e histórico
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Tradução
Eulália de Andrade Pacheco Kregness
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PUBLICAÇÕES
Copyright © 2016 by Gerald L. Bray
Originally published in English under the title: The Church
By Baker Academic,
a division of Baker Publishing Group,
Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A.
All rights reserved.
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Prefácio....................................................................................................7
1 . As origens da igreja............................................................................ 11
3. A igreja perseguida.................................................<......................... 85
neira correta, ela é mais louvável do que parece de início. Não há como
negar que a igreja cresceu e expandiu-se pelo mundo. No processo, ela
se dividiu em diferentes vertentes, não de modo natural (como Palmer
achava), e sim como resultado de conflitos, equívocos, conveniência
política e também incompatibilidade doutrinária. O triste é que se a
igreja é mesmo o corpo de Cristo, ela tem feridas como prova disso.
Muito já se escreveu sobre essa história, quase sempre da perspectiva
denominacional dos escritores, perspectiva que eles desejam justificar à
luz da teologia, história e experiências. Muitas vezes, eles retratam seus
antepassados espirituais como santos e heróis que foram perseguidos
ou, no mínimo, mal compreendidos por seus contemporâneos, e estes
são apresentados automaticamente como vilões. Essa abordagem
“branco no preto” está hoje em retrocesso, especialmente nos círculos
acadêmicos, mas, ninguém está completamente livre de preconceitos,
e as antigas linhas de divisão continuam bastante visíveis, mesmo que
sejam apenas na maneira de abordar e analisar o assunto.
O resultado é que com frequência a eclesiologia é uma exposição
do que um teólogo acha que a igreja deveria ser, e não do que ela
realmente é. Às vezes, apologistas de um ponto de vista em particular
resolvem esse problema simplesmente excluindo da igreja quem não
se encaixa no seu retrato do que a igreja deve ser. Os exemplos mais
óbvios desse comportamento são encontrados na tradição da Igreja
Católica Romana, cujos teólogos, alinhados com o seu ensino oficial,
asseveram com frequência que quem não estiver em comunhão com
a diocese de Roma está fora da igreja. Outros são mais generosos ao
lidar com grupos cristãos diferentes, e até mesmo a Igreja Católica
moderou sua posição desde o Conselho Vaticano Segundo (1962-65),
mas, aqueles que defendem que o seu modelo de igreja é o correto
acabam descobrindo que é difícil ser justo com outros pontos de vista.
Apenas colocando-os no contexto histórico e procurando entender
por que as tradições se tornaram o que são hoje é que conseguiremos
obter alguma perspectiva no assunto e buscar elementos comuns que
transponham nossas diferenças e que talvez nos ajudem a vencê-las.
Não existe perspectiva de que a igreja irá recuperar sua antiga união
tão cedo, e talvez nunca recupere. Mas, se entendermos uns aos ou-
10
As origens da igreja
1 Atos 2.14-41.
2 Gênesis 32.28.
nações vizinhas, algumas, das quais também descendiam de Abraão e
Isaque, mas, deixam claro que essas nações não foram escolhidas por
Deus. Surpreendentemente talvez, o idioma falado por eles veio a ser
chamado hebraico, uma palavra que, segundo parece, veio do desco-
nhecido Eber (ou Heber), bisneto de Sem, um dos filhos de Noé.3 Não
se sabe por que o idioma recebeu esse nome, mas, seu uso nunca foi
questionado. Durante um período, o nome Israel foi usado para descre-
ver as dez tribos do norte que se separaram do reino centralizado em
Jerusalém, chamado Judá em homenagem à sua tribo dominante. No
entanto, depois que as dez tribos foram levadas para o exílio, os termos
“Israel” e “Judá” se fundiram de tal modo que se tornaram sinônimos,
e assim contínua até hoje.4
Essa era a situação prevalecente nos dias de Jesus. Israel era uma
nação judaica única estabelecida na Palestina, mas, com uma significativa
população dispersa no oriente e no ocidente. Os orientais se localizaram
principalmente na Mesopotâmia, onde permaneceram após o exílio na
Babilônia. Os livros de Daniel e Ester deixam claro que esses judeus
tiveram papel importante sob o domínio persa e, alguns séculos depois,
voltaram a se distinguir como os principais contribuintes do desenvol-
vimento do Talmude — coleção do saber judaico de suma importância
para o judaísmo posterior. No Novo Testamento, porém, a voz dessa
comunidade da Diáspora não se faz ouvir. É possível que os sábios que
visitaram o menino Jesus tenham ouvido sobre as esperanças messiâni-
cas judaicas em conversa com membros daquela comunidade; mas, se
esse foi o caso, nada foi dito a respeito.5 A Babilônia é mencionada no
livro de Apocalipse, mas, o consenso afirma que a menção é simbólica e
não tem o propósito de se referir à cidade histórica. Foi da “Babilônia”
que Pedro saudou seus leitores, porém a maioria dos comentaristas
entende isso como um código para Roma, porque não há evidências de
3 Gênesis 10.24; 1 Crônicas 1.18. Em Lucas 3.35 ele é citado como um dos ancestrais
de Jesus.
4 Assim, o amai estado de Israel é uma nação de língua hebraica habitada sobretudo
por judeus.
5 Mateus 2.1,2.
que Pedro tenha alguma ve2 ido à Mesopotamia.6 No entanto, no dia de
Pentecostes, havia em Jerusalém peregrinos do que era então o Império
Parta, sucessor da antiga Pérsia, e acertamos ao supor que alguns deles
tenham se tornado cristãos naquela época.7 Mas, não sabemos o que
lhes aconteceu depois, e podemos afirmar que a Diáspora oriental não
teve papel importante no surgimento da igreja cristã.
Contudo, a história foi bem diferente com a Diáspora ocidental. Ela
surgiu depois de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.), cuja conquista
do Império Persa colocou a Palestina na órbita do mundo grego, e
mais tarde, na do romano. Em pouco tempo, o número de judeus em
Alexandria e em outras cidades importantes do Mediterrâneo tornou-se
significativo. Eles aprenderam o idioma grego e, algumas, gerações mais
tarde, traduziram suas Escrituras para essa língua. Na época de Jesus,
estavam produzindo intelectuais importantes, dentre os quais o mais no-
tável foi Fílon de Alexandria (morreu 50 d.C.). Seus comentários sobre
a Bíblia foram amplamente lidos na igreja primitiva, embora pareçam
não ter causado nenhum impacto nos autores do Novo Testamento.
Saulo de Tarso foi um desses judeus da Diáspora, e, em grande parte,
responsável pela entrada da igreja primitiva no mundo greco-romano.
No final do século 19, era moda retratar o nascimento do cristianismo
como um tipo de fusão entre as culturas judaica e greco-romana, contu-
do, essa hipótese não é mais sustentável. O Novo Testamento foi escrito
em grego, mas, os evangelhos são claramente focalizados no judaísmo
palestino. Não sabemos se Jesus falava outra língua além de seu nativo
aramaico, mas, mesmo que falasse um pouco de grego, não há evidências
de que ele tenha ministrado nesse idioma ou que fosse familiarizado com
a literatura e filosofia gregas. Seu ensino pode ser totalmente explicado
dentro do contexto judeu, e é nesse contexto que os registros existentes
colocam Jesus, e os estudiosos contemporâneos não têm problemas, com
isso. Atualmente, são as ligações entre Jesus e seu background judaico que
dominam as discussões sobre a origem do cristianismo. Certamente as in-
fluências greco-romanas surgiram mais tarde, contudo, são normalmente
tratadas como secundárias e desconectadas de Jesus.
6 1 Pedro 5.13.
7 Atos 2.9.
Hoje o mundo inteiro concorda que Jesus era judeu, que escolheu
seus discípulos dentre seu próprio povo e que a maioria dos primeiros
cristãos também era judeu.8 Os evangelhos afirmam que ocasionalmente
Jesus ministrava a não israelitas, mas, esses casos foram excepcionais e
assim entendidos naquela época. Em sua argumentação com a mulher
samaritana junto ao poço, Jesus não vacilou em lhe dizer que a “sal-
vação vem dos judeus”, uma declaração que negou explicitamente as
reivindicações do grupo religioso a que ela pertencia.9 Muitas vezes,
Jesus também foi severo com não judeus (ou gentios, como eram co-
nhecidos) que o abordavam pedindo ajuda, embora lhes tenha atendido
as petições, e até chegou a observar que a fé dessas pessoas era maior
do que aquela do povo de Israel.10 11 Resumindo, Jesus deixou claro que
foi enviado aos judeus e não a outros povos, mas, quando não judeus
o buscavam de livre e espontânea vontade, ele nunca os rejeitava.
Essa abordagem foi especialmente relevante à igreja primitiva. Uma
das controvérsias mais significativas que ela enfrentou foi se os não
judeus poderíam se tornar cristãos sem se tornarem judeus primeiro. Os
samaritanos, cujas crenças eram um tipo de sincretismo e uma forma
antiga de judaísmo, pertenciam a uma categoria especial, e sabemos que
Jesus estava disposto a alcançá-los e aceitá-los até certo ponto.11 Pouco
antes de ascender ao céu, Jesus encarregou seus discípulos de levarem
o evangelho a Samaria, o que fizeram devidamente, mas, no início os
samaritanos foram batizados só em nome de Jesus e não receberam
o Espírito Santo.12 Não sabemos o porquê dessa prática, mas, talvez
Filipe, que evangelizou os samaritanos, achasse que eles eram judeus
de segunda classe e, assim, não deveríam receber a plenitude da bênção
8 Isso nos parece tão óbvio que esquecemos facilmente que no início do século 20,
antissemitas e os pressionados por eles (como na Alemanha nazista, por exemplo)
tentaram rebater esse fato ou, no mínimo, fizeram todo o possível para ignorar
suas implicações.
9 João 4.22.
11 Veja Lucas 17.16. Mas, havia limites a isso. Quando Jesus enviou os discípulos
13 Gálatas 2.11-14.
,4Atos 15.22-29.
13 Atos 15.1,2; Gálatas 2.4,5.
16 Lucas 16.16.
,7João 5.39,40.
1/
até mesmo disse que nenhuma letra da lei seria anulada; tudo seria ex-
plicado e cumprido por ele.18 No mínimo, isso significava que a Bíblia
hebraica continuaria sendo considerada texto sagrado cuja mensagem
inspiraria os cristãos tanto quanto inspirou gerações de judeus antes
deles. As duas primeiras gerações da igreja não tinham outra escritura
sagrada, pelo menos não um conjunto de literatura que fosse claramente
reconhecido como tal.19 Ainda que a maioria dos escritos que formam
o Novo Testamento já existisse no ano 70 d.C., os autores cristãos he-
sitaram em citá-los como fonte de autoridade até a metade do século
2 — mais de três gerações depois dos eventos neles relatados.
Durante esse período, o Antigo Testamento (como os cristãos
chamam a Bíblia hebraica) continuou sendo o texto de referência
fundamental para a igreja; defendê-lo como a revelação que Deus des-
tinou aos cristãos, e não aos judeus que rejeitaram as palavras de Jesus,
foi uma grande preocupação dos autores cristãos.20 Quando Marcião
(morto em 144?) tentou se distanciar dessa tradição ao rejeitar o An-
tigo Testamento e substituí-lo por uma coleção truncada de textos do
Novo Testamento sem nenhum traço de judaísmo, ele foi totalmente
condenado e refutado pela maioria dos cristãos, que se opunha tanto
aos judaizantes quanto a Marcião.21 Gostando ou não, os cristãos não
conseguiam se desvincular do Antigo Testamento, mas, também não
permitiam que fosse interpretado pelos judeus de maneira que excluísse
as afirmações de que as profecias se cumpriram em Jesus.
,8Mateus 5.17-20.
19 Uma exceção é encontrada em 2Pedro 3.15,16, em que as cartas de Paulo são
classificadas como “Escritura” e são reconhecidas como tendo autoridade na
igreja. Estudiosos têm usado isso como prova de que 2Pedro foi escrita mais
tarde, sob pseudônimo, na metade do século 2. Mesmo que estejam certos, esta
carta continua sendo a evidência mais antiga de que parte do Novo Testamento
que temos hoje foi considerada escritura canônica.
20 Veja, por exemplo, Dialogus cum Tryphone, de Justino Mártir, em que ele argumenta
por volta de 200 d.C. e que chegou a nós em cinco livros. Sobre Marcião, veja,
“Marcion”, de H. Rãisánen, em A Companion to Second-Century Christian “Henries"’,
A. Marjanen e P. Luomanen (Orgs.). Leiden: Brill, 2008, p. 100-24.
Há duas razões para isso. Primeira, é impossível entender o Novo
Testamento sem entender bem a essência das Escrituras hebraicas. O
mesmo se aplica a um livro como Apocalipse, que não faz nenhuma
citação direta do Antigo Testamento, mas, é incompreensível sem ele.
Segunda, o Novo Testamento deixa claro que os judeus que viveram
antes de Cristo podiam ter um relacionamento salvador com Deus por
meio da fé nas promessas que ele lhes fez, mesmo que não tivessem
plena consciência de como tais promessas iriam se cumprir e de que
teriam de esperar até seu cumprimento antes de se beneficiarem total-
mente delas.22
Abraão foi uma figura primordial para a igreja primitiva entender a
si mesma. Jesus ensinou aos discípulos que Abraão tinha previsto sua
vinda e se alegrou nisso, embora não tenha ligado seu comentário a
nenhum texto específico do Antigo Testamento.23 Talvez Jesus estives-
se pensando no dízimo que Abraão ofereceu a Melquisedeque, rei de
Salém, que é apresentado como um tipo de Cristo em Hebreus.24 Ou
tivesse em mente o sacrifício que Deus pediu que Abraão fizesse de seu
filho Isaque, só para lhe dizer na última hora que ele providenciaria algo
muito melhor - provavelmente, seu próprio Filho.25 Não sabemos com
certeza, mas, é claro que os primeiros cristãos reivindicavam Abraão
como ancestral na fé tanto quanto os judeus contemporâneos, mas, de
modo diferente. Para os judeus, Abraão era um ancestral de carne e osso;
os cristãos, porém, insistiam em dizer que os verdadeiros descendentes
de Abraão eram aqueles que partilhavam sua fé. O apóstolo Paulo foi
claríssimo ao explicar o assunto, e não hesitou em dizer aos seus leitores
que a circuncisão foi dada a Abraão como sinal de sua fé nas promessas
de Deus, e que essa fé era a verdadeira justificação de Israel.26
A lei de Moisés foi um desafio maior para os primeiros cristãos
porque, aparentemente, Jesus rejeitou uma boa parte dela, como as leis
sobre alimentação e a guarda do sábado, duas coisas sacrossantas nos
22Hebreus 11.39,40.
23 João8.56.
24 Gênesis 14.17-24; Hebreus 7.1,2.
26 Romanos 4.1-12.
círculos judeus mais rigorosos. Para justificar sua atitude, Jesus salientou
que Moisés havia dado a lei porque os israelitas se tinham mostrado
incapazes de manter os altos padrões de Abraão. Como Jesus explicou,
a lei serviu de barreira contra um declínio espiritual maior, e não como
luz que levaria Israel a uma verdade mais elevada.27 Jesus também expli-
cou que a lei deveria ser interiorizada para ser entendida corretamente.
Assim, enquanto Moisés disse que assassinato era errado, Jesus foi mais
adiante e disse aos discípulos que até mesmo pensar mal de alguém era
pecado.28 Ao direcionar seus ouvintes para os princípios subjacentes
à lei, Jesus aprofundava a força de sua aplicação e, ao mesmo tempo,
suprimia detalhes específicos (como a obediência estrita às leis sobre
alimentação) que só atrapalhavam. Foi com essa leitura da lei que Jesus
ensinou os discípulos a conciliarem as obrigações impostas aos antigos
israelitas com os seus próprios ensinos.
Jesus e os discípulos deixaram claro que não estavam acrescentando
nada à Bíblia hebraica, apenas mostrando como deveria ser interpretada.
Dessa perspectiva, pode-se dizer que estavam pregando a mensagem
verdadeira que foi adulterada e corrompida com o tempo. Mas, será
que a igreja cristã ficou muito parecida com sua mãe judia? As simi-
laridades entre elas eram suficientes para incentivar o apoio mútuo e
o diálogo, ou eram apenas semelhanças superficiais mais propensas a
causar dissensões do que harmonia?
Desde o início, os cristãos se julgavam os reais herdeiros do povo
de Deus do Antigo Testamento e consideravam cegos à verdade os ju-
deus que rejeitavam a Cristo. No entanto, mesmo um crítico tão severo
dessa cegueira como o apóstolo Paulo não hesitou em reconhecer que
todos os judeus, incluindo os que rejeitaram o evangelho, continuavam
amados por Deus devido aos seus antepassados. Paulo ensinou que
essa cegueira era, na verdade, uma bênção para os gentios, pois ofere-
cia aos apóstolos a oportunidade de lhes pregar o evangelho. Quando
essa missão fosse cumprida, Deus removería a cegueira de seu povo
escolhido e iria integrá-lo à igreja, e “todo Israel” seria salvo no final.
Não é claro se com “todo Israel” Paulo estava se referindo aos judeus
27 João 7.19-24; Mateus 19.7,8.
28 Mateus 5.21-26. O mesmo princípio foi aplicado ao adultério, Mateus 5.27-30.
e cristãos juntos, ou a todos os que pertencessem ao povo judeu, quer
tivessem fé ou não. Seja como for, Deus iria cumprir as promessas que
fez aos patriarcas.29
Nesse ínterim, a igreja, como descendente de Israel, teria de convi-
ver com essa herança, e avaliar até que ponto ela era igual a sua aparen-
temente indócil mãe e de que maneiras era divergente dela. Analisemos
rapidamente a herança de Israel para ver até onde (e como) a igreja
poderia tomar posse dela.
Quando Deus chamou Abraão para deixar seu povo e família,
ordenou que fosse para uma terra desconhecida, mas, que recebería
como herança. Como parte do chamado, Deus prometeu a Abraão que:
32 Gênesis 25.6.
33 Gênesis 27.1-45.
34 Obadias 10-14.
direito de Judá de reivindicar a herança de Abraão nunca foi contestado,
porém a história do reino do norte foi mais complicada. Não tendo um
lugar próprio de adoração, seus reis se viram na obrigação de construir
dois nos limites de seu território — um em Dã, que ficava no norte, e
outro em Betei, perto de Jerusalém - numa tentativa de impedir que os
súditos oferecessem sacrifícios no templo de Salomão. Não sabemos
com certeza o que ocorria internamente no reino do norte, contudo,
ele parecia mais suscetível aos elementos pagãos do que Judá, e nenhum
de seus reis foi considerado satisfatório aos olhos dos cronistas que
registraram seus feitos. Por outro lado, Elias e Eliseu, dois dos maio-
res profetas israelitas, ministraram no norte, e até mesmo nos dias do
Novo Testamento havia israelitas que afirmavam ser descendentes de
uma das tribos do norte.
Muito do que aconteceu depois da extinção do reino do norte em
722 a.C. é incerto, porém mais tarde uma forma variante de judaísmo se
estabeleceu na região de Samaria. Os samaritanos alegavam pertencer
ao povo de Deus do Antigo Testamento, todavia se recusavam a cultuar
no templo em Jerusalém, e foram rejeitados por aqueles que achavam o
templo parte central da adoração. Na época de Jesus, os judeus não se
relacionavam com os samaritanos, e embora não tivesse aderido a esse
padrão, ele não duvidava que a salvação pertencia aos judeus. Nessa
época, os pilares da religião judaica principal eram três:
1.0 sacerdócio que remontava a Aarão, irmão mais velho de Moisés,
e que vigorou enquanto o templo e seus sacrifícios continuaram em
ação. Depois da destruição do templo no ano 70 d.C., o sacerdócio
desmoronou, embora ainda há quem assevere que os judeus de sobre-
nome Cohen pertencem à linha sacerdotal e espera-se que o templo
fique sob seus cuidados caso seja reconstruído.
2. A lei dada por Moisés, que estava contida na Torá ou Pentateuco
(de Gênesis a Deuteronômio) e era interpretada pelos sacerdotes com
a ajuda de uma coleção crescente de comentários escritos. Essa coleção
partiu dos targumim, que eram comentários dos textos, desenvolvendo-se
no Mishná e Talmude, os quais se tornaram fundamentos do judaísmo
posterior.
3. As Escrituras, formadas pelos livros proféticos e os chamados
Escritos, acrescentados à lei de Moisés. O cânon profético estava defi-
nitívamente fechado na época de Jesus, porém havia dúvidas sobre os
Escritos, especialmente sobre o livro de Ester, que não menciona uma
única vez o nome de Deus e, portanto, era visto com desconfiança.
Havia também uma discrepância entre o cânon hebraico, que corres-
ponde ao Antigo Testamento moderno em sua forma protestante, e as
traduções gregas, que incluem alguns livros conhecidos coletivamente
como os “Apócrifos”. Hoje eles são aceitos como canônicos pelas igre-
jas Católica Romana e Ortodoxa Grega, mas, rejeitados pelos judeus
e protestantes.
O quanto esses pilares são fundamentais à religião judaica é deduzi-
do pela maneira em que aparecem no Novo Testamento. A autoridade
das Escrituras hebraicas era inquestionável, e a Torá usufruía de prestígio
singular. Mas, a tradição dos comentários desenvolvida a seu redor era
um tanto suspeita, e temos a impressão que Jesus opunha-se até mesmo
à sua existência.35 Talvez seja exagero, contudo, não há evidência nos
evangelhos de que ele era simpático aos ensinos rabínicos que diziam
interpretar o texto mosaico à luz das circunstâncias contemporâneas. O
sacerdócio também era importante, mas menos fundamental. Ensinar
religião ao povo era em essência tarefa dos escribas, rabinos, e de grupos
como os fariseus e saduceus, que não faziam parte da estrutura oficial
do templo, embora muitos saduceus pertencessem a ele.
No decorrer de sua história, o povo conhecido como Israel se tor-
nou gradativa e relativamente menor e limitado. Mesmo que houvesse
mais israelitas nos dias de Jesus do que nos dias de Davi, isso foi causado
pelo aumento natural da população de Judá, e sua dispersão através
do mundo resultou em crescimento no que diz respeito a números
absolutos. Por outro lado, dez das doze tribos se desfizeram, e houve
um fluxo contínuo de judeus rumo ao mundo pagão que os cercava. É
verdade que houve um escorrer vagaroso de gentios na comunidade ju-
daica, mas o número deles nunca foi grande o bastante para compensar
as perdas. Os judeus continuaram a ser uma presença significativa na
Palestina e provavelmente continuavam a ser sua população majoritária
35Mateus 15.2-6.
na metade do século 2 d.C, todavia rebeliões sucessivas diminuíram sua
influência, dispersaram sua liderança e os desapossaram da velha terra
natal. A presença dos judeus era comum em muitas cidades ao redor
da bacia do Mediterrâneo e na Mesopotâmia, contudo, eram minoria.
Mais tarde, quando a igreja cristã se tornou o movimento religioso
preeminente no Império Romano, as sinagogas foram incapazes de
oferecer uma alternativa mais atraente.
Não era fácil decidir quem era judeu. O homem tinha de ser cir-
cuncidado se quisesse ser aceito na comunidade judaica.36 Os judeus
tinham de seguir as leis sobre alimentação e as cerimônias estabelecidas
pela lei mosaica, mas, parece que os líderes de muitas comunidades da
diáspora fizeram vistas grossas a isso e temos a impressão de que muitos
judeus se acomodaram em deixar as coisas como estavam. Obedecer
aos mandamentos ao pé da letra era difícil na melhor das circunstâncias,
e para uma minoria em ambiente estranho isso seria mais difícil do que
para os que moravam em vilarejos de maioria judaica na Palestina. O
conhecimento do hebraico, por outro lado, tinha valor relativo. Os ra-
binos sabiam hebraico, claro, mas, as pessoas comuns falavam grego ou
aramaico, suplementados (embora bem pouco) por palavras hebraicas
e expressões hebraicas específicas como amém e aleluia. Quase todos os
que ouviram Pedro falar no dia de Pentecostes em Jerusalém deviam
ser judeus, mas, como o texto indica, todos o ouviram falar em suas
próprias línguas, que eram faladas nas regiões da diáspora judaica.37
As festividades mais importantes, tais como a Páscoa, eram am-
plamente celebradas, porém muito do que o mundo contemporâneo
entende como cultura judaica é de origem mais recente. Pelo menos
na superfície, havia pouca coisa que distinguisse os judeus dos cristãos,
e embora, de vez em quando, a prática contínua dos costumes judai-
cos entre os que se tornavam cristãos causasse problemas, estes eram
rapidamente resolvidos de maneira definitiva. Isso dá a entender que
as práticas não haviam se enraizado na cultura popular, qualquer que
tenha sido sua importância simbólica ou teológica. O que unia os judeus
era o sentimento de pertencerem a um povo, sentimento encorajado
36 Veja Atos 16.3.
37Atos 2.7-11.
tanto pelo preconceito quanto pela prática religiosa. Os judeus eram
considerados excêntricos pelos gentios, e pagavam na mesma moeda,
geralmente mantendo-se afastados e casando-se com pessoas de sua
comunidade.
E impossível determinar quantos desses judeus eram considerados
“fiéis”. Evitar contato com os pagãos era uma coisa, outra bem
diferente era abraçar a fé do Antigo Testamento de modo coerente ou
abrangente. Na época de Jesus, existiam movimentos devocionais como
os dos fariseus, que propagavam observância estrita à lei de Moisés, e
os dos saduceus, que sob a perspectiva atual eram os teólogos “libe-
rais” daquela época, porque rejeitavam crenças como a ressurreição
dos mortos.38 Existiam também grupos periféricos como os essênios
e a comunidade de Qumran, que praticavam asceticismo e isolamento
do mundo. Mas, esses grupos eram minoria. Em geral, os judeus eram
mais parecidos com José, Maria e os discípulos de Jesus — pessoas
comuns de fé convencional que raramente era desafiada ou testada. A
existência de escritos sagrados garantia nível mais alto de alfabetização
entre os homens do que a média, mas, embora houvesse nas sinagogas
homens que estudavam esses escritos, não há muita evidência de que o
estudo fazia muita diferença na vida devocional da comunidade como
um todo. Quando Paulo pregou o evangelho em Bereia, ele notou que
algumas pessoas consultavam as Escrituras para se certificarem de que
o apóstolo estava falando a verdade, mas, o fato de Lucas ter registrado
o acontecimento mostra que tal diligência era rara e longe da norma
na maioria dos lugares.39
O que sabemos é que havia muitos judeus que valorizavam bem
pouco a fé de seus ancestrais e cujas vidas ridicularizavam a lei de Moi-
sés. Como o apóstolo Paulo afirmou, esses judeus eram uma desonra à
nação porque o comportamento deles traía os princípios que deveríam
identificá-los. De maneira nenhuma todos os que se chamavam judeus
partilhavam o espírito da lei mosaica, e essa contradição em termos
questionava a natureza de Israel. Seria Israel um povo que descendia
fisicamente de Abraão ou a nação era formada de pessoas que criam
38 Mateus 22.23.
39Atos 17.11.
da mesma forma que Abraão creu, fossem elas seus descendentes ou
não? Jesus não hesitou em dizer a seus compatriotas que na antiguidade
muitos gentios receberam as bênçãos de Deus quando israelitas que
também necessitavam muito delas foram deixados de lado. Naamã,
o general sírio que foi curado de lepra, foi um exemplo maravilhoso
disso, assim como foi Rute, a moabita, uma de suas ancestrais. Fé e
nação se sobrepunham, mas, não eram a mesma coisa, e para Jesus e
seus seguidores a primeira era mais importante. Entretanto, permanecia
uma certa ambiguidade. Nascer em uma família judia era um grande
privilégio, embora tal coisa exigisse um grau maior de responsabilida-
de espiritual. Aqueles que conheciam a verdade desde o nascimento
tinham a obrigação de viver de acordo com ela, e caso não o fizessem,
o escândalo era resultado inevitável, porque os judeus eram um povo
separado de modo especial, quisessem ou não.40 A igreja cristã seria
diferente, mas, a que ponto e com que repercussão?
40 Romanos 2.17-24.
41 Isso foi especialmente verdade em relação a Constantino I (306-37), que legalizou
o cristianismo, e Justiniano I (527-65), construtor da famosa Basílica de Santa
Sofia, em Constantinopla.
42 Números 18.21.
a Ceia do Senhor foi transformada em sacrifício memorial ao Cordeiro
que foi morto pelos pecados do mundo — Agnus Dei, qui tollis peccata
mundi, como descrito pelo famoso hino da Ceia medieval.43
Os elos assim criados se tornaram possíveis porque o Antigo Tes-
tamento foi alegorizado para suprir as necessidades da igreja cristã. Por
exemplo, a visão de Jacó da escada ascendendo ao céu significava que
enquanto Israel dormia na casa de Deus (Betei), os cristãos estavam
acordados e subiam a escada, juntamente com anjos e arcanjos. Ecos
dessa interpretação permanecem na oração de consagração do Livro
Anglicano de Oração Comum, no qual é “com anjos e arcanjos e toda
hoste celestial que louvamos e enaltecemos o teu Nome glorioso”.
Quem visita a Catedral de Chartres, na França, pode observar que
os espetaculares vitrais coloridos estão dispostos em duas séries cor-
respondentes: uma dedicada ao Antigo Testamento e outra ao Novo
Testamento. A correspondência é deliberada, de modo que o vitral da
história do bom samaritano, por exemplo, fica em frente ao da venda
de José à escravidão no Egito. A lógica é que no Antigo Testamento a
pobre vítima foi condenada à escravidão, ao passo que no Novo Testa-
mento a vítima foi resgatada por alguém que, em geral, é considerado
o próprio Cristo.
Em conformidade com a tradição cristã, os paralelos alegóricos ju-
daicos são sempre apresentados como parciais e inferiores aos cristãos,
mas, só o fato de estarem presentes fala por si. Os cristãos se viram
refletidos no Antigo Testamento, sentindo-se privilegiados em corrigir
com o evangelho o que deu errado sob a lei de Moisés. Até que ponto
essa perspectiva era válida?
Em certo sentido, não há como duvidar de que os cristãos enten-
diam seu relacionamento com Deus como o cumprimento das pro-
messas do Antigo Testamento. Obviamente, o evangelho era superior
à lei — se não fosse, não havería motivo para alguém se tornar cristão. O
apóstolo Paulo foi incisivo ao descrever o relacionamento entre a sina-
goga e a igreja quando comparou aquela a Hagar, a escrava concubina de
Abraão, e esta a Sara, sua legítima esposa. Os filhos das duas mulheres
eram descendentes de Abraão, contudo, o filho de Hagar (Ismael) foi
43 “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.”
mandado embora, mas, o de Sara (Isaque) herdou a bênção do pai.44 O
mesmo aconteceu com a igreja. Os judeus podiam afirmar ser filhos de
Abraão, todavia, eram escravos da lei e foram expulsos, mas, os cristãos
eram filhos da mulher livre. Por um lado, judeus e cristãos eram muito
parecidos, mas, por outro, eram muito diferentes.
O que Paulo menciona de passagem foi desenvolvido de maneira
sistemática pelo autor de Hebreus, que começa assim o seu tratado:
“Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos
nossos antepassados por meio dos profetas, mas, nestes últimos dias
falou-nos por meio do Filho”.45 Depois de uma longa explicação do que
isso acarreta, ele termina seu argumento apontando diretamente para
os memoráveis homens e mulheres de fé cujas vidas estão registradas
no Antigo Testamento e que são exemplos para nós que viemos após
eles. Apesar da excelência dessas pessoas, o autor de Hebreus conclui:
“Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto,
nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado
algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados”.46
É isso: os fiéis do Antigo Testamento eram magníficos servos de
Deus, e no acerto de contas no fim dos tempos, serão incluídos entre
os justos, assim como nós. Ao mesmo tempo, contudo, eram diferentes
de nós. Aguardavam as bênçãos que agora nós recebemos e usufruímos
de um modo que não aconteceu com eles. Suas vidas seguiram uma
trajetória diferente da nossa, e foram sujeitos a fardos e limitações que
não se aplicam a nós. Eles se constituíram em uma igreja, que se tornou
ancestral da equivalente cristã? Podemos hoje considerá-los cristãos,
embora tenham vivido antes da vinda de Cristo e não usassem esse
termo para descreverem a si mesmos?
Aqui nós dependemos até certo ponto das definições das palavras.
Tanto o Israel antigo quanto a igreja cristã subsequente foram chamados
de “o povo de Deus”, e se é isso que intencionamos dizer com a pala-
vra “igreja”, então, Israel deve ser incluído. Mas, o Novo Testamento
não vai tão longe assim. As diferenças entre as instituições históricas
44 Gálatas 4.21-31.
45 Hebreus 1.1,2.
46 Hebreus 11.39,40.
de Israel e as do movimento cristão incipiente foram tão importantes
quanto suas semelhanças, e a maneira como os cristãos usavam a pa-
lavra “igreja” dá essa indicação. Reconheciam que, apesar de todas as
semelhanças e conexões entre elas, o cristianismo não era apenas um
ramo do judaísmo. Se fosse, os discípulos de Jesus jamais teriam for-
mado comunidades de adoração tão distintas. A verdade é que embora
permanecessem judeus, a experiência espiritual deles não podia ser
contida nos limites do judaísmo tradicional. Além disso, era possível (e
logo se tornou comum) aos gentios crerem em Cristo e usufruírem da
mesma experiência com ele sem se tornarem judeus. Existia algo novo
aqui, e é isso que o termo “igreja” expressa. Os motivos principais de
não incluirmos (e provavelmente não deveriamos fazê-lo) Israel sob o
termo geral “igreja” são:
1. Israel e a igreja receberam uma revelação escrita de Deus, que é
fundamental à sua vida e fé. A igreja cristã adotou as Escrituras judaicas
como sua, mas, de um modo diferente. Primeiro, os cristãos interpretam
a Bíblia hebraica à luz do Cristo (Messias) que já veio, o que os judeus
não fazem. Depois, o cânone cristão está fechado de um modo que o
cânone hebraico antigo não foi. As profecias cessaram em Israel cerca
de quatrocentos anos antes da vinda de Cristo, fato comprovado pelo
Antigo Testamento como o temos hoje, contudo, na época de Jesus
não havia consenso se a revelação divina havia ou não chegado ao fim.
Israel havia sofrido carências espirituais outras vezes, porém, elas foram
seguidas de reavivamento e produção de nova Escritura. Quando João
Batista apareceu, ele não foi rejeitado como impostor por ter achado
que um ministério igual ao seu não era mais válido.
Os cristãos, por outro lado, aceitaram a Bíblia hebraica como um
cânone completo que não poderia ser ampliado porque ele aponta
para o Cristo que já veio. O Novo Testamento também é um cânone
completo e o tem sido desde que a primeira geração que testemunhou
seus acontecimentos deixou de existir. Nem sempre houve concor-
dância universal quanto ao seu conteúdo, e os debates sobre a autoria
apostólica de alguns de seus livros continuaram, mas, essas questões
são secundárias. O preceito era que com a chegada da plenitude dos
tempos novas revelações se tornaram impossíveis. Deus continua a
falar à igreja e por meio dela, contudo, o faz de maneira diferente; hoje
ninguém pode reivindicar o tipo de autoridade que foi dada a Moisés,
aos profetas do Antigo Testamento ou aos apóstolos de Jesus.
Mais significativo ainda, o judaísmo salienta em geral que a Bíblia
hebraica é lei, enquanto a igreja cristã a entende mais como profecia.
Naturalmente, “a Lei e os profetas” estão interligados, e nenhuma
das duas crenças enfatiza um e exclui o outro. Mas, embora os judeus
achem natural querer saber como a lei de Moisés pode ser estendida e
aplicada a situações não previstas pelos ancestrais israelitas, os cristãos
não fazem o mesmo. Na igreja, os preceitos mosaicos são considerados
princípios espirituais cuja aplicação depende da maneira em que foram
cumpridos (e suplantados) pelo evangelho de Cristo. Isso pode levar
à eliminação de preceitos (como no caso das leis alimentares que se
acredita não serem mais aplicáveis) ou a uma prática mais profunda e
rigorosa de seus ensinos — como é o caso dos Dez Mandamentos, em
que as proibições de assassinato e adultério são ampliadas e incluem
maus pensamentos e desejos, e não se limitam a atitudes externas.47
Quanto às profecias, para os judeus elas pertencem a um futuro esca-
tológico no qual se pode ou não acreditar; o judaísmo messiânico é (e
sempre foi) um interesse periférico no mundo judaico. Para os cristãos,
no entanto, as profecias foram cumpridas em Cristo. Elas têm, claro,
uma dimensão escatológica, mas, esse aspecto também está ligado a
ele. Assim, a vinda do Messias no final dos tempos só pode ser a volta
de Cristo, e não o aparecimento de alguém até agora desconhecido.48
2. O Israel antigo (assim como seu par moderno) era uma nação
humana secular com suas tradições, cultura, língua e território compará-
vel aos países vizinhos. Qualquer um podería fazer parte de Israel, mas,
isso não era incentivado, e com o passar do tempo, influências externas
(como esposas estrangeiras) eram cada vez mais restringidas. No início,
uma mulher igual a Rute não tinha dificuldades em se casar com um
judeu, mas, tal casamento se tornou mais difícil depois, especialmente
após o exílio.49 Em decorrência, a hereditariedade física exercia papel
47 Mateus 5.21-30
48 Atos 1.11; ICoríntios 15.20-28; ITessalonicenses 4.13-17.
49 Veja Esdras 9—10.
central na vida de Israel. O clã sacerdotal era uma tribo distinta cuja
linhagem remontava a Arão, irmão mais velho de Moisés. Ninguém
decidia (ou se recusava a) ser sacerdote, pois isso era determinado pelo
nascimento. De maneira similar, Jesus herdou seu título real do ances-
trai Davi e não o teria obtido de outra forma. Alguém como Herodes
governava como rei dos judeus, mas, da perspectiva teológica, ele era
usurpador e jamais passaria disso.50
Em forte contrapartida, a igreja cristã não era uma nação no sen-
tido comum da palavra, ainda que tal linguagem fosse, às vezes, usada
para descrevê-la.51 Qualquer pessoa poderia ser membro da igreja, e o
milagre do primeiro Pentecostes teve o intuito de revelar a universa-
lidade de sua mensagem. A igreja não se isolou para sobreviver, mas,
buscou acolher pessoas de todas as tribos e línguas. O evangelismo,
um conceito desconhecido antes da vinda de Cristo, tornou-se a razão
de ser da igreja, que viu a proclamação do evangelho até os confins da
terra como sua tarefa principal. Cargos na igreja, tal como eram, nunca
foram herdados, e algumas vezes foi necessário tomar medidas para
que esse princípio fosse observado. Um dos motivos para a imposição
do celibato ao clero ocidental na Idade Média foi garantir que filhos
legítimos não herdassem os cargos de seus pais. Na igreja, era possível
se tornar ministro (e deixar de sê-lo) de um modo inconcebível no Is-
rael antigo. Da mesma forma, reis e outros regentes que se tornavam
cristãos não usufruíam de status e privilégios na igreja, embora isso lhes
tenha sido concedido nos séculos posteriores, nem os governos secu-
lares foram sujeitos à igreja, embora também tenha havido exceções
na Idade Média e mais tarde.
Certamente muitas foram as tentativas de estabelecer governos e
estados cristãos, mas, nenhum deles usufruiu da mesma sanção divina
concedida ao reinado davídico no Israel de antigamente. Não é exagero
afirmar que o conceito de secularização do governo civil (no sentido
de “não ser religioso”) é produto do pensamento cristão e remonta ao
mandamento de Jesus, que disse aos judeus que embora devessem pagar
52 Mateus 22.15-22.
53 Hebreus 5.2,3.
54 Observemos de passagem que o cristianismo é diferente do Islamismo também
ses germânicos do norte europeu, o termo preferido era uma variante de kyriake
(pertence ao Senhor), do qual derivam a palavra inglesa “church” e a palavra alemã
“kirk” [as duas significam igreja]. A mesma palavra também penetrou o mundo
ortodoxo oriental, onde formas variadas do termo russo tserkov são comuns. As
a palavra ekklesia adquiriu conotações que a distinguiam claramente de
sinagoga, não levando em conta somente a fé religiosa mas, também,
questões práticas de organização.
Primeiro, a palavra “igreja” incluía todos os que se diziam cristãos.
Era usada no singular e no plural, referindo-se tanto ao universo de
todos os cristãos como também às suas reuniões em grupos locais. A
igreja foi descrita como “o corpo de Cristo”, no qual cada membro
era batizado e tinha um lugar designado.59 Esse corpo era uma unidade
que deveria ser assim preservada como testemunha da existência de
um Senhor, uma fé e um batismo.60 A universalidade do evangelho
cristão exigia tal atitude, e qualquer tendência de divisão em partidos
seguidores de diferentes líderes era confrontada vigorosamente pela
liderança das principais igrejas apostólicas.61
Segundo, e por causa da necessidade de manter essa unidade abran-
gente, a igreja tinha uma estrutura organizacional altamente centralizada
completamente estranha à sinagoga. A supervisão das igrejas era feita
pelos apóstolos — os discípulos de Jesus, juntamente com Paulo —, a
quem as congregações locais apelavam, e esses não hesitavam em “inter-
ferir” quando necessário. A carta de Paulo aos Romanos, por exemplo,
foi endereçada a uma igreja que ele nunca tinha visitado, contudo, isso
não diminuiu em nada a autoridade do apóstolo. Nenhum líder judeu
escrevería dessa forma a uma sinagoga. Internamente, cada igreja era
estruturada de um modo inimaginável nas sinagogas. Não sabemos
com exatidão como isso funcionava, e possivelmente existiam muitas
variações pelo mundo mediterrâneo que mais tarde se mesclaram em
exceções geralmente acontecem no sentido oposto e mostram como a palavra
usada para o edifício podería ser aplicada à congregação, e a partir de então à
igreja universal. O romeno, por exemplo, usa o termo biserica, que vem do grego
latinizado basílica, e o polonês, kosciol(tcheco hostel), derivado de castellum (castelo).
No Leste Europeu, muitos idiomas empregam palavras diferentes em relação às
igrejas católicas para distingui-las das igrejas ortodoxas orientais e protestantes.
Assim, uma kosciolé sempre uma igreja católica, uma tserhov é ortodoxa oriental, e
uma igreja protestante pode ser chamada de outra coisa — talvez chram (templo)
ou algo parecido.
59 ICoríntios 12.27.
60 Efésios 4.5.
62Atos 14.11.
63 Tiago2.1-13.
64 ICoríntios 14.20-25.
Isso nos leva à última e mais teológica das diferenças entre juda-
ísmo e cristianismo. As duas religiões cultuavam o mesmo Deus, mas,
enquanto os judeus o enxergavam em toda a sua unidade e soberania
majestosas, os cristãos acreditavam ter alcançado intimidade com ele.
Eles estavam sentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus.65 Tinham
acesso ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo.66 Eram nascidos
de novo.67 Para os judeus tudo isso era absurdo, como nos mostra a
história de Nicodemos. Quando Jesus disse que ele precisava nascer
de novo, Nicodemos achou que de alguma forma deveria retornar ao
ventre materno!68 Absurdo completo, claro (e sendo justos, Nicodemos
sabia disso), mas, sintomático das diferentes maneiras de os judeus e
os cristãos se aproximarem de Deus. Os judeus eram ligados às coisas
físicas e materiais de um modo oposto ao dos cristãos. Para os cristãos,
o reino de Deus não era uma esperança escatológica, mas, uma realidade
presente que conheciam por meio da comunhão com Cristo no Espírito
Santo. Ou seja, os cristãos cultuavam o Deus único em uma Trindade
que demoraria mais alguns séculos para ser definida, mas, que era real
na experiência deles. No fim, foi essa experiência que lhes impediu
de continuarem judeus na sinagoga e que os forçou a construir uma
teologia sem utilidade ao judaísmo. Os judeus testemunhavam de sua
fé por meio da circuncisão e do viver segundo a miríade de preceitos
da lei de Moisés. Os cristãos, no entanto, confessavam a Cristo, e essa
confissão os levou a dar à igreja uma estrutura intelectual bem diferente
de qualquer coisa existente na sinagoga.
A pouca ou nenhuma transferência de líderes de Israel para a igreja
foi outra marca importante das diferenças entre as duas coisas. Para
seguir a Jesus, nenhum discípulo teve de abandonar uma posição de
destaque na sociedade judaica, e nenhum deles tinha educação rabínica.
Paulo era uma exceção nesse aspecto, entretanto ele foi o mais enfático
em denunciar a velha ordem e não usou suas vantagens para ser mais
bem aceito na igreja. Também não há indícios de que sacerdotes ou
65 Efésios 2.6.
66 Efésios 2.18; Gálatas 4.6.
67 João 3.7
68 João 3.4
rabinos porventura convertidos tenham recebido posição equivalente
na igreja. E difícil crer que quando novas igrejas se formaram como
resultado de divisões em sinagogas, nenhum líder tenha passado de
um sistema para outro, mas, se isso aconteceu, nada foi registrado.
Em vários momentos, o Novo Testamento apresenta os critérios para
a escolha de líderes da igreja, mas, instrução no judaísmo ou ser expe-
riente na liderança de uma sinagoga não faz parte de nenhuma lista.
Deus estava criando algo novo na igreja, e embora conhecer o antigo
padrão pudesse ser útil de vez em quando, não era essencial na nova
dispensação.
Temos então de concluir que não podemos considerar Israel a igreja
do Antigo Testamento. As conexões entre Antigo e Novo Testamento
foram refratadas por meio do prisma de Cristo, que transformou to-
das as coisas. A palavra final sobre o assunto certamente é dada pelo
apóstolo Paulo, quando escreveu aos filipenses:
Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais:
circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à
tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto
ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepre-
ensível. Mas, o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por
causa de Cristo.69
69 Filipenses 3.4-7.
como igreja cristã. Muitos observadores preferem o meio termo entre
o que consideram dois extremos, mas, é inquestionável que o divisor
fundamental está entre aqueles que veem a igreja como produto de uma
revelação divina dada em e por meio de Jesus Cristo e os que acreditam
que ela emergiu de fatores sociais complexos aglutinados ao seu redor.
Seja como for, os oponentes concordam que a intensa concen-
tração cristã em uma única pessoa era desconhecida no judaísmo e é
rara entre as grandes religiões do mundo. Não islâmicos pensam er-
roneamente que o Islamismo concede posição semelhante ao profeta
Maomé, entretanto os islâmicos explicam que Maomé não passa de
um ser humano, e não é uma divindade. Os budistas, também, negam
que Buda seja objeto de culto, embora seja venerado de um modo que
espantaria os islâmicos se algo parecido acontecesse no Islamismo.
Os hindus acreditam na possibilidade de encarnação divina, mas, não
se concentram em um deus específico que se tornou humano com
um propósito especial. Jesus é singular, pois foi o único que afirmou
ser Deus e, portanto, merecedor da mais elevada forma de adoração
conhecida pelos seres humanos. Mesmo não existindo dúvidas nessa
área, muitas perguntas se levantam ao considerarmos como a igreja
surgiu. Ela sempre esteve nos planos de Jesus? Ele estava procurando
estabelecer uma igreja que preservasse sua memória e ensinos, ou ela
apareceu acidentalmente após sua morte precoce?
As respostas são complexas porque muitos estudiosos da atualidade
apoiam a segunda perspectiva acima esboçada e, portanto, rejeitam o
relato “ortodoxo” tradicional, seja no todo ou parcialmente. Acredi-
tam que Jesus não teve a intenção de fundar nada, muito menos uma
instituição que se transformou na igreja cristã que temos hoje. Em
linhas gerais, acreditam que Jesus foi um profeta revolucionário que
desafiou as autoridades de sua época e acabou sendo morto por elas.
Muito decepcionados, seus seguidores se uniram e decidiram preservar
sua memória naquilo que hoje chamamos de igreja. O que os motivou
a apoiar um fracasso tão óbvio continua sendo um notável mistério
sem resposta, e é nessa dúvida que essas teorias geralmente perdem
qualquer credibilidade que porventura tenham. Alguns discípulos de
Adolf Hitler o acompanharam até o sepulcro, mas, não além dele, e os
neonazistas de hoje não cultuam seu líder ou afirmam que ele continua
vivo. Personagens mais meritórias como Mahatma Gandhi e Nelson
Mandela são admirados no mundo inteiro, todavia não deixaram para
trás grupos organizados de seguidores nem inspiraram religião nenhu-
ma centralizada neles. É apenas em seitas como o Rastafarianismo nas
ilhas do Caribe ou nos cultos à carga no sul do Pacífico que encontra-
mos qualquer coisa remotamente parecida com as afirmações feitas a
respeito de Jesus Cristo, mas, são tão obviamente falsas que ninguém,
a não ser os próprios seguidores, as leva a sério.70
Jesus é singular nesse aspecto, mas, por quê? Mesmo que aceitemos
tudo que já foi afirmado sobre sua divindade e sua missão terrena,
existe alguma evidência de que ele fundou uma igreja? E nesse caso,
qual seria o significado da palavra “igreja”? Quem duvida que Jesus
teve qualquer intenção de fundar uma igreja pode assinalar que a pa-
lavra ocorre apenas duas vezes em Mateus e nenhuma nos outros três
evangelhos, em contraste nítido com a ideia de “reino”, que foi um
dos temas principais do ensino de Jesus. No mínimo, isso sugere que o
conceito de “igreja” foi, na melhor das hipóteses, secundário à missão
de Jesus e talvez até fosse uma tentativa de readequar a ênfase de seu
reino às limitações mais prosaicas (e também mais realistas) do mundo
onde seus discípulos iriam ministrar.
Aqueles que pressupõem (como é o caso de muitos comentaristas da
atualidade) que a palavra “igreja” em Mateus certamente é interpolação
posterior de algum escritor preocupado em tratar das questões de sua
época, e não reflete o ensino de Jesus, firmam sua posição no fato de a
palavra ser uma raridade, embora outras interpretações também sejam
possíveis. Cabe perguntar, por exemplo, se Mateus desejava enfatizar
a importância da igreja, por que ele faz apenas duas referências a ela,
visto que apenas uma menção se relaciona com nosso assunto? Se a
intenção de Mateus era confirmar a autoridade de Jesus sobre a insti-
.
2
DE DISCÍPULOS A APÓSTOLOS
4 João 20.24-29;
5 Atos 1.13; 2.4.
6 O candidato mais provável à autoria da carta é Tiago, o Justo, meio-irmão de Jesus
e sucessor de Pedro como líder da igreja de Jerusalém, embora isso não passe de
conjectura. Veja Atos 12.17; 15.13-21; 21.17-26.
7 Vej a M. Bockmuehl, Simon Peter in Scripture and Memory: The New Testament Apostle in
the Early Church, (Grand Rapids: Baker Academic, 2012), para um levantamento
recente de evidências a favor de Pedro e seu ministério.
8 João 21.15-19.
pulos transformados em apóstolos. Por exemplo, quando cometeu um
erro, foi repreendido por seus colegas, e nada mostra que essa atitude
tenha sido descabida.9 Em relação à igreja de Jerusalém, Pedro era
uma de suas colunas, como Paulo disse, e não a única.10 11 Se Pedro era
o líder, continuava sendo o primeiro entre iguais, e não um superior
que comandava e esperava lealdade inquestionável de todos ao redor.
Pedro nunca perdeu sua importância como figura central na igre-
ja, contudo, parece que acabou sendo ofuscado por Paulo e ficou em
segundo plano. Sua produção literária foi modesta, não passando de
duas cartas pequenas (embora a autenticidade da segunda seja bastan-
te questionada). Talvez ele tenha sido o verdadeiro autor do segundo
evangelho, que, de acordo com Papias, historiador da igreja que viveu
no século 2, é um relato das memórias que Pedro ditou a Marcos.11 Não
se sabe ao certo onde e como ele morreu, apesar de o último capítulo
do evangelho de João sugerir que foi crucificado (de cabeça para baixo,
segundo a lenda), e uma antiga tradição fixar seu túmulo em Roma.12
Além disso, nada mais pode ser afirmado com segurança.
Importante é esclarecer isso porque uma das controvérsias mais
antigas e espinhosas da igreja se refere a Pedro e à natureza da comissão
que ele recebeu de Jesus. Teólogos argumentam sobre o sentido exato de
Mateus 16.18: Jesus quis dizer que Pedro seria a pedra fundamental da
igreja, ou que a comunidade cristã seria erguida em sua confissão de fé?
Como já vimos, os estudiosos analisam a matéria de modos diferentes.
Para eles a questão verdadeira é se Jesus chegou a dizer algo parecido
com isso, e a maioria acredita que a frase foi um acréscimo posterior
designado a reforçar a “primazia petrina” de Roma que gradualmente
emergia na igreja primitiva. O que é possível afirmar sobre essa questão?
12 Para a situação atual da opinião acadêmica, veja Bockmuehl, Simon Peter, 148-49,
segundo o qual Pedro talve% esteja enterrado sob o Vaticano, mas, isso não pode
ser considerado certo.
Primeiro, é certo que a igreja de Roma, mesmo que Pedro tenha
sido seu primeiro “bispo”, não usufruiu o tipo de primazia no mundo
cristão que, mais tarde, os papas reivindicariam, usando a confissão
do apóstolo como justificativa. Sendo capital do império, Roma sem-
pre recebeu proeminência, e depois que o cristianismo se tornou a
religião do estado foi-lhe concedido, entre as igrejas do mundo ro-
mano, superioridade à altura de antiga capital imperial, mas, nunca foi
sugerido que seus bispos seriam árbitros da doutrina cristã. Nenhum
dos antigos concílios formados para resolver conflitos doutrinários se
reuniu em Roma, e nenhum de seus bispos jamais compareceu a um
desses concílios. Existem bons argumentos para afirmar que no Con-
cílio de Calcedônia, em 451 d.C., foi o Tomo do Papa Leão I, escrito
para a ocasião e enviado por mensageiros para ser lido à assembléia de
representantes, que convenceu os bispos a aceitarem sua compreen-
são da pessoa e da natureza de Cristo. No entanto, se isso for mesmo
verdade, os bispos foram convencidos pela força de seus argumentos,
e não porque Leão I era o líder da diocese principal do cristianismo
com o direito correspondente de determinar sua doutrina baseado em
sua própria autoridade.
A igreja de Roma é citada algumas vezes no Novo Testamento:
na famosa epístola que Paulo lhe escreveu por volta do ano 57 d.C.,
nos capítulos finais de Atos, e provavelmente, na referência obscura à
“Babilônia” encontrada em lPedro 5.13. Mas, a não ser por esta última
referência, que é indistinta, não há evidência da presença de Pedro em
Roma por ocasião do estabelecimento da primeira igreja cristã na cidade,
e certamente não há indicação de que ele foi seu dirigente. Com respeito
a isso, é particularmente relevante o fato de Paulo não mencionar Pedro
nenhuma vez em sua carta à igreja de Roma, algo realmente estranho
caso ele fosse o líder da referida igreja, especialmente porque Paulo
envia saudações a um grande número de pessoas menos influentes.13
Na verdade, os estudiosos estão cada vez mais convencidos que a
igreja de Roma não teve líder até quase o final do século 2; hoje, a lista
de papas aceita oficialmente é considerada pela maioria como lendária,
14 É preciso dizer que o termo “papa”, embora seja atualmente reservado no Oci-
dente para o bispo de Roma, podia ser aplicado na antiguidade ao líder de uma
igreja local e seu uso ainda é comum no Oriente para designar qualquer pároco.
15 Tito 1.5.
53
18 2Coríntios 10.16.
19 ICoríntios 1.10-17.
20 Efésios 2.20.
apenas como “falsos apóstolos”.21 Qual é o significado de apostolado,
onde (ou em quem) se encontra e como reconhecê-lo?
Na defesa que Paulo faz de seu ministério apostólico, descobrimos
que havia dois critérios essenciais para alguém ser apóstolo: tinha de
ser chamado por Deus e ter conhecido pessoalmente o Cristo ressus-
citado. Muitas pessoas, talvez cerca de seiscentas, viram Jesus após sua
ressurreição, mas, não se tornaram apóstolos.22 Portanto, não bastava
ter visto Jesus depois de sua ressurreição de entre os mortos. Era
também necessário ter sido chamado para esse ministério, que foi dado
somente àqueles que preenchiam o outro critério. Paulo sabia que era
uma exceção, pois não foi discípulo de Jesus e até perseguiu a igreja
antes de se converter, contudo, atribuía seu chamado apostólico a um
favor especial da graça de Deus que ele não merecia, e que não foi dado
a mais ninguém.23 Seguindo essa lógica, os apóstolos e seus ministérios
desapareceram na primeira geração, e, portanto, não pode haver nenhum
hoje em dia, embora o papado e alguns pequenos grupos protestantes
afirmem preservar o cargo em diversas formas.
Para os católicos, o papa é sucessor de Pedro, com todas as prer-
rogativas de seu ministério apostólico, e alguns pastores protestantes
já reivindicaram o título, mas, essa mentalidade era estranha à igreja
primitiva. Paulo instruiu Timóteo e Tito sobre a continuação de seu
ministério depois que ele morresse, mas, não afirmou que os dois se
tornariam apóstolos em seu lugar, e também não há evidências de su-
cessão apostólica em nenhum outro texto bíblico.
No entanto, o desaparecimento dos apóstolos e de seus ministérios
não significa que o apostolado deixou de ser relevante à vida da igreja.
Os apóstolos tinham a responsabilidade de transmitir o ensino de Jesus
a outros cristãos, não somente porque testemunharam o início de seu
ministério aqui na terra, mas, porque o Mestre lhes deu essa ordem,
após a ressurreição.24 Enquanto os apóstolos estivessem vivos, as igrejas
21 2Coríntios 11.13. Veja também 2Pedro 2.1, que fala sobre “falsos mestres” e
“falsos profetas”.
22 Veja ICoríntios 15.5-8.
24 Mateus 28.19,20.
סכ
25João 21.25.
Pedro João Paulo
IP edro J o ão 13 CARTAS ASSINADAS
M arco s 2 J o ão A tos
(J udas ) 3 J o ão (H ebreus )
(T iago )
26 Veja G. L. Cockerill, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids: Eerdmans, 2012),
p. 6-10, para uma recente avaliação sobre sua autoria, que favorece Apoio.
Apocalipse).27 A falta de evidências nos leva a afirmar que livros não
integrantes do presente cânon nunca foram aceitos como fidedignos
por qualquer número expressivo de cristãos. Mesmo uma obra como
O pastor de Hermas, embora anexada a códices importantes do Novo
Testamento, jamais alcançou posição canônica na igreja. Quem quer
que Hermas fosse, apóstolo ele não foi, nem foi intimamente ligado a
um deles, então, seu livro, por mais popular e útil que tenha sido, foi
sumariamente rejeitado.
Um aspecto capcioso do apostolado é não sabermos claramente
se ele era uma dádiva conferida a indivíduos que poderíam exercê-lo
por conta própria ou algo a ser praticado apenas coletivamente. Temos
certeza de que havia pelo menos doze apóstolos, mas, eles tinham de agir
em conjunto para que suas decisões fossem válidas? E se um apóstolo
discordasse do outro?
Nada comprova que logo no início da igreja os apóstolos discorda-
vam uns dos outros, e temos a impressão que trabalhavam de comum
acordo, mesmo que, em geral, Pedro fosse o porta-voz do grupo. Mais
tarde, Paulo foi trabalhar sozinho e achou desnecessário prestar conta
aos outros apóstolos, porque, como explicou aos gálatas, não havia sido
comissionado por eles, e sim pelo próprio Deus.28 Sua independência
era tanta que ele escreveu até mesmo a igrejas que não havia fundado
ou visitado, sendo Roma o exemplo mais conhecido. Paulo certamente
achava que seus conselhos eram apropriados e seriam ouvidos, mesmo
que ele não conhecesse pessoalmente a igreja à qual escrevia.
A única ocasião em que os apóstolos se reuniram para resolver
um problema é a registrada em Atos 15, quando determinaram que os
gentios convertidos poderíam ser membros ativos da igreja. Nesse caso,
a decisão coletiva que permitiu algumas concessões para apaziguar as
consciências judaicas mais sensíveis; na questão principal, entretanto, a
insistência de Paulo em admitir gentios foi ratificada, e sua repreensão
ao comportamento antigentílico de Pedro em Antioquia foi respeitada
(veja Gálatas 2.11-14). O consenso prevaleceu, e o assunto nunca mais
27 A autoridade clássica neste assunto é B. M. Metzger, The Canon of the New Testament.
Its Origin, Development, and Significance (Oxford: Oxford University Press, 1987).
28 Gálatas 1.11-17.
dividiu a igreja, embora possamos afirmar que as concessões feitas às
sensibilidades judaicas não foram amplamente aplicadas e desaparece-
ram rapidamente.
A única maneira de aplicarmos consistentemente a unidade apos-
tólica à igreja contemporânea é buscando o ensino comum do Novo
Testamento. Se nossa interpretação de um texto entrar em conflito com
outro texto, estaremos desunindo o testemunho apostólico e criando
divisão onde não deve existir divisão nenhuma. Se isso acontecer,
devemos concluir que nos equivocamos na interpretação do texto ou
estamos aplicando-o de forma errada, e, então, corrigir nossa posição.
A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA
29 ICoríntios 1.11.
reuniões de cristãos, mas, que conclusão tiramos disso?30 Os da casa de
Cloe, fossem quem fossem, não estavam separados dos outros cristãos
de Corinto, pois, se estivessem, não iriam se importar com divisões na
igreja que não afetavam suas vidas. É bem provável que participassem
de uma rede mais ampla de trabalho, contudo, não sabemos onde era
a sua base nem quem a liderava. Paulo não diz para quem suas cartas
foram escritas, mas, obviamente o destinatário era alguém digno de sua
confiança e que faria bom uso de suas missivas.
No caso da igreja de Corinto, Paulo diz que três de seus membros —
Estéfanas, Fortunate e Acaico - estavam visitando-o em Éfeso naquela
oportunidade, e possivelmente também se hospedavam com Priscila e
Áquila (que haviam se mudado de Corinto para Éfeso), em cuja casa
se reunia uma igreja, e que Estéfanas foi o primeiro a se converter em
Acaia.31 Podemos supor que os três visitantes levaram a carta de Paulo
quando voltaram para casa, mas, não fazemos a mínima ideia dos cargos
que ocupavam na igreja, se é que ocupavam algum cargo.
Quanto às outras igrejas, incluindo a de Roma, não sabemos prati-
camente nada. Imaginamos que a Carta de Paulo aos Romanos chegou
a eles pelas mãos de Febe, descrita como diaconisa da igreja de Cen-
creia (um dos portos de Corinto), mas, a quem ela entregou a carta?32
Priscila e Áquila são mencionados novamente, dessa vez na cidade de
onde foram expulsos em 49 d.C., e talvez tenham sido os primeiros
contatos de Paulo naquele lugar.33 Mas, até onde sabemos, nem eles
nem ninguém mencionado por Paulo no último capítulo de sua carta
exerciam posição de autoridade na igreja de Roma, e não há indicação
de que Paulo reconhecesse qualquer escalão de autoridade. Todavia o
conteúdo da carta sugere a existência de uma organização ativa com
a qual Paulo desejava se conectar para fazer de Roma uma base para a
evangeüzação da Espanha. O apóstolo também sabia da tensão existente
na igreja entre judeus e gentios, mas, que não chegaram a se dividir de
30 Para saber mais sobre Lídia, leia Atos 16.40, e sobre Priscila e Áquila, leia lCo-
ríntios 16.19.
31 ICoríntios 16.15-19.
32 Romanos 16.1,2.
34 Atos 6.6.
Filipe.35 Por outro lado, Paulo usou muito de seu tempo coordenando
um trabalho de socorro humanitário aos cristãos pobres da Judeia, uma
tarefa que teoricamente era dos diakonoi, supondo que o modelo de
Jerusalém tenha sido copiado por outras igrejas, o que não sabemos.36
Portanto, qualquer evidência bem definida de ministério diaconal é
ambígua e inconclusiva, e as distinções rígidas e inflexíveis feitas mais
tarde certamente foram desconhecidas da primeira geração de cristãos.
Há muito se entende que as primeiras igrejas tinham anciãos (pres-
byteroí), que exerciam liderança coletiva sobre elas e que esse sistema de
governo foi copiado da sinagoga. E possível pensar dessa forma, con-
tudo, a evidência de que as sinagogas possuíam liderança comparável à
do cristianismo é insatisfatória. Sem dúvida, as pessoas mais velhas eram
respeitadas e ouvidas na sinagoga, e provavelmente influenciavam muito
nas decisões, mas, não tinham cargo oficial.37 Por outro lado, existiam
em Jerusalém líderes religiosos que trabalhavam com os sacerdotes,
embora não se saiba exatamente o que realizavam.38 É óbvio que faziam
parte da estrutura judaica e não eram sacerdotes nem escribas, então,
supomos que exerciam cargo judicial e administrativo, conclusão que se
encaixa nos contextos em que são mencionados. E impossível afirmar
se serviram de modelo para a igreja primitiva, embora a existência
deles mostre que os primeiros cristãos não se surpreenderíam com a
presença de líderes semelhantes na igreja. No entanto, ninguém sabe
quem instituiu esses líderes e em que circunstâncias.
A primeira menção de presbíteros na Bíblia ocorre em uma campa-
nha contra a fome. O profeta Agabo foi a Antioquia relatar aos cristãos
dali o sofrimento dos irmãos em Jerusalém, e em resposta ao seu apelo,
35 Os dois foram escolhidos ao mesmo tempo; veja Atos 6.5.0 ministério de Estêvão
é mencionado em Atos 6.8, e o de Filipe, em Atos 8.26-40.
36 2Coríntios 9.1-15.
37 Para saber a natureza da evidência, veja R. Beckwith, Elders in Every City: The Origin
and Role of the Ordained Ministry (Carlisle: Paternoster, 2003), p. 28-41. O conceito
de um presbitério judaico como protótipo de seu equivalente cristão foi recen-
temente estudado e totalmente rejeitado por A. C. Stewart, The Original Bishops:
Office and Order in the First Christian Communities (Grand Rapids: Baker Academic,
2014), p. 121-34.
38 Atos 4.5. 8.23; 6.12:23.14:24.1: 25.15.
esses mandaram ajuda aos presbíteros da comunidade afligida.39 O
contexto nos leva a supor que esses presbíteros eram as pessoas certas
para receber as ofertas, levando-nos a pensar que exerciam papel ad-
ministrativo não muito diferente do exercido pelos diáconos, mas, isso
é tudo o que sabemos a respeito deles.
Os presbíteros são mencionados novamente durante a primeira
viagem de Paulo à Galácia. Depois de plantar igrejas em Antioquia,
Icônio e Listra, Paulo e Barnabé refizeram seus passos, encorajando
os novos convertidos e indicando-lhes “presbíteros em cada igreja”.40
Nada sugere que isso foi novidade, e não sabemos quem eram esses
presbíteros nem o que faziam. Pelo jeito, a educação teológica desses
homens era bastante rudimentar, pois tão logo Paulo se foi, as igrejas
da Galácia começaram a seguir os judaizantes que apareceram ensinan-
do que para serem cristãos de verdade, deveríam ser circuncidados e
guardar a lei de Moisés.41
Outros versículos de Atos deixam claro que a indicação de pres-
bíteros na Galácia não foi um acontecimento único. Depois de Paulo
ter ido a Jerusalém resolver os problemas, levantados pela missão à
Galácia, lemos que as decisões tomadas deveríam ser comunicadas às
igrejas por homens escolhidos pelos apóstolos e pelos presbíteros, assim
como pela igreja toda de Jerusalém.42 Não sabemos qual era a tarefa
dos presbíteros, mas, pela menção que lhes é feita, parece que tinham
papel especial na igreja. Não eram apóstolos nem diáconos, contudo,
exerciam autoridade associada à dos apóstolos e aparentemente igual
à deles. Certamente, quando as cartas foram entregues, ficou esclare-
cido que foram enviadas pelos apóstolos e presbíteros em Jerusalém,
esclarecimento que acrescentou autoridade às decisões nelas contidas.43
Também sabemos o que aconteceu quando Paulo parou em Mileto, a
caminho de Jerusalém. Enquanto esperava o navio zarpar, Paulo man-
dou um recado a Efeso, pedindo que os presbíteros da igreja fossem
39Atos 11.30.
40Atos 14.23.
41 Gálatas 1.6,7.
42Atos 15.22.
43Atos 16.4.
se encontrar com ele, no que foi prontamente atendido.44 A explicação
de Tiago sobre a unção dos doentes realizada pelos presbíteros deixa
claro que eles exerciam papel espiritual na igreja.45
Quem eram esses presbíteros? Seriam simplesmente pessoas mais
antigas na igreja, sem autoridade formal, cujas perspectivas, no entanto,
eram aceitas com o respeito normalmente dispensados aos mais velhos
na sociedade judaica? Ou eram líderes idôneos escolhidos ou indica-
dos (como e por quem?) para conduzir a igreja? Provavelmente, era
uma combinação das duas coisas. Para os apóstolos era perfeitamente
natural conceder reconhecimento formal a pessoas cuja senioridade já
despertava o respeito alheio, embora seja improvável que a idade fosse
o único critério para o cargo de liderança. Paulo comissionou Timóteo
a um cargo que lhe deu autoridade sobre os mais velhos, apesar de sua
evidente juventude, mesmo sabendo que isso podería causar problemas,
em algumas circunstâncias.46
As Cartas Pastorais deixam claro que as igrejas devem ter presbí-
teros, embora teólogos contemporâneos tomem isso como evidência
de que são de época pós-apostólica. Paulo enviou Tito a Creta com a
missão de indicar presbíteros em cada cidade, embora, novamente, a
ordem levante tanto perguntas quanto respostas.47 Tito deveria indicar
um presbítero para cada igreja? Como foi o processo de escolha? A
igreja de Jerusalém havia eleito seus primeiros diáconos, mas, parece
que isso não aconteceu em Creta, embora o critério de escolha dos
candidatos tenha sido semelhante. Os diáconos de Jerusalém deveríam
ser homens de boa reputação, e as Cartas Pastorais explicam claramente
o que isso significava.48 O presbítero deveria ser irrepreensível, ou seja,
monógamo, cujos filhos fossem cristãos e jamais acusados de rebeldia.
Deveria ser humilde, comedido, sóbrio, pacífico e generoso. Era es-
sencial que fosse hospitaleiro e disciplinado. Mais importante, deveria
44Atos 20.17.
45 Tiago 5.14.
46 ITimóteo 4.12. Problema semelhante apareceu mais tarde na igreja da Magnésia.
A MISSÃO DA IGREJA
61 Atos 1.8.
62Mateus 28.19,20.
63 Atos 9.2.
64 A obra definitiva atual sobre o assunto é Baptism in the Early Church: History, Theo-
logy, and Liturgy in the First Five Centuries (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), de E.
Ferguson. O livro foi escrito de uma perspectiva batista, com uma desenfatização
correspondente no batismo de toda a família como evidência de que o rito era
administrado às criancinhas.
praticado mais tarde.65 Esperava-se que esse batismo fosse acompanha-
do da descida do Espírito Santo, marcado de modo especial por um
irromper do falar em línguas, embora as duas coisas não estivessem
necessariamente ligadas uma à outra. Quando Pedro pregou a Cornélio
e sua casa, o Espírito desceu sobre eles antes de serem batizados, e há
outros exemplos de batismo (como o do eunuco etíope) que não foram
acompanhados de manifestações miraculosas.
Em pouco tempo, os “sinais e maravilhas” que acompanharam
os primeiros batismos se esvaíram a tal ponto que por volta do século
4, quando estudiosos abordaram a questão, eles tiveram de admitir
que desconheciam o assunto e supunham que essas coisas deixaram
de acontecer depois da primeira geração de convertidos. Em tempos
mais recentes, grupos pentecostais e carismáticos tentaram restaurar
esse componente da experiência cristã chegando mesmo a considerá-lo
fundamental, contudo, não o ligaram ao batismo como a igreja primitiva
o fez. Para a maioria dos cristãos atuais, não existe conexão óbvia entre
batismo e manifestação de dons espirituais extraordinários. O batismo
continua sendo uma exigência para quem quer ser membro da igreja,
entretanto, os dons são bem menos comuns e nunca enfatizados fora
dos círculos carismáticos.
Nunca se questionou o fato de os apóstolos e seus companheiros
batizarem quem fazia profissão de fé. A questão foi se batizavam filhos
de crentes ainda muito novos para tomarem decisão própria, e sobre
o modo em que o rito era administrado — os candidatos eram imersos
na água, aspergidos com água, ou havia uma combinação de ambos?
Pinturas cristãs antigas mostram Jesus e outros dentro de um rio com
água até os joelhos ou cintura e alguém despejando-lhes água na cabeça.
Esse era o método comum de batismo?
Como é o caso de muitas outras coisas, não há respostas definitivas
a essas perguntas. E elas só começaram a ser feitas de maneira séria a
65 Atos 19.2-5. Observe, contudo, que em alguns versículos anteriores, Apoio (que
só conhecia o batismo de João) foi plenamente instruído mas, aparentemente,
não foi batizado de novo (Atos 18.25,26). As questões levantadas por esses dois
exemplos são discutidas em Ferguson, Baptism, ρ. 180-82, porém ele não chega a
uma conclusão definitiva sobre como resolvê-las.
partir da Reforma do século 16; até então, parece que ninguém se pre-
ocupou em tratá-las como questão de princípio teológico. O batismo
por imersão, total ou parcial, certamente era praticado, mas, seria a
norma ou considerado essencial? É difícil acreditar, por exemplo, que
o carcereiro de Filipos e toda a sua casa tivessem sido batizados por
imersão no meio da noite.66 O importante era que o batismo deveria
acontecer o mais rápido possível após a profissão de fé, um princípio
que deve ter incentivado flexibilidade sobre como e onde aconteceria.
Uma coisa é certa: não havia necessidade de longa instrução dos can-
didatos ao batismo, e não eram obrigados a ser batizados durante um
culto na igreja, como acontece na maioria dos casos em nossos dias.
Se as criancinhas eram batizadas com seus pais cristãos é um assunto
altamente controverso sobre o qual não há resposta definitiva. Aqueles
que rejeitam a prática do batismo infantil tentam, claro, provar que o
batismo que praticam era o usado na igreja primitiva, e quem pratica
tal batismo tenta provar o contrário. Não há evidência suficiente para
decidir a questão de uma forma ou de outra, contudo, foi só a partir do
século 16 que as diferenças sobre o assunto dividiram a igreja. Quem
insiste em afirmar que somente devem ser batizadas as pessoas que se
professam cristãs está pressupondo que todas as pessoas de uma casa
fizeram tal profissão, embora o Novo Testamento não diga nada sobre
isso. Outro problema: enquanto um menino judeu era circuncidado
sem questionamento no oitavo dia de nascido e as crianças judias eram
incluídas nas festas da Páscoa, não há indicações de que prática seme-
lhante não era aplicada aos filhos pequenos dos cristãos com respeito
ao batismo ou à Ceia do Senhor. As mulheres eram admitidas na igreja
como sendo iguais aos homens, mas, as crianças não? Os pais deixavam
os filhos em casa na hora do culto ou proibiam que participassem da
Ceia? Se não, as crianças podiam comer o pão consagrado e beber o
vinho sem serem batizadas? Aqui também ficamos sem respostas.
Tudo o que sabemos é que por volta do ano 200 d.C. o batismo
infantil era uma realidade e que Tertuliano (ele mesmo diz) desaprovava
81 Atos 16.4,5.
821 Pedro 1.1. Anatólia é a Turquia de hoje na Ásia, e incluía as províncias mencio-
nadas na carta: Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia Menor e Bitínia.
83Tiago 1.1.
84 Gálatas 3.28.
exigida pelo evangelho. O que fizeram foi reestruturar a natureza dos
relacionamentos entre senhores e escravos de modo que a comunhão
dos cristãos fosse o fator determinante entre eles.
Os apóstolos não faziam vistas grossas às injustiças da escravidão,
mas, acreditavam que se submeter a ela era a maneira correta de imitar
a Cristo e que a obediência convencería os opressores de suas malda-
des.85 Acima de tudo, não tentaram abolir as diferenças entre homens e
mulheres estabelecidas desde a criação, mas, transformá-las. As esposas
deveríam se submeter a seus maridos, contudo, os maridos deveríam
se sacrificar por suas esposas, e assim alcançariam a igualdade em suas
diferenças.86
Essas ordens não eram simples conselhos para que houvesse paz na
comunidade; elas estavam diretamente ligadas ao relacionamento pri-
mordial de Cristo com a igreja, a sua noiva.87 A realidade da igreja devia
ser manifestada na vida de seus membros, que foram transformados
irrevogavelmente pela vinda do Espírito Santo. Indivíduos que haviam
sido profundamente imorais foram lavados, santificados e justificados
em nome de Jesus Cristo.88 Isso era essencial. A igreja era um corpo
de pecadores salvos pela graça, e essa salvação produziu neles uma
transformação comprobatória de que Deus havia começado uma obra
nova nesses convertidos e no mundo inteiro. Nem todos os membros
da igreja viviam de acordo com o padrão do evangelho, e tiveram de
ser disciplinados ou até mesmo expulsos, pois a congregação não podia
tolerar o comportamento pecaminoso deles.89
A igreja era o corpo de Cristo no sentido de que ele era a cabeça e
os cristãos faziam parte do Senhor. Todos os membros de uma igreja
tinham seu papel dentro dela, papel que podería ser bem diferente um
do outro, mas, era igualmente necessário e valioso. Nenhum membro
da igreja era descartável; todos eram importantes. Deus não mostra
parcialidade, assim, os que criam em Cristo eram aceitos de igual
88 ICoríntios 6.9-11.
89 ICoríntios 5.1-13.
modo.90 A exigência era que houvesse a mesma confissão de fé, sem
o que não haveria unidade.91 Por mais que os apóstolos acreditassem
na necessidade do batismo, a importância dele era ofuscada à luz do
evangelho.92 Da mesma forma, a Ceia do Senhor unia as igrejas, mas,
desde que não houvesse abusos.93 O sacramentalismo de gerações pos-
teriores não é encontrado no Novo Testamento, em que fé e a presença
íntima do Espírito Santo nos corações dos cristãos eram fatores que
determinavam quem pertencia ou não à igreja.
A igreja se manifestava em comunidades locais, contudo, estas
faziam parte de uma rede universal. Isso ficou claro desde o início, à
medida que os cristãos de diferentes cidades se mostravam solidários
com seus irmãos de fé que passavam por algum sofrimento.94 Essa
atitude recordava a todos que embora Cristo estivesse totalmente pre-
sente entre eles quando se reuniam, ele também estava edificando uma
comunidade que se estendia pelo mundo inteiro. Os apóstolos eram
testemunhas vivas dessa realidade. O encargo que receberam os leva-
va a diferentes lugares e mostrava às congregações locais o que Deus
estava realizando em outras partes do mundo. A presença da igreja era
constituída pela fé e os ensinos dos apóstolos. Paulo sabia que muitos
pregavam o evangelho pelos motivos errados. Alguns não gostavam
do apóstolo e tentavam competir com ele. Mas, em vez de repreender
tais pessoas e exigir que elas se submetessem à sua autoridade, Paulo
se alegrava, desde que o verdadeiro evangelho estivesse sendo anun-
ciado.95 O importante não era o mensageiro e sim a mensagem, pois
foi a mensagem que fundou a igreja, o pilar e o alicerce da verdade.96
Se isso constitui a “doutrina” da igreja depende muito de como
definimos nossos termos. Os apóstolos não tinham uma teoria testa-
da e aprovada de como a igreja deveria ser, contudo, sabiam em seus
corações o que ela era, e quando a oportunidade surgiu, expuseram
90Atos 10.34,35.
91 Gálatas 1.8,9.
92 ICoríntios 1.14-17.
93 ICoríntios 11.17-22.
95 Filipenses 1.15-18.
96 !Timóteo 3.15.
seus pensamentos. Com maior ou menor êxito, as gerações posteriores
tentaram ler a mente dos apóstolos, no entanto as palavras de Pedro
resumem o pensamento deles:
Vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edifica-
ção de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo
sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo [...]
Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo
exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou
das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram
povo, mas, agora são povo de Deus.97
Seria difícil dar uma explicação mais clara.
A igreja perseguida
ORTODOXIA E HERESIA
5 A. von Harnack, A History of Dogma, trad. Neil Buchanan (Londres: Williams &
Norgate, 1894—99), publicado originalmente como Lehrbuch der Dogmengeschichte
(Freiburg-im-Breisgau: J. C. B. Mohr, 1893); What Is Christianity?, tradução de T.
Bailey Saunders (Londres: Williams & Norgate, 1901), publicado originalmente
como Das Wesen des Christentums (Leipzig: Hinrichs, 1900); W Bauer, Orthodoxy and
Herety in Earliest Christianity, Robert Kraft e Gerhard Krodel (Orgs.) (Filadélfia:
Fortress, 1971), publicado originalmente como RechtglaubigheitundKetyereiim altesten
Christentum (Tübingen: Mohr, 1934).
6 J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3. ed. (Londres: Longman, 1972); Kelly, Early
Christian Doctrines, 5. ed. (Londres: A. & C. Black, 1977); Η. E. W Turner, The
Pattern of Christian Truth (Londres: Mowbray, 1954).
de homens como Basilides e Valentim, que não escaparam da conde-
nação das gerações futuras, as quais os consideraram “heréticos”. Seria
então possível crer que essas pessoas foram vítimas de uma tomada de
poder político da igreja por um grupo que se proclamou “ortodoxo”
à custa de todo mundo?
De qualquer forma, os participantes desse debate concordaram que
por volta do século 3 (o mais tardar) havia uma diferença consciente
entre os “ortodoxos” e os outros, e que os primeiros controlavam a
alavanca da igreja no mundo inteiro. Nesta fase, talvez não existisse uma
definição exata de ortodoxia, contudo, havia sinais de que candidatos
ao batismo tinham de responder a uma série de perguntas destinadas
a desenraizar crenças consideradas divergentes, e os executores de tais
disciplinas se mantinham em contato por meio de concílios periódi-
cos que se reuniam para desenvolver políticas doutrinárias gerais. Ao
mesmo tempo, surgiu o episcopado monárquico em algumas, igrejas,
o que era necessário para o funcionamento desse sistema idealizado.
Cada igreja tinha de ter um líder e porta-voz reconhecidos, capaz de
articular a crença ortodoxa e aplicá-la em sua congregação.
Os detalhes desse cenário são desafiados e modificados com
frequência, contudo, o esboço geral tem se mostrado extremamente
resistente. Mas, até que ponto esse é um retrato justo da igreja primiti-
va? Como é o caso de tudo relacionado a essa época, as evidências são
escassas e, na maioria dos casos, podem ter diferentes interpretações.
Irineu atacou os “hereges” por todos os lados, mas, qual era na ver-
dade seu relacionamento com essas pessoas e quais seus motivos para
condená-las? Era uma tentativa de proteger a pureza da igreja (como
ele dizia) afunilando-a de modo a incluir somente quem concordava
com ele?
Até que ponto a reconstrução que Tübingen fez do cristianismo
primitivo é plausível? Fundamentalmente, é difícil negar que os primei-
ros cristãos tinham uma noção básica de um modo certo e um errado
de acreditar em Jesus, mesmo que, às vezes, discordassem sobre eles.
Mesmo que não usassem termos como “ortodoxia” e “heresia”, os
conceitos estavam presentes, e foi apenas uma questão de tempo até
as diferentes formas de crenças serem rotuladas de certas e erradas.
Em parte, essa distinção remontava ao judaísmo, embora nos círculos
judaicos a diversidade de opiniões aceitáveis fosse mais ampla do que
seria no cristianismo. Por exemplo, alguns judeus negavam a ressurreição
dos mortos, crença que não era viável aos cristãos. Portanto, desde o
início, a igreja aceitava apenas um escopo de opiniões mais restritas do
que as aceitas pela sinagoga, pois, caso contrário, sua mensagem central
ficaria irremediavelmente comprometida.
No entanto, muitos (se não a maioria) dos falsos mestres dos quais
Paulo reclamou queriam restringir a igreja de um jeito diferente: impon-
do aos membros práticas judaicas. Os cristãos tinham mais liberdade
que os judeus em questões práticas como comida e bebida, mas, não
quanto à crença, o que era inevitável, pois uma vez que a atenção estava
concentrada na pessoa e obra de Jesus Cristo, o que era dito (ou poderia
ser dito) a respeito dele tinha vital importância.
Se os cristãos discordassem sobre a pessoa de Jesus e o que ele
havia realizado, ou se as suas opiniões fossem tão vagas a ponto de
se tornarem inexpressivas quando postas à prova, sua fé seria vazia e
o evangelho nunca poderia ser anunciado. Crer em uma encarnação
divina era anátema aos judeus e incompreensível àqueles gentios que
consideravam a matéria maligna e fundamentalmente oposta à bondade
de Deus.
Todavia, se os cristãos duvidassem da encarnação, não teriam um
Salvador a quem anunciar. Por mais bem intencionadas que algumas
tentativas de reconciliar essas posições incompatíveis tenham sido, eram
perigosas e tinham de ser combatidas. Jesus não poderia ser metade
homem, nem fantasma, nem um ser angelical em forma humana. Ele
tinha de ser sem pecado, mas, capaz de se tornar pecado por nós. De
um alguma forma, humanidade e divindade tiveram de ser reconciliadas
nele. Foram necessários muitos séculos para se desenvolver uma reso-
lução que agradasse aos cristãos, e mesmo assim houve discordância,
mas, a necessidade de uma declaração de fé transparente e inequívoca
no Filho de Deus encarnado sempre foi prioridade. O mesmo se deu
em relação ao Espírito Santo, cujo agir e presença eram fundamentais
ao viver cristão e cujo relacionamento com o Pai e o Filho precisava ser
entendido corretamente. Encontrar um preceito que transmitisse essa
ideia também foi difícil, e até hoje não se descobriu um que seja uni-
versalmente satisfatório, entretanto, os cristãos sabiam que precisavam
dizer algo que explicasse sua fé da maneira mais clara e exata possível.
As tentativas mal concebidas foram inevitáveis, e algumas tiveram de
ser descartadas. É questionável se as pessoas que apresentaram tais
soluções deveríam ser condenadas como malignas traidoras da fé, e é
certo que hereges sofreram injustamente por seus erros, mas, falando
de modo objetivo, a igreja não tinha outra escolha a não ser advertir
seus membros a não sucumbirem à forma de pensar que destruiría o
evangelho, e os desviaria da fé.
O apóstolo Paulo foi particularmente sensível à possibilidade de
sua mensagem ser adulterada, e o fato de sua missão ser importunada
por falsos profetas que buscavam desfazer seus ensinos, assim como
por membros de igreja que contestavam sua autoridade, apenas afiaram
sua sensibilidade nessa questão. Ao escrever aos gálatas, por exemplo,
ele afirmou: “Mas, ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evan-
gelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!”'
Paulo sabia que isso andava acontecendo, mas, seu interesse prin-
cipal não eram os detalhes dos erros que seduziram os gálatas. No que
lhe dizia respeito, qualquer desvio de seu ensino deveria ser reprovado,
fosse lá como fosse. Esses erros seriam identificados corretamente mais
tarde, contudo, o importante era reconhecer o problema e lidar com ele,
e, acima de tudo, foi por isso que Paulo escreveu sua carta. Antes de ser
dogma da fé, a ortodoxia era assunto do coração. A menção do tema
em Gálatas é de especial importância, pois essa foi uma das primeiras
cartas escritas por Paulo, sempre considerada autêntica. Se o apóstolo
falava tão francamente logo no início de sua carreira missionária, como
duvidar que as repreensões feitas em outras cartas do Novo Testamento
não tenham origem igualmente antiga?
Não se sabe a natureza exata das heresias que surgiram na igreja
do Novo Testamento, embora estudiosos tenham descoberto formas
precoces de gnosticismo na linguagem usada para combatê-las. Isso
não deve causar estranheza, uma vez que o mundo pagão era domina-
do por filosofias dualistas para as quais o espírito era bom e a matéria 7
7 Gálatas 1.8,9.
era ruim, uma divisão que os cristãos ortodoxos não aceitavam por
ser incompatível com o relato bíblico da criação e com a encarnação
do Filho de Deus. Ao combater opiniões desse tipo, os líderes cristãos
compreenderam que a igreja tinha de reestruturar o universo mental
do mundo antigo para que sua mensagem de salvação tivesse algum
significado. Mas, antes de lidar com o paganismo dominante, a igreja
precisava estar unida dentro de suas próprias fileiras, e isso exigia a
aplicação de disciplina mais severa do que a usada no início.
A natureza das heresias enfrentadas pela igreja e o escopo de sua
influência podem ser medidos pelos escritos de Irineu (morto em
200?), natural de Esmirna, e que mais tarde se tornou bispo de Lyon,
cidade situada hoje no sul da França. Irineu desenvolveu um catálogo
enciclopédico contendo todas as formas de desvios da fé que conhecia
e refutou todos eles com a defesa da verdade cristã a que eles se opu-
nham.8 Sua obra não era uma teologia sistemática no sentido amai da
palavra, contudo, era abrangente, e Irineu foi o primeiro escritor cristão
a deixar material suficiente para reconstruirmos um sistema completo
de crença.9 O fato de Irineu também ser bispo é revelador, porque a
essa altura tornava-se cada vez mais evidente que os bispos tinham a
responsabilidade de proteger e defender a fé da igreja. Isso não quer
dizer, de jeito nenhum, que todos os teólogos tinham função episcopal
- Tertuliano e Orígenes, só para mencionar os dois mais importantes
da geração seguinte, eram leigos -, mas, eram os bispos, na posição de
líderes de suas igrejas, que decidiam o que era aceitável ou inaceitável
como ensino ortodoxo cristão.
A ortodoxia também estava tomando a forma da confissão de fé
imposta aos candidatos ao batismo. A prática neotestamentária de ba-
tizar a pessoa logo após sua confissão de fé foi abandonada em favor
de um período de instrução ou catequese, como era chamado, em que
os novos convertidos aprendiam os rudimentos do cristianismo. Ao
se apresentarem para o batismo, normalmente realizado durante um
culto na igreja, os candidatos eram sabatinados sobre o que haviam
A PROPAGAÇÃO DO EVANGELHO
13 Para um estudo desse processo, veja T. A. Robinson, Ignatius of Antioch and the
Parting of the Ways: Early Jewish-Christian Relations (Peabody, MA: Hendrickson,
2009).
14 Veja Tertuliano, Ad martyras, escrito no fim do século 2 e seu Apologeticum 50.5-7.
mesmo a morte por causa da fé, e eles se apoiavam mutuamente. Na
presença dos cristãos, os outros sentiam que estavam lidando com um
poder espiritual ao qual podiam se opor, mas não derrotar. De modo
gradual, mais e mais pessoas foram persuadidas da verdade, e a igreja
passou a conquistar novos convertidos.
Além de sua força interior e sua crescente rede de congregações, a
igreja tinha algo mais a oferecer ao mundo greco-romano: a coerência
intelectual de suas doutrinas. A sociedade pagã antiga estava dividida
em um grupo de pessoas que praticavam uma religião que mal se
distinguia da superstição e uma elite intelectual que menosprezava as
crenças populares e buscava conforto em diferentes tipos de filosofia.
A situação não seria tão ruim se todas as filosofias adotadas estivessem
de acordo no que era essencial, mas, não era o caso. O estoicismo, por
exemplo, ensinava que tudo o que existia era material. Até mesmo os
espíritos não passavam de formas refinadas de matéria, uma crença
que nos parece estranha, mas, ao menos era uma tentativa de superar o
dualismo predominante em outros sistemas filosóficos. Os platonistas
eram nitidamente antagônicos aos estóicos, e estavam lentamente trans-
formando os ensinos de seu mestre em uma pseudorreligião própria.
Para eles a realidade era espiritual - as coisas materiais não passavam
de deturpações do ideal. E assim foi; epicureus, cínicos, aristotelianos
e outros apresentaram várias formas de pensamento filosófico, mas,
nenhuma se mostrou satisfatória quando examinada mais profunda-
mente, e nenhuma delas conseguiu remover a superstição das massas.
Nesse contexto foi que os evangelistas cristãos viram sua oportu-
nidade, e não a deixaram passar. Eles ridicularizaram implacavelmente
as inconsistências e deficiências dos vários sistemas de crença pagã que
encontraram pela frente, e em substituição a essa crença, ofereceram
uma fé que acolhia o raciocínio, mas, não era limitada a ele. Ensinavam
que além de o universo possuir uma consistência interna global, era
possível conhecermos seu Criador pessoalmente. Na verdade, foram os
cristãos que introduziram nos discursos intelectualmente sérios a ideia
do relacionamento pessoal com Deus como alicerce da vida humana.
Os filósofos discursavam sobre amizade, mas, somente entre iguais e
reservada apenas à elite intelectual. Mais ainda, a amizade tinha uma
forte dimensão homoerótica garantindo que nunca se tornaria ampla-
mente popular. Em contrapartida, a igreja possuía uma visão coerente
de um mundo guiado e governado pelo amor, no qual cada elemento
tinha seu lugar próprio. Os conflitos não eram embates entre forças
abstratas da natureza, mas, o resultado da desobediência e rebeldia con-
tra o Criador, situação que ele mesmo teve de corrigir mandando seu
Filho transpor a inimizade criada pelo pecado e dar aos seres humanos
a possibilidade de recuperar a harmonia desfeita.
Essa mensagem tinha um grande apelo, e a partir de mais ou menos
150 d.C., e certamente depois de 200 d.C., os cristãos eram intelectuais
do mesmo gabarito daqueles do mundo romano. Isso era especialmente
notório nas tentativas que os pagãos faziam para combater a influência
cada vez maior dos cristãos. Um deles, certo homem chamado Celso,
que escreveu por volta de 180-90 d.C., foi refutado ponto a ponto por
Orígenes em uma defesa monumental do cristianismo, que continua
sendo uma leitura de grande proveito.15 O mais interessante sobre Celso
é que ele já havia aceitado as premissas fundamentais do pensamen-
to cristão. Ele concordou com seus oponentes que o mundo era um
universo organizado e que era possível viver em harmonia com ele. A
diferença era que, em sua opinião, um filósofo podería fazer isso tão
facilmente quanto um cristão — na verdade, mais facilmente até, pois
podería subtrair os princípios primordiais e transformá-los no âmago
de seu sistema de crenças, sem ter de se prender a detalhes materiais
ou ligar-se a uma figura histórica como Jesus.
Ao provar a impossibilidade de separar o material do espiritual e
proclamar que em Cristo o ideal cristão havia se tornado um ser hu-
mano específico, Orígenes mostrou que o cristianismo era superior a
qualquer coisa que os pagãos tinham a oferecer, o que inevitavelmente o
tornou mais atraente a um grupo cada vez maior de pessoas instruídas.
A estratégia básica era clara: quando os pagãos começassem a raciocinar
como os cristãos, pessoas como Orígenes argumentariam que a resposta
cristã às suas perguntas era melhor do que qualquer uma que pudessem
O BATISMO DE FOGO
16 Tertuliano,Apologeticum, 50.13.
17 Para saber a visão favorável de Tertuliano sobre Sêneca, leia seu De anima 20.1.
18 Mateus 27.15-26.
1KJ/
19 Lucas 12.49-53.
20 Gálatas 2.19,20.
21 Filipenses 1.21-23
22 Atos 6.8—7.60
23 Atos 7.58.
Paulo, como costumamos chamá-lo) tinha mais consciência do perigo
que seus oponentes representavam, e parece que a morte estava sem-
pre a rondá-lo.24 Acredita-se que Paulo e Pedro foram martirizados
por causa da fé, embora não se saiba quando e onde isso aconteceu.
Provavelmente foi em Roma, depois do grande incêndio de 64 d.C.,
pelo qual Nero culpou os cristãos. A acusação era fátua, claro, como a
população reconheceu, mas, quando os cristãos ficaram sob suspeita, as
autoridades tiveram dificuldade em mudar o curso dos acontecimentos.
Não se sabe a duração da primeira perseguição ou até onde ela se
estendeu, contudo, os cristãos não tiveram mais sossego. No entanto,
a morte não era o único castigo imposto pelas autoridades. João foi
exilado na ilha de Patmos, mas, sobreviveu à experiência, até onde
sabemos.25 Não havia diretrizes ou procedimentos no trato dado aos
cristãos, um problema que gerou incerteza e aumentou a possibilidade
de sofrerem arbitrariamente. Em 111 d.C., na Bitínia, os cristãos são
denunciados às autoridades, que não sabiam como puni-los. Plínio, o
Jovem, governador da província naquele ano, escreveu ao imperador
Trajano sobre o problema, todavia sua maior preocupação era o que
fazer com as denúncias, muitas delas anônimas. Nunca lhe ocorreu, tam-
pouco ao imperador, que ser cristão não era crime; os dois concordaram
que era e nem questionaram a decisão. Plínio pressupôs que existiam leis
contra o cristianismo e apenas queria saber como aplicá-las. Trajano o
aconselhou a ignorar denúncias anônimas, pois eram indignas dos altos
padrões da justiça romana, contudo, não se aprofundou no assunto.
Essa situação curiosa continuou por mais dois séculos. Apologis-
tas cristãos enfatizavam seguidamente que eles não eram culpados de
nada e que persegui-los era um ato irracional. No entanto, embora o
argumento deles fosse incontestável, isso não impediu o governo de
perseguir seus alvos. Mas, mesmo que o cristianismo fosse conside-
rado ilegal, seria um erro afirmar que a perseguição praticada contra
ele era constante ou universal. Houve longos períodos em que quase
nada foi feito para eliminá-lo, e algumas áreas do império foram bem
pouco atingidas. As autoridades romanas não tinham meios de aplicar
24 2Coríntios 11.23-27.
25 Apocalipse 1.9.
as leis como os países de hoje têm, e geralmente tinham coisas mais
importantes a fazer. Contudo, a ameaça de perseguição era uma som-
bra constante, e se acontecesse um desastre natural que exigisse uma
vítima para aplacar a ira dos deuses, os cristãos eram bodes expiatórios
convenientes. Todavia, estudiosos contemporâneos concordam que
o retrato tradicional que mostra cristãos sendo atirados aos leões no
Coliseu é inexato. Não existe evidência nenhuma disso ter acontecido;
a lenda é totalmente baseada em uma frase memorável de Tertuliano,
segundo quem toda vez que algo dava errado o povo gritava: “Cristãos
aos leões”.26
Apesar de as lendas serem exageradas, ataques intermitentes e lo-
calizados aos cristãos eram sempre um perigo, e de tempos em tempos
o estado procurava lidar com o problema de uma vez por todas. Duas
perseguições maiúsculas, uma sob o comando do imperador Décio, em
251 d.C., e outra sob o comando de Diocleciano, em 303-5, se destacam
como especialmente significativas, e a segunda provocou uma crise que
levou o cristianismo a ser considerado legítimo.
A perseguição liderada por Décio aconteceu depois de um período
relativamente longo de paz e foi ocasionada pela percepção gradativa
de que os cristãos estavam em todos os lugares. Alguém que sofreu
nessa época foi o notável teólogo Orígenes (185P-254), espancado com
tamanha selvageria que nunca se recuperou dos ferimentos. Cipriano de
Cartago (200P-258) foi decapitado alguns anos mais tarde, na segunda
onda de perseguições, contudo, os detalhes da brutalidade são obscu-
ros. É nítido, porém, que membros da igreja instruídos e proeminentes
foram perseguidos de um modo nunca visto por quase um século, o
que inevitavelmente agravou uma situação que já era dolorosa.
No entanto, foi a grande perseguição liderada por Diocleciano que
provocou a verdadeira crise. Diocleciano foi um imperador vigoroso
e reformador, determinado a endireitar o império de uma vez por to-
das. Livrar-se da ameaça cristã era parte integrante de seu plano. Para
Diocleciano, somente uma perseguição total e completa iria dar algum
resultado, então, ele iniciou o que hoje chamaríamos de reinado de
terror. Os cristãos eram detidos e obrigados a entregar livros e outros
26 Tertuliano, Apologeticum 40.2.
objetos de valor que possuíssem. Quem obedecesse era considerado
traditor (entregador), palavra que chegou a nós como “traidor”. A
grande perseguição foi devastadora, porque ao redor do ano 300 um
grande número de pessoas importantes era cristão. Muitas tentaram
fugir, e algumas renunciaram à fé para salvar a pele. Contudo, outras
enfrentaram corajosamente a morte, e provavelmente essa perseguição
que durou dois anos gerou mais mártires do que todas as outras juntas.
A perseguição do imperador Diocleciano findou em 305, quando
ele abdicou do cargo, e ficou claro que havia fracassado. Um número
grande demais de cristãos havia sobrevivido aos ataques, e aqueles
que foram mortos se transformaram em heróis da noite para o dia.
De alguma forma, o império teria de fazer as pazes com a igreja, o que
aconteceu ao longo dos próximos dez anos. Diocleciano viveu para ver
o acontecimento — ele morreu em 316 — mas, como estava afastado
do trono, não pôde fazer nada a respeito. A cruz de Cristo finalmente
triunfou sobre a águia de Roma.
A igreja acreditava que os mártires foram diretamente para o céu
quando morreram. Talvez houvesse dúvidas quanto ao estado espiritual
daqueles que pecaram depois de serem batizados, contudo, o batismo
de fogo liquidou qualquer dívida que tivessem com Deus. Os mártires
rodeavam o trono de Jesus, o Cordeiro que foi morto, e imploravam
justiça para o povo de Deus na terra.27 De todas as ligações que a igreja
tinha entre este mundo e o futuro, as súplicas dos mártires no céu era
uma das mais poderosas. Em geral, a crença era que os mártires car-
regariam por toda a eternidade as feridas de seus sofrimentos como
distintivos de honra. O sofrimento era motivo de glória — desde que
fosse indesejado. Quem buscasse viver para Cristo seria perseguido,
acreditava-se, então, era agindo da maneira correta que o povo de Deus
cumpriría a ordem do Senhor de pegar a sua cruz e segui-lo. Assim,
o martírio se tornou garantia de santificação, para a qual havia prova
concreta. As boas obras talvez fossem realizadas em oculto, porém
os mártires eram vistos por todos, e recebiam a honra apropriada. Os
sepulcros dos mártires se tornaram centros de peregrinação, e muitos
acreditavam que suas relíquias tinham poder de cura.
27 Apocalipse 6.9-11.
Tal superstição nunca foi aprovada por nenhum concilio eclesiásti-
co, mas, era amplamente difundida, especialmente na África do Norte,
e mostrou ser de difícil trato quando a perseguição oficial à igreja aca-
bou. Muitos especulavam se as perseguições findaram porque a igreja
perdeu sua ousadia e acomodou-se ao mundo. Em Cartago, uma cisão
irrompeu na igreja quando uma mulher chamada Lucila pediu que o
bispo abençoasse os ossos de um mártir enquanto ela recebia a ceia.
Como o bispo recusou o pedido, Lucila e seus partidários o acusaram
de colaborar com os inimigos da igreja que haviam perseguido bem
recentemente. Parece que Lucila era uma encrenqueira inveterada.
Quando o referido bispo, chamado Ceciliano, foi eleito em 305, Lu-
cila e seus amigos o repeliram porque ele foi consagrado por Félix de
Aptunga, que havia entregado as Escrituras às autoridades durante a
grande perseguição. O grupo, então, procedeu à eleição de um bispo
rival, um certo Majorino, e envidaram todos os esforços para que ele
fosse aceito no lugar de Ceciliano. Buscaram até mesmo a ajuda do
imperador Constantino, logo após ele ter legalizado o cristianismo em
313, mas, não conseguiram convencê-lo do mérito de seu caso.
Em consequência, Lucila e seus amigos se apartaram da igreja
tradicional, acusando-a de se acomodar ao mundo e de impureza, e
organizaram congregações de cristãos verdadeiros. Ficaram conheci-
dos como donatistas, em homenagem a Donato, que foi um de seus
primeiros líderes, e tudo indica que foi um bispo de qualidades e caráter
excepcionais. O donatismo tinha um apelo emocional fortíssimo ao
povo que havia sofrido perseguição e sentiu-se traído pela igreja, que
aos seus olhos, estava mais interessada em conquistar favores de seus
antigos perseguidores do que em imitar aqueles que entregaram suas
vidas por amor a Cristo. Seu poder se esvaiu apenas um século mais
tarde, e mesmo assim, sobreviveu enquanto existia uma igreja cristã na
África do Norte.28
Enquanto a perseguição durou, o martírio era um lembrete pode-
roso de que a igreja estava em guerra com as forças que governavam
este mundo. Sua missão nunca contemplaria integração na sociedade
28 Sobre o Donatismo, veja W. H. C. Frend, The Donatist Church: A Movement of Protest
in Roman North Africa (Oxford: Oxford University Press, 1952).
uz
O DESENVOLVIMENTO DO EPISCOPADO
pela congregação para serviço vitalício29, passou a ter cada ve2 mais
autoridade. Nos tempos modernos, dá-se muita ênfase, especialmente
na tradição católica, ao que chamamos de sucessão apostólica, que é
supostamente transmitida de uma geração à outra pela imposição de
mãos. Contudo, para a igreja primitiva, o que importava não era quem
impunha as mãos em quem, mas, se o bispo eleito preenchia os critérios
rigorosos estabelecidos para o oficio nas Epístolas Pastorais. Alguém
podería ser consagrado pelas pessoas certas e ainda ser inaceitável caso
sua vida e doutrina ficassem abaixo do exigido, e nessas circunstâncias
os primeiros cristãos não hesitavam em depor o líder. Já no Didache nós
lemos: “Constituam para vocês bispos e diáconos que sejam dignos
do Senhor; homens que sejam humildes, não avarentos, sinceros e
experientes, porque também lhes servem como profetas e mestres”.30
Clemente de Roma, ao escrever por volta de 95 d.C., expressou
idéias parecidas. Clemente tinha ciência da competição para o cargo
episcopal e advertiu a igreja para que não rescindisse uma nomeação a
não ser que houvesse uma boa razão para isso.31
Alguns anos mais tarde, Inácio de Antioquia orientou as igrejas
a se submeterem aos bispos e presbíteros, embora fizesse questão de
afirmar que não podería lhes dizer o que fazer, pois não tinha a mesma
autoridade de um apóstolo.32 Apesar de se ver ocupando uma posição
subordinada à dos apóstolos, Inácio não hesitou em comparar o rela-
cionamento de um bispo com seus presbíteros ao de Cristo (ou Deus)
com seus apóstolos.33 Na opinião de Inácio, existia uma harmonia divina
entre o céu e a terra que se refletia na hierarquia de autoridade origi-
nária do Pai ao Filho, e deste para os bispos e presbíteros da igreja na
terra. O bispo tinha duas responsabilidades principais: primeiramente,
foi chamado a anunciar a Palavra de Deus na igreja, e Inácio advertiu
29 Como é provável que ele já fosse alguém de idade quando eleito, e as pessoas em
geral não viviam tanto quanto hoje, possivelmente um bispo não servia por muito
tempo.
*Didache 15.
31 / Clemente 44. A mesma advertência foi feita por Cipriano de Cartago, ao escrever
38 Cipriano de Cartago, Epistulae 3; 14; 22,23; 28; 40; 43; 47; 51.
44 Martyrdom of Polycarp
19.
45 Teófilo de Antioquia, AdAutolycum 2.14.
46 Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 1.10.1.
colhidos de entre o laicato, não são necessários à constituição da igreja, que pode
existir muito bem sem eles.
52 Orígenes, Contra Celsum 6.45.
A igreja império
A Igreja e o Estado
A legalização do cristianismo em fevereiro de 313 foi um aconte-
cimento que teria implicações profundas para a igreja e para a história
mundial. Do ponto de vista teológico, não havia motivo para isso fazer
qualquer diferença à igreja. Ela não adquiriu repentinamente uma nova
doutrina, nem teve de alterar sua estrutura ou formato de culto. As
mesmas crenças, os mesmos bispos e as mesmas práticas de devoção
continuaram como antes. As mudanças foram de natureza totalmente
diferente, entretanto, seu efeito cumulativo foi transformador. Quando
essas mudanças se enraizaram, a imagem pública do cristianismo ficou
irreconhecível, e gostemos ou não, as consequências da transformação
nos acompanham até hoje.
No curto prazo, a legalização da igreja terminou com a hostilidade
entre o governo romano e seus cidadãos cristãos, para a qual nunca
houve justificativa verdadeira, e deu à igreja a chance de respirar livre-
mente e estender suas asas. É importante ter em mente que os eventos
de 313 não transformaram o cristianismo em religião estatal. Isso não
aconteceu até 28 de fevereiro de 380, quando o imperador Teodósio
I (r. 378—95) emitiu um decreto nesse sentido. Só então as seitas e os
templos pagãos foram oficialmente reprimidos, incluindo os Jogos
Olímpicos. No ínterim, duas gerações de cristãos coexistiram com ou-
tros sistemas religiosos. A família imperial costumava pertencer à igreja
e favorecê-la sempre que possível, contudo, a maioria dos imperadores
era simpática aos arianos, e isso os colocou em rota de colisão com os
líderes ortodoxos da igreja e resultou em uma série de confrontos que
Constantino provavelmente nunca previu. De maneira alguma podemos
afirmar que o estado tomou conta da igreja e dobrou-a às suas vontades,
embora muitos hoje em dia erroneamente pensem assim.
Para entender o que aconteceu é necessário voltar ao fim do século
3, quando o Império Romano experimentou uma crise semipermanen-
te causada pela falta de uma linhagem reconhecida de sucessores ao
trono imperial. Cada vez que um imperador morria ou era removido
do trono, surgiam vários candidatos rivais, e algo parecido com uma
guerra civil acontecia. As organizações estatais eram robustas o bas-
tante para sobreviver aos motins, contudo, o tempo era de insegurança
crescente, e não foi por acaso que a igreja progrediu a passos largos
nessa época.1 Quando Diocleciano se tornou imperador em 285, ele
decidiu que doravante havería quatro imperadores: dois mais velhos
e dois mais novos. Os mais velhos ficariam um na parte oriental e o
outro na ocidental, sendo que cada um teria a assistência de um dos
imperadores mais jovens; o imperador mais velho teria precedência
sobre o mais novo. Depois de vinte anos, os imperadores mais velhos
se aposentariam e seriam sucedidos pelos mais jovens, que, por sua vez,
nomeariam outros para os lugares dos dois que saíram.
Em 1 de maio de 305, Diocleciano se demitiu, conforme o combi-
nado, e impeliu sua contraparte ocidental, Maximiano, a fazer o mesmo.
Maximiano foi sucedido por Constâncio, seu antigo aliado, que coman-
dava as tropas romanas na Britânia. Infelizmente, Constâncio morreu
depois de apenas um ano no cargo, e o exército estacionado em York
prontamente elegeu seu filho Constantino para sucedê-lo. Esse ato
feriu o sistema estabelecido por Diocleciano, embora compreensível
diante das circunstâncias, e a eleição irregular de Constantino não foi
reconhecida pelos outros imperadores. Para complicar ainda mais a
situação, Magêncio, filho de Maximiano, reivindicou o trono do pai, e
Constantino teve de lutar contra ele para assegurar sua posição. Durante *
O nome turco contemporâneo é uma corruptela do grego eis tenpolin (na cidade),
porque em grego Constantinopla sempre foi conhecida simplesmente como “a
cidade”.
separado fosse restabelecido, os imperadores residiríam não em Roma,
mas, em Milão ou Ravena, onde estariam mais perto das fronteiras que
precisavam ser guardadas contra a sempre presente ameaça bárbara.
Politicamente falando, Roma declinou e tornou-se uma sombra do que
era, embora continuasse o centro espiritual do império, especialmente
no ocidente que falava latim.
A construção de Constantinopla trouxe um dilema para a igreja.
Antes de 330, Bizâncio não tinha seu próprio bispo, e dependia de
Heracleia, uma cidade vizinha. Obviamente essa situação não poderia
continuar, e em pouco tempo Constantinopla conseguiu um bispo e
uma estrutura eclesiástica. Mas, onde eles se encaixariam no grande
esquema das coisas? Naturalmente, o bispo da capital não poderia
ficar subordinado a Antioquia (de cuja jurisdição Constantinopla fazia
parte). Sendo a Nova Roma, a cidade merecia um lugar ao sol - como
ela mesma achava, imediatamente depois da Antiga Roma. Porém, fa-
lar era mais fácil do que fazer. Dar o segundo lugar a Constantinopla
significava rebaixar Alexandria, que era a principal cidade do mundo
grego da época. Também era uma ameaça em potencial a Roma, pois
se um dia o seu prestígio acabasse, sua igreja poderia ser rebaixada,
assim como sua posição secular havia sido.
Essa questão delicada foi tratada no Primeiro Concilio de Cons-
tantinopla, em 381, e a decisão foi que deveria haver uma ordem de
precedência que colocasse Roma em primeiro lugar, Constantinopla
em segundo, Alexandria em terceiro, Antioquia em quarto e Jerusalém
em quinto. Antes disso, Jerusalém, até então interiorana e atrasada, nem
mesmo estava na lista hierárquica, e sua aparição repentina reflete uma
mudança ideológica. Ao passo que a ordem de precedência do Concilio
de Niceia I levou em conta a importância secular das cidades envoi-
vidas, o Concilio de Constantinopla I tinha um viés espiritual. Roma
ficou em primeiro lugar não somente por ser a capital, mas, também
por ser o lugar onde Pedro foi martirizado. Isso naturalmente resultou
na inclusão de Jerusalém por ter sido o local da primeira igreja, que foi
liderada por Pedro. Essa pentarquia de bispados, cujos líderes eram
conhecidas como “patriarcas”, se impôs de forma paulatina à igreja
do Oriente, especialmente depois do Concilio de Trullo, em 691-92,
porém levou mais tempo para se popularizar no Ocidente, e Roma não
a ratificou formalmente até 1215.
A essa altura, claro, a situação que provocou a pentarquia original
estava irreconhecível por causa de tantas mudanças. Alexandria, Antio-
quia e Jerusalém caíram sob o domínio muçulmano entre 632 e 641, e
à parte de um breve período durante as Cruzadas, permaneceram em
território muçulmano desde então. Sobraram apenas Roma e Cons-
tantinopla, a primeira agarrada à sua antiga posição e continuando a
desenvolver suas reivindicações petrinas para firmar sua primazia; a
segunda insistia em que o mundo cristão buscasse liderança em Cons-
tantinopla, porque o patriarca sênior havia ultrapassado os limites de
sua autoridade e caído em discrepância.
Com o passar do tempo, nota-se que o patriarca romano dá cada vez
menos atenção aos outros quatro. Roma era a única cidade importante
do Ocidente, e à medida que o Ocidente se desapegava do império, a
cidade passou a ser vista ali como o centro natural da igreja toda. Como
resultado, o termo “papa” tornou-se restrito ao bispo romano. Ele
também é chamado de “pontífice”, termo derivado depontifex maximus
(chefe dos construtores de pontes), um título que originalmente perten-
cia a um oficial pagão da Roma antiga e mais tarde foi assumido pelo
imperador para designar sua posição como chefe da religião tradicional.
Quando Roma foi cristianizada, os imperadores abandonaram o título,
para depois vê-lo transferido para o bispo da cidade.
Esse fato curioso lembra que a autoridade dos imperadores ro-
manos era fruto de tradições antigas não relacionadas ao cristianismo.
Quando a nova religião foi adotada, as práticas incompatíveis com ela
foram abandonadas, porém o estado continuava a operar como de
costume, como a expressão da vontade “democrática” do povo, ou
como dizia o título oficial, o “senado e os cidadãos de Roma”. Com o
advento dos reinos bárbaros no Ocidente e sua conversão progressiva
ao cristianismo, novas formas de legitimidade tiveram de ser criadas.
Em tempos pagãos, seus reis tinham sido oficiais religiosos, contudo, no
mundo cristão eles tiveram de abrir mão de seu papel quase sacerdotal.
Em compensação, foram consagrados em uma cerimônia de coroação,
que os legitimou aos olhos da igreja e deu-lhes o direito de governar
“pela graça de Deus”. Esse método continuou através dos séculos e
ainda continua no Reino Unido, pelo menos superficialmente. Quando,
em 1936, o rei Eduardo VIII decidiu se casar com uma mulher divor-
ciada duas vezes, a igreja se recusou a coroá-lo por estar infringindo
as leis matrimoniais, e ele foi forçado a abdicar; esse é um exemplo de
como, mesmo na era contemporânea, a aprovação da igreja continua
a exercer papel importante na escolha de um monarca.
A cerimônia de coroação como instrumento de legitimidade de um
monarca alcançou seu ápice em 25 de dezembro de 800, quando o papa
Leão III coroou Carlos Magno imperador de seu recentemente inventa-
do Santo Império Romano. Na teoria, esse império era uma revitalização
do antigo império do Ocidente, que havia desaparecido com a deposição
do último imperador em 476, porém, dessa vez, ele expressava a união
da igreja e do estado de um modo que indicava claramente que as regras
eram estabelecidas pela igreja. O Santo Império Romano durou até
1806, e embora nunca tenha sido tão poderoso quanto foi estabelecido
para ser, sua importância não deve ser menosprezada. Durante toda
a Idade Média, imperadores e papas competiam pela supremacia no
Ocidente Cristão, ao passo que os governantes seculares — os reis da
Inglaterra e da França, por exemplo — observavam. Mesmo no século
16, foi ao imperador Carlos V que Martinho Lutero teve de apelar seu
caso; e o domínio imperial do papado, que Henrique VIII da Inglaterra
considerava ilegítimo, foi um dos fatores que o impeliu a separar seu
reino e sua igreja da autoridade romana.
Na verdade, a coroação de Carlos Magno consagrou a divisão da
Europa que estava fermentando havia quatro séculos, desde que Te-
odósio I, em seu leito de morte, dividiu o Império Romano, em 395.
Depois do ano 800, o que existia não eram simplesmente duas metades
de um único império, mas, duas nações diferentes que reivindicavam o
legado de Roma. O império oriental, destituído de suas províncias do
Oriente Médio e da África (que haviam caído nas mãos dos árabes mu-
çulmanos), era um estado altamente centralizado, em que o imperador
e o chefe da igreja (o patriarca de Constantinopla) moravam na mesma
cidade e governavam o império juntos. Imperadores e patriarcas eram
frequentemente depostos com a conivência do outro, e nenhum deles
podia reivindicar domínio absoluto. Já no Ocidente, o imperador e o
papa nunca moravam na mesma cidade. O império era descentralizado,
e até mesmo dividido, entre os herdeiros de Carlos Magno, e o papa-
do tinha de se virar sozinho. Isso se provou desastroso, e por mais de
duzentos anos papas eram eleitos e depostos, às vezes, com frequência
alarmante, pelo populacho de Roma. Era escandaloso, mas, parece que
ninguém sabia como resolver o problema até que um grupo de monges
reformadores, sediados no monastério borgonhês de Cluny, decidiram
dar um jeito na situação. Os monges foram mais bem-sucedidos do
que poderíam imaginar, e em suas mãos o papado se transformou na
instituição europeia mais poderosa da época.
A ORIGEM DO PAPADO
LEI CANÔNICA
20 Para saber mais sobre lei canônica, veja J. A. Brundage, Medieval Canon Law (Lon-
dres: Longman, 1995); R. H. Helmholz, The Spirit of Clasrical Canon Law (Atenas:
University of Georgia Press, 1996).
Outra área que ficou sob o controle da igreja foi o preparo de
testamentos. Em geral, os padres eram os únicos que sabiam ler e
escrever, e assim essa tarefa era quase sempre confiada a eles. Claro
que as pessoas eram incentivadas a deixar algo para a igreja em seus
testamentos, e ela acabou ficando com muitas propriedades das quais
não podia capitalizar. Com o tempo, mais e mais terra cultivável era
tirada do mercado dessa forma — uma situação intolerável que, mais
cedo ou mais tarde, causaria problemas.
Contudo, isso era apenas o começo. Para se governar com mais
eficiência, a igreja foi dividida em paróquias, e cada uma tinha um padre
incumbente que supostamente deveria conhecer todos os que faziam
parte dela. Os paroquianos tinham de dizimar dez por cento de seus
rendimentos, que eram avaliados por funcionários indicados pela igreja
e recolhidos por cobradores, que ganhavam comissão sobre tudo o que
conseguiam arrecadar.21 Em alguns lugares a entrada dos dízimos era
escassa e mal dava para o sustento do padre; em outros, porém, era farta.
O excedente era encaminhado aos bispos e suas catedrais, construídas
ou reconstruídas de modo suntuoso. Nada testemunha mais sobre a
confiança renovada e o prestígio da igreja medieval que as catedrais
magníficas que continuam dominando a linha do horizonte e tiram o
fôlego de seus visitantes. As paróquias ricas também construíam igrejas
enormes, a maioria das quais ainda está em pé e continua a testemunhar
da fé e das riquezas dos tempos de outrora.
Dar o dízimo era uma forma de taxação, derivada das provisões
feitas para os sacerdotes e levitas no antigo Israel, e cujo propósito era
sustentar o ministério da igreja. Esperava-se que cada membro produtivo
da paróquia entregasse dez por cento de seus rendimentos para a igreja,
que então pagaria o clero. O dízimo também podería ser usado para
ajudar os pobres e para suprir as necessidades da igreja como um todo.
A organização de uma paróquia era complexa, mas, sem entendê-la não
conseguiremos avaliar como os europeus de séculos posteriores viam
serviços eram usados da maneira que nós hoje usamos escolas, bibüo-
tecas públicas e hospitais. Por mais que achemos que tais instituições
nos “pertencem” como serviços sociais, temos consciência de que são
órgãos distintos que funcionam de acordo com suas próprias regras,
e não nos vemos como parte do quadro de funcionários, mesmo que
usemos seus serviços regularmente, tornemo-nos membros e associa-
dos e até façamos parte de sua diretoria. Da mesma forma, a igreja da
Idade Média era ajudada por leigos, por exemplo, como supervisores
em cada paróquia, e sua tarefa era cuidar da vida da igreja e relatar
qualquer mau comportamento entre os paroquianos, de modo que as
autoridades aplicassem a disciplina apropriada. Contudo esses supervi-
sores, por mais importantes que fossem, não eram parte da corporação
da “igreja” e não usufruíam os benefícios que essa posição acarretava.
Para operar sua malha intrincada de serviços, a igreja necessitava
de um sistema legal muito eficiente, e foi isso que os papas se deter-
minaram a construir. A igreja havia herdado leis romanas antigas, que
depois da conversão do império ao cristianismo se expandiram para
incluir estatutos a ela relacionados. Os estatutos foram sistematizados
por Justiniano I (r. 527-65), o imperador do Oriente que gastou a maior
parte de sua vida tentando reconquistar o Ocidente. Em qualquer área
que Justiniano e seus sucessores conseguissem impor sua vontade, a
legislação escrita de Roma prevalecia e a igreja não podia fazer nada a
não ser adaptá-la às suas necessidades. Contudo, nos reinos bárbaros
do Ocidente, a situação era outra. Os bárbaros tinham suas próprias
leis, originárias de costumes tribais, e eram aplicadas conforme a ne-
cessidade. Em alguns casos, os bárbaros incorporaram fragmentos da
lei romana, mas, no geral tinham uma tradição oral que se desenvolvia
conforme os acontecimentos.
No início, não havia códigos escritos, e quando começaram a sur-
gir, eram invariavelmente bem menos sofisticados e abrangentes que
a legislação romana. Como organização universal, a igreja não podia
estar vinculada a costumes locais que variassem consideravelmente
de um lugar para outro, então, ela preferiu trabalhar com a legislação
romana - embora modificada por necessidades específicas da igreja.
MtS
22 VejaΗ. A. Kelly, The Matrimonial Trials of Henry U7/7 (Stanford: Stanford University
Press, 1976).
150
CISÃO E HERESIA
23 Veja S. Runciman, The Eastern Schism (Oxford: Oxford University Press, 1955); F.
Dvornik, The Photian Schism (Cambridge: Cambridge University Press, 1948). Os
dois livros foram escritos por estudiosos ocidentais simpáticos ao pensamento
oriental.
resolvidos quanto qualquer heresia e, como a divisão entre Oriente e
Ocidente mostrou, igualmente duradouros.
Heresia era questão de erro teológico e era definida por esse cri-
tério. Foi isso que Isidoro de Sevilha fez no início do século 6, e sua
classificação continuou sendo o padrão por toda a Idade Média. Ela
foi incorporada ao direito canônico, e fez com que as aberrações que
haviam desaparecido nos tempos antigos pudessem ser restauradas
artificialmente se ou quando doutrinas semelhantes surgissem mais
tarde. Por exemplo, o arianismo havia desaparecido por volta de 600
d.C., mas, se um indivíduo acreditava (ou achassem que acreditava) que
Jesus Cristo era divino mas não completamente Deus, ele seria chama-
do de “ariano”, mesmo que nunca tivesse ouvido falar em Ario. Por
exemplo, na época da Reforma, um homem como Lutero foi acusado
de “nestorianismo” porque negava a doutrina da transubstanciação,
uma acusação anacrônica em todos os sentidos.24
A elevação da igreja ao status de religião oficial tornou a cisão um
assunto político importante, porque se separar da igreja significava
revoltar-se contra o estado. Assim, os cismáticos eram perseguidos
por imperadores e reis como rebeldes, uma prática que continuou até
o século 16, quando os protestantes eram frequentemente tratados
dessa forma. A heresia era uma questão mais complexa, pois embora
fosse um ataque à doutrina da igreja, não era claro se também consistia
em crime contra o estado. Além disso, a heresia era algo que somente
os teólogos podiam julgar, até porque geralmente as questões em jogo
eram extremamente sutis e difíceis de serem entendidas por leigos.
Nessa área, a igreja medieval teve de lutar para impor sua vontade.
Como a heresia destruía a alma, ela merecia ser punida com a morte,
contudo, a igreja não tinha autoridade para executar a sentença que
impunha aos hereges. Isso lembra o Sinédrio que condenou Jesus à
Press, 2009); G. R. Evans ,John Wyclif. Myth and Reality (Oxford: Lion Hudson, 2005).
154
era questionar sua autoridade, e foi isso, mais do que qualquer outra
coisa, que provocou tanto alvoroço.
No que dizia respeito às Escrituras, não havia lei contra traduzi-la
na linguagem popular, o que Wycliffe defendia, contudo, a igreja temia
que se leigos ignorantes se apossassem da Bíblia, eles iriam interpretá-la
erroneamente e usá-la para apoiar heresias.29 Os partidários de Wycliffe,
conhecidos como lolardos, se tornaram bastante proeminentes depois
de sua morte, e, mais tarde, alguns deles foram implicados em uma
revolta contra a Coroa Britânica. Em resposta, a igreja tornou ilegal
traduzir a Bíblia para o inglês e forçou os pregadores a obterem uma
licença para subirem ao púlpito. Com isso, a igreja esperava conter o
lolardismo e impedir que qualquer coisa inaceitável a ela chegasse ao
conhecimento da população. A Universidade de Oxford ficou sujeita a
escrutínio regular e intenso, porque foi ali que a confusão teve início. Na
cabeça de muitos, idéias eram um perigo, e as novas idéias certamente
eram erradas. Agora, a igreja era o poder reinante que não queria ser
perturbada por nenhum tipo de mudança, mas, sua batalha já estava
perdida. Wycliffe e os lolardos foram reprimidos, contudo, as forças
que representavam não podiam ser contidas tão facilmente; quando,
por fim, irrompessem, a igreja seria a grande perdedora de uma batalha
que não podería vencer.
Aos poucos, a heresia passou a ser determinada não em relação
a doutrinas objetivas tais como a Trindade (embora, claro, negá-las
continuava a ser profundamente herético), mas, a opiniões e compor-
tamentos que desafiavam a autoridade da igreja. Atacar a corrupção
nos altos cargos, recusar-se a dar o dízimo, questionar o poder e o papel
de uma hierarquia sacerdotal que não tinha base bíblica aos olhos do
crítico - tudo isso podería ser considerado “heresia”, se a igreja assim
o quisesse. Assim, a ameaça de condenação por heresia se tornou um
instrumento para controlar dissidentes de qualquer tipo. No decorrer
do século 15, ficou gradualmente mais difícil esconder os males da
liderança clerical, e as vozes de protestos ficaram mais altas. Poderíam
29 Em geral, Wycliffe é considerado tradutor da Bíblia, mas, ele não foi. No entanto,
havia duas traduções em inglês produzidas por alguns de seus seguidores que
circulavam em manuscrito.
elas ser silenciadas por um papado cada vez mais corrupto, ou os reis
da Europa iriam finalmente se encher de coragem o bastante para se
oporem a tamanha tirania eclesiástica e reafirmar seus direitos de deci-
dir quem entre seus súditos deveria ser condenado à morte e por quê?
No final, a questão sobre o que fazer a respeito da heresia se provou
decisiva para o destino da igreja medieval do Ocidente. De um lado,
era princípio fundamental que a igreja permanecesse o mais pura e sem
mácula possível aos olhos de Deus. Os falsos ensinos tinham de ser
identificados, condenados e extirpados se o objetivo acima quisesse ser
alcançado. Uma organização privada disciplinar seus membros ainda
vá lá, mas, uma instituição pública fazer isso, especialmente quando ela
tem posição de comando no estado, era coisa bem diferente. A igreja
não tinha autoridade para executar ninguém, mas, tinha o direito de
exigir que governantes seculares agissem em seu nome? O que a igreja
faria se os governantes se recusassem a cumprir seus desejos?
No século 16 essas e outras questões parecidas vieram à tona e não
havia como ignorá-las. Em alguns lugares, como a Espanha e partes da
Itália, a igreja se impôs e conseguiu exercer sua disciplina nos órgãos
do estado e por meio deles, o que resultou na abominável Inquisição,
um procedimento pelo qual investigadores especialmente escolhidos
procuravam acabar com os hereges. Nomeados pela igreja, esses inves-
tigadores eram não obstante agentes do estado, e suas decisões tinham
força legal. Em outros lugares, porém, as autoridades do estado se
mostraram menos submissas à igreja. Em geral, estavam dispostas a
defender os princípios básicos da igreja estabelecida, entretanto menos
dispostas a matar os dissidentes. Algumas autoridades até chegaram a
considerar se um homem como Martinho Lutero tinha algo de valor
a dizer e estava sendo injustamente alvejado pela igreja que não queria
lhe ouvir. Quando esse questionamento se concretizou, a igreja não
podia mais confiar nos governantes seculares, e seu relacionamento
com o estado entrou em uma fase nova e crítica.
O SISTEMA SACRAMENTAL
30 Tertuliano, De bapüsmo 3.
tanta que a igreja autorizou leigos, especialmente as parteiras, a realizar
o ritual em particular se achassem que o bebê corria perigo de vida.
Outro aspecto importante era que o nome dado à criança no ba-
tismo tinha força legal que superava tudo.31 Era um sinal de que ela
pertencia à comunidade dos salvos, vivos e mortos, e muitos bebês
recebiam o nome do santo cuja memória era comemorada no dia de
seu batismo. Martinho Lutero, por exemplo, recebeu esse nome porque
foi batizado no dia 11 de novembro de 1483, dia de São Martinho.
Outros rituais e cerimônias que passaram a ser considerados sacra-
mentos eram um balaio de práticas diferentes, e somente poucos eram
justificados pelo Novo Testamento. Muitas se desenvolveram através
dos séculos, e pelo menos uma (matrimônio) não era de origem cristã.32
A mais evidente e importante dessas cerimônias era a Ceia do
Senhor, que prefigurava claramente na Última Ceia de Jesus e seus dis-
cípulos e sobre a qual o Novo Testamento oferece instruções precisas.
Logo no início, a ceia só podia ser realizada pelos bispos e delegada a
seus presbíteros, um padrão que se tornou a norma para os tempos me-
dievais. No decorrer do tempo, várias teorias foram apresentadas para
explicar o que acontecia durante a ceia e por que ela era tão fundamental
à vida da igreja. O foco estava no pão e no vinho, que representavam
o corpo e o sangue de Cristo. Durante muito tempo a ligação entre os
símbolos e as realidades que representavam era nebulosa, mas, todos
criam que ao partilhar do pão e do vinho consagrados estavam entrando
em comunhão com Cristo. Por essa razão, a Ceia do Senhor passou a
ser conhecida como Santa Eucaristia, um rito no qual os membros da
igreja chegavam mais perto de seu líder ao ingerirem sua presença.33
Nunca se questionou o fato de essa comunhão ser principalmente
espiritual em natureza. Mas, o Filho de Deus se tornou homem em
Jesus Cristo, e passou-se a crer que assim como seu corpo físico tinha
31 Ainda hoje, em um país como a Inglaterra, o nome batismal (ou “cristão”) de uma
criança é mais importante do que o registrado em sua certidão de nascimento.
32 Para saber a história individual dos sacramentos, veja J. Martos, Doors to the Sacred:
leia G. Macy, The Banquet’s Wisdom (Akron, OH: OSL Publications, 2005).
papel essencial na salvação da raça humana, sua presença espiritual na
Eucaristia devia ser acompanhada de um aspecto físico igualmente
essencial. Dessa maneira, nasceu a crença que o pão e o vinho davam
ao corpo e ao sangue de Cristo mais que um sentido puramente simbó-
lico. Acreditava-se que ele estava objetivamente presente no pão e no
vinho, dando-lhes poder espiritual próprio, bem além do ministério da
igreja. Portanto, assim foi possível separar os elementos consagrados
e adorá-los como se fossem o próprio Cristo, e uma hoste de práticas
devocionais cresceram ao redor deles. Pensou-se até que poderíam ser
roubados e usados com propósitos ocultistas nas chamadas Missas
Negras.
A palavra “missa”, que vem do latim, não tem nenhum sentido
teológico inerente. Ela se origina da última frase da liturgia, a saber Ite,
ecclesia missa est (Ide, a igreja está dispensada), e era usada por quem não
entendia o latim para se referir ao culto inteiro. Depois da Reforma
Protestante, o termo “missa” passou a ser usado pelos católicos para
enfatizar sua crença na transformação dos elementos quando de sua
consagração, o que (aos olhos católicos) diferenciava completamente
a missa da Ceia do Senhor praticada pelos protestantes.
A partir do Quarto Concilio de Latrão, em 1215, essa mudança
nos elementos passou a ser chamada “transubstanciação”, um termo
que reflete a física aristoteliana, amplamente aceita naquela época. De
acordo com essa teoria, todo o mundo real podia ser analisado em
substâncias e seus acidentes, ou seja, no que era fundamental e no que
era simplesmente transitório ou acidental. O pão, por exemplo, era uma
substância fundamental, embora pudesse acidentalmente aparecer em
cores diferentes, em pesos diferentes, e assim por diante. Esse méto-
do de analisar a matéria foi rejeitado na modernidade, mas, o legado
da igreja medieval continua, especialmente entre os católicos, para os
quais a transubstanciação continua ensino oficial da igreja. Teólogos
e reformadores litúrgicos dentro da Igreja Católica têm labutado para
redefinir essa doutrina, sem muito sucesso até agora, e a religiosidade
popular permanece teimosamente conservadora. No meio católico o
padre pode realizar uma missa por conta própria, ou para “propósitos”
particulares alheios ao corpo principal da igreja, e as práticas devocionais
associadas aos elementos reservados continuam como sempre foram
feitas. Nesse aspecto, mais do que em outro qualquer, observamos como
os sacramentos permanecem fundamentais à Igreja Católica Romana de
um modo que não pode ser atribuído às suas contrapartes protestantes.
Entre os outros cinco sacramentos reconhecidos, a confirmação é
na verdade uma extensão do batismo, e há pessoas que a negam como
sacramento por mérito próprio. Ela existe para assegurar que a criança
batizada quando era bebê faça sua profissão de fé. Para os católicos
isso ocorre quando ela tem por volta de seis anos de idade, contudo,
os protestantes que praticam a confirmação geralmente esperam até
a adolescência, quando (presume-se) as crianças têm mais capacidade
de concordar com os votos batismais de modo consciente e respon-
sável.34 Na Idade Média, quase ninguém era batizado quando adulto,
portanto, nunca se questionou a necessidade da confirmação. Quando
se tornou necessária, o consenso foi que ela era um sacramento distinto,
e, portanto, até os adultos que haviam sido batizados tinham de ser
confirmados, por mais ilógico que nos pareça.
A seguir, vem apaenitentia, que pode ser traduzida como “penitên-
cia”, “punição” ou “arrependimento”. Arrependimento, pesar sincero
pelos pecados e seu completo abandono é o verdadeiro sentido do rito,
mas, a palavra normalmente usada é “penitência”. A penitência se tor-
nou uma série de atitudes impostas como penalidade ao pecado. Antes
de participar da Comunhão, as pessoas procuravam o padre, confessa-
vam seus pecados, e recebiam ordens a serem cumpridas para mostrar
que estavam realmente tristes pelo que fizeram. Em geral, tinham de
fazer orações extras ou alguma boa obra. Quando a penitência estivesse
cumprida, os penitentes retornavam ao padre e eram absolvidos, o que
lhes dava direito de participar da Comunhão.
A prática de confessar a outros e mostrar arrependimento poderia
invocar o apoio do Novo Testamento, mas, ela nunca foi organizada de
modo sistemático no Novo Testamento.35 Igualmente, podia-se usar a
autoridade bíblica para impedir que o pecador impenitente participasse
38 Mais detalhes em A. Gwynn, The Irish Church in the Eleventh and Twelfth Centuries
(Dublin: Four Courts Press, 1992); Μ. T. Flanagan, The Transformation of the Irish
Church in the Twelfth Century (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2010).
partir do século 10, a zona rural foi dividida em paróquias de tamanho
manejável, tivessem ou não um edifício, é era nomeado um padre para
ministrar a elas.
A teoria era que uma paróquia deveria ser pequena o bastante para
cada residente ficar debaixo da supervisão pastoral do clero local. De
preferência, a supervisão incluiría educação, saúde e realização de ca-
sarnentos e funerais, contudo, os padrões variavam muito, nem sempre
era possível atender às expectativas. Esperava-se que as paróquias sem
templo construíssem um. O ideal era que o bispo diocesano provi-
denciaria isso, contudo, a necessidade era quase sempre maior que os
recursos à mão. Em muitos casos, então, pedia-se aos latifundiários
locais que construíssem os templos, e em troca eles se tornavam seus
patronos. O patrono de uma igreja tinha o direito de indicar o padre
residente, que poderia ser qualquer um com ordenação válida.39 A
suposição era que o bispo lhe daria posse, como fazia nas igrejas que
havia construído, contudo, isso era, em muitos casos, uma formalidade,
e o bispo só recusaria se tivesse um excelente motivo.40
Com o tempo, muitos nobres usavam esse direito, ou “padroado”,
para colocar seus filhos jovens nas igrejas, uma vez que deveríam achar
algo respeitável para eles fazerem. Não era o jeito mais edificante de
encontrar ministros, e não é de admirar que tenha havido tantos fracas-
sos nessa área de “vocação”. O surpreendente é que tenha funcionado
tão bem como funcionou, provavelmente, porque os filhos dos nobres
haviam recebido mais educação e estavam capacitados a ler a liturgia —
em Latim. Os patronos, por sinal, também tinham responsabilidades e
não apenas privilégios. Se o clero residente morresse ou fosse embora,
o patrono deveria encontrar um substituto dentro de seis meses, ou
entregar seu direito de representação ao bispo. O patrono também era
responsável por consertar a capela-mor da igreja (onde o padre ficava),
dividindo a tarefa com o reitor, que era responsável pela nave (onde a
congregação sentava).
39 Veja S. Wood, The Proprietary Church in the Medieval West (Oxford: Oxford University
Press, 2006), para um estudo detalhado desse fenômeno.
40 A posse de um padre em uma igreja pertencente a um bispo é chamada “colação”.
2005).
casas clunicenses, e havia muitas outras, incluindo a ordem Gilbertina,
fundada por Gilberto de Sempringham, que incorporava estabelecí-
mentos para homens e mulheres, algo até então desconhecido. As mu-
lheres tinham seus próprios conventos, e alguns se tornaram bastante
famosos, mas, como raramente se envolviam no comércio, como os
homens faziam, e não podiam se apropriar de paróquias porque não
tinham como supri-las com sacerdotes, elas eram muito mais pobres e
menos influentes do que suas contrapartes masculinas.44
Por volta de 1200, no entanto, começou-se a perceber que era quase
impossível reformar os monastérios porque eles continuavam a se rein-
tegrar ao sistema vigente e os padrões de corrupção reapareciam depois
de uma ou duas gerações. Para lidar com isso, radicais como Francisco
de Assis e Domingos foram trabalhar por conta própria. Escolheram
viver na pobreza, castidade e obediência, dependendo totalmente da
caridade alheia para sobreviverem. Eram conhecidos como frades. Aos
poucos, para ganhar a vida, começaram a lecionar ou a fazer o que hoje
chamamos de “trabalho social”. Muitos deles se tornaram teólogos e
pregadores famosos. As universidades que foram criadas através da
Europa, quase sempre tinham frades como professores, pois estes eram
livres para deixar o sistema vigente e começar algo novo. Naturalmente,
em uma sociedade muito conservadora como a Europa Ocidental da-
quela época, por exemplo, tal inovação levantava muita suspeita — isso
explica por que o clérigo da Floresta de Sherwood era um frade, e não
um monge ou um padre comum como os das paróquias.45
Quanto ao culto na igreja, tanto havia grande uniformidade quanto
grande variedade. A uniformidade era mais óbvia na linguagem usada,
quase sempre latim. O latim clássico deixou rapidamente de ser usado
em sua forma pura quando o Império Romano se desintegrou, contudo,
durante muitos séculos, os moradores das antigas províncias achavam
sobre as ordens religiosas, vejaj. Moorman ,A History of the Franciscan Order (Ox-
ford: Oxford University Press, 1968); B. Jarrett, The English Dominicans (Londres:
Burns, Oates & Washbourne, 1921).
que continuavam a falar essa língua, todavia em forma de dialeto. Foi
somente em 812 que um decreto de Carlos Magno reconheceu a língua
rústica da França, autorizando o seu uso nas pregações - a primeira
indicação da florescência do que hoje chamamos de língua francesa.
Os países do norte nunca falaram latim, porém a língua foi introduzida
pelos missionários, que a preferiam em vez do vernáculo local. Havia
algumas traduções, em irlandês e inglês, por exemplo, mas, que nunca
foram de uso oficial. A igreja do ocidente usava o latim, quer o povo o
entendesse ou não, e isso era visto como sinal de sua união, assim como
de sua conexão com os tempos do Novo Testamento. Afinal, quando
Pôncio Pilatos mandou que se pusesse a inscrição acima da cabeça de
Jesus na cruz, ele ordenou que ela fosse escrita em hebraico,46 grego
e latim. Entretanto, o hebraico era a língua dos judeus, que rejeitaram
Cristo, e o grego era usado pelos asmáticos do Leste. Portanto, restou
somente o Latim — a língua sagrada que ligava todo o Ocidente à cruz
de Cristo.
Afora isso, no entanto, a diversidade era considerável. Muitas regiões
e dioceses locais desenvolveram suas próprias liturgias, que eram bas-
tante parecidas, mas, longe de serem idênticas. Em geral, as pessoas
não viajavam muito, então, a diferença não era de grande importância,
mas, quando a união da igreja foi desafiada pela Reforma, essa variedade
foi uma das primeiras coisas a ser abordada. A diversidade deixou de
ser tolerada porque talvez abrisse portas à heresia, e todas as igrejas
resultantes da divisão ocorrida no século 16 estabeleceram suas próprias
regras - ou o que a Inglaterra chamava de “uniformidade” de culto —
para garantir que todas as suas congregações tivessem o mesmo padrão
e aprendessem a mesma doutrina.
Que impressão tudo isso deixou na pessoa comum? É impossível
medir com qualquer grau de certeza, pois as evidências são drains-
tanciais e podem induzir a erro. Em geral, a história registra apenas as
pessoas que se destacam como exceções, contudo, isso apenas afirma
o que não era esperado, e não reflete o comportamento da grande
população. Sabemos que pouquíssimas pessoas entendiam as missas
46João 19.20.
que eram conduzidas em latim, pois quando o padre apresentava o
pão consagrado e dizia, “Hoc est corpus meum [Este é o meu corpo]”, a
maioria das pessoas entendia hocuspocus, uma frase usada [em inglês]
para descrever disparates pseudomágicos. Possivelmente, era assim
que muitas pessoas entendiam as celebrações litúrgicas — um meio de
espantar os maus espíritos, talvez, ou de receber tratamento favorável
de Deus — sem terem a mínima ideia do que estava acontecendo.
Outro aspecto da Idade Média que nos parece estranho hoje é que
praticamente ninguém possuía uma Bíblia, e poucos conseguiríam ler,
caso tivessem uma. Livros eram extremamente caros e ler e escrever
não tinha muita utilidade para a maioria das pessoas. Até os padres mal
sabiam ler. Muitos deles eram filhos da terra que moravam perto de
seus rebanhos e, então, podiam ser excelentes pastores, contudo, seu
estudo formal era rudimentar, e em geral sua necessidade de educação
era ligeiramente maior do que a de qualquer outra pessoa de suas pa-
róquias. Desde que conseguissem rezar a missa, o que muitos sabiam
de cor, e assinar seus nomes, pouco mais era exigido deles na maior
parte do tempo.
No entanto, os assuntos da Bíblia não eram desconhecidos. Suas
histórias eram comunicadas a um público mais amplo por meio de vi-
trais e peças teatrais de mistério que contavam a criação e a redenção.
Pregadores itinerantes transmitiam os ensinos de Jesus e dos apóstolos,
e a obra dramática da salvação fazia parte do calendário litúrgico da
igreja. O calendário começava quatro semanas antes do Natal, quando
a vinda (“advento”) de Cristo era anunciada e as profecias do Antigo
Testamento relatadas em detalhes. Mas, o Advento também apontava
para a segunda vinda de Cristo — o passado e o futuro eram capturados
no presente. O Natal era a grande festa da encarnação, que vinha seguida
pela vida de Jesus, que culminava na Sexta-feira da Paixão e Páscoa.
Depois, vinha a Ascensão e o Pentecostes, que marcava o fim do ciclo
e o início do tempo presente, ou “ordinário”, da igreja.
Além desse roteiro básico, havia muitos dias de santos e outras
comemorações que traziam à memória pública os acontecimentos
importantes na vida de Jesus e da igreja. Muitos dessas festas eram inti
mamente relacionadas ao ritmo da agricultura e, então, se tornaram um
tipo de paganismo batizado. O Natal, por exemplo, acontece no fim de
dezembro porque a data marcava a morte e o renascimento da luz no
solstício de inverno [no hemisfério norte]. A Páscoa incorpora muitos
dos traços de um culto à fertilidade, como os ovos e os coelhos ainda
comprovam. O Dia de Todos os Santos (1 de novembro) celebrava
as pessoas que morreram na fé, e foi apropriadamente datado para o
fim da estação da agricultura quando a colheita havia terminado e o
refugo era queimado. Em preparo à celebração, os demônios tinham
de ser expulsos, o que era feito na noite anterior — na véspera do Dia
de Todos os Santos [All Hallows' Eve, em inglês] ou Halloween, como
ficou conhecido. O entrelaçamento de temas cristãos e pagãos era
tão profundo que se tornou impossível separar um do outro. O Papai
Noel [Santa Claus, em inglês], por exemplo, foi uma cristianização do
personagem pagão “Father Frost” [algo como Pai do Gelo], mas, que
recebeu o nome de São Nicolau, um bispo do século 4, de Mira, atu-
almente sul da Turquia, que não tinha nada a ver com o Natal e que,
por certo, ficaria profundamente chocado ao saber como é lembrado
em nossos dias.47
O que faltava à devoção popular era um entendimento profundo
dos ensinos das cartas do Novo Testamento, que eram mais racionais
em conteúdo e quase impossíveis de serem dramatizadas ou represen-
tadas em artes visuais. Os monges e os intelectuais conheciam bastante
o apóstolo Paulo, mas, a complexidade ocasional de seus argumentos
não era entendida pelas pessoas comuns. Não foi por acaso que a Re-
forma Protestante do século 16 se enraizou na redescoberta da teologia
paulina, até então desconhecida de muita gente. Martinho Lutero não
inventou a justificação pela fé, mas, quando começou a pregá-la, mui-
tos de seus ouvintes a ouviram e entenderam pela primeira vez, talvez
porque era algo que os vitrais ou uma dramatização de mistério não
transmitiam ao público em geral.
47 Ele é celebrado no dia 6 de novembro, e em alguns países, como a Holanda,
por exemplo, é nesse dia que acontece a troca de presentes. Na Grécia, a
figura do Father Frost é identificado com Santo Basílio, cuja celebração foi
convenientemente marcada para o dia 1 de janeiro.
O que a igreja imperial criou foi um cristianismo cultural, ou cris-
tandade, um mundo em que tudo era expressado em termos cristãos
ou relacionado a temas cristãos. O que os indivíduos acreditavam
não importava muito (a não ser que fossem teólogos ou mestres com
poder de influenciar os outros), pois tudo era absorvido no domínio
da igreja. Mesmo hoje, apesar da secularização das gerações, existem
remanescentes dessa cultura tradicional. Pais não cristãos ainda batizam
seus filhinhos, e a maioria das pessoas envolve a igreja em casamentos
e funerais, mesmo que não consigam explicar a utilidade da igreja além
desses rituais. Há um legado curioso de séculos de cristandade que
persiste em nosso meio. No mundo romano antigo, os cristãos eram
acusados de serem ateus porque não criam nos deuses pagãos. Hoje,
contudo, ateu não é a pessoa que rejeita Júpiter ou Vênus, mas, alguém
que nega a existência do Deus da Bíblia.
AS IGREJAS DO LESTE
son, 1971).
A sobrevivência de uma sociedade civil forte no Império Bizantino
também significou que a igreja institucional nunca ocupou a posição
de comando que exercia no Ocidente. Muitos leigos eram teólogos
talentosos, e os imperadores envolviam-se profundamente nas ques-
tões da igreja. Os monastérios eram fatores proeminentes na vida da
igreja do Leste, contudo, os monges eram bem mais individualistas que
seus colegas do Oeste, e muitos eram reverenciados por sua santidade
e habilidade como líderes espirituais. Não havia nenhum equivalente
às ordens monásticas ocidentais, e o envolvimento dos monges do
oriente com questões terrenas nem chegava aos pés do envolvimento
de seus colegas do ocidente. Os monges ocidentais fabricavam quei-
jos e vinhos famosos, por exemplo, o que os orientais não faziam.
Os monges orientais praticamente não se envolviam com educação,
que permaneceu secular enquanto o Império Bizantino existiu. No
século 10, comunidades monásticas passaram a colonizar o Monte
Atos, no norte da Grécia, onde desenvolveram uma rede de fundações
independentes que existem até hoje. Atos não era único no mundo
bizantino, mas, sobrevive como a única relíquia viva de uma cultura
que praticamente desapareceu em todos os outros lugares. Ele é uma
sociedade fechada que não permite a entrada de mulheres e a maioria
das amenidades modernas é desconhecida. Os monges que ali vivem se
dedicam à oração e direcionamento espiritual, servindo de apoio para
o mundo ortodoxo inteiro. O Ocidente não possui nem de longe algo
que se compare ao Monte Atos, e ele permanece como lembrança da
posição central que o monasticismo já ocupou, e continua a ocupar,
no mundo cristão do Leste.
A igreja do Leste não desenvolveu um sistema paroquial igual à
do Oeste, mas, cada vilarejo tinha sua igreja e seu padre. Esses padres
não só tinham permissão para casar como eram quase obrigados a
fazer isso. Até hoje os padres ortodoxos devem projetar uma imagem
masculina completa, com barba e muitos filhos, de um modo que o
Ocidente nunca tentou impor a seu clero. A importância do celibato foi
reconhecida quando se tornou obrigatória aos bispos, que na verdade
eram quase sempre monges. Isso levou ao aparecimento de uma classe
distinta de “padres-monges” (“hieromonges”), praticamente as únicas
pessoas que podiam aspirar ao bispado. Os monges ocidentais também
podiam ser padres, claro, mas, essa ligação especial com o episcopado
era (e ainda é) desconhecida.
Quanto aos templos, o Leste nunca teve a grande revitalização ar-
quitetônica que produziu as catedrais góticas do Oeste, mas, de outras
formas, valorizou os locais de culto de um modo que a igreja romana
jamais o fez. Já no início do século 6, o imperador Justiniano I (r. 527-
65) construiu a magnífica Igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sofia) em
Constantinopla, que era naquela época o maior edifício de seu tipo
no mundo inteiro.54 O interior da igreja foi decorado com mosaicos e
afrescos magníficos retratando a vida no céu, com Cristo sentado na
glória (na abóboda) e cercado por santos. Essa tendência sofreu opo-
sição dos iconoclastas do século 8, que desejavam manter (ou trazer
de volta) a decoração mais austera das primeiras igrejas, contudo, não
tiveram sucesso e o uso do imaginário visual foi consagrado no culto
público de um modo que jamais aconteceu no Ocidente. Até hoje,
a presença maciça de ícones e outras pinturas no interior das igrejas
ortodoxas a diferencia de suas contrapartes católicas romanas, mesmo
que os católicos não façam objeções a imagens por questão de princí-
pio; e, claro, essa característica distingue os ortodoxos ainda mais dos
protestantes. No entanto, os cristãos ocidentais precisam entender que
isso não é apenas uma questão de estilo e tradição, pois a iconografia
tem um papel no culto e na teologia ortodoxa do Oriente que é des-
conhecido no Ocidente.55
A grande renovação da igreja do Ocidente sob o papado, que se
iniciou por volta de 1050 e manteve uma dinâmica estável por mais de
150 anos, não teve equivalente no Leste. O patriarca de Constantinopla
nunca esteve em posição de dominar o imperador, e a lei canônica da
igreja do Leste, embora existisse e tenha sido elaborada por juristas
A DOUTRINA DA IGREJA
63 O credo foi confundido com o de Niceia I (325), mas, agora é reconhecido uni-
versalmente como independente dele. Veja J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds,
3. ed. (Londres: Longman, 1972), p. 205-367, para uma explicação abrangente.
Cristo”.64 A unidade da igreja era espiritual, dada pelo Espírito Santo
no Pentecostes e conservada pelos que se mantinham fiéis aos seus
ensinos. Ela foi manifestada no batismo e na Ceia do Senhor, contudo,
esses rituais exteriores tinham o propósito de refletir a ligação interior
do amor espiritual que une os cristãos.65 O notável é que essa unidade
nunca foi definida como conformidade institucional, como seria séculos
mais tarde. A expectativa era que as pessoas estivessem em comunhão
com seus bispos, e os bispos tinham de partilhar a fé uns com os outros,
contudo, isso era algo espiritual medido de acordo com o ensino da
Bíblia Sagrada, e não um relacionamento legal imposto por um líder
eclesiástico, por mais eminente que fosse.
A santidade da igreja também era uma qualidade espiritual. Em
harmonia com os dois aspectos da igreja que já observamos, Agostinho
afirmou com bastante clareza que a igreja santa era a da Jerusalém do
alto, nossa mãe celestial, a cidade de Deus.66 Seu contemporâneo Rufino
de Aquileia (345P-411) disse praticamente a mesma coisa, acrescentando
apenas que a santidade da igreja era caracterizada pela pureza de sua
doutrina, o que foi afirmado de modo claro no Credo dos Apóstolos.67
Quanto ao catolicismo da igreja, sua definição melhor e mais com-
pleta foi dada por Cirilo de Jerusalém como parte da catequese que ele
preparou para os novos convertidos:
A igreja é chamada “católica” porque abrange o mundo inteiro [...] e
porque ensina universal e completamente toda e qualquer doutrina
que os seres humanos precisam saber sobre coisas visíveis e invisíveis,
celestiais e terrenas. Também é chamada “católica” porque sujeita a
raça humana inteira às exigências da santidade.68
Mais uma vez somos surpreendidos pela ênfase colocada na dou-
trina e moralidade, e não em estruturas institucionais. A expectativa era
que todos os cristãos exibissem o catolicismo da igreja por meio de
64 João Crisóstomo, Homiliae in Ephesios 10.
65 Agostinho de Hipona, Sermones 229A. 1—2.
66 Agostinho de Hipona, Sermones 214.11. A alusão é a Gálatas 4.26.
67 Rufino de Aquileia, De symbolo apostolorum 39. Rufino estava usando uma versão
CRISE DE AUTORIDADE
3 Veja M. Reeves ,Joachim of Fiore and the Prophetic Future (Londres: SPCK, 1976).
4 A validade do “segredo” ainda é contestada hoje em dia.
5 É um requerimento legal na Igreja Anglicana e na Igreja da Escócia, por exemplo.
187
DESINTEGRAÇÃO INSTITUCIONAL
Veja R. R. Post, The Modem Devotion: Confrontation with Reformation and Humanism
(Leiden: Brill, 1968).
Reforma Protestante, mas, hoje isso é considerado anacronismo e, na
verdade, eles foram hostis com os protestantes ao encontrá-los pela
primeira ve2. Por outro lado, não há dúvida de que o estilo de vida dos
Irmãos era mais atraente a pessoas como Martinho Lutero do que o
monaquismo, e assim que a Reforma teve início, muitos dos que antes
teriam se juntado aos Irmãos se tornaram protestantes.
Havia também maior ênfase na espiritualidade individual, que po-
deria ser praticada tanto por celibatários quanto casados. A devoção
feminina, nunca ausente, se tornou mais comum na literatura da época,
e mulheres letradas da Inglaterra, tais como Lady Margaret Beaufort
(1443-1509), se tornaram beneméritas do avivamento do aprendizado
que começou com força no século 15.12 A igreja estava se diversifican-
do, e de muitas maneiras os cristãos ficavam mais independentes das
organizações tradicionais. E óbvio que não devemos exagerar esse fe-
nômeno. Para a maioria das pessoas, tudo continuava como antes, e as
antigas tradições da vida paroquial tinham de continuar como sempre
foram. Mas, independentes de seus limites, as mudanças estavam pelo
menos se tornando possíveis e aceitáveis, um fenômeno desconhecido
um ou dois séculos antes.
O declínio dos monastérios resultou em declínio correspondente da
educação que ofereciam, embora aqui também não devamos exagerar.
No início do século 16, alguns ainda buscavam os monastérios atrás de
educação teológica - Martinho Lutero foi um deles. Contudo, depois
da peste bubônica, certamente o impacto causado pelas universidades
aumentou, e o valor da educação que elas ofereciam era bastante apre-
ciada. Os frades, que como grupo haviam ficado às margens da vida
da igreja no século 13, tornaram-se mais importantes com o passar do
tempo, e a liberdade que tinham de se locomover foi de grande ajuda
para se estabelecerem como professores e pregadores itinerantes. Os
frades eram propensos a institucionalizar suas ordens da maneira que
os monges haviam feito, contudo, havia também entre eles forças
poderosas de renovação que mantinham alguns deles entusiasmados
12 Ela era mãe do rei Henrique VII (r. 1485-1509) e fundou duas faculdades em
Cambridge (de Cristo e de São João); também subsidiou uma cátedra de divindade
que leva o seu nome.
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Ο Papa, claro, não queria ser restringido dessa maneira, contudo, sua
posição ainda era vulnerável, e ninguém estava disposto a criar divisão
sobre algo planejado para unir as pessoas. De qualquer forma, o Papa,
como oficial executivo encarregado de implementar as decisões tomadas
pelos concílios, tinha uma posição de longo prazo sólida, que talvez
pudesse ser usada para restaurar o que ele entendia ser sua autoridade
legítima. E, de fato, foi o que aconteceu.
Nesse ínterim, a igreja passava pelo que chamamos de conciliarismo.
Se os meios de comunicação de hoje existissem no século 15, a proposta
teria funcionado. Contudo, os bispos e oficiais tinham de atravessar a
Europa regularmente para os concílios, que se prolongavam mais do
que o desejado por qualquer participante. O conciliarismo foi uma ideia
implementada antes do tempo apropriado e sem os recursos necessários
para que funcionasse no longo prazo. Outro problema foi que ninguém
desejava que os concílios se reunissem em Roma, no mínimo porque
a cidade era de difícil acesso. Isso significava que o Papa teria de viajar
para o norte da Europa se fosse presidir os concílios, e era improvável
que ele pudesse ou desejasse fazer isso regularmente. Depois do tér-
mino do Concilio de Constança em 1418, o Papa Martinho V (liderou
em 1417-31) se recusou a cooperar, e nada foi feito em seu papado.
Quando ele morreu, a frustração reprimida forçou Eugênio IV (liderou
em 1431-47), seu sucessor, a convocar um concilio em Basiléia, que, de
um jeito ou de outro, continuou até 1449.
Eugênio IV não tinha a mínima intenção de ir a Basiléia, e trans-
feriu o concilio para Ferrara. Dali, foi mudado para Florença e depois
para Roma, exatamente onde os conciliaristas não queriam. Quando
o concilio terminou, muitos dos apoiadores originais do conciliarismo
ficaram desiludidos com o resultado, e um contramovimento enfatizan-
do a autoridade papal caminhava em ritmo avançado. Finalmente, no
Quinto Concilio de Latrão (1512-17), o conciliarismo foi condenado
formalmente e a monarquia papal, completamente restaurada - ou é
o que parecia.
A REVITALIZAÇÃO PAPAL
15 Na verdade, houve dois tratados, pois o primeiro deu pouca terra da América do
Sul a Portugal. Assim, a linha de divisão foi deslocada para o oeste, tornando o
Brasil uma colônia portuguesa e não espanhola.
a extensão de seus impérios seculares tinha como objetivo a missão da
igreja de pregar o evangelho a toda criatura.
Ao se casarem com a realeza espanhola no momento certo, os
Habsburgo conseguiram se aproveitar da imensa riqueza que passou a
escoar para dentro do país vinda de suas novas possessões e também a
consolidar seu governo na Europa Central. Quem se beneficiou dessa
herança foi o imperador Carlos V (r. 1519-58), que também era o rei
Carlos I da Espanha (r. 1516-56). Finalmente, havia um Sacro Impe-
rador Romano cujo salário não vinha de seus súditos alemães e que
podia fazer uma reivindicação plausível de ser o governante universal
do cristianismo. Em teoria, a igreja deveria ficar satisfeita com esses
acontecimentos, mas, será que o imperador Carlos era mesmo seu
protetor? Ele se dobraria à vontade do Papa, ou tornaria o Papa seu
vassalo, como outros imperadores, como Frederico II, tentaram fazer? A
resposta não seria dada por Carlos nem pelo Papa e sim por um monge
e professor universitário relativamente simples cujos interesses eram
bem diferentes dos deles. Foi exatamente quando o rei Carlos tomou
posse de sua herança que Martinho Lutero rompeu em cena, com idéias
novas revolucionárias que transformariam a igreja para sempre.
Uma crise financeira que ameaçava arrasar o papado, que nunca
se recuperou totalmente dos gastos enormes com as Cruzadas, estava
intimamente ligada à política da época. No século 15, as cidades ita-
lianas floresciam com o progresso estrondoso da Renascença. Veneza
e Gênova enriqueceram com o comércio, enquanto Florença e Milão
se tornaram centros bancários importantes. Esperava-se que Roma
competisse com essas cidades, mas, ela não possuía fonte de renda
a não ser a igreja. Para aumentar suas receitas, os Papas recorriam a
várias formas de impostos. Por exemplo, quando alguém era nomeado
bispo, era obrigado a pagar ao Papa uma soma equivalente a um ano
de seu futuro salário. Em alguns casos, os Papas colocavam seus pró-
prios funcionários em dioceses desocupadas que estes nunca visitavam,
mas, cujos rendimentos iam direto para Roma. O Parlamento inglês
sancionou duas vezes leis proibindo essa prática (em 1351 e em 1393),
e o rei da França, por sua vez, ficou tão indignado que em 1433 vetou
qualquer tipo de imposto papal em seus domínios.16
16 A proibição continuou até 1516.
Os sinais de alerta eram claros, contudo, para os Papas era quase
impossível enxugar os gastos, e a busca por mais recursos continuou
inalterada. A situação se agravou no papado de Leão X (1. 1513-21).
Nas palavras do historiador J. N. D. Kelly:
Pessoa agradável e amante dos prazeres, mecenas das artes e refunda-
dor da universidade de Roma (nov. 1513), o Papa Leão era esbanjador
imprudente, tão desesperado por dinheiro que penhorou os móveis
e louças do seu palácio. Além de gastar com suas diversões, ele Unha
de pagar por suas guerras, as cruzadas, e, acima de tudo, a construção
da Catedral de São Pedro; para conseguir dinheiro, o Papa Leão fez
grandes empréstimos e vendeu cargos, até mesmo o de cardeal.17
Uma forma engenhosa de a igreja angariar mais dinheiro era a venda de
indulgências, prática criada vários séculos antes. Indulgência era uma garantia
de que o comprador passaria menos tempo no purgatório do que o esperado.
Ninguém sabia o que deu ao Papa o direito de decidir o que vinha depois da
morte, contudo, o medo do purgatório convenceu muitos de que encurtar
0 tempo ali era uma boa ideia. Quando os cofres Papais estavam a ponto de
secar, lançava-se outra campanha de venda de indulgências na esperança de
abastecê-los. Uma dessas campanhas incitou o protesto de Martinho Lutero,
e a Reforma foi gerada.
A REFORMA PROTESTANTE
hoje apenas uma Igreja Protestante, mas, o impulso pela reforma foi
sentido de muitas maneiras, nem todas eram compatíveis entre si, e
assim surgiram muitas igrejas diferentes, que às vezes competiam umas
com as outras tanto quanto com Roma.
A Igreja Católica também mudou em relação ao protestantismo.
Tradicionalmente, essa reação era chamada de Contrarreforma, e em-
bora o nome fosse parcialmente verdadeiro, entendemos hoje que era
uma reforma com vida própria. Pelo que via acontecer a seu redor,
um católico idoso dos anos 1570 não teria reconhecido a igreja de sua
juventude, mesmo cultuando ao lado de pessoas que garantiam ser
herdeiras da tradição daquela igreja.
Em 1517, tudo isso ainda jazia em um futuro incerto. Em pouco
tempo, as teses de Lutero eram debatidas por toda a Europa Ociden-
tal e, em Zurique, Ulrico Zuínglio foi encorajado a fazer um protesto
pessoal contra a igreja e sua teologia sacramental. Zuínglio agiu inde-
pendentemente de Lutero, mas, na comoção geral do momento, os
dois foram unidos no que seria uma associação desconfortável. Logo
outras opiniões se fizeram ouvir, algumas apoiando Lutero e outras
apoiando Zuínglio, e algumas não apoiando qualquer dos dois. Erasmo
de Roterdã era o intelectual típico. Crítico severo do Papa, de início
Erasmo deu suporte ao protesto de Lutero na esperança de que ele
levasse à reforma genuína. No entanto, ao perceber que Lutero não
era simplesmente um reformador moral, mas que propunha uma teo-
logia da graça diferente da sua, Erasmo mudou seu discurso e passou
a atacá-lo. Lutero respondeu à altura e com isso distinguiu sua reforma
do humanismo, que era bem-intencionado, mas, teologicamente fraco
e que havia se tornado popular nos círculos acadêmicos.19
Lutero foi intimado pelo imperador a explicar sua posição diante
do Parlamento alemão, ou Dieta, como era chamado, e contra o pa-
recer de alguns seguidores, ele concordou. A reunião subsequente se
tornou lendária, e, como resultado, os fatos ficaram obscuros, mas,
seja lá o que aconteceu de verdade, Lutero saiu da reunião ainda mais
19 Os dois panfletos foram publicados juntos em E. E Winter (Org.), Erasmus and Luther:
Discourse on Free Will (Londres: Continuum, 2007). Veja também M. Luther, The Bondage
of the Will, trad. J. I. Packer e O. R. Johnston (Londres: James Clarke, 1957).
determinado a defender sua posição. O imperador lhe havia prometí-
do salvo-conduto, mas, depois da reunião com o Parlamento, Lutero
foi considerado persona non grata, e seu futuro imediato ficou bastante
incerto. Conhecedores do que havia acontecido a Jan Huss um século
antes, os amigos de Lutero não perderam tempo. Eles o raptaram e
esconderam no castelo de Wartburg durante três anos. Lutero passou
esse tempo traduzindo a Bíblia para o idioma alemão e escrevendo
panfletos defendendo sua posição. Quando foi solto, Lutero havia se
tornadò herói nacional; por um momento, parecia que a Alemanha
inteira iria segui-lo.
Em desespero, o Papa Leão X buscou o apoio dos reis da Europa,
mas, todos se negaram a ajudá-lo. A única exceção foi Henrique VIII da
Inglaterra, que escreveu um tratado sobre os sete sacramentos no qual
ameaçava Lutero, o que lhe rendeu o título de “defensor da fé”, título
que seus descendentes ainda carregam.20 Leão X excomungou Lutero
em 1521, mas, já era tarde demais para impedir as ondas de protesto.
Os anos seguintes foram de confusão. O imperador Carlos V era
católico fiel e desejava preservar a unidade da igreja, mas, até ele reco-
nheceu que o papado precisava de uma revisão completa. Sua solução
foi reunir um concilio da igreja para lidar com a crise, mas, ao contrário
do imperador do Leste um século antes, o imperador não podería fazer
tal coisa sozinho. Ele necessitava da ação do Papa, porém Clemente
VII (r. 1523-34), primo de Leão X, não mexeu um dedo. Em 1527, as
tropas de Carlos V invadiram Roma e aprisionaram o Papa. Clemente se
dobrou ao inevitável e concordou em aceitar as condições do imperador
para ser solto, contudo, ele nunca conseguiu reunir o desejado concilio.21
Ao mesmo tempo, Henrique VIII solicitou que seu casamento com
Catarina de Aragão, que era tia do imperador, fosse anulado com base
no fato de ela ter sido casada com o irmão mais velho de Henrique.22
Catarina apelou ao seu sobrinho, que deixou claro ao Papa que este não
O que é a igreja?
1 Morone é pouco conhecido no mundo de fala inglesa, mas, foi publicado recente-
mente um bom estudo sobre Pole. Veja T. F. Mayer, Reginald Pole: Prince and Prophet
(Cambridge: Cambridge University Press, 2000).
da expansão, e mais pessoas se tornaram católicas no século 16 do que
saíram da igreja para se juntar à causa protestante.
Para aqueles que continuaram no rebanho católico depois da
Reforma, estar em comunhão com o Papa era a prova da ortodoxia.
Talvez fosse possível manter todas as doutrinas da Igreja Católica e
até celebrar suas liturgias, como Henrique VIII fez após se desligar da
igreja, porém isso não bastava. Henrique foi considerado protestante,
não porque acreditasse em alguma doutrina protestante em particular,
mas, porque não tinha comunhão com o Papa. Isso, e apenas isso, era
o índice que servia de medida para todas as outras coisas.
Reforma pragmática
A segunda resposta era favorecer uma reforma pragmática, lidando
com alguns abusos específicos e reestruturando o que fosse conside-
rado necessário. Em essência, foi isso o que aconteceu na Alemanha,
Escandinávia e Inglaterra, onde a estrutura da igreja medieval era geral-
mente deixada intacta e as mudanças eram principalmente teológicas.
Onde os governantes seculares tinham influência sobre a igreja, como
na Inglaterra, por exemplo, eles geralmente controlavam a indicação
dos altos funcionários e cuidavam para que qualquer lei estabelecida
pela igreja fosse submetida à aprovação deles, porém deixavam mais ou
menos intocado o padrão existente. No caso da Inglaterra, isso signifi-
cava que muitos dos exageros dos quais os reformados reclamaram não
sofreram mudança nenhuma. Os padres ausentes continuavam ausen-
tes, e a educação do clero era esporádica. Até mesmo o culto público
sofreu pouca mudança de início; foi somente quinze anos depois do
desligamento de Roma que os cultos passaram a ser feitos em inglês,
e não não mais em latim. Na Alemanha houve mais mudanças nesse
aspecto, contudo, os direitos e privilégios foram mantidos, incluindo
os dos bispos. Quando um bispo se tornava protestante, por exemplo,
sua diocese geralmente era secularizada e seu cargo era ocupado pelo
líder local em vez de ser abolido imediatamente. Em nível inferior,
tribunais da igreja, o sistema de dízimo, e outras questões parecidas
permaneceram intactas, de modo que a igreja institucional continuou
a funcionar mais ou menos como antes.
Os apoiadores mais importantes de Martinho Lutero foram os
príncipes alemães que se alarmaram com a possibilidade de a Casa de
Habsburgo se apoderar do Santo Império Romano. Para eles, ter uma
igreja desligada de Roma era vantajoso, pois enfraquecia o Estado
central e dava-lhes a autonomia que cobiçavam. Alguns deles eram se-
guidores genuínos da teologia de Lutero, porém isso não era prioridade.
Eles queriam ficar livres do Papa, menos amarrados ao imperador, e
controlar com firmeza as questões religiosas dos territórios que gover-
navam. Para tanto, apoiavam (e até impunham) uniformidade religiosa
dentro de seus domínios, mas, claro, não tinham controle sobre o que
acontecia em outras jurisdições.
Com isso, a união da igreja ficou cerceada pela influência do Esta-
do, o que resultou em quase tantas igrejas separadas quantos eram os
governantes seculares. Mesmo quem afirmava ser luterano não seguia
necessariamente a mesma ordem eclesiástica, pois cada governante
era livre para impor o sistema que desejasse. Enquanto Lutero estava
vivo, ele exercia alguma influência no modo de as coisas se desenvol-
verem, mas, depois de sua morte, não apareceu ninguém da mesma
envergadura, e o protestantismo rapidamente adquiriu algo da variedade
eclesiástica com a qual estamos familiarizados hoje.2
Os reformados pragmáticos, ou “magisteriais”, assim chamados
porque trabalhavam ao lado do magisterium (governo secular) e em
harmonia com ele, nunca conseguiram escapar das garras do governo.
Uma razão é que eles dependiam da proteção do Estado. É quase cer-
to que Lutero teria sido queimado vivo como Jan Hus se os príncipes
não o tivessem socorrido, e sem o apoio deles o protestantismo nunca
teria se estabelecido. Em 1555, Carlos V finalmente concordou em
que cada governante alemão escolhesse a religião que seu território
iria seguir, adotando o princípio conhecido como cuius regio eius religio
um reconhecimento formal de que era direito do Estado determinar o
tipo de igreja dentro de suas fronteiras.
2 Para estudos recentes sobre essa situação, veja J. Whaley, Germany and the Holy
Roman Empire 1493-1806, 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 2012); e P.
H: Wilson, Europe’s Tragedy: A New History of the Thirty Years War (Londres: Allen
Lane, 2009).
A Paz de Augsburgo, como o acordo de 1555 foi chamado, ten-
tou resolver o problema da Reforma aceitando-a onde ela já havia se
estabelecido e mantendo-a dentro desses limites. Como a Reforma
continuava se expandindo e diversificando, esse acordo não satisfazia
as pessoas por muito tempo, e mesmo depois de promulgado, os pro-
blemas foram significativos logo de início. Um deles era concernente
aos territórios eclesiásticos do império, que em teoria pertenciam aos
bispos que estivessem em comunhão com Roma. Porém, no caos que
antecedeu 1555, vários territórios foram ocupados por governantes
protestantes seculares que se negavam a abrir mão deles. A solução
não oficial foi o imperador reconhecer esses governantes protestantes
como “administradores” em vez de bispos, um acordo estranho e in-
satisfatório que plantou as sementes de problemas futuros. Uma difi-
culdade parecida ocorreu com os monastérios e outras casas religiosas
que foram tomadas pelos protestantes: eles deveríam retornar aos seus
donos originais ou não?
Havia ainda a questão das minorias: católicos em territórios lute-
ranos e vice-versa. Como era de se esperar, frente a suas respectivas
pressuposições, os católicos queriam expulsar os dissidentes sem
compensações, mas, ao ver dos luteranos, eles deveríam ser tolerados
ou ter permissão para emigrar legalmente. O imperador, que era cató-
lico, ficou em uma situação difícil porque, embora devesse ser um juiz
imparcial das discórdias, ele estava determinado a reprimir todas as
formas de protestantismo em suas terras hereditárias, incluindo aquelas
onde os protestantes eram a maioria da população. Em geral, a maioria
dos súditos do império permanecu católica, porém a maioria de seus
príncipes subordinados se tornou protestante. Havia uma possibilidade
crescente de que eles viessem a dominar o Parlamento alemão (Dieta),
e até mesmo escolher um protestante como imperador, o que quase
aconteceu em 1618.
Mas, outra questão que a paz não resolveu foi a natureza do fenôme-
no conhecido como “protestantismo”. Oficialmente, esse termo incluía
todas as pessoas que aprovavam a Confissão de Augsburgo (Confessio
Augustana) de 1530, entretanto, muitos protestantes haviam deixado a
Confissão para trás e tornaram-se mais radicais. Governantes seculares
224
IIVeja A. Milton, The British Delegation and the Synod of Dort (Woodbridge: Boydell &
Brewer, 2005).
12 Veja A. Ryrie, The Origins of the Scottish Reformation (Manchester: Manchester Uni-
A SANTIDADE DA IGREJA
18 Veja J. C. Olin, Catholic Reform: From CardinalXimenes to the Council of Trent, 1495-
1563 (New York: Fordham University Press, 1990); J. W. O’Malley, Trent What
Happened at the Council (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013).
consagrados) e assim por diante. Em resposta, o Concilio de Trento
enfatizou mais ainda essas coisas, cortando excessos óbvios como a
venda de indulgências (mas, não as indulgências propriamente ditas),
e estabelecendo uma prática regular de confissões e penitências antes
da Eucaristia, cujo propósito era assegurar que os membros da igreja
fizessem o que deviam. A missa continuou no cerne da vida devocional
e, no mínimo, se tornou ainda mais importante. Os muitos rituais eu-
carísticos da igreja pré-Reforma foram abolidos, e um padrão único foi
autorizado para a igreja toda. A missa deveria ser realizada em latim, para
que os católicos pudessem participar dela em qualquer país do mundo.
A famosa Missa Tridentina, como ficou conhecida, permaneceu em uso
oficial durante quatrocentos anos, e para os católicos conservadores de
hoje ela, e não o que a precedeu, é a referência do que a igreja deveria
fazer no culto público.
Os padrões da vida monástica pré-Reforma foram mantidos e
fortalecidos, contudo, os leigos foram incentivados a adotar tantas
práticas devocionais monásticas quantas lhes fossem possíveis. Com
isso, os católicos extremamente devotos iam à missa diariamente,
usavam uma camiseta de tecido rústico sob a roupa como prova de
que abandonaram as vaidades desse mundo, faziam romarias a lugares
sagrados e passavam tempo repetindo orações memorizadas diante
de objetos sagrados, de uma imagem da Virgem Maria ou de um dos
santos que serviam obrigatoriamente como padroeiros ou exemplos
de comportamento.
A crítica protestante, que no início da Reforma se concentrava na
superficialidade de tanta devoção popular, agora enfatizava sua futili-
dade. Para os protestantes, os católicos estavam tentando comprar um
lugar no céu e sendo incentivados a fazer isso por meio da igreja, que
agia como despenseira da graça de Deus. Na perspectiva protestante, os
católicos estavam se iludindo, pois a salvação era um dom gratuito de
Deus dado pelo Espírito Santo e não algo obtido por esforços huma-
nos. Para os protestantes, a Igreja Católica Romana era uma instituição
tirana poderosa, determinada a manter seus escravos espirituais em
subrtiissão negando-lhes acesso às verdades da Bíblia e impondo-lhes
uma disciplina espiritual mais próxima à interpretação que os fariseus
deram à lei de Moisés do que ao evangelho de Cristo. Ou seja, quanto
mais Roma enfatizava seus princípios, mais os protestantes se afastavam
dela e usavam os indícios da reforma católica como evidência de que
o Papa era mesmo o anticristo.
Diferente da Igreja Católica, a união interna das igrejas protestantes
estatais era apoiada pela lei secular, que também ditava como as pessoas
deveríam se comportar em todas as situações da vida - certamente em
público, e, até certo ponto, em particular também. Havia leis ditando
como deviam se vestir, gastar qualquer tempo livre que tivessem e o
que ler. Os Dez Mandamentos eram a base da moralidade pública; os
magistrados tinham de defender os princípios bíblicos tanto quanto
possível. Os tribunais deviam assegurar que a sociedade cristã inteira
se empenhasse a obedecer às regras estipuladas na Palavra de Deus, as
do Antigo Testamento inclusive. Há muito se desejava adaptar as leis
mosaicas às necessidades cristãs, como o sistema medieval de dízimo
mostrou, contudo, os protestantes foram mais além e abrangeram coisas
como os graus de parentesco e afinidade que impediríam um casamento.
O direito canônico havia optado de modo mais ou menos arbitrário
por sete graus de relacionamento, que mais tarde foram diminuídos
para quatro, todavia os protestantes encontraram o padrão ideal em
Levíticos 18 e acrescentaram o texto às suas leis matrimoniais.19
Como tudo isso afetou a santidade da igreja como instituição
singular na sociedade é difícil dizer. De um lado, a distinção medieval
entre a “igreja” e o “mundo” foi eliminada. O monasticismo deixou de
existir, e o clero não tinha mais obrigação de ser celibatário. Os cultos
eram feitos no idioma local, e esperava-se que os fiéis participassem
do culto de várias maneiras. Na maioria das igrejas reformadas, leigos
eram escolhidos para ser presbíteros e dividir a liderança da igreja com
aqueles que tinham formação acadêmica e haviam sido ordenados
para o ministério de tempo integral, embora o pastor ou o “líder de
ensino” conservasse sua posição especial e não fosse tão diferente do
sacerdote da pré-Reforma quanto alguns protestantes mais radicais
gostariam que fosse.
19 VejaLevíticos 18.6—18 e compare-o à lista de graus proibidos [para o casamento]
acrescentados ao Livro Anglicano de Oração Comum.
Em muitos aspectos, seria adequado afirmar que as igrejas protes-
tantes estatais e as sociedades a quem serviam se mesclaram uma à outra.
Essa mescla era mais visível em países luteranos, onde geralmente a
igreja havia se tornado departamento do Estado e seus ministros eram
pagos com dinheiro público. Não existia linha divisória clara entre o
sagrado e o secular, de modo que o rei era considerado bispo supremo
e os ministros da igreja eram supervisores de ensino em suas comunida-
des. As igrejas reformadas seguiam esse padrão até certo ponto, todavia,
conservaram maior independência do Estado. Por exemplo, continu-
aram a promover sínodos e criar suas próprias leis, que esperavam ser
ratificadas pelo Estado. Em alguns casos, essas igrejas não tinham voz
na decisão, pois eram minoria e deviam aceitar o que recebiam. Isso era
particularmente verdade na França, onde os protestantes queriam agir
dentro da lei, mas, a lei era a de um país católico que tinha dificuldade
em reconhecer o direito deles. No fim, entraram em um acordo, que
deixou a desejar para os franceses protestantes e foi minado progres-
sivamente até eles serem reprimidos e expulsos do país.
No entanto, se os relacionamentos com as autoridades seculares
variavam muito de um lugar para outro, a disciplina interna exibida
nas igrejas protestantes estatais era bem semelhante em todas elas. O
caminho para se alcançar uma igreja pura era a educação. A Bíblia foi
traduzida para o idioma local e era pregada de púlpito pelo menos duas
vezes aos domingos e com frequência durante a semana. Os cultos
eram voltados à ministração da Palavra, para a qual o sacramento era
suplementar. Em teoria, a Ceia do Senhor deveria ser administrada
com frequência, o que não acontecia na prática. Em alguns lugares, era
servida quatro vezes por ano, mas, não por leviandade. Ao contrário,
a celebração infrequente permitia que as paróquias promovessem
“ceias sazonais”, ocasião em que o sacramento seria precedido por
uma semana ou mais de preparação, constituída de cultos de oração
diários, arrependimento e chamadas à conversão e correção de vida.
Os paroquianos talvez não tivessem contato frequente uns com os
outros, mas, quando se reuniam, a ocasião era solene e causava-lhes
impressão muito mais profunda do que um encontro semanal jamais
poderia causar.
Para termos uma ideia de como eram essas ocasiões, basta estu-
darmos os enunciados convencionais da Igreja Anglicana. O Livro de
Oração Comum, publicado originalmente em 1549 e revisado algumas
vezes antes de alcançar sua forma clássica, em 1662, é bem daro quan-
to ao que deveria ser feito. O culto da Ceia do Senhor contém várias
exortações cujo objetivo é instruir pastores e igrejas no preparo para
o sacramento, e são específicas quanto às expectativas. Os dois Livros
de Homílias, o primeiro publicado em 1547 e o segundo em 1563, são
mais esclarecedores ainda com suas instruções detalhadas sobre o viver
cristão. Se compararmos os dois livros, notaremos que metade dos
sermões do primeiro livro lida com a doutrina e a outra metade, com
a prática; no segundo livro a balança é obviamente a favor da prática.
Essa mudança do ponteiro evidencia que a preocupação com a santi-
dade visível da igreja e de seus membros aumentava com o passar do
tempo e que todos os esforços estavam sendo feitos para inculcar um
estilo de vida santo entre a população.20
O que acontecia na igreja era reforçado por uma rede de escolas
criadas para treinar jovens. Os supervisores de ensino eram consi-
derados parte do estabelecimento eclesiástico e estavam sujeitos aos
mesmos testes doutrinários que o clero, o que comprova a importância
da escola como ferramenta de treinamento das gerações vindouras.
Nem todas as paróquias tinham uma escola, e apenas uma minoria
de jovens podia estudar; mesmo assim, isso era vim grande avanço
em comparação ao que havia sido conquistado antes da Reforma e
incentivava a igreja a estender seus préstimos o mais que pudesse. A
influência dessa abordagem foi duradoura. Até mesmo no século 18,
quando a população cresceu vertiginosamente e a Revolução Industrial
sobrecarregou a antiga estrutura paroquial nas cidades que se expandiam
rapidamente, a igreja reagiu e aumentou a produção de literatura cristã
a preços acessíveis e passou a realizar aulas dominicais para as crianças
que trabalhavam durante a semana. A necessidade de educação nunca
20 Veja P. Collinson, The Religion of Protestants: The Church in English Society, 1559-1625
(Oxford: Oxford University Press, 1982).
foi menosprezada, e a dimensão espiritual continuou fundamental a
seu cumprimento durante gerações.21
O maior desafio das igrejas protestantes foi a magnitude dos servi-
ços que tiveram de providenciar. Da noite para o dia, tiveram de encon-
trar pastores e professores instruídos que partilhassem e comunicassem
a visão dos reformados. Tiveram ainda de levantar recursos financeiros
para essa operação. Na época da Reforma, muitos, incluindo o Estado,
aproveitaram o desarranjo da igreja para se apossarem de seus rendimen-
tos e propriedades. Pegar tudo de volta foi quase impossível, e as igrejas
protestantes estatais atravessaram uma enorme crise financeira, apesar
de sua posição privilegiada.22 A demanda superou rapidamente o abas-
tecimento, e era evidente que, para alcançar os objetivos da Reforma,
deveriam ser adotadas medidas radicais. Infelizmente, o progresso nessa
direção foi estorvado por algumas das mesmas pessoas que deveriam
promovê-lo. Em geral, os líderes da igreja eram bem relacionados na
sociedade, pois vinham da nobreza ou tinham vínculos com famílias
nobres e ricas que se beneficiavam das dificuldades financeiras da igre-
ja. Na Inglaterra, os bispos continuavam a morar em seus palácios e
a gerenciar inúmeros serviçais, como sempre fizeram, e à medida que
as fontes de recurso secavam, eles pegavam o quanto podiam do que
ainda restava. A própria rainha Elizabeth I também tirou vantagens
da situação ao suprimir, durante anos, algumas dioceses e desviar suas
rendas para seus próprios cofres.23
Assim sendo, é natural que houvesse preocupação crescente quanto
a esse procedimento dentro da igreja. Pastores e leigos passaram a exigir
mais controle sobre as nomeações de líderes e mais disciplina para os
que já estavam atuando. Achavam também que a igreja anglicana preci
21 Isso aconteceu até nos Estados Unidos, onde a oração continuou sendo parte da
rotina diária das escolas até a prática ser contestada e considera inconstitucional
na metade do século 20.
22 C. Hill, Economic Problems of the Church: From Archbishop Whitgift to the Long Parliament
29 Para a maioria dos cristãos ocidentais essa controvérsia parece estranha, contudo,
a maioria dos protestantes também custou a aceitar o calendário gregoriano. O
problema estava no fato de ele ter sido apresentado pelo Papa Gregorio XIII em
1582, depois âz Reforma, e, portanto, foi rejeitado pelos não católicos por questão de
princípio. A maioria dos protestantes europeus finalmente o aceitaram em 1700, mas,
os britânicos resistiram até 1752. Na Europa Oriental, a Rússia adotou o calendário
por motivos seculares em 1918, e os outros países ortodoxos fizeram o mesmo nos
anos 1920, mas, apesar de algumas, de suas igrejas terem aceitado a mudança, outras
(incluindo a da Rússia) não o fizeram e até o hoje seguem o calendário antigo.
história recente comprova, esses grupos são passíveis de altercações
internas, e nenhum deles está em posição de se engajar em diálogo ou
cooperação interdenominacional. O único órgão que mais se aproxi-
ma disso é o Conselho Mundial de Igrejas, que representa um amplo
espectro de grupos protestantes (e ortodoxos orientais), apesar de os
mais conservadores não pertencerem ao Conselho, e sua influência, que
nunca foi grande, ter declinado consideravelmente nos últimos anos.
Gostemos ou não, nacionalismo e denominacionalismo maquinaram
para enfraquecer a catolicidade de igrejas não romanas, um fato que os
defensores de Roma nunca deixam de enfatizar.
Quando os reformados falavam da catolicidade da igreja, era
principalmente aos credos antigos que se referiam. Insistiam em
afirmar que eram perfeitamente ortodoxos, e concordavam com o
Credo dos Apóstolos, o Credo de Niceia (niceno-constantinopolitano)
e o chamado Credo Atanasiano, embora a maioria deles ignorasse que
as igrejas orientais desconheciam o primeiro e o último desses credos.
Nada sabiam a respeito da discórdia filioque, mas, aceitaram o ponto
de vista ocidental quanto ao assunto. Conforme o tempo passou e os
grupos protestantes desenvolveram suas próprias confissões de fé e
tradições teológicas, a cooperação entre eles declinou e qualquer no-
ção séria de catolicidade desapareceu. A maioria das igrejas nacionais
fechou suas portas a intercâmbio regular com outras. Permanecia, no
entanto, a disposição de aceitar refugiados, como os huguenotes, que
foram expulsos da França depois de 1685 e conseguiram se integrar
à Igreja Luterana na Alemanha e à Igreja Anglicana sem dificuldade
nenhuma. Mas, esse foi um caso especial. Os luteranos normalmente
não entregavam seus púlpitos aos anglicanos, por exemplo, e mesmo
que se prontificassem a fazê-lo, poucos anglicanos possuíam habilidade
linguística para usufruírem de tal oportunidade. A Igreja Anglicana, por
seu lado, tornava-se cada vez mais desconfiada dos estrangeiros protes-
tantes. Ela hesitou em aceitar o rei George I (r. 1714-27), um luterano
de Hanover que herdou o trono britânico por seu protestantismo, e
até hoje não se relaciona com a Igreja da Escócia por causa da forma
presbiteriana de governo eclesiástico que esta última adota, mesmo
que seu governador supremo, o monarca, também seja membro da
Igreja Anglicana.
254
A SUCESSÃO APOSTÓLICA
tinham permissão para lhes impor as mãos, por receio de que eles adquirissem
sucessão apostólica pela porta dos fundos.
ao apostolado na fidelidade à doutrina apostólica contida na Bíblia,
um critério que pensam faltar nas denominações que enaltecem o
episcopado histórico. No entanto, há exceções nesse aspecto dentro do
mundo protestante, o que (devido à sua variedade) não causa surpresa.
Alguns grupos de natureza carismática estão convictos da existência de
apóstolos na igreja de hoje e que ela deve ser governada pela autoridade
deles. Era assim que pensava Edward Irving (1792-1834), fundador da
Igreja Católica Apostólica, uma denominação protestante pequena,
mas, surpreendentemente ativa e influente. A alegação é negada (ou
pelo menos ignorada) por quase todos os outros grupos, porém só
o fato de poder ser feita lembra que o Novo Testamento não afirma
claramente que o ministério apostólico deixou de existir depois da pri-
meira geração de cristãos. Sabemos que desde então o consenso é que
deixou, sim, de existir, tenha ou não sido antevisto, contudo, até bem
recentemente, o mesmo era verdade em relação ao dom de línguas. Se
este pode reaparecer em nossos dias, por que não o apostolado?
São poucas as denominações que defendem a existência do apos-
tolado hoje, mas, é óbvio que seguem a tradição radical da Reforma,
segundo a qual uma igreja verdadeira tinha de começar do zero, fosse
ou não liderada por um “apóstolo” designado como tal. Essas igrejas,
que se multiplicaram com o tempo e são agora comuns no cenário
evangélico, não se preocupam muito com sistemas tradicionais ou
confissão de fé. Em geral, são ortodoxas em intenção, ou seja, aceitam
as doutrinas ensinadas nos credos da igreja primitiva (quando não os
próprios credos) e têm um entendimento evangélico geral do protes-
tantismo. E sob esse prisma que, consciente ou inconscientemente, seus
pastores e pregadores interpretam a Bíblia, que continua central à sua
adoração e aos seus ensinos. Alguns de seus líderes buscam treinamen-
to teológico formal, que normalmente será conservador, evangélico e
protestante, geralmente com uma pincelada carismática, contudo, suas
igrejas permanecem fora de qualquer estrutura denominational. Para
esses grupos, apostolado é basicamente o ensino do Novo Testamento,
que os próprios apóstolos transmitiram ou autorizaram outros a fazê-lo
em seus nomes, e acreditam que se forem fiéis a isso, sua reivindicação
ao apostolado é tão válida (se não melhor) quanto a de qualquer um.
Essa posição radical sobre o apostolado da igreja geralmente é
partilhada por congregações evangélicas de denominações protestantes
tradicionais, embora relutem em admiti-lo publicamente. Antecedentes
históricos são de pouco valor para essas congregações, e certamente elas
desconfiariam de pessoas que insistissem neles, caso ficasse evidente que
as crenças e práticas dos demandantes não se conformassem com suas
reivindicações. Em outras palavras, o pastor ou igreja que defendesse
a própria sucessão apostólica histórica não seria aprovado se os seus
ensinos e vida espiritual não estivessem de acordo com os princípios
estabelecidos no Novo Testamento. Essa posição, que parece radical,
é na verdade genérica a todos os tipos de protestantismo. A Reforma
jamais teria acontecido se a igreja do fim da era medieval estivesse vi-
vendo segundo seus princípios tradicionais, e os protestantes sempre
mantiveram que os grupos católicos romanos e ortodoxos orientais,
que deram mais valor a essa sucessão histórica, se afastaram desses
princípios em maior ou menor grau.
Em épocas mais recentes, protestantes conservadores (incluindo
praticamente todos os evangélicos) ampliaram essa crítica a todas as
igrejas protestantes que se dizem firmar na sucessão apostólica, mas,
negam crenças cristãs fundamentais e toleram comportamento in-
consistente com a interpretação bíblica conservadora do evangelho.
Para esses conservadores, quem nega a Trindade ou realiza casamento
homoafetivo não pode se esconder atrás dos ritos tradicionais e dos
mecanismos da igreja, como se isso lhe garantisse uma legitimidade
que sua fé e prática não sustentam. A apostolicidade, se é que ela existe
mesmo, tem de refletir o ensino e comportamento dos apóstolos; de
outra forma, ela não passa de um conceito sem sentido ou que não se
aplica à vida da igreja.
Root e R. Saarinen, Baptism and the Unity of the Chunk (Grand Rapids: Eerdmans, 1998).
35 Lutero elaborou esse conceito em resposta aos anabatistas. Veja seu “Concerning
37 Para entender o debate entre a tradição reformada, veja P. Marcel, The Biblical Doc-
trine of Infant Baptism (Londres: James Clarke, 1953), e D. F. Wright, Infant Baptism
in Historical Perspective (Milton Keynes: Paternoster, 2007).
certamente existam diferenças de opinião entre os protestantes sobre
esse assunto também — e a importância singular do batismo na doutrina
da igreja se torna visível. O batismo continua fundamental à eclesio-
logia porque é o sacramento de iniciação. A criança batizada pertence
à igreja de um modo que a não batizada não desfruta. Podemos fazer
uma comparação com a cidadania de um país. As crianças são cidadãs
de um país ao qual pertencem mesmo não possuindo todos os direitos
dos adultos, direitos que reivindicarão quando se tornarem adultas. A
comparação não é exagerada, pois até o século 19 (e até mais tarde,
em alguns lugares), o batismo era a maneira de os nascimentos serem
registrados na maioria dos países tradicionalmente cristãos; então, de
fato, o batismo era uma prova de cidadania, uma vez que, em muitos
casos, não havia outro modo de comprová-la.
Assim, como em geral as crianças são ensinadas a ser cidadãs
responsáveis, e dificilmente rejeitam sua cidadania na idade adulta,
pressupunha-se que as que aprendiam quais eram as responsabilidades
de um membro de igreja aceitariam fazer parte dela quando alcançassem
a idade do discernimento. Na prática, obviamente, os anabatistas (e mais
tarde, os batistas) se baseiam nos mesmos princípios, ainda que analisem
o processo de modo diferente. Seus filhos não permanecem neutros,
mas, são criados na igreja exatamente como as crianças batizadas, e
todas devem fazer profissão de fé antes de assumir responsabilidade de
adultos na igreja; portanto, as diferenças entre eles, mesmo que teori-
camente significantes, são bem menos, na prática, do que parecem ser.
A maioria das igrejas que batizam crianças não permite que elas
participem da Ceia do Senhor imediatamente, apesar de a lógica dessa
prática ter sido questionada recentemente. As igrejas orientais sempre
serviram a Ceia às crianças recém-batizadas, contudo, isso é menos im-
portante do que parece porque a Ceia do Senhor é infrequente no Leste.
Poucos adultos são comungantes, portanto o assunto sobre as crianças
não é comum. A situação é diferente no Ocidente, onde a confirmação,
como uma ordenança distinta ou conclusão do batismo, é a norma
desde bem antes da Reforma. Nas igrejas episcopais a confirmação
é normalmente realizada pelo bispo, cujo ministério nesse aspecto é
considerado um aglutinador que une a igreja em uma fé comum. Em
outras igrejas a confirmação é administrada pelo pastor, que segue o
conselho de um grupo de líderes que já examinaram e aprovaram os
candidatos. A prática batista é semelhante a essa, com a diferença que
os candidatos recebem o batismo, e não a confirmação.
Nos últimos anos, um movimento sacramental entre os protestan-
tes tenta aproximar o batismo e a Ceia do Senhor. Para os batistas isso
não é problema, pois quem não é batizado não participa da Mesa do
Senhor e, portanto, as criancinhas estão automaticamente excluídas.
No entanto, para outras igrejas isso é mais difícil. A Igreja Ca-
tólica Romana há muito confirma as crianças em tenra idade (seis ou
sete anos), portanto elas não se lembram de uma época em que não
podiam participar da Ceia. Contudo, as Igreja Protestantes tradicionais
geralmente adiam a confirmação até a adolescência, sobretudo devi-
do à ênfase que colocam na instrução antes da admissão integral na
membresia da igreja. Isso lhes é necessário, pois as igrejas protestantes
geralmente têm maior participação laical que as católicas. Os leigos são
envolvidos na liderança do culto, na disciplina da igreja e nas decisões
feitas nos sínodos nacionais de uma forma desconhecida ao Vaticano.
Portanto, é essencial que sejam mais bem instruídos e conscientes
de suas responsabilidades. O envolvimento dos leigos mostra que os
protestantes valorizam mais a profissão de fé pessoal, e nesse aspecto,
os que batizam crianças e os que não batizam estão mais próximos uns
dos outros que dos católicos romanos e dos ortodoxos.
O adiamento da confirmação até a adolescência significa que uma
pessoa não confirmada deve ser impedida de participar da Ceia do Se-
nhor? Nessa área as coisas são mais complicadas. As igrejas anglicanas
geralmente praticam a exclusão, mas, existe uma provisão formal para
que qualquer um “desejoso de ser confirmado” participe da Ceia. Ou
seja, alguém que entenda o que está ocorrendo e deseje fazer parte do
acontecimento é bem-vindo; a confirmação não é, por si só, a única
porta de admissão à Ceia. Na verdade, houve épocas em que essa
provisão foi de particular relevância. Nas colônias americanas, antes
da revolução, por exemplo, não havia bispos anglicanos, portanto, era
bem pequeno o número de adultos confirmados; então, todos os que
participavam da Ceia faziam parte dessa categoria. Hoje em dia, isso
não é problema na maioria dos países, contudo, a provisão permite aos
anglicanos oferecer a Ceia a todos que professam o nome de Cristo e
são membros leais a suas próprias igrejas, tenham ou não recebido a
confirmação episcopal.
Da mesma forma, muitas denominações protestantes são genero-
sas nessa questão, mas, outras nem tanto. No mundo de fala inglesa,
existe uma tendência entre alguns grupos menores de praticar o que é
conhecido como “ceia restrita”, isto é, a participação na Ceia do Senhor
está reservada aos membros em comunhão com a dita denominação,
ou até mesmo com a igreja local. A razão disso em geral é disciplinar.
Se o pastor ou líderes que estiverem administrando a ceia não conhece-
rem quem a está recebendo, não têm como determinar se é digno dela.
Em um sentido, claro, ninguém é “digno” porque ninguém é perfeito,
contudo, o Novo Testamento apresenta alguns critérios para quem
deseja participar da Mesa do Senhor, e alguns protestantes acham que
devem se esforçar para implementá-los. Para tanto se faz necessário
um exame antes de se aproximar da Mesa, o que é difícil administrar
em larga escala. Os presbiterianos (e também anglicanos) tradicional-
mente preparavam as pessoas para receber os elementos da Ceia, mas,
com a frequência em que a Ceia passou a ser servida, a prática caiu
em desuso. Mesmo assim, alguns grupos conservadores continuam a
manter o costume como podem, e se baseiam em precedente bíblico
e denominacional para essa abordagem.
A ceia restrita é mais prevalecente nas igrejas luteranas, especial-
mente nas conservadoras, como a do Sínodo Missouri. Nesse caso,
porém, os motivos são teológicos e disciplinares. Para os luteranos
conservadores não basta que a pessoa confesse seus pecados e “trate o
próximo com amor e caridade e prometa viver uma nova vida”; os par-
ticipantes também têm de confessar que o corpo de Cristo está presente
“no, com e sob” o pão e o vinho. Isso não significa transubstanciação
no sentido católico romano, mas, também não é exatamente o que as
igrejas reformadas (incluindo a anglicana) ensinam. Na verdade, é algo
muito difícil de ser definido com precisão, e no século 19, observado-
res■ anglicanos passaram a chamá-la a doutrina da “consubstanciação”,
embora o termo seja raramente usado pelos próprios luteranos.
Isso quer dizer que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes
nos elementos sacramentais “de um modo celestial e espiritual”, de
sorte que as pessoas que recebem o pão e o vinho também recebem o
corpo e o sangue espiritual de Cristo, quer sejam crentes ou não. Outros
protestantes preferem afirmar que quem recebe desmerecidamente os
elementos da ceia não ingere o corpo nem o sangue de Cristo, pois
somente quem está espiritualmente vivo pode recebê-los, mas, como
os luteranos são prontos a enfatizar, essa perspectiva “recepcionista”
tem seus problemas. Os que a defendem geralmente adotam uma
compreensão puramente simbólica do pão e do vinho, o que questiona
logo de início a necessidade do ritual. Se quem tem mente espiritual
pode ter comunhão com Cristo independentemente das ordenanças, e
as ordenanças não afetam essa comunhão espiritual de forma alguma,
por que então se preocupar com ela? Essa abordagem incomoda os
luteranos (e muitos anglicanos também), mas, de um modo curioso,
lembra o comportamento dos pais do deserto da Igreja Oriental. Como
ermitões, eles raramente tomavam a Ceia, porém isso não lhes fazia
falta, porque sua guerra espiritual acontecia em um plano mais elevado
e sua experiência mística com Deus ultrapassava qualquer coisa que
a Ceia pudesse lhes oferecer.38 Embora os protestantes não usassem
essa linguagem, seu fervor devocional raramente ou nunca resulta em
aumento de práticas sacramentais, pois a maioria deles acharia muito
estranho revelar dessa maneira a sua devoção pessoal a Cristo.
Em relação aos outros sacramentos da igreja medieval, os grupos
protestantes os desprezam totalmente ou relegam a uma categoria
diferente e menos importante das “ordenanças da igreja”. Em geral,
os protestantes restringem o termo “sacramento” ao que podemos
chamar de “sacramentos do evangelho”, ou seja, os rituais autorizados
por Cristo e que especificamente proclamam a mensagem do evange-
lho.39 O batismo faz isso, claro, assim como a Ceia do Senhor, mas, não
38Isso não significa que eles abandonaram a ceia inteiramente, mas, a recebiam in-
frequentemente, um costume que ainda é a norma nas igrejas do Leste. Veja D. J.
Chitty, The Desert a City (Londres: Mowbrays, 1966), para exemplos dessa prática.
39 A distinção é expressada muito concisamente no Artigo 25 dos Trinta e Nove
Mas, por outro lado, também tem crescido o movimento que incentiva
a preparação acadêmica séria, especialmente entre evangélicos e grupos
reavivados que antigamente ordenariam praticamente qualquer um
que mostrasse ter o dom da pregação, quer tivesse estudo teológico
ou não. Como hoje em dia o acesso a seminários e faculdades é mais
democrático que antigamente, a velha barreira de classe desapareceu,
contudo, ainda existem reclamações que o ministério produzido dessa
forma é muito intelectual e geralmente não satisfaz seus propósitos.
Ao mesmo tempo, há mais oportunidades para qualquer pessoa fazer
um curso básico de teologia, o que tem levado à expansão da pregação
laica e a outras formas de ministério serem reconhecidas, inclusive por
igrejas que normalmente recorrem à ordenação protestante tradicional.
Isso nos leva finalmente ao matrimônio, que era um sacramento
na igreja medieval e que, no entanto, não é mais reconhecido como
tal pela maioria dos protestantes. Até bem recentemente, quase todas
as igrejas protestantes concordavam que a monogamia heterossexual
era a única forma possível de casamento e que o divórcio deveria ser
combatido com firmeza. Por exemplo, seria impensável que um homem
divorciado que se casou novamente ocupasse cargo pastoral ou de li-
derança de ensino em qualquer igreja. Essa atitude foi profundamente
corroída, ainda que em diferentes níveis, de uma denominação para
outra, dependendo de até que ponto um grupo se tornou liberal. Em
um dos extremos, estão os fiéis que mantêm os padrões tradicionais,
e aqui se incluem os evangélicos como um todo, embora a aceitação
do divórcio e do novo casamento também tenha crescido entre eles
nos últimos anos. O casamento homoafetivo, por outro lado, continua
sendo rejeitado pela maioria dos protestantes, apesar de algumas de-
nominações liberais (especialmente nos Estados Unidos), estarem na
vanguarda de sua fomentação.
As igrejas protestantes estatais se encontram em uma situação
particularmente complicada, porque tradicionalmente sempre atuaram
como tabeliãs de casamento para a população toda, fossem os nuben-
tes membros da igreja ou não. Os luteranos escandinavos não têm
querer nesse assunto; precisam seguir as leis da nação, não importa o
que achem delas, e se o país aprova novo casamento após o divórcio e
também o casamento homoafetivo, a igreja tem de acatar as decisões.
A Igreja Anglicana, por outro lado, tem liberdade de não contratar
pessoas divorciadas que se casaram novamente, embora essa prática
esteja mudando em alguns lugares. Recentemente, a Igreja Anglicana
proibiu que seus sacerdotes realizem casamentos homoafetivos, e seus
bispos pelo menos tentam assegurar que o clero não concorde com
a prática, apesar de essas uniões terem sido legalizadas pelo Estado.
Outras igrejas protestantes têm liberdade para determinar suas
próprias regras matrimoniais, contudo, se deparam com dificuldades
práticas quando tentam aplicá-las. A demanda por casamento religioso,
mesmo entre não frequentadores de cultos, continua elevada o suficiente
para que algumas igrejas - especialmente aquelas com arquitetura foto-
gênica — se sintam pressionadas a fazer exceções às regras, e o mesmo
se aplica ao novo casamento de divorciados que pertençam, ou tenham
parentes próximos que pertençam, a uma igreja que normalmente não
realiza tais cerimônias. A existência de “capelas matrimoniais” em ci-
dades como Las Vegas, onde casamentos são realizados em questão de
minutos, é um lembrete dos problemas causados pelo relacionamento
tradicional da igreja com o matrimônio.
Talvez o comentário mais justo sobre o assunto é que a disciplina
praticada pelas gerações anteriores quase não existe mais, e o conceito
de matrimônio entre os protestantes é mais frouxo hoje do que nun-
ca. As igrejas estão presas em um dilema: deveriam tolerar um leque
mais amplo de situações matrimoniais do que oficialmente aprovam?
Deveriam impor padrões mais rigorosos para o clero do que para a
população em geral? E o que fazer quando indivíduos infringirem
as regras para conseguir o que querem, como às vezes acontece? As
tendências da vida moderna nos incentivam a crer que os ensinos
tradicionais da igreja um dia alcançarão o comportamento mais “avan-
çado” de um número substancial de seus membros, que na prática
incentiva laxismo e indisciplina.
Em suma, as igrejas protestantes, por mais diferentes que sejam na
superfície, são mais parecidas entre si do que as igrejas católicas ou as
ortodoxas orientais. Isso explica o crescimento extraordinário de mi-
nistérios interdenominacionais e paraeclesiásticos, especialmente entre
jovens e estudantes universitários, que produziu gerações de cristãos
sem ligação particular com qualquer igreja local. Um resultado desse
fenômeno é que os “distintivos” denominacionais se tornam cada vez
menos importante e, em geral, são do interesse sobretudo do clero e
outros profissionais religiosos. Relativamente poucas pessoas esco-
lhem uma igteja porque ela é metodista ou presbiteriana; é muito mais
importante que a igreja tenha um bom grupo de jovens ou excelente
programa para crianças do que seja liderada por bispos ou pastores.
Algumas, pessoas buscam mensagens sólidas e um formato de culto
que lhes agrade, contudo, elas sabem muito bem que não podem de-
pender de rótulo denominacional como garantia de que encontrarão
o que procuram.
À medida que a sociedade se urbaniza, as escolhas se multiplicam
e as igrejas se encontram na posição de bens de consumo; espera-se
que elas adaptem suas atividades e políticas de modo a atrair novos
membros, um estímulo que provavelmente não as incentivará a
dar muita ênfase às suas tradições históricas. Em muitos países, os
bairros novos geralmente têm uma “igreja da comunidade” que talvez
seja independente ou um projeto de cooperação de mais de uma
denominação, o que geralmente reduz a noção da pessoa comum sobre
as diferenças formais que possam existir nos bastidores ou na mente
do pastor.
O cenário atual é fluido, e seria precipitado fazer previsões sobre
seu destino. Até o momento, é seguro afirmar que as denominações
tradicionais estão em declínio, em parte porque a “lealdade denomina-
cional” não é o que costumava ser, e em parte porque, em alguns casos,
a teologia liberal e o conservadorismo cego imposto por líderes e mem-
bros endinheirados que desejam manter as coisas como sempre foram
cuidam para que recém-chegados não se unam a eles com frequência.
Igrejas independentes e igrejas sem sede própria, com poucas respon-
sabilidades e sem bagagem do passado, surgem por todos os cantos,
mas, o que será delas no longo prazo ninguém sabe. Irão se institucio-
nalizar, como suas predecessoras fizeram, e deixarão de ser novidade,
ou simplesmente se dispersarão quando seus entusiasmados membros
envelhecerem ou mudarem-se para outro lugar e se unirem a uma
congregação mais sossegada? Se isso acontecer, elas serão substituídas,
como sempre foram no passado, por grupos independentes resultantes
de divisões nas igrejas e que se voltam para a geração mais nova? Não
importa o que aconteça, é óbvio que o protestantismo está sofrendo
uma metamorfose sem equivalente verdadeiro nas igrejas católicas e
ortodoxas, embora estas também sofram o estresse criado pelo mundo
moderno. Como sempre, “O vento sopra onde quer. Você o escuta,
mas, não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece
com todos os nascidos do Espírito”.40 E a igreja, para todos os efeitos,
continua sendo, no fundo, a comunidade daqueles que nasceram do
Espírito de Deus.
40 João 3.8.
7
1 No. entanto, há algumas, exceções curiosas. Na França, por exemplo, a Igreja Ca-
tólica Romana permite que os anglicanos participem da ceia, mesmo contrariando
a política oficial da igreja, que supostamente deve ser a mesma no mundo inteiro.
po integral e seria praticável somente em vilarejos como os dos menonitas
e dos puritanos da Nova Inglaterra. As experiências nem sempre foram
positivas, e para muitos protestantes a disciplina eclesiástica de qualquer
tipo era tirânica. Esse sentimento se fortaleceu quando os protestantes
entenderam que suas igrejas poderíam exercitá-la (e às vezes o fizeram)
contra outros protestantes, com os quais concordavam em questões
essenciais da doutrina, mas, de quem discordavam em outros assuntos,
que para muitos pareciam questões secundárias e até mesmo triviais. Na
Inglaterra, por exemplo, os clérigos puritanos foram disciplinados pela
igreja estatal por não usarem o traje clerical correto ou as palavras certas
da liturgia oficial. Colocar tais detalhes no mesmo nível da negação da
Trindade ou da divindade de Cristo significava distorcer a natureza da
verdade cristã e causar danos à igreja, mas, foi o que aconteceu, e era
quase impossível convencer as autoridades que elas estavam no caminho
errado. Infeüzmente, é preciso dizer que as pessoas que sofriam esse tipo
de perseguição também eram favoráveis ao exercício da disciplina, mes-
mo em questões secundárias como essas, e quando tiveram a chance de
impor suas idéias aos outros, foi exatamente o que fizeram. Essa atitude
ficou aparente na Nova Inglaterra, Estados Unidos, onde os congrega-
cionalistas, que sofreram discriminação na terra natal, estabeleceram
sua própria igreja e passaram a hostilizar quem não se amoldava a ela.2
7. Cada igreja local deve reconhecer que faz parte de uma comunhão
universal. Tradicionalmente, isso tem sido feito por várias formas de
conexões hierárquicas, tais como episcopado ou governo sinodal por
presbitérios. Mas, se esses são rejeitados ou estão ausentes, é preciso es-
tabelecer outra forma de comunhão. Nenhuma igreja cristã pode alterar
os fundamentos da fé por vontade própria; se o fizer, deixará de ser vista
como cristã pelas outras igrejas do mundo.
3 Por exemplo, em 2011, a Igreja Livre da Escócia passou a permitir que as con-
gregações decidissem individualmente se iriam entoar cânticos modernos e usar
instrumentos musicais. Como era de esperar, a igreja se dividiu, embora os grupos
dissidentes não tenham sido numerosos.
Escrituras (sola Smptura), nenhuma igreja contemporânea pode almejar
recriar com credibilidade o contexto do Novo Testamento. Há vários
motivos para isso:
2. Os apóstolos não vivem mais entre nós. Mas, não importa como,
as igrejas se autogovernavam na época do Novo Testamento, estavam
sempre sujeitas à liderança dos apóstolos, que possuíam certa autoridade
ocasional sobre elas. Paulo, por exemplo, não hesitou em escrever uma
longa carta aos romanos, embora nunca tivesse visitado, e muito menos
implantado, a igreja em Roma. De sua parte, as igrejas podiam buscar
conselho nos apóstolos sobre o que fazer em uma situação específica,
algo que não podemos fazer hoje. Existe, assim, um aspecto perdido
de governo que não pode ser reposto, o que certamente influencia a
organização de nossas igrejas hoje e como usamos a evidência do Novo
Testamento. 3
3. Dois mil anos de história deixaram suas marcas. Quando Paulo esteve
em Atenas, ele e seus companheiros de viagem eram as únicas pessoas na
cidade que conheciam alguma coisa sobre Jesus; Paulo anunciava o Deus
desconhecido. Isso não acontece hoje, com a possível exceção de tribos
remotas que não têm a mínima ideia do que é o cristianismo. Gostem
ou não, os implantadores de igreja hoje precisam considerar essa tradi-
ção porque dependem dela em larga escala, mesmo não admitindo tal
coisa. As Bíblias que leem, os hinos que cantam, e muito do que dizem
e fazem foi herdado de outros lugares. Talvez rejeitem a corrupção e
inadequação de outros grupos eclesiásticos, mas, precisam lidar com eles,
pelo menos porque esses outros grupos desenvolveram suas próprias
posições em consequência do que descobriram ou experimentaram em
outros lugares. Mais cedo ou mais tarde terão de se explicar e defender
em relação a outros grupos cristãos, algo que a igreja do Novo Testa-
mento não precisou fazer.
UNIÃO CRISTÃ
TESTEMUNHO EXEMPLAR
ACOLHIMENTO UNIVERSAL
e se separou para formar o que hoje é conhecido como a Antiga Igreja Católica,
um grupo pequeno, mas, que tem, desde então, conseguido manter seu modo
independente de viver.
isso tem aumentado com o número de convertidos vindos de outras
denominações protestantes. Os luteranos têm se destacado de maneira
especial, todavia um bom número de evangélicos também “atravessou
o rio Tibre”, como diz o ditado, e outros tentaram de modo agressivo
persuadir antigos correligionários a se unirem a eles.13 Mais recentemen-
te, algumas pessoas desses grupos preferiram se unir a uma das igrejas
ortodoxas, provavelmente porque a tradição mística dessas igrejas e
a indisposição para definir algumas doutrinas de forma mais restrita
mostraram-se mais atrativas do que o dogmatismo do Vaticano.14
O repúdio ao protestantismo em favor de uma igreja histórica
pré-Reforma é comum nesses relatos. Na maioria dos casos, os con-
vertidos abandonam suas origens protestantes por frustração com os
defeitos que percebem na igreja ou nas igrejas às quais pertenciam. Em
geral, eles deploram o liberalismo teológico que invadiu a maioria das
igrejas protestantes históricas, e se afastam pela aparente incapacidade
dessas igrejas de estancar seu avanço. Por vezes, se rebelam contra a
superficialidade de boa parte do evangelicalismo popular, que enfatiza
exageradamente a experiência religiosa individual e mostra aparente
indiferença à história e tradição. São atraídos para as igrejas católicas
(e em menor grau, para as igrejas do Leste) porque veem nelas a de-
terminação de resistir às tendências contemporâneas e a habilidade de
ultrapassar a espiritualidade puramente pessoal no que aparenta ser a
unidade de uma igreja universal.
De uma forma ou de outra, foi a doutrina da igreja que capturou o
interesse dos convertidos e atraiu sua lealdade. Mais interessante ainda é
que isso acontece quando muitos membros dessas antigas igrejas estão
cada vez mais insatisfeitos e reduzem seu compromisso ou vão embora
de uma vez. O catolicismo veemente da Espanha, Irlanda e Polônia,
para mencionar três exemplos clássicos, diminuiu bastante na geração
passada, e por todos os lados padres, monges e freiras abandonaram
13 Veja, por exemple, S. Hahn e K. Hahn, Rome Sweet Home: OurJourney to Catholicism
(San Francisco: Ignatius Press, 1993).
14 Veja M. L. Mattox e A. G. Roeber, Changing Churches: An Orthodox, Catholic, and
A FÉ CONFIADA
15 Judas 3.
16 Os escritos de Bart Ehrman são um exemplo proeminente do trabalho que
pressupõe grande diversidade no início do cristianismo baseado em textos não
canônicos.
também é a autoridade maior de suas doutrinas e práticas. Na verdade,
não é exagero afirmar que o grau de fidelidáde de uma denominação aos
ensinos do Novo Testamento é o teste principal de sua reivindicação à
apostolicidade. Alguns grupos protestantes radicais garantem agir assim
de maneira total e exclusiva. O grupo que se chama Igrejas de Cristo,
por exemplo, afirma que obedece ao Novo Testamento e se refreia de
fazer o que ele proíbe ou não menciona — um princípio admirável na
teoria, mas, impossível de ser aplicado com alguma consistência. Ve-
jamos: o Novo Testamento não oferece exemplos claros de batismo
infantil, então, a referida denominação não o pratica. Entretanto, o
Novo Testamento também não diz que as mulheres participavam da
Ceia do Senhor, uma omissão que a denominação Igrejas de Cristo
ignora. Esse exemplo não é tão banal quanto talvez pareça, pois nos
tempos antigos era normal os homens se reunirem para uma refeição
sem a presença de mulheres e crianças; certamente foi assim na Última
Ceia, e até onde sabemos, a prática foi seguida pela igreja primitiva. As
Igrejas de Cristo também, claro, não se reúnem nas casas dos irmãos,
o que a igreja primitiva foi obrigada a fazer. Elas constroem templos
para o culto público e geralmente operam de modo parecido aos de
denominações iguais a elas. Conformam-se à prática do Novo Tes-
tamento em algumas poucas áreas que lhes permitam afirmar que o
seguem exclusivamente, mas, a verdade é que se os apóstolos voltassem
hoje, ficariam tão perplexos com o que acontece nessas igrejas como
em todas as igrejas de todos os lugares.
E impossível a qualquer igreja de hoje aderir a cada detalhe do
Novo Testamento só pelo fato de os tempos terem mudado tanto que
não conseguimos mais recriar nada parecido com as primeiras igrejas
cristãs. Será necessário fazer alguma adaptação à vida moderna, mas, até
que ponto? Para determinar isso, muitas igrejas criaram uma distinção
entre um princípio e sua aplicação, insistindo que embora o primeiro
continue inalterado, o segundo pode ser modificado de acordo com
as necessidades.
Questões de princípios são colocadas sob um destes três tópicos:
doutrina, disciplina e devoção. Todas as igrejas concordam que de-
vem ensinar o que os apóstolos ensinaram. Também concordam que
precisam excluir qualquer coisa que destoe do ensino dos apóstolos,
certificando-se de que os escolhidos, para ser mestres, preencham sua
função de acordo com a intenção dos apóstolos. Também devem se
esforçar para que os membros da igreja vivam de acordo com os padrões
estabelecidos, e discipliná-los, caso não ajam assim. Por último, todas
as igrejas devem se reunir para cultuarem a Deus, o que normalmente
inclui louvor e gratidão como também orações pelas necessidades da
igreja e do mundo, embora o conteúdo exato de cada culto seja variável.
A Ceia do Senhor é o âmago do culto, apesar de haver muitas
maneiras diferentes de expressarmos sua centralidade. A leitura da
Bíblia, seguida da pregação e ensino baseados no que foi lido, também
são aspectos do culto, embora o relacionamento entre eles seja mais
complexo. Em primeiro lugar, é perfeitamente possível ler a Bíblia e
pregar e ensinar com base nela fora do contexto de um culto, o que é
feito frequentemente. Também é possível adorar a Deus sem incluir
pregação e ensino, especialmente se não houver ninguém competente
para fazer isso, embora nesses casos deva haver pelo menos uma leitura
da Bíblia. Mas, não importa o grau de legitimidade dessas exceções,
elas normalmente são vistas como tais e não como prática comum.
Em circunstâncias normais, e na maioria das igrejas protestantes pelo
menos, pregação e ensino ocupam espaço central.
Quando começamos a aplicar esse critério às igrejas de hoje, en-
contramos uma “salada”. Com respeito à doutrina, a maioria das igrejas
aceita os credos antigos e as decisões dos primeiros quatro concílios
ecumênicos como normativos, embora seja difícil determinar o peso
real da influência que exercem na vida de uma igreja contemporânea.17
Os credos são conhecidos de uma ampla variedade de frequentadores,
e algumas igrejas ocasionalmente oferecem cursos ou palestras que
explicam o significado deles. Com frequência, os hinos refletem os
ensinos ou elementos dos credos, e assim podemos afirmar que estes
continuam a exercer papel importante na vida da igreja contemporânea.
Os concílios ecumênicos são bem menos conhecidos, e o quarto deles
19 Para Agostinho, o versículo afirma que a culpa humana por seu pecado foi her-
dada de Adão, enquanto que para intérpretes de épocas mais recentes ele apenas
significa que a morte entrou no mundo por causa do pecado de Adão.
como a queda e construir uma imagem mais positiva da raça humana
e seu futuro?
De um modo ou de outro, esse raciocínio atingiu todas as igrejas
mais conhecidas, contudo, sua incapacidade (ou recusa) de produ2ir
novas declarações doutrinárias atenua seus efeitos no que di2 respeito
à opinião pública. Na prática, a maioria das igrejas prefere deixar as afir-
mações doutrinárias tradicionais como estão e ignorá-las ou interpretá-las
tão amplamente que se tornam praticamente sem sentido. Algumas
igrejas muito conservadoras reagiram contra isso condenando todas as
formas de modernidade, entretanto, o “fundamentalismo” desse tipo
é relativamente incomum e quase sempre antipati2ado, mesmo por
pessoas conservadoras em sua abordagem geral sobre tais questões.
Entre esses dois extremos existe uma gama de opiniões, das quais a mais
significativa está associada a membros de denominações liberais, mas,
que defendem opiniões conservadoras e insistem em afirmar que suas
igrejas deveríam ensinar doutrina conservadora. No geral, entretanto,
opiniões assim são de uma minoria e raramente tocam a vida de pessoas
comuns ou afetam a maneira de uma igreja ser governada.
Nos últimos tempos, porém, as igrejas sentiram o impacto dessa
mentalidade moderna em duas áreas, e ambas causaram divisões além
das que costumam separar as denominações tradicionais. A primeira
área é sobre o papel das mulheres na igreja. Até bem recentemente,
ninguém discordava que o ministério pastoral, e a autoridade que lhe é
pertinente, era reservado aos homens. É isso que o Novo Testamento
ensina, e é obedecido desde o período de formação da igreja. Isso não
significa que o ministério feminino tenha sido totalmente rejeitado;
as ordens de freiras, por exemplo, existem há muito tempo, e muitas
igrejas protestantes têm diaconisas e missionárias. Em geral, porém, a
ordenação ao ministério foi barrada às mulheres até, mais ou menos,
a geração passada. Hoje, em boa parte devido a influência de novas
posturas sobre igualdade sexual, muitas igrejas protestantes abriram seu
ministério às mulheres quase na mesma base que aos homens.
Como sempre acontece nesses casos, existem variações nas práticas,
e a velocidade da mudança não é a mesma em todos os lugares, mas, a
abertura para o ministério de mulheres é bem evidente nas denomina-
ções que concordaram em abrir espaço para elas.
Para justificar a mudança, algumas, igrejas apelam para o Novo
Testamento, que segundo elas tem sido mal interpretado através dos
séculos, contudo, esse argumento não é plausível. O máximo que
podemos di2er a seu favor é que a Bíblia não fala sobre ordenação
no sentido moderno. Quando ela afirma que as mulheres devem ficar
caladas na igreja e não ensinar, a proibição tinha a intenção de lidar
com um problema particular que havia surgido na igreja primitiva, e
não se aplica à situação contemporânea.20 Se a ordenação ao ministério
é um desenvolvimento pós-bíblico, então, é possível argumentar que o
ensino bíblico sobre as mulheres em geral é irrelevante. As igrejas têm
liberdade de permitir que seus ministérios se desenvolvam de acordo
com a mudança de épocas e circunstâncias. Basicamente essa é a posição
que tais igrejas são obrigadas a adotar, apesar de algumas, tentarem
argumentar que havia apóstolas nos tempos do Novo Testamento.21 O
argumento é válido? A verdadeira questão aqui é entre as pessoas que
creem que o Novo Testamento estabelece um padrão para o relaciona-
mento homem-mulher que é de origem divina e não pode ser mudado
e as pessoas para quem esse relacionamento é condicionado cultural-
mente e, então, pode ser alterado para se adaptar a diferentes padrões
sociais. As igrejas que ordenam mulheres basicamente adotaram este
último ponto de vista, sejam ou não transparentes em relação ao fato.
Algumas, igrejas levaram em conta a consciência de seus fiéis que não
concordam com isso, em uma tentativa de preservar a união, todavia, o
resultado é quase sempre mais divisões. As mulheres ordenadas nessas
circunstâncias raramente se dispõem a trabalhar com quem discordou
de sua ordenação, e resta ver se a discordância pode ser acomodada em
uma única estrutura eclesiástica. Se não puder, então, lamentavelmente,
é necessário afirmar que a ordenação de mulheres pelas principais de-
nominações protestantes, e somente elas, desferiu outro ataque contra
20Variações desse argumento são encontradas hoje como interpretação de ITimóteo
2.11-15. Para um excelente, mas, quase sempre esquecido, estudo da questão, veja
F. Martin, The Feminist Question: Feminist Theology in the Light of Christian Tradition
(Grand Rapids: Eerdmans, 1994).
21A evidência apresentada é o caso de Júnias, em Romanos 16.7, contudo, é óbvio
que fosse ela quem fosse, não era um dos apóstolos e jamais exerceu qualquer
autoridade sobre a igreja local.
a união da igreja, e um ataque que provavelmente se mostrará uma
barreira intransponível para a cooperação ecumênica futura.
Outra questão de grande importância que também está enraizada
na doutrina da criação trata dos relacionamentos homoafetivos.22 Dois
homens podem se casar com a bênção da igreja? A Bíblia deixa bem
claro que a atividade homossexual é imoral, o que automaticamente
exclui casamentos homoafetivos. Segundo a Bíblia, o casamento é uma
forma de santificar e regulamentar os relacionamentos entre homens e
mulheres, incluindo a importantíssima reprodução da raça humana. O
conceito de que duas pessoas que se amam têm o direito de se unir em
matrimônio, independentemente de outras considerações, é completa-
mente estranho à Bíblia. O Antigo Testamento tanto quanto o Novo
ensina que devemos amar os semelhantes como a nós mesmos, porém,
isso não significa que temos a obrigação de nos casar com eles. Uma
limitação curiosa sobre o conceito de “amor” resultou nessa interpre-
tação atual, juntamente com a crença de que a orientação sexual — algo
ignorado na Bíblia—deveria ser parâmetro para orientar nossa conduta.
Em geral, as igrejas se mostram (até agora) mais conservadoras do
que com a ordenação de mulheres, contudo, existe uma tendência cada
vez mais definida entre os protestantes liberais de se amoldar à cultura
prevalecente do secularismo ocidental, e a batalha sobre o casamento
homoafetivo já está dilacerando alguma, denominações. As igrejas que
casaram e ordenaram homossexuais certamente causaram divisões,
não somente em relação a outras denominações como também às
suas igrejas, e, em geral, os divergentes vão embora como forma de
protesto. Ainda é muito cedo para prevermos qual será o efeito disso
tudo a longo prazo, mas é difícil imaginar outro resultado que não seja
o aumento das divisões já existentes na igreja global.
Tanto no caso da ordenação de mulheres como do casamento ho-
moafetivo, a apostolicidade da igreja está sendo diretamente desafiada
por um ataque nas doutrinas da criação e da queda, fundamentais aos
ensinos da Bíblia que os apóstolos aceitavam sem discutir. Isso é im-
portante, pois as doutrinas da redenção e salvação em Cristo só podem
22 Veja
L. Nolland, God, Gays, and the Church (Londres: Latimer Trust, 2008), para
uma boa análise das questões sob um ponto de vista cristão tradicional.
כ11
24 Sabemos hoje que essa atribuição é falsa e que o texto usado é de data mais recente,
provavelmente, do século 5 e não 3, contudo, isso não altera o fato de que uma
grande união litúrgica foi alcançada.
era a comunidade mais importante, onde todos os negócios sérios da
vida eram tratados. A igreja era tão diferente do mundo em geral e
suas regras eram tão severas que se unir a ela era quase como se mudar
para outro país. Nesse aspecto, a igreja contemporânea, seja qual for
seu formato e não importam suas reivindicações, está bem distante do
modelo apostólico. Muitas igrejas sentem a necessidade de recuperar o
senso de comunidade entre uma vida urbana moderna desalmada, no
entanto, quantas levam o sentimento a sério? Algumas têm feito isso,
é verdade, mas, são exceções que confirmam a regra. Talvez aqui, mais
do que em qualquer outro aspecto, se encontre um desafio real e uma
oportunidade verdadeira para a igreja influenciar o mundo em que vive
e recuperar um pouco do significado original de trilhar o caminho dos
apóstolos, que seguiram os passos de Jesus.
UM CAMINHO A SEGUIR?
II- 15: Todas as igrejas têm oficiais responsáveis e praticam alguma forma
de ordenação. Cada denominação tem uma estrutura de responsa-
bilidade e autoridade que vai além da igreja local.
29-35: Todas as igrejas praticam o culto público, que inclui batismo, Ceia
do Senhor, casamentos e funerais, que são realizados de acordo
com normas legais e doutrinárias reconhecidas.
Os concílios ecumênicos
1 “Por toda a igreja” significa as igrejas do Ocidente, além das igrejas do Oriente que
estivessem em comunhão com Constantinopla. Na verdade, a igreja Nestoriana
aceita apenas os dois primeiros concílios, e as igrejas monofisitas (ou miafisitas),
apenas os três primeiros.
preparou um credo declarando que o Cristo incarnado era “consubs-
tancial” (homoousios) ao Pai, e enviou uma carta ao Egito censurando
Ário por não seguir essa doutrina. Seus vinte cânones sobreviveram, a
maioria dos quais regulamenta a ordenação e disciplina do clero.
2 Veja R. V. Sellers, The Council of Chalcedon:A Historical and Doctrinal Survey (Londres:
SPCK, 1953); R. Price e M. Gaddis, The Acts of the Council of Chalcedon, 3 vols.
(Liverpool: Liverpool University Press, 2005).
Segundo Concilio de Constantinople1? Reuniu-se em 5 de maio de 553,
sob o comando do imperador Justiniano I (r. 527-65) e terminou na
oitava assembléia em 2 de junho de 553. Seu objetivo principal foi re-
conciliar os monofisitas do Egito e Síria à fé calcedônia. No processo,
o concilio condenou os escritos de Orígenes (185P-254?), Teodoro de
Mopsuéstia (350P-428) e Teodoreto de Cirro (393P-457P), todos eles
comentaristas importantes da Bíblia.
3 R. Price (Org.), The Acts of the Council of Constantinople of 553 (Liverpool: Liverpool
University Press, 2009).
4 Veja G. Nedungatt e M. Featherstone (Orgs.), The Council in Trullo Revisited (Rome:
Pontifício Istituto Orientale, 1995).
5 O melhor relatório em inglês sobre esse concilio está em E. J. Martin, A History
of the Iconoclastic Controversy (Londres: APCK, 1930), p. 92-109.
terminasse com a controvérsia iconoclástica, o que aconteceu tempo-
rariamente, embora o iconoclasmo tenha ressurgido em 811 e só foi
derrotado em 843.
TRADIÇÃO
t־MA WSTÔRIA 00 WSEWOlVJMJXrO DA D01TK1NA
CRISTA
: 1
è
0 SURGIMENTO DA
TRADIÇÃO CATÓLICA
100-600
ér
SHEDD
“Ao mesclar e entrelaçar as diversas
manifestações da igreja cristã
durante mais de vinte séculos, esta
obra é um panorama ecumênico da
interação da igreja com teologia
acadêmica e teologia popular,
renovação e intransigência, política
e cultura secular. Bray se mostra
não somente pacificador e
benevolente, como também sensato
e objetivo em suas avaliações.
Quem especula se a eclesiologia
realmente tem importância — ou de
onde ela surgiu, em toda a sua
diversidade atual —,
deve ler este livro.
John L, Thompson,
Seminário Teológico Fuller
“Temos aqui uma visão inédita da igreja e sua história, teologia, e desafios
do mundo contemporâneo. Gerald Bray é ministro ordenado da igreja
anglicana evangélica, mas, escreve com tanta compreensão e sabedoria que
esta narrativa da história da igreja edificará o povo de Deus de todos os
lugares do mundo.״
Timothy George, Beeson Divinity School, Samford University:
editor geral, Reformation Commentary on Scripture