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PASCAL BRUCKNER

ALAIN FINKIELKRAUT

A NOVA DESORDEM
AMOROSA
Título original em francês: Le Nouveau Désordre Amoureux

Copyright © 1977 by Éditions du Seuil

Todos os direitos reservados por Editora Brasiliense S.A.,


conforme legislação em vigor

Tradução: D. J. de Seingalf

Capa: 123 (antigo 27)

Artistas Gráficos

Foto de capa: Carlos Amaro

Revisão: Nelson Nicolai

editora brasiliense s.a.


01042 rua barão de itapetininga, 93
são paulo — brasil
Sumário

O conto do pepino e da brecha vermelha ...........................................................................6


I - ARITMÉTICAS MASCULINAS ...........................................................................................10
Gozos visíveis ou o contrato do orgasmo ......................................................................10
Os avatares dos que carregam o obelisco .................................................................11
Emoções estritamente vigiadas ................................................................................17
O romance canônico do orgasmo .............................................................................25
O prepúcio-rei ...........................................................................................................28
A exceção, única lei possível no amor .......................................................................32
SOBRE A VAGINITE OU A IMPOTÊNCIA CINCO DISCURSOS, CINCO MÉTODOS
POSSÍVEIS.......................................................................................................................37
Pornograal ou a república dos testículos ......................................................................38
O troque do falta ser visto ........................................................................................41
Os órgãos sem corpo .................................................................................................43
O antienredo .............................................................................................................45
Miserável milagre ......................................................................................................47
Ditar a mulher ...........................................................................................................48
Conhece-te a mim mesmo! .......................................................................................53
Prostituição I: Um equilíbrio por subtração ..................................................................62
O corpo-cliente ..........................................................................................................63
O corpo prostituído ...................................................................................................70
O michê .....................................................................................................................77
II - A FÓRMULA: «EU TE AMO» ..........................................................................................86
A volúpia ridícula .......................................................................................................86
A alergia.....................................................................................................................88
O tumulto ..................................................................................................................92
De que você tem medo? ...........................................................................................93
A dissimulação ...........................................................................................................95
A catástrofe do fantasma ..........................................................................................96
Casais polígamos .......................................................................................................98
O fim do modelo conjugal .......................................................................................100
III - O GOZO DA MULHER .................................................................................................104
IV - AS EQUIVALÊNCIAS NEUTRALIZADAS ........................................................................118
Prostituição II: A revolta ou o fim das religiões genitais..............................................118
As mulheres de vida alegre, câncer da revolução ...................................................121
A respeito da palavra “puta” ...................................................................................124
As mercadoras do templo .......................................................................................128
Marx e Ulla: o trabalho e nada além disso ..............................................................131
A política da clareza ................................................................................................134
Os corpos incertos ...................................................................................................139
O enlace reservado ......................................................................................................141
Os prazeres do adiamento ......................................................................................142
O desinvestimento do genital .................................................................................145
O esquife peniano no rio Amor ...............................................................................147
Um Moisés sem terra ..............................................................................................151
As dez errâncias dos sexos ......................................................................................157
A inocência amorosa contra a disciplina genital .........................................................166
V - políticas da sedução....................................................................................................188
Don Juan, a antipaquera .........................................................................................188
A tirania do olhar.....................................................................................................190
Escute o que diz seu desejo, ou o racismo à flor da pele ........................................194
Contra Don Juan ......................................................................................................197
A cantada: a antiga e as novas ................................................................................197
Por onde começar? .................................................................................................201
Os dois sonhos do amor ..........................................................................................206
Conclusão: A carga da desordem ligeira ..........................................................................209
O conto do pepino e da brecha vermelha

Em primeiro lugar, dois corpos ou, melhor, dois códigos tão vigorosamente
agarrados a esses corpos que se confundem com eles: um corpo masculino e um corpo
feminino, diversamente controlados pela dupla lei, simbólica do falo, erótica do pênis,
mas na verdade a mesma lei que se refere a uma mesma instância. Dois corpos que se
fundem num só e que se imobilizam na mesma codificação viril do prazer, do amor, da
volúpia, isto é, na crença religiosa de uma conivência inata entre o desejo e seu objeto.
Em primeiro lugar, o homem, que pretende passar do privilégio do poder
absoluto para o privilégio do gozo, chama tudo isso de “revolução sexual” e faz de seu
parco capital (ejaculação, esperma) a mercadoria suprema, a nova moeda na qual todos
os percursos libidinais deverão converter-se, com a qual deverão comparar-se e à qual
deverão ligar-se. Esse homem, que tira de seu corpo a imagem mais espetacular, a
imagem genital, “libera-a” e toma essa liberação como sendo a liberação da sociedade
inteira; que substitui (ou reforça) a sujeição das mulheres por sua proclamada
equivalência com elas (sumindo o “Eu sou melhor do que você” diante do “Somos todos
iguais”). E que, no mesmo ato, elabora a economia de uma repressão aberta pelo fato de
que, longe de proibir, ele normaliza, modela novas “necessidades”, educa as pessoas
para gozarem segundo seus próprios procedimentos específicos (modelo genital do
orgasmo). O novo corpo erótico viril, como será chamado (para se fazer a distinção tanto
com o corpo feminino quanto com um outro corpo masculino possível) caracteriza-se,
em síntese, pelo seguinte: ele é finito, centralizado, geometrizável, assombrado pela
axiomática do retomo (mesmo que seja através da perda); conhece apenas hierarquias,
finalidades, coisas incompatíveis, tudo abrange, realiza um trabalho de ligação eterna
que aproxima órgãos precisos a sensações determinadas; age através de quantidades
intencionais e não intensivas; procura sempre sua unidade, precaveu-se contra toda
dispersão. Corpo da matematização dos efeitos que se assemelha ao do macho na
medida em que ele seleciona e põe em destaque, em si mesmo, os traços mais evidentes
da sexualidade masculina. Aumenta esses traços, transforma-os em um modelo de
simulação de circulação suscetível de impor a vivência hedônica do homem a todos os
sexos. Estranha distorção, a desse sistema binário onde o masculino só se afirma como
Um com a condição de considerar o feminino como Zero. Em suma, com a condição de
dizer, não “a anatomia é o destino”, mas “a anatomia do homem é o destino sexual da
mulher”.
Em primeiro lugar, e sempre, um poder poliglota para o qual não há língua ou
suporte privilegiado e que nem mesmo teria uma tendência para falar, hoje, apenas a
linguagem da liberação. Um poder que abandonou parcialmente a “repressão sexual” e
que acha mais rendoso fazer do genital masculino o novo padrão das trocas eróticas e
afetivas.
Vivemos em sociedades ditas democráticas, mas continuamos a ter corpos
monárquicos, corpos constituídos, reunidos ao redor do novo pontífice soberano: o deus
Pênis e seus dois assessores, os testículos, que roubaram, do espírito e da alma, a coroa
da transcendência. Nós, ocidentais, neste sentido somos uns obsedados sexuais, isto é,
obsedados com o centro. Mesmo assim, esta divindade genital não passa de uma
abstração que nos tranquiliza na medida em que ela elimina a diferença entre os sexos
(pois, senão, nada há de menos genital que uma mulher), não conhecendo coisa
diferente e não promovendo a autonomia da sexualidade a não ser para esvaziá-la de
todo conteúdo e dela fazer um puro simulacro capaz de funcionar sempre e em toda
parte.
A linha divisória não corre mais entre o permitido e o proibido, mas entre a
Norma e os Desvios, regulamento que, longe de manter como proibidos os impulsos
recalcados porém vivos, constrange todo o corpo a somatizar a organização genital
masculina. Razão pela qual não há (talvez jamais tenha existido) um privilégio
revolucionário da sexualidade: esta já é, inteiramente, um dispositivo pré-fabricado com
uma finalidade preestabelecida e cientificamente endossada; é inútil politizar as
perversões, transformá-las em ideais, slogans: com isso, só se faz recomeçar a própria
operação do sistema que é modelar os fluxos de energia libidinal de acordo com o corpo
viril, padrão único de todos os prazeres.
Em primeiro lugar, portanto, uma opressão por homologia, uma tecnologia do
gozo que trata os órgãos como máquinas técnicas dispostas tendo em vista um certo
rendimento, que sistematiza e racionaliza as formas fundamentais da volúpia e que
produz o desejo genital como um novo imperativo categórico. O que explica o fato de a
mulher não existir lá onde ela é representada, o fato de não ser ela jamais convocada
pela fantasmática masculina a não ser a título de atriz sem nenhuma possibilidade de
mudar uma única linha do texto. Sem dúvida, todos os valores ligados à posse do falo
ruíram diante do ridículo ou do odioso; o próprio homem os rejeita parcialmente, mas
apenas para substituí-los por uma supremacia concentrada ao redor da única coisa que
lhe resta: seu sexo. Ele só derruba a si mesmo da posição de Senhor (ou abdica dela)
para logo a seguir erigir-se em princípio de prazer; abandona as máscaras do Potentado
ou do Pai para ressurgir sob o signo único de Eros: é menos a falocracia que a
genitocracia, moderna demagogia do corpo, última figura da misogenia. Mas esta
promoção do pênis é tão castradora quanto a antiga, pois nos encerra na mesma
alternativa: ter ou não ter um pênis. Ainda há pouco, sofríamos das obrigações
exorbitantes ligadas à condição masculina (honra, coragem, violência, dureza, etc.).
Padecemos hoje do dever do gozo genital, da coação da eficácia hedônica compreendida
em termos de ereção/ejaculação permanentes. Há uma impropriedade flagrante na
palavra “falocracia”, que pressupõe os homens como senhores das mulheres; é que, se
há dominação, a mulher é o escravo de um escravo. De um escravo sujeitado a imagens,
a simulacros, votado à imitação do código da virilidade, à necessidade cega de sempre
aumentar seu rendimento, de continuamente retornar ao jogo da dívida infinita. Existe,
portanto, uma histeria masculina, tão opressora quanto a feminina. Na nova
racionalidade da liberação sexual, o pênis tornou-se a determinação em última instância,
que transforma nossos cios untuosos em coitos programados. Em outras palavras,
quanto mais o sexo é eliminado como diferença, mais o genital se afirma como
referência, e mais o corpo se exila enquanto profusão.
Paralelamente a essa ordem, inextricavelmente ligada a ela, infiltra-se uma
multidão de pequenas alterações, de ligeiros desvios que a desbastam: a nova desordem
amorosa. Sendo no entanto menos nova do que desordenante — ela não prepara uma
alternativa, não antecipa um outro reino — ela desfaz um estado, instala uma crise,
propaga a confusão. Desordem que se instala num mundo que não é amoroso e sob o
efeito de uma outra desordem que lhe é anterior ou estranha (revolta das mulheres, das
minorias sexuais, dissolução dos valores, anarquia relativa do capital em sua fase mais
avançada) mas cujas possibilidades de perturbação na esfera sócio-política são
imprevisíveis. Desordem que não se contenta com derrubar a ordem mas, o que é muito
mais perturbador, que a desorienta, privando-a de seu eixo: que destitui o genital
quando a ordem o eleva à categoria de verdade geográfica dos corpos e das
interpretações; que ridiculariza a própria ideia de finalidade contra todas as valorizações
medicinais, higiênicas, políticas, subjetivas da libido; que dá a entender que inexiste um
estado verdadeiro do desejo quando todos os teólogos da salvação ainda se batem pela
determinação de suas respectivas Terras Prometidas. Donde o retorno subreptício — e
num outro lugar — de valores considerados em desuso: o amor, as aspirações
sentimentais, o idílio e os suspiros.
O puritanismo proibia apenas o exercício sexual fora dos estatutos, mas não
detinha o monopólio do recalque. O corpo “viril”, ao se apresentar como verdade
hedônica de todos os sexos, quer dotar-se de um monopólio da representação erótica. O
fato de ser recolocado em questão é, assim, um progresso imenso. Mas este progresso é
pago com uma menor clareza, uma menor resolução, uma regressão aparente, uma
ausência de objetivos. É que tudo se torna incerto quando se trata de enfrentar em seu
próprio corpo a instância anatômica e voluptuosa para a qual fomos modelados e
educados. Razão pela qual a sexualidade masculina tem hoje como única riqueza essas
questões. Todas as certezas tradicionais que se referiam a ela, foram por ela mesma
rejeitadas. Ela resiste mal — e isso é bom — à irrupção das mulheres na cena do amor,
porque na mulher a realização do desejo ilude o fantasma, nos deixa entrever cenários
nos quais nem pensamos.
O homem, outrora meio príncipe, meio criado, vive hoje num estado de
suspensão; seu corpo é, apenas, o da dominação ou do purgatório, sua substância
gloriosa se dissipou, ele está estacionado num intervalo, repassando imagens que não
pode encarnar. Mas esta desgraça é, por outro lado, uma possibilidade: desligando-se do
código da virilidade, o erotismo masculino pode finalmente descobrir sua própria
polimorfia, abrindo-se para prazeres desconhecidos; os movimentos das mulheres, como
os dos homossexuais, reivindicam apenas seu desejo: multiplicando o leque das
sexualidades, eles desestabilizam sua própria sexualidade, desestruturam-na, propõem-
lhe um feixe de tentações inesgotáveis e incompreensíveis. O homem sofre de castração,
isto é, da própria atribuição de um falo; ele não suporta mais esse corpo adamantino e
incorruptível que lhe é atribuído, corpo sem cu, sem merda, sem rosto, sem vísceras,
pura alavanca passível de ereção e que produz esperma. Desse modo, ele pode encarar a
desordem simultaneamente como um desequilíbrio que o angustia e como um discreto
convite para abandonar a permanência do falocentrismo pela mobilidade dos
investimentos múltiplos, das trocas fortuitas.
Um texto sobre o amor é um texto feito de detalhes que se abre na direção de
afastamentos ínfimos, que não fala de mudar a vida (não somos suficientemente unidos
para atribuir a nós mesmos uma “vida”), que não é uma convocação para revoluções
minúsculas e que não exige que se tomem nossos desejos como sendo a realidade mas,
sim, que se aprenda aquilo pelo que outras realidades que nos são estranhas podem vir
alterar nossos desejos e confundi-los.
Vivemos atualmente a erosão dos três modelos que tradicionalmente atulhavam
o campo amoroso: modelo conjugal, quanto ao sentimento; modelo andrógino, quanto
ao coito; modelo genital, quanto ao sexo. A sexualidade não mais tem finalidades
metafísicas ou religiosas, não tem mais sentido nem transgressões, não mais tem
realizações, higiene ou subversão. O amor, hoje irreconhecível, não tem mais pontos de
referência: talvez resida nisso o desconforto, no fato de ele não mais poder ser um
destino pessoal mas sim o destino de cada um em todos. Afirmar esse desapossamento
implica uma escrita necessariamente modesta que corre o risco de resvalar na bobagem
e que, abandonando a ambição de tudo dizer, parte de várias referências que são outras
tantas incertezas, não acumulando saber mas, sim, perplexidades. Um discurso desse
tipo, que implica tantos estilos quantas são as experiências amorosas, já é, ele próprio,
uma instabilidade em ato, o pressentimento de uma impotência e seu próprio e secreto
rejubilar-se com isso. Abre-se hoje para nós um outro lugar, um espaço impreciso
liberado por uma afirmação escandalosa: não é somente a hegemonia que é desejável;
desinvestir o poder, o narcisismo do eu, é mesmo a única possibilidade de saída
existente no amor, como em tudo, de viver intensamente.
I - ARITMÉTICAS MASCULINAS

Gozos visíveis ou o contrato do orgasmo


O homem e a mulher estão nus e deitados na cama. Acabam de lavar-se, enxugar-
se, massagear-se mutuamente: observam-se, seus lábios tremem, começam a acariciar-se
dos pés à cabeça, e o homem enfia o dedo no sulco carnudo de sua Companheira
enquanto ela apalpa seu saco e desliza o indicador na direção de seu escroto. Estas
preliminares não duram menos de um minuto nem mais de sete, lapso de tempo que lhes
permitiu penetrar, a ambos, na primeira fase de excitação. Eles não riem e não
conversam: às vezes a mulher diz Ah, o homem diz Oh. Mas é que, apesar da estrita
proibição do professor, ele está com um bombom na boca que o impede de falar
corretamente. Depois vem o momento sagrado e delicado da penetração: o catálogo que
folhearam antes de irem para a cama indica que a posição do dia é a de Loto. O homem
põe a máquina em funcionamento: a máquina é um conjunto de alavancas e pistões,
dispostos sobre a cama, que acionam um braço terminado numa superfície recoberta de
lã que, como uma mão, bate nas nádegas do homem e ativa sua intromissão na
companheira. A mulher está agora concentrada no ato de abrir-se, ela se lembra dos
exercícios de descontração respiratória que repetiu no mês anterior nas sessões do GOT
(Grandes Órgãos Turgidos). A tensão do casal sobe, o que eles podem verificar através
de uma rápida olhada no potenciômetro colocado no criado-mudo: 11, 8, 11, 9, 12, 3, 12,
5, 13, 13, 4... O duo está arquejante, a respiração de ambos encadeia-se num crescendo
inexorável, já atingiram o limite, já estão no limite, sim, irão contar aquilo ao professor,
que terá orgulho deles, suas pulsações cardíacas estão a 99 por minuto, o homem conta
lentamente: 2 136, 2 137, 2 138, ele regula a frequência da máquina que lhe bate nas
nádegas um pouco mais depressa, o que acelera o vai-vêm de seu pênis, a mulher respira
profundamente segundo a técnica ioga, tenta antecipar-se aos exercícios de concentração
sensorial que ela irá fazer, no mês seguinte, no GAM.m-l (Grupo dos Arejados Mimados,
massagistas-lubrificadores), sua vagina está intensamente molhada, ela franze a testa,
concentra-se com a maior atenção quando de repente soa a primeira campainha do
despertador! Que aborrecimento: ainda não gozaram, como é que pode, eles estavam até
adiantados! O homem não está entendendo nada: ele levou tudo a sério, havia até mesmo,
como de norma, manipulado sete vezes seu pinto dentro da calça antes de copular. De
qualquer modo, ele continua com seus movimentos e a mulher também, a bacia desta se
mexendo ao redor do pau que entra e sai cada vez mais rápido, ela fecha os olhos, o
importante é superar a fase do limite, a segunda campainha toca, que desgraça,
conseguirão gozar a tempo? Restam-lhes poucos minutos, tanto pior, não será desta vez
que conhecerão O REI (Orgasmo Radical e Inassimilável), mas de qualquer feito têm de
conseguir o PECULI (Pequena e Essencial Convulsão Urgente Limitada), vão colocar em
ação o plano MASCOTE (Mamas + Ânus + Scrotum + Clitóris + Orgasmo Terrífico), e
agora o homem estimula sua companheira em todas as suas extremidades, ao mesmo
tempo em que ele se faz bater nas nádegas numa velocidade alucinante, ele enfiou o
polegar no reto dela, seu indicador no umbigo, seu anular na ponta do clitóris, o dedo
médio nos seios, o mindinho na boca e os dedos da outra mão nas narinas, nas órbitas
dos olhos e nos buracos das orelhas. Assim deliciosamente envolvida, a mulher não pode
deixar de correr na direção da apoteose e é a chegada triunfal, o paroxismo, os amantes
são tomados por movimentos reflexos involuntários e simultâneos, todos os seus músculos
se contraem ritmadamente, cada contração dura 8 segundos, a mulher experimenta 5
delas, o homem 31/2 durante as quais ele expele 10 cm3 de sêmen branco, os
espermatozoides. Viva! Conseguiram, ficaram dentro do prazo, não resvalarão para a
doença mental. Respiram fundo, estão radiantes, felicitam-se mutuamente. Não sentem
mais desejos agora, podem vestir-se novamente...
Que acabam de fazer? Acabaram de fazer o amor segundo o doutor Reich,
realizaram a santa função do orgasmo, escaparam por pouco, e nesta ordem: 1) às
neuroses, 2) à couraça caracterial, 3) ao estase, 4) ao fascismo, 5) ao estalinismo, 6) ao
câncer. Daqui por diante, são seres livres e seguros, venceram dois mil anos de repressão
sexual judaico-cristã.

Os avatares dos que carregam o obelisco

"Na medida em que a ideologia que hoje ameaça as


liberdades individuais não é religiosa mas derivada da
medicina, o indivíduo deve ser protegido não dos
padres mas dos médicos."
1
Thomas Szaz

Estranhamente, em todos os discursos da modernidade o gozo não tem sexo;


fala-se dele do mesmo modo, quer se trate de homens ou de mulheres; a palavra é
neutra, diz respeito às duas vertentes da humanidade, como se fosse evidente que tudo
aquilo que vale para o ser humano masculino valesse por isso mesmo para o ser humano
em geral.
Desde Freud (um pouco) e Reich (sobretudo), vivem nos repetindo uma única e
mesma coisa: ninguém escapa ao orgasmo. As emoções, fantasias, instintos que você
possa ter, se não tiverem um objetivo genital a ser realizado concretamente, não passam
de patologia, perversão, criancice. E suas criancices, se não estiverem articuladas num
programa para o gozo, só interessam aos doentes e loucos. O único prazer intenso que
existe é o prazer finalizado, adulto, genital. "A fórmula do orgasmo é a própria fórmula
do ser vivo" (Reich) e se você, homem comum, não seguir à letra esse processo orgástico
inscrito em você, é porque você não é digno de estar vivo, é que a "peste emocional" já
se instalou em você.
No setor do erotismo, todas as ideologias da "liberação" propõem uma única
coisa: o realismo orgástico, ascendência do genital sobre o corpo, exatamente como o
realismo socialista é a perversão totalitária da arte. Pois encerrar sob o mesmo rótulo do

1
Fabriquer la folie. Paris, Payot, 1976
gozo as vivências pulsionais do masculino e do feminino, tão diferentes umas das outras,
é, no estado atual, eternizar a dominação do homem sobre a mulher e continuar a fazer
do orgasmo masculino (a ejaculação) a voluptuosidade-referência ao redor da qual se
organizado todo o ritual amoroso. A mulher é assim chamada a imitar seu companheiro,
enquanto este é chamado a circunscrever toda sua polimorfia na magra convulsão
espermática. Inevitavelmente, a partir do momento em que se aborda o campo da libido,
transformam-se em programa histórico as lendas relativas à prática sexual dos homens.
Wilhelm Reich marca o momento em que a sexualidade reprimida se transforma
em genitalidade obcecada, onipresente. Ele inaugura a moderna busca do orgasmo pela
humanidade ocidental, instala o culto mágico-medicinal do homem branco pelo instante
máximo da volúpia. Em todos os setores, o orgasmo é hoje a palavra dominante, o
centro e o ponto de convergência de todas as pulsões: tornou-se o novo caminho da
salvação para o corpo, o "suplemento da alma" indispensável para a nossa sexualidade.
Quando Reich propõe a liberação sexual, o convite que ele nos faz é para a liberação da
genitalidade masculina, é ao discurso do deserto sexual masculino que ele pretende dar
a palavra, e apenas a ele. Claro que sua obra não se resume, toda ela, a esta apologia —
ambígua — da capacidade para o orgasmo; no entanto, ela permanece obliterada por
esse aspecto até mesmo em suas análises mais apuradas. Confundindo tratamento com
liberação, reiterando o gesto ideológico por excelência que pretende transformar em
fato da natureza aquilo que pertence à história, a sexologia reichiana elimina com um
único gesto a homossexualidade masculina e feminina. Como nem uma nem outra se
enquadram em sua teoria, elas se apresentam como os eternos desvios de uma
disciplina que transformou um detalhe em norma e que materializou esta norma na vida,
no universal.
A relação sexual, para o homem, é a história sempre dramática de um ser que
quer gozar do corpo de uma mulher e que acaba invariavelmente por gozar de seus
próprios órgãos (privando-se com isso dos meios de gozar dessa mulher). E do prazer
masculino, o mínimo que se pode dizer é que ele é curto e fraco. A ejaculação é uma
promessa que não pode ser cumprida: o homem tem a impressão de que vai voar,
explodir, mas ele cai, se cansa, se exaure. Morre sem ter-se desintegrado: achou que era
um aniquilamento aquilo que não passava de um suicídio. Já acabou, ele pensa — mas
ele mal havia começado a perder a cabeça e agora tudo já acabou. A ejaculação é
sempre aquilo “que não é isso”. Em relação àquilo que se esperava dela, não é isso. É
uma crise intensa e ao mesmo tempo insignificante: fácil de ter-se, de rápida satisfação,
pobre em sensações.
A ejaculação não é apenas precária, ela é sempre precoce, está sempre adiantada,
é sempre prematura; ela não chega no momento exato, não depende de nenhum
amadurecimento, é repentina, imprevisível. Seja como for, é catastrófica. Tudo acaba ao
mesmo tempo: uma vez descarregada a onda de sêmen, nada fica no homem, tudo está
dito, ele está “satisfeito”, isto é, está morto, extenuado, indisponível, inapto para uma
continuação. Seu corpo, esvaziado de sua capacidade de gozo, retorna a suas funções
puramente animais: é uma carne fria, diáfana, que obedece apenas ao princípio da
autoconservação, uma mecânica desprovida de sensações, uma pura utilidade. Seu sexo
não tem mais sentido para ele, pode tocá-lo, manipulá-lo, puxá-lo, não sente mais nem
prazer nem desprazer, e ele retomou a uma vida sem sentido, insignificante. Para aquele
que pretendia tirar a razão de ser da breve explosão de uma intensidade, a queda é
equivalente à vertigem ascendente à qual ele se achava destinado. "O poder orgástico,
diz Reich, é a capacidade de abandonar-se ao fluxo da energia biológica sem inibição
alguma, a capacidade de descarregar completamente toda a excitação sexual através de
contrações involuntárias agradáveis para o corpo." O que Reich chama de "poder" deve
ser chamado de fatalidade: o que existe não é um abandono ao fluxo da energia
biológica, o que há é uma perda, uma dispersão, um desperdício dessa energia. A
angústia do orgasmo não deriva tanto do medo de ser esmagado pelo momento
culminante genital, quanto do medo de uma decepção atroz: tanta desordem por tão
pouco. A assombração daquele que copula é o escorrer (e portanto o desfazer) do
tempo, o temor de que tudo aquilo escape, de maneira insidiosa, em pânico diante do
que acontecerá a seguir, a debandada, a detumescência, o fim do coito. Em suma, a
alegria suprema, para o homem, acarreta tamanha desordem, tamanho desperdício de
energia, que a felicidade envolvida no processo, antes de ser uma felicidade de que ele
poderia gozar, é tão contraditória que se compara a um sofrimento. Após o orgasmo, o
que falta ao homem não é um coração mas um corpo, uma vez que uma grande
devastação o privou de seu poder.
A ejaculação é como uma esperança sem esperança: copulando, o macho espera
que seu gozo seja forte, arrebatado, porque ele recebe em seu corpo os signos
anunciadores disso, violentos. No entanto, ele não espera muita coisa, pois se recorda
das vezes anteriores, conhece seus limites, sua contingência biológica (as 3 ou 4
contrações que expelirão o líquido seminal de sua morada, tudo isso não excedendo 30
segundos); no entanto, ele ainda espera demais, ele imagina tolamente que de repente
tudo mudará, que nele serão desencadeadas forças idênticas às que agora agitam sua
companheira. Ele se divide assim em três direções, três esperanças e desesperanças que
misturam seus destinos até a resolução e o desenlace finais — evidentemente
decepcionantes — da intriga. A ideia central de nosso erotismo é talvez a do gozo
prematuro do homem (a primeira coisa que se ensina ao machinho é não ir depressa
2
demais, adiar seu prazer de todos os modos, inclusive os mais grotescos) . Na ejaculação,

2
Entre esses métodos, retirados das civilizações mais variadas, citemos: os pensamentos tristes (o homem
imagina estar copulando com uma bruxa ou que uma grande infelicidade acaba de desabar sobre ele), a pressão
dos dedos da mão esquerda entre o escroto e o ânus, a suspensão do vai-vém do pênis na vagina, vaporizações
anestesiantes sob a forma de aerossol sobre a glande (a aplicação deve ser feita vinte minutos antes da relação), o
controle da respiração, as contrações do esfíncter anal. De nosso lado, são estes alguns de nossos meios de
controle preferidos: no dia da relação com a pessoa cobiçada, embeber o pênis num banho de goma, durante uma
ou duas horas: rigidez garantida para as próximas vinte e quatro horas. Ou ainda: fazer um molde do pênis ereto
e levar o molde consigo em cada relação (tome-se o cuidado de aparar as arestas a fim de não ferir a
companheira). E ainda: ejacular pela boca: o pênis continua ereto esperando o sêmen que não chega (este
método, no entanto, necessita de grande concentração e muita flexibilidade orgânica). E mais: feche o canal da
uretra com uma tampa ligada por um barbante à mão do copulador. Quando este quiser ejacular, puxe o fio que
arranca o tampão que libera o esperma (como estes tampões ainda não estão à venda, devem ser feitos pelo
próprio interessado). Lembremos, porém, que de todos esses métodos o mais eficaz ainda é aquele que consiste
o homem se entrega a um prazo de final violento e único: há no coito uma espécie de
precipitação apocalíptica oriunda da iminência da embriaguez; o prazer é iminente, um
nada pode provocá-lo, ele já se aproxima; o homem se poupa, mas por muito pouco.
Destinado a um orgasmo minúsculo, o homem fica constantemente angustiado:
está condenado a gozar acima de seus meios e obrigado, para tanto, a remediar sua
fraqueza através de todo tipo de recurso técnico. Nessas condições, só pode considerar o
pênis de modo ambíguo: ele é simultaneamente a coisa boa e ruim, o inimigo e o aliado,
gratificante e frustrante, sede das sensações mais ricas e órgão que retira do corpo toda
a sua sensualidade. Não é a impossibilidade de abolir toda lucidez que entristece o
homem, mas sim o fato de somente poder aplicar sua lucidez em eventos ínfimos que
não preenchem nem ampliam sua consciência. Bataille atribuía ao erotismo a finalidade
de derrubar todas as barreiras; ora, típico do ser masculino é que ele não tem barreiras a
derrubar, nada a pôr abaixo e que, seguindo seu curso natural, ele é logo delimitado,
pois ele mesmo é o limite. Quer passar para além disso, mas não pode dar esse passo e
prudentemente se mantém do lado de cá (donde, em Bataille, o pressentimento, a
nostalgia e o desgosto diante desses transportes voluptuosos da mulher — tratada de
“cadela”, “porca”, “cloaca” — ciúmes do macho que cospe com horror naquilo que ele
cobiça, fascinado).
Além do orgasmo começa o inconcebível que não temos meios de enfrentar. Este
inconcebível — que, supomos, a mulher alcança — é ao mesmo tempo o objeto de nosso
desejo e a expressão de nossa impotência. Amaldiçoamos essa distribuição seminal que,
ao invés de ultrapassar nossas fronteiras, apenas as mantém, que dá a impressão de
avançar mas que na verdade só realiza uma retirada. Supõe-se que a ejaculação nos joga
para fora de nós mesmos, que contra ela nada podemos fazer, que o movimento que nos
arrebata exigiria que nos despedaçássemos. Mas a realidade dessa expulsão não é em
nada comparável à vontade que tínhamos de superar nossa condição de vida. Cobiçamos
o ser amado com a condição de que aos poucos a excitação em nós aumente; ora, o que
acontece é o contrário; e supõe-se que nos satisfaçamos com um mecanismo que,
dentro de nós, copia a morte e apazigua nossos confins. O gozo experimentado pela
mulher nos fixa, sem prazo determinado, nos limites de nosso próprio desejo. Não
apenas não podemos desfalecer como, também, a explosão da ejaculação nos deixa sem
voz, privados de toda disponibilidade; ficamos irritados ao constatar que, para nós, todo
dispêndio exige uma reparação, uma espera, uma paciência, um repouso e um repasto
reconstituintes. E para aquele que, seguindo os conselhos do doutor Reich, tudo
esperasse da ejaculação (ele iria confundir-se com o cosmo, nada menos que isso!) o
coito será uma imensa encruzilhada de desilusões carnais.
O profundo tédio da ejaculação: ela chega sem obstáculos, é fácil, simplista “e
sobretudo marcada pelo utilitarismo genético (...), o prazer pessoal se sacrifica diante da
3
continuação da espécie . O orgasmo viril não é, como o êxtase feminino, uma

em não copular — o que elimina em cem por cento os riscos da ejaculação precoce —, coisa que os sexólogos,
numa assustadora conspiração do silêncio, recusam-se a transmitir a seus clientes masculinos.
3
Zwang. Le Sexe de la femme. Paris, J. J. Pauvert. p. 212.
transmutação do corpo profano, uma exploração sutil, o despertar lento e delicado das
inatas virtualidades da carne; é, sim, uma evacuação, um alívio, a anulação imediata de
uma tensão, todas essas coisas que o aproximam da dejeção. O ser masculino não se
dilacera, ele se esvazia, elimina o excesso de sêmen acumulado. Esse rápido sobressalto
— e pouco importa que seja repetido 2, 3, 4 ou 5 vezes — merece ser encarado, como
fazia Reich, como guia de todo nosso gozo?
No instante em que vai espalhar-se, o homem é um sujeito partido, dividido;
participa contraditoriamente do hedonismo profundo de toda força em exercício (está
no ponto mais elevado de sua potência) e da destruição dessa força. Goza da
consistência extrema de seu corpo (toda sua energia está tensa) e de sua vacilação, de
sua perda iminente (ele será rebaixado brutalmente, o máximo de sua força coincidirá
com o máximo de fraqueza). A ejaculação pretende fazer com que se acredite que a
parte pode gozar pelo todo, que o pênis pode receber do organismo uma procuração
para gozar em seu nome e tornar-se o ponto de apoio capaz de representar o conjunto. É
como se a presença de zonas erógenas mais ou menos sensibilizadas fosse paga com a
frieza e a apatia do resto do corpo. Todos os adoradores do orgasmo sentem a mesma
nostalgia de um Grande Todo Vivo de que o pinto fosse ao mesmo tempo o exutório e o
triunfo; todos exaltam a ideia de uma “necessidade orgástica”, metáfora organicista da
dependência irreversível e hierárquica de uma parte em relação a um centro.
Parafraseando Bataille, a ejaculação é a aprovação da morte em sua própria
realização. O homem somente goza para deixar de gozar, sua volúpia é uma guilhotina,
quando seu desejo culmina é porque já rolou por terra. A queda do potencial amoroso
após o coito, se é que existe, só pode existir no homem ou na mulher que moldou seu
prazer segundo o modelo masculino do gozo. O amor viril tende a arruinar-se na mesma
medida em que persegue sua realização: as trevas caíram sobre o homem sem que ele
tivesse conhecido a explosão da luz; tornou-se cinza sem ter-se inflamado; perdeu sua
energia e não sentiu esse arrebatamento. Esperava por uma deflagração: sentiu apenas
o estouro de uma bombinha. Se o animal masculino fica tão triste após o coito, é porque
sente ter gastado tanta energia com tão pouca coisa.
O que o homem deseja na mulher não é sua própria ejaculação futura mas sim
um Outro, um estrangeiro radical, com o orgasmo entrando nesse esquema apenas por
acaso (numa espécie de prêmio do prazer) a fim de endossar essa posse. Se a entrega do
esperma fosse de fato a finalidade, a razão de ser, o caminho supremo da libido
masculina, isso significaria que na vagina, nos lábios, nos seios, no clitóris, nas nádegas,
nas ancas, no rosto, nos cabelos, aquilo que o homem deseja é sua própria organização
biológica; isso significaria que aquilo que o homem deseja na mulher é a si mesmo, o
homem deseja apenas o homem. Ora, a paisagem feminina só exerce sobre ele uma
atração tão grande porque ele pressente nessa paisagem um regime erótico
absolutamente diferente do seu; o que ele cobiça é uma dissimetria absoluta e não uma
4
similitude invertida . O homem não deseja a ejaculação, ele quer a desintegração, os
arroubos sagrados, o acionamento das mais diversas sensações inéditas: longe de recear,
ele deseja esse desregramento total com todas as suas forças, mas só experimenta um
orgasmo irrisório, e seu prazer é sempre afetado, banalizado, aplainado por esse
sentimento de irredutível limitação que não apenas o priva de sua ereção como também
lhe dá a impressão — insuportável — de estar fundamentalmente excluído do gozo. A
apologia do orgasmo surge assim como um corte arbitrário imposto aos dois
companheiros numa relação sexual, e com o qual o homem sofre tanto quanto a mulher.
A ejaculação — encarada como roteiro obrigatório — fica sendo apenas a última das
coações sexuais (a que parece iniciar e ao mesmo tempo encerrar a relação), o mito
superior graças ao qual os dois membros do casal fingem retornar à natureza, ao sexo
como natureza. “A unanimidade demonstra uma conformidade nos órgãos, mas nada diz
em favor da coisa amada” (Sade).
O golpe de mão de Reich consiste assim em comprimir o infinito universo
pulsional na finitude do membro viril e de suas pequenas máquinas: sua simplicidade só
é exercida, antes de mais nada, através de uma redução terrorista, redução
propriamente “homossexual”, que elimina, sem temores, toda alteridade libidinal. Para
sua desgraça um “portador de germes”, portanto submetido ao quantitativo, o homem
pretende submeter a mulher a essa mesma lei e fazer com que acredite que ambos
carregam o mesmo fardo. A sexualidade masculina faz contas e, portanto, fala em
desperdícios; privilegia a dilapidação e sublinha, pelo contrário, a lastimável extensão de
seu exercício; deseja menos o prazer que os números, o número mágico, deseja menos a
volúpia que o poder (ela que só pode “reinar” graças a uma formidável farsa); invoca as
perversões mais extremadas para equilibrar sua monótona regularidade; sonha com uma
economia da entrega e do gasto porque sofre de parcimônia; procura a morte e acha
apenas o esgotamento. O mito viril do orgasmo é, antes de mais nada, prejudicial ao
próprio homem.
Com que sonha o homem enquanto copula? Sonha com poder abandonar-se, sem
que com isso esse abandono no prazer acabe com sua excitação. Sonha com gozar como
a mulher, sem fim, sem trégua, numa perda incondicional de seu ser. O êxtase feminino
torna-se assim sua utopia, seu fantasma, aquilo que lhe é proibido; mas é também a
ameaça inquietante que lhe revela sua inferioridade em seu relacionamento com a
espécie, com a história, com a vida. Não apenas ele se contém com dificuldade,
espreitando a ejaculação como uma ameaça que o privará de sua ereção, mas sabe que
essa ameaça, quando se realizar, só lhe dará um prazer ínfimo ou, pelo menos, de
angustiante brevidade. Com isso, a morte da ereção, a morte simplesmente, é o desastre
elementar que põe em evidência a inanidade do prazer descontínuo do homem.
Por que não imaginar uma lista com os dez inconvenientes do pênis? Ele pende,
oscila entre as pernas com um movimento de relógio, é vulnerável, passivo, cabeçudo, se

4
Para nos convencermos disso, basta ler o belo texto de Hélène Cixous em La Jeune née (Coll. 10/18, 1975),
texto que delimita no gozo feminino uma economia da renovação e da profusão que nada tem a ver com o
orgasmo segundo Reich.
levanta quando não é chamado, permanece relaxado nos momentos cruciais, é
turgescente, atrapalha a caminhada, quando em repouso fica chocando-se contra suas
bolas, tem um poder de irrigação limitado, etc.: “Aspecto simultaneamente terrível,
5
suspeito, furibundo e eternamente frustrado, estúpido, desses órgãos”. Mas todos esses
inconvenientes nada são comparados com este: o de surgir em cena aos poucos e
desaparecer nos bastidores após a projeção.
A maneira ocidental triunfante de fazer o amor traduz a angústia fundamental da
classe masculina. Aquilo que o atleta sexual exibe de modo tão espetacular é, acima de
tudo, sua própria fraqueza: quando designa seu falo como apêndice metonímico de seu
feliz proprietário, quando narra seus desempenhos em termos febrilmente quantitativos
e quando se afirma sobre todos os dignos de pena, os mortos de fome do pau, os
esfomeados da braguilha, não está fazendo mais do que conjurar a precariedade de seu
erotismo. “Porra, como meti nela”: o grito final do conquistador é, também, uma
confissão. O Hércules impudente e enfatuado de seu material é, antes de mais nada,
uma criança que lastima sua própria simplicidade.

Emoções estritamente vigiadas

Em várias passagens, no livro que dedica a Reich, Roger Dadoun cita


triunfalmente o slogan dos Grandes Irmãos de 1984, de Georges Orwell: “Aboliremos o
orgasmo”, e vê nisso, contraditoriamente a demonstração brilhante da genialidade de
Reich. Mas o que cabe é apostar como uma ditadura que legislasse sobre esse assunto
decretaria, antes, o orgasmo obrigatório. Em seu desejo de fazer de Reich, a todo custo,
um pensador “subversivo”, absolutamente desordenante, Dadoun acaba sustentando
que o orgasmo “apresenta-se como o não-dito mais monumental de todo discurso —
ponto-príncipe visado, para não nomeá-lo, por todas as perspectivas, as representações,
todas as linhas de fuga (...), ato primeiro que faz com que se fale sem cessar sobre ele
mas sobre o qual, consenso esmagador, deve-se fazer silêncio” (p. 341). Como deixar de
ver, pelo contrário, que o orgasmo é sempre o discurso do poder, que ele não é um
ponto de convergência mas um ponto de dissolução e que, sendo a reinserção do desejo
— a partir do exterior — no tranquilo interior das leis, ele é a própria vontade das
instituições?
A sexualidade viril, como dissemos, está sujeita em sua essência à escassez: ela
funciona aos solavancos, ignora a repetição imediata e permanece sujeita, em seus
transbordamentos maiores, a medíocres contabilidades. A ejaculação, se comparada
com o prazer que a mulher pode, no melhor dos casos, tirar do pênis, é evidentemente
uma troca desigual: é o quase nada em relação ao quase tudo. Se existe alguma
proporção, é apenas no interior do sistema genital masculino, quando se mede a
descarga em relação à tensão que a precede: O Perfeito Orgasmo Genital tem por função
essencial anular e eliminar toda febre, toda paixão existente no corpo antes do auge: “no

5
Claude Simon. Histoire, Paris, Minuit. p. 251.
6
prazer final, a única coisa que se iguala à tensão é a descarga” . A ejaculação é a ficção
da troca paritária, é o toma-lá-dá-cá, a excitação parece dizer à evacuação: lhe dou isso
para que você me dê o equivalente, com duas quantidades equivalentes se anulando. A
ideologia sexológica parece, no fundo, recear apenas uma coisa: que se abandone a
carne às vertigens, entregue ao trajeto polimorfo das emoções mais diversas; donde sua
prescrição universal: a descarga total, a extinção de todos os ardores, a retirada brutal da
paixão (o critério do “bom” orgasmo, repete Reich, é o fato de ele dar vontade de dormir
logo após: o orgasmo como ersatz do Valium, era só o que faltava!). Em suas
recomendações existe uma dupla condenação à morte: condenação à morte do desejo
(ao qual se pôs fim) e do prazer (que se esqueceu). Porque a neurose, a doença,
espreitam a todo momento e que se torna sempre necessário, desde o momento em que
ela se manifesta, liberar a energia sexual: como se, no desejo de um ser por outro,
formigassem todos os crimes, todos os horrores de que a humanidade alguma vez foi
culpada, como se a cobiça fosse, por si só, um perigo tão grave que se torne necessário
ensinar com urgência aos amantes um meio eficaz de copular a fim de, a seguir, serem
melhor separados um do outro. O orgasmo segundo Reich é, assim, a apoteose do
funcionalismo, o mais utilitário dos mecanismos corporais: não é tanto o ponto
culminante do prazer quanto a libertação daquele que é oprimido por um excesso de
peso e de tensão de que é preciso livrar-se. Não se trata mais do gozo, mas da redenção,
não é mais Dionísio mas Jesus!
E se a ejaculação fosse a continuação, por outros meios, do primado da
reprodução? Se a incitação ao gozo, “por razões de higiene”, fosse o atual substituto do
antigo imperativo cristão da procriação que pesava sobre as obras da carne? A emissão
seminal é o círculo de referência, o grande Centro, o livro de contabilidade, a
genitalidade média que reconstitui no corpo alguns pequenos territórios, pequenos
cofres- fortes abertos de vez em quando para a liberação de seu excesso de conteúdo. A
ejaculação considerada como única e suprema técnica sexual realiza o mesmo trabalho
de detecção de ameaças, de eliminação de possíveis acontecimentos, de conserto nas
vias de circulação das energias. Através dela, realiza-se o sonho de um Grande Centro
Fálico que acapara, em proveito próprio, todas as intensidades periféricas, centro no
qual todo o corpo se imobiliza e reencontra sua unidade (toda excitação lateral, todo
erotismo pré-genital, nesta perspectiva, visa apenas reforçar a satisfação central). A
propaganda em favor do orgasmo, no fundo, fica repetindo o seguinte: toda atração
exercida por um ser sobre outro põe em perigo as normas de uma existência razoável.
Por conseguinte, a boa relação sexual é apenas a reparação de algo estranho, a
domesticação, sob a tutela genital, de um força indômita que será eliminada pela
descarga total. O amor é um paciente trabalho de alívio das tensões. Toda relação sexual
que permitir a manutenção, no corpo, de parcelas da libido ou de cobiça será declarada
nefasta, por ser causadora de problemas. O erotismo é uma desordem que deve ser
estabilizada. O orgasmo como prazer terminal é a devolução desse desregramento ao
plano da ordem estabelecida. Uma boa pulsão é a pulsão morta.

6
Reich. Fonction de l’orgasme.
Reduzir as preliminares, as carícias, os jogos variados diante da aproximação do
gozo, é empreender uma operação de cura e significa encarar os prazeres carnais apenas
sob a perspectiva da medicina. É negar que o desvio, a espera, “o estase de energia”
(Reich) possa ter um sentido, uma voluptuosidade enquanto tais (e não subordinadas a
uma convulsão central), é negar que um prazer adiado possa ser também um prazer
diferente, é colocá-los como prelúdio para a ordem estabelecida da efusão obrigatória. A
ejaculação funciona então como tentativa de pôr em ordem aquilo que já a subverte de
antemão ou que, melhor, a elude. Nessa ótica, os órgãos genitais do homem e da mulher
são como territórios colonizados que é preciso saber como levar à independência, isto é,
libertar da excitação que os corrói. Aquilo que o orgasmo assim encarado pressupõe é a
maturidade sexual, isto é, o fim do desenvolvimento do indivíduo subjugado pelas leis:
“Indivíduos orgasticamente potentes — com exceção de algumas palavras de ternura —
não falam nem riem durante o ato sexual. Falar ou rir indica uma grave desordem na
7
faculdade de abandonar-se.” Aviso aos tagarelas: a patrulha do desejo está atenta...
Será politicamente correto ter um orgasmo?, pergunta um especial cretino dos
EUA (in Hello, je t’aime, de Jim Haynes). Mas, claro, meu camarada, a única coisa correta
que existe do ponto de vista político é o orgasmo, o alívio das tensões! O sonho de toda
“revolução sexual” é um equilíbrio, impossível de ser encontrado, entre o poder e o
desejo, entre os acasos das pulsões e as coações sociais do trabalho. Desse ponto de
vista, o orgasmo tem um papel econômico de primeira plana: ele enxuga os excedentes,
absorve a mais-valia da excitação, garante o bom andamento das coisas, o rendimento
voluptuoso. Ao mesmo tempo, é um princípio de não-ociosidade: conjura o perigo do
desperdício de tempo, o nomadismo erótico, esse erro moral do ponto de vista da tarefa
a ser realizada. É ele também, de ricochete, que define o genital como sendo a nova
teatralidade, a nova representação, o rebatimento de todas as correntes sobre o mesmo
plano, filtro que deve ter um poder de ligar, prender na prisão do ventre os efeitos e
fluxos perturbadores, as forças que se intrometem no circuito e que ele deve
descarregar. Ele efetua assim um constante desvio de fundos por ele regularizados a fim
de manter a isotermia e a isonomia do corpo, verdadeira exsudação de gozo destinada a
preservar o equilíbrio do organismo. É preciso saber terminar uma greve, dizia Thorez; a
mesma cantilena é repetida pelos sexólogos: é preciso saber terminar um coito, vocês
não vão me deixar isso aí inacabado, e é por isso que toda pulsão, toda fonte de
acontecimentos deverá, sob pena de excomunhão, passar pelo tribunal do orgasmo.
Espontaneamente, a volúpia viril pensa a si mesma a partir do modelo da
acumulação primitiva, da profusão espermica: como o prazer parece proporcional à
quantidade de esperma emitido pelo pênis, quanto mais abundante for a quantidade de
sêmen, mais contínuas (em princípio) as convulsões e transportamentos: prova disso é
esse homem que, à guisa de masturbação, prendeu uma ordenhadeira mecânica no
pênis e morreu de esgotamento alguns minutos depois em meio a um banho de
sangue... ou esse libertino sadeano que, em Justine, se enforca a fim de ejacular várias
vezes em seguida e corta a corda exatamente antes da estrangulação total. E

7
Reich. Fonction... op. cit., p. 88.
inversamente, primeiro gesto de muitos pervertidos masculinos: recusar a ejaculação,
recusar o único gozo heterossexual, normal, codificado, regulamentado, autorizado.
Exemplo disso é o caso extraordinário relatado na Revue Médicale n. 17, e retomado por
Michel de M’Uzan em La Sexualité perverse. Aquele indivíduo que ostentava tatuagens e
mutilações relacionadas com antigas práticas masoquistas não poupou seu aparelho
genital: “Inúmeras agulhas de vitrola estavam colocadas dentro mesmo dos testículos,
como demonstraram as radiografias. O pênis estava totalmente azul, talvez devido a
uma injeção de tinta nanquim numa veia. A extremidade da glande havia sido fendida
com uma gilete, a fim de aumentar o orifício. Um anel de ferro, de vários centímetros de
diâmetro, tinha sido colocado de modo permanente na extremidade do pênis após o
prepúcio ter sido transformado numa espécie de almofada cheia da parafina. Uma
agulha imantada havia sido colocada dentro do pênis num sinal, se posso falar nisso, de
humor negro, pois o pênis, demonstrando assim sua potência, tinha o poder de desviar a
agulha de uma bússola. Um segundo anel, removível este, circundava o começo do saco
e a base do pênis (...) A renúncia definitiva ao coito tinha sido considerada por M como
8
parte integrante de suas exigências masoquistas”.
A mulher como “animal do prazer”? “Presa e serva da volúpia coletiva”? E se
esses lugares-comuns não fossem mais que ilusões arduamente mantidas pelo homem a
respeito de suas próprias capacidades para o gozo? Teria ele submetido a metade da
humanidade a fins puramente sensuais, seu apetite de delícias seria tão grande que ele
precisasse permanentemente de uma classe de escravos dedicados a essa tarefa,
freneticamente e sem tréguas? Mas quando se conhecem as fronteiras que a fisiologia
impõe ao homem em matéria de prazer, começa-se a suspeitar que é preciso ler esse
argumento ao contrário: talvez seja menos para gozar com toda a liberdade que o
homem domina a mulher, e mais para sufocar nela a existência de uma voluptuosidade
que ele percebe ser muito forte, tão violenta que elimina e relativiza para sempre sua
própria volúpia. Nesse caso, se verificaria a hipótese formulada por um psicanalista
norte-americano segundo a qual “uma das pedras angulares indispensáveis, e sobre a
qual todas as civilizações modernas se basearam, é a supressão coercitiva da sexualidade
9
desmedida das mulheres...”
“Soltei meu mel”, “espumei meu pincel”, “esguichei o suco do meu saco”,
“esvaziei tudo”, “reguei minha cavala”, todas estas são expressões que, em sua crueza,
não são mais feias que a ridícula “ejaculação” que implica distorção, deslocação,
desmantelamento, mas de uma maneira ridícula. Não é o arrebatamento violento que
esmaga e leva ao cúmulo da embriaguez, mas sim o breve enlevo que mal causa um
arrepio. Em “ejaculação”, o que eu ouço, antes de mais nada, é o grito estranho, “jacu,
jacu”, de um papagaio raro, e é dessa imagem que derivo essa repetição grotesca; a
caricatura da linguagem, como a ejaculação, é a caricatura masculina do prazer

8
Michel de M’Uzan. La Sexualité perverse. Paris, Payot, 1972. p. 16-20.
9
Mary Jane Sherffey. Nature et évolution de la sexualité féminine. Paris, PUF, 1976.
10
feminino.
A interrogação reichiana coloca-se assim como árbitro de rivalidades, distinguindo
o amor verdadeiro de seu oposto camuflado, a neurose, o sadismo, a homossexualidade,
a pornografia. Ela não divide um gênero em espécies, mas seleciona certos caminhos,
eliminando os desvios, recolhendo os pretendentes, distinguindo entre o verdadeiro e o
falso, incitando as pessoas a se conformarem. Desse modo, quando se encontram, os
corpos não criam nenhum sentido novo, já estão habitados por verdades
preestabelecidas que devem realizar se não quiserem mergulhar na loucura ou na
monstruosidade. O coito, segundo esta versão viril-medicinal, carece de substância e
aparece sempre na figura de um executante. A substância do desejo sofre um
empobrecimento real e condena o espírito a operações simples de funcionamento e
disfuncionamento. O desenvolvimento de novas sensações, a exploração de terrenos
ocultos ou distantes, apresenta-se apenas como possibilidade que os amantes
dispensam ou que põem em prática a contragosto (“para quê?”). O passivo provocado
por esses desvios se tornaria demasiado elevado em relação ao trajeto simples do prazer
genital: quem sabe se as novas formas de acoplamento que se pudesse inventar não
acabariam por cobrir apenas as dificuldades e as despesas com a mudança ocasionada?
Nesse modo de copular — hoje universalmente difundido pela sexologia — existe uma
diminuição tendencial irreversível da taxa de inovação, de surpresa, de inventividade.
É compreensível, assim, que o realismo orgástico por vezes se deixe atravessar
por dois excessos contrários: excesso de força, de grandeza, de heroísmo, quando o
pênis, conformando-se a seu destino social, exacerba-se de modo monumental e reitera
6, 7 ou 10 vezes seus feitos, ridícula competição masculina, verdadeiro culto do pênis
cuja glande passa a ser apenas os peitorais salientes sob a cueca, impacientes por se
porem em ação, por surpreender; ou então, lapso inconsciente, ausência do pênis de sua
função, e que aflora como impotência ou ejaculação precoce, secreta revolta do órgão
contra a tarefa que lhe atribuíram, contra a prestação exigida; confissão, através da
greve, de que nega implicitamente o orgasmo.
A mesma metáfora laboriosa reaparece em todos os manuais de sexologia: o
orgasmo é um trabalho, os amantes são os operários-padrão do sexo (será que aí

10
A respeito, podemos nos perguntar que imagem do corpo está implicada na noção de descarga sobre a qual se
baseia hoje toda a teoria do orgasmo. Historicamente, sabe-se que a ideologia da efusão espalhou-se, a partir dos
mesmos pressupostos, em dois sentidos aparentemente contrários: um que desaprova a emissão demasiado
frequente do licor da vida (“Aquilo que serve para produzir a vida também serve para conservá-la”, Buffon); e
outra que a celebra como liberação [“O médico francês Arnaud de Villeneuve (1235-1312), do ponto de vista da
higiene, recomendava eliminar do corpo, através da masturbação, o sêmen velho que, após uma longa retenção,
poderia ser tóxico. O mesmo se pode relatar de outros médicos; por exemplo, Johans von Wesel (séc. XV), Paul
Zacchias (séc. XVI) e Ch. H. Marc (1771-1841). O próprio Tissot, que encorajava a repressão à masturbação,
falava, em 1766, da masturbação terapêutica; duvidava que a castidade total fosse benéfica a todos e partilhava
da opinião de Gaseno, que afirmava ser a retenção de esperma causa eventual de doenças.” Jos Van Ussel,
Histoire de la répression sexuel. Paris, Laffont, 1966. p. 196.] Pelo fato de o prazer masculino ser essencialmente
transitivo (produz sêmen), deduziu-se daí, abusivamente, que toda sensação orgástica deveria ser
necessariamente acompanhada por uma descarga. Observe-se que a mesma concepção da efusão dos humores
aparecia, outrora, no ritual de exorcismo das feiticeiras. Reich está inteiramente contido em Hipócrates e Galeno;
falta-nos uma história “arqueológica” do conceito de descarga.
também há maus operários?), devem ficar completamente nus e dedicar-se ao trabalho.
Calcada na teoria da racionalização industrial, a ideologia do orgasmo é utilitarista; ela é
a adaptação dos meios a um fim, a cronometragem exata dos menores gestos, tudo nela
concorre para o precioso resultado. A apoteose orgástica é o precipitado químico cuja
aparição é aguardada com ansiedade pelos cientistas, e que deve ser dosada com
cuidado pelos estagiários do laboratório. É que a sexologia de Reich sonha com a relação
sexual ideal, que funciona sem obstáculos e inconvenientes, numa perfeição silenciosa
dos órgãos; sonha com coitos oníricos em que todos os mecanismos da excitação
poderiam atuar em estado puro, “natural”, sem estarem maculados por gestos
perversos, por uma perturbação psíquica ou pela “peste social”. Nessa situação, tudo
seria apenas ordem e funcionalidade, a medida exata das sensações, uma pirâmide
organizada das carícias e estímulos, um crescendo sutil que conduz os dois parceiros ao
êxtase simultâneo e único — o melhor possível de todos os mundos do prazer. E esses
acasalamentos racionalizados, ideais, inteiramente calcados na “corrente vegetativa da
vida” (Reich), são sonhados como sendo definitivos: fechados para o mundo exterior (ou,
melhor, fechados para o mundo social, mau, e abertos para o mundo cósmico, eterno),
bastando a si mesmos, vivendo apenas dos recursos da genitalidade, num erotismo
simples que impede a libertinagem e dissipa as neuroses. Eles constituiriam assim, em
seu microcosmo independente, uma imagem melhorada, dinamizada, da vida em
sociedade: expansão, descarga, relaxamento, depurando por assim dizer, como num
espelho, os ritmos mais irregulares do trabalho, da dor e da satisfação que fazem o pão
cotidiano dos homens. O orgasmo é recompensa: os amantes foram conscienciosos,
mereceram o gozo que tiveram. A virtude erótica é a realização de uma tarefa em vista
de um objetivo: a única coisa desejável é o desejo ou, melhor, o desejo é o objeto
apresentado como aquele que deve ser suprimido. (Mas a pressuposição de uma “auto-
regulação natural das sexualidade”, a seguir pervertida pela sociedade, esse
11
rousseauismo reichiano que Lewinter, num curto e denso texto, já refutava, denuncia a
si mesmo como toda utopia da origem: pois, ou o capitalismo é a perversão do sexual, da
boa natureza erótica eterna do homem, e nesse caso é preciso abater a sociedade
burguesa, produto da história, para reencontrar o tempo a-histórico da felicidade, da
livre genitalidade; ou então o próprio capital é um dispositivo libidinal particular, uma
formação social que proporcione gozos específicos, o mundo de um certo desejo, e
nesse caso toda a perspectiva reichiana do político-sexual desmorona como um castelo
de cartas.)
Enquanto promotores do prazer (e da procriação), todos os pênis são
comparáveis entre si porque têm um mesmo denominador comum funcional/racional: a
ejaculação, como equivalente geral de todos os pênis. Desse modo, o homem copulador
nunca surge como desejo e gozo, mas como força abstrata de necessidade social. O
orgasmo elabora, no sexo, toda uma metafísica da utilidade. É a lei moral inscrita no
coração do pênis (portanto, no coração da vagina), que confirma o homem em sua
essência e o coloca numa relação final com seu prazer: o prazer é aquilo que acontece no

11
Groddeck et le royaume millénaire de Jérôme Bosch. Champ Libre, 1974.
fim ou, melhor, aquilo que assinala o fim do ato (seja qual for o momento em que
acontece). O código racional da ejaculação baseia-se no aniquilamento de toda
ambivalência em proveito da equivalência excitação/descarga.
Para Reich, a doença é o próprio desejo e é por isso que o sexo ereto do homem
já deve ser ao mesmo tempo o sexo ejaculador, o cano erguido. Um mesmo pattern, um
mesmo padrão — representável, mensurável — regulamenta os orgasmos com
deformações quase imperceptíveis. A descarga torna-se suscetível de uma espécie de
geometrização que utiliza abscissas e ordenadas a fim de situar com exatidão as curvas
de excitação e estimulação no interior da relação sexual: com o orgasmo falado aparece
o orgasmo medido e, portanto, o orgasmo controlável e mensurável. Na desordem da
união, a satisfação final assinala o princípio de realidade ao qual ninguém pode escapar.
Essa é a apologia do orgasmo: erigida em superioridade social, a incrível facilidade de
satisfação do homem é ostentada como conduta benéfica e salvadora.
Reduzindo o macho à sua função ejaculatória, transforma-se a relação sexual em
algo primitivo, verdadeiro, literal, em algo em relação ao que tudo o mais é apenas
elocubração mística ou sem-vergonhice. Tudo aquilo que parasita esse prazer simples,
tudo que é alusão feita às margens de um outro gozo, não passa de gangrena e inferno
da devassidão. O funcional marca a síntese da razão pura e da razão prática, é o belo
mais o útil. Por sua vez, o útil é aquilo que se apresenta simultaneamente como moral e
verdadeiro. O imaginário sexológico sonha com devolver o sexo a seu verdadeiro destino
e subtraí-lo para sempre das invenções alambicadas da patifaria e da perversidade que
obscurecem e degradam a narração natural do coito. Desse ponto de vista, uma relação
sexual perfeita é um mecanismo sem falhas, onde nada compromete a interconexão dos
elementos e a transparência do processo: graças a isso, o olhar social pode penetrar até
o fundo dos corpos e dos órgãos, prevendo suas comoções, controlando seus desvios,
regulamentando seus afastamentos. De tal modo que a legibilidade absoluta do ato
sexual se confunde com sua vigilância absoluta pelo olhar dos especialistas.
A ejaculação é um pouco como a verdade da relação sexual, sua cobertura em
ouro, sua conversibilidade, sua taxa de câmbio (aquilo que impede o livre curso dos
gozos flutuantes). O esperma espalhado representa assim o papel da Grande Referência
Natural; ele indica que a relação sexual chegou a bom termo e está, portanto, encerrada.
O esperma é a assinatura do coito, a metamorfose de um produto natural em meio de
transação: se não houvesse, vomitadas pela vulva, essas pequenas porções de flocos
granulosos e brancos, se teria a impressão de estar faltando alguma coisa no homem. O
sêmen, no contrato sexual, atua como meio de troca, moeda erótica: é ele, e somente
ele, que dá sentido à relação sexual e é dele que depende ainda, mais ou menos, a
permanência ou a brevidade do mercado sexual: enquanto o esperma não é expelido, o
acasalamento resta por fazer, caso contrário se perde no absurdo e no indeterminado.
(Mas, se esse modo de troca é recusado, recusa-se também o estereótipo masculino da
emissão seminal. Se o homem não ejacular — ou, pelo menos, se não fizer desse
orgasmo o objetivo de seu desejo — todo o pacote de motivações que o impelem
desmoronará: fora da esfera transparente da emissão do sêmen, onde tudo é claro
porque basta desejá-lo para ter seu esperma, o homem simplesmente não sabe mais o
que quer. Hipótese: a coação do orgasmo — para o homem como para a mulher — está
aí exatamente para resolver a angústia por não se saber o que se deseja. A questão
sobre o que se deve ou não fazer durante o amor é levantada pelo psicanalista e pelo
sexólogo, simplesmente, ao mesmo tempo em que aceitam respondê-la.)
O orgasmo masculino pertence à categoria das coisas evidentes: é sólido, visível,
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ponderável, flagrante, mediado pela competência social estatutária. O sêmen é
valorizado porque é possível vê-lo, tocá-lo: donde a pregnância do modelo masculino da
volúpia: se o esperma fosse microscópico, indizível, impalpável, se sua emissão não fosse
seguida pela detumescência do pênis, não valeria coisa alguma, seria uma nulidade
(como o gozo da mulher, que, por ser imperceptível, nunca é uma coisa certa). A
sexologia é hoje essa disciplina que evidencia, em sua própria simplicidade, sua
incapacidade de apreender os elementos da sexualidade feminina em sua radical
estranheza. A sexologia reichiana, em particular, sempre experimentou um horror pela
mulher como o Outro que permanece em sua condição de Outro, pelo qual sente uma
insuperável alergia. Reich só tolera a mulher submissa e submetida, decalcada sobre o
modelo erótico masculino, duplicação ou réplica vazia do falo. Essa a razão pela qual ele
lhe atribui os mesmos desejos do homem ou, melhor, essa é a razão pela qual ele reúne
os desejos divergentes de ambos sob a mesma denominação de orgasmo. E ainda em
nome do orgasmo, cúmulo dos cúmulos, que se profere a condenação da
homossexualidade: “Pode-se constatar que a satisfação sexual média no indivíduo
heterossexual sadio é mais intensa que a satisfação do homossexual sadio”. Para os
reichianos, o essencial era acabar a relação sexual no sentido em que se fala de “acabar
com um animal ferido”: acabar com ele. É preciso que o orgasmo seja o instante
derradeiro, que exista o fulgor fúnebre da morte, de um fuzilamento. É preciso que os
amantes desejem o que desejam tendo em vista o silêncio, gozando apenas para
exterminar, em si mesmos, todo apetite de prazer, começando a relação apenas para
acabar com ela, desejando aquilo que irá ceifá-los. Como se a “fórmula do orgasmo”, o
ritmo expansão (tensão, carga) — contração (descarga, alívio) não fosse uma fórmula
apenas masculina, própria apenas da metade da humanidade!
A disciplina do orgasmo é tão coatora que exige o silêncio quase total dos
subsistemas erógenos do corpo (ânus, seios, nádegas, etc.), a fim de mantê-los “em seu
lugar” e em sua especialização: tudo isso faz da cópula um sistema de “baixa
complexidade” que se caracteriza por uma mesma crispação, uma mesma obsessão pela
manutenção da ordem, da ordem que representa para o homem a finalidade de seu
prazer e o prazer de acabar de uma vez por todas com sua concupiscência; ordem que
significa tanto um “pôr cada coisa em seu lugar”, quanto uma palavra de ordem, o que
ela faz tão bem que a relação sexual realizada sob essa ótica encerra os dois sexos numa
relação de dominação com a qual ambos sofrem. É pelo fato de ter o homem alguma
coisa a “fazer” no amor (ele deve “gozar”), que ele não permite a seu prazer acampar

12
Nos palcos de todos os life-shows, teatros eróticos, etc., espera-se que o macho ejacule diante do público e fora
de sua parceira, sendo o esperma que jorra um índice de autenticidade.
num lugar qualquer, hierarquizando esses lugares; é pelo fato de dar ele ao resultado
último um valor supremo, que ele extrai esse valor desse mesmo momento final (neste
sentido, a eroticidade masculina é religiosa, escatológica, tende para um fim); é pelo fato
de todo movimento de deriva ou de perversão fazer com que o gozo final seja esquecido,
que ele culpabiliza e recusa o gozo do instante (a menos que isso contribua para a
preparação do espasmo terminal). Portanto, é com um mesmo gesto que o homem
sufoca o prazer feminino (ou o reduz apenas ao orgasmo, que é. o seu próprio orgasmo)
e reprime em si sua própria polimorfia. Dividindo o ato sexual em ponto culminante e
preliminares, ele automaticamente desvaloriza estas últimas, obrigando-as a ser apenas
“companheiros de jornada”, mais ou menos subordinados, de um gozo central
imediatamente satisfeito. Em suma, ele leva para o próprio interior do hedonismo
erótico a sinistra partilha trabalho/festa, sofrimento/recompensa, castigo/punição; os
“bons amantes” dedicam-se a sua tarefa, suam, se esforçam, aplicam-se, assumem suas
responsabilidades com seriedade; graças a isso, o enlace se transforma nesse paciente
trabalho do qual o orgasmo é o dispêndio, o consumo e a consumação instantâneos.

O romance canônico do orgasmo

“A estupidez consiste em querer acabar.”


Gustave Flaubert

Em suma, o orgasmo masculino é chato porque é previsível (a aventura, no coito,


acontece sempre no lado da mulher ou, pelo menos, no lado do feminino); o que ele
mata é o suspense, a surpresa: é uma espera segura daquilo que acabará por acontecer
sem dúvida alguma. Para o homem, o fim já está determinado desde o começo; neste
sentido, quase não há um começo, a ereção já é quase a ejaculação, o começo é o fim, o
fim mal se distingue do começo. Nos primeiros momentos estão inscritos os últimos. A
ereção é precária na medida em que carrega em si mesma a detumescência como seu
destino inevitável. E os episódios que assinalarão o ato sexual serão apenas essa
distância nula entre uma pseudo-entrada que já é um crepúsculo e uma abolição efetiva
presente já desde o primeiro instante. A conjunção erótica clássica é uma relação
funerária, morta: litania amorosa conjugal da qual não se pode mudar uma palavra. A
ejaculação é a própria facilidade, mas é uma facilidade que se transforma em tortura. No
amor normal, codificado, os vivos produzem os mortos; o estereótipo masculino do coito
conta invariavelmente a mesma coisa: “Vou fazer minha mulher gozar e depois eu gozo”.
Mas, pode-se perguntar, poderia acontecer aí algo diferente?
O enlace, segundo a versão masculina, é, assim, acabado: ele é mesmo essa
relação que deve ser terminada (como a Frase), imutavelmente estruturada e
indefinidamente renovável. O macho que copula fixa para si mesmo um duplo objetivo:
não cair no ato curto por medo de fazer, se cabe dizê-lo, frases curtas demais, mas
também saber terminar o coito, dado que a boa relação é a relação acabada, a que
satisfaz ambos os parceiros. O perfeito domínio sexual consiste, assim, em saber
prolongar á relação sexual a fim de poder melhor acabá-la (donde as duas ovelhas negras
dos heterossexólogos: a ejaculação precoce — que deixa os parceiros esfomeados — e a
não-ejaculação, a contenção infinita, que contraria a “natureza” e marca o enlace com o
ferrete da coisa absurda).
Assim, através da efusão espermática, temos uma história: o relacionamento
carnal não seria uma coisa real, não poderia ser realizado e relatado se não se referisse a
um instante culminante que, de uma vez por todas, dá ao acontecimento sua verdadeira
significação, dá ao coito um começo e um fim e faz das coisas do presente um passado
para o futuro. A relação sexual “clássica” é a história que o homem conhece de cor e cujo
fim ele, no entanto, finge desconhecer, em relação à qual ele finge desconhecer que ela
sempre acaba do mesmo modo.
Com isso toma-se possível sustentar esta proposição aparentemente aberrante: a
decepção é o próprio movimento do gozo masculino pelo pênis: o homem goza a fim de
desapontar-se, gozando ele sabe que irá desapontar-se e acaba por fazer dessa decepção
o único móvel de seu gozo (na verdade, toda a eroticidade masculina não passa de uma
sequência de artimanhas, estratagemas, cuja finalidade é contornar esse ultimato). No
auge da tormenta voluptuosa, o homem mantém a cabeça fria; se pretendesse deixar-se
arrebatar, como a mulher, chegar à beira da demência, ele resvalaria de imediato para a
banalidade mais chã; sem dúvida ele pode “ficar louco”, mas apenas pela loucura de sua
companheira. Sem dúvida, ele pode ostentar todos os signos do transe erótico, mas
apenas seus signos; o homem só pode desejar o prazer da mulher, esse Deus que está
adormecido dentro dela e que nunca penetra em seu próprio corpo; um deus que ele só
pode admirar com deslumbramento, pânico, terror, após o que ele se abandona a sua
própria volúpia, entrega-se à decepção como se fosse um movimento livremente
consentido (também aqui este conjunto de pensamentos deprimidos vale apenas para os
que são estritamente heterossexuais — entendamos por isto aqueles que, durante o ato
do amor, se entrincheiram nos prazeres codificados de seu próprio sexo. Inversamente,
seria possível avaliar a força de um enlace amoroso por sua capacidade de resistência a
toda conclusão, todo encerramento). O pênis é um avião, os espermatozoides, como no
filme de Woody Allen, são paraquedistas prestes a saltar da carlinga no momento da
ejaculação. Assim, o homem e a mulher teriam do amor duas experiências
contraditórias: enquanto ela alça voo, em sentido próprio, ele desce à terra, prazer do
mergulho, do desabamento, experiência breve e aterradora da vacuidade.
A relação sexual codificada é um discurso que se assegura de uma certa verdade,
e de uma única verdade, a fim de impedir que outras possam surgir, imprevisíveis,
irredutíveis. Diante do ponto de excitação, o gozo final não pode deixar de surgir como o
simulacro de uma resposta mortal, resposta que o homem acaba invariavelmente por
dar. É exatamente através dessa rede, através dessa guilhotina, que a relação sexual
acaba por encerrar-se tanto como relação quanto em sua condição de enterro do prazer.
Mas, ao mesmo tempo, trata-se evidentemente de uma falsa resposta, de uma ficção:
que fecho poderia esgotar todos os desejos, todas as tensões presentes num homem e, a
fortiori, numa mulher (a mulher não conhece o orgasmo no sentido estrito do termo:
não há limites para seu apetite erótico, nenhuma emoção voluptuosa, por mais forte que
seja, é para ela a última, o saciamento de sua voracidade; o Grande Orgasmo Vaginal é
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um mito do homem no qual se espera que as mulheres creiam).
O homem copulador é aquele que diz “Sei disso, mas mesmo assim...” Faço o
amor como se isso fosse durar para sempre e como se não fosse tomar nenhuma direção
em particular, mas sei que tudo irá acabar bem depressa. O homem sente prazer em
escrever em seu corpo e com seu corpo uma história cujo fim ele conhece; sabe e não
sabe, age consigo mesmo como se nunca pudesse saber: sabe que, invariavelmente, com
o orgasmo ele porá fim à relação sexual; mas e se algo diferente acabasse acontecendo?
É somente o gozo da mulher, é somente aquilo que, nele, pretende gozar “no feminino”,
que pode levar o enlace para caminhos diversos; mas a vagabundagem erótica tem de
acabar, afinal, anulando-se na ordem suprema do orgasmo, da apoteose e da conclusão.
A revelação da verdade foi progressiva e o desenlace é exatamente aquilo que valoriza a
expectativa, o contrato social que determina e encerra toda a aventura do coito. Para o
homem, somente a espera foi algo magnífico.
O orgasmo rejeita tudo o que o precede para o limbo das coisas anexas, do
informe, do marginal; o orgasmo sublima e amplia tudo aquilo que o enlace pode
apresentar de obscenidade constitutiva; o orgasmo é a pureza que nasce no seio da
abjeção, a melodia delicada extraída de instrumentos indelicados, o ouro presente no
lixo das carnes desfalecidas. Donde o conselho dos gentis doutores: ejacule, goze a fim
de eliminar esse peso que você sente pelo corpo, goze para eliminar o mais depressa
possível as sórdidas materialidades da conjunção amorosa. O orgasmo é o resgate do
corpo, a passagem da matéria para o espírito, o orgasmo é uma ideia.
O orgasmo é, ao mesmo tempo, fonte da luz que tudo ilumina e que a tudo dá
sentido e um lugar de convergência de todas as carícias, beijos, inclinações. O orgasmo
satisfaz o duplo desejo de controle e inteligibilidade: donde a importância do uso do
tempo, do esquadrinhamento acurado da duração que permite, através da eliminação
das eventuais perturbações, a constituição de um tempo integralmente útil. O tempo
medido, para que seja recompensador, deve ser também um tempo sem impurezas nem
falhas, um tempo de boa qualidade e de crescente tensão ao longo do qual os corpos
ausentes do mundo exterior permanecem, com aplicação, em seus exercícios. Desse
modo se esboça uma espécie de esquema anátomo cronológico do comportamento
sexual: o ato é decomposto em seus elementos, a posição dos corpos, dos membros, das
articulações, é definida e, a cada movimento, a cada escorregamento, a cada posição são
atribuídas uma direção, uma amplitude, graças às quais o corpo da volúpia é
indissociavelmente um corpo disciplinado para adquirir essa volúpia. Coisas que permite

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“A mulher não tem um sexo — o que frequentemente foi interpretado como “a mulher não tem sexo” — e não
pode rotulá-lo sob um termo genérico ou específico. Corpo, seio, púbis, clitóris, lábios, vulva, colo uterino,
matriz... e essa coisa irrisória que já os faz gozar no/do seu desvio frustra a recondução a qualquer nome próprio,
a qualquer sentido próprio, a qualquer conceito. A sexualidade da mulher não pode, portanto, inscrever-se como
tal em teoria alguma a não ser através de sua comparação com parâmetros masculinos.” Luce Irigarav Spéculum
de l'autre femme. Paris, Minuit. p. 289.
ao poder sexológico ser ao mesmo tempo absolutamente indiscreto, uma vez que está
sempre desperto do começo ao fim do coito (e mesmo além dele, através da
manutenção permanente da “sensualidade” do corpo); e absolutamente discreto, pois se
exerce através dos amantes que interiorizaram as normas dos emancipadores de
plantão. Desse modo, a preocupação com o orgasmo se torna um aparelho de exame
contínuo que se apresenta como o duplo da procura da voluptuosidade.
Mas o orgasmo é ainda mais que isso: só se tornará eficaz enquanto gozo
disciplinar se for, como o deus da religião judaica, onipresente e indefinível. Denso
mistério em relação ao qual nunca podemos dizer que o penetramos, mas em relação ao
qual temos de nos esforçar para dele nos aproximarmos o mais possível, fenômeno que
não culmina numa transcendência, mas que tende para um sujeitamento que nunca
chega ao fim. É o que acontece com a teologia orgástica, como todas as teologias: o
banho purificador da crise voluptuosa é tão inacessível quanto o absoluto. No entanto, é
preciso que ele seja desejado em sua qualidade de algo que nunca deixará de nos fugir:
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esta é a mais etérea das normas. De modo que ninguém é seu depositário fiel, assim
como a procura dela não tem fim. O essencial é que os corpos continuem assombrados
por uma ausência possível e corroídos pela surda inquietação por terem perdido —
quem saberá — o Frisson Total, o Grande O...

O prepúcio-rei

J. L. Borges imagina, no “Teólogo”, uma heresia de histriões a respeito da qual


escreve: “Pensaram que o mundo acabará quando se esgotar o número de suas
possibilidades; uma vez que não pode haver repetições, o justo deve eliminar (cometer)
os atos mais infames a fim que estes não maculem o futuro e a fim de apressar o
advento do reino de Jesus” (Aleph, p. 55-6). Talvez a atual hipererotização de nossas
sociedades assinale um paradoxo idêntico, o mesmo desejo de neutralizar o sexo com o
sexo, a mesma impaciência, a mesma esperança de uma contagem invertida, de um fim
já determinado cuja proximidade aboliria finalmente a angústia da sexuação.
A veneração do orgasmo (inaugurada por Reich e retomada em coro pelos
doutorzinhos de meia-tigela) surge assim como correlativa daquilo que poderíamos
chamar de tirania do genital, isto é, a tripla redução da sexualidade aos órgãos e aos
prazeres genitais e do erotismo feminino ao equipamento sexual masculino, além da
redução do próprio sexo masculino ao pênis, com a marginalização concomitante da
erogeneidade anal. Reich sem dúvida encara o desejo como libido anônima, mas este
anonimato é por ele remetido ao baixo ventre como realidade suprema, derradeiro
território privado do homem ocidental; tudo acontece como se ele quisesse desculpar
seu arrazoado em favor da sexualidade nos dizendo: pelo menos assim as coisas não
sairão do pequeno quadrilátero genital, do pequeno tufo de pelos pubianos (sendo nisso

14
Definir o orgasmo é certamente a tarefa mais árdua que se pode propor a um sexólogo (Union, mar. 1973), diz
o doutor Meignant numa confissão que pode ser entendida de vários modos.
idêntico a Freud, que encerra o inconsciente na família e em Édipo). Na falta de um
território mais amplo, fica-se com o eterno falo, e uma vez que este não vai até o
mundo, o mundo vem até ele, se encarnará e se concentrará nessa experiência única,
modelo de todas as experiências: o orgasmo. O genital, em cujo nome é em geral
travado o combate pela emancipação dos costumes, marca uma vontade de fixação da
energia livre, de sua reclusão e sua resolução, de sua reabsorção autoritária por algum
lugar controlável. Acontece com o amor aquilo que acontece em política: não passamos
dos grilhões para a liberdade, trocamos uma ortodoxia por outra.
Do genital pode-se dizer que hoje ele é o lugar onde sopra o Espírito, o espaço da
Santíssima Trindade, atestado vivo do humano sobre nosso corpo. Não rompemos com a
antiga divisão cabeça/sexo, rosto/eu; nós a invertemos, deportamos o que em nós havia
de divino da alma para o ventre, e com isso mantivemos o divino, isto é, a ideia de
corpos com um centro. O privilégio atribuído ao genital pode ser compreendido
facilmente: é que, pelo menos no homem, ele configura um gozo localizado,
determinado, que permite, mais que qualquer outra coisa, a conclusão de tratados, a
assinatura de contratos, porque esse gozo é uma garantia efetiva: ao dar-se o sexo, dá-se
também um penhor, e com isso instaura-se, funda-se, esgota-se uma relação. Com isso,
assimila-se o comércio galante com um regime hipotecário, faz-se do sexo o único valor
de troca autêntico, aquele que, partilhado por todos, edifica de imediato o verdadeiro
comunismo. Assim, o coito é sempre uma introdução à vida igualitária, o ato edênico por
excelência, o equivalente pagão da comunhão cristã: mais revolucionário que o
igualitarismo material, mais profundo que a simples fraternidade, ele não deixa de
produzir aproximações, osmoses, compatibilidades. E com isso o desejo de revolução
passa do verbalismo leninista ao ativismo sexual: mas nessa consagração, quanto
desconhecimento dos próprios órgãos genitais! Pois não há dois sexos que se
assemelhem, que gozem do mesmo modo, que se alimentem dos mesmos fantasmas;
não há duas vulvas que vertam as mesmas lágrimas de alegria, dois testículos idênticos,
dois pelos do cu que se apresentem igualmente crespos, dois jatos de urina que mijem
forte com, a mesma alegria. Nada de mais variado que as formas roliças da bunda, que
as dobras profundas dos dois lábios, que a topografia de um pênis, que o advento e a
conclusão de uma volúpia. Como, a não ser através de um ato terrorista, introduzir uma
paridade, uma medida, um protótipo para todas essas divergências?
Como dissemos, o genital é um dispositivo de reclusão, isto é, de delimitação que
define os lugares intensos (zonas erógenas) e seus contrários (zonas frias, sem
sensibilidade); que, portanto, pressupõe a existência de um interior sempre quente, um
exterior sempre neutro, que pressupõe, em outras palavras, uma certeza de gozo ali,
uma certeza de não-prazer, aqui. É como se a intensidade estivesse assegurada desde o
momento em que o genital é convocado; como se não pudesse haver a frieza do pênis e
da vagina e o calor das mãos, do torso, dos lábios ou da nuca, como se não pudesse
haver frio e calor conjugados, hiperestesia e insensibilidade ligadas de modo
indistinguível, coisas que são e não são ao mesmo tempo. É necessário pensar o par
genital/agenital como uma falsa dualidade, um dualismo incerto; é preciso imaginar um
corpo não dual mas dúplice, que nos engane com essa duplicidade para nossa maior
felicidade. É preciso querer a incandescência do rosto, das palmas das mãos, dos quadris,
tanto quanto do sexo e do ânus. E é preciso viajar de um para outro. Deslizar sobre cada
um deles, e gozar com esse deslizamento. Não há órgão que tenha o privilégio da
veemência sensual, não há zonas certas que garantam o êxtase e regiões pouco seguras
das quais melhor seria fugir; tudo é alimento para os sentidos e, assim, não existem
partes que, postas em comum, certifiquem a coesão, o entendimento, a harmonia de um
grupo. A cabeça é um pedaço de pele como outro qualquer, assim como o sexo é apenas
uma parte da cabeça. Todo o corpo é uma máquina de loucuras, incluindo os cotovelos,
as unhas, os dentes, o osso ilíaco, a úvula, o tímpano, o intestino grosso, o umbigo, os
bulbos capilares, o couro cabeludo, as axilas, o fêmur, o tendão de Aquiles, o dedo
anular e o mindinho, incluindo o rabo e o pênis. O pê o quê? Quequiéisso?
O sexo do homem, por exemplo, para falar de um objeto que durante tanto
tempo obnubilou os espíritos: como é ridículo vê-lo apenas como símbolo de poder ou
aparelho de gozo, e batizar de fálico tudo aquilo que for pontudo, ereto, glanduloso ou
prepucial (com a metáfora freudiana demonstrando, sob este aspecto, sua pobreza). É
que, se o apêndice dos meninos faz com que eles riam às vezes, é porque ele lembra mil
outras coisas além de seu uso consagrado; em estado de repouso pode-se pintá-lo,
amarrá-lo como se fosse um saca-rolhas, mergulhá-lo em açúcar, prendê-lo a uma polia,
costurar a pele sobre a glande, regar os vizinhos, fazer com que desapareça no meio das
coxas. Em ereção, pode-se transformá-lo em marionete, porta-guardanapo, baqueta de
tambor, cavalinho, violão, e os próprios testículos, com sua vegetação bizarra e seu- ar
de carrilhão, e o ânus com seus talentos musicais, sua bolsa de odores e os pelos do
púbis, que se pode pentear, tingir, raspar, pentear em tranças, cortar como barbicha, e
os pelos do cu onde se deixam acumular pequenos pedaços de merda pela simples
alegria de arrancá-los depois, um a um: quantas ocasiões para o riso, para a invenção, a
imaginação, para a travessia das regiões genitais de mil outras maneiras e possibilidades
das quais a cópula é apenas um dos aspectos. O rosto, os quadris, quando dão lugar a
grandes emoções, não o fazem tanto enquanto lugar (ou lembrança ou representação)
das metrópoles genitais: existem intensidades do olhar, da distância, da verticalidade,
assim como há intensidades de descarga e de penetração. Não subordinemos nada a
nada, nem o orgasmo ao sorriso, nem a passividade ao movimento, nem o casto ao
obsceno, nem a roupa à nudez. À clássica divisão em dois entre o elevado e o baixo, o
nobre e o bestial, saibamos substituir uma pulverização onde o sexo, a cabeça e os
braços nunca sejam sempre a mesma coisa; transformemos cada configuração
anatômica, cada traço morfológico em ocasião para o prazer, em suporte para
experiências inéditas, libertemo-nos da crença no funcional, no natural (a boca pode ser
um sexo, o sexo uma boca, o cu máquina de engolir, na lavagem por exemplo, etc.). Não
mais uma centralização dissimulada, mas uma fragmentação ao infinito. Façamos mil
recortes na bela totalidade do organismo, nunca serão em demasia as ilhas,
arquipélagos, lagunas, continentes que se possa pôr à deriva.
Dizer tudo sobre o sexo: não é esse o sonho secreto da sexologia, que, de simples
serviço terapêutico ou correção de disfunções, tende cada vez mais a tornar-se uma
enciclopédia da sexualidade, vontade gulosa de englobar todos os aspectos do amor
num saber único? Desejo de dizer a verdade sobre o desejo e constatação da
impossibilidade relativa dessa verdade, a sexologia — pelo menos a melhor delas, onde
incluímos Reich, naturalmente — nem por isso deixa de ostentar uma certa desmedida
(sempre contrariada, infeli2mente, por simplificações apressadas, por reflexões
insípidas), desmedida talvez característica de toda escrita que tenta dar autonomia ao
sexo e apresentá-lo como esfera separada. É que produzir a soma total de
comportamentos, mitos, fantasmas amorosos só é possível se já se tiver procedido à
circunscrição do amor num território bem delimitado — o genital — após o que a ele se
remeterá o conjunto dos seres e das coisas como sendo a própria mola oculta do
movimento que os anima: operação retorcida — e que dá a impressão, diante de todas
essas obras, de ler sempre a mesma coisa sob nomes diferentes — uma vez que já se
toma como pressuposto exatamente aquilo que se diz procurar, numa falsa infinitude
que mima a fuga, mas se contenta em ficar marcando passo no mesmo lugar. Sob esse
aspecto, nada mais censurador que expressões como: “Tudo é sexual”, maneira
disfarçada de dizer que tudo sempre acaba dando na mesma, que não há nada de novo
sob o sol, que um implacável destino genital dita os gestos que devemos fazer desde o
nascimento até a morte, bastião onipresente a partir do qual psicanalistas, psiquiatras,
sexólogos elaborarão suas litanias sobre a Ordem, o Falo, a Castração, o Orgasmo. Toda
a revolução sexual consistiu assim, nestes últimos anos, na promoção (e portanto na
imposição) de algumas formas de amor, geralmente próximas de modelo heterogenital,
formas que se apresentavam como tão perfeitas e universais que, com sua
generalização, a sexualidade, enfim reconduzida a sua clássica vocação, não teria mais
problemas. Desejo de harmonizar os desejos, de fundi-los numa mesma concordância,
de parar a história. Se nossa época “libera” um erotismo, um corpo, é porque ela
primeiramente os inventou, forjou totalmente ou, em outras palavras: a repressão do
genital é, antes de mais nada, repressão pelo genital. Donde a natureza necessariamente
terrorista de toda “liberação” sexual: porque persegue um sonho igualitário, ela é
alérgica a tudo que contraria a universalidade desse modelo: se ela rejeita o mais
insignificante dos pervertidos do interior pela mesma razão que rejeita o pederasta, o
necrófilo ou o escatófago, ela não o faz a despeito de sua piedosa vontade de
estabelecimento de um igualitarismo: é porque ela é igualitarista em sua própria
essência. Aceitos, integrados, o homossexual, o masoquista, recriariam uma hierarquia
entre cidadãos liberados — contradição nos próprios termos, uma vez que o amor é Um.
Para essa emancipação não há diferenças, há apenas desvios.
A genitalidade é a procura de um novo contrato corporal onde dominaria mais
uma vez o masculino sob sua forma peniana, sendo que todo desvio desta regra se veria
rotulado como neurose, arcaísmo ou conservantismo. Com isso, a sexualidade de hoje é
menos uma aliança entre indivíduos diferentes do que um pacto entre ambas as partes
de um mesmo sexo, uma transação intraviril a respeito de homens, mulheres, crianças: é
preciso que o encontro entre os corpos passe através dos signos admitidos pelos
parceiros e que esses signos sejam masculinos em sua própria essência; em outras
palavras, é preciso que a troca de mulheres seja doravante negociada sob o emblema de
uma homossexualidade masculina fundamental anterior a toda categorização sexual. O
genitalismo é uma certa forma de economia pulsional que se pretende representante,
senhora, federadora de todas as vias da libido. Reich quis jogar luz sobre uma desordem:
acabou dando um novo rosto a uma forma de sujeição bastante antiga, não fez outra
coisa senão fundamentar o direito de a norma ser exatamente uma norma, não fez mais
que justificar as mil e uma razões que a lei apresenta para ser mais legal e mais legítima
que todas as outras leis. A teoria reichiana é um culto fálico cuja simplicidade tem o
efeito de tranquilizar; uma imensa e às vezes admirável utopia homossexual que modela
todos os fenômenos cósmicos, climáticos, políticos, marinhos do universo a partir do
mecanismo do gozo e pelo pênis, do advento rápido e visível do orgasmo viril. Essa
colocação, feita ao redor do pênis em nome de toda a humanidade, torna-se
insuportável porque apresenta-se de modo dominador, extraindo sua autoridade apenas
do fato de excluir mil outras formas de ligação; em suma, porque se mostra incapaz de
pensar o amor como diversidade. Não queremos saber de um novo — de um outro —
sistema monetário amoroso, mas o que nos interessa é a queda, a decomposição de
todos os padrões ainda em vigor, e que os signos do comércio galante se embaralhem a
ponto de se confundirem. É por essa razão que se deve considerar como uma boa coisa a
atual desvalorização do genital masculino. A demanda de orgasmo, como se viu, é um
desejo de ordem cuja finalidade é garantir a paz civil dos órgãos. O orgasmo é, assim,
esse contrato de gozo que o homem desguarnecido propõe à mulher: todos os valores
de que eu era depositário estão desmoronando; restam-me apenas meu sexo e seu
modo de utilização infantil; alinha tua sexualidade pela minha; renega tudo, se for esta
tua escolha, mas não renegues meu ventre (ora, como poderia o orgasmo ser o projeto
ou a obsessão feminina se é verdade que, com exceção das adolescentes que se iniciam
na carreira amorosa, toda mulher pode gozar, durante o ato, uma infinidade de vezes e
de modos bem diversos? A recorrência da volúpia feminina ridiculariza as pesadas
elocubrações metafísicas dos profetas do prazer).

A exceção, única lei possível no amor

Nenhuma repressão sexual seria durável se não fosse simultaneamente


erotização ou sexuação diferenciada do corpo. Pois o corpo não renúncia ao prazer sem
colher certos benefícios paralelos que justifiquem essa renúncia. As razões em nome das
quais nos deixamos despojar são razões do gozo. Não é o caso de contentar-se com dizer
que existe repressão sexual, é preciso acrescentar que essa repressão é consentida,
quanto mais não seja pela segurança por ela proporcionada. E é preciso dizer ainda que
esta reside hoje menos na sufocação dos impulsos que na coação no sentido de um certo
desabrochamento erótico. É por isso que a repressão sexual, em si mesma, nada prova
sobre a natureza a priori subversiva da sexualidade genital, sobre uma alergia atávica do
sistema em relação à realidade dos prazeres voluptuosos. Isto porque a lei desfigura
essencialmente o que é por ela reprimido e porque a transgressão dessa lei, longe de ser
sua superação inédita ou seu esquecimento, é na verdade uma sua aplicação, e a mais
irrisória em relação àquilo que ela realmente proíbe. A repressão reside tanto na
proibição do exercício sensual quanto na formação de um corpo de prazer centrado
sobre o genital. É a lei que estabelece as normas, mostrando-nos o que desejamos, é ela
que pretende degradar nossas intensidades em desejos de intenção: eu o proíbo de fazer
isso, portanto é isso que você quer, é preciso que você queira exatamente aquilo que lhe
estou proibindo. Quem sabe se a “sexualidade” não é esse conjunto de condutas
programadas — da coerção à liberação — pré-fabricadas inteiramente por uma ordem
acima de tudo preocupada com a fixação do desejo num determinado espaço
15
controlável? O primeiro gesto da norma não é negativo, é criador, delimita uma área,
exatamente esta e aquela sobre a qual lança a proibição; ela pré-fabrica a emancipação
futura, desenha-lhe o quadro geral, prepara suas fronteiras. E apegar-se a uma simples
derrubada desse edifício não é outra coisa senão a recondução da lei em suas mesmas
formas. Para que a obra de Reich nos tivesse realmente desnorteado, teria sido
necessário que ele abandonasse o estereótipo da sexualidade masculina (do bom macho
branco que penetra sua úmida fêmea), que ele deixasse de promover, de incensar o
estatuto hegemônico, repressivo, do penicentrismo. Não precisamos de novas terapias
comportamentais. Nossos amores não carecem de liberdade ou de “potência orgástica”,
mas de complexidade: eles são simples demais e na melhor das hipóteses satisfazem
apenas uma ou duas paixões.
A própria dimensão político-sexual, que pretendeu ser uma ampliação da política
e da sexualidade através da fecundação recíproca desses dois aspectos da existência, só
conseguiu, pelo menos até aqui, reproduzir e multiplicar os respectivos impasses de
ambas. Esse novo freudo-marxismo só fez duplicar todas as culpabilidades, provando-
nos, através de duas ortodoxias complementares, que, em relação a ele, estamos
sempre errados: por gozarmos demais, pois nesse caso esquecemos as lutas, os deveres
de classe, a infinita miséria da humanidade; e por não gozarmos o suficiente, pois com
isso participamos diretamente, com nosso corpo, da couraça reacionária. Erro por
excesso, erro por insuficiência: tornando-nos responsáveis de um erro por natureza não
passível de conhecimento, o político-sexual nos mergulha novamente nas aporias do
16
pecado original. Mais do que perpetuar um pensamento pelas causas e de chorar
dizendo “É tudo culpa da sociedade” (e a sociedade, é culpa de quem?), melhor seria ver
como o surgimento das minorias sexuais (mulheres, pederastas, travestis, fetichistas —
da borracha, do ferro, da porcelana — sadomasoquistas, chupadores de dedo, etc.)

15
“É provável que o conceito de sexualidade tenha aparecido no século XIX quando se reuniram num todo os
componentes genitais de inúmeros comportamentos. Isso pressupõe uma posição definida diante desses
comportamentos, pois o caráter genital é apenas um aspecto fragmentário do comportamento.” Jos Van Ussel.
Histoire... op. cit., p. 15.
16
Nisso ele quase não se diferencia da sexologia dita burguesa — a não ser pela retórica — uma vez que
compartilham do mesmo respeito piegas pelos mesmos valores. Seria interessante, aliás, estudar como é possível
um discurso sobre o sexo, qual a condição para ele tornar-se legítimo e garantia da verdade sobre nossos
prazeres, confissão de sua ascendência sobre nossos corpos; como, transformando o genital em matéria de
ensino, ele se apresenta como a continuação da escola por outros meios. Sendo ao mesmo tempo a constituição
de sintomas e conjunto de remédios para eliminar esses sintomas (havia perturbações do orgasmo da Idade
Média, e será que até mesmo se isolava claramente essa palavra, dado que em seu sentido atual ela só existe há
um século?), a sexologia ensina menos uma matéria determinada do que representa, no domínio sexual, um papel
importante no comportamento escolar. A sexologia talvez seja o último avatar do século das Luzes: de Reich a
Meignant, o aprendizado do prazer segue uma ordem e uma racionalidade puramente pedagógicas.
permite hoje conceber o desmoronamento do político como delegação e o
desmoronamento da sexualidade reduzida ao sujo e ínfimo segredo genital. Pois é
evidente que a revolução sexual existe tanto quanto a revolução política ou, colocando
as coisas de outro modo, que a revolução sexual não tem fim, pois nunca haverá um
momento em que as boas intensidades seriam alcançadas de uma vez por todas, em que
o “inimigo” seria abatido definitivamente; e isto porque a destruição de alguns tabus não
deixa de suscitar outros, porque toda limitação engendra o desejo de sua desobediência,
porque toda luta é apenas uma etapa, porque cada combate ganho multiplica as frentes
de batalha e porque, nesse caso, trata-se menos de emancipação do que de exploração,
de cultivação de mundos, trata-se de derivar na direção de espaços inéditos. A própria
noção de “miséria sexual” é ambígua na medida em que pressupõe seu contrário, a
riqueza, um limiar de pobreza atravessado definitivamente. Ora, em que consiste a
fortuna nesse assunto, com que padrão avaliá-la? Inexiste uma necessidade amorosa
mínima, assim como inexiste uma necessidade republicana mínima; o que existe, para
cada um, é a urgência fundamental de um excedente, uma precessão do erotismo, do
suntuoso, do dispêndio em relação à parte côngrua, uma parte de luxo sempre variável e
movediça que determina o índice das “necessidades” próprias. No domínio sexual,
ninguém é pioneiro, portanto nada é sedentário, minoridade alguma detém o privilégio
do discurso amoroso, todo discurso amoroso é necessariamente minoritário, não há
conquistas a fazer, as volúpias são múltiplas, inclassificáveis, cada um é ao mesmo tempo
o ameno campo fechado por ele cultivado, o nascer e o pôr do sol neste planeta, o rio
que carrega esta terra, a barragem que aprisiona o rio, o terrorista que explode a
barragem, o engenheiro que repara os danos, o bárbaro que novamente devasta o oásis
assim reconstituído, o jardineiro que recolhe as ruínas, tudo isso ao mesmo tempo e de
muitas outras maneiras; ninguém é livre, ninguém é posto contra a parede, tudo muda
sem que nada mude, nada se detém e tudo permanece imóvel, Paulo VI é o maior
fornicador depois de Breschnev e Mao, trepamos todos como se fôssemos católicos
integristas, há tanta pornografia sob a batina de um seminarista quanto na vulva mais
arruinada, Vera Fischer é tão emancipada quanto a leitora de Cláudia, isto é falso
evidentemente, mas que nos compreendam bem: chega de lições sobre como gozar
direitinho, chega de entre coxas erigidas em pedestais arrogantes, vamos deixar de
trepar apenas pelo prazer de dar o exemplo, de condenar, de distinguir entre uma coisa
e outra, chega de hierarquias das sensações, saibamos perder a cabeça em
arrebatamentos minúsculos, em deslocamentos mínimos, em detalhes ínfimos.
Pois possivelmente não há revolução sexual sem revolução alimentar, auditiva,
tátil, perceptiva, vestimentar, olfativa, sentimental, ungular, cosmética, epidérmica,
manual, anal, mental, cervical, vesicobiliar, hepática, gastreteróclita, intestinal, da
medula empedernida, vaginal, clitoridiana, monte-de-venusiana, lingual, labial, celular,
em suma sem uma revolução anatômica, física, nuclear, química, relacionai. Mais vale
dizer que a revolução sexual como redenção do corpo total apenas através do exercício
dos órgãos genitais é uma aberração, uma imbecilidade tão monstruosa quanto o
17
puritanismo hipócrita das gerações anteriores.
Se a ejaculação (isto é, a penetração não-recíproca) é para o homem, no coito, a
maneira legal, ortodoxa, de copular, se o auge, quando ambos acabam, é o índice
tranquilizador de que os amantes estão no mesmo diapasão e não cometem erros, não
está proibido sonhar com a heterodoxia e formar, sobre essas questões, seitas de heresia
local; em suma, não está proibido contribuir para o aperfeiçoamento do gozo através do
aperfeiçoamento daquilo que são os desvios da norma. O orgasmo peniano nesse caso
seria apenas um suplemento, o luxo bizarro de nossos prazeres e não mais o alvo único
deles, o imperativo severo que os ordena e hierarquiza. Libertar o amor do paroxismo
orgástico é, inicialmente, libertá-lo da coação de um programa, é também libertá-lo de
um novo critério de exclusões. Fazendo da emissão seminal o denominador comum de
suas relações, o homem se penaliza tanto quanto ele restringe a mulher; outras alegrias,
mil outras que não aquelas, simples e limitadas, da exoneração espermática, abrem-se
diante dele. Em primeiro lugar, aquela que consiste em substituir a sexualidade
monoface, genitofálica, pela figura de Janus, pinto e cu. “Feminizemo-nos”, adquiramos,
*
por nossa vez, corpos penetráveis, abramos bem nossos orifícios, nossas orifícias.
Comissário do povo para as pulsões, para uns, deputação na Assembleia dos
Sentidos, para outros, o orgasmo, na medida em que é divinizado, depende de uma
mesma ideia: a cada um, seu sexo, seu corpo, sua alma (três termos doravante
reversíveis e intercambiáveis), como sendo o bem que cada um deve fazer frutificar, o
terreno que deve fazer render. É preciso que a volúpia, como quintessência do centro
genital, esteja baseada num bom relacionamento, que seja obcecada e justificada por
uma finalidade. No fundo, o culto do orgasmo talvez tenha uma única função: concentrar
a emoção sobre o sexo e libertar o corpo de todo desejo a fim de torná-lo disponível
para o trabalho (e talvez Reich quisesse realizar aquilo com que puritanismo algum
ousava sonhar: a reconciliação dos contrários, a conjunção, sob os auspícios da descarga
18
propícia, entre a lubricidade e o império do salário). Sendo essencial, para a sexologia
(“burguesa” ou “política”) ocupar os corpos, o que interessa é fazer que suas forças
sejam gastas de certo modo, uma vez que programar um corpo (dizer-lhe que fim
procurar, como chegar até ele, etc.) é sempre uma maneira de dirigi-lo, investi-lo,

17
A respeito, basta de frases do tipo: “A repressão sexual é, com a religião, o principal instrumento ideológico
que impede as massas de tomarem consciência da exploração e opressão a que estão submetidas.” Os que dizem
isso acham realmente que as massas são absolutamente imbecis? Será que, por acaso, não se vai pra cama na
classe operária? Não, de acordo com os modelos propostos pelos grandes gurus? A partir de quantos orgasmos o
aluno proletário está em condições de ouvir adequadamente as palavras ajuizadas de seu professor em revolução
total, o Partido?
*
No original, um trocadilho: a palavra orifices pode soar, quando pronunciada, de modo a evocar orifils,
lembrando fils, filho, mas também jovem, rapaz; daí, no original, o jogo com orifilles, evocando moças, isto é, o
feminino. (N. do Trad.)
18
Em todo caso, está fora de dúvida que o orgasmo, enquanto máquina anti-stress, um dia encontrará sua
utilidade nas terapias de readaptação social: “Para mim, escreve o dr. Meignant (Union, out. 1975, p. 82), a
verdadeira virtude do orgasmo é seu poder reequilibrador. Sempre digo que um orgasmo equivale a uma boa
dose de tranquilizante...” Acrescente-se esta frase de Betty Dodson: “Os planos quinquenais devem incluir os
orgasmos”, e teremos uma pequena ideia da nova ordem sexual que logo poderia surgir, sempre, evidentemente,
em nome da liberdade e da revolução.
penetrar nele, animá-lo um pouco, assim como se ocupa uma praça forte. Se há algo de
insuportável nessas novas medicinas do amor é exatamente a irresistível mania que têm
de querer curar, corrigir todo mundo. Por que não encarar a frigidez como um gozo que
se recusa e protesta, a impotência como uma virilidade que não mais quer desempenhar
seu papel, que recusa o exame, e a ejaculação precoce como um aparelho erótico que ri
de si mesmo? Não há pontos culminantes em amor, e portanto não há densidades
menores, nem momentos irrisórios; há apenas detalhes, igualmente voluptuosos,
igualmente perturbadores. Contra Reich e a sexologia atual (sua digna herdeira)
podemos dizer: somos todos uns maus trepadores, maus gozadores, mal trepados, todos
brochas, vaginas secas, somos todos minorias eróticas. O orgasmo, o gargarejo de
órgãos, os grandes órgãos de espasmos que vocês ostentam não nos interessam nada,
não vamos edificar sobre eles uma nova religião, isto é, um novo terror, com seus
sacerdotes, seus incrédulos e seus párias. Permitam que gozemos. Não existe um padrão
para o erotismo inteligente, nem a boa perversão (não existe perversão), nem a boa
sexualidade (portanto não há sexualidade maldita), nem solução final, tranquilizadora,
revolucionária, para o amor.
O sonho do macho mediano da Europa, hoje, é que todas as mulheres corram
para ele gritando: “Seu esperma me interessa. Seu gozo me deslumbra”. O próprio
projeto de uma revolução sexual, centrada sobre a comunidade genital, talvez seja
apenas um meio de reforçar a dominação masculina ao acelerar a troca de mulheres. O
que se visa não é à liberação da mulher mas à liberação, sob o signo do erotismo
masculino, de sua disponibilidade total aos homens, de sua trocabilidade. A
19
heterossexualidade não existe, nossos sistemas sociais encorajam apenas um certo tipo
de homossexualidade masculina (falo-genital), cujo primeiro gesto, paradoxalmente, é
atingir os homossexuais masculinos (por se conduzirem como “mulheres”, eles circulam
e não deixam circular, rompem a integridade do corpo masculino ao se deixarem enrabar
e abolem o duplo tabu da penetração anal e do excremento?). Toda semelhança, mesmo
postulada, é desejo de abolição de uma diferença; o jacobinismo erótico tende hoje a
fazer as vezes de um centralismo político decadente. Em outras palavras, a diferença dos
sexos não existe; ou, melhor, existe apenas sob uma forma hierárquica de subordinação;
antes de apagá-la ou confundi-la, é preciso estabelecer aquilo em que consiste.

19
Tem-se a impressão, lendo as obras de informação sexual, que seus autores, tanto quanto a maioria dos
psicanalistas, detém ou acreditam deter o segredo do desejo erótico, e que esse segredo é bem claro: inexistem
diferenças entre os sexos, isto é, a única coisa de diferente que existe é o corpo masculino.
SOBRE A VAGINITE OU A IMPOTÊNCIA CINCO DISCURSOS,
CINCO MÉTODOS POSSÍVEIS

O sexólogo, imediatamente prático: Vários problemas se entrelaçam cm seu caso.


Comece por untar a glande de seu parceiro com manteiga ou vaselina, pense em coisas que o
excitam, reative seus fantasmas no momento do ato sexual. Se os sintomas persistirem faça
cursos de orgasmoterapia, entre para um grupo de Sexologia Humanista, leia Liberdade,
igualdade, sexualidade; O Casal e suas carícias; Massageando a glande; vá ver filmes
eróticos, resultado garantido nos próximos meses.
O psicanalista, altamente erudito: Sem dúvida isso remonta há muito tempo atrás,
vamos explorar juntos seu corpo interior, deite-se, prometo-lhe uma ereção dentro de seis
anos...
O militante, eminentemente histórico: Acuado em suas insuperáveis contradições, o
Capital atinge hoje o próprio âmago de nossa intimidade. Camarada, se você quiser recuperar o
pleno exercício de suas faculdades amorosas, venha conosco abater este monstro odiento que
nos castra a todos. . .
O cínico, sempre apressado: Você está me dizendo que sua vagina não se abre? Que
seu pênis não se levanta? É porque não lhe servem para coisa alguma. Tampe a vagina, corte o
pênis. Aliás, como você é rico, não precisa de tantos órgãos.
Nós mesmos, radicalmente incompetentes: Você está doente do genital. aproveite para
pensar em outra coisa. Liberte-se da ideia de que a sexualidade deixa de existir no momento
em que você não pode fazer amor (quando desaparece a possibilidade de cumprir o contrato
genital). Por exemplo, tente a sodomia, sensibilize outras partes de seu corpo, acabe com todo
tipo de prisão sexual. Perca essa mentalidade de assistido, não preste atenção aos especialistas,
foram eles que inculcaram em você essa obsessão com a saúde. Não considere sua indigência
atual como forma de enfraquecimento, descubra nela outras forças, outras perspectivas ocultas
pelos barulhentos sucessos do organismo. De modo especial, não penetre no círculo ignóbil da
culpabilidade, não procure auxílio, pois desejar um remédio já é aceitar-se como doente, como
inferior: trapaceie com as imagens impostas à nossa sexualidade pelas leis. Em todo caso, não
se preocupe (isto se dirige especialmente aos meninos): se continuar impotente por mais de seis
meses, seu pênis acabará caindo por si só.
Pornograal ou a república dos testículos
Saindo da clandestinidade, a pornografia parece ter atraído todos os públicos e
amotinado todos os discursos: estes, aliás, se desencadearam com uma violência ou
ansiedade tanto maior quanto viam as vendas desmentir sua influência e aniquilar seus
esforços de prevenção. O troféu, sob este aspecto, cabe sem dúvida ao Puritano. Ele foi
o mais diretamente atingido: portanto, de modo muito normal, é sua resposta que
atinge o paroxismo do ódio e da repulsa. Em sua forma educada, seus anátemas
afirmam: “A pornografia comercia com as aberrações mais vis dos instintos.” (Étienne
Borne). Mas esta contenção verbal é excepcional: o lirismo comum entrelaça os dois
léxicos da bestialidade e do açougue: a pornografia é a animalidade, e em seus dois
estados, viva e morta: evidenciando um formidável desprezo pela graça do animal e
pelos prazeres do sexo, a maioria vociferante viu apenas, na exibição dos enlaces, a
estranha imagem do animal de duas cabeças. Quanto às epidermes desnudadas,
suscitaram estas um reboliço gastronômico, uma vez que ao termo inicial “carne” vieram
logo somar-se “rosbife” e “filé”, e até “carne de segunda”. Muito comuns na classe
política, esses inquisidores dos corpos exigiram a censura, e quando conseguiram uma
taxação mais rendosa e mais dissuasiva que os antigos interditos, ainda convidaram,
1
através de um deputado do governo, o próprio governo a “endurecer seu sexo”, não
sabendo que lapso escolher para represar essa vaga de obscenidade, e revelando assim
que todos esses membros viris banalmente expostos na tela ameaçam fazer desmoronar
os valores viris de que pretendem ser os únicos mandatários e guardiães.
Muito numerosos entre os críticos de cinema, os Estetas combatem todo tipo de
censura: mas lamentam que a pornografia seja tão feia e que sua vulgaridade seja tão de
prostituta. Sonham com fantasmas distintos, grandes criadores visionários, delírios
luxuriantes ou, pelo menos, proezas técnicas com as quais transfigurar a sinistra
banalidade do enlace.
Mais raros, mas igualmente infelizes, os blasfemadores ou saudosistas do tempo
das proibições entediam-se com essas bacanais fáceis: lamentam o heroísmo das
perversões malditas. Seu credo: quando não há dificuldades, não existe prazer. Por
exemplo, para que praticar a sodomia se ela não mais significa um risco, nem uma
blasfêmia? “A luz” pornográfica, dissipando a imagem do pecado, desangustiou a luxúria:
mas um prazer permitido é um prazer diminuído e assim, privado da Lei, o transgressor é
uma figura triste.
Os militantes tradicionais, que ainda legislam certas práticas políticas, denunciam
sem hesitar a assustadora mistificação do espetáculo pornô. Essa explicação já foi usada
antes? Pouco importa, lá vai de novo: os filmes pornôs apresentam sempre, e com visível
complacência, personagens ricas e ociosas que podem consagrar toda a sua existência ao
prazer. Ao invés de revelar a complexidade social em sua realidade de exploração,

1
Em lugar de “endurecer o texto”.
mostram um mundo fictício e ilusoriamente pacificado. Em suma, fazem com que
tomemos por lanternas suas lamparinas e a existência de alguns privilegiados, por uma
imagem da vida. Não surpreende o fato de que entre os clientes assíduos do pornô haja
uma maioria de explorados e oprimidos de todos os tipos: conforme a intenção do
Capital, esses espetáculos são feitos para eles, para se apropriarem do desejo deles e,
sem poder satisfazê-los, desviá-los pelo menos do campo das reivindicações. Fica-se
repetindo que o sistema funciona segundo sua ideologia e que se as pessoas
percebessem sua desgraça ao invés de cair na armadilha dos signos, a dominação
burguesa logo se extinguiria, como uma vela que se apaga com um sopro. É para fazer
frente ao perigo dessa tomada de consciência que o Capital vigilante se esforça por
embriagar os fantasmas, enchendo-os de vaginas e carros americanos, de sexo e
dinheiro, esses dois ingredientes do novo ópio do povo. Saindo da sala escura, os
espectadores boquiabertos e bem condicionados não ficam sonhando com o Grande Dia
mas com noites inquietantes; ficam boiando à deriva a ponto de, esquecidos do cansaço
do dia e da luta de classes, mostrarem-se capazes de trocar suas carteirinhas do partido
por entradas para uma boa suruba! “Vamos falar a verdade, não são de pessoas assim
que se pode esperar a revolução” (Breton).
Indiferença profunda a cínica da pornografia em relação a todos os discursos que
ela feriu, escandalizou ou desapontou. Alegria transbordante dos produtores de filmes
pornôs ao constatarem que a virulência das críticas não exerce influência alguma sobre a
quantidade de seus clientes. Se temos de nos contentar com apenas uma razão para
gostar do pornô, será por essa indiferença e essa alegria. Bem-pensantes, cultos,
católicos ou militantes, o desprezo múltiplo que o pornô provoca inspira-nos uma
repugnância diante da qual as reservas que podemos ter em relação a ele pouco
importam. Vamos preferir sempre os hard-core (espetáculos de sexo explícito, não
fingido) às ridículas cruzadas que pretendem combatê-lo, cruzadas que apresentam o
traço comum de uma mesma oração presente em todas elas, apesar da variedade
aparente de suas bandeiras: por misericórdia (e sob pena de censura ou boicote), não
deixem a sexualidade entregue a si mesma, insuflem-lhe amor, pecado, blasfêmia,
beleza, sentido de história, revistam-na com um valor afetivo, político, até mesmo
religioso, satanizem-na, transcendam-na na direção de uma finalidade superior que
justifique sua exibição e, assim, enobreça nosso prazer. Com isso terão feito uma boa
ação ao dar à representação do desejo uma razão de ser que a purifique de seu pecado
primordial: pois pecado é a exibição das carnes e a animalização de um prazer despido
de qualquer espiritualização; pecado ainda a recusa de corrigir essa situação, matizando
a iluminação segundo a feiura desses corpos entrelaçados; pecado (paradoxal!) é a
ausência total do pecado na platitude desses enlaces; pecado, enfim, a ocultação do
político pelos sofás macios dessas casas de campo de um luxo magnífico.
A partir do desprezo votado pela Igreja ao corpo, a literatura clássica induziu uma
rigorosa separação dos gêneros: o universo sublime comparável a uma esfera hermética
era um mundo do qual toda realidade carnal estava banida. Ninguém mais, hoje em dia,
ousaria defender ou praticar essa oposição secular entre o superior e o inferior, entre o
vulgar e o sublime. Há já algum tempo que a mistura dos gêneros quis pôr um fim a essa
hierarquização do ser. Mas fez isto apenas para colocar, no lugar, uma desigualdade mais
sutil: a atividade carnal, com efeito, continua a ser degradante ou, pelo menos,
subalterna, mas em lugar de expiar sua baixeza no inferno das coisas relegadas, ela pode
ser resgatada: o neo-sublime não quer omitir toda alusão corporal nas imagens e nas
palavras; não pretende excluir a indecência, quer subordiná-la, dela fazer o significante
material de um significado superior, que atue sobre ela como a água purificadora sobre o
pecador ou sobre o batizado. De fato, são raros os puritanos suficientemente austeros a
ponto de pedir que o sexo volte para sua gaiola e que os corpos sejam vestidos na tela:
que se vejam os cus, dizem eles, contanto que tenham um sentido de redenção;
podemos ver tudo com a condição de que seja respeitado o excesso do sentido sobre a
imagem — esta carga semântica confere a certeza de que o filme não despertará em nós
aquele animal dormido. Outrora a religião dizia: “oculte esse seio que não posso ver”. As
múltiplas pieguices laicas que hoje disputam entre si a herança dessa religião odeiam a
dissimulação: me mostre esse seio, estou pronto para vê-lo, mas não tal como ele é ou
pelo seu poder de excitação: trate-o, estetize-o, e se ele palpitar diante de meus olhos,
que seja em virtude de um louco amor ou da revolução que se aproxima. Em resumo,
não são mais os corpos que são obscenos, é a gratuidade de sua ostentação. O pesar se
desloca do desnudamento em si mesmo para a ausência de significação desse ato. A fim
de merecer o epíteto de porco, pornô, é preciso estar duas vezes despido: sem roupa e
sem transcendência.
Os bonzinhos, a puta e o cliente: um filme pornô terá um sucesso tanto maior
quanto mais desapontar seus críticos (os bonzinhos), pegá-los no contrapé; pois para o
cliente, esse sentido profundo com o qual se gostaria de enfarpelar o ato sexual seria,
em termos de profundidade, uma decoração incômoda, um álibi insuportável. O único
valor afirmado pelo pornô, e que seu usuário procura, é a intensidade sexual de suas
imagens. O único tribunal cuja competência seria reconhecida por esse cinema
condenaria um filme por razões tão indignas quanto: não se perturbar, filme
detumescente.
Quanto a garantir sua salvação, a pornografia não se preocupa com isso e, de
nosso lado, não nos sentimos com um estado de espírito redentor. Pois o prazer de ser
excitado não é uma fruição marcada com o ferrete da infâmia, e se era revoltante
censurar a representação sexual, hoje parece irrisório mantê-la sob tutela: como se
permitir ainda fosse sujeitar, como se a única alternativa à proibição fosse a
infantilização. Portanto, não se pode censurar a pornografia pelo caráter aviltante ou
mistificante das emoções por ela provocadas, sob o pretexto de que essas emoções são
meramente sexuais. Não se pode censurá-la pela vulgaridade de suas promessas,
podemos apenas condená-la por não cumpri-las. Ali onde nos anunciam,
triunfantemente, coisas indignas e acabrunhantes, uma explosão de indecências e o fim
de todas as restrições, são propostos apenas deleites triplamente restritos: limitados ao
olho, em virtude da imagem; aos órgãos genitais, pelo seu conteúdo; e aos homens, pela
submissão exclusiva à imaginação masculina.
Enfaticamente, o pornô pretende exibir todos os mistérios, pois, diz ele, nada do
que é sexual me é estranho — coisa pela qual seus detratores o censuram
violentamente. Inimigos, mas irmãos em presunção. Um mesmo postulado de
exaustividade excita os pornógrafos e exaspera os puritanos.
O que, na verdade, está acontecendo? Por um preço bastante módico, o filme
“sacana” dá a todos o direito de tudo ver: ver e nada além disso. A única acessibilidade
hoje oferecida é a acessibilidade ao espetáculo: se o cliente quiser receber pelo que
pagou, é com o olho que deverá fazê-lo. Ínfima liberação essa que coloca em cena todas
as perversões a fim de, afinal, favorecer apenas uma: o voyeurismo.
Ver tudo: ainda que ver seja muito pouco, não se pode minimizar a preocupação
que tem a pornografia de revelar, eliminar os menores resíduos do pudor, ao convidar o
olho a uma vertiginosa viagem ao centro da mulher. Durante muito tempo, a câmara
havia-se detido nos pelos do púbis como sendo esse o limite de divulgação; depois as
coxas se abriram e agora podemos contemplar a vulva, os lábios e a entrada da vagina.
Que mais há para mostrar? Talvez mais nada, e no entanto este apogeu do despudor, na
medida em que encerra a sexualidade no sexo, continua a ser parcial, acanhado; na
verdade, esta totalidade exaustiva disfarça o totalitarismo do prazer masculino. A
censura acabou, nenhum ato será mais proibido na tela: além do sexo da mulher, vemos
as cópulas, os pênis túrgidos e as efusões seminais, isto é, o minúsculo paraíso com o
qual o onirismo viril povoa sua miséria. Minúsculo e despótico: pois, se à saída de um
filme pornô não sabemos com o que sonham as mulheres, sabemos com o que os
homens as obrigam a sonhar: com seus caralhos. Na tela, uma multidão de mulheres,
mas sempre sob medida: exatamente conformes aos fantasmas masculinos. Nenhuma
outra instância exterior à sexualidade consagra os enlaces. Os sonhos do cliente são
transcritos tais como são, sem precisar receber de um lugar qualquer um certificado de
autenticidade (moral, transgressiva, estética ou militante); os fantasmas atingiram a
maioridade e. estão livres de toda tutela, mas aquilo que hoje afirmam contra os antigos
poderes tutelares é que o prazer não vai além da imagem, que o genital é a única
residência desse prazer, e que este não é tocado pela diferença entre os sexos.

O troque do falta ser visto

“O mais pornográfico dos filmes pornôs”, diz o anúncio do filme A voz do sexo.
Verdade ou mentira? A gente hesita, incrédula e tentada. Mas se se entra na sala é
sempre com a vaga esperança de que a promessa anunciada será cumprida e que desta
vez o filme será mais sacana do que da última. Nesse domínio, a publicidade funciona
sempre por excesso: o próximo filme oferece o último desvelamento. O que faz com que
o espetáculo anterior fique ultrapassado é que ele ainda escondia alguma coisa. A
pornografia caça seu cliente eventual, como uma prostituta, com esta receita única:
colocar um limite, embora fictício, àquilo que ele já viu e dar-lhe o desejo irresistível de
utrapassar esse limite, para ver o que se oculta por trás dele. Assim, não é de
surpreender que a censura forneça à produção pornográfica seu argumento publicitário
mais eficaz e mais excitante: esse tipo de cinema precisa demais das proibições, não
pode combatê-las. Os interditos não são seus adversários, são suas iscas. Estranho e
doloroso destino para o puritanismo: ser o endosso daquilo por ele reprimido e
ultrapassar de muito, nesse sentido, os cartazes lascivos que incitam à devassidão. Um
certo filme foi finalmente autorizado, e na discreta insistência desse advérbio existem
vestígios de resistência muito fortes, a proximidade sensível de um tabu; certas
sequências são tão ousadas que “exige um público preparado”; as fotos são
“rigorosamente proibidas” nos cartazes. Em suma, a censura é, sozinha e ao mesmo
tempo, slogan, promessa e recriminação. Pois quanto ao resto, quanto às cenas que
chocaram os censores e provocaram o atraso na exibição, silêncio total: sabemos que
houve um escândalo, mas não sabemos qual; estamos certos de que tudo isso é
intolerável, mas não sabemos exatamente de que se trata. Em outras palavras, a
tentação funciona não tanto oferecendo algo para ver quanto conferindo ao filme o
prestígio de uma inconveniência invisível e silenciosa, Mais eloquente que qualquer
publicidade, esse laconismo acaba atraindo o transeunte, quer pelo enigma, quer pela
transgressão. Terá vontade de ver o filme quando ver significar, para ele,
indissoluvelmente, revelar um mistério e violar um tabu. A esse aliciamento metonímico
(eu lhe dou o efeito para que você deseje conhecer a causa que pôde produzi-lo; aqui
está a fumaça, venha arder com o fogo que a presença dessa fumaça revela) acrescenta-
se a bruxaria evocativa de todos os predicados que o glossário pornográfico se recusa a
traduzir: hot, hard-core, blue-porno, além da significação literal de “atos sexuais não
simulados”, esses qualificativos americanizam o filme e com isso fazem a promessa de
oferecer um algo a mais em termos de contemplação. No concurso da obscenidade, os
Estados Unidos superaram as audácias escandinavas. Quando um filme francês diz ser
hard, ou quando um cinema anuncia uma importação blue, isso é mais que uma
definição, é um rótulo de qualidade, uma arenga de marreteiro embrulhada no aroma de
uma conotação: “Entrem, entrem, senhoras e senhores, venham ver o que nunca viram:
o Eldorado numa poltrona! A vanguarda da obscenidade, o Paraíso do obsceno por
apenas cem cruzeiros!”
E por que toda essa agitação competitiva, essa derivação da censura para fins
publicitários, senão para transformar a falta de gozo, inerente ao espetáculo, em um
falta ser visto, conjuntural e passageiro? Enquanto o próprio filme impõe que o
espectador discipline seus impulsos, limitando-os ao relacionamento visual, o
triunfalismo de que ele se cerca usa sem parar a linguagem da intensificação: emoções
novas, viagens fabulosas, fantasmas não apenas traduzidos mas distanciados pela
ousadia das imagens. Ao apequenamento da sexualidade pelo espetáculo sucede a
ampliação ininterrupta dos espetáculos: ver não é mais o sucedâneo do fazer, é um
movimento positivo e vitorioso de conquista. A fim de tentar o consumidor, o novo filme
tem, portanto, de prometer ir mais longe: abrir, para a avidez escópica, territórios onde
ninguém havia ousado penetrar, assestar as lentes da câmara sobre comportamentos ou
posições ainda inéditas na tela. Você degustou, como sendo a violação dos últimos
tabus, a longa sequência masturbatória de Claudine Beccarie em Exhibition; mas você viu
aquele filme (Prostitution clandestine) em que Sylvia Bourdon mija na cara extasiada de
seu escravo?
Apenas a cega obediência a esse imperativo de prospecção pode manter a ficção
de que o limite não é a tela mas o conteúdo da imagem e que, por conseguinte, nada
existe que não possa ser ultrapassado pela pornografia. A insuficiência do espetáculo
não resulta de sua natureza, mas de não ser suficientemente espetacular. Se me sinto
um tanto triste à saída desse hard-core de que falaram tanto é por causa do divórcio
insuperável entre a sexualidade ativa e a contemplação da sexualidade; mesmo assim, há
em mim um reduto irredutível à minha própria desilusão e que acredita que o gozo não
foi por mim conseguido por pouco: exatamente por aquilo que não me mostraram. Essa
der- rapada da percepção frustrante para a percepção frustrada define a ilusão
pornográfica: um dia haverá um filme onde gozar e olhar, essas duas coisas
inconciliáveis, serão reunidas na apoteose de um orgasmo panóptico: ver tudo e vacilar
sob o efeito desse paroxismo.

Os órgãos sem corpo

O cinema pornográfico nasceu de um movimento de câmera: para exibir aquilo


que evoca o erotismo, para substituir o reino da alusão pela crueza da imagem direta,
bastou com efeito que a insistência do plano geral recusasse os artifícios do cinema
tradicional. Hoje a objetiva nos aproxima dos órgãos ao invés de nos afastar deles,
fixando demoradamente (segundo uma audácia cada vez maior) o mar calmo e o céu
avermelhado do outro lado da escotilha, um cigarro abandonado que arde no cinzeiro ou
a mão contraída que se fecha e se abre sob o choque do orgasmo invisível. Para
representar o ato sexual, o discurso pornográfico obstina-se em não figurá-lo: ao invés
daqueles indícios que permitiam ao espectador compreender e imaginar a cena ausente,
ele se mantém na pura denotação. Não há decodificações a fazer, não há elipses a
preencher: o cliente é rei, isto é, passivo. Ele se deixa levar pelo filme como o passante
pela prostituta.
Como todo recuo pode solicitar a imaginação do público e com isso removê-lo de
sua suave inércia, o negócio é filmar cada vez de mais perto (por ordem de perversão
crescente) a penetração vaginal, o cunnilingus, a fellatio e a sodomização. Esse combate
pornográfico pela literalidade tem de salutar o fato de aniquilar, sob o ridículo, o pudor
passadista da velha retórica sexual. Temos agora o direito de ver aquilo que tanto
procuraram nos ocultar. Esta conquista recente, ao que parece, causou escândalo. Mas a
força de uma insolência depende inteiramente do princípio que ela quer infringir; a
transgressão de uma lei fraca também é uma transgressão fraca e nada mais irrisório, no
fundo, que o ultraje que levantou a arcaica proibição de ver que cercava o sexo. Pode-se
censurar a pornografia não por ser chocante, mas por ser apenas isso; é que, quanto ao
resto, como é conservadora! Não se deve considerar as audácias visuais da pornografia
como sendo uma ruptura com a tradição: o erotismo era um discurso alusivo, velado,
que figurava os órgãos genitais com a ajuda de equivalentes corporais; a pornografia é a
recusa deliberada de todo equivalente. Mas, além dessa oposição, é o mesmo
genitocentrismo desenfreado que se perpetua através das duas linguagens. Fora dos
sexos não há gozo algum, pois eles constituem a capital do corpo — é o que diz a
sabedoria das paixões que inspira tanto a poesia erótica quanto o brutal prosaísmo
pornô. A primeira faz do corpo nu, sobre o qual se debruça, a última peça de roupa que
envolve a verdadeira nudez: não há delírio em seus elogios, não há fetichismo em sua
decupagem, apenas a preocupação constante de traduzir o corpo em signos, de sujeitar
o visível ao invisível e de retirar da epiderme apenas citações do genital. Com o pornô,
em compensação, o Sexo oculto aparece na magnificência de sua glória e na verdade de
sua ação. A aderência ao genital continua a ser uma devoção; o que desaparece é a
antiga liturgia: doravante o culto ostenta seus ídolos e derruba o dogma carunchado que
exigia a dissimulação desses mesmos ídolos. A afirmação enfática substitui a ausência
obsessiva. Os corpos eram como que assombrados pelo sexo; agora, resolvem-se nele.
Erotismo e pornografia, assim, querem dizer a mesma coisa: acenas não o dizem
do mesmo jeito, correspondendo, a esses dois estilos, duas imagens da soberania genital
e, pode-se dizer, dois regimes diferentes de sexualidade. Não é por acaso, sem dúvida,
que o cinema tradicional sugere o orgasmo com um longo beijo langoroso ou com uma
carícia sensual. Esta substituição calculada só é evidente ao público porque ela se apoia
sobre a sexualidade majoritária. A linguagem do filme extrai sua verossimilhança dos
hábitos e coerções que coordenam a existência erótica de seus clientes. O mesmo poder
do genital é exercido na espetacularização do corpo, na preferência que mobiliza o
desejo sobre esta ou aquela parte do corpo e no itinerário canônico da volúpia. Ao
tratamento semiótico do corpo pela imagem corresponde, na vida, um erotismo
disciplinar. No espetáculo, o beijo pode chegar a ter a dignidade de equivalente orgástico
porque tem a função, na cama, de mimar o enlace. A carícia é, estatutariamente, um
preâmbulo: é o que a torna significante. Quanto aos lugares dos corpos, suas superfícies,
seus volumes, seus fragmentos, estes não têm existência realmente autônoma, direito
algum à deriva: a normalidade pulsional, com efeito, investe apenas a aptidão de evocar
os sexos, segundo os dois grandes eixos da metonímia (a coxa vislumbrada na escada ou,
às vezes, visível na praia, o começo dos pelos pubianos) e da metáfora (o forte
investimento das bocas grandes). Em suma, só há uma transposição para os signos da
sexualidade porque esta obedece a uma ordem imperiosa; o corpo retórico é um corpo
centralizado, e a mesma máquina desejante produz o espetáculo erótico e o enlace
disciplinado. Se, portanto, a pornografia invade a tela com sexos penetrantes,
penetrados, ejaculadores, lambidos, abertos ou tumescentes, é apenas para embalar a
máquina: mostrar diretamente ao invés de fazer um desvio através da figura; liberar o
desejo de suas preliminares e de seus derivativos.
Assim, a organização hierárquica do corpo culmina e é abolida no fantasma
pornográfico: seus protagonistas somente são libertados dos preconceitos que, através
do rótulo da aberração ou da anomalia, interditam uma multiplicidade de
comportamentos sexuais; eles são, sobretudo, aliviados dos signos. O que os transporta
não é a alegria transgressora, é o desejo de imediaticidade: as leis não são
suficientemente soberanas, a diferença entre o aceitável e o censurável não é mais tão
drástica para que o ultraje continue a oferecer uma embriaguez muito intensa. Portanto,
trata-se menos de violar as normas que contrariam o exercício libidinal do que de acabar
com e acabar a (no sentido de levar alguma coisa a seu termo) disciplina que a
regulamenta: a fellatio é algo fora das normas? Esta questão interessa os libertinos, não
os pornógrafos que gozam apenas com poderem se fazer chupar sem preparativos.
Aquilo que retardava o momento genital podia tanto ser um princípio de delicadeza
(esperar pelo outro, não ir mais depressa que a disponibilidade, dele) quanto um prazer
calculado (esperar que o desejo seja intolerável para então sucumbir a ele, suportar a
impaciência a fim de intensificar o orgasmo). A pornografia abole esse princípio e refuta
esse cálculo, e com isso realiza o sonho secreto do erotismo disciplinar: não mais fazer
do prazer a retribuição da espera, chegar fácil e instantaneamente aos sexos, desde logo
chegar ao fim da viagem, ao centro do corpo; em termos de arquitetura amorosa,
construir apenas um santuário e precipitar-se logo nele. Por que nos contentarmos com
disciplinar, subordinar, reduzir? Vamos logos ao objetivo de nosso desejo: aquilo que não
for o sexo, fora com ele! De um investimento semiótico do corpo (lábios, axilas, nucas,
ancas, etc. eu os amo enquanto signos, por vocês mesmas, partes subalternas, aproximo-
me do local do gozo ou pressinto-o, excito-me com a semelhança entre vocês e ele)
chega-se a um desinvestimento absoluto: o erotismo assegurava o reino do genital; a
pornografia exibe a utopia estranha e lúgubre e um reino sem cidadãos. Uma
sexualidade que subordina o corpo só pode produzir o fantasma de uma abolição do
corpo. O erotismo disciplinar desemboca na pornografia pangenital em que o corpo
orgânico é suplantado pelos órgãos sem corpo.

O antienredo

“Demasiado preocupados em vender nádegas para ter tempo de elaborar uma


intriga.” É comum fazer essa acusação contra os filmes pornô: através de um laxismo
culpável onde não se sabe o que predomina, se o torpor criativo ou o desprezo cínico
pelo público, o filme de sacanagem resvalaria para o infra-enredo, contentando-se
preguiçosamente com justapor quadros libertinos sem estabelecer entre eles ligações
verossimilhantes. Tudo acontece assim como se, no exame de narração, o pornô tirasse
um zero acompanhado por uma apreciação vingativa: Zero! Não fez o trabalho exigido”.
E se descabida fosse a própria exigência? E se o tema do pornô fosse exatamente
“o sexo de cara”, além da recusa de fazer qualquer concessão, por menor que fosse, à
plausibilidade? A pornografia faz pouco caso da verossimilhança, porque submeter-se a
esta seria zombar de seu cliente. Este vem para ver, e seu voyeurismo prefere consumir
sem demora atos sexuais imotivados. É inútil, aprendizes pornógrafos, estabelecer uma
verossimilhança entre o desejo e o objeto: ela é facultativa, e muita elaboração poderia
mesmo torná-la incômoda. É que a espera inicialmente calma do espectador logo se
transformaria em irritação e agressividade. Em resposta aos esforços que vocês, fariam
no sentido de construir uma história e conduzir a luxúria, o ingrato se sentiria traído e
começaria a psalmodiar: “Queremos sexo, queremos sexo...!”
Mas talvez haja uma razão mais profunda para essa indolência narrativa da
pornografia, que reside na vontade de preservar seus heróis dos labirintos do
romanesco. Para que os protagonistas vivam uma história, é preciso que tenham sido
expulsos do paraíso onde tudo é dado, onde o desejo não conhece aventuras, porque a
fonte de uma abundância universal evita-lhe as recusas, as concorrências do cotidiano. O
enredo promete a realização ao fim de uma espera: ele é a própria reticência quanto a
proporcionar, aos apelos do desejo, respostas imediatas. A relação da pornografia com a
história não é, portanto, de indiferença mas de hostilidade: a narração não é a regra
discursiva à qual, por pressa ou preguiça, ela recusa submeter-se, mas sim a coação
derradeira da qual pretende libertar os impulsos: a pornografia é a ficção de um desejo
libertado desse fardo que é o enredo, a narração, o relato. Que teria ela para contar?
Suas personagens não têm história; vivem, pelo contrário, uma volúpia sem drama: tudo
lhes é fácil, nunca se esforçam para ter prazer e não há nenhuma justiça imanente que as
faça pagar por seus erros. Entre o começo e o fim do filme, o saber-fazer não consiste
em fazer demorar a satisfação ou a conquista, em tecer uma trama, mas em desdobrar
uma sucessão de cenas de devassidão sempre excitantes e às vezes inesperadas, que, ao
invés de serem encaradas como se fossem uma história (capazes de provocar um
interesse apaixonado pelo desenlace), são manuseadas como um catálogo (com a
curiosidade sendo dedicada por igual a todas as imagens). Exibindo o espetáculo
fabuloso de um universo onde não mais existe a necessidade de seduzir a fim de obter a
coisa desejada, onde a concupiscência nunca corre o risco de ser reprimida nem evitada,
onde o momento do desejo se confunde com o da satisfação, ignorando com soberbia a
figura actancial do Oponente (sob todas suas formas: o escudo das famílias, a ordem
social, os bloqueios, o risco de que o destinatário desse desejo diga não), a pornografia
tende para a abolição do despotismo narrativo sobre as relações sexuais. Ao invés de
discorrer sobre o sexo, colocá-lo num enredo, esse gênero um pouco marginal produz
suas próprias regras e corresponde a uma demanda específica: a de um estado
desnarrativado da libido.
O público do pornô não comparece apenas para molhar os olhos (linda fórmula do
ideal espetacular: que o órgão da visão seja do lado dos atributos do gozo, que ele se
molhe ou ejacule diante da imagem da volúpia), ele também quer evadir-se: ao desejo
de consumir sequências obscenas acrescenta-se uma outra cobiça: mudar de mundo,
viver, enquanto dura o filme, a ilusão de que a profusão sexual substitui a escassez, que
a imediaticidade torna-se a regra e que o reino da solidão foi definitivamente substituído
pelo da facilidade.
“Para conseguir que elas tirem a roupa, tenho de convidá-las para um bar, para
um restaurante, para o cinema, tenho de falar bastante com elas e aí, finalmente, tenho
alguma chance de conseguir que elas tirem a roupa. No cinema pornô fico com a ilusão
de que todos esses obstáculos que a mulher levanta entre ela e mim não existem. Na
2
tela elas gostam de ir pra cama, tiram a roupa sem problema.”
Duplo investimento da imagem pornográfica: não apenas revela mas faz as

2
Quem fala assim é um frequentador assíduo do pornô, entrevistado por Guy Sitbon. Le Nouvel Observateur, 18
ago. 1975.
pessoas mudarem de estado; ela se dirige tanto ao voyeurismo quanto ao onirismo de
seus clientes, propondo-lhes, além da crueza de um espetáculo sem truques, a quimera
de um mundo do qual foram eliminadas as coações que rarefazem a vida sexual e a
tornam aleatória.

Miserável milagre

Fantasma da instantaneidade: que, de imediato, se chegue ao gozo. Que a relação


sexual não seja colocada no ponto final de uma maturação, de uma espera, de um
trabalho, de uma estratégia. Que seja um presente, não um salário. Que entre a cobiça e
a satisfação o intervalo não seja tão longo a ponto de possibilitar uma história. Que
dentre todos os momentos de uma relação erótica apenas um seja destacado, o
momento do êxtase; e que este apogeu, desprezando-se as regras elementares da
verossimilhança, do pudor, da cortesia e da narração, seja vivido desde logo. Que se
comece pelo fim para que não haja mais nem começo nem fim, mas apenas a repetição
indefinida do deleite genital. Agradar é coisa fortuita e acariciar cansa: os heróis
pornográficos são assim milagrosamente dispensados da caça ao objeto do desejo e dos
prelúdios amorosos: basta piscar para as mulheres e elas logo se mostram nuas e
disponíveis; não há necessidade alguma de fazer as apresentações, de dizer bom-dia,
nenhuma preliminar antes de penetrá-las, de lamber a xoxota delas, de se fazer chupar.
Mas o catálogo da genitalidade é pobre. É na medida em que ela se recusa a
postergar a luxúria e em que pretende colocá-la ao abrigo das tensões que a pornografia
se vê condenada a repisar as mesmas figuras. Cinco ou seis posturas, duas ou três
perversões: essa é toda a riqueza de que ele dispõe e com a qual mata nossa fome.
Aproximamo-nos do paraíso, esse lugar onde as coisas não têm peso e onde se realizam
as ficções que nos assombram; mas o que ele destila, esse país da abundância sexual, é
mais o tédio do que a volúpia. Após duas horas de tanta repetição espetacular, saímos
saturados de imagens e somos irresistivelmente levados e englobar, em nosso
constrangimento, as práticas sexuais às quais essas imagens remetem. A mistura de
cansaço e azedume provocada por esses significantes que nada dizem de novo não
poupa seus significados. “Outra enrabada, que merda! Que saco, essas chupadas! É
sempre a mesma coisa.” Cobiçada a título de exceção, consumida a título de substitutivo,
sonhada a título de promessa de um paraíso libidinal, a fellatio, perversão canônica, logo
se vê execrada a título de estereótipo. Observando-a repetidamente, seu mistério
desaparece, seu papel pantasmático é anulado e seu alcance messiânico não resiste ao
descrédito de sua repetição. Isto significa que se o filme pornográfico não tem uma
história, o espectador bem que vive sua história, que é o trajeto da depressão ao
desgosto. Entrando na sala como um querubim infeliz, desvairado pelos signos, desejoso
de preencher com imagens a espantosa desproporção entre seu poder e seus impulsos,
o cliente sai da sala cacoquimo: os sentidos embotados, em estado de inapetência, ele
está farto e um pouco cansado como um libertino que uma carreira amorosa demasiado
rica tornou difícil, apático e quase inexcitável. Assim, tudo acontece como se o filme lhe
tivesse mostrado cada momento da relação sexual, exceto exatamente o momento do
auge. A pornografia consegue realizar esse tour de force, no fundo bastante edificante,
que é nos saciar com coisas que não nos deu: vivemos a superstição dos contrários,
atualizamos ao mesmo tempo a falta (pois vemos sem nos movermos) e a saciedade
(pois, sem que tenhamos podido desfrutá-las, essas posições e anomalias nos cansam
com sua insuportável monotonia). Além de todo juízo de valor, é a dosagem específica
dessas duas sensações que permite diferenciar os espectadores, realizar uma espécie de
primeira tipologia dos usos de que é passível o pornô. Diga-me o que está vendo e lhe
direi que tipo de pornógrafo você é. Se você conseguir perceber a obscenidade por baixo
do estereótipo, é que a falta, sua carência, continua a ser mais forte que a saciedade, e
você então pode dizer: “quero mais!” A pornografia cumpre seu contrato provocando
seu desejo e fazendo acalmar seus fantasmas: você sofre por ficar à míngua, por
participar de orgias apenas por procuração, mas ao mesmo tempo goza por não fazer o
cinema que você está consumindo, por ficar excitado sem trabalho, por trocar o trabalho
da imaginação pelo sibaritismo do espetáculo.
Se, pelo contrário, a repetição tem o efeito de esmagar a representação, se ao
invés de saborear a imagem você só se mostra sensível ao refrão, é que a saciedade está
predominando sobre a carência; e então, você implora misericórdia, e uma leve náusea
vem acrescentar-se à sua solidão e frustração. Você está desapontado e se mostra
sarcástico quando as luzes se acendem: odeia o filme por ele ter zombado de você. Mas
a acusação que você lhe faz não se sustenta, pois foi desapontando-o que ele cumpriu a
parte dele: o que você foi procurar naquela sala, sem sabê-lo, era a possibilidade de
livrar-se de um desejo que não lhe era fácil satisfazer. Você queria que o filme lhe desse
uma ducha fria, e não que o deixasse insatisfeito, você esperava que ele extinguisse seus
apetites e não que os alimentasse. Em suma, há dois modos de dar férias aos fantasmas:
substituindo-os pelo espetáculo ou adormecendo-os com o estereótipo. A pornografia,
neste caso, é absorvida como se fosse um sonífero, uma poção mágica capaz de pôr em
pé de igualdade a vontade e a potência, não ampliando nossas faculdades, mas
satisfazendo nossos desejos.

Ditar a mulher

A pornografia não se encaixa na acepção do realismo. Ao invés de seguir o mundo


real — de decalcá-lo, revelá-lo ou reproduzi-lo — ela propõe a seu cliente uma decolagem
que o transporta para um universo quimérico e feliz aonde o sexo chega logo. O paraíso
é, sem dúvida, triste, e a euforia da estada nele não significa nada diante do tédio da
repetição. Pouco importa: o irrealismo, longe de ser um obstáculo ou um pecado
estético, surge como condição de exercício do cinema pornô. Mas, por outro lado, a
especificidade do hard-core não é tanto a ousadia das imagens quanto a atitude dos
atores. Antes e depois da cena de depravação, eles representam. Durante a cena, apenas
fazem. Acabou-se a comédia: não estamos então nem no realismo, que pressupõe uma
iniciação, nem na utopia, que implica um desvio: estamos vendo coisas reais. Esse
esperma jorra em ondas autênticas, esta firmeza dos pênis eretos não é falsa, houve
mesmo uma penetração sob nossos olhos, sem dúvida alguma estamos assistindo a
desempenhos efetivos. A pornografia acumula a ilusão e a reportagem; esse conto para
adultos também é um documentário sobre a sexualidade. E é nessa evidência de
veracidade libidinal que a pornografia revela sua face mais odiosa e menos denunciada:
as cenas ousadas não se contentam com transcrever os fantasmas masculinos; dando-se
ares de fazer uma constatação, elas os objetivam; e com isso o cinema dos homens
ocupa o real, como um exército triunfante ocupa o território inimigo. No exato momento
em que as trucagens e as falsificações dão lugar ao pedaço real de vida, o feminino é
escorraçado para fora deste mundo.
Estamos num escritório bem moderno: uma mulher, sobriamente vestida, de
óculos, pede a um de seus colaboradores que lhe entregue o programa de marketing por
ele preparado. De modo muito profissional, ela vira sua cadeira na direção daquele por
ela convocado e se absorve no relatório apresentado. De repente, um desejo estranho
pulveriza a ordem reinante nesse universo funcional. Como que magnetizada, a mulher
desabotoa febrilmente a braguilha do jovem funcionário eletrizado, tira para fora o sexo
dele sem dizer palavra e começa a satisfazer na hora a vontade que a atormentava de ter
na boca aquele pênis desconhecido.
A esta cena do filme A Voz do sexo acrescentemos o grande arquétipo do cinema
pornô, sua sequência fetiche, prato predileto do voyeurismo contemporâneo: o amor
lésbico. Paradoxalmente, é quando o homem parece posto de lado pela volúpia feminina
que sua dominação se faz mais opressiva. Ele se retira do jogo, sim, não é mais ele o
dispensador universal do prazer, mas abre mão dessa prerrogativa para ver as mulheres
gozarem como ele e para ele. Desse modo, sua ausência do cenário é duplamente
tirânica porque subordina as mulheres de dois modos: pela equivalência e pela
encenação. O pornógrafo só gosta de safistas especulares e dóceis. Esvaziadas de
qualquer conteúdo, elas se transformam, para sua maior alegria, em homens com vagina
e robôs programados: tão logo se desnudam, assumem poses lascivas, tocam-se
mutuamente no púbis e fazem ao espectador a gentileza de abrir as coxas enquanto se
beijam na boca. Quando parecem fremir de prazer, o fazem sempre segundo as
prescrições tácitas porém minuciosas do olhar viril. Pois não há curiosidade no voyeur:
não há coisa que ele mais deteste do que ser surpreendido. O que ele quer são criaturas
dóceis, flexíveis, que obedeçam às suas vontades ao mesmo tempo em que o fazem crer
que também estão tendo prazer.
O que concluir dessas imagens? O que mostram a cena de A Voz do sexo e a
manipulação pornográfica da homossexualidade feminina? Corpos de mulheres
condescendentes com o fantasma que as dirige, conformes em sua maneira de viver o
amor aos ritmos e às preferências da sexualidade masculina, capazes enfim de antecipar-
se ao desejo do homem: de cobiçá-lo antes mesmo que ele tenha sequer pensado em
pôr-se à procura da mulher. Ora, esta complacência, esta conformidade e esta conversão
da caça em caçador recebem da pornografia o sinete da realidade. Ao invés de
apresentarem-se como um sonho impossível (maravilhoso ou aterrador) de
homogeneidade pulsional, elas surgem como o desdobramento verídico do desejo. Este
é o sentido último da não-simulação: não apenas mostrar tudo para excitar o espectador
mas produzir o real a fim de que o totalitarismo masculino se aproxime da norma.
“O de que eu mais gosto nas mulheres que fazem esses filmes é que elas são
3
como os homens: estão sempre com vontade de ir para cama.”
Esta semelhança assume a forma de uma constatação. Por não ser representada,
a quimera torna-se um critério segundo o qual as mulheres são convidadas a avaliar suas
próprias explorações eróticas: se elas se reconhecerem nisso, serão reconhecidas; caso
contrário, isso será indício de uma disfunção pulsional. O documentário pornográfico
desmente, nos fatos, que a sexualidade feminina seja necessariamente diferente. Ali
onde existe, essa diferença só pode ser uma anomalia residual, a ponto de ser
reabsorvida pela sociedade permissiva. O hard-core inventa essa nova patologia: a
lentidão. Se as mulheres vivem um desejo sem esperas; se demoram muito tempo por
gosto pela cerimônia amorosa; se querem fazer de cada momento do enlace uma
aventura, ao invés de submeter o desejo a um roteiro imutável; se elas vivem com a
mesma intensidade que a grande apoteose wagneriana do orgasmo, uma gargalhada
inesperada ou um roçar de corpos; em suma, se há mulheres que resistem ao fato de
serem ditadas, comandadas pelo cinema masculino, esta falta de complacência,
podemos estar certos disso, é sintoma de seu atraso libidinal.
Duplo subterfúgio, o da pornografia: naturalizar a masculinização da mulher;
inverter o ressentimento (impotência e rancor) que sua autonomia erótica transforma
em exigência de libertação. Ditar a norma e dar-lhe o poder de uma norma e o valor de
uma emancipação.
Uma vez liberadas de todo entrave, uma vez desembaraçadas do sistema de
interditos que intimida seu desejo, as mulheres finalmente entregues a si mesmas
poderão escolher seus objetos sexuais sem qualquer artifício, sem hesitação, sem
demora. Entre o desejo e sua satisfação só existe um espaço dilatatório porque existe a
repressão: elimine-se a repressão e sumirão as razões do adiamento. Nesse momento, o
mundo pornográfico e o mundo cotidiano terão anulado o antagonismo existente entre
si: o sonho se tornará realidade. A pornografia é um conto futurista, uma sexoficção que
começa com estas palavras: será uma vez em que as mulheres de um impulso irresistível,
e que não serão nada complacentes, se jogarão sobre nossos rabos.
Em outras palavras, a diferença é absorvida na desigualdade: a alienação das
mulheres deriva da falha que é a masculinidade de seus desejos, mas quando elas se
permitirem obedecer às injunções de seus instintos e quando nada mais impedir a
expressão de sua avidez predatória, nesse momento elas sairão da idade média libidinal
onde a moralidade burguesa as confinou. Disparidade sim, mas cronológica: os homens e
as mulheres não teriam uma libido contemporânea, e é disso que resultaria a miséria
sexual. A pornografia antecipa e prospecta o momento em que ambos pertencerão à

3
Entrevistado por Guy Sitbon, op.cit.
mesma temporalidade. Mais ainda: ela promete o advento de uma Supermulher ou,
melhor, de um Superhomem feminino que, não contente com desejar em uníssono,
presta a seu libertador a homenagem de superá-lo.
Desde Sade, pai fundador, a pornografia gosta de passar a palavra às mulheres.
São elas que conduzem a ação. Com efeito, basta, para que elas se tornem insaciáveis,
que ponham por terra os preconceitos de uma sociedade retrógrada. Ora, que é a
insaciabilidade senão a projeção da sexualidade feminina sobre um espaço cujas
coordenadas são controladas pelo homem? É como se a consciência libertina tivesse
pressentido as virtualidades infinitas do feminino, mas não tivesse sabido traduzir esse
privilégio em outra coisa a não ser uma superioridade quantitativa. A vagina: um falo
aperfeiçoado. As mulheres suficientemente emancipadas para fazê-lo funcionar a pleno
vapor podem zombar de seus parceiros masculinos, impressionáveis como colegiais, que
são postos fora de combate ao primeiro orgasmo, que elas estouram como se fossem
cavalos velhos e que imploram misericórdia enquanto elas ainda estão nas primícias do
gozo. Ironia pornográfica: a virilidade é uma impostura; é do lado das mulheres que a
potência sexual tem uma base de verdade. Pois o verdadeiro falo não é o frágil pênis que
só se levanta orgulhoso quando se sente confiante, que é preciso tratar com solicitude
para que consinta na expulsão de seu pequeno tesouro esbranquecido; o verdadeiro
falo, infatigável e sempre valente, é o sexo da mulher.
Em suma, o olhar pornográfico avalia o gozo em termos de potência e o infinito
em termos de rendimento: nesse terreno o homem é perdedor, ele experimenta o
frisson delicioso de sua destituição. A cena pornô é uma entrega de poderes: a mulher
substitui o homem, mas ocupa o mesmo lugar dele e fica encarregada de representar os
mesmos valores. O feminino depõe o masculino, mas em nome do falo.
Como pode hoje uma mulher ler Sade? Morrendo de dar risada. As heroínas que
lhe são citadas como exemplo, e cujos inúmeros diálogos a exortam a abandonar-se sem
remorsos à sua inclinação pela luxúria, essas criaturas infernais, depravadas e perversas,
não encontram nada de melhor a fazer, quando chegam ao auge do desejo, do que
descarregarem-se. Uma Juliette tomada pela liberdade sexual, ou uma Eugénie entregue
aos cuidados de instrutores imorais, terminam seus orgasmos masculinos nos estertores
de prazer provocados pela emissão seminal.
4
“No século XIX é que será estabelecido que a mulher não segrega esperma.”
E a correção desse monumental e durável engano fisiológico mal perturbará a
hegemonia masculina sobre a sexualidade. Não se trata mais do sêmen, mas
Emmanuelle e Miss Jones ainda “descarregam” com uma constância incansável. Sade
não está morto. Tudo acontece como se, inconsoláveis com a ejaculação, os pornógrafos
se vingassem, universalizando-o, do destino que condena o homem a aliviar-se de seu
desejo. A única certeza que pode atenuar o escândalo da morte é que ela não admite
exceção. Do mesmo modo, a fim de consentir na “pequena morte” do orgasmo, tornou-

4 Citado em Jos Van Ussel, op. cit.


se necessário que o corpo masculino o integre ao conjunto das fatalidades que
constituem o lado trágico da condição humana. A dignidade ontológica da perda (ou
gozo infeliz, o mau gozo, assim como se fala em má consciência, em consciência pesada)
talvez não seja mais que uma artimanha defensiva e um efeito do ressentimento:
escapar ao antagonismo deprimente do gozo e da descarga, fazendo desta o desastre
obrigatório de toda forma de volúpia.
A quem, neste caso, entregar o troféu do melhor censor: aos puritanos que
reprimem os prazeres do corpo ou aos hedonistas que só liberam o corpo masculino?
Onde está o preconceito: na maldição proferida contra o sexo ou na imagem que a
sexualidade maldita dá da vida libidinal? O que equivale, no fundo, a perguntar à mulher
qual subordinação corporal ela prefere: o estrangulamento pela virtude ou a
normalização pelo vício. Assim, a pornografia é profundamente igualitária. Ela não diz:
apenas os homens têm falos, é privilégio deles, a marca da superioridade deles, e
portanto a motivação visível, constitucional, da dominação que a sociedade lhes confere.
Ela não quer explicar a hierarquia social dos sexos através da diferença anatômica. Pelo
contrário, ela diz: não há diferença nenhuma, todo gozo é fálico: nossas maquinazinhas,
apesar das dissemelhanças, funcionam segundo o mesmo modelo e com o mesmo
combustível. Não confiem na disparidade das arquiteturas: a gruta e o obelisco, a
caverna e a coluna, o sabre e a bainha, o guarda-chuva e a garrafa, a serpente e o
caramujo, o martelo e a capela, a caixa e o porta-caneta, o vaso e a torneira, o bolso e o
chapéu, o cigarro e o cinzeiro, a garagem e o ônibus, a vela e a concha bigoduda,
decididamente não têm a mesma forma e não dependem do mesmo registro simbólico.
Mas feita a pergunta: “como funciona isso?”, a resposta é uma só: produz descargas e
orgasmos.
Antes que as próprias mulheres enunciassem a especificidade do gozo feminino,
dois discursos tutelares ainda podiam pretender deter a verdade a respeito: o de Freud
ou o de Sade. Exaltante alternativa essa, que oferece apenas a escolha entre dois
sistemas masculinos do desejo.
O primeiro faz da mulher uma falta, uma carência insaciável (esse “buraco
5
cercado pela inveja do pênis”, de que fala Hélène Cixous ); o segundo mantém a
insaciabilidade, mas não vê carência alguma: de fato, proclama a analogia dos sexos.
Quando se ultrapassa o estádio do olhar onde o nada a ver equivale a nada ter, constata-
se, com emoção, que o sexo da mulher é uma maravilhosa maquinaria fálica em
miniatura, superior, por sua robustez e sua capacidade de recarga, à fragilidade peniana.
Ser ou não ser: esse é o duplo impasse no qual a condescendência do analista e o
proselitismo do fora-da-lei mantêm a sexualidade feminina. E é dessas duas fontes que
se alimenta simultaneamente a imaginação pornográfica: de um lado, a homenagem ao
sexo viril que constitui o rito da fellatio; de outro, o fascínio que exerce sobre o homem a
imagem do gozo feminino rápido, excessivo, impossível de contentar.

5
La jeune née, op. cit.
Conhece-te a mim mesmo!

Hoje, os espetáculos imorais não são mais proibidos, são marcados: A política do
6
“X” mata dois coelhos com uma só cajadada: permite ao governo receber uma taxa
extra sobre os filmes que ele mesmo reprova e permite-lhe controlar a difusão desses
filmes. A sociedade liberal avançada é o casamento discreto entre o Proxeneta e o
Puritano. Proíbe-se cada vez menos e tolera-se cada vez mais; mas é que agora a ordem
moral satisfaz-se com circunscrever o vício e rentabilizá-lo. Não há contradição entre
censura e permissividade: a permissividade é esta forma moderna de censura que
autoriza todos os desvios com a condição de conformarem-se ao estatuto que as rege. É
deplorável consumir filmes pornôs: fazê-lo em salas especializadas é sentir um pouco
essa reprovação. É vergonhoso alimentar o voyeurismo do espectador filmando esse tipo
de coisas: esta infâmia é expiada em moeda corrente. O recurso ao “X” recorda que a
tolerância custa caro e que há salas especiais para isso.
Mas esta repressão new-look não pode funcionar como uma caução subversiva:
submetida ao despotismo do Estado puritano e à imposição do Estado proxeneta, a
pornografia é a encenação de uma outra forma de poder: aquele que o corpo masculino
sonha exercer sobre a feminilidade através da subordinação do real a seus fantasmas e
através da negação da pluralidade dos corpos.
Desse ponto de vista não é pornógrafo apenas o cliente assíduo do Cine Central
*
ou do Meio-dia/Meia-noite. Muitos acreditariam ser contrário à própria dignidade ir ver
um filme hard-core (“é para os frustrados” — isto é: “desprezo esses espetáculos para
desculpar minha sexualidade dessa tara inconfessável: a carência”), mas mantêm em
suas vidas uma relação pornográfica com o Outro. Não que sejam carrascos, e Histoire
d’O cristalizou muitas indignações legítimas numa forma acessória e anacrônica da
dominação viril. Mas esta nostalgia ridícula de um consentimento da mulher em ser
escrava invoca uma forma marginal de violência. A dominação contemporânea não se dá
tanto por sujeição ou repressão quanto por equivalência. O discurso masculino não diz
mais: “Obedeça!” para a mulher, murmura-lhe suavemente: “Conheça-te a mim mesmo:
obedeça, claro, mas apenas às ordens de seus instintos; e como estes estão recalcados
por preconceitos milenares, deixe que lhe sirva de guia. Longe de mim a abjeta ideia de
dar-lhe ordens. O que quero é revelar-lhe as coisas. E se lhe peço que ceda a meus
desejos é porque no fundo é o seu desejo também; se a levo a imitar meu gozo é porque
nele sua própria liberdade está esperando por você”.
Trata-se menos de subordinar o desejo feminino através da maldade de um
déspota ou dos modos finos de um perverso do que de dar-lhe a luz com a paciente
generosidade de um pedagogo. O egoísmo espesso do proprietário que se alivia dá lugar
à solicitude muito mais vigilante de um sujeito que, à vontade clássica de ser amado por

6
Política do "X": na França, um filme classificado com um "X" fica submetido a um imposto especial e só pode
ser exibido em salas especiais.
*
Especializados na projeção de pornôs. (N. do Trad.)
si mesmo, acrescenta a vontade de ser desejado por seu sexo. O que implica ouvir a
sexualidade feminina, vigiar seu aparecimento, canalizar seu desenvolvimento, ser não
mais o assassino dela mas seu beneficiário. Assim, pode-se chamar de pornografia a
tentativa pela qual o corpo masculino empreende a anexação do corpo feminino à sua
própria fantasmática, fazendo desta a norma universal da sexualidade: esta nova
legislação do desejo decretará sensual toda mulher que pode provar que goza como um
homem, que se assemelha às imagens com as quais ele se encanta. Se estas condições
não forem satisfeitas, a mulher reprovada no exame vai para o refugo por deformidade
(ela não é fantasmável) ou para o purgatório por frigidez (ela não se excita bastante
depressa, não genitaliza seu desejo, o orgasmo não acontece). Neste último caso, a
condenação não é definitiva, um tratamento adequado pode eliminar o sintoma e trazer
de volta para a norma a mulher atrofiada por um traumatismo inicial.
Sucumbir à Lei não é apenas obedecer à letra da lei, é também aceitar as divisões
por ela feitas, considerar que é dinheiro vivo a definição por ela dada do domínio por ela
mesma reprimido. A estupidez obstinada do censor projeta sobre a pornografia a
imagem profundamente arcaica do estupro: ele vê apenas bestialidade do sexo ali onde
se exibe o esforço de sua masculinização, a cega mistura dos corpos e não a equivalência
entre eles. Mas as coisas não são tão simples assim: simultaneamente censurante e
censurada, a pornografia é o espaço paradoxal aonde remontam suas legalidades
antagônicas: sem se preocupar com detalhes, a primeira combate a exibição do obsceno
e quer proteger as famílias de seus efeitos perturbadores; a segunda também é uma
precaução: ela se encarna na pornografia para preservar o corpo masculino do efeito
desorganizador da feminilidade e é formulada em três mandamentos: que teu corpo seja
espetacular, que teu desejo se baseie no sexo e que teu gozo tenha a limpidez do
orgasmo.

1 - O corpo espetacular
Ver um filme pornô. Compulsar febrilmente uma revista erótica. Excitar-se,
solitariamente, a partir de criaturas inventadas ou convocadas pela imaginação. Desviar
para a representação do prazer um desejo para o qual a realidade se fecha. Preencher
com o fantasma ou com o espetáculo “a desproporção entre nossos desejos e nossas
faculdades” (Rousseau). É porque o Outro está faltando que recorro à imagem: se eu
tivesse uma vida sexual realmente satisfatória, meu desejo se realizaria em corpos reais
ao invés de desencadear sua abstinência sobre fantasmas impalpáveis. Talvez. Mas para
apreender o percurso completo dos impulsos, é necessário inverter o itinerário: nada me
atrai mais no corpo do Outro do que sua conformidade repentina ao modelo erótico
veiculado por meu fantasma; ele deve ser espetacularizado para tornar-se consumível.
As imagens substituem os seres ausentes. Mas se alguém se apresentar, esse alguém
terá ainda de provar sua aptidão de ausentar-se numa imagem, se quiser provocar o
desejo. O corpo novo, em sua materialidade estranha, com seu odor imprevisível, a
textura de sua pele, seus risos que não previ, seus movimentos cuja espontaneidade
perturba meus fantasmas: não é bem isso que desejo de imediato. Toda esta presença
carnal me submerge, me ultrapassa, me fascina ou me indispõe; não me deixa
suficientemente seguro ou sereno para que eu pense em me excitar. A cobiça surgirá
quando esta mulher aceitar representar meu tipo, quando a selvageria cuja proximidade
me assalta consentir em deixar-se aprisionar. Em outras palavras, ela terá de assumir o
molde da imagem: sua sensualidade, seu natural ou sua maquilagem, sua elegância ou
sua rusticidade, seu lado “mulher fatal” ou seu lado mulher-criança, seus beicinhos ou
seus suspiros comprovarão o fato de pertencer ela ao código que eu amo, e desse
contato enfim dominado surgirá o desejo.
A imagem, portanto, é ao mesmo tempo cópia e modelo: o espetáculo reflete os
corpos mas, sobretudo, sujeita-os. E o melhor emblema dessa inversão é a seguinte
caricatura, publicada em Playboy: um homem trepando com sua mulher, sobre a qual
colocou a foto de uma mulher nua. O que mostra uma dupla ascendência: a do olhar
sobre os outros sentidos, e a do fantasma sobre a realidade.

2 - O culto do sexo-objeto
Alguns suspiram, outros se recusam a aceitá-la, mas a maioria dos homens hoje
inclina-se diante desta evidência: as mulherse não se mostram mais invejosas de seus
pênis. Que teriam a invejar? Começa a ser sabido (mesmo que se trate de um
conhecimento que toma emprestado do masculino sua linguagem e seus mitos) que o
equipamento sexual da mulher é completo, que não lhe falta nada, que o clitóris não é
um pênis atrofiado, esse pênis que se encolheu com a lavagem e que simultaneamente
desperta a mocinha para a sexualidade e o desprezo. Sem dúvida, o pinto é uma coisa
que se vê; mas apesar do “oculocentrismo secular” (Luce Irigaray) que constitui nossa
herança e que continuamos a respeitar, apesar de um superinvestimento do olho, cujos
estragos se fazem sentir muito bem, esse privilégio da visibilidade não mais é suficiente
para legitimar a monarquia do pênis. O pinto entrou na era da suspeita; ninguém mais
acredita na sua primazia erótica, nem em seu valor de representação. Portanto, é um
duplo descrédito que desaba sobre o sexo do homem: enquanto função e enquanto
símbolo.
Com efeito, as virtudes de força e de conquista desatam hoje os laços que as
ligavam tradicionalmente ao membro viril. Se nossa “sociedade” manifesta um amor tão
barulhento pelas mulheres no governo, pelas estroínas, pelas motoristas de ônibus,
pelas executivas, não é apenas para mascarar a desigualdade através de algumas
exceções habilmente exibidas; é para suprimir a velha equação pênis = dominação, e
proclamar o novo ideal republicano: o acesso universal aos valores masculinos. O
discurso feminista denunciou, com razão, esse democratismo que faz do falo para todos
seu programa e sua profissão de fé. Mas aquilo que para a mulher é uma falsa liberação
(uma vez que sobre as ruínas da antiga hierarquia instala-se o código da masculinidade
obrigatória) é, talvez, para o pênis, uma verdadeira libertação.
Desqualificado em sua pretensão de encarnar os valores fálicos, o sexo do homem
rompe suas fileiras, como se diz do soldado. Ele se vê liberado da necessidade de
representar. O pênis tinha de estar sempre em posição de sentido, quando era a única
coisa sobre a qual recaía a necessidade de representar o falo. Ele não tinha, então,
direito algum a ser frágil. Possibilidade alguma de abandonar-se ao suave desejo de ser
desejado. Em repouso, o membro não existia. Duro, era como um depoimento:
significava reencontrar nesse microcosmo da virilidade tudo aquilo que constituía o
encanto e a resistência, a dureza do herói. É bem sabido que apenas um vocabulário
sexual, ou, mais exatamente, genital, pode prestar contas da estatura do herói, de sua
firmeza diante do perigo, de seu hieratismo silencioso, de seu porte impressionante, até
de seu aspecto, enfim, talhado em rocha. Felizmente, esse desespero por assemelhar-se
a um sexo duro começa a provocar risos. Mas quem chorará por todos esses pênis que se
esforçam loucamente, no segredo da alcova, por parecer-se com heróis de bangue-
bangue? Quem dirá o necessário sobre a parte de ficção, de cinema, existente nesses
sexos em posição de ataque, nesses cacetes “prontos para arrebentar as paredes,
tesudos até as estrelas” (Aragon)? Charles Bronson, sem dúvida, representa, com uma
perfeição meticulosa, a imagem que alguns homens ainda querem dar de seus sexos. Em
compensação, é fácil imaginar os esforços desesperados a que se entregam para que
esse seu apêndice terminal apresente algo da força desinvolta, da máscara olímpica, do
sobrolho franzido do invencível justiceiro de Era uma vez no oeste.
Esse imperativo de provar sua virilidade e merecer sua supremacia perde aos
poucos sua força, e o pênis pode permitir-se, doravante, uma outra representação: de
modo cada vez mais frequente, o membro viril contemporâneo vive as alegrias da
permissividade: despe seu uniforme virilóide (que, como a farda militar, é ao mesmo
tempo uma roupa, um símbolo e uma coação) para alcançar a descoberta de uma nova
forma de nudez. O membro se torna desejável. Deixa-se contemplar voluptuosamente,
deixa-se manipular, acariciar, lamber, absorver, explorar: o soldado das entrepernas vivia
batalhas, triunfos e glória — aquilo com que sonha o novo pênis é ser apetitoso. Sua
ereção deixou de ser uma bravata; ele quer agradar e não mais provocar inveja, e sim
concupiscência.
Por que a pornografia dá tanta atenção à fellatio? Como explicar o fato de que
essa perversão seja exatamente a mais frequente e a mais honrada? Talvez se trate de
eternizar a imagem do sexo fálico, e algumas porno-atrizes demonstram tamanha
agilidade bucal ao engolir os membros que o desejo de incorporar o sexo que lhes falta
parece ser a verdadeira volúpia de que estão possuídas. Mas uma outra imagem
sobrepõe-se a esta e demonstra uma importante mutação: de tanto ser bajulado, o pinto
se desaliena do falo, assume com alegria sua nova condição de objeto e saboreia sem
remorsos as alegrias inéditas da passividade. Esse é o fantasma maior dos filmes pornôs:
o onanismo a dois, o homem deliciosamente inerte, abandonado aos arroubos de uma
mulher simultaneamente perita e perversa, competente e contente. A masturbação tem
a reputação aparentemente merecida de ser triste: a viúva Dona Punheta nunca ri,
mostra-se sempre inconsolável com a ausência da relação sexual. No entanto, a
pornografia reabilita essa atividade manual tão criticada: ela se toma o próprio ideal da
relação sexual, a demanda que o homem, libertado do complexo fálico, finalmente ousa
dirigir ao corpo feminino: “Me masturbe, dê a meu sexo tanto solicitude quanto desejo,
me faça reencontrar as alegrias sem par do onanismo ao mesmo tempo em que me
poupa a sordidez da solidão; através de você meu pênis enfim reconciliado será ao
mesmo tempo o pinto de ouro do adulto tesudo e o pinto adormecido do menino
mimado.
Sabe-se, de longa data, que o homem que se masturba é um frustrado da relação
sexual. Mas, em virtude do império da virilidade, demorou-se muito a reconhecer que o
homem que trepa era um frustrado da masturbação. O cinema pornô revela um segredo,
à sua maneira, isto é, através da conversão sistemática do fantasma masculino em
desejo da mulher, à qual é atribuída esta necessidade prioritária: masturbar o homem
que ela abraça. Em suma, se há algo de saudosismo no onanismo, não é tanto o
saudosismo do Outro quanto da passividade. Se há substituição, não é a do fantasma por
uma presença real, mas da mão masculina pela boca da mulher. Se há uma oração, ela
não diz: “Que haja uma mulher para que eu me esqueça”, mas sim: “Que haja uma
mulher para desejar meu sexo e dar-lhe o prazer que meus dedos demasiado familiares
só lhe proporcionam pela metade”.
Assim, à mulher são atribuídas novas tarefas, pois a norma modificou sua
máscara: ela não mais cumpre, para com o outro sexo, o dever de sentir-se inferior, mas
fazendo isso apenas ela não está quites com o sexo do homem. Com efeito, a fellatio não
é mais uma perversão ou uma postura: é um critério de sensualidade. O corpo masculino
não tolera essa homenagem a menos que corresponda a um desejo autêntico e
profundo. Resultado: no exame da luxúria, passam apenas as mulheres magnetizadas
pelo pênis. A própria sexualidade delas só pode apresentar-se como inteiramente
desabrochada se ela souber concentrar- se sobre os caralhos.
Por outro lado, tudo continua a acontecer como se, de sexuado, o corpo
masculino devesse apresentar agora apenas o sexo. Terrível monopólio: é na área genital
que se dá a transformação do corpo de conquista em corpo desejável. Esta nova
representação do pênis acumula para o homem a felicidade da afluência e da
passividade. Fazendo de seu membro um passaporte libidinal, ele não mais teme o
fracasso, ele cancela as feridas da rejeição. Também este fantasma é posto em cena pela
pornografia: existe um imenso alívio em ser desejado por seu sexo, pois trata-se de um
tesouro que não foi nem ganho, nem descoberto, uma graça imerecida que liberta seu
possuidor das servidões do mercado e da necessidade de dar duro para ter o que deseja.
A fim de sacudir o jugo do valor de troca, a pornografia fomenta um desejo universal e
imediatamente genital. É a utopia: o fim do trabalho de sedução, o fim da avaliação dos
corpos e do negócio dos desejos — aqui, chupa-se grátis. Mas qual o preço a pagar por
esta maravilhosa solicitude, por esta substituição hedonista do presente pela troca? O
preço do aniquilamento dos corpos. Levar as mulheres a gozar apenas com nosso sexo é
nos fecharmos na prisão de nossa própria dominação. A fim de manter o controle sobre
a alteridade, a fim de não se deixar superar pela reivindicação de um desejo
heterogêneo, os pornógrafos são obrigados a suportar, eles também, a tirania por eles
imposta: a tirania do genital.

3 - O gozo seminal
Mostrar tudo: isso pressupõe que tudo seja mostrável. O transbordamento
espetacular do sexo é, de fato, uma captação da vida sexual através da ordem do
espetáculo. Desse ponto de vista, a censura oficial representa um duplo papel: proibindo
a representação ou, pelo menos, regulamentando-a para mantê-la nos limites de um
erotismo tolerável, ela inocenta e dissimula a ação clandestina de uma outra censura,
disfarçada para ser mais eficaz: a representação obrigatória. Não que seja indispensável
exibir obscenidades a fim de atrair um público pervertido, como afirmam os pregadores
de moral, mas porque a sexualidade deve estar contida inteiramente no campo do
visível. Há pelo menos um ponto sobre o qual concordam pornógrafos e puritanos: o
panoptismo do gozo. Proibir o espetáculo da volúpia ou liberá-lo; impor limites ou aboli-
los: esta batalha ao redor da censura trava-se no terreno da censura originária que
encerra a volúpia na representação. Repressiva quando impede de ver, a lei torna-se
restritiva quando permite ver. Pois a representação não tem a transparência do reflexo.
Não se trata de um veículo neutro, de uma mediação sem consistência entre o olhar e a
sexualidade: é um procedimento insidiosamente seletivo e rarefeito que exclui do gozo
os gestos lentos e as felicidades difusas, que penaliza toda intensidade inverificável e
subtraída do olhar.
Mas a mulher não norteia sempre seu gozo por essa norma do visível. Seus
orgasmos não são evidentes, são desesperadamente improdutivos, e mesmo que
queiramos colocá-los à força na estante da descarga, esta descarga permanece invisível,
metafórica: coisa que faz pairar sobre o enlace sexual o risco terrível daquilo que não
pode ser dito. O prazer feminino não pode ser mapeado: em que momento se dá, onde
se dá? Através de que indícios reconhecer a apoteose? Às vezes, através de um grito as
mulheres dissipam o mistério. Na verdade, gritar pode significar perder a cabeça, viver
uma intensidade tão forte que as palavras são impotentes para traduzir o sentimento e
que o silêncio não consegue conter; mas pode ser, além disso, na conversa dos sussuíros,
a resposta tranquilizadora do corpo feminino para a inquietação de seu parceiro.
No grito de uma mulher que desfalece existe a virulência de uma loucura e a
nitidez de uma mensagem. O gozo feminino excede a disciplina da linguagem articulada,
mas apenas a fim de estabelecer um contato: só deixa de lado a palavra a fim de tornar-
se comunicável. Entre a cumplicidade amorosa e a mentira misericordiosa, esta oferenda
pode revestir-se de todas as nuanças intermediárias e significar tanto a ternura quanto a
sujeição; mas, simulacro ou confissão, ela sempre tem por missão científica conjurar o
perigo do inefável: dando a ouvir aquilo que não pode ser visto, o orgasmo feminino
consegue chegar, por um desvio, à legibilidade. O ruído substitui a imagem: ao invés de
emitir sêmen, a mulher emite um signo; enquanto equivalente da descarga seminal, o
grito permite o retomo da volúpia feminina ao curral da representação.
Os filmes pornográficos imaginaram completar essa submissão ao signo através
da sujeição da mulher ao ritmo masculino do prazer: à equivalência entre a descarga e o
grito sucede a onivalência da libação seminal. Com efeito, o esperma recebe o privilégio
exorbitante de representar os dois gozos. O orgasmo feminino continua a ser lido, mas
não tem mais signos próprios: é lido diretamente na satisfação masculina. Por que, a
ponto de ejacular, o homem se afasta e mostra para a câmera o escorrimento de sua
volúpia? Esse coitus interruptus bossa nova não é uma técnica de contracepção: é uma
técnica de representação, meio pelo qual nada escapa ao olhar, nem mesmo o momento
do êxtase. E como a mulher sofre congenitamente de uma lacuna espetacular, como ela
não pode passar um atestado de seu prazer, o esperma ocupa esse lugar: coisa que
corrige a falha desse gozo sem marcas e que permite perceber que entre o corpo
masculino e feminino a homologia é tão perfeita que a efusão espermática de um pode
servir de prova ou garantia das emoções voluptuosas do outro. Você está gozando, uma
vez que estou ejaculando. Lógica terrível, que consuma a abolição da diferença. Com a
pornografia é a ordem do olhar que assegura sua vitória, e na ordem do olhar não há
diferenças entre os sexos.

* * *

Suas complicações com a Lei durante muito tempo consagraram o discurso


pornográfico. Taxado de subversivo, para todos que combatiam a repressão ele se
tornou intocável. Era possível não gostar de Sade sem com isso pôr-se do lado dos
carcereiros, dos censores, dos pedagogos, dos alienistas, de todas as forças da
repressão? O advento do discurso feminino pôs fim a essa consagração. A censura e a
subversão foram perturbadas, em sua cumplicidade querelante, pela irrupção de um
terceiro discurso que, sem necessariamente eliminar os dois primeiros, reconheceu uma
mesma violência no obscurantismo de um e no aparente progressismo do outro. Quando
as mulheres se recusam a submeter sua vida erótica aos sexos e aos orgasmos
masculinos, quando reconhecem novos critérios para o desejo feminino e vislumbram o
gozo em detalhes antes desprezados, o que é posto em causa é a pretensão que tem a
fantasmática masculina de legislar sobre toda a vida sexual. Em outras palavras, o
prestígio conferido pela maldição dos puritanos não mais pode dissimular que,
verdadeira história em quadrinhos do erotismo dominante, a pornografia completa o
imperialismo masculino sobre as relações sexuais.
Mas não se trata, num movimento pendular desesperante, de substituir uma
norma por outra e de colocar a boa natureza feminina no lugar que a fantasmática
masculina deverá abandonar. Colocar o código a favor das mulheres não é uma
revolução, é uma recondução. Aliás, não há uma boa natureza feminina, pois o discurso
feminino abandona a unidade, o unitarismo, recusa a coerência, evita cuidadosamente a
cristalização de novos critérios de boa sexualidade.
Contra a antiga equivalência surge, na nitidez da linguagem, a diferença das
sexualidades; formulam-se maneiras femininas de desejar, um saber-viver e intensidades
especificamente femininas do gozo. Para desgraça dos sexólogos, as aventuras singulares
que as mulheres contavam entre si e que ora elas ousam divulgar não se alinham com a
ideia de um orgasmo codificável. Essas singularidades, colocadas todas juntas, não
oferecem a verdade estável de um modelo, que por sua vez poderia funcionar como uma
norma, excluir as que desconhecem o grande momento, classificar as outras,
individualizá-las segundo um código de graus de intensidade que iria do mínimo exigível
— as contrações vaginais — ao cem por cento do transe integral. Preservando
ciumentamente sua pluralidade que lhes é própria, as palavras femininas põem as
normas em suspenso: o que elas produzem não é um critério de seleção, é uma
referência desculpabilizadora que visa fazer com que as mulheres não mais se
envergonhem de sua autonomia libidinal, seja qual for a forma singular que esta
diferença possa assumir.
Portanto, encerrou-se o tempo do solipsismo vitorioso para os homens. É uma
derrota ou essa própria noção, e seu cúmplice indefectível, o triunfo, foram finalmente
vencidos? Não há uma outra intuição do Outro além da sensação de estar dominado
completamente e de ser julgado sem possibilidade de recurso? Deixar de ter vantagem
sobre os outros significa necessariamente ter vergonha?
Se podemos trair nossos interesses viris, abandonar nossa condição sexual, não é
porque, sob o olhar dessa nova Inquisição que são as mulheres, nos sentimos em falta.
Para o gozo feminino, nossas satisfações não são tanto culposas quando indesejáveis:
quando a irrupção da alteridade perturba o sono da equivalência, chegamos ao ponto de
indesejar nosso próprio desejo, de sonhar com sermos trânsfugas de nossa sexualidade.
A pornografia não se apresenta a não ser, enfim, como uma supervalorização das
misérias: respondendo à carência através da locupletação, dando a imagem de um
paraíso onde todos os desejos seriam saturados, ela revela, sob a miséria contingente
que pode advir ao corpo masculino (a escassez de parceiros, o peso das inibições, o tédio
conjugal ou a solidão citadina), uma miséria menos aparente mas que lhe é constitutiva:
a simplicidade de suas satisfações. E então, quando as mulheres recusam deixar-se ditar
pelas imagens que nos habitam, é paradoxalmente contra nosso desejo que a revolta
delas se dirige: sem dúvida há um desejo a ser saciado, mas o gozo só pode advir da
confusão. A diferença feminina, ao decapitar o corpo do amor, ao abrir a possibilidade de
um enlace sem pé nem cabeça (isto é, sem pau, sem glande), sem lei nem rei, ao nos
permitir enfim viver uma verdadeira relação com o mundo exterior, nos salva de nossa
própria dominação e nos liberta de nossos espelhos: nossa destituição é nossa
libertação.
No lugar da equivalência, surgiu uma diferença. O que a ameaça hoje é a tentação
do paradigma, a nitidez da oposição semiótica: que os corpos masculino e feminino
sejam tratados como contrários irredutíveis, e que se trace entre eles, sobre as ruínas do
antigo solipsismo, os caminhos da coexistência. Que haja um esforço, numa mistura de
liberalismo moral e sexologia, no sentido de dialetizar a oposição; que uma mútua
benevolência, apoiada em algumas receitas técnicas, elabore um delicioso compromisso
e que o reconhecimento suceda à equivalência. Diante do gozo feminino, não queremos
assumir coisa alguma: não temos uma sexualidade a defender, nenhum patrimônio
erótico a proteger. Não queremos ser os gestionários de nosso desejo, ainda que
renovado, autocriticado e livre de todo imperialismo. O que a alteridade feminina nos
propõe é muito mais que uma síntese: é uma desatracação, uma derivação para longe de
nossas satisfações demasiado conhecidas, um nomadismo incansável, a esta estranha
viagem de um devenir feminino que não conhece pontos de parada. Desejar a diferença,
para um corpo masculino, é, em primeiro lugar, inverter os princípios da pornografia,
embaçar sua identidade ao invés de divulgá-la e universalizá-la, acabar com os próprios
programas e não impô-los; superar a atitude simplesmente hospitaleira: sucumbir à
atração do que é exterior, e não apenas acolhê-lo, libertar-se, sem dúvida, mas antes de
mais nada de si mesmo. Ao invés de enfim reconhecer a sexualidade feminina e admiti-la
como igual, reconhecer a dissimetria que a afasta de nós; opor ao corpo feminino nada
além de um arrebatamento na direção da feminilidade; viver a alteridade como uma
potência da desorganização, ao invés de organizar com elas trocas equitativas, negócios
interessantes; não assumir-se, fugir de si, abandonar a presa pela sombra, e sua pátria
pornográfica por uma terra estranha na qual não se penetrará.

EXCLUSIVO:
A diferença entre os sexos não existe:
As mulheres também peidam
Prostituição I: Um equilíbrio por subtração
Meu primeiro elemento chupa, punheteia, chicoteia, flagela, se deixa penetrar, até
com caralhos de borracha, mas não goza. Passa a metade de seu tempo na calçada, a
outra metade de seu tempo na cama e faz com que paguem bem caro para passar de um a
outro desses lugares. Meu primeiro é uma mulher e chama-se prostituta.
Meu segundo é do sexo masculino, paga uma quantia em dinheiro para emitir um
líquido esbranquecido, recolher o órgão correspondente e vestir-se de novo. Meu
segundo é muito gentil antes do amor, muito maldoso depois: chama-se cliente e chama
meu primeiro de puta.
Meu terceiro é um quarto bastante feio, de teto baixo, ocupado por uma cama de
casal, um bidê e um espelho. Nesse quarto frequentemente há um cheiro de chulé, o papel
da parede está rasgado, a cama nunca é desfeita, faz muito calor, as cortinas estão
sempre fechadas, a luz é fraca, ouvem-se vozes no corredor. É preciso prestar muita
atenção porque a água que sai das torneiras é muito quente. Meu terceiro é o quarto de
hotel.
Meu quarto é uma personagem etérea, ora um indivíduo, ora delegado de polícia,
ora representante do Estado ou traficante internacional. Tira dinheiro de meu primeiro e
o escorraça. Meu quarto chama-se proxeneta.
Meu quinto dura pelo menos cinco minutos, uns quinze minutos no máximo, meia
hora ou uma hora para os mais ricos. Meu quinto chama-se michê.
Meu sexto é um conjunto de pequenos micróbios que a gente pega esfregando as
próprias mucosas contra outras mucosas contaminadas. Meu sexto é ativamente
combatido pela medicina profilática. Meu sexto está em vias de desaparecimento da
esfera de meu todo.
Meu todo é uma profissão lucrativa que está evoluindo e que ostenta o nome
complicado de “prostituição” (que poderia ser assim decomposto: instituição da
trituração das próstatas).
Um probleminha para os homens: como gozar sem ficar devendo nada, e anular a
mulher no exato momento em que tiro prazer de seu corpo? Como ir além da habitual
procura masculina de uma equivalência entre o membro e a vagina (pelo orgasmo, a
pornografia ou uma forma qualquer de negociação) e alcançar o estado ideal, rarefeito,
embriagador da eliminação pura e simples do sexo da mulher? Simplesmente
prostituindo esta última, impondo-lhe os ritmos parcimoniosos de minhas satisfações,
circunscrevendo em sua pele as regiões (cavidade vaginal, anal) de minhas utilidades, em
1
suma: sublocando seu ventre contra uma remuneração (e neste sentido, é bom ir
dizendo de cara as coisas, é bem mais satisfatória a situação da prostituída que a da
maioria das mulheres casadas ainda submetidas, sem uma contrapartida, à sexualidade
de seus maridos, que, longe de “satisfazê-las”, evacuam nelas seu lívido creme). A

1
Trataremos aqui apenas da prostituição feminina em sua forma mais habitual, a calçada e o michê. Não
levamos em consideração outros tipos de venalidade, e adotamos um ponto de vista voluntariamente restritivo.
singular atração exercida pela “puta” sobre o cliente provém do fato de que ele a paga
para gozar nela como bem entender — e sabemos que, sendo um homem, geralmente
ele o entende mal e depressa (donde a brevidade do michê e a imensa rentabilidade
desses quinze minutos acumulados). Gozar sem pensar no outro, sem se preocupar com
qualquer troca, satisfazendo um sonho de passividade absoluta: esse é o desejo que o
homem vai satisfazer com a mulher venal e pelo qual ele paga às vezes somas
astronômicas, como se o dinheiro fosse a compensação fictícia por essa ausência de gozo
imposta ao outro, como se o dinheiro o irresponsabilizasse e lhe permitisse encontrar
em braços anônimos uma inocente despreocupação.
A identidade absoluta dos usuários, a igualdade entre eles, o fato de serem todos
igualmente machos e solventes, seja qual for sua condição social ou sua classe etária
(como os leitores do Pato Donald, de 8 a 80 anos); o fato de todos poderem chegar até o
corpo prostituído, gozar e debater-se nesse território encravado e desocupado que, no
entanto, ninguém deve poder ocupar ou apropriar de modo durável; o fato de que o
michê pressupõe uma álgebra dos impulsos, a comparação e a intercambiação desses
impulsos sob a égide da ejaculação masculina — todos esses traços fazem da prostituição
um estranho dispositivo de anulação das diferenças. Dispositivo homossexual (nesse
caso é fantasmado um corpo de mulher por um tempo concedido a seu homólogo
masculino, estando toda irregularidade, toda desarmonia, banida entre eles), mas de
uma homossexualidade restrita e que, não contente de coagir o parceiro feminino, limita
o erotismo do cliente ao fenômeno da descarga. Pois o passe mágico da sessão
prostitutiva (fazer da mulher o simples agente do saciamento rápido do homem)
necessita, para completar-se, da total frieza do corpo negociado: a mulher de prazer é a
mulher do prazer dos homens e é por isso que ela se limita à frigidez. O equilíbrio que a
passagem estabelece entre eles é puramente mítico, o saciamento do homem é pago
com a aniquilação do prazer para ela; portanto, longe de restabelecer uma simetria,
embora fictícia, entre gozo masculino e gozo feminino, a prostituição anula a mulher
como corpo sexuado; em outras palavras, é ela uma negação, entre outras, da diferença
dos sexos, a mais brutal, mas talvez também, como veremos, a mais ambígua das
negações.

O corpo-cliente

“Quando estou na calçada, sou eu o caçador. Caço o homem, ele é a caça, eu o


espreito, fico olhando pra ver se ele me olha, se vem em minha direção. Não é mais um
2
homem, é um cliente.” Invertendo, os papéis tradicionais da caçada, o aliciamento exibe
a crueza da situação: diante das prostitutas que nos chamam de todos os lados, somos
como mulheres, tal como os homens veem as mulheres: simples objetos sexuais, com a
diferença fundamental, porém, de que neste caso temos de comprar nossa condição de
“homens-objetos” e pagá-la sem falta em moeda corrente e sonante. A prostituta que se

2
Une Vie de putain. Coll. France Sauvage. p. 49.
aproxima do passante lhe diz substancialmente o seguinte: “Eu não te desejo, só quero o
aspecto monetário de tua pessoa, no caso, de teu sexo; você não é nada para mim, nem
um corpo, nem uma cabeça, nem um sorriso, nem mesmo um ódio, você não passa de
um caso, um aparelho genital prestes a esvaziar-se a fim de se satisfazer e é somente por
essa razão que estou te chamando. De você não quero nem a lembrança, nem a
gratidão, mas o anonimato simples do dinheiro; em compensação, me comprometo a
acalmar o mecanismo cego de teus órgãos.” Dúvida do cliente: estou sendo cobiçado
pelo meu dinheiro ou por meu físico (meu porte, meu bigode, meu ar viril, minhas
orelhas, minha roupa, meu grosso cacete, meu dente de ouro, minha cara de ariano).
Esta dúvida torna-se irresolúvel, não cabe mais: “O contrato de prostituição liberta os
envolvidos daquilo que se poderia chamar de embaraços imaginários da troca: em que
devo me basear, com relação ao desejo do outro, com relação ao que sou para ele? O
contrato suprime essa vertigem: é, em suma, a única posição que o sujeito pode
sustentar sem recair nas duas imagens opostas mas igualmente renegadas: a do egoísta
(que pede sem se preocupar com ter alguma coisa para dar) e a do santo (que dá ao
mesmo tempo em que se proíbe de vir a pedir alguma coisa...)” (Roland Barthes). O
objeto-“cliente” não é, portanto, apenas um certo poder de compra; ele é, acima de
tudo, a aliança indissociável entre um pênis e uma quantia em dinheiro, um sexo cuja
única forma de existência é a financeira, um meio de pagamento que não passa de um
pedaço de carne; em suma, uma espécie de pequeno capital libidinal, um banco vivo. A
prostituição consegue a indissociabilidade das relações sexuais e do dinheiro, uma não
podendo realizar-se sem a outra: o monetário vem junto com o genital, cada ejaculação
vale, digamos, mil cruzeiros, mil cruzeiros é o preço de um michê. Entre as pernas da
prostituta, o cliente só pode gastar sua libido se gastar seu dinheiro (e, inversamente, a
mulher pública não pode fazer amor sem ter a impressão de estar “trabalhando”).
A prostituta volta, assim, contra o passante o mecanismo masculino da caça, ela
espreita o espreitador; ela o aborda, agarra-o, insiste, “canta-o” com promessas
miríficas. Mas o homem somente suporta essa inversão porque está pagando, porque é
um devedor em potencial: toda mulher que dele assim se aproximasse não o levaria a
fugir, assustado diante da imagem da atitude masculina que ela não deixaria de lhe
devolver? Mais ainda: nesse aliciamento, o homem não é nem mesmo um objeto de
prazer, nem uma presa cuja posse provoca orgulho no possuidor: é um simples meio de
enriquecimento, um elo numa série. Em outras palavras: um cliente.
Portanto, o cliente olha a mulher como sendo sexo, e ela, em troca, considera-o
apenas como um esperma pagante. Mas qual é esse órgão ao qual o usuário reduz a
mulher? Será um sexo que se pretende fazer “gozar” (a fim de retirar dele, por exemplo,
uma mais-valia de prestígio), um erotismo que nos deslumbra? Não será que a prostituta
na verdade não tem um sexo próprio, além daquele que lhe é emprestado pelo cliente?
Em outras palavras, não será que o baixo ventre da mulher está oculto sob sua calcinha
mas, na verdade, se exibe universalmente, atemporalmente, na calça de cada transeunte
potencial, como sendo o modelo, o ângulo, a fuselagem sob a qual ela deverá oferecer-
se? O corpo-cliente não se contenta com limitar a mulher a suas zonas erógenas; ele
verga essas mesmas zonas sob o peso da lei de seu próprio aparelho genital, instaurando
entre elas e ele um único denominador comum: o equipamento sexual masculino.
Metamorfose em forma de jogo para psicanalistas: como pode a mulher ter um pênis?
Resposta: prostituindo-se. Não se trata nem mesmo do fato de o cliente manipular à sua
vontade a “resposta sexual do outro” (para usar as palavras de Hamster e Ronchon); é
que, pelo contrário, ele sufoca toda resposta ao não fazer nunca pergunta alguma: a
questão da alteridade da mulher não se coloca nunca, em sua relação com ela o usuário
apaga todas as passagens que poderiam dizer respeito a ela, ele as abole um pouco
como alguém que corta os fios do telefone quando as notícias anunciadas são más. A
prostituta não tem sexo, não poderia ter sexo, ela é apenas um buraco, e buraco que
nem mesmo comporta o vazio angustiante das outras mulheres; o homem conhece bem
esta falha, esta fenda, nada tem a temer dela, é seu próprio membro ao contrário, um
orifício sempre preenchido, cheio (como uma sala de espetáculos), portanto completo,
complementar. No fundo do útero, ao longo das paredes vaginais, a única coisa que ele
sempre encontrará será a si próprio, invertido como no espelho. Quanto à luxuriante
arquitetura do sexo da mulher, ele não pode enxergá-la, não tem olhos para esses
detalhes, dado que não correspondem a nada de tangível nele. Todo o corpo feminino
reduz-se a buracos (ânus, boca, vagina), a mulher só é habitável quando penetrada, ela é
apenas um baixo ventre, um baixo ventre híbrido, misto e antes neutro do que
bissexuado.
Uma vez terminado o michê, aquilo que irá provocar um desgosto no cliente será
menos a forma comercial das relações com a prostituta do que a imagem da brevidade
de seu próprio prazer que ela lhe devolve. A mulher vende-lhe apenas uns quinze
minutos de seu corpo, porque o gozo do cliente não precisa de mais de quinze minutos
para satisfazer-se; porque a prostituição, privando o homem das ilusões por ele
alimentadas numa relação sexual “normal”, devolve-lhe sem distorções a imagem crua
de sua condição anatômica. Assim, a raiva que o usuário tem da mulher é sempre uma
raiva de seu próprio sexo (e sabe-se que esse rancor pode levar até o assassinato): na
desenvoltura da puta, no anonimato racionalizado do arranjo prostitutivo, é a si mesmo
que o homem amaldiçoa, é a unicidade e a pequenez de seu próprio erotismo que ele
execra. Se ele despreza sua parceira após o ato, é porque já a desprezava antes, é
porque ele já se odiava nela; a alteridade da mulher era apenas uma coisa provisória, sua
beleza, seu charme provinham apenas de uma tensão interna ao corpo-cliente, estava
apenas na dependência de algumas gotas de esperma a evacuar. O que fazer de uma
prostituta uma vez obtido o gozo procurado? Esse corpo negociado é opaco, inutilizável,
não há mais nada a tirar dele. Ou então seria necessário estabelecer com ele outras
relações (mas o quarto de um hotel não é um salão de chá). Esse corpo está morto
(porque o corpo do cliente morreu também, isto é: foi genitalmente apaziguado); e se
ele sobrevive, se ele se limpa, veste-se outra vez, prepara-se para receber outros pênis
impacientes por desafogarem-se nele, só o faz através de um escândalo que enfurece o
homem. Isso o deixa possesso, balbuciante, pronto para imputar ao sexo feminino as
fraquezas ou a tibieza de seu próprio aparelho genital.
A seu amante, a mulher geralmente pede que se contenha a fim de que também
ela possa gozar. Injunção contrária da prostituta: “Vamos, meu bem, acabe, acabe”. O
cliente está sendo sempre convocado a entregar-se, a dar livre curso às maquinações
instantâneas de seus órgãos. Ah, se ele pudesse ejacular na soleira da porta, quanto
tempo ganho! O homem, como dissemos, paga para atingir a parte mais profunda de seu
egoísmo, para abandonar-se na indiferença completa do outro. Mas não existe essa
parte mais profunda dele, o homem estremece, não soçobra, não é arrebatado e menos
ainda alterado, todas as intensidades nele são medidas segundo a segundo; quer dizer
que ele paga por muito pouco, por essa satisfação mínima que é o gozo da ejaculação.
Sendo o michê aquilo que é, o que está em jogo nele não é que o cliente deve "voltar a
3
si, voltar" ou que a coisa "tem de acabar logo, que o ciclo tem de ser retomado, que tem
de recomeçar" (ibid.); o que se destaca é o fato de que entre as pernas da mulher a única
coisa que o homem pode fazer é passar, porque para ele toda trepada é curta sem ser
mortal, para ele não se trata de “incandescências ou aniquilamento” simplesmente
porque ele nunca se perde nesse ato. Entre os braços da mulher de vida alegre, a única
*
coisa que ele pode fazer é passar, sem sequer ter a ilusão de ter-se ultrapassado.
Como sustentar, então, que a prostituta “assume a maldição sagrada da
esterilidade genital” (Lyotard, ibid.) e que aquilo que o perverso vem eludir em seus
braços é a criança, a fecundidade? Pois, desse ponto de vista, toda mulher que usa
preservativos é igualmente “maldita” ou é tão pouco “maldita” quanto a prostituta. E
ainda desse ponto de vista, a generalização da pílula faz hoje de toda relação sexual um
ato perverso, imediatamente “sodomita” (isto é, inútil, gratuito como a sodomia)
tornando para sempre perempta, ridícula, risível, no domínio do erotismo, a oposição
entre esforços utilitários e esforços estéreis. Não é a criança, mas sim a mulher que o
cliente vem evitar no útero da prostituta, é a misteriosa sexuação feminina que ele vem
conjurar num corpo de mulher vergado sob os breves imperativos de seu prazer. O que o
fascina, o que o tranquiliza na prostituição é que se trata de uma relação sexual
codificada, uma ordem onde o cálculo pode ser enfim efetuado porque diz respeito a
quantidades finitas, um contrato contra o Terror que representa para o homem os
desejos da mulher, contra tudo aquilo que, nela, foge das frágeis volúpias masculinas. E
se o cliente paga, é não apenas para desafogar naquele corpo, submisso ao comércio,
seus fantasmas mais inconfessáveis (fantasias que, provavelmente, ele não pode
satisfazer na vida comum), mas sobretudo para gozar depressa Segundo modalidades
que ele mesmo estabeleceu sem se preocupar com a vontade de sua parceira. A
prostituta é portanto, ao mesmo tempo, o sonho e a assombração , do homem: ele a
estima porque ela lhe devolve a imagem de uma mulher virilizada (até mesmo em sua
linguagem tão rude...), mas pela mesma razão ele a detesta na medida em que ela lhe
significa impiedosamente sua própria fragilidade erótica, sua inaptidão para toda
sensualidade prolongada. Portanto, o homem quer uma mulher semifrígida (ou
rapidamente saciável), como ele; mas quer também uma mulher cuja frigidez o liberte
de sua própria frigidez. Quer ultrapassar seus próprios limites, mas apenas o suficiente

3
J. F. Lyotard, Economie libidinale, Paris, Minuit.
*
Um jogo de palavras, no original, com o termo que designa o ato da prostituição (passe) e com o lugar onde
isso se dá (maison de passe). (N. do Trad.)
para não perdê-los de vista. Quer um ser que ele possa manipular segundo sua fantasia;
e uma manipulação que lhe oponha uma resistência suficiente para que ele tire algum
prazer disso (orgulho do obstáculo superado, da força domada). Ora, a prostituta não lhe
opõe coisa alguma, ela é a própria imagem da docilidade, algo como uma rua
inteiramente desimpedida e, como ele, indiferente às pessoas que por ela passam. O
usuário quer um salvador, uma figura radiante que resgate suas enfermidades; quer
também um bode expiatório, uma vítima para torná-la culpada de suas próprias
desgraças. Em suma, ele exige um Cristo, um novo Messias que se sacrifique e o liberte
para sempre da diferença dos sexos. Insolúvel exigência da qual se alimenta o rancor do
cliente quando ele sai do hotel: “Para os homens, o sexo da mulher é algo
essencialmente mau. Fazem do sexo da mulher uma coisa suja mas, no fundo, é seu
próprio sexo que não conseguem suportar. E então eles aceitam a mulher, mas, como
uma esposa é um pouco como uma mãe, é preciso respeitá-la, eles acabam encontrando
bodes expiatórios: as prostitutas. Tomam a gente por todas as mulheres, por todas as
4
outras.”
Não há nenhuma sedução possível a priori entre o passageiro e a mulher pública,
porque ela é tão semelhante a ele (é ele ao contrário) que ele não pode atraí-la para seu
universo, pois ela já está ali. O homem está sempre diante de sua duplicação: ora, o
próprio reflexo não é seduzível, a menos que a pessoa se perca numa vertigem
nauseante. Conspurcando sua parceira venal, é a si mesmo que o homem conspurca, ele
se enraba por procuração, contempla sua semelhança, conjuga o avesso com o direito,
faz das duas coisas uma só. Prostituição: máquina de fazer o Mesmo com o Outro, de
fazer de todos os outros o Mesmo que Si, imensa tautologia funcional (e as prostitutas
sabem muito bem disso, uma vez que se classificam a si mesmas, enquanto corpos
negociáveis, segundo a demanda dos clientes: dos sádicos, dos masoquistas, dos que
gostam de olhar, dos escatológicos, etc.; os fantasmas que se apresentam no mercado
sempre são variantes de uma única e mesma entidade: o corpo masculino). Entre o
homem e a “respeitosa”, a reciprocidade é tão completa que ela oblitera a sedução: para
que um acidente se produza seria preciso que a mulher, para o cliente (ou este para ela),
surgisse como sendo outra coisa que não apenas regiões genitais e que ambos
desertassem daquilo que os reuniu por alguns minutos (quando isso acontece, o assunto
se volta para mil outros temas que não o michê; não se seduz uma prostituta para uma
“foda grátis”, porque a foda, como veremos, é aquilo com que as putas menos se
importam). O corpo-cliente, portanto, é um corpo que pede uma surpresa, mas uma
surpresa que de algum modo não o surpreenda e que seja apenas a repetição de um
acontecimento já bem conhecido. Desse modo, o único luxo que o homem pode
oferecer-se é retardar o mais possível a escolha da parceira. Donde as idas e vindas
intermináveis de todos esses senhores diante desses bares e hotéis (e que não significam
apenas a procura de um bom objeto), o voyeurismo intenso de que dão mostras (“o
pessoal deveria ter de pagar pra ver; você quer ver, são quinhentas pratas”, comentário
ouvido na Rua Aurora), a hesitação, a aglutinação assustada diante das entradas dos

4
Une Vie de putain, op. cit., p. 89.
hotéis, os rostos contraídos, à beira do pânico (raros são os clientes que sorriem), esses
olhares ao mesmo tempo apressados, ansiosos, fugidios, indisponíveis e nos quais se vê
talvez o terror do homem a partir do momento em que ele se vê confrontado com uma
certa (e sem dúvida relativa) liberdade feminina. Até o momento, apesar de tudo, em
que esse verdadeiro soldado da infantaria que já passou mais de vinte vezes pela mesma
calçada, se decide e aborda uma mulher: e então, tudo acabou. A partir do momento em
que o usuário atravessou a porta do hotel e subiu as escadas como se fosse um cãozinho
tímido seguindo sua dona, não há mais nenhuma incerteza: ele já penetrou no
mecanismo implacável de um destino que não tolera variação alguma (nesse sentido, a
abordagem da mulher talvez seja o momento emocionalmente mais forte porque é, ao
mesmo tempo, a satisfação da procura e seu fim, seu paroxismo e sua deflagração, como
se fosse um orgasmo antecipado, um confronto que acelera o coração, dá um nó nas
tripas, umedece as palmas das mãos, faz cintilar a recusa de uma vertigem (que, no
entanto, se sabe ser pouco provável) com uma aquiescência que é mais que a
indiferença mercantil, com uma alteridade não eliminada de imediato, núcleo dos mais
divergentes impulsos que afluem para esse instante e que dão um nó na garganta).
Desde a entrada, o usuário será apanhado na engrenagem irrefreável dos gestos do
desvestir-se, da ereção, da intromissão e da evacuação obrigatória. O quarto de hotel é
esse espaço onde não se pode mais perder tempo, porque aquilo que se tem de perder e
pôr para fora é o próprio esperma: uma vez no corpo venal, não há mais nenhuma
tergiversação, os órgãos cumprem seu trabalhozinho e reembolsam-se, em sensações,
do dinheiro gasto.
Aquilo que o cliente deseja, portanto, é menos o alívio de suas tensões que a
anexação à sua própria sexualidade (ainda que por um momento) do rosto, dos braços,
quadris, coxas, dos encantos desse corpo desconhecido, a apropriação dessa mulher
inteiramente representada ao redor de sua ereção. “Cliente”: isso designa uma certa
organização corporal que impõe seus ritmos pulsionais a um outro corpo e, em
consequência, pretende ser diretor de cena, pretende-se um modulador de seu prazer a
fim de assegurar-se de que sua identidade própria, sexual e narcisista, não se verá
gravemente comprometida ou ameaçada. É preciso que o Outro seja convocado em sua
presença material a fim de eliminá-lo fantasmaticamente. É preciso que haja uma mulher
“vazia por dentro”, é preciso que haja uma vulva, nádegas amplas, fenda e peitos para
que a substituição em vagina-pênis, em gozo-esperma, orgasmo-ejaculação, se torne
operante. A fim de que a homossexualidade fundamental do ritual prostitutivo seja um
retorno a si mesmo, retorno à ordem viril através do desvio de uma pseudo-estranheza,
o corpo feminino.
O metro visível do michê é a evacuação do esperma, a detumescência do
membro: e nesse momento o contrato foi cumprido, o gozo anula a dívida da mulher, ela
está quite. O dinheiro compensa não apenas a falta de cuidado do homem em relação
aos desejos de sua parceira como também funciona como indutor do prazer masculino.
Isso significa que quantias altas deveriam significar grandes volúpias, de pleno direito.
Quanto mais eu pagar, diz o interessado, mais serei mimado, acariciado, excitado, e a
prostituta faz aumentar nele essa ilusão oferecendo-lhe, contra uma remuneração
suplementar, os serviços mais delicados. Mas que são, todas, solicitudes cuja única
finalidade, no final das contas, é apressar a emissão seminal e que simulam uma
polimorfia virtual do corpo-cliente a fim de melhor canalizar seus efeitos na ejaculação.
Suavidade, até mesmo ternura, louca irritação das muco- sas através de jogos das mãos
ou da língua: todos esses são movimentos que parecem negar a equivalência mercantil e
que, na verdade, apenas servem a ela ainda mais. O homem queria pagar-se um bom
momento, não olhou para as despesas quando se tratou de seu desejo; mas sejam quais
forem as coisas que vierem “por fora”, as pequenas gratificações periféricas, a coisa
acaba sempre do mesmo modo. E no mesmo tempo previsto.
Mas o cliente, sem dúvida, não pode queixar-se porque, durante os poucos
minutos do michê, ele terá sido o corpo mais infantilizado, mais passivo que possa haver.
Não há mulher mais materna que a prostituta, nenhuma outra dedica tanta atenção ao
prazer do que elas, ou ao conforto, ou às pequenas alegrias do usuário: lavando-o, (e
com que precaução!), secando-o, mostrando preocupação, através de afetuosas
perguntas, sobre a forma do acólito (você não está cansado, não bebeu muita cerveja?),
elogiando suas vantagens (é tão grosso quanto meu dedão), chamando-lhe a atenção
afetuosamente se for o caso (não deixe teu sexo ficar arrastando pelo chão, meu bem, a
gente pode acabar pisando em cima), chupando seu membro, esculpindo-o, trabalhando
a glande, o prepúcio, preparando sua ereção, em suma, banhando suas partes genitais,
suas coxas, a barriga, com uma solicitude que ele só poderá ter com bem poucas
mulheres. Depois, instalando o homem dentro dela e implorando-lhe que emita seu
sêmen, que faça o que tem de ser feito, como se fosse uma mãe cuidadosa que observa
as fezes de seu bebê, que se inquieta ou se tranquiliza com o cheiro que exalarem, que
se delicia diante de seu aspecto adequado. Portanto, uma mulher bem materna em sua
maneira de tratar o pênis como se fosse uma criança, e isto em razão, sem dúvida, do
interesse comercial mais evidente, uma vez que delicadeza e afeição geralmente
permitem (mais que a negligência) que se precipite o desenlace, apressando a subida da
seiva pela coluna fálica e com isso mandar de volta para casa o portador do pênis, a fim
de poder ir logo colher um outro na rua. E mulher tanto mais adorável por essas coisas
quanto a pessoa lhe é indiferente; uma perita, por necessidade do trabalho; atenta, por
desejo de acabar logo com a coisa e com isso aumentar o número de michês. O próprio
cliente não passa de um menino com tesão e cuja ereção, longe de ser um atributo de
virilidade, é o próprio índice de seu estado de assistência: quanto mais se mostrar
excitado, rígido, mais dará lugar a sua passivação, mais certa será sua regressão à
infância. Por conseguinte, não há antinomia alguma entre mamãe e a puta (velha arenga
freudiana), e nenhuma consequência perturbadora para as prostitutas em razão de sua
pretensa degradação ou vulgaridade (onde começa a dignidade, se é verdade que a
procriação é uma atividade tão venal, tão pouco gratuita quanto a locação das partes
genitais?). Se o homem paga, o faz também para abdicar de sua masculinidade, para
despojar seu erotismo de seu caráter supostamente ativo: gozar sem fazer nada, numa
espécie de catatonia muscular, banhar-se no Nirvana, no grau zero da atividade do
movimento: talvez seja essa possibilidade paradisíaca que atrai o homem para a
organização prostitutiva.
O corpo prostituído

Diante do cliente que lhe paga e com isso compra sua docilidade, a prostituta é
esse corpo que se verá, pela duração de um michê, mobilizado, requisitado por um
poder exterior, subjugado por forças novas, posto a serviço de outras finalidades.
Basicamente chamada a submeter-se, mediante retribuição, aos fantasmas de um
homem, a realizá-los sem protestar (quer se trate de uma trepada simples, de um ritual
masoquista, escatofílico, de um acesso de voyeurismo, de uma bacanal, de uma trepada
com animais, etc.), a não romper com um roteiro implacável, uma vez que o usuário a
remunera apenas para povoar com seres de carne e osso suas próprias imaginações
eróticas, com a condição de que ela represente aí o papel que lhe foi dedicado, sem
repugnância. Portanto, a prostituta não é um corpo que goza, se comove, ri, chora, se
dilacera, se extasia, sofre; é um corpo que trabalha, que representa uma personagem
particular numa peça particular escrita pelos clientes, é um corpo que encarna o teatro
íntimo de um estranho e, por isso, será chamado a fazer calarem-se nele seus caprichos
e suas vontades (a menos que lhe seja pedido). Corpo que assinala a total
incompatibilidade entre o assalariado e a perversão, exatamente porque ele exerce uma
profissão e se vê com isso arrastado para os domínios fantasmáticos de outros corpos
que o constrangem. A prostituição é um emprego entre outros, e a sociedade burguesa
está atrasada em relação a seus próprios axiomas quando ela a condena em nome dos
bons costumes ou da proteção da infância. Isso exatamente quando a venalidade
amorosa consagra a abstração do trabalho, “pura atividade criadora de riquezas” (Marx),
e não é mais imoral que o trabalho de um operário especializado, de um mineiro, do
funcionário burocrático, do artista, do escritor, da datilografa, não é mais abjeto nem
menos abstrato, cinicamente concentrado no resultado (o dinheiro) e indiferente aos
meios para consegui-lo. Dizer que as prostitutas trabalham (e não que elas agem por
“vício”, “prazer”, velhos chavões judaico-cristãos que frequentemente aparecem de
modo surpreendente na boca de alguns “ateus”) significa dizer que elas têm vários
corpos ou, melhor, que a mulher pública se liberta do mito do corpo próprio porque faz
dele um meio de ganhar a vida (donde a existência, nela, de todos os fenômenos de
resistência ao trabalho, absenteísmo, sabotagem, frigidez, vulgaridade, violência de
linguagem, indícios de uma revolta latente e às vezes de uma verdadeira raiva contra o
sexo masculino em geral).
Se o michê é apenas um meio de fazer dinheiro, será preciso que a vida do labor
prostitutivo seja a anestesia do corpo prostituído e que este último, como força de
trabalho e capital imobilizado no qual os sexos vêm enterrar seu sêmen, aos poucos
adquira a impassibilidade e a inerte repetição mecânica de uma máquina. Máquina sem
forma predestinada e que irá esforçar-se por aproximar-se o máximo da concupiscência
da clientela a fim de oferecer-lhe em músculos, linfas, mucosas, peles macias, ossos, o
equivalente da quantia gasta. O ritual prostitutivo é a conjunção de duas vontades
antagônicas, um desejo de gozo e um desejo de enriquecimento, um não cederá diante
do outro a não ser como contrapartida de uma retribuição financeira, ou melhor: é o
dinheiro, como fraternidade dos incompatíveis, que irá cimentar o acordo desses dois
desacordos, que irá selar o contrato e anular as mútuas dívidas, deixando ambos quites
um com o outro. No entanto, não basta a promessa do prazer. A assalariada do amor
deve ser uma atriz, não no sentido de ter de simular arroubos, mas porque nela a
realidade só vale pela aparência produzida e porque tem de apelar para os recursos de
uma metamorfose incessante. Com efeito, a única coisa que ela oferece aos olhares dos
passantes é uma série de superfícies, visíveis e justapostas — nádegas e bustos
geralmente suspendidos, sublinhados num retrato fetichista do corpo — e é isso que
deverá determinar a escolha dos passantes, com cada isca revelada ou destacada
representando o papel de um “indicador social”, de um acelerador de decisões.
Portanto, atriz no sentido em que o corpo que se prostitui é um outro corpo, uma outra
pele, uma outra língua, uma outra boca, que profere outras palavras: “A vulgaridade é
como a maquilagem, é um modo de defesa, uma segunda pele que protege (...). Durante
o dia sou eu mesma, faço compras, vivo como qualquer outra mulher, e de noite sou
mesmo uma prostituta, com o dinheiro, a vulgaridade, a atitude, a violência e a rebelião,
5
o ódio.”
Mas a roupa de arlequim do trabalho não é apenas um meio de defender-se de
uma eventual brutalidade do usuário (e a vulgaridade também não é um jogo que
também excita o cliente?); ela participa integralmente da arte teatral da prostituição
que, das realidades mais esquálidas, deve fazer as fantasmagorias mais fortes, engendrar
o máximo de efeitos com o mínimo de causas. A realidade é aqui o investimento e a
aparência, o lucro. A mulher pública não se mascara, ela não dissimula nada, ela expõe
exatamente ao cliente a nudez que ele deseja ver e monta inteiramente o aspecto com o
qual ele deseja revesti-la. Donde o cálculo minucioso do que vai ser mostrado ou
ocultado (e que nunca recorta inteiramente o corpo genital), o arcaísmo ou o barroco do
aparelhamento (meias, ligas, calça colante, calcinha rendada com janelas móveis atrás e
na frente, sutiã mínimo, reduzido em mais da metade, maquilagem excessiva do rosto,
6
penteado extravagante, botas ortopédicas, etc.) uma vez que tudo tem um sentido na
indumentária venal e uma vez que nada deve ser deixado ao acaso ou ao imprevisto.
Donde, também, a extraordinária irrealidade e variedade do corpo prostituído: se se
pode dizê-lo, para cada fantasma há uma especialidade: criaturas fellinianas de grandes
seios, boca escarlate, enormemente maquiladas, vagabundas apoiadas em latas de lixo e
que oferecem seus encantos por uns poucos cruzeiros, deusas cruéis de traços duros e
altivos, hippies cobertas de bordados, cheirando a incenso, amazonas vestidas de couro
preto, armadas de chicotes e correntes, grandes damas de vestido longo, olhar vaporoso,
sorriso enigmático, burguesas tipo aeromoças, cuidadosamente vestidas, estudantes de
óculos, cabelos meio longos, turistas, seminuas ou em shorts, decotadas até o bico dos
seios, trabalhadoras, roupa discreta, pouca maquilagem, sapatos de salto baixo, rock-
retrô, jeans colantes, botas pontudas, cabelos curtos, couro preto, Lolita de tranças,
saias curtas, meia de cano curto e pirulito. Em suma, toda a gama daquilo que uma certa

5
Une Vie de putain, op. cit., p. 145.
6
É então que toda simplicidade ou negligência no vestir fica fortemente conotada, e aparece por sua vez como
fantástica e abstrata no meio da ornamentação das outras mulheres.
ideologia chama de “mau gênero”, incluindo aí seu “bom” gênero e todos os gêneros
que a moda suscita continuamente e aos quais as mulheres se adaptam segundo a
evolução dos gostos de sua clientela. E com o seguinte efeito prodigioso de inversão:
como as prostitutas são todas as mulheres possíveis, das mais lindas às mais feias,
qualquer mulher também pode parecer-se com uma prostituta, mesmo e sobretudo as
mais finas, as mais delicadas, as mais etéreas — e as fronteiras entre o mundo do
trabalho e do prazer, entre o honesto e o venal, o elegante e o vulgar, o antigo e o
moderno desaparecem sob a multiplicação dos modelos virtuais. Se a funcionária do
sexo pode ser a mãe, a irmã, a noiva, a amante, a esposa, a santa, tanto quanto a musa,
a feiticeira, a princesa, a empregada, a mulher rica, a incendiária ou a anarquista, é que a
prostituição, ao se generalizar, consagra a ruína de todos os papéis definidos, de todas as
7
imagens modelares e das personagens bem distintas. Em outras palavras, a
transmutação do corpo venal não tem fim, na medida em que deve recitar todas as
perversões dos clientes e em que essas perversões não param de variar, de se
modificarem, corpo que será sempre derivado, produzido, porque não tem nenhum uso,
nenhuma destinação natural a priori, corpo fabricado artificialmente pelo fantasma
masculino. Portanto, corpo ao mesmo tempo gregário e singular ou, antes, único em sua
generalidade, que responde aos desejos dos grandes conjuntos de clientes (estereótipo
da “puta”) e à emoção única de uma particularidade; corpo que representa todos os
8
papéis, todas as personagens que o cliente pode investir, que se coloca na esfera de
uma semiótica, de uma psicologia coletiva e de uma verdadeira microfísica do detalhe,
misturando numa mesma indecisão necessidades codificadas, arcaicas,
hipernormalizadas e intensidades não intercambiáveis. Você não me estaria procurando
se já não me tivesse achado, mas não consegue achar exatamente aquilo que procurava:
o corpo prostituído concretiza tão bem o fantasma do cliente que se lhe torna
inacessível; quanto mais se conforma com os sonhos do cliente, menos corresponde a
sua demanda. É como se o zelo do pastiche traísse a fidelidade do modelo à força de
evidenciá-lo, ou como se ele tirasse do “criador” todo poder de controle sobre sua
“criatura”; a prostituída nunca está tão protegida de seu cliente do que quando ela se
verga a suas fantasias eróticas. É toda dele e, portanto, de ninguém.
É por isso que o casal que ela forma com o usuário nunca é um casal puro, nítido,
sempre é mais ou menos que sua simples oposição, não parando nunca de alterar esse
dualismo primário através de pequenos desvios adjacentes, de pequenas falhas por onde
passam fluxos inesperados, com cada sessão, mesmo a mais, banal, a mais rápida,
levando consigo momentos onde os papéis vacilam, onde as personagens deixam de

7
O mesmo fenômeno já teria sido registrado em Roma e Veneza no século XVI segundo historiadores. Cf. este
fragmento de um relatório do senado de Veneza publicado em 1543: “Em nossa cidade, o número de prostitutas
aumentou em proporções tão excessivas e, pondo de lado todo pudor e vergonha, elas se mostram em público
nas ruas, igrejas e outros lugares tão bem vestidas, que frequentemente as mulheres patrícias e as demais de
nossa cidade, não usando roupas diferentes das delas, acabam sendo confundidas com elas não apenas pelos
estrangeiros mas pelos próprios moradores de Veneza (...) não sem comentários e escândalo de todos.” (Citado
por P. Larivalle. Vie quotidienne des courtisanes en Italie au temps de la Renaissance. Paris, Hachette, 1975.)
8
Neste sentido, há uma similitude, bem assinalada por J. F. Lyotard (Economie libidinale, p. 222) entre o
psicanalista e a prostituta.
representar seu papel (estou com tesão, você paga, você esporra) e penetram na
indefinição da improvisação. Não é que o solilóquio das duas partes se transforme em
“diálogo”, mas às vezes pode acontecer que ele seja interrompido e que algo de
improvável (sob alguma forma) se esgueire por baixo do cerimonial mais rígido.
A máxima de toda prostituição é: “Empreste-me a parte de seu corpo que pode
me satisfazer por um momento e goze, se lhe agradar, da parte do meu que lhe possa
ser agradável” (Sade). Mas aquilo que Sade proclama em alta voz (e que fingimos não
ouvir) é que gozo algum é concordante e que, se o homem pretende gozar como quiser,
a mulher, a menos que aconteça um milagre, permanecerá insensível (ou só ficará com
as migalhas da mesa). Na prostituição, o homem impõe duas coisas: a preponderância de
seus dispositivos sexuais e a frigidez da mulher; ou, enunciando o mesmo discurso ao
contrário: a frigidez é exigida da mulher cada vez que o homem pretende ver nela
apenas a cópia invertida de sua própria economia erótica e cada vez que ele pode pensar
a si mesmo como sendo o único detentor daquilo que há de sexuado no humano. O
corpo da prostituta não é apenas envolto em dinheiro; só é reconhecido como feminino
a fim de ser melhor negado (propor à mulher a inveja do pênis é teorizar a situação de
uma lei do talião econômica). O amor mercenário impõe à mulher a condição de ser,
durante quinze minutos, igual a seu cliente; mas esta igualdade só pode acontecer, para
ela, através de uma subtração, ao preço de sufocar seus próprios ritmos eróticos; o
dinheiro é a retribuição disso, o reembolso por essa negação imposta à mulher. Negar a
diferença entre os sexos num sexo diferente do seu, através de uma espécie de
homossexualidade ou de unissexualidade conquistadora: assim é o ato-cliente por
excelência (mas não esquecer que ele paga exatamente para fazer isso, que através
desse gesto ele torna sua negação irrisória, inefectiva; ainda neste sentido, trata-se de
uma vantagem para a prostituta — pelo menos se ela for “livre” — em relação à esposa
clássica). A partir do momento em que uma mulher é apenas “objeto de prazer” para um
terceiro, ela se coloca na posição de prostituta, se é que a prostituição é essa cena da
não-reciprocidade, esse teatro onde um dos parceiros não pode e não quer gozar a fim
de que o outro parta o mais rápido possível (no duplo sentido da palavra: que ele ejacule
e que ele evacue aquele lugar).
O contrato de prostituição: ele conjura ao mesmo tempo as más surpresas
sempre possíveis (um aumento imprevisto no momento do ato, uma manobra não
programada, um pedido exorbitante) e o prolongamento indefinido das relações ditas
normais (o acordo se limita a um lapso de tempo preciso, cronometrado, além do qual os
corpos se separam a menos que uma nova quantia de dinheiro refaça o contrato). Mas o
contrato básico é sobretudo um ponto de partida para uma negociação ainda mais
importante: se o contrato estabelece desde logo uma equivalência entre uma pequena
quantia e um pequeno pedaço do corpo (não importa qual), uma espécie de preço fixo,
oficialmente estabelecido, indexado segundo a alta dos preços, a inflação, o
desemprego, as crises, variável segundo as categorias sociais, a idade, a raça, o bairro, o
faz a fim de melhor suscitar, a partir daí, uma multiplicidade de contratos derivados que
incidirão sobre vantagens adicionais e que constituirão o essencial da transação. O
dinheiro recorta o corpo da mulher: da cabeça aos pés, ela é um verdadeiro catálogo
cuja aquisição provisória pelo cliente será objeto de uma negociação árdua, pedaço, a
pedaço. É isso que pode eletrizar o amador de mulheres públicas: a certeza de uma
pluralidade de contratos secundários versando sobre detalhes (por exemplo, nudez
completa, fellatio, cunnilingus, o beijo anal, a sodomia, etc.) O frio comércio dos sentidos
inverte assim sua finalidade inicial: a “trabalhadora” cede de saída sobre o essencial
(naquilo que geralmente as mulheres só cedem depois de algum tempo); cabe ao cliente
conquistar o supérfluo, o periférico, cabe-lhe obter este ou aquele privilégio sem que o
preço inicial aumente (ou, pelo menos, sem que dobre), negócio este ao qual a própria
prostituta se presta sob a forma de propostas aliciantes com uma preocupação de
rentabilidade do varejo onde não apenas cada membro, como também o menor
movimento, o menor desvio que a tira da inércia, pode ser trocado, isto é, monetarizado.
Por certo, a proibição suprema continua a ser o beijo na boca (assim, no final das contas
alguns não se servirão das prostitutas para fazer amor mas para todos os investimentos
laterais que permite sua situação).
Tudo é aí invertido em relação à posição sexual comum: o sexo é a coisa mais
comum, mais desvalorizada, e a boca a coisa mais ardente, mais intocável. As “putas”
não são, portanto, essas mulheres que vão com qualquer um. O inverso é que é
verdadeiro: as mulheres públicas não se dão a ninguém, elas são as pessoas mais
reservadas que existem, tanto mais inacessíveis quanto abertas ao primeiro que vier. O
fantasma do cliente é o corpo total, inteiramente reunido ao redor do santuário genital,
ele quer o máximo possível de corpo, e mesmo a cabeça e o coração e as tripas,
totalidade que ele só “obterá” através do acréscimo de outras zonas asperamente
negociadas. A prostituição é um simulacro do dom, uma oferta que se dissimula, uma
disponibilidade para o nada: seu encanto singular consiste em operar uma outra
intensificação do corpo, de proibir todas as partes não genitais do corpo e com isso
oferecê-las à concupiscência imoderada do usuário: a puta não pode, não deve fazer
amor como as outras mulheres sob pena de ver desmoronar o fascínio que exerce sobre
os homens; ela se exila ao máximo para poder suscitar (e vender) o desejo de seu
(impossível) retorno. Sabe-se o que o cliente espera dela: uma insensibilidade magistral,
uma frieza que mesmo o ouro não pode resgatar e que as técnicas mais apuradas não
coíbem. Mas esta exigência logo se inverte em seu contrário: ao mesmo tempo em que
pede uma vagina anestesiada, impermeável a toda sensação, o homem sonha
loucamente (sonho ao qual a mulher às vezes se presta sob a forma de simulação) com
fazer a prostituta gozar, de mexer com ela, de ser enfim reconhecido como parceiro;
desejo que não invalida aquilo que ele foi buscar no michê, um corpo sem sexo, uma vez
que o gozo da mulher, se há gozo, não passará de um decalque da ejaculação masculina.
Se o cliente chega até ela ao mesmo tempo como um qualquer da espécie masculina e
como seu representante na cena prostitutiva, ele o faz para conjurar a libido feminina.
Razão pela qual o orgasmo da prostituta nunca é desejado enquanto tal mas
simplesmente requisitado a título de benefício extra. O cliente gostaria de oferecer-se o
prazer da mulher, mas apenas ao olho, sem esforço, sem qualquer preocupação
particular; seja como. adjuvante de sua própria excitação (ele poderá pensar então que
somente ele soube como tocar aquele corpo que legiões de caralhos deixaram
insensível); seja porque as putas representam para ele a imagem ridícula de mulheres
lascivas, vagabundas e no cio, prontas para gozar sem qualquer solicitude. O cliente não
sobe até o quarto para levar sua companheira ao êxtase erótico (se quiser excitá-la
através de manobras genitobucais, terá de pagar ainda mais) mas para que o michê
9
oculte de seus olhos a cilada da feminilidade em geral. E se, tomada pela aventura, a
mulher se abandonar, seu arrebatamento não excede os poucos minutos do contrato e,
portanto, não põe nada em questão.
O corpo de trabalho da prostituta (entendendo-se que não existe um estado
natural do corpo) é um corpo requisitado, moldado, esquadrinhado segundo esquemas
viris: tudo nele não passa de apêndice do receptáculo onde se agitam, inflam e babam os
membros-clientes. E até mesmo seu sexo não passa de um orifício: cavidade sem odor
(as partes de uma prostituta cheiram apenas a sabão ou desodorante), nem seco nem
úmido (para introduzir o pênis, a mulher molha a vulva com saliva), nem aberto nem
fechado, nem fora nem dentro, penetrável mas impenetrado. Corpo sem carne, sem
derivações, sem emoções, sem perdas, sem outro perfume além do fornecido por uma
higiene meticulosa e profissional, impessoalidade da máquina da qual se pode dizer
apenas que funciona, que anda, que rende.
A prostituta também viaja, mas é uma viagem no mesmo lugar, uma viagem em
círculos, como a Odisséia de Ulisses. Ela se metamorfoseia, sem dúvida, segundo os
dispositivos exigidos por cada um de seus clientes, mas ela não é nenhuma de suas
representações, ela as interpreta, passa por cima de todas elas, é como o lugar do zero
na roleta: sempre ganha pois não é nada mais que essa disponibilidade de tudo
representar. Seria ingenuidade ver a prostituta segundo a imagem de um agente
coletivo, de um catalisador de grandes massas, de um confluente de vastos conjuntos;
nela nada se reúne, nada se agrega, se ajusta. Ela declina sempre o mesmo corpo, está
sempre lidando com a eterna e interminável liturgia do esvaziamento de sacos; mil
homens entre suas pernas fazem apenas um só, todos os que vão a ela têm o mesmo
rosto ou, melhor, a mesma ausência de rosto, o vago anonimato da espécie masculina.
Circunscrevendo a mulher a seu baixo-ventre, o cliente circunscreve-se a essas zonas,
condena-se a ser percebido apenas como um portador de pênis e nada mais que isso.
Longe de ser uma mulher “completa”, a puta não passa de um pedaço de pele, resultado
de um esquartejamento que limitou seu ser a alguns poucos órgãos, alguns orifícios, e
baniu todos os que não podem satisfazer ou interessar ao desejo-cliente, limitado ele
mesmo a ser apenas um membro bêbado que pede para ser “enxugado”. É a operária do
10
amor quem poderia fazer tatuar em sua barriga, como queria um certo masoquista:
“Ao ponto de encontro das belas picas”, ou escrever sobre a face interna de suas coxas,
apontando para cima: “Entrada dos belos cacetes”, ainda que para ela a beleza ou a
pequenez desses objetos lhe seja totalmente indiferente. Mesmo assim, o fato é que seu

9
Observemos que em todos os países onde a autonomia das mulheres continua aumentando, os efetivos da
prostituição não param de aumentar. É como se toda independência feminina se traduzisse imediatamente por
uma regressão masculina (por exemplo, recrudescência dos casos de impotência).
10
Cf. Sexualité perverse, op. cit.
útero é um lugar de encontro para todos os pênis possíveis que se procuram, se cobiçam
ao contrário e se descarregam ali. Casa de rendez-vous, casa de encontros, isto é, no
sentido estrito da palavra: local insensível àquilo que acontece entre suas paredes,
totalmente desinteressado das pequenas perturbações, frissons, alegrias, dramas que
acontecem no espaço assim delimitado, contanto que o contrato de ocupação desse
mesmo local seja respeitado. A indiferença da prostituta em relação à sexualidade
genital nunca será demasiadamente sublinhada: o pequeno teatro orgânico, a
inflamação e a detumescência rápida das zonas erógenas, para ela, não passam de
trabalho (donde essa terrível confissão feita por quase todas: quando fazem amor com
um “amante”, têm a impressão de estar trabalhando de graça). E como não se pode
pedir à vendedora que goste dos sapatos que vende, nem que o operário goste dos
parafusos que instala o dia todo, não se pode pedir às proletárias do orgasmo que se
afeiçoem à mercadoria sexual que as faz viver, sobretudo quando esta não lhes diz
respeito, sobretudo quando até mesmo tendem a sujeitá-las: “Enfim, os clientes, aquilo
que geralmente eles me dão é vontade de rir. Minha reação, se eu não fosse experiente,
11
seria morrer de dar risada.” Inteiramente dedicada a algo que se passa fora dela, a
mulher pública é uma mulher de cabeça nos dois sentidos da palavra: não apenas
porque, enquanto chupa e punheteia, ela não para de calcular, de olhar para o relógio,
de contar, de pensar na quantidade (mais dinheiro, mais caralhos por hora, mais
ejaculações rápidas, e mais e mais ainda), mas também porque a requisição contínua de
sua vagina provoca-lhe uma migração das intensidades, uma verdadeira intensificação
das regiões elevadas do corpo: “Pra mim, há uma coisa que é só minha, é tudo aquilo
12
que está acima dos ombros. Aí, nem falar, não permito que ninguém toque nisso.” A
prostituta desloca sua intimidade do sexo para o coração (donde talvez seu lado “flor
rara...”), do baixo-ventre para o rosto e para a boca, reservando sempre para si um
pedaço de corpo, uma parte que não pode ser trocada, não suscetível de ser negociada
pois não tem preço. Mas em relação ao sexo, se se pode dizê-lo, a mulher só o empresta
da boca pra fora, e se o coito furtivo do cliente não é para ela nada mais que um
anônimo aperto de mão, é porque ela de início reduziu sua cavidade vaginal ou anal às
dimensões de um buraco, de um lugar de passagem insensibilizado, sem funcionamento
nem virtualidade própria; ela abandona de modo indiferente seu “genital”, ela mal o
oferece. O michê não é apenas a conjunção efêmera de um homem sem cabeça e de
uma mulher decapitada; nele, tudo falta, o rosto, as vísceras, os braços tanto quanto o
sexo, tudo se encaixa, mas do modo mais parcimonioso, numa certa decorporização ou,
melhor, numa corporidade mínima. Contato entre duas epidermes sem outra
metamorfose além da frágil e automática exoneração seminal espermática, onde os
corpos se roçam mais do que se agregam ou se desagregam, onde nada acontece a não
ser aquilo que recebe o nome exatamente de “ato sexual” (versão jurídica do erotismo).

11
Une Vie de putain, p. 74.
12
Idem, p. 139.
13
Do mesmo modo, a mulher nunca fica nua, ela não está mais despida no quarto de
hotel do que está vestida na rua, sempre nas fronteiras de um desalinho inefável,
suficientemente decente para autorizar o aliciamento, suficientemente reduzido
igualmente para permitir a intromissão do pênis em todas as posições. A prostituta
nunca se sente nua diante de seu cliente porque essa nudez dela exigida (nudez negativa
que é um simples livrar-se das roupas) não passa de uma roupa de trabalho, como o
uniforme azul dos operários ou a farda do bombeiro. Mesmo esquartejada, mesmo sem
calcinha, sutiã, submetida às posturas mais obscenas, esse corpo continua totalmente
vestido, envolvido por uma membrana impenetrável, e é em cima de panos (e não sobre
carne) que o cliente vai jogar seu sêmen; para ele, a verdadeira pele está em algum
outro lugar, ele está gozando num corpo falso, num corpo mascarado (mas como saber
se não é exatamente essa impostura que o arrebata?) Dos cinco estados possíveis da
nudez, o anatômico (o do cadáver), o narcisista (o do strip-tease), o fotográfico (do
manequim), o ardoroso (o corpo amoroso), o profissional (a cortesã), o da prostituta é ao
mesmo tempo o mais morno (o mais alimentar) e o mais insolúvel, demasiado
espetacular para ser perturbador, mas suficientemente próximo para emocionar, ao
mesmo tempo vivaz e morto. Ambivalente, sem dúvida, mas nunca o suficiente para
permitir arrebatamentos em comum; uma túnica invisível protege a prostituta do
contágio do desejo-cliente; as intensidades não passam de um corpo a outro.

O michê

Os locais venais só se inscrevem hoje no tecido social através de um duplo


distanciamento: em relação ao mundo profano, em primeiro lugar, distância da rua (um
bairro “quente”, uma zona delimitada na cidade); e na própria rua, a colocação de cada
mulher numa parcela da calçada, circunscrição de pequenas colônias privadas onde o
corpo prostituído se protege, se isola tanto quanto espreita, como se fosse um
parquímetro da volúpia, o desejo-cliente. Depois, em relação aos outros usuários,
distância do próprio hotel em comunicação com a rua (como se ela tivesse um
prolongamento em cada um dos quartos, como se a parte externa e interna se
intercambiassem a fim de mostrar o caráter público do amor mercenário); ascensão
através de escadas e andares (sem esquecer, na França, o aluguel de uma toalhinha que
evoca tanto os hospitais quanto as saunas: necessidade de uma purificação após sujar-
se, ameaça sempre presente dos gonococos e do treponema azul pálido), o fechar-se
num quarto e a celebração do sacrifício, dado que o mundo exterior não existe mais e
que os oficiantes estão (em princípio) ao abrigo dos olhares indiscretos. O michê aparece
assim como um momento quase paradisíaco de uma condição liberada da história, isto é,
não apenas da diferença entre os sexos mas também de todas as leis, de todos os
controles sociais, incluindo esse controle interior que recebe o nome de

13
Se entendermos por nudez um estado que predispõe à comoção sexual, fenômeno histórico relativamente
recente, uma vez que há dois séculos a nudez, muito mais comum do que hoje, não era sinônimo de sexualidade
(cf. Jos Van Ussel, op. cit.).
responsabilidade. É por isso que esses amores imaculados vivem apenas um certo
tempo, porque não se pode manter indefinidamente a excitação apenas de um dos
parceiros, porque esse onanismo a dois (onde o outro é pago para masturbar, para evitar
a habitual viuvez da masturbação) não dura muito e se esgota tão logo sé consuma. Em
outras palavras, a cena prostitutiva é o lugar de realização dos impulsos parciais cuja
expressão social continua a ser mais ou menos censurada. Mas essas manifestações de
desejo ditas “anormais” são produzidas por essa cena apenas para serem melhor
neutralizadas. Ela as conjura no duplo sentido da palavra, ela as invoca e exorciza,
provoca-as e não lhes dá continuação, suscita-as a fim de canalizá-las para uma região
14
privada de cada quarto atrás de paredes de pedra. Aí de fato se faz amor, mas
“sozinho” e sob a ameaça do relógio, sob a implacável unidade de tempo do trabalho.
Não é também a essa demanda de confinamento, a essa volúpia da coisa oculta que a
prostituição responde?
Uma vagina que é apenas a bainha do pênis; uma mulher que serve apenas à
economia auto-erótica do homem; um ato sexual que não passa de um onanismo a dois:
a relação prostitutiva é essa tripla equação. Ela realiza um acordo único entre os
mecanismos monetários e a sexualidade masculina: de um lado, um erotismo aritmético
com sua unidade básica, a ejaculação; de outro, uma ordem do cálculo e das
quantidades abstratas, o casamento delas na mais perfeita das simetrias como se um
tivesse sido feito para o outro (por sua vez, o orgasmo do homem funcionará no enlace
dito normal como moeda de troca — teu prazer contra o meu — donde a importância
atribuída pelos sexólogos à sua definição “científica”: o orgasmo é o padrão de
referência do enlace carnal, seu recentramento, sua grade de segurança, aquilo que o
impede de perder-se por caminhos disparatados). A prostituição não convida a aventuras
obscenas mas à triste simplicidade do prazer masculino, ela é uma depressão constante
da exuberância, dessa exuberância que representa para o homem a continuidade
fabulosa do gozo feminino. O michê se caracteriza pelo fato de que nele nada acontece,
que nele nada pode acontecer que já não esteja previsto, levando-se em conta os corpos
que nele vão-se esvaziar e o rebatimento do impulsos para o plano do dinheiro. Vejam a
mulher pública: ela passeia pelas calçadas, aliciando os passantes, tentando agarrá-los
através da promessa de gozos extravagantes. Mas assim que a porta do quarto se fecha,
ela se inclina, se dobra, se contorce, se agacha, se põe de joelhos, fica de quatro,
ocupada com fazer algo ou com deixar-se fazer; flagelando ou apanhando; chupando,
sendo chupada; lambendo, sendo lambida; penetrando, sendo penetrada; expulsando
sua matéria fecal no rosto satisfeito de um usuário, recebendo a merda de um outro nas
mãos; em suma, solicitada por todos os lados, aberta a todos os horizontes, mobilizada
em cada um de seus orifícios. No entanto, nessa “bestialidade” das posturas, nessa
inversão dos órgãos em que o ânus ocupa o lugar da vagina tanto quanto a mão, a língua
ou a boca, não se deve ver nenhuma pornografia, nenhum frenesi ou falta de vergonha,

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Exceção notável a essa situação é o Bois de Boulogne, em Paris, que deve à sua colocação e sua topografia o
fato de reunir num mesmo espaço todos os labores prostitutivos (mulheres, travestis, pederastas, homens) bem
como as demandas sexuais mais livres (bacanais, voyeurismo, grupismo). Lugar de cega mistura de perversões
gratuitas e pagas, é único no sentido em que não as distingue, eliminando qualquer separação entre os dois tipos.
mas apenas simples atitudes laboriosas idênticas às assumidas pelo operário diante de
seu torno mecânico, ou às do padre que abençoa seus fiéis, o ministro que recita seu
discurso, o agente do DOPS que dispersa uma manifestação, a secretária que datilografa
uma carta. É que enquanto o cliente se aquece, retarda ou acaricia seu pequeno prazer,
começa a babar e sente o coração bater nas têmporas, a mulher aguarda o fim do
contrato, cuidando de não fazer amor mas sim de trabalhar, assumindo assim em
proveito do homem a não-reciprocidade da relação mercenária; esforçando-se por
manter-se ao mesmo tempo aberta a tudo e inacessível ao menor contato, manejável e
independente, lasciva e casta, amorosa e frígida; aproveitando sua posição particular
que lhe permite evitar um compromisso real, ao mesmo tempo que lhe permite mostrar-
se disponível para assumir todos os papéis, para prestar todos os serviços possíveis
exigidos pelo protagonista. Proletária do caralho, portanto, stakhanovista do esperma
(quantos bilhões de espermatozóides ela extrai todo dia desses senhores), mas num
dispositivo muito particular que combina a monotonia gestual e a polivalência funcional,
a insensibilidade e o arrebatamento, o aleatório das pulsões e a comensurabilidade do
dinheiro.
O ideólogo-tipo da prostituição não é Sade ou Fourrier, mas Bentham, não os
porta-vozes das paixões, mas o guardião vigilante do utilitarismo (no lugar de Bentham
poderíamos escrever o nome de qualquer perito do CNPq, ou o de qualquer assessor
econômico do governo). A prostituta mulher tem a vantagem de trabalhar sobre um
15
material simples, evidente: a sexualidade masculina, sexualidade racional e
transparente, totalmente exterior e finalizada, sem sombras ou recônditos que
apresentem obstáculos à descarga do sêmen (e a prostituição não seria rendosa sem
essa redução preliminar do erotismo masculino ao fenômeno da ejaculação; dupla
vantagem, essa que consiste em banir o acaso e estabelecer normas quanto ao tempo e
ao espaço). Donde o primeiro axioma da venalidade amorosa: tudo deve servir,
concorrer para um resultado visível, tudo tem um efeito, tanto a gentileza quanto a
servilidade, o saber-fazer, a eventual beleza, o bronzeado do corpo, a excitabilidade, as
roupas, o penteado, a maquilagem do corpo vendido. Qualquer palavra, qualquer
sorriso, qualquer movimento, arrepio, emoção, inflexão, suspiro, prazer, constitui um
dispêndio, e todo dispêndio deve ser produtivo. A prostituta faz; amor sem tempos
mortos (sem rostos), donde a necessidade, para ela, de correr sem parar atrás dos
clientes, de sempre caçar novos clientes. Mas o princípio completo da prostituição deve
ser assim enunciado: tudo deve servir várias vezes, cada vagina deve acumular inúmeras
utilidades, cada corpo deve desdobrar-se. A repetição é importante porque ela é
construção das condições do poder repetir. Pode-se constatar a potência de
quantificação desenvolvida pela máquina prostitutiva: para um máximo de clientes, um
mínimo de mulheres, uma aparência volumosa recobrindo uma realidade parcimoniosa.

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Uma prostituição para mulheres — em que as mulheres seriam clientes — poderá existir sob outra capa senão
sob uma forma luxuosa? Como avaliar o gozo feminino, como medi-lo em pequenos segmentos fragmentáveis?
Não é por acaso que o único clientelismo hoje difundido é o clientelismo masculino, prostitutos para outros
homens, prostitutas e travestis para homens.
O quarto de hotel é antes de mais nada uma cena onde a prostituta representa, a
cada quinze minutos, o mesmo papel com um ator- espectador sempre diferente e, para
isso, tem de utilizar todos os recursos da arte teatral; para ela, a realidade consiste no
menor esforço possível a fim de ter o maior lucro possível. Para isso, é preciso que o
homem se submeta aos imperativos de seu trabalho, que ele a penetre sem estragar seu
penteado, sem desarrumar a cama, sem exigir dela uma participação que ela não pode
oferecer-lhe; mal descarregou sua carga já tem de retirar-se, tomar o cuidado de não
manchar os lençóis com seu caralho babante, levantar-se; mal o cliente ergueu a cueca e
a mulher já saiu do quarto e, no caso de alguns clientes particularmente lentos, às vezes
ela já está voltando para o quarto com um outro cliente enquanto o primeiro ainda está
calçando as meias. O local do amor não é apenas sala de espetáculos; é também uma
oficina onde a mulher condensa em si os papéis diferentes do contramestre, do operário
e da máquina, sendo o usuário o objeto a transformar; nesse caso, a rua se torna o
escritório de planejamento, o setor de pesquisa, a porção de acaso que a mulher,
representante de seu próprio corpo, vai esforçar-se por eliminar, aliciando os passantes
com o máximo de ousadia e persuasão (por exemplo, ela pode consentir num pequeno
desconto no momento da abordagem e restabelecer o preço normal no momento do
ato). A calçada é a única coisa aleatória nessa profissão, equivalente àquilo que, para
uma indústria, é o fator desconhecido representado pelas vendas, o fluxo mais ou menos
constante dos pedidos e das entregas. Desse corpo-cliente a prostituta deve retirar o
máximo: máximo de dinheiro de seu bolso, máximo de sêmen de seu saco; votada à
rentabilização dos dejetos amorosos (é conhecida a importância estrutural do
desperdício para o capital), ela taxa essa perda improdutiva que é o esperma masculino
durante a emissão. E uma vez que tudo serve para alguma coisa, ao mesmo tempo em
que ela favorece a leve devassidão do cliente, a mulher reveste-se de austeridade,
mostra-se econômica em seus gestos, calcula-os cuidadosamente, zelando para que
nada venha perturbar a execução do contrato. O michê é, no fundo, a forma comercial
do destino.
O quarto de hotel é o lugar das coexistências mais monstruosas: a bela com o
corcunda, a doente com o exuberante ou o bêbado: qualquer um, desde que tenha
pagado, é compatível com o corpo que se oferece (a menos que esse corpo seja feio
demais, muito gordo ou disforme, não podendo neste caso fazer pagar muito caro o
inestimável tesouro que é sua posse furtiva). Qualquer falha estética ou de conveniência
social é aí corrigida, eliminada, nenhuma diferença subsiste a não ser a relação igualitária
entre uma demanda e uma oferta. Nesse caso, o quarto é o melhor dos mundos, o lugar
onde não existe discriminação, o lugar utópico onde as segregações do desejo e as
rivalidades interindividuais são abolidas em proveito do nivelamento monetário. O
dinheiro rejuvenesce os velhos, amadurece os jovens, faz os doentes andarem, embeleza
os feios, elimina as rugas, em suma: democratiza as relações humanas, homogeneiza os
indivíduos, é o passaporte universal para o prazer, torna todo mundo conciliável com o
ser que se vende e, graças a ele, não há cliente que, durante aqueles quinze minutos,
não se torne um equivalente estético, erótico, ecológico, da mulher por ele comprada.
Entre a prostituta e seu acólito não existe nenhuma outra analogia a não ser a do
dinheiro colocado sobre o criado-mudo; a monótona equivalência financeira baniu todas
as incertezas, eliminou a alegre florada das seduções amorosas, a aventura (que
tampouco é livre...) da atração entre os corpos. A prostituta é um organismo polivalente
para o qual nenhum desejo é estranho (na medida em que desejo algum lhe é próprio).
Ela mesma, negada como tal em sua profissão, não reconhece o homem como sendo um
outro: o cliente que a aborda não é uma personagem nova mas o mesmo homem que
ela acabou de aliviar. Ela é rebaixada a uma função puramente instrumental; ela mesma
vê o passante apenas como instrumento de enriquecimento. No michê, a questão da
identidade dos parceiros não se coloca: as pessoas e as classes se confundem. O jovem é
velho, o gordo é magro, o tímido é o espertinho. Em relação uns aos outros, os homens
não passam de fenômenos puramente reduplicativos designados pelo mesmo termo
genérico: clientes. Em última análise, o que importa é que o esperma corra e que o
dinheiro fique, que o maço de dinheiro funcione como memória de todos os pequenos
prazeres subtraídos dos corpos-clientes.
Assim, do lado do usuário, o que é buscado na prostituição? É a equivalência, isto
é, uma relação especular, um cara a cara redutor, narcisista; o homem não vai procurar
um corpo de mulher mas sim, nela, os indícios de seu próprio corpo, um duplo de si
mesmo, a confirmação de uma sujeição secular. Ora, o que existe de mais cambiável
para a norma capitalista do que a evacuação seminal, isto é, um gozo limitado,
mensurável, visível? A prostituição é o contrário da devassidão, porque celebra as
núpcias desencantadas entre o desejo masculino e a lei do valor de troca; não é a cloaca
de todos os vícios mas sua transformação em algo coerente. Ou melhor: é o lugar
contraditório dos maiores transbordamentos e do mais forte comedimento. Todas as
perversões, por mais lúbricas que sejam, podem ser ali satisfeitas — o que não impede
que tenham de manifestar-se em regime de baixa rotação, que não possam ultrapassar o
quadro restrito de um quarto de hotel ou correr o risco de uma contaminação pulsional
(por que não imaginar também michês de choro, de riso, de carinho, igualmente
regulamentados?) Por ser enquadrada, cronometrada e sem seguimento, a sessão
amorosa mercenária permite o duplo alívio do antes e do depois: o cliente não precisa
seduzir a mulher, nem gerir a relação entre eles; o michê é essa relação ideal que não
dura, não comporta, nem antecedentes, nem consequências, esse lugar irreal do
esquecimento e do engolfamento absoluto. Do mesmo modo, o cliente não “se paga” a
mulher pública, ele a compra ou, melhor, a aluga, garante o uso dela por alguns
instantes. Pagar-se um homem ou uma mulher (expressão que subentende o
consentimento recíproco) implica paradoxalmente que se terá esse homem ou mulher
gratuitamente, uma vez que já se possui tudo aquilo que pode comprar o corpo do outro
sem passar pela mediação do dinheiro; ou, melhor, a sedução é uma forma de
prostituição camuflada, onde a venalidade passa por um caminho que não o dos signos
financeiros. Se não preciso pagar o outro para tê-lo é porque meu corpo é
suficientemente... (escolha: belo, jovem, tenro, formoso, sutil, aberto, perfumado, in,
pop, retrô, musculoso, atlético, equilibrado, potente, viril, sensual, bonacheirão,
simpático, completo, desenvolvido) para funcionar como moeda viva (não havendo
portanto necessidade de recorrer, como o cliente, à moeda morta), é porque a troca
deu-se sem precisar do dinheiro uma vez que tinha um código próprio, seu próprio
numerário (caso possível na sessão prostitutiva: o cliente que agrada à mulher: duplo
evento: ele paga com sua própria pessoa — há algo nele que mexe com a mulher — e
paga uma quantia efetiva: indecisão de saber se o dinheiro é o suplemento do corpo ou
se o corpo é o presente delicioso oferecido como um extra).
Espaço regulamentado de todos os desregramentos masculinos, negócio razoável
do insensato, a prostituição realiza a conversão permanente da força libidinal em
intensidades medianas, em prazeres bem temperados, aptos a promover pequenas
satisfações mas com um mínimo de energia. E sejam quais forem as exigências do
cliente, a violência ou a incongruidade de suas anomalias, é necessário que, ao final, elas
se submetam à grande lei da “igualdade pulsional”, que elas se atenuem e se eliminem
no circuito fixo da troca e da comparação. Donde os avatares desses homens que só
podem fazer amor com prostitutas porque não conseguem mais desejar outra coisa a
não ser aquilo que se vende e se compra, porque não desejam mais que o código de
valor: suprima-se a “pequena dação” obrigatória, institua-se a prostituição gratuita e
generalizada e os clientes perderão o tesão:
“Uma vez neutralizado o valor de troca, o valor de uso desaparece... Aquilo de
que as pessoas precisam é o que se compra e se vende, ou que se calcula e se escolhe.
Aquilo que não se vende nem se toma, aquilo que se dá e se entrega, disso ninguém
precisa” (Baudrillard).
O desequilíbrio do michê não é durável, não apenas porque se insere em formas
equilibradas que asseguram sua repetição e compensam os danos por ela causados, mas
porque o próprio michê está organizado de modo a eliminar todo desequilíbrio. Desse
modo, esse ato não acarreta nem uma ordem, nem uma desordem em particular, o sexo
é aquilo que se faz dele, sempre suscetível de cálculos e regulamentos que limitam seu
alcance, segmentam-no e transformam a perturbação dos sentidos em instrumento dócil
de enriquecimento. Para a prostituta, é o exercício genital (o trabalho) que constitui a
experiência certa, monótona, sólida; e a vida cotidiana, um risco de permanente
desordem (nenhuma aventura é compatível com o assalariado). Enquanto a mulher abre
as pernas, enquanto o homem se alivia nela, tudo é uma calma só, ternura, luxo,
reconforto, o dinheiro se acumula, os testículos se emancipam, a corrente do amor
funciona. Alguém dirá que o michê é uma desordem limitada? Mas que desordem a
sexualidade masculina — reduzida a sua expressão mais simples — poderia acarretar? A
partir do momento em que a mulher decide não gozar, não há mais nenhum transtorno
no circuito previsto. Portanto, longe de limitar uma “desordem” (supostamente
preliminar) ao ligar-se à ordem (supostamente posterior) do dinheiro a seguir inserido no
circuito da troca, a prostituição cuida inicialmente de converter a demanda pulsional do
cliente em uma minúscula solicitação: ela não se contenta com monetarizar, avaliar
todas as pulsões, ela começa por enfraquecê-las, fazê-las funcionar em baixa rotação; ela
as isola (ao etiquetá-las, fixar seus preços) ao mesmo tempo em que as apequena. E
tanto que, quando o cliente entra no quarto ou no apartamento de sua parceira, é esta
forma de sexualidade — restrita, apequenada — que ele vem satisfazer e não uma outra
qualquer; é de fato uma pequena bombadinha que ele vem dar, e não provocar a grande
explosão orgásmica. E o próprio michê não seria assim tão rápido, funcional, se antes
não houvesse um trabalho de compressão e de confinamento exercido sobre o desejo-
cliente, se esse desejo já não fosse desejo de repouso, de descanso, desejo de passar por
algo rapidamente, de acabar. A sessão venal é duplamente equilibrada: pelo dinheiro
que nivela e avalia tudo que é incalculável, e pela demanda do passante que é, ela
mesma, uma demanda da ordem. O homem quer um gozo modelado, disciplinado, um
pequeno frisson, que a prostituta lhe vende mediante uma outra concessão à ordem
estabelecida: o pagamento de uma quantia que com isso acorrente definitivamente a
irritação sexual ao sistema de utilidades. Dupla prisão ou, se se preferir, duplo seguro
contra riscos: circunscrevem-se nos corpos (cliente e prostituta) campos de referência
libidinal com suas modalidades próprias de satisfação e, a seguir, produz-se um modelo
capaz de ser repetido, de engendrar uma série e com isso garantir a cadeia de
rentabilidades. Portanto, não há margem para nenhuma loucura: as intensidades devem
converter-se em intenções mensuráveis, o desejo deve reduzir-se ao nível de
necessidades cambiáveis. E dado que o michê solicita sempre as mesmas vontades, ele
dá lugar à repetição, faz fazer e refazer a mesma coisa, não passa de um efeito indefinido
de um poder inicial. O michê nem pensa naquilo que seria um desejo malformado ou
inédito a não ser para afastar sua ameaça ou transformá-lo em pequena inquietação que
o dinheiro absorverá. O imprevisto só será admissível se puder dar margem à repetição
16
de um modelo simples enquanto organização imóvel, letal, imutável. Não há michê que
não implique na frieza libidinal como condição para seu exercício. Mas também não há
michê onde, apesar de tudo, não se abriguem — embora rarefeitas — algumas
intensidades, ainda que as intensidades do neutro, do mediano, do medíocre (se há um
“gozo” da prostituta, esse é o gozo de não gozar, de manter a cabeça fria diante de todos
esses membros que a atacam e se esvaziam nela).
A prostituição é um “mal” necessário? Percebe-se que a pergunta está mal
formulada, uma vez que o mercenariato amoroso menos alivia necessidades
preexistentes do que as modela e as produz literalmente para seu próprio uso. A
prostituição, enquanto máquina de fabricar o geral a partir do particular, só satisfaz a
necessidade por ela mesma criada (o que não significa que essas necessidades sejam por
isso desprezíveis, e o cliente sabe muito bem disso; se ele acorre, e em massa, aos locais
da venalidade, é que para ele um pequeno prazer ainda é preferível a prazer nenhum). O
michê é um verdadeiro ritual pedagógico, um modelo de educação libidinal: nele, a
mulher aprende a ser insensível; e o homem, a contentar-se com parcas alegrias. Essa é a
sabedoria dessa instituição.

16
Quando sairá o Catálogo de todas as madames da França, com nome, preço, lugar, tarifa? (Como seria
maravilhoso para a polícia ter em mãos um fichário assim!) Por que não ver a Psychopathia Sexualis de Krafft-
Ebing, não como um livro para médicos, mas como uma obra para uso dos “psicopatas”, em que cada um
poderia encontrar o lugar, o preço e as modalidades do dispositivo libidinal que deseja e gostaria de satisfazer?
Será preciso acrescentar que um livro assim, se fosse redigido pelos próprios pervertidos, seria sempre diferente,
móvel, movediço e interminável — se é verdade que a “criação” das perversões, isto é, das fantasias e manias
(não necessariamente sexuais) não tem fim?
Através do dinheiro, a prostituição coloca o desequilíbrio, que é o desejo, ao
abrigo do desequilíbrio. Como esvaziamento instituído da pletora sexual, ela é um
modelo de política contratual: a única vacilação que existe está nos limites bem estreitos
do círculo monetário. Ela tem a impassibilidade do dinheiro e sua duplicidade; é
mercantil, mas não consegue dissimular os movimentos pulsionais que se alinham em
seus sulcos. Quando a mulher promete ser gentil e suave se o usuário acrescentar
algumas notas extras ao preço inicial é que, para ela, o dinheiro é carícia, ganho de
tempo e espaço, pedaço de corpo suplementar, extensão da carne, extensão do sangue
que a autorizará a comprometer-se, a participar um pouco mais do prazer do outro. E,
num certo sentido, a reciprocidade é total entre a trabalhadora e seu acólito, mas em
níveis diferentes: a prostituta acaricia o cliente com suas mãos, sua boca, suas coxas, e
ele a acaricia com seu dinheiro. E o contrato só será equitativo considerando-se esses
dois patamares dissimétricos: durante o michê, o homem e a mulher não têm a mesma
pele, não reagem aos mesmos contatos, não são sensíveis aos mesmos toques. Esta
fabulosa disparidade entre as sensações (o que dá prazer a um contraria o outro), esta
combinação única, no corpo venal, entre uma total indiferença para com o enlace e o
interesse exclusivo pelo salário é produto da prostituição, sem dúvida, mas também é a
mesma situação do operário na fábrica e de todos os que trabalham hoje.
É que, evidentemente, o famoso contrato de trabalho é uma ficção: no michê, as
duas partes contratantes não estão num pé de igualdade. A prostituta é duplamente
diminuída diante de seu cliente: pela necessidade material que a levou para essa
profissão (coação de classe), por sua condição de mulher (coação do sexo). E é dessas
duas fraquezas que o homem se aproveitará para fazer do michê um aparelho
disciplinar, um exercício de punição em que não parará de dizer mudamente a sua
parceira: “Pareça-se comigo, essa fenda na parte inferior de teu ventre, esses seios,
essas nádegas, esses membros delicados são apenas um erro da natureza, um vestígio de
animalidade; esqueça-os, esqueça-se, conforme-se à minha anatomia, sou o único corpo
humano existente, ponha sua deformidade a serviço de minhas graças”. O usuário faz
uma doação de seu sexo à prostituta, mas trata-se de um presente envenenado, uma
vexação extra, um presente que é uma privação, uma colonização que é um saque. É
preciso que a mulher faça uma demonstração de vassalagem a partir de seu substrato
anatômico de mulher, é preciso que ela se incline livremente, que ela se torne igual a seu
cliente pelo fato de ser irremediavelmente uma outra. As prostitutas foram até aqui
encarregadas de expiar socialmente a diferença entre os sexos. Mas elas não expiam
nada sem, por sua vez, fazer com que os outros também expiem. É por isso que o
combate que travam, como veremos mais adiante, é importante: pois a relação
prostitutiva não é ainda suficientemente monetária, não suficientemente fria, está
demasiado carregada, da parte do cliente, de ressentimentos, de ódios, de uma abjeta
vontade de vingança, de manipulação absoluta; sempre marcada pelo desejo de lembrar
à mulher, através da mediação do proxenetismo, que tem de submeter-se à ordem do
poder do macho. Prostituição livre, da parte dos que a exigem, quer dizer o seguinte:
que o homem pague não apenas por sua fome sexual, mas por todos os fantasmas
através dos quais pretende nos reduzir, que seus desejos de aniquilação sejam, para nós,
fonte de lucros, que o cliente não mais seja o aliado, o protegido do “protetor” (do gigolô
privado, da polícia, do Estado, todos bons proxenetas) e que não mais sejamos bodes
expiatórios do sexo feminino. Que nos explorem enquanto trabalhadoras, tudo bem,
uma vez que é esse o destino de todo trabalho em nossa sociedade, mas não enquanto
mulheres. Livre uso de nosso corpo e livre uso de nosso dinheiro.

AVISO A TODOS OS ANSIOSOS


O tamanho do pênis não tem importância alguma
As ereções masculinas normais variam de 15 a 17 centímetros. Mas é totalmente ridículo
sentir-se psicologicamente diminuído se o próprio pênis só alcança, inteiramente esticado. 12
ou 13 centímetros. Repetimos que as dimensões do objeto importam menos que o uso que se
faz dele. Portanto, não há mal algum que o órgão ereto não vá além de 8 ou 9 centímetros (o
que ainda é muito honroso), e há ainda menos razão para alarme se seu membro inflado medir
apenas 5. 4. 3 ou 2 centímetros. E se seu pênis não ultrapassar 50 milímetros ou 1 centímetro,
nesse caso o tamanho dele realmente não tem mais nenhuma importância.
II - A FÓRMULA: «EU TE AMO»

A volúpia ridícula

O discurso da liberação sexual culpabilizou o amor enquanto experiência vivida e


o declarou fora de moda enquanto coisa escrita. Se hoje existe um romantismo, é de
caráter libidinal e não mais sentimental. No lugar da paixão, o desejo; no lugar do
coração, o sexo. É contra a antiga maquinaria do corpo e da alma que se voltaram as
diversas ideologias do prazer, a fim de declarar o seguinte: não há dois amores, um
espiritual e outro material, um nobre e outro vulgar, porque as emoções são feitas de
uma só parte: o corpo. O ser sempre foi cortado ao meio para tornar possível esmagar,
nele, a reivindicação carnal. Desse modo, o desejo pode reivindicar o direito de vingança:
fazendo o amor calar, ele simplesmente dá o troco a seus antigos censores. Pois a
sentimentalidade parece ter assumido o papel único de impedir o livre desenvolvimento
das pulsões. No momento em que a repressão sexual é julgada sob todos seus aspectos,
o amor é colocado no banco dos réus sob a acusação de cumplicidade num assassinato.
Como ousaríamos falar em amor? Falta-nos um coração. Aquilo que se costumava
considerar como centro dos afetos não passa de uma fantasmagoria religiosa, uma velha
visão metafísica e, pior ainda, um dos álibis mais frequentes da censura, a razão de ser
do assassinato das pulsões. Assim, a menos que se tenha um gosto pervertido pelas
causas perdidas, não é possível fazer a defesa do coração no processo que lhe é movido,
nem reinstalar o amor no trono do qual a revolução sexual acaba de derrubá-lo. É
possível apenas interrogar-se sobre a pertinência existente quanto a ser revolucionário
no domínio da afetividade. Inverter os valores, com efeito, é continuar a ser tributário do
idealismo de que, através dessa subversão, as pessoas pretendem livrar-se. Condenando
o sentimentalismo em nome do desejo, ainda não abandonamos o campo da oposição
entre alma e corpo: ela funciona agora em proveito do elemento para cuja
desvalorização antes trabalhava. Os mesmos parceiros continuam aí, ocupando os
mesmos territórios e continuando a opor-se.
O que são os novos viventes? Puritanos ao contrário. Esses neo-vitorianos
defendem o gozo sem entraves e esforçam-se escrupulosamente por circunscrevê-lo ao
domínio estreito para o qual o espírito canalizava a carne. Aquele misteriozinho sujo
perdeu sua impureza e seu segredo, mas não suas dimensões: continua a ser minúsculo.
Tudo é desejo, a única coisa que existe é o corpo: esta generalização triunfante do
libidinal sobre o conjunto da vida afetiva é de imediato desmentida pela definição
restritiva conferida ao desejo. A imagem da sexualidade que uns entendem, hoje,
defender contra todos os avatares da sublimação é a mesma imagem que outros
proibiam outrora em nome do amor sublime.
Nossa modernidade expulsou a paixão do discurso, mas não é daí que provém o
desprezo pelo sentimentalismo. O político-sexual, sob esse aspecto, não fez mais que
oferecer um endosso subversivo a um velho preconceito majoritário. É provável que o
descrédito já estivesse firmemente instalado na época em que Rousseau falava de seus
idílios sob as cerejeiras, uma vez que o riso da Opinião o obrigava constantemente a
interromper-se a fim de responder e justificar-se. Os fatos são estes: um dia, passeando
a esmo, Jean-Jacques encontra a Srta. de Graffenried e a Srta. Galley (“que, não sendo
1
excelentes amazonas, não sabiam como obrigar suas montarias a atravessar o riacho) .
Ele foi em auxílio delas, e atravessa o curso de água segurando os cavalos pelas rédeas.
As jovens decidem manter prisioneiro aquele homem, providencial e levam-no, a fim de
que se secasse, para Toune, onde a Srta. Galley possui um castelo e de onde, esclarece
ela, sua mãe estava naquele dia ausente. A conversa se interrompe durante a viagem
(“não falamos nem por um momento”); almoço delicioso na cozinha da herdade;
sobremesa de cerejas que Jean-Jacques colhe nas árvores e das quais, por desatenção,
deixa cair um punhado no seio da Srta. de Graffenried; desejo fugidio de ser uma dessas
cerejas transviadas. Mas incapaz de uma metamorfose, não fazendo o gesto que
convinha, Rousseau ficou nisso. É uma história bem estranha essa que ele nos conta,
uma história sem acontecimentos palpáveis: germes, vontades, gestos esboçados,
suspiros, frissons, veleidades que nada, absolutamente nada, vem concretizar. Em suma,
uma ocasião perdida. Esse é o problema do narrador: reabilitar seu prazer; fazer viver,
como se fosse uma aventura insubstituível, aquilo que espontaneamente surge aos olhos
do leitor como um ridículo fracasso; recusar toda interpretação daquilo que ele não fez,
formulada em nome daquilo que ele deveria ter feito; deslindar os nós da volúpia e do
poder a fim de que não mais seja possível falar de impotência. E a fim de defender a
causa desses fiascos, Rousseau não assume o ponto de vista da virtude sobre o vício, ou
do coração sobre o corpo. Mais radical que nossos modernos libertadores, esse velho
garotão sentimental põe de lado todo dualismo. É em termos de sexualidade e de gozo
que ele encara a perturbação amorosa. Mas não para diagnosticar desde logo um gozo
sublimado e uma sexualidade que se desvia de seu caminho, que se idealiza ou se
degrada. Todas essas falsas direções implicam um sentido único e referem-se a um
estado verdadeiro do desejo, um trajeto oficial que é o único legítimo: a norma da
genitalidade.
“Os que lerem estas páginas não deixarão de rir de minhas aventuras galantes e
observarão que, após muitas preliminares, mesmo as mais avançadas delas terminam
por um beijar de mãos. Oh, leitores meus, não se deixem enganar. Eu talvez tive mais
prazer em meus amores que se encerravam com um beijo na mão do que vocês tiveram
2
nos seus que começaram, pelo menos, com esse mesmo ato.”
De que é feito esse prazer? De colocar o sujeito num caminho que não leva a
parte alguma. O sentimentalismo faz fracassar o destino narrativo que a genitalidade
prescreve às pulsões. Nenhuma disciplina estrutural continua a regulamentar o gozo. Os
momentos sensuais não se identificam com funções: eliminou-se o determinismo que os
obrigava a remeterem-se a um ato complementar, a um gesto consequente.

1
Jean-Jacques Rousseau. Confessions. Paris, NRF, Coll. La Pléiade. p. 135
2
Idem, p. 138.
Inconsequência do atordoamento sentimental: ao encadeamento inexorável do roteiro
orgástico, ele opõe um prazer difuso, espalhado, anti-narrativo. A intensidade se liberta,
torna-se inatuável: não tem mais momentos obrigatórios ou lugares privilegiados, não é
esperada em nenhuma parte específica e, portanto, não é mais impossível que ela brote
de um olhar ou emigre para um beijo.
Rousseau não pretende transcender o erotismo: ele não tem uma perspectiva
religiosa de redenção, mas uma óptica imanente de extensão: longe de espiritualizar a
carne, ele erotiza o coração, sexualiza o espírito e substitui o contraste entre a inocência
e a sensualidade pela sensualidade da inocência. Inocência, aliás, é uma palavra que
deve ser entendida como algo próximo da bobagem. A sentimentalidade é boba. Não é
nem mesmo uma perversão que desviaria o desejo de sua finalidade natural para dar-lhe
um outro objetivo, é a suspensão provisória de toda finalidade. Na emoção, posso muito
bem ouvir meu desejo, ele balbucia pois não sabe o que quer ou, melhor, não consegue
definir-se como vontade de uma coisa. Desejo perdido, e não curvado, conquistador.
Existe uma seriedade da libido que é definida por seu objetivo (o genital) e seu
movimento (a posse): é por não subscrever essa seriedade que a sentimentalidade é
ridícula. Ridícula, isto é, estúpida (estupor do sujeito; inaptidão da intensidade para
converter-se em intenção); isto é, passiva (trata-se, diz muito bem a linguagem clássica,
de um transportamento); isto é, feminina (o gozo me chega, me passa por dentro, me
atravessa: eu não o descarrego).
Sob o pretexto de liberar o desejo do obscurantismo amoroso, o que se faz é
realimentar, ao lhe conferir uma nova legitimidade, o velho ódio viril pelo feminino.
Ponto comum à repressão do sexo e sua emancipação, a repressão sentimental
desqualifica toda forma de gozo que não corresponda ao modelo fálico da volúpia.

A alergia

“Si tu m’aimes, il faut le dire il faut me prouver tes


émois il faut me prouver ton délire mon amour
parlemoi”.
*
Desnos

O amor é a experiência de um duplo perder-se: extravagância da sensualidade


distraída de sua finalidade genital; fraqueza do sujeito como algo afastado de si mesmo e
de qualquer possibilidade de controle. Desorientação e dilaceramento. Coisa que talvez
faça com que o amor nunca venha sozinho, que o gozo da febre da paixão coexista com a
saudade do poder, da paz, das intensidades baixas. Esse tresmalhamento suscita o
desejo do retorno (a si e ao mesmo). O ser desviado pretende voltar: quer ao

*
Literalmente: “Se me amas, deves dizê-lo / deves provar-me tuas emoções / deves provar-me teu delírio / meu
amor, fala-me.” (N. do Trad.)
procedimento libertino, centralizando seus apetites num único momento que os satisfaz;
quer à maneira discursiva, dando nomes ao amor a fim de transformar o que acontece
em algo que convém, a aventura em conveniência, a perturbação em certeza. O Outro
está presente sem ser-me dado: cubro-o de palavras para que ele me seja dado com sua
presença. A declaração de amor só aflora à ponta da língua a fim de exorcizar o
aleatório, a fragilidade, a frouxidão e a loucura que ameaçam um afeto abandonado à
incerteza do silêncio, Enamorado e confessando meu amor, eu não sublimo o desejo, eu
designo e combato coisas indizíveis: protesto ao mesmo tempo contra o caráter
imprevisível do sentimento que me ocupa, sua evanescência possível, seu destino de
usura, e contra a exterioridade do outro. “Eu te amo”: uma fala apressada apodera-se, a
fim de codificá-la, de uma relação irresponsável: um desejo se volta contra o
desconhecido ao qual ele inicialmente se dirigia. O desconhecido, isto é, o Outro. Pois a
alteridade não é um espetáculo, o encanto quase turístico de uma diferença exibida. Não
é o insólito, coqueteria do Mesmo, enigma provisório que, um dia ou outro, acaba sendo
compreendido e retorna à trama inutilizável da ordem. Experimento a estranheza do
outro na impotência manifestada pelo meu fantasma no sentido de englobá-lo. de
envolvê-lo, em sua presença que domina minha acolhida e ultrapassa a ideia que ele me
deixa. Outrem é outro, não quando posso recensear as facetas de sua originalidade, mas
quando eu o sinto precário em relação a mim. Sua irrupção me transtorna, me incomoda
ou me pega em falta, sua diferença recusa habitar os locais que lhe atribuo e responder
pelo sentido que projeto nela: ele nunca está ali onde o deseja e o situa minha
ansiedade. Sob esse aspecto, raros são os outros que me assombram o suficiente para
que eu vibre com a infinitude deles.
“Acreditamos saber exatamente em que consistem as coisas e o que pensam as
pessoas pela simples razão de que não nos preocupamos com elas. Mas a partir do
momento em que temos o desejo de conhecer, como o ciumento, tudo se transforma
num vertiginoso caleidoscópio onde não distinguimos mais nada” (Proust).
O enamorado vê as coisas deformadas. Demasiado obsedado por um ser para
conhecê-lo, demasiadamente apegado a ele para poder prevê-lo, demasiado paciente e
febril para decifrar todos os signos que dele recebe, o amante ciumento é
constantemente rejeitado: o excesso das imagens, sua desordem irredutível desencoraja
as acomodações de sua imaginação. É lúcido, não porque conseguiu capturar a verdade
do Outro, mas porque experimenta aquilo que um tal desejo tem de ilusório. Entre os
outros, aqueles que conhecemos são sempre aqueles com que não nos preocupamos. A
representação clara é um engodo do desinvestimento libidinal: somente o refluxo ou a
indiferença do desejo pode proporcionar a sensação de saber. O ciumento consegue
chegar à clarividência, isto é, paradoxalmente, à miopia, à impossibilidade de ver
claramente, o infinito do outro.
“Eu podia sentar Albertine nos joelhos, segurar sua cabeça entre minhas mãos,
podia acariciá-la, passar demoradamente a mão por ela, como se estivesse manipulando
uma pedra que contivesse todo o sal dos oceanos imemoriais ou os raios de uma estrela;
mesmo assim, sentia que apenas tocava o envelope fechado de um ser que, pelo
interior, chegava ao infinito.”
O amor transfigura seres comuns em seres de fuga: é quando um outro frustra
minhas projeções e embaralha meus fantasmas que tenho a certeza de amá-lo.
*
Pleonasmo: amor vago . Mas o privilégio de um ser volátil é poder desaparecer e toda
cintilação evoca a iminência de seu desvanecimento. “Uma gaiola partia à procura de um
pássaro”, escreve Kafka, o que, em matéria de amor, pode ser assim enunciado: uma
palavra-gaiola partia à procura de um Outro-pássaro.
Além de confessar um sentimento, a declaração também tem por finalidade
secundária (mas não subalterna) criar uma simetria, uma polaridade de pessoas. Num
certo sentido, o verbo amar é a cópula que une os dois pronomes: eu e você. Debaixo de
sua inocência linguística, esses signos vazios veiculam a plenitude de uma
responsabilidade. Eles investem os seres que designam e os transformam em parceiros.
Dizendo: “eu te amo”, para mim trata-se de dominar o outro e pô-lo em pé de igualdade
comigo. Pois pô-lo em pé de igualdade, tratar o outro como se fosse um alter ego,
oferecer-lhe a tentação de um contrato amoroso é entregar-se, nesse mesmo acordo, ao
exercício de um poder pelo qual o outro desce até a pessoa, pelo qual ele se liga à
palavra dada: ele está incluído nessa palavra que lhe dou para que ele a pegue, se
apegue e se prenda ao me devolvê-la. Há uma violência da reciprocidade, e a fórmula
“eu te amo” combina de modo indizível a alergia e a efusão, o sufoco sentimental e o
desejo totalitário de absorver o objeto amado na imanência de um pacto de termos
claros.
Quando me decido a dizer o solene “eu te amo”, é para pôr fim ao tormento de
uma aparição-desaparição, é para prender o destinatário numa relação que estou
**
preparando com ele, é para entrar em intimidade com ele, chamá-lo de você. Usar o
você significa o momento de um relacionamento que embarca o Outro na mesma barca
que eu, que o vota ao diálogo: a intimação de responder, de se situar. O “eu te amo” dá
a entender tanto a veemência do vocativo quanto a suavidade da confissão: o desejo de
sedentarização (“Não se mexa mais, fique onde está, onde posso vê-lo”) aparece sempre
ao lado da embriaguez afetuosa.
Portanto, o que espero do verbo amar é aliviar-me da espera: quero conjurar
minha fraqueza, vencer no Outro todo poder de alteração. Também posso querer a
mesma coisa da ruptura. Dizer “eu te amo” ou “vamos acabar”: duas variantes do
mesmo desejo de desenlace. Quer se trate de aniquilá-lo ou de torná-lo previsível, o que
está em jogo é a dominação da presença do outro. Ou esse outro desaparece de minha
vida, ou então seduzirei o acaso e entraremos juntos para uma história programada para
nós pelo código amoroso. Além da oposição entre eles, os dois termos da alternativa

*
Jogo de palavra s com amour fou, louco amor, e amour flou, amor vago. Impreciso.
**
Em francês, e em princípio, o tratamento entre duas pessoas desconhecidas, seja qual fora idade de ambas ou
sua condição, é o vous, solene, de distanciamento, e que equivaleria a nosso “senhor” (embora aqui dois jovens
desconhecidos não se tratem de “senhor”). Usar o tu, em francês (equivalente a nosso “você”), significa quebrar
uma barreira, entrar numa certa intimidade. Na tradução foi usado o “eu te amo” por sua coloquialidade, ao invés
do empolado “eu a amo”.
suprimem identicamente essa assustadora possibilidade: que, através do amor, minha
história seja uma relação com o desconhecido.
“Dizia para si mesmo que aquela jovem, tal como ele a amava, não passava de
produto de seu desejo, de seu pensamento abstrato, de sua confiança, e que sua amiga,
tal como ela era realmente, era essa mulher, que se postava ali, desesperadamente
3
outra, desesperadamente estranha, desesperadamente polimorfa.”
Um louco desejo de regularização, o medo da espera, o desespero provocado
*
pelo aparecimento da alteridade, a ligação iniciada vivida como lesão perigosa: são
esses os lugares-comuns à ruptura e à declaração. Há seres para os quais o banimento do
Outro é preferível à perturbação causada por sua proximidade. Romper, nesse caso, não
é mais que reagir à ruptura que já se deu: o amor só pode penetrar em meu ser
ilegalmente. Ele é esse arrombamento, essa brutalidade — ele me desperta do sono
afetivo no qual eu podia tanto me comprazer quanto me entediar: o amor é insônia.
Romper com o amor é querer eliminar essa ruptura primeira, reencontrar o sono, a
tepidez do bem- estar, um regime tranquilo das intensidades. Voltar a mim, ao preço
dessa renúncia. Romper para preencher a ruptura.
Mas pode acontecer de o Outro sobreviver ao "eu te amo” e que, apesar de meu
apelo, ele mantenha essa posição de proeminência da qual eu tanto queria desalojá-lo.
Do mesmo modo, ao invés de me abrir para o mundo, oferecendo a meu desejo
convalescente todos os seres que a espera de um só havia impedido, a ruptura pode
fracassar e me jogar na estupefação. Apesar de sua evidência, a separação nesse caso só
se deixa apanhar através de uma pergunta: será verdade? acabou-se mesmo? rompi
mesmo? O Outro sobrevive, em mim, ao instante da separação, com tal força e
insistência que o mundo se vê desacreditado: tudo flutua. Longe de ser um convite à
minha disponibilidade, a nova indeterminação em que se apresentam os seres e as
coisas me indica apenas que morri para o mundo, que não estava em meu poder
eliminar a ruptura, e que a ausência do Outro me acabrunha, pesa sobre mim e me
desfaz tão radicalmente quanto sua presença me alienava.
Amo quando nem a resposta ao “eu te amo”, nem a iniciativa da ruptura puderam
pôr fim à minha fraqueza, à minha passividade. Amo quando atinjo o paradoxo do outro:
se marco um encontro com ele, sinto que se afasta de mim, sinto a dor provocada pela
falta de acesso a ele; se tentar fugir dele, tudo se inverte: aquilo que está longe se
aproxima, incomoda. Ele me escapa e eu não posso escapar-lhe: é essa a experiência do
desapossamento, a moralidade do amor: não sou um igual desse que, ao mesmo tempo
em que se furta, me assombra, me lesa e me separa de mim mesmo, do “altera ego”.

3
Milan Kundera, Risibles amours, Paris, Gallimard, p. 87 (o grifo é nosso).
*
Logo com liaison dangereuse (ligação perigosa) e alusão ao romance de Laclos, Les liaisons dangereuses, cuja
publicação causou grande escândalo na época. (N. do Trad.)
O tumulto

Eu te amo: essa mensagem supostamente primeira e una é na verdade um


entrelaçado de afetos exclusivos e indissociáveis, e sua aparente simplicidade combina o
júbilo, a ansiedade, a homenagem e a alergia. Sussurrar essa confissão é algo que dá a
entender uma verdadeira cacofonia sentimental na qual o amor é cantado de todos os
modos.
“Eu te amo” é antes de mais nada (é esta sua evidência gramatical) uma fórmula
assertiva: ela proclama um êxtase, afirma um paroxismo, dá nome a uma felicidade. É
também uma opção: digo “eu te amo” a fim de tornar a ser o “eu” que, depois de meu
amor, não sou mais, para reintegrar o reino interior de interioridade e de substância de
que fui despojado. Falo de um não-lugar — dali onde deixei de estar; designo um lugar
— “você” — onde o Outro ainda não está, mas onde quero que ele baixe. “Eu te amo” é,
portanto, uma expressão propiciatória que demanda dos pronomes a criação de
pessoas: “eu”, exprime a nostalgia da interioridade perdida, e “você”, o desejo de que o
objeto amado corresponda a uma identidade. Em “eu te amo” há também a veemência
do imperativo: ame a mim! Ordeno que me ame! É preciso que você pague sua dívida!
Meu amor, quer você queira ou não, faça-se meu devedor: o que você produziu foi uma
falha, uma lesão, e você só poderá expiá-la aceitando a reciprocidade. Para exigir que
você me ame, eu me autorizo com meu próprio amor, exatamente como o devasso, nas
instituições sadeanas, se autoriza com o desejo por ele sentido para poder submeter o
ser cobiçado. Todos os ternos enamorados são sadeanos da afetividade, e suas
confissões de dependência são simultaneamente a exigência de uma reparação.

Antigamente, as torres, as pirâmides, os círios, os marcos das estradas e mesmo as árvores


tinham a significação de falos e, para Bouvard e Pécuchet, tudo se tornou falo. Recolhiam
varais de carroça, pernas de cadeiras, ferrolhos de porão, pilões de farmacêutico. Quando
alguém aparecia para vê-los, perguntavam:
— Com o que você acha que isto se parece?
Depois contavam o segredo e, se o outro protestava, davam de ombros, condescendentes.
Bouvard et Pécuchet

Enfim, é preciso ouvir esse “eu te amo” na forma interrogativa: você me ama?
Questão decisiva, porque é minha entrada no paraíso que está subordinada à sua
resposta. Receber sua confissão, com efeito, me fará mudar de mundo. Passarei, num
átimo, da perda subjetiva ao triunfo narcisista: eufórico, desvairado e ainda incerto,
gozarei da consistência desse eu de que o aparecimento do Outro me havia, por assim
dizer, desviado. Eu estava arrebatado (pelo Outro, de mim mesmo); me verei
reconfortado. No caso do amor retribuído, a intimidade do “eu te amo” somente
preenche o gozo a fim de assegurar o advento do prazer; é uma captura que mergulha
seu prisioneiro na euforia mais intensa. O destinador pretende apreender e o
destinatário é apreendido, atônito diante da graça que lhe advém. Há reciprocidade
quando a chantagem do vocativo amoroso chega a seu destinatário sob a forma de
preenchimento.

De que você tem medo?

Mudar de parceiro pode ser um remédio para o conhecimento do ser amado, um


meio de repetir o encantamento das inclinações nascentes e a beleza dos inícios, o
esforço por preservar a estupefação da aproximação amorosa; mas pode ser também a
atitude despótica do sedutor, que consiste em reduzir qualquer pessoa que cobice à
imagem que ele faz da mulher, a fim de assegurar-se a conquista variando o menos
possível sua tática de aliciamento. A primeira qualidade de um sedutor é a ascendência,
isto é, a recusa de deixar-se desapossar: ao invés de perder a fala diante do
aparecimento do Outro, toma-se a iniciativa e, vencida qualquer timidez, conjura-se a
perturbação possível, acolhendo o objeto do desejo naquela mesma ordem que ele
poderia perturbar.
“Há pessoas que morrem sem ter suspeitado — salvo durante breves e
4
aterradoras iluminações — o que foi o Outro.”
O desembaraço do sedutor, sua invejada desenvoltura, decorrem de nunca ter ele
sequer pressentido essa suspeita. Ele não conhece o esmorecimento, único traço da
alteridade. Como Raymond Roussel, que deu a volta ao mundo sem sair de sua cabina, o
sedutor é um viajante solipsista que coleciona indefinidamente suas conquistas, mas
que, inebriado por esse delírio numérico, proíbe-se toda experiência com o infinito (o
infinito: o fato de o Outro escapar à minha ascendência, não se colocar no lugar onde o
quero, a sobra ou, usando ainda a linguagem de Levinas, sua resistência contra toda
forma de totalização).
Há duas formas extremadas dessa ascendência: a zombaria e a sedução. O
zombeteiro subjuga sua vítima, ele a torna cúmplice encantada de sua própria prisão. A
vítima fica como que petrificada e, caindo em todas as armadilhas, acumulando
generosamente as gaffes, alimenta a paixão de seu carrasco e assume o próprio discurso
no qual ele a quer precipitar. A sedução exige uma perfeita conformidade entre a
imagem e o objeto, entre a criatura para a qual o paquerador voltou os olhos e a ideia da
mulher que ele tem dentro da cabeça — aquilo de que ela gosta, o que a faz rir, o que a
desnorteia, excita ou encanta. O sedutor atrai a parceira eventual para seu fantasma, e
deixa-a indefesa diante desse poder de atração. A atração seria assim, ao mesmo tempo,
o atrair (a arte de agradar) e a absorção (a domesticação do Novo, seu englobamento). O
ascendente é esse desconhecimento da exterioridade, tão imperioso que verga a
exterioridade à sua lei.
O sedutor tem medo de passar por bobo: proíbe-se a estupefação e nenhuma

4
Sartre, J.-P. L'Être et le néant, p. 449.
vergonha dói mais em sua carne que a de ser surpreendido num erro. O amante
silencioso, sob esse aspecto, é o contrário do sedutor: ele não vive o desapossamento
como um fracasso, mas como gozo. É por essa razão que ele adia a confissão do “eu te
amo”. Pois é com um e mesmo movimento que a declaração de amor estabelece o gozo
e o revoga. Segurança afetiva: duas palavras que se matam entre si. A afetividade é esse
modo de conhecimento que nos diz que o outro não está seguro. A segurança, aquilo
que está em jogo no “eu te amo”, põe fim à situação de impotência e, com isso, joga fora
a criança com a água do banho, o gozo amoroso com a fraqueza da inquietação. Assim,
certos amantes, quando essa confissão lhes surge na ponta da língua, resistem à efusão
e preferem obstinadamente calar-se a oficializar o sentimento por ela veiculado. Sentem,
na sabedoria de sua reticência, que a declaração faz muitos estragos e que nada resta de
uma emoção fulminada.
Uma vertigem que se tornou lei: é esse o efeito do “eu te amo”. Através dessas
palavras, juro fidelidade ao Amor, juro adequar meu comportamento ao que declaro, a
fim de protegê-lo contra sua própria imprevisibilidade e levar o Outro a realizar a mesma
sujeição. Através da formulação, o Amor alcança a dignidade do modelo: é a essência
abstrata, o paradigma seguro que doravante permite avaliar e julgar cada momento da
relação. É exatamente desse coroamento que os amantes nebulosos pretendem escapar:
recusam-se a sacrificar a singularidade de suas aventuras ao desejo de tranquilização. Se
cedessem à sinceridade, acabariam transformando-se em atores, destinados a
representar a ideia do Amor, esgotando-se na tentativa de ficar à altura dela, de emitir
os signos adequados, matando-se na tentativa de representar direito. Calam seu amor
para não cair na cópia do Amor. Ao invés da lei do juramento e das garantias do
contrato, preferem as surpresas do amor vago. “Nunca confesse” poderia ser a divisa
deles, o amor tem medo de aparecer à luz do sol, assim como o desejo masculino tem
medo do orgasmo. Eles suspendem o espasmo do “eu te amo” para furtar sua felicidade
de antes da felicidade à segurança dos caminhos conhecidos. O silêncio é perigoso, pois
não é uma garantia contra a fuga ou o equívoco; mas a descarga da linguagem é
melancólica, pois, colonizando o futuro, precipita o amor num universo constrangedor e
balizado. Esta perversão afetiva, que deseja antes o aleatório numa relação do que a
segurança e a plenitude, pode ser chamada, por analogia com a ascese erótica chinesa,
de amor reservata.
O desapossamento: fiasco para o sedutor, gozo para o amante silencioso, ele
esconde um perigo insuportável para o amante sincero. O enunciador do “eu te amo”
quer exercer uma dominação: imobilizar o Outro, constrangê-lo a ser claro. Que ele não
seja nem fugidio nem falso, que seja simétrico em relação a mim e que eu saiba ao que
me apegar quanto as emoções que o perpassam. “Que teu membro seja manipulado de
5
modo a ficar duro apenas por amor”: essa é a confissão do Incomplacente, é ao “eu te
amo” que ela confia a realização desse desejo. Objetivo da confissão: pôr ordem na
6
anarquia das intensidades, “escapar à apavorante duplicidades das pulsões”. A

5
J. F. Lyotard. Économie libidinale, op. cit., p. 305.
6
Idem, p. 304.
inteligibilidade dissolve o equívoco e, na medida em que, ao pronunciar-se, ele se
inscreve num código inteiramente conquistado e explorado, o tempo amoroso pode
tornar-se tempo previsional. Sei o que me aguarda, sei onde aguardá-lo: consegui
aquelas garantias para acalmar o fantasma do desaparecimento, para acalmar meu
medo de que não houvesse um retorno.
É difícil furtar-se à declaração de amor, pois o que se aloja nela é a possibilidade
de exigir uma prestação de contas. Sob o efeito mágico da confissão, uma relação
aleatória, incerta, sem provas, sem referências e sem endosso se metamorfoseia em
balanço de pagamentos: cálculo minucioso das despesas, receitas, déficits e
compensações. O amor chega ao discurso sob a forma de um negócio: as emoções
tornam-se signos nos quais a ansiedade dos dois parceiros dá-se o direito de ler, quer a
recondução, quer a ruptura desse contrato de reciprocidade.
Bobagens, códigos, amor vago: cada um parece escolher assim o terror ao qual
escapa. O amante dissimulado, recusando confiar sua vertigem ao sufoco do “eu te
amo”, contorna discretamente o lugar do poder: poder sobre o Outro, mas também
sobre suas próprias emoções, cuja formulação transforma a própria pessoa em gerente e
subordinado. O sedutor e o enamorado declarativo, que separam o universo da
sentimentalidade, reencontram-se no ódio do desapossamento: ambos sacrificam o gozo
pela linguagem. O sedutor fala para não ser perturbado, e o enamorado se declara
porque o gozo é caprichoso, evanescente, irregular, enquanto os signos são claros,
domésticos, repetíveis.
O que me dá mais medo? A responsabilidade, o imprevisível? O equívoco ou a
negociação? Os códigos ou a coisa vaga? É a questão em que se debatem interiormente
os amantes à beira da confissão, um to be or not to be sentimental.

A dissimulação

Quem não sabe ocultar, não sabe amar: os ambíguos e os sinceros, os ingênuos e
os malandros, todos os amantes devem aceitar a validade desse aforisma, O caçador e o
amante silencioso vivem duas experiências contrárias da reserva: o caçador formula
sentimentos que sua deontologia profissional lhe proíbe sentir; o amante sem o “eu te
amo” cala sentimentos que ele sente. Cada um tem seu fingimento: a tagarelice de um é
estratagema de conquistador; o silêncio do outro recusa o destino conjugal que a
linguagem atribui ao amor. O libertino dissimula suas verdadeiras intenções por meio da
linguagem. O amante que se recusa a fazer a confissão dissimula sua vertigem através da
linguagem, porque sabe que a palavra amor metamorfoseia em demanda a emoção de
que se apossou.
É a essa demanda que exatamente cede o enamorado declarativo quando, não
podendo mais esperar, quer arrancar do Outro essas palavras maternais que tudo
deslindarão: “Vamos, você está vendo, eu fico”. O que faz o enamorado falar é a
impaciência de viver feliz sob a bela claridade da linguagem, o pressentimento de que a
felicidade está ao alcance da mão, ao alcance da confissão, e que ela depende apenas de
uma palavra, de uma resposta. Mas, como sabemos, “eles foram expulsos do Paraíso por
causa de sua impaciência” (Kafka). A fim de não ser expulso do Paraíso antes mesmo de
ter entrado nele, é preciso controlar a impaciência segundo um cálculo de oportunidade
e encontrar, para a demanda, um regime de linguagem que oculte sua tirania. É no
momento de dizer tudo que o amante sincero reencontra a duplicidade: o amor sem
reservas também tem sua retórica — sua arte sutil da reserva, no duplo sentido de
declaração e dissimulação. A astúcia sentimental consiste em perguntar-se: que
caminho, que tonalidade, que momento escolher para aprisionar o Outro sem assustá-
7
lo? Como pronunciar a “palavra da demanda” , ao mesmo tempo em que se maquila a
demanda? A arte de amar consistiria em saber modular o “eu te amo”: encontrar um
modo suave de implorar, fazer com que a confissão diga tudo, menos o desejo que a
engendra. Pois o horror da alteridade é determinante mas propriamente inconfessável
ao ser que o inspira.
É por isso que os amantes declarativos também têm de ser matreiros: fazem com
que se aceite a intenção do contrato, escondendo-a sob a intensidade do momento, ou
então confiam seu destino ao estado de espírito que, nas relações amorosas, é a polidez
da demanda: peça, uma vez que está sentindo a urgência disso mas, aconselha o estado
de espírito, peça polidamente, suavemente — disfarce o medo com um sorriso e o
cálculo com uma brincadeira. Os enamorados mostram-se matreiros quando, no próprio
seio da transparência que ostentam, sabem esconder seu segredo.

A catástrofe do fantasma

Haveria dois modos de viver o amor : borboleteando e através da paixão. De um


lado a circulação do desejo, seu contágio delicioso e sua hospitalidade: os múltiplos
laços, móveis e ligeiros que ligariam, sem exigências e exclusividades, fugidios flertes,
uma paisagem afetiva sempre diferente, embaralhada. Do outro lado, a fatalidade: isto
é, a paixão fulminante, uma fixação brutal, peremptória, a loucura que se sucede à
frouxidão, a imagem fixa que sucede o movimento. A paixão faz um vazio a sua volta: ela
reúne numa única pessoa as afetividades dispersas aos quatro ventos pela generosidade
insaciável do amor vago.
Mas é preciso continuar com esse antagonismo até sua anulação: esse momento
em que o deserto do amor louco se revela como uma variante e não mais como o
contrário do amor vago. A paixão exclusiva experimenta num único ser essa perturbação
da imagem com que a paixão nômade, recusando as armadilhas da fixação, gratifica a
pessoa. Sempre há, ainda que preparada pela Carência, por Édipo ou pela Literatura,
algo de absurdo no nascimento de uma paixão. Pois a paixão perturba: ela significa o
choque de minha ordem com uma ordem que me transcende e que não englobo.
Fórmula reativa, “eu te amo” insurge-se contra a impotência: mas uma vez que minha

7
Roland Barthes. Roland Barthes par lui-même. Paris. Seuil, Coll. Écrivains de toujours. p. 116.
ordem se fechar sobre o Outro, uma vez que dois seres puderem se dizer subtraídos a
toda a violência da divisão, o amor está pronto, isto é, acabou-se. Não existe outro
imperativo afetuoso além daquele que consiste em entravar a missão do “eu te amo”:
deixar o amor (e também aí reencontramos o vago) em estado de esboço, prolongar a
beleza daquilo que começa, isto é, abrir-se ao desapossamento: não deixar que a
preocupação com a segurança se torne algo insuportável, aceitar ver na inquietação da
perturbação e da dor do afastamento as duas únicas evidências do amor. integrar a
separação ao percurso amoroso ao invés de fazer dela o desenlace, perturbar a ordem
narrativa da paixão.
O código amoroso não conhece outra figura da separação além da ruptura, nem
outro distanciamento além da amargura e da promiscuidade. Como se a discórdia fosse a
única forma possível de distanciamento, como se a separação não pudesse ser vivida a
não ser como um momento de briga, ou no silêncio de um cansaço acabrunhante.
“Pareciam feitos um para o outro”, costuma-se dizer. Mas seria preciso
acrescentar: o amor deles deve ter sido um ato lento através do qual desfizeram essa
correspondência ilusória e, alojando a distância no âmago da intimidade, substituíram-na
pela maravilha de uma separação fundamental. (É a separação que contém, ao me
retirar o privilégio da verdade sobre o enigma do outro, todas as possibilidades de
deslumbramento.)
“Eu te amo”: é o momento em que a memória se apodera da experiência.
Memória que me ultrapassa de longe, recordação do que não vivi. Conheço o amor antes
de tê-lo sentido, a certeza de amar é sempre um reconhecimento: é isso mesmo, aquilo
que já li, cujo sabor fictício já senti, cujos indícios já espreitei e cujo arrebatamento tanto
esperei, é isso, finalmente! “Eu te amo” existe em mim antes que eu o profira, o gosto da
primeira vez conforma-se ao antegosto de amar que o amor exala.
“Ela veio, eu a vi, eu estava embriagado por um amor sem objeto, esta
8
embriaguez fascina meus olhos, esse objeto fixou-se nela.”
Portanto, o Novo não se identifica necessariamente com a primeira vez: só advém
no afastamento e na dissemelhança, quando aquilo que me acontece é irredutível ao
sonho que o desejo havia fomentado. Portanto, a espera deve querer ser desapontada,
pois o Outro só acontece no lugar e no momento furtados à espera. Sob o golpe exterior,
sinto-me desnorteado, tenho literalmente uma memória que falha. A exterioridade do
outro recusa minhas projeções onanistas, minhas vertigens de leitor, todo o caos
psicoideológico de minha memória. Nasce então o deslumbramento de uma embriaguez
9
sem nome: “Não tenho palavras para exprimir o que sinto”.
Há dois momentos de lucidez na relação amorosa. A primeira é a realização de
uma pesquisa sobre os mecanismos da fixação. Se me pergunto: por que minha paixão se
cristalizou nesta outra em particular? Que tem esse parceiro que lhe permite escapar à

8
J. J. Rousseau. Confessiòns, op. cit., p. 440.
9
Marguerite Duras. L’Amour. 1971.
evanescência geral? Donde vêm, em que região de mim nasceram a evidência e a
brutalidade de minha escolha? A adequação da resposta dependerá de minha aptidão
para significar o eleito. Nesse caso, terei reconhecido minha lei afetiva na complacência
do outro em deixar-se desmaterializar pelo desejo que lhe dedico, em ausentar-se de si
mesmo para representar o papel de substituto, de significante de uma instância
10
edipiana. É colocando o Outro nesse lúgubre jogo de “des-presença” que descobrirei o
automatismo esmagador da minha escolha do objeto.
Mas o amor também pode ser assinalado por uma experiência rigorosamente
inversa: o outro se mexe, e nunca se fixa de todo na imagem (no clichê) que dele faz
minha paixão. Quando o eleito de meu coração me desconcerta também quanto às
razões de minha escolha, quando a imagem na qual minha alienação amorosa se
alimenta é precária, revogável, vaga, tenho a lucidez, a clarividência da impotência: o
Outro é um enigma sem palavras, Ele é menos o significante de uma instância ausente
do que a ausência enigmática de um significado estável e seguro,
Na intriga amorosa, a lucidez portanto, em última análise, não é mais que uma
dupla fraqueza que aparece à luz do dia: fraqueza do sujeito, despojado pelo código
inconsciente da responsabilidade de sua escolha; mas também fraqueza, decomposição
do código, incapaz de reduzir o ser, a partir do/exterior, ao papel que ele lhe impõe.
Assim, do amor vago pode-se dizer que é a memória que falha, a dissonância na
repetição, a catástrofe do fantasma.

Casais polígamos

Esclarecer o outro: esse é o imperativo localizado no âmago da interpelação


amorosa, O outro é um campo de disparidades fugidias, móveis, uma refração de
diferenças na qual a fórmula “eu te amo” caminha para assumir um sentido: uma
disjunção brutal separa o objeto amado do resto, daquilo que não é amado: um ser —
você — é identificado por oposição. Eu te amo: você e não um Outro, o Separado, o
Múltiplo, cuja mobilidade se dá para lá da ordem legal da intimidade. Eu te amo: você e
não os outros, a multidão sem nome, em potencial ou efetiva, de meus pretendentes.
Amar é jogar: graças a um duplo sacrifício, pelo destinatário de seu infinito (aptidão para
não se deixar conter) e pelo destinador de sua poligamia (virtualidade ilimitada de seu
desejo), a vida afetiva pode doravante ver a luz do sol: a palavra amor, promessa de
abandonar a humanidade e oração dirigida ao Outro dizendo da fixação nele, é assim a
solenidade semiótica que divide o mundo difuso da alteridade em isto e não-isto, que
submete a multiplicidade ao policiamento dos signos: não há mais disparidades, mas sim
o corte abrupto de uma oposição. E o que é uma história de amor a não ser o destino e
os avatares dessa oposição inaugural? Ela se mantém? Ou então acaba derrapando, é
confusa, embaralhada, e por que forças, por quais desejos?

10
J. F. Lyotard. op. cit.
Força, como se viu, da impotência: o Outro resiste às figuras pelas quais o
represento, para as quais o convida minha memória, nas quais recolho meu desejo. O
plural é seu ser ou, melhor, ele só me aparece como plural porque resiste a meu desejo
de atribuir-lhe uma existência. O Outro não conhece a parada: daí provém o fato de que
eu não conheça o repouso. Um ser de fuga, ele não se esforça por escapar-me, por
artimanha ou crueldade: o próprio amor que lhe dedico desaponta meu desejo de
apropriação. O Outro anseia ser amado e percorre todos os rostos sem se fixar em
nenhum, só autorizando, em relação a si mesmo, uma abordagem acariciante.
Inutilmente repetirei os enlaces, minha relação com o outro na impotência amorosa
continuará a ser o roçar superficial. Viver o impoder ou gozo de amar é, portanto, casar
em si a riqueza do polígamo e a maior privação. Eu sou ao mesmo tempo mimado (pelo
talento generoso do Outro em multiplicar-se) e desapossado (pela impossibilidade de
acalmar meu ardor possessivo encontrando meu bem, meu complemento nessa
multidão em que eles se perderam). Quando o outro não está inteiramente presente na
ligação que o prende, ele salva o casal da conjugalidade — esta obrigação de expiar a
segurança através do tédio e de escolher a monotonia do lar contra o acaso da
inconstância.
Mas o que é escolher senão abrir um espaço de luta, de trocas, de compromissos
entre a existência escolhida e a que se acreditou marginalizar?
“Na verdade, não sabemos renunciar a nada, sabemos apenas trocar uma coisa
por outra, e aquilo que parece ser renúncia não passa de fato de uma formação
11
substitutiva.”
Na própria medida em que a fórmula “eu te amo” instaura explicitamente o casal
contra a poligamia, o casal só pode desenvolver-se como sintoma polígamo. “Você é
tudo para mim”, eu digo ao objeto amado a fim de significar-lhe que os outros não são
nada, que os abandonei, pus de lado. Mas esse cumprimento também deve ser
entendido como uma ordem: nessa homenagem total há uma pressão totalitária, que é o
protesto dos que foram marginalizados contra a possibilidade de aniquilação. “Seja tudo
para mim”: seja a diversidade à qual renuncio, as aventuras que sacrifico, as pessoas que
não conhecerei, seja meus fantasmas e meus sonhos insatisfeitos. Em suma, seja tudo,
menos sua irredutibilidade a meu desejo. Nessa peça com personagens em número
ilimitado, sou eu quem fixa os papéis, eu não deixo você livre nem mesmo para compor
sua própria personagem. Dando-me inteiramente ao Outro, dele exijo que satisfaça o
conjunto das fantasias e pulsões que o mundo me solicita. O exterior reaparece no
quadro conjugal, mas sob forma de injunção: confia-se ao parceiro escolhido a tarefa de
cobrir a gama das criaturas excluídas. Avatar conjugal da poligamia, esse despotismo
culmina na amargura, isto é, na acusação feita contra o objeto único de não ser vários. A
cena é, portanto, a apoteose da paixão totalitária: na cena, o casal se desaponta e se
dilacera por ver-se reduzido a si mesmo; os parceiros do casal empacam na evidência
insustentável de sua finitude: com um ódio alimentado pelo desencorajamento e pelo

11
Freud. Essais de psychanalyse appliquée. Paris, Gallimard. p. 71.
pavor, eles se acusam de serem apenas dois. Você é tudo para mim; “seja tudo para
mim”; “ah, é você...": três fórmulas para uma história de amor. A ordem doméstica
acredita edificar-se sobre a exclusão do mundo, mas não se deve acreditar cegamente na
eficácia semiótica do “eu te amo”: nós dois de um lado, o resto do outro. “Pois o resto é
bastante ambíguo: ele enuncia ao mesmo tempo sua vocação para dejeto a ser posto
12
fora e seu destino de permanecer.”
Assim, a ninguém é dado o poder de escolher: a exclusão é ao mesmo tempo a
evidência e a mentira da declaração. Esse sacrifício retumbante, porque ainda o ignora,
deixa em silêncio o custo de sua contrapartida. A fórmula “eu te amo” é uma oblação
calculadora, um dom que especula sobre seu reembolso: aquilo que eu imolo a você terá
de me ser restituído: pretendo romper com as paixões múltiplas que me ligam ao
mundo, mas de fato as rebato para um único ser encarregado doravante de realizá-las.
Eu escolhi você, isso significa: dou-lhe um mandato para eliminar a cesura efetuada por
minha escolha. Se desinvisto a humanidade, é para esmagar você, meu amor, sob o peso
deste investimento supremo: totalizar a humanidade.

O fim do modelo conjugal

Agonia do casal? Inúmeros são os doutores que predizem o desaparecimento


iminente do moribundo. A deterioração das relações entre os cônjuges é por eles
atribuídas, preliminarmente, à violência exterior.
“Como pode o casal constituir uma ilha harmoniosa no meio de uma sociedade
13
agressiva e neurótica?”
Em outras palavras, como ninguém pode ser feliz num mundo infeliz, os cônjuges
recuspiriam no interior da célula conjugal tudo aquilo que, fora dela, eles acumulam de
ódio, cansaço, medo ou indiferença. O casal é um espelho fiel em que se reflete o
desgaste produzido pelo capitalismo na sociedade. Talvez. Mas não é possível dizer
também que é a impossibilidade em que nos mantém a sociedade de nos
desenvolvermos nela, que sustenta, contra suas próprias desilusões, a cidadela
amorosa? Somente num mundo infeliz é que o desejo de ser feliz é assim tão obstinado,
e é nesse mundo que a felicidade deve invariavelmente assumir a forma da quietude
amolfadada, da intimidade celular: quero que haja um casal para que haja um exterior e
um interior, para passar na rua sem padecer de um anonimato (pois tenho uma casa
nossa), para escapar à incerteza sedutora, para me afastar, em suma, da paranoia social.
O casal não é tanto uma renúncia quanto uma fuga: ele continua a ser a instituição mais
acessível a todos aqueles que são atormentados, senão por um grande ideal passional,
pelo menos pela necessidade de segurança e o desejo de desconexão. “Nós” é, antes de
mais nada, alguma coisa que se concebe como defesa contra “eles”. Quanto mais a

12
Leclaire. On tue un enfant. Paris, Seuil, 1975. p. 85.
13
Sex-Pol, jun. 1976.
sociedade é hostil, mais o casal é necessário aos indivíduos: longe de desagregar-se, ele
se reforça com a dureza das relações da sociedade. O que determina o Outro como
cônjuge é que ele não negocia minha existência, é que ele me aguarda, é o fato de ele
estar ali, ao alcance da mão, o fato de dele emanar uma duração; em suma, o fato de ser
ele para mim e eu para ele um valor adquirido.
Mas, se o casal não se vê tanto contaminado quanto consolidado pela miséria
social, ele está pelo menos doente de si mesmo, doente do amor. O casamento de
inclinação, como se sabe, é uma conquista recente: somente há pouco tempo é que os
parceiros começaram a escolher-se livremente e, deixando de lado qualquer outra
preocupação além da sentimental, passaram a casar a partir de um “eu te amo”. Na base
dessa “monogamia enfim realizada” (Engels) havia um belo ideal: o de reconciliar a
instituição terrestre do casamento com a vocação metafísica do amor, isto é, o concurso
de dois seres para a formação de uma totalidade. Ora, que está acontecendo agora que
foram eliminados os obstáculos exteriores à realização do contrato amoroso, e que a
paixão, de princípio de turbulência, tornou-se princípio de associação? O amor liberado
não respeita distâncias. Ele se joga sempre para além daquilo que ele conhece, daquilo
que ele pode: o casal contemporâneo é o desastre engendrado por essa estúpida aposta.
“Não é possível o amor entre cônjuges”, já dizia o ditado medieval: mas os
cônjuges não podem mais ater-se à maldade dos pais ou à injustiça da ordem social: o
único inimigo que têm é eles mesmos, a inconsciência do juramento que fizeram. A vida
a dois é o modo através do qual eles expiam aquela confissão inicial, o castigo que
infligem a si mesmos e que suportam por terem dito: “eu te amo”. E mesmo a
convivência mais harmoniosa não resiste à erosão que a vida cotidiana imprime ao
sentimento apaixonado. Donde esta ideia nova (ver Jim Haynes, Guy Sitbon) segundo a
qual é necessário abandonar, no mesmo impulso, a ordem doméstica e o romantismo
que, após tê-la desafiado durante tanto tempo, hoje lhe serve de alicerce. Pois pode-se
ter a certeza de que a mesma situação nos envolverá de novo se fugirmos do casamento
ao mesmo tempo em que permanecermos presos à linguagem que conforma a
afetividade às finalidades próprias dessa instituição. É a ordem conjugal que se esforça
por capturar todas as potencialidades afetivas nas malhas do amor louco, é ela que
produz o ideal da paixão única e que convida as paixões reais a reconhecerem- se nessa
paixão e medir-se por ela. É assim que o combate comunitário quer eliminar tanto o
casal quanto esta forma de amor da qual ele á o inelutável destino: a possessividade,
Talvez, na verdade, a paixão exclusiva não seja mais que um produto transitório da má
história dos homens. Mesmo assim, demasiado apegados às formas antigas, reticentes
na prática do grande salto libertador, incapazes de conceber um corte no domínio
amoroso, caímos de amor por alguém: estou caído por ela, caída por ele. Caímos mas é
nas armadilhas que nos prepara o sistema doméstico. O impasse conjugal que hoje se
verifica não provoca uma deserção geral, nem mesmo, necessariamente, um desejo de
comunidade. O que também não significa que nada de novo esteja acontecendo. O
evento nem sempre assume a forma triunfal da alternativa. O apodrecimento do modelo
conjugal não é o fim do casal, nem sua substituição por uma instituição melhor; é o
aparecimento de uma série de formas intermediárias, em que os amantes trapaceiam
com seu próprio contrato. É em nome do amor que se unem, mas recusam-se cada vez
mais a viver essa união no horizonte da totalidade. Não desejam constituir um bloco
monolítico, perder-se um no outro, nem conhecer o prolongado êxtase fixo do amor
louco. O “eu te amo” é dito e aplicado por eles, ao mesmo tempo em que inventam mil
métodos para contrariar seus efeitos. Vivemos a época dos enamorados incrédulos que
não confiam mais nem mesmo no desejo que a paixão lhes dita. Proliferação dos casais
oficiosos: esta resistência dos cônjuges quanto a passar do concubinato para a condição
de esposos legais revela que o antigo ideal amoroso está assustando, hoje. A recusa do
casamento talvez não passe de uma mudança microscópica, de um puro rito
conjuratório: mas pelo menos evidencia o ceticismo dos amantes em relação ao “eu te
amo” por eles mesmos pronunciados.
Cada um tem sua casa, mesmo quando os dois dormem alternadamente na casa
de um ou do outro. Ou, de modo mais audacioso, “caçam” juntos, convida-se um
terceiro parceiro: pratica-se a troca: casais open, como se diz, modernos, que driblam a
tendência conjugal para o autismo. É possível também a separação artificial a fim de
tornar mais frágil uma ligação que corre o risco de ser consistente demais; hoje, o amor
quer garantias de solidez, mas também provas de sua precariedade. Exige signos
contraditórios. Todas essas são pequenas mudanças, onde porém é possível descobrir o
aparecimento, às apalpadelas, de um novo desejo amoroso: vamos dizer “nós”, sim, mas
vamos esvaziar esse pronome de toda evidência, não sermos nunca cautelosos em
excesso e sermos inventivos para desconjugalizar o casal; afirmar a compatibilidade do
Outro e dos outros, pretender uma espécie de objetivo impossível, aspirar a essa
abundância afetuosa que permitiria dizer ao mesmo tempo: “eu te amo” e “eu amo ela”,
“eu amo ele”.
Se fosse necessário um código amoroso para esses comportamentos ainda
incertos, ele poderia ser resumido em dois imperativos: nada perder, isto é, manter a
segurança do casal sem com isso encerrar-se no convento sentimental por ele
pressuposto. Depois, poupar, o que significa: não dar tudo a uma única pessoa,
pretender paixões lacunosas, não indexar o amor a partir da ideia de totalidade. Esse
saber-viver não formulado é a dosagem difícil entre a reticência e a entrega total.
Paradoxalmente, a reserva é uma conduta afetiva que substitui, nas ligações passionais,
a grosseria pela delicadeza. De fato, é preciso ver nela a recusa de abandonar o amor às
pressões contraditórias e simultâneas exercidas pelas baixezas do princípio de realidade
(contentar-se com aquilo que se tem; contentar-se com um pássaro na mão) e pela
grandeza do compromisso total que canaliza para uma pessoa a totalidade dos desejos,
mesmo aqueles que não se destinam a ela. Quem não sabe poupar, não sabe amar, pois
ele reduz o Outro, cedo ou tarde, a ser o veículo de seus afetos desempregados. Quem
não sabe poupar, investe — ao invés de amar.
Irmã Ana, não estamos vendo a chegada dos novos tempos: o sofrimento não
está desaparecendo da paixão; o amor não resvala de todo para o lado da euforia. Ele
perde a vergonha, no entanto, deixando de desejar apenas aquilo que sua própria
tradição lhe prescrevia como desejo. Bússola desnorteada, ele não aponta mais, como a
agulha magnética, para o Norte da Unidade. Ser dois e não ser mais que um: esse é o
desejo que o amor abandona quando o casal se aventura para fora do modelo conjugal.
É como se a primeira palavra do amor, “eu te amo”, não mais fosse a última. É como se a
paixão, transformada em algo incompreensível para ela mesma, doravante ignorasse
qual deva ser sua primeira palavra.

FRAQUESAS BÁSICAS

1. “Todo ser humano que sorri é belo. O sorriso envia uma energia positiva. Gente demais se
acha feia, e essa é a pior das alienações. Se irradiarem um pouco de felicidade, se tornarão
belos. Se se acreditarem feios, se tornarão feios” (Jim Haynes).
Em outras palavras: você é corcunda, sua orelha é caída, seu cabelo é espetado, seu nariz é
torto, os dentes cariados, o rosto marcado por acidentes — mas garanto, meu velho, quando
você sorri, como você se torna radiante, como você desprende energia, você faz todas caírem
por você! Vamos. Quasímodo, você é o mais bonito. Vá em frente, felizardo.
2. Que o falo não é o pênis. Que a castração simbólica não é a castração real... Freud, Lacan.
consortes.
Essa é uma sutileza escolástica bem difícil de enfiar na cabeça das pessoas. Se o falo está assim
tão longe do membro viril, por que persistir em querer continuar dando-lhe esse nome, por que
alimentar deliberadamente a confusão semântica? Mistério, mistério...
Afinal de contas, que desfile miserável, toda essa história de falo, essa mitologia da castração:
a impressão que se tem, também aqui, é que a fidelidade ao sexo masculino (em outras
palavras, o falocentrismo) só desaparece do conteúdo explícito do discurso a fim de manter-se
intacto em seus significantes.
3. Falocracia: denúncia legítima do poder do macho, mas também uma nova forma de
intimidação. Homens ou mulheres, vocês acreditam estar falando a linguagem da liberação,
mas ainda há muitos obeliscos em seus fantasmas, muitas árvores grandes, muitos picos
pontudos, vocês são objetivamente culpados da Carência de que se acreditam subjetivamente
isentos. Falocracia: valor penal e não mais de análise, tal como a noção de inimigo do povo em
Stalin. Conceito cômodo em cujo nome o Outro sempre está errado por estar desacreditado
desde logo, seja o que for que lhe diga. Grande auxiliar paranoico, que não serve mais para
compreender, mas para separar, apartar, esmagar.
III - O GOZO DA MULHER

"O continente negro não é nem negro, nem


inexplorável. Permanece inexplorável porque nos
fizeram crer que era negro demais para ser
explorável. E porque querem nos fazer crer que o que
nos interessa é o continente branco com seus
monumentos à Carência. E nós acreditamos nisso.
Imobilizaram-nos entre dois mitos aterradores: entre
a Medusa e o abismo.”
Hélène Cixous

Embriaguez daquela que abraço, arrebatamentos que não perturbam, nem


permitem uma observação metódica ou uma análise, objetiva, emoção que se comunica
a mim, agita-se em mim, desfalece com meu próprio desfalecimento e que no entanto
não é minha; com que direito posso falar dela, eu que não a vivo, que não tenho nomes
para nomeá-la e que pretendo traduzir em termos impróprios aquilo que há de
intraduzível nesse corpo em erupção? Só o posso fazê-lo, talvez, tomado pela febre que
ela provocou em mim, através da participação para a qual, apesar de mim mesmo, ela
me arrasta.
Gozo da mulher, meu exterior absoluto, resplandecer da carne em minha própria
carne, convulsões que me fascinam como podem fascinar um deserto ou um oceano
porque me excluem, e estabelecem uma espécie de indivisão natural que se basta a si
mesma: não há falhas nesse delírio infinito que não deixa nunca de manter o homem a
distância, de deportá-lo para longe, erigindo à sua volta imperceptíveis mas
intransponíveis muralhas. Pois esse interior no qual, apesar de tudo, a mulher me faz
entrar, é tão fechado quanto o quarto escuro no qual o fotógrafo revela seus filmes; tão
aberto, escancarado, que nele nada mais se pode apreender; evidente até o ponto de
evanescência, ele é esse segredo que não se dissimula e que pelo próprio fato de ser
assim oferecido a meu olhar, à minha ambição, a minhas mãos, torna-se ainda mais
impenetrável para mim. Segredo sem segredo, esconderijo que não abriga coisa alguma,
imensa fuga instantânea que se furta a toda tentativa de apreensão. Participar da
intimidade de uma mulher é saber que esse segredo talvez nos será murmurado mas que
nós não o ouviremos. Não temos ouvidos para esse desregramento soberano.
Não é possível acrescentar impunemente ao domínio amoroso o gozo que supera
todos os gozos, o gozo da mulher; a partir do momento em que o fazemos, essa volúpia
naufraga e destrói vertiginosamente os sentidos em que se pretende encerrá-la. Aquilo
que ela é — a subversão de todo ser durável, inclusive de todo estado paroxístico — faz
recuar os limites daquilo que as palavras podem dizer a seu respeito: limite de toda
linguagem, limite de toda corporificação. Não posso fazer-me uma imagem dela, adorá-
la é me colocar na obrigação de adorar uma divindade invisível. As mulheres têm o
privilégio do gozo porque os homens têm a maldição da descarga, mas esse gozo não é
formulável, múltiplo, sem conteúdo; eu não o partilho, gozo apenas com sua evasão, seu
eterno escorrer de águas contra meu corpo. Os espasmos da amada não possuem a
certeza rudimentar do sêmen viril; são esse rosto contraído que, dominado por uma
insustentável devastação, não me vê mais, este rosto que não posso conter num olhar
como durante o sono, esta pele incandescente que se cola a mim ou foge de mim, esse
vertiginoso balé de pernas, braços, beijos que me apertam, me afastam, exasperam-se
com meu contato, intensificam-se com meu afastamento, me falam de mil coisas que
não compreendo e que nunca me dizem outra coisa além disto: não estou onde você
está, me afundo onde você nem estremece, de mim você não terá nem uma visão clara,
nem uma percepção nítida, pois eu nada sou nesses termos em que você tenta me
entender.
Falar desse gozo, então, é falar do Paraíso estando no Purgatório, é falar da Terra
Prometida estando no deserto (mas esse Paraíso, é preciso destacar, não é
necessariamente fraterno, amigo, acolhedor, pode muito bem ser algo insuportável,
desagregador, forte demais, violento demais para nós). Falar dessa tormenta erótica é
falar com base numa exigência que vagueia em nós como se fosse um fantasma, é falar a
partir de uma pulsão-limite, de uma pulsão sem objeto, sem contraforte anatômico no
corpo masculino e que somente a mulher pode concretizar. É, assim, falar a partir de um
exterior que nos seduz do modo tímido e embaraçado do enamorado que se apaixona
pela volubilidade sensual que ele nunca terá. Dizer essa volúpia — dizê-la
desajeitadamente através de toda a distância na qual a vivemos — é multiplicar as vozes
dentro da própria cabeça, é exprimir-se através de outros corpos, outras economias
pulsionais, outras ossaturas, outros fôlegos, outros ritmos respiratórios, outros tipos de
cílios, outra suavidade e acuidade do olhar, relevos plenos de quadris e seios, peles
acetinadas, delicadeza de mãos e coxas, e deixar fundir em si outras batidas de coração,
concentrações de prazeres, baforadas de calor, torrentes de tormentos voluptuosos,
cada um dos quais é um mundo que brota, explode e morre como uma estrela. Portanto,
não é enunciar um novo saber sobre as mulheres e dizê-lo no lugar delas como se fosse a
verdade delas, mas escrever de longe, a partir de nossa diferença, sobre uma estranheza
que nos transtorna e nos confrange. Falar, portanto, a partir da emoção que suscita em
nós aquilo que nos escorraça de nós, falar no exílio — se é que é verdade que só se
escreve bem sobre alguma coisa quando se está no ponto mais extremo da própria
ignorância.
Por que amar esses transportes amorosos, por que ceder-lhes uma parte de nossa
libido, está aí algo que não é evidente por si só, milagre do investimento objetai. O que
ganhamos com isso? A possibilidade de nos perdermos.
Donde o medo ou o ódio do homem diante da convulsão erótica feminina: a
mulher é seu limite, aquilo que o costeia por todos os lados, a tentação à qual não pode
ceder ainda que o quisesse com o máximo de suas forças (talvez somente na sodomia
pode o homem aproximar-se do êxtase feminino; e mesmo assim, o ânus, mesmo o mais
treinado, o mais enrabado, não tem o sistema de nervos nem a sensibilidade do sexo
feminino). O desejo do homem é um impulso paralisado, mantido na obscuridade de
uma dolorosa cegueira; não se trata do desejo de um objeto desejável (como na
tentação religiosa) ao qual não se quer sucumbir, é a vontade ininteligível, incontida, de
sentir esses arrebatamentos em que desfalece o ser amado; não se trata do desejo do
outro, porém, muito mais tenebroso, mais insensato, do desejo de sua alteridade, do
singular júbilo em que mergulha esse corpo que não é o meu. O gozo da mulher não tem
a atração do fruto proibido: esse fruto não é proibido, ele é impossível, inalterável (é
preciso já “possuir” uma mulher para poder chegar a cobiçar a intimidade que
desabrocha nela, que a encanta, dilacera). No ato amoroso, uma voz atravessa as
paredes, chega do outro lado do espelho, essa voz fala, grita, radicaliza, chora, ri, sufoca,
essa voz nos irrita porque nada a domestica, excita-nos furiosamente porque não se
dirige a ninguém. A imensidade potencial do gozo feminino (potencial pelo fato de ela
não estar presente do mesmo modo em cada mulher, ainda que seja tendencial em
todas, e também porque essa volúpia nunca é algo de certo), essa imensidade
incompreensível, revoltante — do ponto de vista masculino da poupança, da falta de
fôlego, das pequenas reservas — nos aterroriza e nos confrange na medida em que não
nos deixa espaço algum para nossa anatomia. Uma espécie de vertigem ou de horror
contra seu próprio sexo apodera-se então daquele que opõe a si mesmo — à sua
precariedade glandular, à monótona estereotipia de seus orgasmos — a profundidade
infinitamente presente desse gozo que é ao mesmo tempo uma ausência infinita. “A
1
massa indistinta da convulsão erótica” não é algo que o homem repudia com um
arrepio de medo ou de pudor indignado; pelo contrário, ele daria não importa o que
para abandonar-se a ela, jogar-se nela, palpitante, como no abismo delicioso onde nada
consegue dilacerá-lo suficientemente. E sua frustração (mesmo quando está “satisfeito”)
resulta do fato de nenhuma sublevação, nenhuma revolução o ter ameaçado, resulta do
fato de que uma ordem insidiosa, contra a qual nada pode, o preserva para sempre do
desequilíbrio. A mulher não mergulha na loucura ou na morte, tolas simplificações de
estados infinitamente complexos; ela atinge um excesso, um excesso vertiginoso, o
excessivo auge ao qual o masculino não chega O homem não pode desviar-se desse
auge, desse cume, sem com isso desviar-se daquilo a que ele aspira, apesar de sua
própria vontade. Ali onde a mulher desfalece nos espasmos da volúpia, o homem
mantém a cabeça fria; seja qual for sua vontade, não pode acompanhá-la. Vejo algo que
não tem preço, algo que “se furta a qualquer avaliação, que se dispersa nas margens de
todo capital numa monetarização rigorosamente impossível, um gasto incontabilizável
2
nos recursos de sua perda”. A única coisa que posso fazer é dizer: nisso existe um gozo;
e calar-me desesperado diante de uma proximidade que não se satisfaz com nenhuma
equação ou relacionamento.
3
Diante do gozo da mulher, não há técnicos, há apenas amantes despojados,

1
Bataille. L ’Erotisme.
2
Luce Irigaray. Spéculum... op. cit., p. 240.
3
3 O técnico é aquele que goza com o corpo do outro, manipula-o, como na pornografia; é menos a competência
que o anima nisso do que a manipulação. Ou mesmo esse tipo degradado de manipulação que é a mixórdia:
antes de mais nada, do poder que eles acreditam deter. Conhecer o outro pela mulher
significa não ser deixado na ignorância dos gozos mais extremados de que ela é capaz.
Nesse sentido, nenhum amante é o melhor, nem o supermacho pretencioso, com
imponentes aparelhamentos, nem o Hércules de membro musculoso: a força que
despertam nela não lhes é entregue como recompensa, presente, troféu: é uma força
que permanece indômita, selvagem, ausente de toda apropriação, mais-valia da
virilidade. Fazer gozar não é sinônimo de possuir, a intensidade dos relâmpagos que
sulcam a carne da amada frustra todas as intenções de seu companheiro. Ninguém tem
o privilégio de conferir esse prazer, ninguém é seu depositário garantido, imutável. O
corpo da mulher é uma linha de fuga e não uma fenda matricial, pedaço de universo
dotado de infinitos poderes de engendramento, bolha em fusão de onde se originam os
planetas, jorros, trajetórias minúsculas ou gigantescas, cometas que partem do ventre e
vão explodir na cabeça ou nas falanges das mãos, leque de sensações difundidas
continuamente através dos quatro hemisférios do corpo e que atravessam, embaralham,
anulam o limiar, o pobre limiar masculino do genital. A mulher põe no mundo um corpo
sempre diferente, o seu, ela é o ser que passa por toda parte por excelência, seu comum
é o maravilhoso. Portanto, desse gozo não há o que dizer (não se pode fazer relatório
algum, nem mesmo um relatório sexual). “Dar” prazer ao outro é assumir o risco de sua
diferença, é abrir em si a deliciosa ferida através da qual o outro lhe escapa e se afasta
de sua dominação através do próprio laço que o une a você. Quem não ama loucamente,
ou com uma louca indiferença, aquele ou aquela que desrespeita os limites em que a
vida civilizada nos mantém e que desperta em nós corpos de que não suspeitávamos?
Diante daquela que goza, o coração nos falha como se estivéssemos diante de estupores
vertiginosos. E se o amante é de algum medo responsável por uma parte que seja desses
pontos culminantes em que sua parceira se pulveriza, desses mundos por onde ela
despenca ele não faz parte: ele está lá embaixo e vê, do fundo do vale, essa erupção
impetuosa que ocorre perto dele, bem perto dele, e da qual está tão longe.
Gozo: aquilo que não autoriza nenhuma representação, imagem, retrato,
substituição, aquilo de que se capta apenas alguns instantâneos ou queixas
4
dilacerantes. Pelo que sabemos, uma única música se aproxima ou equivale ao gozo
feminino, a música oriental, geralmente pouco suportada no ocidente em razão de sua
estrutura repetitiva, obsedante (e não constitui o menor dos paradoxos dessa música o
fato de ela desenvolver-se num continente em que as mulheres, mais do que em
qualquer outro lugar, permanecem confinadas na mais abjeta das desgraças: a fantástica
erotização da orelha e da boca nos países árabes talvez não existisse sem essa total
reclusão do feminino; aquilo que se repete nas melhores litanias, canções, melodias

sucções gulosas e intermináveis de legiões de caralhos, intromissões ofegantes, punhetas compulsivas do clitóris
e do ânus; nesse sentido, o pornô é antes de mais nada um jogo com órgãos considerados como elementos
maquinados, transformação de objeto sexuais em jogos de montar, frenesi da manipulação até os limites das
máquinas orgânicas. O pornô não é obsceno, é abstrato, estruturalista (razão pela qual talvez, é tão pouco
excitante).
4
Melhor do que perguntar se as mulheres gozam como os homens e compartilham de uma mesma natureza,
vejamos, pelo contrário, como elas desviam a própria significação da palavra gozo, declinam-na de outro modo,
levam na por caminhos desconhecidos.
instrumentais; aquilo que fascina e provoca o delírio de multidões inteiras não é
exatamente, arrastada, lancinante, essa voz do outro corpo que o islã abafa há séculos?)
A música oriental é a suprema entonação, aquela diante da qual só é possível arrepiar-se
ou desfalecer: como o gozo, ela é louca em sua própria monotonia; ela se repete
constantemente, de um modo excessivo que confina com a perda; ela não se retém,
nada conta, diz apenas de seu eterno desfalecer, de sua eterna delícia. A mulher que
goza não pode falar, seu sexo, todo seu corpo sobe até sua cavidade bucal, precipita-se
para fora, ereta sob o céu de sua boca, rasga a língua, escapa em gritos, num resfolegar,
em risos, soluços, estrangula a fala clara e a harmonia clássica em proveito de uma
síncope apurada e abstrata da qual somente o oriente soube se aproximar. Nesse gozo
música a única coisa que acontece é o próprio gozo, envolvido em seu retorno
indefinido. Repetição gloriosa, formal, literal, que carrega uma formidável intensidade
que cava a carne, saqueia a voz, a garganta, extrai a força de viver de uma necessidade
inata de destruir e ser por sua vez destruída, pisoteada, escorraçada É um
deslumbramento soberano, uma mudança permanente de pontos, nós. encruzilhadas,
momento era que o está aglutinado se rompe, explode, provocando clarões que vão
reverberar nas dobras mais íntimas do ser. Tudo se dissocia, se dissolve, torna-se
discordante, fugidio, diverso, ruptura de ritmos, arrombamentos brutais, modulações
novas que despertam sentimentos efêmeros, e as forças em sua tensão primitiva, enfim
liberadas, permitem outros remanejamentos, outras reorganizações: as forças não
escapam, como acontece no homem, elas se difundem pelos músculos, pela ossatura,
pelo esqueleto, a libertação delas não põe um fim à excitação mas sustenta-a, veicula-a
em todos os sentidos, propaga-a até os menores recantos, o gozo da mulher começa
exatamente lá onde acaba o do homem. Portanto, trata-se de orgasmos, no plural, que
nunca acontecem do mesmo modo como se fosse um relato que sobreporia, num
mosaico barroco, vários começos, vários fins, várias intrigas e linearidades, princípio de
desorganização permanente aos olhos de uma carne que estaria sempre esperando
alterações idênticas, inovações que a cabeça não pode prever porque nunca acontecem
lá onde são esperadas. O que ocorre é que alguma coisa de abafado se desencadeia, se
dilacera, algo. que nenhuma finalidade vem obliterar. Os gritos da mulher no êxtase
erótico não expressam o teatro das emoções profundas: são sua palavra imediata,
transbordante, ardente, que não recorrem a um suporte verbal; palavra sem faia que
não pode calar-se, que abala os tabiques do aparelho fonador, irrita a superfície sedosa
das epidermes e dos tímpanos, faz com que o sexo seja ouvido na garganta, o ânus na
laringe, verdadeira ascensão das partes baixas do corpo na direção do torso e da cabeça,
algo que ascende irresistivelmente como um acesso de tosse, é um interior que vomita
imprecações mudas, mas essas imprecações nada dizem, proclamam um corpo fabuloso.
Ruídos roucos, ásperos, nos quais se ouvem os incidentes pulsionais, a irritação
obsedante de uma região incendiada, a inflamação brutal de uma superfície ou de um
pedaço de tecido. Os gritos do gozo são os gritos do incomunicável, de uma alta tensão
que obtura a goela, impedindo com sua violência a formação clara dos fonemas, a
passagem evidente das vogais e consoantes; não se trata de uma outra linguagem (que
por sua vez poderia ser estudada, analisada, aprendida e reproduzida), não é nem
mesmo uma linguagem, mas um balbucio emocional que não pode servir-se das palavras
e da ordem sintática a não ser transformando-as em acontecimentos intensos, elas
também. Aquilo que a boca diz quando o corpo goza é que a linguagem só se ombreia
com o orgasmo para destruir-se nele, fragmentando-se em partículas, sílabas cansadas,
linguagem carregada com perturbações orgânicas, inapta para livrar-se de um
amontoado de sensações, de um afluxo de sangue e de peles. O acesso das palavras à
boca (ao céu da boca) é impedido. Os domínios separados da dor e do prazer, da.
consciência e da opacidade se misturam: tudo se confunde, o corpo é uma encruzilhada
de trajetos, pulsões, emulsões, mensagens que não tem um sentido, mas que não param
de ser emitidas a uma velocidade cada vez mais vertiginosa: os signos se fundem,
proliferam, signos onde não há nada além do caos e da matéria em fusão.
Os surrealistas faziam-se a seguinte pergunta: “Quais os meios objetivos através
5
dos quais avaliar o gozo de um parceiro?” Sem mal-entendidos: do parceiro feminino
(uma vez que o sêmen masculino é um índice sem ambiguidades). Em outras palavras:
como não ser enganado pela mulher como saber se ela não está simulando, imitando um
processo que não está sentindo nem de longe? Velho, antiquíssimo desejo de clareza, de
legitimidade sem lacunas. (Sabe-se que toda a sexologia atual, e especialmente os
trabalhos de Masters e Johnson, não têm outra finalidade além de satisfazer essa louca
vontade de transparência.)
O homem exige signos explícitos da mulher, aquilo que pretende decifrar nela é o
esquema límpido da tensão e da descarga Claro, às vezes o gozo da mulher pode calcar-
se sobre o modelo da ejaculação masculina, adaptar-se a linhas de força que lhe são
estranhas. Mas esta aparente servidão para com a economia de um outro corpo não é
mais do que uma máscara que reveste — através de uma pseudo-semelhança com
outras formas que lhe são específicas — outras máquinas que surgem sob as primeiras,
que se furtam a sua regulação canônica e que as abandonam como se abandona um vício
6
curioso. Isto porque as figuras masculinas do prazer não servem de moldura para elas,
mas sim de indutoras de um valor qualquer, processos de natureza bem diferente que
assinalam tanto um estorço no sentido de aliviar o corpo de suas tensões, quanto um
livre impulso de redistribuição dessas tensões (e pode-se ver bem em Sade, por exemplo,
como o gozo da mulher se fosse admitido, contrariaria as vontades dos libertinos,
porque ao libertino é necessária a imaginação de um corpo infinito, circunscrito, para
que a volúpia seja a do saque c da destruição desse corpo. Assim é que a mulher sadeana
também “se descarrega” interminavelmente, mas nunca será admitido o princípio de
infinitude que desmembraria seu corpo, o desorganizaria). Ora, o homem não tolera essa
torção numa similitude que ele acreditava comum; esmagado sob o peso do “excesso de
sensações difusas”, aquilo que ele deplora na mulher é a ausência de uma sensação
única e a saudade de uma marca evidente, como nele, onde tudo se resumiria e se

5
R. Benayoun, Érotique du surréalisme.
6
O corpo feminino embaralha todos os códigos do prazer num rápido deslizar conforme as estimulações e
solicitações de que é objeto, nunca dando de volta as mesmas respostas, oferecendo as mesmas sensações, nunca
registrando do mesmo modo os mesmos eventos, aceitando por vezes que lhe ímponham o código orgástico
masculino, embora o preencha com todas aquelas figuras por esse código habitualmente excluídas.
reencontraria. Vá lá que ela sinta uma sucessão de orgasmos (e nesse caso ela é como
um homem que ejacula várias vezes numa única sessão) mas que pelo menos essas
culminâncias possam ser por eles reconhecidas, catalogadas, numeradas; enfim, que ele
possa vê-las: “Deixo que você proceda ao recenseamento diz Blanchot, de todas as
palavras através das quais se sugere que, a fim de falar a verdade, é preciso pensar
conforme a medida do olho”. A respeito da volúpia da mulher não há pontos de vista
possíveis, na medida em que ela atribui pouca importância à exterioridade: nem os
gritos, nem as contorções do rosto, nem os acessos febris, nem a extrema lubrificação
significam necessariamente o paroxismo. Os signos do gozo remetem apenas a si
mesmos ou, melhor, usurpam o suposto valor de seus sentidos. São signos de que a
mulher goza, mas o que é o gozo a não ser esses mesmos signos clamor, confusão,
convulsão, que remetem a sua própria manifestação? Signos disseminados em múltiplos
estados desequilibrados sempre aquém ou além do sentido: ou são excessivos,
demasiado barulhentos, tagarelas ao extremo, ou então são parcimoniosos,
acolchoados, discretos até o mutismo nunca palpáveis, definitivos. Signos sempre
difusos, opacos, porque a mulher faz amor para despertar seu desejo e não para acabar
com ele para escorraçá-lo de seu corpo, como faz o homem. O que procura a mulher na
conjunção amorosa? O feliz Hermafrodita (Denis de Rougemont, René Nelli), o Falo
(mesmo que seja o falo bossa nova estilo Lacan, Leclaire, Safouan), uma carência a ser
satisfeita (os mesmos que antes), um papai (Sigmund), o continente negro (Freud), a
linha certa (Lenin), a energia orgonótica (W. Reich), a humildade (Jesus), a morte na vida
(Bataille) ou a vida na morte (Santa Teresa de Ávila), Deus (Bataille, Santa Teresa), sua
dignidade (Françoise Giroud), O Absoluto (um filósofo), o pecado mortal (Paulo VI),
indícios (Sherlock Holmes), seus óculos (um míope)? E se esse gozo fosse, ele próprio,
uma finalidade que justifica amplamente a procura mais desvairada? O modelo de toda
intensidade pela fato de que ele exatamente se modela a partir de tudo e não tem,
portanto, nenhum conteúdo predeterminado?
O gozo da mulher arrasta consigo fragmentos que não mais podem ser colados
novamente, prazeres que não fazem parte do mesmo quebra- cabeça, que não
pertencem a uma totalidade preliminar, que não emanam de uma unidade ainda que
perdida, mas que, pelo contrário, vão soltar aos quatro ventos o organismo que os
alimenta e os abriga, fazê-lo explodir numa pulverização sem fim de volúpias autônomas.
Orgasmos não compreendidos num orgasmo universal, único, orgasmos que implicam,
cada um, a geração de sua própria geometria, na distribuição de seus materiais e na
medição de seu próprio tempo, geocronometrias coexistentes num espaço rebelde a
qualquer tentativa de homogeneidade. Nada existe de preliminar (ou não apenas) nesse
gozo, não há um corpo no qual se enxertariam prazeres, volúpias, impressões,
estremecimentos, mas intensidades que, repentina e brutalmente emitidas, modelam
por sua vez um novo corpo, determinam uma organicidade, uma nova anatomia, espécie
de laboratório atravessado por relâmpagos, totalmente heterogêneo, corpo atravessado
por zonas, balizado por gradientes, percorrido por potenciais era que os prazeres sobem
e descem através do tempo numa incessante migração de influxos. Matéria viva que se
nega, se transforma, se destrói sempre e em toda parte sem um lugar prefixado ou sem
um quantum único, superfície de múltiplas escansões, verdadeira encenação em
miniatura da criação do universo. Corpo copresente em relação a si mesmo, à sua
multiplicidade, irradiando na direção de cada um de seus estados, de suas etapas,
abolindo o estéril conflito entre a cabeça e o sexo porque se serve de todos os seus
desvios, de todas as suas dimensões, com o cérebro se inflamando ao mesmo tempo que
o ventre ou os seios (não havendo acefalia no gozo. nem destituições, ainda que
provisórias, do rosto em proveito do cu, piedosa visão do erotismo, pornografia de
abades, de permissivos de pilequinho, de velhos rapazes endurecidos). Prazeres desde
logo parciais, seccionados, aos quais nada falta, propulsionando-se em órbitas e curvas
elípticas, desenhando sinusóides, conhecendo brutais acelerações e diferentes
velocidades de desenvolvimento; graças a isso, tudo começa a existir de modo diverso,
segundo uma relação que não é mais de utilidade ou de captação mas de sensação, de
estar ligado em algo, de receptividade absoluta diante da infinidade dos cosmos que
rodam e gravitam nesse corpo da abundância. Através dessa lenta imersão em si mesmo,
que também é um dilaceramento do ser descontínuo e superficial, o espírito se agita por
sua vez, sabe que o corpo está tomado pela volúpia, mas esse conhecimento não lhe
confere nenhuma superioridade, não é nada mais que o gozo consciente de si mesmo,
gozo de saber-se gozar, consciente de sua força, de sua impetuosidade, de suas
repetições milagrosas. Nesse caso, o Eu não é mais a instância que convoca
singularidade, ele se torna incandescente, torna-se a vida observando o estado extremo
da vida e duplicando, nesse olhar, a exasperação dessa vida até seus limites, violência
lúcida de uma vida que nenhum princípio de ruína pode ameaçar, de uma vida que não
imita a morte, nem a morte de não morrer, porque é uma efusão de energias ardorosas,
uma existência palpitante, de mãos estendidas, explodida como se fosse mercúrio,
soçobrando por sentir-se deliciosamente soçobrar.
No amor há um tempo de declinação dos verbos que a mulher não encontra: o
passado composto. Ela nunca goza no sentido de ter acabado com sua excitação, ela
goza, ela sempre circula sem chegar ao fim. Nada a satisfaz: sua economia pulsional
encaixa-se mal nessa condição ambígua que o masculino chama de satisfação,
preenchimento, distensão. Não que esse gozo seja uma questão de quantidade; não se
trata de ver nela uma espécie de produção perpétua de uma mais-valia voluptuosa, uma
acumulação estratificada de valores hedonistas, não se trata em suma de submetê-la ao
desempenho, transformando a mulher em sujeito “insaciável” (com a concomitante
imagem de “ninfômana”, de “sacana”, divulgadas por esses romances de sex-shop) Nem
quantitativa (o que pressuporia o acréscimo de objetos idênticos), nem qualitativa (o que
teria por subentendido uma condição única, fortemente diferenciada): é para além disso.
Gozo "ineficaz" que se aproveita de tudo, para o qual tudo serve porque não espera por
nenhum proveito em particular. O corpo feminino não bate recordes (tantos orgasmos
por hora, por minuto, por segundo, passatempo favorito dos sexólogos): ele os pulveriza
de saída. O infinito do prazer feminino não se constitui no crescimento constante de um
mesmo estado (“cada vez mais forte, cada vez mais rápido”), mas numa alteração
7
constante, no encadeamento de imprevisíveis metamorfoses. Sua única exigência é:
honre todas as partes, a boca tanto quanto o sexo, o útero tanto quanto a vulva, a orelha
tanto quanto o ânus, tanto o joelho quanto a pele fina das pálpebras, entoe os cânticos
mais variados, procure as modificações mais tênues da pele. Esteja em toda parte a fim
de que esse gozo, que dizem Ser prisioneiro das masmorras do baixo ventre, não se situe
mais em lugar algum.
Sem dúvida, a volúpia feminina é, em seu gênero, um pequeno milagre
econômico, mas que, no entanto, nada tem a ver com uma economia de troca, nem com
uma economia da dação, pelo fato de não ser nem consumo de uma força, nem oferta
de um bem valorizado, mas sim viagens de intensidades, nomadismos sensoriais, uma
sequencia de coisas sem preço que escapam de todo sistema de avaliação. Uma vontade
que passa: assim é o homem, que logo se cansa e corre na direção de bens mais
tangíveis, mais honrosos. Paixões que advêm se justapõem às antigas sem escorraçá-las:
talvez seja assim o funcionamento do feminino. Em si, o gozo é um excesso, é a
prodigalidade do prazer. Sem limites, ele renova sua força e seus recursos, aniquila-se e
não para de engendrar aquilo que ele gastou. Nela não há nada que se “descarregue” e
que não se possa ser reconstituído ou recuperado, emoção absolutamente intransitiva,
exterior a toda finalidade medicinal, higiênica, humoral, amorosa. A maioria das
mulheres, por certo — por razões históricas de sujeição, de colonização de seus corpos
— não conhecem bem esses movimentos. No entanto, apenas a mulher pode proceder a
essa renovação contínua do gozo. A perda — fenômeno inevitável do dispêndio de que
uma certa modernidade fez a apologia como se a alternativa fosse apenas entre reter ou
gastar — a perda é sempre masculina. Nela, o homem experimenta antecipadamente a
morte: a vida o abandonará um dia como o faz agora esse líquido precioso demais que o
pique solitário do orgasmo expulsa. E é por isso que o prazer masculino é sempre uma
degradação de energia, por ser informativo e porque, uma vez dado o conteúdo dessa
informação, ele morre. Mas a alquimia sutil das forças que se retêm, se juntam, se
dissociam, que derivam para longe de um centro de que não dependem, não é por ele
conhecida de modo espontâneo; o homem só a descobre através de sua própria
feminilidade latente. A mulher goza sem deixar vestígios (a não ser por um ligeiro rubor
em suas carnes delicadas). Ela produziu esses vestígios e os eliminou, portanto nada quis
dizer, nem fazer, e no entanto alguma coisa nela perturbou a ordem de modo
irreparável.
O gozo feminino, na medida em que não diz nada, não é passível de uso fálico, é
necessariamente anorgástico. O orgasmo é ainda um meio de enquadrar esse gozo, de
fixá-lo num estado de culminação, de localizá-lo, de estabelecer fronteiras com aquilo
que, aquém dele, existe de crescendo e, além, de diminuendo, meio de conjurar uma
força indizível escavando uni ou vários leitos artificiais, encerrando-o num conjunto de

7
A partir daí, pouco importa que haja ou não um orgasmo vaginal, ou que se dê esse nome a um movimento que
interessa também o clitóris, pouco importa a denominação ou localização exata do gozo, o essencial é perceber
que no corpo feminino tudo serve para gozar e que é essa oportunidade hedonista, essa faculdade de conversão
voluptuosa que é deslumbrante.
fenômenos demonstráveis e desmembráveis. Despotismo do orgasmo que tudo significa,
prepara, anuncia e que uma vez explodido anula todos os sentidos. Contrariamente,
poder de fluidez do êxtase feminino, onde o genital representa o papel de um quase-
ponto a partir da onde se pode ir de um lugar qualquer para outro sem nunca mais voltar
a encontrar algum desses lugares anteriores, onde o prazer não pára de enveredar por
caminhos inéditos, onde, no sexo, tudo conflui sem confundir-se. Se essa volúpia produz
o orgasmo, só o faz enquanto uma de suas formações estatísticas secundárias derivadas
de uma história em que o masculino impôs sua lei e convoca o outro a imitá-lo. Em uma
palavra: se o gozo feminino é o limite exterior de toda volúpia, é porque ele não tem, por
si mesmo, um limite externo (coação de lugar, tempo, conteúdo), mas apenas um limite
interior que ele nunca encontra porque sempre o está deslocando. E com isso provoca o
aparecimento da noção complexa de uma continuidade na interrupção: ele não corre
para um fim, não para de romper-se e de romper esse rompimento, de colocar-se limites
e ultrapassá-los; em suma, de reconstituir em seu deslocamento aquilo que ele tendia a
8
anular em sua localização inicial, evitando assim a saciedade (e a insatisfação) . Da
grande vontade unificadora dos grandes hinos do orgasmo (“gozar uma vez como nunca
ninguém gozou e depois morrer”), o gozo feminino só pode estar ausente. Essa é a
beleza dessa decepção, dessa euforia carnal que não se deixa totalizar.
O gozo da mulher extingue o binarismo excitação-descarga porque torna a
confusão entre eles sempre possível, torna insolúvel a questão de saber se um tal grito é
um efeito de alívio ou de recarga, se tal inundação pulsional anuncia a morte de um
prazer ou seu início, se é final ou inaugural, se tal stase, tal parada da respiração deriva
de um desnivelamento brutal do bem-estar ou de sua exacerbação paroxística. Em
resumo: esse deleite voluptuoso corre continuamente na direção de seu crepúsculo
tanto quanto vai na direção de seu renascimento, resvala para todas as direções
simultaneamente, instaurando um espaço sem limites que os clássicos geográficos do
erotismo se esfalfam na tentativa de delimitar. Como imaginar essa delícia, a invasão do
corpo por fluxos de gozo que por vezes deslizam como se fossem rios de lava? A
revolução no poço do amor explode o genital em todos os hemisférios, abrindo as
brechas iniciais de um desmembramento ilimitado? Aqui, a tensão resulta, de algum
modo, do próprio prazer, seu uso se confunde com seu consumo. Sendo o orgasmo, os
orgasmos, apenas um meio de excitação entre outros, toda excitação traz consigo uma
multiplicidade de contentamentos paralelos. Em outras palavras, o corpo feminino não é
um sistema fechado de forças que não poderiam aumentar exatamente porque ele
ignora a poupança (não precisa conter-se) e aumenta apenas em virtude dos mais loucos
dispêndios. Para ele não existe uma quantidade inicial de febre a ser repartida com uma
habilidade maior ou menor (como ocorre com o homem). Tudo o que estava adormecido
no homem, todas as fontes possíveis são ligadas umas às outras, a sensualidade é ao
mesmo tempo conquista e agitação, iluminação de todo o ser, potência expansiva que
inventa seus próprios caminhos e os lugares por ela submetidos à embriaguez. E o prazer

8
“Quanto mais orgasmos uma mulher experimenta, m ais fortes eles se tornam; quanto mais orgasmos ela tem,
mais quer ter.” Mary Jan e Sherffey, op cit., p. 129.
se torna gozo temperado por um fogo que se auto-alimenta e se autoconsome
permanentemente, devora e reengendra enormes energias. Cada ardor,
estremecimento, emoção, inflamação, é apenas um pequeno elemento na grande
dispersão orgíaca desse êxtase. Enquanto elementos de ordem (da ordem do desejo),
são minoritários, colaterais, simples arquipélagos no oceano da desordem pulsional. No
entanto, é organizando-se de uma certa maneira que essa carne conseguiu modelar sua
própria desintegração, é a ordenação relativamente estrita da cobiça sexual que aos
poucos engendrou esse além do corpo profano e do corpo erótico que é o corpo
desregrado, anorgástico, incandescente. De tal modo que a seu (sua) amante a mulher
pode anunciar amorosamente algo que não é uma metáfora: Você me atravessa toda.
A mulher que goza escreve uma ficção: aquilo que submerge, aquilo que
ultrapassa seu ser, apesar dela mesma, não volta uma segunda vez do mesmo modo, não
existe um eterno retorno de um presente eterno, trata-se de uma história que uma
cabala de nervos e mucosas conta variando sempre os subterfúgios, o desenlace, os
episódios: ficção libidinal, lenda cósmica que abarca massas de movimentos e de
energia, fluxos e linhas que impulsionam sua investigação sempre para diante, sempre
além da última superfície percorrida.
Como foi possível a ousadia que consistiu em qualificar esse delírio soberano de
passivo, de indolente? (Na verdade, o que há de mais inerte que a efusão seminal, que o
deleite experimentado pelo tubo de fazer xixi?) Nenhum outro gozo requer uma tal
mobilização do corpo, uma maior atenção para com tudo aquilo que está acontecendo,
tudo o que se afasta, que surge, que resvala; todas as distâncias, todas as relações
assumem uma acuidade que nunca tiveram, as proximidades mais inocentes revelam-se
travessias vertiginosas, novas dimensões nascem a todo instante, despertando por sua
vez inéditos meios de apreensão, cada vez mais complexos, mais apurados; nesta parte
da epiderme. naquele acúmulo de carnes, vários ângulos de abordagem são possíveis,
confundindo em sua geometria a parte de cima e a de baixo, o horizontal e o vertical, o
liso e o volumoso, a curva e a reta. A mulher não é mais o sujeito de sua volúpia (no
sentido em que ela controlaria seu andamento), ela se torna sujeita aos êxtases, agora
um nada já basta para afetá-la, esses arrebatamentos a surpreendem, ela se perde numa
soma incoerente de presenças e despresenças, nem contemporânea, nem atrasada em
relação àquilo que a dilacera, não vivendo mais o tempo monomorfo do cotidiano mas
uma sobredeterminação de durações que não se apressam em reunir-se num todo
tranquilizador. O corpo perde seu caráter natural, a própria evidência da sexuação é
posta de lado, cada nova sensação põe em cheque o papel genital de Eros, o organismo
incendiado torna-se uma monstruosidade deleitável diante da anatomia, uma
inqualificável fonte de despudor, um não-senso libidinal que leva o fogo, o sangue, o
motim, a todos os horizontes da carne. A mulher se vê absorvida numa somatória de
instantes que se eternizam: aparentemente e de modo reiterado, abolida toda
preocupação com o passado e o futuro, ela se abre para a multiplicidade
incompreensível dos instantes, e esses instantes são, eles mesmos, outras eternidades. É
fácil compreender agora o que há de inexato na grande metáfora noturna da morte
acoplada ao gozo: prazer algum invade passivamente esse corpo como o faz um dia a
morte, a mulher convoca violentamente as forças que irão arrebatá-la, nada pode conter
a impaciência de seus limites que querem ser superados (e se às vezes ela hesita ou se
recusa diante da selvageria daquilo que vai submergi-la, não é da morte — potencial —
que ela foge, mas da vida em alta tensão, da renúncia à vida similar, uniforme, da
necessidade de “gastar” forças novas para manter-se em pé de igualdade com esse
desencadeamento que a atravessa); o gozo nunca anula aquilo que vive, ele o dilata,
pelo contrário, como nada mais pode fazê-lo, e é apenas por falta de imaginação que se
pode compará-lo com a experiência agônica.
A mulher, assim, se diz preenchida, não por sentir-se satisfeita mas porque seu
frenesi voluptuoso ultrapassa, e de longe, as possibilidades entrevistas por seu desejo;
preenchida como se estivesse sufocada, abafada, a garganta apertada. Inúmeros
paraísos disputam entre si o espaço finito de sua carne, cada poro, cada orifício de sua
epiderme é como uma boca que capta sinais vindos do universo e que envia de volta
outros sinais, sua pele se eriça de tentáculos, torna-se ponto de passagem entre o
interior e o exterior, respiração sensorial do mundo, enquanto o mundo, por sua vez, se
transforma em fragmento de seu corpo. A mulher, ser pletórico, consegue, no enlace
amoroso, a pletora impessoal da vida; nesse momento, ela nada mais é que a faculdade
de aceitar, aquiescer, esse assentimento diante de todos os excessos, de todos os jogos
cegos da raiva que a dilaceram; afirmativa até perder a cabeça, se ilimitando para longe
de toda morada, esplendidamente solitária em sua insurreição estática, a única coisa que
pode dizer e querer é sim, sim, sim, sim, mais, en-corpo... “Onde isso se enuncia como
perturbação, maravilha de ser várias, ela não se defende contra seus desconhecidos que
9
ela se surpreende ser, gozando de sua capacidade de alterabilidade.”
Por conseguinte, inútil justificar o paradoxo de escrever a respeito de um gozo
que não é o nosso. Evidentemente, não temos pretensão alguma de “bancar a mulher”,
coisa tão desprezível quanto bancar o louco, o operário, o negro, os danados da terra ou
o marginal, modernos ouropéis da consciência tranquila. Nem mesmo espreitamos o
feminino como algo que seria nosso bem (ou que o será), de que estaríamos despojados
e cuja busca teria de ser feita com muita paciência, através de um processo de ascese.
Sobre a própria feminilidade, nada sabemos; e desconfiamos das ideologias do
“eterno feminino” ou do “eterno masculino”. Queremos apenas destacar o seguinte: que
hoje, em nossa história pessoal, em contato com as mulheres, descobrimos que somos
maus epicuristas, puritanos da pior espécie. Que nossa primeira tarefa consiste talvez em
reconstruir nossos próprios costumes (particularmente os mais “liberados” entre nós).
Porque nós, heterossexuais masculinos, temos mas é corpos de capuchinhos, lotados de
proibições, mais forrados de valores religiosos do que um manual de catecismo, corpos
de múmias, verdadeiros santuários de frigidez e frustração. Modelar esse arsenal
aprisionado a partir da feminitude é antes de mais nada aceitar que nos esfolem vivos e
que nos vistam outras roupas. Das mulheres esperamos nada menos que uma
regeneração desejante: que essa metamorfose passe, para uns, por períodos de

9
Hélène Cixous, op. cit.
desespero, para outros por um sentimento de anulação total, é assunto pessoal; uma tal
aflição talvez seja inevitável (e porque a sexualidade não poderia ser angustiante?). Seja
como for, estamos cansados do universo fechado da similitude, dos velhos fantasmas
esvaziados, da irrisória supremacia machista. É por isso que o reaparecimento do
feminino é para nós uma desoxidação agradável de nossos fantasmas, de nossos
fascínios, de nossas máquinas do prazer. Não queremos reagir diante dessa lenta erosão
de nosso erotismo como se se tratasse de uma frustração; pelo contrário, vemos nisso
uma possibilidade de libertação de um gozo mais acentuado. Temos tudo a ganhar com a
derrota de nossa sensualidade, porque mesmo essa privança não desaparecerá de
imediato. Amamos as mulheres como se fossem novos invasores que não legislam sobre
nosso desejo mais o libertam. Pedimo-lhes apenas que saqueiem nossas fortalezas,
nossas depravações de conscritos, e sabemos que sozinhos nunca conseguiremos isso.
Não temos a pretensão de imitar, mas apenas de acolher em nós essa turbulência do
feminino, por mais inquietante que possa ser. Não pretendemos nos manter como tais;
sem isso, continuaríamos a ser para sempre tristes máquinas de penetrar, velhas glandes
mercantis que efetuam seus sinistros cálculos à sombra de um inquisidor e um
psiquiatra; em suma, seres sem sexo, sem boca e sem olhos, desprovidos de ânus e
nádegas. A história da efeminação, da alteração do corpo masculino, talvez esteja
apenas começando.
REFLEXÕES À BEIRA DO POÇO

Vocês são todos uns homossexuais reprimidos? Como entender isso? Através da banal
repressão da escolha do objeto (mas nesse caso isso significa uma nova norma) ou como o
efetivo esmagamento de nosso corpo, o recalque sodomita? Por que o amor pelo ânus seria
automaticamente homossexual e o amor pela vagina imediatamente infantil? E se fosse o
contrário, se eu tivesse nascido pelo cu? A penetração anal é, para o homem, uma alternativa
diante do prazer fálico: ela o prolonga e evita sua linear temporalidade. Rompendo com a
coesão do corpo masculino, ela rompe também com todos os avatares da volúpia genital. O cu,
como lugar de intromissão, é aquilo que existe de comum aos dois sexos: mas longe de
demonstrar a similitude erótica entre eles, ele indica apenas a intercambialidade possível dos
papéis sexuais. A sodomia é de fato essa prática em que o masculino se encontra com o
feminino na postura mas não na intensidade. É que, para a mulher, a sodomia é o luxo
suplementar de uma sensualidade já profusa, mas para o homem é a única solução de
substituição para o pênis. No erotismo ortodoxo, o homem é esse horror anatômico: um corpo
sem traseiro, um conjunto de ossos do qual foram serradas as nádegas. No fundo, a sodomia
reconstrói esse corpo (mas apenas para melhor poder desintegrá-lo).
Estou com comichão no buraco, frase que todos os sexos podem pronunciar. Mas ela não
deve ser compreendida como um apelo vago no sentido de não ter cavidades, de constituir um
ser liso, fechado, denso à maneira de um ovo: o buraco não espera nem aspira a ser tapado,
pelo contrário: eu queria um corpo cheio de buracos pelo simples prazer de ser assaltado,
atravessado, penetrado por todos eles. Minha própria pele, quando o sol a esquenta, se abre,
torna-se porosa. Quero deixar-me esvaziar suavemente, me deixar transpassar, tornar-me uma
caixa de ressonância, um fora-dentro onde o mundo e fragmentos do universo se coagulam,
explodem, se congratulam, se misturam, se ombreiam, se roçam sem se ver, constelação de
passagens heteróclitas. mosaicos de objetos duros ou tenros dos quais alguns, como se fossem
intrusos, se convidam para uma festa para a qual não haviam sido convidados, e onde não
parecerão combinar com coisa alguma. O homem só pode ser esburacado através do cu. mas a
sodomia, por sua vez, talvez não seja mais que um treinamento para a disponibilidade geral do
corpo, para a invaginação total da pele, das linfas e dos músculos. Que se multiplique em mim
a fraqueza de mil pequenas cavidades, mil pequenas cabeças de alfinete e que, desse modo
mais vulnerável aos outros, eu também seja suscetível de mais explosões, de mais infiltrações.
IV - AS EQUIVALÊNCIAS NEUTRALIZADAS

Prostituição II: A revolta ou o fim das religiões genitais


Mil e três razões, hoje, para ser um cliente

Pagar em dinheiro vivo para não pagar com a própria pessoa.


Mercadejar mas não ser mercadoria; ter certeza de que lhe dirão sim sem ter de,
por isso, entrar em cena.
Não ficar mais se espreitando a si mesmo, com o canto do olho, até mesmo nos
momentos de abandonos: “Foi bom? Estive à altura? Quanto tirei no exame do orgasmo:
uma nota média? menção honrosa? fui reprovado? Minha cueca não é muito ridícula?
Contanto que ela não veja meus enchimentos... Não se sentir nem bem, nem mal dentro da
própria pele: esquecer-se. Esquecer sua imagem, sua obesidade, sua calvície incipiente,
seu rosto torto, suas mãos úmidas; ao invés de ficar obcecado com esses vícios de forma,
pensar apenas em dar forma a seus vícios. Não mais acusar seu próprio corpo de ser a
causa de tantas recusas que, apesar das precauções tomadas, desabam sobre ele.
Comprar o direito de pôr de lado a personagem junto com as roupas que você despe.
Édipo de reação retardada, punir agora Mamãe por ter dormido com Papai,
rebaixando-a ao nível de Puta.
Entre dois prazeres solitários, escolher ainda o menor.
Odiar a tal ponto seu próprio desejo, que as únicas mulheres dignas de serem
objeto dele sejam mulheres desprezíveis e decaídas.
“Nenhuma delas presta”: deduzir a profissão do vício e a competência da
profissão. Esperar pelo acontecimento de coisas inéditas: especular sobre a perfeição
sexual da prostituta: ela será o receptáculo da necessidade, a boneca do fantasma, a
professora de sacanagem.
Sem pensar em bons modos, exigir posições que seriam insultantes se pedidas à
própria esposa, ainda que o pedido viesse com luvas de pelica.Só comprar o poder de
gozar porque ele dá, além disso, o gozo do poder: "Levante a perna, abra as nádegas, me
chupe, fique de quatro, me enfie o dedo no rabo..." excitar-se menos com as posturas
pedidas do que com o prazer de dar ordens.
A fim de passar do desejo à ação, não ser preciso mais que pegar o metrô,
atravessar uma praça, chegar a uma certa rua.
Através do milagre monetário, atingir desde logo o inacessível: o sexo da mulher.
Detestar falar de outra coisa quando a única coisa em que se está pensando é
naquilo. Não mais querer ficar virando os olhos para o céu enquanto se está
manipulando aquele segredozinho sacana.
Ser velho demais para agradar mas não para cobiçar.
Ter, do estrangeiro,* não apenas a cara, hoje já com uma cotação própria no
mercado da sedução, ma? também a roupa gasta e fora de moda, a calça poída, o paletó
curto demais nas mangas, o aspecto tímido, hostil ou divagador, e um sotaque impossível.
Na encruzilhada de todas as segregações (imigrante, excluído dos grupos, da língua),
excluído da moda, pelo racismo e pelas palavras, encontrar-se na rua indesejável mas
desejante.
A título de recreação, mudar de pele e de discurso: responder ao invés de estar
sempre tendo de pedir.
“Vem comigo, meu bem...”: linguagem convencional que expressa o aliciamento
sem sequer dissimulá-lo. Comédia maquinal que não procura fazer-se crer. Palavras de
amor estranhamente livres de todo pathos amoroso. Fala macia, carícia verbal sem
ninguém que a pronuncie. Vibrar, com ardor, diante desse efeito de estranhamento. Subir
com a mulher para contemplar e depois investir um corpo desertado. Procurar a
prostituta não apesar de, mas em virtude de sua indiferença, pois é essa frieza que dá ao
michê seu cheiro de religiosidade. Como na igreja, embriagar-se com a emoção
provocada por uma ausência. Ninguém está ali, portanto quem está ali é Deus.
Don Juan às avessas, ávido por recordes e grandes premières, obstinar-se em
querer fazer gozar um corpo profissional a fim de reintroduzir a depravação na relação
venal, para submeter a si próprio aquela que, vendida para todos, não se oferece a
ninguém.
Viver, tão logo penetre na rua das putas, a metamorfose do solitário que passe a
sultão: gostar mais da embriaguez da seleção preliminar do que da emoção afinal
bastante limitada do michê: passar em revista as candidatas, sem qualquer indulgência:
diante da menor deficiência, excluir aquelas que, se tivéssemos apenas nosso encanto
para oferecer-lhes, nos receberiam com um dar de ombros.
“Quer uma mulher dominadora?” Proporcionar a si mesmo, através do comércio,
todas as especialidades eróticas inexistentes no mercado dos amores gratuitos.
A fim de conseguir um corpo que uma vez por semana defeque em seu rosto, ter
apenas de entrar em acordo quanto a um preço e não esquecer de um pequeno detalhe:
fazer com que ela tome de manhã um laxativo suave que funcione em oito horas.
De modo higiênico e funcional, não querer gastar com o amor um tempo maior
que o necessário para realizá-lo: curvar-se diante do instinto porque ele é tirânico,
porém o mais rapidamente possível para togo poder voltar a si. Purgar-se de suas
paixões para poder ficar com a cabeça livre.
Ter ambições eróticas acima de seus recursos e realizá-las: assumir a
inconstância, mudar de parceira a cada solicitação do desejo.

*
Lembrar que ainda é forte hoje, na França, o sentimento negativo (para não dizer “o racismo”) contra o
estrangeiro, particularmente se for de baixa extração social — muito particularmente se for árabe, argelino de
modo especial, (N. do Trad.)
Combinar as fugidinhas com a fidelidade: salvar o casal ao mesmo tempo em que
se escapa, em doses furtivas, à sua monotonia.
Realizar a fusão mas evitar a ligação: fazer amor sem travar conhecimento.
Massagens tailandesas ou trepadinhas rápidas, deslizar para a inércia, deixar-se
manipular, deixar que embalem, a portas fechadas, o órgão que ciumentamente você não
cede ao embalo de suas companhias regalares, pois para você é uma questão de honra
penetrá-las. Ter direito à beatitude passiva do bebê, não após o amor mas durante a
cópula; conhecer o repouso do guerreiro até no próprio momento da deflagração.
Não perder coisa alguma, jogar simultaneamente com a segurança e a surpresa, o
acaso e o contrato, a certeza da satisfação e a novidade do corpo, a ignorância da oferta
e a satisfação da demanda.
Pagar a primeira que aparecer para não ser cobrado por ela; colocar-se no papel
de cliente, diante da impossibilidade de você mesmo ser um puto.
Comprar o direito de dedicar-se exclusivamente aos mecanismos de seu próprio
gozo. Emancipar-se do dever da reciprocidade.
Sentir apenas um medo: do acaso. Não poder gozar fora do dinheiro, pois a
relação venal substitui o ocasional pelo rito. Exigir que tudo seja fixado
antecipadamente. Tranquilizar-se, com a certeza de que o michê é um protocolo. Somente
chegar ao fim do desejo se a cena da cópula estiver conforme o previsto. Conjurar o
imprevisto a fim de evitar a debandada.
Escapar da angústia paralisante derivada da necessidade de puxar conversa.
“Que vou lhe dizer? Por onde começar?” Em lembrança de todas as aventuras que não
vivemos, dos momentos em que renunciamos ao desejo por falta de iniciativa, em que o
medo do repúdio nos mergulhou um pouco mais em nossa solidão, dar graças ao dinheiro
por permitir apenas que se faça uma única pergunta: “Quanto é?”

Poderíamos, sem dúvida, continuar esta lista até o infinito, colocando no mesmo
plano anedotas e análises, eventos minúsculos e grandes arquétipos, esboços
romanescos e esboços de classificação. Seria também possível, em sentido contrário,
fazer desse repertório a preliminar de uma tentativa de explicação : donde provém a
demanda? Por que existem clientes? Ao desenvolvimento de um catálogo sucederia
assim o trabalho de interpretação: a ordem interviria na anarquia enumerativa, os mil e
três desejos suscitados pela prostituição seriam colocados sob rótulos: desejo de
presença naqueles que querem fugir à solidão sem serem suficientemente dotados para
participar da sedução; desejo de alternância para os que querem escapar ao casal sem
pô-lo em perigo; desejo de instituição naqueles que querem escapar ao ocasional e ao
código dissimulado mas despótico do ritual sedutivo. Modo de dizer que a multiplicidade
é uma ilusão, um efeito de encenação ou de simplificação e que, sob a loucura desse
conjunto disparatado, oculta-se, prudentemente, uma austera taxinomia. Modo também
de trocar a escritura estética do inventário pela seriedade militante que está sempre
procurando levantar as causas: ser revolucionário é, antes de tudo, denunciar a ilusão
segundo a qual seria possível eliminar as consequências da miséria sem atacar suas
causas, isto é, suprimir a opressão das prostitutas sem lutar contra a prostituição, e lutar
contra a prostituição sem combater o sistema que a alimenta. O que provoca a
prostituição é a monogamia patriarcal, a miséria sexual, a dominação do macho, o
racismo da sedução: são essas as causas, esse é o inimigo.

As mulheres de vida alegre, câncer da revolução

Mas foram exatamente as prostitutas que desmontaram essa lógica impecável. O


*
que fez de sua revolta um acontecimento é, antes de mais nada, sua desobediência aos
esquemas subversivos oficiais, sua obstinação em ser uma insurreição sem modelo. Os
ministradores de lições tiveram, nesse movimento, cada um seu prato cheio: as putas
revelaram ser o câncer da revolução, do feminismo, da democracia avançada, da
libertação sexual, da utopia das comunidades. Passado o primeiro momento de
entusiasmo por ver que as prostitutas levantaram o punho cerrado ao invés de estender
a mão, o mal-estar tomou conta da maioria dos militantes: aquelas mulheres estavam
lutando, sim, mas, incorrigíveis que são, estavam prostituindo a própria luta ao invés de
lutar contra a prostituição. Não estavam combatendo as causas de sua alienação,
queriam torná-la suportável. O “basta” que deram, em relação ao qual o pessoal queria
que visasse a grande miséria prostitutiva, na verdade denunciava todas as pequenas,
misérias que, fora do michê, as esmagam. Elas não punham em questão o sistema por
obrigá-las a vender seus corpos, mas pelas dificuldades e punições que ele faz desabar
sobre elas por terem escolhido essa profissão. Pensava-se que, do fundo de sua
desgraça, estavam animadas por um desejo de inverter a situação; no entanto,
demonstraram-se ansiosas por serem reconhecidas, por serem aceitas como
respeitáveis. O sonho delas? Que a carreira que escolheram perca sua auréola maléfica.
Profissão: puta, nada mais — uma marca mas não uma nódoa, um meio como outro
qualquer de ganhar dinheiro. Não existem profissões belas e outras menos belas, há
apenas salários mais ou menos decentes.
Combatendo não o que provoca a prostituição, mas o que se apresenta como
obstáculo a ela, não defendendo o desaparecimento de sua própria atividade, as putas
fizeram às almas caridosas esta inadmissível revelação: a demanda não é suficiente para
explicar o fenômeno da prostituição; há também uma oferta a considerar. "Não fomos
obrigadas a isso, foi o que disseram em substância, fomos nós que escolhemos a
prostituição. Talvez tenhamos o direito de sonhar que um dia os homens não terão mais
razões para apresentarem-se como clientes, do mesmo modo como as mulheres terão
perdido a razão para serem putas, mas quando se está com os pés enfiados neste
sistema, de que serve ficar com os olhos presos no ideal da abolição dessa atividade?

*
Há alguns anos. as prostitutas francesas (primeiro em Paris, depois no interior) promoveram grandes
demonstrações públicas para chamar a atenção sobre sua situação. Esses eventos foram marcados por passeatas e
ocupação de igrejas (às vezes com o consentimento da autoridade religiosa responsável); as líderes participaram
de debates na televisão e chegaram a escrever livros de sucesso. (N. do Trad.)
Enquanto esperamos o Grande Dia, temos o problema das noites a enfrentar, noites em
que desfilam diante de nós todo o desespero dos solitários, o desejo furtivo de maridos,
a parada-trepada dos motoristas de caminhão, os roteiros pornográficos que os homens
só ousam implorar a nós, e temos de assumir tudo isso: somos assistentes sociais da
libido. Neste caso, que a sociedade deixe de nos marginalizar por estarmos dando uma
assistência à sexualidade em perigo, que ela abandone essa posição de desprezo que não
se pode permitir."
A puta escandalosa: a abjeção, diz ela, não consiste em fazer o trottoir; a abjeção
está no desprezo, na violência, na exploração que têm de suportar. O que existe de
ignóbil não é o périplo do aliciamento, é a polícia que vem tomar seu depoimento, os
moralistas que a condenam e o Estado, que acumula as duas coisas.
Ela se diz uma vítima, sem dúvida, mas da penalidade e não da venalidade, como
seria de se esperar; ela não tem raiva do dinheiro uma vez que ganha dinheiro; tem raiva
do poder que lhe rouba esse dinheiro. E, para coroar tudo isso, ela reavalia sua profissão
em termos de utilidade social, justifica os ganhos que embolsa pelo serviço que se
espera que ela presta, a puta!
E assim, como seria de esperar, as sentenças acusatórias começaram a cair sobre
ela: por ter sido tão maltratada por ela, a subversão oficial vingou-se sem comiseração:
não podemos defender uma revolta que quer dar um jeito na opressão das mulheres ao
invés de acabar com ela, disseram os Incendiários. Em Rouge pôde-se ler: “Para nós,
revolucionários, não pode haver ambiguidade alguma: a prostituição é intolerável. Por
isso não apoiamos a reivindicação das prostitutas, que desejam uma regulamentação.”
Por toda parte, sempre o mesmo princípio, a mesma velha arenga: a subversão é a
alternativa. Você não quer nenhuma ruptura? Não carrega dentro de si um louco desejo
por um outro mundo? É que bem lá em seu interior, pobre alienado, persiste a impureza
de seu amor por este mundo. Em suma, querendo melhorar a própria condição ao invés
de querer sair dela significa rebaixar a recusa revolucionária para o grau de simples
corporativismo: luta ínfima, egoísta, baseada no consentimento em relação ao conjunto
existente; por mais violenta que seja, é uma revolta que joga o jogo dado ao invés de
acabar com suas regras.
No entanto, no começo essas recém-nascidas da batalha política foram mimadas:
depois de aplaudir seus primeiros passos, pretendeu-se ajudá-las a passar do balbucio
para a linguagem articulada, de “estamos fartas” a “queremos Marx”, de seus problemas
de mulheres prostituídas para a prostituição geral das mulheres. Mas não adiantou: elas
se mostraram refratárias a todas as pedagogias.
“A partir do momento em que decidi vender ou, melhor, alugar meu corpo, creio
que isso só diz respeito a mim e ninguém mais. Ninguém tem o direito de vir tirar
satisfação. Não aceito recriminações seja de que tipo for, quer quando me vêm dizer que
sou uma vagabunda, como fazem os que me desprezam, quer quando me vêm explicar
que preciso de afeição ou quando me vêm dizer que eu deveria tentar sair desta
situação, ou então, como fazem os tiras, quando querem me impedir de trabalhar de
todo jeito. Com que direito nos reprimem, com que direito querem nos dizer que não
devemos exercer essa profissão? Meu corpo me pertence, faço dele o que bem quiser
(...) Há gente demais querendo nos proteger e bem poucas pessoas decididas a ouvir
1
aquilo que realmente queremos.”
E aquilo que elas realmente querem, esse desejo que os professores da subversão
tanto gostariam de sufocar, é o desejo de um mundo onde seria possível escolher
burguesmente a prostituição, onde esta fosse acessível, livre, fácil de assumir, nem
santa, nem maldita, mas banal e tranquila. Mas esta perspectiva provoca um salve-se-
quem-puder geral: é ela que assusta, seja qual for a cor política das excomunhões
proferidas. Oferecer o próprio genital em locação não deve ser algo de anódino: é isso
que dizem, cada um a seu modo, o Estado que mantém a prostituição na delinquência
para tirar dela um lucrozinho extra, as pessoas de bem que ensinam seus filhos a evitar
essas mulheres, e os liberados que lhes dizem que a culpa é da sociedade se o próprio
amor não está ao abrigo do dinheiro. Delinquentes, viciadas, vítimas: três identidades de
que as prostitutas decidiram se desfazer. E é essa coalizão das reticências, essa união
sagrada, essa unanimidade no ostracismo que mostra que, com sua revolta, hoje, algo de
fundamental foi trazido à tona. Ao invés de apelar para nossa tolerância, o que
significaria reconhecer a especificidade delas, elas protestaram pela normalidade delas,
o que consistia em recusar-se a endossar a moral de nossos comportamentos. Moral, é
verdade, é uma palavra sob cuja autoridade não colocamos de muito bom grado nossa
existência. Não pautamos nossos atos por máximas que os justificam e que nos
tranquilizam; há muito tempo, além do mais, que a ideia de ser virtuoso deixou de
exercer alguma atração; em termos de bom comportamento, agora, a única coisa que
sabemos produzir são perguntas, questões. Em suma, inquietos ou cínicos, saudosistas
ou liberados, perdemos tanto a rigidez quanto a serenidade das pessoas de princípios.
Mas isso não quer dizer, como frequentemente se acredita, que a moral tenha morrido:
sua crise é o novo rosto que ela enverga. Não temos mais valores e, no entanto,
continuamos a obedecer: o desmoronamento das leis, longe de provocar a anarquia,
produziu uma ordem rigorosa; uma moral de segregação substituiu as antigas morais
positivas e os princípios que ela nos impõe são menos princípios de conduta do que
princípios de exclusão. Não dizemos mais: "é proibido...", dizemos: “proibido para...”;
não enunciamos mais proposições, manifestamos repugnância.
Diga-me quem você deixa de lado e lhe direi quem você é: nossos modelos de
vida somente aparecem através de nossos reflexos de discriminação. Assim, quando as
prostitutas denunciam o ostracismo que as atinge, é de nossos princípios subterrâneos e
não de nossa ideologia explícita que elas vêm tomar satisfação. Ao dizerem: “vender o
próprio sexo não é nada, não é uma coisa infamante, não é o máximo da degradação ou
da indignidade”, elas destituem o genital, abalando nosso corpo, que foi iniciado desde
cedo na crença de que seu reinado era algo de evidente.
São nossas recusas que revelam nossas crenças: por que proibimos que as

1
Une Vie de putain, op. cit., p. 105-6.
prostitutas entrem em nosso universo? Porque acreditamos no genital, a ponto de ter-
lhe inconscientemente transferido os poderes outrora atribuídos à alma. A riqueza do
indivíduo, o tesouro inalienável cuja propriedade não é contestada por nenhuma
instituição, a única parte de si mesmo que ele não entrega ao trabalho, sua via de acesso
à felicidade, aquilo que o define como ser privado, é o genital. Pode ser que as
prostitutas tenham dado a impressão de corporativismo, rigidamente acantonadas no
particularismo de seus interesses: mas elas estavam subvertendo o funcionamento social
num outro nível. Elas deixaram de querer pagar com sua própria miséria a religião da
genitalidade.

A respeito da palavra “puta”

Elas começaram por uma questão de vocabulário, pois o racismo está contido
numa palavra: puta. Puta é o que se diz de uma dom-juana quando se quer expressar a
mistura de gulodice e nojo que suscita a liberdade de seu desejo. Puta, porque a mulher
é essa moeda que — se quer fazer circular e, ao mesmo tempo, entesourar. Puta, para
expressar o fantasma do pornógrafo e o ódio do proprietário. Puta, porque, diante da
sexualidade feminina, o homem pensa a si mesmo contraditoriamente como beneficiário
dela e como um terceiro, lesado. Por solidariedade para com seus confrades, o
proprietário que vive nele grita “Vagabunda!”, enquanto o pornógrafo sonha com ser
tomado por um desejo imperioso, sem limites, sem preliminares: ah, se as mulheres
também pudessem nos violar! Marcadas com o rótulo de putas, as prostitutas ficam
encarregadas de representar esta ambivalência: sua natureza indômita as leva a
entregar-se a todos, acredita o cliente, e portanto também a mim — e isso me excita.
Mas elas não pertencem a ninguém, e isso eu não posso tolerar. Antes do michê, na
escada, elas excitam o fantasma; após a ejaculação, quando ele põe as roupas e já está
sóbrio, elas têm de suportar o aporrinhamento, a surda reprovação e até as injúrias do
proprietário.
Uma mesma complacência se revela na repulsa e na avidez: primeiro, a ideia de
que a mulher só conseguirá a liberdade sexual se submeter seu desejo à norma
masculina que prega a rapidez e a genitalidade; e a seguir, a certeza de que a prostituta
“gosta” do michê. Mas há um engano nisso: se as mulheres podem exercer essa
*
profissão, é porque “sexualmente o cliente não é nada” (Ulla ). Essa obsessão genital que
lhes é atribuída por projeção já foi por elas praticada demais para ainda despertar seu
desejo. Elas não participam do gozo do cliente, e é por isso que podem tirar um lucro
disso. A incrível presunção masculina gostaria de transformar esse distanciamento em
alienação, esse comércio em depravação, e os cálculos da mulher em volúpia. Mas elas
são prostitutas na exata medida em que não são putas. “Putas, dizem elas
unanimamente, é uma coisa que só existe na cabeça de vocês, vocês gostam de acreditar
que ali onde aparece o dinheiro aparece também o desejo.”

*
Uma das líderes do movimento das prostitutas. (N. do Trad.)
“Para eles, somos uma espécie de monstro, mulheres completamente estragadas
2
que têm uma mentalidade monstruosa, mas é na cabeça deles que tudo isso acontece.”
“O que é fantástico é ver como o sexo dos homens é tão simples, “bom-dia, até
logo”, e tão complicado. É que eles estão sempre com ideias na cabeça e quase nada no
próprio corpo. De um lado, eles têm vontade de dar sua trepada, por outro ficam
inventando uma cena incrível e acreditam que as duas coisas são uma só. Na verdade,
eles podem comprar a possibilidade de dar uma trepada, mas o cineminha não
3
conseguem nunca. Estão sempre saindo da mesa com fome.”
Receptáculos hospitaleiros, corpos passivos, inertes, duplamente abandonados —
ao comprador e pelo proprietário — as prostitutas cumprem tão explicitamente o
contrato da ejaculação que desapontam, sob todos os aspectos, os fantasmas com os
quais o cliente tenta dissimulá-lo.
Elas pregam no cartaz a cor do desejo ao invés de pintarem-se com ela. Misturam
estranhamente a complacência absoluta, uma vez que não escolhem seus parceiros, com
a intolerância radical, uma vez que no exato momento em que fazem o convite,
permanecem reservadas: não fazem o jogo nem da ternura, nem da volúpia, nem da
admiração, nem da servidão, e aquilo que entregam ao sexo do homem elas recusam
impiedosamente ao narcisismo masculino. Bom-dia, até logo: a alegria perversa das
mulheres alegres não está em ser trepada vinte vezes por dia, mas de levar ao paroxismo
a redução genital que o corpo masculino imprime à vida erótica, é desapontar o homem
através do excesso de conformismo a seus próprios critérios e exigências, é escapar a seu
desejo de apropriação aplicando a tática da dedicação extremada ao invés da tática da
recusa. A indiferença no trabalho é manifestada pela pressa em executá-lo. A greve do
zelo pode ser reconhecida no zelo da prostituta em masculinizar as cadências do michê.
Excitação, ereção, ejaculação: a sessão consiste na aplicação rigorosa desse programa
viril. As prostitutas não são as poetisas do amor (“Como é, meu bem, vamos acabar?”),
são as poetistas do amor: do orgasmo conservam apenas seu esquema estrutural,
mantêm, na narração, apenas a lógica de suas ações. E com isso o homem é convidado a
viver em acelerado o filme de sua sexualidade tradicional e, por assim dizer, em
consumir seu prazer em 78 rpm. Ele reduz o enlace ao texto orgástico; ela reduz o
orgasmo à sucessão abrupta de suas três sequências.
Por que há tantos clientes com raiva depois do michê? Por que são tantos os que
insultam essas “vagabundas” e que querem pegar o dinheiro de volta? Porque
compreenderam que não eram senhores de coisa alguma e que da prostituta podiam
obter tudo, menos sua submissão. Assim que se vestem, esquecem-se da volúpia
sentida, mas não das afrontas a que tiveram de se submeter para consegui-la: a afronta
do dinheiro e do ridículo. Têm raiva da mulher da rua por estabelecer ela um resgate
para o desejo deles e torná-lo algo irrisório. Censuram-na pela venalidade da relação e
pela imagem que elas refletem, com um servilismo depreciador, de sua sexualidade

2
Une Vie de putain, op. cit., p. 214.
3
Une Vie de putain, op. cit., p. 89.
masculina. Provocado na rua, apressado por promessas de aventura e de recordes de
obscenidade — “Vem meu bem, vou te chupar, vai ver como é bom” — o cliente apenas
cede a seu sonho para vê-lo ser destruído. A prostituta, sacerdotisa interessada num rito
no qual não acredita, engole seu michê, e o crente atordoado é convidado a comungar
tão logo atravessa o portal da igreja. “Quero o dinheiro de volta!”, é o grito do fundo do
coração de todos os que identificam a prostituição com a pornografia. Não se deve
confiar no parentesco das etimologias: os amores obscenos e os amores venais não são
da mesma família; longe de a pornografia pertencer à prostituição, é exatamente sua
cruel ausência que provoca a indignação ou a depressão entre os usuários. O grande
sonho pornô atribui às mulheres um desejo imediato, centrado, imperioso. Ele prenuncia
a boa nova: também elas só pensam nisso. E apenas a repressão secular de seu desejo
explica a timidez sexual na qual muitas delas ainda se refugiam: elas apenas estão saindo
do esconderijo, o sol genital é muito forte para seus olhos acostumados à penumbra.
Mas quando os últimos tabus forem destruídos, o homem não mais precisará pedir, terá
apenas de se entregar; ao invés de querer obsessivamente, cederá com graça. Em suma,
a pornografia metamorfoseia o fantasma viril em programa feminino de emancipação.
Você não terá mais de esperar, de ludibriar, de entrar por caminhos oblíquos — ela
promete ao homem — bastará que você consinta. Como na prostituição, ao que parece,
onde é a mulher que vai atrás do homem, onde é ela que assume entrar em contato e
que já vai logo falando de sacanagens, sem rodeios. Mas exatamente: se ela acaricia a
ilusão masculina é apenas para melhor acabar com ela; como se fosse uma brechtiana do
sexo ela oferece seu corpo, mas não se coloca na pele da personagem, não é possível
acreditar nela, o fantasma é levado a proceder a seu próprio desencantamento. A
pornografia genitaliza o desejo da mulher; a prostituta afirma sempre apenas seu desejo
pelo dinheiro. Nos filmes, elas gozam chupando caralhos anônimos; no michê, executam
seu trabalho com consciência, mas sem paixão: meticulosas e fleumáticas, elas
obedecem, a fim de levantar o monumento fálico, não ao princípio do prazer mas ao
princípio do rendimento. Todo mundo já se deu conta de que a “invasão” pornográfica e
a revolta das prostitutas são dois acontecimentos contemporâneos e rigorosamente
contrários? Que entre as prazeirosas do cinema e as profissionais da rua não há
semelhança alguma, que o filme pornô se opõe tanto à sexualidade feminina quanto ao
trabalho da prostituição?
Ver filmes hard-core para não enxergar a diferença do corpo feminino e para
inverter em exigência sensual a fria altivez com a qual ele se deixa investir e colonizar.
Escapar através da imagem à pluralidade dos corpos e ao cinismo do dinheiro. Esquecer
que elas nos amam não por nossos belos cacetes mas pelo nosso dinheiro. Sendo a
complacência venal tanto um ultraje quanto uma comodidade, sonhar com a
prostituição gratuita, substituir o interesse pelo desejo, obter ao mesmo tempo a
disponibilidade e o gozo. Esta utopia reativa prova pelo menos uma coisa: que a
venalidade não faz da prostituta a escrava temporária do cliente, mas que ela assegura,
pelo contrário, sua inacessibilidade. Em suma, a pornografia nada mais é que a negação
da relação prostitutiva, pois a fleuma calculadora da mulher venal insulta o amor-próprio
masculino, enlouquece o fantasma pelo modo ostensivamente laborioso com que ela o
satisfaz. É preferível vê-las como tomadas pelo vício do que indiferentes; é preferível ter
de salvá-las a administrá-las, pois a frieza delas vexa o desejo viril. As próprias prostitutas
ressaltaram a evidência disso começando sua revolta com uma proclamação de
impassibilidade: “Fazemos esse trabalho pela facilidade com que podemos nos subtrair a
ele. Nós nos desdobramos, fugimos de nosso corpo que trabalha: isso não é exatamente
uma delícia, mas quem hoje pode evitar esse desdobramento? Que tipo de empregado
(a), de operário (a), de vendedor (a)? Tal como eles, nos defendemos contra a sujeição
através da distração. Somente o absenteísmo no trabalho pode tornar suportável a
presença no trabalho”.
Ora, essa linguagem fere: o homem é obrigado a sofrer uma quarta derrota em
relação a suas crenças narcísicas. Copérnico lhe disse que ele não morava no centro do
universo; ele mal se refazia dessa ofensa quando Darwin lhe retirava o privilégio de ser o
rei da criação; Freud, terceira etapa desse empreendimento, nem lhe deu tempo para
respirar e lhe mostrou que ele não era senhor um de sua própria payché. Mas ainda
sobrava uma arrogância intocada por esses três desapontamentos: a identificação,
inscrita na língua, entre o humano e o masculino. Ulla, assim, é o quarto desmentido. Em
matéria de erotismo, o homem não pode falar em nome da humanidade. Ele bem que
gostaria que fosse assim: e hoje tem dificuldade de abandonar essa quimera. O que ele
esperava receber da mulher não era mais a submissão, mas a identidade. Ele
abandonava com alegria as servidões e as cargas do poder falocrático pelas delícias de
um genitocentrismo compartilhado. Mas as prostitutas assumiram a palavra para acabar
com esse sonho: a indiferença que ostentam, vingativa em relação a seu egoísmo
libidinal, não lhes deixa nenhuma ilusão quanto à universalidade de sua libido: nada que
seja sexual me é estranho, dizia ele. Sim, há algo que é, a sexualidade feminina, lhe
respondem as prostitutas, no exato momento em que, vestidas com coxeiras vermelhas
e com a imaginação viril, deixam-se copiar.
Mais uma questão de vocabulário: “eu me prostituí, me fiz de puta”, é o que se
diz de modo falsamente envergonhado e plenamente satisfeito quando se soube
exprimir com convicção sentimentos contrários aos que se sentia, em vista de obter um
adiantamento, um lugar, um papel, uma mutação, um feriado, um aumento de salário, a
permissão de duas horas livres de manhã, um pequeno aumento do dinheiro de bolso,
uma moratória em relação à entrega de uma cópia, a abolição de uma punição ou a
consideração do chefe. Assim, é se tentado a falar em prostituição toda vez que a
bajulação é feita com o objetivo de dissimular um interesse, toda vez que a perspectiva
de uma vantagem material se disfarça em afeição ou obsequiosidade. Em suma, a
utilização metafórica da palavra puta repousa sobre uma falsa evidência que é uma
verdadeira calúnia, pois ela prescreve implicitamente, para a realidade prostitutiva, uma
imagem que a desfigura. O contrato de prostituição, com efeito, é muito claro: ele deixa
o imaginário de lado. Não há papéis a sustentar, nem comédia, nem autenticidade. Ele
liberta a sexualidade tanto da sinceridade quando da aparência. Na negociação do
michê, a histeria entra em recesso. O cliente não precisa agradar; e a prostituta não
precisa simular estar fascinada. Ela aluga seu sexo e põe o resto de seu corpo em leilão,
mas ao mesmo tempo subtrai sua afetividade a toda forma de prostituição: o teatro
amoroso não faz parte do michê, não participa de suas atribuições. Não vivemos mais,
hoje, nessa sociedade ostentatoriamente desigual e estratificada que reservava para as
cortesãs a entrada na alta sociedade e jogava as rameiras de baixa extração como
repasto para os apetites toscos do populacho. Tanto na Roma da Renascença quanto na
Paris do Segundo Império, o sonho de uma prostituta era sempre chegar até a alta
sociedade através da porta de serviço, ser rica, adulada, admitida, tornar-se cortesã. As
prostitutas contemporâneas têm a mesma paixão pelo dinheiro, mas não querem pagar
por isso com a simulação sentimental. É por isso que a maioria delas prefere as ruas aos
lugares clandestinos “bem” e às redes de call-girls para os executivos de multinacionais.
É na rua que elas podem dar livre curso a seu desejo pelo dinheiro e a sua repugnância
quanto a fazer o cliente acreditar que estão cedendo ao encanto dele, e que antes de
conhecê-lo elas não sabiam o que era gozar. A prostituta moderna é uma anticortesã.
“Para tirar a roupa, e dizer tirar a roupa é dizer demais, porque a gente
simplesmente tira o pulôver, é 1.500 cruzeiros (...) Se a gente levanta uma perna é mais
4
200, e qualquer outra coisa de diferente além disso também é mais 200.”
Enquanto a cortesã quer apanhar seu cliente na armadilha da paixão, a prostituta
especula exclusivamente com a gradação de seu desejo. A primeira finge entregar-se
inteiramente a fim de virar as cabeças e esvaziar os bolsos. A segunda prefere a arte da
pechincha à do fingimento; ela não representa os arroubos do amor nem os êxtases da
volúpia: de modo prosaico, vende seus serviços. Irrepreensível mas parcimoniosa, ela se
apega ao que estipula seu contrato. Ao invés de dissimular a realidade mercantil da
relação, ela a ostenta. Não há nisso pathos algum: à prostituição-comédia sucede a
prostituição-trabalho; não há mais papéis a representar, apenas uma tarefa a cumprir.
“Uma puta não teria a impressão de ser puta se não fosse uma traidora rematada,
e uma puta que não tivesse as qualidades exigidas não seria mais que uma cozinha sem
cozinheiro, um jantar sem vinho, uma lamparina sem óleo e um prato de macarrão sem
queijo.”
Assim falava Nanna, a grande prostituta romana cujos feitos Are- tino pretendeu
relatar. Ele escreveu a gesta da cortesã, enumerando seus truques como se fossem
grandes feitos. Figura fabulosa, proezas inéditas, sociedade morta — ainda que
pequenas ilhas de nossa sociedade ainda recolhem em si restos desse momento. E não é
em Aretino, ou Zola ou Dumas Filho que os relatos autobiográficos das prostitutas
contemporâneas fazem pensar, mas em Marx, quando fala do trabalho abstrato. Entre o
operário e a puta surgem, com efeito, duas analogias sucessivas: a liberdade e a
indiferença.

As mercadoras do templo

Aquilo que o mercado capitalista especifica é que o trabalhador é livre, sob um

4
Une Vie de putain, op. cit., p. 94.
duplo ponto de vista: livre para dispor como quiser de sua força de trabalho, como se
fosse uma mercadoria que lhe pertencesse, mas também “livre de tudo, completamente
5
desprovido das coisas necessárias à realização de sua potência de trabalho”, a tal ponto
despojado, tão livre, que é obrigado a vender seu corpo para obter seu direito à vida.
Para que exista um mercado de trabalho, é preciso que o corpo chegue à qualidade de
mercadoria e que uma maioria de indivíduos nada tenha para trocar além dessa mesma
mercadoria. Ter como única propriedade seu organismo — seu valor, sua força e suas
capacidades; aliená-lo temporariamente, pô-lo à disposição do comprador para em
contrapartida obter um salário: esta é a situação imposta pelo Capital à imensa massa de
seus súditos. Assim, quando as prostitutas exigem seu reconhecimento, pedem não
apenas à sociedade que as admita, mas pedem também que o sistema confesse a
realidade prostitutiva que o rege de modo subterrâneo. “Fazemos um trabalho como
outro qualquer, elas dizem, porque em todo trabalho há uma forma de prostituição.
Vendemos nosso corpo, como todo mundo. O que nos vale a piedade de algumas almas
caridosas, aquilo que, aos olhos de todos, progressistas e retrógrados, é o estigma de
nossa profissão, obedece rigorosamente à lógica do contrato de trabalho. Se existe
pecado em vender o corpo, é um pecado universal e não merecemos devei a isso o fato
de sermos relegadas.”
Este argumento marxista (“a prostituição é apenas uma expressão particular da
prostituição geral do trabalho”), por mais convincente que possa parecer, não elimina
totalmente nossa sensação de repugnância. É que há corpos e corpos, e a reivindicação
das prostitutas mistura corpo de trabalho com corpo de amor, embaralha a oposição
entre labor e desejo, sob cuja égide devemos manter nossas vidas, tal como nos
ensinaram. O Capital absorve os corpos, mas enquanto força de trabalho, pela energia
laboriosa neles contida e que ele pretende transformar em ato. Seus gestionários, em
outras palavras, apenas muito acidentalmente são suseranos: a apropriação genital não
faz parte do contrato deles, há muito tempo foi abolido o arcaísmo bárbaro que
autorizava os senhores feudais a degustar a primeira noite de suas servas. Portanto, o
mercado capitalista divide o corpo ao meio: ele delimita uma zona inviolável — o
aparelho genital — e define como alienável tudo o que não pertence a esse pequeno
teatro. Oposição privado/público que fragmenta o sujeito e o submete a uma dupla
coerção: de um lado, o prazer fica confinado numa zona, disciplinado por um código
imperioso que lhe inculca seu domínio de atuação. O trabalho, por outro lado, incorpora
a energia e os órgãos liberados por essa concentração da libido num único objeto. Com
uma cajadada, dois coelhos: o genitocentrismo faz simultaneamente corpos saciáveis no
domínio do desejo e corpos úteis na esfera da produção. A cada um desses
comportamentos do organismo corresponde doravante uma pedagogia particular: a
Escola inculca simultaneamente a aptidão e a disciplina, a qualificação e a docilidade ao
trabalho; a sexologia, de seu lado, abre para o ensino o último domínio que lhe estava
interditado. A pedagogia havia sido edificada para encurralar o desejo: hoje há uma
pedagogia obrigatória do desejo. Sabe-se, desde Freud, que o silêncio sobre as pulsões

5
Le Capital. Paris, NRF, Coll, La Pléiade. t. I, p.
não engendra o silêncio das pulsões, que não é possível desenraizar a reivindicação
libidinal negando-a. Em suma, a sexologia cuida de suprimir os entraves que a
turbulência libidinal poderia opor à preparação do corpo de trabalho: ela maximaliza a
docilidade, evitando que se faça dela um sacrifício, uma conquista arrancada do desejo
carnal. Ela substitui a ética da compatibilidade pela da renúncia. Dois princípios
fundamentais dirigem essa regulação da sexualidade: o princípio anatômico das zonas
erógenas e o princípio energético da satisfação. Ao invés de ser uma força sempre alerta,
o desejo pode ser saturado pelo orgasmo: ao invés do corpo de amor ser ilimitado, ele é
severamente circunscrito aos órgãos especializados. Volúpia, produtividade: são esses os
dois vetores de nossa organização fisiológica, os dois objetos de sua educação. É preciso
aprender a trabalhar, isto é, a aceitar a coação do trabalho; é preciso aprender a gozar
para que o desejo do gozo não venha se atravessar diante de nossa docilidade.
Nosso corpo de prazer é, assim, duas vezes privado: corpo nosso, sim, mas
também corpo empobrecido do tempo, da força e dos órgãos que damos ao trabalho. O
que acaba nos pertencendo é um resto, o resultado de uma subtração. Mas a pedagogia
do corpo privado não enuncia sua realidade privativa, nem sua vocação disciplinar. Ela
enuncia, mesmo, exatamente o contrário disso: que a sexualidade é a aliança
contraditória entre uma prática fetichista e uma metafísica da globalidade. O genital
acede simultaneamente à autonomia e à metonímia. O que justifica sua separação é que
ele esboça uma nova imagem da realidade. Ele só se isola em virtude de sua dupla
aptidão para sintetizar a diversidade dos gozos e para restabelecer passageiramente a
continuidade dos seres. Nesse jogo, o todo festeja seu renascimento ou (versão
desesperada da mesma mística) vem chorar seu dilaceramento. Simultaneamente
localizável e absoluto, objeto de avaliação e de culto, o orgasmo genital investe um
órgão a fim de incendiar o corpo todo. Se, finalmente, a sexualidade se centra sobre o
sexo, é para realizar a fusão dos indivíduos.
Ora, tudo acontece como se as prostitutas tivessem rompido esse equilíbrio,
ficando apenas com uma das duas postulações eróticas: tratar o corpo de amor como se
fosse corpo de trabalho é algo que significa manter o fetichismo genital e pôr fora a
metafísica que lhe serve de auréola. O instrumento da unificação (dois formam um só)
torna-se fonte de lucro (um michê = 1.500 cruzeiros): as partes não desembocam mais
no conjunto mas no dinheiro. Sentimos muita dificuldade em perdoar as mulheres venais
por esse desvio, essa prevaricação, essa perversão sacrílega. Enquanto elas alugam o
sexo, ficamos dizendo, horrorizados ou compassivos, que elas estão vendendo o corpo,
pois queremos que o genital seja um microcosmo e não um fragmento. Em suma, as
prostitutas tornaram-se culpadas desta blasfêmia: ter feito da Igreja em que as pessoas
comungavam uma oficina de produção de cópulas; ter escancarado aos quatro ventos o
santuário da volúpia; ter vendido a alma genital a fim de evitar a fábrica. Pecado mortal,
esse, que nos demonstra, caso nossas declarações de descrença nos tenham feito
esquecer, que ainda somos religiosos e que não gostamos de ver saqueado, com
indiferença, o lugar onde se recompõe, pelo tempo que dura um êxtase, a unidade
perdida.
Mas, ao mesmo tempo, ficamos prevenidos: a criação de oficinas protegidas, os
esforços diversos no sentido de assegurar a reinserção profissional das mulheres
perdidas, nunca suprimirão a prostituição. Não há órgão que não possa se transformar
em força de trabalho. Não existe uma terra-de-ninguém da cambialidade. O que é uma
prostituta? A mesma coisa que uma operária, que um caixa de banco, que uma
funcionária do correio, apenas com a seguinte nuança: ela ganha a vida muito mais
facilmente e seu cinismo radical a impede de acreditar na divindade do genital. O
psiquiatra gostaria que ela fosse ninfômana ou psicopata, o Tartufo gostaria que ela
tivesse isso na pele, a irmã caridosa desejaria preencher a carência afetiva que a jogou
na degradação; o maoísta, a fim de curá-la, a mandaria trabalhar no campo, e o
trotskista a mandaria para a fábrica, quando na verdade sua única doença é o ateísmo:
ela perdeu a fé no genital.
Sim, é possível pensar no fim da prostituição: mas ao mesmo tempo seria preciso
pensar no fim do mercado de trabalho. O que faz a puta, aquilo que faz de mim um
professor ou um datilografo, é a subordinação da renda ao tempo de trabalho. Somente
uma sociedade que desligasse a garantia de uma renda da exigência de 20, 30 ou 40
horas semanais, que não mais obrigasse as pessoas a ganhar o direito à vida, poderia
abolir a relação de prostituição, sob a forma em que a conhecemos hoje. Todo o resto é
diversionismo, atividade inscrita no sistema e rejeitada por ele.
“Não há nada de impuro, nada de imundo”, proclamam hoje as prostitutas. Não
há castas hierárquicas no corpo. A antiga medicina dividiu o organismo em partes nobres
e plebeias; o novo humanismo opõe os órgãos privados aos órgãos laboriosos. Ao decidir
transgredir essa distinção, “essas senhoras”, usando as palavras de Léon Zitrone,
afirmam que o trabalho é feito de uma peça só. Não se pode submeter a uma
classificação moral as maneiras de vender o corpo. Esta necessidade é sempre
respeitável ou sempre prostitutiva. O odioso preconceito concentra a infâmia sobre a
prostituição a fim de inocentar o trabalho, lavá-lo com água de cheiro, experimentar sua
evidência ou cantar suas virtudes. Valor do trabalho e maldição das putas são duas coisas
que andam juntas: a revolta das prostitutas pretendeu romper essa ignóbil cumplicidade.

Marx e Ulla: o trabalho e nada além disso

Mas há um outro traço que faz da prostituição uma variante do trabalho: a


indiferença. O capitalismo, com efeito, não se contenta com integrar o processo
produtivo tal como este existia antes dele, pois esta submissão puramente formal daria
ao operário demasiado poder sobre sua própria atividade, seus ritmos e seus mistérios.
Donde a necessidade, após ter liberado o indivíduo de seus instrumentos de produção,
de liberá-lo também de seu trabalho, de retirar-lhe toda propriedade e todo controle
sobre o desenvolvimento desse trabalho. Será que ele ainda pode dizer: “eu trabalho”?
Sim, quando aquilo de que está falando é do tempo passado na fábrica ou no escritório;
não, quando se trata do próprio conteúdo de sua atividade. Ao invés de ser realizado
pelo indivíduo, o trabalho tende agora a prescrever-lhe minuciosamente todos os seus
gestos, todos os seus deslocamentos. A máquina capitalista (computador ou linha de
montagem) cada vez mais reúne em si mesma os dois momentos da eficácia produtiva e
da coação. A tecnologia disciplinar e a tecnologia utilitária confundem seus efeitos:
quanto mais a técnica se aperfeiçoa, mais multiplica suas funções: ela anexa agora o
controle do corpo ao controle da natureza. E o que é o progresso a não ser a cumulação
do controle e da produtividade? Resultado: o trabalho não é mais a atualização da
potência contida em cada um de nós, mas a coação que lhe é imposta do exterior, a
força estranha que avalia a rentabilidade segundo a docilidade do comportamento. Coisa
que desloca necessariamente os critérios de individuação do sujeito: o signo da
singularidade sofre uma translação da profissão para a posição social; o indivíduo não se
define mais por sua profissão, que se perde na generalidade do trabalho tout court, no
trabalho e nada mais além disso, mas por sua posição social, que é, como se se tratasse
de uma compensação, cuidadosamente diferenciada: a concorrência e a hierarquia das
situações contrariam a tendência para o anonimato laborioso.
Portanto, basta sair do domínio do contrato, “esta esfera barulhenta onde tudo
acontece na superfície e à vista de todo mundo”, basta seguir o vendedor e o comprador
da força de trabalho até o laboratório secreto da produção, em cuja porta está escrito
6
“No admittance except on business” (Proibida a entrada a pessoas estranhas [ao
trabalho]). Aí, a alienação jurídica do operário se prolonga em indiferença e abre-se para
uma tripla estranheza: estranheza do produto, do conteúdo e da força de trabalho em
relação a si mesma.
“A finalidade do trabalho não é mais este ou aquele produto especializado que
mantém certas relações com esta ou aquela necessidade do indivíduo, é o dinheiro: a
7
riqueza tem uma forma universal.”
“A indiferença diante de qualquer tipo de trabalho corresponde a uma forma da
sociedade, na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a outro e
consideram como fortuito — portanto, como indiferente — a natureza específica do
8
trabalho.”
“A força de trabalho comporta-se em relação a si mesma como se se tratasse de
algo estranho, e se o Capital se dispusesse a pagar o operário sem o fazer trabalhar, este
9
aceitaria a oferta com prazer.”
Se arrancamos da barba de Marx esse pequeno fio que é o “trabalho abstrato”, é
porque esse conceito descreve com a mesma minúcia a intimidade do michê e a
desumanidade da fábrica: quando Marx analisa as tendências mais modernas do
processo de produção, ele nos fala também da mais velha profissão do mundo: ali onde
descreve a abstração progressiva da atividade operária, vemos desenrolar-se com

6
Le Capital, op. cit.,
7
Marx. Grundrisse. Paris, 10/18: t. I. p.
8
Marx. Grundrisse. op. cit..
9
Marx. Grundrisse. op. cit.. p.
precisão os diversos mementos da sessão prostitutiva. É a ambivalência de seu
vocabulário que nos apaixona, pois ele evidencia — melhor do que uma demonstração
— a grande perversão capitalista: o embaralhamento dos códigos, a tendência para pôr o
cinismo do “tudo se equivale”, a flutuação dos objetos, das pessoas, dos trabalhos, no
lugar da antiga imobilidade dos enraizamentos. Sou um trabalhador? Sou uma puta? Esta
pergunta não é mais pertinente, pois não tenho território próprio, dado que o Capital
substituiu a profissão pela indiferença.
Indiferença da prostituta pelo produto do michê: o que se fabrica aí, numa
cadência regular, é a foda. Mas a puta sente tanta paixão pelo esperma que escorre nela
quanto a operária da Sadia pelo ato de amarrar as linguiças. O sêmen só é objeto de
solicitude porque é sempre aniquilado, abstraído em proveito de seu valor monetário.
Duas linguagens confluem na ejaculação: a do cliente, que satisfaz seu desejo, e a
prostituta, que cumpre seu contrato. Quanto ao conteúdo do trabalho, vimos com que
irônica atenção a mulher venal o circunscreve e ritualiza. tanto mais exterior à cobiça do
cliente, quanto ela adula seu fetichismo genital. Terceira indiferença, enfim: a prostituta
disciplina sua aparência e só se entrega aos sonhos majoritários da feminilidade através
da repressão de seus impulsos singulares. Seu corpo laborioso não lhe pertence no
momento do michê, assim como não lhe pertence no momento do contrato. Assim como
o operário permanece estranho à sua força de trabalho quando a põe em ação, também
a prostituta tem de abandonar seu corpo para que o usuário a encontre, se perca para
que ele tenha a impressão de encontrá-la. Um ato de batismo sanciona a fabricação
desse fantasma carnal. A redatora de Cláudia torna-se uma Ulla, pois o usuário quer
conotações libidinais e não conotações domésticas: e como ele tem na cabeça toda uma
pequena geografia do erotismo, um prenome escandinavo pode ser uma promessa tão
grande quanto um decote. O cliente também gosta de nomes da moda, nomes de
estrelas ou de moças que são capas de revistas, pois isso lhe permite apropriar-se, além
da pessoa que os carrega, de todas as divindades inabordáveis com que o Espetáculo
povoa sua imaginação. Desse modo, ele tem tudo: o fascínio e o contato carnal, o
sentimento de ser excluído por esse corpo e o direito de tocar nele. Ele trepa ao mesmo
tempo com a cópia e com o modelo, goza com a penetração na mulher e com a
entronização num reino proibido. Em suma, ser puta é levar a estranheza de si a tal
ponto que ela se codifica inteiramente, inclusive no prenome: mais vale chamar-se
Jacqueline, Brigitte ou Marilyn do que Francisca, Maria ou Antônia, pois isso permite ao
cliente os três prazeres que o michê (em francês: passe) resume em si: estar de
passagem, fazer passar seu desejo, passar enfim da mamãe conjugal para a mulher
inacessível que parece inteiramente dedicada a sua própria beleza.
“Creio que isso também faz parte do aprendizado: perder seu prenome
verdadeiro para assumir um outro. É um pouco como uma mulher que se casa e assume
o nome de seu homem; na prostituição, a gente recebe um nome para agradar a todos
10
os clientes: um prenome universal.”

10
Une Vie de putain, op. cit., p. 140.
A política da clareza

O que é a modernidade? É o momento em que toda puta pode dizer: “eu


trabalho”, e todo trabalhador: “eu sou uma puta”. É isso o que dizem, cada um a seu
modo, Marx e Ulla e, ao mesmo tempo, essa é uma linguagem que ninguém quer
entender: nem nós (almas caridosas ou carcomidas), nem os tiras (“na rua, elas
11
incomodam a população” ), nem o Estado. Como se a confusão fosse intolerável. Como
se a indiferença fosse ao mesmo tempo uma tendência do sistema e uma desordem que
se teria de evitar a todo custo. Como se a generalização do esquema prostitutivo para o
conjunto do trabalho social só fosse possível com a condição de fazer atribuir um destino
infamante às prostitutas. O Estado mantém a ordem, mas não se trata da ordem moral
do puritanismo triunfante, não é apenas a ordem repressiva da violência policial, é a
ordem da clareza — a salvaguarda das hierarquias. De um lado, a prostituição; do outro,
o trabalho. Enquanto as mulheres da rua forem rejeitadas para o domínio da
delinquência, o trabalho não pode ser vivido como prostituição: a segregação assegura a
sobrevivência do contraste e freia efetivamente o movimento na direção da indistinção.
Esse é o papel do Estado: lutar contra a indiferença, inscrever o código moral nos corpos,
conformar o real à imagem dos preconceitos, marcar as prostitutas a fim de melhor
provar que elas não podem pretender exercer uma atividade como outra qualquer. Dar
um jeito, em suma, para que a abjeção das mulheres venais não seja apenas uma
questão de posição ideológica, uma velharia romântica dissolvida, pelo arrebatamento
revolucionário do Capital, na universalidade do trabalho, nada além disso. Dar às
prostitutas uma verdadeira vida de puta.
Cabe à penalidade, hoje, encerrar a prostituição em si mesma, levantar uma
barreira efetiva entre as duas monotonias do michê e da fábrica, e separar
concretamente as prostitutas de todas as outras categorias de trabalhadores. À
indiferença do Capital responde assim a ordem disciplinar da clareza: e nenhuma dessas
duas instâncias tem sobre a outra o privilégio da realidade. Ambas são reais. Donde a
contradição que divide todas as biografias de prostitutas: falando de sua profissão, elas
reivindicam uma escolha e protestam contra uma fatalidade. Elas afirmam
escandalosamente sua liberdade: mesmo trabalhando, chegam a proclamar a
superioridade do michê sobre a fábrica (na relação trabalho-remuneração); mas, ao
mesmo tempo, denunciam a engrenagem infernal em que são jogadas. Não se deve
apressadamente considerar que essa contradição seja uma incoerência. Dilaceradas
entre a realidade capitalista e a do poder, as prostitutas assumem hoje, talvez, o ponto
de vista mais justo sobre sua articulação. Esse destino que as esmaga não mais pode ser
imputado, agora que falaram dele, a uma violência difusa; não é mais possível reduzi-lo
preguiçosamente a uma mentira da ideologia, ou de fazer dele a sanção inelutável de sua
degradação profissional: sabemos que ele é fabricado pelo penalismo moderno. “A vida
das prostitutas não é nem alegre, nem fácil”, diz o delegado humanista Solères. “É
verdade, respondem as putas, mas devemos isso a vocês.” É uma política deliberada de

11
Delegado Solères. Le Nouvel Observateur, 26 abr. 1976.
colocá-las na delinquência que constituiu a prostituição em meio à parte e controlável. O
fichamento, as multas por aliciamento passivo, a imposição arbitrária, a repressão ao
proxenetismo — todo esse arsenal legal transforma o contrato do michê em pacto de
degradação firmado com o conjunto da sociedade. A lei penal parece dizer à prostituta:
“Você acredita que está pondo um pedaço de seu corpo à disposição temporária de um
dado comprador, mas na verdade você está vendendo sua alma ao diabo, esse gesto é
definitivo, com ele você se compromete toda, ficará marcada para sempre e, portanto,
trata-se de uma alienação religiosa, faustiana, que você está realizando”. A época ainda
não está pronta para a fluidez universal: tolerar a prostituição é torná-la irremediável
para aquelas que a escolheram. É preciso que ela seja uma carreira e não uma coisa
ocasional, uma queda e não uma virtualidade profissional entre outras.
Às que queiram sair desse negócio serão dadas, assim, todas as razões para
12
voltarem a ele: auxiliado pela polícia que fornece estimações de rendimentos, o fisco
lhes enviará notificações de imposto astronômicas; além disso, elas receberão velhas
contravenções e a coação através do corpo será exercida sobre elas, se não puderem
pagar. Quanto à maioria que se instala na profissão, têm de viver sob a ameaça
constante da multa e da prisão: a prostituição, sim, é legal, mas a lei é suficientemente
imprecisa para lembrar às prostitutas sua condição de delinquentes em potencial. Quem
decide se uma atitude é atentatória à moral e aos bons costumes é a polícia, e a
repressão contra o proxenetismo se volta inicialmente contra as putas. Ainda hoje há
pessoas que se surpreendem com a repugnância coletiva das prostitutas quanto a
denunciar a ascendência dos marginais sobre elas e as formas diversas do proxenetismo.
Viu-se nesse silêncio uma prova de cumplicidade, de manipulação, de infantilismo
político e, mesmo, a razão derradeira do fracasso do movimento. Como reivindicar a
liberdade e proteger seus “defensores”, voltar-se contra a repressão e defender em
nome da moral do submundo ("ninguém aqui é dedo-duro") as formas mais arcaicas de
exploração? No entanto, as prostitutas responderam claramente a essas perguntas
incômodas: antes de mais nada, é difícil distinguir entre um amigo e um cafetão. Depois,
quando se lacra um hotel, são as prostitutas que ficam privadas de seu meio de trabalho.
Enfim, basta que duas prostitutas aluguem um apartamento em conjunto para que uma
corra o risco de ser considerada proxeneta da outra. Enquanto a repressão ao
proxenetismo multiplicar, para as mulheres, os riscos de serem presas, não se deve
esperar que elas a defendam. Em suma, o que elas querem é que ninguém se engane
quanto ao alvo a atingir, que se combata o proxeneta supremo, cujos defensores e
policiais são na verdade os fiscais, clandestinos ou legais: o Estado. Com efeito, é o
Estado que efetua sobre as prostitutas a punção financeira, de longe a mais considerável.
É ele o grande gerente do produto da prostituição. A multa penaliza a prostituta e tira

12
Uma curta história instrutiva: a 8 de abril, 50 prostitutas apresentam-se no Departamento de Empregos de
Lyon. O que querem? "Um trabalho que permita viver e não apenas sobreviver." O que conseguem: uma carteira
de desemprego, com a seguinte inscrição: Operário Especializado. "Não importa para onde a gente se vire, a
única coisa que o governo quer nos dar é isso. Operário especializado do sexo nas prisões do sexo, ou operário
especializado desempregado (...) Demonstramos a hipocrisia do governo, que não quer deixar que saiamos desta
situação, nem quer aceitar nossas reivindicações para que possamos viver em paz como prostitutas e também
como mulheres comuns." ( Libératiun. 9 abr 1976.)
parte de seu ganho. Com um único gesto, o Estado pune as prostitutas e se enriquece às
custas delas. Com isso, é ridículo querer acusar as “respeitosas” de querer prolongar sua
sujeição quando elas mesmas denunciaram de onde a verdadeira sujeição provém, onde
ela se exerce e qual a estratégia que ela usa. Liberar a prostituição é antes de mais nada
libertá-la da instância que pesa sobre ela através do castigo e da extorsão.
As mulheres da rua, finalmente, talvez não precisassem ser “protegidas” se
tivessem um outro recurso contra a violência sempre possível do cliente. O sadismo
deste goza de impunidade: dado que a divisão social joga a seu favor e que a priori ele
faz parte das pessoas de bem, os delegados nunca mencionam seu nome nos boletins de
ocorrência, e recebem o conselho de nunca o intimidar de modo algum. É esta
cumplicidade inquebrável entre a polícia e o usuário que leva a prostituta a assegurar
sua defesa por outros meios.
“Os elos entre a prostituição e o banditismo tornam-se mais íntimos à medida que
as prostitutas são tratadas como delinquentes” (Relatório Pinot).
As peripatéticas querem sem dúvida acumular em si as duas funções, do cafetão e
da puta, mas sabem que a tolerância repressiva de que são alvo é o melhor meio de
impedir que façam isso. Não são os, donos de rendez-vous, nem os gangsters, e os de
lábia fácil que jogam as prostitutas na delinquência, é a lei penal que as joga nos braços
da marginalidade para que sobrevivam. As prostitutas só poderão ser seus próprios
proxenetas quando a prostituição se emancipar da delinquência.
Ter ao mesmo tempo a liberdade da rua e a segurança no trabalho: esse é o
desejo unânime das prostitutas. Coisa que complica a revolta delas, pois têm de
combater em duas frentes ao mesmo tempo. Contra a repressão e contra a reforma,
contra a arbitrariedade atual e contra os projetos de institucionalização. Enquanto o
relatório Pinot, que contém certas medidas favoráveis, é pudicamente deixado na
gaveta, os gestionários (prefeitos, partidos políticos, industriais) acordam e elaboram
projetos inquietantes de desinfecção: são cada vez mais numerosos os que querem dar à
prostituta a segurança que ela exige, mas com a condição de sanear a rua e transferi-las
da calçada para as casas da sociedade-fábrica: os Eros Centers. A Alemanha será, como
em outros casos, o laboratório produtivo e disciplinado da Europa: o país onde são
testados, antes de serem generalizados, os métodos de controle adaptados à vida
moderna. Esta ameaça coloca as prostitutas diante de uma escolha que se assemelha
muito a um duplo impasse: ou a rua, com seus perigos imprevisíveis — as batidas
policiais, o risco de uma agressão do cliente, a impotência diante das multas — ou a casa,
isto é, o fim da liberdade, o universo panóptico onde a mulher é vista sem poder ver,
perde o direito de recusar um cliente e de trabalhar segundo um horário próprio. Ou a
delinquência, ou o gueto. O Eros Center é a segurança a ser paga com o preço mais alto:
o encerramento e a proletarização.
É muito revelador, que entre essas duas violências as prostitutas ainda escolham
a rua, e prefiram a situação por elas combatida às utopias sinistras de nossos
gestionários. Elas preferem ser tratadas como delinquentes a ser bonecas incansáveis. O
risco da prisão, se é que têm de optar, lhes parece melhor que a perspectiva de exercer
uma profissão no interior de uma instituição carcerária. Elas não recusaram o trabalho
na indústria para se tornarem operárias especializadas do sexo.
Os Eros Centers ainda estão em estado de sonho (de pesadelo). Mas vamos
admitir que essa reforma seja aprovada. Uma sondagem publica diz que a reforma terá o
consentimento da população, dado que 69% dos homens e 60% das mulheres
13
pesquisadas desejam centros especializados em prostituição. É normal, pensa-se, que
se ponha um fim à hipocrisia: não é possível admitir a necessidade da prostituição e
condenar as que se dedicam a ela à delinquência. Assim, o desejo de segurança parece
legítimo a muitos. Mas o que é menos legítimo é a vontade das mulheres venais de
serem transformadas em mulheres quaisquer, o desejo que sentem de apagar de sua
profissão todo sinal infamante. Todo mundo está preparado para substituir a repressão
pela segregação, mas apenas porque esta mantém o ostracismo das prostitutas, ao
mesmo tempo em que lhes assegura uma situação e a proteção que elas exigem.
Suprimir o arbitrário significa racionalizar e não reconhecer. Vemos, assim, que quando
as prostitutas exigem respeitabilidade, não estão se comprometendo com o sistema:
querem comprometer o sistema, isto é, nós mesmos, com a prostituição. Donde nosso
pânico: diante dessa implicação, todos temos algo a defender. Quando não é o trabalho,
é pelo menos o casal, a moral de nossos comportamentos amorosos.
“A gente ouve o que eles dizem, a gente vê as mulheres que passam com seus
maridos. Às vezes a gente vê de longe um casal chegando, e de repente eles se separam.
A mulher passa na frente. Três ou quatro vitrinas depois ela para e fica observando se a
14
gente vai cantar o marido dela. Isso a diverte.”
Prazeres do casal: separar-se para se reencontrar novamente, afastar-se por um
instante que seja a fim de não perder o encantamento do reencontro. Verificar as
condições do contrato mimando o risco da separação; degustar ao mesmo tempo o
frisson da ruptura e o sabor de sua inverossimilhança. Absolutamente odiosa, a
brincadeira pela qual quem paga o pato é a puta só poderia interessar aos pobres de
espírito, mas ela não se deixa reduzir a sua ignomínia. Essa comédia provoca um duplo
sentimento, tenaz e desagradável, de revolta e reconhecimento. As pessoas clamam: “É
abjeto!”, mas também dizem, mais baixo: “É isso aí, a célula conjugal!” Condena-se a
grosseria, mas não se põe de lado o arquétipo. Todos os casais, nesse sinistro roteiro,
contemplam a imagem de sua própria prática, o modelo da relação que mantém com o
mundo: sob a forma da prostituta é o mundo, com efeito, que é convidado a comparecer
na cena conjugal, é o exterior que é convidado a tentar sua sorte ou, mais exatamente, a
assumir a possibilidade de exercer sua tentação. O “Você vem, meu bem?” automático
da puta adquire uma dignidade litúrgica. A frase de abordagem aparece como ponto
culminante de um rito de conjuração, o momento forte em que se chocam o mundo e o
casal. Através da puta, envolvida contra a vontade num diálogo que não lhe diz respeito,

13
Cit. por Annie Mignard. “ Popos élémentaires sur la prostitution.” Les Temps Modernes, març. 1976.
14
Une Vie de putain, op. cit., p. 51.
o casal finge pôr à prova o juramento fundador que fez. Simulacro que exorciza o perigo
através de sua teatralização, e se os amantes riem quando se reencontram, é menos em
virtude da brincadeira que fizeram do que da evidência de sua união. Ganharam a
partida, o mundo se deu mal. A caixa conjugal pode novamente se fechar sobre a certeza
renovada de sua interioridade.
Outros cônjuges, mais finos, mais elegantes, irão procurar suas provas sem
precisar fazer vítimas, e ninguém pagará com uma risada pelo gozo que eles sentirão ao
constatar que permanecem unidos. Questão de estilo: mas permanece o fato de que a
escolha da prostituta não é aleatória. Para o casal, com efeito, que se constitui em cima
da promessa da fidelidade, o mundo exterior é percebido como incitação potencial à
depravação: é sob essa fórmula que a polícia elimina a má conduta — quanto à polícia
conjugal, ela reprime a devassidão. Sendo o contrato amoroso um contrato genital, o
inimigo é aquele que pode pôr em causa a alienação recíproca que os esposos se fazem
de seu desejo. A paranoia conjugal atribui ao Outro a dupla qualidade de prostituído
(uma vez que o perigo que ele representa é proporcional à eficácia de seu aliciamento) e
de prostituinte (uma vez que romper o contrato, para um cônjuge, é desviar de seu
legítimo destinatário o genital que lhe havia sido solenemente cedido).
Imaginemos agora um outro fim para aquela história. Fiquemos com o papel da
vítima, mas façamos sua transferência da puta para a mulher amada. Ela se adianta de
alguns metros. Ela se volta, pronta para sorrir, ver seu marido superar, por ela, a prova
da rameira, pronta para recebê-lo, enfim, intacto e submisso. Se ela se pôs de lado, foi
sem premeditação mas não sem desejo. Ela quer que ele demonstre fidelidade.
Portanto, ela espera, confiante, divertida, trêmula. Mas, primeira surpresa, ela o vê
deter-se ao invés de continuar seu caminho; a seguir, tudo se acelera: ele pede um
fósforo, troca algumas palavras com a puta e ambos desaparecem juntos pela porta do
hotel diante do qual ela estava caçando. Pergunta: Como poderá ele fazer-se perdoar
por essa crueldade para com sua amante? Resposta: Apelando para o esquema
dominante da diferença entre os sexos. “Esse michê? Bobagem, uma brincadeira de mau
gosto, tá certo, mas que podemos esquecer desde já, pois nesse coito minúsculo não me
comprometi com nada: tudo bem, estacionei meu cacete durante uns três minutos, mas
eu, eu fiquei de fora.” Em suma, ele tratará de diminuir a ofensa insistindo na
superficialidade do enlace. Quer ele o assuma, quer não, esse argumento só pode ser
formulado por um homem. Ele repousa no seguinte postulado silencioso: a mulher é seu
sexo, mas o homem tem um sexo. Ambos devem alcançar a salvação através do genital,
mas não do mesmo modo. O homem mantém com seu pênis uma relação de
exterioridade que a ordem amorosa não concede à mulher: a vagina é interior — o que,
se supõe, justifica nossa tendência a fazer dela o próprio lugar da interioridade. O sexo
masculino fica pendurado, e de vez em quando se ergue. Mas orgulhoso ou
envergonhado, continua a ser um apêndice, uma extremidade. Dizemos então que ele
prolonga o corpo, não que é o centro do homem. Enquanto a mulher está presa a seu
genital, o homem fica livre de toda ligação. É ele quem vai ver as putas, não ela. Aliás, se
a prostituição masculina se divulgasse entre as mulheres, seriam as mulheres-clientes
que seriam tratadas de putas, uma vez que consideramos prostituído menos o corpo
vendido do que o corpo penetrado. As únicas passíveis dessa abjeção são as mulheres ou
os que se deixam enrabar. Quando um homem multiplica suas parceiras sexuais sem se
comprometer numa ligação, diz-se que é uma toupeira ou que esconde uma ferida
secreta, que está à procura do absoluto ou que está preocupado com seu desempenho,
que é orgulhoso, instável, um gozador, um homossexual não assumido, um desconfiado
ou um desabusado — mas nunca que é um puto. Se uma mulher seguir o mesmo
caminho, está perdida: seu genital é ela mesma; oferecendo-o a todos, ela se priva dele
para sempre.
Assim, é num fantasma anatômico que se enraíza a exclusão das prostitutas: abrir
seu interior para o primeiro que passar é quase como expulsar esse interior de seu
próprio corpo, esvaziar-se de si mesma à força de se deixar preencher. Para essas
mulheres públicas não sobra nada: vendendo isso, venderam tudo; sua profundidade era
um mistério, fizeram dela um museu. As pessoas ficam surpresas quando elas falam,
quando fazem reivindicações, quando denunciam a especificidade da opressão que
sofrem, tanto se estava acostumado a considerá-las como autômatos: máquinas
moldadas a partir do desejo do cliente e trabalhando por conta de marginais. Era
inconcebível supor que esses corpos abandonados por seu ser pudessem ter alguma
autonomia. E foi assim que se passou a procurar febrilmente o sujeito real do discurso do
qual elas só poderiam ser o sujeito aparente. Quem, por trás desses robôs, podia estar
interessado em substituir o programa profissional por um programa de rebelião? Quem
estava por trás, puxando as cordas? A resposta veio depressa: os proxenetas, claro, que
protestavam jogando sua mão-de-obra na rua para protestar contra as dificuldades da
profissão. É válida ou não essa hipótese? O que interessa não é tanto sua plausibilidade
quanto sua finalidade: ela deveria confirmar a imagem social das prostitutas no próprio
momento em que elas procuravam desfazer- se dela. Uma mulher que vendeu seu
genital é uma mulher que vendeu sua alma: é uma criatura no duplo sentido da palavra:
uma mulher desprezível, decaída; uma pessoa que não tem existência própria e que tira
sua consistência daqueles a quem se dedica.

Os corpos incertos

Fixar a mulher em seu próprio sexo: esse é o imperativo maior a respeito do qual
não queremos ceder. Donde a rapidez de nossos reflexos de segregação, e nossa
resistência em admitir como mulheres comuns as intermináveis putas. Deve-se dizer que
a genitalização do corpo feminino é cômoda, pois permite ao desejo poder investir-se na
relação amorosa e, aí, pronunciar a palavra final. Eu sei como capturar uma pessoa
colocada sob a monarquia do genital: ao assentir com esse reino, ela já fez a metade do
trabalho, sua alteridade se encontra comportadamente encerrada nesse lugar. Mas
suponhamos que esse privilégio seja retirado do genital, sem que seja transferido para
outro órgão; suponhamos que uma desordem irremediável se siga ao desmoronamento
da monarquia: nesse caso, não haverá mais, no corpo do Outro, um ponto de opoio para
o desejo do poder. O Outro reencontra sua exterioridade: não que se coloque além de
seu corpo, mas é todo o seu corpo que se coloca além de meu poder sobre ele.
Estranheza tanto mais inquietante na medida em que ela não se deixa reduzir. No seio
do próprio amor, falta de complacência do corpo feminino quanto a ser conquistado, e a
seguir anexado: posso invadi-lo, sim, mas isso não mais significa que me apoderei dele. O
Outro se oferece, e no entanto não sei mais por onde pegá-lo. Não poderei mais dizer
palavras simples como estas: “eu a tive”. Seu corpo deixou de falar uma linguagem
conforme à minha. Que significa “possuir uma mulher” se a mulher, por sua vez, está
livre de qualquer localização, de toda determinação? Que certeza posso ter a respeito de
sua fidelidade, se sua vassalagem, em seu corpo silencioso não mais manda qualquer de
seus órgãos fornecer a prova dessa sua condição? Como satisfazer a vontade de
dominação quando a penetração de um sexo perde sua função narrativa de desenlace e
seu valor simbólico de rendição?
Apegamo-nos ao símbolo genital na medida em que exigimos clareza nas coisas.
Queremos que o amor continue sendo uma metáfora da guerra, e sobretudo queremos
saber em que momento o conquistamos. Talvez até prefiramos não obter uma vitória
sobre um corpo que joga o jogo do que nos vermos privados de nossos critérios por
corpos que desregulam o amor e que. se recusam a significar tal como esperávamos.
Assim, a revolta das prostitutas não se volta apenas contra a repressão arbitrária,
a injustiça, a hipocrisia do sistema: ela ameaça introduzir a desordem na intimidade de
nossas relações conjugais. Putas: anarquistas do corpo, fornecedoras de incerteza. O que
elas anunciam não é a prostituição geral, como pretendia Sade, o “todos com todas, e
já”, que ainda continua a ser o sonho da comunidade sexual; não é a apropriação
coletiva dos órgãos privados, a acessibilidade universal ao prazer genital e sua
gratuidade. Esse socialismo do orgasmo organiza o reino do genital, enquanto as
prostitutas proclamam seu nivelamento e com isso alteram a percepção do corpo
feminino: corpo incerto, corpo que se cala mesmo quando parece dar-se. Esta nova visão
joga o amor na insegurança: a inquietação não mais é eliminada com a conquista, a
fidelidade não tem mais provas, a apropriação é inefável. O amor possessivo torna-se
cego: não sabe mais a que órgão entregar-se. As putas regicidas nos levam para uma
mutação: estamos começando a efetuar a mudança de regime amoroso; um mundo
indeterminável sucede lentamente a ordem da transparência.

Mal esse homem a aborda e já está descobrindo um passado em comum com você. Ele adora
essa rua pela qual você está andando, esse bairro que ele acha tão simpático, e os jeans que
você está usando. Você tem pés para andar? Ele também. Olhos para ver? Mas ele também.
Orelhas para escutar? Que coisa louca! Você come pela boca? Que incrível! Você nasceu de
uma mulher que se chama sua mãe? Não é possível! Mas é inacreditável descobrir em tão
pouco tempo tanta coisa em comum... E assim prossegue a conversa, de espantos fingidos em
falsas surpresas, e essa riqueza verbal a deixa desolada e então você se enche, abre as asas e vai
voar sobre a cidade. Pelo menos isso você tem certeza de não ter em comum com ele! Mas
claro que tem! Ele também decola, alcança-a e pergunta: Pterodáctilo além de tudo? E aí vocês
dois riem, pois se reconheceram mutuamente.
O enlace reservado
Não há mais privatização possível do gozo a partir do momento em que ele se
torna uma reivindicação coletiva. Assim, quando as mulheres exigem um “salário mínimo
do prazer” (Benoite Groult), elas não estão se queixando de um homem qualquer por sua
insuficiente capacidade amorosa, não estão colocando o problema em termos de eficácia,
estão antes de mais nada reivindicando que os sujeitos masculinos se desprendam da
unilateraliidade homossexual de seu erotismo. Que eles não se percam no coito para a
seguir voltar a si, voltar a sua terra natal e tirar dessa rápida descida aos infernos uma
suplementação de prestígio, de poder. Que eles deixem de vê-las, mulheres com um
exterior onde eles fingem se esquecer a fim de melhor assegurar o interior deles, a fim de
reforçar sua ascendência.
“O que elas estão querendo, então? pergunta o homem. Prazer? Mas que prazer?
E até onde?” A mulher não responde: nisso consiste sua força; ela não negocia sua
condição, sua reivindicação não é razoável aos olhos do corpo-padrão da volúpia. A
partir do momento em que o gozo é desligado do lugar genital (lugar santo dos contratos
e das trocas), não há preço suficientemente alto que ela não esteja disposta a assumir.
Para a mulher, nunca haverá um preço alto demais que pague pela negação à qual foi
condenada. E não é alto demais para todos esses sexólogos e psicanalistas que canalizam
essa fenomenal chantagem ilimitada para os caminhos de uma sadia negociação, de uma
sadia equivalência (equiviolência) orgástica.
O coito não tem nada de natural: é um produto histórico, a inscrição de uma certa
relação de forças entre o homem e a mulher; por conseguinte, aquilo que está em jogo
nesse combate também é uma questão contemporânea; seria uma ingenuidade dissimulá-
lo. O fato de parceiros masculinos serem abandonados porque se preferem entre si, e
fazem de seus órgãos fetiches que lhes permitem sustentar uma certa atitude, não nos
deveria surpreender. Sujeitada, a mulher só podia mesmo exigir um mínimo ou confiar na
boa vontade de seus “protetores”. Relativamente emancipada, ela está livre para exigir
tudo. É um desafio. Modo de aprofundar a crise de confiança entre os sexos e de voltar
contra o homem a exigência de objeto sexual ao qual ele a condenara. Reivindicar o
gozo, para ela, é impedir toda tentativa do sistema no sentido de estabilizar ou regenerar
o domínio amoroso (ao redor de uma nova instância ou de uma outra filosofia qualquer
do prazer). O feminismo, hoje, na verdade só consiste nisso: é aquilo que nos impede de
ler sonhos dourados ou de sonhar com a pacificação, esta “fraqueza” essencial que nos
atinge no centro de nossas forças, que nos escapa, desfaz incansavelmente nossas
hierarquias através da multiplicidade de suas pequenas paixões. A mulher não afirma sua
diferença no código do idêntico, da igualdade, ela quer simplesmente que o homem se
quebre como ele a quebrou, que ele se abra, se aliene enfim definitivamente, entre no jogo
totalmente (sendo muito surpreendente nessa exigência o fato de que um número cada vez
maior de homens possa apoiá-la, porque a desmobilização da virilidade apresenta-se
para eles como uma necessidade). O gozo da mulher não tem finalidade, é um tranco
infinito que atravessa todas as continuidades, não estabelece um mundo novo, cria uma
desordem. Não há nada a esperar dessa desordem, pois ela mesma significa o fim de toda
espera. O corpo feminino, em sua erupção voluptuosa, é a desobediência civil diante da
anatomia imposta; ele induz metaforicamente uma nova sociedade, uma nova desmedida.
E demonstra o seguinte: que o genital e seus gozos localizados são um hábito imposto ao
corpo, um dia, faz pouco tempo.

Os prazeres do adiamento

O que é o coitus reservatus? A negação de uma benfeitoria orgástica, a perversão


masculina do código da diferença dos sexos, perversão que recai sobre o esperma e não
mais sobre as posições ou os órgãos, sendo o sêmen aqui o objeto de uma negociação
entre as duas partes do casal. Técnica tomada de empréstimo aos eróticos taoístas,
adamitas e tântricos, onde o homem é aquele que deve guardar seu sêmen a fim de
acolher em si o exterior representado pela mulher e transformá-lo em algo interior a si
como imortalidade, ternura, deleite.
“Mestre Tong-Hsuan disse: Quando o homem perceber que logo irá expelir seu
sêmen, deve esperar que a mulher alcance o orgasmo. Uma vez que isso aconteça, ele
deve dar golpes breves e continuados, seu membro atuando no espaço que medeia
entre as Cordes do Alaúde e a Caverna em Forma de Grão; que seus movimentos sejam
como os da criança que suga com a boca a teta de sua mãe. A seguir, o homem deve
fechar os olhos e concentrar seus pensamentos, comprimir a língua contra o céu da
boca, arquear as costas e esticar o pescoço. Deve abrir as narinas e retesar os ombros,
fechar a boca e aspirar. Assim ele não ejaculará e o sêmen subirá na direção do interior
de seu próprio movimento. Um homem pode controlar absolutamente suas ejaculações.
1
Quando comercia com as mulheres, só deve ejacular duas ou três vezes em dez.”
Pois, se não preciso de outrem para gozar — postulado humanista desmentido
por qualquer masturbação — a presença do Outro induz um novo tipo de gozo feito
tanto de adiamento quanto de satisfação. Adiar não é apenas retardar, mas também
tornar diferente.
A sexualidade masculina só nos parece misteriosa em virtude de sua absoluta
simplicidade, que a faz oscilar continuamente entre a platitude e o non-sense: primeiro
pedem-lhe que se retenha para compartilhar os ritmos femininos, mas em seguida
pedem-lhe que se satisfaça. A sexologia oficial tem uma aversão profunda pelas técnicas
da reserva: este modo de praticar o coito desafia toda racionalidade, rompe com a ficção
necessária de uma história. Não gozando segundo trajetórias espontâneas, recusa-se a
mitologia hedonista do corpo feliz, reintroduz-se a negatividade no desejo, recusa-se a
ideia de um destino natural da carne. Se em relação à mulher o homem é uma ausência
de gozo, ele poderá gozar com essa ausência, pode ausentar-se de seu gozo, torná-lo
facultativo, esquecer essa dilapidação ridícula que se chama orgasmo genital. O parceiro
masculino pode manter dentro de si a ausência de ejaculação (fazer com que a mulher
lhe falte sempre), pode proporcionar-se uma dificuldade orgânica que tentará superar a

1
De Ars Amatoria, do mestre Tong-husuan. cit. em Van Gulik. La vie sexuelle dans la Chine ancienne. p. 172-3.
fim de prolongar indefinidamente a perturbação erótica. Se o homem tem de suspender
seu gozo, por que não o suspenderia completamente? De modo que para ele o coito
atinja o mais alto grau de intensidade numa negação total de seu princípio.
Compreenderão as pessoas que em certas condições a retenção do esperma possa ser
uma ideia, uma conduta mais excitante que a libação seminal?
Assim, num certo sentido é possível ocupar-se com o erotismo taoísta, adamita
ou tântrico, não como um historiador mas como sendo as personagens de que fala a
história. No entanto, não somos nem taoístas, nem budistas, nem cristãos dissidentes,
estamos falando aqui de um ponto de vista solitário, sem tradição e sem ritos,
exprimimos uma experiência religiosa muito antiga que se situa fora das religiões
definidas. Não se trata de propor ou impor um código novo, nem mesmo de ressuscitar
velhas prescrições cujas admiráveis doutrinas que as viram desenvolver-se funcionariam
de algum modo como garantias ideológicas, mas apenas de considerar uma prática-
limite de toda a sexualidade masculina sem nos preocuparmos com sistematizá-la. Se o
Capital é o desenho variado de tudo em que se acreditou, criou, viu, pensou, é preciso
admitir que a sexualidade é hoje o conjunto de todas as técnicas, nunca imaginadas,
perversões, mas separadas irremediavelmente de sua antiga finalidade lógica, moral e
política. Não há mais significações simbólicas das atividades carnais, apenas sexualidades
leigas, travestidas dos ouropéis de todas as antigas religiões e medicinas, erotismos
cortados de seus pontos de referência, corpos flutuando e privados de imagens. Pouco
nos importa que o coito com as concubinas seja destinado, entre os taoístas, a reforçar,
através da intensificação do orgasmo feminino, a potência do homem para que este se
assegure — quando se deitar com sua legítima esposa — o benefício de belos filhos
homens; pouco nos importa a agitação do Yin e do Yang com fins de reprodução
ampliada, esqueçamos a intenção que está por trás do ato, esqueçamos o protocolo, os
interditos minuciosos, as abordagens metafísicas (inocência, nirvana, imortalidade) e
mesmo o priapismo obrigatório: o essencial continua a ser a ascese da retenção, a
abertura fascinante para a sexualidade da mulher, a inversão do trajeto do esperma no
canal, como um rio que corresse da embocadura para a nascente. Não temos hoje
nenhuma outra razão para adotar essas práticas além das fornecidas pelo prazer. E pela
paixão.
A partir dessa vontade de reserva eterna, duas atitudes são possíveis. Em
primeiro lugar, uma relação de poder do homem sobre sua companheira, a recolocação
mais delicada de um controle que parece dizer à mulher: meu esperma não é para você,
meu esperma não é para ninguém. Prefiro minha força a meu prazer, pois meu prazer é
comum demais para que eu me abandone nele. Vontade tirânica de ereção continuada
que trai a presença de um fantasma de hipervirilização e que vai autorizar todas as
brincadeiras: “Consciente da insuficiência erótica universal de seus contemporâneos, um
outro se coloca como Super-homem do prazer. Faz com que suas amantes gozem através
de carícias incansáveis, de cunnilingus sem fim, trabalha nelas durante horas,
“estourando-as” como os estafetas estouravam cavalos; pode gravar os suspiros
inextinguíveis que ele sabe provocar, e depois passar a fita para seus amigos. Por nada
neste mundo ele teria o mau gosto de ejacular na presença de uma senhora. Ele pode
ejacular depois, na mão, após a partida da senhora, a fim de evitar os incômodos da
congestão períneo testicular; de modo mais comum, ejaculará com sua mulherzinha
2
doméstica ou com uma prostituta”.
Se meu esperma é precioso demais para que eu o ceda a você, é porque estou
fazendo pouco de você, com quem vou para cama, é que em você não respeito nem
mesmo a intensidade ou o ardor que me invade, você não passa de uma parcela do
serralho secreto que constituí para mim, desejo seu gozo apenas para reforçar minha
intensidade, quanto mais você se desagrega, mais eu me desenvolvo e me consolido, seu
anonimato é a garantia de minha pessoa, eu me retenho para não perder a cabeça,
quero poder dizer eu, eu, sempre eu, enquanto você fica apenas gritando... Intenção de
controlar, portanto, com a qual o homem se reafirma como sujeito no momento em que
desarticula a mulher e a manda de volta para os abismos do impessoal, não sendo a
outra aquela que se cobiça mas aquela que se ofende, que se precipita na volúpia a fim
de gozar, a contrario, com seu próprio sangue frio; não ceder à vertigem da carne a fim
de abandonar-se apenas à vertigem bem menos forte da onipotência. Missão niilista que
visa aniquilar aquilo que a outra linha, a partir da qual entender o coitus reservatus, vai,
pelo contrário, promover e que as práticas da poupança e da retenção endossarão: a
abertura do corpo masculino para a diversidade do erotismo feminino, ou seja, a
heterossexualização do pênis; não mais apenas a espera delicada pelo prazer do outro
mas a escuta fascinada de seu gozo tão diverso, tão dissemelhante.
Tudo se passa como se a sexologia pedisse ao homem a reabsorção provisória de
seu sêmen apenas para, a seguir, melhor homossexualizar os dois membros do casal e
alinhá-los conforme a eterna, imemorial férula masculina do orgasmo, não passando a
mulher, nessa ótica, de uma máquina algo delicada a ser poupada em virtude de sua
pretensa lentidão no gozar. Aquilo que o homem espera encontrar na mulher é seu
próprio gozo, porém mais negligente, mais demorado, no fundo de um ventre quente e
não como nele, no exterior. É verdade que os gestionários do bom sexo só progridem na
comparação: eles querem sempre que o coito seja uma operação rendosa, onde fique
bem claro que as tensões foram de fato diminuídas e que a mulher penetrou de fato —
por todos os meios — no destino fixo do prazer masculino. É preciso que haja
dilapidação. Não que o homem tenha uma fortuna a dissipar: apenas um pouco de pó
sobre o qual ele assopra. Mas ele tem de ser ao mesmo tempo o pó e o sopro: é preciso
lavar os corpos do desejo impuro que os habita. Nossos sexólogos — reichianos, master-
johnsonianos, havellock-ellisianos — irão ensinar-lhes a reencontrar a inocência original
dos anjos.
O roteiro masculino do alívio das tensões é, sem dúvida, odiável menos por seus
vícios essenciais do que por reinar de modo exclusivo. Quando a normalidade tiver
assumido formas polimorfas e multidimensionais, será possível gozar, com toda a
liberdade, as antigas regras do comportamento erótico. Que importância terá o fato de o
esperma ser retido ou emitido? Enquanto for retido, o parceiro masculino terá feito

2
G. Zwang. La Fonction érotique. t. I. p. 299-300.
como se nunca fosse ejacular, como se a tumescência de seu membro não tivesse outra
finalidade além de si mesma; a reserva é tendenciosa em toda cópula, a única coisa que
ela faz é prolongar e radicalizar um movimento latente, ela demonstra em seu
extremismo que o gozo viril se faz tanto com a retenção quanto com o abandono, ou
pelo menos que a verdadeira despossessão, para o homem, reside menos na exaustão
do que na disponibilidade para a retenção. Resta compreender o que provoca, em
termos de vertigem, o fenômeno do retardamento.

O desinvestimento do genital

Aquilo que estava descendo passa a subir, assim, na direção de sua nascente, um
fluxo de sêmen branco é deliberadamente detido em sua tentativa de evasão. O
esperma, como o sangue, sempre pronto a fugir, a deixar o corpo... Através da
interrupção momentânea de seu gozo, o homem liberta a energia sexual de seu corpo da
única parte que a continha (no duplo sentido do termo, ele a entesourava e impedia seu
impulso), a autonomiza, a liberta de toda ligação. A ejaculação sempre pode ser
entendida como o recalque, por anulação, de todas as capacidades voluptuosas do
organismo: recusar ao sexo o primado ideal do gozo, operar a desgenitalização da
sexualidade, significa doravante fazer com que o gozo recaia sobre todos os outros
órgãos, erotizar o conjunto do soma. Se o apaziguamento do aparelho genital se faz
sempre acompanhar pela queda brutal do potencial erótico masculino, a reserva será,
pelo contrário, uma festa da Irradiação, O que significa então esse falo tão estimado e
tão temido? Um objeto dispensador de amor e de prazer mas que não possui, ele
próprio, a potência por ele simbolizada, porque ele a transmite para todo o corpo, um
órgão com o qual não se deve gozar se se pretender gozar com todos os outros As
crianças, diz Fourier, fazem de seus estômagos um Deus; não se deve fazer um Deus do
próprio falo, caso contrário esse Deus vampirizará, em seu proveito, o organismo que o
carrega; mas fazer dele talvez um Cristo, uma antena, um termo intermediário que
mantenha o contato com o outro e que assegure em si mesmo a mobilidade do prazer,
não mais o inferno e o paraíso conjugados mas essa graça na qual o paraíso pode ser
imerso e refluir sobre nós.
A ejaculação, com suas três características, passagem de um interior para um
exterior, evacuação de uma obstrução, concentração exclusiva do prazer num pedaço de
carne, será então menos negada do que desorientada, alterada em relação a seu eixo.
Se, portanto, o reservatus é importante para nós, não o é em razão de eventuais
virtudes terapêuticas (?) mas por sua finura na procura de uma mutabilidade e uma
desterritorialização do gozo: não atribuindo ao prazer do homem certas localizações
demasiadamente imperiosas, ele dilata o pênis até fazê-lo atingir a dimensão do corpo,
transforma-o em meio de exploração de sensações inéditas e não em veículo obrigatório
de um prazer transitório. A emoção, não mais podendo ser imobilizada detida em uma
região bem definida, espalha-se por todas as partes do corpo, multiplica suas superfícies
sensíveis e faz do homem não mais o afálico mas o polífalo. O coitus reservatus frustra os
sentidos de seu objeto, converte essa frustração em uma faculdade evocativa de coisas
ausentes ou inacessíveis (por exemplo, o orgasmo da mulher) a tal ponto que essa
inacessibilidade se torna a condição sine qua non da excitação masculina: e então o
sujeito engajado no ato de amor pode imaginar a ejaculação não como o fim do enlace
ou seu significado constrangedor, mas como uma simples tentação à qual ele cederá ou
não, segundo sua vontade. Não gozando com o órgão peniano, o indivíduo goza não
apenas com todo o êxtase possível da amada mas também, em seu próprio corpo, com
um gozo flutuante, desligado, móvel, mantendo a tensão erótica num nível elevado. O
sexo levantado torna-se ao mesmo tempo meio e obstáculo, aquilo que deve ser
animado — ainda que com o dedo — para manter o vigor eretivo, aquilo cujo impulso no
entanto é preciso frear, bem como a cega e brutal tendência para se perder no suspiro
de um jato branco. O sêmen deve estar sempre a ponto de jorrar e retornar dessa
iminência, o importante consistindo em saber até onde o esperma pode chegar no canal
da uretra. Sobrevêm então, de modo paradoxal, não uma rarefação, mas uma
identificação das mensagens sensitivas do membro, assim como sua anestesia quase
completa em relação ao encaminhamento seminal.
Já se percebe aí aquilo que se poderia chamar de uma primeira feminização do
ser masculino, sua metamorfose segundo uma disposição bissexuada: reter o sêmen é,
de algum modo, tender a fazer sair do pênis uma espécie de vagina: vagina não pelo fato
de ele poder ser por sua vez penetrável, mas no sentido em que o membro, não mais
sendo um canal de transmissão, coloca-se em estado de porosidade, de disponibilidade
total não apenas diante das substâncias energéticas refugiadas nas pregas do corpo
feminino, mas também diante das emissões sensoriais as mais diversas do organismo
que o sustenta. A doença própria do homem no plano sexual consistiria, no fundo, em só
poder expulsar seu prazer (no duplo sentido de propulsioná-lo para fora e escorraçá-lo
para longe de si mesmo), com esta evicção funcionando no sentido de proibir-lhe que se
expulse a si mesmo de si mesmo, que se perca em seus abismos. O que o corpo rejeita é
também aquilo que não o derrubará, mas que lhe permitirá recuperar seu domínio
momentaneamente contestado. O homem não tem saída em sua toca de raposa: no
momento em que pensa estar vendo uma luz, sentindo um calor que queima, na
verdade aquilo que aparece é uma nova entrada e as sombras se fecham sobre ele;
perseguido por um círculo vicioso, ele está sempre à procura de um atalho para sair de si
mesmo e acaba sempre encontrando apenas uma entrada através da qual volta para si
mesmo Somente guardando sua pequena quantidade de sêmen é que o homem pode
redistribuí-la por todas as partes de sua carne, transmutar-se, imergir em si mesmo,
numa espécie de fluidez voluptuosa, e aproximar-se mais (evidentemente sem chegar a
conhecê-lo) do prazer feminino. Anulando a ejaculação enquanto passagem do interior
para o exterior, o ser masculino reinveste seu sêmen posto em circulação pela agitação
de seu pênis, dissemina-o, espalha-o dentro de si mesmo, entrega-se a um trabalho
interno de intensificação de todas as superfícies, de todos os contatos. O que é uma
ereção? Esse estado corporal de ramificação absoluta em que o organismo, dotado de
uma dimensão suplementar, torna-se atento às menores solicitações; é o
desdobramento de mil antenas, a abertura, no meio do ventre, de um lugar de acolhida
para o mundo. Pode-se ficar surpreso diante dessa turgescência que não é a afirmação
de uma força brutal mas a negação — violenta — de toda violência masculina; sobre a
rigidez o homem acrescenta outras coisas, ele se coloca do lado da lei, finge sobreviver à
letra do conformismo viril, mas na realidade ele o saqueia, só aumenta sua potência de
ereção a fim de destruir o mito da ereção, suspende todo domínio através do
instrumento mesmo da dominação. E então o pênis torna-se um vazio como se fosse
uma vagina, aspira, suga, morde, fricciona e bebe aos goles os licores femininos, torna-se
uma forma impessoal e anônima a fim de receber em si as forças que o transfundem e,
através do esforço da ascese, mantém aberta a separação (as duas margens do canal), a
permeabilidade da glande a fim de que as sensações não se ericem, não se amarrotem,
não fujam. O essencial é permanecer aberto, confirmar a abertura, não ficar surdo aos
processos sensoriais minúsculos que cisalham a pele; mergulhar no disperso sem se
perder, enfrentando um indeterminado que permanece como coisa calculada,
dominada, a fim de não deixar escapar os frutos da busca voluptuosa. Sobrevêm então
um gozo que não é mais a repetição degradada do êxtase feminino, o pálido reflexo de
um dilaceramento divino, mas uma efusão indelimitável em que os signos do prazer não
se oferecem mais de modo claro; onde os movimentos dos rins, dos quadris e das
pernas, o frêmito de cada poro da epiderme, a mistura de bocas e salivas bastam a si
mesmas, suscitam a cada passo a emoção que os incendeia, alegria não desfeita por
nenhuma privação e que não precisa de mais nada (sobretudo do orgasmo). Tomando
sua sexualidade natural a contrapelo, o homem não é mais essa excrescência de carne
que vem tampar a falha do Outro feminino, ele mesmo se transforma numa falha, numa
fenda, sulco, entalhe, membro duro que fez o vazio dentro de si, sexo que não recebe
nem dá, mas multiplica as circulações e as ramificações, agita o sangue com a água, a
água com o fogo, o fogo com as secreções marinhas, aspira à coincidência entre eles e
torna insustentável a distinção entre uma coisa e outra.

O esquife peniano no rio Amor

“O sentimento de felicidade quando da satisfação de


um movimento pulsional incontrolado do Eu é
incomparavelmente mais intenso que a saciedade
proporcionada por uma pulsão aprisionada.”
Freud

Se a atividade sexual nunca teve por finalidade — a não ser no espírito dos
legisladores — a procriação, por que não ir ao fundo da coisa e reter em si esse sêmen
responsável por uma pululação descontrolada? Como não conceber a aversão particular
que o homem dedica a seu esperma, a essa substância que veicula e leva embora
consigo toda a libido; que, retida, irradia o corpo com ternura mas, dispersa, incita a uma
submissão humilhante ao princípio de realidade, ao princípio da troca, sendo o orgasmo
para o homem uma ilusão sem futuro?
Não ejacular para o homem é, portanto, permanecer com um capital sempre
disponível, uma disponibilidade passível de ser distribuída por toda parte. A técnica do
coitus reservatus não implica recalque, não suscita nenhum tormento, nem mesmo uma
lenta degradação fisiológica, se é que é fato que o maravilhoso para o homem consiste
na ereção, na suave vertigem do enxerto no corpo feminino, muito mais que na
castração genital do coma orgástico. Enlaçar-se significa, assim, perguntar: que
sexualidade vamos escolher? Uma sexualidade monomorfa, linear, circunscrita, ou um
erotismo polimorfo, que instala no corpo do sujeito um espaço confuso, criando através
do próprio controle que ele pressupõe “uma matriz de prazer não sexionado pela
3
ejaculação, na realidade”. Se o homem poupa seu sêmen, não é que queira “guardar
4
seu tesouro como se fosse um avarento”, o esperma não é ouro, nem mesmo um
modelo reduzido de um dispositivo monetário, mas sim a fim de gozar de outro modo.
Essa poupança não é mortal ou capitalista, a anulação do gasto espermático implica a
abolição de uma fadiga que incidia sobre a repetição do ato sexual e, portanto, na
realização deste, livre doravante para ir correndo se colocar em outro lugar, livre para
recomeçar. Assim, deve-se compreender a retenção como revivescência, procura de um
aumento das forças, estoque de forças, a fim de serem postas ulteriormente em
circulação: a energia fixada nas bolsas escapa da máquina ejaculatória e vai dispor-se de
outro modo, liberta da potência, e garante a possibilidade de uma repetição ao infinito
do ato assegurado, mais difuso, a aspiração mais continuamente vigorosa, a exaltação
permanente e os objetos, brilhantes em seu brilho primeiro sexual. Existe o movimento
na direção de uma frieza aparente e esse movimento é ardoroso: a homogeneidade da
força corporal é investida intensamente, do mesmo modo como a neutralização do
membro se faz acompanhar por sua extrema excitação. O ser assim liberado de sua
necessidade genital não marcha para a imobilização; pelo contrário, torna-se uma
superfície que não se pode apreender, superfície selvagem sobre a qual podem aparecer
5
os mais diversos pontos de efervescência.
O corpo inteiramente mergulhado no erotismo prolonga — sem limitações — o
tempo pré-orgástico, esse tempo onde o prazer é menos assegurado, mais difuso, a
aspiração mais continuamente vigorosa, à exaltação permanente e os objetos, brilhantes
em seu brilho primeiro. Economizar-se, como diz o Tao, pois o sêmen pode ser colocado
em toda parte, negligenciar o mercado principal e dispor-se em todos os outros lugares;
e através da retenção incluir na circulação do sangue e das vísceras novas quantidades
de energia que multiplicam incessantemente os espaços do gozo, dando às pulsões
parciais novas ocasiões para manifestar-se no corpo e tornando aleatória a unidade
deste último. O falo torna-se o lugar de uma alquimia erótica, instrumento de música de

3
Lewinter, op cit.
4
G. Zwang, op cit.
5
A revolução como espaço-tempo, que abrange em si todo o corpo social e o leva para um além, é solidária com
o quadro institucional do orgasmo; o desejo de revolução só pode ser assim o desejo do orgasmo, desejo de um
centro que promova a abolição e a descarga de todas as tensões; ao encontro desse Jacobinismo político e sexual,
observa-se o aparecimento, há alguns anos, de agitações selvagens e imprevistas nas fábricas, nos campos, nos
colégios, efervescências semelhantes aos processos polimorfos do gozo e que não podem mais ser pensado
segundo um princípio único.
vários registros e o enlace passa daquilo que é traçado ao redor de Um para aquilo que é
traçado ao redor do plural, do pluriano.
Contido em seus impulsos libatórios, o membro se transforma em órgão de
triagem energética que redistribui a libido; a energia mergulha espontaneamente num
conduto; é preciso aprender a dirigi-la para outra parte a fim de espalhá-la por toda
parte, fazer com que irrigue outros canais, outros vasos (e por que não sonhar com um
esperma ou outra substância similar que percorresse cada membro, cada circuito
nervoso, cada mucosa, cada veia, cada cavidade de um corpo atravessado em toda a sua
superfície por altas e constantes cargas elétricas?) Portanto, trata-se de não pretender se
desfazer de nossa excitação, não se libertar de nossas tensões, da pressão do sangue e
do sêmen; não substituir um gozo local e limitado por um bem-estar corporal
generalizado, não reduzir o flutuante ao conhecido, não fazer, como os sexólogos, um
trabalho de exorcista ou de inquisidor que massacra o corpo bestial, o corpo desejante,
não procurar uma perturbação suprema a fim de curar-se de todo tipo de perturbação
mas permanecer em estado de possessão permanente, gozar com não ter o corpo
reunido, gozar com as correntes, as forças que torcem e convulsionam simultaneamente
o ser ao qual estamos ligados. E então, com o prazer seminal não sendo mais exclusivo,
ele se torna para o homem uma isca suplementar e até mesmo uma alegria excepcional
à qual ele cede ou não cede mas que, em caso algum, ele vive como uma castração
imposta.
Em suma, não se trata de opor-se a esses valores (o orgasmo, a ejaculação), mas
de costeá-los, esquivar-se deles; toma-se a tangente, vai-se para outro lugar e evita-se a
oposição estéril bem/mal, sadio/doentio, normal/patogênico. Em outras palavras, não se
pode fazer da retenção do esperma a panaceia universal nem fulminar, em nome da
onipotente natureza, os protocolos minuciosos do reservatus; não se pode fazer uma
regra nem da reserva, nem da ejaculação, mais sim produzi-las ambas como sendo uma a
exceção da outra; e cada uma delas como sendo o desvio em relação à norma (ao abuso)
que representaria o emprego exclusivo de seu contrário. E então não encararemos a
emissão e a retenção como sendo polaridades irreconciliáveis, mas como vias de acesso
divergentes ao gozo, cada uma arrastando consigo mundos incomunicáveis e no entanto
presentes em todo homem.
Continuando sensualmente excitados, experimentamos uma defasagem, uma
irregularidade, uma verdade erótica do real que nos retorce os nervos; no auge da
excitação, descarrilhamos. Saímos dos trilhos canônicos do prazer. Sendo a evacuação
seminal a descida natural na direção da morte do desejo, recusar a ejaculação equivale a
trair essa morte programada e trair ao mesmo tempo a lei da espécie existente em nós.
Sem dúvida não existe um enlace intenso para o homem se alguma coisa de anormal não
o tira de seu rumo, se não se chega ao aniquilamento através da regulação absoluta do
princípio de desregulação, violência e perda. Fazer o corpo gaguejar, impedir que o
orgasmo se apresente como um alfabeto imotivado; que o sêmen não escorra num
mesmo grande canal que seria a estrutura única da relação sexual, que ele não passe
sem transição do parlamento testículo-peniano para o senado vaginal, que ele pelo
menos circule, reflua, volte, se disperse, retenha o indivíduo, anule até certo ponto a
bipartição antes/depois e se torne a preliminar de um ato nunca realizado porque
irrealizável. Um suspense, se se preferir, mas despojado de futuro, sem uma espera em
particular. O erótico taoísta diz: corte o sêmen, continue a relação de um outro modo.
Não ejacule (ejaculação: o que desliga, desfaz a ligação, desenlaça o enlace, enquanto a
reserva efetua o desligamento no próprio âmago da união voluptuosa), entre numa certa
relação de risco com a incerteza e a ignorância, abra-se para a surpresa, não permaneça
no espaço tranquilizante da detumescência. não procure ficar sóbrio tão depressa.
O homem não pode deixar de sentir a sensação do prazer ejaculatório ao mesmo
tempo, como uma virtualidade de experiências espirituais e carnais de todo tipo e
também como uma traição dessa virtualidade. Subjetivamente, certo, ele não vive o
orgasmo como o último prazer, mas como um prazer entre outros; é a “Natureza” que
lhe prega a peça da volúpia final, armadilha tanto mais cruel quanto não desejada.
Se a satisfação se ordena assim de modo espontâneo sob a forma de um relato
através de peripécias que terão como característica o fato de tender para um fim, não se
pode deixar de ver o coitus reservatus como contranarrativa, máquina de retardar os
prazos, tentativa de abertura para a alteridade através da indefinida suspensão do
similar. Ele não assimila o diverso na unidade de um alívio, mas faz de cada sensação, de
cada pedaço de pele, um caminho de travessia potencial, o lugar possível de uma
intensidade. O homem não é aí aquele que se perde (aquele que perdeu seu caminho e
procura o caminho certo), mas o desorientado, ele não procura nada e quer a
diversidade dos labirintos, a multiplicação de todos os desvios possíveis.
Arte de amar na qual se percebe uma totalidade inacabada, que namora a
imaginação, mas o pouco que fica faltando não pode ser realizado, sua realização
destruiria de um só golpe o frágil edifício que a trégua da emissão colocou no corpo do
homem. Se é preciso que o membro permaneça ereto, é porque existe nesta exigência
uma espécie de segredo a preservar. Quando a vagina não é mais o receptáculo do
esperma, mas o lugar da vagabundagem do pênis, o homem só acede a um gozo
abstrato através de um objeto que contenha a possibilidade (mas apenas a possibilidade)
de todos os gozos, quando o pênis se oferece como representante material de todo o
prazer possível. Aquilo que a mulher vive concretamente, o ser viril só pode
experimentar em abstrato. A retenção apaixona o corpo de modo exterior aos objetos
que a suscitam e libera o desejo masculino dos arquétipos que o sujeitam: nem
afirmação de si no coito (uma vez que se trata exatamente de se desvirilizar), nem uso
funcional de um objeto de prazer. O que acontece nesse ato de colocar entre parênteses
o orgasmo vai além de toda unidade, adequação, conformidade: na retenção indefinida
do transbordamento seminal, muitos futuros podem vir inscrever-se, com uma
amplitude e uma extensão sem limites determináveis. E a cópula não terá para o homem
a eficácia de um desvio a não ser que, esvaziada de todo sentido preestabelecido, ela
mantenha aberta, e suscetível de múltiplas combinações, a disposição pervertida,
indefinida, dos possíveis de seu gozo. E sem dúvida a sexualidade masculina ainda assim
vê-se prisioneira de uma esperança contraditória: ela espera escapar à amarga condição
da perda recusando ao pênis seu gozo, enquanto, no mesmo momento, ela morre de
vontade de abandonar-se, de estabelecer para si, enfim, esse presente voluptuoso
infinito no qual a mulher se banha sob seus olhos. O homem só atinge a libertação
orgástica através da mulher enquanto ele mesmo se põe no estado de experimentar a
mais forte vontade, prelúdio intenso de orgasmo fantasmáticos que deverão, para tanto,
nunca ser sentidos. E, então, não podendo gozar de si, o homem goza com o gozo sem
fim da mulher, liberando — evitando o risco inesperado da parada — as inúmeras
riquezas desse exterior no qual está preso. Se a mulher deve manifestar-se, isto é, no
sentido literal do termo, expulsar a si mesma de todo lugar, não mais habitar solo algum,
o ser masculino, a partir do momento em que não quer recair na regulação adulta do
genital, só pode permanecer em si mesmo, se “desresidir” comprimindo-se sob pena de
romper irremediavelmente o sonho de onipotência voluptuosa que a reabsorção não
deixa de suscitar nele.

Um Moisés sem terra


*
“Dans le mot amour, il y a le mot mur.”
Edmond Jabès

Aparentemente, cobrindo-se de carícias, se afundando em beijos, murmurando


palavras suaves, eles tendem à identificação... Quantos são os amantes quando fazem
amor? Um, quatro, oito? Eles responderão que o importante para eles é serem dois, pelo
menos. A respeito, nada mais ridículo do que apresentar a união voluptuosa em termos
de reciprocidade, de confusão entre identidades. Se é fato que toda sexualidade acarreta
a outra, nunca há reversibilidade entre o meu e o seu no enlace, e menos ainda
passagem alternada do gozo de um corpo a outro. O que homem e mulher dividem não é
uma comunidade de interesses, de prazeres, de paixões, mas sim o gosto de sua
recíproca estranheza, uma ignorância insuperável um do outro. No mais profundo da
mistura das carnes, espelho algum fornece, com exatidão, o reflexo de um parceiro para
o outro, não evoca uma androginia qualquer ou a miragem de uma complementaridade
que os amantes teriam esboçado ainda que por um minuto: as emoções não se
confundem.
Pensar até que o homem pudesse, na evanescência das regras amorosas,
esquecer sua pequena pressão do dedo esquerdo entre o escroto e o ânus, perder a
cabeça, a lucidez, entrar num novo espaço de singularidades não comensuráveis, em
suma, que o coito heterossexual pudesse escapar à estratégia, isto. é, ao mercado “da
6
morte incluída nas eventualidades estimadas”, é construir a ficção — bem masculina —
de uma indiferenciação sexual e acreditar que o sujeito masculino é bastante generoso,
bastante desencarnado a ponto de esquecer a parcimônia de seus próprios circuitos

*
“Na palavra amor, está a palavra muro.” (N. do Trad.)
6
J. F. Lyotard. Eco. lib.
eróticos, é silenciar sobre o fato de que o homem, enquanto se ativer apenas ao pênis,
não disporá de um estoque infindável de recursos sensuais, que ele deve sempre
comparar e introduzir o negócio no ato amoroso e que, finalmente, não existe, na
eroticidade masculina, a pureza de um lugar intenso submetido à irreversibilidade
libidinal dos puros gastos, mas sempre uma mistura de cálculo e abandono.
Vamos ler de novo a Ars Amatoria chinesa: “A Mulher Escolhida pergunta: o
prazer do ato sexual não reside na emissão do sêmen? Ora, se o homem se retém e não
ejacula, que prazer pode sentir? P’ongtsu respondeu: Na verdade, após a emissão o
corpo do homem está cansado, seus ouvidos zumbem, seus olhos ficam pesados de
sono, sua garganta está seca e seus membros, inertes. Embora ele tenha experimentado
um breve momento de alegria, não se tratou de uma real sensação de volúpia. Se, pelo
contrário, ele pratica o ato sexual sem ejacular, sua essência vital será fortalecida, seu
corpo se sentirá bem, com audição perfeita e vista penetrante; ainda que o homem
tenha reprimido sua paixão, seu amor pela mulher aumentará. É como se ele nunca
7
pudesse possuí-la suficientemente. Como dizer que não há volúpia nisto?” Reter o
sêmen significa, portanto, colocar-se no mesmo nível da mulher, isto é, ver-se na
condição de nunca se satisfazer suficientemente, recusar toda ideia de suficiência. O que
o homem não pode alcançar através da emissão seminal, ele tenta obter —
negativamente — através da retenção. Seu prazer específico torna-se assim prazer de
apreensão infinita, a abertura para a parte feminina do prazer: através da ascese, o
homem desperta a mulher existente nele e se abre como meio penetrável para as
solicitações de sua própria organicidade. Em estado espontâneo de déficit voluptuoso,
ele tem de reservar seu prazer — pequeno múltiplo que traz consigo a perspectiva
assustadora de um retrato imediato das águas; para ele, somente a inibição quanto à
finalidade é sinônimo de sensibilidade mantida, de ternura contínua.
Dito isto, duas linhas, aparentemente contrárias, vão reunir-se aqui no mesmo
mito idealista da fusão dos contrários. Para os adeptos do coitus reservatus, esta técnica
“identifica de algum modo a dialética sexual masculina com a dialética sexual feminina:
como esta, ela transforma o corpo em espaço matricial, ela assimila em Eros o homem e
a mulher, colocados assim como parceiros de fato iguais, reflexos adequados: não mais
8
em desacordo pela diferença, mas de acordo pela identidade (...)” O enlace como
reintegração das polaridades, solidariedade essencial entre duas antinomias: essa é a
eterna cantilena dos erotômanos e sexólogos ocidentais: “O momento do orgasmo
recíproco também é o da suprema comunhão, da suprema troca, ele torna os sexos
complementares e alcança o lugar onde o Ser somatopsíquico comunica com o
impensável — alteridade intra-específica. Ele junta as duas metades do andrógino numa
fulgurante exaltação do ser pleno reconciliado, dilatado de felicidade e alegria, gozo da
9
tão fugaz mas tão feliz completude sexual”.

7
Cit. em Van Gulik, op. cit., p. 189.
8
Lewinter-Groddeck, op. cit., p. 109.
9
G. Zwang, op. cit., p. 498.
Ora, o que pressupõe o orgasmo recíproco, primeiro prêmio da vitória erótica?
Que os dois gozos, da mulher e do homem, são idênticos, construídos sobre o mesmo
modelo de descarga emocional e que o sucesso de um relacionamento sexual (mas nesse
caso por que falar ainda de fracasso ou sucesso, se o erotismo não tem finalidade, qual é
o critério para avaliar o bom desempenho?) depende apenas da coincidência no tempo,
um problema de ajustamento, de encenação, de regulagem do tiro, uma vez que a
mulher está sujeita a atrasos e o homem a precocidades. Aqui, volta-se a ouvir, numa
linguagem mais moderna, o velho discurso platônico do Banquete: “O amor recompõe a
antiga natureza, esforça-se por fundir dois seres num só e curar a natureza humana... A
razão disso é que nossa antiga natureza era assim, e que éramos um ser completo: é
esse o desejo e a busca de tudo aquilo que chamamos de amor”. Como se o jorro
masculino não fosse apenas um momento no gozo feminino, como se o instante radioso
do orgasmo compartilhado não fosse também, para os parceiros, o momento do maior
distanciamento. O auge voluptuoso não é o instante da união total entre os amantes; é,
pelo contrário, o ponto de separação entre eles: nunca o homem está tão longe da
mulher do que quando esta goza, completamente perdida nas esferas de seu corpo
fabuloso. A intimidade é percepção aguda de uma distância intransponível,
restabelecimento de um desvio, de um desnível profundo entre as personagens
envolvidas: amar significa então separar, invariavelmente, separar aquilo que a vida
corrente uniu na indistinção cega do gregarismo; e levar ao máximo as diferenças mais
acentuadas entre as pessoas. Não haveria relação carnal sem essa inadequação
fundamental, essa impenetrabilidade absoluta em que dois seres partem, cada um de
seu lado, com seus pequeninos gozos inconfundíveis. A emoção voluptuosa é percepção
de um dilaceramento que não desemboca em nada, não permite a comunicação, mas
que se afirma, pelo contrário, como divisão eterna, choque, catástrofe, e essa catástrofe
é jovial: ela faz com que nos desejemos, que não haja entre nós nada além de
disparidades, nenhuma similitude. Por que o êxtase do outro me excita tão fortemente,
senão porque ele cava entre mim e esse outro a distância irredutível de um mundo para
o qual o outro resvala, penetrando em regiões que desconhecerei eternamente? E é fato
que a negação do gozo marca no homem um desejo evidente de conhecer pelo interior a
outra face do mundo humano, como uma tentativa de transversalidade no sentido de
pôr em comunicação os sexos colocados em compartimentos estanques. Com suas
convulsões, a mulher não deixa de ameaçar o homem, de abrir brechas na roupa sem
costuras de sua sexualidade; e é por isso que ele manterá sua cobiça dividida e afastada
como as duas pinças de uma tenaz, se manterá fora de si (uma vez que o fora de si da
ejaculação não é mais que um lancinante retorno a si), estrangulando suas aspirações à
liberação orgástica. A mulher representa um modelo que retira do homem a tautologia
de seu erotismo e proíbe-o de fazer de sua atividade sexual uma versão de si mesmo
magnificada pelo desejo. Imitando a amada, tentando assemelhar-se a ela, o homem
torna-se candidato a ser aquilo que ele não é, não mais contempla no outro seu próprio
reflexo invertido.
O gozo da mulher está fora do alcance de toda palavra, de todo comentário, de
toda explicação, a menos que seja atingido através de um outro gozo que supostamente
deveria ser idêntico em variedade ou pelo menos em intensidade: não é possível falar de
tal encantamento mas apenas falar nele a seu modo, penetrar num plágio louco, afirmar
histericamente um mimetismo gestual e vocal. A retenção do sêmen é seu modo de
desposar — por ausência — o deslumbramento feminino e, através dele, alcançar a
indiferenciação primitiva do Paraíso. Mas aqui a cópia nunca se junta ao modelo, só é
cópia por pressentir um modelo nunca acessível. O homem está sempre à beira do gozo
da mulher: ele só o conhece através do olhar, dos olhos, da boca, da carícia, mas não o
conhece por dentro: se ele quiser sucumbir a essa tentação de ter e conhecer esse gozo,
de identificar-se com o Ser do Outro, logo se verá aquém de toda capacidade, de pênis
mole, um garotinho, organismo murcho, aniquilado. O ser masculino não pode penetrar
nesse real deleitável e horrível que se representa bem perto dele, tão perto que
permanece, para ele, eternamente fechado. Só conseguindo no máximo alcançar um
estado de androginia espiritual, a partir daí ele pode imaginar o impossível, sonhar que a
cavidade sedosa da vagina passa por ele, que ele experimenta aquelas deliciosas
queimaduras, as alegrias convulsivas, que por sua vez ele se toma um esconderijo
profundo, deslizante e ardente para um outro, e que ele finalmente partilha com sua
companheira as turbulências da mesma viagem. A única experiência interior que o
homem tem é a de uma bissexualidade virtual ou, melhor, a bissexualidade masculina
nada mais é que o virtual feminino. O gozo feminino expressa um mundo possível,
desconhecido por nós. Mundo que é preciso decifrar, interpretar, ao mesmo tempo em
que sabemos que continuaremos a ignorá-lo para sempre. Nos orgasmos da mulher há
universos inéditos pelos quais tanto mais nos apaixonamos, quanto mais adivinhamos a
distância insuperável a que se colocam de nós. Os gestos da amada, no exato momento
em que parecem dirigir-se a nós, dedicar-se a nós, expressam essas regiões obscuras que
nos excluem. E não se trata aqui, como no ciúme, da “imagem de um mundo possível
10
onde outros seriam ou são preferidos”, pois a imagem esboçada pela mulher é a de
uma terra inabordável, onde ninguém pode ser preferido porque ninguém tem acesso a
ela (talvez apenas uma outra mulher...) Pelo fato de nesse êxtase eu não ter rivais a
temer, nem relações concorrenciais a sustentar, por estarmos à beira dessa fronteira que
se abre para o nada, somos todos exilados, chocando-nos sempre contra uma linha que
não separa duas regiões, mas que se constitui na separação absoluta. Tão fino é o
tabique que separa o homem da mulher que esse tabique é irredutível, tanto mais
impossível de ser atravessado quanto, a seu modo, não é nada. Contendo-se, a única
coisa que o homem terá conquistado é o direito ao nomadismo. Nada lhe é prometido:
sobretudo, nenhuma terra da promissão. A intensidade, ele só a conhecerá como
horizontalidade a perder de vista, sem interrupções, sem oásis onde acampar. Ele só se
detém na mulher porque seu gozo doravante não tem mais lugar nenhum, não está em
lugar nenhum.
Diante dos arrebatamentos amorosos da mulher, o ser masculino não pode ser
nem físico, nem metafísico, mas egiptólogo, decifrador de signos que não são mentiras,
que não escondem o que expressam, não dissimulam e, portanto, não oferecem

10
G. Deleuze. Proust et les signes.
nenhuma realidade tangível por trás de sua aparência imediata. Tudo existe nessas zonas
luminosas do gozo em que penetramos como se se tratasse de criptas, para nelas
decifrar, através de nosso próprio prazer retido, hieróglifos e linguagens secretas, para aí
empreender, como viajantes imóveis, uma iniciação em relação à qual já sabemos que
ela nada nos ensinará. A volúpia da amada não é nem mesmo isso; é uma verdade que
não se enuncia.
Um homem diz que quer uma mulher. Com isso ele está querendo dizer que quer
possuí-la furtivamente a fim de derramar-se nela? Tomá-la como se fosse uma terra,
receptáculo onde pode enfiar sua semente e pronto, pouco importa se ela dê frutos ou
não? E se, pelo contrário, não fosse um exutório para a pletora de seus órgãos que o
homem procura na mulher, mas o gozo do outro, a imagem de uma desrazão soberana a
respeito da qual o mínimo que se pode dizer é que ela não lhe é familiar? E se fosse para
falar mulher, gozar (como) mulher, ouvir gritos de mulher que o homem se aventura à
maximação — mesmo que se queime nela — dos orgasmos de sua parceira? Um novo
Moisés, contemplando fascinado uma Terra Prometida na qual não pisará, na qual não
penetrará... As duas partes do casal não falam a mesma língua. Não são os mesmos
órgãos, as mesmas volúpias que as aproximam, mas sim a paixão — inefável — que
sentem por sua própria indiferença.
Apenas a mulher é que se constitui na aventura maior do enlace amoroso. O ato
venéreo seria a história sem história da morte de um desejo, se não fosse
constantemente perturbado pelo advento imprevisível (em sua ocorrência e em suas
conseqüências) do orgasmo feminino, da violência báquica que tudo derruba. Na mulher,
o homem se vê confrontado com o inimaginável, ele se aproxima desse estado
paradisíaco em que a imaginação não pode ser saturada pela experiência ou estragada
pela rotina, porque ela não pertence à ordem de um saber ou de um poder e porque
tornando-se realidade esse inimaginável (sem a intermediação do imaginável, sem a
passarela das imagens), o homem se vê tomado de pânico e acometido por vertigens.
Quando nenhum orgasmo é colocado a sua disposição, torna-se necessário
resolver se se vai partir para o roubo do orgasmo dos outros; roubar do taoísmo sua
eroticidade, rouba da mulher suas volúpias, gozar por subtração, por transgressão. Se na
palavra amor (amour) está presente, segundo a admirável expressão de Jabès, a palavra
muro (mur), diremos que o desejo amoroso é sempre desejo desse muro. Pois nem
todos os muros têm a solidez, a tristeza e a hostilidade de uma muralha de prisão, e os
amantes não se embriagam apenas com as diferenças entre eles. A relação sexual não é
a elaboração de uma transparência mas a medida de uma dissimetria que nada vem
atenuar.
Se há uma lei da intimidade amorosa, é neste sentido particular em que essa lei
não se reúne, não aproxima as partes num todo mas, pelo contrário, regulamenta os
intervalos, os distanciamentos, as separações. Os amantes amam-se por assim dizer com
telescópios (e não microscópios), porque as distâncias infinitas que os distinguem
subentendem sempre atrações infinitesimais que requerem vastas perspectivas. O
infinitesimal é o poder de telescopar fragmentos, de pôr em marcha universos
diferentes, de atravessar, sem anulá-los, enormes extensões: é o amor pelo detalhe
enquanto este último concretiza e multiplica os afastamentos desiguais, fracionados. A
nudez não me aproxima do outro, apenas consagra nossa separação: as mulheres têm
um corpo que não temos, um corpo extático. Os amantes nunca cessam, durante o
enlace, de se viverem como seres descontínuos, mas sua des- continuidade não é tão
hermética diante de toda passagem, de toda tentativa de fusão com o outro: aberta, sim,
mas para sua própria abertura, aberta pelo desejo de se abrir, interpelada, observada
pela abertura do outro, mas não extraindo desse vazio nenhuma faculdade de
transfusão: o prazer não passa da vagina para o falo, não atravessa as membranas, o
órgão que a penetra e a cavidade que o recebe estão colocados em compartimentos
estanques, a emoção é incomunicável. O amor é a prova exaltante da elisão do outro.
O homem pode morrer em virtude do contato ou do não-contato: ele só “se
efemina” direito se achar a distância acertada: nem demasiado perto da amada, ou
demasiado mimético, pois morreria fulminado pela ejaculação; nem longe demais na
arrogância de um puro vcyeurismo, pois assim deixaria de lado a emoção. No fundo, ele
dispõe de duas maneiras para gozar com uma mulher (de aproximar-se dela por
equivalência): dois tipos de fusão, na verdade tão pouco fusionantes tanto um como o
outro: uma fusão fugaz, fugitiva, fraca, através do jato de sêmen, e uma fusão ativa
através da retenção do esperma que opera — por ausência — a identificação do ser
homem com o ser mulher, ficando claro que mesmo nesse caso o homem sempre pode
terminar por um desenlace à moda genital. Maneira de viajar na extrema reserva,
maneira chinesa, adamita, tântrica (outros tantos termos que não significam mais muita
coisa e dos quais degustamos exatamente o non-sense relativo), maneira de se apossar
do fundo inesgotável do orgasmo feminino, de reanimar a ferida da sexualidade, de não
procurar cicatrizá-la: desejo de durar que quer arder e recusa de recair sob o império da
lei do Tempo e da Morte. A máquina não está funcionando, mas seus fracassos são
benquistos. O masculino e o feminino coabitam, sim, mas como se fossem dois
estrangeiros que, enlaçando-se, acariciando-se, dando-se um pouco mais um ao outro,
não parariam nunca de se escapar mutuamente, de se perder, de fugir um do outro; o
orgasmo, os orgasmos que reanimam ainda mais esse sentimento de uma não-
coincidência fundamental. Eu te amo; não o bobo “Eu sei que você não me ama, uma vez
que você não ama ninguém além de você mesma! Eu sou como você. Me ame” (R.
Vaneighem), mas eu te amo porque ao teu contato não sou mais eu, emigro para fora de
meus limites, não havendo nada que me seja mais indiferente que eu mesmo. Eu te amo
porque, juntos, nos abrimos para o desconhecido que não somos. E este desconhecido
não é o mesmo para você e para mim.
O que é o ato heterossexual? Uma cena onde um dos atores é obrigado, a fim de
que a peça caminhe bem, a pôr-se de lado e adotar a condição ambígua de um
espectador-ator. O duo voluptuoso é uma comunidade dividida, afastada, a que falta
exatamente esse mesmo claudicar essencial que a suscita. Num certo sentido, seria
possível dizer, cada gozo combate pela hegemonia, e o ato carnal é apenas o resultado
de um compromisso entre dois homossexuais fundamentais; conforme a exigência que
prevalecer, conforme a negociação entre os amantes for eludida ou afirmada, o coito se
inclina na direção do modo viril, na direção da pequena crise do espasmo único ou se
abre para uma paciência mais difusa, mais contínua, para a polimorfia das turbulências
femininas. Essas duas exigências, como se sabe, nada têm de igual entre si, nem em
força, nem em intensidade, nem em duração. O homem, todo orgulhoso que se sente de
suas bugigangas ostentatórias, é espontaneamente desfavorecido em relação à mulher:
o esperma não é uma moeda da qual se poderia fazer dois usos antitéticos: ou queimá-
la, jogá-la fora, gastá-la num puro dispêndio (maneira dita nobre desde Bataille), ou
entesourá-la, acumulá-la. O esperma é uma raridade, um bem minúsculo, um capital
incapaz de se multiplicar, de se reproduzir em grande escala, e é a própria parcimônia de
sua fabricação que obriga o homem a poupar.
Nesse caso, por que participar da vida erótica da mulher, deixar-se arrastar numa
aventura da qual não se tem a certeza de voltar, quando só se dispõe de uma coisa
medida, diante daquilo que não admite medidas? Por que, a não ser como protesto
contra um ritual já gasto, uma vez que a surpresa é a própria modalidade do gozo?
Se a falta de realização do desejo se torna para o homem aquilo que é desejável,
não é porque ele abandona a presa pela sombra, nem porque a sombra se tornou para
ele presa, mas simplesmente porque não há mais presa, não há mais alvo. Ótimo no
desorientar-se, ele desfruta agora de sensações insituáveis. A mulher terá suscitado nele
esse estado temido e maravilhoso: saber aquilo que ele não quer mais, não mais saber
exatamente aquilo que ele quer.

As dez errâncias dos sexos

O escritor chinês Tchamg-king, que escreveu na época Ming uma sequência do Yi-
Yu-Ki, célebre coletânea de relatos policiais, narra em seu capítulo VII um caso histórico
de hermafroditismo. Diz que na dinastia Song, na época Hsien-tch’oen (1265-1274), uma
família do Tcho-Kiang havia recebido em sua casa uma monja budista para que ela
ensinasse bordados às moças da casa: “Um dia descobriu-se que uma das moças estava
grávida. Ela disse aos pais que a monja na verdade era um homem e que havia dormido
com ele. O que a monja disse à moça foi o seguinte: ‘Eu tenho dois sexos, quando lido
com Yang sou mulher, quando lido com Yin, sou homem’. O pai levou a monja à justiça,
acusando-a de haver seduzido a filha. Ela negou tudo, o juiz mandou que a examinassem
e constatou-se que ela era mulher. Uma matrona destacada para sua guarda mandou
que a monja deitasse de costas e que fizessem um cachorro lamber suas partes sexuais,
sobre as quais se pôs um pouco de carne. Esse tratamento fez o clitóris inchar e acabar
por assumir a forma e o tamanho de um membro viril. O hermafrodita confessou então,
11
que já havia seduzido outras moças e por isso cortaram-lhe a cabeça.” Pobre monja.
Que cirurgião não sonha hoje com modelar, através da mais sutil química, um ser como
ela? No entanto, como esse Frankenstein feminino chinês, é tão pouco andrógino, pouco
adequado a nossa visão do amor: não confunde os sexos, ele os acumula; ele nada

11
Cit. por Van Gulik, op. cit., p. 207.
reconcilia, justapõe; não traduz, como o hermafrodita ocidental, a nostalgia por uma
humanidade libertada da concupiscência a fim de resolvê-la em cada indivíduo dos dois
sexos que, por assim dizer, se colocariam em curto-circuito. Pelo contrário, ele redobra a
cobiça, soma as duas lubricidades, a do homem e da mulher, num mesmo corpo. Desde
Platão, nossa visão do Eros andrógino se caracteriza pela mesma vontade de equilíbrio e
apaziguamento, isto é, por um igualitarismo tão perfeito que eliminaria as diferenças e
acarretaria a extinção progressiva de todo desejo através do desaparecimento de suas
causas. Se há complementaridade entre o masculino e o feminino, é porque há
proporção entre eles, cada um carece do outro, pênis e vagina são a frente e o verso de
uma folha de papel, reduzem-se um ao outro, a mulher é como o homem, quase o
homem, um quase-homem, fazer o papel de um é fazer o papel do outro, isto é, fazer o
12
papel do homem. Sinistro ideal do andrógino: ele não se contenta com afastar, como
contrárias às harmonias do amor, todas as atrações divergentes (pederastia, safismo,
bestialidade), ele propõe como única finalidade erótica uma construção fechada, morta,
onde a aventura não tem chance alguma de acontecer, nem o imprevisto, verdadeiro
paraíso da assexuação mistica, restituição forçada à condição de anjos “que não têm
13
nem marido, nem mulher.”
Eros nunca tende para a unificação e sobretudo para a unificação entre o homem
e a mulher. Não há amargura libidinal a ser dividida; aquilo de que padecemos, pelo
contrário, é de uma coesão, de uma identificação demasiado acentuada e demasiado
perfeita. (Se fosse o caso de reescrever ao contrário o mito de Platão, seria possível
dizer: somos todos andróginos completos, religados, que sofrem diante de tantos
cruzamentos, tanto hibridismo, e que sonham ser apenas homem ou mulher, mas não
ambas as coisas simultaneamente.)
A diferença entre os sexos, é banal dizê-lo, só é por nós vivida hoje de um mesmo
modo: a sujeição da mulher ao homem através da equivalência ou da opressão,
hierarquia que existe tanto entre os sexos quanto no interior de cada um deles. Tolerar
apenas um estado do dimorfismo sexual é apegar-se antes de mais nada à separação
estrita entre o masculino e o feminino, porque essa separação irá constituir um ponto de
referência a partir do qual não mais se julgará as pessoas quanto a seus atos reais, mas a
partir de seu grau de integração na norma sexual dominante. Não se para nunca de
degradar a diferença em oposição, atração dos contrários, pares complementares e
portanto hierarquizados; ela foi submetida ao princípio do terceiro excluído, sonha-se
com ela reunificada, imobilizada sob a dominação viril. Procurou-se deter os efeitos de
derivação dessa dissemelhança, procurou-se fixar os papéis uma vez por todas, ela foi
sedentarizada num polo de paralisia (onde ser um homem significava não ser uma
mulher, não se efeminar, e vice-versa, ver Freud, a fim de evitar que se desenvolvesse

12
O hermafrodita sem dúvida diz pouca coisa sobre nossos verdadeiros desejos. Mas diz muito sobre nossa
verdadeira concepção da mulher: em todas as gravuras em que aparece, são sempre os caracteres anatômicos
masculinos que predominam (aparelho genital externo), sendo que a mulher é representada apenas ao nível dos
seios e dos quadris, como se, no fundo, ela não passasse de um homem capaz de ter filhos.
13
Evangelho segundo São Mateus. 22-30.
um polo contrário de agitação e automultiplicação).

TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER SOBRE O VIBRADOR


E TINHA MEDO DE PERGUNTAR

O artefato erótico desmente as duas ideologias, na verdade solidárias, da boa natureza


incorruptível (Deus sabia o que estava fazendo, os órgãos que temos nos bastam) e da
necessidade como índice de autenticidade (o vibrador na falta de uma pessoa real). O vibrador,
como ferramenta-órgão, não coloca apenas o problema econômico do paliativo, é também o
gozo em suspensão, fetichizado, gelado e sempre disponível. E, portanto, é tanto uma
segurança contra uma eventual falha do corpo, quanto uma duplicação do corpo ao nível de
suas partes genitais. Ele não se relaciona apenas com a ordem da satisfação solitária (como no
onanismo), mas também com a desordem da libido: ele multiplica os sexos, permite aos
amantes escapar da fixação dos papéis (a mulher pode enrabar seu parceiro, assim como uma
garota pode penetrar sua colega), em suma ele não sorve como compensação, mas determina
circuitos cada vez mais amplos de descarga. Com ele, não existe mais uma pretensa
naturalidade do corpo, não há mais um enraizamento funcional dos órgãos, nem a
irreversibilidade do tempo: o vibrador é energia para sempre (ereção permanente) que retorna
sob a forma de energia de rendimento (prazer, perturbação): o que ele põe em curto-circuito é a
dívida (a necessidade de um reparo físico), é como um crédito que nunca exigisse reembolso.
Sob todas as formas possíveis (pênis de matéria plástica munido de pequeno motor elétrico
interior que lhe permite realizar um pequeno movimento de vaivém, dotado além disso de um
visor luminoso e de um reservatório que pode ser enchido com um líquido quente: esferas das
gueixas: olisbos antigos: sexuais: cinto de anticastidade, sutiã com coleira de cachorro:
retrovisores para ver a si mesmo. etc.). o aparelho para provocar o gozo retira o corpo do
domínio de sua fatalidade biológica e diz o seguinte: não há artifícios, não existe natureza, o
corpo copulador já é uma máquina, uma maquinação, uma mecânica. Donde o fascínio geral
dos erotômanos pelos complexos instrumentais (máquinas sadeanas, celibatárias, kafkianas,
surrealistas — bicicleta automasturbatória — máquinas orgonóticas de Reich. redes telefônicas
dos pervertidos urbanos, ligações eróticas em circuito-fechado de TV. data-programações de
Ballard): não há um suporte bom ou mau. o pênis já é prótese libidinal. a perna, o braço, a boca
já são máquinas, nenhuma mediação é vergonhosa (a menor posição já o é). tudo é mediação,
tudo é suporte, mecanismo, alavanca, sistema instrumental: ou ainda, em outras palavras, o
erotismo nada tem a ver com a sexualidade.

Edificou-se esta fabulosa coerção da heterossexualidade — que não é de modo algum a


inclinação de um sexo pelo outro mas, sim, a separação e o controle das mulheres,
crianças e dos próprios homens, a dispersão de suas multiplicidades flutuantes, através
dos valores-signos dos falóforos. E tanto que, sobre essa homossexualidade fundamental
das relações sociais (padronização dos corpos segundo o código viril), instalou-se um
esquema de subordinação por pares (ativo/passivo, objeto/ sujeito,
penetrado/penetrante), esquema “heterossexual” que acaba dominando até mesmo as
relações dos homossexuais entre si. Cabe dizer que a economia libidinal masculina —
assim como o inconsciente, ao que parece — ignora a anatomia, incluindo a sua própria,
que ela mantém a separação entre os sexos na desconfiança mais total, somente
reconhecendo-a para melhor imobilizá-la e aliviar a angústia de uma alteridada real das
espécies sexuadas.
O charme discreto da diferença entre os sexos — que ninguém sabe o que é, nem
nós — é que ao mesmo tempo em que sofrem essa diferença, as pessoas a esquecem,
fazem como se ela não existisse, como se fosse a indiferente natureza com a qual pouco
se preocupam; é que pouco nos importamos com colocar cada um em seu lugar, os
homens à direita, as mulheres à esquerda, ainda que esta divisão, afinal, não nos
esqueça. Eis aqui um binarismo, talvez o único, que não faz dois, no sentido estrito da
palavra, mas sempre um pouco mais ou um pouco menos, que se subdivide em
submúltiplos e é suscetível de ilimitadas combinações. Tanto há dialética quanto
acumulação possível dos sexos, porque nenhum dos dois é um número inteiro, a
dicotomia entre eles nunca dá 2 como resultado de 1 + 1, mas 2 elevado a n, dualismo
incalculável. No próprio seio de nosso substrato anatômico específico, surpreendemo-
nos em erro, nosso corpo está sempre comprometido e semeado de desalianças,
estamos sempre com um pé em território inimigo, a virgindade é um engodo, sempre
uma mistura, uma mestiçagem já em atuação, uma formação bastarda de infinitos graus
de complicação. Assim, é sempre possível brincar de decompor o fato de pertencer a um
sexo, é sempre possível brincar de multiplicá-lo: o fato de pertencer a uma espécie (a
humana e não a animal, a mamisférica e não a ovnípara, molusco e não crustáceo), a
uma raça, a uma cultura, a uma idade (infância, maturidade, velhice) com as
características próprias a cada um desses estados, a seguir uma disposição única na
morfologia e nos traços desse sexo, a paródia, atração ou repulsa do outro sexo em nós
e, portanto, nova combinação, efeitos de singularidade devidos aos encontros dos
códigos genéticos, jogo do acaso químico, cruzamento de uma multidão de redes cuja
origem não é possível determinar, acumulação inefável dos mais diversos estratos, e
também pertinência desse corpo a um momento da história, a uma classe social
determinada, tudo isso misturado na mais aventurosa das configurações, no entanto
legível. Cada criança que nasce — menino ou menina — provoca uma separação da
sexuação, encaminhada para novos caminhos. Você é tanto uma mulher quanto eu sou
um homem, você é essa exceção fabulosa em relação à espécie feminina, um luxo da
matéria, e sob esse aspecto você não é nem meu contrário, nem meu complemento,
apenas uma força que me supera, uma onda que não posso conter.
A partir do momento em que abandonamos os códigos que lhe estão ligados, a
diferença entre os sexos torna-se indecisa e vaga como uma mentira a respeito da qual
nunca saberemos se é uma verdade mascarada ou o índice de uma verdade impossível. É
preciso que a decisão se torne difícil e que nossa designação, tipo “você é um homem, é
uma mulher”, fique marcada em nosso coração como se fosse uma enorme besteira,
uma pressa tranquilizante contra o tremor. Querer a estrita separação entre os sexos, a
delimitação nítida entre suas fronteiras e suas prerrogativas, é querer ainda salvaguardar
a possibilidade do verdadeiro, o poder de sempre poder disjuntar, separar, os simulacros
das cópias verdadeiras, preocupação militar de distinção e classificação.
É impedir que essa diferença privada de sua natureza de cara a cara irredutível
constitua um pequeno dispositivo, tal que a decisão de nomeação, de veracidade, não
mais possa ser tomada. Ou que nenhuma autoridade possa estabelecer que dispõe de
uma metalinguagem e da situação de árbitro capaz de mandar cada um para seu campo
próprio. Com isso se inspiraria uma lógica bem diferente, na qual não haveria instâncias
de referência (orgasmo, falo, tumescência, eu, sujeito) porque homens, mulheres e
crianças, enquanto variantes ou distribuição dessa referência, se tornariam
indistinguíveis segundo os critérios clássicos, na qual somente existiriam sexualidades
divergentes umas das outras.
Quando os signos da separação entre os sexos se põem a flutuar, torna-se
possível desposar todas as características sexuais a partir de determinada posição: ser
alternadamente, em relação à mulher amada, pederasta, sodomita, irmão, irmã, amante,
lésbica; em relação à criança por quem nos afeiçoamos, ser amante, pai, filho desse pai,
esposa, irmã da esposa, ser o filho dessa criança, e o gato da avó e a bengala do avô,
viver toda heterossexualidade declarada não apenas como homossexualidade latente
(escolher, por exemplo, uma mulher com a condição de que ela signifique alguma coisa
para um homem e inversamente), mas também como bestialidade parcial, e geografia,
geologia fragmentária, fazer delirar toda a genealogia das famílias, todo o tabuleiro dos
papéis e das compartimentações, que nenhuma sexualidade seja mais a polícia de outra,
representar essa disjunção, transferi-la em bloco para este ou aquele indivíduo
independentemente de seu número genital, nunca rebaixar nossas predileções, nossos
humores, nossos caprichos eróticos à triste condição de alegorias ou variantes de um
dimorfismo básico, deixar-se enrabar por uma mulher, manualmente ou através de
acessórios, conquanto que se possa sodomizá-la, acariciar um menino com a mesma
lentidão com que acariciaríamos uma adolescente núbil, fazer tabula rasa dos estados
permanentes sujeitos ao poder, portanto ao tédio (marido/esposa, musa/poeta,
tagarela/mudo), esquivar a condição estática das peças redigidas antecipadamente,
reencontrar a libido como jogo, potência de desagregação do instituído, força de
improvisação e de distribuição anárquica (e que miserável subversão é a
homossexualidade enquanto permanecer restrita a uma apologia senil do Falo, do
Centro Absoluto, dessa obsessão burocrática com o caralho, o ânus a arrombar, com o
membro que tem de ficar bem tesudo, bem duro, reto, sem-vergonhice de militares,
policiais, caserneiros, missionários, lutadores de circo, halterofilistas, karatecas, pobres
sujeitos imbuídos e preocupados com sua virilidade, testando-a ansiosamente uns nos
outros, verdadeiros obcecados com a castração).
Em relação ao travesti, por exemplo, sempre é possível dizer dele que é a imagem
perfeita do código feminino (da mulher tal como o homem a representa), que ele é
“mais mulher do que uma mulher porque deseja ser uma mulher a todo custo, enquanto
uma mulher apenas suporta seu sexo”. (“Les Culs energumènes.” In: Recherches,
Encyclopédie des homosexualités.) Isso não impede que ninguém melhor que ele drible a
exigência de nitidez relativa à distinção entre os sexos, que ninguém melhor que ele
ostente com tanta angustiante desinvoltura essa diferença em domínios nos quais nunca
ninguém a havia ostentado. Em relação ao transexual, ainda que apele para reservas,
para mitos bem conhecidos, como negar que existia em seu plágio, demasiado correto e
minucioso, um momento de loucura que recoloca em questão os postulados anatômicos
mais seguros, um delírio artístico propriamente fictício onde todos são chamados a
transformarem-se em pesquisadores de seus próprios erotismos, experimentadores
incansáveis das transmutações possíveis de seu corpo? É esse “demasiado” que fascina,
esse excesso de feminilidade, esta sobre-significação que desnorteia e que aponta como
um fantasma para a realidade ou o pouco de realidade da divisão sexual. A negação de
toda origem, através da reconstrução da aparência, faz com que o travesti não imponha
um sentido (um novo sentido, o terceiro sentido do terceiro sexo), mas que ele seja uma
garrafa lançada ao mar, uma mensagem viva, uma configuração inédita de peles, olhares
e ossaturas que, por sua vez, convidam para outras extraordinárias metamorfoses. O que
nos reserva a diferença entre os sexos, que esperar dos recursos da cirurgia e do desejo
de autotransformação? Talvez outras escapadelas, outros desvios mais inéditos ainda
que incluirão, no interior dessa bipolaridade, para repudiá-la, acabar com ela talvez,
eventos que nos eram inaudíveis, insuportáveis (possibilidade de mestiçagem com
organismos não humanos, teratologia provocada, centaurismo, etc.). O pioneiro do
desequilíbrio genético pelo menos nos indica os caminhos da Grande Vertigem, que
apenas desnorteia aquilo que descontínua o compromisso, a hibridez, a bastardia
cromossômica, mistura de sangue e células: e que é menos o bissexual do que o sexo-
camaleão. Criador de novas visibilidades que permitem ver várias percepções
simultâneas num tempo impossível (ubíquo).
Falando sobre diferença entre sexos, já se pressupõe aquilo que se queria
demonstrar, isto é, que o índice de referência entre o homem e a mulher será apenas o
sexo (e daí se desliza insensivelmente para a supremacia do aparelho genital masculino,
para a irrisória logomaquia sobre o Falo), quando seria necessário falar da diferença dos
corpos ou, melhor ainda, da diferença entre as sexualidades. Pois não é que exista um
sexo, o sexo masculino, mas sim um corpo sexuado que é o corpo feminino. Ou, antes,
um corpo monocentrado, metonímico (onde a parte é tomada pelo todo), aprisionado
pela égide fálica, no primeiro caso; e um corpo feminino desorganizado, deslocado,
estragando toda permanência, provocando a erosão das compartimentações orgânicas,
atravessando os agenciamentos imutáveis. Nenhuma revolução, nem mesmo a mais
radical, conseguirá abolir o privilégio do gozo da mulher, pois essa “feminidade” —
14
exatamente aí — é irredutível a seu papel atual. Escapar à sua imagem atual, para o
corpo feminino, não é abolir sua diferença na intersexualidade ou numa indistinção
qualquer; é, pelo contrário, estabelecê-la: o código que a regia, ao morrer, libera apenas
sua alteridade. Na ideia tradicional da diferença dos sexos, as relações entre homem e
mulher eram relações de oposição no interior de um mesmo sistema definido pelo fato
de pertencer à simbólica do falo. Se agora se fala em diferença de sexualidades, isso
significa introduzir entre os dois sistemas relações que não são mais de convergência ou
divergência, mas de excentricidade. Cada sexualidade, é verdade, é uma perturbação
para a minha mesma; cada uma desfaz, a seu modo, as atrações ditas naturais, distancia
as proximidades, perturba as pseudo-evidências, mas nenhuma teria esse poder de
perturbação se não houvesse desde logo o desregramento do corpo feminino em suas
volúpias. Seja o que for que façamos, a mulher sempre nos derrota por um sexo de

14
Dessa sexualidade específica é legítimo deduzir — como faz Hélène Cixous — um inconsciente, uma escrita
tipicamente feminina? Não será isso ressuscitar a utopia de uma boa natureza rebelde exteriormente em que a
mulher substituiria o proletariado como novo arcanjo do messianismo?
vantagem. E nenhuma diferença seria possível, nem mesmo pensável, se não existisse
antes, anteriormente a toda encarnação, a toda distinção embriológica, o próprio
diferenciante da diferença, o não-lugar de toda corporalidade, o feminino.
Ê por isso que não podemos sonhar com o andrógino, pois aspiramos a muito
mais do que uma simples fusão que nos soldaria num bloco petrificado; sonhamos antes
com sermos corpos sexuados por toda parte, nos quais os sexos brotariam como fontes
de cada recanto, de cada carícia; sonhamos com a soma de todas as sexualidades e não
com a anulação hipotética delas numa imagem. Não estamos correndo atrás de nossa
identidade perdida (!), assumimos todas elas, contanto que nos façam soçobrar por um
instante que seja. Aquilo que esperamos que nos sobrevenha é um corpo sem fetiche
(que não fetichize o objeto genital como sendo sua verdade objetiva), dotado de uma tal
sensibilidade que em todos os pontos de sua superfície o aparente se torne órgão,
orifício, lábios, língua, fonte de sensações, um corpo portanto bem afastado das
beatitudes açucaradas do Hermafrodita, uma monstruosidade anatômica que não
apenas acumularia em si, por que não?, dois pênis, duas vaginas, dois clitóris, dois retos,
quatro tetas, oito olhos, mas que além disso se pretenderia ver gratificado com o pelo
sedoso do gato, com o focinho do tamanduá, o olfato dos carnívoros, a sensibilidade
solar das flores; e que, longe de abolir a ferida da sexuação, não pararia de atiçá-la, de
multiplicar suas brechas e fendas, potencial de frissons e dilaceramentos sem limites.
Pois somos todos quebra-cabeças reconstituídos aos quais não falta peça alguma; no
entanto, ainda estamos nos procurando, nunca nos cansamos de nos tocarmos, de nos
lambermos, de nos acariciarmos.
Se hoje existe, portanto, uma relativa preponderância do devenir feminino, não é
15
apenas porque a virilidade, essa antiga norma cultural, já está começando a cair do
cavalo, mas porque a mulher, de objeto de prazer, está-se tornando em modelo do
prazer. Todas nossas volúpias são, em última análise, cambiáveis em seu gozo
exatamente como as mercadorias são trocadas através da medição do dinheiro. No
entanto, essa moeda hedônica está falseada, não converte mais nada, não equivale a
mais nada; se ainda é moeda, é no sentido em que nela se dissolvem todos os sistemas
fiduciários, turbilhão que pulveriza os créditos e as paridades, anuncia o fim das
referências, a agonia das similitudes. O gozo feminino é tanto um portador de novos
valores (de uma nova ordem que asseguraria na base a fluidez de novas trocas), quanto
nostalgia de um paraíso perdido: ele é a própria indeterminação, a mobilidade dos
investimentos múltiplos, a atordoada vagabundagem dos sentidos, o jogo com as
metamorfoses estranhas, as experiências perigosas, a indiferença como procura das
maiores diferenciações. Esse gozo, quando atinge certa fase de incandescência, de
excitação, não é mais nem mesmo um veículo, um veículo de orgasmos (de prazeres
finalizados e, portanto, antecipáveis) mas a própria circulação, o corpo que se visita, se
desmembra, se dilacera, que se subtrai, através de incríveis torções, de sua unidade

15
O virilismo sobrevive a si mesmo, no entanto, como valor morto e, com isso, é ainda mais temível porque se
sabe moribundo: índice disso são as renovadas agressões contras mulheres sozinhas (ou contra os homens “
efeminados”), aumentando o número de esposas seviciadas ou maltratadas, etc.
orgânica. Essa volúpia circula mais depressa que o resto, perde um padrão comum com o
resto, não para de atrair, com seu movimento, todos os setores do amor. Graças a ele,
não há mais instâncias de apelação, de identidade, sob cuja jurisdição os galantes e as
galantes podiam trocar suas determinações; todas as categorias do prazer, do sentido,
da emoção, entram em flutuação a partir do momento em que o equivalente voluptuoso
do padrão-ouro, o orgasmo, se volatilizou (por profusão, por excesso). É de fato com a
mulher que a diferença se torna errática, nomadismo ativo das peles, dos volumes e das
línguas. A mulher é a única capaz de rasgar a carapaça genética do erotismo masculino, a
única a desorientar os mais antigos cerimoniais sexuais, porque aquilo que lhe é próprio,
paradoxalmente, “é sua capacidade de se desapropriar sem premeditação: corpo sem
finalidade, sem objetivo, sem partes principais, se ela é um todo, é um todo composto de
partes que também são um todo, não simples objetos parciais mas conjuntos móveis e
cambiantes, ilimitado cosmo que Eros percorre sem repouso, imenso espaço astral. Ela
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não gira ao redor de um sol que é mais astro que todos os astros” . Como, de outro
modo, conceber que o homem, renunciando a seu próprio prazer, modifique para ela a
economia de suas pulsões internas e aspire a algo a que nunca teve acesso, como se se
tratasse de um encantamento infinitamente mais belo do que o seria uma simples
satisfação? Da semântica ao mesmo tempo imagética e inesgotável do feminino se
liberta uma outra corporalidade no horizonte de nosso presente amoroso para a qual só
temos, no momento, olhos embaçados ou fechados...
Talvez sejam essas as novas libertinagens em perspectiva: a indizível aliança entre
uma falicidade declinante e um feminino preponderante e depois, além disso, graças ao
embaralhamento dos códigos e papéis realizado pelo movimento das mulheres, um
transexualismo que não é de modo algum a não-diferenciação do desejo mas, pelo
contrário, sua divisão ao infinito, sua maneira de distribuir, separar, aumentar os
particularismos, de propagar a divagação de todos os fluxos sexuais.
A diferença entre os sexos está começando a sair do duplo impasse que a ameaça:
impasse de uma oposição extrema que reduzia a nada um dos dois termos (como a
exaltação da mulher-mãe, matriz, guardiã dos mortos na ideologia fascista; ou a
separação absoluta entre homens e mulheres, nas comunidades dos Shakers) e o
impasse “democrático” de uma afinidade excessiva que também aniquila a relação
através da neutralização subreptícia de um de seus elementos (o parti pris do
semelhante, o unissexo, moderna face da opressão), tendo uma e outra, dessas atitudes,
por resultado, a imobilidade, a perpetuação da ordem do recalque. Entramos agora
numa fase guerreira de reequilíbrio das forças entre os sexos, de dissimetria polêmica,
de confrontos sem esperança de paz. E essa desordem não avança sem abalar, por sua
vez, esta outra barreira não menos fundamental que é a separação entre o humano e o
animal, o vegetal, o arborícola, o aquático. Dando-nos de novo a possibilidade de nos
comunicarmos amorosamente com todas as espécies, de delirar a criação, os insetos e os
hipopótamos, os baobás e a grama, o cabo Horne e o Navio Fantasma, o
desaparecimento dos lobos, a gourmandise dos ursos. Sempre, numa mulher, numa

16
H. Cixous. La Jeune née, op. cit., p. 162.
criança, num velho, poderei amar, destacar uma certa mineralidade de contornos
desconhecidos, uma geografia passional sem equivalente; num animal, posso encontrar
inflexões infantis, olhares femininos, ironias de atores; numa floresta, perceber toda
uma gestualidade antropomorfa, todo um teatro de comportamentos petrificados;
gosto, em cada sexo, de sua interação com os outros, seu modo de comprometer e de
encavalar, em si mesmo, vários mundos, luas e planetas. Em outras palavras, todos
nossos amores são situações de extravio (enamoremo-nos de um coelho, de um rato
branco ou de uma flor de loto), uma paixão morre quando encontrou seu único caminho,
quando deixa de balançar entre o sim e o não, quando fixou as vertigens que a arrastam.
Não há amor que não goste de sua cegueira, do tremor indeciso dos universos que o
dilaceram. Sob o nome de heterossexualidade, só vivemos até agora uma monossexia
obsecante e disparatada que encurralava todo desvio no recalque ou na aberração. E eis
chegado o tempo dos equívocos, dos quiproquós libidinais, o despertar de eroticidades
menores, o encontro do sexo humano e do sexo inumano; em que os homens não
desembocam nos homens, nem as mulheres nas mulheres, nem as crianças nas crianças,
nem os animais nos animais, nem as flores nas flores, mas sim uns nos outros, do modo
mais confuso, ao nível de uma inflexão, através dos conjuntos sociais, das constelações
móveis, dos pequenos detalhes insignificantes. A própria palavra “sexualidade”
pressupõe doravante a heterodoxia, a pluralidade dos costumes e das ligações, o fim das
limitações e das coisas seguras, a alteridade dos desejos. O outro ainda não está em
mim, uma vez que esse encontro é exatamente aquilo que vai me escorraçar de meu
lugar, me jogar na confusão, na declinação de mundos efêmeros, no endossamento de
mil corpos, de mil epidermes: nunca mais mulher ou homem, estritamente, porém mais
ou menos mulher, femanimal, femoceano, passaromem, núbil e nubela, angenital,
homóvulo.

Este, quando fala com uma mulher, se apressa em vilipendiar a falocracia, em abominar a
espécie masculina em sua totalidade, junto com as opressões de que ela se tornou culpada. Ele
mesmo, claro, detesta a sedução, não encontra palavras suficientemente duras para condenar
esse ignóbil negócio, preconiza a criação de comandos antipaquera, etc. Se encontra uma
mulher um pouco mais “inclinada”, indigna-se, declara-a ainda submetida aos esquemas
masculinos e propõe-se, nobremente, a iniciá-la nos encantos do feminismo integral: se ela
recusar, é porque ainda não estava liberada, vai ver ela queria mas é que ele a cortejasse,
coitada dessa pequena-burguesa, etc.
Para aquele outro, tudo é possível, se ela se aproximar: ela é encantadora, embriagante.
resplandecente, atordoante; mas se ela recusar seu convite. não passa de uma idiota de perna
torta, com uma bunda enorme e cara de boba, mais um sapatão sem dúvida.
A inocência amorosa contra a disciplina genital
No fim de sua vida, Gustave Le Rouge escreveu, para as cozinheiras, um livrinho
intitulado 100 receitas para aproveitar as sobras, apologia do guisado, do ensopado,
elogio das metamorfoses culinárias, do picadinho, da feijoada, da almôndega, da torta,
da panqueca, do recheio. Mantidas as devidas proporções — não nos deixando ofuscar
muito pela comparação — também o enlace conjugal só progride com a condição de
abandonar-se ao esquecimento, ao anonimato, aos pequenos objetos, aos restos
eróticos que não são estritamente necessários a sua progressão. Tal como o monótono
ritual de uma receita única, ele é a maneira mais grosseira, mais obstinadamente
repetitiva de gozar que têm os corpos; ele não aprofunda nada, se satisfaz depressa,
deixando em seu rastro múltiplas escórias libidinais que nada conseguirá despertar. Os
amantes não se amam sem deixar de lado toda ou parte de sua organização emocional:
o amor torna-se indisponibilidade para o amor, empobrecimento da paixão através de
seu estrangulamento numa via única, e o coito, o teatro constante de uma luta entre as
privanças colonizadoras dos órgãos genitais e as reivindicações incessantes de todos os
objetos pulsionais marginalizados pela escolha desse gozo. Ou então é a obsessão
orgástica que provoca tal oposição, é ela que delimita, no sexo, o infantil e o adulto, o
periférico e o central, o sadio e o irregular. Para ela, a cópula só deve ficar, dentre todas
as maquinarias sensitivas, com aquilo que é importante, com o significativo (aquilo que
concorre para um resultado evidente), e escorregar por cima do secundário (vamos ficar
pensando no calcanhar, na testa, nas falanges, quando o sexo nos convoca para os
imperiosos deveres que são os seus?) A normalidade orgástica tem uma única divisa:
“Morte à circulação, à vagabundagem, à vadiagem das volúpias, que as carícias não se
estendam, não se concentrem num lugar qualquer em virtude de uma dinâmica interna;
que as intensidades não se espalhem, numa fuga alegre ou numa carência angustiada;
que o enlace amoroso não faça explodir a perspectiva única da síncope que deve
sobrevir simultaneamente nos dois parceiros, libertando-os do desejo de um pelo outro,
do simples desejo de desejar”. Uma vez que tudo deve concorrer para o advento do
orgasmo liberador, subversivo, regressivo, bestial é a menor autonomia concedida, por
exemplo, aos erotismos pré-genitais (a menos que, integrados à força, eles não
colaborem, situados como estão numa posição subalterna em relação ao advento do
auge, vassalos que trabalham para a glória de seu senhor). Tudo isso visa evidentemente
à redução máxima de Eros, pois a finalidade orgástica emancipadora ocupa e investe a
totalidade da cópula.
Em relação a nosso prazer, devemos manifestar a mesma desconfiança quanto
aos interditos dos antigos puritanismos e quanto às normas dos novos emancipadores: o
sexo tanto pode ser aprendido quanto desaprendido, ele não vive de modo único e
ninguém tem assegurado o controle de um saber.
De certo modo, os amantes, sejam quais forem, nada têm a “fazer” juntos; mas é
a partir desse nada a fazer que tudo pode acontecer, tomar um sentido e uma forma. Se
a deliciosa angústia do amor não é um pathos determinado mas a consciência afobada
de uma multidão de sensações possíveis que se convocam, se provocam mas também se
repelem, se escorraçam através de uma passagem necessariamente estreita, nesse caso
abraçando meu parceiro nunca consigo apertá-lo o suficiente, mas também estou
sempre apertando-o demais. Um corpo liga-se a outro corpo para dar consistência a
todos os estranhos presentes em sua casa, não apenas aos que já estavam por ali no
momento em que se encontraram mas a todos aqueles que nasceram dessa união e
todos os que eles convocarem. O homem e a mulher não animam corpos letárgicos, eles
prolongam o movimento, enxertam uma mobilidade sobre uma mobilidade já presente,
combinam-na de modo diferente, desorganizam o que estava organizado, ajeitam uma
desordem cada vez maior. E por ser sempre inaugural que o enlace voluptuoso é uma
aventura, um risco, é porque não existe seguro contra esse risco (nem numa técnica já
experimentada, nem numa sensação determinada) que ele se torna uma navegação
primeira e sem graça. Não há gozos adquiridos e, portanto, não há um amor feliz ou
infeliz a priori.
Uma imagem ingênua da situação pretende que o par amoroso trabalhe apenas
para a livre satisfação de suas necessidades recíprocas. A cobiça dos amantes, no
entanto, resiste a essa degradação alimentar do desejo (e também aqui, que triste
concepção das volúpias gastronômicas!): nada os satisfaz ou é suficiente para apaziguar
a selvageria que os submerge. A satisfação parece-lhes uma medíocre vitória; a
desmedida em que estão mergulhados não está interessada em álibis (um amor que
deve ser consolidado, um orgasmo que deve ser obtido, um excesso a ser posto para
fora, um poder a ser confirmado), o único princípio que ela segue está nela mesma pois
ela é, em si mesma, perfeita e coerente. Não existe em sua configuração uma parte de
coisa inacabada ou falhas, que faria dela uma antecipação desajeitada ou o desvio de
uma norma ideal. Os amantes apegam-se à autonomia, ao equilíbrio próprio de cada
momento, de cada olhar, de cada beijo, e recusam-se a deportar para o nível de acidente
aberrante tudo aquilo que a opinião pública ou a lei exilam no ridículo ou no irrisório. O
enlace, se quiser ser mais do que uma ginástica genital, não conhece rumos certos, nem
ramificações secas que não teriam direito à irrigação; todo o corpo é um coto (incluindo
o sexo) isto é, nenhuma parte é mais que a outra. Não há caminho sem saída para uma
rede necessariamente limitada mas cujas combinações, possibilidades de efusões
nervosas, são infinitas. O enlace amoroso vive sempre de uma diferença entre seu desejo
implícito e seu fato real: ele objetiva um certo júbilo da carne, sem dúvida, mas também
algo que se coloca além disso, ele só parte do conhecido para cobiçar novas sonoridades
hedônicas, e coloca como presunção ter um fim, um objetivo, mesmo que seja para
retardar o momento final. O “ato sexual” não expressa nem realiza um desejo anterior,
ele é essa altercação voluptuosa que se abre para os desejos mais loucos; que,
apaziguando os amantes, deixa-os com mais fome: quando os seres se desenlaçam, o
desejo ainda não os abandonou, pelo contrário; estão envolvidos por uma apreensão do
mundo e da luz, por uma irritação fascinada pelos menores fulgores que se apresentam
nela.
Entre as pessoas, há dois tipos possíveis de relações sexuais, por mais grosseira
que possa ser essa esquematização: uma relação que atenda ao mais apressado, que vai
direto ao fim, que passa por cima das preliminares, cópula funcional, coito doméstico,
limpinho, reluzente, coordenado, bem certinho, bem etiquetado, bem limpinho, bem
assético, bem disposto, cronometrável, fotogênico, mensurável, gravável, reprodutível
ao infinito, variante conjugal do michê e para o qual não é nem mesmo necessário tirar a
gravata, a calça ou o chapéu, coito que tem a unicidade de um projeto, que reina sobre o
império do similar, sem eventos, uma bombadinha dada depressa, um simples
esvaziamento de receptáculos, fricção das mucosas de que se pode apresentar
relatórios, que se pode condensar numa fábula que exclui toda extravagância porque
obedece a uma ordem lógica e porque sua consumação é antes de mais nada uma
intimação. E uma outra relação baseada na “cantada” e paradoxalmente mais atenta,
despreocupada com a rentabilidade, modo de provocar o corpo do outro, de adorá-lo
em seus menores recantos, de cobiçá-lo em cada uma de suas divisões; maneira que
seria não deixar passar nada, surpreender-se com um pedaço de orelha, com a
rachadura de um lábio; que consiste em apegar-se e estar junto a todo momento,
apreender os menores deslizamentos do ser, verdadeiro erotismo dos detalhes,
apreensão mais tátil que não é a caminhada triunfante na direção de um gozo final, nem
a pressa processatória da volúpia. Não andar depressa demais ou, melhor, apoderar-se
rapidamente daquilo sobre o que se vai demorar, esforçar-se por fazer durar cada
minuto de tal modo que a variedade das posições e as mudanças de ritmos sejam
intensamente percebidas em seu caráter de ruptura. Não desejar que advenha algo de
narrável, pois esse prazer de tatilidade, esse leve delírio dos sentidos não pertence à
ordem da narração: aquilo que acontece com o corpo não tem história, não é da ordem
do relato. Saber ruminar o prazer sem correr para a morte final, para o incêndio
instantâneo. Relativizar essa mesma “morte”, fazer dela apenas um ponto na trajetória
infinita dos enlaces. E cultivar sempre o desvio, a variação onde a relação sexual se
complica, torna-se mais espessa e assume um relevo que remete o coito “natural” (o
coito dominante) para sua natureza de possível entre outros.
Enquanto estão enlaçados, os amantes ressuscitam todas as personagens, todas
as ordens, todos os gêneros que neles sobrevivem sofrendo: eles vão do corpo presente
aos corpos possíveis, do corpo futuro mas também do corpo linear, “humano” corpo
passado ao corpo volumoso, animal, vegetal, terreno. O corpo de amor é uma tábua de
multiplicação. É um único e imenso corpo em estado de derrapagem, de lapso, um corpo
de condensação, um “singular-plural”: nesse corpo há outros corpos, porém abertos, em
espiral, outros organismos, outros sistemas nervosos sobrepostos; mil corpos num só,
como nas palavras-valise, mil epidermes, universos de células diferentes que nunca
aparecem mas que são roçadas, reconhecidas, que tremem sob a pele, deixam-se ouvir
através de choques, agregados furtivos de outras superfícies cutâneas. Há uma utopia do
enlace amoroso que nos permite pensar este sacrilégio: que cada um de nós — homem,
mulher, criança — é um conjunto aberto de pluralidades corporais, animais, vegetais,
aquáticas, gustativas, vocais, minerais, uma infinidade de perfis que a excitação
voluptuosa traz para a luz do sol e faz desabrochar exatamente como o calor do sol
provoca a florescência das plantas. Os amantes povoam de aventuras suas carnes mais
inertes, mais instrumentais, dão a cada carícia, a cada rubor, a cada estremecimento ou
emissão de saliva a grandeza de um advento; nesse amor não há repetições, ainda que o
mesmo gesto seja repetido cem vezes; há apenas revoluções, erupções, permutações
minúsculas, veiculadoras de situações inéditas. O enlace é enciclopédico por sua
finalidade, picaresco em sua trajetória, meticuloso em suas ocupações. Amar é venerar o
corpo pacientemente, não como um todo desmembrável mas como uma colcha de
retalhos de pele, músculos, linfa, sangue, feita de pequenos pedaços, impossíveis de
juntar, irreconciliáveis, pedaços rasgados percorridos, do modo mais aleatório possível,
pelo fluxo das intensidades.
Comunidade sexual: isso tem sentido? O que será posto em comum, os órgãos
genitais propriamente ditos ou um pouco mais que isso, vamos incluir as coxas, o ânus, a
boca, as orelhas, as preferências, vou poder manter para meu uso pessoal a unha de
meu polegar direito, minha mandíbula inferior, meus burburinhos gástricos? Será que
antes não é necessário que haja “comunidade” de mil outras coisas antes de fazer uma
da sexualidade? A orgia frequentemente não é apenas um comunismo genital, uma
associação de pessoas que dividem entre si os prazeres do centro e apenas esses? A
comunidade sexual caracteriza-se pelo fato de não podermos ser nem contra, nem a
favor (como o casal): se ela acaba acontecendo, é por acaso, o mais lindo dos acasos,
ninguém pode decretar sua instituição, quer ela se apresenta sob a forma cômica do
ménage à trois, a forma socialista da comuna livre ou a forma fourierista do falanstério
passional. Não há apropriação coletiva dos meios de copulação, a menos que seja para
satisfazer o velho sonho da comunidade de mulheres: comunidade que subentende que
tudo já está acertado desde a saída, que basta o ajuntamento para que se realize a
harmonia, que todos os sexos são intercambiáveis, fantasma sinistro de pôr em harém
particular toda a humanidade. Em suma, não conseguiremos a salvação através da
comunidade mais facilmente do casal, pois não há forma privilegiada para as
singularidades, não há gaiola, ainda que dourada, para a irrupção imprevisível das
diferenças (e como deixar de ver que o grupismo sexual engendra por sua vez novos
tipos de ciúmes, novas exclusões, que ele pode tornar-se tão normativo quanto a tépida
conjugalidade?). Melhor que militar pela orgia, pela partilha amorosa, seria pôr de lado
as falsas liberações que não liberam nada, além de simples aptidões de órgãos e
similaridades; para que as reuniões galantes (quer haja aí enrabadas, trepadas, quer se
enfie a língua na xoxota das amigas, quer se faça um troca-troca) só ponham em comum
as diferenças, mil pequenos desvios irredutíveis. Pois o prazer nunca é uma coisa certa,
nem é mais seguro se for feito a trinta que a dois.
Não há nada que não seja a príori elemento de desejo para os amantes: falanges
dos dedos, peles sedosas, articulações, narinas, transpiração das axilas, gotas de urina, a
umidade das mãos, cachos de cabelos, íris do olho, não há nada de que a cobiça não se
possa apropriar, de que não possa se apoderar para transformar em instrumento de sua
conquista. O corpo não se divide em órgãos de prazer e em órgãos neutros. Tudo é
desde logo motivo de excitação, e o sexo não tem, nesse assunto, nenhuma primazia.
Um enlace amoroso constrói a partir dessas ínfimas materialidades, desses detalhes
libidinais onde o próprio genital representa apenas um papel menor ao lado de todos os
outros, em função da disposição deles, seguindo o princípio de uma física recomposta
pela economia do desejo. E os elementos propriamente sexuais do corpo são, se se
preferir, indutores de erotismo mais do que lugares privilegiados, eles preparam a
tumescência geral da epiderme, da carne, mas não a comandam. Amar-te no maior
abandono é experimentar de repente tua absoluta estranheza, eu te desejo porque teu
corpo me encanta, seus aspectos mais comuns tomam-se para mim meteoros distantes
cuja configuração me perturba. Eu te cobiço porque não temos nada em comum.
A beleza do ato de amor mede-se pelo fausto perverso que o envolve, pelo estado
de incandescência para o qual são levados os corpos através do trabalho de
transmutação. O espaço do comércio amoroso é um espaço em que as direções não são
equivalentes, onde cada sensação desperta todo um espectro de sensações
harmoniosas, onde certas encruzilhadas, certas zonas enigmáticas esboçam bruscas
mudanças de itinerário, invocam retornos incansáveis que nunca fazem com que voltem
as mesmas coisas; um espaço cheio de lugares diversos que deformam os percuros,
tornam impossível o trajeto linear; e que comportam também toda uma série de ligações
secretas entre seus diferentes pontos, referência sutil entre os seios e o ventre, os
braços e os quadris, o calcanhar e a coxa, a nuca e o peito, malha de veias invisíveis que
fazem com que as proximidades vividas não sejam redutíveis às da anatomia ou
fisiologia. Os amantes exploram metodicamente as densidades, as orientações, os
modos de potência dos diferentes domínios de sua carne, sondam os filetes nervosos
que traçam em suas peles outros tantos meridianos, elaboram pacientemente o labirinto
de seu próprio circuito erótico. Seus corpos se transformam em mapa atravessado por
inúmeras linhas, pontos, traços interrompidos, esboçados, que se cortam, recortam,
sobrepõem, sem nunca atingirem ou se reduzirem a um feixe que, reunindo-os numa
única entidade, os eliminaria ao mesmo tempo a todos. A cartografia amorosa não cobre
nenhum país real, ela é o território que ela mesma circunscreve, não se lembra dos
trajetos que desenha, dos caminhos que traça, está sempre esquecendo-os assim que os
percorre. Ela é esse catálogo de espaços heterogêneos no qual, segundo os caprichos do
instante, se isolará um certo número de nós, pontos, agrupamentos, ficando claro que
nenhuma posição é mais natural que outra, isto é, que nenhuma é menos arbitrária que
outra.
Os amantes nada têm a se dar, a se oferecer, a eroticidade de um não é
complementar, ou contraditória, à do outro, é um acaso que eles celebram e recomeçam
cada vez (se o ato sexual fosse feito de natureza, só haveria um único modo de realizá-lo
bem). O que trocam as pessoas? Um louco despudor: no abismo em que mergulham,
desaparecem todas as pessoas, todos os nomes, mesmo os próprios. Elas têm de
despojar-se de toda propriedade, de todo desejo de poder para avançar nessa
peregrinação: querer, poder, saber, são projetos que ainda remetem ainda a um “si
mesmo”. O enlace não é diálogo, nenhuma mensagem é transmitida, nada é dito de
modo unívoco. Os amantes permitem ao outro todas as possibilidades de sobrevivência:
não se conhecem, não querem questionar-se, olham-se, apalpam-se; encostam seus
terminais nervosos e se respiram, perturbados pela força desconhecida que cada um
representa para o outro; se cheiram, se lambem em todos os sentidos, em todas as
direções; alimentam uma tensão, estabelecem ligações, esculpem causas e efeitos,
minam suspenses que não se apressam a resolver: a emoção os estrangula, juntos
perdem pé numa hesitação que os encanta. Não há nada, neste respeito afetuoso da
distância, que se assemelhe à vivisecção policial que é, por exemplo, o bombardeamento
do membro na vagina, a vontade hercúlea, machista, de “esvaziar” a mulher de todos
seus orgasmos, fazer com que ela devolva suas potencialidades sensuais. Os amantes
não são senhores de seus corpos, mas catalisadores de energia (os gozos responderam a
seu apelo ou serviram-se deles para existir?), aprendizes de feiticeiros perturbados por
uma força que desvia suas intenções primitivas, demiurgos superados pela própria
criação. A intensidade de sua conjunção é medida por aquilo que captam nela, pela
tensão que se insinua entre eles, pela febre que os invade. Como poderiam trocar entre
si alguma coisa, uma vez que não são mais sujeitos de sua volúpia, mas estão sujeitos a
prazeres que ultrapassam o quadro bem comportado da satisfação? Duas pessoas se
amaram: que fizeram, aos olhos da eficácia sexológica, tecnicista, psiquiátrica,
medicinal? Qual o balanço que apresentam, a temperatura, a velocidade, quantos
orgasmos tiveram, como, de que modo, com que intensidade? Madame teve orgasmos
duplos, triplos, múltiplos? O cavalheiro descobriu novos métodos de estimulação
bucogenitais, umbilicolabiais, genuflexo-cerebrais, conteve-se durante quanto tempo?
Até que ponto esse enlace foi exemplar?
Não há enlaces exemplares. Vamos confessar mesmo que as pessoas envolvidas
não gozaram, no sentido clássico da palavra (não evacuaram seu desejo). Aumentaram
um pouco mais a distância que os separa, aliaram-se como duas partes heterogêneas
que nunca se fundem, interiorizaram o anonimato mais frio de seus corpos, tornaram-se
assim, através de uma excitação e um frenesi crescentes, um pouco mais estranhos um
ao outro; tomaram-se sem uma intenção precisa; a união entre eles cimentou-se e se
aprofundou através de uma série de rupturas, formaram uma tapeçaria que não parou
de ser tecida e de se desfazer. Não houve entre eles uma “relação sexual” (no sentido de
uma equação algébrica), conheceram a mais forte proximidade a partir da maior
inconstância, a solidariedade entre eles foi uma lei de afastamento, fizeram-se perguntas
que sabiam não poder responder, foram, um para o outro, hóspedes de passagem. Esse
divórcio original, essa fissão minúscula que adia toda fusão não foi por eles saneado, ele
continua lá, entre eles, como a bolha-dolorosa de um plexo, dolorosa e maravilhosa
porque, fazendo-os diferentes na similitude, ela os torna também desejáveis. A união
carnal é uma experiência que não se destina a ser julgada em termos de sucesso ou de
fracasso, um ato cuja saída seja conhecida. Nada pode garantir os amantes em relação
ao caráter sempre experimental do amor; nem o saber, nem a experiência, nem os
conselhos impedirão que eles se comportem como fenômenos desprovidos de intenção,
que eles obedeçam a forças sem finalidade cujas combinações e resultados não são
conhecidos antecipadamente.
Não há, no coito, um narcisismo avarento, nem um mínimo de volúpia concedido
aos membros do casal, mas um narcisismo ávido no qual se procura constituir mais de
um, mais de dois, onde não se é mais bi-, homo- do que heterossexual, porque a
dinâmica de Eros arrasta as pessoas para essa região onde a preocupação com a
satisfação é posta de lado em proveito de uma sufocação, de um deslumbramento que
faz girar a cabeça, desagrega a disposição orgânica dos corpos. Gozar não é, então,
procurar a paz dos vales através da ascensão até os cumes, não é ficar à espreita da
satisfação através do desvio de uma provisória violência, mas permanecer sob o açoite
de potentes urgências, querer a exasperação da raiva, desejar a insuportável tensão que
os está queimando; gozar não é morrer, mas abrir-se a todos os gozos possíveis, não é se
satisfazer mas excitar-se até o ardor, até o dilaceramento de todos os membros. É por
fazer de seu próprio desenvolvimento a matéria de seu assunto que o ato sexual é um
exemplo privilegiado de estrutura aberta. O círculo desenhado pelo par amoroso não
pode fechar-se porque não é um espelho. Dois corpos lado a lado, abertos um para o
outro como os dois lábios do sexo da mulher, não se fecham nunca: ao final do enlace,
sempre há em suspenso uma perturbação decisiva que não tem a resposta que ele
pretendia produzir e que não faz outra coisa além de perpetuar-se ao infinito. O enlace
carnal, como a água, não tem uma forma definida. Tentar captá-lo, fixá-lo, normalizá-lo
num ritual único é uma vaidade vã, pois ele fugirá, se formará de outro modo, segundo
outras figuras que também não serão definitivas. O erotismo não está ligado apenas à
manutenção ou ao despertar da excitação, ele exige o desabrochar desta, exige o acesso
a ela. À medida que se prolonga a conjunção amorosa, o gosto das pessoas uma pela
outra não para de aumentar até esse grau de febre onde o orgasmo lhes parece um
movimento demasiado estereotipado que não atende à soma renovada dos
encantamentos que os assaltam. A excelência da relação amorosa deveria objetivar
apressar a restauração das forças e acelerar o desejo pelo coito seguinte: a carne chama
a carne, invoca a lubricidade, a soberania da luxúria e não a queda da tensão, a ambígua
distensão. A saciedade não passa de uma artimanha da excitação.
Cada vez que eles abandonam uma posição por outra, os amantes rompem o fio
narrativo de seus enlaces. Mas esse fio também se rompe no seio de uma figura
determinada, desse modo subterrâneo, dis-ereto, no qual o olho e seus poderes não
estão mais implicados. O coito progredirá por esvaziamentos sucessivos, pequenas
continuidades, mas entre essas continuidades o homem e a mulher (ou o homem e o
homem, a mulher e a mulher) darão enormes saltos, procederão por blocos justapostos;
o próprio enlace só vive de dilacerações irreconciliáveis, só funciona rangendo,
explodindo pequenas sensações, autônomas, êxtases periféricos; ela será menos uma
obra a ser construída do que uma prática continua da deriva, um ato cheio de pequenas
fraturas eternas, um encadeamento de descontinuidades que, no entanto, permanece
legível (mas para que tipo de leitura?). Liberado de qualquer preocupação com o
desempenho, o enlace transforma-se numa espécie de narração fragmentada, de
múltiplas saídas e entradas. O fragmento mima o fim, a parada, o recomeço; mima a
impotência a fim de aumentar a potência, e tanto que o enlace se torna uma seqüência
ininterrupta onde as coisas não acontecem a seu tempo, onde não há lugar determinado
antecipadamente, onde tudo escapa à alternativa — ato longo, ato breve — porque a
duração se quebra, se estilhaça, resiste à tentação da última palavra, ressuscita a ilusão
do primeiro instante; o ato sexual não progride (ele não tem destino, nem objetivo,
nenhum paraíso o aguarda), a única coisa que faz é recomeçar, retomar seu caminho sob
uma multiplicidade de formas; cada um de seus movimentos tem o frescor de um
começo, o prazer embriagante da novidade. A caminhada torna-se hesitante, incerta,
não linear: os amantes são viajantes que tomaram o mesmo caminho mas que, à medida
que avançam, não encontram a mesma paisagem, os mesmos odores, o mesmo parceiro.
Obstinam-se em eliminar a história de seu enlace, enquanto a continuidade de um
movimento se assemelhar à imobilidade; a dos mortos e das lendas. A invenção exige
que se corra um risco nessa caminhada interrompida e sem ordem estabelecida,
entregue ao acaso, nesse rede explodida onde tudo está nos respectivos lugares, as
relações e as polivalências.
Há um destino propriamente genital em toda conjunção amorosa, congestões de
órgãos a serem aliviados, afluxos de sangue que exigem um conserto imediato; mas esse
determinismo erótico não resume todo o enlace; serve, antes, como pretexto para ele,
assim como o tema de um relato serve de motivo para a variação; é ao mesmo tempo
perspectiva unificadora dos gestos e dos beijos e referência fictícia que autorizará as
derivações mais longínquas. Não se faz amor para matar a sede, aproveita-se esse desejo
para viver o próprio corpo e o corpo do outro em todos os seus volumes (mas também
não há nada mais simpático que um ato sexual de urgência, enlace efêmero, eliminação
de sêmen velho, de porra velha, pequenos coitos moderados que aliviam e abrem o
apetite).
O genital, em si mesmo, não é uma coisa clara: talvez não passe de uma
construção artificial elaborada há pouco tempo (séc. XVIII, XIX?), um isolamento de
órgãos que nunca antes haviam sido separados do resto do corpo. O genital vasculha, dá
a cada órgão seu lugar próprio, a cada sexo suas atribuições, a cada prazer seu território,
delimita as fronteiras, evita as implantações coletivas, as confusões de órgãos, os
congestionamentos imprevistos, em suma: faz do corpo um espaço analítico, divisível ao
infinito, um filtro de múltiplas redes. Aquilo que o genital disciplina acima de tudo é o
corpo feminino (onde começa, onde acaba o sexo da mulher: nos seios, na vagina, nas
nádegas, nos quadris? A resposta não pode ser dada, talvez não haja genitalidade
feminina), aquilo que ele deve controlar são todas as sínteses nômades, as variáveis do
amor; os agregados repentinos, a disseminação sensitiva, as volúpias marginais, ele as
homogeneiza num mesmo comportamento.
Portanto, não há relação sexual em que vacúolos não sejam limpados, onde não
se produzam cesuras extragenitais nas quais a libido mergulhe a fim de investir de mil
modos o não-genital (o não-viril) isto é, a outra sexualidade determinada sob as espécies
empíricas do mais ou do melhor gozar; índice daquilo que existe de masculino no sexo,
índice daquilo que escapa à espécie da sexualidade.
Há sempre muita humanidade no enlace, muito gesto policiado, disciplinado,
intencional, regulamentado, muita prega bem passada, muito hálito purificado, muita
carícia cortada rente, muito órgão polido, muita bunda envernizada, muito saco bem
arrumadinho, muito pelo bem penteado, muito gozo bem programado, e bem pouca
animalidade, e pouca graça vegetal, pouco fulgor solar, pouco peso mineral, pouca
impassibilidade cósmica. Bestialidade: ignóbil qualificação de beato para designar as
coisas do amor, dupla ignorância, da vida sexual dos animais (por mais codificada que
possa ser) e da rara urbanidade do corpo erótico (quando não passa disse). Se é preciso
“libertar” o amor, é preciso libertá-lo antes de mais nada da humanidade dos amantes,
de sua pessoalidade de seres humanos responsáveis e conscientes, do respeito por si
mesmos, de seu desejo de harmonia; que o enlace acelere os abandonos, passe dos
abraços infantis ao obsceno, transgrida menos os tabus sociais do que normas estéticas
(a graça, nossa última religião), deslize de um estado para outro, não se demore em
nenhum deles, seja uma apreensão gigantesca do mundo e do corpo). Nem bestiais, nem
pornográficos, nem delicados, nem obscenos, nem sentimentais, nem eróticos, nem
epicuristas; tudo isso ao mesmo tempo, portanto um pouco de cada coisa e um pouco
além de tudo isso, Humanistas, não: mas humores do ânus. De todos os modos
impudicos; não por provocação pueril, mas por vontade fero? de ser surpreendido-
Há sempre um resto num enlace, contiguidades incompatíveis, quebra-cabeças
não reconstituíveis que o amor delimita violentamente. O conjunto da relação sexual não
passa então de uma parte ao lado de todas as pequenas partes que a compuseram, e o
próprio desejo torna-se essa linha transversal que aproxima, “reestrela” (Proust) os
resíduos de todos os momentos voluptuosos. Neste sentido, ninguém pode dizer: Fiz
amor, pois o amor nunca se acaba, nunca se apresenta como coisa feita, nunca se esgota
em seu exercício, é sempre aquilo que resta a fazer e a refazer, introduz um gozo
específico do fragmentário que abole a hierarquia dos instantes, faz de cada um, um
edifício precioso, um palácio de saturação sensorial onde o único horizonte se torna a
procissão infinita das emoções, balé envolvente de carícias e beijos. Para essa união que
nada satisfaz nem mitiga, não há prelúdios, assim como não há conclusões, não há um
momento em que os amantes se desligam, porque não há um momento em que se
apegaram, o começo e o fim são uma ficção com a qual eles brincam. Em relação aos
órgãos do prazer, o simples pensar neles, fazer com que se mexam silenciosamente já é
uma volúpia. O orgasmo é tão perturbador quanto o primeiro beijo, porque aquele já era
tão embriagante quanto o orgasmo.
Até o século XVIII, era proibido pela Igreja fazer amor à noite (de medo que as
crianças nascidas dessa união fossem cegas). Na mesma veia metafórica, pode-se
imaginar outras prescrições do tipo: proibição de fazer amor na água (de medo que as
crianças nasçam cobertas de escamas ou cheias de cieiros), de copular no ar (de medo
que as crianças sejam volúveis, fantasmagóricas), num cemitério (de medo que nasça um
vampiro), na noite de Natal (de medo que a criança seja um novo Messias e morra
crucificada), na Páscoa (de medo de pôr um ovo), a 7 de setembro (de medo de procriar
um militar), etc, Todas estas são recomendações que, em sua esfera, não estão ligadas à
ingenuidade, a nenhum irracional arcaizante, a ser verdade que nessa intimidade mais
profunda é ainda um meio de nos exteriorizar-mos. O cenário de nesses amores não é
algo indiferente, Normalmente se vê o enlace como um microcosmo de mundo, um
sistema isolado naturalmente fechado que expressa o outro e se inscreve nele. É preciso
acabar com essa relação, romper a divisão clássica entre tempo e espaço eróticos: se e
coito se assemelha ao mundo é, pele contrário, na medida em que ele se abre para a
abertura do mundo, na medida em que está sempre se produzindo à imagem do ser
vivo, em que progride numa dimensão temporal irredutível e não fechada. O ato carnal é
atravessado por censuras que não são unicamente sexuais: ruídos exteriores, música,
pedaços de conversa, acontecimentos íntimos, eventos sociais, cansaço, variações
climáticas, térmicas, todas estas são realidades que acarretam sempre um
remanejamento da libido, de suas figuras, em novas conexões. O enlace amoroso é, por
natureza, excêntrico, isto é, fora de centro: é tanto uma ruptura em relação ao exterior
quanto um convite do mundo para os embates dos amantes. É por isso que não existe
paisagem, lugar, hora, postura vertical, horizontal, movimento, velocidade que sejam
incompatíveis com a união voluptuosa: as três divindades dominantes, o sacrossanto
leito conjugal, a nudez obrigatória, a noitada cúmplice e privada, não podem mais
imperar soberanamente sobre nossos amores. Assim, por exemplo, a adjunção de
matérias estranhas sobre o corpo (queijo branco, chocolate, urina, saliva, excremento,
pintura, açúcar, terra, lama, óleos, cosméticos, leite) talvez seja apenas um modo de
desdobrar-se, de atribuir-se outras epidermes, outras peles, de convocar outros estados
do mundo para os esponsais sensuais. Não é uma sempiterna procura da mãe, do pai, do
falo, como afirma a quinquilharia psicanalista, mas modo de se situar diversamente, do
ponto de vista humano, de metamorfosear-se, animalizar-se, arborizar-se, de tornar-se
um estranho em relação a meu corpo e ao outro. Lamber o creme que espalhei sobre o
sexo de minha parceira, devorar a maquilagem de seu rosto, morder, até sair sangue, a
gordura de suas coxas, o enchimento de seus quadris é, para mim, com modo inocente
de comê-la, de eternizar um canibalismo sem efeitos. E quanto mais eu a absorvo, mais
eu a cubro de líquidos diversos, mais eu a chupo, menos ela se altera: a tumescência de
nossos órgãos torna-se, para nós, pretexto para experimentar os mil estados da matéria,
para endossar vários corpos, várias sensações, várias espécies.
Diante de certa gravura chinesa (de inspiração taoísta), vejo-me seduzido por
esses amantes "desligados": meio nus, tomam chá, conversam; o homem está com uma
ereção, seu pênis ligeiramente fora do conduto de sua companheira, sorriem um para o
outro, o enlace deles é calmo, nenhum heroísmo vem perturbá-lo. Tudo isso pode
assumir a forma de uma adivinha: o enlace amoroso é apenas um desvio no ciclo da vida
ou a vida não passa de um espaço rápido de reconstituição entre dois enlaces? A fleuma
dos amantes chineses atrapalha essa pergunta: eles continuam com desejo, continuam
cobiçando ao mesmo tempo em que introduzem amplas parcelas da vida cotidiana no
ato sexual. O outro não é reduzido a sua carne, à facticidade de seu corpo, o movimento
que me leva em sua direção não é um movimento isolante, ele engloba tudo o que está
próximo dele e, aos poucos, o mundo todo. Interromper o ímpeto — ou, melhor, ampliá-
lo — para beber chá, ler, rir, comer, fumar, interrompê-lo para retomá-lo em outro lugar,
de outro modo, é romper com essa espécie de separação obrigada que caracteriza o
exercício sexual em nossas sociedades. A relativa indiferença dos amantes (com o
desempenho, com sua imagem, com a seriedade de seus gozos) é a porta que deixam
aberta para o mundo, a distância mínima que impede sua felicidade de ser um egoísmo a
dois. Através de um movimento de ida e volta, o erotismo torna-se cotidiano e a vida,
um cotidiano erótico, com o enlace marcando o duplo prazer da intermitência e da
continuidade.
É possível encarar a masturbação como um apelo lançado ao outro por meio de
partes do corpo que não são nem nossas, nem de outrem, mas que são internas e
externas, ausentes e presentes, lugares do estranho e de si mesmo. O onanismo, assim
considerado, desfaz a privatização do genital: longe de inscrever no corpo um recanto de
propriedade privada, ele abre esses domínios fechados aos quatro ventos (a todos os
ventres), dissemina as pertinências, esboça uma partilha sem limites. Meu sexo quer ser
todo do outro, fica tesudo, invoca corpos ausentes, contatos desconhecidos, lança
pontes, tece ligações, erige-se em órgão público: o satisfaça a ti mesmo é, um pouco,
abolir a ausência, construir o ser que falta, mimar a penetração, a carícia, os prazeres
ardorosos que daí resultam, é ocupar meu próprio corpo, povoar sua solidão de través,
de modo a ter dois em uma de minhas partes menos íntimas. Mas não, diz o sexólogo,
auto-satisfazer-se é recensear as possibilidades eróticas do próprio corpo, estabelecer
seu próprio capital de gozo, moldar-se a si mesmo como valor de troca voluptuoso, é o
novo “Conheça-te a ti mesmo” da ciência erótica, o necessário estudo de mercado
anterior a todo investimento, é preciso saber aquilo que, na união sexual, tenho o direito
de esperar do outro e aquilo que ele pode esperar de mim. A masturbação é um prelúdio
à comparação que, por sua vez, não passa de uma avaliação, uma estimação. Valho
tanto, diz cada parceiro, será que ela(e) saberá apreciar meu justo valor? Assim, entre a
organização industrial e o negócio erótico há mais que uma vaga analogia: há uma
verdadeira identidade estrutural.
É pena que a pretensa “maturidade sexual” (aquilo que os especialistas chamam
de “capacidade orgástica total para o homem e para a mulher”) seja apenas concebida
unilateralmente como recalque ou, pelo menos, como uma espécie de prisão domiciliar
das sexualidades anteriores (infantil, fetal, adolescente, mas também vegetal, cósmica,
animal). É ainda mais triste que todo progresso erótico somente seja concebido
hierarquicamente, elevando-se sobre o silêncio e a mordaça dos outros patamares. Por
que não desejar uma sexualidade sem exclusões que seja a soma de todos os erotismos
e não mas mais a eleição de apenas um deles em detrimento de todos os outros? Quem
reencontra os mistérios e as alegrias da infância a partir das experiências da idade
adulta? Quem reúne lado a lado o fluido e o sólido, o excremento e o genital, o doce e o
salgado, quem mistura as matérias mais estranhas e mais repugnantes, quem brinca
tanto com o sistema capilar quanto com as mucosas, quem leva os odores sexuais para
longe de seu lugar de origem, quem elege centros fictícios para neles concentrar altas
doses de sensibilidade, quem desloca sem parar as zonas erógenas, fala com os órgãos
genitais, copula com a boca, toca com os olhos, vê com as mãos, confunde em uma
polimorfia inocente todos os gestos da perversão clássica em sua compulsão repetitiva?
Em suma, quem convoca todas as coisas incompatíveis para fazê-las coexistir e gozar até
a loucura com essa coexistência impossível? Porque, nesse caso, a cópula é o espaço
onde todo limite se vê pulverizado, onde o campo do desejável se dilata ao infinito, pois
nada mais é suficiente para a ira voluptuosa; onde dois estados habitualmente
antitéticos se misturam sem se destruírem; onde o terrível se transforma em beatitude,
o nojo em apetite; onde aquilo que provoca vômito, eletriza; onde o amor se torna uma
voracidade sem medida que metamorfoseia cada objeto em delícia, potência afrodisíaca
de indiferença que não conhece contradições mas que traz consigo, seja onde for que se
apresente, uma mesma cobiça, tudo cobiçando numa fome sem limites. A idéia excessiva
do amor designa talvez essa tendência profunda do ato sexual no sentido de atrair para
sua esfera a integralidade dos objetos parciais e dos corpos existentes, como se o enlace
voluptuoso não pudesse manter-se e justificar-se a seus próprios olhos senão através
dessa utopia totalitária. E nesse desencadeamento onde os pontos de referência
orgânicos e anatômicos se perdem, onde a cabeça não é mais o cume do corpo, assim
como o sexo não é mais o centro desse mesmo corpo (porque esse corpo não tem mais
direção, não é mais hierarquizado segundo sua posição vertical), os amantes não se
desfazem, não se aliviam de uma tensão a não ser para recair sob o jugo delicioso de
uma outra tensão, e reatam em todos os sentidos o crepúsculo de seu desejo com seu
recomeçar; se nunca param de “descarregar-se” é que, em outras palavras, não param
nunca de desejar.
O corpo satisfeito é o corpo revelado, que volta a si mesmo após o furor
esgotante da excitação, o corpo que se encontra com o corpo de antes do coito após
uma longa marcha durante a qual estiveram à procura um do outro, às vezes bem
próximos, mais frequentemente muito afastados um do outro. É sabido a solidariedade
tradicional existente entre o relato, a ação libertina e o ato sexual, calcados os três no
esquema contratual da ascensão e da queda. Mas, a partir do momento em que o ato
carnal integra e simultaneamente joga com todas as artes de amar, ele se liberta de todo
preconceito narrativo, é enunciado de outro modo que não através dos pontos
culminantes do amado, razoável gozo do adulto, é transfigurada a maneira pela qual as
encaramos e enumeramos, ele próprio é transfigurado. Nessa união, os amantes
introduzem buracos na narração, assim como se fala em buracos na memória, nos quais
eles se esquecem de que estão fazendo amor, esquecem suas responsabilidades
eróticas, sua vontade de conseguir o sucesso sensual e se entregam inteiramente à
alegria de estarem juntos. Escapadelas, derivações minúsculas que constituem outros
tantos episódios absolutamente significativos em si mesmos e cuja variação permite aos
corpos ligar-se e se desligar eternamente, permanecer absortos em sua tarefa e,
portanto, bastante separados um do outro. Impedindo o desenvolvimento natural do
coito (sua caminhada na direção do êxtase), os amantes também impedem sua
imobilização numa ganga única. Iniciando assim uma relação que não afirma nenhuma
vontade de encerramento, uma relação onde nada acaba bem, onde muita coisa
acontece, onde sempre há alguma coisa a acrescentar, onde se adia toda fidelidade
fotográfica às funções dos órgãos de tal modo que o lugar do amor se torna o campo
espalhado de uma multidão de projetos abortados, de desejos residuais; sem finalidade,
sem coações (sem contratos) a serem satisfeitas, sem objeto a priori inadequado, porque
este pode ser qualquer coisa: pele, olho, cabelo; tampouco há, para ela, objeto ou
volúpia privilegiada a não ser em virtude da rotina ou por coação.
E então os amantes podem dizer “nós”, sem que nenhuma espécie de
comunidade eterna brote dessa palavra; “nós”, enquanto reunião aleatória de dois
corpos, afirmação do acaso que pode ser escandida entre cada intervalo, conversa dos
dedos sobre a pele, da pele sobre os olhos, diálogo de surdos que daria muita
importância a essa surdez; “nós”, não a paz da intersubjetividade, nem a sinistra
conciliação humanitária; “nós”, troca de intensidades não-cambiáveis, fraternidade de
mal-entendidos, encontro febril, sussurros e gritos de duas ou mais superfícies não
proporcionadas. O ato de amor, quando se despoja de todo desejo de poder ou de
carreira, é esta relação que suporta sem nenhuma vergonha a disparidade entre os
sexos, que mistura todas as dissimetrias, todos os ilogismos, confusão e coabitação de
gozos que trabalham lado a lado. Amar o outro é preservar sua estranheza, reconhecer
que ele existe a meu lado, longe de mim, não comigo. O sexo oposto não é o homem
para a mulher ou a mulher para o homem, é tanto este rapaz quanto esta moça, a corola
desta flor tanto quanto o rosto deste gato. Em cada uma dessas coisas vive uma
sexualidade que não é sempre minha; seja para onde for que me levem minhas
inclinações, na direção do homem, da criança, da menina ou do velho, o que
experimento é uma diferença, nunca a similitude. O prazer do enlace apresenta-se então
como a valorização extremada, como a conjunção irreconciliável de duas margens,
prazer de dissonância, cacofonia carnal, alegria profunda, inconcebível, de emitir juntos
notas cada vez mais falsas, mais desafinadas, mais dilacerantes. E nesse ato heterólogo,
nessa mise en scène de um compromisso em que nenhuma das duas partes renuncia à
sua desarmonia básica, nada mais pode nos situar, nos garantir de que estamos em
repouso ou em movimento, na consonância ou na pluralidade, na atração ou na repulsa.
Diante de todos os caminhos que se oferecem a eles, os amantes sentem apenas o
embaraço da escolha; e, se acabam escolhendo o embaraço, a complicação, não é por
estarem preocupados com o desempenho mas porque, neles, não há mais nada que
aceite ser posto de lado, ser esquecido; o desapossamento absoluto exige apenas o
abandono do espírito de abandono, conhece apenas uma exigência: nada perder, reunir,
degustar todas as sensações possíveis, por menores, ridículas ou “vis”.
O enlace se dá a partir de corpos sujeitados, educados para gozarem de um certo
modo, várias vezes “reescritos”, modelados, produtos históricos de longos séculos de
opressão. A própria nudez nunca é imediata; despojados de nossas roupas, ainda
estamos vestidos, revestidos por um verniz social; não estamos nus mas sim vulneráveis,
desajeitados, cheios de defesas e de calafrios; o funcionamento tátil do corpo é uma
coisa que demora, algo que requer uma paciência minuciosa, sempre aleatória; não é
porque estão nus que os amantes abandonaram seus papéis sociais, pois estes também
estão previstos pela nudez; nus eles só ficam quando são epidérmicos, isto é, quando são
absolutamente superficiais, quando suas sensibilidades põem de lado toda visão de
conjunto para tornarem-se bisbilhoteiras, atentas às coisas insignificantes, capazes de
estremecer ao menor estímulo. A nudez é uma longa paciência da qual nunca podemos
estar certos.
No entanto, não sei em que consiste a nudez. Se por isso se entende o derradeiro
estado da matéria, a verdadeira natureza do indivíduo humano, então confesso que ela
não existe. Sinto-me tão nu vestido quanto sem roupa, o pano, a calça, a camisa são para
mim uma outra pele, tanto quanto minha epiderme. Não seria melhor reconhecer que
temos mil nudezas não apenas no tempo (pele do inverno, da manhã, de após ter feito a
toilette, do sono) mas no espaço; que somos feitos de várias peles, peles da vagina, do
interior do membro, pele do ânus, do cotovelo, da retina, da íris, da sola do pé, das
falanges, pele do hálito, da linguagem, do sorriso, mil películas pulsionais de
sensibilidade tátil diversificada, de infinitas carícias, de graus de umidade diversos? E que
nesse caos não há razão para que uma nudez prevaleça em detrimento das outras, que é
preciso lançar mão de todas elas, do contraste entre elas, de seu potencial de
ramificação, de encontros inesperados; e que enfim as peles se superponham e não se
anulem, sempre uma superfície sob a superfície, um outro estado do corpo sob o estado
atual, um empilhar de máscaras e rostos e não um único corpo autêntico, a nudez já é
um disfarce como a roupa ou o uniforme, mas essas aparências são belas, por que
simplificá-las, dar preferência a uma ou outra, nunca teremos peles em número
suficiente, penugem, peliça (cumplicidade, na mesma besteira, entre as concepções
utilitárias da roupa — vestir-se para proteger-se do frio — e o militantismo da nudez
erótica, mesma ideologia da aparência e da realidade, do verdadeiro e do falso, mesma
debilidade igualmente dividida entre o conservador e o contestador).
A conjunção amorosa pode ter sido, nos últimos séculos, uma transgressão, um
deleite dos sentidos, um pecado delicioso ou ainda o resultado de uma ação libertina, a
confissão de uma rendição; ela está transformando-se, através da ação conjugada da
psicanálise e da sexologia, em uma indiscrição erudita que mistura as naturezas do
confessionário, da fábrica e do estádio; em suma, uma cópia hedônica da rentabilidade
industrial, um processo ao mesmo tempo tecnológico e disciplinar que, ao privatizar os
gozos, uniformiza os comportamentos, penaliza os afastamentos da norma e torna a
sexualidade ansiosa em relação a si mesma. O mesmo acontece com o orgasmo: ele é
hoje o programa comum de todas as sexualidades, a bandeira sob a qual se reúnem,
aquilo que as justifica e simultaneamente as absolve; bichas, sádicos, lésbicas,
homossexuais, necrófilos, adeptos da suruba, passamos por cima de seus gostos
estragados, de suas manias nojentas, comam-se como quiserem, em todas as posições,
mas não se esqueçam, ao fim de cada trajeto, por mais diferente que seja, de que o
objetivo é um só: o orgasmo, sua misteriosa luz, suas línguas de fogo; o orgasmo que
tudo perdoa, que lava os pecados, elimina as feiúras do enlace, acolhe em si os filhos do
Senhor no triplo corpo sagrado de São Reich, São Masters e Santa Johnson.
O orgasmo, nova misericórdia, nova transcendência da sexualidade
contemporânea; o orgasmo, momento de histeria fixada, eternizada, aprisionada porque
mantida condensada, imobilizada num longo olhar; morada (pausa) do prazer, instante
patético dos olhos convulsionados, verdade enfática do amor; orgasmo que implica a
imaginação de um corpo finito (finito naquilo em que se pode circunscrevê-lo e
reabsorvê-lo inteiramente em sua região genital), orgasmo com sua obstinação
monótona, como deixar de ver que ele não passa de um momento menor do enlace
amoroso, que seria injuriar os amantes, injuriar sua ambição, obrigá-los a se dedicarem a
procurar uma sensação única na qual se espera que todo seu desejo mergulhe? Se o
coito nada mais é que a possibilidade sempre adiada do coito, existe nele então uma
infinitude sensual que, através dos limites orgânicos, suprime toda libido mercantilista. E
a recusa do has been, do realizado, do acabado, se traduz deste modo: cópula alguma
aconteceu. Houve apenas uma cópula indireta, que finge repousar, uma sensualidade
que mima a continência, um movimento que simula a impassibilidade, um enlace
estremecido que evita a dupla acolhida do coito furtivo egoísta) e do coito-desempenho
(olímpico). Desse orgasmo não faremos nosso novo ídolo, o Bom Pastor de nossas
lubricidades. Não temos ideal algum, nem mesmo um ideal de gozo. Nossos enlaces não
têm razão de ser: não esperam que um êxtase grandioso lhes forneça a justificativa de
seus feitos. Melhor: queremos alegremente o advento do non-sense, da falta de jeito, a
incongruidade de nossos amores. Dessas suas volúpias geladas, harmônicas, ensaboadas,
nos afastaremos como das demais crenças.
Estar em estado permanente de enlace e não de descarga; não dedicar ao
transtorno dos sentidos os poucos segundos da distensão orgástica mas procurar uma
vacilação que dura; não subordinar o paroxismo voluptuoso à cópula, a fim de que esta
não seja uma rápida incursão no mundo das verdades sexuais, mas que permanece, no
resto do tempo, no esquecimento e no desmentido aberto dessas verdades; um prurido
que coça e do qual nos livramos furtivamente, cientificamente, a fim de ficarmos
disponíveis para outras tarefas. O orgasmo pode então voltar a acontecer, liberado de
todos os sentidos, inclusive de um projeto mais ou menos à la Bataille de despesa a
fundo perdido, voltar como complicação suplementar, coexistência entre os parceiros de
prazeres assimétricos e não comunicantes que se orientam para lados diferentes,
caminhos opostos que se põem a girar, a entrar num turbilhão como as rodas de uma
loteria que mistura os números. De variação em variação, de suspense em suspense, o
orgasmo tudo funde e foge de tudo, não para de chegar, de se esquivar enquanto última
palavra, último prazer, satisfação final. O coito não é a ordem do fato biológico oposta a
uma vontade de excitação permanente, mas o meio equívoco de sua comunicação, o
ponto em que seus limites se confundem ou, ainda, sua trama em comum. Libertar o
orgasmo de sua finalidade natural é extraí-lo de seu ser como algo que deve acontecer; é
preciso imaginar para ele um tempo descontínuo, não uma relação sexual apenas para
“gozar”, mas uma relação na qual intervém este ou estes gozos, lucro paralelo que não
desvaloriza os demais mas se acrescenta a eles, num turbilhão sem fim e sem origem.
Condição de mergulho eterno no qual só se vem à tona para respirar, em que se prefere
a perda ao retorno, em que as pessoas se comem, se chupam, se lambem por todos os
lados sem se preocuparem com avaliar seus mil prazeres amorosos de acordo com uma
volúpia de referência.
O corpo amoroso é menos um corpo sem órgãos do que um corpo cheio de
órgãos, um corpo que padece de um excesso de órgãos porque é um corpo
desorganizado, uma imensa pele fria ou quente que desloca consigo os afetos e
intensidades mais ou menos ardorosos, uma vasta célula nômade onde formigam
populações de rubores, de peles que se roçam, carícias, estímulos, poros abertos,
epidermes exasperadas, película revisitada, mordida, agarrada, dilacerada, chicoteada,
animalizada, em que a menor superfície assume as dimensões de uma cidade, sensações
liliputianas, território sulcado por carícias e abraços que não pararão de inventar e
embaralhar os termos de sua própria gramática.
O corpo não para de retirar da pele do outro coisas ocasionais que ele capta e
transforma em ordem, regra, necessidade (desmantelado, palpitante, ele talvez seja o
corpo-limite entre o erotismo e a tortura). O corpo amoroso é o corpo da multiplicação
desvairada de órgãos porque, à medida que decresce a ascendência do organismo, cada
pedaço de carne, cada prega, cada reentrância, cada saliência, adquire por sua vez a
qualidade da ereção, a sensibilidade dos órgãos do prazer, cada crispação do esfíncter se
torna um mundo em si, uma aventura única, cada vez mais matéria, sutis cesuras, não
mais um centro sexuado, mas uma federação de sexualidades, um enxame erótico,
loucuras convulsivas nos lugares mais inesperados, mais inexpugnáveis.
As posturas, em sua variação, não são automaticamente sinônimo de novidade;
pelo contrário, elas tendem a concentrar o culto voluptuoso num lugar determinado,
dando ao santuário genital uma suprema importância e engendrando o apego a um
território particular. São como imagens imobilizadas, imagens que retêm porque são
exemplos de forças bloqueadas, estabilizadas; a eroticidade é antes de mais nada um
índice de formas ancestrais, estereotipadas, que eliminaram a força que as animava
originalmente. E esta nomenclatura, enquanto gramática básica do amor, torna-se
conjugação elementar que todos os corpos declinam, quando se encontram. Percebe-se
a importância que a tecnologia orgástica atribui a esse agenciamento recenseado:
através da precisão quase mecânica dos gestos e movimentos por ele autorizado, o
ângulo de penetração que permite, ele se apresenta como uma economia, uma
poupança de suor e fadiga, um indutor de um gozo mais rápido. O erotismo torna-se
uma arte de gestão, gestão da força de que dispõe cada indivíduo e que ele investe por
conta própria nas atividades sexuais; se esse indivíduo for inapto ou desajeitado,
dispersará suas forças, alienando-a em benefício de simulacros, desperdiçando-as
através de uma má coordenação; cometerá o engano de esgotar suas possibilidades, de
irritar-se por nada e de não mais ser capaz de levar o parceiro, e ele mesmo, ao orgasmo
simultâneo. Pelo contrário, se eles puserem de lado os erotismos pré-genitais, as carícias
inúteis, as pequenas lubricidades que desviam da satisfação final, o homem e a mulher
recuperam toda a força que tiveram de dedicar a esses impulsos debilitantes, saem para
fora da imensa região do sonambulismo sensorial onde não se tem certeza de nada,
onde nada está decidido, nada é tangível e, coisa mais importante, extraem desse
trabalho de exclusão o começo de uma energia verdadeira que poderão mergulhar na
satisfação voluptuosa.
Em outras palavras, a forma das posições fascina quando não se tem mais o
impulso necessário para compreender a força que as anima em seu interior, isto é, para
criar outras formas. Técnicas demasiado nítidas tornam-se estereótipos e bloqueiam a
imaginação.
O culto sistemático das posições só é possível numa falha da força, no movimento
da força caída (pelo que a sexologia é bem uma “ciência” do passado, do superado, do
realizado, do constituído, do recenseado, convite à repetição, balizamento monótono de
aventuras já vividas, historicista e crepuscular por definição). A paixão estrutural das
formas e das posições marca o deslocamento de uma concordância fundamental entre
os amantes; eles mesmos não mais provocam, na violência que os supera, as figuras nas
quais vão se amar, mas se dobram diante da experiência de um velho saber, assumem
seus lugares numa linguagem que eles mesmos não articularam e da qual não serão mais
que a temporária textura; em suma, esperam, da fidelidade a algumas imagens, o
despertar de uma paixão que não consegue se inventar a si mesma. Ora, as forças que
estão em jogo num enlace não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica,
mas ao acaso do desejo e do embate amoroso. Elas não se manifestam como formas
sucessivas de uma intenção antecedente; não assumem o aspecto de um resultado,
aparecem sempre nas vestes ocasionais e singulares de um evento. E a sexualidade,
como desvio que acarreta como tal a mudança de formas, é um certo equívoco que não
dá descanso às estruturas fixas, aos códigos imutáveis, aos gestos reiterados. O desejo
sexual, desejo de sublevação e de subversão incessante, deve constantemente
desenvolver-se e romper-se de múltiplos modos. E então deixa de existir a passividade
da imitação; os corpos não precisam mais de uma memória que ordena e recupera as
energias; os modelos eróticos se colocam a reboque da história dos amantes: estes, com
sua geografia íntima, de movimentos indecisos, anulam os dados clássicos da topologia,
da geodésia, da planimetria, da hidrografia, dispersam os mapas, abandonam os antigos
traçados, interrompem sua supremacia. E fazem pouco caso de toda a ciência do Rama
Sutra ou qualquer outro livro de amor, edificam para si mesmos o mapa de seu Carinho-
Sutra.
Abençoado seja o enlace, poderiam entoar os amantes, que nos livra da sinistra
reciprocidade, do pequeno mercantilismo do dado e do recebido, da equação das
possibilidades de ganho entre os parceiros. E abençoados os enlaces que não contam os
rubores, as alegrias, que não atribuem a metade de seus frêmitos aos efeitos do
champignon vermelho e a outra metade a qualquer outra coisa equivalente, que não
fazem suas contas de dono de armazém durante a fusão dos corpos. A inovação maior da
sexologia continuará a ser o fato de ter introduzido (e imposto) a política da oferta e da
procura na união voluptuosa, de ter apresentado como algo a priori o fato de que aquilo
que está em jogo, para ambos os parceiros, são coisas comparáveis, finalidades
idênticas; que se trata, enfim, de amantes permutáveis (o homem pode ser a mulher, um
homem qualquer, uma mulher qualquer, não sendo esta permuta um embaralhamento
dos papéis sexuais, mas a similitude absoluta entre eles, assim como se apresentam
similares as partes num contrato). Segue-se o fabrico de um corpo de referência (corpo
genital), que registra os estímulos, de um modelo de gozo sempre redefinido, sempre
modificado, de um emprego do tempo a ser obedecido minuciosamente, de um trajeto
obrigatório para gestos e carícias, um mesmo número de jogos com a língua para os dois,
mesma quantidade de toques, com o medo concomitante de ser lesado, enganado, de
não ter saído com sua parte no saque, medo da fraude, sonho com um corpo enganado,
com um detector de mentiras, com um monte de máquinas, fios, aparelhos eletrônicos,
que estabeleceriam a medida exata das sensações para cada parceiro, que afirmariam ou
não a validade do contrato, máquinas orgonóticas de Reich, laboratórios de Masters e
Johnson, verdadeiros socialistas científicos da sexualidade, enfim.
O enlace amoroso normalizado é sempre a história de uma repetição: façam os
amantes o que fizerem, não há nada em suas carícias que não siga um modelo anterior.
Para eles não há uma primeira vez, apenas a repetição é primeira. Tudo o que já existiu,
existe e continuará existindo: duplicação sem fim, igualdade das sensações, ausência de
novidades perturbadoras, presença apenas de pequenas inovações que nada mais são
que as diversas facetas de uma mesma construção.
E nenhum enlace é original porque a quantidade de figuras e posturas de que os
corpos são suscetíveis é necessariamente limitada; mas também todo enlace é
absolutamente novo, porque esse pequeno número de posições nunca é vivido do
mesmo modo de um casal para outro, de uma vez para outra. O amor não pára de variar
com a finitude dos corpos enlaçados, com as possibilidades de gestos e órgãos. A cópula
é capaz de uma ambiguidade e de uma plasticidade infinitas, porque ela não é uma
entidade fechada mas uma relação entre inúmeras relações, relação entre pontos e
objetos habitualmente abandonados. Cada corpo renasce em cada união de modo
diferente, e a história de um enlace é, pelo menos, tanto a história dos modos pelos
quais ele é infringido quanto das maneiras pelas quais é perpetuado e confirmado em
relação a todas as vezes anteriores. As aparentes repetições dos amantes não apenas
indicam uma continuidade, como revelam uma lenta e incessante metamorfose. Por que
os gestos amorosos se remetem ao mesmo Deus — Eros onipresente — sem se
assemelharem entre si? Porque o único ponto de convergência está na modelagem
sempre diferente dessa divindade, que, retrospectivamente, atribui uma ordem e um
sentido ao encontro deles: Eros é uma força sem forma preestabelecida e, portanto,
capaz de assumir todas as formas; se o amor não tem “rosto” é porque ele endossa
todos os “rostos”, cada um em seu lugar, é porque ele é o corpo mais monstruoso que
existe, o mais inacabado, o mais plástico, deformável e acrescentável, à vontade de cada
um. Querer imobilizá-lo numa figura única, deter a proliferação dos pedaços
incompatíveis que vêm, como se fossem partículas, enxertar-se nele, dizer que é genital,
heterossexual, andrógino, materno, não passa de uma utopia, sonho de clareza,
tentativa de parar a história: baile a fantasias de poetas e homens da lei, pelo menos
uma vez cúmplices, se é que o desejo de transparência sempre engendra o terror. Assim,
todos os anacronismos sensuais se justificam: recomeçar o enlace no meio, tirar o pênis,
partir para as preliminares após o orgasmo, rir enquanto aumenta a excitação, fazer um
lugar de prazer fora do templo genital: todas essas são maneiras de percorrer ao
contrário o tempo e o espaço da sexologia (a irreversibilidade da reação sexual, para usar
as palavras de Münster e Jão-São): a causa é posterior ao efeito que, por sua vez, pode
suscitar outras causas, a parte da frente está atrás, a fonte é confluência tanto quanto
foz, pois o desabrochar dos gozos não altera essa ida e volta contínua, contentando-se
apenas com assinalá-la. O amor é assim essa capacidade metamórfica, esse espaço curvo
em que as relações mais inesperadas, os encontros mais paradoxais são a todo momento
possíveis. As normas, as mais intangíveis de sua existência e de seu uso — como por
exemplo o momento culminante do auge ou a ordem cronológica de seu advento — são
apenas maneiras relativas, entre muitas outras, de abordar seu sentido. Uma cópula não
é um sentido já pronto e acabado, uma orientação definitiva à qual bastasse ter acesso
para poder degustar da suprema felicidade, mas uma reserva de formas que esperam
por um sentido, um potencial inesgotável de histórias, nenhuma das quais é mais
determinante que outra. Os amantes não se propõem um objetivo, propõem-se mil
objetivos, não têm um plano preestabelecido para fazer amor; a única coisa que os guia
é o capricho e a inextinguível sede que têm um do outro. A libido deles (álibi-bibelô
deles) se desloca ao sabor de suas fantasias, levando consigo a mesma intensidade, não
há para eles objetivos que não sejam prioritários (repintar o quarto, mudar os lençóis),
todos seus objetivos são intercambiáveis, uns pelos outros, todos são igualmente
valorizados. No monoteísmo tranquilizante da revolução sexual, todas as cópulas são
uma mesma cópula porque todos os gozos são um único gozo; segue-se que um único
gozo é todos os gozos possíveis. O estereótipo do coito é perfeito ab aeterno, apenas os
amantes é que são amantes imperfeitos: não podendo encontrar o prazer que
procuravam, ou por quererem apenas um deles, ficam procurando outros, os mesmos ou
quase. Nunca chego a conhecer o rosto daqueles que amo, só os amo por descobrir
neles, toda vez, um corpo novo, palavras inéditas, sensações deleitáveis, mundos
efêmeros que dispersamos aos quatro ventos.
Os amantes não se amam apenas através de ventre, defrentam-se de todos os
lados numa vontade de totalização que nada pode apaziguar; eles não se juntam apenas
no presente, provocam no outro, fazem chegar até eles, todas as épocas que viveram,
todas as estratificações que os compõem. Numa palavra, não renunciam a nada; não
renunciam à criança que foram, aquele pequeno ser que não tinha nojo da sua sujeira e
que sobreviveu com sua volúpia específica; ao adolescente núbil, ao adulto que são, a
nenhuma das personalidades que os esquartejam e que compartilham de sua história.
No próprio seio de suas carnes, nada renuncia ao privilégio do prazer, da corrente
sensual benfazeja: cada parte puxa para si o cobertor do gozo, não parando nunca de
dilacerar o corpo com suas exigências egoístas; em cada superfície, em cada pedaço de
epiderme multiplicam-se as séries divergentes, as disjunções, as infiltrações de energia,
com este estremecimento de narinas perto do sexo aberto ressuscitando aquela mucosa
anal, bestializando este trecho da pele; aquele odor, subindo das coxas entrelaçadas,
prostituindo por capricho este abandono particularmente impudico, homossexualizando
este lado da coxa ou a curva de uma nádega, cada fragmento de corpo assumindo o
papel dos órgãos genitais sem os substituir, enquanto as partes genitais, sobre o pano de
fundo de suas funções iniciais, assumem elas própria mil outras personagens, conchas,
plantas exóticas, galho de árvore, caverna, labirinto, instrumento de sopro, trumpete,
passarela com todos os seus enfeites e suas funções, e tanto que o corpo é ao mesmo
tempo inteiramente desgenitalizado e totalmente erotizado, sexuado por todo lado
porque afogou a acuidade propriamente sexual numa massa de sensações afluentes.
No fundo, a única coisa que a Lei pede aos amantes é o seguinte: não bancar
crianças. Em outras palavras, permanecerem completamente genitais. E inversamente: o
corpo da criança continua a ser hoje, no ocidente, o último território inviolável e privado,
o unânime santuário proibido: direito de cidadania para todas as “perversões”, em
última análise, mas perseguição impiedosa contra a sexualidade infantil, seu exercício, a
cobiça dela. A subversão, se ainda acreditamos nisso, hoje seria menos a
homossexualidade do que a pederastia, a sedução dos “inocentes” (donde o escândalo
que provocam os livros de Tony Duvert quando na verdade deveriam estimular, provocar
vocações, abrir os olhos). Pelo fato de a maturidade ser sempre a história de um
estrangulamento, a adolescência não é o começo da vida sexual mas, antes, sua triste
canalização: com 14, 15 anos, os dados já foram lançados, o jogo está feito, a
normalidade orgástica já terminou seu paciente trabalho de construção. A infância,
duplamente "privilegiada" por nossa sociedade (num caso, isenta de toda veleidade
erótica; no outro, "polimorfa perversa", assexuada à direita, hipersesuada à esquerda)
seria assim e continente proibido per excelência, a terra prometida que ninguém tem e
direito de pisar; posso ser genital, posso ser infantil (isso eu sou, de todo modo), mas não
criança (mas esse desejo de uma sexualidade da criancice, retomando a expressão de
Antoino Compagnon, não é ainda um mito que reativa a já morna utopia da assexuação:
ter o sexo duplo, modo de não ter nenhum sexo, fazer-se de anjo? Fazer de anjo, isso te
excita, essa debilidade?)
Eu te amo porque és meu semelhante, diz a teoria clássica do amor. Os
semelhantes se atraem, sejamos semelhantes sátiros. Ama teu próximo como a ti
mesmo: mas antes de mais nada é preciso amar muito a si mesmo, gostar de si
deliciosamente, ter a impressão de existir enquanto indivíduo, como pessoa total, Ora,
como posso conhecer minha identidade a fim de poder encontrá-la, por semelhança,
num outro? Porque se, diante do outro, me sinto nas nuvens, é antes por constatar
aquilo que minhas similitudes comportam de diferença e como é que tal traço idêntico,
tal olhar, varia de um indivíduo para outro. Você é uma mulher, eu sou um homem,
vamos trepar, escreve um moderno descortês (Guy Sitbon). Por que é que a relação do
homem com a mulher seria mais natural do que a relação do homem com o homem ou
da mulher com a mulher? Por que não escrever: você é uma árvore, eu sou um homem,
vamos trepar? (ou então: você é uma esponja, um castor, uma máquina de escrever,
etc.) E mais: em que a identidade da natureza implica uma identidade sexual? Os órgãos
genitais dessa mulher e os meus, os desse menino e os daquele, não funcionam do
mesmo modo, não são idênticos. O corpo do outro, sua ossatura, suas zonas erógenas
são, ao mesmo tempo, aquilo que revela a semelhança e aquilo que serve para anulá-la:
mesmo esta comunidade sexual não pode ser reconhecida, pois ela não existe. Não
somos mais iguais diante do sexo do que da morte, e é absurdo querer fazer do prazer
genital o denominador comum entre os homens, a referência imutável, inatingível, de
suas relações. Sempre, por toda parte, a ideologia genitalista continua gritando: quando
o pinto vai bem, tudo vai bem, como se o sexo, a lubricidade, o despudor, não fossem
pulsões tão parciais quanto todas as outras. O fato de você ser sexuado não faz de você
meu semelhante e meu irmão, como dizem esses profetas chatos; o que quero ter em
comum com você são nossas diferenças e não nossas semelhanças, que não existem, que
não passam de ilusão ou de indício de nossa comum submissão a uma norma ou um
código. Assim, não há enlace que não seja uma guerra (mesmo entre pessoas do mesmo
sexo); mas não há guerra onde, mais que no enlace amoroso, se deseja a derrota, a
vitória do outro, em suma, a surpresa. O grito de todos os amantes não é: “entremos em
fusão, de nossos dois seres façamos um só”, mas sim “surpreendamo-nos, sejamos,
juntos, uma pulverização de fluxos incontáveis, dividamo-nos em mil personagens a
partir de nossas duas nudezas entrechocadas”. Se o prazer de ser amado faz parte de
meu prazer, é que meu prazer é a perda e não o controle, é que gozo com perder-me e
não com a certeza. Apagar você é, para mim, um certo modo de ser derrotado; minha
volúpia é uma volúpia da impotência. Fazer amor não é juntar meus badulaques genitais
com os de um outro, mas enfrentar uma singularidade pulsional com a sua própria, há
nisso um combate e não uma fusão, uma agressão talvez, mas que deriva para longe dos
códigos fixados da agressividade, relação de emulação e não de concorrência, aventura e
não balizamento de trajetos já conhecidos. O outro, na medida em que é um outro, é
uma sexualidade diferente, não há erotismo que não seja matéria de combate, tática,
jogo empatado. Há uma antinomia entre o amor e a guerra, mas no sentido em que o
amor induz talvez a uma nova visão da guerra, uma nova estratégia, novas finalidades,
estratégia do desnorteamento e não do aniquilamento, da diferença e não da lei,
artimanhas pulsionais que evitam a degenerescência das singularidades em egoísmos,
normas, decretos, inquisições. Aquilo que os galantes dividem são pequenas separações
contínuas, sem tréguas, apenas as distâncias os aproximam e apenas as aproximações os
separam. Não param nunca de avaliar a estranheza entre eles. Seja quem você for, a
partir do momento em que você se torna meu semelhante você me aborrece, me
entedia.
Não há unidade no ato sexual, ainda que unidade explodida, dispersada. A partir
do momento em que se penetra na conjunção amorosa, penetra-se em tantos tempos
quantas são as trocas, tempos que não são a procura de uma regra permanente, trocas
que são acontecimentos e que dão início, toda vez, a uma espécie de aventura. O
orgasmo é desejado porque fica na memória, porque as marcas de sua passagem
inscrevem-se nos corpos e os transformam em monumentos de uma atividade passada,
porque ele abre um espaço anterior e posterior, um tempo diacrônico cumulativo. Ora,
quando não mais existe, para os amantes, uma linguagem única da carne, quando eles
consentem em perder-se, em entregar-se à vagabundagem, passam a viver tanto
experiências eróticas quanto carícias, beijos, deslizamentos, tanto sensações quanto
grãos de pele (a rugosidade da língua, a pele lisa dos lábios, o sedoso lado interno das
coxas, o cobreado das nádegas, as estrias do orifício anal, a vulva inundada), cada
pigmento mais ou menos pálido ou colorido, neutro ou cheiroso, amargo ou salgado,
cada praia de carne é um microcosmo, uma esfera isolada que somente a delicadeza da
palma, da língua ou do sexo pode despertar, mas esses pequenos mundos aglutinados,
essas tribos sensoriais dispersas por toda a geografia do corpo não têm mais uma
direção comum, não se orientam mais na direção de centros (ainda que centros
múltiplos), o orgasmo torna-se um prazer entre outros, não será coroado, ninguém se
ajoelhará diante dele, ou não mais diante dele do que diante, por exemplo, da micção,
da ereção ou do roçar de uma face pelos dedos, o corpo amoroso não é nem cristão,
nem hebreu, nem muçulmano, é politeísta, acredita em todos os deuses presentes,
passados, futuros e para ele tudo é divindade, o menor arroto e o menor movimento, ele
é um espaço sagrado para o qual nada é anódino, nada é ridículo, nada é sujo demais,
orgânico demais, insignificante demais, corpo indiferenciado que não mais hierarquiza
mas que distingue, separa, enquadra, celebra, adora, praia eruptiva, amnésica, que
nenhuma exigência unitária consegue disciplinar.
O que inflama os corpos? O amor que sentimos um pelo outro ou a técnica com
que nos enlaçamos? Efeito de um sentimento ou efeito de uma técnica? Como saber se é
apenas a afeição que guia teus dedos, o movimento de teus quadris e de teus rins ou se
não estás repetindo comigo um aprendizado que poderia ser posto em prática com
qualquer outro (a)? Os amantes odeiam a mecânica pura dos órgãos e das epidermes, e
por sua vez os mecânicos receiam os efeitos perturbadores do sentimento, os curtos-
circuitos afetuosos que interrompem as relações de causalidade. Mas não estarão
errados, uns e outros? O enlace amoroso não mistura de modo irreparável a inclinação e
o saber-fazer (e nesse caso é uma tolice o movimento amoroso puro, sem premeditação
— só a paixão me dá tesão — e a fornicação puramente tecnocrata e sem derivações,
sem intensidade sentimental). O amor é sempre tecnicista, está comprometido com um
catálogo de posições, uma memória de formas por ele repetidas, não é independente de
um certo “cinismo”, mas esse cinismo mínimo, esse encadeamento obrigatório de
gestos, carícias, retenções, nunca é uma coisa certa, nenhuma receita garante o
desabrochar dos gozos, nenhum gozo demonstra a existência necessária de um apego
afetuoso. Os amantes etéreos que elogiam os respectivos baixo-ventres, os olhos
perdidos no céu, o técnico que estala os dedos, que assinala no próprio pênis os
orgasmos de sua parceira, têm em comum uma mesma raiva da imprecisão, da
indeterminação erótica: querem, aqui, corpos transidos de amor; ali, corpos puramente
funcionais, corpos legíveis segundo seu registro próprio, mas corpos ambivalentes ou,
pior, corpos imprevisíveis aleatórios.
O coito pode ser um enlace pesado, esclerosado, espreitando mesquinhamente
parcas alegrias à força de suor e obstinação; ou um amálgama etéreo, leve, vivo, sem
nenhuma aglutinação ou peso. Mas ele nunca satisfaz nenhum desejo de transparência,
de retidão, de franqueza, está sempre produzindo uma opacidade, façam o que fizerem
os amantes, produzindo uma espessura, instantes monumentais de múltiplas dimensões.
Qual o caminho para os parceiros? O caminho é algo que deve ser sempre procurado, os
corpos estão cheios de caminhos que estão sempre sendo percorridos. É por isso que os
amantes só se colocam problemas que não podem resolver: porque esses problemas são
insolúveis, porque nenhuma solução os esgota, porque esses problemas não existem,
porque, enfim, as soluções que eles acabam lhes dando não estão contidas nesses
problemas.
Assim, que o enlace amoroso se apresente como uma violência organizada, que
sua própria organização multiplique essa violência, que seja a efervescência mais
rigorosamente regulamentada, que permaneça regulamentado por um ritual preciso,
pelos protocolos mais maníacos, mas que esse cerimonial nunca se atribua outra
finalidade que não seja um furor multiplicado (se preciso, pela maior suavidade), outra
finalidade que não seja um frenesi sem limites. Que o fato de apagar-se leve apenas a
um novo apagar-se. E de mil outros modos, com mil outros mundos.
V - políticas da sedução

O TRIO INFERNAL

Acima de meu apartamento mora uma mulher de uns 60 anos que faz amor com seu
cachorro. Não há dúvida a respeito, ela começa a gemer, gozando, no mesmo momento em que
o cão late de um modo gozado. Eu fico aqui um baixo com um enorme tesão. E não me atrevo
a propor-lhes ir pra cama com eles. Mandei uma carta para ela, mas ela não respondeu. Mas se
eu lhe mandar o jornal com meu anúncio sublinhado, tenho certeza de que ela reagirá. Portanto,
peço à sra. G. S. que responda a Bernard (o barbudo que tem uma mobilete) e que venha a
minha casa com Floppi tomar um café (apartamento 28). Faço tudo o que quiserem.

Anúncio publicado no jornal Liberation, da imprensa alternativa francesa.

Don Juan, a antipaquera

Hoje, Don Juan não é mais um escândalo: faz parte do vocabulário. A lenda do
libertino único e solitário tornou-se um nome comum que vem ornamentar a arrogância
dos conquistadores. Mais censurante do que uma excomunhão, esta consagração
linguística retém de Don Juan apenas o sedutor: ela deixa de lado a pura paixão pela
quantidade que nos interpela através dele. O Don Juan contemporâneo é o homem de
sucesso, o play-boy que, por agradar às mulheres, orgulha-se de bancar o difícil. A
personagem do mito, pelo contrário, só agrada a todas as mulheres porque todas as
mulheres lhe agradam. A quantidade de suas conquistas recompensa a indiferença
apaixonada que assinala seu desejo. Seu poder de sedução não é uma virtude mágica,
um fluido etéreo, um maná. Se ele não conhece recusas, é porque sua própria cobiça,
antes de mais nada, não decreta nenhum ostracismo. Não há nada de exclusivo na
multiplicidade de seus ardores, e uma vez que ele representa a própria recusa da
discriminação, o acaso escolherá para ele o objeto momentâneo no qual se cristalizará
seu amor.
“Aldeãs, criadinhas, burguesas, condessas, duquesas, marquesas, princesas,
mulheres de todo tipo, de todas as idades, de toda condição social! Das loiras, ele gosta
de desfrutar de sua suavidade calma; das morenas, gosta da fogosidade; mas gosta de
todas porque são mulheres! Para o inverno, a mais gordinha, para o verão, a mais
magrinha! Se a alta é mais nobre, a menor é mais graciosa. As matronas também
servem, pelo prazer de inscrevê-las na lista. Mas seu ardor dominante é pela jovem
debutante. Qualquer mulher, qualquer moça, a grosseira e a delicada, tudo que veste
1
saia! Já sabe o que ele faz com elas.”
De modo inverso, os paqueras escolhem; assim, a única coisa que existe em
excesso, com eles, é o catálogo das mulheres que recusaram. Sem dúvida é um
imperativo ter muitas mulheres, mas o registro das conquistas é, antes de mais nada, um
rol de honra: são as belas criaturas que fazem um bom paquera. Portanto, este terá
tanto mais valor a seus próprios olhos quanto mais souber reservar seu desejo para os
objetos que o merecem e subtraí-lo das “estropiadas” que o desvalorizariam. A paquera
é uma avareza. Quanto mais um playboy é famoso, mais se estreita seu campo libidinal.
No fundo, que lhe importa a embriaguez, se ele estiver com o frasco certo.
Soberbamente, Don Juan ignora aquilo que o dom-juanismo de hoje exalta: o
desejo como seleção ou, em outras palavras, a designação de um modelo do desejo, da
coisa desejável. Leporello já nos havia revelado o segredo dessa repetição insaciável:
entre a velha e a moça, a nobre e a camponesa, a bela e a feia, a “lista numerosa” não
faz distinções, pois seu senhor não presta atenção nisso. Acrescentemos esta nuança:
Don Juan não repara, e é esta postura que aviva o escândalo. O paquerador, este,
repara: a vista é o instrumento de sua rapina e permite, mais que o tato, a audição, o
olfato, reforçar a sensação pela sentença. Com uma olhada, de fato, o paquera abarca ao
mesmo tempo o código e o real, a criatura que penetra em seu campo visual e o
protótipo que ela representa ou do qual ela é uma caricatura. Em outras palavras, ver é
sempre ver em dobro: é contemplar, em sobreposição, o cinza das ruas e a suntuosidade
dos cartazes; é subordinar a multidão aos filmes, os corpos apagados, pesados, comuns,
trabalhadores, em andrajos e sempre um pouco deficientes da realidade, às formas
perfeitas exibidas pelas múltiplas variedades do Espetáculo. A percepção visual,
portanto, não deve sua preeminência a nada além do fato de ser um aparelho de registro
e um meio de avaliação.
Assim, no exercício de sua cobiça, o paquerador é o contrário de um instintivo:
esse especialista meticuloso do desejável observa a passante, contempla seu perfil,
repara em seu andar, disseca seu corpo em objetos aceitos e refugados, avalia a
sensualidade que ela poderia revelar, pesa os prós (alta, belos seios) e os contras (boca
pequena, muito pintada) — em suma, seu olho põe-se a ler o outro como se fosse um
exame escrito. E para esse avaliador, assim como para os padres, a perfeição não
pertence a este mundo: a realidade só oferece uma cópia degradada dos modelos. Cada
rosto remete ao código do qual é uma combinação particular, mas pelo fato de não ser
esse código, ele significa também a distância que o mantém de lado, a dissemelhança, a
carência que o separa do modelo. Um corpo existe sempre para um outro, é sempre
menos do que aquilo que sugere. Mas a sanção não baixa com uma imediaticidade
implacável: o que salta aos olhos é o desvio, o comprimento de um nariz, pernas curtas,
uma pele rugosa... A epifania da Beleza é inconcebível fora desse contexto de feiúra que
o olho severo, agudo e vigilante do paquera verifica no mundo. Portanto, é sem
nenhuma surpresa que vemos o olhar inocentemente seletivo culminar na mania escolar

1
Mozart-Da Ponte. Don Juan.
de dar uma nota aos corpos dos outros. Dediquem-se ou não a esta prática repugnante,
os paqueradores sempre têm uma tabela: só decifram os rostos a fim de avaliar a
distância em relação ao único rosto pelo qual estão apaixonados: o do código. Aos olhos
deles, existe portanto a lei, “esta estereotipia geral dos modelos de Beleza” (Baudrillard)
que motiva as caretas segregativas e ratifica a excelência de suas escolhas sexuais.
Uma vez que o olho existe em estado doméstico, uma vez que a observação é
também uma observância, Don Juan embaralha a ordem amorosa, aplicando, ao pé da
letra, uma de suas afirmações centrais: o amor é cego. Donde, como escreve Blanchot,
“esse descaramento admirável”, que, diante da exigência de fidelidade, responde com a
sede de quantidade e com o prazer da enumeração. Hoje, o descaramento solitário
dessa paixão pela quantidade foi substituída por uma grosseria que pode definir a
própria transformação da quantidade em qualidade: a obsessão qualitativa assombra o
paquera, faz com que fique de olhos bem abertos e submete cada objeto desejável a
uma avaliação ansiosa, onde se misturam inéxtricavelmente o medo de ver-se enganado,
a vertigem perfeccionista, a docilidade ao código e a inquietação diante da opinião do
outro.

A tirania do olhar

“Amo as mulheres”: afirmação imbecil e vaidosa do profissional da sedução que,


na verdade, deve ser entendida do seguinte modo: “Eu me apresento: bacharel em belo
sexo, doutor em eterno feminino; o que amo é o controle soberano que esta
competência me assegura, as receitas infalíveis que daí extraio para dobrar as mais
inacessíveis, para fazer virar a cabeça dos amigos quando consigo uma nova, o prestígio
que tiro do fato de acumulá-las”. Nem todo mundo, claro, pensa assim, e esse discurso,
bem como a prática nele implícita, não é majoritário. No entanto, mesmo aqueles que se
afastam disso tudo, que fogem da paquera refugiando-se no casamento, que a
combatem pelo gosto da aventura, que a desprezam do alto de seu louco amor, mantêm
o mesmo espírito de vigilância do colecionador execrado. O terno esposo sentimental e
tímido que prefere o casal estável aos enlaces furtivos, o libertino amante de surubas
que se interessa mais pela invenção de posições do que pelo inventário dos corpos, o
sonhador romântico que, écharpe ao vento e cabelos despenteados, se prepara para
encontrar a Única, todos comungam com o paquerador nesse furor de excluir e no
desejo de serem incluídos, no olhar inquisitorial e na obsessão de agradar ao olhar do
outro. Eles veem o mundo com os mesmos olhos maldosos, e trabalham
incansavelmente sua imagem a fim de levar o mundo, apesar da concorrência, a prestar
atenção nela.
É esse o primeiro paradoxo da sedução: minoritária enquanto negócio, é
onipresente enquanto olhar. As transações são raras; mas a obsessão, universal. A rua é
esse espaço estranho e cruel onde as pessoas não param de avaliar-se e onde
praticamente ninguém se encontra. O exame perpétuo ao qual cada um se entrega em
relação ao outro só excepcionalmente desemboca numa troca efetiva. A ordem da
sedução é, antes de mais nada, essa incrível desproporção entre os dispêndios do desejo
e a energia gasta para ser desejável. Nesse bazar petrificado, todo mundo é comprador,
todo mundo é mercadoria, e ninguém faz negócio. Essa mercadoria não circula, ou quase
não circula, ninguém diz nada: mas quanta febricidade nessa imobilidade, quanta
brutalidade no silêncio dessas avaliações oculares! Olham-se os outros a fim de fixar
mentalmente o preço deles, olha-se o olhar deles para verificar a própria cotação; nada
acontece na cena da sedução, não existe drama aparente: nada além de tropismos
palpáveis, seres ávidos por imagens, imagens sedentas de reconhecimento, uma imensa
feira prostitutiva e imobilizada. Pode acontecer, sem dúvida, que os corpos saiam dessa
paralisia, mas é preciso um golpe de sorte ou um blefe, ou uma varinha mágica, pois o
encontro nunca é a realização do olhar, é sempre uma exceção.
“Teu pau está em flor? É a primavera? Estás procurando um buraco pra meter?”
Esta resposta, que por vezes fulmina o galã empreendedor, dirige-se contra suas
pretensões, não contra suas normas. A fúria vingativa contra o paquerador (sua altivez,
seu sexismo, sua arenga, sua desinvoltura de cafetão que ninguém passa pra trás e que
manja tudo, seu lado caçador de troféus e prêmios) coexiste com uma conformidade
escrupulosa em relação a seus modelos. Tudo acontece como se a autodisciplina do
corpo, a ascese cotidiana com a finalidade de sujeitar sua imagem às prescrições da
moda, não detestasse nada tanto quanto o testemunho de seu próprio sucesso. A
expressão do desejo perturba, enquanto a necessidade de ser desejável tem força de lei.
Mas o caçador rechaçado cometeria um engano se se queixasse, se dissesse que o outro
agiu de má fé, se denunciasse a hipocrisia ou a provocação. Houve apenas um mal-
entendido. Ele considerou, ou fingiu considerar, que era um convite aquilo que não
passava de um modo, uma postura do corpo. Ele acreditou, quis acreditar que a vontade
de agradar pressupunha a de encontrar, que o desejo de ser universalmente cobiçado
implicava a disponibilidade em relação a qualquer desejo. Ele se sentiu solicitado pela
solicitude da mulher em relação a sua própria imagem. Coisa que, longe de realizar a
sedução, rompia com seu mecanismo: querer um corpo intercambiável não significa
querer trocar seu próprio corpo. Pelo contrário: o fato de seduzir permite que a pessoa
dispense a aventura. A virtualidade é preferível ao contato e torna-o facultativo. Para
convencer-se disso, basta comparar os destinos antinômicos da mulher que triunfa na
cena do olhar — o corpo-manequim — e o da mulher rejeitada impiedosamente pelo
olhar por ser sem graça, gorda demais, banal — o bucho. Aquela circula tanto menos
quanto mais está certa de agradar; esta circula para consolar-se por não ser
intercambiável. Ela é fácil de cair porque está excluída do olhar; passa de mão em mão
porque não foi feita para o prazer dos olhos. A hierarquia está salva: a visão continua a
ser o sentido nobre, enquanto o tato não passa de um depósito onde são jogadas as
marginais da contemplação. Desqualificação, no fundo muito adequada, da
materialidade pela imagem. São os corpos sem brilho, os corpos comuns, miseráveis,
que, à falta de poder aparecer, vão pra cama. Portanto, o olhar não é o prelúdio
indispensável à sedução: tende, cada vez mais, a tornar-se a finalidade da sedução: as
condições de ingresso ao espetáculo sedutivo são tão draconianas que as felizes eleitas
gozam com sua integração, enquanto as reprovadas se recolhem melancolicamente aos
prazeres da carne: a carne é triste, infelizmente, o leilão é que é desejável.
A respeito do tema repisado da coquetterie feminina, Freud deu uma contribuição
bastante engenhosa. Em Introdução ao narcisismo, de fato, ele coloca em seu verdadeiro
lugar (a lata de lixo) os substancialismos que celebram a graça misteriosa que emana da
mulher ou que advertem contra sua perfídia. Freud talvez tenha sido o primeiro a
historiar o narcisismo feminino, demonstrando que era para compensar-se pela opressão
sofrida que as mulheres se dedicavam a sua beleza. Elas voltavam contra o próprio corpo
um desejo que lhes era proibido exteriorizar. Amam a si mesmas até o ponto de
bastarem-se a si mesmas, como para vingarem-se por não serem livres em sua escolha
do objeto. Portanto, não eram nem deusas, nem diabas, e havia uma razão muito precisa
para a falta de acesso a elas. Esta explicação tinha o imenso mérito de calar as lendas e
de substituir as saladas religiosas pela linguagem da história. Mas, hoje, o contexto social
mudou radicalmente: o capital que integra as mulheres no trabalho não pode jogar em
todos os tabuleiros ao mesmo tempo: com a independência econômica, elas conseguem
também uma autonomia afetiva, seus desejos são livres para escolher, e apossar-se de
suas escolhas. Com isso, a causa do sintoma narcisista está em via de extinção. Ora, o
que está acontecendo? O sintoma não regride, ele se generaliza, transcende a oposição
masculino/feminino, é unissexo. É um mesmo frenesi que se apodera agora dos
falóforos. Está aí a única coisa que podemos partilhar de imediato com as mulheres: a
obsessão sedutora, o trabalho incessante, ansioso, de nossa imagem corporal. O Homem
era olhar, a Mulher era objeto: agora, cada um representa simultaneamente os dois
papéis. Somos todos vigias e vigiados, inquisidores e vítimas, pois é do corpo que
esperamos uma salvação. Para explicar esse fenômeno, a explicação freudiana não serve
mais: não é possível dizer que nos amamos a nós mesmos por não podermos exteriorizar
nosso desejo. Não: fazemos frutificar nosso patrimônio orgânico, investimos loucamente
em nosso corpo para termos o direito de nos amarmos. É nossa, desejabilidade que nos
avalia: portanto, é ela que temos de alimentar e embonecar. Nosso narcisismo não
deriva do fascínio, mas da vigilância: não estamos enamorados de nossos corpos,
estamos inquietos com sua imagem, pois nosso valor depende disso. É preciso agradar:
este imperativo matou o puritanismo, mas apenas para assumir o lugar dele, para ocupar
exatamente a mesma posição. Com efeito, que importam os conteúdos variáveis que a
história atribui ao “é preciso”: é preciso trabalhar ou maximizar seus gozos, ter uma
conta gorda no banco ou mil viagens a contar, ter sucesso nos estudos ou abrir seu
próprio caminho à Margem... Todas essas oposições mantêm a permanência da Lei: o “é
preciso” que põe o sujeito em estado de carência e que o condena a uma busca eterna
da impossível plenitude. É preciso agradar: procura do absoluto. Inquietação impossível
de acalmar (sob esse aspecto, somos todos deficitários: proxenetas de nosso corpo,
somos avaliados, medidos, preferidos, dissimulados, num incessante trabalho de
comparação e recusa. Sabemos quais são as regiões bonitas e feias, o perfil mais
favorável, as cores que não combinam conosco; e sabemos também, intimamente e de
modo doloroso, que nunca seremos suficientemente belos, nunca seremos perfeitos
diamantes, pedras preciosas, moeda corrente). Insinuação da ética no narcisismo e do
su- perego na libido: seduzir não é bom, mas “bem”; não é uma abertura para o prazer,
mas o prazer edificante e precário de estar dentro da Lei.
E por que é preciso agradar? Porque hoje é a feiura que é pornográfica, é ela a
nova obscenidade. Inconveniente maior: ter uma cara feia; e tornou-se quase tão
inconveniente deixar aparecerem as rugas quanto, antes, mostrar a bunda. O Espetáculo
desnudou os corpos: parece que mais nada é obsceno, uma vez que tudo está em cena,
hoje tudo é mostrável: o sexo da mulher, a tumescência do pênis e todas as formas de
penetração; não existe mais nenhum segredinho, nada além de uma gigantesca
ostentação, um hiper-realismo das volúpias genitais. A única coisa que continua sendo
proibida de aparecer nos cartazes é a desgraça física. E se o Espetáculo a esconde não é
simplesmente porque ele se dobra ao código estético, mas porque promove uma
cruzada contra as anomalias. Quando a publicidade, por exemplo, tira a roupa de suas
imagens, ela não está se dirigindo apenas à concupiscência do transeunte, está
interpelando-o em sua própria carne. Às vezes convida-o a comprar, mas sempre o
convida a fazer uma comparação. Ei, que é que você fez com sua pele? Em suma, ela
apresenta a nudez como se fosse um paraíso proibido aos feios. Você só poderá oferecer
seu corpo aos olhares dos outros, ela diz ao passante, quando tiver retirado dele a feiúra
que o envolve. Elimine essa celulite que fica balançando em suas coxas, deixe de usar
essa calcinha que é ridícula, trate, usando cremes, de dar um pouco de cor a essa sua
pele tristemente pálida, reerga, com unguentos, seus seios fatigados, se forem grandes
demais peça a um médico que tire um pouco deles, acabe com essa barriga que o está
aburguesando — e então, apenas então, você conseguirá chegar ao estado da verdadeira
nudez. Estar nu é um privilégio, uma aristocracia, um estado de santidade. Nós, os feios,
somos pobres pecadores, não é nosso corpo que eles veem quando estamos sem roupa,
é nossa feiura.
Nos Mistérios do Consumo, nas Igrejas do Espetáculo, a feiura representa o papel
do Bandido. Respondemos por nossos corpos assim como fazíamos no confessionário,
com a diferença que hoje não é mais preciso um confessor. O Pecado exibe-se aos olhos
de todos. Ele assume a forma da deformidade. Como agente do olhar social, cada um de
nós é o sacerdote dessa nova misericórdia; como objetos do olhar, somos todos
culpados diante de sua lei. Mas para que a feiura seja o Mal, para que nos convençam de
nossa responsabilidade corporal, é necessário ainda destituir a Natureza. E há algo de
admirável nessa voracidade do capital, nesse imperialismo que coloniza mesmo os dados
congênitos, nessa violência que retira da Natureza seus privilégios menos discutidos: a
graça não é mais uma graça, é um valor — no sentido moral e monetário. Ela não cai
sobre o indivíduo como se fosse um presente do céu, é algo que se adquire através do
dinheiro e da disciplina. Uma mulher, como tantas outras, foi contratada pela revista
feminina Elle com o objetivo de demonstrar que nosso mundo deu vida aos contos de
fadas: todo um exército de cabeleireiros, maquiladores, costureiros, puseram à prova
seu poder de metamorfose e nós, leitores, fomos convidados a presenciar o milagre: o
corpo ficava cada vez mais „ encantador diante de nossos olhos, a matéria profana
transformava-se em matéria sagrada, a criatura insignificante conquistava uma
dignidade espetacular. Sem dúvida, o conto de fadas não está ao alcance da maioria, mas
não é isso que a moral da história diz: ela sussurra que essa beleza dispendiosamente
conquistada só conseguirá ser mantida à custa de uma eterna vigilância. O dinheiro não
faz o corpo bonito, é preciso também a continuidade e a tensão do esforço. Nossa
corporalidade é um empreendimento: cabe a nós, através de uma gestão rigorosa, fazer
os bons investimentos, sanar os déficits, evitar ou adiar a falência. Pois a arte de agradar
é também a arte de evitar a própria exclusão. No investimento contemporâneo do corpo
conjugam-se o gesto consumidor do gasto e o gesto puritano da poupança, o impulso da
compra e a ascese implacável de todos os impulsos.
Mas se a beleza é a condição do desejo e se é preciso agradar para ser um bom
objeto sexual, por que não aplaudir essa derrota da fatalidade, essa desnaturalização da
feiura? Armados com uma autodisciplina e com um sincero arrependimento, (quase)
todos os feios podem ser resgatados. O código estético é sempre muito severo mas, fato
novo, suas portas não são mais tão herméticas. Esse novo rigor fabrica sem dúvida mais
corpos intercambiáveis do que a antiga resignação aos caprichos da natureza.
Infelizmente, o aumento dos estoques não tem por efeito animar o comércio galante,
precipitar ou multiplicar os encontros. Pelo contrário: não há meio melhor de bloquear o
mercado da sedução do que tornar as pessoas obsedadas com seu poder de sedução. A
beleza só é arrancada da Natureza a fim de se superegoizar, tornar-se ela mesma seu
próprio fim. Dedica-se à representação a energia mesma que é retirada do desejo: a
libido não é mais abertamente reprimida, mas canalizada, rebatida pelo sujeito sobre sua
própria imagem. Não são mais proibições exteriores que impedem o indivíduo de entrar
em contato e tecer elos de ligação, é sua pressa de agradar e seu modo imediatamente
sedutivo de avaliar-se. Os corpos se oferecem, sem dúvida, mas sim ao Deus Olhar e,
não, uns aos outros. Não existe de um lado a sedução e, do outro, a moral. Há uma
moral da sedução, um dever de seduzir, uma alienação do corpo em sua imagem que
impede a aproximação dos corpos com maior eficácia, sem dúvida, do que a melhor das
repressões.

Escute o que diz seu desejo, ou o racismo à flor da pele

Esta é a época de uma dupla liberação: de um lado, falamos da sexualidade —


falamos, escrevemos, conferenciamos a respeito, filmamos, pedagogizamos, filosofamos,
mesa-redondamos, em suma nos maravilhamos por termos posto abaixo o tabu que
fazia dela um assunto proibido. Por outro lado, a sexualidade fala em nós: deixamos que
nosso corpo se expresse. Desconfiando das diretivas repressivas da consciência, nos
colocamos à escuta de nossa libido e nos esforçamos por decifrar e aplicar as mensagens
que chegam até nós, pois nossa ética, se ainda temos alguma, é viver conforme seus
ditados. Tarefa árdua, quase impossível em virtude das instâncias anti-desejo que ainda
têm um poder considerável sobre nós, em nós como também fora de nós, e que se
colocam como obstáculos diante de nossas decisões. O que acontece é que, cada vez
mais frequentemente, em lugar de nos justificarmos nossos desejos, nos justificamos
através deles. Inventamos esta nova legitimidade: a pele. Assim, o réu pulsional tornou-
se promotor no melhor dos mundos paranóicos possível, onde o Outro, o estranho, é o
indesejável, e o indesejável, sem querer aprofundar muito, é aquele que não se pode
desejar. Pois a linguagem que o desejo fala de modo mais espontâneo é a da recusa, da
segregação. O corpo tem seus métodos que a razão incorpora e, à guisa de oráculos,
nossas pulsões liberadas promulgam ostracismos. Esperávamos a irrupção de um
desejorio, a multiplicação dos fluxos sexuais para fora de toda residência imposta, a
efusão generosa da libido sobre o conjunto do campo social, e vivemos de fato sob o
despotismo de um desejo avarento que escasseia seus investimentos, de um desejo
ocular que funciona por recusas, de um desejo feroz que opõe sempre a singularidade de
seus deslumbramentos à profusão de seus desgostos, de um desejo, enfim, que, mal
saído da prisão, edifica suas próprias barreiras, suas muralhas intransponíveis.
Hoje, quando aquilo que de mais profundo existe é a pele, todas as exclusões são
pronunciadas em nome do corpo. Através de uma estranha convergência, o desejo
ostenta tranquilamente seus fundamentos racistas, no momento mesmo em que o
racismo não procura outra justificativa além da libidinal. Não existem mais teorias da
segregação, hoje só há reações. É uma mesma intolerância física, um mesmo reflexo
discriminatório que bane, nuns, os velhos porque sua velhice é visível, os feios porque
são feios, os jovens burocratas por seu corte de cabelo e, noutros, os negros porque têm
um cheiro forte e os hippies porque supostamente são sujos. Somantizando-se, o racismo
encontra uma espécie de nova inocência. Mas por que a repugnância estaria melhor
fundamentada no corpo do que num grande princípio? Quando o corpo passa a ser uma
espécie de judas que todos podem malhar, será preciso cortar cabeças ou interrogar o
funcionamento racista do corpo?
Uma pergunta como essa, por certo, não é motivo de prazer: ela perturba nossas
crenças mais enraizadas. Se a segregação apela para o desejo, e não para o preconceito,
é todo o otimismo do Século das Luzes que vem abaixo: a maldade não provém do erro,
e a Verdade nunca conseguirá abolir o racismo. Definha lentamente a ideia de que será
possível acabar com a discriminação através de palestras e conferências. Além do que,
havíamos apostado na subversão sexual: nunca é muito agradável, ainda que
comecemos a ficar habituados, ver uma ordem ser edificada em nome de princípios dos
quais se esperava uma revolução. Sem dúvida, sempre é possível aplicar a esse
desmoronamento esquemas que já serviram antes para reanimar a esperança: assim
como Stalin desviou-se de Marx e traiu o leninismo autêntico, também o Espetáculo
cativou, isto é, capturou o desejo: o controle através da imagem substitui o controle
através da repressão. A sexualidade não está mais proibida, mas é a ditadura do código
que fala hoje a linguagem da liberdade. Esta redistribuição das cartas, esse New Deal do
sexo, impõe um novo radicalismo para nossa modernidade: pôr fim ao Espetáculo e
destruir todos os códigos. O desejo fica tagarelando por aí, mas o verdadeiro desejo está
ausente. O puritanismo o havia amordaçado, privado da fala; agora é um usurpador que
fala em seu nome. No próprio seio de nossa confusão, nos tranquilizamos de novo: existe
um verdadeiro desejo. Podemos viver na promessa escatológica da felicidade. Nossa
sexualidade está alienada e, portanto, doente; nós a curaremos emancipando-a dessa
alienação.
E se o contrário é que fosse verdade? Se não estivéssemos sofrendo por estarmos
alienados, mas por estarmos pouco alienados? Se ainda não estivéssemos doentes?
Nosso desejo não precisa de verdades, de desmistificações, mas de tantos mitos que, ao
final, não sabe mais onde promover sua festa. Não pedimos a morte do Espetáculo,
porém, sim, mais Espetáculos! Aos que nos dizem que estamos submersos por uma
variedade de imagens, respondemos que somos massacrados pela repetição dos
mesmos modelos. A proliferação dos hard-cores, por exemplo, não deve iludir ninguém.
Uma pornografia bem-fodedora, majoritária, esmaga impiedosamente as heterodoxias
sexuais e estéticas. Precisamos é de uma multidão de pornografias para que mais nada
seja pornográfico, para que as feiuras, os desvios, as sexualidades extravagantes —
aquelas que não dizem, antes do assalto: “Genital, aqui estamos nós!” — todas as novas
obscenidades saiam do purgatório, para que enfim nosso erotismo, ao invés de se
cristalizar nas mesmas imagens, assista à fragmentação de seus próprios arquétipos. O
que censuramos ao Espetáculo é a parcimônia de suas figuras, a violência de suas
exclusões, as raças, os comportamentos, os seres que ele confisca ao desejo ao
escorraçá-los da representação. É multiplicando suas capturas que se libertará o desejo,
é aumentando sua maleabilidade, enchendo-o de critérios, pluralizando seus códigos,
que se aumentará seus territórios. Mais do que subtrair as pulsões do Espetáculo,
queremos subtrair o Espetáculo de sua avareza, torná-lo enfim polimorfo. Que ele não
nos dê sempre a mesma coisa para amar; que, após ter transgredido os limites do olhar,
utilize toda sua audácia na ampliação do espaço complexo de nossa cobiça. Do que nos
queremos curar: de uma superpopulação de fantasmas ou de um malthusianismo
draconiano? De nos investirmos naquilo que as imagens mostram ou de nos
desinvestirmos daquilo que elas não mostram? De uma sexualidade alienada ou de uma
sexualidade mesquinha? Ao invés de lamentá-la, desfrutemos de nossa flexibilidade
libidinal, façamos com que ela trabalhe em turno completo: e como apenas o Mesmo é
que age sobre o Mesmo, respondamos ao racismo das imagens com outras imagens e
não com argumentos, pulverizemos espetacularmente essa ordem imutável de exclusões
que hoje recebe o nome de desejo, a fim de viver, não a indiferença de uma sexualidade
onívora, mas exclusões variáveis, escolhas aleatórias, seduções imprevisíveis. Desejo
piegas? Em todo caso, menos religioso, menos utópico que o discurso da desalienação. É
mais realista programar o desregramento do Espetáculo do que seu desaparecimento.
Pornografias, aliás, já existem: plurais, tímidas, subterrâneas, vigiadas. Mas quem nos diz
que um dia, bem próximo, não haverá um filme terno e sacana, um filme enfim mestiço,
que conte os amores de um pederasta e uma safista, que exiba uma orgia maravilhosa
sem nenhum atletismo excepcional, onde velhos copularão com crianças, onde
estranhas velhotas serão as “gigoloas” de jovens efebos loiros, onde os árabes poderão
tocar na mulher branca. Está tudo por fazer para fuzilar nossas recusas, uma a uma. Tudo
é uma questão de truque, de oportunismo, de compromisso a fim de entrar no forte e
voltar contra a segregação sexual os grandes meios espetaculares sobre os quais repousa
seu poder.
Contra Don Juan

Há pouco fazíamos o elogia de Don Juan; exaltávamos esse desejo que proclama
sua avidez insaciável e não suas preferências. Pois nada nos parecia tão abjeto quanto a
retenção do paquerador, seus deslumbramentos parcimoniosos. Don Juan, pelo menos,
não submete sua sexualidade ao modelo escolar e não tem necessidade de dar nota a
uma mulher para ficar com tesão. Pelo contrário, ele faz o que pode para ilimitar sua
concupiscência, como se fosse apenas a cegueira voluntária que pudesse fazer fracassar
o exercício professoral do olhar. O mito de Don Juan só oferece, como saída para a
avareza, a cegueira: triste tragédia em que ambas as partes estão erradas ao mesmo
tempo.
Mil e três mulheres, diz o grande sedutor: o que não passa do mesmo desejo
declinado mil e três vezes. Sim, ele não classifica suas conquistas: mesmo assim, ele as
conta. Ao invés de submeter as mulheres a um princípio de equivalência única, a Beleza,
ele as adiciona em nome de um princípio de identidade, o Sexo. O conquistador maltrata
as diferenças hierarquizando-as, Don Juan só parece acolhedor porque sua violência é
maior: ele aniquila as diferenças, deixando em seu lugar apenas esta tautologia
mortífera: as mulheres são as mulheres. Uma vez que a anatomia fez com que fossem
todas penetráveis, Don Juan, indiferente ao resto, conta como suas aquelas que
conseguiu penetrar. É verdade que ele não tem a delicadeza e as aversões do esteta, mas
o prazer de inscrever que ele põe no lugar daquilo que não passa de uma hospitalidade
de “uterófilo”. O olhar pobre do paquerador (que, como vimos, também é em parte o
nosso) vê sempre apenas um código: as cópias adequadas desse código, seus simulacros
ruins, seus belos grafismos conformes e suas misturas intragáveis. O desejo pobre de
Don Juan reduz as mulheres à abstração invariável de sua feminilidade. O primeiro, como
se fosse um professor cheio de turmas, dá notas, aprova, reprova, ficha, divide,
recompensa e censura; o segundo, em sua louca corrida, persegue sempre o Mesmo. Sua
paixão inclusive ergue-se sobre uma exclusão fundamental e oculta. Ele se apossa de
todas as mulheres após tê-las antecipadamente esvaziado de suas singularidades.
Se é para desembocar na terrível monotonia genital, em que tudo acaba sendo a
mesma coisa, de que adianta deixar de escolher? O conquistador tem o olho fixo, Don
Juan fica com o olho fechado, mas ambos põem em jogo uma mesma e imutável cobiça.
O que é preciso imaginar, hoje, é um olhar múltiplo embaraçado pelas referências, é uma
sedução despida da ilusão dos critérios objetivos, naturais, determináveis, é um desejo
não cego, mas deseducado, é a coexistência num mesmo olho de várias normas
contraditórias, são escolhas móveis, diversamente baseadas, e não o absurdo abandono
da idéia da escolha.

A cantada: a antiga e as novas

"Antigamente, para fazer a corte, falava-se de amor" (Boris Vian). A decência


fabricava pretendentes etéreos, dedicados a camuflar suas aspirações sensuais, a
representar com convicção o papel sentimental, a celebrar a ascendência que a mulher
havia adquirido sobre seu espírito, em termos ditados por uma exigência secular de
mascaramento. A linguagem amorosa era como um baile a fantasia que só recebia
pulsões irreconhecíveis debaixo de seus disfarces afetivos. Dizia-se coração quando se
queria falar sexo, formulavam-se em termos de sentimentalidade as obsessões genitais.
Tratava-se de uma metonímia convencional, um álibi codificado, da defesa do desejo que
se desculpa por existir e que se esforçava por dissolver-se na imaterialidade a fim de
obter uma satisfação material. Hoje, rimos desses subterfúgios piegas, sem percebermos
como eram cômodos; daquele modo, o inconfessável podia ser confessado; daquele
modo, sobretudo, a sedução dispunha de uma retórica ampla, acessível, de um
inesgotável tesouro de lugares-comuns que garantiam eficazmente contra a angústia do
"que vou dizer?". A literatura, então, prestava um inestimável serviço: assoprava as
réplicas, possibilitava a conquista.
Denunciamos a hipocrisia dessas tiradas amorosas: qualquer neófito da estratégia
da sedução, qualquer suspirante apaixonado sabe hoje que, a menos que queira pôr a
perder suas chances e cair no ridículo, não deve falar de amor. O ardor sentimental era
um imperativo da sedução: tornou-se hoje seu interdito maior. Pusemos os pingos nos is,
revelamos o segredo: o coração é um tapa-sexo. O que não quer dizer que a sedução
pode doravante falar a sexo aberto. Ainda que seja a referência principal de inúmeros
discursos, ainda que seja o argumento derradeiro de todas as exclusões, o desejo ainda
não pode pretender agradar. Ninguém se prevalece de sua cobiça para obter o objeto
cobiçado. Desse ponto de vista, estamos ainda na mesma situação do marquês de Sade,
e as casas de libertinagem que ele imaginava a fim de realizar a obra do Terror
continuam a ser o fantasma secreto da sedução.
“Diferentes lugares saudáveis, amplos, adequadamente mobiliados e seguros sob
todos os aspectos, serão construídos nas cidades; neles todos os sexos, todas as idades,
todas as criaturas serão oferecidos aos caprichos dos libertinos que irão gozar, e a mais
2
total subordinação será a regra dos indivíduos apresentados.”
Aplicada ao gozo, a Revolução é uma economia, uma vez que alivia o libertino do
tempo dedicado a tornar desejável seu próprio desejo. A exigência pulsional tendo força
de lei, a satisfação torna-se um direito. Coisa que faz da sociabilidade sadeana uma troca
de maus procedimentos: no espaço instaurado por essa nova delicadeza, todos se
comprometem a suportar, sem queixas, a tirania fantasmática de todos aqueles
(aquelas) cuja cobiça tiver suscitado, com a condição expressa de ele mesmo gozar de
uma autoridade libidinal absoluta sobre os objetos que o polarizam. Em outras palavras,
o republicanismo sadeano instaura a igualdade através da sujeição recíproca, e coloca o
dever de obediência do indivíduo desejado no lugar do dever de agradar do sujeito
desejante. Inversão pura e simples da regra de sedução sob a qual vivemos ainda: é inútil
que o desejo tenha casa própria, mesmo assim não é mais um poder discricionário do
que um argumento de sedução. Deve-se acrescentar que só há relação de sedução

2
Sade, La Philosophie dans te boudoir. Coll. 10/18. p. 227.
porque hoje, como ontem, o instinto carnal não pode ser sua própria legitimação. Ele
tem de fazer-se perdoar por ter a possibilidade de ser escutado. Quando a humanidade
tinha alma e corpo e vivia sob a égide dessa dualidade, o amor redimia, o desejo era o
pecado: o enlace inadequado era envolto pela capa do ideal, ocultava-se, atrás das
cortinas do sentimento e da ternura, a sujeição porca ao instinto. Pusemos essa velha
máquina metafísica no depósito, onde tratam delas apenas alguns velhos padres
nostálgicos; somos monistas, não manchamos o corpo com impureza alguma, o rosto
não é nada de espiritual, sublime, assim como o sexo não é material, coisa suja — e no
entanto este continua a ser culpado: não de baixeza, mas de impessoalidade. O desejo
não é mais uma coisa viciosa, mas continua a ter o defeito de ser anônimo. Nada dizendo
sobre o sujeito que o carrega, não pode, como tal, ser acreditado por seu destinatário.
Pois ninguém entra no mercado da sedução se não estiver apto a declinar sua diferença.
É preciso ser um indivíduo para poder esperar estabelecer um contrato libidinal. Esta
evidência é, de fato, aquilo que está em jogo na conquista: aquilo que chamamos de arte
de agradar nada mais é que o esforço bem sucedido no sentido de consagrar sua própria
singularidade. O desejo torna-se monetarizável uma vez corrigido em sua
indeterminação primeira; as coisas funcionam quando a pessoa soube dar-se forma,
converter em pessoa distinta a intercambialidade de sua libido. Se, pelo contrário,
pretendente tímido ou anacrônico, a pessoa nada tem a oferecer, além dos lugares
comuns amorosos ou um desejo sem qualidades, ela pode estar certa de ser
impiedosamente recusada: nada de mais estereotipado do que as fragilidades afetivas,
nada de mais banalmente natural do que as aspirações dos sentidos: o descrédito em
que mantemos a generalidade exige que se encontre uma outra coisa. Na antiga
sedução, o desejo era tabu em nome do amor: nos trabalhos de abordagem da nova
sedução, ambas as coisas são tabu em nome da diferença.
Falar de amor é ridículo; falar de libido não é operacional. O que é então um
discurso de sedução? Expulsa de seu código tradicional, a sedução contemporânea não
encontrou um discurso substituto ou, melhor, encontrou muitos deles. À falta de um
domicílio fixo, ela está destinada a vagar sem rumo e à parasitagem universal. Uma vez
que a conquista não tem linguagem, não existe linguagem que, quando o momento se
oferece, não possa pôr-se a conquistar. Tanto mais quanto o conteúdo da mensagem
sedutora mudou: se ela acontece, a declaração de amor só é formulada após, quando
não se trata mais de obter os favores do Outro, mas de manter sua presença. É: “eu sou
um outro... eu valho a pena... venha consumir minha diferença”, aquilo que ora diz o
texto conquistador. E nessa corrida em busca da originalidade, nesse processo
desenfreado de fazer-valer, todos os discursos podem servir, estão banidos apenas o
silêncio embaraçado e o vergonhoso estereótipo. Agora que não mais se tenta
conquistar através do amor, paquera-se através de qualquer coisa: da revolução, da
ecologia, da música pop, da trepada, da pintura a óleo, das viagens ao Afeganistão, do
dinheiro, do carro-esporte, da bicicleta holandesa, da pedagogia moderna, do after-
shave de Givenchy, dos trabalhos manuais, da cozinha exótica e da aquarela: tudo aquilo
que pode fazer com que o destinatário disso tudo diga: “legal, essa menina (esse cara),
ele(a) excede”, que é o contrário de “putz... não tá com nada”, o contrário desse pecado
capital: a indeterminação.
O sedutor, antigamente, era um ator cínico que fantasiava o furor de seus
sentidos sob o fervor de seus sentimentos. Seu prazer perverso e sua lei era a
contrafação. A paquera exige, hoje, outras qualidades. Não se trata mais de ser dúplice,
mas intercambiável. A mascarada sedutora já caiu de moda: vivemos a era transparente
e objetiva da análise. Julga-se o Outro por aquilo que ele é e não pela paixão que
ostenta. É rejeitado quando não é nada, quando não sabe arrumar uma imagem para si
mesmo. A sedução era uma arte da simulação; a paquera é uma arte da determinação. O
sedutor demonstrava hipocritamente uma fidelidade aos valores reinantes da sociedade:
a honra, a virtude, o amor. A cantada do paquera implica um esforço de formalização e
não um trabalho de deformação. O primeiro mascarava sua personagem; aquilo que o
segundo tenta sem descanso é ser uma personagem.
Seduzir, portanto, era mentir: e com isso, todos os indivíduos sinceros, que
amavam por amor ou que acreditavam na virtude, automaticamente se situavam fora da
sedução. Deus não tinha dificuldade alguma em reconhecer os seus: mas hoje, quem
está mentindo? Quem trapaceia? Quem põe as cartas na mesa? Quem pode afirmar:
“Paquera? não sei o que é isso, a única coisa que conheço é o encontro”? A antiga nitidez
embaralha, Deus coça a cabeça: não mais há oposição entre os charmosos profissionais,
os suaves sentimentais e as pessoas de princípios. A paquera é o ponto de passagem
obrigatória de todas as trocas, a incontornável coação da intersubjetividade amorosa.
Na Escola, quem são os melhores alunos? Os que podem jogar nos dois
tabuleiros, da norma e do desvio. Assimilaram os conhecimentos e os métodos do
mestre, estudaram o assunto, mas fazem-no brilhantemente: em outras palavras,
puseram nisso um não sei quê que os singulariza e os distingue sem erro do colega
açougueiro que mal é capaz de reproduzir o que é exigido dele, e que por isso atrai esta
apreciação desdenhosa: escolar! A Escola normaliza, mas ela não gosta das pessoas que
ela mesma normalizou demais, seu poder as esmaga e em seguida censura-as por se
terem deixado esmagar.
Do mesmo modo, no exame da sedução não são necessariamente os mais
conscienciosos que se classificam nos melhores lugares. É preciso saber pertencer a um
código ao mesmo tempo em que é evitado, em que se procede a um afastamento em
relação a ele. É preciso ser capaz de provocar um duplo sentimento de reconhecimento
(“é do tipo marginal, gosto disso...”) e de surpresa (“tem alguma coisa a mais, não é o
hippie estereotipado”). Frágil casamento entre o Mesmo e o Outro, posição acrobática
simultaneamente interior e exterior, sábio equilíbrio cuja ruptura poderia levar ao
desastre. A ausência de marcas é tão perigosa quanto uma marca excessiva. Um tipo
demasiado fixado pesa como se fosse uma cópia escolar; se não há tipo nenhum,
sobrevêm a reprovação por inconsistência.
Por onde começar?

No momento em que vou provocar um encontro, esta pergunta coloca-se sempre


entre mim e o Outro. Se ela for demasiado angustiante, se eu não encontrar de imediato
uma resposta que me satisfaça, a ligação projetada se desfaz antes mesmo de ter sido
iniciada. Por onde começar? Talvez tanto quanto a coação de suas ocupações e a tirania
do olhar, é esta interrogação silenciosa que mantém os indivíduos a distância, e que faz
do exterior esse teatro desesperante onde a ordem mais inflexível reveste as aparências
do caos, onde tudo poderia acontecer sem que nada acontecesse de fato, onde o
acontecimento aparece, mas no condicional.
E por que o começo é uma pergunta, uma questão a ser resolvida? Por que essa
ansiedade inicial? Porque começar não é não partir de coisa alguma. Quando abordo o
Outro, eu me coloco fora da lei. Eu me apresento sem ter sido apresentado. Assumo o
risco de um encontro não autorizado por mediação alguma: não passando através de um
terceiro — pessoa ou instituição — cometo uma espécie de escândalo. Saio fora dos
trilhos. No saber-viver rigoroso que, mesmo e sobretudo entre os mais espontâneos,
distribui e torna escassas as relações entre as pessoas, começar continua a ser uma
ofensa. O fautor dos começos é um estraga-solidão e é sabido como nosso mundo faz do
isolamento o primeiro e o mais sagrado dos direitos. Por onde começar? Pela desculpa. É
preciso justificar e, se possível, eliminar o ilegalismo. Sou o promotor de mim mesmo, e
como um vendedor que deve evitar que lhe fechem a porta na cara antes que tenha tido
tempo de oferecer sua mercadoria, tenho de lançar mão de tesouros de astúcia para
metamorfosear instantaneamente a careta do Outro em sorriso e seu recuo em
curiosidade. É essa a esmagadora responsabilidade das primeiras palavras: encontrar
uma brecha na fortaleza do ego, fazer-se absolver, ao começar, do escândalo de
começar.
Está aí, sem dúvida, porque a maioria das pessoas evitam essa angústia e essa
responsabilidade: seduzem, sim, mas não começam. Adoram as instituições, esses
espaços estruturados nos quais a ligação precede as pessoas, enquanto na rua as
pessoas sempre precedem as ligações. Lugares profissionais, lugares lúdicos, culturais,
militantes, onde minhas relações com os outros antecipam o contato que tenho com
eles, onde portanto (bem comodamente) é a relação que cria o encontro. Dois
movimentos caracterizam essa artimanha dos “fracos” para entrar no circuito da
sedução, a despeito de sua timidez: eles contornam o obstáculo do começo, e desviam a
relação oficial em proveito próprio. Esses adeptos da paquera indireta são, portanto,
pervertidos, uma vez que desviam as instituições de sua finalidade séria e se põem a
derivar uma ligação do saber-fazer que lhes falta quando se trata de encontrar a palavra
inaugural.
Se a sedução frontal é tão pouco (ou tão mal) praticada, é também porque não
existe receita para começar. Há, sim, uma norma da paquera: mas ao invés de ser uma
referência admitida e respeitada, ela serve de barreira. Os lugares-comuns não são mais
esses albergues construídos pela tradição, na linguagem, com a finalidade de acolher os
discursos hesitantes do noviço. Não são mais estereótipos indispensáveis ao protocolo
da sedução, são os recifes que todo sujeito em estado de paquera deve saber evitar. É
preciso violar a norma sedutiva a fim de ser admitido na sedução. Encontrar outras
palavras além daquelas que lhe ocorrem. Subtrair-se ao código da paquera. “Mora com
seus pais?”; “Que é isso que você está lendo?”; “Compra o Pasquim todo dia?”; “Já não
te vi antes no cassino de Saint-Moritz, ou foi no restaurante da estação, em Ibitinga?”;
“Você vem sempre nadar?”; “Já lhe disseram que é muito bonita?”... Quanto menos se
usarem as frases do paquerador, mais aumenta a distância de sua personagem
convencional e maiores serão as chances de agradar. As únicas seduções boas que
existem são as seduções silvestres, os únicos bons começos são os que evitam os
estereótipos dos começos. Por onde começar? Pela fuga. Corra, paquerador, a velha
paquera vem aí atrás de você! Portanto, há duas exigências numa só: encontrar um
começo para a relação, e que esse começo seja inédito. No gesto do começo, a invenção
deve redobrar a iniciativa.
Sem dúvida nenhuma, a posição das mulheres no mercado da sedução mudou
muito: elas eram as Musas, inspiradores e receptáculos do discurso masculino; agora,
assumem a palavra. Eram os ídolos do culto: saíram do templo e começaram a existir.
Privadas de começos, tinham apenas a liberdade de aceitar ou recusar as propostas
masculinas. Agora, têm direito à iniciativa.
Sintoma dessa modificação: o desuso irremediável do Cumprimento. Esse “topos”
sedutivo enquadrava as mulheres, imobilizava-as em sua qualidade de obra de arte e em
sua realidade de mercadoria. O cortejo dos pretendentes era um pouco como um salão
de vendas variadamente animado conforme a obra posta em leilão, e cada um dava seu
preço, na esperança de que a mulher, sucumbindo à vertigem de seu próprio valor,
recompensasse seu perseguidor mais assíduo, mais enfático e mais pródigo em palavras
de adoração. Ora, o superlativo é uma moeda que não tem mais curso num mundo onde
as mulheres também são compradoras e não se contentam com dar-se a quem oferecer
mais, mas que se apossam, segundo critérios próprios, do ser que desejam. A
emancipação das mulheres tornou obsoleta a liturgia galante do elogio. Em seu lugar,
foram colocadas outras cerimônias igualmente coatoras sob a aparência da desenvoltura
e da espontaneidade, mas o abandono do cumprimento protocolar prova pelo menos
que o mercado sedutor se está reequilibrando e que os dois sexos se defrontam em pé
de igualdade, cada vez mais.
Portanto, apesar do movimento irreversível na direção da paridade dos
competidores, não se pode falar em progresso. Pois as mulheres vivem hoje duas
experiências contraditórias do desejo masculino: a reciprocidade no espaço sedutivo,
mas também, fora da sedução, o risco eterno da agressão. Um desejo que quer agradar e
um desejo que quer tomar. Os que se submetem ao exame, que jogam o jogo, e os que
transformam em relação de força a relação de avaliação instaurada pela sedução. De um
lado, o mercado da paquera, do outro, a ameaça do estupro. Pois a modernidade não
substitui nada, não dissolve os arcaísmos, coabita com eles. Os papéis se misturam e
começam (timidamente) a serem invertidos, doravante a batalha é travada com armas
iguais e, além disso, simultaneamente, a mulher continua a ser a pessoa a quem o
exterior assusta, pois para ela esse exterior é o teatro de uma brutalidade de mil rostos.
Há os que assobiam, os que se põem diante dela e impedem sua passagem, os que
grudam, seguindo a cinco metros de distância, os que passam a mão, que se vingam da
inacessibilidade dos corpos através de toques furtivos, há os especialistas em tetas e os
beliscadores de bunda, há os que aparecem em ruas escuras, os que vão lhe falar ao
ouvido ou que pegam em seu braço, há os espertinhos dos ônibus, nas horas de pico, ou
os que estacionam em elevadores em horas tardias, em suma: há a virtualidade
3
onipresente e polimorfa da agressão.
E esta violência comum impede toda a espontaneidade dos encontros. Para
entrar em contato com uma mulher, é preciso abordá-la, isto é, que eu tome os mesmos
caminhos usados pela brutalidade agressiva. Portanto, tenho de escolher o momento, e
palavras sem ambiguidade alguma, que não deixarão que se tome por ataque minha
vontade de estabelecer uma ligação. Não é de minha própria violência que tenho de me
defender, mas da violência que o Outro provavelmente me atribui. Com isso, o começo
não é apenas uma questão de invenção ou de iniciativa, mas uma questão de
oportunidade: começar, para um homem, é esperar pelo momento em que não assuste.
A timidez das primeiras palavras: nesse momento crucial do exame, nenhum
passo em falso é tolerado. Ora, a timidez é exatamente essa situação em que minha
linguagem me escapa, sai em desabalada ou se bloqueia e diz ao Outro o contrário do
que eu queria que ele ouvisse. Em pânico, são minhas palavras que me ferem, que falam
mal de mim. Eu gostaria de me oferecer, fazer circular minha imagem, mas, dominado
por uma força incontrolável, produzo apenas um simulacro, uma falsificação grosseira,
uma calúnia. O ser que surge não é eu, é um cretino e fico como que ofuscado por esse
usurpador. Minha falta de jeito me difama, fico imobilizado porque o Outro está me
julgando, perco o controle dos movimentos quando seria imperioso mobilizar minhas
potencialidades, cedo aos estereótipos, como se fosse uma espécie de vertigem, e
mergulho na estupidez, tão violento é meu desejo de escapar dela. Em suma, não tenho
pior inimigo que minha boca. Nesse caso, claro, sonho com uma sedução a ser feita de
boca fechada, uma cerimônia muda tão ritualizada quanto o comportamento animal,
que não suprimiria as escolhas, mas que deslocaria os critérios; este modo que tenho de
ficar como um bobo numa situação de exame não me reduziria mais à solidão. Livre das
palavras, eu não evitaria a avaliação, apenas estaria prevenido contra uma falha
eventual. Sonho, em suma, com uma história sem palavras, aliás um costume camponês.
“As moças se reúnem e circulam pelas praças ou pelas ruas. Os jovens
abandonam os bares ou seus jogos de cartas... Procuram com o olhar a aldeã que lhes

3
Longe de regredir sob o efeito de um progresso inelutável, essa violência é hoje tanto mais cotidiana, furiosa e
repetida quanto as mulheres mais se liberam. A emancipação feminina não liquida a agressão, acrescenta-lhe a
odiosa dimensão do ressentimento. Atacar uma mulher não é uma atitude instintiva, selvagem, de primata, é a
reação do proprietário contra a abolição da escravatura. A nostalgia de um poder findo exige o recurso à força.
Todo homem que bate numa mulher, hoje, ou assobia para ela, insulta-a ou a agarra, está afirmando, com isso,
sua condição de membro da Ku-Klux-Klan da masculinidade decadente.
convém. As moças, aguardando com impaciência o assalto que sofrerão, continuam a
andar, conversando entre si... Os rapazes as seguem por um momento ou às vezes,
saindo de uma rua, correm até elas.
É então que começa o ataque. Quando um deles se decide, aborda vivamente a
moça, puxando fortemente por trás suas tranças; outras vezes, ele procede ao primeiro
ataque pondo a mão sobre o ombro esquerdo e passando a seguir o braço ao redor do
pescoço. Depois, procura pegar a sombrinha.
Se a moça consente, ela deixa que ele a pegue pela manga, enquanto ela mesma
4
continua a retê-lo.”
Nenhum desses gestos minuciosos é deixado ao acaso, nada é tampouco entregue
à linguagem, como se a desordem e o risco devessem necessariamente introduzir-se no
encontro, junto com as palavras. As pessoas se escolhem sem se falarem: é o corpo ou o
nome que se apresenta como passaporte para a sedução. O rito protege as pessoas de
sua própria timidez; o silêncio as salva da estupidez.
A cidade nos privou dessa liturgia mas, curiosamente, é hoje na paquera
homossexual que sobrevive o gestual amoroso do interior. A mesma rapidez predatória,
o mesmo mutismo nas manobras de abordagem e de assalto, o mesmo formalismo,
enfim. É a ignóbil polícia heteros-sexual que rejeitou, aqueles que ela medicaliza sob o
nome de invertidos, para um gueto erótico, e que deu como cenário para seus encontros
a penumbra de lugares clandestinos. Mas porque essa repressão teve por consequência
acelerar os contatos, às vezes são os normais, os majoritários, que fantasmam como
sendo um privilégio os esconderijos dos pederastas. Estes sabem onde têm de ir para
gozar. E nesses lugares opacos, a sedução é transparente: quando é preciso dissimular
suas maquinações diante das pessoas de bem, ninguém se preocupa, quando está em
seu meio, com precauções dissimulatórias. Quando se é condenado aos amores furtivos,
reduz-se ao mínimo as preliminares verbais. Na obscuridade repressiva, os corpos se
tocam antes que as pessoas falem, e a solidariedade minoritária tece uma ligação
suficientemente forte, que pode dispensar as palavras.
Mas é possível pertencer aos dois mundos ao mesmo tempo, partilhar da
normalidade triunfante com os perseguidores e da conivência silenciosa com os
perseguidos? Não, claro: os ritos da paquera homossexual são proibidos para a
heterossexualidade, pois esta está fadada ao natural, essa é sua legitimidade e seu
martírio. Ela não se instala e não se afirma em nenhum lugar preciso. Todas as formas
lhe são concedidas, portanto ela não tem direito à segurança de um formalismo.
Linguagem soberana, ela não pode, a não ser em sonho, escapar à linguagem. A palavra
é seu destino.
Mesmo não podendo sair do campo das palavras, é possível driblar a violência
educada da troca verbal praticando a sedução por correspondência. Surgiu um novo
espaço onde é possível afirmar sua singularidade, ligar-se ao exterior, conseguir um par:

4
Cit. em J. L. Flandrin. Les Amours puysannes. Gallimard-Julliard, 1975. Coll Archives. p. 195.
os pequenos anúncios das seções especializadas. Nesse mercado paralelo, não é o
silêncio que destrona a linguagem e assume a tarefa do começo, é a escrita.
Ao preço, dirão os saudosistas, do aleatório, da estupefação, do nunca visto, em
suma: do Encontro. Na vida, é o outro que faz nascer a paixão; no anúncio, é
necessariamente o desejo que precede o contato. Um desejo com pastinha de executivo
que quer o racional, o objetivo, o feito sob medida. Uma cobiça cibernetizada que
programa o parceiro. Ao acaso dos seres que se descobrem parece suceder a
combinação dos corpos complementares. Aquilo que vai desaparecer, com suas
combinações calibradas, é o traumatismo da surpresa. O Outro não deve mais ser o
outro, uma vez que o anúncio, como uma contratação, seleciona-o a partir de critérios
de conformidade. Alteridade, favor abster-se. Fim do romanesco: o anúncio estende ao
mercado da sedução os métodos de investigação próprios ao mercado do trabalho.
Bela petição, comovente, mas que padece do fato de dirigir-se a um mito: o
Encontro não existe. Há tanta precaução, tanta retenção, tanta desconfiança inquieta na
troca visual e verbal quanto no anúncio mais diabolicamente detalhado. É preciso pôr
um fim ao preconceito secular que faz da palavra o lugar do imprevisível. O recurso à
escrita não significa a passagem da espontaneidade para a previsão, é uma tentativa de
subtrair a sedução à ordem sedutiva. Esta condena os tímidos à solidão, mas eis que eles
recusam esse julgamento e não cumprem suas penas. Tornam-se anunciantes
exatamente como Rousseau tornou-se um grande escritor: para restabelecer direitos,
para dar de si mesmos uma imagem mais adequada, mais elogiável, mais rendosa.
“A decisão que tomei, de escrever e me ocultar, é exatamente aquela que me
5
convinha. Comigo presente, ninguém nunca teria ficado sabendo o que eu valia.”
Do mesmo modo, não é a alergia ao Outro que torna as pessoas anunciantes, é a
desconfiança de si mesmo. Não é o desejo de racionalizar os encontros, mas a vontade
feroz de torná-los possíveis através e contra a palavra. A estratégia do assalto é por eles
substituída pela da ausência. A paquera pluraliza seus métodos. As pessoas não se
escondem mais por causa da exclusão; agora, é possível agradar escondendo-se.Pois
apesar do pequeno espaço de que dispõem, os anúncios paqueram. Os de Libération,
pelo menos, que são um acontecimento na medida em que recusam a prática niveladora
da abreviação, deixando os autores livres para compor um texto. Havia um léxico militar
da sedução clássica: cerco, carga, conquista. Agora, é um léxico literário que é preciso
aplicar ao “Meu bem, te adoro” semanal do Liberation: a arte do estilo ao lado da arte da
guerra. Nesse rendezvous de todos os desejos, nessa feira de manias, nesse festival de
crenças e ideologias diversas, uma preocupação comum: a de seduzir em quatro
palavras. Lirismo do revolucionário que espera pelas “grandes paixões que abalam o
corpo e sacodem a sociedade”; auto-gozação do falocrata que “procura uma jovem que
emita gritos melodiosos no momento do orgasmo”; humor do pederasta pornógrafo “em
estado de carência (afetiva) que procura senhores de 40 anos ou mais a fim de receber
sua dose de amor vital. Quantidade indispensável: três injeções por noite. Seringa de

5
Conféssions, op. cit.
preferência longa e bem grossa. Todos os enfermeiros de plantão são benvindos”.
Gozação do antigo catecúmeno: “gostaria de encontrar uma irmã de caridade não
demasiado mística a fim de eliminar velhos fantasmas sexuais”.
Esses anúncios, bem representativos, não são mensagens codificadas mas
epístolas amorosas dirigidas a um destinatário desconhecido, garrafas jogadas ao mar
pouco preocupadas com veicular um conteúdo preciso e mais interessadas em encontrar
alguém que as apanhe, solicitações em trajes de gala. Ainda aqui, mesmo o desejo mais
francamente expresso deve agradar (e não apenas ser conveniente) para ser recebido.
Ainda aqui, as primeiras palavras estão encarregadas de surpreender, e a concorrência
impera entre esses anúncios justapostos, assim como impera no mundo, na cena da
palavra e do olhar. E então nada de novo sob este sol sedutivo? Sim: os começos são ao
mesmo tempo mais fáceis e dotados de um poder maior. Começar não é apenas
inventar, não é apenas tomar a iniciativa, também é criar. A mensagem é animada por
um poder virtual de engendramento. Ao invés de ser apenas simplesmente disponível,
torna-se a instigadora de suas próprias surpresas, provoca-se o evento sem se saber o
que ele será, paga-se pelo luxo inédito de marcar um encontro com um interlocutor sem
rosto.
De fato, é preciso manter esse paradoxo: há luxo nessas mensagens, e não apenas
miséria. Ainda que os pequenos anúncios sejam tristes, ainda que representem às vezes
o último recurso contra a depressão e a morte, eles surgem também como o lugar de um
novo poder. Há um lado hospitalar dos corações solitários, exército da salvação da
paquera que tenderia a fazer crer que apenas comparecem, nos anúncios, os
marginalizados da sedução imperial. Mas há outra coisa: contra a tirania ocular e a
paralisia das primeiras palavras, é um espaço onde as coisas acontecem, uma recusa de
resignar-se à imobilidade; no apelo angustiante ouvimos também uma procura positiva
pela surpresa, um desejo de paquerar o desconhecido, uma afirmação alegre: não existe
uma fatalidade da exclusão, não há uma fatalidade do fracasso ou da estupidez. E
mesmo que eu tenha perdido a fala diante do Outro, o desencontro não é uma coisa
irremediável, resta-me ainda a possibilidade de escrever. Tudo aquilo que o olhar não
deixou dizer é investido no anúncio: paquera-se agora com aquilo que deveria ter sido
dito mas não foi, com a reação retardada:
“Procura-se, para ligação, afeição e projetos diversos, uma moça de uns vinte
anos a quem pedi uma informação uma quarta à tarde em Versalhes.”

Os dois sonhos do amor

A paquera é incessantemente assombrada pela vertigem de sua própria


superação. Por tornar a sexualidade ansiosa em relação a si mesma, por mergulhar o
desejo na incerteza de seu destino e o indivíduo na inquietação de sua imagem, a
sedução sonha, em contrapartida, com um espaço seguro onde o Outro seria sempre
oferecido, pois teria aberto mão de seu poder de dizer não, onde a satisfação não seria o
objetivo de uma batalha, onde o genital não seria negociado, onde, enfim, não mais seria
necessário passar no exame para chegar ao gozo.
Mas, por outro lado, a manobra amorosa pressupõe uma planificação minuciosa,
todo um cerimonial rígido sob a aparência da improvisação: e também engendra o
contrafantasma de uma transparência instantânea: um clique que divulgaria as
afinidades, um contato verídico que poria em curto-circuito os códigos, uma relação cujo
desenrolar driblaria qualquer programa. Em suma, duas postulações inspiram ao amor
suas miragens contraditórias: um desejo de instituição, para conjurar o acaso, pôr um fim
ao risco da exclusão, precavendo-se para sempre contra a solidão e a recusa; um desejo
de aventura, para escapar ao ritual na evidência do encontro.
Facilmente se encontrariam em nosso texto os vestígios dessa dupla
assombração. A escapadela romanesca e o republicanismo da volúpia podem ter servido
de referência inconfessada para esta ou aquela de nossas críticas. Mas seria irrisório
elevar ao nível de soluções para o amor ambos esses sonhos, de aventura e instituição. É
preciso evitar a tentação terapêutica. A sedução não é essa forma ruim cujas relações
afetivas deveriam ser curadas a fim de que voltem a seu estado verdadeiro. Nem a
utopia comunitária — casa de libertinagem, amor grupai, prostituição gratuita e
recíproca —, nem o romantismo incorrigível do golpe fulminante, acabarão com a
negociação amorosa. A fluidez das trocas será sempre temperada pelo imperialismo dos
indivíduos. Não é possível salvar o amor das exclusões que ele pratica, dos compromissos
que assume com o mundo, das feridas que o ameaçam e da incerteza em que atola. O
que não significa, por certo, que nenhuma melhora seja possível, que nenhuma
transformação afete o teatro pulsional e sentimental: mas essas mudanças perceptíveis
6
(pluralização dos critérios, emergência do desejo feminino , fim do antigo cerimonial,
multiplicidade das paqueras a fim de evitar a Paquera) não são sintomas de agonia: não
assistimos às convulsões do velho mundo, o amor não está prestes a abandonar os maus
locais da transação para ocupar enfim um espaço de inocências, não somos os
portadores de nenhuma boa nova, não existe um além da sedução.

6
A partir do momento em que as mulheres conquistam em massa a igualdade sedutiva, rejeitam todos os
comportamentos ligados a sua antiga sujeição, no domínio da agressão e do estupro. Não que se possa desculpá-
las pela negociação amorosa: ninguém hoje é inocente do dever de agradar, de escolher e de ser escolhido. Não
há autenticidade no encontro (a menos que se chame de homenagem os olhares daqueles que lhe agradam, e de
violação as olhadelas dos que são muito feios ou pouco cambiáveis e que não despertam em você emoção
alguma). Se há um efeito da feminilidade possível a esse nível, esse não se manifesta na abolição da relação de
sedução, mas numa mudança radical das manobras da paquera, na suavização, na sutileza, na reciprocidade das
abordagens: mudança discreta, contida e no entanto importante, para nós, de uma importância diversa da dos
sonhos retumbantes das escolhas sem motivação, da do acaso objetivo do qual toda desigualdade fosse banida.
O IMPOSTO SOBRE O ROSTO

Há alguns anos, as autoridades decretaram que todas as pessoas feias deveriam usar
máscaras para sair à rua e andar pelos lugares públicos. Como ninguém queria admitir ser
desgracioso, quase todo mundo continuou a viver de rosto descoberto, e o Estado teve de
nomear fiscais que flagravam os contraventores e lhes impunham pesadas multas. E a venda de
máscaras (pois era preciso pagar por elas) logo teve um aumento prodigioso, e metade da
população passou a viver de máscara durante o dia. Pouco depois, uma outra lei veio reforçar a
primeira: não as pessoas feias deveriam cobrir-se ao sair de casa, como também deveriam
permanecer disfarçadas em seus lugares de trabalho a fim de não infligir sua desgraça aos
colegas. Nesse momento, a fabricação de máscaras se diversificou, começou-se a produzi-las
de todos os tipos, de todas as qualidades, de todos os preços e muitos chegaram mesmo, por
vaidade, a mudar de máscara várias vezes por dia. Depois, nesse verão, uma terceira lei veio
agravar a situação: agora, deveriam usar máscaras todos aqueles cujas doenças, fadigas ou
contrariedades alterassem a fisionomia, descompusessem o rosto. No entanto, a lei ficou vaga
num aspecto: ela não diz a partir de que nível de alteração da pele é necessário ocultar o rosto.
Em todo caso, ela deixa o cidadão decidir, toda manhã, diante do espelho, se está
suficientemente belo e apresentável a ponto de sair de casa de rosto descoberto. E que se cuide
o desprevenido: pois se os cidadãos não sabem determinar exatamente a qualidade de seus
rostos, o Estado sabe e muito bem; e seus funcionários fazem com que se pague bem caro por
essas exibições injustificadas: primeiro, são as multas, depois a prisão e, para os reincidentes,
cortes feitos com navalha no rosto, na boca, no nariz, nos olhos. E as coisas chegaram a tal
ponto que vivemos quase todos disfarçados apesar do calor e do incômodo provocado pelas
máscaras. Um bando de dedos-duros, também mascarados infiltrou-se entre nós.
Parece que estão preparando outros decretos; que o uso das máscaras logo terá de ser feito
durante as 24 horas do dia, que batidas incertas serão feitas a qualquer hora do dia e da noite,
comenta-se mesmo que o Estado quer modificar o perfil dos cidadãos, que está elaborando
máscaras que cobrirão o corpo todo.
Conclusão: A carga da desordem ligeira

“O Mappin não tem nada daquilo que a gente


precisa.”
Mao Tsé-tung

O que sobrou do século XIX? Que fim levou o ideal ascético do qual o capitalismo
vencedor fazia sua razão de ser? Que sobrou, enfim, da figura austera, familiar, do
Burguês poupador? À primeira vista, nada, uma vez que a moral moderna se caracteriza
por sua dedicação no sentido de acabar com todos os resíduos do puritanismo,
multiplica as necessidades e os gastos, e mantém com a polícia medicinal — que
condenava os punheteiros à loucura, os solteiros à neurose, os sodomitas à putrefação
— uma relação de estupor horrorizado. A era da glaciação vitoriana surge como a Idade
Média de nossa modernidade permissiva e sexológica. Mas as coisas não são tão simples
assim.
Os anos 1850 celebram as núpcias da ordem medicinal e da ordem repressiva. O
positivismo triunfante anuncia uma boa nova — “Deus morreu” —, logo acompanhada
por uma correção tranquilizante: “a moral está salva”. Feita a verificação, a moral sai do
desmoronamento religioso não apenas ilesa mas reforçada. A medicina emprega, na
repressão sexual, uma crueldade tanto mais implacável quanto se pretende científica. Ao
lado dessa investigação minuciosa de todos os desvios da norma, as condenações em
bloco da Igreja pecam por suavidade e complacência. Em suma, Dostoievski enganou-se
completamente: se Deus não existe, então nada está permitido, e a descristianização
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não acarreta a imoralidade ou a anarquia, mas sim o contrário disso: o Terror.
Se a medicina impera no século XIX, é porque sabe amedrontar exatamente
aqueles a quem os padres só faziam rir. Em matéria de culpabilização e assombro, o
clero tem de confessar-se derrotado: seus delírios anti-sexuais não passam de criancices,
comparados com as frias descrições dos médicos. Após o trabalho de solapamento feito
pelo Iluminismo, ninguém mais acredita nos caldeirões de Belzebu, nos forcados e nos
diabos de rabo bipartido, mas quem pode deixar de acreditar, quando a objetividade
suplanta o obscurantismo, nas consequências desastrosas da incontinência sexual?
Incidindo sobre os efeitos orgânicos da devassidão, a ameaça da medicina é, de longe
mais aterrorizante que a ameaça religiosa: aquilo que o libertino arrisca agora não são
mais os suplícios eternos no além, mas, sem arreglo, o inferno aqui embaixo, em seu
próprio corpo. Somatizando-se, a justiça é feita sem delongas: a masturbação, por
exemplo, é bem pior que um pecado mortal, uma vez que, nos dizem os bondosos
doutores, ela deteriora o próprio organismo e reduz o sujeito atacado à imbecilidade, à

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John Stuart Mill: "Até mesmo os indivíduos mais preparados devem admitir que essa religião sem teologia (o
positivismo) não poderia ser acusada de mostrar-se frouxa no plano das repressões. Pelo contrário, ela as exerce
ao máximo". (Cit. em Thomas Szasz. Fabriquer la folie. Paris, Payot, 1976. p. 178.)
tuberculose, à loucura, à impotência, à cegueira, à prostração e finalmente à morte. A
ordem terapêutica se apresenta assim como uma obra de caridade que apenas pratica a
repressão do desejo a fim de assegurar a salvação física dos indivíduos.
Hoje, o discurso da medicina deixou de falar a linguagem da repressão. As ciências
clínicas e humanas não servem mais de base para a coação. Inversamente, agora é a
violência repressiva que se torna o instrumento da atitude terapêutica. Os antigos
valores da renúncia morreram, mas, mesmo moribundos, continuam a assombrar a
ordem da medicina na qualidade de sua justificativa e seu álibi. Os doutores vitorianos
haviam-se atribuído esse glorioso mandato revolucionário: salvar a humanidade da
influência dos padres; agora, é do puritanismo e de seu desfile cinzento de recalques,
inibições, bloqueios e ignorâncias que os médicos querem nos libertar. Curar e progredir
continuam a estar na ordem do dia, mas não se trata mais de curar o homem da
animalidade, ensinando-o a dormir seu desejo e a escassear a expressão desse desejo.
Não é tanto o indivíduo que está doente do sexo, quanto o sexo que está doente da
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censura: o ideal do desabrochamento substitui o do ascetismo. O modelo
termodinâmico que assimilava o dispêndio pulsional à degradação da energia foi
refutado: o que significa claramente, que a libido não é nociva. Do mesmo modo, a moral
moderna desativa a ordem familiar que deveria garantir as pessoas contra os devaneios
e as devastações de seu próprio desejo. O que ela coloca no lugar disso é uma ordem
genital cuja missão hedônica é retirar as pessoas dos perigos que a continência, a
imaturidade, a criancice, as fixações perversas, etc., fazem pesar sobre a felicidade
erótica delas mesmas. A ordem não pronuncia mais o discurso imperativo da lei, nem o
discurso objetivo da clínica: é com um afeto todo materno que ela indica aos indivíduos
os caminhos da plenitude.
Esta mutação se insere numa estratégia muito mais geral de controle e
integração, uma nova cartada que afeta, sem prioridades, todos os domínios que o
capitalismo condenava à exclusão. O New Deal de Roosevelt era esse momento crucial
em que o Capital modificava suas estruturas a fim de absorver a onda operária ao invés
de combatê-la e de fazer do antagonismo entre as classes o próprio motor de sua
expansão. O conceito de uma classe operária inteiramente fora do sistema e apenas
oposta a ele é substituído pela instituição de uma classe operária no e a favor do

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A primeira vista, a inflexão permissiva do poder da medicina é o golpe de graça dado nos confessores, a carga
derradeira e decisiva lançada contra o obscurantismo religioso. Os doutores não são mais esses novos padres,
ocupados em pôr ordem, exatidão, diferenças e singularidades no domínio confuso do pecado, legado por seus
predecessores. Mas esta mudança, no fundo, talvez não passe de uma mudança de Igreja: o bom uso protestante
do corpo suplanta o pecado católico da carne; o dispositivo erótico centrado ao redor da proibição e da
transgressão, com o primado oficial da reprodução, vem abaixo em proveito de uma ética produtivista d o prazer,
de uma transferência d a moral calvinista para o domínio de Eros: definição de uma nova positividade em termos
de recalque e desabrochamento, preocupação com o bom rendimento dos corpos, nova libido funcional que
planifica e pacifica o organismo e recoloca sobre as partes genitais o milenarismo dos antigos ideais
revolucionários. Mas essa desvairada esperança depositada nos poderes da cópula, esse escandinavismo
pulsional, que acredita canalizar toda violência e toda crueldade através de uma boa sexualidade, logo conhecerá,
já conhece, sua fase de desespero: não, os nazistas, os stalinistas não eram recalcados sexuais, uma vida erótica
normal é compatível com a mais abjeta violência. E a ideia de recalque é uma ideia não apenas estúpida como
opressiva, pois pressupõe, em contrapartida, o modelo totalitário de um gozo como manda o figurino.
desenvolvimento. Do mesmo modo, o new deal libidinal quer acabar com a
incompatibilidade entre o sistema e as pulsões: encarregar-se da sexualidade, não
marginalizar o desejo (com todos os riscos de retorno incontrolável que essa prática de
prescrição comporta) mas, sim, acolhê-lo e asseptizá-lo, indicando-lhe uma morada, suas
normas e seu regime energético, levá-lo a desinvestir tudo o que escapa ao imperialismo
de seu próprio código — esse é o mandato da ordem genital.
Com isso, a ordem tornou-se uma instância suave que repudia a autoridade,
preferindo, no lugar dela, a linguagem da solicitude. Mas não se deve tomar essa
generosidade como sendo uma liberação. O sistema genital inaugura um tipo de coerção
caridosa que engendra a miséria e a culpabilidade, das quais, a seguir, ela se esforça por
livrar as pessoas. As estatísticas por ele divulgadas, o papel de intimidação por ele
atribuído aos números majoritários provocam o aparecimento de uma nova leva de
culpados: não os infratores, mas os minoritários. Não é mais Deus, nem mesmo a ciência
que constituem a lei, é o comportamento sexual da maioria. Quanto ao modelo do
orgasmo, imposto com uma força e uma intensidade inéditas, este engendra, por sua
vez, novos miseráveis: todos aqueles (ou aquelas) que não conseguem reconhecer em
sua sexualidade os signos sagrados do transe e que, por causa dessa carência, são
remetidos impiedosamente a sua mediocridade libidinal. A norma orgástica fabrica a
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humanidade degradada, com a qual ela forma sua clientela. O inferno não é mais a
transgressão (não existe lei transcendente): não é mais o excesso (não há justiça
imanente: nenhuma doença apresenta-se como punição para a lubricidade); o inferno é
ser outro. A ordem normalizadora autoriza apenas, com efeito, dois tipos de vivência da
diferença: a consciência pesada e a carência. Minha especificidade é tudo aquilo que me
separa dos outros, tudo aquilo que me impede de alcançar o verdadeiro desabrochar. O
puritanismo queria proteger os indivíduos contra seus desejos; o ideal da plenitude é

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Prova disso é um artigo publicado no órgão oficial de uma grande universidade norte-americana, “Alcançar o
orgasmo: como se pode ter certeza?” (The Daily Californian, 19 jan. 1977.) Trata-se de uma mulher que não
sabe se o prazer que sente merece receber a prestigiosa etiqueta de “orgasmo”, se ela tem o direito de assim
rotular seu gozo, e essa incerteza atormenta, a ela e a seu parceiro, a ponto de ela admitir a seu conselheiro
sexual seu embaraço e sua angústia. O que fazer? O terrorismo sexológico se completa nessa pergunta: logo será
preciso, após cada relação, telefonar ao médico (ou então gravar o enlace e mandar-lhe a gravação) para saber se
houve ou não um orgasmo. Quando é que começarão a fornecer certificados de êxtase sexual, entregues
exclusivamente por ginecos-sexólogos com sete anos de estudos nas costas, mais quatro de especialização?
Quanto a esse artigo, procura apenas desangustiar a “paciente”: cada orgasmo, vem ali escrito, é diferente do
anterior, e além disso cada mulher pode ter seu modo próprio de gozar. Nesse caso, de que adianta transformar o
transe final em polo de atenção? Esse é o melhor meio de não se chegar até ele: não se deve procurá-lo; só assim,
talvez, se possa encontrá-lo. Diante dessa torrente de liberalismo, diante dessa medicina cool, desculpabilizante,
compreensiva, etc., apenas uma observação cabe ser feita: é exatamente o fato de ser indefinível que torna o
orgasmo aterrorizante. Dá-se a impressão de que se procederá a uma abertura no sentido da admissão da
diversidade das experiências carnais, mas manter a mesma palavra e usá-la para toda a variedade dos prazeres é
continuar a avaliá-los a partir de um padrão único, ao mesmo tempo em que este se torna irreal. Resultado: o
orgasmo acumula duas intimidações. Tem o poder hierarquizante da Norma e o poder imprevisível da Graça. O
êxtase é obrigatório e, ao mesmo tempo, nunca é garantido. Trata-se de uma referência tanto mais feroz na
medida em que é muito vaga, uma obsessão que não pode ser apaniguada porque nunca se tem a certeza de se ter
satisfeito suas exigências: o liberalismo new-look da sexologia agrava a violência da medicina, uma vez que nos
fixa um ideal e nos retira toda a certeza de poder realizá-lo, uma vez que nos constrange a obedecer a uma pura
injunção, a esse mandamento desde logo esvaziado de qualquer conteúdo: o orgasmo.
que agora recebe o bastão a fim de proteger o desejo contra sua própria diversidade.
E assim, num certo sentido, a moral moderna sem dúvida enterrou o século XIX: o
capitalismo contemporâneo se desfaz da ideologia burguesa que havia legitimado seu
advento e facilitado seu triunfo. Mas ele ainda brande, para justificar essa liquidação, as
mesmas bandeiras que o puritanismo: como a ordem moralizadora, a ordem
normalizadora fala em progresso e fala em medicina. Esta continuidade léxica é mais
reveladora que a metamorfose dos conteúdos. A necessidade de saneamento e
purificação inoculada no amor, o otimismo histórico da inovação e da caminhada linear
na direção do estar-melhor, realizam o triunfo semântico do século XIX. Somos todos
filhos de Augusto Comte e da rainha Vitória: o afeto entrou definitivamente para a
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jurisdição da medicina e sua história é ascensional.
Como se reconhece o totalitarismo terapêutico? Pelo fato de reduzir todo
sofrimento a um sintoma mórbido. Pelo fato de transformar em evidência a percepção
patológica da dor. Por essa certeza com qual nos assegura que, se nos sentimos mal, o
fazemos com referência a um modelo de saúde do qual nossa miséria exprime a ausência
e uma indefectível nostalgia. Encarregando-se de responder pelo sofrimento, essa
medicina prescreve necessariamente, para as pulsões, satisfações sadias, isto é, claras e
reprodutíveis. Essa é a realidade do querer-curar que a ordem terapêutica nos inculca:
querer um código para o próprio desejo, um código que tirasse esse desejo de seus
devaneios, ao mesmo tempo em que lhe garantisse alegrias reconhecíveis, intensidades
familiares e acessíveis. Talvez não exista na natureza pulsões de alcançar um fim
determinado: se a energia libidinal investe tão apaixonadamente sobre a finalidade, se
ela se refere de modo tão devotado a um padrão de gozo, só o faz a fim de escapar ao
novo: só existe um código para que nada aconteça ao desejo, para que tudo esteja
previsto, conforme inteligível. Pois na mesma medida em que o evento desarranja as
categorias que o acolhem, perturba os modelos que gostariam de absorvê-lo e dar-lhe
um nome, sua irrupção é, de modo indissociável, gozo e sofrimento. E é esta
ambivalência que é intolerável ao hedonismo medicinal: não é possível sofrer a
intensidade, ele diz; se há sofrimento, é porque se está doente. Aquilo que é
insuportável, é algo que deve ser tratado. O niilismo terapêutico vê, nas experiências
dolorosas por onde a libido se aventura, apenas praias pantanosas onde ela se atola. Um
desejo medicalizado é, portanto, um desejo assombrado pelo medo do novo, pela recusa
do evento, pelo ódio de toda passividade.
Também é diante da medicina que a vanguarda erótica presta juramento de
fidelidade: o questionamento da ortodoxia heterossexual e genital frequentemente é
feito em termos terapêuticos, em nome de uma outra boa natureza: a polimorfia do
desejo. A libertinagem avançada e a sexologia de ponta produzem um novo ideal
sanitário ao qual se remetem os ativistas do gozo a fim de tratar os outros de iniciados,
de plebeus, de Eros, mortos de fome da braguilha. Temos em nós mesmos todas as

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“A polícia medicinal situa-se quase invariavelmente, no século XIX, do lado daquilo que se convencionou
chamar de “ a esquerda”. Toda ela é movida pelo ideal progressista da Ciência, herdeira direta do Iluminismo e
do Jacobinismo.” ( Jean Borie. Le Célibataire français. Paris, Sagittaire, 1976. p. 104.)
manias, todas as perversões repertoriadas, é o que afirmam: assim, é preciso fazê-las,
assim como um turista diz que “fez” toda a Côte d’Azur a fim de espantar seus vizinhos
com a variedade de suas experiências. Ao lado de uma violência que volta contra os
homens sua pretensão de tudo controlar, há nos livros pornôs de Sylvia Bourdon e
Xaviera Hollander a auto-satisfação incômoda dos primeiros prêmios em sexo. O que nos
leva a crer que doravante somos estudantes 24 horas por dia e que a compulsão da
classificação não poupa nem mesmo a vida erótica. O desprezo manifestado pela Escola
é contemporâneo da difusão e da generalização do modelo escolar; a finalidade de uma
vida sexual intensa é a de poder dizer: “eu sou o melhor”, e o primeiro lugar não é mais
conseguido apenas em virtude do número de conquistas (como nos tempos do dom-
juanismo), mas pela multiplicidade dos erotismos praticados. Um índice: o recente
surgimento de uma gastronomia libidinal que atribui duas ou três estrelas ao parceiro
segundo as especialidades que ele anuncia em sua porta.
Todos os libertinos, militantes do desejo, mentes abertas, vanguardistas do Kama
Sutra, todos os atletas das surubas, adeptos do decatlo da libido, desprezadores das
pequenas alegrias, todos esses últimos idealistas do amor dizem-se livres, muito
liberados, mergulhados numa sexualidade sem fronteiras e, no entanto, são eles
mesmos os padres, os beatos que combatem: ainda acreditam na verdade do desejo, de
seus desejos. Ainda têm um deus tirânico diante do qual se prostram; têm fé num valor
por excelência, chame-se corpo, acumulação, excesso, festa... E, com isso, sentem-se em
condições de dar lições aos ignorantes e de propor, esses happy few, para a humanidade
doente, alguns remédios que acabarão com sua enfermidade.
Essa é a essência da ordem: não um conteúdo particular, mas a obrigação de nos
pensarmos, quer como médicos, quer como doentes, o fato de não poder escapar à
alternativa terapêutica. Há uma concorrência de saúdes no mercado medicinal, mas
existe um consenso sobre a necessidade de assistência, a necessidade de curar. A ordem
deixou de dar ordens, dá receitas.
Pelo fato de o poder ter aumentado sua complexidade, por não ser mais nem
inteiramente previsível, nem completamente localizável, passou a receber o nome de
sistema. Há, nesse termo encantatório, todos os sortilégios de uma providência
invertida. Chamar a ordem de sistema é atribuir-lhe uma onisciência e uma lógica
implacáveis, é supor que tenha o controle de todos os acontecimentos que se
desenrolam nela. Mas significa também restabelecer, no seio de uma nova realidade, a
velha antinomia entre o poder e seus súditos; “eles”, os detentores ou sequazes do
sistema: não se sabe dizer muito bem quem são, nem onde estão os escritórios que os
abrigam, mas o que se pressupõe, por trás desse anonimato, é que não há nada em
comum entre “eles” e “nós”.
Ora, se o poder não é localizável, não é porque ele teria passado para a
clandestinidade, ao lado das pessoas (nos bastidores) ou além delas (numa invisível
transcendência), mas exatamente porque se tornou impossível a todos se eximirem da
ordem, atribuí-la a uma instância exterior. Aquilo que sei do sistema é aquilo que me é
ditado por minha própria paranoia. A ordem amorosa nada mais é que a relação de
intimidação recíproca que rege as diferenças. O terrorismo é consubstanciai àqueles
mesmos que o sofrem, uma vez que só têm uma saída para salvar a própria pele: acusar
os outros por suas lacunas e sua fragilidade. Por uma estranha inversão, o gozo, longe de
ser a experiência de um desfazer-se, torna-se o móvel de uma encarniçada competição
pelo controle.
É por isso que as minorias são um escândalo. Ao invés de jogarem o jogo, elas
deslocaram o sentido da batalha. A ordem só admite e solicita as contestações sérias:
aquelas que, para justificar o combate que travam, demonstram sua capacidade de
substituir a autoridade ou a norma que as governam. Ora, a reivindicação minoritária é
frívola, pois se volta contra um sistema sem apresentar sua candidatura à sua sucessão,
porque ela acelera a decadência da norma, mas, ao mesmo tempo, afirma sua reticência
quanto a pôr qualquer outra coisa em seu lugar, especialmente (de modo algum) a
singularidade (erótica, cultural, social) por ela defendida. Uma dissidência, seja qual for,
é vivida como minoria quando sua finalidade não é ocupar mas esvaziar o centro. Assim,
é preciso distinguir a afirmação minoritária (que destitui uma ordem sem querer colocar-
se em seu lugar) da heresia (que sempre se apresenta mais ortodoxa do que a ortodoxia
por ela recusada).
Não pode existir uma ordem minoritária, contradição nos próprios termos: as
minorias são o desejo em ato de uma heterodoxia generalizada. No domínio amoroso, os
grupos marginais (homossexuais, de lésbicas, travestis, sadomasoquistas, pederastas...)
deixam de lado a atitude crítica que, num primeiro momento, havia orientado sua
constituição: protestar contra o esmagamento, a perseguição ou até a dissimetria
inerente à relação de tolerância (o desvio sofre a ação da norma; a norma tolera o
desvio), não é mais exigir a queda da sexualidade majoritária. É possível afirmar-se sem
com isso querer instituir uma nova medicina, é possível defender uma saúde que não
pressuponha automaticamente que os outros estejam doentes. A ordem gosta de ser
desafiada: as minorias a desativam. O Pai nos moldou para que desejássemos sua morte,
mais do que sua simples substituição: as minorias são órfãs.
No espaço de coexistência preparado pelas sexualidades marginais, o erotismo
dominante pode ter seu lugar, mas não mais em sua posição hegemônica, despojado
agora de sua soberania e sua arrogância. As perversões não destroem, elas destituem:
proclamam o devir minoritário da heterossexualidade. Uma vez livre de sua pretensão de
figurar o universal, esta pode muito bem continuar a ser numericamente majoritária: ela
passa a viver não mais como norma, mas como uma singularidade entre outras.
Um espaço coletivo se coloca contra a ordem que queria eliminá-lo, mas o
território assim reconstituído nada tem de uma vanguarda. O grupo que se reúne nele
não tem encontro marcado com a história: ele não prepara nem aguarda o momento em
que se tornará majoritário. A afirmação imediata da diferença não está subordinada à
conquista longínqua da norma; o presente se emancipa de sua colonização através do
futuro. Em suma, as minorias desinvestem este valor religioso: a esperança e, deixando
de esperar, elas não deixam de atuar.
Para a ordem não existe minoria: há apenas desigualdades ou indivíduos. Em
outras palavras, a ordem trata a diferença, quer hierarquizando-a, quer indexando-a
quanto ao sujeito que a ostenta, reduzindo-a então a um traço do caráter. Desse ponto
de vista, as mulheres são uma minoria exemplar, porque sofrem simultaneamente
ambas as formas de perseguição insidiosa. De um lado, conseguem uma identidade sob
o signo da carência, da falta: são menos que o homem, e esta diminuição não poupa
nenhum aspecto de suas existências; nada do que é feminino escapa ao descrédito viril.
Por outro lado, atomizadas, dissolvidas em outras tantas criaturas particulares, elas são
inexoravelmente levadas a individualizar seus problemas, a viver suas dificuldades ou
suas misérias eventuais como se fossem desgraças privadas. Vítimas ao mesmo tempo
da opressão e da solicitude. Do poder (falocêntrico) e de sua interpretação
(psicologizante). E é isso que a ordem não perdoa às mulheres: ter desprivatizado sua
angústia e seu desejo, ter provocado o aparecimento de comunidades ali onde as
evidências queriam ver apenas indivíduos. Em nome de que esses grupos, esses lugares
coletivos, toda essa efervescência minoritária? Com que propósito? Em nome da recusa
de assumir o destino individual que a ordem impõe a seus súditos (as minorias são, antes
de mais nada, pessoas em greve de individualização). Com o propósito, a seguir, de
afirmar uma singularidade que não pensa a si mesma como um desvio em relação a uma
norma, nem como uma norma injustamente afastada do centro por uma autoridade
usurpadora, mas como uma diferença que se ombreia com outras diferenças sem querer
englobá-las, classificá-las ou aboli-las.
Lá onde se decreta a diferença entre o nobre e o ignóbil, ela coloca o sinal de
igualdade; onde se aponta uma coisa ridícula, ela revela uma emoção; diz que o detalhe
é essencial; e o gosto pela verdade, ela diz que é sinônimo de terror. A desordem tem
um primeiro rosto que é o catálogo, o nivelamento brutal de todos os valores, a
colocação lado a lado de fragmentos que apenas mantêm entre si relações de diferença
sem relacionamento com uma totalidade original perdida, nem mesmo com uma
totalidade resultante futura. O catálogo é a figura moderna do amor, a equalização
absoluta de todas as suas formas: esta coexistência não é simples, ela é até insuportável
quando relacionada a nosso hábito secular de hierarquizar as coisas. Ela significa, antes
de mais nada, que doravante é possível atribuir o grau de dignidade amorosa tanto às
ligações mais etéreas quanto às relações mais sórdidas, e chamar de eróticos humildes
idílios, tanto quanto intensos enlaces amorosos. Ela faz também com que não mais
existam bobagens e tolices, não mais as preocupações mesquinhas pelas quais
deveríamos ter vergonha, pois somos todos, em pé de igualdade, anões do amor e
grandes senhores libertinos, ao mesmo tempo cheios de tato e atolados em nossos
problemas pessoais. Se não há mais uma unidade do tempo amoroso nem mais
progresso, ou vanguardas sexuais, se ninguém representa de modo privilegiado a
humanidade sentimental, é porque o próprio amor tornou-se uma ficção assim como o
são suas sucessivas máscaras, mas cada uma dessas máscaras é igualmente verdadeira,
igualmente fictícia aos olhos de um devir que não favorece nenhuma delas e as visita
todas. Penetramos hoje na época das sexualidades exclusivas que não mais se excluem.
Cada posição erótica (fidelidade/inconstância, ativo/passivo) se torna uma diversão em
relação a seu contrário, passa-se do casal ao borboletear, da timidez à iniciativa, não
como se passa do bom para o melhor, mas do modo como se passa de uma exceção para
outra, nada predomina sobre coisa alguma, não prevalece nenhuma forma de
sofrimento ou de felicidade. (Talvez logo se revele impensável também a distinção entre
devassidão e castidade.) Pois nesta nova igualdade pulsional, não mais existem bloqueios
nem “tendências desviadas quanto à sua finalidade”, não mais existem perversões nem
recalques; o centro e o objetivo também desapareceram, a reticência equivale à
realização, a arte de viver torna-se a arte de acumular as regras da vida, de abarcar a
pluralidade dos costumes. A desordem nos libera do monoteísmo coercitivo de Eros e
liberta toda a arraia-miúda erótica, faunos, sátiros, anões, feiticeiras, que esse monarca
mantinha prisioneiros; ato de paganismo integral que não mais recita o ateísmo
codificado do “Nem Deus, nem senhor” mas que declara: “Mil deuses, mil amantes, mil
paixões”, a fim de que nenhum deles predomine em particular.
Por liberação sexual, durante muito tempo se pretendeu entender
desenvolvimento de novas formas de amor emancipadas das ligações perversas,
monetárias, degradadas, transparência realizada do desejo e da satisfação. Hoje pode-se
entendê-la, num sentido menos especulativo, como sendo a justaposição de todos as
concordâncias sentimentais, a acolhida das diversidades afetuosas, o estabelecimento de
uma malha de compatibilidade de todos os erotismos. Pelo fato de desdobrar as
determinações da ordem no espaço da nomenclatura, a desordem rompe com as últimas
esperanças revolucionárias que foram depositadas no amor, proíbe que ela mesma seja
encarregada de uma mensagem ou que se atribua aos embates voluptuosos um outro
sentido que não o de manifestar a exuberância da vida. Contra a linda coerência das
utopias genitais, ela restitui a temporalidade selvagem das manias, o anticalendário das
pulsões, a suave irracionalidade dos caprichos.
A desordem, portanto, é ligeira em todos os sentidos da palavra, isto é, frívola,
leve, embrionária: ela não anuncia a aurora de um novo mundo mas a manhã de uma
pequena alteração deste mundo aqui; não é a anarquia que precede uma outra lei e,
menos ainda, a crise consoladora que ensaiaria um novo universo. Ela não tem objetivos,
não diz “é preciso” e contenta-se com desestabilizar a longa sequência de processos de
dominação que impuseram o estado instituído — o que é suficiente para que pareça
frágil, estreita, inútil. Não mata a ordem, apenas permite que seus ultimatos deixem de
legislar e que sua ascendência diminua; desinveste menos os conteúdos (este ou aquele
tipo de sexualidade, de gozo) do que as relações hierarquizadas entre os conteúdos, ou
seja, o próprio jogo do código amoroso, impedindo assim que as diferenças sejam vividas
como dissidências ou, pior, como ideias. Pois se é preciso iniciar hoje uma luta no
domínio amoroso, talvez essa luta deva ser a luta pela coexistência: não se tornar
militante de nenhum caminho do desejo em particular, combater para que todas as
figuras de Eros possam atuar simultaneamente num espaço não discriminante. Não é
minha lubricidade, minhas preferências, minhas fantasias, que quero ver reinando, mas
quero poder me enturmar com outras pessoas que também partilham delas, quero que
elas tenham seu lugar na sociedade em que vivo, do mesmo modo como aceitaria, a meu
lado, outras sexualidades divergentes da minha. Encerrado está o tempo das apologias
da boa genitalidade, das condenações dos desvios em nome do falo ou do orgasmo,
sejamos diferentes juntos, que os incompatíveis confraternizem. Tudo bem, que existam
slogans, mas na medida em que forem contraditórios; chega de combates exemplares de
valor pedagógico, de ladainhas de sexualidades livres e gratuitas, reembolsadas pelo
INPS.
A desordem é ligeira também pelo fato de não desafiar a ordem mas, sim, de
“ocupá-la”, privando-a de sua seriedade libidinal, tornando fluidas suas instituições.
Ligeira, essa desordem que não é triunfante mas cínica, que parasita o “sistema”, utiliza
os poucos prazeres por ele permitidos sem sofrer seus inconvenientes, que se aproveita
de suas regras para desregrar-se, que aceita compromissos que não lhe custam nada e
que transforma a deserção desejante em um fenômeno complexo feito tanto de
compromissos quanto de rupturas; fenômeno no qual emergem à superfície os
demônios afundados pela norma, enquanto do céu despencam e se estatelam com
estrondo, no chão, as grandes divindades e os arquétipos do amor. Algazarra de reis
destronados, gritos de alegria dos clandestinos que saem para a luz do dia, verdadeira
inovação cujas consequências ainda não podem ser todas avaliadas. Não esquecer o
seguinte: a nova descontinuidade libidinal que começa a aparecer timidamente em
nossa época não é revolucionária, ela se opõe sem chegar a pôr-se (e sem prefigurar
uma outra ordem, uma outra positividade), não pretende assumir o poder porque
procura neutralizar todos os poderes. A desordem nada mais é que o movimento da
ordem que se desorganiza (e se recompõe), a vontade gulosa de nada perder, a
possibilidade de que tudo se transforme em evento, até mesmo as coisas mais baixas,
mais insignificantes. “Como nada é verdadeiro, tudo se torna permitido” (Nietzsche), a
corrosão das estruturas reinantes multiplica as pequenas alternativas e impede
simultaneamente toda alternativa de ser a última e de legitimar as demais.
No entanto, permanece um último ídolo diante do qual ainda nos prosternamos:
a famosa polimorfia da perversão, ideia segundo a qual existiria em nós o catálogo de
todos os erotismos, junto com um mandato que nos teria sido dado para que
desenvolvêssemos todos eles, um a um. Como se contivéssemos em nós todos os
eventos sensuais que se possa conhecer, como se a lista dos casos “pervertidos” já
estivesse fechada e encerrada desde logo! Não quero ser polimorfo, apenas quero ser
maleável, aberto para as singularidades do outro sem pretender adotá-las desde logo. As
relações entre sexualidades não são de imitação, mas de interferência, de recíproca
fecundação por transposição: não existe uma programação erótica inata para todos. O
Outro, com seus pequenos dispositivos, me enoja tanto quanto me atrai, suas invenções
são surpresas que me deslumbram e me perturbam, é preciso que as contigüidades
eróticas sejam concebidas como atravessadas por recusas e atrações que não se
distinguem umas das outras.
Essa é a razão pela qual não é possível desprezar os territórios amorosos: são o
primeiro passo na direção da liquidação do Império Genital, através de afinidades
minúsculas e incontidas. Mas, por outro lado, a paixão minoritária é uma paixão
realizada pela satisfação e que, a partir do momento em que se constitui, sempre atinge
seu objeto. Seria muito insípido, e algo prenhe de chauvinismos, se por trás de cada
minoria, e como que a despeito dela, o movimento soberano da desordem estivesse à
espreita para substituí-la e impedir seu encerramento, seu fechamento sobre si mesma.
O que pretende cada minoria em seu programa? O fim de sua situação marginal, o
reconhecimento do livre exercício de sua especificidade. O que a leva a isso? A
impossibilidade de curvar-se à lei dominante; a vontade de ter um lugar, o direito à
existência. Mas cada minoria quer, para si, esse lugar, todas elas: gesto exemplar que
assume uma dimensão cacofônica onde as sexualidades se entrechocam, se enfrentam,
se interrogam numa transfusão sem limites. A diáspora libidinal é uma exigência tão
desmedida que obriga não apenas toda a paisagem amorosa a modificar-se como
também cada província a reorganizar-se em função de todas as outras. O catálogo
provoca ao mesmo tempo a segurança e o desequilíbrio, a distinção das categorias e a
mistura dos gêneros. A ordem separa e distancia sob o centralismo do código; a
desordem começa quando se reúnem aqueles que a sociedade havia separado. Mas esta
coabitação prepara, a seguir, a contaminação. A mestiçagem é a terceira face da
desordem, quando o Império e seus confins forem substituídos pelo mosaico e suas
fissuras, de modo que o desregramento só funciona na medida de seus solavancos, de
suas derrapagens. Portanto, três movimentos inextricavelmente ligados numa batalha
cujo fim nada nos diz que será para breve: unidade heterogenital da ordem, pluralidades
libertinas das minorias, circulação e fragmentação da desordem. Predominância de um
centro, pureza das diferenças, caos do indistinto: nossa modernidade combina essas três
postulações segundo movimentos do acaso que não param de variar.
Curtos-circuitos eróticos se produzem e alteram, do interior, as classificações
estabelecidas, ameaçando os conservantismos, destruindo os corporativismos locais,
fazendo os espaços colocarem-se lado a lado, instaurar relações de vizinhança entre si,
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conexões, separações. A morna planície das emoções codificadas se verga, se esvazia, se
inclina, se separa, cobre-se de afluentes, todas as energias amorosas escapam de seus
proprietários legais, dos exércitos que as mantêm prisioneiras. O próprio amor não para
de desdobrar-se, de tornar-se incompreensível, de dissimular-se sob formas que
parecem contradizê-lo: e, quanto mais ele se apresenta de outros modos, mais a própria
noção de ideal amoroso perde credibilidade; agora, é a marcha lado a lado de todos os
desejos que tende a substituir os antigos modelos.
Os inoculadores da desordem se multiplicam, saqueiam os grandes sonhos
modernos de cura e salvação. Iniciou-se um combate entre sua turbulência e a paixão
medicinal da ordem. Na verdade, ainda não vimos nada.

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Por exemplo, não tenho necessariamente a paixão pelo excremento. Posso me contentar com beber
ocasionalmente a urina de minha companheira ou de receber seus peidos em minha boca, sem passar disso. Não
existe uma identidade pervertida, nem limitação estrita dos caprichos amorosos: posso namorar com a coprofagia
sem com isso ser um comedor de merda; as manias voluptuosas são territórios abertos que não pertencem a
ninguém e que cada um ocupa a seu bel-prazer. Exigir das pessoas que elas “vão até as últimas consequências de
seus desejos” é, sob a bandeira do recalque, querer que elas interiorizem o conteúdo estereotipado da perversão
tal como esta vem sendo definida nestes vinte séculos de cristianismo e cinquenta anos de psicanálise.

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