesa 4: A escuta psicanalítica no Núcleo Perinatal. Coordenação: Drª Susan Guggenheim

O trabalho clínico como resistência

Clareana Velasco Silva de Paula (R2)

O feminino e a maternidade: Implicações clínicas

Thamires de Souza C. Mayrink Paiva (R2)

Perdas, repetições e resistência

Amanda da Silva Moreira (R1) / Jahyne Aparecida Carvalho Silvestre (R2)

Mesa 5: A contribuição da Residência à prática atual. Coordenação. Profª Drª Ingrid Vorsatz

A transmissão em uma universidade da experiência como ex-residente

Aline Martins (UFRJ)

Tecendo o fazer e construindo o saber: A importância da Residência na prática clínica atual

Ana Beatriz de Castro (INCA/MS)

A aposta na singularidade como direção de trabalho nas políticas públicas

Poliana Duarte (CRAS-Prefeitura de Queimados/RJ)

Subjetivação e escuta: Uma aposta na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ

Sandra Torres Serra (HUPE-UERJ)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Apresentação de trabalhos – 17 de outubro de 2017

Mesa 6: Velhice e lutos difíceis - Coordenação: Drª Glória Castilho

Da vacilação à demanda: Luto e entrevistas iniciais

Amanda da Silva Moreira (R1) / Dennys Chaves (profissional residente de Psicologia do Programa
de Residência Multidisciplinar em Saúde do Idoso-UERJ)

Algumas considerações sobre a queixa de dor na direção do tratamento

Jahyne Aparecida Carvalho Silvestre (R2) / Larissa Belarmindo (profissional residente de


Psicologia do Programa de Residência Multidisciplinar em Saúde do Idoso-UERJ)

Mesa 7: Práticas clínicas no CAPS-UERJ. Coordenação: Prof. Dr. Ademir Pacelli Ferreira

Oficina terapêutica como expressão da subjetividade: A arte como forma de resistência

Laudy Gabriele Pereira Guimarães (R1) / Lívia Avellar Rangel Menezes (R1) / Leonardo Miranda
(psicólogo no CAPS-UERJ)

O real da clínica: Ricardo e o fracasso da função paterna

Fernanda Barbosa dos Santos (R1)

Mesa 8: Desafios da atuação no Ambulatório de Pediatria do HUPE. Coordenação: Profª Drª Michelle
Menezes Wendling
O trabalho de elaboração de uma criança (diante da verdade) sobre a morte do pai

Talita Alves Barbosa da Silva (R1)

Combater, dançar, olhar: Com quais instrumentos se faz uma clínica


Liana Ling Gonçalves Setianto (R2)

Psicologia e atendimento de crianças: Considerações a partir de um caso

Fernanda Nogueira Klumb (R1)

Mesa 9: Temas intrínsecos à prática clínica na Pediatria. Coordenação: Prof. Dr. Vinicius Anciães
Darriba
Considerações psicanalíticas sobre o ato de comer na obesidade infantil

Jahyne Aparecida Carvalho Silvestre (R2)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

O psicólogo na UTI infantil: O que se faz diante da dor da morte?

Narcisa Silveira de Paula Fonseca (R2)

Três gerações da relação mãe e filha

Juliana Nunes da Silva Baghdadi (R1)

Angústia de uma mãe pela filha internada em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica

Talita Alves Barbosa da Silva (R1)

Apresentação de pôsteres (permanente)

O CAPS como dispositivo de cuidado: desafios no manejo da relação terapêutica – Mariah Martins
(estagiária), Renata Dahwache Martins (ex-estagiária) e Ademir Pacelli Ferreira (supervisor)

A Psicologia no setor de cirurgia cardíaca e reabilitação - Carolina Paulino Barreto (estagiária),


Izadora Silva de Araújo (estagiária), Alessandro de Magalhães Gemino (supervisor), Cristiane
Ferreira Esch (supervisora)

Uma experiência como estagiária e pesquisadora na clínica atual de saúde mental e de suas
contribuições à teoria psicanalítica – Rayanne Pinto Magalhães (estagiária) e Sonia Alberti
(supervisora)

A experiência na supervisão da Residência em Psicologia Clínica Institucional na Enfermaria de


Psiquiatria do HUPE: Um segundo momento de trabalho – Clarissa Beatriz Gomes de Lima
(estagiária), Ursula Ponciano Possolo Goulart (estagiária) e Ingrid Vorsatz (supervisora)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Recepção da Psicologia: Avanços e impasses na implementação do dispositivo

Marianna Miranda Bauerfeldt*


Rafael Roland de Souza Mendes**
Ingrid Vorsatz***

Resumo

Trata-se de uma breve apresentação do processo de implementação do grupo de recepção de


psicologia no ambulatório da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital
Universitário Pedro Ernesto (UDAPq-HUPE), pelo Programa de Residência de Psicologia
Clínica Institucional do IP-UERJ. Pretendemos apresentar as questões, os impasses e os
desdobramentos clínicos e institucionais observados desde o início do processo, destacando as
referências teóricas que guiaram esse percurso.

Palavras-chave: Psicologia; recepção em grupo; psicanálise; acolhimento institucional.

Introdução

Temos por principal problematizar as questões surgidas em decorrência da proposta de


implementação do trabalho de Recepção de Psicologia no Ambulatório da Unidade Docente
Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (UDAPq-HUPE) e sua
consolidação, à luz das referências teóricas utilizadas para fundamentar o nosso trabalho.
Pretendemos não só comunicar esse processo, mas também discutir as implicações e os
desdobramentos que recolhemos ao longo do trabalho. A recepção da psicologia teve início no
segundo semestre de 2016 na UDAPq-HUPE, ampliando a oferta de atendimento através dessa
nova modalidade de acolhimento clínico e institucional, conduzida por dois residentes de primeiro
ano na UDAPq-HUPE e cinco pacientes,à época.

*
Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do IP-UERJ (2017).
**
Psicólogo. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do IP-UERJ (2017).
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia
Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de Residência
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde-COREMU da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
***
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia
Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de Residência
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde-COREMU da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Demos início à preparação do trabalho através do estudo dos artigos contidos no volume VI
dos Cadernos IPUB intitulado A clínica da recepção nos dispositivos de Saúde Mental. As reflexões
contidas nos textos que compõem o referido volume serviram como base teórica para o trabalho
proposto na UDAPq- HUPE, além das considerações freudianas sobre a transferência, entre outras
referências. Partindo de um problema semelhante ao nosso, a saber, a grande demanda por
atendimento psicológico nos ambulatórios de psiquiatria e/ou saúde mental e as longas filas de
espera, uma nova forma de trabalho havia sido proposta no Ambulatório do IPUB-UFRJ, no intuito
de enfrentar a questão através de um dispositivo clínico, e não de uma solução burocrática.
Percebemos ali o esforço que se colocou para a construção de uma prática na qual se leve em
consideração tanto o sujeito que procura o serviço, a equipe que compõe o corpo clínico da
instituição e a rede de saúde na qual o trabalho se insere, que havia se mostrado ser bastante
proveitoso para todos os envolvidos naquele processo.

Implementação da proposta e seus desdobramentos

A partir dessa iniciativa pioneira, algumas considerações serviram de guia para a


implementação do dispositivo clínico de recepção em nosso trabalho no Ambulatório da UDAPq-
HUPE e que também foram adotadas na construção do nosso primeiro grupo de acolhimento
institucional. A primeira foi a que ressalta a diferença entre triagem e grupo de recepção. O que se
coloca em jogo nessa proposta de trabalho é enfatizar que “o ato de recepção deve ter, desde o
início, uma dimensão terapêutica” (Levcovitz, et al, 2000), vale dizer, clínica, algo que já se insere
no âmbito do tratamento (que poderá vir a ocorrer ou não) em contraste com o que se coloca em
termos de uma seleção de pacientes que podem ser atendidos na instituição e os que não podem (de
acordo com perfil, disponibilidade de vagas, etc). O que se pretende ressaltar nessa proposta é a
dimensão de acolhimento que a caracteriza, apostando no fato de que “o ato de recepção é pleno de
implicações em termos clínicos” (Levcovitz, et al, 2000).

Tomamos como direção de trabalho para o grupo de recepção da UDAPq-HUPE a


observação que “a clínica da recepção deve sempre buscar, mesmo nas emergências, ser uma oferta
de subjetivação, deve visar crias as condições para que o sujeito apareça” (Levcovitz, et al, 2000).
Esse aspecto é um dos fatores determinantes que tanto orientam o nosso trabalho quanto nos
diferenciam de uma atuação que se resuma em ‘absorver’ diretamente os pacientes para
psicoterapia, ou encaminhá-los externamente. Muitos encaminhamentos são feitos sem que os
pacientes saibam porque estão sendo encaminhados, ou apenas por sugestão médica, sem que haja
uma demanda de psicoterapia propriamente dita. Com essa modalidade de acolhimento, passa a ser
possível, através da escuta nas entrevistas de recepção, discernir do que se trata em cada
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

encaminhamento recebido, se havia um pedido do sujeito ali ou não, apostando na possibilidade que
esse pudesse vir a ser construído naquele dispositivo clínico. A experiência no grupo de recepção
também viabiliza a possibilidade de que os sujeitos encaminhados sejam convidados a falar mais
sobre a razão de sua presença ali, para que um pedido possa ser efetivamente articulado a partir de
um endereçamento transferencial - ou não. Nesse sentido, nosso esforço é o de não naturalizar os
encaminhamentos e/ou as queixas iniciais e pensarmos cada situação clínica em sua singularidade.

Uma parte importante desse trabalho preliminar foi o diálogo com nossos colegas da
UDAPq, onde tivemos a oportunidade de apresentar a nova proposta de intervenção esclarecendo as
dúvidas em relação a esta. Dispusemos cartazes pelas dependências da UDAPq e falamos
pessoalmente com os membros da equipe multiprofissional, explicando do quê se tratava a
proposta. Algumas semanas depois, com um número mínimo inicial de encaminhamentos,
agendamamos a vinda de oito usuários, sendo que cinco iniciaram o acolhimento imediatamente.

Alguns dos desafios encontrados no início da implementação do novo dispositivo de


acolhimento clínico envolveram as dificuldades relacionadas ao funcionamento institucional do
próprio ambulatório, como por exemplo: dificuldade no agendamento de sala; a falta de um lugar no
qual pudessem ser armazenados os registros dos atendimentos e os prontuários deles decorrentes;
encaminhamentos recebidos sem informações básicas, tais como oito pacientes sem nenhum contato
informado, impossibilitando o agendamento; dezenove pacientes encaminhados sem a idade
informada no documento de encaminhamento, o que é exigido pela própria administração e
utilizado para a contabilização da produtividade do ambulatório, e, logo, da recepção da psicologia;
falta clareza na divulgação da proposta aos usuários, o que causou, por exemplo, com que dezesseis
pacientes fossem encaminhados mais de uma vez e seis pacientes informarem não ter interesse em
psicoterapia no momento do contato, inclusive contradizendo o encaminhamento médico.

Freud (2011) observa que a experiência do novo pode ser vivenciada como uma fonte de
desprazer e que o dispêndio psíquico decorrente da incerteza pode ser vivenciado como angústia.
Destaca a possibilidade de uma reação primitiva ao novo, que se volta contra este na intenção de
poupar o previamente conhecido. Para cada uma das dificuldades vivenciadas no início da proposta
da Recepção de Psicologia, novas formas de condução eram discutidas em supervisão e
implementadas no sentido de encontrar possíveis caminhos, sempre contornando-as pela via
teórico-clínica de orientação psicanalítica, sustentada na premissa do estabelecimento da
transferência para que, a partir daí se possa operar (Freud, 2017), assim como na de um sujeito não
idêntico a si mesmo, dividido pelo inconsciente.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Freud (2017b) considera importante receber o paciente por algumas semanas,


provisioriamente, para uma espécie de “exame preliminar” (p. 140), sem que isso configure o
tratamento psicanalítico propriamente dito, ainda que obedeça às mesmas recomendações. Esse
expediente seria importante para discernir se um tratamento é viável e se efetivamente existe uma
demanda que se sustente como tal. Utilizamos essa orientação como direção de trabalho no grupo
de recepção, ao disponibilizarmos um espaço onde aqueles que buscam um tratamento possam
colocar suas questões em trabalho, através de um dispositivo no qual as queixas possam vir a se
decantar e que uma demanda de tratamento, endereçada sob transferência, possa vir a ser articulada
- ou não, em determinados casos.

A partir da hipótese de um sujeito dividido, não idêntico a si mesmo, é preciso não


identificar, superpondo, aquilo de que um sujeito se queixa como sendo equivalente a um pedido de
tratamento. Freud (2017b) já havia advertido quanto a isso, através da mencionada avaliação
preliminar e Lacan avança nessa direção ao propor um período não especificado de entrevistas
preliminares ao tratamento propriamente dito. De outra parte, Lacan (1999) adverte que aquilo que
um sujeito pede não é idêntico e não se confunde com aquilo que ele quer, e também com aquilo
que ele deseja, uma vez que o desejo é inconsciente. Essa dimensão constitutiva da psicanálise é
radical e não deve ser descurada. De início, nada está dado na clínica, e é esta dimensão a preservar
no acolhimento institucional proposto através do dispositivo de recepção clínica na UDAPq-HUPE.

Também iniciamos a construção de uma planilha, a título de um banco de dados contendo as


principais informações referentes aos encaminhamentos à recepção de Psicologia, tais como nome,
número de matrícula no HUPE, idade, informações de contato, etc. Esse documento se mostrou útil
para o arquivamento e o controle da produtividade no ambulatório da UDAPq. Conforme o número
de encaminhamentos aumentava, notávamos ser necessária também uma forma de organização
física dos registros de atendimento, e pleiteaamos junto à coordenação da secretaria do ambulatório
uma forma de institucionalizar um local para guarda dos documentos da Recepção de Psicologia, o
que não ocorreu sem resistências. Após um período de muitas explicações e certo convencimento da
legitimidade do nosso lugar, que se deu através do próprio trabalho, conseguimos alocar duas pastas
no armário da Secretaria do ambulatório.

Além de ser uma nova proposta para o Ambulatório da UDAPq, o trabalho no grupo de
recepção também se colocou como uma novidade para nós, residentes. Como manejar um
atendimento que difere em muitos sentidos da consulta individual com a qual nos familiarizamos,
sem que caracterize uma psicoterapia de grupo? Como fazer com que os atendimentos difiram
daqueles encontrados em um acompanhamento psicológico individual? Como manejar clinicamente
14
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

uma situação diferente daquela às quais nos habituamos nos atendimentos individuais? De início,
um importante viés do nosso trabalho foi a construção de outro repertório colocado em ação para
lidar com as questões surgidas a partir das especificidades de um atendimento que ocorria em
grupo, com vistas a desnaturalizar o próprio lugar a partir do qual oferecíamos a nossa escuta.

Através da permanente problematização dessas questões em supervisão, pudemos perceber


que uma importante via de intervenção e de construção de novo repertório clínico da nossa parte era
no intuito de promover a circulação da palavra naquele dispositivo clínico. Convidar os pacientes
para que se engajassem no trabalho a ser construído a cada vez, uns com os outros, preservando as
singularidades, se revelou como uma importante direção de trabalho.

A experiência que estava sendo construída era uma novidade, tanto para nós, quanto para os
pacientes. De início, estes comentavam sobre a dificuldade de falar sobre suas questões no grupo,
na presença de outras pessoas. Nesse sentido, sustentamos um trabalho que se configurava como um
espaço de acolhimento e de escuta do sujeito, sem deixar de considerar a especificidade do
dispositivo. Ao longo dos atendimentos, esse desconforto inicial deixou de ser o foco dos relatos e
os próprios pacientes passaram a interagir entre si. Esse processo demonstra mais uma das riquezas
da clínica da recepção, pois todos estavam ali, coletivamente implicados no trabalho singular de
construção terapêutica.

Ainda que os atendimentos sejam efetuados em grupo, cada caso é pensado e considerado
individualmente, em supervisão. Para cada caso é proposta uma direção de trabalho, com os
desdobramentos singulares implicados. Em um determinado caso, foi discutida a possibilidade de
propor um acompanhamento individual; em outros, a permanência no grupo se mostrou ser a mais
indicada naquele momento. Cada um é considerado em sua singularidade e mesmo um acolhimento
realizado em grupo não impossibilita essa via de trabalho que leva em conta a relação do sujeito
com sua própria fala.

Nos desdobramentos clínicos que pudemos recolher a partir dessa experiência do grupo de
recepção, foi importante perceber as diferentes modalidades pelas quais um pedido vem a ser
articulado. No primeiro grupo, composto por cinco pacientes, todos eram convidados a falar sobre
si e sobre os sofrimentos que o levavam a buscar tratamento. A partir desse ponto em comum,
algumas diferenças puderam ser observadas. Ao longo das entrevistas, ao ouvir o relato do próximo,
alguns passaram a sugerir uns aos outros possíveis ‘saídas’ ou ‘soluções’ para as questões
apresentadas. Propostas como atividades voltadas à terceira idade ou o ingresso em uma
comunidade religiosa caracterizaram ‘sugestões’ por parte de alguns participantes de grupo.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Ao longo desse movimento de interação entre os usuários foi possível perceber um certo
esvaziamento na formação do grupo, indicando que as propostas de uma solução para a queixa não
leva à implicação do sujeito. Ao contrário, parecem não permitir que a queixa seja decantada até a
formulação de um pedido de tratamento, calando, portanto, o sujeito. Assim, recolhemos dessa
experiência que é preciso manejar a condução no grupo para que esse efeito não leve ao
esvaziamento das questões que poderiam surgir.

Contudo, houve uma exceção. Uma das participantes, mesmo com as sugestões as e as
opiniões dos demais, continuava a vir, mesmo quando estes deixaram de frequentar o grupo,
sustentando sua presença ali, sozinha. Problematizando a questão em supervisão, percebemos que,
para ela, o que estava em jogo não era apenas pensar “resolver’ o problema que a levavr a buscar
um tratamento, indicando que a questão era de outra ordem, e uma sugestão não poderia dar conta
do sofrimento vivenciado por ela. A partir da observação desse movimento e da discussão do caso
em supervisão foi possível perceber que a própria permanência no grupo, mesmo após a saída dos
demais participantes, poderia ser tomada como um pedido- ainda que não explicitamente formulado
como tal, mas em ato - desse sujeito por um tratamento. Isto é, sua presença ali, sozinha, sustentava
um endereçamento transferencial, e, a partir dessa consideração clínica, foi proposto a ela um novo
momento no seu tratamento, individual, o que foi aceito prontamente. Atualmente essa paciente se
encontra em acompanhamento psicológico individual.

Ancoramos nosso trabalho no conceito psicanalítico de transferência como sendo um fenômeno


ocasionado pelo tratamento psicanalítico (Freud, 2017), e também de acordo com o qual o
endereçamento que o paciente faz ao clínico é essencial para a realização do trabalho (Tenório,
2000). Torna-se necessário problematizar a especificidade da problemática no contexto da recepção
clínica em grupo, pois diz respeito a um manejo específico da transferência, que passa não apenas
pelos residentes que conduzem o trabalho, mas também pela instituição. Considerando que estes
pacientes já faziam acompanhamento médico na UDAPq, alguma relação transferencial com a
instituição estava estabelecida e é a partir dessa relação que nós nos inserimos, de modo a
possibilitar a construção de outro trabalho. Vale dizer, o trabalho que conduzimos com os sujeitos
acolhidos no grupo de recepção se insere na transferência institucional previamente estabelecida
pelo paciente, para a partir daí operar através de outro dispositivo clínico.

Implicações de um trabalho clínico em um dispositivo institucional

Com a crescente demanda, no segundo semestre de 2017 foi criado um segundo grupo de
recepção da psicologia. Em atenção à Resolução nº 001/2009 do Conselho Federal de Psicologia,

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

que dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços


psicológicos, teve início o registro institucional semanal das entrevistas. Iniciamos os registros do
trabalho no Prontuário Geral individual de cada paciente da UDAPq-HUPE, onde, conforme a
Resolução, contempla-se de forma sucinta o atendimento ocorrido, a descrição, a evolução do caso
e os procedimentos adotados. Houve também a criação de um Prontuário da Psicologia, documento
confidencial, não compartilhado, com registro da evolução das entrevistas, garantindo o
conhecimento do caso e seu acompanhamento a longo prazo, indispensáveis ao trabalho clínico em
âmbito institucional.

Outra rotina iniciada nesse semestre, em conformidade à Resolução n.º 007/2003 do Conselho
Federal de Psicologia, foi a confecção de um Relatório Psicológico semestral, para arquivamento no
Prontuário Geral individual. O objetivo do relatório é apresentar o registro dos atendimentos para
acompanhamento por parte da equipe multiprofissional da UDAPq-HUPE, dos desdobramentos
clínicos às conclusões parciais relativas ao acompanhamento realizado, relatando a evolução do
caso e a sugestão de projeto terapêutico. O documento limita-se a fornecer somente as informações
necessárias relacionadas à demanda de tratamento por parte do paciente ou da solicitação de
atendimento psicológico por parte dos demais profissionais de saúde (encaminhamentos) tanto
internos quanto externos à UDAPq-HUPE (por exemplo, através do Sistema de Regulação de Vagas
do SUS/SISREG).

Considerações finais

Algumas das questões reiteradamente trazidas pelos usuários eram sobre a forma e o tempo
das entrevistas: quanto tempo duraria o ‘tratamento’ e quando seriam ‘transferidos’ para o
atendimento individual. Pudemos refletir que essa insistência indica, entre outras questões, o quão
naturalizado está no imaginário da população – mas não apenas – uma única forma de trabalho do
psicólogo clínico: o atendimento indvidual. Sem adentrar no âmbito desta problemática, sobretudo
no que diz respeito à inserção do profissional nos serviçoes públicos de saúde e em equipe
multiprofissional de acordo com a lógica que rege do Sistema Único de Saúde/SUS, parece que o
único lugar legítimo de atuação do psicólogo clínico de orientação psicanalítica é o atendimento
individual.

Contudo, as questões trazidas pelos participantes do grupo de recepção de Psicologia quanto


à duração dessa modalidade de intervenção clínica não difere, no essencial, das que são trazidas por
pacientes em atendimento psicoterápico individual. Sobre isso, Freud (2017b) faz alusão à fábula de
Esopo, quando um andarilho lhe pergunta sobre o comprimento do caminho, ele responde

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

“Caminha!” (p. 143). Considera que primeiro é preciso conhecer o passo do andarilho, para então
poder calcular a duração de sua caminhada. Porém, Freud adverte que essa comparação não seria
muito boa, dado que o neurótico pode facilmente mudar de velocidade e a questão da duração do
tratamento provavelmente não poderia ser respondida. São os passos que fazem o caminho, e
apenas a posteriori podemos nos dar conta da travessia empreendida.

Ao longo de todo o processo de implementação do dispositivo de recepção de Psicologia no


Ambulatório da UDAPq-HUPE, desde a pesquisa bibliográfica à problematização em supervisão
das questões advindas, foi possível perceber o aspecto formador desse caminho. Para que o trabalho
se efetue, foi necessário que colocássemos nossa atuação sempre em questão, pensando em novas
formas de superar as resistências e as dificuldades, tanto nossas como também da instituição e dos
participantes dos grupos, quanto na invenção de outras formas de intervenção e manejo de
pacientes, implicadas nesse nova configuração de trabalho clínico.

Participar da construção desse processo, desde uma proposta teórica de atividade, passando
pela implementação, contornando resistências e chegando aos desdobramentos clínicos, éticos e
institucionais do nosso trabalho se mostrou uma oportunidade única em nossa formação como
residentes. Acreditamos que somente através do estudo constante e a construção do trabalho com a
experiência da supervisão, poderemos devolver à comunidade de usuários da Unidade um serviço
de qualidade, que leve em conta o sujeito em sua singularidade.

Referências

Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº. 007 de 14 de junho de 2003. Disponível em:
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2003/06/resolucao2003_7.pdf Acesso em: 11 de outubro
de 2017.

____________________________. Resolução nº 001 de 30 de março de 2009. Disponível em:


https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/04/resolucao2009_01.pdf Acesso em: 11 de outubro
de 2017.

Freud S. (2017). A dinâmica da transferência In Fundamentos da clínica psicanalítica - Obras


incompletas de Sigmund Freud. Edição eletrônica. Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original
publicada em 1912)

_______ (2017b) Sobre o início do tratamento. In Fundamentos da clínica psicanalítica - Obras


incompletas de Sigmund Freud. Edição eletrônica. Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original
publicada em 1913)
18
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

________ (2011) As resistências à psicanálise. In O eu e o id, “autobiografia” e outros textos


(1923-1925). Edição eletrônica. São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em
1925)

Lacan, J. (1999). O seminário livro 5: As formações do inconsciente [1957-58]. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editor (pp. 372-380).

Levcovitz, S., et alli (2000). A importância estratégica dos dispositivos de recepção. In Cadernos do
IPUB – A clínica da recepção nos dispositivos de Saúde Mental vol. VI (pp. 7-14).

Moretto, M. L. T & Priszkulnik, L. (2014). Sobre a inserção e o lugar do psicanalista na equipe de


saúde. In Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 46.2 (pp. 287-298).

Tenório, F. (2000). Desmedicalizar e subjetivar: A especificidade da clínica da recepção. In


Cadernos do IPUB – A clínica da recepção nos dispositivos de Saúde Mental vol. VI (pp. 79-91).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A experiência de apropriação do trabalho de recepção clínica no Ambulatório da Unidade


Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE

Penélope Esteves Raposo Mathias*


Ingrid Vorsatz**
Resumo

Este trabalho objetiva compartilhar a experiência de apropriação do trabalho de implementação do


serviço de Recepção de Psicologia na Unidade de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro
Ernesto, proposto pela supervisora do Programa especializado no ano de 2016 e conduzido por
residentes de Psicologia Clínica Institucional. Partindo do pressuposto que nem todo
encaminhamento configura uma demanda de atendimento por parte do paciente, discute-se o
trabalho possível com aqueles que aguardam uma vaga para psicoterapia. A partir de uma clínica de
orientação psicanalítica, conjugada à prática institucional, reflete-se sobre a possibilidade de uma
(re)construção de novos sentidos para o sofrimento mental vivenciado por usuários que buscam
atendimento no serviço. Acredita-se que esta modalidade de intervenção clínica permite que, a
partir de ensaios clínicos, o sujeito possa ressituar-se frente à sua queixa, implicando em um maior
engajamento no tratamento através da construção de uma demanda endereçada transferencialmente.

Palavras-chave: Psicologia; psicanálise; recepção clínica; transferência; demanda.

Introdução

A partir da experiência como residente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica


Institucional, e, especificamente, da inserção na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do
Hospital Universitário Pedro Ernesto, começamos a receber um grande número de
encaminhamentos por parte de outros profissionais da UDAPq-HUPE, de pacientes inicialmente
destinados a psicoterapia’. Percebemos que estes encaminhamentos internos ao serviço eram, na
maior parte das vezes, inespecíficos – após uma avaliação psiquiátrica inicial, os casos que não
demandavam internação ou ainda tratamento ambulatorial medicamentoso eram destinados à
Psicologia.

*
Psicóloga. Residente do segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017).
**
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora e supervisora do Curso de Especialização em
Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de
Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde/COREMU-UERJ.
20
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Ao levarmos a questão para discussão em nossa supervisão semanal, observamos que os


pacientes, de modo geral, chegavam sem um pedido específico, ratificando apenas uma suposta
necessidade de atendimento, geralmente solicitado por meio de um encaminhamento médico prévio.
Diante desse cenário, e através de uma aposta na dimensão clínica a ser sustentada em um
dispositivo de acolhimento, a supervisora propôs a implementação de um modelo de trabalho que
havia se mostrado profícuo em outras instituições de saúde mental, tanto na resolução da
incompatibilidade entre as solicitações de atendimento e os recursos disponíveis para a sua
efetivação, como no efeito terapêutico muitas vezes produzido naquele dispositivo, sem necessidade
de procedimentos ulteriores. Além disso, o dispositivo havia se mostrado eficaz na produção de
uma demanda por parte de usuários que, muitas vezes, não sabiam dizer exatamente por que
procuravam o serviço, formulando apenas uma queixa inespecífica ou ainda em razão de um
encaminhamento que carecia de sentido para cada um.
Assim, surgiu a proposta de implementação da Recepção de Psicologia no Ambulatório da
UDAPq-HUPE que visa, primeiramente, além de uma avaliação especializada, a desnaturalização
dessa demanda inespecífica por psicoterapia, sem implicação subjetiva – justamente o que se trata
de possibilitar através do novo dispositivo clínico e institucional em questão. A implementação
desse modelo surge não apenas como uma tentativa de resposta às dificuldades apresentadas mas,
principalmente, como uma oportunidade de reinvenção de um trabalho que leve em conta a relação
do sujeito com a sua queixa, problematizando-a.
De acordo com Oliveira (2000), a chegada do usuário na instituição pode ser considerada
como um momento privilegiado da clínica, quando se torna possível, a partir de uma oferta de
escuta, convidá-lo a falar sobre seu sofrimento, tomando a palavra. Disso poderá resultar a
formulação de uma demanda específica de tratamento, na qual esteja efetivamente implicado.
Assim, operando através de uma escuta e de um convite à subjetivação, é facultado ao sujeito que
ele possa vir a se implicar naquilo que está em jogo no sintoma de que se queixa.
Por um lado, ao residente de Psicologia apresenta-se a oportunidade formadora de realizar
um trabalho clínico para além do enquadre da psicoterapia individual, em relação ao qual ele
supostamente saberia operar. De outro lado, é importante esclarecer que o trabalho realizado na
recepção em grupo não caracteriza uma triagem, ou seja, não se trata de selecionar e encaminhar os
pacientes de maneira arbitrária, baseada unicamente em critérios seletivos, e tampouco constitui
uma espécie de antessala para o atendimento individual. Trata-se de um dispositivo clínico, com sua
especificidade própria.
A partir do endereçamento é que se pode refletir sobre a natureza do que está sendo
articulado como um pedido – ou não – e, consequentemente, daquilo que se poderá dar como
21
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

resposta. A depender da escuta e da resposta, a consequência poderá ser um tamponamento da


demanda, ou, ao contrário, uma abertura que poderá implicar na dimensão subjetiva do adoecimento
psíquico. Ao repensarmos nossas práticas, assumimos um olhar ampliado no encaminhamento
clínico dado à demanda do sujeito (Tenório, Oliveira & Levcovitz, 2000).

Objetivos do trabalho clínico de recepção institucional

Pretendemos transmitir um saber que se constrói a partir da articulação da clínica orientada


pela escuta psicanalítica com a prática institucional em saúde mental. Valorizamos ainda em nossos
atendimentos a ideia de um sujeito, por oposição a de um objeto de intervenção (Figueiredo, 2000).
Nosso objetivo é o de demonstrar como a implementação da Recepção de Psicologia poderá
propiciar um trabalho a partir do contato inicial da instituição com aquele que a procura, de modo a
valorizar a fala dos pacientes acolhendo-a através da escuta, a suportar as queixas iniciais e
inespecíficas sem pretender encontrar uma solução imediata, a propiciar a emergência de efeitos
terapêuticos e, se formos bem sucedidos na condução desse trabalho, a produzir um pedido singular
por parte do sujeito, endereçado na transferência, no qual esteja minimamente implicado. Isto é, um
pedido endereçado sob transferência, ao qual poderá ser ofertada uma resposta sob a forma de um
convite ao trabalho, agora, sim, no dispositivo individual de atendimento. Ou ainda, se e quando
necessário, o encaminhamento para outras modalidades de tratamento.

Fragmentos clínicos

Os encontros ocorrem semanalmente em horário preestabelecido e abrem espaço para que


os sujeitos falem sobre seu sofrimento psíquico e seus sintomas. Os grupos ocorrem sob condução
dos residentes de Psicologia (preferencialmente uma dupla, sendo um R1 e um R2), e são
compostos pelos usuários encaminhados pelos diferentes dispositivos de cuidados da UDAPq, tais
como a Sala de Acolhida multiprofissional, que constitui o primeiro contato do paciente com a
instituição, e também do próprio ambulatório de Psiquiatria, onde alguns pacientes já se encontram
em acompanhamento médico. Alguns pacientes encaminhados passaram por internações na
enfermaria da UDAPq. Após a realização de cada encontro semanal, os residentes destinam uma
parte do tempo problematizando o que ocorreu naquele encontro e identificando estratégias de
intervenção clínica. O produto dessas considerações é encaminhado à supervisão semanal dos
residentes, que orienta quanto à direção de trabalho a ser dada de acordo com a especificidade de
cada situação.

22
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Em determinados casos, os familiares podem frequentar a recepção de Psicologia e a decisão


é tomada de acordo com o caso. A questão sobre a participação dos membros da família foi um dos
primeiros desafios evidenciados por essa modalidade de intervenção clínica, tão específica. Uma
paciente, que chamaremos de M., foi encaminhada para atendimento psicológico pelo psiquiatra
que a acompanhava no ambulatório da UDAPq-HUPE. Ela relatava grande incômodo em falar em
público, e, inicialmente, havia recusado a oferta de escuta naquele dispositivo apesar de relatar ter
interesse no atendimento. Após refletirmos sobre os motivos que contribuíam para tal negativa,
levamos em consideração que a ida de M. ao dispositivo era condicionada pela companhia de sua
familiar, T., visto que M. declarava não sentir-se segura sozinha, relatando ainda que não fazia nada
sozinha, sem a presença da irmã, e esta era precisamente uma das queixas que a levaram à UDAPq.

Optamos, por perguntar à paciente se a presença de sua familiar lhe traria maior conforto, e,
diante da resposta positiva, e a verificação de que isso não causaria um transtorno aos demais
participantes do grupo, convidamos sua irmã a se juntar ao grupo. Tal decisão se mostrou profícua
ao revelar aspectos importantes da relação entre ambas, bem como permitiu que trabalhássemos
alguns conflitos que puderam emergir nesse trabalho. Além disso, um dos efeitos recolhidos foi a
possibilidade de M. se colocar e compartilhar suas experiências com os outros pacientes, relatando
sentir-se “menos ansiosa ao falar” (SIC).

Atualmente, a irmã de M. continua frequentando a Recepção de Psicologia, demonstrando


ter-se apropriado do espaço para “estreitar seus laços com a irmã” (SIC), pois, segundo conta, esse é
“o único momento da semana que paramos para nos ouvir” (SIC). Ela afirma ter podido, com essa
experiência, aumentar o diálogo com M. e “falar sobre coisas que antes não conseguia expressar
muito bem” (SIC). De fato, observa-se que existem muitos ressentimentos e questões a serem
trabalhadas nessa relação, motivo pelo qual optamos por convidar T. para participar do grupo. Tal
conduta foi discutida entre os residentes que trabalham no caso, e atualmente refletimos sobre a
possibilidade de tal decisão ser prejudicial para a clínica, visto que pode fortalecer a noção de
indissociabilidade presente entre as duas.

Esse caso ilustra a maneira como se conduz o trabalho de Recepção de Psicologia. A partir
de cada vivência produzida a cada encontro semanal é possível observar as questões de cada sujeito,
construindo com eles uma possibilidade de intervenção que leve em conta a singularidade da
situação clínica que está sendo, em um primeiro momento, avaliada. Os casos acompanhados são
discutidos na reunião semanal de equipe de supervisão do Programa de Residência. A discussão
contempla a questão diagnóstica, a condução do caso e a direção de trabalho, tendo como eixo
orientador a teoria da clínica psicanalítica.
23
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Considerações preliminares

No espaço de escuta e de acolhimento oferecido através da recepção clínica observamos


diferentes respostas a esta proposta. Alguns sujeitos recusaram o atendimento, alegando não se
adaptarem ao modelo de grupo, enquanto outros afirmaram não ter condições ou interesse em
frequentar o serviço semanalmente para ‘psicoterapia’, pois acreditavam tratar-se de uma
modalidade de psicoterapia de grupo.

Uma das usuárias, que de início optou por não frequentar o grupo de Recepção de
Psicologia, retornou alguns meses depois, perguntando se a oferta de atendimento ainda se
mantinha. Sustentar a possibilidade dessa ausência, considerando-a como um elemento clínico (e
não uma ‘desistência’, ou ainda não ‘aderência’ à proposta), privilegiando a dimensão clínica, foi
fundamental para que algum pedido pudesse ter sido feito, partindo do sujeito, em seu tempo
próprio e singular.

A maioria demonstra interesse e apropriação da oferta desse dispositivo de escuta e de


circulação da palavra. E quando algum se endereça a um dos residentes de Psicologia com o pedido
de uma escuta individual, avaliamos esse pedido e refletimos sobre as condições de manejo que nos
permitam relançar o trabalho, e podemos oferecer um novo dispositivo de escuta, individual.

Aqui, o estabelecimento inicial da transferência, conceito central do tratamento psicanalítico,


é identificado como o endereçamento singular por parte do sujeito. Este se caracteriza pela ação ou
movimento próprio do sujeito (paciente, usuário) ao psicanalista, à instituição e/ou ao dispositivo –
no caso, aos residentes de Psicologia. O endereçamento deve ser localizado: como é feito, a quem é
feito, qual é o pedido. Somente assim é possível que o endereçamento se converta em questão para
o trabalho de elaboração a ser feito (Figueiredo, 2000).

Através da análise de cada situação, a ser empreendida no caso a caso, a clínica opera para
além de um modelo de tratamento concebido a priori, como panaceia universal – ainda que referido
à psicoterapia de orientação psicanalítica. Como, quando e por que atender, e a quem atender, são
questões preliminares e muitas vezes essa definição vem ao longo dos atendimentos iniciais.
(Figueiredo, 2000).

Freud (1974) afirma ser prudente realizar uma espécie de ensaio prévio ao tratamento
propriamente dito. Esse período, que o autor nomeia como sendo um ‘experimento preliminar’ (p.
76), permite que o psicanalista conheça seu paciente e decida qual conduta deve ser adotada,

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

postura que poderá desdobrar-se ou não em um tratamento, mas que também permitirá que o
analista não cometa equívocos em relação ao diagnóstico e à condução do caso clínico.

De maneira análoga, na Recepção de Psicologia antes de iniciar uma psicoterapia conforme


a prescrição do profissional que encaminha o usuário, busca-se decantar as queixas inespecíficas
trazidas pelos sujeitos de modo a permitir que uma demanda formulada transferencialmente possa
ou não emergir, antes que se empreenda um tratamento individual. A utilização do termo ‘decantar’
aqui utilizada, emparelha a atividade clínica de profissionais que se orientam pela terapia
psicanalítica ao ofício de um químico, que busca separar compostos, consoante a analogia freudiana
(Freud, 1974, p.98). Freud assume que o trabalho do psicanalista implica em uma espécie de
análise, da decomposição dos processos psíquicos em seus componentes elementares.

Também preconizou que a assistência psíquica pela psicanálise, à época acessível apenas a
uma pequena parcela da população, poderia um dia ser concebida como questão fundamental nas
políticas públicas de saúde. Embora a implementação de programas que favoreçam o acesso em
massa a esse tipo de tratamento ainda encontre obstáculos de ordem política e econômica, hoje as
camadas mais desfavorecidas da população têm acesso a profissionais de orientação psicanalítica
em ambulatórios públicos, como na UDA de Psiquiatria. Realizar esse trabalho requer, entretanto,
uma certa reflexão acerca da especificidade envolvida na prestação desse serviço no âmbito público.
Freud (1987) já indicava que um embaraço poderia surgir, afirmando que:

É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a
fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta [...] No entanto, qualquer
que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os
elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes
continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa (p.
105, grifo nosso).

Vale dizer, um tratamento de orientação psicanalítica conduzido nos serviços públicos de


saúde não é equivalente a uma psicanálise em intensão tout court. Há especificidades a considerar,
sobretudo no que diz respeito a atendimentos conduzidos no âmbito de um treinamento profissional
como aquele que caracteriza a residência em Psicologia Clínica Institucional. Não obstante, este
tem o seu lugar e cumpre uma função específica – para além da terapêutica - ao considerar o sujeito
como implicado na satisfação paradoxal presente no sintoma de que se queixa. “Por nossa posição
de sujeito, sempre somos responsáveis”, advertiu Lacan (1998, p.873).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Considerações finais

Embora seja um lugar de passagem, o momento de recepção também dever ser tomado
como um ato clínico. Oferecemos um dispositivo onde se verificam e observam os efeitos
terapêuticos desta modalidade de intervenção, visto que, ao oferecer uma escuta que leve em conta
o sujeito, sem objetivar unicamente a remissão dos sintomas, é possível produzir um novo efeito na
relação deste sujeito com seu sofrimento (Oliveira, 2000).

Verificamos que os grupos de Recepção suscitam questões relativas ao acolhimento e ao


encaminhamento (Maron, 2000). Nem sempre o encaminhamento médico resulta em uma demanda
por parte do paciente, visto que alguns sujeitos recusaram, de saída, a oferta de acolhimento. Para
outros, foram necessários alguns encontros até que pudessem se situar melhor frente às suas
queixas, sendo possível, enfim, elaborar um pedido de tratamento.

Como sugere Levcovitz (2000), os dispositivos de recepção possibilitam a realização de


ensaios clínicos antes da adoção de projetos terapêuticos permanentes, visto que é possível
considerar o tipo de transferência que o paciente estabelece com a instituição e com os profissionais
envolvidos, assim como as possibilidades que cada sujeito tem para lidar com seu sofrimento. Dessa
maneira, a partir de um pedido endereçado sob transferência, efeito do trabalho de acolhimento
institucional, é possível otimizar os recursos institucionais disponíveis e promover um efetivo
engajamento no tratamento a advir.

Referências

Figueiredo, A. C. (2000). Do atendimento coletivo ao individual: um atravessamento na


transferência. In Cadernos IPUB – A Clínica da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental. (Vol.
VI, nº 17, pp. 124-130). Rio de Janeiro: IPUB/UFRJ.

Freud, S. (1974). Sobre o Início do Tratamento. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1913)

_______ (1974). Linhas de progresso na terapia analítica. In Freud, S. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra
original publicada em 1919)
Levcovitz, S. (2000). Grupos de recepção ambulatorial: uma introdução ao tema. In Cadernos IPUB
– A Clínica da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental Vol. VI, nº 17 (pp. 21-29). Rio de
Janeiro: IPUB/UFRJ.
26
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Lacan, J. Escritos. (pp. 869-892). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. (Obra originalmente publicada em 1966 [1965]).

Maron, G. (2000). Grupos de recepção: interrogando (n)os grupos. In Cadernos IPUB – A Clínica
da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental. (Vol. VI, nº 17, pp. 46-58). Rio de Janeiro:
IPUB/UFRJ.

Oliveira, R. C. (2000). A recepção em grupo no ambulatório do IPUB/UFRJ. In Cadernos IPUB –


A Clínica da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental. (Vol. VI, nº 17, pp. 30-46). Rio de
Janeiro: IPUB/UFRJ.

Tenório, F.; Oliveira, R.; Levcovitz, S. (2000). A importância estratégica dos dispositivos de
recepção. In Cadernos IPUB – A Clínica da Recepção nos Dispositivos de Saúde Mental. (Vol VI,
nº 17, pp. 7-14). Rio de Janeiro: IPUB/UFRJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A escuta psicanalítica nas primeiras entrevistas em saúde mental infanto-juvenil

Fernanda Barbosa dos Santos*


Fernanda Nogueira Klumb**
Karina Barroso de Andrade***
Ingrid Vorsatz***

Resumo
O objetivo deste trabalho é o de, a partir da nossa inserção como residentes de Psicologia no
Ambulatório de Psiquiatria Infantil da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria [UDAP] do
Hospital Universitário Pedro Ernesto [HUPE], problematizar em quê a especificidade da escuta de
orientação psicanalítica pode contribuir para a acolhida da criança, do adolescente e de seus
familiares em uma equipe multiprofissional. Qual é a demanda do Serviço para os residentes de
Psicologia e qual é a demanda dos pacientes e de seus familiares para a equipe? Em quê a
psicanálise pode contribuir para um melhor atendimento e condução dos casos? Essas foram as
questões norteadoras desse trabalho.
Palavras-chave: Psicologia; psicanálise; primeira entrevista; saúde mental infanto-juvenil.

Apresentação do Serviço
O Ambulatório de Psiquiatria Infantil é um dispositivo de atenção em saúde mental infanto-
juvenil que funciona na UDAPq-HUPE sob a coordenação da Dra. Sheila Abramovich e da Dra.
Simone Pencak, com a proposta de prestar atendimento especializado em saúde mental a crianças e
aos adolescentes. A sala de acolhida é o momento de recepção dos pacientes encaminhados ao
Serviço. Neste modelo de trabalho, há uma equipe multidisciplinar – psicólogos (residentes) e
médicos (residentes de Psiquiatria com o suporte de uma psiquiatra do Serviço), que atuam a partir
de diferentes premissas teórico-conceituais.

*Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ –
Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ (2017).
**
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ –
Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ (2017).
***
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ –
Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ (2017).
***
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia
Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de Residência
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde-COREMU da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Os pacientes são encaminhados ao Serviço via SISREG (Sistema Nacional de Regulação de


vagas do Ministério da Saúde), em geral, já tendo passado por uma avaliação prévia em alguma
Unidade Básica de Saúde que identificou a necessidade de atendimento psiquiátrico especializado.
Ao longo da recepção, com duração de aproximadamente sessenta minutos, é realizada uma
entrevista semi-estruturada, em que o paciente e seus familiares são levados a responder a questões
para o preenchimento detalhado de um questionário social e psiquiátrico, mas também podem falar
livremente sobre o que os levou a buscar tratamento. Imediatamente após a entrevista os
profissionais discutem os elementos apresentados, para a elaboração de um projeto terapêutico
específico e adequado ao caso.

A inserção dos residentes de Psicologia


O trabalho desenvolvido pelos residentes de Psicologia na Sala de Acolhida no Ambulatório
de Psiquiatria Infantil da UDAPq-HUPE ocorre sob a supervisão e a preceptoria de uma professora
do Instituto de Psicologia da UERJ, que integra o corpo docente do Curso de Especialização em
Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar. Os casos acompanhados são
discutidos na reunião semanal de equipe. A discussão contempla a questão diagnóstica, a condução
do caso e a direção de trabalho, tendo como eixo orientador a teoria da clínica psicanalítica.

A psicanálise em extensão
Neste dispositivo institucional de caráter público, o perfil socioeconômico dos usuários é,
em sua maioria, de cidadãos provenientes das camadas médias e baixas da população fluminense.
Tal fato nos provoca a refletir sobre as mudanças que a técnica psicanalítica sofre ao ser aplicada
em instituições públicas oferecidas pelo Estado. Freud (1996) salienta que embora seja de grande
importância que a psicanálise se amplie para fora do consultório particular, vale ressaltar que não é
o “ouro puro” da análise que realizamos neste contexto, em função de suas características. Freud
(1996) pontua ainda sobre a especificidade de um tratamento que é oferecido gratuitamente para
pessoas que necessitam de um apoio material em conjunto com um auxílio psíquico, e o sentido que
a doença pode vir a ter, sendo mais um título à assistência social.

Psicanálise e psiquiatria
Tratando-se de um trabalho clínico de orientação psicanalítica que se dá na interface com a
psiquiatria, no ambiente de atenção terciária a saúde, é pertinente retomar as distinções entre a
psicanálise e a psiquiatria. Segundo Freud (1976), estas não são práticas opostas, mas se
complementam. Não se trata, portanto, de discutir qual tem maior importância, pois cada uma se
29
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

destina a um fim diferente, tendo cada uma sua especificidade. Nosso interesse é refletir quais são
as contribuições que a escuta psicanalítica pode oferecer em sua interlocução com a psiquiatria, no
campo da sáude mental infanto-juvenil, especificamente nas primeiras entrevistas com crianças e
adolescentes, realizadas em equipe multidisciplinar.
Em nossa experiência nesse dispositivo, pudemos observar a prevalência de uma prática
psiquiátrica fundamentada a partir de uma apreciação dos fenômenos, vale dizer, da semiologia
psiquiátrica. Busca-se descrever os sinais e sintomas, classificá-los, e, em seguida, propor uma
terapêutica que os faça temperar ou cessar. A psicanálise, por sua vez, escuta os significantes por
trás dos comportamentos manifestos, não se atendo à remissão estrita e imediata dos sintomas,
ainda que eles sejam a causa aparente de sofrimento do sujeito.
Conforme atesta Mannoni (2004), a abordagem analítica não encontra semelhança com
nenhum outro tipo de abordagem, seja em relação aos psicólogos, educadores ou médicos, tratando-
se de um discurso diferenciado dos que circulam em muitos outros contextos da vida cotidiana.
O psicanalista “permite que as angústias e os pedidos de socorro dos pais ou dos jovens
sejam substituídos pela questão pessoal e específica do desejo mais profundo do sujeito que fala”
(Dolto, In Mannoni, 2004, p.11). O papel do psicanalista é, portanto, o de ser uma presença humana
que escuta de forma a produzir um efeito de verdade. É através de sua formação e de sua própria
análise que o psicanalista pode escutar de forma a perceber o sentido emocional subjacente ao
discurso do paciente (Mannoni, 2004).

As especificidades da clínica da infância e da adolescência


Na clínica de orientação psicanalítica com crianças e adolescentes, há uma diferença crucial
que se impõe logo na primeira entrevista: estes são trazidos até nós, em sua maioria, por um
terceiro, que é, em geral, a mãe, o pai, ou ambos. A queixa, que pode ou não vir a se transformar em
demanda de tratamento, passa, então, pela fala de um outro, principalmente quando se trata de
crianças.
Do mesmo modo, podemos dizer que também os sintomas que estes apresentam e que fazem
com que seus pais os tragam para uma avaliação em saúde mental, portam verdades que dizem
respeito a outros, que não somente a si próprios. Isso significa que seus sintomas “encarnam e
presentificam as consequências de um conflito vivo, familiar ou conjugal, camuflado por seus pais”
(Mannoni, 2004, p. 13). São porta-vozes de seus pais, trazendo em seus comportamentos aquilo que
não é posto em palavras. Não é tanto da situação real que se trata, mas, claramente, do que não foi
verbalizado, isto é, dito.

30
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Mannoni (2004) distingue os distúrbios da primeira infância dos distúrbios da infância ou


adolescência sem perturbações manifestadas anteriormente: no primeiro caso, trata-se, em sua
maioria, de uma reação a dificuldades parentais, distúrbios entre irmãos ou ainda relacionados ao
ambiente, enquanto que no segundo caso estes diriam respeito a consequência das exigências do
complexo de Édipo. Cada sujeito vem ao mundo marcado pelo lugar que ocupa no desejo dos pais,
o que significa dizer que todos estamos inscritos numa linhagem e submetidos a determinados
significantes. A infância, em especial, é o momento de alienar-se aos significantes desse Outro que
dão um lugar ao sujeito a advir. A mãe é a primeira pessoa com quem a criança irá se relacionar.
Esta figura que representa “esse primeiro Outro no qual o seu próprio discurso vai encontrar um
sentido. Esse relacionamento é fundamental, ocupa um lugar definido num sistema em que o pai
aparece, nesse jogo de xadrez, num lugar não menos determinado. ” (Mannoni, 2004, p. 36).

A experiência na Acolhida Infantil da UDAPq-HUPE


Durante três meses e meio, participamos de dezesseis primeiras entrevistas no dispositivo de
acolhida infantil da UDAP-HUPE. Para a psicanálise, a entrevista inicial é o ponto de partida para
se iniciar qualquer investigação e avaliação clínicas. É a partir da entrevista que se podem
estabelecer parâmetros para investigar ou não a suspeita da doença e dar início ao tratamento, se e
quando for caso. Freud (2010) indica que tudo deve ser considerado no início do tratamento: o
assunto com que se inicia a história da vida do paciente ou a história de sua doença. Deve-se
permitir que o paciente fale, deixando à sua escolha o ponto inicial.
Na maioria dos casos atendidos no dispositivo de acolhida multiprofissional, os pais
chegaram ao serviço com um diagnóstico já estabelecido, seja por já haverem passado por outros
profissionais que receberam e deram seu parecer, seja por já terem lido a respeito de um ou mais
transtornos e identificarem neste(s) os sintomas de seus filhos. Como aponta Mannoni (2004), o
desconcerto dos pais começa no momento em que esse diagnóstico é questionado.
Em alguns casos recebidos por nós, as crianças já haviam passado por diversos profissionais
ou ainda estavam os frequentando, concomitantemente ao encaminhamento ao Serviço. Este pode
ser um indicador da angústia parental e uma busca desenfreada e inespecífica pela solução do
problema que o sintoma encarna. Oferecer aos pais, através de seu filho, um tratamento
psicanalítico, implica em não responder a este pedido de sanar o problema, entendendo o sintoma
como uma fala da criança que precisa ser escutada.
De acordo com Lacan (1998) “o sintoma da criança acha-se em condições de responder ao
que existe de sintomático na relação familiar.” (p. 369). No entanto, nem sempre os pais querem
esse tratamento, que pode desestabilizar os pilares da estrutura familiar existente. Em nossa
31
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

experiência, averiguamos que muitos pais (e também avós, madrastas, padrastos), apesar de terem
exposto explicitamente a necessidade e a importância de uma ajuda profissional em relação ao
sofrimento apresentado por seus filhos, inconscientemente os mantinham na posição de ‘doentes’,
vale dizer, sintomática da própria dinâmica parental ou familiar (sem emitirmos aqui qualquer
julgamento moral do que é ser um bom pai ou uma boa mãe).
Pudemos notar este arranjo no discurso de mães que para quem o filho, com seus sintomas,
tomava todo o espaço familiar, sendo a única questão sobre a qual se falava. Por ocasião da
primeira entrevista, estamos submetidos ao pedido dos pais, que pode ser o de uma solução
imediata ou ainda urgente. Reiteramos a necessidade de ouvir essa “urgência”, acolher as
dificuldades do casal parental – sem eles não há tratamento possível posterior - sem se deixar
capturar de modo a corresponder a seus anseios. Nem todos os casos atendidos no dispositivo de
acolhida resultaram na indicação de uma psicoterapia de orientação psicanalítica, por razões
diversas e específicas, que não trataremos aqui; porém, acreditamos ter sido “certamente possível
salvaguardar a dimensão psicanalítica, ou até vir em auxílio do pediatra ou do médico da família,
que tem a seu cargo o tratamento da família” (Mannoni, 2004, p.80).
Em alguns casos avaliados em conjunto com os psiquiatras, foi observada a presença de um
sofrimento psíquico que requeria um acompanhamento regular e, então, foi proposto como projeto
terapêutico o paciente ser acolhido pelo Ambulatório de Psiquiatria Infantil da UDAPq, muitas
vezes contando com o acompanhamento regular por parte de um psiquiatra (residente) e de um
psicólogo (residente) no Serviço.

Considerações finais
Através da escuta psicanalítica, apreendemos que o desconcerto do sujeito ultrapassa quase
sempre o motivo pelo qual o trouxe ao tratamento, e que, por isso, não devemos tomar o seu pedido
ao pé da letra, mas nos atermos à escuta daquilo que, para além do sintoma, pode emergir no
discurso. Isso se torna ainda mais desafiador ainda quando o discurso perpassa tantos envolvidos
(pais, escola, a própria criança), mas nem por isso é menos importante. Destacamos também a
importância de dar lugar à criança e/ou ao adolescente enquanto sujeito, se dirigindo a ele, nas
primeiras entrevistas, ainda que, muitas vezes, a fala seja dominada por seus pais ou responsáveis.
A partir de uma escuta que supõe um sujeito para além de seus sintomas e que entende o
sofrimento psíquico como sendo sempre singular, pode ser possível uma intervenção terapêutica
(acompanhamento), inclusive, precoce e determinante na vida de uma criança ou de um
adolescente. A prática de orientação psicanalítica pode, então, responder por outras modalidades de

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

intervenção clínica, não excludentes das já postas, exercendo também o seu papel na assistência à
infância no âmbito público.
Referências

Freud, S. (1976). Psicanálise e psiquiatria. Conferências introdutórias sobre a psicanálise In Edição


Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XVI. Rio de Janeiro:
Imago. (Obra original publicada em 1916[1917])
________ (1996). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1919[1918])
_______ (2010). Sobre o início do tratamento. In Obras Completas de Sigmund Freud Vol. X. São
Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1913)
Mannoni, M. (2014). A primeira entrevista em psicanálise. 9ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier.
(Obra original publicada em 1980)
Lacan, J. (1998). Nota sobre a criança. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar (pp. 369-370).
(Obra original publicada em 1969)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Que lugar para o sujeito? Desafios no atendimento para além da enfermaria de Psiquiatria

Gabriela Klussmann*
Ingrid Vorsatz**

Resumo

Esse trabalho apresenta uma proposta de construção de um relato clínico baseado na experiência
prática como residente do programa de Residência em Psicologia Clínica Institucional. A partir da
ideia de que o trabalho do psicanalista na Instituição de Saúde se faz na articulação da teoria com a
prática, entendemos ser de responsabilidade do psicanalista a transmissão do saber que ali se
constrói. Diante de nossa prática clínica de orientação psicanalítica torna-se imprescindível a
consideração sobre o sujeito e seu sofrimento frente às questões institucionais que atravessam o
tratamento.

Palavras-chave: Psicologia; psicanálise; psiquiatria; residência em saúde; equipe multiprofissional.

Introdução

O presente trabalho foi desenvolvido a partir de minha experiência como residente do Curso
de Especialização em Psicologia Clínica Institucional, e, mais especificamente de minha inserção na
Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Partimos do
ponto que o trabalho de orientação psicanalítica na instituição de saúde se faz através da articulação
da clínica com a teoria e nossa inserção nos dispositivos assistenciais pode ser entendida como um
processo e não um fato. Trata-se da construção de um lugar do qual possamos operar, considerando
os mais diversos desafios que atravessam esse percurso (Moretto & Priszkulnik, 2014).

Considerar a Psiquiatria no conjunto dos dispositivos de saúde como prática de atuação do


psicólogo significa incluir a qualidade multiprofissional e interdisciplinar em nosso trabalho.
Estamos, assim, diante de um campo amplo e bastante heterogêneo no que diz respeito às
referências teórico-práticas, quanto aos demais dispositivos institucionais envolvidos na atenção e
no cuidado oferecido na rede pública de saúde. A psicanálise, ao considerar a dimensão
inconsciente, redimensiona a psicopatologia e o alcance do diagnóstico, indo da descrição dos

*
Psicóloga. Residente do primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017).
**
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora e supervisora do Curso de Especialização em
Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de
Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde/COREMU-UERJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

fenômenos à sua causa ou etiologia, considerando-os a partir da perspectiva tópica, dinâmica e


econômica da vida psíquica.

No contexto de prática que constitui a enfermaria de Psiquiatria busquei


continuamente refletir e questionar minhas possibilidades de intervenção de maneira a fazer o
sujeito ter lugar, isto é, trazer à cena do tratamento o sujeito do inconsciente que se apresenta por
meio de seu sintoma (Figueiredo, 2004). Apresento a exposição de um estudo de caso baseado no
atendimento de uma paciente que atravessou um período de internação na referida instituição.
Procurarei relatar acontecimentos, procedimentos, dificuldades e caminhos construídos a partir de
referências teóricas de viés psicanalítico e de suas problematizações nas supervisões semanais. Os
efeitos transformadores e formadores dessa aprendizagem estão sendo colhidos até o presente
momento e continuam reverberando.
Fragmento clínico

Rita¹, sessenta e sete anos, chega à UDA de Psiquiatria acompanhada de sua filha Roberta e
com um pedido de internação voluntária feito pela filha. Encontram uma enfermaria esvaziada de
pacientes e profissionais, reflexo direto da grave crise que a instituição enfrenta em virtude da
situação de calamidade financeira decretada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Apresentava
atitudes e falas alucinatórias, onde referia assustada que os traficantes estavam vindo para pegá-la.
Meu primeiro contato com a paciente foi através de uma “aula” para os acadêmicos de medicina
que fui convidada a participar, ministrada por um professor de psicopatologia. Acompanhei com
certo incômodo a formulação de diversas perguntas referentes à anamnese e o exame psíquico da
paciente, por um psiquiatra, frente a uma sala cheia. “Você sabe quem são essas pessoas? Os
traficantes estão aqui?” (SIC) – perguntava à paciente que respondia meneando a cabeça.

Pude conversar com Rita em um segundo momento, no qual já se encontrava deitada no


leito. Após minha apresentação e oferta de escuta, a paciente me dizia que os traficantes já sabiam
que ela estava ali. Afirmava ouvir ruídos de motocicletas aparentemente decorrentes de alucinações
auditivas e dizia repetidamente que eles estavam indo pegá-la. Perguntei que traficantes eram esses,
de onde viriam e por qual razão iriam fazer o que ela estava dizendo. Frente às minhas perguntas, o
relato da paciente cessava e Rita permanecia no leito, acuada e vigilante. Vale registrar que a
paciente era abordada frequentemente pelos diversos residentes e profissionais que faziam parte da
equipe multidisciplinar, das mais diversas formas, tornando difícil o estabelecimento de um vínculo
e até contribuindo para os sintomas persecutórios de Rita, que passava a incluí-los.

35
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Durante o período em que permaneceu internada na instituição, Rita contou com a presença
de suas duas filhas e alguns amigos que se alternavam para acompanhar o tratamento e oferecer
suporte. Dessa forma, a história clínica de Rita pôde ser formulada através de alguns dados
biográficos, mas, principalmente, por informações colhidas através dos relatos dos familiares.

Roberta era a filha mais nova de Rita e residia no Rio de Janeiro. Não sabia dizer muitos
detalhes da história da doença da mãe por não se considerar muito próxima nas épocas de “crise”
(SIC). Segundo ela, quem ficava à frente neste período era sua irmã Regina, filha mais velha de
Rita, que atualmente morava na cidade de São Paulo. Ambas disseram perceber, desde cedo, sem
precisar datas, que a mãe possuía um “temperamento forte” (SIC) e já havia passado por alguns
períodos de “depressão” (SIC) em que Rita não queria sair do quarto. Em uma das conversas com
Regina, foi relatado que esta não era a primeira internação de Rita. Rita já havia sido internada
anteriormente, há aproximadamente dez anos, em uma clínica particular que não existe mais. De
acordo com seu relato a mãe apresentava basicamente os mesmos sintomas: depressão e delírios,
que não soube especificar. Regina referiu que desde antes desta primeira internação a mãe era
acompanhada por um psiquiatra particular, conhecido da família, o qual manteve contato durante a
internação de Rita na instituição. A filha relatou ainda que nos períodos de melhora Rita retomava o
trabalho como educadora em uma escola e que quando se considerava “boa” (SIC), parava de tomar
a medicação por conta própria, quando retornavam as crises de depressão e humor irritado.

Em aproximadamente uma semana de internação, Rita havia incluído o cozinheiro, o


faxineiro e uma enfermeira em seu delírio persecutório, identificando-os com os traficantes. Dessa
forma, Rita iniciou um processo de recusa da comida do hospital, aceitando apenas a comida que
sua irmã trazia. Algum tempo depois recusava-se a tomar banho, a levantar do leito e,
posteriormente, nem a comida da própria casa aceitava por acreditar que todos estavam tentando
envenená-la.

Minhas tentativas de aproximação constituíam em visitas ao quarto onde ela se encontrava


no leito, sempre perguntando como ela estava e me disponibilizando para ouvi-la. “Péssima”, me
dizia, com razoável frequência. Falava em seguida sobre a presença dos traficantes, mas se calava e
virava o rosto frente as minhas perguntas relacionadas ao tema. O mesmo acontecia sobre a
alimentação e outros assuntos relacionados ao seu tratamento. Com o passar do tempo e constância
de minhas visitas, Rita passou me chamar pelo nome, dizendo que era o mesmo nome de uma de
suas sobrinhas. Não apenas nesses momentos, mas também nos que a paciente apresentava
resistência à minha presença e a própria fala, algo da relação transferencial pôde ser observado.

36
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Ao completar aproximadamente um mês e meio de internação na UDAPq e, segundo os


médicos, sem aparente melhora da paciente, apesar de terem tentado todos os medicamentos
possíveis, começou a ser considerado como possibilidade terapêutica a aplicação de algumas
sessões de eletroconvulsoterapia. Minha presença como psicóloga nas supervisões de equipe
multiprofissional teve a função de questionar quais seriam as indicações clínicas para o referido
procedimento, quais seriam os resultados esperados e de que maneira isso poderia ser tratado com a
paciente. Com a justificativa de que os medicamentos não estavam fazendo efeito e que a paciente
não estava se alimentando, retirando uma sonda de alimentação que havia sido colocada, os
psiquiatras consideravam que a indicação do referido procedimento era o estado de estupor
catatônico e o negativismo que a paciente apresentava, com risco de óbito por inanição.

Por experimentar certa inquietação em relação ao procedimento, levei a questão para a


supervisão, e pude refletir sobre o papel de um psicólogo em uma equipe multiprofissional, que
muitas vezes intervém no sentido de questionar algo que já está dado pelos demais membros da
equipe. Novamente os residentes de psiquiatria eram organizados em grupos para aprender a
realizar o procedimento de eletroconvulsoterapia. Nas reuniões e supervisões do serviço às quais
continuei comparecendo, pude notar que a minha presença, por si só, (algumas vezes acompanhada
de comentários como “psicólogo não gosta dessas coisas”), não permitia que essa situação fosse
naturalizada. Isto é, que os residentes de Psiquiatria também pudessem se interrogar sobre o
procedimento – sem julgamento de mérito da questão.

Procurei nomear, junto a paciente, toda aquela situação. Desde sua saída da enfermaria de
psiquiatria para realizar exames no hospital, até sua ida e realização de um procedimento, se tinha
sido explicado para ela o que seria e o que ela achava disso. Me disponibilizei para acompanhá-la
nesse momento, oferecendo também suporte aos seus familiares. Estes depositavam grande
confiança na equipe multiprofissional, à qual atribuíram a expectativa de retorno à “normalidade”
de Rita. Foram realizadas três sessões de eletroconvulsoterapia com a paciente. O procedimento
acontecia no centro cirúrgico do hospital, com a sedação apropriada. Rita foi transferida para a
enfermaria de clínica médica para receber os demais cuidados clínicos relativos à exames e o
acompanhamento de seu estado clínico. Nesse momento, foi possível algum manejo com a equipe
dessa nova enfermaria, que frequentemente questionava o lugar de Rita como paciente psiquiátrica.

No período de aproximadamente três meses, Rita se apresentava mais calma e colaborativa.


Chegou a me reconhecer durante as minhas visitas, conversando sobre outras questões que não mais
os traficantes. Pôde falar, por exemplo, sobre a saudade que sentia de seus netos. Após três meses

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

de internação, Rita recebeu alta médica, muito comemorada pela equipe e bastante questionada por
mim. Afinal, o que esteve em jogo naquela internação?

Interrogando a clínica e a formação

O breve relato desta experiência me colocou em questionamento durante e posteriormente o


período em que a paciente permaneceu na instituição. Qual seria o nosso papel como residentes de
Psicologia em uma enfermaria psiquiátrica? Do que se tratavam as intervenções e perguntas por
mim direcionadas à paciente? O que buscam os pacientes ao procurar um hospital universitário?
Qual ética estaria em jogo: uma ética de formação ou uma ética da assistência?

Em diversos momentos busquei valorizar junto à equipe, à paciente e aos seus familiares, o
sujeito e seu sofrimento ao invés de colocá-lo em uma posição de objeto de intervenção da ciência.
Porém, ao fazer muitas perguntas e querer que a paciente falasse e produzisse associações, percebi
que de alguma maneira também adotava uma posição de naturalização do sujeito como objeto de
intervenção de minha ‘especialidade’, que pretende trabalhar a partir da escuta do sujeito.

Vale ressaltar que em um hospital universitário o que deveria ser objeto principal de nossa
prática como residentes é a valorização de um espaço de cuidados em oposição a uma espécie de
“fábrica” de profissionais. Como espaço de formação de médicos, enfermeiros, assistentes sociais,
psicólogos e outros profissionais de saúde, observa-se que muitas vezes a preocupação com a
assistência à população dá lugar a uma ênfase no corpo do paciente, como uma espécie de objeto de
pesquisa e investigação Em diversos momentos, como, por exemplo, nas supervisões em que o
paciente era convidado a falar de seus sintomas perante uma plateia de residentes e estudantes, me
pareceu que escapava a preocupação com o sujeito em causa e as intervenções ou o campo da
sintomatologia se tornaram prevalentes.

Querer ‘salvar’ o paciente, ou ainda que ele ‘melhore’, também pode ser considerado fazer
deste como um objeto de intervenção do psicólogo de orientação psicanalítica, ainda que pela via da
palavra. Poder acolher o silêncio de Rita, seu negativismo e sua singularidade, oferecendo um lugar
de endereçamento para o seu sofrimento, talvez pudesse ter efeitos muito mais produtivos em sua
passagem como paciente da instituição e em meu percurso de aprendizagem e de formação.

Considerações finais

Nossa discussão não se encerra ao término dos atendimentos, ela continua e remete-se ao
pesquisador/analista que apresenta o caso. Segundo Figueiredo (2004), a palavra “clínica” vem do
grego kline, que significa ‘leito’ (do qual o divã freudiano é herdeiro). Para a autora, aquilo que
38
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

caracteriza a clínica é o debruçar-se sobre o leito do doente e produzir um saber a partir daí, vale
dizer, levando em conta o que o doente diz sobre a sua doença. Em psicanálise, é o (re)arranjo dos
elementos relatados pelo sujeito, sejam quais forem, que devemos acolher. Vale ressaltar ainda que
as ações do sujeito são norteadas pelo discurso.

Dessa forma, nossa atuação, de acordo com o viés da psicanálise deve acontecer na condição
de seguir o estilo do sujeito. A partir daí, indagar o que é pertinente ao seu sintoma e fazê-lo tomar
sua responsabilidade sobre isso, ainda que o paciente não tenha responsabilidade plena, no sentido
jurídico. É preciso supor um sujeito para atravessar a imobilidade e a falta de solução. Como
ressalta Figueiredo (2004): “(...) a clínica do discurso do sujeito é o único meio de escapar de duas
grandes armadilhas insidiosas que são a ‘pedagogia interpretativa’ e a ‘terapêutica da restauração’,
isto é a terapêutica no sentido de fazer retornar ao estado anterior à doença” (p.81). Visar a
restituição pura e simples ao estado anterior à crise nos afasta ainda mais da condição do sujeito que
está em sofrimento. Poder promover um certo alívio do sofrimento e apaziguar a angústia é a tarefa
do psicólogo, como um meio e não como um fim. Caso contrário, estaremos na direção da
cronificação, pois sabemos que há um incurável (Figueiredo, 2004).

Nota:

1. Os nomes aqui utilizados são fictícios.

Referências

Figueiredo, A.C. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à


psicopatologia e à saúde mental. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (1),
(pp. 75-86). São Paulo.

Freud, S. (2006). A dinâmica da transferência. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1912)

Moretto, M. L. T. & Priszkulnik, L. (2014). Sobre a inserção e o lugar do psicanalista na equipe de


saúde. In Tempo Psicanalítico 46(2) (pp. 287-298). Rio de Janeiro.

39
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

"Se não for para comer muito eu nem como": A implicação de um sujeito em seu adoecimento
orgânico
Aline Monteiro Pinheiro*
Sonia Alberti**
Resumo
Esse texto tem o objetivo de apresentar a inserção da psicanálise em uma equipe multiprofissional
do Hospital Universitário Pedro Ernesto. O trabalho desenvolvido foi realizado no Núcleo de
Estudos da Saúde do Adolescente [NESA], a partir de um caso clínico, que demandou intervenção
analítica devido à dificuldade de adesão ao tratamento médico. Ressaltamos a importância de
apontar à singularidade do sujeito diante de seu adoecimento orgânico em uma equipe
multiprofissional, na interlocução com os diferentes discursos apresentados no contexto hospitalar.
Palavras- chave: Psicanálise; hospital; equipe multiprofissional; sujeito; singularidade

Contextualizando o espaço de trabalho


O presente trabalho parte das experiências vivenciadas no Núcleo de Estudos da Saúde do
Adolescente [NESA]. O serviço é composto de médicos, psicólogos, nutricionistas, assistentes
sociais, fisioterapeutas, enfermeiros e fonoaudiólogos. Funciona como Unidade Docente
Assistencial [UDA] e atende pacientes em nível primário, secundário e terciário. Desde os
primórdios da enfermaria, no ano de 1974 é realizada uma reunião multidisciplinar, onde são
discutidos com todos os profissionais os casos dos pacientes internados (Silva, 2001). Através das
contribuições clínicas oferecidas são planejadas ações que irão favorecer o atendimento desses
pacientes.
A partir desse cenário serão apresentadas experiências de atendimento do setor de
Psicanálise e Saúde Mental no NESA. O objetivo do trabalho será o de apresentar a inserção da
psicanálise em uma equipe multiprofissional de saúde e apontar seus desdobramentos no
atendimento ao paciente a partir de um fragmento de caso clínico.

Relato de caso: Uma aposta no sujeito


O caso apresentado é de uma adolescente de doze anos, que foi internada este ano na
enfermaria do NESA com o diagnóstico de Diabetes tipo um. A adolescente que chamaremos de
Mônica tinha dificuldade de adesão ao tratamento e no momento da internação estava com a
*
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
**
Professora Associada e Procientista do Instituto de Psicologia da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Doutora pela
Universidade de Paris X-Nanterre e Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Psicanalista Membro da Escola
de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. E-mail: sonialberti@gmail.com
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

glicemia descompensada. Esse caso foi bastante discutido nessas reuniões devido à gravidade e real
possibilidade de morte, caso o tratamento não fosse realizado. Além do atendimento médico, o caso
demandou atendimento psicológico e intervenção das outras categorias.
Houve a necessidade de realização de duas visitas intersetoriais. A primeira visita foi
realizada na Clínica da família de referência do território da adolescente com o intuito de fortalecer
as redes de apoio da paciente após seu período de internação e a segunda visita foi realizada na
Escola. Após visita ao colégio, surgiu a demanda dos professores de que a equipe de saúde
realizasse palestras sobre o diabetes. Essa solicitação foi trabalhada com a equipe e a paciente,
sendo decidido não atender aquele pedido devido ao tempo e singularidade do sujeito envolvido.
Durante as visitas, a questão da responsabilização da adolescente em seu diagnóstico foi
levantada pela médica da Clínica e pela coordenadora da Escola. Havia dois discursos, no caso. O
primeiro observava que a adolescente deveria compreender e seguir todo protocolo a qualquer
custo, o segundo, supunha que a adolescente não tinha capacidade de responsabilização. A escola
apresentava preocupação com o caso, mas se referia à aluna como se ela fosse uma criança e, desse
modo, ela não poderia se responsabilizar pelo próprio cuidado. Uma parte da equipe de saúde agia
como se a adolescente não pudesse compreender e se engajar no moderno tratamento proposto com
uma bomba infusora de insulina. Entretanto, era esperado um completo entendimento desse novo
tratamento e diagnóstico da doença.
A escuta psicanalítica compareceu como aquela que pôde apontar um sujeito para
além da doença, levantando questões particulares do sujeito que estariam também em circulação,
como o próprio período de transição da infância para adolescência. As questões puderam ser
tangenciadas a partir da singularidade daquele sujeito. Houve uma aposta na implicação do sujeito
em seu sofrimento, implicação essa que só pode ser sustentada quando se oferece um espaço em
que se possa articular não só questões de sua doença como também de sua história.
Era esperado, por alguns, que a percepção da doença pudesse ser aceita pela adolescente sem
o devido trabalho de tempo. Foi pontuada a necessidade do tempo subjetivo e singular a cada um. A
possibilidade de uma equipe multiprofissional aberta à intervenção psicanalítica, que, inclusive
aponta as dificuldades e transgressões no planejamento ideal de saúde, pode favorecer uma via de
real abertura à adesão do tratamento. Foi o que aconteceu no caso de Mônica.
Durante os atendimentos com a adolescente foi possível perceber o caminho que estava
sendo percorrido diante das transições próprias daquela adolescência e seu adoecimento orgânico.
Questões familiares e relacionais foram sendo abertas e a partir desse canal a paciente pôde ser
escutada como um sujeito capaz de implicação. Por vezes, a dificuldade de adesão é recebida com
muita angústia por parte da equipe. Com o passar dos atendimentos foi importante perceber que
41
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

determinadas repetições no discurso da paciente se apresentaram com o tempo de forma diferente,


demonstrando a importância do tempo de elaboração que Mônica necessitava.
A primeira entrevista foi realizada na presença da mãe de Mônica, que relatou a revolta da
filha com o diagnóstico da doença, aos sete anos de idade. A mãe falou que devido a seu trabalho,
precisava deixar Mônica com sua irmã também menor de idade. A demanda de atendimento por
parte da mãe é de que Mônica precisava se conscientizar de sua doença. Inicio os atendimentos com
a adolescente, que primeiramente diz não gostar de conversar nem de ir ao colégio. Apesar da
negativa, segue o atendimento e a questão da alimentação começa a aparecer. Relata não gostar de
doces, mas ser difícil não poder comer muito. Apresenta também a dificuldade em estar em uma
nova escola, de que diz não gostar, apesar de não saber o motivo. Após alguns atendimentos afirma
que colegas a chamam de anã. Vale lembrar que durante sua internação foi investigado o motivo de
sua baixa estatura, que poderia estar associado à sua doença crônica de base.
Essa adolescente teve uma internação prolongada, em torno de um mês para equilibrar a
glicemia, mas também devido à possibilidade de novos tratamentos para o Diabetes e questões
sociais para as quais a equipe buscava apoio em rede pública de saúde.
Durante a internação, Mônica costumava desenhar, escrever e durante os atendimentos
resolveu apresentar seus escritos. Tinha um caderno de perguntas e respostas e, dentre elas, havia a
questão de qual seria seu maior medo e sua resposta foi o medo de perder os pais. A partir dessa
questão, Mônica narra uma situação atual: seu pai, que estava morando na rua, foi queimado e
estava hospitalizado.
Apoiada na escuta psicanalítica, Mônica pôde aparecer como um sujeito, que, além das
questões orgânicas, aponta sua história singular e isso chama a atenção, pois por muitas vezes o
incomparável dessa paciente parecia ser esquecido por parte da equipe. Essa experiência se
relaciona diretamente com a ideia professada por Alberti (2008) na seguinte passagem:
O discurso analítico – que não professa a abnegação mas o desejo do analista – funciona de tal
maneira que o agente do discurso – o analista que dirige o tratamento – se dirige a um outro
elevado à categoria de sujeito e é justamente essa a primeira contribuição do analista no
trabalho no hospital: a de lembrar à medicina que os pacientes ali não são objeto de
intervenção clínica mas sujeitos – com toda divisão que este termo comporta em psicanálise.
(p.157).
Com base no seu caderno de perguntas e respostas, surge novamente a questão da
alimentação. Quando pergunto o que mais gosta de comer, Mônica me responde que não pode me
falar porque o que gosta não pode comer e tem vergonha de contar para a nutricionista. Mas

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

finalmente diz gostar de hambúrguer, pizza, mousse, paçoca e é nesse momento que afirma: “Se
não for para comer muito eu nem como".
Cumpre salientar que, segundo Garcia-Roza (1985), a linguagem é um lugar do
ocultamento, onde o sentido que aparece ainda oculta outro sentido, estando a psicanálise à procura
da verdade do desejo que o discurso oculta. Foi a partir dessa fala de Mônica que algo singular e da
dimensão do desejo pôde aparecer.
Durante os atendimentos, Mônica sempre pontuava a dificuldade de verbalizar e em cada
sessão marcava que estava sempre conseguindo “falar mais um pouquinho”. Nesse ponto, procuro
articular algo sobre o tempo do sujeito. O tempo cronológico por vezes não coincide com a lógica
do sujeito, sujeito do inconsciente, atemporal. Americano e Alberti (2010) afirmam a dimensão
cronológica no cotidiano de um hospital e como o sujeito se apaga diante dessa perspectiva.
Segundo Amor & Chatelard (2016), o tempo é fundamental na constituição subjetiva e por
esse motivo torna-se importante compreender a importância da temporalidade em psicanálise. O
inconsciente se redescobre com o deslizar do tempo, tempo esse que não há como ser
predeterminado, sendo portanto necessário um intervalo para que o inconsciente se revele.
Surge também a dúvida de Mônica em relação ao uso da bomba infusora, moderna proposta
terapêutica orientada no momento. Ao questioná-la sobre o motivo da dúvida, diz que se deve à
demora na chegada da bomba, apesar de acreditar que esse novo método pode ajudar evitando que
precise furar-se diversas vezes. Essa dúvida surgiu não só nos atendimentos analíticos, mas também
com o restante da equipe que estranhou a divisão da adolescente. Esse trecho retrata a dificuldade
de alguns profissionais em lidar com o incerto e faltoso no discurso do paciente. Por vezes orientada
pela necessidade de prestar o melhor cuidado, a equipe pode silenciar o singular daquele sujeito,
apagando as especificidades que circularão no percurso do tratamento. Segundo Alberti (2008), em
uma equipe multidisciplinar há profissionais que se orientam para uma clínica do sujeito e aqueles
que inscrevem os pacientes como parte de um grupo perdendo assim a singularidade desses sujeitos.
Para aqueles que são norteados pela clínica do sujeito, o trabalho da psicanálise fortalece e oferece
suporte.
Durante as reuniões de equipe sempre se fez necessário situar a especificidade daquela
paciente, assim como manejar algo no sentido de uma flexibilização para que aquela paciente fosse
vista como sujeito. Segundo Silva (2001), a psicanálise se orienta pela ética do bem dizer, referida
à ética do desejo, que exige um trabalho psíquico ao longo do tempo.
Além dos atendimentos com Mônica, realizei alguns atendimentos com sua mãe, que sempre
a acompanhava. A mãe relata a dificuldade em estar acompanhando uma internação prolongada da
filha, porém se mantinha sempre colaborativa, pois acreditava que o trabalho naquela enfermaria
43
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

estava sendo diferenciado. Uma questão que sempre tangenciou os atendimentos da mãe da
paciente e comentários da equipe é a culpabilização dessa mãe pelos cuidados oferecidos à filha.
Além disso, a equipe sugeria que toda família deveria se privar de certos alimentos em prol de
Mônica e essa sugestão aterrorizou a mãe, que fala das consequências dessa restrição. Sentia como
se tudo que pudesse dar errado no tratamento teria por consequência uma equipe que disso a
culparia.
Finalizo o relato dessa experiência ressaltando a importância da psicanálise em uma equipe
multidisciplinar. A partir das particularidades de cada categoria, a orientação do trabalho nesta
enfermaria é no sentido de um tratamento singular e sensível a cada paciente. O acompanhamento
psicanalítico pode ter sido um facilitador para o encaminhamento das questões da adolescente e
equipe. Durante o período de internação de Mônica foi possível disponibilizar uma escuta a esse
sujeito que mesmo com seu adoecimento orgânico fez uso do espaço e tempo oferecido para falar
das transgressões no tratamento, assim como através da palavra pôde articular questões de sua
própria história no deslizar do tempo. O psicanalista permite situar a questão singular e específica
daquele sujeito que fala. A tradução em palavras é o recurso disponível ao sujeito para elaboração
de algo sobre seu desejo, estando o dispositivo analítico orientado no caso a caso sob o estatuto do
inconsciente.
Referências:
Alberti, S. (2008). O hospital, o sujeito, a psicanálise. Questões desenvolvidas a partir de uma
experiência de dezoito anos no NESA/UERJ In Revista SBPH v.11 n.1. (pp. 143-160). Rio de
Janeiro.
Americano, B. Alberti, S. (setembro de 2010). A psicanálise e a clínica nas urgências. IV Congresso
Internacional de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia
Fundamental – O amor e seus transtornos. Curitiba, PR, Brasil.
Amor, A. & Chatelard, D. (2016). Considerações sobre tempo e constituição do sujeito em Freud e
Lacan In Tempo Psicanalítico v. 48.1 (pp. 65-85). Rio de Janeiro.
Garcia-Roza, L, A (1985). Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar.
Silva, S. (2001) O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do
cuidar. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em psicanálise – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Prescindir do pai e servir-se dele

Juliana Baghdadi*
Sonia Alberti**

Resumo

O trabalho discute, a partir do caso clínico de uma adolescente atendida no ambulatório do Núcleo
de Estudos da Saúde do Adolescente, o impacto do trabalho característico do adolescente, de
separação e desprendimento dos pais, principalmente sobre a identificação imaginária com o pai. O
conceito freudiano de narcisismo é tomado como eixo condutor da observação do caso. O trabalho
de elaboração sobre a imagem apreendida do pai, na adolescência, revelou-se uma etapa primordial
na constituição do sujeito neurótico.

Palavras-chave: Adolescência; narcisismo; separação dos pais.

A sociedade ergue-se sobre o cadáver do pai. É o que nos apresenta Freud em Totem e Tabu.
A ambivalência afetiva está presente no totemismo e persiste na neurose: amamos e nos
identificamos com o pai, matamos e incorporamos o pai. Mas o pai não serve apenas como morto.
O pai, tomado como símbolo, é avaliado por Lacan em sua função de metáfora: como a introdução
de uma significação substitutiva (S2) à significação primordial (S1) materna. O pai é aquele que
nomeia o desejo da mãe e, permitindo que a criança se desvencilhe do lugar de objeto materno,
franqueia-lhe a posição de sujeito desejante. Tal é a importância da função do pai no complexo
estruturante que chamamos de Édipo.

Freud avalia, no texto de 1924 "A dissolução do complexo de Édipo", que os investimentos
libidinais próprios ao complexo, aqueles que tomam o pai e a mãe como objetos de amor e
rivalidade, são abandonados e substituídos pela identificação. Cito Freud: "A autoridade dos pais,
introjetada no Eu, forma ali o âmago do Supereu, que toma ao pai a severidade, perpetua a sua
proibição do incesto e assim garante o Eu contra o retorno do investimento libidinal de objeto"
(Freud, 2011, p. 208-209).

*
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade
Residência Hospitalar - IP/UERJ (2017).
**
Professora Associada e Procientista do Instituto de Psicologia da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Doutora pela
Universidade de Paris X-Nanterre e Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Psicanalista Membro da Escola
de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. E-mail: sonialberti@gmail.com

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Em 1914, ao comentar a constituição do eu no processo a que deu o nome de narcisismo,


Freud considera a importância do investimento afetuoso na criança o qual atualizaria o narcisismo
infantil dos pais.

Para os pais, "A criança deve ter melhor sorte que seus pais (...). Ela deve satisfazer os sonhos
e os desejos nunca realizados dos pais, tornar-se um grande herói no lugar do pai, ou desposar um
príncipe, a título de indenização tardia da mãe" (Freud, 2010, p. 37). Freud descreve como, nesse
momento da constituição de uma unidade do Eu, há a formação de um ideal relacionado à
atualização do narcisismo dos pais na criança. Essa instância do Eu, encarregada de zelar pela
satisfação narcísica apoia-se na identificação com o pai, incorporando um ideal-do-Eu destinado a
recuperar a perfeição e a completude narcísica experimentadas na infância da criança.

Em um pequeno texto desse mesmo ano - refiro-me a "Sobre a psicologia do colegial" de


1914 - Freud considera o abalo que este ideal introjetado sofre com o passar dos anos da infância:

"Na segunda metade da infância vem a ocorrer uma mudança nessa relação com o pai,
mudança cuja magnitude é difícil imaginar. O garoto começa a lançar o olhar além de sua
casa, para o mundo real lá fora, e inevitavelmente faz descobertas que solapam sua elevada
estima original do pai e promovem seu desprendimento desse primeiro ideal. Vê que o pai não
é o homem mais poderoso, mais sábio, mais rico, etc., fica insatisfeito com ele, aprende a
criticá-lo e a classificá-lo socialmente, e o faz pagar caro, geralmente, a decepção que ele lhe
causou. Tudo de promissor, mas também tudo de chocante que caracteriza a nova geração,
tem por condição esse desprender-se do pai" (Freud, 2012b, p. 422).

Podemos tomar esse momento descrito por Freud como o da adolescência, como aquele
momento em que não é mais possível sustentar os pais como aporte desse ideal-do-Eu. Se é natural
para a sustentação do investimento narcísico que a criança idealize os pais, ao adolescente é legada
a tarefa de se confrontar com a insuficiência dos pais, enquanto meros seres humanos. É o momento
de assumir que só se pode contar com a referência paterna no plano simbólico. O processo de
separação, como descrito por Lacan no seu Seminário XI, representa exatamente isso: a separação
dos pais idealizados, tarefa que se torna condição sem a qual não há adolescência.

Sonia Alberti em O adolescente e o Outro (2004), descreve a adolescência como um longo


trabalho de elaboração de escolhas, escolhas que só se fazem a partir de indicativos, direções e
determinantes anteriores. Se a idealização dos pais é efeito de um investimento narcísico bem capaz
de constituir um Eu, o processo de separação é necessário, como elaboração da falta no Outro,
como possibilidade de incorporação do pai como referência simbólica. Esse processo, no sujeito
46
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

adolescente, constitui um abalo em sua imagem, uma vez que ela se constitui nesse processo
narcísico de identificações. Se identificar-se com o pai é o que permite ao sujeito manter-se como
desejante, então como prescindir do pai idealizado? O sujeito adolescente precisa construir suas
próprias referências e o faz apoiado na introjeção dos pais. A adolescência é um momento que
implica uma dupla tarefa: dos filhos, que encaram a falha no ideal e tentam se sustentar como
sujeitos a quem a falta constitui, e dos pais que precisam suportar o aniquilamento de seu
narcisismo nos filhos. Nesse contexto, Alberti considera a depressão na adolescência como efeito de
uma identificação do sujeito adolescente com o que falta no Outro. Neste caso, o adolescente se dá
em sacrifício para tapar a falha no Outro pois esta o remete a seu próprio desamparo fundamental.
Cito Alberti: "o adolescente tendo herdado a referência edípica é um sujeito desejante; para tal,
sempre será necessário se servir do pai de alguma forma (...). A adolescência como escolha do
sujeito implica pagar o preço do desligamento dos pais, assumir que só é possível contar com o
Outro em nível simbólico." (Alberti, 2004, p. 69)

Com essas observações sobre o abalo que a adolescência promove nas identificações
estruturantes com o pai, trago para discussão um caso atendido no ambulatório do Núcleo de
Estudos da Saúde do Adolescente, no HUPE/UERJ.

Amanda tem quatorze anos e é encaminhada ao Setor de Psicanálise e Saúde Mental após
chorar copiosamente em uma consulta de rotina, na clínica médica ambulatorial do NESA. Ambos
os pais de Amanda comparecem à primeira entrevista e é o pai quem toma a palavra primeiramente,
para descrever sua preocupação com o que chama de "introspecção e tristeza da filha", causada,
segundo ele, pela mudança da turma no colégio que a filha frequentava. Em seguida, o pai e a mãe
de Amanda passam longos momentos enaltecendo as capacidades escolares da filha. O pai diz " se
você conhecer alguém que goste de estudar, minha filha gosta mais!", e a mãe comenta "ela é nossa
única filha por isso queremos o melhor para ela, ela fez uma prova e conseguiu a bolsa nesse
colégio particular".

Depois que peço que os pais se retirem, Amanda, que mantivera-se calada durante toda a fala
dos pais sobre ela, suspira e diz "Ufa, tá vendo né?! Parece que eu não posso cometer nenhum
errinho que todo mundo vai ficar sabendo!".

Nas sessões que seguem, Amanda se põe a falar das constantes brigas em casa, motivadas
pelo que chama de "sessões de descarrego" do pai, momentos em que, segundo Amanda, ele
escolhe descarregar em sua mulher e filha seu stress diário. Amanda diz que quando tentou falar de
suas tristezas com sua mãe, a mesma pareceu julgá-la dizendo: "a pessoa não pode se entregar!"

47
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

referindo-se a um possível estado depressivo da filha. Amanda afirma não conseguir conversar com
o pai, descreve os momentos que não consegue suportar e chora escondido pois "ele não gosta de
nos ver, a mim ou a minha mãe, chorando".

Amanda descreve dois momentos elucidativos de sua relação com o pai: num deles, enquanto
o pai explica alguma coisa, repete a toda hora "se não estiver entendendo me pergunta", mas quando
Amanda faz uma pergunta o pai fica nervoso e demonstra irritação. Preciso intervir para fazê-la
escutar que o pai ansiava pela dúvida, parecendo questionar o êxito de sua própria explicação.
Outro momento ocorre quando o pai quer brigar com a mãe de Amanda porque esta teria aparecido
"despenteada" num vídeo feito na rua, seu pai teria dito "Será que sua mãe não percebe que ela
aparecer assim afeta a família dela? Vão pensar que somos uns desmantelados!"

Em dada sessão, Amanda diz estar se sentindo muito triste e desanimada, principalmente com
a escola. Diz que costumava fazer logo as tarefas enviadas para casa, mas que hoje "se um professor
passa um trabalho pra daqui a três semanas eu deixo pra última hora". Revela que disse a seus pais
que por causa de seu time não havia ganhado nenhuma medalha na semana das olimpíadas
científicas da escola. Amanda diz: "mas é mentira, eu só fiz atividades individuais e perdi, não falei
porque tive vergonha deles me acharem incompetente!". Pergunto a Amanda se ela temia que se
fosse incompetente isso afetasse sua família, tal como seu pai supunha que a mãe aparecer
despenteada no vídeo significasse que eles são "uns desmantelados".

Amanda se lembra que no dia do aniversário do pai publicou um texto na rede social em que,
segundo ela, dizia "um monte de mentiras": que seu pai era maravilhoso, generoso, etc, Havia
acrescentado um longo parágrafo em que desabafava como se sentia em relação ao seu pai, mas o
apagara, mantendo um único eufemismo: dizia que seu pai tinha "um lado explosivo". Amanda
impressiona-se que, de todo o texto, seu pai tenha escolhido se fixar e repetir durante as brigas
seguintes: "eu nem posso reclamar, senão depois vão me chamar de explosivo". As observações que
Amanda traz de seu pai, nos faz levantar uma hipótese de certa fragilidade psíquica dele.

No olhar de Amanda, o que está em jogo é a sustentação imaginária do Pai e é porque esta
imagem vacila que sua própria sustentação como sujeito está em xeque. Como suas falhas abalam a
identificação na qual Amanda se sustenta, fica difícil confrontá-la. Só é possível chorar escondido,
talvez porque o choro seja mais uma denúncia insuportável da incompletude do pai.

Para Amanda, é extremamente penoso sustentar o pai em seu ideal. Enquanto tenta realizá-lo,
fracassa na escola e o resultado é desastroso para sua autoestima. Em sessão recente Amanda revela
que se olha no espelho e não gosta de nada do que vê, diz que passou dois dias se sentindo muito
48
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

bem, mas foi só seu pai a chamar de baleia, supostamente por brincadeira, que ela, em suas
palavras, "desmoronou". Pergunto-lhe o quanto considera seu pai como alicerce de sua autoestima,
e se vale a pena pagar todo o preço de autocomiseração para sustentar que seu pai está certo. Será
que ela se sente uma baleia, somente para que seu pai, ao chamá-la de baleia, esteja certo?

Amanda encontra-se no momento fundamental que descrevemos, em que é preciso prescindir


do pai idealizado, para poder erguer sobre algum referencial, suas próprias escolhas. Nos
perguntamos se é porque Amanda não pode contar com o pai que fica mais difícil separar-se dele e
refletimos se essa seria a via descrita por Lacan ao afirmar que para prescindir do pai é preciso antes
servir-se dele (Lacan, 2007).

Referências

Alberti, S. (2004). O adolescente e o Outro [eBook Kindle]. Coleção Psicanálise Passo-a-Passo.


Rio de Janeiro: Zahar.

Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo. São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original
publicada em 1914).

______ (2011). A dissolução do complexo de Édipo. São Paulo: Companhia das Letras. (Obra
originalmente publicada em 1924).

______ (2012). Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em
1913).

______ (2012b). "Sobre a psicologia do colegial" In Textos Breves. São Paulo: Companhia das
Letras. (Obra original publicada em 1914).

Lacan, J. (1999). O Seminário livro 5. As formações do inconsciente [1957-1958], Rio de Janeiro:


Zahar.

_______ (2007). O Seminário livro 23. O Sinthoma [1975-1976], Rio de Janeiro: Zahar.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A clínica com o sujeito adolescente: os desdobramentos das intervenções estéticas na


atualidade
Camila Cardozo
Sonia Alberti
Resumo
A partir da apresentação de um caso clínico acompanhado por nós no ambulatório do NESA
(Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente), o presente trabalho discute a concepção de corpo na
teoria psicanalítica. Consideramos as implicações do aumento de intervenções estéticas capazes de
modificar a estética do corpo na clínica com o sujeito adolescente.

Palavras-chave: Corpo; adolescência; estética.

Caso clínico

Uma jovem de dezesseis anos, que escolhemos chamar pelo nome de Manuela, iniciou o
atendimento com a saúde mental no ambulatório do NESA. A adolescente foi encaminhada pela
clínica médica ao Serviço de Psicanálise e Saúde Mental por apresentar baixa autoestima, o que a
deixava muito entristecida, apresentando recorrentes crises de choro, devido a uma insatisfação
constante com a imagem corporal.
Na primeira entrevista, Manuela veio acompanhada de sua mãe que afirmou não ter
problemas com a filha e informou que ela é dedicada nos estudos, tem muitos amigos e tem bom
relacionamento com a sua irmã mais nova de treze anos de idade. Falou também sobre a dificuldade
da adolescente de se achar muito feia e mesmo afirmando à filha que ela é bonita, Manuela continua
sofrendo devido a sua aparência. Manuela mora com a mãe e a irmã, com a qual divide o quarto. O
pai faleceu de infarto fulminante quando ela tinha cinco anos de idade.
Iniciaram-se as entrevistas preliminares com Manuela, nas quais sempre apontava que todas
as suas amigas se achavam feias, nenhuma delas estava satisfeita com a aparência física e que todas
gostariam de modificar alguma coisa no próprio corpo. Acredita que isso acontece devido à pressão
dos meios de comunicação da atualidade que ditam muitas normas de beleza. Fala do Instagram e
das incontáveis fotos de mulheres lindíssimas que diariamente ela acompanha. Entretanto, ao
descrever a imagem dessas mulheres, Manuela, praticamente, descreve a si mesma. Muitas das


Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ. (2017)

Professora Associada e Procientista do Instituto de Psicologia da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Doutora pela
Universidade de Paris X-Nanterre e Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob supervisão do Professor João Ferreira.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

características físicas às quais ela atribui beleza, são muito semelhantes às características da própria
paciente.
Na cadência de sua fala, Manuela começa a indicar algo particular em sua história, pois
dentre as amigas ela era a única que passava horas em frente ao espelho, o que a levava a crises de
choro por se achar tão feia. Considerava que sua falta de beleza era o motivo de nunca ter
namorado, mas ao mesmo tempo contava de vários rapazes com os quais mantinha relacionamentos
curtos até terminarem de maneira repentina. Começou a se interrogar sobre esses términos e pelas
razões de sempre se cansar e enjoar dos rapazes com os quais se relacionava. Nesse período,
começou a sair com um rapaz, que optamos por nomear de Felipe, e que foi tomando cada vez mais
espaço em seu discurso. Saíam juntos para cinema, festas e casa de amigos, mas Manuela sempre
trazia o medo de perder o desejo de estar com Felipe. Além disso, preferia que o encontro deles
continuasse como estava, sem darem um nome à relação que mantinham, pois se assustava em ter
que assumir um namoro.
Em algumas sessões, a jovem se emocionava ao lembrar de seu pai, dizia que sentia muita
falta dele e que os dois eram muito próximos e fisicamente muito parecidos, assim como a irmã é
parecida com a mãe. Aos poucos, contando e recontando suas lembranças com o pai, Manuela
rememorou o dia da morte dele: toda a família estava reunida e de maneira muito inesperada o pai
faleceu, de enfarto. Pôde falar sobre a história dos pais ao relatar que quando eles se conheceram,
seu pai era viciado em cocaína e sua mãe, que devia ser muito apaixonada por ele, o ajudou no
tratamento. Segundo Manuela, o vício de seu pai no consumo de cocaína voltou a atormentá-lo
mesmo depois de sua morte. Ao ir com a mãe em uma casa de Umbanda, ela descobre que seu pai
não conseguiu se desprender da vida na Terra, seu espírito continuava preso e, de alguma maneira,
obsediando a família. O Preto Velho lhe explicou que isso ocorre com pessoas que tiveram um vício
terreno muito forte como seu pai, mas que era possível ajudar para que ele encontrasse seu caminho.
Ao assumir essa responsabilidade frente “a cura do espírito do pai”, Manuela pôde, de alguma
forma, se apropriar dessa história e encontrar um lugar para si nesse enredo.
Construir essa narrativa, parece ter possibilitado à Manuela abrir outras falas em seus
atendimentos. Nesse momento, ela disse que, por sentir vergonha, não relatara algo que há muito
tempo gostaria de ter contado: que a parte mais feia do seu corpo são seus pequenos lábios, pois
eles são enormes e o que ela mais deseja é uma operação que possa corrigir isso. Ao mesmo tempo,
sente receio de que a cirurgia piore a aparência de sua vulva e que fique torta. Faz várias pesquisas
na internet sobre a cirurgia e sobre a estética dos pequenos lábios e quer que os seus fiquem
pequenos como os que ela viu. Contou que quando era menor, sua mãe a chamava de
“hermafrodita” e isso a incomodava, mas recentemente o incômodo se tornou maior, pois ainda é
51
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

virgem e quer operar antes de ter sua primeira relação sexual. Conta que finalmente sua mãe
concordou em marcar o médico para ela e em breve teria sua primeira consulta com um cirurgião
plástico.
Enquanto isso, Manuela e Felipe ficaram cada vez mais próximos e chegou o antes tão
temido pedido de namoro à jovem, o qual ela aceitou. Finalmente, Manuela conseguiu ir à consulta
com o cirurgião plástico e me contou brevemente que o médico disse que ela poderia operar e que
seria uma cirurgia simples. Manuela não queria se estender nesse assunto, pois sua preocupação era
a primeira visita do namorado à sua casa e posteriormente a visita que faria à casa do namorado.
Dizia estar nervosa, pois não sabia como seriam essas apresentações, e nem como seria dormir na
casa de Felipe, transar com ele, como seria sua primeira vez. Todos esses encontros estariam
deixando ela muito mais nervosa do que a consulta ou a possibilidade da cirurgia de correção dos
pequenos lábios.
Nesse mesmo período, Manuela começou a se queixar do cansaço que estava sentindo.
Associava seu estado à quantidade de atividades escolares e também aos seus compromissos
extracurriculares e dizia que o excesso de obrigações estavam atrapalhando seu rendimento no
colégio. Ao ser questionada sobre a fadiga que a impedia de prestar atenção nas aulas, Manuela
respondeu que, na maioria das vezes, fica “viajando”, pensando em outras coisas durante as aulas,
mas que não sabe dizer que coisas são essas. Aos poucos, consegue colocar que passa muito tempo
pensando sobre o que poderia fazer para se sentir mais bonita e que algumas dessas medidas já
estavam sendo providenciadas, a escova progressiva que fazia nos cabelos, os treinos na academia e
a cirurgia de redução dos pequenos lábios. Mas ainda assim, continuava imaginando outras várias
intervenções que faria, como a cirurgia estética no nariz, a cirurgia de implante de próteses nos
seios e a de redução de abdômen. Manuela, então, percebe que é sobre isso que pensa quando está
em suas aulas.
São muitas as queixas de Manuela no que concerne à sua imagem corporal. Como podemos
analisar essas queixas à luz da psicanálise, considerando todo o trabalho psíquico que é exigido na
adolescência? A indicação médica para a cirurgia estética nos pequenos lábios parece endossar a
demanda de Manuela pela operação. Contudo, em suas falas, a vontade de realizar essa cirurgia
parece estar equiparada à ânsia em fazer outras tantas intervenções estéticas. De que maneira, então,
podemos entender a formação da imagem corporal e seus desdobramentos na história do sujeito
adolescente? Veremos a seguir.
O corpo na teoria freudiana
Ao postular os conceitos de pulsão, Freud inicia uma revolução na concepção de corpo.
Inicialmente, essa concepção é marcada pela ruptura metodológica com a noção de corpo
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

predominante até então, proposta pelas ciências biológicas no final do século XIX. Freud amplia
esse conceito para além de sua dimensão biológica, ao introduzir aí o registro simbólico,
considerando, portanto, a imagem corporal e a fantasia que cada um constrói de si mesmo.
No artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1969a), Freud indica que a
etiologia da sexualidade está no encontro do bebê com o outro, como objeto parcial, mais
especificamente no encontro com o seio materno. Apoiando-se na necessidade de nutrição, o sugar
do seio materno promove a operação de desvio de um funcionamento ancorado na estrita
necessidade para a sexualidade autoerótica, que se torna, por sua vez, independente da função
orgânica.
Em 1914, em “Sobre o Narcisismo: uma introdução”, Freud desenvolve a ideia de integração e
unificação psíquica do corpo, por meio do processo de constituição egoica. A partir do
direcionamento das pulsões parciais autoeróticas para o eu, o corpo inteiro torna-se erogeneizado. A
convergência das pulsões parciais possibilita a ideia de um corpo unificado. A elaboração do
processo de constituição narcísica ratifica a importância da relação com o outro, sendo a partir do
investimento parental sobre a criança que esta poderá se constituir como sujeito singular e
diferenciado.
Em 1923, em O ego e o Id, ao retomar a discussão sobre a constituição do eu, Freud assinala
que “o próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde
podem originar-se sensações tanto externas quanto internas” (p.39). O corpo detecta as sensações
através da função perceptiva, que é o elemento-chave que permite a vinculação entre corpo e eu à
medida que o último se constitui a partir da detecção de sensações que provêm do corpo. Neste
sentido, o eu seria antes de tudo um eu corporal.
Corpo e linguagem
Em 1949, ao lecionar sobre a concepção do estádio do espelho e seus desdobramentos sobre
a formação do eu, Lacan parte de experiências da psicologia comparada. O autor relata a cena de
bebês que, por volta dos seis meses de idade, diante do espelho, superam todos os entraves motores
e conseguem se sustentar numa posição de modo a verem sua própria imagem refletida. Ao ver-se
refletido na sua imagem que se cria no olhar do outro que com ele olha o espelho que a mostra, o
sujeito assume aquela imagem. O estádio de espelho é, portanto, uma identificação à imagem
especular.
Em “O mito individual do neurótico” (1953/1980), ao discorrer sobre a experiência do
desenvolvimento imaginário do ser humano, Lacan estabelece a relação narcísica como função
decisiva na constituição do sujeito. Segundo o autor:

53
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Que é o eu, senão algo que o sujeito experimenta como estranho no interior de si próprio? É
em primeiro lugar num outro, mais avançado, mais perfeito que ele que o sujeito se vê. Em
particular, ele vê a sua própria imagem no espelho numa época em que é capaz de a aperceber
como um todo, ao passo que ele próprio não se sente como tal, pelo contrário, vive no caos
originário (...). O sujeito tem sempre uma relação antecipada com a sua própria realização,
que o reenvia a si-mesmo a um plano de profunda insuficiência, e testemunha nele uma fenda,
uma dilaceração originária, um abandono (p.75).
A função do estádio do espelho, como elaborado por Lacan (1949/1998), é estabelecer uma
relação entre o organismo e a realidade que o circunda. A unificação da imagem do corpo e a
introdução do sujeito na linguagem o retira de qualquer caminho natural. Assim, intermediado pela
cultura e pela linguagem, ao homem não cabe o determinismo biológico como aos seres de outras
espécies. Sendo o corpo constituído pela linguagem, não há maturação biológica no sujeito que se
dê, exclusivamente, pela via da natureza. Sobre essa diferença radical que se coloca para a espécie
humana, em função da relação com o Outro, Alberti (2004) pontua:
O corpo, primeiro eu, passa de eu real – o feto, o corpo biológico, mas também o corpo
fadado desde sempre ao retorno ao inorgânico e, portanto, o corpo em função da relação com
o Outro que nele provoca as pulsões de vida. Já não instintos, como nos outros animais, mas
pulsões, em função do fato de esse animal ser um ser falante – isso é característico de sua
espécie e muda quase tudo (p. 42).

Adolescência e psicanálise

Em psicanálise, a inserção do sujeito no campo da cultura e da linguagem é ordenada pelo


complexo de Édipo que aponta para a triangulação estrutural ainda nos primeiros anos de vida.
Inicialmente a criança localizada no desejo da mãe vive suas primeiras experiências no mundo
externo. Apenas posteriormente, quando passa a perceber a ausência da mãe em determinados
momentos, a criança reconhece a presença do pai como um terceiro (Alberti, 2009). A saída do
complexo de Édipo leva a sujeito a desinvestir dos objetos parentais e substituí-los por
identificações edípicas. A entrada na adolescência promove um afrouxamento nesses modelos
identificatórios, o que permite a esse sujeito buscar outros modelos para além do seio familiar.
No artigo intitulado “Romances Familiares” (1908/1969b), Freud analisou o trabalho a ser
realizado durante o período pubertário e apontou que ao crescer o sujeito deve se separar da
autoridade dos pais, “o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados
do curso do seu desenvolvimento” (p.219). A tarefa de separar-se dos pais, para Freud, implica um

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

longo e árduo trabalho que se inicia com uma atitude crítica para com os pais e a identificação à
outros objetos.
As fantasias que foram interrompidas no período da latência ressurgem na adolescência.
Alberti (2009) ao instituir o sintagma ‘sujeito adolescente’, procura mostrar que o adolescente é um
sujeito que se depara com a ocorrência do real do sexo e da responsabilidade do ato. O sujeito
adolescente é, portanto, aquele que se depara com o real do sexo, com aquilo que foge a qualquer
possibilidade de inscrição. Real que, muitas vezes, se impõe de maneira avassaladora por meio do
encontro com o Real do corpo.
Se por um lado o corpo é linguagem, ou seja, marcado, erogeneizado pelo Outro que
transmite essa linguagem, por outro lado, as metamorfoses da puberdade levam o sujeito a se
deparar com o aumento do afluxo hormonal e as transformações visíveis sofridas no corpo, ainda
que o real em jogo na adolescência não se reduza ao encontro com real do biológico (Silva, 2017).
Nos dias atuais, observamos a imagem de corpos juvenis serem exaustivamente exploradas e
veiculadas nas diversas mídias sociais. Sendo o corpo sempre habitado pelo sujeito do inconsciente,
somos levados a refletir sobre os impactos de tamanha exposição tanto na produção psíquica de
cada sujeito como nas normas sociais e culturais.
Corpo e estética no século XXI
Deparamo-nos então com um número cada vez maior de procedimentos capazes de
modificar a estética corporal, são vastas as intervenções médicas que prometem o alcance de um
determinado ideal estético – como, lipoaspirações, mamoplastias, rinoplastias, dentre tantas outras.
Uma simples pesquisa em um buscador na web, revela-nos a imensidão de casos em que as
intervenções estéticas no corpo são levadas ao limite. Como o rapaz que após realizar sua 50ª
cirurgia plástica para se tornar um Ken humano não consegue mais respirar pelo nariz, devido ao
grande número de rinoplastias às quais se submeteu. Ou a mulher norte-americana que relata ter
gasto mais de 2 milhões de dólares na tentativa de se transformar numa cópia em tamanho real da
boneca Barbie. E ainda, mais recentemente, o caso da jovem que após realizar uma labioplastia,
confeccionou um pingente com o material retirado de seu corpo e que ostenta em seu pescoço como
uma nova fase em sua vida.
Miranda (2015), ao analisar as possibilidades de intervenções no corpo propiciadas pelo
avanço das técnicas médicas e científicas, aponta a crueldade do discurso capitalista em prometer
um ideal de corpo impossível de ser alcançado. Nas palavras da autora:
as cirurgias plásticas, tão bem-vindas quando se trata de reparação e até mesmo de estética,
ultrapassam seus limites realizando – já que a oferta cria a demanda – um rejuvenescimento
sem fim, propondo a eternização da bela forma. Atualmente, até a genitália feminina é alvo de
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

intervenções estéticas, pois é possível sempre e sempre deixá-la com mais turgor e mais...não
se sabe o quê (Miranda, 2015, p. 93).
Dessa maneira, o caso de Manuela, leva-nos a refletir sobre a função da cirurgia de redução
nos pequenos lábios e das diversas outras intervenções que a adolescente deseja realizar. Seria
possível articularmos as reiteradas tentativas de correção da imagem corporal, ao plano de profunda
insuficiência da realização da imagem do corpo enunciado por Lacan? As demandas de diversas
intervenções estéticas no corpo pela adolescente seriam uma tentativa de tamponar os furos que
insistem em se desvelar?
Questões que permanecem em aberto, pois ultrapassam os contornos do presente trabalho,
necessitando de maior investigação futura. Por ora, assinalaremos dois breves apontamentos sobre
tal temática. Alberti (2004) observa que o corpo que faz furo no simbólico e que, muitas vezes,
parece deixar a céu aberto um Real impossível de se inscrever, não é a imagem do corpo, aquela
que se identifica no registro do imaginário, mas sim o corpo como superfície e projeção de
superfície, do modo como Freud o conceituou em 1923. É, justamente, a esse real que se
presentifica no corpo que Miranda (2015) parece fazer referência ao analisar o discurso do
capitalismo, regido pelo imperativo “do tudo pode”, que não promove barra ao gozo desenfreado e
oferta cada vez mais objetos no mercado de consumo, como as cirurgias plásticas que são
consumidas e consomem os sujeitos, na tentativa de tamponar o furo impossível de ser preenchido,
ou melhor, esse real impossível de se inscrever. Como avançar no questionamento, a partir do
acompanhamento de Manuela? Nosso trabalho continua...

Referências
Alberti, S. (2009). Esse sujeito adolescente. (3 ª ed.). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.
_______ (2004). O corpo, uma superfície. In: Alberi, S. & Carneiro Ribeiro, M.A. (Orgs) Retorno
do exílio: o corpo entre a psicanálise e a ciência. (pp. 37-46). Rio de Janeiro: Contra Capa.
Freud, S. (1969a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Freud, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Rio de Janeiro: Imago.
(Obra original publicada em 1905)
_______ (1969b). Romances familiares. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1909 (1908).
_______ (1969c). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVI). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1914)
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

_______ (1969d). O ego e o id. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em
1923)
Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Lacan, J. Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar. (Obra original publicada em 1949)
_______ (1980). O mito individual do neurótico. Lisboa: Assirio e Alvim. (Obra original publicada
em 1953)
Miranda, E. (2015). Transexualidade e Sexuação. Stylus: revista de psicanálise, no. 30, pp. 91-99
Silva, H. (2017). Uma abordagem psicanalítica das questões da sexualidade na atual clínica com
adolescentes. Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.

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Quando as coisas não vão bem: O trabalho do psicólogo diante do irrefutável da morte

Liana Ling Gonçalves Setianto*


Narcisa Silveira de Paula Fonseca**
Alessandro Magalhães Gemino***
Cristiane Esch****
Resumo

Este trabalho tem como objetivo compartilhar nossas experiências como residentes de Psicologia
Clínico-Institucional dentro do Serviço de Cirurgia Cardíaca do Hospital Universitário Pedro
Ernesto (HUPE). Apresentaremos nossa atuação no setor diante do manejo de casos graves junto ao
paciente, seus familiares e equipe multidisciplinar de cuidado, visto que esta sofre e se angustia
frente à impossibilidade da medicina e ao encontro com o irrefutável da morte. Ressaltamos a
importância de espaços de diálogo, como a reunião multidisciplinar, para que o saber circule e os
profissionais possam compartilhar as condutas. Desse modo, exaltamos a importância do trabalho
multiprofissional integrado para que o paciente seja assistido em diversas dimensões do cuidado.

Palavras-chave: Psicologia; psicanálise; morte; cirurgia cardíaca.

Introdução

O presente trabalho visa expor e discutir nossa experiência enquanto residentes de


psicologia inseridas no setor de cirurgia cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Uma vez
que esse setor se destina, prioritariamente, a pacientes pré e pós-operatórios de cirurgia cardíaca,
recebemos internações breves, porém cheias de expectativa por parte do paciente e de seus
familiares. Nesse sentido, frente às diversas angústias que a internação pode suscitar, nossa atuação
tem como direção o acompanhamento dos pacientes internados, de seus familiares e o da equipe
multiprofissional que atua nos cuidados desses pacientes.

Antes da internação para realização da cirurgia, os pacientes encaminhados ao setor passam


por consultas ambulatoriais com os médicos, no caso cirurgiões cardíacos, que avaliam os exames
solicitados e comunicam ao paciente a necessidade cirúrgica. A forma como se dá o primeiro
*
Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
**
Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
***
Professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Preceptor interino no
serviço de Cirurgia Cardíaca do HUPE pelo Programa de Residência em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ -
Modalidade Residência Hospitalar (2017).
****
Psicóloga. Preceptora no serviço de Cirurgia Cardíaca do HUPE pelo Programa de Residência em Psicologia
Clínica Institucional do IP/UERJ - Modalidade Residência Hospitalar (2017).
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

atendimento é determinante para o estabelecimento de um bom vínculo com o médico cirurgião e


com o setor. Além disso, a construção da relação médico-paciente é atravessada pelas experiências
prévias de hospitalização, qualidade do encaminhamento para o serviço e expectativas que o
paciente criou em relação à instituição (ou internação) (Barrozo, 2010). Essas expectativas estão
presentes de forma ainda mais intensa em pacientes que, por conta do Sistema Público de Saúde,
aguardaram a cirurgia por longos períodos de tempo, podendo exceder anos de espera. Esses
pacientes, muitas vezes, chegam ao serviço com pouquíssima qualidade de vida.

Quando o sujeito é defrontado com a necessidade da cirurgia cardíaca é lançado a esse


estado inicial de desamparo, suscitando inúmeras reações e revelando a precariedade da condição
humana, como assinala Moura (2000). Esse momento marca uma descontinuidade com a vida e o
encontro com o inesperado da morte, já que, ainda que apresente riscos, a cirurgia se mostra como
única alternativa para que o sujeito se mantenha vivo. Frente a situações limites de tragédias e
doença, o sujeito é tomado pela angústia de que nada pode garantir a cura.

A insegurança e o grau de ansiedade causados pelo medo da morte e a expectativa de


sofrimento podem levar o paciente a uma regressão emocional que aponta para a necessidade de
cuidado. Assim, muitas vezes, o adoecimento coloca o paciente num lugar de dependência total do
médico, tal como um bebê que depende de seus pais. Se por um lado esse sentimento de desamparo
causa desconfiança frente à capacidade do médico, por outro aparece a necessidade de colocar o
cirurgião num lugar de onipotência, como competente para evitar o sofrimento e a morte.

O médico, por sua vez, frente à necessidade de tomar decisões de grande responsabilidade,
acaba por desenvolver durante a formação médica uma autoridade e confiança necessárias para a
resolução de problemas. A fragilidade do paciente, nessa dinâmica, passa a ser um estímulo para o
médico assumir o lugar daquele que pode curar, resvalando para o risco de acreditar que tudo pode,
inclusive, impedir o inevitável da morte. Portanto, durante a consulta, o médico precisa ser capaz de
passar credibilidade e confiança, mas sem hipertrofiar sua imagem, sendo cuidadoso em buscar o
equilíbrio em expor razões e benefícios da intervenção proposta, assim como os riscos e
inconveniências nela embutidos (Barrozo, 2010). É fundamental um ambiente que permita ao
paciente expor seus questionamentos e ter seu tempo respeitado, a fim de elaborar a decisão que
deseja tomar.

Desenvolvimento

De acordo com o que foi apresentado até aqui podemos concluir que se por um lado o
paciente é tomado por intensa angústia e sentimento de desamparo diante da necessidade da

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

intervenção cirúrgica, o médico cirurgião se defronta com os mesmos sentimentos, principalmente


quando as coisas não vão bem e o saber médico encontra barreiras frente ao irrefutável da morte.

À medida que a psicologia foi ganhando espaço no setor, foi possível implementar uma
reunião multidisciplinar a fim de discutir os casos e fazer circular as informações sobre os pacientes
dentre as diferentes especialidades. Tendo como referência os Grupos Balint (Brandt, 2009), a
discussão de caso foi proposta, baseada na associação livre e sem temática preestabelecida. Com
esse formato, pretendíamos abrir espaço para reflexões, sentimentos e reações que surgissem dos
profissionais frente ao difícil trabalho que realizam e não só focar no conteúdo objetivo relativo à
conduta frente aos pacientes.

A seguir apresentaremos dois casos clínicos, de Inês e Rosa, ambos nomes fictícios,
acompanhados pela psicologia no setor de cirurgia cardíaca. Pretendemos, por meio deles, ilustrar
nossa atuação no setor diante de diferentes intercorrências, junto ao paciente, sua família e equipe.

Inês era uma mulher jovem, em torno dos quarenta e cinco anos, ativa, casada e mãe de três
filhos. Possuía doença coronariana, mas sua condição clínica não tinha grande impacto em sua
autonomia ou qualidade de vida. Foi admitida no Centro de Terapia Intensiva (CTI) cardíaco para o
pré-operatório sentindo-se bem, assintomática e ansiosa para realizar a cirurgia pela qual já
esperava há muitos anos. No período breve que se antecedeu à cirurgia, foi atendida pela equipe da
psicologia sem apresentar maiores demandas. Contou-nos sobre sua longa espera por essa
oportunidade e se mostrava tranquila frente ao procedimento cirúrgico.

No dia seguinte da cirurgia de Inês a equipe estava muito abalada. A cirurgia que, segundo
os médicos cirurgiões, a princípio consistiria em uma operação simples e pouco invasiva, acabou
transcorrendo com complicações e Inês perdeu muito sangue, comprometendo em muito o seu
prognóstico pós-cirúrgico. Retornou ao CTI depois de muitas horas de cirurgia e necessitou de novo
procedimento pela equipe vascular. A equipe do CTI cardíaco, como um todo, estava muito
chocada e angustiada com a gravidade que tomou o caso e pela possibilidade de morte da paciente.
A fala de alguns profissionais trazia significantes como “desgraça” e “tragédia”, outros falavam
sobre como a paciente era jovem e saudável dentro do possível, se perguntando como ficaria sua
família e seus filhos.

De nossa parte, colocamo-nos à disposição dos médicos para uma abordagem à família, no
horário de visita. O médico explicou a situação grave em que se encontrava Inês aos familiares.
Estava sedada e necessitando de muitas drogas para manter os sinais vitais estáveis. A preocupação
maior era acerca de quanto o sangramento poderia ter afetado sua atividade cerebral, e obter tal

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

informação dependia de Inês ser capaz de acordar novamente. Era o nosso primeiro contato com a
família, que se encontrava muito confusa e surpresa com o quadro apresentado. Procuramos acolher
a angústia de cada membro da família que se deparava com a notícia de seu próprio modo e
possibilidade de significar aquela experiência.

Nos dias que se seguiram, Inês permaneceu desacordada, mesmo sem o uso de sedativos e a
equipe começou a pensar no diagnóstico de morte cerebral. A família seguiu comparecendo às
visitas no CTI cardíaco, onde, a cada vez, era informada sobre a gravidade de seu estado de saúde.
Inês acabou indo a óbito em um dia em que ninguém da equipe cirúrgica estava presente no setor. A
notícia foi dada, no corredor do andar, por um médico plantonista que pouco tinha acompanhado o
caso, em companhia da psicóloga que estava acompanhando mais de perto a família. Na sequência
da notícia da morte de Inês, a psicóloga pôde ouvir o companheiro de uma de suas filhas, que muito
abalado, procurava sustentar a angústia de sua namorada e dos demais. Falou um pouco sobre o
papel que Inês ocupava na família, dizendo que estavam todos “devastados” (SIC), e que não sabia
como seria dali para frente. Agradeceu muito o atendimento da psicologia. Infelizmente não foi
possível estar com o restante da família nesse momento.

Na mesma semana soubemos por um médico que a família pensava em processar a equipe.
Ficou claro para a psicologia como havia faltado uma abordagem mais cuidadosa com a família
nesse caso. Foi colocado, então, no espaço de reunião multidisciplinar, a necessidade da
comunicação de notícias difíceis como essa serem feitas em local fechado (uma sala) que possa
servir de continente físico e psíquico para a família lidar com tamanho sofrimento. Falamos sobre
como pode ser importante a presença de um médico que acompanhou a família desde o início e que
possa ser visto como uma referência capaz de esclarecer suas dúvidas e fantasias em relação ao
ocorrido com seu ente querido.

Entendemos que nesse caso, tal postura talvez não tenha sido possível pela tamanha angústia
que suscitou também na equipe cirúrgica. Um médico que participou da cirurgia pôde falar
abertamente sobre como era difícil estar na posição de cirurgião cardíaco, quando fatalidades como
essa aconteciam. Ainda que seja um risco inerente à prática cirúrgica, o significante “culpa” aparece
em seu discurso sem possibilidade de ser relativizado. Nesse sentido, cabe ao psicólogo acolher
tanto a família, quanto a equipe.

Sua atuação tem, na contratransferência, uma ferramenta capaz de apontar alguns dos
sentimentos que atravessam a condução do caso e que podem ser trabalhados no a posteriori. O
acompanhamento desse caso pela psicóloga, no que teve de inesperado e fatal, acabou por suscitar

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

sentimentos de desamparo, impotência e inconformismo, que muito dizem da experiência da família


e da equipe.

Nas reuniões multiprofissionais seguintes, alguns temas puderam ser elaborados pela equipe
médica. Notamos, a partir das falas dos cirurgiões, como era presente a angústia frente à
responsabilidade de “ter uma vida nas mãos” (SIC). Eles diziam lembrar apenas dos nomes
daqueles que faleceram na mesa de cirurgia, sentindo-se responsáveis por escolher o dia da morte
desses pacientes. Relataram dificuldade de conversar com o paciente grave, e o consequente
afastamento desse tipo de paciente, pelo medo de se envolverem emocionalmente, evidenciando
claramente uma atitude defensiva.

Foi discutido em reunião como era difícil para os cirurgiões considerarem que os pacientes,
ao operar, realizam uma escolha. Em suas falas pareciam entender a opção pela cirurgia como
decisão unilateral, tomada pelo corpo médico, em que o paciente não tinha implicação, tornando
deles próprios a responsabilidade integral sobre o evento. Nesse sentido, trabalhamos a ideia de que
o médico indicava a cirurgia, mas ao paciente cabia escolher se tinha o desejo de fazê-la, uma vez
que entendia os riscos envolvidos e tinha tempo de elaborar a decisão.

Nessa mesma reunião, mencionaram um caso que gerava muita angústia por se tratar de uma
paciente com grande risco de morte. Rosa possuía cardiopatia grave e já havia passado por três
cirurgias cardíacas em diferentes hospitais. Apesar do sucesso temporário das cirurgias prévias,
continuava apresentando sintomas e se mostrava necessária nova abordagem cirúrgica para a
implantação de uma válvula especial. Ela já havia aceitado fazer o procedimento e aguardava na
enfermaria. A equipe de psicologia questionou se a paciente e seus familiares haviam entendido os
altos riscos dessa nova intervenção cirúrgica e acabou por se propor uma nova consulta com a
paciente e seus familiares, a fim de melhor esclarecê-los.

Os familiares de Rosa foram convidados para uma conversa junto com uma psicóloga e um
cirurgião. Foram expostos os riscos e possibilidades para o caso: apesar de muito risco a cirurgia se
mostrava como a única aposta possível, o outro caminho era conviver com a doença por um tempo
também incerto. Enquanto equipe, colocamos para Rosa que ela e sua família poderiam ter tempo
para pensar juntos e elaborar a decisão.

Depois da conversa com os familiares, Rosa pôde escolher operar. Tinham muita fé de que
tudo daria certo e ela afirmava que “a vontade de Deus seria feita” (SIC). Dizia que do jeito que sua
vida estava não poderia permanecer, os sintomas a impediam de viver e precisava fazer alguma
coisa. Estava em paz com sua decisão. Rosa esperou por dois meses na enfermaria até a válvula

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

chegar ao hospital. Durante esse período seguiu sendo atendida pela psicologia. Sempre muito
convicta de que estava no caminho certo, seu único pedido, no dia da cirurgia, foi que
amparássemos seu filho.

No dia da cirurgia, foram muitas horas de procedimento. Rosa sobreviveu e mesmo muito
debilitada conseguiu abrir os olhos e ver sua família. Nos dias que se seguiram, seu quadro se
agravou de forma drástica e foi necessário passar por mais duas intervenções cirúrgicas. Sua família
continuava tendo fé de que depois do coma ela iria acordar, como já havia ocorrido em cirurgias
anteriores. Seguimos acolhendo seu desamparo de talvez não terem feito a “escolha correta” (SIC) e
ao mesmo tempo compreendendo o mecanismo de negação diante da real possibilidade de morte.
Em reunião multiprofissional, a equipe se mostrava angustiada e os cirurgiões comentavam como se
sentiam responsáveis pelo que estava por vir. Ao falar sobre a condição da paciente, não
conseguiam mencionar a palavra “morte”.

Quando o caso se aproximou dos limites médicos, entramos em contato com a família
explicando que talvez fosse importante uma visita, mencionamos que a equipe estava muito
preocupada. A família buscava explicações para o que estava acontecendo, se questionava se havia
sido erro médico. Era difícil conceber que a morte se apresentava como real possibilidade depois de
tanta espera e tanto investimento.

Rosa foi a óbito, se foi. A família foi chamada para receber a notícia, e a psicóloga e o
médico cirurgião que mais estiveram à frente do caso conversaram com eles com calma e em um
espaço privado. Foi possível fazer uma retrospectiva do caso de Rosa desde que optaram pela
cirurgia até o seu desfecho, e abrir espaço para a família falar sobre suas impressões e expor seus
pensamentos.

Considerações finais

Embora com características e contextos diferentes, em ambos os casos apresentados, houve


a dificuldade de lidar com os limites da profissão médica e da própria vida, com seus
desdobramentos. Observamos a importância de um espaço de discussão, como o da reunião
multiprofissional, para a elaboração de alguns temas fundamentais que atravessam a prática médica
e a qualidade do atendimento. Enquanto para a equipe cirúrgica esses casos são de derrota, para a
psicologia resta a questão de como poder enfrentar esses eventos de modo a prestar toda assistência
necessária para uma morte digna de seu paciente e para o acolhimento da família frente a algo
impossível de simbolizar. Pensamos que, enquanto psicólogos, procuramos sustentar a posição de
sujeito de pacientes, família e equipe diante do irrefutável da morte.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Referências

Bradt, J. (2009). Grupo Balint: Aspectos que marcam sua especificidade. In Vínculo, Revista do
NESME 6(2) (pp. 199-208). São Paulo: Editora da Revista Beatriz Silvério Fernandes.

Barrozo, F. (2010). O paciente e seu cirurgião. In Filho, J. & Burd, M. Psicossomática Hoje. (2. Ed,
pp. 350-355). Porto Alegre: Artmed.

Contel, B. (1997). Trabalhando com grupos no hospital geral: teoria e prática. In Fortes, S.
Cadernos IPUB: Saúde Mental no Hospital Geral. (pp. 205-220). Rio de Janeiro: Editora do
Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

Ismael, S. (2004). A família do paciente em UTI. In Filho, J. & Burd, M. Doença e Família. (1ª Ed,
pp. 251-257). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Moura, M. (1996). Psicanálise e Hospital. Rio de Janeiro: Revinter.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

O trabalho clínico como resistência

Clareana Velasco Silva de Paula*


Ester Susan Guggenhein**
Resumo
O presente texto pretende apresentar o trabalho clínico na enfermaria de gestantes de alto risco no
Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Tal atividade é permeada por diversos fatores
próprios da instituição hospitalar e da especificidade da condição de saúde física e psicológica
dessas gestantes e puérperas. Também nos propusemos a trazer o conceito de resistência para a
psicanálise e mostrar como vem sendo possível sustentar o trabalho nesse período de grave crise
financeira ao qual o Estado do Rio de Janeiro e a instituição enfrentam.
Palavras-chave: Gestação; instituição; clínica; resistência.

Introdução
Os atendimentos da residência de psicologia no núcleo perinatal incluem a escuta no
ambulatório pré-natal, na enfermaria de gestantes e puérperas, na unidade de terapia intensiva
específica da obstetrícia (UCE) e em alguns casos, na unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal.
O HUPE é referência no estado do Rio de Janeiro em tratar e acompanhar gestantes de alto risco,
recebendo com frequência mulheres de vários municípios vizinhos.
A gravidez é um período de intensas transformações na vida da mulher. Essa experiência,
não raramente é marcada por um conjunto de sentimentos e sensações inéditas, mesmo se não for
primípara, pois cada gestação é única. Há uma modificação na identidade e uma redefinição de
papéis. Todo o seu corpo se encarrega não só em viver para si como para cuidar da vida em
desenvolvimento intrauterino. São comuns sentimentos de ansiedade, ambivalência, insegurança,
medos e fantasias a respeito de si, do bebê, da hora do parto e do pós parto.
A mulher ao se ver grávida, tem algo da sua história e da relação com o Outro reatualizado
de forma mais acentuada. Podemos também encontrar mulheres, onde para elas a gestação funciona
como um sintoma e para outras onde a doença de base e o alto risco podem levá-las a um estado de
desamparo.
Quando se fala em gestação de alto risco entende-se que a mulher deverá ter um maior
cuidado em seu pré natal pois alguma patologia prévia ou atualmente instalada pode colocar em

*
Psicóloga. Residente do segundo ano do Programa de Residência em Psicologia Clínica Institucional do IP/UERJ -
Modalidade Residência Hospitalar (2017).
**
Preceptora do programa especializado no Núcleo Perinatal.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

risco a vida dessa mulher ou do bebê. Dentre algumas dessas doenças podemos citar: hipertensão
arterial, lúpus, diabetes, doenças colagenosas, doenças sexualmente transmissíveis, etc.
Pela gravidez ser uma condição particular e única das mulheres, nesse estágio, questões
como: o tornar-se mulher, a função materna, a relação com sua própria mãe, o lugar do pai e dos
homens em seu imaginário, a castração, as fantasias de completude, o bebê ideal X bebê real, dentre
outros, podem advir e provocar angústia. Nossa escuta clínica se endereça em ouvir o sujeito do
inconsciente no ambiente hospitalar, diante do corpo e sintoma orgânico que são favorecidos pelo
discurso médico.
Pensando assim, qual o lugar do psicólogo/psicanalista na instituição hospitalar?

Desenvolvimento
Podemos esperar uma interseção de discursos provenientes da equipe multidisciplinar, cada
uma pautada em sua própria ética. No entanto, constata-se que o discurso privilegiado é o da
medicina, que indica para a remissão dos sintomas físicos trabalhando no corpo e na doença. Em
situações específicas da nossa clínica com gestantes e puérperas, que citamos acima, a paciente
sofre de angústia, nos apontando um risco psíquico. Moura (1996) nos faz pensar sobre esse risco
psíquico mencionando: “diante da urgência orgânica surge também a urgência psíquica, nesse
contexto que o trabalho do analista será situado (...) no hospital geral nossos pacientes não
vivenciam um processo analítico clássico mas sabemos dos efeitos que a escuta analítica pode
produzir em momentos de urgência.” (p. 103).
Assim, quando a equipe nos solicita, é a fim de que possamos levar essa mulher a falar do
que a perturba, contudo oferecemos um espaço de escuta diferenciado para o seu sofrimento. Pois
nosso manejo vai no sentido de que ela própria encontre uma construção significante que possa
inferir sentido a esse momento de internação, adoecimento e tantos atravessamentos, produzindo
associações que a autorizem a caminhar rumo a esta nova condição. Há então uma mudança no
estatuto desse apelo, que inicialmente veio por parte da equipe. Cabe a nós, apostar sempre no
sujeito para que algo do desejo dessas pacientes possa emergir. É possível à psicanálise atuar na
evolução de uma assistência em equipe ao ponto em que ela sustenta a sua ética própria, a ética do
sujeito do desejo e edifica um espaço para a singularidade e diferença.
Moretto (2014) colocou que: “O lugar do analista na equipe é um lugar de trabalho, de
promoção de trabalho, e a inserção só é possível como consequência, a partir do estabelecimento de
um campo de relação transferencial no qual o lugar de onde o psicanalista opera não corresponde,
necessariamente, ao lugar no qual a equipe o coloca.” (p. 296). Esta inserção se dá num processo
que tem a ver com o ato do psicanalista. Há que se estabelecer um posicionamento simbólico, entre
66
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

esses dois sujeitos, analista e analisando. Na cena de atendimento do núcleo perinatal, vimos o
psicanalista e a gestante ou puérpera. A entrada do analista na equipe está mais diretamente
relacionada com a demanda que lhe é dirigida e como ele responde a esta. O tipo de demanda
dirigida ao analista decorre do tipo de relação que a equipe estabelece com a subjetividade dos
pacientes e como lida com a sua própria.
Freud (1996c), já antevia a inserção do psicanalista no sistema público de saúde indicando
claramente a importância de a formação do psicanalista ser ampla o suficiente de modo a que este
não restringisse suas intervenções aos consultórios privados, apontando a clínica como um processo
em constante construção. Ao passo que, visualizamos no dia a dia como a experiência clínica pode
se construir no institucional, em variadas composições.
A queixa aos poucos passa a ter um lugar e uma função específica dentro da história dessa
mulher e deste modo, condizer consigo. Porém, nem todas estão abertas para um tratamento guiado
pela palavra. A queixa, só faz sentido se a mulher, crer que o Outro possa saber algo sobre ela, algo
da sua verdade privada que a ela, escapa. É a suposição de saber, base da transferência, que apesar
de pressupor um conhecimento ilusório no profissional, deve ser manejada para que o sujeito
trabalhe e vá construindo significações.
Freud (1996) ressalta que a transferência aparece como a resistência mais poderosa ao
tratamento, conforme explicou: “Assim, a transferência, no tratamento analítico, invariavelmente
nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da resistência, e podemos concluir que a
intensidade e a persistência da transferência constituem efeito e expressão da resistência”. (p. 115-
116).
A transferência ao ser usada pela resistência, passa a ser uma maneira do sujeito tapear as
tentativas de sucesso clínico contra o sintoma. Freud (1996b) considera que a transferência, no
decorrer do tratamento assume um caráter compulsivo, o sujeito passa a agir no decorrer do
tratamento de uma maneira repetitiva e consequentemente sob resistência, já que seus atos são
endereçados ao analista. Freud destaca, ainda, que essa repetição está a serviço do sintoma, pois,
são diferentes modos do sujeito manter sua satisfação e a formação de compromisso assumida. A
resistência também configura-se como uma oposição à regra fundamental de modo que o sujeito
não se coloca em associação livre e deixa de pronunciar aquilo que vem à cabeça durante as
sessões.
No dicionário de psicanálise de Roudinesco (1998), ela coloca que por resistência entende-
se o “conjunto de reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam
obstáculos ao desenrolar da análise.” (p. 659).

67
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A transferência que deveria ser a mola propulsora do tratamento, passa a se configurar como
um impedimento ao tratamento. O trabalho analítico exige uma elaboração apesar das resistências
que se impõe tanto ao analista como ao sujeito. Ao sujeito em análise cabe a elaboração de seu
sintoma e ao analista, uma recomposição teórica ao construir um saber sobre essa clínica que se
propôs a trilhar. A partir disso, ambos devem apostar no direcionamento do analista e caminhar
juntos no sentido de aprimorar a realização de um trabalho clínico produtivo.

Considerações finais
Chegamos a constatação de que cabe ao psicanalista renunciar ao seu narcisismo e se
oferecer diante da demanda inicialmente inespecífica, colocada pela equipe e operar onde ainda não
há queixa dirigida ao analista. A ação do psicanalista será de outra ordem das ações movidas pelos
outros saberes, pois por meio de sua escuta diferenciada e através da relação transferencial revelada
na ocasião de urgência, espera-se possibilitar o endereçamento de uma demanda clínica. Da mesma
forma, também é importante situar os alcances da transferência quando se trata de uma instituição
hospitalar, ponderando sobre como elaborar esses efeitos em condições não propícias para tal, como
é o caso dos atendimentos nas enfermarias. Comumente somos interrompidas tanto pelas vizinhas
de leitos ou pelo manipular de outros profissionais, seja para fornecer medicações, fazer exames, ou
prover outros cuidados.
Em nossa prática de residentes, viemos sendo atravessadas pela grave crise financeira do
Estado do Rio de Janeiro, o que comprometeu demasiadamente a nossa formação e reverberou na
falta de repasse de verbas para o HUPE, além de constantes atrasos no pagamento de nossas bolsas
e salários dos servidores. No núcleo perinatal desde o início do ano de 2016 foram fechados metade
dos leitos na enfermaria. Tivemos vários períodos de paralisações e redução de carga horária, o que
impede o bom desenvolvimento do trabalho de um modo geral. No ambulatório de pré-natal a rotina
também foi alterada, visto que foram cancelados os grupos multiprofissionais de atendimento pré-
consulta e houve uma diminuição no horário de funcionamento do mesmo, devido a redução de
carga horária dos profissionais que ali atuam.
Diante do exposto acima e perante a dor e sofrimento de nossa clientela, só há uma via de
sustentação para o trabalho clínico seguir, é a via de desejo do analista. A partir do momento em
que nos abrimos e oferecemos um espaço de escuta ao inconsciente, nos colocamos na posição de
desejar escutar. Ainda que a busca principal na instituição hospitalar seja a atenuação da
enfermidade inscrita no corpo, a implicação do sujeito com a sua subjetividade, possibilita uma
abertura para a escuta do inconsciente e do endereçamento que ali pode surgir. O hospital é um
espaço rico para a prática psicanalítica especialmente se caminharmos na direção ética, atestanto
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

que para além do ideal de alívio físico, há possibilidades de se operar sobre a singularidade e desejo
inconsciente de cada um.

Referências
Freud, S. (1996). A dinâmica da transferência. In: Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1912).
_______ (1996b). Recordar, repetir e elaborar. In: Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1914).
_______ (1996c). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Freud, S. Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (vol. XVII). Rio de Janeiro:
Imago. (Obra original publicada em 1919).
Moretto, M. L. T., Priszkulnik, L. (2014). Sobre a inserção e o lugar do psicanalista na equipe de
saúde. Tempo Psicanalítico, 2 (vol. 46) (pp. 287-298). Recuperado em 27/09/2017 em:
http://revista.spid.com.br/index.php/tempopsicanalitico/article/view/21/pdf_21
Moura, M. D. (org.) (1996). Psicanálise no Hospital. Belo Horizonte: Revinter.
Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

O feminino e a maternidade: Implicações clínicas

Thamires de Souza Cardoso Mayrink Paiva*


Ester Susan Guggenheim**

Resumo

Este trabalho foi desenvolvido a partir de atendimentos oriundos da enfermaria de gestantes e


puérperas no Núcleo Perinatal do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Buscamos com
este trabalho pontuar o quanto a experiência da maternidade se coloca para cada mulher de forma
extremamente singular. Utilizaremos fragmentos de um caso clínico para exemplificar as
repercussões que uma segunda gestação gerou em uma paciente. Em seguida, partindo de
contribuições trazidas pela psicanálise, articularemos o caso clínico com a temática do feminino e
da maternidade.

Palavras-chaves: Feminino; maternidade; psicanálise.

Introdução

Este processo de escrita se desenrola a partir de um trabalho de escuta desenvolvido com


gestantes e puérperas no Núcleo Perinatal do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE). Nos
deparamos, a partir de um investimento nesta clínica, com diversas questões que tangem o universo
do feminino e da maternidade. Com uma oferta de escuta a estas mulheres, tem sido possível
recolher como a experiência da maternidade se coloca de forma extremamente singular. Além disso,
constatamos que mesmo quando uma mulher já se diz mãe, uma nova gravidez pode produzir
efeitos inesperados. Uma paciente certa vez me disse: “Cada gestação é única. Cada filho é um
filho.”

Buscamos com este trabalho dar voz a uma destas mulheres, e, por este motivo, escolhemos
esta frase, que consideramos emblemática, para dar início a esta discussão. Nos orientamos pelo
fato de que cada gestação se inscreve em um contexto específico, em uma história particular, e, traz
consigo, implicações para o sujeito em questão. Com este trabalho, visamos levantar algumas
contribuições trazidas pela psicanálise sobre a temática do feminino e da maternidade, buscando
assim, possíveis articulações com o trabalho na clínica. Tendo isto em mente, utilizaremos

*
Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar – IP/UERJ (2017).
**
Preceptora do Núcleo Perinatal do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do Instituto de Psicologia da UERJ.
70
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

fragmentos de um caso clínico para ilustrar algumas das repercussões que uma segunda gestação
gerou em uma mulher que escolhi chamar pelo nome Ângela.

Caso clínico

Ângela estava sendo acompanhada no pré-natal do HUPE desde o início de sua gestação.
Apesar de ser uma gravidez de alto risco, ela não teve intercorrências significativas, internando
apenas para a realização do parto. Ela tinha já tinha um filho e estava em sua segunda gestação. Em
nosso primeiro atendimento, Ângela me conta o quanto estava feliz com a gravidez e relata que
ambas as suas gestações haviam sido planejadas. Já é possível perceber, neste primeiro momento, o
lugar privilegiado que a condição de estar grávida ocupa em sua vida psíquica. Ela conta “adorar”
esta experiência e que se fosse possível teria “um monte de filhos”. Entretanto, completa dizendo
que isso não é viável uma vez que engravidar é algo que precisa ser “planejado”. Foi isso que ela
fez: escolheu cuidadosamente o momento de suas duas gestações.

Até então tudo estava correndo conforme seus planos. Ela queria que o bebê nascesse de
parto normal, e, segundo a equipe da obstetrícia, esta era sua indicação clínica. Entretanto, devido à
uma complicação durante os ciclos de indução, foi decidido pela realização de uma cesariana de
emergência. Apesar disto, tudo correu bem. Ângela e o bebê tiveram alta dois dias depois. Devido à
alguns desencontros, não consigo atender Ângela no pós parto.

Algum tempo depois, ela retorna à enfermaria para a retirada dos pontos. A residente de
medicina me procura para falar sobre o caso. A médica percebeu que Ângela estava ansiosa e
pergunta se posso atendê-la. Ao me ver, a paciente me reconhece e começa a falar de forma muito
agitada que estava “muito mal”. Quando a encontro, ela estava segurando o bebê no colo e ele
começa a chorar. O choro do bebê parece incomodá-la. Ela o afasta de si, diz que ele não para de
chorar e que “não sabe o que fazer para ele parar”.

Ângela diz não saber o que está acontecendo e situa que tudo está completamente diferente
de sua experiência com o nascimento de seu primeiro filho. Pontua estar com “medo de tudo”.
Inicialmente, fala sobre uma sensação constante e difusa de medo. Em seguida, consegue enumerar
algumas destas situações, e, dentre estes exemplos, aborda aspectos relacionadas ao seu próprio
corpo: os pontos da cesárea abrirem e seu leite secar. Neste momento, pontua que estava bem antes
do parto, sinalizando uma mudança radical que se instala com o nascimento do filho.

Ângela relata, principalmente, um estranhamento relacionado a si própria sinalizando por


diversas vezes não estar se reconhecendo. Ela repete durante todo este atendimento “eu não sou

71
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

assim”. Por diversas vezes também pontua não saber o que está acontecendo, mas acrescenta saber
que o que está sentindo “não é normal”.

É possível perceber através da modulação de sua voz e de seus gestos algo que aponta para
um estado de agitação. Também é visível observar tremores em todo seu corpo durante o início
deste atendimento. Ângela fala um pouco sobre estes tremores e revela a sensação de estar
“tremendo toda por dentro”. Ela também relata dificuldades de sair de casa. Diz se sentir tomada
por estes tremores e pelo medo de que algo de ruim possa acontecer com ela e com o bebê.

Em sua fala é possível perceber o quanto ela tem se sentido invadida por estes medos. Além
disto, Ângela também conta o quanto a presença das pessoas, e, até mesmo barulhos, a tem
incomodado. Entretanto, ela não consegue dizer exatamente o que é que a incomoda. Ela conta que
gostava de estar na presença das pessoas, e, que agora tem, inclusive, se recusado a receber visitas.
Ângela fala sobre uma necessidade de ficar sozinha. Sinaliza precisar de um tempo para poder
entender o que está passando e “ficar bem novamente”. Ela decide ir para a casa de uma amiga que
mora em outro município para ter esse tempo.

Quando Ângela retorna, para a consulta do pós-parto, é possível perceber que ela está mais
tranquila. Neste segundo momento, ela consegue organizar um pouco melhor o que viveu neste
período anterior. Inicialmente, associa este período de crise como tendo sido desencadeado pela
cesariana, o que marcou uma diferença em relação ao seu primeiro parto. Sinaliza que o parto não
ocorreu da forma como planejou, apontando assim para algo que escapou de seu controle. A
paciente tem a seguinte fala: “Eu gosto de controlar tudo. Eu queria controlar tudo, e, quando perdi
o controle, quase enlouqueci.”

Em seguida, marca que diante desta nova situação que a cesariana e o período de
recuperação a colocaram, fica com medo, “medo de tudo”, como já havia falado anteriormente.
Ângela fala do período que precisou ficar de resguardo e do quanto isto foi difícil. Ela relata que
tinha medo de andar e os pontos abrirem, e, por isso, ficou de repouso por algum tempo. Ângela
pontua o que considerou como sendo a sua maior dificuldade: “Eu gosto de cuidar, eu não gosto de
ser cuidada. Eu não podia cuidar e estava numa situação em que as pessoas estavam cuidando de
mim.”

Um aspecto observado no discurso de Ângela diz respeito a uma idealização da condição de


estar grávida e das situações relacionadas aos cuidados com os filhos. Ela sofre, com a cesariana,
uma primeira frustração no que diz respeito às suas idealizações sobre o parto. Outro assunto que
aparecia com frequência estava relacionado às dificuldades que ela estava enfrentando com a
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

amamentação. O bebê começou a perder peso, pois não estava conseguindo sugar a quantidade de
leite suficiente, e, foi necessário, iniciar a fórmula como forma de complemento.

Ângela me diz que estava um pouco frustrada porque queria “muito” estar amamentando.
Questiono, surpresa, se ela não estava, ela sorri, e responde que sim.

Acrescenta, então, que gostaria de estar amamentando “exclusivamente”; “eu queria ter
aqueles filhos gordinhos que só se alimentam de leito materno. Isso faz com que a gente se sinta
mais completa. Eu queria ter um monte de filhos, quanto mais filho, mais completa. Mas as coisas
não podem ser assim, né? Não dá pra sair por aí fazendo um monte de filho. Essas coisas precisam
ser planejadas”.

Neste atendimento, ela se diz mais tranquila por ter, em suas palavras, “retomado o
controle” de sua vida. Relata estar feliz por conseguir, novamente, cuidar dos filhos, da casa e do
marido. “Voltei a ser eu mesma”, ela me diz.

Discussão teórica

O referido caso clínico suscita algumas questões que dizem respeito ao campo do feminino e
da maternidade. Decidimos, primeiramente, realizar um retorno à teoria freudiana. Freud (1996), ao
abordar as consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos, traz a ideia da inveja do
pênis. A menina, ao se deparar com a diferença anatômica, identifica o pênis como o
correspondente superior de seu próprio órgão. Segundo Freud (1996), a menina “Faz seu juízo e
toma sua decisão num instante. Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo.” (p.285)

No caso das meninas, o complexo de castração é responsável por as introduzir no complexo


de Édipo. Seu complexo de Édipo é uma operação secundária, tendo sido precedida e preparada
pela operação do complexo de castração. Nas palavras de Freud (1996): “o complexo de castração
sempre opera no sentido implícito em seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a
feminilidade.” (p.289)

Segundo Soler (2005), a teoria freudiana postula a identidade sexuada do sujeito como
sendo forjada a partir do complexo de castração. Para a autora, “Freud se apercebe da prevalência
de um significante único, o falo – no dizer dele, o pênis. Daí sua formulação da diferença em termos
anatômicos, constantemente sustentada: ter ou não ter o pênis.” (Soler, 2005, p.25) Prosseguindo
nesta lógica, o significante fálico apresenta-se no homem pela vertente da presença e na mulher pela
vertente da ausência, uma vez que no inconsciente só existe o significante que representa o sexo
masculino (Zalcberg, 2003).
73
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Podemos observar a importância que a descoberta da castração possui nas teorias freudianas
sobre o desenvolvimento sexual. No caso da menina, a partir do complexo de castração, seu
desenvolvimento pode seguir três caminhos. Abordaremos, neste trabalho, somente o terceiro
caminho, que é nomeado por Freud (2012) como conduzindo à dita “feminilidade normal” (p.30) .

Nesta terceira linha do desenvolvimento feminino, a menina entra na forma positiva do


complexo de Édipo ao tomar o pai como objeto (Freud, 1996b). Freud (2012) pontua a
possibilidade de que na origem deste retorno ao pai esteja o desejo de receber o pênis que sua mãe
não foi capaz de lhe dar. Entretanto, segundo Freud (2012). “(...) a situação feminina só é
estabelecida se o seu desejo do pênis for substituído pelo desejo de um filho, ou seja, se o filho
assume, de acordo com uma antiga equivalência simbólica, o lugar do pênis” (p.32). Desta forma,
ao pensarmos a questão a partir da primazia do falo, “a mulher, mais do que um substituto do pênis
que não possui, busca um substituto fálico para a falta de um significante especificamente
feminino” (Zalcberg, 2003, p.26).

Podemos pensar que Freud (1996b; 2012), ao colocar a maternidade como apenas um dos
destinos da feminilidade, situa uma diferença entre a mãe e a mulher. Freud (2012), encerra sua
conferência sobre a feminilidade pontuando que suas teorias sobre o tema são incompletas e
fragmentadas, e que a mulher havia sido descrita neste artigo apenas na dimensão de seu ser
definido em sua função sexual. Freud (2012), se vê instigado pelo o que nomeia como o “enigma do
feminilidade” (p.16), porém deixa antever neste artigo, que dimensões que dizem respeito ao
feminino não são passiveis de serem totalmente explicadas pelos conhecimentos que ele detinha até
o momento.

Posteriormente, com o ensino de Lacan novas contribuições sobre a temática do feminino são
trazidas à luz. Homens e mulheres são marcados por uma falta-a-ser enquanto sujeitos. A mulher, é
marcada também por uma segunda falta, a falta de um significante específico para seu sexo, falta
esta que gera repercussões em sua subjetividade. Logo, a mulher está situada enquanto sujeito na
lógica fálica, porém ao mesmo tempo escapa a esta lógica, assinalando a presença de algo que se
situa em um para além do falo. É neste sentido que ela é não-toda, não toda inscrita nesta lógica.
(Moura, 2013)

Prosseguindo com a diferenciação entre mãe e mulher, Alvarenga (2015b) coloca a


maternidade enquanto situada do lado fálico, e, portanto, da castração, ao passo que a dimensão do
feminino está referida ao não todo fálico. De acordo com Alvarenga (2015b)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A experiência da maternidade é uma experiência de castração, por mais que a imagem da mãe
fálica possa sugerir o contrário. Não apenas confrontada à sua falta, diante do filho e do
parceiro, uma mãe é também confrontada com aquilo que, do feminino, não pode ser
recoberto pela maternidade. (p.9)

Desta forma, a mulher pode buscar na maternidade uma solução para seu ser e para a questão
que se coloca para ela pela sua condição de mulher. Nas palavras de Alvarenga (2015b) “Se Lacan
pôde propor que a mãe é aquela que tem, enquanto a mulher é aquela que não tem, muitas vão
procurar a solução do ser no ter” (p. 9)

A partir desta discussão formulamos a seguinte questão: teria sido este momento de crise
experimentado por Ângela uma possível repercussão de algo de sua condição feminina que irrompe
com o nascimento de um novo bebê?

É possível perceber no discurso de Ângela, o lugar privilegiado que a gravidez e o ter filhos,
ocupam em sua vida psíquica. Ela fala sobre a ideia de uma completude que poderia ser alcançada
com o que ela nomeia “ter um monte de filhos”. Podemos pensar, a partir das contribuições da
psicanálise, que os filhos estariam ocupando para Ângela o lugar de falo.

Além disso, em seu discurso, ela encena a imagem de uma mãe completa e devotada à
maternidade. Ela é aquela mulher que ama estar grávida e que teria muitos filhos. Além disso,
cuidar do marido, dos filhos, da casa, parece ser o que sustenta e dá consistência para seu ser. No
momento em que este cuidado não é possível, ela experimenta um momento de desestruturação. No
período de crise, não se reconhece, e diz, “eu não sou assim.”

Soler (2005) discorre sobre este hiato existente entre a mãe e a mulher. Sobre o que tange a
falta fálica indica que ela poderia ser resolvida na mãe, através do filho, enquanto substituto fálico.
Existiria, para a autora, a possibilidade do filho silenciar esta exigência do feminino. Porém,
silenciar não é o mesmo que resolver, e o ser mulher que existe na mãe continua produzindo efeitos.

A feminilidade tem dificuldades em se alojar sob uma única identidade (mãe, filha, mulher).
O filho, ao surgir como substituto da falta-a-ser feminina, permite a evocação da significação do
falo por uma via imaginária. Porém existe um resto que escapa a falicização, e, desta forma, a
criança obtura apenas uma parte desta falta. (Alberti, 2015)

Desta forma, escolhemos por recortar o significante “cuidar” que pela fala da paciente ocupa
um lugar tão singular. Entendemos que neste caso, ser mãe, ser aquela que cuida, pode estar
relacionado com o fato da maternidade estar ocupando, em sua economia psíquica, o lugar de
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

suplência fálica. Porém, com o nascimento de um segundo bebê, algo da ordem do feminino
irrompe, uma vez que esta mediação fálica não é capaz de drenar todo o pulsional de sua condição
de mulher.

Considerações finais

Buscamos com este trabalho, dar início a uma discussão sobre a temática do feminino e da
maternidade, temas estes que lidamos no nosso dia-a-dia na clínica no Núcleo Perinatal.
Entendemos a dificuldade de empreender um estudo teórico sobre estes campos, e, por este motivo,
vemos este artigo como um passo introdutório nestas discussões.

Percebemos existir, no imaginário social, uma idealização da maternidade, porém na clínica


nos deparamos com diversas questões que este momento pode suscitar. Muitas vezes, através do
relato de pacientes, é possível recolher as dificuldades que estas mulheres enfrentam ao não terem
com quem falar sobre os percalços deste período. Por este motivo, apostamos, ao sustentar a clínica,
na importância deste trabalho.

Referências

Alberti, C. (2015). Introdução. In Alberti, C. & Alvarenga, E. (Orgs.) Ser mãe: mulheres
psicanalistas falam da maternidade (pp. 15-25). Belo Horizonte: Editora EBP.

Alvarenga, E. (2015b). Apresentação. In Alberti, C. & Alvarenga, E. (Orgs.) Ser mãe: mulheres
psicanalistas falam da maternidade (pp. 5-13). Belo Horizonte: Editora EBP.

Freud, S. (1996). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Freud,
S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol XIX),
(pp. 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1925)

_______ (1996b). Sexualidade feminina. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol XXI) (pp. 237-257). Rio de Janeiro: Imago. (Obra
original publicada em 1931)

_______ (2012). A feminilidade – Conferência 33. In Caldas, H., Murta, A., Murta, C. (Orgs.) O
feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico. (pp. 15-47).
Belo Horizonte: Scriptum Livros. (Obra original publicada em 1933)

Moura, D. F. G. (2013). Maternidade e poder. Revista Mal Estar e Subjetividade, 13(1-2), 387-404.
Recuperado em 08/10/2017 em:

76
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-
1482013000100015&lng=pt&tlng=pt.

Soler, C. (2005). O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar.

Zalcberg, M. (2003). A relação mãe e filha. (2a ed.). Rio de Janeiro: Campus.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Da vacilação à demanda: Luto e entrevistas iniciais


Amanda da Silva Moreira*
Dennys Chaves**
Glória Castilho***

Resumo
No presente trabalho, trazemos algumas considerações acerca das dificuldades e dos pontos de
impasse em jogo na chegada do sujeito ao tratamento analítico no contexto de uma instituição de
saúde voltada para “idosos”1. Como veremos, a escuta clínica de pacientes inseridos no Núcleo de
Atenção ao Idoso (NAI) nos permitiu vislumbrar a complexidade de se sustentar a demanda do
sujeito e sua singularidade em um cenário atravessado pelo discurso científico hegemônico, que
privilegia a técnica e os protocolos, e implica, na maioria das vezes, na categorização diagnóstica e
na medicalização do sofrimento psíquico. Neste sentido, a partir da apresentação do fragmento de
um caso clínico, pretendemos pensar de que modo o manejo nas entrevistas iniciais pode favorecer
a emergência do sujeito e de algo de seu desejo no contexto de um serviço de saúde, marcado pela
pressa de se encaminhar questões através de técnicas e procedimentos padronizados.
Palavras-chave: Psicanálise; entrevistas iniciais; demanda; instituição.

Introdução
A partir da escuta clínica de pacientes "idosos" do Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), temos
nos defrontado com os efeitos do discurso científico hegemônico no modo como estes sujeitos
lidam com seus sintomas e sofrimento. Como destaca Mucida (2006), o discurso pregnante em
nossa época, que traz em seu bojo a articulação da tecnociência com a lógica capitalista, privilegia a
técnica e os protocolos, e implica, na maioria das vezes, na categorização diagnóstica e na
medicalização do sofrimento psíquico. Nesta direção, Castilho (2016) salienta que a conjunção
entre tecnociência e capitalismo favorece que a velhice seja abordada privilegiadamente como
objeto de cuidados e como mercado de consumo. Há uma infindável oferta de produtos e técnicas
que se propõem a recobrir aquilo que a velhice traz à luz, de forma inexorável: a incidência da
passagem do tempo sobre o corpo, a impossível sustentação dos ideais da juventude e, em última

*
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ. (2017)
**
Psicólogo. Profissional Residente de Psicologia pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso –
UERJ.
***
Psicanalista, Doutora pelo PPGTP/UFRJ. Supervisora/Preceptora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica
Institucional – Modalidade Residência Hospitalar/IP/UERJ, integrante da equipe clínica do Núcleo de Atenção ao
Idoso/UnATI/UERJ, Coordenadora da Área de Psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde do
Idoso/NAI/UnATI/UERJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

instância, a própria finitude que é relançada, a cada vez, pela perda dos próximos amados. Assim,
conforme a autora, nesse contexto, há uma tendência no sentido de que a falta seja lida como déficit
e passível de ser eliminada.
Mucida (2006) nos indica que neste cenário onde o mal-estar é vinculado a transtornos e
síndromes, e tamponado por psicofármacos, o sujeito tem sido cada vez menos convocado a pensar
sobre a lógica singular de suas manifestações sintomáticas. Não raro, nos chegam pacientes que
expõem seus diagnósticos, falam com muita desenvoltura de sua medicação, mas nada sabem dizer
sobre a particularidade de seu sofrimento. Nossa aposta, no entanto, é de que a entrada de uma
escuta orientada pela psicanálise possa operar como uma resistência a que os significados
veiculados pelo discurso científico se totalizem como a principal resposta frente ao mal-estar,
abrindo a possibilidade de que algo da dimensão do sujeito possa emergir.
Em geral, os "idosos" atendidos pelos psicólogos do NAI são encaminhados por uma equipe
multiprofissional formada por residentes e preceptores de medicina, fisioterapia, enfermagem,
nutrição e serviço social, que ao avaliarem a necessidade de indicar o atendimento psicológico a um
paciente, perguntam se este tem interesse em ser escutado por um dos psicólogos inseridos no NAI.
A equipe de psicologia tem sustentado a importância deste procedimento junto aos demais
profissionais a fim de que o encaminhamento ao serviço escape, sempre que possível, à lógica da
pressa de se conduzir questões através de técnicas e protocolos. Lógica esta tão característica das
instituições de saúde, e que muitas vezes tem como efeito a exclusão da pergunta acerca da
demanda do próprio sujeito.
Conforme salienta Mucida (2006), para que um trabalho analítico torne-se viável, é
necessário que a partir da demanda da equipe, o paciente possa, ao longo dos atendimentos, fazer
uma demanda de tratamento em seu próprio nome. Só assim, de acordo com a autora, é possível
alguma implicação do sujeito no mal-estar do qual vem se queixar, condição imprescindível para o
estabelecimento de um trabalho pela via da fala. Diante disso, nos parece fundamental lançar luz
sobre a questão da chegada do sujeito ao tratamento analítico no contexto de um serviço de saúde
voltado para "idosos", dando lugar a seguinte pergunta: De que modo o manejo nas entrevistas
iniciais pode favorecer a emergência do sujeito e de algo do seu desejo? A seguir, traremos um
fragmento clínico que nos permite fazer algumas reflexões acerca destas questões.

Fragmento de caso
B. chega ao Serviço de Psicologia do NAI através de um encaminhamento da equipe,
segundo o qual a "idosa" precisava elaborar o luto de seus dois filhos que haviam falecido há alguns
anos. B. é a principal cuidadora do marido, que iniciou tratamento no ambulatório do NAI devido
79
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

ao diagnóstico de Alzheimer.
Durante o primeiro atendimento, B. fala da profunda tristeza que sente ao ver o marido
mudar tanto em decorrência da doença: “Ele não é mais o mesmo. A cada dia está mais diferente de
quem ele era”. Relata que já havia perdido muitos dos familiares que mais amava, de modo que
agora ela e o marido só tinham um ao outro. Fala, então, sobre a morte dos filhos. “Duas perdas
terríveis, dois golpes”, que, segundo ela, precisou aceitar. Situa que vivenciou com o marido toda a
dor da perda desses filhos, e que após terem passado por tamanho sofrimento juntos, esperava que
tivessem, pelo menos, uma velhice tranquila, que um acompanhasse o outro. Agora, no entanto,
sentia que a distância entre eles só aumentava. A psicóloga intervém a fim de dar um peso ao que B.
estava falando, e indica que aquele realmente não era qualquer momento. Pergunta, em seguida, se
ela gostaria de voltar, de dar continuidade a seu atendimento na Psicologia.
Diante da pergunta, a paciente vacila. Diz que apesar de ter aceitado o encaminhamento ao
serviço, era muito difícil para ela estar ali. De acordo com B., a equipe achava que seria bom para
ela vir falar, mas ela, por sua vez, não tinha tanta certeza disso. “Eu acho que não consigo assumir
esse compromisso agora”, declara. Escutando a dificuldade da paciente de iniciar um trabalho
naquele momento, a psicóloga intervém, dizendo que o serviço de Psicologia estaria à disposição, e
que se, em um outro momento, ela quisesse vir falar, poderia pedir para a equipe encaminhá-la
novamente. Após essa intervenção, no entanto, B. parece reconsiderar: “Não, espera. Eu tenho que
voltar ao NAI ainda esse mês. Daqui a mais ou menos quinze dias... Será que você pode me
atender?”.
Discussão
Sabemos com Freud, em “Sobre o Início do Tratamento” (2010), que o momento de chegada
do sujeito em uma análise tem como motor primário o seu sofrimento e o desejo de ser curado.
Entretanto, como indica Quinet (2009), o sujeito pode procurar um analista para se queixar de seu
sintoma e até dizer que dele quer se livrar, mas isso não basta. É preciso, segundo o autor, que a
queixa se transforme numa demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto
de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo. Este
deciframento do sintoma, segundo Mucida (2006), é da ordem da construção de um saber. De
acordo com a autora:
Sofre-se do que se desconhece, sofre-se do estranho e tão familiar abandono, sofre-se do
excesso; caminhos pelos quais o gozo percorre as marcas traçadas e não lembradas. À
análise só resta operar com os derivados do trauma e da fantasia, para construir um certo
saber, saber não todo daquilo que se sofre (Mucida, 2006, p. 209).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

É neste sentido que podemos compreender, com Mucida (2006), a análise como um
dispositivo aberto àqueles que sofrem e querem construir um saber sobre o seu sofrimento.
Como já viemos indicando, no caso de pacientes "idosos", é muito comum que a demanda
inicial de tratamento não advenha dos mesmos, mas da equipe, e até mesmo da família,
principalmente no caso daqueles dependentes do Outro – filhos, cônjuges, netos. Frente a isso, é
fundamental que se interrogue a demanda, buscando uma implicação do sujeito com a mesma. O
paciente, por exemplo, deve poder situar qual é a sua depressão quando ele chega dizendo que está
deprimido. Nesta direção, é importante, inclusive, dar condições ao paciente de decidir se quer ou
não falar sobre o que sofre, favorecendo que ele vá para além da demanda da equipe e da família, e
que se insira, desde o princípio, como sujeito responsável diante do que se queixa.
No caso apresentado, vemos como ter acolhido a tristeza de B., mas, ao mesmo tempo, ter
dado lugar à sua vacilação diante do convite à fala propiciou que a paciente, de algum modo, se
reposicionasse, demandando que a psicóloga a atendesse novamente em outro momento. Não era
nada simples, para esse sujeito, a decisão quanto a falar ou não sobre a perda brutal de seus filhos e
do companheiro de toda a vida, com quem as atravessou, e que agora estava demenciando. No
entanto, podemos dizer que a sustentação deste seu impasse pela psicóloga teve como efeito alguma
abertura ao trabalho.
Freud (2010), em seus artigos técnicos, é incisivo ao afirmar que a única regra do tratamento
analítico é a associação livre. Logo, fora dessa regra, temos apenas recomendações, princípios e
fundamentos, mas nada relativo à técnica de um saber-fazer, pois cada caso só pode ser conduzido
em sua particularidade. O autor já nos demonstra de saída que:
A extraordinária complexidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de
todos os processos anímicos e riqueza de fatores determinantes resistem à mecanização da
técnica e permitem que um procedimento em geral correto permaneça eventualmente sem
efeito, e que um outro, normalmente errado, conduza ao objetivo (Freud, 2010, p. 164).

Assim, é no só depois que saberemos os efeitos de nossas intervenções, o que aponta para o
questionamento da técnica em contraponto com a ética do analista. Não há manuais técnicos a
priori e nem procedimentos rígidos que possam orientar a condução de um tratamento analítico. É
isto que o caso de B. nos permite vislumbrar. Do alto de sua dor, a paciente não sabia ao certo se
valeria a pena ou não falar sobre a perda brutal de entes tão amados. Diante disso, o manejo
possível foi acolher a pergunta da paciente e dar-lhe tempo para esclarecer se suportaria ou não
iniciar um trabalho pela fala.
Conforme Freud (1996), o atravessamento do luto implica em um trabalho psíquico muito

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

doloroso, no qual a libido dirigida ao objeto amado deve ser retirada, pouco a pouco, de suas
ligações com o mesmo e reinvestida em novos objetos. Sobre isso, o autor escreve: “Essa exigência
provoca uma oposição compreensível – é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom
grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já lhes acena” (Freud,
1917/1996, p.250).
Freud (1996) assinala ainda que, ao longo do trabalho de luto, cada uma das lembranças e
expectativas que se vinculam ao objeto perdido são evocadas e hiperinvestidas, sendo necessário
que o desligamento da libido se realize em relação a cada uma delas. Deste modo, é preciso
considerar que falar de perdas tão devastadoras pode ser extremamente difícil. Podemos, inclusive,
interrogar a possibilidade de se ultrapassar a perda de um filho muito amado.

Considerações finais
Diante da complexidade em jogo no caso apresentado, podemos dizer que não era evidente
que B. tivesse que iniciar um trabalho naquele momento, como queria a equipe. O sujeito pode vir a
falar, mas isso não pode ser uma imposição. Neste sentido, como destaca Figueiredo (1997), o
analista inserido em uma instituição deve acolher as demandas e encaminhamentos a ele dirigidos,
mas sem ceder de sua especificidade, no que concerne à ética da psicanálise. Seguimos a leitura da
autora quando ela salienta que a ação do psicólogo, uma vez orientada pela psicanálise, será distinta
das intervenções colocadas em curso por outros discursos, pois dos efeitos do seu agir espera-se
possibilitar o surgimento do sujeito.
No caso abordado, como vimos, ao se separar da demanda da equipe, e dar lugar à vacilação
da paciente, o manejo da psicóloga viabilizou alguma abertura, uma demanda de atendimento do
próprio sujeito, em um segundo momento. Pensamos que fazer valer a demanda do sujeito e sua
singularidade no contexto de um serviço de saúde, atravessado pela pressa de se definir protocolos e
procedimentos, se mostra um desafio que precisa ser sustentado pelo psicólogo aí inserido na
medida em que é condição imprescindível para o estabelecimento de um trabalho pela via da fala.

Nota:
1.Ao longo deste trabalho utilizaremos aspas no significante “idoso” como indicativas da
dissimetria entre o idoso como categoria construída e o sujeito dividido da experiência analítica.

Referências
Castilho, G. (2016). Por que a psicanálise em um ambulatório de geriatria/gerontologia? In
Bernardo, M. H. J. & Motta, L. B. (Orgs). Cuidado e interprofissionalidade – uma experiência de
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

atenção integral à saúde da pessoa idosa (Núcleo de Atenção ao Idoso/UnATI-HUPE-UERJ). (pp.


323-348). Curitiba: CRV.

Figueiredo, A. C. (1997). Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no


ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
Freud, S. (1996). Luto e melancolia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em
1917).

Freud, S. (2010). Sobre o início do tratamento. In: Obras Completas. (Vol. 10). São Paulo:
Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1913).

Mucida, A. (2006). O sujeito não envelhece – Psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica.

Quinet, A. (2009). As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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Dimensões da transferência

Maria Isabel R. S. Arello*


Glória Castilho**

Resumo

Norteada pelo tema “A clínica como política de resistência”, confeccionamos a presente


escrita, a partir do conceito de transferência. A transferência – um dos quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, conforme nos ensinou Lacan - é indissoluvelmente ligada à prática, na
medida em que exige que recorramos à clínica para que algo acerca dessa formulação se esclareça.
Assim, visando elucidar algo sobre esse conceito, tal como a psicanálise o concebe, utilizamos duas
vinhetas clínicas, articuladas a trechos da obra de Freud e do ensino de Lacan. Por fim, sublinhamos
a importância dada por Freud ao manejo da transferência, considerando-o como o principal
instrumento que cabe ao analista fazer uso.

Palavras-chave: Psicanálise; instituição; transferência.

A partir do tema “A clínica como política de resistência”, escolhido para nortear as


discussões do XXI Fórum da Residência em Psicologia Clínico Institucional do HUPE/UERJ,
construímos a presente escrita,, a partir do conceito de transferência. Para compor esse trabalho,
lançaremos mão de dois fragmentos de casos clínicos, atrelados a algumas contribuições presentes
nas obras de Freud e em trechos do ensino de Lacan.

Utilizaremos como fio condutor do presente trabalho um dos conceitos fundamentais da


psicanálise, a transferência, tal como Lacan (1985) salientou no O Seminário, livro 11. Trata-se de
um conceito sem o qual não se pode falar da psicanálise. Além disso, é indissoluvelmente ligado à
prática, na medida em que exige que recorramos à clínica para que algo dessa formulação se
elucide.

Diante disso, recorremos agora a uma das vinhetas clínicas. J. é um paciente de sessenta
anos, que está inserido no NAI como cuidador de um de seus familiares. Ele já vinha sendo

*
Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ. (2017)
**
Psicanalista, Doutora pelo PPGTP/UFRJ. Supervisora/Preceptora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica
Institucional – Modalidade Residência Hospitalar/IP/UERJ, integrante da equipe clínica do Núcleo de Atenção ao
Idoso/UnATI/UERJ, Coordenadora da Área de Psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde do
Idoso/NAI/UnATI/UERJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

acompanhado pela psicologia, tendo optado por prosseguir com o tratamento, quando a residente
anterior anunciou o término de sua residência.

Convidei J. a vir para uma primeira entrevista. Logo de saída, J. disse: “existem pelo menos
cinco segredo meus velados; aos poucos, conforme formos constituindo uma relação de confiança,
vamos desvelando o rosário (sic) ”. Assim, J. sinalizou uma abertura para falar sobre suas questões,
indicando que isso exigiria paciência.

Nessa direção, esse sujeito nos ensina sobre o caráter imprescindível da particularização do
laço transferencial para a experiência analítica. Outro ponto que sua fala toca diz respeito à
importância do tempo, necessário para que esse vínculo se instaurasse, bem como para que algo do
trabalho de luto na passagem de um residente a outro se desse, possibilitando que esse sujeito
atualizasse o laço transferencial, viabilizando o início de um novo tempo de trabalho.

Quanto a isso, Lacan (1992), no Seminário, Livro 8, nos diz que o fenômeno da
transferência é colocado em posição de sustentáculo da ação da fala e que “(...) se a fala se mantém,
é porque existe a transferência” (p. 175). Em outras palavras, a análise se dá no campo da
transferência. Além disso, ressalta que nesse laço há a dimensão de criação, na medida em que “o
sujeito fabrica, constrói algo” (p. 176), o que exige tempo.

Nas primeiras sessões, J. mostrou-se incomodado por não se recordar do nome da analista e
disse que iria anotar em sua agenda. Poucas entrevistas depois, chega dizendo que não vai mais se
esquecer, pois associou à Princesa Isabel. Fala essa que nos dá pistas da instauração da transferência
com demasiada intensidade, o que exigiu manejo.

Recorrendo à supervisão, foi possível apreender que algo da presentificação do analista


estivesse em jogo nesse momento de fechamento do inconsciente, na medida em que o amor obtura.
O manejo necessário giraria em torno de certo apagamento do analista para que o sujeito em análise
pudesse retornar ao curso das associações e para que se relançasse o trabalho a partir de suas
questões.

Nessa direção, a analista passou a indicar, ainda que com delicadeza, a dimensão do trabalho
que estava colocada ali. Como efeito dessa intervenção, J. disse, algumas entrevistas depois, que,
em suas palavras, “não tem como ignorar que estou sendo ouvido por uma mulher, mas sei que não
é isso que está em jogo aqui” (sic.). Assim, podemos inferir que esse sujeito pôde estabelecer
alguma separação entre a pessoa do analista e a função que esta ocupa.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A partir disso, recorremos a Freud (2010), que salienta que, se por um lado a transferência é
a mais forte alavanca do sucesso, ressalta que é, também, o mais poderoso meio de resistência.
Como nos ensinou Lacan (1992), se por um lado os analistas se servem do amor em sua práxis, por
outro ela, quando ele se presentifica de maneira excessiva, configura-se como um momento de
fechamento do inconsciente. Em Recordar, Repetir e Elaborar (1969), Freud nos alerta, referindo-
se à resistência, de que:

Deve-se dar ao paciente tempo (...) para elaborá-la, para superá-la pela continuação do
trabalho analítico. (...) Ao analista, cabe esperar as coisas seguirem o seu curso, que não pode
ser evitado nem continuamente apressado. (...) Uma tarefa árdua para o sujeito da análise e
uma prova de paciência para o analista (pp. 170-171).

J., ao ser convidado a dizer o que lhe viesse à cabeça, pôs-se a falar que, ao longo de sua vida,
foi convocado a responder, mas que julgava não tê-lo feito, nas ocasiões. Nesse ponto, a
intervenção da analista visou um forçamento na direção da parcialização desse todo. Como
resposta, esse sujeito passou a associar, rememorar sobre seus relacionamentos amorosos.

Na sessão subsequente, J. trouxe um sonho, abrindo essa via de trabalho, via régia de acesso
ao inconsciente, tal como nos disse Freud (1969b). Nele, J. se vê diante da ex companheira,
enquanto ela lhe dirige queixas. Em um primeiro momento, ele traz o relato de que a rejeita na cena
e que depois rebate suas críticas.

Ao ser convidado a fazer uma leitura desse sonho, J. diz que só consegue pensar que tenha a
ver com alguma coisa que ele não tenha conseguido responder naquela ocasião. Formula, então,
que, em suas palavras, “o sonho seria uma forma de responder, coisa que não fiz na época” (sic).
A analista sublinhou a importância desse saber que J. estava construindo, apostando que o sonho
tenha uma função: relança questões que fazem avançar.

Abro aqui um parêntese para trazer um trecho onde Lacan (1992) nos diz:

Tudo o que sabemos sobre o inconsciente, desde o início a partir do sonho, nos indica que
existem fenômenos psíquicos que se produzem, se desenvolvem, se constroem para serem
ouvidos (...). Mesmo que não se saiba que eles estão ali para serem ouvidos, eles estão ali para
serem ouvidos, e para serem ouvidos por um Outro (p. 177).

A partir disso, podemos situar a importância do endereçamento a um Outro em posição de


escuta, o qual só é possível a partir da instauração do campo transferencial. Como nos traz

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Bernardes (2003), “a fala sob transferência, quando esta é manejada segundo a ética da psicanálise,
é capaz de operar uma transformação inestimável para aquele que a experimenta.” (p. 18).

Indo ao encontro dessa noção, Freud (2010) descreve a transferência como playground,
significante que remete a algo da ordem do infantil. Tal metáfora freudiana nos remete a uma fala
de J. acerca dos efeitos que experiencia, na medida em que associa em análise. Traz, em seu
discurso, que, como em um autorama, as sessões promovem uma reorganização, reposicionando seu
carrinho nos trilhos para que a brincadeira siga. Vale lembrar que tal metáfora nos remete a fala de
Lacan (2005) acerca transferência e de seu manejo como aquilo que faz “pôr o cavalo na roda para
fazê-lo girar no carrossel” (p. 140).

Em outra ocasião, J. disse: “chego às sessões tenso e ansioso e saio mais relaxado” (sic).
Diante disso, podemos dizer que falar sob transferência permite circunscrever algo, promovendo
certo esvaziamento de gozo. Assim, a partir da ideia trazida por Lacan (2001) acerca do prazer
como aquilo que faz barreira ao gozo, podemos inferir que, diante dessa tensão, falar a um Outro
em posição de escuta possibilita que o sujeito se situe mais do lado do prazer, condescendendo ao
desejo em detrimento ao gozo.

Seguindo por essa via, traremos agora outra vinheta clínica. P. foi inserido no NAI há alguns
anos. Na ocasião, estava exercendo a função de cuidador principal de sua mãe. Ao passear pelo
prontuário de sua mãe, no qual havia menções acerca de P., notei que o significante “retardo
mental” era utilizado para representá-lo, o que, também, aparecia na fala da equipe em reuniões de
fim de turno.

Nas primeiras entrevistas, algo em seu discurso, que não pôde ser nomeado, chamava a
atenção. No entanto, sob supervisão, foi possível apreender que era necessário aguardar, na medida
em que a pergunta quanto à estrutura clínica só poderia se esclarecer depois de instaurada a
transferência. Não era tempo de concluir algo.

A posteriori, passados dezoito meses do início do tratamento, podemos depreender de que


realmente foi necessário tempo para que o laço se estabelecesse de maneira operativa. Para tanto, do
lado da analista, foi necessária uma aposta na insistência, bem como no cuidado com o manejo, não
forçando a via da produção de enigmas, por exemplo.

Localizamos como momento de virada, quando foi possível, depois de mais de um ano de
acompanhamento, P. sentir-se autorizado a falar do desentendimento que havia tido com um de seus
familiares. Esse sujeito pôde, então, se queixar e chorar, coisas até então inéditas. Em seu discurso,

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

trouxe os termos “bobo” e “panaca” como verdades absolutas. A analista intervém, então,
estranhando aqueles ditos, visando furar esse todo e buscando produzir novas significações.

Situamos, aqui, esse momento como um giro discursivo, possibilitado pelo estabelecimento
do laço transferencial, na medida em que P. passou a fazer outro uso de seu espaço de fala – para
além de relatar pormenores de seus afazeres cotidianos –, bem como ter sido possível que esse
sujeito se implicasse um pouco mais, interessando-se em fazer parte das tomadas de decisão em
relação ao cuidado com sua mãe, por exemplo.

Ao longo da presente escrita, fomos buscando trazer elementos para lançar luz nesse
paradoxal conceito da psicanálise, a transferência. Paradoxal, na medida em que tem o caráter de
condição sine qua non para o trabalho analítico, mas também traz consigo sua face de resistência,
de fechamento do inconsciente.

Sublinhamos, aqui, o que Lacan (1992), partindo das contribuições freudianas, nos diz: que
a análise se dá no campo da transferência. Indo na mesma direção, Freud (1969), em 1905, já
ressaltava a importância do manejo da transferência, como o principal instrumento que cabe ao
analista fazer uso. Manejo esse que “visa uma certa posição enunciativa na fala do analisante”
(Bernardes, 2003, p. 18). Assim, é através do amor de transferência, que pode se dar alguma
elaboração de um saber inconsciente.

Referências

Bernardes, A. C. (2003). Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de Janeiro:


Editora Garamond.

Freud, S (1969). Recordar, repetir e elaborar. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. X). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1914).
_______ (1969b). A Interpretação dos Sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vols. IV e V). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1900).
_______ (2010). A dinâmica da transferência. In Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. X). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada nos anos de 1911-1913).
Lacan, J. (1985). O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário proferido no ano de 1964).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

_______ (1992). O Seminário, Livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Editora Zahar. (Seminário
proferido nos anos de 1960-61).

_______ (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos. Rio de Janeiro:
Editora Zahar. (Relatório publicado em 1961).

_______ (2001). O lugar da psicanálise na medicina In Revista Brasileira Internacional de


Psicanálise, nº 32. São Paulo: Opção Lacaniana. (Obra original publicada em 1966).
_______ (2003). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos ‘Escritos'. In Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Editora Zahar. (Obra original publicada em 1973).

_______ (2005). O Seminário, Livro 10: A Angústia. Rio de Janeiro: Zahar. (Seminário proferido
nos anos de 1962-63).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Oficina terapêutica como expressão da subjetividade: A arte como forma de resistência

Laudy Gabriele Pereira Guimarães*


Lívia Avellar Rangel Menezes**
Leonardo Lopes Miranda***
Ademir Pacelli Ferreira****

Resumo
O presente trabalho visa ressaltar a importância das oficinas terapêuticas realizadas no
CAPS UERJ discorrendo sobre aspectos fundamentais deste espaço de expressão, construção e
transformação subjetiva, bem como alguns desafios enfrentados no campo da saúde mental no que
se refere tanto a políticas públicas quanto sociais.
Palavras-chave: Subjetividade; CAPS; resistência.

Breve histórico
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) apresentam um valor fundamental para a
Reforma Psiquiátrica Brasileira, visto que através do surgimento de tais serviços abre-se a
possibilidade de organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no Brasil. Os CAPS
disponibilizam acompanhamento clínico e reinserção social através do acesso ao trabalho, exercício
dos direitos civis, fortalecimento dos laços familiares e oficinas como forma de intervenção
terapêutica.
De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2004), os CAPS se distinguem pelo porte,
capacidade de atendimento, clientela atendida e organizam-se no país de acordo com o perfil
populacional dos municípios brasileiros. Assim, estes serviços diferenciam-se como CAPS I, CAPS
II, CAPS III, CAPSi e CAPSad.
Os CAPS II, categoria na qual se insere o CAPS UERJ, são serviços de médio porte que dão
cobertura a municípios com mais de 50.000 habitantes, tendo como clientela adultos com
transtornos mentais severos e crônicos.

*
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
**
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
***
Psicólogo do CAPS-UERJ. Especialista em Psicanálise e Saúde Mental pela UERJ. Mestre em Psicanálise pela
UERJ.
****
Professor adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Coordenador do CAPS-UERJ. Preceptor do programa
especializado no CAPS-UERJ. Pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Apesar de todo avanço conquistado pela Reforma Psiquiátrica, inúmeros desafios vêm
surgindo neste cenário. Segundo Dimenstein e Liberato (2009), tais dificuldades podem ser
observadas no custeio dos procedimentos dos CAPS e na manutenção de hospitais psiquiátricos no
país devido à falta de um serviço que dê suporte à crise, bem como à falência das políticas públicas
de bem-estar social.
Ainda vivemos na era da normatização, da sociedade de controle, conforme proposto por
Foucault (1979), o que tem ocasionado o retorno da lógica manicomial através do excesso da
medicalização e até mesmo fora deste campo, nos atos de repressão política que temos vivenciado
na sociedade brasileira atualmente. Por isso, é fundamental pensar na resistência clínica e política
pautada na ética como estratégia de trabalho que vai nos guiar no campo da Saúde Mental.
[...] entendemos ser urgente pensar, inventar e propor outras formas de lidar com o espaço
urbano, com as relações que se constituem cotidianamente na cidade e, de modo mais
abrangente, com os discursos e práticas que modelam e modulam os processos de
subjetivação e as sociabilidades contemporâneas (Dimenstein e Liberato 2009, p. 9).
Diante disso, as oficinas terapêuticas tem sido um espaço de reinserção e reabilitação que
possibilita o encontro de coletivos, o diálogo, as trocas afetivas e a reflexão, os quais estimulam a
construção de vínculos pessoais e sociais, bem como o favorecimento da expressão da
subjetividade.
Ribeiro (2004b) afirma que as oficinas se sustentam na possibilidade de representarem
dispositivos que sejam catalisadores da produção psíquica dos sujeitos envolvidos, facilitando o
trânsito social deles na família, na cultura, bem como sua inserção ou reinserção no trabalho
produtivo. Dessa maneira, os estatutos que regulamentam as oficinas terapêuticas mostram que elas
são uma das estratégias por meio das quais a reabilitação psicossocial pode se realizar.

Oficina “Várias formas de falar”- uma construção coletiva junto à loucura


A oficina apresentada neste trabalho surge a partir da experiência disparada pelo Programa
de Educação pelo Trabalho na Saúde, do Ministério da Saúde, denominado Pet-Saúde/GraduaSUS.
O intuito era de se pensar uma nova possibilidade de atuação, em que profissionais, graduandos e
usuários pudessem dialogar e produzir formas de expressão e laço social.
Traremos algumas falas dos frequentadores da oficina “Várias formas de falar” a partir de
figuras, palavras e textos escolhidos livremente. No primeiro encontro, estudantes de psicologia
chegaram com a proposta de um “grupo de poesia”, recusada pelos pacientes que disseram “não
saber escrever poesia”. A posição tomada pelos estudantes de não ocupar um lugar pedagógico de

91
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

ensino abriu para a criação de um espaço de fala, no qual os próprios pacientes escolheram o nome
da oficina.
Ao invés de ensinar como fazer a poesia, foi possibilitada a liberdade da invenção simbólica
por parte dos pacientes. Um espaço com uma direção do tratamento foi oferecido, e cada sujeito
construiu de maneira singular sua forma de falar, que se estende a escrita, ao gesto, ao som etc. O
efeito deste primeiro encontro foi recolhido posteriormente através das produções por parte dos
pacientes, como veremos a seguir.

Fig. 1
Wil (os nomes foram modificados afim de não expor o paciente) ao ver a imagem a cima
(figura 1) afirma que nem todo mundo vê o mundo que ele vê. “Cada pessoa tem uma opinião de
como é o mundo, esse passarinho de cabeça para baixo vê o mundo diferente”. Ed diz que os
passarinhos mostram que “toda regra tem exceção”.
A exclusão da loucura atravessou diversos momentos da história, pontualmente retratada por
Foucault (1978), ocasionando a violência segregativa nas instituições manicomiais. Hoje a
segregação retorna de outra forma ficando explicita na moralização e no preconceito. O espaço da
oficina é uma forma destes pacientes contarem um pouco da sua história, não somente da
institucionalização, mas de um momento posterior, no qual o encontro com o social também pode
produzir a segregação e a auto segregação. Falar em “opinião diferente” ou em “exceção”
possibilita a este sujeito se relacionar com o Outro social, sem que ele seja invasivo e, com isso, o
próprio paciente se exclua. Seria isto a construção de um lugar subjetivo neste encontro com os
Outros sociais?
Na figura a seguir (figura 2) a normalidade entra em questão, seguida pela fala da paciente
Alci quando olha para imagem abre um sorriso e indaga “o que é ser normal? Acho que cada pessoa
é normal aos seus sentidos”. Laurent (2011) afirma que os delírios de normalidade vão com os
delírios de segregação, como uma defesa a singularidade profunda. Ser “normal aos seus sentidos”,

92
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

como diz a paciente, soam como notícias desta singularidade, pois o que chamou de normal, nada
mais é, na fala dela, a sua forma de ver e estar no mundo.

Fig. 2
Essa representação da singularidade pode estar na fala de Rosa que ao se deparar com a
imagem (figura 3) de uma senhora olhando no espelho comenta que em sua casa tem vários
espelhos, mas ela não consegue se olhar em nenhum devido à perda de todos os dentes superiores.
“Eu não posso sorrir, não posso tirar foto e isso tá acabando comigo. Dizem que a beleza da mulher
está no cabelo, mas não acho. Para mim, está nos dentes” e completa: “o cabelo corta e cresce já os
dentes, não”.

Fig. 3

93
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Fig. 4
Gil ao ver a imagem (figura 4) a considera interessante e diz: “Esse menino está angustiado
e deprimido, ele parece acorrentado pela tristeza, mas mantém por fora uma aparência feliz”. “Esse
rapaz está desesperado e também já tive isso. O nome disso é crise em transe, uma síndrome do
pânico agitada e seu perigo é o suicídio. Uma vez eu tentei me matar”.
O sujeito psicótico mostra-nos que o sujeito é falado e que sofre os efeitos desta voz que
vem do Outro. “As vozes me mandam matar, roubar, tomar veneno e me chamam de traficante e eu
respondo dizendo que não sou nada disso”, relata Van. Gil diz que ao responder às vozes sente-se
como se estivesse se livrando de um espírito maligno.

Considerações finais
A Reforma Psiquiátrica trouxe consigo novos modos de subjetivação, pressupondo prática
distintas do modelo asilar com a ruptura da lógica tutelar a ele associada. No entanto, há problemas
que ultrapassam o campo da Saúde Mental e do próprio SUS e que dizem respeito à falência das
Políticas Públicas.
Como forma de inserção social e resistência contra o presente cenário, a oficina terapêutica
tem sido um espaço de transformação e um processo de construção, marcada pelo diálogo e pelo
respeito às diferenças. Mas não se trata apenas de incluir o sujeito psicótico nas relações cotidianas
dentro e fora do serviço de saúde mental sem considerar sua especificidade, mas de respeito à sua
forma singular de estar no mundo, em um processo de dar voz a quem na sociedade não tem vez.

Referências
Dimenstein, M.; Liberato, M. T. (2009). Desinstitucionalizar é ultrapassar fronteiras sanitárias: o
desafio da intersetorialidade e do trabalho em rede. In Cad. Bras. Saúde Mental. Vol 1, nº1 (pp. 1-
10). Natal: Brasil.

94
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Foucault, M. (1978). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva. (Obra
original publicada em 1972)
Foucault, M. (1979) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
Laurent, E. (2011). El sentimento delirante de la vida. Buenos Aires: Colección Diva.
Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas. (2004). Saúde Mental no SUS: Os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília.
Ribeiro R.C.F. (2004b). Oficinas e redes sociais na reabilitação psicossocial. In Costa, C. M. &
Figueiredo, A. C. (orgs.). Oficinas Terapêuticas em Saúde Mental: Sujeito, produção e cidadania
(pp. 105-116). Rio de Janeiro: Contra Capa.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

O trabalho de elaboração de uma criança diante da verdade sobre a morte do pai

Talita Alves Barbosa da Silva*

Michelle Menezes Wendling**

Resumo

O Ambulatório de Pediatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) oferece a


possibilidade de atendimento psicológico às crianças que realizam tratamento no hospital, via
Sistema de regulação (SISREG) do Sistema Único de Saúde. Em abril de 2017, a equipe de
psicologia recebeu o encaminhamento da nutrição para atender uma criança, a pedido de sua mãe.
Após saber detalhes sobre a morte do pai, contados pela mãe durante o tratamento, a criança trouxe
novos elementos para as sessões, tais como: sentimentos de desamparo, agressividade, raiva e amor
pela mãe, além de fantasias que se referem ao seu mundo imaginário, seus conteúdos e atividade
criadora. Pretende-se discutir alguns aspectos do trabalho de elaboração da criança diante da
verdade sobre a morte do pai. A simbolização da perda do pai tem possibilitado a construção de
narrativas próprias que dizem da forma como a criança processa sua morte e trazem elementos de
sua realidade psíquica dos quais a psicanálise se ocupa.

Palavras-chave: Criança; elaboração; psicanálise; morte; luto.

Introdução

O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) recebe pacientes encaminhados via


SISREG (Sistema Nacional de Regulação), uma ferramenta do Ministério da Saúde fornecida de
forma gratuita e de utilização não compulsória. O SISREG foi pensado com o objetivo de otimizar a
organização, o controle dos fluxos de acesso aos serviços de saúde e a utilização de recursos
assistenciais, com vistas a humanização no atendimento (Ministério da Saúde, 2017).

O Ambulatório de Pediatria do HUPE é dividido em várias salas para atendimentos de


profissionais, como psicólogos, médicos, fonoaudiólogos e enfermeiros. Dentre elas, a sala de
psicologia, localizada no final de um corredor. O psicólogo não apenas realiza atendimentos
ambulatoriais nessa sala, como também participa de alguns ambulatórios específicos, como o da

*
Psicóloga. Residente de primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
**
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em
Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Preceptora do Curso de Especialização em
Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar. IP-UERJ (2017).
96
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Genética, o do Follow-up (para acompanhamento de bebês e crianças até onze anos) e o da


Neuropediatria, nos quais atua em uma equipe multiprofissional. Além disso, os residentes também
podem participar e coordenar atividades do “Café com ciência”, que ocorrem pelo menos uma vez
ao mês, com o objetivo de reunir profissionais de diferentes áreas para discutir temas relevantes
para o trabalho na UDA de Pediatria.

Nesse setor é comum recebermos encaminhamentos dos profissionais para atendimentos das
crianças, que pode ser por um pedido dos pais ou responsáveis. Geralmente, as queixas para
justificar o atendimento pela psicologia no ambulatório estão relacionadas à enurese, problemas
escolares, morte de algum ente, situações familiares conturbadas ou de violência sofridas pela
criança.

Segundo Cardoso e Hennington (2011), o trabalho em equipe multiprofissional representa


um dos pontos centrais na reorganização da atenção à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). Ele
surge como uma estratégia para redesenhar os processos de trabalho e promover a qualidade dos
serviços (Cardoso & Hennington, 2011). A partir das contribuições dadas por Colomé, Lima e
Davis (2008) citado por Cardoso & Hennington (2011), pode-se pensar que é preciso desenvolver
um trabalho conjunto no qual todos os profissionais se envolvam em algum momento na
assistência, de acordo com seu nível de competência específico, e possam conformar um saber que
trabalhe com a complexidade dos problemas de saúde. Contudo, sustentar nossa prática e
particularidade em um contexto hospitalar, medicalizante, é uma tarefa árdua, uma vez que
trabalhamos com os aspectos subjetivos sob outra perspectiva. A psicanálise não privilegia a
formalização desses aspectos em entrevistas, testes, questionários e nem procura quantificá-los,
como nos demandam alguns profissionais. Além disso, ela não tem como objetivo prever de
antemão o tempo de tratamento. Nesse sentido, ao oferecer um espaço de escuta, ela opera um
desvio de um ponto de vista reducionista do sujeito.

Assim, com essas considerações iniciais sobre o trabalho no ambulatório de Pediatria, este
texto pretende discutir, sob o referencial psicanalítico, um atendimento clínico realizado no setor.
Em abril de 2017, a equipe de psicologia recebeu o encaminhamento de um profissional da nutrição
para atender uma criança, a pedido de sua mãe. Segundo a nutricionista, o paciente estava em
tratamento final de dislipidemia. A dislipidemia é a elevação de colesterol e/ou triglicerídeos no
plasma ou baixa concentração de HDL que contribui para o acúmulo de gorduras, colesterol e
outras substâncias nas artérias (Goldeberg, 2017). O paciente participava de um grupo, coordenado

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

pela nutrição, que realiza o tratamento através de orientação sobre alimentação saudável às crianças
e seus responsáveis. Para apresentar o caso serão utilizados nomes fictícios.

Caso clínico

Lucas tem entre cinco e dez anos e passou a frequentar os atendimentos da psicologia por
um pedido de sua mãe, Beatriz. Na primeira conversa, a sós com ela, me falou sobre sua vida, seu
único filho Lucas e a recente morte do pai dele, há menos de um mês.

A questão da qual mais se queixava era não ter tido coragem de contar a verdade sobre a
morte do pai para Lucas. Ao invés disso, contou à criança que o pai morreu “porque comeu muito”.
Interessante, é perceber que nessa fala a mãe atualiza para a criança algo que é para todos. Afinal,
todos comem e todos morrerão. Lucas, por sua vez, teria questionado: “muita besteira?” Ao que a
mãe teria dito “sim”. Beatriz dizia que, em alguns momentos, via o filho chorar pelo pai. Vê-lo
assim a angustiava e pensava em contar a verdade ao filho. Mas dizia não saber como faria isso.
Temia pela reação de Lucas quando soubesse do ocorrido com o pai e que ela havia mentido para
ele.

Na semana seguinte, então, ela traz o filho para conversar comigo. Lucas me diz que
pensava ter vindo ao hospital para tirar sangue como em um exame de rotina. Disse a ele que estava
na sala da psicologia e que ele poderia brincar e falar do que quisesse ali. Após algum tempo, Lucas
viu alguns blocos de madeira que havia na sala e começou a montar uma casa muito grande, na qual
morariam sua mãe, sua avó e seus amigos. Ao final da sessão, disse que ele poderia voltar na
semana seguinte. Lucas voltou e, nas semanas posteriores, sempre desenhava. Corações eram temas
recorrentes, pelo menos, um por atendimento. Ao final das sessões, na maioria das vezes,
entregava-os a sua mãe e dizia que a amava muito.

Algum tempo depois, Beatriz relatou que o filho chorava, ao lembrar-se do pai, e a
perguntava: “mãe, por que o papai tinha que comer tanta besteira?”. Essa fala do filho incomodava
a mãe. Pensou que ela poderia contar o que, realmente, aconteceu com o pai, antes que alguém o
fizesse. Contudo, Beatriz, me trazia algumas questões sobre como fazer isso ou se deveria fazê-lo.

Nesse momento, então, meu papel foi apostar num trabalho de escuta do paciente, além de
acolher a angústia da mãe sobre o filho poder ou não suportar a verdade sobre a morte do pai. A
mãe decidiu contá-la e após algumas semanas, me disse que revelou ao filho que o pai “morreu
assassinado, por ter se envolvido com pessoas erradas”. Ainda que a demanda de amor pela mãe,
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

com quem disse não estar chateado, continuasse, percebi que, após essa fala, o comportamento de
Lucas mudou e ele passou a trazer novos elementos para as sessões.

Lucas começou a desenhar e representar super-heróis e vilões em histórias com cenas


violentas, que envolviam mortes e salvamentos. Em uma das ilustrações fez um desenho de alguém
dando um soco em uma pessoa que vai ao ar e atinge outras pessoas, em cadeia. Diante dessa
situação, aparece um super-herói, o qual emite um raio para salvar alguém. Porém, o vilão ataca as
outras pessoas, que morrem.

Em seguida, Lucas diz que o vilão quase matou seu pai amado e desconversa. Foi a única
vez em que o mencionou de forma direta. Nesse momento, é possível dizer que Lucas nos fala do
desejo de que um super-herói pudesse salvar o pai. Contudo, ao mesmo tempo, diz que ele não
morreu. Aqui resta a dúvida: se trata da dificuldade em aceitar a morte do pai ou de um trabalho
sobre a presença (viva) simbólica do pai?

Em uma sessão posterior, o paciente desenhou uma pessoa toda cortada em um leito de
hospital e me disse que essa pessoa internada “poderia estar em perigo de morte”. Nessa situação,
Lucas também disse: “existem pessoas horríveis que nós amamos, mas não gostamos”. Essa fala,
por sua vez, poderia estar relacionada ao pai que ele amava, mas que teria se envolvido em uma
situação de risco.

No decorrer das sessões, foi possível perceber que a situação de morte violenta de Tiago, o
pai, suscitou, em Lucas, fantasias e sentimentos que não apareciam anteriormente. O corpo “todo
cortado”, poderia remeter ao pai que morreu desfigurado, ao levar tiros no rosto. Lucas atualizava
isso quando, em algumas sessões, simulava atirar em meu rosto com uma arma muito potente. Em
um delas, me deu uma arma inferior, com a qual eu não podia me defender. Disse estar protegido
com aquela arma. Mas, afinal, do que Lucas queria se proteger? Ele me contou também que sua
mãe era muito esperta e sabia cuidar da sua própria vida.

Demonstrações de agressividade, de amor à mãe e raiva pela morte do pai se misturavam


nos atendimentos. As fantasias de Lucas, trazidas para as sessões, se referiam ao mundo imaginário,
a seus conteúdos e à sua atividade criadora (Laplanche & Pontalis, 2000). E, dessa forma, se
apresentavam como a correção de uma realidade não satisfatória. Foi, então, a partir delas que se
tornou possível perceber como Lucas processava a perda de seu pai.

99
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Na sessão anterior ao segundo domingo de agosto, dia dos pais, Lucas demonstrava raiva em
suas palavras e em suas brincadeiras. Jogava objetos de forma abrupta no chão e furava o quadro
várias vezes. Ao questionar sobre seus desenhos, me dizia não querer falar sobre o que estava
fazendo e se justificava ao dizer que poderia fazer o que quisesse naquela sala.

Além disso, podemos dizer que a morte do pai também representava a morte da ilusão
narcísica da onipotência infantil, fonte de segurança e sustentação para Lucas. Assim, com o tempo,
ele passou a expressar de forma mais evidente o medo de ficar sozinho, sem Beatriz, inclusive
durante os atendimentos. Dessa forma, antes de iniciar as sessões, perguntava à mãe se
ela sairia para algum lugar. Algumas vezes, permitia a sua saída, desde que ela o informasse aonde
iria e se voltasse no tempo combinado. Todavia, mesmo assim, Lucas me pedia, em algumas
situações, para que eu ligasse para sua mãe a fim de saber onde ela estava.

Esses fatos atualizavam o sentimento de desamparo de Lucas que ameaçava sua


sobrevivência física e emocional (Franco & Mazorra, 2001) e mobilizava algumas fantasias. Em um
dos atendimentos posteriores, por exemplo, o paciente produziu três desenhos. Um deles envolvia
um assassino, uma vítima e uma testemunha. Ele me contou que a vítima, caída no chão, foi morta
pelo que chamou de “assassinador”. O “assassinador”, por sua vez, seria denunciado pela
testemunha à polícia, que mataria o acusado. Essa cena de violência denotava o medo de Lucas e se
relacionava com seu segundo desenho: o de uma criança em casa, sozinha, morta por uma pessoa
que entrou em sua casa. No terceiro desenho, por sua vez, o paciente se referiu a um homem que
matou outro homem, ilustração que pode ser vista como parte de um trabalho de elaboração do filho
para se apropriar da verdade contada pela mãe e assim construir, de modo singular, um saber.

As questões em torno da figura do pai produziram efeitos marcantes nas sessões. Lucas
expressava insatisfação, revolta e tristeza diante da verdade sobre a morte do pai, sentimentos com
os quais trabalhávamos a cada atendimento. Na construção desse caminho, portanto, meu trabalho
foi o de acolher a angústia de Lucas e possibilitar um espaço para elaboração do luto, para que ele
pudesse, a partir daí se posicionar como um sujeito desejante. O desejo nos fala da fabricação de um
anteparo ao desejo do Outro, de sair da condição de mero objeto. Por isso, no processo de escuta, o
analista deve, não somente interrogar a palavra do pai e da mãe, mas também perceber como a
criança se posiciona nessas palavras, qual é o lugar atribuído a ela e o que ela suporta dessas
relações. O pai da experiência não aparecia nas palavras de Lucas diretamente referido. Dele,
sabemos mais pelas entrelinhas e pelas poucas palavras da mãe. No entanto, através de seus
comportamentos, desenhos, fantasias, o pai pôde ser falado pelo paciente.
100
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Considerações finais

Lucas segue em atendimento e prossegue numa busca por novos caminhos para o desejo. O
trabalho de simbolizar a perda do pai tem possibilitado a construção de narrativas próprias que
dizem da forma como ele processa sua morte e trazem elementos de sua realidade psíquica com a
qual trabalhamos.

A respeito do luto, Freud (1996) o descreve como um trabalho do ego para adaptar-se à
perda do objeto amado. Dessa forma, a elaboração do luto implicaria a retirada gradual de
investimento libidinal de alguns objetos e investimento em outros. É por meio desse percurso que
esses objetos de amor podem ser desinvestidos e o sujeito passa a encontrar novos substitutos.
Evidentemente, esse processo não é tão simples, pois envolve não apenas encontrar objetos
substitutos, mas elaborar as fantasias que são ativadas com a perda de objeto. O processo de luto é,
portanto, um redimensionamento das fantasias e defesas do psiquismo, em busca de um novo
equilíbrio de forças (Campos, 2013).

No entanto, percebo que para além da falta do pai e do sentimento de desamparo,


experimentado por sua perda, o que estava em jogo, para Lucas, era o encontro com a sua própria
finitude. Lucas queria se proteger da sua própria morte, cuja possibilidade foi anunciada pelo
falecimento de seu pai. Por se sentir vulnerável, ele buscava a proteção da mãe. Tal constatação
pode ser vista também, em uma das sessões posteriores, na qual fala que quem toma vinte litros de
café, morre. Ele contou que já havia tomado um pouco de café antes, mas não tomaria mais. Essa
situação ficou mais clara quando, após o final da sessão com Lucas, a mãe, me relatou que ela havia
passado mal, naquela semana, após ingerir café. Dessa forma, podemos dizer que, por meio do
estado da mãe, algo sobre a vulnerabilidade da vida e a possibilidade da morte se atualizou para
Lucas.

A morte nos remete ao real, que resta sempre como não simbolizável. Granha (1996b), a
partir das observações freudianas, também nos lembra que a psicanálise, ao se ocupar do real,
inassimilável, excluído da ciência, se compromete com uma nova ética. Lacan (1988) nos fala da
ética do desejo, da falta, do Real e do vazio. A posição ética do analista, contudo, não deve ser vista
como um fracasso em nossa prática. Antes, ela revela a impossibilidade de o saber vir a saber tudo.
Trata-se de levar em conta o objeto como perdido desde sempre e, ao considerar essa
impossibilidade, que ele sinaliza, apostar que o sujeito possa criar um saber para habitar esse vazio.

101
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Lacan (1997) também dizia que o que importa ao analista é certa direção à verdade, a qual
implica uma falha, um não todo. Essa verdade, por sua vez, não pode se restringir a uma realidade
objetivante, visada pelo discurso da ciência. Consideramos ser, justamente, essa uma das
contribuições de um trabalho de orientação psicanalítica na instituição hospitalar: acolher os restos
do discurso da ciência. Assim, é na urgência subjetiva, diante de uma verdade escancarada, que o
psicanalista atua no limite do que se pode saber e do sem sentido e oferece um espaço no qual o
paciente possa ser escutado.

Referências

Campos, E. B. V. (2013). Considerações sobre a morte e o luto na psicanálise. In Revista de


Psicologia da UNESP 12(1) (pp. 13-24).

Cardoso, C. G. & Hennington, E. A. (2011). Trabalho em equipe e reuniões multiprofissionais de


saúde: uma construção à espera pelos sujeitos da mudança. In Trabalho, Educação e Saúde 9
(Suppl. 1) (pp. 85-112). Recuperado em 10/10/2017 em: https://dx.doi.org/10.1590/S1981-
77462011000400005.
Franco, M. H. P. & Mazorra (2007). Criança e luto: vivências fantasmáticas diante da morte do
genitor. In Estudos de Psicologia 24(4) (pp.503-511). Recuperado em 08/10/2017 em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-166X2007000400009&script=sci_abstract&tlng=pt
Freud, S. (1996). Luto e melancolia. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. XIV) pp. 245-266). Rio de Janeiro: Imago. (Obra
original publicada em 1917).
Granha, M. T. (1996b). Reflexões sobre a prática do psicanalista no Hospital Geral. In Moura, D.
M. (Org.). Psicanálise e Hospital. Rio de Janeiro: Revinter.
Lacan, J. (1997). O Seminário livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
(Seminário originalmente proferido em 1959-1960).
Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (2000). Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
(Obra original publicada em 1982).
Ministério da Saúde. Portal da Saúde (2017). SISREG – Sistema de Regulação. Recuperado em
11/10/2017 em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/1039-
sas-raiz/drac-raiz/cgra/l1-cgra/14550-sisreg
Merck Sharp & Dohme Corp. Manual MDS: versão para profissionais de saúde. Goldeberg, A. C.
(2017). Dislipidemia (Hiperlipidemia). Recuperado em 14/10/2017 em:

102
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

http://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/disfun%C3%A7%C3%B5es-end%C3%B3crinas-e-
metab%C3%B3licas/dist%C3%BArbios-lip%C3%ADdicos/dislipidemia

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Considerações psicanalíticas sobre o ato de comer na obesidade infantil


Jahyne Aparecida Carvalho Silvestre
Vinicius Anciães Darriba
Resumo
O presente trabalho tem como proposta elucidar alguns pontos referentes ao ato de comer na
obesidade infantil a partir do referencial teórico-clínico da psicanálise e de sua interlocução com o
saber da medicina a respeito da obesidade. Ressalta-se, ainda, que estas considerações são
resultantes do trabalho realizado no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), mais
especificamente em um ambulatório da especialidade de endocrinologia pediátrica. Desse modo,
veremos que a questão da obesidade se coloca na experiência assistencial de saúde como um
impasse por não oferecer um resultado que atenda às expectativas médicas de emagrecimento, ou
mesmo às expectativas dos pais em relação ao sofrimento suscitado pelo excesso presente no ato de
comer de seus filhos.
Palavras-chave: Psicanálise; medicina; obesidade infantil

Introdução
Este trabalho tem como ponto de partida questões suscitadas a partir da atuação clínica no
Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) em um projeto voltado especificamente para o
acompanhamento de crianças obesas em um ambulatório de endocrinopediatria. A partir de tal
experiência, interessou-me refletir sobre as especificidades do trabalho clínico com crianças ditas
obesas, que segundo o discurso médico apresentam um “comer sem limites”.
O ambulatório de endocrinopediatria nasceu a partir de um esforço de médicos e
nutricionistas com o objetivo de identificar e atuar sobre as alterações metabólicas e os hábitos
inadequados da criança obesa a partir de orientações educativas e corretivas. Por estar sediado em
uma instituição pública de saúde se apoia na lógica do bem-estar e realiza suas intervenções
intrinsecamente ligadas aos preceitos da saúde coletiva preconizados pelo Estado. Para isso, atuam
a partir de critérios que se assentam na ética do serviço de bens, tais como a cura, a intervenção
pedagógica e o uso de medicamentos.


Psicóloga. Residente de segundo ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar – IP/ UERJ (2017).

Professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Supervisor do Curso de Especialização em Psicologia
Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

De acordo com Oliveira e Fisberg (2003), a obesidade infantil vem apresentando um rápido
aumento nas últimas décadas, sendo caracterizada como uma verdadeira epidemia mundial . De
acordo com relatos da Organização Mundial da Saúde (OMS), a prevalência de obesidade infantil
tem crescido em torno de 10 a 40% na maioria dos países nos últimos dez anos. A obesidade ocorre
mais frequentemente no primeiro ano de vida, entre cinco e seis anos e na adolescência. Para Mello,
Luft e Meyer (2004), a definição de obesidade é muito simples quando não se prende a
formalidades científicas ou metodológicas. O visual do corpo é o elemento que ganha o maior
destaque. O ganho de peso na criança é acompanhado por aumento de estatura e aceleração da idade
óssea.
Como podemos ver a respeito da obesidade infantil, o discurso médico circunscreve dois
pontos: 1) o corpo que se apresenta em excesso; 2) o comer desmedido. Mas, o que pretendemos
mostrar ao longo dessa escrita é que apesar dos diversos atravessamentos discursivos em torno do
fenômeno da obesidade, algo ainda comparece como enigmático e irredutível aos saberes vigentes.
Esse ponto instransponível parece ser situado pela equipe através da expressão compulsão
alimentar. Tal expressão faz referência a algo excessivo e que não se submete as intervenções do
saber médico.
De acordo com o saber médico, então, a obesidade é uma doença crônica caracterizada pelo
acúmulo excessivo de tecido adiposo no organismo. Sua causa é considerada multifatorial
dependente de fatores genéticos, metabólicos, sociais, comportamentais e culturais (Tavares;
Nunes; Santos, 2010). Alguns fatores são associados ao ganho de peso, tais como: mudanças
significativas em alguns momentos da vida; determinadas situações de violência e fatores
psicológicos (por exemplo, estresse, ansiedade, depressão e acrescentam, aqui, a compulsão
alimentar).
Se a obesidade infantil é inicialmente abordada pelo saber médico, logo se verifica que essa
abordagem não consegue dar conta sozinha desse fenômeno: daí emerge o entendimento de que se
trata de uma alteração multifatorial, o que leva à valorização da abordagem interdisciplinar. Nesse
sentido, é possível encontrar na literatura sobre essa questão considerável destaque nesses outros
atravessamentos, na medida em que, para além das influências fisiológicas estritamente orgânicas,
evidencia-se a importância de atentar para aspectos ditos comportamentais e sociais relativos à
alimentação inadequada (Dobrow, I. J., Kamenetz, C. & Devlin, 2002; Machado, 2009; OMS,
2009).
Vemos, ainda, que a obesidade não é compreendida como pertencente ao grupo de
transtornos alimentares, pois, de acordo com critérios médicos, há uma falta de “associação
consistente com uma síndrome psicológica ou comportamental” (DSM IV, 1995, p. 511). E se há
105
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

alguma associação, os sintomas são levados para o campo dos “fatores psicológicos que afetam a
condição médica”. O Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica (TCAP) está dentre estes
fatores psicológicos; apontado como o transtorno mais presente na obesidade, é caracterizado pela
ingestão de grandes quantidades de alimentos, enquanto o indivíduo experimenta uma sensação de
perda de controle.
Assim, nos aproximamos de Carneiro (2004) na medida em que este não concebe o consumo
em excesso de alimentos meramente como uma questão de transtorno alimentar. Não se pode tomar
simplesmente o ato da ingestão de alimentos como algo situado na esfera do natural, pois esse
fenômeno engendra um mecanismo particular, isto é, a posição do sujeito diante do objeto alimento
e sua representação.
Seguindo esta discussão, Machado (2009), a partir de sua experiência clínica com crianças
obesas no campo da assistência, remete o excesso presente na obesidade infantil à dimensão do
comer tudo o que se vê pela frente, sem distinção. Para a autora, o comer desmedido pode ser
considerado resultado da não complementaridade entre mãe e bebê que deixa pelo caminho algo
sem consistência simbólica, isto é, algo que está desde sempre perdido. Desse modo, a obesidade
infantil configura-se como uma escrita no corpo, onde a comida possui a função de evitar o
encontro com a falta. Algo parece permanecer, então, como obstáculo ao registro que liga a fome à
segurança, isto é, ao território do princípio do prazer que, para Freud (1996), visa à obtenção de
prazer pela redução das tensões ao mínimo possível. A autora também destaca a possível vertente
de endereçamento deste fenômeno, ao compará-lo ao grito do bebê frente ao desamparo.
Assim, a partir do trabalho realizado no âmbito da psicanálise aplicada ao hospital geral,
buscamos extrair alguns elementos que possam contribuir para uma apreensão psicanalítica da
obesidade. Oliveira e Darriba (2015), ao se questionarem a respeito do que inferir sobre crianças
que engordam devido ao comer desmedido, apontam que o fenômeno da obesidade evidencia uma
satisfação pulsional que muitas vezes é refratária aos ensinamentos comunicados pedagogicamente
pela abordagem médico-nutricional.
A demanda dirigida pela medicina à equipe de psicologia situa-se nesse aspecto, com falas
referidas aos pontos de excesso de comer e de perda de controle que esse conceito médico parece
apontar. Nesse cenário, acreditamos que a função do analista é a de sustentar a abertura de uma
demanda de análise pela constatação da falta que emerge pela via da angústia, e não a de atender à
demanda de emagrecimento. Tendo a formulação dessa demanda como horizonte norteador, o
tratamento com crianças ditas obesas exige, então, um trabalho prévio, que implica um investimento
especial no estabelecimento da transferência.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Logo, pensamos que a melhor maneira de introduzirmos essa discussão se faz com a
apresentação da clínica e de suas questões, que motivaram a nos lançar neste trabalho. Afinal, como
Freud postulou, não há teoria sem clínica. Aqui, então, nos remetemos ao atendimento de Júlia1,
atendida no ambulatório de endocrinopediatria, no qual a paciente foi apresentada a partir de uma
queixa de comer excessivo.
A clínica
Para a psicanálise cada um que chega à clínica é singular e não vem sem uma história. Por
isso, a importância de se dirigir ao sujeito. Ao nos propormos um trabalho a partir da fala, sustenta-
se as questões referidas ao campo do desejo. Cabe, pois, à psicanálise apontar aquilo que é
particular a cada um, para que o sujeito possa se localizar naquilo que o acomete e o que isso
representa na sua história. A teoria psicanalítica advém da experiência. É a aposta do analista e a
posição que ele ocupa para um paciente que faz com que a psicanálise aconteça. Assim, em um
ambulatório norteado pelo discurso analítico essa pergunta se reafirma na práxis colocando em cena
os desafios da formação do residente de psicologia ao atentar para aquilo que insiste e resiste na
história de cada sujeito.
Júlia, paciente de doze anos, foi encaminhada para atendimento com a psicologia por não
seguir a dieta que vem sendo recomendada pela medicina, além da mãe ter relatado para a equipe
médica que come em diversos momentos escondida, chegando a comer “um tabuleiro de pavê
sozinha”.
Júlia chega acompanhada de sua mãe para a primeira entrevista com a psicologia. A mãe de
Júlia de inicio começa a dizer que precisa de ajuda, pois a filha “come muito e se deixar come tudo
que tem”. Apresenta a filha, então, a partir de falas tais como: “come muito e mente dizendo que
não comeu”. Coloca ainda que, a partir das mentiras da filha, não permite que fale em casa e
acrescenta: “é criança ainda e ela mente, então não deixo ficar falando muito. Ela fala demais”.
Quando esta mãe tenta dizer algo a respeito do ato de comer de sua filha aparece outra fala
importante de ser destacada aqui: “Ela gosta de chamar atenção e quer que eu olhe só para ela”.
Continua dizendo que, quando está conversando com outras pessoas, a filha costuma chorar para
“chamar atenção”.
Júlia, quando sozinha no atendimento, me confidencia que gosta muito de comer e come
porque não pode falar. “Eu não posso falar as coisas que estão aqui; eu como quando as coisas me
deixam triste e não posso falar”. Podemos pensar, então, em uma tristeza que aparece em ato? Sobre
o início do ato de comer em excesso, Júlia faz uma menção ao que parece ser um saber não sabido:
“Não sei bem por que começou”. Lacan (1967/2003, p.371) nos diz que “o ato puro e simples tem

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

lugar por um dizer”, logo um ato pode ser entendido como um dizer. Indagamos, assim, se a relação
entre o indizível da experiência e o incontrolável da angústia se manifesta no comer desmedido.

Considerações finais
Desse modo, nos permitimos interrogar a compulsão por comer do ponto de vista do dispositivo
analítico, considerando que muitas vezes a compulsão por comer se configura como um
endereçamento que convoca ao analista na sua função. Podemos acrescentar aqui algo que ocorreu
durante o atendimento de Júlia: esta, em uma sessão, trouxe doces para comer e disse em seguida
que não teria nada para dizer naquele dia. A questão que se coloca nesse momento,segundo Lacan
(1962-1963/2005), é, então, o que empreender para “pôr o cavalo na roda para fazê-lo girar no
carrossel” (p.140), ou seja, o que fazer para destinar a repetição em ato à fala.
Os atendimentos com Júlia parecem apontar que ela repete em ato ali onde não consegue dizer.
Interessa-nos, então, pensar em como fazer para que isso que aparece como ato passe ao viés da
fala. Assim, se a análise é fundada no campo da fala de um sujeito em transferência, é porque há um
caminho na fala que pode levar ao desejo. A fala, justamente por portar a descontinuidade e o
equívoco, tão próprios ao significante, permite situar o sujeito com a causa que o põe a falar.
Se Júlia vai poder dizer algo disso que ainda não é possível ser posto em palavras, não
sabemos, mas continuamos tendo em mente que “(...) a tarefa do analista é apenas a de relançar o
discurso do analisante” (Quinet, 1991, p.14), isto é, nossa direção é de que esse sujeito possa
subjetivar sua própria questão (Alberti, 2004, p.57). Acreditamos, assim, que, seguindo esse
caminho, Júlia possa tomar a palavra e relatar sua história. Pois, se a psicanálise tem como ponto de
partida de sua prática a palavra, cabe-nos sustentar uma escuta que leve em conta o sujeito e sua
fala como possibilidade de trabalho, nos interessando pelo dizer do sujeito. A nossa tarefa, então, é
favorecer ao sujeito uma elaboração a partir daquilo que se apresenta em sua fala. Não se trata de
orientações, convencimentos ou sugestões, como muitas vezes a equipe nos demanda, mas sim,
situar simbolicamente o sujeito naquilo que ele fala.
Por fim, ao nos parecer indispensável o diálogo com o discurso médico, apontamos para o fato
que a compulsão por comer destacada do sintoma médico não constitui por si um sintoma analítico,
mas indica a necessidade de circunscrever essa conduta que é sentida pelo sujeito como uma
obrigação de comer, tendo em vista as diferentes formas como a compulsão e a dimensão do ato são
articuladas no campo psicanalítico.

Nota:
1. O nome utilizado neste caso clínico é fictício para preservar a identidade da paciente.
108
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A aposta na singularidade como direção de trabalho nas Políticas Públicas

Poliana Netto Duarte*

Resumo

Este trabalho é fruto de uma reflexão sobre a experiência de ocupar o lugar de residente de
Psicologia Clínica Institucional e as possíveis consequências disto para a formação do profissional
psicólogo. A partir do tema da mesa “Contribuições da Residência à nossa prática atual” no XXI
Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional realizado no mês de outubro de 2017 na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pretende-se destacar alguns pontos da minha experiência
como residente de Psicologia nos 2015-2016 e articular as marcas dessa experiência na prática atual
como psicóloga atuante na Política Pública de Assistência Social. Em última instância, busca-se
destacar alguns aspectos que a clínica psicanalítica pôde contribuir para a prática do psicólogo
orientado pela psicanálise.

Palavras-chaves: Psicanálise; transferência; singularidade; equipe.

Introdução

Há vinte e um anos que o programa de Residência de Psicologia Clínica Institucional do


HUPE/UERJ vem debatendo sua prática e apresentando sua inserção no campo da política pública
de saúde. No XXI Fórum de Residência de Psicologia Clínica Institucional do IP-HUPE/UERJ o
tema em questão é a clínica como política de resistência. Nada mais oportuno do que discutir qual é
o lugar da clínica no contemporâneo diante de tantos conflitos éticos, estéticos e políticos. Um dos
sentidos possíveis para a significação da resistência nesse contexto seria pensá-la como um norte,
que aponta para um avanço no trabalho de fazer existir uma prática discursiva que valide a
diferença e com ela opere. Uma prática clínica que se interrogue pelo sujeito dividido, seu gozo e
seu desejo. A clínica psicanalítica volta-se para a singularidade, onde a fala do sujeito não pode ser
antecipada, justamente porque ele só pode emergir a partir de sua própria fala visto que ele está nos
intervalos significantes.

Seu discurso não tem equivalência a nenhum outro, uma vez que sua verdade advém de sua
fala. Portanto, ao apontar para a dimensão inconsciente, o psicanalista trabalha sob a ética do

*
*Psicóloga da Prefeitura do Município de Queimados atuando no CRAS – Centro de Referência da Assistência Social.
Pós-graduanda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

desejo, não cabendo a ele a via da cura, da pedagogia, do aprendizado, da sugestão como direções
do tratamento. Nesse sentido, a aposta no que é singular poderia expressar-se como resistência
frente ao discurso científico, num questionamento ético ao convocar os sujeitos a dizer de si e de
seu desejo na produção desses saberes sobre a vida e o viver.

É preciso uma ética que possa vir barrar o imperativo de gozo imposto pelo discurso
capitalista científico neoliberal: império do ter, do individualismo, da competitividade”. [...]
em contraposição a uma ciência universalizante, só é possível uma ética do particular como
propõe a psicanálise, que inclua o sujeito cuja essência, segundo Espinosa, é o desejo.
(Quinet, 2006, pp. 20-21).

É possível articular essa posição ética com o modo como o psicólogo residente se insere nos
espaços das instituições em que ele é convidado (ou não) a trabalhar. Em concordância com
Moretto & Priszkulnik (2014) fica claro que inserção do psicólogo como analista na equipe não é,
necessariamente, coincidente com o início de seu trabalho com a mesma. As autoras situam a
inserção como a construção de um lugar subjetivo construído a partir do ato do analista, do qual ele
possa operar. Isso significa que o lugar do analista na equipe está longe de ser um lugar pronto a ser
ocupado por aquele que inicia seu trabalho.

Do lado do analista, a forma como a demanda será escutada e como ela será respondida são
determinantes que podem favorecer ou não sua inserção na equipe. Por outro lado, o tipo de
demanda que a equipe lhe dirige tem igual importância, uma vez que as demandas de uma equipe
refletem a forma como está lida com a subjetividade que aparece no trabalho, seja excluindo-a e
nada querendo saber sobre ela, ou excluindo-a, mas afetada por ela através de um desejo de saber
algo sobre aquilo que aparece. (Moretto & Priszkulnik, 2014). Portanto, assim como acontece na
clínica no contexto do consultório, em que o analista não se colocar no lugar de analista, mas é
colocado neste lugar pelo analisante a partir da transferência, podemos fazer um paralelo na relação
com a equipe de saúde, em que não temos de saída um lugar garantido do qual poderemos operar
como analistas.

Podemos articular a questão da inserção do analista com a segunda parte do título tema deste
Fórum: “A clínica como política de resistência - desafios na formação do Residente de Psicologia”.
A formação foi colocada ao lado de desafio. A formação do analista é um desafio na medida em que
ela não está garantida por nada, situada apenas por balizadores como a análise pessoal, o estudo
teórico e a supervisão dos casos atendidos. O desejo de estar nesse lugar e o desejo pelo discurso da
psicanálise ajudam a sustentar essa formação.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Além dos desafios que o analista encontra na clínica, ao estar na instituição ele também se
depara com os desafios de trabalhar em uma equipe onde circulam diversos discursos, e ele se vê
com a tarefa de inserir-se, para poder trabalhar de dentro com esta equipe. Do mesmo modo, este
lugar não esta garantido, é igualmente um desafio. A inserção pode ser considerada como um dos
objetivos do residente de Psicologia orientado pela psicanálise, quando entendida como um lugar
subjetivo na relação com a equipe de onde se possa operar. Isso permite que ele possa trabalhar no
viés institucional concomitantemente ao viés clínico. Na prática não há respostas prontas e o
residente de Psicologia é incessantemente convocado a pensar seus atos e verificar os efeitos dos
mesmos num tempo a posteriori. Como sustentar uma prática na instituição que não vise
complementar, atender todas as demandas? Como não ocupar o lugar de auxiliar do médico, aquele
que tratará da subjetividade excluída, que atuará completando o discurso da medicina? Como
sustentar a clínica num contexto institucional atravessado por diversas dificuldades de ordem
política, econômica, social? O desafio está lançado a cada sujeito que se propõe a estar nesse lugar
de trabalho e de formação.

O que poderia significar estar no lugar de residente de Psicologia Clínica Institucional? A


tentativa de responder essa questão será a partir da minha experiência neste lugar e das marcas
produzidas por ele. Ser residente é estar no lugar de profissional, graduação concluída, respondendo
como psicóloga(o), no entanto, esse lugar não tem a mesma significação de um emprego. Qual seria
então a especificidade de ocupar o lugar de residente? O residente é um profissional em formação.
Sendo um objetivo do Programa que ele possa se formar na ação, diante de e com todos os impasses
do seu cotidiano.

Este lugar já pressupõe transformação e parte do princípio de que o profissional ali não está
“pronto”, há uma falta. Essa falta faz mover todos os envolvidos no processo, preceptores,
supervisores e o próprio residente, que por vezes chega ávido por preenchê-la, pretendendo
aprender tudo sobre o que pode fazer um psicólogo numa instituição como o hospital geral. Nesse
momento já é possível aprender uma lição valiosa de que não é possível aprender tudo, da mesma
forma que não possível dizer tudo, e que a verdade mostra-se sempre parcial. Além disso, seu
tempo é finito. Para o residente, o fim está marcado desde o princípio, e creio que isso também
traga consequências aos sujeitos que ocupam este lugar. Não temos todo o tempo do mundo, nem
como residentes nem na vida. Somos sujeitos marcados pela falta e pela finitude. Creio que essas
condições convocam os residentes a relacionar-se com seu trabalho de outro lugar.

Durante esse percurso, as questões iniciais são muitas vezes substituídas por outras, umas
são respondidas e outras não, e seguimos acompanhados pela angústia e inquietação frente ao real
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

do nosso trabalho. Quero dizer com isso, que estar nesse lugar é estar num lugar de trabalho. A
angústia é motor, e a não resposta do que faz um psicólogo no hospital, no CAPS, a não resposta do
que faz uma analista, talvez seja o que nos faz trabalhar incessantemente para responder essa
questão. Podemos situar que a tentativa de responder a essa questão se dá na verificação que o
analista faz sobre os efeitos de seus atos, construindo uma resposta e um lugar provisórios a cada
passo, a cada vez e a cada caso. Podemos dizer que o residente na instituição está imerso nos
diferentes discursos e construir seu lugar junto à equipe é de certa forma dialogar com os diferentes
discursos, sem abrir mão da especificidade do seu.

O encontro com a clínica na instituição: marcas produzidas

Penso que a marca produzida por essa experiência no encontro com a psicanálise,
principalmente com a clínica, provocam constante movimento de trabalho. É possível fazer uma
conexão da experiência de atuação no contexto da saúde com o trabalho no campo da assistência
social a partir das marcas produzidas na formação e na direção do trabalho, que é dirigido ao sujeito
do inconsciente. Essa marca é a de trabalhar na instituição dirigindo-se ao sujeito dividido,
orientada pela ética da psicanálise.

O trabalho do psicólogo no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) envolve um


olhar amplo sobre as questões sociais, econômicas, geográficas e políticas que estão vivas no
cotidiano do território que ele está inserido. Da mesma forma, a dimensão subjetiva e inconsciente
se faz presente como via de trabalho. Dentro da Política Nacional de Assistência Social visa-se
contribuir para o enfrentamento das desigualdades sociais, segregação e exclusão social. Seu
objetivo último é a garantia de direitos.

O psicólogo orientado pela psicanálise não trabalha nesta instituição com o objetivo de fazer
análise com cada pessoa atendida, mas há algo da psicanálise que é possível orientar a condução
dos casos, bem como no trabalho com a equipe. Algo da transmissão permite que algumas direções
possam ser tomadas sempre a partir do caso, de dentro dele, e não com um protocolo exterior. É
claro que isso é sempre uma tentativa, já que o trabalho é atravessado por diferentes intenções,
diferentes discursos. Essa tentativa é uma aposta que a dimensão subjetiva seja considerada, e que
as singularidades se façam presentes nas coordenadas do trabalho.

Por exemplo, quando uma mulher chega ao CRAS muito atordoada buscando a identidade
perdida, o funcionário da recepção entende nesse pedido que ela está buscando o RG, documento
com fotografia e dados pessoais. Tentando resolver a questão concretamente a partir de orientações
sobre como fazer um novo documento de identidade, esse funcionário não via suas palavras tendo
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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

efeito para aquela usuária por ele atendida. Suas palavras não pareciam ressoar, e a mulher cada vez
mais alterada parecia piorar seu estado de angústia. Ele não compreende o porquê de tanto alvoroço,
e até supõe que ela esteja fazendo isso para ser atendida mais rápido que os outros usuários. A
psicóloga, percebendo a movimentação, pôde se dirigir a recepção, e a partir da escuta desse sujeito
pode perceber que a identidade naquele caso não se referia ao documento de registro civil. Tratava-
se de outra coisa. Algo havia se perdido e uma angústia invadia aquele sujeito. Ela nomeou de
identidade. O significado deste significante “identidade” não foi dado pela psicóloga e sim pelo
sujeito, e isso só foi possível, uma vez que a psicóloga estava advertida que significante e
significado são descolados, e é na fala o sujeito pode operar essa divisão.

A fala, por ser uma cadeia de palavras, permite que se opere o divórcio entre significante e
significado, necessário para evidenciar a primazia material do esqueleto significante sobre o
revestimento muscular que são as significações produzidas pelo primeiro. (Elia, 2010, p.22,
grido do original).

Não foi possível uma sequência no acompanhamento deste caso, mas ele pôde apontar para
a equipe uma nova dimensão da realidade daquele trabalho. A dimensão subjetiva apareceu na fala
de algumas pessoas da equipe como algo totalmente novo, jamais pensado anteriormente. Este caso
pôde promover uma abertura de sentido sobre a realidade que ali se apresentava. Desta forma,
podemos pensar que ao discutir o caso com a equipe foi possível produzir trabalho, e apontar para a
dimensão singular do sujeito dividido. Por outro lado, só foi possível estabelecer uma discussão de
caso com a equipe uma vez que a mesma supunha algum saber do lado do analista no CRAS.

O lugar do analista na equipe é um lugar de trabalho, de promoção de trabalho, e a inserção só


é possível como consequência, a partir do estabelecimento de um campo de relação
transferencial no qual o lugar de onde o psicanalista opera não corresponde, necessariamente,
ao lugar no qual a equipe o coloca. (Moretto & Priszkulnik, 2014, p. 296).

Penso que não é possível trabalhar sem apostar na escuta guiada pela ética da psicanálise
como direção na condução dos casos. Considerando que a realidade é psíquica, torna-se impossível
tomar qualquer decisão sem a escuta dos sujeitos. Impossível ignorar a dimensão desejante. Por
mais que exista uma tendência nos serviços de burocratização e formatação de tarefas, condições e
protocolos, a escuta orienta e permite que o psicólogo ocupe outra posição frente aquele que o
procura. A clínica auxilia a pensar de que lugar estamos falando com aquele sujeito, qual lugar ele
nos coloca e o que podemos escutar do seu dizer a partir do seu dito.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Ao invés de ocuparmos a posição de especialista a que somos incessantemente convocados,


podemos fazer um giro e trabalharmos a partir do não saber. Nem sempre possível, mas a tentativa
de trabalharmos com o não-saber, abre brecha para que algo do particular, da singularidade de cada
sujeito emerja. O caso de Gilda1 muito ensinou sobre como pode ser difícil a condução de um
atendimento, e como a transferência é um fenômeno que não pode ser ignorado, mas justamente o
oposto: é decisivo que tenhamos sempre no horizonte que a transferência se faz presente e é com ela
que trabalhamos.

Recebemos um ofício do Ministério Público para que a Gilda fosse acompanhada pela
equipe técnica do CRAS. Ao ser convidada para o atendimento psicossocial Gilda mostra-se muito
resistente e reticente. No atendimento, perguntamos a razão pela qual ela recebe acompanhamento
pelo Ministério Público, e com raiva ela responde “ué, vocês tem tudo na minha ficha, porque vocês
não leem?” Pontuo que apesar de já existir uma ficha dela naquela instituição, para nós era
importante ouvir sua história a partir de suas próprias palavras, e que estávamos ali para escutá-la
caso quisesse falar.

Neste caso foi essencial pensar qual o lugar que ocupávamos para Gilda, pois que sem
considerar isso, talvez fosse inviável atendê-la. Em sua própria fala diz ser famosa, todos a
conhecem porque ela ‘faz barraco’ (SIC), já tendo sido atendida por todos os equipamentos da
Assistência Social do município. No entanto, nesses inúmeros acompanhamentos a constatação é a
mesma: nenhum profissional é bom, ninguém conhece a rede, os profissionais não sabem fazer seu
trabalho.

Considerando que a transferência sempre desvela uma verdade do sujeito, procuro não
contestar Gilda. Peço que ela me conte o que passa em sua cabeça ao dizer essas coisas, suportando
estar no lugar colocado por ela da sequência dos maus profissionais que não sabem fazer seu
trabalho. Ao escutar esse sujeito percebo que há num constante movimento de denunciar as falhas
de todos a sua volta, profissionais, família, trabalho... e para todas as falhas ela tem uma solução,
um plano melhor, um projeto de lei. Ao mesmo tempo em que todos que encontra na vida são
considerados faltosos, esse sujeito sustenta no seu discurso a existência de um outro sem falhas, que
existe, apesar dela ainda não ter encontrado.

Minha direção de trabalho neste caso é apontar para esse sujeito que é com as faltas que
trabalhamos. Percebendo a posição subjetiva de Gilda busco marcar que mesmo diante dos erros,
das faltas escancaradas da rede que a acompanha, da precariedade da instituição, e das faltas dos

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

profissionais (e que nisso estava inclusa) havia um desejo de ouvi-la. Um desejo de que voltasse
sempre que quisesse para falar de si, e não um desejo específico para sua vida.

Essas direções parecem ter aberto um movimento de trabalho psíquico para esse sujeito. Em
um dos atendimentos conta-me que ela é muito brava, e que é assim desde criança. “Minhas irmãs
dizem que sou brava como minha mãe. Sou Ilda2, a vaca brava”. Ao longo dos atendimentos, Gilda
parece ter feito uma retificação subjetiva frente aquilo que leio como parte de seu sintoma. Ela
passa de uma posição de sentir-se mal, cuja responsabilidade seria dos outros culpados e faltosos,
para uma posição onde há alguma implicação com seu sintoma e um reconhecimento de que há algo
dela que se repete nas histórias contadas.

Como nos diz Guerra (2015), ao invés de nós colocarmos na posição de saber e nos
perguntarmos o que podemos fazer por aqueles sujeitos, devemos inverter a questão: “o que ele
pode fazer para sair de tal ou tal situação com nosso suporte. Isso significa que temos que suportar,
no sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo à sua responsabilidade a cada
vez, a cada ato.” (Figueiredo citada por Guerra, 2015, p.33).

Considerações finais

Ao reconhecer as resistências como material de trabalho, de manifestação subjetiva que não


podem ser excluídas ou postas de lado, Freud inaugura um novo posicionamento ético e de trabalho
na clínica. Passa então a eleger como método e regra fundamental da psicanálise a associação livre
como via privilegiada de acesso ao inconsciente. Podemos dizer que foi possível chegar ao método
da associação livre porque se pôde perceber que o não saber sobre a origem dos sintomas, ou sobre
o trauma, é na verdade uma posição subjetiva de um nada querer saber sobre isso. O método
hipnótico, ou da pressão da mão na testa do paciente, não incluíam o sujeito do inconsciente, no
sentido de que não se trabalhava com as resistências, mas tentava-se suprimi-las. “Podemos dizer
que onde há resistência há sujeito” (Elia, 2010, p.28).

A rejeição da hipnose marcou o fim da rejeição do sujeito e a sua inclusão, através da noção
de defesa como ato do sujeito de nada querer saber sobre o trauma, o que será formulado em
termos de nada querer saber sobre seu desejo, implicado no trauma. (Elia, 2010, p.27).

Ao convocar os sujeitos para falarem em associação livre, algo se produz na relação com
analista, algo de ordem afetiva, que se torna presente na experiência analítica, e é necessariamente
provocada por ela. Chamamos esse fenômeno de transferência. A transferência não é uma das
formações do inconsciente, não tendo, portanto o caráter interpretativo. Ela é “a própria

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

presentificação do inconsciente sob a forma de uma relação do objeto” (Elia, 2010, p.31). Na
relação com o analista será atualizada e atuada as relações que o sujeito estabelece com os seus
parceiros na vida, aparecendo a fantasia na cena analítica (quando no campo da neurose e da
perversão). Os afetos, os sentidos que o sujeito dá a pessoa do analista tem relação com sua
fantasia, e não com os atributos da pessoa do analista. Assim a transferência torna real a presença
do inconsciente para o analista.

Diante deste fenômeno inevitável e paradoxal, que é ao mesmo tempo via de avanço e
dificuldade no tratamento analítico, uma grande tarefa é reservada ao analista: o manejo da
transferência. “Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o
psicanalista as maiores dificuldades” (Freud, 1969, p.143). Freud nos advertiu que esse manejo não
é tarefa simples, porém uma vez que se consiga avançar nessas dificuldades, o tratamento avança e
muitos ganhos podem surgir disso.

Esta elaboração das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da
análise e uma prova de paciência para o analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que
efetua maiores mudanças no paciente e que se distingue o tratamento analítico de qualquer
tipo de tratamento por sugestão (Freud, 1969b, p.202).

A transferência transborda o campo da análise, sendo um fenômeno passível de existir nas


diversas relações humanas estando presente na instituição. Deste modo, a transferência, enquanto
conceito fundamental, ajuda o psicólogo orientado pela psicanálise a estar na instituição de outro
modo. Considerando esse fenômeno inevitável e provocado pela circunstância dos atendimentos,
levamos em conta suas faces contraditórias sendo ao mesmo tempo motor e resistência do trabalho.
Do lado da equipe, a ideia da transferência pode ajudar a situar e reposicionar algumas decisões e
atos com relação aos sujeitos atendidos na instituição. E a partir disso, construir atos que incluam as
subjetividades, resistindo à tendência de exclusão do sujeito nos discursos ali circulantes.

Notas:

1.Gilda, nome fictício.

2. A usuária escande o próprio nome nessa frase.

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Moretto, M. L. T. & Priszkulnik, L. (2014). Sobre a inserção e o lugar do psicanalista na equipe de


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Quinet, A. (2006). Psicose e Laço Social - esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

O CAPS como dispositivo de cuidado: desafios no manejo da relação terapêutica

Mariah Martins*
Renata Dahwache Martins**
Ademir Pacelli Ferreira***

Introdução: A Reforma Psiquiátrica objetiva romper com os paradigmas do modelo asilar de


cuidado ao sujeito em sofrimento psíquico, pretendendo-se diferir da lógica manicomial
hospitalocêntrica. Este movimento questiona o lugar social da loucura, pensando-a além das paredes
do local de tratamento (Ferreira, 2002). Nesta direção, a política pública de saúde no Brasil instituiu
os Centros de Atenção Psicossocial [CAPS] como dispositivos substitutivos no cuidado em saúde
mental, propondo um serviço de base territorial e atenção integral à saúde, seguindo os preceitos do
SUS. O deslocamento de paradigma no cuidado implica na mudança de práticas diárias, bem como
a formação dos profissionais atuantes na área: o manicômio não é apenas um lugar físico, mas uma
lógica que circunscreve práticas endurecidas, totalizantes e tutelares. A discussão do manejo
terapêutico se faz importante no que tange a relação terapeuta/frequentador e o trabalho em equipe
multidisciplinar. Objetivos: A partir das questões advindas da prática enquanto estagiárias num
CAPS, o presente trabalho objetiva discutir os desafios deste modelo de assistência em saúde
mental, sobretudo no que diz respeito à relação terapêutica inserida neste contexto institucional.
Metodologia: Além do levantamento e revisão bibliográfica, seguimos a chave de leitura proposta
por Figueiredo (2004) ao tomar como ponto de análise a construção de um caso clínico, a partir do
qual traçamos os caminhos da inserção do sujeito na rede de saúde, sua relação com a instituição e
aqueles que compõem seu cuidado. Resultados: A construção do caso clínico e o relato da
experiência do acompanhamento terapêutico aloca esta prática como um dispositivo de
(re)construção de uma história (Figueiredo, 2004). Processo que pode se dar através do
acompanhamento terapêutico, que fornece contorno, continente apoiado no manejo terapêutico para
que o frequentador inicie a trajetória de se responsabilizar por seu próprio cuidado, deslocando-o
assim de uma lógica assistencial tutelar (Lins, Oliveira, Coutinho, 2009). O cuidado compartilhado
e a clínica sustentam o método da construção de um caso clínico como analisador, sendo a
discussão em equipe o próprio trabalho de construção (Figueiredo, 2004). O CAPS, portanto, tem

*
Graduanda em Psicologia pelo IP-UERJ, 6° período. Estagiária do Centro de Atenção Psicossocial – UERJ (CAPS-
UERJ).
**
Graduanda em Psicologia pelo IP-UERJ, 10º período. Ex-estagiária do CAPS-UERJ.
***
Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Coordenador do CAPS-UERJ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

como propósito o trabalho singular, o qual requer uma posição ativa do frequentador do serviço em
seu tratamento, junto à equipe e seus familiares na coprodução do direcionamento de seu cuidado
(Ribeiro, 2009). Conclusões: A análise proposta exalta a importância da discussão do caso em
equipe interdisciplinar para sua construção, propondo três eixos indissociáveis entre si de avaliação
e seu direcionamento; seriam estes, conforme proposto por Schmidt & Figueiredo (2009): acesso,
acolhimento e acompanhamento. O acesso remete à capacidade e à disponibilidade do serviço em
atender demandas, de suas possibilidades e limites do que é ofertado aos usuários. O acolhimento
inclui os recursos do serviço, isto é, a atitude de cada profissional ao acolher e escutar a população
que lhe demanda – e a utilização do saber específico a cada área de atuação de forma a contribuir
para uma visão menos fragmentária e pressupondo não apenas o saber da equipe, mas dos
frequentadores e comunidade, visando autonomia, decisão coletiva e participação. O
acompanhamento é também analisador da assistência ao fazer do tratamento um processo de
continuidade do cuidado e de construção do caso. Três eixos que apenas enlaçam e efetivamente
servim de parâmetro de avaliação do serviço se forem tecidos e sustentados na discussão em equipe.
(Schmidt & Figueiredo, 2009). Neste horizonte, procuramos ressaltar que é este trabalho - sempre
em curso, parcial e construído num compartilhamento - que sustenta a Reforma, num sempre
reinventar de práticas.

Palavras-chave: CAPS; construção de caso clínico; práticas de cuidado.

Referências

Ferreira, A. P. (2002). O ensino da psicopatologia: do modelo asilar à clínica da interação In Revista


Latinoamericana de psicopatologia fundamental ano V n.4, dez/2002. São Paulo.

Figueiredo, A. C. (2004). A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à


psicopatologia e à saúde mental In Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental ano VII
n. 1, mar. São Paulo.

Lins, C. E.; Oliveira, V. M.; Coutinho, M. F. (2009). Clínica ampliada em saúde mental: cuidar e
suposição de saber no acompanhamento terapêutico In Ciência & Saúde Coletiva n. 14(1), (pp. 205-
215).

Ribeiro, A. M. (2009) A idéia de referência: o acompanhamento terapêutico como paradigma de


trabalho em um serviço de saúde mental In Estud. Psicol. (Natal) v. 14. Jan/Abril. Natal.

120
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Schmidt, M. B. & Figueiredo, A. C. (2009). Acesso, acolhimento e acompanhamento: três desafios


para o cotidiano da clínica em saúde mental In Revista Latinoamericana de psicopatologia
fundamental v. 12 n. 1, (pp. 130-140). São Paulo.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A Psicologia no setor de cirurgia cardíaca e reabilitação do HUPE

Carolina Paulino Barreto*


Izadora Silva de Araújo**
Alessandro de Magalhães Gemino***
Cristiane Ferreira Esch****
Introdução: O presente projeto insere o aluno na equipe de saúde multiprofissional do Serviço de
Cirurgia Cardíaca do HUPE. O projeto trabalha com a perspectiva desafiadora de conciliação entre
teoria e prática, contribuindo para o treinamento e formação de profissionais mais capacitados a
atuar na área da saúde, uma vez que tal campo não é consideravelmente abordado durante a
graduação. O trabalho supracitado recebe pacientes para realização de cirurgia, sendo as mais
comuns as de trocas valvares e revascularização do miocárdio. Diante da necessidade de realizar a
cirurgia cardíaca, o paciente apresenta medos e angústias, uma vez que o coração é um órgão que
simboliza o elo entre a vida e a morte e pelo significado que o mesmo possui para o indivíduo.
Além dos pacientes o atendimento é voltado também para os familiares, visto que para os mesmos a
situação é entendida como ameaçadora e o evento é vivido como algo estressor. A reabilitação
representa o período após a cirurgia cardíaca, onde os pacientes já retornaram para seus lares e
regressam ao hospital semanalmente, para um acompanhamento cuja abordagem é
multiprofissional. O atendimento é realizado pela equipe de estudantes e residentes das áreas de
Educação Física, Fisioterapia, Nutrição, Enfermagem e Psicologia. Pela Psicologia, os pacientes
participam de uma primeira entrevista, individualmente e, a seguir, são inseridos em grupos com
frequência semanal onde se torna possível a criação de uma rede de apoio para auxiliar e refletir
sobre os limites decorrentes da cirurgia, sobre as mudanças no estilo de vida e construir em
conjunto novas possibilidades. Objetivo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar as
atividades exercidas pela equipe de psicologia no CTI cardíaco do Hospital Universitário Pedro
Ernesto (HUPE), bem como expor a importância desta especialidade para com os cuidados e
acolhimento dos pacientes durante esse período do adoecimento e de sua recuperação.
Metodologia: Utilização de artigos e livros acadêmicos. Resultados: Este projeto tem importante
contribuição para formação dos alunos que compõem seu corpo de estagiários. Através do mesmo
se faz possível o contato destes com a atuação da psicologia na área hospitalar, propiciando assim, o
conhecimento acerca da teoria e prática deste campo. Conclusão: Desta forma, o papel da equipe
de psicologia tem importante contribuição no setor de cirurgia cardíaca, visto que a escuta se
constitui como ferramenta importante nesse momento do adoecer, onde o paciente está longe de
seus familiares, tem sua autonomia reduzida e enfrenta uma fase difícil de sua vida, atravessada por

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

incertezas e medos. Por conseguinte, o serviço oferece aos familiares, pacientes e equipe
acolhimento e suporte diante das situações vivenciadas.

Palavras-chave: Acolhimento; cirurgia cardíaca; reabilitação.

Referências

Ebaid, C. & Andreis, M. (1990). A intervenção dos psicólogos junto à pacientes cardiopatas
In Arquivo Brasileiro de Cardiologia, 55(2), pp. 133-135.

Senra, D. F. & Guimarães, C. P. A. (2010). UTI de cirurgia cardíaca. In A.L.A. Ribeiro & M. L.
Gagliani (Orgs.), Psicologia e cardiologia: Um desafio que deu certo (pp. 113-120). São Paulo:
Editora Atheneu.

Wottrich S. H. (2011). Manifestos do coração: significados da cirurgia cardíaca para pacientes


pré e pós-cirúrgicos. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa
Maria, Rio Grande do Sul, Brasil.

Financiamento: UERJ (DEPEXT/SR3 e CETREINA/SR1)

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Uma experiência como estagiária e pesquisadora na clínica atual de saúde mental e de suas
contribuições à teoria psicanalítica

Rayanne Pinto Magalhães*

Sonia Alberti**

Introdução: Este trabalho se apresenta como desenvolvimento da pesquisa “A clínica atual na


saúde mental e suas contribuições à teoria psicanalítica”. É produto do primeiro ano de um projeto
de pesquisa e vem sendo desenvolvido a partir de duas frentes: a primeira é clínica, tendo por base a
prática realizada em uma instituição de saúde mental – que inspirou a produção deste trabalho –, e a
segunda se a segunda se dá através de um questionário respondido por psicanalistas atuantes na área
em questão. Objetivo: Tem como principal objetivo verificar se existe alguma relação – ou não –
da psicanálise, ou seja, da teoria psicanalítica, com o trabalho institucional em saúde mental a partir
dos dados colhidos. Metodologia: Orientamo-nos a partir de duas metodologias: o estágio clínico
no Setor de Psiquiatria Infantil do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), vinculado à
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e uma enquete elaborada por nós que foi
encaminhada a professores de todo o Brasil, que trabalham articulando os saberes da psicanálise
com a saúde mental. Estas enquetes, no momento atual da pesquisa, vêm sendo lidas, analisadas e
discutidas. Resultados parciais: Até este momento na pesquisa, estando inserida no setor Unidade
Docente-Assistencial (UDA) Psiquiatria Infantil do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), é
possível verificar uma importante presença da psicanálise no exercício deste setor, tendo sido
possível, inclusive, realizar um trabalho em conjunto com um psiquiatra residente pelo viés da
teoria psicanalítica no acompanhamento de um usuário do serviço. Por outro lado, tivemos algumas
dificuldades em identificar alguma verdadeira contribuição à teoria psicanalítica a partir da enquete
realizada com os professores, por ora. É válido destacar que a pesquisa, até o momento, se encontra
no estágio de recenseamento de textos indicados pelos professores nos questionários. Iniciamos
estas leituras, porém, as reflexões sobre estas produções estão em análise e ainda serão concluídas.
Esperamos, com os dados que colheremos, produzir novos trabalhos a respeito das descobertas.
Conclusão: Se ainda não pudemos comprovar a hipótese original de que a prática na instituição
contribua para a teoria psicanalítica, acreditamos que, com a leitura detalhada dos textos referidos

*
Graduanda em Psicologia pelo IP-UERJ, 10º período. Estagiária do projeto de pesquisa “A clínica atual na saúde
mental e suas contribuições à teoria psicanalítica”.
**
Professora Associada do IP/UERJ, Procientista da UERJ. Coordenadora Adjunta do Programa de Pós-graduação em
Psicanálise, Preceptora da Residência em Psicologia Clínica Institucional, ambos do IP/UERJ. Pesquisadora do CNPq.
Psicanalista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

pelos entrevistados na enquete, quando perguntados sobre a produção desta articulação, chegaremos
a poder identificar pontuais contribuições à teoria psicanalítica a partir da clínica em saúde mental.

Palavras-chave: Psicanálise; saúde mental; teoria psicanalítica; clínica; psiquiatria infantil.

Referências

Alberti, S. A clínica atual na saúde mental e suas contribuições à teoria psicanalítica. Projeto
inscrito no Programa Prociência (2015-2018). UERJ.

Financiamento: Uma bolsista de Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de


Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) e uma bolsa de Pesquisadora CNPq.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

A experiência na supervisão da Residência em Psicologia Clínica Institucional na Enfermaria


de Psiquiatria do HUPE: Um segundo momento de trabalho

Clarissa Lima*
Ursula Possollo**
Ingrid Vorsatz***

Introdução: Há alguns anos o Estado do Rio de Janeiro atravessa uma grave crise financeira,
culminando com a decretação de estado de calamidade financeira em 2016. Uma das consequências
disso é que a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) vem enfrentando atrasos
sistemáticos nos pagamentos de salários e bolsas, além da precariedade das condições de trabalho.
A crise também atinge o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) e a instituição vem
encontrando grande dificuldade em manter em pleno funcionamento os serviços prestados à
população fluminense. Durante os primeiros meses do ano, a Unidade Docente Assistencial de
Psiquiatria (UDAPq-HUPE) permaneceu funcionando com um número reduzido de leitos,
praticamente restrito a dois pacientes internados. Assim, o estágio curricular externo, vincluado ao
Serviço de Psicologia Aplicada/SPA do Instituto de Psicologia da UERJ, teve início através de
nossa inserção na supervisão semanal aos residentes em Psicologia Clínico Institucional, como
observadoras participantes. A partir do segundo semestre de 2017, com a relativa normalização do
serviço, passamos a frequentar algumas atividades na enfermaria UDAPq, acompanhadas de
residentes de segundo ano. Objetivo: Como o trabalho ocorre através da orientação psicanalítica, a
supervisão não é considerada como um momento de ‘correção de erros’ ou ainda de
aconselhamento especializado, mas, sim, como um segundo momento de trabalho para todos os
integrantes, residentes e estagiárias. Esta direção clínica tornou possível a nossa inserção na
supervisão, participando do trabalho que estava sendo construído naquele momento, através da
problematização dos casos clínicos em acompanhamento pelos residentes, não apenas como
ouvintes, mas de uma forma ativa. Metodologia: As discussões em grupo, conduzidas pela

*
Graduanda em Psicologia pelo IP-UERJ, 10º período. Estagiária do Serviço de Psicologia Aplicada do IP-UERJ e do
projeto de extensão “Lugar de palavra: a enfermaria psiquiátrica como dispositivo de sustentação simbólica para os
portadores de transtorno mental grave”, coordenado pela Profº Drº Ingrid Vorsatz (UERJ-SR3-DEPEXT).
**
Graduanda em Psicologia pelo IP-UERJ, 10º período. Estagiária do Serviço de Psicologia Aplicada do IP-UERJ e do
projeto de extensão “Lugar de palavra: a enfermaria psiquiátrica como dispositivo de sustentação simbólica para os
portadores de transtorno mental grave”, coordenado pela Profº Drº Ingrid Vorsatz. (UERJ-SR3-DEPEXT).
***
Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Teoria
Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia
Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar do IP-UERJ. Coordenadora da Comissão de Residência
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde-COREMU da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

supervisora, sustentam e amparam nossa inserção como estagiárias em uma enfermaria psiquiátrica.
Participamos semanalmente da supervisão aos residentes de Psicologia, na qual não convém
chegarmos a uma palavra final sobre qualquer problemática clínica abordada, mas, antes,
problematizar as questões que são trazidas à supervisão pelos residentes. É esperada uma reflexão
sobre as questões que perpassam o cotidiano da prática do psicólogo inserido em uma equipe
ultiprofissional de Saúde Mental, apostando-se em sustentar os princípios que orientam a prática
psicanalítica no campo da psicose. Fazemos também o estudo de artigos e de casos clínicos
freudianos, indicados pela supervisora a partir das necessidades do trabalho, elaboramos
fichamentos desses textos e apresentamos seminários discentes. Resultados: Observamos que
mesmo não estando inicialmente inseridas na instituição, nos empenhamos na apropriação do
trabalho através de uma presença ativa nas supervisões semanais. Tivemos também a oportunidade
de conhecer e debater os casos clínicos em acompanhamento pelos residentes da UDAPq-HUPE, o
que fez com que criássemos familiaridade com os pacientes internados e com a rotina de
funcionamento da enfermaria da UDAPq-HUPE, facilitando, assim, nossa inserção na prática
hospitalar em um momento posterior. Conclusões: Através da nossa experiência percebemos que a
supervisão de orientação psicanalítica funciona como um segundo tempo de construção do trabalho
clínico, através da escuta e das discussões realizadas em equipe que sustentam o exercício do
psicólogo em um serviço de atenção terciãria à saúde. Sendo assim, mesmo não estando
inicialmente inseridas no espaço físico do hospital, a transmissão viva da clínica possibilitou a
apropriação paulatina do trabalho ali realizado. Além de favorecer um maior preparo teórico,
técnico e subjetivo para o momento posterior em que nos inserimos na enfermaria de Psiquiatria da
Unidade Docente Assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto.

Palavras-chave: Psicologia; estágio; extensão universitária; supervisão clínica; psicanálise.

Referências

Freud, S. (2006). O caso Schreber: notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso
de paranóia (dementia paranoides). In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em
1911)

_______ (2006b). A dinâmica da transferência. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original
publicada em 1912)

127
PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

_______ (2006c). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Freud, S. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de
Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1912)

_______ (2006d). Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise
I). In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud
(Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1913)

_______ (2006e). Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica
da psicanálise III). In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud (Vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1915 [1914])

PAIM, J. S. (2016). O que é o SUS?. 6ª reimpressão. Coleção Temas em Saúde. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ.

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PRÁXIS E FORMAÇÃO 2017

Núcleo Docente-Assistencial Estruturante do Curso de Especialização em Psicologia Clínica


Institucional – Modalidade Residência Hospitalar – IP-UERJ

Prof. Dr. Ademir Pacelli Ferreira – IP-UERJ

Prof. Dr. Alessandro de Magalhães Gemino – IP-UERJ

Ms. Cristine Ferreira Esch – IP-UERJ

Drª Ester Susan Guggenheim – IP-UERJ

Drª Glória Maria Castilho – IP-UERJ

Profª Drª Ingrid de Mello Vorsatz (coordenação) – IP-UERJ

Dr. Luiz Fernando Chazan – HUPE-UERJ

Profª Drª Michelle Menezes Wendling – IP-UERJ

Profª Drª Sonia Alberti – IP-UERJ

Prof. Dr. Vinicius Anciães Darriba – IP-UERJ

Assistente administrativo: Cecília Kabarite

Secretaria: Rua São Francisco Xavier nº 524 – UERJ campus Maracanã - Pavilhão João Lyra Filho
10º andar – sala 10.006 - Bloco E

Telefone: (21) 2334 02 30

O conteúdo dos textos que compõem os Anais do XXI Fórum da Residência em Psicologia Clínica
Institucional 2017 é de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.

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