Anda di halaman 1dari 116

Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Ciências da Educação


Departamento de Ciência da Informação
Curso de Especialização em Gestão de Bibliotecas Escolares

Clarice Fortkamp Caldin

Leitura e Literatura Infanto-Juvenil

Florianópolis
CIN/CED/UFSC
Educação a Distância 1
Clarice Fortkamp Caldin

LeituraLeitura
e Literatura Infanto-Juvenil
e Literatura Infanto-Juvenil

Florianópolis, 2010.
CIN/CED/UFSC 3
Educação a Distância
Governo Federal Conselho Editorial
Presidência da República Clarice Fortkamp Caldin
Ministério de Educação Estera Muszkat Menezes
Secretaria de Ensino a Distância Magda Chagas
Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil
Projeto Gráfico
Universidade Federal de Santa Catarina Coordenação | Laura Martins Rodrigues
Reitor | Alvaro Toubes Prata Thiago Rocha Oliveira
Vice-reitor | Carlos Alberto Justo da Silva Equipe | Maicon Hackenhaar de Araujo
Secretário de Educação a Distância | Cícero Barbosa Rafael de Queiroz Oliveira
Pró-reitora de Ensino de Graduação | Yara Maria Rauh
Müller Equipe de Desenvolvimento de Materiais
Pró-reitora de Pesquisa e Extensão | Débora Peres Menezes Laboratório de Novas Tecnologias | LANTEC/CED
Pró-reitora de Pós-Graduação | Maria Lúcia de Barros Coordenação Geral | Andrea Lapa
Camargo Coordenação Pedagógica | Roseli Zen Cerny
Pró-reitor de Desenvolvimento Humano e Social | Luiz
Henrique Vieira da Silva Material Impresso e Hipermídia
Pró-reitor de Infra-Estrutura | João Batista Furtuoso Coordenação | Laura Martins Rodrigues
Pró-reitor de Assuntos Estudantis | Cláudio José Amante Thiago Rocha Oliveira
Diagramação |Thiago Rocha Oliveira, Grasiele Pilatti,
Curso de Especialização em Gestão de Bibliotecas Gregório Bacelar Lameira
Escolares Ilustrações | Tarik Assis Pinto, Maiara O. Ariño, Ângelo
Centro de Ciências da Educação | Wilson Schmidt Bortolini, Amanda Woehl, João Antônio A. Machado
Chefe do Departamento | Angel Freddy Godoy Vieira Revisão gramatical | Clarice Fortkamp Caldin, Estera
Coordenadora de Curso | Magda Chagas Muszkat Menezes, Magda Chagas
Coordenadora de Tutoria | Araci Isaltina de Andrade Hille-
sheim Design Instrucional
Coordenação | Isabella Benfica Barbosa
Designer Instrucional | José Paulo Speck Pereira

Catalogação na fonte elaborada por


Francisca Rasche - CRB 14/691

C146l Caldin, Clarice Fortkamp


Leitura e literatura infanto-juvenil /
Clarice Fortkamp Caldin. – Florianópolis : CIN/
CED/UFSC, 2010.
116 p.

Inclui bibliografia.
UFSC. Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em
Gestão de Bibliotecas Escolares na modalidade a
distância. Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina
ISBN 978-85-62818-11-0 CIN/CED/UFSC
Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida,
1. Leitura. 2. Literatura infanto-juvenil. I. Título. transmitida e gravada sem a prévia autorização, por escrito,
da Coordenação do Curso de Especialização em Gestão de
CDD (22.ed.) – 028 Bibliotecas Escolares.
Sumário

Apresentação........................................................ 7
1 Leitura............................................................... 8
1.1 Definições.................................................................................. 12
1.2 Modalidades..............................................................................21
1.3 Estratégias.................................................................................28
1.4 Função poética.........................................................................33
Bibliografia Comentada.........................................................43
Síntese.........................................................................................44

2 Literatura infanto-juvenil.............................46
2.1 Características .........................................................................53
2.2 Funções.......................................................................................61
2.2.1 Função pedagógica......................................................................... 62
2.2.2 Função social..................................................................................... 66
2.2.3 Função terapêutica.......................................................................... 70
2.3 Histórico.....................................................................................75
2.4 A Literatura infanto-juvenil no Brasil...............................87
2.5 Tipologia das histórias............................................................92
Bibliografia Comentada...................................................... 108
Síntese...................................................................................... 109

Referências........................................................ 110
Currículo da Autora......................................... 116
Apresentação

Bem-vindo à disciplina Leitura e literatura infanto-juvenil!


Inserida na temática 4: Mediação e serviços em bibliotecas es-
colares, com 30 horas/aula, essa disciplina tem por objetivo
otimizar suas competências e habilidades na gestão da leitura
e da literatura infanto-juvenil.
Você gosta de ler? Aprecia a literatura infanto-juvenil?
Se a resposta for um enfático SIM, estudará com prazer as
principais definições de leitura; conhecerá as diferentes mo-
dalidades e estratégias de leitura; enfocará o ato da leitura na
biblioteca como uma função poética; observará as caracterís-
ticas e as funções da literatura infantil e juvenil; acompanhará
a trajetória da literatura infanto-juvenil desde o século XVII
até nossos dias; entenderá a tipologia das histórias.
Isso é apenas uma parte: o construto teórico. Mas a teoria
é estéril sem a prática. Assim, espera-se que você aprenda a
aplicar as estratégias de leitura no ensino infantil e funda-
mental para realizar atividades prazerosas de incentivo à lei-
tura, e a selecionar textos literários pelo viés da literariedade.
Gostou da proposta? Está animado? Então, vamos começar!
1 Leitura

Esse capítulo tem por objetivo propiciar ao aluno do


Curso de Especialização em Gestão de Bibliotecas Es-
colares o entendimento do fenômeno da leitura, suas
definições, modalidades, estratégias e a função poética.
Essa compreensão é necessária para que a biblioteca
atue como espaço incentivador do ato de ler.

8 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Na sociedade ocidental, ao longo das eras, a leitura é en-
tendida de maneira diferente, de acordo com as necessidades
humanas. A história da leitura perpassa pelo valor concedi-
do ao registro escrito como veículo da democracia (na pólis
grega), da religião (na Idade Média), da economia (na Idade
Moderna), da política (a partir da Revolução Francesa) e da
educação (desde o século XIX).
Ao descrever as práticas de leitura no ocidente, Cavallo e
Chartier (1998-1999) apontam as diferentes formas de ler da
Antiguidade aos dias atuais. É baseado no livro História da
leitura no mundo ocidental (cuja leitura recomendamos), or-
ganizado por esses dois historiadores, que se delineia o texto A pólis, ou Cidade-Estado, era o
núcleo da vida social e política
que segue. da Grécia Antiga, espaço do ci-
Conquanto a leitura pública fosse uma prática da vida so- dadão para debate e participação
cial grega a serviço da democracia ateniense (dos cidadãos nos assuntos e negócios comuns.
A Idade Média, iniciada com o
livres, excluídos as mulheres e os escravos), da retórica, da colapso do Império Romano Oci-
escola e da preservação da memória, há relatos da leitura si- dental e marcada pelo feudalismo,
teve a religião como preservadora
lenciosa, como forma de entretenimento. Na Roma Antiga, a da cultura clássica e o clero como
leitura ficava circunscrita aos sacerdotes e aos nobres, sempre representante intelectual. A Idade
referente ao sagrado ou ao jurídico, inspirada no modelo gre- Moderna, período marcado pelo
Renascimento artístico, foi palco
go, cujas bibliotecas eram despojos de guerra. da Revolução Comercial, passagem
Na Idade Média, o ideal de leitura era o da meditação, pre- de uma economia estática para um
capitalismo mercantil. A Revolução
ferencialmente das Escrituras Sagradas, sempre mediada pelos Francesa, no século XVIII, ao aca-
processos de decifração dos textos (identificando as letras, sí- bar com a monarquia absolutista,
labas, palavras e frases), pronunciação em voz alta (observan- propiciou a ascensão da burgue-
sia e dos governos liberais, cons-
do a pontuação), correção do texto escrito (exigência necessá- titucionais e representativos. No
ria pela má qualidade de alguns manuscritos), comentário (do século XIX e XX, com a difusão da
educação primária gratuita, gene-
vocabulário, das figuras literárias), interpretação (do conteú- ralizada e obrigatória, a leitura foi
do), e avaliação (das qualidades estéticas, morais e filosóficas fator decisivo para a educação das
do escrito); mesmo a leitura ligada ao lazer era concentrada, massas e, no século XXI, a leitura
tomou novas feições em virtude
atenta e murmurada. das tecnologias; importa agora não
Já no século XII, em virtude do aumento da quantida- apenas erradicar o analfabetismo,
mas também diminuir o número
de de obras disponíveis e do despontar das universidades, a dos iletrados informacionais.
meditação cedeu lugar à utilidade: aparecem os resumos de

Leitura 9
doutrinas (tanto bíblicas, quanto aristotélicas) e a leitura dos
originais é substituída por textos fragmentados e compila-
ções literárias. Dessa feita, estudantes e professores, seja pela
dificuldade na compreensão dos autores, seja pela coerção
econômica (o pergaminho e os copistas titulados eram uma
despesa significativa), priorizavam as coletâneas, o emprésti-
mo de manuscritos, a reprodução de versões corrigidas pelas
autoridades acadêmicas. A tendência à simplificação causou,
então, um empobrecimento das matérias escolares, pois os flo-
rilégios não substituem a leitura da obra original, limitam a
criatividade e transformam as coleções de citações (utilizadas
fora do contexto) em deformações da fala do autor; enfim, de
instrumentos de trabalho, passam à condição de um fim em si.
O leitor humanista, por outro lado, selecionava o texto de-
sejado e o interpretava – tanto para alívio das pressões cotidia-
nas, quanto para resolver questões práticas. Escribas, gráficos e
pintores de iluminuras eram contratados por empresários e co-
merciantes: cresce a economia da atividade editorial, que aten-
de a um público cada vez mais exigente – os intelectuais da Re-
nascença. Nesse período, proliferam as lojas dos livreiros, pois
há uma demanda por folhas e cadernos que o humanista usará
para copiar o texto original, uma vez que considera o escrever
uma forma de leitura e a melhor maneira de apreciar os bons
autores. Anotações criteriosas e referências cruzadas exigiram
a criação de diversos aparatos para facilitar esse trabalho lite-
Roda de livros
rário; assim é que no final do século XVI surge a roda de livros.
“Uma grande roda vertical, com en-
grenagens para fazer com que virasse
A invenção da imprensa no século XV, a Reforma Protes-
lentamente e parasse sempre que ne- tante e a Contra-Reforma no século XVI, impulsionaram o co-
cessário. Ela movia os livros colocados mércio livreiro, com a publicação de Bíblias, obras litúrgicas e
em pequenas estantes rotativas. [...] O
humanista que fosse dono de tal apa- panfletos de propaganda ou contrapropaganda confessionais.
relho poderia permanecer tranquila- Muito embora o clima fosse religioso e não se estimulasse a lei-
mente sentado, enquanto consultava
uma biblioteca de textos.” (CAVALLO;
tura popular, entre os artesãos, lojistas, pequenos comerciantes
CHARTIER, 1999, v. 2, p. 37-38). e as elites das aldeias, prevalecia o gosto pelos romances de ca-

10 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
valaria, principalmente na Espanha. Mesmo proibida pelas au-
toridades castelhanas, a literatura de ficção, tida como perigosa
fuga da realidade, agrada a população não-letrada e mesmo os
analfabetos dela desfrutam, pois a prática é da leitura oraliza-
da: um leitor lê em voz alta para um público de ouvintes.
E no século XVIII, na Europa central, sur-
giu o que foi chamado de febre de leitura,
epidemia de leitura: o povo lê – telha-
dores, artesãos, criados, soldados, mu-
lheres, jovens, crianças. Muito embora
fosse considerada uma “leitura selva-
gem”, quer dizer, não voltada para fins
eruditos ou úteis, sem reflexão e, na
maior parte, realizada em voz alta,
tal leitura contribuiu para formar
as identidades corporativa, social,
cultural e política. Isso se evidencia,
principalmente, pelo incremento,
Figura 1: A Bíblia foi a primeira obra que Gutenberg produziu em série com
depois da Revolução Francesa, dos sua máquina de tipos móveis (que ficou conhecida como “prensa de Guten-
jornais, partilhados por toda a po- berg”). Centenas de obras passaram a ser produzidas a partir de então, o
que influenciou, ao lado de outros fatores, a alfabetização das classes mais
pulação (lendo ou ouvindo) como baixas da população, em diversos países.
veículo de informação e de cons-
cientização política. Paralelo a eles, disputam a preferência do
público leitor os romances, as histórias policiais, os livros de
cozinha, os contos de fadas, as fábulas e as histórias de aven-
turas. Esse fenômeno, que poderia ser chamado mais apropria- Ideologia
damente de “revolução da leitura” foi possível graças à dimi- A palavra possui diferentes interpre-
nuição da jornada de trabalho, da eletricidade, de bibliotecas tações. Uma delas é a seguinte: “Con-
de empréstimo e das sociedades literárias não-comerciais, das junto articulado de idéias, valores,
opiniões, crenças, etc., que expressam
reformas educacionais e da modernização do mercado edito- e reforçam as relações que conferem
rial. Essa “fúria” de leitura foi orientada e supervisionada pela unidade a determinado grupo social
(classe, partido político, grupo religio-
ideologia da classe dominante, vista com certa reserva pelos so, etc.) seja qual for o grau de consci-
mais conservadores, apresentou discretamente traços feminis- ência que disso tenham seus portado-
tas, e suavizou as tensões sociais. res.” (FERREIRA, 1999, p. 1072).

Leitura 11
Você observou como a leitura sempre esteve presente nas
sociedades letradas? Em voz alta, murmurada, silenciosa, pú-
blica, individual, pragmática, literária, meditada ou impen-
sada, a leitura participou da vida das elites e das massas ao
longo dos séculos, preservando o conhecimento registrado e
disseminando novas idéias.
Por esse motivo, a leitura tem sido objeto de muitas defini-
ções, atreladas ao contexto social. Na impossibilidade de listar
todas, apresentaremos as mais significativas e pertinentes ao
nosso estudo. É possível que você discorde de algumas, sur-
preenda-se com outras ou eleja uma como favorita. É possí-
vel, também, que resolva acrescentar novas definições às aqui
elencadas. Isso significa que, qualquer que seja sua reação,
você se envolveu! Em outras palavras: não ficou apático ao
tema, não se comportou como mero espectador do texto, mas
como participante na construção de uma definição da leitura
– aquela que tocou sua sensibilidade, instigou seu intelecto e
partiu de sua vivência profissional.

1.1 Definições
Quando falamos em leitura, pensamos em: decifrar o escrito
(decodificar as palavras), entender o conteúdo (compreender o
que o autor disse), interpretar o assunto (desvelar o texto), in-
formar-se (apropriar-se do acervo de conhecimentos da huma-
nidade), viajar no imaginário (por meio das personagens ficcio-
nais). Assim, associamos sempre a leitura à escrita. Mas é bom
lembrar que, no cotidiano, fazemos leitura de gestos, olhares,
paisagens, quadros, fotografias, música, tempo, espaço.
Tal se dá porque a leitura tem múltiplos aspectos e inter-
faces. A informação (dados dotados de relevância e sentido,
organizados e comunicados) pode estar registrada em diver-
sos suportes (papel, corpo humano, camadas de terra, vestí-

12 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
gios de civilizações desaparecidas, mapas, banco de dados,
por exemplo).
A leitura, enquanto objeto de estudo, presta-se a uma
abordagem multidisciplinar, cujo enfoque é dado dependendo
da área do conhecimento. Destarte, a leitura é entendida como
ato social, lingüístico, pedagógico, terapêutico, psicológico,
cognitivo, neurológico, fenomenológico, entre outros.
De modo geral, quando discorremos sobre a leitura na es-
cola, o recorte é dado à leitura de material didático, com vis-
tas à assimilação de informações (extrair o sentido do texto)
ou literário, objetivando o entretenimento (atribuir sentido
ao texto). Quase sempre fica obliterado que tanto a leitura
informacional quanto a leitura poética é muito mais do que
um processo ascendente (em que a compreensão vai-se acu-
mulando gradativamente) ou um processo descendente (em
que o leitor, com sua consciência imaginante, vai desvelando
o texto apoiado no conhecimento prévio do mundo); a leitura
é, acima de tudo, intencionalidade – quer dizer o leitor tem
determinado objetivo a ser alcançado.

Intencionalidade é “a qualidade de estar dirigido para


algo, ou de ‘ser’ acerca de algo, qualidade esta que é pos-
suída por muitos, se não todos, os estados conscientes.”
Ou seja, “nossos pensamentos, crenças, anseios, sonhos e
desejos são acerca de coisas.” Do mesmo modo, “as pa-
lavras que usamos para exprimir essas crenças, e outros
estados mentais, são sobre coisas. A intencionalidade tor-
na-se, assim, uma característica da linguagem, e não uma
peculiaridade metafísica ou ontológica do mundo mental.”
(BLACKBURN, 1997, p. 206-207).

Leitura 13
Leffa (1996, p. 17) lembra que “a intencionalidade é uma
característica exclusiva do ser humano”, pois uma máquina,
conquanto possa “ser programada para resumir ou parafrasear
um texto, detectar anomalias semânticas e até responder per-
guntas implícitas”, não tem a intenção de lazer, não tem a in-
tenção de obter informações, e não tem a intenção de realizar
uma leitura crítica de obra literária.
O que significa isso? Que intencionalidade implica desejo,
motivação. Aplicando-se a noção de intencionalidade à leitu-
ra, podemos dizer, então, que o ser humano lê quando se sen-
te motivado para tal, quando foi despertado nele esse desejo.
Como proceder, na escola e na biblioteca, para que o exer-
cício da leitura seja desejante?
Qual a responsabilidade dos professores e bibliotecários em
propiciar o desenvolvimento da leitura intencional?
São perguntas que merecem resposta, não é mesmo? Mas
essas respostas serão dadas por você que realiza esse curso co-
nosco, que partilha das preocupações acerca da leitura praze-
rosa, instigante, intencional. Aqui, serão apontados caminhos.
Cabe a você a resolução de enveredar por eles, explorá-los,
socializá-los. E lembrar, como Morais (1996) o fez, que o ato
de ler oscila em torno de um desafio, um prazer pessoal e um
problema social. Desafio, porque arte de ler tem sido reduzida
a operações automatizadas, sem a reflexão necessária. Prazer
pessoal, porque já foi comparada ao sonhar, ao pastar, e ao
digerir por autores como Fernando Pessoa, Roland Barthes e
Nietzsche. Um problema social, porque a demanda da socie-
dade é por pessoas leitoras e letradas e a leitura ainda é mal
compartilhada, mesmo nos países desenvolvidos.
E então, vamos dar conta desse desafio? Vamos fazer da lei-
tura um prazer pessoal? Vamos diminuir esse problema social?
Veremos, a seguir, como diversos autores definem a leitura.
Cada definição se apresenta como oportunidade para você re-
fletir, opinar e aplicar no seu local de trabalho.

14 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Comecemos por Marcel Proust. Sabe quem foi ele? Um pa-
risiense que entre 1871 e 1922, frequentou a sociedade bur-
guesa da Terceira República Francesa1. De saúde frágil, afas- 1 A Terceira República (1870-1940), foi
criada após a captura e o exílio de Na-
tou-se dos salões da época para dedicar-se à escrita da obra poleão III (sobrinho de Napoleão Bona-
em treze volumes Em busca do tempo perdido, considerada parte) e a derrota francesa na guerra
por alguns uma autobiografia, por outros um ensaio à memó- franco-prussiana.
ria e ao tempo, mas tida por todos como uma grande realiza-
ção literária. Quando sair de férias, porque não leva consigo
um dos volumes e aprecia sua escrita magistral? Pois bem,
esse literato escreveu também um ensaio sobre a leitura, um
trabalho que merece ser examinado, haja vista que discorre
sobre a importância da leitura na infância:
[...] o que as leituras da infância deixam em nós é a ima-
gem dos lugares e dos dias em que as fizemos. Não esca-
pei ao seu sortilégio: querendo falar delas, falei de outras
coisas diferentes de livros, porque não é deles que elas me
falaram. Mas talvez as lembranças que elas me trouxeram
tenham elas mesmas sido despertadas nos leitores, condu-
zindo-os pouco a pouco – retardando-se nesses caminhos
floridos e enviezados – a recriar em seu espírito o ato psi-
cológico original chamado Leitura, com força suficiente
para poder seguir agora como que dentro dele mesmo as
reflexões que me restam a apresentar. [...] Na medida em
que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mági-
cas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas
onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é
salutar. (PROUST, 1991, p. 24-25, 35, grifo do autor).

Você observou que na citação a leitura é descrita como um


ato psicológico e considerada uma disciplina que favorece a
saúde? Você concorda com essa definição e descrição? Por quê?
Passemos a Jean-Paul Sartre, outro parisience. Nascido em
1905 e falecido em 1980, foi novelista, teatrólogo, filósofo
existencialista e premiado com o Nobel de Literatura em 1964. Figura 2: Marcel Proust (1871-1922).

Leitura 15
Você já leu algum livro dele? Se não, recomendamos que o
faça, principalmente Que é a literatura?, de onde extraímos
essa definição de leitura:

[...] a leitura é um pacto de generosidade entre o autor


e o leitor; cada um confia no outro, conta com o outro,
exige do outro tanto quanto exige de si mesmo. Essa con-
fiança já é, em si mesma, generosidade; ninguém pode
obrigar o autor a crer que o leitor fará uso da sua liberda-
de; ninguém pode obrigar o leitor a crer que o autor fez
uso da sua. É uma decisão livre que cada um deles toma
independentemente. Estabelece-se então, um vaivém dia-
lético; quando leio, exijo; o que leio, então, desde que mi-
Figura 3: Jean-Paul Sartre (1905-1980). nhas exigências sejam satisfeitas, me incita a exigir mais
do autor, o que significa: exigir do autor que ele exija
mais de mim mesmo.[...] devemos lembrar que o escritor,
como todos os artistas, procura dar a seus leitores certa
afeição a que se costuma chamar prazer estético e que, de
minha parte, eu preferiria designar como alegria estética.
(SARTRE, 2004, p. 46, 47).
A leitura, se entendida como um pacto, um contrato en-
tre duas ou mais pessoas, não pode ser forçada. Você notou
o destaque à liberdade e ao prazer da leitura? O que pensa
sobre isso? Está disposto a apresentar a leitura na biblioteca
da escola como um acordo de generosidade, de cumplicidade,
não apenas entre o escritor e os leitores, mas também entre
professor e alunos, bibliotecário e usuários da biblioteca?
Vejamos o que pensa outro francês: Maurice Merleau-Pon-
ty, que teve vida curta (1908-1961), mas ativa: estudou filoso-
2 “Uma corrente da filosofia que não fia, lecionou Psicologia da criança e Pedagogia na Universi-
faz distinção entre o papel atuante
do sujeito que conhece [...] e a influ- dade Sorbonne e Filosofia no Collège de France, foi editor da
ência do objeto conhecido. [...] Para a revista Tempos Modernos (que pretendia suscitar entusiasmo
fenomenologia não existe objeto em
si destacado de uma consciência que pela reconstrução da Europa) e participou ativamente da cor-
o conhece. O objeto é um fenômeno”. rente de pensamento chamada fenomenologia2.
(CARMO, 2000, p. 21, grifo do autor).

16 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
A fenomenologia se preocupa com o cotidiano, é uma fi-
losofia que rejeita o dualismo mente/corpo e prioriza a ex-
periência. Assim, é sob uma abordagem fenomenológica que
Merleau-Ponty (2002, p. 35, 35) define a leitura:
A leitura é um confronto entre os corpos gloriosos e im-
palpáveis de minha fala e da fala do autor. [...] Mas esse
poder de ultrapassar-me pela leitura, devo-o ao fato de
ser sujeito falante, gesticulação lingüística, assim como
minha percepção só é possível por meu corpo. Essa man-
cha de luz que se marca em dois pontos diferentes sobre
minhas duas retinas, vejo-a como uma única mancha à
distância porque tenho um olhar e um corpo ativo, que
tomam diante das mensagens exteriores a atitude conve-
niente para que o espetáculo se organize, se escalone e se Figura 4: Maurice Merleau-Ponty
equilibre. Do mesmo modo, passo direto ao livro através (1908-1961).
da algaravia, porque montei dentro de mim esse estranho
aparelho de expressão que é capaz não apenas de inter-
pretar as palavras segundo as acepções aceitas e a técni-
ca do livro segundo os procedimentos já conhecidos, mas
também de deixar-me transformar por ele e dotar-se por
ele de novos órgãos.
Você percebeu a importância que Merleau-Ponty concedeu
ao corpo? Segundo ele, a leitura é corporal, posto que per-
passa pelo corpo do autor e do leitor; é uma disputa sobre a
primazia no texto literário entre autor ou leitor; há um en-
trelaçamento entre a visão e a percepção. Medite um pouco
sobre essas afirmações do filósofo. Compare com a Declaração
dos direitos da criança leitora (e algumas disposições sobre as
crianças e a literatura), disponível em: < www2.estacio.br/gra-
duação/pedagogia/literarte/ Literarte06/artigos.htm>.
3 Iniciado na Universidade de Constan-
Passemos agora a um literato alemão: Wolfgang Iser (1926- ça, sul da Alemanha, em 1967, o mo-
2007). Esse teórico da Estética da Recepção3 se volta para vimento literário conhecido como Es-
o estudo das atividades imaginativas e perceptivas do leitor tética da Recepção se preocupou com
a recepção da literatura e seus efeitos
frente ao texto literário e define o processo da leitura como: no leitor.

Leitura 17
[...] interação dinâmica entre texto e leitor. Pois os signos
lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua fina-
lidade em razão de sua capacidade de estimular atos, no
decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do
leitor. [...] O autor e o leitor participam portanto de um
jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se o texto
pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. É
que a leitura só se torna um prazer no momento em que
nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os
textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas
capacidades. (ISER, 1999, v.2, p. 11).
Iser defende: a interação entre texto e leitor (cabe ao leitor,
estimulado pelo texto, atualizá-lo pelos atos de sua consciên-
cia imaginante); o ponto de vista em movimento (o leitor apre-
ende o texto em fases consecutivas da leitura na medida em
que se movimenta dentro dele); os correlatos de consciência
produzidos pelo ponto de vista em movimento (o texto per-
mite que o leitor, por meio de suas memórias e expectativas,
agrupe os signos textuais, identifique suas relações e produza
um novo sentido; a leitura é um jogo (deve produzir prazer no
momento em que o leitor converte o livro em objeto estético).

Você entendeu? Vamos dizer o mesmo em outras pala-


vras: o texto literário não é completo em si mesmo; é elabo-
rado pelo autor com vazios que permitem a intromissão do
Figura 5: Wolfgang Iser (1926-2007). leitor; assim, além do registro da reação do autor ao mundo,
necessita da experiência do leitor que, ao interpretá-lo, in-
fere novos sentidos ao lido; na medida em que o leitor se
envolve com o texto, ele desenvolverá uma atitude estética.

18 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Ficou mais fácil? Que tal apresentar a leitura na biblioteca
como um jogo? Concorda que as crianças e os jovens aprecia-
riam muito mais a leitura por prazer do que a leitura por dever?
Agora, examinemos o que pensa um professor brasileiro a
respeito da leitura: Ezequiel Theodoro da Silva. Esse educador
está bem vivo e atuante em prol do desenvolvimento da leitu-
ra no Brasil e, provavelmente, não gostaria que citássemos sua
idade. Preocupado inicialmente com a leitura como a decodifi-
cação de símbolos e, depois, com a compreensão do texto, em
seus últimos trabalhos defende a leitura como a interpretação
do texto. Assim é que afirma: “A leitura é uma forma de en-
contro entre o homem e a realidade sócio-cultural” e ler é “um
modo de existir no qual o indivíduo compreende e interpreta a
expressão registrada pela escrita e passa a compreender-se no
mundo.” (SILVA, 1981, p. 41, 45).
Atento à realidade educacional brasileira, o Autor aponta a
leitura como essencial para o ser humano situar-se no mun-
do, compreender o mundo e participar ativamente no mundo.
Seu direcionamento a respeito da interpretação do texto escri-
to volta-se para a criticidade como fundamental no processo
educativo e, então, prioriza a leitura de textos informativos,
conquanto não despreze a leitura de textos ficcionais.
E você? Considera o ato de ler um processo dinâmico?
Concede espaço para que a criança e o adolescente executem
a leitura como uma compreensão do mundo? Permite e incen-
tiva a crítica dos textos?
Na leitura, devemos levar em conta os fatores não-cogniti-
vos (emoções, atitudes, interesses, personalidades) que inter-
ferem na interpretação do escrito. Mas os fatores cognitivos
são importantes também! Compreender um texto exige certas
habilidades e competências que a escola desenvolve:
a) o conhecimento lingüístico: pronúncia correta da lín-
gua vernácula, reconhecimento do vocabulário, uso das

Leitura 19
regras de sintaxe, processamento do texto (agrupamen-
to das letras em palavras, das palavras em frases, das
frases em parágrafos, a fim de construir significados);
b) o conhecimento textual: a estrutura narrativa (o porquê
e o tempo da história, as personagens, o cenário, a com-
plicação e a resolução da trama); a estrutura expositiva
(ênfase nas idéias e não nas ações, causa e efeito dos
acontecimentos relatados na história); a estrutura des-
critiva (relação de qualidades ou características de algo
ou alguém).
Isso é o que ensina a professora titular da Universidade Es-
tadual de Campinas, Doutora em Lingüística Aplicada, Angela
Kleiman, que atua nos seguintes temas: leitura, formação do
professor de língua materna e letramento. Mas ela aponta ou-
tro fator:
A compreensão de um texto é um processo que se ca-
racteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor
utiliza na leitura o que ele já sabe, o conhecimento ad-
quirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de
diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento
lingüístico, o textual, o conhecimento do mundo, que o
leitor consegue construir o sentido do texto. E porque o
leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento
que interagem entre si, a leitura é considerada um pro-
cesso interativo. (KLEIMAN, 1999, p. 13, grifo da autora).

Você notou que o conhecimento do mundo tem papel fun-


damental na compreensão do texto? Que as vivências auxi-
liam na elaboração dos significados? Entretanto, esse fato foi
obliterado por algumas teorias da leitura, que criaram alguns
modelos de leitura. É o que veremos a seguir.

1.2 Modalidades

20 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Modelo pode ser entendido como o que serve para ser imi-
tado, e é imitado porque se mostrou bom ou útil. Modalidade,
a seu turno, significa um aspecto ou uma maneira diferente
das coisas. Ocorre, entretanto, que certas modalidades acabam
virando modelos, ou seja, a visão de um indivíduo transforma-
se em visão de muitos, e a percepção individual é partilhada
de modo entusiasta. Tem-se, então, um originador de idéias
e os seguidores que propagam o pensamento de seu mestre.
Quando um modelo perdura por muito tempo (resiste às argu-
mentações contrárias), diz-se que ele é clássico.
Determinados modelos clássicos de leitura partem da psi-
cologia organísmica, quer dizer, tem o ser humano como um
organismo adaptável a diferentes ambientes. Outros, são me-
canicistas, baseados em uma visão positivista do homem.
Silva (1981) lista alguns:
a) com base na teoria dos fatores subjacentes da leitura:
parte do pressuposto que o ato de ler exige o agrupa-
mento de células cerebrais, consideradas subsistemas;
b) fundamentado em considerações neurológicas: a leitura
depende de transmissões sinápticas adequadas;
c) como um rol de competências acionadas sincronica-
Sinapse
mente no momento da leitura: percepção da palavra,
compreensão do lido, reação às idéias apresentadas, as- A sinapse é uma região de contato
muito próximo entre a extremidade de
similação do texto; um neurônio e a superfície de outras
células. As membranas das células que
d) como um elenco de habilidades do intelecto humano: a fazem sinapses estão muito próximas,
leitura é o resultado do cruzamento entre as operações mas não se tocam. Há um pequeno es-
paço entre as membranas celulares (o
e os produtos do intelecto, que vão desde o conheci- espaço sináptico ou fenda sináptica).
mento e informações até o pensamento crítico; Nesses espaços são liberadas substân-
cias químicas, que funcionam como
e) credita valor à velocidade da leitura: apresenta a agili- comunicadores, que vão desencadear o
dade como uma função da flexibilidade do leitor e da impulso nervoso.
natureza do texto;

Leitura 21
f) tem a leitura como um processo seletivo da mente do
autor: memória, pistas gráficas, imagem perceptual, es-
colhas semânticas, decodificação e sentido;
g) classifica os níveis cognitivos da compreensão, dispon-
do-os hierarquicamente: reconhecimento, memória, re-
organização, inferência, avaliação e apreciação;
h) enfoca a competência de leitura: verifica a habilidade
global de leitura e a correlação entre leitura oral e si-
lenciosa.
Para Silva (1981), tais modelos de leitura são reducionistas
e se preocupam apenas com a quantificação e o controle do
ato de ler; separam sujeito e objeto como se a mente humana
reagisse da mesma forma que o computador. Ele, entretan-
to, concebe a leitura como um fenômeno, e, assim, apresenta
um modelo com ênfase na dimensão psicológica do ato de ler.
Para tanto, esquematiza uma estrutura fenomenal, em que os
elementos da comunicação deixam de ser apenas o emissor, a
mensagem e o receptor, mas se configuram como uma supe-
restrutura em que contam uma multiplicidade de elementos
significativos, organizados, dinâmicos, relacionais entre si e à
existência humana.
Eis a estrutura fenomenal – a situação de comunicação da
leitura, como a entende Silva (1981):
a) estrutura do sujeito (emissor): o ser humano é um ser-
no-mundo-com-os-outros, sua experiência é intersub-
jetiva, histórica e cultural;
b) estrutura da mensagem: a mensagem é a expressão de
um sujeito, estruturada por um código lingüístico e
porta significados;

22 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
c) estrutura do código: entendido como um campo de co-
municação, o código representa o mundo, é um sistema
que permite a reconstrução;
d) estrutura do mundo: para a fenomenologia, o mundo é
histórico e cultural, portanto, humano; destarte, o ato
de ler é vivido por um sujeito que se imbrica no mundo,
que realiza o diálogo existencial.
O modelo de leitura, na concepção de Silva (1981), não
pode seguir padrões funcionalistas, experimentais ou natura-
listas; há que se basear em uma visão fenomenológica, o que
implica ser direcionado a um determinado tipo de leitura: a
crítica, geradora de significados. Segundo ele, é esse tipo de
leitura, questionadora, que deve ser implementada na escola,
visto que gera a expressão – a criação de um novo texto.
Vimos que Silva (1981) considera o ato de ler como parte
integrante da vida humana; tal se dá porque o homem intera-
ge com o mundo por meio de significados sígnicos, em dife-
rentes tipos de linguagem (oral, escrita, musical, corporal, en-
tre outras). Além disso, advoga: o mundo cultural conta com
o código escrito, o que leva o homem da condição de ouvinte
à condição de leitor; a apreensão da leitura propicia a inserção
nas sociedades letradas; a leitura é um objeto do discurso e,
como tal, inesgotável na ação de atribuição de significados; a
presença do ato de ler no projeto humano admite a intencio-
nalidade – o direcionamento para o objeto, com vistas seja à
compreensão (do mundo, de si), seja à interpretação (descon-
textualizar um texto para recontextualizá-lo).
Conclui seu pensamento com as palavras: o ato de ler
“sempre envolve apreensão, apropriação e transformação de
significados, a partir de um documento escrito” e “leitura sem
compreensão e sem recriação do significado é pseudoleitura.”
(SILVA, 1981, p. 96).

Leitura 23
Reflita um pouco sobre os modelos clássicos de leitura e
sobre o modelo fenomenológico. Reparou como os modelos
clássicos priorizam apenas os fatores cognitivos?

Segundo Pinto e Richter (2009), existem três modelos


básicos de leitura, embasados por fatores cognitivos: o
modelo descendente, defendido por Goodman; o modelo
ascendente, defendido por Gough; e o modelo interativo,
defendido por Rumelhart.

Examinemos cada um deles.


O primeiro modelo, descendente, implica o processamento
de predições progressivas sobre pequenas unidades do texto,
em contraste com o conhecimento prévio do leitor. Significa
que o leitor vale-se de seu conhecimento prévio para interpre-
tar o texto e que, na verdade, é o leitor quem constrói o texto
a partir de adivinhações e hipóteses que vai desenvolvendo ao
longo da leitura.
O segundo modelo, ascendente, advoga que a leitura é
linear: parte das letras para sons, palavras, sentenças e, no
fim, para significado. Significa dizer que as letras devem ser
consideradas individualmente pelo leitor que, dessa maneira,
partindo das partes para o todo, terá condições de assinalar o
significado de cada uma, depois, de pequenas unidades textu-
ais, e culminar com a compreensão de todo o texto.
O terceiro modelo, interativo, salienta a importância de uti-
lizar de forma simultânea ou de forma alternada os modelos
precedentes. Significa aceitar a idéia de um leitor maduro, há-
bil, que trafega com tranqüilidade pelo texto, ora partindo do
geral para o particular, ora do particular para o geral. A com-
preensão, nesse caso, advém da percepção e da cognição do

24 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
leitor ativadas pelo movimento da retina, e termina com sua
idéia sobre a intenção do autor do texto.
A pesquisa de Pinto e Richter (2009) oferece, como su-
gestão, a aplicação intercalada dos três modelos de leitura,
levando em conta o conhecimento prévio, o conhecimento
lingüístico, o vocabulário e os esquemas mentais do leitor, e,
também, os aspectos formais do texto.
Mas o assunto não se esgotou. Vamos adiante!
Kato (1990, p. 40), em uma abordagem psicolingüística, es-
clarece que o leitor que privilegia o processo descendente é
aquele “que apreende facilmente as idéias gerais e principais
do texto, é fluente e veloz”, mas, por outro, lado “faz excessos
de adivinhações, sem procurar confirmá-las com os dados do
texto, através de uma leitura ascendente.”
Pode-se dizer, então, que esse tipo de leitor vale-se exaus-
tivamente do conhecimento prévio, não se atendo muito na
informação fornecida pelo texto.
Quanto ao leitor que utiliza o processo ascendente, que
constrói o significado com “base nos dados do texto, fazendo
pouca leitura nas entrelinhas, que prende detalhes detectando
até erros de ortografia”, mas que, “ao contrário do primeiro
tipo, não tira conclusões apressadas”, Kato (1990, p, 40-41)
chama de leitor “vagaroso e pouco fluente”, com “dificuldade
de sintetizar as idéias do texto por não saber distinguir o que
é mais importante do que é meramente ilustrativo ou redun-
dante.”
Assim, Kato (1990, p. 41) põe em evidência um terceiro tipo
de leitor, que nomeia de “maduro”, posto que “usa, de forma
adequada e no momento apropriado, os dois processos com-
plementarmente”.
Claro está que, nesse último caso, esse leitor já é proficien-
te e tem um histórico de leituras. Não se trata do leitor inicial,
para quem as dificuldades de decodificação, entendimento do

Leitura 25
texto e atribuição de sentidos ao texto se apresentam como
desafios.
De qualquer maneira, os modelos descendente, ascendente
e interativo, conquanto apresentem pontos positivos, são alvo
de crítica. Vejamos o porquê.
Martins e Niza (2009) esclarecem que o modelo descen-
dente é criticado porque carece de explicações sobre: como
são realizadas e testadas as predições do leitor, porque os tem-
pos de leitura são maiores nas predições do que no reconheci-
mento de palavras, o comportamento de leitores experientes,
e a importância concedida à via visual no processo da leitura.
Além disso, mostram que o modelo ascendente também apre-
senta problemas, pois, além da falta de flexibilidade (considera
a linguagem escrita uma decodificação da linguagem oral, e
a leitura, a transformação dos grafemas em fonemas), esque-
ce que o contexto influencia a leitura. Dessa feita, existiria
apenas uma estratégia de leitura para atingir o significado
Grafema do texto, o que implica dizer que são desprezadas as relações
“É a unidade fundamental ou mínima semânticas entre as palavras. Por outro lado, o modelo intera-
de um sistema de escrita.” (WIKIPEDIA, tivo, mesmo assumindo a intermediação entre os dois primei-
2009).
ros, não pode ser chamado de completo, haja vista que não
Fonema explica as fases iniciais de aprendizagem da leitura.
“É a unidade mínima no sistema de Assim, as Autoras apresentam modelos de aprendizagem
sons de uma língua.” (BLACKBURN,
1997, p. 156).
da leitura baseados em estágios, os quais tentam caracterizar
as várias fases de aquisição da leitura na infância. O primeiro
desses modelos divide a aprendizagem da leitura em quatro
estágios: a) adivinhas lingüísticas (reconhecimento de pala-
vras partícipes do vocabulário visual, por meio da percepção
visual e pela leitura de algumas palavras tendo como base o
contexto extra-linguístico); b) rede de discriminação (tenta-
tiva de leitura de palavras cuja base principal é o contexto,
seguida da primeira letra da palavra que funciona como ín-
dice gráfico); c) decodificação seqüencial (leitura de palavras

26 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
por meio de decodificação e correspondência entre letras e
sons, privilegiando as palavras irregulares com antecipações
baseadas no contexto em que estas aparecem); d) decodifica-
ção hierárquica (a decodificação e a correspondência entre as
letras e os sons levam em conta os valores posicionais das le-
tras). Surgiram outros modelos, na mesma linha dos estágios,
mas tanto o primeiro quanto os últimos também são alvo da
crítica, pois estudos recentes detectaram que a aquisição da
leitura permite vários percursos, várias estratégias. Tais estra-
tégias, pela flexibilidade embutida e consentida, permitem que
a criança chegue à compreensão do texto e que venha, então,
ser um bom leitor. (MARTINS; NIZA, 2009).
Lembra o que Leffa (1996), falou a respeito da intenciona-
lidade de ler? Esqueceu? Então volte algumas páginas e veri-
fique a importância do desejo e da motivação no exercício da
leitura. Por isso, ele afirma que os modelos ascendente e des-
cendente conduzem a definições restritas da leitura porque o
primeiro se prende à extração pura e simples do significado do
texto e o segundo, à atribuição de significado ao texto. Ambos
valorizam ou o texto ou o leitor e esquecem que a intenção
de ler se prende a determinados objetivos que somente serão
atingidos se o leitor interagir com o texto. Em outras palavras:
os fatores não-cognitivos se fazem presentes na leitura, pois a
mesma é transcendental e intersubjetiva.
Você percebeu a preocupação dos educadores com os mo-
delos de leitura? Temos certeza de que essa também é uma
preocupação sua! No meio de tantos, qual escolher? Leia de
novo esse subtópico, reflita sobre ele, converse com seus pa-
res, verifique qual modelo utilizam, se estão obtendo bons re-
sultados, que sugestões oferecem.
Lembre-se de que você, como leitor adulto, já dispõe de
uma bagagem de experiência e se encontra em situação de
vantagem em relação à criança, cujas vivências são incipien-

Leitura 27
tes, mas que interferem no processo de aprendizagem da lei-
tura. Por esse motivo, as teorias apresentadas o ajudarão a
conduzir esse processo e a valer-se de estratégias de leitura
que permitam à criança extrair os significados do texto, atri-
buir significados ao texto e interagir com o texto. É o que
estudaremos a seguir.

1.3 Estratégias
Estratégia, em sentido estrito, refere-se à arte militar que
trata das operações e movimentos de um exército para vencer
o inimigo. Na rotina diária, usamos o termo como meio de
aproveitar determinadas condições para atingir certos objeti-
vos. Ora, é certo que estamos empenhados em uma guerra:
vencer o desânimo que afeta crianças e jovens quando se de-
frontam com a dificuldade da leitura. Mas é certo também que
canalizamos nossos esforços no sentido de, dia-a-dia, paulati-
namente, pacientemente, esperançosamente, desbloquear es-
sas frustrações e inseri-los no rol de pessoas leitoras.
Não é apenas o educador que se vale de estratégias da lei-
tura. O leitor faz uso delas. Sempre. Qualquer leitor: desde a
criança em fase de alfabetização, até o leitor proficiente.
Comecemos com o leitor aprendiz.
Kato (1990), baseada em várias pesquisas, mostra que as
crianças no início da aprendizagem da leitura valem-se de:
a) estratégias de inferência: operam com segmentos de
palavras conhecidas, e, por dedução, concluem as ca-
deias de letras. Usam o raciocínio.
b) ilustração como texto: não diferenciam a função do
texto e a função da ilustração. É a fase pictográfica.

28 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
c) valor icônico à escrita: acreditam que objetos grandes
são representados por palavras grandes. É a etapa pré-
silábica.
d) análise e síntese: pelo crescimento do léxico visual e da
familiaridade com os segmentos mais freqüentes da lín-
gua, fazem previsões mais significativas; a decodifica-
ção do estímulo visual não necessita da mediação foné-
tica ou fonológica. É a leitura sem vocalização.
Entretanto, lembra Kato (1990, p. 11-12):

Vimos até aqui que as pesquisas e teorias especulativas


sobre a aquisição da escrita supõem etapas seqüenciais
caracterizadas por diferentes concepções e por diferentes
comportamentos. Mas há evidências também que apontam
para a possibilidade de haver: a) regressões de comporta-
mentos e b) superposições de concepções. Assim, uma lei-
tura mais linear e menos preditiva pode ocorrer mesmo em
leitores altamente proficientes, quando o grau de novidade
do texto ou sua complexidade estrutural diminuem sua le-
gibilidade e exigem, para sua compreensão, operações de
análise-síntese a nível de unidades menores do que o leitor
está acostumado a utilizar. Há momentos em que até a
vocalização ou a subvocalização se faz necessária.

Ora, isso significa que não apenas a criança, mas também o


adulto, ao se deparar com uma palavra nova, pode aproximar a
escrita da fonética, mesmo tendo consciência de que esse não é
o caso na língua pátria. Um outro fenômeno que pode ocorrer
é a troca de uma letra por outra, baseada no uso da situação
átona; é o caso, por exemplo, de escrever ou ler previlégio em
vez de privilégio. Tal se dá porque o leitor não tem certeza da
forma correta da palavra e generaliza a hipótese de que o som
de i é equivalente à letra e. Assim, mesmo nós, adultos, educa-

Leitura 29
dores, temos de nos policiar para não cairmos em regressões ou
superposições de concepções.
Outro fator que merece análise é o mencionado por Fer-
reiro (1991, p. 64-65): “Estamos tão acostumados a conside-
rar a aprendizagem da leitura e escrita como um processo de
aprendizagem escolar” que “se torna difícil reconhecermos que
o desenvolvimento da leitura e da escrita começa muito antes
da escolarização” e “os educadores são os que têm maior difi-
culdade em aceitar isso”, mas “felizmente, as crianças de todas
as épocas e de todos os países ignoram esta restrição”, pois
“nunca esperaram completar 6 anos e ter uma professora à
sua frente para começarem a aprender. Desde que nascem são
construtoras de conhecimento” e “no esforço de compreender o
mundo que as rodeia, levantam problemas muito difíceis e abs-
tratos e tratam, por si próprias, de descobrir respostas para eles.”

Assim, as crianças se valem de estratégias de apren-


dizagem: as informações retiradas do seu cotidiano são
interpretadas por meio de um esquema conceitual que
constroem a fim de transformar tais informações em co-
nhecimento. Dessa maneira, as crianças, mesmo fora do
controle sistemático da escola, podem aprender a leitura
e a escrita. Tal se dá porque acoplamos o conhecimento
subjetivo ao objetivo. É como se, desde a infância, cons-
truíssemos esquemas para representar o mundo percebido.

Leffa (1996, p. 35) explicita:

30 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Na interação com o meio, o indivíduo vai percebendo que
determinadas experiências apresentam características co-
muns com outras. Um almoço em casa com a família pode
ser diferente de um almoço com um executivo impor-
tante, mas há entre um e outro uma série de elementos
comuns que tipicamente caracterizam o acontecimento
como almoço: a hora, o uso de talheres, a ingestão de
alimentos, etc.

Os esquemas são estruturas abstratas, permeadas de variá-


veis que caracterizam determinados acontecimentos aos quais
inferimos valor. Dessa feita, não são estáticos, mas dinâmicos,
mutáveis, admitindo subesquemas que se entrelaçam, como
uma rede. Isso significa dizer que, de acordo com a experiência
do indivíduo, certos fatos ou certas ações se configuram ora
como figura, ora como fundo, ou seja, têm maior ou menor
importância em sua vida. Levando para o campo da leitura,
podemos dizer que a compreensão de um texto depende das
variáveis contidas em um texto e de como realizamos a ligação
entre elas. Se as variáveis forem ambíguas para o leitor, ele fica-
rá desorientado e acionará os esquemas para por em ordem seu
pensamento. Como faz isso? Buscando informações adicionais:
a) no título;
b) na sequência das frases;
c) no contexto do assunto;
d) nas suas inferências.

Leitura 31
O leitor maduro aciona com mais facilidade os esquemas,
trafega com desenvoltura entre um e outro, realiza inferên-
cias com base em suas lembranças e expectativas. O leitor
inciante, por outro lado, apresenta algumas dificuldades,
seja em virtude de pouco conhecimento prévio, seja pela
impossibilidade de elaborar hipóteses. Falta, a esse último,
a capacidade de avaliar a relevância, pertinência ou o sen-
tido dos dados apresentados. Assim, nem sempre consegue
transformar os dados do texto em informações significati-
vas. Por conseguinte, não extrai significado do texto, não
atribui significado ao texto, não interage com o texto.

A criança, se não tiver o necessário conhecimento lingüís-


tico, textual e do mundo, enfrentará sérias dificuldades em
se tornar leitora assídua, pois a construção dos esquemas se
apresentará como uma tarefa penosa. Quando a família não
incentiva o diálogo, a troca de experiências (sensíveis, leito-
ras), a criança pode se atemorizar ante um texto complexo,
não se atrevendo mesmo a formular suposições de sentido,
pois há o risco de ser ridicularizada. Por outro lado, a criança
que recebe estímulos no lar, sente-se mais segura para organi-
zar os esquemas de compreensão de um texto, não se intimi-
dando ante os possíveis erros de interpretação.
O que pode a escola fazer para ajudar a criança com dificul-
dade em utilizar estratégias de leitura? O educador deve lem-
brar-se de que obstáculos menores são mais facilmente venci-
dos e que cada obstáculo superado gera confiança em superar
outros que se apresentarem. Assim, propiciar textos com níveis
gradativos de complicações, que façam parte das vivências da

32 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
criança, que ativem o intelecto
e instiguem o imaginário é um
bom começo. Para isso, nada
melhor do que a leitura literária,
ou seja, urge destacar a função
poética da leitura.

1.4 Função poética


Função é uma ação pecu-
liar, uma missão. O poético está
sempre associado ao belo, ao
deleite, à fruição, à expressão
conceitual-sensorial-afetiva. As-
sim, a função poética da leitura
Figura 6: O diálogo e a troca de experiências ajudam as crianças a interpretar
é aquela atividade especial cuja os textos que leem.
finalidade é deleitar; consiste na
imbricação das idéias contidas
no texto com a sensibilidade e experiências emotivas do leitor.
Isso implica dizer: a leitura poética é aquela que permite ao
texto literário exprimir o universal de cada um. Tal se dá por-
que a função poética da leitura é voltada para textos ficcio-
nais, e a ficção permite a plurissignificação, a inferência de-
corrente de lembranças e expectativas, o ajuste dos esquemas
que organizamos para entender o lido, as múltiplas estratégias
de compreensão e interpretação da escrita.
Podemos ainda dizer que a leitura poética é benfazeja, pois
nela contam nossas vivências psíquicas, intelectuais, corporais
e lúdicas, indissociáveis no ser humano, que é uno. Um exem-
plo disso é a passagem em que Proust (1982, p. 30) recorda
a maneira carinhosa de sua mãe ler em voz alta e modulada,
junto ao seu leito quando menino:

Leitura 33
[...] dava toda ternura natural, toda a ampla doçura que
exigiam, àquelas frases que pareciam escritas para a sua
voz e que, por assim dizer, cabiam inteiras no registro de
sua sensibilidade. Para atacá-las no devido tom, sabia en-
contrar o acento cordial que lhes preexiste e que as ditou,
mas que as palavras não indicam: graças a ele, amortecia
de passagem toda rudeza nos tempos dos verbos, dava
ao imperfeito e ao pretérito perfeito a doçura que há na
bondade, a melancolia que há na ternura, encaminhava
a frase que ia findando para aquela que ia começar, ora
acelerando, ora retardando a marcha das sílabas para fa-
zê-las entrar, embora diferissem de quantidade, num rit-
mo uniforme e insuflava àquela prosa tão comum uma
espécie de vida sentimental e contínua.

Você, provavelmente, já leu em voz alta para alguma crian-


ça. Preocupou-se em demonstrar ternura, doçura, sensibilida-
de, cordialidade, bondade? Fez, da prosa comum, um relato
gostoso, ritmado, partilhado? Passou a mão pelos cabelos da
criança, tocou de leve seu rosto, sorriu para ela enquanto a
leitura a fazia viajar pelos caminhos do imaginário?

Lembre-se: o afeto e o toque são componentes impres-


cindíveis na leitura poética solidária. O prazer de ler e o pra-
zer de ouvir perpassam pela corporeidade da leitura, pela
aceitação do outro no nosso campo de presença, pelo des-
centramento.

Mas a leitura poética permite, ainda, o envolvimento do lei-


tor com as personagens literárias. Mesmo que a criança prefira
ler sozinha, o texto literário, sendo obra de arte, permite inci-
tações, instiga a imaginação e possibilita a identificação com
as personagens ficcionais. O efeito estético que a experiência

34 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
da leitura produz é tal que, ao terminar o livro, o leitor sente-
se apaziguado, revigorado, confortado. A presença marcante
da personagem ficcional – o corpo do outro – garante que des-
frutamos de companhia, que, por alguns momentos que sejam,
saímos do centro e permitimos a invasão do outro em nossos
pensamentos, dividimos com ele nossas angústias e anseios
secretos. É essa intercorporeidade e esse descentramento que
permitem que a leitura, mesmo a solitária, seja terapêutica.
Claro está que, para que isso aconteça, o ato da leitura
deve ser um exercício de liberdade. Liberdade para ler o que
quiser, como quiser e quando quiser. Você lembra dos dez di-
reitos imprescritíveis do leitor apontados por Pennac (1998)?
Eles foram apresentados a você na disciplina Novos rumos da
biblioteca escolar.
Vamos recordá-los? Vá até a próxima página.
Você acrescentaria mais algum direito à criança leitora?
Qual? Não sabe? Não se apresse. Reflita um pouco. Conse-
guiu? Ótimo!
Volte, agora, algumas páginas e releia a definição de Sartre
sobre a leitura. O tema da liberdade é o núcleo central do pen-
samento sartriano. De fato, para o filósofo, o sentido da obra
não está contido nas palavras de um livro, pois o leitor tem a
liberdade de inferir a significação que quiser; por outro lado, o
autor tem a liberdade de apresentar no texto o que lhe apraz,
apostando no envolvimento do leitor e sabendo da possibili-
dade de o mesmo contestar o escrito.

Leitura 35
Os dez direitos imprescritíveis do leitor

O direito de não ler

Como nós, às vezes a criança não está com vontade de ler. Forçá-la a isso seria transformar
a leitura em um ato penoso e desagradável.

O direito de pular páginas

Quem, durante sua vida leitora, não pulou as páginas de uma narrativa longa demais?
Permitir que a criança “elimine” trechos cansativos da leitura facilita seu entendimento
acerca da leitura por prazer e da leitura por dever. Qual tipo de leitura você acha que ela
prefere?

O direito de não terminar um livro

Nem sempre é preguiça ou falta de tempo. Simplesmente pode ser: o livro não agradou. Por
que, então, continuar a leitura?

O direito de reler

Agora, a situação se inverte. O livro despertou tamanho interesse que a criança deseja lê-lo
mais e mais vezes. Quase sabe a história de cor. Mesmo assim, sente prazer na repetição. Cabe
lembrar: cada leitura é ímpar e permite novas descobertas, novos encantamentos.

O direito de ler qualquer coisa

O que seria do vermelho se todos gostassem do amarelo? Pois é, com a leitura isso também é
verdade: o livro que acho ótimo, outros podem não gostar. Se considero um texto como não
literário, classificando-o como literatura de massa, não é razão para impedir sua leitura. Às
vezes, os gibis despertam o prazer de ler. Com o tempo, a criança procurará textos mais
densos.

36 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível)

O termo bovarismo vem da personagem Madame Bovary, de Gustave Flaubert: jovem provin-
ciana que, por meio das leituras, tinha acesso à vida glamurosa e intensa da corte. Sonhava
acordada. Não é bom sonhar? Fugir do cotidiano? Identificar-se com o herói ou o vilão da
história? Por instantes, ser o outro?

O direito de ler em qualquer lugar

Onde está escrito que a leitura deva ser somente em sala de aula? Ou na biblioteca? Ou no
quarto? Por que não pode ser no jardim de casa? Ou na sacada do apartamento? Ou no
banheiro?

O direito de ler uma frase aqui e outra ali

Não é gostoso folhear um livro, e, ao acaso, parar em uma de suas páginas, ler uma frase, um
parágrafo? É como se fôssemos a uma loja e, displicentemente, passeássemos entre as
prateleiras repletas de novidades e apanhássemos nas mãos um objeto aqui, outro ali, anteci-
pando o prazer da compra. Pois é. Com os livros acontece o mesmo. Em uma livraria, fazemos
muito isso: folheamos, lemos alguns trechos, até decidir pela compra desse ou daquele título.
Permita à criança essa exploração saborosa na biblioteca de sua escola!

O direito de ler em voz alta

O prazer de ouvir o som da própria voz, de verbalizar o escrito, de externar o encanta-


mento – sua biblioteca propicia isso? Você transforma a Hora do Conto em um exercício
lúdico, um espaço de expressão?

O direito de calar

Nem sempre estamos dispostos a compartilhar nossos pensamentos, a externar o que


achamos desse livro ou desse autor. Às vezes ler é um momento de intimidade, um instante
que o leitor deseja compartilhar com o autor e mais ninguém.

Leitura 37
A leitura poética, portanto, é um contrato de liberdade
entre autor e leitor. Como tal, não deve imposta nem co-
brada. A leitura poética é aquele momento especial em que
o corpo do texto se entrelaça com o corpo do leitor, a fala
do autor se mescla à fala do leitor; dá-se quando o primeiro
instiga esse último a transformar as significações conhe-
cidas em novas significações. Em outras palavras: o objeto
estético, a experiência da leitura, enseja a dimensão criativa
do leitor, pois existe o que chamamos de sobre-significação
da expressão literária.

Na leitura poética é como se acendesse uma faísca. Vejo e,


de repente, percebo. Como bem disse Merleau-Ponty (2002, p.
33):
ponho-me a ler preguiçosamente, contribuo apenas com
algum pensamento – e, de repente algumas palavras me
despertam, o fogo pega, meus pensamentos flamejam,
não há mais nada no livro que me deixe indiferente.
O momento em que o fogo pega é o do descentramen-
to: o autor sai do centro e permite a intromissão do leitor;
é a relação de cumplicidade entre ambos. Isso significa que
a fala literária do escritor teve força suficiente para mover a
capacidade criadora do leitor. Dessa feita, a leitura poética é
uma retomada: a universalidade estética permite que cada um
retome a operação expressiva à sua maneira. Por esse motivo,
é transcendente.
Isso nos remete aos vazios iserianos do texto literário. Se-
gundo Iser (1996-1999), os espaços vazios dos textos literários
permitem uma comunicação entre texto e leitor. Assim, o não-
dito no texto (o que o autor ocultou) estimula o leitor, mas tal

38 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
se dá porque o dito (o que o autor mostrou) permite essa esti-
mulação. Ou seja, a potência encantatória da literatura instiga
o leitor e, assim, a leitura poética é um processo interativo.
Mas é também uma atividade sintética, pois exige do leitor ir
além dos dados textuais, reconfigurando-os de maneira que se
forme um novo texto. E isso o leitor faz com prazer, como se
participasse de um jogo.
Tal prazer, de acordo com a concepção iseriana (e também
barthesiana), não é um elemento do texto, é criado pelo lei-
tor no momento em que o mesmo se envolve com a escrita
literária. Cabe mencionar que a fruição da literatura tem sido
objeto de discórdia entre os teóricos.
Segundo Barthes (1999, p. 9, grifo do autor):
Se leio com prazer esta frase, esta história, ou esta pala-
vra, é porque foram escritas no prazer (este prazer não
está em contradição com as queixas do escritor). Mas e o
contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim, escri-
tor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor,
é mister que eu o procure (que eu o “drague”), sem saber
onde ele está. Um espaço de fruição fica então criado.
Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o es-
paço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma
imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lança-
dos, que haja um jogo. Figura 7: Roland Barthes (1915-1980).

O espaço poético, então, permite a fruição da linguagem,


a leitura desbravadora, a ruptura de mensagens enclausuradas
no pensamento do escritor, a fenda no texto. Podemos mesmo
dizer que o espaço poético é a fenda do texto, o corte que o
leitor faz pelo viés de sua subjetividade.
Essa apropriação “irresponsável” do texto pelo leitor – o
prazer do texto – é condenada por alguns críticos. Fontes
(2009, p. 149) lembra a fala de Pierre Bourgeade no Colóquio
sobre a situação da literatura, em 1976:

Leitura 39
A noção de prazer está na moda; o prazer e o desejo [...].
Creio que seria perigoso, para nós, aceitar a noção de pra-
zer, que, segundo penso, já é falsa para o escritor, e ainda
mais para o leitor: porque essa noção de prazer, no fundo,
é a noção sobre a qual se baseia a crítica subjetivista, a
crítica mais reacionária; é a noção que justifica tudo.
A citação mostra o impacto causado pelo livro de Barthes
(cuja primeira edição, em francês, data de 1973). De fato, o
debate a respeito do prazer do texto, na época, tinha a ver
com questões políticas e ideológicas: era o embate entre a di-
reita burguesa, subjetivista (que defendia os valores de prazer
e beleza do texto), e a esquerda, marxista, intelectualista, (que
combatia o deleite textual, pois achava que o mesmo poderia
ser veículo de pensamentos perigosos).
Entretanto, o texto barthesiano advogava que acreditar no
prazer do texto como sendo uma idéia da direita é uma “mito-
logia”, é “o velho mito reacionário do coração contra a cabeça,
da sensação contra o raciocínio” e, dos dois lados, persiste “a
idéia bizarra de que o prazer é coisa simples, e é por isso que
o reivindicam ou o desprezam”, mas o prazer “não depende de
uma lógica do entendimento e da sensação”, de fato, “é uma
deriva, qualquer coisa que é ao mesmo tempo revolucionária e
associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade,
nenhuma mentalidade, nenhum ideoleto.” (BARTHES, 1999, p.
32, 33, grifo do autor).
E Fontes (2009, p. 153, grifo do autor) afirma que:
esse equívoco reapareceu, nos últimos tempos, em con-
textos pedagógicos. [...] Há uma diferença, entretanto, e
significativa: na escola, quem reivindica o direito ao pra-
zer do texto são as correntes mais progressistas e mais –
para usar o estereótipo – à esquerda. Justamente aquelas
que procuram inovar e transformar a rotina dos velhos
métodos de leitura.

40 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Assim, há que se deixar de lado a política e a ideologia e se
concentrar no essencial: despertar o prazer de ler, apresentar
o ato de ler como um gozo. Tenha em mente que a função
poética da leitura permite que autor e leitor usufruam do fe-
nômeno estético, compartilhem da fantasia, brinquem com o
texto. Mas essa função alcança outro patamar. É o que des-
tacam Yunes e Pondé (1988, p. 41): a “leitura, para a criança,
bem mais do que um meio de evasão ou de socialização, é um
modo de representação do real” e, “desse modo, o texto ajuda-
a a reelaborar o real, sob a forma do jogo e da ficção.”

Assim, a leitura poética permite não apenas sonhar (eva-


são) e compartilhar idéias (socialização), mas também uma
transposição dos elementos da realidade para o universo
ficcional (representação do real), uma composição, um fin-
gimento, uma invenção da realidade (reelaboração do real
sob a forma do jogo e da ficção).

Isso não é pouco! Muito mais do que decifrar o código es-


crito, entender a “mensagem” do livro (fundir-se com o autor)
ou dele se dissociar (pelo processo de interpretação), a leitura
poética é uma recriação. Implica atividade imaginante, ebuli-
ção das emoções e sensações, identificação com as persona-
gens ficcionais, reflexão sobre o real. Como uma brincadeira
estimulante, produz a catarse4: a harmonia dos humores cor- 4 O conceito de catarse, bem como sua
porais, das emoções e paixões, do prazer proporcionado pela relação com a leitura, serão aprofun-
dados na seção 2.2.3 Função terapêu-
expressão artística. De fato, a leitura poética tem esse mister: tica, deste livro.
provoca, instiga, perturba. Mas, em seguida, produz o balan-
ço necessário ao bem-estar, transformando a perturbação em
alegria serena. É lúdica.

Leitura 41
Mesmo sendo um jogo, não prescinde de um texto coeren-
te, de tessitura leve, porém não apenas ornamental. O discurso
literário, conquanto privilegie a apreensão criativa do texto,
não dispensa o uso correto da gramática, da sintaxe, do voca-
bulário, enfim. É que o mostra Vásquez Rodriguez (2000), na
Declaração dos direitos da criança leitora:
Artigo 4: Nós crianças não somos estúpidos. E discorda-
mos daqueles que nos tratam como incapazes. Daí exi-
girmos da parte dos adultos uma linguagem normal sem
diminutivos ridículos e sem frases de efeito.

Artigo 9: Nós crianças, exigimos nos livros preferencial-


mente feitos para nós, imagens menos óbvias e menos
bobas. Não queremos em nossos livros ilustrações supér-
fluas. Parágrafo: é mentira que dos livros só as imagens
nos interessam.

Artigo 13: A nós crianças encanta-nos a ação e o movi-


mento. Gostamos do que salta e pula, e do que sonha e
brilha. [...] um livro que nos atrai é aquele que pode fazer
parte de nossas brincadeiras. Parágrafo: Somos fantásti-
cos, mas por excesso de realismo.

Artigo 20: Nós crianças gostamos de encontrar nos livros


que lemos palavras raras, desconhecidas, sonoras, miste-
riosas. Por isso mesmo são ofensas para nós os “glossá-
rios” e “vocabulários” postos ao final ou abaixo dos tex-
tos. Declaramos que nós crianças não somos retardados
ou incapazes de entender a língua. Os “Dicionários para
crianças” não têm valor para nós.

Assim, um livro permeado de eufemismos, com finais pre-


visíveis, e recheado de ilustrações desnecessárias, não cativa a
criança. Ela exige um texto com o mesmo cuidado estilístico e
gramatical que é ofertado ao adulto. Ora, isso implica dizer: a

42 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
leitura poética mostra a capacidade que o texto tem de sedu-
zir e encantar. Em outras palavras: tem força suficiente para
envolver o leitor com a literatura, sem a intervenção de outros
recursos lúdicos como a narração, a dramatização, o desenho
após a história, brincadeiras, representações plásticas e musicais
a partir do conteúdo do livro – o que Perrotti (2009, p. 135)
chama de “tecnologia da leitura” e “nova pedagogia da leitura.”
Isso não significa condenar sumariamente o uso de tais
atividades posteriores à leitura literária. O que se condena é
seu uso constante, como se fosse obrigatório valer-se sempre
delas para que a leitura seja prazerosa, como se o projeto de
recepção do texto literário infantil e juvenil estivesse vincula-
do a folguedos exteriores à escritura. Ora, isso seria diminuir o
potencial fruidor do texto em si, da leitura em si.
Para concluir: a elaboração de um esquema conceitual, o
conhecimento prévio e as estratégias de leitura, presentes na
leitura poética, concedem a essa o mesmo status que a leitura
informativa, didática ou curricular. Por esse motivo, deve ser
incentivada nas escolas e na biblioteca. Está fazendo isso?

Bibliografia Comentada
AGUIAR, Vera Teixeira de; MARTHA Alice Áurea Penteado
(Org.). Territórios da leitura: da literatura aos leitores. São Paulo:
Cultura Acadêmica; Assis: ANEP, 2006.

O livro é uma coletânea de pesquisas apresentadas no Sim-


pósio Travessias: o leitor, a leitura e a literatura, que inte-
grou o IX Congresso Internacional da Associação Brasileira
de Literatura Comparada (ABRALIC), no ano de 2004, em
Porto Alegre. Apresenta reflexões sobre: a literatura como
manifestação cultural, a melhor maneira de avaliar uma

Leitura 43
obra literária, o fazer poético, o feminino na narrativa, a le-
gitimação do livro infantil, a percepção do contexto da obra
literária, o papel do leitor no processo da leitura, a leitura
da literatura na escola, a presença do escritor nas aulas de
literatura, as livrarias e escolas como espaços de mediação
da leitura, a importância da leitura de textos poéticos, os
caminhos da leitura literária no Brasil, e o caráter dinâmico
da biblioteca na escola.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL,


2009.

Acusa a falta de leitura de romances, contos e poemas en-


tre os alunos dos cursos de Graduação em Letras das uni-
versidades, futuros professores de Português. Isso, como
conseqüência, afeta os alunos dos ensinos fundamental e
médio, que carecem do contato maior com o texto literário,
desconhecendo, assim, seu poder de conexão com o mundo
real. Apresenta a obra literária como necessária ao proces-
so educacional, como veículo de formação cultural do in-
divíduo, como potência encantatória e como um caminho
à reflexão.

Síntese
A leitura é um processo intencional, com objetivo e moti-
vação; é um desafio, um prazer pessoal (mas ainda um pro-
blema social). É também considerada ato linguistico, psico-
lógico, cognitivo, neurológico, fenomenológico, pedagógico,
terapêutico, corporal, descentrado. A função poética da lei-
tura admite a liberdade de inferências, o diálogo com o texto,
a fruição literária, a reflexão; desperta o pensamento criador;
permite a brincadeira com as palavras e as imagens; é trans-
cendente.

44 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
2 Literatura infanto-juvenil

Esse capítulo tem por objetivo apresentar informações


e reflexões em torno da literatura infanto-juvenil. As-
sim, o aluno do Curso de Especialização em Gestão de
Bibliotecas escolares perceberá a necessidade de apri-
morar suas leituras desse gênero literário para melhor
atender os usuários.

46 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
A literatura, como produto cultural, permite vários enten-
dimentos. Observa-se que a sociedade, ao fazer um julgamen-
to de valor sobre textos literários e não-literários, legitima as
normas e os valores segundo seu quadro de referências, sen-
do, portanto, histórica e, assim, parcial. E, como os valores
e os modelos são mutáveis, o texto pode, em um contexto e
momento diferentes, ser considerado ou não literário. Assim
é que os estudiosos dessa área do conhecimento manifestam
cautela em expressar seus pontos de vista ao conceituar a arte
literária, ajuizando algumas hipóteses, tímidas assertivas e
muitos exemplos.
Wellek e Warren ([197-], p. 21, 22, 23,) afirmam não haver
muita clareza no distinguir Literatura do que não é Literatura,
mas por definição primeira, Literatura poderia ser “tudo o que
se encontra em letra de forma” ou tudo o que se encontra
“nos grandes livros”, porém uma e outra mostram-se inefi-
cazes; o próprio termo Literatura é insuficiente, limitado “à
literatura escrita ou impressa”, excluindo a oral. Para os Auto-
res, a linguagem literária é conotativa, expressiva e persuasi-
va. Contudo, concordam que a linguagem cotidiana possui as
mesmas características. A diferença repousa na quantidade do
uso dos recursos de linguagem que, na Literatura, são explo-
rados de forma deliberada e sistemática; uma distinção mais
nítida dá-se ao considerar como texto literário as obras nas
quais predomina a função estética.
Um outro teórico, Todorov (1980, p. 11, 16), confessa a di-
ficuldade de “decidir entre o que é literatura e o que não o é”,
ao afirmar não existir de fato um abismo entre a obra literária
e produções não literárias, visto que essa fronteira levantada
entre elas é uma convenção da sociedade; concebe o texto li-
terário, entretanto, como “linguagem sistemática que chama a
atenção sobre si própria.” Segundo ele, o texto literário é, aci-

Literatura infanto-juvenil 47
ma de tudo, ficção, e os gêneros literários são possibilidades
do discurso humano.
A mesma problemática da natureza da Literatura é aborda-
da por Culler (1999, p. 27, 35-40), ao argumentar que tanto as
narrativas literárias quanto as narrativas da História utilizam o
narrar, tanto os relatos psicanalíticos quanto as obras filosófi-
Metáfora cas adotam a metáfora, o quer torna difícil “a distinção entre
Do grego metaphorá, significa trans-
o literário e o não-literário; contudo apresenta a Literatura
porte, translação. Aristóteles foi o como: “colocação em primeiro plano da linguagem”, “integra-
primeiro a fazer observações sobre o ção da linguagem”, “ficção”, “objeto estético” e ‘construção
conceito de metáfora. Segundo ele, a
metáfora consiste em transportar para intertextual ou auto-reflexiva”; afirma que as três primeiras
uma coisa o nome de outra. Quintilia- características apontadas podem ser agrupadas sob o título
no a chama de comparação abreviada.
Os teóricos modernos tentam superar a
de “função estética da linguagem.” Assim o que caracteriza
conceituação greco-latina de transfe- a literatura é a exploração da linguagem. Segundo o Autor, o
rência, translação, símile, comparação, texto literário pressupõe um leitor que considere a narrativa
pois nem toda comparação equivale
a uma metáfora; somente teríamos a relevante e comunicativa, posto que veículo da ideologia.
metáfora quando a comparação entre Nutrindo maior preocupação com o prazer e a fruição
dois vocábulos ocasionasse um sentido
novo. Atualmente o vocábulo pode ser
como próprios do fenômeno literário, Barthes (1999, p. 21-22,
empregado, genericamente, como fi- grifo do autor) afirma que texto de prazer é “aquele que con-
guras de linguagem ou de pensamento, tenta, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com
mas especificamente designa o proces-
so global de figuração ou expressão do ela, está ligado a uma prática confortável da leitura”, e texto
pensamento literário. (MOISÉS, 1988, de fruição é “aquele que põe em estado de perda, aquele que
p. 323-333).
desconforta [...], faz vacilar as bases históricas, culturais, psi-
cológicas do leitor” e que “faz entrar em crise sua relação com
a linguagem.” Segundo ele, o texto literário tagarela na escri-
tura, proporciona aos leitores o usufruto, o desfrute, o deleite
da linguagem – por esse motivo, seduz.
Por sua vez, Candido (2000, p. 45, 53, 74) defende que
“a grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da
sua relativa intemporalidade e universalidade”, não se pren-
dendo a um tempo determinado e utilizando temas comuns
da sociedade; porque “a arte, e portanto a literatura, é uma
transposição do real para o ilusório por meio de uma estiliza-

48 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
ção formal” que “propõe um tipo arbitrário de ordem para as
coisas, os seres, os sentimentos”, o que implica uma atitude de
gratuidade tanto do escritor quanto do leitor, uma vez que o
primeiro manipula elementos da realidade e os transfere para
o universo ficcional e o segundo os recebe e aprecia; prioriza
o leitor ao dizer que “a literatura é pois um sistema vivo de
obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores”; e “só
vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitan-
do-a, deformando-a.” O crítico brasileiro, ao ponderar sobre a
Literatura em geral no mundo contemporâneo, salienta que o
ser humano, para melhor compreender a realidade, necessita
dar forma à fantasia; a literatura presta-se a isso, pois é uma
instituição ficcional que representa o mundo.
A seu turno, Sartre (2004, p. 21, 22, 28, 29) considera Lite-
ratura um engajamento no mundo, pois “a função do escritor
é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e conside-
rar-se inocente diante dele”; pela “harmonia das palavras, sua
beleza, o equilíbrio das frases”, o autor vai conduzindo a nar-
rativa sem que o leitor se aperceba que suas paixões estão pre-
dispostas na prosa; condena obras que chama de “inofensivas”,
“refinadas”, “subjetividade que se entrega sob a aparência de
objetividade”, discurso “que equivale ao silêncio”; e louva os
escritores que como em “uma empreitada” se engajam “intei-
ramente nas suas obras”, que se valem da palavra escrita para
incitar o leitor à ação. Assim, advoga que a Literatura revela
o mundo pela palavra e tem compromissos éticos e políticos.
Em Merleau-Ponty (2002, p. 32, 33, 34) a linguagem lite-
rária propriamente dita é a “linguagem falante” que se reali-
za “no momento da expressão, que vai justamente fazer-me
passar dos signos ao sentido”, ou seja, “é a interpelação que
o livro dirige ao leitor desprevenido”, é “aquela operação pela
qual um certo arranjo dos signos e das significações já dis-
poníveis passa a alterar e depois transfigurar cada um deles,

Literatura infanto-juvenil 49
até finalmente secretar uma significação nova”, sendo suce-
dânea da “linguagem falada”, aquela linguagem “que o leitor
traz consigo”, o universo das significações disponíveis de uma
língua, sem a qual não haveria o processo da leitura; dessa
forma, na Literatura teríamos a fala operante, produtora de
sentidos, uma fala que retoma e recupera significados. Dessa
feita, para o filósofo, a linguagem literária é aquela que permi-
te captar o sentido subjetivo das palavras, permite o ultrapas-
samento do prosaico, permite a transcendência, enfim.
De acordo com Iser (1996, v. 1, p. 101, 102) “os textos li-
terários não se esgotam na denotação de objetivos empirica-
mente dados, a representação por eles intencionada visa ao
não dado”; é “necessário, portanto, compreender a relação en-
tre ficção e realidade não mais como relação entre seres, mas
sim em termos de comunicação”, pois como “estrutura comu-
nicativa, a ficção conecta à realidade um sujeito que, por meio
da ficção, se relaciona a uma realidade.” Em outras palavras:
ele se preocupa com os efeitos da Literatura sobre o leitor e
com as estratégias textuais como comunicação.
Um aporte didático, encontramos em Souza (1999, p. 44),
cuja definição de Literatura, stricto sensu (como objeto da te-
oria da literatura), é a seguinte:

Parte do conjunto da produção escrita e, eventualmente,


certas modalidades de composições verbais de natureza
oral (não-escrita), dotadas de propriedades específicas,
que basicamente se resumem numa elaboração especial
da linguagem e na constituição de universos ficcionais ou
imaginários.

50 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Em que pesem algumas divergências entre os teóricos,
podemos dizer, então, que a Literatura:
a) privilegia o material impresso já consagrado pelo
público, mas não exclui a oralidade;
b) é ficção;
c) explora a função estética da linguagem;
d) constitui-se em texto de prazer e de fruição;
e) possui intemporalidade e universalidade;
f) permite o engajamento no mundo tanto do escri-
tor quanto do leitor;
g) apresenta-se como linguagem falante;
h) é uma estrutura comunicativa;
i) possui propriedades peculiares que a caracterizam.

Cumpre lembrar que, como sistema, texto literário e leitura


formam um todo, agem como elementos de um conjunto, se
completam. O escritor utiliza a obra literária como meio de
expressão para produzir um efeito estético no leitor – a ex-
periência da leitura é a condição primeira para que um texto
literário adquira vida. E, a função poética da leitura é, por
excelência, o meio mais eficaz para desvendar os mistérios da
literatura.
Tais mistérios não se restringem ao conteúdo, mas extra-
polam o enredo – são as propriedades específicas da obra – a
literariedade, o que Jakobson (apud SOUZA, 1999, p. 45) es-
clarece como sendo “aquilo que torna determinada obra uma
obra literária.”

Literatura infanto-juvenil 51
Ficou confuso? Vamos clarificar.
Literariedade é a forma especial como a linguagem literária
se apresenta; é um desvio da linguagem usual, corriqueira,
para uma linguagem elaborada, poética. Dessa feita, os mate-
riais lingüísticos cotidianos são desarranjados, organizados de
forma a permitir: o estranhamento da linguagem, a percepção
da densidade do texto, o afloramento da sensibilidade do lei-
tor, a criação de universos ficcionais.
5 O Formalismo russo foi uma cor- Para os formalistas russos5 a literariedade está no texto;
rente crítica que questionou as aná- para Iser6, a literariedade é o efeito do texto sobre o leitor.
lises extraliterárias e lançou as bases
fundamentais para a compreensão da
estrutura interna da obra literária. De-
termina a literariedade, ou aquilo que
faz de um texto um produto literário.
É a literariedade (implícita no texto ou produto estéti-
co da leitura), em última instância, o que caracteriza uma
6 Iser desviou sua atenção do texto obra como literária ou não. Como assim? Ora, se leio uma
como objeto para o texto como potên-
cia, ou dos resultados para o ato de ler.
narrativa que me permite: inferir significados, adentrar no
imaginário, usufruir da intemporalidade e universalidade,
compromissar-se com o mundo pela palavra, ultrapassar o
prosaico e alcançar o poético – estou diante de uma obra
literária.

Pense um pouco sobre isso. Lembra-se de ter lido algum


livro que mexeu com sua sensibilidade? Qual?
Será que a palavra poética é prerrogativa da literatura para
adultos? Que as composições literárias para crianças e jovens
sobrevivem sem a especificidade da literariedade?
Como bom leitor ou leitora, você sabe que a literatura,
como instituição ficcional, apresenta um mundo inesgotável,
fala da experiência do outro; é operante, geradora de signifi-
cados. Ora, o leitor, como figura recepcional da obra literária,
aparece desde a tenra idade, logo que aprende a decodificar o
código escrito, a interpretá-lo e a interagir com o texto. Sen-

52 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
do assim, seria tolice dos escritores elaborarem suas narrativas
apenas para o leitor adulto! De fato, a preocupação com a
qualidade textual, a integridade estética e o efeito causado no
leitor de uma obra pode ser observada na literatura infantil
e juvenil. Prova disso é a explosão bibliográfica de literatu-
ra infanto-juvenil no mundo todo, são as livrarias repletas de
material literário voltado a esse público. O que, então, poderí-
amos chamar de literatura infanto-juvenil?
É o que veremos a seguir.

2.1 Características
Característica é uma qualidade, um traço, uma propriedade
que distingue determinada coisa ou pessoa, tornando-a dife-
rente das demais. Nesse sentido, a literatura infanto-juvenil
é diferente da literatura voltada ao público adulto. Diferente
como? Há quem diga que é um gênero menor, uma forma
simples, cultura de massa, alienação da realidade, indústria
editorial, pedagogia, entre tantas outras afirmativas precon-
ceituosas.
Mostram Coutinho e Coutinho (2004, v. 6, p. 200) que a
“caracterização da literatura infantil oferece um permanente
embaraço: saber se inclui apenas o livro escrito para crian-
ças ou, com mais justeza, se compreende também o que lê a
criança [...].”
Para efeito desse livro, advogamos a segunda assertiva.
Destarte, a principal diferença é que se configura como pro-
dução literária que interessa à criança e ao jovem. Assim, re-
veste-se de mais atrativos que a dita “grande literatura.”
No mais, possui todas as características do literário: função
estética, ficção, colocação em primeiro plano da linguagem,
intemporalidade, universalidade, engajamento, linguagem fa-
lante, literariedade.

Literatura infanto-juvenil 53
Lembra Meireles (1984, p. 20):
Tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar
o que se considera como especialmente do âmbito infan-
Gênero Épico til. São as crianças, na verdade, que o delimitam com sua
“O gênero épico, apresentativo, nar- preferência. Costuma-se classificar como Literatura infan-
rativo, se faz por acréscimo de partes, til o que para elas se escreve. Seria mais acertado, talvez
conta uma história, apresenta fatos,
com adição de cada parte. Moderna- assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer.
mente é o que ainda faz o romance.”
(SAMUEL, 2007, p. 37).
Dessa feita, o texto literário infanto-juvenil não é aquele
texto destinado a esse público, mas sim a narrativa que cativa
Gênero Lírico a criança e o jovem (e, diga-se de passagem, ao adulto tam-
“O gênero lírico, musical e subjetivo, bém!). Como ficar imune aos encantamentos de uma narrativa
canta e embala, fala de si e quase sem-
pre para si mesmo. Suave, tende a um bem estruturada, com boa composição dos fatos, personagens
isolamento.” (SAMUEL, 2007, p. 37). maravilhosas, ilustrações instigantes, diagramação sedutora?
Como resistir à efabulação, ao final feliz, ao humor, ao discur-
so sintético, à imagética?
Gênero Dramático Conquanto carregue consigo o estigma de gênero menor,
O gênero dramático é o “gênero das quer dizer, não se apresenta como épico, lírico ou dramático
emoções fortes, do teatro do gran-
de público, da multidão, dos oradores na sua totalidade, possui, entretanto, traços épicos, líricos e
políticos, dos discursos nas praças pú- dramáticos nas suas composições literárias. De fato, a litera-
blicas, do debate na TV apela para o tura infanto-juvenil, de acordo com os preceitos da Pós-mo-
público, mobiliza-o, passa eletricidade,
empolgação, emoção.” (SAMUEL, 2007, dernidade, realiza uma mescla dos gêneros, um hibridismo,
p. 37).” quebrando antigos paradigmas e misturando, sem cerimônia,
o belo e o feio, o riso e o choro, o grotesco e o sublime, o mo-
delo e a paródia, o cotidiano e o fantástico.
Pós-modernidade
Quanto a ser uma forma simples, isso não é demérito. O
É um nome genérico dado para formas
culturais de um período que aparece termo forma simples foi cunhado por Joles (1976), com refe-
desde os anos 1960. Abrange certas rência às primeiras formas poéticas da humanidade. Incluídos
características como reflexão, ironia, e nelas estão a legenda, a saga, o mito, a advinha, o ditado,
um tipo de arte que mistura o popular
e o erudito. (SAMUEL, 2007, p. 162). o caso, o memorialismo, o conto e o chiste. Como a produ-
ção literária infanto-juvenil vale-se, basicamente, do conto,
(embora contenha elementos das demais), pode-se dizer que
é uma forma simples. Até porque seu discurso é não-erudito

54 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
e sua narrativa condensa o máximo de imaginário no mínimo
de discurso, as personagens são planas (ou seja, pouco com-
plexas) e o tempo é cronológico (na ordem natural dos fatos).
Isso não significa, entretanto, que deixe de contemplar tudo
o que marca a ficção: o enredo, as personagens, o tempo o
espaço e o ambiente.
No tocante a estar ou não inserida na cultura de massa,
podemos esclarecer apontando a confusão entre as expressões
cultura de massa e cultura popular. Um trabalho interessante
a esse respeito foi efetuado por Bosi (1996) que explicita a di-
ferença entre ambas: cultura de massa é cultura para a mas-
sa, e cultura popular é cultura da massa. Ora, com base nesse
critério, a literatura infanto-juvenil é cultura popular, pois nas-
ceu da massa, da oralidade transmitida de geração em geração
(contos maravilhosos, contos de fadas, contos folclóricos) e re-
gistrada posteriormente por lingüistas, historiadores e escrito-
res, legitimada na escritura com a ascensão da burguesia.
Seria a literatura infanto-juvenil alienação ou conscienti-
zação da realidade? Há quem afirme que é perigosa fuga da
realidade, uma falsificação do mundo, submissão à ideologia
dominante. Entretanto, há quem defenda que é o contrário
disso tudo, que prima pelo engajamento, pela contestação e
pela reconstrução do mundo. Lembra Ataíde (1995, p. 14):

O intelectual brasileiro – sobretudo o autor de estórias


para crianças – deve ser o homem da denúncia, da cons-
cientização política e social. Fazer sua arte é sua práxis,
mostrar a sociedade problemática que é a nossa, o índice
de sua universalidade e participação na totalidade. O inte-
lectual, com isso, é fautor de uma contra-ideologia, aque-
la que vai romper com a ideologia dominante, buscando a
melhor análise da realidade mediante a delação das desi-
gualdades e dos benefícios que a classe dominante aufere
exclusivamente para si.

Literatura infanto-juvenil 55
Ora, a literatura infanto-juvenil brasileira, conquanto apor-
te a visão adultocêntrica, tem sido um veículo eficaz de de-
núncia social, compromissada com os problemas sócio-am-
bientais, sobretudo. Certas obras literárias chegam mesmo a
perder o enfoque poético, descambando para o utilitarismo.
Essas obras não podem ser classificadas de literárias, pois são
projetos francamente politizantes e moralistas.

Esse tipo de narrativa extremamente preocupada em


denunciar as mazelas sociais e salvar o Planeta poderia ser
denominada paraliteratura, ou, ainda, má literatura, uma
vez que oblitera a ação literária em favor da ação cultural,
sociológica ou didática. Silva (1986, p. 169) esclarece que
“resultando da manifestação de um discurso específico e
não da má utilização do discurso literário, o produto pa-
raliterário nada tem a ver com o produto literário”; mos-
tra que existem paraliteratura didádica e paraliteratura de
imaginação, tendo ambas mensagens redundantes, ausên-
cia de ambigüidade, falta de intenção criadora e redupli-
cação de estruturas já esgotadas. Desse tipo de escritura,
não nos ocuparemos. A paraliteratura tem sido usada nas
escolas para ensinar e passar preceitos morais por meio de
uma história, mas não permite a leitura poética, pois não
produz a fruição literária.

Felizmente, a grande maioria dos escritores para crianças


e jovens percebe o perigo de enveredar pelo caminho da lite-
ratura-como-ensinamento e apresenta textos literários ques-
tionadores, que conduzam à reflexão pelas vias do humor, do
prazer, com forte apelo lúdico, recheando os fatos cotidianos

56 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
da narrativa com o maravilhoso e o fantástico, em linguagem
atraente que une escritura e imagem.
E que dizer da indústria editorial? Será a literatura infan-
to-juvenil um produto de consumo? Um bem cultural que se
adequa às leis do mercado? É certo que as exigências do mer-
cado editorial comprometem a qualidade literária de alguns
textos. Mas não de todos! A maioria dos escritores de narra-
tivas ficcionais infanto-juvenis se preocupa com a qualidade
literária. Assim, conquanto ponham seu produto à venda (se
não o fizessem como teríamos acesso a eles?) não permitem a
vulgarização dos textos, a pobreza de conteúdo, a ausência da
expressão criadora.
Faltou discorrer sobre a problemática de a literatura infan-
to-juvenil ter laivos de didatismo. Veremos isso agora.
Com efeito, a literatura infanto-juvenil nasceu compro-
missada com a pedagogia e dela jamais se afastou totalmente.
Ocorre, no entanto, que os textos contemporâneos matizam
esse fato ao apresentar o poético de forma sobrepujante, dei-
xando o lúdico em evidência. Não se trata de ensinar brincando
(que é o que os pais esperam e os professores sustentam); é o
caso de, pela sedução do enredo, das peripécias da personagem
ficcional e dos vazios deixados no texto para ser preenchidos
pela imaginação e a expressão criadora dos leitores, educar.
E aqui entramos em terreno minado: instruir não é educar?
Não. Instruir significa ensinar, doutrinar, informar, oferecer
conhecimento intelectual. Educar, por outro lado, tem a ver
com o aprendizado das técnicas culturais pelas quais o ser hu-
mano satisfaz suas necessidades (físicas, psíquicas, cognitivas,
sociais, estéticas). Dessa feita, a educação, como formação, ou
como produto dessa formação, capacita a criança e o jovem
para o conhecimento de si mesmo, o enfrentamento da reali-
dade, a convivência com o próximo, e o usufruto da arte.

Literatura infanto-juvenil 57
Podemos dizer que a literatura infanto-juvenil educa,
pois mostra a natureza humana, suas mazelas, seu esforço
contínuo em suplantar as adversidades em busca do ideal
da felicidade. Por esse motivo, os heróis ficcionais não de-
sistem de seus objetivos, encaram os desafios com estoi-
cismo e usam sua coragem, força, esperteza para obter a
almejada vitória. Servem como modelos de comportamen-
to. Assim, a narrativa infanto-juvenil, como arte, como
cultura, incita à ação. Incitar significa instigar, provocar.
Portanto, as composições literárias infanto-juvenis valem-
se dos recursos da linguagem e da imagem para estimular
a consciência crítica, criadora, desafiadora desse público.

Cumpre, agora, falar da imagem, da ilustração do livro


infanto-juvenil. Há quem condene. Há quem defenda. Qual
é seu ponto de vista a esse respeito? Pense um pouco antes
de responder. Ou melhor, examine antes as perguntas que se
seguem.
O poético não pode ser visual? O prazer da escritura não
pode ser mesclado com o prazer da figura? A linguagem ico-
nográfica é concorrente da linguagem verbal? Como você vê
as duas formas de expressão no dia-a-dia? Elas se comple-
mentam, não é mesmo?
Lembra Coelho (2000, p. 196, 197, grifo da autora) que “li-
terária ou não, a palavra escrita é, por natureza, simbólica e
abstrata; remete para representações mentais que exigem vi-
vências ou experiências anteriores, para serem compreendidas
ou decodificadas”; a imagem possui valor psicológico, pedagó-
gico, estético, emocional, pois “estimula o olhar como agente
principal na estruturação do mundo”, “estimula a atenção vi-

58 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
sual e o desenvolvimento da capacidade de percepção”, “faci-
lita a comunicação entre a criança e a situação proposta pela
narrativa”, “concretiza relações abstratas” e “contribui para
o desenvolvimento da capacidade da criança para a seleção,
organização, abstração e síntese dos elementos que compõem
o todo.”
Assim, ilustração não é enfeite! Não quando comunga com
o texto, quando estimula a sensibilidade artística do leitor,
quando fornece subsídios para materializar o imaginário. Jus-
tamente por se preocupar com a capacidade complementar da
imagem na escritura, os livros para crianças de menor faixa
etária são abundantes em ilustrações. As mesmas vão escasse-
ando à medida que se apresenta textos para crianças de maior
faixa etária e para os jovens, pois se entende que estes últi-
mos já adquiriram suficiente independência na abstração, na
linguagem verbal.
O importante, seja no texto, seja na
ilustração, é a qualidade. Esse vocábulo
não pode ser reduzido a um conceito uni-
tário, posto que se refere a funções dos
objetos. Por exemplo, quando falamos em
roupa de qualidade, queremos dizer que
o tecido se submete às lavagens sem per-
der a cor e o corte; quando falamos em
qualidade de vida, pensamos em luga-
res seguros e prósperos; quando falamos
em escola de qualidade, nos referimos à
instituição que forme bons profissionais.
Mas se pararmos um pouco para refletir,
notaremos que, embutido nos demais, está
sempre presente o aspecto durabilida- Figura 8: Livros elaborados para crianças de menor faixa etária
possuem muitas ilustrações. Já para os públicos mais “crescidos”,
de. Assim, tem qualidade aquilo que não que possuem maior capacidade de abstração, as ilustrações vão
é efêmero: a roupa dura um bom tempo, rareando nos livros.

Literatura infanto-juvenil 59
a vida se alonga, o profissional permanece no emprego. Em
se tratando a literatura e, mais especificamente, da literatura
infanto-juvenil, a qualidade também se manifesta pelo quesito
“sem prazo de validade”.
Assim, texto de qualidade é aquele que permanece (na
nossa imaginação, memória, interesse). É a narrativa ficcional
que atravessa os tempos, as correntes literárias, os modismos.
É aquele texto que lemos quando crianças e depois voltamos
a ler para nossas crianças. Ou, então, aquele livro exposto
na livraria na seção infanto-juvenil que nos atrai, que nos
faz abandonar o livro de filosofia (ou qualquer outro) e com
entusiasmo que julgávamos não mais possuir, ler com sofre-
guidão, mergulhar nas páginas, acompanhar as aventuras das
personagens, sonhar acordado (como Madame Bovary). Já
passou por essa experiência?

Em outras palavras: é de qualidade o texto literário in-


fantil e juvenil que suspende a realidade para a ela retor-
nar; leva o leitor a procurar outros livros para ler; aguça a
vontade de reler a história; conduz à reflexão; interroga a
realidade; apresenta uma revisão do mundo; permite a in-
tertextualidade; desperta sensações; é plurissignificativo;
produz a catarse; possibilita a identificação com as perso-
nagens; apresenta certa dose de humor; educa (desperta
conteúdos que já existem de forma latente na mente do
leitor-criança/jovem) e não ensina (empurra informações
para o leitor-criança/jovem).

Isso nos leva às funções da literatura infanto-juvenil.

60 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
2.2 Funções
Quando se fala em funções da literatura infanto-juvenil,
não significa obliterar o caráter lúdico e estético, pois a infor-
mação literária é, antes de tudo, arte. Mas a arte pode ser doce
e útil.
Coutinho e Coutinho (2004, v. 6, p. 200, 2001) afirmam:

A literatura infantil é funcional. Não podemos, portanto,


estudá-la dissociada do seu leitor, que é a sua razão de ser.
[...] A literatura infantil é por essência desinteressada, no
sentido do ensino sistemático, embora deva ser educativa
e possa ser instrutiva. Seu fim é emocionar artisticamen-
te a criança, pelo sublime e pelo cômico, pelo patético,
pelo trágico, pelo pitoresco ou pela aventura e, ao mesmo
tempo, despertar-lhe a imaginação, aperfeiçoar-lhe a in-
teligência e aprimorar-lhe a sensibilidade. [...] lhe permitir
um contato compreensivo com o mundo circundante do
seu interesse. [...] O livro deve ser um deleite para a crian-
ça, fazendo germinar o amor pela leitura e a curiosidade
pelas coisas, através de estórias e seu desfecho. Ser fácil
sem ser banal, escolher termos compreensíveis, mas que
alarguem o vocabulário.

Isso vale também para a literatura juvenil. A seguir, apon-


taremos na recepção do texto literário para crianças e jovens a
validade de contribuir para a formação integral do ser huma-
no (função pedagógica), assumir um compromisso com a so-
ciedade (função social) e favorecer a moderação das emoções
(função terapêutica) – não deixando de satisfazer, contudo, as
necessidades estéticas do individuo.
Como o processo a leitura está intimamente associado à
escola, o aspecto pedagógico será o primeiro a ser tratado.

Literatura infanto-juvenil 61
2.2.1 Função pedagógica
A escola se preocupa em ampliar o circuito de conhecimen-
tos históricos, geográficos, sociais e humanos; aperfeiçoar a
pronúncia, a articulação, a dicção; enriquecer o vocabulário;
facilitar os meios da expressão falada e escrita; contribuir para
a difusão da literatura infanto-juvenil. Em sala de aula, o pro-
fessor explora o valor educacional das histórias, utilizando as
narrativas como pretexto para enfocar aspectos que considera
fundamentais na formação das crianças: o caráter, o raciocí-
nio, a imaginação, a criatividade, o senso crítico, a disciplina.
Acontece, porém, que muitas vezes esse professor, no afã de
transmitir valores e solidificar conhecimentos, transforma a lei-
tura de um texto literário em tarefa cansativa e desagradável.
E ao aluno que recusou fazer determinadas tarefas, esse pro-
fessor impinge, como castigo, ficar na biblioteca da escola. Ora,
o professor que age assim, incorre em duplo erro: primeiro,
transforma a leitura de narrativas literárias em exercício didá-
tico e, segundo, transforma a biblioteca da escola em local de
punição. Como reclamar, depois, se a criança não gosta de ler?
Geraldi (2001) que aborda a leitura na escola, defende que
o ensino de língua portuguesa deveria centrar-se na prática
de leitura de textos, na prática de produção de textos e na
prática de análise lingüística com o objetivo de ultrapassar a
artificialidade da linguagem apresentada em sala de aula e de
possibilitar o domínio oral e escrito da língua padrão.
Vamos conhecer melhor suas idéias?
Ele acusa a prática escolar de instituir uma atividade lin-
güística artificial, pois, “na escola não se escrevem textos,
produzem-se redações” que são “a simulação do uso da lín-
gua escrita”; “na escola não se lêem textos, fazem-se exer-
cícios de interpretação e análise de textos”, e isto é “simular
leituras”; afirma que a escola esquece que a criança utiliza as

62 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
formas lingüísticas enquanto procedimentos comunicativos e
não apenas cognitivos; aponta que a vivência da leitura na es-
cola ocorre como “busca de informações”, “estudo do texto”,
“pretexto” e “fruição do texto.” (GERALDI, 2001, p. 90).
Segundo o Autor, é possível a busca de informações em
textos literários, pois deles se extrai conhecimento a respeito
de ambientes e contextos de diversas épocas, de como as pes-
soas, por intermédio das personagens, pautavam suas normas
de conduta; o estudo do texto pode ser encarado como in-
terlocução com o texto no sentido de verificar, nas narrativas
ficcionais, os pontos de vista defendidos pelas personagens;
como pretexto, o texto literário serve de ponto de partida para
dramatizações, desenhos e produção de novos textos; a frui-
ção, contudo, tem sido deliberadamente excluída, havendo ur-
gência de recuperar o prazer de ler.

A esse mister se presta a biblioteca da escola. Muito


mais do que um espaço de estudo e pesquisa, a bibliote-
ca é, acima de tudo, um espaço de recriação do universo
simbólico, partícipe na construção estética. Isso acontece
quando a biblioteca mantém acesa a chama do interesse
da criança ou do adolescente para a leitura do texto lite-
rário. Na maioria das vezes, a Hora do Conto cumpre esse
papel de mediador entre a literatura e o leitor. Pautada so-
bretudo no encantamento de ler ou ouvir histórias, não se
furta a interferir positivamente no desenvolvimento da ex-
pressão escrita e oral. E aí está o X da questão: mesmo que
se escolarize a leitura literária, ela deve ser conduzida de
tal modo que permita a liberdade de inferências, amplie o
referencial de mundo do aluno, autorize a imagética, mes-
cle o real com o maravilhoso e realize uma ação cultural.

Literatura infanto-juvenil 63
A Hora do Conto
contribui para as prá-
ticas leitoras quando,
desvinculada de exer-
cícios pedagógicos,
permite à criança e ao
jovem expor seus pon-
tos de vista, questionar
o posicionamento das
personagens ficcionais,
propor novos cami-
nhos para o enredo da
história, sugerir novos
livros para ao acervo
da biblioteca. Mesmo
isenta de pedagogis-
mo, a Hora do Conto
pode ser considerada
um estímulo pedagó-
gico, uma vez que, ao
apresentar histórias va-
riadas, aponta para a
relatividade das coisas,
Figura 9: Hora do conto. as visões diferentes de
um mesmo fato ou circunstância, a presença marcante da al-
teridade em nossas vidas. É, portanto, formadora.
Mas a biblioteca da escola pode realizar, também, outras
atividades criativas. Cada texto literário, na sua especificidade,
abre infinitas possibilidades artísticas e pedagógicas de desper-
tar o interesse e a atenção da criança e do jovem para o livro.
Assim, como sugestões de atividades de incentivo à leitura li-
terária, listamos: dramatizar a história; confeccionar maquetes;
elaborar poesias e contos; agendar palestras com escritores;

64 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
criar shows de calouros; simular julgamentos dos personagens
ficcionais; ilustrar textos sem gravuras; fornecer finais diferen-
tes e inusitados às histórias; transformar a narrativa em jogo,
música, mímica; juntar diferentes enredos e transformá-los em
nova efabulação; e, o mais importante, permitir que a criança
e o jovem adentrem na biblioteca quando quiserem, que leiam
o quê e como quiserem. Esse último quesito, de fato, tem sido
o mais negligenciado. Muito embora atividades em grupo se-
jam prazerosas, não se pode esquecer que todos precisamos
daquele momento de intimidade com os livros, daquele instan-
te só nosso e das personagens ficcionais. Assim, é importante
conceder espaço e tempo para a leitura solitária, gostosa, frui-
dora, que permite a formação do ser humano.
Palo e Oliveira (1998, p. 13, 14, grifo das autoras) mostram
que, conquanto não se possa excluir a função pedagógica da
literatura infantil, uma vez que a mesma se apresenta pela “ca-
deia de mediadores que interceptam a relação livro-criança:
família, escola, biblioteca e o próprio mercado editorial”, todos
eles “agentes controladores de usos que dificultam à criança a
decisão e a escolha do que e como ler”, é um desafio que se
impõe “privilegiar o uso poético da informação” pois isso “é
também por em uso uma nova forma de pedagogia [...] atenta
a cada modulação que a leitura pode descobrir por entre o
traçado do texto”.

Assim, pode haver convivência entre o pedagógico e o


poético. Basta que se entenda que educar é também permi-
tir a liberdade de escolha, de interlocução com o texto, de
fruição estética, de desenvolvimento integral do ser humano.

Literatura infanto-juvenil 65
Para finalizar, cumpre, aqui, registrar as palavras de Coelho
(2000, p. 10, grifo da autora):

Literatura é arte e, como tal, as relações de aprendizagem


e vivência, que se estabelecem entre ela e o indivíduo,
são fundamentais para que este alcance sua formação in-
tegral (sua consciência do eu + o outro + mundo, em
harmonia dinâmica). Em relação a essa formação, pode-
se afirmar que a literatura é a mais importante das artes,
pois sua matéria é a palavra (o pensamento, as idéias, a
imaginação), exatamente aquilo que distingue ou define a
especificidade do humano. Além disso, sua eficácia como
instrumento de formação do ser está diretamente ligada
a uma das atividades básicas do indivíduo em sociedade:
a leitura.

A seguir, veremos que a literatura infanto-juvenil, como
um fenômeno de linguagem, está em consonância com o con-
texto social.

2.2.2 Função social


Se a literatura é uma instituição social, não poderia deixar
de existir a função social na literatura infanto-juvenil. Tal fun-
ção se manifesta pela poderosa ação mobilizadora da arte e
pela capacidade de a leitura imbricar as vivências do leitor com
o conteúdo social das obras. Isso implica dizer: como represen-
tação do mundo, os textos literários infanto-juvenis apresen-
tam modelos de comportamentos socialmente desejáveis, que
permitam a convivência e a tolerância com a alteridade.
Segundo Caldin (2003, p. 48) “o discurso literário infan-
til apresenta-se em uma linguagem carregada de ideologia. O
uso social desse discurso reforça a estrutura vigente e, por-

66 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
tanto, cabe à leitura preparar a criança para refletir sobre os
valores da sociedade”.
Ora, não há como escapar aos ditames do contexto social,
pois somos seres-no-mundo - tudo o que fazemos ou alme-
jamos tem relação com o outro, que divide conosco o mundo
da vida. Assim, se é inevitável a função social, que a literatura
infanto-juvenil dela se aproprie com a dignidade que merecem
as crianças e os jovens.
Essa dignidade só foi reconhecida com a ascensão da bur-
guesia, a laicização da literatura e com a instalação do Ro- 7 O Romantismo é um movimento cul-
mantismo7 em fins do século XVIII e início do século XIX. tural que extrapola o âmbito literário
e se configura como verdadeira revolu-
É nesse contexto que surge a literatura para crianças e ção cultural. Burguesia e Romantismo
jovens. se identificam; o mecenatismo desa-
parece, e surge o escritor profissional,
Pela primeira vez na história, preocupou-se em escrever que passa a produzir textos para classe
para o público infantil e juvenil. Muito embora a intenção de média. (MOISÉS, 1988).
oferecer lazer ficasse ofuscada pela intenção de reforçar os
valores sociais vigentes, a criança e o jovem se apropriaram
dessa nova escritura com um interesse redobrado, pois agora
não precisavam recorrer aos clássicos para saciar sua sede de
leitura. As práticas leitoras não ficavam circunscritas à escola
– a criança e o adolescente burguês liam em casa (no quarto
ou no jardim para deleite pessoal, na sala de estar para as vi-
sitas a quem os pais queriam impressionar). Assim, a leitura
era também um ato social. Nos saraus, era comum as crianças
declamarem poesia, dramatizarem uma narrativa, ou contarem
uma história que tinham lido.
Dessa feita, a burguesia interferiu positivamente no círcu-
lo familiar, concedendo um status à criança e ao jovem até
então relegados a um segundo plano, sem direito a falar em
público ou a partilhar da mesa de refeições do adulto. Como
contraponto e para fortalecer esse privilégio alcançado, crian-
ça e jovem se esmeravam nas suas leituras; queriam, a todo
custo, mostrar aos adultos que sabiam ler, que entendiam o
que liam, que memorizam o lido – enfim, fazer boa figura. Por

Literatura infanto-juvenil 67
outro lado, era de bom tom presentear os pequenos com livros
– o que disparou o mercado editorial e incentivou escritores a
se voltarem para esse público. Isso tudo aconteceu no “velho
mundo”, na Europa.

O que dizer do Brasil? Introduzido aproximadamente a


partir de 1830, no período de transição política, o Roman-
tismo marcou o espírito de uma época. Foi uma literatura
de natureza religiosa (em oposição aos deuses pagãos re-
tratados na literatura clássica), voltada à natureza (como
não tivemos a Idade Média, exaltou-se o indígena), de dú-
vida (ceticismo, preocupação em atrelar as necessidades
materiais com as espirituais) e profundamente social (vol-
tada ao abolicionismo, ao ideal republicano, ao sentimento
patriótico).

Influenciados, sobretudo, pela literatura francesa, os adap-


tadores brasileiros tem um grande filão e, então, surgem nas
livrarias O homem da barba azul e O gato de botas, como
leitura para crianças; para os jovens, Os três mosqueteiros,
de Alexandre Dumas e Cinco semanas em um balão, de Júlio
Verne. A educação oitocentista no Brasil admitia essa literatu-
ra de caráter universal, mas se esmerava em apresentar uma
literatura moralista, mesclada de situações exemplares para as
crianças e os jovens. Surgem, então, alguns títulos publicados
no Brasil: Modelos para os meninos ou rasgos de humanida-
de, piedade filial e de amor fraterno; Obra divertida e moral;
As manhãs da avó: leitura para a infância. Assim, contos de
fadas, contos de aventuras e contos formadores de caráter cir-
culavam na elite das famílias brasileiras: pais e avós tomavam
para si a missão de contar histórias para as crianças com o
intuito de deleitar e incutir valores morais, pois entendiam que

68 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
apenas a escola não daria conta de formar homens e mulheres
de bem, virtuosos, sem futilidades, íntegros (MAUAD, 1999).
Desenvolvendo-se plenamente na Pós-Modernidade, épo-
ca da ditadura militar, a literatura infanto-juvenil brasileira
ocupou-se em apresentar textos que serviam como denúncia
social. Temos, assim, escritores engajados que, para fugir da
censura imposta à literatura direcionada a adultos, descorti-
nam na literatura para crianças e jovens uma oportunidade
ímpar de mostrar a realidade brasileira, suas mazelas e dispa-
ridades sociais.
Tais disparidades não foram prerrogativa de uma época ne-
gra de nossa história. Em pleno século XXI, observa-se ainda
que, muito embora o direito à leitura seja democraticamente
estendido a crianças e jovens de todas as classes sociais, a ver-
dade é que o preço do livro, o acervo defasado das bibliote-
cas de escolas públicas e a falta de incentivo de familiares e
professores são fatores que impedem o necessário processo
socializador, pois se configuram como obstáculos à reflexão e
contestação da ideologia dominante.
Silva (1998, p. 26, 27) afirma:
Ainda que muitas escolas brasileiras explicitem objeti-
vos educacionais voltados à formação do cidadão, são
raras aquelas que organizam e implementam ações dire-
cionadas ao aguçamento da criticidade dos estudantes.
Cumpre lembrar que cidadania e criticidade são termos
indicotomizáveis, a menos que o primeiro termo (cidada-
nia) seja pensado ao estilo burguês, como sinônimo de
obediência e docilidade quanto à forma prevalecente de
organização das relações sociais. [...] Daí a necessidade de
uma discussão coletiva (isto é, do coletivo escolar) a res-
peito da política e da filosofia que embasam/sustentam as
ações da escola, principalmente no que se refere ao tipo
de cidadão que ela deseja promover via atividades ensino-
aprendizagem e, dentre elas, as atividades de leitura.

Literatura infanto-juvenil 69
Destarte, à biblioteca da escola impõe-se a necessidade
de contemplar títulos literários infanto-juvenis que propi-
ciem a emancipação da leitura crítica. Para isso, o respon-
sável pela seleção e desenvolvimento de coleções precisa
fazer constantes visitas às livrarias, verificar o que se está
produzindo no momento em termos de textos questiona-
dores e instigantes. Não é o caso de se abolir o lúdico, o
maravilhoso, o fantástico. É o caso de, pelas vias do lúdico,
do maravilhoso, do fantástico, oportunizar a análise da so-
ciedade contemporânea de uma forma prazerosa e indolor.
Ao assim fazer, cumpre a biblioteca da escola seu papel
social de disseminadora da literatura infanto-juvenil e esta
última, seu papel social de desmascaramento da ideologia
dominante.

Entretanto, a literatura que interessa à criança e ao jovem


desempenha ainda um outro papel: o de provocar e apaziguar
as emoções, sendo, assim, benfazeja. É o que veremos na se-
quência.

2.2.3 Função terapêutica


Quando se fala em função terapêutica da literatura infan-
to-juvenil, admite-se, de imediato, que as palavras curam. Por
quê? Porque o senso comum tem a terapia como um trata-
mento, uma prevenção de moléstias. De fato, se procurarmos
nos dicionários gerais, encontraremos a palavra terapia como
sinônimo de terapêutica, e esta última, como parte da medi-
cina que se ocupa em curar as doenças. Entretanto, a etimo-
logia do vocábulo terapia indica que seu significado primário

70 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
é cuidado com o ser humano. Dessa feita, quando deslocamos
o termo do sentido médico para o sentido literário, queremos
dizer que a narrativa, como um espaço poético, carrega em si
o germe desse cuidado, manifestado por componentes que, no
momento mesmo da leitura, são ativados no receptor do texto
literário: a catarse, a identificação e a introspecção.

Entende-se a catarse como moderação dos humores


corporais, das emoções e paixões, do prazer estético, ou
do estranho à essência do ser – enfim, uma purgação. A
identificação se configura como a livre (e inconsciente)
apropriação de atributos dos seres ficcionais, sejam estes
personagens humanas ou antropomorfizadas. A introspec-
ção, por seu turno, é um processo mental consciente, uma
auto-observação, um exame das sensações, pensamentos e
desejos, uma percepção interna ativada pelos estímulos do
texto literário.

Segundo Caldin (2001), Aristóteles analisou a liberação da


emoção resultante da tragédia – a catarse, retirando tal termo
da medicina, mas utilizando-o com referência ao fenômeno
estético; o filósofo advogava que o espetáculo trágico teria o
poder de transformar o medo e a piedade em prazer estético,
pois o excitamento das emoções e seu posterior apaziguamen-
to, proporcionaria um alívio prazeroso, como um purgante.
Por extensão, credita-se a qualquer representação artística,
entre elas, a literatura, a virtude de ser sedativa e curativa.
No tocante à identificação, fator de destaque na teoria
freudiana do desenvolvimento da personalidade humana, é
mister destacar a presença da personagem ficcional, pois será
Figura 10: Aristóteles (384 a.C - 322 a.C).

Literatura infanto-juvenil 71
por meio dela que o leitor vivenciará situações improváveis na
vida real mas perfeitamente viáveis no imaginário. Subsidiária
da catarse, a identificação também é prazerosa e benfazeja. E,
acima de tudo, isenta dos perigos que as aventuras reais apre-
sentam – por esse motivo, sedutora.
Quanto à introspecção, podemos dizer que ao permitir
uma auto-análise de atitudes, o texto literário toma feições
de superego8, uma vez que, além de censurar determinados
comportamentos antisociais, permite, ainda, certa margem de
tolerância com o próximo. Isso é necessário para a convivência
pacífica seja no lar, seja na escola.
Enfim, o alcance terapêutico da literatura (e, nesse caso, da
literatura infanto-juvenil) é imenso. Justamente por isso, me-
rece um estudo profundo, o que tem sido efetuado por vários
pesquisadores, ao longo dos anos.
A leitura terapêutica, a partir do século XX, recebeu o
8 Na psicologia freudiana o ego é o eu nome de biblioterapia, nesse livro defendida como um cuidado
consciente, ocupando um terreno in- com o ser mediante a leitura, narração ou dramatização de um
termediário, cercado pelas exigências
indecorosas do id e a disciplina repres- texto literário. Houve tentativas de utilizar o termo literapia,
siva do superego. (BLACKBURN, 1997, para dar ênfase no ficcional como terapêutico, mas tal termo
p. 112).
não vingou. Permanece a expressão biblioterapia, consagrada
pelo uso.

A biblioterapia preocupa-se em mobilizar a atividade


dos leitores de modo a favorecer o surgimento das emo-
ções e a produção ficcional a partir dessas emoções, permi-
tir livre curso à imaginação, e proporcionar a auto-análise.

Medite um pouco sobre isso. Já leu algum livro que ali-


viou seu coração? Que, como um bálsamo, confortou-o? Em
tempo: não estamos falando de literatura de auto-ajuda, veja
bem! Referimo-nos àquele romance, poema, ou conto que o
tocou profundamente, que atenuou o peso opressivo das an-

72 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
siedades da vida, proporcionou vivenciar situações insólitas
no universo ficcional, permitiu uma reflexão dos problemas.
Enfim: que fez o papel de psicólogo: ouviu-o sem dizer nada,
sem reprimendas ou cobranças. E de graça!
Pois bem. A literatura infanto-juvenil tem esse poder tam-
bém. A ficção, linguagem metafórica, intemporalidade, uni-
versalidade, literariedade, ativam os componentes terapêuticos
latentes na narrativa.
Não é o caso de dizer-se que o escritor, deliberadamente,
dotou o texto de propriedades medicinais. É o caráter ímpar da
literatura, a “fala falante”, que possibilita a retomada do texto
com essa propriedade. De fato, são os fatores estruturantes
da matéria literária (o narrador, o foco narrativo, a história,
a efabulação, o gênero narrativo, as personagens, o espaço,
o tempo, o discurso narrativo, o leitor) que permitem o uso Compreenda em mais detalhes os
terapêutico do texto literário. fatores estruturantes da matéria li-
terária: Narrador é “a voz que fala,
Como a biblioteca da escola pode aproveitar a capacidade enunciando a efabulação”; foco
terapêutica do livro infanto-juvenil? Transformando a Hora narrativo é “o ângulo ou a perspec-
tiva de visão, escolhida pelo narra-
do Conto em atividade biblioterapêutica. Caldin (2005, p. 22) dor para ver os fatos e relatá-los”;
lista alguns cuidados que o bibliotecário deve observar: história é “a intriga, argumento,
enredo, situação problemática,
assunto”; efabulação é “a trama
a) proporcionar a catarse (mexer com as emoções de de- da ação ou dos acontecimentos,
seqüência dos fatos, peripécias”;
pois moderá-las, causar alívio, purificá-las – e para isso o gênero narrativo pode assumir
o mais indicado é valer-se dos contos de fadas, pois os “três formas distintas: conto, no-
mesmos contêm o lobo, o ogro, o gigante, a bruxa, a vela e romance”; personagens são
“aqueles que vivem a ação”, espaço
fada, o anel mágico); é “o ambiente, cenário, paisagem,
local”; tempo é o “período de dura-
b) produzir o riso, que é terapêutico (aproveitar as histórias ção da situação narrada”; discurso
modernas, que são engraçadas); narrativo é o “elemento concreti-
zador da invenção literária; e leitor
c) possibilitar que haja a identificação das crianças com é “o provável destinatário, visa-
do pela comunicação.” (COELHO,
as personagens (por esse motivo deve-se diversificar as 2000, p. 66, 67).
histórias, para que, de alguma forma, se atinja a todas);

Literatura infanto-juvenil 73
d) permitir espaço para a projeção, a introjeção e a intros-
pecção (o diálogo posterior à historia é fundamental
para que as crianças expulsem de si qualidades e senti-
mentos indesejados e projetem-nos nas personagens, e
que assimilem, introjetem qualidades e sentimentos das
personagens que admiram e se identificam, além de ad-
quirirem a capacidade de perceber o que se passa em
seu interior, mesmo que de forma difusa).
e) Os bibliotecários deverão, também, satisfazer as neces-
sidades estéticas das crianças com textos de qualidade,
de bons autores (não usar narrativas pobres, com uso
excessivo de diminutivos e enredo frasco – as crianças
são inteligentes e querem ser tratadas com dignidade).
Deverão, ainda, fortalecer a relação de amizade bibliote-
cário/crianças (o afeto é terapêutico – o toque, o abra-
ço, a palavra de consolo, a cumplicidade do olhar, os
gestos meigos, a fala mansa, o sorriso gentil – tudo isso
faz parte de uma sessão de contos em que, se a história
é a estrela principal, os atores envolvidos – o bibliotecá-
rio e as crianças não são menos importantes e merecem
respeito, carinho e atenção).

Cumpre lembrar que os componentes biblioterapêuticos


(catarse, identificação, introspecção) não necessariamente
atuam no receptor do texto literário de forma concomitan-
te ou sucedânea. Alguns textos, são, por natureza, catárticos,
isto é, o foco narrativo, a história e a efabulação possibilitam
a criação e a posterior moderação das emoções; outros, pelas
personagens, espaço e tempo, permitem a identificação; ou-
tros, ainda, pelo discurso narrativo, conduzem à introspecção.
Caldin (2004) explicita a aplicabilidade de textos literários
para crianças, apresentando as histórias Seu Feliz, A casa
sonolenta, Lúcia-já-vou-indo, Chapeuzinho Vermelho, Cha-

74 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
peuzinho Amarelo e Maria-vai-com-as-outras. Analisa cada
história e disseca os componentes terapêuticos de cada uma.
Oferece, ainda, alguns lembretes para bibliotecários e profes-
sores que desejam realizar atividades de biblioterapia. Suge-
rimos que você leia esse artigo, pois, com tal embasamento
teórico, terá condições de analisar outras narrativas infanto-
juvenis pelo viés da função terapêutica, bem como executar
atividades com esse objetivo.
Um estudo detalhado da leitura de textos literários infanto-
juvenis você encontrará em Caldin (2009), em que se apre-
senta vários projetos de leitura como terapia. Nessa pesquisa,
você observará a estreita ligação da catarse com a música; o
valor das lembranças e das expectativas na leitura como dis-
ciplina curativa; o bem-estar proporcionado pela identificação
com as personagens ficcionais; a possibilidade de, pela refle-
xão, extrair-se o sentido de uma experiência vivida; o papel
das emoções e da imaginação como coadjuvantes no processo
biblioterapêutico; a intercorporeidade, a intersubjetividade, e
o descentramento, mediados pelo diálogo, como transforma-
dores da leitura em ato terapêutico. Além disso, a Autora faz
uma exaustiva revisão de literatura sobre a catarse, a identi-
ficação e a introspecção, com exemplos esclarecedores. Fica
como sugestão de leitura.
Esperamos que você tenha apreciado essa seção sobre as
funções da literatura infanto-juvenil. Dando continuidade à
nossa temática, descreveremos o histórico dessa literatura .

2.3 Histórico
Não se pretende apresentar um histórico exaustivo da li-
teratura infanto-juvenil, pois existem obras canônicas a esse
respeito, entre elas, Panorama histórico da literatura infan-
til/juvenil, 1991, de Nelly Novaes Coelho, especialista nessa

Literatura infanto-juvenil 75
temática. Assim, baseado nesse livro, extraímos um resumo
da trajetória da literatura infanto-juvenil pelos caminhos do
tempo, desde antes de Cristo até o século XX.
Temos de voltar ao início século V a. C., às fontes orientais,
mais tarde assimiladas pelo ocidente em forma de adaptações:
a) Calila e Dimna, nome dos chacais, personagens princi-
pais;
b) Hitopadesa, coletânea de caráter exemplar;
c) Sendebar, 26 narrativas que mostram imagens negativas
da mulher;
d) As mil e uma noites, compilação de contos licenciosos,
fantásticos, mágicos;
e) Barlaam e Josafat, novela mística e moralizante, uma
versão cristianizada da lenda de Buda.

Essa narrativa primordial se preocupava em apresen-


tar a dualidade bom/mau. O fabulário indiano, persa, sírio,
árabe, por meio de metáforas, tentava explicar o real em
forma de símbolos.

Na Idade Média, com início no Ocidente europeu, entre os


séculos IX e X, surgem manuscritos e narrativas oralizadas que
fundem o lastro oriental e o ocidental: é uma literatura didáti-
ca, moralizante, divertida, agressiva, maravilhosa. Destacam-se:

a) Isopets, O Romance da raposa, com base na fábulas la-


tinas de Fedro (Roma), que traduziu as fábulas de Esopo
(Grécia), são narrativas em verso, paródia da comédia
humana, relatos moralizantes mais tarde destinados às
escolas;

76 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
b) Disciplina Clericalis, coletânea retirada de contos
orientais, conselhos morais e humorísticos de um pai a
seu filho;
c) O Livro das Maravilhas, novela enciclopédica: mostra
um homem caminhando pelo mundo e maravilhando-se
com tudo o que vê e ouve, e o Livro dos Animais (bes-
tiário, fábulas baseadas em Calila e Dimna e no Roman-
ce da raposa);
d) O conde Lucanor, momento decisivo da prosa literária
espanhola, narrativa novelesca, estilo contido e discipli-
nado, diálogo indireto entre o escudeiro e o conde;
e) Decameron, de Boccacio, Itália, expressão realista da
comédia humana, estilo sensual, irreverente, diálogos
diretos;
f) O Livro dos Exemplos, Espanha, 300 contos de caráter
moralista, sentencioso, doutrinal;
g) Livro dos Gatos, sátira contra os ricos tiranos, ladrões
e opressores do povo, contra os vícios do clero e dos
alcaides;
h) O Livro de Esopo, versão portuguesa, cristianizada, das
fábulas de Esopo;
i) Horto do Esposo, livro de espiritualidade, mas também
com histórias divertidas dos feitos antigos e das faça-
nhas dos nobres e das coisas maravilhosas do mundo;
No folclore nordestino temos a me-
j) A novela de cavalaria, expressão do ocidente dito cris- diação infantil das novelas de cava-
tão, tem início com as canções de gesta – narrativas em laria que ainda circulam nas feiras
de rua: História da Princesa Maga-
versos que exaltam os feitos guerreiros de Carlos Mag- lona, História da Donzela Teodo-
no, mais tarde escritas em prosa; apresentam o nasci- ra, História da Imperatriz Porcina,
praticamente desconhecidas no sul
mento das fadas, a idealização da mulher, o amor cortês, brasileiro. Pesquise na internet que
ideais espiritualizantes e guerreiros. você encontrará esses relatos!

Literatura infanto-juvenil 77
Na Idade Média permanecem os elementos dos contos
orientais, porém tais elementos são adaptados ao espírito
ocidental, preocupado com os valores ideológicos da reli-
gião da “civilização cristã”, que pretendia diminuir a influ-
ência da “civilização pagã.”

O século XVI é do Renascimento (retorno à Antiguidade


Clássica greco-romana, presença significativa do livro no pro-
cesso cultural, da arte liberal e humanista, culta e popular).
Desse período, temos:
a) Noites Agradáveis, de Gianfrancesco Straparola da Ca-
ravaggio; coletânea de narrativas orais das províncias
italianas, de origem oriental, de fundo folclórico, com
elementos fantásticos e maravilhosos dos contos popu-
lares;
b) Contos de Trancoso, de Gonçalo Fernandes Trancoso,
contos recolhidos da tradição oral de Portugal e das
obras de Boccaccio; temas familiares e morais dos lares
burgueses; narrativas cheias de humor;
c) Conto dos Contos ou Pentameron, de Giambatista Ba-
sile; narrativas escritas dos contos de fadas que circu-
lavam entre os napolitanos, de fundo indo-germânico
e saxônico, fundidas com reminiscências das novelas de
cavalaria;
d) Astúcias Sutilíssimas de Bertoldo, de Giulio Cesare
Croce, aventuras do rústico e jovial Bertoldo na corte
do Rei dos longobardos; se popularizaram em Portugal e
passaram para o Brasil;

78 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
e) Pedro Malasartes, de origem ibérica; a figura desse he-
rói sem caráter, que “pelas malas artes” burla as adversi-
dades, pertence ao folclore brasileiro.

O Renascimento, voltado ao homem liberal, mescla o


pensamento “cristão” com o “pagão”. Assim, as narrativas
são exemplares, mas permeadas de humor. O desenvol-
vimento da imprensa faz dos livros, em que aparecem o
feérico, o maravilhoso e o cotidiano, um instrumento do
homem civilizado.

O Século XVII é domínio do Absolutismo e Classicismo. Du-


rante a monarquia absolutista de Luís XIV, o “Rei Sol” surge na
França a literatura para crianças:
a) As Fábulas, 1668, de Jean La Fontaine, escritas inicial-
mente para adultos; são poemas narrativos baseados
nos gregos, latinos, franceses, na Bíblia, nos contos po-
pulares e nas narrativas medievais e renascentistas; na
verdade, uma denúncia à corte francesa;
b) Histoires ou Contes du Temps Passé, avec les Moralités,
Contes de ma Mère l’Oye [Contos da Mãe Gansa], 1697,
de Charles Perrault; literatura popular do folclore fran-
cês; narrativa em prosa, com 8 contos: A Bela Ador-
mecida no Bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba
Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira
ou Cinderela, Henrique, o Topetudo, O Pequeno Pole-
gar; posteriormente inclui: A Pele de Asno, Os Desejos
Ridículos e Grisélidis;
c) Contos de Fadas; Novos Contos de Fadas; As Fadas
em Moda; Ilustres Fadas, etc. (entre 1696/1698, Mme.

Literatura infanto-juvenil 79
D’Aulnoy publica 8 volumes de contos maravilhosos,
com a moda das fadas: O pássaro azul; A princesa dos
cabelos de ouro; O ramo de ouro, e outras narrativas);
d) As aventuras de Telêmaco, 1699, de Fénelon, é uma
novela pedagógica em 18 livros, destinados a educar o
Duque de Borgonha, segundo herdeiro de Luís XIV.; Fé-
nelon escreveu também: Tratado de Educação para Me-
ninas; Didática Magna; Fábulas; Diálogos dos Mortos;

Esse é o chamado “século de ouro” da literatura infan-


til, pois despontam os contos maravilhosos. Assim, animais
falantes e princesas em situações de risco salvas por va-
lentes cavaleiros circulam nas narrativas escritas. Contudo,
a moralidade está presente tanto nas fábulas quanto nos
contos de fadas e exprimem as tensões sociais na família e
na sociedade.

No século XVIII, época do Pré-Romantismo, nasce o roman-


ce, na Inglaterra, com o ideal da sociedade burguesa. Temos:
a) Robinson Crusoé , 1719, de Daniel Defoe; literatura de
viagens e naufrágios tão ao gosto da época, é, na verda-
de, um protesto contra a civilização, um elogio ao “bom
selvagem”, à capacidade humana de adaptar-se às situ-
ações difíceis;
b) Viagens de Gulliver , 1726, de Jonathan Swift, irlandês;
sátira ao regime opressor da Inglaterra; as modernas
traduções o transformaram em narrativas de viagens
para crianças e jovens.

80 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
A literatura, no espírito do Iluminismo, comprometeu-se
com a Pedagogia e Ética, dentro dos valores da burguesia
em ascensão. Aparece a preocupação com a iniciação cien-
tífica. As narrativas de viagens e descobertas de novas ter-
ras exaltam a ação do jovem sobre o meio, a vitória sobre as
adversidades, a supremacia da tecnologia sobre a natureza.

Entrando no século XIX, o Romantismo e o Realismo soli-


dificam o romance e a novela; foi o século da descoberta da
criança como merecedora de cuidados especiais, e da renova-
ção das Artes. Aparecem:
a) Contos de Fadas para Crianças e Adultos, entre 1812
e 1822, dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos,
folcloristas, que registram as narrativas antigas, lendas
e sagas germânicas, com o objetivo de mostrar o espírito
do povo alemão; são traduzidos em todas as línguas os
contos: Frederico e Catarina; As aventuras do Irmão
Folgazão; A Donzela que não tinha Mãos; O Alfaiate
Valente; Os Sete Corvos; A Casa do Bosque; O Rato, o
Pássaro e a Salsicha; O Caçador Habilitado; O Prínci-
pe a Princesa; Margarida, a Espertalhona – todos estes
de origem germânica, mas os irmãos Grimm coletaram
também relatos de outras procedências, já publicados por
Perrault;
b) Contos de Andersen, 168 contos publicados entre 1835
e 1872, pelo dinamarquês Hans Christian Andersen; con-
tos dotados de sensibilidade, ternura e nostalgia; mistu-
ra de crueldade com o maravilhoso; mostram a pobreza
e a miséria do seu tempo; falam a linguagem do coração
e não do intelecto. Principais contos: O Patinho Feio; A

Literatura infanto-juvenil 81
Rainha da Neve; O Rouxinol e o Imperador da China;
O Soldadinho de Chumbo; A Pastora e o Limpador de
Chaminés; A Pequena Vendedora de Fósforos; Pequeti-
ta; Os Cisnes Selvagens; A Roupa Nova do Imperador;
João e Maria A Sereiazinha, etc.;
c) Alice no País das Maravilhas, publicado em 1865, de
Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodg-
son; marca o início do realismo maravilhoso, apresen-
tando o nonsense, o sem-sentido, o absurdo, a graça e
o ludismo; o autor publicou também Alice através do
Espelho, ambos escritos especialmente para crianças;
d) Pinoquio, de Collodi, pseudônimo de Carlo Lorenzini,
inicialmente publicado em forma de folhetins com o
nome A Estória de um Boneco; foi publicado em forma
de livro em 1883, com o título As Aventuras de Pinó-
quio; foi traduzido no Brasil (em 1933), por Monteiro
Lobato;
e) Mowgli, o Menino Lobo, publicado em 1895, de Ru-
dyard Kipling, poeta anglo-indiano; mostra a cruelda-
de da vida selvagem e os valores do homem civilizado;
traduzido em todas as línguas ocidentais e em chinês,
árabe, japonês, persa e dialetos indianos;
f) Aventuras de Oliver Twist (1837) e David Copperfield
(1849), de Charles Dickens, romancista inglês; obras de-
dicadas aos pobres e às crianças exploradas pela Lon-
dres industrial; mais tarde, divulgadas pelo cinema;
g) Novos Contos de Fadas (1856); As Meninas Exempla-
res (1856); As Férias (1857); Memórias de um Burro
(1859); Os Desastres de Sofia (1859); João que Ri, João
que Chora (1865); Um Bom Diabrete (1863) e outros,
da Condessa de Seguir; obras impregnadas do humanis-

82 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
mo, com vistas a despertar a generosidade, a piedade, o
afeto e o paternalismo em relação aos fracos e necessi-
tados; o espaço das narrativas é o cotidiano da família,
com ênfase na mentalidade patriarcal e classista da So-
ciedade tradicional do século XIX; de estilo agradável ao
público infantil;
h) Coração (1886), de Edmundo de Amicis; livro de leituras
para a formação da criança italiana; em forma de diá-
rio, a personagem principal registra as qualidades e os
defeitos dos colegas de colégio, num estilo maniqueísta.
i) Os Três Mosqueteiros, A Rainha Margot, O Conde de
Montecristo, de Alexandre Dumas (1803-1870); aventu-
ras que exaltam o jovem romântico, heróico, que su-
planta as adversidades com galhardia.
j) Cinco Semanas em um Balão (1861), Viagem ao Cen-
tro da Terra (1864), Da Terra à Lua (1865), Os Filhos
do Capitão Grant (1867), Vinte Mil Léguas Submarinas
(1869), A Volta ao Mundo em Oitenta Dias (1872), entre
outros, de Júlio Verne; literatura de ficção, que encanta-
va a infância e a juventude do século XIX, já apontando
para os poderes do homem na utilização da máquina.

Este é conhecido como o século de ouro do romance e


da novela, cujas narrativas atendem ao gosto da elite e do
povo. A criança é entendida como um ser puro, e o jovem,
como um ser sensível. Assim, a literatura a eles voltada,
mesclava o maravilhoso com a aventura e a exploração
científica, mas com os valores ideológicos da época, com
o intuito de formar o adulto para a sociedade humanista e
progressista.

Literatura infanto-juvenil 83
No século XX, continua o gosto pela aventura, pelo poder
do homem em suplantar os desafios da natureza e pelo coti-
diano familiar. Aparece uma literatura voltada à menina e à
jovem, de cunho humanitário. A psicanálise confere status aos
contos de fadas, que continuam a ser traduzidos e adaptados
em todo o mundo. Surgem:
a) Peter Pan, de James M. Barrie, inicialmente apresentado
no conto publicado em 1902 O Pequeno Pássaro Bran-
co, foi transformado, em 1904, em peça teatral Peter
Pan, o Menino que não queria crescer; em 1911 o autor
escreve o conto Peter Pan e Wendy;
b) Pollyana (1913), de Eleanor H. Porter, romancista norte-
americana; aponta os comportamentos generoso e ego-
ísta, os desequilíbrios e injustiças sociais, a vitória do
bem, dentro da linha do realismo humanitário;
c) Tarzã dos Macacos, de Edgard Rice Burroughs, nove-
lista norte-americano; publicado a partir de 1914 em
forma de livro, depois de ser apresentado como novela;
transformado em 1929 em história em quadrinhos; pos-
teriormente divulgado pelo cinema; mostra a nostalgia
do homem civilizado frente à natureza;
d) Contos da Carochinha (1914); Contos Tradicionais do
Povo Português (1915); Contos Populares Recolhidos da
Tradição Oral do Alentejo (1919); coletânea publicada
em Portugal; contos de fadas, contos exemplares, joco-
sos, satíricos, fábulas, anedotas, etc.;
e) Persiste a publicação de narrativas edificantes ou exem-
plares: Tesouro do menino; Contos filosóficos; Leituras
Juvenis e Morais, conforme consta de Achegas para
uma Bibliografia Infantil, de 1928, por Henrique Mar-
ques Júnior.

84 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Preocupação com a felicidade pessoal, o mito do ho-
mem todo-poderoso, nostalgia da infância, pedagogia,
problemas sociais, marcam a literatura infanto-juvenil
desse período. Mas a aprovação psicanalítica dos contos
de fadas, depois da Segunda Guerra Mundial, contribuiu
para o revivamento do interesse por esse tipo de narrativa.

No século XXI temos uma mescla de todos os gêneros: con-


tos de fadas, fábulas, aventuras, contos de animais, histórias de
fantasmas, suspense policial, anedotas. Proliferam histórias de
dinossauros, livros com multimídia, e desponta com força total
o diário. Não temos, ainda, teoria registrada sobre a literatura
infanto-juvenil nesse século. Assim, apresentamos, a seguir, os
livros mais vendidos em 2009, conforme dados cedidos pela
Livraria Saraiva do Shopping Beira Mar de Florianópolis:

a) Querido Diário Otário 1: é melhor fingir que isso nunca


aconteceu;
b) Formaturas infernais;
c) Querido Diário Otário II: tem um fantasma na minha
calça;
d) O ladrão de Raios;
e) Mini biblioteca de Contos de Fadas;
f) Proibido para Maiores: as melhores piadas para crianças;
g) Diário de um Banana;
h) Poderosa: diário de uma garota que tinha o mundo na
mão (v.1);
i) Querido Diário Otário 3: eu sou a princesa ou o sapo?

Literatura infanto-juvenil 85
j) O livro perigoso para Garotos;
k) Fábulas;
l) Os contos de Beedle, o Bardo;
m) Barbie Music Player;
n) Galope! Por que toda essa comoção? Animais em ação;
o) O Meu Pé de Laranja Lima (117ª. ed. Nova ortografia);
p) Garotas da Rua Beacon 1: piores inimigas/melhores ami-
gas;
q) Diário de um Banana: Rodrick é o cara;
r) Madagascar 2: a grande escapada – o livro do filme;
s) Poderosa: diário de uma garota que tinha o mundo na
mão (v. 4);
t) Querido Diário Otário 5: os adultos podem virar gente?
u) Como ser uma princesa;
v) Alfabeto & Palavrinhas;
w) Uma surpresa para Leitão;
x) Coração de Tinta;
y) Judy Moody;
z) Mundo encantado das fadas: um mundo mágico em
pop-up com peças encantadas descartáveis!

A literatura infanto-juvenil contemporânea funde as


narrativas antigas com as novas temáticas. Assim, o rea-
lismo, o maravilhoso, o satírico, a intriga policial, o sobre-
natural, os livros de imagens e o folclore disputam o gosto
das crianças e dos jovens.

86 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
2.4 A Literatura infanto-juvenil no Brasil
Coelho (1991; 2000; 2006) divide a literatura infanto-ju-
venil no Brasil em três períodos: pré-lobatiano, lobatiano e
pós-lobatiano. Tal se dá pela importância de Monteiro Lobato
como escritor, adaptador e editor de textos literários que inte-
ressam às crianças e aos jovens. Utilizaremos o mesmo critério
da Autora.
No período pré-lobatino (1808 -1919), são escassas as pu-
blicações:
a) Traduções e adaptações de livros estrangeiros;
b) Livros didáticos, com leituras escolares permeadas de
valores ideológicos: nacionalismo, intelectualismo, tra-
dicionalismo cultural, moralismo e religiosidade;
c) Contos Infantis, em 1886, de Júlia Lopes de Almeida,
com sessenta narrativas em verso e prosa, destina-
das a divertir e instruir as crianças; em 1917 publica
Era uma Vez, retomando o maravilhoso após ter escrito,
em 1907, Histórias de Nossa Terra, de cunho naciona-
lizante e didático;
d) Contos da Carochinha, em 1896, coletânea brasilei-
ra organizada por Figueiredo Pimentel; adaptação em
linguagem brasileira dos livros portugueses e tradução
de contos estrangeiros; publicada pela livraria Quares-
ma, com 61 contos populares; posteriormente a livra-
ria publicou também: Histórias da Avozinha, Histórias
da Baratinha, Contos de fadas, Contos do Tio Alberto,
Histórias do Arco-da-Velha;
e) O Tico-Tico, em 1905; com a valorização da imagem no
processo de aprendizagem, surge o primeiro jornal in-

Literatura infanto-juvenil 87
fantil em quadrinhos editado no Brasil, que subsiste até
1958;
f) Era Uma Vez, 1908, de Viriato Correa, coletânea de
contos folclóricos e maravilhosos; recriação de histórias
brasileiras e européias;
g) Série Biblioteca Infantil, iniciada em 1915, por Arnaldo
de Oliveira Barreto; bem ilustrada.

Antes de Monteiro Lobato, as narrativas infanto-juve-


nis, eram relatos orais do folclore europeu, que, registra-
das nas adaptações para o público brasileiro, se configurou
como uma literatura moralizante, didática e informativa.

O Período lobatiano (1920-1969), é fecundo. Monteiro Lo-


bato é considerado o divisor de águas da literatura infantil
brasileira. Empenhado na conquista da brasilidade, publica li-
vros para crianças com uma roupagem nova, linguagem sa-
borosa, na linha do realismo mágico que inaugurou. Sua obra
se constitui de textos originais, adaptações e traduções. Ori-
ginais: A Menina do Narizinho Arrebitado (1920); Narizinho
Arrebitado (1921); O Saci (1921); Fábulas (1922); O Marquês
de Rabicó (1922); A Caçada da Onça (1924); A Cara de Coru-
ja (1927); Aventuras do Príncipe (1927); Noivado do Narizi-
nho (1927); O Circo de Cavalinho (1927); A Pena de Papagaio
(1930); O Pó de Pirlimpimpim (1930); As Reinações de Na-
rizinho (1931); Viagem ao Céu (1932); As Caçadas de Pedri-
nho (1933); Emília no País da Gramática (1933); Geografia
de Dona Benta (1935); Memórias da Emília (1936); O Poço
do Visconde (1937); O Pica-pau Amarelo (1939); A chave do
Tamanho (1942).

88 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
A literatura infantil brasileira nas décadas de 1930 e 1940
foi influenciada pela Criação do Ministério da Educação e Saú-
de Pública (18/11/1930), pela Constituição de 1937 (que lançou
as bases democráticas da educação nacional), e pela fundação
da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato (em São Paulo, 1936).
Além dos livros de Lobato e dos livros clássicos, esse período é
marcado por livros informativos e de formação cívica.
Os anos 30 apresentam o realismo versus a fantasia: con-
figura-se um período em que a preocupação maior era a rea-
lidade brasileira e a valorização do ensino leigo. Alternam-se
narrativas na linha dos contos maravilhosos e na linha da re-
alidade cotidiana. Como escritores, podemos listar: Baltazar
Godói Moreira, Carlos Lébeis, Érico Veríssimo, Gondim da
Fonseca, Graciliano Ramos, Jerônimo Monteiro, Luís Jardim,
Luiz Gonzaga Fleury, Malba Tahan, Narbal, Ofélia Fontes, Orí-
genes Lessa, Viriato Correa, Vicente Guimarães. Cumpre lem-
brar que O Tico-tico continua sendo publicado e aparecem
novas revistas infantis.
Os anos 1940 apresentam a expansão da literatura em
quadrinhos, com a importação dos super-heróis: Dick Tracy,
A Agente Secreto X-9, Tarzã, Charlie Chan, etc. e tradução de
livros de mistério e aventuras para meninos, e de literatura
rósea para meninas.
Os anos 1950 são uma época da crise da leitura, pois ex-
pandem-se os meios de comunicação de massa; acontece, en-
tão, maior produção da literatura em quadrinhos. Como es-
critores, temos: Lúcia Machado de Almeida, Gilda Figueiredo
Padilha, Leonardo Arroyo, Maria Heloísa Penteado, Maria José
Dupré, Terezinha Casassanta, e outros.
Nos anos 1960, com a expansão dos áudio-visuais, a músi-
ca e a imagem suplantam a literatura.

Literatura infanto-juvenil 89
Monteiro Lobato revolucionou a narrativa ao público
criança e jovem, pois criou uma nova forma de expres-
são; inovou os velhos contos e deu-lhes feições realistas;
fundiu o tradicional com o moderno em uma linguagem
saborosa e cativante.

Cabe, agora, falar no Período pós-lobatiano (1970 até nos-


9 Os festivais da música popular brasi- sos dias). Os grandes festivais da música popular brasileira9.
leira foram programas de televisão de resgataram a poesia e abriam caminho para os anos 70, com o
muito sucesso entre a segunda metade
dos anos sessenta, anos setenta e início boom da literatura infantil, que, sufocada pela ditadura, bus-
dos anos oitenta. Seus participantes cou, por meio da metáfora, uma forma de denúncia ao gover-
cantavam e eram avaliados por um júri. no. No anos 80 e 90 a literatura infantil sofreu profundas mu-
Grandes cantores brasileiros ficaram
famosos à partir de suas apresentações danças: de segura, passou a crítica e questionadora. Os textos
no festivais, como Elis Regina, Caetano apresentavam os conflitos entre a criança e o mundo, o lúdico
Veloso e Chico Buarque, por exemplo.
foi valorizado e a ilustração ganhou o mesmo espaço que a es-
critura. Aparecem escritores com novas propostas inovadoras
e criadoras, sintonizando a literatura infantil com a contem-
poraneidade brasileira.
A seguir, arrolamos os escritores inovadores que iniciaram
a produção a partir dos anos 1970: Ana Maria Machado, An-
dré Carvalho, Ary Quintella, Bartolomeu Queirós, Carlos de
Marigny, Dirceu Quintanilha, Domingos Pellegrini, Edson Ga-
briel Garcia, Edy Lima, Euclides Marques de Andrade, Everal-
do Moreira Veras, Eliane Ganem, Elias José, Fernanda Lopes
de Almeida, Ganymedes José, Giselda Laporta Nicolelis, Henry
Correa de Araúlo, Haroldo Bruno, Ignácio de Loyola Brandão,
Joel Rufino dos Santos, João Carlos Marinho, Leny Werneck,
Lurdes Gonçalves, Lúcia Pimentel Góes, Lúcia Aizim, Luiz Pai-
va de Castro, Lúcia Miners, Lygia Bojunga Nunes, Margarida
Ottoni, Martha Azevedo Pannunzio, Moacir C. Lopes, Rachel
de Queirós, Ruth Rocha, Sérgio Caparelli, Teresa Noronha, Vi-
vina de Assis Viana, Wander Piroli, Wener Zotz, Ziraldo.

90 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
Nos anos 1980 e 1990 cresce a produção literária para
crianças com novos autores, com o experimentalismo da lin-
guagem, livros sem texto e centrados na ilustração. Pode-se
citar: Antonieta Dias de Moraes, Camilla Cerqueira César, Lúcia
Amaral, Lúcia Machado de Almeida, Maria Dinorah, Maria He-
loísa Penteado, Odette de Barros Mott, Orígenes Lessa, Stella
Carr, Stella Leonardos, Ângela Lago, Ciça Fititipaldi, Eliardo
França, Eva Furnari, Michele Iacocca, Liliana Iacocca, Ricardo
Azevedo, Rui de Oliveira, Walter Ono, Aline Perlman, Amaury
Braga da Silva, Anna Flora, Assis Brasil, Antônio Hohlfeldt,
Carlos Moraes, Elza Sallut, Flávia Muniz, Luís Camargo, Luiz
Puntel, Luiz Antônio Aguiar, Luiz Galdino, Marina Colasanti,
Mirna Pinski, Paula Saldanha, Pedro Bandeira, Ricardo Aze-
vedo, Roniwalter Jatobá, Santuza Abras, Sylvia Orthof, Stela
Maris Rezende, Tatiana Belinky, Telma Guimarães e outros.
E chegamos, enfim, ao século XXI. Coelho (2006), lista al-
guns livros infanto-juvenis publicados nesse período: O jogo
do vira, vira (2003), O cavaleiro do sonho (2005) de Ana Ma-
ria Machado; Coleção gente tem, bicho também (2005), de
Ângelo Machado; Zoonário (2001), de Antonio Barreto; No
país do Saci (2006), No país do Jabuti (2006), de Béatrice
Tanaka; Janelas de domingo (2002), de Branca Maria de Paula
e Ronaldo Simões Coelho; O último portal (2003), de Eliana
Martins; Perto dos olhos, perto do coração (2001), de Fátima
Miguez; A saga de um rei (2004), de Ieda de Oliveira; Boti-
na velha, o escritor da classe (2004), de Jair Vitória; Moda:
uma história para crianças (2005, de Kátia Canton); Lin e o
outro lado do bambuzal (2004), de Lúcia Hiratsuka; O beija-
flor despenteado (2002), Histórias paralelas (2003), de Luís
Diáz; Meninos e meninas do Brasil (2003), Tendy e Jã-Jã em
dois mundos e uma nova terra (2003), Iamê e Manuel Diogo
dos Campos de Piratininga (2004), Ana Preciosa e Manuelim
e o roubo das moedas (2004), de Maria José Silveira; Como
conquistar essa garota (2002), Aqueles olhos verdes (2003),

Literatura infanto-juvenil 91
de Pedro Bandeira; O enigma dos chimpanzés (2005), o Boi-
de-Mamão (2005), de Rogério Andrade Barbosa; Manual de
delicadeza de A a Z (2001), O fio da meada (2002), Recados
do corpo e da alma (2003), Caixinha de música (2004), de
Roseana Murray; Carolina Magia &Cia. (2003, de Sheilla Go-
mes); Meu primeiro livro (2001), O Skatista (2003), de Telma
Guimarães Andrade; Fábulas do futuro (2001), Será uma vez:
a louca aventura de criar uma história (2002), Aritana, o
índio que foi à lua (2003), de Ulisses Tavares.
Ufa! Como escreve esse pessoal! Vamos ler, pelo menos, al-
guns títulos? E adquirir para a biblioteca da escola? E divulgar
para as crianças e os jovens?

A produção literária brasileira se consolida com auto-


res que recebem prêmios internacionais. A criatividade na
escrita, a valorização da imagem, as novas propostas que
destacam o lúdico, os projetos sem fins didáticos, fazem
dos textos infanto-juvenis contemporâneos uma literatura
de qualidade.

2.5 Tipologia das histórias


Dividimos as histórias em: mitos, lendas, contos de fadas,
fábulas, histórias de animais, folclore, contos contemporâne-
os, histórias maravilhosas modernas, poesia, teatro e crônica.
Além de explicações teóricas, apresentaremos abonações, para
melhor compreensão. Às vezes os textos literários serão apre-
sentados na íntegra; outras vezes, apenas fragmentos. Espera-
mos que você se delicie com todos os tipos de histórias.
Tire suas dúvidas:

92 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
a) O mito e a lenda: Mito é narrativa do que os deuses ou
os seres divinos fizeram no começo do Tempo; espécie de in-
temporalidade absoluta, na qual os seres humanos vagam num
tempo imperecível, perenemente presente; é construído pela
imaginação e intuição humanas; é o pensamento mágico. Um
exemplo de mito ocidental a respeito da criação do mundo, en-
contramos em Hesíodo, que escreveu sua Teogonia, no oitavo
século a.C., narrando a história da sucessão dos deuses gregos:

Ele explica como é que os deuses e o mundo sua esposa Réia deu-lhe de comer uma pedra, em
começaram. Ele começa com Géia, ou Gaia (Ter- lugar de Zeus; o filho Zeus foi criado em Creta,
ra), que dá a luz a Urano (Céu). De início, Urano obrigou seu pai a vomitar seus irmãos e, junto
era supremo, mas ele suprimia seus filhos, e Gaia com estes e com ajuda adicional derrotou Cro-
incentivou seu filho Cronos a castrá-lo. Cronos, nos e seus titãs, lançando-os no Tártaro. (O HO-
por sua vez, devorou seus próprios filhos, até que MEM...., c1990, p. 43-44).

Outro exemplo de mito da criação do mundo, esse de ori-


gem oriental, e popular na China (sem data precisa, pois os
registros foram destruídos cerca de 200 anos a. C.), apresenta
o Caos como sendo um ovo de galinha:

Nem o Céu nem a Terra existiam. Do ovo nas- diariamente 3 metros, e Pam-Ku cresceu no mes-
ceu Pam-Ku, ao passo que de seus elementos pe- mo ritmo, de modo que seu corpo preencheu a
sados se fez a Terra, e de seus elementos leves, lacuna. Ao morrer, diferentes partes de seu corpo
o Céu. Pam-Ku é retratado como anão, trajando se transformaram nos vários elementos naturais
pele de urso ou um manto de folhas. Por 18.000 [...] As pulgas de seu corpo se transformaram na
anos a distância entre a Terra e o Céu aumentou raça humana. (O HOMEM... c1990, p. 44-45).

Por outro lado, lenda é a narrativa em que um fato se am-


plifica e se transforma sob o efeito da imaginação popular;
explica o aparecimento de coisas no universo pelo viés do

Literatura infanto-juvenil 93
assombro do homem diante do inexplicável; de modo geral,
apresenta costumes e crenças regionais. No Brasil, temos a
lenda do Saci Pererê, Cobra-Grande, Caipora, Iara, Negrinho
do Pastoreio, Mula-sem-Cabeça. Apresentaremos a história
Urashima & a tartaruga, cuja aventura, segundo se acredita,
é parcialmente verdadeira, tendo ocorrido em uma aldeia do
Sudoeste do Japão (NEIL, 1998, p. 44-45):

Um pescador chamado Urashima vivia com sua “Ela quer lhe agradecer por ter me salvado quan-
mãe numa choupana. ‘Você precisa se casar, meu do eu era pequena.”
filho”, a velha dizia. “O que consigo pescar só dá Assim que se viram, a princesa e o pescador
para alimentar duas pessoas”, ele respondia. “As- se apaixonaram perdidamente. “Por favor, não vá
sim, enquanto você viver, eu continuo solteiro.” embora”, Otohime lhe pediu. “Neste reino você
Um dia Urashima pescou uma tartaruga pe- nunca há de envelhecer.”
quenina. “Xi, essa não bastaria para matar a fome Três anos se passaram, e só uma coisa estraga-
nem de uma criança!”, exclamou, aborrecido. va a felicidade de Urashima; a preocupação com
‘Então me liberte!”, pediu a tartaruguinha. “Se sua velha mãe. Um dia ele perguntou à princesa
tiver piedade de mim, eu lhe mostrarei minha se podia ir visitá-la. “Se você for, nunca voltará”,
gratidão!” o bondoso rapaz se compadeceu e a Otohime respondeu com tristeza. Mas seu ama-
soltou no mar. do tanto insistiu que ela acabou consentindo em
Anos depois Urashima estava pescando, como sua viagem. Quando se despediram, entregou-lhe
sempre, quando uma violenta tempestade de- uma caixinha e falou: “Leve-a com você, mas não
sabou e lhe virou o barco. Como muitos cole- a abra. Se a mantiver fechada, a tartaruga irá bus-
gas seus, ele não sabia nadar, mas, enquanto se cá-lo na praia e o trará para mim”.
debatia, lutando para não morrer, uma tartaru- Depois de prometer que nuca abriria a caixi-
ga imensa subiu à tona. “Chegou minha vez de nha, Urashima subiu na tartaruga e partiu. Che-
salvar sua vida”, ela anunciou. “Venha, suba em gando a seu destino, encontrou tudo mudado.
minhas costas.” Na aldeia onde vivera ninguém o conhecia e ele
Urashima obedeceu, aliviado, porém, em vez tampouco conhecia ninguém. Da choupana onde
de levá-lo para a praia, a tartaruga mergulhou, morara restara apenas o tanque de pedra.
conduzindo-o a Ryugu, o palácio do rei dragão, “Que coisa!”, pensou perplexo. Foi então que
situado no fundo do mar. “Sou a dama de com- viu um velho na rua e resolveu lhe perguntar se
panhia de Otohime, a princesa dragão”, explicou. por acaso já ouvira falar de um pescador chama-
do Urashima.

94 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
“Ora, quem não conhece a lenda?”, o velho Desesperado, Urashima pegou a caixinha e a
replicou. “Dizem que ele morou nesta aldeia tre- mostrou ao velho, dizendo: “Veja, a princesa dra-
zentos anos atrás, partiu para o reino do dragão, gão me deu este presente de despedida!”. Então
lá no fundo do mar, e nunca mais voltou!” se esqueceu da promessa que fizera a Otohime
“E a mãe dele?” e abriu a caixinha. Dentro dela havia apenas fu-
“Morreu no dia em que ele desapareceu...”, maça. E, quando a fumaça escapou, o peso dos
informou-lhe o homem. séculos caiu sobre Urashima. Sua pele se enru-
“Não pode ser... Eu sou Urashima! E faz só gou, suas pernas perderam a força, e seu corpo se
três anos que parti!” transformou em pó.

b) Os contos de fadas: Acredita-se serem de origem celta,


com heróis e heroínas ligados ao sobrenatural, ao destino –
fatum – de onde deriva a palavra fada, mediadora por ex-
celência entre os humanos e suas realizações. Nas raízes dos
contos de fadas estão as novelas de cavalaria, do ciclo do Rei
Artur. Nas narrativas para crianças as fadas deixaram de ser
expressão simbólica das preocupações metafísicas do homem,
mas conservaram seu poder mágico. Às vezes os contos de fa-
das não contêm fadas, embora conservem elementos mágicos.
A marca característica de tais contos, além do uso da fórmula
Era uma vez... é a imutabilidade de fundo, conquanto permi-
tam modificações de figuras – é o caso de diferentes versões
dos contos tradicionais, e o final feliz. Os contos de fadas são
confundidos com os contos maravilhosos, de origem oriental,
difundidos pelos árabes, tais como As mil e Uma Noites; Ala-
dim e a Lâmpada Maravilhosa.
Os contos de fadas, coletados por Charles Perrault do fol-
clore francês, pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm do folclore
alemão e por Hans Christian Andersen do folclore dinamar-
quês, ainda fazem sucesso. Receberam inúmeras traduções ao

Literatura infanto-juvenil 95
longo dos anos e adaptações cinematográficas. Lembra Tatar
(2004, p. 9, 15):
Os contos de fadas são íntimos e pessoais, contando-nos
sobre a busca de romance e riquezas, de poder e privilé-
gio e, o mais importante, sobre um caminho para sair da
floresta e voltar à proteção e segurança de casa. Dando
um caráter terreno aos mitos e pensando-os em termos
humano em vez de heróicos, os contos de fadas imprimem
um efeito familiar às histórias no arquivo de nossa imagi-
nação coletiva. [...] Disseminados por diversas mídias – da
ópera e do drama ao cinema e à publicidade –, os contos
de fadas tornaram-se uma parte vital de nosso capital cul-
tural. O que os mantém vivos e pulsando com vitalidade
e variedade é exatamente o que mantém a vida vibrando;
angústias, medos, desejos, romance, paixão e amor.

Como exemplo, apresentaremos o conto Pele de Asno, saí-


do da tradição oral e registrado por Charles Perrault, no século
XVII (republicada pela Martins Fontes em 1997, sem paginação):

Era uma vez um rei tão grandioso, tão amado misturam a alguns males, quis o céu que a rainha
por seu povo, tão respeitado por todos os seus vi- de repente fosse afetada por uma terrível doença,
zinhos e seus aliados, que se podia dizer que era o para a qual não se conseguia encontrar nenhum
mais feliz dos monarcas. Sua felicidade se confir- remédio. A ciência e a habilidade dos médicos se
mou quando ele escolheu por esposa uma prince- mostraram inúteis.
sa tão bonita quanto virtuosa. O casal vivia numa ••
união perfeita. De seu casamento nasceu uma fi-
lha, dotada de tanta graça e de tantos encantos, A rainha voltou a falar, com uma firmeza que
que eles nem lamentavam não ter mais filhos. aumentava ainda mais a tristeza do rei:
- O Estado deve exigir sucessores e, como só
•• lhe dei uma filha, há de solicitar que tenha fi-
Ora, como as desgraças da vida atingem tan- lhos que se pareçam com você. Mas peço-lhe com
to os reis como os súditos, e sempre os bens se insistência, por todo o amor que sente por mim,

96 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
que só ceda a essas pressões do seu povo quando drinha. Para isso partiu na mesma noite num belo
encontrar uma princesa mais bela e mais bem fei- cabriolé, puxando por um carneiro enorme que
ta do que eu. Quero seu juramento e então mor- conhecia todos os caminhos. Assim, lá chegou
rerei em paz. sem dificuldade. A fada, que gostava muito da In-
•• fanta, disse que sabia tudo o que ele tinha vindo
contar. Sossegou-a, dizendo que não tinha nada
Finalmente ela morreu. Nunca nenhum ma- a temer, contanto que executasse fielmente tudo
rido fez tanto estardalhaço: chorar, soluçar dia o ela lhe recomendaria.
e noite, pequenos direitos da viuvez, foram sua
única ocupação. ••
As grandes dores não duram muito. - Ah! Desta vez, minha filha – ela disse à In-
•• fanta -, vamos submeter o amor indigno de seu
pai a uma terrível provação. Parece que o rei está
De fato, ele procurou entre as princesas ca- mesmo teimando nesse casamento, que ele ima-
sadouras alguma que lhe pudesse convir. Todos gina próximo. Mas acho que vai ficar meio ator-
os dias lhe traziam retratos encantadores, só que doado com o pedido que aconselho você a fazer:
nenhum mostrava as graças da falecida rainha; peça a pele daquele asno por quem o rei tem tan-
assim, o rei não se decidia. Por desgraça, per- ta paixão e que cobre as despesas dele com tanta
cebeu que a filha era até muito superior à mãe larguesa. Vá e não deixe de lhe dizer que você
em inteligência e em encantos. Sua juventude, o quer aquela pele.
agradável frescor de sua bela tez inflamaram o rei
de tal modo, que ele não conseguiu esconder da ••
Infanta, e foi lhe dizer que tinha resolvido se ca- A Infanta deu mil beijos na madrinha, pediu-
sar com ela, pois era a única que poderia fazê-lo lhe que não a abandonasse, cobriu-se com aquela
cumprir seu juramento. pele horrível, depois de se borrar com fuligem da
•• lareira, e saiu do rico palácio sem ser reconhecida
por ninguém.
A jovem princesa, sufocada por uma imensa
dor, resolveu procurar a Fada dos Lilases, sua ma-

c) As fábulas: São narrativas curtas, em que as ações são


protagonizadas por animais, mas com referência a situações
humanas; objetivam transmitir alguma moralidade. São con-
fundidas com o apólogo (discurso breve de uma situação vivi-

Literatura infanto-juvenil 97
da por objetos ou elementos da natureza que adquirem vida e
que aludem a uma situação exemplar para os homens), e com
a parábola (narrativa de comparação, onde se deduz, por si-
militude, um ensinamento moral e cujas ações são vividas por
seres humanos).
Como exemplo de fábula, temos O lobo e o cordeiro (LOBA-
TO, 1982, p. 42, grifo do autor):

Estava o cordeiro a beber num córrego, quan- - Como poderia falar mal do senhor o ano pas-
do apareceu um lobo esfaimado, de horrendo as- sado, se nasci este ano?
pecto. Novamente confundido pela voz da inocência,
- Que desaforo é esse de turvar a água que o lobo insistiu:
venho beber? - disse o monstro, arreganhando - Se não foi você, foi seu irmão mais velho, o
os dentes. Espere, que vou castigar tamanha má- que dá no mesmo.
criação!... - Como poderia ser o meu irmão mais velho,
O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu sou filho único?
com inocência: O lobo, furioso, vendo que com razões claras
- Como posso turvar água que o senhor vai não vencia o pobrezinho, veio com uma razão de
beber se ela corre do senhor para mim? lobo faminto:
Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se - Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu
com a resposta. Mas não deu o rabo a torcer. avô!
- Além disso - inventou ele - sei que você an- - E – nhoque! – sangrou-o no pescoço.
dou falando mal de mim o ano passado. Moral da história: Contra a força não há ar-
gumentos.

Como exemplo de apólogo, temos As duas panelas (LOBA-


TO, 1982, p. 55):

Duas panelas, uma de ferro, orgulhosa, outra - Bela tarde para um giro pela horta! A cozi-
de barro, humilde, moravam na mesma cozinha; e nheira não está, e até que venha teremos tempo
como estivessem vazias, a bocejarem de vadiação, de dizer adeus à alface e fazer uma visita aos re-
disse a graúda: polhos. Queres ir?

98 Leitura e Literatura
Infanto-Juvenil
- Com todo o prazer!... respondeu a panela de -Não foi nada, não foi nada...
barro, lisonjeadíssima da honrosa companhia. Uns passos mais e novo choque.
-Dá-me o braço, então, e vamo-nos depressa - Ai que me desbeiças, amiga!
antes que “ela” venha. - Em casa arruma-se, não é nada.
Assim fizeram e lá foram as duas desajeita- Minutos depois, terceiro esbarrão, este formi-
donas, gingando os corpos ventrudos, cheias de dável.
amabilidades para com as hortaliças. “Bom dia, - Ai! Ai! Ai! Fizeste-me em pedaço, ingrata!...
Dona Couve!” “Comendador Repolho, como pas- e a mísera panela de barro caiu por terra a gemer,
sa?” “ Coentrinho, adeus!” reduzida a cacos.
No melhor da festa, porém, a panela de ferro Moral da história: Sempre que o fraco se as-
falseou o pé e esbarrou na amiga. socia ao forte, sai trincado, desbeiçado, despe-
- Ai que me trincas! – exclamou esta. daçado...

Como exemplo de parábola, temos Segredo de mulher (LO-


BATO, 1982, p. 46, grifo do autor):

Como a Fidência se gabasse de discreta, seu da cama e foi correndo em procura da comadre
marido resolveu tirar a prova. E para isso uma Teresa.
noite acordou-a com ar assustado, dizendo: - Você é capaz, Teresa, de guardar um segre-
- Que estranho fenômeno, Fidência. Pois não do eterno?
é que acabo de botar um ovo? - Toda gente sabe que minha boca é um tú-
- Um ovo?! – exclamou a mulher, arregalando mulo...
os olhos. - Pois então ouça: meu marido esta noite bo-
- Pois é para ver. E cá está ele, ainda quenti- tou dois ovos!...
nho. Mas escute: é preciso que isto fique em se- - Não diga!...
gredo absoluto entre nós. Você bem sabe como - Pois é isso. Mas olhe!... Isto é segredo invio-
é o mundo. Se a noticia corre, começam todos a lável. Jure que jamais o contará a ninguém.
troçar de mim e acabam pondo-me apelido. Se- A comadre Teresa beijou dois dedos em cruz;
gure, pois, a língua. Nunca diga nada a ninguém. mas logo que a Fidência se foi, sentiu na língua
A mulher jurou segredo e soube guardá-lo por uma tal comichão que contou a história dos três
duas horas, enquanto era noite e não tinha com ovos à tia Felizarda.
quem taramelar. Mas logo que amanheceu pulou

Literatura infanto-juvenil 99
Tia Felizarda também jurou segredo, mas con- E o caso foi que ao meio-dia a cidade inteira
tou a história dos quatro ovos à prima Joaquina. só comentava uma coisa – o estranho fenôme-
Prima Joaquina também jurou segredo, mas no do Zé Galinha, misterioso homem que punha
contou a história dos cinco ovos à sua amiga cada noite doze dúzias e ovos...
Inês... Moral da história: Quem conta um conto, au-
Inês... menta um ponto.

d) Histórias de animais: São narrativas em que os bichos às


vezes se comportam como bichos, às vezes, como seres hu-
manos; tais histórias possuem um apelo lúdico muito forte,
supridas de abundantes ilustrações. Nas histórias para crianças
de menor idade, os bichos agem como bichos: miam, latem,
piam, grasnem; nas histórias para crianças de maior idade e
pré-adolescentes, os bichos esboçam reações humanas. Como
exemplo dessas últimas, temos Coelho Mau (WILLIS; ROSS,
2009, grifo dos autores):

Nunca houve um coelho tão terrível quanto me divertindo demais – SÉRIO! Passei em todos
o Coelho Mau. É isso que você pensaria se lesse os testes para me tornar um dos Sinistros. Ficar
a carta que ele deixou para os pais ao voltar da enterrado até o nariz no cocô de vaca não foi
escola... tão ruim quanto eu imaginava. Depois, tive que
Queridos Mamãe e Papai, cuspir framboesa no Seu Raposo. Aí deu medo,
Sinto em ter que dizer isso, mas FUGI DE porque ele corre muito mais rápido quando fica
CASA. Estou morando no Lixão do Canal Maldito bravo. E tive que comer um hambúrguer de mi-
com meus novos melhores amigos. Meus amigos nhocas NOJENTO, mas acho que foi mais difícil
são conhecidos como Coelhos Sinistros, mas o porque antes, eu era vegetariano. Agora, se você
pior é o nome que me deram: COELHO MAU. No me visse, nem me reconheceria, mãe. Eu tingi
começo eu não tinha certeza se queria fazer parte o rabo, estou usando jaqueta de couro e fiz um
da turma, mas se eu caísse fora, eles me chama- piercing na orelha. Nunca lavo os bigodes e sem-
riam de Coelhinho Felpudinho. Então aqui estou, pre vou dormir de madrugada. Quando a gente

100 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
conhece melhor os Coelhos Sinistros vê que eles Se eu nunca mais aparecer, por favor, deem
até são uns caras legais, só que vocês não vão um beijo na minha irmãzinha, e tentem não se
gostar de saber o que fizeram com Giles, o fazen- sentir culpados. De seu filho querido, COELHO
deiro... Mas vou contar! Eles misturaram cocô de MAU (antes conhecido como Fofinho).
coelho na sopa dele. Andei tendo uns acidentes P.S. Nada do que vocês leram é verdade. Estou
de moto. Uma vez estava correndo na plantação na casa da vovó. Eu só queria lembrar a vocês
de nabos e trombei com o espantalho... Depois que existem coisas piores na vida do que as notas
atropelei sem querer o rabo do touro... E caí de HORRÍVEIS do meu boletim, que está escondido
novo quando fiz umas manobras loucas no chi- embaixo do meu travesseiro...
queiro. Nunca uso capacete e não dou a menor P.P.S. Quando não estiverem mais bravos co-
bola pra isso. Desculpem falar assim, mas aprendi migo, vocês podem vir me buscar. Mas, por favor,
com os Sinistros. Enquanto escrevo pra vocês, o venham logo, porque estou morrendo de fome e
Bando dos Fuinhas entrou na nossa área e co- o repolho da vovó tem um cheiro HORRÍVEL! Fo-
meçou uma briga irada... FUI ATINGIDO! Não se finho.
preocupem com as manchas no papel, são só de Então, afinal, o coelho não era assim tão ter-
geleia... ESPERO. Agora preciso ir. rível nem tão malvado. É a prova de que a gente
não pode acreditar em tudo o que lê.

e) O folclore: Constitui folclore o conjunto das tradições,


lendas ou crenças populares, expressos em provérbios, contos
e canções. O conto popular, no Brasil, é um expressivo mate-
rial folclórico incorporado à literatura infantil. Azevedo (1998)
registra contos de esperteza, encanto, susto, riso, adivinhas
e trovas populares, sabedoria do povo, bestiário, versos para
brincar, brincadeira com palavras e trava-línguas. Destes últi-
mos, selecionamos:

A pia pega e pinga. O pinto pega e pia. Quanto Quando digo digo, digo digo, não digo Diogo.
mais o pinto pia, mais e mais a pia pinga. (AZE- Quando digo Diogo, digo Diogo, não digo digo.
VEDO, 1998, p. 30). (AZEVEDO. 1998, p. 31).

Literatura infanto-juvenil 101


f) Contos contemporâneos: Nesse tipo de história as perso-
nagens, quase sempre crianças de maior faixa etária e adoles-
centes, exploram o mundo e vencem obstáculos sem ajuda do
sobrenatural; o adulto se faz presente como coadjuvante na
história. Ultimamente, têm tomado a forma de diário, em que
a criança ou o adolescente narra suas desventuras e façanhas.
Permeados de humor, consistem em várias ações, mas apenas
um único núcleo narrativo; não dispensam a imaginação, con-
quanto explorem o cotidiano. Apresentaremos, como exemplo,
O diário de um Banana: as memórias de Greg Heffley (KIN-
NEY, 2008, grifo do autor):

SETEMBRO A outra coisa que eu quero esclarecer agora


mesmo é que isso foi idéia da minha MÃE, não
Terça-feira
minha. Mas se ela acha que eu vou escrever meus
Em primeiro lugar, quero esclarecer uma coi-
“sentimentos” aqui ou coisa do tipo, ela está lou-
sa: isto é um LIVRO DE MEMÓRIAS, não um di-
ca. Então, só não espere que eu seja todo “Queri-
ário. Eu sei o que diz na capa, mas, quando a
do Diário” isso, “Querido diário” aquilo.
mamãe saiu para comprar essa coisa, eu disse ES-
A única razão de eu ter aceitado isso é porque
PECIFICAMENTE que queria um caderno sem a
imagino que, mais para a frente, quando eu for
palavra “diário” escrita nele.
rico e famoso, vou ter coisas melhores para fazer
Ótimo. Tudo o que eu preciso é que um idiota
do que ficar respondendo a perguntas bestas o
me pegue com este livro e entenda errado.
dia inteiro. Daí este livro vai vir a calhar.

g) Histórias maravilhosas modernas: Trata-se da junção


do realismo com o maravilhoso. De modo geral, tais histórias
desconstroem o modelo clássico. Monteiro Lobato foi o pre-
cursor do chamado “realismo mágico”, no que foi seguido por
grande parte dos autores contemporâneos brasileiros. Como
exemplo, História meio ao contrário (MACHADO, 1999):

102 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
... E então eles se casaram, tiveram uma filha manhã quando tinha falado com ela na aldeia,
linda como um raio de sol e viveram felizes para nem tinha reparado como ela era tão bonita. [...]
sempre... E pensou que a beleza dela era por causa do olho
Tem muita história que acaba assim. Mas este de luar do Dragão. Aí perdeu a vontade de liqui-
é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem dar o Dragão. E de casar com a Princesa.
que começar em algum lugar, pode muito bem ••
ser por aí. Vai ser a história desses tais que se ca-
saram e viveram felizes para sempre. E a história O Rei tinha ficado acordado a noite toda para
dos filhos começa mesmo é na história dos pais. ver o combate e acabava e descobrir as belezas
Ou na dos avós, bisavós, tataravôs ou requetata- que ele não conhecia. Podia ser ignorante, mas
tataravós – se alguém conseguir dizer isso e lem- não era burro. E compreendeu que, se aquilo
brar de todas essas pessoas. acontecia todo dia, não valia a pena matar o Dra-
gão Negro. Por isso, quando cansou de fazer seu
•• real escândalo e ouviu os reais conselhos de sua
Mas vamos começar de novo pelo começo. adorada Rainha, acalmou:
Ou pelo fim, que esta história é mesmo ao - Não é preciso mais matar o monstro. Todos
contrário. os habitantes deste reino são muito corajosos e
... E então eles se casaram, tiveram uma filha podem viver bem, mesmo tendo esse terrível Dra-
linda como um raio de sol e viveram felizes para gão na vizinhança.
sempre. Foi um alívio geral. Então o Rei completou,
Eles eram um rei e uma rainha de um reino para o príncipe:
muito distante e encantado. - Mas pode ficar tranqüilo. Mantenho minha
•• promessa e lhe dou a mão da Princesa em casa-
mento.
No dia seguinte, a novidade da aldeia era a Aí é que foi a surpresa. Porque o que a Prin-
chegada de um Príncipe vindo de terras distantes cesa disse era coisa que ninguém esperava:
a todo o galope em seu veloz cavalo. Não era um - Meu real pai, peço desculpas. Mas se o ca-
Príncipe Encantado, mas a Pastora, que o tinha samento é meu, quem resolve sou eu. Só caso
visto chegar, afirmava que era um Príncipe En- com quem eu quiser. O Príncipe é muito sim-
cantador. pático, valente, tudo isso. Mas nós nunca con-
•• versamos direito. E eu ainda quero conhe-
O Príncipe viu a Pastora por entre as árvo- cer o mundo. [...] Não quero me casar agora.
res, na luz do olhar do Dragão, e pensou que de

Literatura infanto-juvenil 103


•• ma coisa e seu amor pelos cavalos. Aca-
E o príncipe só queria mesmo a Pastora. Por bou trabalhando de Vaqueiro, nos cam-
isso deu para todos acabarem se entendendo. pos em volta da aldeia. Sempre encontrava a
No dia seguinte a Princesa começou uma lon- pastora e conversavam. Numa noite de luar, re-
ga viagem para conhecer outras pessoas, outras solveram visitar o Dragão Negro e se aconselhar
terras, outros reinos. E até mesmo algumas re- com o Gigante.
públicas. Acabou indo estudar numa delas, en- E o Gigante, como vimos, mesmo dorminhoco
turmando, fazendo amigos. Vem sempre passar é bom conselheiro. Dessa vez, disse:
as férias no real castelo e conta uma porção de - Vocês se gostam, não é? Querem estar jun-
novidades. tos? Então acho que a pastora deve casar é com o
Vaqueiro. Assim, não precisa dizer Vossa Alteza.
•• Foi o que eles fizeram.
Então o Príncipe resolveu ficar por ali, E o príncipe?
aproveitando sua vontade de fazer algu- Era uma vez...

h) Poesia: Caracteriza-se pelo lirismo, delicadeza, expressi-


vidade, olhar reflexivo sobre o ser humano, sobre a natureza e
as coisas do mundo. Na maior parte das vezes, é introspectiva,
metafórica, a-lógica, a-histórica, e com rimas. A seguir, O me-
nino azul de Meireles (2002, p. 31-32):

O menino quer um burrinho


para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho


que saiba dizer
o nome dos rios,

104 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho


que saiba inventar
histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo


que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(quem souber de um burrinho desses,


pode escrever
para a Rua das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

i) Teatro: É a dramatização do texto em que contam a pa-


lavra, o gesto, a dança, e o canto. Para a criança, especial-
mente, o teatro deve entrelaçar as várias linguagens num todo
harmônico, agradável, que emocione e cause prazer. Lembra
Nazareth (2005, p. 93, grifo do autor) “que o diretor russo
Constantin Stanilawsky, referência fundamental do trabalho
do ator no teatro contemporâneo” declarou, em 1907: “o te-
atro para crianças é como o teatro para adultos, só que me-
lhor.” No Brasil, a pioneira em teatro infantil foi Maria Clara
Machado. A seguir, um depoimento seu:

Literatura infanto-juvenil 105


Eu acho que a gente não deve ensinar a crian- que qualquer obra de arte passa. Quando escre-
ça numa peça. A gente deve montar uma peça vemos para crianças somos apenas aqueles que
como se mostra uma de adulto; é um conflito, estão abrindo o caminho que vai do sonho à rea-
tem que haver um conflito na peça, é essencial na lidade. Estamos criando, através da arte e a partir
dramaturgia [...] uma história tem que acontecer, do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir
trabalhar com a imaginação e a fantasia de uma que a vida pode ser bonita, feia, clara, escura, fei-
maneira que depende do talento de cada um [...] ta de sonhos e realidade. (MACHADO apud NA-
tem que passar para o espectador um momento ZARETH, 2005, p. 97).
de poesia, uma sensação, um poema, um conto,

j) Crônicas: São narrativas curtas, com fatos do cotidiano.


Sant’Anna (1997, p. 3) que se intitula um “escritor crônico”,
brinca: “Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como la-
ranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em go-
mos ou pedaços, na poltrona da casa ou espremidas nas salas
de aula.” Apresentaremos um fragmento da crônica Quando
as filhas mudam, de Sant’Anna (1997, p. 25-28):

Um dia elas crescem e se mudam, as filhas. Os saía da proteção do pai para a do noivo. Naquele
filhos também. Mas com as filhas é diferente. So- tempo o processo de desligamento, ou doação da
bretudo se vão morar sozinhas, solteiras. filha ao mundo, era longo e progressivo. Primeiro
Há uma geração atrás, isto era impensável. o flerte, o namoro, o namoro no portão, o namo-
Aparecia em filme americano, e a gente pensava: ro na sala, o noivado e, enfim, as bodas. E assim
lá, tudo bem, a cultura deles é assim. iam todos se preparando gradativamente para a
•• meiose da família.
Hoje a garota adolescente se libera sexualmente
Hoje os pais já compreendem que isto faz par- mais cedo e começa a pensar na profissão sem que
te do crescimento da adolescente. As pessoas já o casamento seja a finalidade última de sua vida.
não saem mais de casa para, necessariamente, se Os pais tiveram que se adaptar a isto. Mas ir morar
casar, senão para viver a própria vida. E essa saí- sozinha também é um ritual. E um ritual delica-
da é bem diferente do que era quando a moça só

106 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
díssimo. A menina adolescente que nas horas de em quando com a filha e comprem um objeto
birra virava-se para a família e alertava, “um dia aqui, outro ali e o façam em companhia da que se
vou morar sozinha”, “um dia saio dessa casa!”, mudará. É bom que juntos visitem o apartamen-
de repente vê-se com o pé na soleira para sair do to que abrigará a filha, que coloquem ali algu-
abrigo. E aí estremece e pode até chorar. Porque ma ternura além dos móveis. Se puderem pintar
já não quer sair. Agora que pode e prepara-se para juntos alguma coisa, consertar, montar, isto terá
sair, não quer, embora queira (e deva) sair. Parece o sabor da construção e ajudará no rito de pas-
um passarinho na boca do ninho. Põe a cabecinha sagem.
para fora, olha para cá, para lá, quer dar seu vôo Os filhos crescem. E os pais também. Essa
inaugural, mas ainda vacila. separação não é perda, é desdobramento. Como
•• as árvores que necessitam de distância para po-
der expandir seus galhos sem se engalfinhar num
Pai e mãe percebem e um ou outro fala com emaranhado de ramos e raízes que acabam enfra-
ela, acaricia-a dizendo; ‘Se você quiser não preci- quecendo-se mutuamente, filhos necessitam se
sa ir, pode ficar o quanto quiser. Mas a filha sabe afastar para ter a real dimensão de si mesmos e
que tem que ir e se diz: “tenho que ir”, “tenho de seus pais.
que crescer”e olha as malas prontas. E a distância, paradoxalmente, podem acabar
Na verdade, é aconselhável que a mudança se sentindo mais ligados e amados do que nun-
seja lenta. Não há pressa. Não adianta pensar: te- ca. São ciclos da vida. E cada ciclo deve ser vivi-
nho que fazer isto rápido para não sentir muita do intensamente. As mudanças, embora difíceis,
dor. É melhor ir devagar, descobrindo o próprio quando assumidas sadiamente, são um momento
ritmo da mudança. de enriquecimento da vida.
Por isso, é bom que os pais participem des-
se ritual com igual delicadeza, que saiam de vez

Gostou? Quer saber mais?

Literatura infanto-juvenil 107


Bibliografia Comentada
DOHME, Vânia D’Angelo. Técnicas de contar histórias. 8. ed. São
Paulo: Informal, 2005.

Apresenta teoria sobre a repercussão das histórias no ca-


ráter, raciocínio, imaginação criatividade e senso crítico das
crianças, como selecionar e analisar uma história a ser nar-
rada, dicas de narração (por exemplo, iniciar um bate papo
informal antes de contar a história, disposição espacial dos
ouvintes, escolha do local, tirar proveito da voz, suscitar
emoções, e uso de recursos auxiliares (livro, gravuras, figu-
ras sobre o cenário, fantoches, teatro de sombras, dobra-
duras, maquete, bocões, marionetes, interação com a nar-
ração, dedoches). Contêm explicações detalhadas sobre o
uso desses recursos e informações sobre a montagem dos
cenários e personagens das histórias. Arrola os textos su-
gerindo o recurso auxiliar e o tipo de narração apropriados.

ZOTZ, Werner; CAGNETTI, Sueli. Livro que te quero livre. 3. ed.


ver. e atual. Florianópolis: Letras Brasileiras, 2005.

O livro é dividido em duas partes: a primeira se denomina A


revolução pelo prazer e apresenta entrevistas concedidas a
Eglê Malheiros e palestras proferidas pelo autor no I Encon-
tro paranaense de Leitura e Literatura, realizado em 1984.
Aborda: a maioridade da literatura infanto-juvenil, leitura:
filosofia de educação e de vida, o futuro nas mãos dos pro-
fessores e livreiros, o livro na escola: cadê a liberdade e o
prazer?, profissão: escritor, criação: crescimento e desco-
bertas. A segunda parte é intitulada O livro na escola: liber-
dade para voar e crescer. Pontua reflexões da professora/
autora no tocante à literatura na escola e à literatura e sua
exploração em sala de aula, com sugestões práticas.

108 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
Síntese
Estudamos que a literatura infanto-juvenil é aquele texto
ficcional que interessa à criança e ao jovem. Que, pela lite-
rariedade (desvio em relação ao uso ordinário da linguagem,
organização diferente da linguagem, modo especial de elabo-
ração da linguagem) permite a catarse, a identificação com as
personagens, a introspecção. Vimos, também, que é formado-
ra por excelência e compromissada com a sociedade. Realiza-
mos uma trajetória histórica dessa literatura, com ênfase na
produção brasileira. Por fim, conhecemos a tipologia das his-
tórias. Com tudo isso, estamos aptos a disseminar a literatura
infanto-juvenil na biblioteca da escola.

Literatura infanto-juvenil 109


Referências
ATAÍDE, Vicente. Literatura infantil e ideologia. Curitiba: HD
Livros, 1995.

AZEVEDO, Ricardo. Meu livro de folclore: um punhado de


literatura popular. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo:


Perspectiva, 1999.

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de


Janeiro: Zahar, 1997.

BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de


operárias. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

CALDIN, Clarice Fortkamp. A aplicabilidade terapêutica de textos


literários para crianças. Encontros Bibli: Revista Eletrônica de
Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n. 18, 2.
sem. 2004. Disponível em: <www.periodicos.ufsc.br>. Acesso em:
15 jan. 2010.

CALDIN, Clarice Fortkamp. Biblioterapia: atividades de leitura


desenvolvidas por acadêmicos do Curso de Biblioteconomia da
Universidade Federal de Santa Catarina. Biblios, Lima, año 6, n,
21/22, p. 13-25, Ene./Ago. 2005. Disponível em: <http://www.
bibliosperu.com/arbitraje.shtml?x=43>. Acesso em: 15 jan. 2010.

CALDIN, Clarice Fortkamp. A função social da leitura da


literatura infantil. Encontros Bibli: Revista Eletrônica de
Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis,
n. 15, p, 47-58, 1. sem. 2003. Disponível em: <www.periodicos.
ufsc.br>. Acesso em: 15 jan. 2010.

110 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
CALDIN, Clarice Fortkamp. A leitura como função terapêutica:
biblioterapia. Encontros Bibli: Revista Eletrônica de
Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n. 12,
dez. 2001. Disponível em: <www.periodicos.ufsc.br.> Acesso
em: 15 jan. 2010.

CALDIN, Clarice Fortkamp. Leitura e terapia. 2009. 216 f. Tese


(Doutorado em Literatura) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/pesquisa>. Acesso em: 22 jan. 2010.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e


história literária. 8. ed. São Paulo: Queirós, 2000.

CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty: uma introdução. São


Paulo: EDUC, 2000.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Org.). História da


leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. v.1.

CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Org.). História da


leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática,1999. v. 2.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil


e juvenil brasileira. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 2006.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise,


didática. São Paulo: Moderna, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/


juvenil. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991.

COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria (Org.). A


literatura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Global, 2004. v. 6.

CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo:


Beca Produções Culturais, 1999.

Referências 111
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século
XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente rev. e
ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. 18. ed. São


Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.

FONTES, Joaquim Brasil. O impossível prazer do texto. In:


BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.). Estado da leitura. 2. ed.
Campinas: Mercado das Letras, 2009, p. 149-158. (Coleção
Leituras no Brasil).

GERALDI, João Wanderley. Prática da leitura na escola. In:


______. (Org.). O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática,
2001. p. 88-103.

O HOMEM em busca de Deus. Cesário Lange: Sociedade Torre de


Vigia de Bíblias e Tratados, c1990.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético.


São Paulo: Ed. 34, 1996. v. 1.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético.


São Paulo: Ed. 34, 1999. v. 2 .

JOLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 3. ed. São Paulo: 1990.

KINNEY, Jeff. Diário de um banana: as memórias de Greg


Heffley. Cotia: Vergara & Riba, 2008.

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura.


6. ed. Campinas: Pontes, 1999.

LEFFA, Vilson J. Aspectos da leitura: uma perspectiva


psicolingüística. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto, 1996.

112 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
LOBATO, Monteiro. Fábulas. 31. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. 24. ed. São


Paulo: Ática, 1999.

MARTINS, Margarida A.; NIZA, Ivone. Modelos de leitura.


Disponível em: <http://linguagemescrita.no.sapo.pt/index_
ficheiros?page646.htm> Acesso em: 05 set. 2009.

MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o


Império. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 137-176.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova


fronteira, 2002.

MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3. ed. Rio de


janeiro: Nova Fronteira, 1984.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac


& Naify, 2002.

MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 5. ed. São


Paulo: Cultrix, 1988.

MORAIS, José. A arte de ler. São Paulo: Ed. da UNESP, 1996.

NAZARETH, Carlos Augusto. O que é qualidade em teatro


infantil? In: OLIVEIRA, Ieda de (Org.). O que é qualidade em
literatura infantil e juvenil?: com a palavra o escritor. São Paulo:
DCL, 2005. p. 91-102.

NEIL, Philip. Volta ao mundo em 52 histórias. São Paulo:


Companhia das Letrinhas, 1998.

PALO, Maria José; OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil:


voz de criança. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998.

Referências 113
PENNAC, Daniel. Como um romance. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.

PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. São Paulo: M. Fontes,


1997.

PERROTTI, Edmir. A leitura como fetiche. In: BARZOTTO, Valdir


Heitor (Org.). Estado da leitura. 2. ed. Campinas: Mercado das
Letras, 2009, p. 125-147. (Coleção Leituras do Brasil).

PINTO, Cândida Martins; RICHTER, Marcos Gustavo. Teoria da


atividade e modelos de leitura em livros didáticos de português –
L2. Disponível em: <jararaca.ufsm.br/websites/ L & C.../Marcos_
Cândida.pdf>. Acesso em: 05 set. 2009.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Abril


Cultural, 1982.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. 2. ed. Campinas: Pontes, 1991.

SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 4. ed. rev. e


ampl. Petrópolis: Vozes, 2007.

SANT’ANNA, Affonso Romano. Porta de colégio & outras


crônicas. 4. ed. São Paulo: Ática, 1997.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? 3. ed. São Paulo: Ática,


2004.

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A paraliteratura. In: SAMUEL,


Rogel (Org.). Manual de teoria literária. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1986. p. 169-171.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos


psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. São Paulo,
1981.

114 Leitura e Literatura


Infanto-Juvenil
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura: ensaios.
Campinas: Mercado das Letras/ Associação de Leitura do Brasil,
1998.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 7. ed. São Paulo:


Ática, 1999.

TATAR, Maria (Ed.). Contos de fadas: edição comentada e


ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: M. Fontes,


1980.

VÁSQUEZ RODRIGUES, Fernando. Declaração dos direitos


da criança leitora (e algumas disposições sobre a criança e
a literatura). Literarte, ano 1, n. 6, p. 1-4, 2000. Declaração
apresentada na Área de “Lectoescritura”, Santa Fé, Bogotá, em 27
de agosto de 1993. Publicado no Boletim El Libro. Disponível em:
<www2.estacio.br/graduação/pedagogia/literarte06/artigos.htm>.
Acesso em: 28 dez. 2009.

WELLECK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 4. ed.


[S.l.]: Publicações Europa América, [197-].

WILLIS, Jeanne; ROSS, Tony. Coelho Mau. São Paulo: Ática, 2009.

WIKIPEDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia. org/wiki/


Grafema>. Acesso em: 26 dez. 2009.

YUNES, Eliana; PONDÉ, Glória. Leitura e leituras da literatura


infantil. São Paulo: FTD, 1988. (Por onde começar?).

Referências 115
Currículo da Autora

Clarice Fortkamp Caldin


Possui Graduação em Biblioteconomia pela Universidade do Es-
tado de Santa Catarina (1992), Especialização em Organização
e Administração de Arquivos pela Universidade Federal de San-
ta Catarina (UFSC) (1996), Mestrado em Literatura pela UFSC
(2001) e Doutorado em Literatura pela UFSC (2009). Professora
no Departamento de Ciência da Informação desde 1995, minis-
tra, entre outras, as disciplinas: Biblioterapia, Leitura & Infor-
mação, Formação e Desenvolvimento de Coleções.

Anda mungkin juga menyukai