O SILÊNCIO
DOS VENCIDOS
Prefácio:
Marilena de Souza Chaui
HISTÓRIA A CONTRAPELO
"Para o passado, o dom de atiçar a chama da espe-
rança cabe apenas ao historiador perfeitamente con-
vencido de que, diante do inimigo, se este vencer,
nem os mortos estarão em segurança. E esse inimi-
go não tem cessado de vencer."
Benjamin
trapelo".
Edgar De Decca faz do insucesso político uma questão. Não o
toma como fato, nem o constrói como idéia, mas busca o momento
de sua produção no trabalho da luta de classes. E, em contrapartida,
procura as representações que cristalizaram a derrota de maneira
exemplar, pois a derrota é justamente aquilo que uma certa história
não pode revelar nem interpretar porque só se mantém como "histó-
ria" pelo silêncio que impôs aos vencidos. Desse silêncio, fala este
livro.
***
monia burguesa?
Nessa medida, ao desmontar o discurso acadêmico que tornou
possível falar em "revolução de 30", Dè Decca revela não só a exis-
tência de um discurso fundado na memória dos dominantes, mas ainda
reflete sobre a reprodução da ideologia pela intelligentsia de esquer-
da, pois o trabalho historiográfièo tende a permanecer no interior
dessa ideologia como se fora seu ambiente natural.
Por ser reflexão do historiador acerca da dissimulação da histó-
ria, este livro resgata a memória dos vencidos e o discurso dos que
foram silenciados para que se construísse a imagem de uma tempora-
lidade una, única, linear, contínua, progressiva e despojada de alter-
nativas históricas reais. No entanto, o leitor que esperasse 0 resgate
da memória e as vozes do silêncio através de depoimentos, questio-
nários e entrevistas com os vencidos, terminaria a leitura um tanto
decepcionado, pois não foi este o caminho escolhido pelo autor. íO
resgate se cumpre de modo inusitado: realizasse pela modificação
do curso atribuído à história, pelo corte inesperado da periodização.
Os vencidos falam é lembram porque uma outra história é desvendada
no coração daquela que conhecémosJ Mais do que isto: a desmon-
tagem do conhecido se exprime num contradiscurso que nos coloca
diante de uma contra-história, aquela que fora destruída pela "his-
tória"
Este livro é um trabalho histórico no sentido forte dó termo, não
só porque vai em busca do lugar onde a história se produz e se
oculta — à luta de classes — mas também porque a procura desse
lugar permite ultrapassar a diferença empírica dos tempos (o antes
e o depois, o passado, o presente, o futuro) para encontrar a diferença
temporal (àquilo que constitui intrinsecamente o passado em sua di-
ferença diante do presente) . A descoberta da diferença temporal torna
possível compreender como e porque o passado é construído como
dimensão imaginária do presente, graças à abolição de tudo quanto
no passado e no presente é dissimulado pelo exercício real da do-
minação: uma representação "legítima" do passado pela "legitimida-
de" que o presente atribui a si mesmo. No entanto, o essencial dessa
representação do passado pelo ocultamento da luta de classes está
em fornecer, simultaneamente Com a construção imaginária, também
a possibilidade de sua interpretação crítica. O autor nos conduz da
Revolução de 30 para a "revolução de 30".
De onde vem a construção da ReVólução de 30? Da interpreta-
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 15
***
versa. Bastou, entre 28 e 29, que optasse pela primeira solução para
que fosse politicamente demolido e historicamente excluído.
Se o autor nos mostra a força da burguesia, que soube neutralizar
a democracia por meio da industrialização, ele nos mostra também o
problema da organização do proletariado brasileiro no interior do
sistema capitalista. Discutindo, por um lado, o jogo das forças que
tornaram viável a emergência de um partido dos trabalhadores e,
por outro, as dificuldades desse partido para legitimar-se diante das
demais tendências do movimento operário,\lDe Decca não nos mos-
tra a desorganização da classe operária Ttida pela historiografia
como "causa" da derrota política), mas, muito pelo contrário, aponta
o insucesso político de uma determinada forma de organização do
proletariado. É a forma de organização escolhida que determina, por
si mesma, os limites da práxis proletária^'Longe de apelar para o
conceito metafísico de "amadurecimento "(ias condições objetivas",
o autor nos coloca diante do aborto de um projeto histórico pela
interpretação dada pelo BOC à dinâmica da luta de classes.
No entanto, mais importante, este livro nos faz descobrir, para
além da questão do insucesso político, um aspecto fundamental que
foi apagado pela memória histórica: somente através da prática do
BOC e das demais tendências operárias pode-se compreender os li-
mites históricos das propostas democráticas dos "revolucionários",
do PD e do PRP. "No desenvolvimento dessa correlação de forças,
a classe operária jogou a sorte da questão democrática, pois sua
arregimentação apontou uma direção que obrigou o recuo de todas
as outras propostas políticas. Nesse complexo jogo, governo e opo-
sição, aceitando a luta parlamentar do BOC, emparedaram sua re-
volução ao mesmo tempo que lhe abriram o caminho para a colo-
cação do problema da democracia para muito além dos limites visua-
lizados pelos diversos agentes sociais. Essa foi a questão que desmo-
ronou, ao mesmo tempo, todas as estratégias do governo è da opo-
sição, explicitando definitivamente o caráter dessas propostas políti-
cas. Isto é, não só não podiam permitir, na luta política, a possibi-
lidade de uma revolução socialista — a revolução democrático-bur-
guesa era assim entendida na ótica de muitos dos agentes sociais —
como também não suportaram, senão por um curto período, a pre-
sença da classe operária, definindo a questão da democracia no
próprio lugar da política instituída pelo Estado". Percebemos, enfim,
que "revolução de 30" é mais um capítulo da história da repressão
r
28 EDGAR SALVADORI DE DECCA
neste país.
E disto, amplos setores da classe operária o souberam durante o
acontecimento. Porém, saibam algo mais: "ponhamos os pauzinhos
nos seus lugares, escrevia O Combate em novembro de 28, e con-
vençamo-nos eu e o BOC de que o operariado pode não ter cons-
ciência de classe, mas sabe fazer greve, pedir aumentos de salários
e diminuição das horas de trabalho. Conclue-se, portanto, que o pro-
letariado paulistano, esse proletariado que apesar de tudo sabe ler e
lê de fato os jornais, pode não ter consciência de classe, mas talvez,
mais do que eu e o Bloco, tem muita consciência do que faz e do
que f e z . . . "
Aurora e crepúsculo, 1928 dá o que pensar.
A FALÊNCIA
DAS INTERPRETAÇÕES
21 EDGAR SALVADO RI DE DECCA
A revolução do vencedor *
Ao analisar a estratégia dos discursos de Marx em torno dè 1848
e 1852, procurei sugerir que a leitura da história, a partir da visibi-
lidade da transformação revolucionária do proletariado, permitia ao
autor não só definir o lugar da história — o lugar da luta de classes
— como qualificar esse lugar como revolução burguesa. Em outras
palavras, Marx, principalmente no 18 Brumário de Luis Bonaparte,
sob a ótica da classe operária, pôde ler a história da dominação
burguesa que em seu desenrolar ocultou a sua instituição, substi-
tuindo-a por idéias-conceitos, como o cesarismoe quejandos. Está
operação, além de ler a história da burguesia que ela mesma ocultou
no exercício de dominação de classes, incidia criticamente sobre a
historiografia burguesa que preenchia com conceitos vazios a própria
visão da luta das classes dominantes. Ora, se a crítica de Marx inci-
dia sobre essa partilha — que é da mesma ordem daquela verificada
entre Ideologia e Ciência —, concordaria aqui com Marilena Chaui
que indica a possibilidade de um contradiscurso da ideologia, capaz
xis social, isto é, faz parte do aparecer das classes sociais e do exer-
cício efetivo de dominação que oculta a divisão social; então, no
período em torno de trinta, a memória histórica do vencedor da luta
política não poderia ter prescindido da categoria de revolução para
alcançar sua legitimação no conjunto do social — e daí a idéia de
revolução. Porque o aparecer das classes sociais constitui um campo
simbólico no qual o termo "revolução" qualificava o lugar em que
os homens deveriam produzir a história — e esse lugar era criado de
várias maneiras, a partir de propostas diferentes de revolução — e o
vencedor da luta política em torno de trinta não pôde se expressar
a não ser no fato de ter feito uma revolução — unitária e monolítica
— e tal idéia, suprimindo as propostas políticas de outras classes e
frações de classe, refaz na memória o próprio lugar da história, legi-
timando ao mesmo tempo o poder político do vencedor.3
2 Não deixa de ser irônico o (ato de que, antes de 1930, o termo "revolução",
definido a partir de inúmeros agentes políticos, apontasse os vários lugares onde
a história deveria ser produzida. Essa produção de vários registros do "
revolução foi justamente o que a memória histórica da Revolução de
suprimiu, anulando assim o próprio movimento da história. A historio"
fez menos do que isso ao tornar a idéia de revolução um "fato" C"4
maior entendimento, com a diferença de que ao poder político dos
não restava outra alternativa a não ser a de suprimir, inclusive
as propostas políticas de seus opositores. -
76 t.vGAR SALVADORI DE DECCA
"fatos":
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78 EDGAR SALVADORI DE DECCA
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79
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USP, 1976 (mimeo). >ã .. J g j j ^ ^ ^ H
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84 t.vGAR SALVADORI DE DECCA
Miguel Costa:
"Se a revolução era necessária em acrescida à história da Repú-
blica em 1924, com maior razão o é em 1928. Não há, portan-
to, entendimento possível entre a revolução e o governo, a menos
que este último se decida a aceitar a aplicação do programa
revolucionário." 9
Maurício de Lacerda:
"Não!... Não sou democrático e sim revolucionário, francamen-
te revolucionário. A revolução continua a ser, para mim, a solução
mais viável para esse complexo problema brasileiro. Ela é o meio
de provocar a transformação radical, absoluta, do atual regime
imperialista."10
Luis Carlos Prestes:
"A revolução tem um programa a que todos nós juramos obede-
14 O Combate — 7/2/1929.
15 A dimensão simbólica da luta de classes e a verdadeira pantomina eàiáiSà.
em seu interior, com as classes sociais desempenhando, cada uma delas, o papel
da outra, foi suficientemente explorada por Marx no 18 Brumári^^d^uÊtjt
Bonaparte. Acredito ser estratégico, para o período de 1928, analisar colBj||â
dimensão simbólica que a luta de classes substantivou em "revolucionámos^
jogou progressivamente para o fundo da cena da história a classe
88 t.vGAR SALVADORI DE DECCA
cava cortar de uma vez por todas o seu caminho para o poder, já
que suas bases se tornariam precárias para o enfrentamento eleitoral
com o Partido Republicano.16
Estar do lado da revolução, portanto, satisfazia tanto alguns se-
tores da classe dominante como os segmentos médios urbanos e
inclusive o próprio proletariado. Não apenas "os revolucionários" se
sentiram próximos ao Partido Democrático, mas também a classe
operária por ocasião das eleições municipais de fevereiro de 1928
e da greve dos gráficos de abril de 1929, sentiu essa presença parti-
dária como aliada na luta pela derrubada das oligarquias.
Comunicado do Bloco Operário e Camponês:
história desse partido passava a ser contada não a partir das diver-
gências internas da classe dominante, mas memorizada para o con-
junto do social como uma força cujas raízes estavam nos "movimen-
tos revolucionários" de 1924. Fazendo coincidir as forças do mo-
vimento de oposição, os "revolucionários", o Partido Democrático e
o Bloco Operário e Camponês, Lacerda não só propunha a necessi-
dade de aceitação da classe operária como interlocutor político, como
também procurava quebrar as resistências daqueles que pensavam
encaminhar um movimento de oposição contra o Partido Republica-
no — entendido como revolução para a derrubada das oligarquias
— sem o concurso do proletariado.
O jornal O Combate resume um discurso de Maurício de Lacer-
da num comício do Partido Democrático em Santos:
Férias! Férias!
Eis os brados quentes do operariado, as razões supremas invoca-
das por todos aquele que, no escuro das fábricas lutam afanosa-
mente, todo o ano.
E os patrões, sempre os patrões, contrariando esse motivo legal
da gente trabalhadora! E vem as greves, as paredes pacíficas; os
pedidos de justiça, as representações justas. A polícia aparece.
Soldados indisciplinados arreganham o focinho e guardas estran-
geiros mostram os dentes agitando as orelhas. Foi isso, pelo menos
o que vimos ontem. Às 10 h. e trinta, demos entrada na "Fábrica
Ramenzoni", sito à rua Lavapés, 192, de propriedade de Dante
Ramenzoni e Cia. ( . . . ) . Entramos no escritório da "Fábrica Ra-
menzoni". Recebidos pelo Sr. Ibsen Ramenzoni, que principiou
por nos dizer:
— Não houve e nem haverá nada.
— Então...
— Foi um mal entendido por parte dos operários descontentes.
— Quer dizer...
— Que nunca deixamos de dar férias regulamentares aos nossos
operários, concluiu aquele senhor.
A fim de completar a nossa reportagem, pedimos ao Sr. Ibsen
Ramenzoni licença para falar a um operário "qualquer". E ele,
inteligentemente, chamou um determinado operário, um velhinho
de 60 anos, Raimundo Alexandre, que nos disse:
— Estou satisfeito.
— E os colegas?
— Há entre eles, não resta dúvida, muitos descontentes.
— Quer dizer que continua o movimento?
— Parece, concluiu o nosso informante.
O relógio naquele momento, marcava 11 horas.
Era o instante da saída de 600 operários que trabalhavam na
"Fábrica Ramenzoni".
E nós esperamos.
Segundos depois eles saíam e nós procurávamos a comissão que
chefiara a greve, que nos disse:
— Voltamos, hoje, ao trabalho devido a uma promessa do patrão.
— De...
— Pagar-nos as férias atrasadas.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 97
— De que anos?
— De 1927.
— Quer dizer que, dadas as férias, ficarão satisfeitos?
— Não responderam-nos. Somos uns eternos explorados e, por,
cima de tudo, desconsiderados. Calcula o sr. que os patrões além
de nos terem tirado os médicos e a assistência farmacêutica, não
nos deram, no Natal, como era de costume, o nosso presente,
que consistia em dois chapéus..." 22
O movimento de memorização
Talvez agora seja possível avaliar a força da idéia de revolução de
trinta — constituída no interior da luta de classes — como um marco
divisor da história do Brasil, pelo qual os vencedores julgaram todo
o passado, definindo desde o princípio, inclusive, o inimigo que essa
revolução abateu: o fantasma da oligarquia. Lugar onde se ocultou
a luta de classes, essa memória histórica de um processo político em
curso pelo menos desde 1928, dificulta sobremaneira acompanhar o
percurso percorrido pelas classes sociais e definir o conjunto dos ven-
cedores da luta. Idéia elaborada no interior do processo político onde
as classes sociais entrechocaram-se e constituíram-se, a revolução de
trinta, como imaginário dessa sociedade, foi também parte do exer-
cício de dominação tanto no início do processo, quando ela se en-
gendrava na idéia de uma revolução contra a oligarquia, como no
.final quando apareceu apropriada pelo sistema de poder dos ven-
cedores.
Ao referir-me à dificuldade de se acompanhar o percurso das clas-
ses sociais e a composição política dos vencedores, não estou apenas
afirmando que a luta de classes não se explicita na revolução xde
trinta, porque esta é uma idéia constituída no interior da li
reforço também o fato de que as correlações de poder
no interior do processo político não são explicáveis se não
por dentro esse imaginário, ou essa memória histórica. Para
nas um exemplo, situo o problema da proposta de revol
108 t.vGAR SALVADORI DE DECCA