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Gerald Bray

e histórico

Ér
SHEDD
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Bray, Gerald Lewis


Igreja : um relato teológico e histórico / Gerald Bray ; tradução de
Eulália de Andrade Pacheco Kregness. — São Paulo : Shedd Publicações,
2017.
328 p.
ISBN: 978-85-8038-055-2
Título original: The church: a theological and historical account

1. Igreja - História 2. Igreja - Desenvolvimento 3. Teologia


I. Título II. Kregness, Eulália de Andrade Pacheco
17-0774 CDD-262

índices para catálogo sistemático:


1. Igreja - História
Gerald Bray

Tradução
Eulália de Andrade Pacheco Kregness

ár
SHEDD
PUBLICAÇÕES
Copyright © 2016 by Gerald L. Bray
Originally published in English under the title: The Church
By Baker Academic,
a division of Baker Publishing Group,
Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A.
All rights reserved.

13Edição ‫ ־‬Maio de 2017

Publicado no Brasil com a devida autorização


e com todos os direitos reservados por
Shedd Publicações
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dados, etc.), a não ser em citações breves
com indicação de fonte.
ISBN 978-85055-2‫־‬8038‫־‬
Pnnted in Brasil / Impresso no Brasil

Tradução ‫ ־‬Eulália de Andrade Pacheco Kregness


Revisão ‫ ־‬Vivian do Amaral Nunes
Diagramação & Capa- Edmilson Frazão Bizerra
Sumário

Prefácio....................................................................................................7

1 . As origens da igreja............................................................................ 11

2. A igreja do Novo Testamento............................................................47

3. A igreja perseguida.................................................<......................... 85

4. A igreja do império......................................................................... 121

5. A crise da igreja do império............................................................. 185

6.0 que é a igreja?............................................................................... 217

7.0 que a igreja deveria ser?..............................................................275

Apêndice: Os concílios ecumênicos................................................... 319


Prefácio

Desde a Antiguidade, os cristãos, em geral, confessam sua crença


na “igreja una, santa, universal e apostólica”, como diz o Credo Ni-
ceno. Quando o credo foi redigido, essa definição de igreja não era
particularmente controversa, e no decorrer dos séculos, dificilmente
alguém ponderava seu significado. A igreja tinha suas rixas, e apesar de
algumas terem se mostrado espinhosas e causado divisões permanen-
tes, a maioria das pessoas continuava achando que com um pouco de
boa vontade das partes envolvidas, as diferenças seriam acertadas e a
união evidente da antiga igreja seria restaurada. Somente na Reforma
Protestante ocorrida no século 16 essa pressuposição foi seriamente
contestada, e mesmo assim os reformados insistiam em dizer que o
credo expressava seu entendimento da igreja, e esperavam que suas
iniciativas trouxessem de volta a unidade e pureza que todos desejavam.
Mas, percebendo ou não, os reformados estavam desenvolvendo
conceitos sobre a natureza da igreja que eram diferentes da crença
comum da época. O interesse deles não era apenas acabar com a cor-
rupção ou livrar-se dos desvios óbvios do sistema tradicional. Que-
riam uma estrutura eclesiástica fundamentada em sua compreensão
dos princípios do Novo Testamento, os quais, acreditavam, tinham
sido abandonados ou esquecidos com o passar do tempo. Houve na
Inglaterra uma tentativa séria de unir essa nova compreensão bíblica
ao padrão tradicional da igreja, e os promotores da união acreditavam
ter alcançado o melhor dos dois mundos. Infelizmente, como logo
perceberam, os tradicionalistas não aceitaram suas doutrinas, e os re-
8

formados mais radicais resistiram ao que entendiam ser relíquias que


deveríam ser completamente rejeitadas.
O resultado foi uma guerra civil em que diferentes conceitos da
igreja competiram entre si. No fim, o acordo original foi reinstalado,
contudo, não podia mais reivindicar monopólio, e o mundo de fala
inglesa abrigou grupos antagonistas de cristãos que desenvolveram
suas eclesiologias no formato que hoje chamamos de “denominações”.
Seja bom ou ruim, essas denominações continuam a existir, e quem
concorda com os outros artigos do credo interpreta sua afirmação a
respeito da igreja de modo a reflitir e perpetuar as divisões pós-Reforma.
O mundo cristão inteiro é afetado por isso, mas, enquanto em outros
países existe uma igreja ou tradição dominante, é naqueles afetados di-
retamente pela crise da Reforma Inglesa que as questões eclesiológicas
têm mais chances de alterar a rotina do praticante religioso comum.
Não é à toa que rótulos como “episcopal”, “presbiteriana” e “con-
gregacional” são usados para definir algumas, igrejas — o seu sistema
governacional, mais do que sua doutrina, as destaca umas, das outras.
Isso é verdadeiro mesmo em relação aos “batistas”, uma vez que a
recusa do batismo infantil é uma declaração sobre a natureza da igreja
tanto quanto ao estado do bebê no conceito de Deus.
Este livro não trata da história da igreja, e também não é uma ex-
posição de sua doutrina. Ele é uma tentativa de compreender como
e por que os diferentes grupos cristãos de hoje passaram a entender
a igreja da maneira que entendem e por que persistem em suas inter-
pretações eclesiológicas mesmo sabendo que com isso perpetuam a
desunião do mundo cristão. O excêntrico ecumenista anglicano William
Palmer (1803-85) acreditava que a igreja era parecida com uma árvore
que cresceu e produziu ramos diferentes. Para ele, a Igreja Católica
Romana, as igrejas Ortodoxas e a Igreja Anglicana foram as vertentes
mais importantes, e Palmer esperava que elas reconhecessem umas, às
outras, ou até mesmo se reconciliassem, por causa da fundação comum
no tronco original.
A “teoria da vertente” de Palmer sobre a igreja não conquistou mui-
tos simpatizantes naquela época e hoje é tratada como uma curiosidade
e não um modelo sério de eclesiologia; contudo, se entendida da ma-
9

neira correta, ela é mais louvável do que parece de início. Não há como
negar que a igreja cresceu e expandiu-se pelo mundo. No processo, ela
se dividiu em diferentes vertentes, não de modo natural (como Palmer
achava), e sim como resultado de conflitos, equívocos, conveniência
política e também incompatibilidade doutrinária. O triste é que se a
igreja é mesmo o corpo de Cristo, ela tem feridas como prova disso.
Muito já se escreveu sobre essa história, quase sempre da perspectiva
denominacional dos escritores, perspectiva que eles desejam justificar à
luz da teologia, história e experiências. Muitas vezes, eles retratam seus
antepassados espirituais como santos e heróis que foram perseguidos
ou, no mínimo, mal compreendidos por seus contemporâneos, e estes
são apresentados automaticamente como vilões. Essa abordagem
“branco no preto” está hoje em retrocesso, especialmente nos círculos
acadêmicos, mas, ninguém está completamente livre de preconceitos,
e as antigas linhas de divisão continuam bastante visíveis, mesmo que
sejam apenas na maneira de abordar e analisar o assunto.
O resultado é que com frequência a eclesiologia é uma exposição
do que um teólogo acha que a igreja deveria ser, e não do que ela
realmente é. Às vezes, apologistas de um ponto de vista em particular
resolvem esse problema simplesmente excluindo da igreja quem não
se encaixa no seu retrato do que a igreja deve ser. Os exemplos mais
óbvios desse comportamento são encontrados na tradição da Igreja
Católica Romana, cujos teólogos, alinhados com o seu ensino oficial,
asseveram com frequência que quem não estiver em comunhão com
a diocese de Roma está fora da igreja. Outros são mais generosos ao
lidar com grupos cristãos diferentes, e até mesmo a Igreja Católica
moderou sua posição desde o Conselho Vaticano Segundo (1962-65),
mas, aqueles que defendem que o seu modelo de igreja é o correto
acabam descobrindo que é difícil ser justo com outros pontos de vista.
Apenas colocando-os no contexto histórico e procurando entender
por que as tradições se tornaram o que são hoje é que conseguiremos
obter alguma perspectiva no assunto e buscar elementos comuns que
transponham nossas diferenças e que talvez nos ajudem a vencê-las.
Não existe perspectiva de que a igreja irá recuperar sua antiga união
tão cedo, e talvez nunca recupere. Mas, se entendermos uns aos ou-
10

tiros, podemos dialogar com as tradições de terceiros e, quem sabe, até


aprender com elas. É este o objetivo deste livro.
Dada a natureza da questão, nada mais justo que o autor deste livro
revele sua identidade eclesiástica. Ele é sacerdote da Igreja Anglicana
e segue a vertente evangélica da mesma. Ele já trabalhou, e em várias
ocasiões cultuou, com igrejas Presbiterianas, Batistas, Irmãos Unidos,
Igreja de Cristo, Igreja Católica e Igreja Ortodoxa, e aprendeu a apre-
ciar todas elas sem abandonar sua lealdade à própria denominação.
Ele espera que um pouco da profundidade do compromisso com sua
tradição que também lhe permite ter comunhão com outros grupos
transpareça ao leitor nesta curta introdução à doutrina da igreja. No
final das contas, os cristãos são homens e mulheres nascidos de novo
pelo Espírito de Deus e pertecem à igreja porque o Espírito os uniu no
corpo de Cristo. O amor é a força vital dessa união, e quando apren-
demos a amar a Deus passamos a entender quem ele é e quais são os
seus propósitos para seu povo. Minha oração é que Deus o abençoe
durante a leitura destas páginas e abra seus olhos para a maravilhosa
graça com a qual ele alcançou um mundo de seres pecadores e chamou
seus escolhidos para serem a sua igreja, agora e eternamente.
Gerald Bray
20 de agosto de 2014.
1

As origens da igreja

A IGREJA E O POVO DE DEUS DO ANTIGO TESTAMENTO

Ao contrário do que aconteceu com o mundo, a igreja cristã não foi


criada do nada. Seu início pode datar ao período logo depois da morte
e ressurreição de Jesus Cristo, que foi sua inspiração e talvez o seu fun-
dador. A intenção deliberada de Jesus de reunir um grupo de seguidores
que transmitisse seus ensinos após ele subir aos céus é contestada hoje
em dia, mas, durante muitos séculos essa crença foi universal. E difícil
explicar por que Jesus escolhería e treinaria um grupo de discípulos
caso não tivesse interesse em perpetuar seu ministério. Segundo o
Novo Testamento, durante a festa de Pentecostes, sete semanas após
a ressurreição, Pedro se levantou em Jerusalém e proclamou que as
antigas profecias haviam se cumprido. O Espírito Santo de Deus foi
então derramado sobre as três mil pessoas que creram nessa mensagem,
e assim nasceu a igreja como a conhecemos hoje.1
O derramamento do Espírito no dia de Pentecostes foi entendido
pelas pessoas que o receberam como o cumprimento das promessas
que Deus fez a seus antepassados, promessas que remontavam a
Abraão, Isaque e Jacó. Israel foi o nome que Deus deu a Jacó por ele
ter lutado com o Senhor e prevalecido - uma declaração extraordinária
que mostra como o relacionamento entre Israel e Deus era singular.2
Os relatos bíblicos não escondem que Israel era parente próximo das

1 Atos 2.14-41.
2 Gênesis 32.28.
nações vizinhas, algumas, das quais também descendiam de Abraão e
Isaque, mas, deixam claro que essas nações não foram escolhidas por
Deus. Surpreendentemente talvez, o idioma falado por eles veio a ser
chamado hebraico, uma palavra que, segundo parece, veio do desco-
nhecido Eber (ou Heber), bisneto de Sem, um dos filhos de Noé.3 Não
se sabe por que o idioma recebeu esse nome, mas, seu uso nunca foi
questionado. Durante um período, o nome Israel foi usado para descre-
ver as dez tribos do norte que se separaram do reino centralizado em
Jerusalém, chamado Judá em homenagem à sua tribo dominante. No
entanto, depois que as dez tribos foram levadas para o exílio, os termos
“Israel” e “Judá” se fundiram de tal modo que se tornaram sinônimos,
e assim contínua até hoje.4
Essa era a situação prevalecente nos dias de Jesus. Israel era uma
nação judaica única estabelecida na Palestina, mas, com uma significativa
população dispersa no oriente e no ocidente. Os orientais se localizaram
principalmente na Mesopotâmia, onde permaneceram após o exílio na
Babilônia. Os livros de Daniel e Ester deixam claro que esses judeus
tiveram papel importante sob o domínio persa e, alguns séculos depois,
voltaram a se distinguir como os principais contribuintes do desenvol-
vimento do Talmude — coleção do saber judaico de suma importância
para o judaísmo posterior. No Novo Testamento, porém, a voz dessa
comunidade da Diáspora não se faz ouvir. É possível que os sábios que
visitaram o menino Jesus tenham ouvido sobre as esperanças messiâni-
cas judaicas em conversa com membros daquela comunidade; mas, se
esse foi o caso, nada foi dito a respeito.5 A Babilônia é mencionada no
livro de Apocalipse, mas, o consenso afirma que a menção é simbólica e
não tem o propósito de se referir à cidade histórica. Foi da “Babilônia”
que Pedro saudou seus leitores, porém a maioria dos comentaristas
entende isso como um código para Roma, porque não há evidências de

3 Gênesis 10.24; 1 Crônicas 1.18. Em Lucas 3.35 ele é citado como um dos ancestrais
de Jesus.
4 Assim, o amai estado de Israel é uma nação de língua hebraica habitada sobretudo
por judeus.
5 Mateus 2.1,2.
que Pedro tenha alguma ve2 ido à Mesopotamia.6 No entanto, no dia de
Pentecostes, havia em Jerusalém peregrinos do que era então o Império
Parta, sucessor da antiga Pérsia, e acertamos ao supor que alguns deles
tenham se tornado cristãos naquela época.7 Mas, não sabemos o que
lhes aconteceu depois, e podemos afirmar que a Diáspora oriental não
teve papel importante no surgimento da igreja cristã.
Contudo, a história foi bem diferente com a Diáspora ocidental. Ela
surgiu depois de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.), cuja conquista
do Império Persa colocou a Palestina na órbita do mundo grego, e
mais tarde, na do romano. Em pouco tempo, o número de judeus em
Alexandria e em outras cidades importantes do Mediterrâneo tornou-se
significativo. Eles aprenderam o idioma grego e, algumas, gerações mais
tarde, traduziram suas Escrituras para essa língua. Na época de Jesus,
estavam produzindo intelectuais importantes, dentre os quais o mais no-
tável foi Fílon de Alexandria (morreu 50 d.C.). Seus comentários sobre
a Bíblia foram amplamente lidos na igreja primitiva, embora pareçam
não ter causado nenhum impacto nos autores do Novo Testamento.
Saulo de Tarso foi um desses judeus da Diáspora, e, em grande parte,
responsável pela entrada da igreja primitiva no mundo greco-romano.
No final do século 19, era moda retratar o nascimento do cristianismo
como um tipo de fusão entre as culturas judaica e greco-romana, contu-
do, essa hipótese não é mais sustentável. O Novo Testamento foi escrito
em grego, mas, os evangelhos são claramente focalizados no judaísmo
palestino. Não sabemos se Jesus falava outra língua além de seu nativo
aramaico, mas, mesmo que falasse um pouco de grego, não há evidências
de que ele tenha ministrado nesse idioma ou que fosse familiarizado com
a literatura e filosofia gregas. Seu ensino pode ser totalmente explicado
dentro do contexto judeu, e é nesse contexto que os registros existentes
colocam Jesus, e os estudiosos contemporâneos não têm problemas, com
isso. Atualmente, são as ligações entre Jesus e seu background judaico que
dominam as discussões sobre a origem do cristianismo. Certamente as in-
fluências greco-romanas surgiram mais tarde, contudo, são normalmente
tratadas como secundárias e desconectadas de Jesus.
6 1 Pedro 5.13.
7 Atos 2.9.
Hoje o mundo inteiro concorda que Jesus era judeu, que escolheu
seus discípulos dentre seu próprio povo e que a maioria dos primeiros
cristãos também era judeu.8 Os evangelhos afirmam que ocasionalmente
Jesus ministrava a não israelitas, mas, esses casos foram excepcionais e
assim entendidos naquela época. Em sua argumentação com a mulher
samaritana junto ao poço, Jesus não vacilou em lhe dizer que a “sal-
vação vem dos judeus”, uma declaração que negou explicitamente as
reivindicações do grupo religioso a que ela pertencia.9 Muitas vezes,
Jesus também foi severo com não judeus (ou gentios, como eram co-
nhecidos) que o abordavam pedindo ajuda, embora lhes tenha atendido
as petições, e até chegou a observar que a fé dessas pessoas era maior
do que aquela do povo de Israel.10 11 Resumindo, Jesus deixou claro que
foi enviado aos judeus e não a outros povos, mas, quando não judeus
o buscavam de livre e espontânea vontade, ele nunca os rejeitava.
Essa abordagem foi especialmente relevante à igreja primitiva. Uma
das controvérsias mais significativas que ela enfrentou foi se os não
judeus poderíam se tornar cristãos sem se tornarem judeus primeiro. Os
samaritanos, cujas crenças eram um tipo de sincretismo e uma forma
antiga de judaísmo, pertenciam a uma categoria especial, e sabemos que
Jesus estava disposto a alcançá-los e aceitá-los até certo ponto.11 Pouco
antes de ascender ao céu, Jesus encarregou seus discípulos de levarem
o evangelho a Samaria, o que fizeram devidamente, mas, no início os
samaritanos foram batizados só em nome de Jesus e não receberam
o Espírito Santo.12 Não sabemos o porquê dessa prática, mas, talvez
Filipe, que evangelizou os samaritanos, achasse que eles eram judeus
de segunda classe e, assim, não deveríam receber a plenitude da bênção

8 Isso nos parece tão óbvio que esquecemos facilmente que no início do século 20,
antissemitas e os pressionados por eles (como na Alemanha nazista, por exemplo)
tentaram rebater esse fato ou, no mínimo, fizeram todo o possível para ignorar
suas implicações.
9 João 4.22.

10 Mateus 15.21-28; 8.10. Veja também Lucas 4.27.

11 Veja Lucas 17.16. Mas, havia limites a isso. Quando Jesus enviou os discípulos

para pregar, expressamente os proibiu de lidar com os samaritanos. Veja Mateus


10.5,6.
12Atos 1.8; 8.14-17.
prometida aos cristãos. Isso não passa de especulação, claro, mas, sabe-
mos que é uma anomalia, porque quando os apóstolos em Jerusalém
tomaram conhecimento do fato, correram a Samaria e impuseram as
mãos sobre os que haviam sido batizados de forma inadequada, cor-
rigindo assim o erro.
Por outro lado, a atitude deles para com os gentios foi obviamente
menos simpática. No decorrer do tempo, alguns gentios estavam fami-
liarizados com o judaísmo e uniram-se a sinagogas como “tementes a
Deus”, tornando-se parte dos primeiros não judeus a serem evangeli-
zados. Cornélio, centurião romano posicionado na Cesareia Marítima
na costa palestina, foi um exemplo clássico desse grupo, e por isso, sua
história é contada de modo abrangente em Atos 10-11. Cornélio era
um gentio bastante solidário com os judeus e fez tanto quanto qualquer
estrangeiro podia fazer para ser aceito por eles.
Um anjo de Deus apareceu e disse-lhe que mandasse buscar o
apóstolo Pedro, que estava hospedado em Jopa, não muito longe dali.
Pedro, no entanto, não estava preparado para se encontrar com alguém
igual a Cornélio. Antes que os dois homens se encontrassem, Deus teve
de ensinar Pedro a não considerar nada impuro - numa referência às leis
judaicas sobre alimentação, mas, que poderíam facilmente ser aplicadas
aos gentios. Quando os mensageiros de Cornélio chegaram, Pedro con-
cordou em ir com eles; mas, embora entendesse que o acontecimento
vinha de Deus, continuou um tanto inseguro. Somente depois de ouvir
a história de Cornélio é que sua relutância desapareceu, e pela primeira
vez, Pedro anunciou o evangelho aos gentios.
Cornélio e todos os de sua casa creram em Jesus, e o Espírito Santo
desceu sobre eles (o que não havia acontecido com os samaritanos), e
Pedro batizou a todos. Pedro foi convencido por esses acontecimentos,
porém, com os membros da igreja em Jerusalém, a história foi diferente.
Quando Pedro relatou os acontecimentos, foi contestado por eles, mas,
quando o apóstolo explicou o que havia ocorrido, a igreja aceitou o fato
da mesma maneira que Pedro. No entanto, sabemos que a história não
termina aqui, porque mais tarde, quando Pedro estava em comunhão
com os gentios de Antioquia, alguns membros da igreja de Jerusalém
apareceram e pressionaram-no a se separar do grupo — o que ele fez.13
Isso provocou uma discussão com Paulo, que foi resolvida a favor dos
gentios, embora com algumas condições. Os gentios se uniríam à igreja,
mas, para não ofender os judeus cristãos, deixariam de comer qualquer
carne que tivesse sido sacrificada aos ídolos ou fosse de animais abatidos
de maneira contrária às leis judaicas sobre alimentação.14
Nessa época, estava acontecendo uma queda de braço entre os
que apoiavam Paulo e os denominados judaizantes, que pareciam ter
organizado uma missão rival para combater as políticas “liberais”.15
Atualmente, os judeus cristãos são minoria na igreja, e muito dessa
controvérsia antiga nos parece picuinha e impertinência, contudo, sua
significância não deve ser minimizada. O medo dos judaizantes era que
os gentios convertidos desviassem a igreja de suas raízes judaicas, e não
estavam totalmente equivocados quanto a isso. Não judeus raramente
aprendiam o hebraico, a língua do Antigo Testamento, e davam pouca
ou nenhuma importância às leis e aos costumes judaicos. Os judaizantes
estavam errados ao não querer que eles se tornassem membros da igreja,
mas, estavam certos ao achar que a igreja não podería simplesmente se
afastar de sua herança israelita. De alguma forma, os cristãos tiveram
de fazer as pazes com essa antiga tradição, cujas promessas afirmavam
ter herdado, sem se escravizarem a ela.
A dificuldade enfrentada por Paulo foi que a igreja não era apenas
uma continuação, de forma ligeiramente modificada, da antiga tradição
israelita. Como Jesus disse aos seus discípulos, a lei de Moisés e a men-
sagem dos profetas tiveram autoridade até os dias de João Batista, po-
rém o ministério de Jesus deu início a uma nova época.16 * Jesus afirmou
que aqueles que sabiam ler as Escrituras hebraicas de maneira correta
comprovariam que elas falavam sobre ele; ou seja, que o verdadeiro
sentido dessas Escrituras só seria entendido à luz da revelação que ele
proclamou em seus ensinos e mostrou em sua vida e ministério.1 Ele

13 Gálatas 2.11-14.
,4Atos 15.22-29.
13 Atos 15.1,2; Gálatas 2.4,5.

16 Lucas 16.16.

,7João 5.39,40.
1/

até mesmo disse que nenhuma letra da lei seria anulada; tudo seria ex-
plicado e cumprido por ele.18 No mínimo, isso significava que a Bíblia
hebraica continuaria sendo considerada texto sagrado cuja mensagem
inspiraria os cristãos tanto quanto inspirou gerações de judeus antes
deles. As duas primeiras gerações da igreja não tinham outra escritura
sagrada, pelo menos não um conjunto de literatura que fosse claramente
reconhecido como tal.19 Ainda que a maioria dos escritos que formam
o Novo Testamento já existisse no ano 70 d.C., os autores cristãos he-
sitaram em citá-los como fonte de autoridade até a metade do século
2 — mais de três gerações depois dos eventos neles relatados.
Durante esse período, o Antigo Testamento (como os cristãos
chamam a Bíblia hebraica) continuou sendo o texto de referência
fundamental para a igreja; defendê-lo como a revelação que Deus des-
tinou aos cristãos, e não aos judeus que rejeitaram as palavras de Jesus,
foi uma grande preocupação dos autores cristãos.20 Quando Marcião
(morto em 144?) tentou se distanciar dessa tradição ao rejeitar o An-
tigo Testamento e substituí-lo por uma coleção truncada de textos do
Novo Testamento sem nenhum traço de judaísmo, ele foi totalmente
condenado e refutado pela maioria dos cristãos, que se opunha tanto
aos judaizantes quanto a Marcião.21 Gostando ou não, os cristãos não
conseguiam se desvincular do Antigo Testamento, mas, também não
permitiam que fosse interpretado pelos judeus de maneira que excluísse
as afirmações de que as profecias se cumpriram em Jesus.

,8Mateus 5.17-20.
19 Uma exceção é encontrada em 2Pedro 3.15,16, em que as cartas de Paulo são
classificadas como “Escritura” e são reconhecidas como tendo autoridade na
igreja. Estudiosos têm usado isso como prova de que 2Pedro foi escrita mais
tarde, sob pseudônimo, na metade do século 2. Mesmo que estejam certos, esta
carta continua sendo a evidência mais antiga de que parte do Novo Testamento
que temos hoje foi considerada escritura canônica.
20 Veja, por exemplo, Dialogus cum Tryphone, de Justino Mártir, em que ele argumenta

a favor da interpretação cristã do Antigo Testamento contra o famoso rabino


Tarphon.
21 A obra mais importante desse tipo é Adversus Marcionem, de Tertuliano, escrita

por volta de 200 d.C. e que chegou a nós em cinco livros. Sobre Marcião, veja,
“Marcion”, de H. Rãisánen, em A Companion to Second-Century Christian “Henries"’,
A. Marjanen e P. Luomanen (Orgs.). Leiden: Brill, 2008, p. 100-24.
Há duas razões para isso. Primeira, é impossível entender o Novo
Testamento sem entender bem a essência das Escrituras hebraicas. O
mesmo se aplica a um livro como Apocalipse, que não faz nenhuma
citação direta do Antigo Testamento, mas, é incompreensível sem ele.
Segunda, o Novo Testamento deixa claro que os judeus que viveram
antes de Cristo podiam ter um relacionamento salvador com Deus por
meio da fé nas promessas que ele lhes fez, mesmo que não tivessem
plena consciência de como tais promessas iriam se cumprir e de que
teriam de esperar até seu cumprimento antes de se beneficiarem total-
mente delas.22
Abraão foi uma figura primordial para a igreja primitiva entender a
si mesma. Jesus ensinou aos discípulos que Abraão tinha previsto sua
vinda e se alegrou nisso, embora não tenha ligado seu comentário a
nenhum texto específico do Antigo Testamento.23 Talvez Jesus estives-
se pensando no dízimo que Abraão ofereceu a Melquisedeque, rei de
Salém, que é apresentado como um tipo de Cristo em Hebreus.24 Ou
tivesse em mente o sacrifício que Deus pediu que Abraão fizesse de seu
filho Isaque, só para lhe dizer na última hora que ele providenciaria algo
muito melhor - provavelmente, seu próprio Filho.25 Não sabemos com
certeza, mas, é claro que os primeiros cristãos reivindicavam Abraão
como ancestral na fé tanto quanto os judeus contemporâneos, mas, de
modo diferente. Para os judeus, Abraão era um ancestral de carne e osso;
os cristãos, porém, insistiam em dizer que os verdadeiros descendentes
de Abraão eram aqueles que partilhavam sua fé. O apóstolo Paulo foi
claríssimo ao explicar o assunto, e não hesitou em dizer aos seus leitores
que a circuncisão foi dada a Abraão como sinal de sua fé nas promessas
de Deus, e que essa fé era a verdadeira justificação de Israel.26
A lei de Moisés foi um desafio maior para os primeiros cristãos
porque, aparentemente, Jesus rejeitou uma boa parte dela, como as leis
sobre alimentação e a guarda do sábado, duas coisas sacrossantas nos

22Hebreus 11.39,40.
23 João8.56.
24 Gênesis 14.17-24; Hebreus 7.1,2.

25 Gênesis 22.1-14; Hebreus 11.17,18.

26 Romanos 4.1-12.
círculos judeus mais rigorosos. Para justificar sua atitude, Jesus salientou
que Moisés havia dado a lei porque os israelitas se tinham mostrado
incapazes de manter os altos padrões de Abraão. Como Jesus explicou,
a lei serviu de barreira contra um declínio espiritual maior, e não como
luz que levaria Israel a uma verdade mais elevada.27 Jesus também expli-
cou que a lei deveria ser interiorizada para ser entendida corretamente.
Assim, enquanto Moisés disse que assassinato era errado, Jesus foi mais
adiante e disse aos discípulos que até mesmo pensar mal de alguém era
pecado.28 Ao direcionar seus ouvintes para os princípios subjacentes
à lei, Jesus aprofundava a força de sua aplicação e, ao mesmo tempo,
suprimia detalhes específicos (como a obediência estrita às leis sobre
alimentação) que só atrapalhavam. Foi com essa leitura da lei que Jesus
ensinou os discípulos a conciliarem as obrigações impostas aos antigos
israelitas com os seus próprios ensinos.
Jesus e os discípulos deixaram claro que não estavam acrescentando
nada à Bíblia hebraica, apenas mostrando como deveria ser interpretada.
Dessa perspectiva, pode-se dizer que estavam pregando a mensagem
verdadeira que foi adulterada e corrompida com o tempo. Mas, será
que a igreja cristã ficou muito parecida com sua mãe judia? As simi-
laridades entre elas eram suficientes para incentivar o apoio mútuo e
o diálogo, ou eram apenas semelhanças superficiais mais propensas a
causar dissensões do que harmonia?
Desde o início, os cristãos se julgavam os reais herdeiros do povo
de Deus do Antigo Testamento e consideravam cegos à verdade os ju-
deus que rejeitavam a Cristo. No entanto, mesmo um crítico tão severo
dessa cegueira como o apóstolo Paulo não hesitou em reconhecer que
todos os judeus, incluindo os que rejeitaram o evangelho, continuavam
amados por Deus devido aos seus antepassados. Paulo ensinou que
essa cegueira era, na verdade, uma bênção para os gentios, pois ofere-
cia aos apóstolos a oportunidade de lhes pregar o evangelho. Quando
essa missão fosse cumprida, Deus removería a cegueira de seu povo
escolhido e iria integrá-lo à igreja, e “todo Israel” seria salvo no final.
Não é claro se com “todo Israel” Paulo estava se referindo aos judeus
27 João 7.19-24; Mateus 19.7,8.
28 Mateus 5.21-26. O mesmo princípio foi aplicado ao adultério, Mateus 5.27-30.
e cristãos juntos, ou a todos os que pertencessem ao povo judeu, quer
tivessem fé ou não. Seja como for, Deus iria cumprir as promessas que
fez aos patriarcas.29
Nesse ínterim, a igreja, como descendente de Israel, teria de convi-
ver com essa herança, e avaliar até que ponto ela era igual a sua aparen-
temente indócil mãe e de que maneiras era divergente dela. Analisemos
rapidamente a herança de Israel para ver até onde (e como) a igreja
poderia tomar posse dela.
Quando Deus chamou Abraão para deixar seu povo e família,
ordenou que fosse para uma terra desconhecida, mas, que recebería
como herança. Como parte do chamado, Deus prometeu a Abraão que:

1. Seus descendentes se tornariam uma grande nação;


2. Ele seria abençoado e se tornaria uma bênção para o mundo todo;
3. Quem o apoiasse seria abençoado, e quem não o fizesse seria
amaldiçoado.30

Até que ponto essas promessas foram cumpridas na época de


Jesus? Não há como duvidar que Israel se tornou uma nação, mas, era
complicado chamá-la de “grande”. Depois de pouco tempo na terra
prometida a Abraão, Israel desceu ao Egito para escapar da fome e,
mais tarde, acabou escravizado. Mais de quatro séculos se passaram
antes de a situação mudar, o que só aconteceu com um êxodo maci-
ço após uma perseguição que beirou o genocídio. Sob a liderança de
Moisés, os israelitas deixaram as margens férteis do Nilo pelo desafio
do deserto, onde sua fé e compromisso com o Deus a quem serviam
iriam ser testados ao extremo. Por fim, depois da peregrinação de uma
geração inteira, chegaram à terra prometida, contudo, só se enraizaram
ali de verdade vários séculos mais tarde. Foi só perto do ano 1.000 a.C.,
quase um milênio inteiro após Abraão, que os israelitas estabeleceram
um reinado sob a liderança de Davi, cujos descendentes governariam

29 Romanos 11.1 -32.


30Gênesis 12.1-3.
sobre eles “para sempre”, de acordo com a promessa que Deus lhe fez.31
No entanto, parece que a promessa foi quebrada assim que foi feita.
Depois da gloriosa mas, nociva liderança de Salomão, filho de Davi,
o reino despencou, e apenas as tribos de Judá e Benjamim restaram
como súditos de seu neto.
Durante alguns séculos, o reino de Judá lutou para sobreviver,
quase sempre um peão nos embates diplomáticos das potências da
época, mas, em 586 a.C., ele acabou sendo extinto. Um remanescente
foi deixado na terra, contudo, a maioria do povo foi levada para o
exílio na Babilônia, de onde só retornaria quase duas gerações depois.
Ao voltar, reconstruíram o templo de Jerusalém, mas, exceto por um
período de cerca de um século (aproximadamente 150-63 a.C.), Judá
(também conhecido como Judeia) nunca mais se tornou estado in-
dependente. Nos dias de Cristo, os judeus estavam espalhados pelo
mundo, contudo, sua terra natal foi subdividida e governada por reis
nomeados pelo Império Romano. Eles sobreviveram e se espalharam,
graças às políticas liberais da Pérsia e de Roma, entretanto chamá-los
de uma “grande nação” é exagero.
Se foram “abençoados” é igualmente problemático. Os súditos de
Davi e Salomão viram a mão de Deus trabalhando no estabelecimento
do extraordinário reinado de Israel, e consideraram isso uma bênção,
como fizeram os exilados que voltaram e tiveram permissão para re-
construir o templo. Contudo, num olhar abrangente, é difícil entender
como alguém consideraria uma nação sujeita a um governante estran-
geiro “abençoada” no significado que Deus tinha em mente quando fez
sua promessa a Abraão. Tampouco (e pela mesma razão) Israel podería
ser considerado uma bênção aos outros. Na verdade, Israel se tornou
tão defensivo e isolado que se preocupava mais em manter os outros
distantes do que atraí-los para si. As comunidades dispersas toleravam a
presença dos gentios “tementes a Deus”, contudo, nunca se esforçaram
para envolvê-los na nação judaica, e proselitismo ativo era coisa rara.
Pelo contrário, eram os judeus mais zelosos que tentavam praticar a lei
de Moisés tão ao pé da letra que até mesmo os outros judeus achavam
difícil serem reconhecidos como tais por seus correligionários.
31 IReis 11.36; 2Reis 8.19.
Por fim, havia pouco ou nenhum sinal de que os gentios que
apoiassem os judeus seriam abençoados e os outros, amaldiçoados.
Podemos fazer essa leitura do livro de Ester, contudo, sua história foi
uma exceção que provou a regra.
Em geral, os gentios que apoiavam Israel não recebiam nenhuma
vantagem, e havia pouca indicação de que seus ofensores fossem pu-
nidos por isso. Infelizmente os judeus iniciavam um período de sua
história em que discriminação e perseguição seriam a ordem do dia, e
ninguém recebería castigo divino por sua maldade contra o povo es-
colhido de Deus. As perspectivas variam, claro, e é verdade que através
dos séculos os judeus sempre agradeceram a Deus por suas bênçãos,
contudo, de maneira objetiva, é difícil achar que as promessas feitas a
Abraão foram cumpridas em Israel.
O chamado feito a Abraão foi estendido a seus descendentes, mas,
somente por meio da linhagem privilegiada de Isaque, cujo nascimento
foi um milagre fora do âmbito das expectativas da reprodução humana.
Abraão teve outros filhos - sendo Ismael o mais notório, e que lhe foi
dado por Hagar, sua escrava e concubina —, mas, esses foram mandados
embora com heranças separadas e nunca foram contados entre o povo
escolhido de Deus.32
Algo parecido aconteceu na geração seguinte com Esaú e Jacó. Por
meio de um embuste bem tramado, Jacó, o irmão mais novo, herdou o
direito de primogenitura de Isaque, e Esaú foi lançado fora.33 Esaú deu
início ao reinado edomita, e o relacionamento íntimo de seus descen-
dentes com Israel foi importante mais tarde. Por exemplo, o profeta
Obadias repreendeu Edom por não ter socorrido Judá na dificuldade,
e os herodianos que governaram os judeus na época do Novo Testa-
mento eram de origem edomita (idumeu).34
Depois da morte de Salomão, Israel se dividiu em dois reinos rivais:
o do norte, composto de dez das doze tribos, e Judá (com Benjamim),
que manteve a capital em Jerusalém e a legitimidade que acompanhava
a posição de guardiões do templo ali localizado. Como tribo de Davi, o

32 Gênesis 25.6.
33 Gênesis 27.1-45.
34 Obadias 10-14.
direito de Judá de reivindicar a herança de Abraão nunca foi contestado,
porém a história do reino do norte foi mais complicada. Não tendo um
lugar próprio de adoração, seus reis se viram na obrigação de construir
dois nos limites de seu território — um em Dã, que ficava no norte, e
outro em Betei, perto de Jerusalém - numa tentativa de impedir que os
súditos oferecessem sacrifícios no templo de Salomão. Não sabemos
com certeza o que ocorria internamente no reino do norte, contudo,
ele parecia mais suscetível aos elementos pagãos do que Judá, e nenhum
de seus reis foi considerado satisfatório aos olhos dos cronistas que
registraram seus feitos. Por outro lado, Elias e Eliseu, dois dos maio-
res profetas israelitas, ministraram no norte, e até mesmo nos dias do
Novo Testamento havia israelitas que afirmavam ser descendentes de
uma das tribos do norte.
Muito do que aconteceu depois da extinção do reino do norte em
722 a.C. é incerto, porém mais tarde uma forma variante de judaísmo se
estabeleceu na região de Samaria. Os samaritanos alegavam pertencer
ao povo de Deus do Antigo Testamento, todavia se recusavam a cultuar
no templo em Jerusalém, e foram rejeitados por aqueles que achavam o
templo parte central da adoração. Na época de Jesus, os judeus não se
relacionavam com os samaritanos, e embora não tivesse aderido a esse
padrão, ele não duvidava que a salvação pertencia aos judeus. Nessa
época, os pilares da religião judaica principal eram três:
1.0 sacerdócio que remontava a Aarão, irmão mais velho de Moisés,
e que vigorou enquanto o templo e seus sacrifícios continuaram em
ação. Depois da destruição do templo no ano 70 d.C., o sacerdócio
desmoronou, embora ainda há quem assevere que os judeus de sobre-
nome Cohen pertencem à linha sacerdotal e espera-se que o templo
fique sob seus cuidados caso seja reconstruído.
2. A lei dada por Moisés, que estava contida na Torá ou Pentateuco
(de Gênesis a Deuteronômio) e era interpretada pelos sacerdotes com
a ajuda de uma coleção crescente de comentários escritos. Essa coleção
partiu dos targumim, que eram comentários dos textos, desenvolvendo-se
no Mishná e Talmude, os quais se tornaram fundamentos do judaísmo
posterior.
3. As Escrituras, formadas pelos livros proféticos e os chamados
Escritos, acrescentados à lei de Moisés. O cânon profético estava defi-
nitívamente fechado na época de Jesus, porém havia dúvidas sobre os
Escritos, especialmente sobre o livro de Ester, que não menciona uma
única vez o nome de Deus e, portanto, era visto com desconfiança.
Havia também uma discrepância entre o cânon hebraico, que corres-
ponde ao Antigo Testamento moderno em sua forma protestante, e as
traduções gregas, que incluem alguns livros conhecidos coletivamente
como os “Apócrifos”. Hoje eles são aceitos como canônicos pelas igre-
jas Católica Romana e Ortodoxa Grega, mas, rejeitados pelos judeus
e protestantes.
O quanto esses pilares são fundamentais à religião judaica é deduzi-
do pela maneira em que aparecem no Novo Testamento. A autoridade
das Escrituras hebraicas era inquestionável, e a Torá usufruía de prestígio
singular. Mas, a tradição dos comentários desenvolvida a seu redor era
um tanto suspeita, e temos a impressão que Jesus opunha-se até mesmo
à sua existência.35 Talvez seja exagero, contudo, não há evidência nos
evangelhos de que ele era simpático aos ensinos rabínicos que diziam
interpretar o texto mosaico à luz das circunstâncias contemporâneas. O
sacerdócio também era importante, mas menos fundamental. Ensinar
religião ao povo era em essência tarefa dos escribas, rabinos, e de grupos
como os fariseus e saduceus, que não faziam parte da estrutura oficial
do templo, embora muitos saduceus pertencessem a ele.
No decorrer de sua história, o povo conhecido como Israel se tor-
nou gradativa e relativamente menor e limitado. Mesmo que houvesse
mais israelitas nos dias de Jesus do que nos dias de Davi, isso foi causado
pelo aumento natural da população de Judá, e sua dispersão através
do mundo resultou em crescimento no que diz respeito a números
absolutos. Por outro lado, dez das doze tribos se desfizeram, e houve
um fluxo contínuo de judeus rumo ao mundo pagão que os cercava. É
verdade que houve um escorrer vagaroso de gentios na comunidade ju-
daica, mas o número deles nunca foi grande o bastante para compensar
as perdas. Os judeus continuaram a ser uma presença significativa na
Palestina e provavelmente continuavam a ser sua população majoritária
35Mateus 15.2-6.
na metade do século 2 d.C, todavia rebeliões sucessivas diminuíram sua
influência, dispersaram sua liderança e os desapossaram da velha terra
natal. A presença dos judeus era comum em muitas cidades ao redor
da bacia do Mediterrâneo e na Mesopotâmia, contudo, eram minoria.
Mais tarde, quando a igreja cristã se tornou o movimento religioso
preeminente no Império Romano, as sinagogas foram incapazes de
oferecer uma alternativa mais atraente.
Não era fácil decidir quem era judeu. O homem tinha de ser cir-
cuncidado se quisesse ser aceito na comunidade judaica.36 Os judeus
tinham de seguir as leis sobre alimentação e as cerimônias estabelecidas
pela lei mosaica, mas, parece que os líderes de muitas comunidades da
diáspora fizeram vistas grossas a isso e temos a impressão de que muitos
judeus se acomodaram em deixar as coisas como estavam. Obedecer
aos mandamentos ao pé da letra era difícil na melhor das circunstâncias,
e para uma minoria em ambiente estranho isso seria mais difícil do que
para os que moravam em vilarejos de maioria judaica na Palestina. O
conhecimento do hebraico, por outro lado, tinha valor relativo. Os ra-
binos sabiam hebraico, claro, mas, as pessoas comuns falavam grego ou
aramaico, suplementados (embora bem pouco) por palavras hebraicas
e expressões hebraicas específicas como amém e aleluia. Quase todos os
que ouviram Pedro falar no dia de Pentecostes em Jerusalém deviam
ser judeus, mas, como o texto indica, todos o ouviram falar em suas
próprias línguas, que eram faladas nas regiões da diáspora judaica.37
As festividades mais importantes, tais como a Páscoa, eram am-
plamente celebradas, porém muito do que o mundo contemporâneo
entende como cultura judaica é de origem mais recente. Pelo menos
na superfície, havia pouca coisa que distinguisse os judeus dos cristãos,
e embora, de vez em quando, a prática contínua dos costumes judai-
cos entre os que se tornavam cristãos causasse problemas, estes eram
rapidamente resolvidos de maneira definitiva. Isso dá a entender que
as práticas não haviam se enraizado na cultura popular, qualquer que
tenha sido sua importância simbólica ou teológica. O que unia os judeus
era o sentimento de pertencerem a um povo, sentimento encorajado
36 Veja Atos 16.3.
37Atos 2.7-11.
tanto pelo preconceito quanto pela prática religiosa. Os judeus eram
considerados excêntricos pelos gentios, e pagavam na mesma moeda,
geralmente mantendo-se afastados e casando-se com pessoas de sua
comunidade.
E impossível determinar quantos desses judeus eram considerados
“fiéis”. Evitar contato com os pagãos era uma coisa, outra bem
diferente era abraçar a fé do Antigo Testamento de modo coerente ou
abrangente. Na época de Jesus, existiam movimentos devocionais como
os dos fariseus, que propagavam observância estrita à lei de Moisés, e
os dos saduceus, que sob a perspectiva atual eram os teólogos “libe-
rais” daquela época, porque rejeitavam crenças como a ressurreição
dos mortos.38 Existiam também grupos periféricos como os essênios
e a comunidade de Qumran, que praticavam asceticismo e isolamento
do mundo. Mas, esses grupos eram minoria. Em geral, os judeus eram
mais parecidos com José, Maria e os discípulos de Jesus — pessoas
comuns de fé convencional que raramente era desafiada ou testada. A
existência de escritos sagrados garantia nível mais alto de alfabetização
entre os homens do que a média, mas, embora houvesse nas sinagogas
homens que estudavam esses escritos, não há muita evidência de que o
estudo fazia muita diferença na vida devocional da comunidade como
um todo. Quando Paulo pregou o evangelho em Bereia, ele notou que
algumas pessoas consultavam as Escrituras para se certificarem de que
o apóstolo estava falando a verdade, mas, o fato de Lucas ter registrado
o acontecimento mostra que tal diligência era rara e longe da norma
na maioria dos lugares.39
O que sabemos é que havia muitos judeus que valorizavam bem
pouco a fé de seus ancestrais e cujas vidas ridicularizavam a lei de Moi-
sés. Como o apóstolo Paulo afirmou, esses judeus eram uma desonra à
nação porque o comportamento deles traía os princípios que deveríam
identificá-los. De maneira nenhuma todos os que se chamavam judeus
partilhavam o espírito da lei mosaica, e essa contradição em termos
questionava a natureza de Israel. Seria Israel um povo que descendia
fisicamente de Abraão ou a nação era formada de pessoas que criam
38 Mateus 22.23.
39Atos 17.11.
da mesma forma que Abraão creu, fossem elas seus descendentes ou
não? Jesus não hesitou em dizer a seus compatriotas que na antiguidade
muitos gentios receberam as bênçãos de Deus quando israelitas que
também necessitavam muito delas foram deixados de lado. Naamã,
o general sírio que foi curado de lepra, foi um exemplo maravilhoso
disso, assim como foi Rute, a moabita, uma de suas ancestrais. Fé e
nação se sobrepunham, mas, não eram a mesma coisa, e para Jesus e
seus seguidores a primeira era mais importante. Entretanto, permanecia
uma certa ambiguidade. Nascer em uma família judia era um grande
privilégio, embora tal coisa exigisse um grau maior de responsabilida-
de espiritual. Aqueles que conheciam a verdade desde o nascimento
tinham a obrigação de viver de acordo com ela, e caso não o fizessem,
o escândalo era resultado inevitável, porque os judeus eram um povo
separado de modo especial, quisessem ou não.40 A igreja cristã seria
diferente, mas, a que ponto e com que repercussão?

Israel Foi a Igreja do Antigo Testamento?

Em diferentes épocas de sua história, a igreja cristã considerou o


Israel antigo como modelo para sua vida. Depois da legalização do
cristianismo pelo Império Romano (em 313) e seu estabelecimento
como religião estatal (em 380), líderes da igreja buscaram no Antigo
Testamento exemplos de como uma sociedade cristã deveria ser dirigida.
Os imperadores se tornaram governantes sagrados nos mesmos moldes
dos reis de Israel e Judá. Eram ungidos em cerimônia de coroação de
natureza profundamente religiosa e recebiam posição honradíssima na
igreja; muitas vezes, eram considerados iguais aos apóstolos (isapostoloi).41
O clero cristão foi organizado em ordem de sacerdotes conforme o
modelo araônico, e para se manterem, recebiam dízimo de tudo o que
era produzido, exatamente como aconteceu aos levitas do passado.42
Até mesmo os cultos tinham um tempero do Antigo Testamento, pois

40 Romanos 2.17-24.
41 Isso foi especialmente verdade em relação a Constantino I (306-37), que legalizou
o cristianismo, e Justiniano I (527-65), construtor da famosa Basílica de Santa
Sofia, em Constantinopla.
42 Números 18.21.
a Ceia do Senhor foi transformada em sacrifício memorial ao Cordeiro
que foi morto pelos pecados do mundo — Agnus Dei, qui tollis peccata
mundi, como descrito pelo famoso hino da Ceia medieval.43
Os elos assim criados se tornaram possíveis porque o Antigo Tes-
tamento foi alegorizado para suprir as necessidades da igreja cristã. Por
exemplo, a visão de Jacó da escada ascendendo ao céu significava que
enquanto Israel dormia na casa de Deus (Betei), os cristãos estavam
acordados e subiam a escada, juntamente com anjos e arcanjos. Ecos
dessa interpretação permanecem na oração de consagração do Livro
Anglicano de Oração Comum, no qual é “com anjos e arcanjos e toda
hoste celestial que louvamos e enaltecemos o teu Nome glorioso”.
Quem visita a Catedral de Chartres, na França, pode observar que
os espetaculares vitrais coloridos estão dispostos em duas séries cor-
respondentes: uma dedicada ao Antigo Testamento e outra ao Novo
Testamento. A correspondência é deliberada, de modo que o vitral da
história do bom samaritano, por exemplo, fica em frente ao da venda
de José à escravidão no Egito. A lógica é que no Antigo Testamento a
pobre vítima foi condenada à escravidão, ao passo que no Novo Testa-
mento a vítima foi resgatada por alguém que, em geral, é considerado
o próprio Cristo.
Em conformidade com a tradição cristã, os paralelos alegóricos ju-
daicos são sempre apresentados como parciais e inferiores aos cristãos,
mas, só o fato de estarem presentes fala por si. Os cristãos se viram
refletidos no Antigo Testamento, sentindo-se privilegiados em corrigir
com o evangelho o que deu errado sob a lei de Moisés. Até que ponto
essa perspectiva era válida?
Em certo sentido, não há como duvidar de que os cristãos enten-
diam seu relacionamento com Deus como o cumprimento das pro-
messas do Antigo Testamento. Obviamente, o evangelho era superior
à lei — se não fosse, não havería motivo para alguém se tornar cristão. O
apóstolo Paulo foi incisivo ao descrever o relacionamento entre a sina-
goga e a igreja quando comparou aquela a Hagar, a escrava concubina de
Abraão, e esta a Sara, sua legítima esposa. Os filhos das duas mulheres
eram descendentes de Abraão, contudo, o filho de Hagar (Ismael) foi
43 “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.”
mandado embora, mas, o de Sara (Isaque) herdou a bênção do pai.44 O
mesmo aconteceu com a igreja. Os judeus podiam afirmar ser filhos de
Abraão, todavia, eram escravos da lei e foram expulsos, mas, os cristãos
eram filhos da mulher livre. Por um lado, judeus e cristãos eram muito
parecidos, mas, por outro, eram muito diferentes.
O que Paulo menciona de passagem foi desenvolvido de maneira
sistemática pelo autor de Hebreus, que começa assim o seu tratado:
“Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos
nossos antepassados por meio dos profetas, mas, nestes últimos dias
falou-nos por meio do Filho”.45 Depois de uma longa explicação do que
isso acarreta, ele termina seu argumento apontando diretamente para
os memoráveis homens e mulheres de fé cujas vidas estão registradas
no Antigo Testamento e que são exemplos para nós que viemos após
eles. Apesar da excelência dessas pessoas, o autor de Hebreus conclui:
“Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto,
nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado
algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados”.46
É isso: os fiéis do Antigo Testamento eram magníficos servos de
Deus, e no acerto de contas no fim dos tempos, serão incluídos entre
os justos, assim como nós. Ao mesmo tempo, contudo, eram diferentes
de nós. Aguardavam as bênçãos que agora nós recebemos e usufruímos
de um modo que não aconteceu com eles. Suas vidas seguiram uma
trajetória diferente da nossa, e foram sujeitos a fardos e limitações que
não se aplicam a nós. Eles se constituíram em uma igreja, que se tornou
ancestral da equivalente cristã? Podemos hoje considerá-los cristãos,
embora tenham vivido antes da vinda de Cristo e não usassem esse
termo para descreverem a si mesmos?
Aqui nós dependemos até certo ponto das definições das palavras.
Tanto o Israel antigo quanto a igreja cristã subsequente foram chamados
de “o povo de Deus”, e se é isso que intencionamos dizer com a pala-
vra “igreja”, então, Israel deve ser incluído. Mas, o Novo Testamento
não vai tão longe assim. As diferenças entre as instituições históricas

44 Gálatas 4.21-31.
45 Hebreus 1.1,2.
46 Hebreus 11.39,40.
de Israel e as do movimento cristão incipiente foram tão importantes
quanto suas semelhanças, e a maneira como os cristãos usavam a pa-
lavra “igreja” dá essa indicação. Reconheciam que, apesar de todas as
semelhanças e conexões entre elas, o cristianismo não era apenas um
ramo do judaísmo. Se fosse, os discípulos de Jesus jamais teriam for-
mado comunidades de adoração tão distintas. A verdade é que embora
permanecessem judeus, a experiência espiritual deles não podia ser
contida nos limites do judaísmo tradicional. Além disso, era possível (e
logo se tornou comum) aos gentios crerem em Cristo e usufruírem da
mesma experiência com ele sem se tornarem judeus. Existia algo novo
aqui, e é isso que o termo “igreja” expressa. Os motivos principais de
não incluirmos (e provavelmente não deveriamos fazê-lo) Israel sob o
termo geral “igreja” são:
1. Israel e a igreja receberam uma revelação escrita de Deus, que é
fundamental à sua vida e fé. A igreja cristã adotou as Escrituras judaicas
como sua, mas, de um modo diferente. Primeiro, os cristãos interpretam
a Bíblia hebraica à luz do Cristo (Messias) que já veio, o que os judeus
não fazem. Depois, o cânone cristão está fechado de um modo que o
cânone hebraico antigo não foi. As profecias cessaram em Israel cerca
de quatrocentos anos antes da vinda de Cristo, fato comprovado pelo
Antigo Testamento como o temos hoje, contudo, na época de Jesus
não havia consenso se a revelação divina havia ou não chegado ao fim.
Israel havia sofrido carências espirituais outras vezes, porém, elas foram
seguidas de reavivamento e produção de nova Escritura. Quando João
Batista apareceu, ele não foi rejeitado como impostor por ter achado
que um ministério igual ao seu não era mais válido.
Os cristãos, por outro lado, aceitaram a Bíblia hebraica como um
cânone completo que não poderia ser ampliado porque ele aponta
para o Cristo que já veio. O Novo Testamento também é um cânone
completo e o tem sido desde que a primeira geração que testemunhou
seus acontecimentos deixou de existir. Nem sempre houve concor-
dância universal quanto ao seu conteúdo, e os debates sobre a autoria
apostólica de alguns de seus livros continuaram, mas, essas questões
são secundárias. O preceito era que com a chegada da plenitude dos
tempos novas revelações se tornaram impossíveis. Deus continua a
falar à igreja e por meio dela, contudo, o faz de maneira diferente; hoje
ninguém pode reivindicar o tipo de autoridade que foi dada a Moisés,
aos profetas do Antigo Testamento ou aos apóstolos de Jesus.
Mais significativo ainda, o judaísmo salienta em geral que a Bíblia
hebraica é lei, enquanto a igreja cristã a entende mais como profecia.
Naturalmente, “a Lei e os profetas” estão interligados, e nenhuma
das duas crenças enfatiza um e exclui o outro. Mas, embora os judeus
achem natural querer saber como a lei de Moisés pode ser estendida e
aplicada a situações não previstas pelos ancestrais israelitas, os cristãos
não fazem o mesmo. Na igreja, os preceitos mosaicos são considerados
princípios espirituais cuja aplicação depende da maneira em que foram
cumpridos (e suplantados) pelo evangelho de Cristo. Isso pode levar
à eliminação de preceitos (como no caso das leis alimentares que se
acredita não serem mais aplicáveis) ou a uma prática mais profunda e
rigorosa de seus ensinos — como é o caso dos Dez Mandamentos, em
que as proibições de assassinato e adultério são ampliadas e incluem
maus pensamentos e desejos, e não se limitam a atitudes externas.47
Quanto às profecias, para os judeus elas pertencem a um futuro esca-
tológico no qual se pode ou não acreditar; o judaísmo messiânico é (e
sempre foi) um interesse periférico no mundo judaico. Para os cristãos,
no entanto, as profecias foram cumpridas em Cristo. Elas têm, claro,
uma dimensão escatológica, mas, esse aspecto também está ligado a
ele. Assim, a vinda do Messias no final dos tempos só pode ser a volta
de Cristo, e não o aparecimento de alguém até agora desconhecido.48
2. O Israel antigo (assim como seu par moderno) era uma nação
humana secular com suas tradições, cultura, língua e território compará-
vel aos países vizinhos. Qualquer um podería fazer parte de Israel, mas,
isso não era incentivado, e com o passar do tempo, influências externas
(como esposas estrangeiras) eram cada vez mais restringidas. No início,
uma mulher igual a Rute não tinha dificuldades em se casar com um
judeu, mas, tal casamento se tornou mais difícil depois, especialmente
após o exílio.49 Em decorrência, a hereditariedade física exercia papel
47 Mateus 5.21-30
48 Atos 1.11; ICoríntios 15.20-28; ITessalonicenses 4.13-17.
49 Veja Esdras 9—10.
central na vida de Israel. O clã sacerdotal era uma tribo distinta cuja
linhagem remontava a Arão, irmão mais velho de Moisés. Ninguém
decidia (ou se recusava a) ser sacerdote, pois isso era determinado pelo
nascimento. De maneira similar, Jesus herdou seu título real do ances-
trai Davi e não o teria obtido de outra forma. Alguém como Herodes
governava como rei dos judeus, mas, da perspectiva teológica, ele era
usurpador e jamais passaria disso.50
Em forte contrapartida, a igreja cristã não era uma nação no sen-
tido comum da palavra, ainda que tal linguagem fosse, às vezes, usada
para descrevê-la.51 Qualquer pessoa poderia ser membro da igreja, e o
milagre do primeiro Pentecostes teve o intuito de revelar a universa-
lidade de sua mensagem. A igreja não se isolou para sobreviver, mas,
buscou acolher pessoas de todas as tribos e línguas. O evangelismo,
um conceito desconhecido antes da vinda de Cristo, tornou-se a razão
de ser da igreja, que viu a proclamação do evangelho até os confins da
terra como sua tarefa principal. Cargos na igreja, tal como eram, nunca
foram herdados, e algumas vezes foi necessário tomar medidas para
que esse princípio fosse observado. Um dos motivos para a imposição
do celibato ao clero ocidental na Idade Média foi garantir que filhos
legítimos não herdassem os cargos de seus pais. Na igreja, era possível
se tornar ministro (e deixar de sê-lo) de um modo inconcebível no Is-
rael antigo. Da mesma forma, reis e outros regentes que se tornavam
cristãos não usufruíam de status e privilégios na igreja, embora isso lhes
tenha sido concedido nos séculos posteriores, nem os governos secu-
lares foram sujeitos à igreja, embora também tenha havido exceções
na Idade Média e mais tarde.
Certamente muitas foram as tentativas de estabelecer governos e
estados cristãos, mas, nenhum deles usufruiu da mesma sanção divina
concedida ao reinado davídico no Israel de antigamente. Não é exagero
afirmar que o conceito de secularização do governo civil (no sentido
de “não ser religioso”) é produto do pensamento cristão e remonta ao
mandamento de Jesus, que disse aos judeus que embora devessem pagar

50 Veja Mateus 2.1-12 e a citação incisiva de Miqueias 5.2 no v. 6.


51 Veja 1 Pedro 2.9.
a César o que lhe era devido, deveríam diferenciar esse pagamento do
que deviam a Deus.52
3. A vida espiritual do Israel antigo estava centralizada no templo
de Jerusalém e especialmente no supremo sacrifício propiciatório, que
era aü oferecido anualmente pelo sumo sacerdote. Como o autor de
Hebreus deixa claro, esse sacrifício, e outros rituais menos importan-
tes, eram realizados pelo sumo sacerdote não apenas em seu próprio
benefício como também pela salvação do povo, porque, em essência,
ele não era melhor que ninguém.53
Em contraste, a vida espiritual da igreja cristã estava centralizada
em comunidades reunidas para adoração. Jesus estava presente sempre
que dois ou três cristãos se reuniam em seu nome; ele não estava ligado
a um templo ou a um local terreno de qualquer tipo que fosse. O ponto
alto do culto não era o sacrifício expiatório, e sim a lembrança desse
sacrifício, que foi feito em definitivo por Cristo na cruz. O sacrifício
de Cristo era o foco do culto cristão não pelo que foi em si, mas, pelo
que representava. Os líderes cristãos não eram sacerdotes no sentido
do Antigo Testamento. Eram pregadores e evangelistas que foram
chamados para anunciar que Cristo havia acabado com a necessidade
de sacrifícios e que as tradições do templo de Jerusalém eram agora
obsoletas.
Assim, não havia nada na igreja primitiva que se comparasse ao
templo de Jerusalém. Nunca houve um edifício ou lugar específico para
a realização do culto, ou um espaço ao qual se restringir. Os cristãos
podem cultuar (e cultuam) em qualquer lugar sem favorecer um ou ou-
tro. Há ocasiões em que dão atenção especial a Jerusalém e à chamada
Terra Santa; também visitam lugares importantes, entre eles Belém e
Nazaré, cidades onde Jesus nasceu e foi criado, mas, isso nunca teve a
importância espiritual que liga a adoração em Jerusalém (e no Monte
Sião) à mente judaica.54

52 Mateus 22.15-22.
53 Hebreus 5.2,3.
54 Observemos de passagem que o cristianismo é diferente do Islamismo também

nesse aspecto. Para os islâmicos, a peregrinação a Meca é obrigação sagrada,


contudo, nada parecido jamais aconteceu no mundo cristão, mesmo quando a
peregrinação era incentivada e organizada.
Para a igreja o templo não tinha mais utilidade, porque seu propósito
foi cumprido em Cristo, mas, com a sinagoga, a história era outra. No
Israel antigo não existiam sinagogas; elas vieram mais tarde, em parte
para suprir as necessidades das comunidades da diáspora e em parte
para atender aos judeus que viviam na Palestina. Sabemos pelo Novo
Testamento que existiam vários edifícios de sinagogas na Galileia e em
outros lugares, alguns construídos e pagos por gentios admiradores do
judaísmo, incluindo oficiais militares romanos como Cornélio. Havia
sinagogas até em Jerusalém, embora o templo estivesse perto e fosse
fácil visitá-lo a qualquer momento. Originalmente, a palavra “sinagoga”
se referia a uma reunião de pessoas, mas, como as reuniões normal-
mente aconteciam em locais específicos, a palavra passou logo a incluir
também o próprio edifício. As sinagogas eram lugares onde os judeus
se reuniam para orar, ouvir a leitura da Bíblia e serem instruídos na fé.
A organização das sinagogas era informal, parcialmente porque não
havia estipulações para elas na lei de Moisés (mas, havia para o templo) e
parcialmente porque elas ainda eram um fenômeno relativamente novo.
E difícil determinar exatamente quem dirigia a sinagoga. Por certo
que existia gente influente na cidade que participava de sua manutenção,
e sabemos que pessoas conhecidas como archisynagogoi [traduzido pela
NVI como “chefe da sinagoga’J exerciam certo controle das sinagogas.
Uma dessas pessoas, um homem chamado Crispo, converteu-se com
a pregação de Paulo em Corinto, um acontecimento que causou furor
na comunidade judaica porque despojou a sinagoga de um de seus
financiadores mais importantes.55 Fora isso, não sabemos mais nada.
Pressupõem-se que os archisynagogoi deveríam cuidar para que o culto
fosse conduzido de modo regular e ordeiro e que os jovens recebes-
sem instrução, mas, essa é uma suposição lógica que não tem muito
ou nenhum suporte. Certamente os archisynagogoi dependiam do apoio
dos membros mais velhos da congregação, contudo, isso também é
especulação, e possivelmente o padrão variava muito de um local para
outro. O sistema todo se desenvolvia informalmente, e esse foi um
dos motivos de Jesus e os discípulos, incluindo Paulo em suas viagens
missionárias, terem sido facilmente aceitos nas sinagogas — pelo menos
de início.
Se as sinagogas tinham mestres para instruir o povo no significado
da lei é algo desconhecido. Um grupo crescente de homens, a quem
chamamos de rabinos, eram treinados para esse propósito, contudo,
na época de Jesus o padrão usado mais tarde ainda não havia sido
estabelecido. Jesus era chamado de rabino por quem não sabia de que
outra forma se dirigir a ele, porém isso não significa que ele tivesse
qualquer tipo de educação teológica formal ou que tivesse uma posição
reconhecida oficialmente pela sociedade judaica.56 Foi somente depois
da destruição do templo de Jerusalém no ano 70 d.C. e da dissolução
do sacerdócio tradicional que a sinagoga conquistou a importância que
ainda mantém no mundo judaico. O judaísmo sobreviveu à catástrofe
porque já existia uma rede bem estabelecida de instituições que funcio-
navam sem muita dependência do templo. Portanto, não devemos nos
surpreender com o fato de que foram as sinagogas, e não o templo, que
serviram de modelo para a organização das primeiras igrejas cristãs.
Em hebraico as palavras “sinagoga” e “igreja” são praticamente
as mesmas: “sinagoga” é knesset e “igreja” é knesiyah, e as duas signi-
ficam “assembléia”.57 É apenas no grego que encontramos palavras
bem diferentes: synagoge para os judeus e ekklesia para os cristãos, sem
nenhuma distinção importante de significado. Ekklesia era uma palavra
usada para a assembléia de cidadãos em cidades como Atenas; na ver-
dade, entretanto, a versão cristã não era um tipo de parlamento, como
a ligação linguística talvez deixe transparecer. E na tradição israelita
não existia nada que se comparasse a ela. No início do cristianismo, os
cristãos não tinham permissão para construir locais de culto, assim a
associação natural da palavra ekklesia de assembléia para o edifício onde
ela se reunia levou algum tempo para acontecer.58 Mas, bem antes disso,
56 Veja Mateus 23.7,8.
57 No hebraico moderno Knesset é o termo usado para o parlamento israelense.
58 Isso talvez explique por que a palavra ekklesia nem sempre foi adotada. Nos paí-

ses germânicos do norte europeu, o termo preferido era uma variante de kyriake
(pertence ao Senhor), do qual derivam a palavra inglesa “church” e a palavra alemã
“kirk” [as duas significam igreja]. A mesma palavra também penetrou o mundo
ortodoxo oriental, onde formas variadas do termo russo tserkov são comuns. As
a palavra ekklesia adquiriu conotações que a distinguiam claramente de
sinagoga, não levando em conta somente a fé religiosa mas, também,
questões práticas de organização.
Primeiro, a palavra “igreja” incluía todos os que se diziam cristãos.
Era usada no singular e no plural, referindo-se tanto ao universo de
todos os cristãos como também às suas reuniões em grupos locais. A
igreja foi descrita como “o corpo de Cristo”, no qual cada membro
era batizado e tinha um lugar designado.59 Esse corpo era uma unidade
que deveria ser assim preservada como testemunha da existência de
um Senhor, uma fé e um batismo.60 A universalidade do evangelho
cristão exigia tal atitude, e qualquer tendência de divisão em partidos
seguidores de diferentes líderes era confrontada vigorosamente pela
liderança das principais igrejas apostólicas.61
Segundo, e por causa da necessidade de manter essa unidade abran-
gente, a igreja tinha uma estrutura organizacional altamente centralizada
completamente estranha à sinagoga. A supervisão das igrejas era feita
pelos apóstolos — os discípulos de Jesus, juntamente com Paulo —, a
quem as congregações locais apelavam, e esses não hesitavam em “inter-
ferir” quando necessário. A carta de Paulo aos Romanos, por exemplo,
foi endereçada a uma igreja que ele nunca tinha visitado, contudo, isso
não diminuiu em nada a autoridade do apóstolo. Nenhum líder judeu
escrevería dessa forma a uma sinagoga. Internamente, cada igreja era
estruturada de um modo inimaginável nas sinagogas. Não sabemos
com exatidão como isso funcionava, e possivelmente existiam muitas
variações pelo mundo mediterrâneo que mais tarde se mesclaram em
exceções geralmente acontecem no sentido oposto e mostram como a palavra
usada para o edifício podería ser aplicada à congregação, e a partir de então à
igreja universal. O romeno, por exemplo, usa o termo biserica, que vem do grego
latinizado basílica, e o polonês, kosciol(tcheco hostel), derivado de castellum (castelo).
No Leste Europeu, muitos idiomas empregam palavras diferentes em relação às
igrejas católicas para distingui-las das igrejas ortodoxas orientais e protestantes.
Assim, uma kosciolé sempre uma igreja católica, uma tserhov é ortodoxa oriental, e
uma igreja protestante pode ser chamada de outra coisa — talvez chram (templo)
ou algo parecido.
59 ICoríntios 12.27.

60 Efésios 4.5.

61 Veja, por exemplo, ICoríntios 1.11-17.


um padrão comum, entretanto o Novo Testamento deixa claro que
havia um padrão de governo e responsabilidade. Quando Paulo escre-
via a uma igreja, ele esperava ser obedecido, e isso sugere que havia
pessoas da localidade capazes e dispostas a colocar as recomendações
em prática. Quem eram (e como eram chamadas) tem sido assunto de
muita discussão, mas, não há como duvidar de sua existência.
Terceiro, e talvez mais importante, a igreja tinha a missão de con-
verter o mundo. Ela não era um clube de expatriados, como a sinagoga
da diáspora parecia muito bem ser. Não havia hierarquia dos membros,
com os judeus ocupando cargos especiais, embora, sem dúvida nenhu-
ma, isso integrasse a campanha promovida pelos famosos judaizantes.
Fazer parte da igreja não significava enfatizar a identidade étnica ou
social do indivíduo, mas, perdê-la. Os cristãos não gastavam tempo
cultivando uma linguagem sagrada como o hebraico bíblico, embora ele
fosse o meio original da revelação das Escrituras. Eles usavam o grego,
especialmente por questão de praticidade, uma vez que era o idioma
comum do mundo mediterrâneo da época. Ao contrário dos cristãos de
hoje, eles não mostravam interesse em traduzir a Bíblia para qualquer
outro idioma, embora Paulo tenha, aqui e ali, ministrado a pessoas que
provavelmente não entendiam o que ele estava dizendo.62 Certamente
existia diferença de classes dentro da igreja, mas, quem levava isso em
consideração era admoestado com severidade.63
A igreja era aberta a todos, e até práticas inofensivas em si poderíam
ser problemáticas caso impedissem a obra de evangelização. Assim,
por exemplo, falar em línguas era aceitável na igreja de Corinto, a não
ser que causasse má impressão nos de fora, o que seria uma barreira à
obra missionária.64 Nenhuma sinagoga comprometería seu judaísmo
com o intuito de causar boa impressão e atrair outras pessoas; os mem-
bros das sinagogas se arrepiariam só de pensar em tal coisa. Porém, os
cristãos não estavam interessados em exclusividade obscura; para eles,
as portas da igreja estavam abertas a todos que tivessem fé em Jesus
Cristo e fossem cheios do Espírito Santo.

62Atos 14.11.
63 Tiago2.1-13.
64 ICoríntios 14.20-25.
Isso nos leva à última e mais teológica das diferenças entre juda-
ísmo e cristianismo. As duas religiões cultuavam o mesmo Deus, mas,
enquanto os judeus o enxergavam em toda a sua unidade e soberania
majestosas, os cristãos acreditavam ter alcançado intimidade com ele.
Eles estavam sentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus.65 Tinham
acesso ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo.66 Eram nascidos
de novo.67 Para os judeus tudo isso era absurdo, como nos mostra a
história de Nicodemos. Quando Jesus disse que ele precisava nascer
de novo, Nicodemos achou que de alguma forma deveria retornar ao
ventre materno!68 Absurdo completo, claro (e sendo justos, Nicodemos
sabia disso), mas, sintomático das diferentes maneiras de os judeus e
os cristãos se aproximarem de Deus. Os judeus eram ligados às coisas
físicas e materiais de um modo oposto ao dos cristãos. Para os cristãos,
o reino de Deus não era uma esperança escatológica, mas, uma realidade
presente que conheciam por meio da comunhão com Cristo no Espírito
Santo. Ou seja, os cristãos cultuavam o Deus único em uma Trindade
que demoraria mais alguns séculos para ser definida, mas, que era real
na experiência deles. No fim, foi essa experiência que lhes impediu
de continuarem judeus na sinagoga e que os forçou a construir uma
teologia sem utilidade ao judaísmo. Os judeus testemunhavam de sua
fé por meio da circuncisão e do viver segundo a miríade de preceitos
da lei de Moisés. Os cristãos, no entanto, confessavam a Cristo, e essa
confissão os levou a dar à igreja uma estrutura intelectual bem diferente
de qualquer coisa existente na sinagoga.
A pouca ou nenhuma transferência de líderes de Israel para a igreja
foi outra marca importante das diferenças entre as duas coisas. Para
seguir a Jesus, nenhum discípulo teve de abandonar uma posição de
destaque na sociedade judaica, e nenhum deles tinha educação rabínica.
Paulo era uma exceção nesse aspecto, entretanto ele foi o mais enfático
em denunciar a velha ordem e não usou suas vantagens para ser mais
bem aceito na igreja. Também não há indícios de que sacerdotes ou
65 Efésios 2.6.
66 Efésios 2.18; Gálatas 4.6.
67 João 3.7

68 João 3.4
rabinos porventura convertidos tenham recebido posição equivalente
na igreja. E difícil crer que quando novas igrejas se formaram como
resultado de divisões em sinagogas, nenhum líder tenha passado de
um sistema para outro, mas, se isso aconteceu, nada foi registrado.
Em vários momentos, o Novo Testamento apresenta os critérios para
a escolha de líderes da igreja, mas, instrução no judaísmo ou ser expe-
riente na liderança de uma sinagoga não faz parte de nenhuma lista.
Deus estava criando algo novo na igreja, e embora conhecer o antigo
padrão pudesse ser útil de vez em quando, não era essencial na nova
dispensação.
Temos então de concluir que não podemos considerar Israel a igreja
do Antigo Testamento. As conexões entre Antigo e Novo Testamento
foram refratadas por meio do prisma de Cristo, que transformou to-
das as coisas. A palavra final sobre o assunto certamente é dada pelo
apóstolo Paulo, quando escreveu aos filipenses:
Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais:
circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à
tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto
ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepre-
ensível. Mas, o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por
causa de Cristo.69

Esse foi o testemunho de um judeu devoto que se tornou cristão,


e seria difícil encontrar uma afirmação mais clara do porquê Israel e a
igreja não são a mesma coisa em roupagem diferente.

Jesus fundou a igreja?

Não há dúvidas de que a igreja cristã se desenvolveu a partir da vida


e ministério de Jesus, cujo ensino governa sua prática e cuja pessoa é
o objeto de sua adoração. Os estudiosos discordam quanto ao porquê
disso, e existe um abismo entre os que creem que Jesus ensinou os
discípulos o que fazer após sua morte e ressurreição e aqueles para
quem os primeiros cristãos juntaram os cacos do ministério fracassa-
do de Jesus e relançaram seus ensinos (de forma bastante modificada)

69 Filipenses 3.4-7.
como igreja cristã. Muitos observadores preferem o meio termo entre
o que consideram dois extremos, mas, é inquestionável que o divisor
fundamental está entre aqueles que veem a igreja como produto de uma
revelação divina dada em e por meio de Jesus Cristo e os que acreditam
que ela emergiu de fatores sociais complexos aglutinados ao seu redor.
Seja como for, os oponentes concordam que a intensa concen-
tração cristã em uma única pessoa era desconhecida no judaísmo e é
rara entre as grandes religiões do mundo. Não islâmicos pensam er-
roneamente que o Islamismo concede posição semelhante ao profeta
Maomé, entretanto os islâmicos explicam que Maomé não passa de
um ser humano, e não é uma divindade. Os budistas, também, negam
que Buda seja objeto de culto, embora seja venerado de um modo que
espantaria os islâmicos se algo parecido acontecesse no Islamismo.
Os hindus acreditam na possibilidade de encarnação divina, mas, não
se concentram em um deus específico que se tornou humano com
um propósito especial. Jesus é singular, pois foi o único que afirmou
ser Deus e, portanto, merecedor da mais elevada forma de adoração
conhecida pelos seres humanos. Mesmo não existindo dúvidas nessa
área, muitas perguntas se levantam ao considerarmos como a igreja
surgiu. Ela sempre esteve nos planos de Jesus? Ele estava procurando
estabelecer uma igreja que preservasse sua memória e ensinos, ou ela
apareceu acidentalmente após sua morte precoce?
As respostas são complexas porque muitos estudiosos da atualidade
apoiam a segunda perspectiva acima esboçada e, portanto, rejeitam o
relato “ortodoxo” tradicional, seja no todo ou parcialmente. Acredi-
tam que Jesus não teve a intenção de fundar nada, muito menos uma
instituição que se transformou na igreja cristã que temos hoje. Em
linhas gerais, acreditam que Jesus foi um profeta revolucionário que
desafiou as autoridades de sua época e acabou sendo morto por elas.
Muito decepcionados, seus seguidores se uniram e decidiram preservar
sua memória naquilo que hoje chamamos de igreja. O que os motivou
a apoiar um fracasso tão óbvio continua sendo um notável mistério
sem resposta, e é nessa dúvida que essas teorias geralmente perdem
qualquer credibilidade que porventura tenham. Alguns discípulos de
Adolf Hitler o acompanharam até o sepulcro, mas, não além dele, e os
neonazistas de hoje não cultuam seu líder ou afirmam que ele continua
vivo. Personagens mais meritórias como Mahatma Gandhi e Nelson
Mandela são admirados no mundo inteiro, todavia não deixaram para
trás grupos organizados de seguidores nem inspiraram religião nenhu-
ma centralizada neles. É apenas em seitas como o Rastafarianismo nas
ilhas do Caribe ou nos cultos à carga no sul do Pacífico que encontra-
mos qualquer coisa remotamente parecida com as afirmações feitas a
respeito de Jesus Cristo, mas, são tão obviamente falsas que ninguém,
a não ser os próprios seguidores, as leva a sério.70
Jesus é singular nesse aspecto, mas, por quê? Mesmo que aceitemos
tudo que já foi afirmado sobre sua divindade e sua missão terrena,
existe alguma evidência de que ele fundou uma igreja? E nesse caso,
qual seria o significado da palavra “igreja”? Quem duvida que Jesus
teve qualquer intenção de fundar uma igreja pode assinalar que a pa-
lavra ocorre apenas duas vezes em Mateus e nenhuma nos outros três
evangelhos, em contraste nítido com a ideia de “reino”, que foi um
dos temas principais do ensino de Jesus. No mínimo, isso sugere que o
conceito de “igreja” foi, na melhor das hipóteses, secundário à missão
de Jesus e talvez até fosse uma tentativa de readequar a ênfase de seu
reino às limitações mais prosaicas (e também mais realistas) do mundo
onde seus discípulos iriam ministrar.
Aqueles que pressupõem (como é o caso de muitos comentaristas da
atualidade) que a palavra “igreja” em Mateus certamente é interpolação
posterior de algum escritor preocupado em tratar das questões de sua
época, e não reflete o ensino de Jesus, firmam sua posição no fato de a
palavra ser uma raridade, embora outras interpretações também sejam
possíveis. Cabe perguntar, por exemplo, se Mateus desejava enfatizar
a importância da igreja, por que ele faz apenas duas referências a ela,
visto que apenas uma menção se relaciona com nosso assunto? Se a
intenção de Mateus era confirmar a autoridade de Jesus sobre a insti-

70 Rastafarianismo é uma seita dedicada à memória de Ras Tafari, que se tomou


imperador da Etiópia com o nome de Haile Selassie I. Os cultos à carga da
Melanésia adoram “deidades” como John Frum, aviador mítico americano, e até
mesmo o Duque de Edinburgo. São grupos interessantes da perspectiva sociológica
mas, teologicamente, são absurdos.
tuição cujas origens ele exaltava, por que então o escritor não salpicou
seu evangelho com referências feitas por Jesus à “igreja”?
Outra questão é que Jesus falava aramaico, e não grego; então,
Mateus (ou sua fonte de informações) traduziu a palavra “igreja” de
outro idioma. Infelizmente, só podemos especular sobre ela, e talvez
haja duas palavras diferentes por trás dela. Um dos versículos em que
Mateus se refere à “igreja” trata principalmente da disciplina aplicada
ao irmão desobediente. De acordo com esse evangelho, Jesus disse aos
seus discípulos: “Se ele [o irmão que errou] se recusar a ouvi-los, conte
à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão
ou pubücano”.71 Nesse caso Jesus podería ter usado muitas outras pala-
vras que poderíam ser traduzidas como “comunidade”, “irmandade”, e
assim por diante. Se a tradução “igreja” representa uma interpretação
posterior, é difícil entender por que o escritor se referiu aos gentios
(que já haveríam sido totalmente aceitos como membros da igreja) ou
até aos publicanos, que não são retratados como vilões na literatura
cristã subsequente.
Não temos respostas a essas perguntas, mas, este texto é de menor
importância em comparação a outro, que se tornou e continua sendo
um dos mais controversos de toda a Bíblia. Ele é o ápice da confissão
que Pedro fez de Jesus como o Messias e no qual Jesus afirma: “Você é
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades
não poderão vencê-la”.72 Nos séculos posteriores essa afirmação, que
segundo Mateus foi feita diretamente por Jesus, seria usada pela Igreja
Católica como justificativa da primazia e supremacia jurisdicional da
diocese de Roma, da qual supostamente Pedro foi o primeiro bispo. Essa
interpretação, que hoje tem poucos ou nenhum defensor acadêmico,
já causou todos os tipos de reação no decorrer da história, inclusive
dos protestantes que atacam as ambições do papado moderno ao lhe
negar autenticidade histórica.
Esse tipo de polêmica dificulta a conclusão equilibrada sobre o
versículo, contudo, podemos notar um fato importante. Jesus fala da
“igreja” no singular, mas, de um modo que se refere claramente ao corpo
71Mateus 18.17.
72Mateus 16.18.
universal de cristãos e não somente a uma congregação. No restante
do Novo Testamento, em geral, “igreja” é uma reunião específica de
cristãos em um lugar determinado. Nesse sentido, a palavra é usada
com frequência no plural. Há poucas ocorrências da palavra no singular,
o que nos leva a concluir que se refere (pelo menos nesses casos) ao
mundo cristão inteiro. Repetindo, é legítimo perguntarmos qual era o
vocábulo aramaico original e se “igreja” é a sua melhor tradução. Sen-
do ou não, esse é o vocábulo que chegou até nós, e temos de procurar
entendê-lo em seu contexto.
O que podemos afirmar sobre esse versículo é que Jesus estava fa-
lando sobre o futuro. Não estava fazendo planos para o estabelecimento
imediato da igreja, mas, pensando em algo que aconteceria mais tarde.
Sabemos que “mais tarde” significa depois de sua morte e ressurreição
e, nesse caso, Jesus construiu sua igreja à distância — não diretamente,
e sim no e por meio do Espírito Santo, como Atos dos Apóstolos
testifica. Essa interpretação é confirmada pelo conhecido discurso de
despedida de Jesus em João 13-17, no qual ele diz aos discípulos que
precisa ir embora mas, que depois de partir, enviará o Espírito Santo,
que os guiará em toda verdade. E interessante que Jesus nunca men-
cionou o estabelecimento da igreja, contudo, é difícil imaginar que os
primeiros leitores do quarto evangelho interpretassem suas palavras de
outra maneira; afinal, eles conheciam o Pentecostes muito bem!
Se essa interpretação for aceita, chamarmos Jesus de o “fundador”
da igreja se torna em grande parte uma questão de definição. Como
o homem Jesus de Nazaré, ele não criou (nem jamais disse ter criado)
uma organização que pudesse ser chamada de “igreja”. Mas, como o
Cristo ressurreto e glorificado que subiu aos céus, ele foi o fundador
da igreja, pois foi nesse contexto que ele enviou o Espírito Santo para
colocar seus planos em ação. Uma vez que o Jesus encarnado e o Cristo
divino são a mesma e única pessoa, a questão tem de ser avaliada sob
outro aspecto. O importante não é tanto se Jesus fundou a igreja, e sim
quando e em que circunstâncias ele fez isso.
Enquanto estava no mundo, Jesus não organizou um movimen-
to evangelístico, contudo, treinou os discípulos na tarefa de pregar e
batizar e, então, mandou-os trabalhar, e isso mostra que ele possuía
algum senso de organização, mesmo que fosse para um fim específico
e temporário. O que aconteceu com as pessoas que foram batizadas
pelos discípulos? Simplesmente desapareceram, como se o batismo
não tivesse importância, ou foram a semente plantada, de modo que
no derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes estivessem
prontas e desejosas de recebê-lo? O fato de Jesus ter deliberadamente
escolhido discípulos — eles não eram simples admiradores atraídos por
sua mensagem — mostra que ele tinha um propósito de longo termo em
mente. Os próprios discípulos certamente acharam que sim, e brigaram
entre si quanto ao lugar que receberíam no “reino” vindouro que Jesus
planejava estabelecer.73 Poderíam estar completamente equivocados
sobre os propósitos de Jesus, mas, pelo menos, sabiam que ele inten-
cionava usá-los em alguma tarefa.
As pessoas que negam que Jesus tinha o desejo de plantar uma
igreja geralmente têm em mente a estrutura institucional que emergiría
séculos depois. Até concordam que Jesus imaginava que sua mensagem
ultrapassaria a sua morte, mas, não que se desenvolvería em um vasto
movimento que em algumas de suas futuras manifestações se tornaria
bastante secular e ficaria bem parecido com uma tirania espiritual.
Certamente não era essa a intenção de Jesus! Embora, nesse aspecto,
possamos concordar com os céticos, parece claro que a visão de Jesus
era que sua mensagem chegasse até os confins da terra, uma visão que
mais cedo ou mais tarde exigiría uma estrutura que poderiamos cha-
mar de “igreja”. E impossível afirmar se o formato que essa estrutura
acabou ganhando era o que Jesus tinha em mente e não teria feito ne-
nhum sentido aos discípulos, que não poderíam imaginar um futuro tão
distante. Entretanto, afirmar que Jesus jamais pensou em estabelecer
igreja alguma é certamente ir longe demais. A evidência aponta para
uma conclusão diferente, e temos de segui-la.
Outro fator que tem influenciado as perspectivas atuais é o pendor
do Catolicismo de ligar a encarnação de Cristo à igreja, que o apóstolo
Paulo descreve como o “corpo” de Cristo. A imagem usada por Pau-
lo é claramente simbólica em ICoríntios 12, por exemplo, que segue
imediatamente o ensino sobre o partir do pão em adoração, descrito
73Mateus 20.20-28.
detalhadamente no capítulo anterior. Essa ligação foi aproveitada pelos
liturgistas que fizeram uma conveniente conexão entre o pão usado na
Ceia do Senhor, a imagem do “corpo” de Cristo nas epístolas, e a ideia
de que a igreja é de alguma forma a encarnação progressiva do Filho
de Deus. Nessa leitura, a noção de que Jesus veio ao mundo e plantou
a igreja aqui se torna mais plausível, e variações do tema podem ser
encontradas na literatura devocional católica.
A dificuldade com essa interpretação é que o Novo Testamento
deixa claro que o corpo físico do Cristo ressurreto ascendeu ao céu,
e não deixou nada — nem mesmo uma ou duas relíquias - para trás. A
igreja como a conhecemos só passou a existir dez dias depois, quando
o Espírito Santo desceu sobre os discípulos no Pentecostes. É ver-
dade que Jesus previu esse acontecimento, e que antes de partir ele
prometeu lhes enviar o Espírito Santo, mas, isso é diferente de ele ter
permanecido aqui, ainda que de outra forma. Se esse é o modelo que
um teólogo imagina quando pergunta se Jesus fundou a igreja, enten-
demos que a resposta será negativa. Jesus fundou a igreja, mas, o fez
no e por meio do Espírito Santo e não porque deixou seu corpo aqui
na terra. Se entendermos isso, não teremos dificuldade em aceitar que
Jesus foi, sim, o fundador da comunidade que cultua em seu nome e
propaga os seus ensinos.
,

íis^xfuBi^^iribdb!· vr:jjtós‫־‬il»?;l61i>lÍBs3Eác i ‫ג‬.·;. seedtl i:iejçík

.
2

A igreja do Novo Testamento

DE DISCÍPULOS A APÓSTOLOS

Em geral, todos concordam que a igreja cristã teve início logo


após a morte e ressurreição de Jesus, apesar de alguns céticos duvida-
rem de que os eventos em Atos dos Apóstolos tenham acontecido da
maneira que o livro os descreve. Não existe evidência que apoie um
relato alternativo, e não importa o que tenha realmente acontecido
no dia de Pentecostes, a verdade é que havia uma igreja em Jerusalém
alguns poucos anos depois da morte de Jesus. Cabe aos contestadores
do relato tradicional da origem da igreja explicar como ela emergiu tão
depressa assim. Que probabilidades existiam de um grupo de discípulos
desanimados, espalhados e enfraquecidos pelos eventos da crucificação,
juntar-se a um homem igual a Pedro e criar um movimento que em
breve conquistaria um grande número de seguidores?
Por mais extraordinários que sejam os acontecimentos relatados em
Atos, qualquer cenário alternativo é ainda mais improvável. Os discípu-
los de Jesus fugiram ao perceber que, pelo jeito, seu mestre seria morto,
e não há motivo para supormos que teriam se reunido novamente alguns
dias mais tarde. Eles eram desconhecidos em Jerusalém, e não tinham
razões para permanecerem na cidade; na verdade, os evangelhos dizem
que eles voltaram para a Galileia, sua terra natal, assim que puderam.1
Somente algo profundamente recompensador teria vencido o
desejo natural deles de retornar à vida normal (como a entendiam), e
esse algo foi a ressurreição física de Cristo de entre os mortos. Quando
Mateus 28.7,10.
os discípulos se depararam com o Cristo ressuscitado, toda e qualquer
dúvida desapareceu, e a partir de então eles abraçaram a missão de es-
palhar o evangelho que Cristo lhes confiou. Durante os quarenta dias
que permaneceu na terra depois da ressurreição, Jesus relembrou aos
discípulos tudo o que lhes havia ensinado e explicou-lhes o significado
mais profundo de sua vida e morte. Jesus os comissionou para a missão
futura e mandou que esperassem com paciência em Jerusalém até que
o Espírito Santo viesse e desse-lhes poder para realizar a tarefa.2 Eles
seriam perseguidos, e muitos morreríam de forma violenta, mas, até
onde sabemos, nenhum deles vacilou novamente, mesmo que, às vezes,
isso fosse bastante convidativo.
A transformação que tomou conta de Pedro e seus companheiros
na esteira do Pentecostes é demonstrada pela maneira que eram vistos
naquela época e continuam a ser vistos hoje. Resumindo, os homens
que até então eram discípulos se tornaram apóstolos. De alunos que
aprendiam aos pés de Jesus eles foram transformados em mensageiros
enviados a proclamar o que haviam aprendido com o Mestre. Aqueles
que apenas retinham os ensinos de Jesus começaram a ensinar outros,
incumbidos de espalhar a palavra da salvação até os confins da terra.
Foi uma transformação radical, e levou tempo para ser totalmente
absorvida. Dos doze homens que Jesus escolheu, Judas Iscariotes, ob-
viamente, estava fora de cena. Ele havia entregado Jesus aos inimigos,
e quando seu gesto maligno o banhou em remorso, Judas se enforcou,
e foi substituído como um dos Doze por Mafias, escolhido por sorteio,
e de quem nada sabemos a não ser que havia estado com Jesus desde o
início de seu ministério e também testemunhado a ressurreição, duas
qualificações aparentemente essenciais a qualquer um escolhido para
o cargo de apóstolo.3
Nos relatos sobre o ministério terreno de Jesus, os discípulos Pedro,
Tiago e João se destacam como o círculo mais íntimo. Acompanharam
Jesus por todos os cantos e estavam com ele em momentos importantes,
como a sua transfiguração. Os outros discípulos permaneceram mais à
sombra, sendo que Tomé foi uma exceção parcial; ele duvidou inicial­
2 Lucas 24.44-49; Atos 1.1-14. Veja também Mateus 28.19,20; João 21.15-23.
3 Atos 1.15-26.
mente da ressurreição e só acreditou depois de colocar a mão nas feridas
de Jesus.4 No entanto, Jesus criticou Tomé por sua descrença, e essa é a
última vez que o discípulo é mencionado no Novo Testamento. Mesmo
assim, baseados na evidência que temos, podemos afirmar que todos os
onze discípulos estavam em Jerusalém quando o Espírito Santo desceu
sobre eles, e tudo nos leva a crer que participaram ativamente na obra
de pregação e evangelização que lhes foi confiada.5 Mas, temos pouca
ou nenhuma evidência do que eles fizeram depois do dia de Pentecos-
tes. Natanael e Mateus, por exemplo, caíram na obscuridade, embora o
primeiro evangelho tenha sido atribuído a esse último. Talvez o Tiago
autor de uma carta do Novo Testamento fosse o mesmo homem que
acompanhou Pedro e João durante o ministério terreno de Jesus, mas,
é duvidoso. Havia muitos Tiagos por ali, incluindo dois dos discípulos
de Jesus, então é difícil saber quem é quem.6 João, o “discípulo amado”
também é conhecido pela coleção de escritos que lhe é atribuída, con-
tudo, se ele escreveu o evangelho que leva seu nome, as três cartas e o
Apocalipse, que juntos formam a literatura joanina, é incerto e bastante
questionado, tanto na antiguidade quanto hoje em dia.
Pedro é o único que, inequivocamente, liga os discípulos aos
apóstolos.7 Sabemos mais a seu respeito como discípulo de Jesus do
que sobre qualquer um dos outros, embora tenhamos de admitir que
seu retrato não é dos mais elogiáveis. Não há como duvidar que o Pe-
dro que negou a Jesus durante seu julgamento é a mesma pessoa que
assumiu a liderança no dia de Pentecostes, e sua restauração à graça
tem destaque no quarto evangelho, apesar de não ser mencionada nos
outros três.8 E óbvio que Pedro foi o líder da igreja iniciante, embora
sua autoridade não estivesse acima da autoridade de seus colegas disci-

4 João 20.24-29;
5 Atos 1.13; 2.4.
6 O candidato mais provável à autoria da carta é Tiago, o Justo, meio-irmão de Jesus
e sucessor de Pedro como líder da igreja de Jerusalém, embora isso não passe de
conjectura. Veja Atos 12.17; 15.13-21; 21.17-26.
7 Vej a M. Bockmuehl, Simon Peter in Scripture and Memory: The New Testament Apostle in
the Early Church, (Grand Rapids: Baker Academic, 2012), para um levantamento
recente de evidências a favor de Pedro e seu ministério.
8 João 21.15-19.
pulos transformados em apóstolos. Por exemplo, quando cometeu um
erro, foi repreendido por seus colegas, e nada mostra que essa atitude
tenha sido descabida.9 Em relação à igreja de Jerusalém, Pedro era
uma de suas colunas, como Paulo disse, e não a única.10 11 Se Pedro era
o líder, continuava sendo o primeiro entre iguais, e não um superior
que comandava e esperava lealdade inquestionável de todos ao redor.
Pedro nunca perdeu sua importância como figura central na igre-
ja, contudo, parece que acabou sendo ofuscado por Paulo e ficou em
segundo plano. Sua produção literária foi modesta, não passando de
duas cartas pequenas (embora a autenticidade da segunda seja bastan-
te questionada). Talvez ele tenha sido o verdadeiro autor do segundo
evangelho, que, de acordo com Papias, historiador da igreja que viveu
no século 2, é um relato das memórias que Pedro ditou a Marcos.11 Não
se sabe ao certo onde e como ele morreu, apesar de o último capítulo
do evangelho de João sugerir que foi crucificado (de cabeça para baixo,
segundo a lenda), e uma antiga tradição fixar seu túmulo em Roma.12
Além disso, nada mais pode ser afirmado com segurança.
Importante é esclarecer isso porque uma das controvérsias mais
antigas e espinhosas da igreja se refere a Pedro e à natureza da comissão
que ele recebeu de Jesus. Teólogos argumentam sobre o sentido exato de
Mateus 16.18: Jesus quis dizer que Pedro seria a pedra fundamental da
igreja, ou que a comunidade cristã seria erguida em sua confissão de fé?
Como já vimos, os estudiosos analisam a matéria de modos diferentes.
Para eles a questão verdadeira é se Jesus chegou a dizer algo parecido
com isso, e a maioria acredita que a frase foi um acréscimo posterior
designado a reforçar a “primazia petrina” de Roma que gradualmente
emergia na igreja primitiva. O que é possível afirmar sobre essa questão?

9 Gálatas 2.11-14. Contraste a disposição de Paulo em contestar a atitude de Pedro


com o respeito que achava devido ao sumo sacerdote judeu (Atos 23.2-5). Ananias
tinha uma posição que Pedro não tinha.
10 Tiago e João partilharam essa distinção com ele. Veja Gálatas 2.9.

11 Eusébio de Cesareia, Historia ecclesiastica 3.39.15.

12 Para a situação atual da opinião acadêmica, veja Bockmuehl, Simon Peter, 148-49,

segundo o qual Pedro talve% esteja enterrado sob o Vaticano, mas, isso não pode
ser considerado certo.
Primeiro, é certo que a igreja de Roma, mesmo que Pedro tenha
sido seu primeiro “bispo”, não usufruiu o tipo de primazia no mundo
cristão que, mais tarde, os papas reivindicariam, usando a confissão
do apóstolo como justificativa. Sendo capital do império, Roma sem-
pre recebeu proeminência, e depois que o cristianismo se tornou a
religião do estado foi-lhe concedido, entre as igrejas do mundo ro-
mano, superioridade à altura de antiga capital imperial, mas, nunca foi
sugerido que seus bispos seriam árbitros da doutrina cristã. Nenhum
dos antigos concílios formados para resolver conflitos doutrinários se
reuniu em Roma, e nenhum de seus bispos jamais compareceu a um
desses concílios. Existem bons argumentos para afirmar que no Con-
cílio de Calcedônia, em 451 d.C., foi o Tomo do Papa Leão I, escrito
para a ocasião e enviado por mensageiros para ser lido à assembléia de
representantes, que convenceu os bispos a aceitarem sua compreen-
são da pessoa e da natureza de Cristo. No entanto, se isso for mesmo
verdade, os bispos foram convencidos pela força de seus argumentos,
e não porque Leão I era o líder da diocese principal do cristianismo
com o direito correspondente de determinar sua doutrina baseado em
sua própria autoridade.
A igreja de Roma é citada algumas vezes no Novo Testamento:
na famosa epístola que Paulo lhe escreveu por volta do ano 57 d.C.,
nos capítulos finais de Atos, e provavelmente, na referência obscura à
“Babilônia” encontrada em lPedro 5.13. Mas, a não ser por esta última
referência, que é indistinta, não há evidência da presença de Pedro em
Roma por ocasião do estabelecimento da primeira igreja cristã na cidade,
e certamente não há indicação de que ele foi seu dirigente. Com respeito
a isso, é particularmente relevante o fato de Paulo não mencionar Pedro
nenhuma vez em sua carta à igreja de Roma, algo realmente estranho
caso ele fosse o líder da referida igreja, especialmente porque Paulo
envia saudações a um grande número de pessoas menos influentes.13
Na verdade, os estudiosos estão cada vez mais convencidos que a
igreja de Roma não teve líder até quase o final do século 2; hoje, a lista
de papas aceita oficialmente é considerada pela maioria como lendária,

13 Veja Romanos 16.3-15.


52

na melhor das hipóteses.14 O conceito de que o papa atual é sucessor


de Pedro e tem direito a todas as honras e a todos os privilégios con-
feridos ao primeiro líder da igreja é um mito criado na Idade Média e
canonizado no século 19 com a proclamação da infalibilidade papal em
1870. Esse conceito trouxe profundo impacto e continua sendo um
fator importante na vida da igreja moderna, que não será uma entidade
universal até que a questão da primazia petrina seja resolvida, mas, essa
primazia continua sendo mito, e é difícil entender como o progresso
verdadeiro rumo à união das igrejas será alcançado sem que e até que
essa natureza mítica seja aceita por todos.
A questão em relação a Pedro é apenas o exemplo extremo de algo
que afeta o grupo inteiro de discípulos que se tornaram apóstolos. Á
parte das lendas e tradições passadas adiante com maior ou menor
veracidade, sabemos quase nada sobre qual apóstolo liderou quais
igrejas. Será que João chegou a ser bispo de Esmirna ou de Efeso? Será
que Marcos estabeleceu uma comunidade cristã em Alexandria, como
se acreditou mais tarde? Será que Tomé foi para a índia, como diz a
lenda? Não temos respostas a essas perguntas. O que podemos afirmar
é que as primeiras igrejas cristãs não foram reuniões espontâneas de
cristãos que formaram uma associação para assegurar e perpetuar suas
convicções. Ao contrário, as igrejas foram fundadas pelos apóstolos ou
por homens que agiram como seus representantes, como foi o caso de
Tito em Creta.15 Roma talvez seja uma exceção, porque era habitada
por pessoas de todos os cantos do império, e é bastante provável que
cristãos já morassem ali antes de qualquer apóstolo visitar a cidade.
No entanto, se esse foi o caso, a exceção prova a regra, porque não
sabemos de nenhuma outra igreja que tenha surgido mais ou menos
espontaneamente.
A plantação de igrejas cristãs pelo do mundo começou depois do
Pentecostes e não teve muito a ver com o que aconteceu antes dele.
Isso é especialmente relevante ao considerarmos o que aconteceu

14 É preciso dizer que o termo “papa”, embora seja atualmente reservado no Oci-
dente para o bispo de Roma, podia ser aplicado na antiguidade ao líder de uma
igreja local e seu uso ainda é comum no Oriente para designar qualquer pároco.
15 Tito 1.5.
53

àqueles que aparecem nos evangelhos, mas, raramente ou nunca são


mencionados na igreja primitiva. Jesus era amigo de Maria, Marta e
Lázaro de Betânia, mas, eles se tornaram líderes da igreja? Não existe
menção a isso. Pode-se dizer o mesmo de qualquer outro seguidor de
Jesus, incluindo sua mãe, Maria. O que aconteceu às milhares de pes-
soas a quem Jesus pregou e ministrou? Não sabemos. Supomos que a
maioria delas se uniu à igreja (a lei da probabilidade iria sugerir que pelo
menos algumas se uniram), contudo, não há evidência que sustente tal
suposição — tudo é especulação. Nada sugere que amigos ou parentes
de Jesus usufruíam de privilégios por isso - muito ao contrário.16 O
assunto tem provocado grandes debates na igreja contemporânea, pois
os defensores da ordenação de mulheres apontam para Jesus como
aquele que as tratou com deferência especial. Foi sugerido até que Maria
Madalena era uma apóstola superior a Pedro e João, em certo sentido,
porque o Cristo ressurreto apareceu primeiramente a ela e mandou que
ela desse a boa notícia aos discípulos.
Nesse caso, os fatos básicos são inquestionáveis, porém, não são
motivos para supormos que deram a Maria posição de destaque na
igreja. Não existem evidências de que ela tenha sequer exercido algum
tipo de ministério apostólico, e, até bem recentemente, isso nunca foi
sugerido. Infelizmente, afirmações dessa natureza têm de ser consi-
deradas argumentos excepcionais no interesse das políticas da igreja
contemporânea, e não são evidências comprobatórias. Outro exemplo
desse tipo de abuso vem de Romanos 16. Quando Paulo escreveu à
igreja de Roma, ele mencionou Andrônico e Júnias, seus parentes e
companheiros de prisão (como os descreve) que eram bastante conhe-
cidos dos apóstolos e tornaram-se cristãos antes de Paulo.17 Contudo
isso não lhes conferiu posição de liderança na igreja; provavelmente
tiveram de ouvir a pregação de Paulo e aceitar sua autoridade juntamente
com as pessoas a quem ele escreveu. A ideia de que hoje a mulher pode
ser ordenada pastora porque Júnias era apóstola é uma interpretação
injustificada da evidência, propagada por quem deseja nisso acreditar
e não por quem foi convencido unicamente pelos fatos.
16 Veja Mateus 12.46-50.
17 Romanos 16.7.
Quanto aos outros apóstolos e as igrejas que fundaram, sabemos
tão pouco sobre eles que é impossível chegar a conclusões definitivas.
Existe hoje uma crença generalizada de que havia um grupo joanino
de igrejas com sede em Efeso, completamente independente da missão
paulina, mas, que acabou se juntando a ela depois. Alguns acreditam que
existia uma comunidade seguidora de Mateus em Antioquia à qual foi
endereçado o primeiro evangelho. A verdade, porém, é que não existe
evidência que comprove essas teorias. Sabemos que Paulo não queria
pregar o evangelho onde alguém já tivesse feito isso; a decisão de Paulo
revela que, se existissem na mesma cidade (Éfeso?) um grupo paulino
e um joanino, é provável que o paulino tenha chegado ali primeiro.18
Sabemos também que Paulo se opunha profundamente às rivalidades
baseadas em adesões a certos apóstolos e mestres, pois, ele insistiu
em dizer que existia somente uma cabeça da igreja — Jesus Cristo.19
Também, a experiência mostra que as divisões acabam se tornando
mais amplas e profundas com o tempo. Não temos mostras de que
grupos rivais fizeram as pazes e se uniram tão completamente que as
gerações posteriores nem mesmo sonharam que existiram desavenças
entre eles. A lei da probabilidade pesa contra essas teorias, porém elas
continuam firmemente enraizadas em estudos do Novo Testamento e
têm-se provado difíceis de ser removidas. Talvez a melhor conclusão
aqui seja aceitar que nossa ignorância quanto ao trabalho dos apósto-
los é tal que não devemos tê-los como exemplos de autoridade para a
igreja contemporânea. Eles fizeram o que fizeram, mas, não temos de
seguir seus padrões, que pouco conhecemos e com os quais não temos
experiência alguma.
Dito isso, a igreja sempre reivindicou ter sido construída nos funda-
mentos dos profetas e dos apóstolos.20 Tradicionalmente, o apostolado
é uma de suas características, e Paulo se sentiu obrigado a defender suas
qualificações para ser apóstolo. Parece que mestres rivais reivindicavam
esse título, homens a quem os autores do Novo Testamento se referem

18 2Coríntios 10.16.
19 ICoríntios 1.10-17.
20 Efésios 2.20.
apenas como “falsos apóstolos”.21 Qual é o significado de apostolado,
onde (ou em quem) se encontra e como reconhecê-lo?
Na defesa que Paulo faz de seu ministério apostólico, descobrimos
que havia dois critérios essenciais para alguém ser apóstolo: tinha de
ser chamado por Deus e ter conhecido pessoalmente o Cristo ressus-
citado. Muitas pessoas, talvez cerca de seiscentas, viram Jesus após sua
ressurreição, mas, não se tornaram apóstolos.22 Portanto, não bastava
ter visto Jesus depois de sua ressurreição de entre os mortos. Era
também necessário ter sido chamado para esse ministério, que foi dado
somente àqueles que preenchiam o outro critério. Paulo sabia que era
uma exceção, pois não foi discípulo de Jesus e até perseguiu a igreja
antes de se converter, contudo, atribuía seu chamado apostólico a um
favor especial da graça de Deus que ele não merecia, e que não foi dado
a mais ninguém.23 Seguindo essa lógica, os apóstolos e seus ministérios
desapareceram na primeira geração, e, portanto, não pode haver nenhum
hoje em dia, embora o papado e alguns pequenos grupos protestantes
afirmem preservar o cargo em diversas formas.
Para os católicos, o papa é sucessor de Pedro, com todas as prer-
rogativas de seu ministério apostólico, e alguns pastores protestantes
já reivindicaram o título, mas, essa mentalidade era estranha à igreja
primitiva. Paulo instruiu Timóteo e Tito sobre a continuação de seu
ministério depois que ele morresse, mas, não afirmou que os dois se
tornariam apóstolos em seu lugar, e também não há evidências de su-
cessão apostólica em nenhum outro texto bíblico.
No entanto, o desaparecimento dos apóstolos e de seus ministérios
não significa que o apostolado deixou de ser relevante à vida da igreja.
Os apóstolos tinham a responsabilidade de transmitir o ensino de Jesus
a outros cristãos, não somente porque testemunharam o início de seu
ministério aqui na terra, mas, porque o Mestre lhes deu essa ordem,
após a ressurreição.24 Enquanto os apóstolos estivessem vivos, as igrejas

21 2Coríntios 11.13. Veja também 2Pedro 2.1, que fala sobre “falsos mestres” e
“falsos profetas”.
22 Veja ICoríntios 15.5-8.

23 Veja ICoríntios 15.8-11; 2Coríntios 11.1-33; Gálatas 1.11-17.

24 Mateus 28.19,20.
‫סכ‬

poderíam se orientar com eles, como os coríntios fizeram ao escrever a


Paulo sobre as várias questões que perturbavam aquela igreja. Depois
da morte dos apóstolos, seus escritos, juntamente com os escritos de
outros que trabalharam ao lado deles e, de certa forma, debaixo de
sua supervisão, foram reunidos no que se tornou o Novo Testamento.
Na prática, a autoridade dos apóstolos hoje é o testemunho do Novo
Testamento, que permanece fundamental à doutrina cristã.
Obviamente, nem tudo o que aconteceu na igreja primitiva foi regis-
trado para o nosso conhecimento — o evangelho de João é claro sobre
isso.25 Porém, o que não foi escrito não tem autoridade para nós hoje
porque sua apostolicidade não pode ser comprovada. Por exemplo, a
antiga tradição marca o novo cristão com o sinal da cruz quando ele é
batizado, e essa prática pode ter sido iniciada pelos apóstolos. Ninguém
duvida de sua antiguidade e não há nada errado com a prática, mas,
não podemos lhe conferir a mesma autoridade de algo registrado nas
Escrituras. Concordamos em que em alguns casos é difícil discernir o
que o Novo Testamento estabelece como regra. Por exemplo, em lCo-
ríntios 11 Paulo explica em detalhes a realização da Ceia, mas, não diz
quem deveria presidi-la. Alguém seria o responsável, e a lógica sugere
que essa pessoa era o líder da igreja. Mas, não podemos afirmar que ele
presidia a celebração, e muito menos que era o único com permissão
para isso. Tal costume, por mais natural que nos pareça hoje, veio
mais tarde e, portanto, não usufrui da autoridade que acompanha as
palavras inaugurais do rito, que são encontradas no texto bíblico. Ou
seja, a doutrina e os elementos da Ceia do Senhor são bem claros na
Bíblia, contudo, a identidade de seu presidente (ou celebrante) não é
determinada. As igrejas locais decidem o que fazer, mas, seja qual for
a solução adotada, não podem afirmar que ela tem a mesma validade
bíblica da cerimônia propriamente dita.
Se analisarmos o Novo Testamento, veremos que seus livros estão,
de certa maneira, associados a Pedro e João (entre os discípulos de
Jesus) ou a Paulo. A divisão é a seguinte:

25João 21.25.
Pedro João Paulo
IP edro J o ão 13 CARTAS ASSINADAS

2PEDRO 1J0ÃO L ucas

M arco s 2 J o ão A tos

(J udas ) 3 J o ão (H ebreus )

IH/I ateus ) A po calipse

(T iago )

Os teólogos discordam sobre a autoria de alguns desses livros, mas,


seus argumentos são especulativos e secundários ao entendimento que a
igreja tem de suas tradições. Na hora de decidir que livros seriam inclu-
idos no cânone do Novo Testamento, o padrão acima prevaleceu e foi
o que herdamos. Somente três livros, dois extremamente importantes,
não se encaixam facilmente na divisão acima. Mateus não tem conexão
óbvia com Pedro, mas, como parece ser uma elaboração de Marcos, e faz
referências a Pedro não encontradas em outros textos, é muito natural
que se junte a ele. Judas era irmão de Tiago, e estudos atuais apresen-
tam ligações suas com 2Pedro. O autor de Hebreus é desconhecido, e
mesmo na antiguidade se especulava muito sobre quem seria ele. Apoio
é o mais cotado, mas, seja quem for, seu relacionamento com o círculo
paulino, de onde a carta provavelmente surgiu, é bastante óbvio.26 Isso
é tão plausível que mais tarde Paulo foi considerado o autor da carta,
embora essa hipótese não seja tão bem aceita hoje em dia.
O cânone levou tempo para ser formado, e houve debates sobre
alguns livros, mas, embora alguns teólogos valorizem demais isso, a
hesitação deles talvez seja bastante exagerada. O que sabemos de fato
é que uma parte substancial dos livros foi aceita universalmente como
canônica. As diferenças de opinião ficaram restritas a um pequeno
grupo reconhecido de cartas (as quatro Epístolas católicas menores, ou
Gerais) ou a livros cuja autoria era desconhecida ou polêmica (Hebreus,

26 Veja G. L. Cockerill, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids: Eerdmans, 2012),
p. 6-10, para uma recente avaliação sobre sua autoria, que favorece Apoio.
Apocalipse).27 A falta de evidências nos leva a afirmar que livros não
integrantes do presente cânon nunca foram aceitos como fidedignos
por qualquer número expressivo de cristãos. Mesmo uma obra como
O pastor de Hermas, embora anexada a códices importantes do Novo
Testamento, jamais alcançou posição canônica na igreja. Quem quer
que Hermas fosse, apóstolo ele não foi, nem foi intimamente ligado a
um deles, então, seu livro, por mais popular e útil que tenha sido, foi
sumariamente rejeitado.
Um aspecto capcioso do apostolado é não sabermos claramente
se ele era uma dádiva conferida a indivíduos que poderíam exercê-lo
por conta própria ou algo a ser praticado apenas coletivamente. Temos
certeza de que havia pelo menos doze apóstolos, mas, eles tinham de agir
em conjunto para que suas decisões fossem válidas? E se um apóstolo
discordasse do outro?
Nada comprova que logo no início da igreja os apóstolos discorda-
vam uns dos outros, e temos a impressão que trabalhavam de comum
acordo, mesmo que, em geral, Pedro fosse o porta-voz do grupo. Mais
tarde, Paulo foi trabalhar sozinho e achou desnecessário prestar conta
aos outros apóstolos, porque, como explicou aos gálatas, não havia sido
comissionado por eles, e sim pelo próprio Deus.28 Sua independência
era tanta que ele escreveu até mesmo a igrejas que não havia fundado
ou visitado, sendo Roma o exemplo mais conhecido. Paulo certamente
achava que seus conselhos eram apropriados e seriam ouvidos, mesmo
que ele não conhecesse pessoalmente a igreja à qual escrevia.
A única ocasião em que os apóstolos se reuniram para resolver
um problema é a registrada em Atos 15, quando determinaram que os
gentios convertidos poderíam ser membros ativos da igreja. Nesse caso,
a decisão coletiva que permitiu algumas concessões para apaziguar as
consciências judaicas mais sensíveis; na questão principal, entretanto, a
insistência de Paulo em admitir gentios foi ratificada, e sua repreensão
ao comportamento antigentílico de Pedro em Antioquia foi respeitada
(veja Gálatas 2.11-14). O consenso prevaleceu, e o assunto nunca mais

27 A autoridade clássica neste assunto é B. M. Metzger, The Canon of the New Testament.
Its Origin, Development, and Significance (Oxford: Oxford University Press, 1987).
28 Gálatas 1.11-17.
dividiu a igreja, embora possamos afirmar que as concessões feitas às
sensibilidades judaicas não foram amplamente aplicadas e desaparece-
ram rapidamente.
A única maneira de aplicarmos consistentemente a unidade apos-
tólica à igreja contemporânea é buscando o ensino comum do Novo
Testamento. Se nossa interpretação de um texto entrar em conflito com
outro texto, estaremos desunindo o testemunho apostólico e criando
divisão onde não deve existir divisão nenhuma. Se isso acontecer,
devemos concluir que nos equivocamos na interpretação do texto ou
estamos aplicando-o de forma errada, e, então, corrigir nossa posição.

A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA

A organização da igreja está ligada à questão do apostolado, porém


é ainda mais controvertida. Como funcionavam as primeiras igrejas
cristãs? Eram independentes umas das outras, ou faziam parte de uma
estrutura maior à qual deveríam se moldar em questões doutrinárias,
se não sempre em questões litúrgicas ou práticas pastorais? Durante
mais de mil anos, essas questões raramente foram abordadas (se é
que foram); aceitava-se de olhos fechados que a igreja medieval era
descendente direta e legítima da igreja do Novo Testamento. Pintores
da época prontamente vestiam os apóstolos em trajes medievais ou
retratavam Pedro como se ele fosse o papa que conheciam. O senso de
desenvolvimento histórico era bastante tênue, e em grande parte restrito
à expansão da obra cristã. Mesmo assim, os horizontes eram limitados.
Os britânicos, por exemplo, acreditavam que o evangelho chegou até
eles por intermédio de José de Arimateia, logo após a ressurreição
de Cristo e, portanto, eles ouviram as boas notícias praticamente ao
mesmo tempo em que os países mencionados no Novo Testamento.
Assim, a igreja medieval da Inglaterra reivindicava ligação direta com os
apóstolos e igualdade com as igrejas antigas do mundo mediterrâneo.
Foi somente durante a Reforma do século 16 que essa indiferen-
ça à história foi desafiada, parcialmente porque os protestantes não
aceitavam as reivindicações feitas pelo papado romano e parcialmente
porque, ao estudar o que o Novo Testamento ensinava sobre o governo
da igreja, perceberam que ele era bem diferente do sistema que conhe­
ciam. No entanto, atribuíram as mudanças não aos desenvolvimentos
naturais ocorridos ao longo do tempo, mas, à corrupção de influências
externas e ao pecado da humanidade. Acreditavam que se essas coisas
fossem removidas, teriam a restauração de uma igreja pura, que refletiría
o modelo do Novo Testamento.
Infelizmente, na tentativa de recuperar esse ideal perdido, diversos
grupos chegaram a conclusões bem diferentes a respeito da essência
estrutural da igreja. Isso fez com que as igrejas protestantes ficassem
para sempre divididas em campos diferentes (e geralmente hostis) que
se transformaram em “tradições” denominacionais distintas que são,
muitas vezes, mais difíceis de ser superadas do que as corrupções que
tentavam combater no início. Como é possível que grupos igualmente
comprometidos com a evidência bíblica tenham chegado a conclusões
tão radicalmente opostas e aparentemente incompatíveis?
As respostas são diversas, mas, todas baseadas em um fato impor-
tante: as evidências oferecidas pelo Novo Testamento não apresentam
detalhes suficientes para recriarmos uma igreja tão autenticamente
“bíblica” a ponto de excluir qualquer alternativa. Possivelmente isso
levou à organização de igrejas que seguiam práticas diferentes, contudo,
as poucas informações não nos permitem compará-las. Também, pode
ser que muitas igrejas não tivessem uma estrutura fixa e operassem de
acordo com as necessidades do momento, sem entender que havia
apenas um modo correto de fazer as coisas. Comentaristas modernos
acreditam na existência de grupos diferentes (rivais?) que funcionavam
de maneira independente e sem interação mútua.
A raiz do problema que enfrentamos ao tentar avaliar as evidên-
cias é que o Novo Testamento não oferece um esboço detalhado da
organização estrutural da igreja, seja ela qual for. Não sabemos como
os cristãos de Corinto, por exemplo, organizavam sua comunidade, e
a igreja de Corinto é uma das mais bem documentadas do Novo Tes-
tamento. Paulo diz que “alguns da casa de Cloe” o informaram sobre
as divisões na referida igreja, mas, quem eram essas pessoas?29 É bem
provável que igual a Lídia ou Priscila e Áquila, Cloe abrisse sua casa para

29 ICoríntios 1.11.
reuniões de cristãos, mas, que conclusão tiramos disso?30 Os da casa de
Cloe, fossem quem fossem, não estavam separados dos outros cristãos
de Corinto, pois, se estivessem, não iriam se importar com divisões na
igreja que não afetavam suas vidas. É bem provável que participassem
de uma rede mais ampla de trabalho, contudo, não sabemos onde era
a sua base nem quem a liderava. Paulo não diz para quem suas cartas
foram escritas, mas, obviamente o destinatário era alguém digno de sua
confiança e que faria bom uso de suas missivas.
No caso da igreja de Corinto, Paulo diz que três de seus membros —
Estéfanas, Fortunate e Acaico - estavam visitando-o em Éfeso naquela
oportunidade, e possivelmente também se hospedavam com Priscila e
Áquila (que haviam se mudado de Corinto para Éfeso), em cuja casa
se reunia uma igreja, e que Estéfanas foi o primeiro a se converter em
Acaia.31 Podemos supor que os três visitantes levaram a carta de Paulo
quando voltaram para casa, mas, não fazemos a mínima ideia dos cargos
que ocupavam na igreja, se é que ocupavam algum cargo.
Quanto às outras igrejas, incluindo a de Roma, não sabemos prati-
camente nada. Imaginamos que a Carta de Paulo aos Romanos chegou
a eles pelas mãos de Febe, descrita como diaconisa da igreja de Cen-
creia (um dos portos de Corinto), mas, a quem ela entregou a carta?32
Priscila e Áquila são mencionados novamente, dessa vez na cidade de
onde foram expulsos em 49 d.C., e talvez tenham sido os primeiros
contatos de Paulo naquele lugar.33 Mas, até onde sabemos, nem eles
nem ninguém mencionado por Paulo no último capítulo de sua carta
exerciam posição de autoridade na igreja de Roma, e não há indicação
de que Paulo reconhecesse qualquer escalão de autoridade. Todavia o
conteúdo da carta sugere a existência de uma organização ativa com
a qual Paulo desejava se conectar para fazer de Roma uma base para a
evangeüzação da Espanha. O apóstolo também sabia da tensão existente
na igreja entre judeus e gentios, mas, que não chegaram a se dividir de

30 Para saber mais sobre Lídia, leia Atos 16.40, e sobre Priscila e Áquila, leia lCo-
ríntios 16.19.
31 ICoríntios 16.15-19.

32 Romanos 16.1,2.

33Romanos 16.3,4; Atos 18.2.


fato. O que impediu judeus e gentios de seguirem caminhos separados?
Será que havia uma liderança que os mantinha unidos apesar de suas
diferenças, liderança que Paulo tentava encorajar? Não sabemos. A carta
de Paulo evidencia a existência de uma grande comunidade cristã na
capital do império, mas, é só.
E possível que em Roma, assim como em outras cidades, houvesse
alguém que coordenasse as reuniões da igreja, contudo, não sabemos
quem era essa pessoa e o que ela fazia. Como a maioria das primeiras
igrejas se reunia em casas, seria natural que o dono ou dona da casa
organizasse os cultos, mas, desconhecemos que tipo de autoridade eles
exerciam. Essa é uma questão importante para nós hoje, porque sabe-
mos que o chefe da casa poderia ser uma mulher, como era o caso de
Lídia e Cloe. Isso, então, significa que a igreja local estaria sob liderança
feminina, ou essas mulheres simplesmente ofereceram suas casas para
as reuniões das igrejas? Não sabemos.
O Novo Testamento diz que, no início, os apóstolos lideravam
a igreja de Jerusalém. Pregavam e administravam o seu dia a dia. No
entanto, logo a igreja teve de cuidar dos pobres, dos idosos, das viúvas,
e de outras pessoas com necessidades sociais que faziam parte de seu
rol de membros. Os apóstolos descobriram que não podiam se ocupar
dessa tarefa e pregar o evangelho ao mesmo tempo; assim, quando co-
meçaram a surgir reclamações sobre a má distribuição de mantimentos,
eles resolveram dividir suas responsabilidades e pediram aos membros
da igreja que escolhessem “sete homens de bom testemunho” para
serem diakonoi (diáconos ou ministros) e cuidarem dessas necessidades
administrativas e sociais.
Depois que os diakonoi foram escolhidos, os apóstolos lhes impu-
seram as mãos em uma cerimônia equivalente ao que chamamos hoje
de “ordenação”.34 Embora tenham sido indicados para uma tarefa es-
pecífica, as linhas divisórias entre eles e os apóstolos eram muitas vezes
indistintas. Por exemplo, Estêvão, o primeiro mártir cristão, anunciava
o evangelho apesar de ser diácono, e o mesmo era verdade quanto a

34 Atos 6.6.
Filipe.35 Por outro lado, Paulo usou muito de seu tempo coordenando
um trabalho de socorro humanitário aos cristãos pobres da Judeia, uma
tarefa que teoricamente era dos diakonoi, supondo que o modelo de
Jerusalém tenha sido copiado por outras igrejas, o que não sabemos.36
Portanto, qualquer evidência bem definida de ministério diaconal é
ambígua e inconclusiva, e as distinções rígidas e inflexíveis feitas mais
tarde certamente foram desconhecidas da primeira geração de cristãos.
Há muito se entende que as primeiras igrejas tinham anciãos (pres-
byteroí), que exerciam liderança coletiva sobre elas e que esse sistema de
governo foi copiado da sinagoga. E possível pensar dessa forma, con-
tudo, a evidência de que as sinagogas possuíam liderança comparável à
do cristianismo é insatisfatória. Sem dúvida, as pessoas mais velhas eram
respeitadas e ouvidas na sinagoga, e provavelmente influenciavam muito
nas decisões, mas, não tinham cargo oficial.37 Por outro lado, existiam
em Jerusalém líderes religiosos que trabalhavam com os sacerdotes,
embora não se saiba exatamente o que realizavam.38 É óbvio que faziam
parte da estrutura judaica e não eram sacerdotes nem escribas, então,
supomos que exerciam cargo judicial e administrativo, conclusão que se
encaixa nos contextos em que são mencionados. E impossível afirmar
se serviram de modelo para a igreja primitiva, embora a existência
deles mostre que os primeiros cristãos não se surpreenderíam com a
presença de líderes semelhantes na igreja. No entanto, ninguém sabe
quem instituiu esses líderes e em que circunstâncias.
A primeira menção de presbíteros na Bíblia ocorre em uma campa-
nha contra a fome. O profeta Agabo foi a Antioquia relatar aos cristãos
dali o sofrimento dos irmãos em Jerusalém, e em resposta ao seu apelo,

35 Os dois foram escolhidos ao mesmo tempo; veja Atos 6.5.0 ministério de Estêvão
é mencionado em Atos 6.8, e o de Filipe, em Atos 8.26-40.
36 2Coríntios 9.1-15.

37 Para saber a natureza da evidência, veja R. Beckwith, Elders in Every City: The Origin

and Role of the Ordained Ministry (Carlisle: Paternoster, 2003), p. 28-41. O conceito
de um presbitério judaico como protótipo de seu equivalente cristão foi recen-
temente estudado e totalmente rejeitado por A. C. Stewart, The Original Bishops:
Office and Order in the First Christian Communities (Grand Rapids: Baker Academic,
2014), p. 121-34.
38 Atos 4.5. 8.23; 6.12:23.14:24.1: 25.15.
esses mandaram ajuda aos presbíteros da comunidade afligida.39 O
contexto nos leva a supor que esses presbíteros eram as pessoas certas
para receber as ofertas, levando-nos a pensar que exerciam papel ad-
ministrativo não muito diferente do exercido pelos diáconos, mas, isso
é tudo o que sabemos a respeito deles.
Os presbíteros são mencionados novamente durante a primeira
viagem de Paulo à Galácia. Depois de plantar igrejas em Antioquia,
Icônio e Listra, Paulo e Barnabé refizeram seus passos, encorajando
os novos convertidos e indicando-lhes “presbíteros em cada igreja”.40
Nada sugere que isso foi novidade, e não sabemos quem eram esses
presbíteros nem o que faziam. Pelo jeito, a educação teológica desses
homens era bastante rudimentar, pois tão logo Paulo se foi, as igrejas
da Galácia começaram a seguir os judaizantes que apareceram ensinan-
do que para serem cristãos de verdade, deveríam ser circuncidados e
guardar a lei de Moisés.41
Outros versículos de Atos deixam claro que a indicação de pres-
bíteros na Galácia não foi um acontecimento único. Depois de Paulo
ter ido a Jerusalém resolver os problemas, levantados pela missão à
Galácia, lemos que as decisões tomadas deveríam ser comunicadas às
igrejas por homens escolhidos pelos apóstolos e pelos presbíteros, assim
como pela igreja toda de Jerusalém.42 Não sabemos qual era a tarefa
dos presbíteros, mas, pela menção que lhes é feita, parece que tinham
papel especial na igreja. Não eram apóstolos nem diáconos, contudo,
exerciam autoridade associada à dos apóstolos e aparentemente igual
à deles. Certamente, quando as cartas foram entregues, ficou esclare-
cido que foram enviadas pelos apóstolos e presbíteros em Jerusalém,
esclarecimento que acrescentou autoridade às decisões nelas contidas.43
Também sabemos o que aconteceu quando Paulo parou em Mileto, a
caminho de Jerusalém. Enquanto esperava o navio zarpar, Paulo man-
dou um recado a Efeso, pedindo que os presbíteros da igreja fossem

39Atos 11.30.
40Atos 14.23.
41 Gálatas 1.6,7.

42Atos 15.22.

43Atos 16.4.
se encontrar com ele, no que foi prontamente atendido.44 A explicação
de Tiago sobre a unção dos doentes realizada pelos presbíteros deixa
claro que eles exerciam papel espiritual na igreja.45
Quem eram esses presbíteros? Seriam simplesmente pessoas mais
antigas na igreja, sem autoridade formal, cujas perspectivas, no entanto,
eram aceitas com o respeito normalmente dispensados aos mais velhos
na sociedade judaica? Ou eram líderes idôneos escolhidos ou indica-
dos (como e por quem?) para conduzir a igreja? Provavelmente, era
uma combinação das duas coisas. Para os apóstolos era perfeitamente
natural conceder reconhecimento formal a pessoas cuja senioridade já
despertava o respeito alheio, embora seja improvável que a idade fosse
o único critério para o cargo de liderança. Paulo comissionou Timóteo
a um cargo que lhe deu autoridade sobre os mais velhos, apesar de sua
evidente juventude, mesmo sabendo que isso podería causar problemas,
em algumas circunstâncias.46
As Cartas Pastorais deixam claro que as igrejas devem ter presbí-
teros, embora teólogos contemporâneos tomem isso como evidência
de que são de época pós-apostólica. Paulo enviou Tito a Creta com a
missão de indicar presbíteros em cada cidade, embora, novamente, a
ordem levante tanto perguntas quanto respostas.47 Tito deveria indicar
um presbítero para cada igreja? Como foi o processo de escolha? A
igreja de Jerusalém havia eleito seus primeiros diáconos, mas, parece
que isso não aconteceu em Creta, embora o critério de escolha dos
candidatos tenha sido semelhante. Os diáconos de Jerusalém deveríam
ser homens de boa reputação, e as Cartas Pastorais explicam claramente
o que isso significava.48 O presbítero deveria ser irrepreensível, ou seja,
monógamo, cujos filhos fossem cristãos e jamais acusados de rebeldia.
Deveria ser humilde, comedido, sóbrio, pacífico e generoso. Era es-
sencial que fosse hospitaleiro e disciplinado. Mais importante, deveria
44Atos 20.17.
45 Tiago 5.14.
46 ITimóteo 4.12. Problema semelhante apareceu mais tarde na igreja da Magnésia.

Veja Ignácio de Antioquia, AdMagnésios 3.


47 Tito 1.5.
48 Tito 1.5-9. Veja também ITimóteo 3.1-7, que apresenta essencialmente as mesma

qualificações para o “bispo” (episkopos).


ser apto a ensinar a sã doutrina e repreender quem a rejeitasse. Era
um requisito e tanto, porque exigia conhecimento de ensinos cristãos
que poucos aldeões possuíam. Paulo estava sendo realista ao esperar
que Tito encontrasse tais homens? Dadas as circunstâncias, ele teria
se saído muito bem, caso encontrasse apenas um desses homens em
cada igreja, e possivelmente, muitas vezes, Tito não teve outra saída a
não ser nomear quem estivesse disponível. Nas cidades menores, es-
pecialmente, alguém pode ter sido posto na liderança da igreja não por
méritos próprios e sim por necessidade. Não há como saber.
Da perspectiva histórica, a questão mais importante sobre os pres-
bíteros é se (ou até que ponto) eles também eram “bispos” (episkopoi).
Durante séculos acreditou-se que os episkopoi do Novo Testamento
eram idênticos aos bispos que vieram mais tarde e que os presbíteros
(presbyteroi) pertenciam a uma ordem menor. Essa interpretação foi
contestada na época da Reforma, porque os termos pareciam inter-
cambiáveis. Ao comentar Tito 1.7, João Calvino escreveu:
Esse versículo mostra claramente que não há diferença entre presbí-
tero e bispo, pois o apóstolo [Paulo] aplica abertamente o segundo
título àqueles a quem havia chamado formalmente de presbíteros, e
ao discutir o assunto, Paulo uso os dois títulos indiscriminadamente
com o mesmo significado, como Jerônimo também observou em seu
comentário sobre o versículo.49

Essa perspectiva se tornou um distintivo do sistema presbiteriano


e foi rejeitada pelos tradicionalistas que preferiram uma estrutura
eclesiástica episcopal, contudo, no século 19, a observação de Calvino
foi confirmada pelo estudioso anglicano (e mais tarde bispo) J. B.
Lightfoot, pois havia se tornado a ortodoxia acadêmica estabelecida.50
Para Lightfoot, o presbitério e o episcopado se tornaram ofícios distintos
bem mais tarde, quando os presbíteros escolheram um dos seus para
49 J. Calvino, Commentary on Tttus, trad. T. A. Smail, D. W Torrance e T. F. Torrance
(Orgs.), (Edinburgh: Oliver & Boyd, 1964), p. 359. Calvino simplesmente repetiu
uma observação feita por Jerônimo, mas, que foi ignorada por mais de um milênio.
50 J. B. Lightfoot, The Christian Ministry (Londres: Macmillan, 1901), reimpressão

de um folheto que originalmente foi parte de seu comentário sobre Filipenses,


publicado em 1868.
liderá-los. Outro cenário foi apresentado por K. E. Kirk, para quem
os presbíteros derivaram dos apóstolos e bispos, que os escolheram
como auxiliares.51
Uma terceira possibilidade, apresentada recentemente por Alistair
Stewart, afirma que no início cada igreja tinha um episkopos e que esses
episkopoi reuniam-se para eleger um presbyteros para liderá-los.52 Isso
explica por que João se intitulou o “Ancião” (ARC), ou seja,presbyteros,
quando sua tarefa claramente ultrapassava as fronteiras de uma única
igreja.53 A terminologia só foi revertida bem mais tarde, epresbyteroi se
tornou o termo para se fererir a bispos que cuidavam do episkopoiloc-ή,
que passaram a ser chamados de presbyteroi. Essa conclusão parece im-
provável e apoia-se em argumentos firmados em exceções, mas, o fato
de até mesmo ser apresentada mostra como é difícil entender a lógica
das informações a nosso dispor.
O conceito de Lightfoot foi desafiado e modificado até certo
ponto, mas, nunca rejeitado. Se a igreja do Novo Testamento fazia
diferença entre anciãos e bispos, talvez fosse porque uma igreja em
particular tinha vários presbyteroi, porém não mais de um episkopos, cujas
responsabilidades de supervisão provavelmente requeriam apenas
uma pessoa no comando. E possível que esse episkopos também fosse
presbyteros, mas, não há como confirmar tal coisa, e pode ter havido
exceções. Certamente não há qualquer evidência de que o episkopos era
superior ao presbyteros·, suas responsabilidades se sobrepunham, e, até
onde sabemos, trabalhavam juntos. Por outro lado, tudo indica que os
apóstolos se identificavam mais facilmente com os presbyteroi do que
com quaisquer outros. João não foi o único a se designar presbítero;
Pedro também o fez.54 Enquanto os apóstolos estavam vivos, era
desnecessário definir em detalhes outros ministérios, mas, depois que
morreram, alguém tinha de assumir a liderança da igreja. E provável
que, então, os episkopoi ocuparam os lugares dos apóstolos tanto quanto
lhes foi possível e representaram os interesses da igreja em diferentes
51 K. E. Kirk, The Apostolic Ministry (Londres: Hodder & Stoughton, 1946).
52 Stewart, Original Bishops, p. 144-85.
53 2João 1; 3João 1.

54Veja 1 Pedro 5.1.


congregações e no mundo cristão mais amplo; nesse caso, isso foi um
desenvolvimento pós-bíbüco.
Com respeito ao culto público, parece que as primeiras igrejas cristãs
permitiam muito do que chamaríamos hoje de “participação do auditó-
rio”. Na verdade, esse tipo de espontaneidade ficou tão fora de controle na
igreja de Corinto que Paulo se viu obrigado a refreá-la. Ele não a proibiu
totalmente, o que é importante esclarecer, mas, estabeleceu regras que
alguém teria de aplicar.55 Quem? Não sabemos. Paulo também advertiu
que as mulheres não falassem na igreja, o que nos leva a crer que isso
estava acontecendo e causando problemas.56 Para muitos estudiosos,
a proibição não foi de Paulo; ela veio mais tarde; para outros, foi de
natureza puramente prática- as mulheres instruídas e responsáveis sa-
beriam se comportar em público e não estariam sujeitas a tais restrições.
As tentativas de explicar a proibição feita às mulheres ignoram o fato
de que o texto bíblico apresenta razões teológicas para isso: o homem
teve prioridade na ordem da criação e foi a mulher que o levou a pecar.
Assim, a prática da igreja primitiva era baseada em princípio e não em
preconceito, o que muitos comentaristas contemporâneos, ansiosos
em promover o ministério feminino, decidem ignorar.
A organização do culto cristão daquela época é igualmente obs-
cura. As igrejas cantavam salmos, hinos e cânticos espirituais, mas, o
faziam à capela ou com acompanhamento de instrumentos musicais?
Provavelmente era à capela, entretanto, como acontece com muitas
outras coisas, não há como sabermos direito, e certamente não havia
proibição ao uso de instrumentos musicais. Supomos que também
oravam, mas, à parte da Oração do Pai Nosso, que possivelmente já
estava em uso regular no final do primeiro século, é impossível saber
o feitio da oração corporativa.57 Era litúrgica no sentido posterior, ou
improvisada, de acordo com a inspiração de quem orava, como pode-
mos entender que era o falar em línguas na igreja de Corinto? Talvez
as duas formas de oração coexistissem? Alguém pregava um sermão,
55 Veja ICoríntios 12,14.
56 1 Timóteo 2.11-15.
57 O uso regular do Pai Nosso é ensinado no Didache, que remonta ao fim do primeiro

século e possivelmente é o texto cristão não bíblico mais antigo do mundo.


e, se fosse o caso, em que ele era baseado e qual era sua importância
para o culto? Era sermão exegético, temático, evangelístico — ou o quê?
Sabemos que as igrejas se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor, mas,
embora Paulo tenha dado instruções detalhadas sobre a sua realização,
as perguntas ainda são muitas.58 Não sabemos quem presidia a ceia,
com que frequência era celebrada, ou se até fazia parte de uma refeição
maior, como obviamente aconteceu na Ultima Ceia.
Nem mesmo sabemos quando os cristãos se reuniam para o culto.
É provável que o fizessem mais regularmente no “dia do Senhor”,
que corresponde ao domingo, o dia da ressurreição de Cristo.59 Mas,
claro, o domingo não era dia de folga, e a maioria dos cristãos não
podia participar dos cultos. Parece que em algumas cidades, a igreja se
reunia diariamente e tinha vida semicomunitária, embora essa prática
tenha se dissolvido bem depressa quando os problemas que causava se
tornaram evidentes. Talvez se reunissem de manhã cedo ou à noite, em
parte porque eram horas mais tranquilas, e também porque, quando a
perseguição teve início, os cristãos eram menos visíveis nesses perío-
dos por estar escuro. Mas, também nesse assunto, ficamos no reino da
especulação - simplesmente não sabemos o que costumava acontecer.
Deve ter havido algum consenso, pois de outra forma a igreja não
se reuniría de jeito nenhum. Os cristãos descobriram um meio de se
comunicarem. Será que um cristão se mudaria para Efeso, por exem-
pio, e vivería ali indefinidamente sem entrar em contato com a igreja
local (ou ao menos saber de sua existência)? As evidências provam o
contrário: Paulo sabia a quem enviar a carta que escreveu aos romanos
(embora não diga o nome da pessoa), e quando foi a Roma, alguém
ficou sabendo da visita e um grupo foi encontrá-lo assim que chegou
em Potéoli.60 Quem foi responsável por isso?
Como desconhecemos esses detalhes, temos de ser cautelosos.
Na antiguidade, as pessoas não se preocupavam com essas questões;
obviamente, tinham experiência nessas coisas e previam o que estava
58 VejaICoríntios 11.17-34.
59Esse uso da expressão o “dia do Senhor” é encontrado no Novo Testamento;
veja Apocalipse 1.10.
60Atos 28.15.
acontecendo de um modo que nos é difícil imaginar. Mas, não podemos
duvidar que existia certa organização e que ela funcionava com bastan-
te eficiência. Não podemos nos esquecer de que a maioria das cartas
de Paulo foi escrita a igrejas que enfrentavam problemas, e isso pode
distorcer nossa percepção da igreja como um todo. Aparentemente,
muitas igrejas não tinham os problemas que atormentavam a igreja de
Corinto. Isso quer dizer que ela era exceção? Ou apenas que desconhe-
cemos os problemas, que também aconteciam em outras igrejas, mas,
que não foram registrados?
A falta de resposta a essas perguntas deve nos levar a refletir antes
de usarmos a igreja do Novo Testamento como exemplo para a nossa
vida em comum hoje em dia. Algumas coisas, tais como a necessidade de
supervisão e de culto organizado, podem ser legitimamente deduzidas
de fontes a nosso dispor, e temos de nos certificar que sejam aplicadas
à vida da igreja contemporânea. Contudo precisamos ser humildes e
admitir que nos é impossível, com base no que sabemos, edificar uma
estrutura eclesiástica completa com as evidências que possuímos; a certa
altura, até os intérpretes literais mais ferrenhos do Novo Testamento são
obrigados a complementar o que ele diz, se quiserem que suas igrejas
funcionem de modo apropriado. É possível termos hoje uma igreja fiel
aos princípios do Novo Testamento, mas, não uma que reproduza, com
qualquer grau de precisão, uma das igrejas primitivas. Simplesmente
não temos os dados necessários para assegurar tal empreendimento.

A MISSÃO DA IGREJA

Não importa qual tenha sido o estilo de ministério da igreja, nem


como seu culto e organização eram estruturados, o consenso é que seu
objetivo primordial era levar o evangelho até os confins da terra. Essa
tarefa fazia parte da Grande Comissão que Jesus deu a seus discípulos,
e ela se consolidou rapidamente, não apenas como meta principal em
si, como também um dos meios mais importantes de diferenciar a
igreja da sinagoga.
Estudos recentes mostram que nos tempos antigos os judeus eram
mais receptivos ao proselitismo do que se tornaram mais tarde; mesmo
assim, não era uma de suas maiores prioridades. Para os cristãos, no
entanto, pregar o evangelho àqueles que o desconheciam, mas, que es-
tavam sendo chamados por Deus ao arrependimento e à nova vida, era
uma tarefa imprescindível. O próprio termo apostolos significa “aquele
que foi enviado”, e o impulso missionário era primordial à igreja desde o
seu início. Pouco antes de subir aos céus, Jesus mandou seus discípulos
pregarem o evangelho, começando em Jerusalém e por toda a Judeia e
Samaria, e a partir dali, aos confins da terra.61 Deveríam batizar pesso-
as de todas as nações em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-as o caminho da salvação.62
Para alguns estudiosos essas últimas palavras de Jesus foram
acrescentadas mais tarde por cristãos desejosos de atribuir a Jesus suas
próprias atividades, mas, tal ceticismo é desmentido pelos fatos. O
sermão de Pedro no Pentecostes alcançou peregrinos de muitas partes
do mundo, e não é demais supor que alguns levaram a mensagem, e
a adesão deles à igreja, aos seus países de origem. Se foi o caso, esse
primeiro esforço evangelístico lançou o alicerce para o surgimento de
comunidades cristãs em lugares distantes da Palestina, bem antes de
qualquer apóstolo chegar até eles. O certo é que a missão à Judeia e
Samaria começou quase que imediatamente. Sabemos também que,
em poucos anos, havia um grupo de cristãos em Damasco, pois foi
a caminho de persegui-lo que Saulo de Tarso se converteu de modo
inesperado.63
O batismo, pelos apóstolos, dos que faziam profissão de fé era fun-
damental à missão da igreja.64 O batismo já havia aparecido na pregação
de João Batista e no início do ministério de Jesus, e não existe indicação
de que as pessoas batizadas naquela época tinham de ser rebatizadas
depois do Pentecostes, embora o rebatismo de tais pessoas tenha sido

61 Atos 1.8.
62Mateus 28.19,20.
63 Atos 9.2.
64 A obra definitiva atual sobre o assunto é Baptism in the Early Church: History, Theo-

logy, and Liturgy in the First Five Centuries (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), de E.
Ferguson. O livro foi escrito de uma perspectiva batista, com uma desenfatização
correspondente no batismo de toda a família como evidência de que o rito era
administrado às criancinhas.
praticado mais tarde.65 Esperava-se que esse batismo fosse acompanha-
do da descida do Espírito Santo, marcado de modo especial por um
irromper do falar em línguas, embora as duas coisas não estivessem
necessariamente ligadas uma à outra. Quando Pedro pregou a Cornélio
e sua casa, o Espírito desceu sobre eles antes de serem batizados, e há
outros exemplos de batismo (como o do eunuco etíope) que não foram
acompanhados de manifestações miraculosas.
Em pouco tempo, os “sinais e maravilhas” que acompanharam
os primeiros batismos se esvaíram a tal ponto que por volta do século
4, quando estudiosos abordaram a questão, eles tiveram de admitir
que desconheciam o assunto e supunham que essas coisas deixaram
de acontecer depois da primeira geração de convertidos. Em tempos
mais recentes, grupos pentecostais e carismáticos tentaram restaurar
esse componente da experiência cristã chegando mesmo a considerá-lo
fundamental, contudo, não o ligaram ao batismo como a igreja primitiva
o fez. Para a maioria dos cristãos atuais, não existe conexão óbvia entre
batismo e manifestação de dons espirituais extraordinários. O batismo
continua sendo uma exigência para quem quer ser membro da igreja,
entretanto, os dons são bem menos comuns e nunca enfatizados fora
dos círculos carismáticos.
Nunca se questionou o fato de os apóstolos e seus companheiros
batizarem quem fazia profissão de fé. A questão foi se batizavam filhos
de crentes ainda muito novos para tomarem decisão própria, e sobre
o modo em que o rito era administrado — os candidatos eram imersos
na água, aspergidos com água, ou havia uma combinação de ambos?
Pinturas cristãs antigas mostram Jesus e outros dentro de um rio com
água até os joelhos ou cintura e alguém despejando-lhes água na cabeça.
Esse era o método comum de batismo?
Como é o caso de muitas outras coisas, não há respostas definitivas
a essas perguntas. E elas só começaram a ser feitas de maneira séria a

65 Atos 19.2-5. Observe, contudo, que em alguns versículos anteriores, Apoio (que
só conhecia o batismo de João) foi plenamente instruído mas, aparentemente,
não foi batizado de novo (Atos 18.25,26). As questões levantadas por esses dois
exemplos são discutidas em Ferguson, Baptism, ρ. 180-82, porém ele não chega a
uma conclusão definitiva sobre como resolvê-las.
partir da Reforma do século 16; até então, parece que ninguém se pre-
ocupou em tratá-las como questão de princípio teológico. O batismo
por imersão, total ou parcial, certamente era praticado, mas, seria a
norma ou considerado essencial? É difícil acreditar, por exemplo, que
o carcereiro de Filipos e toda a sua casa tivessem sido batizados por
imersão no meio da noite.66 O importante era que o batismo deveria
acontecer o mais rápido possível após a profissão de fé, um princípio
que deve ter incentivado flexibilidade sobre como e onde aconteceria.
Uma coisa é certa: não havia necessidade de longa instrução dos can-
didatos ao batismo, e não eram obrigados a ser batizados durante um
culto na igreja, como acontece na maioria dos casos em nossos dias.
Se as criancinhas eram batizadas com seus pais cristãos é um assunto
altamente controverso sobre o qual não há resposta definitiva. Aqueles
que rejeitam a prática do batismo infantil tentam, claro, provar que o
batismo que praticam era o usado na igreja primitiva, e quem pratica
tal batismo tenta provar o contrário. Não há evidência suficiente para
decidir a questão de uma forma ou de outra, contudo, foi só a partir do
século 16 que as diferenças sobre o assunto dividiram a igreja. Quem
insiste em afirmar que somente devem ser batizadas as pessoas que se
professam cristãs está pressupondo que todas as pessoas de uma casa
fizeram tal profissão, embora o Novo Testamento não diga nada sobre
isso. Outro problema: enquanto um menino judeu era circuncidado
sem questionamento no oitavo dia de nascido e as crianças judias eram
incluídas nas festas da Páscoa, não há indicações de que prática seme-
lhante não era aplicada aos filhos pequenos dos cristãos com respeito
ao batismo ou à Ceia do Senhor. As mulheres eram admitidas na igreja
como sendo iguais aos homens, mas, as crianças não? Os pais deixavam
os filhos em casa na hora do culto ou proibiam que participassem da
Ceia? Se não, as crianças podiam comer o pão consagrado e beber o
vinho sem serem batizadas? Aqui também ficamos sem respostas.
Tudo o que sabemos é que por volta do ano 200 d.C. o batismo
infantil era uma realidade e que Tertuliano (ele mesmo diz) desaprovava

66 Atos 16.33. Ferguson, Baptism, p. 179-80, empenha-se em admitir a possibilidade


de que o carcereiro e sua casa foram imersos de alguma forma, contudo, nem
mesmo ele força essa perspectiva.
a prática. No entanto, seu motivo não se devia ao fato de as crianças
não fazerem profissão de fé. Ele acreditava que o batismo era efeti-
vo, apesar disso, e removia a mancha do pecado original. Para ele, o
problema era que as crianças que haviam sido purificadas do pecado
sem o saber poderíam pecar outra vez inadvertidamente e, com isso,
perder a salvação.67 Estamos operando aqui em um universo conceituai
diferente daquele que orienta os debates atuais sobre o assunto, e isso
é mais um lembrete de que nossas preocupações não são prontamente
dissipadas com um apelo a evidências cuja intenção não é tratar de
nossas perguntas prediletas.
O que podemos afirmar, e a evidência de Tertuliano confirma, é que
os primeiros cristãos criam que o batismo tinha o poder de limpar dos
pecados quem se batizava. O batismo chegou a ser visto como um tipo
de exorcismo, afugentando o diabo e libertando a pessoa recém-batizada
de suas garras.68 Diferentemente da circuncisão, o batismo não deixava
marca no corpo, o que facilitava a saída de alguém da comunidade cristã,
e sabemos que até mesmo na época do Novo Testamento muitas pes-
soas se afastaram, e a maioria delas (segundo se pensava) não podería
ser trazida de volta à igreja mais tarde. Uma vez que provaram o dom
celestial, como escreveu o autor de Hebreus, era impossível levá-las ao
arrependimento caso houvessem abandonado a fé.69
Se isso também significava que perderíam a salvação se pecassem
novamente depois do batismo é uma questão que, pelo jeito, nunca foi
levantada na primeira geração, embora (como aplicação do princípio
acima) tenha se tornado tão importante mais tarde que dividiu a igreja,
especialmente na África do Norte.70
Um assunto mais importante na época do Novo Testamento, e que
acabou mesmo por dividir a igreja até certo ponto, foi o relacionamento
entre judeus e gentios. Desde bem cedo, quando os cristãos eram quase
67 Tertuliano, De baptismo, 18.5.
68 Veja Ferguson, Baptism, p. 522-24, 537-88, para exemplos disso.
69 Hebreus 6.4-6.

70 Possivelmente, a referência mais antiga ao assunto se encontra em The Shepherd

of Hermas. Veja Ferguson, Baptism, p. 214-16, para um tratamento dos textos


relacionados.
todos judeus, a missão da igreja começou a se voltar para o mundo
gentílico. Isso aconteceu porque Paulo e outros foram às sinagogas na
Diáspora, e quase todas possuíam um número significativo de “tementes
a Deus” que criam no Deus de Israel, mas, por uma razão ou outra,
não cumpriram todas as exigências da lei judaica. O padrão parece ter
sido este: Paulo pregava em uma sinagoga da Diáspora e conquistava
uma parte de seus ouvintes; estes abandonavam a sinagoga e formavam
uma igreja. A partir das controvérsias que irromperam logo após nessas
igrejas, deduzimos que uma proporção significativa desses convertidos
era formada pelos tementes a Deus, e eles não eram mais estranhos
como haviam sido nas sinagogas.
A dificuldade estava em reconciliar duas culturas diferentes em uma
única comunidade. Os tementes a Deus nunca haviam se submetido
às leis judaicas e achavam que o evangelho justificava sua recusa em se
prenderem a tal legalismo. Os cristãos judeus relutavam em abandonar
suas tradições, e mesmo que fossem persuadidos a crer que os temen-
tes a Deus estavam certos em princípio, permaneciam susceptíveis a
sentimentos de culpa por acreditar que haviam desistido de algo vital à
identidade deles. Em retrospectiva, é extraordinário que os dois lados
conseguiram permanecer juntos apesar de suas diferenças, que não
duraram além das primeiras gerações.
A importância da sinagoga como berço da igreja gentílica não deve
ser menosprezada. Quando Paulo foi a Atenas, onde não pregou na
sinagoga local, poucos se converteram com sua mensagem.71 O motivo
está claro no próprio texto. Os gentios que não conheciam o judaísmo
ou as Escrituras hebraicas não tinham contexto mental no qual colocar
o evangelho cristão. Termos como “ressurreição” não significavam nada
para eles, e não faria sentido Paulo apresentar seu caso referindo-se
às promessas da aliança feitas a Abraão e seus descendentes, pois seu
auditório não teria a mínima ideia do que ele estava falando. Apesar
de todas as suas limitações, a lei judaica era um mestre que indicava
o caminho para Cristo, e sem ela, seria muito mais difícil encontrar o
caminho.72
71 Atos 17.22-34.
72 Gálatas 3.24.
Na prática, era virtualmente impossível começar uma igreja sem
pessoas que tivessem um profundo conhecimento das Escrituras
hebraicas e que tivessem capacidade de interpretá-las à luz de Cristo.
As primeiras igrejas cristãs não possuíam declarações de fé como pos-
suímos hoje, mas, algumas crenças eram essenciais à membresia, e o
Novo Testamento deixa claro o teor delas. Primeiro vinha a aceitação
completa do Antigo Testamento como a Palavra de Deus totalmente
cumprida em Jesus Cristo.73 A seguir vinha a confissão de que o Filho
de Deus se tornou homem, sofreu e morreu pelos pecados do mundo
inteiro.74 Por fim, a convicção de que ele ressuscitou dos mortos, subiu
ao céu e mandou o Espírito Santo edificar a comunidade cristã.75 Quem
duvidasse desses princípios básicos ou os negasse não era aceito como
membro da igreja.
As primeiras comunidades cristãs tinham uma dimensão social
forte que não podia ser ignorada. Depois de experimentar uma forma
primitiva de comunismo em que os convertidos juntaram seus recursos
para o bem comum, eles desenvolveram um programa de serviço social
menos ambicioso (contudo, mais prático). Esperava-se que as igrejas
cuidassem de seus membros mais pobres e protegessem seus interesses.
Esse aspecto da vida comum das igrejas impressionou profundamente
os de fora, e eles notaram que os cristãos eram diferentes das outras
pessoas de um modo nunca visto antes.76 (Os judeus também eram
diferentes, mas, embora cuidassem de seus correligionários de um
modo bem parecido com o dos cristãos, esse cuidado era exclusivista e
alienava os de fora, que em geral não se sentiam acolhidos entre eles).
As igrejas mudaram essa atitude, e usaram sua preocupação uns com
os outros como prova de que eram mesmo um no Espírito.
Mais do que qualquer outra dimensão, foi esta que manteve as dife-
rentes igrejas em comunhão entre si. Também partilhavam uma crença
comum, pelo menos em princípio, embora houvesse muitas divergências
e problemas individuais, como as epístolas do Novo Testamento deixam
73 Hebreus 1.1,2.
74João 1.14; 1 João 2.2.
75 Atos 1.1—-2.4.

76 Tertuliano, Apologeticum 39.7.


claro. A verdade, porém, é que o apóstolo Paulo conseguiu visitar as
igrejas da Grécia e coletar dinheiro para os cristãos menos afortunados
da Palestina, e levou a tarefa tão a sério que foi a Jerusalém, arriscando
a própria segurança, pois queria ele mesmo entregar as ofertas. O fato
de os cristãos mostrarem tamanha compaixão a pessoas desconhecidas
e que (em alguns casos pelo menos) se ressentiam da presença deles
como gentios na igreja mostrava mais claramente que qualquer outra
coisa que os laços que uniam os cristãos em Jesus Cristo era real. A
missão da igreja era produzir frutos e criar uma vida comum diferente,
e até então desconhecida do mundo.
No que diz respeito à organização prática, o trabalho missionário
da igreja tinha duas sedes principais: Jerusalém, o que era natural, por
causa das origens da igreja, e Antioquia. Esta era a capital da Síria Ro-
mana, a província onde a Judeia se localizava, e por isso, para muitos,
parecia óbvio que mais cedo ou mais tarde a igreja iria se estabelecer
ali. Em Antioquia, os seguidores de Cristo foram chamados de cristãos
pela primeira vez. E dali Paulo iniciou suas viagens missionárias.77 Até
mesmo Pedro apareceu nessa cidade e, pelo jeito, morou ali; contudo,
não sabemos por quanto tempo nem o que fez por lá.78 O que sabemos
é que o modelo então estabelecido se estendeu a uma missão mais
ampla, que foi, em sua maior parte, focada nas cidades. Até mesmo na
Galácia, tratada como unidade para fins missionários, os grupos cristãos
se reuniam em cidades provinciais como Icônio e Listra. Missões nas
zonas rurais eram quase desconhecidas, pelo menos fora da Palestina.
Esse padrão refletia a natureza do Império Romano, que era uma
associação de cidades, das quais Roma era a principal. O foco urbano
deixaria sua marca nas futuras gerações, e de tal modo que até hoje o
bispo de uma igreja de ordem episcopal é quase sempre nomeado para
uma cidade e não uma região. As exceções são poucas e restringem-
se a áreas onde praticamente não existem cidades, como no Ártico e
noroeste da Austrália. De qualquer forma, o impacto urbano é visível
através dos séculos, até mesmo em épocas quando pelo menos 80 por
cento da população habitava na zona rural. Gostemos ou não, isso gerou
77 Atos 11.26.
78 Gálatas 2.11.
uma dinâmica que estimulou o trabalho missionário a regiões até então
não alcançadas, ignorando as populações rurais profundamente con-
servadoras. Hoje, quando [nos Estados Unidos] o cristianismo urbano
está em declínio e a frequência aos cultos parece bem mais expressiva
nas zonas rurais, lembremo-nos de que esse não era o caso da igreja
primitiva, que usava a liberdade relativa que a vida urbana proporcionava
como oportunidade para anunciar o evangelho.

UMA DOUTRINA DA IGREJA?

Será que os apóstolos e seus companheiros tinham uma doutrina


da igreja? Os cristãos em geral sempre acharam que sim, e apologistas
de certas denominações tentaram mostrar que suas doutrinas eram
a manifestação correta da doutrina original da igreja. Infelizmente,
muito desse argumento tem se concentrado em questões de organiza-
ção (ou “sistema de governo”, como é formalmente conhecido), que,
como já vimos, não podem ser definidas com base apenas no Novo
Testamento. No máximo, podemos argumentar que o episcopalismo,
o presbiterianismo e o congregacionalismo têm direito de reivindicar
algum apoio bíblico, mas, que o indício do Novo Testamento não é tão
exato a ponto de tornar qualquer uma dessas posições irrefutavelmente
a mais ortodoxa. Mais ainda, a desaparição dos apóstolos certifica a
impossibilidade de recriarmos hoje a igreja primitiva. De uma forma
ou outra, a ausência deles tem de ser compensada, e só isso já garante
que a igreja contemporânea será diferente daquela sobre a qual lemos
na Bíblia.
Não é possível encontrar uma doutrina neotestamentária da igreja,
se é que existe alguma, a partir do estudo de igrejas individuais do Novo
Testamento, pois se sabe bem pouco a respeito delas para se chegar a
conclusões gerais. Mas, o fato de ser impossível recompor um quadro
detalhado da organização das comunidades cristãs não significa que os
apóstolos não percebiam a igreja como uma entidade distinta. E claro
que percebiam, e acreditavam que a igreja tinha direito à lealdade e
participação de todos que confessavam o nome de Cristo.
Quase todas as referências à igreja no Novo Testamento se aplicam
a congregações em particular, que evidentemente funcionavam como
unidades autônomas. Paulo escreveu às igrejas de determinadas cidades,
e a mesma ênfase à comunidade local aparece nas cartas às sete igrejas
da Ásia no livro de Apocalipse.79 Isso mostra que a igreja estava presen-
te em contextos particulares e não era simplesmente uma construção
teórica sem manifestação especial em nenhum lugar. No mundo antigo,
onde o idealismo da filosofia platônica era uma força notável, a ênfase
em situações concretas era de uma importância que desconhecemos
hoje. Não fazia sentido os apóstolos terem um paradigma de como a
igreja deveria ser, mas, de fato não existia (e provavelmente não poderia
existir) no mundo material.
A igreja foi criação do Espírito Santo, como o derramamento no
Pentecostes comprovou, contudo, se desenvolveu em comunidades
de cristãos reunidos em certos lugares e tempos. As pessoas viram o
Espírito Santo trabalhar, tanto em suas vidas como em seus relacio-
namentos com quem partilhava a mesma experiência. Os apóstolos
insistiam em afirmar que ninguém controlava a obra do Espírito; só
restava às pessoas reconhecer e aceitar essa obra, quisessem ou não.
Observamos isso, por exemplo, na maneira em que Pedro e a igreja de
Jerusalém reagiram à conversão de Cornélio. Nem Pedro nem a igreja
esperavam que o Espírito Santo fosse descer sobre os gentios e, de
início, se mostraram hesitantes, mas, ao perceberem que foi exatamente
isso o que aconteceu, submeteram-se à vontade de Deus e, em con-
sequência, mudaram sua maneira de pensar.80 Esse tipo de humildade
caracterizava a igreja apostólica. Ao se deparar com a confusão que
o mau uso dos dons espirituais estava causando na igreja de Corinto,
Paulo não usou sua autoridade para reprimir os dons, pois sabia que o
Espírito Santo estava trabalhando na igreja e que ele não tinha poder
para controlar ou impedir isso.
Paulo considerava seu ministério como guia teológico para uma
igreja que precisava avaliar como os diferentes dons poderíam ser
exercidos de modo harmonioso. Ao estabelecer os princípios básicos
de ordem e amor, Paulo ensinou os coríntios a analisar suas expert-
ências, esperando que se comportassem de modo a glorificar a Deus
79 Apocalipse 2—3.
80Atos 11.1-18.
e evitassem a aparente confusão que os dons estavam causando. Em
seu relacionamento com as igrejas locais, os apóstolos representavam
o mundo cristão mais amplo. Às vezes, esse fato os levou a estabelecer
diretrizes para a política de todas as igrejas, como fizeram depois que
o Concilio de Jerusalém resolveu o conflito entre judeus e gentios.81
Outras vezes, os apóstolos escreveram a igrejas que necessitavam de
conselho espiritual, onde quer que estivessem localizadas. Paulo es-
creveu aos romanos, embora nunca tivesse ido a Roma e não tivesse
nenhuma associação especial com aquela igreja. Pedro escreveu aos
“eleitos dispersos” de Anatólia, apesar de não ter, até onde sabemos,
nenhuma ligação com eles.82 Tiago, que provavelmente era o líder da
igreja de Jerusalém, endereçou sua carta “às doze tribos dispersas” sobre
as quais não tinha nenhuma autoridade específica.83 Essas exortações
gerais eram parte integral do ministério dos apóstolos, guiadas e dirigidas
pelo Espírito Santo, e de tal forma aceitas pelos destinatários. As igrejas
locais eram autônomas, mas, não independentes ou desconectadas umas
das outras, pois os apóstolos mantinham os olhos em todas elas para
assegurar sua fidelidade à mensagem do evangelho que tinham ouvido
e foram chamadas a proclamar.
A congregação local dos cristãos se distinguia pela abrangência
social. Homens e mulheres, judeus e gentios, escravos e livres — todos
eram um em Cristo Jesus.84 Contudo, ao mesmo tempo, as distinções
humanas eram respeitadas. Os cristãos judeus não deixaram de ser
judeus, e se desejassem continuar obedecendo à lei de Moisés, eram
totalmente livres para fazê-lo. Ao mesmo tempo, teriam de respeitar
a liberdade dos cristãos gentios, porque a lei não era parte integral do
evangelho e não poderia ser imposta como se fosse necessária à salvação.
Da mesma forma, as diferenças seculares entre escravos e senhores tam-
bém eram respeitadas. Os apóstolos não defendiam a escravidão como
instituição, entretanto não alegavam que a alforria era uma obrigação

81 Atos 16.4,5.
821 Pedro 1.1. Anatólia é a Turquia de hoje na Ásia, e incluía as províncias mencio-
nadas na carta: Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia Menor e Bitínia.
83Tiago 1.1.

84 Gálatas 3.28.
exigida pelo evangelho. O que fizeram foi reestruturar a natureza dos
relacionamentos entre senhores e escravos de modo que a comunhão
dos cristãos fosse o fator determinante entre eles.
Os apóstolos não faziam vistas grossas às injustiças da escravidão,
mas, acreditavam que se submeter a ela era a maneira correta de imitar
a Cristo e que a obediência convencería os opressores de suas malda-
des.85 Acima de tudo, não tentaram abolir as diferenças entre homens e
mulheres estabelecidas desde a criação, mas, transformá-las. As esposas
deveríam se submeter a seus maridos, contudo, os maridos deveríam
se sacrificar por suas esposas, e assim alcançariam a igualdade em suas
diferenças.86
Essas ordens não eram simples conselhos para que houvesse paz na
comunidade; elas estavam diretamente ligadas ao relacionamento pri-
mordial de Cristo com a igreja, a sua noiva.87 A realidade da igreja devia
ser manifestada na vida de seus membros, que foram transformados
irrevogavelmente pela vinda do Espírito Santo. Indivíduos que haviam
sido profundamente imorais foram lavados, santificados e justificados
em nome de Jesus Cristo.88 Isso era essencial. A igreja era um corpo
de pecadores salvos pela graça, e essa salvação produziu neles uma
transformação comprobatória de que Deus havia começado uma obra
nova nesses convertidos e no mundo inteiro. Nem todos os membros
da igreja viviam de acordo com o padrão do evangelho, e tiveram de
ser disciplinados ou até mesmo expulsos, pois a congregação não podia
tolerar o comportamento pecaminoso deles.89
A igreja era o corpo de Cristo no sentido de que ele era a cabeça e
os cristãos faziam parte do Senhor. Todos os membros de uma igreja
tinham seu papel dentro dela, papel que podería ser bem diferente um
do outro, mas, era igualmente necessário e valioso. Nenhum membro
da igreja era descartável; todos eram importantes. Deus não mostra
parcialidade, assim, os que criam em Cristo eram aceitos de igual

85 Efésios 6.5-9; Colossenses 3.22-25; 1 Pedro 2.18-25.


86 Efésios 5.22-33.
87 Apocalipse 22.17.

88 ICoríntios 6.9-11.

89 ICoríntios 5.1-13.
modo.90 A exigência era que houvesse a mesma confissão de fé, sem
o que não haveria unidade.91 Por mais que os apóstolos acreditassem
na necessidade do batismo, a importância dele era ofuscada à luz do
evangelho.92 Da mesma forma, a Ceia do Senhor unia as igrejas, mas,
desde que não houvesse abusos.93 O sacramentalismo de gerações pos-
teriores não é encontrado no Novo Testamento, em que fé e a presença
íntima do Espírito Santo nos corações dos cristãos eram fatores que
determinavam quem pertencia ou não à igreja.
A igreja se manifestava em comunidades locais, contudo, estas
faziam parte de uma rede universal. Isso ficou claro desde o início, à
medida que os cristãos de diferentes cidades se mostravam solidários
com seus irmãos de fé que passavam por algum sofrimento.94 Essa
atitude recordava a todos que embora Cristo estivesse totalmente pre-
sente entre eles quando se reuniam, ele também estava edificando uma
comunidade que se estendia pelo mundo inteiro. Os apóstolos eram
testemunhas vivas dessa realidade. O encargo que receberam os leva-
va a diferentes lugares e mostrava às congregações locais o que Deus
estava realizando em outras partes do mundo. A presença da igreja era
constituída pela fé e os ensinos dos apóstolos. Paulo sabia que muitos
pregavam o evangelho pelos motivos errados. Alguns não gostavam
do apóstolo e tentavam competir com ele. Mas, em vez de repreender
tais pessoas e exigir que elas se submetessem à sua autoridade, Paulo
se alegrava, desde que o verdadeiro evangelho estivesse sendo anun-
ciado.95 O importante não era o mensageiro e sim a mensagem, pois
foi a mensagem que fundou a igreja, o pilar e o alicerce da verdade.96
Se isso constitui a “doutrina” da igreja depende muito de como
definimos nossos termos. Os apóstolos não tinham uma teoria testa-
da e aprovada de como a igreja deveria ser, contudo, sabiam em seus
corações o que ela era, e quando a oportunidade surgiu, expuseram
90Atos 10.34,35.
91 Gálatas 1.8,9.
92 ICoríntios 1.14-17.

93 ICoríntios 11.17-22.

94 Veja Atos 11.27-30 para um exemplo disso.

95 Filipenses 1.15-18.

96 !Timóteo 3.15.
seus pensamentos. Com maior ou menor êxito, as gerações posteriores
tentaram ler a mente dos apóstolos, no entanto as palavras de Pedro
resumem o pensamento deles:
Vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edifica-
ção de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo
sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo [...]
Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo
exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou
das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram
povo, mas, agora são povo de Deus.97
Seria difícil dar uma explicação mais clara.

971 Pedro 2.5,9,10.


3

A igreja perseguida

A AUSÊNCIA DOS APÓSTOLOS

O relato das origens da igreja no Novo Testamento pode ser resu-


mido pelo título de um de seus livros mais importantes — os Atos dos
Apóstolos. O que eles fizeram e para onde foram depois da ascensão
de Jesus prepara o terreno para tudo o que vem a seguir, e embora
nos faltem muitas informações, temos uma ideia razoável de como a
comunidade original se expandiu e espalhou-se pelo mundo romano.
Mas, apesar de toda a sua importância como fonte histórica da igreja
primitiva, o Novo Testamento não conta o que aconteceu depois que
os apóstolos saíram de cena.
Da mesma forma que o livro de Atos, ele nos deixa suspensos entre
dois períodos: aquele em que ainda existia ligação direta com a vida e o
ministério de Jesus, e o outro, subsequente, em que a lembrança pessoal
se transformou em tradição histórica. É difícil datar essa transição e, na
época, ela deve ter sido imperceptível a muitos. Poücarpo de Esmirna,
por exemplo, foi martirizado em 156 d.C., depois de oitenta e seis anos
de cristão. Não sabemos se ele estava com oitenta e seis anos de idade
quando morreu ou se fez sua profissão de fé quando menino; seja como
for, ele manteve contato pessoal com os apóstolos e as igrejas por eles
fundadas. Até onde sabemos, Poücarpo morreu acreditando que nada
de realmente importante havia mudado durante sua vida. Na época de
seu martírio, Poücarpo era um dos últimos elos com o passado, mas,
quaisquer desenvolvimentos ocorridos no século anterior parecem não
tê-lo afetado.
Certamente muitos cristãos da época tinham o mesmo sentimento.
0 ritmo da vida era mais lento nos tempos antigos, e na maioria das
cidades e vilarejos poucas coisas seriam diferentes. Sem dúvida nenhu-
ma, as lembranças se tornaram vagas em alguns aspectos, contudo,
as pessoas estavam acostumadas a recontar eventos importantes, e as
tradições orais que mantinham esses eventos vivos seriam conhecidas
e relatadas pelos cristãos de todos os lugares. Se algum caso estranho
tivesse sido acrescentado, alguém teria percebido, ainda que a única
razão fosse o fato de o acréscimo não ser conhecido em todo o Império
Romano. Variações locais não passariam disto - variações localizadas -,
e poderíam ser corrigidas por aqueles com perspectiva e conhecimento
mais amplos.
Algo assim parece ter acontecido com os evangelhos. Mateus,
Marcos e Lucas, conhecidos como os evangelhos sinóticos, contam
a mesma história, e as variações entre eles são relativamente poucas.
Talvez Mateus e Lucas tenham copiado Marcos (e um ao outro), mas,
é possível que tenham registrado a tradição oral cada um por si, e neste
caso, o grau de correspondência entre eles é impressionante. O evan-
gelho de João é uma testemunha independente, e muitos estudiosos
acham que é posterior à tradição sinótica, mas, talvez não seja. João
contém elementos bastante antigos e em alguns aspectos talvez seja
mais “histórico” que os outros.1
O certo é que na época em que os evangelhos foram escritos, os
apóstolos estavam saindo rapidamente de cena. João talvez estivesse
vivo na última década do primeiro século, mas, os outros já haviam
morrido ou não estavam ativos. O que isso significa para a igreja? A falta
de evidência dificulta a resposta, mas, parece que a natureza e exten-
são do legado dos apóstolos causaram debates. Em especial, algumas,
pessoas afirmavam que os apóstolos receberam instruções secretas de
Jesus que não revelaram às igrejas.1 2 Como se em passe de mágica, esses
ensinos secretos agora vinham à tona, quando era impossível verificar
sua autenticidade. Um dos temas, persistentes dessa literatura arcana é

1 VejaJ. A. T. Robinson, The Priority of John (Londres: SCM, 1985).


2 Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 3.1-2; Tertuliano, Depraescriptone haereticorum
27.1.
o asceticismo; ele alegava que os apóstolos defendiam práticas como
o celibato e o jejum muito mais do que declararam publicamente. Até
certo ponto, isso era plausível, claro, pois era de conhecimento geral
que Paulo preferia o celibato, mas, como ele afirmou explicitamente que
o celibato não era para todas as pessoas, a reivindicação da autoridade
apostólica sobre o assunto se tornou inadmissível e foi rapidamente
rejeitada pela maioria.3
Outra possibilidade foi que a revelação divina continuou por meio
do ministério de profetas que não tiveram ligação com Jesus nem com
os apóstolos, mas, cujas palavras tinham tanta autoridade quanto as
deles. Essa afirmação foi feita por Montano, que surgiu na Ásia Menor
na metade do século 2 e atraiu um número respeitável de seguidores.
O assunto logo se tornou uma questão de princípio: a revelação divina
como autoridade sobre a igreja continuava ou a comissão apostólica
havia terminado? O consenso foi que havia terminado, e o que chama-
mos de cânone do Novo Testamento estava, em princípio, encerrado.
Haveria, sim, discussões sobre alguns dos livros nele incluídos, mas,
somente aqueles com linhagem apostólica reconhecida seriam aceitos
como autoridade.
A decisão forçou a igreja a considerar quem teria o direito de
interpretar os textos canônicos. De início, determinou-se que, mais
provavelmente, as igrejas maiores de origem comprovadamente apos-
tólica, tais como as de Antioquia, Éfeso e Roma, teriam conservado
intacta a mensagem genuína. Em parte, isso era devido ao fato de os
apóstolos terem ensinado essas igrejas, e em parte porque elas eram tão
grandes que qualquer tentativa de surrupiar os textos com a intenção
de favorecer essa ou aquela interpretação teria menos chance de acon-
tecer. Muitas pessoas conheciam a verdade, e isso servia para controlar
qualquer tipo de comportamento estranho.
Provavelmente, foi inevitável que os episkopoi, ou bispos das igrejas
locais, tenham preenchido a lacuna deixada pelos apóstolos. Parece que
a intenção de Paulo foi que Timóteo e Tito cumprissem essa função,
mas, não sabemos se era uma prática difundida. Sabemos que Inácio de
Antioquia, em seus escritos do ano 118 d.C., ordenou que os cristãos
3 Veja ICoríntios 7.1-40.
de Esmirna respeitassem o bispo da mesma forma que respeitariam
o próprio Cristo e obedecessem aos presbíteros da mesma forma que
obedeceríam aos apóstolos.4 Inácio receava os heréticos e estava ten-
tando proteger a igreja contra os falsos ensinos, e achava que seguir
as palavras do bispo era o melhor jeito de conseguir isso. Mas, não é
claro se Inácio acreditava que os bispos eram sucessores diretos dos
apóstolos; em sua opinião, assim como na de todos daquela época,
o mais importante não eram as ligações pessoais dos bispos com os
apóstolos, mas, o conteúdo de seus ensinos. Isso talvez se devesse ao
fato de poucos bispos terem essas ligações; assim como todo mundo,
eles dependiam da tradição herdada, que era cada vez mais registrada
no Novo Testamento nascente.
Seja como for, a verdade é que com o desaparecimento dos após-
tolos, o perigo de falsos ensinos aumentou bastante, e era preciso
lidar com a situação. Os falsos mestres se multiplicaram, e alguns
deles aplicavam interpretações estranhas à tradição canônica emer-
gente. Taciano, por exemplo, ao escrever, por volta do ano 150 d.C.,
tentou harmonizar os quatro evangelhos, porque era favorável a uma
narrativa única; um pouco antes, Marcião propôs descartar o Antigo
Testamento e purgar o Novo de tudo o que parecesse judeu demais.
Taciano e Marcião acabaram sendo rejeitados, mas, existia na igreja um
sentimento crescente de que ela deveria se proteger contra esse tipo
de perigo. Essa necessidade aumentava à medida que a lembrança dos
apóstolos ia desaparecendo, e entendemos por que grande porção dos
escritos evangélicos do século 2 que chegou até nós lida com a defesa
da igreja contra heresias de um tipo ou de outro.

ORTODOXIA E HERESIA

A questão da continuidade entre as igrejas apostólica e pós-apostó-


lica é muito mais complicada hoje porque, desde o início do século 19,
existe uma forte tendência no mundo acadêmico de afirmar que havia
diferenças significativas entre as duas. Supostamente, essas diferenças
foram ignoradas no registro oficial e agora só vieram à luz com a leitura

4 Inácio de Antioquia, Ad Smjmaeos 8.


crítica dos documentos primários e uso de materiais de fontes externas*
tais como papiros e inscrições, descobertos nos tempos modernos.
O trabalho principal nesse sentido foi de Ferdinand Christian Baur
(1792-1860) e dos estudiosos que ele reuniu em Tübingen. A tese da
Escola Tübingen, como o trabalho desse grupo é conhecido, afirma
que a igreja apostólica era uma comunidade de espírito livre, na qual
diferentes perspectivas teológicas coexistiam e as exigências para
membresia eram mínimas. Mas, de acordo com eles, em pouco tempo
aconteceu um engessamento de posições, e uma forte tendência à insti-
tucionalização apareceu na geração seguinte. Essa tendência se mostrou
em estruturas cada vez mais inflexíveis, doutrinas sistematizadas, e a
rotulação dos dissidentes de “hereges”. Baur chamou essa tendência
de “catolicismo incipiente”, afirmando que ele era encontrado tanto
no Novo Testamento quanto nos escritos dos líderes conhecidos como
pais apostólicos do século 2.0 “catolicismo incipiente” estava presente,
de modo especial, em Lucas, Atos e nas Cartas Pastorais, o que nessa
perspectiva significava ter origem pós-apostólica e, portanto, não eram
obras de seus professados autores.
Quando a tese da Escola Tübingen se firmou, em pouco tempo
os estudiosos também descobriram uma teologia mais desenvolvida
em outros livros do Novo Testamento. Essa descoberta ampliou a
abrangência dos estudos críticos de Baur, e passou-se a acreditar que
a literatura joanina, algumas epístolas de Paulo - tais como Efésios e
Colossenses —, 2Pedro e a Carta aos Hebreus eram todas pós-apos-
tólicas, talvez, em alguns casos, até da metade do século 2. Ou seja, o
Novo Testamento representava mais que o primeiro florescimento do
cristianismo; ele continha escritos que testemunhavam a evolução que
carregou a igreja para longe de suas raízes.
Baur e seus colegas não eram estudiosos desinteressados. Eram pro-
testantes liberais desejosos de atacar as pretensões conservadoras cada
vez maiores da Igreja Católica da época, e também o confissionalismo
restrito das tradições luterana alemã e reformada. Eram herdeiros do
Pietismo do século 18, que aos seus olhos havia relegado a importância
do dogma religioso para dar ênfase à santidade e moralidade pessoal.
Também não eram propensos a acreditar em coisas miraculosas e
90

achavam que a Igreja Católica era uma mistura medieval de superstição


e mito, acertadamente condenada por Martinho Lutero. No entender
de Baur e seus colegas, a tarefa deles era continuar com a Reforma e
remover os detritos do irracionalismo pré-moderno da mente protes-
tante, com o objetivo de desenvolver um cristianismo purificado e não
dogmático, que seria fundamento espiritual para a era científica em
que acreditavam estar vivendo. Portanto, suas atividades acadêmicas
tinham o objetivo de abrir espaço para o pensamento liberal nas igrejas
protestantes alemãs, no que foram muito bem-sucedidas.
Muitas pessoas, claro, rejeitaram a tese de Tübingen e o liberalismo
do qual fazia parte por acreditarem que o “catolicismo incipiente” des-
crito por Baur era parte integrante da base de fé apostólica. Algumas
pessoas que reagiram contra Baur se mostraram ainda mais favoráveis
a Roma, e alguns intelectuais protestantes se tornaram católicos por
causa disso. O mais famoso deles, no mundo de fala inglesa, foi John
Henry Newman (1801-90), que antes de se converter liderou um
avivamento conhecido hoje como anglocatolicismo dentro da Igreja
Anglicana. Seu conservadorismo foi reacionário e teve apelo limitado,
contudo, levou estudiosos a reavaliar seus conceitos sobre a igreja
primitiva, cujas consequências nos influenciam até hoje. De um lado
estão aqueles para quem os registros da igreja primitiva são fidedignos
e oferecem um ótimo relato de como ela se desenvolveu e amadureceu.
De outro lado, aqueles que insistem em afirmar que a tradição histó-
rica é essencialmente propaganda política para o grupo que se tornou
dominante, e que somente a leitura das obras longamente censuradas
dos assim chamados heréticos nos oferecerão um retrato equilibrado
do que acontecia de verdade.
A abordagem Tübingen se tornou mais ou menos um padrão
entre os protestantes alemães no fim do século 19 e foi exemplificada
por teólogos como Adolf von Harnack (1851-1930), que questionou
a função das afirmações confessionais dogmáticas na igreja primitiva,
e Walter Bauer (1877-1960), que procurou mostrar que “ortodoxia”
e “heresia” eram rótulos aplicados pelo vitorioso grupo católico a si
bn
mesmo e a seus adversários, respectivamente, lá pelo fim do século 2.5
A tese já foi desafiada várias vezes pelo trabalho acadêmico detalhado
de eruditos comoj. N. D. Kelly (1909-97) e Η. E. W Turner (1907-95),
mas, continua reaparecendo em formas diferentes e estabeleceu-se
como abordagem padrão em livros didáticos populares e outros.6 Isso
aconteceu porque no século 20 as descobertas de novos manuscritos
aparentemente confirmaram as afirmações de Tübingen. Em especial,
uma descoberta importante em Nag Hammadi, Egito, em 1946, reve-
lou um grande número de documentos que apresentavam formas de
cristianismo censuradas por líderes como Irineu e rotulados de “gnos-
ticismo” pela Escola Tübingen.
Gnosticismo não era tanto a doutrina de uma pessoa ou de um
pequeno grupo de pessoas quanto uma tendência presente em muitos
escritores claramente influenciados pelas vertentes filosóficas de sua
época. Em resumo, gnóstico era alguém que acreditava na separação
dualista entre matéria e espírito e desenvolveu explicações mitológicas
para a criação do mundo. O Deus Criador era inferior ao Pai de Jesus
Cristo, porque o primeiro lidava com a matéria (que era intrinsicamente
má) ao passo que o último enviou seu Filho para nos livrar das garras
da matéria.
Bauer havia percebido essa tendência, entretanto lhe faltavam evi-
dências suficientes para documentá-la, de modo que teve de confiar
nos relatórios de quem se opunha a ela, mesmo que o pensamento de
alguns deles, como Clemente de Alexandria, não fosse tão diferente
assim. Clemente é considerado “ortodoxo”, contudo, defendia o gnosis
(conhecimento) e aparentemente respirava a mesma atmosfera filosófica

5 A. von Harnack, A History of Dogma, trad. Neil Buchanan (Londres: Williams &
Norgate, 1894—99), publicado originalmente como Lehrbuch der Dogmengeschichte
(Freiburg-im-Breisgau: J. C. B. Mohr, 1893); What Is Christianity?, tradução de T.
Bailey Saunders (Londres: Williams & Norgate, 1901), publicado originalmente
como Das Wesen des Christentums (Leipzig: Hinrichs, 1900); W Bauer, Orthodoxy and
Herety in Earliest Christianity, Robert Kraft e Gerhard Krodel (Orgs.) (Filadélfia:
Fortress, 1971), publicado originalmente como RechtglaubigheitundKetyereiim altesten
Christentum (Tübingen: Mohr, 1934).
6 J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3. ed. (Londres: Longman, 1972); Kelly, Early
Christian Doctrines, 5. ed. (Londres: A. & C. Black, 1977); Η. E. W Turner, The
Pattern of Christian Truth (Londres: Mowbray, 1954).
de homens como Basilides e Valentim, que não escaparam da conde-
nação das gerações futuras, as quais os consideraram “heréticos”. Seria
então possível crer que essas pessoas foram vítimas de uma tomada de
poder político da igreja por um grupo que se proclamou “ortodoxo”
à custa de todo mundo?
De qualquer forma, os participantes desse debate concordaram que
por volta do século 3 (o mais tardar) havia uma diferença consciente
entre os “ortodoxos” e os outros, e que os primeiros controlavam a
alavanca da igreja no mundo inteiro. Nesta fase, talvez não existisse uma
definição exata de ortodoxia, contudo, havia sinais de que candidatos
ao batismo tinham de responder a uma série de perguntas destinadas
a desenraizar crenças consideradas divergentes, e os executores de tais
disciplinas se mantinham em contato por meio de concílios periódi-
cos que se reuniam para desenvolver políticas doutrinárias gerais. Ao
mesmo tempo, surgiu o episcopado monárquico em algumas, igrejas,
o que era necessário para o funcionamento desse sistema idealizado.
Cada igreja tinha de ter um líder e porta-voz reconhecidos, capaz de
articular a crença ortodoxa e aplicá-la em sua congregação.
Os detalhes desse cenário são desafiados e modificados com
frequência, contudo, o esboço geral tem se mostrado extremamente
resistente. Mas, até que ponto esse é um retrato justo da igreja primiti-
va? Como é o caso de tudo relacionado a essa época, as evidências são
escassas e, na maioria dos casos, podem ter diferentes interpretações.
Irineu atacou os “hereges” por todos os lados, mas, qual era na ver-
dade seu relacionamento com essas pessoas e quais seus motivos para
condená-las? Era uma tentativa de proteger a pureza da igreja (como
ele dizia) afunilando-a de modo a incluir somente quem concordava
com ele?
Até que ponto a reconstrução que Tübingen fez do cristianismo
primitivo é plausível? Fundamentalmente, é difícil negar que os primei-
ros cristãos tinham uma noção básica de um modo certo e um errado
de acreditar em Jesus, mesmo que, às vezes, discordassem sobre eles.
Mesmo que não usassem termos como “ortodoxia” e “heresia”, os
conceitos estavam presentes, e foi apenas uma questão de tempo até
as diferentes formas de crenças serem rotuladas de certas e erradas.
Em parte, essa distinção remontava ao judaísmo, embora nos círculos
judaicos a diversidade de opiniões aceitáveis fosse mais ampla do que
seria no cristianismo. Por exemplo, alguns judeus negavam a ressurreição
dos mortos, crença que não era viável aos cristãos. Portanto, desde o
início, a igreja aceitava apenas um escopo de opiniões mais restritas do
que as aceitas pela sinagoga, pois, caso contrário, sua mensagem central
ficaria irremediavelmente comprometida.
No entanto, muitos (se não a maioria) dos falsos mestres dos quais
Paulo reclamou queriam restringir a igreja de um jeito diferente: impon-
do aos membros práticas judaicas. Os cristãos tinham mais liberdade
que os judeus em questões práticas como comida e bebida, mas, não
quanto à crença, o que era inevitável, pois uma vez que a atenção estava
concentrada na pessoa e obra de Jesus Cristo, o que era dito (ou poderia
ser dito) a respeito dele tinha vital importância.
Se os cristãos discordassem sobre a pessoa de Jesus e o que ele
havia realizado, ou se as suas opiniões fossem tão vagas a ponto de
se tornarem inexpressivas quando postas à prova, sua fé seria vazia e
o evangelho nunca poderia ser anunciado. Crer em uma encarnação
divina era anátema aos judeus e incompreensível àqueles gentios que
consideravam a matéria maligna e fundamentalmente oposta à bondade
de Deus.
Todavia, se os cristãos duvidassem da encarnação, não teriam um
Salvador a quem anunciar. Por mais bem intencionadas que algumas
tentativas de reconciliar essas posições incompatíveis tenham sido, eram
perigosas e tinham de ser combatidas. Jesus não poderia ser metade
homem, nem fantasma, nem um ser angelical em forma humana. Ele
tinha de ser sem pecado, mas, capaz de se tornar pecado por nós. De
um alguma forma, humanidade e divindade tiveram de ser reconciliadas
nele. Foram necessários muitos séculos para se desenvolver uma reso-
lução que agradasse aos cristãos, e mesmo assim houve discordância,
mas, a necessidade de uma declaração de fé transparente e inequívoca
no Filho de Deus encarnado sempre foi prioridade. O mesmo se deu
em relação ao Espírito Santo, cujo agir e presença eram fundamentais
ao viver cristão e cujo relacionamento com o Pai e o Filho precisava ser
entendido corretamente. Encontrar um preceito que transmitisse essa
ideia também foi difícil, e até hoje não se descobriu um que seja uni-
versalmente satisfatório, entretanto, os cristãos sabiam que precisavam
dizer algo que explicasse sua fé da maneira mais clara e exata possível.
As tentativas mal concebidas foram inevitáveis, e algumas tiveram de
ser descartadas. É questionável se as pessoas que apresentaram tais
soluções deveríam ser condenadas como malignas traidoras da fé, e é
certo que hereges sofreram injustamente por seus erros, mas, falando
de modo objetivo, a igreja não tinha outra escolha a não ser advertir
seus membros a não sucumbirem à forma de pensar que destruiría o
evangelho, e os desviaria da fé.
O apóstolo Paulo foi particularmente sensível à possibilidade de
sua mensagem ser adulterada, e o fato de sua missão ser importunada
por falsos profetas que buscavam desfazer seus ensinos, assim como
por membros de igreja que contestavam sua autoridade, apenas afiaram
sua sensibilidade nessa questão. Ao escrever aos gálatas, por exemplo,
ele afirmou: “Mas, ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evan-
gelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!”'
Paulo sabia que isso andava acontecendo, mas, seu interesse prin-
cipal não eram os detalhes dos erros que seduziram os gálatas. No que
lhe dizia respeito, qualquer desvio de seu ensino deveria ser reprovado,
fosse lá como fosse. Esses erros seriam identificados corretamente mais
tarde, contudo, o importante era reconhecer o problema e lidar com ele,
e, acima de tudo, foi por isso que Paulo escreveu sua carta. Antes de ser
dogma da fé, a ortodoxia era assunto do coração. A menção do tema
em Gálatas é de especial importância, pois essa foi uma das primeiras
cartas escritas por Paulo, sempre considerada autêntica. Se o apóstolo
falava tão francamente logo no início de sua carreira missionária, como
duvidar que as repreensões feitas em outras cartas do Novo Testamento
não tenham origem igualmente antiga?
Não se sabe a natureza exata das heresias que surgiram na igreja
do Novo Testamento, embora estudiosos tenham descoberto formas
precoces de gnosticismo na linguagem usada para combatê-las. Isso
não deve causar estranheza, uma vez que o mundo pagão era domina-
do por filosofias dualistas para as quais o espírito era bom e a matéria 7
7 Gálatas 1.8,9.
era ruim, uma divisão que os cristãos ortodoxos não aceitavam por
ser incompatível com o relato bíblico da criação e com a encarnação
do Filho de Deus. Ao combater opiniões desse tipo, os líderes cristãos
compreenderam que a igreja tinha de reestruturar o universo mental
do mundo antigo para que sua mensagem de salvação tivesse algum
significado. Mas, antes de lidar com o paganismo dominante, a igreja
precisava estar unida dentro de suas próprias fileiras, e isso exigia a
aplicação de disciplina mais severa do que a usada no início.
A natureza das heresias enfrentadas pela igreja e o escopo de sua
influência podem ser medidos pelos escritos de Irineu (morto em
200?), natural de Esmirna, e que mais tarde se tornou bispo de Lyon,
cidade situada hoje no sul da França. Irineu desenvolveu um catálogo
enciclopédico contendo todas as formas de desvios da fé que conhecia
e refutou todos eles com a defesa da verdade cristã a que eles se opu-
nham.8 Sua obra não era uma teologia sistemática no sentido amai da
palavra, contudo, era abrangente, e Irineu foi o primeiro escritor cristão
a deixar material suficiente para reconstruirmos um sistema completo
de crença.9 O fato de Irineu também ser bispo é revelador, porque a
essa altura tornava-se cada vez mais evidente que os bispos tinham a
responsabilidade de proteger e defender a fé da igreja. Isso não quer
dizer, de jeito nenhum, que todos os teólogos tinham função episcopal
- Tertuliano e Orígenes, só para mencionar os dois mais importantes
da geração seguinte, eram leigos -, mas, eram os bispos, na posição de
líderes de suas igrejas, que decidiam o que era aceitável ou inaceitável
como ensino ortodoxo cristão.
A ortodoxia também estava tomando a forma da confissão de fé
imposta aos candidatos ao batismo. A prática neotestamentária de ba-
tizar a pessoa logo após sua confissão de fé foi abandonada em favor
de um período de instrução ou catequese, como era chamado, em que
os novos convertidos aprendiam os rudimentos do cristianismo. Ao
se apresentarem para o batismo, normalmente realizado durante um
culto na igreja, os candidatos eram sabatinados sobre o que haviam

8 Irineu de Lyons, Adversus omnes haereses.


Veja E. Osborn, Irenaeus of Lyons (Cambridge: Cambridge University Press, 2001);
D. Minns, Irenaeus: An Introduction (Londres: T&T Clark, 2010).
aprendido, e esperava-se que dessem as respostas pré-aprovadas.10 11 Não
havia roteiro fixo, e algumas frases que chegaram até nós mostram a
diversidade de formas admitidas pelas igrejas da época. O surpreenden-
te não são as diferenças entre elas, mas, as semelhanças. Para o leitor
contemporâneo, essas frases se parecem muito com o que chamamos
de Credo dos Apóstolos e são imediatamente reconhecidas quando
encontradas em outros textos.11
O modelo padrão de confissão era trinitariano, mesmo antes da
elaboração da doutrina da Trindade. Havia três partes, dedicadas res-
pectivamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. O Pai era reconhe-
cido como o Criador - um gesto que podería ser interpretado como
primordialmente antignóstico e antimarciônico em sua ênfase. A vida
encarnada do Filho foi apresentada em detalhes, com ênfase nos as-
pectos teológicos importantes. Por último, havia algumas frases sobre
o Espírito Santo, suplementadas aqui e ali por itens que não se encai-
xavam em nenhum outro lugar — igreja, batismo, perdão dos pecados,
vida eterna e assim por diante. As evidências sobreviventes parecem
indicar que o importante mesmo era o padrão da verdade cristã, e não
a forma exata das palavras usadas para expressá-lo.
A versão do Credo dos Apóstolos usada hoje em dia surgiu pela
primeira vez nos escritos de Pirmin de Reichenau, entre os anos 710 e
724. Esse texto do Credo se tornou famoso ao ser usado meio século
depois por Carlos Magno e transformado em padrão nas liturgias criadas
por religiosos de sua corte.12 No entanto, a ideia fundamental pode ser
remontada ao século 2 e mostra que a igreja já havia se transformado
em uma sociedade que exigia confissão de crença ortodoxa de quem
desejasse pertencer a ela.

A PROPAGAÇÃO DO EVANGELHO

Quem desejava se filiar à igreja e por quê? Segundo o Novo Tes-


tamento, a mensagem do evangelho foi anunciada primeiramente aos
10 Descrições do procedimento foram apresentadas no século 2. Veja Justino Mártir,
Apologia /61; Tertuüano, De corona 3.2-3. Há também uma orientação curta sobre
isso em Didache 7, possivelmente de antes do ano 100 d.C.
11 Kelly, Early Christian Creeds, 30-61.
12 Kelly, Early Christian Creeds, 398-434.
judeus e só depois aos gentios, muitos dos quais já faziam parte do
âmbito judaico, mas, até a época de Irineu, o cristianismo judaico havia
praticamente desaparecido. O número de conversões entre os judeus
era baixíssimo, o relacionamento com a sinagoga era distante e quase
sempre hostil, e havia poucas tentativas de alcançá-los. A igreja, que no
século anterior debateu se deveria aceitar gentios em seu rol de mem-
bros, tornou-se uma organização essencialmente gentílica e continua
assim desde então. O que provocou tamanha mudança de rumo?
A hostilidade da organização judaica contra os primeiros cristãos
é muito bem documentada e totalmente compreensível. Se todos os
judeus se tornassem cristãos, o judaísmo deixaria de existir, e raramen-
te um povo se agrada da própria extinção que se aproxima. Não é de
estranhar que os líderes judeus que tomaram para si a responsabilidade
de manter a identidade religiosa e nacional de seu povo tenham se
empenhado em esmagar o movimento cristão recém-nascido. Talvez
seja mais difícil compreender que, mesmo depois de tantos anos da
morte e ressurreição de Cristo, muitos judeus na diáspora desconhe-
cessem a existência de cristãos. Somente no ano 49. d.C. a sinagoga
romana foi perturbada pelas discussões sobre as afirmações de Jesus, do
tipo que já conhecemos por meio dos relatos das viagens missionárias
de Paulo. O próprio Paulo teve muitas oportunidades de pregar nas
sinagogas porque ninguém sabia quem ele era, e isso aconteceu uns
vinte anos ou mais depois do primeiro Pentecostes. Ficamos facilmente
impressionados com o grande número de convertidos registrado no
livro de Atos e nos esquecemos de que o mundo judeu era muito maior
do que esse número. Alexandria era um dos centros mais importantes
do judaísmo, e não existe registro sobre nenhuma igreja cristã nessa
cidade antes do século 2. Assim sendo, era possível que judeus cresces-
sem na sinagoga sem nunca conhecerem um cristão que fosse, mesmo
na época em que a maioria dos cristãos era formada por judeus.
Outro fator foi o destino trágico dos judeus no Império Romano.
A Palestina se revoltou no ano 66 d.C., e quando a rebelião terminou, o
templo em Jerusalém estava destruído. O mundo onde Jesus e Paulo mi-
nistraram havia desaparecido, e o judaísmo teve de se reinventar, o que
fez com rapidez impressionante, contudo, no processo, ele se tornou
muito mais consciente de sua vulnerabilidade. Mais ainda, a destruição
do templo não terminou com o sofrimento dos judeus. Outra rebelião
aconteceu em Alexandria em 116-7 d.C., e dizimou a comunidade ju-
daica ali existente. Mais uma insurreição ocorreu na Palestina em 132-5
d.C., e Jerusalém foi completamente arrasada e, então, reconstruída
como Élia Capitolina, uma colônia de gentios da qual os judeus foram
excluídos. Os cristãos não tinham interesse em se revoltar contra Roma,
e em 66 d.C. eles foram embora de Jerusalém para escapar de seu destino
inevitável. Os cristãos não achavam vantajoso ser intimamente ligados
aos judeus, e a autopreservação teve papel importante na sua separação
cada vez maior das políticas e cultura judaicas.
Outro problema era a diferença de status legal que judeus e cristãos
usufruíam. Apesar de toda a sua rebeldia, os judeus praticavam uma
religião legalizada (religio licita) que os romanos toleravam por ser bas-
tante antiga. Os cristãos não tinham o mesmo benefício. Da perspectiva
romana, o cristianismo era uma seita não registrada e, portanto, não
tinha direito de exigir reconhecimento. As religiões deveríam remontar
a tempos imemoriais, porém o cristianismo tinha suas raízes fincadas
em eventos recentes, e, além disso, em eventos nos quais agentes do
estado romano haviam exercido papel inglório. Para Roma, permitir
culto a alguém que ela havia crucificado como criminoso seria minar sua
própria legitimidade, e isso jamais aconteceria. O resultado irônico foi
que súditos judeus potencialmente desleais tinham permissão de exercer
sua fé publicamente ao passo que cristãos leais eram proibidos de fazer
isso. Com o passar do tempo, os cristãos viram que essa anomalia era
uma injustiça despropositada, mas, nesse ínterim, a diferença entre o
tratamento que judeus e cristãos recebiam do estado estava prestes a
semear divergência entre esses últimos.
Por fim, as ligações de família que mantiveram a primeira geração
de judeus cristãos em contato com judeus que não haviam se entrega-
do a Cristo começou a enfraquecer. Os cristãos eram aconselhados a
não se casar com pessoas de outra fé, e isso significava que os filhos
dos convertidos tinham opção de se casar com gentios ou com judeus.
Conforme a geração mais nova se misturava dessa forma, os elos cul-
turais e emocionais com o judaísmo que seus ancestrais ainda sentiam
iam desaparecendo. O afastamento foi gradual, contudo, até a época de
Inácio de Antioquia, judeus e cristãos trilhavam caminhos separados, e
a igreja não podia mais ser considerada “judaica” em nenhum sentido
real e verdadeiro.13
Os efeitos dessa mudança são observados nos escritos de Tertu-
liano, por exemplo. Ao defender a bravura e as convicções de cristãos
que preferiram morrer a negar a fé, Tertuliano citou exemplos da
história romana antiga e não da Bíblia hebraica, que era totalmente
desconhecida fora dos círculos judaicos e cristãos. Os cristãos eram
convocados a se comportar como os heróis legendários da antiga Re-
pública Romana (sobre os quais tinham ouvido), cujos ideais foram tão
cruelmente solapados pela corrupção moral do império subsequente.14
Desenvolveu-se a ideia de que a igreja seria a salvação do império por
causa da fibra moral e espiritual de seus membros. Ao escrever para o
imperador e a aristocracia de Roma, homens como Tertuliano e seus
predecessores gregos — por exemplo, Justino Mártir e Atenágoras de
Atenas — gostavam de enfatizar isso. Argumentavam que os cristãos
eram os melhores cidadãos do império e que os alienar era grande tolice
do estado. Provavelmente, eram seus defensores mais leais, contudo,
em vez de aceitar os cristãos e seus ideais, as autoridades romanas
preferiam atacá-los.
Conforme o império enfraquecia por causa de conflitos internos
sobre quem deveria ocupar o trono, e a corrupção nos altos escalões
do poder se tornava progressivamente mais flagrante e intolerável, essa
mensagem exercia apelo cada vez maior. Os romanos sabiam que algo
deveria ser feito para salvar o império, que todos valorizavam devido
à paz e prosperidade que levou ao mundo mediterrâneo, e havia con-
senso crescente de que a igreja era a única organização com desejo e
capacidade para realizar essa tarefa. Os cristãos tinham algo que lhes
dava a força interior que infelizmente faltava na sociedade romana em
geral. Os cristãos estavam preparados para suportar o sofrimento e até

13 Para um estudo desse processo, veja T. A. Robinson, Ignatius of Antioch and the
Parting of the Ways: Early Jewish-Christian Relations (Peabody, MA: Hendrickson,
2009).
14 Veja Tertuliano, Ad martyras, escrito no fim do século 2 e seu Apologeticum 50.5-7.
mesmo a morte por causa da fé, e eles se apoiavam mutuamente. Na
presença dos cristãos, os outros sentiam que estavam lidando com um
poder espiritual ao qual podiam se opor, mas não derrotar. De modo
gradual, mais e mais pessoas foram persuadidas da verdade, e a igreja
passou a conquistar novos convertidos.
Além de sua força interior e sua crescente rede de congregações, a
igreja tinha algo mais a oferecer ao mundo greco-romano: a coerência
intelectual de suas doutrinas. A sociedade pagã antiga estava dividida
em um grupo de pessoas que praticavam uma religião que mal se
distinguia da superstição e uma elite intelectual que menosprezava as
crenças populares e buscava conforto em diferentes tipos de filosofia.
A situação não seria tão ruim se todas as filosofias adotadas estivessem
de acordo no que era essencial, mas, não era o caso. O estoicismo, por
exemplo, ensinava que tudo o que existia era material. Até mesmo os
espíritos não passavam de formas refinadas de matéria, uma crença
que nos parece estranha, mas, ao menos era uma tentativa de superar o
dualismo predominante em outros sistemas filosóficos. Os platonistas
eram nitidamente antagônicos aos estóicos, e estavam lentamente trans-
formando os ensinos de seu mestre em uma pseudorreligião própria.
Para eles a realidade era espiritual - as coisas materiais não passavam
de deturpações do ideal. E assim foi; epicureus, cínicos, aristotelianos
e outros apresentaram várias formas de pensamento filosófico, mas,
nenhuma se mostrou satisfatória quando examinada mais profunda-
mente, e nenhuma delas conseguiu remover a superstição das massas.
Nesse contexto foi que os evangelistas cristãos viram sua oportu-
nidade, e não a deixaram passar. Eles ridicularizaram implacavelmente
as inconsistências e deficiências dos vários sistemas de crença pagã que
encontraram pela frente, e em substituição a essa crença, ofereceram
uma fé que acolhia o raciocínio, mas, não era limitada a ele. Ensinavam
que além de o universo possuir uma consistência interna global, era
possível conhecermos seu Criador pessoalmente. Na verdade, foram os
cristãos que introduziram nos discursos intelectualmente sérios a ideia
do relacionamento pessoal com Deus como alicerce da vida humana.
Os filósofos discursavam sobre amizade, mas, somente entre iguais e
reservada apenas à elite intelectual. Mais ainda, a amizade tinha uma
forte dimensão homoerótica garantindo que nunca se tornaria ampla-
mente popular. Em contrapartida, a igreja possuía uma visão coerente
de um mundo guiado e governado pelo amor, no qual cada elemento
tinha seu lugar próprio. Os conflitos não eram embates entre forças
abstratas da natureza, mas, o resultado da desobediência e rebeldia con-
tra o Criador, situação que ele mesmo teve de corrigir mandando seu
Filho transpor a inimizade criada pelo pecado e dar aos seres humanos
a possibilidade de recuperar a harmonia desfeita.
Essa mensagem tinha um grande apelo, e a partir de mais ou menos
150 d.C., e certamente depois de 200 d.C., os cristãos eram intelectuais
do mesmo gabarito daqueles do mundo romano. Isso era especialmente
notório nas tentativas que os pagãos faziam para combater a influência
cada vez maior dos cristãos. Um deles, certo homem chamado Celso,
que escreveu por volta de 180-90 d.C., foi refutado ponto a ponto por
Orígenes em uma defesa monumental do cristianismo, que continua
sendo uma leitura de grande proveito.15 O mais interessante sobre Celso
é que ele já havia aceitado as premissas fundamentais do pensamen-
to cristão. Ele concordou com seus oponentes que o mundo era um
universo organizado e que era possível viver em harmonia com ele. A
diferença era que, em sua opinião, um filósofo podería fazer isso tão
facilmente quanto um cristão — na verdade, mais facilmente até, pois
podería subtrair os princípios primordiais e transformá-los no âmago
de seu sistema de crenças, sem ter de se prender a detalhes materiais
ou ligar-se a uma figura histórica como Jesus.
Ao provar a impossibilidade de separar o material do espiritual e
proclamar que em Cristo o ideal cristão havia se tornado um ser hu-
mano específico, Orígenes mostrou que o cristianismo era superior a
qualquer coisa que os pagãos tinham a oferecer, o que inevitavelmente o
tornou mais atraente a um grupo cada vez maior de pessoas instruídas.
A estratégia básica era clara: quando os pagãos começassem a raciocinar
como os cristãos, pessoas como Orígenes argumentariam que a resposta
cristã às suas perguntas era melhor do que qualquer uma que pudessem

15 Orígenes,Contra Celsum, tradução de H. Chadwick (Org.), (Cambridge: Cambridge


University Press, 1953).
imaginar, e assim a conversão a Cristo era a melhor alternativa entre
todas as respostas.
Alguns críticos do cristianismo achavam que ele não passava de
outra religião oriental misteriosa mergulhada em superstição e filoso-
fia que se fortalecia ao impor regras rígidas a seus membros, os quais
formavam uma espécie de sociedade secreta. A inverdade disso é mais
obviamente mostrada na prontidão dos cristãos em defender sua fé
publicamente sempre que tinham oportunidade. Os não cristãos eram
convidados a experimentar o cristianismo e ver com os próprios olhos
como ele era de verdade, algo que nenhuma seita misteriosa jamais
faria. Ao mesmo tempo, a fé cristã possuía conteúdo específico a ser
aceito — não se tratava de adorar um poder superior sobre o qual pouco
ou nada era conhecido; Jesus Cristo veio ao mundo revelar o Deus que
os pagãos desconheciam, e para entender o significado do universo era
necessário conhecer a Jesus primeiro e relacionar-se com ele.
E evidente que a igreja estava influenciando a elite intelectual ao
desenvolver um tipo de teologia sistemática e impô-la como crença
ortodoxa. O que é menos óbvio, por não estar documentado, é o pro-
gresso que a igreja também fazia entre os grupos sociais e intelectuais
menos privilegiados. A natureza urbana das primeiras igrejas dificulta
sabermos o alcance que a mensagem do evangelho teve na zona rural,
que era bem menos evangelizada que as cidades quando o cristianismo
foi por fim considerado religião lícita. Mas, há registro de camponeses
na África do Norte que se tornaram cristãos bem antes de 200 d.C., e
tudo nos leva a crer que não foram um caso singular. Por volta de 300
d.C., havia edifícios dedicados ao culto cristão, embora não saibamos
se foram construídos para esse propósito. E notável, por exemplo,
que na perseguição ocorrida em 303 d.C., o primeiro acontecimento
tenha sido a destruição de uma igreja localizada em frente ao palácio
imperial de Nicomédia. O mais surpreendente, claro, é a existência de
um edifício cristão naquele lugar.
Uma mudança importante aconteceu por volta de 250 d.C. Antes
disso, a igreja se constituía de uma minoria que sofria perseguição in-
termitente por parte das autoridades, mas, era ignorada pela maioria da
população, pelo menos a maior parte do tempo. Após 250 d.C., a igreja
se tornou uma presença mais influente, especialmente nas províncias
orientais do Império Romano, e não podia mais ser menosprezada. A
evidência disso vem de um lugar surpreendente. No ano 260 d.C, a
rainha Zenóbia de Palmira, uma cidade no deserto sírio que foi con-
trolada durante muito tempo pelo estado romano, revoltou-se contra
um império decadente e conseguiu capturar a cidade de Antioquia,
dominando-a pelos próximos doze anos. A rainha nunca morou em
Antioquia, mas, nomeou Paulo de Samósata, um bispo cristão local,
governador da cidade e deu-lhe poder para agir em seu nome. Paulo
de Samósata foi o primeiro bispo cristão a ocupar um cargo secular -
vislumbre fascinante do que estava por vir. Por que Zenóbia escolheu
Paulo? Certamente, ela julgou que podería confiar em sua lealdade, pois
ele não teria muito interesse em voltar a Roma, onde seria perseguido.
No entanto, os cristãos em geral eram leais ao estado romano, apesar
das dificuldades sob as quais trabalhavam, e muitos líderes da igreja de
Antioquia não estavam satisfeitos com a posição de Paulo. Em 268 d.C.,
os cristãos convocaram um concilio, e Paulo foi deposto por heresia.
Talvez ele fosse mesmo herege, contudo, a natureza obscura dos pro-
cedimentos, combinada com as óbvias implicações políticas, nos leva
a duvidar se heresia foi o verdadeiro motivo da deposição. É possível
também que houvesse na igreja muitos romanos leais ao Império que
desejavam distância de Zenóbia, e a verdade é que depois de a rainha
ter sido derrotada, Antioquia se mostrou muito tolerante com a igreja.
Nessa época, Paulo de Samósata tinha fugido ou morrido, pois não
se ouve mais nada sobre ele. No entanto, é razoável concluir que o
motivo real de Zenóbia se agradar de Paulo como possível governador
de Antioquia foi o fato de ele comandar uma base de apoio bastante
expressiva. Tendo Paulo a seu lado, Zenóbia contaria com o suporte
de um número suficiente de habitantes para manter Antioquia em suas
garras. Se esse foi o caso, temos aqui uma evidência, embora tênue,
de que a igreja era a força social dominante na cidade naquela época.
Um modo mais objetivo de analisar esse fenômeno é baseado na
descoberta de papiros no Egito. Esses papiros vieram de áreas rurais;
de outra forma, não teriam sobrevivido. Também nesse caso, o ano 250
d.C. representa um divisor de águas. Antes desse ano, papiros cristãos
eram raros, mas, depois sua frequência aumentou de modo extraordi-
nário. Considerando que no mundo antigo a maioria da população não
era alfabetizada, é difícil associar essa descoberta com a propagação do
evangelho às classes mais pobres da sociedade e à zona rural, porém é
inegável o aumento substancial de cristãos sem estudo formal na se-
gunda metade do século 3. A igreja se tornou uma organização social
de um jeito nunca visto; à medida que sua influência aumentava, mais
atraente ela se tornava aos não cristãos. Algo na igreja estava dando
certo, e aos poucos uma sociedade inteira foi transformada. Quando
foi considerada lícita, a igreja já estava tão bem estabelecida que não
poderia ser erradicada. Incapaz de derrotar os cristãos, o império se
uniu a eles, e teve início uma nova fase na história da igreja.
A linguagem usada no culto público é outro indicador do alcance
social mais abrangente da igreja a partir de 250 d.C. Até por volta de
200 d.C. a maioria dos cristãos falava grego, mesmo que fosse como
segunda língua. Mas, começavam a surgir manuscritos em outros
idiomas, especialmente latim. Quando Irineu, que falava grego, foi a
Lyon, em 178 d.C., ele ministrou ali em seu idioma materno, suposta-
mente porque a igreja, que veio de fora, ainda usava o grego. Contudo,
o latim já era usado na África do Norte, onde se tornou dominante
até o fim do século. Roma, que em muitos aspectos ocupava os dois
mundos linguísticos, tinha elementos do grego e do latim pelo menos
até meados do século 3, época em que Hipólito escrevia em grego, e
seu contemporâneo Novaciano escrevia em latim. No entanto, logo
depois, a liturgia romana foi latinizada, e em pouco tempo o grego foi
eliminado. O que hoje chamamos de indigenização havia se estabele-
cido — um sinal inequívoco de que a igreja estava fincando raízes em
nível social mais profundo que anteriormente.
Fenômeno parecido foi observado ao leste do Mediterrâneo. Des-
de a época de Alexandre, o Grande, o grego era o idioma comercial
do lugar, e continuou sendo. Mas, no século 3, começaram a aparecer
escritos cristãos em copta, a língua nativa do Egito, e em siríaco. O uso
do grego não foi descontinuado da mesma maneira que no ocidente,
entretanto o surgimento de uma igreja poliglota comprova o mesmo
fenômeno de indigenização crescente. E certo que havia limites a esse
processo; ninguém pensou em traduzir a Bíblia para idiomas como o
gaulês, o basco, ou berbere (no ocidente), ou licônio, ilírico ou trácio
(no leste). Mesmo assim, no decorrer de seus esforços evangelísticos
no século 3, a igreja se tornou multdlíngue como nunca havia sido — a
promessa do Pentecostes se tornava realidade.
Geograficamente falando, evidências arqueológicas confirmam
que no século 3 a igreja se espalhou pelos quatro cantos do Império
Romano. Quase no fim do período do Novo Testamento, essa disse-
minação existia apenas esporadicamente - na Palestina, por exemplo, e
também na Ásia Menor e Galácia. Contudo, ainda não se encontravam
igrejas em todas as cidades do império; grandes áreas do Ocidente, em
particular, permaneciam intocadas. Mas, depois de 150 d.C, a situação
mudou. Soldados do exército romano e comerciantes convertidos
anunciavam o evangelho por onde passavam, e fundavam igrejas ao
longo do caminho. Na época em que a igreja foi legalizada, havia pelo
menos três bispos na Britânia, província romana; isso significa que
houve ali um grande esforço evangelístico bem antes de 313, embora
não se saiba de onde veio e quando aconteceu. O mesmo foi verdade
em todos os lugares, de modo que no início do século 4 praticamente
todas as cidades romanas importantes tinham uma igreja, ainda que a
porcentagem da população que se juntou a ela fosse bem pequena em
muitos lugares.

O BATISMO DE FOGO

Não sabemos muito sobre a propagação do evangelho pelo mundo


romano antes de a igreja ser legalizada. A pregação pública como a
encontrada no Novo Testamento era ilegal e provavelmente rara, mas,
talvez acontecesse em lugares remotos. O boca a boca deve ter sido
um fator importante, mas, por sua natureza, é impossível rastreá-lo ou
documentá-lo. Na antiguidade, a vida pessoal era mais exposta do que
hoje em dia, e quando alguém da vizinhança se tornava cristão, a notícia
da conversão se espalhava rapidamente. Mas, é difícil saber o efeito que
isso causava em terceiros. O que se sabe é que uma das formas mais
eficientes de evangelização era o testemunho público dos cristãos, o que
nos séculos de perseguição significava dar a vida por amor a Cristo e ao
evangelho. O termo grego para “testemunha” é íimárúr‘\ palavra que
fala por si. Como Tertuüano disse: “O sangue dos mártires é a semente
da igreja”; sua observação se mostrou verdadeira pela relevância que o
martírio teve na autocompreensão do cristão.16
No mundo antigo, morrer pela fé era acontecimento raro. Guerras e
assassinatos políticos eram comuns, e muitas vezes pessoas importantes
sofreram as consequências. O filósofo grego Sêneca (4 a.C? — 65 d.C.),
por exemplo, cujas opiniões como estoico eram parecidas com a de
muitos cristãos, foi forçado pelo imperador Nero a cometer suicídio,
não por sua filosofia, mas, porque estava muito próximo do trono im-
perial, e o imperador paranoico achava que o filósofo era uma ameaça
à sua posição.17 Um século antes, o famoso estadista e filósofo Cícero
(106 - 43 a.C.) também foi condenado e assassinado não por motivos
ideológicos, mas políticos. O exemplo principal de alguém morto por
fanáticos anti-intelectuais é Sócrates, que em 399 a.C. foi obrigado a
beber cicuta porque, supostamente, corrompeu os jovens de Atenas e
negou os deuses da cidade. Entretanto a reação do povo foi tão violenta
e duradoura que nada parecido jamais se repetiu. Os romanos deixavam
os filósofos em paz desde que não se metessem em política, e o mesmo
valia para os líderes religiosos.
Jesus não foi morto por causa de seus ensinos teológicos, mas
porque Pôncio Pilatos achou que os ensinos ameaçavam a paz. Pilatos
não temia os ensinos de Cristo, e sabia que pelas leis romanas Jesus
era totalmente inocente, porém também achou que a liderança judaica
salivava por seu sangue, e que certamente haveria tumulto se não con-
seguissem o que desejavam.18
Jesus sabia, claro, que veio ao mundo para morrer, e preparou
os discípulos para essa hora. Sua morte teve um propósito teológico
necessário à realização de sua missão, pois sem o derramamento de
seu sangue não haveria perdão de pecados. Nesse sentido, sua morte
foi um acontecimento único e não poderia ser imitado nem repetido
por ninguém. Porém, ao mesmo tempo, Jesus ensinou aos discípulos

16 Tertuliano,Apologeticum, 50.13.

17 Para saber a visão favorável de Tertuliano sobre Sêneca, leia seu De anima 20.1.
18 Mateus 27.15-26.
1KJ/

que eles teriam de carregar a própria cruz, se desejassem segui-lo de


verdade. Ser discípulo de Cristo não era fácil, e o Senhor previu que
alguns deles, pelo menos, teriam morte semelhante à sua. Jesus lhes disse
que havia sofrido um batismo de fogo que eles não compreenderíam
enquanto usufruíssem de sua presença, mas, em breve, a realidade iria
acertá-los em cheio.19 Seguir a Cristo até o fim significava entregar a
vida por ele, mesmo antes de ela ser tirada à força. O apóstolo Paulo
explicou o assunto muito bem quando disse aos gálatas que ele havia
sido crucificado com Cristo, e certamente esperava que essa fosse uma
experiência comum a todos os cristãos.20
Aqueles que morreram e nasceram de novo espiritualmente estavam
mais bem preparados para o sofrimento físico e a morte, pois sabiam
que essas coisas não afetariam seu destino eterno, a não ser apressar
o usufruto pleno de suas bênçãos.21 Dessa perspectiva, talvez a espe-
ra da morte valesse a pena, embora a igreja nunca tenha incentivado
ninguém a se oferecer como sacrifício. Os cristãos deveríam viver aqui
na terra de maneira plena, mas, estarem prontos a entregar a vida se
necessário, e não cortejar o próprio martírio pelo valor do martírio
em si. Nesse caso, buscar a morte se revelou inútil, pois em breve o
martírio chegou à igreja. O primeiro caso está registrado em Atos dos
Apóstolos. O diácono Estêvão foi preso por anunciar o evangelho e
condenado à morte por blasfêmia, a mesma acusação que os sumos
sacerdotes fizeram contra Jesus.22 O martírio de Estêvão é narrado
detalhadamente, mas, foi um caso excepcional — e ilegal. A liderança
judaica nunca promoveu massacre de cristãos, embora os sacerdotes
do templo desejassem ardorosamente acabar com eles.
Paulo de Tarso foi um dos espectadores do apedrejamento de Es-
têvão.23 Saulo se ofereceu para perseguir os cristãos e acabar com eles,
e mais tarde se autoacusou de ter perseguido a igreja, mas, fracassou
de modo retumbante e não conseguiu nada. Mesmo assim, Saulo (ou

19 Lucas 12.49-53.
20 Gálatas 2.19,20.
21 Filipenses 1.21-23

22 Atos 6.8—7.60

23 Atos 7.58.
Paulo, como costumamos chamá-lo) tinha mais consciência do perigo
que seus oponentes representavam, e parece que a morte estava sem-
pre a rondá-lo.24 Acredita-se que Paulo e Pedro foram martirizados
por causa da fé, embora não se saiba quando e onde isso aconteceu.
Provavelmente foi em Roma, depois do grande incêndio de 64 d.C.,
pelo qual Nero culpou os cristãos. A acusação era fátua, claro, como a
população reconheceu, mas, quando os cristãos ficaram sob suspeita, as
autoridades tiveram dificuldade em mudar o curso dos acontecimentos.
Não se sabe a duração da primeira perseguição ou até onde ela se
estendeu, contudo, os cristãos não tiveram mais sossego. No entanto,
a morte não era o único castigo imposto pelas autoridades. João foi
exilado na ilha de Patmos, mas, sobreviveu à experiência, até onde
sabemos.25 Não havia diretrizes ou procedimentos no trato dado aos
cristãos, um problema que gerou incerteza e aumentou a possibilidade
de sofrerem arbitrariamente. Em 111 d.C., na Bitínia, os cristãos são
denunciados às autoridades, que não sabiam como puni-los. Plínio, o
Jovem, governador da província naquele ano, escreveu ao imperador
Trajano sobre o problema, todavia sua maior preocupação era o que
fazer com as denúncias, muitas delas anônimas. Nunca lhe ocorreu, tam-
pouco ao imperador, que ser cristão não era crime; os dois concordaram
que era e nem questionaram a decisão. Plínio pressupôs que existiam leis
contra o cristianismo e apenas queria saber como aplicá-las. Trajano o
aconselhou a ignorar denúncias anônimas, pois eram indignas dos altos
padrões da justiça romana, contudo, não se aprofundou no assunto.
Essa situação curiosa continuou por mais dois séculos. Apologis-
tas cristãos enfatizavam seguidamente que eles não eram culpados de
nada e que persegui-los era um ato irracional. No entanto, embora o
argumento deles fosse incontestável, isso não impediu o governo de
perseguir seus alvos. Mas, mesmo que o cristianismo fosse conside-
rado ilegal, seria um erro afirmar que a perseguição praticada contra
ele era constante ou universal. Houve longos períodos em que quase
nada foi feito para eliminá-lo, e algumas áreas do império foram bem
pouco atingidas. As autoridades romanas não tinham meios de aplicar
24 2Coríntios 11.23-27.
25 Apocalipse 1.9.
as leis como os países de hoje têm, e geralmente tinham coisas mais
importantes a fazer. Contudo, a ameaça de perseguição era uma som-
bra constante, e se acontecesse um desastre natural que exigisse uma
vítima para aplacar a ira dos deuses, os cristãos eram bodes expiatórios
convenientes. Todavia, estudiosos contemporâneos concordam que
o retrato tradicional que mostra cristãos sendo atirados aos leões no
Coliseu é inexato. Não existe evidência nenhuma disso ter acontecido;
a lenda é totalmente baseada em uma frase memorável de Tertuliano,
segundo quem toda vez que algo dava errado o povo gritava: “Cristãos
aos leões”.26
Apesar de as lendas serem exageradas, ataques intermitentes e lo-
calizados aos cristãos eram sempre um perigo, e de tempos em tempos
o estado procurava lidar com o problema de uma vez por todas. Duas
perseguições maiúsculas, uma sob o comando do imperador Décio, em
251 d.C., e outra sob o comando de Diocleciano, em 303-5, se destacam
como especialmente significativas, e a segunda provocou uma crise que
levou o cristianismo a ser considerado legítimo.
A perseguição liderada por Décio aconteceu depois de um período
relativamente longo de paz e foi ocasionada pela percepção gradativa
de que os cristãos estavam em todos os lugares. Alguém que sofreu
nessa época foi o notável teólogo Orígenes (185P-254), espancado com
tamanha selvageria que nunca se recuperou dos ferimentos. Cipriano de
Cartago (200P-258) foi decapitado alguns anos mais tarde, na segunda
onda de perseguições, contudo, os detalhes da brutalidade são obscu-
ros. É nítido, porém, que membros da igreja instruídos e proeminentes
foram perseguidos de um modo nunca visto por quase um século, o
que inevitavelmente agravou uma situação que já era dolorosa.
No entanto, foi a grande perseguição liderada por Diocleciano que
provocou a verdadeira crise. Diocleciano foi um imperador vigoroso
e reformador, determinado a endireitar o império de uma vez por to-
das. Livrar-se da ameaça cristã era parte integrante de seu plano. Para
Diocleciano, somente uma perseguição total e completa iria dar algum
resultado, então, ele iniciou o que hoje chamaríamos de reinado de
terror. Os cristãos eram detidos e obrigados a entregar livros e outros
26 Tertuliano, Apologeticum 40.2.
objetos de valor que possuíssem. Quem obedecesse era considerado
traditor (entregador), palavra que chegou a nós como “traidor”. A
grande perseguição foi devastadora, porque ao redor do ano 300 um
grande número de pessoas importantes era cristão. Muitas tentaram
fugir, e algumas renunciaram à fé para salvar a pele. Contudo, outras
enfrentaram corajosamente a morte, e provavelmente essa perseguição
que durou dois anos gerou mais mártires do que todas as outras juntas.
A perseguição do imperador Diocleciano findou em 305, quando
ele abdicou do cargo, e ficou claro que havia fracassado. Um número
grande demais de cristãos havia sobrevivido aos ataques, e aqueles
que foram mortos se transformaram em heróis da noite para o dia.
De alguma forma, o império teria de fazer as pazes com a igreja, o que
aconteceu ao longo dos próximos dez anos. Diocleciano viveu para ver
o acontecimento — ele morreu em 316 — mas, como estava afastado
do trono, não pôde fazer nada a respeito. A cruz de Cristo finalmente
triunfou sobre a águia de Roma.
A igreja acreditava que os mártires foram diretamente para o céu
quando morreram. Talvez houvesse dúvidas quanto ao estado espiritual
daqueles que pecaram depois de serem batizados, contudo, o batismo
de fogo liquidou qualquer dívida que tivessem com Deus. Os mártires
rodeavam o trono de Jesus, o Cordeiro que foi morto, e imploravam
justiça para o povo de Deus na terra.27 De todas as ligações que a igreja
tinha entre este mundo e o futuro, as súplicas dos mártires no céu era
uma das mais poderosas. Em geral, a crença era que os mártires car-
regariam por toda a eternidade as feridas de seus sofrimentos como
distintivos de honra. O sofrimento era motivo de glória — desde que
fosse indesejado. Quem buscasse viver para Cristo seria perseguido,
acreditava-se, então, era agindo da maneira correta que o povo de Deus
cumpriría a ordem do Senhor de pegar a sua cruz e segui-lo. Assim,
o martírio se tornou garantia de santificação, para a qual havia prova
concreta. As boas obras talvez fossem realizadas em oculto, porém
os mártires eram vistos por todos, e recebiam a honra apropriada. Os
sepulcros dos mártires se tornaram centros de peregrinação, e muitos
acreditavam que suas relíquias tinham poder de cura.
27 Apocalipse 6.9-11.
Tal superstição nunca foi aprovada por nenhum concilio eclesiásti-
co, mas, era amplamente difundida, especialmente na África do Norte,
e mostrou ser de difícil trato quando a perseguição oficial à igreja aca-
bou. Muitos especulavam se as perseguições findaram porque a igreja
perdeu sua ousadia e acomodou-se ao mundo. Em Cartago, uma cisão
irrompeu na igreja quando uma mulher chamada Lucila pediu que o
bispo abençoasse os ossos de um mártir enquanto ela recebia a ceia.
Como o bispo recusou o pedido, Lucila e seus partidários o acusaram
de colaborar com os inimigos da igreja que haviam perseguido bem
recentemente. Parece que Lucila era uma encrenqueira inveterada.
Quando o referido bispo, chamado Ceciliano, foi eleito em 305, Lu-
cila e seus amigos o repeliram porque ele foi consagrado por Félix de
Aptunga, que havia entregado as Escrituras às autoridades durante a
grande perseguição. O grupo, então, procedeu à eleição de um bispo
rival, um certo Majorino, e envidaram todos os esforços para que ele
fosse aceito no lugar de Ceciliano. Buscaram até mesmo a ajuda do
imperador Constantino, logo após ele ter legalizado o cristianismo em
313, mas, não conseguiram convencê-lo do mérito de seu caso.
Em consequência, Lucila e seus amigos se apartaram da igreja
tradicional, acusando-a de se acomodar ao mundo e de impureza, e
organizaram congregações de cristãos verdadeiros. Ficaram conheci-
dos como donatistas, em homenagem a Donato, que foi um de seus
primeiros líderes, e tudo indica que foi um bispo de qualidades e caráter
excepcionais. O donatismo tinha um apelo emocional fortíssimo ao
povo que havia sofrido perseguição e sentiu-se traído pela igreja, que
aos seus olhos, estava mais interessada em conquistar favores de seus
antigos perseguidores do que em imitar aqueles que entregaram suas
vidas por amor a Cristo. Seu poder se esvaiu apenas um século mais
tarde, e mesmo assim, sobreviveu enquanto existia uma igreja cristã na
África do Norte.28
Enquanto a perseguição durou, o martírio era um lembrete pode-
roso de que a igreja estava em guerra com as forças que governavam
este mundo. Sua missão nunca contemplaria integração na sociedade
28 Sobre o Donatismo, veja W. H. C. Frend, The Donatist Church: A Movement of Protest
in Roman North Africa (Oxford: Oxford University Press, 1952).
uz

em geral, pois, de certa maneira, sempre teria de ser confrontadora.


Os cristãos não viveríam felizes ao lado dos pagãos, pois sua visão do
mundo era incompatível. O paganismo era irracional e imoral, e para os
cristãos ele teria de ser reprimido sempre que possível. Seria excessivo
afirmar que quando a igreja alcançou o poder no mundo romano, ela
perseguiu os pagãos da mesma forma que havia sido perseguida, embora
tenham acontecido casos atrozes pelos assim chamados cristãos; mais
notável foi o assassinato terrível da filósofa pagã Hipátia de Alexandria
em 415 d.C. É verdade que os cristãos se empenharam em persuadir
pagãos a se converterem ao cristianismo, mas, em geral, não chegaram
a matá-los, pelo menos porque os não convertidos iriam para o inferno,
o que os cristãos não desejavam. Embora seja difícil compreendermos
hoje, o objetivo da igreja era conquistar outros para Cristo para que
fossem salvos. Se, às vezes, os meios usados infringiam o livre arbítrio
das vítimas, deveríam ser comparados às campanhas contemporâneas
de vacinação e coisas assim, que são forçadas àqueles que as recusam.
O consenso dizia que a salvação era boa para quem a recebia, soubesse
ou não disso, e essa era a política da igreja. Se a igreja parecesse tirana,
era por uma boa causa, atitude que persistiu durante séculos em alguns
lugares, mas, parece estar extinta agora.

O DESENVOLVIMENTO DO EPISCOPADO

Enquanto a igreja se espalhava pelo mundo romano e encarava


novos desafios, uma de suas maiores preocupações era a necessidade de
preservar a unidade. Isso nunca foi fácil, como provam as desavenças
que eclodiram no período do Novo Testamento. Se os novos conver-
tidos se opuseram ao ensino do apóstolo Paulo, a quem conheciam e
ouviram pessoalmente, quanto mais fácil não seria àqueles que não co-
nheciam os apóstolos repudiarem seus ensinos? Quem tinha autoridade
para decidir o que era certo e impor a decisão à igreja como um todo?
Foi nesse clima e contexto que surgiu o famoso episcopado mo-
nárquico. Em geral, as igrejas locais continuavam a ter uma forma de
liderança coletiva, mas, com o tempo, o bispo (episkopos), que era eleito
llô

pela congregação para serviço vitalício29, passou a ter cada ve2 mais
autoridade. Nos tempos modernos, dá-se muita ênfase, especialmente
na tradição católica, ao que chamamos de sucessão apostólica, que é
supostamente transmitida de uma geração à outra pela imposição de
mãos. Contudo, para a igreja primitiva, o que importava não era quem
impunha as mãos em quem, mas, se o bispo eleito preenchia os critérios
rigorosos estabelecidos para o oficio nas Epístolas Pastorais. Alguém
podería ser consagrado pelas pessoas certas e ainda ser inaceitável caso
sua vida e doutrina ficassem abaixo do exigido, e nessas circunstâncias
os primeiros cristãos não hesitavam em depor o líder. Já no Didache nós
lemos: “Constituam para vocês bispos e diáconos que sejam dignos
do Senhor; homens que sejam humildes, não avarentos, sinceros e
experientes, porque também lhes servem como profetas e mestres”.30
Clemente de Roma, ao escrever por volta de 95 d.C., expressou
idéias parecidas. Clemente tinha ciência da competição para o cargo
episcopal e advertiu a igreja para que não rescindisse uma nomeação a
não ser que houvesse uma boa razão para isso.31
Alguns anos mais tarde, Inácio de Antioquia orientou as igrejas
a se submeterem aos bispos e presbíteros, embora fizesse questão de
afirmar que não podería lhes dizer o que fazer, pois não tinha a mesma
autoridade de um apóstolo.32 Apesar de se ver ocupando uma posição
subordinada à dos apóstolos, Inácio não hesitou em comparar o rela-
cionamento de um bispo com seus presbíteros ao de Cristo (ou Deus)
com seus apóstolos.33 Na opinião de Inácio, existia uma harmonia divina
entre o céu e a terra que se refletia na hierarquia de autoridade origi-
nária do Pai ao Filho, e deste para os bispos e presbíteros da igreja na
terra. O bispo tinha duas responsabilidades principais: primeiramente,
foi chamado a anunciar a Palavra de Deus na igreja, e Inácio advertiu
29 Como é provável que ele já fosse alguém de idade quando eleito, e as pessoas em
geral não viviam tanto quanto hoje, possivelmente um bispo não servia por muito
tempo.
*Didache 15.
31 / Clemente 44. A mesma advertência foi feita por Cipriano de Cartago, ao escrever

150 anos mais tarde. Veja Epistulae 40.2; 43.1.


32 Inácio de Antioquia, AdRomanos 4.3; AdEphesios 3; Ad Trallianos 3.

33 Inácio de Antioquia, Ad Magnésios 6; Ad Smymaeos 8.


aos cristãos que quem não aceitasse seus ensinos seria considerado
herege;34 depois, ele deveria presidir a Eucaristia, que seria inválida de
outra maneira.35
A palavra dessas primeiras testemunhas é confirmada por Irineu,
Clemente de Alexandria (morto em 215?) e Tertuliano, e todos estes
escreveram duas gerações mais tarde. Cipriano, bispo de Cartago uma
geração depois de Tertuliano, desenvolveu a filosofia da igreja mais
detalhadamente e é hoje considerado uma das fontes mais importantes
para o que se tornou conhecido como ensino “católico” sobre o ofício
episcopal. Cipriano foi a primeira pessoa a fazer referência específica à
declaração de Jesus a Pedro em Mateus 16.18 como fundamento para
a organização episcopal da igreja no futuro. Em suas palavras:
A partir dali [Mateus 16.18], a ordenação dos bispos e a organização
da igreja tiveram continuidade, de modo que a igreja está alicerçada
nos bispos, e cada decisão da igreja é controlada por esses mesmos
governantes. Como esse sistema se baseia na lei de Deus, espanto-me
de que algumas pessoas ousem me escrever como se representassem
a igreja. A igreja está alicerçada no bispo, no clero e em todos os que
se firmam na fé.36
Cipriano reconheceu que a autoridade do bispo derivava da incum-
bência que Cristo deu a Pedro, porém não a relacionava ao bispo de
Roma, cujas reivindicações de primazia sobre a igreja por ser sucessor
de Pedro ele negava categoricamente.37 Cipriano estava sempre disposto
a escrever aos romanos insistindo para que resolvessem os assuntos
daquela igreja, e fez isso em várias ocasiões.38 Chegou a escrever ao Papa
Lúcio I (r. 253-54) parabenizando-o por seu retorno do banimento e
não lhe mostrou o menor sinal de deferência como sucessor de Pedro
e cabeça da igreja.39 Pelo contrário, como essa correspondência mostra,
geralmente eram os romanos que escreviam a Cipriano pedindo con­
34 Inácio de Antioquia, AdPhiladelphianos 1-2.
35 Inácio de Antioquia, As Philadelphianos 4; Ad Smyrnaeos 8.
36 Cipriano de Cartago, Epistulae 26.1.

37 Cipriano de Cartago, Epistulae 70.3.

38 Cipriano de Cartago, Epistulae 3; 14; 22,23; 28; 40; 43; 47; 51.

39 Cipriano de Cartago, Epistulae 57.


selhos, algo inimaginável nos séculos posteriores. Quase no fim de sua
vida, Cipriano presidiu um concilio de oitenta e sete bispos africanos,
que rejeitaram a condenação do Papa Estêvão I relativa a um decreto
deles sobre batismo administrado por hereges e reafirmaram seus di-
reitos de decidir o assunto por conta própria.40
Quanto ao status e à jurisdição dos bispos, Cipriano estava ciente
de que as igrejas tinham padrões diferentes de disciplina, mas, insistia
em que cada bispo era livre para agir como quisesse em tais assuntos,
desde que mantivesse a unidade da fé e do culto com outros bispos e
suas igrejas.41 O bispo era o foco de união da igreja, chegando ao ponto
de ser identificado com ela.42 Sua função havia sido estabelecida por
Cristo na forma de apostolado, enquanto os outros cargos ministeriais
eram criações humanas e, portanto, inferiores em origem e autoridade.43
O que emerge disso tudo é que Cipriano imaginou uma igreja na
qual os bispos das congregações locais eram tanto autônomos em suas
jurisdições como também ligados uns aos outros por um colegiado
alicerçado na adesão comum e responsabilidade às práticas e ao ensino
apostólicos. Os problemas, à medida que surgiam, seriam tratados por
concílios formados por bispos. No Norte da África, esse padrão estava
bem enraizado quando Cipriano faleceu, e há evidência (da deposição de
Paulo de Samósata, por exemplo) que procedimento similar era usado
em outros lugares. A perseguição contínua à igreja impossibilitou o
estabelecimento de concílios regulares, mas, a estrutura manteve-se no
lugar, e quando finalmente a igreja foi legalizada, os concílios puderam
se tornar públicos (e se tornaram). O Primeiro Concilio de Niceia, em
325, que foi para a história da igreja marca de uma nova época, só foi
possível porque seu alicerce foi lançado durante os séculos de perse-
guição que acabara de chegar ao fim.

40 Decree of the Seventh Council of Cartage Sob a Presidência de Cipriano, em TheAnte-Nicene


Fathers, A. Roberts etal, (Orgs.), (Grand Rapids: Eerdmans, 1951-53), 5:565. Estê-
vão morreu no ano anterior, assim a condenação foi póstuma, mas, tal liberdade
de rejeitar a autoridade papal se tornaria inconcebível mais tarde.
41 Cipriano de Cartago, Epistulae 51.21; 71.3.

42 Cipriano de Cartago, Epistulae 54.14; 68.8.

43 Cipriano de Cartago, Epistulae 64.3.


UMA DOUTRINA DA IGREJA EM EVOLUÇÃO

Foi durante os séculos de perseguição que a igreja alcançou um nível


de autoconhecimento que nos possibilita afirmar que a eclesiologia era
um aspecto definitivo da doutrina cristã. Declarações formais sobre
eclesiologia tiveram de esperar até mais tarde, porém o mesmo acon-
teceu com outras doutrinas; as importantes questões da Trindade e da
Cristologia não foram resolvidas até a igreja ficar livre para funcionar
como entidade legalizada, e sua autodefinição era parte integral disso.
Em sua primeira fase de desenvolvimento, a doutrina da igreja
estava intimamente ligada à função do bispo, como acabamos de ver,
porque o bispo representava Cristo, que era o pastor da igreja univer-
sal.44 O corpo era constituído pela cabeça, o alicerce de sua existência.
Isso significava que a igreja existia somente onde o ensino de Cristo
era mantido em sua pureza original.45 Irineu era inflexível nesse ponto,
insistindo que igrejas fiéis preservavam a verdade recebida em comum
com suas irmãs espalhadas pelo mundo:
A igreja recebeu essa pregação e essa fé. Embora esteja espalhada
pelo mundo, ela preserva isso cuidadosamente, como se vivesse em
uma única casa. Crê nessas doutrinas como se tivesse uma só alma e
um só coração. Proclama essas verdades, ensina-as e transmite-as em
perfeita harmonia, como se tivesse apenas uma boca.46
Irineu sabia muito bem que existiam falsos mestres na igreja, porém
acreditava que poderíam ser descobertos por suas falsas doutrinas e
maneira impura de viver; dois erros que, em sua opinião, geralmente
andavam juntos.47 O dom do ensino foi dado pelo Espírito Santo, e
onde o Espírito estava presente, a igreja também seria encontrada.48 Essa
opinião era compartilhada por seu contemporâneo oriental Clemente
de Alexandria e talvez fosse considerada padrão por volta do ano 200

44 Martyrdom of Polycarp
19.
45 Teófilo de Antioquia, AdAutolycum 2.14.
46 Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 1.10.1.

47 Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 4.26.2—4.

48 Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 3.24.1.


d.C.49 Tertuliano foi igualmente insistente na primazia da doutrina e
da unidade da tradição apostólica ao redor do mundo.50 Tertuliano foi
mais crítico dos ministros da igreja do que a maioria de seus contem-
porâneos, mas, somente por achar que eram infiéis aos ensinos que
deveríam professar, e não por discordar do que ensinavam.51 Orígenes,
que escreveu um pouco mais tarde, tinha a mesma opinião.52 Entretanto,
como aconteceu com o delineamento do cargo de bispo, se deu também
com a doutrina da igreja em geral, pois foi Cipriano quem cristalizou
o ensino dos patriarcas para as futuras gerações, e é a ele, mais do que
a qualquer pessoa da antiguidade, que os teólogos de hoje se referem
de imediato quando discutem a doutrina da igreja.
Cipriano concordou com seus predecessores quanto à importância
de manter a pureza da doutrina apostólica, e acreditava que os bispos
e presbíteros foram especialmente escolhidos e preparados para essa
tarefa. No entanto, ele também reconheceu que havia elementos im-
puros na igreja, e que como Jesus havia dito, o trigo e o joio cresceríam
juntos até a época da colheita.53 No seu entender, essa era uma verda-
de que os cristãos teriam de aceitar e não era desculpa para ninguém
abandonar a igreja. Aqueles que iniciaram suas próprias comunidades
de adoração por achar que a igreja era imperfeita estavam iludindo a
si mesmos, levados pela falsa ideia de que seriam corrompidos pelos
pecados de terceiros se continuassem a congregar com eles.54 Desvios
tinham de ser entendidos pelo que eram e não definiam a igreja como
um todo. O perdão dos pecados por meio do batismo e arrependimento
era um dom divino à igreja, que o administrava em nome de Cristo e
de acordo com suas promessas.55 Isso explicava a impossibilidade de
haver salvação fora da igreja.56
49 Clemente de Alexandria, Paedagogus 6.
50 Tertuliano, Depraescriptione haereticorum 20—21.
51 Em De exhortation castitatis 7, Tertuliano argumenta que como os clérigos são es-

colhidos de entre o laicato, não são necessários à constituição da igreja, que pode
existir muito bem sem eles.
52 Orígenes, Contra Celsum 6.45.

53 Cipriano de Cartago, Epistulae 50.3. Veja Mateus 13.24—29.

54 Cipriano de Cartago, Epistulae 51.25—27.

55 Cipriano de Cartago, Epistulae 72.10.

56 Cipriano de Cartago, Epistulae 72.21.


118

Provavelmente, nenhuma declaração sobre a igreja provocou mais


controvérsia do que essa. Cipriano estava falando sobre batismo, que
havia sido confiado à igreja como um sinal da fé salvadora revelada em
Cristo. Ele não estava afirmando que sua eficácia dependia da condição
espiritual do ministro. Desde que fosse administrado de acordo com
o ensino apostólico, o batismo era válido, e aqueles batizados de ma-
neira correta iriam naturalmente buscar comunhão com a igreja que
confessasse a fé apostólica. Cipriano não tinha de decidir que igreja
era essa, pois em sua época havia somente um corpo que poderia de
forma razoável receber esse nome. Séculos mais tarde, sua declaração
seria usada para afirmar que os protestantes não estavam salvos por-
que haviam deixado a Igreja Católica Romana, situação que nem havia
passado pela cabeça de Cipriano. Se ele estivesse vivo no século 16, é
bem provável que teria se juntado a Martinho Lutero contra o papa. E
impossível afirmar o que ele teria pensado de Lutero, contudo, temos
evidência suficiente de que Cipriano estaria preparado para rejeitar as
acusações papais que foram atiradas contra Lutero.
Cipriano também fez uma distinção interessante entre batismo nas
águas e o recebimento do Espírito Santo. Em sua opinião, o Espírito só
pode ser dado a quem já existe, assim como Deus soprou seu Espírito
em Adão depois de formá-lo do pó da terra.57 O batismo da igreja era
o equivalente do ato divino da criação porque prepara aquele que o
recebe para a vinda do Espírito Santo. Portanto, somente depois do
batismo o Espírito habitaria na pessoa, pois antes disso ela não estava
viva de um modo que tornasse possível a operação do Espírito. Para o
pensamento contemporâneo, isso abre a possibilidade de o batismo nas
águas ser administrado sem o acompanhamento da obra do Espírito
Santo, mas, parece que essa ideia não ocorreu a Cipriano, exceto talvez
nos casos em que a água era administrada por um herético. No que lhe
dizia respeito, a água preparava o caminho para o Espírito, que veio
cumprir sua promessa com a plenitude que só pode ser alcançada pela
união com Cristo. Foi por isso, e nesse contexto, que ele exclamou sua
famosa frase: “Quem pode ter Deus como seu Pai antes de ter a igreja
57 Cipriano de Cartago, Epistulae 73.7. Veja Gênesis 2.7.
como sua mãe? A igreja veio primeiro e preparou o caminho, mas, foi
Deus quem deu o crescimento, como Paulo explicou aos coríntios”.58
Com isso nós temos a compreensão mais abrangente e profunda
da igreja que foi documentada antes de ela ser legalizada no século 4.
A igreja de Cipriano estava longe de ser perfeita, mas, ainda não tinha
sido engolida pelo influxo do grande número de crentes nominais, nem
havia sentido a pressão do estado para que modificasse sua doutrina ou
suas práticas. Ela continuava sendo um corpo que se opunha ao mundo
que a cercava, de maneira consciente e quase sempre aberta; um corpo
que não oferecia nada a seus membros a não ser sangue, trabalho, suor
e lágrimas — e, claro, salvação eterna. Nessa situação, os cristãos tinham
plena confiança de que, em geral, as igrejas locais às quais pertenciam
eram reflexos fiéis do que os apóstolos almejaram que elas fossem.
Somente no estágio seguinte da vida da igreja essa confiança foi seria-
mente testada, e é para essa história que nos voltaremos agora.

58 Veja 1 Coríntios 3.6,7.


tilt :'!‫י י״‬ :■ ·■ υζζη ■ο‫!׳‬, ..
4

A igreja império

A Igreja e o Estado
A legalização do cristianismo em fevereiro de 313 foi um aconte-
cimento que teria implicações profundas para a igreja e para a história
mundial. Do ponto de vista teológico, não havia motivo para isso fazer
qualquer diferença à igreja. Ela não adquiriu repentinamente uma nova
doutrina, nem teve de alterar sua estrutura ou formato de culto. As
mesmas crenças, os mesmos bispos e as mesmas práticas de devoção
continuaram como antes. As mudanças foram de natureza totalmente
diferente, entretanto, seu efeito cumulativo foi transformador. Quando
essas mudanças se enraizaram, a imagem pública do cristianismo ficou
irreconhecível, e gostemos ou não, as consequências da transformação
nos acompanham até hoje.
No curto prazo, a legalização da igreja terminou com a hostilidade
entre o governo romano e seus cidadãos cristãos, para a qual nunca
houve justificativa verdadeira, e deu à igreja a chance de respirar livre-
mente e estender suas asas. É importante ter em mente que os eventos
de 313 não transformaram o cristianismo em religião estatal. Isso não
aconteceu até 28 de fevereiro de 380, quando o imperador Teodósio
I (r. 378—95) emitiu um decreto nesse sentido. Só então as seitas e os
templos pagãos foram oficialmente reprimidos, incluindo os Jogos
Olímpicos. No ínterim, duas gerações de cristãos coexistiram com ou-
tros sistemas religiosos. A família imperial costumava pertencer à igreja
e favorecê-la sempre que possível, contudo, a maioria dos imperadores
era simpática aos arianos, e isso os colocou em rota de colisão com os
líderes ortodoxos da igreja e resultou em uma série de confrontos que
Constantino provavelmente nunca previu. De maneira alguma podemos
afirmar que o estado tomou conta da igreja e dobrou-a às suas vontades,
embora muitos hoje em dia erroneamente pensem assim.
Para entender o que aconteceu é necessário voltar ao fim do século
3, quando o Império Romano experimentou uma crise semipermanen-
te causada pela falta de uma linhagem reconhecida de sucessores ao
trono imperial. Cada vez que um imperador morria ou era removido
do trono, surgiam vários candidatos rivais, e algo parecido com uma
guerra civil acontecia. As organizações estatais eram robustas o bas-
tante para sobreviver aos motins, contudo, o tempo era de insegurança
crescente, e não foi por acaso que a igreja progrediu a passos largos
nessa época.1 Quando Diocleciano se tornou imperador em 285, ele
decidiu que doravante havería quatro imperadores: dois mais velhos
e dois mais novos. Os mais velhos ficariam um na parte oriental e o
outro na ocidental, sendo que cada um teria a assistência de um dos
imperadores mais jovens; o imperador mais velho teria precedência
sobre o mais novo. Depois de vinte anos, os imperadores mais velhos
se aposentariam e seriam sucedidos pelos mais jovens, que, por sua vez,
nomeariam outros para os lugares dos dois que saíram.
Em 1 de maio de 305, Diocleciano se demitiu, conforme o combi-
nado, e impeliu sua contraparte ocidental, Maximiano, a fazer o mesmo.
Maximiano foi sucedido por Constâncio, seu antigo aliado, que coman-
dava as tropas romanas na Britânia. Infelizmente, Constâncio morreu
depois de apenas um ano no cargo, e o exército estacionado em York
prontamente elegeu seu filho Constantino para sucedê-lo. Esse ato
feriu o sistema estabelecido por Diocleciano, embora compreensível
diante das circunstâncias, e a eleição irregular de Constantino não foi
reconhecida pelos outros imperadores. Para complicar ainda mais a
situação, Magêncio, filho de Maximiano, reivindicou o trono do pai, e
Constantino teve de lutar contra ele para assegurar sua posição. Durante *

Veja E. R. Dodds, Pagan and Christian in an Age of Anxiety (Cambridge: Cambridge


University Press, 1968).
os próximos anos ele cercou Roma gradativamente para capturar a ci-
dade e ser bem-sucedido em sua determinação de governar o império.
Em 28 de outubro de 312, o exército de Constantino estava acam-
pado fora da capital, e ele viu um sinal no céu noturno. O símbolo
cristão chi-rho lhe apareceu, com esta frase logo abaixo: “Neste sim-
bolo tu conquistarás”. Como era supersticioso, Constantino ordenou
imediatamente que o símbolo chi-rho fosse pintado nos escudos de
seus soldados, e no dia seguinte ele venceu a Batalha da Ponte Mílvia,
que lhe abriu as portas da capital. E impossível afirmar o quanto dessa
história lendária é verdadeiro, mas, certamente Constantino ficou tão
impressionado com sua vitória que em fevereiro seguinte publicou um
edital de seu quartel em Milão, garantindo o reconhecimento legal da
igreja. O decreto só poderia ser aplicado nas áreas que ele governava,
que naquela época abrangia toda a parte ocidental do império. No Leste,
as reações foram de aceitação a rejeição total, e o Édito de Milão não
passou a valer completamente até Constantino subjugar o império todo,
o que aconteceu por volta de 324.
Atitudes em relação a Constantino variaram muito através dos sé-
culos. Na igreja do Oriente ele era (e ainda é) venerado como santo que
se igualava aos apóstolos, e durante muito tempo o cristianismo do Oci-
dente era da mesma opinião. Contudo por volta do século passado essa
reputação foi substituída por algo bem diferente, quando a igreja entrou
no que alguns chamaram de era “pós-constantiniana”. Ou seja, a aliança
entre trono e altar que apoiou a civilização europeia por séculos cedeu
lugar a um período de confronto, em que a igreja agora se encontra no
lado derrotado da mudança social. Muitos teólogos contemporâneos se
desagradaram profundamente do que lhes pareceu cumplicidade entre
igreja e estado e alegraram-se nessa reviravolta, considerando toda a
experiência “constantiniana” um erro gigantesco. Ignorando o fato de
que Constantino não tornou o cristianismo uma religião do estado,
esses teólogos culparam o imperador de ter corrompido o evangelho
ao estabelecer uma conexão política que nunca deveria ter existido. O
resultado é que hoje Constantino é mal visto nos círculos acadêmicos,
e, em geral, suas realizações não são valorizadas.2
2 Veja A. Kee, Constantine versus Christ The Triumph of Ideology (Londres: SCM, 1982).
Será possível chegar a uma opinião equilibrada nesse assunto tão
controverso? Antes de tudo, é óbvio que a fé de Constantino era ru-
dimentar e inadequada em muitos aspectos. Sem dúvida nenhuma, ele
era mais supersticioso do que religioso e não tinha muito tempo para
requintes teológicos. Constantino não se batizou até quase à beira da
morte, talvez para não dar a impressão de estar favorecendo a igreja
indevidamente ou colocando-se debaixo de sua disciplina. Em 321
d.C., ele decretou que o domingo seria feriado público, mas, o decreto
foi uma espada de dois gumes. Ele permitia aos cristãos adorarem a
Deus no dia de sua escolha, mas, também honrava o deus sol, uma
divindade pagã muito popular naquela época. As pessoas escolhiam a
quem adorar, e ninguém era discriminado por suas crenças não cristãs.
A igreja era livre para reger seus negócios por um sistema de
sínodos e concíüos que havia se desenvolvido durante os séculos de
perseguição e agora podia funcionar abertamente. Com o intuito de
promover a união da igreja no mundo inteiro, os bispos de determinada
região se reuniam periodicamente e definiam a política a ser aplicada
às questões controvertidas que estavam causando problemas, no mo-
mento. Por motivos óbvios, os bispos tiveram de se manter discretos
até 313, portanto a maioria dos sínodos (ou concílios) se reunia apenas
nas províncias, iguais aos que Cipriano presidiu na África do Norte.
No começo, os termos “concilio” e “sínodo” eram sinônimos e inter-
cambiáveis; um synodos em grego era um conálium em latim, e essa é a
posição oficial até hoje. Contudo, o uso popular, pelo menos no mundo
de fala inglesa, geralmente considera que os sínodos são mais locais e
os concílios mais universais. Assim, por exemplo, a Igreja Anglicana é
governada por seu Sínodo Geral, ao passo que o Concilio Mundial de
Igrejas inclui membros de igrejas do mundo inteiro.3 Na prática, as duas
palavras não são mais completamente sinônimas, contudo, as distinções
contemporâneas são arbitrárias no que diz respeito à igreja primitiva e
devem ser ignoradas nos debates sobre sua história.
Como já vimos, o primeiro sínodo/concílio se reuniu em Jerusa-
lém para decidir como judeus e gentios conviveríam na mesma igre­
3 Nesse contexto, em vez de synodos, o grego usa a palavra symboulion para se referir
a “concilio”.
ja. Suas decisões estão registradas em Atos 15, mas, não sabemos a
abrangência de sua aplicação. Parece que a controvérsia toda se dissipou
rapidamente, e que depois de alguns anos, as decisões tomadas pelo
sínodo eram desnecessárias. Mesmo assim, estabeleceu-se um prece-
dente para que as controvérsias fossem resolvidas por procedimentos
sinodais, e se um problema semelhante surgisse, a solução estava à mão.
Em geral, a função principal dos primeiros sínodos era estabelecer
uma disciplina comum a todas as igrejas. Para nós, isso pode ter sido
desnecessário, desde que houvesse união em torno de princípios bási-
cos, contudo, nossa disposição progressista de ser flexível em questões
supérfluas é um luxo ao qual os primeiros cristãos não podiam se dar
tão facilmente. Em um mundo onde a alfabetização era privilégio da
minoria, onde poucos possuíam uma Bíblia, e onde viajar era menos
comum do que hoje, as diferenças de práticas, por menor que nos
pareçam, podiam resultar na suspeita de que por trás delas havia dife-
renças de doutrina - e, em consequência, heresia. Por exemplo, para
nós não faz nenhuma diferença se o pão usado na Ceia do Senhor é
fermentado ou não, e também não nos perturbamos com o fato de
que os dois tipos eram usados na igreja primitiva. Entretanto, naquela
época, essa diferença tinha significado especial para muitos porque os
judeus continuavam a usar pão não fermentado na refeição da Páscoa.
Alguns cristãos achavam que, então, deveríam fazer o mesmo, pois Jesus
certamente usou esse tipo de pão na última Ceia, mas, outros achavam
que o uso de pão sem fermento era uma prática judaizante a ser evitada.
Da mesma forma, para alguns a Páscoa, festa da ressurreição de
Cristo, deveria ser celebrada no dia 14 de Nisan, de acordo com o ca-
lendário judaico, e outros argumentavam que ela deveria cair sempre
no domingo, porque foi nesse dia que Cristo ressuscitou. Aqui também
observamos tendências judaizantes e não judaizantes em ação. A con-
trovérsia sobre a Páscoa (que foi a primeira de muitas) foi resolvida no
Primeiro Concilio de Niceia a favor da celebração no domingo, embora
tenha sido decretado que deveria ser sempre depois da Páscoa judai-
ca.4 A controvérsia sobre o pão sem fermento (ávçmo) se arrastou por
4 Essa regra continua sendo observada no Oriente, mas, foi abandonada no Ocidente
já em 457.
séculos e não acabou de vez até 1439, quando uma decisão sensata foi
tomada: qualquer pão servia.
Os sínodos também eram convocados para julgar a situação e/
ou ortodoxia de um bispo em particular, como aconteceu com Paulo
de Samosata, e esperava-se que tomassem as medidas consideradas
necessárias às circunstâncias. Inevitavelmente, isso levou a decisões
doutrinárias, que supostamente estavam de acordo com a “regra de fé”
universal, embora nem sempre isso pudesse ser comprovado. A igreja
que não tivesse como impor suas decisões tinha de andar pela fé e pre-
sumir que suas palavras seriam respeitadas, e em geral, isso parece ter
funcionado. Seguramente, ao ser legitimada, a igreja emergiu não como
uma série de organizações locais competindo entre si, mas, como um
único corpo universal. Esse foi um êxito notável, dadas as dificuldades
de comunicação na antiguidade e a tendência natural de organizações
religiosas se dividirem por causa de suas diferenças em vez de chegarem
a um acordo. Isso nos leva a duvidar da crença comum entre estudiosos
de que a igreja do Novo Testamento era uma coligação desajeitada de
diferentes grupos que foram consolidados à força mais tarde.
Além de tal ideia ir contra a experiência comum, também não existia
força capaz de gerar o tipo de união cogitada pelos acadêmicos. Se o
sentimento de pertencer ao grupo não existisse na igreja, seria difícil
imaginar como o mundo cristão teria se mantido unido quando as
diferenças começaram a surgir. Concílios e sínodos talvez não fossem
universalmente populares, mas, suas decisões eram levadas a sério e
quase sempre obedecidas porque as pessoas eram convencidas de que
sua expressão de consenso era obra do Espírito Santo. Mais tarde, sur-
giram sínodos que tentaram anular a ortodoxia estabelecida, mas, foram
rapidamente identificados e excluídos como inválidos — por exemplo,
o famoso “latrocínio” de Efeso no ano 449 d.C., cuja “resolução” uni-
lateral sobre a controvérsia cristológica foi imediatamente repudiada.
Manter a ordem foi difícil, mas, não impossível, e frente às condições
com as quais tinham de trabalhar, a igreja primitiva foi extremamente
bem-sucedida em sua tarefa.
Quando Constantino legitimou a igreja, ele sabia que ela havia se
tornado uma instituição social poderosa e, claramente, desejava sua
colaboração. Mas, Constantino desconhecia as tensões que borbulha-
vam dentro da igreja. Ele mal havia publicado seu decreto de tolerân-
cia quando a igreja da África do Norte eclodiu no cisma donatista, e
Constantino se viu patrocinando um concilio da igreja do Ocidente
que se reuniu em 314, em Aries, numa tentativa de resolver a situação.5
Em breve, e ironicamente, soldados romanos estavam sendo enviados
a forçar os donatistas a aceitarem a posse católica das igrejas contesta-
das, algo que tanto os líderes da igreja quanto Constantino devem ter
achado curioso. Apenas alguns anos depois de sua legitimação a igreja
já estava usando o estado para cumprir sua disciplina.
No Leste, Constantino se deparou com um problema ainda mais
sério. Em 318, um presbítero alexandrino chamado Ário foi condenado
por anunciar que Cristo era uma criatura e não o Criador. Estudiosos
debatem a justiça dessa condenação, e não há como duvidar que o aria-
nismo era muito mais amplo e complexo do que qualquer coisa que o
próprio Ário imaginaria. Mas, mesmo que o rótulo fosse impreciso, o
fenômeno se tornou um desafio verdadeiro para a igreja.
O arianismo forçou a igreja a esclarecer suas doutrinas sobre a
pessoa e as naturezas de Cristo com muito mais precisão do que ante-
riormente. Muitas pessoas apresentaram soluções que se mostraram
inadequadas e foram rejeitadas. O que aconteceu a essas pessoas variou
conforme o caso, mas, em geral, foram depostas de qualquer cargo que
ocupavam na igreja (especialmente se eram bispos). Fora isso, raramente
eram perseguidas ou mortas; o próprio Ário teve uma vida longa, assim
como tantos outros. A imagem famosa de uma igreja triunfante que
reprimia com crueldade os dissidentes com a assistência do estado é
imprecisa, pelo menos nos séculos 4 e 5, e deve ser rejeitada.
Ao mesmo tempo, a legitimação da igreja teve implicações práticas
que não podiam ser ignoradas. Se havia divisão ente os cristãos, que
lado recebería o reconhecimento oficial do estado? O donatismo não
apresentava problemas nessa área porque rejeitava o estado e era rejei-
tado por ele. Contudo, a situação era mais complicada para o arianismo.
Alguns líderes arianos, ou “semiarianos”, eram íntimos dos imperado-
5 Arles era a capital de Gaul (hoje França). O concilio também procurou resolver
a questão da Páscoa, mas, não conseguiu.
res e usufruíam de seus favores, ao passo que defensores ferrenhos da
ortodoxia sofriam discriminação. O exemplo mais famoso disso foi o
caso de Atanásio, bispo de Alexandria de 328 a 373, que foi exilado não
menos que cinco vezes porque a política imperial ficou contra ele. Por
fim, Atanásio triunfou porque suas convicções teológicas eram mais
persuasivas que as de seus oponentes arianos, mas, não se pode afirmar
que sua vitória foi graças à intervenção do estado. Bem pelo contrário!
A complexidade da questão ariana foi revelada quase imediatamente
depois que Constantino conquistou o Oriente. Nessa época, o arianismo
estava causando tal dissensão na igreja que foi necessário convocar um
concilio para resolver a questão. Constantino agiu imediatamente e indi-
cou um de seus partidários, Osio de Córdoba (Espanha), para presidi-lo.
O concilio se reuniu em Niceia em 325 e tomou decisões que as futuras
gerações iriam considerar de extrema importância histórica. Contudo,
antes de os bispos chegarem a Niceia, alguns deles convocaram outro
concilio em Antioquia, que se reuniu uns seis meses antes e elaborou a
posição que defenderíam frente ao imperador. Fizeram isso por achar
que as decisões doutrinárias deveríam ser tomadas pelos bispos sem
nenhuma participação do estado. Constantino nem era batizado nes-
sa época, então, parecia bastante impróprio que ele patrocinasse um
concilio da igreja cujo propósito era resolver suas questões internas.
Apesar disso, o Primeiro Conselho de Niceia estabeleceu um pre-
cedente que duraria por séculos. O Concilio de Aries, em 314, se reuniu
com a permissão do imperador, mas, Niceia I foi convocado por ele.
Mais de mil anos depois, as igrejas orientais insistiriam em que todos os
concíüos da igreja deveríam ser convocados pelo imperador e que se ele
(ou seu representante) não estivesse presente, todas as decisões tomadas
seriam inválidas. O bispo de Roma nem foi mencionado; sua ausência
dos concílios de Aries e Niceia I foi uma questão de total indiferença.
Na época da Reforma, alguns protestantes adotaram esse ponto de vista
oriental como parte de sua oposição geral às reivindicações papais. O
Artigo 21 da Igreja Anglicana, por exemplo, que foi adotado em sua
forma atual em 1563, afirma claramente: “Os concílios gerais não se
reunirão sem o comando e decreto dos príncipes”. Somente depois
da secularização da Europa no decorrer da Revolução Francesa esse
princípio foi colocado em dúvida e abandonado, até porque não havia
mais príncipes (i.e, imperadores e reis) dispostos ou aptos a convocá-los.
Um sinal desse interesse imperial é visto no fato de que o Primeiro
Concilio de Niceia ficou conhecido na história como “ecumênico”,
palavra que hoje é normalmente traduzida como “universal”, mas,
cujo significado era um tanto diferente (e muito específico) no mundo
antigo. O oikoumene era o Império Romano, a extensão da civilização
como era conhecido pela população em geral.6 Portanto, um concilio
ecumênico era mais “imperial” do que “universal”, e suas decisões só se
tornavam leis com a aprovação do imperador. Em assuntos espirituais,
os bispos reivindicavam o direito de legislar pela igreja, e esperavam que
o estado obrigasse as pessoas a cumprir suas decisões. A interferência
imperial nas questões da igreja tem de ser entendida sob esse aspecto.
Obviamente, os imperadores desejavam que a igreja tomasse decisões
com as quais eles poderíam concordar, mas, a única maneira de conse-
guir isso era influenciando as eleições episcopais. Séculos depois, isso
resultaria em discussão aberta entre o imperador e o papa sobre quem
exercería o direito de indicar os bispos da igreja. Em teoria, a decisão
deveria ser da igreja, contudo, na prática, os imperadores (e outros go-
vernantes seculares) raramente tiveram de aguentar alguém de quem não
gostassem. Na época da Reforma, os governantes geralmente faziam
as nomeações episcopais, o que hoje ainda acontece em alguns países.7
No entanto, isso ainda pertencia a um futuro distante. Quando
o cristianismo se tornou a religião oficial, a igreja não se tornou um
departamento do estado, mas, continuou um poder independente, de
mérito próprio. Os bispos podiam se opor, e algumas vezes o fizeram,
à política imperial, chegando mesmo a convocar os imperadores a se
arrependerem de seus pecados. Por exemplo, em 388, Ambrósio de
Milão obrigou Teodósio I a fazer penitência por causa do massacre
ocorrido em Tessalônica, cometido por motivos políticos. Teodósio
6 A palavra é usada nesse sentido em Lucas 2.1.
7 A Dinamarca e a Noruega são exemplos claros disso. Também foi o caso da In-
glaterra até recentemente, e continua sendo na teoria. Na prática, a igreja nomeia
o candidato de sua escolha, e espera-se, mas não se exige, que o primeiro ministro
concorde, e houve casos em que a confirmação foi negada, provavelmente por
motivos políticos.
talvez tenha se arrependido de tornar a igreja uma religião do estado
oito anos antes, porém o impacto na opinião popular foi tamanho que
ele se dobrou à vontade de Ambrósio e estabeleceu um precedente que
seria admirado (e até seguido) durante séculos.
O reconhecimento da igreja pelo estado teve seu maior impacto na
condução de seus assuntos internos. Já há muito tempo a tendência era
agrupar as igrejas de acordo com as províncias, por ser mais convenien-
te, e o hábito se tornou diretriz oficial. Convencionou-se que as igrejas
locais com um bispo tinham um território chamado “diocese”, outro
empréstimo do vocabulário romano, mas, usado de modo diferente.
No império de Diocleciano, havia quatro dioceses, uma para cada um
dos quatro imperadores, e cada diocese tinha várias províncias. Na
igreja, era exatamente o contrário: cada província tinha vários episco-
pados e, portanto, várias dioceses. O vocabulário foi emprestado da
administração secular, mas, como o exemplo mostra, a igreja operava
de acordo com suas necessidades e pauta, adaptando o que estava à
mão de acordo com a situação.
O Primeiro Concilio de Niceia decidiu que para propósitos ofi-
ciais (i.e., disciplinares), os bispos e as igrejas das três maiores cidades
imperiais deveríam ter precedência sobre todas as outras. O privilégio
foi concedido a Roma, Alexandria e Antioquia nesta ordem, sendo
que Roma ficou responsável pelo Ocidente, Alexandria pelo Egito, e
Antioquia pelo Leste Europeu e Ásia. Foi uma divisão de trabalho que
fez sentido e podería ter dado muito certo, entretanto, antes que fosse
implementada adequadamente, Constantino (talvez involuntariamente)
tornou a decisão inoperável, e em 11 de maio de 330, escolheu Bizâncio,
cidade grega no estreito de Bósforo, como a futura capital do império.
Sua intenção era que a cidade se tornasse a Nova Roma, mas, desde o
início, todos a conheciam como Constantinopla, nome que deu lugar
a “Istambul” em 1928.8 No grande esquema de Constantino, Roma
reteria o prestígio da antiga capital, mas, o poder verdadeiro seria
transferido para o Ocidente. Mais tarde, quando um império ocidental

O nome turco contemporâneo é uma corruptela do grego eis tenpolin (na cidade),
porque em grego Constantinopla sempre foi conhecida simplesmente como “a
cidade”.
separado fosse restabelecido, os imperadores residiríam não em Roma,
mas, em Milão ou Ravena, onde estariam mais perto das fronteiras que
precisavam ser guardadas contra a sempre presente ameaça bárbara.
Politicamente falando, Roma declinou e tornou-se uma sombra do que
era, embora continuasse o centro espiritual do império, especialmente
no ocidente que falava latim.
A construção de Constantinopla trouxe um dilema para a igreja.
Antes de 330, Bizâncio não tinha seu próprio bispo, e dependia de
Heracleia, uma cidade vizinha. Obviamente essa situação não poderia
continuar, e em pouco tempo Constantinopla conseguiu um bispo e
uma estrutura eclesiástica. Mas, onde eles se encaixariam no grande
esquema das coisas? Naturalmente, o bispo da capital não poderia
ficar subordinado a Antioquia (de cuja jurisdição Constantinopla fazia
parte). Sendo a Nova Roma, a cidade merecia um lugar ao sol - como
ela mesma achava, imediatamente depois da Antiga Roma. Porém, fa-
lar era mais fácil do que fazer. Dar o segundo lugar a Constantinopla
significava rebaixar Alexandria, que era a principal cidade do mundo
grego da época. Também era uma ameaça em potencial a Roma, pois
se um dia o seu prestígio acabasse, sua igreja poderia ser rebaixada,
assim como sua posição secular havia sido.
Essa questão delicada foi tratada no Primeiro Concilio de Cons-
tantinopla, em 381, e a decisão foi que deveria haver uma ordem de
precedência que colocasse Roma em primeiro lugar, Constantinopla
em segundo, Alexandria em terceiro, Antioquia em quarto e Jerusalém
em quinto. Antes disso, Jerusalém, até então interiorana e atrasada, nem
mesmo estava na lista hierárquica, e sua aparição repentina reflete uma
mudança ideológica. Ao passo que a ordem de precedência do Concilio
de Niceia I levou em conta a importância secular das cidades envoi-
vidas, o Concilio de Constantinopla I tinha um viés espiritual. Roma
ficou em primeiro lugar não somente por ser a capital, mas, também
por ser o lugar onde Pedro foi martirizado. Isso naturalmente resultou
na inclusão de Jerusalém por ter sido o local da primeira igreja, que foi
liderada por Pedro. Essa pentarquia de bispados, cujos líderes eram
conhecidas como “patriarcas”, se impôs de forma paulatina à igreja
do Oriente, especialmente depois do Concilio de Trullo, em 691-92,
porém levou mais tempo para se popularizar no Ocidente, e Roma não
a ratificou formalmente até 1215.
A essa altura, claro, a situação que provocou a pentarquia original
estava irreconhecível por causa de tantas mudanças. Alexandria, Antio-
quia e Jerusalém caíram sob o domínio muçulmano entre 632 e 641, e
à parte de um breve período durante as Cruzadas, permaneceram em
território muçulmano desde então. Sobraram apenas Roma e Cons-
tantinopla, a primeira agarrada à sua antiga posição e continuando a
desenvolver suas reivindicações petrinas para firmar sua primazia; a
segunda insistia em que o mundo cristão buscasse liderança em Cons-
tantinopla, porque o patriarca sênior havia ultrapassado os limites de
sua autoridade e caído em discrepância.
Com o passar do tempo, nota-se que o patriarca romano dá cada vez
menos atenção aos outros quatro. Roma era a única cidade importante
do Ocidente, e à medida que o Ocidente se desapegava do império, a
cidade passou a ser vista ali como o centro natural da igreja toda. Como
resultado, o termo “papa” tornou-se restrito ao bispo romano. Ele
também é chamado de “pontífice”, termo derivado depontifex maximus
(chefe dos construtores de pontes), um título que originalmente perten-
cia a um oficial pagão da Roma antiga e mais tarde foi assumido pelo
imperador para designar sua posição como chefe da religião tradicional.
Quando Roma foi cristianizada, os imperadores abandonaram o título,
para depois vê-lo transferido para o bispo da cidade.
Esse fato curioso lembra que a autoridade dos imperadores ro-
manos era fruto de tradições antigas não relacionadas ao cristianismo.
Quando a nova religião foi adotada, as práticas incompatíveis com ela
foram abandonadas, porém o estado continuava a operar como de
costume, como a expressão da vontade “democrática” do povo, ou
como dizia o título oficial, o “senado e os cidadãos de Roma”. Com o
advento dos reinos bárbaros no Ocidente e sua conversão progressiva
ao cristianismo, novas formas de legitimidade tiveram de ser criadas.
Em tempos pagãos, seus reis tinham sido oficiais religiosos, contudo, no
mundo cristão eles tiveram de abrir mão de seu papel quase sacerdotal.
Em compensação, foram consagrados em uma cerimônia de coroação,
que os legitimou aos olhos da igreja e deu-lhes o direito de governar
“pela graça de Deus”. Esse método continuou através dos séculos e
ainda continua no Reino Unido, pelo menos superficialmente. Quando,
em 1936, o rei Eduardo VIII decidiu se casar com uma mulher divor-
ciada duas vezes, a igreja se recusou a coroá-lo por estar infringindo
as leis matrimoniais, e ele foi forçado a abdicar; esse é um exemplo de
como, mesmo na era contemporânea, a aprovação da igreja continua
a exercer papel importante na escolha de um monarca.
A cerimônia de coroação como instrumento de legitimidade de um
monarca alcançou seu ápice em 25 de dezembro de 800, quando o papa
Leão III coroou Carlos Magno imperador de seu recentemente inventa-
do Santo Império Romano. Na teoria, esse império era uma revitalização
do antigo império do Ocidente, que havia desaparecido com a deposição
do último imperador em 476, porém, dessa vez, ele expressava a união
da igreja e do estado de um modo que indicava claramente que as regras
eram estabelecidas pela igreja. O Santo Império Romano durou até
1806, e embora nunca tenha sido tão poderoso quanto foi estabelecido
para ser, sua importância não deve ser menosprezada. Durante toda
a Idade Média, imperadores e papas competiam pela supremacia no
Ocidente Cristão, ao passo que os governantes seculares — os reis da
Inglaterra e da França, por exemplo — observavam. Mesmo no século
16, foi ao imperador Carlos V que Martinho Lutero teve de apelar seu
caso; e o domínio imperial do papado, que Henrique VIII da Inglaterra
considerava ilegítimo, foi um dos fatores que o impeliu a separar seu
reino e sua igreja da autoridade romana.
Na verdade, a coroação de Carlos Magno consagrou a divisão da
Europa que estava fermentando havia quatro séculos, desde que Te-
odósio I, em seu leito de morte, dividiu o Império Romano, em 395.
Depois do ano 800, o que existia não eram simplesmente duas metades
de um único império, mas, duas nações diferentes que reivindicavam o
legado de Roma. O império oriental, destituído de suas províncias do
Oriente Médio e da África (que haviam caído nas mãos dos árabes mu-
çulmanos), era um estado altamente centralizado, em que o imperador
e o chefe da igreja (o patriarca de Constantinopla) moravam na mesma
cidade e governavam o império juntos. Imperadores e patriarcas eram
frequentemente depostos com a conivência do outro, e nenhum deles
podia reivindicar domínio absoluto. Já no Ocidente, o imperador e o
papa nunca moravam na mesma cidade. O império era descentralizado,
e até mesmo dividido, entre os herdeiros de Carlos Magno, e o papa-
do tinha de se virar sozinho. Isso se provou desastroso, e por mais de
duzentos anos papas eram eleitos e depostos, às vezes, com frequência
alarmante, pelo populacho de Roma. Era escandaloso, mas, parece que
ninguém sabia como resolver o problema até que um grupo de monges
reformadores, sediados no monastério borgonhês de Cluny, decidiram
dar um jeito na situação. Os monges foram mais bem-sucedidos do
que poderíam imaginar, e em suas mãos o papado se transformou na
instituição europeia mais poderosa da época.

A ORIGEM DO PAPADO

O crescimento e desenvolvimento da diocese romana foi um dos


acontecimentos mais importantes - alguns diriam 0 mais importante -
na história da igreja. Embora nos primeiros cinco séculos tivesse papel
significativo, mas, de forma nenhuma dominante, o bispo de Roma veio
a ocupar uma posição tão poderosa que a membresia na igreja passou a
ser definida pelo fato de uma pessoa ou congregação local estar ou não
em comunhão com ele. Para os católicos romanos, que hoje somam
cerca de dois terços dos cristãos professos, essa definição de membresia
continua a mesma, embora nos últimos anos a atitude para com cris-
tãos de outras vertentes tenha se abrandado e haja mais disposição em
cooperar com eles em muitas situações. Para outros, tanto nas igrejas
históricas orientais quanto no Ocidente protestante, o papado continua
sendo a referência contra a qual se posicionam. Há muitas coisas que
desaprovam na igreja católica, mas, a exigência de submissão ao papa e
à sua autoridade lidera a lista das atitudes não aceitáveis. Não importa
o que mais os separe, bispos da Igreja Ortodoxa Russa e pregadores
americanos fundamentalistas têm isto em comum: para eles o papa é
o anticristo. Como uma instituição que supostamente foi criada para
expressar e defender a unidade da igreja através do mundo conseguiu
se tornar um instrumento de divisão e até mesmo ódio?
Quando o último imperador romano ocidental foi deposto, em
476, o império não se dissolveu oficialmente. Ao contrário, as regalias
imperiais foram transferidas para Constantinopla, e, segundo diz a lenda,
as províncias ocidentais se uniram outra vez ao oriente. Essa crença
era popular entre as multidões de pessoas, que eram romanas leais e
(na maioria) membros da mesma igreja que os orientais. Entretanto, a
realidade mostrava que suas terras eram governadas por tribos bárba-
ras, que não eram romanas em nenhum sentido. Em sua maioria, os
bárbaros eram pagãos ou arianos, que se converteram àquela forma de
cristianismo no século 4, graças ao trabalho missionário de um de seus
membros, um godo chamado Wulfila (Ulfilas), que chegou a traduzir a
Bíblia para o idioma deles. O arianismo era importante para os bárba-
ros, não por causa de sua teologia, que poucos deles entenderíam, mas,
porque como arianos podiam manter sua identidade e viver separados
em um mar de romanos possivelmente inimigos.
Quando o Império Oriental tentou reconquistar o Ocidente no
século 6, ele teve o apoio da igreja romana; os reinos arianos da Itália
e da África do Norte foram imediatamente derrubados. As tropas im-
periais também invadiram a Espanha, todavia só conseguiram ocupar
uma pequena área do sudeste. Mesmo assim, a pressão era contra os
governantes visigodos arianos do restante da península, que em 589 se
submeteram a Roma e renunciaram ao arianismo de uma vez por todas.
Mais longe do coração do império, o reino dos francos na Gália
foi pagão até que o seu rei, Clóvis, foi batizado na igreja romana em
496, o primeiro rei bárbaro importante a se submeter ao papa. Clovis
obrigou seus soldados a fazer o mesmo, e a França se tornou “a filha
mais velha da igreja”, uma posição que seus reis usufruiríam durante
os próximos mil e trezentos anos. Nas Ilhas Britânicas, os anglo-saxões
pagãos haviam empurrado os bretões para os confins ocidentais, onde
mantiveram o cristianismo que receberam de Roma nos dias do império.
Um deles, Patrick, foi ser missionário na Irlanda; embora não fosse o
primeiro cristão a chegar ao país, a conversão da Irlanda foi atribuída
ao seu trabalho.9
A igreja celta, como essa amálgama de cristãos britânicos e irlan-
deses é geralmente conhecida, tornou-se objeto de uma visão muito
romantizada, com toda uma mini-indústria dedicada à famosa espiri­
9 Veja T. M. Charles-Edwards, Early Christian Ireland (Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2000), para detalhes.
tualidade celta. Na verdade, não era muito diferente do que existia no
restante do mundo cristão daquela época, e suas características especiais,
tais como eram, resultaram de atrasos de desenvolvimento devidos à
crescente falta de comunicação com outros países. O elemento mais
significativo disso foi que os celtas continuaram a celebrar a Páscoa de
acordo com as regras estabelecidas no Primeiro Concilio de Niceia em
325, embora elas tenham sido modificadas por Roma em 457.
Ninguém se preocupou com isso até que uma missão romana
foi enviada aos anglo-saxões em 597, com instruções de estabelecer
relacionamento com as igrejas celtas. A essa altura, as diferenças entre
eles se tornaram uma barreira à cooperação, e os celtas não estavam
dispostos a se submeter aos romanos. Ambos os lados então competi-
ram na evangelização dos anglo-saxões, uma tarefa que foi praticamente
concluída em 664, quando um sínodo se reuniu em Whitby para decidir
que forma de cristianismo a nova igreja adotaria. A decisão favoreceu
Roma, e depois disso as igrejas celtas abriram mão gradualmente de
sua independência, um processo que se completou em 716.10 11
No entanto, bem antes disso a igreja romana passava por uma
grande transformação. Durante a época em que a Itália estava sob o
poder bárbaro (ariano), em Constantinopla os imperadores mantinham
o bispo de Roma como seu representante no Ocidente. Em 519, o impe-
rador Justino I concedeu-lhe jurisdição sobre toda a igreja do Ocidente,
contudo, essa atitude pró-ocidental foi bem mais longe. Numa época
em que o Egito e a Síria eram cada vez mais influenciados pelos assim
chamados oponentes monofisitas do Concilio de Calcedônia (451),
que por insistência de Roma canonizou a forma cristológica de “uma
pessoa divina em duas naturezas”, Constantinopla tentou impor essa
decisão às suas províncias orientais, uma decisão que as alienou e não
foi resolvida até as conquistas muçulmanas do século seguinte, quando
as áreas monofisitas saíram do controle de Constantinopla.11
10 O relato clássico, e nossa fonte principal de detalhes, é Bede, Ecclesiastical History of the
English people, tradução de Leo Sherley-Price (Londres: Penguin 1955). Veja também
J. Blair, The Chunh in Anglo-Saxon Society (Oxford: Oxford University Press, 2005).
11 Os monofisitas — ou “miafisitas”, como são hoje chamados — afirmavam que o
Cristo encarnado tinha apenas uma natureza, na qual o elemento humano havia
se unido ao divino.
Depois que a Itália foi reconquistada, Roma voltou ao governo dire-
to do imperador e recebeu menos deferência das autoridades imperiais.
Em 595, o patriarca de Constantinopla adotou o título “ecumênico”;
o papa Gregorio I (liderou em 590-604) protestou, insistindo que so-
mente ele e a igreja tinham qualquer direito a tal designação, mas, seu
protesto foi ignorado. Em geral, Gregário é considerado o último dos
antigos pais da igreja e o primeiro dos papas medievais, e existe alguma
verdade nessa afirmação. Ele tentou impor uma disciplina monástica
a seu clero, mas, fracassou porque a resistência era forte demais. No
entanto, Gregário tinha ideal de evangelismo, como sua famosa missão
à Inglaterra nos faz lembrar, e foi durante seu tempo que a igreja co-
meçou a se expandir de maneira significativa para além das fronteiras
do antigo mundo romano.12
Durante os cem anos que sucederam a morte de Gregário, os
destinos de Roma seguiram os do Império Bizantino, como o mundo
romano oriental podería agora ser chamado com toda propriedade.
As controvérsias teológicas que continuavam a dominar a política
do Império repercutiram no Ocidente, mas, pareciam cada vez mais
estranhas ali. Um papa chegou a ser preso e deportado para a Crimeia
porque aparentemente concordava com uma heresia sobre a qual nem
ele nem ninguém em Roma tinha muito conhecimento. As duas partes
do mundo cristão estavam se tornando estranhas uma à outra, fato que
foi confirmado depois do Concilio de Trullo (691-92), quando as igrejas
orientais definiram as regras sob as quais seriam governadas. Algumas
delas — como a obrigação de usar pão levedado na Santa Ceia — eram
conflitantes com a prática romana, deliberadamente ou não, e Roma
nunca ratificou as decisões do sínodo. Roma continuou a seguir suas
próprias regras e a criar outras independentemente do Oriente, que
com o passar do tempo lhe deu um sentido bem diferente.13
12 Veja J. Richards, The Popes and the Papacy in the Early Middle Ages, 476—752 (Londres:
Roudedge & Kegan Paul, 1979); R. B. Eno, The Rise of the Papacy (Wilmington,
DE: Michael Glazier, 1990).
13 A importância do Concilio de Trullo para a compreensão das futuras diferenças

entre as igrejas do Oriente e do Ocidente não é valorizada o suficiente. Veja G.


Nedungatt e M. Featherstone (Orgs.), The Counál in Trullo Revisited (Roma: Ponti-
ficio Istituto Orientale, 1995).
No século 8, o imperador bizantino Leão III (r. 717—41) provocou
uma discussão sobre o uso de ícones no culto, que continuou de uma
forma ou outra até 843.14 Leão III desejava erradicá-los, contudo, para
os defensores da ortodoxia, abolir as imagens de Cristo seria negar a
encarnação. Roma se mostrou solidária com os “ortodoxos” nessa ques-
tão, mas, só porque o poder efetivo do imperador não mais se estendia
até aquela região ocidental. Em 751, as últimas tropas bizantinas no
norte da Itália foram vencidas pelos lombardos pagãos, e de repente
Roma ficou exposta ao domínio deles. Em desespero, o papa procurou
o rei dos francos, Pepino (Pippin) I, que, por acaso, tinha acabado de
depor o último governante legítimo dos povos francos e instalar-se no
lugar dele. Pepino e o papa precisavam um do outro, e chegaram a um
acordo. Em recompensa por ter aniquilado os lombardos, o papa reco-
nheceu o governo de Pepino; em 754, o papa recebeu titularidade legal
da área à volta de Roma. Essa foi a origem do Estado Papal, que mais
tarde se estendeu através da Itália central e permaneceu nas mãos dos
sucessivos papas até que a Itália inteira foi unificada à força em 1870.
Assim que o papado fez aliança com os povos francos, a criação
do Santo Império Romano foi simplesmente questão de tempo. Nesse
império, e de modo mais geral através da Europa Ocidental, a igreja
passou a ocupar um lugar especial. Era uma sociedade dentro de outra
sociedade, operando de acordo com suas próprias leis e mantendo
direitos jurisdicionais sobre seu clero e outras “pessoas religiosas”,
tais como monges e freiras. Ao mesmo tempo, muitos bispos também
se tornaram governantes seculares do que se tornou uma colcha de
retalhos de estados semi-independentes que deviam lealdade nomi-
nal crescente ao imperador. O imperador era eleito pelos príncipes
mais importantes, que incluíam três arcebispados — Colônia, Mainz e
Trier - e era então coroado pelo papa (se ele estivesse em Roma) ou
por seu representante. Ao final da Idade Média, o título de imperador
havia se tornado praticamente hereditário na Casa de Habsburgo, cujo

14 Para saber mais sobre a controvérsia iconoclástica, veja E. J. Martin,^! History of


the Iconoclastic Controversy (Londres: SPCK, 1930); L. Brubaker, Inventing Byzantine
Iconoclasm (Bristol: Bristol Classical Press, 2012).
quartel-general era em Viena e governava a maior parte do sudeste da
Alemanha. Quando o império foi dissolvido por Napoleão, o impe-
rador austríaco continuou a usufruir os privilégios de seus ancestrais,
incluindo o direito de vetar eleições papais, o que não foi abolido até
1904. Assim, é apropriado dizer que a criação desse império “santo” foi
um acontecimento de importância duradoura nas questões europeias.
No início, porém, esse resultado estava longe de ser garantido. O
Santo Império Romano original desabou com o desmoronamento da
dinastia que o criou. Ele foi depois reconstituído em uma base mais
estreita, com o que é hoje a França formando um reino independente à
margem ocidental. Mesmo assim, era de longe o maior estado europeu
e continuou a reivindicar o legado da Roma antiga. Os imperadores
interferiam nas eleições papais, e durante um tempo a impressão era
que um acordo semelhante ao obtido no Império Bizantino também
prevalecería no Ocidente.
Não foi o que aconteceu. Em vez disso, os monges de Cluny de-
terminaram que o papado fosse reformado e passasse a ser o centro da
igreja ocidental inteira. Para tanto, era preciso se apoderar do controle
das eleições papais e tirá-las completamente de mãos seculares. Com
uma série de lances políticos habilidosos, os monges conseguiram que
seu candidato fosse eleito papa em 1049 como Leão IX. O papa come-
çou imediatamente a impor o prestígio de seu cargo na igreja como um
todo, incluindo Constantinopla. Em 1054, ele enviou uma delegação
a essa cidade, exigindo a submissão do patriarca, o que (naturalmente)
foi recusado. Os emissários excomungaram o patriarca imediatamente
e foram igualmente excomungados por sua vez. Quando retornaram à
Itália, ficaram sabendo que Leão IX havia morrido, assim as excomu-
nhões foram oficialmente anuladas, porém mais tarde, o incidente foi
considerado o momento da separação definitiva de Oriente e Ocidente.
Após um curto período de confusão, quando parecia que as re-
formas cluníacas falhariam, elas foram reinstaladas com todo vigor,
e em 1059, um colegiado de clero auxiliador foi criado para garantir
que futuras eleições papais fossem conduzidas por eles - em secreto.
Esse clero eram os cardeais, assim chamados por serem as dobradiças
(cardines) sobre as quais a porta de São Pedro se movia. Até hoje, o Co-
140

legiado de Cardeais continua a eleger o papa, o que lhe confere papel


principal na Igreja Católica Romana. A partir dali, o relacionamento
entre igreja e estado começou a mudar de verdade. Quando William,
duque da Normandia, pediu que o papa aprovasse seu plano de invadir
a Inglaterra em 1066, conseguiu o que desejava tendo que permitir que
as novas reformas papais acontecessem em seus domínios. De forma
mais intensa, o papado entrou em conflito com o Santo Imperador
Romano por causa do mesmo princípio. O papa saiu vencedor em 1077,
quando o imperador foi obrigado a fazer uma retratação humilhante
em Canossa, no norte da Itália. Na verdade, como eventos futuros
mostrariam, a vitória papal não foi tão impressionante quanto pareceu
na época, contudo, não ficou dúvida nenhuma de que os papas agora
eram atores independentes no palco político e que sua voz e prestígio
tinham peso considerável.15
Poucos anos mais tarde, ficou bem clara a importância do papado.
Em 1071, tropas bizantinas na Ásia Menor sofreram uma derrota catas-
trófica nas mãos de invasores turcos muçulmanos. Em poucos anos, os
invasores alcançaram os portões de Constantinopla; o Império Oriental
estava a ponto de se desintegrar. O imperador Aleixo I (r. 1081—1118)
fez ao papa um apelo desesperado de socorro, pois achava que ninguém
melhor que ele convencería o Ocidente a ajudá-lo. Urbano II aceitou
o desafio e em 1095 apregoou a Primeira Cruzada — uma guerra santa
destinada a rechaçar os infiéis e tomar de volta para a cristandade as
terras perdidas.
Infelizmente, para Aleixo, poucos soldados da Europa Ociden-
tal se interessaram em libertar Constantinopla. O que os atraiu foi a
possibilidade de reconquistar a Terra Santa, que estava nas mãos dos
árabes desde 638. Todavia, os expedicionários das cruzadas chegaram a
Constantinopla e começaram por sitiar a antiga cidade de Niceia, onde
um sultão turco havia se estabelecido. Temendo a ira dos ocidentais, o
sultão se entregou secretamente aos bizantinos, que o deixaram partir
ileso. Para os expedicionários isso foi traição, e o relacionamento entre
eles e os bizantinos se deteriorou rapidamente.
15 VejaW Ullmann, Short History of the Papacy in the Middle Ages (Londres: Methuen,
1972).
Quando capturaram Antioquia, os expedicionários se recusaram a
entregá-la a Aleixo, e formaram ali seu próprio estado, indicando um
bispo ocidental como patriarca. A nomeação equivaleu a um cisma,
pois os expedicionários se opuseram aos direitos legais do incumbente
grego. Esse padrão continuou enquanto as cruzadas marchavam para
o sul. Até 1100, haviam estabelecido vários estados pequenos na Síria
e Palestina sob o suposto governo de um rei que estabeleceram em
Jerusalém. As igrejas do Oriente da qual fazia parte a maioria da po-
pulação local foram tomadas e assumidas por bispos e clero ocidentais.
Diferenças teológicas à parte, a brecha cultural entre Ocidente e Oriente
ficou visível a todos os olhos, e provavelmente mais do que qualquer
outra coisa assegurou que as duas grandes igrejas ficassem alienadas
uma da outra.16
No entanto, houve numerosas tentativas de remendar a divisão, e
talvez fossem bem-sucedidas se não tivesse havido a intromissão da po-
lítica. As vitórias das cruzadas foram possíveis por causa da fragilidade
temporária do mundo islâmico, mas, em 1187, os muçulmanos recon-
quistaram Jerusalém, e os estados formados pelas cruzadas ficaram à
beira da extinção. Isso resultou em mais tentativas de lhes assegurar
reforço, das quais a Quarta Cruzada foi a mais desastrosa.
Frustrados com incapacidade de levantar fundos suficientes para que
os venezianos as levassem à Palestina, as cruzadas se voltaram contra
Constantinopla. O trono bizantino estava em disputa naquela época,
e um dos reivindicadores prometeu recompensá-las muito bem caso o
ajudassem a tomar a cidade. O acordo foi aceito, mas, quando o novo
imperador assumiu o trono, descobriu que o tesouro público estava vazio.
Os expedicionários se revoltaram e saquearam Constantinopla inteira -
o maior crime que um grupo de cristãos já infligiu a outro. O Império
Bizantino dissolveu-se temporariamente em vários miniestados, alguns
governados por gregos e outros por expedicionários das cruzadas que
decidiram continuar no Oriente. Constantinopla se tornou a capital do
império latino, que durou até os gregos retomarem a cidade em 1261.

16 Leia sobre as Cruzadas em S. Runciman, A History of the Crusades, 3 vols. (Cam-


bridge: Cambridge University Press, 1951—54); J. Richard, The Crusades (Cambridge:
Cambridge University Press, 1999).
De início, o papa Inocêncio III (liderou em 1198—1216) ficou hor-
rorizado ao saber o que acontecera, mas, não resistiu e se aproveitou
da situação. O papado agora estava no auge do seu poder.17 Inocêncio
aceitou a queda da cidade como vontade de Deus e, de imediato, come-
çou a estabelecer sua autoridade nas terras controladas pelas cruzadas.
Não importa a natureza da separação ocorrida entre Oriente e Ocidente,
agora ela era permanente. As igrejas do Oriente nunca se esqueceram da
humilhação sofrida, e ainda hoje existe um sentimento de desconfiança,
chegando muitas vezes ao ódio, entre ortodoxos orientais e católicos
romanos que foi abastecido por afrontas posteriores de ambos os lados.
No Oeste, claro, o acontecimento passou quase despercebido.
Inocêncio III conseguiu fazer o rei João da Inglaterra se vergar ao
interditar seu reino — na verdade, o clero fez greve e recusou-se a re-
alizar seus serviços até que o rei se submetesse ao papa. João acabou
cedendo, e na famosa Carta Magna de 1215, foi forçado a reconhecer
as “liberdades da igreja” - uma das três provisões do documento que
continua vigorando.18 No mesmo ano, Inocêncio convocou o Quarto
Concilio de Latrão, em Roma, que selou as reformas da igreja que
tinham começado havia 150 anos.
A impressão era que o papado estava pronto a tomar a Europa
Ocidental, com governantes civis dispostos a fazer o que lhes fosse
mandado. Mas, não foi bem assim. Várias mortes papais prematuras
enfraqueceram a instituição durante o século 13, e o papado foi
obstruído pela burocracia. Aos poucos, os governantes seculares
perceberam que teriam de estabelecer seus próprios serviços públicos
se quisessem competir com a administração papal e se desejassem
governos efetivos e centralizados, e puseram mãos à obra. Surgiram
universidades em Paris e Oxford, que capacitaram homens a servir tanto
à igreja quanto ao estado. Acima de tudo, as Cruzadas, que o papado
continuava tolamente a promover, eram um fracasso colossal. Em 1291, 1
1 Veja I. S. Robinson, The Papacy, 1073—1198: Continuity and Innovation (Cambridge:
Cambridge University Press, 1990); A. Papadakis, The Christian East and the Rise of
the Papacy (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1994); J. Sayers, Innocent
III: Leader of Europe, 7198-1216 (Londres: Longman, 1994).
ls Veja J. C. Holt, Magna Carta (Cambridge: Cambridge University Press, 1992).
não existiam mais estados das cruzadas na Palestina, e os cavaleiros do
Ocidente que haviam ido defendê-los eram agora refugiados sem-teto.
Um grupo conseguiu se estabelecer em Rodes, onde permaneceu até
1522, quando a conquista turca o forçou a encontrar uma nova base
em Malta. O grupo foi expulso de lá pelos exércitos revolucionários
franceses em 1798, mas, a Ordem Militar Soberana de Malta continua a
existir como organização de caridade, como é o caso da Ordem de São
João, equivalente protestante estabelecido no século 19 na Inglaterra
e que hoje está presente em toda a comunidade britânica de nações.
A Ordem dos Templários não teve tanta sorte. Incapaz de encontrar
um lugar seguro, os templários ficaram à mercê de qualquer governante
europeu disposto a recebê-los. O rei Filipe IV da França cobiçava a
grande fortuna dos templários e decidiu se apoderar dela acusando-os
de heresia e práticas de ocultismo que supostamente haviam trazido do
Oriente. As acusações eram falsas, claro, entretanto ninguém ousava
desmentir o rei da França, e os templários foram reprimidos. A auto-
ridade do papado, que havia estabelecido a ordem, recebeu um golpe
do qual seu prestígio jamais se recuperou inteiramente.19
O resultado trágico só aconteceu porque, alguns anos antes, os
papas haviam sido forçados a deixar Roma e fixarem-se na cidade de
Avignon, no sul da França. Isso aconteceu porque o papa Bonifácio
VIII decidiu atacar o rei da França (e, por conseguinte, os outros reis
da Europa) sobre a questão de tributação clerical. O rei se achava no
direito de tributar a igreja, contudo, o papa insistia em que ele estava
roubando Deus daquilo que lhe pertencia. O papa ameaçou excomungar
o rei e emitiu uma bula famosa, Unam sanctam, na qual afirmava que
somente quem estivesse em plena comunhão com ele iria para o céu.
Quando Bonifácio morreu, o arcebispo de Bordeaux foi eleito seu
sucessor, mas, Filipe IV não permitiu que ele se mudasse para Roma.
O governo papal foi forçado a se transferir para Avignon onde ficou
até 1377, período que ficou conhecido como o “cativeiro babilônico”
da igreja. Aparentemente, tudo continuava igual, entretanto os papas
não podiam mais mandar nos reis da Europa como sempre haviam
19 M.Haag, The Templars: History and Myth (Londres: Profile Books, 2008); M. Barber,
The Trial of the Templars (Cambridge: Cambridge University Press, 1978).
feito, e, pior ainda, o papado passou a ser visto como uma ferramenta
da França, com resultados fatais para sua autoridade.

LEI CANÔNICA

O papado ganhou força porque realizava um serviço civil eficiente


que oferecia muito da administração secular exigida na Europa Oci-
dental após a queda do Império Romano.20 A igreja primitiva não havia
realizado casamentos, contudo, a ausência de uma autoridade civil con-
fiável obrigou a igreja a intervir e criar o “santo matrimônio”. Durante
esse processo, a igreja revisou procedimentos romanos antigos à luz do
Novo Testamento. O divórcio, por exemplo, foi abolido e substituído
por separação e anulação. Separação “de cama e de casa” era possível
em casos de incompatibilidade, mas, não era divórcio. Os cônjuges não
ficavam livres para casar novamente, e seus filhos continuariam sendo
herdeiros de suas riquezas e propriedades. A anulação, por outro lado,
era uma declaração de que o casamento nunca existiu, e os filhos que
porventura existissem seriam ilegítimos e deserdados. Os cônjuges
ficavam livres para casar novamente. Em teoria, as anulações eram
garantidas somente em casos da não consumação matrimonial ou se
o casamento acontecesse dentro dos graus proibidos de afinidade e
consanguinidade, mas, a pressão feita pelos ricos, especialmente reis
e aristocratas que desejavam se divorciar e casar novamente, era tanta
que as regras geralmente se dobravam a favor deles.
Nos vilarejos, o parentesco entre os habitantes era grande, e portan-
to a consanguinidade podia ser invocada como justificação se preciso
fosse. Em teoria, as discórdias podiam ser resolvidas na própria cidade,
entretanto, os envolvidos sempre tinham o direito de apelar à corte
suprema, que era a cúria papal. Assim, o papado se via inundado de
casos judiciais a serem resolvidos, geralmente com pouca informação
confiável e, algumas, vezes, depois de muitos anos de o apelo ter sido
feito.

20 Para saber mais sobre lei canônica, veja J. A. Brundage, Medieval Canon Law (Lon-
dres: Longman, 1995); R. H. Helmholz, The Spirit of Clasrical Canon Law (Atenas:
University of Georgia Press, 1996).
Outra área que ficou sob o controle da igreja foi o preparo de
testamentos. Em geral, os padres eram os únicos que sabiam ler e
escrever, e assim essa tarefa era quase sempre confiada a eles. Claro
que as pessoas eram incentivadas a deixar algo para a igreja em seus
testamentos, e ela acabou ficando com muitas propriedades das quais
não podia capitalizar. Com o tempo, mais e mais terra cultivável era
tirada do mercado dessa forma — uma situação intolerável que, mais
cedo ou mais tarde, causaria problemas.
Contudo, isso era apenas o começo. Para se governar com mais
eficiência, a igreja foi dividida em paróquias, e cada uma tinha um padre
incumbente que supostamente deveria conhecer todos os que faziam
parte dela. Os paroquianos tinham de dizimar dez por cento de seus
rendimentos, que eram avaliados por funcionários indicados pela igreja
e recolhidos por cobradores, que ganhavam comissão sobre tudo o que
conseguiam arrecadar.21 Em alguns lugares a entrada dos dízimos era
escassa e mal dava para o sustento do padre; em outros, porém, era farta.
O excedente era encaminhado aos bispos e suas catedrais, construídas
ou reconstruídas de modo suntuoso. Nada testemunha mais sobre a
confiança renovada e o prestígio da igreja medieval que as catedrais
magníficas que continuam dominando a linha do horizonte e tiram o
fôlego de seus visitantes. As paróquias ricas também construíam igrejas
enormes, a maioria das quais ainda está em pé e continua a testemunhar
da fé e das riquezas dos tempos de outrora.
Dar o dízimo era uma forma de taxação, derivada das provisões
feitas para os sacerdotes e levitas no antigo Israel, e cujo propósito era
sustentar o ministério da igreja. Esperava-se que cada membro produtivo
da paróquia entregasse dez por cento de seus rendimentos para a igreja,
que então pagaria o clero. O dízimo também podería ser usado para
ajudar os pobres e para suprir as necessidades da igreja como um todo.
A organização de uma paróquia era complexa, mas, sem entendê-la não
conseguiremos avaliar como os europeus de séculos posteriores viam

21 Os cobradores de impostos trabalhavam sob contratos conhecidos como “assi-


naturas” {firmai) porque tinham de assiná-los. Mais tarde, a palavra firma passou
também a significar a parcela de terra indicada para o coletor de impostos, e se
tomava sua “farm” [lavoura, em inglês].
a igreja. A pessoa que recebia o dízimo era chamada de “reitor”, e ge-
ralmente ele era o sacerdote da paróquia. Várias paróquias podiam ter
o mesmo reitor (um abuso que ficou conhecido como “pluralismo”),
e com frequência a reitoria cabia ao abade de um monastério, que se
“apropriava” da paróquia e usava o dízimo para sustentar a própria in-
fraestrutura. Nesse caso, o reitor nomeava um substituto, ou “vigário”
para morar na paróquia e exercer os serviços da igreja. O vigário era
pago pelo reitor com o dinheiro dos dízimos, mas, com o tempo, essa
prática foi formalizada. Os dízimos eram divididos em “superiores” e
“inferiores”. Os superiores eram provenientes de trigo, feno e lã: trigo,
alimento dos humanos; feno, alimento dos animais (muito importante
na economia rural); lã, a cultura de maior valor financeiro. O restante—o
dízimo do leite, das ovelhas e assim por diante — era dízimo “inferior”,
reivindicado pelo vigário, que também ficou conhecido como o “cura”
porque tinha nas mãos a “cura (o cuidado) das almas,” da paróquia.
Muitos vigários eram ricos o bastante para contratar substitutos,
que ficaram conhecidos como “curas (assistentes)”, e hoje continua
assim. Esse sistema era comum em toda a Europa Ocidental, embora,
às vezes, a terminologia possa ser confusa. Na França, por exemplo, o
clérigo local era chamado curé, e seu substituto, vicaire·, assim, hoje esses
termos têm em francês significados opostos do inglês. Mas, a diferença
é de terminologia, e não de essência. O sistema era o mesmo em todos
os lugares, e assim foi durante séculos.
Como centros de aprendizado, geralmente os monastérios abri-
gavam monges habilidosos na arte de sonegar impostos; assim, os
monastérios enriqueciam às custas da igreja e da sociedade. Porque os
reis da Europa Ocidental levaram a cabo a decisão de tributar o clero,
essa sonegação ficou cada vez pior, alimentada, como sempre, pela
convicção genuína de que o estado não tinha direito de tributar o que
foi dedicado ao serviço de Deus e sua igreja.
A verdade é que a igreja havia se tornado um estado em si, e adqui-
rido uma identidade até então inexistente. Embora praticamente todo
mundo fosse batizado e, por consequência, membro genérico da igreja,
a “igreja” passou a ser entendida pela sociedade como uma corpora-
ção com seus próprios funcionários (o clero) e modo de operar. Seus
147

serviços eram usados da maneira que nós hoje usamos escolas, bibüo-
tecas públicas e hospitais. Por mais que achemos que tais instituições
nos “pertencem” como serviços sociais, temos consciência de que são
órgãos distintos que funcionam de acordo com suas próprias regras,
e não nos vemos como parte do quadro de funcionários, mesmo que
usemos seus serviços regularmente, tornemo-nos membros e associa-
dos e até façamos parte de sua diretoria. Da mesma forma, a igreja da
Idade Média era ajudada por leigos, por exemplo, como supervisores
em cada paróquia, e sua tarefa era cuidar da vida da igreja e relatar
qualquer mau comportamento entre os paroquianos, de modo que as
autoridades aplicassem a disciplina apropriada. Contudo esses supervi-
sores, por mais importantes que fossem, não eram parte da corporação
da “igreja” e não usufruíam os benefícios que essa posição acarretava.
Para operar sua malha intrincada de serviços, a igreja necessitava
de um sistema legal muito eficiente, e foi isso que os papas se deter-
minaram a construir. A igreja havia herdado leis romanas antigas, que
depois da conversão do império ao cristianismo se expandiram para
incluir estatutos a ela relacionados. Os estatutos foram sistematizados
por Justiniano I (r. 527-65), o imperador do Oriente que gastou a maior
parte de sua vida tentando reconquistar o Ocidente. Em qualquer área
que Justiniano e seus sucessores conseguissem impor sua vontade, a
legislação escrita de Roma prevalecia e a igreja não podia fazer nada a
não ser adaptá-la às suas necessidades. Contudo, nos reinos bárbaros
do Ocidente, a situação era outra. Os bárbaros tinham suas próprias
leis, originárias de costumes tribais, e eram aplicadas conforme a ne-
cessidade. Em alguns casos, os bárbaros incorporaram fragmentos da
lei romana, mas, no geral tinham uma tradição oral que se desenvolvia
conforme os acontecimentos.
No início, não havia códigos escritos, e quando começaram a sur-
gir, eram invariavelmente bem menos sofisticados e abrangentes que
a legislação romana. Como organização universal, a igreja não podia
estar vinculada a costumes locais que variassem consideravelmente
de um lugar para outro, então, ela preferiu trabalhar com a legislação
romana - embora modificada por necessidades específicas da igreja.
MtS

Essa foi a origem do que chamamos hoje de “lei canônica”, que


definia a igreja como uma instituição social e cujo legado continua a
existir. A lei canônica era uma mescla de decisões tomadas pelos vários
concílios da igreja, ensinos dos principais pais da igreja e da legislação
imperial romana. No começo, não havia sistematização, e algumas
fontes discordavam umas das outras. O objetivo de um jurista chamado
Gratian, que trabalhou em Bolonha no meio do século 12, era colocar
ordem no caos. Por volta de 1140, ele publicou Concordantia discordantium
canonum (Concordância de cânones discordantes), que rapidamente se
estabeleceu como o manual mais importante para os juristas canônicos
da igreja ocidental. Conhecido popularmente como o Deeretum, ele nun-
ca teve um status oficial, mas, era de padrão tão elevado que ninguém
jamais questionou sua autoridade.
Nos séculos 13 e 14 o livro recebeu acréscimos, contudo, foram de
caráter diferente. Eram principalmente os cânones dos concílios ecu-
mênicos reunidos entre 1173 e 1313, juntamente com vários decretos
papais. Foram publicadas quatro edições distintas sob a autoridade
do papa Gregorio IX (1234), do papa Bonifácio VIII (1298), do papa
Clemente V (1313) e do papa João XXII (1328). Juristas canônicos
prepararam uma última edição por volta do ano 1500, e o trabalho foi
publicado com o título Corpus iuris canonici. A obra permaneceu como
fonte padrão para a lei canônica da Igreja Católica Romana até 1917,
quando foi substituída por um código mais moderno (que por sua vez
foi substituído em 1983). As igrejas protestantes em geral aboliram o
manual, mas, não antes de incorporarem partes dele em sua legislação.
A Igreja Anglicana tentou substituí-lo com código próprio, mas, não
conseguiu. Embora tenha mais tarde desenvolvido seu próprio direito
canônico, os cânones antigos conservam autoridade residual no mun-
do anglicano, tornando sua igreja diferente da católica ou das outras
igrejas protestantes.
Para funcionar bem, o direito canônico exigia um sistema jurisdi-
cional, advogados para trabalhar com ele e um corpo de publicações
e comentários que explicassem como aplicar seus princípios. Como
149

resultado, formou-se uma enorme rede jurídica, com tribunais fundo-


nando em diferentes níveis. O papa, claro, tinha os seus, assim como os
arcebispos, bispos e arquidiáconos. Em teoria, o apelo para a dissolução
de um casamento podia ser levado ao tribunal do arquidiácono e depois
para o do bispo, do arcebispo e do papa, contudo, também era possível
ir direto ao topo, desviando-se dos escalões hierárquicos intermediários.
Essencialmente, foi o que aconteceu quando Henrique VIII quis anular
seu casamento com Catarina de Aragão. A desvantagem desse tipo de
procedimento foi que ele durava muitos anos, por causa da necessidade
de juntar documentos e, depois, atravessar a Europa para apresentá-los na
corte papal, e o papa nem sempre era neutro como deveria ser. No caso
de Henrique VIII, por exemplo, o papa era prisioneiro do imperador
Carlos V, sobrinho de Catarina e profundamente contrário à anulação
por vê-la como um insulto à família.22
O direito canônico era importante porque, para a igreja, ele era
um meio de estender princípios cristãos a aspectos do dia a dia que
não eram tratados na Bíblia. Por exemplo, ele estabelecia a idade de
consentimento matrimonial (doze anos para as meninas e catorze
para os meninos) e especificava como os lideres da igreja deveríam ser
nomeados e disciplinados. Também definia um número de questões
litúrgicas sobre a celebração da Ceia do Senhor. Seus proponentes viam
o direito canônico como um suplemento divino às Santas Escrituras,
mesmo quando ele era contrário ao texto sagrado, como a imposição
do celibato ao clero, por exemplo. Na prática, como a Bíblia era um
texto fixo que não podia ser alterado, ao passo que o direito canônico
era um grupo de leis e práticas que se originaram e desenvolveram com
o tempo para preencher as necessidades do momento, ele - e não os
princípios estabelecidos no Novo Testamento — passou a dominar a
vida da igreja. Quando Martinho Lutero (1483—1546) hasteou a ban-
deira da revolta, ele atacou primeiramente o direito canônico como a
“tradição” que o papado impôs a uma igreja que deveria ser governada
unicamente pelas Escrituras.

22 VejaΗ. A. Kelly, The Matrimonial Trials of Henry U7/7 (Stanford: Stanford University
Press, 1976).
150

CISÃO E HERESIA

Cisão e heresia foram um aspecto importante da vida da igreja


com o qual o direito canônico teve de lidar. Teoricamente, a distinção
entre as duas era simples e clara. Cisão foi uma divisão na estrutura
administrativa da igreja que não envolvia sua doutrina. Os donatistas
da África do Norte eram cismáticos porque rejeitaram a autoridade
dos bispos reconhecidos pela igreja tradicional, contudo, não eram
hereges, pois não negavam nenhuma doutrina cristã. Os arianos, por
outro lado, eram hereges, porque não aceitavam a divindade absoluta
de Cristo, porém não eram cismáticos, pois não queriam abandonar
a igreja tradicional. Muitos arianos tentaram continuar na igreja, mas,
foram rejeitados por causa de sua doutrina inadequada. Não podiam
ser reintegrados a ela por vias administrativas; tiveram de se reconciliar
por meio do arrependimento e da confissão da fé ortodoxa. Isso era
especialmente evidente nas áreas do Império Romano Ocidental onde
as tribos arianas destituíram as autoridades imperiais. A natureza da
situação era que os cristãos ortodoxos não podiam perseguir os arianos
que os governavam, e como os arianos eram minoria, não conseguiam
prejudicar muito a igreja tradicional, embora vez ou outra perseguissem
seus membros.
Por natureza, era difícil definir um cisma porque muito dependia
do ponto de vista de quem falava. Quando o Oriente e o Ocidente se
separaram, por exemplo, a igreja ocidental se referia à “cisão oriental”,
mas, a igreja do oriente falava em “cisão ocidental (papal)” - como ainda
hoje. Os estudos contemporâneos têm se empenhado em acabar com
a amargura causada por essa diferença de perspectiva, mas, escritores
ocidentais ainda se veem forçados ao uso da terminologia tradicional,
nem que seja apenas para serem entendidos.23 Era quase inevitável
que as causas das cisões fossem fatores não teológicos tais como rei-
vindicações conflitantes à jurisdição, contudo, eram tão difíceis de ser

23 Veja S. Runciman, The Eastern Schism (Oxford: Oxford University Press, 1955); F.
Dvornik, The Photian Schism (Cambridge: Cambridge University Press, 1948). Os
dois livros foram escritos por estudiosos ocidentais simpáticos ao pensamento
oriental.
resolvidos quanto qualquer heresia e, como a divisão entre Oriente e
Ocidente mostrou, igualmente duradouros.
Heresia era questão de erro teológico e era definida por esse cri-
tério. Foi isso que Isidoro de Sevilha fez no início do século 6, e sua
classificação continuou sendo o padrão por toda a Idade Média. Ela
foi incorporada ao direito canônico, e fez com que as aberrações que
haviam desaparecido nos tempos antigos pudessem ser restauradas
artificialmente se ou quando doutrinas semelhantes surgissem mais
tarde. Por exemplo, o arianismo havia desaparecido por volta de 600
d.C., mas, se um indivíduo acreditava (ou achassem que acreditava) que
Jesus Cristo era divino mas não completamente Deus, ele seria chama-
do de “ariano”, mesmo que nunca tivesse ouvido falar em Ario. Por
exemplo, na época da Reforma, um homem como Lutero foi acusado
de “nestorianismo” porque negava a doutrina da transubstanciação,
uma acusação anacrônica em todos os sentidos.24
A elevação da igreja ao status de religião oficial tornou a cisão um
assunto político importante, porque se separar da igreja significava
revoltar-se contra o estado. Assim, os cismáticos eram perseguidos
por imperadores e reis como rebeldes, uma prática que continuou até
o século 16, quando os protestantes eram frequentemente tratados
dessa forma. A heresia era uma questão mais complexa, pois embora
fosse um ataque à doutrina da igreja, não era claro se também consistia
em crime contra o estado. Além disso, a heresia era algo que somente
os teólogos podiam julgar, até porque geralmente as questões em jogo
eram extremamente sutis e difíceis de serem entendidas por leigos.
Nessa área, a igreja medieval teve de lutar para impor sua vontade.
Como a heresia destruía a alma, ela merecia ser punida com a morte,
contudo, a igreja não tinha autoridade para executar a sentença que
impunha aos hereges. Isso lembra o Sinédrio que condenou Jesus à

24 O nestorianismo afirmava que o Cristo encarnado tinha uma natureza divina e


outra humana, e as duas estavam unidas em sua pessoa, contudo, mantinham
identidades separadas, e isso possibilitou a existência de um Jesus puramente
humano. Já a transubstanciação ensinava que na Eucaristia, o pão e o vinho se
tornavam a substância da carne e do sangue de Cristo, algo que o nestorianismo
achava inconcebível.
morte. Para a sentença ser aplicada, Jesus teve de ser entregue a Pôn-
cio Pilatos, que relutou em executar um homem que a seus olhos era
inocente de qualquer crime. Os reis da Europa Ocidental encararam
dilema parecido diante de hereges condenados. Eles não tinham poder
para decidir se a acusação era justificada, todavia a igreja esperava que
eles a obedecessem sem fazer perguntas.
Outra complicação foi que a igreja preferia um método novo de
execução — a fogueira. Na Inglaterra, os nobres tinham o direito de ser
decapitados e os camponeses, enforcados, mas, a heresia ultrapassava
os limites de classe, e o entendimento era que o castigo dado à heresia
não deveria ser restringido a nenhuma classe social. Existia ainda a
teoria que o fogo purgaria a alma de seus pecados, permitindo que a
infeliz vítima fosse para o purgatório e não direto para o inferno, o que,
naturalmente, era um benefício eterno. Infelizmente, os executores
do estado não tinham experiência em queimar pessoas na fogueira, e
achavam que o procedimento estava abaixo de sua dignidade pessoal.
Essa atitude gerou resistência, e na Inglaterra, por exemplo, a heresia
não foi considerada crime até 1401, e uma década se passou antes que
alguém fosse morto da maneira aprovada pelo cânone.
A morte na fogueira nunca foi bem aceita e raramente foi praticada
antes da Reforma. Somente quando a rainha Maria I passou a queimar
protestantes publicamente (e em grande número), o horror absoluto
do procedimento veio à tona, e a opinião pública se voltou contra ele.
Em anos posteriores a fogueira foi reservada às pessoas acusadas de
bruxaria, e no século 17, ela caiu em desuso.25
Outro problema da igreja era decidir o que considerar heresia. Nem
todos os casos podiam ser incorporados às heresias clássicas da lista
de Isidoro de Sevilha, porém muita gente ainda rejeitava aspectos do
ensino da igreja. Alguns, como os albigenses do sul da França, eram
definitivamente inortodoxos, e suas doutrinas, que eram dualistas como
as dos maniqueístas da antiguidade, podiam facilmente ser condenados
por heresia.26 No entanto, o problema era que se uma pessoa reclamasse

25 Na Inglaterra, a última morte na fogueira aconteceu em 1612. A prática foi legal-


mente abolida em 1677.
26 S. Runciman, The MedievalManichee (Cambridge: Cambridge University Press, 1947).
153

de negligência por parte da igreja, ela seria acusada de heresia, mesmo


que sua intenção fosse endireitar algo visivelmente errado. Na verdade,
ocorreram vários casos assim, e os fundadores dos novos movimentos
religiosos, como Francisco de Assis, por exemplo, não estavam acima
de qualquer suspeita.27
O caso que exemplificou esse embate foi o de John Wycliffe (c.
1330-84). Wycliffe era um professor de Oxford que pregava contra a
igreja de sua época, que ele acusava de ter caído no erro. De acordo
com Wycliffe, a igreja se afastou da autoridade absoluta da Bíblia em
questões doutrinárias e em admitir a transubstanciação, uma crença
que ele (acertadamente) considerava fisicamente impossível. A igreja
se sentiu profundamente constrangida por esses ataques, mas, eram
heresias? No aspecto puramente teológico, era difícil saber. Wycliffe não
negava nenhuma das doutrinas clássicas da igreja, mas, provocou tal
agitação que as autoridades tiveram de silenciá-lo, e acusá-lo de herege
era de longe a melhor maneira de fazer isso.28
Ninguém antes dele, e bem poucos depois, recebeu tanta conde-
nação oficial. Até hoje, uma longa lista de acusações contra ele está
preservada nas atas do famoso Concilio de Constança, de 1415, como
evidência da seriedade com que a igreja levou as ameaças de Wycliffe.
Ele foi forçado a deixar sua cadeira de professor em Oxford, mas,
faleceu em sua cama, porque era apoiado por gente importante e o rei
não estava disposto a agir como seu carrasco. Na verdade, Wycliffe re-
presentou uma geração moderna de intelectuais que repeliram o que se
tornou um modo aceitável de pensar e queriam substituí-lo por novos
e (aos olhos deles) melhores conceitos. Se a igreja apoiou idéias que na
visão deles tinham de ser rejeitadas, então, ela estava errada e deveria
mudar. Mas, a igreja podería alguma vez estar errada? Achar que sim
27 Veja H. Fichtenau, Heresies and Scholars in the High Middle Ages, 1000—1200 (Univer-
sity Park, PA: Penn State University Press, 1998); W L. Wakefield e A. P. Evans,
Heresies of the High Middle Ages (Nova York: Columbia University Press, 1969); G.
Leff, Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy to Dissent (Manchester:
Manchester University Press, 1967). Será coincidência que os estudos mais impor-
tantes sobre esse assunto tenham sido publicados por editoras de universidades?
28 Leia mais sobre Wycliffe em S. E. Lahey, John Wyclif (Oxford: Oxford University

Press, 2009); G. R. Evans ,John Wyclif. Myth and Reality (Oxford: Lion Hudson, 2005).
154

era questionar sua autoridade, e foi isso, mais do que qualquer outra
coisa, que provocou tanto alvoroço.
No que dizia respeito às Escrituras, não havia lei contra traduzi-la
na linguagem popular, o que Wycliffe defendia, contudo, a igreja temia
que se leigos ignorantes se apossassem da Bíblia, eles iriam interpretá-la
erroneamente e usá-la para apoiar heresias.29 Os partidários de Wycliffe,
conhecidos como lolardos, se tornaram bastante proeminentes depois
de sua morte, e, mais tarde, alguns deles foram implicados em uma
revolta contra a Coroa Britânica. Em resposta, a igreja tornou ilegal
traduzir a Bíblia para o inglês e forçou os pregadores a obterem uma
licença para subirem ao púlpito. Com isso, a igreja esperava conter o
lolardismo e impedir que qualquer coisa inaceitável a ela chegasse ao
conhecimento da população. A Universidade de Oxford ficou sujeita a
escrutínio regular e intenso, porque foi ali que a confusão teve início. Na
cabeça de muitos, idéias eram um perigo, e as novas idéias certamente
eram erradas. Agora, a igreja era o poder reinante que não queria ser
perturbada por nenhum tipo de mudança, mas, sua batalha já estava
perdida. Wycliffe e os lolardos foram reprimidos, contudo, as forças
que representavam não podiam ser contidas tão facilmente; quando,
por fim, irrompessem, a igreja seria a grande perdedora de uma batalha
que não podería vencer.
Aos poucos, a heresia passou a ser determinada não em relação
a doutrinas objetivas tais como a Trindade (embora, claro, negá-las
continuava a ser profundamente herético), mas, a opiniões e compor-
tamentos que desafiavam a autoridade da igreja. Atacar a corrupção
nos altos cargos, recusar-se a dar o dízimo, questionar o poder e o papel
de uma hierarquia sacerdotal que não tinha base bíblica aos olhos do
crítico - tudo isso podería ser considerado “heresia”, se a igreja assim
o quisesse. Assim, a ameaça de condenação por heresia se tornou um
instrumento para controlar dissidentes de qualquer tipo. No decorrer
do século 15, ficou gradualmente mais difícil esconder os males da
liderança clerical, e as vozes de protestos ficaram mais altas. Poderíam

29 Em geral, Wycliffe é considerado tradutor da Bíblia, mas, ele não foi. No entanto,
havia duas traduções em inglês produzidas por alguns de seus seguidores que
circulavam em manuscrito.
elas ser silenciadas por um papado cada vez mais corrupto, ou os reis
da Europa iriam finalmente se encher de coragem o bastante para se
oporem a tamanha tirania eclesiástica e reafirmar seus direitos de deci-
dir quem entre seus súditos deveria ser condenado à morte e por quê?
No final, a questão sobre o que fazer a respeito da heresia se provou
decisiva para o destino da igreja medieval do Ocidente. De um lado,
era princípio fundamental que a igreja permanecesse o mais pura e sem
mácula possível aos olhos de Deus. Os falsos ensinos tinham de ser
identificados, condenados e extirpados se o objetivo acima quisesse ser
alcançado. Uma organização privada disciplinar seus membros ainda
vá lá, mas, uma instituição pública fazer isso, especialmente quando ela
tem posição de comando no estado, era coisa bem diferente. A igreja
não tinha autoridade para executar ninguém, mas, tinha o direito de
exigir que governantes seculares agissem em seu nome? O que a igreja
faria se os governantes se recusassem a cumprir seus desejos?
No século 16 essas e outras questões parecidas vieram à tona e não
havia como ignorá-las. Em alguns lugares, como a Espanha e partes da
Itália, a igreja se impôs e conseguiu exercer sua disciplina nos órgãos
do estado e por meio deles, o que resultou na abominável Inquisição,
um procedimento pelo qual investigadores especialmente escolhidos
procuravam acabar com os hereges. Nomeados pela igreja, esses inves-
tigadores eram não obstante agentes do estado, e suas decisões tinham
força legal. Em outros lugares, porém, as autoridades do estado se
mostraram menos submissas à igreja. Em geral, estavam dispostas a
defender os princípios básicos da igreja estabelecida, entretanto menos
dispostas a matar os dissidentes. Algumas autoridades até chegaram a
considerar se um homem como Martinho Lutero tinha algo de valor
a dizer e estava sendo injustamente alvejado pela igreja que não queria
lhe ouvir. Quando esse questionamento se concretizou, a igreja não
podia mais confiar nos governantes seculares, e seu relacionamento
com o estado entrou em uma fase nova e crítica.

O SISTEMA SACRAMENTAL

O sistema sacramental estava incrustado no coração da igreja


medieval, sistema que ela desenvolveu e que para muitas pessoas era
o principal ponto de contato com a igreja e sua razão de existir. Sete
rituais eram administrados aos membros da igreja em diferentes épocas
de suas vidas; alguns apenas uma vez e outros com mais frequência
- em alguns casos, diariamente. O sistema não foi criado até a Idade
Média, e apenas na igreja do Ocidente; o Oriente manteve um modelo
mais primitivo que ainda hoje se harmoniza superficialmente com o
seu equivalente ocidental.
Se havia “sacramentos” na igreja do Novo Testamento é uma per-
gunta interessante. A palavra significa “juramento” e seu primeiro uso
aconteceu aproximadamente no ano 200 d.C. por Tertuliano, quando ele
descreveu o batismo como um “juramento de fidelidade” que o cristão
faz a Cristo. Tertuliano usou uma metáfora militar que, segundo ele,
podia ser aplicada à igreja porque seus membros eram soldados prontos
a morrer pelo imperador. Tertuliano considerava a água batismal como
o meio divinamente escolhido para transmitir uma verdade espiritual a
quem se batizava.30 Foi isso que transformou o batismo em sacramento
aos seus olhos, e sua eficácia era garantida pela promessa de Deus em
sua Palavra e pela presença de seu Espírito nos elementos sagrados.
Na Idade Média, a crença universal era que a pessoa tinha de ser
batizada para ficar limpa do pecado original e ser aceita como membro
da igreja, que era a promessa de vida eterna. Assim, quem morria sem
ser batizado ia para o inferno ou para um lugar nebuloso conhecido
como limbus patrum, ou limbo, onde, segundo a crença, as almas dos
justos que morreram antes da vinda de Cristo ficavam em estado de
animação suspensa. Isso tudo era especulação, mas, fosse qual fosse o
estado real dos que morreram sem batismo, a igreja ensinava que era
melhor não se arriscar. Como a água consagrada tinha suas propriedades
salvadoras, a profissão de fé se tornava desnecessária. O batismo era
igual a uma vacina: funcionava independente de a pessoa saber ou não o
que estava acontecendo. Em uma sociedade onde a mortalidade infantil
era extremamente alta, o destino das crianças não batizadas era uma
grande preocupação. O ideal era que o batismo fosse realizado por um
padre assim que o bebê nascesse, mas, a ansiedade da espera podería ser

30 Tertuliano, De bapüsmo 3.
tanta que a igreja autorizou leigos, especialmente as parteiras, a realizar
o ritual em particular se achassem que o bebê corria perigo de vida.
Outro aspecto importante era que o nome dado à criança no ba-
tismo tinha força legal que superava tudo.31 Era um sinal de que ela
pertencia à comunidade dos salvos, vivos e mortos, e muitos bebês
recebiam o nome do santo cuja memória era comemorada no dia de
seu batismo. Martinho Lutero, por exemplo, recebeu esse nome porque
foi batizado no dia 11 de novembro de 1483, dia de São Martinho.
Outros rituais e cerimônias que passaram a ser considerados sacra-
mentos eram um balaio de práticas diferentes, e somente poucos eram
justificados pelo Novo Testamento. Muitas se desenvolveram através
dos séculos, e pelo menos uma (matrimônio) não era de origem cristã.32
A mais evidente e importante dessas cerimônias era a Ceia do
Senhor, que prefigurava claramente na Última Ceia de Jesus e seus dis-
cípulos e sobre a qual o Novo Testamento oferece instruções precisas.
Logo no início, a ceia só podia ser realizada pelos bispos e delegada a
seus presbíteros, um padrão que se tornou a norma para os tempos me-
dievais. No decorrer do tempo, várias teorias foram apresentadas para
explicar o que acontecia durante a ceia e por que ela era tão fundamental
à vida da igreja. O foco estava no pão e no vinho, que representavam
o corpo e o sangue de Cristo. Durante muito tempo a ligação entre os
símbolos e as realidades que representavam era nebulosa, mas, todos
criam que ao partilhar do pão e do vinho consagrados estavam entrando
em comunhão com Cristo. Por essa razão, a Ceia do Senhor passou a
ser conhecida como Santa Eucaristia, um rito no qual os membros da
igreja chegavam mais perto de seu líder ao ingerirem sua presença.33
Nunca se questionou o fato de essa comunhão ser principalmente
espiritual em natureza. Mas, o Filho de Deus se tornou homem em
Jesus Cristo, e passou-se a crer que assim como seu corpo físico tinha
31 Ainda hoje, em um país como a Inglaterra, o nome batismal (ou “cristão”) de uma
criança é mais importante do que o registrado em sua certidão de nascimento.
32 Para saber a história individual dos sacramentos, veja J. Martos, Doors to the Sacred:

A Historical Introduction to the Sacraments in the Catholic Church (Tarrytown, NY:


Triumph Books, 1991).
33 Para ler uma curta história sobre as diferentes teologias relativas à Ceia do Senhor,

leia G. Macy, The Banquet’s Wisdom (Akron, OH: OSL Publications, 2005).
papel essencial na salvação da raça humana, sua presença espiritual na
Eucaristia devia ser acompanhada de um aspecto físico igualmente
essencial. Dessa maneira, nasceu a crença que o pão e o vinho davam
ao corpo e ao sangue de Cristo mais que um sentido puramente simbó-
lico. Acreditava-se que ele estava objetivamente presente no pão e no
vinho, dando-lhes poder espiritual próprio, bem além do ministério da
igreja. Portanto, assim foi possível separar os elementos consagrados
e adorá-los como se fossem o próprio Cristo, e uma hoste de práticas
devocionais cresceram ao redor deles. Pensou-se até que poderíam ser
roubados e usados com propósitos ocultistas nas chamadas Missas
Negras.
A palavra “missa”, que vem do latim, não tem nenhum sentido
teológico inerente. Ela se origina da última frase da liturgia, a saber Ite,
ecclesia missa est (Ide, a igreja está dispensada), e era usada por quem não
entendia o latim para se referir ao culto inteiro. Depois da Reforma
Protestante, o termo “missa” passou a ser usado pelos católicos para
enfatizar sua crença na transformação dos elementos quando de sua
consagração, o que (aos olhos católicos) diferenciava completamente
a missa da Ceia do Senhor praticada pelos protestantes.
A partir do Quarto Concilio de Latrão, em 1215, essa mudança
nos elementos passou a ser chamada “transubstanciação”, um termo
que reflete a física aristoteliana, amplamente aceita naquela época. De
acordo com essa teoria, todo o mundo real podia ser analisado em
substâncias e seus acidentes, ou seja, no que era fundamental e no que
era simplesmente transitório ou acidental. O pão, por exemplo, era uma
substância fundamental, embora pudesse acidentalmente aparecer em
cores diferentes, em pesos diferentes, e assim por diante. Esse méto-
do de analisar a matéria foi rejeitado na modernidade, mas, o legado
da igreja medieval continua, especialmente entre os católicos, para os
quais a transubstanciação continua ensino oficial da igreja. Teólogos
e reformadores litúrgicos dentro da Igreja Católica têm labutado para
redefinir essa doutrina, sem muito sucesso até agora, e a religiosidade
popular permanece teimosamente conservadora. No meio católico o
padre pode realizar uma missa por conta própria, ou para “propósitos”
particulares alheios ao corpo principal da igreja, e as práticas devocionais
associadas aos elementos reservados continuam como sempre foram
feitas. Nesse aspecto, mais do que em outro qualquer, observamos como
os sacramentos permanecem fundamentais à Igreja Católica Romana de
um modo que não pode ser atribuído às suas contrapartes protestantes.
Entre os outros cinco sacramentos reconhecidos, a confirmação é
na verdade uma extensão do batismo, e há pessoas que a negam como
sacramento por mérito próprio. Ela existe para assegurar que a criança
batizada quando era bebê faça sua profissão de fé. Para os católicos
isso ocorre quando ela tem por volta de seis anos de idade, contudo,
os protestantes que praticam a confirmação geralmente esperam até
a adolescência, quando (presume-se) as crianças têm mais capacidade
de concordar com os votos batismais de modo consciente e respon-
sável.34 Na Idade Média, quase ninguém era batizado quando adulto,
portanto, nunca se questionou a necessidade da confirmação. Quando
se tornou necessária, o consenso foi que ela era um sacramento distinto,
e, portanto, até os adultos que haviam sido batizados tinham de ser
confirmados, por mais ilógico que nos pareça.
A seguir, vem apaenitentia, que pode ser traduzida como “penitên-
cia”, “punição” ou “arrependimento”. Arrependimento, pesar sincero
pelos pecados e seu completo abandono é o verdadeiro sentido do rito,
mas, a palavra normalmente usada é “penitência”. A penitência se tor-
nou uma série de atitudes impostas como penalidade ao pecado. Antes
de participar da Comunhão, as pessoas procuravam o padre, confessa-
vam seus pecados, e recebiam ordens a serem cumpridas para mostrar
que estavam realmente tristes pelo que fizeram. Em geral, tinham de
fazer orações extras ou alguma boa obra. Quando a penitência estivesse
cumprida, os penitentes retornavam ao padre e eram absolvidos, o que
lhes dava direito de participar da Comunhão.
A prática de confessar a outros e mostrar arrependimento poderia
invocar o apoio do Novo Testamento, mas, ela nunca foi organizada de
modo sistemático no Novo Testamento.35 Igualmente, podia-se usar a
autoridade bíblica para impedir que o pecador impenitente participasse

34 Atualmente a maioria dos católicos americanos adiam a confirmação até a ado-


lescência, mas, a prática é recente e longe de ser universal.
35 Veja Tiago 5.16,17.
da Ceia do Senhor, contudo, isso era parte de uma disciplina pública
mais abrangente e não estava confinada a um ritual semiparticular
controlado por um padre. A penitência sacramental era uma causa im-
portante de legalismo na igreja medieval, porque cada pecado tinha de
ser pesado e medido para que o nível correto de tristeza por ele fosse
manifestado. Isso exigia cálculos elaborados e levava as pessoas a en-
xergar seus pecados como dívidas que precisavam ser pagas, o que, por
sua vez, gerou inúmeras outras práticas, incluindo as assim chamadas
obras supererogatio, palavra derivada do latim que significa “pagamento
além do que é pedido ou devido”. As pessoas realizavam essas obras
com o objetivo de pagar por pecados inconscientes, e conseguir “in-
dulgências”, ou perdões por pecados cometidos. As indulgências eram
vendidas aos ricos, um escândalo que foi a causa imediata da Reforma
Protestante.
Pior ainda, a penitência gerou a crença que a maioria das pessoas
morria com dívida espiritual, sem pagar por todos os seus pecados.
Com isso, a igreja inventou um lugar chamado “purgatório” para onde
iam as almas dos fieis que partiram e ali continuavam a trabalhar rumo
à salvação final. O grande problema com isso, que geralmente passa
despercebido hoje em dia, mas, que foi uma das principais objeções de
Martinho Lutero à ideia toda, é que a penitência deu ao papa jurisdição
sobre quem morreu e foi para um reino espiritual inferior ao céu. Como
uma autoridade terrena, por mais nobre que fosse, poderia reivindicar
tal poder? No entender de Lutero, ao vender indulgências, o papado não
estava simplesmente engajado na prática de corrupção como também
legislando fora de sua esfera de competência. Assim como o tribunal de
um país não pode reduzir a pena de um criminoso em outra jurisdição,
o papa não tinha poder para mitigar os sofrimentos dos que estavam
além-túmulo. Ao afirmar que podia fazer tal coisa, o papa ultrapassava
sua autoridade e tomava o lugar de Cristo, cujo representante na terra
ele reivindicava ser. Foi por isso que a revolta de Lutero ultrapassou o
protesto normal contra a corrupção. Ela atingiu a raiz da autoridade
do papa e resultou em um questionamento amplo sobre a natureza da
igreja que ele dizia governar em nome de Cristo.
Outro famoso sacramento era a extrema unção, mais conhecida
como últimos sacramentos; é a unção com óleo que precede a morte.
De início, a unção era para a cura, e como tal tem apoio no Novo
Testamento, contudo, a taxa de mortalidade estava tão alta há tanto
tempo que o propósito original logo se perdeu de vista.36 A unção
tornou-se uma garantia ao moribundo de que ele estava partindo em
“estado de graça”, o que pelo menos afofaria a passagem do morto ao
purgatório, com a possibilidade de se desviar dele totalmente.
Os dois últimos sacramentos eram o matrimônio e as ordens
sagradas, que passaram a ser vistos como mutuamente exclusivos. O
matrimônio não era um rito especificamente cristão, e durante séculos
a igreja não celebrava casamentos. Os cristãos eram avisados a não se
casarem com incrédulos, mas, era só. O casamento era um rito secular
que acontecia por propósitos seculares; aqueles cujos pensamentos
estavam voltados para o céu geralmente evitavam o casamento. No
século 12, o celibato foi formalmente imposto a todos os padres (foi
imposto aos bispos em 692), e continua uma característica do clero
católico até hoje.37 Ao mesmo tempo, o casamento dos leigos ficou nas
mãos da igreja, que precisava agir porque os instrumentos da sociedade
civil romana havia se desintegrado na Europa Ocidental, deixando a
igreja como a única instituição capaz de providenciar as garantias legais
necessárias.
No entanto, assim que passou a cuidar do matrimônio civil, a igreja
buscou impor padrões cristãos — notoriamente por insistir que as duas
partes consentissem em se casar, que ninguém se casaria dentro de cer-
tos graus amplos de consanguinidade e afinidade, e que o divórcio não
seria permitido. No decorrer da cristianização, o casamento passou a ser
considerado um sacramento porque é uma ordem sagrada prescrita por
Deus e usado no Novo Testamento como símbolo do relacionamento
de Cristo com a igreja, que é a sua noiva. Nesse aspecto, o matrimônio

36 Veja Tiago 5.14,15.


37 Veja C. Cochini, The Apostolic Origins of Priestly Celibacy (São Francisco: Ignatius
Press, 1990); R. Cholij, Clerical Celibacy in East and West (Leominster: Fowler
Wright, 1988), para conhecer uma justificação moderna da prática do ponto de
vista católico.
podia ser visto como o mais eclesiástico dos sacramentos, embora
tivesse o relacionamento mais ambíguo com o cristianismo.

MISSÃO MEDIEVAL E EXPANSÃO

Em muitos aspectos, a Idade Média parece ser uma época em que


os horizontes do mundo antigo se encolheram. O desmoronamento
do governo civil e o declínio das instituições seculares de ensino deixa
essa impressão, contudo, esse é apenas um lado da história. De outro
ponto de vista, a Idade Média testemunhou uma enorme e duradoura
expansão da cultura europeia e também da igreja cristã, que era agora
amplamente identificada com ela. No século seguinte à morte do pro-
feta Maomé, em 632, exércitos árabes, impelidos por sua devoção ao
Islamismo, conquistaram a Síria, o Egito, o Norte da África e a maior
parte da Espanha, entretanto, em quase todos esses lugares os cristãos
continuaram sendo a maioria da população durante vários séculos. Nos
séculos seguintes, a Espanha foi reconquistada pelo cristianismo, e o
Islamismo perdeu a Ásia Menor (Turquia hoje) para sempre; de outro
modo, essa fronteira permaneceu extraordinariamente estável durante
os últimos mil e quatrocentos anos.
No entanto, se a igreja sofreu grandes perdas em seu lado sul, obte-
ve ganhos consideráveis rumo ao norte, embora a maioria das vitórias
tenha acontecido mais tarde. O arianismo atravessou as fronteiras do
Império Romano no século 4, quando chegou aos godos além das
divisas do Danúbio. Esses mesmos godos invadiram o império e se
estabeleceram ali, deixando que os pagãos ficassem com suas terras.
No século 15, a Irlanda se tornou o primeiro país não romano (além
da Armênia, que tinha um tratado com Roma) a ser evangelizado. As
origens da missão à Irlanda foram ofuscadas em lendas, mas, quando a
névoa desapareceu, ficou claro que uma igreja distinta havia emergido.
O cristianismo romano era fundamentado na cidade, porque o
Império Romano era essencialmente uma confederação de cidades.
A Irlanda não tinha cidades, portanto a missão ali teve um formato
diferente. Como os primeiros missionários eram monges, eles cons-
truíram monastérios, que se tornaram o foco da evangelização. Mais
tarde, assentamentos cresceram ao redor das igrejas monásticas, muitas
das quais se tornaram bases para os bispos locais e, consequentemente,
catedrais. Esse arranjo informal permaneceu até o século 12, quando
foi introduzida uma estrutura diocesana nos moldes de Roma.38
Bem antes, porém, o conceito de igreja monástica havia se espa-
lhado pela Grã-Bretanha e uma boa parte do norte da Europa jamais
alcançada pelos romanos. Mesmo em áreas do antigo império onde a
vida urbana havia se desintegrado, ainda era possível encontrar igrejas
monásticas, trazendo consigo uma nova forma de ordem eclesiástica.
Seus traços ainda podem ser vistos hoje em nome de lugares contendo
a palavra minster, münster ou moutier. Diferentes das igrejas antigas do
mundo romano, elas não eram frutos naturais da vida social local. Na
Itália, o prefeito de Milão poderia ser o bispo da cidade, como o grande
Ambrósio foi, mas, essa transição era impossível mais ao norte. Em
vez disso, os bispos geralmente eram abades de monastérios, ou pelo
menos monges, e seu modo de vida era bem diferente daquele das
pessoas ao redor deles. Sendo monges, eram celibatários e, portanto,
de alta mobilidade, o que lhes possibilitava levar o evangelho por todos
os lados. Entre os anos 500 e 1000, a maior parte do norte europeu
estava evangelizada, muito graças a seus esforços.
Em outros lugares, a desintegração da vida urbana facilitou o
desenvolvimento de igrejas de base territorial em que a autoridade de
um bispo podia se estender a uma diocese que cobria áreas grandes e
quase sempre pouco povoadas. Dentro dessas dioceses, havia muitas
congregações locais reunidas em edifícios que, tipicamente, foram
construídos para a realização de cultos. Por consenso popular, o edifício
ficou conhecido como a “igreja”, e a transferência do sentido original
da palavra se tornou tão comum que hoje ao pensar na “igreja” de
sua cidade, a maioria das pessoas têm em mente o edifício usado para
o culto público. A área de captação desse edifício era a sua paróquia,
palavra derivada do grego paroikia, cujo significado é “habitação”. A

38 Mais detalhes em A. Gwynn, The Irish Church in the Eleventh and Twelfth Centuries
(Dublin: Four Courts Press, 1992); Μ. T. Flanagan, The Transformation of the Irish
Church in the Twelfth Century (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2010).
partir do século 10, a zona rural foi dividida em paróquias de tamanho
manejável, tivessem ou não um edifício, é era nomeado um padre para
ministrar a elas.
A teoria era que uma paróquia deveria ser pequena o bastante para
cada residente ficar debaixo da supervisão pastoral do clero local. De
preferência, a supervisão incluiría educação, saúde e realização de ca-
sarnentos e funerais, contudo, os padrões variavam muito, nem sempre
era possível atender às expectativas. Esperava-se que as paróquias sem
templo construíssem um. O ideal era que o bispo diocesano provi-
denciaria isso, contudo, a necessidade era quase sempre maior que os
recursos à mão. Em muitos casos, então, pedia-se aos latifundiários
locais que construíssem os templos, e em troca eles se tornavam seus
patronos. O patrono de uma igreja tinha o direito de indicar o padre
residente, que poderia ser qualquer um com ordenação válida.39 A
suposição era que o bispo lhe daria posse, como fazia nas igrejas que
havia construído, contudo, isso era, em muitos casos, uma formalidade,
e o bispo só recusaria se tivesse um excelente motivo.40
Com o tempo, muitos nobres usavam esse direito, ou “padroado”,
para colocar seus filhos jovens nas igrejas, uma vez que deveríam achar
algo respeitável para eles fazerem. Não era o jeito mais edificante de
encontrar ministros, e não é de admirar que tenha havido tantos fracas-
sos nessa área de “vocação”. O surpreendente é que tenha funcionado
tão bem como funcionou, provavelmente, porque os filhos dos nobres
haviam recebido mais educação e estavam capacitados a ler a liturgia —
em Latim. Os patronos, por sinal, também tinham responsabilidades e
não apenas privilégios. Se o clero residente morresse ou fosse embora,
o patrono deveria encontrar um substituto dentro de seis meses, ou
entregar seu direito de representação ao bispo. O patrono também era
responsável por consertar a capela-mor da igreja (onde o padre ficava),
dividindo a tarefa com o reitor, que era responsável pela nave (onde a
congregação sentava).
39 Veja S. Wood, The Proprietary Church in the Medieval West (Oxford: Oxford University
Press, 2006), para um estudo detalhado desse fenômeno.
40 A posse de um padre em uma igreja pertencente a um bispo é chamada “colação”.

Em uma igreja pertencente a outra pessoa, é chamada “instituição”.


Esse modelo foi sistematizado no Quarto Concilio de Latrão, em
1215, quando o papa Inocêncio III instituiu um sistema de “benefícios”
mais bem descrito como postos clericais que tinham rendimentos que
davam para sustentar um padre residente. Um benefício, ou “susten-
to”, era geralmente uma paróquia que levantava dízimo em quantidade
capaz de nomear um padre, mas, uma posição não paroquial (em uma
catedral, por exemplo) também poderia fazer parte dessa categoria. A
pessoa que recebia o benefício era chamada de “incumbente”, apesar
de na linguagem popular ser conhecido como a persona — a “pessoa”
da paróquia.
O sistema paroquial acabou envolvendo a Europa Ocidental in-
teira, mas, havia exceções à regra. As mais óbvias eram as catedrais,
dirigidas pelos bispos (cathedra em grego, da qual deriva a palavra “ca-
deira”). Contudo, o bispo não administrava a catedral. Essa tarefa era
responsabilidade do decanus, ou “deão”. O deão era cercado por um
número de clérigos que, juntos, constituíam o colegiado da catedral que
o elegeu. Portanto, deões e bispos eram bem separados; no folclore da
igreja, há uma longa história de conflito entre eles, que infelizmente
está corroborada por muitas evidências. Os membros do colegiado
eram chamados canonici, ou “cônegos”, pois eram nomeados de acordo
com uma regra, ou “cânone”, que deveríam seguir na administração
da catedral. Alguns cônegos eram residentes, mas, outros não; havia
muita flexibilidade nesse aspecto. Os cônegos sustentados por rendi-
mentos vindos de propriedades da catedral eram chamadospraebendarii
(prebendários), pois eram sustentados porpraebenda (prebenda), nome
dado a tais fontes de renda.
Ligados ao colegiado da catedral havia muitos cargos conhecidos
como “dignitários”, e os mais importantes eram os arquidiácono, tesou-
reiro, regente de coro e chanceler. Em teoria, o arquidiácono era gerente
da diocese. Era ele quem deveria visitar as paróquias e certificar-se de que
tudo estava em ordem, e quem examinava os candidatos ao sacerdócio.
Nas dioceses maiores, esse trabalho era grande demais para uma pessoa
só, então, arquidiáconos extras eram chamados para ajudar; a diocese
de Lincoln, por exemplo, tinha oito deles. O tesoureiro cuidava das
finanças, o regente escolhia os hinos e, portanto, o louvor diário na
catedral, e o chanceler administrava os assuntos legais. Em geral, eles
também eram cônegos, mas, esse não era necessariamente o caso, e as
duas posições permaneciam bem distintas, embora, às vezes, um dig-
nitário estivesse ligado a um cabido [corporação de cônegos] e, assim,
quem tinha uma posição, necessariamente, tinha a outra.
Na Inglaterra, singularmente, esse sistema foi modificado por um
movimento de reforma espiritual cujo objetivo era transformar todas as
catedrais em monastérios. Em certo sentido esse movimento lembrava
o início das missões na Irlanda, porém se desenvolveu mais tarde de
modo independente. No fim, cerca de metade das catedrais medievais
da Inglaterra foi transformada em centros monásticos, sendo que duas
eram híbridas. Essas catedrais pertenciam às dioceses de Coventry e
Lichfield e de Bath e Wells. Coventry e Bath eram monastérios anexados
às catedrais seculares de Lichfield e Wells, mas, não eram incorporados
a elas.41 Nas catedrais monásticas, o “deão” foi substituído por um
“prior”, e não havia cônegos nem prebendários. As tarefas do colegia-
do eram realizadas por monges ligados à catedral; eles não recebiam
dinheiro da igreja e, pensava-se, eram menos suscetíveis à corrupção
do que os outros.
Outra exceção do sistema paroquial eram as assim chamadas ju-
risdições peculiares, tais como as igrejas, capelas e outros lugares de
culto isentos da jurisdição do bispo local. Os motivos que garantiam o
status peculiar eram muitos e variados, mas, o efeito geral era de deixar
algumas igrejas fora da administração diocesana normal. O chefe de
uma jurisdição peculiar, assim como o de uma catedral, tinha o título de
“deão” e tênue responsabilidade diante do arcebispo da província onde
a jurisdição se localizava, contudo, na prática, ele trabalhava mais ou
menos de maneira independente. As capelas das faculdades universitá-
rias, por exemplo, eram peculiares, assim como as capelas reais. Com o
tempo, alguns outros lugares, muitos deles paróquias por direito próprio,
obtiveram status peculiar, especialmente quando caíram nas mãos de
um bispo que não era o diocesano local. Na Inglaterra, por exemplo,
os bispos de Durham eram famosos colecionadores de paróquias fora
41 Coventry foi separado de Lichfield em 1877, mas, Bath e Wells continuam ligados
até hoje.
ΙΌ/

de suas dioceses, que se tornaram suas jurisdições peculiares.42 O arce-


bispo de Canterbury tinha peculiares em Londres, a mais famosa das
quais era o palácio de Lambeth, onde ele normalmente residia. Outra
era constituída de treze paróquias agrupadas ao redor da Igreja de St.
Mary-le-Bow (“dos Arcos”), onde seu vigário geral, o procurador geral
da província de Canterbury, acabou se estabelecendo. Assim, até hoje
o presidente das cortes eclesiásticas da Inglaterra é intitulado deão dos
Arcos, e (depois de espaço de vários séculos) sua corte ocupa novamente
a cripta da igreja que leva o seu nome.43
Outro aspecto da vida eclesiástica era a chamada área extraparo-
quial, geralmente um espaço desabitado de terra que ninguém queria
- pântanos, florestas e coisas assim. Essas áreas se encontravam fora
de toda jurisdição eclesiástica normal e, portanto, eram bastante usadas
como lugares de refugio para aqueles que perdiam as graças da igreja.
A mais famosa dessas áreas extraparoquiais foi a Floresta Sherwood,
onde, segundo dizem, Robin Hood e seus felizes seguidores se reuniam
— fugitivos da justiça e da sociedade em geral. Mesmo ali a igreja se fazia
presente, como a figura do Frei Tuck nos lembra.
Frei Tuck fazia parte da Floresta de Sherwood porque os freis
também viviam à margem da sociedade. Os monastérios tinham um
lugar de destaque no sistema, porém com o tempo, eles ficaram ricos
e perderam o zelo pela propagação do evangelho. A partir do século
10, houve um certo número de movimentos de reforma que iniciaram
novas ordens monásticas. Os monastérios tradicionais haviam seguido
a ordem de São Benedito, que foi o abade de Monte Cassino no sul da
Itália na metade do século 6. Mas, as novas fundações seguiam regras
mais “modernas” (e sempre mais severas) criadas pelos reformados, de
entre os quais Bernardo de Claraval foi o mais conhecido. Sua ordem
Cisterciense se espalhou rapidamente no século 12, mas não foi a úni-
ca. O famoso abade de Cluny, em Burgundy, tinha sua própria rede de

42 F. Barlow, Durham Jurisdictional Peculiars (Oxford: Oxford University Press, 1950)


estuda-os em detalhes. Os peculiares sobreviveram intactos à Reforma Protestante
e não foram dissolvidos até meados do século 19.
43Veja F. D. Logan, The Medieval Court of Arches (Woodbridge: Boydell & Brewer,

2005).
casas clunicenses, e havia muitas outras, incluindo a ordem Gilbertina,
fundada por Gilberto de Sempringham, que incorporava estabelecí-
mentos para homens e mulheres, algo até então desconhecido. As mu-
lheres tinham seus próprios conventos, e alguns se tornaram bastante
famosos, mas, como raramente se envolviam no comércio, como os
homens faziam, e não podiam se apropriar de paróquias porque não
tinham como supri-las com sacerdotes, elas eram muito mais pobres e
menos influentes do que suas contrapartes masculinas.44
Por volta de 1200, no entanto, começou-se a perceber que era quase
impossível reformar os monastérios porque eles continuavam a se rein-
tegrar ao sistema vigente e os padrões de corrupção reapareciam depois
de uma ou duas gerações. Para lidar com isso, radicais como Francisco
de Assis e Domingos foram trabalhar por conta própria. Escolheram
viver na pobreza, castidade e obediência, dependendo totalmente da
caridade alheia para sobreviverem. Eram conhecidos como frades. Aos
poucos, para ganhar a vida, começaram a lecionar ou a fazer o que hoje
chamamos de “trabalho social”. Muitos deles se tornaram teólogos e
pregadores famosos. As universidades que foram criadas através da
Europa, quase sempre tinham frades como professores, pois estes eram
livres para deixar o sistema vigente e começar algo novo. Naturalmente,
em uma sociedade muito conservadora como a Europa Ocidental da-
quela época, por exemplo, tal inovação levantava muita suspeita — isso
explica por que o clérigo da Floresta de Sherwood era um frade, e não
um monge ou um padre comum como os das paróquias.45
Quanto ao culto na igreja, tanto havia grande uniformidade quanto
grande variedade. A uniformidade era mais óbvia na linguagem usada,
quase sempre latim. O latim clássico deixou rapidamente de ser usado
em sua forma pura quando o Império Romano se desintegrou, contudo,
durante muitos séculos, os moradores das antigas províncias achavam

44 Veja C. H. Lawrence, MedievalMonasticism: Forms of Religious Life in Western Europe


in the Middle Ages (Londres: Longman, 1984).
45 Veja C. H. Lawrence, The Friars (Londres: Longman, 1994). Para mais detalhes

sobre as ordens religiosas, vejaj. Moorman ,A History of the Franciscan Order (Ox-
ford: Oxford University Press, 1968); B. Jarrett, The English Dominicans (Londres:
Burns, Oates & Washbourne, 1921).
que continuavam a falar essa língua, todavia em forma de dialeto. Foi
somente em 812 que um decreto de Carlos Magno reconheceu a língua
rústica da França, autorizando o seu uso nas pregações - a primeira
indicação da florescência do que hoje chamamos de língua francesa.
Os países do norte nunca falaram latim, porém a língua foi introduzida
pelos missionários, que a preferiam em vez do vernáculo local. Havia
algumas traduções, em irlandês e inglês, por exemplo, mas, que nunca
foram de uso oficial. A igreja do ocidente usava o latim, quer o povo o
entendesse ou não, e isso era visto como sinal de sua união, assim como
de sua conexão com os tempos do Novo Testamento. Afinal, quando
Pôncio Pilatos mandou que se pusesse a inscrição acima da cabeça de
Jesus na cruz, ele ordenou que ela fosse escrita em hebraico,46 grego
e latim. Entretanto, o hebraico era a língua dos judeus, que rejeitaram
Cristo, e o grego era usado pelos asmáticos do Leste. Portanto, restou
somente o Latim — a língua sagrada que ligava todo o Ocidente à cruz
de Cristo.
Afora isso, no entanto, a diversidade era considerável. Muitas regiões
e dioceses locais desenvolveram suas próprias liturgias, que eram bas-
tante parecidas, mas, longe de serem idênticas. Em geral, as pessoas
não viajavam muito, então, a diferença não era de grande importância,
mas, quando a união da igreja foi desafiada pela Reforma, essa variedade
foi uma das primeiras coisas a ser abordada. A diversidade deixou de
ser tolerada porque talvez abrisse portas à heresia, e todas as igrejas
resultantes da divisão ocorrida no século 16 estabeleceram suas próprias
regras - ou o que a Inglaterra chamava de “uniformidade” de culto —
para garantir que todas as suas congregações tivessem o mesmo padrão
e aprendessem a mesma doutrina.
Que impressão tudo isso deixou na pessoa comum? É impossível
medir com qualquer grau de certeza, pois as evidências são drains-
tanciais e podem induzir a erro. Em geral, a história registra apenas as
pessoas que se destacam como exceções, contudo, isso apenas afirma
o que não era esperado, e não reflete o comportamento da grande
população. Sabemos que pouquíssimas pessoas entendiam as missas

46João 19.20.
que eram conduzidas em latim, pois quando o padre apresentava o
pão consagrado e dizia, “Hoc est corpus meum [Este é o meu corpo]”, a
maioria das pessoas entendia hocuspocus, uma frase usada [em inglês]
para descrever disparates pseudomágicos. Possivelmente, era assim
que muitas pessoas entendiam as celebrações litúrgicas — um meio de
espantar os maus espíritos, talvez, ou de receber tratamento favorável
de Deus — sem terem a mínima ideia do que estava acontecendo.
Outro aspecto da Idade Média que nos parece estranho hoje é que
praticamente ninguém possuía uma Bíblia, e poucos conseguiríam ler,
caso tivessem uma. Livros eram extremamente caros e ler e escrever
não tinha muita utilidade para a maioria das pessoas. Até os padres mal
sabiam ler. Muitos deles eram filhos da terra que moravam perto de
seus rebanhos e, então, podiam ser excelentes pastores, contudo, seu
estudo formal era rudimentar, e em geral sua necessidade de educação
era ligeiramente maior do que a de qualquer outra pessoa de suas pa-
róquias. Desde que conseguissem rezar a missa, o que muitos sabiam
de cor, e assinar seus nomes, pouco mais era exigido deles na maior
parte do tempo.
No entanto, os assuntos da Bíblia não eram desconhecidos. Suas
histórias eram comunicadas a um público mais amplo por meio de vi-
trais e peças teatrais de mistério que contavam a criação e a redenção.
Pregadores itinerantes transmitiam os ensinos de Jesus e dos apóstolos,
e a obra dramática da salvação fazia parte do calendário litúrgico da
igreja. O calendário começava quatro semanas antes do Natal, quando
a vinda (“advento”) de Cristo era anunciada e as profecias do Antigo
Testamento relatadas em detalhes. Mas, o Advento também apontava
para a segunda vinda de Cristo — o passado e o futuro eram capturados
no presente. O Natal era a grande festa da encarnação, que vinha seguida
pela vida de Jesus, que culminava na Sexta-feira da Paixão e Páscoa.
Depois, vinha a Ascensão e o Pentecostes, que marcava o fim do ciclo
e o início do tempo presente, ou “ordinário”, da igreja.
Além desse roteiro básico, havia muitos dias de santos e outras
comemorações que traziam à memória pública os acontecimentos
importantes na vida de Jesus e da igreja. Muitos dessas festas eram inti­
mamente relacionadas ao ritmo da agricultura e, então, se tornaram um
tipo de paganismo batizado. O Natal, por exemplo, acontece no fim de
dezembro porque a data marcava a morte e o renascimento da luz no
solstício de inverno [no hemisfério norte]. A Páscoa incorpora muitos
dos traços de um culto à fertilidade, como os ovos e os coelhos ainda
comprovam. O Dia de Todos os Santos (1 de novembro) celebrava
as pessoas que morreram na fé, e foi apropriadamente datado para o
fim da estação da agricultura quando a colheita havia terminado e o
refugo era queimado. Em preparo à celebração, os demônios tinham
de ser expulsos, o que era feito na noite anterior — na véspera do Dia
de Todos os Santos [All Hallows' Eve, em inglês] ou Halloween, como
ficou conhecido. O entrelaçamento de temas cristãos e pagãos era
tão profundo que se tornou impossível separar um do outro. O Papai
Noel [Santa Claus, em inglês], por exemplo, foi uma cristianização do
personagem pagão “Father Frost” [algo como Pai do Gelo], mas, que
recebeu o nome de São Nicolau, um bispo do século 4, de Mira, atu-
almente sul da Turquia, que não tinha nada a ver com o Natal e que,
por certo, ficaria profundamente chocado ao saber como é lembrado
em nossos dias.47
O que faltava à devoção popular era um entendimento profundo
dos ensinos das cartas do Novo Testamento, que eram mais racionais
em conteúdo e quase impossíveis de serem dramatizadas ou represen-
tadas em artes visuais. Os monges e os intelectuais conheciam bastante
o apóstolo Paulo, mas, a complexidade ocasional de seus argumentos
não era entendida pelas pessoas comuns. Não foi por acaso que a Re-
forma Protestante do século 16 se enraizou na redescoberta da teologia
paulina, até então desconhecida de muita gente. Martinho Lutero não
inventou a justificação pela fé, mas, quando começou a pregá-la, mui-
tos de seus ouvintes a ouviram e entenderam pela primeira vez, talvez
porque era algo que os vitrais ou uma dramatização de mistério não
transmitiam ao público em geral.
47 Ele é celebrado no dia 6 de novembro, e em alguns países, como a Holanda,
por exemplo, é nesse dia que acontece a troca de presentes. Na Grécia, a
figura do Father Frost é identificado com Santo Basílio, cuja celebração foi
convenientemente marcada para o dia 1 de janeiro.
O que a igreja imperial criou foi um cristianismo cultural, ou cris-
tandade, um mundo em que tudo era expressado em termos cristãos
ou relacionado a temas cristãos. O que os indivíduos acreditavam
não importava muito (a não ser que fossem teólogos ou mestres com
poder de influenciar os outros), pois tudo era absorvido no domínio
da igreja. Mesmo hoje, apesar da secularização das gerações, existem
remanescentes dessa cultura tradicional. Pais não cristãos ainda batizam
seus filhinhos, e a maioria das pessoas envolve a igreja em casamentos
e funerais, mesmo que não consigam explicar a utilidade da igreja além
desses rituais. Há um legado curioso de séculos de cristandade que
persiste em nosso meio. No mundo romano antigo, os cristãos eram
acusados de serem ateus porque não criam nos deuses pagãos. Hoje,
contudo, ateu não é a pessoa que rejeita Júpiter ou Vênus, mas, alguém
que nega a existência do Deus da Bíblia.

AS IGREJAS DO LESTE

Até aqui nos concentramos na igreja do Ocidente, que se desenvol-


veu ao redor de Roma, e nas ruínas do império ocidental. Mas, sempre
existiu outra igreja, ou grupo de igrejas, que nunca se submeteu ao
papa romano e que nos apresenta uma perspectiva diferente sobre o
desenvolvimento da igreja institucional dentro do que era originalmente
a mesma estrutura imperial. Em geral, não existia diferença importante
entre o Ocidente e o Oriente desde que o Império Romano perma-
necesse intacto. Até o final do século 7, ainda era possível a alguém
como Máximo, o Confessor (580-668), viajar livremente entre as duas
metades cristãs do mundo, e até para um grego (Teodoro de Tarso) se
tornar arcebispo de Canterbury.48 Os papas foram súditos do imperador
do Leste até 751, quando as últimas possessões bizantinas no norte e
no centro da Itália caíram nas mãos dos lombardos, e mesmo depois
disso, a lembrança da conexão continuou viva. Geográfica, política e
historicamente, Roma estava mais perto do Leste do que de qualquer
outro lugar na Europa Ocidental, e os resultados disso continuaram a
ser vistos durante séculos.
48 Ele serviu nesse cargo de 668 a 690 e foi o maior idealizador da Igreja Anglicana
institucional em sua fase inicial.
As sementes da discórdia foram plantadas em 800 quando Carlos
Magno ressuscitou o Império Romano no Oeste, um projeto que
Bizâncio nunca aceitou como legítimo. No século seguinte, seus te-
ólogos se engajaram numa polêmica contra o Leste, essencialmente
para justificar essa rejeição da autoridade bizantina.49 As questões se
complicaram com o avanço da evangelização dos eslavos. Os missio-
nários mais importantes entre os eslavos foram Constantino (ou Cirilo,
para usar seu nome monástico) e seu irmão Metódio. Eles eram gregos
de Tessalônica que falavam o dialeto eslavo local e foram levados aos
Bálcãs por invasores dos séculos 6 e 7.50
Cirilo e Metódio foram para a Morávia (que hoje é parte da Re-
pública Checa), onde converteram o rei e muitos de seus súditos. A
Morávia, no entanto, fazia fronteira com o império ocidental, cujos
governantes acharam que a missão do Leste era uma ameaça. Para
desencorajar tal pensamento, Cirilo foi a Roma pedir ajuda ao papa,
entretanto lá morreu sem conseguir o que buscava. Ameaçada pelo
império ocidental e pelos pagãos magiares (húngaros) que chegavam
do Leste, a Morávia cedeu e acabou desabando. Metódio foi embora
para o norte da Macedonia, que ficava perto de sua terra natal, onde
evangelizou os búlgaros, que já haviam se aproximado de Roma. Os
búlgaros sabiam que seriam forçados a se converter ao cristianismo,
mas, queriam se submeter à igreja ocidental e, assim, escapar das garras
da vizinha Constantinopla. No Leste, o gesto foi visto como ameaça,
claro, e a missão ocidental à Bulgária foi impedida, assim como a missão
do Leste à Morávia havia sido.51
Uma linha estava sendo traçada através da Europa e que mais tarde
chegaria ao Oceano Ártico, deixando Bulgária, Sérvia, Romênia e (mais
importante de todas) Rússia no Leste, mas, Croácia, Hungria, Polônia, os
Estados Bálticos e a Finlândia no Oeste. Foi uma divisão fundamental
49 Veja R. Haugh, Photius and the Carolingians (Belmont, MA: Nordland, 1975).
50 Para saber sobre a conversão dos eslavos ao cristianismo, veja A. P. Vlasto, The
Entry of the Slavs into Christendom (Cambridge: Cambridge University Press, 1970);
D. Obolensky, Byzantium and the Slavs (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary
Press, 1994); J. Meyendorff, Byzantium and the Rise of Russia (Crestwood, NY: St.
Vladimir’s Seminary Press, 1989).
51 R. Browning, Byzantium and Bulgaria (Londres: Maurice Temple Smith, 1975).
que permanece intacta até hoje, mesmo que sua importância para a
religião e a cultura não seja devidamente reconhecida. Havia também
uma zona neutra entre as duas metades da cristandade onde nenhuma
das duas tradições dominava e que, portanto, estava aberta a outras
influências. Ao sul, tanto a Albânia (incluindo Kosovo) e a Bosnia se
localizavam nessa zona, o que ajuda a explicar por que a conversão ao
Islamismo foi tão grande quando a região caiu nas mãos da Turquia.
Mais ao norte, o que é hoje a província romena da Transilvânia se tor-
nou, depois da Reforma, o lar dos protestantes e dos unitarianos, que
também floresceram por um tempo na Polônia, um país oficialmente
católico que governava grandes territórios da Ucrânia e Bielorússia or-
todoxas e era, portanto, obrigada a tolerar diferentes grupos religiosos.52
Uma grande diferença entre as igrejas do Oeste e as do Leste que
agora se torna clara é que o Leste não insistiu em uniformidade de idio-
ma. Enquanto Roma impôs o Latim na Europa do norte, Constantino-
pia não agiu assim com o Grego. Ao contrário, os missionários do Leste
traduziram a Bíblia, a liturgia e vários textos teológicos em eslavônico,
uma língua baseada em um dialeto búlgaro, mas, facilmente entendido
no mundo eslavo. Também estabeleceram igrejas locais autônomas
(ou “autogeridas”) que não se tornaram de imediato dependentes de
Constantinopla. Nos Bálcãs, esse processo foi atrapalhado por consi-
derações políticas, e quando os bizantinos estavam fortes o bastante
para incorporar a Bulgária a seus domínios, a igreja búlgara também
foi assimilada, o que nunca aconteceu na Rússia. Este país criou um
sistema em que o líder da igreja russa, o bispo metropolitano de Kiev,
seria alternadamente um grego e depois um russo, uma prática que
manteve a ligação com Constantinopla sem que uma igreja dominasse
a outra. Foi somente em 1444, quando o Império Bizantino estava
agonizante, que o último bispo grego metropolitano foi deposto e um
russo foi eleito em seu lugar.53
52 A Polônia abrigou muitos judeus que eram parte importante da população até seu
extermínio, na Segunda Guerra Mundial.
53 Veja D. Obolenskym, The Byzantine Commonwealth (Londres: Weidenfeld & Nicol-

son, 1971).
A sobrevivência de uma sociedade civil forte no Império Bizantino
também significou que a igreja institucional nunca ocupou a posição
de comando que exercia no Ocidente. Muitos leigos eram teólogos
talentosos, e os imperadores envolviam-se profundamente nas ques-
tões da igreja. Os monastérios eram fatores proeminentes na vida da
igreja do Leste, contudo, os monges eram bem mais individualistas que
seus colegas do Oeste, e muitos eram reverenciados por sua santidade
e habilidade como líderes espirituais. Não havia nenhum equivalente
às ordens monásticas ocidentais, e o envolvimento dos monges do
oriente com questões terrenas nem chegava aos pés do envolvimento
de seus colegas do ocidente. Os monges ocidentais fabricavam quei-
jos e vinhos famosos, por exemplo, o que os orientais não faziam.
Os monges orientais praticamente não se envolviam com educação,
que permaneceu secular enquanto o Império Bizantino existiu. No
século 10, comunidades monásticas passaram a colonizar o Monte
Atos, no norte da Grécia, onde desenvolveram uma rede de fundações
independentes que existem até hoje. Atos não era único no mundo
bizantino, mas, sobrevive como a única relíquia viva de uma cultura
que praticamente desapareceu em todos os outros lugares. Ele é uma
sociedade fechada que não permite a entrada de mulheres e a maioria
das amenidades modernas é desconhecida. Os monges que ali vivem se
dedicam à oração e direcionamento espiritual, servindo de apoio para
o mundo ortodoxo inteiro. O Ocidente não possui nem de longe algo
que se compare ao Monte Atos, e ele permanece como lembrança da
posição central que o monasticismo já ocupou, e continua a ocupar,
no mundo cristão do Leste.
A igreja do Leste não desenvolveu um sistema paroquial igual à
do Oeste, mas, cada vilarejo tinha sua igreja e seu padre. Esses padres
não só tinham permissão para casar como eram quase obrigados a
fazer isso. Até hoje os padres ortodoxos devem projetar uma imagem
masculina completa, com barba e muitos filhos, de um modo que o
Ocidente nunca tentou impor a seu clero. A importância do celibato foi
reconhecida quando se tornou obrigatória aos bispos, que na verdade
eram quase sempre monges. Isso levou ao aparecimento de uma classe
distinta de “padres-monges” (“hieromonges”), praticamente as únicas
pessoas que podiam aspirar ao bispado. Os monges ocidentais também
podiam ser padres, claro, mas, essa ligação especial com o episcopado
era (e ainda é) desconhecida.
Quanto aos templos, o Leste nunca teve a grande revitalização ar-
quitetônica que produziu as catedrais góticas do Oeste, mas, de outras
formas, valorizou os locais de culto de um modo que a igreja romana
jamais o fez. Já no início do século 6, o imperador Justiniano I (r. 527-
65) construiu a magnífica Igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sofia) em
Constantinopla, que era naquela época o maior edifício de seu tipo
no mundo inteiro.54 O interior da igreja foi decorado com mosaicos e
afrescos magníficos retratando a vida no céu, com Cristo sentado na
glória (na abóboda) e cercado por santos. Essa tendência sofreu opo-
sição dos iconoclastas do século 8, que desejavam manter (ou trazer
de volta) a decoração mais austera das primeiras igrejas, contudo, não
tiveram sucesso e o uso do imaginário visual foi consagrado no culto
público de um modo que jamais aconteceu no Ocidente. Até hoje,
a presença maciça de ícones e outras pinturas no interior das igrejas
ortodoxas a diferencia de suas contrapartes católicas romanas, mesmo
que os católicos não façam objeções a imagens por questão de princí-
pio; e, claro, essa característica distingue os ortodoxos ainda mais dos
protestantes. No entanto, os cristãos ocidentais precisam entender que
isso não é apenas uma questão de estilo e tradição, pois a iconografia
tem um papel no culto e na teologia ortodoxa do Oriente que é des-
conhecido no Ocidente.55
A grande renovação da igreja do Ocidente sob o papado, que se
iniciou por volta de 1050 e manteve uma dinâmica estável por mais de
150 anos, não teve equivalente no Leste. O patriarca de Constantinopla
nunca esteve em posição de dominar o imperador, e a lei canônica da
igreja do Leste, embora existisse e tenha sido elaborada por juristas

54 Atualmente, essa igreja só é ultrapassada pela Basílica de São Pedro em Roma,


que foi construída mil anos mais tarde.
55 Veja C. A. Tsakiridou, Icons in Time, Persons in Eternity: Orthodox Theology and the

Aesthetics of the Christian Image (Farnham: Ashgate, 2013).


competentes, nunca foi uma ameaça à legislação civil.56 Um resultado
disso foi que a igreja oriental não podia abolir o divórcio e teve de
aceitar um acordo em que o homem (ninguém imaginava uma mulher
nessa situação) poderia se casar três vezes - mas, não quatro. Esse não
era um princípio teológico, e sim uma decisão política, justificada pelo
que os orientais chamavam de “economia”, que significa a aplicação
prudente de princípios dependendo das circunstâncias. Divórcio era
indesejado, contudo, não podia ser totalmente evitado, então, a “eco-
nomia” era usada como um meio de reconciliar a situação. Esse modo
de resolver a eterna tensão entre princípio e prática permitiu que a
igreja do oriente vivesse com anomalias que no ocidente certamente
provocariam divisão ou forçariam a hierarquia da igreja a legislar com
mais precisão do que ela possivelmente desejaria.
Uma área em que a igreja do Leste praticava economia era em seus
negócios com o Islamismo. De quando os árabes muçulmanos invadi-
ram a Síria, em 636, até a queda de Constantinopla, em 1453, a igreja não
conseguia escapar da presença islâmica e teve de aprender a conviver
com ela. Na teoria, os muçulmanos eram infiéis e a igreja oriental deve-
ria se esforçar para derrotá-los. Na prática, tal coisa jamais aconteceu.
Depois de os árabes fracassarem na tomada de Constantinopla no início
do século 8, os bizantinos estabeleceram uma coexistência geralmente
pacífica com eles. A maioria da população da Síria e do Egito ainda era
cristã, e o imperador sentiu a responsabilidade pelo bem-estar deles,
mesmo que a maioria fosse monofisista em sua teologia. Por quase
quatrocentos anos, teólogos dos dois lados viveram se debatendo, mas,
no âmbito popular, havia muita cooperação e tolerância.
A situação não era a ideal, mas, a igreja do Leste se esforçou para
proteger seu povo que estava sob o regime muçulmano e, em geral, foi
bem-sucedida na empreitada. A situação foi seriamente desequilibrada
quando a igreja ocidental entrou no cenário por meio das Cruzadas. O
Ocidente acusava o Oriente de frouxidão em seu relacionamento com
o Islamismo, e a reação dos muçulmanos foi intensificar seus esforços
na conversão dos cristãos, e, assim, não dar aos expedicionários das
56 W. Hartmann e K. Pennington, The History of Byzantine and Eastern Canon Law to
1500 (Washington, DC: Catholic University of America Press, 2012).
cruzadas a desculpa de que eram um exército de libertação. Esse foi
um exemplo de “economia” oriental projetada para tirar o melhor
das circunstâncias difíceis, e oferece um modelo perfeito de como as
duas metades do mundo cristão abordaram um mesmo problema de
maneiras diferentes.
Para resumir uma situação altamente complexa, a igreja do Oriente
era “imperial” por ser a igreja estatal de um império, ao passo que a igreja
do Ocidente, por outro lado, era um império à parte, competindo com
governantes seculares em vez de complementá-los, e reivindicando o
direito de discipliná-los se e quando saíssem da linha. No fim da Idade
Média a visão imperial das duas igrejas sofreria uma transformação,
contudo, por motivos totalmente diferentes. A igreja imperial do Leste
desabou com o império a que pertencia, embora tenha reaparecido
mais tarde ao transferir sua ideologia ao recém-emergente ducado de
Moscou, que passou a ser considerado a terceira Roma. A igreja imperial
do Ocidente, porém, desmoronou quando os países seculares que ela
tentou dominar se tornaram tão fortes que viraram a mesa no papado,
chegando mesmo a apoiar seus inimigos com a intenção de conquistar
a própria liberdade.

A DOUTRINA DA IGREJA

Ao avaliar como a igreja medieval via a si mesma, precisamos


lembrar de dois fatores. O primeiro é que a institucionalização gerou
sua própria dinâmica no processo de definição. Durante muito tempo,
o Império Romano viveu sem um equivalente à igreja, e quando esta
apareceu em cena foi necessário encontrar um lugar para ela. Qual seria
o papel da igreja na sociedade? Que privilégios ela teria, que poderes
lhe seriam dados e que limites existiriam entre a igreja e outros órgãos
do estado? De celebração de feriados religiosos a isenção de impos-
tos para o clero, tudo precisava ser coberto e justificado. Se a igreja
era necessária ao bem público, então, seria relativamente fácil lhe dar
privilégios e fazer-lhe exceções. Contudo, se a igreja era apenas outra
seita religiosa sem nenhum valor especial a ninguém que não fossem
seus próprios membros, seria bem mais difícil justificar qualquer con-
sideração especial.
Nessa situação, a igreja tinha de fazer sua parte em convencer a
população de que sua presença era tanto necessária quanto benéfica.
Em pouco tempo a igreja ocidental se viu como a única instituição so-
ciai com qualquer estabilidade ou continuidade, o que lhe conferiu um
papel fundamental na sociedade. Qualquer negócio jurídico era efetuado
pelos clérigos, e em cenário mais amplo, papas e bispos legitimavam
governantes seculares. A vida comunitária era cada vez mais moldada
pelos rituais e regras da igreja. Costumes pagãos eram frequentemente
aproveitados e “batizados” e suas associações anteriores eram logo es-
quecidas. Nos arredores de Paris, por exemplo, uma catedral enorme foi
construída em honra a São Dênis, e os reis da França foram enterrados
ali. A igreja foi construída sobre o santuário do deus pagão Dionísio,
que foi simplesmente rebatizado de “Dênis”, contudo, as gerações mais
novas desconheciam o fato ou não acreditavam nele. Para elas, Dênis
havia sido um bispo de Paris do século 3 que foi decapitado por sua
fé. Por um milagre, ele pegou sua cabeça decepada e caminhou uns de-
zesseis quilômetros com ela, antes de cair no local onde foi construída
a igreja em seu nome.
Essa lenda fantástica circula hoje em dia como a história “oficial”,
e os leitores julguem a possibilidade de ela ser verdadeira. Mas, não
importa o que achamos, o passado foi reescrito para se encaixar a uma
visão cristã do mundo, e nesse cenário a igreja obviamente exerceu
um papel de suma importância. Foi a igreja que canonizou a lenda,
reescreveu a história e colocou a si mesma e sua missão no centro do
desenvolvimento humano. Pessoas que eram leais a Roma ou a alguma
tribo bárbara agora se viam classificadas como cristãs, uma população
nova ligada por uma igreja que não conhecia raça nem língua e se ex-
pandia até que, em princípio, abraçou o mundo inteiro.
O grande arquiteto dessa visão foi Agostinho de Hipona (354-430).
Para ele, Cristo era a cabeça e a igreja era seu corpo, “não somente a
igreja local, mas, a igreja local e a igreja através do mundo inteiro. Não
a igreja presente, mas, a igreja que existe desde os tempos de Abel e
alcança a todos os que irão nascer e crer em Cristo”.57 Passado, presen­
57 Agostinho de Hipona, Enarrationes in Psalmos 90.2.1. O mesmo tema aparece em
seu Sermones 4.11.
te e futuro se mesclaram em uma igreja que recebe a todos. Contudo,
ao mesmo tempo, uma distinção importante tinha de ser observada.
Como disse Agostinho:
Gostaria de relembrar os dois arrastões de peixes que os apóstolos
conseguiram ao comando de Jesus — um antes de sua crucificação e
outro após a ressurreição.58 A igreja inteira está representada nessas
duas pescarias, como ela é agora e com será depois da ressurreição
dos mortos. Agora ela tem uma multidão incontável de pessoas, boas
e más, contudo, depois da ressurreição ela terá somente as boas, e um
número determinado delas.59
Em forma de parábola, vemos aqui a distinção entre o que os teó-
logos chamam de igreja militante na terra e a igreja triunfante no céu.
Na terra, a igreja tem uma política de portas abertas. Todo mundo pode
entrar, e os bons se misturam aos maus. Entretanto, só os bons estarão
presentes no céu. Os bons sempre serão membros da igreja mesclada
visível durante sua peregrinação terrena; Deus é o único a conhecer os
que são seus e no fim ele irá separá-los para a salvação.
As implicações disso para uma doutrina da igreja foram enormes.
Antes da época de Agostinho, as pessoas em geral achavam que a igre-
ja era a companhia dos salvos; quem pertencia a ela iria para o céu, e
quem não pertencia estava condenado ao inferno. O problema desse
cenário é que todos viam claramente que muitos membros da igreja
não viviam de maneira genuinamente cristã. Será então que a igreja
não era o corpo dos salvos que ela reivindicava ser? Para os donatistas
a resposta era afirmativa, e eles se separaram para formar sua própria
igreja composta de pessoas verdadeiramente salvas. Agostinho se opôs
a eles, sem passar a mão na cabeça de ninguém e fazendo de conta que
os obviamente desonrosos não eram tão ruins assim, mas, afirmando
que a igreja possuía duas faces: uma temporal e outra eterna. Elas não
eram mutuamente excludentes, mas, sobrepostas, de modo que todos
os escolhidos para serem salvos pertenceríam à igreja por direito pró-
prio; entretanto, a instituição visível na terra também abrigaria um bom

58 As referências são Lucas 5.4-8 e João 21.6-8, respectivamente.


59 Agostinho de Hipona, Sermones 248.1.
grupo de falsos membros. Os verdadeiros cristãos não precisavam ficar
preocupados com os falsos porque, no fim, não seriam aprovados.
Podemos afirmar com segurança que a compreensão de Agostinho
sobre a igreja tornou possível o crescimento e desenvolvimento da
instituição medieval. Se a igreja tivesse mantido a visão de pureza dos
donatistas, ela devoraria a si mesma quando os membros se apartassem
uns dos outros ao perceberem qualquer sinal de pecado. Contudo, havia
um elemento de verdade no Donatismo que tinha de ser reconhecido e
levado em conta. Havia uma igreja pura escondida na instituição visível,
mas, revelada em toda a sua glória no céu. Será que o cristão poderia
ter certeza de que ele era um dos eleitos? Aqui a resposta de Agostinho
foi negativa, pois ninguém conhece a mente de Deus. Mas, pelo menos,
podemos saber que os eleitos são todos membros da igreja visível, então
pertencer a ela é um passo necessário rumo à glória. O melhor que os
cristãos podiam fazer era se firmar na igreja, apesar de seus problemas,
sabendo que fora dela não existia nenhuma esperança de salvação.
Para Agostinho, a predestinação era fundamental à identidade da
igreja. Cristo conhecia os seus, e Deus o enviou ao mundo na hora certa.
Não devemos nem tentar ser mais sábios que ele; ao contrário, devemos
nos submeter à sua soberana vontade e alegrarmo-nos de ter ouvido o
evangelho enquanto outros perderam essa chance. A bênção que nos
alcançou não tem nada a ver com nossos méritos, reais ou imaginários,
pois é completamente um ato da graça de Deus, predeterminado antes
da fundação do mundo.60 Saber disso nos livra da ansiedade de tentar
agradar a Cristo para conquistar seu favor. Ele é o noivo; somos a noiva
que ele escolheu. Nossa responsabilidade é submissão e obediência a
ele como a esposa é chamada a se submeter e obedecer ao marido.61
Não temos necessidade de tentar ficar mais bonitos para Jesus; ele já
nos escolheu e irá dar a beleza que deseja para nós.62
A compreensão que Agostinho possuía da igreja impulsionou outro
aspecto que talvez ele não tenha percebido no momento: que a igreja
era essencialmente uma no mundo inteiro. Isso nunca foi negado, claro,

60 Agostinho de Hipona, Depraedestinatione sanctorum 18.1.


61 Agostinho de Hipona, Enarrationes in Psalmos 147.18.
62 Agostinho de Hipona, Sermones 262.5.
contudo, anteriormente a ênfase era dada à congregação local que se
reunia em torno de seu bispo, que se comunicava com outras igrejas de
sua província e (vez ou outra) com campos mais distantes. A legalização
do cristianismo deu à igreja a oportunidade de realizar concílios mais
amplos, contudo, foi Agostinho, mais do que ninguém, que providen-
ciou suporte teológico para esse recém-descoberto senso de unidade.
A igreja, que era principalmente espiritual, unida em Cristo como seu
corpo e presente na eternidade, dificilmente não seria uma única igreja,
e suas manifestações locais no tempo e no espaço tinham de ser avalia-
das de acordo com isso. No entender de Agostinho, a igreja universal
transcendia as limitações da ordem criada e era espiritualmente perfeita.
O que vemos ao redor são expressões visíveis dessa igreja, e todas
são, até certo ponto, desfiguradas e corrompidas pelo mundo onde
vivemos. Portanto, os cristãos têm de aprender a distinguir o que é
válido eternamente do que é apenas um fenômeno local, e escolher o
primeiro em casos de conflito ou discrepância.
A ênfase na unidade da igreja está ligada à confissão de fé adotada
pelo Primeiro Concilio de Constantinopla, em 381, e conhecido por
nós como o Credo Niceno.63 O credo definiu a igreja como “uma,
santa, católica e apostólica”, quatro adjetivos que ficaram conhecidos
na teologia subsequente como suas “marcas” e “notas”. A definição
precisa dessas marcas variaram com o tempo e às vezes provou ser
controversa, particularmente após a Reforma Protestante, mas, para
a primeira geração que o confessou, o significado das marcas pareceu
claro o bastante.
A unidade da igreja, como já vimos nos escritos de Agostinho,
foi além dos limites do tempo e do espaço. Comentando a afirmação
de Paulo em Efésios 4.6 de que há “um só Senhor, uma só fé, um só
batismo”, João Crisóstomo (m. 407) disse: “O que é esse um só cor-
po? E o fiel através do mundo, tanto os que são, os que foram e os
que haverão de ser. Mesmo os que viveram antes da vinda de Cristo
e agradaram a Deus pertencem ao reino, pois também conheceram a

63 O credo foi confundido com o de Niceia I (325), mas, agora é reconhecido uni-
versalmente como independente dele. Veja J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds,
3. ed. (Londres: Longman, 1972), p. 205-367, para uma explicação abrangente.
Cristo”.64 A unidade da igreja era espiritual, dada pelo Espírito Santo
no Pentecostes e conservada pelos que se mantinham fiéis aos seus
ensinos. Ela foi manifestada no batismo e na Ceia do Senhor, contudo,
esses rituais exteriores tinham o propósito de refletir a ligação interior
do amor espiritual que une os cristãos.65 O notável é que essa unidade
nunca foi definida como conformidade institucional, como seria séculos
mais tarde. A expectativa era que as pessoas estivessem em comunhão
com seus bispos, e os bispos tinham de partilhar a fé uns com os outros,
contudo, isso era algo espiritual medido de acordo com o ensino da
Bíblia Sagrada, e não um relacionamento legal imposto por um líder
eclesiástico, por mais eminente que fosse.
A santidade da igreja também era uma qualidade espiritual. Em
harmonia com os dois aspectos da igreja que já observamos, Agostinho
afirmou com bastante clareza que a igreja santa era a da Jerusalém do
alto, nossa mãe celestial, a cidade de Deus.66 Seu contemporâneo Rufino
de Aquileia (345P-411) disse praticamente a mesma coisa, acrescentando
apenas que a santidade da igreja era caracterizada pela pureza de sua
doutrina, o que foi afirmado de modo claro no Credo dos Apóstolos.67
Quanto ao catolicismo da igreja, sua definição melhor e mais com-
pleta foi dada por Cirilo de Jerusalém como parte da catequese que ele
preparou para os novos convertidos:
A igreja é chamada “católica” porque abrange o mundo inteiro [...] e
porque ensina universal e completamente toda e qualquer doutrina
que os seres humanos precisam saber sobre coisas visíveis e invisíveis,
celestiais e terrenas. Também é chamada “católica” porque sujeita a
raça humana inteira às exigências da santidade.68
Mais uma vez somos surpreendidos pela ênfase colocada na dou-
trina e moralidade, e não em estruturas institucionais. A expectativa era
que todos os cristãos exibissem o catolicismo da igreja por meio de
64 João Crisóstomo, Homiliae in Ephesios 10.
65 Agostinho de Hipona, Sermones 229A. 1—2.
66 Agostinho de Hipona, Sermones 214.11. A alusão é a Gálatas 4.26.

67 Rufino de Aquileia, De symbolo apostolorum 39. Rufino estava usando uma versão

anterior do credo que hoje aceitamos com esse nome.


68 Cirilo de Jerusalém, Catecheses 18.22.
palavras e ações, que necessariamente incluíam participação ativa em
sua estrutura visível, mas, não podiam ser definidas por ela.
Por fim, a apostolicidade da igreja era determinada, acima de tudo,
pela pureza da fé que ela pregava. Atanásio (296-373) foi bem claro
sobre isso. Ao escrever para um bispo egípcio chamado Serapião, ele
afirmou sem rodeios:
“Desde o início, a tradição, o ensino e a fé da igreja católica eram
anunciados pelos apóstolos e salvaguardados por seus patriarcas. Esse
foi o alicerce da igreja. Quem se apartar disso, não é cristão nem deve
mais ser chamado de cristão”.69
A igreja imperial que surgiu séculos mais tarde desenvolveu in-
terpretações mais inflexíveis e institucionais dessas marcas, contudo,
sempre insistiu em que eram sinais da igreja verdadeira. Por quase mil
anos, essa reivindicação nunca sofreu desafio nem muitas discussões.
Apenas quando um número crescente de pessoas começou a perceber
que as marcas da igreja não eram mais visíveis na instituição a que
pertenciam é que se passou a questionar seu verdadeiro significado, e
quando isso aconteceu, a igreja do império mergulhou em uma crise
da qual nunca se desvencilhou.

69 Atanásio,Ad Serapionem 1.28.


5

A crise da igreja no império

CRISE DE AUTORIDADE

Quando o Papa Inocêncio III (liderou em 1198-1216) reuniu o que


seria o Quarto Concilio de Latrão, em 1215, ele e sua igreja estavam no
auge do poder e da influência. Esse concilio foi o último dos grandes
sínodos reformadores a se reunir no século anterior em Latrão, o palácio
papal em Roma, para estabelecer regras quanto à administração da vasta
rede internacional em que a igreja romana havia se transformado. O
Primeiro Concilio de Latrão se reuniu em 1123, após um hiato de 250
anos, e legislou contra o que achou serem os maiores abusos da época.
Ou seja, a venda de cargos religiosos (conhecida como “simonia”)1,
a coabitação de padres com mulheres e a interferência de leigos nos
assuntos da igreja. A plataforma era clara: a igreja deveria pôr ordem
na casa e criar a maior distância possível entre suas questões internas
e as pessoas a quem ela ministrava.
O Segundo Concilio de Latrão em 1139 reforçou o primeiro ao de-
talhar mais minuciosamente abusos específicos, mas, também deliberou
sobre hereges que negavam ou deturpavam os sacramentos e mandou
que os governantes da Europa os erradicassem.1 2 O Terceiro Concilio
de Latrão se reuniu em 1179 e sua maior preocupação foi corrigir
abusos nas eleições dos bispos e outros clérigos, além dos problemas
que surgiram anteriormente, mas, ainda não tinham sido resolvidos de
modo satisfatório.
1 A designação vem de Simão, o Mago, que tentou comprar dos apóstolos o dom
do Espírito Santo. Veja Atos 8.18-24.
2 Cânone 23.
186

No entanto, o Quarto Concilio de Latrão é que faria as mudanças


mais radicais e causaria impacto mais duradouro na igreja. Como seria
de se esperar de Inocêncio III, o concilio iniciou um ataque violento
contra as heresias, que eram agora vistas como o maior perigo contra
a igreja. Os albigenses neomaniqueístas (ou cátaros) do sul da França
foram denunciados e organizou-se uma cruzada para reprimi-los, o
que aconteceu com a ajuda do rei francês. O profeta místico Joaquim
de Fiore (m. 1202), cujos escritos exerceríam grande influência nas ge-
rações futuras inspiradas por suas previsões sobre a chegada do reino
do anticristo, também foi condenado.3 Sentenças, de Pedro Lombardo,
foi citado pela primeira vez como autoridade principal para a doutrina
da igreja, e então a obra tornou-se livro-texto para estudantes de teo-
logia da igreja do Ocidente inteiro. Outras questões tratadas incluíam
a regulamentação da confissão a um padre, que foi fortalecida pela
imposição do que é conhecido hoje como “o segredo da confissão”,
ou seja, a obrigação imposta ao sacerdote de não revelar nada do que
lhe foi confessado, mesmo em se tratando de um crime contra a lei.4
O concilio também legislou contra casamentos clandestinos ao
insistir que fosse proclamado um edito em pelo menos três ocasiões
antes das bodas. Isso deu origem ao que é hoje conhecido como a lei-
tura dos proclamas, uma prática ainda presente em igrejas anglicanas e
presbiterianas.5 Tratava-se também de uma ocasião em que o beneficio
eclesiástico para a indicação de clérigos era estabelecido, e a pentarquia
dos patriarcados originalmente instituída em 381 foi finalmente reco-
nhecida por Roma.
Numa época em que o governo secular da Europa era dividido
e fraco, a igreja providenciou força unificada que deu sentido real
ao conceito de civilização cristã comum. Depois de 1204, Roma até
conseguiu alcançar Constantinopla quando a cidade caiu nas mãos das
Cruzadas, e nasceu a esperança de que sua posição na Palestina, que
havia se enfraquecido pelo ressurgimento islâmico, era recuperável.
Em 16 de julho de 1212, uma batalha importante em Las Navas de

3 Veja M. Reeves ,Joachim of Fiore and the Prophetic Future (Londres: SPCK, 1976).
4 A validade do “segredo” ainda é contestada hoje em dia.
5 É um requerimento legal na Igreja Anglicana e na Igreja da Escócia, por exemplo.
187

Tolosa, na Espanha, enfraqueceu os estados islâmicos na península, e a


impressão era que em breve o país inteiro seria devolvido à cristandade.6
A igreja do Ocidente prosseguia, e durante um tempo seu progresso
parecia invencível.
No século seguinte, entretanto, o papado deixou Roma para ficar
durante tempo indeterminado em Avignon, sob o olhar atento do rei da
França. Constantinopla havia caído nas mãos dos bizantinos em 1261,
e o ideal das Cruzadas havia morrido. Na Europa Ocidental, a igreja
continuava sendo, de longe, a instituição social mais importante, e os
fiéis continuavam a se identificar com ela mais do que com qualquer
outra instituição, contudo, a igreja não era tão dominante como havia
sido há um século. O que ninguém imaginava naquela época é que a
igreja estava prestes a caminhar por três séculos de declínio e conflitos
internos que só terminariam em 1648, quando a Paz de Vestfália deu
fim à Guerra dos Trinta Anos e estabeleceu um equilíbrio religioso no
oeste europeu que permanece essencialmente imutável desde então. O
preço da paz, no entanto, foi a separação efetiva entre as questões eclesi-
ásticas e a política secular. Até mesmo no ainda existente Santo Império
Romano, o papado não mais exercería nenhum papel importante nas
grandes questões europeias.
Como isso aconteceu? E de se esperar que as instituições passem
por períodos de elevação e declínio, e o papado certamente já conhecera
épocas difíceis. O avanço do islamismo no século 8 e as invasões dos
viquingues no século 10 causaram um grande estrago à igreja, e talvez
tenha parecido algumas vezes que o cristianismo seria esmagado na Eu-
ropa exatamente como foi no Oriente Médio, sua terra natal. Contudo,
a igreja se recuperou e floresceu como nunca havia acontecido (e nunca
mais aconteceu). Por que tal fato não se repetiu nos séculos 13 e 14?
Um dos resultados imprevisíveis das Cruzadas foi o maior contato
que elas provocaram entre a Europa e o mundo árabe e muçulmano. Isso
foi especialmente notório na Espanha, que possuía cultura muçulmana
próspera, apesar de sua distância dos principais centros islâmicos, e
que foi reconquistada gradualmente pelos príncipes cristãos do Norte
6 Isso teve de esperar até 1492, contudo, os muçulmanos nunca mais estiveram em
posição de ameaçar os reinos cristãos do norte.
1 ‫סס‬

no decorrer do século 13. Outro lugar de considerável interação entre


cristãos e muçulmanos foi a Sicilia, onde o rebelde imperador Frederico
II (1194-1250) passou a maior parte de sua vida. Frederico incentivou
o diálogo interconfessional, e se tal atitude desgostava o Papa, melhor
ainda, segundo o imperador. Pessoas iguais a ele, e os integrantes das
Cruzadas em geral, dificilmente não perceberíam que as terras mu-
çulmanas e o Império Bizantino possuíam nível cultural mais elevado
que o Oeste Europeu naquela época. Logo descobriram as riquezas
do conhecimento árabe, embora muito desse conhecimento tenha sido
emprestado dos gregos e hindus da antiguidade. Havia muito tempo
que os estudiosos muçulmanos debatiam questões sobre o relaciona-
mento entre fé e razão, discussão que lhes foi imposta pela interação
do Alcorão com a ciência grega antiga, representada acima de tudo
pelo filósofo pagão Aristóteles.7
Aristóteles era praticamente desconhecido na Europa, nem mesmo
os bizantinos davam muita atenção a ele ou à corrente de pensamento
que recebia seu nome. Mas, as coisas foram diferentes com os árabes,
que leram seus escritos e viram neles uma fonte de esclarecimento
intelectual bem independente de qualquer tipo de revelação divina.
Esse conjunto de escritos gregos tratava de assuntos como matemáti-
ca, astronomia e medicina, para mencionar somente alguns; também
formaram a base para o que chamamos de “método científico” de des-
coberta por meio de experimento. Hoje, claro, sabemos que os gregos
antigos geralmente erravam mais do que acertavam, o que leva nossos
contemporâneos a uma atitude negativa em relação a eles. Contudo,
essa descoberta não ocorreu até os séculos 16 e 17. Para aqueles que
fizeram a descoberta cerca de trezentos anos antes, o conhecimento
grego antigo, como transmitido pelos árabes, abriu um mundo de saber
que estava escondido de seus olhos até então.
Obviamente, essa descoberta alcançou a igreja, que se considera-
va a única guardiã de toda sabedoria. Mais ainda, essa sabedoria não
lhe chegou por meio de investigação científica, e sim por revelação
divina. Os primeiros cristãos haviam lutado contra filosofias pagãs
7 Veja I. Najjar, Faith and Reason in Islam: Averroes’ Exposition of Religious Arguments
(Oxford: Oneworld, 2001).
de seu tempo e sido bem-sucedidos, contudo, na maior parte da luta
eles atacaram o politeísmo, e não o que chamamos hoje de ciências
naturais. Esse aspecto do conhecimento antigo passou ao largo deles
ou foi aceito (como em Bizâncio) como “sabedoria exterior”, ou seja,
a sabedoria deste mundo, que era de menor importância comparada à
“sabedoria interior”. Era esse o conhecimento espiritual necessário a
quem desejasse ir para o céu, que era o interesse principal de todas as
pessoas sensatas.
Havia uma sobreposição entre o mundo espiritual e o material, e
ela causava mais dificuldades aos cristãos do que aos muçulmanos. A
visão que os muçulmanos tinham de Deus era puramente espiritual,
assim lhes era mais fácil do que aos cristãos manter o céu e a terra
em compartimentos separados. Os cristãos reconheciam que Deus
se tornou homem em Jesus Cristo e que de alguma forma a igreja era
uma extensão desta encarnação, o corpo de Cristo na terra. Potanto,
o mundo físico não podia ficar separado do mundo divino ou ser in-
terpretado de modo a excluir a possibilidade de qualquer colisão entre
eles. A maneira de entender a criação do mundo é um bom exemplo
do que isso significava. Para os muçulmanos a doutrina da criação era
incontestável, mas, vaga; Deus criou o mundo, sem dúvida alguma,
entretanto, como e quando permaneciam um mistério. Os cristãos,
porém, liam na Bíblia que Deus criou o mundo em seis dias, que eles
presumiram ser períodos de vinte e quatro horas em tempo histórico.
Estudiosos e teólogos acrescentaram várias nuances de sentido figura-
do ao texto, mas, com o passar do tempo, o gosto deles por alegorias
diminuiu e a partir do século 13 passou-se a acreditar que o livro da
revelação (a Bíblia) tinha de coincidir com o que Deus nos revela no
livro da natureza (o mundo que está sujeito à investigação racional).
Dessa forma, o palco estava montado para o embate histórico entre
“religião” e “ciência” que conhecemos hoje e no qual a igreja parece
sempre derrotada. Já no século 13, surgiram universidades em lugares
como Paris e Oxford que desafiavam, se não a igreja como tal, pelo me-
nos os monastérios como principais provedores de educação. Durante
séculos, o jovem que desejasse exercer o sacerdócio (ou fosse esse o
desejo dos pais para ele) recebia educação básica em um monastério,
era ordenado e mandado a uma paróquia, que em muitos casos era da
competência de um abade. A educação monástica tinha um lado mui-
to prático; o sacerdote ali treinado provavelmente sabia lavrar a terra,
ordenhar vacas e assim por diante. Essas habilidades o aproximavam
da população a que ele fora chamado a servir e eram de grande valia
se ele tivesse de se sustentar.
As universidades, por outro lado, formavam um tipo bem diferente
de candidato ao sacerdócio. Quem se formava nesse sistema estava
capacitado a debater filosofia e teologia, mas, esse conhecimento
geralmente provocava polêmicas e não apelava muito ao gosto das
paróquias. Na verdade, um tema recorrente no final da Idade Média
era a necessidade dessas universidades, como passaram a ser chamadas,
encontrarem trabalho para seus formandos. Seus reitores imploravam
a bispos relutantes que encontrassem uma função de cônego para eles,
mas, talvez de maneira inevitável, muitos desses jovens preferissem
cargo administrativo: eclesiástico, secular, ou os dois. Dessa forma, os
reis do Oeste Europeu formaram um contingente de homens altamente
qualificados que trabalhariam para eles e usariam suas habilidades para
fazer frente à influência da igreja.
Obviamente a igreja sabia desses perigos e esforçou-se para manter
controle sobre a educação. Desde o início, Aristóteles foi visto como
o principal inimigo, e em 1277 entrou em vigor um decreto proibindo
o ensino de suas obras na Universidade de Paris. A essa altura, porém,
era tarde demais. Um curso mais sensato já havia sido desenhado por
homens como Tomás de Aquino (1225-74). Ele reconheceu que a
ciência aristotélica e a teologia bíblica eram disciplinas complemen-
tares, e não contraditórias. O que Aristóteles ensinava era aceitável
comõ verdadeiro até certo ponto, contudo, os teólogos achavam que
não ia longe o bastante. Para completar o quadro do conhecimento
universal, era necessária a revelação divina de verdades que estavam
além do alcance da razão, e essa interpretação só poderia ser feita pela
igreja, à qual havia sido confiada. Superficialmente, essa distinção entre
verdades acessíveis à razão humana e verdades além de seu alcance era
parecida com a distinção entre sabedoria exterior e sabedoria interior
tão conhecida dos bizantinos, mas, a estrutura conceituai era diferente.
A mentalidade bizantina permitia interpretações alegóricas e místicas
da Bíblia, mas, elas não eram vistas com bons olhos no Ocidente, es-
pecialmente nas faculdades teológicas.
Para a nova safra de teólogos-filósofos ocidentais, a diferença entre
a Bíblia e Aristóteles não era de gênero nem mesmo de propósito,
mas, de fonte. Não falavam das mesmas coisas de maneiras diferentes
(como supunham os bizantinos); falavam de coisas diferentes da mes-
ma maneira. Aos olhos dos estudiosos, a Bíblia supria o conhecimento
que o método de Aristóteles era incapaz de produzir, no entanto, esse
conhecimento não era de caráter fundamentalmente diferente. Em
si ele era tão racional como qualquer coisa que as ciências naturais
pudessem apresentar, contudo, as limitações da mente humana eram
tantas que tal conhecimento era inacessível pelos mesmos métodos.
A Bíblia prosseguiu de onde Aristóteles havia parado — ou seja, o que
era conhecível pela natureza era complementado pelo que só podia
ser conhecido pela graça. O pressuposto era que os dois mundos de
aprendizagetn estavam ligados um ao outro, de maneira que a ciência
de Aristóteles, propriamente entendida, não contradizia a revelação
bíblica e vice-versa. Se houvesse discrepância, a culpa seria sempre
de Aristóteles que era pagão, e assim, ninguém esperava que estivesse
certo o tempo inteiro. Os problemas surgiam apenas quando o método
aristotélico revelava algo que era (ou parecia ser) incompatível com a
revelação bíblica.
Para a geração de Tomás de Aquino, o conceito das duas fontes de
conhecimento parecia salvaguardar a posição da igreja, mas, isso foi
logo criticado. Os milagres eram um problema especial. Era até possível
defender algo como a ressurreição de Jesus como um fato único espe-
rado de alguém que também era o divino Filho de Deus, porém o que
dizer do milagre do altar, em que sacerdotes transformavam pão e vinho
comuns no corpo e sangue do Salvador milhares de vezes por dia? Era
algo realmente plausível? Mesmo que esse milagre fosse possível, como
a igreja podería ser despenseira da graça divina quando tantos de seus
ministros eram ignorantes e corruptos, incapazes até mesmo de ler as
Escrituras da qual supostamente deveríam ser guardiões e intérpretes?
Será que alguém que aprendeu a orar em um monastério conhecia mais
1

teologia do que alguém que aprendeu a estudá-la e debatê-la em uma


universidade?
Essas perguntas começaram a surgir por volta do ano 1300, e sem-
pre que a igreja tentava reprimi-las o problema aumentava. No entanto,
a fraqueza intelectual da posição da igreja demorou a ser totalmente
exposta porque os debates eram relativamente abstratos e difíceis de
serem entendidos pelas pessoas comuns. Mais reveladora ainda aos
olhos da população era a questão financeira criada quando a igreja ale-
gava o direito de isenção de impostos públicos. No entender da igreja,
dinheiro ofertado a ela era dinheiro ofertado a Deus e, portanto, não
tributável pelo Estado. Contudo, aos olhos do Estado, a igreja era um
parasita social, que exigia ser protegida dos inimigos (pagãos, hereges
e muçulmanos), mas, não desejava pagar pelo serviço. O fracasso das
Cruzadas deixou isso bem nítido a grande parte da população. Enormes
quantias de dinheiro foram levantadas e gastas pela igreja (ou sob seus
auspícios) em uma causa fracassada. Ao mesmo tempo, os reis tinham
de promover o estado de direito e a ordem em seus reinados, tarefa
que muitas vezes era malograda por uma igreja que exigia privilégios
especiais; por exemplo, o direito de julgar seus oficiais mesmo quando
fossem acusados de crime secular tal como roubo ou assassinato. O
conceito de que havia uma lei para a população e outra para o clero criou
raiz, e essa aparente injustiça tinha algum fundamento, pois qualquer
pessoa que soubesse assinar o próprio nome tinha direito de reivindicar
“benefício clerical” e, assim, livrar-se das punições mais duras da lei.
O ressentimento popular contra os privilégios da igreja ajudou o
rei Felipe IV da França (r. 1285-1314) a se engajar em um longo duelo
com o papado do qual saiu vitorioso. Quando o rei exigiu o direito
de tributar os bens da igreja, tudo o que o Papa conseguiu fazer foi
excomungá-lo e proclamar um edital {Clerieis laicos) condenando o
confisco de propriedade eclesiástica por um governante secular. O
Papa exercia alguma autoridade moral, contudo, o rei estava escorado
por um exército, e enquanto o exército lhe fosse leal, sua vitória era
certa. À época de sua morte, Felipe IV havia forçado os Papas a saírem
de Roma e instalarem-se em Avignon, onde permaneceram até 1377.
Esse período, conhecido pelas gerações seguintes como o “cativeiro
babilônico” da igreja, foi prejudicial ao papado porque questionou
sua autoridade. Se o Papa era o bispo de Roma, cidade onde Pedro foi
martirizado, por que ele era impedido de morar ali? Mais ainda, por
que ele aceitava uma situação que o deixava à mercê do rei da França?
Essa questão ficou ainda mais aguda depois de 1328, quando o
fracasso da linhagem real francesa em produzir um herdeiro resultou
num conflito entre a nobreza francesa (que desejava que o parente
masculino mais próximo do falecido rei Carlos IV fosse seu sucessor)
e o rei Eduardo III da Inglaterra (r. 1327-77), filho de Isabel, filha úni-
ca de Carlos IV, que reivindicou o direito de herdar a coroa da França
por intermédio da mãe. O conflito resultou na Guerra dos Cem Anos
entre Inglaterra e França, da qual podemos afirmar que a Inglaterra
venceu quase todas as grandes batalhas, mas, no fim, a França ganhou
a guerra. Obviamente, esse conflito constante colocou em dúvida a
neutralidade do papado, e não por acaso a Inglaterra eduardiana foi um
dos primeiros lugares do Ocidente onde a resistência ao Papa e suas
reivindicações surgiu para valer.
Essa resistência já tinha raízes no pensamento de William de
Ockham (1287?-1347), um inglês cuja dedicação aos princípios aristo-
telianos da razão e lógica não perdia para ninguém. Ockham tinha uma
carreira um tanto turbulenta, suavizando o termo, e morreu na Alema-
nha como fugitivo da justiça papal — embora o fato de os alemães lhe
darem refúgio mostre que a Inglaterra não era o único país interessado
em neutralizar os Papas de Avignon. Outra influência importante na
mesma direção foi a de Marsílio de Pádua (1280?-1343), contemporâneo
de Ockham que publicou uma crítica devastadora ao papado conhecí-
da como The Defender of the Peace [O defensor da paz, tradução livre].8
Marsílio mostrou que o papado havia ultrapassado excessivamente os
limites de sua autoridade na tentativa de dominar a Europa, e na ver-
dade, a instituição lhe era de pouco valor. Seu livro se transformou em
uma trombeta conclamando por uma reforma completa; mais tarde,
8 Existem no mercado duas traduções recentes em inglês dessa obra. Uma foi
traduzida por A. Gewirth e é conhecida por seu título em latim Defensor pads (To-
ronto: University of Toronto Press, 1980); a outra foi traduzida por A. Brett e é
conhecida por seu título inglês, The Defender of the Peace (Cambridge: Cambridge
University Press, 2005).
supôs-se que quem duvidava da autoridade papal bebera na fonte dos
ensinos de Marsílio, fosse isso verdade ou não.
No entanto, não foi Marsílio, e sim John Wyclif, que sofreu a in-
fluência de Ockham embora não tenha sido seu discípulo direto, que
encabeçou as acusações contra o papado, em circunstâncias que lhe
foram particularmente favoráveis naquela época. Quando aluno da
Universidade de Oxford, Wyclif abraçou as idéias de Ockham, junta-
mente com uma forte dose de Aristóteles e a teologia escolástica de
homens como Tomás de Aquino. Mas, talvez, o impacto mais profundo
em sua vida não tenha vindo de nenhum desses, e sim de algo total-
mente diferente. Começando no fim de 1346 e alongando-se por um
período de três ou quatro anos, a Europa Ocidental foi devastada pela
peste bubônica, popularmente conhecida como peste negra. A praga,
disseminada por pulgas que infestavam ratos, era altamente contagiosa,
e em pouco tempo matou quase metade da população europeia. Os
clérigos foram atingidos de forma especialmente dura, pois cuidavam
dos enfermos e moribundos, e assim pegavam a doença.
Ninguém entendia como ou por que a peste causava tal devasta-
ção, porém as explicações não demoraram a ser feitas. Em um mundo
onde se acreditava que a igreja orava a Deus buscando a proteção de
seu povo contra tais calamidades, era fácil apontar para as condições
anormais nas quais a igreja se encontrava como a causa verdadeira da
infelicidade da população. Era fácil ver a peste como o julgamento
de Deus contra uma igreja corrupta. Wyclif não se preocupava tanto
com a mudança do papado para Avignon, nem com as irregularidades
financeiras. O que o agastava mais era o erro doutrinário, um pecado
que, para ele, era o cerne de tudo o que era danoso. Para Wyclif as
falsas crenças inevitavelmente produziríam ensino falso e levariam ao
comportamento errado, e assim provocariam o justo castigo de Deus.
Wyclif não atacou a instituição papal em si, entretanto abordou
duas crenças fundamentais que os Papas faziam questão de promover.
A primeira afirmava que a Bíblia e a tradição da igreja exerciam autori-
dade de igual importância, e então o que não se encontrava escrito na
Bíblia deveria assim mesmo fazer parte da revelação divina que a igreja
recebeu por meio da tradição.9 Como as duas autoridades acabavam
sendo controladas pelo Papa, não importava qual delas era usada; de
qualquer forma, a igreja conseguia o que almejava. A segunda crença
era a transubstanciação, que Wyclif acreditava ser bobagem científica,
mas, que o Papa anunciava como um dos aspectos mais importantes do
sacerdócio ministerial.10 Para chegar mais perto de Cristo, os cristãos
tinham de participar do sacramento, que só podería ser ministrado por
um sacerdote legalmente ordenado. Em consequência, a autoridade da
igreja sobre os fiéis estava estreitamente ligada ao poder do sacerdote de
lhes dispensar a graça de Deus — ou, mais importante, reter essa graça
caso se comportassem indevidamente. A igreja recebeu as chaves do
reino celeste, e os sacerdotes tinham a obrigação e a responsabilidade,
encabeçados pelo Papa, de aceitar ou rejeitar quem buscava entrada
nesse reino.
Wyclif enfatizava que a autoridade suprema da igreja não era o
Papa, mas a Bíblia, a autorrevelação de Deus à raça humana. O fato de
os Papas terem se apoderado da igreja como fizeram era resultado da
ignorância popular com respeito às Escrituras; como diriamos hoje, o
cristão comum não conhecia seus “direitos”. A escassez extrema de
Bíblias e a precariedade de suas traduções asseguravam que somente
um bom conhecimento do latim oferecia qualquer esperança de alguém
entender seus ensinos. Isso, claro, concedeu ao clero uma posição pri-
vilegiada. Para entendermos melhor essa situação, pensemos no papel
dos advogados nos dias de hoje. Em teoria, qualquer pessoa acusada de
crime pode se defender no tribunal, entretanto, a lei é tão complicada
e arcana que somente os muito imprudentes tentariam fazer isso. Ao
contrário, os acusados procuram advogados, cujo trabalho é essencial-
mente descobrir um modo de livrar seus clientes, sejam eles inocentes
ou culpados. Os sacerdotes medievais não eram muito diferentes. Al-
guns também eram advogados, e administravam a lei canônica com a
9 Isso foi frisado pelo legado papal Othobon, em 1268, em um discurso que fez ao dero
da província inglesa de Canterbury. Othobon promulgou uma nova série de cânones
para a igreja da Inglaterra, e agradeceu a Deus pela possibilidade de assim suplementar
o ensino das Escrituras. Mais tarde, ele se tomou o Papa Adriano V (1276).
10 Esse foi outro legado do Quarto Concilio de Latrão, em 1215.
mesma segurança com que ensinavam as Escrituras e esperavam que
suas considerações fossem aceitas sem reclamações. Como resultado,
as pessoas influentes geralmente alcançavam o que queriam, como a
anulação de um casamento, por exemplo, enquanto os mais humildes
ficavam à mercê do sistema.
Porque Wyclif favoreceu a Bíblia e se opôs à doutrina da transubs-
tanciação, ele se tornou a “estrela da manhã da Reforma” para futuras
gerações de protestantes, que passaram a vê-lo como seu antepassado
espiritual, embora essa perspectiva tenha sido contestada em tempos
mais recentes. Certamente nós concordamos que Wyclif não previu
a Reforma; ela só desabrochou mais de um século após sua morte.
Quando a Reforma aconteceu, as questões que provocavam divisões
na igreja eram outras, e Martinho Lutero nunca afirmou diretamente
que Wyclif era sua inspiração. Também, os seguidores sobreviventes
de Wyclif, conhecidos como lolardos, não causaram muita impressão
no século 16. Os que ainda existiam se misturaram ao movimento
protestante sem deixar rastro nenhum. Até as traduções que Wyclif
fez da Bíblia, embora certamente conhecidas, não tiveram papel na
igreja reformada. Seja como for, eram baseadas na tradução do latim
e não nos textos originais em hebraico e grego, e, portanto, foram de
pouco interesse no século 16, quando o público ansiava voltar às línguas
originais do texto bíblico atrás do latim.
No entanto, se é complicado imaginar Wyclif como precursor da
Reforma, alguns aspectos de seus ensinos levantaram questões que
teriam papel importante nela. Seu apoio à autoridade bíblica contra a
tradição aprovada pela igreja e sua rejeição da doutrina cientificamente
insustentável da transubstanciação eram sintomáticas das coisas que
mais tarde questionariam a autoridade da igreja de um modo que Wyclif
abraçaria, mesmo que fossem além do que ele estava procurando fazer.

DESINTEGRAÇÃO INSTITUCIONAL

Um dos efeitos da peste bubônica foi a diminuição do número de


monges. Antes da peste, os monastérios, e a vocação clerical em geral,
tinham sido uma válvula de segurança muito útil para conter o perigo
da superpopulação. Os camponeses precisavam ter famílias numerosas
para cuidar de suas lavouras e compensar o alto índice de mortalidade,
porém não desejavam que suas terras fossem tão subdivididas que não
compensasse mais trabalhar. Assim, os filhos indesejados (e as filhas
solteiras) eram entregues à igreja, onde teriam vidas confortáveis e
respeitáveis, e poderíam até alcançar uma posição que os levassem a
ajudar suas famílias empobrecidas. A peste deu um fim repentino e
cabal a tudo isso. O problema da superpopulação deu lugar à escas-
sez, e poucos rapazes podiam ser encaminhados à vida monástica. Os
monges e o clero também sofreram de modo desproporcional, como
já observamos. Os monastérios, então, que estavam sempre repletos
declinaram ao ponto de terem um punhado de membros, e vastas ex-
tensões de terra monástica arável ficaram ociosas sem ninguém para
cultivá-las. A mão de obra, que havia sido barata e abundante, se tornou
parca e mais cara, permitindo que homens habilidosos, por exemplo,
estabelecessem pequenas empresas que os livrassem da pobreza rural.
Devagar mas, sempre, começou a surgir a classe média com condições
de educar seus filhos, mas, que não desejava que abraçassem o mundo
celibatário da igreja institucional.
Esses acontecimentos não anunciavam um declínio da fé — longe
disso. A partir do final do século 17, surgiram novos projetos cristãos
de vida comunitária, não mais enraizada no monaquismo tradicional e
sim refletindo o desejo de viver como ser humano normal, com casa-
mento e família sendo a chave da vida consagrada. A experiência mais
importante aconteceu na Holanda e foi associada ao nome de Geert
Groote (1340-84). Groote foi essencial na formação de uma comunida-
de conhecida como “Brethren of the Common Life” [Irmãos da vida
comum, tradução livre]; suas práticas eram chamadas de a “devoção
moderna” por serem novidades naquela época.11 Groote enfrentou
muita oposição, entretanto, no decorrer do século 15, a devoção mo-
derna se espalhou através dos Países Baixos, atraindo, entre outros, o
grande Thomas, a Kempis (1380P-1471), cuja obra clássica Λ imitação
de Cristo (Shedd Publicações) continua procurada em nossos dias. Du-
rante muito tempo os “Irmãos” foram considerados precursores da *

Veja R. R. Post, The Modem Devotion: Confrontation with Reformation and Humanism
(Leiden: Brill, 1968).
Reforma Protestante, mas, hoje isso é considerado anacronismo e, na
verdade, eles foram hostis com os protestantes ao encontrá-los pela
primeira ve2. Por outro lado, não há dúvida de que o estilo de vida dos
Irmãos era mais atraente a pessoas como Martinho Lutero do que o
monaquismo, e assim que a Reforma teve início, muitos dos que antes
teriam se juntado aos Irmãos se tornaram protestantes.
Havia também maior ênfase na espiritualidade individual, que po-
deria ser praticada tanto por celibatários quanto casados. A devoção
feminina, nunca ausente, se tornou mais comum na literatura da época,
e mulheres letradas da Inglaterra, tais como Lady Margaret Beaufort
(1443-1509), se tornaram beneméritas do avivamento do aprendizado
que começou com força no século 15.12 A igreja estava se diversifican-
do, e de muitas maneiras os cristãos ficavam mais independentes das
organizações tradicionais. E óbvio que não devemos exagerar esse fe-
nômeno. Para a maioria das pessoas, tudo continuava como antes, e as
antigas tradições da vida paroquial tinham de continuar como sempre
foram. Mas, independentes de seus limites, as mudanças estavam pelo
menos se tornando possíveis e aceitáveis, um fenômeno desconhecido
um ou dois séculos antes.
O declínio dos monastérios resultou em declínio correspondente da
educação que ofereciam, embora aqui também não devamos exagerar.
No início do século 16, alguns ainda buscavam os monastérios atrás de
educação teológica - Martinho Lutero foi um deles. Contudo, depois
da peste bubônica, certamente o impacto causado pelas universidades
aumentou, e o valor da educação que elas ofereciam era bastante apre-
ciada. Os frades, que como grupo haviam ficado às margens da vida
da igreja no século 13, tornaram-se mais importantes com o passar do
tempo, e a liberdade que tinham de se locomover foi de grande ajuda
para se estabelecerem como professores e pregadores itinerantes. Os
frades eram propensos a institucionalizar suas ordens da maneira que
os monges haviam feito, contudo, havia também entre eles forças
poderosas de renovação que mantinham alguns deles entusiasmados

12 Ela era mãe do rei Henrique VII (r. 1485-1509) e fundou duas faculdades em
Cambridge (de Cristo e de São João); também subsidiou uma cátedra de divindade
que leva o seu nome.
íyy

e fiéis à visão original de homens como Francisco de Assis. No início


do século 16, os franciscanos experimentaram uma renovação entre
os observadores, ou seja, homens que retornaram às regras rígidas
da ordem que haviam sido estabelecidas por Francisco de Assis. Os
observadores exerciam influência particularmente na Irlanda e foram
reconhecidos por impedir o avanço dos protestantes com seu próprio
programa de reforma.
Em muitos lugares onde a pregação era quase desconhecida, os
frades levavam a Palavra de Deus ao povo, às vezes com efeitos dra-
máticos. Em Florença, por exemplo, o frade dominicano Girolamo
Savonarola (1452-98) causou um impacto tremendo, pois durante um
curto período de tempo ele foi o governante da cidade e fez ali uma
reforma moral que continua a impressionar os observadores modernos.
Savonarola foi considerado um radical perigoso e foi logo morto por
sua audácia, mas, o fato de ele ter ido tão longe quando igreja e Estado
se agruparam para derrubá-lo, mostra a força do movimento que ele
representava e seu apelo ao povo em geral.
No entanto, seja qual for a influência que esses e outros movimentos
periféricos exerceram sobre a igreja entre 1350-1500, nada se compara
à dramática implosão do papado, o pivô do sistema medieval todo. Ao
mesmo tempo em que os desafetos de Wyclif tornavam suas “heresias”
conhecidas da igreja como um todo, os Papas voltavam de Avignon
para Roma, graças em parte às vitórias inglesas contra a França, que
enfraqueceram a monarquia francesa. Consequentemente, esta perdeu
a força de impedir que o papado retornasse ao lugar a que pertencia.
Em teoria, a volta do papado a Roma deveria ser bem aceita por todos,
mas, apesar de o mundo cristão inteiro ficar feliz ao vê-lo retornar a
seu lugar de direito, esse não foi o caso das pessoas mais diretamente
envolvidas — os cardeais e a nobreza francesa. Depois de quase seten-
ta anos em Avignon, todos os cardeais eram franceses e não tinham
vontade de se estabelecer em uma cidade que não só lhes era estranha,
mas, também, quase toda arruinada pela negligência.
Quando o Papa morreu, em 1378, os cardeais concordaram em
eleger um dos seus como sucessor, desde que ele retornasse imediata-
mente a Avignon. Infelizmente para eles, o Papa renegou sua promessa,
adotou o nome de Urbano VI, deixando clara a sua determinação de
ficar na cidade eterna (urbs). Boquiabertos diante da traição, os cardeais
se retiraram para Pisa, onde depuseram Urbano VI e elegeram um Papa
mais maleável. O eleito obedeceu imediatamente e retornou à França,
que ficou muito feliz em apoiá-lo. Agora existiam dois Papas, e os dois
reivindicavam a autoridade legítima da eleição realizada pelo Colégio
de Cardeais. Para uma igreja que veio a se apoiar pesadamente no Papa
como foco de união, isso foi desastroso porque dividiu o cristianismo
Ocidental em dois. A Inglaterra estava guerreando contra a França,
então, daro, ela se uniu ao Papa de Roma contra o Papa de Avignon.
A Escócia, por outro lado, aliou-se à França contra a Inglaterra, e,
portanto, torcia por Avignon. E assim foi por toda a Europa. Prati-
camente ninguém tomou partido por motivos teológicos; a questão
toda era política do começo ao fim, banhando de dúvida e descrédito
a instituição papal inteira.
O Grande Cisma, como ficou conhecido o episódio, continuou até
1417, quando foi reparado no Concilio de Constança, que foi convo-
cado pelo imperador exatamente com esse propósito. Mesmo assim,
demorou até que os últimos remanescentes do cisma desaparecessem
e houvesse novamente um Papa único reconhecido por todos. Infeliz-
mente, esse resultado feliz foi manchado por um escândalo que ecoaria
através da história da igreja e, até certo ponto, continua vivo hoje em dia.
Críticas à igreja semelhantes às de John Wyclif não se restringiram
à Inglaterra. Na Boêmia, Jan Hus pensava da mesma forma, e os hus-
sitas foram inspirados por seus colegas ingleses. Como todos usavam o
latim, suas idéias se espalharam facilmente, e como resultado, algumas
obras de Wyclif sobrevivem hoje em manuscritos somente na Europa
Central, onde os hussitas haviam feito cópias. Hus falava tcheco em
um país que ficava cada vez mais sob o domínio alemão, portanto, o
nacionalismo teve influência em sua oposição a uma igreja que parecia
favorecer os mais poderosos. Outros tchecos se preocupavam porque
o papado permitia somente um elemento na ceia (o pão, mas, não o
vinho), uma prática que eles consideraram não bíblica. Não se sabe
de onde veio esse costume; uma teoria é que se tratava de medida de
higiene para evitar que a peste e outras doenças se espalhassem por
meio de um cálice comum a todos. Seja qual for o motivo, o certo é
que servir os dois elementos (sub ultraque specie) era a norma do Novo
Testamento e a prática universal da igreja até então.
Em vez de reconhecerem isso e restaurarem o cálice ao povo, as au-
toridades eclesiásticas decidiram que o ultraquismo, como o movimento
foi chamado, era um desafio a ser vencido, e apresentaram um número
de argumentos engenhosos a favor da inovação. Um deles dizia que
como o corpo contém sangue, as pessoas que comem o corpo de Cristo
também ingerem seu sangue, então, não há necessidade de recebê-lo
separadamente. De início, Hus não era ultraquista, mas, adentrou esse
campo com bastante naturalidade, e foi como defensor dessa posição
que ele foi convocado para o Concilio de Constança para aguardar o
julgamento da igreja. O imperador lhe prometeu salvo-conduto, então,
Hus foi, acreditando que teria a oportunidade de se defender diante do
episcopado universal.
Tragicamente, além de Hus ser condenado, o salvo-conduto foi
ignorado e ele foi queimado na fogueira como herege. O acontecimento
causou furor na Boêmia, onde incontáveis pessoas cortaram de vez seu
relacionamento com Roma. A execução de Hus foi um tapa na cara
do imperador, cujo prestígio sofreu um golpe sério quando o papado
reafirmou seu direito de falar em nome da igreja como um todo. Tal-
vez, o mais preocupante seja que essa atitude foi um exemplo claro
de como uma prática tradicional — neste caso, também uma tradição
recente - superava o testemunho bíblico evidente, só porque o Papa e
um concilio eclesiástico disseram que ela podia. Eles tinham autoridade
para fazer isso?
É importante enfatizar que a decisão de condenar Hus foi tomada
pelo Papa e pelo concilio; não foi imposta pelo primeiro ao segundo (ou
vice-versa). O esclarecimento é necessário porque uma das provisões
acertadas em Constança foi de que no futuro a igreja seria dirigida,
não como uma ditadura baseada em Roma, mas, sob um regime quase
parlamentar. O intuito era que os concíüos ecumênicos se reunissem
a cada cinco anos para decidir questões de suprema importância para
o governo da igreja, e o Papa seria seu diretor executivo, encarregado
de cumprir as decisões do concilio, porém sem lhe impor sua vontade.
ζ,υζ,

Ο Papa, claro, não queria ser restringido dessa maneira, contudo, sua
posição ainda era vulnerável, e ninguém estava disposto a criar divisão
sobre algo planejado para unir as pessoas. De qualquer forma, o Papa,
como oficial executivo encarregado de implementar as decisões tomadas
pelos concílios, tinha uma posição de longo prazo sólida, que talvez
pudesse ser usada para restaurar o que ele entendia ser sua autoridade
legítima. E, de fato, foi o que aconteceu.
Nesse ínterim, a igreja passava pelo que chamamos de conciliarismo.
Se os meios de comunicação de hoje existissem no século 15, a proposta
teria funcionado. Contudo, os bispos e oficiais tinham de atravessar a
Europa regularmente para os concílios, que se prolongavam mais do
que o desejado por qualquer participante. O conciliarismo foi uma ideia
implementada antes do tempo apropriado e sem os recursos necessários
para que funcionasse no longo prazo. Outro problema foi que ninguém
desejava que os concílios se reunissem em Roma, no mínimo porque
a cidade era de difícil acesso. Isso significava que o Papa teria de viajar
para o norte da Europa se fosse presidir os concílios, e era improvável
que ele pudesse ou desejasse fazer isso regularmente. Depois do tér-
mino do Concilio de Constança em 1418, o Papa Martinho V (liderou
em 1417-31) se recusou a cooperar, e nada foi feito em seu papado.
Quando ele morreu, a frustração reprimida forçou Eugênio IV (liderou
em 1431-47), seu sucessor, a convocar um concilio em Basiléia, que, de
um jeito ou de outro, continuou até 1449.
Eugênio IV não tinha a mínima intenção de ir a Basiléia, e trans-
feriu o concilio para Ferrara. Dali, foi mudado para Florença e depois
para Roma, exatamente onde os conciliaristas não queriam. Quando
o concilio terminou, muitos dos apoiadores originais do conciliarismo
ficaram desiludidos com o resultado, e um contramovimento enfatizan-
do a autoridade papal caminhava em ritmo avançado. Finalmente, no
Quinto Concilio de Latrão (1512-17), o conciliarismo foi condenado
formalmente e a monarquia papal, completamente restaurada - ou é
o que parecia.

A REVITALIZAÇÃO PAPAL

A revitalização do papado no século seguinte a 1417 é um dos


fenômenos mais surpreendentes e menos compreendidos na história
da igreja. Embora houvesse um enorme desejo de ver o término do
cisma que durou uma geração, poucas pessoas da época imaginavam
que seria possível retornar à situação prevalecente nos dias gloriosos
da supremacia papal no Oeste Europeu. Entretanto, os Papas estavam
decididos a restaurar o poder de suas dioceses, e Eugênio IV era esperto
o bastante para conseguir tal coisa. E importante dizer que os eventos
o favoreceram, e de modo quase imperceptível.
Depois que os bizantinos recuperaram Constantinopla, em 1261,
houve uma tentativa de devolver ao Império do Leste sua glória anterior.
Isso nunca aconteceu, e os dois séculos seguintes são uma história de
declínio lento e inexorável até a cidade se render aos turcos otomanos.
Os turcos invadiram a Ásia Menor em 1071, e embora mantidos à
distância, nunca foram expulsos. Depois de 1300, eles se reuniram sob
um líder extraordinário, Osman (otomano), que lançou o alicerce do
império que levaria seu nome e duraria até 1922. Em 1354, os turcos
estabeleceram uma cabeça-de-ponte na Europa e assolaram quase toda
a Península Balcânica. Constantinopla resistiu, como também vários
lugares na Grécia, alguns governados pelos bizantinos e outros por
venezianos ou genoveses, que, naturalmente, apoiaram o cristianismo
ocidental tanto quanto puderam.
A influência ocidental era bastante forte nos círculos intelectuais
bizantinos nessa época, e várias figuras proeminentes sustentaram
idéias ocidentais ou se converteram à igreja romana. Não é claro se
deixaram a comunhão com a igreja bizantina - parece que a maioria
não se afastou. Os bizantinos sempre aceitaram a primazia romana com
base nas reivindicações petrinas, contudo, não reconheciam a jurisdição
papal como consequência inevitável disso. Também não aceitavam
um número de posições teológicas ocidentais, incluindo a doutrina da
transubstanciação, a existência do purgatório (do qual duvidavam) e a
procedência simultânea do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, a
conhecida cláusula filioque que o Ocidente havia introduzido no Credo
Niceno-Constantinopolitano, por volta de 1014. As igrejas do Leste
nunca se manifestaram sobre essas questões, então, era teoricamente
possível a seus membros terem opiniões ocidentais em relação a elas,
se quisessem. O que não aceitavam era que o papado tivesse o direito
de forçar essas doutrinas nas igrejas do Leste, que nunca concordaram
com elas e abrigavam muitos membros (possivelmente a maioria) que
as rejeitavam explicitamente.
Em 1274, o Segundo Concilio de Lyon tentou reconciliar as igrejas
do Leste e do Oeste, mas fracassou, sobretudo porque era um projeto
político do imperador Miguel VIII (r. 1258-82), que desejava proteger
seu império contra um possível ataque do Ocidente e assinaria qualquer
coisa para alcançar seu objetivo. Miguel passou a ser visto como traidor
por muitos da igreja do Leste, e seus partidários foram perseguidos
depois de sua morte. O século seguinte testemunhou o renascer do
monasticismo bizantino, que era profundamente antiocidental na prá-
tica, apesar de um bom número de seus líderes aceitar alguns aspectos
da teologia ocidental. As posições iriam se radicalizar mais tarde, en-
tretanto, no século 14, escritores conservadores do Leste ainda eram
receptivos às idéias ocidentais e chegaram a integrá-las em sua teologia
sem sofrerem oposição rigorosa.13
A situação poderia continuar a mesma indefinidamente, contudo,
no século 15, os turcos estavam fortes o suficiente para desfechar o
último ataque a Constantinopla, que se projetava como uma ilha grega
cristã em um mar turco muçulmano. João VIII (r. 1425-48), imperador
do Leste, sabia que sua cidade estava com os dias contados e buscava
desesperadamente a ajuda do Ocidente, sua única esperança de salvação.
Ele sabia que o preço a ser pago era a união formal das igrejas e que
isso não aconteceria a não ser em escala global, com o envolvimento
e consentimento de todos os interessados no processo. Os bizantinos
não confiavam nos conciliaristas e preferiram tratar diretamente com o
Papa, que segundo eles, tinha mais autoridade e mais possibilidade de
conseguir o resultado desejado. Eugênio IV, por sua vez, enxergou isso
como a oportunidade que esperava. Para facilitar a vida dos bizantinos,
que não queriam ir além da Itália, ele transferiu para Ferrara o concilio
que já estava em andamento em Basiléia. João VIII e uma delegação
de clérigos que incluía o patriarca de Constantinopla se dirigiram para
lá, mas, um surto da peste negra os forçou a transferir o concilio para
13 Sobre
esse período, veja D. Nicol, Church and Society in the Last Centuries of Byzantium
(Cambridge: Cambridge University Press, 1979).
Florença. E é como Concilio de Florença que esse fatídico sínodo é
geralmente conhecido em nossos dias.14
Após meses de negociações, a delegação bizantina aceitou as
exigências do Ocidente em retorno da autonomia em suas questões
internas e (mais importante) um exército para libertar Constantinopla.
O papado, que nunca havia renunciado suas ambições em relação às
Cruzadas, tinha agora um motivo verdadeiro para renovar sua con-
vocação à guerra santa contra o Islamismo, porque os turcos não só
ameaçavam Constantinopla como também abriam caminho rumo à
Hungria e Europa Central. Os governantes do Ocidente foram, então,
persuadidos que era de seu interesse reunir um exército para atacarem
os turcos, contudo, em 1444, esse exército foi destruído em Varna e o
ideal das Cruzadas morreu. Nove anos depois, em 29 de maio de 1453,
Constantinopla caiu nas mãos dos turcos, e qualquer noção de união
entre Leste e Oeste foi abandonada.
A verdade é que a “união” com o Oeste custou a divisão das igre-
jas orientais em duas, um cenário assombrosamente evocativo do que
aconteceu mil anos antes, depois do Concilio de Calcedônia. Discussões
políticas tiveram papel importante, mas, em suma, é preciso afirmar
que elas pesaram mais nos unionistas do que em seus oponentes.
Quem rejeitou o compromisso de Florença sabia que a alternativa era
o domínio turco, que eles na verdade não queriam, contudo, estavam
prontos a aceitar como o menos pior de dois males. O papado, por
outro lado, os deixaria independentes politicamente (e desprotegidos),
mas, se empenharia em subverter suas igrejas e tradições forçando-as
a se conformar com as normas ocidentais. Onde os cristãos do Leste
podiam rejeitar a união abertamente, como na Rússia, eles o faziam de
imediato; em outros lugares, tiveram de esperar até a queda do Império
Bizantino, o que logo aconteceu. Depois de 1453, a união da igreja não
era mais uma possibilidade prática, e Leste e Oeste definitivamente se
separaram.
Muitos dos bizantinos que apoiaram a união mudaram-se para a
Itália, mas, a tradição bizantina, como é conhecida hoje, não desapa­
14 Veja J. Gill, The Council of Florence (Cambridge: Cambridge University Press, 1959),
para conhecer a história do concilio, escrita de uma perspectiva ocidental.
zu o

receu com eles. Os princípios aceitos em Florença, em 1439, foram


usados mais tarde para promover a união com várias igrejas Russas
Ortodoxas no que é hoje a Ucrânia e também com a Romena Ortodo-
xa, na Transilvânia. Essas duas áreas caíram sob o domínio do Oeste
(polonês e húngaro); nelas, o desejo de se unir a Roma era genuíno em
alguns casos, contudo, o efeito de longo prazo dos acontecimentos
era negativo e permaneceu assim. A Ucrânia, por exemplo, continua
dividida entre “católicos gregos”, como os da tradição bizantina são
chamados, e os ortodoxos. Situações parecidas existem em todos os
cantos, ainda que em escala bem menor. O Concilio de Florença tam-
bém aprovou “uniões” com os armênios (1439), com os monofisitas
(1442) e os nestorianos (1444), e todos causaram o mesmo efeito que a
reunião com os bizantinos — essas igrejas foram divididas e apenas uma
minoria participou da comunhão romana, deixando um gosto amargo
nas outras e tornando mais difícil qualquer reconciliação duradoura.
Um dos resultados mais surpreendentes foi que as igrejas do Leste
adquiriram muito mais poder sob o domínio turco e foram transfer-
madas de tal modo que ficaram irreconhecíveis. Antes, o patriarca de
Constantinopla era pouco mais que um oficial do império, que podería
ser removido ao bel prazer do imperador. O sultão turco tomou o lugar
do imperador, mas, sendo muçulmano, não lhe foi tão fácil interferir
nas questões da igreja. Os turcos deram um jeito para que os patriarcas
fossem de seu agrado, e quase sempre maquinavam destituições e novas
eleições que desequilibravam a igreja, mas, em retorno garantiram ao
patriarca algo que nenhum imperador bizantino jamais podería ter feito.
O patriarca se tornou chefe da millet (nação) cristã ortodoxa. Da noite
para o dia, o patriarca se tornou mais poderoso que o Papa, pelo menos
entre seus correligionários. Com o passar do tempo os patriarcados
autônomos da Bulgária e Sérvia foram suprimidos; as antigas dioceses
de Antioquia, Jerusalém e Alexandria ficaram igualmente subordinadas
a Constantinopla ao caírem nas mãos do governo turco.
Ao início do século 19, o patriarca de Constantinopla não era apenas
o chefe da igreja, mas, da “nação”, sendo que “nação” era entendida
como ortodoxa e basicamente grega. Movimentos nacionalistas lidera-
ram revoltas, primeiro na Grécia e Romênia, depois na Sérvia e Bulgária,
e um critério básico para o restabelecimento de independência nacional
nesses lugares foi a restauração de uma igreja ortodoxa autônoma. Até
hoje, a fusão entre ortodoxia e nacionalidade no Leste Europeu é tão
forte que pessoas que falam a mesma língua e têm muito em comum
(como os sérvios e os croatas) atacam umas às outras porque um grupo é
ortodoxo e o outro é católico romano - e os dois jamais andarão juntos.
Dessa forma, o fracasso da união da igreja no século 15 continua a se
repercutir no cenário político dos Bálcãs e da Rússia hoje, com trágicas
consequências para todos os envolvidos. Secularização e a expansão
do ateísmo fizeram muito pouco para conter a cisão, e assim, muitas
igrejas orientais se encontram na posição inconveniente de ter milha-
res de membros assíduos que se autodenominam céticos. Para eles, e
para muitos observadores do cenário local, o que importa é a herança
cultural que a igreja representa, e não qualquer tipo de crença.
Eugênio IV jamais teria imaginado tais coisas enquanto trabalhava
para reconciliar Leste e Oeste. Seu objetivo era a união da igreja como
ela deveria ser: a fusão espiritual de uma cristandade que em questões
seculares seria presidida pelos imperadores do Leste e do Oeste. Para
Eugênio, foi normal a delegação do Leste em Florença ser chefiada
pelo imperador, mas, duvida-se muito que ele pensasse o mesmo se seu
contraparte tivesse aparecido por lá. O Papa acreditava, assim como
seus contemporâneos, que quando Constantino transferiu a capital para
Bizâncio, ele prometeu ao bispo de Roma jurisdição sobre o Oeste.
Essa Doação de Constantino, como ficou conhecida a promessa, era
um documento guardado nos arquivos Papais e usado por gerações de
Papas como prova de que tinham direito de reivindicar a autoridade
que possuíam. Mas, nos preparativos para as negociações com o Leste,
documentos e reivindicações desse tipo tinham de ser revistos porque
a igreja oriental não sabia nada a respeito deles.
Lorenzo Valla (1407P-1457), italiano humanista na vanguarda do
que hoje chamamos de Renascença, examinou a Doação cuidadosamen-
te e provou que ela era falsificada, feita muito provavelmente no século
9 por monges que desejavam proteger o papado contra as depredações
dos carolíngios. O impressionante é que a descoberta da falsificação
causou muito pouco (ou nenhum) impacto imediato na igreja. O papa-
do estava tão firme e os imperadores tanto do Leste quanto do Oeste
eram tão fracos que a coisa toda perdeu sua imporância. O Império do
Leste logo desapareceu, enquanto o do Oeste estava prestes a renovar
suas esperanças. O cativeiro babilônico do papado aconteceu porque
o rei da França era forte o bastante para impor sua vontade sobre o
Papa e porque não havia na Europa poder que se igualasse à França
naquela época.
A Guerra dos Cem Anos enfraqueceu a França, pelo menos tem-
porariamente. De início, o Santo Império Romano não tinha uma
posição que o levasse a se beneficiar disso, mas, as coisas começaram a
mudar quando a Monarquia de Habsburgo consolidou seu poder sobre
ele. Os Habsburgo governaram poderosamente e por muito tempo o
que hoje é a Áustria, mas, começaram a se expandir no século 15. Em
1477, eles adquiriram os Países Baixos (hoje Holanda e Bélgica), e na
geração seguinte uniram-se em casamento à casa real da Espanha. Foi
uma decisão importante. A Espanha sempre esteve na periferia da
cristandade, mas, sua batalha centenária para reconquistar dos árabes
a Península Ibérica criou-lhe uma mentalidade das cruzadas que não
se via em outros lugares. Para os espanhóis, espalhar o evangelho e a
igreja por meio de conquistas era uma prática política, e não uma vaga
aspiração, como acontecia na maioria dos lugares. Depois que Granada,
o último reino muçulmano na Espanha, caiu nas mãos dos cristãos,
em janeiro de 1492, os espanhóis criaram gosto pela expansão. Para
confirmar isso, a rainha patrocinou Cristóvão Colombo, que acreditava
que navegando rumo ao oeste chegaria às índias.
A história é conhecida. Colombo nunca chegou às índias, mas,
descobriu um mundo novo e apoderou-se dele para a Espanha. Os
portugueses, grandes exploradores e marinheiros, e cujo apoio Colombo
havia buscado primeiro, não gostaram disso, então o Papa interveio e
dividiu o mundo em dois. Assim, pelo Tratado de Tordesilhas, Portugal
ficou com o leste da América do Sul (hoje Brasil), África e Ásia, e a
Espanha ficou com o restante das Américas e do Oceano Pacífico até
as Filipinas.15 Os dois países se comprometeram com a evangelização;

15 Na verdade, houve dois tratados, pois o primeiro deu pouca terra da América do
Sul a Portugal. Assim, a linha de divisão foi deslocada para o oeste, tornando o
Brasil uma colônia portuguesa e não espanhola.
a extensão de seus impérios seculares tinha como objetivo a missão da
igreja de pregar o evangelho a toda criatura.
Ao se casarem com a realeza espanhola no momento certo, os
Habsburgo conseguiram se aproveitar da imensa riqueza que passou a
escoar para dentro do país vinda de suas novas possessões e também a
consolidar seu governo na Europa Central. Quem se beneficiou dessa
herança foi o imperador Carlos V (r. 1519-58), que também era o rei
Carlos I da Espanha (r. 1516-56). Finalmente, havia um Sacro Impe-
rador Romano cujo salário não vinha de seus súditos alemães e que
podia fazer uma reivindicação plausível de ser o governante universal
do cristianismo. Em teoria, a igreja deveria ficar satisfeita com esses
acontecimentos, mas, será que o imperador Carlos era mesmo seu
protetor? Ele se dobraria à vontade do Papa, ou tornaria o Papa seu
vassalo, como outros imperadores, como Frederico II, tentaram fazer? A
resposta não seria dada por Carlos nem pelo Papa e sim por um monge
e professor universitário relativamente simples cujos interesses eram
bem diferentes dos deles. Foi exatamente quando o rei Carlos tomou
posse de sua herança que Martinho Lutero rompeu em cena, com idéias
novas revolucionárias que transformariam a igreja para sempre.
Uma crise financeira que ameaçava arrasar o papado, que nunca
se recuperou totalmente dos gastos enormes com as Cruzadas, estava
intimamente ligada à política da época. No século 15, as cidades ita-
lianas floresciam com o progresso estrondoso da Renascença. Veneza
e Gênova enriqueceram com o comércio, enquanto Florença e Milão
se tornaram centros bancários importantes. Esperava-se que Roma
competisse com essas cidades, mas, ela não possuía fonte de renda
a não ser a igreja. Para aumentar suas receitas, os Papas recorriam a
várias formas de impostos. Por exemplo, quando alguém era nomeado
bispo, era obrigado a pagar ao Papa uma soma equivalente a um ano
de seu futuro salário. Em alguns casos, os Papas colocavam seus pró-
prios funcionários em dioceses desocupadas que estes nunca visitavam,
mas, cujos rendimentos iam direto para Roma. O Parlamento inglês
sancionou duas vezes leis proibindo essa prática (em 1351 e em 1393),
e o rei da França, por sua vez, ficou tão indignado que em 1433 vetou
qualquer tipo de imposto papal em seus domínios.16
16 A proibição continuou até 1516.
Os sinais de alerta eram claros, contudo, para os Papas era quase
impossível enxugar os gastos, e a busca por mais recursos continuou
inalterada. A situação se agravou no papado de Leão X (1. 1513-21).
Nas palavras do historiador J. N. D. Kelly:
Pessoa agradável e amante dos prazeres, mecenas das artes e refunda-
dor da universidade de Roma (nov. 1513), o Papa Leão era esbanjador
imprudente, tão desesperado por dinheiro que penhorou os móveis
e louças do seu palácio. Além de gastar com suas diversões, ele Unha
de pagar por suas guerras, as cruzadas, e, acima de tudo, a construção
da Catedral de São Pedro; para conseguir dinheiro, o Papa Leão fez
grandes empréstimos e vendeu cargos, até mesmo o de cardeal.17
Uma forma engenhosa de a igreja angariar mais dinheiro era a venda de
indulgências, prática criada vários séculos antes. Indulgência era uma garantia
de que o comprador passaria menos tempo no purgatório do que o esperado.
Ninguém sabia o que deu ao Papa o direito de decidir o que vinha depois da
morte, contudo, o medo do purgatório convenceu muitos de que encurtar
0 tempo ali era uma boa ideia. Quando os cofres Papais estavam a ponto de
secar, lançava-se outra campanha de venda de indulgências na esperança de
abastecê-los. Uma dessas campanhas incitou o protesto de Martinho Lutero,
e a Reforma foi gerada.

A REFORMA PROTESTANTE

Nenhum evento abalou a igreja tão profundamente como a Re-


forma Protestante do século 16. Houve cismas, antes, como a dos
donatistas, mas, foram periféricos. Houve divisões causadas por fatores
irrelevantes, tais como o isolamento das igrejas celtas após a queda do
Império Romano, mas, elas foram reparadas quando o contato foi res-
taurado. Houve até rupturas causadas por desacordos teológicos, tais
como o monofisismo do Egito e Síria e o nestorianismo, porém eles não
tocaram no caráter fundamental da igreja. Por mais que discordassem
uns dos outros, todos os envolvidos reivindicavam sucessão episcopal
que remontava aos apóstolos, e seus ministérios e cultos tinham for- 1

1 J. N. D. Kelly, The Oxford Dictionary of Popes (Oxford: Oxford University Press,


1986), p. 258.
έΐ I

matos bem parecidos. Nesse momento, os donatistas e a igreja celta já


desapareceram, entretanto, as igrejas não calcedônias ainda existem, e
são vistas com simpatia pela Igreja Ortodoxa, que reconhece as seme-
lhanças fundamentais entre elas, semelhanças que não compartilham
com os católicos nem com os protestantes de tradição ocidental. A
Reforma desafiou esse modelo comum e forçou o mundo cristão, ou
pelo menos sua metade ocidental, a analisar seus princípios eclesioló-
gicos pela primeira vez.
No início do século 16, ainda existiam grupos discordantes do
passado, porém locais e sem muita influência. Alguns lolardos sobrevi-
veram na Inglaterra, porém eram tão inexpressivos que sabemos bem
pouco a seu respeito, e havia valdenses nos Alpes, sobreviventes de
um movimento medieval liderado a princípio por Peter Waldo (1140?‫־‬
1218?).18 O movimento hussita na Boêmia exerceu bem mais influência
que qualquer um desses grupos, mas, também era um fenômeno regio-
nal restrito à sua terra natal de língua tcheca. O Papa não teve insônia
por causa deles e também não se preocupou com as igrejas orientais,
que em sua maioria estavam sob controle muçulmano e ficavam tão
distantes (na Rússia e Etiópia, por exemplo) que não eram importantes
do ponto de vista ocidental.
O protestantismo era algo totalmente diferente. Os lolardos, hussi-
tas e valdenses imediatamente se alinharam ao protestantismo — e não
o contrário — e o movimento deixou uma marca indelével no mundo
cristão. Em uma única geração, de 1520, mais ou menos, a 1560, a
cristandade europeia foi partida em duas e surgiu um novo tipo de
cristianismo. A doutrina da igreja se encontrava no âmago dessa re-
volução. Como já vimos, a igreja como princípio teológico não havia
sido totalmente negligenciada anteriormente, contudo, sua identidade
nunca foi o centro de nenhum debate caloroso. Todos concordavam
com a frase do credo, segundo a qual a igreja era “única, santa, católica e
apostólica”, e a maioria das pessoas entendia instintivamente o que isso
significava, ou achava que entendia. A união da igreja era confessada
em seu credo comum, e os cristãos podiam receber a ceia das mãos
18 Eles ainda sobrevivem, e a principal Igreja Protestante italiana hoje é conhecida
como Chiesa Valdese.
de um sacerdote em qualquer lugar do mundo. Papas e bispos podiam
excomungar uns aos outros, mas, na base havia um sentimento de
integração que apenas ocasionalmente era perturbado por dissidência
e/ou heresia. Até mesmo no Oriente era comum os sacerdotes locais
servirem a ceia a cristãos ocidentais bem depois do cisma, e em alguns
lugares a prática continuou até o século 18.
Era difícil definir a santidade da igreja, porém todos sabiam que ela
se aplicava aos santos e mártires no céu, cujo exemplo servia à igreja
“militante aqui na terra”. Clero, monges e freiras eram tratados com
respeito especial e considerados mais santos que o povo em geral, pelo
menos em teoria. Deslizes e escândalos mancharam a reputação de
alguns deles, mas, em geral, o sacrifício do celibato e o estilo de vida
imposto aos religiosos profissionais causaram seus efeitos. A igreja,
como instituição, ocupava lugar de destaque na sociedade, e seus bens,
edifícios e representantes eram imunes ao poder normal e às pressões
da lei. Os detalhes podem ser debatidos — como certamente foram
na questão dos impostos -, entretanto, se acatou o princípio de que a
igreja institucional não deveria ser vandalizada, mesmo quando uma
cidade fosse capturada. Fugitivos da polícia podiam buscar refugio nas
igrejas, e embora o acolhimento fosse transgredido na prática, ele era,
mesmo assim, mantido em princípio. Derramar sangue dentro da igreja
era ofensa seríssima, como os cavaleiros que mataram Thomas Becket
na sua catedral, em Canterbury, descobriram do pior jeito. O túmulo
de Becket se tornou um santuário e foi usado para lembrar a reis e
pessoas comuns que a santidade da igreja e seus oficiais não deveríam
ser tratados com frivolidade.
A catolicidade da igreja significava que ela era fundamentalmente a
mesma em todos os lugares. Todos os que se batizavam eram cristãos,
não importava que idioma falassem nem de onde vinham. A naciona-
lidade no sentido moderno não tinha significado, e uma pessoa como
Erasmo de Roterdã (1466—1536) podia atravessar a Europa e sentir-se em
casa onde quer que estivesse. O latim, embora não fosse mais a língua
materna de ninguém, servia de denominador comum entre os acadê-
micos e garantia que qualquer assunto de interesse seria lido e circularia
em todos os cantos. Até mesmo no Leste, o uso do latim se ampliava,
e em alguns lugares (Ucrânia, por exemplo), o idioma se tornou meio
de educação teológica. O surgimento da imprensa no fim do século 15
acelerou o processo de integração europeia e tornou-a mais eficiente;
as Noventa e Cinco Teses de Lutero atravessaram o continente em
poucas semanas, bem mais rápido do que seria hoje, quando teriam de
ser traduzidas para dezenas de idiomas.
A apostolicidade da igreja foi garantida por duas coisas: confissão
e sucessão. As pessoas cultas sabiam que o Credo dos Apóstolos não
era obra de Pedro e seus companheiros, apesar de uma lenda medieval
afirmar o contrário, contudo, não duvidavam que seu conteúdo reme-
tesse a eles. O Novo Testamento foi o legado dos apóstolos à igreja, e
todos sabiam que era alicerce fundamental da doutrina cristã. A autori-
dade da igreja para interpretar as Escrituras era garantida pela sucessão
episcopal ininterrupta desde Pedro, o primeiro bispo de Roma, até o
presente sucessor no Palácio de Latrão. A doutrina da infalibilidade do
Papa era inexistente naquela época, mas, embora o público em geral
soubesse que alguns Papas não foram tão felizes no cargo e que Papas
rivais competiram por reconhecimento, os fiéis criam que Deus havia
preservado sua igreja apesar de todos os problemas, e que os portões
do inferno não haviam prevalecido contra ela.
No início do século 16, essas crenças fundamentais eram convicções
partilhadas por todos, até mesmo Martinho Lutero. Quando ele postou
suas Noventa e Cinco Teses na porta da igreja de Wittenberg, no dia 31
de outubro de 1517, ele não imaginava que em breve iria testemunhar a
ruptura da instituição que ele e todo mundo conheceram a vida inteira.
Como as teses revelam, para Lutero, vender indulgências era errado,
e ele questionou o direito do Papa de reivindicar jurisdição sobre os
mortos no purgatório, mas, o questionamento não foi um ataque à
igreja, aos seus sacramentos ou à sua autoridade. Lutero identificou
um abuso e quis corrigi-lo, e no início achou que tão logo defendesse
sua abordagem, o restante da igreja concordaria com ele.
Mas, não foi o que aconteceu. Lutero não percebeu totalmente, de
início, que depois do combate aos hussitas e a derrota do conciliarismo,
a posição de autoridade na igreja havia se transferido para o papado
de maneira decisiva. Lutero podería apresentar todos os argumentos
que quisesse contra a venda de indulgências, e em suas premissas ele
certamente estava correto. Mas, se o Papa permitia esse comércio, sua
permissão sobrepujava qualquer argumento que Lutero apresentasse,
pois cabia a ele decretar o que era certo e o que era errado. Ele não
precisava do apoio de nenhuma autoridade bíblica, pois como sucessor
de Pedro, o Papa era um apóstolo vivo e, portanto, uma fonte indepen-
dente de doutrina para a igreja. Questionar suas decisões era atacar a
própria igreja. Quando Lutero entendeu isso, sua atitude em relação
ao papado e à igreja mudou. Ele passou a crer que a única maneira de
retornar a igreja a seus princípios básicos era aniquilando o poder papal.
Isso levantou dúvidas profundas sobre tudo o que o Papa representava.
As doutrinas que ele ensinava eram mesmo reveladas por Deus, ou não
passavam de meras invenções humanas que o papado adotou porque
servia a seus propósitos?
Uma vez que as perguntas começaram, não havia como impedi-las.
Outras vozes não demoraram a se levantar, e muitas delas eram bem
mais radicais que a de Lutero. As reivindicações do papado não eram
uma anomalia isolada; elas se apoiavam em uma série de suposições
que se desenvolveram com o tempo e nunca sofreram questionamento,
embora fosse claro a qualquer leitor do Novo Testamento que as
reivindicações não tinham base no ensino de Jesus e seus discípulos.
Práticas legítimas, como a Ceia do Senhor, foram exageradas e mal in-
terpretadas, criando abusos e superstições. Outras, como a unção dos
doentes, foram tiradas do contexto e mal aplicadas. Acima de tudo, o
caminho da salvação foi transformado em uma escada de realizações,
por meio das quais os cristãos ganhariam a recompensa celestial por
seus próprios esforços em cooperação com a graça de Deus, e não na
dependência exclusiva da graça de Deus. De acordo com os luteranos,
os cristãos vão para o céu por depositarem sua fé na obra salvadora
de Jesus Cristo, e não por realizar obras meritórias por conta própria.
O erro não era mais a venda de indulgências; o sistema todo era uma
mentira. Não havia indulgências, não porque o Papa não tivesse auto-
ridade para dispensá-las, mas, porque não havia purgatório de onde as
almas dos mortos seriam libertas.
De repente, ficou claro a Lutero e seguidores que o sistema sa-
cramental sobre o qual a igreja se apoiava era baseado em suposições
falsas, ainda que muitos ritos fossem válidos em si. Acima de tudo, não
existia sacerdócio supernatural, separado (e acima) do corpo principal
da igreja por meio de ordenação sacramental e do celibato compulsó-
rio, com poder de realizar milagres como o da transubstanciação. A
Bíblia apresentava um quadro bem diferente de como a igreja deveria
ser, contudo, as pessoas comuns não sabiam disso porque não tinham
acesso à Bíblia. Era, então, imperativo que a Bíblia fosse traduzida na
língua falada, distribuída a quem soubesse ler e ensinada do púlpito
nos cultos de domingo. A celebração da Ceia do Senhor não deveria
ser abolida, mas, colocada em seu lugar como extensão da pregação
da Palavra de Deus e como algo a que somente quem ouviu e recebeu
a Palavra tinha acesso.
A Missa medieval era cercada pelo que os luteranos consideravam
práticas supersticiosas, tais como a restrição dos elementos consagra-
dos, que eram tidos como o corpo e o sangue de Cristo. Essas práticas
tinham de acabar, pois eram inconsistentes com a compreensão lute-
rana da verdadeira natureza do sacramento. A autoridade da Bíblia foi
invocada como o padrão que mediría as tradições do passado, por mais
antigas e veneradas que fossem. A Bíblia cancelaria tudo o que Papas ou
concílios dissessem em contradição a ela. Como o centro de autoridade
estava cada vez mais concentrado na Bíblia, e somente nela, a igreja
e suas práticas passaram a ser vistas com outros olhos. As tradições
não bíblicas poderíam ser justificadas ou era necessário abandoná-las,
fossem elas nocivas ou não? Quem decidiría o que seria mantido e o
que deveria ser descartado? A instituição eclesiástica antiga podería
ser reformada, ou seria necessário derrubar tudo e começar de novo?
Essas foram as perguntas que emergiram quando as idéias de Lutero
ganharam terreno, e elas determinaram a natureza e o desenvolvimento
da Reforma. Acadêmicos debatem se houve um único movimento para
mudança ou vários desenvolvimentos separados que levaram a dife-
rentes reformas, em lugares diferentes. Se analisarmos os detalhes do
que aconteceu, descobriremos que houve muitos tipos de reforma. Se
tudo tivesse seguido o mesmo curso sob uma única liderança, teríamos
ZIO

hoje apenas uma Igreja Protestante, mas, o impulso pela reforma foi
sentido de muitas maneiras, nem todas eram compatíveis entre si, e
assim surgiram muitas igrejas diferentes, que às vezes competiam umas
com as outras tanto quanto com Roma.
A Igreja Católica também mudou em relação ao protestantismo.
Tradicionalmente, essa reação era chamada de Contrarreforma, e em-
bora o nome fosse parcialmente verdadeiro, entendemos hoje que era
uma reforma com vida própria. Pelo que via acontecer a seu redor,
um católico idoso dos anos 1570 não teria reconhecido a igreja de sua
juventude, mesmo cultuando ao lado de pessoas que garantiam ser
herdeiras da tradição daquela igreja.
Em 1517, tudo isso ainda jazia em um futuro incerto. Em pouco
tempo, as teses de Lutero eram debatidas por toda a Europa Ociden-
tal e, em Zurique, Ulrico Zuínglio foi encorajado a fazer um protesto
pessoal contra a igreja e sua teologia sacramental. Zuínglio agiu inde-
pendentemente de Lutero, mas, na comoção geral do momento, os
dois foram unidos no que seria uma associação desconfortável. Logo
outras opiniões se fizeram ouvir, algumas apoiando Lutero e outras
apoiando Zuínglio, e algumas não apoiando qualquer dos dois. Erasmo
de Roterdã era o intelectual típico. Crítico severo do Papa, de início
Erasmo deu suporte ao protesto de Lutero na esperança de que ele
levasse à reforma genuína. No entanto, ao perceber que Lutero não
era simplesmente um reformador moral, mas que propunha uma teo-
logia da graça diferente da sua, Erasmo mudou seu discurso e passou
a atacá-lo. Lutero respondeu à altura e com isso distinguiu sua reforma
do humanismo, que era bem-intencionado, mas, teologicamente fraco
e que havia se tornado popular nos círculos acadêmicos.19
Lutero foi intimado pelo imperador a explicar sua posição diante
do Parlamento alemão, ou Dieta, como era chamado, e contra o pa-
recer de alguns seguidores, ele concordou. A reunião subsequente se
tornou lendária, e, como resultado, os fatos ficaram obscuros, mas,
seja lá o que aconteceu de verdade, Lutero saiu da reunião ainda mais
19 Os dois panfletos foram publicados juntos em E. E Winter (Org.), Erasmus and Luther:
Discourse on Free Will (Londres: Continuum, 2007). Veja também M. Luther, The Bondage
of the Will, trad. J. I. Packer e O. R. Johnston (Londres: James Clarke, 1957).
determinado a defender sua posição. O imperador lhe havia prometí-
do salvo-conduto, mas, depois da reunião com o Parlamento, Lutero
foi considerado persona non grata, e seu futuro imediato ficou bastante
incerto. Conhecedores do que havia acontecido a Jan Huss um século
antes, os amigos de Lutero não perderam tempo. Eles o raptaram e
esconderam no castelo de Wartburg durante três anos. Lutero passou
esse tempo traduzindo a Bíblia para o idioma alemão e escrevendo
panfletos defendendo sua posição. Quando foi solto, Lutero havia se
tornadò herói nacional; por um momento, parecia que a Alemanha
inteira iria segui-lo.
Em desespero, o Papa Leão X buscou o apoio dos reis da Europa,
mas, todos se negaram a ajudá-lo. A única exceção foi Henrique VIII da
Inglaterra, que escreveu um tratado sobre os sete sacramentos no qual
ameaçava Lutero, o que lhe rendeu o título de “defensor da fé”, título
que seus descendentes ainda carregam.20 Leão X excomungou Lutero
em 1521, mas, já era tarde demais para impedir as ondas de protesto.
Os anos seguintes foram de confusão. O imperador Carlos V era
católico fiel e desejava preservar a unidade da igreja, mas, até ele reco-
nheceu que o papado precisava de uma revisão completa. Sua solução
foi reunir um concilio da igreja para lidar com a crise, mas, ao contrário
do imperador do Leste um século antes, o imperador não podería fazer
tal coisa sozinho. Ele necessitava da ação do Papa, porém Clemente
VII (r. 1523-34), primo de Leão X, não mexeu um dedo. Em 1527, as
tropas de Carlos V invadiram Roma e aprisionaram o Papa. Clemente se
dobrou ao inevitável e concordou em aceitar as condições do imperador
para ser solto, contudo, ele nunca conseguiu reunir o desejado concilio.21
Ao mesmo tempo, Henrique VIII solicitou que seu casamento com
Catarina de Aragão, que era tia do imperador, fosse anulado com base
no fato de ela ter sido casada com o irmão mais velho de Henrique.22
Catarina apelou ao seu sobrinho, que deixou claro ao Papa que este não

20 O irônico é que a fé que defendem hoje não é a do Papa, mas, a de Lutero.


21 O concilio finalmente aconteceu em Trento, em 1554, e as reuniões ocorreram
esporadicamente durante dezoito anos.
22 Arthur, o irmão em questão, havia morrido, e seu pai, Henrique VII, conseguiu

aprovação especial do Papa para o casamento do segundo filho.


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podería cumprir o desejo de seu marido sem ofender profundamente


toda a família Habsburgo. Vendo que não conseguiría o que desejava,
Henrique começou a se afastar de Roma, e o afastamento total acon-
teceu em 1534.
Entrementes, Lutero e seus seguidores haviam, a pedido do impe-
rador, apresentado uma confissão de fé à Dieta alemã que se reuniu em
Augsburgo em 1530. Foi nessa confissão que eles “protestaram” (i.e.,
“proclamaram”) sua fé, e quem assinasse a confissão seria conhecido
como protestante. Era um reconhecimento de que a igreja imperial havia
rachado ao meio e não voltaria a se unificar novamente tão cedo. A única
pergunta agora era até onde o protestantismo iria e em que condições
alcançaria um modus vivendi de longo prazo com a Igreja Católica.
6

O que é a igreja?

A DESUNIÃO DA IGREJA PÓS-REFORMA

O problema mais evidente que os reformados do século 16 tive-


ram de enfrentar foi que ao rejeitarem a autoridade papal desfizeram
a união da igreja medieval. Em termos puramente institucionais, isso
talvez não importasse muito, pois nunca aconteceu de todos os cristãos
reconhecerem a supremacia de Roma, contudo, o protestantismo foi
muito além disso. Os reformados não repudiaram somente a hierarquia
tradicional, mas, também, o alicerce sobre o qual ela foi estabelecida. A
declaração de fé que a igreja era “una, santa, católica e apostólica” foi
mantida, e geralmente reiterada com vigor por teólogos protestantes,
mas, a frase adquiriu outro teor. Mais ainda, nem todos se afastaram
de Roma do mesmo modo ou pelas mesmas razões, assim, a nature-
za dessa diferença variava entre os grupos protestantes. Ao mesmo
tempo, todos os partidos dessa disputa insistiam em afirmar que havia
(e só poderia haver) uma igreja. Como conciliar essa doutrina com a
realidade da divisão?
Reforma conservadora
Houve três respostas básicas a essa pergunta. A primeira era con-
servadora e reacionária em intenção, mas, quase sempre radical na
prática, pois buscava sustentar as organizações tradicionais da igreja
medieval justificando-as frente às críticas. Embora nem sempre esti-
vessem unidos em estratégia ou intenção, aqueles que escolhiam esse
caminho permaneciam na Igreja Católica para melhor influenciar sua
política. Algumas dessas pessoas, tais como Reginald Pole (1500-1558)
ou Giovanni Morone (1509-80), eram relativamente solidárias com Lu-
tero e poderíam ser consideradas “liberais”. Pole e Morone se tornaram
cardeais e tiveram papel de destaque nas primeiras tentativas de alcançar
terreno comum com os protestantes, mas, com o passar do tempo e o
endurecimento das posições, eles acabaram sendo afastados. Pole foi ser
arcebispo de Canterbury e reconciliou brevemente a Inglaterra com o
papado durante o reinado da Rainha Maria, e Morone se tornou um dos
homens mais influentes de Roma, mesmo nos bastidores. Mas, o fato de
os dois terem sido acusados de ser luteranos às ocultas foi sintomático
da atmosfera ali reinante em 1557. Pole estava na Inglaterra e longe do
perigo, contudo, Morone foi preso, e acredita-se que o acontecimento
lhe custou o papado nove anos depois!1
No fim, a ala liberal da Igreja Católica foi ofuscada por um ultra-
conservadorismo ressurgente, encabeçado por Inácio de Loyola (1491-
1556). Loyola foi um soldado espanhol que se converteu enquanto
convalescia de um ferimento de guerra, e achou que o Papa precisava
de um exército de homens inteiramente leais a ele. Loyola fundou a
Sociedade de Jesus, uma nova ordem missionária que se dedicava a
promover a causa da Igreja Católica e a supremacia papal. Os jesuítas,
como eram chamados os membros dessa ordem, tornaram-se tutores
e confessores da nobreza europeia e usavam sua influência para instilar
uma forma mais severa da fé tradicional nos corações e mentes a seus
cuidados. Em pouco tempo, os jesuítas passaram a ser temidos em todo
0 mundo protestante, pois eram reconhecidos como os proponentes
mais eficientes da antiga religião. Os jesuítas eram a tropa de choque
da Contrarreforma Católica, contudo, sua visão era mais ampla. Além
de estarem determinados a resgatar do protestantismo o maior número
possível de almas, também se dedicaram a missões além-mar. As con-
quistas e explorações dos portugueses e espanhóis acrescentaram novos
e vastos territórios às suas respectivas coroas, e a igreja não perdeu
tempo em se juntar às expedições e embarcar na obra missionária. Fosse
no México ou na índia, os missionários jesuítas estavam na vanguarda

1 Morone é pouco conhecido no mundo de fala inglesa, mas, foi publicado recente-
mente um bom estudo sobre Pole. Veja T. F. Mayer, Reginald Pole: Prince and Prophet
(Cambridge: Cambridge University Press, 2000).
da expansão, e mais pessoas se tornaram católicas no século 16 do que
saíram da igreja para se juntar à causa protestante.
Para aqueles que continuaram no rebanho católico depois da
Reforma, estar em comunhão com o Papa era a prova da ortodoxia.
Talvez fosse possível manter todas as doutrinas da Igreja Católica e
até celebrar suas liturgias, como Henrique VIII fez após se desligar da
igreja, porém isso não bastava. Henrique foi considerado protestante,
não porque acreditasse em alguma doutrina protestante em particular,
mas, porque não tinha comunhão com o Papa. Isso, e apenas isso, era
o índice que servia de medida para todas as outras coisas.
Reforma pragmática
A segunda resposta era favorecer uma reforma pragmática, lidando
com alguns abusos específicos e reestruturando o que fosse conside-
rado necessário. Em essência, foi isso o que aconteceu na Alemanha,
Escandinávia e Inglaterra, onde a estrutura da igreja medieval era geral-
mente deixada intacta e as mudanças eram principalmente teológicas.
Onde os governantes seculares tinham influência sobre a igreja, como
na Inglaterra, por exemplo, eles geralmente controlavam a indicação
dos altos funcionários e cuidavam para que qualquer lei estabelecida
pela igreja fosse submetida à aprovação deles, porém deixavam mais ou
menos intocado o padrão existente. No caso da Inglaterra, isso signifi-
cava que muitos dos exageros dos quais os reformados reclamaram não
sofreram mudança nenhuma. Os padres ausentes continuavam ausen-
tes, e a educação do clero era esporádica. Até mesmo o culto público
sofreu pouca mudança de início; foi somente quinze anos depois do
desligamento de Roma que os cultos passaram a ser feitos em inglês,
e não não mais em latim. Na Alemanha houve mais mudanças nesse
aspecto, contudo, os direitos e privilégios foram mantidos, incluindo
os dos bispos. Quando um bispo se tornava protestante, por exemplo,
sua diocese geralmente era secularizada e seu cargo era ocupado pelo
líder local em vez de ser abolido imediatamente. Em nível inferior,
tribunais da igreja, o sistema de dízimo, e outras questões parecidas
permaneceram intactas, de modo que a igreja institucional continuou
a funcionar mais ou menos como antes.
Os apoiadores mais importantes de Martinho Lutero foram os
príncipes alemães que se alarmaram com a possibilidade de a Casa de
Habsburgo se apoderar do Santo Império Romano. Para eles, ter uma
igreja desligada de Roma era vantajoso, pois enfraquecia o Estado
central e dava-lhes a autonomia que cobiçavam. Alguns deles eram se-
guidores genuínos da teologia de Lutero, porém isso não era prioridade.
Eles queriam ficar livres do Papa, menos amarrados ao imperador, e
controlar com firmeza as questões religiosas dos territórios que gover-
navam. Para tanto, apoiavam (e até impunham) uniformidade religiosa
dentro de seus domínios, mas, claro, não tinham controle sobre o que
acontecia em outras jurisdições.
Com isso, a união da igreja ficou cerceada pela influência do Esta-
do, o que resultou em quase tantas igrejas separadas quantos eram os
governantes seculares. Mesmo quem afirmava ser luterano não seguia
necessariamente a mesma ordem eclesiástica, pois cada governante
era livre para impor o sistema que desejasse. Enquanto Lutero estava
vivo, ele exercia alguma influência no modo de as coisas se desenvol-
verem, mas, depois de sua morte, não apareceu ninguém da mesma
envergadura, e o protestantismo rapidamente adquiriu algo da variedade
eclesiástica com a qual estamos familiarizados hoje.2
Os reformados pragmáticos, ou “magisteriais”, assim chamados
porque trabalhavam ao lado do magisterium (governo secular) e em
harmonia com ele, nunca conseguiram escapar das garras do governo.
Uma razão é que eles dependiam da proteção do Estado. É quase cer-
to que Lutero teria sido queimado vivo como Jan Hus se os príncipes
não o tivessem socorrido, e sem o apoio deles o protestantismo nunca
teria se estabelecido. Em 1555, Carlos V finalmente concordou em
que cada governante alemão escolhesse a religião que seu território
iria seguir, adotando o princípio conhecido como cuius regio eius religio
um reconhecimento formal de que era direito do Estado determinar o
tipo de igreja dentro de suas fronteiras.
2 Para estudos recentes sobre essa situação, veja J. Whaley, Germany and the Holy
Roman Empire 1493-1806, 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 2012); e P.
H: Wilson, Europe’s Tragedy: A New History of the Thirty Years War (Londres: Allen
Lane, 2009).
A Paz de Augsburgo, como o acordo de 1555 foi chamado, ten-
tou resolver o problema da Reforma aceitando-a onde ela já havia se
estabelecido e mantendo-a dentro desses limites. Como a Reforma
continuava se expandindo e diversificando, esse acordo não satisfazia
as pessoas por muito tempo, e mesmo depois de promulgado, os pro-
blemas foram significativos logo de início. Um deles era concernente
aos territórios eclesiásticos do império, que em teoria pertenciam aos
bispos que estivessem em comunhão com Roma. Porém, no caos que
antecedeu 1555, vários territórios foram ocupados por governantes
protestantes seculares que se negavam a abrir mão deles. A solução
não oficial foi o imperador reconhecer esses governantes protestantes
como “administradores” em vez de bispos, um acordo estranho e in-
satisfatório que plantou as sementes de problemas futuros. Uma difi-
culdade parecida ocorreu com os monastérios e outras casas religiosas
que foram tomadas pelos protestantes: eles deveríam retornar aos seus
donos originais ou não?
Havia ainda a questão das minorias: católicos em territórios lute-
ranos e vice-versa. Como era de se esperar, frente a suas respectivas
pressuposições, os católicos queriam expulsar os dissidentes sem
compensações, mas, ao ver dos luteranos, eles deveríam ser tolerados
ou ter permissão para emigrar legalmente. O imperador, que era cató-
lico, ficou em uma situação difícil porque, embora devesse ser um juiz
imparcial das discórdias, ele estava determinado a reprimir todas as
formas de protestantismo em suas terras hereditárias, incluindo aquelas
onde os protestantes eram a maioria da população. Em geral, a maioria
dos súditos do império permanecu católica, porém a maioria de seus
príncipes subordinados se tornou protestante. Havia uma possibilidade
crescente de que eles viessem a dominar o Parlamento alemão (Dieta),
e até mesmo escolher um protestante como imperador, o que quase
aconteceu em 1618.
Mas, outra questão que a paz não resolveu foi a natureza do fenôme-
no conhecido como “protestantismo”. Oficialmente, esse termo incluía
todas as pessoas que aprovavam a Confissão de Augsburgo (Confessio
Augustana) de 1530, entretanto, muitos protestantes haviam deixado a
Confissão para trás e tornaram-se mais radicais. Governantes seculares
224

que tomaram essa direção foram tolerados na prática, mas, não em


princípio e suas posições no longo prazo eram precárias. Os católicos
não queriam saber deles, claro, assim como os luteranos “autênticos”
(ou gnesio-), para quem esses radicais haviam passado dos limites. Al-
guns lugares se tornaram protestantes depois de 1555, especialmente
nos Países Baixos, que formalmente ainda eram províncias do império.
Nenhuma provisão foi feita para eles, que tiveram de lutar por seus
direitos, como os holandeses fizeram por mais de duas gerações. Na
Alemanha, portanto, a paz de 1555 plantou as sementes de conflitos
futuros, que a seu tempo germinaram e deram frutos.
A paz religiosa foi bem-sucedida em definir o protestantismo de
acordo com uma confissão de fé em que seus adeptos expuseram as
doutrinas que os diferenciavam dos outros. Esse tipo de confissão
era até então inexistente, mas, se tornou uma característica das igrejas
protestantes. Via de regra, essas confissões eram iniciadas com um
breve resumo das crenças básicas da igreja cristã como um todo, e uma
referência particular a quaisquer pontos em que talvez discordassem
do consenso. Crer em Deus, na Trindade, na divindade de Cristo e na
inspiração das Escrituras eram crenças comuns a praticamente todos
os cristãos, assim, as confissões raramente eram detalhadas a respeito
delas. As doutrinas sobre salvação, igreja, ministério, sacramentos e re-
lacionamento com o Estado eram muito mais importantes. O caminho
da salvação diferenciava os protestantes dos católicos, mas, em outros
assuntos, os diferentes grupos protestantes provavelmente discordavam
entre si tanto quanto de Roma ou das igrejas do Leste.3
A Reforma Inglesa era ainda mais dependente do Estado que a
alemã; mas, porque a Inglaterra era bem mais centralizada que o San-
to Império Romano, o resultado foi bem diferente. No início, o rei
Henrique VIII (r. 1509-47) havia apoiado o Papa contra Lutero, mas,
terminou seu relacionamento com o papado por causa da anulação
de seu casamento com Catarina de Aragão. Oficialmente, o Papa se
3 E preciso dizer que poucos (ou nenhum) protestantes consideravam as perspectivas
das igrejas do Leste ao elaborar suas doutrinas. Por outro lado, alguns estavam
dispostos a se unir ao Leste contra o Papa, um inimigo comum. Para saber mais
sobre essas tentativas, veja S. Runciman, The Great Church in Captivity (Cambridge:
Cambridge University Press, 1968).
recusou a conceder a anulação por razões teológicas, mas, na verdade
fez isso porque era prisioneiro do sobrinho de Catarina, o imperador
Carlos V. Assuntos políticos forçaram Henrique VIII a fazer aliados
entre os príncipes protestantes da Alemanha, contudo, o rei não tinha
interesse em reformar a Igreja Anglicana em aspecto algum parecido
com o protestantismo. Então, ele se coroou governante supremo da
igreja e concedeu ao arcebispo de Canterbury os poderes papais que ele,
como leigo, não poderia atribuir a si mesmo. No entanto, todos sabiam
quem estava no controle, e a Igreja Anglicana mudou apenas no que
Henrique permitiu. No final de seu reinado, havia uma Bíblia vernacular,
poucas orações em inglês, e algumas, cartilhas teológicas para a instru-
ção dos leigos, e só. Inicialmente essas cartilhas pendiam na direção do
protestantismo, pois foram escritas por teólogos influenciados pelos
luteranos, mas, Henrique VIII, ao perceber isso, interrompeu o projeto
e até reescreveu parte do material, para que a igreja continuasse a mais
conservadora e “católica” possível.4
Henrique foi sucedido por seu filho Eduardo VI (r. 1547-53), de
nove anos. Como ele era menor de idade, um conselho regente go-
vernou em seu lugar. Isso permitiu que Thomas Cranmer, arcebispo
de Canterbury, iniciasse uma reforma verdadeira da igreja, o que ele
conseguiu introduzir em boa parte porque não havia ninguém com
autoridade suficiente para impedi-lo. Mas, quando Eduardo foi sucedi-
do por sua irmã católica, Maria I (r. 1553-58), a Inglaterra voltou para
o aprisco romano, com a bênção do Parlamento.5 Cranmer e alguns
colegas foram presos e acabaram mortos por ordem da rainha, dando
origem ao apelido de “bloody Mary” [Maria sangrenta], mas, quando
foi sucedida por sua irmã, Elizabeth I (r. 1558-1603), o protestantismo
de Eduardo VI foi restaurado. Durante esse processo todo, a vontade
4 Veja R. McEntegart, Henry VIII, the League of Schmalkalden, and the English Reformation
(Woodbridge: Boydell & Brewer, 2002); A. Ryrie, The Gospel and Henry VIII: Evange-
licals in the Early English Reformation (Cambridge: Cambridge University Press, 2003).
Recomendamos também, apesar de, infelizmente, manchado pelo veneno verbal
contra outros estudiosos da área, G. W Bernard, The King’s Reformation: Henry VIII
and the Remaking of the English Church (New Haven: Yale University Press, 2007).
5 Para uma avaliação recente e criteriosa sobre Maria I, veja J. Edwards, Mary /(New
Haven: Yale University Press, 2011).
prevalecente era a do governante, uma vontade assegurada por vários
“atos de uniformidade” que eram aprovados pelo Parlamento a pedido
do monarca.6 Assim como nos principados alemães os cidadãos eram
obrigados a cultuar da mesma forma, e participar dos cultos se tornou
compulsório como método de checar a obediência da população. Quem
ainda era solidário ao papado tinha de encobrir seus sentimentos, espe-
cialmente depois que Elizabeth foi excomungada pelo Papa em 1570.7
Na Irlanda, que teoricamente estava sob o governo inglês, mudar de
religião nunca foi seguro; no fim do reinado de Elizabeth, somente uma
pequena porcentagem da população irlandesa havia se tornado protes-
tante. Houve várias tentativas, incluindo a formação de uma faculdade
teológica protestante em Dublin e o estabelecimento de grandes grupos
de protestantes ingleses e escoceses em diferentes regiões do país, mas,
principalmente no Nordeste, onde se tornaram (e continuaram a ser) a
maioria da população. A história subsequente do país, onde o protestantis-
mo sempre foi associado ao domínio britânico e o catolicismo associado
à resistência a mudança, tem suas raízes nessa época.8
Esse padrão se repetiu com pequenas variações em todos os cantos
da Europa Ocidental. Os países que permaneceram católicos aboliram
todas as formas, de culto protestante, e os países protestantes fizeram
o mesmo em reverso. A maioria da população não tinha muita esco-
lha, e ser membro da igreja dependia mais da nacionalidade e lealdade
política e menos de doutrinas específicas, por mais que teólogos e
vozes oficiais das igrejas enfatizassem as doutrinas em detrimento da
nacionalidade e da política. Em um mundo onde.,por definição, todos os
portugueses eram católicos e todos os suecos eram protestantes, como
esperar outro resultado?

6 Os textos desse e de outro material relacionado à reforma inglesa são encontra-


dos em G. L. Bray, Documents of the English Reformation, 2. ed. (Cambridge: James
Clarke, 2004). Para um bom, mas, pouco conhecido estudo da sustentação teórica
da igreja anglicana nessa época, veja H. F. Woodhouse, The Doctrine of the Church
in Anglican Theology, 1547-1603 (Londres: SPCK, 1954).
7 Veja A. Walsham, Church Papists (Woodbridge: Boydell, 1993).
8 Veja M. Tanner, Ireland’s Holy Wars: The Struggle for a Nation’s Soul, 1500-2000 (New
Haven: Yale University Press, 2001); A. Ford, The Protestant Reformation in Ireland,
1590-1641 (Dublin: Four Courts Press, 1997).
Reforma radical
A terceira reação às divisões da Reforma foi mais radical. Ela veio
de quem achava que as estruturas tradicionais eram corruptas demais
para serem reformadas, ou não eram bíblicas e, portanto, deveríam ser
abolidas com base em princípios. O objetivo dessas pessoas era recons-
truir a igreja de acordo com o Novo Testamento, o que, segundo elas,
era possível com base no estudo cuidadoso de evidências. A maioria
dos sistemas eclesiásticos e administrativos desenvolvidos nessa base
tinha algum apoio bíblico, mas, nenhum argumento era totalmente
persuasivo. Assim, as igrejas que escolhiam a terceira opção ficavam
sujeitas a subdivisões, porque nenhum grupo convencia os outros de
que sua interpretação do Novo Testamento era visivelmente superior
à de quem quer que fosse.
A tentativa mais bem-sucedida de reconstruir a igreja começando
pelas doutrinas primordiais foi feita pelas igrejas que hoje chamamos
de Reformadas ou Presbiterianas. Elas seguiam o ensino de João Cal-
vino (1509-64), que foi basicamente conservador em sua maneira de
adaptar o modelo existente de igreja ao que ele via como exigência das
Escrituras. A essência de sua eclesiologia era a crença na liderança cole-
tiva, fundamentada no princípio de que o Novo Testamento não fazia
diferença entre bispos e presbíteros e que as primeiras igrejas foram
dirigidas por mais de uma pessoa. No entanto, Calvino não descartou
todas as formas de presidência, e dessa maneira uma igreja reformada
podería integrar bispos no sentido medieval do termo, mas, com status
e função reduzidos. Ele também acreditava que a igreja tinha de ser
independente do Estado e, então, ser livre para governar a si mesma;
entretanto, Calvino não fez objeção a uma igreja oficial estabelecida
pelo Estado, desde que fosse livre para agir como a consciência da
sociedade e não ficar subordinada a líderes seculares e suas vontades.
A eclesiologia de Calvino exerceu influência especialmente nas
cidades-estados e territórios do Santo Império Romano que possuíam
o que chamamos hoje de forma de governo “republicano”. Antes da
Reforma, Genebra, onde Calvino morava, era governada por seu bispo,
que foi deposto em 1532, e coube à câmara municipal a responsabi-
lidade de decidir qual seria a profissão de fé da cidade. Ela escolheu
uma forma de protestantismo, mas, quando Calvino apareceu alguns
anos depois e tentou impor uma disciplina eclesiástica mais severa que
a tolerada pelos vereadores, estes o expulsaram da cidade, e só o con-
vidaram a voltar quando a igreja rumava para o anarquismo. Calvino
retornou em 1541, mas, apesar de sua enorme reputação como líder e
reformador da igreja, ele teve de lutar contra a câmara municipal pelo
resto da vida. Com frequência, João Calvino é culpado pela execução
judicial de Michael Servetus (1511P-1553), um herege antitrinitariano,
porém a verdade é que a câmara municipal sentenciou Servetus à morte
e Calvino tentou mitigar a sentença, mas, fracassou.9
As dificuldades de Calvino em Genebra refletem os problemas fa-
dados a acontecer quando um reformado colocava princípios teológicos
acima das políticas práticas. A ideia de que alguém poderia usufruir de
liberdade de consciência em um Estado oficialmente comprometido
com uma forma específica de cristianismo estava além da compreen-
são da maioria das pessoas daquela época. Caso suas crenças fossem
verdadeiras, então, se desviar delas não tinha cabimento na sociedade
e certamente seria prejudicial tolerar desvios sem o devido castigo.
Mesmo assim, existem evidências de que as igrejas reformadas eram
menos intolerantes que as outras. A crença de que a união da igreja era
espiritual, não visível, e que os verdadeiros cristãos reconheceríam uns
aos outros, quer partilhassem ou não as mesmas expressões exteriores
da fé, capacitava-as a aceitar pessoas que divergissem delas, desde que
as divergências fossem aceitáveis. Para os reformados, o culto deveria
ser na linguagem falada pelo povo e a igreja deveria ser organizada pelos
países individualmente e de acordo com seus costumes, portanto, em
geral, as igrejas estavam preparadas para aceitar estrangeiros mais ou
menos como eram.
Assim, descobrimos que já no reinado de Eduardo VI, a Inglater-
ra protestante concedia refúgio aos protestantes do continente sem
obrigá-los a se submeterem ao culto e à ordem da Igreja Anglicana.
Homens como Martin Bucer (1491-1551) e Peter Martyr Vermigli
(1499-1562) receberam cargos universitários e permissão para ensinar
teologia sem terem de se tornar membros da igreja nacional. De modo
9 Veja B. Gordon, Calvin (New Haven: Yale University Press, 2009), p. 217-32.
semelhante, cidades como Frankfurt e Genebra abriram as portas para
súditos ingleses que fugiam da perseguição da rainha Maria I sem inves-
tigar suas crenças e práticas. Bastava-lhes que os refugiados partilhassem
da mesma visão do evangelho e da igreja. Essa generosidade, claro,
tinha limites. Em Londres, um francês podia se unir à igreja francesa,
que era alinhada com Genebra, e ser bem aceito por todos. Mas, se um
inglês defendesse o mesmo tipo de governo eclesiástico para seu povo,
ele estaria encrencado com as autoridades, pois ia contra a lei do país.
Tolerância aos compatriotas com crenças divergentes demorou a
chegar. Mesmo entre os reformados, ela foi resultado mais da necessi-
dade do que da convicção genuína, pelo menos no início. Nos Países
Baixos, por exemplo, a revolta contra a Espanha, que durou de 1566 a
1648, foi orientada e dirigida por calvinistas, que eram minoria na po-
pulação e tinham, assim, de tolerar pessoas com idéias diferentes para
conseguir apoio para a guerra. Quando a luta acabou, essas pessoas
haviam conquistado alguns direitos e foram aceitas como residentes
do país, mas, não tinham direito de votar nem ter cargos no governo.
Nesse aspecto, os Países Baixos seguiram o princípio estabelecido por
Calvino em Genebra, onde o governo civil era independente da igreja,
contudo, apenas membros da igreja podiam participar dele.10
O estilo de igreja reformada adotado por Calvino foi bem-sucedido
na França, contudo, nunca foi forte o bastante para dominar o país. Na
verdade, o país foi mergulhado em uma geração de guerras religiosas,
que acentuaram as diferenças entre católicos e protestantes e impossi-
bilitaram qualquer acordo. Em 1589, um acidente dinástico colocou o
protestante Henrique IV no trono, mas, os parisienses não permitiram
que entrasse na cidade caso não se convertesse ao catolicismo. Após
quatro anos de hesitação, ele se converteu, mas, logo em seguida, con-
feriu aos protestantes um grau limitado de tolerância oficial; essa foi a
primeira ve2 que um país europeu fez tal coisa. Os católicos tiveram de
engolir a situação, por mais desgostosos que estivessem, e durante um
tempo os protestantes administraram o que foi quase um país dentro
do país. Infelizmente, tolerância era uma ideia avançada para seu tempo
10 Para saber mais sobre o assunto, veja J. Israel, The Dutch Republic. Its Rise, Greatness,
and Fall, 1477-1806 (Oxford: Oxford University Press, 1995).
e se mostrou impraticável no contexto francês. Os privilégios foram
diminuindo gradualmente até que, em 1685, os protestantes foram
forçados a se tornar católicos, ou receberíam a pena de expulsão. Mui-
tos preferiram o exílio e rumaram para países protestantes do norte,
onde se uniram a igrejas locais estabelecidas, contudo, mantiveram sua
identidade francesa durante muitas gerações.
Nesse ínterim, discórdias dentro da Igreja Reformada Holandesa
forçaram as autoridades seculares a convocar um sínodo, com o pro-
pósito de definir o que era de verdade o cristianismo reformado. O
concilio se reuniu em Dordrecht (Dort) no inverno de 1618-19 e foi
a única ocasião antes dos tempos modernos em que protestantes de
toda a Europa se juntaram para estabelecer uma base de união entre
si. Os protestantes franceses não tiveram permissão de seu governo
para participar do sínodo; a delegação britânica, porém, causou uma
impressão geral profundamente favorável - a primeira, e até agora a
última vez que teólogos britânicos usufruíram tal influência no cenário
internacional.11 Dort foi um sínodo holandês, e suas decisões não foram
formalmente adotadas em outros países, mas, conseguiram articular
uma posição teológica reformada, e nesse aspecto ainda têm papel im-
portante hoje. Foram especialmente influentes na Grã-Bretanha, apesar
de a Inglaterra e a Escócia nunca as terem reconhecido oficialmente.
As razões para isso eram complexas. Quando a rainha Elizabeth
I restabeleceu uma Igreja Protestante em 1559, ela também proveu o
reformador escocês João Knox (1514?-1572) com um exército que
podería ajudá-lo a tomar posse de sua terra natal. Knox era radical
demais para o gosto de Elizabeth, contudo, ele era confiavelmente
protestante e em 1560 conseguiu persuadir o Parlamento escocês a
votar a favor da Reforma. Ao contrário do que muita gente pensa,
Knox não aboliu o sistema eclesiástico católico, todavia, modificou-o
de modo a permitir uma administração mais participativa.II 12 Depois de

IIVeja A. Milton, The British Delegation and the Synod of Dort (Woodbridge: Boydell &
Brewer, 2005).
12 Veja A. Ryrie, The Origins of the Scottish Reformation (Manchester: Manchester Uni-

versity Press, 2006); G. Donaldson, The Scottish Reformation (Cambridge: Cambridge


University Press, 1960).
4

sua morte, um movimento presbiteriano se tornou muito influente,


porém um episcopado residual conseguiu sobreviver. Quando James
VI (r. 1567-1625) foi coroado rei da Inglaterra, em 1603 (como James
I), a população em geral achou que ele introduziría um sistema parecido
de governo eclesiástico. A rainha Elizabeth I havia mantido o sistema
episcopal, embora não ligasse muito para os bispos. James, por outro
lado, era politicamente fraco na Inglaterra e, portanto, considerava os
bispos aliados do seu governo. Em vez de introduzir um formato es-
cocês de governo eclesiástico na Inglaterra, ele decidiu fazer o oposto:
levar a igreja escocesa a se moldar à inglesa.
James entendia os escoceses e conhecia suas limitações, assim nun-
ca pressionou sua pauta além do que os escoceses aguentariam, e nas
raras ocasiões em que fez isso, ele retrocedeu rapidamente diante da
oposição. Seu filho, Carlos I (r. 1625-49), era menos habilidoso nesse
sentido e ainda menos diplomático. Ele era atraído pela estética da re-
ligião, mas, embora fosse sincero na fé, não era teólogo como seu pai.
A impressão, então, era que ele promovia uma forma de culto católico
sem nenhum zelo correspondente pela teologia reformada. Quando o
Parlamento se opôs, Carlos o destituiu. Quando a Escócia se revoltou
contra suas políticas, ele atacou o país e tentou forçar-lhe goela abaixo
seus pontos de vista. Pior ainda, tentou provocar os católicos irlandeses
com promessas de tolerância que ele não podia cumprir, uma política
insensata que apenas convenceu os ingleses de que ele estava a ponto
de enviar o exército irlandês contra eles com o objetivo de forçar suas
idéias quanto ao culto e a liderança da igreja.
No fim, os escoceses aboliram o episcopado de uma vez, e os
ingleses enfurecidos juntaram-se a eles em uma revolta. A seguir, es-
tourou uma guerra civil, e um de seus principais motivos foi decidir
como a igreja seria governada e qual seria seu relacionamento com o
Estado. Quando a guerra começou, o Parlamento inglês convocou uma
assembléia em Westminster com o único propósito de estabelecer uma
igreja reformada para os três reinados: Inglaterra, Escócia e Irlanda.13
Os escoceses estavam em vantagem porque seus representantes, apesar
13 Veja C. Van Dixhoorn (Org.), The Minutes and Papers of the Westminster Assembly,
1643-1652, 5 vol. (Oxford: Oxford University Press, 2012).
de em menor número, eram unidos na defesa do presbiterianismo e
tinham um exército a apoiá-los. Em pouco tempo, os ingleses foram
obrigados a aceitar a perspectiva escocesa de uma igreja reformada, e a
Assembléia de Westminster acabou criando uma igreja de acordo com
ela. O notável, porém, é que sua confissão se esquivou de questões de
governo eclesiástico, o que tornou possível sua aceitação por uma diver-
sidade de cristãos reformados. Em pouquíssimo tempo, essa confissão
de fé se tornou referência do protestantismo reformado inglês, e sua
influência se espalhou por todos os cantos. Até os congregacionalistas e
batistas aceitaram a maior parte da confissão, e suas próprias confissões
apresentavam modificações relativamente pequenas em relação a ela.14.
Infelizmente, alguns ingleses presentes ficaram menos convenci-
dos, e o grupo dos contrários no Parlamento, uma vez organizado, foi
liderado por homens que faziam oposição cerrada aos presbiterianos
em questões eclesiológicas. Eles favoreciam o congregacionalismo,
ou “independência”, como era chamado na época. Isso deu às igrejas
locais o direito de estruturar sua forma de ministério e culto, desde
que aderissem às linhas gerais da teologia reformada. Alguns ingleses
membros da assembléia gostariam de manter os bispos, contudo, o
episcopado andava tão desacreditado diante das políticas de Carlos I
que não havia esperança nenhuma de isso acontecer. Em 1649, o rei
foi condenado à morte, o episcopado foi abolido, e uma forma pres-
biteriana de política eclesiástica foi estabelecida, pelo menos no papel.
Contudo, o exército não queria aplicar a lei, e o congregacionalismo
se tornou a opção padrão em prática, se não em teoria. Isso resultou
em luta entre ingleses e escoceses, e os primeiros venceram sem muito
esforço. Quando a guerra civil terminou, a igreja estava livre de seus
mestres tradicionais, e a liberdade de expressão era quase total — a não
ser para católicos, episcopais e presbiterianos escoceses, que se recu-
savam a aceitar a abolição da monarquia.
Apesar dessas limitações, os vitoriosos foram notavelmente tole-
rantes para a época em que viviam. Batistas, quakers, e muitos outros
grupos que depois desapareceram, tiveram permissão para expressar
14 Issó é especialmente verdade em relação à Segunda Confissão de Londres (Batista),
de 1689 e da Confissão da Filadélfia, de 1742.
mais ou menos livremente suas idéias, e a população se acostumou a
formar suas próprias opiniões em questões teológicas. Naturalmente,
era impossível conduzir uma igreja nacional em bases tão caóticas, e a
tentativa logo se despedaçou. Em 1660, um general presbiteriano es-
cocês convidou o rei Carlos II (r. 1660-85) a reconquistar seu trono, e
a antiga ordem foi reestabelecida. Os dissidentes do episcopado foram
expulsos da igreja e perseguidos - tanto na Escócia quanto na Inglaterra.
Isso durou mais de vinte anos, até que o pesadelo que todos temiam
aconteceu. O trono foi herdado pelo irmão de Carlos II, James II (VII
da Escócia) (r. 1685-88), que havia se tornado católico em 1673. Não
existia lei que o impedisse de subir ao trono, embora o Parlamento
inglês tenha se empenhado em aprovar uma enquanto havia tempo,
mas, sem sucesso.
James II se declarava favorável à tolerância religiosa, mas, todos sa-
biam que a declaração era um jeito de restaurar o catolicismo — a forma
mais intolerante do cristianismo ocidental - pela porta dos fundos. Ele
acabou sendo afastado, e seu genro, o duque William de Orange, se
tornou rei com o nome de William III (r. 1689-1702). William introduziu
a forma holandesa de tolerância em seus novos reinos. Os protestantes
dissidentes tiveram permissão para cultuar livremente, os católicos
ficaram excluídos de participar da política e as igrejas estabelecidas
(episcopal na Inglaterra e presbiteriana na Escócia) foram bastante en-
corajadas a serem tão flexíveis em questões teológicas quanto possível.15
Essa política sofreu oposição, claro, mas, sem sucesso. A eclesiologia
reformada se mostrou capaz de acomodar diferentes tipos de política
eclesiástica dentro de um único Estado sem sacrificar o princípio de
uma igreja nacional. A partir de então, a exclusão da Igreja Luterana
ou da Igreja Escocesa seria reservada apenas para as pessoas que de-
sejassem abandoná-las, e não para os dissidentes, embora regras mais
rigorosas continuassem a ser aplicadas ao clero, pregadores e membros
de universidades, o que não causou estranheza.
15 Na Irlanda, a igreja estabelecida era episcopal, contudo, os presbiterianos rece-
beram reconhecimento e um subsídio do governo para seu clero. Os católicos,
porém, eram duramente descriminados, pelo menos no papel, embora formassem
a maioria da população.
de em menor número, eram unidos na defesa do presbiterianismo e
tinham um exército a apoiá-los. Em pouco tempo, os ingleses foram
obrigados a aceitar a perspectiva escocesa de uma igreja reformada, e a
Assembléia de Westminster acabou criando uma igreja de acordo com
ela. O notável, porém, é que sua confissão se esquivou de questões de
governo eclesiástico, o que tornou possível sua aceitação por uma diver-
sidade de cristãos reformados. Em pouquíssimo tempo, essa confissão
de fé se tornou referência do protestantismo reformado inglês, e sua
influência se espalhou por todos os cantos. Até os congregacionalistas e
batistas aceitaram a maior parte da confissão, e suas próprias confissões
apresentavam modificações relativamente pequenas em relação a ela.14.
Infelizmente, alguns ingleses presentes ficaram menos convencí-
dos, e o grupo dos contrários no Parlamento, uma vez organizado, foi
liderado por homens que faziam oposição cerrada aos presbiterianos
em questões eclesiológicas. Eles favoreciam o congregacionalismo,
ou “independência”, como era chamado na época. Isso deu às igrejas
locais o direito de estruturar sua forma de ministério e culto, desde
que aderissem às linhas gerais da teologia reformada. Alguns ingleses
membros da assembléia gostariam de manter os bispos, contudo, o
episcopado andava tão desacreditado diante das políticas de Carlos I
que não havia esperança nenhuma de isso acontecer. Em 1649, o rei
foi condenado à morte, o episcopado foi abolido, e uma forma pres-
biteriana de política eclesiástica foi estabelecida, pelo menos no papel.
Contudo, o exército não queria aplicar a lei, e o congregacionalismo
se tornou a opção padrão em prática, se não em teoria. Isso resultou
em luta entre ingleses e escoceses, e os primeiros venceram sem muito
esforço. Quando a guerra civil terminou, a igreja estava livre de seus
mestres tradicionais, e a liberdade de expressão era quase total — a não
ser para católicos, episcopais e presbiterianos escoceses, que se recu-
savam a aceitar a abolição da monarquia.
Apesar dessas limitações, os vitoriosos foram notavelmente tole-
rantes para a época em que viviam. Batistas, quakers, e muitos outros
grupos que depois desapareceram, tiveram permissão para expressar
14 Isso é especialmente verdade em relação à Segunda Confissão de Londres (Batista),
de 1689 e da Confissão da Filadélfia, de 1742.
mais ou menos livremente suas idéias, e a população se acostumou a
formar suas próprias opiniões em questões teológicas. Naturalmente,
era impossível conduzir uma igreja nacional em bases tão caóticas, e a
tentativa logo se despedaçou. Em 1660, um general presbiteriano es-
cocês convidou o rei Carlos II (r. 1660-85) a reconquistar seu trono, e
a antiga ordem foi reestabelecida. Os dissidentes do episcopado foram
expulsos da igreja e perseguidos — tanto na Escócia quanto na Inglaterra.
Isso durou mais de vinte anos, até que o pesadelo que todos temiam
aconteceu. O trono foi herdado pelo irmão de Carlos II, James II (VII
da Escócia) (r. 1685-88), que havia se tornado católico em 1673. Não
existia lei que o impedisse de subir ao trono, embora o Parlamento
inglês tenha se empenhado em aprovar uma enquanto havia tempo,
mas, sem sucesso.
James II se declarava favorável à tolerância religiosa, mas, todos sa-
biam que a declaração era um jeito de restaurar o catolicismo — a forma
mais intolerante do cristianismo ocidental - pela porta dos fundos. Ele
acabou sendo afastado, e seu genro, o duque William de Orange, se
tornou rei com o nome de William III (r. 1689-1702). William introduziu
a forma holandesa de tolerância em seus novos reinos. Os protestantes
dissidentes tiveram permissão para cultuar livremente, os católicos
ficaram excluídos de participar da política e as igrejas estabelecidas
(episcopal na Inglaterra e presbiteriana na Escócia) foram bastante en-
corajadas a serem tão flexíveis em questões teológicas quanto possível.15
Essa política sofreu oposição, claro, mas, sem sucesso. A eclesiologia
reformada se mostrou capaz de acomodar diferentes tipos de política
eclesiástica dentro de um único Estado sem sacrificar o princípio de
uma igreja nacional. A partir de então, a exclusão da Igreja Luterana
ou da Igreja Escocesa seria reservada apenas para as pessoas que de-
sejassem abandoná-las, e não para os dissidentes, embora regras mais
rigorosas continuassem a ser aplicadas ao clero, pregadores e membros
de universidades, o que não causou estranheza.

15 Na Irlanda, a igreja estabelecida era episcopal, contudo, os presbiterianos rece-


beram reconhecimento e um subsídio do governo para seu clero. Os católicos,
porém, eram duramente descriminados, pelo menos no papel, embora formassem
a maioria da população.
Com o passar do tempo, o sucesso da tolerância limitada incentivou
o Estado a abrir o leque da tolerância, e o sistema duaüsta de ter uma
igreja nacional que abraçava todo mundo e congregações dissidentes
que cultuavam como bem desejavam capacitaram um governo cristão
a conferir liberdade de consciência sem risco de prejuízo. Um dia seria
até possível desestabelecer a igreja, como aconteceu nos Estados Uni-
dos depois da Revolução Americana, sem prejudicar seriamente esse
equilíbrio. Por causa disso, os cristãos americanos hoje podem se achar
genericamente cristãos e, mesmo assim, permanecerem leais a uma tra-
dição denominacional em particular, sem sentir nenhuma contradição
nessa aliança essencialmente duaüsta — à igreja universal, de um lado,
e à congregação local, por outro lado.
A tradição reformada é um modelo conservador ou moderado da
abordagem extrema que o mundo protestante faz à eclesiologia. Existe,
porém, uma variante ainda mais radical, que em seu formato original
insistia em algo que entendeu como bibücismo estrito e rejeitou qual-
quer ügação entre a igreja e o Estado secular. Defensores dessa posição
geralmente eram pacifistas e afirmavam que jurar diante de um juiz
secular era increduüdade, e mesmo que não fossem tão longe, ainda
acreditavam que não existia fundamento bíbüco para o batismo infantil
e quem o praticava estava negando a própria natureza da igreja. Para
os extremistas (ou como diriam, radicais coerentes), a igreja era uma
reunião de crentes professos, e o batismo, então, deveria ser adminis-
trado somente a quem havia feito sua profissão de fé. Como a primeira
geração rejeitou o batismo que recebeu na infância e foi “rebatizada”
na idade adulta, ela passou a ser chamada de Anabatista, embora, claro,
desprezasse esse rótulo.16
Na maneira de os anabatistas entenderem a igreja, uma congregação
local não podería mais ser consubstanciai com a comunidade. Somente
as pessoas que abandonaram o mundo poderíam pertencer à igreja, o
que inevitavelmente excluía um número significativo de pessoas que,
não fosse por isso, se incluiría no rol de membros. Como colocar isso
em prática onde todo mundo se conhecia e a maioria das pessoas era

16 O prefixo grego ana- significa “re-“.


parente? Que tipo de igreja resultaria disso, e como ela se manteria de
uma geração para outra? À medida que as opções foram sendo prati-
cadas, as respostas se tornaram claras — e em geral eram diferentes do
que os primeiros reformados imaginaram, como os anabatistas foram
os primeiros a demonstrar.
Para os anabatistas e os de igual pensamento, a comunhão espiri-
tual dos cristãos era fundamental; como trabalhar em comunidade era
secundário. A teoria soava bem, mas, logo os problemas, apareceram.
Os líderes tinham suas próprias idéias sobre o que devia ou não ser
tolerado na comunhão cristã, e em pouco tempo estavam ditando re-
gras que estabeleciam quem era (e quem não era) cristão de verdade.
Inevitavelmente, o foco eram os membros a serem excluídos da igreja,
e aqui alguns critérios bastante severos eram aplicados. Não era difícil
alguém ser disciplinado por infrações mínimas das regras. Ninguém era
apedrejado nem condenado à morte, mas, como se dizia, era “margi-
nalizado”, excluído da comunhão. Em uma sociedade fechada, isso era
muito eficiente e uma forma bastante cruel de punição, especialmente
quando afastava uma pessoa de sua família. Infelizmente, demasiadas
vezes aqueles que se uniam para escapar da tirania da igreja do Esta-
do se juntavam e criavam um sistema ainda mais opressor do que o
abandonado.
No fim, a Reforma radical acabou reagrupando seus membros em
comunidades sectárias que viviam separadas da sociedade. Na teoria,
acreditavam que ser cristão era uma decisão individual; a fé não era uma
herança passada de uma geração a outra. Assim, o batismo infantil foi
abolido, e quem desejasse se unir à igreja enfrentava exame rigoroso.
Mas, com o passar do tempo e a chegada da segunda geração, essas
comunidades que haviam se separado do restante da sociedade des-
cobriram que precisavam, de algum modo, acomodar seus filhos. As
crianças não eram batizadas até fazer profissão de fé, e talvez nem todos
a fizessem, mas, em pouco tempo os anabatistas se tornaram um grupo
distinto, quase uma nacionalidade em si. Ainda hoje, famílias menonitas,
huteritas e amish conseguem traçar seus ancestrais espirituais a partir
do século 16, algo que poucos podem fazer. As pessoas que mais se
opunham à ideia de uma igreja nacional se tornaram uma nação própria.
O que uniu os dois tipos de radicais foi o desejo comum de abolir
a distinção entre clero e laicato e de impor uma disciplina comum (e
severa) aos membros da igreja. Para tanto, as igrejas reformadas con-
servadoras expandiram o presbitério de modo a incluir pessoas que
em outras igrejas seriam consideradas leigas por falta de treinamento
teológico e geralmente não eram pagas pela igreja. No entanto, esses
líderes faziam parte do ministério de disciplina da igreja, e o grande
número deles garantia que nenhum membro seria negligenciado. Os
anabatistas conseguiram o mesmo resultado restringindo o número de
membros e com a expectativa clara de que todos os cristãos confessos
se autodisciplinassem, embora as igrejas também tivessem de estabe-
lecer uma espécie de equipe pastoral para garantir que isso aconteceria
de verdade.
E importante lembrar que as três tendências mais importantes na era
pós-Reforma não eram compartimentos hermeticamente fechados, e
era possível haver muitas combinações. Obviamente, os reacionários do
primeiro grupo que permaneceram católicos eram os menos receptivos
a qualquer meio de intercâmbio, mas, foram sutilmente influenciados
pelos ensinos luteranos e especialmente, os calvinistas, embora, claro,
nunca os tenham reconhecidos como tais. Por exemplo, começaram
a produzir Bíblias na linguagem do povo, a organizar seminários para
o treinamento de padres (originalmente uma ideia protestante) e a
preparar catecismos para as crianças (outra inovação protestante). O
segundo grupo adotou uma teologia reformada (calvinista) enquanto
retinha a estrutura católica medieval, sendo que a igreja e a tradição
anglicanas são o exemplo mais óbvio disso.
Por fim, alguns radicais rejeitaram o calvinismo e houve quem
adotasse pontos de vista estranhamente similares ao catolicismo, es-
pecialmente na compreensão da graça e dos sacramentos. Isso acon-
teceu em algumas comunidades sectárias mais extremas, às margens
do puritanismo inglês, que ensinava o alcance da perfeição espiritual
por meio dos sacramentos e outras formas de devoção religiosa. A rica
variedade de tradições protestantes hoje é devida em grande parte a
essa.inclinação para o ecletismo, que gera tensões entre as pessoas que
insistem em uma posição reformada consistente, incluindo doutrina e
ordem eclesiástica, e as que estão prontas a fazer concessões, mas, em
geral, somente em questões de ordem e não de fé.
A crença que a união da igreja era primeiramente espiritual não
desapareceu dos círculos protestantes, e ganhou novo alento no final
do século 17 com o surgimento, na Alemanha, de um movimento novo
chamado pietismo e associado ao metodismo e avivamento evangélico
no mundo de fala inglesa. O pietismo era essencialmente uma reação
às divisões entre protestantes que haviam endurecido no decorrer das
controvérsias religiosas no final da era da Reforma. Os luteranos refor-
mados e as igrejas reformadas condenavam uns aos outros quase tanto
como condenavam os católicos, e nenhum deles tinha tempo para os
radicais. Na Inglaterra, partidários da igreja estatal estavam em guerra
com os dissidentes por razões que tinham muito mais a ver com política
e sociedade do que com o próprio cristianismo. Havería um modo de
ultrapassar essas dificuldades e restaurar a união espiritual que as igrejas
deveríam exibir, mas, não estavam fazendo?
A resposta dos pietistas foi que a experiência espiritual e a prática de-
vocional podiam superar diferenças teológicas. A união da igreja podia
ser demonstrada pelo viver cristão, enquanto a argumentação teológica
podia obscurecê-la (ou até mesmo negá-la). Assim, por exemplo, os lu-
teranos negavam a Ceia do Senhor aos reformados porque discordavam
da natureza exata do sacramento, contudo, os dois grupos liam a mesma
Bíblia, faziam as mesmas orações, e geralmente cantavam os mesmos
hinos. Eram um no Espírito, mesmo sendo divididos na confissão, e
quem não tinha preconceitos teológicos estava ciente disso. Como era
previsível, talvez, o pietismo exercesse muita influência entre os leigos,
e é justo afirmar que entre os pietistas a antiga distinção entre clero e
laicato, que os reformados ansiaram tanto abolir, chegou mais perto
de ser erradicada do que em qualquer outro grupo do cristianismo.17
A influência do pietismo demorou um pouco a ser sentida, mas,
no início do século 19, contribuiu para a união das igrejas luteranas e
reformadas na Prussia - apesar de certa oposição dos luteranos -, e em
sua forma evangélica causaria impacto significativo no mundo de fala
inglesa. Não é exagero afirmar que a união de protestantes é mais visível

17 Apenas os quakers são igualmente indiferentes a essa distinção.


hoje entre os evangélicos, herdeiros modernos da tradição pietista. Eles
dão pouca atenção a “características denominacionais”, passam de uma
tradição para outra com muita facilidade, e em geral preferem (ou criam)
uma igreja genérica, não denominacional, seja qual for a denominação
a que pertençam (ou não). Sua união é fruto do Espírito, e as divisões
formais que atrapalhem a obra são simplesmente deixadas de lado.

A SANTIDADE DA IGREJA

Não há como negar que a Reforma Protestante despedaçou a união


da igreja ocidental. Muitas pessoas (então e agora), lamentaram o fato,
contudo, para muitos protestantes a Reforma era necessária porque a
igreja havia se corrompido. O estilo de vida do clero contradizia seus
votos e profissão. Em geral, os leigos eram ignorantes e deixados a seu
bel prazer. Somente uma reforma profunda solucionaria essas ques-
tões, e foi a resistência da hierarquia e seus partidários que causaram a
divisão. Se todos tivessem visto e apoiado a necessidade de mudança,
podería ter acontecido uma Reforma que transformaria a igreja toda e
preservaria sua união formal nos princípios espirituais que em teoria
definiam sua existência. Então, como era previsível, o interesse em saber
o que tornava uma igreja santa e aceitável a Deus se tornou o centro
dos debates sobre a Reforma. É nas diferentes respostas dadas a esse
desafio que observamos mais claramente o que separava os diferentes
grupos uns dos outros.
Aqueles que continuavam a apoiar as reivindicações do papado
sabiam tão bem como qualquer pessoa que havia problemas sérios
no âmago da administração da igreja. Um grande número de bispos
negligenciava suas responsabilidades, o clero não tinha disciplina e
treinamento apropriados, e o povo ficou à mercê dos predadores pro-
testantes que salientavam a seriedade dessas falhas e prometiam algo
muito melhor. O amplamente conhecido desejo que as pessoas comuns
tinham de ouvir os reformados foi um alerta para que a igreja botasse a
casa em ordem, e muito do que estava acontecendo na famosa Contrar-
reforma promovida pelo papado fica mais claro sob essa perspectiva.
O Concilio de Trento, convocado pelo Papa em 1545, foi o fórum mais
importante para se definir a natureza da reforma católica.18 O impe-
rador Carlos V insistia nesse concilio desde que a Reforma irrompeu,
mas, o papado arrastava o assunto. O concilio ocorreu em Trento
para acomodar o desejo do Papa de que ele acontecesse em Roma e a
insistência do imperador de que fosse em seu território. Trento ficava
no norte da Itália e era de fácil acesso para quem vinha de Roma, mas,
também estava localizado no Santo Império Romano, e, portanto, sob
as ordens diretas do imperador.
Os protestantes foram convidados a enviar representantes para as
reuniões de abertura, mas, recusaram, e sob a pressão dos jesuítas o
convite não foi renovado. Trento se tornou, e assim permanecería, um
concilio em que a Igreja Católica Romana decidiu reforçar suas bases
e melhorar suas práticas ao reafirmar seus princípios fundamentais e
buscar novos meios de implementá-los com mais eficiência.
O que surgiu no desfecho foi uma igreja muito mais uniforme, tanto
em aparência quanto em prática, do que antes. Bispos e clero ficaram
sujeitos a uma disciplina rigorosa. Questões doutrinárias controvertidas,
como a extensão do cânone bíblico e a natureza da justificação pela fé,
foram examinadas profundamente e explicadas de modo a combater
intencionalmente as afirmações protestantes. Por exemplo, os livros do
Antigo Testamento grego que não são encontrados na Bíblia hebraica
(a chamada Apócrifa) receberam status canônicos na versão em Latim, e
foi declarado oficialmente que a justificação pela fé não tinha significado
nenhum se não fosse acompanhada de “obras” — uma contradição direta
do que Lutero havia ensinado. Mais ainda, era nessas “obras” e por meio
delas que a santidade pessoal poderia ser medida, uma declaração que
transformaria a vida devocional católica e tornaria as diferenças entre
catolicismo e protestantismo nítidas a todos os olhos.
Os protestantes haviam desaprovado uma série de práticas que,
segundo achavam, contradiziam o evangelho ou eram inúteis. Algumas
dessas práticas incluíam jejum, celibato sacerdotal obrigatório, práti-
cas devocionais em torno da missa (como a adoração dos elementos

18 Veja J. C. Olin, Catholic Reform: From CardinalXimenes to the Council of Trent, 1495-
1563 (New York: Fordham University Press, 1990); J. W. O’Malley, Trent What
Happened at the Council (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013).
consagrados) e assim por diante. Em resposta, o Concilio de Trento
enfatizou mais ainda essas coisas, cortando excessos óbvios como a
venda de indulgências (mas, não as indulgências propriamente ditas),
e estabelecendo uma prática regular de confissões e penitências antes
da Eucaristia, cujo propósito era assegurar que os membros da igreja
fizessem o que deviam. A missa continuou no cerne da vida devocional
e, no mínimo, se tornou ainda mais importante. Os muitos rituais eu-
carísticos da igreja pré-Reforma foram abolidos, e um padrão único foi
autorizado para a igreja toda. A missa deveria ser realizada em latim, para
que os católicos pudessem participar dela em qualquer país do mundo.
A famosa Missa Tridentina, como ficou conhecida, permaneceu em uso
oficial durante quatrocentos anos, e para os católicos conservadores de
hoje ela, e não o que a precedeu, é a referência do que a igreja deveria
fazer no culto público.
Os padrões da vida monástica pré-Reforma foram mantidos e
fortalecidos, contudo, os leigos foram incentivados a adotar tantas
práticas devocionais monásticas quantas lhes fossem possíveis. Com
isso, os católicos extremamente devotos iam à missa diariamente,
usavam uma camiseta de tecido rústico sob a roupa como prova de
que abandonaram as vaidades desse mundo, faziam romarias a lugares
sagrados e passavam tempo repetindo orações memorizadas diante
de objetos sagrados, de uma imagem da Virgem Maria ou de um dos
santos que serviam obrigatoriamente como padroeiros ou exemplos
de comportamento.
A crítica protestante, que no início da Reforma se concentrava na
superficialidade de tanta devoção popular, agora enfatizava sua futili-
dade. Para os protestantes, os católicos estavam tentando comprar um
lugar no céu e sendo incentivados a fazer isso por meio da igreja, que
agia como despenseira da graça de Deus. Na perspectiva protestante, os
católicos estavam se iludindo, pois a salvação era um dom gratuito de
Deus dado pelo Espírito Santo e não algo obtido por esforços huma-
nos. Para os protestantes, a Igreja Católica Romana era uma instituição
tirana poderosa, determinada a manter seus escravos espirituais em
subrtiissão negando-lhes acesso às verdades da Bíblia e impondo-lhes
uma disciplina espiritual mais próxima à interpretação que os fariseus
deram à lei de Moisés do que ao evangelho de Cristo. Ou seja, quanto
mais Roma enfatizava seus princípios, mais os protestantes se afastavam
dela e usavam os indícios da reforma católica como evidência de que
o Papa era mesmo o anticristo.
Diferente da Igreja Católica, a união interna das igrejas protestantes
estatais era apoiada pela lei secular, que também ditava como as pessoas
deveríam se comportar em todas as situações da vida - certamente em
público, e, até certo ponto, em particular também. Havia leis ditando
como deviam se vestir, gastar qualquer tempo livre que tivessem e o
que ler. Os Dez Mandamentos eram a base da moralidade pública; os
magistrados tinham de defender os princípios bíblicos tanto quanto
possível. Os tribunais deviam assegurar que a sociedade cristã inteira
se empenhasse a obedecer às regras estipuladas na Palavra de Deus, as
do Antigo Testamento inclusive. Há muito se desejava adaptar as leis
mosaicas às necessidades cristãs, como o sistema medieval de dízimo
mostrou, contudo, os protestantes foram mais além e abrangeram coisas
como os graus de parentesco e afinidade que impediríam um casamento.
O direito canônico havia optado de modo mais ou menos arbitrário
por sete graus de relacionamento, que mais tarde foram diminuídos
para quatro, todavia os protestantes encontraram o padrão ideal em
Levíticos 18 e acrescentaram o texto às suas leis matrimoniais.19
Como tudo isso afetou a santidade da igreja como instituição
singular na sociedade é difícil dizer. De um lado, a distinção medieval
entre a “igreja” e o “mundo” foi eliminada. O monasticismo deixou de
existir, e o clero não tinha mais obrigação de ser celibatário. Os cultos
eram feitos no idioma local, e esperava-se que os fiéis participassem
do culto de várias maneiras. Na maioria das igrejas reformadas, leigos
eram escolhidos para ser presbíteros e dividir a liderança da igreja com
aqueles que tinham formação acadêmica e haviam sido ordenados
para o ministério de tempo integral, embora o pastor ou o “líder de
ensino” conservasse sua posição especial e não fosse tão diferente do
sacerdote da pré-Reforma quanto alguns protestantes mais radicais
gostariam que fosse.
19 VejaLevíticos 18.6—18 e compare-o à lista de graus proibidos [para o casamento]
acrescentados ao Livro Anglicano de Oração Comum.
Em muitos aspectos, seria adequado afirmar que as igrejas protes-
tantes estatais e as sociedades a quem serviam se mesclaram uma à outra.
Essa mescla era mais visível em países luteranos, onde geralmente a
igreja havia se tornado departamento do Estado e seus ministros eram
pagos com dinheiro público. Não existia linha divisória clara entre o
sagrado e o secular, de modo que o rei era considerado bispo supremo
e os ministros da igreja eram supervisores de ensino em suas comunida-
des. As igrejas reformadas seguiam esse padrão até certo ponto, todavia,
conservaram maior independência do Estado. Por exemplo, continu-
aram a promover sínodos e criar suas próprias leis, que esperavam ser
ratificadas pelo Estado. Em alguns casos, essas igrejas não tinham voz
na decisão, pois eram minoria e deviam aceitar o que recebiam. Isso era
particularmente verdade na França, onde os protestantes queriam agir
dentro da lei, mas, a lei era a de um país católico que tinha dificuldade
em reconhecer o direito deles. No fim, entraram em um acordo, que
deixou a desejar para os franceses protestantes e foi minado progres-
sivamente até eles serem reprimidos e expulsos do país.
No entanto, se os relacionamentos com as autoridades seculares
variavam muito de um lugar para outro, a disciplina interna exibida
nas igrejas protestantes estatais era bem semelhante em todas elas. O
caminho para se alcançar uma igreja pura era a educação. A Bíblia foi
traduzida para o idioma local e era pregada de púlpito pelo menos duas
vezes aos domingos e com frequência durante a semana. Os cultos
eram voltados à ministração da Palavra, para a qual o sacramento era
suplementar. Em teoria, a Ceia do Senhor deveria ser administrada
com frequência, o que não acontecia na prática. Em alguns lugares, era
servida quatro vezes por ano, mas, não por leviandade. Ao contrário,
a celebração infrequente permitia que as paróquias promovessem
“ceias sazonais”, ocasião em que o sacramento seria precedido por
uma semana ou mais de preparação, constituída de cultos de oração
diários, arrependimento e chamadas à conversão e correção de vida.
Os paroquianos talvez não tivessem contato frequente uns com os
outros, mas, quando se reuniam, a ocasião era solene e causava-lhes
impressão muito mais profunda do que um encontro semanal jamais
poderia causar.
Para termos uma ideia de como eram essas ocasiões, basta estu-
darmos os enunciados convencionais da Igreja Anglicana. O Livro de
Oração Comum, publicado originalmente em 1549 e revisado algumas
vezes antes de alcançar sua forma clássica, em 1662, é bem daro quan-
to ao que deveria ser feito. O culto da Ceia do Senhor contém várias
exortações cujo objetivo é instruir pastores e igrejas no preparo para
o sacramento, e são específicas quanto às expectativas. Os dois Livros
de Homílias, o primeiro publicado em 1547 e o segundo em 1563, são
mais esclarecedores ainda com suas instruções detalhadas sobre o viver
cristão. Se compararmos os dois livros, notaremos que metade dos
sermões do primeiro livro lida com a doutrina e a outra metade, com
a prática; no segundo livro a balança é obviamente a favor da prática.
Essa mudança do ponteiro evidencia que a preocupação com a santi-
dade visível da igreja e de seus membros aumentava com o passar do
tempo e que todos os esforços estavam sendo feitos para inculcar um
estilo de vida santo entre a população.20
O que acontecia na igreja era reforçado por uma rede de escolas
criadas para treinar jovens. Os supervisores de ensino eram consi-
derados parte do estabelecimento eclesiástico e estavam sujeitos aos
mesmos testes doutrinários que o clero, o que comprova a importância
da escola como ferramenta de treinamento das gerações vindouras.
Nem todas as paróquias tinham uma escola, e apenas uma minoria
de jovens podia estudar; mesmo assim, isso era vim grande avanço
em comparação ao que havia sido conquistado antes da Reforma e
incentivava a igreja a estender seus préstimos o mais que pudesse. A
influência dessa abordagem foi duradoura. Até mesmo no século 18,
quando a população cresceu vertiginosamente e a Revolução Industrial
sobrecarregou a antiga estrutura paroquial nas cidades que se expandiam
rapidamente, a igreja reagiu e aumentou a produção de literatura cristã
a preços acessíveis e passou a realizar aulas dominicais para as crianças
que trabalhavam durante a semana. A necessidade de educação nunca
20 Veja P. Collinson, The Religion of Protestants: The Church in English Society, 1559-1625
(Oxford: Oxford University Press, 1982).
foi menosprezada, e a dimensão espiritual continuou fundamental a
seu cumprimento durante gerações.21
O maior desafio das igrejas protestantes foi a magnitude dos servi-
ços que tiveram de providenciar. Da noite para o dia, tiveram de encon-
trar pastores e professores instruídos que partilhassem e comunicassem
a visão dos reformados. Tiveram ainda de levantar recursos financeiros
para essa operação. Na época da Reforma, muitos, incluindo o Estado,
aproveitaram o desarranjo da igreja para se apossarem de seus rendimen-
tos e propriedades. Pegar tudo de volta foi quase impossível, e as igrejas
protestantes estatais atravessaram uma enorme crise financeira, apesar
de sua posição privilegiada.22 A demanda superou rapidamente o abas-
tecimento, e era evidente que, para alcançar os objetivos da Reforma,
deveriam ser adotadas medidas radicais. Infelizmente, o progresso nessa
direção foi estorvado por algumas das mesmas pessoas que deveriam
promovê-lo. Em geral, os líderes da igreja eram bem relacionados na
sociedade, pois vinham da nobreza ou tinham vínculos com famílias
nobres e ricas que se beneficiavam das dificuldades financeiras da igre-
ja. Na Inglaterra, os bispos continuavam a morar em seus palácios e
a gerenciar inúmeros serviçais, como sempre fizeram, e à medida que
as fontes de recurso secavam, eles pegavam o quanto podiam do que
ainda restava. A própria rainha Elizabeth I também tirou vantagens
da situação ao suprimir, durante anos, algumas dioceses e desviar suas
rendas para seus próprios cofres.23
Assim sendo, é natural que houvesse preocupação crescente quanto
a esse procedimento dentro da igreja. Pastores e leigos passaram a exigir
mais controle sobre as nomeações de líderes e mais disciplina para os
que já estavam atuando. Achavam também que a igreja anglicana preci­

21 Isso aconteceu até nos Estados Unidos, onde a oração continuou sendo parte da
rotina diária das escolas até a prática ser contestada e considera inconstitucional
na metade do século 20.
22 C. Hill, Economic Problems of the Church: From Archbishop Whitgift to the Long Parliament

(Oxford: Oxford University Press, 1956).


23 Bristol, uma diocese pobre, ficou vaga por dez anos (1593-1603), Ely, por quase

dezenove (1581-1600) e Oxford, vinte e um (1568-89) e depois por mais doze


anos (1592-1604). Outras dioceses tiveram de aguardar de dois a quatro anos por
novas nomeações.
sava completar o processo da Reforma começado na geração anterior,
e interrompido por motivos políticos. Mesmo as pessoas que reconhe-
ciam a vantagem de proceder com cautela enquanto ainda houvesse
um grupo significativo de opinião tradicionalista no país vieram a crer
que depois de o Papa ter excomungado a rainha (1570) e fechado as
portas a qualquer reconciliação com Roma, era hora de levar a reforma
da igreja à sua conclusão lógica, como foi feito em Genebra e na Es-
cócia. Infelizmente, encontraram resistência por parte da rainha, para
quem qualquer mudança no acordo religioso que ela havia imposto
em 1559 desestabilizaria o país e incentivaria a intervenção de poderes
estrangeiros (especialmente da Espanha) que se comprometeram a não
poupar esforços para restaurar o catolicismo.
As pessoas que favoreciam mais alterações não desejavam abando-
nar a igreja estatal nem se opunham ao acordo da rainha propriamente
dito, mas, achavam que ele continha muitos elementos da época me-
dieval. Elas queriam desenraizar essas imperfeições (como diziam) e
“purificar” a igreja - daí o apelido depreciativo “puritano”, que passou
a identificá-las. Na verdade, o puritanismo nunca girou em torno de
doutrina; em geral, os puritanos estavam satisfeitos com ela. A questão
era sobre a disciplina eclesiástica, que estava nas mãos do Estado e não
nas da igreja.24
Inevitavelmente, como os puritanos perceberam, isso resultou em
afrouxamento na aplicação da lei, uma vez que as autoridades laicas
não queriam agitar o barco eclesiástico com assuntos que lhes eram
obscuros e relativamente sem importância. O que os fiéis achavam da
predestinação ou da natureza do pão consagrado na Ceia do Senhor
era problema deles, e desde que não apregoassem suas crenças, as au-
toridades seculares dormiam sossegadas. Para os puritanos, essa atitude
era anátema. Eles queriam uma igreja que além de não se conformar
com o mundo por razões políticas também fosse de um só pensamento
porque seus membros estavam genuinamente convencidos de que suas
crenças eram verdadeiras. Por esse motivo, e por perceberem que havia

24 Veja P. Colünson, The Elizabethan Puritan Movement (Oxford: Oxford University


Press, 1967). Para ler os textos originais, veja W H. Frere and C. E. Douglas (Orgs.),
Puritan Manifestoes: A Study of the Origin of the Puritan Revolt (Londres: SPCK, 1907).
uma diferença abissal entre o que desejavam e a realidade com a qual
teriam de viver, a santidade da igreja se tornou uma questão de vital
importância, e é por isso, mais do que por qualquer outra coisa, que os
puritanos continuam a ser lembrados até hoje.
Não que faltasse à igreja elisabetana mecanismos para impor sua
disciplina, mas, as organizações existentes em geral eram usadas de
maneira errada. Por exemplo, em vez de tratar de questões como falta
de instrução e embriaguês - dois grandes males na Inglaterra do século
16 -, as autoridades preferiam atacar os clérigos que se recusassem a
usar as vestimentas prescritas na lei canônica ou que se apartassem
da liturgia oficial no que lhes parecessem detalhes insignificantes. Tal
conformidade exterior era aceita por alguns sob a justificativa de que a
roupa ou os termos específicos usados nos cultos não faziam a mínima
diferença. Mas, quando questões desse gênero se tornavam o princípio
e o fim da disciplina na igreja, até os puritanos mais moderados tinham
dificuldade em engoli-las. O cristianismo exigia mudança de vida e de
estilo de vida, pois de outra forma, a santidade de Deus estaria sendo
profanada e a igreja se tornando corrupta.
A obsessão crescente com a guarda do sábado era típica desse
comportamento, e uma característica do protestantismo britânico, e
não do continental. Os reformados haviam determinado que depois
dos cultos dominicais houvesse palestras para a congregação, o que se
transformou numa espécie de escola dominical para adultos. Tradicio-
nalmente, porém, as reuniões depois do culto eram ocasiões sociais,
quando os caixeiros-viajantes apresentavam suas mercadorias e a comu-
nidade ficava ao redor bebericando. O costume era que o dinheiro da
cerveja fosse usado para reformar os templos; portanto, essas ocasiões
ficaram conhecidas como “cervejada da igreja”. Quando estavam de
cara cheia, os homens partiam para brincadeiras que deram origem a
jogos como o futebol, críquete e beisebol.
Para os puritanos, isso era profanação do sábado e tinha de ter fim.
O governo resistiu com firmeza, a ponto de em 1618 o rei James I pu-
blicar seu famigerado Book of Sports [Livro de esportes], que os clérigos
eram obrigados a ler de púlpito. O livro tornou ilegal o impedimento
de jogos aos domingos. A ordem do rei foi um desaforo tão grande
que os puritanos se prepararam para deixar o país — primeiro para a
Holanda, mas, acabaram indo para os Estados Unidos, onde, segundo
acreditavam, poderíam estabelecer uma comunidade livre de esportes
aos domingos e outras atividades profanas. A indignação foi tamanha
que até vinte anos depois, quando o Parlamento se revoltou contra o
rei e os ministros da igreja foram investigados sobre a solidez de seus
ensinos, uma das perguntas era se tinham lido o Book of Sports patz suas
igrejas. Se confessassem que sim, eram expulsos do pastorado como
infiéis e indignos de seu chamado.
Contudo, para os puritanos não bastava enfatizar a “santidade”
pública, e ao mesmo tempo dar brecha à hipocrisia na vida particular.
Afastar-se do comércio e dos esportes aos domingos não objetivava so-
mente o descanso, mas, também, o exercício em santidade. A expectativa
era que as pessoas participassem do culto e fossem instruídas, às vezes
por um longo tempo, a respeito da fé. Depois, então, deveríam ir para
casa e estudar a Bíblia e meditar sobre o que aprenderam na igreja. De
certo modo, a igreja se tornou a grande escola do crescimento espiritual
que os reformados desejaram que fosse, com sermões e palestras no
centro de suas atividades. O objetivo máximo era transformar as pessoas
de modo que a expressão pública de santidade fluísse naturalmente da
convicção interior dos líderes da sociedade.
Os puritanos sabiam que nem todos ficariam felizes em se moldar
às suas exigências, mas, eles contavam com aqueles que manteriam
os outros na linha. Os “justos”, como os cordatos eram chamados,
deveríam assumir o comando, o que aconteceu muitas vezes. É de
conhecimento geral que as pessoas que cultivam bons hábitos autodis-
ciplinares têm mais chances de serem bem-sucedidas do que os outros,
e o puritanismo se aproveitou disso. O que chamamos hoje de “classe
média” deve suas origens, pelo menos em parte, ao seu comportamento,
e as insurreições políticas que perturbaram a Inglaterra no século 16
foram em grandes proporções resultado de sua luta para controlar a
sociedade como um todo.
Os puritanos foram bastante caricaturados e escarnecidos por seus
adversários, e sua reputação tem sofrido por isso. Em um mundo caído,
quem busca perfeição certamente será acusado de fracassar na busca
de seus objetivos, e as acusações de hipocrisia não tardarão a chegar.
Contudo, os observadores escrupulosos reconhecem cada vez mais que
os puritanos, apesar de suas falhas, chegaram mais perto de criar uma
igreja que exibisse as marcas da santidade verdadeira do que qualquer
de suas contemporâneas, e é o legado de seu trabalho que escora as
sociedades democráticas mais avançadas de nossos dias.25
Em alguns aspectos os puritanos viviam nos limites entre a Igreja
Protestante estatal e as radicais como os Anabatistas e grupos semelhan-
tes com os quais são confundidos no ideário popular. Em parte, isso
aconteceu porque os puritanos queriam aplicar os princípios do calvi-
nismo reformado à igreja estatal inglesa, e em parte porque a oposição
sofrida levou alguns de seus membros a se afastarem da igreja. Esses
separatistas, como são chamados, tiveram de abandonar a Inglaterra, e
muitos se estabeleceram na Holanda, onde encontraram os menonitas,
um grupo anabatista moderado que havia conquistado um nível limitado
de tolerância ali. A junção dos dois grupos deu origem à Igreja Batista
Inglesa. Eles eram radicais quanto ao governo da igreja, e só — não
eram pacifistas, por exemplo, nem tampouco formaram comunidades
distintas à parte da sociedade. Sua maneira de pensar continuou
essencialmente puritana, pois preferiam trabalhar pela mudança interna
dentro das organizações existentes o quanto pudessem, e cooperavam
com outros dissidentes protestantes na Inglaterra até onde a consciência
lhes permitia. Um de seus porta-vozes mais famosos foi John Bunyan
(1628-88), segundo o qual nem mesmo o batismo deveria causar divi-
são entre os cristãos verdadeiros; até hoje, a capela que ele fundou em
Bedford tem duas listas de membros: uma para quem batiza crianças
e outra para quem não batiza.26
Os radicais extremistas criam, obviamente, que a única maneira
de garantir santidade na igreja era impedir seu contato com o mundo

25 P. Benedict, Christ’s Churches Purely Reformeà Λ Social History of Calvinism (New


Haven: Yale University Press, 2002); J. Witte Jr., The Reformation of Rights: Law,
Religion, and Human Rights in Early Modern Calvinism (Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2007).
26 John Bunyan, Differences in fudgment about Water-Baptism No Bar to Communion (Lon-

dres: John Wilkins, 1673).


sempre que possível. Foi com esse objetivo que criaram comunidades
separadas, e apesar de muitos de seus descendentes terem se reintegra-
do à sociedade com o passar do tempo, algo do impulso original ainda
continua. Por exemplo, os radicais da Reforma geralmente promovem
o pacifismo, assim como visões semiutópicas de mudança social. Em
termos gerais, seria correto afirmar que outros cristãos admiram muito
e respeitam os radicais por suas convicções, mas, não se unem a eles por
reconhecerem que, por mais louváveis que sejam seus objetivos, eles
são inalcançáveis em um mundo caído. De muitas maneiras, a Reforma
radical permanece um lembrete do que deveria ser e, assim, age como
a consciência do protestantismo, mas, por sua própria natureza, ela é
a fé de uma minoria e possivelmente continuará sendo até a volta de
Cristo, em glória, no final dos tempos.
As igrejas do oriente não foram atingidas pela Reforma e, portanto,
escaparam dos debates sobre santidade que eram tão importantes no
ocidente. Isso explica a tendência dos observadores ocidentais acharem
que os cristãos orientais não se preocupam muito com o assunto, mas,
isso é equívoco. Muitos dos termos usados nos debates ocidentais são
incompreensíveis aos orientais porque eles não estão acostumados a
fazer distinções detalhadas entre graça e natureza, Escrituras e tradição,
e assim por diante. Contudo é certo que nas igrejas orientais a santidade
está intimamente ligada à espiritualidade monástica, que serve de refe-
rência ali mais do que no ocidente. Não é incomum os cristãos orientais
se recolherem a um monastério para se dedicarem à reflexão espiritual,
e os leigos fazem isso com muita naturalidade. Tal prática ajuda a en-
tender a solidariedade de muitos ortodoxos para com o protestantismo
evangélico, que de algum modo é uma adaptação do monasticismo à
vida cotidiana. Poucos evangélicos hoje sabem, mas, seus momentos
de oração, leitura regular da Bíblia e a prática constante da presença
de Deus têm origem monástica e oferecem-lhes uma espiritualidade
prática que falta a outros cristãos ocidentais.
A insistência evangélica de que as ações falam mais alto que as
palavras, e que nossas ações revelam mais sobre nosso relacionamento
com Deus do que nossas palavras também agrada aos ortodoxos, que
instintivamente acredita que as palavras não conseguem expressar a
essência de sua fé. Argumentos teológicos não os agradam mais do
que agradam à maioria dos evangélicos, fazendo-os mais parecidos uns
com os outros do que se esperaria.

UMA IGREJA UNIVERSAL?

O desafio maior da Reforma aconteceu diante da terceira marca da


igreja, o seu “catolicismo”. Qual era o significado disso? Para Roma, a
igreja era uma e a mesma em todos os lugares, reconhecendo o Papa
como seu líder. Essa perspectiva nunca foi realidade, claro, mas, antes
da Reforma era relativamente fácil para os europeus ocidentais descon-
siderar as igrejas orientais, a maioria das quais já vivia mesmo sob do-
mínio muçulmano. O advento do protestantismo tornou difícil a Roma
manter sua reivindicação à universalidade, contudo, o papado tinha uma
visão mundial e foi pioneiro na obra missionária nas Américas, África
e Ásia. Para os espanhóis e portugueses propagar a fé era parte integral
de sua missão colonizadora, e no século 17 a França seguiu o exemplo
deles. Milhões de pessoas do que hoje chamamos “terceiro mundo”
foram batizadas, mas, embora as estatísticas sejam impressionantes, a
realidade era bem diferente. Nas Américas, missionários católicos fun-
daram postos avançados em locais que mais tarde se tornaram grandes
cidades, como Los Angeles, São Francisco e Montreal, que durante
séculos serviram de bases para a expansão comercial e espiritual ao
interior. Em áreas da América Latina, eles usaram as estruturas sociais
existentes para o mesmo objetivo.
A política dos reis da Espanha e de Portugal era controlar a lide-
rança eclesiástica nas colônias, e o papado consentiu por meio de um
sistema conhecido comopadronado (espanhol) oupadroado (português).
O sistema assegurava que somente homens nascidos na Espanha ou
Portugal fossem bispos nas colônias, atitude ressentida por descenden-
tes de europeus já nascidos na América Latina. Depois que a América
Latina se tornou independente, o sistema naturalmente teve de mudar,
contudo, foi tomado pela elite europeia local, que não estendeu seus
privilégios às pessoas de raça mista ou aos nativos que eles governavam.
Como resultado, o catolicismo popular da América Latina se tornou
uma mistura do cristianismo ortodoxo e da superstição pagã, muito da
qual foi reciclado das culturas indígenas pré-colombianas ou de religiões
ancestrais dos escravos africanos. A igreja estava mal preparada para as
atividades de missionários protestantes (especialmente dos pentecostais)
no século 20, alguns dos quais foram notavelmente bem-sucedidos em
atrair os católicos nominais para suas denominações. Roma continua
afirmando que a maioria da população é membro de sua igreja, mas,
o que isso significa na prática é discutível, e as estatísticas citadas são
guias pouco fiáveis da crença ou da participação regular nos cultos.
Na Ásia, os portugueses não foram tão bem-sucedidos. Portas que
se abriram inicialmente fecharam depois de algum tempo, e normas
criadas para tornar o cristianismo mais inteligível e aceitável às culturas
locais foram combatidas por Roma, com medo de que a abordagem
levasse ao sincretismo. Matteo Ricci (1552-1616) foi um missionário
católico extraordinariamente bem-sucedido na China e causou excelente
impressão no país, contudo, suas iniciativas não tiveram continuidade,
e no fim, a forma chinesa de cristianismo que seus seguidores queriam
implantar foi condenada pelo papado, um golpe do qual a missão cató-
lica à China nunca se recuperou.27 Em outros lugares, lembranças desse
período estão espalhadas em templos construídos através da África e
Ásia e ocasionalmente em palavras que as línguas nativas emprestaram
dos missionários.28 O catolicismo romano permaneceu tão romano
quanto católico, pelo menos, sendo que o Latim e a cultura italiana o
dominaram até o século 20.
No entanto, apesar da fragilidade de suas reivindicações, os católicos
romanos conseguiram monopolizar o uso da palavra “católico”, uso
que raramente é contestado na atualidade e geralmente aceito em quase
todos os lugares. Notamos os efeitos disso ao compararmos “católi-
co” com “ortodoxo”, a palavra normalmente usada para designar as
igrejas do Leste. Outras denominações se declaram “ortodoxas”, como
as igrejas presbiterianas ortodoxas fazem, mas, é difícil imaginá-las
adicionando a designação católica a seus nomes, mesmo que as suas
declarações confessionais oficiais afirmem que o são.
27 Veja G. Minamiki, The Chinese Rites Controversy: From Its Beginning to Modem Times
(Chicago: Loyola University Press, 1985).
28 Na Indonésia, por exemplo, “church” é gereja, do português igreja, e “Sunday” é

minggu, do português domingo.


Como o exemplo acima confirma, a maioria das igrejas protes-
tantes e das ortodoxas orientais evita o uso da palavra “católica” por
causa de sua associação com Roma, e algumas até preferem traduzir a
palavra nos credos como “universal”, embora seja difícil explicar o que
ela significa na prática. A maioria das igrejas protestantes e ortodoxas
orientais é limitada por considerações políticas e culturais a um país ou
grupo linguístico, e mesmo quando tem comunhão com outros grupos,
geralmente isso não significa muito na prática. Sem um idioma comum
é difícil aos fiéis cultuarem juntos em um plano que não seja apenas
simbólico, e uma igreja institucional nunca outorgaria seu governo in-
terno a outra igreja. Até mesmo os ortodoxos se dividiram por causa da
substituição do antigo calendário juliano - considerado melhor por ter
sido usado nos tempos de Jesus - pelo gregoriano.29 Além das divisões
causadas pela cultura e língua, é preciso acrescentar as resultantes de
questão racial, que afetaram países como os Estados Unidos e a África
do Sul de tal forma que os de fora acham difícil compreender ou aceitar.
Sem dúvida nenhuma o protestantismo nesses países (e às vezes em
outros) foi profundamente marcado por políticas de segregação racial
que ainda se fazem sentir na igreja, onde congregações de “negros” e
de “brancos” reúnem-se separadamente e com frequência se organizam
em diferentes denominações.
É fato que a maioria das igrejas protestantes históricas pertence a
associações internacionais que supostamente mantêm algum padrão
de união entre pessoas que reivindicam o mesmo rótulo denomina-
cional, todavia isso é bem diferente de ser “católico” ou “universal”.
A Federação Luterana Mundial, a Comunhão Anglicana e a Aliança
Batista Mundial são exemplos do que estamos falando, mas, como sua

29 Para a maioria dos cristãos ocidentais essa controvérsia parece estranha, contudo,
a maioria dos protestantes também custou a aceitar o calendário gregoriano. O
problema estava no fato de ele ter sido apresentado pelo Papa Gregorio XIII em
1582, depois âz Reforma, e, portanto, foi rejeitado pelos não católicos por questão de
princípio. A maioria dos protestantes europeus finalmente o aceitaram em 1700, mas,
os britânicos resistiram até 1752. Na Europa Oriental, a Rússia adotou o calendário
por motivos seculares em 1918, e os outros países ortodoxos fizeram o mesmo nos
anos 1920, mas, apesar de algumas, de suas igrejas terem aceitado a mudança, outras
(incluindo a da Rússia) não o fizeram e até o hoje seguem o calendário antigo.
história recente comprova, esses grupos são passíveis de altercações
internas, e nenhum deles está em posição de se engajar em diálogo ou
cooperação interdenominacional. O único órgão que mais se aproxi-
ma disso é o Conselho Mundial de Igrejas, que representa um amplo
espectro de grupos protestantes (e ortodoxos orientais), apesar de os
mais conservadores não pertencerem ao Conselho, e sua influência, que
nunca foi grande, ter declinado consideravelmente nos últimos anos.
Gostemos ou não, nacionalismo e denominacionalismo maquinaram
para enfraquecer a catolicidade de igrejas não romanas, um fato que os
defensores de Roma nunca deixam de enfatizar.
Quando os reformados falavam da catolicidade da igreja, era
principalmente aos credos antigos que se referiam. Insistiam em
afirmar que eram perfeitamente ortodoxos, e concordavam com o
Credo dos Apóstolos, o Credo de Niceia (niceno-constantinopolitano)
e o chamado Credo Atanasiano, embora a maioria deles ignorasse que
as igrejas orientais desconheciam o primeiro e o último desses credos.
Nada sabiam a respeito da discórdia filioque, mas, aceitaram o ponto
de vista ocidental quanto ao assunto. Conforme o tempo passou e os
grupos protestantes desenvolveram suas próprias confissões de fé e
tradições teológicas, a cooperação entre eles declinou e qualquer no-
ção séria de catolicidade desapareceu. A maioria das igrejas nacionais
fechou suas portas a intercâmbio regular com outras. Permanecia, no
entanto, a disposição de aceitar refugiados, como os huguenotes, que
foram expulsos da França depois de 1685 e conseguiram se integrar
à Igreja Luterana na Alemanha e à Igreja Anglicana sem dificuldade
nenhuma. Mas, esse foi um caso especial. Os luteranos normalmente
não entregavam seus púlpitos aos anglicanos, por exemplo, e mesmo
que se prontificassem a fazê-lo, poucos anglicanos possuíam habilidade
linguística para usufruírem de tal oportunidade. A Igreja Anglicana, por
seu lado, tornava-se cada vez mais desconfiada dos estrangeiros protes-
tantes. Ela hesitou em aceitar o rei George I (r. 1714-27), um luterano
de Hanover que herdou o trono britânico por seu protestantismo, e
até hoje não se relaciona com a Igreja da Escócia por causa da forma
presbiteriana de governo eclesiástico que esta última adota, mesmo
que seu governador supremo, o monarca, também seja membro da
Igreja Anglicana.
254

Tal intransigência denominational geralmente é ainda mais aguda


em grupos separatistas e radicais. Os batistas, por exemplo, sempre
foram extremamente relutantes em aceitar quem foi batizado quando
criança, mas, não como crentes, apesar de apelos feitos por pessoas
como John Bunyan. Presbiterianos e congregacionais (independentes)
concordam em tudo exceto em como a igreja deve ser administrada,
e embora essa diferença seja suficiente para impedi-los de trabalhar
juntos, ocasionalmente ela tem sido superada em nossos dias.30
Na atualidade, secularização, expansão missionária no estrangeiro
(onde essas divisões antigas são irrelevantes) e iniciativas ecumênicas
reduziram a força denominational. A cooperação panprotestante é cada
vez mais comum depois do século 16, mas, ainda estamos um tanto
longe de ter como líquido e certo que um protestante (e em particular,
um pastor protestante ordenado) será aceito em qualquer Igreja Pro-
testante. É necessário destacar que, em geral, os protestantes acham a
reivindicação da igreja à “catolicidade” enigmática e não sabem como
interpretá-la. Assim, ela é ignorada na prática ou reconhecida como
pertencente à comunhão romana e, portanto, tem de ser rejeitada por
ser estranha às crenças que professam, embora suas afirmações con-
fessionais oficiais digam o contrário.

A SUCESSÃO APOSTÓLICA

A quarta marca da igreja é a que produziu as ramificações mais


importantes para a igreja pós-Reforma e destaca as diferenças entre os
principais grupos cristãos de hoje. Em geral, a apostolicidade da igreja
é definida em um destes dois sentidos. O primeiro a entende como
sucessão histórica iniciada com os apóstolos e transmitida ao longo
das gerações, simbolizada pela imposição de mãos que tem origem no
Novo Testamento. O segundo a entende como fidelidade doutrinária
primordial ao ensino dos apóstolos, preservada para nós no Novo
Testamento e nos credos da igreja primitiva. Em geral, todos os grupos
30 No Canadá, congregacionais e presbiterianos se uniram (com os metodistas) em
1925 para formar a Igreja Unida. Na Inglaterra, eles fundaram a Igreja Refor-
mada Unida em 1972, e na Austrália, a Igreja Unida em 1976. Mas, no Canadá e
na Austrália, um número significativo de presbiterianos recusaram essa união e
plantaram igrejas de suas próprias denominações.
cristãos aceitam a segunda definição, embora alguns grupos protestantes
mais radicais rejeitem ou hesitem em aceitar os credos antigos como
padrões doutrinários. A primeira definição é mais complicada, até para
as igrejas que aceitam o princípio da sucessão histórica.
Para as igrejas orientais em geral, seu ministério procede da impo-
sição de mãos dos apóstolos e elas não se opõem a conceder primazia
a Pedro e à diocese de Roma, que, segundo creem, é de origem Petrina.
O que argumentam é que o Papa romano extrapolou sua autoridade e
tenta impor sua vontade a outras igrejas. Para elas, isso levou a Igreja
Católica ao erro e a perder proeminência na igreja global. Na sequência,
essa posição é agora ocupada pelo patriarca de Constantinopla, que,
embora não seja ocupante de uma diocese fundada por um apóstolo,
foi reconhecido no Primeiro Concilio de Constantinopla (381) como
segundo na hierarquia. Se algum dia o papado renunciar a suas rei-
vindicações à jurisdição universal sobre o mundo cristão inteiro, as
igrejas orientais o receberão de braços abertos no aprisco e lhe darão
o lugar de honra que é seu por tradição. Essa é a teoria, pelo menos.
Na prática, os orientais estão bem certos de que o Vaticano não pode
fazer isso sem renunciar a seus princípios e identidade; assim sendo,
não há possibilidade de mudança na situação atual. Isso é bastante
conveniente à maioria dos orientais, acima de tudo por causa do ódio
visceral de muitos contra o Vaticano, que torna insignificante a aversão
aos protestantes fundamentalistas.
Em sentido puramente teológico, a Igreja Católica Romana partilha
com as igrejas orientais muito da mesma compreensão sobre a natureza
do apostolado, mas, com uma diferença fundamental: a reivindicação
de que a primazia de Pedro lhe concede uma posição de autoridade
que as outras igrejas se recusam a aceitar. É importante entender que a
Igreja Católica não crê em sucessão meramente histórica de uma geração
para outra. O Papa atual não descende de Pedro da mesma forma que
a rainha Elizabeth II descende de William, o Conquistador, ou que o
presidente dos Estados Unidos é sucessor de George Washington. Ao
contrário desses, o Papa usufrui de todos os poderes que o fundador
de seu cargo usufruía, e isso lhe dá o direito de proclamar novas dou-
trinas com autoridade apostólica (portanto, infalível). Tal reivindicação
é rejeitada pelas igrejas do Leste, assim como pelos protestantes, para
os quais não existe na igreja de hoje ninguém com a autoridade divina
que foi dada aos apóstolos do Novo Testamento.
No mundo protestante, anglicanos e luteranos são os que mais
reivindicam apostolado histórico, embora haja divisão dentro de cada
grupo. Sem dúvida alguma, as igrejas oficiais da Inglaterra e da Sué-
cia (para não mencionar outras) preservam a sucessão apostólica no
sentido puramente histórico, embora tal alegação seja contestada pelo
Vaticano.31 Contudo, em 1536, a igreja luterana da Dinamarca rompeu
deliberadamente com a sucessão apostólica pela imposição de mãos, e
mostra-se relutante em fazer acordos, mesmo com os luteranos, devi-
do à sensibilidade destes ao assunto. É certo que existe aqui um forte
elemento político: Dinamarca e Suécia são oponentes há séculos, e se
lhes é possível encontrar uma razão teológica que justifique a distância
entre os dois países, tanto melhor.32
Os anglicanos, por outro lado, não se preocupam com a sucessão
apostólica em relação à política interna da igreja, mas, o assunto tem di-
ficultado projetos ecumênicos, tais como a união de grupos protestantes
de maior peso na índia, a partir de 1947. Aos olhos dos anglicanos mais
conservadores, somente quando todos os bispos da Igreja do sul da índia
fossem consagrados por alguém da linha sucessória apostólica como
eles a concebiam, essa igreja seria aceita na Comunhão Anglicana global.
A maioria das outras denominações protestantes não gastam tempo
com esses argumentos históricos, e fundamentam suas reivindicações
31 Em 1896, o papado declarou “nulas e sem efeito” ordens anglicanas, com base
“em falha de intenção”. Ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos anglicanos não são
legítimos porque aqueles que os ordenam e/ou consagram não têm a intenção de
torná-los bispos, sacerdotes e diáconos no sentido católico romano. Veja R. W.
Franklin (Org.), Anglican Orders: Essays on the Centenary of Apostolicae Curae, 1896-
1996 (Harrisburgo, PA: Morehouse, 1996). Obviamente, a decisão de muitas igrejas
anglicanas e luteranas de ordenar mulheres e consagrá-las ao bispado aniquilou
qualquer possibilidade de o Vaticano mudar de opinião em um futuro próximo.
O mesmo pode ser afirmado quanto às igrejas orientais, embora (tipicamente)
tenham sido mais reticentes em declarar publicamente sua opinião.
32 Até recentemente, na consagração de bispos dinamarqueses, os bispos suecos não

tinham permissão para lhes impor as mãos, por receio de que eles adquirissem
sucessão apostólica pela porta dos fundos.
ao apostolado na fidelidade à doutrina apostólica contida na Bíblia,
um critério que pensam faltar nas denominações que enaltecem o
episcopado histórico. No entanto, há exceções nesse aspecto dentro do
mundo protestante, o que (devido à sua variedade) não causa surpresa.
Alguns grupos de natureza carismática estão convictos da existência de
apóstolos na igreja de hoje e que ela deve ser governada pela autoridade
deles. Era assim que pensava Edward Irving (1792-1834), fundador da
Igreja Católica Apostólica, uma denominação protestante pequena,
mas, surpreendentemente ativa e influente. A alegação é negada (ou
pelo menos ignorada) por quase todos os outros grupos, porém só
o fato de poder ser feita lembra que o Novo Testamento não afirma
claramente que o ministério apostólico deixou de existir depois da pri-
meira geração de cristãos. Sabemos que desde então o consenso é que
deixou, sim, de existir, tenha ou não sido antevisto, contudo, até bem
recentemente, o mesmo era verdade em relação ao dom de línguas. Se
este pode reaparecer em nossos dias, por que não o apostolado?
São poucas as denominações que defendem a existência do apos-
tolado hoje, mas, é óbvio que seguem a tradição radical da Reforma,
segundo a qual uma igreja verdadeira tinha de começar do zero, fosse
ou não liderada por um “apóstolo” designado como tal. Essas igrejas,
que se multiplicaram com o tempo e são agora comuns no cenário
evangélico, não se preocupam muito com sistemas tradicionais ou
confissão de fé. Em geral, são ortodoxas em intenção, ou seja, aceitam
as doutrinas ensinadas nos credos da igreja primitiva (quando não os
próprios credos) e têm um entendimento evangélico geral do protes-
tantismo. E sob esse prisma que, consciente ou inconscientemente, seus
pastores e pregadores interpretam a Bíblia, que continua central à sua
adoração e aos seus ensinos. Alguns de seus líderes buscam treinamen-
to teológico formal, que normalmente será conservador, evangélico e
protestante, geralmente com uma pincelada carismática, contudo, suas
igrejas permanecem fora de qualquer estrutura denominational. Para
esses grupos, apostolado é basicamente o ensino do Novo Testamento,
que os próprios apóstolos transmitiram ou autorizaram outros a fazê-lo
em seus nomes, e acreditam que se forem fiéis a isso, sua reivindicação
ao apostolado é tão válida (se não melhor) quanto a de qualquer um.
Essa posição radical sobre o apostolado da igreja geralmente é
partilhada por congregações evangélicas de denominações protestantes
tradicionais, embora relutem em admiti-lo publicamente. Antecedentes
históricos são de pouco valor para essas congregações, e certamente elas
desconfiariam de pessoas que insistissem neles, caso ficasse evidente que
as crenças e práticas dos demandantes não se conformassem com suas
reivindicações. Em outras palavras, o pastor ou igreja que defendesse
a própria sucessão apostólica histórica não seria aprovado se os seus
ensinos e vida espiritual não estivessem de acordo com os princípios
estabelecidos no Novo Testamento. Essa posição, que parece radical,
é na verdade genérica a todos os tipos de protestantismo. A Reforma
jamais teria acontecido se a igreja do fim da era medieval estivesse vi-
vendo segundo seus princípios tradicionais, e os protestantes sempre
mantiveram que os grupos católicos romanos e ortodoxos orientais,
que deram mais valor a essa sucessão histórica, se afastaram desses
princípios em maior ou menor grau.
Em épocas mais recentes, protestantes conservadores (incluindo
praticamente todos os evangélicos) ampliaram essa crítica a todas as
igrejas protestantes que se dizem firmar na sucessão apostólica, mas,
negam crenças cristãs fundamentais e toleram comportamento in-
consistente com a interpretação bíblica conservadora do evangelho.
Para esses conservadores, quem nega a Trindade ou realiza casamento
homoafetivo não pode se esconder atrás dos ritos tradicionais e dos
mecanismos da igreja, como se isso lhe garantisse uma legitimidade
que sua fé e prática não sustentam. A apostolicidade, se é que ela existe
mesmo, tem de refletir o ensino e comportamento dos apóstolos; de
outra forma, ela não passa de um conceito sem sentido ou que não se
aplica à vida da igreja.

UM NOVO TIPO DE IGREJA

Antes da Reforma discutia-se pouco sobre a natureza da igreja.


Havia pessoas cientes da antiga diferença entre Leste e Oeste, espe-
cialmente se moravam em regiões fronteiriças onde as duas tradições
competiam por influência, contudo, essas divisões estavam enraizadas
em discussões sobre jurisdição. Será que o bispo de Roma tinha direito
de impor sua vontade a outras igrejas? As práticas seguidas por uma
igreja eram obrigatórias a todas as outras? Algumas perguntas, tais
como se o clero deveria ser casado ou celibatário, estavam longe da
trivialidade, mas, nenhuma era séria o bastante para abordar a natureza
da igreja. Todos concordavam em que a igreja havia sido fundada pelos
apóstolos e que as congregações futuras vieram completas diretamente
delas, com a hierarquia dos bispos, sacerdotes e diáconos. Aceitavam
que a administração dos sacramentos, em particular o batismo e a Ceia
do Senhor, era basicamente responsabilidade dessa hierarquia, e que
fosse lá o que fizesse, era válido em todos os tempos e lugares. Outras
coisas poderíam ser acrescentadas à lista, e na maioria das cidades a
igreja era a instituição central da vida social da população, contudo, a
hierarquia e os sacramentos eram fundamentais à sua própria natureza.
Também era importante que a igreja tivesse uma confissão de fé
única. Essa confissão vinha das Escrituras e foi resumida no Credo
Niceno-constantinopolitano. O acréscimo ocidental da cláusulafilioque
foi controverso e considerado por muitos uma barreira à comunhão
plena com as duas partes da cristandade, mas, era assunto para discus-
são, e até o século 15, muitas pessoas acreditavam que seria encontrada
uma solução, desde que houvesse boa vontade dos dois lados. A igreja
estava dividida, mas, fiéis dos dois lados reconheciam sua presença no
outro e desejavam que, de algum modo, a separação chegasse ao fim.
O protestantismo era algo bem diferente. Os reformados não
tinham interesse especial nas divergências jurisdicionais entre Papas e
patriarcas, nem perdiam o sono por causa da discórdia filioque. Todos
eles aceitaram a posição ocidental quando o assunto surgiu, mas, não
acreditaram que fosse tão importante a ponto de causar divisão na
igreja. Estavam concentrados em algo bem diferente. A pregação da
Palavra de Deus era fundamental à percepção que tinham da igreja.
Em um sentido isso não era novidade. A igreja sempre teve excelentes
pregadores, e muitos dos reformados foram inspirados pelas homihas
de João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, cujas obras permane-
ceram desconhecidas na Europa Ocidental durante quase toda a Idade
Média, contudo, haviam sido descobertas e publicadas recentemente.
Crisóstomo combinava exposição bíblica com aplicação prática, e os
reformados se guiaram por essa fórmula. O sermão se tornou o ele-
mento central do culto público, e a expectativa era que o clero pregasse
de um modo responsável e edificante.
Não era um objetivo fácil. Para um professor universitário como
Martinho Lutero, preparar um sermão não seria complicado, mas,
existiam poucos iguais a ele. A maioria dos sacerdotes não havia rece-
bido educação formal em exegese bíblica ou preparação de sermões,
e mesmo a pouca doutrina que absorveram estava intimamente ligada
aos sacramentos, em particular, à celebração da missa. Os reformados
queriam uma transformação completa do ministério da igreja, o que
precisavam alcançar na medida do possível usando pessoas e recursos
disponíveis. Para qualquer possibilidade de sucesso nessa empreitada,
os reformados tiveram de embarcar em um projeto vultoso de educação
do clero, e preparar os leigos para receberem o ensino que dariam. Fiéis
que frequentaram a igreja a vida inteira, especialmente para receber o
corpo consagrado de Cristo, teriam agora de aprender que era mais
importante ouvir e receber a Palavra de Deus sendo-lhes anunciada,
estivesse ela acompanhada ou não do sacramento. Na verdade, o
ministério do sacramento era subordinado ao ministério da Palavra;
batismo e Ceia do Senhor eram considerados extensões da pregação e
aplicações da pregação à vida de cada membro da igreja, e não rituais
que de alguma forma transmitiriam e sustentariam a fé por si mesmos.
Para tornar a transição ainda mais perturbadora aos tradicionais,
o número de sacramentos foi reduzido de sete para dois, e as práticas
devocionais que cercavam a missa foram drasticamente encurtadas,
quando não totalmente abolidas. As mudanças foram explicadas, claro,
e as igrejas foram instruídas quanto ao seu significado, mas, é difícil
abandonar hábitos antigos, e é natural que os reformados tenham
encontrado oposição. O surpreendente mesmo foi a timidez da maior
parte dessa oposição. Em pouco tempo, as igrejas da Europa do Norte
haviam adotado uma Reforma que dava aos costumes anteriores um
aspecto estranho e até mesmo pagão. Apesar de umas poucas tentativas
vacilantes de reconciliação, ficou óbvio que não haveria volta, pois um
novo tipo de cristianismo havia surgido e era tão diferente do antigo
quanto um computador é de um ábaco.
A realidade da nova fé era aparente desde o início da vida cristã. Na
visão dos reformados, ser batizado significava receber a promessa de
Deus feita no evangelho: todo o que crer em Cristo será salvo. Não que
o ritual em si produzisse uma pessoa salva. Aspergir água em alguém
ou imergi-la na água não causava tal efeito espiritual. A ênfase dada à fé
levou a um debate sobre o batismo de criancinhas, que não entendiam
o que lhes estava acontecendo. Mas, que diferença o batismo faria se
alguém não batizado fizesse profissão de fé, e somente isso bastasse
para a entrada no céu? As questões envolvidas nesses debates são
complexas e devem ser analisadas com muito cuidado, especialmente
no mundo moderno, onde o individualismo é tão desenfreado que até
existem casos de pessoas que querem ser “desbatizadas”. Esse fenô-
meno curioso aconteceu em alguns países europeus, onde pessoas que
foram batizadas na infância (geralmente na Igreja Católica Romana ou
na Ortodoxa) pediram para que seus nomes fossem retirados dos re-
gistros batismais da igreja porque agora, adultas, não são mais cristãs.33
Isso talvez seja exagero, mas, a verdade é que a Reforma abriu caminho
para discussão sobre o batismo de um modo inédito na história da igreja
desde as controvérsias sobre o rebatismo, e o debate continua até hoje
sem nenhuma solução à vista.34
Martinho Lutero argumentou que existia algo chamado “fé infantil”,
um conceito que ele precisava para explicar como até mesmo um bebê
podería ser salvo se confiasse em Deus. Poucos concordaram com ele,
pois a ideia era difícil de ser explicada e impossível de ser verificada.35
O conceito de uma aliança, feita originalmente com Abraão e selada
com a circuncisão, era mais coerente. A circuncisão foi abolida da igreja,
33 As igrejas envolvidas se recusam a fazer tal coisa porque os requerentes não fi-
zeram profissão de fé antes de serem batizados. Assim, a falta de profissão de fé
não vem ao caso.
34 Veja D. Bridge e D. Phypers, The Water That Divides (Leicester: Inter-Varsity, 1977); Μ.

Root e R. Saarinen, Baptism and the Unity of the Chunk (Grand Rapids: Eerdmans, 1998).
35 Lutero elaborou esse conceito em resposta aos anabatistas. Veja seu “Concerning

Rebaptism,” escrito em 1528 e publicado em inglês em J. Pelikan and Η. T. Leh-


man (Orgs.), Luther’s Works, 55 vols. (St. Louis: Concordia, 1955-86), 40:229-62.
Também publicado em T. F. Lull (Org.), Martin Luther’s Basic Theological Writings,
2. ed. (Minneapolis: Fortress, 2005), p. 239-58.
contudo, a fé de Abraão continuou fundamental. Isso levou pessoas
como João Calvino a transferir o que haviá aplicado à circuncisão para
o ritual do batismo, que parecia cumprir para os cristãos o mesmo
papel da circuncisão para os judeus. Argumentando que a igreja havia
derrubado as barreiras que existiam no judaísmo, em que a circuncisão
era administrada somente aos homens, Calvino e seus colegas alegaram
que o batismo poderia (e deveria) ser administrado mais generosamente.
As mulheres foram incluídas, assim como os gentios. Por que, então, as
crianças deveríam ser excluídas de algo que os meninos haviam usufruído
sob a antiga dispensação? Não fazia nenhum sentido. Se as portas da
igreja estavam abertas de par em par, as crianças tinham de ser incluídas
porque elas também eram herdeiras das promessas feitas a Abraão.36
No entanto, o batismo não lhes garantia a salvação. Assim como a
circuncisão não garantia que um menino judeu tomaria posse da pro-
messa na vida adulta, o batismo também não assegurava que as crianças
professariam a fé admitida em seus nomes. Mas, isso significava que as
crianças batizadas eram abrigadas pela igreja e deveríam ser educadas
como cristãs. Se rejeitassem a fé na vida adulta, a responsabilidade era
delas — como na parábola do semeador, algumas, sementes cairiam em
terreno pedregoso. Mas, isso não era motivo para o semeador parar de
semear, e assim era o batismo. Todos os ministros do evangelho tinham
a responsabilidade de buscar as crianças e batizá-las para que se tor-
nassem herdeiras das promessas e fossem criadas na fé, quer viessem
ou não a aceitá-la mais tarde.
Outra consideração teológica relevante era que todas as crianças
nasciam pecadoras. É importante lembrar que os primeiros anabatistas
eram (e injustamente) acusados de pelagianismo, heresia segundo a qual
os seres humanos não são totalmente pecadores e podem cooperar com
Deus no alcance da própria salvação. De acordo com esse argumento,
se um bebê não pudesse ser batizado, ele não era pecador. Claro que os
bebês ainda não tiveram a chance de cometer pecado nenhum, todavia
herdaram o pecado inato de Adão. Em nenhum momento uma criança
repete a queda primordial. Todos nós precisamos de um Salvador, e
36 John Calvin, Institutes of the Christian Religion 4.16.5—6.
em um mundo onde a taxa de mortalidade infantil era alta, as pessoas
tinham muito mais conscientização disso do que hoje.
Os reformados também tinham de aceitar que a maioria das pes-
soas ainda acreditava que o batismo salvava a criança, pois foi isso que
aprenderam na igreja medieval. O batismo era cercado de superstição,
e o consenso era que qualquer ensino falso tinha de ser atacado e
afastado para o mais longe possível. Ao negar o batismo às crianças e
insistir que apenas cristãos professos fossem batizados, os anabatistas
esperavam que a superstição e a falsa segurança no poder de um ritual
externo pudessem ser refutadas com eficiência. Aqueles que praticavam
o batismo cristão não acreditavam que ele salvasse quem o recebia, pela
simples razão que já havia sido salvo; o batismo não passava de um
mero sinal e testemunho de uma regeneração já acontecida. Também
argumentavam que enquanto o Novo Testamento apresenta muitos
exemplos de adultos que professaram a fé e foram batizados, não há
exemplos de batismo de crianças, embora o batismo infantil também
não seja proscrito em lugar algum. No tocante às evidências bíblicas,
o debate sobre batismo infantil era, portanto, mais sobre o que o texto
não disse do que sobre o que ele disse, e assim continua até hoje.
Zelosos, os anabatistas também insistiam na imersão total como o
único modo bíblico de batismo, apesar de a maioria dos batistas hoje
concordar que isso é de importância secundária. Se o cristão é batizado
com base na profissão de fé, é difícil achar que a quantidade de água irá
fazer qualquer diferença, e insistir nisso é uma forma de legalismo que
entra em desacordo com outros princípios, mais fundamentais, que os
batistas se preocupam em manter.
Infelizmente, discórdias sobre a administração apropriada do batis-
mo foi suficiente para dividir o movimento protestante, e até hoje não
apenas as igrejas batistas, mas, também muitas outras rejeitam o batis-
mo infantil. O assunto causou divisão também entre os reformados.37
Compare a questão do batismo com o fato de não existirem igrejas pro-
testantes dedicadas a um conceito especial da Ceia do Senhor—embora

37 Para entender o debate entre a tradição reformada, veja P. Marcel, The Biblical Doc-
trine of Infant Baptism (Londres: James Clarke, 1953), e D. F. Wright, Infant Baptism
in Historical Perspective (Milton Keynes: Paternoster, 2007).
certamente existam diferenças de opinião entre os protestantes sobre
esse assunto também — e a importância singular do batismo na doutrina
da igreja se torna visível. O batismo continua fundamental à eclesio-
logia porque é o sacramento de iniciação. A criança batizada pertence
à igreja de um modo que a não batizada não desfruta. Podemos fazer
uma comparação com a cidadania de um país. As crianças são cidadãs
de um país ao qual pertencem mesmo não possuindo todos os direitos
dos adultos, direitos que reivindicarão quando se tornarem adultas. A
comparação não é exagerada, pois até o século 19 (e até mais tarde,
em alguns lugares), o batismo era a maneira de os nascimentos serem
registrados na maioria dos países tradicionalmente cristãos; então, de
fato, o batismo era uma prova de cidadania, uma vez que, em muitos
casos, não havia outro modo de comprová-la.
Assim, como em geral as crianças são ensinadas a ser cidadãs
responsáveis, e dificilmente rejeitam sua cidadania na idade adulta,
pressupunha-se que as que aprendiam quais eram as responsabilidades
de um membro de igreja aceitariam fazer parte dela quando alcançassem
a idade do discernimento. Na prática, obviamente, os anabatistas (e mais
tarde, os batistas) se baseiam nos mesmos princípios, ainda que analisem
o processo de modo diferente. Seus filhos não permanecem neutros,
mas, são criados na igreja exatamente como as crianças batizadas, e
todas devem fazer profissão de fé antes de assumir responsabilidade de
adultos na igreja; portanto, as diferenças entre eles, mesmo que teori-
camente significantes, são bem menos, na prática, do que parecem ser.
A maioria das igrejas que batizam crianças não permite que elas
participem da Ceia do Senhor imediatamente, apesar de a lógica dessa
prática ter sido questionada recentemente. As igrejas orientais sempre
serviram a Ceia às crianças recém-batizadas, contudo, isso é menos im-
portante do que parece porque a Ceia do Senhor é infrequente no Leste.
Poucos adultos são comungantes, portanto o assunto sobre as crianças
não é comum. A situação é diferente no Ocidente, onde a confirmação,
como uma ordenança distinta ou conclusão do batismo, é a norma
desde bem antes da Reforma. Nas igrejas episcopais a confirmação
é normalmente realizada pelo bispo, cujo ministério nesse aspecto é
considerado um aglutinador que une a igreja em uma fé comum. Em
outras igrejas a confirmação é administrada pelo pastor, que segue o
conselho de um grupo de líderes que já examinaram e aprovaram os
candidatos. A prática batista é semelhante a essa, com a diferença que
os candidatos recebem o batismo, e não a confirmação.
Nos últimos anos, um movimento sacramental entre os protestan-
tes tenta aproximar o batismo e a Ceia do Senhor. Para os batistas isso
não é problema, pois quem não é batizado não participa da Mesa do
Senhor e, portanto, as criancinhas estão automaticamente excluídas.
No entanto, para outras igrejas isso é mais difícil. A Igreja Ca-
tólica Romana há muito confirma as crianças em tenra idade (seis ou
sete anos), portanto elas não se lembram de uma época em que não
podiam participar da Ceia. Contudo, as Igreja Protestantes tradicionais
geralmente adiam a confirmação até a adolescência, sobretudo devi-
do à ênfase que colocam na instrução antes da admissão integral na
membresia da igreja. Isso lhes é necessário, pois as igrejas protestantes
geralmente têm maior participação laical que as católicas. Os leigos são
envolvidos na liderança do culto, na disciplina da igreja e nas decisões
feitas nos sínodos nacionais de uma forma desconhecida ao Vaticano.
Portanto, é essencial que sejam mais bem instruídos e conscientes
de suas responsabilidades. O envolvimento dos leigos mostra que os
protestantes valorizam mais a profissão de fé pessoal, e nesse aspecto,
os que batizam crianças e os que não batizam estão mais próximos uns
dos outros que dos católicos romanos e dos ortodoxos.
O adiamento da confirmação até a adolescência significa que uma
pessoa não confirmada deve ser impedida de participar da Ceia do Se-
nhor? Nessa área as coisas são mais complicadas. As igrejas anglicanas
geralmente praticam a exclusão, mas, existe uma provisão formal para
que qualquer um “desejoso de ser confirmado” participe da Ceia. Ou
seja, alguém que entenda o que está ocorrendo e deseje fazer parte do
acontecimento é bem-vindo; a confirmação não é, por si só, a única
porta de admissão à Ceia. Na verdade, houve épocas em que essa
provisão foi de particular relevância. Nas colônias americanas, antes
da revolução, por exemplo, não havia bispos anglicanos, portanto, era
bem pequeno o número de adultos confirmados; então, todos os que
participavam da Ceia faziam parte dessa categoria. Hoje em dia, isso
não é problema na maioria dos países, contudo, a provisão permite aos
anglicanos oferecer a Ceia a todos que professam o nome de Cristo e
são membros leais a suas próprias igrejas, tenham ou não recebido a
confirmação episcopal.
Da mesma forma, muitas denominações protestantes são genero-
sas nessa questão, mas, outras nem tanto. No mundo de fala inglesa,
existe uma tendência entre alguns grupos menores de praticar o que é
conhecido como “ceia restrita”, isto é, a participação na Ceia do Senhor
está reservada aos membros em comunhão com a dita denominação,
ou até mesmo com a igreja local. A razão disso em geral é disciplinar.
Se o pastor ou líderes que estiverem administrando a ceia não conhece-
rem quem a está recebendo, não têm como determinar se é digno dela.
Em um sentido, claro, ninguém é “digno” porque ninguém é perfeito,
contudo, o Novo Testamento apresenta alguns critérios para quem
deseja participar da Mesa do Senhor, e alguns protestantes acham que
devem se esforçar para implementá-los. Para tanto se faz necessário
um exame antes de se aproximar da Mesa, o que é difícil administrar
em larga escala. Os presbiterianos (e também anglicanos) tradicional-
mente preparavam as pessoas para receber os elementos da Ceia, mas,
com a frequência em que a Ceia passou a ser servida, a prática caiu
em desuso. Mesmo assim, alguns grupos conservadores continuam a
manter o costume como podem, e se baseiam em precedente bíblico
e denominacional para essa abordagem.
A ceia restrita é mais prevalecente nas igrejas luteranas, especial-
mente nas conservadoras, como a do Sínodo Missouri. Nesse caso,
porém, os motivos são teológicos e disciplinares. Para os luteranos
conservadores não basta que a pessoa confesse seus pecados e “trate o
próximo com amor e caridade e prometa viver uma nova vida”; os par-
ticipantes também têm de confessar que o corpo de Cristo está presente
“no, com e sob” o pão e o vinho. Isso não significa transubstanciação
no sentido católico romano, mas, também não é exatamente o que as
igrejas reformadas (incluindo a anglicana) ensinam. Na verdade, é algo
muito difícil de ser definido com precisão, e no século 19, observado-
res■ anglicanos passaram a chamá-la a doutrina da “consubstanciação”,
embora o termo seja raramente usado pelos próprios luteranos.
Isso quer dizer que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes
nos elementos sacramentais “de um modo celestial e espiritual”, de
sorte que as pessoas que recebem o pão e o vinho também recebem o
corpo e o sangue espiritual de Cristo, quer sejam crentes ou não. Outros
protestantes preferem afirmar que quem recebe desmerecidamente os
elementos da ceia não ingere o corpo nem o sangue de Cristo, pois
somente quem está espiritualmente vivo pode recebê-los, mas, como
os luteranos são prontos a enfatizar, essa perspectiva “recepcionista”
tem seus problemas. Os que a defendem geralmente adotam uma
compreensão puramente simbólica do pão e do vinho, o que questiona
logo de início a necessidade do ritual. Se quem tem mente espiritual
pode ter comunhão com Cristo independentemente das ordenanças, e
as ordenanças não afetam essa comunhão espiritual de forma alguma,
por que então se preocupar com ela? Essa abordagem incomoda os
luteranos (e muitos anglicanos também), mas, de um modo curioso,
lembra o comportamento dos pais do deserto da Igreja Oriental. Como
ermitões, eles raramente tomavam a Ceia, porém isso não lhes fazia
falta, porque sua guerra espiritual acontecia em um plano mais elevado
e sua experiência mística com Deus ultrapassava qualquer coisa que
a Ceia pudesse lhes oferecer.38 Embora os protestantes não usassem
essa linguagem, seu fervor devocional raramente ou nunca resulta em
aumento de práticas sacramentais, pois a maioria deles acharia muito
estranho revelar dessa maneira a sua devoção pessoal a Cristo.
Em relação aos outros sacramentos da igreja medieval, os grupos
protestantes os desprezam totalmente ou relegam a uma categoria
diferente e menos importante das “ordenanças da igreja”. Em geral,
os protestantes restringem o termo “sacramento” ao que podemos
chamar de “sacramentos do evangelho”, ou seja, os rituais autorizados
por Cristo e que especificamente proclamam a mensagem do evange-
lho.39 O batismo faz isso, claro, assim como a Ceia do Senhor, mas, não
38Isso não significa que eles abandonaram a ceia inteiramente, mas, a recebiam in-
frequentemente, um costume que ainda é a norma nas igrejas do Leste. Veja D. J.
Chitty, The Desert a City (Londres: Mowbrays, 1966), para exemplos dessa prática.
39 A distinção é expressada muito concisamente no Artigo 25 dos Trinta e Nove

Artigos da Igreja Anglicana. A maioria das outras igrejas protestantes concordam


com isso, implicitamente, se não sempre explicitamente.
os outros sacramentos. A confirmação talvez seja mantida por igrejas
protestantes como um complemento do batismo, todavia não é conside-
rada um sacramento em si. Penitência e extrema-unção geralmente são
rejeitadas como desvios dos ensinos do Novo Testamento. Confissão
de pecado e unção de doentes são praticadas por alguns grupos pro-
testantes, contudo, não estão integrados na vida sacramental da igreja
da maneira que acontece na Igreja Católica Romana.
A ordenação é praticada, de uma forma ou de outra, pela maioria
das igrejas protestantes, contudo, também não é considerada sacra-
mento, a não ser por algumas pessoas ligadas à Igreja Anglicana ex-
tremamente conservadora, influenciadas pelo catolicismo romano. A
forma de que se reveste é diferente de uma denominação para outra.
Anglicanos, e muitas outras igrejas organizadas de forma episcopal,
mantêm a ordem tradicional tripla de bispos, sacerdotes (presbíteros)
e diáconos, originalmente porque todos os três estavam presentes na
igreja do Novo Testamento. A erudição moderna forçou essas igrejas a
revisar essa afirmação, mas, elas continuam convictas que o episcopado
monárquico (ou “histórico”) se desenvolveu no estágio inicial da igreja
e deve ser mantido na igreja contemporânea. Presbiterianos e muitos
outros protestantes reformados rejeitam esse “episcopado histórico” e
defendem que, em vez disso, ele é manifestado pelo presbitério. Nem
todos os presbíteros são “líderes de ensino”, mas, todas as igrejas têm
um grupo deles, que opera como se fosse um concilio de liderança co-
letiva na congregação local. Todos os líderes são ordenados para seus
cargos, mas, somente o “líder de ensino” deve receber treinamento
teológico formal e é pago pela igreja como ministro de tempo integral,
tornando sua posição o equivalente funcional do sacerdote anglicano.
Outros grupos protestantes usam terminologia diferente para esses
cargos, contudo, na prática, quase todos têm um pastor que lidera a
congregação e uma diretoria que se responsabiliza pela administração
da igreja.
Cada denominação tem sua maneira de escolher esses líderes, mas,
geralmente a igreja faz uma eleição para a formação da diretoria, e esta
escolhe os pastores, que costumam ser ratificados pelo voto dos mem-
bros. Em igrejas de sistemas hierárquicos como a Anglicana, a Luterana
e a Presbiteriana, a escolha de um pastor requer a aprovação de alguém
que não pertença à congregação local — seja bispo (para anglicanos e
luteranos) ou presbitério —, que é uma associação de igrejas locais para
os presbiterianos. Em alguns casos, especialmente se uma igreja local
estiver com problemas, o bispo ou o presbitério indica ou suspende o
pastor, exercendo, portanto, a supervisão que lhe foi confiada. A força
desse sistema é evidente, mas, ele também tem suas falhas, e a mais
séria delas é que autoridades externas podem impedir uma igreja de
escolher o pastor de sua preferência. O problema se agrava quando as
convicções teológicas do pastor preferido da igreja são contrárias à do
bispo ou do presbitério. Nos últimos anos, ocasionalmente, pastores
evangélicos e carismáticos, que em geral provocam o rancor de auto-
ridades eclesiásticas, foram excluídos do pastorado por esse motivo, e
temos de admitir que o sistema de responsabilidade coletiva tem sido
usado com frequência para estrangular a diversidade na liderança oficial
da igreja.
Outros grupos protestantes seguem padrão semelhante, mas,
sem os procedimentos hierárquicos. São igrejas congregacionais, ou
independentes, das quais as batistas são um exemplo notável. Suas
congregações têm liberdade para administrar sua vida doméstica, não
apenas na ordenação de pastores como também nas formas de culto e
até mesmo na doutrina que irão adotar, embora possam ser “desfrater-
nizadas” pelo grupo mais amplo com o qual decidiram se associar, caso
de afastem demasiadamente de sua regra geral. Ao mesmo tempo, uma
igreja batista (por exemplo) pode pertencer a mais de uma associação
regional ou não pertencer a nenhuma.
E importante afirmar que, na prática, as igrejas protestantes são
mais parecidas umas com as outras do que suas diferenças oficiais dei-
xam transparecer. Os pastores protestantes, apesar de todo empenho
em negar tal coisa, são considerados pela maioria de suas igrejas quase
da mesma forma que católicos consideram os padres; a diferença mais
óbvia entre eles é que, em geral, os pastores são casados. A extinção do
celibato sacerdotal compulsório foi um elemento importante na plata-
forma dos reformados do século 16, nunca seriamente contestado ou
revogado pelas igrejas protestantes. Em geral, até mesmo os sacerdotes
anglo-católicos da mais alta hierarquia são casados e não celibatários,
como seus equivalentes católicos romanos têm de ser. Mais ainda, houve
tanta reação contrária ao celibato compulsório que até hoje é difícil a
um solteiro ser aceito no ministério protestante, mesmo que não haja
nenhuma proibição formal que desabone seu estado civil. A reação
persiste, mesmo sendo explicitamente contestada no Novo Testamento,
e, falando francamente, a razão maior é o preconceito popular. Muitos
cristãos acham que pastores solteiros não têm capacidade para liderar
igrejas, seja porque são inexperientes numa área que para os críticos é
parte essencial da vida, seja porque são mais susceptíveis a tentações
a que supostamente os casados são menos vulneráveis. Tais opiniões
raramente, ou nunca, são postas à prova; são aceitas como verdadeiras,
mesmo diante de tantos casos de deslize sexual de pastores casados e
dos altos índices de divórcio entre eles. Mulheres solteiras têm a vida
um pouco menos complicada que os homens solteiros, contudo, por
sofrerem mais restrições ministeriais, no fim, dá na mesma.
A verdade é que a Reforma criou um novo tipo de clero. Sacerdotes
que haviam sido cortados do convívio social por causa do celibato fo-
ram integrados à sociedade, onde logo conquistaram um lugar especial.
A expectativa era que os pastores protestantes fossem formados em
universidade teológica, uma qualificação que imediatamente os removia
da classe trabalhadora. Durante séculos, somente um número reduzido
de rapazes tinha meios de frequentar universidade, e comumente eram
de famílias com condições de lhes pagar os estudos; assim, em geral, o
clero era formado pela “classe média” por intermédio desse processo
autosseletivo informal. Os filhos da aristocracia, podiam, claro, aden-
trar as fileiras do clero, e muitos o fizeram, mas, foram exceções. Em
geral, os clérigos eram colocados na mesma categoria dos médicos e
professores: homens com uma qualificação profissional que lhes con-
feria identidade especial, sem cortá-los da sociedade como um todo.
Essa forma de profissionalismo clerical só passou a ser questionada
nos tempos atuais, com resultados ambíguos. Por um lado, existe uma
certa pressão para que indivíduos de diferentes experiências e contextos
sociais incorporem as fileiras do ministério ordenado, e assim acabar
com a ideia de divisão de classe encorajada pelo modelo tradicional.
4/1

Mas, por outro lado, também tem crescido o movimento que incentiva
a preparação acadêmica séria, especialmente entre evangélicos e grupos
reavivados que antigamente ordenariam praticamente qualquer um
que mostrasse ter o dom da pregação, quer tivesse estudo teológico
ou não. Como hoje em dia o acesso a seminários e faculdades é mais
democrático que antigamente, a velha barreira de classe desapareceu,
contudo, ainda existem reclamações que o ministério produzido dessa
forma é muito intelectual e geralmente não satisfaz seus propósitos.
Ao mesmo tempo, há mais oportunidades para qualquer pessoa fazer
um curso básico de teologia, o que tem levado à expansão da pregação
laica e a outras formas de ministério serem reconhecidas, inclusive por
igrejas que normalmente recorrem à ordenação protestante tradicional.
Isso nos leva finalmente ao matrimônio, que era um sacramento
na igreja medieval e que, no entanto, não é mais reconhecido como
tal pela maioria dos protestantes. Até bem recentemente, quase todas
as igrejas protestantes concordavam que a monogamia heterossexual
era a única forma possível de casamento e que o divórcio deveria ser
combatido com firmeza. Por exemplo, seria impensável que um homem
divorciado que se casou novamente ocupasse cargo pastoral ou de li-
derança de ensino em qualquer igreja. Essa atitude foi profundamente
corroída, ainda que em diferentes níveis, de uma denominação para
outra, dependendo de até que ponto um grupo se tornou liberal. Em
um dos extremos, estão os fiéis que mantêm os padrões tradicionais,
e aqui se incluem os evangélicos como um todo, embora a aceitação
do divórcio e do novo casamento também tenha crescido entre eles
nos últimos anos. O casamento homoafetivo, por outro lado, continua
sendo rejeitado pela maioria dos protestantes, apesar de algumas de-
nominações liberais (especialmente nos Estados Unidos), estarem na
vanguarda de sua fomentação.
As igrejas protestantes estatais se encontram em uma situação
particularmente complicada, porque tradicionalmente sempre atuaram
como tabeliãs de casamento para a população toda, fossem os nuben-
tes membros da igreja ou não. Os luteranos escandinavos não têm
querer nesse assunto; precisam seguir as leis da nação, não importa o
que achem delas, e se o país aprova novo casamento após o divórcio e
também o casamento homoafetivo, a igreja tem de acatar as decisões.
A Igreja Anglicana, por outro lado, tem liberdade de não contratar
pessoas divorciadas que se casaram novamente, embora essa prática
esteja mudando em alguns lugares. Recentemente, a Igreja Anglicana
proibiu que seus sacerdotes realizem casamentos homoafetivos, e seus
bispos pelo menos tentam assegurar que o clero não concorde com
a prática, apesar de essas uniões terem sido legalizadas pelo Estado.
Outras igrejas protestantes têm liberdade para determinar suas
próprias regras matrimoniais, contudo, se deparam com dificuldades
práticas quando tentam aplicá-las. A demanda por casamento religioso,
mesmo entre não frequentadores de cultos, continua elevada o suficiente
para que algumas igrejas - especialmente aquelas com arquitetura foto-
gênica — se sintam pressionadas a fazer exceções às regras, e o mesmo
se aplica ao novo casamento de divorciados que pertençam, ou tenham
parentes próximos que pertençam, a uma igreja que normalmente não
realiza tais cerimônias. A existência de “capelas matrimoniais” em ci-
dades como Las Vegas, onde casamentos são realizados em questão de
minutos, é um lembrete dos problemas causados pelo relacionamento
tradicional da igreja com o matrimônio.
Talvez o comentário mais justo sobre o assunto é que a disciplina
praticada pelas gerações anteriores quase não existe mais, e o conceito
de matrimônio entre os protestantes é mais frouxo hoje do que nun-
ca. As igrejas estão presas em um dilema: deveriam tolerar um leque
mais amplo de situações matrimoniais do que oficialmente aprovam?
Deveriam impor padrões mais rigorosos para o clero do que para a
população em geral? E o que fazer quando indivíduos infringirem
as regras para conseguir o que querem, como às vezes acontece? As
tendências da vida moderna nos incentivam a crer que os ensinos
tradicionais da igreja um dia alcançarão o comportamento mais “avan-
çado” de um número substancial de seus membros, que na prática
incentiva laxismo e indisciplina.
Em suma, as igrejas protestantes, por mais diferentes que sejam na
superfície, são mais parecidas entre si do que as igrejas católicas ou as
ortodoxas orientais. Isso explica o crescimento extraordinário de mi-
nistérios interdenominacionais e paraeclesiásticos, especialmente entre
jovens e estudantes universitários, que produziu gerações de cristãos
sem ligação particular com qualquer igreja local. Um resultado desse
fenômeno é que os “distintivos” denominacionais se tornam cada vez
menos importante e, em geral, são do interesse sobretudo do clero e
outros profissionais religiosos. Relativamente poucas pessoas esco-
lhem uma igteja porque ela é metodista ou presbiteriana; é muito mais
importante que a igreja tenha um bom grupo de jovens ou excelente
programa para crianças do que seja liderada por bispos ou pastores.
Algumas, pessoas buscam mensagens sólidas e um formato de culto
que lhes agrade, contudo, elas sabem muito bem que não podem de-
pender de rótulo denominacional como garantia de que encontrarão
o que procuram.
À medida que a sociedade se urbaniza, as escolhas se multiplicam
e as igrejas se encontram na posição de bens de consumo; espera-se
que elas adaptem suas atividades e políticas de modo a atrair novos
membros, um estímulo que provavelmente não as incentivará a
dar muita ênfase às suas tradições históricas. Em muitos países, os
bairros novos geralmente têm uma “igreja da comunidade” que talvez
seja independente ou um projeto de cooperação de mais de uma
denominação, o que geralmente reduz a noção da pessoa comum sobre
as diferenças formais que possam existir nos bastidores ou na mente
do pastor.
O cenário atual é fluido, e seria precipitado fazer previsões sobre
seu destino. Até o momento, é seguro afirmar que as denominações
tradicionais estão em declínio, em parte porque a “lealdade denomina-
cional” não é o que costumava ser, e em parte porque, em alguns casos,
a teologia liberal e o conservadorismo cego imposto por líderes e mem-
bros endinheirados que desejam manter as coisas como sempre foram
cuidam para que recém-chegados não se unam a eles com frequência.
Igrejas independentes e igrejas sem sede própria, com poucas respon-
sabilidades e sem bagagem do passado, surgem por todos os cantos,
mas, o que será delas no longo prazo ninguém sabe. Irão se institucio-
nalizar, como suas predecessoras fizeram, e deixarão de ser novidade,
ou simplesmente se dispersarão quando seus entusiasmados membros
envelhecerem ou mudarem-se para outro lugar e se unirem a uma
congregação mais sossegada? Se isso acontecer, elas serão substituídas,
como sempre foram no passado, por grupos independentes resultantes
de divisões nas igrejas e que se voltam para a geração mais nova? Não
importa o que aconteça, é óbvio que o protestantismo está sofrendo
uma metamorfose sem equivalente verdadeiro nas igrejas católicas e
ortodoxas, embora estas também sofram o estresse criado pelo mundo
moderno. Como sempre, “O vento sopra onde quer. Você o escuta,
mas, não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece
com todos os nascidos do Espírito”.40 E a igreja, para todos os efeitos,
continua sendo, no fundo, a comunidade daqueles que nasceram do
Espírito de Deus.

40 João 3.8.
7

O que a igreja deveria ser?

TEORIA VERSUS PRÁTICA

Até aqui analisamos o desenvolvimento da igreja durante apro-


ximadamente dois mil anos, e como ela é agora, em toda a sua glória
diversificada. Todas as igrejas querem crer que são um reflexo do corpo
de Cristo, porém uma análise íntegra rejeita a descrição que fazem de si
mesmas como imagem exata do que a igreja deve ser como um todo. Os
católicos, por exemplo, são veementes em afirmar que seguem a única
e verdadeira igreja, mas, têm de admitir que existem outros cristãos
no mundo e que estes formam “comunidades eclesiásticas” próprias,
que são hoje reconhecidas oficialmente pelo Vaticano como grupos
de “irmãos separados” e não mais como heresias ou dissidências. As
igrejas ortodoxas orientais também se reconciliaram com o restante
do mundo cristão, ainda que sua eclesiologia seja tão exclusiva quanto
a católica romana. Os protestantes geralmente são mais dispostos a
aceitar a legitimidade de outros grupos, não importa a antipatia ou
divergência que porventura tenham para com eles, contudo, o desafio
que enfrentam dos católicos e dos ortodoxos força-os a analisar sua
razão de ser. Seja como for, os protestantes tiveram de justificar sua
existência como grupos fiéis aos ensinos de Jesus mesmo não aceitando
a autoridade do Vaticano nem reconhecendo a Igreja Católica como
a verdadeira sucessora da igreja do Novo Testamento. Na verdade, os
primeiros protestantes argumentaram que foi por causa da fidelidade a
Cristo que a única opção que lhes restou foi desprezar as reivindicações
z/b

católicas, que eles acreditavam representar a usurpação das “prerro-


gativas da coroa do Redentor” por parte de uma autoridade humana
colocada no lugar do Senhor.
Essa defesa provocou o nascimento da eclesiologia, ou doutrina da
igreja, como parte da teologia. Pela primeira vez, teólogos (e apologistas
de diferentes denominações) foram obrigados a descrever a igreja não
simplesmente como era na prática, mas, como deveria ser em princípio.
As igrejas se encontraram diante de um dilema: deveríam continuar
como eram e justificar suas tradições vigentes, ou deveríam se reformar
de acordo com um sistema teórico apresentado por uma eclesiologia
em particular? Com o passar do tempo, os críticos iniciais ferrenhos
da ordem medieval se acomodaram às suas próprias tradições, todavia,
as questões fundamentais que provocaram a Reforma continuavam a
ressurgir. A história do protestantismo mostra que novas formações
que se autodenominam “igrejas” continuam a emergir; cada nova ge-
ração se vê obrigada a tratar de assuntos eclesiológicos, assim como
seus predecessores do século 16 fizeram.
A primeira questão e talvez a mais básica com a qual devemos lidar
é que os protestantes partiram da suposição que a igreja que conheciam
não era o que deveria ser. Seus oponentes católicos muitas vezes con-
cordaram que a igreja tradicional havia se corrompido, que muitos da
cadeia hierárquica não mereciam o cargo que ocupavam, e até mesmo
que algumas doutrinas precisavam ser revisadas e esclarecidas para evitar
superstições e equívocos do povo. Entretanto, esses eram problemas
que qualquer organização humana encontra cedo ou tarde — e as igrejas
protestantes não estão imunes a eles. O que os católicos não podiam
aceitar, e em que os protestantes insistiam, era a necessidade de uma
mudança mais fundamental, mudança que reconstruiría a imagem da
igreja que se tornou dominante na Idade Média.
Qualquer pessoa ambiciosa o suficiente para pensar em refazer a
igreja tem de ter um plano para a obra, e isso não foi empecilho para
os reformados, pelo menos não no início. No que lhes dizia respeito,
a doutrina da igreja estava estabelecida na Bíblia, particularmente no
Novo Testamento. Na opinião deles, os princípios fundamentais apre-
sentados na Bíblia eram:
^//

1. Jesus Cristo é a cabeça da igreja, que é o seu corpo. Todos concorda-


vam com isso em princípio, até mesmo os católicos. O problema estava
em sua implementação. Para a Igreja Católica Romana, a solução era
relativamente simples. O Papa era o “vigário de Cristo”, o homem que
o representava na terra e que, portanto, exercia autoridade comparável
à sua (embora delegada). Isso tudo era anátema aos protestantes. Para
eles, nenhum ser ou grupo humano tinha poder para exercer tal cargo.
Pessoas podiam ser indicadas para diferentes cargos ou funções dentro
da igreja, mas, ninguém podia reivindicar autoridade absoluta sobre ela. O
poder na igreja era necessariamente partilhado entre diferentes pessoas, e
fazia-se necessário um sistema de governo partilhado e equilibrado para
garantir que ninguém se apoderasse do papel ditatorial que, segundo
muitos, o Papa havia confiscado para si.

2. Em todas as coisas, a igreja deve estar submissa à Palavra de Deus,


ou seja, ao ensino das Sagradas Escrituras. O que não era ensinado pela
Bíblia não podería ser imposto à igreja como matéria de fé. Como (e até
onde) a igreja deveria levar seu culto, sua doutrina e seu governo a se
conformarem com o padrão do Novo Testamento era motivo de con-
trovérsia. Todos concordavam em teoria que isso deveria ser feito, mas,
como proceder e colocar em prática era mais difícil. Algumas diferenças
de opiniões legítimas entre os reformados causaram separação entre eles.
Em outros casos, fatores externos (principalmente o controle do Estado)
limitavam a liberdade das autoridades eclesiásticas de decidirem como
seriam governadas, e os que se ressentiram disso formaram suas próprias
igrejas, onde poderíam fazer o que bem entendessem. 3

3. A igreja deve anunciar a Palavra de Deus e administrar os sacramentos


de modo fiel aos ensinos do Novo Testamento. Esse mandado foi am-
plamente aceito por todos, mas, colocá-lo em prática foi outra história.
Em teoria, todos concordaram que o Espírito Santo foi dado à igreja
para preservá-la do erro e protegê-la na propagação do evangelho. Mas,
como isso deveria funcionar na prática? Para a Igreja Católica Romana, a
resposta era relativamente simples. Qualquer bispo ou padre que recebes-
se a imposição de mãos de um bispo que estivesse na linha de sucessão
apostólica já possuía o exigido e podia dispensar os dons do Espírito à
igreja de acordo com os regulamentos que os Papas e concílios haviam
preparado. Os protestantes desaprovaram isso. Fossem tradicionalistas
conservadores ou radicais, eles criam que um ministério só era válido caso
produzisse fruto no Espírito. Os sinais exteriores e as cerimônias eram
complementos desse ministério, e embora alguns argumentassem que
eram coisas valiosas (e até mesmo indispensáveis), não eram substitutas
para o agir do Espírito Santo. O agir do Espírito não podia ser garantido,
controlado ou manipulado por nenhuma autoridade humana, embora a
igreja tenha recebido a promessa de que quando seus membros agissem
pela fé, Deus os honraria atendendo seus pedidos.

Os sacramentos eram uma área sensível de desentendimento entre os


protestantes e entre protestantes e católicos, todavia, as práticas eram
amplamente diversificadas. Em geral, os protestantes que praticavam o
batismo infantil validavam os batismos realizados por sacerdote católico
(ou ortodoxo), até porque a primeira geração de reformados foi batizada
na infância. Somente os anabatistas contestaram a prática, mas, como
rejeitaram os batismos de outras igrejas protestantes, foram repreendí-
dos severamente e excluídos por todos. Os protestantes também eram
mais liberais em permitir que membros de outras igrejas participassem
da ceia em suas igrejas, embora existissem exceções, especialmente entre
os luteranos. Mas, em geral, na idade contemporânea tem sido mais fácil
os protestantes praticarem a ceia aberta do que os batistas aceitarem o
batismo infantil, e a maioria não impediría que católicos e ortodoxos
participassem da ceia, caso desejassem, embora a hospitalidade recíproca
não seja oferecida e seja de se esperar que tanto católicos quanto orto-
doxos recusem convites protestantes para a ceia conjunta.1

4. A igreja deve disciplinar seus membros e proteger sua pureza da melhor


maneira possível. Também neste aspecto, havia um consenso entre os
reformados protestantes, contudo, também havia o reconhecimento de
que a disciplina eficiente era quase sempre impossível de ser praticada.
Executá-la justamente e em escala universal exigiría policiamento de tem­

1 No. entanto, há algumas, exceções curiosas. Na França, por exemplo, a Igreja Ca-
tólica Romana permite que os anglicanos participem da ceia, mesmo contrariando
a política oficial da igreja, que supostamente deve ser a mesma no mundo inteiro.
po integral e seria praticável somente em vilarejos como os dos menonitas
e dos puritanos da Nova Inglaterra. As experiências nem sempre foram
positivas, e para muitos protestantes a disciplina eclesiástica de qualquer
tipo era tirânica. Esse sentimento se fortaleceu quando os protestantes
entenderam que suas igrejas poderíam exercitá-la (e às vezes o fizeram)
contra outros protestantes, com os quais concordavam em questões
essenciais da doutrina, mas, de quem discordavam em outros assuntos,
que para muitos pareciam questões secundárias e até mesmo triviais. Na
Inglaterra, por exemplo, os clérigos puritanos foram disciplinados pela
igreja estatal por não usarem o traje clerical correto ou as palavras certas
da liturgia oficial. Colocar tais detalhes no mesmo nível da negação da
Trindade ou da divindade de Cristo significava distorcer a natureza da
verdade cristã e causar danos à igreja, mas, foi o que aconteceu, e era
quase impossível convencer as autoridades que elas estavam no caminho
errado. Infeüzmente, é preciso dizer que as pessoas que sofriam esse tipo
de perseguição também eram favoráveis ao exercício da disciplina, mes-
mo em questões secundárias como essas, e quando tiveram a chance de
impor suas idéias aos outros, foi exatamente o que fizeram. Essa atitude
ficou aparente na Nova Inglaterra, Estados Unidos, onde os congrega-
cionalistas, que sofreram discriminação na terra natal, estabeleceram
sua própria igreja e passaram a hostilizar quem não se amoldava a ela.2

5. A igreja tem de se organizar para que os fiéis tenham oportunidade de


exercitar seus dons espirituais, que incluem ensino, pregação e pastoreio.
Em nome da ordem e decência, esses dons precisam ser reconhecidos
publicamente, e a igreja deve programar reuniões para que seus membros
compartilhem seus dons. Normalmente, isso exige que os pastores e
líderes tenham certo treinamento teológico e que haja um sistema ad-
ministrativo que permita emprego e remuneração. Também é necessário
programar hora e dia para o culto público, que irá variar de lugar para
lugar, mas, geralmente acontecerá aos domingos (pelo menos). A Ingla-
terra e Escócia desenvolveram um sabatismo bem forte, reminiscente
2 Poucos sabem que, embora a Primeira Emenda da Constituição Americana proíba
o estabelecimento de religião a nível federal, os estados não foram afetados pela
regra, pelo menos de início. O estado de Connecticut conseguiu, então, manter
sua igreja estatal até 1818, e o de Massachusetts, até 1833.
do judaísmo, e algumas leis foram aprovadas garantindo que o menor
número possível de pessoas trabalhasse aos domingos. Em geral, esse
rigor desmoronou diante das pressões do mundo moderno, mas, deixou
remanescentes, e nos países protestantes mais tradicionais o domingo é
visivelmente diferente do restante da semana.

6. O culto público envolve oração a Deus, leitura da Bíblia, pregação e


distribuição dos elementos da Ceia do Senhor. Em geral os dois primeiros
princípios estão presentes em todas as ocasiões, o terceiro em quase todas,
contudo, a frequência do quarto é motivo de muito debate. O cântico
de hinos, uma prática do Novo Testamento, é bastante comum hoje em
dia, o que não aconteceu até o avivamento evangélico do século 18. Os
reformados eram ambivalentes quanto ao lugar da música no culto, e
mesmo na atualidade não é de todo incomum a realização de cultos sem
ela. Algumas, poucas denominações rejeitam o uso de instrumentos mu-
sicais, entretanto a maioria dos protestantes considera isso extremismo,
e há sinais de mudança chegando, mas devagar.3

7. Cada igreja local deve reconhecer que faz parte de uma comunhão
universal. Tradicionalmente, isso tem sido feito por várias formas de
conexões hierárquicas, tais como episcopado ou governo sinodal por
presbitérios. Mas, se esses são rejeitados ou estão ausentes, é preciso es-
tabelecer outra forma de comunhão. Nenhuma igreja cristã pode alterar
os fundamentos da fé por vontade própria; se o fizer, deixará de ser vista
como cristã pelas outras igrejas do mundo.

Na prática, obviamente, a perfeição é inatingível, então, as igrejas


que foram implantadas com um modelo ideal que deveríam seguir estão
sempre sujeitas a ser desafiadas por membros que acreditam que elas
não chegaram à altura de seus princípios. Vemos, então, que há um
padrão constante de divisões, e cada novo grupo se acha mais puro
do que o anterior. A raiz do problema está no fato de que enquanto
os protestantes creem que sua doutrina deve ser baseada somente nas

3 Por exemplo, em 2011, a Igreja Livre da Escócia passou a permitir que as con-
gregações decidissem individualmente se iriam entoar cânticos modernos e usar
instrumentos musicais. Como era de esperar, a igreja se dividiu, embora os grupos
dissidentes não tenham sido numerosos.
Escrituras (sola Smptura), nenhuma igreja contemporânea pode almejar
recriar com credibilidade o contexto do Novo Testamento. Há vários
motivos para isso:

1 . O Novo Testamento não apresenta detalhes suficientes sobre a orga-


nização das igrejas. Tinham bispos? Uma pessoa era responsável pelas
outras? Com que frequência se reuniam e o que faziam nas reuniões?
Temos indicações que nos ajudam a entender que essas perguntas foram
examinadas e respondidas, mas, não sabemos exatamente como. Será que
a igreja de Corinto, por exemplo, sobre a qual temos mais informações,
era típica das outras? Ou era um caso excepcional, pelo menos em
alguns aspectos, e, portanto, com mais necessidade de orientação?
Como o apóstolo Paulo geralmente escrevia a uma igreja para acertar
o que não estava funcionando corretamente, é extremamente perigoso
tirar conclusões com base na evidência que ele nos dá. Simplesmente
não temos informação suficiente para reconstruir a vida doméstica de
nenhuma igreja do Novo Testamento, muito menos para ditar regras
que seriam aplicáveis à igreja universal.

2. Os apóstolos não vivem mais entre nós. Mas, não importa como,
as igrejas se autogovernavam na época do Novo Testamento, estavam
sempre sujeitas à liderança dos apóstolos, que possuíam certa autoridade
ocasional sobre elas. Paulo, por exemplo, não hesitou em escrever uma
longa carta aos romanos, embora nunca tivesse visitado, e muito menos
implantado, a igreja em Roma. De sua parte, as igrejas podiam buscar
conselho nos apóstolos sobre o que fazer em uma situação específica,
algo que não podemos fazer hoje. Existe, assim, um aspecto perdido
de governo que não pode ser reposto, o que certamente influencia a
organização de nossas igrejas hoje e como usamos a evidência do Novo
Testamento. 3

3. Dois mil anos de história deixaram suas marcas. Quando Paulo esteve
em Atenas, ele e seus companheiros de viagem eram as únicas pessoas na
cidade que conheciam alguma coisa sobre Jesus; Paulo anunciava o Deus
desconhecido. Isso não acontece hoje, com a possível exceção de tribos
remotas que não têm a mínima ideia do que é o cristianismo. Gostem
ou não, os implantadores de igreja hoje precisam considerar essa tradi-
ção porque dependem dela em larga escala, mesmo não admitindo tal
coisa. As Bíblias que leem, os hinos que cantam, e muito do que dizem
e fazem foi herdado de outros lugares. Talvez rejeitem a corrupção e
inadequação de outros grupos eclesiásticos, mas, precisam lidar com eles,
pelo menos porque esses outros grupos desenvolveram suas próprias
posições em consequência do que descobriram ou experimentaram em
outros lugares. Mais cedo ou mais tarde terão de se explicar e defender
em relação a outros grupos cristãos, algo que a igreja do Novo Testa-
mento não precisou fazer.

4. Hoje, a igreja é um fenômeno mundial com diversidade impressionante.


O grupo que se estabelece e reivindica ser a igreja do Novo Testamento,
e exclui todas as outras, acaba descobrindo que é mais um grupo sectário.
Seus membros podem ser persuadidos a aceitar tal reivindicação, contu-
do, ninguém mais o será, e provavelmente esse grupo não sobrevivería
muito tempo sozinho. Um dia ele teria de admitir a existência de outros
grupos cristãos, e que não brotou do nada, e que, na verdade, o conteúdo
de sua fé e até mesmo sua identidade dependem muito do restante do
mundo cristão.

Na prática, poucas igrejas hoje chegam ao extremo aqui representa-


do. Mesmo as igrejas independentes sabem que têm de ser pragmáticas
na maneira de organizar sua vida eclesiástica, e a maioria delas segue
um padrão que em termos tradicionais protestantes seria considerado
“congregacionalista”. Até que ponto têm comunhão com outros gru-
pos cristãos varia de uma situação para outra; dadas as circunstâncias,
dificilmente seria de outra forma. Algumas, se transformam em de-
nominações de igrejas interdependentes, embora a maioria delas seja
fruto da separação de outras — anglicanos dissidentes, por exemplo,
ou presbiterianos. Devido à natureza essencialmente interdependente
de uma denominação, em geral, esses dissidentes acham mais difícil
iniciar uma nova, sobretudo porque têm de primeiro estabelecer redes
de interconexão antes de decidir quais igrejas locais poderão se unir a
ela. O protestantismo exibe uma enorme variedade no âmbito eclesi-
ástico, mas, por trás da diversidade aparente há alguns padrões básicos
encontrados em quase todos os lugares, sejam isolados ou em conjunto.
Entre os tipos interdependentes de igreja, algumas são episcopais, mas,
não é caso da maioria. No entanto, quando uma igreja episcopal se une
com outras que discordam de sua política, ela normalmente insiste que
o novo corpo seja de estrutura episcopal, mesmo que a combinação
junte elementos presbiterianos ou congregacionalistas.4
A maioria das igrejas protestantes independentes não é episcopal,
pelo menos não no sentido tradicional. Se têm um “bispo”, sua inde-
pendência básica significará que ele não será mais que o líder principal
dessa igreja, e não o representante ou supervisor de um grupo de
igrejas semelhantes. Frente a essa variedade, é altamente improvável
que os protestantes serão capazes de um dia formar uma única igreja
institucional, e para a maioria deles talvez fosse imprudente tentar esse
caminho. O que gostariam de ver é “reconhecimento mútuo”, de ma-
neira que os fiéis pudessem ir de uma igreja para outra e serem aceitos
sem que sua lealdade à igreja anterior fosse colocada em dúvida. Existe
esperança de isso acontecer, embora seja de esperar oposição de batis-
tas conservadores e igrejas luteranas, que provavelmente insistiríam na
natureza exclusiva de suas práticas sacramentais.

UNIÃO CRISTÃ

Qualquer debate sobre a unidade da igreja hoje deve começar pela


questão da unidade cristã. Desde o começo do século 20, pelo menos,
organizações missionárias e outros grupos se tornaram cada vez mais
conscientes das limitações do denominacionalismo e da necessidade de
os cristãos de diferentes afiliações trabalharem juntos. A Conferência
Missionária de Edimburgo, de 1910, é sempre indicada como o mo-
mento criador do movimento ecumênico, que, apesar de muitos atrasos
e frustrações, é um dos marcos principais dos tempos modernos. O
objetivo inicial do ecumenismo foi prevenir duplicação desnecessária e
competição no campo missionário. Tribos e regiões não evangelizadas
foram atribuídas a diferentes grupos para que trabalhassem livremente
e apresentassem aos não cristãos uma mensagem única do evangelho,
sem divisões e desavenças, que só faziam sentido no contexto europeu
do século 16. Quando o objetivo foi alcançado, a esperança era que as
4 As igrejas do norte e do sul da índia são exemplos disso.
ZG*i

diferentes denominações viessem a formar uma única igreja autóctone,


como aconteceu na índia do sul em 1947 e no norte da índia em 1970.
É verdade que nem todos os grupos cristãos se uniram na formação
dessas igrejas e podemos argumentar que o resultado não foi o sucesso
que se esperava no início, mas, apesar de todas as dúvidas, a verdade é
que denominações bem consolidadas foram persuadidas a abrir mão
de suas identidades em busca de uma unidade mais importante. Uniões
semelhantes também aconteceram em países tradicionalmente cristãos
como o Canadá, o Reino Unido e a Austrália, embora com impacto
diferente.
E preciso dizer que, em geral, essas uniões favoreceram alas liberais
dentro das denominações participantes, que assumiram o controle das
organizações eclesiásticas amplificadas, mas, fizeram muito pouco na
propagação do evangelho. Também é verdade que grupos mais con-
servadores resistiram à perda de sua identidade pessoal, e que ao irem
contra a corrente, eles foram forçados a desenvolver convicções mais
enraizadas sobre suas crenças, tornando-os mais fortes e mais unidos
internamente. A Igreja Presbiteriana da Austrália, por exemplo, já foi
denominação mesclada na qual liberais e conservadores competiram
por influência, todavia, com a saída da maioria dos liberais, essa igreja
é agora mais criteriosa em sua composição e mais ativa na pregação e
evangeüzação do que a denominação mais ampla havia sido.
Hoje é amplamente reconhecido que a união institucional não foi
muito bem-sucedida na maioria dos lugares, e a ênfase mudou de união
definitiva para cooperação. A cooperação tem sido maior no mundo
acadêmico, onde teólogos e estudiosos da Bíblia trabalham com todos
os grupos cristãos do mundo. Até mesmo os seminários denomina-
cionais reconhecem o que é escrito por outros, e é comum escritores
teológicos sérios dialogarem com uma ampla gama de cristianismo,
desde o ortodoxo do Leste ao protestantismo evangélico. O resultado
é uma reconfiguração importante do cenário teológico acadêmico, em
que lealdades confessionais cederam a tendências conservadoras e
liberais que transcendem todas as denominações. Assim, é bem mais
provável que os evangélicos conservadores aceitem os católicos igual-
mente conservadores, enquanto os liberais que seguram frouxamente
suas tradições mudam de uma igreja para outra sem notar a diferença.
Hoje, todas as igrejas experimentam essa divisão, que geralmente é mais
importante do que as divisões formais que continuam a separá-las ins-
titucionalmente.
O ecumenismo também fez grande progresso devido à fidelida-
de dos leigos. Aqueles que não têm compromisso oficial com uma
estrutura eclesiástica em particular geralmente estão mais dispostos a
atravessar fronteiras denominacionais. Sentem mais liberdade agora
para se casarem com alguém fora de seu grupo e talvez decidam cul-
tuar em uma igreja que lhes pareça mais adequada, sem se importarem
com rótulo confessional. Também mostram bastante disposição para
implantar igrejas sem afiüação denominacional, sendo que há um sé-
culo a maioria das igrejas não denominacionais resultava de divisões
de igrejas estabelecidas, e hoje elas são de origem independente, sem
histórico de conflito com quem quer que seja. De alguma forma, isso
deveria facilitar a cooperação com outros grupos, mas, pode ser que
isso aumente sua noção de autossuficiência e acabe isolando-as da igreja
global. Por causa da natureza das coisas, cada caso dever ser examinado
por seus próprios méritos.
A união cristã é menos visível em suas estruturas denominacionais
e ministerial. Quem foi ordenado por uma denominação tem menos
possibilidade de migrar para outro grupo, comparado aos leigos. O
pastor que deseja mudar de denominação provavelmente encontrará
oposição — geralmente da igreja à qual deseja se unir. Quase todas as
denominações fazem um teste de aceitação com o “convertido”, em boa
parte (é a explicação) para proteger a integridade de sua própria tradição.
Afinal, diriam, como alguém que estudou para ser pastor presbiteriano
pode ser um bom pastor luterano sem, no mínimo, passar por uma
reeducação denominacional? Também, muitas denominações exigem
que seus futuros pastores que cursaram teologia básica em seminário
interdenominacional ou não denominacional complementem o curso
em um seminário que elas controlem, ou (pelo menos) façam o exame
preparado por elas. Proteger a integridade da denominação é a desculpa
que apresentam, mas, essa motivação é duvidosa numa denominação
que já abraça uma gama de posições teológicas.
As divisões teológicas surgem quando nos voltamos para a coo-
peração existente entre igrejas e denominações. Por exemplo, a Igreja
Católica faz campanha permanente contra o aborto, todavia poucas
denominações evangélicas apoiam os católicos sem reserva nessa em-
preitada. Algumas igrejas dão esse apoio, quer recebam ou não a aprova-
ção de suas denominações, porém, em tais questões, é quase impossível
conseguir consenso em uma denominação mista teologicamente.
Pode-se afirmar o mesmo sobre campanhas evangelísticas, que
geralmente recebem amplo apoio dos evangélicos, sem levar em
conta a afiliação denominacional, contudo, seu apelo não vai além
disso. Nesse caso, talvez haja até mesmo franca hostilidade dentro das
denominações, especialmente se igrejas e ministros não evangélicos se
sentem ameaçados. Nesses casos, surge uma pergunta importante: Por
que se opor a uma pessoa que anuncia o evangelho, só porque ela não
é um de nós? E aqui, ironicamente, que liberais que em outra situação
talvez ignorassem diferenças denominacionais se fecham e se recusem
categoricamente a cooperar com grupos que não tenham as mesmas,
convicções teológicas. Por outro lado, os conservadores criticam ho-
mens como Billy Graham por serem liberais em sua cordialidade aos
católicos, mas, geralmente engolem qualquer reserva que tenham sobre
o assunto porque entendem que levar pessoas a Cristo é o que importa,
e não querem ser distraídos por controvérsias que devem ser deixadas
para outra ocasião e lugar.
No âmbito local, a união cristã entre protestantes geralmente é mais
bem exemplificada pela rede de relacionamentos pessoais que levam
à cooperação, especialmente em circunstâncias atípicas. A maioria das
cidades hoje têm associações ministeriais que reúnem os clérigos de
diferentes igrejas para falar de seus problemas comuns. Dessas reuniões
saem formas, práticas de caridade, como quando uma igreja anglicana
é destruída pelo fogo, por exemplo, e os batistas deixam que a con-
gregação use suas dependências até construírem outro templo. Esse
talvez não seja o ecumenismo imaginado em 1910, contudo, é muito
melhor que a rivalidade (e geralmente hostilidade) interdenominacional
que marcou tão profundamente o século 19. No âmbito local, a união
panprotestante geralmente inclui os clérigos católicos e ortodoxos
orientais, se quiserem e tiverem permissão de seus superiores para par-
ticiparem. No caso deles, a cooperação prática é necessariamente mais
limitada, contudo, padres e pastores descobrem que seus problemas
e experiências são parecidos, ou até idênticos, e isso cria uma ligação
entre eles que as filiações formais em suas igrejas não providenciam. E
necessário dizer que a presente situação, embora não seja ideal, é muito
melhor do que era há uma geração, e talvez a melhor que podemos
alcançar no momento.

TESTEMUNHO EXEMPLAR

No mundo contemporâneo, a ênfase tradicional na santidade da


igreja geralmente se expressa como a necessidade de gerar um teste-
munho exemplar em nossa sociedade cada vez mais secularizada. Os
não cristãos raramente se preocupam com denominação religiosa, e até
mesmo a divisão entre protestantes e católicos é ignorada. Para eles, a
“igreja” acolhe todas as denominações, e o que acontece em uma afeta
todas elas. Essa perspectiva é vista mais claramente — e de modo cruel
- na reação pública a um escândalo. Quando um ministro religioso é
preso por um crime ou outro, a igreja inteira vira farinha do mesmo saco.
Em geral, os protestantes consideram os escândalos sexuais envolvendo
padres como algo peculiar à Igreja Católica (e que, provavelmente, isso
se deve em parte à exigência do celibato, mas, poucos se atreveríam a
dizer tal coisa em público), mas, todas as denominações são atingidas
por tais escândalos. Um indício claro, embora silencioso, de que os
protestantes reconhecem que a lama respingou neles é o fato de não se
aproveitarem da situação na Igreja Católica para condenar seus ensinos
ou tentar converter seus membros. Se um católico se torna evangélico
por causa desses problemas, geralmente é uma decisão pessoal, e não
porque algum pregador evangélico lhe expôs os pecados do Vaticano.
Em situações como essa, a solidariedade é animadora, mas, ela nem
sempre acontece em outras áreas da vida eclesiástica. E relativamente
fácil conseguir amplo apoio para campanhas contra a discriminação
racial, pornografia infantil ou perseguição religiosa em países emer-
gentes, contudo, essas campanhas enfatizam princípios gerais que
raramente afetam de modo direto o comportamento das pessoas e
que, na maioria das vezes, não são especificamente cristãos. Comprar
produtos que têm o selo de sustentabilidade, por exemplo, é algo que
todos podem fazer, e os cristãos não são, de jeito nenhum, os únicos
a defender esse procedimento. Fazer campanha a favor dessa prática
não é errado, claro, e iniciativas iguais a esta devem ser encorajadas,
mas, por sua natureza, elas promovem menos união e crescimento da
igreja do que parece.
As discordâncias entre denominações sobre questões como jogos
de azar e a ingestão de bebida alcoólica, práticas que foram largamente
consideradas males sociais, são menos evidentes hoje porque essas
coisas são consideradas vícios pessoais. No entanto, tais discordâncias
não desapareceram completamente e talvez ainda tornem difíceis a
cooperação prática entre igrejas locais. Em geral, os cristãos se opõem à
bebedeira e empenham-se alegremente em fazer de tudo para preveni-la,
contudo, existe um grande abismo entre denominações que permitem
o uso moderado de bebida alcoólica e as que a proíbem totalmente.
Existe também uma brecha entre igrejas que aceitam dinheiro ganho
em loteria para reformar as dependências da igreja e aquelas que não
aceitam.5
Mais importante são as políticas que igrejas adotaram quanto à
mudança de códigos morais, especialmente em relação ao casamento e
divórcio. Em 1900, apesar das profundas divisões que existiam entre as
diferentes denominações, quase todas concordavam que o casamento
era uma união heterossexual vitalícia. O divórcio era energicamente
dissuadido, quando não banido, e a homossexualidade era condenada
universalmente. Hoje, apesar da cooperação e amizade entre as diferen-
tes igrejas, questões como essa se tornaram controversas como nunca
foram. A triste verdade é que padrões morais não cristãos encontraram
espaço para se infiltrar na igreja de modo impensável há uma geração, e
hoje é um dos principais desafios à sua santidade. Quando os padrões
bíblicos são abandonados, é difícil reconquistá-los, e como nesses
5 Esse é um assunto especialmente controverso em países como o Reino Unido,
onde o estado opera uma loteria e usa os rendimentos em diferentes programas de
fundo cultural e esportivo. Muitos cristãos são contra essa prática, mas, argumen-
tam que se eles não ficarem com o dinheiro, outros ficarão, e estes outros talvez o
usem em negócios que a maioria das igrejas desaprovaria ainda mais severamente.
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assuntos as diferentes igrejas e denominações atuam por diferentes


padrões, a cooperação verdadeira se torna ainda mais difícil.
Outra área de discórdia é o grau em que a igreja está, ou deveria
estar, envolvida nas questões seculares. Sempre houve um elemento na
igreja que resistiu à tentação de conseguir bens materiais. Os monas-
térios medievais, e mais tarde os frades, foram exemplos disso, assim
como, de um jeito diferente, o Exército da Salvação no século 19. Hoje,
temos igrejas em domicílios e comunidades cristãs que oferecem um
estilo de vida alternativo, embora sejam movimentos periféricos que
não afetam as denominações tradicionais de maneira séria, exceto talvez
para incentivar atividades como cuidar do meio ambiente. Mais signifi-
cativo ainda é o modo em que propriedades e investimentos da igreja
são administrados. Que atividades podem acontecer nas propriedades
da igreja? Parece uma pergunta simples, mas, pode ficar complicada
quando salas da igreja são usadas como centros comunitários. Uma sala
da igreja deveria ser usada para danças ou para um casamento hindu,
por exemplo? Aqui, também, os padrões diferem de um lugar para
outro, e talvez seja difícil alcançar uma política comum em qualquer
comunidade. Porém, a igreja deve pensar em como suas atividades são
entendidas pelos de fora. Uma vez que um edifício é usado para uma
atividade não relacionada à igreja, é inevitável que surjam questiona-
mentos, portanto, a liderança da igreja deveria estar mais ciente das
implicações do que normalmente parece estar.
Quanto aos investimentos, seria apropriado a igreja investir em
empresas de cigarro? E quanto a apoiar companhias que terceirizam
sua produção para países do terceiro mundo, onde os empregados
trabalham em condições análogas à escravidão? Há grupos que pedem
boicotes a países cujos procedimentos lhes parecem inaceitáveis. O
que a igreja pode fazer a respeito dessas coisas? As complexidades do
mundo moderno são tantas que é muito difícil se engajar com firmeza
no que é chamado “investimento ético”, pois muitos bancos e outras
instituições financeiras estão envolvidos em inúmeros projetos dos
quais é impossível se desembaraçar facilmente. Em geral, é difícil saber
com certeza em que investiram nosso dinheiro ou onde encontrar al-
ternativas viáveis. Até que ponto as igrejas devem ir em suas tentativas
290

de descobrir investimentos éticos? As igrejas conseguiríam exercer


alguma influência sobre as políticas empresariais? Essas perguntas são
importantes porque a igreja deve praticar o que prega e pode facilmen-
te ficar constrangida pelas atividades que fazem uso de seu dinheiro,
mas, sobre o qual não tem controle. A resposta não é fácil, contudo, as
igrejas devem pelo menos considerar as questões, e têm a obrigação de
fazer o que podem para ser mordomos responsáveis de seus recursos
em um mundo caído.
Em alguns lugares, as igrejas acabam se envolvendo na política,
geralmente contra a própria vontade. Esse é um problema ainda maior
nos países ortodoxos do Leste, onde a identificação da igreja e nação
(quando não Estado) se misturam de tal forma que se torna pratica-
mente impossível separá-las. Por exemplo, até onde a antipatia entre
sérvios e croatas na antiga Iugoslávia é um reflexo da inimizade cató-
lico/ortodoxo? Será que as igrejas de lá não poderíam trabalhar para
transpor essa barreira? Situação parecida acontece na Irlanda do Norte,
onde católicos e protestantes batalham sob vários rótulos políticos, que
a maioria da população ignora por achar que o divisor religioso é mais
profundo e mais importante.
As igrejas têm se esforçado para ultrapassar essa barreira, mas, in-
felizmente, não têm conseguido, e a credibilidade do evangelho sofre
como resultado. Não é sem razão que alguns comentaristas afirmaram
que a secularização é a melhor esperança para tais lugares, mas, o que
seria uma grande admissão de fracasso para as igrejas envolvidas. Se a
mensagem de Cristo, que todas dizem proclamar, não promove paz,
o testemunho das igrejas está fatalmente comprometido, e não é de
surpreender que o mundo descrente abane a cabeça e vá embora.

ACOLHIMENTO UNIVERSAL

Atualmente, a catolicidade da igreja significa apenas que ela acolhe


todas as pessoas sem distinção de língua, raça ou contexto social e que
está disposta a alcançar o mundo inteiro. Isso não significa que a igreja
deve acreditar que todos serão salvos, ou que os seguidores de outras
religiões são na verdade “cristãos anônimos”, praticando o que acham
estar correto, mas, desconhecedores da verdade suprema revelada em
Jesus Cristo. Pensar dessa forma é trair a mensagem que lhe foi confiada.
Acolher e alcançar o mundo todo significa que o evangelho tem de ser
anunciado à humanidade inteira, sem temor nem acepção de pessoas, e
quem aceitar a Cristo em seus corações e vida deve ser aceito na igreja
em pé de igualdade com os outros membros.
Quanto à missão mundial, hoje a igreja é muito mais bem-sucedida
do que em qualquer época de sua história. Em geral, todos os países do
mundo têm uma igreja nacional, mesmo que seja perseguida, como na
Coréia do Norte e Arábia Saudita. A Bíblia foi traduzida e está disponí-
vel nos principais idiomas do mundo, e menos de 1 % da raça humana
não tem acesso às Escrituras em seu idioma materno. Estima-se que
na China deve haver mais de cem milhões de cristãos após quase duas
gerações de comunismo, e os números parecem se multiplicar de modo
exponencial. Estima-se que quase um terço da população mundial é,
pelo menos nominalmente, cristã. Desses, cerca de dois terços são
católicos, cerca de 10 % são ortodoxos do Leste, e o restante é protes-
tante. Naturalmente, esses números são inflacionados e não refletem fé
genuína ou compromisso sério com uma igreja. Por esses critérios, as
porcentagens da Igreja Católica e a da Ortodoxa deveríam ser cortadas
drasticamente, e a dos protestantes também deveria ser diminuída, to-
davia, não na mesma proporção porque são menos propensos a contar
afiliados nominais como membros da igreja.
Apesar desse sucesso aparente, temos de levar em conta a des-
cristianização de boa parte da Europa e América do Norte, em países
tradicionalmente cristãos, onde está cada vez mais difícil aos cristãos
marcarem presença na sociedade. As igrejas desses países se provaram
incapazes de resistir à maré secular, e nenhuma delas exerce influência
sequer parecida à de um século atrás. Sua integridade interior sofre
ataques sérios, enquanto as denominações tradicionais sucumbem ao
liberalismo teológico e muitas conservadoras recuam à piedade indi-
viduaüsta para escapar da realidade desagradável do mundo lá fora. É
sintomático disso que uma palavra como “fímdamentalismo”, que foi
cunhada no início do século 20 para descrever os protestantes america-
nos conservadores e era usada quase que exclusivamente nesse sentido
por duas gerações, foi transferida para os jihadistas islâmicos, que aos
olhos da mídia secular representam uma ameaça religiosa mais perigosa
do que qualquer outra encontrada no mundo cristão.
O recuo público das igrejas em seus países de origem talvez seja
apenas temporário, mas, não há dúvida de que os países cristãos mais
avivados de hoje estão situados no terceiro mundo ou no mundo
“majoritário”. E impossível afirmar se a situação continuará igual. Tal-
vez haja avivamento em países ocidentais tradicionalistas, ou o terceiro
mundo talvez fique secularizado. Cristãos são perseguidos hoje em
vários países do mundo, quase sempre por extremistas islâmicos, e o
perigo de a igreja ser dizimada em seu berço natal no Oriente Médio é
realidade.6 Por outro lado, o sangue dos mártires é a semente da igreja, e
talvez o horrível sacrifício que tantos cristãos são obrigados a fazer nessa
região do mundo se reverterá para a glória de Cristo e do evangelho.
E difícil prever como as igrejas irão receber os novos movimentos
religiosos. As instituições são conservadoras por natureza, e histórica-
mente quem pregou ou promoveu o avivamento enfrentou tribulações.
Podemos imaginar as dificuldades que John Wesley (1703-91) teve na
igreja anglicana, à qual ele era particularmente dedicado, ao perceber
a facilidade com que um estabelecimento comete um erro histórico e
exclui quem deveria ser sua força motriz. Na atualidade, esse problema
é mais evidente em relação ao movimento carismático, que foi com-
pletamente aceito em alguns lugares, totalmente rejeitado em outros
e recebido com reservas por muitos. Fora as igrejas pentecostais, que
obviamente aceitam a prática dos dons carismáticos, poucas deno-
minações fizeram qualquer pronunciamento público que fosse sobre
eles, contudo, em geral, a tolerância aos carismáticos é mais em nível
congregational do que denominational. Mesmo a Igreja Católica se
mostra aberta, até certo ponto, ao movimento, embora dificilmente
poderiamos dizer que é de todo o coração. Ninguém está dizendo que
os carismáticos não sejam passíveis de críticas. Muitos deles são ingênu-
os na fé, portanto, facilmente receptivos a fenômenos estranhos, e em
geral são resistentes à autocrítica, mas seu desejo de ter uma experiência
espiritual bastante profunda é consonante com os instintos ainda mais
profundos da igreja e deve ser respeitado.
6 R. Shortt, Christianophobia (Londres: Rider, 2012).
O problema principal da catolicidade hoje é saber até onde uma
igreja pode (ou deveria) aceitar a legitimidade das diferentes doutrinas.
As igrejas tradicionais com teologia confessional altamente desenvolvida
naturalmente têm mais dificuldades do que as outras, e isso se reflete
em seu comportamento. As igrejas católicas e ortodoxas orientais têm
uma teologia abrangente que, segundo elas, tem de ser aceita por todos
os membros. Obviamente, é dificultoso forçar os leigos a aceitar essa
ordem, mas, o clero, e especialmente os professores de teologia, têm
de se conformar a um padrão, mesmo quando a doutrina em questão é
controversa e rejeitada por outras igrejas. O caso evidente em questão
é a insistência do Vaticano na infalibilidade papal, com o que nenhuma
outra igreja concorda, mas, que é rigorosamente imposta a todos os
que querem ser reconhecidos como teólogos católicos. Os ortodoxos
orientais são menos dogmáticos e mais dispostos a relegar questões
polêmicas ao reino do “mistério”, todavia, dentro dos parâmetros que
estabelecem para si mesmos, são tão rigorosos quanto os católicos, e
talvez mais ainda. Eles não têm Papa, mas, desobediência à hierarquia
é vista com olhar desfavorável.
Como seria de esperar, as igrejas protestantes oferecem uma
variedade muito maior de respostas a esse desafio teológico. Algu-
mas são tão rigorosas quanto a Igreja Católica Romana e insistem
na conformidade total à sua confissão de fé. Outras permitem maior
latitude, especialmente se (como na Comunhão Anglicana) a confissão
de fé adotada tem centenas de anos e não foi atualizada. Na maioria das
igrejas tradicionais protestantes de hoje, o papel de suas declarações
confessionais históricas é causa de controvérsia, pois alguns membros
da igreja argumentam que elas deveríam ser engavetadas, enquanto
outros insistem que permaneçam válidas e importantes para definir os
limites de crenças ortodoxas aceitáveis pela igreja em questão. Nesse
caso, os processos por heresia causam mais problemas do que me-
recem e, portanto, são raríssimos de acontecer. Para o desgosto dos
ortodoxos, os rebeldes geralmente conseguem professar crenças bem
diversas, algumas das quais contradizem as doutrinas mais fundamentais
encontradas nos credos antigos.
Mas, embora essa tolerância seja facilmente oferecida a indivíduos,
raramente faz parte das declarações oficiais da igreja, que geralmente
permanecem dentro de seus padrões doutrinários tradicionais. Ao
lidar com outras denominações, claro, a amplitude é maior, e com fre-
quência os ministros de diferentes igrejas serão convidados a pregar
ou ensinar sem a imposição de nenhum teste doutrinário específico. A
igreja hospedeira normalmente supõe que, se os convidados têm bom
relacionamento com sua própria denominação, também serão aceitá-
veis aos hospedeiros, pois convidados bem-educados cuidam para não
ofender a igreja que os convidou a pregar.
A questão de as mulheres serem pastoras é mais problemática, pois
algumas denominações aceitam essa prática e outras não, e as condi-
ções de aceitação variam imensamente. Algumas, igrejas que ordenam
mulheres ao pastorado exigem que todos os seus líderes aceitem a
ordenação, e aqueles cuja consciência não lhes permite dar o devido
apoio são demitidos ou convidados a renunciar. Outras igrejas mantêm
pastores que têm dúvidas sobre a questão, mas, não ordenam novos
obreiros se estes não aceitarem a mudança. Até pode acontecer, como
na comunidade anglicana, que algumas igrejas ordenem mulheres e
outras não, e que adotem políticas diferentes com respeito àqueles
que não concordam com a maioria. Nesses casos, a pastora terá de
entender que não será convidada a pregar ou ensinar em igrejas que
não concordam com a ordenação de mulheres, não importam suas
convicções teológicas.
No caso anglicano, a ordenação de mulheres gerou o que chamamos
de “ceia prejudicada”, uma situação em que membros da mesma igreja
não aceitam ordem um dos outros e, então, se recusam a receber a ceia
das mãos de quem, segundo eles, não foi propriamente ordenado. Nesse
caso, talvez mais do que em outro qualquer, vemos como a mudança
de prática pode mudar a igreja internamente, e limitar a catolicidade
por razões ligadas mais à disciplina eclesiástica do que a uma doutrina
específica.
Igrejas independentes têm muito mais liberdade nesses assuntos,
claro, e portanto, não podem ser categorizadas tão facilmente quanto
as denominações tradicionais. A maioria delas concorda com uma fé
protestante e evangélica bem definida, embora, em geral, isso será
subentendido e não oficialmente afirmado. Há o perigo evidente que
um pastor ou professor se desvie do cristianismo histórico e não seja
disciplinado, mas, embora isso aconteça, saibamos que o ensino in-
salubre costuma ser descoberto por essas igrejas, que se empenharão
para garantir que seus ministros permaneçam nos limites da ortodoxia
geralmente reconhecida, quer a igreja tenha ou não uma confissão de
fé definida.
Provavelmente, é verdade que as igrejas batistas estão numa pro-
porção elevada entre as igrejas independentes, contudo, a fluidez de
suas organizações talvez signifique que as convicções diferentes são
respeitadas de forma que não seriam em outros lugares. Por exemplo,
uma igreja independente que não batiza crianças talvez aceite como
membros pessoas que foram batizadas na infância, o que a maioria das
igrejas batistas não faria. É impossível generalizar nessa área, pois cada
igreja cria suas próprias regras. O que podemos afirmar, no entanto,
é que igrejas independentes, que formalmente negam a catolicidade
que vem da participação de uma rede de estruturas denominacionais,
se mostram mais flexível que muitas denominações quando o assunto
é lidar com casos específicos e são, portanto, mais católicas na prática
do que sua falta de forma institucional poderia sugerir.
O maior desafio à catolicidade da igreja surge quando um número
significativo de membros muda-se para outra denominação porque
esta é a “igreja verdadeira” de um jeito que a igreja que estão deixando
não é. De modo quase invariável, é isso o que acontece quando alguém
abandona a Igreja Protestante e torna-se católico ou ortodoxo orien-
tal. Antes do século 19, esse tipo de conversão era raro e geralmente
acontecia por circunstâncias especiais. A expectativa era que mulheres
protestantes que se casavam com homens católicos ou ortodoxos ado-
tariam a religião de seus maridos, especialmente se fossem nobres ou
membros da realeza. Às vezes, a conversão era forçada, como aconteceu
na França e Áustria, onde os protestantes tinham de escolher entre ser
católicos ou ir para o exílio. Mas, nada disso pode ser considerado um
ato de fé genuína da parte dos convertidos - um defeito compreensível
naquela época.
Foi no século 19, quando a fé religiosa se tornou cada vez mais uma
escolha pessoal, que conversões do protestantismo para o catolicismo
se tornaram um problema teológico sério para as igrejas que estavam
sendo abandonadas. E preciso lembrar que, de modo geral, os protes-
tantes do início do século 19 acreditavam que suas igrejas estavam na
vanguarda do progresso social e intelectual e que os países católicos
eram retrógrados e viviam à mercê de uma tirania espiritual. Uma obra
clássica que ficou famosa e continua a ser publicada são as memórias de
George Barrow (1803-81), representante da Sociedade Bíblica Britânica
que na década de 1830 foi distribuir Bíblias na Espanha. Seu relato, que
é extremamente valorizado como descrição da sociedade espanhola da
época, descreve um país chafurdando na escuridão induzida pela Igreja
Católica, e é preciso dizer que ele não estava muito longe da verdade.
Depois da Revolução Francesa, a igreja se voltou contra qualquer forma
de liberalismo, e na Espanha, ela desempenharia papel de liderança em
combater qualquer tipo de progresso durante quase 150 anos.7
Diante desse contexto, é surpreendente que uns poucos intelectuais
britânicos e americanos tenham se convertido ao catolicismo de livre
e espontânea vontade.8 A conversão aconteceu por vários motivos,
indo do romantismo à solidariedade para com os católicos perseguidos
durante a Revolução Francesa ao sentimento que a industrialização es-
tava destruindo a sociedade ao substituir valores espirituais por outros
puramente materiais. A Igreja Católica representava a antiga ordem.
Era a encarnação viva da Idade Média, remodelada como a “era da fé”
completa, com catedrais góticas, cavaleiros das Cruzadas, e virgens
santas que sacrificaram suas vidas a favor da igreja.
Na Inglaterra, a conversão ao catolicismo foi parcialmente prejudi-
cada por um grupo de anglicanos conservadores categóricos em afir-
mar que a Igreja Anglicana era cem por cento católica e que nenhuma
Reforma Protestante aconteceu no país. Em 1841, o principal expoente
desse conceito, John Henry Newman (1801-90), publicou TractXC, no

7 G. Borrow, The Bible in Spain: TheJourneys, Adventures, and Imprisonments of an English-


man, in an Attempt to Circulate the Scriptures in the Peninsula (Londres: John Murray,
1843). As garras da Igreja Católica no país só afrouxaram depois da ditadura de
Franco, em 1975.
8 Veja P. Allitt, Catholic Converts: British and American Intellectuals Turn to Rome (Ithaca,
NY: Cornell University Press, 1997).
qual procurou demonstrar que as Trinta e Nove Teses eram suscetíveis
de interpretação católica e tinham pouco ou nada a ver com protestan-
tismo.9 As idéias estranhas de Newman provocaram uma enorme reação
e o incentivaram a buscar sua reconciliação com o Vaticano. Ele sabia
que a Igreja Católica de sua época era bem diferente de tudo o que se
encontrava no Novo Testamento ou na igreja primitiva, contudo, New-
man superou esse obstáculo ao criar uma teoria de desenvolvimento.
De acordo com a citada teoria, a igreja evoluiu através dos séculos por
meio de um processo guiado pelo Espírito que resultou no surgimento
de um corpo mundial centralizado no papado. Newman publicou suas
teses em 1845, na mesma época de sua conversão ao catolicismo.10 11
A submissão de Newman ao papado causou considerável inquietação
naquela época, e alguns (mas, nem todos) de seus partidários anglo-católicos
seguiram suas pisadas. A compreensão de Newman sobre a Igreja Ca-
tólica era formal e superficial, e pesquisas atuais mostram que sua aná-
lise do protestantismo que ele rejeitou estava errada.11 Sua experiência
seguinte com o catolicismo também deixou muito a desejar, quando
percebeu que a igreja à qual havia se unido era, na prática, bem dife-
rente da igreja que o atraiu em teoria. John Newman viveu para ver a
declaração da infalibilidade papal em questões de fé e padrões morais,
que foi proclamada diante de grande oposição no Primeiro Concilio do
Vaticano, em 1870.12 Newman ficou chocado, mas, submeteu-se, pois a
lógica de sua doutrina de desenvolvimento não lhe deixou muita escolha.
Desde a época de Newman, tem havido um gotejar lento, mas,
estável de pessoas que deixaram o anglicanismo e converteram-se ao
catolicismo, geralmente passando pelo anglo-catolicismo, e ultimamente

9 A. W. Evans, Tract Ninety, or Remarks on Certain Passages in the Thirty-Nine Articles


by John Henry Newman, with an Historical Commentary (Londres: Constable, 1933).
10 Reimpresso como J. H. Newman, An Essay on the Development of Christian Doctrine,
com introdução de J. M. Cameron (Londres: Pelican, 1974).
11 Veja E M. Turner,/0/6» Henry Newman: The Challenge to Evangelical Religion (New

Haven: Yale University Press, 2002).


12 Um número expressivo de teólogos católicos se recusou a aceitar o novo dogma

e se separou para formar o que hoje é conhecido como a Antiga Igreja Católica,
um grupo pequeno, mas, que tem, desde então, conseguido manter seu modo
independente de viver.
isso tem aumentado com o número de convertidos vindos de outras
denominações protestantes. Os luteranos têm se destacado de maneira
especial, todavia um bom número de evangélicos também “atravessou
o rio Tibre”, como diz o ditado, e outros tentaram de modo agressivo
persuadir antigos correligionários a se unirem a eles.13 Mais recentemen-
te, algumas pessoas desses grupos preferiram se unir a uma das igrejas
ortodoxas, provavelmente porque a tradição mística dessas igrejas e
a indisposição para definir algumas doutrinas de forma mais restrita
mostraram-se mais atrativas do que o dogmatismo do Vaticano.14
O repúdio ao protestantismo em favor de uma igreja histórica
pré-Reforma é comum nesses relatos. Na maioria dos casos, os con-
vertidos abandonam suas origens protestantes por frustração com os
defeitos que percebem na igreja ou nas igrejas às quais pertenciam. Em
geral, eles deploram o liberalismo teológico que invadiu a maioria das
igrejas protestantes históricas, e se afastam pela aparente incapacidade
dessas igrejas de estancar seu avanço. Por vezes, se rebelam contra a
superficialidade de boa parte do evangelicalismo popular, que enfatiza
exageradamente a experiência religiosa individual e mostra aparente
indiferença à história e tradição. São atraídos para as igrejas católicas
(e em menor grau, para as igrejas do Leste) porque veem nelas a de-
terminação de resistir às tendências contemporâneas e a habilidade de
ultrapassar a espiritualidade puramente pessoal no que aparenta ser a
unidade de uma igreja universal.
De uma forma ou de outra, foi a doutrina da igreja que capturou o
interesse dos convertidos e atraiu sua lealdade. Mais interessante ainda é
que isso acontece quando muitos membros dessas antigas igrejas estão
cada vez mais insatisfeitos e reduzem seu compromisso ou vão embora
de uma vez. O catolicismo veemente da Espanha, Irlanda e Polônia,
para mencionar três exemplos clássicos, diminuiu bastante na geração
passada, e por todos os lados padres, monges e freiras abandonaram
13 Veja, por exemple, S. Hahn e K. Hahn, Rome Sweet Home: OurJourney to Catholicism
(San Francisco: Ignatius Press, 1993).
14 Veja M. L. Mattox e A. G. Roeber, Changing Churches: An Orthodox, Catholic, and

Lutheran Theological Conversation (Grand Rapids: Eerdmans, 2012). Mattox foi de


batista do sul para luterano e agora está no catolicismo; Roeber foi de católico
romano para luterano e agora é ortodoxo oriental (no formato americano).
suas vocações. Seminários foram fechados, faculdades e universidades
foram secularizadas (ou laicizada a tal ponto que não fazem muita dife-
rença), e a avivada ortodoxia da Rússia parece ter se transformado em
uma ferramenta do Estado tanto quanto era sob o domínio dos czares.
Intelectuais protestantes convertidos ao catolicismo ignoram esses fatos
desagradáveis ou justificam-se de um modo que nunca fariam para as
denominações protestantes que abandonaram.
É tentador aos protestantes que observam esse padrão concluir
que isso é evidência adicional da capacidade que os seres humanos têm
de criar fantasias e crerem nelas apesar das provas contundentes, mas,
embora isso possa ser verdade até certo ponto, não pode ser a resposta
final ao desafio apresentado pelas alegações das igrejas pré-Reforma.
Em geral, aqueles que se converteram ao catolicismo estão corretos
em sua análise desfavorável do protestantismo atual. As igrejas protes-
tantes tradicionais parecem viver à beira de um colapso institucional,
e as concessões feitas às tendências liberais na esperança que suas
adversidades sejam revertidas simplesmente tornam a catástrofe mais
provável. Desde a década de 1960, os protestantes ouvem que novas
traduções da Bíblia, novas formas de culto e a abertura do ministério
pastoral às mulheres (e aos homens mal treinados e que trabalham meio
período) irá lhes restaurar a trajetória, contudo, o declínio a longo prazo
continua e não dá sinais de minorar.
Até certo ponto, as igrejas evangélicas têm resistido à tendência,
mas, embora sejam eficientes em conquistar pessoas para Cristo, são
menos eficientes em mantê-las no aprisco, e muitas igrejas sofrem da
síndrome “porta giratória” - quem vem fácil, também vai embora fácil,
e compromisso sério com uma visão teológica coerente é artigo raro.
Enquanto isso, com muita frequência, teólogos protestantes conser-
vadores se abrigam em um denominacionalismo exagerado que revive
artificialmente debates dos séculos 16 e 17 ou em controvérsias pífias
que simplesmente convencem a maioria das pessoas da irrelevância
duradoura da teologia em relação aos problemas e desafios da vida.
É incerto se os protestantes, e especialmente os evangélicos,
conseguem ultrapassar essas dificuldades e descobrir um entendimento
novo e mais profundo da catolicidade do evangelho que acolha uma
visão teológica e social completa, mas, como a migração para a Igreja
Católica e a Ortodoxa nos aponta, esse é o teste mais premente que
enfrentam no momento. A catolicidade foi negligenciada, ridiculariza-
da e ignorada pelos protestantes no passado, todavia, se eles querem
mesmo recuperar sua posição tradicional na vanguarda do testemunho
cristão ao mundo contemporâneo, precisam redescobri-la e produzir
uma versão que seja coerente e convincente à geração de nossos dias.

A FÉ CONFIADA

A marca clássica da apostolicidade de uma igreja é vista mais clara-


mente na maneira em que ela segue o Novo Testamento como seu guia
supremo em questões de fé e prática. Em um extremo estão as igrejas
carismáticas que afirmam ter “apóstolos” e, claro, a Igreja Católica Ro-
mana, para quem o Papa é o apóstolo Pedro encarnado com autoridade
para fazer acréscimos à doutrina oficial da igreja. É bem verdade que
a maioria dos grupos pentecostais não espera que seus “apóstolos” se
desviem do ensino bíblico. No entender deles, a tarefa desses após-
tolos é proclamar novamente a antiga fé, e essa crença é amplamente
compartilhada por quem não crê na existência de apóstolos nos dias de
hoje. Até mesmo na Igreja Católica Romana, a autoridade apostólica
garantida ao Papa (falando ex cathedra, ou em sua competência oficial)
não suplanta as Sagradas Escrituras, mas, é um suplemento em questões
que o texto sagrado não esclarece. Assim, por exemplo, o Papa pode
decretar, e isso já foi feito, que a Virgem Maria foi levada para o céu da
mesma forma que o profeta Elias, porque o Novo Testamento não diz
nada sobre o assunto e o Papa tem autoridade de canonizar a tradição
do acontecimento. Contudo, ele não pode descartar a segunda vinda
de Cristo, pois o fato é claramente afirmado pela Bíblia e pelos credos
antigos da igreja, cuja autoridade ele é obrigado a respeitar.
Para todos os cristãos, a herança apostólica na igreja contemporânea
está contida basicamente no Novo Testamento. É incerto se existe algo
mais que possamos associar à primeira geração de cristãos, embora a
possibilidade não deva ser totalmente descartada. Existe uma chance
remota de que uma carta genuinamente apostólica venha um dia a
aparecer nas areias do Egito, como aconteceu com outros documentos
daquela época, mas, se tal carta aparecesse, ela não seria acrescentada
ao nosso Novo Testamento. Uma das razões é a impossibilidade de
comprovarmos sua autenticidade. Outra razão é a improbabilidade de
o mundo cristão inteiro concordar com o acréscimo. Porém, a terceira
razão, e no final das contas a mais importante, de que isso não acon-
teceria é que a igreja permanece viva sem essa carta há dois mil anos.
Uma carta apostólica recentemente descoberta não seria parte da fé
uma vez confiada aos santos e, portanto, não teria lugar no cânone do
Novo Testamento.15 Da mesma forma que o Didache e outros textos do
primeiro século, a carta poderia ser usada como um depoimento sobre a
igreja primitiva, mas, sem a autoridade de dizer à igreja contemporânea
o que ela deve fazer.
A distinção entre o Novo Testamento como evidência e o Novo
Testamento como autoridade nem sempre é deixada bem clara, entre-
tanto, é vital para compreendermos a apostolicidade. Nós todos, até
mesmo aqueles sem nenhum tipo de fé, concordamos que o Novo
Testamento é evidência da vida e das crenças da igreja primitiva. A
maioria das pessoas também concorda que nada se compara a ele; os
numerosos textos não bíblicos que alegam ter vindo de um apóstolo
ou um de seus discípulos são todos considerados de origem espúria
ou foram escritos em uma data relativamente tardia. Alguns de seus
conteúdos podem ser historicamente exatos, contudo, é impossível ter
certeza do que é autêntico, e a maioria dos estudiosos são acertadamente
cautelosos em suas avaliações. De quando em quando alguém assevera
que um texto representa uma tradição suprimida e deve ser levado a
sério como testemunho da crença e do ensino dos apóstolos, contudo,
o público em geral reconhece que o texto é, na melhor das hipóteses,
uma proposição bastante duvidosa e considera as reivindicações sem
mérito.16
A grande diferença entre o mundo acadêmico e a igreja é que em-
bora os dois leiam o Novo Testamento como evidência, para a igreja ele

15 Judas 3.
16 Os escritos de Bart Ehrman são um exemplo proeminente do trabalho que
pressupõe grande diversidade no início do cristianismo baseado em textos não
canônicos.
também é a autoridade maior de suas doutrinas e práticas. Na verdade,
não é exagero afirmar que o grau de fidelidáde de uma denominação aos
ensinos do Novo Testamento é o teste principal de sua reivindicação à
apostolicidade. Alguns grupos protestantes radicais garantem agir assim
de maneira total e exclusiva. O grupo que se chama Igrejas de Cristo,
por exemplo, afirma que obedece ao Novo Testamento e se refreia de
fazer o que ele proíbe ou não menciona — um princípio admirável na
teoria, mas, impossível de ser aplicado com alguma consistência. Ve-
jamos: o Novo Testamento não oferece exemplos claros de batismo
infantil, então, a referida denominação não o pratica. Entretanto, o
Novo Testamento também não diz que as mulheres participavam da
Ceia do Senhor, uma omissão que a denominação Igrejas de Cristo
ignora. Esse exemplo não é tão banal quanto talvez pareça, pois nos
tempos antigos era normal os homens se reunirem para uma refeição
sem a presença de mulheres e crianças; certamente foi assim na Última
Ceia, e até onde sabemos, a prática foi seguida pela igreja primitiva. As
Igrejas de Cristo também, claro, não se reúnem nas casas dos irmãos,
o que a igreja primitiva foi obrigada a fazer. Elas constroem templos
para o culto público e geralmente operam de modo parecido aos de
denominações iguais a elas. Conformam-se à prática do Novo Tes-
tamento em algumas poucas áreas que lhes permitam afirmar que o
seguem exclusivamente, mas, a verdade é que se os apóstolos voltassem
hoje, ficariam tão perplexos com o que acontece nessas igrejas como
em todas as igrejas de todos os lugares.
E impossível a qualquer igreja de hoje aderir a cada detalhe do
Novo Testamento só pelo fato de os tempos terem mudado tanto que
não conseguimos mais recriar nada parecido com as primeiras igrejas
cristãs. Será necessário fazer alguma adaptação à vida moderna, mas, até
que ponto? Para determinar isso, muitas igrejas criaram uma distinção
entre um princípio e sua aplicação, insistindo que embora o primeiro
continue inalterado, o segundo pode ser modificado de acordo com
as necessidades.
Questões de princípios são colocadas sob um destes três tópicos:
doutrina, disciplina e devoção. Todas as igrejas concordam que de-
vem ensinar o que os apóstolos ensinaram. Também concordam que
precisam excluir qualquer coisa que destoe do ensino dos apóstolos,
certificando-se de que os escolhidos, para ser mestres, preencham sua
função de acordo com a intenção dos apóstolos. Também devem se
esforçar para que os membros da igreja vivam de acordo com os padrões
estabelecidos, e discipliná-los, caso não ajam assim. Por último, todas
as igrejas devem se reunir para cultuarem a Deus, o que normalmente
inclui louvor e gratidão como também orações pelas necessidades da
igreja e do mundo, embora o conteúdo exato de cada culto seja variável.
A Ceia do Senhor é o âmago do culto, apesar de haver muitas
maneiras diferentes de expressarmos sua centralidade. A leitura da
Bíblia, seguida da pregação e ensino baseados no que foi lido, também
são aspectos do culto, embora o relacionamento entre eles seja mais
complexo. Em primeiro lugar, é perfeitamente possível ler a Bíblia e
pregar e ensinar com base nela fora do contexto de um culto, o que é
feito frequentemente. Também é possível adorar a Deus sem incluir
pregação e ensino, especialmente se não houver ninguém competente
para fazer isso, embora nesses casos deva haver pelo menos uma leitura
da Bíblia. Mas, não importa o grau de legitimidade dessas exceções,
elas normalmente são vistas como tais e não como prática comum.
Em circunstâncias normais, e na maioria das igrejas protestantes pelo
menos, pregação e ensino ocupam espaço central.
Quando começamos a aplicar esse critério às igrejas de hoje, en-
contramos uma “salada”. Com respeito à doutrina, a maioria das igrejas
aceita os credos antigos e as decisões dos primeiros quatro concílios
ecumênicos como normativos, embora seja difícil determinar o peso
real da influência que exercem na vida de uma igreja contemporânea.17
Os credos são conhecidos de uma ampla variedade de frequentadores,
e algumas igrejas ocasionalmente oferecem cursos ou palestras que
explicam o significado deles. Com frequência, os hinos refletem os
ensinos ou elementos dos credos, e assim podemos afirmar que estes
continuam a exercer papel importante na vida da igreja contemporânea.
Os concílios ecumênicos são bem menos conhecidos, e o quarto deles

17 Muitos grupos protestantes não usam os credos e sabem pouquíssimo a respeito


dos quatro primeiros concílios ecumênicos, mas, o que ensinam geralmente está
de acordo com os credos, estejam ou não conscientes disso.
(Calcedônia) continua um ponto de divisão dentro das igrejas do Leste;
contudo, sua doutrina básica continua sendo um ponto de referência
da fé cristã autêntica, especialmente quando se trata de estabelecer se
uma denominação como as Testemunhas de Jeová pode ser considerada
cristã. As Testemunhas de Jeová afirmam ser bíblicas, mas, porque en-
sinam uma doutrina de Cristo parecida com uma heresia ariana antiga,
que nega sua divindade plena, o restante do mundo cristão não aceita
essa denominação como ortodoxa.
E ao lidarmos com doutrinas formuladas nos últimos tempos
que as diferenças mais importantes aparecem no modo de usar o
Novo Testamento. A Igreja Católica Romana não exige que todas as
doutrinas em que seus fiéis devem acreditar tenham base evidente nas
Escrituras. Para ela, sua própria apostolicidade inata lhe dá o direito de
proclamar como dogma infalível crenças que há tempo são guardadas
pelos membros da igreja, embora não tenham confirmação escrita
que seja rastreada a um dos apóstolos. A crença que Maria permane-
ceu virgem durante toda a sua vida é uma delas; a única evidência é a
devoção popular, contudo, a igreja transformou a crença numa parte
da fé apostólica, e nenhum católico leal tem liberdade para rejeitá-la só
porque não se encontra na Bíblia.
As igrejas protestantes rejeitam esse tipo de afirmação como ques-
tão de princípio. Poucos protestantes acreditam na virgindade perpétua
de Maria, mas, não é isso que estamos discutindo. Os protestantes têm
liberdade para crer nesse ponto de vista se quiserem, apesar da falta
de provas, contudo, não de ensiná-lo como doutrina em que todos
os cristãos têm de acreditar se quiserem ser salvos. Ele não é parte da
herança apostólica autêntica, e assim não pode ser exigido como ele-
mento de fé. O fato de a Igreja Católica fazer essa exigência é evidência
de que ela se afastou da apostolicidade, apesar de garantir o contrário.
Em geral, a Igreja Ortodoxa do Leste evita tomar partido nesse tipo de
argumento. A maioria dos ortodoxos acredita na virgindade perpétua
de Maria, mas, a crença não foi definida ou canonizada pela igreja e,
portanto, não pode ser exigência à salvação. Da mesma forma que os
protestantes, os ortodoxos acham que a Igreja Católica foi longe demais
ao exigir que seus fiéis aceitem crenças minuciosamente definidas, e foi
aí que errou - mesmo que a crença esteja correta.
Por outro lado, as igrejas protestantes em geral têm uma confissão
de fé que afirmam ter sido baseada no ensino do Novo Testamento,
mas, que na verdade vai além das Escrituras ao insistir em determinados
posicionamentos (com respeito a batismo, por exemplo) que não são
incontestavelmente bíblicos, embora sejam reivindicados como tais por
aqueles que os promovem. O resultado foi uma divisão que produziu
o denominacionalismo moderno, e embora a maioria dos teólogos
se mostre disposta a reconhecer que alguns de seus posicionamentos
confessionais são muito rígidos e exclusivos no que se refere ao Novo
Testamento, é extremamente difícil alterar o que já se tornou tradicional.
Na prática, acabam defendendo crenças que sabem ser de importân-
cia secundária (na melhor das hipóteses), mas, continuam levando-as
a sério porque são partes integrais da confissão de fé pública de sua
denominação.
Uma das razões principais dessa atitude é o medo que muitos
conservadores têm de que tão logo uma mudança seja introduzida a
uma declaração de fé, como a Confissão de Westminster, será impos-
sível saber até onde as alterações irão parar. Muitos seguidores leais
à Reforma deploram o fato de a confissão insistir em que o Papa é o
anticristo, contudo, é bem mais fácil ignorar a cláusula do que a omitir,
o que poderia levar à exigência de que outras doutrinas potencialmente
divisoras (como aquelas relacionadas à eleição e predestinação) tam-
bém fossem abolidas.18 Quem leva a Confissão de Westminster à sério
considera essas doutrinas muito mais importantes aos ensinos de sua
igreja, assim como uma interpretação verdadeira do Novo Testamento,
e omiti-las seria entendido como concessão ao liberalismo e à descrença.
O perigo é que alguém insista na doutrina de que o Papa é o anticris-
to e, como resultado, cause problemas, (ou, no mínimo, um enorme
constrangimento). É o caso da Irlanda do Norte, onde presbiterianos
conservadores têm de assegurar constantemente a seus vizinhos cató-
licos que discordam dessa declaração em particular, embora aceitem
de bom grado a Confissão de Westminster como base oficial de sua fé.
18 Adeclaração de que o Papa é o anticristo se encontra na Confissão de Westminster,
25.6.
Um modo de acabar com esse dilema é criar novas confissões, o que
teoricamente é sempre possível. Algumas, igrejas, e várias organizações
paraeclesiásticas, tentam fazer isso, mas, as dificuldades são imensas.
Uma delas é que o espírito ecumênico de nossos dias é avesso à ideia de
criar declarações doutrinárias cuja exatidão servirá apenas para dividir
ainda mais a igreja. Será que uma única denominação consegue produzir
uma declaração doutrinária que a distinguiria das outras sem infringir
o espírito de comunhão e cooperação que recentemente reuniu tantos
ministérios cristãos diferentes? Se não puder, por que uma denominação
iria compor uma declaração de fé que praticamente todos os cristãos
teriam prazer em assinar? Declarações de fé são genéricas, assim, são
com frequência elaboradas por organizações interdenominacionais,
que têm por objetivo adotar uma posição que seja o mais abrangente
possível, contudo, na realidade, é provável que não contivesse nenhuma
novidade. Ao mesmo tempo, há questões, que vão dos miraculosos dons
espirituais à preservação ambiental, sobre as quais uma igreja gostaria de
adotar uma posição oficial, mas, é muito difícil chegar a um consenso.
O exemplo da Igreja Católica Romana serve de alerta aqui. Ela
produziu três definições dogmáticas nos últimos tempos - corrobo-
rando a concepção imaculada e a virgindade perpétua de Maria (1854),
a infalibilidade do Papa (1870) e a ascensão de Maria aos céus (1950) -
mas, não podemos afirmar que qualquer uma das definições estimulou
a união cristã. Essas definições eram necessárias? Fizerem diferença
verdadeira na fé de alguém? O melhor é concluir que as igrejas de hoje
devem manter a tradição comum que herdaram dos tempos antigos
e procurem conciliar as diferenças existentes, em vez de criar outras.
Talvez um dia seja possível (e também desejável) haver definições
doutrinárias adicionais, mas, é melhor que isso seja feito pela coopera-
ção de todas as igrejas principais trabalhando em conjunto, e não por
indivíduos trabalhando sozinhos.
No entanto, os problemas mais complicados surgem quando dei-
xamos a formulação de doutrina e passamos à sua aplicação. Desde
o século 18, as igrejas têm de lidar com a mentalidade que insiste em
dizer que a cosmovisão bíblica é coisa antiga, que os pais da igreja
primitiva (e até mesmo os reformados do século 16) usavam uma
hermenêutica bíblica que hoje é ultrapassada, e que as definições clás-
sicas de doutrina resultavam das (quase sempre sórdidas) políticas da
igreja, projetadas mais para excluir elementos indesejáveis do que para
disseminar o evangelho. Por todos esses motivos, alguns defendem
que as declarações doutrinárias clássicas não podem ser critérios para
determinar em que os cristãos devem crer hoje. Até mesmo a Bíblia
não passa de um registro sobre os ensinamentos da igreja no passado
e não pode ser vista como guia para sua doutrina ou prática contem-
porâneas, que devem ser baseadas em outros princípios. Essa crítica
severa já foi contestada muitas vezes, mas, continua aparecendo com
roupagem diferente. Atualmente ela é mais presente na afirmação co-
mum de que a ciência moderna refutou muito do que a Bíblia afirma,
assim, ela não pode mais ser aceita como autoridade confiável para a
vida cristã de hoje.
Basicamente, esse ataque tem se concentrado nas doutrinas da
criação e da queda, e as duas são negadas por um número significativo
de filósofos das culturas tradicionalmente cristãs. É difícil negar que
a Bíblia ensina que o mundo foi criado por Deus e que a humanidade
foi colocada no mundo como sua coroa de glória, mas, essa crença é
atacada de igual forma por evolucionistas e ambientalistas. Os evolucio-
nistas negam que o homem foi criado de modo especial por Deus a sua
imagem e semelhança, e os ambientalistas são categóricos em afirmar
que a raça humana não tem direito de reivindicar “domínio” sobre as
outras criaturas, que não são, de forma nenhuma, inferiores a nós.
Quanto à queda, enfatizam que Gênesis não fala sobre o assunto
em nenhuma de suas páginas e que a tradicional doutrina do pecado
original é baseada até certo ponto na interpretação errônea de Agos-
tinho sobre Romanos 5.12.19 A maioria das pessoas concorda que os
seres humanos ainda não alcançaram todo o seu potencial, contudo,
isso é diferente de afirmar que eles estão afastados de Deus; não con-
fundamos desenvolvimento inadequado com pecado. De acordo com
o raciocínio, não seria melhor abandonar idéias “contraproducentes”

19 Para Agostinho, o versículo afirma que a culpa humana por seu pecado foi her-
dada de Adão, enquanto que para intérpretes de épocas mais recentes ele apenas
significa que a morte entrou no mundo por causa do pecado de Adão.
como a queda e construir uma imagem mais positiva da raça humana
e seu futuro?
De um modo ou de outro, esse raciocínio atingiu todas as igrejas
mais conhecidas, contudo, sua incapacidade (ou recusa) de produ2ir
novas declarações doutrinárias atenua seus efeitos no que di2 respeito
à opinião pública. Na prática, a maioria das igrejas prefere deixar as afir-
mações doutrinárias tradicionais como estão e ignorá-las ou interpretá-las
tão amplamente que se tornam praticamente sem sentido. Algumas
igrejas muito conservadoras reagiram contra isso condenando todas as
formas de modernidade, entretanto, o “fundamentalismo” desse tipo
é relativamente incomum e quase sempre antipati2ado, mesmo por
pessoas conservadoras em sua abordagem geral sobre tais questões.
Entre esses dois extremos existe uma gama de opiniões, das quais a mais
significativa está associada a membros de denominações liberais, mas,
que defendem opiniões conservadoras e insistem em afirmar que suas
igrejas deveríam ensinar doutrina conservadora. No geral, entretanto,
opiniões assim são de uma minoria e raramente tocam a vida de pessoas
comuns ou afetam a maneira de uma igreja ser governada.
Nos últimos tempos, porém, as igrejas sentiram o impacto dessa
mentalidade moderna em duas áreas, e ambas causaram divisões além
das que costumam separar as denominações tradicionais. A primeira
área é sobre o papel das mulheres na igreja. Até bem recentemente,
ninguém discordava que o ministério pastoral, e a autoridade que lhe é
pertinente, era reservado aos homens. É isso que o Novo Testamento
ensina, e é obedecido desde o período de formação da igreja. Isso não
significa que o ministério feminino tenha sido totalmente rejeitado;
as ordens de freiras, por exemplo, existem há muito tempo, e muitas
igrejas protestantes têm diaconisas e missionárias. Em geral, porém, a
ordenação ao ministério foi barrada às mulheres até, mais ou menos,
a geração passada. Hoje, em boa parte devido a influência de novas
posturas sobre igualdade sexual, muitas igrejas protestantes abriram seu
ministério às mulheres quase na mesma base que aos homens.
Como sempre acontece nesses casos, existem variações nas práticas,
e a velocidade da mudança não é a mesma em todos os lugares, mas, a
abertura para o ministério de mulheres é bem evidente nas denomina-
ções que concordaram em abrir espaço para elas.
Para justificar a mudança, algumas, igrejas apelam para o Novo
Testamento, que segundo elas tem sido mal interpretado através dos
séculos, contudo, esse argumento não é plausível. O máximo que
podemos di2er a seu favor é que a Bíblia não fala sobre ordenação
no sentido moderno. Quando ela afirma que as mulheres devem ficar
caladas na igreja e não ensinar, a proibição tinha a intenção de lidar
com um problema particular que havia surgido na igreja primitiva, e
não se aplica à situação contemporânea.20 Se a ordenação ao ministério
é um desenvolvimento pós-bíblico, então, é possível argumentar que o
ensino bíblico sobre as mulheres em geral é irrelevante. As igrejas têm
liberdade de permitir que seus ministérios se desenvolvam de acordo
com a mudança de épocas e circunstâncias. Basicamente essa é a posição
que tais igrejas são obrigadas a adotar, apesar de algumas, tentarem
argumentar que havia apóstolas nos tempos do Novo Testamento.21 O
argumento é válido? A verdadeira questão aqui é entre as pessoas que
creem que o Novo Testamento estabelece um padrão para o relaciona-
mento homem-mulher que é de origem divina e não pode ser mudado
e as pessoas para quem esse relacionamento é condicionado cultural-
mente e, então, pode ser alterado para se adaptar a diferentes padrões
sociais. As igrejas que ordenam mulheres basicamente adotaram este
último ponto de vista, sejam ou não transparentes em relação ao fato.
Algumas, igrejas levaram em conta a consciência de seus fiéis que não
concordam com isso, em uma tentativa de preservar a união, todavia, o
resultado é quase sempre mais divisões. As mulheres ordenadas nessas
circunstâncias raramente se dispõem a trabalhar com quem discordou
de sua ordenação, e resta ver se a discordância pode ser acomodada em
uma única estrutura eclesiástica. Se não puder, então, lamentavelmente,
é necessário afirmar que a ordenação de mulheres pelas principais de-
nominações protestantes, e somente elas, desferiu outro ataque contra
20Variações desse argumento são encontradas hoje como interpretação de ITimóteo
2.11-15. Para um excelente, mas, quase sempre esquecido, estudo da questão, veja
F. Martin, The Feminist Question: Feminist Theology in the Light of Christian Tradition
(Grand Rapids: Eerdmans, 1994).
21A evidência apresentada é o caso de Júnias, em Romanos 16.7, contudo, é óbvio

que fosse ela quem fosse, não era um dos apóstolos e jamais exerceu qualquer
autoridade sobre a igreja local.
a união da igreja, e um ataque que provavelmente se mostrará uma
barreira intransponível para a cooperação ecumênica futura.
Outra questão de grande importância que também está enraizada
na doutrina da criação trata dos relacionamentos homoafetivos.22 Dois
homens podem se casar com a bênção da igreja? A Bíblia deixa bem
claro que a atividade homossexual é imoral, o que automaticamente
exclui casamentos homoafetivos. Segundo a Bíblia, o casamento é uma
forma de santificar e regulamentar os relacionamentos entre homens e
mulheres, incluindo a importantíssima reprodução da raça humana. O
conceito de que duas pessoas que se amam têm o direito de se unir em
matrimônio, independentemente de outras considerações, é completa-
mente estranho à Bíblia. O Antigo Testamento tanto quanto o Novo
ensina que devemos amar os semelhantes como a nós mesmos, porém,
isso não significa que temos a obrigação de nos casar com eles. Uma
limitação curiosa sobre o conceito de “amor” resultou nessa interpre-
tação atual, juntamente com a crença de que a orientação sexual — algo
ignorado na Bíblia—deveria ser parâmetro para orientar nossa conduta.
Em geral, as igrejas se mostram (até agora) mais conservadoras do
que com a ordenação de mulheres, contudo, existe uma tendência cada
vez mais definida entre os protestantes liberais de se amoldar à cultura
prevalecente do secularismo ocidental, e a batalha sobre o casamento
homoafetivo já está dilacerando alguma, denominações. As igrejas que
casaram e ordenaram homossexuais certamente causaram divisões,
não somente em relação a outras denominações como também às
suas igrejas, e, em geral, os divergentes vão embora como forma de
protesto. Ainda é muito cedo para prevermos qual será o efeito disso
tudo a longo prazo, mas é difícil imaginar outro resultado que não seja
o aumento das divisões já existentes na igreja global.
Tanto no caso da ordenação de mulheres como do casamento ho-
moafetivo, a apostolicidade da igreja está sendo diretamente desafiada
por um ataque nas doutrinas da criação e da queda, fundamentais aos
ensinos da Bíblia que os apóstolos aceitavam sem discutir. Isso é im-
portante, pois as doutrinas da redenção e salvação em Cristo só podem
22 Veja
L. Nolland, God, Gays, and the Church (Londres: Latimer Trust, 2008), para
uma boa análise das questões sob um ponto de vista cristão tradicional.
‫כ‬11

ser corretamente entendidas nesse contexto.23


Se o conceito do que está
errado mudar, a maneira de resolver o problema também mudará, e a
mensagem da igreja deixará de ser o que é desde os tempos dos após-
tolos. O alarme causado pelo medo do que já anda acontecendo nas
denominações protestantes tradicionais tem levado a muitas divisões
entre elas recentemente, como também a corrida de seus membros mais
fiéis para a igreja evangélica, e em alguns casos, para a Igreja Católica
ou a Ortodoxa.
Intimamente ligada a isso, encontra-se a questão da disciplina,
área em que todas as igrejas contemporâneas enfrentam um grande
problema. No início, era possível excluir quem se afastasse dos ensinos
e práticas da igreja. Isso foi feito no Novo Testamento e permaneceu
parte ativa da vida eclesiástica até à Reforma e mais adiante. Talve2 nos
arrepiemos diante de alguns métodos usados para efetivar a disciplina
— exílio, na melhor das hipóteses, ser queimado vivo, na pior delas —,
mas, não há dúvidas de que a igreja levava a disciplina a sério. O declínio
desse tipo de disciplina afetou seriamente a vida doméstica das igrejas.
Em teoria, qualquer igreja pode julgar seus membros por heresia ou
mau comportamento, e isso era praticado até bem recentemente. No
século 19, era comum professores universitários serem dispensados
por causa de suas idéias pouco ortodoxas ou pastores serem demitidos
pelo mesmo motivo. O fracasso moral, embora menos exposto, recebia
o mesmo castigo, e na maioria das igrejas e instituições religiosas isso
ainda acontece em nossos dias.
Disciplinar um clérigo — funcionário da igreja, afinal — sempre foi
aceito com mais facilidade e prontidão do que disciplinar um leigo. A
Igreja Protestante acha mais difícil, se não impossível, aplicar disci-
plina relevante a seus membros comuns porque se tentar lhes impor
suas regras, eles provavelmente deixarão de participar da igreja ou irão
procurar outra em que serão aceitos mais prontamente. Como é de
se esperar, as igrejas católicas e a ortodoxa tentam exercer disciplina
de forma mais enérgica, tanto nos clérigos como nos leigos, mas, elas
também enfrentam problemas parecidos no que se refere aos leigos.
Gostemos ou não, no mundo contemporâneo a igreja se tornou um
23 Veja ICoríntios 15.22, onde Paulo apresenta seu argumento.
corpo ao qual a pessoa comum pode se unir ou largar, com pouquís-
sima consequência. Grupos sectários talvez exerçam mais pressão em
seus membros, mas, somente porque são pequenos e, em alguns casos,
isolados da sociedade mais ampla. Seja homem ou mulher, a pessoa
excluída da comunidade amish, por exemplo, ficará em situação difícil
porque será cortada do único grupo social que conhece, contudo, isso
está longe de ser típico da igreja como um todo e não pode ser visto
como norma no mundo atual.
No terreno da devoção, reina anarquia parecida em todas as deno-
minações. À época da Reforma, havia esforço consciente em muitos
lugares de elaborar planos de culto que refletissem o ensino de uma
igreja em particular e que fosse imposto de igual forma a todos. Na
Igreja Católica, por exemplo, a Missa Tridentina se tornou a norma e
assim permaneceu durante quatro séculos. Quando foi posta de lado,
em 1970, deixou para atrás conservadores leais que continuaram (em
número decrescente, temos de admitir) a pleitear sua restauração e
considerar seu abandono uma das causas principais da inatividade que
cercava a igreja desde o Concilio do Vaticano II (1962-65). Os angli-
canos seguem o Livro de Oração Comum, cuja forma clássica vem
de 1662 e é a base para liturgias da Comunhão Anglicana, contudo, o
livro de oração tradicional é hoje bem menos usado do que na geração
passada, embora ainda exista e continue, até certo ponto, a servir como
“norma” para a direção do culto e a articulação de doutrina.
As igrejas ortodoxas do Leste continuam agarradas às suas antigas li-
turgias, que permanecem inalteradas, contudo, em outras denominações,
o tradicionaüsmo litúrgico é bem menos visível. A maioria das igrejas
protestantes, assim como as católicas, sofreram mudanças radicais na
geração passada, algumas inflamadas pela renovação litúrgica genuína,
mas muitas dessas mudanças foram inspiradas pelos movimentos caris-
máticos e a cultura jovem contemporânea. Em geral, podemos afirmar
que as liturgias de hoje não são inspiradoras e muitas vezes tão inflexíveis
(com um número infinito de escolhas) que qualquer sentimento de união
acabou se perdendo. Certamente, como sacerdotes e pastores sabem
muito bem, não é mais possível ir a uma igreja anglicana ou católica e
dirigir o culto sem que haja alguma orientação prévia. Mesmo que o
esboço geral do culto seja conhecido, os detalhes variam tanto de uma
igreja para outra que a orientação prévia é quase sempre necessária.
Não é possível nem mesmo prever que tradução da Bíblia será usada
ou que texto da Oração do Pai Nosso será recitado.
É difícil saber até onde essa variedade afetará as reivindicações da
igreja à apostolicidade. Reformadores litúrgicos sempre se orgulharam
de ter recuperado formas do culto primitivo que remontavam (eles
acharam) aos tempos apostólicos, e os cultos interdenominacionais
que elaboraram, em grande parte baseados em um texto atribuído a
Hipólito (século 3), gerou um sentido de união entre as denominações
que contrabalançaram os fatores que levariam a divisões ainda maio-
res.24 Contudo, por mais que os cultos variem de um lugar para outro,
os participantes leigos geralmente os reconhecem quando vão de uma
denominação para outra porque comissões litúrgicas de suas respectivas
igrejas trabalharam juntas na produção de formas amplamente parecidas
de culto. Mais importante ainda, a conquista de um lecionário comum
foi bastante notável; hoje é possível ir a qualquer Igreja Protestante
tradicional ou católica romana e ouvir as mesmas leituras bíblicas, o
que certamente incentivará um senso de união eclesiástica entre o povo.
Nesse sentido, apesar da enorme variedade de formas aparentes, o culto
cristão (fora da tradição oriental) das diferentes denominações é muito
mais parecido hoje do que era na geração passada.
Isso é bem verdade, mas, será que os apóstolos teriam reconhecido
nosso culto moderno? Essa pergunta é mais difícil de ser respondida.
Não levando em conta os adicionais — os apóstolos não saberíam o
que pensar de PowerPoints ou até mesmo de hinários —, talvez o maior
problema que eles teriam com nossos cultos é sua relativa superficia-
lidade. Quando lemos o Novo Testamento, observamos que os cren-
tes deveríam analisar as Escrituras, estudá-las, e receber ensino mais
profundo quando se reunissem. Percebemos também que frequentar
a igreja não era simplesmente uma atividade entre muitas outras, e sim
uma parte essencial da identidade individual de cada cristão. A igreja

24 Sabemos hoje que essa atribuição é falsa e que o texto usado é de data mais recente,
provavelmente, do século 5 e não 3, contudo, isso não altera o fato de que uma
grande união litúrgica foi alcançada.
era a comunidade mais importante, onde todos os negócios sérios da
vida eram tratados. A igreja era tão diferente do mundo em geral e
suas regras eram tão severas que se unir a ela era quase como se mudar
para outro país. Nesse aspecto, a igreja contemporânea, seja qual for
seu formato e não importam suas reivindicações, está bem distante do
modelo apostólico. Muitas igrejas sentem a necessidade de recuperar o
senso de comunidade entre uma vida urbana moderna desalmada, no
entanto, quantas levam o sentimento a sério? Algumas têm feito isso,
é verdade, mas, são exceções que confirmam a regra. Talvez aqui, mais
do que em qualquer outro aspecto, se encontre um desafio real e uma
oportunidade verdadeira para a igreja influenciar o mundo em que vive
e recuperar um pouco do significado original de trilhar o caminho dos
apóstolos, que seguiram os passos de Jesus.

UM CAMINHO A SEGUIR?

Este capítulo começou com a seguinte pergunta: O que a igreja


deveria ser? Um levantamento sobre as respostas de diferentes grupos
denominacionais mostrou a dificuldade de alcançarmos um denomina-
dor comum no assunto. As Igrejas Ortodoxas nem fazem tal pergunta,
porque em sua visão a igreja existente é o que deveria ser, e se houver
necessidade de mudança, ela acontecerá devagar e com a anuência de
todos os envolvidos. Há muito que seus líderes se esforçam para a re-
alização de um sínodo pan-ortodoxo que revise os cânones da igreja e
trate de questões apresentadas pela modernidade, mas, até agora não
houve sinal de isso acontecer. O sínodo talvez aconteça um dia, mas, o
ritmo em que a Igreja Ortodoxa se move é tão lento que séculos pas-
sarão antes disso. A Igreja Católica Romana ensaiou uma mudança no
Concilio Vaticano II, cujo impacto ainda se faz sentir e é difícil de ser
avaliado objetivamente, mesmo depois de meio século. O certo é que
a abordagem reacionária à vida moderna que teve início em Trento no
século 16 foi definitivamente abandonado pelo Vaticano II, e deixou
consequências dramáticas para a igreja. Em particular, o diálogo com
cristãos não católicos nunca foi tão promovido quanto agora, e os ca-
tólicos são incentivados a trabalhar com protestantes e ortodoxos em
áreas como pesquisa bíblica, história da igreja e teologia sistemática.
No entanto, na questão fundamental da igreja e sua identidade, a
Igreja de Roma não mudou sua posição. A igreja será o que o Espírito
Santo disser ao Papa que ela deve ser, e ele comunicará a mensagem
aos fiéis. Os meios de comunicação modernos transformaram os Papas
em personalidades da mídia, o que torna essa tarefa bem mais fácil do
que antes, mas, embora um número de católicos afirme ter sido inspi-
rado pelo Papa João Paulo II (1978-2005) e agora pelo Papa Francisco
(2013-?), é impossível dizer quantos tiveram suas vidas transformadas
de algum modo por influência deles.25 Sem dúvida nenhuma, o papado
continuará atraindo multidões, mas, é difícil antever o efeito que causará
no povo, e provavelmente será bem menor do que a atenção da mídia
deixa transparecer.
Para as igrejas protestantes, a possibilidade de modificar a igreja com
o objetivo de moldá-la a princípios específicos, sejam eles derivados ou
não do Novo Testamento, sempre foi maior. Não é exagero afirmar
que esse ideal inspirou a Reforma e nesse sentido é parte do DNA do
protestantismo — ecclesia semper reformanda, como diz o ditado clássico.26
Mas, como isso deve ser feito? Como este capítulo indica, muitos as-
pectos da vida eclesiástica precisam ser melhorados, e algum tipo de
mudança é inevitável - para melhor ou pior. Se achassem necessário, os
protestantes demoliríam as estruturas existentes da igreja institucional
e recomeçariam do zero, e de vez em quando um grupo decide fazer
exatamente isso. O resultado, quase sempre, é o surgimento de outra
denominação, certamente distinguida por alguns slogans que lhes são
peculiares, mas, não essencialmente muito diferentes das denominações
já existentes. Concordemos ou não, a experiência mostra que a mudança
verdadeira só pode ser incrementai — um passo de cada vez.
Seria extremamente insensato prever como isso deve ser feito, e
que ninguém se iluda achando que o estado desordenado do mundo
protestante contemporâneo pode ser consertado da noite para o dia -
se é que pode. Mesmo uma denominação à beira da morte pode levar
25 O Papa Bento 16 (2005—13) foi menos amigável com a mídia e, portanto, menos
“influente” nessas questões, embora fosse um teólogo mais hábil que seu prede-
cessor ou seu sucessor.
26 “A Igreja está sempre necessitando de reforma.”
muito tempo para desaparecer, e sempre haverá relíquias do passado
sobrevivendo aqui e ali. Mesmo assim, o segmento principal da igreja
poderá ir adiante e é exatamente o que acontecerá; o desafio é fazer
com que vá na direção certa. Não podemos ser dogmáticos em afirmar
que direção é essa, mas, podemos estabelecer algumas coisas como
pontos de partida e referências pelas quais medimos se está havendo
algum progresso.
Em um livro recente, o professor Norman Doe apresentou cin-
quenta princípios que ele acredita serem comuns a todas as igrejas
cristãs.27 Após analisar dez tradições denominacionais diferentes que
cobrem todo o espectro da igreja, Norman Doe identificou cinquenta
fatores que todas as igrejas têm de encarar e descobrir como lidar mais
cedo ou mais tarde. Doe também concluiu que, por esses fatores serem
partilhados de uma forma geral, as soluções que as diferentes igrejas
encontraram também são bastante parecidas, ainda que a terminologia
para as expressar não seja a mesma. Esse estudo mostra que não importa
o que aconteça no futuro, esses princípios fundamentais continuarão
a se manifestar e qualquer pessoa que deseje reformar uma instituição
existente, ou criar uma nova, deve levá-los em consideração desde o
início.
Esses princípios podem ser resumidos assim:
I- 5: Todas as igrejas são entidades jurídicas governadas internamente por
princípios ou leis sujeitas a mudanças, mas, que devem ser respeitados
e aplicados justamente a cada aspecto de seus ministérios.

6-10: A igreja é o povo de Deus, e todos os seus membros são iguais. Os


que forem ordenados para exercer um ministério dentro dela não
são impostos de fora, mas, emergem do grupo e são reconhecidos
por procedimentos aceitos por todos.

II- 15: Todas as igrejas têm oficiais responsáveis e praticam alguma forma
de ordenação. Cada denominação tem uma estrutura de responsa-
bilidade e autoridade que vai além da igreja local.

27 N. Doe, Christian Lam: Contemporary Principles (Cambridge: Cambridge University


Press, 2013), p. 388-98.
16-20: As igrejas têm formas diferentes de governo, mas, em geral, são
organizadas em várias escalas — internacional, nacional, regional
e local — e cada escala tem suas próprias estruturas.

21-25: Todas as igrejas têm alguma forma de disciplina, e a maioria possui


um sistema para resolver discórdias e corrigir erros. Esses proce-
dimentos devem ser justos e aplicados de igual modo a todos os
membros.

26-28: Todas as igrejas têm normas doutrinárias que incluem a respon-


sabilidade de anunciar a fé em Cristo e proteger o povo de Deus
contra o pecado.

29-35: Todas as igrejas praticam o culto público, que inclui batismo, Ceia
do Senhor, casamentos e funerais, que são realizados de acordo
com normas legais e doutrinárias reconhecidas.

36-40: Há uma igreja universal que se manifesta por estruturas e organi-


zações interdenominacionais que proporcionam comunhão de um
extremo ao outro da fé cristã.

41-45: Todas as igrejas possuem bens móveis e imóveis e um departamento


que administra suas finanças. Esse departamento tem o dever de
sustentar o ministério e garantir que todas as suas atividades sejam
transparentes e lícitas.

46-50: Todas as igrejas se relacionam com o mundo em geral. Elas têm de


definir sua posição com respeito ao Estado, defender os direitos
humanos ao redor do mundo e aceitar sua cota de responsabilidade
social. Também têm a opção de formar parcerias com entidades
públicas quando isso for permitido por lei e coerente.

Esses princípios são claros e abrangentes, contudo, em si mesmos


são como um esqueleto que forma a estrutura do corpo sem ser o
corpo. Talvez possam ser comparados aos ossos secos de Ezequiel
37, que viverão apenas se e quando o Espírito de Deus lhes der o so-
pro de vida. No entanto, quando o Espírito vem, os ossos secos não
desaparecem. Ao contrário, seu verdadeiro propósito é revelado, e
eles formam o contorno que o corpo inspirado irá ter. Essa é a igreja
que vive no mundo, e é com esse objetivo em mente que os fiéis que
buscam avançar sua causa e reformar suas estruturas devem proceder,
para a glória do Deus a quem servem.
flpêncfice

Os concílios ecumênicos

Os concílios ecumênicos da igreja sempre exerceram papel impor-


tante em sua formação através dos séculos. A Igreja Católica Romana
aceita vinte e um deles, porque suas decisões foram ratificadas pelo
Papa. A Igreja Ortodoxa aceita apenas os sete primeiros porque só esses
foram ratificados por toda a igreja.1 Em geral, os protestantes aceitam
sem questionar as decisões dos quatro primeiros concílios, todavia são
mais criteriosos quanto aos outros, usando a conformidade com as
Escrituras como critério de aceitação. Os textos originais das decisões
dos concílios foram publicados em N. P. Tanner (Org.), Decrees of the
Ecumenical Councils, 2 volumes. (Londres: Sheed & Ward; Washington,
DC: Georgetown University Press, 1990).

OS OITO CONCÍLIOS DA ANTIGUIDADE

Todos eles se reuniram no Leste por ordem do imperador reinante.


0 Papa não participou de nenhum deles, contudo, mandou represen-
tantes e depois ratificou as decisões tomadas. O último desses concílios
não foi reconhecido pela Igreja Ortodoxa.

Primeiro Concilio de Niceia. Reuniu-se de 19 de junho a 25 de agosto de


325, e foi convocado pelo imperador Constantino I (r. 306-37). A maior
parte do texto de suas decisões não sobreviveu, contudo, o concilio

1 “Por toda a igreja” significa as igrejas do Ocidente, além das igrejas do Oriente que
estivessem em comunhão com Constantinopla. Na verdade, a igreja Nestoriana
aceita apenas os dois primeiros concílios, e as igrejas monofisitas (ou miafisitas),
apenas os três primeiros.
preparou um credo declarando que o Cristo incarnado era “consubs-
tancial” (homoousios) ao Pai, e enviou uma carta ao Egito censurando
Ário por não seguir essa doutrina. Seus vinte cânones sobreviveram, a
maioria dos quais regulamenta a ordenação e disciplina do clero.

Primeiro Concilio de Constantinopla. Reuniu-se em maio de 381 e ter-


minou em 9 de julho, embora o imperador Teodósio I (r. 378-95) não
tenha ratificado suas decisões até 30 de julho do mesmo ano. O texto
de suas decisões não sobreviveu, mas, o consenso é que esse concilio
emitiu a declaração de fé que hoje conhecemos como o “Credo de Ni-
ceia”. O concilio também estabeleceu a hierarquia de cinco patriarcados
(Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém).

(Primeiro) Concilio de Éfeso. Reuniu-se em 22 de junho de 431, sob


a ordem do imperador Teodósio II (r. 408-50) e terminou em setem-
bro de 431. Ele é conhecido principalmente por condenar Nestório,
patriarca de Constantinopla (r. 428-31), por sua perspectiva errada de
que a pessoa de Cristo resultava da combinação entre sua divindade e
sua humanidade, em vez de ser idêntico à pessoa do Filho divino.

Concilio da Calcedônia? Reuniu-se em Niceia em 1 de setembro de 451,


porém foi transferido para Calcedônia em 8 de outubro de 451, sob o
comando do imperador Marciano (r. 450-57) e terminou na décima-sexta
assembléia, que provavelmente aconteceu em 1 de novembro de 451.
Esse concilio é notório por sua definição cristológica, segundo a qual o
Filho Encarnado de Deus era uma pessoa divina com duas naturezas,
divina e humana, “sem confusão, sem mudanças, sem divisão e sem
separação”. A decisão do concilio foi rejeitada pelos nestorianos e
pela igreja de Alexandria, insistente em que o Cristo encarnado tinha
apenas uma natureza, e não duas. Essas duas igrejas não calcedônias
ainda existem; a segunda é a igreja histórica do Egito, Etiópia, Síria,
Armênia e Querala (índia do Sul). 2

2 Veja R. V. Sellers, The Council of Chalcedon:A Historical and Doctrinal Survey (Londres:
SPCK, 1953); R. Price e M. Gaddis, The Acts of the Council of Chalcedon, 3 vols.
(Liverpool: Liverpool University Press, 2005).
Segundo Concilio de Constantinople1? Reuniu-se em 5 de maio de 553,
sob o comando do imperador Justiniano I (r. 527-65) e terminou na
oitava assembléia em 2 de junho de 553. Seu objetivo principal foi re-
conciliar os monofisitas do Egito e Síria à fé calcedônia. No processo,
o concilio condenou os escritos de Orígenes (185P-254?), Teodoro de
Mopsuéstia (350P-428) e Teodoreto de Cirro (393P-457P), todos eles
comentaristas importantes da Bíblia.

Terceiro Concilio de Constantinopla. Reuniu-se em 7 de novembro de


680 e, após dezoito assembléias, terminou em 16 de setembro de 681.
Ele censurou a tentativa de reconciliar os monofisitas, conhecidos pelo
monotelismo, segundo o qual existe somente uma vontade no Cristo
encarnado. O concilio também censurou o Papa Honório I (1. 625-38)
por favorecer os monotelitas.

Concilio em Trullo.A Reuniu-se no palácio imperial de Trullum em


Constantinopla sob o comando do imperador Justiniano II (r. 685-
95; 705-11). O motivo do concilio foi compor cânones disciplinares
geralmente considerados um apêndice dos quinto e sexto concílios,
que não emitiram nenhum. Por isso também é chamado de Concilio
Quinissexto (“quinto-sexto”). Os cânones nunca foram ratificados pela
igreja do Ocidente, contudo, foram o alicerce da lei canônica oriental
desde então.

Segundo Concilio de Niceia.3 4 5 Reuniu-se em 24 de setembro de 787 e,


após oito assembléias, terminou em 23 de outubro de 787. Foi convo-
cado pela imperatriz Irene, que regia em lugar de seu filho, Constantino
VI (r. 780-97). Seu objetivo principal foi declarar que era permitido
pintar retratos de Cristo porque embora ele fosse Deus, também foi
homem visível a seus contemporâneos. Esperava-se que a permissão

3 R. Price (Org.), The Acts of the Council of Constantinople of 553 (Liverpool: Liverpool
University Press, 2009).
4 Veja G. Nedungatt e M. Featherstone (Orgs.), The Council in Trullo Revisited (Rome:
Pontifício Istituto Orientale, 1995).
5 O melhor relatório em inglês sobre esse concilio está em E. J. Martin, A History
of the Iconoclastic Controversy (Londres: APCK, 1930), p. 92-109.
terminasse com a controvérsia iconoclástica, o que aconteceu tempo-
rariamente, embora o iconoclasmo tenha ressurgido em 811 e só foi
derrotado em 843.

Quarto Concilio de Constantinopla.6 Reuniu-se em 5 de outubro de


869 e terminou, após dez assembléias, em 28 de fevereiro de 870. Foi
convocado pelo imperador Basílio I (r. 867-86). Seu objetivo principal
foi ratificar a deposição do patriarca Fócio (r. 858-67; 877-86), acusado
de fomentar a divisão entre Constantinopla e Roma, e de reconciliar as
igrejas orientais e ocidentais. O concilio reafirmou a primazia papal na
igreja e foi ratificado no Ocidente, mas, repudiado no Oriente.

Sínodo de Fócio em Constantinopla? Aconteceu em sete assembléias,


de Io de novembro de 879 a 13 de março de 880, com o objetivo de
reinstalar Fócio como patriarca de Constantinopla. O concilio foi rati-
ficado no Oriente e no Ocidente, e sugeriu-se que esse concilio deveria
substituir o anterior, que se reuniu em 870, como o oitavo ecumênico.

OS DEZ COIMCÍLIOS MEDIEVAIS

Todos estes se reuniram sob os auspícios do Papa, que participou


de quase todos eles, e são mais apropriadamente considerados sínodos
da igreja do Ocidente e não “ecumênicos” no verdadeiro sentido da
palavra. A igreja do Oriente foi representada em apenas dois concílios
(Lyons II e Ferrara-Florence), e mais tarde rejeitou suas decisões.

Primeiro Concilio de Latrão. Foi convocado pelo Papa Calisto II (1.


1119-24) e reuniu-se de 18 de março de 1123 a 27 de março ou 6 de abril
do mesmo ano. Sua maior preocupação foi atacar a prática da “investi-
dura laica”, um ato pelo qual o Santo Imperador Romano reivindicava
o direito de ratificar nomeações papais aos bispados. Foi nesse concilio
que o celibato clerical compulsório foi apresentado. 6 7

6 Veja F. Dvornik, The Photian Schism (Cambridge: Cambridge University Press,


1948), e leia uma discussão completa desse concilio e sua repercussão nas tradições
posteriores do Oriente e do Ocidente.
7 Vejaj. Meijer,^4 Successful Council of Union: A Theological Analysis of the Photian Synod
of 879-880 (Thessalonica: Patriarchikon Hidryma Paterikõn Spoudõn, 1975).
Segundo Concilio de Cairão. Foi convocado pelo Papa Inocêncio II (1.
1130-43) e reuniu-se em 4 de abril de 1139. Acredita-se que terminou
antes de 17 de abril de 1139. Seu objetivo foi encerrar a divisão causada
pela eleição de um antiPapa, Anacleto II (1.1130-38), e condenar as he-
resias de Pedro de Bruys (fl.l 117-31) e Arnaldo de Bréscia (1090P-1155).
Terceiro Concilio de Latrão. Foi convocado pelo Papa Alexandre III (1.
1159-81) e reuniu-se de 5 a 19 ou 22 de março de 1179. Seu objetivo foi
sanar a divisão que havia resultado em três antiPapas entre 1159 e 1178.
Também condenou a heresia dualista (Maniqueísmo) dos albigenses
(ou Catarismo) no sul da França.
Quarto Concilio de Cairão. Foi convocado pelo Papa Inocêncio III
(1. 1198-1216) e reuniu-se nos dias 11, 20 e 30 de novembro de 1215.
Esse concilio publicou decretos abrangentes sobre a reforma da igreja,
incluindo uma proibição de casamentos ilegais e a compra de cargos
eclesiásticos (simonia). Promulgou a doutrina da transubstanciação na
missa e também reconheceu a posição de Constantinopla na hierarquia
dos cinco patriarcados que foi proclamada no Primeiro Concilio de
Constantinopla, em 381. Seus cânones continuaram sendo o funda-
mento da lei eclesiástica no Ocidente até a Reforma.
Primeiro Concilio de Cyon. Foi convocado pelo Papa Inocêncio IV
(1.1243-54) e reuniu-se em quatro assembléias de 28 de junho a 17 de
julho de 1245. O concilio tentou legislar a favor da conformidade das
igrejas do Leste ao ritual romano e reavivar o interesse nas cruzadas,
mas, foi um tremendo insucesso.
Segundo Concilio de Cyon. Foi convocado pelo Papa Gregorio X (1.
1271-76) com a aprovação do imperador Miguel VIII (r. 1258-82).
Reuniu-se de 7 de maio a 17 de julho de 1274. Seu objetivo principal
foi reunificar as igrejas orientais e ocidentais. O imperador oriental
aceitou as condições, mas, sua igreja as rejeitou, e depois da morte do
imperador, ela repudiou o concilio.
Concilio de Viena. Foi convocado pelo Papa Clemente V (1.1305-14)
e reuniu-se de 16 de outubro de 1311 a 6 de maio de 1312. Seu principal
objetivo foi condenar a Ordem dos Templários, que estava reprimida
naquela época. O concilio também buscou regulamentar excessos que
se infiltraram na ordem franciscana dos frades.
Concilio de Constança.8 Foi convocado pelo Papa Gregário XII (1.
1406-15) e concluído por seu sucessor, Martinho V (1. 1417-31). O
concilio se reuniu em quarenta e cinco assembléias, de 5 de dezembro de
1414 a 22 de abril de 1418. Seu objetivo principal foi terminar o grande
cisma do papado - tarefa em que foi bem-sucedido -, e condenar as
heresias de John Wyclif e Jan Hus. Hus participou do concilio, mas, foi
preso, julgado e queimado na fogueira em desacato ao salvo-conduto
que o imperador Sigismundo lhe havia garantido.
Concilio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma.9 Foi convocado pelo Papa
Eugênio IV (1. 1431-47) e reuniu-se em Basiléia, de 14 de dezembro
de 1431 a 7 de maio de 1437, depois em Ferrara, de 8 de janeiro a 9 de
abril de 1438 (quatro assembléias), em Florença, de 10 de janeiro de
1439 a 4 de fevereiro de 1442 (sete assembléias) e por fim em Latrão,
Roma, de 14 de outubro de 1443 a 7 de agosto de 1445 (três assem-
bleias). Como as suas decisões mais importantes foram tomadas em
Florença, o concilio é geralmente conhecido por esse nome ou como
o Concilio de Ferrara-Florença. Em sua fase inicial na Basiléia, ele re-
presentou a conquista do movimento conciliar, cuja expectativa era que
tais concílios se reunissem regularmente como se fosse um Parlamento
da igreja. Após sua mudança para Ferrara e, depois, para Florença, a
maior preocupação do concilio foi a junção de Roma e as diferentes
igrejas orientais. Foram estabelecidas reuniões de acordos em que o
Oriente reconhecería a supremacia papal em troca do direito de manter
suas próprias tradições. Depois que Constantinopla caiu nas mãos dos
turcos, em 1453, a igreja ali repudiou a junção, mas, Roma continua
usando a medida para reconciliar membros das igrejas orientais que
decidem se submeter à autoridade papal.
8 Veja P. H. Stump, The Reforms of theCouncilof Constance (1414-1418) (Leiden: Brill,
1994); T. A. Fudge, The Trial ofJan Hus: Medieval Heresy and Criminal Procedure (New
York: Oxford University Press, 2013); T. E. Morrissey, Conciliarism and Church
Law in the Fifteenth Century: Studies on Franciscus Zabarella and the Council of Constance
(Farnham: Ashgate, 2014).
9 Veja J. Gill, The Council of Florence (Cambridge: Cambridge University Press, 1959).
Quinto Concilio de Latrão.1° Foi convocado pelo Papa Júlio (1. 1503-
13) e continuou sob a liderança de seu sucessor, Leão X (1. 1513-21).
Reuniu-se sob doze assembléias de 3 de maio d e l 5 1 2 a l ó d e março
de 1517, e aprovou vários decretos prometendo acabar com abusos
praticados pela igreja. No entanto, foi obscurecido pela Reforma, que
surgiu poucos meses depois do término do concilio, e seus cânones
foram esquecidos quase que de imediato.

OS TRÊS CONCÍLIOS PÓS-REFORMA

Esses concílios são apenas da Igreja Católica Romana e não são


reconhecidos por nenhum outro grupo cristão.

O Concilio de Trento.u Reuniu-se em três etapas distintas. A primeira


foi convocada pelo Papa Paulo III (1. 1534-49) e durou de 13 de de-
zembro de 1545 a 2 de junho de 1547 (dez assembléias). A segunda foi
convocada pelo Papa Júlio III (1. 1550-55) e durou de Io de maio de
1551 a 28 de abril de 1552 (seis assembléias). A terceira foi convocada
pelo Papa Pio IV (1. 1559-65) e durou de 18 de janeiro de 1562 a 4 de
dezembro de 1563 (nove assembléias).
No primeiro bloco de assembléias, foram assinados alguns decretos
tratando da separação entre protestantes e os fieis a Roma. Esses de-
eretos abordavam o cânone e o texto da Escritura (8 de abril de 1546),
o pecado original (17 de junho de 1546), a justificação pela fé (13 de
janeiro de 1547) e os sacramentos (3 de março de 1547). No segundo
bloco de assembléias, foram assinados os decretos sobre os elementos
da Santa Ceia (11 de outubro de 1551), penitência (25 de novembro de
1551) e extrema-unção (25 de novembro de 1551). No terceiro grupo
de assembléias foi assinado um decreto justificando a não entrega do
cálice à congregação durante a Ceia (16 de julho de 1562) e outro que
transformava a missa em sacrifício (17 de setembro de 1562). 10 11
10 Veja N. H. Minnich, The Fifth Lateran Council (1512-1517): Studies on Its Member-
ship, Diplomacy andProposals for Reform (Aldershot, UK: Variorum, 1993); P. B. T.
Biliaruuk, The Fifth Lateran Council (1512-1517) and the Eastern Churches (Toronto:
Central Committee for the Defence of the Rite, Tradition and Language of the
Ukrainian Catholic Church in the USA and Canada, 1975).
11 VejaJ. W. O’Malley, Trent: What Happened at the Coundl (Cambridge, MA: Harvard

University Press, 2013).


Foram assinados outros decretos definindo e regulamentando a
concessão das ordens sagradas (15 de julho de 1563) e a celebração do
casamento (11 de novembro de 1563). Finalmente, vieram os decretos
sobre o purgatório (3 de dezembro de 1563), a adoração aos santos
e às suas relíquias (3 de dezembro de 1563), e as indulgências (4 de
dezembro de 1563). O conteúdo deixa claro que a intenção principal
desses decretos era atacar o protestantismo.12
Concilio Vaticano IP Foi convocado pelo Papa Pio IX (1.184678‫ )־‬e
reuniu-se em quatro assembléias, de 8 de dezembro de 1869 a 18 julho
de 1870. Seu único propósito foi proclamar o decreto da infalibilidade
papal, o que aconteceu na sessão de encerramento.
Concilio Vaticano IIP Foi convocado pelo Papa João XXIII (1.1958‫־‬
63) e continuou sob a liderança de seu sucessor, Paulo VI (1.196378‫)־‬.
Realizou-se em nove assembléias de 2 de fevereiro de 1962 a 7 de de-
zembro de 1965. Seu objetivo principal foi “renovar” a Igreja Católica
depois de quatro séculos de ensinos e práticas moldados pelo decreto
de Trento. Foi o único concilio a emitir um decreto especial sobre
a igreja, conhecido como Lumen gentium (21 de novembro de 1964),
acompanhado por Unitatis redintegratio, sobre o ecumenismo (21 de
novembro de 1964), em que os cristãos não católicos eram reconhecí-
dos como “irmãos separados”. A interpretação e implementação do
concilio têm sido questões de grande controvérsia através das décadas.
Ainda é cedo demais para avaliarmos qual será seu impacto no longo
prazo, contudo, não há como duvidar que, pelo menos na superfície,
a Igreja Católica Romana apresenta ao mundo um lado bem diferente
daquele anterior ao concilio.
12 O teólogo alemão luterano Martin Chemnitz (1522-86) apresentou uma impug-
nação detalhada do concilio. Veja M. Chemnitz, Examination of the Council of Trent,
4 vols., F. Kramer (Trad.), (St Louis: Concordia, 1971-86).
13 Veja J. J. Hennesey, The First Council of the Vatican: The American Experience (Nova
York: Herder & Herder, 1963); F.J. Cwiekowski, English Bishops and the First Vatican
Council (Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1971).
14 A literatura sobre esse concilio é vasta. Veja estudos mais recentes em D. Murray,
Keeping Open the Door of Faith: The Legacy of Vatican II (Dublin: Veritas, 2012); S.
Mulligan, Reaping the Harvest: Fifty Years after Vatican II (Blackrock, Co. Dublin:
Columba Press, 2012); A. Marchetto, The Second Vatican Ecumenical Council‫ ׳‬A
Counterpoint for the History of the Council, K. D. Whitehead (Trad.), (Scranton, PA:
University of Scranton Press, 2010).
JAROSLAV ΡΕΜΚΛΝ

TRADIÇÃO
t‫־‬MA WSTÔRIA 00 WSEWOlVJMJXrO DA D01TK1NA
CRISTA
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TRADIÇÃO CATÓLICA
100-600

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SHEDD
“Ao mesclar e entrelaçar as diversas
manifestações da igreja cristã
durante mais de vinte séculos, esta
obra é um panorama ecumênico da
interação da igreja com teologia
acadêmica e teologia popular,
renovação e intransigência, política
e cultura secular. Bray se mostra
não somente pacificador e
benevolente, como também sensato
e objetivo em suas avaliações.
Quem especula se a eclesiologia
realmente tem importância — ou de
onde ela surgiu, em toda a sua
diversidade atual —,
deve ler este livro.
John L, Thompson,
Seminário Teológico Fuller
“Temos aqui uma visão inédita da igreja e sua história, teologia, e desafios
do mundo contemporâneo. Gerald Bray é ministro ordenado da igreja
anglicana evangélica, mas, escreve com tanta compreensão e sabedoria que
esta narrativa da história da igreja edificará o povo de Deus de todos os
lugares do mundo.‫״‬
Timothy George, Beeson Divinity School, Samford University:
editor geral, Reformation Commentary on Scripture

“Sólido e prático, além de minucioso, este panorama excepcional do povo


de Deus no mundo atual e de outrora será uma bênção não somente a
seminaristas como a muitos de nós. E uma obra ímpar.‫״‬
/. L Packer, Regent College

“De alcance abrangente, de tom ecumênico, de confissão ortodoxa, e de


visão perspicaz de capa a capa, esta obra estabelece novo padrão para obras
de eclesiologia. A ternura do Dr. Bray em relação à igreja exala em cada
página, tornando o livro espiritualmente enriquecedor e intelectualmente
informativo. Parte história, parte teologia, e parte sabedoria prescritiva de
um membro de igreja experiente — esta obra é completa. Creio que será
referência clássica para uma síntese da eclesiologia protestante.”
Bryan IJtfin, Instituto Bíblico Moody

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