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Economia Solidaria uma abordagem internacional Genauto Carvalho de Franga Filho e Jean-Louis Laville : . G sociedade e \ . UFRGS solidariedade LL EDITORA As grandes transformagées econé- micas observadas nas duas tiltimas dé- cadas foram marcadas pela légica exclu- dente do capitalismo contemporaneo, pela degradacao do aparelho estatal € da aco piiblica, pelo aumento do de- semprego, da precarizagao do trabalho e da concentragdo de renda. O capital financeiro estende suas praticas espolia- ‘ é poe tivas e predatérias acentuando a légica da concorréncia sem limites na econo- Econ O mM la Sol id ar | a mia de mercado. Ao mesmo tempo, des- : ‘: se quadro sombrio despontam luzes lo- uma abordagem internacional calizadas, indicando que uma transfor- magao substancial n&o s6 é necessaria como possivel no curto prazo. Por todos os lados, observam-se ini- ciativas politicas e sociais que buscam romper com praticas e légicas pernicio- | sas ao interesse coletivo. Em adminis- tragdes estaduais e municipais, na arti- culagao de grupos da sociedade civil, nas praticas de resisténcias de grupos sociais, nos estudos empfricos e nas ela- boragées tedricas de intelectuais, esto surgindo novas praticas, propostas e andlises que apontam que um outro mun- do é possivel. A Solidariedade como prin- cipio ético e politico vai alémdas convic~ ¢Ges pessoais alcangando um leque iné- dito de praticas econémicas e societais. A colegio Sociedade e Solidarieda- de teré como objetivo, publicar os estu- dos, as andlises, as elaboragdes tedri- cas © as propostas concretas que apon- tem para as condigées necessdrias & superacdo do modelo dominante, para iniciativas que poderao construir uma sociedade diferente e melhor. Face 4 complexidade das transforma- des necessdrias e em curso, a colecdo { contemplard as questGes essenciais que dizem respeito a relagao entre, sociedade, ) economia e democracia. Entre elas, des- 4 tacamos as seguintes: Politicas Puiblicas, Gest&o Participativa (orgamentos puibli- cos, gestiio das cidades, das empresas { Pe UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Reitora Wrana Maria Panizzi Vice-Reitor José Carlos Ferraz Hennemann Pré-Reitor de Extensio Fernando Setembrino Cruz Meirelles Vice-Pré-Reitora de Extensio Renita Kldsener EDITORA DA UFRGS Diretora Jusamara Vieira Souza CONSELHO EDITORIAL Anténio Carlos Guimaraes Aron Taitelbaun Carlos Alberto Sieil Célia Ferraz de Souza Clovis M. D. Wannmacher Geraldo Valente Canali José Augusto Avancini José Luiz Rodrigues is de Andrade Miguel Jusamara Vieira Souza, presidente | _fPDGS Gp) porn, Ga) BEBE WT’ Laboratoire de Sociologie du Changement Institutionnel Editora da UFRGS * Av, Paulo Gama, 110, 2° andar - Porto Alegre, RS - 9040-060 - Fonelfax (51) 3316- 4090 - editora@ulrgs.br- wwrw.editora.ufrgs.br * Direcdo: jusamara Vieira Souza * Editaragao: Paulo Antonio da Silveira {coordenadon), Carla M, Luzzatto, Maria da Gloria Almeida dos Santos e Rosangela de Mello; suporte editorial; Alter Breitenbach (bolsista), Carlos Batanoli Hallberg (bolssta), Fernando Piccinini Schmitt, Gabriela Carvatho Pinto (bolsista)e Silvia Aline Otharan Nunes (bolsista) « Administraco: Najara Machado (Coordenadora), José Pereira Brito Filho, Laerte Balbinot Dias e Maria Beatriz Araijo Brito Galarraga; suporte administrative: Ana Lucia Wagner, ean Paulo da Silva Carvalho, Joo Batista de Souza Dias, e Marcelo Wagner Scheleck * Apoio: Idalina Louzada e Laércio Fontoura. i EDITORA ul Economia Solidaria uma abordagem internacional Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville ie uFRGs || © dos autores ¥* edigdo: 2004 Direitos reservados desta edigao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Revisdo: Rosangela de Mello Capa e projeto grafico: Sotero Design Genauto Carvalho de Franga Filho é Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris Vil. Professor da Escola de Administragao da UFBA e do seu Programa de Pés-Gradua- cdo (NPGA/UFBA). Pesquisador do NEPOL (Niicleo de Estudos sobre Poder e Organi- zagdes Locais) do PDGS (Programa de Desenvolvimento ¢ Gestaio Social), Participa, na Bahia, da coordenagio do Bansol ~ Associagao de Fomento & Economia Solidaria, € do Ecosol — Estudos e Agdes em Economia Solidaria. Jean-Louis Laville é Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris. Diretor de Pes- {quisas junto ao CNRS na Franga (Conseil National de la Recherche Scientifique) e do LSCI (Laboratoire de Sociologie du Changement Institutionnel) ligado @ Universidade de Paris. Coordena 0 CRIDA (Cente de Recherche e d°Information sur la Démocratie et l'Autonomie). Professor do Institut de Sciences Politiques € do Conservatoire National d’Ants et Métiers (CNAM) em Paris. Dedica-se hd muitos anos ao tema da economia solidéria na Franga ¢ na Europa, tendo publicado varios liveos e artigos, sendo um dos pioneiros no assunto. F8ide Franca Fitho, Genauto Carvatho de A Economia Solidaria: uma abordagem internacional / Genauto Carvalho de Franga Filho e Jean-Louis Laville. ~ Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. (Colegio Sociedade e Solidariedade). Inclui referéncias bibliogréficas. 1. Sociologia - Economia solidéria, 2, Economia solidéria - Brasil ~ Franga. 3. Economias contemporiineas. 4, Economia social ~ Publica~Comunitiria. 5. Economia doméstica — Produgio familiar. 6. Economia solidéria ~ Reciprocidade. 7. Economia solidéria — Desenvolvimento sustentével ~ Terceiro setor. I. Franga Filho, Genauto Carvatho de. If. Laville, Jean-Louis. II]. Titulo. IV. Série. CDU 330.34 (81:44) CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagao (Ana Lucia Wagner, CRB-10/1396) ISBN 85-7025-724-4 Prefacio Um olhar diferente sobre a Economia Solidaria Paul Singer Este livro de dois autores, um francés ~ Jean-Louis Laville —eum brasileiro - Genauto Carvalho de Franga Filho - aborda a economia solidéria de um ponto de vista diferente, antropo- ldgico e sociolégico, em busca duma compreensio do objeto que dé conta de suas manifestagdes concretas em dois conti- nentes: na Europa e na América Latina e mais especificamente na Franga e no Brasil. E notavel a densidade tedrica da andlise, que assume um Angulo histérico, desencavando o surgimento da economia solidaria dos ensejos e contradigdes da revolugio industrial, cujos desdobramentos sociais e politicos se tornam evidentes na Europa na primeira metade do século XIX. No Brasil, a teorizag4o sobre a economia solidaria apresen- ta uma clara inspiragéo marxista, De minha parte, tenho procu- rado mostrar que 0 capitalismo € 0 modo de produgo domi- nante mas que estd longe de abranger a totalidade das econo- mias contemporaneas. Ao seu lado, existe a produgdo simples de mercadorias (unidades aut6nomas de producdo, individuais ou familiares), a economia ptiblica (formada por empreendi- mentos estatais que prestam servigos ou fornecem bens, sem cobrar pregos de mercado por eles), a economia doméstica (constitufda pelas atividades produtivas e distributivas realiza- das nos domicflios, visando o autoconsumo dos membros) ea economia solidaria (formada por empreendimentos autogestio- narios de produgao, de crédito, de servicos, de consumo ete.). 6 | Genauto Carvalho de Franca fitho e Jean-Louis Laville Os nossos autores se inspiram em Karl Polanyi, famoso an- tropdlogo e autor de A Grande Transformacdo, em que critica a proposta liberal duma sociedade conduzida pelo mercado auto- regulado. Polanyi distingue quatro principios de comportamen- to econémico: a domesticidade, que governa a producao domi- ciliar, distribuida e consumida no grupo familiar; a reciprocida- de, que governa a troca de dadivas entre membros da sociedade tendo em vista criar ou reforgar lacos sociais. As transferéncias de bens e servicos, governadas pela domesticidade e pela reci- procidade nao dao lugar a pagamentos e por isso formam a es- fera nfio-monetiria da economia. O terceiro principio é a redis- tribuigo, que governa a produgio apropriada por uma autori- dade, que a armazena e se encarrega de distribui-la. A produgao a distribuicdo sao realizadas por meio de pagamentos mone- trios, mas n&o constituem compras e vendas em mercados e por isso constituem a esfera nao mercantil da economia. O quarto principio é o do mercado, que governa atividades de agentes independentes, de troca de bens e servigos, em competigao, num espaco comum, conduzindo eventualmente a um equilibrio en- tre oferta (mercadorias vendidas) e demanda (mercadorias com- pradas). As atividades que visam a troca em mercado formam a esfera mercantil da economia. Ha evidentes analogias entre os modos de produgdo da tradi- cdo marxista e os principios que governam distintas esferas da economia de Polanyi. As atividades governadas pela domestici- dade coincidem com 0 modo doméstico de produgio; as gover- nadas pela redistribuigio correspondem grosso modo ao modo ptiblico de produgiio, ao passo que as governadas pelo princ{pio do mercado abrangem tanto o modo capitalista de produgdo quanto a produgio simples de mercadorias. As atividades governadas pelo princfpio da reciprocidade é que nao estao reconhecidas como um modo distinto de producao, talvez porque este princfpio é de primordial importancia social entre os povos primitivos mas que aparentemente desapareceu nas sociedades capitalistas. Mas, a aparéncia neste caso engana. Embora negligenciada, se nao negada pela economia liberal ou neoclassica, a dadiva A Economia Solidéria | 7 continua desempenhando papel de peso na constituigao das re- lagGes sociais nas sociedades contempordneas. Nao se trata ape- nas da tradicional troca de presentes no Natal, em aniversdrios e outras datas festivas. Muito mais importante 6 0 apoio mtituo praticado entre colegas de trabalho, de estudo, de quartel, de culto, de luta politica etc. Este apoio pode se manifestar através de dadivas materiais como a famosa ‘vaquinha’ feita para pre- sentear os pais dum recém-nascido ou alguém que adoeceu ou perdeu o (a) cdnjuge etc. Praticas tradicionais, sempre renova- das, como 0 mutirao e a troca de servigos entre vizinhos, como 0 cuidado de criangas, de transporte, de informacées etc. sio im- portantes tanto pelas necessidades materiais que satisfazem, quan- to pelos lagos de solidariedade que criam e reforcam. A economia da dédiva nao constitui um modo distinto de producao, pelo menos nas sociedades de hoje. Os objetos e servigos que se tornam dadivas nao sao produzidos especial- mente para este fim. Podem ser adquiridos no mercado ou pro- duzidos no lar. A economia da dadiva nao se distingue pelas relagGes de produc&o (como € 0 caso do capitalismo, produgao simples de mercadorias, economia publica etc.), mas pelas re- lagdes de solidariedade que tece e reproduz. Em certo sentido, a reciprocidade é 0 relacionamento basico entre os que traba- tham na economia solidaria, na medida que todo tipo de asso- ciacao autogestiondria tem por fundamento a ajuda miitua, que nao passa dum sinénimo da economia da dadiva. Seria de se imaginar que 0 modo solidério de produgio seria © correspondente marxista da economia da dddiva de Polanyi. Mas, esta no é a posigao de Laville e Franca Filho. A andlise hist6rica do ressurgimento da economia solidaria, nos anos 90, leva-os a concluir que a economia soliddria, como resposta & crise do paradigma fordista e do estado de bem-estar social, é um hibrido formado por atividades recfprocas desenvolvidas por voluntarios, atividades de mercado desenvolvidas por profissio- nais e atividades financiadas por subsfdios estatais. Segundo os autores, “a economia solidaria nao constitui uma nova forma de economia que viria acrescentar-se As formas 8 { Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville dominantes de economia mercantil e néo-mercantil. Pela sua existéncia, ela constitui muito mais uma tentativa de articula- ¢4o inédita entre economias mercantil, n&o-mercantil e nao- monetdria numa conjuntura que se presta a tal, haja vista 0 papel conferido aos servigos pela terciarizagao das atividades econémicas. O desafio é de acumular as vantagens da econo- mia monetdria, fonte de liberdade individual pelo mercado e fator de igualdade pela redistribuig&éo, com aquelas da econo- mia nao-monetéria que contextualiza as trocas, retirando-as do anonimato.” (p, 73). Tanto em sua origem, na primeira metade do século XIX, como em seu recente ressurgimento, a economia solidéria mais uma vez constitui uma resposta ao agravamento da crise do trabalho (desde os 1980) e da crescente insatisfag&o com o de- sempenho do sistema ptiblico de seguridade social. “Haja vista o declinio de diferentes formas de socialidade e de engajamen- to que transmitiam valores e normas sociais, a perda de empre- go ou a sucessao de ‘biscates’ engendra um déficit de sociali- zacao que diminui as chances de se reencontrar um emprego ‘digno’, pois os critérios de recrutamento tendem a privilegiar as capacidades relacionais. Trata-se da espiral que conduz a exclusio: os desempregados privados do fato de pertencer so- cialmente, nao conseguem adquirir ou manter as atitudes ne- cessdrias 4 cooperag4o e A comunicagaio que tornam-se deter- minantes para a obtengiio do emprego.” (p. 60) Os servigos sociais do Estado se burocratizaram em exces- so € n&o conseguem mais dar conta da demanda, sobretudo depois que ela se expandiu enormemente em fungio da crise do trabalho e do desemprego em massa. A economia solidaria surge, na Europa, como resposta a insuficiéncia das politicas ativas de geracio de emprego, articulando a prestago de ser- vigos ptblicos (esfera nao-mercantil) com a atividade de vo- luntérios (esfera nao-monetaria) e de profissionais, que ven- dem seus servicos (esfera mercantil). “Em resumo, e de modo preciso, a emergéncia de uma economia solidria européia tra- duz-se por uma florescéncia de praticas socioeconémicas vi- A Economia Solidaria sando a propor a partir de iniciativas locais, servigos de um tipo novo, designado sob o termo ‘servicos de proximidade’ ou ‘servigos solidarios’ conforme discutimos antes. Esses termos fazem alusao a um conjunto de servigos, para alguns, outrora unicamente produzido no seio da esfera doméstica, como a aju- da a domicilio, jardinagem, consertos domésticos (bricolage) etc, € para outros, invengao, como € 0 caso dos servigos que giram em torno da questao da ‘mediacio social’ nos bairros, geralmente vinculados a idéia de melhoria da qualidade de vida e do meio ambiente local.” (p. 77). Se olharmos para a emergéncia da economia solidéria na Amé- rica Latina, é possivel reconhecer a mesma origem na crise do desemprego e precarizagao das relagdes de trabalho, mas suas formas de manifestacfo sao deveras diferentes. Trata-se sobre- tudo da luta pela preservag4o de postos de trabalho mediante a substituigao de firmas capitalistas em crise por cooperativas formadas pelos préprios trabalhadores ameacados pelo desem- prego; e lutas pela criacgdéo de novos postos de trabalho medi- ante a conquista da terra via reforma agrdria ou pela organiza- ¢&o de pessoas excluidas da produg&o social em diversas mo- dalidades de empreendimentos autogestiondrios. A prestagdo de servigos a comunidades locais mediante iniciativas das mes- mas, contando com subsidios ptiblicos e com o trabalho de voluntarios e de profissionais, sem divida tem ganho impor- tancia (pense-se por exemplo na Pastoral da Crianga) mas nfo integra propriamente o campo da economia solidéria, antes 0 do Terceiro Setor. Apesar dessas diferengas entre a economia solidaria na Fran- ¢ae no Brasil, hé um fundamento comum tanto na organizacao associativa ou cooperativa, do cardter democritico das entida- des, como na discussao do papel da mesma, se é 0 de mera complementagao do sistema socioecondmico presente ou de embrido de um sistema completamente diferente. Para que esta discuss&o possa ser estendida aos interessados na economia solidaria na América Latina, na Europa e em outros continen- tes, a presente obra representa uma contribuicaéo fundamental. 9 Sumario AS InrropucAo .... Parte | —ANALise Historica 1| As relagGes entre economia e solidariedade na modernidade: contornos de uma problemiatica ... Por uma sociologia econémica alimentada pela histéria A construgio do econémico e do social ... A difusao da economia mercanti) A persisténcia da economia tradicional ... Aemergéncia de uma Economia Solidaria ... Da Economia Solidéria ... 4 economia social € ao direito social .... Asinergia Estado-mercado ..... O Estado na economia mercantil Astransformagdes do social .. Do direito social &economia nao-mercantil ... O declinfo da economia tradicional ea banalizagao daeconomia social A sociedade salarial .. A recomposigio das relagdes entre 0 econémico € 0 social Uma primeira crise: a crise de valores . Uma segunda crise: a crise econémica .. Estado-mercado: da sinergia ao dilema A atualidade de um projeto de Economia Solidaria . Parte 2 ~ CONTEXTOS E PRATICAS 2] A ECONOMIA SOLIDARIA NA Europa: DESTACANDO O CASO FRANCES .. 12 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville Os servicos mercantis .. Os servigos nado-mercantis Os servigos solidarios . Espacos piiblicos de proximidade para uma construgiio conjunta da oferta e da demanda . A hibridagao entre economias.... As origens de um conceito ~alguns marcos tedricos de sua fundagio .. Contexto e delineamento de um fenémeno .. Situando uma problemitica . Uma abordagem original: a perspectiva da sociologia e da antropologia econ6mica ... A Economia Solidéria do ponto de vista da sua pratica quotidiana 2 no contexto europeu: dilemas e desafio Us Ocomércio justo 119 we 121 A finanga solidatia 0.0 A economia sem dinheiro As empresas sociais As cooperativas sociais italianas em destaque ... 130 A realidade francesa — as empresas sociais entre simples prestagio de servico, insergao e Economia Solidaria ... O dominio da luta contra a exclusdo pela iniciativa econdmica na Franga ~ os herdeiros da economia social confrontados com a armadilha da insergo A influéncia do movimento cooperativi: Um processo conflituoso ... O papel central das politicas ptiblicas ... 133 3 | AECONOMIA SOLIDARIA NA AMERICA LATINA: DESTACANDO O CASO BRASILEIRO .. .. 149 Uma diversidade de experiéncias 150 | | i ssi‘ a‘ iéi ; A Economia Solidéria | Caracterizagao do contexto ..... +. 158 O crescimento de uma preocupagio com as formas de combate & pobreza e ateia da gestdo social - 0 que nao é Economia Solidaria?..... 2 159 A questao da economia popular em debate .... 161 O projeto de uma economia popular e solidéria .. Critétios para definigao de empreendimentos de Economia Solidaria .. Pluralidade de prinefpios econdmicos .. Autonomia institucional Democratizagio dos processos decisérios Sociabilidade comunitério-pablica ... Finalidade multidimensional .. Parte 3 — ANALIse COMPARATIVA 4| A economia SOLIDARIA ENTRE A Europa & A AMERICA LATINA: UM EXEMPLO DE COMPARAGAO Cruzando 0 olhar: as diferengas fundamentais aqui e 14 A dimensio do contexto: exclusio x probreza A dimensao da histéria: economia social x economia popular ... A economia social e solidaria na Europa .. Aconomia popular e solidéria na América Latina A dimensio da experiéncia: os desafios a superar: economia da insergao x uma economia da pobreza Algumas ligdes praticas e te6ricas .... ConcLusAo — ANALISE TEORICO-CONCEITUAL ... Elementos para uma abordagem teérica comum: a forga do conceito de economia plural REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ..... 19D 13 | " | | eee eiaesesai(‘“‘iai i Introdugao Sera que a economia entendida em seu sentido amplo, ou seja, como 0 conjunto das atividades que contribuem para a producao e a distribuigao de riquezas, pode resumir-se ao cir- cuito classico das trocas constituido pelas esferas do Estado e do mercado nas sociedades contemporaneas? Para além do mercado e do Estado, sera que a prépria sociedade nao tem nada a dizer em termos de criagao e distribuigdo de riquezas ou de um outro modo de “fazer economia”? Este livro pretende lancar um olhar sobre a realidade de uma outra economia que se gesta em diferentes partes do mundo a partir de iniciativas, sobretudo de natureza cooperativista e as- sociativista, oriundas da sociedade civil e dos meios populares. Tais iniciativas assumem diferentes configuracdes, desde aque- las que criam 0 seu préprio circuito de producao e consumo, alimentando cadeias socioprodutivas auténomas e, em alguns casos, fortemente baseadas em relacdes naio-monetarizadas, até outras que empreendem relagdes mais permanentes com o mer- cado e desenvolvem diferentes tipos de parcerias com os pode- res ptiblicos, As formas assumidas por esta economia também variam de acordo com as diferentes regides e pafses: de coope- rativas de producio e prestagaio de servicos, passando por ban- cos populares, clubes de trocas e associagées de servigos em paises latino-americanos, até as cooperativas sociais, as socie- dades cooperativas de interesse ptiblico, as empresas sociais ou os sistemas de trocas locais, entre outros, em pafses europeus. Esses diferentes exemplos testemunham 0 aparecimento de uma tendéncia que chamamos de economia solidaria. O termo inclusi- ve aparece praticamente, de modo concomitante, em duas realida- des distintas ao longo dos anos 90, como sao os casos do Brasil e da Franga, que serio mais detidamente explorados nesta obra. 16 | Genauto Carvaiho de Frang2 Filho e Jean-Louis Laville Importa salientar que, sobre este termo, parece repousar um valor heuristico fundamental: aquele de pretender refletir uma tendéncia atual, verificada em diferentes partes do mundo, de proliferagao de iniciativas aut6nomas de grupos organizados na sociedade civil, com © intuito de produgao de atividades econémicas de modo distinto daquela praticada no mercado. Muito embora suas diferengas significativas, relacionadas acada contexto de sociedade, um trago comum que mais parece ca- racterizar tais iniciativas é 0 fato de elas incorporarem a soli- dariedade no centro da elaboragao das atividades econdmicas, e, ainda, considerarem tais atividades apenas como um meio para a realizacao de outros objetivos, sejam estes de natureza social, politica ou cultural. Tal aspecto parece bastante salutar e nos lembra um trago histérico caracterfstico da organizacao dos grupos sociais em diferentes culturas, no passado, e mesmo no presente, em cer- tas sociedades, isto é, 0 fato de a esfera das atividades econé- micas encontrar-se imbrincada junto as demais dimensdes da pratica (como 0 social, 0 politico, o cultural ou 0 estético etc.). De fato, é apenas na modernidade capitalista que a esfera eco- némica se autonomiza em relagdo as demais dimensGes da vida em sociedade, através do advento do prinefpio do mercado auto- regulado, Se a invengao, nao do mercado em si, mas do merca- do auto-regulado como principio econdémico (mais conhecido sob a expressaéo economia de mercado), representa uma cons- trucao social muito recente na hist6ria das sociedades huma- nas (com praticamente pouco mais de duzentos anos), é nota- vel sua importancia assumida na atualidade. Vivemos hoje em sociedades cuja Idgica mercantil e os valores que a acompa- nham ocupam espacos cada vez maiores na vida das pessoas, extrapolando a esfera econémica e invadindo dimensdes mais substantivas da vida humana associada. Nao é assim que, na modernidade, os sujeitos humanos constroem suas identidades enquanto individuos a partir sobretudo do trabalho, ou seja, uma atividade remunerada economicamente que vem acompa- nhada de uma série de direitos? Nao é assim também que nos A Economia Solidéria habituamos a pensar a economia, como sin6énimo exclusivo de troca mercantil? Como se n&o houvesse ou nao fosse possfvel conceber-se outro modo de fazer economia além deste. O que dizer, entao, das outras formas de produzir e distribuir riqueza constituida pelos circuitos nao-mercantis da economia? Uma delas seria em torno da agao do Estado, que se baseia num principio econédmico que poderfamos chamar de redistribui- G40, e outras sao as variadas formas de reciprocidade, que ali- mentam relag6es econdmicas nao-monetarizadas e permitem a sobrevivéncia de largas parcelas das populagées em diferentes partes do mundo. Desse modo, estamos sugerindo que uma compreensao ade- quada do fendmeno da economia solidéria que aqui propomos, supde um outro modo de conceber a dinamica econémica mais geral. Esse € um olhar particularmente caro a tradigo de cer- tos antropdlogos e historiadores econdmicos e poderfamos ci- tar duas fontes importantes que so K. Polanyi e F. Braudel. No lugar, portanto, de resumirmos a economia ao mercado, parece-nos preferivel pensd-la enquanto economia plural, ou seja, admitirmos que, em relagao ao conjunto de praticas que conformam a dinamica econédmica mais ampla, existem dife- rentes princfpios em interagao (para além do principio mer- cantil), como € 0 caso da redistribuigdo e da reciprocidade. E exatamente este olhar ampliado da dindmica econdmica mais geral, que nos permitira entender mais adequadamente o pro- cesso singular de uma economia solidaria, que tende a reunir diferentes légicas em interagao. A Economia Solidaria entre o piblico e o comunitario Mas, se é poss{vel perceber-se nas iniciativas de economia solidaria, em diferentes partes do mundo, alguma semelhanga com certas tendéncias histéricas de organizagiio dos grupos 7 18 | Genauto Carvalho de Franca Filho ¢ Jean-Louis Laville sociais em diferentes culturas no passado, conforme sugeri- mos antes, 0 que vem, entdo, a marcar a emergéncia desse fe- némeno na modernidade? Esta ser uma das quest6es impor- tantes de que nos ocuparemos nesta obra e, antes mesmo de desenvolvé-la, avancernos um pouco em nossa hipdtese de com- preensao da dinamica mais geral de uma economia solidaria. Pensamos que, tratando-se de economia solidaria, e diferen- temente do que ocorre com a solidariedade na sua acepgao mais tradicional, tal como vivida no passado da maioria das socieda- des humanas (e até mesmo atualmente, em muitos casos), ela, solidariedade, afirmada como uma acao voluntaria das pessoas, projeta-se sobre um espago publico. Ou seja, os grupos organi- zados desenvolvem uma dindmica comunitaria na elaboracao das atividades econémicas, porém com vistas ao enfrentamento de problemas piiblicos mais gerais, que podem estar situados no Aambito da educacio, cultura, meio ambiente etc. Com isto, esta- mos sugerindo a idéia de que a economia solidéria tem por vo- cagiio combinar uma dimensao comunitaria (mais tradicional) com uma dimensao publica (mais moderna) na sua ago. Isto € particularmente evidente nos casos em que a agao associativa, fortemente baseada nos vinculos comunitirios, ataca a resolu- ¢4o de problemas ptiblicos concretos ligados as condigdes de vida das pessoas no contexto de um bairro, por exemplo. A este respeito, 0 caso da associagao de moradores do conjunto Pal- meiras - ASMOCONP, na periferia da Cidade de Fortaleza no Ceard (mais conhecido sob a denominacao de “Banco Palmas”), representa uma das ilustragdes mais emblematicas (Franga Fi- Iho; Torres Jr., 2003). Porém, mesmo em relacao aqueles casos muito difundidos de economia soliddria no Brasil, que sdo as varias formas de cooperativas de produgo ou de prestagao de servicos, em que a dimens&o socioeconémica da agao tende a prevalecer sobre a dimensio sociopolitica, € possivel também se pensar em termos de uma dimensio piiblica quando a agao organizacional se coloca em relagao a probleméatica de geracao de trabalho e renda (o que pode ser visto como um problema ptiblico). Em todo caso, as formas cooperativas de produgao, A Economia Solidéria | tratando-se de economia solidaria, conhecem uma preocupagao crescente com a questéo do desenvolvimento local. Portanto, para além da sua ag4o no mercado, cujo beneficio social restrin- gir-se-ia apenas ao grupo dos cooperados internos (0 que por si 86 j4 difere da légica capitalista em razao da apropriacio coleti- va dos ganhos econémicos), a tendéncia do movimento € aque- la de valorizagio de uma dimensao piiblica da sua aco median- te a énfase nos impactos da organizagio na vida local. E exatamente esta dimensao ptiblica da aco, ou seja, de um agir no espago piblico, que confere 4 economia solidaria uma dimensao politica fundamental. Portanto, segundo nossa hipéte- se, afirmar 0 cardter polftico deste fendmeno, para além da sua dimensao social e econémica, nao significa raciocinar em ter- mos de uma forma qualquer de tomada do poder institucional, como se a implantagao de uma outra economia fosse possivel por decreto. Mas de pensar as formas de economia solidaria tam- bém como um modo de agir no espaco piiblico, em fungao dos problemas concretos que so levantados na sua pratica, Esta é, além disso, uma forma de aco politica, pois supde também mudanga ou transformagio institucional, que se faz, porém, num processo, cotidiano mesmo, em que se experimentam outros valores ldgicas associados ao trabalho econémico, concebido acima de tudo como construcao coletiva democritica. Economia Solidaria: distintos contextos Se estamos, neste momento, salientando o que nos parece constituir tragos comuns a emergéncia do fendmeno, é preciso reconhecer as dificuldades que se impGem a esta tarefa ou sua quase impossibilidade. Isto porque, as diferengas entre os dis- tintos contextos de realidade, sejam elas entre paises ou entre regides de um mesmo pais, sdo considerdveis e pesam, de modo acentuado, sobre a configurag&o das iniciativas na realidade. A tal aspecto, inclusive, acrescentam-se os limites de entendi- 19 20 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville mento que devem ser estabelecidos no plano conceitual em relagdo a outras nogGes proximas e particularmente caras a cer- tos contextos de realidade. Isto significa nao reduzir a nogao de economia solidaria nem aquela de economia social na Eu- ropa, nem aquela de economia popular na América Latina (Fran- ga Filho, 2002b) e discutirmos sua relagio estreita com estas duas nogées, conforme abordaremos nesta obra. Evidentemente que esses aspectos irao pesar no debate so- bre o tema, influenciando o modo de interpretar o fendmeno da economia solidéria. E assim que, para alguns, ela reflete formas estratégicas de organizagio dos grupos populares, muito precarizadas em geral, como meio de garantia da sua sobrevi- véncia em sociedades marcadas por processos de exclusdo so- cial crescentes. Para outros, entretanto, ela pode representar formas inéditas de agao ptiblica, participando de uma tendén- cia atual de desenvolvimento de novas formas de solidarieda- de, conforme nossa perspectiva aqui. Essa idéia de novas for- mas de solidariedade é particularmente importante de subli- nhar, pois ela parece constituir uma forte tendéncia dos cha- mados novos movimentos sociais. Isto significa pensar que 0 tipo de solidariedade que se elabora nestas experiéncias se de- fine, de um lado, nem tanto enquanto solidariedade abstrata (estatal), pois trata-se de individuos engajando-se voluntaria- mente em projetos coletivos concretos, emanados do seio da sociedade civil, e nao meros assistidos, gozando ou tendo acesso a certos direitos de modo passivo. Nem tampouco, trata-se, por outro lado, de uma forma tipica de solidariedade tradicio- nal (caracteristica dos chamados grupos primérios), pois a ago organizacional tende a nao se fechar num pequeno grupo de beneficiarios. A vocagao de tais iniciativas, conforme sugeri- mos antes, parece ser a de combinar a dimensao ptiblica da primeira com a forga dos lagos comunitarios da segunda, re- sultando em dinamicas comunitdrias abertas a alteridade, ou que se projetam num espago ptiblico, criando em alguns casos © que poderfamos chamar de espagos ptblicos de proximidade (Laville, 1994), conforme abordaremos mais tarde. A Economia Solidéria | 21 Mas, como entender as origens dessa dindmica que aqui cha- mamos de economia solidaria? Este é um aspecto que iremos desenvolver no interior da obra. Cabe, por enquanto, adiantar- mos apenas que as razdes do surgimento e desenvolvimento do fenémeno relacionam-se, em geral, ao contexto de crise econ6- mica mais ampla que afeta as diferentes cconomias do planeta. Tal crise vem minar as bases do mecanismo histérico de regula- do das sociedades na modemidade, marcados pela sinergia en- tre Estado e mercado, E justamente quando estes dois principais agentes de regulacao da sociedade comegam a dar sinais de fra- queza na sua capacidade de satisfazer necessidades, que outros fendmenos tomam corpo e€ se desenvolvem. Entretanto, se este aspecto econdmico possui um grande peso de determinacao na explicagao do fendmeno, ele nao deve ser tomado como um pres- suposto exclusivo de explicagdo, sob o risco de recair-se numa interpretago excessivamente utilitarista da realidade. Em mui- tos casos, a razao para o surgimento de empreendimentos soli- darios encontra-se numa relacdo ambigua entre necessidade eco- némica e aco voluntéria permeada por valores. A crise econ6- mica acompanha-se, em geral, de uma crise de valores acerca da vida humana associada, interrogando o trabalho e suas formas de organizacao e produgao. E neste sentido que pensamos que uma compreensao adequada desse fendmeno envolve um real entendimento das suas condigGes intrinsecas de existéncia. A economia solidéria, portanto, deve ser compreendida na sua sin- gularidade enquanto fendmeno — no lugar de ser objeto de expli- cagGes baseadas em determinagées gerais. A perspectiva defen- dida neste livro exige um esforgo qualitativo de interpretacao, capaz de apreender a dinamica dessas experiéncias a partir de suas ldgicas especificas em interacao. Sobre a organizacao do livro A partir dessa base, 0 livro explora uma abordagem amplia- da de visao do tema ao trat4-lo numa perspectiva internacio- 22 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville nal. So aqui, ent&o, confrontados os contextos europeu € lati- no-americano, particularmente através da ilustragado dos casos francés e brasileiro de manifestacao do fendmeno. A aborda- gem do livro apdia-se em andlise histdrica de leitura da reali- dade do fendmeno, discuss4o do contexto de sua manifestagao na atualidade, descrig&o de experiéncias e andlise conceitual. Sao, portanto, quatro os eixos de estruturagao da discussao do contetido no livro: andlise histérica, de contextos e praticas, comparativa e discussao conceitual. De um ponto de vista metodolégico, consideramos que a perspectiva histérica e a comparagao intemacional representam duas ferramentas privilegiadas de esclarecimento e abordagem do tema. Importa salientar, entretanto, que a relagdo que aqui estabelecemos entre dois contextos distintos de realidade no tra- tamento do tema, tal como representam os casos francés e bra- sileiro, nao obedece ao rigor e exaustividade necessarios a uma verdadeira andlise comparativa. Nossa preocupa¢ao, mais mo- desta, fora estabelecer 0 esbogo de uma comparag&o interna- cional. O objetivo é o de empreender um olhar em paralelo en- tre os dois contextos que permita identificar semelhangas e di- ferengas, num jogo analitico no qual algumas constantes pos- sam ser deduzidas. Neste ponto nos inspiramos em R. Castel (1995, p. 25), quando considera que “{...] uma andlise deste tipo supe, quanto a sua prépria possibilidade, a existéncia efe- tiva de constantes no tempo e no espago, [...] gragas as diversi- dades culturais e histéricas. ‘Constantes’ nao significa a pereni- dade das mesmas estruturas, mas homologias nas configura- ges das situagdes e nos processos das suas transformagées”. A opgao por um olhar cruzado no tratamento do tema da economia solidéria na literatura brasileira, tal como propOe este livro, representa, segundo nosso conhecimento, uma novidade necessaria ao avango do seu debate por aqui e pode ser justifi- cada ao menos de duas formas. Em primeiro lugar, e de um modo mais geral, tal justificativa pode ser considerada em nome da tradig&o antropoldgica que considera 0 estudo do outro como importante também para conhecer a si proprio. Ou seja, € no A Economia Solidéria | 23 entendimento ou no olhar do diferente que também aprende- mos muito sobre nés mesmos. Em segundo lugar, ¢ de modo mais especifico, importa salientar, como fizemos antes, que existe uma conjungio na aparigo do tema na Franca e no Bra- sil que nos leva a tentar uma reflexdo sobre as razdes deste surgimento em cada contexto e quais as questdes transversais que podem ser extrafdas. No que se refere ao contetido, a primeira parte do livro apre- senta uma visao histérica da economia solidaria na Europa. Uma hist6ria cuja importancia é muito grande, pois relaciona-se ao processo mesmo de formagao da chamada sociedade salarial e do préprio Estado-providéncia. Existe aqui uma preocupag3o em mostrar como a dindmica da solidariedade varia, assumindo diferentes contornos segundo as injungdes do tempo e do espa- go. Essa histdria é, ent&o, subdividida em trés momentos, e nos parece mais antiga do que poderiam supor alguns, pois pode-se dizer que o debate europeu comega no inicio do século XIX através do momento de efervescéncia associacionista (num con- texto de nascimento da empresa capitalista e de crise motivada pelo alto grau de pauperizacao da sociedade), cujo pano de fun- do € uma discussao sobre economia e democracia em torno da questao central do direito ao trabalho. O que esta em jogo, neste primeiro momento, € a questio da legitimidade da economia de mercado na modemidade. Ela reside num desejo de pacificagao das relagdes sociais median- te a busca da satisfacdo dos interesses individuais. Seguia-se aqui uma formulagio cldssica de Montesquieu, segundo a qual a pratica do doce comércio evitaria a guerra. Dois casos euro- peus aparecem emblemiaticos desse primeiro momento. Na In- glaterra, afirmava-se a solidariedade que os mais ricos deve- riam ter em relag’o aos mais pobres, como condi¢ao para sua cidadania. Solidariedade, neste caso, assume a forma de filan- tropia, revelando a importancia do setor privado na distribui- ¢ao, Jé na Franga, a énfase serd sobre as formas de auto-orga- nizacao, operarias por exemplo. A caridade, neste caso, deve- ria ser substitufda pela solidariedade entre cidadaos considera- 24 | Genauto Carvalho de Franca Filho ¢ Jean-Louis Laville dos livres e iguais. A solidariedade é definida, neste momento, como 0 lago social voluntério que une cidadaos livres e iguais no direito. Em torno desse idedrio, muitos grupos vao se orga- nizar, sobretudo por profisses, e as formas assumidas serao as associacdes, cooperativas ou organizagdes mutualistas. E as- sim que se esboga, na Franga, um projeto de economia a partir da solidariedade no inicio do século XIX. Num segundo momento, tal projeto conhece um profundo declinio. Além da repressao as formas de organizagao popula- res, estas so levadas a se alinhar segundo as normas do mer- cado e do Estado, enfrentando assim processos de especializa- go de atividades e de profissionalizagio gestiondrios. A eco- nomia solidaria cede lugar a uma economia social que se torna altamente institucionalizada. Tal institucionalizagdo ou bana- lizago do movimento assenta-se em dois pilares: a economia de mercado, de um lado, pelo fato de as cooperativas deverem se envolver necessariamente com 0 mercado, obedecendo aos seus ditames e légica; e uma outra concepgao da solidarieda- de, por outro lado, pelo qual € o Estado que deve garanti-la, completando as lacunas deixadas pelo mercado. Trata-se, por- tanto, de uma mudan¢a na economia e na solidariedade, cujas conseqiiéncias muito conhecidas sao 0 desenvolvimento da so- ciedade salarial, baseada no chamado equilfbrio fordista, ou seja, economia de mercado e Estado social. Num terceiro momento, dois aspectos irao perturbar esse equi- Ifbrio Estado-mercado: a questao da transnacionalizagao finan- ceira e o aumento da economia de servigos em detrimento da economia industrial. As conseqiiéncias mais conhecidas sao a chamada crise do trabalho e o questionamento sobre a capacida- de de crescimento dos mercados. Renasce, ent&o, um certo nti- mero de experiéncias (sobretudo nos anos 80 e 90, embora algu- mas datando do final dos anos 60 e 70), que podem ser vistas em relagéo com o projeto origindrio de uma economia solidéria. Alguns exemplos sao as iniciativas locais de servigos (atuando no campo cultural, ou da guarda de criangas e idosos, da manu- tengio de bairros, ligadas 4 qualidade de vida etc.), misturando A Economia Solidaria | 25 usuarios e gestores de servicos. Os usuarios séio considerados n&o como consumidores, mas como cidadaos, nestas associa- goes prestando servicgos de proximidade. O conjunto dessas ex- periéncias recoloca, de certo modo, o debate entre economia e solidariedade em torno de alguns pontos que apontam a exten- sao do projeto atual de uma economia solidaria: ~em primeiro lugar, o fato de trabalhadores e usuarios traba- Tharem na oferta de servigos. Sob este ponto de vista, tais inicia- tivas podem vir a representar a criagaio de espacos ptiblicos (se- gundo a formulacao habermasiana) de um tipo novo, que esta- mos aqui chamando espagos pitblicos de proximidade. Parece se gestar aqui uma nova articulagao entre economia e politica; —em segundo lugar, tal debate sugere uma reapropriagdo da idéia de solidariedade que passa a ser vista ndo apenas como a redistribuig&o vertical do Estado, mas também como o laco voluntario e horizontal de cidad&os que se juntam para traba- Ihar a economia. Isto permite afirmar como a aco da socieda- de civil pode realizar uma forma de agao publica, ilustrando desse modo como a ago cooperativa e associativista se articu- la & questao do espago ptiblico; ~ finalmente, tal debate reintroduz, conforme sublinhamos antes, a idéia segundo a qual a economia nao se resume ao mer- cado, mas supée também a solidariedade, seja ela em termos de redistribuig&o ou de reciprocidade. O debate aqui é, portanto, aquele de uma redefinig&o da economia para além do mercado. E exatamente esse projeto atual de uma economia solidéria que é explorado na segunda parte do livro. Intitulado Contex- tos e prdticas, 0 objetivo neste segundo momento é de discutir a realidade de manifestagao do fendmeno na Europa e na Amé- rica Latina, através de um exame dos casos francés e brasilei- ro. A énfase neste momento ser sobre a identificagao e carac- terizagao das prdticas que constituem esse universo nos dois paises, procurando sublinhar os desafios que se impdem as experiéncias e 0 tipo de problematica que as situam em cada contexto. O segundo capitulo, dedicado ao caso francés, apa- 26 | Genauto Carvalho de Franca Filho ¢ Jean-Louis Laville rece como prolongamento da discussao hist6rica empreendida na primeira parte. O terceiro capitulo, dedicado ao caso brasi- leiro, privilegia uma visdo em sintese da nossa realidade, insis- tindo particularmente na tentativa de esclarecer sua relagéo com toda uma tradi¢’io de economia popular bastante antiga. Suge- re-se, ao final, alguns critérios definidores das formas de eco- nomia solidaria, cujo objetivo é ampliar seu marco analitico para além do modo cooperativista de produgiio. O fato de op- tarmos por uma viséo mais em sintese, no que diz respeito & abordagem da realidade brasileira, justifica-se em razio da existéncia de outros trabalhos sobre 0 assunto no Brasil, com destaque para os escritos do professor Paul Singer. Na terceira parte, através do capitulo quarto, exploramos ent&o uma perspectiva comparada no tratamento do tema, que sé presta muito mais, conforme explicamos antes, a um esbo- co de andlise comparativa entre os dois contextos, francés e brasileiro. Tal andlise se constréi a partir de trés pontos fun- damentais, que chamamos trés dimensOes: a primeira € aque- la do contexto no qual se coloca o fendmeno enquanto proble- méatica em cada realidade, a segunda diz respeito & historia que alimenta a compreensio da sua emergéncia atualmente nos dois paises e, finalmente, a terceira refere-se & experién- cia ou as experiéncias, remetendo a questdo dos dilemas e desafios que norteiam tais praticas em cada uma das realida- des, Finalmente, o livro se conclui com algumas considera- ges de natureza mais conceitual, visando a sugerir, no pro- longamento do olhar cruzado desenvolvido no capitulo ante- rior, a possibilidade de um marco conceitual comum a apre- ensdo do fenémeno nos dois contextos, particularmente fe- cundo, segundo nossa hipstese, se desenvolvido em torno da nog&o de economia plural. Ao leitor brasileiro, esperamos que ele possa encontrar, nesta obra, uma abordagem consistente e didatica do tema da econo- mia soliddria, sobretudo diante do enfoque ampliado pelo olhar hist6rico, sociolégico e antropolégico, que se encontra ainda enriquecido da perspectiva internacional aqui desenvolvida. A Economia Solidaria | 27 Esta obra é resultado de um esforgo de pesquisa que se encon- tra, no Brasil, integrado institucionalmente ao Programa de De- senvolvimento e Gestio Social (PDGS), este, um programa de natureza interinstitucional, apoiado pelo Ministério da Ciéncia e Tecnologia, FINEP, CNPQ, CAPES, e sediado na Escola de Ad- ministragao da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA). Parte 1 ANALISE Historica As relagdes entre economia e solidariedade na modernidade: contornos de uma problematica Por uma sociologia econémica alimentada pela historia A economia como conjunto, reagrupando as atividades sub- metidas a necessidade, ou seja, as atividades de producio e de distribuigao de bens e servigos, confronta-se com a questao da escassez dos recursos disponiveis para satisfazer o ntimero ili- mitado de necessidades ¢ de desejos humanos. Diante desta exigéncia, 0 recurso ao mercado € apresentado, na ciéncia eco- némica ortodoxa, como a realizacio final de um processo que otimiza o destino e a repartigao dos recursos. As incontAveis operagées de transferéncia e de escolhas constitutivas da vida social seriam asseguradas majoritariamente pelos mecanismos de mercado e repousariam, segundo a célebre f6rmula de A. Smith, em A riqueza das nagées, sobre “a propensao a trocar bens por bens, bem contra servigo, coisa contra outra coisa”, que a época moderna teria levado ao seu paroxismo, Numa perspectiva de sociologia econémica, esta viso que naturaliza o mercado é refutada. A economia é, ao contrario, abordada como uma construgao sécio-histérica cuja forma atual nao cor- responde a uma realizagao final da evolugaio humana, mas a uma configuragao particular que convém situar em relagdo. Aquelas que a precederam. Numa tal perspectiva, a contribui- ¢ao de economistas e etndlogos que olharam a sociedade mo- derna & luz das sociedades nao modernas pode vir a completar aquela dos primeiros socidlogos, fundadores da sua disciplina, 32. | “Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville para quem as relacGes entre economia e sociedade constitufam um dos temas maiores de reflexdo. Em particular, a pesquisa de Polanyi (1983)* sobre a origem politica e econémica do nosso tempo, inspirando miiltiplos trabalhos antropoldgicos, fornece uma contribuig4o preciosa ao distinguir quatro princf- pios do comportamento econémico, cada um entre eles estan- do associado a um modelo institucional. O principio da domesticidade é um desses. Ele consiste em produzir para seu proprio usufruto, ou seja, a prover as neces- sidades do seu grupo. Quaisquer que sejam as entidades muito diferentes que formam a unidade de base, o principio € 0 de produzir e de armazenar para a satisfagao dos membros desta unidade. O modelo da domesticidade € 0 grupo fechado. O que determina o nticleo institucional é indiferente, pode ser 0 sexo (como em relagao a familia patriarcal), o lugar (como em rela- ¢&o ao vilarejo), ou o poder politico (como em relaciio ao po- der senhorial). Do mesmo modo, a organizagao interna do gru- po nao importa: ela pode ser despética ou democratica, e a dimens&o do grupo pode variar consideravelmente. A reciprocidade é um outro desses princfpios. Ela correspon- de & relagao estabelecida entre varias pessoas, por meio da se- qlléncia durdvel de dadivas. A reciprocidade é, por conseqiiéncia, fundada sobre a dédiva como fato social elementar ~ a existéncia da dadiva estando ligada a uma contradddiva, O aspecto essen- cial da reciprocidade € que as transferéncias so indissocidveis das relagdes humanas. Embora sua grande variedade de motiva- Ges possiveis, as dadivas tém como ponto comum 0 fato de nao constituirem trocas despersonalizadas, pois nao podem ser iso- ladas da realizagiio das prestagdes sociais. O fundamento da da- diva é que os objetos no sao separados dos doadores e repre- * As citagdes deste autor neste capitulo correspondem a nossa tradugdo da verso francesa dessa obra. Do mesmo modo, as demais citagdes, também neste capitulo, correspondem a nossa tradugo dos originais em francés. A Economia Solidéria | 33 sentam essencialmente uma relagdo social: através da d4diva “mistura-se sua alma aquela do outro”, como o diz um poema Maori citado por Mauss (1978). “A reciprocidade é bastante fa- cilitada pelo modelo institucional da simetria, traco freqiiente da organizagao social em povos sem escritura” (Polanyi, 1983). Aredistribuicdo é 0 princfpio segundo o qual a produgio fica a cargo de uma autoridade que tem a responsabilidade de distri- bui-la, o que supde um momento de armazenamento entre aque- les da recepcio e da repartigdo, “Evidentemente que é 0 modelo institucional da centralidade que permite a redistribuigao. Ele sup6e uma autoridade e uma divisdo do trabalho entre os repre- sentantes desta autoridade e os outros membros do grupo huma- no. Como as relagdes do grupo dirigente com os dirigidos dis- tinguem-se segundo os fundamentos do poder politico, a redis- tribui¢ao implica modelos, indo da divisao livremente consenti- da até o medo da punigao”. Entretanto, seja elaa tribo, a cidade- Estado, 0 despotismo ou a feudalidade, “o chefe, o templo, o déspota ou o senhor estarao no centro deste modelo” ¢ a maneira como eles praticam a redistribuigao lhes é muitas vezes um meio de “aumentar seu poder politico” (Polanyi, 1983). Enfim, 0 mercado, ultimo destes princfpios, é um lugar de encontro entre oferta e demanda de bens e servigos para fins de troca. O mercado possui, entdo, a particularidade de funcionar segundo 0 registro de um modelo institucional que the é pré- prio: a troca, repousando sobre um equilfbrio entre oferta e demanda. A oferta designa a quantidade de bens e servicos que os ofertantes estao aptos a ceder, e a demanda, a quantidade de bens e servigos que os demandantes estao prontos a adquirir. A troca pode assumir a forma de compra e de venda quando a oferta e a demanda se ajustam através de um valor expresso numa equivaléncia geral — este valor sendo chamado de “pre- go” e 0 equivalente geral, de “moeda”. A troca pode assumir a forma de pagamento em espécie quando o demandante nao paga © prego fixado em moeda mas em bens ou servigos. A troca pode assumir a forma de escambo quando a troca de bens e servigos nao passa pelo intermédio de um equivalente geral, 34 | “Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville mas se opera através de uma relagdo de equivaléncia simples estabelecida entre dois conjuntos considerados pelo deman- dante e ofertante como do mesmo valor. Os quatro principios do comportamento econdmico Produgao e reparti¢ao de bens e servigos t t + mercado| [redistribuicao} reciprocidade [domesticidade Antes do século XIX, todos as sistemas econdmicos conhe- cidos atribufam um amplo papel aos princfpios, sejam eles da reciprocidade ou da redistribuigio, seja ele da domesticidade, seja uma combinagao dos trés. Estes princfpios foram institu- cionalizados com o auxilio de uma organizagao social que uti- lizava, entre outros, os modelos da simetria, da centralidade e da autarcia. Isto nao significou de modo algum auséncia de mercado, mas os mercados eram diferenciados e limitados a certos espagos como revela 0 exemplo da Europa ocidental. ~— Os mercados da Idade Média apareceram primeiro nas suas duas formas distintas de mercado de vizinhanga e de mer- cado de exportagdo intermunicipal e de longa duragio. Estes mercados localizados nos grandes centros urbanos medievais tinham uma dupla particularidade de serem bastante vigiados pelos poderes municipais que representavam as oligarquias de corporacdo e de comércio, e de serem exteriores 4 economia doméstica dominante na maior parte da economia medieval. — Em seguida, surge 0 mercado regulado, que vai do século XV até 0 século XVIII. Ele era regido de modo concorrencial no quadro do espago territorial interior em nome da vontade insti- tucional dos novos Estados-nagGes mercantis, mas sem integrar nem 0 trabalho nem a terra como mercadorias (Gislain, 1987). A necessidade, para uma sociedade, de assegurar a ordem nas suas atividades econémicas nao implica aumentar a impot- A Economia Soliditia tancia dos mercados deste ponto de vista. Nas sociedades tra- dicionais, a manutengao dos vinculos ou lagos sociais era con- siderada prioritaria em relagdo 4 produgao de riquezas. A eco- nomia estava imbrincada nas relacGes sociais, segundo a ex- pressio de Polanyi. Ou seja, a perenidade das estruturas sociais e das relagGes entre pessoas era preeminente. A esse respeito, mesmo os mercados tendo existido anteriormente, a sociedade do século XIX aparecera diante daquelas que a antecederam como portadora de uma inovagao fundamental: a atividade eco- némica encontrava-se isolada e atribufda a um mecanismo auto- regulador, isto €, aquele da troca que assegura a distribuigao dos bens por meio, unicamente, dos pregos, neste sistema eco- némico que é a economia de mercado. Os modelos da centralidade, da simetria e da autarcia nao engendram instituigdes tinicas com vocagao para uma fungaio econdémica isolada: siéo apenas simples tragos de um grupo existente, 0 que se aplica tanto ao seu sistema econdmico quanto s relagGes sociais mais amplas na qual esté inserido. Por outro lado, 0 mercado, com o modelo da troca, descontextualiza a economia, no sentido em que ele tende a se autonomizar em relagdo aos contextos nos quais se desenvolve, Anteriormente, a troca tinha apenas um papel circunscrito. Ela se limitava a certos tipos de relagdes entre grupos e pessoas que estavam longe de representar o conjunto destas relagdes. De modo in- verso, na modernidade, a troca passa a desempenhar um papel primordial na coordenagio das agGes humanas. O deslocamento do lugar atribuido a este modelo provoca evolucées capitais conforme testemunha o século XIX. A construgao do econémico e do social Na sua diferenga radical, um sistema econdmico baseado na economia mercantil nao se teria podido conceber sem a ins- titui¢ao prévia de uma comunidade politica, fixando-se como 35 36 | Genauto Carvalho de Franca Filho ¢ Jean-Louis Laville horizonte a liberdade e a igualdade entre todos os homens. Esta afirmagao de um Jago polftico manifesta a ruptura fundamen- tal da modernidade que reside na exting4o de toda transcen- déncia. A auséncia de influéncia dos sistemas simbélicos sobre as representagdes que os homens fazem da sua propria exist€n- cia manifesta 0 desencantamento do mundo (Gauchet, 1985). Dito de outro modo, a emancipagao, no que diz respeito aos costumes e A tradi¢&o, se traduz pela perda da evidéncia do sentido do mundo. Confrontando-se, assim, 0 homem com a pluralidade de valores, tal emancipagdo engendra a questao do tipo de laco social proprio 4 modernidade, induzida pela exis- téncia de um laco politico. O acréscimo do princfpio da frater- nidade aqueles da igualdade e da liberdade na Revolucao Fran- cesa pretende, alids, representar um primeiro sinal de resposta. Porém, esta interrogacao balbuciante sobre os fundamentos do laco social moderno, que ultrapassa a teoria do contrato social, é recoberta pela difusao de uma axiomatica do interesse que constitui a base do utilitarismo, principal matriz do individua- lismo liberal. A auséncia de transcendéncia recai sobre uma exigéncia de calculabilidade, pois estipula-se que a imanéncia, ou seja, aquilo que € inerente ao sentido das praticas especificas dos atores sociais, deve ser confundido com 0 préprio interesse que eles atribuem & ac&o antecipadamente. Pegando no contrapé das concepgdes dominantes de sociedade, o utilitarismo propée, audaciosamente, basear a moral no interesse individual. Para o individuo repentinamente liberado dos seus entraves secula- res, 0 questionamento se coloca em relagao a possibilidade de viver em coletividade. A fim de resolvé-la, 0 utilitarismo pre- coniza partir-se das condutas dos homens e nao mais dos prin- cfpios fundamentais da filosofia moral crista. No lugar de con- denar o amor de si mesmo, préprio do homem decepcionado apés 0 pecado original, que se esconde por tras das aparéncias de virtude, 0 utilitarismo pretende, além de absorvé-lo, afirma- Jo. Desse modo, 0 acordo fundado sobre um cdlculo garantiria a paz social, pois a moral é fundamentada no interesse (Teres- A Economia Solidétia | 37 tchenko, 1991). Nesse sentido, qualquer que seja a natureza dos objetivos pretendidos, que se distinguem segundo os auto- res, é considerado justo o que é obtido pelo calculo e pela ins- trumentalizagao ou o que contribui para maximizar a felicida- de de um ndmero maior. A harmonia social pode, assim entio, ser obtida. Interesse pessoal ¢ interesse ptiblico podem, entao, coincidir (Caillé, 1991), difusao da economia mercantil Dessa hipdtese decorre a importancia acordada para as ati- vidades econémicas mercantis. Se o mercado é escolhido como mecanismo auto-regulador, € porque ele permite ancorar as relacGes interindividuais na esfera dos interesses, além de pre- servar estas relagdes da forga destruidora das paixdes. Num mundo onde plana a ameaga do caos, perseguir atividades lu- crativas € a acumulaciio de riquezas — que passam pela retira- da das proibigdes enquadrando e restringindo o funcionamen- to do mercado —, parece poder fornecer um fundamento realis- taa uma ordem social vidvel, apresentando a vantagem da pre- visibilidade e da constancia e evitando o retorno a ordem anti- ga. Nesta légica, o desenvolvimento da atividade mercantil poderia favorecer a todas as partes e, conforme acreditava A. Smith, num mundo governado pelo interesse, deixando a cada um a liberdade de perseguir seu interesse particular, favorece- se 0 progresso material do conjunto do corpo social. As rela- ges mercantis pareceriam, assim, suscetfveis de refrear a vio- léncia inerente as relagdes humanas, e o comportamento seria ditado pelo interesse econdmico dotado de um potencial paci- ficador num processo “{...] que acabard por esvaziar a nocao de interesse de toda conotagao outra que no seja econdmica” (Hirschman, 1980, p. 140). A partir do século XIX, as socieda- des democraticas, experimentando a incerteza quanto aos seus fundamentos (segundo a formulacao de Lefort, 1981), confiam sua regulagao ao mercado, movido por uma mio invisfvel, que fabrica o justo sem se preocupar com a justica, transformando 38 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville A 0s vicios privados em beneficios puiblicos, como considera Man- deville (apud Terestchenko, 1991). . A aparigao da comunidade politica havia institufdo um tipo de relagao baseada na liberdade e na igualdade, ela nao havia entretanto resolvido a questéo da sua regulagao. E entdo que intervém 0 recurso ao mercado, tirando sua forga do que parece induzir relagdes sociais harmoniosas que respeitariam os princt- pios de liberdade e de igualdade e seriam obtidos a partir da busca de cada um dos seus interesses privados. Numa coletivi- dade libertada de todo fiador externo, o principio do mercado seria, assim, dotado de uma virtude pacificadora. A autonomiza- cdo do mercado repousaria sobre as capacidades deste mercado em garantir harmonia social através “[...] da inocéncia e da do- cura do comércio e do enriquecimento” (Hirschman, 1980, p. 55). O mercado, baseado na consideragao do interesse, € consi- derado como o primeiro princtpio do comportamento econdmi- co destinado a assegurar a ordem na economia; a esfera econd- mica mercantil ganha uma importancia cada vez maior na orga- nizacao das relagées entre individuos livres, contribuindo para a sua libertagao pela “{...] passagem de um sistema de relagdes sociais no qual o fendmeno monetério € secundario, subordina- do, a um outro sistema de relagdes sociais em que o dinheiro (no sentido amplo) desempenha um papel maior” (Vilar, 1974, p. 30). Mas, se a economia mercantil constitui uma forga essencial de mudanga no século XIX, ela nao eliminou, entretanto, as ati- vidades econémicas que preexistiam. persisténcia da economia tradicional O “setor tradicional”, segundo a expressao de Lutz (1990), manteve-se até a metade do século XX na Europa. O extraor- dinério impulso da economia mercantil, “{...] no qual a racio- nalidade do comportamento deduz-se essencialmente de con- sideragdes de rentabilidade e de célculo de utilidade”, andou junto com a subsisténcia deste setor tradicional “caracterizado pela predominancia da pequena empresa de economia familiar A Economia Solidaria_ | € onde os comportamentos permaneciam fortemente marcados pelos principios de funcionamento da economia de subsistén- cia”. Este setor nao pode ser apreendido através apenas das relagdes monetdrias que entretém aqueles que nele se inscre- vem. Mesmo sendo penetrado por trocas monetdrias, os mer- cados dos seus produtos ¢ servigos “{...] nao se limitam a espa- ¢os restringidos”, definidos prioritariamente pelas “{...] neces- sidades de consumo direto e compreendendo um pequeno nu- mero de etapas de fabricagao e de distribuigdo dos produtores aos usuarios”. A organizacao é aquela da “[...] pequena unida- de de tipo familiar”, e “[...] inspira-se muito mais numa preo- cupa¢do em assegurar os meios que favoregam os membros do grupo familiar, ao invés da realizagao prioritaria do lucro mé- ximo”. Enfim, para a maioria neste setor, “[...] 0 emprego se confunde com um sentimento de pertenga ao sistema familiar, suporte da exploragao”, nao existindo “separagao clara entre lar e empresa” (Lutz, 1990, p. 80-82). Reagrupando a econo- mia doméstica, as atividades familiares do artesanato, do co- mércio de detalhes e dos servigos, este setor tradicional se re- velou muito estavel na primeira metade do século XX, se con- siderarmos que na Franga, num intervalo de quarenta anos, entre 1906 e 1946, “{...] a parte representada pelo setor tradicional no potencial nacional de mao-de-obra passou de 55 para 49%” (Lutz, 1990, p.108). Esta economia tradicional € sobretudo fundada em rela- Ges herdadas que s4o a familia ou a etnia. Assim, quando o crescimento urbano excede e ultrapassa a capacidade do Esta- do em controld-la, como na Franga a partir de 1880, desenvol- vem-se os faubourgs, a zona € os subtirbios (banlieues pavi- lonnaires) “‘desfavorecidos”, onde ha imbricagao entre ativi- dade artesanal, comercial e o préprio habitat, gracas a um re- agrupamento familiar e étnico pelas ruas e pelos bairros. A economia tradicional pode depender de um modo de vida per- manente, mas ela pode igualmente constituir um recurso tem- pordrio. E 0 caso dos trabalhadores precdrios empregados de maneira intermitente, segundo o perfodo ou a jornada, que 39 40. | Genauto Carvalho de Frenga Filho e Jean-Louis Laville A Economia Solidsria | 41 formam uma importante reserva de mao-de-obra. Trabalhan- do por empreitada ou em domicilios, eles se deslocam, segun- do a conjuntura, do setor tradicional para o setor industrial mercantile vice-versa, segundo as flutuagdes conjunturais. Eles sobrevivem em grande medida gragas as rendas nao-moneté- rias, as solidariedades do vilarejo e familiares. Esta mao-de- obra pouco exigente e de uso imediato facilita as adaptagdes r4pidas da economia mercantil pela lei dos salarios, segundo a qual toda elevagao do nivel dos salarios no setor industrial mercantil conduz a um afluxo de oferta de trabalho prove- niente do setor tradicional de tal modo que pesa sobre os sala- rios anulando sua primeira elevagao. A emergéncia de uma Economia Solidaria Se a economia tradicional prova sua forga através dessas co- munidades herdadas na modernidade, nao devemos esquecer que a comunidade politica cria uma comunidade irredutivel 4s co- munidades precedentes, pois 0 espago comum dado é ausente por principio. Como mencionado antes, a comunidade politica advém da auséncia de referéncias unanimemente compartilha- das no seio de uma mesma cultura, neste sentido ela sé pode ser considerada como 0 prolongamento de comunidades anteriores. O mundo sé pode existir enquanto mundo comum mediante a instauragao de um didlogo com os outros, suscetivel de levar & criacdo de regras sob as quais se resgate um acordo favorecendo o viver em conjunto. A comunidade politica se constitui, assim, da institui¢gdo de um espago piiblico através do qual ela se distin- gue, essencialmente, das demais comunidades. O espago piibli- co € “a instituigaéo de intervalos que se reatam sem integrar-se”. Pode-se falar em “espago pluricentrado”, pois ele “inscreve a pluralidade no objetivo de uma comunidade onde nenhuma ori- gem comum a funda ou a justifica, enquanto recusa por princi- pio toda comunhio final’ (Tassin, 1992, p. 33). A modernidade consagra, assim, a chegada de um espago ptblico. De fato, mais do que um espago ptblico unitario cons- tituem-se espacos ptiblicos diversificados, como considera Cha- nial (1992, p. 68). Ou seja, instancias de reflexao, de argumen- tagdo e de discussdo, entre os quais figuram tanto os cafés, os cabarés e os circulos burgueses, quanto as sociedades filantré- picas, os clubes ou as sociedades de sdbios, em que todas con- corriam para a formagao de uma sociabilidade democratica. A fim de detalhar algumas das manifestag6es desta sociabilidade multiforme e explicitar suas conseqiléncias, 0 exemplo francés €é quase sempre retido pelo fato de a passagem da tradigao a modernidade ter sido mais brutal do que em outros lugares. Efetivamente, o choque da Revolugao obriga uma criaco ins- titucional: numa situagaio de vacancia do poder, numerosas agoes locais testemunharam um amplo espfrito piblico que nao € 0 apandgio de notaveis. Manifestando um direito natural e prinefpios universais de justiga, cidadaos autorizam-se a resol- ver os problemas imediatos que se colocam nas comunidades ou nas profissGes, na expectativa de implementagao de insti- tui¢des nacionais adequadas. Eles querem, assim, assumir seu lugar na nova liberdade de se governar. Ao mesmo tempo, os operarios do inicio do século XX continuam a se referir 4s corporagées, sob a forma de camara- darias (compagnonnage) e de sociedades de socorro miituo, numa preocupagao de igualdade entre pares para se opor as desordens nascidas da concorréncia e 4 dominagio ancestral dos senhores-patrées. Nos dias seguintes 4 Revolucio, esta os- cilago entre espirito ptiblico e espirito de corporacées (ou es- pitito corporativista) impregna as praticas populares. Todavia, a partir de 1830, os operdrios tomam consciéncia dos limites inerentes As corporag6es: atingindo apenas as profissdes urba- nas qualificadas, contidas pela interdigao das coalizGes e das regulamentagGes profissionais, essas corporagGes se inscrevem na esfera piiblica. Raz&o pela qual, com a progressao do mer- cado que leva a um aumento da miséria, impde-se a idéia de associagao. Gragas a livre reuniao de individuos concernidos pelos mesmos problemas, “[...] os operdrios tornaram enfim consonantes suas organizagdes corporativas, seus projetos de regulamentago e a tradigao revoluciondria”, conforme argu- 42 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville menta Sewell (1983, p. 275), ao evocar a passagem das corpo- ragdes as associagdes operdrias. Os espagos ptiblicos popula- res se consolidam através de um associacionismo operario no qual o reagrupamento utiliza a forga das corporagGes, ao mes- mo tempo em que a ultrapassa, pois esta baseado em princi- pios de liberdade e igualdade entre os membros cuja adesao é voluntaria. Com esse associacionismo, entre outras missdes, coloca-se aquela de intervir na construgdo da economia. A pro- messa de harmonia social que havia deixado a economia mer- cantil no conseguindo se realizar, traz 4 tona a questao da compatibilidade entre o pertencimento 4 comunidade politica eaextrema disparidade das condigées de vida no seu seio, que nao podem mais ser iludidas. A acuidade do debate que ela impulsiona explica a retoma- da da exploragao da dimensao fraterna do “viver em conjunto”. Para além do utilitarismo, impée-se de novo a necessidade de conceituar 0 lago social moderno. Nesta 6tica, Leroux elabora a nogao de solidariedade: “A natureza nao criou nenhum ser para ele-préprio [...] ela os criou uns para Os outros, e colocou entre eles uma solidariedade reciproca” (Leroux, 1841 apud Le Bras Chopard, 1992, p. 58). “Através desta, apenas pelo fato de os homens existirem e terem entre si relagGes, a sociedade existe [...]. Ha, portanto, necessariamente e divinamente comunhao entre os homens” (Leroux, 1851 apud Le Bras Chopard, 1992, p. 58). Leroux deseja substituir 0 cristianismo por uma religiao da humanidade, pois “{...] 0 que é preciso entender hoje por caridade, é a solidariedade miitua dos homens” (Leroux, 1985). A despeito das énfases datadas desta teologia politica, é impor- tante reter a forte critica tanto da caridade quanto das teorias do contrato social ou de uma visao organicista da sociedade. Se a Igreja que rebaixava o homem “pode parar de existir” (Leroux, 1841 apud Le Bras Chopard, 1992), “[...] a sociedade nao é 0 resultado de um contrato” (Leroux, 1851 apud Le Bras Cho- pard, 1992, p. 58); nao é possivel pensar que individuos libera- dos dos privilégios possam estar de acordo espontaneamente; nao mais do que a sociedade possa ser assimilada a um corpo, A Economia Solidaria pois esta representagao faz apelo a uma hierarquia que Leroux abomina e que o distancia de modo veemente dos discfpulos de Saint-Simon, como Enfantin. A contribuigao inegavel de Le- roux reside na afirmagao de que a solidariedade nao pode ser concebida a partir do individuo ou da sociedade, pois ela é in- dissocidvel de uma relagdo; o que autoriza a pensar uma igual- dade na diferenga, segundo os termos de Le Bras Chopard (1986). “Todos os homens sao irmaos quer dizer apenas: todos os homens sao solidarios, o que deixa o campo livre a distin- ¢ao” (Leroux, 1839 apud Le Bras Chopard, 1992, p. 60). Mas seu pensamento retém também a atengao pela sua capacidade de entrar em ressonancia com os movimentos da época, pois sua inventividade s6 tem sentido em ligagao com a abertura concomitante do campo dos possiveis. Tal pensamento faz eco a um associacionismo operario no qual ele intervém, pois se engaja justamente na pesquisa de uma economia que poderia ser solidaria: a organizacdo do trabalho que fica para ser encon- trada poderia fornecer a oportunidade de erguer entidades pro- dutivas que inscrevam a solidariedade no corag4o da economia. Para os diferentes atores engajados nas associagdes ope- rarias, a regulagao da economia nao podia ser confiada apenas ao mercado, era preciso agir em favor de uma economia plural que admitisse outros princfpios além do mercado. Para eles, 0 laissez-faire liberal desemboca numa desigualdade contraria aos ideais republicanos e eles preferiam elaborar novos modos de regulacao social pelo trabalho, indo até a sua sacralizagao para alguns. Esta convergéncia de fundo é coerente com as antinomias que se colocam, antes de tudo, em relagao aos lu- gares respectivos da sociedade civil e do Estado para assegurar arealidade do direito ao trabalho e exarcebam-se nos confron- tos entre os diversos projetos que tedricos experimentadores submetem ao debate. Alguns, como Cabet e Blanc, insistem na coordenacao a partir de uma inst4ncia central. Cabet preconiza a criagao social de uma reptiblica onde o Estado, possuidor dos meios de produ- cao, aparece como garantidor da planificagaio econémica me- a 44 | Genauto Carvatho de Franca Filho e Jean-Louis Laville diante a previsao anual das atividades e da reparti¢ao dos bens. Blanc formula uma teoria que conheceu uma realizagao na as- sociagao fraternal dos alfaiates. Ele visa a anulagao da concor- réncia e de toda motivagao oriunda do “antagonismo ardente dos interesses” e sua substituicao, na filiagao da revolugao, pelo princfpio de fraternidade, expressao deste estado da soli- dariedade que deve fazer de toda sociedade uma grande fam{i- lia. Neste objetivo, uma coordenacio macroeconémica deve ser assegurada pela fixagao de um “beneficio licito” apés esti- magio dos pregos de custo dos produtos que servem de base para a definicdo dos salarios. Um conselho de administragao supervisiona 0 conjunto das indtistrias e um “engenheiro no- meado pelo Estado, cada uma das indistrias particulares”. O Estado, organizando o crédito, resgata as empresas em dificul- dade na qual os operarios podem entao trabalhar como “irmaos associados”, escolhendo o seu modo de remuneragao. Os be- neficios sao repartidos em quatro partes iguais, duas sao guar- dadas na unidade produtiva para amortizagao do capital e cons- tituig&o de um fundo de socorro, uma é repartida entre os tra- balhadores de uma mesma indistria, e uma, enfim, é dedicada Aconstituigaéo de um fundo de reserva pertencente ao coletivo, que assegura a miitua assisténcia entre todas as indtistrias. Nas concepgées de Cabet e Blanc, a oposigao dos interesses é eli- minada pela aboligaéo da propriedade privada e da concorrén- cia as quais substituem a regulagao assegurada pelo Estado em nome de todos. O ponto cego é aquele dos mecanismos pré- prios que deveriam garantir esta transparéncia estatal. Outros reformadores sociais, contrariamente a Cabet e Blanc, desconfiam deste recurso ao Estado. Na linha dos fourieristas e saint-simonianos de influéncias inextricaveis, contudo mais modestas do que a dos primeiros visiondrios, pretende-se ins- taurar novos modos de vida e de produgao, admitindo as regras do meio ambiente no qual estao inseridos, sem renunciar a modificd-las. Eles concentram seus esforgos nas possibilida- des de dar aos trabalhadores 0 meio de organizar e controlar sua produgo modificando as formas de acesso a propriedade. A Economia Solidéria | 45 Leroux, que se ocupa também de producdo, considera que o trabalho é um ato coletivo proprio da espécie, devendo a pro- priedade constituir-se como indivisivel. Partiddrios da aplica- ¢ao do princfpio “a cada um segundo suas necessidades”, ele preconiza uma reuniao dos trabalhadores de atelié por triades de afinidade para repartirem as tarefas entre eles. Considérant, do seu lado, coloca os principios visando inverter os termos dominantes da retribuigao do capital, do trabalho e do talento. Ele desenvolve a teoria da comuna societéria exposta por De Bonnard, onde a mais-valia € considerada uma capacidade pro- dutiva obtida a partir do trabalho e que torna os assalariados co-proprietarios. Progressivamente, para os fourieristas, as ambigGes se restringem a espagos sociais mais circunscritos do que aqueles visados na utopia inicial. A oposigo a divisao do trabalho cede lugar a projetos centrados na indtistriaem que sao valorizadas a alternancia dos trabalhos e a vida comunit- ria. O falanstério deve permitir a manutenc&o da propriedade, porém assegurando sua regulagao social e a instauragao de uma verdadeira “comuna”, reunindo num mesmo edificio popula- gGes até ent&o isoladas. Quantos aos buchézianos, partidarios de um cristianismo socialista, formulam dois projetos que con- cernem a duas espécies de instituigdes novas: a Associaciio e a Organizagao concebidas em fungao de dois tipos de trabalha- dores. “Os trabalhadores livres” so aqueles que tém uma qua- lificagao que lhes permite propor uma forga de trabalho que nao demanda investimentos importantes para comecarem a tra- balhar. A Associagao € destinada a sua emancipacao do poder dos intermediarios, “simples capitalistas ou empreiteiros”. Ela apresenta cinco caracterfsticas: a assinatura é dada a um ou dois representantes; as remuneragGes sao estabelecidas segun- do as normas do offcio; os beneficios sao repartidos entre um “capital social” e a redistribui¢do aos trabalhadores; o capital é indivisivel, “inaliendvel” e “indissoltivel”; todo novo trabalha- dor deve ser integrado como membro da sociedade. Os “traba- Ihadores ligados as fabricas” so os operdrios nao-qualifica- dos, dependendo completamente das maquinas sob as quais 46 | ‘Genauto Carvalho de Franca filho e Jean-Louis Laville eles sao as “rodas” e que s6 podem trabalhar em grandes esta- belecimentos industriais que supdem grande quantidade de capitais investidos. A organizagao prevista por eles leva em conta a impossibilidade de modificar o sistema de propriedade das grandes firmas industriais, sendo uma instancia paritaria nacional intervindo no mercado de trabalho para fixar os salé- rios e arbitrar os conflitos, e que pode também gerar os fundos de socorro. Estes dispositivos respeitam a concorréncia € 0 di- reito de propriedade, atacando os seus abusos (Marchat, 1990). Conforme sublinham as vivas polémicas entre os promoto- res dessas diversas proposigdes, nos anos 1830 e 1840 quando a questo social se confunde com aquela da organizagao do trabalho, os projetos e realizagdes abundam, sejam eles oriun- dos de observadores engajados ou dos préprios trabalhadores. A efervescéncia associacionista enriquece-se mais ainda com as iniciativas patronais que se interessam pelas associagio de capitais e propde a associagao aos trabalhadores para evitar a instalagao da discérdia. Em Paris, Desroche (1981), retoman- do o inventario de Gossez (1848), menciona trinta e nove pro- fissdes concebendo diversos projetos de associagées: figuram af cinco associagGes de trabalhadores e patrdes, duas reunindo os senhores-patr6es e quarenta e seis associages entre os tra- balhadores, das quais, trinta e trés afirmam seu carater fraterno em sua intitulagao, e cinco seu cardter solidario. Muito longe das utopias escritas que lhes precederam e inspiraram, é che- gado o tempo das utopias praticas (segundo a expressdo de Desroche, 1976). Sewell também sublinha esta efervescéncia: “Os trabalhadores ao lado dos burgueses democratas tomam parte na vida de certos clubes politicos que haviam brutalmen- te nascidos em Paris e na provincia apés a revolugao de feve- reiro —clubes representando o pensamento republicano nos me- nores detalhes. Eles fundaram seus proprios jornais ou, na maioria dos casos; colaboraram com uma miriade de jornais republicanos. E sobretudo, eles reformaram e insuflaram uma nova vida as suas organiza¢Oes profissionais” (Sewel, 1983, p. 337). A abundancia de idéias e de experiéncias testemunham a A Economia Solidatia | 47 imbricagao entre debates e praticas para confrontar os cami- nhos através dos quais poderia consolidar-se uma economia solidaria que constitui a finalidade em diregao & qual tendem numerosas tentativas bastante dispares. Qualquer que seja a diversidade das organizagGes iniciadas neste objetivo, sua es- pecificidade pode ser medida através de dois tragos: —Oagrupamento voluntario inspira-se na referéncia a um lago social que se mantém pela implementagao de uma atividade eco- némica. A participagiio nesta atividade, nao podendo ser separa- da do lago social que a motiva, depende entao do principio do comportamento econédmico que € a reciprocidade, regendo as relagdes entre as pessoas associadas (Vienney, 1994, p. 88); —aac&o comum, por estar baseada na igualdade entre os mem- bros, € 0 vetor de um acesso ao espago ptiblico que atribui aos membros capacidade de serem entendidos e de agir numa pers- pectiva de mudanga institucional. As estruturas constituidas, ex- cetuando seu papel econdmico, instauram espagos ptiblicos de proximidade que sao espacos ptiblicos aut6énomos no sentido de Habermas, ou seja, sob o registro de processos regulados pela solidariedade e nao pelo dinheiro ou poder administrativo. Em nome desta dupla inscrigao, ao mesmo tempo na esfera econémica e na esfera politica, como demonstra 0 exemplo francés da primeira metade do século XIX, a economia solida- ria mergulha suas rafzes nas relagSes de pertencimento vividas que podem ser tradicionais. Entretanto, ela nao se confunde com a economia tradicional, pois vai além do dominio priva- do, exprimindo no espago piiblico a reinvidicagao de um po- der-agir na economia, isto é, a demanda de uma legitimagdo da iniciativa, independente da detengao de um capital. Ela funda, assim, um empreendedorismo que nao é movido pela rentabi- lidade do capital investido e que nao distingue o que € da or- dem da producio e da distribuigaio, combinando associagao para exercer uma profissaéo em comum e ajuda miitua. A questdo do trabalho é uma das questées que se mostra verdadeiramente crucial para pensar a organizagao das formas 48. | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville de solidariedade que, ao mesmo tempo, estruturam atividades econémicas e contribuem para uma acio piblica necessdria ao estabelecimento de uma sociedade que se quer democratica. A partir de 1848, as associagdes estendem seus objetivos numa perspectiva de democracia associacionista. A fraternidade no seu seio as leva a inclinar-se sobre a questo da solidariedade entre as associagdes. Projetos neste sentido aparecem como a Sociedade das corporagées reunidas, e, em seguida, como a Camara sindical do trabalho, 0 Banco do povo, a Mutualista dos trabalhadores, 0 Comité central das associagdes ou a Uniao das associagées de trabalhadores (Desroches, 1981). Esta ten- déncia é amparada pela Comissdo do governo dos trabalhado- res, dita Comissdo de Luxemburgo, que distribui as profissdes em colégios eleitorais para designar seus representantes e os legitimd-los, assim, na cena ptiblica. Alguns véem esta Comis- sdo, em posicao de segunda Assembléia Nacional, intervindo nos conflitos sociais e garantindo as convengées passadas en- tre patrdes e empregados, sustentadas pelas associagdes cada vez mais ligadas aos clubes politicos ativos, os estados gerais do trabalho, que anunciam uma repiiblica operdria. Mas trata- se apenas de miragem cujos contornos vao desaparecendo com o retorno da realidade repressiva. Apds as agitagdes em junho de 1848, a repressao impiedosa é seguida de medidas rigoro- sas batendo de frente nos clubes, limitando a liberdade de reu- nido e a liberdade de imprensa, enquanto o conselho de enco- rajamento destinado as associagGes livremente contratadas, seja entre trabalhadores, seja entre patrdes e trabalhadores, revela- se funcionar, na pratica, como um verdadeiro “conselho de de- sencorajamento” (Marchat, 1990). A partir de 1848, a intervengao estatal nao se contenta em apoiar a constituig&o de mercados. Pela repressio dos movi- mentos sociais e, em seguida, pelo “desencorajamento” das associagGes operdrias, ela extirpa a dimensio politica do eco- némico. Na safda de uma fase de intensa criatividade e de vio- léncia, em que se afrontaram diferentes possibilidades de cons- trugdo da economia, a instancia estatal aceita o principio de A Economia Solidaria | 49 uma economia mercantil constitufda a partir da circulagaio auto- regulada de mercadorias e de capitais, pelo qual o poder nas unidades de produgao é ligado a detengao do capital. A inter- venga estatal retira por um certo tempo a economia do dom{- nio politico e naturaliza a forma de economia que ela instituiu. Ela valida uma nova representacao da economia organizada em tomo das nogdes de interesse e de mercado corresponden- do aquela difundida pelo liberalismo. A uma configuragao na qual as quest6es social e econémica eram objeto de uma refle- xao conjunta de natureza politica, sucede uma ordem na qual a economia se encontra subtraida do debate politico. Da Economia Solidaria... 4 economia social e ao direito social A repressio de que € vitima 0 movimento associacionista transforma o contetido dos campos econémico e politico, bem como sua articulago, colocando em questao os tragos préprios da economia solidéria. : Naesfera econdmica, é a finalidade de economia plural con- tida na economia soliddria que é abandonada. No lugar de eco- nomia plural, trata-se ao contrario do pleno desenvolvimento da economia mercantil, que é favorecida com a criagao da empresa capitalista. A introdugao de um mercado auto-regula- do, vindo quebrar as antigas barreiras levantadas contra a cir- culagao de bens, é completada pela definigao de uma institui- ¢ao, permitindo tirar partido desta conquista da liberdade de circulagao de bens. A empresa capitalista aparece — “[...] uni- dade econémica de lucro orientada em fungiio das chances de Operacao mercantil” — e, com 0 objetivo de tirar beneficio das trocas, ela “se propde a ser rentdvel, isto é, a obter um exce- dente em relagio ao valor estimado em dinheiro dos meios engajados pela empresa. Além disso, ela trabalha com uma conta de capital ~ no sentido de que ela constréi seu balango — em telagao a qual toda medida tomada torna-se objeto de calculo, ou seja, um objeto em fungao do qual sao avaliadas as chances de troca beneficiaria” (Weber, 1991, p. 15). A produgao é asse- 50 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville gurada por produtores privados independentes, uns € outros submetidos & concorréncia, mas capazes de decidir sua nature- za e de disp6-la tendo por objetivo seus proprios interesses. A propriedade privada é ligada 4 detengao do capital, ea empre- sa moderna se emancipa da personalizagao das relacoes so- ciais nas formas juridicas de sociedade. O reconhecimento da sociedade de capitais possibilita os meios de uma concentra~ co inédita de capitais. “Na medida em que a conta de capital tornou-se universal, ela é de agora em diante ~ e com ela as chances de operacao mercantil — o horizonte tanto da troca de mercadorias quanto da produgéo” (Weber, 1991, Pp. 15). A equivaléncia estabelecida entre economia mercantil e eco- nomia moderna é discernida na ciéncia econdmica, que se atribui como objeto 0 estudo da produgdo mercantil rent4vel em regime de concorréncia, 0 que implica considerar todos os produtos como mercadorias, medir a rentabilidade pelo lucro obtido em fungao do capital investido e imobilizado, e definir a eficdcia produtiva como pertencendo as atividades mais rentaveis. Anteriormente confundida com a economia politica, a economia social dela se desprende, até criticando-a, para inclinar-se sobre as interven- Ges necessérias com vistas a corrigir os efeitos nefastos desta produgdo mercantil em regime de concorréncia, conforme lem- bra Vienney (1994). A economia social examina as condigées, permitindo conciliar 0 modo de produgao econémico com uma reducao da pobreza que ameaga a ordem estabelecida, daf a énfa- se posta sobre a questo moral (Procacci, | 993), conforme atesta a posigaio de Gide, que passa da contestagao da economia politica ao reconhecimento da sua complementaridade com a economia social (Gide, 1980; 1905, apud Vienney 1994). Os estudos de economia social singularizam-se pela sua aten- go dirigida aos problemas de redistribuigao: dedicados as ativi- dades e aos atores que nao funcionam segundo as regras do met- cado e da empresa capitalista, eles vo focalizar-se sobre a and- lise dos subconjuntos atomizados, Isto porque os estatutos juri- dicos elaborados na segunda metade do século XIX introdu- zem separag6es contrdarias ao objetivo unitario do entusiasmo A Economia Solidaria | associacionista inicial. As cooperativas sao diferenciadas das organizag6es mutualistas, as primeiras tornando-se uma forma particular de sociedade de capitais centrada na fungiio de produ- ¢40 ou de consumo, enquanto as segundas se concentram na fungao de socorro. As atividades criadas para defender uma iden- tidade coletiva, ao se ajustarem as regras do sistema do qual fazem parte, vio, em retorno, modificar profundamente as rela- gGes de auto-ajuda que existiam na sua origem. O estatuto de associagao, menos estreito no seu objeto, vé-se limitado tio logo se torna atrelado a uma atividade econémica. Com a domi- nacao da economia mercantil, pensada como a tinica economia portadora de desenvolvimento, a dissociagao entre produgio e distribuigdo é ratificada: a produgiio geradora de excedente fica sob 0 registro da economia mercantil e a distribuigao torna-se sua dependente. Corolario, a economia social como teoria aban- dona a produgao, dominio da economia politica, em proveito da distribuicao, correndo o risco de ser percebida como “vulgar” (Procacci, 1993) e a economia social como pratica submete-se a dispersdo induzida pelos estatutos diversificados. Além disso, a especializag&o dos componentes da economia social denota a baixa tendencial da intervencao da sensibilidade associacionista na esfera politica, mesmo considerando que as experiéncias conduzidas produziram efeitos importantes com as sociedades de socorro miituo que, através da previdéncia coleti- va por elas ativada, prefiguram e modelizam em parte os atuais sistemas de seguridade. A légica de reagao em relagio aos efei- tos do capitalismo, que explica o nascimento dos organismos de economia social, atenua-se em proveito de uma légica de adap- tagao funcional a este modo de produgao, que se conjuga coma manutengao de particularidades notaveis atingindo, porém, ape- nas a sua estruturagao interna. Este afastamento do campo poli- tico, que assinala a passagem de um projeto de economia solid4- ria para aquele de economia social, é também sensfvel na hist6- ria das idéias com a inflexao da nogao de solidariedade. A solidariedade, segundo Leroux, se compreende pelo sen- timento presente em cada individuo de pertencimento 4 huma- S| 52 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville nidade e de uma singularidade a preservar, o que Durkheim, na sua Divisdo do trabalho social, chamava as duas consciéncias. Para escapar de um individualismo concorrencial, assim como de um estatismo autoritario, Leroux, como Durkheim depois dele, insistem no estabelecimento de uma comunicagao entre 0 Estado ¢ a sociedade que suponha os grupos intermediarios, conforme assinala Le Bras Chopard (1992). Os dois autores acabam preconizando que as corporaces devem assumir um papel de “instituigao piiblica”. Entretanto, enquanto Leroux conta com as redes de solidariedade, passando pelo atelié, mas também pelas associagGes ou a imprensa, com 0 objetivo de entreter 0 espfrito ptiblico indispensdvel a democracia, a preo- cupagao de Durkheim se mostra mais funcional: a divisdo do trabalho “[...] no coloca em presenga individuos e sim fun- Ges sociais” (1973). Esta orientagao funcional ¢ adotada pe- los solidaristas que se dedicam 4 concep¢o dos meios susceti- veis de perenizar a solidariedade organica. Com eles, a solida- riedade nao est4 mais ligada a uma dimensio relacional, inter- subjetiva, mas a um 6rgao, o Estado, que endossa a responsabi- lidade de fazer prevalecer 0 respeito as leis. Nao mais nos ter- mos de uma participagao comum & humanidade, como pensava Leroux, os solidaristas referem-se a uma divida social em rela- Gao as geragdes de que os homens sao debitosos vis-a-vis as geragdes seguintes; 0 que implica um quase contrato, isto é,uma “[...] forma juridica da dupla divida social correspondendo ao dever de solidariedade na direc&o dos nossos semelhantes € dos nossos descendentes” (Moreau de Bellaing, 1992, apud Dubois, 1985, p. 58). Sob a influéncia dos solidaristas, a problematica da solidariedade encontra-se conseqiientemente objetivada. Como indica L. Bourgeois (1992, p. 22-23), “tl ° dever social nao é uma pura obrigagio de consciéncia, e sim uma obri- gacdo fundada no direito, cuja execugao nko se pode evitar sem a violacdo de uma regra precisa de Justiga’ , ¢ o Estado pode impor esta regra “se necessdrio pela forga” a fim de assegurar “assim a cada um sua parte legftima no trabalho e nos produtos”. A busca de equilibrio entre liberdade e igualdade, tal como se A Economia Solidaria | 53 construira pela dissociagao e complementaridade entre 0 econé- mico e 0 social, encontra uma nova formulagao na “idéia de servigo ptiblico atrelada 4 nog&o de solidariedade”. O Estado, expressao da vontade geral, torna-se depositario do interesse geral que ele pode implantar gragas & acaio da administragao. A admi- nistragao, que tira sua legitimidade da representagao politica, como a empresa tira sua legitimidade do capital, nao pode ver no usudrio sendo alguém submisso, a quem as prestacdes sao servidas num movimento descendente, do Estado em diregaio aos administrados, que assim garante 0 respeito pelo interesse geral. A legitimidade da intervencgao do Estado é limitada pela solidariedade social, mas ela reforga “seu poder tutelar” e “seu papel central de dar forma a sociedade” (Lafore, 1992, p. 261- 263). “O Estado nio é mais apenas poder soberano, poder de coercao”, ele tora-se “seguradora mutualista e a relagiio social se enquadra no mutualismo” (Ewald, 1986, p. 344). Baseada no direito, a intervencfio do Estado, destinada aos cidadaos assala- riados passivos, se impde como uma adaptagiio pragmitica das teorizagGes sobre a coesAo social preocupadas em evitar 0 duplo tisco do “individualismo” e do “coletivismo”. Em suma, na Franga como em outros pafses em processo de industrializacao, a elaboracao de dispositivos de protecao cria as condigdes de uma aceitagao social do mercado de trabalho, indispensével complemento do mercado auto-regulador e da sociedade de capitais, em que o trabalho se reduz a uma mer- cadoria, Cada vez mais, os artesios e as pessoas que tinham um oficio, sto reunidos nas manufaturas, pois, com a grande inddstria e o progresso do maquinismo, as populagGes rurais € os imigrantes, as mulheres e criancas entram no mercado de trabalho. Para 0 conjunto dos pafses industrializados, muito embora houvesse proibigdes ao ato de associar-se, os trabalha- dores organizam-se em sindicatos e empreendem algumas Ju- tas célebres como a closed shop na Inglaterra e a jornada das oito horas nos Estados Unidos. A primeira grande organizagao operdria de massa, os Cavaleiros do trabalho, aparece nos Es- tados Unidos em 1869, 0 Trade Union’ Congress é organizado 54 | Genauto Carvatho de Franca Filho e Jean-Louis Laville na Inglaterra em 1868 e incita o Estado a descriminalizar as coaliz6es de operarios em 1871, motivando o Canada a seguir © mesmo rumo no ano seguinte. A Franca deixa de considerar esses grupos como delituosos em 1864 (Boucher, 1987). A pres- sio do movimento operario leva ao reconhecimento das orga- nizagGes sindicais e os trabalhadores obtém 0 direito de se uni- rem. Se antes as formas de organizagao econémica acordavam um espago amplo para os vinculos comunitarios, na empresa capitalista, por outro lado, esta dimens4o comunitaria ird situar- se de modo exterior & organizagéo com a subversdo da ordem predefinida e a descoberta de um novo espaco econémico, como considera Verin (1982). O reconhecimento de direitos na em- presa aos seus membros nao-proprietdrios € acordado como um vinculo com a comunidade exterior 4 empresa, no caso a comunidade politica. Tais direitos sao promulgados pelo Esta- do. O Estado elabora um modo especffico de organizagao, o social, tornando vidvel o crescimento da economia mercantil através da sua conciliagao com a cidadania dos trabalhadores. Anteriormente, a questao social relacionava-se a tudo que di- zia respeito 4 ordem societdria, agora se torna sindnimo de protegao individual e coletiva dos cidadaos mais fracos, e par- ticularmente os assalariados da empresa sao, dessa forma, pro- tegidos pela intervengao estatal “[...] mediante a técnica do direito social como modalidade dessa intervengao” e “[...] da férmula da negociag4o como capaz de resolver na sociedade o sistema de expectativas e receios entre os grupos e os indivi- duos” (Donzelot, 1984, p. 72). Numa sociedade em que a eco- nomia mercantil adquiriu uma fungdo primordial na regulacao social, é o trabalho assalariado que articula em seu seio a rela- gao entre o econdémico e o social. O trabalho € 0 lugar de um paradoxo que lhe confere seu papel essencial na modernidade: ele manifesta, por meio da relagao salarial,' a exploracio do ' Pelo conceito de relagdo salarial, a escola da regulagao enfatiza um aspecto forte A Economia Solidéria | trabalhador na sua dependéncia ao capital, mas ao mesmo tem- Po, gracas aos direitos sociais que estao ai ligados, ele afirma o vinculo desse mesmo trabalhador 4 comunidade politica. Levando-se em consideragao a posi¢ao conferida 4 econo- mia mercantil, as fraturas introduzidas por esta devem ser cor- rigidas pelas intervengdes reparadoras de um Estado protetor, daf a concepgao de um direito social composto de um direito de trabalho na empresa e de uma protegao social destinada a proteger contra os principais riscos. A questo social leva a separacao entre 0 econdémico, na sua acep¢do de economia mer- cantil, e 0 social, modo juridico de protegao da sociedade que se elabora a partir do trabalho nos dois registros ligados ao di- reito ao trabalho e a protegao social. Mais do que “invengao do social”, conforme a formulacio de Donzelot (1984), € mais con- veniente referir-se a uma construgao intricada do econémico e do social. Efetivamente, autonomizar a invengao do social im- plica negligenciar o que foi uma parte dos enfrentamentos deter- minantes da primeira metade do século XIX. Em particular, isto significa esquecer a dupla mensagem formulada nesta época pelas tentativas de economia solidaria. — Primeira mensagem esquecida: a defesa de uma econo- mia plural na modernidade, que possa se originar de diversos princfpios econémicos e nao unicamente do mercado. Este es- forgo para legitimar uma pluralidade de economias € ocultado pela cisdo que se impés entre econémico e social. Na ciéncia econémica, toda démarche que se oriente no sentido de uma imbricagao da solidariedade na economia é, por definigdo, ig- norada, uma vez que estuda os mecanismos préprios do mer- cado auto-regulador. As protegGes que sao oferecidas pela so- ciedade sao da competéncia de um campo 4 parte, o social, € das relagbes sociais no regime capitalista. Em todo caso, parece-nos oportuno men- cionar o quanto as conquistas sociais sé puderam ser obtidas em fungdo do pano de fundo da comunidade politica. 35 56 | .Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville nao podem ser fruto de uma iniciativa que seria de ordem eco- némica. Neste aspecto, os organismos de economia social cons- tituem uma exceg%o que confirma a regra, pois sua dispersdo confere-lhes apenas um papel acessGrio. Quanto 4 economia tradicional, apesar de sua contribuicdo estruturante para varias trajetdrias individuais e coletivas (Genestier e Laville, 1994), ela é reduzida a uma sobrevivéncia do passado. A finalidade de instituig&o de uma liberdade positiva na economia, aquela da economia solidéria, é integralmente substitufda pelo reconhe- cimento de uma liberdade negativa (conforme os termos de Berlin, 1988) por meio dos direitos sociais. — Segunda mensagem esquecida: aquela referente &s posi- ¢6es respectivas da sociedade civil e do Estado na organizagao da solidariedade. O debate é deslocado para o papel do Estado, questo que nao tinha sido negada pelo movimento da econo- mia solidaria mas sempre vista em articulagdo com 0 papel do espaco piiblico, ou, mais precisamente, dos espagos publicos de proximidade, componentes da sociedade civil. Por esta ra- z&o, a tese da invengio do social, que é obcecada pelo proble- ma do Estado, nao é justa com o pensamento de 1848. Amar- rando-a & teoria do contrato social, ela deixa de assinalar que este pensamento fez emergir a nogao de solidariedade e aborda a relac&o entre sociedade civil e Estado como um elemento determinante da democracia nascente. Oalcance dessa dupla mensagem certamente, durante muito tempo, pareceu limitado. De fato, durante mais de um século, os compromissos que prevaleceram confirmaram a dissociacao operada entre economia e solidariedade. A construgao societé- ria que delimitou 0 econémico e o social, segundo as defini- cées relembradas acima, traduziu-se pela ascensao da socieda- de de trabalho e do Estado protetor, culminando com a socie- dade assalariada dotada de um Estado-previdéncia na segunda metade do século XX. A forca dos mecanismos institucionais, elaborados neste perfodo para sustentar e gerir 0 crescimento, revelou-se em particular através de seus efeitos sobre os mo- A Economia Solidiria | 57 dos de vida. Contudo € exatamente quando estes dao sinais cada vez mais evidentes de fraqueza que talves certas refle- x6es aparentemente obsoletas possam de novo contribuir para esclarecer o debate. O regime econdmico correspondente a primeira metade do século XX eee MeL ele ce CoMelM le eat d t t _ Mercado: Domesticidade, reciprocidade e redistribuiga: Primeiro principio Principios suplementares + + Economia Mercantil Economia nao-mercantil . e nao-monetaria - Mercado como mecanismo, ao mesmo tempo, emancipador e - Imbricagao entre domesticidade, gerador de desigualdades e de reciprocidade e redistribuigao. exploragao ao como mecanismos protetores - Empresa capitalista com - Apatic&o de um servigo piiblico reconhecimento progressivo do para garantir o respeito aos direitos direito do trabalho sociais Economia tradicional (economia doméstica, atividades familiares) Economia social (cooperativas, associag6es, organizagées mutualistas) A sinergia Estado-mercado A utopia capitalista continha 0 projeto de supressao do de- bate sobre os valores e as normas, considerado possfvel pela generalizagio da relagao mercantil, mas que acaba por ser aban- donado em razio do crescimento das desigualdades concretas que vieram contradizer 0 imagindrio igualitarista oriundo da Revolug&o Francesa. 58 | Genauto Carvatho de Franca filho e Jean-Louis Laville O aprofundamento dessa contradi¢g&o desemboca na “grande transformacao” (Polanyi) dos anos 30, com a aparigéo de um género de mercado novamente regulado, particularmente no que se refere ao trabalho, 4 terra e 4 moeda. O direito social é um dos principais instrumentos destinado a corrigir os efeitos perversos do mercado pela mediag&o estatal. No centro desta transforma- ¢4o, encontra-se o fracasso da utopia de mercado demonstrada através da instalagdo de um protecionismo social exercido pelo Estado. O Estado, ao passo que se encarrega desse protecionis- mo, também se reforca como autoridade central. Apds a emer- géncia da comunidade politica fundadora da modernidade, a cons- tituicdo progressiva de um espago préprio para o social confere um papel protetor central ao Estado que modela a aplicagao dos princfpios de direitos humanos e de representago politica nas empresas. Sao assim, ratificadas a separagio e a complementa- ridade entre a economia mercantil e o campo social, lugar da intervencdo estatal corretiva. Tal caracteristica aprofunda-se com os compromissos préprios do perfodo de expansiio apés a Se- gunda Guerra Mundial que, ao mesmo tempo, se acumula com um intervencionismo estatal mais marcante. O Estado na economia mercantil No que diz respeito as representagdes da economia entéo dominantes, a intervengao estatal é considerada como um mo- tor do desenvolvimento e nao um freio. Admite-se majoritaria- mente que 0 aumento do consumo individual e coletivo deveria ser buscado pois é fator gerador de aumento de produgio. O crescimento apés a Segunda Guerra Mundial desenvolve os me- canismos de regulag&o estatal exercidos sobre o mercado. O Estado concentra novos meios para a agdo econémica num con- texto de interpenetracdio (muito mais acentuado do que antes da guerra) da administragio do Estado e da economia mercantil. Apoiando-se sobre o crescimento da influéncia estatal na eco- nomia de guerra, as reconversGes ligadas & reconstrucio sao confirmadas por meio das nacionalizagées, da planificagao, das A Economia Solidéria | 59 intervengGes financeiras e monetarias, do papel preponderante do Estado na agfio de “condutor” da demanda nacional. O in- vestimento ptiblico na reorganizagio do territério e dos setores industriais mais sensiveis e a politica ativa, em termos de mer- cado de trabalho e de saldrios, permitem “{...] encontrar férmu- las estveis de acomodacao entre os interesses individuais das unidades econdmicas, orientados segundo os custos, € os inte- resses gerais da economia, orientados segundo a demanda”. Sob o controle do Estado, a “lei dos saldrios” é substituida pela ne- gociagdo periddica das convengGes coletivas entre as partes so- ciais e as elevagdes correspondentes de salarios, “[...] com a reserva de que o movimento dos salarios permanece em sincro- nia com aquele da produtividade” (Lutz, 1990). Se, no que se refere as rendas diretas, as negociagGes sociais orientam-se na diregéo dos aumentos do salario nominal em conformidade com os ganhos de produtividade antecipados e a inflagdo, a principal inovagao reside na construgao de rendas de transferéncia. Para este tipo de renda, o Estado protetor se transforma em Estado-providéncia (Rosanvallon, 1981), ins- trumento de uma nova forma de rela¢ao salarial respondendo as exigéncias da acumulagao (Aglietta e Brender, 1984), tanto quanto resultante de uma relagao de forgas favordvel a classe operdria (Korpi, 1983), suscitada pelo consenso do pés-guerra em torno do projeto de uma sociedade igualitaria em que cada um possa encontrar seu espaco. As transformagées do social O relatério Beveridge, datado de 1942, é o documento que primeiro exprimiu os grandes princfpios da politica social cons- titutiva do Estado-providéncia que retira do cidadio os riscos ligados & doenga, ao acidente, 4 maternidade, 4 velhice ou & inatividade forgada. Enderegada a uma populagao marcada pela depressao dos anos 30 e em busca de justificago para os seus sacrificios de guerra, revela um sistema inovador pelo qual a generalizagao da protegao social deve contribuir para a seguri- 60 | Genauto Carvatho de Franca Filho e Jean-Louis Laville dade de todos. A esse respeito, 0 sistema consegue ecoar mui- to longe e influencia numerosos outros textos de alcance inter- nacional como a Declaragao Universal dos Direitos do Homem que estipula: “Toda pessoa como membro da sociedade tem direito a seguridade social”. O direito social enriquece-se, as- sim, do direito 4 seguridade social. Ligado 4 esfera politica, 0 direito social por sua vez produz seus efeitos na esfera econd- mica, pois fornece a base conceitual a partir da qual é elabora- do um sistema de transfer€ncias sociais destinado a reduzir as desigualdades no plano nacional. Sem considerar que as trans- feréncias sociais implantadas melhora também 0 poder de com- pra das familias, beneficiando as empresas, que encontram novas saidas para seus produtos ou servigos (Lutz, 1990). Do direito social a economia nao-mercantil Em resumo, a historia dos séculos XIX e XX fora resultado de um duplo movimento: um movimento na diregdo do merca- do auto-regulado conduziu a um movimento em dirego 4 in- tervenco politica. Este duplo movimento colocou o futuro da sociedade nas maos do Estado e do mercado. Esta propensao a regular os problemas societais através da articulagao das regu- lagdes mercantis € estatais ser acentuada pela descoberta de uma verdadeira sinergia entre mercado e Estado. A ampliacio do campo de responsabilidade estatal no do- minio social gera o nascimento de uma economia complemen- tar 4 economia mercantil: a economia nao-mercantil. A econo- mia nao-mercantil corresponde a economia regida pelo princi- pio da redistribuig&o. Esta economia protetora e assistencial torna-se o vetor privilegiado da ago social sob tutela do Esta- do-providéncia. A medida que essa economia nao-mercantil se constitui, organiza-se uma solidariedade institucional em que a dimensao de engajamento voluntario que a caracteriza ate- nua-se para dar lugar a um sistema de seguridade obrigatério. | | \ L A Economia Solidéria | 61 O declinio da economia tradicional ea banalizacao da economia social O crescimento das rendas diretas e indiretas dos salarios, base da prosperidade, marginaliza o setor tradicional mediante dois processos. “Primeiro, os produtos e servicos do setor tra- dicional séo cada vez mais rapidamente substituidos nas pro- visdes regulares das familias assalariadas pelos produtos in- dustriais e servigos fornecidos nas condig6es regidas pela grande empresa e economia de mercado. Inclusive, uma parte cada vez mais importante da m&o-de-obra constitutiva do setor tra- dicional passa para o trabalho assalariado nas empresas de tipo industrial mercantil. Esses dois processos, que se reforgam mu- tuamente, apresentam em comum o fato de que, ao destruirem as estruturas, os modos de produgao de vida e de comporta- mento caracteristicos do setor tradicional, simultaneamente abrem, as empresas do setor moderno, imensas possibilidades de expansao, isto posto em fungdo do crescimento da produ- cdo e da produtividade, das altas contfnuas nas taxas de sala- rios e das rendas salariais” (Lutz, 1990, p. 171). “Essa espécie de anexagio interna compardvel sob varios aspectos 4 anexa- ¢ao externa do imperialismo” que concerne, segundo Lutz, ao setor tradicional, termina por desmantelar a economia de sub- sisténcia com forte componente nao-monetdrio. As comunida- des tradicionais que determinavam os modos de circulagiio dos bens a servigo do vinculo social entre as pessoas sio profunda- mente perturbadas pela generalizagao da relagao assalariada. Seu impacto se reduz ainda em consonancia com o conjunto da eco- nomia nao-monetéria. Em particular, o crescimento das rendas monetérias, ligadas 4s remuneragdes e aos programas sociais, tem como contrapartida a redugao da economia tradicional ao trabalho doméstico que se impde como uma forma de divisdo. do trabalho dependente do modo assalariado e como a forma das relagdes nao-monetdrias complementares do desenvolvi- mento industrial (Mingione, 1987). Tanto as redes econémi- cas tradicionais como as formas de empresa familiar passam a 62 | Genauto Carvalho de Franga filho e Jean-Louis Laville ter apenas um papel complementar nesta fase de desenvolvi- mento. Coma expansio, a economia tradicional, que tinha um peso considerdvel na organizagao econdmica antes da Segun- da Guerra, é marginalizada em favor de uma economia mone- téria que se estende permanentemente, seja através do desen- volvimento da economia de mercado ou pela emergéncia de fluxos financeiros gerados no quadro do Estado-providéncia. O processo de integragao das estruturas de economia social, quanto a ela, fora fortemente acelerado. Uma parte dessas es- truturas torna-se um subconjunto do mercado, uma outra, um subconjunto da redistribuigio. A parte integrada na economia mercantil corresponde as organizagées de tipo cooperativo. Nestas organizacoes, as regras de reciprocidade na igualdade so inseridas em empresas definidas como unidades de produ- cao, regulando, sob 0 modo mercantil, as relagdes com o seu meio ambiente, através da toca de recursos produtivos e de produtos, e as relagdes internas, pela existéncia de uma conta- bilidade medindo as trocas entre associados em termos moneta- rios (Vienney, 1982). Nas sociedades cooperativas, as regras de reciprocidade na igualdade so conservadas de modo que se- jam compatfveis com o principio das trocas mercantis e inte- gradas em seu interior: elas dizem respeito apenas as relagdes entre a atividade das pessoas e aquela da empresa, para garantir uma contribuigdo em equilfbrio com os meios necessérios a0 seu funcionamento e uma repartigao justa dos seus resultados (Vienney, 1982). Além disso, com a seguridade social, as socie- dades de socorro mtituo tornam-se prestadores de seguros com- plementares que oferecem seus servigos mais 4s empresas do que as pessoas. A menor existéncia do critério de adesdo volun- taria concorre para a perda dos lagos sociais personalizados pré- prios a economia social original. Opera-se um retorno ao siste- ma de regras, nao sendo mais a personalidade dos associados que determina a atividade empreendida em comum, porém muito mais a atividade que seleciona os associados. Ao mesmo tempo, a progressdo da economia ndo-mercantil conduz ao desenvolvimento do mundo associativo, mas influ- A Economia Solidaria enciando fortemente seus modos de regulagao internos. Com a instalag&o do Estado-providéncia, as agdes voluntarias sob 0 registro da reciprocidade sao integradas como subconjuntos da redistribuigdo no seio da economia nao-mercantil. As associa- ges sem fins lucrativos oferecendo servigos sociais sio pro- gressivamente enquadradas ou postas sob a tutela do Estado que organiza as transferéncias sociais. Sob a égide do Estado- providéncia, porém, a redistribuig&do no se organiza a partir unicamente da agio piiblica, ela se apdia sobre uma reciproci- dade que € colocada na érbita estatal, seja através de um con- trole exercido diretamente ou deixando uma latitude organiza- cional ampliada no quadro de uma colaboragio entre o Estado e as instancias representativas da agdo voluntaria ou benévola. O sistema em vigor favorece o desenvolvimento de organiza- c6es filantrépicas de vastas dimensGes, permitindo uma drena- gem de fundos importantes mobilizados gragas a referéncia comum que representa os valores morais ou éticos de alcance geral. Isto leva 4 centralizagao dessas organizagGes, para que possam aumentar seus meios disponiveis. A vinculagao da re- ciprocidade ao Estado-providéncia confere-lhe um papel no fornecimento dos servicos sociais baseado num processo de natureza similar em diferentes paises. A queda das solidarieda- des concretas, expressas na administragao doméstica ou na re- ciprocidade tradicional, conduz a apropriagao pelo mercado no sentido de encarregar-se de certas atividades rentdveis que substituem os servicos tradicionais da economia ndo-moneta- ria. Os servicos nao realizados pelo mercado ficam entio, sob a responsabilidade da redistribuigo por intermédio dos servi- 0s ptiblicos ou dos servigos nao lucrativos no quadro associa- tivo. As associagdes sao constantemente solicitadas a se trans- formarem em auxiliares funcionais do Estado, nos dominios de intervengao insuficientemente cobertos pela intervengdo estatal direta e nas quais descobrem-se, muitas vezes, as de- mandas. Entre as associagdes gestiondrias possuindo volumes de negécios e massa salarial mais importantes, figuram aque- las que geram atividades enquadradas pelos poderes publicos. 63 64 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Lavitle Por exemplo, as associagdes que asseguram, em boa parte, a prestago de servigos sociais que completam as alocagées do Estado para as chamadas populagdes “em risco” (idosos, defi- cientes fisicos, familias monoparentais...). O espago préprio da reciprocidade e da administragao do- méstica se retrai, consideravelmente, nessa fase do desenvol- vimento. De um lado, a reciprocidade tradicional e a adminis- tragao doméstica sao enfraquecidas em favor do casal merca- do e redistribuigao. Do outro, a economia nao-mercantil capta em seu seio uma parte das relagGes reciprocitarias que eram originadas na economia n&o-monetaria, seja através das obras de beneficéncia ou das associagdes gestiondrias dos servigos sociais, A reciprocidade enquanto principio independe, distin- to do mercado e da redistribuigao, tem um papel apenas palia- tivo e transit6rio, “[...] derivativo e secundario, ao realizar as tarefas as quais os outros princfpios ausentam-se” (Salamon, 1987). A reciprocidade é menos fundamental na organizagao social do que o mercado ou a redistribuigao, sendo “[...] margi- nal e periférica em relagdo as instituigdes e aos processos fun- damentais da sociedade” (Herman, 1984). Este regime econ6mico implanta uma verdadeira sinergia Es- tado-mercado, repousando sobre 0 raciocinio descrito por Mauss (em Sociologie et anthropologie), segundo o qual: “O trabalha- dor doou sua vida e seu labor a coletividade, de um lado, aos seus patrdes, do outro, ¢ se ele deve colaborar com 0 sistema de seguridade, aqueles que se beneficiaram com os seus servigos nao os quitaram com o pagamento de um salario, e o préprio Estado, ele mesmo, representando a comunidade, juntamente com seus patrdes, devem a ele uma certa seguranga na vida, contra o desemprego, a doenga, a velhice, a morte” (Mauss, 1978). A sinergia entre mercado e Estado repousa sobre a separacao e a hierarquizag’io das economias. A economia mercantil, governa- da pelo principio do mercado, e a economia nao-mercantil, go- vernada pelo principio da redistribuigao, ocupam um lugar cada vez maior em detrimento da economia nao-monetaria, regida pelos prinefpios da reciprocidade e da administragaio doméstica. A Economia Solidéria O regime econémico do periodo de crescimento: a sinergia Estado-mercado ele Ot Mo et ECE Coa CM ted Ea lerery ot ——t i Mercado: | Redistribuigao: if . do: . igo: Reciprocidade | Primeito principio | l Principio suplementar e domestcidade: y ~ 7 Principios residuais E i ‘ ‘conomia Mercantil Economia nao-mercantil Economia ndo-monetaria Mercado Generalizagao dos Empresa capitalista sistemas nacionais de Declinio da cujo funcionamento. protegao social. economia tradicional interno é ligado ao direito do trabalho e a negociagao coletiva Impulso da administragao e das politicas sociais integrando em seu seio os servicos fornecidos pelos organismos sem fins lucrativos A sociedade salarial Apés a Segunda Guerra Mundial, a histéria dos paises capi- talistas desenvolvidos centrou-se na experiéncia desta possivel sinergia Estado-mercado condicionada pelo aumento da base da fiqueza material (Laville, 1993). O crescimento econémico re- gular tornou possivel uma convergéncia entre forte demanda de bens de consumo, crescimento da produgiio e dos ganhos de pro- dutividade, aumento do emprego estvel em tempo completo e aumento dos saldrios. Sistema em anel, que alguns designam sob 0 termo de compromisso fordista ou keynesiano e em toro do qual consolidou-se um equilibrio dinamico correspondendo aos “trinta gloriosos” (Aglietta, 1987; Boyer, 1976). Esse equilfbrio correspondia a uma regularizagao das rela- g6es entre o econdmico e o social no qual o mercado, fonte da | 65 66 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville dinamica e da criatividade societaria, fora posto sob 0 controle de um Estado encarregado, nfo apenas, de dinamizé-lo como de corrigir seus efeitos perturbadores, Consagrava-se assim, a0 mesmo tempo, a preeminéncia do mercado e sua ambiva- léncia: forga motriz e desestabilizadora, seu funcionamento fora enquadrado por dispositivos institucionais visando garantir a eficdcia econémica e a integrag&o social. A estabilidade do conjunto assim formado pode ser esquematizada em varios ti- pos complementares de regulagdes: ~Os fortes ganhos de produtividade sao repartidos entre pro- dugdo e distribui¢io. No seio da produgio, nas empresas mer- cantis, estes ganhos so atribufdos 4 queda da jornada do tra- bailho e a um aumento regular do saldrio médio difundido a partir dos setores mais sindicalizados. A indexagao dos pregos e saldrios é obtida mediante o aperfeigoamento do mecanismo da negociac&o coletiva centralizada entre patronato e sindica- tos e, em retorno, o aumento do consumo resultante incita o investimento. A difustio de uma produgao padronizada de bens e servicgos é acompanhada de uma elevacao do nivel de vida e de uma concentracao dos conflitos sobre o poder de compra. A parte dos ganhos de produtividade que permanece disponivel é atribuida a distribuig’o pela mediago estatal. Os meios do Estado aumentam regularmente para melhor satisfazer as “ne- cessidades sociais”, mediante o desconto de um percentual re- lativamente constante da riqueza nacional. —A divisio dos ganhos de produtividade por um sistema de atribuigaio centralizado, combinando agio do Estado e negocia- ¢o coletiva, mantém o aumento da demanda nacional dirigida aos bens de consumo de massa que sustentam 0 movimento de modernizacio do aparelho produtivo. A economia monetédria persegue, assim, um processo de extensdo continuada. As ati- vidades socialmente titeis confundem-se com as atividades pro- dutivas, isto é, aquelas que multiplicam os bens disponiveis para um mesmo volume de trabalho (A. Smith). A prova disso, no plano das representagSes que governam a agao, € a predo- A Economia Solidaria minancia de uma viséo quantitativa da performance. Esta re- vela-se nas ferramentas de gestdo adotadas pelas empresas, que sao baseadas em indicadores de produtividade da mao-de-obra direta e em economias de escala. Ela penetra também nos mo- delos de planificagiio de politica econédmica fundados nos es- quemas keinesianos em que 0 n{vel de producio é fixado em fungao daquele da demanda finale existe uma ligagdo positiva entre salario e emprego. Pelo sistema de macrorregulagdes assim formado e consti- tuido durante o periodo de expansao, 0 conjunto constituido pela economia nao-monetaria se retrai em favor da economia monetaria, casando economias mercantil e nao-mercantil, e che- ga a conciliar competitividade econdmica e coesao social atra- vés do aumento regular das rendas distribuidas no seio dos di- ferentes grupos sociais. Resultado disso foi um equilibrio dura- vel. Na produgio, os conflitos sd circunscritos & divisio do valor agregado e As reorganizagées da relacao salarial. O ganho de um poder de consumo permuta-se, de fato, com uma perda de poder no trabalho. Fora da produgao, a solidariedade, como enfraquecimento das sociabilidades tradicionais, reduz-se a uma solidariedade institucional abstrata que, pelo fendmeno da bu- rocratizagao dos servigos sociais, tende a ser percebido como um sistema de seguridade ou de assisténcia, mais do que como uma solidariedade ativa. No final das contas, a extensdo do individualismo gerado pelo mercado anima uma demanda de Estado (Rosanvallon, 1981). O projeto igualitarista democrati- co exprime-se pela progressao conjunta do estatuto salarial e das garantias do Estado, do consumo de massa e da protegao social. Esta arquitetura social-estatal consagra a divisdo entre uma economia monetdria, ao mesmo tempo mercantil e nao- mercantil, fortemente valorizada no debate social, e uma eco- nomia naéo-monetéria desestruturada nos seus fundamentos ¢ assimilada a um resquicio do passado. Progressivamente, la- ¢08 sociais outros, vis-a-vis daqueles tecidos no quadro da re- lagio assalariada, distendem-se. O lago econémico tende, en- tao, a passar oficialmente por lago social. 67 68° Genauto Carvalho de Franga Filho e Jean-Louis Laville Na sociedade assalariada, a socializag&o em torno do traba- lho possui uma autonomia relativa, uma vez que é distanciada do empregador pela relagéo monetaria, mercantil ou n&éo-mer- cantil, governando a troca de bens e servigos, e pela implanta- ao de técnicas produtivas no interior de um coletivo de produ- go dotado de certos direitos. O trabalho remunerado na em- presa ou na administragao contribui para a insergao social, pois liberta-se dos lagos privados abrindo acesso 4 esfera publica. O contrato de venda do trabalho o qualifica como um trabalho em geral, sendo as obrigagées do trabalhador objeto de regras de direito, nao podendo ser demandado a ele senao apenas 0 que é especificado no contrato. O emprego, criador de um va- lor de uso socialmente reconhecido e conclufdo na esfera pi- blica, é ent&o indissocidvel da cidadania. Incontestavelmente, o desenvolvimento do trabalho assala- riado nao foi apenas coerg&o, mas também um meio de se li- bertar do jugo da exploragao familiar rural e dos papéis sociais rigidos na familia tradicional. O trabalho assalariado permitiu escapar do arbitrio das relagées interpessoais. “A objetivagao crescente da nossa cultura, cujos fendmenos sao cada vez mais elementos impessoais que absorvem cada vez menos a totali- dade subjetiva do individuo, como mostra simplesmente a opo- sido entre trabalho artesanal e trabalho fabril” (Nisbet, 1984, p.133), afeta o conjunto das relagdes sociais. Prova disso € a concepgio do direito do trabalho que atribuiu sua medida ple- na neste perfodo através de “{...] um sistema de negociagao salarial centralizado que permitia elaborar os melhores com- promissos entre igualitarismo e competitividade” com um sin- dicalismo interprofissional depositdrio das oposig6es de clas- se. Sua atragaio é vinda da “sua capacidade em encarnar a esta- bilidade dinamica de uma order macrossocial conflitual” ao acreditar na idéia tranqiiilizadora de uma “concordancia natu- ral entre crescimento e solidariedade” (Perret, 1991). Nesta ordem macrossocial, o crescimento econémico autoriza a ne- gociacao sobre a divisdo dos ganhos de produtividade tanto no interior da empresa como no quadro das transferéncias sociais. A Economia Solidéria | 69 Dito de outro modo, a promogao do ator sindical ¢ 0 recurso a democracia representativa na regulagao das relagdes de produ- Gao sao as motivagées institucionais gracas as quais a solidarie- dade abstrata é indexada ao crescimento. Retomando 0s ter- mos da “teoria” da regulagao, a relacio assalariada enquanto forma institucional dos compromissos entre patronato e sindi- cato, modela a sociedade, contudo sua centralidade nao deve fazer esquecer o quanto ele € coerente com uma outra relagiio social que nao diz respeito ao trabalho, mas ao consumo, que rege as relagGes entre o Estado “aparelho gestiondrio de servi- gos as populagGes sob um modo nao-mercantil” e os usudrios. O fordismo tem por corolario 0 “providencialismo”, ou seja, uma forma institucional que explica a formagao das normas de consumo dos usuérios, “[...] em que os aparelhos tecnocraticos definem as necessidades e o consumo em troca de um acesso universal e gratuito” (Belanger e Lévesque, 1991, p. 21-22). 70 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville A sociedade salarial: um sistema de macro-regulacoes baseado na extensao da economia monetaria Extensdo da economia monetaria (mercantil e nao-mercantil) Ampliagao dos papéis e meios do Estado para alocagio de recursos bared ou mt ret néo-mercants &s empresas, —_———o—r 7 instituig6es publicas ¢ familias 4 tnvestimentos Modernizacao pela resposta & A produgdo Sistema de destinagso demanda —> > | centralizado dos ganhos de predutividade = difusdo, racionalizagao A Ganhos de economia de escala produtividade = concentragao, 4 Demanda nacional Extensio da negociagao coletiva centrada na repartcdo do valor agregado. Alocagao de recursos mercants para as empresas e as familias t Volume de encargos obrigatérios a taxas relativamente constantes do PIB Realizagéo simultsnea de crescimento e coesio social + 3:O Lucros Salarios Duragao média do trabalho Criagdo de empregos assalariados nas indistrias € servigos padronizados A Economia Solidaria | 71 Redugao da ru Dem) Teansferéncie <— Hierarquizagao e separagao dos tempos sociais Trabalho doméstico @ oulras formas de dadiva Declinio da ‘economia tradicional 1 Autopredugso 4 Aides paqunas empresas familiares 72 | Genauto Carvalho de Franca Filho ¢ Jean-Louis Laville A recomposigao das relagdes entre o econdémico e o social A economia monetéria € parte importante da autonomia cres- cente dos individuos que distingue a sociedade moderna das sociedades tradicionais, conforme demonstra Simmel. No pla- no individual, a economia monetéria garante a autonomia, pois © engajamento dirige-se apenas a prestagao. “A divisao moder- na do trabalho leva ao desaparecimento das personalidades por tr4s das suas fungdes”, e as pessoas sao, entao, “cada vez mais independentes das personalidades enquanto tais, que estaéo por tras das prestagdes” (Simmel, 1987, p. 363). As relagdes, se- gundo as quais a personalidade encontrava-se inteiramente com- prometida, sucederam-se trocas em que as personalidades tor- nam-se intercambidveis e 0 resultado aparece com um progres- so da liberdade, uma vez que “[...] a liberdade é antes de tudo a independéncia em relac&o 4 vontade de outras pessoas, e ela comega em relacao 4 vontade de outras pessoas bem determi- nadas” (Simmel, 1987, p. 369). No plano social, “[...] as inter- dependéncias se multiplicam, contudo objetificando-se: passa- se do circulo estreito e muito personalizado do interconheci- mento para a multiplicidade abstrata do inter-reconhecimento”. “O interconhecimento enfatiza a dimensao informal das rela- Ges personalizadas”, enquanto “o inter-reconhecimento fun- da-se sobre signos abstratos e uma regulago mais formal tor- na-se possivel”, no limite, “o lago social é completamente obje- tivado na moeda” (Flament, 1991, p. 12-14). Uma primeira crise: a crise de valores Os individuos n&o teriam sido tao permedveis 4 extensio da economia monetaria se nao tivessem uma garantia da sua libe- ragao. Contudo esta liberdade pessoal conquistada sob 0 efeito conjugado do crescimento e da solidariedade nacional é para- doxal pois nega a espontaneidade, o singular, o heterogéneo. “O modo impessoal, que representa a moeda, reage sobre as A Economia Solidaria_| finalidades do individuo que perde toda coloragio e esgota-se na busca do ter puramente quantitativo. Tal € 0 mal-estar da civilizagio moderna” (Aglietta, 1989). E este mal-estar que se revela desde os anos 70 quando aparecem os protestos, trazi- dos pelos novos movimentos sociais (Touraine, 1978), contra a expansao devotada ao culto do produto nacional bruto. O consenso preestabelecido fissura-se. Militantes e cientis- tas duvidam que o aumento das riquezas calculada pelas con- tabilidades nacionais constitua uma garantia de bem-estar. A falta de possibilidade de implicagao para os assalariados como para os usuarios, no trabalho como no consumo individual e coletivo, é criticada do mesmo modo que a abordagem padro- nizada da demanda orientando a oferta na direco dos bens de massa e dos servi¢os esteriotipados. Afirma-se a exigéncia de uma maior qualidade de vida. Cada vez mais, opde-se ao cresci- mento quantitativo, a reivindicagao de um crescimento qualita- tivo, Trata-se de “substituir uma politica do modo de vida por uma politica do nivel de vida” (Roustang, 1988), de levar em consideragio, na politica econdmica, as dimensdes de participa- ¢4o nas diferentes esferas da vida social, de preservagao do meio ambiente, de relagdes entre os sexos e as idades. A partir da rup- tura de 1968, a busca do que poderia atribuir sentido a vida sus- cita interrogacdes que Keynes, desde 1930, antecipava como ine- lutaveis. Os novos movimentos sociais s&o influenciados pelas evolucées sociodemograficas. Envelhecimento da populagao, di- versificacao das familias de tamanho menor porém mais nume- rosas, progressao da atividade feminina; todos esses dados re- metem em causa a uniformizagao que fora imposta durante o perfodo da expansiio. Muito embora estas ondas de protestos sejam pouco unificadas, elas comegam, entretanto, a fragilizar 0 dogma do crescimento popularizando os temas do crescimento zero, a dentincia dos prejuizos do progresso, da reapropriagao da vida privada e do espago ptiblico que defende os protestos antinucleares, ecologistas ou feministas. As aspiragdes de auto- nomia eclodem também no trabalho, tomando a forma de retira- das individuais e de violentas revoltas coletivas pelos trabalha- 73 74 | Genauto Carvatho de Franca Filho e Jean-Louis Laville dores sem qualificag&o. Apesar de sua dispersao, estas reivindi- cagées abordam, de modo confuso no seu conjunto, uma refle- x&o sobre a safda da sociedade econdmica, ou seja, da sociedade estruturada pela luta contra a escassez. As criticas dos anos 70 no abordam apenas o crescimento material, elas englobam o papel do Estado. A regulacao pelo interesse individual, respondeu a tomada de responsabilidade pelo interesse coletivo mediante uma instincia separada, o Esta- do, cujas competéncias foram ampliadas. Essa crenga na produ- ¢ao do progresso econdmico e social pela complementaridade entre mercado e redistribuigdo, tipica do periodo de expansao, € por sua vez questionada. Vozes elevam-se para duvidar da capa- cidade da interveng&o ptiblica em remediar as insuficiéncias do mercado, Intelectuais e usuarios denunciam, com vigor, as 16- gicas burocrdticas e centralizadoras das instituicGes redistribu- tivas. Segundo eles, sua falta de aptidao para a inovagao gera a inércia, o controle social, o clientelismo, e sua inadequagdo em face das situagdes de vida diferenciadas explicam a sobrevi- véncia de fortes desigualdades sob uma aparente normalizagao igualizadora. A face escondida do Estado-providéncia nao pode ser ignorada, ela reside na sua incapacidade em produzir uma maneira de viver em conjunto gratificante para os individuos. Em suma, 0 social-estatismo nao péde ser produtor de socieda- de, ele fora apenas um substituto (Rosanvallon; Viveret, 1977). “A redistribuicdo fiscal dos frutos da expansio, os sistemas de previdéncia social, de seguridade obrigatdria, de protegao, su- prindo bem ou mal a dissolugao das solidariedades e dos lagos sociais, n4o criam novas solidariedades: o Estado redistribuia ou reatribufa uma parte da riqueza socialmente produzida sem que nenhum vinculo de solidariedade vivida fosse estabelecido entre os individuos e as classes. Os cidadaos nao eram os sujei- tos que agem no social-estatismo, mas sim os administrados, os objetos, na qualidade de alocatarios, de cotizadores e de contri- buintes” (Gorz, 1988 p. 227). Finalmente, o Estado-providén- cia retribui o trabalhador-consumidor, ao recompensar seu es- forgo de adaptagéo a uma ordem produtiva determinada sem A Economia Solidéria | 75 que ele seja consultado. A adeséo do movimento operdrio ao compromisso fordista faz deste um drgao de defesa do poder de compra dos seus aderentes. Observa-se assim que, no momento em que a sinergia Esta- do-mercado atingia seu pleno rendimento, ela fora objeto de uma primeira crise na qual colocou-se em discussao, 0 consen- so proprio ao regime econdémico do periodo de crescimento. Esta crise de valores foi seguida por uma segunda crise, quali- ficada de “crise econdmica”. Uma segunda crise: a crise econémica Se ela se superpde a primeira crise, esta segunda incide menos sobre o fim do que sobre os meios, no sentido de que nao é de origem cultural, mas resulta essencialmente das mu- dangas nos mercados e nas técnicas. Em relagio aos mercados, uma desaceleragio da alta da demanda se generaliza para 0 conjunto dos produtos de base nos paises desenvolvidos. Cada um entre eles busca, entéo, aumentar suas exportagGes, 0 que provoca, com a entrada em cena de novos paises produtores, uma exacerbagiio da concorr€ncia internacional. Como conse- qiiéncia, de um lado, a competitividade torna-se essencial nos mercados mais concorrenciais em que a qualidade representa um triunfo maior como meio de diferenciagdo. Do outro, tor- na-se necessdrio encontrar atividades que possam compensar as perdas de empregos da indiistria na qual as vendas progri- dem menos rapidamente do que a produtividade. Desenha-se uma nova maneira de produzir, associada a novas formas de mercado. As modificagdes nos mercados se conjugam com as transformagGes ligadas as novas tecnologias. Efetivamente, a aceleragao da velocidade de transmissao da informagao, sua miniaturizagao e a queda de custos induzidos representam o suporte de uma verdadeira “revolugao da informagao” que per- turba a ordem produtiva estabelecida. Trata-se de uma destrui- cao criativa (Schumpeter, 1941), induzida pela introdugao da eletrénica, da informatica e dos novos materiais. 76 {| Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville Esta segunda crise acentua a percep¢ao dos limites tanto das regulacdes mercantis quanto das regulagGes estatais. Na economia mercantil, as representagdes em torno das quais es- tavam estruturados os comportamentos nao parecem mais ap- tos a fornecer referéncias suficientes para agdo. A nogao de produtividade, principal critério de avaliagio da eficdcia na economia mercantil, havia sido concebida no quadro de uma produgao material de bens medidos a prego e qualidade cons- tantes. No momento em que a indistria concebe produtos e servigos, em que os servi¢os mercantis se difundem e em que o investimento imaterial torna-se estratégico, as dissociagdes entre variacdes de prego e de qualidade mostram-se mais di- ficeis de estabelecer-se, A avaliacao confidvel de ganhos de produtividade repousada sobre a base de uma produgéo em massa padronizada a qual estavam ligadas a maior parte dos movimentos de emprego e a desestabilizagao dessa base, leva ao surgimento de dificuldades para apreciar os resultados obtidos. A eficdcia macroeconémica das politicas publicas baseadas na demanda € paralelamente questionada. Foram de fato os principais sistemas de interpretagdo oriundos da conta- bilidade nacional e do keinesianismo do pés-guerra que sao assim questionados e percebidos como historicamente datados (Freyssinet, 1989). Os lagos positivos entre demanda, produ- cdo e emprego nao aparecem mais tao evidentes. Todo desa- cordo assinalado entre o ritmo de crescimento internacional médio e aquele de um pais particular pode ter conseqiiéncias temerosas para este Ultimo. A demanda mudou de natureza. Em ocorréncia, ela nao é mais o motor potente capaz de con- duzir o conjunto de uma produgio nacional. Ela é uma de- manda-arbitro que seleciona as empresas com mais desem- penho. A nogiio de fatia de mercado torna-se predominante pois é a tinica varidvel na qual uma intervencio é possivel na auséncia de politica de retomada econémica coordenada en- tre diferentes paises. Enfim, a eficdcia do Estado-providéncia foi grandemente ligada a sua capacidade de encontrar mecanismos de seguri- | | A Economia Solidéria | 77 dade nas relagdes sociais homogeneizadas pelo assalariamen- to. E ent&o Idgico que a crise econdmica, ao obrigar reestru- turagdes no seio da economia mercantil, tenha provocado di- ficuldades financeiras na economia nao-mercantil. Com o aumento do desemprego, 0 Estado fica ao mesmo tempo pri- vado de uma parte dos seus recursos e solicitado para novos compromissos financeiros: medidas de apoio ao sistema pro- dutivo, redugao das taxas de desemprego, incitago a retirada do mercado de trabalho para certas categorias de populagao, financiamento de formagées para fins ocupacionais, criago de novas atividades com financiamento ptiblico parcial. A asfixia que se abate sobre o Estado-providéncia amplifica a critica social a seu respeito. Finalmente, com a dupla crise, o otimismo progressista, se- gundo o qual, gracas aos instrumentos de controle econédmicos e sociais poderia edificar-se para todos uma sociedade-provi- déncia, enterra-se. 78 | Genauto Carvalho de franga Filho ¢ Jean-Louis Laville A crise da sociedade assalariada Toe mutate Questionamento de certos papéis do Estado. Fortes restrigies quanto as alocagées de recursos ndo-mercants Dualismo produtivo — Setores de Investimentes flutuantes produtividade = — seletivos. Modernizagao estavel ‘Sistema de redistribuigao forgo da compe centralizado dos ganhos. |—p> eee Setores de de produtividade em crise fividade de oferta protnidade cresvente Limites da Descentralizagao das relagdes profissionais. Diversificagaio dos modos de alocago de recursos mercantis segundo as empresas demanda Nacicnal ' f Concorréncia | | } Intemacional Laer ele Ba Tice Tal) Elevacao tendencial das taxas de encargos obrigatérios Escolha entre ‘competitvidade & coesdo social - Divisdo entre salarios e lucros ~ Evolugo do contrato de trabalho Exclusdo Criagao de empregos A Economia Solidéria | 79 ‘Aumento do tempo disponivel para divisdes forgadas entre tempos sociais Economia Informal Economia doméstica Autoprodugdo = Individuatismo ~ Envelhecimento da populagao = Transformagées das familias dos sistemas de valores - Fregmentagao entre grupos sociais 80° | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Lavile Estado-mercado: da sinergia ao dilema A maioria das politicas que tentaram contrapor a degrada- go emanada da crise sao politicas de ajustamento. Manter a inflagéo em baixa e preservar a balanca comercial tornam-se as condigdes comumente admitidas para limitar o desempre- go. Os experts internacionais concordam em reconhecer que, na concorréncia mundial, 0 crescimento dos custos repercuti- do nos pregos pode penalizar o pafs que os pratica, provocando inflagao e perda de fatias de mercado com efeitos negativos sobre 0 emprego, conforme os diferentes relatérios da OCDE. Além disso, a retomada global da demanda, se esta é casada com uma insuficiéncia de oferta competitiva, pode agravar 0 déficit comercial, haja vista o forte grau de abertura de cada economia nacional. Apesar da variedade das escolhas nacio- nais, na maioria das politicas econdmicas dominam as exigén- cias de controle dos salarios e dos custos. Essas politicas, concebidas como imperativas no concerto internacional, esforgam-se em reencontrar os antecedentes do crescimento e de incitar a retomada. Elas sao completadas pe- los esforcos dirigidos 4 “nao encontrada relagaéo formagao- emprego” (Tanguy, 1986). Contudo, apesar da vontade de apro- ximar os sistemas educativo e produtivo através de programas destinados 4s pessoas menos qualificadas, a formacgao pode muito pouco preencher 0 objetivo proposto, pois suas saidas dependem do nivel de criagio de empregos e do fato de que os excluidos de emprego so quase sempre os abandonados da formagao. Marcados pelo fracasso escolar, confrontados com dificuldades de ordem social e relacional, numerosos desem- pregados nao chegam a integrar as ldgicas de formaciio e de- senvolvem resisténcias em relagao a todos os “estagios” pelos quais séo obrigados a passar. Finalmente, uma vez tomadas essas medidas para melhorar seu meio ambiente, a ultima pa- lavra fica para as empresas no sentido da pesquisa de uma me- lhor competitividade, ¢ a efic4cia microecondmica nfo coinci- de com a eficdcia macroeconémica. Mesmo que as empresas A Economia Solidéria no seu conjunto tenham interesse a desempenhar a performan- ce global (no sentido sugerido por Gandois, 1992), a fim de reduzir os encargos que pesam sobre sua atividade, muitas de- las adotam um comportamento de “passageiro clandestino” vis- a-vis do bem comum, argumentando, nao sem razdes, que sao ameacadas, na sua sobrevivéncia, pela produco de paises sem legislagdo social que exercem uma concorréncia desleal. E as declaracdes sobre a empresa cidada nao mudam nada, elas fun- cionam mais como marketing social ou mecenato social, des- coberto por alguns grandes grupos e alguns dirigentes huma- nistas, do que como mudanga de atitude majoritdria. Todas essas politicas, que hé mais de uma década estiio ba- seadas no retorno do crescimento, mostram-se ultrapassadas pela amplitude das perturbagdes que elas buscam conter. Elas acabam essencialmente por ratificar uma divisao do trabalho implicita e submetida, que acentua as fragilidades do tecido social, conduzindo o peso da crise para os assalariados mais idosos quase aposentados, sobre os que procuram emprego que se enganam ao serem os tltimos a acessar o mercado de traba- Iho ou sobre as mulheres que véem encorajadas a recorrer ao tempo parcial. E a razio pela qual, diante das suas insuficién- cias, os remédios mais drdsticos foram propostos. Os defensores do neoconservadorismo pensam que a pre- servagao das conquistas sociais obtidas durante 0 perfodo de expansao aprisiona a sociedade numa submissao & rigidez bu- rocratica. As polfticas liberais que eles defendem consistem em atribuir um papel motor ao mercado na fixagao dos salérios numa economia orientada para a oferta e a restringir a inter- vengao estatal, em particular pela redugao do n{vel de protecao social. A tnica via praticdvel aos seus olhos é radical: ela se resume a sacrificar 0 social para relangar a economia. Se as experiéncias conduzidas, inspirando-se nessas andlises, gabam- se do sucesso em matéria de criagdio de empregos, elas sio também sindnimo de aumento da pobreza. Com uma reparti- cao das rendas que acentua as desigualdades, os exemplos americano (Wilson, 1994) e inglés (Field, 1989) mostram o | 8 82. | Genauto Carvatho de Franca Filho e Jean-Louis Laville recuo que elas representam: a fragmentagao social se amplia € a presenga de uma “subclasse” simboliza 0 retorno das classes perigosas contra as quais os privilegiados se protegem, obse- cados pela inseguranga. Seu medo reflete a impoténcia dos excluidos, condenados as prestagdes sem amanha, que nao che- gam a gerar um conflito suscetfvel de institucionalizar-se pela negocia¢o coletiva. As preconizagGes liberais nao se contentam em ameagar a coesao social, elas esquecem também a evolugao inédita da eco- nomia mercantil, a saber, a terciarizagdo, ou seja, a generaliza- cao em seu interior de relagdes de servigo (Perret & Roustang, 1993). A extensdo perpétua, que é a marca distintiva da economia de mercado, durante muito tempo alimentou um movimento de individuagao percebido como positivo. Ela significava a liberta- g&o das dependéncias imutaveis ligadas aos modos de vida tradi- cionais: desnecessdrio de citar, por exemplo, a emancipagao em relagiio as familias patriarcais, que facilitou 0 acesso ao mundo assalariado para muitas mulheres. A economia mercantil, pelo impulso industrial induzido, contribuiu amplamente com “Ld a objetivacdo das relagdes sociais pelas atividades econémicas” (Perret, 1994), tanto pelo estabelecimento de critérios quantitati- vos para a apreensao da riqueza nacional, através da especializa- ¢40 dos diferentes dominios de produgao e de tarefas relativas, quanto pela concepgiio de dispositivos juridicos regulando a con- digo salarial. Ora, esta objetivacao do vinculo social, a partir de relagdes de natureza econémica, que supunha a autonomia do econdmico, é questionada pela passagem de uma sociedade in- dustrial a uma sociedade de servigos. Certamente, a indtistria ocupa ainda um lugar estratégico na economia em nome dos ganhos de produtividade que ela gera, contudo ela nao pode mais desempe- nhar um papel motor na criagiio de empregos. * . Mais precisamente, 0 conjunto das atividades que haviam constitufdo a base da expansao foram aquelas formadas pelas inddstrias e pelos servigos padronizados, sendo estes Ultimos aqueles como os bancos ou as seguradoras que tratam infor- macées facilmente codificéveis e puderam, desse modo, se- A Economia Solidiria | 83 guir uma trajetéria de tipo industrial. Em funcio da concorrén- cia que se exerce nos mercados internacionais e das inovagdes tecnoldgicas disponiveis, as indtistrias e os servicos padroni- zados, confrontados com os mesmos imperativos de competi- tividade, nao est’io mais em condigdes de manter o nivel ex- cepcional de criagao de emprego que fora aquele dos “trinta gloriosos”. Se a sociedade continua a se enriquecer, nas ativi- dades de forte crescimento de produtividade, o volume de tra- balho nao cresce de modo suficiente para absorver 0 aumento da populagao ativa. Os setores potencialmente mais criadores de emprego se encontram agora num conjunto diferente que reagrupa, entre outros, a educacao, a satide, os cuidados ou servicos sociais (a assisténcia). Este tercidrio relacional, no qual as necessidades nao so satisfeitas por bens materiais, mas através da prestagdo de servigos pessoais e coletivos, é relati- vamente auténomo, vis-a-vis do sistema industrial. Guardando uma produtividade estavel, que esté baseada numa interagao direta entre prestadores e usuarios, ele pode oferecer novas opor- tunidades de trabalho que explicam 0 interesse dirigido a “no- vas demandas”, “novos servigos” e “novos empregos”, como atesta 0 ntimero de relatérios oficiais dedicados a esta questao na Franga, entre os quais Greffe (1990) e do Ministére du Tra- vail, de l’Emploi et de la Formation Professionnelle (1993). A inovagao representada pela terceirizagao da economia, cuja ex- press&o mais simplificada de “sociedade de servigos” quer exa- tamente refletir, pode entao ser explicitada mediante essa re- partigao da economia mercantil em dois subconjuntos: um, for- mado pelas indiistrias e servigos padronizados, com fortes ga- nhos de produtividade, porém com criagio fraca de empregos, € 0 outro, formado pelos servigos relacionais, com fracos ganhos de produtividade, contudo possuindo um forte potencial de cria- cao de empregos (Roustang, 1987; Baumol, 1987). Esta divi- sao recente levanta algumas interrogagdes que a abordagem liberal negligencia, pois ela naturaliza a economia mercantil. De fato, segundo a doutrina liberal, sendo as necessidades por natureza ilimitadas, o progresso técnico deve traduzir-se pela 84 | Genauto Carvalho de Franga Filho e Jean-Louis Laville transferéncia ou “derramamento” (segundo a expressao de Sau- vy, 1980) em direcdo as novas atividades suscetiveis de com- pensar as perdas de emprego registradas em outras areas. Ora, esta transferéncia nao tem nada de inelutdvel: ela supde encon- trar modalidades de expressio e de solvibilidade da demanda nos servicos relacionais. Se a resposta dada é a queda do custo do trabalho, existe af uma escolha que admite como contrapar- tida do emprego o crescimento das diferengas no seio da escala de rendas,? o que aumenta ainda as tensdes trazidas pelo mode- lo neoconservador. Além disso, 0 recurso as regulagGes mercantis nesses ser- vigos conduz a irrupgao do mercado na intimidade das pes- soas. A penetragao do mercado nas relages interpessoais in- dissocidveis dos servicos pessoais sugere reflexGes éticas fun- damentais quanto a suas conseqiiéncias na relag&o com 0 ou- tro. No momento em que os avangos cientificos e os riscos ecoldgicos solicitam, mais do que nunca, um controle coletivo prudente dos mecanismos econémicos, a fuga, na extensao in- definida da economia mercantil, aparece assim como uma op- ¢4o que, mesmo que tenha as melhores intengdes no que diz respeito ao emprego, pode engendrar no longo prazo alguns inconvenientes bem superiores a seus avangos imediatos. Conscientes desses riscos, tedricos de obediéncias diversas querem replicar a ofensiva neoliberal, argumentando pela res- tauragao do papel do Estado e pela definig&o dos fundamentos de uma outra sinergia entre o Estado e 0 mercado que seja mais adaptada a nova conjuntura. Para alguns, o Estado deve legiti- mar uma funcao de estfmulo da economia mercantil, que ele tem 2 Seguindo os conselhos da OCDE, que retoma claramente o dossier sobre 0 empre- g0 do Ministério da Economia e Finangas francés em 1991: “Os servigos para as familias constituem um importante jazigo de empregos. Mas os efetivos s6 podem ser multiplicados se os salarios forem suficientemente baixos para manter os pregos atrativos... Isto significa uma dispersdo das rendas importante e crescente como os Estados Unidos ¢ no Japio ”. A Economia Solidaria abandonado muito, por exemplo, ao suportar a construgao de “atividades e de mercados do amanha” como as bioindistrias e as indiistrias da satide ou “a engenharia urbana” (como preconi- zam Taddéi e Coriat, 1993). Para outros, € uma repartigao justa entre capital e trabalho que deve ser encontrada para romper com as politicas que muito beneficiaram apenas 0 capital. Casada com uma queda das taxas de juros, uma reforma fiscal diminuindo os encargos sobre o trabalho constitui, entao, a chave da mudanga. Essas sugestées progressistas tém 0 mérito de se colocarem de- cididamente contra um agravamento das desigualdades sociais. Entretanto, de um lado, a preocupacio com uma retomada da produgao e do consumo popular no pode fazer esquecer os ris- cos inerentes & hipertrofia da economia mercantil. Do outro, as protegdes que se dava 4 sociedade pela intermediac&o do Estado so fadadas a obsolescéncia com a mundializacio das trocas. Com as taxas de rentabilidade do capital estando cada vez menos liga- das 4 produtividade do trabalho, os fluxos financeiros nao séo mais controlaveis pelos Estados. A financeirizagao da economia no nivel planetério restringe as margens de manobra das politicas conduzidas num pais e acelera o fim dos compromissos nacio- nais entre classes sociais. Os “manipuladores de simbolo” (re- presentando 20% da populagao ativa, segundo Reich, 1993), si- tuados num quadro internacional, podem praticar uma secess%io das elites, pois seus interesses nado encontram mais aqueles dos seus co-cidadaos. O recurso 4 regulagiio estatal, é fragilizado nao s6 pela mundializagao das economias, como também pelo aprofundamento da crise tocando o proprio Estado-providéncia. A interrogagao sobre a natureza do vinculo social moderno havia encontrado uma resposta pratica na articulagao da seguridade e da assisténcia que, alias, alimentou a confusdo entre esses dois mecanismos de redistribuigao. Esta resposta nao é mais suficien- te, por razGes evidentes de equilfbrio financeiro e de nivel de encargos obrigatérios, mas também por razGes ainda mais pro- fundas de funcionamento. O modelo tutelar da ago publica dis- tribui prestages padronizadas e supde um tratamento objetiva- do dos assujeitados, garantia da independéngia dos funciondrios. | 85 86 | Genauto Carvalho de Franca Filho e Jean-Louis Laville A Economia Solidéria | 87 Esse sistema de intervengao sobre a sociedade, que separa agen- tes da administragao e usuarios, gera um inchago das burocra- cias dificilmente compativeis com o valor central da emancipa- co individual e da interdependéncia crescente dos problemas sociais. O retorno do Estado podera mostrar-se bastante decep- cionante se nao for acompanhado de uma mudanga de interagdo entre o Estado e a sociedade. Apesar de sua oposigao, os métodos conservador e pro- gressista sao obsecados pelo debate sobre as posigdes respecti- vas do mercado e do Estado. Cada um ao seu modo, eles esfor- ¢am-se em prolongar as sociedades salariais nacionais. O método conservador se justifica pelo imperativo de cria- ¢ao de emprego. Contudo, em seu nome, ele diferencia ao ex- tremo os tipos de emprego, 0 que coloca em xeque as dimen- sdes do emprego assalariado, associando-o precariamente a cidadania. Os empregos nos servigos relacionais, quando se reduz a um tempo dado pelo assalariado ao servigo de um cli- ente no quadro de uma relagdo de conveniéncia, supde o regis- tro da domesticidade. Nesta configuragao, o trabalho perde sua virtude socializadora, pois ele é efetuado no isolamento, sem contato com colegas e sem real possibilidade de mobilizar os direitos acordados aos assalariados. O alcance universal reco- nhecido ao trabalho, quando seu produto torna-se intercambia- vel e contribui assim com um processo de racionalizagao so- cial, € negado quando ele se resume a um face a face com 0 empregador no seu domicilio. A divisdo do trabalho nao se traduz mais por um acréscimo de produtividade global, mas por um simples encargo de tempo em favor de um consumidor cujo tempo livre € mais caro do que aquele do seu prestador. Além disso, a precarizagao continua dos empregos, nos servi- ¢os como nas industrias, legitima uma hierarquia social na qual a classificagiéo é melhor 4 medida que o emprego ocupado se aproxima do contrato de duragao indeterminada em tempo com- pleto, emblematico da sociedade salarial (Schnapper, 1989). Atento aos desgastes provocados apenas pelo jogo do mer- cado, o método progressista aposta, ao contrario, na interven- ao estatal, que seria o verdadeiro motor de criacZo de empre- gos. Sua forca é, contudo, subordinada a pressiio de uma base que empurra a adogo de reformas pela via de um governo eleito e de um movimento sindical, principal catalisador da ago dos assalariados. Ora, este empurrao do “povo de esquer- da” em favor de um reforco do Estado social nao teve grande éxito. O sindicalismo interprofisional se enfraquece 4 medida que perde sua capacidade de negociacio ¢ os assalariados en- xergam sua sorte mais ligada aquela da sua empresa. Sob a ameaga da perda do emprego, a solidariedade de classe apaga- se em favor de corporativismos, que podem levar os trabalha- dores titulares de um emprego a se separarem dos desempre- gados. As clivagens que daf resultam no seio do eleitorado popular nao asseguram mais, aos partidos trabalhistas, socia- listas ou social-democratas, uma audiéncia suficiente para fa- vorecer 0 projeto de uma melhoria do Estado social, e sua am- bigdo pode cair na armadilha de tornar-se uma simples acio em favor do status quo. O fato de as politicas econdmicas ortodoxas, nos anos 80, terem sido obcecadas pela desinflag&o competitiva e terem abandonado 0 emprego, tratado como uma sobra, pode expli- car que tanto os conservadores como os progressistas reivindi- quem uma escolha mais ousada reatribuindo a prioridade ao emprego. Entretanto, a afirmagao dessa vontade nao resolve nada, pois o problema aparece mais complexo: o impulso da sociedade salarial tornou-se possivel pela resisténcia de meca- nismos de socializag&o que escapam a sua influéncia. Sua mar- ginalizagao passou despercebida numa sociedade salarial em que O emprego tornava-se o principal fator de integragAo social, pois abria-se amplamente ao conjunto da populac&o ativa e dava acesso tanto & protegao social, quanto ao consumo e a promo- ao. Quando o emprego nao péde mais desempenhar o papel de “grande integrador” (segundo a expressio de Barel, 1990), a perda de possibilidades de socializagio na vida fora do traba- Iho revela-se mais grave. Certas populacdes privadas de em- prego sao “ameacadas nao apenas pela insuficiéncia dos seus 88 | Genauto Carvalho de Franga Filho Jean-Louis Laville recursos materiais, mas também fragilizadas pelo carater pou- co estavel do seu tecido relacional, nao apenas em via de pau- perizagao como também em via de ‘desafiliagao’, ou seja, em ruptura com 0 vinculo societario” (Castel, 1991). O desempre- go, ao isolar suas vitimas, pode conduzir a um distanciamento dos valores compartilhados no seio da sociedade e a um risco de abandono da civilidade das relagdes sociais (Mothé, 1992). A perda do trabalho assalariado traduz-se muitas vezes, para as populacées desfavorecidas, na perda de uma experiéncia concreta de cooperacio e de confronto com outros, algo pri- mordial do ponto de vista identitario (Mothé, 1992). Em face do declinio de diferentes formas de socialidade e de engajamento que transmitiam valores e normas sociais, a perda de emprego ou a sucessio de biscates engendra um déficit de socializagao que diminui as chances de se reencontrar um em- prego “digno”, pois os critérios de recrutamento tendem a privi- legiar as capacidades relacionais. Trata-se da espiral que conduz & exclusio: os desempregados, privados do fato de pertencer socialmente, nao conseguem adquirir ou manter as atitudes ne- cess4rias A cooperagao e & comunicagao, que se tornam determi- nantes para a obtencao do emprego. Em conseqiiéncia, o desa- fio, tao dificil, nao é de se atacar unicamente 0 desemprego, mas sim de pensar em conjunto a crise da socializag4o e do emprego, o que leva a privilegiar trés preocupagdes concomitantes. A primeira € a de assegurar a busca de uma repartig&ao do emprego menos desigual do que aquela realizada insidiosa- mente ha mais de uma década em detrimento de certos grupos sociais (trabalhadores idosos, jovens, mulheres), vigiando-se para que as modalidades dessa divisdo concorram para o refor- ¢o do vinculo social. A segunda € a de explorar todas as opor- tunidades de criag&o de emprego sob a reserva de que as con- digdes desta sejam socialmente aceitdveis. Dito-de outro modo, que elas permitam guardar, no emprego, sua dimensao de per- tenga cidada. A terceira é a de favorecer outras formas de tra- balho, para além do emprego, contribuindo com a socializagaéo e oreconhecimento social. Estas trés orientagdes, se nao forem dissociadas, tornam concreta a perspectiva da pluriatividade, A Economia Solidiria | 89 que constitui uma alternativa a precarizagio dos empregos. Diante da complexidade dos problemas a serem enfrentados, torna-se necessdrio complexificar as politicas econémicas a fim de reduzir a importancia do emprego na vida social, ao mesmo tempo em que se garanta 0 acesso mais ampliado possfvel ao assalariamento e ampliem-se as formas de trabalho para ir além da referéncia tinica ao emprego. As mutagdes em curso levam a enxergar uma pluralidade de solugées parciais que apenas tém sentido na sua complementaridade. Para renovar as rela- Ges entre economia e sociedade, varios eixos poderiam cons- tituir objetivos que encontram coeréncia na sua articulagao. ~A internalizagdo, pela empresa, de normas sociais ou so- cietdrias: normas como aquelas elaboradas sob a égide da Or- ganizag&o Internacional do Trabalho (OIT), em matéria de tra- balho e de producao, poderiam ser introduzidas sob a formula de cldusula social nas negociagdes para o Acordo Geral sobre Tarifas de Exportacaio e Comércio (GATT) (Julien, 1993; Van Liempt, 1989). ~A democratizagdo das economias mercantil e ndo-mer- cantil: pode apoiar-se nas mutagGes acordando novos direitos aos usuarios e as coletividades de trabalho na modernizacao, sustentando, mediante uma discriminagao positiva, esforgos ne- gociados dirigidos para a flexibilidade qualitativa interna e para a competitividade ofensiva, em detrimento da flexibilidade quantitativa externa e da competitividade defensiva,’ reconfi- gurando a protego social para acompanhar a evolugao dos ris- cos maiores e da luta contra a exclusdo (Fragonard, 1993). —A garantia de wma participagao mais igualitdria na esfera econémica: © que implica primeiro a regulagio do mercado de trabalho para os empregos pouco qualificados (Wuhl, 1992), por 3 Para distingao entre formas de flexibilidade e de competitividade, ver em particular Boyer (1987) e Brunhes (1988 e 1993).

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