FERNANDO REY PUENTE

LEONARDO ALVES VIEIRA

ORGANIZADORES

A� fllO�OflA� De �CHclllNG
UF/V\G
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora: Ana Lucia Almeida Gazzola
Vice-Reitor: Marcos Borato Viana

EDIT0RA UFMG
Diretor: Wander Melo )Miranda
Vice-Diretora: Heloisa Maria Murgel Starling

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Carlos Antllnio Leite Brandlio
Heloisa Maria Murgel Starling,
Jose Francisco Soares
Juarez Rocha Guimariies
Maria das Gra� Santa Barbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
J Belo Horizonte
Paulo Sergio Lacerda Beirilo
Editora UFMG
2005

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 s u M A R 0
© 2005, Os autores
© 2005, Editora UFMG
Este livro ou parte dele niio pode ser reproduzido par qualquer meio
sem autoriza�o escrita do Editor

F488 As filosofias de Schelling /Fernando Rey Puente, Leonardo

Alves Vieira (Organizadores). - Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2005.

288p. - (Humanitas)

Inclui referencias.
ISBN: 85-7041-439-0 APRESENTA(:AO 09

1. Schelling, Friedrich WilhelmJoseph van, 1775-1854. FILOSOFIA OU FILOSOFIAS DE SCHELLING? 15

2. Filosofia alema - Sec. XIX. I. Rey Puente, Fernando. Arte e sistema 17
II. Vieira, Leonardo Alves.
Anuro Leyte Coello
CDD: 193.4
CDU: 101(430)
Ficha catalografica elaborada pela CCQC-Central de Controle de FILOSOFIA INICIAL DE SCHELLING 43
Qualidade da Catalogafao da Biblioteca Universitaria da UFMG A Filosofia pratica do jovem Schelling 45
Leonardo Alves Vieira

FILOSOFIA DA NATUREZA 69
Schelling: fil6sofo da riatureza
ou cientista da imanencia? 71
Marcia C. F. Gonr;alves

FILOSOFIA DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL 91

0 dilema de Schelling 93
Hugo Ochoa

Limite e realidade. Os primeiros passos

no Sistema do idealismo transcendental 113
EDITORA(:AO DE TEXTO: Ana Maria de Moraes Jacinto Rivera de Rosales
REVISAO DE TEXTO E NORMALIZA(:AO: Simone de Almeida Gomes
REVISAO DE PROVAS: Rodrigo Pires Paula e Vanessa Batista de Oliveira FILOSOFIA DA LIBERDADE 153
PROJETO GRA.FICO: Gloria Campos - Manga ¥ Teodiceia e o sentido da cria�ao
FORMATA(:AO: Eduardo Ferreira e Giane Mendes Figueiredo
na metaffsica schellinguiana de 1809 155
CAPA: Montagem de Giane Mendes Figueiredo a partir de detalhes de
obra de Caspar David Friedrich Luis Femando Cardona Suarez
PRODU(:AO GRA.FICA: Warren M. Santos
Da identidade absoluta ao Deus vivo
EDITORA UFMG e pessoal. Meras observa�oes para !er
o Freibeitsscbrift [1809] de Schelling 169
Av. Antonio Carlos, 6627 - Ala direita da Biblioteca Central - ·Terreo
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG 17,eresa Calvet de Magalbiies
Tel (31) 3499-4650 Fax (31) 3499-4768
www.editora.ufmg.br editora@ufmg.br FILOSOFIA FINAL DE SCHELLING 189
A questao pelo ser ou o saber
e sua realidade. Observa�oes sabre
o idealismo critico de Schelling 191
Heinz Eidam
Tempo e hist6ria em Schelling 213
Femando Rey Puente
A G R A D E C M E N T O S
SCHELLING NO i\MBITO DA
HISTORIA DA FILOSOFIA:
INFLUENCIAS E REPERCUSSOES 239
Sabre a tarefa da Filosofia da Natureza.
Uma reflexao a partir de Schelling 241

Ricardo Barbosa

Causalidade e auto-organizac;:ao 253

Os,QE__ganizadores nao poderiam deixar de expressar seus
Carlos Cime Lima
agradecimen_tos a todas as instituis;:oes que colaboraram
COLABORADORES 287 tanto para a realizas;:ao do "Congresso Internacional: As
Filosofias de Schelling" quanta para a publicas;:ao deste
livro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientffico e
Tecnol6gico (CNPq), Coordenas;:ao de Aperfeis;:oamento de
Pessoal de Nfvel Superior (CAPES) e Programa de P6s-Gra­
duas;:ao em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Fundamental, tambem, para o procedimento de inscris;:ao,
bem coma para o born andamento do dia-a-dia do Congresso,
foi o trabalho de Norma Guedes e, especialmente, de Andrea
Baumgarten. A elas se estende o nosso agradecimento.
A p R E s E N T A ç Ã o

Este livro reúne as conferências proferidas no "Congresso

Internacional: As Filosofias de Schelling", realizado de 10 a
14 de setembro de 2001 na Universidade Federal de Minas
Gerais, em Belo Horizonte. A intenção dos organizadores, na
medida em que este pôde realizar-se - pois nem todos os
. pesquisadores convidados puderam efetivamente comparecer
ao evento supracitado -foi propiciar um profícuo encontro
dos estudiosos brasileiros da obra de Schelling com seus
colegas estrangeiros.
A presente publicação dessas conferências, lamentavelmente
com bastante atraso devido a razões alheias à nossa vontade,
visa colocar à disposição da comunidade acadêmica brasileira
e do público interessado em geral algumas das mais recentes
pesquisas que estão sendo empreendidas acerca do pensa-
mento de Schelling, em nosso país e alhures.
A filosofia de Schelling já foi denominada, não sem razão,
por um de seus maiores intérpretes (X. Tilliete) como uma
filosofia em devir, em razão da grande variedade de paradigmas
adotados por Schelling nas distintas fases de sua obra. O
Congresso esforçou-se por refletir sobre esse devir, acom-
panhando, por meio de suas diversas conferências, a diversidade
temática presente ao longo da extensa produção filosófica de·
Schelling.
As conferências foram agrupadas obedecendo o mesmo
critério cronológico que convencionalmente estabelece dife-
rentes etapas do pensamento de Schelling. Assim, elas foram
reunidas seguindo a sucessão de: Filosofia Inicial de Schelling
(Leonardo Vieira), Filosofia da Natureza (Márcia Gonçalves),
Filosofia da Arte (Arturo Leyte), Filosofia do Idealismo Trans-
cendental (Hugo Ochoa e Jacin.to Rivera), Filosofia da
Liberdade (Theresa Calvet e Luis Cardona) e Filosofia Final
de Schelling (Heinz Eidam e Fernando Rey Puente), de acordo
com o tratamento que os diversos estudiosos consagraram a
esses momentos do pensamento de Schelling em suas próprias
reflexões. Há, entretanto, três importantes exceções, a saber:
a primeira e as duas últimas conferências. A primeira (a de
Arturo Leyte) visa precisamente questionar o próprio título e
a intenção do Congresso, qual seja, o de falar de "filosofias"
de Schelling; por isso, julgamos oportuno começar por ela,
na medida em que incitará o leitor a questionar a própria
orientação metodológica que preside a ordenação do presente
livro. Ela pode, também, ser interpretada como pertencente
ao contexto de uma reflexão sobre a Filosofia da Arte, justa-
mente em razão do papel peculiar da arte no pensamento de
Schelling, tal como compreendida por Arturo Leyte. As duas
últimas (as de Ricardo Barbosa e Cirne Lima) possuem um
caráter mais especulativo e menos histórico e, por essa razão,
julgamos conveniente incluí-las ao final da série dos textos
de cunho mais historiográfico.
Arturo Leyte, professor na Universidade de Santiago de
Compostela, Espanha, em sua conferência inicial, "Arte e sistema",
questiona o próprio intuito do Congresso, ao recusar-se a
falar de filosofias de Schelling, no plural. Para ele, há apenas
uma filosofia de Schelling, a qual, contudo, pode ser compreen-
dida por meio de diversas chaves exegéticas, uma delas a arte
(outras, por exemplo, seriam a natureza e a história), justa-
mente o que ele tenta mostrar em seu texto. Seguindo a antiga
distinção estóica da filosofia em física, ética e lógica, o autor
visa mostrar de que modo, em Schelling, natureza, história e
arte são os conceitos correspondentes daquela div.isão, o que o
obriga, então, a ter de explicar por que a arte e não a lógica
estabelecerá a mediação entre a necessidade e a liberdade, ou seja,
entre a natureza e a história, sendo ela, concorde a essa
perspectiva, a própria realização do sistema.
A filosofia prática do jovem Schelling, abrangendo o período
de 1794 a 1796, é estudada por Leonardo Vieira, professor da
Universidade Federal de Minas Gerais, em sua conferência
"A filosofia prática do jovem Schelling". Sua intenção é coor-
denar a filosofia prática com o sistema de filosofia com base
na idéia de Incondicionado. O sistema expõe o quadro teórico
abrangente, no qual Moral, Ética e Direito a filosofia prática
de Schelling - tematizam a liberdade moral dos sujeitos finitos
10
em busc~ realização máxima como seres livres. Esta
articulação entre filosofia prática e sistema permite ao autor
mostrar o significado da razão prática diante das instâncias
do eu empírico, eu transcendental e Eu absoluto.
Márcia Gonçalves, professora da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, procura ressaltar a importância da noção de
natureza em Schelling, em sua conferência intitulada "Schelling:
filósofo da natureza ou cientista da imanência?". A autora
mostra o caráter não mecanicista dessa noção em Schelling e
de que modo ela possui uma inteligibilidade própria. Ao comparar
a filosofia de Schelling com as pesquisas da ciência da natureza
de sua época, a autora evidencia o profundo e atualizado
conhecimento que o filósofo de Leonberg possuía das disci-
plinas científicas. Mas a filosofia da natureza para ele tinha,
além de uma dimensão especulativa, igualmente uma prática
e outra poética. Segundo a autora, esse idealismo objetivo
de Schelling visava superar a dicotomia sujeito/objeto, carac-
terística da Filosofia Moderna.
Em sua conferência "O dilema de Schelling", Hugo Renato
Ochoa, professor da Universidade Católica de Valparaiso,
Chile, defende a posição segundo a qual as oscilações
constatadas na filosofia de Schelling são a expressão da busca
de um ponto intermediário entre, de um lado, o idealismo
subjetivo de Fichte (tomando emprestado de Hegel essa quali-
ficação da filosofia de Fichte) e, de outro, o realismo afetivo de
Jacobi. Schelling, segundo Ochoa, procura desenvolver um
pensamento na estreita franja de um real-idealismo, objetivo-
subjetivismo. Além das dificuldades de conciliação dos
extremos, esse filosofar do "caminho do meio" sempre parecerá
suspeito para quem finca pé no realismo puro ou mitigado,·
ou no idealismo também puro ou mitigado.
Na conferência "Limite e realidade - os primeiros passos
no sistema do idealismo transcendental", Jacinto Rivera,
professor da Universidade Nacional de Educação à Distância
(UNED), Espanha, aborda os primeiros passos no Sistema do
idealismo transcendental, apontando para o fato de que
Schelling, após recolher as contribuições de Kant e Fichte,
empreende uma reflexão sobre o Eu absoluto e cósmico, para
além do eu transcendental. No Sistema do idealismo trans-
cendental, Schelling retoma teses desenvolvidas inicialmente
11

no texto "Do Eu como princ1p10 da filosofia ou sobre o
Incondicionado no saber humano" e, posteriormente,
aprofundadas em suas investigações sobre a natureza.
Luis Cardona, professor da Universidade Javeriana,
Colômbia, em sua conferência "Teodicéia e o sentido da
criação na metafísica schellinguiana de 1809", tenciona
pontuar o modo como Schelling respondeu ao problema
ínsito à toda teodicéia racional, a saber, ao problema do mal.
Na medida em que Deus é também pensado como uma vida
Ele é igualmente submetido ao mal, ou seja, o mal não é aqui
concebido, seguindo uma longa tradição, como privatio bani,
mas antes como uma positividade efetiva, como um não-ser
que não deveria ser e, entretanto, é.
Na conferência "Da identidade absoluta ao Deus vivo e
pessoal - meras observações para ler o Freiheitschrift de
Schelling", Theresa Calvet de Magalhães, professora aposentada
da Universidade Federal de Minas Gerais, explora essa
associação entre Deus e a vida. Deus é pensado por Schelling,
neste texto, como um Ser vivo que obedece a uma importante
dinâmica, ressaltada por Heidegger, cuja exegese é esclarecida
pela autora, entre o fundamento ( Grund) e a existência
(Existenz).
Heinz Eidam, professor da Universidade de Kassel
Alemanha, investiga em sua conferência "A pergunta pelo se;
ou o saber e sua realidade - observações sobre o idealismo
crítico de Schelling", a questão do saber em Schelling, levando
em conta a filosofia negativa e a filosofia positiva. Na primeira,
o saber é interpretado em sua feição apriorística, com base
na identidade do fundamento real e do fundamento ideal. Na
segunda, por sua vez, que começa pela existência absoluta,
haverá uma alteração em sua interpretação da realidade do
saber. Este tem agora, como ponto de partida, um ser que
antecede todo pensar, já que há um pensar justamente
porque há um ser.
Em sua conferência intitulada "Tempo e história em
Schelling", Fernando Rey Pu ente, professor da Universidade
Federal de Minas Gerais, procura analisar os conceitos de
tempo e história em Schelling, principalmente a partir,
respectivamente, dos textos "Eras do Mundo", "Filosofia da
Mitologia" e "Filosofia da Revelação". O objetivo do autor é 0
12
//
de mostrar a importância vital desses conceitos, em especial,
na filosofia final de Schelling, bem como suas possíveis
influências no pensamento pós-idealista.
Ricardo Barbosa, professor da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, em sua conferência "Sobre a tarefa da Filosofia
da Natureza - uma reflexão a partir de Schelling", tem por
objetivo evidenciar o impulso materialista de Schelling ao se
ocupar do tema da natureza sem, contudo, incorrer em uma
posição pré-crítica. Essa leitura leva o autor a traçar paralelos
com Marx e com a tradição marxista posterior, como, por exemplo,
a filosofia de Habermas.
C. R. Cirne Lima, professor da Universidade do Vale
dos Sinos, Rio Grande do Sul, articula em sua conferência
"Causalidade e auto-organização" a Teoria de Sistemas, também
chamada de Teoria de Auto-Organização, criada por Ludwig
von Bertalanffy, em 1945, e destinada a um grande sucesso
na segunda metade do século XX, com a teoria sobre causa
sui de pensadores tais como Platão, Platino, Proclo, Agostinho,
Nicolaus Cusanus, Giordano Bruno, Espinosa, Goehte, Fichte,
Schelling e Hegel. A Teoria de Sistemas é a retomada científica
dessa longa e rica tradição filosófica ocidental. O atestado
dessa filiação filosófica é identificado por Cirne Lima já na
dedicatória do livro, na qual Bertalanffy oferece-o ao Cardeal
Nicolaus Cusanus, a Leibniz, a Goethe, a Aldous Huxley e a
seu antepassado, o cosmógrafo Paulus von Bertalanffy.
Esperamos que a presente publicação das conferências do
congresso de 2001 possa, apesar da defasagem de quatro
anos, incentivar e contribuir para o debate acerca das idéias
de Schelling na comunidade filosófica brasileira, idéias que,
contrariamente ao que ocorre em relação ao pensamento de
Kant e de Hegel, "parentes filosóficos" de Schelling, ainda
não ganharam a devida divulgação. Que esta nossa pequena
contribuição possa estimular os alunos a lerem e a conhecerem
melhor Schelling, e fazer com que os pesquisadores em
formação o estudem com a devida e merecida atenção.
Femando Rey Puente
Leonardo Alves Vieira
13
fllO~OfiA OU fllO~OfiA~ Dt ~CHtlliNG?
A R O L E Y T E c o E L L O

ARTe c ~~~TeMA

O título de minha conferência pode ser entendido de duas

maneiras: como uma reflexão em torno do significado da arte
em Schelling, mas também como uma certa forma de introdução a
toda sua filosofia. E ambos os propósitos são solidários. Por
outro lado, o tema da arte é um caminho excepcional para
entrar não só no pensamento de Schelling, mas também
naquele hoje conhecido como "Idealismo alemão" ou "Idea-
lismo absoluto". E, a partir desta consideração, toma-se quase
impossível referir-se à arte no sentido idealista sem ter presente
o conceito de sistema. Desde o início é obrigatório que se
perceba esta emaranhada situação.
Mas hoje, que sou convidado a pronunciar a primeira confe-
rência de um Congresso cujo título se refere a "As filosofias
de Schelling", torna-se obrigatório que pensemos neste título
fazendo a relação com o que acabo de dizer sobre a arte e o
sistema. Filosofias de Schelling? Quais são? Ecoam para todos
nós, imediatamente, respostas, e não só uma, para esta
pergunta. São: a filosofia da natureza, a filosofia transcen-
dental, a filosofia da arte, a filosofia da identidade, a filosofia
da liberdade, a filosofia da história, entendida como filosofia
da mitologia e da revelação. Assim, sob esse pressuposto, se
o tema a tratar é "arte e sistema", parece que as referências
serão direcionadas só a uma das filosofias de Schelling, a
saber, à "filosofia da arte". Mas minha pretensão é outra e
cbnsiste em entender como, através do significado da arte,
podemos entrar não só em uma das filosofias de Schelling,
na filosofia da arte, mas também na filosofia de Schelling, na
filosofia no singular. Com isto, estou supondo duas coisas:
a) Que só há uma filosofia de Schelling e, com isso, atento
diretamente contra o título deste congresso; b) Que há mais
de um caminho de introdução a essa filosofia, por mais que
a arte constitua um dos mais privilegiados. Para captar seu
privilégio, é preciso aludir a outros que podem sê-lo, pelo
menos na mesma medida. Entre os vários possíveis, elejo só
dois: a natureza e a história. Assim, natureza, história e arte
constituem não só "temas" da filosofia de Schelling, mas
"caminhos" para nos reencontrarmos com a unidade de sua
filosofia. Qual é essa unidade continua sendo o problema,
mas, seja como for, esse não é um problema exclusivo de
Schelling, mas da própria filosofia quando chega a um ponto
histórico determinado, a saber, ao ponto alcançado por Kant
no final de sua obra, depois de publicadas suas três críticas.
É possível ir mais longe, mesmo correndo o risco de nos
distanciarmos demais de nosso propósito, e dizer que, na
realidade, o problema da unidade da filosofia é o próprio
problema da filosofia, que, historicamente, foi colocada como
um saber universal, isto é, geral e total, e, por sua vez, dividiu
essa totalidade em regiões temáticas. Concretamente, três: a
physís, ou seja, a natureza; o êthos, ou seja, a ação e a conduta
humana e o lógos, quer dizer, a pesquisa sobre o dizer e o
discurso que nos permite nos referirmos tanto à natureza como
ao humano. Essa divisão, que procede do helenismo,, não
abandonará a filosofia nunca mais, e nós, embora em um
contexto muito diferente, continuamos falando em ciências
da natureza, ciências do espírito ou ciências humanas e ciências
formais.
Quando nomeio como caminhos privilegiados de entrada
em Schelling a natureza, a história e a arte, não faço outra
coisa que reproduzir essa situação histórica, reiterá-la, mas,
se observarmos bem, com uma mudança: já que ninguém
duvida da correspondência dos dois primeiros títulos do caminho,
natureza e história, com os da tradição, physis e êthos, a
proposta, agora, é colocar no lugar da lógica nada menos
que a arte. E o que tem a ver a lógica com a arte? Por acaso
não têm funcionado como realidades distintas, e até opostas,
na tradição moderna que chega até Kant e que os jovens
idealistas carregam? A resposta a essas perguntas tem um
alcance que ultrapassa as possibilidades desta conferência,
mas, passando por cima das dificuldades, também nos pode
ensinar alguma coisa, não só de nosso tema, Schelling, mas
ainda como Schelling inaugura propriamente o que podemos
chamar "Idealismo absoluto". De fato, porque se está insinuando
18
que o /aber representado pela lógica no conjunto dos três
grandes temas da filosofia pode ser ocupado pela arte. E esse
"saber" da lógica se caracteriza porque não é só um saber a
mais sobre um tema ou uma região da realidade, como
podem ser a natural ou a humana, mas é também o saber
sobre uma relação e um vínculo: sobre a mesma unidade. Se
a lógica trata do lógos, do discurso em si mesmo (que não
tem um conteúdo, porque é a pura forma do dizer e do pensar),
mas ainda de como, através desse discurso, podemos vincular
as duas esferas fundamentais e opostas da realidade, a natu-
reza e a história, o mundo da necessidade e o mundo da liber-
dade em termos kantianos; se o papel da lógica for esse, é
também o da arte, porque se ocupa, precisamente, do vínculo
entre a necessidade e a liberdade, entre o não-consciente da
natureza e o consciente associado à liberdade própria da ação
humana. Diante disso, no início do Idealismo alemão na
origem vinculada a Schelling, Holderlin e Hegel - , arte em
lugar de lógica, mas não como se esses dois termos fossem dois
opostos, e sim na medida em que ambos pressupõem e
aludem a um saber que está por cima e mais além, tanto do
conhecimento da natureza quanto da decisão humana.
A chave desta questão reside em captar como a tarefa idealista
consistiu, desde o primeiro momento, em superar a divisão
da filosofia, sobretudo em sua forma kantiana, e em atribuir
à razão um papel superior ao que o próprio Kant lhe concedeu.
A razão é o nome, provisório, desse "saber do vínculo" e da
unidade de todas as partes da filosofia: é o mesmo saber que
está na estrutura do juízo, isto é, unir um com o outro e, em
definitivo, unir e vincular tudo. A razão, em relação aos
primórdios do Idealismo de Schelling, Hegel e, em um trecho.
do caminho, também Holderlin, não queria deixar de ser aquele
lógos de Heráclito em que consistia tudo e segundo o qual
tudo era produzido. 1 Mas aquela ingenuidade do lógos de
Heráclito não é mais possível depois da história da filosofia,
quando a filosofia já foi dividida em temas. É quando, então,
é preciso reinterpretar esse lógos. Assim, se a razão trata do
vínculo e na filosofia moderna essa questão é justamente a
do juízo, a da unidade do particular e do universal, do sujeito
e do predicado; se, na realidade, trata-se da união de tudo e
esse tudo tem sido compreendido "tematicamente" pelo menos
de duas maneiras, como natureza e como espírito (ou história),
19

no fundo, trata-se da possibilidade de uma razão quer dizer
da possibilidade de um juízo que unifique tud~. Mas ess~
juízo não pode ter a estreita fórmula do juízo de conhecimento,
vinculado exclusivamente ao conhecimento da natureza. Tem
que poder apresentar-se como "juízo estético" no qual
apareçam unidas a necessidade da natureza e a liberdade
humana. O problema fundamental é de, apesar de tudo, saber
como se pode unir o que é diametralmente oposto; como se
pode unir dois temas, que por sua vez se referem a duas
partes da realidade. Schelling, depois de Kant e de Fichte, é
o primeiro que vê isso como problema e entende que nunca
seria possível unir dois temas, dois reinos, duas esferas, a
menos que no fundo não sejam temas, reinos ou esferas
distintos, mas "o mesmo". Mas, filosoficamente, o que é esse
" o mesmo "?. p o d e ser a arte, uma vez que já ganhou o lugar à
lógica mediadora? Mas, nesse caso, simplesmente teríamos
unido dois temas em um tema, e a arte não é um tema (ou 0
é só quando considerado empiricamente, mas não vinculado
à filosofia, como órgão da mesma), é um "saber" não estrita-
mente temático, que consiste em vincular. "O mesmo" não
pode ser a arte, porque -a arte, seja como for, pode ser aquilo
que diz, isto é, que mostra esse "o mesmo", que o revela. Em
conseqüência, por estranho que pareça, se podemos dizer de
que se ocupa a arte, o que sabe, definitivamente, não será
das obras da arte, mas sim da identidade. Com isto, indica-se
uma resposta à pergunta relativa a por que a arte surge.
Com essa descrição como preâmbulo, já entramos de cheio
na problemática do Idealismo e no sentido do título desta
conferência: "Arte e sistema". · geral ou ontologia, reduzida em Kant à Crítica da razão pura,
O sentido da conjunção "e", em suma, da relação entre a
arte e o sistema, pode ser entendido a partir de uma pergunta
fácil de se compreender: por que a arte surge? Por que a arte
acaba ocupando um papel tão relevante, podendo até ocupar
o lugar da lógica e se constituir - assim disse Schelling em
um momento de seu caminho- em "órgão da filosofia"? o
que há por trás desse trânsito da lógica para a arte? Para
resp_onde:, temos que retornar a Kant: pode-se mostrar que,
na filosofia de Kant, o juízo estético tem um caráter exclusi-
vamente subjetivo e que o conceito de fun é meramente regulador,
mas não constitutivo, com o qual não haveria, propriamente,
20
/
esse tliânsito da lógica para a arte. E também poderia ser
acrescentado que, contrariando Kant, o Idealismo confere um
estatuto novo ao juízo teleológico e estético. Mas essas
respostas não explicam exatamente o que se pergunta. A pergunta
é por que isso acontece, por que a razão se desmarca de sua
representação meramente lógico-conceituai e se pretende um
saber de tudo, que já não pode assumir só o lógico, já que
nele terá que estar incluído também o não-lógico. E talvez a
verdadeira resposta nada tenha a ver com motivos externa-
mente históricos que se esgotam em sua formulação, como
que aí se produz a passagem da Ilustração ao Idealismo ou
ao Romantismo etc. Talvez tenha a ver com um motivo
exclusivamente filosófico, que efetivamente explicaria, por
sua vez, a decisiva transformação produzida no marco da história
da razão modema. Que explicaria, também, porque o Idealismo
não deixa de ser um certo final da filosofia, porque consuma
sua aspiração inicial: aquela que a define como um saber
acerca do "ser em geral e em sua totalidade". Se a primeira
parte desta fórmula, "ser em geral", constituiu a dedicação do
que escolarmente chamamos "ontologia" ou "metafísica geral",
a segunda parte, que se refere à "totalidade", constituiu a da
"metafísica especial" que, por sua vez, dividiu o ser em três
grandes regiões: o mundo, a alma e Deus; ou, dito de outra
maneira, que nomeou essa totalidade do ser de três perspectivas
diferentes. Já conhecemos a conclusão kantiana: dessas três
regiões, das que a razão só tem "idéia", mas não conhecimento,
nada pode ser dito cientificamente. A metafísica especial é
impossível ou impraticável cognoscitivamente. Se a metafísica
define só as condições de possibilidade de objetos em geral
(transcendental), quer dizer, refere-se unicamente a condições·
formais, mas em algum caso à realidade material de fato, em
nenhum caso aos conteúdos, em nenhum caso ao que o próprio
Kant apontou e intitulou com o nome de "o empírico". E com
·Kant, esse empírico permanece estranho à filosofia. Por certo,
não ao conhecimento científico, à conduta humana ou a que
sobre isso formulemos juízos de gosto, porém, alheio aos
princípios da filosofia e, em definitivo, ao horizonte da verdade,
que se joga em outro terreno: no da ontologia, mas compre-
endida só formalmente, ou no da metafísica especial, mas
compreendida só idealmente. O reino do empírico aparece
21
 destronado do reino da verdade, ao mesmo tempo estranho
à lógica formal e à metafísica ideal. Esta concepção da filosofia,
tal como acabo de resumir, tem a vantagem de não conduzir a
erro, porém, tem a desvantagem de situar a verdade fora da
realidade empírica. E em definitivo, não é esta só uma meia
verdade? "Fora das determinações objetivas produzidas pelas
categorias, resta um gigantesco reino empírico, o da sensibi-
lidade e da percepção, uma aposterioridade absoluta para a
qual não se aponta aprioridade alguma ... "/ diz Hegel, em
1801, no seu escrito sobre a diferença entre os sistemas de
Fichte e Schelling. Porque o reino empírico é aquele que deve
ganhar, mas não para a ciência, tarefa a que se dedicam nesse
momento as novas ciências naturais, e sim para a filosofia. E
se a filosofia aspira a fazer cumprir aquela fórmula original,
conhecer o ser em geral e em sua totalidade, chegou a hora
de concretizar e realizar essa tarefa. E essa é a tarefa idealista
que consuma a transformação da filosofia modema, preocupada
desde Descartes com os princípios da realidade, que podem
ordenar-se em um sistema de caráter lógico-matemático-
geométrico, mas que não se preocupa com a realidade. E a
realidade não exclui nada, nem os princípios nem seu cont.eúdo.
Se existe um sistema, o sistema abarca tudo; ou melhor, é o
próprio todo, é a totalidade. Quando Hegel enuncia, no início
de sua Fenomenologia do espírito, que a verdade é o todo e
que a única forma de apresentar a verdade é a do sistema,3
existe por trás essa problemática mencionada e, sobretudo,
existe por trás Schelling, que põe o sistema a funcionar. E
que o põe em funcionamento passo a passo, para começar,
em oposição a Kant, rrias também em oposição a Fichte,
desmontando uma concepção limitada do sujeito, que nunca
poderá ser verdadeira se persistir em seu enfrentamento e
em sua oposição a um objeto que lhe foge. Se, frente a isto, a
verdade permanece ao lado do sujeito, não existe verdade,
porque de novo o conteúdo do empírico é omitido, nomeando-o
negativamente, como Fichte, como "não-eu". Para Schelling,
desde o início, se o Eu quer ser autêntica e verdadeiramente
Eu, tem que conter o sujeito e o objeto, a forma e o conteúdo,
ou seja, os princípios e o empírico. Só desse Eu poderá ser
dito, então, que constitui um sistema, e não um mero sistema
geométrico do pensamento, mas do ser; ou, ainda, o sistema
que contém o pensar e o ser, os dois grandes opostos da
22
filosofia. Resultará claro que esse Eu já pouco tem a ver com
o eu da consciência, no sentido de Descartes, de Kant ou do
próprio Fichte. Nesse sentido, e só nesse, pode-se dizer que
esse Eu é absoluto, ou melhor, que é o absoluto. Mas o absoluto
não é um tema a mais ou uma região do ser, porque nesse
caso, tampouco seria o absoluto. O absoluto é o que não
guarda relação com nada, o que está "des-ligado" (absoluto,
propriamente significa isso, "desligado") e, nesse sentido, o
que não é nem objeto nem sujeito, porque ambos são sempre
relata ou membros de uma oposição: o objeto se define em
relação ao sujeito e, vice-versa, este a partir daquele. Mas o
absoluto tampouco é um terceiro no qual chegam a coincidir
os dois opostos, porque, nesse caso, o único feito até entao
teria sido somar (por exemplo, o pensamento ou a res cogitans
ao ser, ou a res extensa) e ter uma substância maior, essa
substância de Espinosa na qual se inspira o idealismo dos
primórdios, mas que, por sua vez, tem que ser reinterpretada
para poder definir conseqüentemente o absoluto e não
simplesmente postulá-lo.
Seja como for, o sistema é sistema do absoluto e isso quer
dizer o seguinte: para começar, que o sistema é o absoluto,
quer dizer, a própria relação ou vínculo entre o pensamento
e o ser, a consciência e a realidade, o sujeito e o objeto. Não
é uma terceira substância, é a unidade ou relação entre as
duas substâncias, aquelas que Descartes chamou res extensa
e res cogitans e que a filosofia alemã nomeia, de novo, como
"natureza" e "espírito", necessidade e liberdade, de que se
ocupam respectivamente a razão teórica e a razão prática.
Mas "toda" a natureza e "todo" o espírito, quer dizer, os princípios
e seu conteúdo, ou seja, os princípios da natureza e a natureza .
empírica; os princípios do espírito, da inteligência, e seu
conteúdo empírico, o reino da história. Como é possível um
sistema semelhante? Agora já não se trata de um sistema
geométrico, que se encontra fora do tempo, sub specie aeterni,
mas daquilo que ocorre no tempo. E isto, sim, é filosofica-
mente novo, porque agora, à filosofia é pedido que dê conta
da razão de tudo. Para começar, do próprio tempo, daquilo
que sempre escorre e que se torna tão difícil, para não dizer
impossível, de se apresentar como sistema. Porque justamente
o que uma determinada filosofia moderna desprezou como
empírico era o temporal e acidental. Agora o absoluto, o desligado
23
 é a unidade de natureza e espírito, mas atendendo a seu
verdadeiro ser, que é seu caráter temporal: sistema do tempo
frente ao sistema geométrico: no fundo, arte frente à lógica.
Do idealismo de Schelling, em oposição a Kant e Fichte, procederá
não já o reconhecimento filosófico do absoluto, mas sua
fundamentação. Na realidade, o idealismo é a fundamentação
do absoluto, que previamente foi reconhecido e nomeado e
que só pode ser compreendido em sua múltipla e dive;sa
relação como sistema. Assim, já não tem sentido falar de um
sistema geométrico do pensamento, e sim do sistema do real.
Que este sistema do real não deixe de ser, para Schelling e
para o idealismo, o mesmo sistema da razão só quer dizer
que, para o idealismo, "razão" já significa algo diferente do
entendimento e do intelectual. A razão é o sistema, do que
nada fica fora. A tarefa é fundamentar, ou seja, reconstruir
esse empírico para que, não deixando de ser empírico, seja
também filosófico. Podemos falar de um "sistema empírico"
que é o sistema racional. Por acaso Hegel quis dizer, anos
depois, algo diferente quando anunciou que só o racional é
real e o real racional? Então já se trata da transformação do
meramente empírico em real, de uma tradução que cc:;mstitui
o sistema racional. Mas Schelling já havia falado antes. E o
fizera, reconstruindo a natureza em uma filosofia da natureza
e o espírito em uma filosofia transcendental.
Com esta longa explicação, procuramos responder à
pergunta: Por que surge a arte como motivo fundamental
para não dizer como princípio da filosofia? Torna-se impossívei
entender essa passagem ao que está sendo aludido, que é a
passagem do idealismo transcendental ao idealismo absoluto
ou a uma metafísica do absoluto, sem considerar o papel qu~
representa a arte. Ainda não paramos para julgar o tema da
arte no seio da filosofia de Schelling, a não ser para responder
à pergunta prévia de por que surge. Para isso, consideramos
necessário explicar o que chamei essa "passagem da lógica
para a arte" do único modo possível: explicando o sentido
mesmo do absoluto e do sistema inerente a essa nocão como
resultado de uma transformação na filosofia mod~rna, que
conduz à questão da totalidade: uma totalidade empírica que
dá direito a falar de um absoluto empírico (embora como fórmula
provisória) e de um sistema empírico, mas não porque, aqui,
24
empírico seja a determinação de um lado frente a outro, por
exemplo, o transcendental. Mas porque "empírico" torna-se a
denominação provisória do que acabará sendo chamado e
considerado como real, uma realidade da qual serão insepa-
ráveis o transcendental e o empírico, quer dizer, o subjetivo
e o objetivo. Essa noção de realidade, absoluto ou sistema, à
que convirá o nome de "experiência" mais do que o de
"empírico", será o único tema da filosofia.
Torna-se claro agora entender o que acrescenta, de entrada,
a arte frente à lógica: o elemento sensível no qual nenhuma
realidade completa é verdadeiramente possível. Mas isso choca
diretamente com Kant, que, em sua última crítica, a Crítica do
juízo, mostra firmemente:
O que na representação de um objeto é meramente subjetivo,
quer dizer, o que constitui sua relação com o sujeito e não
com o objeto, é a qualidade estética da mesma; mas o que nela
serve ou pode ser utilizado para a determinação do objeto
(para o conhecimento) é sua vali dez lógica. 4
A diferença entre estética e lógica, no sentido transcen-
dental, que guia todo o desenvolvimento da Crítica da razão
pura, e que reitera como um eco a diferença metafísica entre
sensível e supra-sensível (não-sensível), torna-se irrenunciável
para Kant. No início da primeira crítica, remete à origem dessa
diferença, aí entendida como diferença entre sensibilidade e
entendimento, que localiza em uma "desconhecida raiz
comum" de ambas. Mas, para o próprio Kant, esta raiz comum
é, em si mesma, desconhecida e não resultado de uma inca-
pacidade humana, o que sanciona como definitiva, ontolo-
gicamente, a diferença entre o subjetivo e o objetivo. E o subjetivo
em uma representação, o que não pode chegar a ser um
elemento de conhecimento, também "é o prazer ou a dor que
a ela vai unido, já que através dele não conheço nada do
objeto da representação ... "5 Para Kant, não se trata de negar
a qualidade do estético e sim sua validez lógica, sua validez
como conhecimento. E "realmente" o prazer e a dor não trazem
um conhecimento do objeto? Está claro que tudo dependerá
do que entendamos por conhecimento, já que, se focalizamos
sua característica transcendental, a resposta kantiana é correta:
o prazer e a dor têm a ver com a sensação e o sentimento e,
25
portanto, deles está excluída a universalidade inerente ao
conhecimento lógico dos objetos. Mas se justamente partimos
de que aquilo que realmente tem que "mostrar" a filosofia é
isso - que a princípio resiste à universalização por sua
característica empírica (o sentimento de prazer e dor), defini-
tivamente, o individual e singular, na qual torna-se difícil ou
impossível reconhecer a unidade - , o transcendental fica
insuficiente e então é necessário estendê-lo. E isso é preci-
samente o que faz Schelling: "Ampliar o idealismo transcendental
ao que deve ser na realidade, ou seja, um sistema de todo o
saber... mediante a extensão efetiva de seus princípios a todos
os problemas possíveis em relação aos objetos principais do
saber. .. "6 Assim, constitui-se o transcendental no seio de um
sistema, mas não já do conhecimento, senão do saber; não já
dependendo do entendimento, mas de uma razão que ampliou
sua visão até compreender o conjunto da realidade, incluído
o tradicionalmente desprezado, entre outras coisas, o sentimento
de prazer e dor.
Mas não basta sentenciar, neste novo marco, que este
sentimento constitui conhecimento objetivo, já que foi dito
que não se trata de reconhecer uma validez lógico-cognosci-
tiva e sim de fundamentar uma validez metafísica do saber.
Isto significa, aproveitando o significado kantiano de metafísica:
superar o transcendental para alcançar princípios que tornem
possível, a priori, uma determinação superior dos objetos cujo
conceito foi dado empiricamente. Trata-se, enfim, de uma
Metafísica, quer dizer, de uma filosofia que vincule o sensível
e o supra-sensível, o reino do objeto e o reino do sujeito, o
empírico e o transcendental, em uma unidade· que, como tal,
é absoluta. Sob este aspecto, tem sentido falar de uma meta-
física do absoluto, sempre que entendamos que "metafísica"
é o nome que o idealismo pode reservar para o "trânsito" do
sensível ao supra-sensível e não meramente para o conhecimento
do supra-sensível. E esse trânsito é o sistema. Se o sensível vale
como característica do que se conhece como natureza e o supra-
sensível do que se conhece como espírito, quer dizer, objeto
e sujeito, inconsciente e consciente, então, o sistema é o trânsito
da natureza ao espírito, o processo no qual se estende a unidade
de sua dimensão inconsciente à sua culminação consciente. O
sistema, quer dizer, o vínculo, não é um terceiro elemento
que é acrescentado aos outros dois que já existem, a natureza
26
e o espírito. É a unidade desse trânsito ou, o que é o mesmo, o
trânsito ou o processo mesmo. Mas isso significa que, para
que tal processo possa produzir-se, no natural tem que
haver já rastros do espiritual, na mesma medida em que o
natural mesmo nunca poderá ser superado totalmente e
permanecerá exatamente como aquilo que faz possível a
consciência. Schelling poderá dizer que este processo é "a
história da autoconsciência", mas isso significará que é tanto
autoconsciência como história, quer dizer, tanto posição
como movimento: não há posição, leia-se, a do sujeito ou
a do objeto, a não ser no horizonte do devir ou movimento
e, assim, objeto e sujeito não são mais que momentos ou
potências dessa história, potências que, por sua vez, estão
sujeitas ao desenvolvimento: do inorgânico ao orgânico,
do consciente à autoconsciência.
O que acontece é que essa metafísica do trânsito, que
certamente oferece a possibilidade de um saber original (quer
dizer, das origens e de seu desenvolvimento), apresenta o
próprio trânsito como refratário ao conhecimento, pois o
trânsito nem se detém nem se apresenta como tal; é, digamos,
incognoscível e o que sabemos dele não deixa de ser uma
reconstrução que se faz desde o final, desde uma auto-
consciência que quer encontrar suas origens no que não é
ela, no outro de si mesma. Schelling, e também Hegel, neste
momento, reconhecem a impossibilidade do conhecimento do
absoluto, precisamente porque sua constituição é metafísica,
precisamente porque constitui a unidade de dois âmbitos,
uma unidade cuja presença não é possível. Agora, o supra-
sensível pode ser entendido não como o formal frente ao
material, pois se fala de um só ser, mas também como o infi-.
nito da atividade ou do processo frente às posições finitas
que adota e sob as quais surge. Em definitivo, a oposição
que configura a metafísica do sistema é a da relação entre
o infinito e o finito; ou, dito em outros termos: entre a
apresentação do absoluto, que se torna inacessível, e, ao
apresentá-lo, o que se apresenta dele. De entrada, do ponto
de vista lógico (e sujeito e objeto constituem duas posições
lógicas), o sistema não deixa de ser uma quimera, uma
construção racional de caráter exclusivamente dialético no
sentido kantiano, mas não o que revela a própria natureza da
ra.zão. É preciso que esta natureza da razão, que é precisamente
27
 seu sistema, se revele em seu ser. E é esta revelação que é
dada pela arte. Inicialmente, o sistema, ou é sistema da arte ou
só será a representação de uma oposição, de uma dualidade,
mas não da unidade procurada, não do absoluto. "Arte e
sistema" voltam a aparecer como termos solidários na metafísica
idealista do absoluto. A própria obra de arte terá que refletir a
efetivação do trânsito e, portanto, a realização da metafísica
será responsabilidade da arte. A arte é a realização do sistema.
A fórmula "filosofia da arte" corre o perigo de ser mal-
entendida no conjunto da filosofia de Schelling. Já aludimos
aqui a um desses perigos: tomar a arte como um objeto ou
um tema da filosofia, como poderia ser a natureza. De alguma
forma, para desfazer esse mal-entendido, poder-se-ia dizer,
sem perigo de errar, que "a filosofia da arte é toda a filosofia
que existe". Mas essa nova forma de entender a questão, quer
dizer, identificando filosofia da arte com filosofia, tem o problema
de não ser exclusiva. Também em Schelling, sem perigo de
erro, poder-se-ia dizer que "a filosofia da natureza é toda a
filosofia que existe". Seguramente também no caso, embora
seja mais litigioso, de uma "filosofia da história". Mas isso,
segundo vimos, porque natureza, história e arte não são temas
quaisquer, senão o que o próprio Schelling chamará "potências"
do absoluto: as formas sob as quais o absoluto pode apre-
sentar-se. Mas, certamente, dentro das três potências, a arte
goza, até um momento determinado, de uma posição privile-
giada, porque é o momento de encontro da natureza e da
história, da natureza e do espírito e, enfim, convergência de
uma filosofia da natureza e uma filosofia transcendental que,
pela primeira vez, por volta de 1800, pôde apresentar-se como
versão do sistema. Mas, de que sistema? Obviamente, do sistema
da identidade que, definitivamente, expressa a essência mesma
do absoluto um e único, esse absoluto que coincide com tudo
o que existe e que também pode ser chamado com o nome de
Deus, como, por outro lado, Espinosa fez antes.
Mas uma diferença a mais que separa uma filosofia da arte
de uma filosofia da natureza é que aquela constitui o modo
de acesso e conhecimento da natureza, que é, por sua vez, só
uma perspectiva do absoluto, aquela que o considera pelo
lado objetivo e real; enquanto a arte pretende constituir-se
como um saber do absoluto mesmo, um saber que não é conhe-
cimento (pois isso rebaixaria a potência da arte a mero artifício,
28
por reduzi-la a conceito e a regras), porque supõe algo a mais:
a apresentação mesma do absoluto (a natureza é só presença
do absoluto). Através da arte, ganhamos a compreensão completa
do saber, que permite que tenha lugar e se apresente o que
não pode ser conhecido pelo entendimento segundo categorias
e conceitos. Isto constitui a passagem mais relevante que
permite entender aquele trânsito do lógico ao estético, que
conduz de uma compreensão limitada do sujeito - como
sujeito de conhecimento - , à compreensão do sujeito ilimi-
tado (ou, o que é o mesmo, como aquela relação absoluta
entre o limitado ou finito e o ilimitado ou infinito). E o sujeito,
assim entendido, já não é a res cogitans, frente à res extensa,
frente ao objeto, mas o sujeito no qual concorrem, às vezes
violentamente, a consciência e a natureza. E esse sujeito, que
é absoluto, é aquele de quem se pode saber através da arte.
Esse sujeito é quem Schelling, além de Descartes, Fichte e
Kant, chamou simplesmente "Eu", um Eu que não é a mera
consciência, porque integra os dois opostos; um Eu que não
deixa de ser o combate entre duas forças antagônicas, a da
pura necessidade inconsciente (a natureza) e a da pura liber-
dade (a consciência ou o espírito).
Mas essa identificação que estamos fazendo entre a arte, o
absoluto e o eu pode se tornar confusa, ou muito rápida, se
não atendemos à alguma dificuldade que temos que resolver
e que nos dá direito a sustentar uma tese em relação à questão
da arte e do sistema em Schelling. Essa tese pode ser assim
enunciada: a arte não representou sempre o mesmo papel na
evolução de Schelling e o fato de não se entender isso pode
trazer prejuízo também à compreensão de nosso título, ou
seja, a relação entre a arte e o sistema. Entre 1795 e 1803,
pode-se reconhecer um desenvolvimento fulgurante da filosofia
de Schelling no que também está implicado um desenvolvi-
mento da compreensão da arte. Vamos observar esse desen-
volvimento em três etapas:
- A primeira, vinculada à redação do texto conhecido como
o "Mais antigo programa de sistema do idealismo alemão" 7
e as Cartas filosóficas sobre dogmatismo e criticismo. 8
Poderíamos falar de uma compreensão da arte ligada a
uma concepção do Eu, do Eu absoluto, constituído por
uma tensão como éombate entre duas forças contrapostas
e, de certo modo, irreconciliáveis.
29
 - A segunda, diretamente redigida no Sistema del idealismo
transcendental, concretamente em seu último capítulo, que
por si mesmo constitui um documento singular e, segura-
mente, a melhor expressão do papel que Schelling
atribuiu à arte, a saber, como "órgão e documento da
filosofia" .9 Poderíamos falar aqui da base para uma futura
"filosofia da identidade" na medida em que, não sendo
formulada ainda a questão do absoluto como identidade,
apresenta-se, contudo, através da arte, a possibilidade de
apresentar unidos os dois pólos opostos, o sujeito e o
objeto, a consciência ou o pensamento e a natureza ou o ser.
- A terceira, recolhida nas lições que levam o nome de
Filosofia da at1e, 10 com certeza o texto mais extenso de
tantos que Schelling dedicou à questão. Poder-se-ia falar,
aqui, de uma compreensão da arte quando já foi conseguido
um significado completo de sistema, mas não um sistema
da arte (mais próprio da segunda etapa), e sim da identi-
dade, a partir do qual pode ser tratada a questão da arte e
de sua relação com a filosofia. Aqui, a arte não é o órgão
da filosofia; aqui se fala de uma filosofia da arte que
é uma forma de surgir a filosofia. Essa terceira etapa
representa a inclusão da filosofia da arte no sistema da
identidade.
Essa periodização mostra, na realidade, uma evolução que
se poderia interpretar de várias maneiras. Segundo uma delas,
poder-se-ia falar de uma transformação do Eu à procura de
sua caracterização como sistema. Nesse caso, seria uma
passagem que vai da arte a uma filosofia da arte. Mas talvez
seria mais acertado colocar essa transform:Ição em outros
termos: como trânsito de uma "concepção artística da filosofia",
que chegaria até 1800 e que incluiria, portanto, as duas
primeiras etapas, a uma "concepção filosófica da arte", que
corresponderia à terceira etapa. A diferença é a chave para
entender Schelling, o idealismo e a noção de sistema inerente
ao mesmo. Em primeiro lugar, esse desenvolvimento da arte
que é, por sua vez, desenvolvimento da significação do Eu,
implica também uma diferente compreensão do absoluto: se
nas duas primeiras etapas se pode falar de um absoluto
incognoscível, vinculado a uma teologia negativa, na última
é possível falar de um absoluto cognoscível e de uma compre-
ensão da beleza vinculada à verdade.
30
Esse é, certamente, o caminho que conduz do "idealismo
dos primórdios", que pensa o sistema vinculado ao futuro
histórico, tal como reflete "O mais antigo programa de sistema",
em cuja redação interveio sem dúvida Schelling, ao Idealismo
constituído, que acontece nas sucessivas posições filosóficas
defendidas por Schelling e Hegel, na cidade de ]ena, entre
1801 e 1803.
O papel da arte difere nesse trânsito. Embora de forma
sucinta, vamos percorrer essa diferença que, segundo minha
interpretação, supõe tantas coisas. Lembremos:
1. Na primeira etapa, vinculada à constituição do idealismo,
em seus primeiros passos, pensa-se a arte como a única
expressão de um absoluto antagônico, quer dizer, cuja
natureza é a oposição, um absoluto que se torna impossível
de conhecer, através do entendimento, por dois motivos
fundamentais: a) primeiro, porque o entendimento, seja
como for, constituiria só um lado desse absoluto, o que
podemos identificar com a consciência; e, nesse sentido,
só poderia dar uma imagem unilateral do absoluto e, por
isso mesmo, falsa; b) segundo, porque o absoluto é
subtraído permanentemente em virtude de sua natureza,
porque não é nem tema, nem objeto, nem idéia etc ... O
magnífico da compreensão de Schelling, neste momento, é
captar o Eu diferenciado da consciência, como o cenário
teatral de um combate à morte, um combate que tem lugar
-assim a 10ª carta de Ca11asjilosójicas sobre dogmatismo
e criticismo- entre uma "força objetiva" e "nossa liberdade",
um combate ou uma diferença que não é produzida, mas
originária, porque, segundo Schelling, "desapareceu da luz
da razão" 11 e, portanto, não pode surgir como objeto de
conhecimento. Se essa diferença é anterior, então, o que
isso significa é que é anterior à própria razão e esta não ·
pode conhecer a diferença. Mas o choque ou o combate
entre a necessidade e a liberdade tem lugar no homem,
um homem que permanece aquém ou além, ou, seja como
for, à margem de sua determinação como substância
pensante.
Assim, por um lado, poder-se-ia dizer que o homem
perdeu, porque, de considerar-se dominador, em sua situação
de ilustração em que conhece o mundo e o organiza, passa a
ser simplesmente o cenário de um conflito que fica além de
suas faculdades. Mas, por outro lado, seria possível dizer
31
 que ganhou ou que pelo menos recuperou seu ser mais
original, aquele vinculado na Grécia clássica à tragédia. Não
é casualidade que Schelling formule esta compreensão em uma
reflexão sobre o trágico e aproveite esse elemento, que no
final é uma das figuras da arte, para compreender sua posição
mais privilegiada: renunciando à ilustração e à comodidade
do sujeito que conhece tudo, na existência humana se
apresenta a tragédia: o enfrentamento entre a fragilidade
de uma consciência limitada, embora livre, e "um poder
objetivo horroroso". "Horroroso", termo literal em Schelling
("Schrecken", "schrecklich"), significa aqui: o que não tem
limites e é, portanto, desconhecido, alheio ao Eu e, assim,
também à liberdade. Mas que por sua vez mostra o verdadeiro
ser da natureza, sua obscuridade e seu poder além dos
conceitos que pretenderam reduzi-la à lei.
Aqui, neste Schelling dos primórdios, a arte é a tragédia,
que é o modo, não de conhecer o absoluto, mas de como o
absoluto se apresenta. Édipo constitui o paradigma do humano,
de uma existência que nunca poderá estar segura de nada
porque o desconhecido mesmo, o destino ou a natureza
irromperá em um momento determinado. Na figura artística'
da tragédia, temos a oportunidade de reconstruir a realidade
mais genuinamente, reconhecendo aquilo obscuro que não
pode ser conhecido, o "horroroso poder objetivo", mas afir-
mando frente a isso o poder da liberdade, que é verdadeira
liberdade não porque ganhe, senão porque se enfrenta. E
esse enfrentamento é o absoluto, de que só a arte pode dar
conta, além dos conceitos, além do entendimento, no inson-
dável de uma razão que talvez não seja só ràcional.
Essas colocações de Schelling, que nessa primeira etapa
são só um sinal, supõem também uma mudança profunda na
concepção da verdade. A verdade, em conseqüência, mais
que com a validez d~ enunciado, que pressupõe sempre uma
correspondência com a coisa, tem a ver com sua própria apre-
sentação. Com efeito, de que jeito pode ser pressuposta uma
correspondência com a coisa se, de entrada, a coisa, como
elemento exterior à consciência, como natureza, é desconhe-
cida? É acaso a verdade o encontro entre o conhecido e o
desconhecido? Talvez sim, mas, nesse caso, a verdade é a
apresentação, a pura apresentação em que consiste a arte e
que a tragédia representa de maneira culminante. 12 Mas à
32
diferença de Hõlderlin, Schelling abandonará pronto esta
consideração de uma filosofia ligada constitutivamente ao
papel da tragédia e da arte, mas não para recusar a arte, senão
para lhe atribuir um novo papel, um papel, contudo, mais
acorde com a imediata tradição do filósofo, da filosofia
moderna, com uma filosofia que não pode ficar detida em
sua mera constituição como tragédia, mas que tem que
entrar, por qualquer via, na resolução desse antagonismo
para alcançar uma noção de absoluto ou do Eu, que não só
se encontre além do antagonismo, mas que o explique. E que,
no fim das contas, desative-o. Schelling continua sendo moderno
e i_sso significa, aqui: torna-se um escândalo ficar congelado
frente a essa consideração "horrorosa" do objetivo, sem tentar
desativar esse poder. Mas, com isso, chegamos à segunda etapa.
2. O novo surgimento da questão da arte em Schelling tem
lugar anos depois da carta na qual se refere à tragédia,
anos depois também do "Programa de sistema". Ele faz isso,
como sabemos, no último capítulo do Sistema do idea-
lismo transcendental, em 1800. Não é tão importante a
questão dos anos como o que ocorre nesses anos. Com
efeito, durante esse período, Schelling completou todo o
grande desenvolvimento de sua "Filosofia da natureza", 13
cuja outra parte corresponde à "filosofia transcendental"
ou, em definitivo, à "filosofia da consciência". Torna-se
impossível, neste contexto, resumir o papel da filosofia da
natureza com vistas à apresentação do sistema completo da
filosofia, mas podemos resgatar alguns dados para nosso
tema da arte. Que a nova referência à arte se inscreva
depois do desenvolvimento desses escritos, implica uma
mudança na concepção da arte. Em que sentido? No fundo,
e só com vistas a esclarecer nossa tentativa, a formulação
de uma filosofia da natureza tem como escopo desativar -
esse papel do objetivo, esse elemento horroroso inerente
à natureza, que parece nos superar sempre. A filosofia da
natureza é a tentativa de reconhecer que a natureza não se
torna estranha ao espírito, mas que é espírito, embora
espírito que não saiba que o é, espírito não consciente.
Conseqüência disso, portanto, é uma redução daquela
diferença trágica que se tornava insuperável: agora o
espírito deve fazer mais que reconhecer e se curvar ante o
poder do objetivo, deve nada menos que reencontrar nesse
objetivo sua própria origem. Isso só é possível mediante
uma reconstrução do espírito que leve, precisamente, a
encontrar a origem na mesma natureza. Frente à liberdade
33
 do espírito não se encontra o objetivo inerte e desconhecido,
mas uma liberdade que também alenta em toda formação
natural, embora o faça sem consciência. A natureza é
também livre, é, como chegará a afirmar Schelling, "sujeito" .14
O que por sua vez implicará um reconhecimento no objetivo
do objeto, quer dizer, não mecânico, senão dinâmico. A
natureza não é algo morto, mas seu próprio processo de
construção. A natureza é pura produtividade e, nesse
sentido, é sujeito, porque, lembremos, o sujeito também
não constituía uma posição fixada de antemão, mas sua
própria atividade, atividade consciente. Temos, assim, que
agora a oposição não é precisamente a de um antago-
nismo irredutível: à atividade do sujeito consciente se opõe
a produtividade de um objeto dinâmico. No fundo, o mesmo
movimento, embora em um sentido inverso e oposto, alenta
ambos os processos. É o movimento do absoluto, mas é
um movimento que já não se interpreta como luta, senão
como "harmonia"/ 5 como harmonia entre o consciente e o
não-consciente. Certamente, Schelling não abandona sua
concepção de um absoluto incognoscível, pois o absoluto
é justamente o desconhecido mesmo que "põe em inesperada
harmonia a atividade objetiva e a consciente" .16 Harmonia,
assim, pois, entre atividade e produtividade, mas que se
encontra além da consciência, porque "se esse absoluto se
reflete no produto, surgirá à inteligência como algo que
está por cima dela e que, inclusive contra a liberdade, acres-
centa o carente de intenção ao que havia começado com
consciência e intenção" .17 Em definitivo, não teríamos o
absoluto se não se incluísse o carente de intenção. O antigo
Eu é compreendido neste contexto como "Gênio", que se
torna identificado de novo com o obscuro poder desco-
nhecido e incompreensível, cujo valor reside em que
"acrescento o objetivo ao consciente sem intervenção da
liberdade". Esse papel do Eu é ocupado hbje pela arte que,
sob a figura do gênio, unifica os dois movimentos inversos
e opostos que parecem habitar o absoluto e que encontram
um reflexo na obra de arte: o movimento que começa
conscientemente e que acaba não no consciente do produto
artístico que, por assim dizer, fica reintegrado à natureza;
uma natureza cujo movimento, por sua vez, começa no
inconsciente para acabar no consciente do espírito. De
novo, essa união, através da arte, entre a natureza e a
inteligência. A obra de arte surge, assim, como a expressão
possível do infinito no finito, expressão na qual consiste
precisamente a beleza. E a verdadeira arte, a verdadeira
beleza, se é que se pode falar assim, é a que não resulta
só da mera atividade livre do artista, da mera disposição
de sua produtividade, porque esta deixa de lado o decisivo:
34
a intervenção da natureza e da matéria. Precisamente,
tendo presente só o mero saber livre do artista, o que há
não é arte, é artefato, produto de artesão que conhece por
antecipação as regras, mas que se fecha à intervenção
daquilo desconhecido que é o que convoca à beleza.
A obra de arte reflete o que nenhum outro entendimento
poderia refletir, o que é absolutamente idêntico e, no entanto,
aparece cindido no Eu. A obra reflete a unidade do absoluto
que se pode apresentar não em uma intuição intelectual, mas
em uma intuição estética que reconhece o poder da objetivi-
dade. Agora, a filosofia, o saber, é arte, porque como apre-
sentação do absoluto aparecem unidos o mundo real e o
mundo ideal. Neste contexto, ganha todo seu sentido a
expressão de Schelling na qual afirma que a arte é o verdadeiro
órgão e documento da filosofia, porque testemunha sempre
o que a filosofia no antigo sentido não pôde apresentar: o
não consciente no agir e no produzir. A arte é o novo saber
do absoluto, a síntese. Neste sentido, o primeiro sistema do
absoluto fica completo: a arte como origem e unidade do
separado, da natureza e da história. 18 Para Schelling, até este
momento e apesar da evolução do sentido da arte, este tem
sido o elemento constituinte da filosofia: o elemento de
configuração do sistema e o responsável por reintegrar ao sistema
o desprezado, por inacessível, por parte de uma razão instru-
mental e racional que da natureza só conhecia os conceitos
que ela mesma colocava, mas que, na realidade, nunca havia
pensado.
Com certeza, como origem, a arte não está obrigada à
natureza, porque, de certo modo, é algo anterior a ela. Assim
se pode entender a duríssima crítica de Schelling à concepção·
da arte como mera cópia, que tanto o aproxima da concepção
da arte moderna: a arte não copia os produtos naturais, pois,
seja como for, em sua atividade, reflete a produtividade da
natureza, mas não seus produtos. Precisamente, apresenta
essa produtividade que nunca se faz presente como tal, mas
só através dos produtos naturais. A arte ou a filosofia, deste
modo, apresenta uma verdade que se encontra além do que
existe e se dá, e, neste sentido, pode-se falar de uma concepção
metafísica da arte: como apresentação de uma verdade que
sempre se oculta, que sempre se retrai e que surge precisamente
35
r·
como momento da apresentação. Com efeito, a arte não é
algo abstrato, mas o que surge na própria gênese e apresen-
tação da obra, e esse surgimento é a presença do infinito
mesmo, da beleza. Mas falta um passo que reduza ainda mais
isso inacessível à razão. Se nesta segunda etapa se tratou de
mostrar essa desativação do poder do objetivo que tem como
culminação uma concepção da filosofia vinculada exclusiva-
mente à arte, Schelling dará mais um ajuste à questão, talvez
desativando agora, a serviço da filosofia (e não já da arte
como filosofia), a própria figura da arte. Certamente a arte
foi o caminho para preparar o modo culminante de compre-
ensão do sistema - o que alenta em Schelling desde suas
origens-, que é a compreensão da filosofia como sistema
da identidade; mas para a consecução dessa identidade, a
arte tem que abandonar essa posição de privilégio para
converter-se só em uma figura do absoluto, em uma figura da
identidade; em suma, em uma figura integrada no sistema e,
se, nesta segunda etapa, a arte fez sua aparição no seio do
Sistema do idealismo transcendental, agora será possível falar
de uma filosofia da arte que estará incluída em um "Sistema
da identidade".
3. Da fón_nula "filos_ofia da arte", quando chegamos a 1801-
1_803, ~1cou desatiVado o constitutivo papel da arte para a
fdosof1a; também o da objetividade que enfrenta obscu-
ramente a consciência. Agora, a fórmula é equivalente à
"filosofia da natureza" ou "filosofia da história". Estes três
títulos são, essencialmente, "filosofia". De certo modo
desativa-se o trânsito da lógica à arte ou o trânsito d~
filosofia à arte, porque ocorre justam~nte o contrário: a
filosofia se volta sobre si mesma e não encontra na arte
mais que um reflexo, equiparável ao da natureza e da
história. A filosofia volta ao seu tema, ao absoluto conce-
bido como identidade, e a arte fica a serviço dess~ identi-
dade. Com efeito, já não é harmonia entre o consciente do
histórico e o inconsciente da natureza, mas ele mesmo 0
tema mesmo da arte, é a identidade ou, pelo menos, refl~te
o absoluto mesmo, mas igualmente o refletem a natureza e
a história. Assim o diz o próprio Schelling:
. . . o que conhecemos na história ou na arte é essencialmente
o mesmo que existe também na natureza; com efeito, a cada
36
um lhe é inerente toda absolutidade, mas esta absolutidade se
encontra na natureza, na história e na arte em distintas potências.
Se estas fossem tiradas para ver o ser puro, digamos, em sua
nudez, o uno estaria verdadeiramente em tudo. 19
Em definitivo, a arte não é o órgão da filosofia; por assim
dizer, deixa de ser o lógos da filosofia, para ficar reduzido à
potência. E a potência é o absoluto mesmo, mas considerado
como particular, um particular que, por outro lado, tem que
conter o infinito absoluto, pois em caso contrário, não poderia
ser potência. Em definitivo, potência só pode ser aquilo que
reflete o infinito da filosofia e que não pode ser isolado como
potência e considerado em si mesmo, como objeto particular.
É particular, mas não é objeto. Assim, na fórmula "filosofia
da arte", pois, o que se constrói não é a arte, mas o absoluto
sob a forma da arte, que é assunto bem diferente. Como mostra
Schelling com toda precisão: "... na filosofia da arte não construo
por enquanto a arte como arte, como pm1icular, construo o
universo na figura da arte, e filosofia da arte é a ciência do
todo na forma ou potência da arte. "20 E, o infinito sob a figura
da arte, reconhece-o Schelling como "beleza". Se o infinito da
filosofia é a verdade, da arte o será a beleza. Com este proce-
dimento, ficam equiparados ambos os nomes que, definitiva-
mente, só são os nomes para conhecer o absoluto, isto é, a
identidade, o que significa a indiferença entre os opostos.
Mas, deste modo, também se desativou o que poderíamos
chamar de "força revolucionaria" da arte e, porque não, também
da filosofia. A arte forma parte do sistema constituído e desta
teoria do absoluto desapareceu já toda oposição, e o ganho
é a reconciliação absoluta. Da filosofia desapareceu o conflito,
aquela representação que o idealismo dos primórdios elevou·
à categoria para compreender a realidade. Em seu lugar,
reconciliação: a arte fica desativada. 21
O próprio Schelling se voltará contra esta precipitada
reconciliação que oculta o fundamento do conflito. O próprio
Schelling desenvolverá uma concepção conflitante do absoluto,
concretamente em suas Investigações filosóficas sobre a essência
da liberdade hwnana,22 mas, no horizonte do sistema da identidade,
a figura da arte representa a claudicação de um espírito revo-
lucionário, que tinha colocado a questão do sistema como
sistema que deveria ser cumprido no tempo histórico, e não,
simplesmente, como teoria do absoluto. E um dos problemas
37
 do sis;en:a da id~ntidade é que se torne, contra 0 propósito
do propno Schellmg, uma mera teoria da identidade absoluta.
Mas é muito possível que o melhor de Schelling esteja só começando
nesse momento e que tenha tido que formular a questão do sistema
afa~tado da_arte, como sistema da identidade, mas para abandoná-lo. ~
~utto posstvel que seus escritos posteriores, inclusive os dedicados à
filoso~a d_a natureza, voltem a descobrir a realidade original do conflito
e o pr_op~o pe~o do obscuro e desconhecido que alenta em tudo, até
~a pro~na realidade natural que se acreditava compreendida em uma
filosofta ~a natureza. E é muito possível que 0 papel que representou
a arte ate um momento determinado, que chega até 1800 se·a
retomado pela religião, que se constituirá no novo órgão da filo~ofi~.
Mas que será um órgão que volta a expor a realidade de um conflito
que agora, além disso, de se entender como oposição entre inconsci-
ente_e :o~sciente, será entendida como 0 conflito mesmo do tempo e
da his_tona, a saber, conflito entre o passado no consciente e 0 futuro
consctente, entre a mitologia (que representa o passado) e a revelação
(que representa o futuro). Mas isto nos introduz em outro Schelling
~ ' ~
ve~, so nos retorne ao Schelling que nunca abandonou a visão do
~o~tto e a ~erspectiva de que a filosofia, embora queira 0 sistema,
Jan:ats pod~ra aban~onar o positivo, o individual e o singular, e que se
0
s~stema nao pode mtegrá-Io. Isto será algo só historicamente possível,
sera melhor abandonar o sistema.
!Tradução de Graciela Ines Ravetti de Gomez]
NOTAS
1 '
~~RAC:ITO. Fragmentos, B 1: " ... pues produciéndose todo segundo este
ogos. · · ' ~m: DI~LS; KRANZ. Fragmente der Vorsokratike1; v. 1, p. 150.
2 15 SCHELLING. Sistema de! idealismo trascendental, p. 408. SCHELLING.
HEGEL. Diferencta entre el sistema de filosofia de Fichtey el de Sch ll"
4 (V t b- e mg, p.
• • am em o mes~o texto em edição de Tecnos, Madrid 1990, p. 5).
3 16 SCHELLING. Sistema de! idealismo trascendental, p. 413. SCHELLING. Sãmtliche
HEGEL. Fenomenologta dei espíritu, p. 16.
KANT. Crítica dei juicio, p. 88.
KANT. Crítica dei juicio , p. 89.
S~HE~LING. Sistema dei idealismo trascendenta!, p. 138. SCHELLING
6
Samtltche Werke III, p. 330. · Certamente, trata-se de um sistema cujo pressuposto é: a incognoscibilidade
Refira-m~ ao texto ~onhecido como "E! más antiguo programa de sistema
7
de! Idealismo aleman". Encontra-se em· HOLDERLIN E T b'
HEG . · · nsayos. am em
em: EL. Escntos de juventud. Em alemão, entre outros lugares em·
]AMME; SCHNEIDER. Mythologie der Vernunft. ' .
38
8 Refiro-me, sobretudo, à concepção desenvolvida na 10• carta da obra do
jovem SCHELLING. Cartas filosóficas sobre dogmatismo y criticismo.
SCHELLING. Sãmtliche Werke I, p. 336-341.
9 SCHELLING. Sistema de! idealismo trascendental, p. 425. SCHELLING.
Sãmtliche Werke III, p. 627.
10
SCHELLING. Filosofia de! m1e. In: SCHELLING. Sãmtliche WerkeV, p. 357-
487; p. 353-356; p. 488-736.
11
SCHELLING. Sãmtliche 1Verke I, p. 336-341.
12
Mas, significa isso realmente uma vitória de Sófocles frente a Sócrates, ou
melhor, sua reconciliação? Por acaso Sócrates não partia sempre de que
não é possível saber nada e sua filosofia, através de Platão, não é a expressão
desta impossibilidade? A verdade, neste sentido, teria duas facetas: uma, a
própria apresentação que é responsabilidade da arte; outra, a pura indaga-
ção sobre aquilo que se sabe que não se pode conhecer, mas que porém,
como tal tentativa, revela a própria natureza da verdade. Em Schelling
seria convocada, nesta etapa inicial, a Grécia, a Grécia além da moderni-
dade, além de Descartes, Espinosa e Leibniz. Mas, isso é possível? Este
motivo, esta pergunta, seria suficiente para julgar o diferente destino que
tiveram os amigos do Stift de Tubinga, mas, sobretudo, os diferentes caminhos
de Schelling e Hõlderlin. Este último foi mais fiel ã Grécia, considerando
que sua volta era impossível, mas que sua superação também.
13 Em uma série de publicações que começam com "Idéias relativas a uma
filosofia da natureza", continuam com "A alma do mundo", prosseguem
com "Esboço de sistema de uma filosofia da natureza" e alcançam sua
culminação com a "Introdução ao esboço de sistema de uma filosofia da
natureza" e a "Dedução do processo dinâmico". No conjunto, escritos que
por si mesmos já converteriam Schelling em um filósofo muito relevante,
mas que ele inscreve em um marco mais amplo, a saber, a consecução da
apresentação de um "sistema completo". Isto significa que a "filosofia da
natureza" é só uma parte de um todo, o sistema. Ver: SCHELLING. Escritos
sobre filosofia de la naturaleza.
14
SCHELLING. Sãmtliche Werke III, p. 18. Ver também, LEYTE. Una filosofía
idealista de la naturaleza. ln: SCHELLING. Escritos sobre filosofia de la
naturaleza, p. 11-66. De certo modo, e sem entrar aqui nas conseqüências,
isso significará que Schelling considerará que o absoluto não é tanto o
antagonismo dos opostos e sim sua unidade, uma unidade que implica a
ampliação da razão (o sujeito) à natureza.
Sãmtliche Werke III, p. 610.
Werke III, p. 615.
17
SCHELLING. Sistema de! idealismo trascendental, p. 413. SCHELLING.
Sãmtliche Werke III, p. 615.
18
do absoluto ligado à formulação de uma teologia negativa.
19 SCHELLING. Filosofia de! arte, p. 14.
20
SCHELLING. Filosofia de! arte, p. 17.
21
Parece como se agora simplesmente houvesse sido articulado como sistema
a própria "Dialética transcendental" de Kant, fazendo das Idéias da razão
39
 potências do absoluto e atribuindo realidade a elas ou até, mais sofisticada- SCHELLING, F. W.J. Investigacionesfilosóficas sobre la esencia de la
mente, diferenciando entre potências reais e filosofia ideal. Parece também fibertad humana. Leyte, A.; Cortés, H. (Org.). Barcelona: Anthropos,
como se o sistema, que para Kant era ainda um sistema da razão cuja
constituição era teórica, organizado como a relação de razão teórica, razão
1989.
prática e faculdade de julgar, fosse capaz de interpretar como a realidade SCHElliNG, F. W.J. Filoso.fía dei aJte. Tradução de V. López-Dornínguez.
que existe e, em definitivo, simplesmente se postulara a reconciliação,
Madrid: Tecnos, 1999.
uma reconciliação que na própria filosofia kantiana não se alcança, e não
como defeito da razão, mas sim como inerente à sua própria constituição. SCHELLING, F. W.]. Ca~tasfílosóficas sobre dogmatismo Y criticismo.
Agora, embora pareça uma batalha já ganha, postula-se a reconciliação,
Madrid: Tecnos, 1999.
mas talvez de um modo precipitado. O conflito que ainda alenta, na concepção
kantiana da filosofia, a oposição de entendimento e de sensibilidade, ou SCHELLING, F. W.]. Escritos sobre filoso.fía de la naturaleza. Madrid:
de razão prática e razão teórica, resume-se aqui neste idealismo consumado
Alianza Editorial, 1966.
em uma identidade em relação à qual é preciso se perguntar se é efetiva-
mente real ou simplesmente algo postulado. SCHELLING, F. W.]. Sistema dei idealismo trascendental. Barcelona:
22
Edição espanhola a cargo de H. Cortês e A. Leyte (com uma introdução de Anthropos, 1988.
A. Leyte e V. Rühle), Barcelona 1989.

REFERÊNCIAS

DIELS, H.; KRANZ, W. Fragmente der Vorsokratiker. Alemanha:

Weidmann Verlag, 1974. v. 1.
HEGEL, G. W. F. Diferencia entre el sistema defiloso.fía de Fichte y el
de Schelling. Madrid: Alianza Universidad, 1989. ·
HEGEL, G. W. F. Diferencia entre el sistema de filoso.fía de Fichte y el
de Schelling. Madrid: Tecnos,1990.
HEGEL, G. Escritos de juventud. México: Pondo de Cultura Económica,
1978.
HEGEL, G. W. F. Fenomenología dei espíritu. México: Pondo de Cultura
Económica, 1966.
HOLDERLIN, F. Ensayos. Madrid: Hiperión, 1976.
JAMME, C. H.; SCHNEIDER, H. Mythologie der Vemun.ft. Frankfurt:
Suhrkamp Verlag, 1984.
KANT, I. Crítica deljuicio. Madrid: Espasa Calpe, 1977.
SCHElliNG, F. W.J. Samtliche Werke. Schelling, K. F. A. (Org.). Stuttgart/
Augsburg: Cotta, 1856-1861.
SCHELLING, F. W.]. Schellings Werke. Nach der Originalausgabe in
neuer Anordnun 9. Schr6ter, M. (Ed.). München: Beck'sche
Verlagsbuchhandlung, 1962.

41
40
fllO~OfiA INICIAl Dt ~CHtlliNG
LEONARDO A L V E S V I E I R A

A fllO~OfiA ~RÁ TI CA
DO JOYtM ~CHtlliNG

A questão do agir moral sempre constituiu um daqueles

temas cruciais da filosofia. O que a razão tem a nos dizer
sobre o ethos? Ora, a inflexão subjetiva da filosofia moderna
também não permaneceu imune a esse assunto. Mais
problemática tornava-se a questão se o seu enfrentamento
significava ir além da finitude do sujeito pensante ou empí-
rico. Justamente neste ponto se insere a filosofia prática
de Schelling (1775-1854), visto que ela pretende, de um lado,
fazer prevalecer a valorização ínsita do sujeito à inflexão subje-
tiva da filosofia moderna e, de outro, no entanto, ela não quer
fundar sua compreensão do agir moral na finitude de uma
subjetividade pensante ou empírica. Coordenar estas duas
vertentes da questão, de tal forma que a razão do ethos possa
vir à tona de forma condizente com as exigências do mundo
moderno, eis o desafio que o jovem Schelling tem pela frente.
O objetivo deste trabalho é estudar a Moral, a Ética e o
Direito, isto é, a filosofia prática desenvolvida por Schelling
no início de sua atividade filosófica. Este estudo, entretanto,
não pode ser feito desvinculado da compreensão da filosofia ·
e sua tarefa, de acordo com as quais a filosofia prática ganha
seu sentido. Assim sendo, a primeira parte deste trabalho
tem como objeto a relação entre filosofia prática e sistema
(I). Depois disto, e como continuação da discussão iniciada
no tópico anterior sobre a razão prática, a questão da indivi-
duação moral será investigada. A individuação moral, por sua
vez, conduz às esferas da Moral, da Ética e do Direito, pois a
exigência moral posta ao indivíduo produz conflitos, cuja
tematização é a tarefa do Direito e da Ética (II). Interligada
com esta tematização, a quarta parte deste trabalho ocupar-se-á
com o problema do consenso universal e do consenso absoluto,
em tomo dos quais o desafio da convivência entre as vontades
se desenrola (III). Finalmente, as perspectivas entreabertas e
vislumbradas pela discussão das temáticas acima abordadas
serão definidas, no intuito de identificar aqueles problemas
resultantes da concepção de Schelling acerca da filosofia prática
(IV).
FILOSOFIA PRÁTICA E SISTEMA
"Nova dedução do Direito Natural (1796/97)" é o desen-
volvimento e "aplicação" das teses de caráter sistemático
defendidas principalmente em "Do Eu como princípio da
filosofia ou sobre o Incondicionado no saber humano (1795)".
É o estudo da Moral, da Ética e do Direito (ou, também, Ciência
do Direito, como costuma dizer Schelling), enquanto estas
três disciplinas são regidas pela razão prática, de tal forma
que constituem o que também se convencionou denominar
filosofia prática. Assim como em Kant (1724-1804), Fichte
(1762-1814) e Hegel" 0770-1831), as primeiras reflexões de
Schelling acerca do agir humano não estão desvinculadas da
concepção de filosofia por ele defendida nessa fase do seu
filosofar. Em virtude disto, toma-se imperativo apresentar o
seu sistema de filosofia, dentro do qual a filosofia prática
ganha seu pleno sentido. 1
O jovem Schelling é partidário da filosofia entendida como
mediação entre, de um lado, aquilo que é simultaneamente
princípio e fim da filosofia 2 e, de outro, aquilÓ que se encontra
entre estes dois extremos. Em termos mais técnicos, a filosofia
deve proporcionar a compreensão daquelas condições para
articular e coordenar o Incondicionado, enquanto fonte
absoluta de todo ser e pensar e identidade absoluta consigo
mesmo, com o condicionado, interpretado como limitação,
diferença, oposição e dualidade entre as esferas subjetiva (eu)
e a objetiva (não-eu).
A famosa tríade dialética, alçada muitas vezes à condição
de expressão única e paradigmática da dialética, traz à tona
justamente esta questão: a mediação entre Incondicionado e
condicionado. A tese, de um lado, e a antítese e a síntese, de
46
outro, representam respectivamente o Incondicionado e o
condicionado.
A tese ou, mais propriamente, a autotese caracteriza o
Absoluto entendido como subjetividade que põe a si mesma,
sem ser por nada constrangida ou coagida. Esta auto-afirmação
incondicionada de si expressa uma atividade autotética absolu-
tamente idêntica consigo mesma, privada de qualquer dualidade,
de tal forma que esta subjetividade pensa o que ela é e é o
que ela pensa, constituindo, desta forma, a identidade entre
pensar e ser. 3
A antítese, por sua vez, marca o início do reinado da
oposição, da diferença e da dualidade. 4 Ela pode ser compre-
endida de duas maneims.
Em primeiro lugm~ a antítese pode ser inteimmente ocupada
pelo não-eu. Com este termo, Schelling quer designar toda
uma esfera condicionada, cuja posição é, na verdade, tanto
um ser posto pelo Eu absoluto quanto um ser posto contra o
Eu absoluto. Em ambos os casos, fica patenteado o caráter
secundário e reativo da antítese, já que ela é uma reação
negativa àquilo que foi posto anteriormente. Isto signi~ica
que a antítese é dependente da tese ou, em termos de Schelling,
aquela é absolutamente condicionada por esta. Não há antítese
sem tese, mas a recíproca não é verdadeira: a tese não carece
da antítese.
Em segundo lugar, a antítese pode também ser ocupada
pela oposição entre eu finito e não-eu também finito, na medida
em que ambas as realidades são opostas uma à outra, mas
ambas, por sua vez, são postas pela incondicionalidade do
Eu absoluto.
Tanto no primeiro quanto no segundo caso da antítese,.
temos uma coordenação entre identidade absoluta e diferença.
Esse tipo de oposição é bastante importante para entende~ a
filosofia teórica e a filosofia prática, visto que ambas sao
constituídas justamente pela dualidade entre sujeito e objeto,
Incondicionalidade e condicionalidade, identidade absoluta
e diferença. A síntese, por sua vez, é uma composição entre os
dois momentos anteriores, a saber, uma identidade resultante
da mticulação entre identidade absoluta e difemnça (não-
identidade), o entrecruzamento entre o caráter incondicional
com o condicional.
47
 Razão teórica e razão prática são exemplos dessa articulação
dialética.
No caso da primeira, a saber, da razão teórica, a tese é
constituída pelo Incondicionado subjetivo. A antítese, por sua
vez, é a oposição travada entre o eu transcendental e a realidade
objetiva oposta a este eu. A oposição no contexto da razão
teórica é, portanto, constituída, de um lado, pela esfera subjetiva,
enquanto espontaneidade para organizar a pluralidade fenomê-
nica, e, de outro, pela esfera objetiva, enquanto matéria a ser
organizada pelo aparato subjetivo-transcendental e formal,
por cuja ação o sujeito impõe, não de forma arbitrária, mas
com base em regras a priori, uma ordem necessária e universal
ao mundo objetivo. A síntese ou composição entre esses
elementos opostos é o conhecimento teórico enquanto
necessário e universal. Eis um esquema que pode esclarecer
o que foi descrito acima:
Razão Teórica
a. Tese - Incondicionado subjetivo
b. Antítese- eu (unidade sintético-originária
da apercepção) <X> não-eu (múltiplo dado na intuição)
c. Síntese - conhecimento teórico enquanto necessário e universal
No caso da razão prática, a tese é também representada
pelo Incondicionado subjetivo, enquanto identidade e não-
dualidade absolutas prioritárias a qualquer dualidade e opo-
sição.
A razão prática, por seu turno, assim como a razão teórica,
tem lugar na dualidade e oposição. Diferentemente da razão
teórica, embora expressando também espontaneidade, ou em
termos práticos, liberdade moral da subjetividade, a dualidade
entre sujeito e objeto no contexto da razão prática apresenta,
como era de se esperar, uma feição própria. Trata-se do sujeito
moral finito, dotado de autonomia e autodeterminacão em
o '
oposição à multiplicidade e mutabilidade dos móveis sensíveis,
enquanto tomados como instância última de determinação
do agir. De um lado, a espontaneidade do agente moral; de
outro, o sujeito moral transformado em servo dos interesses e
inclinações que não conduzem à universalidade da liberdade.
Este conflito encontra sua resolução justamente na síntese, já
que esta tem por meta estabelecer uma coerência entre os
48
elementos constituintes da experiência moral. Os elementos
envolvidos são: 1) a autonomia absoluta do Incondicionado;
2) a autonomia relativa e condicionada do agente moral finito;
e 3) o conjunto daqueles móveis que podem desviar este agente
do exercício desta autonomia. Em razão disto, a síntese deve
levar em conta o sujeito moral agindo diante de circunstâncias
que lhe podem ser adversas e nas quais ele deve afirmar sua
autonomia; simultaneamente, ela deve também lançar a
exigência a esse sujeito de que sua ação se encaminhe para
aquilo que é tanto o começo quanto o fim do agir moral: o
Incondicionado. Portanto, a síntese, enquanto expressa o
mandamento moral (moraliscbes Gebot), é assim por ele
formulada: torna-te (werde) idêntico, eleva (no tempo) as
formas subjetivas de sua essência à forma do Absoluto. 5 Eis o
esquema que ilustra a razão prática:
Razão Prática
a. Tese - Incondicionado subjetivo
b. Antítese - sujeito moral <X> não-eu (multiplicidade e mutablidade
(Wechsel) dos móveis sensíveis)
c. Síntese - Mandamento moral (moralisches Gebot) :6 torna-te
idêntico, eleva (no tempo) as formas subjetivas de sua essência à
forma do Absoluto.'
Os movimentos da tese para a síntese e, inversamente,
desta para aquela, desenvolvem, na realidade, o movimento
da liberdade, interpretada enquanto autonomia, espontanei-
dade e autodeterminação. No entanto, cabe distinguir esta,
por assim dizer, expansão e este desdobramento da liberdade
em dois estágios, a saber, no contexto da incondicionalidade
da tese e da condicionalidade da antítese e síntese. No·
primeiro caso, isto é, da tese incondicional, a liberdade do
eu está totalmente encerrada em si mesma, já que ele não se
defronta com algo que lhe seja oposto, de tal forma que ocorra
o movimento de reflexão, isto é, de volta do sujeito sobre si
a partir da resistência oferecida pelo mundo objetivo. A autonomia
subjetiva permanece completamente imanente e ínsita à sua
própria dinâmica autotética.
Diferentemente disto, no segundo caso da condicionali-
dade antitética e sintética, a liberdade é dita transcendental,
posto que ela transita entre as esferas subjetiva e objetiva,
49
 não permanecendo na exclusividade do mundo subjetivo. 8
Trata-se, então, da liberdade limitada, relativa, dual e,
portanto, condicionada, na medida em que simultaneamente
o eu põe a si mesmo e nega o não-eu, assim como também o
eu é limitado pelo não-eu, seja na síntese do múltiplo dado
na intuição, seja também nos móveis que podem desviar o
agente moral de sua autodeterminação mediante o manda-
mento moral.
A superioridade da razão prática diante da razão teórica
reside no fato de que aquela não configura apenas uma
oposição, tal como é também o caso com a razão teórica, mas,
além disso, exige o fim dessa oposição, expresso no manda-
mento moral.
Dessa forma, a exigência do mandamento moral realiza
uma mediação entre a esfera condicionada, na qual o sujeito
moral age, e a esfera incondicionada, a qual é o ponto de
partida da experiência moral, expresso na linguagem dialética
como tese, bem como também o ponto de chegada dessa
mesma experiência, visto que ele exige a saída do terreno da
oposição entre identid<tde e diferença, no qual tem lugar o
agir moral, em direção à identidade absoluta, totalmente
privada de qualquer jogo de oposição.
Diante desses dois tipos de liberdade, torna-se mais
evidente o papel da moral. Já que tanto o Eu absoluto quanto
o eu finito, justamente enquanto são subjetividades, se iden-
tificam, o significado da moral consiste em exigir que o eu
finito realize, ao longo do tempo, o que ele já realiza em si,
na medida em que ele vença a dualidade de. uma liberdade
transcendental. O sentido da moral reside, pois, em propor-
cionar a mediação de retorno para aquilo que é o princípio e
o fim da moral.
Não por acaso, portanto, o Absoluto não configura aquilo
que Kant denominou como o sumo Bem, interpretado como
síntese entre moralidade e felicidade, já que ambas ainda têm
lugar na dualidade. 9 Na perspectiva de Schelling, a moralidade
é a autonomia do sujeito moral finito em oposição aos móveis
empíricos, ao passo que a felicidade é o agir do sujeito deter-
minado, no entanto, por móveis sensíveis, que podem ou
não viabilizar a convivência de indivíduos, segundo a lei
universal da liberdade. Em ambos os casos, a meta é alcançada
50
sem que a dualidade seja superada. A identidade com o
Absoluto, exigida pelo mandamento moral, portanto, está
"acima" da moralidade e da felicidade, devendo, em razão
disso, receber um nome diferente desses dois. Tal identidade
é a Bem-aventurança absoluta. 10
Articulando Incondicionado, a esfera da dualidade, da
oposição e diferença, razão teórica e razão prática com a
tríade dialética: tese, antítese e síntese, o esquema dessa
coordenação pode ser assim estruturado:
Tese - Incondicionado;
Antítese - sujeito (eu) x objeto (não-eu);
Síntese - razão teórica: conhecimento necessário e universal;
razão prática: mandamento moral.
Além dessa dialética que coordena Incondicionado e
condicionado, Absoluto e relativo, ser em si e ser fenomenal,
há também uma forma de dialética, a qual, todavia, é
desenvolvida dentro dos limites exclusivos da condicionali-
dade. Evidentemente, essa não pode ser considerada exclusiva-
mente alienada da incondicionalidade. No entanto, isso não
exclui, por sua vez, uma abordagem da própria lógica da
condicionalidade. Como veremos, posteriormente, essa
lógica abordará a relação entre as vontades.
A terminologia dessa segunda tríade empregada por
Schelling, a saber, universal ou universalidade, multiplicidade
e singular ou unidade 11 parece revelar o uso da tábua dos
juízos exposta por Kant na Crítica da razão pura (1787),
segundo a função da quantidade (universais, particulares e
singulares) e a tábua das categorias, também segundo a
função quantitativa (unidade, multiplicidade e totalidade)Y
Schelling defende a posição segundo a qual o universal é
condicionado pelo singular, já que aquele é uma forma de
síntese, 13 isto é, de composição entre unidade e multiplicidade.
Conseqüentemente, o ponto de partida da filosofia, o Incondi-
cionado, não pode ser uma realidade mediatizada, tal como
é o universal.
Em "Nova dedução do Direito Natural" essa relação é apro-
fundada: a universalidade é constituída pelo acréscimo da
unidade à multiplicidade, configurando, portanto, uma multi-
plicidade una ou unificada, ou pelo acréscimo da multiplicidade
51
 à unidade, plasmando, então, uma unidade multíplice ou plural.
Ora, isto significa não apenas que o universal é condicionado
pelo singular (unidade), já que o universal é o acréscimo de
unidade à multiplicidade ou multiplicidade à unidade, mas
também significa que o singular é condicionado pelo universal,
visto que, neste, o singular é um dos elementos do todo e
recebe seu sentido justamente por sua inserção nesse todo.
Há aqui uma relação de mútuo condicionamento, de tal forma
que a multiplicidade una expressa as unidades ou singulares
elevados à condição de uma universalidade simultaneamente
idêntica e diferenciada, ao passo que a unidade multíplice
assinala a inserção da universalidade idêntica e diferenciada
nas unidades ou singulares, isto é, nos próprios elementos que
a estruturam. Esse mútuo condicionamento pode ser assim
representado:
Multiplicidade
Universidade como
unidade multíplice
Unidade (singular)
Tendo explicado o contexto lógico e ontológico, no qual
se desenvolvem as reflexões de Schelling sobre a filosofia
prática, estaremos, então, em melhores condições, agora, de
explorar os seus elementos constituintes.
INDMDUAÇÃO MORAL
"Nova dedução do Direito Natural" começa retomando as
teses fundamentais já investigadas em "Do Eu como princípio
da filosofia". O Absoluto ou Incondicionado não pode ser
realizado teoricamente, visto que a razão teórica sempre
52
pressupõe a relação sujeito/objeto, à qual o Incondicionado
não está submetido. A sua realização, portanto, só pode ser
prático-moral.
Daí, portanto, a exigência máxima de toda filosofia prática,
expressa no § 3: "Sê! No pleno sentido da palavra. Cessa, tu
mesmo, de ser um fenômeno; esforça-te por ser um ser em si!
Esta é a exigência suprema de toda filosofia prática." 14
Esta exigência moral vincula, por assim dizer, duas dimensões,
a fenoménica condicionada e a do ser em si incondicionado.
Analisando, em primeiro lugar, o plano do Incondicionado,
Schelling procura mostrar que a exigência moral suprema nos
leva ao domínio do mundo dos objetos, transformando-os
em propriedade moral, já que os objetos naturais encontram-se
enclausurados nos limites do completamente condicionado e
heteronôrnico. A autonomia da subjetividade incondicionada faz
da natureza uma apropriação minha, algo possuído em
conseqüência da atuação do meu ser incondicionado.
No entanto, a "domesticação" dos objetos naturais não pode
ter lugar sem uma associação com o próprio mundo físico, ou
melhor, com a causalidade desse mundo físico. A articulação
entre uma causalidade mediante a liberdade - própria da
minha subjetividade incondicionada - e a causalidade física
constitui o ser vivo, enquanto esquema da liberdade e auto-
nomia no fenômeno. 15
Na natureza bá ou não resistência física, de tal forma que
o ser vivo, em virtude mesmo de seu poder físico, pode ou
não vencer tal resistência. No mundo moral, por seu turno,
não se trata mais de uma resistência física, mas de uma resis-
tência oferecida por um ser vivo simultaneamente autónomo e·
fenoménica. 16
Fosse o ser vivo considerado apenas no âmbito de sua
autonomia e incondicionalidade, não haveria conflito entre
eles e sim uma plena identidade. A causalidade do ser vivo,
interpretado apenas enquanto autonomia incondicionada, é
ilimitada e não produz nenhum conflito, já que ela não se
dirige a nenhum telos objetivo. Portanto, do ponto de vista
de sua causalidade incondicionada, não há, propriamente
falando, conflitos e querelas, 17 visto que o Incondicionado,
excluindo em si mesmo qualquer alteridade, também elimina,
53
 enquanto considerado em si mesmo e não em suas manifestações,
o conflito, a luta e a discórdia.
Conflitos surgem pelo fato de que o ser vivo desenvolve sua
causalidade incondicionada no mundo empírico e temporal,
o qual não é caracterizado apenas por identidade, mas também
pela não-identidade ou diferença. 18 Haveria, de fato, um
consenso absoluto (absolute Übereinstimmung), 19 caso o ser
vivo fosse encarado apenas na sua dimensão incondicionada
ou já tivesse alcançado, ao longo de um esforço empírico, o telos
supremo de sua ação: o Incondicionado. Assim sendo, esse
esforço empírico arrasta as subjetividades para um conflito,
mediante o qual tem lugar a individuação do ser moral. 20
Usando a terminologia de Schelling, poderíamos descrever
a individuação do ser moral da seguinte maneira:
Tese:
- Ser moral em geral ou indivíduos morais tomados na sua
autonomia incondicionada;
Antítese:
- Indivíduos morais em conflito;
Síntese:
- Indivíduo moral.
a) A causalidade incondicionada do ser moral representa a
tese ou a incondicionalidade, significando a identidade
essencial do eu finito moral com o Incondicionado. O ser
moral é, portanto, o eu moral finito, enquanto este é, no
seu ser em si, idêntico ao Absoluto. Aqui, portanto, tema-
tizam-se os indivíduos morais enquanto idênticos nas suas
respectivas causalidades incondicionadas. O ser moral é
portanto, idêntico ao Absoluto e a outros indivíduo~
morais.
b) O conflito do indivíduo moral com outros indivíduos
morais, enquanto eles se esforçam no tempo para realizar
o telas supremo, representa a antítese. Individualidade moral
é, assim, resultado do esforço de cumprir no tempo e,
porta_nto, no terreno da identidade e multiplicidade ou não-
Identidade, o mandamento moral, o qual exige a coorde-
nação do fenômeno com o ser em si. A relação entre essas
individualidades morais pode resultar em um conflito infinito
no mundo moraJ.2 1 Desse modo, a tentativa de transpor 0
54
caráter ilimitado da causalidade incondicionada do ser
moral para o indivíduo moral finito pode provocar um conflito
generalizado entre indivíduos morais. Assim sendo, a
causalidade incondicionada do ser moral não pode atuar
como identidade pura e simples diante de uma esfera
marcada tanto pela diferença ou não-identidade quanto
pela identidade, como é a esfera de atuação do indivíduo
moral. Se aquela causalidade é ilimitada no plano incon-
dicional, visto que ela não lida com objetos, a dimensão
empírica e fenomênica, na qual atua o indivíduo moral,
não legitima este a desenvolver, justamente na esfera
condicional, uma "liberdade empírica ilimitada". 22 O indi-
víduo moral é, portanto, diferente do Absoluto, já que ele
é dualidade resultante de suas escolhas, e também dife-
rente de outros indivíduos morais, também em virtude de
suas escolhas.
c) O indivíduo moral é a síntese entre o agente moral, enquanto,
por um lado, condicionado, e, por outro, dotado deste
poder de afirmação de si, atividade autotética, em si,
absoluta. Portanto, o ser moral é, por um lado, atividade
autotética absoluta, idêntico ao Absoluto e a outros indi-
víduos morais; por outro lado, no entanto, ele é diferente
ou não-idêntico ao Absoluto e a outros indivíduos morais,
na medida em que, em virtude de sua autonomia, ele põe
para si e, conseqüentemente, também em relação aos
outros, conteúdos específicos dessa sua atividade de autode-
terminação. O indivíduo moral, com efeito, é a articulação
entre identidade e não-identidade. 23
Como se vê, o próprio mandamento moral conduz (1) à
individuação moral e (2) aos conflitos entre os indivíduos
morais, confirmando, mais uma vez, que a Moral envolve
necessariamente o entrelaçamento entre identidade e diferença.
Assim sendo, a própria Moral conduz ao conflito e à solução
do mesmo, visto que um conflito infinito no mundo moral
colocaria em perigo a própria individualidade moral, reque-
rida pelo mandamento moral. Nesse sentido, é esse mesmo
mandamento que também exige a solução do conflito a ser
pensada pela Ética e Direito, e, enquanto tais, resultam da
própria problemática da Moral e são vinculados, conseqüen-
temente, a ela. 2·í
Aqui é o caso de se fazer uma primeira abordagem da
relação entre Moral, Ética e Direito. Enquanto a Moral leva
55
 em conta apenas a autonomia do indivíduo, a Ética e o Direito
dizem respeito à autonomia de todos os indivíduos. Portanto,
Moral, Ética e Direito se distinguem na singularidade (Moral)
e pluralidade (Ética/Direito) daquele(a) a quem a norma
moral, ética ou legal se dirige.
CONSENSO ABSOLUTO
E CONSENSO UNIVERSAL
O estudo da tarefa que Moral, Ética e Direito têm pela
frente exige, por sua vez, a caracterização daquilo sobre o
que essas três disciplinas refletem, a saber, consenso universal
(allgemeine ÜbereinstimmungY 5 e consenso absoluto (absolute
Übereinstimmung). A tematização desses dois tipos de consenso,
por sua vez, requer também a investigação daqueles elementos
que os promovem, isto é, vontade em geral (Wille überhaupt)
e vontade absoluta (absoluter Wille).
Começarei a abordagem do tema supracitado, entretanto,
justamente a partir da vontade, pois ela é a ação que promove
o possível acordo entre os indivíduos. Com efeito, vontade é
uma atividade do eu de pôr ou afirmar a si mesmo, mediante
a escolha de algo. Mediante a ação que pôe um determinado
conteúdo ou faz acontecer algo, a forma da vontade, ou seja,
a autonomia da vontade se efetiva. Vontade, portanto, repre-
senta a atividade autotética condicionada do sujeito moral,
mediante a qual ele condiciona a matéria de seu agir, bem
como, por sua vez, é condicionado por essa mesma matéria. 26
A vontade absoluta é uma pressuposição da vontade em
geral, 27 de tal forma que aquela assinala a vontade enquanto
não mais dividida e cindida em vontade universal e vontade
singular. Portanto, a vontade absoluta expressa o reino da
plena e absoluta identidade. A vontade em geral, ao contrário,
representa uma diferenciação interna, imanente à vontade
absoluta, articulando identidade e não-identidade ou
diferença, surgida no seio da própria vontade absoluta, de tal
forma que o problema da vontade em geral é tornar idênticas
as vontades. 28 Enquanto a vontade absoluta tematiza apenas
a identidade - uma vontade absoluta não é individual e não
é também universal, a vontade em geral, por sua vez, procura
56
mediatizar um acordo entre as vontades - a vontade de
todos está limitada à minha vontade, e minha vontade limitada
à vontade de todos.
O campo da autonomia de todos os indivíduos, abordado
pela Ética enquanto ciência do ethos e pelo Direito ou ciência
do Direito, pode ser melhor compreendido com base na
segunda tríade dialética acima estudada: unidade (singular),
multiplicidade e universalidade (universal). Essa dialética tem
como objeto a integração de todas as vontades individuais
em uma vontade universal. Assim, podemos apresentar essa
relação dialética da seguinte maneira:
u11idade (singular) -minha vontade; (vontade singular/individual);
multiplicidade- vontade de todos os outros (vontades particulares);
universalidade (universal) - minha vontade limitada à vontade de
todos os outros e, por sua vez, a vontade de todos os outros
limitada à minha vontade (vontade universal/unidade multíplice e
multiplicidade una).
Esta mesma relação pode ser também representada em
termos de círculos concêntricos, com o círculo de raio maior
traduzindo uma realidade mais englobante e inclusiva, simul-
taneamente negando e preservando o círculo de raio menor:
universalidade
multiplicidade
unidade
Em virtude do exposto acima, Ética e Direito lidam com a
vontade em geral, isto é, a mediação entre a vontade indivi-
dual e a vontade universal. Trata-se, portanto, do problema
da unificação entre a máxima individualidade e a máxima
universalidade da vontade, constituindo, assim, a mais
ilimitada liberdade e a suprema legalidade. Sendo realizada,
uma tal unificação levaria a cabo uma relação privada de
conflitos. 29 Eis, portanto, o problema posto para uma vontade
57
em geral: sendo uma diferenciação interna à vontade absoluta,
a mediação entre vontade individual e vontade universal deve
ter como seu telos e horizonte de realização a vontade abso-
luta. A vontade absoluta, entendida como a vontade singular
que já é imediatamente a vontade universal e, por seu turno,
a vontade universal que já é imediatamente uma vontade
singular, de tal forma que uma tal cisão entre singular, mul-
tiplicidade e universal não tenha mais lugar, representa o
problema de toda filosofia moral.
A solução do problema, formulada de uma forma bastante
simples por Schelling, é a seguinte: a Ética toma idêntica a
vontade individual com a vontade universal, ao passo que o
Direito ou a ciência do Direito torna idêntica a vontade uni-
versal com a vontade individual.3°
A vontade absoluta como problema da Filosofia Moral
Moral
Ética
Ciência do Direito
O consenso absoluto só é pensávelpara uma vontade absoluta,
Ja que esse consenso só é alcançável em situação em que
domina a total identidade, na qual, portanto, não há mais a
divisão entre universalidade, multiplicidade e unidade, própria
da esfera do condicionado. O consenso universal, por seu turno,
58
é realizável na dimensão de uma vontade em geral, a sabe1~
na dimensão do entrecruzamento entre identidade e não-
identidade. Ora, como o consenso universal não é a esfera
da total identidade, tendo que necessariamente abrigar a
diferença, então o consenso universal nunca poderá perma-
necer como inalterável. Ao contrário, ele sempre será subme-
tido a uma contínua revisão, visto que a presença inevitável
da diferença em seu seio torna todo consenso realizado e
realizável algo inconstante e instável.
Embora o consenso absoluto não seja, de fato, realizado e
nem realizável, 31 ele pode ser visto enquanto princípio e fim
do consenso universal. Princípio e fim não devem ser tomados
no sentido cronológico, visto que a plena identidade de uma
vontade absoluta encontra-se fora do tempo. Ele é princípio,
posto que é o pressuposto do consenso universal, já que a
vontade em geral, na qual tem lugar o consenso universal, é
uma diferenciação imanente à vontade absoluta, de tal forma
que o consenso universal é o acordo alcançado e alcançável
para indivíduos morais não mais considerados na sua forma
de incondicionalidade - a causalidade incondicionada do
ser moral, mas essa causalidade em seu embate com o mundo
condicionado, portanto, na dimensão freqüentemente confli-
tuosa com outros indivíduos morais.
O consenso absoluto é também telas, enquanto dever-ser
do consenso universal. Aquele representa a suprema relação
a ser alcançada pelas vontades em seu processo de mediação
recíproca ao longo dos consensos universais. Se a relação
entre identidade e não-identidade no consenso universal
pressupõe a identidade plena, a relação entre identidade e
não-identidade tende para a anulação dessa dualidade, ·
promovendo a identidade plena na vontade absoluta. Tal
supressão da relação entre identidade e não-identidade é,
porém, impossível de ter lugar na esfera condicionada, uma
vez que essa não abriga em si somente a identidade, mas
também a diferença. O consenso absoluto, portanto, assinala
o grau máximo que a Moral, a Ética e o Direito poderiam
atingir, caso lhes fosse possível traduzir para o condicionado
a plena identidade do Absoluto.
Direito e Ética refletem as condições nas quais têm lugar
as relações entre vontades individual e universal e como um
59
acordo ou consenso entre elas pode ser viabilizado. Portanto,
ambas as ciências lidam com a vontade em geral. No entanto,
ao enunciar o problema de toda filosofia moral, Schelling se
reporta à vontade absoluta. Ora, o que caracteriza a vontade
absoluta é justamente a ausência de vontades individual e
universal, a ausência do conflito. Tal parece ser a condição
suprema para tematizar a viabilidade de um acordo entre
vontades, capaz de instaurar no mundo moral "a mais ilimitada
liberdade e a suprema legalidade". Ou seja: se quisermos,
embora imperfeitamente, estabelecer no mundo moral condi-
cionado o que caracteriza o Incondicionado, então teríamos
que pensar as condições possibilitadoras de uma relação entre
vontades, de acordo com as quais a vontade individual é a
vontade universal e a vontade universal é a vontade individual.
Ética e Direito, portanto, têm como objeto a investigação das
condições viabilizadoras de um consenso universal - máxima
individualidade da vontade e máxima universalidade da
vontade, sendo que esse consenso universal tem como princípio
e fim o consenso absoluto. Este último consenso atua como um
critério de avaliação da facticidade dos consensos universais,
já que o consenso absoluto significa a perfeita interpen~tração
ou entrecruzamento entre o universal e o singular na multi-
plicidade das instituições construídas pelas vontades,
eliminando o conflito entre elas.
Assim sendo, pelo menos aos olhos de Schelling, uma
teoria que tematiza o consenso entre vontades não pode
prescindir do Absoluto, pois, ao mesmo tempo em que ele é
condição da ação e da representação, é também princípio e
telos supremo de cada consenso universal. ·
Parece-me, pois, ser lícito afirmar que a vontade absoluta
e o consenso absoluto desempenham um papel semelhante
lembrando Kant- ao de uma "ordem segundo idéias",
construída pela razão, mediante as quais ela (a razão) adapta
as condições empíricas de fato existentes ao dever-ser ideal, 32
ou ainda, um papel semelhante à idéia do contrato social,
como um princípio da razão para avaliação (Bew1eilung) das
constituições de fato existentes. 33 Nesse sentido, portanto, o
consenso absoluto levado a efeito pela vontade absoluta não
se refere a algo realizado (passado) ou realizável (presente
ou futuro), 34 já que a realidade histórica e condicionada não é
capaz de abrigar em si a "magnitude" de uma identidade
60
absoluta, privada de qualquer alteridade. Assim sendo, vontade
absoluta e consenso absoluto são índices ideais de julgamento
dos consensos fáticos alcançados, mostrando o maior ou menor
grau de aproximação ao ideal, o qual, todavia, sempre escapa
ao âmbito de realização da vontade em geral e do consenso
universal.
O papel ideal da vontade absoluta e do consenso universal
torna-se ainda mais evidente, caso se leve em conta o
próprio Incondicionado. Schelling considera uma deficiência
na abordagem do Absoluto qualificá-lo como um ser dotado
de sabedoria e vontade, 35 pois, nesse caso, ele seria, de fato,
desqualificado e deformado, já que vontade e sabedoria são
signos de carência, imperfeição e limite e implicam, conse-
qüentemente, em alteridade. Portanto, se ele é: a) um ser
abúlico, 36 isto é, um ser privado de vontade e, portanto,
privado do desejo de algo ainda a ser realizado e conquistado;
b) se nele não há alteridade e conflito, mas, sim, um acordo
absoluto, então termos tais como vontade absoluta e consenso
absoluto ganham sentido se, e somente se, eles são uma
espécie de reflexo ou cópia do Incondicionado na esfera moral.
Assim sendo, eles significam aquilo que a experiência moral
poderia alcançar unificação da máxima individualidade da
vontade com a máxima universalidade da vontade, ausência
de conflito, consenso absoluto, caso fosse possível implantar
a não-dualidade no campo da dualidade. Sendo uma experiência
da dualidade, a moral não pode ser organizada segundo uma
"lógica" da não-dualidade, pois isso causaria danos a ambos
os lados: moralização do Absoluto - tratar o não-dual como
dual - e absolutização da moral tratar o dual como não-
dual - levam a) ao antropomorfismo na abordagem do
Incondicionado 37 e b) às piores formas de fanatismo e atroei- ·
dade, das quais a história da humanidade, infelizmente, ainda
nos dá exemplo em abundância.
PERSPECTIVAS
A defesa por parte de Schelling do Eu absoluto não pode
permanecer como isenta de crítica, como já tive a oportuni-
dade de mostrar. 38 Como não é o caso de retomar essa crítica,
pretendo apontar para cinco temas investigados por Schelling,
61
os quais, a meu ver, por um lado, ainda permanecem como
questões atuais e dignas de investigação e, por outro, carecem
de uma abordagem bem mais complexa do que aquela ofere-
cida pelos textos de Schelling aqui levados em consideração.
Em primeiro lugar, Schelling investiga o que hoje é
denominado o projeto da consciência humana, resultando
no espectro da consciência: 39 por assim dizer, o mapeamento
da evolução da consciência desde o nível mais elementar até
o supremo, no qual a alteridade não mais tem lugar. Schelling
lida com os caminhos de ascensão e descenso: do eu psicoló-
gico, passando pelo eu transcendental e chegando até o Eu
absoluto e, novamente, o caminho de volta. "As experiências
da consciência", para lembrar uma expressão, como é sabido,
proveniente de Hegel, elevam-na do campo da dualidade - eu
psicológico e eu transcendental - para a não-dualidade - Eu
absoluto. Indubitavelmente, o modelo de Schelling é
bastante simples em comparação com os atuais, mas, de
alguma forma, ele assinala uma evolução da consciência, que
conduz a um redimensionamento de tudo aquilo em que a
consciência marca sua presença.
Em segundo lugar, parece-me também importante ressaltar
o papel desempenhado pelo transcendental. Este é uma
condição condicionada, algo, portanto, hipotético e, como
tal, sujeito a ser sempre ultrapassado, seja pela condição
incondicionada e anipotética, seja pelas várias figuras em que
ele pode apresentar-se, dependendo do paradigma predomi-
nante: o paradigma do ser, da consciência e da linguagem.
Não se trata, evidentemente, da parte de Schel~ing, de desquali-
ficar o transcendental, enquanto este estabelece as condições
de possibilidade seja para o âmbito teórico, seja para a esfera
prático-moral, seja também para outras áreas. O limite dessa
posição, aos olhos de Schelling, no entanto, reside no fato
de que ele tem lugar na alteridade. Ora, esta implica sempre
em mediações e dependência dos elementos mediatizados,
de tal forma que uma fundamentação última nesse terreno é
um contra-senso, já que elementos dependentes e existentes
sob determinadas condições nunca poderiam fornecer uma
fundamentação última.
Em terceiro lugar, o texto de Schelling aponta o que parece
ser um problema crucial da moral: a articulação entre identidade
62
e diferença. A oscilação do agir humano para somente um
desses extremos, com a exclusão do outro, provoca sérios
desastres. A identidade indiferencida e a diferença privada
de identidade produzem toda sorte de fanatismo - unidade
empobrecida pela ausência do diferente - e a fragmentação
da moral em vários códigos de moralidade, sem um laço
consensual que legitime o exercício dessa diversidade e
impeça que um ou mais desses códigos venham a exercer um
ilegítimo papel de controle e, eventualmente, até de extermínio
dos códigos que lhe são adversos - a diferença não mais
consensualmente partilhada e respeitada. A tensão entre identi-
dade e diferença torna-se, portanto, uma questão simultanea-
mente teórica e prático-moral, desafiando as comunidades
humanas e os teóricos que, com a intenção de penetrar na
inteligibilidade do ethos, se debruçam sobre essa fantástica
experiência ética do ser humano. A solução supra apresentada
por Schelling está evidentemente aquém da complexidade dos
problemas morais hodiernos. Ela, contudo, tem o mérito
de apontar o telas da moral como sendo aquilo que não se
deixa apreender pelas próprias categorias da moral, não porque
ele esteja aquém da moral ou seja imoral, a negação do que
deve ser, mas porque ele nos oferece o que está acima e é
melhor do que a moral: a não-dualidade. A esta, que está
acima das virtudes,~ 0 deve nos conduzir a moral. Assim sendo,
a filosofia moral tem como tarefa determinar as condições
de possibilidade para a resolução racional e consensual de
nossos conflitos, acima dos quais resta o fulgor radiante do
absolutamente Imediato ou do imediatamente Absoluto.
Em quarto lugar, é importante ressaltar o significado da
filosofia. Sua tarefa consiste em articular o absolutamente
Imediato com aquilo que é procedente dele: aquilo que é
igualmente imediato e mediatizado. A coordenação entre
Incondicionado e condicionado, todavia, tem lugar na esfera
condicionada e, conseqüentemente, a filosofia, justamente em
virtude do "locus" no qual ela surge, não está em condições
de reivindicar qualquer título de infalibilidade. Sendo uma
atividade finita, limitada e condicionada, designando, desse
modo, um índice de precariedade e deficiência, ela não
consegue abrigar em si a "magnitude" do Absoluto. Daí, pois,
a crítica de Schelling àqueles que acreditam ter conduzido a
ciência à sua perfeição, mediante seu sistema teórico de validade
63

universal, fechados em si mesmos, de tal forma que eles se
transformam em instrumentos de seus próprios sistemas.4 1 Em
razão disso, a filosofia não pode abrir mão da sua essencial
incompletude.
Daí, finalmente, em quinto lugar, a importância da dialética
enquanto aquele método capaz de fazer frente ao específico
da filosofia: articular Incondicionado e condicionado. Não
por acaso, a tríade dialética: tese, antítese e síntese, constitui
a moldura básica de seu sistema de filosofia, coordenando o
Absoluto e suas manifestações. Isso, naturalmente, não quer
dizer que a dialética detenha a exclusividade do método
filosófico. A dialética, tal como aqui entendida, traça as
linhas gerais da mediação, envolvendo Incondicionado e
condicionado, simultaneamente influenciando outros métodos
filosóficos (analítico, hermenêutico, pragmático etc.) e sendo
por eles influenciado. Nem mesmo é o caso de negligenciar
as diferentes formas de dialética, igualando-as àquela que
foi discutida neste trabalho. Aqui vale ressaltar, a meu ver, o
esforço de Schelling de tornar atual, no contexto da assim
chamada modernidade, aquela tarefa própria do discurso
dialético, já entrevista por Platão (427-347 a. C.), seu.ilustre
antecessor, na abordagem desta questão: o que é próprio do
dialético é uma compreensão sinóptica das ciências e do serY
NOTAS
1
Indiretamente iremos tocar em tópicos abordados em: SCHELLING. Über
di e Mõglicbkeit einer Fomz der Pbilosopbie überbaupt (1794); SCHELLING.
Pbilosopbiscbe Briefe über Dogmatismus und Kriticismus (1795). Parte do
material exposto nesta primeira parte do trabalho já foi também abordado
em outros trabalhos. Ver: VIEIRA. Liberdade, dialética e intuição intelectual,
2002; VIEIRA. Filosofia e Absoluto no jovem Schelling, 2002.
SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe über Dogmatismus und Kriticismus, 3",
4" e 7" Cartas, p. 59-66; 82-85.
3 não podem ser considerados como sujeitos da liberdade e da autonomia e,
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder Über das Unbedingte
im menscblicben Wissen, p. 89-93 (§ III).
4 O conflito, primeiramente, no espírito humano e, posteriormente, no
Tese, antítese e síntese não são resultado de uma dedução analítica, mas
~.e um progresso. SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder
Uber das Unbedingte im menscblicben W'issen, p. 112s (§X).
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder Über das Unbedingte
im menscblicben Wissen, p. 127 (§ XIV).
64
6
Schelling utiliza tanto o termo "lei moral" quanto "mandamento moral".
Ver: SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip derPbilosopbie oder Überdas Unbe-
dingte im menscblicben 1Vissen, p. 126 (§XIV) e p. 164 (§XVI). Para uma
distinção por mim introduzida entre mandamento moral e lei moral, em
Schelling, e sua relação com a distinção entre lei moral e imperativo
categórico, em Kant, v. VIEIRA. Filosofia e Absoluto no jovem Schelling,
2002.
7
Além dessa mediação entre Incondicionado e condicionado exposta pelo
devir ou tornar-se (werden), Schelling também trabalha com a mediação
expressa mediante o verbo "ser": sê absolutamente idêntico contigo
mesmo. SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder Über das
Unbedingte im menscblicben 1Vissen, p. 126 (§XIV). Enquanto a primeira
mediação expressa um caráter processual, dinâmico e histórico-temporal
da articulação entre Incondicionado e condicionado, a segunda mediação,
por sua vez, acentua a dimensão estática.
8
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder Über das Unbedingte im
menscblicben Wissen, p. 133 (§XV), p. 167 (§XVI) e p. 170 (§XVI).
9 VIEIRA. Filosofia prática e Incondicionado, 1999.
10
SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe über Dogmatismus und Kriticismus, 9"
Carta, p. 96-106. Aqui são consideradas as várias formas de dualidade e
sua superação.
11
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder Über das Unbedingte
im menscblicben Wissen, p. 109 (§ IX), p. ISO (§ XVI); SCHELLING.
Neue Deduktion des Naturrecbts, p. 147 (§ 41).
12
KANT. Kritik der reinen Vemunft, §§ 9-10; B, p. 95-109.
13 Síntese, neste contexto, significa a articulação entre elementos condicio-
nados, diferentemente da síntese da primeira tríade apresentada, abordando
a composição entre Incondicionado e condicionado.
14
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrecbts, p. 139 (§ 3).
1; SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrecbts, p. 139, p. 141 (§§ 3, 9, 12).
A meu ver, essa terminologia de Schelling deixa transparecer uma forte
influência de Kant, Prinzipalmente se levarmos em conta a moral enquanto
esquema mediatizando o Incondicionado e o condicionado e o terceiro
conflito das idéias transcendentais, no qual são abordadas a causalidade
mediante a liberdade e a causalidade através das leis da natureza. Além
disso, o uso do termo "esquema" não deixa também de apontar para
Kant e para o papel de mediação desempenhado pelo esquematismo
transcendental.
16 Há também o ser meramente vivo (ser animal): ser marcado pela dualidade
sujeito versus objeto, mas cuja atividade, ao invés de retornar consciente-
mente sobre si, perde-se na objetividade (SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe
über Dogmatismus und Kriticismus, 8", p. 94). Em razão disso, esses seres
portanto, não são agentes morais.
17
terreno filosófico, é resultado do "exílio a partir do Absoluto": Heraustreten
aus dem Absoluten. SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe über Dogmatismus
und Kriticismus, 3" Carta, p. 60. Na Incondicionalidade enquanto tal,
portanto, não há conflito.
65
 18
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 143 (§ 20). 3
8
A caracterização do Absoluto, primeiro como sujeito e segundo como
19
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 143 (§ 19). identidade entre ser e pensar, não o isenta da dualidade, tal como é a
20 intenção de Schelling, já que, em ambos os casos, tem sempre lugar uma
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 143 (§ 22).
21
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 144 (§ 26). oposição: entre sujeito e objeto, no primeiro caso; e entre ser e pensar, no
22
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 144 (§ 27). Vale lembrar segundo. Ver VIEIRA. Filosofia e Absoluto no jovem Schelling, p. 223-239.
39 WILBER. The eye of spirit, p. 4Sls.
Kant: o dever-ser (Sollen), expresso pela razão, nos apresenta a medida
40
(Mass), (KANT. Kritik der reinen Vernunjt, B, p. 576) e, portanto, o limite Instrutivas a esse respeito são as observações de PLOTINO. Enéadas, VI 9,
do que devemos fazer, embora possamos fazer o que não devemos fazer. 11, 17 e 45-48.
23 41
Não seria melhor Schelling denominar a individuação moral de individuação SCHELLING. Philosophische Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus, 5"
ética, visto que o indivíduo moral apresenta um estilo de agir ético mediante Carta, p. 74s. É verdade que neste contexto Schelling critica a filosofia
a relação com outros? De fato, esse poderia ser o caso. No entanto, ele enquanto reduzida a um mero sistema teórico e, portanto, impermeável à
tem em mente aqui o indivíduo e a exigência posta para ele. Nesse sentido, esfera prático-moral, à qual a exigência de superar a limitação do campo
trata-se da autonomia do indivíduo e não da autonomia dos indivíduos teórico, a dualidade entre sujeito e objeto, é essencial. Isso poderia dar a
embora a especificação dessa autonomia tenha lugar mediante a relaçã~ entender que teoricamente não haveria mais nada a conquistar, sendo
com outros indivíduos. tudo o mais a ganhar no campo da ciência objeto da ação moral. Essa
2
~ SCHELLING. Neue Deduktion des NatwTechts, p. 145-146 (§§ 31ss) e p. interpretação, porém, é desmentida pelo papel por ele atribuído ao cético.
154-155 (§§ 71s). O cético de Schelling é aquele que acredita em uma "verdade infinita",
25
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 147 (§ 43). "verdade progressiva e auto-adquirida" e ataca os sistemas fechados que
26 reclamam para si infalibilidade. Essa verdade infinita e progressiva traduz,
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrecbts, p. 148s (§ 49).
27 pois, a inviabilidade, para um sistema filosófico qualquer, de esgotar a
SCHELLING. Neue Deduktion des Natzt17"echts, p. 147 (§§ 41-43) e p. 153 infinitude da verdade que se manifesta. As filosofias de Schelling parecem
(§ 70).
28
testemunhar esse ceticismo da verdade infinita e progressiva. Seria esse
SCHELLING. Neue Deduktion des Naturrechts, p. 146 (§ 37). ceticismo a raiz do ceticismo amadurecido, defendido por Hegel na Feno-
29
SCHELLING. Neue Deduktion des NatwTechts, p. 143 (§ 19) e p. 154 (§ menologia do Espírito (1807)? HEGEL. Phãnomenologie des Geistes, p. 72.
71). ·
12
PLATÃO. República, VII, 537 c.
30
SCHELLING. Neue Deduktion des NatwTechts, p. 154 (§ 72). O-círculo
maior englobando a Ética e a Ciência do Direito significa que essas ciências
fazem parte de um contexto maior, a saber, o contexto da Moral. Elas
surgem a partir da exigência moral posta para o indivíduo de transitar do REFERÊNCIAS
fenômeno para o ser em si. Tal exigência gera conflitos, os quais são
tematizados por essas ciências. O caráter formal e material da vontade
universal e da vontade singular não serão aqui abordados. Para sua abordagem
HEGEL, W. Pbanomenologie des Geistes. Frankfurt/M. Suhrkamp, 1991.
v. VIEIRA. Freiheit ais Kultus. Aporien und Grenzen der Auffassung der (Werke, 3)
menscb/ichen Freiheit bei Hegel, p. 256-265.
31 KANT, I. Kritik der reinen Vemunft (B, 1787). Darmstadt:
SCHELLING. Vom I eh ais Prinzip der Philosophie oder Über das Unbe-
dingte im menschlichen Wissen, p. 122-130 (§ XIV);. SCHELLING. Neue Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983. (Bande, 3/4)
Deduktion des Naturrechts, p. 143 (§ 19); SCHELLING. Philosophische
KANT, I. Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein,
Briefe über Dogmatismus und Kriticismus, 9" Carta, p. 102.
32
KANT. Kritik der reinen Vernunft, B, p. 576. taugt aber nicht für die Praxis (B, 1793). ln: Schriften zurAnthropologie,
33
KANT. Über den Gemeinsprucb: Das mag in der Theorie richtig sein, tauft Geschichtsphilosophie, Politik und Padagogik. Darmstadt:
aber nicht für die Praxis, B, p. 261s. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983. (Band, 9)
34
SCHELLING. Philosopbische Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus, 9"
Carta, p. 102. PLATON. Der Staat. ln: Werke in 8 Banden (Griechisch und Deutsch).
35
SCHELLING. Vom Ich ais Prinzip der Philosopbie oder Über das Unbedingte Eigler, G. (Ed.). Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1990.
im menschlichen Wissen, p. 122 (§ XIV).
36
PLOTINO. Plotini opera. Henry, P.; Schwyzer, H. R. (Ed.). NewYork:
Sobre a ausência de vontade no Absoluto, v. PLOTINO. Enéadas, VI 9, 6,
40; SPINOZA. Ethica, parte primeira, XVII, corolário II; XXXII, corolário I
Oxford University Press, 1982.
e II. PLOTINO. Enéadas. ln: _ _.Plotini opera. Henry, P.; Schwyzer, H. R.
37
SCHELLING. Philosopbiscbe Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus, 1a (Ed.). New York: Oxford University Press, 1982.
Carta, p. 51.

66 Luís 1(. <Drefier 67

(32) 3229-3105
ldreher@lchl. ufjf.br
SCHELLING, F. Über die M6glichkeit einer Form der Philosophie
überhaupt (1794). In: Friedrich Wilhelm Joseph Schelling.
Historisch-Kritische Ausgabe. Baumgarten, H.;Jacobs, W.; Krings, H.;
Zeltner, H. (Ed.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1976. (Reihe I: Werke;
Werke 1)
SCHELLING, F. Vom Ich ais Prinzip der Philosophie oder Über das
Unbedingte im menschlichen Wissen (1795). In: Friedrich Wilhelm
Joseph Schelling. Historisch-Kritische Ausgabe. Baumgarten, H.;
Jacobs, W.; Krings, H.; Zeltner, H. (Ed.). Stuttgart: Fromann-Holzboog,
1980. (Reihe I: Werke; Werke 2)
SCHELLING, F. Philosophische Briefe über Dogmatismus und
Kriticismus (1795). In: Friedrich Wilhelm Joseph Schelling.
Historisch-Kritische Ausgabe. Baumgarten, H.; Jacobs, W.; Krings, H.;
Zeltner, H. (Ed.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1982. (Reihe I: Werke;
Werke 3)
SCHELLING, F. Neue Deduktion des Naturrechts (1796/97) In: Friedrich
WilhelmJoseph Schelling. Historisch-Kritische Ausgabe. Baumgarten,
H.;Jacobs, W.; Krings, H.; Zeltner, H. (Ed.). Stuttgart: Fromann-Holzboog,
1982. (Reihe I: Werke; Werke 3)
SPINOZA, B. Opera!Werke. Blumenstock, K. (Ed.). Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1989.
SPINOZA, B. Ethica. In: _ _. Opera!Werke. Blumenstock, K. (Ed.).
Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1989.
fllO~OfiA DA NATURtZA
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Neumann, 1996.
VIEIRA, L. Filosofia prática e Incondicionado. Síntese Nova Fase.
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WILBER, K. The Eye of Spirit. In: _ _. Tbe Collected Works ofKen
Wilbe1: Boston: Shambhala, 2000. v. 7.

68
MÁRCIA c. F. GONÇALVES

~CHclliNG
fllÓ~OfO DA NATURtZA
OU CltNTI~TA DA IMAN~NCIA~

A intenção deste trabalho é recuperar da Filosofia da Natureza,

de Schelling, uma idéia de natureza não mais apenas em seu
sentido mecanicista, de uma objetividade exterior ao espírito
ou ao intelecto humano, que se tornou dominante, principal-
mente nas ciências da natureza, desde a Idade Moderna. O
objetivo é compreender a idéia de natureza de Schelling como
uma esfera que contém, nela mesma, inteligibilidade, ou na
qual o espírito se encontra de forma imanente. A partir dessa
compreensão, gostaria de convidá-los a uma reflexão sobre a
possibilidade da atualidade desse conceito. A tese que defendo
é a de que a Filosofia da Natureza, de Schelling, pode
ajudar-nos, neste momento histórico de extrema alienação
diante da natureza, ilustrada principalmente pela crise ecológica
que tanto ameaça a sobrevivência do planeta, a reconstruirmos
nossa relação com a natureza, nossa intuição de natureza,
nossa atuação na natureza, e, por fim, nossa autoconsciência
de que somos seres da e na natureza. Obviam~nte, a aceitação
dessa tese vai depender da própria definição de natureza que
nós conseguirmos conceber. Sabemos mesmo o que é natureza?
Quando defendemos a preservação da Floresta Amazônica, ou
a das baleias do Pacífico, o fazemos por amor à natureza? Alguém
aqui já foi à Amazônia, ou já viu realmente uma baleia selvagem?
Não seriam esses dois exemplos de objetos da natureza
símbolos do que há de mais distante, exótico, diferente de
nós? Como é possível construir, como o querem a maioria
dos ecologistas, um sentimento de proximidade entre o
homem e a natureza, se nosso problema fundamental, talvez
r
especialmente para nós, filósofos, é definir exatamente o que
é isto, natureza? Como podemos amar algo que não conhecemos?
Como podemos conhecer algo que nos parece radicalmente
distante? Como podemos aproximar esse objeto distante de
nosso próprio conhecimento, se partimos sempre do pressu-
posto de que ele se encontra absolutamente fora e distante
de nós? Acredito que Schelling foi um dos poucos filósofos a
construir uma idéia de natureza que, ao contrário de parecer
mais uma definição abstrata, abre a possibilidade de uma nova
experiência diante da natureza, uma experiência que visa não
apenas descobrir a verdade, mas fundamentalmente recriá-la,
ou, em outras palavras, uma experiência que sintetiza em um
único ato uma atuação prática ou ética, uma concepção teórica,
científica ou especulativa e uma intuição estética ou uma produção
poética.
Pretendo aqui apresentar, em linhas gerais, a Filosofia da
Natureza, de Schelling, principalmente como foi apresentada
nos escritos de 1797 a 1803 (mas também como foi reavaliada
em 1833-1834 em sua História da Filosofia), demonstrando
exatamente essa tripla dimensão do conceito schellingiano
de natureza.
Este texto será assim divido em três momentos: o primeiro
analisará a dimensão prática, o segundo, a dimensão espe-
culativa e o terceiro, a dimensão poética da Filosofia da Natureza,
de Schelling, muito embora, como veremos todo o tempo,
essas três dimensões se encontrem tão entrelaçadas quanto
as três dimensões (altura, largura e profundidade) dos
corpos materiais presentes na própria natureza.
Antes, eu gostaria, entretanto, de fazer um breve comentário
introdutório sobre a relação de Schelling com a ciência da
natureza de seu tempo.
RELAÇÃO DE SCHELLING COM A CIÊNCIA DA
NATUREZA
A Filosofia da Natureza, de Schelling, pode ser interpretada
como uma reação contra uma determinada forma de se fazer
ciência sobre natureza, mas, por outro lado, ela nunca abandona
a possibilidade de se afumar a si mesma como ciência, e, mais
72
ainda, de propor um modo alternativo de se fazer ciência. É
importante lembrar que Schelling possuía um interesse muito
grande pela ciência da natureza, não apenas como crítico externo,
mas como profundo estudioso.
Além de filosofia e teologia, Schelling estudou Matemática,
Ciências Naturais e Medicina, e estava sempre informado
sobre os últimos resultados das pesquisas científicas de sua
época no campo da física, da química e da fisiologia. Seu
interesse se aprofundou principalmente a partir das desco-
bertas sobre a eletricidade e o magnetismo e suas relações e
aplicações no campo da biomedicina. Schelling expressou um
profundo fascínio por algumas das mais interessantes desco-
bertas científicas de seu tempo, algumas das quais ele incor-
pora em sua Filosofia da Natureza, para ilustrar sua teoria
sobre uma inteligibilidade da mesma, ou, mais exatamente,
para traçar um paralelo entre o que ele denomina de processo
de constituição da matéria e o processo de objetivação do
espírito. Entre essas descobertas importantes estão: a formu-
lada em 1775, por Lavoisier, sobre a constituição do ar por
hidrogênio e oxigênio; a descoberta de Galvani, de 1791,
sobre a eletricidade animal, a qual tornou possível pensar a
transformação da energia química em elétrica; e, principal-
mente, as doutrinas da "excitação" (Erregungslehre) e do
"desenvolvimento" (Entwicklungslehre), formuladas respec-
tivamente pelo médico escocês John Brown e pelo biólogo
alemão Karl Friedrich von Kiehlmeyer. A doutrina da excitação
definia a doença como uma forma de desequilíbrio e a vida
como uma forma de estado de excitação. Essa doutrina, juntamente
com a da "eletricidade galvânica", serve para reforçar e justificar
a crítica de Schelling contra uma visão puramente mecanicista
da vida. Mas o verdadeiro terreno para a crítica de Schelling
à ciência tradicional já havia sido plenamente preparado pelo
biólogo Kiehlmeyer, mestre de Cuvier, que fundaria a anatomia
comparada e cuja obra, de 1793, intitulada Über das Verhaltnis
der organischen Krafte (Sobre a relação das forças orgânicas)
influencia profundamente a Filosofia da Natureza, de Schelling.
A importância da influência da concepção biológica de Kiehlmeyer
para a Filosofia da Natureza, de Schelling, pode ser visualizada
em sua teoria das três forças orgânicas fundamentais: a Sensibi-
lidade, a Irritabilidade e a Reprodução, mas uma das idéias
fundamentais desse biólogo é a idéia de desenvolvimento,
73
pensada como uma categoria extensiva a todos os organismos
vivos. Schelling incorporará essa idéia em sua Filosofia da
Natureza, ao conceber seu próprio conceito de "evolução". A
tese sobre o desenvolvimento da natureza através das relações
das forças orgânicas pode ser identificada na seguinte passagem
do texto de Kiehlmeyer: "A força através da qual o desenvol-
vimento do indivíduo acontece é a mesma força através da
qual diferentes organizações da terra são levadas à existência." 1
Essa tese serve de base para a concepção schellingiana de
organização da natureza e, conseqüentemente, para a idéia,
fundamental em sua Filosofia da Natureza, de uma inteligibi-
lidade imanente à natureza, idéia esta que irá diferenciá-la
da concepção de ciência da natureza ainda vigente em sua
época.
É exatamente nesse clima de uma relação ambígua com
a ciência da natureza - de um lado, apoiando algumas
tendências e doutrinas científicas ainda pouco reconhecidas
na época, de outro, condenando aquelas doutrinas fundadas
em pressupostos mecanicistas - , que Schelling resiste às mais
contundentes críticas. A pior de todas diz respeito ao boato
de que Schelling teria realizado pretensas experiências médicas
que, por serem pouco ortodoxas, teriam causado a morte da
jovem adolescente Auguste Bohme, filha de Caroline Schlegel.
Como se sabe, Schelling se apaixonou perdidamente pela
então esposa de Ausgust Wilhelm Schlegel, um dos nomes
fundamentais do círculo do primeiro romantismo. Esse romance,
inicialmente secreto, que culminou no casamento em 1803 de
Schelling com essa mulher doze anos mais velha que ele,
desencadeou uma verdadeira crise que culminou não apenas
com a ruptura de Schelling com o círculo deJena, mas também
com a desestruturação do próprio grupo. O fato de esse romance
ter desencadeado tal crise pode muito bem explicar a acusação
que se fez, sobre Schelling, de ter sido o culpado pela morte
da filha de Caroline com seu primeiro marido Bohme, ou pelo
menos de ter sido o responsável por ela não ter recebido
ajuda médica tradicional, pois que teria tentado (esse era o
boato) ele mesmo salvar-lhe a vida, utilizando o método da
doutrina da "excitação", de Brown. Schelling reagiu contun-
dentemente a essa acusação ou intriga. A verdade é que a
relação de Schelling com a medicina foi muito mais científica
do que se costuma afirmar. Embora algumas de suas idéias
74
afrontassem a medicina vigente de sua época, ele colaborou
e trabalhou com alguns importantes cientistas dessa área,
principalmente com o médico Adalbert Albert Marcus com o
qual fundou, em 1805, o ]ahrbücher derMedizín ais Wissenschaft
(Anuários da Medicina enquanto Ciência). Independentemente
das acusações de diletantismo científico sobre Schelling, é
possível reconhecer que sua Filosofia da Natureza teve uma
importância histórica fundamental para a evolução da ciência
e do pensamento do século XIX.
Terminado este primeiro comentário, iniciarei agora a minha
exposição sobre o conceito propriamente dito, de Schelling,
da natureza, obedecendo à proposta da análise de suas três
dimensões.
A DIMENSÃO PRÁTICA DA FILOSOFIA DA
NATUREZA, DE SCHELLING
O primeiro traço dessa dimensão prática do conceito de
natureza, de Schelling, se encontra em um texto, cuja autoria
é ainda discutida, e apenas hipoteticamente pode ser tomado
como de Schelling. Trata-se do fragmento intitulado Das
sogenannte Alteste Systemprogramm ("O assim denominado
mais antigo programa de sistema"). Esse fragmento é uma espécie
de manifesto revolucionário e a primeira proposta do texto
diz respeito a uma nova ética e a uma nova física. Absoluta-
mente inspirado no espírito grego, onde ethos e physis se
completam, o texto fala de uma ética que seja ein vollstãndiges
System allerldeen ("um sistema completo de todas as idéias"), 2
cuja primeira delas é: natürlich die Vorstellung von mír selbst ·
als einem absolut freien Wesen ("naturalmente a representação
de mim mesmo como uma essência absolutamente livre"). 3
Essa idéia do sujeito absolutamente livre não deve, contudo,
segundo esse manifesto, excluir o mundo objetivo; ao contrário,
ambos existem paralela e concomitantemente. E é aí, com a
proposta de uma não-separação entre natureza e ser moral,
que o texto lança, pela primeira vez, uma crítica contra
uma forma objetivante de pensar a natureza, oferecida pela
física vigente na época. Diz o texto em tom poético e ao
mesmo tempo subjetivo: Ich mõchte unserer langsamen, an
75
 Experimenten mühsam schmitenden Physík eínmal wieder
Flügel geben. ("Eu gostaria de devolver as asas à nossa física,
que caminha vagarosamente e com esforço através de experi-
mentos.").4 Essa nova física transformada pelas asas dadas
pela filosofia é assumidamente um ideal, declaradamente
descrito no texto como esperado para um tempo futuro. Pare-
ce que o autor (ou os autores) previu (ou previram) a supera-
ção da física mecanicista a partir da superação de uma moral
subjetivista. Vinculada a essa proposta, é formulada uma
questão fundamental, com a qual o jovem Schelling irá se
defrontar em sua Filosofia da Natureza. Nas palavras do pró-
prio texto: "A questão é a seguinte: como deve ser criado um
mundo para uma essência moral?" (Díe Frage íst díese: wie
mu:fteine Weltfih·ein moralisches Wesen beschaffenseyn?). 5 Essa
questão envolve um dos mais complexos problemas filosóficos
da modernidade, que é a relação entre Natureza e Liberdade.
A questão posta no Ãltestes Systemprogramm sobre a criação
de um mundo para um ser moral surge exatamente como esboço
para a proposta de unificação entre natureza e liberdade, do
jovem Schelling. Sem uma metafísica que parta de pressupostos
supranaturais, resta uma ética, cuja construção se dá não
apenas a partir de uma subjetividade autoconsciente e certa
de sua liberdade ou livre em sua ação, mas, concomitante-
mente, surge também o mundo no qual essa ação do homem
tem e faz sentido. Esse mundo não pode, assim, ser separado
e mesmo diferenciado dessa ação ou desse ato. Nessa ética,
há, portanto, uma profunda interação com esse mundo-natureza.
A Filosofia da Natureza, de Schelling, busca, igualmente,
um estado de unidade pré-reflexivo (e esta é a crítica de Hegel)
entre o homem ou o espírito e a natureza, mas, ao mesmo
tempo, espera que esse retorno a um estado originário de
.natureza seja perspectivado para o futuro. Desse modo, à
Filosofia da Natureza, de Schelling, conserva o espírito utópico
e revolucionário do Ãltestes Systemprogramm. A proposta de
uma nova ética que incorpore os questionamentos práticos,
e que, portanto, concentre-se na relação do ato livre da vontade
com o mundo, inclui a transformação da idéia desse mundo,
que passa a ser produto e meio da criação desse ato de liber-
dade. A liberdade e seu fundamento não estão para além da
física, no sentido de uma metafísica pré-crítica; ao contrário,
ela é a ação atuante na e da própria natureza, enquanto instância
76
da totalidade absoluta e enquanto mundo pensado nessa nova
ética.
A questão colocada pelo Ãltestes Systemprogramm sobre o
ser do mundo criado para um ser moral pode ser compreendida
quando se percebe exatamente que, por trás dessa questão,
está a crítica à oposição entre natureza e liberdade. Enquanto
a natureza for pensada como instância que impede, dificulta
ou mesmo testa a força do ato livre da vontade humana, a
criação do mundo só pode ser compreendida como uma criação
a partir do nada ou realizada pelas mãos supra-humanas de
uma divindade transcendente. Quando, ao contrário, o mundo
criado para o homem moral se mostra, ele mesmo, como
produto de um ato livre da vontade, a natureza recupera seu
sentido de liberdade criadora de sua autoprodução infinita,
ela passa a ser, ela mesma, o absoluto.
Essa primeira tese fundamental da Filosofia da Natureza,
de Schelling, já aponta, como podemos facilmente reconhecer,
para as outras duas dimensões da Filosofia da Natureza. A
dimensão estética surge com a questão sobre a relação entre
natureza e poesia, na medida da compreensão dessa essência
produtiva e criativa da natureza. A outra dimensão, que toma
uma especial importância quando tentamos observar a relação
entre a Filosofia da Natureza, de Schelling, e a chamada
Ciência da Natureza, aponta para a questão epistemológica
propriamente dita, sobre a possibilidade da adequação, ou
melhor, da identificação entre a representação subjetiva e os
conteúdos ou objetos ( Gegenstiinde) da natureza. Essa questão,
que também é posta no texto do Ãltestes Systemprogramm, é
retomada por Schelling em seu primeiro esboço de uma Filosofia
da Natureza, cuja primeira edição data de 1797, intitulado
Ideen zu einer Philosophie der Natur (Idéias para uma Filosofia
da Natumza), e pode ser também identificada na questão,
colocada logo no início deste texto, sobre a possibilidade da
experiência, e conseqüentemente sobre a possibilidade da
existência do "mundo da experiência", ou seja, de "um mundo
fora de nós" ou da "natureza" propriamente dita.
O problema prático da Filosofia da Natureza, de Schelling,
se coloca a partir da necessidade de demonstrar que o
conteúdo dessa filosofia existe enquanto objeto de nossa
experiência, e não apenas enquanto objeto de nossa reflexão,
77
que tradicionalmente realiza, de modo apriorístico, uma oposição
aparentemente irreconciliável entre o homem e a natureza,
ou entre o conteúdo ou objeto CGegenstand) e a intuição
(Anschauung), entre o conceito (Begrifj) e a imagem (Bild),
oposição essa que, por fim, como observa Schelling nessa
obra de 1797, se interioriza no próprio sujeito dessa reflexão;
ou seja, é posta no interior do ser humano. E aqui podemos
entender a colocação de uma questão das mais importantes
para a Filosofia da Natureza, que é a diferença ou a identidade
entre o que se pode denominar de natureza externa e natureza
interna. De todo modo, o grande ponto de partida de Schelling,
e que vai estabelecer uma importante controvérsia em relação
à Filosofia do Espírito, de Hegel, está na tese de que a natureza
é o topos da unidade originária desses momentos que se tomam
opostos com a reflexão. Segundo as palavras de Schelling:
na reflexão, o ser humano separa "aquilo que a natureza unificou
para sempre". 6 Aqui vale observar que o termo "reflexão" surge
apenas na segunda edição das Ideen zu einer Philosophie der
Natur (Idéias para uma Filosofia da Natumza), de 1803, em
substituição ao termo "especulação", utilizado na primeira
edição, de 1797. Essa substituição tem um sentido profundo,
já que uma das propostas práticas da Filosofia da Natureza,
de Schelling, será a de implantar o que ele denominará, a
partir de 1799, em seu Erster EntwU1f eines Systems der
Nattuphilosophie ("Primeiro projeto de um sistema da Filo-
sofia da Natureza"), de física especulativa. Essa proposta tem
por fundamento exatamente combater a visão mecanicista da
natureza, produzida por uma física que se .move sobre os
pressupostos da reflexão, sendo que a principal relação
dicotômica pensada por essa física reflexiva é, segundo Schelling,
a relação entre causa e efeito, projetada não apenas sobre o
mundo natural, mas refletida também sobre a relação entre
os objetos desse mundo e a representação que eu faço deles.
De fato, não apenas o mecanicismo é conseqüência de um
pensamento reflexivo e dicotômico, mas a própria reflexão é
uma forma de mecanicismo, ou um pensamento mecanizado,
o que é uma contradição em si, principalmente se levarmos a
sério uma afirmação presente no A/testes Systemprogramm
sobre a incompatibilidade entre idéia e máquina, ou a que
diz que de algo mecânico não pode haver qualquer idéia,
78
posto que mtr was Gegenstand der Freiheit ist, heifit Idee
("apenas o que é objeto da liberdade se chama idéia"). 7
A resposta de Schelling sobre a questão de como "é possível
pensar, ao mesmo tempo, as representações como sendo
orientadas pelos conteúdos e os conteúdos como sendo
orientados pelas representações" (wie kõnnen die Vorstellungen
zugleich als sich richtend nach den Gegenstanden, und die
Gegenstande als sich richtend nach den Vorstellungen
gedacht werden?), 8 formulada no System des transzendentalen
Idealismus ("Sistema do idealismo transcendental"), de 1800,
como sendo a mais elevada tarefa da filosofia transcendental,
está mais uma vez vinculada à tese fundamental de sua Filo-
sofia da Natureza, de que existe uma identidade originária
entre o mundo ideal e o mundo real, ou ainda, de que existe,
a priori, uma harmonia entre ambos os mundos. Esta idéia
de uma harmonia pré-determinada entre espírito ou idéia e
natureza ou realidade, inspirada declaradamente na filosofia
de Leibniz, não pode ser pensada, segundo Schelling, a não
ser que "a atividade, através da qual o mundo objetivo é
produzido, seja originalmente idêntica àquela que se expressa
na vontade, e vice-versa" (die Tbatigkeit, durch welche die
objektive Welt produci11 ist, ursprünglich identisch ist mit der,
welche im Wollen sich auflert, und umgekeh11). 9
A idéia de uma harmonia a priori entre o mundo objetivo
do conteúdo da representação e o mundo subjetivo da vontade
livre converte-se rapidamente na tese da identidade ou da
indiferença entre o espírito e a natureza. Entretanto, Schelling
acredita poder deduzir essa tese da primeira idéia, ou seja,
essa harmonia, ainda que pensada como originária, perde a
característica leibiniziana de algo pré-estabelecido, para mostrar-se
como algo constantemente reconstruído e recriado, concomi-
tantemente, pelo próprio pensamento especulativo e pela
própria natureza em sua produtividade infinita. Por outro
lado, a oposição existe, na medida em que o eu construiu o
universo do pensamento reflexivo, que o afastou e o impos-
sibilitou de reconhecer essa unidade de modo imediato.
Entretanto, esse reconhecimento é, acredita Schelling, abso-
lutamente possível e necessário. Basta reconhecer que a
atividade própria do eu, em princípio reduzida à atividade
pura da razão ou à atividade prática da vontade, ao afirmar-se
como objetiva ou ao exteriorizar-se para fora da pureza inicial,
79
revela-se não mais como algo diferente ou mesmo oposto à
natureza, mas como vontade que é, ela mesma, um impulso
natural, um impulso natural de ser feliz, ousará dizer Schelling. 10
Esse complexo movimento do eu que, para além do sujeito,
se faz objeto através da exteriorização da vontade, na forma
de uma atividade produtiva ou de uma ação livre, é explicado
no System des transcendentalen Idealismus (Sistema do
idealismo transcendental) como prova de que a harmonia de
que falava Leibniz é muito mais uma coincidência entre a
produtividade absoluta do eu e a produtividade absoluta da
natureza. E o primeiro passo para a compreensão dessa tese
é superar a idéia de que a natureza é apenas um produto.
Mas essa superação envolve a compreensão de um complexo
desenvolvimento da relação entre produto e produtividade,
enquanto momentos dialéticos de uma única totalidade.
A DIMENSÃO ESPECULATIVA DA FILOSOFIA DA
NATUREZA, DE SCHELLING
O projeto do idealismo objetivo de Schelling pode ser
condensado na busca de superação da dicotomia sujeito-objeto,
promovendo uma espécie de identidade ou indiferença entre
a realidade objetiva da natureza e a realidade subjetiva do
espírito humano. Essa identidade era impossível tanto no
idealismo transcendental de Kant, em que a natureza é "como
se" (ais ob) fosse sujeito, quanto na filosofia subjetiva de Fichte,
em que a natureza é "como se" (als ob) fosse objeto. O que
Schelling pretende é mostrar que espírito é natureza e natureza
é espírito, e que esta infinita subjetividade não se perde de si
ou não se estranha em se tornando objeto; ao contrário, é
nesse chamado Objekt-Werden (vir-a-ser-objeto) que o sujeito
infinito, ou o espírito, ganha movimento, confirmando sua
verdadeira essência infinita. Contudo, em sua objetivação, a
do ser em algo, a essencialidade pura da substancialidade
surge como algo contingente. Por outro lado, entretanto, é
este als Etwas (como algo) do Sein (ser) que transforma o
caráter puramente abstrato do eu em sua pura substanciali-
dade (descrito por Fichte) em um caráter dinâmico de um
movimento espontâneo; pois, para Schelling, essa passagem
80
do ser para o algo é simplesmente resultado de um jogo de
forças opostas inerente ao próprio ser, o qual podemos chamar
já de natureza mesma - essas forças são denominadas atração
e repulsão.
A dialética entre as forças naturais de repulsão e atração,
assim como a elaboração de uma lógica da essência, sinteti-
camente exposta por Schelling no capítulo intitulado "Natur-
philosophie", de sua História da Filosofia Moderna, escrita
entre 1833 e 1834, serve de introdução para uma nova idéia
de natureza, não mais como criação de um deus transcendente
a ela, como criação ex nibil, mas como transformação do nada
pré-material da doutrina da criação divina judaico-cristã, em
um nada da abstração de um ser puramente substancial do
idealismo subjetivo, o qual, entretanto, tem - por força de
sua materialidade que é defendida pelo idealismo objetivo
de Schelling- a capacidade imanente de reunir o que foi
abstraído nele ou de reunir-se com o que foi abstraído dele.
Em outras palavras, deus se faz natureza, porque a matéria
sempre foi divina; portanto, é a matéria mesma, com sua
divina força de atração e repulsão que se organiza em objetividade,
sem perder, contudo, a espiritualidade de uma ordem imanente.
Ao contrário da doutrina da creatio ex nibil, Schelling descreve
o ente primeiro (das erste Seiende) ou o primum Existens como
o primeiro contingente ou como o Urzufall, o acidente origi-
nário, antecipando de certa forma uma concepção que a própria
ciência iria pensar alguns séculos mais tarde. Ao combater
uma idéia tradicional de teleologia da natureza, Schelling se
reaproxima de um espírito grego e chega a afirmar o caos
como potência criadora e verdadeiro lugar da matéria. A
primeira forma material existente é apresentada dialeticamente
(para não dizer contraditoriamente) como uma matéria desor-
ganizada, uma forma dissonante, para usar a expressão de
Schelling. O universo inicia e deve (sol!) (necessariamente)
iniciar com a dissonância. Essa dissonância nada mais é do
que a trágica tensão entre a infinidade da própria matéria
(que é eterna para Aristóteles) e a finitude da forma ou da
existência, que a determina no espaço e no tempo. Mas Schelling
encara a finitude da forma existente do ser como o meio deste
de se pôr como infinito, pois é esta posição do infinito como
finito, do Sein como Seiendes, que faz com que o Nicbts do
81
puro ser abstrato se transforme no Werden da verdadeira
essência infinita. Assim, a oposição entre essência e contin-
gência é superada quando transformadá em uma contradição
dialética no interior do próprio ser que é tudo e, portanto,
não mais possui interno e externo como pólos abstratos.
Essa dialética do ser foi logicamente apresentada por
Schelling em sua famosa teoria das potências da essência.
Essa teoria, claramente inspirada em Fichte, não tem por
objetivo, entretanto, ao contrário do idealismo subjetivo,
provar a identidade da subjetividade infinita, e sim, entre
subjetividade e objetividade. Por outro lado, servindo de uma
espécie de diálogo para a lógica dialética de Hegel, a teoria
ou lógica da essência, de Schelling, não pretende, como em
Hegel, demonstrar apenas abstratamente o movimento dialé-
tico da essência até atingir a idéia, mas, ao contrário, a intenção
máxima de Schelling é mostrar como a matéria, e somente a
matéria, é essa essência dialeticamente imersa em sua trágica
condição de mover-se entre sua natureza essencialmente, ou
materialmente, ou potencialmente infinita, e sua natureza
contingentemente ou formalmente finita. Schelling usa, no
texto de 1833, a expressão "matéria da matéria" para falar de
uma essência que corresponde à sua primeira potência, já
duplicada, e que, portanto, se diferencia da matéria ainda
amorfa da essência abstrata. Enquanto o primeiro ser-algo
do sujeito, ou como a primeira potência de sua autodetermi-
nação, essa matéria é a existência originária, reconhecível
sensivelmente por suas propriedades. Mas a potencialidade
dupla dessa matéria consiste no fato de que, sendo já
conteúdo de um processo, ela possui em si tanto a exclusão
quanto a inclusão do seu oposto, ou seja, do não-algo
(Nicht-etwas), que é propriamente o que se costuma chamar
.de ideal.
Schelling ilustra, então, essa lógica dialética da essência
ou da matéria com uma discussão sobre as teorias científicas
sobre a luz e sobre os fenômenos da eletricidade, do magne-
tismo e químicos.
O fenômeno real da luz, bem como a teoria científica que
tenta explicar a existência desse fenômeno é, para Schelling,
o reflexo, o brilho ou a aparição de uma dialética entre mate-
rialidade e idealidade. Pois, como ele observa, a física de
82
seu tempo já havia começado a pensar dialeticamente, quando
admite concomitantemente a materialidade e a imaterialidade
da luz, a partir da teoria da ondulação. Assim como o átomo
- cujo peso já podia ser determinado por cálculos da físico-
química, mesmo que nunca tenha sido apreendido sensivel-
mente - , a luz possui um modo de materialidade que transcende
o conceito tradicional de matéria. É nesse momento que
Schelling justifica a importância histórica da Filosofia da
Natureza: "A Filosofia da Natureza explica a luz não como
imaterial, no sentido de que ela seja um mero acidente, mas,
ao contrário, ela é (para a Filosofia da Natureza) também substância,
mas substância imaterial assim como a substância pensada
e extensa em Espinosa." 11
Se, de um lado, o conceito de materialidade está ligado,
pela tradição filosófica de Descartes a Espinosa, ao conceito
de extensão, radicalmente oposto ao pensamento, para Schelling,
o fenômeno da luz, que se dá no mundo extenso, surge como
um análogo do espírito ou do próprio pensamento. Em outras
palavras, a luz é um subjetivo posto na própria natureza, ou
ainda, é um subjetivo que pertence ao mundo da objetividade.
Segundo Schelling:
A luz não é propriamente matéria, mas ela é no ideal exata-
mente o que a matéria é no real; pois ela preenche o espaço de
um modo seu, ou seja, de um modo ideal, do mesmo modo
como a matéria o preenche: em todas as dimensões. A luz é,
portanto, o conceito de matéria, não enquanto algo interno e
meramente subjetivo, mas, ao contrário, ela é o conceito de
matéria posto a si mesmo objetivamente: 12
A Filosofia da Natureza, de Schelling, é definida por ele
mesmo nessa obra de 1833-1834 intitulada Zur Geschichte der
neueren Philosophie como o início da filosofia, ou sua primeira
parte, a qual deve ser completada com uma filosofia sobre o
mundo do espírito. A importância da especulação filosófica
sobre a natureza dentro da Filosofia em geral é, para Schelling,
assim traduzida: "A filosofia tem que mergulhar na profundi-
dade da natureza para só então daí se elevar às alturas do
espírito." 13
Se, por um lado, Schelling utiliza algumas teses científicas
como a teoria da ondulação da luz, ou sobre o magnetismo
83
ou a eletricidade, é exatamente na natureza em sua organização
própria, ou seja, na natureza orgânica, que ele irá encontrar
a maior identidade com o espírito. Ele fala mesmo em Espírito
ou Substância da natureza orgânica, em Espírito da vida. E o
mais importante é que ele define a atividade do organismo
não mais de uma forma meramente teleológica, ou seja, não
como a manutenção de sua substância para alcançar um fim,
mas sim como "a manutenção da substância nesta forma, na
qual ela é exatamente a existência da potência superior", 14 a
qual Schelling, prosseguindo a sua teoria das potências da
essência, chama de A3• A terceira potência da essência é, portanto,
a matéria em sua organicidade viva. O fascínio de Schelling
consistia em observar e compreender como as teorias da física
sobre eletricidade, magnetismo e quimismo encontram a prova
de sua necessidade nos organismos vivos, pois a energia vital
é um conjunto de todas essas energias. Schelling preconiza
aqui a famosa máxima de que matéria e energia não se
distinguem. Sua filosofia recorre, entretanto, a nuances de
curiosos exemplos empíricos para demonstrar a dialética do
desenvolvimento da vida. É possível, por exemplo, dizer que
o molusco, um ser ainda bastante primitivo na escala de
complexidade dos seres vivos, possui externamente aquilo
que um ser mais complexo irá internalizar e complexificar,
ou seja, a concha é para o molusco o que os ossos são para
um animal vertebrado, o qual também multiplicou seus órgãos.
Mas, para Schelling, os seres vivos mais complexos conservam
uma espécie de memória - ele fala em Reminiszenzen de
graus anteriores de desenvolvimento, e é exatamente essa
reminiscência que possibilita a apreensão do processo orgânico
da natureza como um todo. Nessa concepção processual e
orgânica da natureza, o ser humano encontra não um lugar
propriamente de destaque, mas representa, sim, o momento
de mediação entre o processo da natureza e o pensamento
desse processo, conduzindo assim a uma espécie de retorno à
subjetividade infinita, o que corresponde ao momento de um
novo desdobramento da potência da essência (A4), o momento
do puro saber, que é para Schelling, necessariamente, o saber
humano. Esse saber consegue reviver ou rememorar, de forma
ideal, todas as etapas de desenvolvimento do ser que, de
forma real, ocorrem na natureza. Mas Schelling observa que,
do mesmo modo que na dialética entre matéria e luz, ambas
84
se unificam na natureza ao se objetivarem ou se realizarem,
também no momento do puro saber, que dá início ao mundo
espiritual, ideal e real, encontram-se imediatamente subjeti-
vados, como a subjetividade humana elevada acima de toda
a natureza. Isso caracteriza a oposição entre necessidade e
liberdade, deixada, segundo Schelling, pelo idealismo trans-
cendental de Kant, mas reconhecidamente solucionado na
bistória, na medida em que, nesta, "não é o indivíduo, mas
sim a espécie inteira que age" .15
Para Schelling, a História é propriamente "o grande
processo no qual a humanidade inteira é efetivada" .16 Expressar
esse processo é tarefa de uma mesma e única filosofia, agora
não mais chamada de Filosofia da Natureza, mas de filosofia
da história. Porém, a filosofia se constitui ainda de um terceiro
momento, além do saber da natureza e do saber da história.
Esse momento é a filosofia da arte. A arte não é apenas uma
parte fundamental da efetividade do mundo, mas, sem dúvida,
o momento fundamental da atividade espiritual humana
que reproduz o momento da criação do espírito da própria
natureza.
A DIMENSÃO POÉTICA DA FILOSOFIA
DA NATUREZA, DE SCHELLING
A aproximação entre uma intuição estética da natureza e
uma especulação racional sobre a mesma se fundamenta em
uma importante discussão sobre a possibilidade de que a
essência infinita da natureza, sua produtividade absoluta, que
o meu pensamento especulativo pode identificar na natureza,
seja, ao mesmo tempo, revelada através de um produto finito
da mesma, de um momento objetivo finito, apreensível empi-
ricamente. A questão diz respeito à possibilidade de pensar
uma identidade imediata entre o universal, o absoluto, o
infinito e o finito ou singular. Como é possível apreender o
infinito empiricamente, ou seja, em um produto finito da
natureza? Para usar as palavras do próprio Schelling: "Pergunta-se
... como é que uma atividade absoluta, se é que tal atividade
se encontra na natureza, é apresentada empiricamente, ou
seja, no finito?" 17
85
 A resposta de Schelling para essa questão está na compreensão
de que existe, de forma imanente à natureza mesma, uma
relação dialética entre o movimento infinito e constante da
atividade produtiva da natureza e uma concomitante força de
obstrução desse movimento, denominada por ele de
Hemmungskraft, que possibilita exatamente o surgimento de
um determinado momento dessa produção, com a forma
aparente de um produto singular. Entretanto, em cada um
desses produtos aparentes da natureza, se encontra, segundo
Schelling, "o impulso de um desenvolvimento infinito", 18 próprio
da natureza mesma como infinita produtividade. Para ilustrar
essa dialética entre uma tendência infinita para a produtivi-
dade e a presença inevitável de uma força que· obstrui essa
tendência, Schelling encontra, em um fenômeno próprio e
muito comum da natureza, a perfeita metáfora. Imagine um
rio que corre em linha reta até encontrar um obstáculo, por
exemplo, uma pedra. A presença desse obstáculo dá origem
à formação de um redemoinho, o qual, longe de ser algo fixo,
é justamente constantemente mutável, podendo-se identificar
nele o momento de uma organização circular infinita que, em
vez de negar a continuidade do rio, é constantemente reali-
mentada por ela. Esse momento do obstáculo, longe de ser
um simples produto da corrente infinita de produção da
natureza, representa e contém, em sua profundidade, essa
mesma infinidade da produtividade que a cada momento
desvanece e a cada momento ressurge. 19 Outro fenômeno-
metáfora, utilizado por Schelling na obra de 1799, é o de um
pedaço de minério que, segundo ele, é um "fragmento dos
livros da história da Terra". 20 Para Schelling, a história de
nosso planeta encontra-se "entrelaçada (ve1flochten) na
história de toda natureza e, assim, parte do fóssil passa por
toda a natureza inorgânica e orgânica e vai até a história do
universo". 21 Schelling concebe, assim, a idéia de evolução na
natureza, não de uma forma simplesmente linear, mas como
produtividade infinita contida em cada ponto de obstrução
desse processo, ou seja, em cada produto finito. Ele traduz
esse entrelaçamento do finito com o infinito ou do produto e
da produtividade, novamente utilizando-se de uma metáfora-
fenômeno da própria natureza, quando afirma que em cada
produto da natureza "está a semente de um universo" (liegt
der Keim eines Universums). 22 Mas Schelling ainda utiliza uma
86
outra imagem, não mais ligada a um fenômeno natural, mas
tipicamente voltada para a relação entre uma obra cultural
e poderíamos mesmo dizer uma obra de arte e a história
universal do espírito humano, quando cita o episódio de um
viajante que, chegando à Itália, teria observado que "no grande
obelisco de Roma se pode demonstrar toda a história
mundial". 23
O todo ou o infinito da natureza se "espelha", segundo
Schelling, em cada parte singular, em cada indivíduo, e
compreender a possibilidade de apreender essa infinidade
a partir da finitude significa compreender que a minha intuição
singular de uma parte finita da natureza é apenas "aparente-
mente-singular", ou seja, que na intuição singular está contida
a intuição de todo o universo. É exatamente essa relação de
paralelismo, identificada tanto no processo de constituição
da natureza, ou da matéria, quanto no processo de desenvol-
vimento do espírito, ou da vontade, que constitui o grande
tema recorrente nos textos sobre a Filosofia da Natureza, de
Schelling.
A conclusão a que chega Schelling no texto de 1800 é de
que a atividade una, presente tanto na natureza quanto no
espírito, é uma atividade originalmente estética, no sentido
de uma criação poiética propriamente dita. Essa estética
ampliada para além dos limites aparentes do espírito, ou seja,
para a natureza como totalidade, faz com que Schelling defina
a filosofia não mais apenas como sinônimo da Filosofia da
Natureza, mas também como sinônimo de filosofia da arte.
Como ele mesmo diz nesse texto: "O mundo objetivo é
apenas a originária e ainda inconsciente poesia do espírito.
O organon universal da filosofia - e a chave de toda a sua .
abóbada é a filosofia da arte." 24 Essa conclusão, ao contrário
de deslocar o problema da relação entre o homem e a natureza
para além da natureza mesma, ou para a atividade propria-
mente artística, para a produção da obra de arte enquanto
espiritualização da natureza como o faz, por exemplo,
Hegel, no momento em que decide abandonar a tese romântica
sobre o belo natural - , aprofunda a dimensão da especula~ão
sobre a relação entre espírito e natureza, na medida em que
também aproxima, definitivamente, a minha atividade de pensar
a natureza da minha experiência estética diante da mesma.
87
r

Afinal, a minha natureza espiritual, com sua infinita potenciali-
dade criativa, em nada se difere da natureza infinitamente
produtiva que se revela em todos os produtos aparentemente
finitos da natureza. Nós, seres humanos, somos também essa
síntese dialética entre criatura e criação, produto e produção,
intelecto e intuição, na forma de uma matéria absolutamente
espiritual, que guarda em si a memória infinita de todas as
produções e que, portanto, se sabe enquanto natureza infini-
12 "Das Licht ist also selbst nicht Materie, aber es ist im Idealen eben, was
die Materie im Realen ist; denn es erfüllt den Raum auf seine, d. h. auf
ideale Weise geradeso nach allen Dimensionen, wie ihn die Materie erfüllt; das
Licht ist also der Begriff der Materie, nicht etwas innerlich oder blob
subjektiv, sondem es ist der selbst objektiv gesetzte Begriff der Materie."
SCHELLING. Ausgewiiblte Schriften in 6 Biinden, p. 521.
13 "Die Philosophie muBte in die Tiefen der Natur hinabsteigen, nur um sich
von dort aus zu den Hohen des Geistes zu erheben." SCHELLING. Zur
Geschicbte der neueren Philosopbie, p. 523.
1• SCHELLING. Zur Gescbicbte der neueren Philosopbie, p. 526.

tamente produtiva. 15 SCHELLING. Zur Geschichte der neueren Philosophie, p. 531.

16 SCHELLING. Zur Geschichte der neueren Philosophie, p. 532.

17 "Es fragt sich (. .. ), wie eine absolute Thãtigkeit, wenn eine solche in der

Natur ist, empirisch, d. h. im Endlichen, sich darstellen werde." SCHELLING.

Erster Entwwf eines Systems der Naturphilosophie, p. 330.
NOTAS 18 SCHELLING. Erster Entwwf eines Systems der Natzupbilosophie, p. 335.

19 SCHELLING. Erster Entwlllf eines Systems der Natwpbilosophie, p. 334 e

357.
20 SCHELLING. Erster Entwzof eines Systems der Natwphilosophie, p. 359.
1
"~:)ie Kraft, durch welche die Entwicklung des Individuums geschieht, ist 21 SCHELLING. Erster Entwlllf eines Systems der Natwphilosophie, p. 359.
d1eselbe Kraft, durch welche die verschiedenen Organisationen der Erde 22 SCHELLING. Erster Entwlllf eines Systems der Natwphilosophie, p. 359.
ins Dasein gerufen werden." In: KIRSCHHOFF. Friedrich lVilhelm]oseph 23 SCHELLING. Erster Entwlllf eines Systems der Natwphilosopbie, p. 359.
von Schelling, p. 28.
24 "Die objektive Welt ist nur die ursprüngliche, noch bewuBtlose Poesie des
2
SCHELLING. Das sogenannte"ÃltesteSystemprogramm", p. 110. Este-frag-
Geistes; das allgemeine Organon der Philosophie- und SchluBstein ihres
mento está publicado em coletâneas de obras dos três supostos autores
ganzen Gewolbes- die Philosophie der Kunst." SCHELLING. System des
respectiv~mente em: SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph. Das soge~
transcendentalen Idealismus, p. 417.
nannte "Alteste Systemprogramm". In: FRANK, M.; KURZ, G. (Org.).
Materialien zu Schellings philosophischen Anfiingen (Materiais sobre o
início filosófico de Schelling), p. 110-112; SCHELLING, Friedrich Von. o
"Programa Sistemático". Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In:
Obras Escolhidas (Os Pensadores), p. 42-43; HEGEL, Georg Wilhelm
Friedrich. Das ii/teste Systemprogramm des deutschen Idealismus (1796
oder 1797). ln: _ _ _ . Werke in 20 Biinden (Obras em 20 volumes).
MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. (Org.), v. I, p. 234-236; HOLDERLIN,
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FRIEDRICH HOLDERLIN. Siimtliche Werke zmd Briefe 1-4 (Obras Completas FRANK, M.; KURZ, G. (Org.). MaterialienzuSchellingsphilosophischen
e Cartas em 4 volumes). MIETH, G. (Org.), v. II, p. 441-443. Anjãngen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975.
3 SCHELLING. Das sogenannte "Ãlteste Systemprogramm", p. 110.

·i SCHELLING. Das sogenannte "Ãlteste Systemprogramm", p. 110. GONÇALVES, M. C. F. O belo e o destino. São Paulo: Loyola, 2001.
5 SCHELLING. Dassogenannte"ÃltesteSystemprogramm", p. 110.
6
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Werke in 20 Bãnden (Obras em 20
SCHELLING. Einleitung zu einer Pbilosopbie der Naturais Einleitung in das
Studium dieser Wissenschaft (1797), p. 250. volumes). MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. (Org.). Frankfurt am Main:
7
SCHELLING. Das sogenannte "Ãlteste Systemprogramm", p. 110. Suhrkamp, 1986. v. L Frühe Schriften.
8
SCHELLING. System des transzendentalen Idealismus, p. 416.
9 SCHELLING. System des transzendentalen Idealismus, p. 416.
HOLDERLIN, Friedrich. Sãmtliche Werke und Briefe 1-4 (Obras
10
completas e cartas em 4 volumes). MIETH, G. (Org.). Berlin:
SCHELLING. System des transzendentalen Idealismus, p. 643.
11
"Die Naturphilosophie erklãrt das Licht nicht für immateriell in dem Sinn
Aufbau-Verlag, 1995. v. !I: Hyperion; Tbeoretische Versuche.
daB es bloB Akzidens, sondem es ist ihr auch Substanz, aber immateriell~
-wie Spinoza ausgedehnte und denkende Substanz." SCHELLING.
Ausgewiiblte Schriften in 6 Biinden, p. 521.

88 89
KIRSCHHOFF,]. Friedrich Wilhelm]oseph von Schelling. Reinbeck
bei Hamburg: Rowohlt, 1994.
SCHELUNG, F. W.]. Das sogenannte "A/teste Systemprogramm". ln:
FRANK, M.; KURZ, G. (Org.). MaterialienzuSchellingsphilosophischen
Anfangen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975.
SCHELLING, F. W.]. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
(Os Pensadores).
SCHELLING, F. W.]. O "Programa Sistemático". Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho. ln: Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural,
1979. (Os Pensadores).
SCHELLING, F. W.]. Ausgewahlte Schriften in 6 Banden. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1985.
SCHELUNG, F. W.]. System des transcendenta!en Idealismus. In:
_ _ _ . Ausgewah!te Schriften in 6 Banden. Frankfurt am Main:
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SCHELLING, F. W.]. Einleitung zu einer Philosophie der Natw· ais
Einleitung in das Studium dieser Wissenschaft (1797). ln: _ _.
Ausgewah!te Schriften in 6 Banden. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
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SCHELLING, F. W.]. Erster Entwwjeines Systems der Natwphilosophie.
In: . Ausgewahlte Schriften in 6 Banden. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1985. v. L
fllO~OfiA DO IDcAli~MO TRAN~CcNDcNTAl
SCHELLING, F. W.]. System des transcendentalen Idealismus. ln:
___. Ausgewahlte Schriften in 6 Banden. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1985. v. L
SCHELLING, F. W.]. Zur Geschichte derneuerenPhi!osophie. ln: ___.
Ausgewahlte Schriften in 6 Banden. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1985. v. IV.

90
r

H u G o o c H o A

ODlltMA Dt ~CHtlliNG

O presente trabalho 1 pretende mostrar como as transfor-

mações da filosofia de Schelling consistem, fundamentalmente,
em uma tentativa de superar o idealismo subjetivo de Fichte,
assumindo, em certa medida, as críticas de Jacobi.
Pode-se dizer que o propósito central de Kant é elaborar
uma filosofia que se distancie tanto do dogmatismo como do
ceticismo, que procure o "termo médio", como aconselha
Fichte. 2 Assim, pois, trata-se de fundar uma filosofia que, contra
o ceticismo, abra espaço a uma ciência que alcance proposições
universais e necessárias e que, contra o dogmatismo,
coloque a razão em seus limites justos, de modo que não
pretenda o que por sua própria natureza não pode alcançar.
De acordo com a famosa sentença do prefácio à segunda edição
da Crítica da razão pura, 3 Kant sustenta que apenas estabe-
lecendo limites ao saber abre-se lugar para a fé. Não obstante,
anteriormente, Jacobi afirma que, apesar desse propósito de
Kant, com a filosofia crítica reduz-se a fé à razão, se se for
rigorosamente conseqüente, e assim, negada ao ser humano
a capacidade de alcançar o real, a fé converte-se em nada
mais que uma afirmação de um "como se", frágil fundamento
para a moralidade humana. Segundo Jacobi, toda filosofia·
que pretenda fundar o valor de verdade de suas conclusões
no rigor lógico do discurso demonstrativo conduz, inevita-
velmente, ao fatalismo spinosista. 4 A razão é, por si mesma,
determinista e desemboca, portanto, em uma supressão da
liberdade e, se queremos salvá-la, é necessário identificar o
condicionado, o Eu, com o incondicionado, o qual deriva
necessariamente em um panteísmo.
Jacobi denomina, em vários lugares (por exemplo, em uma
carta a Fichte de março de 1799), a sua "doutrina" como não-
filosofia (Un-philosophie), 5 porque pensa que a própria
filosofia ficou presa em um discurso racional que só pode
derivar (qual o sentido de derivar aqui? ter como conseqüência?)
no detemúnismo e no fatalismo. 6 Não-filosofia porque o saber, tal
como é exposto na Wissenschaftsleht·e, por exemplo, é aquele
que versa, definitivamente, sobre si mesmo, e um saber
sobre o saber não poderia alcançar uma verdade que, por si,
há que referir-se ao real. Jacobi pretende resolver as dificul-
dades que encontra Kant e todo racionalismo idealista,
estabelecendo o que para ele é o solo fundamental tanto do
conhecer como do fazer humanos: o sentimento ou afeto (das
Gefühl),' portanto, o sentimento nos permite a captação do
verdadeiro como real. Toda demonstração pressupõe algo já
demonstrado, o qual apenas pode terminar no que Jacobi
chama de uma "revelação da natureza", 8 que não somente
manda, mas obriga o homem a admitir certas "verdades eternas".
Mas essas verdades eternas não devem ser confundidas com
as idéias inatas de Descartes; referem-se, sim, às "verdades
primitivas de fato", de Leibniz, definidas como "experiências
imediatas internas de uma mediação do sentimento". 9
Essa mediação do sentimento, tanto como a certeza a que
dá lugar, revela uma clara semelhança entre as verdades eternas
de Jacobi e as verdades primitivas de Leibniz, o que é confirmado
no diálogo sobre idealismo e realismo no qual Leibniz é
expressamente citado. 10 Mas, ao invés de essas verdades
primitivas referirem-se à unidade do Eu pensante e à variedade
dos pensamentos desse mesmo Eu, como é o caso de Leibniz,
em Jacobi referem-se a um sentir no qual estão indissoluvel-
mente ligados o Eu e o Não-Eu. Nas Cartas a Mendelssohn
sobre a doutrina de Espinosa, diz: " ... Na percepção mais
primordial e mais simples, devem estar imediatamente na alma
a consciência interior e o objeto exterior, o Eu e o Tu." 11
Certamente, o pensar não é possível sem um objeto; na
cogitação primária, nosso corpo se faz imediatamente presente
no sentir, mas o que qualifica e diversifica esse sentir são as
mudanças que experimenta esse corpo, mudanças que não
podemos experimentar sem estarmos, ao mesmo tempo,
certos da existência de algo inteiramente diferente de toda
sensação e de todo pensamento, com a mesma certeza do
cogitado.
Jacobi denomina essa certeza de "crença", denominação que
talvez não seja muito feliz, mas que expressa um conhecimento
94
que não provém de princípios racionais. A crença nos dá a
perfeição da existência de nosso próprio corpo e a de outros
corpos e de outros seres pensantes, que são exteriores.
Sem um Tu, o Eu é impossível, "... o Eu e o Tu, consciência
interna e objeto externo, devem estar ambos na alma, no
mesmo instante indivisível, sem antes nem depois, sem
nenhuma operação do entendimento, antes do menor início
dos conceitos de causa e efeito"Y Em virtude dessa identidade,
pode-se encontrar uma autêntica certeza. "Todo conhecimento
humano provém da revelação e da fé", 13 todo saber sustentado
em provas, como é o saber da ciência, deve estar sustentado
em um saber que não procede, em absoluto, da demons-
tração. Trata-se do fato de o conhecimento não poder começar
senão a partir de uma "revelação do ser". Inclusive, pode-se
afirmar que o pensamento considerado essencialmente não
é mais que o sentimento de ser. O sentimento (Gefühl) do
qual fala Jacobi é a intuição imediata do real como puramente
tal, portanto, pré-categorial, pré-conceptual, pré-lógico, daí
advindo a denominação escolhida.
Isso pode ser vinculado com a apercepção transcedental
kantiana, enquanto esta é uma "unidade de consciência que
precede a todos os dados das intuições; só em relação com
tal unidade são possíveis as representações de objetos" .14 Mais
adiante, Kant chama a apercepção de "sentimento de uma
existência" (Gefühl eines Daseins). A esse respeito, pode-se
ver que essa revelação primordial do ser tem necessariamente
um caráter pré-racional e pré-lógico. "O conhecimento do real
fora de nós nos é diretamente dado pela apresentação do
real, mesmo sem que se interponha nenhum meio de conheci-
mento (Erkenntnissmittel)." 15 A razão, então, se é a faculdade .
do discurso demonstrativo, tem que ser, também, uma "facul-
dade de pressupor o verdadeiro" .16
Esse pressuposto 17 é necessário para que a razão realize
seu ofício próprio. 18 Jacobi, não obstante, propõe, para
entender a imediatez do conhecimento do real como tal, um
novo tipo de intuição:
Diante de tudo deve-se consentir firmemente no seguinte: do
mesmo modo como existe uma intuição sensível, uma intuição
que procura os sentidos, assim existe uma intuição racional
95
 que procura a razão. Ambas devem ser consideradas, uma frente
a outra, como duas fontes legítimas de conhecimento, e a
primeira não se deixa derivar da segunda, como tampouco
esta daquela. 19
Assim como pela intuição sensível revelam-se os objetos
materiais, pela intuição racional revelam-se os objetos espirituais,
e a garantia da verdade dessa revelação só pode ser dada
pelo sentimento, entendido como a percepção imediata da
revelação de uma existência; por isso, não pode haver garantia
superior ao sentimento mesmo, 20
... do mesmo modo como a realidade que se revela aos sentidos
externos não tem nenhuma necessidade de garantia, porque é
ela mesma a mais firme defensora de sua verdade, assim
também a realidade que se revela a este sentido íntimo a que
chamamos razão, tampouco tem necessidade de garantia, é ela
mesma a melhor testemunha de sua verdade. 21
Afirmar que a razão necessitaria de uma garantia alheia a
ela mesma para proceder em seu discurso significaria remeter
a evidência a um ponto no qual a razão já não pode operar; a
coisa em si kantiana tem, precisamente, essa característica. A
razão há de pressupor a verdade, do modo como Jacobi
entende verdade: "... algo que é anterior e que está fora do
saber, somente pelo qual o saber tem um valor e o tem também
a faculdade de saber, a razão." 22 O saber da realidade alcança-se
por "um abandono involuntário do espírito à representação
da realidade". 23 Mas, nesse abandono, a razão alcança a si
mesma e, de um lado, pode operar a partir dessa realidade e,
de outro lado, alcança a realidade mesma.
Essa "co-doação" do ser, Eu e Tu, é o que quer designar a
palavra sentimento, o que, como ponto de partida, permite
que a consciência se volte ao mesmo tempo sobre si mesma e
sobre a alteridade do outro.
Somos incapazes de explicar sob que forma no sentimento,
que é objetivo e puro, o espírito certo de si mesmo se torna
presente ao homem e o torna capaz de conhecer aquilo que
não é senão semelhante a si mesmo: o verdadeiro imediata-
mente no único verdadeiro, o belo imediatamente no único
belo, o bem imediatamente no único bem, e ter, desse modo,
consciência de um saber que não é simplesmente um saber
96
dependente, submetido a provas, porém um saber independente
superior a toda prova, um saber verdadeiramente soberano. 2•
A imediatez de um saber é o que põe em evidência sua
própria verdade, mas essa mesma imediatez significa que se
revela a si mesmo como infundado o "saber" que versa sobre
tais conteúdos imediatos: é o que Jacobi denomina "crença".
Não obstante, é necessário assinalar que não se trata da imediatez
própria do conhecimento sensível, mas do sentimento do
espírito, 25 pelo qual o real se revela como tal. Essa revelação
não poderia realizar-se de outro modo, porque é o pressu-
posto de todo conhecimento, segundo Jacobi; qualquer
filosofia crítica é posterior quando se trata de estabelecer um
tribunal que fixe limites à razão, e esse tribunal deve ter
previamente um critério que lhe permita discernir entre o próprio
objeto e o próprio sujeito; só a formulação dessa tarefa põe
em evidência que não há Eu sem Tu. Mas isso coloca um
problema, qual seja, a identificação da crença e certeza, o
que acarreta todos os problemas para estabelecer a evidência
como critério de verdade: "... como conciliar a firme certeza
com a convicção de que a proposição mais falsa pode pare-
cer-nos, também, tão certa como a pura verdade?" 26
A esse respeito, é necessário assinalar que a crença, tal
como Jacobi originalmente a entende, refere-se à condição
originária do ser, tanto de Deus, como do mundo; sua raiz é
estritamente ontológica. A razão procede, pois, a partir de
princípios que, em definitivo, ela não pode jamais estabelecer
como o incondicionado, a partir de si mesma.
A esse respeito, a solução kantiana é frágil, já que a coisa
em si parece a Jacobi necessária para a construção do sistema
kantiano e, ao mesmo tempo, contraditória com os resultados
desse mesmo sistemaY Portanto, é necessário sair da razão
para poder raciocinar, é necessário um ponto de partida que
não esteja radicado no interior da estrutura cognitiva, mas
que sirva de fundamento a essa estrutura, no caso, o senti-
mento. No entanto, para afirmar-se nele, é necessário um salto.
Jacobi chama esse passo de "salto" porque significa sair da
continuidade do raciocínio e do discurso das faculdades
cognitivas, estruturadas umas sobre as outras: sensibilidade,
entendimento, razão.
97
 É fácil prever a reação a uma tese como essa. Jacobi será
acusado, como ele mesmo assinala, 28 de inimigo da razão,
partidário da crença cega, um detrator da ciência e da filosofia,
um papista etc. Não obstante, ele tem o mesmo propósito de
Kant de salvar a filosofia tanto do dogmatismo como do
ceticismo, se bem que é verdade que ele sustenta ser o niilismo
um verdadeiro perigo para a filosofia, só superado pelo
realismo, o qual tem como ponto de partida o reconhecimento
dos limites da razão, mas em um sentido diferente daquele
compreendido por Kant.
Agora, o fundamento que determina essa apelação ao
sentimento é uma sorte de frustração radical a respeito da
clausura inevitável do sujeito sobre si mesmo, que conduz
irremediavelmente, segundo Jacobi, a uma razão que se auto-
sustenta sob o pressuposto do primado absoluto do sujeito.
Mas Jacobi não pode impor argumentos para contradizer essa
filosofia que, segundo ele mesmo, conduz ao niilismo,
porque toda argumentação deve partir necessariamente do
pressuposto da auto-suficiência da razão mesma. De modo
que a Jacobi, na medida em que pretende superar a auto-
referência da razão, não lhe resta mais que dar um salto pelo
qual põe a verdade além do discurso. Se se estabelece e
sustenta que a razão tem limites, isto não pode significar outra
coisa senão que o ponto de partida de todo discurso filosófico
tem que estar além da razão e ser, portanto, meta-racional
(não só meta-especulativo). O problema baseia-se, então, em
estabelecer um vínculo entre esse princípio meta-racional e a
razão que daí procede; estritamente falando, esse princípio
é, por si mesmo, inalcançável para a razão e exige, portanto,
um salto no vazio, cujo fim não é senão a realidade. Esse
vínculo é, propriamente falando, uma co-vinculação: por parte
da realidade, sua revelação; por parte do sujeito, uma "facul-
dade de revelação" COffenbarungskmft) que opera por
espontaneidade, mas que mostra o revelado sob a forma do
sentimento. Como destaca Jacobi: "... Não há nada em que
possa apoiar seu juízo que não seja a coisa mesma, nada
diferente do factum de que as coisas estão realmente frente a
ele. Acaso ele pode expressar-se com uma palavra mais
adequada do que com a palavra revelação?" 29 Não obstante,
essa revelação se apresenta a uma liberdade, e nessa revelação
manifesta-se a liberdade mesma. A resistência contra o
98
discurso necessário, fechado e fatalista da razão, não é uma
resistência, por assim dizer, cega, mas afirma-se no princípio
indemonstrável da evidência como ponto de apoio primário
de todo discurso.
Isto leva ao conceito de uma certeza imediata, a qual não só
não requer nenhuma demonstração, mas exclui absolutamente
toda demonstração e é única e exclusivamente a representação
mesma que concorda com a coisa representada (isto é, que
tem seu fundamento em si mesma). A convicção por meio de
demonstrações é uma certeza de segunda mão, descansa em
uma comparação e nunca pode ser certa e completa. Portanto,
se todo 'ter por verdadeiro' (Fürwabrbalten), que não surge a
partir de fundamentos racionais, é crença, então a mesma
convicção a partir de fundamentos racionais deve provir da
crença e receber dela sua força. 30
Um saber imediatamente certo é crença, na medida em que
não procede de uma demonstração. Toda tentativa de demons-
tração da verdade ou realidade do mundo externo não pode
apelar a princípios do mundo externo, de modo que só resta
apelar, necessariamente, a princípios subjetivos. Mas, por esse
caminho se vê, de antemão, que é impossível transitar além
do fenômenoY Pois bem, a revelação supõe alguém que
revela e só um Deus vivente e pessoal pode dar origem a um
sujeito como o ser humano, vivente e pessoaP 2 Hume diz:
Respondemos aos que dizem o que não pensam, porque é
impossível pensar - uma providência cega, um propósito sem
propósito, uma necessidade livre que, deste modo, invertem
o sentido e as palavras, e forçam o discurso a um jogo vão e
mentiroso que desagrada aos homens corretos. 33
Hegel, em Crer e saber [Glauben und wissen], dedica sua
segunda parte à filosofia de Jacobi e começa dizendo o seguinte:
A filosofia de Jacobi tem em comum com a de Kant a finitude
absoluta, em forma de ideal como saber formal e em forma
real como um absoluto empirismo, e a integração de ambas
mediante uma fé que põe um além absoluto. Agora, dentro
desta esfera comum, ela constitui o pólo oposto à filosofia
kantiana, na qual a finitude e a subjetividade possuem a forma
objetiva do conceito; a de Jacobi, pelo contrário, converte a
99
 subjetividade de maneira completamente subjetiva em
individualidade. Esse subjetivo adquire por sua vez uma vida
interior e parece com ele tornar-se apto para a beleza do
sentimento. 3•
Hegel, pois, tem perfeitamente claro que uma razão finita
pressupõe a posição de um mais além absoluto; no entanto,
entende o sentimento proposto por Jacobi como a pura forma
subjetiva e individual desse mais além em circunstâncias tais,
que a tese de Jacobi é a de que esse sentimento surge do
encontro com uma revelação do ser como absoluta abertura.
Hegel só concede a Jacobi que o conteúdo do entendimento
seja preenchido pela experiência, um pensar ao qual acres-
centa a realidade de maneira inconcebível, "... é o único ponto
sobre o qual a filosofia de Jacobi é objetiva e pertence à ciência". 35
Nesse texto, Hegel segue um curso que começa com uma análise
do formalismo do saber e do realismo da fé, segue com a
controvérsia de Jacobi com Spinoza, o espiritualismo de
Jacobi etc. Não obstante, como ocorre também no escrito
sobre a Diferença entre a filosofia de Fichte e a de Schelling,
Hegel tenta, na realidade, precisar seus próprios conceitos.
Schelling, em suas Lecciones muniquesas para la bistoria
de la filosofía moderna, segue a tese de Hegel. Sustenta que
a revelação imediata do ser só pode ser dada por uma
experiência externa ou interna; se é por uma interna ou "luz
interior", segue-se que esse sentimento seja empregado como
um meio polêmico contra o racionalismo, sem pretender ser
ele mesmo um saber (recorde-se: Un-pbílosopbie); então
"... se esse sentimento renuncia transformar-se em ciência, se
explicaria, já por si mesmo, como um sentimento puramente
subjetivo e individual". 36 E lhe repreende que não conteste
argumentativamente as filosofias de Kant, de Fichte "e do
que veio depois deste", mas que se limite a assinalar o fim
ao qual conduz, de modo que o sentimento que aponta como
critério de realidade lhe permite dizer simplesmente "é
consistente, não tenho contra-argumentos, mas não gosto".37
Não obstante, Jacobi não entendeu Schelling, o que pode
ser claramente visível tanto a partir da leitura de Von den
gõttlicben Dingen und ibrer Offenbarung (Leipzig, 1811),
como da virulenta38 resposta de Schelling em Denkmal der
100
Scbrift von gõttlícben Dingem u.s.w. des He1-rn F1·iedricb
Heinricb Jacobi (1812), em que põe em evidência essa falta
de compreensão, que já estava presente no apêndice do livro
de Kêippen, Scbellings Lebre oder das Ganze der Pbilosopbie
des absoluten Nicbts (Hamburgo 1803), ao qual Schelling, final-
mente, não havia respondido. Jacobi sustenta que a filosofia
da natureza é por si mesma atéia, é incapaz de oferecer
soluções ao problema da liberdade, assim como também é
incapaz de conceber a Deus e a personalidade e, em conse-
qüência, é fatalista. A desproporcionada reação de Schelling
pode ser explicada porque essa incompreensão colocava em
evidência, na realidade, seus próprios fracassos, quer dizer,
seus propósitos não cumpridos. Efetivamente, já em um
escrito tão anterior como o Vom Icb, Schelling começa dizendo:
"... quem quer saber algo, quer ao mesmo tempo que seu
saber tenha realidade; um saber sem realidade não é nenhum
saber."39 Certamente, fica por elucidar o que significa, nesse
contexto, "realidade" como desejo de todo saber; no entanto,
logo depois de descrever o que ocorre com um saber desprovido
de realidade, continua: "Tem que se dar um último ponto de
realidade, do qual tudo depende, a partir do qual procede
toda consistência e toda forma de nosso saber, que distingue
os elementos e descreve a cada um a órbita de sua eficácia
progressiva no universo do saber." 40
A solução que Schelling propõe, nesse escrito, afasta-se
completamente das pretensões de Jacobi por fundar uma
filosofia que efetivamente alcança o real enquanto real, e
segue, na realidade, a Fichte. No entanto, é possível pensar
que, precisamente, a filosofia da natureza é a tentativa mais
sólida de Schelling para buscar esse ponto focal da realidade ..
Mas, em Über die Mõglicbkeit einer Fonn der Pbílosopbie
überbaupt, de 1794, ele pergunta: "Como é possível o conteúdo
de uma filosofia?"; 41 portanto, considera que a pergunta que
interroga pela forma já foi respondida, tendo presente que
" ... a filosofia é uma ciência, isto é, tem um determinado
conteúdo sob uma determinada forma" _42 Assim mesmo,
em Ideen zu einer Pbilosopbie der Natur als Einleitung in das
Studium dieser Wissenscbaft, sustenta que "... uma filosofia
da natureza deve derivar de princípios a possibilidade de uma
natureza, isto é, do mundo da experiência total", 43 e, se bem
que o ponto de apoio para tal demonstração seja a experiência,
101
vê-se claramente que o problema continua sendo o mesmo:
estabelecer o estatuto ontológico da representação de uma
realidade como extra-subjetiva. A centralidade desse problema
fica também manifesta no mesmo texto, um pouco mais
adiante: "Como é possível um mundo fora de nós, umâ natu-
reza e uma experiência dela; tal pergunta devemos à filosofia,
ou melhor, com essa pergunta surge a filosofia." 44 A filosofia
da natureza é chamada para encarregar-se desse problema, e
isto desde o próprio começo da filosofia com os seus tratados
peri physeôs. "A filosofia deve explicar o fato do mundo", 45 mas
não se trata, em absoluto, de cultivar um realismo crasso;
conseqüentemente, o problema da natureza envolve, inelutavel-
mente, o sujeito. "A pergunta não é se e como chegou a ser real
fora de nós aquela conexão de fenômenos e a série de causas
e efeitos a que chamamos curso da natureza, mas como chegou
a ser real para nós (. .. ). Explicar essa necessidade é o
problema fundamental de toda filosofia." 46
É claro que o sentido desse delineamento é perfeitamente
simétrico ao que Fichte faz na "Segunda Introducción a la
doutrina de la Ciencia": "A pergunta à qual há que se responder
- a Wissenschaftslehre- é, como se sabe, a seguinte: de
onde procede o sistema de representações acompanhado
de um sentimento de necessidade?" 47 A mesma formulação do
problema põe em evidência uma de suas soluções: decidir-se
pelo sentimento, afirmar sua incontestável evidência e construir,
a partir dele, um saber que já não pode ser metodologica-
mente lógico, mas que deve socorrer a suposição mesma da
decisão, em poucas palavras, a crença: Jacobi. Também em
Schelling encontram-se passagens análogas: "Por outro lado,
nós nos sentimos independentes dos objetos." 48 No entanto,
se bem que a colocação do problema seja análoga, a solução
difere fundamentalmente. 49 Por isso, da perspectiva de Schelling,
é tão injusta e desproporcionada a falta de compreensão de
Jacobi, e as acusações que lhe faz parecem gratuitas, particular-
mente para com quem, poder-se-ía dizer, foi o permanente
crítico de um idealismo que fecha o sujeito sobre si mesmo,
de um idealismo subjetivo, como o chamou Hegel. A abertura
para a natureza, o estabelecer a natureza como objeto próprio
e inelutável do sistema total, significa o reconhecimento
de uma radical incompletude da filosofia entendida como
Wíssenschaftslehre; de alguma maneira, é reconhecer a crítica
102
de Kant que, na declaração publicada na Allgemeine literatur
Zeitung, qualifica a Wissenschaftslehre como mera lógica.
Schelling convida Fichte a terminar com suas ambíguas relações
com Kant, porquanto este ficou definitivamente atrás no
desenvolvimento da filosofia. 50
Em carta de Fichte a Schelling de 12 de setembro de 1799,
aquele comenta essa declaração nos seguintes termos:
Com efeito, a declaração começa com algo que seria lícito
considerar como prova a partir de fundamentos objetivos: que
a Wissenschaftslehre não é nem mais nem menos que mera
lógica, a qual, como lógica pura, se abstrai de todo conteúdo
do conhecimento. Subentende-se que sobre este último estou
totalmente de acordo com Kant, só que, conforme o meu uso
da língua, o termo Wissenschaftslehre não designa de nenhum
modo a lógica, mas a filosofia transcendental ou a própria
metafísica. 51
o caráter de "mera" lógica é, de alguma maneira, a acusação
que se repetirá por todas as partes a respeito do idealismo;
esse termo seguirá um desenvolvimento particularmente
interessante ao largo desse período da história da filosofia.
Hegel, impudicamente e sem complexos, usará o nome de
lógica para designar a ciência do espíritoY No texto de
Fichte citado, é possível ver claramente sua ambigüidade:
por uma parte, aceita essa denominação enquanto a
Wissenschaftslehre faz abstração de todo conteúdo, mas, por
outra parte, afirma que a filosofia transcendental mesma não é
senão uma disciplina que se caracteriza por fazer essa abstração
que a determina, precisamente, como transcendental. No
entanto, é necessário perguntar-se se o caráter transcendental
significa uma consideração puramente formal e, portanto,
meramente lógica do objeto da filosofia. Se assim for, então
a filosofia da natureza não pode ser senão física, 53 mas em
um sentido muito particular; quer dizer, se se trata de uma
filosofia transcendental da natureza, esta deve ser conside-
rada necessariamente como sujeito e não como objeto. Mas
isso significa terminar com o monopólio transcendental do
Eu ou, ao menos, com o Eu da Wíssenschajtsleh1·e, o que,
obviamente, a Fichte, não só lhe pareceu inaceitável, como
também incompreensível. Mais ainda, a pretensão de confundir
103
em uma identidade, que haveria de chamar transcendente, o
ideal e o real; mais ainda, em uma identidade que já não é
meramente lógica mas dinâmica; mais ainda, histórica, parece
um paradoxo e um tipo de retomo aos escuros dias da filosofia.
Não obstante, Schelling busca desde o princípio uma forma
de superar a identidade que se estabeleceu entre transcen-
dente e subjetivo como único princípio do filosofar.
Para eles, objetivo significa o mesmo que real. Para mim, como
podem ver no Sistema do Idealismo, o objetivo mesmo é ao
mesmo tempo algo ideal e real; ambos nunca se separam, pelo
contrário, convivem originariamente (e também na natureza);
esse ideal-real só se converte em objetivo por meio da consci-
ência que começa a surgir e na qual o subjetivo eleva-se à
potência suprema (teórica). 54
De modo que a filosofia transcendental, sem a contrapartida
necessária de uma filosofia da natureza, resulta radicalmente
incompleta. A filosofia transcendental subordina o real ao
ideal; a filosofia da natureza, ao contrário, explica o ideal a
partir do real. O sistema propriamente se fecha quando se
completam ambas as direções, a ascensão e a queda, e já
Aristóteles dizia sobre o caminho de subida que é o mesmo
caminho da descida. A oposição entre realismo e idealismo é
falsa, e assim é porque, efetivamente abandonados a si mesmos,
esses dois modelos de compreensão do real conduzem cada
um a uma forma particular de esquematização da filosofia
que, ao absolutizar uma das vias, deixa sem explicar, ou bem
a necessidade, ou bem a liberdade.
Dizíamos no começo, que a filosofia kantiana pode ser
compreendida como a tentativa de resolver o problema
estabelecido pela dialética, dogmatismo e ceticismo. Assim
mesmo, no caso de Schelling, pode-se entender toda sua
filosofia, desde o princípio, como a tentativa de superar a
dialética que, com nomes próprios, se estabelece entre Fichte
e Jacobi. Certamente, o chamado Proteu da filosofia tem idas
e vindas, renúncias e contradições, mas creio que todos
podem ser explicados, porque tenta-se transitar pela estreita
via de um real-idealismo, desde Acerca do Eu - talvez sem
plena consciência disso conforme parágrafo citado anterior-
mente - , até As idades do mundo.
104
Se são comparáveis os JUizos de Schelling a respeito de
Jacobi, emitidos em Denkmal der Schrift von den g6ttlichen
Dingen u.s.w. e nas Lecciones muniquesas para la historia de
lafilosofía moderna, pode-se comprovar facilmente que ele
mudou completamente de tom. Apesar de reiterar a incapacidade
de Jacobi para superar o racionalismo, acrescenta:
Na realidade, não se faz, por certo, maior justiça a Jacobi, que
confessa ser ele, entre todos os filósofos modernos, o que
sentiu mais vivamente a necessidade de uma filosofia da história
(no sentido que nós lhe damos). Desde sua juventude havia
algo nele que se rebelava, por assim dizer, contra um sistema
que reduz tudo a puras relações racionais e que exclui a liber-
dade e a personalidade. 55
Não obstante, Jacobi, apesar de acertar o diagnóstico, não
consegue superar as dificuldades dos sistemas filosóficos
modernos porque concede a estes toda a razão, e fica preso,
desse modo, a um fideísmo que tampouco consegue sair de
si mesmo. Mas Schelling concede a Jacobi ainda mais:
Ele havia captado a verdadeira característica de todos os sistemas
modernos: que eles nos proporcionam, ao invés do que
propriamente desejamos saber e estimamos, se queremos ser
francos, que é válido saber somente um desagradável sucedâneo,
um saber no qual o pensamento não se eleva nunca acima de si
mesmo e não progride mais que dentro de si, enquanto que
nós desejamos propriamente ir mais além do pensamento para
sermos liberados, pelo que é superior ao pensamento, do
tormento do mesmo. 56
O grande erro de Jacobi foi pensar que fé e razão opõem-se
necessariamente, que é impossível superar o dualismo dessas
duas esferas. Esse dualismo surge de uma má compreensão
do caminho de ascensão e descida que, ao considerá-los como
irredutíveis, pensa que se deve optar por um ou outro irreme-
diavelmente, quando em realidade são o mesmo caminho,
cuja conciliação dá lugar a uma filosofia real-ideal, sem
mediação. Precisamente As idades do mundo é a tentativa de
superar a dialética, e essa superação consegue-se na história.
105
r

Toda ciência deve, pois, estar impregnada de dialética. Mas NOTAS

outra questão é se, eventualmente, nunca se chega ao ponto
de onde se volta livre e vivente, como no caso do historiador
1
( ... ) e que o filósofo seja capaz de voltar à simplicidade da Este trabalho faz parte do projeto de investigação FONDECYT Nº 1010382.
2
história do modo como o divino Platão, cuja obra está impreg- Cf. Carta de Kant a Fichte de 2 de fevereiro de 1792, em FICHTE.
nada pela dialética, mas que no cume e último ponto de sua Gesamtausgabe, p. 288.
3 Cf. KANT. Kritik der reinen Vemunjt, p. 33.
transfiguração, toda sua obra torna-se história, 57
4
"Todo caminho da demonstração leva ao fatalismo." JACOBI. ÜberdieLebre
des Spinoza in Briefen an Hernt Moses Mendelssobn, p. 223.
história transcendental do ser. 5 FICHTE. Gesamtausgabe, p. 226.

Porém, desde As idades do mundo, Schelling apresentou 6

"Assim, o entendimento inventa-se a si uma dupla incredulidade; em
seu programa filosófico de um modo bastante claro: procurar primeiro lugar, não crê no mundo material, logo, tampouco crê no mundo
um Deus pessoal, 58 o qual significa outro modo de aproximação imaterial e a esta arte de perder toda verdade, pois é isso o que inventa e
chama-o fllosofia." JACOBI. David Hume über den Glauben, oder Idealismus
a Jacobi. Efetivamente, ali se diz: "... agora, exige-se unica- tÍnd Realismus, p.110.
mente que Ele seja existente; nenhum deus que seja um mero 7
Cf. JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Jdealismus und Realismus,
"que" satisfaz o entendimento e o sentimento, exigem um que p. 12 et seq.
8
seja "quem". 59 Sim, trata-se não só de um Deus pessoal, como Cf. JACOBI. David Hum e iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
queria Jacobi, mas de um Deus que satisfaça não só o enten- p. 116.
9
LEIBNIZ. Nuevos ensayos sobre e! entendimiento bumano, p. 434 et seq.
dimento mas o sentimento. Seria necessário um estudo mais 10
Cf. JACOBI. David Hum e über den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
amplo para sustentar, com toda a propriedade, a tese aqui p. 238.
discutida, isto é, que as idas e vindas da filosofia de Schelling 11
Cf. JACOBI. Über die Lebre des Spinoza in Briefen an Herrn Moses
podem explicar-se como a busca de um termo médio entre o Mendelssobn, p. 176.
12
idealismo subjetivo (acolhamos a designação de Hegel) de Cf. JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Idealismus und
Fichte, e o realismo afetivo de Jacobi, tendo claro que o ponto Realismus, p. 176.
13
JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
de partida dessa busca está nas imediações de Fichte. Não p. 3-4.
obstante, esperamos, se não foi demonstrado que esta tese 14
Cf. KANT. Kritik der reinen Vemunft, p. 167.
se sustenta, haver, sim, mostrado que é sustentável. 15
Cf. JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
p. 230.
16
JACOBI. David Hume über den Glauben, ode r Idealismus und Realismus,
p. 10-11.
17
"Toda a comprovação pressupõe o já comprovado, cujo princípio é a reve-
lação." JACOBI. Über die Lebre des Spinoza in Briejen an Herrn Moses
Mendelssobn, p. 223.
18
Isto será criticado por Hegel na Enzyclopãdie der pbilosopbiscben
1Vissenscbaften im Grundrisse, § 63, onde trata da terceira posição do
pensamento frente ao objeto: O saber imediato.
19
JACOBI. David Hum e iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
p. 59.
2
° Cf. JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
p. 109.
21
JACOBI. David Hume iiber den Glauben, ode r Idealismus und Realismus,
p. 107.
22
Carta a Fichte, de março de 1799. FICHTE. Gesamtausgabe, p. 239.
2
3 JACOBI. Fliegende Blãtte1~ p. 208.

106 107
r
24
JACOBI. David Hume iiber den Glauben, ode r Jdealismus und Realismus,
p. 105-106.
25 Cf. JACOBI. David Hum e iiber den Glauben, oder Idealismus und Realismus,
p. 60 ..
26
JACOBI. Von den gõttlichen Dingen und ihrer Offenbarung, p. 379.
27
"Não posso entrar no sistema sem admitir este pressuposto -da coisa em
si- e não posso permanecer nele admitindo-o." JACOBI. David Hume
iiber den Glauben, oder Idealismus zmd Realismus, p. 304, Apêndice sobre
o idealismo transcendental.
26
JACOBI. David Hume über den Glauben, oder Jdealismus und Realismus,
p. 4.
29
JACOBI. David Hume über den Glauben, ode r Idealismus und Realismus,
p. 165.
30 JACOBI. Über die Lebre des Spinoza in Briefen an Herrn Moses Mendelssolm,
p. 210.
31 ·Quando se tentou provar cientificamente a verdade das nossas represen-
tações de um mundo material e existente além e independente delas, o
objeto que eles queriam investigar desapareceu, não lhes restou mais do
que a subjetividade, a sensação: encontraram o idealismo.
Quando se quis provar cientificamente a verdade de nossas representações
de um mundo imaterial e existente além delas, a verdade da substanciali-
dade do espírito humano e de um criador livre deste universo, diferente
do próprio universo, a verdade de uma providência dotada de consciência,
quer dizer, pessoal, quer dizer, a única verdadeira, desapareceu o objeto
aos demonstradores; não lhes restou mais do que fantasmas lógicos;
encontraram ... o niilismo." JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder
Idealismus und Realismus, p. 108-109.
32 Cf. JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Jdealismus zmd Realismus,
p. 87 et seq.
33 JACOBI. David Hume iiber den Glauben, oder Jdealismus und Realismus,
p. 114.
34
HEGEL. Glauben und Wissen: oder die Reflexionsphilosophie der
Subjektivitãt in der Vollstãndigkeit ihrer Formen ais Kantische, Jacobische
und Fichtesche Philosophie, p. 97.
3 5 HEGEL. Glauben und Wissen: oder die Reflexionsphilosophie der
Subjektivitãt in der Vollstãndigkeit ihrer Formen ais Kantische, Jacobische
und Fichtesche Philosophie, p. 97.
36
SCHELLING. Lecciones muniquesas para la historia de la filosofia moderna,
p. 255.
37
SCHELLING. Lecciones muniquesas para la historia de la filosofia moderna,
p. 255.
3B Cf. GUTIERREZ BUSTOS. Schelling, apuntes biográficos, p. 107 et seq.
39 "Wer etwas wissen will, will zugleich, daiS sein Wissen Realitãt habe. Ein
Wissen ohne Realitãt ist kein Wissen." SCHELLING. Vom !eh als Prinzip der
Philosophie, p. 85.
40
"Es muiS einen letzten Punkt der Realitãt geben, an dem alies hãngt, von
dem aller Bestand und alie Form unsers Wissens ausgeht, der die Elemente
scheidet und jedem den Kreis seiner fortgehenden Wirkung im Universum
des Wissens beschreibt." SCHELLING. Vom !eh als Prinzip der Philosophie,
p. 85.
108
41
SCHELLING. Über di e Mõglichkeit einer Fomz der Philosopbie iiberhaupt, p. 4.
2
·i SCHELLING. Über di e klõglichkeit einer Form der Philosophie überbaupt, p.
5.
43
SCHELLING. Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción a!
estudio de esta ciencia, p. 166. Cf. SCHELLING. Ideen zu einer Philosophie
der Natur als Einleitung in das Studium dieser Wissenschaft, p. 335.
44
SCHELLING. Ideen zu einer Philosophie der Natur als Einleitung in das
Studium dieser Wissenschaft, p. 335.
45
SCHELLING. Darstellung des philosophischen Empirismus, p. 509.
46
SCHELLING. Ideas para una filosofía de la naturaleza como introducción ai
estudio de esta ciencia, p. 166.
47
FICHTE. Segunda Introducción a la Doctrina de la Ciencia, p. 41-42.
48
SCHELLING. Introducción a Ideas para una filosofia de la naturaleza, p. 74.
49
A respeito das diferenças entre Fichte e Schelling desde o início, ver
FALGUERAS. La noción de Sistema en Schelling, p. 41 et seq.
5
° Cf. Carta de Schelling a Fichte de 12 de setembro de 1799, em FICHTE.
Gesamtausgabe, p. 69.
51
FICHTE. Gesamtausgabe, p. 75. Publicada em Intelligenzblatt daA!lgemeine
Literatur-Zeitung, n. 122, de 28 de setembro de 1799, como "carta aberta".
Veja-se a crítica: FICHTE. Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre,
ais Handschrift für seine Zuhõrer, em Gesamtausgabe; e FICHTE. GrundriiS
des Eigenthümlichen der Wissenschaftslehre in Rücksicht auf das theoretische
Vermõgen, ais Handschrift für seine Zuhõrer, em Gesamtausgabe. Em
Gõttingische Anzeigen von Gelehrten Sachen, exemplar 84, de 26 de
maio de 1798, p. 825-839, em Gesamtausgabe, I, 5, p. 831: "O crítico,
entretanto, recorda que, na medida em que o EU-SOU expressa e deve
expressar o mero sujeito LÓGICO do conhecimento, ninguém na realidade
terá objeções em reconhecê-lo como o princípio absoluto de todo SABER
LÓGICO; pois se se suprime o EU-SOU, suprime-se toda possibilidade de
saber lógico, e sem saber lógico não pode haver- de nenhum modo-
o saber. Mas há que perguntar-se se com o EU-SOU se dá, também, o
PRINCÍPIO ABSOLUTO DO CONHECIMENTO, quer dizer, se pode ser
considerado como princípio absoluto de todo SABER REAL. O recenseador
sabe muito bem que o senhor Fichte, como Spinoza, coincide a coisa e seu
conceito; mas deriva-se isto quo iure do PRINCÍPIO? Deste não segue-se
outra coisa que: se eu penso, então EU sou; ou bem: EU SOU PENSANTE.
Mas não se segue que o EU e o SER COMO TAL sejam idênticos. EU sou é,
em efeito, somente uma determinação do SER COMO TAL (o ser-posto do
sujeito PENSANTE enquanto tal); pelo contrário, o sujeito REAL (ser como
tal) não foi posto por aquele. Este é o obstáculo diante do qual fracassa a
Wissenschaftslehre não menos que o dogmatismo." p. 835: "ALI, NO FATO
DE QUE DEDUZA A PARTIR DE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS LÓGICOS
PRINCÍPIOS MATERIAIS, E ESTES POR SUA VEZ SEJAM COMPROVADOS
A PARTIR DAQUELES, ENRAIZA O ARDIL DA DOUTRINA DA CIÊNCIA."
52
"A lógica é a ciência da idéia pura, da idéia no elemento abstrato do
pensamento. (. .. ) Pode-se dizer que a lógica é a ciência do pensamento,
de suas determinações e de suas leis; mas o pensamento como tal não
constitui senão a determinação geral ou o elemento em que a idéia se
acha no estado de idéia lógica." HEGEL. Lógica, p. 17.
109
53 Cf. Carta de Schelling a Fichte de 19 de novembro de 1800, em FICHTE.
Gesamtausgabe, p. 362.
54 SCHELLING. Sobre el verdadero concepto de la filosofía de la naturaleza y
la forma adecuada de resolver los problemas que plantea (1801), p. 262.
55 SCHELLING. Lecciones muniquesas para la historia de la filosofía modema,
p. 257.
56 SCHELLING. Lecciones muniquesaspara la historia de lafilosofía modema,
p. 257-258.
57 SCHELLING. Las edades dei mundo, p. 42.
58 Cf. PUENTE. As concepções antropológicas de Schelling, p. 87.
59 SCHELLING. Las edades de/ mundo, p. 115.
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(Ed .) . Los comienzosfilosóficos de Schelling. Málaga: Ed. Universidad
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Holzboog (Ed.), 1973. Seção 3, v. 1-4.
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HEGEL. Glauben und Wissen: oder die Reflexionsphilosophie der
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JACOBI, F. FliegendeB!atter. Werke, IV. Darmstadt: Wissenschaftliche
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JACOBI, F. Über die Lebre des Spinoza in Briefen an Hmnz Moses
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1976. v. 1.
JACOBI, F. Von dengottlichenDingen und ihrerOffenbarung. Werke,
III. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976.
110
JACOBI, F. David Hume über den Glauben, oder Idealismus und
Realismus. Werke, II. Herausgeben von Friedrich Roth und Friedrich
Koppen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968.
KANT, I. Kritik der 1·einen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Taschenbuch, 1968.
LEIBNIZ, G. W. Nueuos ensayos sobre e! entendimiento humano.
Madrid: Editora Nacional, 1983. Seção 4.
PUENTE, F. R. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo:
Ediçoes Loyola, 1997.
SCHELLING, F. W.]. Ausgewahlte Werke, Schriften von 1806-1815.
Dármstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1976.
SCHELLING, F. W.]. Ideas para una filosofía de la naturaleza como
introducción a1 estudio de esta ciencia. ln: _ _. Experiencia y historia.
Madrid: Ed. Tecnos, 1990.
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Ausgewahlte Werke. Schriften von 1913-1830. Darmstadt: Ed.
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968.
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in das Studium dieser Wissenschaft. Darmstadt: Ed. Wissenschaftliche
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SCHELLING, F. W.]. Introducción a Ideas para una filosofia de la
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Ed. Alianza, 1996.
SCHELLING, F. W.]. Las edades de! mundo. Santiago de Chile: Ed.
Cerro Alegre, 1993.
SCHELLING, F. W.]. Lecciones muniquesaspara la historia de la filosofia
moderna. Málaga: Edinford, 1993.
SCHELLING, F. W. J. Sobre el verdadero concepto de la filosofia de la
naturaleza y lafonna adecuada de resolver los problemas queplantea
(1801). ln: . Escritos sobre filosofia de la naturaleza. Madrid:
Ed. Alianza, 1996.
SCHELLING, F. W.J. ÜberdieM6glichkeiteiner Form derPhilosophie
überhaupt. Darmstadt: Ed. Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967.
111
SCHELLING, F. W.]. Vom Ich ais Prinzip der Philosophie. Stuttgart-Bad JACINTO RIVERA D E ROSALES
Cannstadtt: Ed. der Bayerischen Akademie der Wissenschaft, Frornmann-
Holzboog, 1973.

liMITt t ~tAliDADt
O~ rRIMtiRO~ rA~~O~ NO SISTEMA
DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL

1. APRESENTAÇÃO

Existe realidade e limitação. Frente ao primeiro, podemos

nos perguntar, acompanhando o princípio de razão de Leibniz,
por que existe algo em lugar de nada. Por esse caminho, ao
final, nos encontraremos com a gratidão do ser, o que signi-
fica o mesmo, com o círculo inevitável de que o absoluto se
coloca para si mesmo, como diria Schelling, ou mais humil-
demente, que a realidade se apresenta sem porquê. Claro
que o gratuito é fácil de aceitar. O doloroso e difícil é dar um
sentido ao limite, mas, sem ele, não haveria mundo, multipli-
cidade, individualidade, consciência nem liberdade. O tema
do limite é um tema radical, daqueles que escarafuncham nas
raízes das coisas e da nossa preocupação, tanto na ação como
no pensar. Por que nossa liberdade se depara com limites e
não é desde o começo amplo como o espaço? Como só posso
ser finito? É possível a plenitude? Só graças ao limite, existe
pluralidade, dizia, o limite nos constitui, nos dá a forma e,
com isso, o contorno da realização e o gozo, mas também
nos dói e nos abocanha à morte. De onde procede o limite? É
evitável, substituível, encurralável, minorável?
Para o jovem Schelling, a realidade, tanto a da natureza
como a do mundo da consciência, é como um Eu com duas
atividades, a real e a ideal. 1 A estes três momentos de realidade,
tem que unir o limite, ou melhor dizendo, os diversos limites

112
que fazem evoluir o sistema e dão lugar a todos os fenômenos
da nossa experiência. Esses são os elementos com que
Schelling constrói seu Sistema do idealismo transcendental
(1800):
Cada um pode se considerar a si mesmo como o objeto destas
investigações. Mas, para explicar-se a si mesmo, primeiro tem
que ter suprimido, em si, toda individualidade, pois esta é
precisamente a que deve ser explicada. Quando todos os limites
da individualidade são eliminados, não fica nada além da
inteligência absoluta. Quando os limites da inteligência também
são, por sua vez, suprimidos, não sobra nada a não ser o Eu
absoluto. A tarefa é, pois, esta: como se pode explicar a inteli-
gência absoluta a partir de um atuar do Eu absoluto e, por sua
vez, todo o sistema da limitação que constrói minha individuali-
dade a partir de um atuar da inteligência absoluta. 2
Duas questões, portanto, ligadas entre si, entrelaçam-se
na pesquisa ontológica: a da realidade originária e a do limite
(muitos utilizariam o plural: realidades e limites). Para a filosofia
pós-kantiana, essas questões tomaram corpo nas perguntas
pelo primeiro princípio e pelas coisas em si. A sucessiva
ampliação do horizonte nessas duas questões (justificada ou
não, isso deverá ser debatido) mais o método genético-sintético
(chamado depois dialético) foram o que deu passagem ao
Idealismo alemão, o que provocou a deriva de Kant (1724-
1804) a Fichte (1762-1814), passando por Reinhold (1758-1823)
e Maimon (1754-1800), e deste a Schelling (1775-1854) e Hegel
(1770-1831). Desses três temas, quero focalizar o do limite,
mas este adquire seu significado em referência à realidade
que delimita e ao modo ou método com que opera. Interessa-me,
além disso, como uma reflexão que, partindo do seio da filo-
sofia transcendental, vai deteriorando-a e abrindo-a até o
âmbito de um idealismo absoluto. Essa dualidade, o trânsito
do idealismo transcendental ao absoluto, está presente no
jovem Schelling desde o início e, contudo, ainda em 1800,
publica um livro que se autoqualifica como pertencente à
filosofia transcendental. Entretanto ele o faz para deixar de
utilizá-lo depois e como quem não ajusta contas com um
passado sempre "ultrapassado", mas cujas terras do além foi
difícil arar (começou propriamente com sua Filosofia da
natureza).
114
2. KANT
Dizia que a reflexão sobre o limite começa no seio da filosofia
transcendental, ou seja, em Kant, como solução e como
problema: como solução no conflito da razão consigo mesma,
e como problema na afecção da coisa em si. Se olharmos para
trás, para as três Críticas kantianas, descobrimos aí funda-
mentalmente três fontes do limite: a coisa em si, a imaginação
e a razão. As duas últimas foram aceitas em todo esse período
que contemplamos, até 1800, mas depois, a imaginação rapi-
damente caiu em desuso, no mesmo ritmo da filosofia trans-
cendental, ao mesmo tempo em que a coisa em si foi objeto
de viva polêmica, como é sabido.
A imaginação transcendental é a ação subjetiva que limita
idealmente o significado objetivo das categorias e dos
conceitos em geral ao sensível, mediante sua síntese plástica,
seus esquemas. É a ponte entre a infinitude da idealidade
abstraída no conceito (e na linguagem, poderíamos acrescentar)
e a concreção sensível de nossas capacidades de conhecer,
tanto transcendentais como empíricas. A imaginação é que
concretiza o significado dos universais e que estabelece o
laço de união entre as duas esferas (platônicas), que capta o
devir do real e soluciona as aporias de Zenão. Mas, com essa
ação esquemática, não acaba sua tarefa, também tem outra
função simbólica na esfera do estético. Trata-se de uma ativi-
dade que, em jogo livre, mas dentro da legalidade genérica
do entendimento e da razão, delimita as formas belas e
artísticas, conferindo-lhes uma vida estética tanto para o
criador como para o contemplador. 3 No sublime, é certamente
ultrapassada, ela não limita, só é delimitada; e, concretamente,
pela razão, a terceira instância do limite.
A razão é, por um lado, a petição do incondicionado, graças
ao qual limita ontologicamente o objetivo, desestabiliza-o em
sua pretensão de totalidade, testa-o como limitadamente real
e fenomênico. Em segundo lugar, ela põe limites a si própria
em sua pretensão de alcançar, por si mesma, um absoluto na
forma de ser do objetivo, como o pretende a metafísica
dogmática; para isso, coloca a razão teórica ante seu tribunal,
o da razão filosófica, e, desse modo, dá passagem a outros
modos de ser, radicados, da mesma forma, nela. Com efeito,
115
a razão mostra o incondicionado, não na forma de um objeto
absoluto, mas na de uma ação originária e subjetiva, livre,
responsável por si, e isto na esfera moral ou da razão prática,
de modo que toda petição de absoluto tem que ser traduzida
nesse âmbito. Essa ação originária tem que tratar-se a si mesma
como livre, sempre e sob qualquer circunstância, ou seja, sem
limitações temporal nem espacial; isso é o que significa o
adjetivo "categórico" na expressão "imperativo categórico".
Aqui alcançamos a pedra angular do sistema, não só de Kant,
mas, em último caso, de todo o Idealismo alemão. 4
Mas a liberdade é capacidade também de mal radical, moral;
é possibilidade de destruir a si mesma, e, por isso, sua forma
tem que aceitá-la consciente e livremente. Só assim se confi-
gura como liberdade e não como necessidade cega; isso é o
que significa "imperativo". Por conseguinte, o imperativo
encerra também limitação, autolimitação. O que pareceria um
contra-senso, que a mesma ação originária se limitasse a si
mesma, é, contudo, um requisito imprescindível para realizar
seu próprio ser de liberdade subjetiva; esse é um momento
essencial no Idealismo alemão: a aceitação do limite que o
Eu mesmo tem dado como condição de sua própria realização,
idéia que vem do Contratosocia/(1762) de Rousseau (1712-1778).
Em Kant, o reconhecimento e a aceitação dessa autolimitação
(necessária para a compreensão e realização do próprio modo
de ser) se manifesta no sentimento de respeito frente a meu
ser e ao do outro. Desse modo, o ente racional se abre a um
reino de fins, em cujas leis encontra seus limites racionais
(morais e legais) e, ao mesmo tempo, sua verdadeira forma
de realidade. 5 A razão, como reconhecimento da realidade
originária, é consciência de limitação de tudo o que a machuque
ou a destrua.
E o que acontece com a coisa em si, que parece pôr limites
reais ao Eu? Por quatro portas, essa noção nos é introduzida:
duas, na Estética (desde a matéria e a forma), uma, na Analí-
tica, e outra, na Dialética, transcendentais, em todas elas,
delimitando nosso conhecimento. A primeira é, sem dúvida,
a da afecção: as coisas em si nos afetam, frente ao que somos
passivos (sensíveis), limitados; enquanto a imaginação é o
fundamento ou ação ideal que delimita os objetos, a coisa
em si seria seu fundamento real. É conhecida a polêmica que
116
esse ponto levantou, já que Jacobi pôs o dedo na ferida. 6 E,
não obstante, o que aqui Kant recolhe (certamente dentro
ainda de um paradigma pré-crítico) é o fato certo e admitido
por todos, de que nós, ou melhor, o ser racional finito (esse
é o âmbito transcendental de realidade a partir do que se
está falando e, portanto, o marco em que as limitações cobram
sentido, longe ainda do Eu absoluto de Schelling) não acredita
no mundo ex nihilo, mas que este nos vem dado em sua materia-
lidade. Ainda que, depois, interpretemo-lo segundo nossas
categorias, existe algo em si do mundo que nós não colocamos
nem nunca poderemos deduzir analiticamente a partir de
nossa idealidade, só postular sintética e transcendentalmente. 7
Essa é nossa limitação, nossa finitude; por isso, no conhe-
cimento teórico, conhecemos a realidade que não protagonizamos,
e não podemos deduzi-la da simples idealidade racional como
quer a metafísica dogmática.
Chegar ao conhecimento do em si é justamente a petição
da razão estudada na Dialética transcendental. Aqui, a coisa
em si toma a forma de suas três idéias: alma, mundo (como
totalidade) e Deus. Propriamente, o em si só aparece em virtude
dessa exigência da razão, em sua petição metafísica da totalidade
e do incondicionado. Mas, até aqui, não podemos chegar
teoricamente porque não temos dele experiência sensível, nem
criamos o objeto ex nihilo; quer dizer, nosso conhecimento
alcança fenômenos, e não, noumenos, é-nos dito pela Analítica
transcendental; seria já uma contradição encontrar o incon-
dicionado seguindo as formas de compreensão do condicio-
nado.8 É, portanto, um conceito que sinaliza um limite, um
Grenzbegri.ff. Ocorre isso mesmo na última face com que nos
apresenta a coisa em si, ao sinalizar o reverso da subjetividade
transcendental, no que se apóiam as formas do conhecer:
poderiam ocorrer subjetividades com outras formas distintas
que não fossem o espaço e o tempo, ou, inclusive, com outras
categorias (a liberdade, pelo contrário, teria de estar sempre
presente), ou poderia ser que a materialidade em si da natureza
se organizasse de outro modo distinto; esse é o Jactum das
formas transcendentais. De fato, na segunda parte da Ct·ítica
do juízo, estuda-se a possibilidade de que essa natureza se
organize nos seres vivos segundo seus próprios fins, e não
heterodoxamente.
117
3. FICHTE
Os idealistas tentaram superar essa limitação relativa ao
jactum das formas transcendentais, mediante sua dedução
genética e dialética, 9 enquanto que a limitação básica da
razão especulativa frente ao em si, esse estranhamento teórico
do em si do mundo em relação ao subjetivo, foi dissolvido,
sobretudo desde Schelling, pensando essa realidade em si
do mundo como as etapas do Eu, anteriores à reflexão que já
teria sido destacada por Fichte. Continuaram nele, o esquema
da liberdade moral kantiana que se limitava a si mesma, a
fim de se constituir como tal liberdade.
O primeiro passo foi dado por Maimon. Atento à petição
de Jacobi, suprime a coisa em si. Mas fica no âmbito teórico e
não recolhe a primazia do prático como ação. Por isso cai no
ceticismo.
O segundo momento está representado por Fichte. A limitação
básica da coisa em si, ele a desloca do âmbito do teórico
para o prático, e lhe dá o nome de Não-Eu. Na Grundlage, ou
Fundação de toda a doutrina da ciência, de 1794-1795, no
seu §2, este aparece como segundo princípio fundamental,
condicionado pelo Eu em seu conteúdo (é um Não-Eu), mas
incondicionado na forma, ou seja, como negação (é um Não-Eu).
Essa sua incondicionalidade é que põe limites reais ao Eu
(diferente de como o pensará Schelling), em virtude do qual
este aparece no §5 não como uma causalidade infinita, mas
como um ilimitado esforço (Streben), 10 um anseio que sempre
estará no caminho até sua realização: a tarefa de configurar o
Não-Eu segundo as exigências (racionais, Fichte é um ilustrado)
do Eu. Por isso, nosso destino não é chegar à perfeição, mas
nos encontrarmos sempre no caminho do aperfeiçoamento.U
A incondicionalidade parcial do Não-Eu e sua realidade,
assim como a do Eu e sua limitação, manifesta-se à consciência
no sentimento, no sentimento de limitação e, sobretudo, no
anseio (Sehnen): quero (o bem supremo), mas não consigo. 12
Essa primeira Doutrina da Ciência 13 conceitualiza a limitação
real por parte do Não-Eu, fazendo uso de uma metáfora rela-
tiva à mecânica dos corpos: o que a ação real, prática, do Eu
sofre frente ao Não-Eu é como um choque, um Anstoft. Por
esse choque, a ação real do Eu fica limitada, mas sua ação
118
ideal, sua capacidade de saber, precisamente por ser ideal, é
ilimitada, retorna sobre si e, ao mesmo tempo, traspassa o
limite; desta maneira, distingue-se como mera idealidade da
ação real/ideal que só chega até o limite, e, na distinção,
conhece sua própria idealidade mais a realidade do Eu (com
a qual se identifica) e a do mundo.
Se o Não-Eu e o choque são o fundamento real da limitação
do Eu, este, pelo contrário, deve ser o fundamento ideal de
sua própria limitação, pois, caso contrário, ela não seria para
o Eu. Este é um elemento chave do idealismo transcendental
e também de Schelling e Hegel: tudo o que for para o Eu, este
o elaborará idealmente a partir de si, ou seja, tem que colocá-lo
na sua idealidade consciente. Schelling pensa que o Eu coloca-o
também de maneira real, enquanto o Fichte de Jena pensa o
contrário:
Tudo é segundo sua idealidade dependente do Eu, mas, em
relação com a realidade, o Eu mesmo é dependente [em parte,
segundo o terceiro princípio]; mas nada é real ·para o Eu sem
ser também ideal; portanto, nele, fundamento ideal e funda-
mento real são [sinteticamente] uma e a mesma coisa, e essa
relação recíproca entre o Eu e o Não-Eu é, ao mesmo tempo,
uma relação recíproca do Eu consigo mesmo. 14
A sensação kantiana, produzida pela coisa em si na cons-
ciência, é aqui interpretada como a elaboração ideal que o
Eu realiza do choque ou a limitação que experimenta a ação
real/ideal; todo o âmbito da consciência teórica é meramente
ideal e, portanto, todas as limitações e delimitações que ali
se encontram são obra da mesma ação ideal subjetiva.
Então, o conceito de "golpe" é, sem dúvida, uma ajuda ·
imaginária, mas nem o Eu nem o Não-Eu puros podem ser
pensados como objetos que se chocam entre si. Na segunda
época de Jena, no período da chamada Doutrina da ciência
nova methodo (1796-1799), Fichte avança na compreensão
transcendental desse tema. Já na Grundlage, a realidade
básica de que parte a reflexão é propriamente a síntese do
Eu finito e Não-Eu finito (terceiro princípio), e só para explicá-la
em seu dinâmico modo de ser subjetivo-objetivo se postula
uma atividade excedente e independente do Eu (primeiro
princípio) e do Não-Eu (segundo princípio), ou seja, uma
119
atividade originária (pura, diria Kant) e não esgotada na síntese,
pois, caso contrário, esta se petrificaria e não haveria liberdade
nem consciência. 15 A sucessão dos princípios não é, portanto,
temporal, tudo se dá de um golpe (in einem Scblag) e ao
mesmo tempo. A síntese tem estado aí desde sempre e sem
ela não teria sido possível nem o Eu nem o Não-Eu. Propria-
mente, não é que o Eu estivesse primeiro encerrado e temporal-
mente depois saísse de si para se encontrar com o Não-Eu,
mas já estava ali fora desde o início. E essa síntese objetivada
e, por sua vez, subjetivada entre o Eu e o Não-Eu é encontrada
por Fichte no corpo próprio de cada um, que é, ao mesmo
tempo, um objeto externo e o sistema objetivado do sentir ou
das limitações, 16 mas, por isso mesmo, também a manifestação
de meu querer originário na intuição externa. 17 Como foram
configurados esses limites sensíveis/corporais? Para Fichte,
o corpo mesmo é uma síntese de liberdade e natureza, mas
isso só como articulado; como organizado, é um mero produto
físico-químico, um puro objeto sem idealidade própria, tal e
qual afirmava Descartes. Pensar de outra maneira será a porta
de entrada à Filosofia da natureza, de Schelling, e a outra
concepção da limitação, que levará a filosofia a parâmetros
diferentes.
Então, esse tema do limite no Fichte de ]ena não acabaria
aí. O corpo mesmo representa a objetivação da limitação, mas
como o Eu está informado sobre ela? Como a põe idealmente
para ele? Isto ocorre em virtude da constituição intrínseca de
toda consciência, a saber, ela, ou seja, o Eu só é capaz de se
captar se se limita e se contrapõe ao outro de si, ao Não-Eu.
Esta lei da contraposição,I8 necessária à consciência, é propria-
mente a origem de toda a limitação para o Eu, tanto em
Fichte (origem ideal), como em Schelling (origem ideal e
real), 19 o aspecto graças ao qual o Eu fica por dentro de sua
limitação e a põe e a elabora. O Eu é essencialmente auto-
consciência, e, para saber de si, é necessariamente abertura
e manifestação do outro de si. Nessa operação, tem de se
manter, além disso, fiel à sua própria constituição, ligado
( Gebundenbeit) às formas ou leis de seu ser, conseqüente e
identificado com elas. Neste duplo sentido assinalado, Fichte
fala de uma auto-afecção (autolimitação) do Eu como condição
transcendental de todas as demais. 20 "A liberdade é uma
auto-afecção absoluta e nada mais", 21 só dessa forma se abre
120
ao Não-Eu e aos outros eus, que, por sua vez, fazem-lhe um
espaço de liberdade, convidando-o para o mesmo (Atifforderung). 22
Esta autolimitação será também a essência do sistema em
Schelling, do Eu no período que estamos aqui estudando e,
depois, de Deus mesmo. Vamos focalizar agora esse tema.
4. SCHELLING: DO EU TRANSCENDENTAL
AO EU ABSOLUTO
Desde o início, desde o Do Eu ( Vom Icb) de 1795, Schelling
está recebendo e re-elaborando as filosofias kantiana e
fichteana a partir dos parâmetros platônico-espinosistas. 23 Para
24
0 Fichte de Jena, o Eu é, sim, o sentido de toda a realidade
(Realitat), e não tudo na realidade efetiva CWirklicbkeit), mas
que, justamente, tem por tarefa o configurar racionalmente
toda essa realidade. Schelling, pelo contrário, pensa que o
Eu é tudo de princípio, o ben kai pan, 25 como o pode ser a
substância para Espinosa (1632-1677), só que esse Eu se
desenvolverá não geometricamente, mas, como o Eu fichteano,
genético-sinteticamente, e se constituirá como sujeito ou ~ab~r
de si. Esse é o programa que retomará Hegel: que a substancra
se torne sujeito. 26 Nesse contexto, o limite não pode vir de
fora de um Não-Eu absoluto em parte, mas do interior do
mes~o Eu; e isto não só idealiter, como em Fichte, mas também
realite1~ segundo o Sistema, o pretendido Não-Eu que limitava
realiter ao Eu, transformação prática da coisa em si kantiana,
não é senão a atividade ideal do Eu que este ainda não reco-
nheceu como tal e, por isso, encontra-se alienada. Do Eu
fichtiano, essencialmente humano e reflexivo, passamos a um
Eu cósmico do que procede real e idealmente todas as coisas
naturais e racionais, um Eu que, autolimitando-se a si mesmo,
como já fazia a liberdade kantiana, dá origem material e formal
a todos os fenômenos de ·nossa experiência.
Na conhecida carta de Schelling a Hegel, de 4 de fevereiro
de 1795, escrita quando estava redigindo Do Eu, 27 deixa bem
claro:
Nesse meio tempo, tornei-me espinosista! [.. .] Para Espinosa, o
mundo (o objeto sem mais, em contraposição ao sujeito) era
121
 tudo, para mim é o Eu. A autêntica diferença entre a filosofia
crítica e a dogmática parece-me estar presente naquela parte
do Eu absoluto (ele não condicionado ainda por nenhum
objeto), e nesta parte do objeto absoluto ou Não-Eu. [. .. ] O Eu
absoluto abarca uma esfera infinita do ser absoluto, nesta se
formam esferas finitas, que surgem mediante limitações da esfera
absoluta por um objeto (esfera da existência ..,.-- filosofia teórica).
[. . .] Mas devemos romper essas limitações, ou seja, devemos
chegar das esferas finitas à infinita (filosofia prática). Esta,
portanto, exige a derrubada da finitude e, com isso, leva-nos
ao mundo suprasensível. [. . .] Só que aí não encontramos outra
coisa que nosso Eu absoluto. [. .. ] Deus não é senão o Eu absoluto. 28
Essa transformação da substância espinosista em um Eu
(fichtiano) tem lugar pela seguinte razão: "o absoluto só pode
ser dado pelo absoluto" 29 e "nada pode colocar a si mesmo
[aqui se unem o termo fichtiano de sich setzen com o conceito
espinosista de causa sui], a não ser aquilo que contém um Si
mesmo (Selbst) inteiramente independente, originário, [. . .]
porque ele mesmo é o que põe. Este não é outra coisa senão
o Eu originariamente posto por si mesmo", 30 pois o Não-Eu
tem caráter de contraposição e depende, portanto, de uma
primeira posição, e o objeto, por sua vez, tem que ser pensado
e conhecido por um Eu para se converter em objeto_31
Também Fichte havia comparado seu sistema com o de
Espinosa desde o início, desde a Fundação, situando-o, isso
sim, por debaixo de seu primeiro princípio:
A parte teórica de nossa Doutrina da Ciência, que se desenvolve
também só a partir dos dois últimos princípios [o segundo e o
terceiro], enquanto aqui o primeiro [o Eu puro] tem uma validade
meramente reguladora [e não chega à sua realidade], é,
realmente, como se mostrará, em seu momento, o espinosismo
sistemático; só que o Eu mesmo de cada um é a única substância
suprema. Mas nosso sistema acrescenta uma parte prática, que
fundamenta e determina a primeiraY
Ou seja, o Deus de Espinosa é substituído pelo Eu de cada
um, mas isso é situado em uma esfera subordinada. 33 Certa-
mente, "na medida em que se diz 'o Eu se determina a si
mesmo', é atribuída ao Eu absoluto totalidade da realidade'?~
de forma que a "fonte de toda a realidade é o Eu [que é colo-
cado imediatamente e sem mais]. Só e primeiramente por e
122
com o Eu é dado o conceito de realidade do ser como autoco-
locar-se e como atividade". 35 Mas o Eu fichtiano é fonte
ontológica, não ôntica, de toda a realidade: só existe realidade
para o Eu na medida em que ele o põe a partir de sua atividade
ou de sua passividade, não porque dele proceda onticamente
toda a realidade. E assim
o Não-Eu como tal [como absoluto] não tem em si nenhuma
realidade; mas tem realidade como o Eu padece (leidet). Esta
proposição: "o Não-Eu tem, ao menos, pelo que podemos ver
até agora, realidade para o Eu só na medida em que o Eu é
afetado e, fora desta condição de uma afecção do Eu, não tem
nenhuma" é muito importante por suas conseqüências. 36
Diz "pelo que podemos ver até agora", porque depois se
deduzirá, inclusive, uma atividade independente do Não-Eu,
e, de novo, não dogmaticamente, mas como necessária para
a dinâmica da síntese, para que esta não se petrifique.
Pois bem, essa atividade independente do Não-Eu desa-
parece por completo no Do Eu (Vom !eh), porque, como
Schelling já havia afirmado em sua obra anterior, o Eu "se
põe a si mesmo (por causalidade absoluta)" _37 É significativo,
neste sentido, que a via filosófica de acesso ao Eu absoluto
que Schelling adota seja a mesma que Tomás de Aquino (1225-
1274) utiliza para chegar ao Deus criador (criticada na Dialética
transcendental da Crítica da razão pura (1781)): a impossibi-
lidade de um regresso sem limite na corrente de condicionados
e a necessidade racional de uma última realidade fundante, e
isto não só na ordem do conhecer, 38 mas também na ordem
do ser:
Tem que haver um último ponto da realidade, do qual tudo
dependa, [. . .] algo no qual e pelo qual tudo o que é chegue à
existência, tudo o que é pensado chegue à realidade, e o
pensamento mesmo chegue à forma da unidade e da imutabilidade
[. . .] como fundamento originário (Urgrund) de toda realidade. 39
Este último fundamento não pode ser um sujeito absoluto,
mas um Eu absoluto, afirma Schelling, pois todo sujeito se
contrapõe ao objeto, enquanto seu Eu absoluto, justamente
ao ser todas as coisas, exclui de si qualquer contraposição. 40
123
Por isso, o Eu penso transcendental, kantiano, é qualificado
aqui de empírico. 41
Então, ao estar situado além de toda contraposição, no Eu
absoluto, não existe consciênciaY Como é possível, então,
que haja um Eu?- perguntava-se Holderlin (1770-1843), em
seu famoso fragmento juízo e ser. 43 Fica ainda um trecho até a
filosofia da identidade, e, mais ainda, até a Ciência da lógica
(1812/1816) de Hegel, para os quais a razão especulativa
alcança o absoluto. Mas o que agora fica claro é que, no
absoluto, deve reger outro tipo de saber, pois, ali, os limites
do finito ficam apagados; por isso, o Eu absoluto, como o
deus aristotélico, só pode pensar-se a si mesmo. 44 Retomando
o termo que Fichte já havia utilizado em sua Resenha de
Enesidemo, Schelling denomina esse tipo de saber próprio
do Eu puro como intuição intelectual, graças à qual o Eu
mesmo se realiza e nós, como somos também Eu puro,
conseguimos percebê-lo. 45 Mas, enquanto para Fichte a refe-
rida intuição intelectual sempre vai acompanhada da
empírica pela necessária contraposição para a consciência, e
indica o ato de autoconsciência transcendental graças ao
qual nos atribuímos nossos pensamentos e ações,4 6 segundo
Schelling, nessa intuição, tem desaparecido todo objeto e
todo tempo. Estamos, então, falando de outro Eu e, em
conseqüência, embora intuir o eterno em nós mesmos
constitua "a experiência mais íntima e mais própria", 47 na
verdade "acordamos da intuiçãO intelectual como do estado
da morte. Acordamos mediante reflexão, ou seja, por um
forçado retorno a nós mesmos". 48 Como pode se dar a intuição
nessa completa luz sem contornos, que para nós seria igual a
uma noite total? O termo de intuição, de origem empirista e
que havia sido re-traduzida por Fichte no âmbito transcendental
como metáfora, tem difícil aplicação aqui e não terá muito
futuro depois da irânica crítica de HegeL·í9
Em Vom !eh (Do Eu), o Eu vai tomando os caracteres da
substância espinosista. Ele é um só porque contém em si toda
a realidade. 50 Por essa mesma razão, é infinito, assim como
seus atributos, dado que não pode ser limitado nem por uma
realidade ou negação fora dele, nem por si mesmoY No
onímodo ser do Eu absoluto, recortam-se os Eus empíricos
como esferas finitas na esfera infinita, contra (mas também
124
pendant) o dogmatismo conseqüente, ou seja, de Espinosa,
para o qual, segundo Schelling, os fenômenos são limitações
da realidade infinita do Não-Eu. 52 O Eu absoluto contém, em
si, não só a forma e o sentido de tudo, mas também "os data,
a matéria absoluta da determinação de todo ser, de toda
possível realidade" .53 "O Eu é a causa originária e imanente
de tudo o que é [. .. ] a fonte originária de toda realidade [. .. ],
não só a causa do ser, mas também da essência de tudo o
que é." 54 O Eu é "poder absoluto", "absoluto auto-poder", como
a substância para Espinosa, 55 o hen kai pan que é mas não
existe como as coisas limitadas. 56
· Pelo contrário, o Não-Eu é mera negação, zero, absoluta
impossibilidade, e só chega a ser algo quando fica limitado e
condicionado numa síntese ou objeto no Eu. 57 As coisas, como
para Platão, são uma síntese do ser e do não ser, e esse não
ser é interpretado aqui como mero limite da totalidade do
ser. Mas, de onde vem essa negação, fica aqui, em Do Eu,
sem esclarecer; nem sabemos como passamos do Eu absoluto
ao Eu finito. Esse será um ponto que acompanhará toda a
reflexão de Schelling, a partir do conceito de caída em Filosofia
e religião (1804). O fato é que existem o Eu e o mundo finitos,
não se explica o passo, como tampouco o faz Espinosa. Então,
ante a identidade e a diferença que existe entre o Eu absoluto
e o finito surge, neste, um esforço (Streben) para superar a
finitude e todo limite. Nisto, a filosofia teórica caminha até
uma síntese suprema do Eu e do Não-Eu, e que é Deus, 58 mas
é uma via que acaba em fracasso, como mostra a Dialética
transcendental da Crítica da razão pura. Mas, dado que o Eu
absoluto é toda a realidade, surge a filosofia prática como
tendência a acabar com todo Não-Eu, 59 pois a solução é a .
"total aniquilação da esfera finita, ou seja, a ampliação da
mesma até a coincidência com a infinita (razão prática)". 60
Essa força prática do Eu finito (Espinosa a chamaria conatus)
é, qualitativamente, a mesma que a do Eu absoluto, só que
quantitativamente limitada, 61 e concorda com a causalidade
natural das coisas e a desse mesmo Eu empírico "porque os
objetos, em geral, só são, na realidade efetiva, modificações
da realidade absoluta do Eu". 62 Ou seja, tanto os eus finitos
como os objetos se comportam relativamente ao Eu absoluto
como as idéias e os corpos com a substância espinosista.
125
 Isso, que o Eu absoluto é toda a realidade e que os objetos
do mundo não são senão modificações dele mesmo, foi o
que tentou mostrar a Filosofia da natureza que Schelling
começou a elaborar, a partir de 1797, em Idéias para uma
filosofia da natureza. Iniciou assim um dogmatismo pós-crítico,
anunciado já na quinta das Cartas. A porta de entrada foi
uma reflexão sobre a natureza orgânica, que já a terceira Crítica
kantiana sinaliza como um momento de síntese entre liber-
dade e natureza; se a finalidade, ou seja, a subjetividade se
faz natureza, aparece como um ser vivo, segundo a analítica
do juízo teleológico. Mas o que Kant deixava como mero
princípio regulador de nossa investigação dos seres vivos,
em Schelling é convertido em princípio constitutivo dos mesmos:
A organizaç.ão se produz a si mesma, surge por si mesma [. .. ]
Nenhuma parte pode surgir senão neste todo, e este todo mesmo
consiste unicamente na relação recíproca das partes. Em qualquer
outro objeto, as partes são opcionais, existem na medida em
que Eu faço a partição. Exclusivamente no ser organizado,
elas são reais, existem sem minha intervenção, porque entre
elas e o todo existe uma relação objetiva. Portanto, no funda-
mento de cada organização, encontra-se um conceito, pois
onde existe uma referência necessária, do todo às partes e das
partes ao todo, existe conceito. E esse conceito habita nela,
não pode ser separado dela, ela se organiza a si mesma, não
é uma obra artística que tem seu conceito fora, no entendi-
mento do artista. 63
Aqui, a forma e o conceito são inseparáveis da matéria; ao
contrário do que pensava Fichte, não podem ser transferidas
para ela por nosso entendimento, só sua unidade objetiva e
real se encontra no objeto mesmo. 6-i E essa unidade é o que
constitui a natureza em oposição às obras realizadas pela
consciência reflexiva, 65 da mesma forma que Aristóteles dife-
renciava os seres naturais dos produtos técnicos, ou Kant, os
seres vivos das máquinas. 66 Então, a unidade encontrada nos
seres vivos se converte, para Schelling, na chave de interpre-
tação de toda a realidade do mundo; 67 se nos seres orgânicos
se manifesta o conceito ou a atividade ideal é porque tem
estado na natureza desde sempre, ainda que só aí consiga
transparecer. "A natureza deve ser o espírito visível, o espírito,
a natureza invisível. "68 · CGebundenbeit)73 ou o convite (Au!forderung) por parte dos
126
Em consequencia, os limites dos objetos, primeiro dos
organizados, e depois em toda a natureza, não estão colocados
por um Não-Eu, mas pelo conceito, ou seja, pelo Eu que
neles habita e neles se busca. Nada existe fora do Eu, e para
iniciar a demonstração desta tese, Schelling empreende, no
segundo livro de suas Idéias para uma filosofia da natureza,
uma dedução da mesma matéria a partir da natureza de nossa
intuição. Assimila as forças da atração e da repulsão, que
configuram todos os fenômenos da natureza, 69 com as duas
atividades contraditórias que fazem possível a intuição/0 e
que serão as que dêem lugar a todo o Sistema do idealismo
trqnscendental.
5. O SISTEMA DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL
ORIGEM DA REALIDADE E DO LIMITE
Se o Eu não é só absoluto no sentido transcendental de
estar absolvido de toda heteronomia (Fichte em Jena), mas
no sentido de ser material e formalmente toda a realidade, o
ben kai pan, também o limite, todo limite, terá de proceder
dele. Disse Schelling, em 1827:
O limite que Fichte fazia cair fora do Eu, olhando para trás,
caiu, desse modo, no Eu mesmo, e o processo se fez inteira-
mente imanente, no qual o Eu só estava ocupado consigo
mesmo, com a própria contradição, posta em si, de ser, ao
mesmo tempo, sujeito e objeto, finito e infinito. 71
O Eu absoluto, origem de todos os fenômenos, os humanos
e os naturais, necessita, de fato, do limite para se conhecer a
si mesmo e para se realizar como Eu. O mesmo é o processo
global de toda a realidade finita e procede de um ato de cisão
do absolutamente idêntico, que ainda, aqui, não é investigado. 72
No Sistema do idealismo transcendental, todas as fontes de
limitação que temos visto: a coisa em si, a necessidade de
saber de si que necessita da contraposição, a imaginação, a
razão, o choque, a síntese corporal, a ligação às próprias leis
127
outros seres racionais, todas elas são interpretadas como
procedentes de uma única atividade do Eu absoluto, a saber,
da atividade ideal em suas diversas etapas ou potenciações,
como "uma gradação de intuições pelas quais o Eu se eleva à
consciência em sua mais alta potência" .74 Desse modo, o
sistema adquire uma completa unidade genética e arquitetônica,
e, com isso, todos os fenômenos de nossa realidade ficam
recebidos numa mesma corrente geradora, sem esvair, por
isso, suas diferenças.
Ainda que a substância de Espinosa seja interpretada aqui
seguindo o método fichtiano, de fato, o âmbito do transcendental
já tem sido superado em direção a uma forma de idealismo que,
pouco depois, chamou a si mesmo objetivo.75 Entretanto,
continua falando de idealismo transcendental, inclusive no
mesmo título do livro, mas já é apresentado como uma das
duas partes do sistema, que logo será absorvida como
elemento secundário. 76 Nessa obra, Schelling quer expor a
filosofia de Fichte, mas levando-a até sua completude. 77 No
entanto, sua própria filosofia da natureza também irrompe,
sua presença se faz inevitável, e a escritura do texto oscila
entre ambos os universos, em tensão direcionada para iden-
tidade;78 em conseqüência, a atividade ideal dá lugar tanto a
idealidades (sensação, intuição, conceito etc.) como a fenômenos
reais (matéria, seres inorgânicos e orgânicos).
Essa dualidade e oscilação, às vezes expressamente
conduzida para mostrar o paralelismo entre o ideal e o real-
natural,79 é perceptível já no primeiro princípio desse Sistema
do idealismo transcendental, ou seja, no ato da autoconsci-
ência. Ele é primeiramente apresentado como algo limitado
ao saber: 80 "O ato de autoconsciência fixa o horizonte com-
pleto de nosso saber." 81 Mas, encontramos igualmente um ato
absoluto da autoconsciência que dá lugar, assim mesmo, a
toda a natureza como verdadeiro hen kai pan e origem de
todos os fenômenos. Aqui a atividade ideal gera o universo
inteiro, tanto o real como o ideal. O passo de uma autocons-
ciência a outra se faz possível porque, inclusive no primeiro
princípio do saber, tem de haver coincidência de algo objetivo
e algo subjetivo, tal como exige o conhecimento. 82 Com
efeito, como primeiro princípio, o ato da autoconsciência tem
de ser incondicionado, depois no dependente do conteúdo
128
e, em conseqüência, tem que ser analiticamente verdadeiro e
expressar uma identidade: A= A, 83 mas tem que ser, ao mesmo
tempo, sintético, como requer todo saber (a partir de Kant).
Portanto, "tem que haver um ponto onde o idêntico e o sinté-
tico sejam um" ,84 onde pensar e ser, conceito e realidade, sujeito
e objeto, sejam originariamente um, e isso só se encontra
"ali onde o representado é também o representante, o intuído
é também o intuicionante", 85 e essa é a estrutura da autocons-
ciência, ato no qual o Eu se realiza, pois o Eu não é uma
substância ou substrato reificado, mas pura atividade. 86 Já
vimos no Vom !eh que essa autoconsciência não é o Eu
penso de Kant, o qual, para Schelling, não passa de ser
empírico já que depende da existência de objetos, mas "Eu
sou" fichtiano, presente em qualquer determinação, e não só
no pensar. 87 Enquanto essa realidade que se identifica com o
ato da autoconsciência é, para Fichte, só a ação originária do
Eu, que tende certamente à infinitude, mas que se encontrava
limitada pelo Não-Eu, em Schelling, essa realidade do Eu é o
substrato e o argumento também de toda a natureza.
O ato eterno da autoconsciência, não concebido no tempo, ao
que denominamos Eu, é o que outorga a existência a todas as
coisas, portanto, o que não necessita, para ele mesmo, de
nenhum outro ser que o sustente mas que, com sua própria
sustentação e apoio, surja objetivamente como o eterno devir,
subjetivamente como o infinito produzir. 88
Dizia que, para Fichte, o Eu é pura agilidade, união de ser
e pensar na intuição intelectual, 89 mas esse ser próprio se
encontra, de fato, limitado realmente pelo Não-Eu, enquanto
que, em Schelling, o Eu descobre, ao final, (como artista e
filósofo) que esse Não-Eu é sua própria atividade ideal alie-
nada. Por isso, esse Sistema não se limita a mostrar como
surgem representações do mundo (Fichte), somente tem a
tarefa de "expor completamente o mecanismo do surgimento
do mundo a partir do princípio interno da atividade espiritual" .90
Da necessidade que o Eu tem de saber de si para se constituir
como Eu, surge-lhe o mundo dos objetos realmente, e não só
a consciência de mundo, como em Fichte. O Eu, "fundamento
e compêndio de toda realidade" ,91 para fazer-se objeto de si,
tem que se limitar, pois a consciência é capacidade de distinguir
129
e, com este fim, o Eu tem que se contrapor com algo real;
depois, o contraposto, conclui Schelling, "surge só pela ação
de se auto-colocar" ,92 e, em conseqüência, o "Eu sou" expressa
uma identidade sintética. Para Fichte (continuo falando só
do de ]ena), pelo contrário, esse primeiro princípio tinha o
caráter de tético, e a síntese, sempre dinâmica, ocorria no
nível do terceiro princípio, quando já se contava com a cola-
boração originária do Não-Eu. Na Doutrina da Ciência, o
colocar conduzia certamente a um contrapor, mas, a partir do
Eu, essa era uma conseqüência ideal que a realidade do outro
lhe abria, pois, caso contrário, não teria lugar uma oposição
real; o Eu é para Fichte só fundamento ideal do Não-Eu. 93
Isso era certamente possível porque o Eu está contraposto
consigo mesmo em suas atividades centrípeta e centrífuga, 94
entre sua finitude e sua tendência à infinitude; nele se dá
essa cisão, e esta lhe abre e, portanto, caminha em paralelo
com a contraposição real entre o Eu e o Não-Eu; a elaboração
do Eu consigo mesmo coincide com sua elaboração do mundo:
ideal ideal
Eu Não-Eu
ideal/real real
Em Schelling, ambas são uma só, o Não-Eu não é senão o Eu
mesmo, contrapondo-se realmente a si, sua atividade real com
sua atividade ideal.9 5 "O Eu é um mundo inteiramente encer-
rado em si, uma mônada", 96 tudo ocorre no seu interior.
A alusão a Leibniz não só revela sua influência, mas também
é pertinente. Opondo-se a Descartes, ele tinha desmontado a
pretensão de substancialidade da res extensa e havia ampliado
a res cogitans, ou seja, a subjetividade, a toda a realidade.
Entretanto, Schelling não aceita a pluralidade de mónadas
leibniziana, apenas retrotrai o conceito à substância espino-
sista e a pensa como sendo uma só. E, como ocorreu na
negação da consciência ao Eu absoluto, 97 de novo é colocada
aqui a questão de poder pensá-lo, definitivamente, como um
Eu, já que temos aprendido em Fichte, e Schelling assim o
recolhe, que o Eu só pode se realizar na comunidade, no
130
reconhecimento recíproco. 98 Não podemos dizer, portanto, que
toda a realidade seja um Eu propriamente falando. Uma ajuda
a esse respeito pode ser encontrada no Primeiro esboço de
um sistema da filosofia da natureza (1799), quando Schelling
escreve programaticamente: "O filósofo da natureza trata a
natureza como o filósofo transcendental trata o Eu."99 Analogamente,
podemos dizer: Schelling aborda o estudo de toda a realidade
com o método com que Fichte elabora sua filosofia da
subjetividade transcendental. Isso estaria justificado porque,
desse modo, alcançaríamos uma maior completude e siste-
maticidade em nossa explicação, supondo que uma espécie
de· atividade ideal trama a gênese inteira do mundo. Tudo é
produto de sua ação espontânea, toda a realidade é um
processo de conhecimento e de construção da autoconsciência.
Assim formulava Schelling, em 1809, esta abertura de
diques:
No idealismo, construído como sistema, de nenhum modo basta
afirmar que "só a atividade, a vida e a liberdade são o verda-
deiramente real", o que também poderia sustentar o idealismo
subjetivo (o idealismo de Fichte, que se interpreta mal a si
mesmo [o que se entende bem é o exposto no Sistema
(System)]); pelo contrário, se exige a demonstração de que
todo o efetivo (a natureza, o mundo das coisas) tem como
fundamento a atividade, a vida, e a liberdade, ou, em outras
palavras de Fichte, que não só o Eu é tudo [ou deveria ser],
mas também, o inverso, tudo é Eu. A idéia de converter logo a
liberdade no Uno e no Todo da filosofia [já veríamos isso na
carta dos primórdios a Hegel, de 1795] tem liberado o espírito
humano, em geral e não só em relação consigo mesmo, e tem
provocado, em todas as partes da ciência, uma mudança mais
profunda e forte que a de qualquer revolução anterior. O
conceito idealista é o único capaz de abrir o caminho à filosofia
superior de nosso tempo e, sobretudo, ao realismo superior da
mesma [sua Filosofia da natureza] ... Só aquele que já desfrutou
da liberdade pode sentir o imperioso desejo de fazer com que
tudo seja análogo a ela, de estendê-la por todo o universo. 100
131
6. OS PRIMEIROS PASSOS DO SISTEMA
DO IDEALISMO TRANSCENDENTAL
Temos visto que o ato eterno da autoconsciência é o que
dá lugar a toda a realidade que conhecemos. É o único ato
absoluto e idêntico, mas é também sintético e genético, e, em
conseqüência, terá que ser analisado sucessivamente (o discurso
assim o exige) em todos os momentos que o integram. Todos
se dão ao mesmo tempo, embora muitos deles se desenvolvam
empiricamente no tempo.
O primeiro dessa série de atos é aquele pelo qual o ser
originário e idêntico se cinde em duas atividades contrapostas,
uma real e outra ideal; esta limita aquela e conseguem uma
síntese graças a uma terceira que é a união de ambas. 101
Nesse ato inicial, temos a primeira e mais originária limitação,
o aparte que, seja como for, teria Schelling, além de Fichte,
pelo lado dos princípios. A atividade real, com que o Eu tende
a produzir o infinito para fora, ou seja, tende a se realizar, é
limitada pela atividade ideal. Com esse ato, a atividade real
fica limitada, de uma vez por todas; as limitações restantes
serão da atividade ideal por si mesma. Em virtude desse ato,
o Eu instaura, em si, a limitação real, que depois será traba-
lhada pelas sucessivas potenciações da atividade ideal. Esta
consiste numa aspiração a se intuir nessa infinitude e é,
portanto, expressando-o em uma linguagem imaginativa, uma
atividade centrípeta; ou podemos dizer que, como tendência
a se intuir a si mesmo, necessita da contraposição do Eu com
o outro, e, portanto, põe a limitação, ideal para Fichte, real
para Schelling.
Mas como pode ser que a atividade ideal limite a real? Em
princípio, pensaríamos que uma atividade real só pode ser
freada realmente por outra real, como, por exemplo, um
objeto limita outro, pois nos parece evidente que é o igual
que pode pôr fronteiras ao igual. Assim, caberia entendê-lo
em Fichte: o Não-Eu real limita o Eu real, desde sempre, na
síntese, sem a qual nenhum se daria, 102 enquanto a atividade
ideal deste é impossível de limitar e, portanto, capaz de ir
além dele, dar conta dele mesmo e objetivá-lo. Em Schelling,
é diferente: o Não-Eu não é senão a atividade ideal do Eu
132
absoluto que, retornando a si, limita a real. Como pode limitar
realmente a atividade ideal? Para a consciência cotidiana refle-
xiva, é impossível que algo ideal, um conceito, por exemplo,
limite um objeto. Como, além disso, essa atividade, ideal para
o filósofo, é apresentada como a mencionada consciência,
sendo o mais lerdamente real e oposto ao Eu? É tudo assim
porque, explica Schelling, as atividades têm se distinguido
pelo surgimento do limite, de modo que, se o abstraímos,
são iguais e originariamente não objetivas e ideais. 103 Em si,
a atividade ideal "é positiva como a outra, só que em sentido
oposto", 104 e "a limitada é real na medida em que se reflete só
sobre o fato de que está limitada, porém ideal, como reflete
que, segundo o princípio, é igual à ideal; por conseguinte,
ela é real ou ideal, segundo se considere" .105 Ou seja, "o Eu
não é originariamente nada mais que atividade ideal [do Eu,
poderíamos dizer]. Se o limite cai no Eu, faz isso, de fato, em
sua atividade ideal. Mas esta atividade ideal, que é limitada,
na medida em que o é, não é reconhecida como ideal justamente
porque está limitada" .106 A limitante, por sua vez, não é por si
mesma real, e só mostra sua realidade em sua oposição com
a outra; "ambas são distinguíveis só na contraposição recí-
proca e na mútua relação" .107 Em resumo, o ser originário se
cinde e uma atividade dele limita a outra; esta se mostra, por
isso mesmo, devido ao limite, como real, e a outra na mera
oposição também como real, mas na medida em que ultrapassa
o limite como ideal. Uma limita a outra porque as duas são
da mesma natureza do Eu. Então, não poderia ocorrer o contrário,
ser a limitante limitada e a limitada limitante? O resultado
teria sido o mesmo, ou, como diria Leibniz, impossível de
discernir. 108
Nesse ato primeiro de autoconsciência, surge um produto
real, fixo, finito, a saber, a Stoff, a matéria prima,I 09 o substrato
finito de todo ser, tanto do inanimado como do animado.
Aqui se dá a materialidade, e essa, desde Platão e Aristóteles,
representa o princípio de toda limitação, o horizonte da
finitude, o substrato ou argila primordial, na qual toda outra
figura se delineia.U 0 E o delineante aqui é a chamada atividade
ideal, mas em seus primeiros passos. É difícil penetrar aqui
no universo de Schelling e pensar que a matéria está construída
por uma atividade ideal. 111 Essa dificuldade é devido ao fato de
conhecermos a dita atividade ideal em potenciações posteriores,
133
quando já configura o âmbito reflexivo da consc1encia,
abstraída da ação natural produtiva; caberia pensar, embora
Schelling não diga nada a respeito, que, nesses momentos
posteriores, converte-se em uma idealidade muito "purificada",
muito "sublimada". Se, em origem, é igual à atividade real, e
isto é o que faz possível a síntese de ambas em seus diversos
momentos, em suas potências mais ínfimas, sua "grosseria" a
assimila ao material, e o Eu se encontra derramado, perdido.
O seguinte passo rumo à complexidade da autoconsciência
volta a tornar possível outra limitação, que abre o horizonte
de uma nova perspectiva, antes inédita, de outra forma de
ser. De novo, trata-se de uma limitação da atividade ideal por
si mesma, e isso será assim daqui por diante. Enquanto
pensamos que uma limitação puramente real recorre até as
últimas especificações de cada objeto e de suas mais ínfimas
partes, essa é, para Schelling, um conjunto de diversas limi-
tações, às vezes reais e ideais, ou melhor dito, de ações
originárias limitadas e limitantes. É essa idealidade, da que
temos esquecido, da que a ciência natural tem feito abstrações,
que Schelling recupera em sua Filosofia da natureza, segundo
as indicações da Crítica do juízo, não fazendo talvez suficiente
distinção entre discurso filosófico, que tem por tarefa pensar
a totalidade do real e, com isso, também a subjetividade, e o
discurso científico, que pode e deve configurar-se fazendo
abstrações da mesma.
Dizia que, uma vez ocorrida a limitação da atividade real,
esta permanece limitada para sempre, e, portanto, no que a
ela se refere, tudo ficaria aí, parado, petrificado. É a atividade
ideal ou, talvez dito de um modo mais claro, a atividade que
depois, no âmbito da consciência reflexiva, se manifestará
como ideal e idealizante, e, inclusive, em seu momento como
mero conceito, a que, ao ser em si ilimitável, 112 é capaz de ir
além de todo limite dado. Ela será o motor da realidade, tanto
da material como da consciente; nisto consiste aqui o idealismo,
em que o motor e construtor da realidade seja a atividade
ideal. 113 Porém, se se limitasse só a ir além, tudo ficaria, de
novo, na indeterminação e no caos, pois existe unicamente
realidade para o Eu, na medida em que exista limite e contra-
posição. Concretamente, a primeira tarefa que essa atividade
ideal tem é acolher em si o limite real já posto, a fim de que o
134
Eu saiba dele, seja para ele, isto é, que ele se instrua como
limitado. Os quatro primeiros atas da atividade ideal, que
vamos ver, são intuições, e, concretamente, intuições ativas,
quer dizer, produtivas. O primeiro ato que produz, como
temos visto, a materialidade, qualifica-o Schelling como "ato
da auto-intuição em geral" .U4 Pois bem, o segundo ato, mediante
o qual a atividade ideal põe em si o limite real e "sabe" dele,
dá lugar à sensação originária: o Eu se sente limitado porque
se identifica com a atividade real, dada a identidade originária
de ambas. 115 Sente-se (empfindet) limitado porque encontra
(findet) o limite real como não produzido pela sua ação
atual (a segunda), com a qual se identifica, senão por uma
anterior (a primeira), que já não é ela mesma, mas que se
encontra por trás dela como condição de possibilidade, e isso
produz um estranhamento do limite. Este estranhamento ou
esquecimento das ações anteriores, das quais só se consegue
captar os resultados como dados e não propriamente discernir
a ação que o produz, é um elemento essencial do método.U 6
Aqui, concretamente, é a razão pela qual o colocado originaria-
mente pelo Eu, este (não o filósofo) o vê como algo dado
(real e reificado), e, em conseqüência, a atividade limitante,
que era sua própria atividade ideal, surge-lhe como pura-
mente objetiva, como Não-Eu e coisa em si. 117 Esse é também o
ponto de vista do dogmatismo, uma filosofia que não se
elevou propriamente ao primeiro princípio, à atividade
construtora e constituinte; aqui teríamos que contar também
com Kant e Fichte, segundo Schelling. Para este, a "ativi-
dade da coisa em si não é senão a atividade ideal do Eu
que retorna a si" .118
É notável que essa sensação, uma auto-intuição, ainda
muito difusa da limitação real, seja, segundo Schelling, algo
quase tão constitutivo para todo ser finito como a primeira
materialidade (limitação em si), um segundo momento (limitação
para si) presente em todos os seres naturais e nos conscientesY 9
É o sentimento de finitude, estendido por todo o universo,
que, anos depois, abordará Schelling como a tristeza ou
melancolia e a fonte de desassossego que recorre todo o finito,
ou, como ele dirá também depois, toda criaturaY0 Esse senti-
mento de fundo, essa Stimmung em palavras de Heidegger,
será posteriormente objetivada pela imaginação produtiva ou,
como a chama Schelling, pela intuição produtiva.
135
 A terceira limitação é um intuir do intuir primeiro (da sensação
originária), graças ao qual o Eu se intui como senciente. A
atividade ideal sai do limite da sensação originária, poten-
cializa-se, reflete sobre sua passividade sentida e a limita a
uma esfera finita, quer dizer, a objetiva, a intui como objetos
(por agora, inanimados), dando a si mesmo também uma
esfera de atividade. Tem lugar, portanto, uma segunda limitação
da atividade ideal que dá lugar a outros fenômenos ou figuras.
Segundo Kant, esta segunda limitação a imaginação trans-
cendental a realizava mediante seus esquemas. Fichte a
denominou imaginação produtiva e Schelling, intuição
produtiva, porque, sem essa delimitação, nem a matéria-
prima nem a sensação conseguem delinear objetos e intuí-los;
toda intuição tem que estar determinada, sintetizada (Kant)
ou interpretada (hermenêutica), e sem esquemas e conceitos
é cega, dizia-se na Crítica da razão pura. 121 Desse modo, o
Eu acolhe em si, ativamente, o limite real, elabora-o, dando-lhe
uma esfera concreta, objetivando-o. Aqui aparece, para o Eu,
a dualidade originária da consciência: a atividade ideal
limitante, como coisa em si, e a atividade real, como Eu em
si. Uma terceira atividade, a intuição produtiva, oscila (schwebt,
como dizia Fichte da imaginação) entre os três elementos (Eu,
limite, coisa em si), distingue-os e os relaciona; esta é,
portanto, uma atividade ideal e real ao mesmo tempo, 122
em analogia à imaginação transcendental em Kant, que
era sensível e espontaneidade ideal ao mesmo tempo.
Mediante essa oscilação sobre os opostos e a reunião dos
mesmos, o Eu se eleva à inteligência: "Aquele Eu fora do qual
está a coisa em si é só o Eu objetivo ou real, e o Eu no qual
ela se encontra é, ao mesmo tempo, ideal e real, quer dizer,
inteligente." 123 A constante oposição obriga o Eu a uma contínua
síntese, e, dessa maneira, surge-lhe todo o mundo dos objetos,
tanto na realidade como (ainda obscuramente) no saber. Seu
resultado é a matéria sensível, em que as duas forças opostas
aparecem: a primeira, como força positiva de expansão ou de
repulsão para todas as direções; a segunda, como força
negativa inibitória ou de atração para o centro; e a terceira
força, a da gravidade, que é a que propriamente constrói a
matéria. As imagens plásticas com as quais Fichte ilustrava
sua concepção do Eu e suas atividades servem aqui para
136
explicar, convertidas em forças físicas, a matéria mesma e seus
três momentos fundamentais: o magnetismo, a eletricidade e
o processo químico.
Um quarto limite surgirá ao Eu em sua tentativa de intuir a
si mesmo como produtor, um limite que volta a dar lugar a
uma nova forma específica de objetos: os seres vivos e orgâ-
nicos. O Eu inteligente se identificará com eles, sobretudo
com o corpo humano. Aqui o Eu delimita e dá forma a seu
próprio corpo, ao objeto material no qual, maximamente,
manifesta-se. Não conseguirá ainda, apesar de todo seu
propósito, pois continua amarrado à cadeia da produção
natural. Terá que levar a cabo um ato de abstração total,
contrapondo-se ao conjunto da natureza, arrancar-se da
série produtiva natural inteira, mediante um ato de liberdade,
elevar-se ao âmbito da consciência reflexiva, ao âmbito
humano. Esta consciência nasce, portanto, da mesma ativi-
dade ideal que, como natura naturans, é a força produtiva
do mundo; com ele, liga-se e, ao mesmo tempo, diferencia-se
o natural do reflexivo, a natureza e a liberdade. No entanto,
nessa tentativa de se intuir como produtor, surgirá, ao Eu,
todo o mundo dos fenômenos naturais, tanto os inorgânicos
como os orgânicos, período que Schelling denomina segunda
época. Ali, vê-se surgir, no seu lugar genético, o tempo, o
espaço e as categorias de relação. 124 A quarta limitação, pela
qual a intuição produtiva à segunda potência dá lugar aos
seres vivos, limita a última dessas categorias, a da relação
recíproca, a um objeto finito, onde todas as partes são causas
e efeitos reciprocamente.
Concluindo: "Em virtude da limitação originária [tanto a
real, primeira, como a ideal, a correspondente à sensação
originária] ou, o que é o mesmo, em virtude da luta originária
da autoconsciência, nasce para o Eu o universo, não pouco a
pouco, mas por uma única síntese absoluta" .125 Graças a ela,
surge um mundo e uma inteligência em geral e somos seres
racionais. 126 Entretanto, o mundo não é só em geral, mas este
em particular, e essa limitação individualizante é causada pela
intuição produtiva; graças a ela, sou esta inteligência finita
que intui e intervém em um determinado ponto do mundo e
de sua série sucessiva. 127 O limite entre ambas, "o ponto limite
entre a inteligência absoluta, 128 inconsciente de si mesma como
137
tal, e a consciente é, pois, meramente o tempo. Para a razão
pura, não há tempo, para ela tudo é, e tudo ao mesmo tempo;
para a razão, como é empírica, tudo surge, e tudo o que lhe
surge, só sucessivamente" .129 Por último,
a que chamamos terceira limitação [a quarta, se desdobramos
a primeira limitação na real e na sensação originária] consiste
em que a inteligência tem que aparecer para si mesma como
indivíduo orgânico. Pela necessidade de se intuir como indivíduo
orgânico, seu mundo lhe é completamente limitado, e o inverso,
porque a sucessão de suas representações é limitada, chega a
ser ela mesma indivíduo orgânico. 130
Esta última forma será o trampolim que utilizará a atividade
ideal para chegar à liberdade ou à consciência reflexiva, ao
âmbito da reflexão e ao moral ou prático.
[Tradução de Graciela Ines Ravetti de Gomez]
NOTAS
1
SCHELLING. Systemdestrcmscendentalenldealismus, III, p. 427; SCHELLING.
Sistema do idealismo transcendental, p. 231: "Descartes dizia como físico:
se me são dados matéria e movimento, eu construirei para vocês o universo.
O filósofo transcendental diz: se me é dada uma natureza com atividades
opostas, das quais uma vai ao infinito e a outra aspire a se intuir nesta
infinitude, eu farei nascer a inteligência em vocês com todo o sistema de
suas representações. Qualquer outra ciência pressupõe já a inteligência
como terminada, o filósofo a contempla em devir e a faz, por assim dizer,
surgir ante seus olhos." [N.T.: a tradução para o português não alterou a
tradução para o espanhol dos termos em língua alemã feita por Rivera,
mesmo que o tradutor pudesse optar por outras palavras em português para
verter ao vernáculo os conceitos empregados por Schelling.]
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 483.
3 Sobre essas ações da imaginação, falei mais no artigo "A imaginação trans-
cendental e o projeto de transformação romântica" (em MARTÍNEZ. (Org.).
Romanticismo y marxismo, p. 145-212), em que estudo Kant, Fichte,
Schelling e Novalis.
4
Assim o expressava o jovem Schelling: "O início e o fim de toda filosofia
é a liberdade!" (SCHELLING. Vom !eh ais Prinzip der Philosophie ode r über
das Unbedingte im menschlicben 1Vis:sen, I/2; p. 101.) "Quem nos acompanhou,
com atenção, até aqui, compreende por si mesmo que o começo e o fim
138
desta filosofia é a liberdade, o absolutamente não demonstrável o
que é provado só por si mesmo."(SCHELLING. System des transcendentalen
Idealismus, III, p. 376; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental,
p. 184.)
Sobre este assunto, falo mais na Parte II do livro ROSALES. E! punto de
partida de la metafísica transcendental. Un estudio crítico de la obra
kantiana, 1993.
6 Eu mesmo tentei um ensaio de interpretação no capítulo II de meu livro
ROSALES. E! punto de pm1ida de la metafísica transcendental. Un estudio
crítico de la obra kantiana, 1993.
7
A existência (Dasein, 1Virklicbkeit) é o segundo dos Postulados do pensar
empírico em geral (KANT. Kritik derreinen Vemunjt, A, p. 218; B, p. 265 ss.).
·A postulação dos data começou já no Der einzig mõglicbe Beweisgrund
zu einer Demonstration des Daseyns Gottes (1763).
8
O jovem Schelling, com apoio nas raízes das palavras alemãs, expressa-o
assim: "Condicionar (Bedingen) é a ação pela qual algo é convertido
em coisa (Ding) [. .. ] uma coisa incondicionada é uma contradição."
(SCHELLING. Vom !eh ais Prinzip derPbilosopbie oder iiber das Unbedingte im
menschlicben 1Vissen, I/2, p. 89.)
9
Schelling mesmo recolhe esse tópico no Prólogo do seu Vom !eh ais
Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte im menschlichen 1Vissen,
I/2, p. 72.
10
"O Eu é infinito, mas meramente em seu esforço; esforça-se por ser infinito.
Mas, no conceito do esforço mesmo, já se encontra a finitude, porque
aquilo a que não se opõe resistência, não é esforço nenhum. Se o Eu fosse
algo mais que esforço, se tivesse uma causalidade infinita, não seria
nenhum Eu." (FICHTE. Grundlage der gesamten Wissenscbajtslebre ais
Handscbriftfiir seine Zubõre1~ I/2, p. 404.)
11
Ver o final da primeira das preleções de Fichte sobre o destino do erudito
em FICHTE. Vorlesungen iiber die Bestimmung des Gelebrten, I/3,
p. 31-33.
12
Sobre esse papel fundamental do sentimento, falei mais no artigo "La
relevancia ontológica dei sentimiento em Fichte" ("A relevância ontológica
do sentimento em Fichte"), em: LÓPEZ-DOMÍNGUEZ. Ficbte, 200 afias
después, p. 45-73.
13
Anteriores são as lições de Zürich, recém-publicadas em Gesamtausgabe
der Baye1iscben Akademie der 1Vissenscbaften, IV/3, mas mal chega a se
desenvolver.
14
FICHTE. Gnmdlage der gesamten 1Vissenscbajtslebre ais Handscbrift fiir
seine Zubõrer I/2, p. 412.
15
"Põe-se uma atividade no Eu à qual não se contrapõe padecer nenhum no
Não-Eu, e uma atividade no Não-Eu à qual não se contrapõe, de modo
algum, um padecer no Eu. Denominamos esta espécie de atividade
como atividade independente." (FICHTE. Grundlage der gesamten
1Vissenscbaftslehre ais Handschriftfür seine Zubõre1~ I/2, p. 305.)
16
FICHTE. 1Vissenscbajtslebre nova metbodo, p. 139.
17
FICHTE. 1Vissenscbajtslebre nova metbodo, p. 160.
18
"Lei da reflexão dos contrapostos" a chama Fichte (ver FICHTE.
1Vissenscbaftslebre nova metbodo, p. 73); ou "Princípio da determinabi-
lidade" (lbidem, p. 51); ou "Princípio da determinação por oposição"
139
 (Ibidem, p. 71; ver também p. 36). "O princtp!O da determinação por
oposição é este: não é pensado nada determinado se não é oposto a algo."
(FICHTE. Vorlesungen iiber Logik und Metapbysik, II/4, p. 334-335).
"Entretanto, a causa de nossa limitação, não podemos pensar nada clara e
distintamente sem pensar também o contrário, sem negar o contrário."
(FICHTE. Die íflissenscbajtslebrenova metbodo, IV/2, p. 34.)
19
"Toda limitação se origina em nós só pelo ato da autoconsciência. [. . .] A
necessidade originária de ser consciente de si mesmo, de retornar sobre si
mesmo, é já a limitação, e é a limitação total e completa." (SCHELLING.
System des transcendentalen Idealismus, III, p. 409; SCHELLING. Sistema
do idealismo transcendental, p. 215.)
20
"A auto-afecção é um golpe contra si mesmo." (FICHTE. lVissenscbajtslebre
nova metbodo, p. 58.)
21
FICHTE. íflissenscbaftslebre nova metbodo, p. 59.
22
A realidade que o Eu descobre além de si, em virtude de sua autolimitação,
não é só o mundo natural, o Não-Eu, mas também os outros Eus, frente aos
quais ele se capta como um indivíduo. Estes lhe deixam um espaço limitado
de ação própria ou esfera (moral e legal) de liberdade, exigindo (au.ffordern)
que atue livremente. "A exigência para atuar por si livremente é o que se
chama educação." (FICHTE. Gnmdlage des Naturrecbts, I/3, p. 347). Esse
espaço de liberdade só se dá nas sociedades regidas pelo bem moral e a
justiça e na medida em que isso assim o seja. É bem evidente que isso está
ainda longe de ser viável na Terra, mas também que esse é o caminho
necessário para a realização do Eu, da subjetividade, da liberdade, e, portanto,
um apoio para a censura do estado atual. Estabelecer os primeiros princípios,
as linhas gerais, não significa ser ingênuo, mas traçar os parâmetros da
ação e da crítica. Valha essa observação para todo o resto deste trabalho.
Este tema do limite no primeiro Fichte, o de ]ena, foi mais desenvolvido
por mim no artigo "Die Begrenzung. Vom AnstoB zur Aufforderung", p.
167-190.
23 "Agora trabalho em uma ética à la Espinosa." (SCHELLING. Brief von
Schelling an Hegel, den 6.01.1795, III/1, p. 17), e isso seria o Do Eu
onde, de fato, não cita nem uma vez Fichte, embora este, como outros
muitos, o tome como um comentário a seus escritos, apreciando, sobretudo,
sua contínua referência a Espinosa (FICHTE. Brief von Fichte an Reinhold,
den 02.07.1795, III/2, p. 347-348). Na seguinte carta a Hegel, Schelling
lhe declara que se tornou espinosista (III/1, p. 22). Para Niethammer,
escreve, em carta de 22 de janeiro de 1796, que Espinosa o entusiasma
(III/1, p. 41). Sobre Platão, recentemente se destaca o trabalho escolar de
Schelling sobre o Timeu (SCHELLING. Timeu (1794), 1994).
24
O posterior a 1801, o chamado Fichte de Berlim, também começa a filosofar
no horizonte do Absoluto.
2
; SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben íflissen, I/2, p. 119.
26
"Segundo meu modo de ver, que deve ser justificado mediante a exposição
do sistema mesmo, tudo se cifra em captar e expressar o verdadeiro não
só como substância, mas igualmente como sujeito." (HEGEL. Pbéinomenologie
des Geistes, p. 22-23).
27
Seu Prólogo, escrito ao final, está datado: 29 de março de 1795.
140
28 SCHELLING. Brief von Schelling an Hegel, den 4.02.l"l95, III/1, p. 22-23.
O "ainda" e o "por um objeto" do texto deixam certos resquícios de inter-
pretação fichtiana. Mas, pela contraposição com Espinosa, fica claro qual é
o marco último de interpretação, penso.
29 SCHELLING. Über die Mõglicbkeit einer Form der Pbilosopbie überbaupt, I/1,
p. 271.
30 SCHELLING. Über di e Mõglicbkeit einer Fonn der Pbilosopbie überbaupt, I/1,
p. 279.
3t SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r über das Unbedingte
im menscblicben lVissen, I/2, p. 87-88.
32 FICHTE. Gmndlage der gesamten íflissenscbajtslebre ais Handscbrift für
seine Zubõrer, I/2, p. 282.
33 Enquanto que, segundo Schelling, para Fichte "o Eu, ou seja, o Eu de cada
um, é a única substância" (SCHELLING. Zur Gescbicbte der neueren
Pbilosopbie, X, p. 90), Fichte deixa bem claro que "nem o Eu absoluto não
é manifestamente o indivíduo [. . .] Mas o indivíduo deve ser deduzido do
Eu absoluto." (FICHTE. Briefe, den 30.08.1795, III/2, p. 392).
34 FICHTE. Gmndlage der gesamten lVissenscbajtsleb1·e ais Handscbrift für
seine Zubõrer, I/2, p. 288.
3; FICHTE. Grundlage der gesamten lf7issenscbajtslebre ais Handscbrift fiir
seine Zubõrer, I/2, p. 293.
36 FICHTE. Grundlage der gesamten TVissenscbajtslebre ais Handscbrift für
seine Zubõrer, I/2, p. 294.
37
SCHELLING. Über di e Mõglicbkeit einer Fonn der Pbilosopbie überbaupt, I/1,
p. 279, ver também p. 166 e 169. A expressão é certamente ambígua,
como não poucos textos do jovem Schelling. Pode ser lido fichtianamente,
dando o sentido de que o Eu se coloca a si mesmo, ab-solvido de toda
heteronomia. Mas o termo de causalidade está dentro das categorias cóisicas,
e o termo de absoluto pode ser entendido, então, nesse mesmo sentido
ôntico, com o qual a causalidade do Eu seria tão materialmente criadora
como a ação divina em Espinosa.
38 Há fórmulas que se limitam a este aspecto de que "a cadeia de nosso saber
vai de um condicionado a outro" e necessita de um último ponto incondi-
cionado (SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das
Unbedingte im menscblicben íflissen, I/2, p. 87).
39 SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r über das Unbedingte
im menscblicben íflissen, I/2, p. 85. Fichte depois, por exemplo, em sua
Doutrina da ciência, de 1804, utiliza esta mesma argumentação.
·lo SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie o der iiber das Unbedingte
im menscblicben íflissen, §§ 2-3, 6 e 8, p. 87-93; 100-101 e 103-106.
·it SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblichen íflissen, I/2, p. 105, 133-135, 167 e 169.
12
· SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder iiber das Unbedingte
im menscblichen lVissen, I/2, p. 104, 106, 128. "Onde há liberdade abso-
luta, há absoluta beatitude, e o inverso. Mas, na liberdade absoluta, não é
possível já pensar nenhuma autoconsciência. Uma atividade para a qual já
não há nenhum objeto, nenhuma resistência, não retorna nunca sobre si.
Só pelo retorno sobre si, surge a consciência. Unicamente uma realidade
141

limitada é efetivamente real para nós." (SCHELLING. Philosopbiscbe Briefe
iiber Dogmatismus und Kriticismus, 8. Brief, I/3, p. 94.)
43
Esta objeção não iria contra o Eu de Fichte, como normalmente se inter-
pretou, mas conecta propriamente com a filosofia do jovem Schelling.
44
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Philosopbie oder iiber das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, p. 133 nota. Do ponto de vista prático, esse
ver a si mesmo engloba também a tarefa de pôr toda a realidade em
identidade com ele (SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie o der
iiber das Unbedingte im menscblicben W'issen, I/2, p. 139).
45
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r über das Unbedingte
im menscblicben 1Vissen, I/2, p. 91, 106-107, 130, 132, 134-136, 138-139.
Ao ser o Eu atividade pura, diz no Sistema de! idealismo transcendental,
só se chega a ele por meio de um intuir, ou seja, de maneira imediata
(intuição), livremente e produzindo-o (intelectual) (SCHELLING. System
des transcendentalen Idealismus, III, p. 369-372; SCHELLING. Sistema do
idealismo transcendental, p. 177-180). O acesso racional que vimos em
Do Eu (Vom Jcb) e que parte da cadeia de condicionados vê-se duplicado
agora por um ato intuitivo. Schelling não os põe em conexão, mas não tem
por que se contradizer, e podemos tomar a via racional como preparação
para deixar mais expedita a intuitiva.
46
FICHTE. Zweite Einleitung in die W'issenscbaftslebre, I/4, §§ 4-6, p. 213 ss.
Os estudiosos de Fichte consideram que essa precisão fichtiana sobre a
intuição intelectual está dirigida contra a interpretação de Schelling.
47
SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus, I/3,
8. Brief, p. 87. Aqui Schelling retomaria o pensamento de Fichte.
48
SCHELLING. Pbilosopbiscbe Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus, I/3,
8. Brief, p. 94.
49
Refiro-me ao Prefácio da Pbãnomenologie des Geistes, quando Hegel se
distancia do "entusiasmo que começa imediatamente com o saber absoluto
como de um tiro" (p. 31). "Depois, ela [a intuição intelectual] não resistiu
à crítica mordaz de Hegel. Esta crítica, medianamente injusta porque faz
da intuição intelectual uma iluminação individual, faz ecoar o final da
carreira meteórica que culmina nas "Lições sobre o método dos estudos
universitários". Rapidamente, a noção declina, antes inclusive do golpe de
graça de Hegel. [. .. Schelling] não retoma seu uso em sua última filosofia;
a admiração, o êxtase, o yoga, o abismo da razão ... ocupam o lugar que
ela deixou vazio" (TILLIETTE. L' intuition intellectuelle de Kant à Hegel, p.
250).
50 "Se o incondicionado é substância, o Eu é a única substância. [. . .] Por isso
tudo, o que é no Eu, e fora do Eu, não há nada. Porque o Eu contém toda
realidade." (SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r iiber das
Unbedingte im menscblicben W'issen, I/2, § 9, p. 119); ver também§ 9,
p. 107-111). O Eu absoluto é eternidade sem duração, como a substância
para Espinosa (SCHELLING. Vom Icb ais Princip der Pbilosopbie ode r iiber
das Unbedingte im menscblicben W'issen, I/2, § 15, p. 130-131).
51
"Se o Eu contém toda realidade, então é infinito." (SCHELLING. Vom Jcb
ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte im menscblicben
W'issen, I/2, § 11, p. 117). Conclusão que estimo algo apressada, porque a
carência de limitante externo não impede que todo o real, individualmente
e no seu conjunto, não seja um infinito de fato, e que só o meramente
ideal careça sempre de limite definitivo.
142
52
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie o der iiber das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, § 15, p. 144-145.
53 SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie o der iiber das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, § 10, p. 112. "O Eu é o conjunto material de
toda realidade." (Ibidem, § 8, p. 103-106; v. também§ 16, p. 147.)
54
SCHELLING. Vom Jcb ais Princip der Pbilosopbie o der über das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, § 13, p. 121. Embora a seguir se esclareça,
fichtianamente, que estas afirmações correspondem à tese anterior a toda
antítese e síntese (SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder
über das Unbedingte im menscblicben W'issen, I/2, § 13, p. 122).
55
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie o der über das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, § 14, p. 122.
56
Schelling diferencia entre Seyn (ser puro, absoluto) e Daseyn (existência,
condicionada). (SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder iiber
das Unbedingte im menscblicben 1Vissen, I/2, § 15, p. 137-138; v. também
§ 9, p. 107-111.)
57
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, § 10, p. 114, 143 e 156.
58
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, p. 128.
59
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte im
menscblicben W'issen, I/2, p. 116. Deus é então igual ao Eu absoluto
(Ibidem, p. 139).
60
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder iiber das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, p. 117-118, nota. A lei da anulação de toda
finitude é moral para o Eu limitado, para o infinito é lei natural (Ibidem, p.
125-126). Só para o Eu finito, há progresso e duração infinitos, imortalidade
(Ibidem, p. 128 e 138, nota). "De todas estas deduções, manifesta-se que a
causalidade do Eu infinito não pode ser representada, de modo algum,
como moralidade, sabedoria, etc., mas só como absoluto poder que enche
toda a infinitude e não lhe oferece resistência, nem sequer tolera, em sua
esfera, o Não-Eu representado como infinito." (Ibidem, p. 129).
61
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r über das Unbedingte
im menscb/icben W'issen, I/2, p. 169-171.
62
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben W'issen, I/2, p. 173; v. toda esta passagem: p. 171-174.
6
3 SCHELLING. Jdeen zu einer Pbi/osopbie der Natur, Einleitung, I/5, p. 94.
61
· SCHELLING. Jdeen zu einer Pbilosopbie der Natur, I/5, p. 96-97; p. 104 e
107. Para Fichte, ao contrário, os seres orgânicos são puras máquinas, a
natureza carece inteiramente de espiritualidade ou subjetividade.
65
SCHELLING. Jdeen zu einer Pbilosopbie der Natw~ I/5, p. 98.
66
Ver, por exemplo, KANT. Kritik der Urteilskraft, § 65, B, p. 292-293; e
ARISTOTLE. Pbysics, II,2, 192 b 8 ss.
67
Ver, por exemplo, SCHELLING. Von der W'eltseele- eine Hypotbese der
bõbem Pbysik zur Erklãrung des allgemeinen Organismus, I/6, p. 189-190.
"Pode-se dizer que a natureza orgânica traz a prova mais notória do
idealismo transcendental, porque cada planta é um símbolo da inteligência
[. . .] produz, a partir de si mesma, tanto a matéria como a forma, é o
absolutamente orgânico [. . .] causa e efeito de si mesma." (SCHELLING.
143
 System des transcendentalen Idealismus, III, p. 490; SCHELLING. Sistema
do idealismo transcendental, p. 291).
68 SCHELLING. Ideen zu einer Pbilosopbie der NatUI; I/5, p. 107. Comentei
mais amplamente este texto no meu artigo "Schelling: a natureza como
espírito visível" (em ROSALES. Gênese do Idealismo Alemão, p. 219-243).
Como o Eu, o ser mesmo da natureza é compreendido como pura atividade
e originária produtividade (SCHELLING. Erster Entumif eines Systems der
Natzupbilosopbie, I/7, p. 78-79).
69
SCHELLING. Jdeen zu einer Pbilosopbie der Natur, I/5, p. 179.
70
SCHELLING. Ideen zu einer Pbilosopbie der Natur, I/5, p. 212.
71
SCHELLING. Zur Gescbicbte der neueren Pbilosopbie, X, p. 97.
n SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 355-356, 631;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 164, 428. Toda divisão
reenvia a um momento anterior em que não se dá (SCHELLING. System
des transcendentalen Idealismus, III, p. 429; SCHELLING. Sistema do
idealismo transcendental, p. 233).
73 "Todo o objeto desta filosofia não é outra coisa que o atuar da inteligência
segundo leis determinadas." (SCHELLING. System des transcendentalen
Idealismus, III, p. 350; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental,
p. 160). O primeiro princípio é "algo que nos encadeia e nos ata abso-
lutamente no saber, inclusive sem que percebamos isso" (SCHELLING.
System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 355; SCHELLING. Sistema
do idealismo transcendental, p. 163); sua incondicionalidade nos propor-
ciona um obscuro sentimento de necessidade (SCHELLING. System des
transcendentalen Idealismus, III, p. 363; SCHELLING. Sistema do idealismo
transcendental, p. 172).
74
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 331;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 139).
75 SCHELLING. Darstellzmg meines Systems der Pbilosopbie, IV, p. 109.
76
Se no Erster Entwmf Schelling aceita ainda que "ao absolutamente
incondicionado no saber humano só se eleva a filosofia transcendental"
(SCHELLING. Erster Entwuif e ines Systems der Natwpbilosopbie, III, p. 11),
em sua Introdução e no Sistema do idealismo transcendental, defende a
igualdade de sua filosofia da natureza em relação à transcendental
(SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 271-273,
339-341), e, pouco depois, no§ 63 e último da Allgemeine Deduktion des
dynamiscben Prozesses, afirma-se a primazia daquela porque oferece "uma
explicação física do idealismo" (SCHELLING. Allgemeine Deduktion des
dynamiscben Prozesses, IV, p. 76).
77
O objetivo desta obra é "ampliar o idealismo transcendental ao que deve
ser na realidade, ou seja, um sistema de todo o saber" (SCHELLING.
System des transcendentalen Idealismus, III, p. 331; SCHELLING. Sistema
do idealismo transcendental, p. 139). O título se apóia em uma expressão
do mesmo Fichte: "Na medida em que se fala da Doutrina da Ciência não
como de uma exposição individual que pode ser aperfeiçoada indefinida-
mente, mas como de um sistema do idealismo transcendental..." (FICHTE.
Zweite Einleitzmg in die Wissenscbaftslebre, I, p. 512). Isso é o que quer
levar a termo Schelling em sua totalidade. A tendência a ampliar o hori-
zonte da filosofia é a linha que conduz de Kant a Reinhold, a partir de
Fichte, depois a Schelling e por último a Hegel e a Krause. Em relação à
144
obra de Fichte, o "Sistema do idealismo transcendental" amplia tanto pelo
lado dos princípios, deduzindo o Não-Eu inteiramente (idealitere realitâ)
do Eu (cósmico), e pelo lado das conseqüências ou exigências de fecha-
mento (círculo do sistema) com a arte.
7 8 Em 1827, Schelling afirma que a obra, embora queira ser a "realização do
idealismo de Fichte", nela não se encontra "já o [seu] novo sistema sob a
sombra do pensamento fichtiano" (SCHELLING. Zur Gescbicbte der neueren
Pbilosopbie, X, p. 96).
79 "As mesmas potências da intuição que estão no Eu podem se mostrar
também na natureza até um certo limite" (SCHELLING. System des trans-
cendentalen Jdealismus, III, p. 332; SCHELLING. Sistema do idealismo
transcendental, p. 140).
80 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 354, 357-358;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 163-166.
81 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 357;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 165.
82 SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 353;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 162.
8 3 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 361;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 170.
84 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 362;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 171.
8 5 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 364-365;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 173.
86 SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 375-377; SCHE-
LLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 183-185.
87 SCHELLING. System des trcmscendentalenldealismus, III, p. 367; SCHELLING.
Sistema do idealismo transcendental, p. 175. Ver, de Fichte, o§ 1 de sua
"Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre ais Handschrift für seine
Zuhorer, I/2".
88 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 376;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 183.
89 " ••• nesta união imediata de ser e de ver consiste a natureza da inteligência.
O que há nela e o que ela é, em geral, o é para ela mesma; e só na
medida em que o é para ela mesma, o é como inteligência." (FICHTE.
Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre, I/4, p. 196).
9° SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 378;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 186.
91 SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 380;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 188.
9 2 SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 381;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 189.
93 FICHTE. Grundlage der gesamten Wissenscbaftslebre als Handscbrift fiir
seine Zubõrer, I/2, p. 325.
9 4 Queria ocupar toda a realidade (bem supremo), mas sendo também
tendência, a saber, de si, descobria com isso que era efetivamente finito.
Isto se choca com a aspiração à identidade (1 º princípio) e a solução para
a síntese se alarga em um interminável devir teórico e prático (3º princípio).
145
95 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 384-387;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 192-194.
96 SCHELLING. System des tramcendentalen Idealismus, III, p. 381; SCHE-
LLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 189.
97
O Eu absoluto como tal não se contrapõe a nada já que é a única realidade,
e, em conseqüência, não tem, como tal, consciência de si. A consciência
do (genitivo objetivo) Eu absoluto só a tem o artista (na obra de arte, o
homem adquire consciência da identidade absoluta desse Eu) e o filósofo
(este último, como ocorrerá em Hegel).
98 O ser racional finito só pode chegar a ser entre outros seres racionais, diz
Fichte nos primeiros parágrafos (sobretudo, o §3) de seu Fundamento do
direito natural. Assim, do afirmado até aqui, também continua por si
mesmo que um ser racional isolado não pode chegar não só à consciência
da liberdade, mas tampouco à consciência do mundo objetivo como tal,
portanto, que só inteligências fora do indivíduo e uma ação recíproca
com elas, que nunca cesse, completam a consciência inteira com todas as
suas determinações. (SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus,
III, p. 556-557).
99 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 12.
100
SCHELLING. Pbilosopbiscbe Untersucbungen iiber das ll7esen der
menscblicben Freibeit und di e damit zusammenbãnge Gegenstãnde, VII,
p. 351-352.
101
Como "ato de autoconsciência, no qual se divide, pela primeira vez,
aquilo absolutamente idêntico", diz Schelling ao final de sua obra
(SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 631;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 428). Isso, idêntico,
só se revela neste ato de autoconsciência e não pode ser investigado
separadamente (depois o fará Schelling em sua filosofia da identidade);
no entanto, este é mais um resultado a que chega Schelling ao final de
seu caminho, na conclusão de seu Sistema do idealismo transcendental, já
que, no início, deixava-o como hipótese aberta (SCHELLING. System des
transcendentalen Idealismus, III, p. 355-356; p. 164).
102
E ainda aí caberia perguntar-se ao modo de Schelling: como podem
contrapor-se e limitar-se o Eu e o Não-Eu se não fossem, de certa manei-
ra, o mesmo? Em toda contraposição, devemos descobrir uma identidade
de fundo, essa é a exigência hegeliana, ou também uma multiplicidade
originária, mas, então, como pensar a contraposição e simplesmente a
indiferença? Mais: a contraposição requer, além disso, a diferença, e é o
que Schelling tenta compreender, estabelecendo-a entre a atividade real
e a ideal. Identidade e diferença originárias é o que é necessário pensar.
103
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 402;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 208.
10·1 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 401;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 207.
10 5 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 413-414;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 219.
106
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 419;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 223.
107
SCHELLING. System des transcendentalen Jdealismus, III, p. 419;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 224.
146
108
E, no entanto, podemos continuar pensando que deveria haver algo,
originariamente, na real que a distinga da ideal e consiga torná-la real.
Sobre isto não se expressa Schelling, pois ao dizer que são de sentido
oposto, deve-se entender que isso já ocorre na cisão, porque, no absoluto,
não há sentido. Claro que dele não pode falar o idealismo transcendental,
porque cairia além da consciência. Já em As idades do mundo, Schelling
reflete sobre a natureza destes princípios, que faz com que um limite
(subordine) o outro (SCHELLING. Di e ll7eltalter, VIII, 220-221).
109
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 399-400;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 205-206.
110
No comentário do jovem Schelling ao Timeu de Platão, aparece esta
matéria platônica originária (ursprünglicber Stojj), prévia a toda forma
real ou \Virklicbkeit (SCHELLING. Timeu, p. 59, 70-73).
111
Esta é uma dificuldade similar à passagem da Lógica à Filosofia da natureza
em Hegel, ou a como compreender que a forma guie a matéria em
Aristóteles.
112
Por isso é ideal, todo o real efetivo (wirklicb) é limitado e assim paga seu
preço por existir. Que o ideal seja ilimitável é o que comprovamos com
nossos conceitos (o conceito de mesa serve para qualquer quantidade de
mesas), em nossa imaginação, ou com o espaço e o tempo como possibi-
lidade ideal de ir com o pensamento além de qualquer limite real que
encontremos pela frente.
113
"O princípio do progresso, nesta história, é a atividade ideal, pressuposta
como ilimitável." (SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus,
III, p. 399; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 205).
114
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 631; SCHE-
LLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 428.
115
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 400-410,
631; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 206-216, 428.
I 116
Podemos entender isso como uma re-elaboração do esquecimento platô-
nico, e "nessa medida, a filosofia não é para o Eu outra coisa que anamnese,
lembrança do que fez e padeceu em seu ser geral (em seu ser
I 117
pré-individual)" (SCHELLING. Zur Gescbicbte der neueren Pbilosopbie, X,
p. 95).
"... o ato pelo qual é posta toda limitação não chega ele mesmo à
consciência por ser condição de toda consciência" (SCHELLING. System
des transcendentalen Idealismus, III, p. 409; SCHELLING. Sistema do
idealismo transcendental, p. 214-215; v. também 302, 502). Uma impressão
a afecção externa causaria, quando muito, uma limitação em si, mas não
para o Eu, a categoria de causa é só reificada.
118
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 437;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 240.
119
Esse momento é segundo, mas "certamente não segundo o tempo,
porque no Eu é simultâneo tudo o que representamos sucessiva-
mente, mas segundo o modo" (SCHELLING. System des transcendentalen
Idealismus, III, p. 406; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental,
p. 212).
120
Ver, por exemplo, SCHELLING. Pbilosopbiscbe Untersucbungen iiber
das ll7esen der menscblicben Freibeit und die damit zusammenbãnge
Gegenstãnde, VII, p. 399.
147
121
KANT. Kritik der reinen Vemwift, ·A, p. 51; B, p. 75. REFERÊNCIAS
122
"... um sistema que busca a origem das coisas em uma atividade do

espírito, uma atividade, ao mesmo tempo ideal e real, teria que ser o
mais perfeito realismo justamente porque é o mais perfeito idealismo." ARJSTOTLE. Physics, Books I-IV. Cambridge/Massachusetts: Harvard
(SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 428; University Press, 1969.
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 231). Ver também
SCHELLING. System des transcendentalen ldealismus, III, p. 438, 457, FICHTE, J. G. Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre. In: Fichtes
502; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 241, 259, 302. Werke. Immanuel H. Fichte (Org.). Berlin: Walter de Gruyter, 1971.
123
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 432-433;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 236. Este Eu inteli- FICHTE, J. G. Grundlage der gesamten Wissenschafts!ehre als
gente produtor tem também seu precedente na inteligência intuitiva que Handschrift für seine Zuh6re1; I/2. In: FICHTE. Gesamtausgabe der
aparece no § 76 da Crítica de! juicio que Schelling tanto elogiou Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Lauth, R., Fuchs, E.;
(SCHELLING. Vom !eh als Prinzip der Philosopbie oder über das
Unbedingte im menschlicben Wissen, I/2, p. 175).
Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1962ss.
124
São as que utiliza Fichte também na constituição do objeto em: FICHTE. FICHTE, J. G. Vorlesungen über die Bestimmung des Geleh1ten, I/3.
Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre ais Handschrift für seine
In: FICHTE. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der
Zuhorer, § 4. As de qualidade são as primeiras, as de quantidade aparecem
em seu terceiro princípio. As de modalidade, Schelling as coloca na Wissenschaften. Lauth, R.; Fuchs, E.; Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart:
terceira época, a da reflexão. Fromann-Holzboog, 1962ss.
125
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 481;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 282.
FICHTE, ]. G. Grundlage des Naturrechts, I/3. In: FICHTE.
126
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 409; Gesamtausgabe derBayerischen Akademie der Wissenschajten. Lauth,
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 215. R.; Fuchs, E.; Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1962ss.
127
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 481-482,
484; SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 282-283, 285.
FICHTE, ]. G. Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre I/4. In:
128
Em todo este entorno, fala de inteligência absoluta (SCHELLING. System FICHTE. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der
des transcendentalen Idealismus, III, p. 409; SCHELLING. Sistema do Wissenschaften. Lauth, R.; Fuchs, E.; Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart:
idealismo transcendental, p. 215); ainda afirma que toda inteligência já Fromann-Holzboog, 1962ss.
está no âmbito da finitude: "A limitação originária, que temos em comum
com todos os seres racionais, consiste em que somos finitos em geral. Em FICHTE, ]. G. Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehm 1/4. In:
virtude dela, não nos separamos de outros seres racionais, mas da infini- FICHTE. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der
tude [a razão é a ponte entre a finitude e a infinitude]. Mas, toda limitação Wissenschaften. Lauth, R.; Fuchs, E. und Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart:
é necessariamente determinada [segunda limitação]. .. " (SCHELLING.
System des transcendentalenldealismus, III, p. 409; SCHELLING. Sistema Fromann-Holzboog, 1962ss.
do idealismo transcendental, p. 215). Teremos, portanto, que distinguir FICHTE,]. G. Vorlesungen über Logik undMetaphysik II/4. In: FICHTE.
entre dois tipos de absoluto; a inteligência absoluta é assim, porque abrange
toda a realidade sem tempo, embora como capa ou elemento necessário Gesamtausgabe der Bayeriscben Akademie der Wissenschaften. Lauth,
de toda inteligência. Mas, mesmo essa capa ou elemento de eternidade se R.; Fuchs, E.; Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1962ss.
encontra já na finitude, porque surge a causa da primeira limitação (tanto
a real como a ideal ou sensação). No entanto, o termo "inteligência FICHTE,]. G. Briefe, ill/1; ill/2; ill/3. In: FICHTE. Gesamtausgabe der
absoluta" aponta já a razão especulativa da seguinte etapa, a da filosofia Bayeriscben Akademie der Wissenscbajten. Lauth, R.; Fuchs, E.;
da identidade, e está em linha com o atributo divino do pensamento na Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1962ss.
filosofia de Espinosa.
129
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 485; FICHTE,]. G. Die Wissenscbaftslebre nova metbodo, IV/2. In: FICHTE.
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 285. "O tempo [. . .], Gesamtausgabe derBayeriscben Akademie der Wissenschaften. Lauth,
em si e para si ou originariamente, sinaliza o mero limite." (SCHELLING. R.; Fuchs, E.; Gliwitzky, H. (Org.). Stuttgart: Fromann-Holzboog, 1962ss.
System des transcendentalen Idealismus, III, p. 487 e também 502-504;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 288 e também FICHTE,]. G. Wissenschaftslehre nova methodo. Hamburg: Meiner,
302-304). 1994.
130
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, III, p. 495;
SCHELLING. Sistema do idealismo transcendental, p. 295. FICHTE-STIJDIEN, Amsterdã: Rodopi, Band 16, 1999, p. 167-190.

148 149
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151
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fllO~OfiA DA ll~tRDADt

152
LUIS FERNANDO CARDO NA SUÁREZ

TcODICtiA t O ~cNTIDO DA
" I

CRIA~AO NA McTAfi~ICA
~CHClliNGUIANA Dt 1~O~

Depois de examinar, de um modo intensivo, a realidade e

a efetividade do mal, Schelling, ao final de suas Pesquisas
filosóficas sobre a essência da liberdade humana e os assuntos
com ela relacionados (Freiheitsschrift) de 1809, aborda, de
uma maneira radical, o que pode ser denominado como o
problema supremo de toda pesquisa sobre o dispositivo onto-
lógico da liberdade humana e sua relação com a11ãtuí-eza da
vontade divina,! a saber, o problema fundamental de toda
tentativa racional de teodicéia: 2 frente à realidade do mal,
como pode Deus justificar-se? Essa pergunta clássica adquire
em Schelling uma determinação claramente metafísica, pois,
se a realidade e possibilidade do mal dependem, em seu
fundamento, da revelação divina, toda pesquisa que pretenda
justificar Deus deve assumir a dificuldade de demonstrar que
é possível conciliar o fato de que Deus, querendo sua
própria auto-revelação quis, com a mesma santidade e
suprema perfeição que há nele, também o mal. Isso implica
demonstrar como Deus se comporta como ser moral em
relação ao mal. 3
Para poder enfrentar esses problemas, a metafísica
schellinguiana do mal pretende mostrar, ao mesmo tempo,
que a revelação é um ato livre e, por isso, consciente da
vontade divina, e que o mal é um elemento necessário para a
plena realização final do referido ato. Mas isso não implica
que estejamos autorizados a culpar Deus pela presença real
do mal no mundo, pois, fazê-lo, conduziria necessariamente
a desconhecer o dispositi':'_Q interno do mal e seu sentido moral ?<
~.:.::..:::..=.::::::_--- ---------- ··-··-
 no conjunto <:!_~lJc=yela,_ç_?._o.___c!~-Q_e;_l!§._e da criação de um mundo
estruturado moralmente. Entretanto, para justificar Deus a todo
custo, tampouco nos é permitido escamotear ou neutralizar
racionalmente a experiência que muitas vezes temos de ações
e fatos em nossa vida cotidiana, que não revelam finalidade
alguma ou sentido possível. Em suas pesquisas de 1809,
Schelling não foge das enormes dificuldades que a realidade
do mal oferece à convicção moral do ~rente,jmas sim as
assume radicalmente com a sinceridade da incerteza de sua
\t fé 4 e a agudeza de seu olhar metafísico, que nunca cessou de
r'J.l. .Y interrogar o criador e o seu mundo criado, pois, como diria
J. \<··\'/~ Heidegger, Schelling compreendeu muito bem que o perguntar
,,, .~~ 'v radical é a autêntica devoção do pensar. 5//Essa devoção é o
lY >:\ componente crítico que acompanha as afirmações schellin-
v./·· guianas em torno do sentido último da criação divina;
\/
•' afirmações que reconhecem o limite interno da razão
--······---
•r/', ,~ pois expressam muito bem que as respostas à pergunta sobre
\ ~P ~,:,· o sentido do ;mundo em sua totalidad~ são sempre um assunto
<///'v de fé-(' · -
;õ ~"-'\-·'.., Em seu célebre tratacio de 1791, Sobre o fracasso de todas
'? ~ as tentativas filosóficas em teodicéia, Kant caracteriza os três
caminhos fundamentais que a razão pode seguir, para defender
a suprema sabedoria do criador do mundo frente à acusação
formulada contra ele, a partir da evidência de que há fatos
no mundo que não são adequados a fim algum. Para
empreender semelhante justificação, é necessário que: ou
se demonstre que aquilo que no mundo julgamos como
inadequado a todo fim não o é; ou, no caso de assim ser, que
se prove que isso não deve ser considerado como um
factum, mas como uma simples conseqüência inevitável da
natureza das coisas; ou finalmente que, se se assume como
um factum, não é por causa do supremo criador de todas as
coisas, mas só dos seres do mundo aos que se deve imputar
algo, isto é, os homens. 6
Mas, ao chegar neste ponto, a argumentação racional colide
frontalmente contra a afirmação dogmática que sustenta ter
sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus, e que,
portanto, nele já se encontra a participação da vontade divina
e da perfeição infinita de suas obras. Nesse sentido, ao
pretender justificar Deus dessa maneira, com esses mesmos
156
argumentos, se põe em dúvida, de forma implícita, a perfeição
e a bondade da auto-revelação divina, pois não se pode
exonerar o criador de todas as coisas para culpar agora, de
uma maneira abstrata, ~àl suprema e perfeita criação. Argu- -;•.- j
~-----------------------
mentar dessa maneira é tão absurdo quanto sustentar que
alguém é um magnífico pintor, mas que pinta péssimos quadros.
A via que o pensamento crítico abre aqui é precisamente
o caminho sincero de assumir o problema da evidência, no
mundo, de uma série de fatos e ações que não manifestam
fim algum, sem pretender com isso encontrar um argumento
racional absoluto que, defendendo a sabedoria suprema do
criador do mundo, declare como infundadas, de um modo
imediato e sem investigação, todas as dúvidas que foram
suscitadas contra ela. Ao contrário, a pesquisa r~sic::mal_<:!o
sentido da auto-revelªÇã() de Deus exige admitir as objeções
---humana,
·---------..: e---razê::.las-_~?I!!P.i."~c=nsíveis -átravés de seu estuêio proruiídQ;
mas, para isso, é necessário não perder nunca de vista o limite
interno de nossa faculdade de julgar, pois é necessário ser
onisciente para reconhecer, em um mundo dado (tal como se
dá a conhecer no campo próprio de nossa experiência), uma
perfeição da qual se possa dizer com inteira certeza que não
é possível, de nenhuma maneira, outra maior na criação e no
governo moral do mundo. 7 De acordo com essa perspectiva
crítica, as tentativas racionais de fundar uma teodicéia que
justifique Deus de um modo absoluto são consideradas como
excessivas e pretensiosas, pois não levam em conta os limites
próprios da razão humana e desconhecem a natureza das
afirmações sobre a revelação divina e a criação do mundo. A
pergunta sobre o sentido da auto-revelação de Deus no mundo,
que é o problema fundamental que está na base dos argu-
mentos esgrimidos por toda tentativa de teodicéia, é, em
primeiro lugar, uma pergunta de fé e, como tal, não pode
encontrar uma respoStã-ãbsõiútã -ancorada em uma plena
certeza racional. Toda pergunta que se refere ao crente é sempre
um interrogante aberto à sua fé e, por isso, pressupõea incerteza
que caracteriza o ato de acreditar. Quando, na argumentação
metafísica, desconhece-se essa característica, cai-se facilmente
em um proceder dogmático que debilita nossa comp~eE!nS~Q
do mundo e daqueles fenômenos carentes:apârentemente,
de algum sentido, que nos são apresentados como preocupantes
em nossa experiência do mundo em sua totalidade. Como -~ ":b:G:.;·/
0 :;,J,·di'; •• --i .
157 .J' ·''-" Jc~
 compreender a presença desses fenômenos em um mundo
estruturado, desde seu início, pela vontade divina, é o
problema que pretendemos elucidar aqui, seguindo, para isso,
os resultados metodológicos e conceituais da concepção de
mundo QY(éltansicht) construída por Schelling em seu texto
de 1809<;0
(' Para Schelling, não é possível culpar Deus pelo mal no
mundo, pois o fundamento, como princípio de possibilidade
do mal, deve n~~~~i~fP:e_!?..!_e obrar para que o amor de Deus
possa manifestar-se. 9 Na -revelação final da criação, a série
de males encontra seu sentido final na história do mundo da
criação, experimentada como destino e providência. Mas, já
que ainda não se chegou a essa meta final, essa história está
determinada por uma liberdade finita que inclui, necessaria-
mente,~ seu fun<;!~E.:.er:to, pois essa liberdade pode
realizar, efetivamente, uma inversão da ordem tnteirajdo ser;
mas, ao mesmo tempo, essa liberdade especificamente humana
para fora, sem escolha alguma, motivado só por sua própria
Gesinnz!ng. 14 O homem é o único ser da criação no qual a
paTavra, por enquanto secreta na natureza, é plenamente
pronunciada, 15 quer dizer, o espírito que sai da obscuridade
descobre, por um lado, o conflito da natureza contra si
mesma, e com isso descobre também, por outro lado, a
possibilidade do mal para a liberdade do homem mesmo.
Mas, a essência humana é també.Ql o único lugar onde Deus
pode devir Deus, no qual 4:. formà) desae sempre oculta na
natureza, se desenvolve no hbmeÍn, tendendo à unidade e à
totalidade de um sistema de referências vivas de natureza e
espírito. Para Schelling, o homem é mediador (Mittler) e
salvador (Erl6se1J, porque através de seu ser livre e espiritual
é capaz de reconhecer a finalidade interna da natureza e, com
isso, também pode~judar a Deus\a que se una consigo mesmo, 16
aceitando as diferentes e variààas formas da natureza , que , j
muitas vezes, se apresentam como contrárias a qualquer q /L~~)

.. •' 1

está também fundada em Deus.
Tendo em conta tal situação paradoxal da liberda'de
humana, Schelling assume, ao final de seu Freiheitsschrift, o
problema de por que o perfeito, isto é, a plena encarnação
de Deus, e análogo a essa a do homem, não foi alcançada já
no começo, mas só é conseguida em um processo através do
mal. 10 A resposta a esse problema é, para Schelling, bastante
y (\clara: "... porque Deus é uma vida e não só um ser. E toda
_, -J w'· vida tem um destino e está submetida ao sofrimento e ao
..,.J ~.,,·· devir." 11 Deus mesmo está eternamente em devir, do contrário
} \ '1. não poderia ser; quer dizer, o processo teog_?nü::o ainda não
'- acabou. ----,----·~--~--~
O homem, com sua liberdade finita e sua implicação no
mal, está unido de um modo necessário e imutável ao destino
finalidade última. A história é aquele campo no qual o f.f.Y .
fundamento da natureza com sua permanente solicitação ao cí·· a
mal contínua agindo, e no qual o homem, por sua liberdade C<.J)""o:-z~ /7.--
finita, deve realizar, a cada vez, de novo, no instante da ação /:Y·,\~1 .· --
\ ,,:; ç p
concreta, sua decisão originária transcendental.
Nessa história, Deus mesmo submeteu-se à dor e ao devir,
pois "sem o conceito de um Deus que sofre humanamente,
comum a todos os mistérios e religiões espirituais da
Antigüidade, toda história permaneceria incompreensível" .17
Precisamente, na criação como auto-revelação de sua vontade
divina, Deus quis devir homem, para se submeter ao devir e
à dor, revelando-se assim ao mundo e, de um modo pleno,
ao homem; mas, com essa decisão de revelar-se, coloca-se
em andamento o processo de uma liberdade de alto risco . I, ), L,_
que corresponde a seu próprio se~eessênCiã~põiS,-éoffio'}i-··
"'j ,,..,, ,, ',,

. , de Deus, porque ele provém do fundamento de Deus e tem, foi notado antes pelo idealismo de corte fichtíano, o ser se
},:; ,'')_:;:-'ao mesmo tempo, uma raiz independente-de Deus na natureza. faz sensível só no devir. 18 A meta final da criação se caracteriza
d ' ' o' '".:r''')O homem possui uma liberdade de risco até para si mesmo,
12
agora pelos seguintes elementos estruturais: atualização
"\v/ ~,/~-1, 1 mas deve aceitá-la para proporcionar ao bem e ao amor um perfeita de Deus, expulsão do mal ao estado de não-ser,
t
V' , v :; ··~ pleno domínio, pois só assim Deus pode alcançar sua plena domínio pleno do espírito e do amor. 19
..;.r"J,/ ~,;-·~ atualização final. Em virtude de seu lugar intermediário no
,, / O amor como intenção fundamental do ser, que Schelling
:. Q" " cosmos, o homem pode deixar obrar o fundamento em si e
Lt -...n entende sempre unido à liberdade como o princípio do
.-r "' deixar atua~_tall\o o bem como o mal em si, 13 pois o homem,
sentido da história, já é, desde os Aforismos para a introdução
r( /.'- , a partir da única) essência de sua natureza manifesta o bem
1
1tr" v ). i \_} à filosofia da natureza de 1806, aquele princípio que opõe
")

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l resistência à particularização e estimula a unidade e totalidade
das formas na criação. 26 11Nesse sentido, o amor é um princípio
,-/contrário ao mal, pois o fundamento, como a possibilidade
9
' ()'
(/
/ do mal, produz, com efeito, o processo de separação e a
"-· c ~:.- multiplicidade dos indivíduos. Mas, dado que o amor é também
_.y'/ 1 ------::> liberdade, ele evita a coerção e deixa que ~ada existenre
{ ----- ---------
busque, por si mesmo, seu próprio caminho, e o encontre
em si mesmo.)Nessa busca, está dada a possibilidade do extravio,
do pecado e' do mal, enquanto uma vontade particular e
singular tenta levar, com violência, sua diversidade criada a
outro indivíduo ou, inclusive, ao fundamento originário
( Urgrund) da natureza como totalidade. Esse ato de violência
é possível somente para a liberdade finita, que como um pôr
transcendental originariamente bom e mau, quer dizer, como
um abrir originário, é propriamente um fechar-se contra Deus
e contra a outra liberdade que pretende dominar. Mas o mal
é, ao mesmo tempo, o fundamento para o surgimento do amor
que reconhece a separação das forças, e, por isso, deixa, de
novo, ser e agir o fundamento, que em si mesmo não é o mal.
Por exemplo, no reconhecimento da necessidade da morte
como uma conseqüência· necessária do processo de separação
entre o bem e o mal, mostra-se a liberdade suprema da dicção
~ moral. O amor como o deixar ser e agir do lfundament<2j é a
meta mesma da história; 21 por isso, SchelliEg afirma que o
amor introduz uma condição ontológica, na qual Deus é tudo
em tudo (Alles in Allem).ZZ Esta formulação mística só pode
significar que cada forma da criação individual humana e
extra-humana se desenvolve livremente e de acordo com sua
própria determinação da totalidade e unidade de suas próprias
forças; e, simultaneamente, cada forma individual está inte-
i/
grada em um sistema de relações orgânicas, no qual tudo se
relaciona com tudo e é, também, limitado mutuamente, pois
"o segredo do amor é que une aqueles que poderiam ser cada
um para si e que, contudo, não o são, nem podem ser o um
sem o outro". 23
Assim, Schelling relativiza, no final da Freiheitsschrift, o
papel do mal universal e individual no processo pleno da
criação, ao considerá-lo como um mall~o~pmglmenteJ
e que participa, de um modo parasitário, no bem. Uma vez
chegado neste ponto, Schelling se distancia uma vez mais das
delimitações conceituais da teoria tradicional da privatio bani,
160
que serviram como suporte teórico das tentativas modernas
de construir uma teodicéia racional, 24 afirmando o ponto de
partida fundamental de sua metafísica do mal, a saber, a
positividade efetiva do mal no mundo. 25 A análise metafísica
empreendida aqui por Schelling já demonstrou que "o mal
não é nenhum ser, senão um não-ser (Unwesen), que só é
real em sua oposição, e não em si" .26 Segundo isto, o mal na
criação é um acontecimento condicionado peló-Í:empà:e, comõ
tal, deve ser exCluído e evacuado, no finãt~;-·criáÇão, pela
unidade da identidade absoluta. Para entender o sentido
dessa formulação, Schelling recorre, de novo, ao problema
inicial de suas pesquisas sobre a essência da liberdade
humana, quer dizer, o problema do panteísmoY Mediante a \' .
distinção entre fundament~--~~<';!:!fi;;J~Q.fi~.' 28 Schelling acredita
haver recünCl.Tíadõ"a-teoriâ-filosófica da imanência das coisas
em Deus com a experiência universal da liberdade humana. 29
Para Schelling, a crença na liberdade pessoal do homem e na
personalidade moral de Deus estão unidas estruturalmente à
possibilidade de realizar, em sua totalidade, uma concepção
científica do mundo. E, na medida em que, nesta visão, a
razão se reconhece a si mesma, deve ser possível nela conci-
liação real entre as exigências do espírito e as do coração, as
do sentimento moral e as do mais estrito entendimento. 30 Este
sentimento (Gefühl) é o entusiasmo na ação moral de um
indivíduo determinada unicamente pela idéia da unidade e
da totalidade, já que só o que é um "pode ser o princípio de
toda arte ou ciência com caráter gerador e construtivo" _31
O sistema completo da Freiheitsschrift está desenvolvido
estruturalmente a partir de três componentes: em primeiro
lugar, o processo na Lconsciênci~mediante o qual o homem ./(
se torna [pessoalj em segundo lugar, a estrutura lógico-onto-
lógica de umLequilíbrio dinâmico das forças constitutivas do
real_jpelo qual este processo se forma dialeticamente na cons-
ciência humana; e, finalmente, em terceiro lugar, o uso que
Schelling faz da Lestrutura fundamental do setj da distinção
entre fundamento e existência, para determinar a essência da
liberdade humana, isto é, a essência do ato originário do
homem no começo da históriaY Esses processos dialéticos
concernem estruturalmente à essência ou raison d'être da
liberdade humana. Mas Schelling diferencia claramente entre
a possibilidade e a realidade da liberdade humana; de acordo
161
 com essa diferença a realidade ou efetividade do ato originário
do homem no começo da história é sempre uma decisão
livre. 33
Quando se pensa no sentido do ato originário do homem,
parece que aqui se afirma uma contradição, pois, por um lado,
este ato é livre, já que se encontra fora de toda relação causal;
mas, por outro lado, este ato só pode ser explicado em sua
essência pela estrutura fundamental de todo ser, que, como
tal, é também, ao mesmo tempo, uma estrutura causal. O
processo progressivo da natureza é interpretado como o
fundamento desse ato, e, ao mesmo tempo, o processo do
devir pessoa de Deus na história é pensado como conse-
qüência ou ação objetiva desse ato. Sem estar plenamente
consciente disso, Schelling se encontra aqui ante um dilema
clássico, que atravessa tanto a teoria filosófica do ato origi-
nário do primeiro Adão como a doutrina idealista da liberdade
e o projeto moderno da teodicéia racional: se o ato originário
do homem está realmente fora de toda relação causal, o
argumento da Freiheitsschrift não tem, então, nenhum valor.
Mas, se esse argumento é aceito como correto, o ato originário
do homem já não está fora da relação causal, mas é compreen-
dido agora como um membro necessário da conexão entre o
\ antropodicéia, tal como fica indicado já no título do famoso ensaio de
'-.......- fundamento e suas conseqüências.
Esse dilema conduz Schelling a desenvolver filosoficamente
sua doutrina da predestinação transcendental. Nesse dilema,
cai também a doutrina schellinguiana da distinção entre o
mal universal e a realização individual do mal no mundo e
na história; por isso, faz-se necessário que o problema
clássico da filosofia frente ao mal seja vinculado à problemática
ontológica da criação como expressão da auto-revelação
da vontade divina, já que, só dessa perspectiva, pode-se
compreender o caráter temporal e parasitário do mal e, por
sua vez, permite-se anunciar, sem_~:mbigüidade m~tpsJ.ológica,
o reino pleno do amor como a intenção e sentido último da
criação divina. Por isso, pode-se afirmar, agora, que a
pesquisa schellinguiana da positividade efetiva do mal no
mundo, no homem e na história, não cai em um fatalismo
radical de dimensões panteístas, ou em uma espécie renovada
de dogmatismo teológico que busque, a todo custo, justificar,
abstratamente, Deus, culpando, para isso, o homem pela
presença do mal no mundo; pois sua análise ontológica da
162
origem do mal está vinculada, estruturalmente, à sua
doutrina soteriológica da história e da lJberdade, que afirma
que na criação se expressa a unidade absoluta de Deus em
seu amor.
[Tradução de Graciela Ines Ravetti de Gomez]
NOTAS
1
Cf. SCHELLING. Pbilosophische Untersuchungen über das l!'lesen der
menschliche Freiheit und die damit zusammenhãngenden Gegenstãnde,
em: Schellings Werke. Nach der Originalausgabe (K. F. A. Schelling) in
neuer Anordnung hrsg. von M. Schroter (unverãnderter Nachdruck des
1927 ff. Erschienenen Münchener Jubilãumsdruckes). München, 1958. Band
VII, p. 394. Será citado, como é norma internacional, com a seguinte
abreviatura: Freiheitsscbrift, indicando-se a página.
O que comumente se entende sob o nome de teodicéia é a defesa da
causa de Deus, acusado ou questionado pela objeção do mal. Mas no
fundo, e embora não se diga de um modo explícito, constitui também uma
Leibniz. LEIBNIZ. Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de
l'homme et /'origine du mal, [s.n.p.].
3 SCHELLING. Freiheitsschrift, p. 394.
(i) seguindo Kant neste ponto, deve-se ter em conta aqui que a fé é realmente
uma forma de ter, por verdadeiro (Fürwahrhalten), que se caracteriza por
ser subjetivamente suficiente e, por sua vez, objetivamente insuficiente.
KANT. Kritik der reinen Vemunft, p. 689.
HIEDEGGER. Die Frage na eh der Technik, p. 40.
6 KANT. Über das Misslingen a/lerpbi/osopbischen Versuche in der Tbeodizee,
p. 105.
7
KANT. Über das Misslingen allerphilosophischen Versuche in der Theodizee,
p. 106.
8
Em suas pesquisas sobre a essência da liberdade humana, Schelling afirma,
com toda clareza, que o problema da determinação da natureza própria da
liberdade finita, que é dada ao homem, exige a relação de tal conceito
com "a totalidade de uma concepção científica do mundo (wissenschaftliche
Weltansicht)". SCHELLING. Freiheitsschrift, p. 336.
9 Neste sentido, o ma/um mora/e ou o pecado é um ato livre, uma culpa.
10
SCHELLING. Freibeitsschrift, p. 403.
11
SCHELLING. Freiheitsschrift, p. 403. A este Deus mesmo se tem submetido
livremente, para poder tornar-se pessoal, pois, do contrário, não teria
163
 conseguido separar a luz do mundo das trevas. Conforme a ontologia 22 SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 405.
schellinguiana, o ser se torna sensível só no devir. No ser puro, não há 23 SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 408.
devir livre, pois ele está sempre colocado como eternidade, mas a realização 2·1 OSTERREICH. Das gelehrte Absolute. Metaphysik und Rhetorik bei Kant,
mediante um contrário é necessariamente um devir. VERGAUEN. Absolute
Fichte und Schelling, p. 152-171.
zmd endlicbe Freibeit. Schellings Lehre von Schõpfung und Fali, p. 181-182.
25 CARDONA. La teoría schellingniana de la inversión de los principias: un
12
Rudiger Safranski caracterizou essa situação com a expressão "o drama
aporte a la teodicea, p. 353-378.
interno da liberdade humana". SAFRANSKI. Das Bõse oder das Drama der
26 SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 409.
Freiheit. p. 66.
27 Há que se ter em conta aqui que, na Freibeitsscbrift, a criação recebe uma
13
Para Schelling, "o animal nunca pode sair da unidade, enquanto que o
homem pode desatar quando quer o eterno vínculo de forças. Por isso, diz dupla determinação; é um ato livre de Deus; este ato não é uma simples
Franz von Baader com toda justiça, que seria desejável que a corrupção do eleição, senão uma decisão da vontade divina. Mas, ao mesmo tempo, a
homem só chegasse até a animalidade, mas que, infelizmente, o homem criação é também, em sua execução, um processo no qual Deus, como
só pode estar por baixo ou por cima do animal". SCHELLING. Freibeitsschrift, vida e personalidade, realiza-se na consciência humana como o topo
p. 373. supremo da criação.
28 "A filosofia da natureza de nosso tempo estabeleceu, pela primeira vez, na
14
Esse termo, próprio da reflexão moral kantiana e, em seu conjunto, do
idealismo alemão, é denominado aqui por Schelling religiosidade: "É uma ciência, a distinção entre o ser, o que existe, e o ser como mero funda-
consciência escrupulosa (Gewissenhaftigkeit), quer dizer, um atuar segundo mento da existência." SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 357. Essa distinção é
o que se sabe, sem contradizer a luz do conhecimento." SCHELLING. o eixo temático e metodológico a partir de onde Schelling aborda seu
Freibeitsscbrift, p. 392. desmonte problemático das tentativas modernas de teodicéia racional.
15 HERMANNI. Die letzte Entlastung. Vollendung und Scheitern des
SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 364.
16
abendlãndischen Theodizeeprojektes in Schellings Philosophie, p. 99-113.
Se, para Schelling, a natureza é o primeiro ou antigo testamento, pois as 29 "Todos os seres da natureza não têm mais ser que no fundamento ou
coisas naturais se concentram nela, fora do centro, e, portanto, sob a lei, o
anseio originário, que ainda não alcançou a unidade com o entendimento,
homem é o começo da nova aliança, pois através dele, enquanto mediado,
e que, portanto, em relação a Deus, são meros seres periféricos. Só o
Deus assume a natureza e a torna sua. A finalidade universal das causas só
homem é em Deus e, exatamente por isso, ser-em-Deus é capaz de
é compreensível a partir do.homem mesmo. Esta idéia já havia sido antes
\Y liberdade. Só ele é um ser central e por isso deve permanecer no centro."
formulada, em 1806, em Aforismos à introdução da filosofia da natureza.
SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 410-411.
SCHELLING. Apborismen zur Einleitung in die Naturphilosopbie, p. 174.
,r 3o SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 413.
I"·
Esta ~~-<?,.~!2t.r2R.Q12~ica assume os argumentos fundamentais esgrimidos
31 SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 414.
por Schelling em sua famosa polêmica contra Friedrich Schlegel e Jacobi.
32 Para Heidegger, na Freibeitsscbrift, elucida-se a essência da liberdade
KNATZ. Schellings Freiheitsschrift und ihren Quellen, p. 471.
17
SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 403. humana como aquilo essenciante que faz com que o homem chegue a ser
18
MARQUET. Fichte y e! modelo dei ser, p. 32. o que é; essa essência não é outra coisa que a liberdade, mas a liberdade
19 Esse amor, que é o supremo, é chamado também por Schelling a suprema aqui não consiste simplesmente em uma propriedade do ser do ente do
homem, como se se tratasse de algo que se possui de um modo material,
indiferença ou Ungrund; este não-fundamento é amor e vida como
mas que, pelo contrário, o homem é possuído pela liberdade, pois a liber-
existência pessoal. No princípio da Freibeitsscbrift, Schelling afirma que o
dade o contém, na medida em que ele só chega a ser o que é através
querer é "o ser originário". SCHELLING. Freibeitsscbrift, p. 351. Agora,
dela, que é o realmente essenciante nele. HEIDEGGER. Scbellings
essa formulação é enriquecida a partir dos resultados da teoria da criação
Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit (1809), p. 197.
como auto-revelação pessoal de Deus; esse querer originário recebe uma
33 HENNIGFELD. F. W.j. Schellings über das Wesen der menscblicben Freiheit,
nova determinação no contexto da metafísica do amor. EHRHARDT. Das
Ende der Offenbarung, p. 229. p. 94.
20
"Se cada um não fosse um todo, senão uma parte do todo, não seria
possível então o amor." SCHELLING. Aphorismen zur Einleitung ind die
NatU1pbilosopbie, p. 174.
21
A meta final da história consiste em que "aquilo que não podia ser para si,
seja precisamente para si ao ser elevado das trevas, como desde um funda-
mento independente de Deus, ao existir. Daí a necessidade do nascimento
e da morte. Deus entrega as idéias que estavam dentro d'Ele, sem vida
autônoma, à mesmidade e ao não-ser, para que, sendo chamadas do não-ser
à vida, sejam de novo n'Ele enquanto existentes independentes". SCHELLING.
Freibeitsscbrift, p. 404.

164 165

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166 167
THERESA CALVET DE MAGALHÃES

DA IDeNTIDADe A~~OlUTA AO DeU~

. c ~c~~OAl
VIVO
Mc~A~ O~~c~VAÇOc~ rA~A lc~ O
f~ciHciT~~CH~IfT [180~] De ~CHclliNG

Em 1801, em A diferença entre os sistemas filosóficos de

Fichte e Schelling [Differenz des Fichte'schen und
Schelling'schen Systems der Philosophie in Beziehung auf
Reinhold's Beitrãge zur leichtern Uebersicht des Zustands der
Philosophie beim Anfang des 19. ]ahrhunde11s, lstes Heft],
Hegel, ainda próximo de Schelling, opõe o sistema de Schelling
ao de Fichte e, ao explicar em que sentido ele aceita o sistema
de Schelling, caracteriza o Absoluto como sendo "a identidade
da identidade e da não-identidade" (p. 168), já deixando
adivinhar a nova dialética que o separa de Schelling. A
Darstellung meines Systems der Philosophie [Apresentação de
meu Sistema da Filosofia] (1801) parte da Identidade absoluta
do subjetivo e do objetivo que contém tudo o que é, ou seja,
coloca-se deliberadamente no Absoluto que não é nem
subjetivo, nem objetivo, e não elabora, portanto, nem uma
filosofia subjetiva, nem uma filosofia objetiva. Nesse escrito
em que aparece como um historiador do idealismo alemão e
não como um discípulo de Schelling, Hegel insiste que
Schelling e Fichte não devem ser confundidos, o que de
certo modo permite a Schelling compreender-se melhor e o
conduz a admitir (o que o seu Prefácio à Darstellung não
fazia) que essa diferença exclui toda conciliação. 1 Não devemos,
no entanto, exagerar aqui a influência de Hegel, sob o efeito
de uma ilusão retrospectiva (segundo Tilliette, a relação entre
Schelling e Hegel em lena é "um capítulo obscuro da história
do idéalismo alemão"). 2 ·
 O tom de Hegel muda, em 1807, quando ele se refere ao
formalismo típico da filosofia mais recente, no seu Prefácio3
à Phanomenologíe des Geistes: 4
( ... ) Trata-se, antes, de um formalismo de uma só cor, que
apenas atinge a diferença do conteúdo, e o faz somente
porque esse conteúdo já está preparado e já é conhecido.
Ainda mais, tal formalismo considera essa unitonalidade e
universalidade abstrata como sendo o absoluto; assegura que
a insatisfação a seu respeito é uma incapacidade de galgar o
ponto de vista absoluto e de manter-se firme nele. Se, outrora,
a possibilidade vazia de representar-se alguma coisa de uma
outra maneira era suficiente para refutar uma representação, e
[se] essa mesma simples possibilidade, o pensamento universal,
possuía igualmente todo o valor positivo do conhecer efetivo,
agora, igualmente, vemos atribuir todo o valor à idéia universal
nessa forma da inefetividade, e valer como tipo de consideração
especulativa a dissolução do que é diferenciado e determinado,
ou, antes, o ato não desenvolvido mais adiante nem se auto-
justificando em si mesmo de precipitar no abismo do vazio o
que é diferenciado e determinado. Considerar um ser-aí
[Dasein] qualquer tal-como é no absoluto não consiste aqui em
outra coisa senão em dizer que, decerto, se falou dele agora
como de um certo algo, no absoluto, o A=A, embora [no abso-
luto] não há nada disso, pois aí tudo é Uno. Opor esse saber
único - de que, no absoluto, tudo é igual - ao conhecimento
diferenciador e pleno, ou buscando e exigindo a plenitude
[Eifüllung] ou oferecer seu absoluto como se fosse a noite
na qual, segundo se costuma dizer, todas as vacas são pretas
- é a ingenuidade do vazio no conhecimento. O formalismo,
que a filosofia dos tempos modernos acusa e despreza, e que
nasce novamente nela, não desaparecerá da ciência, mesmo
que sua insuficiência seja conhecida e sentida, até que o
conhecer da efetividade absoluta não tenha elucidado perfei-
tamente sua natureza.
(. .. ) Caso se indague por uma "via régia" para a ciência,
nenhuma mais cômoda poderia ser indicada que a de aban-
donar-se ao bom senso, e, para progredir ademais também
com o tempo e com a filosofia, de ler recensões de escritos
filosóficos, ou até mesmo os prefácios e primeiros parágrafos
desses mesmos escritos, pois estes fornecem os princípios
universais dos quais depende tudo e aqueles [os prefácios],
além da informação histórica, acrescentam o ajuizamento, o
170
qual, justamente por ser ajuizamento, paira acima do que é
ajuizado. Esta via comum se faz em trajes caseiros, mas é em
trajes pontificais que o sentimento sublime do eterno, [do]
sagrado, [do] infinito avança -uma via que já é, ela própria,
o ser imediato no centro, a genialidade de profundas idéias
originais e de elevados raios de pensamento. Como, porém,
tal profundidade ainda não revela a fonte da essência, então
estes rastros luminosos não são ainda o empíreo. Pensamentos
verdadeiros e intelecção científica só se alcançam no trabalho
do conceito. 5
Na sua carta a Schelling de 1 de maio de 1807, Hegel
tentou evitar o confronto direto ao dizer que as críticas
contundentes que ele tinha feito ao formalismo no seu Prefácio
à Fenomenologia do Espírito não se dirigiam a Schelling:
Não acharás que fui demasiado severo contra a banalidade e
vulgaridade que faz tanto mal ao utilizar particularmente tuas
formas de pensamento e que rebaixa tua ciência ao nível de
um puro formalismo. -Aliás, nem preciso dizer que se aprovas
algumas páginas do conjunto, isso tem mais valor para mim do
que se outros estão satisfeitos oudescontentes com o conjunto. 6
Foi, no entanto, como pura agressão que Schelling recebeu
a referência ao seu pensamento quando leu esse Prefácio, e
ele expressou seu ressentimento na última carta que escreveu
a Hegel, a 2 de novembro de 1807, e que termina com um
ponto de dissentimento: "Confesso que até agora não consigo
entender o que queres dizer quando opões o conceito à
intuição." 7
Schelling havia sido chamado a Munique, em 1806, para
ocupar um cargo como membro da Academia das Ciências
[Akademie der Wissenschaften], então presidida por Jacobi,
e foi nomeado pouco tempo depois, em maio de 1808, Secre-
tário Geral [Generalsekretãr] da recém-fundada Academia das
Artes Figurativas [Akademie der Bildenden Künste], interrom-
I pendo, assim, suas atividades didáticas propriamente ditas
(só voltaria a lecionar em 1820). Estimulado pelas conversas
l com Franz von Baader, o titã do idealismo alemão segundo
Hans Urs von Balthasar, 8 e pela recente publicação do ensaio
de Friedrich Schlegel Über die Sprache und díe Weisheit der
Indier[Sobre a Língua e a Sabedoria dos IndianoiJ, 9 mas querendo
171
também responder às críticas de Hegel ao seu pensamento
no Prefácio à Fenomenologia, Schelling escreve e publica,
em 1809, as Investigações filosóficas sobre a essência da
liberdade humana e os assuntos com ela relacionados
[Philosophische Untersuchungen überdas Wesen dermensslichen
Freiheit und die damit zuzammenhangenden Gegenstande]
como último ensaio dos seus Escritos Filosóficos I [Philosophische
Schriften, Erste1· BandJ, um volume que reunia alguns dos
seus primeiros escritos mais importantes e já conhecidos com
textos mais recentes. 10
Deveríamos considerar esse ensaio como uma "obra de
circunstância" ou, segundo Tilliette, como um "escrito polêmico,
engajado na apologia e justificação do sistema", 11 e como uma
das duas obras menos originais de Schelling (a outra seria,
diz Marquet, o Sistema do Idealismo Transcendental, 12 publi-
cado em 1800)? 13 Deveríamos, ainda, aceitar o que Hegel
disse sobre esse ensaio de Schelling nas suas Lições de História
da Filosofia [ Vorlesungen über die Geschichte der Philosopbíef:
publicadas após sua morte: "Schelling, na verdade, publi~ou
depois um tratado separado sobre a liberdade, profundamente
especulativo; mas este [tratado] permanece isolado e inde-
pendente, (. .. ); ora, em filosofia, nada isolado pode se
desenvolver"? 14 Ou, ao contrário, deveríamos dizer, como
Jean-François Courtine e Emmanuel Martineau, que trata-se
- e foi exatamente o que Heidegger disse em 1936 - do
"ponto mais alto da metafísica do idealismo alemão"? 15
A leitura extremamente atenta desse ensaio de Schelling,
apresentada por Heidegger no semestre do verão de 1936 na
Universidade de Freiburg, não pode ser hoje simplesmente
ignorada. Ela é, ainda, e talvez não apenas para os leitores
franceses de Schelling (e de Heidegger), um dos melhores
acessos às Investigações filosóficas sobre a essência da liber-
dade humana. Heidegger delimitou perfeitamente a questão 16
e a sua interpretação do Freiheitsschrift contribuiu para propor
uma outra imagem da filosofia de Schelling:
Não é Deus que é aqui rebaixado ao nível do homem, mas ao
contrário, o homem é experimentado no que o conduz e o
expõe além de si mesmo; ele é experimentado segundo essas
necessidades, graças às quais ele é determinado como o que é
inteiramente outro (. .. ). O homem: esse Outro que ele tem de
ser enquanto tal, para que Deus possa revelar-se em geral
graças a ele, se ele se revela. 17
;;::;
172
Podemos, é claro, ao preferir reconduzir todas as proposições
de Schelling ao ser humano, permanecer no nível do que
poderia ser chamado uma "antropologia teológica". Mas isso
significaria, no fundo, nada dizer a respeito do nó desse
ensaio, que tenta antes, insiste Maesschalck, "reconduzir tudo
a Deus" (um Deus vivo e livre, um Deus em devir), "porque o
próprio homem é apenas um momento privilegiado da auto-
revelação divina". O homem não é, para Schelling, medida
de todas as coisas: "Deus é a medida de todas as coisas. A
~o é r~y~_laç~~?~_l2-~1]S. "
18
A publicação, em 1808, do ensaio de Schlegel Sobre a
língua e a sabedoria dos indianos, no qual Schelling encontra,
mais uma vez, "a equação panteísmo = niilismo e a afirmação
da imoralidade final de todo sistema não dualista", é consi-
derada como a causa próxima de seu ensaio sobre a liberdade:
segundo Marquet, essa publicação foi o "acontecimento exterior"
que "precipitou a cristalização" do Freiheitsschrift. 19 Na carta de
9 de maio de 1809 que escreveu a K. ]. H. Windischmann e que
acompanhava o envio do volume em que foram publicadas
essas Investigações sobre a liberdade, Schelling esboça rapida-
mente o propósito de seu novo ensaio:
Sei que não pensa como Fr. Schlegel, de quem tentei transformar
em polêmica aberta a polêmica escondida. O seu conceito
grosseiro e extremamente geral de panteísmo não lhe permite
conceber a possibilidade de um sistema em que são mantidos,
juntamente com a imanência das coisas em Deus, a liberdade,
a vida, a individualidade e igualmente o bem e o mal. Ele só
conhece os três sistemas de seu livro indiano [emanacionismo,
dualismo, panteísmo], mas o verdadeiro reside precisamente
em pleno meio entre esses três, e tem nele os elementos orga-
nicamente entrelaçados de cada um (. .. ). 20
Ao mostrar que as acusações tradicionalmente formuladas
contra o panteísmo podem ser reduzidas a seu pressuposto
comum- uma imagem errónea da razão e de Deus- Schelling
pode evidenciar no seu ensaio uma outra imagem de Deus,
que privilegia sua vida. É esse então o tema de minha primeira
observação.
173
 I
()
\
I - DEUS É VIDA, DEUS É PERSONALIDADE: A
NOÇÃO DE UM DEUS EM DEVIR
O panteísmo, no seu sentido mais geral, afirma si.m.Ples-
mente a imanência de todas as coisas em Deus, e parece
difu:ifmente refutável. Como alguma coisa poderia ser fora
de Deus? A contradição surge, assim, em uma acepção mais
determinada do panteísmo.
Alguns acusam o panteísmo de ser uma confusão de todas
as coisas com Deus. Mas o sistema de Espinosa, considerado
como o representante clássico dessa doutrina, resiste a esta
acusação.Toda a construção de Espinosa, insiste aqui
Schelling, repousa numa distinção nítida entre o que é em si
[in sich], e só se concebe por si mesmo [aus sich selbst] - a
substância absoluta, absolutamente inteligível (Deus) e o
que é necessariamente em outro, e só se concebe também
por esse outro - o finito. 21 A própria fórmula exagerada,
impressionante, de que "toda coisa é um deus modificado"
não deixa subsistir nenhuma dúvida quanto a essa distinção
entre antecedente e conseqüente: "Um deus modificado, isto
é, derivado, não é deus no sentido próprio e eminente do
termo; em virtude deste único aditamento [derivado], a coisa
regressa à posição que é a sua e pela qual se encontra
eternamente separada de Deus." 22
Haveria ainda uma terceira acusação: o problema agora
\ não é propriamente a identificação de Deus com todas as
1 um sistema racional [Vernunftsystem]. Schelling recorda aqui
. ,:.--' . v coisa~ o~ _com. cada coisa, ~as a ~upressão ou anulação de
\,' \ ".;·· toda md1v1duahdade nesse slstema.-3 Mas no que diz respeito
\ 1' .' ' propósito "uma mútua compenetração do realismo e do
(jji \J o' a esta nova determinação do panteísmo, também é possível
\'
J' d e1en
c d er aqui Espinosa:
\{\'
Porque se Espinosa nada reconhece fora (praeter) da substância
a não ser as meras afecções dela, que ele considera como as
coisas, este conceito [de coisa] é, então, puramente negativo e
não expressa nada de essencial ou de positivo. Ele serve apenas
para determinar de antemão a relação das coisas com Deus, e
não o que podem ser estas coisas consideradas por si mesmas.
Contudo, não se pode concluir, da insuficiência desta determi-
nação, que as coisas não contêm absolutamente nada de posi-
tivo (mesmo que seja sempre de uma maneira derivada). 24
174
Apenas uma objeção parece ainda possível: não é a negação
da individualidade, mas a da liberdade que constitui o caráter
específico do panteísmo. 2j Esta última objeção já não visa
apenas Espinosa, mas todos os sistemas pré-críticos: "(. .. ) até
a descoberta do Idealismo, o autêntico conceito de liberdade
faltou em todos os sistemas modernos, tanto no de Leibniz
como no de Espinosa (. .. )." 26 Não é, portanto, a imanência
das coisas em Deus o verdadeiro problema. O erro do sistema
de Espinosa, conclui Schelling:
não reside, de modo algum, no fato de ele colocar as coisas
em Deus, mas no fato de elas serem coisas; reside no conceito
abstrato dos seres do mundo [Weltwesen] e, na verdade, da
própria substância infinita que, para ele, é também por sua vez
uma coisa. Por isso, os seus argumentos contra a liberdade são \~
totalmente determirlistas e de modo algum panteístas. Ele também
trata a vontade como uma coisa, e demonstra então, muito
naturalmente, que ela tem de ser determinada, em todo atuar,
por uma outra coisa que, por sua vez, está determinada por
uma outra, e assim sucessivamente até ao infinito. Daí resulta a
falta de vida de seu sistema, a aridez da forma, a indigência
dos conceitos e expressões, a implacável rigidez das determi-
nações (. .. ) e daí também, conseqüentemente, sua visão
mecanicista da natureza. 27
Foi necessário primeiro reavivar e separar da abstração a
doutrina do ser-compreendido das coisas em Deus, base de
todo o sistema, para que ela pudesse se tornar o princípio de
que os seus primeiros escritos tinham expressamente como
idealismo", e que o conceito fundamental de Espinosa,
"espiritualizado pelo princípio do idealismo (e modificado
num ponto essencial)" alcançou uma base viva, "em um modo
superior de considerar a natureza ( ... ), de que resultou a
filosofia da natureza", que foi sempre considerada por ele,
no tocante ao todo da filosofia, apenas como uma parte - a
sua parte real - , "que só seria capaz de se elevar ao autêntico
sistema racional quando complementada pela parte ideal,
onde domina a liberdade". 28 E ele resume o resultado a que
tinha chegado:
175
 Afirmou-se que nela (na liberdade) reside o último ato potenciador
[potenzierende Akt] pelo qual a totalidade da natureza se trans-
figura em sensação, em inteligência e, finalmente, em vontade.
Em suprema e última instância não há nenhum outro ser senão
o querer [Es gibt (. .. ) gar kein Sein als Wollen]. Querer é o ser
originário [ Ursein] e somente a ele convêm todos os predicados
deste último: ausência de fundamento, eternidade, indepen-
dência em relação ao tempo, auto-afirmação. Toda a filosofia
esforça-se apenas por encontrar esta suprema expressão.
(. .. ) A idéia de fazer, por sua vez, da liberdade o Uno e o
Todo da filosofia introduziu na esfera da liberdade o espírito
humano em geral (. .. ), e provocou em todas as partes da
ciência uma mudança brusca mais forte do que a de qualquer
revolução anterior. 29
O erro escondido em todas as acusações que foram feitas
ao panteísmo provém, na verdade, de uma má compreensão
do princípio de identidade. Esse princípio, diz Schelling, "não
exprime uma unidade que, girando no círculo da igualdade
[Kreis der Einerleiheit], seria não-progressiva, e, por isso
mesmo, insensível e privada de vida. A unidade deste princípio
é imediatamente criadora". 30 O_Qtjncípio de identidade deve
ser ~~~~n~l_<::l_() .como ..:Llma .l1J1iga,c:l~...P.roCJi!_liY.i:-;.1ãdofã:erê
exprimé-,assim, uma relação viva e não o esgotamento de toda
diferença no Kreis der Einerleiheit. 31 Já estaria aqui subjacente
a idéia de auto-revelação:
Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos. (. .. ). Seja qual
for o modo como se representa a consecução dos seres a partir
de Deus, esta nunca pode ser de tipo mecânico, uma simples
efetivação ou uma produção na qual o produzido nada· seria
por si mesmo; tampouco pode ser uma emanação na qual o
emanado permaneceria o mesmo que a fonte de onde emana,
ou seja, não possuiria nada de próprio ou de autônomo. A
consecução das coisas a partir de Deus é uma auto-revelação
de Deus. Mas Deus só pode revelar-se a si mesmo no que é
semelhante a ele, em seres livres agindo por si mesmos, e não
tendo nenhum outro fundamento senão Deus, mas que são,
assim como Deus é. Ele fala, e eles são [Er spricbt, und sie sind da]Y
Q_~eísm~-- corretamente compreendido - não é,
portanto, ~..:?-eg~ç-ªo ..9_ª-.J!!:l.t.2.!!.C?..J:lli.~do finito. Mas isso pressupõe~
que Deus seja considerado como vida, como personalidade:
"A imanência em Deus e a liberdade se contradizem tão pouco,
176
que precisamente só o livre, na medida em que é livre, é em
Deus, e o não-livre, na medida em que é não-livre, é necessa-
riamente fora de Deus." 33 A liberdade divina se exprime em
todas as coisas: "Se há alguma coisa e não antes o nada,3-í é
porque o princípio eterno é vida, eterna expressão de si mesmo,
eterno devir-objetivo." 3;
Podemos abrir agora o "Prefácio" e os primeiros parágrafos
da longa "Introdução" do Freiheitsschrift. Exteriormente pelo
menos, esse ensaio se propõe uma tarefa única: trata-se de
completar a Darstellung meines Systems der Philosophie,
expondo com toda determinidade o conceito da parte ideal
do sistema, anunciada desde 1801.
Não se trata de produzir uma filosofia do espírito ao lado
de uma filosofia da natureza, mas de pôr em evidência uma
outra oposição- "a oposição superior [h6here], ou melhor, a
oposição verdadeira [eigentliche]" - , a oposição entre neces-
sidade e liberdade com a qual, somente, pode-se começar o
estudo do "ponto central mais íntimo da filosofia". 36 Na sua
"Introdução", Schelling afirma que essas Investigações visam
não apenas elaborar um conceito correto da liberdade humana
o conceito real e vivo da liberdade é o que a apreende
como faculdade do bem e do mal [ Venn6gen des Guten und
des B6senP7 mas elaborar esse conceito em sua conexão
com o sistema (isto é, com a "totalidade de uma visão científica
do mundo"). Esses dois aspectos da investigação coincidem,
ou seja, são absolutamente concomitantes e não podem ser
separados. 38
II- O DINAMISMO DA REVELAÇÃO -A
MOBILIDADE METAFÍSICA DA TOTALIDADE
É somente a partir dos princípios de uma verdadeira filosofia
da natureza que se pode desenvolver uma visão suscetível
de satisfazer inteiramente à tarefa que se propõe Schelling
nessas Investigações. 39 O próprio idealismo torna-se um sistema
vazio e abstrato quando não conserva na sua base um realismo
vivo. Deus não pode ser reduzido a uma mera "ordem moral
do mundo", mas deve ser considerado como uma unidade
viva de forças: "Deus é algo mais real (. .. ) e tem em si forças
177

de movimento totalmente diferentes e muito mais vivas do
que as que lhe são atribuídas pela desprezível sutileza dos
idealistas abstratos." 40 Antes mesmo de abordar o problema
do mal, temos de retomar aqui a distinção que Schelling já
havia estabelecido na sua primeira exposição científica da
filosofia da natureza (a Darstellung) 41 entre o ser [ Wesen] na
medida em que existe, e o ser na medida em que é mero
fundamento [Grund] da existência [Existenz]. 42 Essa distinção
é agora o ponto de partida da inteligência da revelação divina:
Já que não há nada anterior ou exterior a Deus, ele deve ter em
si mesmo o fundamento de sua existência. Todas as filosofias
dizem isso, mas elas falam deste fundamento como de um
puro conceito, sem o tornar qualquer coisa de real e de efetivo.
Este fundamento de sua existência, que Deus tem em si
mesmo, (. .. )é a natureza- em Deus; um ser [Wesen], é claro,
dele inseparável, mas, não obstante, distinto.43
Deus tem em si mesmo o fundamento de sua existência.
Esse fundamento não é um conceito abstrato de auto-funda-
mento, mas é o fundo real, a base, "o suporte da vida de
Deus, a condição de sua existência verdadeiramente pessoal". 44
O exemplo que Schelling escolhe para ilustrar a relação
entre Deus, na medida em que é fundamento de sua existência,
e Deus na medida em que existe (Deus considerado absolu-
tamente), é o da relação entre a gravidadeeâ-luz~~,,A~dade
preceae a luz como seu fundamento eterno e obscuro, que
não é, ele próprio, actu e que se retrai na noite à medida que
a luz (o existente) se propaga. A própria luz_llãº--f9!ll~
completo_o_se]Q_§.Ql.?__Q g_ual ~i:i!T encc;n:ada.-" 45 A revelação
diVJJía apóia-se, então, inteiramente no contraste do funda-
mento e do existente. 46
O fundamento não precede cronologicamente o existente,
e também não o precede em sentido ontológico ou metafísico:
( ... ), não se deve pensar essa precedência nem como uma prece-
dência temporal, nem como uma prioridade de essência. No
círculo de onde tudo devém, não há nenhuma contradição em
que aquilo pelo que o Uno é gerado seja, por sua vez, ele
próprio gerado por este último. Não há aqui nem um primeiro,
nem um último, porque tudo se pressupõe mutuamente,
nenhum é o outro e, no entanto, nenhum é sem o outroY
178
I I
Deus não pode ser colocado em um nexo causal: "'_,\,.I'- ·c
Deus tem, em si mesmo, o fundamento interno de sua existência,
que o precede na medida em que existe; mas, da mesma
maneira, Deus é por sua vez o Prius do fundamento, na medida
em que, como tal, o fundamento também não poderia ser se
Deus não existisse actu. 48
O fundamento é sempre fundamento de ou para a existência:
o fundamento deixa vir à luz, é a condição necessária da
existência pessoal, mas, tal como a gravidade "que se retrai
na noite", o fundamento "se retira, se subtrai, se ordena ao
jorramento da vida". 49 O fundo ou o que, em Deus, nunca
atinge a luz, fundamento eterno e obscuro, é como o "fundo
do abismo sem fundo", que não pode ser captado, mas é,
todavia, real, irredutível. O que, em Deus mesmo, não é Ele
mesmo, é "uma vontade ainda inacabada, 50 uma aspiração
eterna a se gerar a si mesma". 51 Schelling interpreta aqui o
Grund como desejo, "o desejo [Sehnsucht] que sente o Uno
eterno de se gerar a si mesmo", 52 e como sendo "apenas uma
vontade de revelação [Der Grund ist nu1· ein Willen zur
Offenbarung]"~a interpretação do fundamento implica
uma dupl\môbilidage: o fundamento é uma vontade de
revelação e-;--po.r-t-a:títo, de exteriorização, mas é também
desejo de si e vontade de interiorização (tendência a retornar
ao interior do ser). O fundamento obedece, assim, a duas
tendências: a saída de si e a contração em si. Mas o desejo do
fundo não permanece sem resposta. Deus é em si mesmo um
processo de personalização:
( ... ) em resposta ao desejo que, como fundamento ainda
obscuro, é a primeira emoção do existir divino [gõttlichen
Daseins], gera-se no próprio Deus uma representação reflexiva
interna pela qual, dado que ela não pode ter nenhum outro
objeto a não ser Deus, Deus mesmo se percebe a si mesmo em
uma imagem [Ebenbild]. É através desta representação que Deus,
considerado de modo absoluto, se realiza efetivamente pela
primeira vez, embora se realize apenas em si mesmo; está no
começo junto a Deus e é o próprio Deus gerado em Deus. Esta
representação é, ao mesmo tempo, o entendimento [der
Verstandl, a palavra desse desejo [no sentido em que se diz: a
chave do enigma], e o espírito eterno que, sentindo em si a
179
 palavra [o Verbo] e, simultaneamente, o desejo infinito, e movido
pelo amor que ele próprio é, expressa a palavra [profere o
Verbo], de tal maneira que é agora o entendimento, juntamente
com o desejo, que se torna uma vontade livremente criadora e
todo-poderosa e que dá forma [bildeil, na natureza inicialmente
privada de regra, como em seu elemento, aos instrumentos de
sua revelação. s<
A revelação aparece como uma aspiração da obscuridade
à luz. As coisas não são simplesmente imanentes, inertes em
Deus, mas justamente porque são distintas dele toto genere,
elas advêm e só podem devir no que, em Deus, não é Ele
mesmo. 55 O fundamento é aqui o meio ou o elemento graças
ao qual Deus age e vive enquanto vontade livremente criadora.
A criação é assim, propriamente, in-Formação [Ein-Bildung],
"uma transmutação interna ou uma transfiguração em luz
[Verklãrung] do princípio inicialmente obscuro":
Portanto, enquanto o entendimento, ou a luz posta na natureza
inicial, agita o desejo que tende a regressar em si mesmo e o
impele à cisão das forças (a abandonar a obscuridade), e faz
aparecer [hervorhebil; justamente nesta cisão, a unidade secreta
[verscblossene] do que está cindido - o raio de luz escondido
[den verborgnen Lichtblick] - , assim surge, então, pela primeira
vez, algo concebível e singular, e certamente não através de
uma representação exterior, mas através de uma verdadeira
in-Formação [Ein-Bildung], isso porque o que nasce se in-forma
na natureza [in die Natur bineingebildet wirdl, ou, mais correta-
mente, através de um despertar [Erweckung], uma vez que o
entendimento faz aparecer [hervorbebt] a unidade ou a Idea
escondida [verborgne] no fundamento cindido.5 6
h A.xJ::,y~~ç.ª-g_tJ?!.C?&~~~iyª pgr.qu.~.J2é!l1~ não ~- §_imp_l~mente
H ll!!.l-.s_erJginSei1z], mas é uma v~g_?,.1€i!L~~ben], e "toda vida tem
-e
um destino e estã sufeitâ àÕsofrimento ~-o-devir. Também
Deus se submeteu livremente a este destino desde o momento
em que, para se tornar pessoa [um persõnlich zu werden],
separou o mundo da luz do mundo das trevas" .57 Sem essa
idéia de devir, é impossível conceber positivamente o mal na
economia da revelação divina. 58 A questão do mal não está
ligada de modo geral e abstrato à finitude, ou seja, Schelling
nega que a finitude seja, por si mesma, o mal: "O mal não
provém da finitude em si, mas da finitude erigida em ser-si-
mesmo";59 o mal "não resulta do princípio da finitude por si,
180
mas do princípio obscuro ou selbstischen [ipséique, na tradução
francesa] quando ele é levado à intimidade com o centro". 60
O mal, esclarece aqui Maesschalck, "aparece na ordem reve-
lada como uma insurreição da vontade própria escondida no
fundo da natureza desde as origens, uma inversão da relação
entre o centro e a periferia" 61 ou, como disse Schelling, citando
aqui Baader, o mal aparece na ordem revelada como uma
"perversão positiva", uma "falsa unidade". 62 A auto-revelação
em Deus tem de ser considerada, escreve Schelling, "não como
um ato incondicionalmente arbitrário, mas como um ato
moralmente necessário, no qual o amor e a bondade superaram
[übeJwunden] a absoluta interioridade. Portanto, se Deus não
~. se tivesse revelado por causa do mal, é o mal que teria triun-
r fado sobre o bem e o amor" .63
No entendimento divino há um sistema, diz Schelling, mas
Deus ele mesmo não é um sistema. Deus é uma vida e é aqui
que se encontra, segundo ele, a única resposta possível à
questão da possibilidade do mal em relação a Deus:
Toda existência [Exístenz] exige uma condição para tornar-se
existência efetiva, isto é, existência pessoal. Sem uma tal
condição, também a existência de Deus não poderia ser
pessoal, mas Deus tem essa condição em si e não fora de si.
Ele não pode suprimir [aufheben] essa condição, pois teria então
de se suprimir a si mesmo; pode apenas dominá-la pelo amor
e subordiná-la a si, para sua glorificação. Em Deus, também
haveria um fundo de obscuridade, se ele não reduzisse a si
essa condição, se não se ligasse a ela para não formar com ela
nada mais que uma personalidade absoluta. Mas o homem
nunca tem a condição em seu poder, embora aspire a isso no
mal; ( ... ) por isso a sua personalidade e ipseidade nunca se
podem elevar a um ato perfeito. (. .. ). Por conseguinte, o que
procede simplesmente da condição ou do fundamento não
procede de Deus, embora seja necessário para a sua existência.
Mas também não se pode dizer que o mal provém do funda-
mento, ou que a vontade do fundamento é o seu autor. Pois o
mal só pode aparecer na vontade mais íntima do próprio coração,
e nunca se realiza sem um ato próprio. 64
A distinção entre o ser na medida em que existe e o ser na
medida em que é fundamento da existência permitiu a Schelling, \·~.
no seu Freiheitsschrift, não apenas assentar a personalidade 11
de Deus num fundo real (a natureza em Deus), mas também 1;
í
181
pôr o devir e, portanto, a vida em Deus, e estabelecer o
conceito e a possibilidade do mal. Mas a nocão de Grund o
fundamento <:!D. ..Q~_LI_s, foi maLçQ~naRra:pãrecra-n,ão
apenas" quei>eus criava ~ p~rt,i[_do §~l1_Jy~Sf6'_'ieil;mas· que
élê-erã-·gerádo por esse fundo. Na resposta às ~;rti~;-~ de
Es.clienmaye·r-~às s~ãs ]}ivestígdções, 65 Schelling tenta explicitar
sua doutrina e retoma o que já havia dito numa carta a Georgii,
escrita a 8 de julho de 1810: "Creio ter suficientemente
indicado que por fundamento [GrundJ não queria significar
causa [Ursache], denominando também o fundamento: fundações
[Fundament], embasamento [Unterlage], alicerces [Grundlage],
base [Basis]". 66 Eschenmayer não entendeu a sua doutrina, e a
desfigurou, porque ele desconhece o movimento que constitui
a auto-revelação de Deus, ou seja, "o desenvolvimento do
processo, o histórico, o genético", e não pode, portanto,
compreender a "dialética" _67 Este último termo surge apenas
uma vez, nessa carta, mas ele aparece pelo menos oito vezes
no Freiheitsschrift. 68 Na sua "Introdução" às Investigações
sobre a liberdade, Schelling tinha recomendado vivamente o
estudo básico da lógica aos que permanecem prisioneiros da
"imaturidade dialética" [dialektischer Unmündigkeit] e
c o metem, assim, o erro de confundir a identidade com a igualdade. 69
Quem representa Deus como uma identidade vazia, nunca
poderá compreender que tem de haver em Deus "um princípio
não-divino, sem-consciência, menor que Deus ele mesmo".
Em 1810, Schelling afirma que a prova da necessidade dessa
hipótese encontra-se na lei fundamental da oposição [Grundgesetz
des Gegensatzes]: "Sem oposição, não há vida (. .. ). Para se
manifestar, toda coisa necessita de alguma coisa que ela não
é, ela mesma, em sentido estrito." 70 Era o que ele já havia
dito nas suas Investigações sobre a liberdade: "Todo ser
(Wesen) só pode revelar-se em seu contrário (. .. ). Se não
existisse nenhuma disjunção [Ze11rennung] dos princípios, a
unidade não poderia provar seu pleno poder [so k6nnte díe
Einheit ihre Allmacht nicht erweisen]; se não houvesse
discórdia, o amor nunca se tomaria efetivo. "71 O fundamento,
diz ainda Schelling, "é apenas uma vontade de revelação, mas,
precisamente, para que esta venha a ser, ele deve necessariamente
suscitar a propriedade [EigenheiiJ e a oposição". 72 A "disjunção"
pode então ser considerada como o elemento em que se
182
desenvolve o ensaio de Schelling; ela é (escrevem Courtine e
Martineau), "o 'e' da expressão 'faculdade do bem e do mal"' .73
"Somente na personalidade há vida" e toda personalidade,
escreve Schelling,
repousa sobre um fundamento obscuro que, portanto, também
deve necessariamente ser fundamento do conhecimento. Mas é
somente o entendimento [ Verstandl que ressalta [herausbildet] e
eleva ao ato o que está escondido no fundamento e nele
contido simplesmente [potentialitet]. Isto só pode ocorrer graças à
cisão e, portanto, à ciência e à dialética, acerca das quais estamos
persuadidos que serão as únicas a fixar e a levar para sempre
ao conhecimento este sistema (. .. ). 74
Foi ao meditar uma "revelação mais antiga do que as ...
escritas: a natureza", e não em virtude de uma rigorosa n,'.,
exegese das Escrituras e da tradição, que Schelling desen-
volveu a revelação em um sistema coerente. Quando se retira
à filosofia o princípio dialético [dialektisches Prinzip], isto é,
"o entendimento que particulariza, mas que, justamente por
isso, ordena e configura organicamente", então, conclui Schelling,
"não lhe resta outra coisa senão procurar orientar-se histo-
ricamente, tomando a tradição(. ..) como fonte e pauta condutora". 75
NOTAS
1 A ruptura pública com Fichte só ocorre, em 1806, no escrito polêmico de
Schelling, Darlegung des wabrens Verbiiltnisses der Natt~~pbilosopbie zu
der verbessenter Ficbtescben Lebre [Exposição da verdadeira relação entre a
filosofia da natureza e a doutrina de Ficbte, revista e corrigida], popular-
mente conhecido como o "Anti-Fichte".
2 Cf. TILLIETIE. Scbelling. Une philosophie en devenir, p. 288. Ver também
LAUTH. "La position spéculative de Hegel dans son écrit 'Differenz des
Fichte'schen und Schelling'schen Systems der Philosophie' à la lumiere da
la Théorie de la Science", Arcbives de Pbilosopbie 46 (1983), p. 72.
3 Nessas cinqüenta páginas (escritas em janeiro de 1807, uma vez terminada
a redação da obra) consideradas como um pórtico real para o conjunto de
sua obra ou como uma grandiosa introdução ao Sistema da Ciência, que
Hegel projetava publicar na época e do qual a Fenomenologia do Espírito
seria justamente o primeiro volume - um projeto cuja realização deveria
prosseguir com a publicação do sistema da lógica entendida como filosofia
183
 especulativa e das duas outras partes da filosofia (as ciências da natureza e
do espírito), e que foi aparentemente abandonado a partir da 1ª edição da
Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) - , Hegel resume, nos
primeiros 16 parágrafos, o pensamento de seu tempo, o sentido desse
tempo (a emergência da filosofia como ciência ou sistema científico, como
saber efetivo e não apenas como amor da sabedoria) e se opõe tanto ao
formalismo como ao dualismo que marcam esse período; mais adiante,
nos últimos parágrafos, ele situa a razão de existir da ciência no auto-
. movimento do conceito.
• HEGEL. Phãnomenologie eles Geistes, v. 9.
HEGEL. Phãnomenologie eles Geistes, p. 17, 48.
6 HEGEL. Briefe von und an Hegel, p. 161-162.
7
SCHELLING. Briefe und Dokumente, p. 471.
8 21 Cf. SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 340.
BALTHASAR. Prometheus, Studien zur Geschichte eles deutschen Idealismus,
p. 240.
9 SCHLEGEL. Über die Sprache und die Weisheit der Indier (1808), p. 105-
440.
10
SCHElliNG. Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen
Freiheit und die damit zuzammenhãngenden Gegenstãnde, p. 399-511;
esse ensaio encontra-se no volume VII das Sãmtliche Werke [Obras
completas] de Schelling editadas por seu filho Karl Friedrich August
Schelling, e que foram publicadas entre 1856 e 1861 em Stuttgart e Augsburg
por]. G. Cotta (SCHELLING. Sãmtliche Werke, p. 333-416); tradução
francesa de Jean-François Courtine e Emmanuel Martineau. In: SCHELLING,
F. W. ]. Oeuvres métaphysiques (1805-1821), Paris: Gallimard, 1980, p.
115-196; tradução espanhola de Helena Cortês e Arturo Leyte: Investigaciones
filosóficas sobre la esencia de la libertad humana y los objectos con ella
relacionados. (Edição Bilíngüe). Barcelona: Anthropos; Madrid: Ministerio
de Educación y Ciencia, 1989.
11
TILLIEITE. Schelling. Une philosophie en devenir, p. 510.
12
SCHELLING. System eles transcendentalen Idealismus, p. 327-634.
13 MARQUET. Liberté et existence. Étude sur la formation de la philosophie de
Schelling, p. 414-415.
1
• HEGEL. Freundesausgabe, p. 682; citado em HEIDEGGER. Schellings
Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit(l809), p. 15.
15
Ver o "Prefácio" de ].-F. Courtine e E. Martineau. In: SCHELLING. Oeuvres
métaphysiques (1805-1821), p. 12. Para acentuar a importância do
Freiheitsschrift, eles colocam esse ensaio no centro do volume das obras de
Schelling que eles traduziram e comentaram. Mas eles também afirmam
que, no que diz respeito a esse período do pensamento schellinguiano, um
outro centro poderia e deveria ser realçado: a grande obra, inacabada e
sempre retomada, das Eras do Mundo [Die Weltalteil, que Manfred Schrõter
considerou como o "livro do destino" do idealismo alemão. Foi por razões
puramente materiais que eles foram obrigados a não incluir as Eras do
Mundo, nesta publicação francesa das obras metafísicas de Schelling, de
1805 a 1821.
16
Ver HEIDEGGER. Schellings Abhancllung über das Wesen der menschlíchen
Freiheit (1809), p. 73, 110.
184
17 HEIDEGGER. Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen
Freiheit (1809), p. 197-198.
18 MAESSCHALCK. Philosophie et révélation dans l'itinéraire de Schelling, p.
133.
19 MARQUET. Liberté et existence. Étude sur la formation de la philosophie de
Schelling, p. 414.
20 SCHELLING. Briefe und Dokumente, p. 604. Se no Freiheitsschrift, a tese
de que o panteísmo é a última (ou verdadeira) filosofia é sugerida apenas
indiretamente, nas Conferências de Stuttgart, em 1810, Schelling não
hesita quando evoca a consumação final e afirma: "então o panteísmo é
verdadeiro" (SCHELLING. Sãmtliche lVerke, v. VII, p. 484). Para Schelling,
em 1810, o emanacionismo é o passado da filosofia, o dualismo seu
presente, e o panteísmo seu futuro.
22 SCHELLING. Sãmtliche lVerke, v. VII, p. 341.
23 Cf. SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 343.
2 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 344.
•
25 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 345.
26 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 345.
27
SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 349.
28 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VIL p. 350. Toda a natureza, insiste
Schelling, "nos diz que de modo nenhum existe graças a uma mera neces-
sidade geométrica; nela não há uma pura e clara razão, mas personalidade
e espírito (. .. )" (SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 395.)
29 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 350-351.
30 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 345.
31 Cf. MAESSCHALCK. Philosophie et révélation dans l'itinéraire de Schelling,
p. 140.
32 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 346-347.
33 SCHELLING. Sãmtliche lVerke, v. VII, p. 347.
3 • Schelling debate-se com esse enigma, que o acompanhará ao longo da sua
obra, na conferência Über die Gottheiten von Samothrake [Sobre as
Divindades de Samotrácia), que ele proferiu em 12 de outubro de 1815,
na Academia das Ciências de Munique (SCHELLING. Sãmtliche Werke, v.
VIII. p. 345-369), e que já anuncia o desenvolvimento futuro do seu
pensamento, nomeadamente a necessidade de um novo ponto de partida
da filosofia e de uma compreensão renovadora da história do espírito
humano.
35 MAESSCHALCK. Philosophie et révélation dans l'itinéraire de Schelling, p.
141.
3 6 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 333.
37 SCHELLING. Sãmtliche Werke, v. VII, p. 352.
38 SCHELLING. Sãmtliche lVerke, v. VII, p. 336.
39 SCHELLING. Sãmtlicbe lVerke, v. VII, p. 357.
•o SCHELLING. Sãmtlicbe Werke, v. VII, p. 356.
41 A Darstellwzg meines Systems der Philosopbie foi publicada em 1801, na
revista Zeitschrift für spekulative Pbysik, fundada por Schelling em 1798,
para divulgar a nova filosofia da natureza; esta obra encontra-se no
185
 volume IV das Sãmtlicbe \Verke de Schelling (SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke,
V. IV, p. 106-212).
42
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. IV, p. 146, 163, 203-204.
43 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 357-358.
44
VETO. Le fondement selon Schelling. Une interprétation partielle, p. 395.
A palavra alemã Grund significa não apenas razão (ratio), ou princípio,
mas também fundamento, fundação, alicerce, base, e é neste último sentido
que ela é usada aqui por Schelling. Na sua resposta a Eschenmayer, que
lhe tinha escrito e enviado a 10 de outubro de 1810 uma carta com várias
críticas às suas Investigações sobre a liberdade, Schelling esclarece mais
uma vez que por Grund em Deus ele entende fundamento, fundação,
base, alicerce, condição de sua existência pessoal. (Essa carta de Eschenmayer,
seguida da resposta de Schelling, em abril de 1812, foi publicada no
primeiro número da nova revista que ele fundou, em 1813, a Allgemeine
Zeitscbrift von Deutscbe fiir Deutscbe, e encontra-se no volume VIII. das
-:>- Sãmtlicbe \Verke de Schelling, p. 137-194). ~ 65
45 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VU,"p-:- 358. Ver também SCHELLING.
Darstellung meines Systems der Pbilosopbie. In: Sãmtlicbe \Verke, v. IV,
p. 163.
46 "Este é o único dualismo legítimo", diz Schelling, "aquele que admite ao
mesmo tempo uma unidade" (SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 359).
No final de suas Investigações, Schelling pergunta para que serve a distinção
entre o ser, na medida em· que é fundamento, e o ser na medida em que
existe, e ele reconduz essa primeira distinção a um "ser[\Vesen] anterior
a todo fundo e a todo existente", designado como fundamento originário
[U1;grundl, ou melhor, como não-fundamento [Ungrund]. (SCHELLING.
Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 406).
·17 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 358.
•18 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 358.
·19 MAESSCHALCK. Pbilosopbie et révélation dans l'itinéraire de Scbelling, p. 143.
5o Ou seja, diz Schelling, "uma vontade na qual não há nenhum entendimento,
e que, por isso, não é uma vontade autônoma e perfeita" (SCHELLING.
Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 359).
51 MAESSCHALCK. Pbilosopbie et révélation dans l'itinéraire de Scbelling,
p. 143.
52 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 359, 395.
53 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 375. Ver aqui MARQUET. Liberté
et existence. Étude sur la formation de la philosophie de Schelling, p. 418.
5·1 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 360-361.
55 Cf. SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 358-359. O conceito de
imanência, na medida em que expressa uma compreensão inerte das
coisas em Deus, deve ser completamente abandonado: o único conceito
adequado ã natureza das coisas, afirma Schelling, é o conceito de devir
[der Begri.ff des \Verdens].
56 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 361-362.
57
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p 403.
58
Cf. MAESSCHALCK. Pbilosopbie et révélation dans l'itinéraire de Scbelling,
p. 143-150.
186
59 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 370.
60 SCHELLING. Sãmtlicbe \f7erke, v. VII, p. 372.
61
MAESSCHALCK. Pbilosopbie et révélation dans l'itinéraire de Scbelling,
p. 149.
62
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 366. Foi principalmente Franz von
Baader, no seu opúsculo de 1807, Über die Bebauptung, dass kein iibler
Gebraucb der Vernunft sein kann, recorda aqui Schelling, "quem pôs de
novo em relevo este único conceito correto do mal, segundo o qual este
se apóia em uma perversão positiva [positiven Verkebrbeit] ou inversão dos
princípios, e que o elucidou através de profundas analogias físicas, nomeada-
mente com a doença. Todas as outras explicações do mal deixam o enten-
dimento e a consciência moral insatisfeitos" (SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke,
v. VII, p. 366-367).
6
3 SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 402.
64
SCHELLING. Sãmtlicbe \f7erke, v. VII, p. 399.
Ver, mais acima, a nota 44.
66
Esta carta foi publicada no apêndice à edição crítica de Miklos Veto das
Conferências de Stuttgmt de 1810. SCHELLING. Stuttgmter Privatvorlesungen,
p. 234.
67
Cf. SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VIII, p. 177.
68
Cf. SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 342, 400, 401, 407, 414, 415.
69
Cf. SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 342.
70
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 435.
71
SCHELLING. Sãmtlicbe 1f7erke, v. VII, p. 373-374.
72
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 375.
7
3 SCHELLING. Oeuvres métapbysiques (1805-1821), p. 380.
74
SCHELLING. Sãmtlicbe 1f7erke, v. VII, p. 413-414.
75
SCHELLING. Sãmtlicbe \Verke, v. VII, p. 415.
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\\-J,>

188
H E N z E D A M

AQUt~TAO HlO ~t~ OU O~A~t~ t

~UA ~tAliDADt
O~~c~VA~Ót~ ~O~Rt O IDtAli~MO C~ÍTICO
De ~CHclliNG

Schelling (1775-1854) começa seu tratado Do Eu enquanto

princípio da filosofia ou do Incondicionado no saber humano,
de 1795, com as seguintes palavras: "Quem quiser saber alguma
coisa, quer ao mesmo tempo que seu saber tenha realidade.
Um saber sem realidade não é um saber." E, pergunta ele: "O
que se segue disso?" 1
É óbvio, diríamos logo ao jovem Schelling, que mal havia
completado vinte anos, é óbvio que todo mundo quer que
seu saber tenha realidade, que seja mesmo um saber. Quem,
por exemplo, não souber se, ao deixar a casa de manhã, tinha
calçado os sapatos, poderá verificá-lo através de um olhar.
Podemos nos contentar com uma prova empírica da realidade.
Nesse caso mais banal, assim como em casos científicos mais
complexos, podemos simplesmente verificar o que é o caso,
como se diz. Dos mais diversos casos podemos abstrair critérios
gerais de validade, assim como desenvolver teorias de verificação
ou ainda de falsificação para todos os casos imagináveis.
Em cada caso, no entanto, a realidade do saber permaneceria
na dependência de uma outra autoridade, isto é, do testemunho
dos sentidos, como Kant dizia. Ora, embora não devêssemos
menosprezar esse testemunho, temos que admitir ao mesmo
tempo que uma prova empírica da realidade continuará sendo
tão casual quanto sua autoridade verificadora e testemunhadora.
Conseqüentemente, uma certeza condicionada pelos sentidos
nunca proporcionará ao saber uma realidade não-condicionada
ou uma certeza absoluta. Schelling deduz que ou o nosso
saber será constantemente levado de um ponto para outro,
de um saber condicionado para outro, também condicionado,
ou então deverá existir um "último ponto da realidade do
qual tudo depende", um ponto, "do qual partem toda a existência
e toda a forma do nosso saber." No cosmo inteiro do nosso
saber, esse ponto, esse "algo" deverá ser o "fundamento último
de toda realidade" e, ao mesmo tempo, o "fundamento real
de todo o nosso saber". 2 Sem ele, o cosmo do nosso saber
seria apenas um caos.
Inicialmente, o jovem Schelling realiza sua busca pelo
Incondicionado no saber humano ainda totalmente, com
exceção dos seus estudos de Platão, no espírito da Doutrina
da ciência e sua terminologia. Fichte havia definido e
fundamentado seu idealismo crítico através da idéia de "o funda-
mento último da realidade de todo saber" poder ser apenas
aquele no qual o saber e a realidade do saber coincidem,
isto é, são idênticos. Na Doutrina da ciência, redigida apenas
um ano antes do texto de Schelling, isso se lê da seguinte
maneira: "O fundamento ideal e o fundamento real são uma
e a mesma coisa dentro do conceito da efetividade, portanto,
em todo lugar, pois o ·fundamento real apenas ocorre no
conceito da efetividade." 3 A essência do Eu absoluto para
Fichte consiste justamente no fato de, para o próprio Eu, "a
auto-posição e o ser serem uma e a mesma coisa: "Nele, o
fundamento real e o fundamento ideal são unidos.""'
As formulações de Schelling são semelhantes. O "funda-
mento último de toda realidade" seria algo "que apenas
poderá ser pensado através de si mesmo, a saber, através do
seu ser" e que "este só poderá ser pensado na medida em
que é." Ou seja: esse fundamento último seria aquilo em que
o "princípio do ser" e o princípio do "pensar" coincidiriam, 5
em que o ser do pensar e o pensar do ser seriam indistingüi-
velmente a mesma coisa. 6 Ora, se o Incondicionado em todo
saber, o ponto do qual tudo depende, não deve ser pensado,
de novo, como algo condicionado, por conseguinte, como
objeto, então ele deve ser pensado como sujeito. Ou seja, ele
deve ser pensado como algo que tem que ter o fundamento
do seu ser apenas em si mesmo. Esse Incondicionado procurado
não pode ser condicionado por algo que lhe é exterior.
192
Portanto, ele só pode ser aquilo que ele é na medida em que
gera a si mesmo, se constitui a si mesmo, isto é, só é condicio-
nado por si mesmo - se é que podemos falar aqui de algo
condicionado.
Sendo sujeito, esse Incondicionado deve ser pensado como
algo ativo. Em sua auto-referência, ele mesmo deve se gerar
como aquilo que é, isto é, ser algo que é apenas o produto
da sua própria atividade. Fichte o chamava o ato-ação absoluto,
para expressar esse aspecto duplo, a saber, de ser, ao mesmo
tempo, ação e ato. O que se quer dizer com isso é que essa
identidade só poderá ser pensada como identificação, ou seja,
como atividade ou como processo. Esse processo, que, uma
vez que não é temporal, pode ser chamado de transcendental,
esse processo de identificação - do pensar e do ser está
descrito na Doutrina da ciência, de Fichte.
Para Fichte, contudo, surgiram dois problemas que na
opinião de Hegel - levaram ao fracasso da Doutrina da
ciência, de Fichte. Por um lado, Fichte tinha que admitir um
impulso no Eu a ser constituído por ele mesmo, impulso este
que só poderia vir de fora, mas que, exatamente por seu
caráter incondicional, não tem como vir de fora. Por isso,
Hegel o chamava um impulso vazio, e tentou resolver esse
problema através da teoria de um contra-impulso imanente. 7
Por outro lado, Fichte tinha que constatar um círculo, do qual
o saber, se é para ser um saber determinado, não tem como
sair e pelo qual ele é jogado para a linha de fuga de uma
saudade infinita. A saudade pelo Absoluto desempenhará um
papel importante no romantismo alemão. O círculo consiste
na idéia de o Eu sempre ter que pôr uma realidade absoluta
fora de si, da qual ele sabe ao mesmo tempo que é apenas
uma realidade posta por ele. Assim, o Eu se limita e se deter-
mina a si mesmo, sendo ao mesmo tempo jogado fora de si
por causa dessa limitação. 8 Segundo Fichte, "o espírito finito
deve pôr necessariamente algo absoluto fora de si, uma coisa
em-si", na qual ele "deve reconhecer" ao mesmo tempo que
ele "existe apenas para ele" .9 Embora se supere aqui o
dogmatismo que Fichte criticou talvez injustamente- em
Kant, acontece que, em cada determinação, escapa ao Eu
absoluto, cada vez de novo, aquela realidade incondicionada,
com a qual o sujeito se identifica, para ter que ser posto cada
vez de novo.
193
 Inicialmente, Schelling concorda com Fichte que somente
o Eu, o sujeito, e não um objeto, é o Absoluto que contém
"todo o ser, toda a realidade" .10 O não-Eu oposto a ele, entre-
tanto, não teria "simplesmente nenbuma realidade, nem uma
realidade pensável". Pois ele é posto apenas em oposição ao
Eu, "apenas como mera negação, como nada absoluto" . 11
Conseqüentemente, para o idealismo crítico, ou, como
Schelling diz, para o "criticismo" em sua forma "acabada", não
há "objetos inteligíveis", nem é possível tê-los. Apenas no Eu
absoluto, que nunca poderá ser objeto de si mesmo, o
principium essendi e o pricipium cognoscendi coincidem. Por
isso, o Eu absoluto, assim como sua intuição, poderia ser
chamado, segundo Schelling, de "intelectual". O Eu empírico,
no entanto, poderia ser chamado de "inteligível", exatamente
porque teria que ser considerado como objeto. 12
Não temos como provar, mas supomos que aqui já está se
delineando um distanciamento de Schelling da versão fichtiana
do idealismo crítico. Pois, como se poderia pensar um Eu
empírico, isto é, um Eu que fosse ao mesmo tempo objeto, se
para cada Eu em geral, na medida em que é apenas um Eu, o
fundamento real e o fundamento ideal, o principium essendi
e o principium cognoscendi necessariamente coincidem? Além
disso, poderíamos supor que a identificação do fundamento
real e do fundamento ideal é refletida em Fichte apenas
unilateralmente; a saber, quando este parte do Eu absoluto
enquanto fundamento de toda realidade, ao qual se opõe,
no plano ideal, um fundamento de sua própria cognoscibilidade
naquilo que não é Eu. Isso significaria então que Fichte talvez
tivesse transferido à filosofia teórica, talvez de maneira
injustificável, ou pelo menos precipitada, a aproximação da
ratio essendi e da ratio cognoscendi na filosofia prática de
Kant - portanto, a relação de liberdade e lei moral, designada
por aqueles termos. 13 Mas essa é outra questão. Schelling,
contudo, pode ter se questionado se a identificação apresentada
por Fichte não teria que ser pensada também pelo lado inverso,
a saber, de tal modo que o âmbito dos próprios objetos deva
ser pensado de maneira que o objeto inteligível, um Eu empírico,
possa ser concebido como fundamento de conhecimento da
egoidade ou do Absoluto. Nesse caso, porém, o objeto - ou
a natureza - também deveria ser pensado de modo diferente,
a saber, como sujeito, ou pelo menos como sujeito em potencial.
194
Para os ouvintes e os leitores resistentes à sua Doutrina da
ciência, Fichte, para justificar sua identificação do fundamento
real e do fundamento ideal no conceito da efetividade,
observou numa nota de rodapé: "Seria mais fácil levar a
maioria das pessoas a se considerar como um torrão de lava
na lua do que como um Eu." 14 Certamente o ser humano
também é objeto, mas, na medida em que ele é objeto, ele
simplesmente não é um Eu, não é inteligível, ou, nas palavras
de Fichte: "Nós não devemos querer ver sem olhos; mas
também não afirmar que é o olho que vê." 15
Nos seus Aforismos para a introdução à filosofia da natureza,
de 1806, Schelling se refere exatamente a essa frase de Fichte,
como se fosse para defender a objetividade inteligível do olho
contra seu menosprezo como objeto puro ou morto: o olho,
enquanto órgão visual, seria, "em todos os pontos do seu
ser, um ser e um ver e, apesar disso, apenas um." 16 Em sua
relação mútua, o ver e o ser não se comportariam "como fatores
que se reduzissem a zero". E, mesmo assim, esse órgão não
seria "somente um ser, abstraído de todo ver", pois, nesse
caso, ele "seria somente matéria". O olho tampouco seria
"totalmente um ser e totalmente um ver". "Dentro do ser também
está um ver e dentro do ver está [também] um ser." 17
Com sua filosofia da natureza, Schelling deu um passo
decisivo além do idealismo fichtiano. 18 Talvez, na terminologia
do fundamento real e do fundamento ideal, pudéssemos
formulá-lo da seguinte maneira: ambos são idênticos, mas o
processo de sua identificação, a identificação genética, por
assim dizer, (oure-identificação transcendental) do real e do
ideal aconteceria, em todo saber, pelos dois lados. A filosofia
transcendental descreve o processo constitutivo do saber através
da identificação do fundamento real e do fundamento ideal
no sujeito do conhecimento, ou então, como processo de
conhecimento. A filosofia da natureza descreve o processo
da identificação através da identificação do fundamento ideal
e do fundamento real no objeto do conhecimento, ou seja,
como processo natural. 19 O Absoluto continua sendo a iden-
tidade ou a indiferença absoluta do real e do ideal, sendo
que essa identidade deve ser concebível e comprovável como
tal a partir dos dois lados. Pois, apenas dessa maneira a
essência do ser é o Absoluto ou aquilo que, no fundamento
último do saber, é idêntico com o próprio ser.
195
 Quem quiser saber algo, quer que seu saber tenha
realidade. Mas, poderíamos perguntar nos termos da fase
final da filosofia da natureza, de Schelling, em que consiste a
realidade do saber? Numa delimitação polêmica contra Fichte,
poderíamos dizer que somente com a filosofia é alcançada
aquela esfera na qual a essência da realidade não apenas
pode ser concebida como um saber do ser (ou enquanto
modalidade da subjetividade), mas como essência do ser do
saber (ou enquanto modalidade da objetividade). Também a
filosofia da natureza, de Schelling, procede de maneira cons-
trutiva, isto é, pergunta pelas condições a priori das
possibilidades de seu objeto. Mas, em contraste à filosofia
transcendental, o objeto da construção não é apenas o ser
ideal, mas também o ser real. Para tornar o ser real, ou a
natureza concebível, a priori, Schelling desenvolverá sua
doutrina das potências. Nesse sentido, poderíamos dizer,
mesmo que de maneira muito resumida, que a doutrina das
potências é a construção a priori do objeto inteligível, isto é,
da natureza enquanto sujeito.
Mas, enquanto construção apriorística, a filosofia da
natureza apenas responde à pergunta "como uma natureza
fora de nós é possível", quer dizer, como ela deve ser pensada
a priori. 20 Poderíamos dizer também que Schelling procura
responder à questão "como o saber pode abranger toda a
realidade e como toda a realidade pode ser compreendida
no saber". Pois não deve ser apenas possível pensar o ser
absoluto ou a essência de toda realidade, mas também
conhecê-lo ou construí-lo. Aquela esfera na qual o pensar e
o ser são, em princípio, idênticos, também pode e deve ser
cognoscível a priori. Mas, do fato de algo poder ser construído
a priori, ainda não segue - nem no sentido kantiano, nem
no posterior de Schelling que esse algo realmente é, ou
que existe em ato, nem no caso do ens realissimum.
O jovem Schelling já diferencia entre a essência ou a idéia
de uma coisa e sua existência. Inicialmente, Schelling relaciona,
de acordo com Kant e Fichte, d conceito da existência com a
esfera dos fenômenos. O Schelling tardio, entretanto, relacio-
nará o conceito da existência com um ser que ele chama de
imemorial. Simplificando um pouco, poderíamos dizer que o
Schelling tardio pergunta pela existência real do ens realissimum.
196
Com essa pergunta, no entanto, transcende-se aquela
pergunta do conhecimento puramente apriorístico, aquela
esfera que era definida pela identidade fundamental ou racional
do fundamento real e do fundamento ideal. Essa esfera, o
Schelling tardio designará inteiramente como o âmbito da
filosofia racional pura ou negativa. Com a pergunta pela
possibilidade de uma filosofia positiva, que começa pela
existência absoluta, mudará também a pergunta pela realidade
do saber.
Tentaremos, agora, pelo menos esboçar a problemática da
filosofia positiva sob dois aspectos. O primeiro aspecto diz
respeito à problemática do ideal transcendental, ou seja, à
interpretação schellinguiana desse conceito kantiano. O
segundo aspecto diz respeito à pergunta por aquilo que o
Schelling tardio designou como saber enfático (cum emphasis). 21
Já o jovem Schelling escreve, no texto citado inicialmente,
ser curioso "que a maioria das línguas têm a vantagem de
poder diferenciar entre o ser absoluto e qualquer existência
condicionada". Mas que não seria menos curioso que a maioria
dos filósofos não tiraria proveito dessa vantagem. "Quase
todos fazem uso das palavras ser, existência, realidade, que
quase significam a mesma coisa." Porém, a palavra ser
expressaria, sem dúvida, "o ser-posto puro, absoluto, enquanto
a existência [Daseyn]- já pela sua etimologia22 - [designaria]
um ser-posto condicionado, limitado". 23 Aqui, Schelling
ainda chama o ser-posto Incondicionado ou Absoluto, na
esteira de Fichte, de Eu absoluto, que é um Absoluto no qual
a filosofia teria encontrado seu hen kai pan.
Na primeira parte, ou seja, na parte geral do seu Sistema
da filosofia em geral e da filosofia em pa1ticular, de 1804,
Schelling, principalmente nos parágrafos 39 a 41, trata da
relação entre o ser absoluto e a existência (Dasein) relativa,
a existência de uma coisa concreta. Ele desenvolve uma
teoria da negação ou então da privação da existência condi-
cionada ou finita. O ser absoluto ou a "posição absoluta",
como Schelling o chama aqui, é a "substância eterna que, no
entaii.to, não é 'modificada' pelo particular ou pelo fenômeno,
mas apenas se vê a si própria e apenas é ela mesma". Diz
Schelling: "Os antigos já diziam que Deus é inteiramente olho,
ou seja, é inteiramente aquilo que vê e aquilo que é visto;
197
seu ver também é um ser e seu ser um ver. "24 Poderíamos
dizer, também, que o princípio da idealidade (aquilo que vê)
e o princípio da realidade (aquilo que é visto) são idênticos,
quer dizer, uma coisa é inteiramente a outra e vice-versa.
Mas, se é para ser assim, então a coisa concreta particular
não pode ter uma existência fora do ser Absoluto. Em outras
palavras: mesmo se se trata de algo ser fora do Absoluto,
então ele, mesmo assim, não pode ser fora do Absoluto, mas
somente pode ser, como diz o Schelling tardio, praeter Deus,
mas não extra Deus. Nesse sentido, sua particularidade também
não pode ser uma limitação ou modificação do Absoluto. Mas
aquilo que o torna particular ou concreto é posto como algo
negativo apenas com vistas à posição absoluta do todo, isto
é, como um não-ser em relação ao Absoluto. Justamente por
não ser algo em sP5 em relação ao Absoluto, justamente por
isso, esse objeto, em seu não-ser relativo, pode ser a expressão
do todo ou do Absoluto. Não-ser não significa aqui que a
existência concreta da coisa particular não fosse nada, pois,
nesse caso, não existiria de maneira alguma. Mas significa,
ao contrário, que é ou existe apenas em sua limitação. 26 Apenas
em sua limitação ela pode aparecer como uma existência
determinada. É exatamente sua negação ou sua limitação que
a torna determinada, mais ou menos da mesma maneira que
uma determinada cor somente aparece como tal, por repre-
sentar uma limitação do espectro inteiro de luz ou então a
indiferença de todas as cores, sendo, contudo, ela mesma luz
- no sentido positivo.
Schelling procura ilustrar sua explicação daquilo que, a
seus olhos, é o "segredo supremo da filosofia" ,27 através da
metáfora do espelho. O olho que vê somente pode ver a si
mesmo no espelho, se este espelha o olho como um olho
que vê, se o espelho não é cego, como se diz. Um espelho
cego não espelha nada. Um espelho, no entanto, cumpre sua
função, se e somente se ele mesmo não é visível enquanto
espelho, se ele mostra apenas e exatamente aquilo que ele
mesmo não é. Uma mancha ou um arranhão no espelho seria
uma limitação de sua capacidade. O espelho somente espelha
o olho que vê, se ele não mostra ou representa outra coisa a
não ser o próprio olho que vê. Por isso, para poder ver a si
mesmo no espelho, o olho não pode ver o espelho como
198
espelho. O olho que vê somente se vê, se não vê o espelho,
se o olhar para o espelho é o mesmo que aquele que sai dele.
Nas palavras de Schelling, "somente na medida em que o olho
põe o refletor- o espelho como nada para si", ele se vê a si
mesmo. 28
As metáforas do espelho sempre têm o problema de tanto
esclarecer quanto obscurecer uma questão. Parece antes
questionável se o "segredo supremo da filosofia" pode ser
desvendado através dessa metáfora. Fazendo um empréstimo
em Sartre, poderíamos dizer, talvez, que o que importa para
Schelling é o olhar que não reduz aquilo que é visto a um
mero objeto, mas que reconhece o visto como algo que vê,
ou seja, como algo que é o próprio olhar. O objeto submetido
ao olhar só poderá ser um objeto inteligível que se vê a si
mesmo, se ele em si mesmo é um outro, ou seja, um ver. Mas
isso ele só poderá ser, na medida em que supera sua própria
limitação, na medida em que o espelho cego se transforma
em algo que vê.
Por isso, o ser particular ou restrito - e, portanto, objetivo
- das coisas é, ao mesmo tempo, uma limitação ou uma
"privação do conhecimento". 29 Assim, quem vê uma árvore
verde vê nessa cor uma limitação da luz; e, quanto mais
determinada uma coisa é, mais ela é limitada. Segundo Schelling,
o verdadeiro conhecimento só acontece se o limitado ou obje-
tivado, o restrito ou particular, é suprassumido [aufgehoben],
isto é, se a privação ou limitação do particular é novamente
negada. Ou, como Schelling diz, pondo o particular e concreto
como um "não-ente". Pois apenas assim, na sua posição como
não-ente, ele poderá espelhar o universo. Apenas "nesse não-ser,
ele é ao mesmo tempo o reflexo do universo". 30 Desse modo,
nós teremos uma visão verdadeira das coisas apenas no
Absoluto. Por isso, nosso conhecimento sensível, ou seja,
limitado pela intuição sensível, "na verdade é um não-conhe-
cimento", não é um saber, mas "privação do saber" _31
Schelling está polemizando aqui contra a filosofia kantiana,
segundo a qual um conhecimento apenas é possível a partir
do sensível isto é, do objetivo testemunhado pelos sentidos
- "mas não do não-sensível". De maneira inversa, ressalta
Schelling, é somente conhecendo as coisas como privações
que nós pomos "nas coisas", isto é, naquilo que não são para
199
si, porém naquilo que são em si ou positivamente, o universo
ou "Deus enquanto substância eterna única". 32 Talvez pudés-
semos formular essa solução [Pointe] de Schelling também da
seguinte maneira: é apenas em seu não-ser relativo que a
totalidade das coisas espelha o universo. "Elas são o reflexo
do universo em seu não-ser" somente porque, enquanto coisas
que refletem e enquanto fenômenos, não são nada para si,
"não possuem um ser em si [mesmas]". 33 Desta maneira, o
mundo que reflete o mundo representado não é outra coisa a
não ser a imagem da substância eterna. A natura naturata,
como Schelling diz, usando a terminologia de Espinosa, esse
ente apenas relativo, não é, em sua relatividade, outra coisa
a não ser a imagem da afirmação infinita, da natura naturans. 3 ~
Talvez essa exposição de Schelling não seja tão distante
da filosofia kantiana quanto parece inicialmente. Pois a idéia
que os fenômenos não são nada em si mesmos e que sua
diferença em relação ao ser das coisas em si deve ser mantida,
também é constitutiva para a estrutura da lógica transcen-
dental da Crítica da razão pura (1781 e 1787). O fato de
Schelling não estar tão longe de Kant, quanto parece à primeira
vista, se torna mais claro, se olharmos a definição kantiana
do ideal transcendental mais de perto.
Para Kant, o ideal transcendental é uma idéia necessária
da razão. É a essência da realidade ou o ens realissimum na
filosofia transcendental da metafísica anterior (da chamada
metapbysica specialis). O ens realissimum e é com este
que o Kant pré-crítico se debateu - não pode ser comprovado
em sua existência. Isto significa que, deste conceito, não
podemos deduzir a necessidade de um ser supremo ou do
ser de todos os seres. Entre o ens realissimum e o ens
necessarium, Kant descobre uma clivagem ontológica que, já
na Crítica da razão pura, ele designa como um abismo para a
razão. Um abismo que se abre para a razão devido ao fato de
que a existência de nada, nem do ser supremo, não pode ser
comprovada a priori. Embora essa idéia seja necessária para
a razão especulativa, ela lhe proporciona apenas uma realidade
subjetiva, e não objetiva. Por isso, as idéias transcendentais
nunca são, para a razão crítica, de uso constitutivo, mas apenas
de uso regulativa. Mesmo assim são necessárias, se é para
possibilitar um conhecimento sistemático, isto é, se o conhecimento
200
não é para ser concebido como um agregado desconexo de
proposições, mas como unidade sistemática do saber.
Enquanto idéia regulativa, o ideal transcendental é para
Kant um focus imaginarius, que "se encontra inteiramente
fora dos limites da experiência possível", mas, mesmo assim,
é "indispensavelmente necessário", se é para seu conhecimento
apresentar uma unidade sistemática. Kant também se refere
metaforicamente a um espelho para esclarecer a função do
ideal transcendentaL A ilusão da razão consistiria no fato de
que esse ponto comum a todo conhecimento se situaria além
ou atrás da esfera do conhecimento empiricamente possível,
"da mesma maneira que os objetos são vistos atrás da superfície
do espelho". 3 j Mas exatamente essa é a ilusão, a de acreditar
que haja um espaço ou objetos atrás da superfície do espelho.
O mundo atrás do espelho apenas é um mundo imaginário,
um mundo situado, por assim dizer, atrás dos fenômenos
[Hinterwelt]; a ilusão- mesmo que natural- da razão, no
entanto, é aquela que faz acreditar que podemos alcançar
conhecimentos metafísicas de maneira imediata, ou seja,
passando por cima do mundo dos fenômenos. Por isso, esse
focu.s imaginarius, para Kant, justamente não tem sua
importância necessária para o mundo atrás do espelho, mas
para o mundo real deste lado do espelho, ou na sua frente. E
esse mundo não é outro senão aquele que é dado ao conhecimento
humano somente através da intuição sensíveL Desse modo,
Kant também pode dizer que o ideal transcendental, enquanto
"fundamento originário de todos os simulacros [NacbbildeJ] no
fenômeno" apenas "parece ser o mais distante" da realidade. 36
O ideal transcendental é, por assim dizer, o espelho enquanto
único lugar onde o mundo pode ser compreendido a partir ·
de um único ponto comum, isto é, como um mundo. Pois, e
esta é a argumentação de Kant, todas as limitações ou negações
não podem ser pensadas como tais, "sem que se estabeleça a
afirmação oposta como fundamento" _37 Assim, Kant escreve:
"Todas as negações verdadeiras nada mais são do que ban·eiras
que não poderiam ser chamadas assim, se não houvesse o
ilimitado (o universo) como fundamento." 38
Apenas não se pode hipostasiar esse focus imaginarius.
O ideal transcendental, enquanto "idéia de uma totalidade
da realidade (omnitudo realitatis)", 39 é para a razão o "protótipo
201
de todas as coisas, que, em sua totalidade", enquanto
particulares, limitadas ou finitas, segundo Kant, "enquanto
cópias (ectypa) deficientes tomam dele a matéria da sua
possibilidade". A restrição crítica aqui consiste unicamente
no fato de essa totalidade da realidade não admitir nenhuma
dedução para se chegar à "existência desse ser (. .. ) que
correspondesse a esse ideal" .40 Essa restrição também permite
dizer que, de acordo com o que Kant escreve em sua tese De
mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis (Da
forma do mundo sensível e inteligível e seus princípios) de
1770, essa concepção da omnitudo realitatis não estaria "muito
longe" da opinião defendida por Malebranche, "a saber, que
nós intuímos [schauen] tudo em Deus" .41 Ainda em 1786, no
seu tratado sobre as preleções de Ludwig Heinrich Jakob
(1759-1827) intituladas Da análise das horas matutinas de
Mendelssohn e de todas demonstrações especulativas para a
existência de Deus (1786), Kant legitima essa concepção quando
escreve que nós "só podemos determinar os nossos conceitos
das coisas devidamente, se reduzirmos toda a realidade ao
conceito de Deus". 42 Por isso, "segundo todos os conhecimentos
feitos através da experiência das coisas" ,4 3 a pergunta sobre
o que os objetos da experiência "poderiam ser enquanto coisas
em si", "de maneira alguma poderia ser considerada como
sendo fora de propósito [sinnlee1]." 44
Assim o universo ou a totalidade de toda realidade, para
'
Kant, é a totalidade da possibilidade de todas as coisas.
Evidentemente, esse protótipo de todas as coisas não tem,
em Kant, a função de deduzir dele as coisas finitas. Enquanto
imagem original de toda possibilidade, ele apenas pode
fornecer o critério para a pergunta sobre o que são os objetos
da experiência, enquanto realitas phaenomenon, 45 não apenas
para a experiência, mas também "em si mesmas". O protótipo
de todas as coisas enquanto "fundamento último de todos os
simulacros [Nachbílde1j" apenas não pode ser individualizado,
isto é, comprovado como existência individual através da
razão especulativa. Pois, da mesma maneira que não se pode
deduzir a existência do ens realissimum do seu conceito, também
não se pode chegar, de modo inverso, ao conceito determi-
nado desse ser a partir da necessidade absoluta. Não se
pode deduzir a existência desse ser a partir da totalidade de
toda realidade, mas também não se pode deduzir um ser
202
concreto, ou até individual, a partir do conceito da existência
necessária. As duas coisas, diz Kant, ultrapassariam totalmente
as nossas aspirações de dar ao nosso entendimento "satisfação
sobre esse ponto", mas impediriam ao mesmo tempo que o
entendimento pudesse se "tranqüilizar" em sua incapacidade. 46
É essa problemática que também não dará sossego ao Schelling
tardio. Na 12ª preleção de sua Introdução histórico-crítica à
filosofia da mitologia, de 1842, ele comenta: Kant não partiria
de maneira alguma do pressuposto de que a totalidade da
realidade realmente existisse. Para Kant, ela seria apenas a
"totalidade de todas as possibilidades" das coisas,47 ou, mais
exatamente, a totalidade de todas as possibilidades reais ou
objetivas. O ser, no entanto, que, em Kant, é pensado como
possibilidade real, como um ser-possível, nos deixaria num
desconhecimento completo quanto à "existência real de um
ser primeiro". 48 No entanto, e aqui Schelling se refere ao próprio
Kant, "a afinidade de todo possível e todo real deveria ser
comprovada através da identidade do fundamento da deter-
minação universal" .49 Ora, a pergunta de Schelling é se e como
essa afinidade, mantida no escuro por Kant, do fundamento
último de toda possibilidade com aquele primeiro, cuja exis-
tência necessária é o fundamento de toda realidade, pode
ser esclarecida. E, dito em passant, toda teoria do juízo exis-
tencial e, segundo Wolfram Hogrebe, da predicação, 50 lida
com essa problemática, se ela não quiser entender sua própria
pressuposição de uma pressuposição existencial apenas como
um amontoado mais ou menos grande de coisas existentes.
Se se conceber o fundamento último de toda realidade (de
toda realitas) como a totalidade do que realmente é possível,
então ele é concebido como totalidade do poder puro. Esse
poder fundamental ainda não é nada, mas também é mais que
nada, senão também não seria um poder. Não é um puro
não-ser, mas pura potencialidade. É apenas o próprio
ser-possível, aquilo que apenas "pode set>'. Na forma dessa
possibilidade real ele é a "potência pura do ente", aquilo que
sempre já está na base do ente real enquanto possibilidade.
Nesse sentido, esse ser é o "primeiro pensável", o p1"imum
cogitabile. 51 Talvez pudéssemos dizer também que é o ser no
qual o fundamento ideal e o fundamento real ainda não são
distintos, que não é, nem não é e, com isso, só pode ser
designado como o indiferente Absoluto. Este conceito é o
203
 último ou o supremo que a ciência pura da razão pode pensar
ou alcançar. Mas, se esse último é para ser aquilo que está na
base de tudo, então surge a pergunta se e como se pode
partir dele como algo primeiro. Mas, então, a pergunta é como
se pode partir desse primeiro fundamento que todas as outras
determinações ou todos os outros conceitos têm de pressupor,
sem pressupô-lo novamente apenas hipoteticamente ou como
conceito.
Exatamente isso será o questionamento da filosofia positiva
de Schelling. Não é a finalidade da filosofia positiva partir de
um ser que apenas é necessário no pensar ou para o pensar,
pois, nesse caso, ela permaneceria ainda dentro dos limites
daquela filosofia puramente racional que Schelling passa a
chamar de filosofia negativa. Se a filosofia positiva quer partir
de algo que não é o primeiro apenas no pensar, então ela
tem que partir de um ser que pura e simplesmente está anterior
a todo pensamento, que precede todo pensamento. O que na
filosofia negativa apenas era protótipo, apenas imagem
original, mas também como imagem original apenas a imagem
de todo ser, na filosofia positiva é para ser compreendido
como fundamento e origem real de todo ser. 52 Ou trata-se de
mostrar que e em que medida esse fundamento último
realmente está como fundamento. Mas - e aqui Schelling
acaba concordando com Kant-, não se pode entender a priori
que aquilo "que existe necessariamente em ato", do qual a
filosofia quer partir, seja "a própria existência necessária". 53
Esse ser real primeiro, o ser que precede cada conceito e tem
de ser pressuposto a qualquer um, é, nesse sentido e em
primeiro lugar, um ser "cego", um ser fora Cpraetm:Y de todo
conceito. É um ser que "se antecedeu" a qualquer conceito,
ou um "existir ime!llorial" que ainda terá que demonstrar, a
posterio1·i, em que medida é exatamente aquilo que foi
pensado no seu conceito a priori. Mas o status do saber, para
o qual leva o caminho da filosofia que parte dessa problemática,
devido ao outro método de investigação, será diferente daquele
da ciência a priori da razão, que apenas lida com o poder-ser.
Quem quiser saber algo, quer que seu saber tenha realidade.
Um saber sem realidade não é um saber. E o que se segue
disso? A pergunta foi feita pelo jovem Schelling. De certa
maneira, o velho Schelling ainda faz a mesma pergunta. Mas,
para respondê-la, ele fez um longo caminho.
204
"Senhores!"- é assim que Schelling começa a 9ª preleção
da sua Introdução à filosofia de 1830, publicada somente em
1989; na época, as mulheres ainda não participavam - "A
ciência positiva pode partir apenas do pura e simplesmente
positivo.[. .. ] Todos que afirmam que o fundamento último de
todo ser seja cognoscível a priori, partem de algo feito por
conta própria [selbstgemacbt]." 54 Também o cognoscível a
priori pela razão é um saber, justamente aquilo que a priori
pode ser conhecido, aquilo que não pode não ser pensado.
Mas isso ainda não é tudo e carece de uma complementação. 55
Esse saber é complementado por um conhecimento daquilo
que é, mesmo que também pudesse não ser. Ele tem que ser
complementado por aquilo que, para o próprio pensamento,
é algo absolutamente contingente, aquilo que é justamente
isto, embora pudesse também ser um outro. Somente deste
ente distinto do meramente essencial ou necessariamente
universal há, então, também um saber efetivo, ou como diz
Schelling, um saber enfático. Na matemática, por exemplo,
haveria apenas um saber necessário, consistindo no rigor da
relação entre as premissas e as conseqüências. Esse saber
daquilo que não pode ser diferente, no entanto, não seria
um saber real, não seria "um saber verdadeiro". 56 Mesmo se
pudéssemos a priori saber também tudo que é possível no
[nível do] conceito sobre todos os mundos possíveis, saberíamos,
de fato, muita coisa, mas não saberíamos simplesmente nada
sobre a questão por que este mundo real é exatamente este e
não é outro ou por que ele não é. A realidade desse saber
real no sentido enfático seria, se me permitem dizê-lo com
uma expressão kantiana, um conhecimento do "contingente
como tal". 57 Pois o patbos kantiano da experiência se baseava
justamente na suposição de que as coisas reais existentes
poderiam ser dadas no seu ser-assim específico, não no ou
através do conceito puro, mas unicamente na intuição [sensível].
A ênfase de Schelling tem sua razão na idéia de que não apenas
o conhecimento do dado somente empiricamente, mas todo
saber tem que partir de um ser imemorial.
O Schelling tardio continua traçando as linhas que remontam
ao Kant pré-crítico e se encontram no seu conceito do ideal
transcendental. "A existência [Dasein]", disse o jovem Kant,
"não é um predicado real", não é um ser atributivo, mas a
205
"posição absoluta da própria coisa" .58 Mas, Kant também tinha
que admitir que essa posição absoluta permanece absolutamente
contingente em relação ao pensamento. Por isso, Kant optou
por um desvio, 59 o desvio através de uma aitíca da razão.
Mas, nela também, continua presente a questão sempre abismal
para a razão especulativa por aquilo que é necessário, isto é,
aquilo que existe absolutamente sem fundamento - pelo
menos para a razão que constrói a priori. "Pois", diz Schelling,
"não é por haver um pensar que há um ser, mas por haver um
ser, há um pensar." 60 Não é por haver um saber, portanto, que
há um ser, mas por haver um ser que há também um saber.
E, poderíamos continuar perguntando ou voltar a perguntar:
o que se segue disso?
[Tradução de Georg Otte]
206
NOTAS
1
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben Wissen, I/1, p. 162.
2
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben \Vissen, I/1, p. 162s.
3 FICHTE. Grundlage der gesamten \Vissenscbaftslebre ais Handscbrift fiir
seine Zub6rer(l794), p. 95s.
-í FICHTE. Grundlage der gesamten \Vissenscbaftslebre als Handscbrift fiir
seine Zubórer (1794), p. 95s.
5 SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie o der über das Unbedingte
im menscblicben \Vissen, I/1, p. 163.
6
Poderíamos suspeitar que nessa indiferenciabilidade, justamente por causa
da eliminação de qualquer diferença, não se poderia pensar algo determi-
nado no âmbito do "ser", nem no do "pensar". É de se perguntar se Hegel
encontrou uma solução disso no início da sua Lógica. Aqui pelo menos
surge a questão: como, partindo desse fundamento último, ainda há algu-
ma possibilidade de se dar uma diferenciação entre pensar e ser, ou então,
entre algo que sabe e algo que é 'sabido'. Se é para o saber ter realidade,
então não deve ter apenas uma identidade entre algo que sabe e algo que
é 'sabido' no saber, pois, caso contrário, não haveria saber nenhum. Mas
deve-se mostrar ao mesmo tempo como a diferença deve ser pensada,
sem a qual o saber não sairia da escuridão dessa indiferença. E será que
poderíamos dizer que a Lógica de Hegel começa com a noção de um ser
que não é outra coisa que o ser em sua imediatez indeterminada, que
recolheu em si todas as diferenças que surgem no saber fenomenal (e que
foram descritas na Fenomenologia do Espírito) e que, por isso, é nada no
que concerne à sua determinação?
7
Ver HEGEL. Pbãnomenoiogie des Geistes, v. 3, p. 58s.; cf. também EIDAM.
Fichtes AnstoB. Anmerkungen zu einem Begriff der Wissenschaftslehre
von 1794.
8
FICHTE. Grundiage der gesamten Wissenscbaftsiebre als Handscbrift für
seine Zub6rer(1794), p. 220.
9 FICHTE. Grundlage der gesamten Wissenscbaftslebre als Handscbrift für
seine Zubórer (1794), p. 198.
10
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbiiosopbie oder über das Unbedingte
im menscbiicben Wissen, I/1, p. 186.
11
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie oder iiber das Unbedingte
im menscblicben Wissen, I/1, p. 188.
12
SCHELLING. Vom Jcb ais Prinzip der Pbilosopbie oder über das Unbedingte
im menscblicben \Vissen, I/1, p. 125s., Nota.
13 KANT. Kritik derpraktiscben Vemunft, A, p. 5, Nota.
14
FICHTE. Gnmdiage der gesamten Wissenscbaftsiebre ais Handscbrift fiir
seine Zub6rer(l794), p. 195s., Nota.
I5 FICHTE. Grundiage der gesamten \Vissenscbaftsiebre als Handscbrift für
seine Zub6rer(l794), p. 195s., Nota.
16
SCHELLING. Apborismen zur Einieitung in die Naturpbiiosopbie, I/7, p. 155.
207
17
SCHELLING. Apborismen zur Einleitung in die Natwpbilosopbie, I/7,
p. 155.
18
Ver: SCHMIED-KOWARZIK. Das Problem der Natur. Nahe und Differenz
Fichtes und Schellings; SCHMIED-KOWARZIK. "Von der wirklicben, von
der seyenden Na tu r." Scbellings Ringen um eine Natmpbilosopbie in
Auseinandersetzung mit Kant, Ficbte und Hegel.
19
SCHELLING. Einleitung zu dem Entwwf eines Systems der Natwpbilosopbie,
I/3, §1, p. 272s.
20
Ver: SCHELLING. Einleitung zu: Ideen zu einer Pbilosopbie der Natur, I/2,
p. 56.
21
Deve ser de conhecimento geral que o problema: como se pode atribuir
um ser verdadeiro ao conjunto do possível é estreitamente ligado à história
do argumento ontológico, ou seja, da prova ontológica da existência de
Deus. Talvez seja menos difundido o fato que logo o Kant pré-crítico se
debateu com essa problemática. No entanto, queremos apenas chamar a
atenção, aqui, para a afinidade entre os questionamentos do Schelling
tardio e do jovem Kant. Cf. Sobre isso EIDAM. Dasein und Bestimmung.
Kants Grund-Problem, p. 138.
22
Infelizmente, Schelling aqui não indica nenhuma fonte. O Deutscbes
Wõrterbucb de Jacob e Wilhelm Grimm de 1860 nota que a palavra
"Dasein" "provavelmente foi usada desde meados do século XIX [...] para
designar a vida em toda a sua abrangência, a essência, a existência e o
estado das coisas" (v. 2, Col. 806). O dicionário etimológico da Editora
Duden (1963) registra, sob o verbete "Dasein": "O infinitivo substantivado
do verbo neo-alemão dasein, 'estar presente, existir', significava, nos sé-
culos XVII e XVIII, apenas 'presença'. No século XVIII, ele foi adorado pela
terminologia filosófica como substituto pelo estrangeirismo Existenz e, pos-
teriormente, pela linguagem literária no sentido de 'vida' [. .. ]" (p. 99).
23
SCHELLING. Vom Icb ais Prinzip der Pbilosopbie ode r über das Unbedingte
im menscblicben 1Vissen, I/1, p. 209.
21
" SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natwpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 198.
25
Pois, diferentemente deste [o Absoluto; observação do tradutor], ele [o
particular como não-ser em relação ao Absoluto; observação do tradutor]
não tem o fundamento da sua existência em si mesmo (cf. SCHELLING.
System der gesammten Pbilosopbie und der Natwpbilosopbie insbesondere
I/6, p. 193).
26
Cf. SCHELLING. Einleitzmg in die Pbilosopbie derMytbologie, II/1, p. 279:
'"Existentia est singulorum': 'O universal não existe: a existência é própria
ao ser singular."' Cf. também II/3, p. 59s; p. 65s; e p. 171s.
27
SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natmpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 198.
28
SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natlllpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 197s.
29
SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natwpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 198.
30
SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natmpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 197.
208
3I SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Naturpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 199.
32
SCHELLING. System dergesammten Pbilosopbie und der Natmpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 199.
33 SCHELLING. System dergesammtenPbilosopbie und derNatwpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 199.
34
SCHELLING. System der gesammten Pbilosopbie und der Natwpbilosopbie
insbesondere, I/6, p. 199.
35
KANT. Kritik der reinen Vermmft, B, p. 627.
36 "Mas, mais que a idéia, aquilo que chamo de ideal parece ser mais distante
da realidade objetiva. Entendo por ideal a idéia não apenas in concreto,
mas in individuo, mas como uma coisa particular, que pode ser, ou até
mesmo é determinada apenas pela idéia. [. .. ] O que para nós é um ideal,
para Platão era uma idéia do entendimento divino, uma coisa particular na
intuição pura do mesmo, o mais perfeito de qualquer espécie de seres
possíveis e fundamento último de todos os simulacros no fenômeno." (KANT.
Kritik derreinen Vemwift, B, p. 596.) Cf. Também KANT. Reflexionen, p. 224ss.
Cf. também BENEDIKT. Freie Erkenntnis und Pbilosopbie der Befreiung,
p. 103, 203 e 213.
37
KANT. Kritik der reinen Vemunft, B, p. 603.
8
3 Ninguém, segundo Kant, poderia "pensar uma negação como determinada,
sem que tenha como base a afirmação oposta. Quem nasceu cego não tem
como ter a mínima idéia da escuridão, por não ter nenhuma da luz, nem o
selvagem da pobreza por não ter nenhuma do bem-estar". (KANT. Kritik
der reinen Vemunft, B, p. 603-604.)
39 KANT. Kritik der reinen Vemunft, B, p. 604.
40
KANT. Kritik der reinen Vernunft, B, p. 603 e 606.
41
KANT. De mundi sensibilis atque intelligibilisforma et principiis, p. 81.
42 KANT. Einige Bemerkungen von Henn Professor Kant (aus Ludwig Heimicb
jakobs Pnifzmg derJV!endelssobnscben Morgenstunden oder a !ler spekulativen
Beweise fiir das Dasein Gottes), p. 291 (A, p. LIXs).
43
KANT. Einige Bemerkzmgen von Herrn Professor Kant (aus Ludwig Heimicb
jakobs Prilfung der Mendelssobnscben Morgenstunden oder a/ler
spekulativen Beweisefür das Dasein Gottes), p. 291 (A, p. LIXs).
44
KANT. Einige Bemerkungen von Herrn Professor Kant (aus Ludwig Heimicb
jakobs Priifung derll1endelssobnscbenll1orgenstunden oder a/ler spekulativen
Beweise fiir das Dasein Gottes), p. 291 (A, p. LIXs).
45 KANT. Einige Bemerkungen von Hen?Z Professor Kant (aus Ludwig Heinricb
jakobs Priifung der Mendelssobnscben Morgenstunden oder a !ler spekulativen
Beweisefür das Dasein Gottes), p. 290 (A, p. LVIII).
46
KANT. K1itik derpraktiscben Vemunft, B, p. 641.
47
SCHELLING. Einleitung in die Pbilosopbie der Mytbologie, II/1, p. 284.
48
SCHELLING. Einleitung in die Pbilosopbie der Mytbologie, II/1, p. 286.
·19 SCHELLING. Einleitung in die Pbilosopbie derMytbologie, II/1, p. 287.
50
Ver: HOGREBE. Prãdikation zmd Genesis. Metapbysik ais Fundamen-
talbewistik im Ausgang von Scbellings "Die Weltaltet''.
51 SCHELLING. Einleitung in die Pbilosopbie der Mytbologie, II/1, p. 289.
209
52 Ver: SCHELLING. Andere Deduktion der Prinzipien der postitiven
Philosophie, II/4, p. 353: "Aquilo que na filosofia negativa era ideal
[vorbildlich], aqui passa por real."
53 SCHELLING. Andere Deduktion der Prinzipien derpostitiven Philosophie,
II/4, p. 346.
54 SCHELLING. Einleitung in di e Philosophie der Mythologie, II/1, p. 25.
55 SCHELLING. Einleitung in die Philosophie derMythologie, II/1, p. S.
56 SCHELLING. Einleitzmg in die Philosophie der Mythologie, II/1, p. 18.
57 Cf. KANT. Erste Fasszmg der Einleitung in di e Kritik der Urteilskraft, p. 30.
Cf. também SCHELLING. Andere Deduktion der Prinzipien derpositiven
Philosopbie (provavelmente de 1839): "Mas o ponto onde o processo
previsto e apresentado a Deus como possível toma prosseguimento
reside unicamente naquele ser que antes não foi visto, que surgiu como
possível ex improvisio e que, por sua natureza, apenas pode aparecer na
sua contingência, encontrando porém no seu surgimento o ser imemorial
como aquilo que sempre existiu [(das Daseyende)] (aqui temos a palavra
Daseyn no seu sentido próprio)." SCHELLING. Andere Deduktion der
Prinzipien derpostitiven Philosopbie, II/4, p. 354.
58 Cf. KANT. Der einzig mõglicbe Beweisgrund zu einer Demonstration des
Daseyns Gottes (1763), p. 629-636.
59 Cf. KANT. Reflexionen, p. 224ss.
60 SCHELLING. Philosophie der Offenbanmg, II/3, p. 161, Nota.
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212
FERNANDO R E Y P U E N T E
TcM~O c HI~TÓ~IA cM
~CHclliNG
"O tempo é o ponto de partida de toda investigação filosófica
e nunca ocorrerá um desenvolvimento racional [da mesma]
sem uma explicação precisa acerca do tempo."'
CONSIDERAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS
Por que escolher os conceitos de tempo e história a fim de
elucidar o pensamento de Schelling? Porque acreditamos
serem eles dois conceitos fundamentais, cuja compreensão
nos capacitaria a entender melhor a filosofia que Schelling
começou a produzir a partir de 1809, ou seja, a partir de seu
célebre escrito Investigações filosóficas sobre a essência
da liberdade humana. Há um terceiro conceito, igualmente
central para essa fase mediana e final de seu pensamento, a
saber, o de vontade, que esperamos, ao longo desta exposição,
poder correlacionar aos outros dois.
Com essa observação inicial, fica explicitado desde já que,
aqui, não estaremos interessados em expor as considerações
que Schelling esporadicamente dedicou a esses temas na
primeira fase de seu pensamento. Nosso interesse volta-se,
antes, para as fases ditas intermediária e final de sua filosofia.
Essas nos parecem ser as etapas mais fecundas e influentes
de seu pensamento. Infelizmente, porém, são precisamente
essas as fases menos conhecidas pelos não especialistas,
excetuando-se, é claro, o conhecido opúsculo sobre a liberdade
humana acima citado, a última obra, de maior repercussão,
publicada durante a vida de Schelling.2 É, penso eu, justamente
um melhor conhecimento da última etapa de seu pensar que
nos facultaria superar o pretenso hiato que, segundo
muitos manuais de Filosofia ainda desatualizados, separa o
Idealismo alemão do pensamento pós-idealista. Schelling tampou-
co pode ser entendido - e os especialistas já advertem para isso
há mais de cinqüenta anos3 - como um autor que meramente
estabelece a ponte entre as elocubrações filosóficas de Fichte
e as reflexões dialéticas de Hegel; ou seja, como um autor
que apenas assinalaria um momento importante da
especulação filosófica, mas que deve ser e efetivamente foi
superado pelo sistema hegeliano. Essa avaliação enganosa
só pôde vingar devido ao desconhecimento quase que com-
pleto da parte de muitos filósofos e historiadores da filosofia
acerca do pensamento final de Schelling, motivado por
preconceitos de diversos tipos, mas especialmente pela acu-
sação a ele dirigida de ser um irracionalista. 4 Uma acusação
completamente absurda e descabida, particularmente quando
verificamos a enorme influência que um autor como Aristóteles
possui nessa fase derradeira da filosofia de Schelling, um autor
que, conquanto possa ser acusado de muitas coisas, jamais
poderia ser acusado de irracionalismo. 5 Felizmente, essa
situação vem se modificando e, pouco a pouco, o verdadeiro
lugar de Schelling na História da Filosofia vai se impondo
mesmo aos mais relutantes e desconfiados. Deve-se pensar,
de acordo com o subtítulo de um recentíssimo livro de Mildos
Veto- a mais recente e percuciente análise global da Filosofia
Alemã - , em duas vias presentes no Idealismo Alemão,
ambas partindo do pensamento de Kant. A primeira culmina
no Saber Absoluto de Hegel, e a outra atinge seu zênite no
Saber Positivo, tal como concebido pelo último Schelling. 6
Todavia, a importância dessa segunda via desenvolvida por
Schelling não deve ser pensada apenas como reativa ou
transitória; ou seja, a sua importância não reside apenas e
tão-somente em constituir uma reação ao pensamento de Hegel
na verdade, a primeira reação crítica e justamente por isso
matriz, confessa ou inconfessa, de todas as críticas posteriores
a Hegel - ou um mero ponto de transição às reflexões
posteriores de Feuerbach, Engels e Marx/ por um lado, ou
de Kierkegaard, 8 por outro. Podemos afirmar com certeza,
portanto, que é o pensamento de Schelling, mais do que o de
nenhum outro dos idealistas alemães, que nos ajuda a
atravessar a nebulosa fronteira que separa de modo radical e
aparentemente sem explicação o Idealismo Alemão de um lado
e as filosofias pós-idealistas de outro. 9
214
_L
AS ERAS DO MUNDO OU O TEMPO COMO EiXO DE
ARTICULAÇÃO DA FILOSOFIA
Se citamos acima a data de publicação -1809- de Inves-
tigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana, _foi
porque, a partir desse texto, o pensamento de Schellmg
sofreu uma modificação radical que pode ser descrita com as
belas palavras de um de seus maiores intérpretes, Xavier
Tilliete:
Isso que Schelling denomina agora positivo, positividade, é a
vida, a personalidade com seus dramas, seus conflitos e suas
contrariedades; a vitalidade potente que se move e age, que
sofre e reage à doença, que se desenvolve e se regenera - a
vida tumultuosa e ardente. Não é mais o organismo luminoso
das Idéias, a beleza imutável, a tranqüilidade na ordem, o
contorno preciso da forma perfeita. 10
As etapas inicias do pensamento schellinguiano, a Filosofia da
Identidade e da Natureza, contêm algumas considerações
esparsas sobre o tempo, mas essas possuem um caráter
totalmente diverso das reflexões minuciosas e complexas
contidas nas diversas versões inacabadas das Weltalter(Schelling
chegou a escrever mais de vinte versões, todas inconclusas;
dessa obra que ele julgava, com razão, seu opus magnu.m). E
essa obra, portanto, que nos interessa explorar, pois é nela
que Schelling analisa com extrema acuidade o problema do
tempo. A primeira versão de que dispomos data de 1811,
escrita, portanto, dois anos depois da publicação do céle~re
tratado sobre a liberdade humana. O difícil nesse texto, porem,
é decodificar, em meio a um amálgama de imagens mítico-
poéticas associadas a uma metafísica de vontades conflitantes,
pensadas a partir da complexa dialética das potências, as
reflexões originalíssimas de Schelling acerca do tempo.U A
discussão sobre vontades conflitantes já havia sido exposta
no Freibeitscbrift, mas é só em As eras do mundo que a
problemática do tempo passa a ocupar o primeiro plano.
"O passado é sabido, o presente conhecido, o futuro
pressentido. O sabido é narrado, o conhecido aprese~tado,
0 pressentido adivinhado." ~ Com es~as ?alavras d~ ton~hda_de
1
I quase mítica, inicia-se a mtroduçao a obra ~UJO pr~me~ro
livro, intitulado O passado, foi o único a ser escnto por mtetro
215
IL.
em duas versões, a de 1811 e a de 1813. Do segundo livro,
intitulado O presente, temos apenas esboços e fragmentos e
do terceiro, que certamente trataria do futuro, absolutamente
nada. É preciso dizer que a elaboração dessa obra constituiu
quase que uma obsessão para o seu autor, tendo ele traba-
lhado e retrabalhado inúmeras vezes em esboços e projetas
para a mesma. O conteúdo dessas reflexões e desse hercúleo
esforço intelectual de Schelling, entretanto, jamais foi publi-
cado durante a sua vida. Apenas depois de chamado para
lecionar em Munique, Schelling resolve tornar pública
algumas dessas reflexões, ao fazer preleções no semestre de
inverno dos anos 1827/1828 sobre o que ele então denomi-
naria O sistema das eras do mundo.
Retornemos, contudo, à primeira versão de As eras do
mundo e tentemos esclarecer em que medida Schelling,
mediante as suas considerações sobre o tempo, inovava em
relação à tradição filosófica e mesmo em relação à fase inicial
de seu próprio pensamento. Antes, porém, é necessário dizer
que o objetivo fundamental de As eras do mundo é o de
descrever "a história do desenvolvimento da Essência Primordial",
ou seja, da Divindade que se tornará Deus. Só é possível ao
homem empreender essa gigantesca tarefa, segundo Schelling,
porque ele possui uma "co-ciência da criação" (Mitwissenschaft
der Schõpfung); em outras palavras, as especulações de nosso
autor alicerçam-se em uma idéia fundamental, qual seja, a de
que entre Deus e o homem existe uma analogia, mas uma
analogia, claro, não com um Absoluto impessoal e abstrato,
como em sua primeira fase, mas sim com uma Essência
primordial viva, prenhe de vontades conflitantes, e que precisa
superar a sua própria natureza a fim de se tornar Deus. Ele
pretende, por conseguinte, nada menos do que narrar a
genealogia do próprio Deus e para isso deve pensá-lo em
uma perspectiva humana. Como ele mesmo afirma: "Na medida
em que considerarmos as coisas mais humanamente, tanto
mais podemos esperar nos aproximar da história efetiva." 13
Nessa fase do seu pensamento o que interessa a Schelling é
narrar um processo, uma genealogia, uma história. Nessa
etapa intermediária de seu pensamento, em suma, é a vida
com suas vontades confliiantes que precisa ser explicada e
explicitada. Não basta mais a Schelling a contemplação
imediata de um sereno e plácido Absoluto por meio da intuição
216
intelectual. Agora é a história efetiva que o preocupa. Ele
não se satisfaz mais com o salto inexplicável do Absoluto
para o finito ou da eternidade para o tempo; ele busca uma
mediação e essa se realiza pela dialética, pensada não como
mero método, mas sim como "arte de conversação interna"
(innere Unterredungskunst), como ele afirma na introdução à
obra aqui em questão. Podemos assinalar, em relação à fase
inicial de sua filosofia, portanto, a substituição da noção de
intuição intelectual, lá soberana, pela de dialética, bem como
a de um Absoluto concebido monolítica e impessoalmente
para a de uma Essência Primordial, prenhe de vontades anta-
gônicas, que se tornará Deus, um Deus vivo e pessoal.
Nesse novo contexto conceituai, faz-se mister modificar
radicalmente a noção de tempo. A finitude não é mais desva-
lorizada, como na fase inicial, quando era pensada como mera
aparência; 14 ao invés, agora, ela é valorizada e apreciada, pois
é nela que se processa a história efetiva. E o que significa
isso em termos de temporalidade? Ora, isso significa que o
tempo não pode ser pensado como uma cadeia sem fim de
causas e efeitos, pois, se fosse assim, não haveria propria-
mente passado ou futuro. Para Schelling, presente, passado
e futuro são qualitativamente diferentes. Não há uma passagem
contínua do presente para o passado durante a qual o
presente deixaria de existir. Na verdade, o passado só se
constitui enquanto tal na medida em que o presente dele se
separa. É essa de-cisão, essa separação que constitui o
passado como passado. Vê-se, portanto, que sem uma
vontade livre que escolhe separar-se não haveria passado.
Na linguagem simbólica de Schelling, isso pode ser traduzido
pela frase: "O Pai é Filho do Filho", 15 ou seja, o passado,
época do Pai, é gerado apenas e tão-somente quando o Filho
é gerado. No próprio ato dessa geração o Filho institui o Pai
como passado.
O passado então, segundo Schelling, só passa a existir
realmente quando nos colocamos em oposição a ele, caso
contrário, não nos libertamos do passado e, por conseguinte,
jamais chegaremos propriamente a possuir um passado.
Observe-se que essa ruptura, essa cisão não pode ocorrer
em um tempo linear previamente dado, mas é antes por meio
dela mesma que podemos estabelecer o passado e o presente
217
autênticos. Note-se bem: no princípio Deus ou o homem
viviam no passado, mas não o tinham; agora, isto é, após a
separação, eles vivem no presente e possuem um passado.
"Anteriormente" a essa cisão não havia um passado propria-
mente dito (nem para o homem, nem para o Ser Primordial);
havia, isso sim, apenas um tempo circular indiferenciado, no
qual passado, presente e futuro coexistiam, ou seja, não havia
diferença qualitativa entre esses três modos constitutivos do
tempo. O tempo autêntico (o termo é do próprio Schelling),
contudo, não deve abolir essa diferença qualitativa existente
entre os seus três modos, antes deve explicá-la. Mais interes-
sante e original ainda, na perspectiva schellinguiana, é o fato
de esses três modos serem simultâneos entre si, ou seja, é
por meio dessa decisão inicial que nasce o passado propria-
mente dito; mas o presente autêntico nasce igualmente em
simultaneidade a ele, e assim também o futuro, pois uma
decisão (pensada como cisão voluntária) é sempre orientada
para o futuro; em outras palavras, o futuro é o horizonte em
vista do qual a decisão é tomada; ou, nas palavras de
Schelling, o futuro é "o tempo inteiro", pois com ele não há
mais um tempo por vir. 16
"Como é multiforme a contemplação do tempo!", 17 exclama
Schelling com admiração e fascínio. Por isso, para ele, é mais
adequado falar de tempos e não de tempo. Não há, segundo
Schelling, um tempo uniforme e contínuo no qual os aconte-
cimentos ocorrem, como se costuma imaginar; o tempo é que
se encontra nas coisas ou, expressando-se melhor ainda, os
tempos ínsitos a cada coisa é que se encontram nas mesmas.
Em suas palavras: "Tudo é apenas obra do tempo e apenas
por meio do tempo cada coisa obtém sua singularidade e seu
significado." 18 Mas, que não devemos compreender essa citação
como se Schelling estivesse falando de um tempo único e
universal que controla todos os acontecimentos, torna-se
patente ao atentarmos para uma passagem posterior dessa
obra, em que ele nos adverte explicitamente que "nenhuma
coisa possui um tempo exterior, mas cada uma possui
somente um tempo interior, próprio, que é ingênito a ela e
nela reside" .19 Ou ainda, quando afirma categoricamente que
"nenhuma coisa origina-se no tempo, mas em cada coisa o
tempo se origina novamente ... "20 É por meio de comparações
e mensurações desses diferentes tempos, explica Schelling,
218
que se origina "aquele simulacro de um tempo abstrato, do
qual é correto dizer que é um mero modo de nossa imaginação,
não simplesmente um [tempo] necessário e inato, mas um
[tempo] casual e fictício". 21 Por isso ele afirmará enfaticamente
que o tempo é orgânico, 22 mas não se deve confundir essa
noção de organismo com aquela por ele mesmo anteriomente
desenvolvida na Filosofia da Natureza. 23 Em cada ser, por
conseguinte, deve haver uma de-cisão para que os tempos
se formem. A cada instante, portanto, deve-se originar em
cada ente o tempo inteiro, ou seja, o tempo em sua distensão
tripolar de passado, presente e futuro. 24
Dado que a cada instante origina-se o tempo inteiro, isto
é, passado, presente e futuro, então não seria lícito perguntar,
como nos adverte Schelling, "quanto tempo já passou? mas
[apenas]: quantos tempos já existiram?''_25 E a resposta dele à
sua própria indagação é interessantíssima. Ele afirma que,
internamente, devido ao fato de que a cada instante surge o
tempo tripolar, a sucessão de instantes constituiria uma
verdadeira infinitude, tal como a infinitude interna e dinâmica
presente em cada parte da matéria, sem que com isso fosse
necessário conceber externamente um tempo sem limite ou
fim. 26 O que Schelling quer dizer exatamente com isso? Estaria
querendo dizer que o tempo, como vivido internamente, possui
uma estrutura contínua na medida em que os instantes suce-
dem-se sem cessar? Mas teríamos então de fazer a ressalva de
que cada instante geraria o tempo completo em seus três
modos? Ou seja: embora a sucessão de instantes seja contínua,
a sua estrutura interna não o é, dado que a divisão constitutiva
de seus três pólos co-originários parece descrever antes uma
estrutura discreta do que uma contínua. Todavia, como ele
nos esclarece nessas densas e complexas páginas, "essa
seqüência de tempos então tem de ser ela mesma atem-
poral, não podendo, portanto, ser medida ou determinada nova-
mente segundo algum [tipo de] tempo". 27
A reflexão sobre o tempo exposta nessas páginas, já
difícil, torna-se ainda mais enigmática, quando Schelling
adverte o leitor para o fato de que cada um desses tempos
contém em si os outros dois. E isso tem de ser assim, pois,
segundo Schelling, os outros dois modos do tempo só
existem em relação ao terceiro. Deveríamos supor, então, que
219
há um passado do passado, um passado do presente e um
passado do futuro e assim respectivamente para os outros
tempos? Parece que sim, como pode ser depreendido da
análise de alguns esboços do segundo livro de sua obra ina-
cabada que versaria sobre o presente. Neles fica claro que
Schelling considera a natureza como sendo o passado do
presente e o mundo espiritual como sendo o presente do
presente, 28 mas atente-se para o fato de que isso não significa,
de modo algum, que haja uma anterioridade cronológica entre
eles, ou seja, o passado do presente não é "anterior" ao
presente do presente, dado que eles são cc-originários, ou
seja, eles se originam "simultaneamente" .29 Para Schelling, em
suma, todo tempo constitui um sistema de tempos, que se
integra, por sua vez, em um sistema mais abrangente, e assim
infinitamente: as durações são compreendidas nos períodos,
estes nas eras, estas nos éons e assim sucessivamente. 30
A analogia entre homem e Deus, constata-se, é essencial
para se poder pensar essa enigmática obra. 30' É desse modo
que, por meio da analogia com a memória, presente em nosso
sistema humano de tempo, se pode pensar em um tempo ime-
morial, um tempo acerca do qual não nos chegaram mitos ou
lendas, pois ele é precisamente o tempo do mutismo e do
silêncio,31 ou seja, o verdadeiro passado, o passado pré-mundano.
Igualmente, é por meio da analogia com a nossa capacidade
de prever o futuro que podemos pressentir um futuro verda-
deiro, a saber, o futuro pós-mundano. Vê-se, portanto, que
nessa fase de seu pensamento, nem o tempo mundano (tal
como vulgarmente concebido, no qual, por meio de uma sucessão
infinita de causas e efeitos, toda diferenciação qualitativa entre
passado, presente e futuro desaparece), nem a eternidade (tal
como tradicionalmente compreendida, na qual o tempo e seus
três modos não mais existem) podem satisfazer Schelling. Ele
precisa agora de uma nova concepção de tempo que lhe
permita salvar os três modos constitutivos do tempo verda-
deiro. Daí o seu sistema de tempos.
Uma passagem de suas preleções de Munique que versavam
sobre esse assunto esclarece-nos ainda mais acerca desse
complexo tema. Apoiando-se em uma referência presente em
um texto do Antigo testamento, Schelling lembra a seus leitores
a célebre sentença: "Não ocorre nada de novo sob o Sol." 32
220
Que quer dizer essa sentença?, indaga-se Schelling. Ora, ela
nada mais significa, segundo ele, do que dizer que não há
diferença qualitativa entre passado, presente e futuro. O que
se fará e o que se fez são idênticos com o que se faz agora.
Para ele, essa concepção não nos permite compreender o
tempo, pois nela nunca surgiria o passado propriamente dito.
Ele a representa com a série algébrica A + A + A... , ou seja,
com uma série homogênea que se repete infinitamente sem
jamais ser capaz de produzir um termo heterogêneo. Ora, o
tempo, para ele, só pode ser pensado como a reunião de
termos heterogêneos em uma série, como, por exemplo, a
série algébrica A + B + C pode ilustrar. Esta representa, como
ele afirma, "o verdadeiro tempo" (die wahre Zeit), aquela, ao
contrário, apenas um "obstáculo" (Hemmung) ao tempo
verdadeiro. 33 Observe-se, contudo, que os membros hetero-
gêneos da série, a saber, A, B e C, não devem ser pensados
como sucessivos, pois eles são cc-originários, eles nascem,
por assim dizer, "simultaneamente". Apenas enquanto eras
do mundo eles são, para nós e em relação ao nosso mundo,
sucessivos, não para a eternidade, na qual eles nascem
"simultaneamente". Ou seja: há um passado pré-mundano e
um futuro pós-mundano, mas a cada instante que o tempo se
origina em nosso mundo, ele se origina em sua distensão
tripolar fundamental, qual seja, a de passado, presente e
futuro. Resumindo, poderíamos dizer, com Wolfgang Wieland,
que, além dos três modos do tempo, existem também duas
dimensões do tempo para Schelling: a do tempo autêntico e a
do tempo inautêntico. 3• A primeira é constituída pela série
heterogênea dos modos, enquanto a segunda pela série modal
homogênea; em outras palavras, a primeira série preserva a
separação dos modos do tempo e não é sucessiva, enquanto
a segunda suprime a diferenciação entre os modos do tempo
e é sucessiva.
Com o objetivo de evidenciar as analogias entre Deus e o
homem, Schelling utiliza-se de seu conceito de potência. Por
meio dele, pretende tornar mais compreensível as etapas que
atravessam os seres vivos nos diferentes planos da realidade.
A lei da vida, para Schelling, consiste em dois princípios
fundamentais: o primeiro é o de que tudo o que se encontra
oculto terá de se manifestar; e o segundo é o de que essa
221
manifestacão ocorre de acordo com uma seqüência precisa e
irreversív~l de etapas. A cada uma dessas etapas, desses
períodos de vida, Schelling denomina potência. Como ele
próprio explica:
O que uma essência é em sua interioridade, o mesmo ela te~
de ser em sua exterioridade ou, as mesmas forças que consti-
tuem sua vida interior e sua vida manifesta devem (segundo
sua natureza) ser as mesmas forças articuladas do seu existir.
Mas, enquanto tais, elas só podem aparecer seqüe~ci~l~ente,
ou com uma decisão. Sendo elas, portanto, os pnncipiOs do
ser na simultaneidade, elas são, também, as potências do devir
na sucessão. 35
Não será possível entrar em detalhes aqui acerca dessa
doutrina das potências; apenas queríamos mencioná-la, pois
é ela que constitui, nas palavras de X. Tilliete, "a dútil armação
a toda a laboriosa marcha sistemática de Schelling". 36
Ora, esse sistema de tempos, percebe-se, só pode surgir
de algo que está além de qualquer tempo, ou seja, da eterni-
dade. Esta é concebida como "Pureza prístina" (urerste
Lauterkeit) e só pode ser pensada afirmativamente, segundo
Schelling, por meio do conceito de liberdadeY A eternidade,
no entanto, jamais pode se tomar passado, mas há um passado
que surge em seu interior. Note-se que não é possível imaginar
uma diferenciação qualquer exterior a essa Pureza, mas
apenas interior; em termos teológicos- termos que o próprio
Schelling empregará na fase final de sua filosofia - , essa
diferenciação ocorre apenas praeter Deum e não extra Deum.
Logo, os princípios do ser presentes na eternidade tomar-se-ão
as potências que irão reger as etapas do devir; em outros
termos, elas serão as eras do mundo ou os tempos do mundo.
Antes de concluir essas considerações sobre a concepção
de tempo defendida por Schelling durante os anos de elabo-
ração de As eras do mundo (obra que ele, como já dissemos,
concebia como a grande obra de sua vida), cabe lembrar que
o tema do tempo jamais foi um tema central de sua especulação
filosófica; ao contrário, esse motivo foi se impondo gradati-
vamente à sua filosofia. ·Em outras palavras: não foi o filósofo
que tinha inicialmente o tempo como questão central, mas
sim o desenvolvimento interno da obra que obrigou o filósofo
222
(felizmente diríamos nós) a refletir sobre esse tema. 38 Uma
vez levado a pensar nesse tema, Schelling, sem dúvida,
contribuiu decisivamente para a nossa compreensão do mesmo.
Para concluir, de fato, esta primeira parte de minhas conside-
rações sobre o tempo e a história em Schelling, gostaria ao
final, mas não em último lugar, de chamar a atenção para a
dimensão propriamente ética da concepção schellinguiana do
tempo. Isso deveria ter ficado claro a partir do anteriormente
exposto, pelo fato de que só é possível viver a dimensão
autêntica ou verdadeira do tempo se formos capazes de uma
livre escolha. Somente por meio de uma de-cisão, Schelling
repete inúmeras vezes, o homem, bem como Deus, é capaz
de transcender a si mesmo e de constituir um passado. O
homem que vive na dimensão inautêntica do tempo, entre-
tanto, está fadado à necessidade: ele está preso ao seu
passado e, por conseguinte, desprovido igualmente de um
futuro autêntico, pois de que adiantaria agir, se o que faremos
for igual ao que fizemos? Que essas considerações referem-se
à ética, afirma-nos textualmente o próprio Schelling. 39 Não
por acaso, o tema da liberdade era central para Schelling. 40
Apenas por meio de um ato livre o homem - e, por analogia,
o Ser Primordial pode superar-se e constituir o passado, e
isso sempre tendo como horizonte derradeiro o futuro. É como
se Schelling estivesse nos dizendo tacitamente que é preciso
ter uma determinada concepção da temporalidade para que a
vida moral tenha sentido. Se vivêssemos em um mundo no
qual, como diz a célebre sentença bíblica, sempre repetida
por Schelling, nada de novo ocorresse sob o Sol, para que
então decidir, para que então escolher, se tudo aquilo que
nós porventura escolhêssemos fosse idêntico àquilo que já
havíamos escolhido outrora? Se o futuro fosse idêntico ao
passado e ambos iguais ao presente, melhor seria resignar-se
e deixar-se conduzir por uma necessidade inexorável. Se,
entretanto, vale a pena decidir-se é porque passado, presente
e futuro não são modos homogêneos, mas heterogêneos do
tempo. Esta heterogeneidade está fundamentada e alicerçada
na nossa própria de-cisão que, ao instaurar o tempo verda-
deiro, a saber, aquele em que passado, presente e futuro são
distintos, nos constitui enquanto sujeitos morais porque
autenticamente temporais.
223
A FILOSOFIA POSITIVA OU A HISTÓRIA COMO EIXO
ARTICULADOR DA FILOSOFIA
Se a filosofia da fase intermediária de Schelling pode ser
caracterizada como uma filosofia centrada na liberdade, na
temporalidade e na história, em outras palavras, como uma
filosofia que valoriza a esfera da imanência e a mediação entre
0 Absoluto e o finito, em franca oposição à etapa inicial de
seu pensamento, a filosofia final de Schelling deve ser conce-
bida como uma etapa em que ele sistematizará e organizará
melhor as intuições fundamentais conquistadas nessa etapa
intermediária de seu pensamento. Sintetizando: na última
etapa de sua filosofia, Schelling levará às últimas conseqüências
0 seu esforço especulativo de pensar a imanência, esforço
este que se expressará em uma enorme atenção às mitologias
e à Revelação, concebidas como etapas históricas da auto-
revelação de Deus.
Novamente, o período de Munique nos oferece uma série
de preleções proferidas por Schelling que poderão nos aludar
a entender melhor as suas reflexões finais. As preleçoes a
que nos referimos foram pronunciadas durante o semestre
de inverno de 1832/1833 e o semestre de verão de 1833 e
foram intituladas Fundamento da filosofia positiva. As
primeiras lições do semestre de inverno nos ajudarão a faze:
a transição para a filosofia final, tal como esta se apresentara
nos últimos anos de Schelling em Berlim.
Schelling, inicialmente, pretende esclarecer seu seleto
público ouvinte sobre o significado de "positivo". Positivo
quer dizer, segundo ele, "o que é a emanação de uma v~ntade
determinada, expressa" _41 Em contraposição a um s1stema
positivo encontra-se um sistema negativo, ou seja, um sistema
no qual tudo é explicado mediante deduções lógica.s. Um
sistema positivo, ao invés, requer, para ser exphcado,
personalidade:, vontade e açãoY Seria incorreto supor que
0 cristianismo seja a fonte da filosofia positiva, adverte-nos
Schelling; ele é, antes, seu objeto. O problema consiste em
que, para se poder pensar o cristianismo, segundo Schelli~g,
é preciso conceber uma filosofia histórica, a saber, uma fllo-
sofia capaz de explicar não apenas o desenvolvimento dos
sistemas filosóficos pregressos, mas que se mostre igualmente
apta a compreender o cristianismo, pensado por ele essencialmente
224
como um fato histórico e não como um sistema ou uma
doutrina. Schelling sintetiza essa idéia ao definir a filosofia
positiva como aquela "que explica o mundo a partir da liber-
dade, vontade e ação e, por isso, não a partir de uma mera
emanação lógica de algum princípio". 43 A quinta aula do
semestre de inverno inicia-se com a retomada quase que literal
da introdução de As eras do mundo. O que vimos até aqui já
nos mostra a profunda influência das idéias apresentadas pela
primeira vez vinte anos antes: a liberdade, a vontade e o tempo.
Sem uma concepção da vontade e da liberdade não é possível,
segundo Schelling, iniciar uma reflexão positiva. Tampouco
sem uma correta concepção do tempo é possível compreender
o verdadeiro significado de uma filosofia positiva. A postu-
lação de uma mera sucessão, adverte-nos Schelling, não quer
dizer de modo algum que já nos situemos no interior de
uma filosofia positiva, dado que a sucessão de momentos
concebidos pode perfeitamente ser pensada a partir de uma
concepção lógico-objetiva, como ocorre, por exemplo, no
sistema de Spinoza. Schelling nos esclarece: que B suceda A
em meu pensamento não faz dessa sucessão algo histórico,
pois essa sucessão não é efetiva, ela é meramente pensada.
Em suas próprias palavras:
Um nexo histórico exige, portanto, uma sucessão efetiva nos
objetos, não apenas no meu pensamento. O nexo entre A e B
tem de ser mediado por um acontecimento efetivo. Um tal nexo,
portanto, não se deixa pensar sem um efetivo antes e depois.
Onde, contudo, ocorre um efetivo antes e depois, lá ocorre
também um tempo efetivo. Aquele nexo lógico é totalmente
atemporal. 44
Para que se possa conceber uma filosofia histórica, isto é,
positiva, é preciso pensar em um começo do mundo, é preciso
pensar em um tempo anterior ao tempo deste mundo. 44" Por
quê? Porque, segundo Schelling, se pensarmos que o tempo
é co-originário com o mundo e o pensarmos como uma
sucessão infinita de momentos homogêneos, é necessário
fazê-lo derivar por emanação de uma Idéia eterna. Logo, todos
os sistemas lógicos têm de pensar neste mundo e neste tempo
não como transitórios, mas sim como eternos; esses sistemas,
por conseguinte, são obrigados a conceber este nosso tempo
225
atual como sendo a eternidade. Por isso, é central para a
fundamentação da filosofia positiva constatar que este tempo
em que vivemos não é o tempo em sentido absoluto, mas
apenas e tão-somente um tempo. Ou seja: os modos do tempo
em nosso mundo são apenas conceitos relativos; passado,
presente e futuro são homogêneos; como afirma a célebre
sentença bíblica, esse é o tempo que nós denominamos
habitual (gew6hnlich) e que pode ser expresso pela seqüência
A + A + A... , ou seja, é o tempo em que estão abolidos os
modos temporais. Em suma, ele é uma negação do verdadeiro
tempo, que, na realidade, deve ser pensado, segundo Schelling,
como a seqüência de A + B + C, isto é, como a seqüência de
modos heterogêneos do tempo. Como Schelling afirma com
ironia contra seus detractores: "Se uma metafísica imatura pode
preservar o tempo como a sua má consciência, não será possível
então pensar uma filosofia madura sem uma real exposição e
divisão do tempo." 45
Vê-se, portanto, que para Schelling, uma filosofia que não
comece com o fato da liberdade, mas, ao contrário, que
principie com o mero pensamento, jamais poderá compreender
a natureza última da história e do tempo, dado que esses
nada mais são do que a exteriorização e a explicitação livres
do que estava presente, interior e implicitamente, em um dado
ser. Schelling distingue pois, com clareza, entre um saber
contido no próprio ato de pensar, tal como o saber das
proposições analíticas do tipo A=A, e um outro tipo de saber
que ele assim explica: "Um saber autêntico eu denomino
somente aquele que julga não por meio do mero pensar, mas
que julga por meio do actus." 46 Um saber autêntico é, na
verdade, um não-saber que só pode julgar e, portanto, tornar-se
saber a partir da constatação de um fato. Por exemplo: A pode
ser B, mas pode também ser C. Só poderei saber que foi B se
constatar post actum que não foi C. Logo, não há para Schelling
um saber autêntico nas matemáticas, pois elas não estão sujeitas
às dúvidas, e o saber autêntico, para ele, está presente
apenas onde pode haver dúvida. Schelling nos remete
aqui à distinção elaborada no sexto livro da República, onde
Platão diferencia entre diánoia e epistéme, classificando, a seguir,
a geometria como diánoia e não como epistéme, ou seja, a
geometria para Platão seria uma ciência meramente racional,
mas não uma ciência em seu sentido pleno, não epistéme.
226
Ora, a idéia de Schelling é de que, para ser uma c1encia
autêntica, é preciso que um saber comporte a possibilidade
da dúvida, que ele não seja pura e simplesmente apodítico
ou, em outros termos, que ele não seja necessário, mas
contingente.
Para Schelling, parece surpreendente que se acredite que
o mundo possa ser explicado apenas pela necessidade
racional. Vejamos como ele dá expressão a esse espanto com
suas próprias palavras:
A primeira impressão disto, no geral e em seus pormenores,
tão supremamente fortuito que nós denominamos mundo, não
pode dar a impressão de algo surgido por meio de necessidade
racional, isto é, de algo surgido por mera emanação lógica. O
mundo parece com tudo, menos com uma produção de pura
razão. Ele contém uma preponderante massa de desrazão, de
modo que quase se poderia dizer que o racional seria apenas
o acidente. 47
Schelling retoma a distinção, fundamental nessa última
fase, entre um sistema positivo e um negativo. Este último,
diz ele, é apenas carência de ser(Mangel zu sein), esclarecendo,
a seguir, que um sistema carente não é um sistema falso.
Falso ele só o seria se pretendesse ser um sistema positivo,
ou seja, se prescindisse desse e se quisesse usurpar-lhe o
lugar. Aí, então, a carência se converteria em erro.
Essa passagem entre aquilo que Schelling designará como
a Filosofia Negativa e a Filosofia Positiva tem de ser pensada
a partir de um conceito fundamental da especulação teórica
de Schelling nessa fase final de seu pensamento, a saber, do
conceito de êxtase da razão. O êxtase da razão que não
deve de modo algum ser interpretado como se fosse um indi-
cativo de que Schelling estivesse se perdendo em nebulosas
especulações psicológicas ou místicas constitui, por
conseguinte, o ponto de transição entre a Filosofia Negativa
e a Positiva.
A Filosofia Negativa representa um processo lógico que
pode apreender apenas a possibilidade, a essência, o quid
das coisas; a Filosofia Positiva, ao contrário, é um processo
efetivo que pode explicar a realidade, a existência, o quod
das coisas. O mais significativo na inter-relação entre a Filosofia
227
Negativa e a Filosofia Positiva consiste em que a PositivÇt só
pode iniciar quando a Negativa já tiver esgotado todas as
suas possibilidades, não antes. Apenas quando todas essas
possibilidades já tiverem sido pensadas pela razão, esta se
confronta com o Prius absoluto. Para conhecê-lo o pensamento
não é suficiente, faz-se necessária a experiência. Que tipo de
experiência? Investigaremos isso, a seguir, após termos ao
menos mencionado as importantes distinções que subsistem
entre o conceito de intuição intelectual e o de êxtase da razão.
As diferenças entre esses dois conceitos são as seguintes:
em primeiro lugar, o êxtase ocorre apenas depois da inquirição
teórica, ou seja, apenas de modo mediato, enquanto a intuição
intelectual, presente na fase inicial de Schelling, caracteri-
zava-se por sua irnediatidade; em segundo lugar, o êxtase
relaciona-se à Filosofia Positiva na medida em que ele é um
ato livre, enquanto a intuição intelectual era apenas um
conhecimento teórico; e, por fim, o êxtase conhece apenas o
"Prius absoluto", isto é, aquilo que antecede todo o pensa-
mento, enquanto a intuição intelectual, de acordo com a
visão de mundo de Schelling naquela época, abrangia a
realidade em sua totalidade. Há um aspecto, contudo,
comum a ambos os conceitos. Eles são pensados corno um
tipo de conhecimento superior ao conhecimento meramente
racional e de caráter não-discursivo.
Essencial para compreender as especulações fmais de Schelling
é o conceito de empirismo filosófico, dado ele afirmar, com
muita clareza, que o que define um Sistema Positivo ou a
Filosofia Positiva é a sua historicidade e esta, por sua vez,
fundamenta-se em um ato livre, que nada mais seria do que a
expressão de urna vontade livre. Mas, se a razão é insuficiente
para conhecer um ato efetivo, então de que modo seria possível
conhecê-lo? Apenas e tão-somente por meio da experiência.
É ainda nas densas páginas das preleções de Munique que
deveremos buscar as explicações mais detalhadas de Schelling
acerca desse assunto. A última etapa alcançada pela Filosofia
Negativa, segundo nosso autor, foi a filosofia de Hegel. Ela
concluía com Deus, mas, para Schelling, esse Deus seria
apenas um Deus do conceito, um Deus do pensamento, e
não o Deus efetivo e real. A existência de Deus, para ele, só
pode ser conhecida pela experiência e não pelo pensamento
228
ou, mais exatarnente, apenas pelo pensamento na medida em
que ele é urna experiência; ou seja, apenas pela positividade
do pensar que parte de um ato livre da Personalidade Divina,
mas esse princípio só pode ser a posteriori e não a priori.
Para Schelling, a Filosofia Positiva deve partir do conceito de
Deus e chegar a pensar a sua existência, mas esta só pode ser
"provada" por meio da efetividade de sua ação. 48 Corno
Schelling repetirá exaustivamente até os últimos anos de sua
vida em Berlim, a Filosofia Positiva não se ocupa de dizer o
que Deus é, mas sim de afirmar que Ele é. Em outras palavras:
ela não está preocupada com a essência, com a qüididade de
Deus, com o seu Was, mas apenas e tão-somente com a sua
existência, com a sua quodidade, com o seu Dass. A positivi-
dade de Deus só pode ser comprovada posteriormente à sua
ação, nunca aprioristicarnente.
Schelling se preocupa em diferenciar o empirismo por ele
postulado do empirismo tal corno cornurnente é compreendido.
Este último é regressivo, ou seja, ele parte da experiência
dos fatos e tende para o conceito; o empirismo por ele defen-
dido, ao contrário, é progressivo, isto é, ele parte do conceito
e tende para a existência particular. Daí decorre urna seme-
lhança formal entre o Racionalismo e a Filosofia Positiva, pois
ambos partem do Prius e dirigem-se ao Posterius, mas do ponto
de vista material eles divergem, dado que o Prius de que parte
o Racionalismo é apenas um conceito e o Prius de que parte
a Filosofia Positiva não é urna existência relativa ou contin-
gente, corno a do empirismo no sentido comum, mas sim
absoluta e necessária, é a própria existência de Deus,
conceito supremo da Filosofia Negativa. A Filosofia Positiva
buscará então mostrar a posteriori que o Prius aqui experien-
ciado corno efetivarnente existente é Deus, ou, corno diz Schelling,
é preciso "provar" a divindade do Prius.49 Além disso, enquanto
a progressão no caso da Filosofia Negativa é pensada corno
necessária, no caso da Filosofia Positiva ela é pensada corno
livre.
Há, segundo Schelling, três tipos de empirismo, a saber: o
empirismo subjetivo que se fundamenta no sentimento, ilus-
trado pela filosofia ou não-filosofia de Jacobi; o empirismo
subjetivo-objetivo dos místicos, que se baseia na objetivação
da experiência subjetiva, representado pelo misticismo teo-
sófico de um Jakob Bohrne e, por fim, o empirismo científico,
229
que é, na verdade, uma pre-Clencia em relação à Filosofia
Positiva. 50 (Cabe notar que o cristianismo enquanto fato his-
tórico é, para Schelling, "o mais decisivo antítodo tanto
contra o misticismo teosófico quanto contra o Racionalismo") _51
Algo como o empirismo científico-filosófico é o que Schelling
tem em mente, ou seja, algo como aquele empirismo profes-
sado por Bacon, Pascal, Newton e Locke, que não excluem
Deus. Não o empirismo tal como concebido após Kant, já
que com este e depois dele, segundo Schelling, Deus foi apenas
pensado como pura idéia, excluindo-se Dele toda dimensão
da experiência. 52 Mas o problema desse empirismo tradicional
consiste no fato de ele ser regressivo, ou seja, ele parte das
sensações ou percepções dos singulares e quer chegar a um
conceito; o empirismo verdadeiramente filosófico, tal como
pensado por Schelling, ao contrário, tem de ser progressivo
e não regressivo, isto é, ele deve partir do Prius sumamente
pensável e postulá-lo, a seguir, como o Prius que antecede
todo o pensamento, mas que existe de fato e não apenas na
idéia, e a partir daí tentar mostrar a posteriori a divindade
desse Prius. A Filosofia Positiva, portanto, tem de propor um
novo começo, e esse só pode ser a experiência da existência
que antecede e está pressuposta a todo pensamento. É por
isso que Schelling pode explicar, em um texto mais tardio,
que existem dois tipos de experiência: a cotidiana que afirma
ou nega a existência efetiva de algo e a outra que diz "o que
é possível e o que é impossível: esta é gerada no pensamento". 53
Ou, como ele afirma mais enfática e sucintamente ainda: "O
pensamento, portanto, é também experiência." 54
A filosofia que Schelling desenvolverá em seus últimos
anos em Berlim não é muito diferente dessa. Na verdade, ele
já vinha ministrando cursos sobre os temas que receberão
uma feição definitiva durante a derradeira etapa de sua vida
em Berlim, a saber, sobre a Filosofia da Mitologia e a Filosofia
da Revelação. A intenção de Schelling, nesse momento, é a
de abranger em um único grande painel histórico-cultural não
apenas os diversos sistemas filosóficos, mas também as mito-
logias de outros povos e culturas e as religiões reveladas.
Para isso, a estrutura conceituai por ele adotada é a da sua
dútil doutrina das potências. Essas, como já tínhamos mencio-
nado anteriormente, são concebidas como princípios de ser
em Deus e se tornarão, com o processo de sua explicitação,
230
as potências do devir. Mas, para Schelling, Deus é o Senhor
do Ser. Única e exclusivamente de Sua liberdade depende a
exteriorização ou não dos princípios que Nele residem e que,
caso exteriorizados, tornar-se-ão as potências do devir ou, se
se quiser, as eras do mundo.
Não é possível aqui dar uma idéia da complexidade
argumentativa e da profusão de panteões mitológicos que
Schelling tenta sistematizar a partir de sua doutrina das
potências. A mitologia, para ele, ocupa um lugar análogo ao
lugar outrora ocupado pela Filosofia da Natureza ou, na
linguagem de As Eras do mundo, pela era do passado.
Há algumas páginas luminosas da Introdução histórico-critica à
filosofia da mitologia, nas quais Schelling discute a relação
do tempo com a história. Nelas fica patente que a mitologia,
todas as mitologias, pertencem a um tempo anterior ao nosso.
Em suas palavras: "O verdadeiro conteúdo do tempo pré-
histórico é o surgimento das distintas doutrinas, do ponto de
vista formal e material, sobre os deuses, enfim, da mitologia
em geral, a qual, no tempo histórico, já é algo acabado e
existente; logo, do ponto de vista histórico, um passado." 55
Mas há um período ainda anterior a esse. É o período no
qual o tempo é atemporal, ou seja, é o período no qual não
existem verdadeiramente os modos do tempo, todos eles são
iguais, a homogeneidade reina soberana. Para diferenciá-lo
da era mitológica, que Schelling havia denominado de tempo
pré-histórico, ele o denomina de tempo absolutamente
pré-histórico. O processo mitológico, como Schelling ressalta,
já faz parte de uma Filosofia da História, 56 mas a sucessão das
potências na mitologia é necessária e não livre, tal como ocorre
no período da Revelação.
Schelling nos elucida com bastante clareza que cada um
desses períodos compõe um sistema de tempos. Tempos
esses que, como ele nos diz, diferenciam-se uns dos outros
não pelas particularidades de cada cultura ou das culturas
que pertencem a um determinado período, mas, antes, por
uma diferença interna, essencial e qualitativa dos princípios
(isto é, as potências) que, seguindo-se uns aos outros, mantêm
o predomínio em um determinado período, cujas características
são, assim, precisamente determinadas pela primazia de um
dos princípios (isto é, de uma das potências). 57 É apenas com
231
as religiões reveladas que a necessidade da sucessão mitológica
dá lugar à sucessão livre, motivada pela livre vontade de Deus,
pois, como afirma Schelling categoricamente, "a Revelação
em seu sentido mais elevado [...] é a Revelação dessa vontade" .58
.BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apenas para concluir, e aqui as diferenças com Hegel são
evidentes, cabe dizer que o tempo para Schelling não é um
destino, mas uma livre decisão do Espírito, livre auto-deter-
minação. Para Schelling, o Espírito tem apenas a possibilidade
do tempo; acerca de sua efetivação a escolha é livre e é livre
porque o Espírito, para ele, é o Senhor dos tempos, ele pode
ou não distender os tempos. Para Schelling, então, é evidente
que a eternidade não é um mero conceito negativo, mas
antes uma capacidade de dispor livremente dos tempos ou,
em outras palavras, uma soberania sobre os tempos e não
uma abolição do mesmo. 59 A história efetiva, por sua vez,
deverá sempre ser a narração de uma sucessão realmente
ocorrida, a saber, a sucessão efetiva que só pode ser conhe-
cida a posteriori jamais a priori. Vê-se com isso que a pretensão
da razão de elaborar um sistema capaz de apreender a tota-
lidade segundo um esquema conceituai qualquer, por mais
elaborado e refinado que seja, jamais poderá circunscrever e
antever os acontecimentos efetivos. Só será possível pensar
positivamente se abandonarmos a pretensão de tudo podermos
conhecer e descrever.
Não seria precisamente, nas palavras de Schelling, "a
preponderante massa de desrazão" que nos permite melhor
"compreender" este mundo em que vivemos? Não seria este
fundo obscuro e inacessível, base e fundamento da razão, o
que nos permitiria "compreender" melhor o limite da mesma?
Não seria, em última instância, precisamente uma tal concepção
do tempo e da história a que mais nos ajudaria a entender
melhor o imprevisível e o inaceitável, constituídos pelo
fortuito e pelo casual?
232
NOTAS
1
SCHELLING. System der WTeltalter. Münchener Vor!esung 1827/28 in einer
Nachschrift von Ernst von Lasaulx, p. 16: "Die Zeit ist Anfangspunkt aller
Untersuchung in der Pbilosophie und nie wird sich ein verstãndliche
Entwicklung geben lassen ohne bestimmte Erklãrung von der Zeit."
O Freibeitschrift, título abreviado por meio do qual Investigações filosóficas
sobre a liberdade humana tornou-se conhecido do público de língua
alemã, foi publicado em 1809 e seu autor só morreu em 1854, ou seja, 23
anos após a morte de HegeL
3
Principalmente a partir dos anos cinqüenta, na Alemanha, aparecem
importantes intérpretes de Schelling, como, por exemplo, H. Fuhrmans
e W. Schulz, que buscam revalorizar a sua filosofia intermediária e finaL
4
Lembremo-nos, aqui, apenas da mordaz observação de Feuerbach (que
falava da posse teosófica do Cagliostro filosófico do século XIX) ou da
delirante avaliação de Lukacs (que via na filosofia de Schelling o início de
um irracionalismo que levaria o pensamento alemão em linha direta ao
nazismo).
As obras finais de Schelling (A filosofia da mitologia e A filosofia da
revelação) estão cheias de referências a Aristóteles. Além disso, o diário
de Schelling do ano de 1848 comenta diversos conceitos do pensamento
do Estagirita em quase todas as suas páginas.
Essa monumental obra de VETO. De Kant à Scbelling. Les deux voies de
l'Idéalisme allemand (2 v.), 1998 e 2000, parece-me corrigir a análise
também tendenciosa de W. Schulz, expressa em sua obra SCHULZ. Die
Vollendung des Deutschen Idealismus in der Spãtpbilosophie Schellings,
1955. (2" edição revista e aumentada: 1975), que via a consumação do
Idealismo em Schelling e não em HegeL A análise de Veto me parece
muito mais equilibrada ao ser capaz de reconhecer a cada um dos dois
geniais ex-colegas de Tübingen um papel fundamental no interior de
cada uma das duas vias desenvolvidas pela filosofia idealista. Sobre essa e
outras obras de M. Veto cf. PUENTE. Novas perspectivas sobre o idealismo
alemão, p. 125-130.
7
Sobre essa influência pouco conhecida e explorada, consultar o documen-
tadíssimo livro de FRANK. Der unendliche Mangel an Sein. Schellings
Hegelkritik und die Anfãnge der Marxschen Dialektik, 1975.
8
Kierkegaard foi aluno de Schelling em Berlim. Sobre a relação da filosofia
final de Schelling e o existencialismo, consultar os artigos de TILLICH.
Schelling und die Anfãnge der existentialistischen Protestes, p. 9; e de
MARCEL. Schelling fut-il un précurseur de la philosophie de l'existence?
9
Semelhanças com o pensamento de Schelling foram encontradas até mesmo
em pensadores contemporâneos como]. Derrida, E. Levinas, D. Davidson
e R. Rorty. Acerca desses paralelos, consultar o livro de BOWIE. Scbelling
and Modem European Pbilosopby: An Introduction, 1993.
10
TILLIETTE. Scbelling, une Pbilosopbie en Devenír, v. I, p. 532.
11
K. Jaspers chega mesmo a considerar a investigação sobre o tempo
desenvolvida por Schelling como sendo a mais importante depois da
de Agostinho (cf. JASPERS. Schellings Grasse und sein Verhãngnis, p. 12-50,
esp. p. 22).
233
12
SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 3: "Das Vergangene wird gewusst, das Gegenwã11ige wird erkannt,
das Zukünftige wird geabndet. Das Gewusste wird erzãblt, das Erkannte
wird dm-gestellt, das Geabndete wird geweissagt."
t3 SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 10.
14 SCHELLING. Sãmtlicbe WTerke, p. 38.
t5 SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 59.
16
SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 81 e 82: die ganze Zeit.
17
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 13: "\Vie vielgestaltig ist das Anseben der Zeit."
18
SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 12: "Alies ist nur WTerk der Zeit und nur durcb di e Zeit erbãlt fedes
Ding seine Eigentbümlicbkeit und Bedeutung."
t9 SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 78: " ... kein Ding bat eine ãussre Zeit, sondem fedes nu r eine
innre, eigne, ibm eingeborne und inwobnende Zeit."
20
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 78-79: "Kein Ding entstebt in der Zeit, sondem in fedem Ding
entstebt die Zeit auf's Neue ..."
21
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 79: " .. jenes Scbeinbild einer abstrakten Zeit, vom welcber zu
sagem ist, sie sey eine blosse WTeise unseres Vorstellens, nur nicbt eine
notbwendige und angebonze, sondern eine zufãllige und angenommne."
22
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 81.
23 WIELAND. Scbellings Lebre von der Zeit. Grundlagen und Voraussetzungen
der Weltalter-philosophie, p. 21.
24 SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 74-75.
25 SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 80: "wie viele Zeit ist scbon ve1jlossen? sondem-: wie viele Zeiten
sind scbon gewesen?'
26
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 80.
27
SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 80: "Nun muss diese Folge von Zeiten docb wobl selbst zeitlos
seyn, und kann also nicbt wieder nacb irgend einer Zeit gemessen oder
bestimmt werden."
28
SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 262.
29
SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 252.
30
TILLIETIE. Dall'idea di eternità ai pensiero dei tempo, p. 131.
30a Sobre o tema da analogia entre o homem e Deus como motivo que
perpassa todo o pensamento de Schelling consultar PUENTE. As concepções
antropológicas de Scbelling, 1997, esp. p. 39-59.
234
31
Cf. SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811
und 1813, p. 10.
32
Eclesiastes I, 9.
33 Cf. SCHELLING. System der WTeltalter. Münchener Vorlesung 1827/28 in
einer Nachschrift von Ernst von Lasaulx, p. 15.
4
3 Cf. \VIELAND. Scbellings Lebre von der Zeit. Grundlagen und Vorausset-
zungen der Weltalter-philosophie, p. 32, n. 13; p. 35, n. 14; e p. 36, n.
15; cf. SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von
1811 und 1813, p. 20.
3 5 SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 179; cf. também p. 25.
6
3 SCHELLING. Die WTeltalte1~ Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 128.
7
3 Cf. SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811
und 1813, p. 12.
3s WIELAND. Scbellings Lebre von der Zeit. Grundlagen und Voraussetzungen
der Weltalter-philosophie, p. 9; e TILLIETIE. Dall'idea di eternità a!
pensiero dei tempo, p. 117.
39 SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811 und
1813, p. 223.
4
° Cf. SCHELLING. Die WTeltalter, Fragmente. In den Urfassungen von 1811
und 1813, p. 98.
41
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 83.
42
Cf. SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 83.
4
3 Cf. SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 84.
44 SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 87.
H Sobre essa idéia do início do mundo cf. SCHUBACK. O começo de Deus.
A filosofia do devir no pensamento tardio de F. W.]. Schelling, 1998.
45
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 90.
46
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 97.
47
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 99-100.
48
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 244.
4
9 SCHELLING. Gnmdlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 246-247;
SCHELLING. Sãmtlicbe WTerke, p. 129.
50
SCHELLING. Grzmdlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 249.
51 SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 266.
52
SCHELLING. Grundlegung der Positiven Pbilosopbie, p. 271.
53 SCHELLING. Pbilosopbie der Mytbologie, p. 326.
54
SCHELLING. Pbilosopbie der Mytbologie, p. 326.
55 SCHELLING. Pbilosopbie der Mytbologie, p. 233.
56 SCHELLING. Pbilosopbie der Mytbologie, p. 237.
57
SCHELLING. Pbilosopbie derMytbologie, p. 239.
58
SCHELLING. Pbilosopbie der 0./Jenbarung, p. 10.
59
Uma sucinta mas iluminadora comparação entre a noção de tempo e
eternidade em Hegel e Schelling pode ser consultada em KASPER. Der
Absolute in der Gescbicbte. Philosophie und Theologie der Geschichte in
der Spaetphilosophie Schellings, p. 259-260.
235
REFERÊNCIAS SCHUBACK, M. O começo de Deus. A filosofia do devir no pensamento
tardio de F.W.J. Schelling. Petrópolis: Vozes, 1998.
BOWIE, A. Schelling andModemEuropeanPhilosophy: An Introduction. SCHULZ, W. Die Vollendung des Deutschen Idealismus in der
London and New York: Routledge, 1993. Spatphilosophie Schellings. Sttutgart: Kohlhammer, 1955.
BÍBLIA SAGRADA. Eclesiastes. I, 9. TILLICH, P. Schelling und die Anfánge der existentialistischen Protestes.
FRANK, M. Der unendliche Mangel an Sein. Schellings Hegelkritik Zeitschrift fiír philosophische Forscbung, v. 9, 1955.
und die Anfánge der Marxschen Dialektik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, TILLIETTE, X. Dall'idea di eternità al pensiero del tempo. ln: ___.
1975. Attualità di Schelling. Milano: U. Mursia & C., 1972. p. 117-140.
JASPERS, K. Schellings Grasse und sein Verhangnis. StudiaPhilosophica, TILLIETTE, X. Scbelling, unePhilosophieenDeveni1: Paris: Vrin, 1974.
v. 14, p. 12-50, 1954. v. 1 e 2.
KASPER, W. DerAbsolute in derGeschichte. Philosophie und Theologie VETO, M. De Kant à Scbelling. Les deu:x vaies de l'Idéalisme allemand.
der Geschichte in der Spaetphilosophie Schellings. Mainz: Matthias- Grenoble: Jerôme Millon, 1998 e 2000. 2 v.
Gruenewald, 1965.
WIELAND, W. Schellings Lebre von der Zeit. Grundlagen und
MARCEL, G. Schelling fut-il un précurseur de la philosophie de Voraussetzungen der Weltalter-philosophie. Heidelberg: Carl Winters
l'existence? Revue de Metaphysique et Morale, n. 62, p. 72-87, 1957. Universitaetsverlag, 1956.
PUENTE, F. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo:
Loyola, 1997.
PUENTE, F. Novas perspectivas sobre o idealismo alemão. Síntese,
n. 96, v. 30, p.125-130, 2003.
SCHELLING, F. W.]. Die WeltalteJ~ Fragmente. ln den Urfassungen
von 1811 und 1813. M. Schroeter (Org.). München: Beck, 1966. v. 1-4.
SCHELLING, F. W. ]. Philosophie der Mythologie. Darmstadt:
Wissenschaeftliche Buchgesellschaft, 1990. v. 1.
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Wissenschaeftliche Buchgesellschaft, 1990. v. 2.
SCHELLING, F. W.]. Grundlegung der Positiven Philosophie. H.
Fuhrmans (Org.). Torino: Bottega d' Erasmo, 1972.
SCHELLING, F. W.]. Samtliche Wm"ke. K. F. A. Schelling (Org.). Stuttgart:
Cotta, 1856/1861. v. 3.
SCHELLING, F. W.]. System dm· Weltaltm·. Münchener Vorlesung 1827I
28 in einer Nachschrift von Ernst von Lasaulx. Herausgegeben und
eingeleitet von Siegbert Peetz. Frankfurt am Main: V. Klostermann,
1990.

236 237
 ~CHHliNG NO ÂM~ITO DA
I

HI~TO~IA DA fllO~OfiA
INflU~NCIA~ c Rc~cRCU~~Óc~
R C A R D O BARBOSA

~O~~t ATA~tfA DA fllO~OfiA DA

NATU~tZA
.
UMA RcflcXAO ArARTIR De ~CHclliNG

O que se segue não é propriamente um trabalho sobre

Schelling, mas, como sugere o subtítulo, uma reflexão a partir
dele e através dele, pois o que está em primeiro plano é
antes um problema: o da tarefa de uma filosofia da natureza.
Tomarei como fio condutor a posição do problema da filosofia
como ciência e sua estrutura como sistema no "primeiro" Schelling,
para quem o sistema da filosofia é estruturado em duas partes,
às quais correspondem duas ciências: a "filosofia da natureza"
e a "filosofia transcendental". Schelling deduz suas respectivas
tarefas de um único princípio: o da identidade de sujeito e
objeto. No entanto, a concepção da filosofia como ciência e
sua estrutura como sistema muda significativamente se se transita
do princípio da identidade para o da unidade de identidade e
não-identidade de sujeito e objeto. À luz deste princípio,
gostaria de indicar as condições em que a "filosofia da natureza"
e a "filosofia transcendental" poderiam ser reconstruídas.
A arquitetônica do sistema da filosofia- ou do "sistema
do saber", em sentido enfático - é delineada na Introdução
a um esboço de um sistema da filosofia da natureza (1799) 1 e
retomada na "Introdução" do Sistema do idealismo transcen-
dental (1800). Nela encontra-se a proposição que contém em
germe o conjunto do sistema: "Todo saber baseia-se no acordo
CÜbereinstimmung) de algo objetivo com algo subjetivo. -
Pois sabe-se apenas o verdadeiro; a verdade, porém, é posta
em geral no acordo das representações com os seus objetos." 2
No pólo do objeto, figura a natureza (o representado, o sem
consciência); no do sujeito, o eu ou a inteligência (o repre-
sentante, o consciente). Como o saber é o encontro de ambos
os pólos, diz Schelling, a questão é explicar este encontro. A
união de ambos os pólos no saber é tal que não há prioridade
de um sobre o outro. Querer explicar esta identidade implica
tomá-la como já supra-sumida. Resta assim opor um pólo ao
outro, partir de um para chegar ao outro, e vice-versa. Com
isto, dois caminhos se abrem - e somente dois: o caminho
da filosofia da natureza, que parte do objetivo ao subjetivo; e
o caminho da filosofia transcendental, que parte do subjetivo
ao objetivo. 3
Ernst Bloch chamou a atenção para a peculiaridade da
posição do problema da filosofia da natureza. Enquanto Kant
perguntava sobre como o sujeito chega ao objeto, fazendo
desta pergunta o cerne da filosofia transcendental, Schelling
inverte os termos do problema: "Como o objeto chega ao
sujeito e através dele a si mesmo? E esta é exatamente a
pergunta fundamental da filosofia da natureza de Schelling,
um pensamento de grande ousadia. "4 Essa ousadia na inversão
do problema da filosofia transcendental implica, por um lado,
a radicalização do pensamento de Kant, na medida em que
sugere a possibilidade de uma segunda auto-reflexão da
razão. No centro dessa pergunta está o problema da gênese
do homem, da emergência do homem desde o escuro fundo
histórico da natureza ou seja, o problema da passagem do
objeto ao sujeito, do inconsciente ao consciente, da natureza
ao espírito, da necessidade à liberdade, da história natural à
história humana da natureza.
Como se dá que a natureza tenha um impulso para o homem,
que um filho humano e não um homem macaco nem um homún-
culo seja preparado na gigantesca e fervilhante retorta do mundo
e a natureza abra um olho na consciência humana? (. .. ) A
natureza, diz Schelling, é a Ilíada, e a cultura, a Odisséia do
espírito ou a história do espírito. A Ilíada é repleta de luta,
guerra, sangue, tensão, assassinato, homicídio, selvageria, rela-
tiva falta de consciência da embriaguês da luta, a Odisséia faz o
retomo conscientemente empreendido a Ítaca. A partir de muitos,
242
muitos extravios, ascende agora uma meta, a cultura humana,
na qual a natureza desperta inteiramente do seu sono, na qual,
portanto, o não-eu chega ao eu, o objeto ao sujeito. 5
No entanto, ao mesmo tempo em que radicaliza a filosofia
kantiana, Schelling como que dá um passo aquém de Kant,
na medida em que postula a identidade de sujeito e objeto,
assimilando o conhecimento humano ao conhecimento em
geral como autoconsciência da natureza através do homem.
A natureza alcança sua meta suprema, tornar-se ela mesma
inteiramente objeto, somente através da suprema e última
reflexão, que não é outra coisa senão o homem ou, em sentido
mais geral, o que chamamos razão, pela qual a natureza retorna,
pela primeira vez, inteiramente a si mesma e pelo que se torna
manifesto que a natureza é originariamente idêntica com o que
em nós é conhecido como inteligente e consciente. 6
Mas com que direito se afirma que o tornar-se consciente
de si é a "meta suprema" da natureza, e que esta reflexão -
"a suprema e última" se processa "pela primeira" vez no
homem e pelo homem, evidenciando assim a identidade
originária de sujeito e objeto? Em primeiro lugar, simples-
mente não se sabe se o tornar-se consciente da natureza é
sua meta mais alta e última, nem que isso tenha se dado pela
primeira vez no homem e pelo homem. Além disso, esta iden-
tidade originária de sujeito e objeto é o que resulta de uma
ilícita projeção retrospectiva de uma meta supostamente atingida
no homem e pelo homem.
A concepção da filosofia como ciência e sua estrutura como
sistema se transforma quando se transita de uma filosofia da
identidade para uma filosofia materialista da natureza e da
práxis, ou seja, quando se passa do princípio da identidade
de sujeito e objeto ao da unidade da identidade e da não-
identidade de sujeito e objeto. Sob esse aspecto, a natureza é
produtiva de um duplo modo: ou cega e sem consciência, ou
livre e com consciência. À produção inconsciente corresponde
a infinita multiplicidade do existente; já a produção consciente
é aquela própria ao homem, ele mesmo um produto da natu-
reza. A produtividade da natureza - a natura naturans-
não é um "ser", uma "coisa", e sim um conjunto de forças -
as forças produtivas da natureza. Bloch observa, nas reflexões
243
de Schelling sobre o nexo entre a natura naturans e a natura
naturata e em sua exigência de que o produtor não seja
esquecido no produto, os germes do que em Marx tomai-ia a
forma de uma crítica à alienação e à reificação.
Os produtos solidificados devem ser postos de novo em liber-
dade pelo pensamento reflexivo, que fermenta com as coisas e
segue seu curso em sintonia com elas, para que o homem se
tome partícipe do processo natural, do brotar. Daí a frase de
modo algum solipsista de Schelling: "Filosofar sobre a natureza
significa produzir a natureza." Isto não significa aqui criá-la, e
sim produzir em aliança com ela, estar no mesmo estado que a
natureza, o que para Schelling é válido também para o sujeito
filosófico-científico, e não, como na Crítica da faculdade do
juízo de Kant, somente para o sujeito artístico. Isto quer dizer
que as forças do devir da natureza têm de ser postas de novo
em liberdade pela filosofia da natureza e pensadas na dialética
que, segundo Schelling, opera na contradição entre a produtivi-
dade infinita e os produtos finitos da natureza em cada caso. 7
De um ponto de vista materialista, a práxis humana é o
prolongamento da natura naturans no homem, o vir-a-ser
livre e consciente das forças naturais tornadas humanas,
assim como os produtos da práxis humana são a natureza
naturada pelo homem. A práxis é assim a atividade vital
humana, o medium da humanização da natureza e da natura-
lização do homem. O chamado mundo da experiência não é
outra coisa senão o mundo constituído pela práxis humana.
O que Marx chamou de "forças produtivas" são as forças
produtivas humanas. Trata-se de entendê-las como um
momento - o momento consciente - das forças produtivas
em geral. Assim, a natura naturans prolonga-se no homem
sob a forma das forças produtivas humanas, ou seja, sob a
forma da práxis humana, de um tal modo que a natureza cega
como que abre os olhos. No homem e através do homem, a
natureza colhe uma imagem de si mesma, vendo inclusive sua
própria cegueira. E como à cegueira da natureza não humana
se junta a sua mudez, pode-se dizer que no homem a natureza
não apenas abre os olhos, mas também põe-se a falar, embora
o faça somente como homem. O homem não é um "ventríloco"
nas mãos da natureza. O saber e a ação humanos são uma
244
perspectiva possível da natureza sobre si mesma, aberta por
ela através dele e por ele através dela.
A filosofia supera essa oposição entre a atividade incons-
ciente e a consciente, entre a natureza cega e a que vê, entre
a natureza muda e a falante, ao supor que ambas têm a mesma
raiz, embora a atividade consciente, a atividade especifica-
mente humana, eleve essa raiz a uma potência de tal modo
própria que o dito de Marx, segundo o qual a raiz do homem
é o próprio homem, é acolhido sem conflitos no âmbito da
filosofia da natureza. O fato de essas duas atividades terem a
mesma raiz não significa que elas sejam somente idênticas.
Trata-se antes de uma unidade na diferença. E como a dife-
rença é o homem, e a história humana um tardio processo de
diferenciação no interior mesmo da história da natureza, a
inteligência humana figura como leitora de um texto que é,
ao mesmo tempo, o da pré-história e da história humanas,
como também o horizonte do seu futuro. Inteligência (intus
+ legere) significa a capacidade de "ler dentro". Tudo se passa
como se a natureza fosse um velho texto, uma velha história
em aberto que, num momento tardio, produziu um novo
personagem, seu leitor e intérprete: o homem. Mas isso de
tal modo que este viesse a continuar a escrever o texto no
qual surgiu, tomando-se assim seu co-autor ao fazer sua própria
história.
Se se quer pensar a tarefa de uma filosofia da natureza, é
preciso reter o impulso materialista das reflexões de Schelling
sem recair num nível de consciência filosófico pré-crítico. Em
outras palavras, é preciso reter seu impulso de inversão do
problema kantiano sem recair na identidade de sujeito e objeto
e na universalização do ponto de vista humano sobre a natu-
reza. A transição ao momento da não-identidade e o descen-
tramento da posição do homem na natureza correspondem
assim à dissolução do absoluto na história, o que não implica
necessariamente o abandono da idéia da reconciliação entre
sujeito e objeto, espírito e natureza. Habermas, que com razão
viu em Bloch um "Schelling marxista" ,8 foi um estudioso das
afinidades entre o jovem Marx e Schelling. O motivo central
dessas afinidades concentra-se em torno de um velho tópos
do pensamento místico e especulativo: a ressurreição da
natureza como a mais alta tarefa histórica do homem. 9 Esse
motivo foi recolhido por Schelling, comunicado ao jovem Marx e
245
deste às reflexões de Horkheimer, Adorno, Benjamin e Marcuse,
encontrando porém no materialismo especulativo de Ernst Bloch
sua formulação mais impressionante. Em forte oposição a essa
rica e diferenciada tradição de um materialismo especulativo,
Habermas afirma que um dos motivos centrais dos Manuscritos
econômico-filosóficos- a "ressurreição da natureza" "não se
deixa pensar materialisticamente de uma forma conseqüente". 10
Como o materialismo rigoroso seria aquele que levasse às
últimas conseqüências a não-identidade de sujeito e objeto, uma
"ressurreição da natureza" só poderia ser admitida às custas de
uma concessão irrefletida à filosofia da identidade.
Acredito que a idéia de reconciliação se deixa pensar plena-
mente à luz da dialética da identidade e da não-identidade de
sujeito e objeto, o que significa ultrapassar a falsa representação
segundo a qual o princípio da identidade estaria para o idea-
lismo assim como o da não-identidade para o materialismo.
Em sintonia com o "franco pensamento juvenil" 11 de Schelling e
com o mais profundo motivo materialista da Fenomenologia do
espírito- a tese da autoprodução do homem pelo trabalho - ,
os Manuscritos contêm um conceito enfático de filosofia, que
consiste na idéia de um "humanismo" ou de um "naturalismo
realizado" .12 O princípio filosófico do "humanismo" ou do
"naturalismo realizado" é antes o da unidade de identidade
e não-identidade de sujeito e objeto. Identidade, na medida
em que o homem é um produto tardio e contingente da natu-
reza e, como tal, objeto; não-identidade, na medida em que a
natureza produziu um ser capaz de autoproduzir-se em virtude
de sua própria atividade vital um ser que, como tal, toma
a natureza como o objeto da exteriorização de suas forças
essenciais. Sob esse aspecto, lembra Marcuse, "a natureza não
é uma manifestação do 'espírito', mas o seu limiteessencial". 13
A unidade do subjetivo e do objetivo, da produtividade e
do produto, da identidade e da não-identidade de sujeito e
objeto dá-se no âmbito da história humana como auto-
relação da natureza, pois sendo o homem um momento da
natureza, a natureza está em relação consigo mesma através do
metabolismo (Stoffiuechsel) entre o homem e o seu entorno
natural.
Ao chamar sua filosofia de "humanismo" ou "naturalismo
realizado", Marx advertiu que ela deveria ser entendida como
246
a superação da oposição entre o materialismo e o idealismo
de até então, pois seria a "verdade unificadora de ambos" . 1•
O alcance dessa unificação foi precisamente indicado com a
introdução do conceito de práxis nas Teses sobre Feurbach.
Em sua crítica simultânea ao materialismo e ao idealismo,
Marx notou que o que ambos perdem de vista é justamente o
principal: a atividade objetiva do homem. Assim, tanto o
materialismo quanto o idealismo não teriam sido radicais o
bastante na fundamentação da tese segundo a qual toda a
realidade é subjetivamente mediatizada. Se ser radical é tomar
as coisas pela raiz, e se a raiz do homem é o próprio homem,
isto quer dizer que aquela mediação subjetiva é fundamental-
mente constituída pela atividade humana sensível, pela práxis.
Assim, o conceito de práxis reveste-se de duas dimensões funda-
mentais: a da constituição do mundo da experiência humana-
mente possível, mediante o intercâmbio orgânico dos homens
entre si e com a natureza, e o que Marx chama de atividade
"revolucionária", "prático-crítica", 15 ou seja, a transformação
das condições institucionais sob as quais se dá aquele inter-
câmbio. No entanto, o conceito de práxis em Marx é ainda
tão amplo quanto pouco diferenciado. Creio que um dos
principais méritos de Habermas foi o de ter notado precisa-
mente isto e reformulado esse conceito mediante a distinção
entre trabalho e interação. A novidade desse conceito está
em que ele opera uma distinção entre dois âmbitos de ação
que não se deixam reduzir um ao outro e de cuja dinâmica
depende a reprodução social da espécie. Assim, o problema
kantiano das condições da constituição da experiência
problema que fora retomado por Schelling segundo a chave
de um idealismo especulativo e, posteriormente, radicalizado
por Marx mediante a introdução de um conceito de práxis
inseparável de uma visão rigorosamente histórica e materia-
lista da natureza e da sociedade - é radicalizado ainda mais
pela distinção entre aqueles dois âmbitos de ação. Por um
lado, trabalho e interação passam a figurar como elementos
histórico-transcendentais a priori, nos quais se enraízam,
respectivamente, os interesses técnico e prático, de acordo
com os quais se dá a constituição da experiência - ou seja, dos
objetos naturais e sociais no processo mesmo da reprodução
social da espécie. Por outro lado, é operada uma distinção
entre as condições da objetividade dos enunciados referidos
247
à experiência e as condições de sua validade intersubjetiva,
condições estas que se prendem às estruturas universais e
necessárias do entendimento possível acerca de algo no mundo.
É justamente à luz desse conceito de práxis que o motivo
da reconciliação se deixa pensar. E se se quer pensá-lo até o
fim, é preciso compreender a dialética da identidade e da
não-identidade no interior mesmo da mudança de paradigma
filosófico proposta por Habermas, mas sem perder de vista
que a transformação pragmático-lingüística da filosofia trans-
cendental é inseparável da reconstrução do materialismo
histórico - e que na base de ambas está um dos principais
resultados da crítica de Habermas a Marx: a reformulação do
conceito filosófico fundamental do materialismo histórico, o
conceito de práxis. Penso que assim seja possível lançar um
feixe de luz sobre a idéia de uma filosofia da natureza capaz
não só de recuperar algumas das mais ricas intuições que
Bloch formulara via Schelling, Hegel e o jovem Marx, como
também o núcleo universalista do problema da renconciliação
tal como Adorno o pensou. 16 Em outras palavras, o que está
em jogo é uma tentativa de contribuir para a fundamentação
de um conceito de materialismo compatível com a chamada
guinada pragmática em filosofia. Mas o que à primeira vista
pode sugerir uma espécie de "adaptação" do materialismo às
orientações de fundo da filosofia pragmática da linguagem
deve ser entendido de um outro modo: trata-se de contribuir
para a fundamentação de um conceito de materialismo
compatível com a chamada guinada pragmática em filosofia,
mas de tal modo que esta guinada possa ser entendida como
uma guinada materialista capaz de tornar possível um conceito
materialista de reconciliação; ou, ainda, de conceber o materia-
lismo como uma filosofia da reconciliação.
É segundo essa perspectiva, em sintonia com a qual o
problema do nexo entre a história natural e a história humana
é reformulado à luz do conceito de práxis como trabalho e
interação, que a concepção da filosofia como ciência e sua
estrutura como sistema se deixa transformar. A unidade
histórica de sujeito e objeto é a unidade de intersubjetividade
e objetividade no medium da natureza e da sociedade. Dois
caminhos complementares se abrem à investigação da unidade
histórica de intersubjetividade e objetividade no saber humano:
248
da natureza ao homem e do homem à natureza. Em ambos os
casos, a sociabilidade constituída pelo trabalho e pela interação
figura como mediação. O horizonte do primeiro caminho é o
da história natural do homem; o do segundo, o da história
humana da natureza. O primeiro caminho é percorrido pela
filosofia da natureza; o segundo, pela filosofia da práxis. A
filosofia da natureza se ocupa do processo pelo qual a natureza
cria as condições do seu vir-a-ser consciente. Ela se volta,
assim, para a passagem da natureza ao "espírito" como uma
estrutura de comunicação, uma intersubjetividade universal,
para a auto-reflexão da natureza no homem. Já a filosofia da
práxis se ocupa das condições pelas quais o homem constitui
e transforma o mundo. Ambos os caminhos convergem para
um mesmo ponto, que é também a sua origem. Na unidade
histórica de sujeito e objeto, a idéia-tarefa da reconciliação
de natureza e espírito: naturalização do homem e humanização
da natureza, emancipação da sociedade como ressurreição
da natureza. Uma idéia-tarefa infinita.
NOTAS
1
SCHELLING. Einleitung zu dem Entwwj eines Systems der Natwpbilosophie
oder Über den Begri.ff der speculativen Pbysik und die innere Organisation
eines Systems dieser 1Vissenscbaft, p. 339-341.
SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, p. 407.
3 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, p. 407-408.
4
BLOCH. Leipziger Vorlesungen zur Gescbicbte der Philosopbie, p. 200.
BLOCH. Leipziger Vorlesungen zur Gescbicbte der Pbilosopbie, p. 200-201.
6 SCHELLING. System des transcendentalen Idealismus, p. 409.
7
BLOCH. Leipziger Vorlesungen zur Gescbicbte der Pbilosopbie, p. 203.
8
HABERMAS. Ernst Bloch - Um Schelling marxista.
9 HABERMAS. Dialektische Idealismus im Übergang zum Materialismus -
Geschichtsphilosophische Folgerungen aus Schellings Idee einer Contraction
Gottes.
10
HABERMAS. Erkenntnis und Interesse, p. 45.
11
Cf. MARX. Carta a Feuerbach, de 3 de outubro de 1843, p. 881.
12
MARX. Paríser Manuskripte 1844, p. 77.
13 MARCUSE. Contra-revolução e revolta, p. 72.
14
MARX. Pariser Manuskripte 1844, p. 117.
15 MARX; ENGELS. Tbesen über Feuerbacb, p. 196.
249
16
BARBOSA. Dia/ética da reconciliação. Estudo sobre Habermas e Adorno; SCHELLING, F. W. ]. Einleitung zu dem Entwwf eines Systems der
e BARBOSA. Reconciliação como consenso? Sobre uma aporia da crítica Natwphilosophie oder Über den Begrif.f der speculativen Physik und
de Habermas a Adorno. die innere Organisation eines Systems dieser Wissenschaft. ln:
Ausgewãhlte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1995. v. 1.
SCHELLING, F. W.]. System des transcendentalen Idealismus. In:
Ausgewãhlte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1995. v. 1.
REFERÊNCIAS

BARBOSA, R. C. Dia/ética da reconciliação. Estudo sobre Habermas

e Adorno. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1996.
BARBOSA, R. C. Reconciliação como consenso? Sobre uma aporia
da crítica de Habermas a Adorno. ln: LASTÓRIA, L. A.; Da COSTA,
B. C.; PUCCl, B. (Org.). Teoria crítica, ética e educação. Piracícaba/
Campinas: Editora UNIMEP/Editora Autores Associados, 2001.
BLOCH, E. Neuzeitliche Philosophie II: Deutscher ldealísmus. Die
Philosophíe des 19. Jahrhunderts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991. v. 4.
BLOCH, E. Leipziger Vorlesungen zur Geschichte der Philosophie.
ln: ___ . Neuzeitliche Philosophie II: Deutscher ldealísmus. Die
Philosophie des 19. Jahrhunderts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991. v. 4.
HABERMAS, J. Dialektische ldealísmus im Übergang zum
Materialismus - Geschíchtsphilosophísche Folgerungen aus Schellings
ldee eíner Contraction Gottes. ln: Tbeorie und Praxis. Frankfurt:
Suhrkamp, 1978.
HABERMAS,]. Erkenntnis und Interesse. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.
HABERMAS,]. Ernst Bloch Um Schelling marxista. ln: FREITAG,
B.; ROUANET, S. P. (Org.). Habermas. São Paulo: Átíca, 1980. v. 15.
(Coleção Grandes Cientistas Sociais).
MARCUSE, H. Contra-revolução e revolta. Rio de Janeiro: Zahar,
1973.
MARX, K. Carta de Marx a Feuerbach, de 3 de outubro de 1843. ln:
Die Hegelsche Linke. Dokumente zu Philosophie und Polítik irn
deutschen Vormarz. Leipzig: Reclam, 1985.
MARX, K. Pariser Mm~uskripte 1844. Hamburgo: Rowohlt, 1968.
MARX, K.; ENGELS, F. Tbesen über Feuerbach. ln: Ausgewãhlte
Werke. Berlín: Dietz, 1989. v. 1.

250 251
C A R L O S c R N E L M A

CAU ~Ali DAD c c AUTO.

"
O~GANIZAÇAO

A Teoria de Sistemas, também chamada de Teoria de

Auto-Organização, foi criada por Ludwig von Bertalanffy que,
em 1945,1 a publicou em alemão e, em 1950, 2 em inglês. A
Teoria de Sistemas, inicialmente uma teoria nos quadros da
Biologia, apresentada logo após a segunda grande guerra
mundial por um jovem cientista austríaco, transformou-se, no
decorrer da segunda metade do século XX, numa das mais
importantes e instigantes teorias de toda a ciência. A Teoria
de Sistemas, nestes cinqüenta anos, saiu dos limites da Biologia
e deu origem à Cibernética (Norbert Wiener) e à Ecologia
(Uexküll, Weiszacker); foi introduzida com imenso sucesso
na Sociologia e no Direito (Niklas Luhmann), na Psicologia
(Buckley), na Neurofisiologia do Conhecimento (Maturana,
Varella), na Medicina, na Psiquiatria (Gray, Duhl, Rizzo), nas
teorias de Administração, na Economia Política e, para surpresa
de muitos, nas ciências duras, ou seja, na Química (Prigogine)
e na Física (Lee Smolin). Em nossos dias, há até quem afirme
que a Grande Teoria Unificada pode ser construída através
da Teoria de Sistemas. O sonho científico de todos os grandes
físicos, até hoje não concretizado, de formular uma teoria
universalíssima do Universo, na qual estejam conciliadas
tanto a teoria da relatividade como a mecânica quântica, pode
vir a ser realizado pela Teoria de Sistemas, diz o físico Lee
Smolin. "Possivelmente ele tenha razão", afirma Murray
Gell-Man, 3 um dos mais respeitados físicos contemporâneos.
Da fonte inicial, em seu começo tão singela, originou-se
um fio d'água que se transformou em rio caudaloso, que atra-
vessa, hoje, quase todas as ciências, engendrando, por onde
passa, um húmus rico, prenhe de promessas de novos avanços
científicos e de novas e revolucionárias soluções. Os defensores
da Teoria de Sistemas, os adeptos da Teoria de Auto-Organi-
zação, estão hoje bem cientes de que formam, no panorama
da ciência, uma das pesquisas de ponta que mais frutos
promete. Estão, eles, entretanto, completamente enganados
no que se refere ao conhecimento do horizonte filosófico em
que se situam e - por que não dizê-lo? no que se refere
ao reconhecimento de suas origens. Niklas Luhmann, em seu
livro Die Wissenscbaft der Gesellscbaft, 4 escreve que a Teoria
de Sistemas nasce no século XX com Ludwig von Bertalanffy,
sendo, assim, fruto ainda em fase de formação do pensamento
contemporâneo. Quando de sua longa estadia em Porto
Alegre, anos atrás, muito discuti com Luhmann a esse respeito.
Tentei mostrar-lhe que a estrutura subjacente à Teoria de
Sistemas dos cientistas contemporâneos era exatamente a mesma
que constituía o núcleo duro da teoria sobre causa sui dos
filósofos neoplatônicos, de Platino e também de Nicolaus
Cusanus, Espinosa, Goethe, Schelling e Hegel. Luhmann
percebeu, é evidente, as semelhanças estruturais existentes
entre auto-organização e causa sui, mas nunca consegui
convencê-lo de que houvesse uma ligação histórica entre
ambas as doutrinas, de que as teorias sobre auto-organização
eram uma continuação orgânica das teorias neoplatônicas
sobre causa sui. Poucos anos depois, Humberto Maturana,
provocado a este respeito por Myriam Graciano, respondeu
de maneira igualmente negativa. Antes do seu estágio
com Maturana em Santiago do Chile, Myriam passara um
semestre em meu seminário, em Porto Alegre, e de mim ouvira
que a Teoria de Sistemas era a figuração contemporânea da
antiga e veneranda doutrina neoplatônica sobre a causa sui.
Indo de Porto Alegre para Santiago do Chile, Myriam Graciano
perguntou a Maturana, de forma clara e direta, qual a origem
da Teoria de· Sistemas. Maturana asseverou-lhe que se tratava
de uma teoria contemporânea, criada por Bertalanffy, e que
qualquer ligação com teorias filosóficas do passado deveria
ser desconsiderada.
Errado, muito errado. Auto-organização é a forma
contemporânea de pensar e dizer o que a tradição chamava
de causa sui e, em época posterior, de autodeterminação. A
Teoria de Sistemas ou de Auto-Organização é a roupagem
sob a qual se esconde, em nossos dias, a ontologia do
254
neoplatonismo. E é por isso que a Teoria de Sistemas é tão
rica e tão prenhe de soluções: ela é a herdeira intelectual de
Platão, Platino, Prado e Agostinho, de Nicolaus Cusanus e de
Giordani Bruno, de Espinosa, Fichte, Schelling e Hegel. Por
isso a Teoria de Sistemas é, ao mesmo tempo, tão misteriosa
e tão esclarecedora, tão luminosa que chega a ofuscar. Hoje
tenho a prova, clara e convincente, que me faltou à época em
que discutia sobre isso com Luhmann. Se Luhmann ainda fosse
vivo, bastaria, para dirimir a questão, mostrar-lhe a dedi-
catória que Bertalanffy pôs no começo da Teoria Geral de
Sistemas. Claro que eu a havia lido quando, pela primeira
vez, bem jovem ainda, lera o livro de Bertalanffy. Mas qual
jovem dá importância a dedicatórias? Dedicatórias são, via de
regra, para a esposa, para os filhos, para os pais. Mesmo
quando a dedicatória é solene, mesmo quando é em latim, o
leitor jovem costuma passar por cima, sem a ler. Foi o que
fiz, foi o que me impediu de mostrar a Luhmann a prova
inegável de que a Teoria de Sistemas vem do seio da tradição
neoplatônica. Bertalanffy dedica a Teoria Geral de Sistemas
do seguinte modo: 5 Manibus Nico/ai de Cusa Cardinalis,
Gottfriedi Guglielmi Leibnitii, joannis Wolgangi de Goethe
A/dique Huxleyi, necnon de Bertalanffy Pauli, S.]., ante-
cesso ris, cosmograpbi. Ludwig von Bertalanffy, nesta dedicatória
solene, oferece seu livro àqueles que o inspiraram, a autores
da tradição neoplatônica: ao Cardeal Nicolaus Cusanus, sobre ·
quem ele, em 1928, escrevera e publicara um livro, 6 a Leibniz,
a Goethe, a Aldous Huxley e a seu antepassado, o cosmógrafo
Paulus von Bertalanffy. Cusanus, Leibniz e Goethe, aqui
citados, são os autores neoplatônicos que influíram direta e
explicitamente em Bertalanffy; por trás dos nominados está,
implícita, toda a tradição que vem de Platão, Platino e Prado,
passa por Cusanus e por Giordani Bruno, e tem seu apogeu
filosófico em Espinosa, Fichte, Schelling e Hegel.
Procurarei mostrar, neste trabalho, como a reflexão sobre
as origens neoplatônicas da Teoria de Sistemas não só permite a
inserção do problema da auto-organização no contexto da
grande tradição filosófica, como ilumina a discussão contem-
porânea, abrindo novas perspectivas nas mais diversas
ciências. Na primeira parte, trato da questão contemporânea:
O que é auto-organização? Na segunda parte, mostro como o
conceito de auto-organização nos vem de Platão e Platino,
255
tornando-se um conceito central em Schelling e HegeL Na
terceira parte, à guisa de conclusão, procuro mostrar que a
junção teórica da Teoria da Evolução com as teorias de
Autocausação e de Auto-Organização nos fornece uma
Ontologia, que é velha porque vem de Platão, de Schelling e
de Hegel, e que é nova, novíssima, porque responde a
questões prementes da Filosofia e das Ciências do século
XXI.
AUTO-ORGANIZAÇÃO
Aristóteles explica os seres vivos mediante o conceito de
enteléquia, os pensadores da Idade Média nos falam de
anima vegetativa e de anima sensibilis, a alma que é própria
da vida vegetativa das plantas e a alma que caracteriza e
possibilita a vida animal. O homem teria, segundo os pensa-
dores clássicos da Idade Média, uma alma intelectual ou
espiritual; essa alma intelectual conteria, dentro de si, além
da força vegetativa e da força animal, uma força capacitante
mais alta e mais nobre, que daria origem a nossas atividades
intelectuais e volitivas. As almas dos seres vivos vegetais e
animais, de acordo com a maioria dos pensadores medievais,
se reproduziriam automaticamente à medida que os respectivos
corpos se reproduzissem; a alma espiritual do homem, entre-
tanto, seria criada, cada uma, individualmente, pelo próprio
Deus Criador do Universo. Daí a dignidade do homem e a
posição central que o homem ocupa no cosmo.
Nos séculos XVI e XVII, ocorre a Revolução Científica,
que começa com Copérnico e Galileu, passa por Descartes e
Bacon e atinge seu apogeu na Física de Newton e no mecani-
cismo. A noção dualista de um ser vivo composto de corpo e
alma é substituída pela idéia de máquina. Todos os seres
vivos sim, todo o Universo têm que ser pensados como
máquinas construídas e governadas por leis matemáticas
exatas. O dualismo antigo, que distinguia corpo e alma e
atribuía à alma a tarefa e a capacidade de organizar o corpo
- em si e individualmente - inanimado e informe, ou seja,
a tarefa de transformar o corpo inorgânico em um ser vivo,
este dualismo foi gradativamente abandonado. O mecanicismo,
256
iniciado por Galileu, festeja seu grande triunfo na mecânica
clássica, inaugurada por Newton, pois esta explica as coisas
do Universo, inclusive os seres vivos, melhor e de maneira
mais simples. O mecanicismo monista substitui o dualismo
do corpo e da alma, defendido pelos antigos, por ser uma
teoria mais enxuta, mais sóbria, mais científica, que explica
todas as coisas a partir de princípios gerais extremamente
simples, a saber, as leis da mecânica. Deus, nessa concepção,
tem que ser pensado como o relojoeiro que construiu o grande
relógio do mundo, inclusive os seres vivos e, assim, o homem.
O triunfo da mecânica de Newton, no século XVII, dá início a
uma radical transformação na maneira como a ciência passa
a trabalhar. O dualismo do corpo e da alma é abandonado
pelos cientistas e continua a existir tão-somente na Filosofia
e na Teologia. O dualismo, desacreditado por aqueles que
trabalham e pesquisam como cientistas, passa a ser uma
doutrina de filósofos e de teólogos que, cegos para os pro-
gressos da ciência, continuam a cultivar conceitos e teorias
que os cientistas consideram totalmente ultrapassados. Almas
podem, talvez, ser objeto de crença religiosa, se alguém quiser
nelas acreditar; na ciência, almas são inadmissíveis.
A explicação mecanicista, aplicada por William Harvey à
circulação do sangue, festeja, então, mais um sucesso e abre
o caminho para a explicação materialista do homem. Surge,
assim, no século XVIII, Lavoisier, o pai da química moderna,
que consegue interligar o inorgânico e o orgânico, demons-
trando que aquilo que os antigos pensavam ser atividade
típica e exclusiva da alma, a respiração, não passa de uma
reação química: a respiração dos seres vivos não tem nada a
ver com alma, com espírito; respiração é apenas uma forma
especial do fenômeno químico de oxidação. A vida não se
explica pela ação de uma entidade misteriosa, a alma, e sim
pelas mesmas leis da Física e da Química que regem o mundo
inorgânico, sustenta Lavoisier. Assim cai a última barreira,
assim desaparece, para os cientistas, o dualismo do corpo e
da alma. E a alma? A alma não morreu; a alma nunca existiu.
A alma era apenas uma palavra que encobria nosso déficit de
conhecimento sobre o funcionamento da máquina que é o
núcleo dos seres vivos. Descoberta a estrutura da máquina,
compreendida a doutrina da mecânica clássica, a alma tem
257
que ser relegada à categoria de centauros e quimeras, entidades
que não existem e nunca existiram. Se filósofos e teólogos,
no entanto, continuam a falar de alma, o problema e a
responsabilidade é deles; os cientistas sabem que não existe
alma. Assim começa a grande cisão que vai separar e afastar,
cada vez mais, a Ciência, de um lado, e Filosofia, Teologia e
Religião, do outro lado.
Somam-se ao quadro acima descrito a elaboração, por
Charles Darwin, da Teoria da Evolução, a descoberta das leis
da Genética por Mendel, a descoberta da dupla hélice por
Crick e Watson, a identificação e descrição química do DNA
e, em nossos dias, a seqüenciação do genoma. A Ciência, de
Galileu para cá, fez avanços fantásticos e mudou completa-
mente nossa concepção sobre o que é o ser vivo, sobre o que
é o Universo. A Teologia, entrementes, sofre dolorosa estagnação
e a Filosofia, para não passar maiores vexames, abandona
sua pretensão de universalidade, abandona por completo a
tarefa de fazer uma Filosofia da Natureza, e passa a tratar
apenas da Lógica, da Linguagem e da Ética. Apele Habermas
afirmam, hoje, que há na História da Filosofia três paradigmas:
o paradigma do ser, na Antigüidade e na Idade Média; o
paradigma do sujeito, na Modernidade; e o paradigma da
linguagem, que é o paradigma da Filosofia Contemporânea.
Os paradigmas, segundo eles, se sucedem historicamente.
Passou, para nunca mais voltar, afirmam eles, a época em
que filósofos discutiam sobre o ser e o sujeito como sendo o
núcleo na Filosofia; hoje, o objeto da Filosofia é a linguagem
e só a linguagem. Da análise da linguagem deduzem Apel e
Haberrnas, então, uma Ética Geral. E com isso acabou a Filosofia.
Análise da linguagem e Ética, eis tudo o que sobrou da
Filosofia. Filosofia deixa de ser, assim, a rainha das ciências,
deixa de ser a ciência universalíssima e omniabrangente, deixa
de ser urna disciplina universal para tomar-se apenas mais um
acesso à verdade, lado a lado com a Lingüística, com a Socio-
logia, com a Psicologia, com a Física e a Química, com as
outras ciências particulares. Essa é a tese defendida por
Jürgen Habermas. 7 Eu, não Habermas, acrescento agora:
Cavete, phílosophí, a Filosofia e os filósofos que se cuidem,
pois, se as coisas continuarem assim, a Lingüística lhes vai
tirar das mãos a Análise da Linguagem e a Etologia lhes arre-
batará a Ética. Cavete, philosophi! Filósofos, tenham cuidado,
258
pois, no ritmo e na direção que as coisas vão, Filosofia deixará
de existir como ciência e sobreviverá apenas como um tipo
subdesenvolvido e ruim de poesia, ou, pior ainda, como um
tipo retrógrado de literatura de auto-ajuda.
É claro que houve, no decorrer da evolução acima descrita,
alguns retrocessos. O mecanicismo não conseguia, por exemplo,
explicar com suficiente exatidão os fenômenos observados
na diferenciação celular; não conseguia explicar especialmente
o fenômeno biológico de regeneração. Na regeneração, o
organismo mutilado, às vezes severamente mutilado, consegue
reconstituir-se em sua totalidade. Assim, a planaria alpina,
cortada ao meio, cortada em pequenos pedaços, sempre de
novo se recompõe em sua totalidade. Como explicar, somente
a partir das partes mutiladas, sim, a partir das poucas partes
que sobraram do processo destrutivo, a reconstituição do
organismo como um todo? Essa e outras perguntas ficaram, à
época, sem resposta e esse déficit explicativo na doutrina
mecanicista deu ensejo, no século XIX, à introdução na Bio-
logia do vitalismo. O vitalismo não retorna à doutrina da
composição dos seres vivos de corpo e de alma, mas cria um
tipo específico de dualismo. Além das estruturas mecânicas,
afirmam os vitalistas, como Hans Driesch, 8 há que se admitir
uma entidade separada, a vida, que atua sobre a máquina do
corpo, sem entretanto fazer parte dela. Só assim se poderia
explicar que um ouriço-do-mar, cortado pela metade, se possa
regenerar e desenvolver, voltando a formar um ouriço-do-
mar completo, embora de menor tamanho. Os mecanicistas,
porém, contra Driesch e os vitalistas, continuaram afirmando,
como que num dogma, que as leis da mecânica clássica eram
fundamento bastante para explicar o fenômeno da vida.
A evolução da ciência no século XX traz a grande revira-
volta. Einstein elabora a Teoria da Relatividade e nos obriga
a abandonar as noções tradicionais de espaço e .de tempo
expostas por Newton na Mecânica Clássica. Tudo aquilo que
pensávamos ser as leis universalíssimas da Física entra em
colapso: a Mecânica Clássica de Newton não consegue explicar
com exatidão o mundo das estrelas e galáxias; a Teoria da
Relatividade, porém, o consegue. No mundo do átomo, a
Mecânica Quântica elaborada por Niels Bohr, Max Plank,
Schrodinger, Heisenberg e tantos outros faz outra revolução
259
científica: no mundo das partículas subatômicas não vigem as
leis da Mecânica Clássica e sim outras leis, completamente
diversas, leis à primeira vista desconcertantes e contra o senso
comum, as leis da Mecânica Quântica.
É nesse contexto histórico que a Mecânica Clássica é tirada de
seu pedestal de ciência universalíssima e é posta como uma
doutrina válida apenas para algumas áreas ou regiões do
Universo; é nesse contexto que o mecanicismo como dogma
inabalável e indiscutível de todas as ciências definha se
enfraquece e morre como que de morte natural. Su;ge,
então, a Teoria de Sistemas.
Os biólogos Ross Harrison, Lawrence Henderson, Joseph
Woodger e Joseph Needham, 9 nas primeiras quatro décadas
do século XX, apontam para o fato inegável de que não são
as partes como partes que constituem aquilo que chamamos
de vida. Não são as partes, mas sim as relações existentes
entre as diversas partes que constituem a unidade organizada
do ser vivo. Vida é organismo, organismo é o nome que
damos à harmonia hierárquica das relações existentes entre
as diversas partes que constituem um ser vivo. Para além das
leis da Física e da Química, há que se pensar algo mais, a
saber, a organização, aquilo que ordena as relações entre as
partes. E como o ser vivo é, por definição, aquilo que se
reproduz, para compreender o que é a vida temos que consi-
derar como estrutura central aquela forma de organização
que se reproduz a si mesma, ou seja, que se organiza a si
mesma, que é, em si, auto-organização. Eis, já aqui, o núcleo
da Teoria de Sistemas. Ludwig von Bertalanffy publica, em
1945, em alemão, a primeira versão da Teoria Geral de Sistemas ,
Zu einer allgemeinen Systemlehre,-1° em 1950, em inglês, An
Outline of General System Theory. 11 Após a guerra, depois de
sair da Viena destruída e refugiar-se no Canadá, Bertalanffy
apresenta copiosa produção científica, forma alunos, ganha o
apoio de mais e mais biólogos, etólogos, bioquímicos, neuro-
fisiologistas, psicólogos, sociólogos, juristas etc. Bertalanffy
conquista, assim, a adesão de mentes brilhantes e a Teoria
Geral de Sistemas cresce, se espalha pelas diversas ciências,
apresentando soluções onde não as havia, indicando caminhos
onde só existiam becos sem saída, construindo sínteses
esclarecedoras onde reinava confusão. A Teoria Geral de
Sistemas, neste meio século de existência, acumulou
260
sucessos em cima de sucessos e, hoje, se apresenta como
uma das mais fortes candidatas à posição de Grande Teoria
Unificada, a Teoria Mãe, na qual Teoria da Relatividade,
Mecânica Quântica e toda a Biologia Geral com sua Teoria
da Evolução estão conciliadas.
O que é a Teoria Geral de Sistemas? O que é um sistema?
Não existem ainda definições de sistema que sejam aceitas
por todos. Proponho, por minha conta e risco, uma definição
que não sei se está completa, mas que é a melhor que posso
dar: Sistema é um processo circular que, embora sob o
aspecto energético seja aberto para o meio ambiente, sob o
aspecto estrutural ou organizacional é fechado sobre si mesmo ,
que é estável, que se retrodetermina (feedback), se reali-
menta, se recompõe e se reorganiza de maneira plástica a
partir de seu meio ambiente, que exerce seletividade em suas
interações para com este, que em muitos casos se replica ou
reproduz, que, quando afastado de seu ponto de equilíbrio,
em muitos casos, engendra novas formas de organização e
de comportamento, as quais se inserem num processo de
evolução que é regido pela lei de coerência universal (seleção
natural).
Passemos à análise pormenorizada dos elementos contidos
nessa tentativa de definição.
O sistema de auto-organização é, primeiro, um processo
circular. Desde Aristóteles, principalmente desde Tomás de
Aquino, pensamos que causa e efeito constituem um processo
absolutamente linear. A causa é sempre e necessariamente
diferente do efeito que ela produz; a causa é lógica e ontolo-
gicamente anterior ao efeito por ela produzido. Se um efeito,
uma vez efetivado, torna-se, ele mesmo , uma nova causa ,
então ele produz um novo e ulterior efeito, fora dele e
depois dele. Se este efeito novamente se transforma em causa
e produz mais um efeito, também este será algo ulterior e
diferente. Assim surge a série causal linear. A causa 1 produz
um efeito 1, o qual, subsistindo em si mesmo, se transforma
em causa 2 e produz um ulterior efeito 2, o qual se transforma
em causa 3 e produz o ulterior efeito 3, e assim por diante. A
série causal linear caracteriza-se por dois elementos essenciais:
1) O efeito é diferente da causa que o produz; ele é lógica e
ontologicamente diverso dela e posterior a ela. 2) Um efeitó
261
pode tornar-se causa, mas, neste caso, ele produz um outro
efeito que é lógica e ontologicamente diverso dele e posterior
a ele, constituindo, assim, uma série causal linear. Desde
Aristóteles e Tomás de Aquino até a Mecânica Clássica de
Newton e a Teoria da Relatividade de Einstein este conceito
linear de causalidade é a concepção dominante, em grande
parte da tradição filosófica e em quase todas as ciências. Causa
e efeito, nessa concepção, são entidades diversas, sim, sepa-
radas, pois o efeito é sempre posterior à causa.
A idéia da causalidade linear é uma teoria brilhante que,
no decorrer de nossa história, mostrou que possui uma pode-
rosa força explicativa, tendo prestado os mais relevantes
serviços à ciência. Muitíssimas coisas podem e devem ser
explicadas no âmbito da causalidade linear. O problema é
que esse tipo de causalidade não é o único, ele não explica
todos os fenômenos. Se esse tipo de causalidade linear fosse
o único, os processos cibeméticos simplesmente não poderiam
existir. O que é um processo cibernético? Desde a antigüidade
conhecemos processos cibernéticos, mas foi Norbert Wiener12
quem, em nossos dias, num ato de coragem intelectual,
formulou a teoria e afirmou que uma série causal pode flectir-se
sobre si mesma e configurar-se em forma circular, de maneira
que o último efeito da série, que é sempre finita, atua como
causa sobre a primeira causa da série. Assim, a série causa/
efeito se fecha sobre si mesma, em círculo, se retro-alimenta
e se retrodetermina. Um fato banal de nosso dia-a-dia sirva
de exemplo. A geladeira em nossa casa está, digamos, com a
temperatura interna de 10 graus. Se abrirmos muitas vezes a
porta, se introduzirmos gêneros alimentícios em temperatura
ambiente, a temperatura interna da geladeira começa a subir.
Ao atingir, digamos, 15 graus, o termostato reconhece a
temperatura limite e liga o motor. O motor trabalha e produz
frio, até que a temperatura interna da geladeira volte a seu
padrão e, então, se desligue automaticamente. Tudo isso ocorre,
sem que nós, homens, tenhamos que interferir, ligando ou
desligando processos. A geladeira regula sua temperatura
interna, mediante o termostato, num processo circular em
que uma causa (temperatura de 15 graus) produz um efeito
(acionar o termostato) que, por sua vez, é uma causa que
produz um novo efeito (ligar o motor), que se transforma em
causa e provoca um efeito ulterior (o frio), que se transforma
262
em causa e, em determinado momento, volta a produzir um
efeito, isto é, a acionar o termostato, dando, assim, continui-
dade ao movimento circular de auto-organização. A cadeia
de causa e efeito, nesse processo, abandonou a forma linear
e tornou-se circular, de sorte que a série causa/efeito/causa/
efeito/ causa se fecha sobre si mesma. A circularidade do
processo causal, eis o primeiro elemento constitutivo de um
sistema de auto-organização. Isso também é chamado de
retrodeterminação, realimentação, feedback. Toda a cibernética
se funda nisso.
O segundo elemento essencial em processos de auto-orga-
nização é que o sistema, embora seja fechado sob o aspecto
organizacional, é aberto sob o aspecto energético. O processo
de auto-organização é sempre uma série de causas e efeitos
em forma de círculo; nesse sentido todo sistema de auto-
organização é um sistema fechado sobre si mesmo. É fechado
porque (e enquanto) é um processo circular. Mas os sistemas,
embora fechados e circulares em sua forma de organização,
são abertos sob o ponto de vista energético. A segunda lei da
termo-dinâmica, a lei da entropia, exige que tais sistemas
sejam abertos. Se eles não fossem abertos, a energia que põe
em movimento o processo circular seria algo meramente
interno ao sistema, seria uma energia finita que logo se esgo-
taria, fazendo o movimento do processo parar. Para que o
processo circular continue em movimento, ele precisa, de
acordo com a segunda lei da termo-dinâmica, buscar energia
de seu meio ambiente, de energia que esteja fora de sua
estrutura circular. A geladeira, se não está ligada na tomada,
pára de funcionar.
Schrodinger, em suas preleções sobre a vida na Universi-.
dade de Dublin, percebeu claramente esse fenômeno, isto é,
o conflito existente entre o fechamento organizacional dos
seres vivos e a abertura exigida pela lei da entropia, e criou,
por isso, o termo neguentropia. Os seres vivos possuiriam,
segundo ele, uma força interna negando a entropia, a
neguentropia. Os muitos protestos contra a neguentropia, que
surgiram por parte de físicos ortodoxos, fizeram Schrodinger
voltar atrás e retirar o conceito por ele proposto. Naquela
época não se distinguiam clara e corretamente os dois aspectos
de um sistema que é, ao mesmo tempo, fechado e aberto,
fechado enquanto organizacional e aberto enquanto energético.
263
 Hoje, sem maiores dificuldades e sem objeções por parte da
termo-dinâmica, afirmamos que processos de auto-organização
são sistemas fechados sob o aspecto organizacional de sua
estrutura, sistemas abertos sob o aspecto energético.
O terceiro elemento essencial de processos de auto-orga-
nização, intimamente ligado ao segundo, é a estabilidade
conjugada com plasticidade. Sistemas de auto-organização,
que se realimentam de energia vinda do meio ambiente e
que se retrodeterminam a partir das irritações oriundas deste,
apresentam tanto uma grande estabilidade como também uma
notável plasticidade. O sistema é plástico, ou seja, ele está
sujeito a perturbações, mas ele é também estável, isto é, quando
perturbado em sua organização, tende a se reconstituir e se
recompor. Só em casos de perturbação muito violenta é que
o sistema se dissolve e se desfaz. Irritações, dentro de certos
limites, são assimiladas - plasticidade - e o sistema se
recompõe, se reorganiza e volta à sua situação de estabilida-
de. Assim, continuando no exemplo da geladeira, há um
certo espaço entre a temperatura que é o limite superior e a
temperatura que é o limite inferior. Essa distância existente
entre os dois limites é o espaço da plasticidade. Isso fica mais
claro nos seres vivos, pois a homeostase apresenta plasticidade
e estabilidade bem maiores que uma máquina cibernetica-
mente regulada. Nas máquinas o espaço da plasticidade é
rigidamente determinado, pois o sistema é simples; nos seres
vivos a plasticidade se mostra em toda a sua riqueza, pois os
sistemas são complexos, ou seja, não-lineares.
O quarto aspecto essencial de processos de auto-organi-
zação é a seletividade com que o sistema exerce sua interação
com o meio ambiente. O fato de que o sistema seja fechado
sob o aspecto organizacional tem como conseqüência a
seletividade de sua interação. O sistema, por ser fechado,
não permite o ingresso de toda e qualquer força ou influência.
O sistema, enquanto fechado, impede o ingresso de tudo que
lhe é estranho, de tudo que está fora dele, principalmente de
tudo aquilo que destrói ou perturba sua estrutura organizacional.
Algumas coisas, entretanto, devem ser buscadas no meio
ambiente e têm que entrar no sistema, por exemplo, energia
e informação. O sistema, mesmo sendo fechado, precisa
buscar energia de fora. Como a energia existe sob muitas
formas - corrente elétrica, luz, alimentos etc. - , várias são
264
as formas de interação entre os sistemas fechados e seu meio
ambiente. Mas em todas elas, há uma rigorosa seletividade. A
forma desta seletividade é determinada pela própria organi-
zação interna do sistema. Os sistemas de auto-organização
em forma de máquinas se abastecem de energia sob formas
relativamente simples, como força da queda d'água, vapor
d'água, molas mecânicas, luz e, em nossos dias, na maioria
dos casos, de energia elétrica. Os sistemas de auto-organização
na forma de seres vivos caracterizam-se pela complexidade
que apresentam; a busca de energia do meio ambiente neles
se faz de maneiras extremamente complexas, por exemplo,
pela fotossíntese e pela ingestão de alimentos situados em
determinados segmentos da cadeia alimentar. Além da busca
de energia, a interação seletiva com o meio ambiente inclui
outras características. A mais importante delas é a troca de
informações, fenômeno que já existe em máquinas que se
autoregulam. Sem a troca de informações com o meio ambi-
ente, nenhum sistema de auto-organização pode subsistir.
Nesse sentido bem amplo, em que toda informação é uma
forma primeva de cognição, todo sistema de auto-organização
é um sistema cognitivo. Em máquinas autoreguladoras essa
cognição não se constitui em consciência, pois os parâmetros
e a estrutura do processo de informação vêm totalmente de
fora do sistema. Nos seres vivos, entretanto, mesmo nos mais
simples, há sempre alguma cognição C= seletividade de infor-
mação) engendrada pela própria estrutura auto-organizada.
Percebe-se, aqui, que existe uma suave gradação de sistemas
auto-organizados. A partir de máquinas autoreguladas, nas
quais a cognição é apenas a seletividade de informações
que lhes veio de fora, passando por estruturas inorgânicas
complexas, nas quais a seletividade de informação já é gerada
dentro do sistema, passando por seres vivos de baixa comple-
xidade, nos quais a cognição se identifica com a própria vida,
passando por seres vivos de maior complexidade, nos quais
a cognição se estrutura como conhecimento vegetativo e,
depois, como consciência sensível, chegamos, enfim, ao
homem, no qual a autoconsciência dos processos mentais
emerge tão forte que parece ser algo completamente diferente
e independente da vida que encontramos na parte inferior da
escala. Não é. Trata-se, como vimos, de uma gradação de
formas de auto-organização.
265
 O quinto elemento dos sistemas de auto-organização sistemas auto-organizados, como quer Smolin, os
consiste no fato de que estes, pelo menos em alguns casos subsistemas auto-organizados nelas existentes ou são, eles
específicos e determinados, se replicam e se reproduzem. mesmos, capazes de reprodução, ou são partes que participam
Esse quinto elemento da auto-organização marca uma carac- de macroprocessos de reprodução. Nessa perspectiva, todos
terística muito visível dos seres vivos no sentido estrito do os sistemas de auto-organização possuem a reprodução como
termo; característica esta, às vezes, pouco visível em outros elemento essencial.
sistemas auto-organizados. Os seres vivos se reproduzem de
O sexto elemento essencial dos sistemas de auto-organi-
acordo com o código genético contido no genoma, código
zação consiste no engendramento de novas formas de orga-
este que possui a capacidade de se replicar, de fazer cópias
nização. Ilya Prigogine 17 demonstrou que sistemas dinâmicos
de si mesmo. Todos os sistemas auto-organizados, sejam eles
dissipativos de auto-organização, quando fora de seu ponto
quais forem, possuem, bem visíveis, os primeiros quatro
de equilíbrio, apresentam, em teoria, uma bifurcação: o sistema
elementos essenciais, a saber, circularidade, abertura e
pode se dissipar e desaparecer ou, então, pode como que
fechamento, estabilidade e plasticidade e seletividade
"escolher" e engendrar uma nova forma de auto-organização.
de interação. Esse quinto elemento, que não está presente
Prigogine coloca, ele mesmo, a palavra "escolher" entre aspas.
nas máquinas autoreguladas, ou seja, em sistemas nos quais
A teoria de Prigogine sobre o engendramento de novas e
a organização lhes vem de fora, marca uma das principais
mais complexas formas de auto-organização foi amplamente
características dos seres vivos. Mas ele não existe só neles,
confirmada. A teoria foi matematizada com exatidão e o
também se faz presente em cristais, em processos autocatalí-
sucesso na repetição dos experimentos práticos de laboratório
ticos, em processos iterativos de formação de fractais etc.
deram às teses de Prigogine toda a certeza que uma ciência
Surge, aqui, a questão de saber se todos os sistemas auto-
exata hoje pode ter. Isso significa, para nós filósofos, que
organizados possuem a capacidade de replicação, respecti-
está demonstrado cientificamente que sistemas dinâmicos
vamente de reprodução. Penso que sim. Se um sistema possui,
dissipativos fora de seu ponto de equilíbrio podem engendrar
oriunda de dentro de si mesmo, a estrutura de auto-organização,
novas formas de auto-organização, formas mais complexas e
ou seja, se ele não é apenas uma máquina autoregulada na
mais nobres do que aquelas de onde se originaram. Isso nos
qual a organização foi imposta de fora do sistema, ele sempre
dá uma nova e brilhante característica da evolução e da flecha
possui também a capacidade de reprodução. Essa tese deixa
do tempo. O engendramento da diferença, isto é, a emergência
de ser uma afirmação muito ousada, se e enquanto pensarmos
do novo e do mais complexo não é apenas um postulado
também o mundo e as galáxias como sistemas auto-organizados,
filosófico, mas uma doutrina científica experimentalmente
como fazem Lee Smolin, 13 Ervin Laszld 4 e outros. Quem pensa
comprovada. Um dos mais difíceis elementos na Teoria da
nosso planeta terra como um sistema auto-organizado, como
Evolução, a saber, o Princípio da Diferença, que explica a
James Lovelock 15 e Lynn Margulis 16 na Teoria Gaia, quem pensa
emergência do novo, recebe das ciências exatas confirmação
as galáxias como um processo de auto-organização, como
teórica e experimental. Também nossa perspectiva do tempo
Lee Smolin, não tem dificuldades em pôr na definição de
e do mundo sofre mudança radical. Até Prigogine era apenas
auto-organização, como elemento essencial, a replicação e a
a entropia que marcava a flecha do tempo e impedia que se
reprodução. Assim, segundo Smolin, cada mundo engendra,
pensasse o mundo como um sistema reversível; nessa pers-
mediante seus buracos negros, novos mundos a ele asseme-
pectiva antiga, entretanto, a tendência da evolução deveria
lhados; os mundos com muitos buracos negros têm mais
estar direcionada para a morte pelo frio, para uma desordem
probabilidades de engendrar mundos coerentes do que mundos
sempre maior. Isso, porém, sempre pareceu estar em conflito
com poucos buracos negros. Também aqui, no nível
com a complexidade que observamos como fato. A teoria
da formação das galáxias, o princípio da coerência, ou seja,
de Prigogine nos fornece, agora, um segundo elemento a
a seleção natural direciona o processo. Se as galáxias são
direcionar a flecha do tempo, desta vez em direção a uma

266 267

ordem cada vez mais rica e mais complexa. O processo da
evolução inclui, em face da descoberta de Prigogine, além da
tendência da ordem para a desordem, isto é, da entropia, uma
tendência da desordem para a ordem. A combinação de ambas
as tendências é que molda, então, o processo evolutivo.
Pergunta-se, aqui, se essa característica de engendrar
organizações mais complexas é uma característica de todos
os sistemas auto-organizados. A resposta só pode ser a mesma
que mais acima formulamos, embora com cuidados ainda
maiores. É evidente que máquinas autoreguladas, que recebem
a auto-organização de fora do sistema, não conseguem
engendrar novos sistemas, exceto se isso lhes foi já pré-progra-
mado em sua organização. A questão é saber se todos os
sistemas naturais de auto-organização, mesmo em nível baixo
de estruturação, já possuem essa característica de engendrar
novos e mais complexos sistemas. As ciências exatas, a Física,
a Química e a Biologia, que eu saiba, jamais responderam a
uma pergunta tão específica. A tendência, nessas ciência,s,
seria provavelmente dizer que não. Afinal, não é em toda a
parte que se engendram novos e mais complexos sistemas.
Mas não é essa a pergunta. A pergunta versa sobre sistemas
dinâmicos dissipativos fora de seu ponto de equilíbrio; tais
sistemas, todos eles, podem, em princípio, engendrar novos
sistemas com maior comple:fCidade? Eu, como filósofo, diria
que sim. Se, em princípio, pode ser assim, então, essa possi-
bilidade, em princípio, sempre existe. Isso significa que, em
princípio, todos os sistemas de auto-organização, se e enquanto
dinâmicos, disssipativos e fora do ponto de equilíbrio,
podem engendrar novos e mais complexos sistemas de auto-
organização. Isso dá, como se percebe imediatamente, à
Teoria da Evolução, uma tendência para cima, para o mais
complexo, para o mais nobre. Vemos aqui uma vitória da
ordem sobre a desordem. A passagem da desordem para a
ordem é, em princípio, tão viável quanto a passagem da
ordem para a desordem. O universo não está condenado à
morte pelo frio. A entropia é apenas um dos elementos que
constituem a flecha do tempo; ela não nos permite antecipar
o futuro e dizer que o universo está condenado à morte pelo
frio; ela não nos permite dizer que a desordem tende sempre
a crescer em detrimento da ordem. Schrõdinger recuou onde
268
não precisava ter recuado. Há, sim, uma neguentropia. Como
todos os processos de auto-organização se desenvolvem dentro
da auto-organização das galáxias, todos, inclusive nós,
homens, somos parte de um todo em movimento de auto-
organização.
O sétimo elemento essencial de um sistema de auto-
organização é sua inserção num processo de evolução que
é regido pela lei da coerência, isto é, pela seleção natural.
Essa sétima característica de todo e qualquer sistema de auto-
organização diz que ele evolui segundo as conhecidas leis da
Teoria da Evolução e que cada um destes processos de auto-
organização está dentro de outro, maior e mais abrangente, e
assim por diante, até que chegamos ao sistema mais abran-
gente de todos, ao Universo, um sistema de auto-organização
que não tem mais nada fora dele. Como as bonecas russas, as
Babuschkas, uma dentro da outra, os muitos sistemas de auto-
organização estão todos contidos num sistema de auto-orga-
nização que é o último, que é o mais abrangente, que é o
Universo fora do qual já não existe nada. A Lei da Coerência
rege a evolução de cada sistema particular; rege também as
relações de um sistema para com os outros, rege finalmente
o sistema universal de auto-organização, dentro do qual tudo
de encontra e se desenvolve.
A grande pergunta que surge aqui é a seguinte. Afirmamos,
no começo de nossa exposição, que os sistemas de auto-
organização, para poderem existir, têm que ser abertos sob o
ponto de vista energético, ou seja, que eles têm que buscar
energia de fora. Mas se isso é assim, de onde vem a energia
no sistema universal e último de auto-organização? Se não há
nada fora dele, como pode a energia vir de fora? A resposta
só pode ser uma: em última instância, também a energia é
engendrada internamente. Quando não há nenhuma outra
alternativa de solução, quando outra solução, qualquer que
seja, é impossível, então a solução, que é a única, se impõe.
Logo, também energia pode ser engendrada internamente,
pelo menos no último e mais abrangente sistema de auto-
organização.
269
FILOSOFIA DA AUTO-ORGANIZAÇÃO
O núcleo duro da Teoria de Auto-Organização consiste na
circularidade da série causal. Na série causal linear a causa
está sempre e necessariamente fora e antes do efeito, tanto
logica como ontologicamente; o efeito vem sempre depois
da causa. Se o efeito, por sua vez, se transforma em causa e
produz um novo efeito, esse novo efeito está fora de sua
causa e depois dela; e assim surge a série causal linear. Auto-
organização, como a forma flexiva do termo já indica, consiste
no fato de que a cadeia causal se flecte sobre si mesma , de
sorte que o último efeito da série se toma causa determinante
da primeira causa da série, da mesma série. O processo
causal fica, assim, circular, pois o último efeito torna-se
também causa e determina a primeira causa da série. Redu-
zindo a série causal linear a seu tamanho mínimo ou seja a
dois elementos, a causa produz um efeito, que, p~r sua v~z,
produz a causa que o causou. A causa aparece, aqui, como
sendo causa de si mesma: causa sui. Esta é a teoria defendida
por Platino e Proclo, por Nicolaus Cusanus, por Espinosa,
Goethe, Schelling e por Hegel; esta é a teoria sem a qual não
se compreende o núcleo duro dos sistemas neoplatônicos, de
Platino até Schelling e Hegel.
Schopenhauer, em seu trabalho de Livre Docência na
Universidade de Berlim, com o título Die Vietfache Wurzel
des Satzes vom zureichenden Grunde, 18 é quem melhor
apresentou e resumiu as objeções levantadas contra o conceito
de causa sui. Causa sui, diz Schopenhauer, é uma contradictio
in adjecto, é algo logica e ontologicamente impossível, é um
conceito que não pode nem mesmo ser pensado. Pois, ao
falar de um processo causal, estamos sempre a pressupor um
efeito que está fora da causa e que vem depois dela. Se existe
um efeito causado, então tem que haver uma causa causante
que esteja fora do efeito e venha antes dele. Não fosse assim,
a causa seria causa de si mesmo, o que é um absurdo. Absurdo
por quê? Por uma razão que Schopenhauer pensa ser logica-
mente muito exata e rigorosa. Porque a causa é a razão
suficiente do efeito; sem a causa, o efeito não pode existir.
Ora, se o efeito não pode existir, ele de fato não existe. E um
efeito que não existe não pode ser causa causante de nada,
muito menos causa causante de si mesmo.
270
Essa argumentação, aparentemente rigorosa, é uma falácia.
Schopenhauer pressupõe aí o Princípio de Razão Suficiente
em sua forma específica e correta, que é a seguinte: Se uma
coisa pode existir e não existir, mas de fato existe, então tem
que haver uma razão suficiente que explique por que ela de
fato existe, ao invés de não existir. Leibniz afirma, com toda
a razão, que o Princípio de Não-Contradição e o Princípio de
Razão Suficiente são os pilares sobre os quais repousa o arca-
bouço de toda a racionalidade. Toda a tradição filosófica, dos
gregos até os dias de hoje, afirma o mesmo. Schopenhauer,
então, tem razão? Causa sui é algo impossível? E auto-organi-
zação, uma forma específica de causa sui, é só um absurdo
requentado? Não. É evidente que o Princípio de Razão Suficiente,
na formulação acima, está correto e é sempre válido. Mas
isso não exclui a possibilidade da causa sui, como sabia muito
bem Hegel. Hegel era professor titular na Universidade
de Berlim e foi, à época, o orientador oficial da tese de
Livre Docência de Schopenhauer. Hegel aceitou a tese de
Schopenhauer, que era radicalmente contra a teoria da causa
sui, como um bom trabalho de Livre Docência e deu parecer
positivo à Faculdade de Filosofia, que, então, concedeu a
Schopenhauer o título acadêmico por ele postulado. Quanto
ao conteúdo filosófico do texto, Hegel, é claro, discordou das
idéias propostas por Schopenhauer e manteve sua opinião,
escrita e publicada muitos anos antes, na Ciência da Lógica.
Segundo Hegel, o Princípio de Razão Suficiente afirma, de
maneira corretíssima, que a existência de algo contingente
exige uma razão suficiente que explique por que este algo
existe, ao invés de não existir. Mas não está dito em nenhum
lugar que esta razão suficiente tem que ser uma entidade
externa, logica e ontologicamente anterior ao efeito. Toda a
argumentação de Schopenhauer se baseia nesta falácia, a saber,
que a razão suficiente tem que ser uma entidade separada e
anterior. Hegel, na Lógica da Essência/9 havia demonstrado
a tese oposta: o Absoluto, na dialética das modalidades, é
tanto Necessidade Absoluta como também Contingência
Absoluta. O contingente, se e enquanto ele é também neces-
sário, possui, conciliadas no mesmo ser, ambas as carac-
terísticas, a necessidade e a contingência, a causa e o efeito.
Hegel chama isso de Wechselwirkung, 20 termo que deveria
ser traduzido como "causação recíproca". Na causação recíproca
271
o causante é, sim, algo diverso do causado, mas trata-se aqui
não da diversidade de dois seres distintos um do outro, mas
sim de dois momentos internos de um único processo circular
de autocausação. O causante enquanto causante não é o
causado; e vice-versa. Mas também aqui tese e antítese, inicial-
mente opostas, podem e têm que ser conciliadas. O causante,
que é tese, e o causado, que é antítese, na autocausação, que
é síntese, estão conciliados em perfeita harmonia. A causa
produz o efeito, que retroage e produz a causa, a qual de
novo produz o efeito e assim por diante, constituindo, desta
maneira, o processo circular de autocausação.
Procuremos maior clareza. O Universo, como sabemos,
contém coisas e processos contingentes, ou seja, processos
que podem existir e que podem não existir, mas que de fato
existem. No entanto, o Universo não tem nada fora dele. O
Universo, por definição, abrange tudo. Logo, temos que
admitir que o Universo não possui uma, causa causante ou
razão suficiente que esteja fora dele. Por conseguinte, temos
que admitir também que o Universo é, ao mesmo tempo,
embora não sob o mesmo aspecto, algo causante e algo
causado. O Universo, que contém contingência, é uma causa
suíno sentido rigoroso do termo, é um sistema auto-organi-
zado. Esta é a doutrina neoplatônica.
Objetar-se-á, aqui, na tradição de Tomás de Aquino, que
alguns seres no Universo são realmente contingentes, mas
que Deus, o Criador primeiro de tudo que é contingente, não
é, ele mesmo, um ser contingente, mas sim um ser necessário. 21
E é por isso que ele é o Deus Criador. O Universo, então,
pode ser pensado como um conjunto que contém tanto o
Deus Criador, que tem sua razão suficiente dentro de si mesmo,
e os seres criados, que são contingentes, isto é, que têm sua
razão suficiente fora de si mesmos, numa causa que lhes é
anterior, em última instância, numa causa incausada que é o
próprio Deus Criador. 22 A posição tomista separa claramente
o Deus Criador, que é a causa incausada de tudo o mais, e os
seres contingentes, que têm sua razão suficiente em causas
anteriores, em última instância, na causa incausada, que é o
Deus Criador. O problema da causa sui, à primeira vista,
parece ter sido resolvido satisfatoriamente: de um lado a causa,
de outro lado, separado e posterior, o efeito. Mas um olhar
272
mais atento revela que o problema foi apenas deslocado para
dentro do próprio Deus Criador.
O Deus Criador, para poder ser uma causa incausada, tem
que ser algo que é necessário em sua essência e sua existência,
isto é, ele não pode ser contingente, ele não pode ter sua
razão suficiente fora de si mesmo. Em Deus, essência e exis-
tência são a mesma coisa, uma se funda na outra, ambas se
fundem na simplicidade de um ser puro que é puro existir.
Se Deus não fosse necessário, se ele tivesse sua razão sufici-
ente em algo fora dele, este algo é que seria o verdadeiro
Deus e a causa última incausada. Logo, concluem os tomistas,
Deus é necessário em sua simplicidade, na qual a existência
se funda em sua própria essência. Até aqui, aparentemente,
tudo bem. O problema começa agora. Se Deus é necessário
em sua essência e sua existência, o ato livre mediante o qual
Deus decide criar o mundo, em face da simplicidade de Deus,
confunde-se com sua essência. Ora, a essência de Deus é
necessária. Logo, o ato livre mediante o qual Deus decide
criar o mundo é tão necessário quanto sua essência. Por
conseguinte, a criação é necessária. Mas se a criação é necessária,
os seres criados existem necessariamente e deixam, assim, de ser
contingentes.
A única saída desta aporia é dizer que o ato livre, mediante
o qual Deus decide criar o mundo, é necessário enquanto
está dentro de Deus e é idêntico à sua essência, mas é
contingente para fora, para com seus efeitos. Esta é, de fato,
a resposta usualmente dada pelos autores que seguem Tomás
de Aquino. Mas como pensar um ato livre que é, ao mesmo
tempo, interno e externo a Deus? A contradição inicial de
que causa não pode ser causa sui retorna agora sob outra
roupagem: um ato que é idêntico à essência simples de Deus
tem que ser simultaneamente interno e externo a ele. Este
ato é idêntico à substância divina e não é idêntico a ela. O
que se pretendia como solução de um problema constitui-se
em nova e potenciada contradição.
Já Plotino 23 se debruçou sobre essa questão e também ele
se viu envolto em problemas e contradições. O Livro VI das
Enéades versa, todo ele, sobre este problema, como já diz
seu título: A vontade livre e a vontade do Uno. Platino sabe
muito bem que, para ser livre, o homem tem que ser ekousíon,
273
tem que ser autexousíon, isto é, ele tem que poder determinar-se
a si mesmo, ele tem que poder dispor sobre suas ações e
sobre si mesmo. Esta autodeterminação é expressa por Platino
com um termo intraduzível: tà ep'autõ. Tà ep'autõ aponta
para aquilo que está em meu poder, aquilo que está dentro
de minhas possibilidades e capacidades de ação. Quando
o homem age segundo tà ep 'autõ, ele está agindo como
autexousíon, como alguém que se determina a si mesmo.
Platino parece ser pouco claro, mas o fato é que, até hoje,
ninguém conseguiu dizer muito melhor o que significa
liberdade. Liberdade consiste, dizem todos, neste agir segundo
aquilo que está em meu poder, segundo minhas possibi-
lidades, segundo minha autodeterminação.
Platino pergunta, então, se o Uno tem liberdade e responde,
decididamente, que sim. O Uno, que é o Bem, tem vontade
livre e autodeterminação, ekousíon e autexousíon. 24 Mas
Platino, como todos os grandes pensadores depois dele, sente
o dilema na pele. Pois Platino sabe muito bem que é impossível
para uma coisa fazer-se a si mesma e pôr-se em existência. 25 Se é
impossível que algo se ponha a si mesmo em existência, como
é que o Uno existe e decide livremente? De onde vem a
existência do Uno? De onde vem sua decisão livre? Platino
luta com o problema e consigo mesmo, ele luta e reluta e
acaba dizendo que o Uno não é uma coisa como as outras
coisas contingentes de nosso mundo, que o Uno é algo todo
especial, que o Uno é causa de si mesmo, aitíon beatõu. 26 Aí
temos, quanto sei, pela primeira vez na História da Filosofia,
o termo causa sui no esplendor de seu significado pleno, isto
é, como o processo circular de autocausação que explica não
só a existência do Uno como também o processo circular da
autodeterminação que é o núcleo duro do ato livre de decisão.
Como entender, porém, o processo de autocausação sem
que surjam contradições? Não é Platino, é Hegel quem nos
responde com a clareza possível em questão tão difícil.
Causante e causado, ensina Hegel, 27 são duas faces da mesma
moeda. Não se pode pensar e dizer uma delas, sem que se
pense e diga simultaneamente a outra. Mais: uma não pode
existir sem a outra. Causante e causado, causa e efeito são,
primeira e principalmente, dois aspectos opostos de uma
mesma realidade. Num primeiro momento, esses aspectos se
274
opõem e se excluem logicamente; eles são tese e antítese.
Mas na síntese, na primeira e na última instância, no Absoluto,
no Uno, os opostos têm que estar conciliados. Como? Por
quê? Estão conciliados por serem momentos complementares
de um único e mesmo processo que está em movimento
circular. A circularidade explica como e por que os opostos
se fundem numa unidade mais alta e mais nobre. Causante e
causado, fundante e fundado são as formas ativas e passivas
do mesmo verbo. A síntese é expressa pela forma reflexa do
verbo. Como? O momento ativo atua sobre si mesmo, engen-
drando dentro de si o momento passivo. Mas este momento
passivo atua de volta sobre o momento anterior, de sorte que
ele deixa de ser passivo e torna-se ativo. E assim, em movi-
mento circular, o ativo torna-se passivo, o passivo torna-se
ativo, e, de novo, o ativo fica passivo e o passivo se transforma de
volta em ativo. Este é o núcleo duro da grande síntese dos
opostos. Este é o núcleo ontológico da forma reflexa de
todos os verbos que admitem tal forma. Erra quem tenta,
sempre e em todos os casos, separar o ativo e o passivo, o
causante e o causado, o fundante e o fundado. Quem persiste
nesta separação e fica sempre à procura do fundo que seja
apenas fundante, do Grund, acaba caindo no fundo do mar e
se afogando, er gebt zugrunde. 28 O jogo de palavras que
Hegel faz aqui mostra, de sobejo, que não se pode procurar
um fundante último que não seja circular, isto é, que não seja
autofundante. Quem, ao invés de subir de degrau e assumir a
categoria de autofundamentação, fica procurando um fundante
último que não seja autofundante vai perder-se para sempre
num fundo que nunca tem fundo. A Lógica da Essência se
caracteriza exatamente por esse tipo de circularidade. As
categorias téticas e antitéticas da Lógica da Essência entram
num processus ad infinitu.m, exceto se e quando se faz a
flexão completa sobre si mesmo, a reflexão, e se assume o
conceito em sua circularidade. As formas ativas e passivas do
verbo precisam flectir-se sobre si mesmas, constituindo
a forma reflexa. Em gramática isso é fácil e admitido por
todos. Por que não em Lógica e Ontologia?
Um outro par de conceitos pode ilustrar a questão e trazer
um pouco mais de luz à solução proposta. Segundo a tradição,
essência é algo interno que determina o que um ser realmente é.
A aparência é algo externo, é algo quase sempre enganador;
275
as aparências enganam, diz a maioria dos filósofos. A essência é
o elemento primeiro, mais nobre, mais importante, mais
necessário, sim, indispensável. A aparência, pelo contrário, é
algo secundário, é algo sem importância, é algo que devemos
pôr de lado. Hegel não pensa assim. Para HegeF 9 essência e
aparência, enquanto se opõem linearmente, apresentam um
problema insolúvel e um regressus ad infinitum, pois nunca
saberemos com certeza se o que temos em mente já é uma
essência ou ainda é uma mera aparência, atrás da qual se
esconde a verdadeira essência, e assim por diante. Para Hegel
é preciso sair da linearidade e do regressus ad infinitum e
assumir decididamente o movimento circular. Essência e apa-
rência se determinam mutuamente, uma não existe sem a
outra, ambas possuem igual importância. Essência é aquilo
que aparece. Aparência é a essência que se está mostrando.
Como nos Vexierbilder da psicologia da Gestalt temos aqui
figura e fundo que se invertem e permitem que se vejam
duas coisas diferentes, por exemplo, um cálice ou dois perfís
de rosto. No jogo de essência e aparência temos dois termós
que se determinam mutuamente, que são duas faces da mesma
moeda. O que nunca aparece, o que em princípio não aparece
nunca, não é essência, não é nada sobre o que se possa falar
sensatamente. Mas se a aparência é a essência que se está
mostrando, e se a essência é aquilo que a aparência apresenta,
então, essência e aparência são apenas dois aspectos da
mesma coisa. Essência e aparência, enquanto se opõem como
tese e antítese, isto é, enquanto postas de maneira linear,
uma contra a outra, levam a um processus ad infinitum.
Essência e aparência, quando postas em circularidade, não
mais se opõem como tese e antítese, mas constituem uma
síntese, na qual ambas, conciliadas, subsistem como unidade,
na qual cada uma delas é a contrapartida da outra. Não temos,
nem em português nem em alemão, palavra que expresse
essa unidade sintética entre essência e aparência, mas nem
por isso podemos abrir mão dessa poderosa síntese. A unidade
essência/aparência é uma tese central da Lógica de Hegel.
O mesmo ocorre com o causante e com o causado. Num
primeiro momento, postos um contra o outro, de maneira
linear, levam a um processus ad infinitum. Mas se tomamos
causante e causado como unidade sintética, se os colocamos
276
em movimento circular, o causante se funde com o causado e
a unidade dialética de ambos constitui o processo de auto-
causação. Ativo e passivo aqui se constituem mutuamente e
convivem harmoniosamente numa síntese. Para a síntese de
ativo e passivo não temos um termo que já esteja consagrado,
mas poderíamos introduzir o termo auto-ativação. Para dizer
a unidade de causante e causado, porém, temos uma bela
palavra: autocausação.
A solução proposta por Platino e pelos filósofos neoplatô-
nicos e elaborada em pormenores por Hegel é, na minha
opinião, a única possível. Todos os seres, para que existam,
necessariamente têm uma razão suficiente. Esta razão sufici-
ente, em muitos casos que observamos na experiência do
dia-a-dia, está fora e antes do ser que procuramos entender;
em tais casos a causa está separada do efeito e vem antes
dele. Mas em outros casos, como na vida, na liberdade, no
Absoluto, a razão suficiente do ser existe, sim, e tem que
existir, mas ela está dentro dele. Não adianta procurarmos
fora, porque não a encontraremos: ela não está fora, está
dentro. A razão suficiente que está dentro de um ser faz que
este ser se explique por si mesmo, que ele se determine por
si mesmo, que ele seja um ser autodeterminante e auto-orga-
nizado. O Deus de Tomás de Aquino, com seu ato livre de
criar o mundo, só pode ser pensado sem contradição, se o
pensamos como um ser que é, ao mesmo tempo, causante e
causado, ou seja, como autodeterminação, como causa sui. A
doutrina do Aquinate sobre a causalidade o impede de pensar
causa e efeito como causalidade circular, como causa sui.
Mas, sob o peso do problema, o próprio Tomás de Aquino,
quando trata dos atas livres de decisão, abandona por alguns
momentos sua teoria sobre a impossibilidade da causa sui e
a utiliza como única solução para a questão da liberdade:
Liberum est quod sui causa est. Quod ergo non est sibi causa
agendi, non est liberum in agendo. (Livre é somente aquele
que é causa de si mesmo. O que não é causa para si mesmo,
não é livre em seu agir.)3°
Mas essa não é a solução geralmente proposta, nem por
Tomás de Aquino, nem pela maioria dos pensadores da Idade
Média e da Renascença. A doutrina usual é aquela que separa
rigidamente causa e efeito, dizendo ser impossível que exista
277
algo como causa sui, como auto-organização. Essa dicotomia
nunca conciliada, entre causa e efeito, entra na tradicão filo-
sófica que não é neoplatônica, entra em Newton e e~ todas
as ciências empíricas, entra na concepção de causalidade da
Crítica da razão pura, de Kant, e encontra seu apogeu
filósofico no livro que Schopenhauer apresenta para obter
sua Livre Docência. Grande parte da Filosofia e praticamente
todas as ciências, a partir do século XIII, adotam uma
concepção do mundo em que a causa está sempre separada
do efeito e é anterior a ele. Isso, por um lado, permitiu, sem
dúvida, imensos progressos nas ciências, mas, por outro lado,
impediu que se pensasse corretamente o que é vida, o que é
liberdade, o que é democracia. Os processos em que a
circularidade de causa e efeito predominam ficaram sem
explicação. Por isso, os processos vitais e a liberdade como
autodeterminação tornaram-se problemas sem solução. Esse
estado de coisas durou séculos, até que Ludwig von Bertalanffy,
que na Universidade de Viena além de Biologia estudou
Filosofia, entrou em contato com a tradicão clássica leu é
, )
escreveu um livro sobre Nicolaus Cusanus, resgatou a tradição
neoplatônica e reformulou, então, em linguagem contem-
porânea, a Teoria de Sistemas, a doutrina que a partir da
autocausação explica não só a auto-organização dos seres
vivos, como também a autodeterminação do ato livre de
decisão. A teoria da autocausação da tradição filosófica,
redescoberta e reformulada por Bertalanffy com o nome de
Teoria de Sistemas, é a Ontologia neoplatônica atualizada e
trazida para a ciência de nossos dias.
A causa de si mesmo, o aitíon beatõu de Plotino3 1 e· de
Pro do, 32 o movimento absoluto que é o repouso absoluto de
Nicolaus Cusanus, 33 a causa sui da primeira linha da primeira
página da Ética de Espinosa, 3·í o Eu que se põe como Eu de
Fichte, 3; o processo dinâmico de autoprodução da Natureza,
natura naturans e naturata naturata de Schelling,36 a circula-
ridade da causação recíproca na Lógica da Essência de Hegel,37
eis as raízes filosóficas de onde surgem as teorias contempo-
râneas sobre auto-organização. A dedicatória no livro de
Bertalanffy é prova disso.
278
A NATUREZA COMO PROCESSO DE
AUTO-ORGANIZAÇÃO
Nada melhor do que a Filosofia da Natureza, de Schelling,
para fechar o arco entre a tradição neoplatônica da causa sui
e as teorias contemporâneas de auto-organização.
Fichte partira do Eu que, depois de se pôr a si mesmo,
põe o Não-Eu, isto é, põe um universo sem vida, distinto e
separado do Eu e de sua produtividade. Schelling, na Filosofia
da Natureza, faz o caminho inverso. Toda a vida, inclusive e
principalmente a vida do Eu, foi engendrada dentro da Natu-
reza e pela Natureza. A Natureza é a totalidade do Universo que
está em movimento constante de autoprodução e de evolução.
No princípio a matéria parece ser morta. Mas não é. De lá de
dentro dessa matéria aparentemente morta emerge, então, a vida
que se desenvolve primeiro como plantas, depois como
animais e finalmente como o homem pensante.
A primeira grande característica dessa concepção é que a
Natureza é uma unidade, que a Natureza é o Universo inteiro.
A segunda característica é que a Natureza não é estática, mas
um processo dinâmico de evolução, que sempre de novo
engendra novas formas de ser e existir. A terceira característica
é que o homem, com seu espírito pensante, nasceu de dentro
desse processo evolutivo e continua parte integrante dele.
Vida e matéria não são princípios primeiros e irredutíveis um
ao outro. Pelo contrário, espírito, vida e matéria são apenas
aspectos do mesmo processo, uno e único, que é a evolução
e o desdobramento do Universo a partir do ovo inicial.
Ab ovo, diziam, os antigos.
A mais impressionante semelhança com as teorias contem-
porâneas de auto-organização consiste na criatividade ínsita
nesse processo de evolução. Para Schelling a natureza é alta-
mente inventiva, é poderosamente criativa. Ela está sempre a
engendrar novidades, novas formas, novos seres, novos pontos
de equilíbrio. E como tudo se faz dentro de uma única Totali-
dade, que é a Natureza, tudo está interligado e tudo influi
sobre tudo. O Todo do Universo, a totalidade em movimento
criativo engendra a multiplicidade, mas elimina as incoerências
e restabelece sempre de novo o equilíbrio do processo
279
evolutivo. Assim, a Natureza produz o homem com seu espírito
e sua capacidade criativa. A criatividade artística do homem
é a ponta de lança da criatividade primeva da própria Natureza.
O homem, em sua autoconsciência, pensa e cria. Mas mesmo
esta autoconsciência é apenas o fruto maduro de algo que já
estava, desde o começo, posto no ovo inicial. Nicolau Cusanus
diria aqui: tudo que está agora, depois do desenvolvimento
e do desdobramento processual, como explicatum estava
como implicatum no primeiro começo.
É nesse exato contexto que surge a seguinte objeção. Tudo
bem. Existe, realmente, uma semelhança de padrões entre a
Filosofia da Natureza, de Schelling, e as teorias contemporâneas
de auto-organização. Mas há uma grande diferença, uma
diferença tão essencial que põe Schelling e os filósofos neo-
platônicos num planeta diferente do planeta habitado pelos
cientistas. Os filósofos, também Schelling, querem construir
uma Filosofia da Natureza como uma ciência que é totalmente
a priori. O filósofo sentado em sua poltrona, sem jamais
levantar-se, sem jamais ir olhar como é que a realidade de
fato é, pega papel e lápis, hoje, um computador, e faz a
dedução de todo o processo de evolução da Natureza. O
cientista, entretanto, trabalha a posteri01'i; ele primeiro observa
cuidadosamente os fenômenos da natureza, para só depois
formular uma teoria. A teoria científica precisa ter coerência
interna, é claro, mas ela precisa ser objeto possível de falsifi-
cação pela observação empírica, pelo experimento. A teoria
do físico teórico só adquire foros de verdade quando confir-
mada pelos experimentos do físico experimental. O mesmo
vale para os cientistas que trabalham com as teorias de auto-
organização. Eles primeiro observam os fenômenos, eles
trabalham a posteriori, e só depois formulam a teoria. Ora, os
filósofos se recusam terminantemente a fazer isso. Filosofia,
também no primeiro Schelling, é sempre e somente a priori.
Erro, muito erro. Erro duplo. O primeiro erro consiste em
pensar que todos os filósofos, em especial Schelling, só
trabalhem a priori. Não é verdade. Embora haja, entre os
filósofos uma predominância do conhecimento a priori, em
alguns casos até uma exclusividade do a priori, o conhecimento
a posteriori também é parte essencial da Filosofia. O melhor
exemplo disso é exatamente Schelling que, no começo de
280
sua vida filosófica, pretendia trabalhar só a priori, e que, então,
descobriu a importância da contingência e, assim, do conheci-
mento a posteriori. O Schelling tardio introduz o termo Filosofia
Positiva exatamente para abrir espaços para o conhecimento que,
respeitando a contingência das coisas, trabalha a posteriori.
Quem ousaria afirmar que as figurações da Fenomenologia
do espírito, de Hegel, são fruto de dedução a priorz? Antígona
a priorz? A Revolução Francesa a pri01·l? O Terror a priorz?
Certamente que não.
Para fazer justiça aos fatos históricos, é preciso dizer que
muitos filósofos exageraram a dose de a priori; que alguns
filósofos ficaram tão obcecados com o a priori que descon-
sideraram o campo do conhecimento a posterio1i e o entregaram
aos cientistas. É preciso dizer que o jovem Schelling, no começo
de sua carreira, pretendia deduzir tudo, mas é preciso dizer
também que ele mesmo descobriu seu erro e introduziu a
Filosofia Positiva. No século XX, mais exatamente a partir de
Dilthey e Droysen, a partir do Dasein de Heidegger, nenhum
filósofo pretende construir toda a Filosofia utilizando somente
o método a priori. Sabemos todos que o mundo é contingente
e que o contingente não se deixa deduzir; o que é contingente
precisa ser constatado em sua existência, que não é necessária,
e historiado em seu desenvolvimento. Como o Universo é
um processo contingente de evolução, toda Filosofia, hoje,
que seja minimamente crítica precisa conjugar o método a
priori e o método a posteriori. O primeiro serve para julgar a
coerência interna das teorias, o segundo serve para dar
conteúdo material às perguntas e respostas da teoria, bem
como para ju)gar a coerência das teorias com a realidade. A
conjugação do a priori e do a posteriori, eis o único método .
hoje admissível em Filosofia.
O segundo erro está no lado dos cientistas. É verdade que
desde o nominalismo inglês há um forte apelo ao método a
posteriori. É certo que toda a ciência hoje parece trabalhar só
a posteriori. É verdade que os cientistas, de Galileu até Einstein
inclusive, primeiro trabalhavam e coletavam dados do mundo
empírico, para depois formular uma teoria. Mas a verdade
completa vai mais longe e é maior: segundo os cientistas, de
Galileu, Newton e Laplace até Einstein, a teoria, uma vez
corretamente formulada, permitiria fazer uma dedução
matematicamente rigorosa tanto para trás, para o passado,
281
como para frente, para o futuro. O sonho de todos os cientistas, coisas tão completamente novas que, estonteados face à emergência
de Galileu até Einstein, era encontrar a fórmula que do novo, voltamos ao dito de Sócrates com o qual começou a
permitisse deduzir absolutamente tudo. A hybris intelectual Filosofia: Sabemos que nada sabemos.
dos cientistas e sua predileção pela dedução a priori não era,
como se vê, menor que a hybris e a pretensão dos filósofos.
As deduções universais de Fichte e de Schelling não são muito
diferentes do sonho científico de Newton, de Laplace e de
Einstein, que a partir de uma fórmula e de uma situação inicial NOTAS
pretendiam calcular e predizer, rigorosamente, todo o processo 1
futuro. Foi Heisenberg, com seu princípio de incerteza, quem VON BERTALANFFY. Zur einer allgemeinen Systemlehre, 1945.
2
VON BERTALANFFY. An Outline of General System Theory. [O livro prin-
começou a restringir a força abrangente da dedução a priori cipal (edição revisada) é VON BERTALANFFY. General System Tbeory.
na Física. Foi somente Ilya Prigogine quem, há não muitos Foundations, Development, Applications, p. 295.]
anos, demonstrou a irreversibilidade dos processos dinâmicos 3
GELL-MAN. Smolin? Oh, is he that young guy with those crazy ideas? He
dissipativos e introduziu, assim, em Química e Física, o elemento may not be wrong!
4
da historicidade, ou seja, o a posteriori. Depois de Prigogine, o LUHMANN. Die 1Vissenscbaft der Gesellscbaft, p. 702-719.
5
cientista sabe, em princípio, que não pode deduzir tudo que VON BERTALANFFY. General System Tbeory. (A primeira edição, em alemão,
é de 1945, em inglês, de 1950. A primeira edição revisada é de 1969.)
vai acontecer. Isso, nós fJJ.ósofos entrementes também aprendemos. 6
VON BERTALANFFY. Nikolaus von Kues, 1928.
O que significa isso? Que tanto na dialética ascendente 7
HABERMAS. Der pbilosopbiscbe Diskurs der kloderne, 1985.
como na dialética descendente há sempre, além do a priori, 8
DRlESCH. Tbe Science and Pbilosopby oftbe Organism, 1908.
9
um momento essencial e inarredável que é a posteriori. Ao Cf. HARAWAY. Clystals, Fabrics and Fields: Metaphors of Organicism in
sair do mundo empírico e subir, degrau por degrau, para os Twentieth-Century Development Biology, p. 33, 131, 147, 194.
10
VON BERTALANFFY. Zu einer allgemeinen Systemlehre, p. 114-129.
primeiros princípios, operamos com ambos os métodos, a 11
VON BERTALANFFY. An Outline of General System Theory, p. 139-164.
priori e a posteriori. Os diálogos de Platão e a Fenomenologia 12
WlENER. Cybernetics, 1961.
do espírito, de Hegel, para citar só dois exemplos clássicos de 13
SMOLIN. Tbe Life oftbe Cosmos, 1998.
dialética ascendente, estão cheios de elementos a posteriori. 11
" LASZLO. Tbe 1Vbispering Pond. A Personal Guide to the Emerging Vision
Que eu saiba, ninguém jamais os negou. A tentação e o of Science, 1999.
15
problema, como para os cientistas, está ná dialética descen- LOVELOCK. Gaia, 1979; LOVELOCK, Healing Gaia, 1991.
16
dente. Pode-se, a partir dos primeiros princípios, deduzir a MARGULIS. Symbiosis in Cell Evolution, 1993; Cf. tb. MARGULIS; SAGAN.
1Vbat is Life?, 1995.
priori todo o Universo? Fichte pensava que sim, o jovem Schelling 17
PRlGOGINE. Tbe End of Certainty. Time, Chaos and the New Laws of
pensava que sim. Hoje sabemos que isso não é possível. Não Nature, 1997; Cf. tb. PRlGOGINE; STENGERS. Order out of Cbaos, 1984;
é possível porque o processo de evolução do Universo contém NICOLIS; PRIGOGINE. Exploring Complexity, 1989.
elementos contingentes e o que é contingente, por definição, 18
SCHOPENHAUER. 1Verke, v. 1, p. 15.
19
não pode ser deduzido a prim·i de princípios apenas formais. HEGEL. 1Vissenscbaft der Logik, v. 6, p. 200-217.
20
HEGEL. 1Vissenscbaft der Logik, v. 6, p. 237.
Cientistas e Filósofos do século XX nem sempre sabiam da 21
TOMÁS DE AQUINO. Summa Tbeologica, pars I, quaest. III, art. IV, VI e
importância da contingência e, por isso, do a posteriori. Hoje VII.
sabemos. O Universo como totalidade em movimento precisa, 22
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Summa Tbeologica, pars I, quaest. XLIV e XLV.
pois, ser visto e estudado como um sistema de auto-organi- 23
PLOTINUS. Enneads, v. I a VII. As citações serão feitas, como usual·, pela
zação, em que o elemento a priori se conjumina com o indicação do livro, capítulo e linhas.
24
elemento a posterior"i; como um sistema que muitas vezes PLOTINUS. Enneads (VI, 8, 7).
25
nos surpreende com sua gigantesca criatividade, pois engendra PLOTINUS. Enneads (VI, 7, 26-27).
26
PLOTINUS. Enneads (VI, 14, 41).

282
283
27 HEGEL. tVíssenschaft der Logík, v. 6, p. 80-123, 222-240. HABERMAS, J. Nachmetapbysisches Denken. Frankfurt am Main:
28 HEGEL. Wíssenscbaft der Logík, v. 6, p. 80. Suhrkamp, 1988.
29 HEGEL. tVíssenschaft der Logík, v. 6, p. 17-34.

3° TOMÁS DE AQUINO. Summa contra Gentiles, II, cap. 48, 2. nr. 1243. HARAWAY, D. ]. Crystals, Fab1·ícs and Fields: Metaphors of
[Suma contra os gentios. Edição bilíngue, 1990]. Tomás de Aquino afirma Organicism in Twentieth-Century Development Biology. New Haven:
a causa suí também no tratado De Veritate, 24, 1. Não obstante esta Yale University Press, 1987.
afirmação categórica da doutrina sobre a causa suí como fundamento
lógico e ontológico para resolver o problema da liberdade como auto- HEGEL, G. W. F. Wissenscbaft der Logik. In: Werke. E. Moldenhauer;
determinação, Tomás de Aquino, em outras passagens, nega expressamente K. M. Michel (Ed.). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983. v. 6.
a doutrina neoplatônica da causa sui. Assim, por exemplo, na mesma
Summa contra Gentiles (I, cap. 22, 3, nr. 207) escreve: Si primo modo, LASZLO, E. Tbe Whispering Pond. A Personal Guide to the Emerging
essentía autem est secundum illud esse, sequítur quod aliquíd sít sibi ipsi Vision of Science. Boston, Mass.: Element, 1999.
causa essendí. Hoc atttem est ímpossibile: quía prius secundum íntellectum
est causam esse quam e.ffectum. ["Se, conforme a primeira opção, sendo a LOVELOCK, J. Gaia. New York: Oxford University Press, 1979.
essência referente somente àquele ser, resulta algo que é causa de seu
próprio ser. Mas isto implica impossibilidade, porque, segundo a ordem LOVELOCK, J. Healing Gaia. New York: Harmony Books, 1991.
lógica, a causa é anterior ao efeito."]
3 1 PLOTINUS. Enneads (VI, 14, 41).
LUHMANN, N. Die Wissenschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main:
3 2 PROKLOS. E/ementa Theologiae, propositio 46.
Suhrkamp, 1990.
33 DE CUSA. De docta ignorantía, II, cap. 10, nr. 155, 1s. p. 84.
MARGULIS, L. Symbiosis in Cell Evolution. San Francisco: Freeman,
34
SPINOZA. Ethíca, I, 1, p. 365. 1993.
35 FICHTE. Gnmdlage der gesamten Wíssenschaftslehre- 1802, p. 91-101.

36 SCHELLING. Eínleítung zu dem Entwwf eínes Systems der Naturphilosophie
(1799), p. 352.
37 HEGEL. Wissenscbaft der Logík, p. 80-123, 217-242.
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Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1979.
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Berlin: de Gruyter, 1871.
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ideas? He may not be wrong! ln: www.edge.org/3rd_culture/bios/
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WIENER, N. Cybernetics. Cambridge, Mss.: MIT Press, 1961.
286
c o L A B o R A D o R E s
A11ttro Leyte Coello- professor de filosofia da Universidad de
Vigo, Espanha e investigador associado à Comissão Schelling
da Academia de Ciência da Baviera. Publicou Las Epocas de
Schelling (1998), editou as atas do congresso internacional
Transaciones y Pasajes: Naturaleza e Historia em Schelling
(1999), e fez diversas traduções das obras de Schelling. Possui
também uma extensa produção relacionada à Hermenêutica
Contemporânea, particularmente sobre Heidegger.
Leonardo Alves Vieira - doutor pela Universitãt
Gesamthochschule Kassel (Alemanha), professor adjunto do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas
Gerais, publicou Freiheit als Kultus. Aporien und c'renzen der
menschlichen Freiheit hei Hegel. (1996). Outras publicações
abordando tanto a temática do Idealismo Alemão quanto
outros tópicos de seu interesse podem ser consultadas em
http:/ /www.fafich.ufmg.br/-leonarva ou http:/ I
www .geocities. com/leonarva
Má1·cia C. F. Gonçalves - doutora em filosofia pela Freie
Universitãt Berlin, é professora do Departamento de Filosofia
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Entre capítulos
e artigos de livros, publicou em 2001 O belo e o destino: uma
introdução à filosofia de Hegel.
Hugo Renato Ochoa - professor da Pontificia Universidad
Catolica de Valparaiso, Chile e pesquisador do FONDECYT
(Fondo Nacional de Desarrollo Científico y Tecnológico).
Publicou diversos artigos sobre Schelling e traduziu Las Edades
del Mundo (1993) de Schelling.
jacinto Rivera de Rosales- professor titular na Universidad
Nacional de Educación a Distancia (Espanha). Publicou El
punto de pat1ida de la metafísica transcendental. Un estudio
crítico de la obra kantiana(1993). É autor de vários livros,
artigos e traduções (http://www.uned.es/dpto_fil/curriculums/ H u M A N T A s
jacintorivera/jacintorivera.htm).
Luis Fernando Ca~·dona Suárez - professor da Pontifícia
Universidad Javeriana, Santafé de Bogotá, Colômbia. Publicou
Inversión de los Princípios (2002), além de diversos artigos DIRETORA DA COLEÇÃO
Heloisa Starling
sobre Schelling.
Tberesa Calvet de Magalhães - doutora em Ciências Políticas
e Sociais pela Université Catholique de Louvain e com pós-douto-
rado em Filosofia Contemporânea no Instítut Supériew· de
Philosophie da Université Catholique de Louvain, Louvain-
la-Neuve, Bélgica. Professora aposentada da UFMG, ela é 1. DO SÓTÃO Ã VITRINE, memórias de mulheres
autora de Signe ou symbole: Introduction à la théorie sémiotique Maria José Motta Viana
de C. S. Peirce. Outras publicações sobre Filosofia Contem-
2. A IDÉIA DE JUSTIÇA EM KANT, seu fundamento na liberdade
porânea podem ser consultadas em http:/ I e na igualdade
www .fafich. ufmg. br/ -tcalvet. Joaquim Carlos Salgado
Heinz Eidam - professor da Universitat Gesamthochschule
3. ELEMENTOS DE TEORIA GERAL DO DIREITO
Kassel (Alemanha), publicou Moral, Freiheit und Geschichte. Edgar da Mata Machado
Aspekte eines Problemzusammenhanges (2001), além de
livros, capítulos de livros e artigos para revistas de filosofia. 4. O ARTESÃO DA MEMÓRIA NO VALE DO ]EQUITINHONHA
Vera Lúcia Felício Pereira
Consultar: http ://www. uni-kassel. de/ -eidamm.
Fernando Rey Puente- doutor em Filosofia (UNICAMP) e 5. OS CINCO PARADOXOS DA MODERNIDADE- 2ª reimpressão
professor adjunto do departamento de filosofia da UFMG. Antoine Compagnon
Publicou As concepções antropológicas de Schelling (1997).
6. LIÇÕES DE ALMANAQUE, um estudo semiótica
Sua área de pesquisa é a Filosofia Antiga e as interpretações Vera Casa Nova
e apropriações feitas por alguns pensadores modernos e
contemporâneos da mc;sma. Além de ter publicado diversos 7. MÚLTIPLOS OlHARES SOBRE EDUCAÇÃO E CULTURA -
artigos sobre essa temática, dirige atualmente a coleção 1ª reimpressão
Juarez Dayrell (Org.)
Travessias da Editora UFMG, voltada para a tradução de obras
de filosofia. 8. ANIROPOLOGIA DA VlAGEM, escravos e libertos em Minas
Ricardo josé Corrêa Barbosa - doutor pela Pontifícia Gerais no século XIX
llka Boaventura Leite
Universidade Católica do Rio de Janeiro, é professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio 9. O TRABAlHO DA CITAÇÃO
de Janeiro. Publicou Schiller e a cultura estética (2004), além Antoine Compagnon
de vários artigos e capítulos de livros.
10. IMAGENS DA MEMÓRIA, entre o legível e o visível
Carlos Roberto Cirne Lima - doutor em Filosofia pela César Guimarães
Universitãt Innsbruck, Áustria, professor titular da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS. Publicou, entre outros, 11. AO LADO ESQUERDO DO PAI
Sabrina Sedlrnayer
Dialética para principiantes (1996). Sua vasta publicação pode
ser consultada em http:/ /www.cirnelima.org ou http:/I 12. A ASTúCIA DAS PALAVRAS, ensaios sobre Guimarães Rosa
www. dialetica-brasil. org/gpi-cont-cirne .htm. Laura Belchior Mendes e Luiz Claudio Vieira de Oliveira (Org.)

288
289
13. NAVEGAR É PRECISO, VIVER, escritos para Silviano Santiago 28. FILOSOFIA ANAJÍIICA, PRAGMATISMO E CIÊNCIA
Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.) Paulo Roberto Margutti Pinto, Cristina Magro, Ernesto Perini
Frizzera Santos e Lívia Mara Guimarães (Org.)
14. ADORNOS, nove ensaios sobre ofilósojojrankfw1iano
Rodrigo Duarte 29. BELO, SUBUME E KANT
Rodrigo Duarte (Org.)
15. A ONTOLOGIA DA REALIDADE- 2~ reimpressão
Humberto Maturana 30. A FORMAÇÃO DO HOMEM MODERNO VISTA A1RA VÉS DA
ARQUlTEIVRA - 1~ reimpressão .
16. VÍSCERAS DA MEMÓRIA, uma leitura da obra de Pedro Nava Carlos Antônio Leite Brandão
Antônio Sérgio Bueno
31. A PEDRA 1l1AGICA DO DISCURSO (2ª edição revista e ampliada)
17. NA TESSFIVRA DA CENA, A VIDA, comunicação, Eneida Maria de Souza
sociabilidade e política
Maria Céres Pimenta Spínola Castro 32. O FILiviE DENIRO DO FILME
Ana Lúcia Andrade
18. NAVEGANTES DA INIEGRAÇÃO, os remeiros do rio São Francisco
Zanoni Neves 33. O ESPELHO DE HERÓDOTO, ensaio sobre a representação
do outro
19. PÉ PRETO NO BARRO BRANCO, a língua dos negros François Hartog
da Tabatinga
Sônia Queiroz
34. NORJ.VIA E CONFLITO, aspectos da história de Minas no século :A'VJII
Laura de Mello e Souza
20. JORNALISMO E VIDA SOCIAL, a história amena de um
jomal mineiro
35. AO LEITOR SEM MEDO, Hobbes escrevendo contra o seu tempo
Vera Veiga França (2ª edição)
Renato Janine Ribeiro
21. EMOÇÕES E LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO E NA POJÍIICA -
2~ reimpressão
36. LIBERALISMO E SINDICATO NO BRASIL (4ª edição revista)
Humberto Maturana Luiz Werneck Vianna

22. HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL 37. ESCREVER A CASA PORTUGUESA

Nádia Souki Jorge Fernandes da Silveira (Org.)

23. PONTOS E BORDADOS, escritos de história e política- 1ª reimpressão 38. POJÍIICA E RECUPERAÇÃO ECONÓMICA EM MINAS GERAIS
José Murilo de Carvalho Otavio Soares Dulci

24. A DEMOCRACIA CONIRA O ESTADO, Marx e o momento 39. A INVENÇÃO DA VERDADE

maquiaveliano Olímpia Pimenta
Miguel Abensour
40. A REVOLUÇÃO URBANA - 1ª reimpressão
25. O LOCAL DA CULTURA - 2ª reimpressão Henri Lefebvre
Homi K. Bhabha
41. O DEMÓNIO DA TEORIA, literatura e senso comum - 2~ reimpressão
26. LUZES E 7REVAS, Minas Gerais no século XVIII Antoine Compagnon
Fábio Lucas
42. HERMENÊUTICA E POESIA, o pensamento poético
27. LÚCIO CARDOSO, a travessia da escrita Benedito Nunes
Ruth Silviano Brandão (Org.)
43. O CONDOR VOA, literatura e cultura latino-americanas
Antonio Cornejo Polar
 59. O FILÓSOFO E O COMEDIANTE, ensaios sobre literatura e filosofia
44. INTERFACES, literatura mito inconsciente cognição na Ilustração
Maria Luiza Ramos Franklin de Matos

45. QUJD TUM? o combate da arte em Leon Battista Alberti 60. MÍMESIS E EXPRESSÃO
Carlos Antônio Leite Brandão Rodrigo Duarte e Virgínia Figueiredo (Org.)

46. NIETZSCHE, das forças cósmicas aos valores humanos
Scarlett Marton
47. A FORÇA DA lETRA, estilo escrita representação
Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão (Org.)
48. TEORIA E POIÍIICA DA IRONIA
Linda Hutcheon
49. POIÍIICA E RACIONALIDADE, problemas de teoria e método de
uma sociologia crítica da política
Fábio Wanderley Reis
61. A EXAUSTÃO DA DIFERENÇA, a política dos estudos culturais
latino-americanos
Alberto Moreiras
62. HANNAH ARENDT, diálogos, reflexões, memórias - 1ª reimpressão
Eduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto (Org.)
63. BEHEMOTH OU O LONGO PAR.LAJVJENTO
Thomas Hobbes
64. A HISTÓRIA DE HOMERO A SANTO AGOSTINHO
François Hartog (Org.)

50. AS MISSÕES ]ESufnCAS E O PENSAMENTO POIÍIICO MODERNO,
encontros culturais, aventuras teóricas
José Eisenberg
51. PENSAR A REPÚBliCA - 1ª reimpressão
Newton Bignotto (Org.)
52. TEORIA SOCIAL E MODERNIDADE NO BRASIL
Leonardo Avritzer e José Maurício Domingues (Org.)
65. ORIGENS DO REPUBliCANISMO MODERNO
Newton Bignotto
66. DARCY RIBEIRO, sociologia de um indisciplinado
Helena Bomeny
67. DIÁLOGOS OCEÂNICOS, Minas Gerais e as novas abordagens para
uma história do Império Ultramarino Português
Júnia Ferreira Furtado (Org.)

53. CULTURA E POIÍIICA NOS MOVIMENTOS SOCIAIS 68. CHARLES FREDERICK HARTT, UM NATURALISTA
LATINO-AMERICANOS, novas leituras NO IMPÉRIO DE PEDRO II
Sonia E. Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (Org.) Marcus Vinicius de Freitas

54. All1ERICANOS, representações da identidade nacional no 69. A TRADIÇÃO ESQUECIDA, Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia
de Antonio Candido
Brasil e nos EUA
Luiz Carlos Jackson
Lúcia Lippi Oliveira

55. A CONQUISTA DO OESTE, a fronteira na obra de Sérgio 70. A MOBILIDADE DAS FRONTEIRAS, inserções da geografia na crise
da modernidade
Buarque de Holanda
Cássio Eduardo Viana Hissa
Robert Wegner
71. REIS NEGROS NO BRASIL ESCRA VISTA, história da festa de
56. A POÉTICA DO HIPOCENTAURO, literatura, sociedade
coroação de Rei Congo
e discurso ficcional em Luciano de Samósata
Marina de Mello e Souza
Jacyntho Lins Brandão
72. A ESCOLA DE MINAS DE OURO PRETO, o peso da glória
57. UM VISIONÁRIO NA CORTE DE D.]OÃO V, revolta e milenarisno (2ª edição revista)
nas Minas Gerais José Murilo de Carvalho
Adriana Romeiro
73. HOMO SACER, o poder soberano e a vida nua I
58. COGNIÇÃO, CIÊNCIA E VIDA COTIDIANA Giorgio Agamben
Humberto Maturana
 -,-.

74. E5TAÇÃO IMAGEM, desafios 90. OS CRIMES DO TEXTO, Rubem Fonseca e a ficção contemporânea
Paulo Bernardo e Vera Casa Nova (Org.) Vera Lúcia Follain de Figueiredo

75. FRANCIS BACON E A FUNDAMENTAÇÃO 91. O DILEMA DO CENTAURO, ensaios de teoria da bistória
DA CIÊNCIA COMO TECNOLOGIA e pensamento latino-americano
Bernardo Jefferson de Oliveira Antonio Mitre

76. A CRISE NÃO MODERNA DA UNIVERSIDADE MODERNA (epílogo 92. ALEGORIAS DA DERROTA, a ficção pós-ditatorial e o trabalho de
de O conflito das faculdades) luto na América Latina
Willy Thayer Idelber Avelar

77. DIALÉTICA DO OLHAR, Walter Benjamin e o Projeto das Passagens 93. DA DIÁSPORA, identidades e mediações culturais
Susan Buck-Morss Stuart Hall

78. O CORPO DO DELITO, um manual 94. MEJ.VIÓRIAS VIDENTES DO BRASIL, a obra de Pedro Nava
Josefina Ludmer José Maria Cançado

79. CRÍTICA CULT 95. AS FUNÇÕES DA RETÓRICA PARLAMENTAR NA

Eneida Maria de Souza REVOLUÇÃO FRANCESA, estudos preliminares para
uma pragmática histórica do texto
80. VALORES, m1e mercado política Hans Ulrich Gumbrecht
Reinaldo Marques e Lúcia Helena Vilela (Org.)
96. A DOENÇA DO ISLÃ
81. IN1ERVENÇÕES CRÍ'JlCAS, arte, cultura, gênero e política Abdelwahab Meddeb
Nelly Richard
97. HISTÓRIAS LOCAIS I PRO]ETOS GLOBAIS, colonialidade,
82. TEMPO PRESENTE, do .MDB a FHC saberes subalternos e pensamento liminar
Fábio Wanderley Reis Walter D. Mignolo

83. AS CORES DE ERCÍLIA, esfera pública, democracia, 98. TEORIA CRÍTICA DA INDÚSTRIA CULTURAL
configurações pós-nacionais Rodrigo Duarte
Sérgio Costa
99. MEMÓRIA DE ULISSES, narrativas sobre a fronteira na
84. A DEMOCRACIA E OS TRÊS PODERES NO BRASIL Grécia antiga
Luiz Werneck Vianna (Org.) François Hartog

85. INTERNET E POLÍTICA, teoria e prática da democracia eletrônica 100. A GEOGRAFIA DO CRIME, áreas de violência nas minas
José Eisenberg e Marco Cepik (Org.) setecentistas
Carla Maria Junho Anastasia
86. OS SONS DO ROSÁRIO, o congado mineiro dos At1uros e ]atobá
Glaura Lucas 101. O CUIDADO COM O MUNDO, diálogo entre Hannab Arendt e
alguns de seus contemporâneos
87. ÉTICA, POLÍTICA E CULTURA Sylvie Courtine-Denamy
Ivan Domingues, Paulo Roberto Margutti Pinto e
Rodrigo Duarte (Org.) 102. RETORNO AO REPUBLICANISMO
Sérgio Cardoso (Org.)
88. ANTROPÓLOGAS & ANTROPOLOGIA
Marisa Corrêa 103. AS PEDRAS E O ARCO, fontes primárias, teoria e bistória
da literatura
89. O CÁLCULO DO CONFLITO, estabilidade e crise na política brasileira Regina Zilberrnan, Maria Eunice Moreira, Maria da Glória Bordini
Wanderley Guilherme dos Santos e Maria Luíza Ritzel Remédios
 /c;~" :

1
104. FICÇÕES DE FUNDAÇÃO, os romances nacionais da
América Latina
Doris Sommer

105. IDENTIDADES VIRTUAIS, uma leitura do retrato fotográfico

Annateresa Fabris

li
106. DIONISISMO, PODER E SOCIEDADE na Grécia até o fim da
época clássica
José Antonio Dabdab Trabulsi

107. IMAGENS DA DESIGUALDADE

Celi Scalon (Org.)

108. ENSAIOS DE SOCIOLOGIA, teoria e pesquisa

José Maurício Domingues

109. A PROPÓSITO DE ÁGUAS VIRTUOSAS, formação e ocorrências

de uma estação balneária no Brasil
Stelio Marras

110. EMPRESÁRIOS, INJERESSES E MERCADO, dilemas do

desenvolvimento no Brasil
Eli Diniz e Renato Boschi

111. UNIVERSIDADE E DEMOCRACIA, experiências e alternativas para

a ampliação do acesso à universidade pública brasileira
Maria do Carmo de Lacerda Peixoto (Org.)

112. ANTROPOLOGIAS, HISTÓRIAS, EXPERIÊNCIAS

Fernanda Arêas Peixoto, Heloisa Pontes e Lilia Moritz Schwarcz (Org.)

113. O PAPEL DO INIELECTUAL HOJE

Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes (Org.)

114. A CONVENIÊNCIA DA CULTURA, usos da cultura na era global

George Yúdice

115. O COSMOPOIJTISMO DO POBRE, crítica literária e crítica cultural

Silviano Santiago

116. COMPETÊNCIA EM TRADUÇÃO, cognição e discurso

Adriana Pagano, Célia Magalhães e Fabio Alves (Org.)

117. CONHECIMENTO E TRANSDISCIPLJNARIDADE II, aspectos

metodológicos
Ivan Domingues (Org.)

118. DAS VANGUARDAS A BRASÍliA, cultura urbana e arquitetura na

América Latina
Adrián Gorelik

119. AS FILOSOFIAS DE SCHELLING

Fernando Rey Puente e Leonardo Alves Vieira (Org.)