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EDGAR SALVADORI DE DECCA

O SILÊNCIO
DOS VENCIDOS
Prefácio:
Marilena de Souza Chaui
HISTÓRIA A CONTRAPELO
"Para o passado, o dom de atiçar a chama da espe-
rança cabe apenas ao historiador perfeitamente con-
vencido de que, diante do inimigo, se este vencer,
nem os mortos estarão em segurança. E esse inimi-
go não tem cessado de vencer."
Benjamin

Este livro, empenhado na compreensão do significado histórico


do insucesso político, procura responder a uma questão precisa:
"seria possível imputar aos perdedores responsabilidades que teriam
existido apenas na memória histórica que comanda o exercício da
dominação? Ou melhor, seria possível avaliar os perdedores pela
ótica da Revolução de 30, sabendo que esta é a reconstrução do
passado no momento mesmo em que o poder decide sobre ó íuturo
da dominação?" '
Essa interrogação apònta os rumos do trabalho de De Decca.
Trata-se, antes de mais. nada, de pôr em dúvida a historiografia exis-
tente, assinalando seus compromissos (voluntários ou involuntários)
com o saber da classe dominante. Trata-se, também, de buscar o
duplo lugar onde história e saber da história se produzem, evitando
as armadilhas da redução do real aos fatos ou às suas representa-
ções. Más, trata-se, sobretudo, de não entrar em "empatia com o
vencedor", pois, como escrevia Benjamin, quem se põe ao lado do
materialismo histórico "sabe que todos aqueles que até agora vence-
ram participam do cortejo triunfal, onde os senhores do momento
pisoteiam os corpos dos vencidos de hoje ( . . . ) e, por isso, afasta-se
daqueles tanto quanto puder. Sua tarefa é escovar a história a con-
12 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

trapelo".
Edgar De Decca faz do insucesso político uma questão. Não o
toma como fato, nem o constrói como idéia, mas busca o momento
de sua produção no trabalho da luta de classes. E, em contrapartida,
procura as representações que cristalizaram a derrota de maneira
exemplar, pois a derrota é justamente aquilo que uma certa história
não pode revelar nem interpretar porque só se mantém como "histó-
ria" pelo silêncio que impôs aos vencidos. Desse silêncio, fala este
livro.

***

Questionando a idéia de "objetividade", solidária com a noção


de "fato histórico", Edgar De Decca opera uma dupla reflexão onde
a figura do historiador e a de seu objeto são simultaneamente produ-
zidos, de sorte a manter a diferença entre sujeito e objeto sem mer-
gulhá-los nos velhos mecanismos do conhecimento representativo.
Este, por ser incapaz de reflexão e de pensar a gênese, necessita fixar
previamente a identidade positiva dos termos como entidades sepa-
radas e independentes, acabando por reduzir o objeto a uma repre-
sentação inteiramente dominada pelo sujeito. O conhecimento repre-
sentativo impossibilita a apreensão do movimento contraditório e
reciprocamente determinado pelo qual cada um dos termos só pode
vir a existir na e pela relação que mantém com o outro, relação que
os constitui e os diferencia. Mas não apenas sujeito-objeto constituem ;;
uma relação, cada um deles é também um sistema de relações histo- 1
ricamente produzidas. Assim, o objeto classes sociais, tomado pela
e na luta de classes, não é coisa (em si) nem idéia (para si), mas ,
uma relação social e uma relação de poder, um acontecer. Também ;
o sujeito do conhecimento, no caso o historiador, não é uma cons- j
ciência pura dotada de soberania para sobrevoar o real, mas aí se!
encontra imerso numa historicidade a ser compreendida. - '.
Começando pela posição do historiador enquanto intelectual, De
Decca pode desvendar os processos que engendram essa figura na
relação que mantém com um objeto historicamente determinado, no
caso o proletariado brasileiro nas primeiras décadas do século. Toda-
via, antes de aí chegar, o autor procura seu próprio lugar. Isto signi-
fica acompanhar o movimento histórico que produz o intelectual
dos anos 60/70.
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Se, durante os anos 50, mantendo uma concepção clássica no


pensamento brasileiro, que vê no Estado o demiurgo da história, os •
intelectuais pretendiam fornecer planos e metas aos governantes e
ao povo, no pós-64, acuados e reprimidos pelo Estado, os intelectuais
imaginaram pertencer ao mesmo campo onde foi lançado o proleta-;
riado — o campo dos vencidos. A suposta homogeneidade desse '
campo torna possível o apagamento ideológico de suas diferenças,
fazendo com que práticas históricas e papéis sócio-políticos diferen-;
tes apareçam como idênticos numa cena tida como una e única. A
identificação dos protagonistas permitirá, nesse período, o aguçamento
da suposição de que o intelectual, isto é, aquele que, supostamente,
melhor conhece a complexidade histórica, seja também aquele que
melhor poderá fazer e conduzir a história. A "ciência", agora com-
prometida com os vencidos porque feita por alguns deles, torna-se o
passaporte, sempre renovável, para a prática.
Ora, este livro é uma interrogação sobre as dimensões históricas
do insucesso político. Assim sendo, antes de enviar o leitor ao tema
— "revolução de 30" — o autor indaga sobre os efeitos da derrota
dos anos 60 para a pretensão condutora dos intelectuais. No correr
dos anos 70, o intelectual, e em particular o historiador, medita
acerca de seu próprio trabalho, seu lugar e seu papel, sua relação
com a classe operária e sobre os resultados palpáveis da ideologia
dominante na determinação dos temas e dos métodos de pesquisa. •
Nessa meditação, confrontados com obstáculos e resistências de seus
"objetos", paulatinamente os pesquisadores se dão conta de que, mal-
grado a representação ideológica do campo unitário e comum dos
vencidos, os intelectuais não se alojam nesse campo da mesma ma-
neira que os operários e os camponeses. Descobrem que ser vencido
não possui sentido unívoco. Percebem como seus temas, objetos e
metodologias os aprisionam na constelação do saber dominante, que
determina a forma e o conteúdo de pesquisas que acreditavam serem
novas e comprometidas com os dominados. Alguns se dão conta, afi-
nal, de que a ideologia não é inversão especular do real, nem "visão
de mundo", mas um conjunto de dispositivos práticos e teóricos pro-
duzidos j?ela luta de classescom a finalidade de anular a realidade
dessa luta. Descoberta alarmante quando se pensava estar falando
dessa luta, para e por ela. Ou melhor, quando se imaginava estar
de um lado, estando-se realmente, sem o saber, do outro. Que nome
dar a esse trágico fenômeno de desconhecimento senão o de: hege-
5 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

monia burguesa?
Nessa medida, ao desmontar o discurso acadêmico que tornou
possível falar em "revolução de 30", Dè Decca revela não só a exis-
tência de um discurso fundado na memória dos dominantes, mas ainda
reflete sobre a reprodução da ideologia pela intelligentsia de esquer-
da, pois o trabalho historiográfièo tende a permanecer no interior
dessa ideologia como se fora seu ambiente natural.
Por ser reflexão do historiador acerca da dissimulação da histó-
ria, este livro resgata a memória dos vencidos e o discurso dos que
foram silenciados para que se construísse a imagem de uma tempora-
lidade una, única, linear, contínua, progressiva e despojada de alter-
nativas históricas reais. No entanto, o leitor que esperasse 0 resgate
da memória e as vozes do silêncio através de depoimentos, questio-
nários e entrevistas com os vencidos, terminaria a leitura um tanto
decepcionado, pois não foi este o caminho escolhido pelo autor. íO
resgate se cumpre de modo inusitado: realizasse pela modificação
do curso atribuído à história, pelo corte inesperado da periodização.
Os vencidos falam é lembram porque uma outra história é desvendada
no coração daquela que conhecémosJ Mais do que isto: a desmon-
tagem do conhecido se exprime num contradiscurso que nos coloca
diante de uma contra-história, aquela que fora destruída pela "his-
tória"
Este livro é um trabalho histórico no sentido forte dó termo, não
só porque vai em busca do lugar onde a história se produz e se
oculta — à luta de classes — mas também porque a procura desse
lugar permite ultrapassar a diferença empírica dos tempos (o antes
e o depois, o passado, o presente, o futuro) para encontrar a diferença
temporal (àquilo que constitui intrinsecamente o passado em sua di-
ferença diante do presente) . A descoberta da diferença temporal torna
possível compreender como e porque o passado é construído como
dimensão imaginária do presente, graças à abolição de tudo quanto
no passado e no presente é dissimulado pelo exercício real da do-
minação: uma representação "legítima" do passado pela "legitimida-
de" que o presente atribui a si mesmo. No entanto, o essencial dessa
representação do passado pelo ocultamento da luta de classes está
em fornecer, simultaneamente Com a construção imaginária, também
a possibilidade de sua interpretação crítica. O autor nos conduz da
Revolução de 30 para a "revolução de 30".
De onde vem a construção da ReVólução de 30? Da interpreta-
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ção de algo que se passa nos marcos de 1928/1929. Naquele mo-


mento, o discurso político dos diferentes protagonistas da história (os
"revolucionários", o BOC, o PD, e até mesmo o adversário comum,
o PRP) tematiza as mesmas questões: a revolução, a industrialização
e a democratização. Nessa perspectiva, a tentação provocada pela se-
melhança temática é a de homogeneizar o período, lendo os aconte-
cimentos sob as lentes do Mesmo, numa atitude de estilo foucaultiano
dos cortes epistêmicos. De onde vem a crítica de "revolução de 30"?
Da passagem dos dados imediatos forneddos j^lqs jiiscursos à m^
diação das diferenças de classe, isto é, da passagem dos discursos ao
exame á^ práticas políticas. Quando a luta de classes ressurge, a
"mesmice" desaparece. Do lado dos dominantes, há diversidade de
projet^poUtiços^
esboço do possível.
Há, pois, uma comunidade temática que se irradia como diferen-
ça programática, em virtude da diferença do sujeito político destinado
a realizar o projeto histórico. Para a classe dominante, ó sujeito res-
ponsável. j>ela revolução, pela industrialização e pela democracia será
o povo enquanto Nação. Para os dominados, o proletariado urbano e
camponês. A diferença é, portanto, engendrada como diferença de
classe. Torna-se compreensível, então, porque a imagem de "revolu-
ção de 30" prefere privilegiar a oposição tenentes/oligarquia, pois,
dessa maneira, apaga a luta de classes e atribui ao Estado o papel de
condução histórica. Compreende-se, também, porque, nessa represen-
tação, a industrialização passa a ser vista apenas através dos olhos
da classe dominante em sua fração representada pelo CIESP e por
Simonsen, de tal modo que, se a oposição tenentes/oligarquia leva à
imagem do Estado-demiurgo, na ótica do processo de industrializa-
ção, a demiurgia desliza para a indústria como tal. Em suma, quando
se descarta a luta de classes, não faltarão agentes fantasmas para re-
voluções fantasmas.
Nesse sentido, o "uso" do 18 Brumário, feito por De Decca, é
inédito no Brasil. Entre nós, via de regra, usa-se o texto de Marx
exatamente do modo criticado por seu autor. Com efeito, Marx cri-
ticara aqueles que interpretam o golpe de Luis Napoleão como um
retorno do cesarismo, perdendo a realidade inteiramente nova do
acontecimento, prisioneiros da representação "romana" dada pelos
protagonistas. No Brasil, usa-se o 18 Brumário como um modelo
explicativo para o "bonapartismo" do Estado brasileiro pós-30. Muito
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pelo contrário, o que interessa a De Decca, através de Marx, é perce-


ber o modo de desvendamento da história como luta de classes, como
trama de relações sociais e políticas cuja inteligibilidade depende da
compreensão de uma das práticas históricas da cena política: a prá-
tica do proletariado. O 18 Brumário, contradiscurso da representação
dominante do golpe de Luis Napoleão, serve de baliza para o contra-
discurso da representação dominante de "revolução de 30". De Decca
procura o fio de um rendilhado impressionante, cuja trama aparente
é dada pelos temas da revolução, da industrialização e da democra-
cia, mas cuja urdidura real é feita pelo entrelaçamento desses temas
a partir de suas diferenças para as classes sociais em presença.

J)e Decca procura desvendar a história ali onde se engendra,


tendo, portanto, como chão e mira a luta de classes num de seus
momentos determinados, no caso, a revolução burguesa no BrasSTa
partir da práxis proletária. Ão mesmo tempo, procura comjpreender
essa práxis no contexto daquela revolução. Dar voz aos dominados
será,_enjtão, periodizar a história considerando a alternativa possível
e que foi vencida e, simultaneamente, elucidar o sentido da periodi-
zação oficial, de sorte a evidenciar que esta última não é uma ação
teórica e desinteressada, mas um ato de poder. A periodização pro-
duz o lugar da história e, como ele, o da origem legitimada do poder
\ vigente. "Revolução de 30" é um dispositivo ideológico para ocultar
ajuta de classes durante e após esse momento histórico, graças ao
discurso, à prática e à memória do vencedor, elevados à condição de
f memória histórica. Esta, generaliza o passado para toda a sociedade
| brasileira, fornecendo a representação de uma "revolução" una e úni-
i ca. Nesta perspectiva, a demolição do discurso "revolução de 30"
só poderá ser efetuada internamente por um contradiscurso, proferido
ajrartir_daj?lasse que foi exclnída fossa memória na qualidade dd
vencida. Isto exige, antes de mais nada, que se compreenda como o
vencedor periodíza a história, qual a imagem do passado, do presenfe
e do futuro escolhida por ele e, só então,_partindo_da memória dos
vencidos, desfazer aquela periodização. 1928 emerge como um mõ-
« mento histórico perdido porque nele uma outra história se anunciava
como possível.
O trabalho do contradiscurso exige, ainda, a clarificação da ima-
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gem do sujeito histórico escolhido pelo vencedor •— no caso, a Nação


.— cpraojn^anismo ideológico necessário para dissimular a figura
dos que foram vencidos. Ao "fato" (Nação), produzido pela memó-
ria históricaTT preciso contrapor a lembrança de outros sujeitos que
se exprimiam no presente da luta de classes. £ necessário, também,
ao trabalho de desconstrução da memória, desvendar não só o modo
como o vencedor produziu a representação de sua vitória, mas sobre-
tudo, mostrar como a própria prática dos vencidos participou dessa
construção, deixando-a se erguer. Enfim, para que esse trabalho não
fique incompleto, é preciso compreender como o pensamento acadê-
mico produz um discurso pleno chamado "revolução de 30", enten-
dida como revolução democrático-burguesa. Aqui, novamente, .a luta
de classes será a via para desmantelar o discurso do historiador.
Por que (Í928) como baliza de uma revolução democrático-bur-
; guesa tida como projeto histórico viável? Em quê 1928 não é uma
reificação como 1930? Em primeiro lugar, porque, naquele momento,
as propostas políticas das diferentes classes iam nesse rumo e, por
' ele, cada uma delas definia para si„ mesma
ção do possível. A data não é coisa nem idéia; é símbolo de práticas
que se definiam ao definir sua realidade social. A proposta revolucio-
nária aparece nas programas e nas práticas do proletariado, que
espera fazer a revolução democrático-burguesa sob sua própria di-
reção. A estratégia não define apenas a prática operária, mas produz
o movimento de constituição da própria classe por e para essa luta.
A classe não, é coisa nem idéia; é um fazer-se. Em segundo lugar,
porque, em São Paulo, a contradição capital/trabalho se efetua no
âmbito da questão democrática como determinante das relações entre
burguesia e proletariado. Mas, em terceiro lugar, sobretudo porque,
naquele momento^ há um acordo tácito entre os setores que possuem
propostas revolucionárias, acordo queTornece a direção dõjcõntècí-
mentd. Este apareceromo luta contra a oligarquia e pela liderança
de Prestes, se unifica como luta das oposições contra o PRP e se
realiza como projeto político democrático-burguês.
Na parte inicial de seu livro, De Decca distingue a concepção
leninista e a luxemburguista da revolução democrático-burguesa. Para
Rosa, a revolução é burguesa porque se mantém nos marcos do ca-
pitalismo, mas é democrática porque dirigida pelo proletariado, único
a quem a democracia interessa efetivamente. Para Lenin, a revolução
pode ser democrático-burguesa, mesmo sem direção operária, na
18 EDGAR SALVÀDORI DE DECCA

medida em que, nos textos de Lenin, o aspecto mais importante des-


sa revolução não é seu caráter democrático, e sim sua dimensão eco-
nômica, isto é, a industrialização como defesa do mercado interno
nacional contra o imperialismo.
De Decca volta-se, portanto, para algo que merece atenção. Por
um lado, no que tange à definição do processo revolucionário, o pro-
letariado de 28 possui uma concepção luxemburguista enfatizando
. o tema da democracia, porém, por outro, ao deixar o tema da indus-
trialização (e com ele, o do mercado interno enquanto espaço nacio-
nal) determinar o sentido da revolução, passa a uma concepção le-
ninista do processo. Todavia, cremos não ser este o único ponto
importante da análise. Sabemos que à historiografia de esquerda so-
bre "revolução de 30" possui uma interpretação de estilo leninista,
coincidindo, portanto, com o ponto de vista do proletariado naquele
período. No entanto, as análises de Lenin têm como objeto a socie-
dade russa, na qual a burguesia industrial é irrelevante cabendo, se-
gundo eie, aos operários e camponeses realizar a tarefa histórica da
própria classe dominante como etapa na passagem ao capitalismo
jrumo ao socialismo.(Ora, as análises de De Decca revelarão que
, nossa burguesia industrial, em particular a paulista, não é débil, nem
irrelevante para o processo econômico e político; muito pelo con-
trário, traça e efetiva seu projeto de hegemonia. Assim sendo, tanto
o BOC quanto a historiografia, ao interpretar o acontecimento sob a
ótica leninista, chegam a impasses. Entretanto, a interpretação de De
Decca vai mais longe: nó calor da hora, a classe operária e o BOC
chegaram a compteender^ sigMficailó" 4êssa perspectiva e," embora
. mantendo o tema da industrialização vinculado ao da revolução, pu-
deram, graças ao tema da democracia, definir tanto a burguesia agrá-
• ria quanto aindustrial como séüslniSgos, buscando aliança com os
setoresda pequena burguèsiãrO problema enfrentado, portanto, foi
visto de modo claro (donde o luxemburguismo político) porém con-
traditoriamente, isto é, sem descartar a constituição do mercado in-
terno capitalista e a baliza do espaço social como espaço nacional.
Há, pois, entre o BOC e os historiadores uma enorme diferença: o
primeiro constituiu-se a si mesmo como sujeito histórico, os segun-
i dos deram à burguesia e ao Estado esse papel "necessário". E há
i entre o autor deste livro e os historiadores uma grande diferença: o
primeiro é sensível à alternativa trazida pelo BOC e às contradições
fde «eu projeto político, enquanto os segundos incluem o proletariado
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como um protagonista menor (imaturo, desorganizado, passivo) do


processo.
Se é comum a todas as propostas revolucionárias do período a
luta contra a "oligarquia", no entanto, o projeto revolucionário não
é unívoco, sua diferença não decorre dos programas (muito seme-
lhantes), nem das táticas (muito parecidas), mas da definição da
direção política da revolução.
Este aspecto permite uma alteração historiográfica de envergadu-
ra: "embora houvesse possibilidade de várias revoluções a partir de
cada proposta política, o sujeito político dirigente do processo não
era tão indefinido assim, pois aparecia corporificado na figura de
Luis Carlos Prestes e dos "revolucionários". A partir daí, o que passa
a ser definido não são os "tenentes", mas sim os "revolucionários",
: sujeitos políticos por excelência do conjunto de propostas de revo-
lução. Em quê a passagem do termo "tenentes" ao de "revolucioná-
rios" é fundamental para o trabalho do historiador? No fato de que
revela a emergência de um sujeito político novo tornando possível
perceber a singularidade do acontecimento ou sua diferença tempo-
ral, obscurecida pela continuidade dos tempos sugerida pelo termo
"tenentes". O autor submeterá o termo "oligarquia" a um trata-
mento semelhante, o que lhe permitirá falar no "fantasma da oli-
garquia", isto é, na construção e na representação do inimigo elabo-
rada pelos agentes históricos. Essas modificações assinalam, a contra-
pelo, a maneira pela qual a historiografia exorciza o acontecimento
histórico singular usando um léxico que forja continuidades ali onde
o novo está a suceder.

***

Desdobrando os significados dos três temas comuns, o autor pa-


cientemente vai traçando os contornos dos agentes históricos em
constituição. O tema da revolução os faz surgir como opositores, im-
plicando na criação do sujeito dirigente, dos aliados e dos inimigos.
O tema da industrialização os faz surgir como construtores, delinean-
do o real e o possível para cada uma das classes em presença. O
tema da democracia põe em cena a figura dos trabalhadores e com
ela, a da derrota. Nessa medida, o tema da revolução, iluminado
pelos outros dois, pennite compreender, no caminho da industriali-
zação, a hegemonia burguesa e, na trilha estreita da democracia, as
20 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

contradições enfrentadas pelo único sujeito político que sairia der-


rotado, em mais um capítulo da história da luta de classes no Brasil.
Não cabe, no contexto de um prefácio, examinar o trabalho pa-
ciente do autor, o modo como permite ao leitor não se deparar com
"fatos", mas acompanhar um processo de criação histórica das clas-
ses sociais e de suas lutas políticas produzindo o campo do real como
campo da práxis. Gostaríamos, aqui, de mencionar apenas dois mo-
mentos deste livro que nos parecem, entre outros, da maior rele-
vância: a análise do papel do tema da industrialização como instru-
mento criado pela burguesia para inverter o curso dos acontecimentos,
e a análise do tema da democracia para a organização da classe
operária, suas relações com um partido, o BOC, sua aproximação
J
e seu distanciamento dele.
Na altura de 28, escreve o autor, a burguesia industrial define
uma estratégia que a faz passar da "guerra de posição" no interior
do mundo fabril, para a "guerra de movimento" em direção à posse
do aparelho de Estado. Para tanto, precisa elaborar um conjunto de
crenças, valores e princípios válidos para toda a sociedade e, ao
mesmo tempo, neutralizar não apenas seu adversário de classe, mas
ainda as dissensões internas. Para o segundo problema, encontra a
solução na criação do CIESP, para o primeiro, a articulação entre
um discurso da industrialização e um outro, do progresso nacional.
"Definir um discurso sobre o tema da industrialização era também
normalizar o conjunto da burguesia industrial sob a égide de um
projeto político que determinava o lugar da indústria coma a_.outra
face_daeconomia cafeeira e que apontava a dominância da indústria
pela transformação político-econômica do Estado Ç . . . ) O CIESP,
como ação molecular de um setor da burguesia industrial na criação
é distribuição do poder no âmbito da própria vida estatal, redefinia
homogeneamenteumdiscurso sobre o tema da industrialização capaz
de neutralizar as suas oposições internas e de enunciar um projeto
político que, sem traumatismos para a classe dominante, levaria o'
| conjunto da sociedade para as alturas da civilização industrial."
f Assim, a burguesia elabora o tema da industrialização de modo a
garantir a direção política do acontecimento e a eliminação de outros
[projetos contemporâneos ao seu. O projeto, elaborado no CIESP,
entra em circulação através de um partido político, ò PRP. Isto signi-
fica que visa organizar a vida estatal e social de ponta a ponta e
para tanto, suprime ou desqualifica outras alternativas políticas. Para
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 21

que possa dirigir o acontecimento, a burguesia precisa definir o lu-


gar onde a história deve ser produzida. Fazendo da industrializa-
ção o lugar da história, ela afastará o perigo da revolução em sua
face democrática, conservando apenas a face burguesa. Assim, en-
quanto para os opositores ("revolucionários", BOC, PD) o tema da
industrialização vincula-se positivamente ao da revolução para a bur-
guesia industrial essa articulação se encontra invertida, isto é, a in-
dustrialização tem a função de afastar a revolução. Articulando indus-
trialização, racionalização, progresso, paz social, Estado nacional e
civilização, a burguesia destrói o tema da revolução. "A indústria
aparece, portanto, como fator de auto-conservação nacional, desde
que impeça a emergência dos dois maiores perigos do século XX: o
colonialismo e o socialismo."
A produção da hegemonia burguesa se opera através de um "sis-
tema" de inversões político-ideológicas que permita a alteração das
correlações de força, tornando possível não só destruir os opositores,
mas ainda forçar a modificação política do PRP, colocando-o à dis-
posição da fração industrial. A primeira inversão consiste em definir
como sujeito histórico a Nação, fadada âo progresso graças à indús-
tria é não pelos recursos agrários — o tema do progresso nacional
permite estabelecer a transição do agrário ao industrial sem solução
de continuidade, criando a aliança das duas frações da classe. A
segunda inversão consiste em definir a indústria pela racionalização'
e esta como auto-conservação nacional, de sorte a romper com o
risco do colonialismo (representàdo pelo lado agrário) e do socia-
lismo (representado pelo lado proletário). A terceira inversão con-
siste em demonstrar que a racionalização industrial é, por si e em
si mesma, um fator de estabilidade social, eliminando a necessidade
de legislação trabalhista, pois esta é uma faca de dois gumes, poden-
do dar forças ao operariado de uma nação, no momento debilitada,
para ameaçá-la com uma revolução social. A última inversão consis-
te numa síntese das anteriores: lutar contra a industrialização é lutar
contra a Nação. Assim sendo, todos os opositores que se colocarem
contra a indústria não serão opositores políticos reais, mas agentes
de Estados estrangeiros, inimigos do progresso do Brasil. Demons-
trando aos setores agrários e à pequena burguesia o interesse do,
processo de industrialização e denunciando a oposição proletária
como subversiva, a burguesia industrial vai desenhando seu perfil
como vencedor. "Pode-se perceber que as propostas políticas de re-
22 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

volução e o tema da industrialização enunciado pela burguesia indus-


trial como proposta de partido, em -1928, embora se mantivessem
em campos opostos de luta política, apontavam para a mesma dire-
ção. Além dos puros interesses das "pessoas econômicas", o projeto
político a ser cumprido naquele período prenunciava, desde o prin-
cípio, a direção que iria tomar, isto é, a resolução dos problemas pro-
letários dentro dos limites da nação, e neutralização do espectro de
uma revolução socialista. Polarização de discursos tão divergentes,
a luta política aberta em 1928 prenunciava, de ponta a ponta da
sociedade, uma ideologia da àuto-conservação nacional —- com re-
gistros bastante diversificados —• capaz de conter os perigos da revo-
lução das massas populares do campo e da cidade. Nesse sentido,
mesmo as propostas políticas do BOC e de alguns "revolucioná-
rios", baseadas também na idéia de conservação nacional, não en-
contraram, depois de um curto período de luta, qualquer campo de
mobilização, uma vez que colocavam a ênfase da revolução na ação
do proletariado organizado".
O autor demonstra, através do contradiscurso, que as várias cons-
truções da memória histórica sob a expressão "revolução de 30" in-
corporaram o tema e o lugar do Estado, exatamente como estavam
formulados nas propostas das oposições e da burguesia industrial via
CIESP, porém, essa incorporação, paradoxalmente, foi feita negli-
genciando a efetivação de uma das propostas (a da burguesia indus-
trial). Qual a razão dessa negligência? O uso de um esquema con-
ceituai interpretativo fundado nas idéias de fragilidade da burguesia
nacional e. de imaturidade do proletariado. Examinando o discurso
e a prática burguesas, estatais e proletários, Edgar De Decca nos
mostra que não estamos diante de uma burguesia débil, nem diante
de um Estado demiurgo, nem diante de um proletariado imaturo. Es-
tamos diante da luta de. classes e de seu movimento produtor.
Através do CIESP (FIESP em 31), do PRP, do PD e dos
discursos de Roberto Simonsen, o autor nos faz acompanhar a ela-
boração e efetivação do projeto de hegemonia burguesa via indus-
trialização. Esta permite não só neutralizar a revolução enquanto de-
mocracia, mas ainda fornece material para a construção da memória
"revolução de 30". Para demonstrá-lo, o autor retoma cuidadosa-
mente os conceitos de Estado e de sociedade civil no capitalismo,
revelando que o projeto intelectual da nossa burguesia é um projeto
econômico, social, político e cultural por meio do qual visa (e con-
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 23

segue) redefinir a ação do Estado e a organização da sociedade. A


força da nossa burguesia é construída por ela mesma através de seus
organismos de classe. Define o lugar onde a história deve ser produ-
zida e ela mesma cria esse lugar. A racionalização (substrato funda-
mental do tema da industrialização), como caminho para a centrali-
zação e concentração do capital, e a taylorização, como método de
intensificação do trabalho, não pedem a legislação trabalhista para o
Estado: impõem essa legislação, forçando o Estado a outorgá-la.
"Esse emparedamento da classe operária através de legislação traba-
lhista possibilitava à grande indústria a aplicação de seus métodos de
trabalho e aí a conseqüência da racionalização: a disciplina férrea
dentro e fora da fábrica. Portanto, deve-se ter em conta que a racio-
nalização não foi resultado direto da legislação trabalhista, mas sim
uma resposta do capital que, encontrando uma classe operária rigida-
mente organizada pela intervenção das leis sociais, pôde aplicar
com resultados altamente compensadores os métodos de intensifica-
ção do trabalho nas fábricas. "Assim, no instante em que o proleta-
riado está em luta pelas leis sociais, o CIESP demonstra aos poderes
públicos que tal luta é subversiva, ao mesmo tempo em que, por
intermédio do PRP, intervem no legislativo para impor sua própria
legislação social. "Sob esse aspecto, o tema da industrialização se
incorporava à luta de classes como proposta política que exigia o fe-
chamento radical de todas as brechas pelas quais o proletariado pe-
netrava na vida política institucional. Não era apenas a luta contra
as leis sociais o objetivo político final da burguesia industrial: ela
visava também a liqüidação sistemática de toda organização da classe
operária, tanto dos seus sindicatos quanto de seu partido parla-
mentar."
£, portanto, o CIESP, e não o Estado, o agente da luta de
classes. Apenas, evidentemente, recordando que a plena vitória de-
pende da capacidade (que teve) para apoderar-se do aparelho esta-
tal. A análise do discurso de Simonsen deixa clara a força bur-
guesa, sua capacidade para tomar todos os temas e projetos das
oposições e invertê-los ponto por ponto, apresentando essa inversão
como um projeto generalizador não só para a classe dominante, mas
para toda a Nação.. A partir desse projeto, define o que é o Estado
e quem deve dirigi-lo.
Examinando o tema da revolução, De Decca nos mostra a va-
riação dos significados à medida em que passa do PD aos "revolu-
l
24 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

cionários" e, destes, ao BOC. A modificação decorre do papel e do


lugar atribuído à classe operária no processo revolucionário.
O PD busca definir a revolução como "movimento cívico" em
defesa da livre-concorrência e da reorganização do Estado. O "agra-
rismo" não resulta do descontentamento dos cafeicultores paulistas,
mas é um dispositivo ideológico que se define muito mais como
anti-industrialismo, graças ao qual o eixo revolucionário passa por
fora da classe operária, aceita como aliado. A luta contra a oligar-
quia dos magnatas permite construir uma imagem da paz social, na
qual a luta de classes se converte num artificialismo, oriundo da
existência de maus patrões e da má qualidade das leis sociais.
Por seu turno, os "revolucionários" de Prestes definem a revolu-
ção pelo fortalecimento do Estado e apelam para os setores médios,
que superestimam o papel da administração. O fortalecimento do
Estado aparece como condição da defesa do capitalismo nacional
contra o "fascismo" estrangeiro, como defesa do consumidor (classe
média) contra a inflação, comô defesa dos pequenos e médios in-
dustriais contra a anarquia do mercado e o monopólio, e, enfim, como
defesa da classe operária através da legislação trabalhista. Neste
contexto, os "revolucionários" aceitam a classe operária como par-
ceiro da luta.
Se, do lado da burguesia industrial, tratava-se de eliminar o
tema da revolução, do lado das oposições, tratava-se de fazê-la, mas
sob a condição expressa de impedir a direção proletária. Isto signifi-
ca, por um lado, uma "revolução" que não alterasse as regras funda-
mentais do jogo capitalista e, por outro, a necessidade de esvaziar o
projeto operário, impedindo-o de generalizar-se. O papel conferido
aos partidos políticos e à luta parlamentar realiza esses dois desígnios.
O BOC, na qualidade de partido político operário/parlamentar, será
o instrumento visado pelas oposições tornando-se "um aliado de
uma revolução que era definida fora dele, isto é, não lhe cabia reali-
zá-la e sua força política junto a outras tendências do movimento
operário, embora crescente, significava, no final das contas, seu pró-
prio emparedamento". Luta contra o feudalismo e o imperialismo,
suspensão do conflito capital/trabalho para fortalecimento do mer-
cado interno nacional e do Estado nacional, a revolução foi definida
pelos "revolucionários* como revolução pelo alto. Ao participar
dela, o BOC surge como uma contradição viva na medida em que,
através dele, a classe operária toma parte em um processo no qual
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 25

não terá a possibilidade de direção, mas ao mesmo tempo, essa par-


ticipação vai extravasando os limites que lhe haviam sido fixados de
fora, arrastando o BOC para a luta capital/trabalho.
O curioso, porém, é que o BOC, mesmo participando de um
processo definido de modo a roubar-lhe a direção, no entanto; por-
que no tema da revolução defende a direção proletáriai somente ele
será capaz de qualificar as forças em presença e o sentido do proces-
so. Assim, por exemplo, somente com sua entrada na cena política
a luta anti-oligárquica, antes vaga e genérica, ganha sentido concreto.
"A leitura de revolução do BOC possibilitou a qualificação da luta
anti-oligárquica como luta contra o domínio dos grandes proprietá-
rios de terra ( . . . ) . Produziu, como nenhuma outra proposta revo-
lucionária, os "revolucionários" como sujeito político capaz de levar
a cabo a luta contra o domínio dos grandes proprietários. Qualificou
o conjunto da luta política do período de 1928 como uma aliança
de classes para a criação do espaço nacional na etapa do imperialis-
mo. Por último, deu acabamento completo à revolução contra o
fantasma das oligarquias qualificando-a como uma oposição ao feu-
dalismo e ao inimigo estrangeiro, banindo do cenário da luta de
classes, pela "debilidade" da burguesia nacional, o conflito entre o
capital e o trabalho. Nessa perspectiva, a concordância com as ou-
tras propostas de revolução foi completa. Nenhuma delas concebia
a revolução contra o fantasma da oligarquia, como revolução cujo
eixo passasse pela contradição entre capital e trabalho. Por isso
mesmo, a leitura do processo político 'pelo BOC, em 1928, foi subs-
tantiva, pois a direção política do movimento tinha todas as nuances
exigidas pelo campo teórico da revolução democrático-burguesa."
; A primeira contradição do BOC, portanto, faz com que sua con-
cepção da revolução também o encaminhe para o tema da industria-
lização, elaborando um projeto de defesa do mercado interno nacio-
nal, sem avaliar a força real da burguesia para levar sozinha (e con-
tra o proletariado) esse projeto. Aceitando a suspensão provisória
(tática e estratégica) da luta capital/trabalho, o BOC rouba de si
: mesmo a única possibilidade que possuía de dirigir o processo revo-
< lucionário. Assim, definindo-se simultaneamente como dirigente da
revolução e como defensor da industrialização, o BOC se vê de
braços com dois problemas: sua aliança com setores oposicionistas
não-operários força-o a permanecer nos quadros da luta definidos
pela classe dominante; porém, porque está empenhado em unificar
26 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

e liderar o movimento operário, vê-se ininterruptamente forçado a


transgredir as regras do jogo político, em decorrência da prática ope-
, rária que aponta toda a sociedade uma possibilidade revolucionária
muito maior do que a luta anti-oligárquica. Essa transgressão, ao
torná-lo incômodo para os demais parceiros, irá eliminá-lo do jogo
político institucional.
O BOC é lima contradição viva porque sua estratégia, dando con-
teúdo político ao imaginário anti-oligárquico, retirava-lhe a condução
do processo cujo sentido somente ele pudera desvendar e, ao mesmo
tempo, somente por essa direção poderia ser o representante reco-
nhecido pela classe operária e rumar para a movimentação autôno-
ma da classe. Para a classe dominante, o BOC deveria ser o ins-
trumento legal e institucional de neutralização da classe operária,
mas só poderia sê-lo se esta última se considerasse representada por
ele. Ora, esse reconhecimento dependia de que o partido incorporas-
se o projeto proletário, justamente aquele projeto que a classe domi-
nante esperava eliminar através do partido operário. Essa contradi-
ção interna surge de modo fulgurante na análise do tema da de-
mocracia.
O tema democrático, definido pelo PD e pelos "revolucionários",
desemboca numa discussão pautada pelos conceitos liberais, isto é,
nas relações entre o público e o privado ou nas relações entre Estado
e Sociedade Civil. "Em outras palavras, à democracia era entendida
na base de uma dada regulamentação — nos limites dos enunciados
liberais — como expressão de um sujeito universal, o povo, que
definiria os representantes para o exercício de seu governo." A uni-
versalidade do sujeito político torna viável a participação política da
r classe operária, mesmo porque interessa à classe dominante que os
dominados possuam canais institucionais de participação, evitando
as lutas sociais. Servindo para a legalização da prática operária, o
BOC deveria realizar no interior desta última algo semelhante ao
que realizaria o CIESP entre as frações burguesas, isto é, a unifica-
ção da classe pelo combate sistemático às tendências opostas que
dividiam o proletariado.fOra, para ser ò representante legal e legíti-
mo da classe operária, o BOC se depara com sua própria contradi-
ção: sua legalidade se define perante a classe dominiante, mas sua
legitimidade depende da classe operária. Essa dupla representação,
na verdade uma contradição, só poderia ser resolvida se, em nome da
legitimidade, o BOC transgredisse os limites da legalidade, pu vice^
20
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 18

versa. Bastou, entre 28 e 29, que optasse pela primeira solução para
que fosse politicamente demolido e historicamente excluído.
Se o autor nos mostra a força da burguesia, que soube neutralizar
a democracia por meio da industrialização, ele nos mostra também o
problema da organização do proletariado brasileiro no interior do
sistema capitalista. Discutindo, por um lado, o jogo das forças que
tornaram viável a emergência de um partido dos trabalhadores e,
por outro, as dificuldades desse partido para legitimar-se diante das
demais tendências do movimento operário,\lDe Decca não nos mos-
tra a desorganização da classe operária Ttida pela historiografia
como "causa" da derrota política), mas, muito pelo contrário, aponta
o insucesso político de uma determinada forma de organização do
proletariado. É a forma de organização escolhida que determina, por
si mesma, os limites da práxis proletária^'Longe de apelar para o
conceito metafísico de "amadurecimento "(ias condições objetivas",
o autor nos coloca diante do aborto de um projeto histórico pela
interpretação dada pelo BOC à dinâmica da luta de classes.
No entanto, mais importante, este livro nos faz descobrir, para
além da questão do insucesso político, um aspecto fundamental que
foi apagado pela memória histórica: somente através da prática do
BOC e das demais tendências operárias pode-se compreender os li-
mites históricos das propostas democráticas dos "revolucionários",
do PD e do PRP. "No desenvolvimento dessa correlação de forças,
a classe operária jogou a sorte da questão democrática, pois sua
arregimentação apontou uma direção que obrigou o recuo de todas
as outras propostas políticas. Nesse complexo jogo, governo e opo-
sição, aceitando a luta parlamentar do BOC, emparedaram sua re-
volução ao mesmo tempo que lhe abriram o caminho para a colo-
cação do problema da democracia para muito além dos limites visua-
lizados pelos diversos agentes sociais. Essa foi a questão que desmo-
ronou, ao mesmo tempo, todas as estratégias do governo è da opo-
sição, explicitando definitivamente o caráter dessas propostas políti-
cas. Isto é, não só não podiam permitir, na luta política, a possibi-
lidade de uma revolução socialista — a revolução democrático-bur-
guesa era assim entendida na ótica de muitos dos agentes sociais —
como também não suportaram, senão por um curto período, a pre-
sença da classe operária, definindo a questão da democracia no
próprio lugar da política instituída pelo Estado". Percebemos, enfim,
que "revolução de 30" é mais um capítulo da história da repressão
r
28 EDGAR SALVADORI DE DECCA

neste país.
E disto, amplos setores da classe operária o souberam durante o
acontecimento. Porém, saibam algo mais: "ponhamos os pauzinhos
nos seus lugares, escrevia O Combate em novembro de 28, e con-
vençamo-nos eu e o BOC de que o operariado pode não ter cons-
ciência de classe, mas sabe fazer greve, pedir aumentos de salários
e diminuição das horas de trabalho. Conclue-se, portanto, que o pro-
letariado paulistano, esse proletariado que apesar de tudo sabe ler e
lê de fato os jornais, pode não ter consciência de classe, mas talvez,
mais do que eu e o Bloco, tem muita consciência do que faz e do
que f e z . . . "
Aurora e crepúsculo, 1928 dá o que pensar.

Marilena de Souza Chaui.


PARTE I

A FALÊNCIA
DAS INTERPRETAÇÕES
21 EDGAR SALVADO RI DE DECCA

exercício de dominação se produz dissimulando sua própria dimen-


são histórica. No campo simbólico de revolução de trinta, elevada à
categoria de "fato", reside o momento mesmo da ideologia que dis-
simula no exercício da dominação de classes o processo histórico
que efetivou os vencedores da luta política e suprimiu nos discursos
a experiência histórica dos dominados.
II

A DISSOLUÇÃO DA MEMÓRIA HISTÓRICA

A revolução do vencedor *
Ao analisar a estratégia dos discursos de Marx em torno dè 1848
e 1852, procurei sugerir que a leitura da história, a partir da visibi-
lidade da transformação revolucionária do proletariado, permitia ao
autor não só definir o lugar da história — o lugar da luta de classes
— como qualificar esse lugar como revolução burguesa. Em outras
palavras, Marx, principalmente no 18 Brumário de Luis Bonaparte,
sob a ótica da classe operária, pôde ler a história da dominação
burguesa que em seu desenrolar ocultou a sua instituição, substi-
tuindo-a por idéias-conceitos, como o cesarismoe quejandos. Está
operação, além de ler a história da burguesia que ela mesma ocultou
no exercício de dominação de classes, incidia criticamente sobre a
historiografia burguesa que preenchia com conceitos vazios a própria
visão da luta das classes dominantes. Ora, se a crítica de Marx inci-
dia sobre essa partilha — que é da mesma ordem daquela verificada
entre Ideologia e Ciência —, concordaria aqui com Marilena Chaui
que indica a possibilidade de um contradiscurso da ideologia, capaz

* Pretendo aqui apenas enfatizar algumas questões já plenamente desenvol-


vidas no artigo elaborado em co-autoria com Carlos Alberto Vezentini. A Re-
volução do Vencedor, op. cit., p. 60-71.
72 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

de fazer o discurso ideológico se auto-destruir pelas suas contradi-


ções. Tal me parece ser a estratégia lógica do texto do 18 Brumário
de Luis Bonaparte, que procura ultrapassar a dimensão simbólica do
aparecer das classes sociais, caminhando para o desvendamento da
ocultação presente nos conflitos e na dominação de classe, tendo
como referência, substancialmente, a práxis proletária.
Fazer, portanto, com que o discurso sobre revolução de trinta se
auto-destrua não apenas como momento de exercício e prática do
poder, mas também como discurso da historiografia, exige funda-
mentalmente um contra-discurso que assuma a ótica e a dimensão
simbólica de uma outra classe social, excluída da memória histórica
produzida pelo exercício de dominação nos anos trinta.
Eis o discurso do poder produzindo a revolução de trinta como
seu exercício efetivo de prática política:

"O Brasil atravessa hoje uma fase extraordinariamente delicada.


Marca-se a transição entre duas etapas de sua história política e,
se nos espíritos que vêem os fenômenos sociais com ponderação
e clarividência, não é permitido supor que a um período de polí-
tica oligárquica como a que tivemos até 1930, suceda, imediata-
mente, como nas mutações de cenografia, um outro de plena inte-
gração do país no regime republicano, entretanto, é evidente que,
despertada do sono cataléptico que dormira, ao embalo dos can-
tos de sereia dos reguletes que caíram em 1930, a Nação vê re-
nascer a sua consciência política e olha o futuro, com ânimo de
caminhar pelos seus próprios passos, sem a tutela dos falsos guias
que a conduziram ao desprestígio político e à ruína econômica.
A Revolução de 1930 criou, evidentemente, uma nova mentalida-
de nacional. Marcou o início de uma nova etapa de consciência
política ( . . . ) 1

Deixando de lado as condições específicas em que foi produzido


esse discurso do exercício do poder, o que de mais significativo existe
nele é o fato de periodizar a história do Brasil em duas etapas, sendo
0 divisor de águas uma revolução, a revolução de 1930. Nesse esfor-
ço de periodização, o discurso memoriza todo um passado anterior
à revolução — como o período da república oligárquica — definindo
desde o início o campo sobre o qual a revolução de trinta vence e se

1 Administração do Gal. Waldomiro Castilho de Lima no Governo de São


Pauló como Interventor Federal no Estado, SP, Imprensa Oficial do Estado de
S. Paulo, 20/7/33.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 73

efetiva. Há um lugar a partir do qual deve-se ler a história — este é


o passado memorizado como o domínio das oligarquias — e a partii
daí, a revolução da história se dá através da idéia-chave de revolução
de trinta. Estabelecem-se as oposições entre o ante e o pós-revolu-
cionário e a revolução cria um sujeito capaz de "caminhar pelos seus
próprios passos", isto é, a Nação. Com isso, o passado memorizado
como domínio das oligarquias define-se pela ausência da Nação que
dorme sob o "canto de sereias dos reguletes" e o seu despertar é
datado por uma revolução: trinta.
Esse discurso como exercício efetivo do poder político, além de
periodizar a história, define o lugar onde ela deve ser lida — o pas-
sado memorizado como domínio das oligarquias e o presente como
uma revolução sem prazo para acabar. Como um momento, entre
tantos outros, do exercício de dominação, a produção da idéia de
revolução de trinta é a produção também de uma fala definidora do
lugar da história, comportando aí os agentes sociais que obstroem o
futuro da Nação, e uma revolução capaz de transformar essa nação
num sujeito com uma nova consciência. Momento em que o poder
busca sua legitimação, a idéia de revolução de trinta refaz a história
no fazer da política e tal movimento de memorização como atividade,
por excelência, da dominação de classes define um lugar no qual
toda a história se reduz. Como uma memória histórica a revolução
de trinta legitima o exercício do poder ao definir o campo simbólico
através do qual todo o social deve se homogeneizar.
Essa memorização do passado, atividade da idéia de revolução de
trinta, no momento do exercício de dominação, define também aquilo
que deve ser exorcizado pela revolução e tudo que transcorreu na
história antes de trinta consubstancia-se num não-ser da Nação.
A revolução é apresentada como unitária e monolítica e eis a ló-
gica do exercício de dominação — divide a história, memorizando-a,
e a historiografia, através de enfoques diversos, assume de ponta a
ponta as oposições constituídas no interior desse campo simbólico.
A memória histórica da revolução de trinta pesa na produção
riográfica já que ela se torna o eixo, por excelência, das oj
entre: Nação-objeto x Nação-sujeito, economia agro-exportâ
industrialização/mercado interno, inorganicidade das classes-sò
Estado-criador das classes, liberalismo x autoritarismo,
campo simbólico constituído no exercício de dominação de
a idéia de revolução de trinta transforma-se num marco
• WÈÈ
74 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

da história do Brasil e a historiografia em geral e, assumindo de pon-


ta a ponta essa memória, define-a ainda como um "fato" carente de
uma melhor explicação.
A revolução de trinta, portanto, representa a idéia capaz de cons-
tituir a Nação-sujeito, legitimando ao mesmo tempo o poder político
que encarna essa nova consciência. Não há dúvida quanto à neces-
sidade do exercício do poder enfatizar o fato de ter-se verificado uma
revolução — unitária e homogênea —, pois esta é a categoria funda-
mental de seu discurso de legitimação. A Nação-sujeito supõe a ocor-
rência de uma revolução de trinta e é justamente essa categoria o fun-
damento de um discurso que ao mesmo tempo; que refaz a história
memorizando-a, é o fazer, por excelência, da política, sob a ótica do
poder.
Entretanto, estaríamos longe de alcançar a memória histórica da
revolução de trinta se a supuséssemos como pura maquinação do
poder político. Pelo contrário, a memória histórica de revolução de
trinta supõe um movimento de memorização no interior de uma luta
de classes, que, ao produzir progressivamente um exercício de domi-
nação, oculta no seu desenrolar o próprio percurso percorrido pelas
classes em conflito. Em outras palavras, pelo fato das classes apare-
cerem no social através de suas dimensões simbólicas, os conflitos
subsumem progressivamente as imagens produzidas por essas clas-
ses, até o momento em que se torna possível uma idéia a partir da
qual o conjunto do social se identifique. Tal é o movimento de memo-
rização de um processo político que, no final, substantiva-se na fala
e no exercício do poder através da idéia de revolução de trinta, ocul-
tando nessa dominação toda a dimensão histórica do conflito de
classes. A revolução de trinta pertence, portanto, ao movimento da
ideologia, uma vez que tal idéia, resultado da luta de classes, é tam-
bém o seu ocultamento e a dimensão simbólica mais extensa do exer-
cício de dominação em torno dos anos trinta.
Ora, se esse movimento de memorização consubstancia no exer-
cício de dominação a idéia de revolução de trinta — unitária e ho-
mogênea — e se admitirmos o caráter estratégico dessa categoria no
nível do discurso do poder, como elemento capaz de ocultar a pró-
pria dimensão histórica do conflito de classes, o termo revolução re-
presenta uma estratégia da dominação para apagar outras propostas
políticas que se expressaram no interior da luta de classes. Em outras
palavras, se o movimento de memorização faz parte da própria prá-
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 75

xis social, isto é, faz parte do aparecer das classes sociais e do exer-
cício efetivo de dominação que oculta a divisão social; então, no
período em torno de trinta, a memória histórica do vencedor da luta
política não poderia ter prescindido da categoria de revolução para
alcançar sua legitimação no conjunto do social — e daí a idéia de
revolução. Porque o aparecer das classes sociais constitui um campo
simbólico no qual o termo "revolução" qualificava o lugar em que
os homens deveriam produzir a história — e esse lugar era criado de
várias maneiras, a partir de propostas diferentes de revolução — e o
vencedor da luta política em torno de trinta não pôde se expressar
a não ser no fato de ter feito uma revolução — unitária e monolítica
— e tal idéia, suprimindo as propostas políticas de outras classes e
frações de classe, refaz na memória o próprio lugar da história, legi-
timando ao mesmo tempo o poder político do vencedor.3

A luta de classes como o lugar da história

Assumir a ocorrência da luta de classes em torno de trinta, como


já foi visto, não significa buscá-la na revolução de trinta, pois é jus-
tamente nessa memória histórica onde se verifica seu ocultamento.
Por outro lado, como memória histórica, 3 revolução é a produção
simbólica de um processo histórico produzido por classes sociais em
conflito e, nesse sentido, representa um momento significativo do
engendramento de um efetivo sistema de dominação. Como discurso
do exercício de poder, revolução de trinta oculta o percurso das clas-
ses sociais em conflito não apenas anulando a existência de determi-
nados agentes, mas, principalmente, definindo enfaticamente o lugar
da história para todos os agentes sociais. Como já foi dito, o termo
revolução realiza essa operação no nível do discurso do poder ao
ocultar o processo da luta de classes e ao generalizar para o conjunto

2 Não deixa de ser irônico o (ato de que, antes de 1930, o termo "revolução",
definido a partir de inúmeros agentes políticos, apontasse os vários lugares onde
a história deveria ser produzida. Essa produção de vários registros do "
revolução foi justamente o que a memória histórica da Revolução de
suprimiu, anulando assim o próprio movimento da história. A historio"
fez menos do que isso ao tornar a idéia de revolução um "fato" C"4
maior entendimento, com a diferença de que ao poder político dos
não restava outra alternativa a não ser a de suprimir, inclusive
as propostas políticas de seus opositores. -
76 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

do social a própria origem desse poder, a partir de um marco válido


para todos — a revolução de trinta. Assim como o fazer da política
sob a ótica do poder, a idéia de revolução de trinta refaz a história,
memorizando-a, e para isso periodiza definitivamente a história do
Brasil como se tudo acabasse e se criasse a partir de um único mar-
co. Nessa memória histórica sobrelevam-se apenas alguns agentes
sociais ao passo que outros são de uma vez por todas suprimidos, não
se tornando estranho, tanto para a ótica do poder constituído nos
anos trinta como para a historiografia, a inexistência da ação política
dos dominados durante esse período histórico.
Periodizar a história, portanto, representa um momento importan-
te do exercício do poder, pois aí ele encontra sua legitimidade elabo-
rando a idéia de revolução de trinta, capaz de homogeneizar para
todo o social, definitivamente, a origem e o lugar absoluto da história.
Ora, se do ponto de vista do exercício de dominação, periodizar
significa determinar completamente a origem do poder e o lugar abso-
luto da história, ocultando, nessa medida a própria dimensão históri-
ca da constituição do social, não iríamos muito longe se procurásse-
mos contrapor à lógica do.poder uma outra periodização que acabas-
se por fixar também, definitivamente, os fatos. Contrapor à memória
histórica da revolução de trinta uma interpretação capaz de recupe-
rar o processo político que essa dimensão simbólica do discurso do
poder ocultou, não passa por uma outra definição de um lugar absolu-
to a partir do qual toda a história se revela, por exemplo, a determi-
nação dos efeitos da infra-estrutura econômica. Tal operação analí-
tica presente nos textos historiográficos acaba por contrapor à revo-
lução de trinta um outro lugar definitivo a partir do qual a história
se revela, possibilitando nessa medida a determinação completa dos
fatos. Mais uma vez a noção de objetividade ressurge nos horizontes
da interpretação histórica, realizando uma operação bastante similar
àquela do exercício do poder — definindo de uma vez por todas a
origem dos "fatos" e da história.
Às pretensões "realistas" do poder contrapõem-se outras não me-
nos "realistas", relegando ao esquecimento a questão de que o en-
gendramento do social se dá junto com suas expressões pensadas e
que essa dimensão simbólica é própria do aparecer das classes so-
ciais. Muito recentemente Marilena Chaui, analisando os textos dos
integralistas e também a historiografia sobre o período de trinta, cha-
ma a atenção daqueles que pretenderam alcançar definitivamente os
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 77

"fatos":

"O problema posto por essa forma interpretativa concerne ao es-


tatuto conferido à realidade histórica que serve de baliza para a
avaliação dos discursos, pois tal realidade (quando passada) é
textual também. De maneira alguma pretendo dizer com isto que
o confronto dos textos autoritários com os demais documentos
seria arbitrário só porque a realidade histórica possui também a
mesma dimensão discursiva que o objeto de investigação. Pelo
contrário, simplesmente, procuro assinalar que o confronto não
pode ter pretensões "realistas", isto é, não pode pretender um
encontro definitivo com os fatos que serviriam de parâmetro para
a interpretação e seu valor. Provavelmente, para os apontamen-
tos que aqui seguem será mais enriquecedor não tomar como cri-
tério a adequação ou inadequação entre o texto e o real, mas a
representação do real veiculada pelo texto e, então interpretar as
diferenças e conflitos entre os documentos segundo as represen-
tações que oferecem do. social, do político e da história e, conse-
qüentemente, segundo os destinatários que elegem." 3

Portanto, se a memória histórica da revolução de trinta fixou de


uma vez por todas a origem dos fatos e o lugar da história — isto
é, o real — e se esta atividade de periodização constitui-se num mo-
mento privilegiado do exercício de dominação, cabe ao discurso que
se pretende crítico destruir essa dimensão fantasmagórica do exercício
do poder, assumindo que esta fala foi produzida no interior do pró-
prio conflito de classes através da interação dos discursos que supor-
taram as práticas sociais.
Nesse sentido, quando enfatizei a dimensão estratégica do termo
revolução no interior da memória histórica de revolução de trinta,
pretendi sugerir uma dupla aproximação ao período em torno de
trinta. Primeiramente, assumindo que os discursos que suportaram
as práticas sociais, nesse período, definiam sob formas diferentes o
lugar onde a história deveria ser produzida — e na maioria deles es-
se lugar consubstanciava-se numa revolução — e, em segundo, en-
fatizando que essa multiplicidade de discursos que suportaram os coa*
flitos de classe continham uma fala de revolução através da qual
trava mais uma vez na história a prática política dos domiáSlS?/^
Entretanto, existe ainda uma outra questão colocada pelo texto de

3 Chauí, Marilena. "Apontamentos para uma crítica da Ação


sileira". In: Ideologia e Mobilização Popular. São Paulo, C E D E C ^ g j » a E M |

j
78 EDGAR SALVADORI DE DECCA

Marilena Chaui, que se refere ao estatuto conferido à "realidade his-


tórica". Normalmente, seja trabalhando com "fatos", seja operando
com os discursos produzidos no passado, a historiografia tende a fi-
xar anteriormente o lugar privilegiado a partir do qual eles são ela-
borados. Assim, por exemplo, a anterioridade da revolução de trin-
ta, entendida como um "fato", está na "realidade histórica" que ora
se define como economia agro-exportadora, ora como Primeira Re-
pública e os discursos produzidos pelos agentes sociais, via de regra,
são remetidos a este suposto real, avaliando-se a partir daí a adequa-
ção ou não dos mesmos. Por isso mesmo, ao enfatizar a estratégia de
análise que toma os diversos discursos sobre a revolução como mo-
mento privilegiado para se apreender a produção das relações histó-
ricas em torno de trinta, não pretendo remetê-las todos a uma "rea-
lidade histórica" que antecede esses discursos — como o lugar ver-
dadeiro do real — seja ela definida por capitalismo dependente, eco-
nomia subdesenvolvida agro-exportadora, sociedade estamental, etc.,
dimensão estrutural sobre a qual movem-se inadvertidamente as clas-
ses sociais. Pelo contrário, o que está em questão é o engendramento
das relações históricas a partir da multiplicidade de representações,
que as classes sociais elaboram na luta, produzindo aí um sentido na
história que não está definido a partir de nenhuma "realidade" pre-
existente.
Nesse sentido, o ponto de partida da análise é o da indetermina-
ção, posto que aí engendram-se as relações históricas, aí há processo
histórico e as classes sociais aparecem produzindo e sendo produzi-
das na própria instituição do social. Negligenciar esse problema signi-
fica perder também a própria dimensão da história.4 Como entender,

4 A tomada do ponto de partida do conhecimento como uma atividade de


determinação completa e, a partir daí as análises que começam definindo o
"pano de fundo" ou a "realidade histórica" que antecede a prática dos agentes
sociais merece, novamente, a crítica de Marilena Chaui: "Percebe-se aí uma
transfiguração abstrata de duas categorias, postas pela dialética, quais sejam,
a de desenvolvido (que não é completamente determinado e sim o movimento
completo de reposição interna dos pressupostos que eram externos ao processo
em seu início) e a de não-desenvolvido (que não é o parcialmente determinado,
mas o indeterminado, no sentido de que o processo ainda não repõe interna-
mente seus pressupostos externos). A passagem do que sucede no real para o
que sucede no trabalho de conhecimento, ao se realizar sob a égide da deter-
minação completa, leva a anular a indeterminação do ponto de partida. Assim
em lugar de assumirmos a indeterminação inicial pela qual haverá processo.

i
79

portanto, a produção das relações históricas para além da idéia de


revolução de trinta, a qual, resultante do processo da luta de classes
é também seu ocultamento? Um primeiro passo, como já foi dito,
deve ser aquele capaz de arrancar do silêncio da idéia de revolução
de trinta, os vários registros de revolução como dimensão simbólica
na qual os diversos agentes sociais acreditaram estar produzindo a
história em torno de trinta.
Para tanto, torna-se necessário periodizar a história para além do
marco da revolução de trinta. Contudo, assumir a existência de pro-
postas políticas de revolução não basta para definir um processo re-
volucionário que a memória de revolução de trinta ocultou. Não é
suficiente também, contabilizar o conjunto de propostas de revolução
sem alcançar a eficácia que as mesmas apresentaram no desenrolar
do prooesso histórico. Por isso, admitir a existência de várias propos-
tas de revolução em torno de trinta, significa também acompanhar
a direção dos acontecimentos a partir do embate dessas propostas
entre si e com outras propostas políticas que se definiram muito dis-
tantes da categoria de revolução. Sem dúvida alguma, propostas
diferentes e divergentes da revolução produziram um conflito de clas-
ses no qual essas últimas definiam sob múltiplas perspectivas o lugar
de produção da própria história. Contudo, não se pode esquecer que
a própria direção dos acontecimentos naquele período relativizava a
eficácia de algumas propostas e intensificava a de outras.
Sob essa perspectiva, pode-se definir um processo revolucionário
a partir de 1928 no Brasil, não apenas e porque a prática política
das classes sociais orientou-se sob vários registros de revolução — e
a partir daí os vários lugares onde a história se produzia —, mas
sim devido à possibilidade de existência de uma direção dos aconte-
cimentos cujo suporte, englobando aquilo que as propostas políticas
tinham de mais geral, estava substantivado numa categoria de revo-
lução — a revolução democrático-burguesa.
• • '--JjÊÈÊ
supomos que no ponto de partida do caminho histórico e do trabalho teóricô
tudo já está determinado, restando-nos apenas a tarefa de articular os dados
esparsos para recuperar o caráter plenamente determinado da situação. Poréii^
justamente porque no ponio de partida há indeterminação e a ocultamos?|j|pt-
ças aos resultados determinados obtidos no ponto de chegada, a consequêj|j|&^
é inevitável: "determinamos" o indeterminado. Como o fazemos? Apelanãí
para as idéias de vazio, atraso, tardio, desigual, imaturo, i m p o r U d d ^ . a Ê ^ ^ i
80 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

Passo agora a delimitar as propostas políticas que a partir de 1928


imprimiram um cunho de revolução democrático-burguesa à própria
direção política de luta de classes. Entretanto, gostaria de fazer ini-
cialmente três observações. A primeira sugerindo o encontro das
discussões anteriores sobre a revolução democrático-burguesa com o
problema da direção política da luta de classes, no Brasil, a partir
de 1928. A partir daí, define-se a revolução democrático-burguesa
como um lugar privilegiado onde a história deveria ser produzida,
sob o ângulo do partido da classe operária. Tal é a leitura que o
partido operário fez da história, a partir de 1928, e através dessa
estratégia delimitou também o seu programa de lutas e suas alianças.
Nessa perspectiva, o partido operário não apenas qualifica a sua ação
como também os outros agentes sociais, definindo enfim para a clas-
se o próprio real. Portanto, o que está em jogo é uma estratégia de
luta da classe operária, definida como revolução democrático-bur-
guesa e sua existência real não pode ser contabilizada por uma supos-
ta adequação entre essa proposta política e uma dada "realidade his-
tórica" preexistente explicitada no nosso trabalho de conhecimento,
mas sim pela capacidade dessa proposta de revolução dirigir politi-
camente o encaminhamento da luta de classes. Enfim, o que interes-
sa na análise do período a partir de 1928, é observar o que a pro-
posta política de revolução democrático-burguesa produziu na histó-
ria e o que ela jogou em termos da prática política dos dominados.5
Em segundo lugar, torna-se necessário justificar desde já a análise
do processo político a partir de São Paulo. Tal privilégio de análise
justifica-se porque acredito ser de natureza ideológica a transfigura-
ção da luta de classes em lutas regionais; porque, em 1928, existia
em São Paulo uma classe operária capaz de carregar uma proposta
política de revolução democrático-burguesa; e porque em São Pau!o
foi jogada intensamente a questão democrática no âmbito do capital
e do trabalho, isto é, entre o proletariado e a burguesia industrial.

5 Novamente, reitero aqui, a possibilidade de uma leitura da revolução bur-


guesa capaz de trazer à tona o eco das experiências da luta da classe operária.
O que é mais importante na análise: a teoria da revolução burguesa do partido
do proletariado, embora tenha se enquadrado na perspectiva leninista — a ne-
cessidade da revolução agrária — acabou colocando no âmbito da direção po-
lítica dos acontecimentos aquelas teses de Rosa Luxemburgo que definiram
revolução burguesa como conquista dos direitos sociais e políticos do prole-
tariado.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 81

Em terceiro lugar, por que 1928 e não um outro momento? Pri-


meiramente, porque nesse período todos os grupos políticos que se
colocaram na perspectiva da revolução — com propostas divergen-
tes e diferentes — apareceram unidos em torno de um acordo tácito
capaz de imprimir uma direção política à luta de classes através de
dois delineamentos básicos: a luta contra o fantasma da oligarquia e
a aceitação de Luis Carlos Prestes na liderança do movimento de
oposição. Tal conjugação de forças políticas contra o governo do
Partido Republicano Paulista, apresentou-se em 1928, com uma di-
reção democrático-burguesa, mesmo sem o efetivo controle do pro-
cesso político por parte do partido da classe operária, o Bloco Ope-
rário e Camponês. Em segundo lugar, porque a partir de 1928, o
Bloco Operário e Camponês fundou comitês em várias partes do Bra-
sil e um deles foi o de São Paulo, cujos objetivos iniciais visavam a
organização sindical dos operários têxteis (submetidos aos golpes
dos industriais que alardeavam uma "crise" no setor têxtil), a arre-
gimentação em prol das leis sociais e, por último, a luta parlamentar.
Em terceiro lugar, porque em 1928 estava criado o Centro de Indús-
trias do Estado de São Paulo, organismo estratégico de arregimenta-
ção política dos industriais e instituição niveladora dos discursos des-
sa fração de classe que não só a organizou para os confrontos com o
operariado como submeteu a maioria dos industriais aos ditames do
grande capital.
No período de 1928 existiam em São Paulo pelo menos três pro-
postas de revolução vindas de agrupamentos políticos diferentes: o
Partido Democrático, os "tenentes" e o Bloco Operário e Camponês.
Para qualquer desses setores políticos a categoria revolução, com
maior ou menor intensidade, substantivava as suas propostas e definia
para o conjunto do social, lugares diferentes para a criação da his-
tória, ou melhor, do futuro almejado. Embora todos esses agrupamen-
tos políticos se colocassem numa oposição ao Partido Republicano
Paulista, isto não significa que este último representasse necessaria-
mente o alvo das propostas de revolução. Em outras palavras, o PRP,
embora se opusesse ao conjunto político formado pelo PD, "te
tes" BOC, não estava ausente na questão da revolução e o
nal O Correio Paulistano, em 1928, não deixou de fazer 4:
do termo. &
Havia, portanto, lugares diferentes definidos pelo termo
ção e a possibilidade de se encontrar um acordo entre
82 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

propostas políticas; e aí o PRP ficava de fora, dava-se primeiramente


na explicitação de um inimigo comum, o fantasma da oligarquia, e
em seguida na polarização da liderança de Luis Carlos Prestes. O
termo revolução, portanto, criava um campo de significações e nele
havia possibilidade de acordo entre as várias propostas políticas. Co-
mo, entretanto, delinear essas propostas?
Uma das maiores dificuldades coloca-se desde o início, a partir
da própria bibliografia. Vou procurar discutir, primeiramente, a pro-
posta política dos "tenentes" tomando como referência o próprio
debate no interior da historiografia. Os "tenentes", como objeto de
estudo de inúmeros trabalhos, tornaram-se o elemento privilegiado
das interpretações da revolução de trinta e, sem dúvida, apenas a
partir desta última, o tema do tenentismo ganha legitimidade. Em
outras palavras, a historiografia, aceitando a memória histórica de
revolução de trinta, que define fundamentalmente os agentes da luta
política eliminando outros, absorve os temas daí advindos e parsa a
estudá-los à luz das oposições criadas por aquele discurso do poder.
Nesse sentido, a oposição "tenentes" x oligarquia, eixo privilegiado da
memória de revolução de trinta, passa a ser definido como o lugar, por
excelência, de leitura do processo histórico em curso nos anos vinte.
Se por um lado, o privilégio dessa oposição tenentes x oligarquia
dá-se na memória histórica de revolução de trinta, por outro, essa
dimensão simbólica da luta de classes é produzida no interior dessa
luta e representa, em última instância, o seu ocultam;nto. Enfim, fan-
tasma não é apenas o inimigo da revolução de trinta, isto é, as oli-
garquias; são fantasmas também os agentes políticos qualificados por
essa memória histórica — e "tenentes" é um deles.
Para não citar o conjunto de trabalhos sobre o assunto, repro-
duzo aqui o balanço de Maria Cecília Spina Forjaz. Nele, torna-se
claro como a historiografia em geral assumiu de ponta a ponta o te-
ma do tenentismo, sem questionar uma única vez qual a construção
ideológica que produz e sustenta tal tema, e os impasses da interpe-
lação histórica oscilam entre as hipóteses que vêem os "tenentes"
como representantes dos novos setores médios urbanos ou como seg-
mento da burocracia estatal, que por suas funções, enquanto milita-
res, possui um grau de autonomia com relação às classes sociais.

"No que se refere especificamente à análise do tenentismo sobres-


sai a obra de Boris Fausto, que tenta redimensionar a análise do
83

comportamento político das camadas médias no processo de crise


da Primeira República e a suposta representatividade desse setor
através dos tenentes.
A atuação política do tenentismo deve ser referida não só a uma
determinação de classe; mas à sua função no aparelho de Estado,
enquanto membros das Forças Armadas, instituição que ressocia-
liza os sei-, membros e que possui uma autonomia relativa em
face da sociedade civil ( . . . ) .
Essas concepções de Bons Fausto são endossadas também por
outros estudiosos da República Velha, como Maria do Carmo
Campello de Souza e Decio de Azevedo Marques ( . . . ) . Diante
dessa polêmica a hipótese deste trabalho é a de que: o compor-
tamento político-ideológico dos tenentes só pode ser explicado
pela conjugação de duas dimensões: sua situação institucional co-
mo membros do aparelho militar do Estado e sua composição
social como membros das camadas médias urbanas. A superposi-
ção dessas duas "situações" teria produzido o tenentismo." 8

Sem entrar no mérito dessas interposições, que via de regra sobre-


levam o papel do Estado como único agente histórico no Brasil, já
que as classes fundamentais da burguesia industrial e proletariado não
conseguem formular um projeto universalizante para a sociedade —
e aí o tenentismo pode ser explicado a partir de sua "autonomia"
face às classes sociais —, é surpreendente como a historiografia toma
ao pé da letra as oposições dos agentes políticos definidos a partir da
memória de revolução de trinta. Assim, o que produz o tenentismo
não é o campo simbólico instituído no próprio conflito de classes e
que desemboca na memória histórica de revolução de trinta, mas sim
variáveis estruturais de dependência de classes e variáveis superes-
truturais de autonomia do aparelho do Estado face à "sociedade
civil".7
Momentos atrás, enfatizei que o conjunto das propostas políticas
em 1928 se definia a partir de várias estratégias de revolução. Além
disso, havia ainda um lugar em que todas essas propostas políticas
se encontravam: a luta contra o fantasma da oligarquia. Nesse sen-
v*s M t

6 Forjaz, Maria Cecília Spina. Tenentismo e Aliança Liberal (1927-1930). São


Paulo, Polis, 1978, p. 19-20 (grifo nosso).
7 A propósito da tese que identifica as forças armadas, particularmeiMe^B
exército, como promotoras da industrialização, cuja raiz é o tema do tenentfe-
mo, confronte-se a avaliação crítica de ítalo A. Tronca — Agentes dá Tnaujs-
trialização na República: a prática política dos militares (1930-1942},rSão^Èpp

í m
USP, 1976 (mimeo). >ã .. J g j j ^ ^ ^ H

-
84 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

tido, o caráter universalizante dessas propostas situou-se justamente


no lugar onde se podia definir um inimigo comum a todas elas e a
liquidação deste passava necessariamente pelo registro da revolução.
Mesmo considerando que a polarização das propostas políticas na
luta de classes permitia inúmeros registros para a revolução, não res-
ta dúvida que existia um eixo comum a todas elas capaz de definir
ao mesmo tempo o inimigo comum e produzir o sujeito político que
iria destruí-lo: daí a figura demiúrgica de Luis Carlos Prestes.
Nesses termos, embora houvesse possibilidades de várias revolu-
ções a partir de cada uma das propostas políticas, o sujeito político
dirigente do processo não era tão indefinido assim, pois aparecia
corporificado na figura de Luis Carlos Prestes e dos "revolucioná-
rios". A partir daí, o que passa a ser definido não são os "tenentes",
mas sim "revolucionários", sujeitos políticos, por excelência, dc con-
junto das propostas de revolução.
Sujeito político da revolução — e esta tinha vários registros a
partir de cada uma das propostas políticas — como poderiam ser os
"revolucionários" a pura expressão de setores médios urbanos se ca-
da setor da sociedade qualificava-os à sua maneira? Através de seu
programa? Bastante improvável já que os "revolucionários" apresen-
taram-se também, via de regra, através de propostas diferentes de
revolução. Porque não admitir que o programa mínimo de luta con-
tra o fantasma da oligarquia satisfazia ao mesmo tempo tanto seto-
res descontentes da classe dominante e neste caso, inclusive o Partido
Democrático, como setores médios urbanos e também a classe ope-
rária? Não seria suficiente, nesse caso, apostar num programa míni-
mo contra as "oligarquias" para se elevar à categoria de "revolucio-
nário" e engrossar um movimento capaz de fazer convergir as várias
propostas de revolução? E mais, definido o campo para um movi-
mento denominado de revolucionário, não seria natural a gestação
de propostas políticas no seu interior produzindo novas tendências?
Todas essas questões devem ser respondidas passo a passo. Em
primeiro lugar, quem são esses "revolucionários", sujeito político,
por excelência, de uma revolução cujos registros multiplicam-se no
conjunto da sociedade? São os revoltosos de 22, 24, baluartes da luta
contra o fantasma da oligarquia. Sobre eles os vários setores da so-
ciedade erigem o edifício de uma revolução que, entendida de manei-
ra diferentes por cada um deles, não deixa de imputá-los como su-
jeito político Privilegiado na derrubada das oligarquias. Nesse senti-
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 85

do, o que define esses revoltosos não é o fato de terem desenca-


deado movimentos militares em 22 ou 24, mas sim propostas políti-
cas que se expressam em torno da revolução. Além disso, o fato
desses revoltosos se autodenominarem revolucionários e manterem-se
unidos pelo menos até 1928 em torno de um programa genérico de
combate à oligarquia, facilitou sobremaneira a identificação de vá-
rias propostas políticas com o temário da revolução.8
Em torno desse sujeito político, portanto, definiram-se todas as
propostas de revoirção no âmbito da luta de classes, e cada uma delas
preencheu com conteúdo diferentes os "revolucionários" capazes de
combater o fantasma da oligarquia.
Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, no interior da
luta de classes, não apenas a oligarquia é criada como inimigo co-
mum; também os "revolucionários" são criados a todo o momento
como sujeito político do confronto final:

Miguel Costa:
"Se a revolução era necessária em acrescida à história da Repú-
blica em 1924, com maior razão o é em 1928. Não há, portan-
to, entendimento possível entre a revolução e o governo, a menos
que este último se decida a aceitar a aplicação do programa
revolucionário." 9
Maurício de Lacerda:
"Não!... Não sou democrático e sim revolucionário, francamen-
te revolucionário. A revolução continua a ser, para mim, a solução
mais viável para esse complexo problema brasileiro. Ela é o meio
de provocar a transformação radical, absoluta, do atual regime
imperialista."10
Luis Carlos Prestes:
"A revolução tem um programa a que todos nós juramos obede-

8 O programa geral dos "revolucionários* de 1924 aparece reproduzido


Maria Cecília Spina Forjaz, op. cit., p. 27-28: a) voto secreto; b)
corrupção administrativa e a fraude eleitoral; c) verdade de
lítica; d) liberdade de imprensa e pensamento; e) centralização do
correção dos excessos da descentralização administrativa; f)
buições do Poder Executivo e restabelecimento do equilíbrio
deres; g) moralização do Poder Legislativo; h) ampliação da
Poder Judiciário; i) obrigatoriedade do ensino primário e
profissional.
9 O Combate—18/7/1928.
10 O Combate —13/2/1928.
86 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

cer e cumprir. Ele já foi amplamente divulgado em todo o país,


e o Sr. Assis Brasil resumiu en? duas palavras: Representação e
Justiça ( . . . ) " 1 1
ou então:
"Se não aproveitamos o momento político e econômico para radi-
calizar nosso programa, seremos ridiculamente envolvidos pelos
bernardes e epitácios, sacrificando, por um problemático auxílio
material, a grande força material de que dispúnhamos, fruto do
sacrifício de numerosos companheiros. Dia a dia aumenta em mim
a convicção de que os tais liberais desejam tudo menos a revolu-
ção. . . Resta-nos um único caminho: o caminho pelo qual venho
a muito me batendo e que consiste em levantarmos com toda a
coragem uma bandeira de reivindicações populares, de caráter
prático e positivo, capazes de estimular a vontade das mais am-
plas massas de nossa paupérrima população das cidades e do
sertão."12
Astrogildo Pereira:
"A corajosa marcha da Coluna Prestes exerceu enorme influên-
cia no despertar das massas desesperançadas e apáticas. Simulta-
neamente, sua atividade levou a luta a uma camada mais ampla
da população e apresentou uma plataforma realmente capaz de
atrair as massas. Quando da revolução de 1922 e da mesma forma
em 1924, os revolucionários, se bateram por pequenas reformas
democráticas e liberais, insurgiram-se contra a 'falta de liberdade;
de justiça', etc. Mas, com o desenrolar do movimento, seu pro-
grama clamou por uma revolução mais profunda. O confisco das
grandes propriedades, a eliminação dos impostos exorbitantes lan-
çados sobre o campesinato empobrecido, a repartição do latifún-
dio, o controle dos imperialistas e da burguesia local foram rei-
vindicações feitas pelos revolucionários."13
Um membro do Partido Democrático:
"Tem-se procurado indispor o Partido Democrático com os revo-
lucionários brasileiros ( . . . ) . Nem o Partido Democrático pode
ser contra os revolucionários, uma vez que deles conta em sua
direção e em suas fileiras numerosos elementos participantes do
movimento verificado, nem pode como agremiação política orga-
nizada ser pela revolução ( . . . ) . Se amanhã, porém, eu enten-
der ( . . . ) que essa atitude é inútil, que é melhor entregar-me

11 Declaração de Prestes ao O Jornal, em 1927, citadas por John W. F. Dulles.


Anarquistas e Comunistas no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977,
p. 270.
12 Carta de Luís Carlos Prestes de agosto de 1929. Citada por John W. F.
Dulles, op. cit., p. 335.
13 Discurso de Astrogildo Pereira de julho de 1929, em Moscou. Citado por
John W. F. Dulles, op. cit., p. 316.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 87

aos azares de um movimento armado, contra o poder constituído


como único meio de salvar o Brasil, eu deixarei de ser democrata
arregimentado, para ser ou voltar a ser revolucionário ( . . . )
Nada vejo de paridade entre uma coisa e outra. Revolução é uma
contingência a que tanto pode ser levado um membro do Partido
Democrático como um cidadão qualquer ( . . . ) 1 4

Através da manifestação de várias tendências políticas existentes


na luta de classes é possível perceber a construção, a partir de cada
uma delas, de um sujeito político — os "revolucionários" — que
iriam desencadear uma revolução. Contudo, resta perguntar: qual re-
volução? Se as lideranças dos "revolucionários", Luis Carlos Prestes,
Miguel Costa, Isidoro Dias Lopes, Siqueira Campos, Juarez Távora
e outros, encarnam a própria revolução, não hesta dúvida que, desde
1928, ela tem registros diferentes para cada um deles. E tal diversi-
dade de propostas não se limita apenas ao âmbito das lideranças do
movimento dos "revolucionários", pois Maurício de Lacerda e As-
trogildo Pereira, com posições diferentes, criam também o sujeito
político para revoluções diferentes. Entretanto, desde cada uma das
propostas de revolução, a criação do sujeito político — os "revolu-
cionários" e a liderança de Luis Carlos Prestes — e a explicitação
do inimigo comum — as oligarquias — garantem a possibilidade de
um acordo tácito entre as várias tendências políticas que conjuga
interesses das classes dominantes descontentes com o governo do
Partido Republicano, dos setores médios urbanos e da classe operá-
ria. A direção política dos acontecimentos, a partir de cada uma das
propostas de revolução, torna-se, portanto, decisiva para o futuro
de cada um dos setores da sociedade e a dimensão da luta de classes
vai se explicitar no deslocamento progressivo de determinados agen-
tes sociais na luta pela revolução.15
Disto resulta que os "revolucionários" como sujeito político de
revoluções tornam-se, portanto, um espaço a ser ganho para cada
uma das propostas existentes em 1928. Nessa medida, imprimir â a

14 O Combate — 7/2/1929.
15 A dimensão simbólica da luta de classes e a verdadeira pantomina eàiáiSà.
em seu interior, com as classes sociais desempenhando, cada uma delas, o papel
da outra, foi suficientemente explorada por Marx no 18 Brumári^^d^uÊtjt
Bonaparte. Acredito ser estratégico, para o período de 1928, analisar colBj||â
dimensão simbólica que a luta de classes substantivou em "revolucionámos^
jogou progressivamente para o fundo da cena da história a classe
88 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

determinado conteúdo e uma qualificação a este sujeito político trans-


forma-se em ponto decisivo para a direção política do processo de
luta.
A análise da proposta política do Partido Democrático aponta
uma outra perspectiva. Partido político, criado em 1926, devido às
cisões ocorridas no interior da classe dominante, ele abre a brecha
para a intensificação das demandas políticas de outras classes sociais.
Desde o PD, o temário da revolução penetrou no interior da classe
dominante, posicionando-a no interior do terreno da luta. Nesse
sentido, o problema da revolução entra na ordem do dia no seio
mesmo da classe dominante, e esta, por ocupar os postos chaves da
sociedade e do Estado, arca com o peso de se posicionar frente a
um conjunto variável de propostas políticas. Se alguns setores da
classe dominante posicionam-se favoravelmente à revolução — e este
é o caso do Partido Democrático — outros setores colocam-se con-
tra, e vão ter que se bater em várias frentes, pois, a revolução não é
unitária.
A proposta política do Partido Democrático incorpora o temário
da revolução, sem contudo assumí-la. Em outras palavras, fazer a
revolução era tarefa de um sujeito político, os "revolucionários", e
estar ao lado dela significava angariar simpatias no interior do acor-
do tácito das oposições ao Partido Republicano. Nesse sentido, tor-
nava-se incômodo ao Partido Democrático se manifestar a respeito de
qualquer uma das propostas de revolução, pois isto significa a pola-
rização em relação a algumas tendências. Assim, durante o período
de 1928, momento em que as polarizações em torno do temário da
revolução eram bastante explícitas, restava ao Partido Democrático
defender também o que era mais geral para todas as propostas, isto
é, a derrubada das oligarquias e a definição do sujeito político, os
"revolucionários", na figura de Luis Carlos Prestes.
Ao Partido Democrático restava jogar na indefinição com o in-
tuito de ganhar tempo. Sem pretender incorporar qualquer tendência
política explicitada no interior dos "revolucionários", o PD, contudo,
buscava aproximação com os seus líderes para ampliar as suas pró-
prias bases partidárias. Disputar o poder no interior da classe do-
minante, isto é, combater eleitoralmente o Partido Republicano, re-
queria um esforço de ampliação de alianças capaz de polarizar em
torno de seu programa o maior número possível de setores da socie-
dade. Por isso mesmov romper com o temário da revolução signifi-
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 89

cava cortar de uma vez por todas o seu caminho para o poder, já
que suas bases se tornariam precárias para o enfrentamento eleitoral
com o Partido Republicano.16
Estar do lado da revolução, portanto, satisfazia tanto alguns se-
tores da classe dominante como os segmentos médios urbanos e
inclusive o próprio proletariado. Não apenas "os revolucionários" se
sentiram próximos ao Partido Democrático, mas também a classe
operária por ocasião das eleições municipais de fevereiro de 1928
e da greve dos gráficos de abril de 1929, sentiu essa presença parti-
dária como aliada na luta pela derrubada das oligarquias.
Comunicado do Bloco Operário e Camponês:

"Entre dois partidos não proletários, um governamental, oligár-


quico, conservador e reacionário, que nada garante aos trabalha-
dores, só os ameaça com cadeia e deportação, e outro, na oposição
popular, democrático e liberal que promete ao proletariado liber-
dade de reunião e associação, defendendo-o nas ocasiões precisas
— entre dois partidos nessas condições, não nos é dado titubear.
Votar no PRP seria um suicídio coletivo. Abster-se seria proteger
de modo indireto aqueles que nos oprimem ( . . . ) . Só há um
caminho a seguir, uma única diretriz a obedecer. Votar no Partido
Democrático ( . . . ) . Essa nova atitude, no entanto, não importa
em uma adesão do BOC ao PD. Ela é determinada por uma con-
veniência política ( . . . ) " (O Combate, 23/2/1928).

Editorial do jornal do Partido Democrático:

"No Brasil, os direitos do operário ficam sempre no segundo plano,


quando outros direitos mais "sagrados" a eles se contrapõem ( . . . ) .
O operariado, aqui, não tem sequer o direito de abrir a boca e de
protestar. Se se reúnem para, pacificamente, discutirem as suas
pretensões e votarem medidas de comum interesse, vem a polícia,
de chanfalho em punho, e os destroça e amordaça ( . . . ) .
O 'Centro Industrial', portanto, irá encontrar junto ao "governo
forte" do Sr.Washington Luiz o ambiente propício às suas reivin-
dicações capitalistas, é verdade que o Centro, como dissemos,

16 Francisco Morato, representante do Partido Democrático, após a derrota


nas eleições, declarou ao O Combate, em 5/11/1928: "Estamos vendo que. *
impossível solucionar o problema político brasileiro dentro da ordem. T
feito todos os esforços para regenerar os costumes políticos e moralizar
pública pelos processos institucionais. Mas o governo fecha todas a&
impede-nos todos os meios de que poderíamos utilizar-nos baseados
tuiçSo. Só nos resta um, que ele sabe qual é . . . " .
90 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

levará na mão esquerda o "substitutivo" ao Código de Menores e


à Lei de Férias. Sempre desejaríamos ver o conteúdo integral des-
sa futura legislação operária, redigida "carinhosamente" pelos pa-
trões ( . . . ) " (Diário Nacional, 6/4/1919).

Se, de uma parte, com relação ao movimento geral das oposições,


o Partido Democrático devia se colocar ao lado da revolução, ex-
traindo aquilo que as propostas tinham de mais geral, de outra,
quando alinhado ao lado da classe operária, o conteúdo do seu pro-
grama tinha que ser menos genérico, ainda que no final se reduzisse
à luta contra as oligarquias. A diferença entre algumas propostas dos
"revolucionários", como aquelas já citadas de Prestes, e a de Maurí-
cio de Lacerda (examinada adiante), e a do Partido Democrático,
é que, para os primeiros, o proletariado pertencia ao bloco de clas-
ses da revolução, ao passo que para o PD o eixo da revolução pas-
sava por fora da classe operária. Com isto, o PD colocava-se ao
mesmo tempo ao lado da revolução e da classe operária, como se
esta última estivesse fora desse eixo revolucionário.17
Antes de analizar a proposta política do Bloco Operário e Cam-
ponês, gostaria de retomar o temário da revolução a partir das óticas
divergentes dos "revolucionários" e do Partido Democrático, delinea-
das momentos atrás.
Considerando o conjunto de propostas de revolução não há como
não concluir que em 1928, a classe operária era uma presença incô-

17 O programa do Partido Democrático explicita muito bem os seus pontos


de encontro com a revolução e com a classe operária. A luta contra a oligar-
quia definia o eixo de sua revolução para logo em seguida ampliar o seu
programa aos trabalhadores, como se a questão da revolução não passasse por
estes últimos. Os itens 1.°, 2.°, 3* aproximam o PD da revolução entendida
como derrubada da oligarquia; o item 5° amplia as suas bases junto ao ope-
rariado e o item 4." expressa a cisão no interior da classe dominante: "1.") De-
fender os princípios democráticos e liberais na Constituição, tornando uma rea-
lidade o governo do povo para o povo; 2°) Opor-se a qualquer revisão consti-
tucional que implique restrição às garantias e liberdades individuais; 3°) Pugnar
pela reforma da lei eleitoral, no sentido de garantir a verdade do voto secreto
e obrigatório, e medidas asseguradoras do alistamento, do escrutíneo, da apu-
ração e do reconhecimento; 4°) Vindicar para a lavoura a influência que tem
direito, por sua importância na direção dos negócios públicos; 5.°) Suscitar e
defender todas as medidas que interessem à questão social e, particularmente,
ao bem-estar das classes trabalhadoras". Citado por Maria Cecília Spina For-
jaz, op. cit., p. 38.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 91

moda tanto para o Partido Republicano como para o movimento


de oposição. Para o partido do governo a classe operária represen-
tava uma pressão considerável devido à crescente mobilização parti-
dária — via Bloco Operário e Camponês — e sindical em torno das
reivindicações de direitos sociais e políticos. Para o movimento de
oposição, cujo ponto de convergência se dava num temário genérico
de revolução, a presença dos operários obrigava a uma abertura e
um desdobramento das propostas que apontavam, necessariamente,
para o reconhecimento desse novo interlocutor na política. Nesse
sentido, muito pouco podia se esperar de uma proposta de revolução
que não se colocasse direta ou indiretamente frente ao problema da
participação da classe operária no processo político. Para algumas
propostas dos "revolucionários" — por exemplo, Luis Carlos Prestes
e Maurício de Lacerda — havia uma explicitação imediata: a revolu-
ção tornava-se possível, desde que, a classe operária fosse um dos
parceiros. Para outras propostas, menos mobilizadoras, em 1928, a
colocação da questão operária se dava de forma indireta, isto é, a
classe não se inscrevia no interior do temário da revolução, embora
esta última devesse encaminhar a solução da questão social — vide
nesse caso, a proposta do Partido Democrático — via promulgação
e aplicação de leis trabalhistas.
Havia, entretanto, algo em comum entre essas diversas propostas
de revolução. Tanto aquelas que aceitavam a classe operária como
um novo interlocutor político, quanto as que deprimiam a sua parti-
cipação na luta, visavam, fundamentalmente, cortar desde o início a
viabilidade de uma proposta de revolução capaz de alterar radical-
mente as regras do jogo. Enfim, não havia possibilidade de encami-
nhar a luta política sem levar em conta a presença operária, e no
entanto, "ganhar" a classe operária para o terreno das oposições
significava, fundamentalmente, esvaziar a cada passo a generalização
de sua proposta política.
Nesse sentido, aceitar ou não a classe operária como interlocutor "
político, em 1928, constituía uma questão estratégica para qualquer |
uma das propostas do movimento de oposição (já vimos, ir
a posição do Partido Democrático aceitando o BOC nas ele
1928 e na greve dos gráficos de 1929). Maurício de Lacer
"revolucionário", encaminhava já, em 1928, uma proposta i
reinterpretar o próprio espaço de luta criado pelo Par
tico, desde a cisão no interior da classe dominante.
92 EDGAR SALVADO RI DE DECCA

história desse partido passava a ser contada não a partir das diver-
gências internas da classe dominante, mas memorizada para o con-
junto do social como uma força cujas raízes estavam nos "movimen-
tos revolucionários" de 1924. Fazendo coincidir as forças do mo-
vimento de oposição, os "revolucionários", o Partido Democrático e
o Bloco Operário e Camponês, Lacerda não só propunha a necessi-
dade de aceitação da classe operária como interlocutor político, como
também procurava quebrar as resistências daqueles que pensavam
encaminhar um movimento de oposição contra o Partido Republica-
no — entendido como revolução para a derrubada das oligarquias
— sem o concurso do proletariado.
O jornal O Combate resume um discurso de Maurício de Lacer-
da num comício do Partido Democrático em Santos:

" ( . . . ) para restituir à grande cidade dos fundadores da Pátria


a sua palavra e o seu compromisso e enrolar no Pantheon dos
Andradas, aos pés de ambos, a bandeira branca da anistia, des-
fraudando ali também a bandeira vermelha das reivindicações
nacionais, que tinham por chefe o general — Luis Carlos Prestes.
Era plenamente solidário com este que o orador vinha a São Paulo
encerrar a campanha pela anistia ( . . . ) . E mais ( . . . ) estender
numa aliança a sua mão de combatente da palavra, ao galhardo
Partido Democrático Paulista.
Via nesse um elemento de vanguarda, que prolongava no tempo
e ampliava no espaço o eco, o espírito e a obra nacional das re-
voluções de julho, as quais surgiram para demolir a política da
oligarquia, os governos de profissionais, e em seu lugar colocar
os governos da nação e a política do povo.
( . . . ) A obra do Partido Democrático, como dos partidos operá-
rios, era de cooperar com a agitação fecunda dos espíritos, a agi-
tação das massas, a marcha nacional que contemplamos para outro
porvir, que não o da escravidão política e o esmagamento econô-
mico que nos espera como povo e como nação ( . . . ) .
Cumpria, pois, apoiá-lo, estimulá-lo num propósito liberal, sem
prejuízo também de outra força que lhe surgia paralela, dos par-
tidos operários ( . . . ) . Em tudo, porém, era preciso elementar
cuidado de não se tornarem incompatíveis essas duas forças que
necessariamente teriam de convergir para derrubar o inimigo co-
mum no campo político do presente ( . . . ) " 1 8

Essa proposta política, sem dúvida alguma, a mais abrangente do

18 O Combate — 15/2/1928 — Discurso reproduzido nos mesmos termos no


jornal "O Estado de S. Paulo".
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 93

acordo das oposições, formulada, essencialmente, a partir de todas


as forças políticas que o compunham, não encontrava em Maurício
de Lacerda sua única voz. Desde 1928, em São Paulo, o jornal diá-
rio O Combate era o porta voz por excelência dessa proposta de
revolução capaz de fazer convergir os "revolucionários" e o Partido
Democrático — a partir de suas origens comuns, isto é, as revolu-
ções de julho — e a classe operária, representada pelo Bloco Operá-
rio e Camponês, o novo interlocutor da luta política das oposições
ao governo do Partido Republicano.
Chamo a atenção para esta proposta realizada de maneira exem-
plar, em São Paulo, pelo O Combate. Através de suas páginas a clas-
se operária entrava no cenário da revolução, não como um agente
social que deveria receber no final da luta política algumas "benes-
ses", tais como as leis trabalhistas, mas sim como um aliado impres-
cindível da luta revolucionária. Nesse sentido, a proposta de revolução
awfcndida e difundida pelo O Combate, abria espaço, em 1928, para
a eme^ência da classe operária através de uma agremiação partidá-
ria, o Blocc Operário e Camponês. Vale a pena insistir nesse ponto.
A proposta de iv. cÍMção defendida por um partido da classe operária,
existia porque no mov,.„ _rto das oposições conjugavam-se forças
políticas que abriam esse espaço de ação. Essa abertura para a classe
cperária torna-se extremamente decisiva para sc pensar o encami-
nhamento da luta política, pois se esta proposta defendida pelo O
Combate fazia entrar na cena da revolução as vozes do proletariado,
por outro lado, cortava em muito as suas pretensões de direção da
luta política.
O Combate, além de abrir um espaço considerável para as notícias
sobre a movimentação operária em 1928, mantinha diariamente uma
seção denominada Movimento Operário, na qual o Bloco Operário
e Camponês abordava os mais variados assuntos e temas. Nesse
sentido, a abertura para a classe operária não ocorria de forma indis-
criminada e o interlocutor válido para o movimento das oposiçõç?
era uma agremiação partidária específica, o Bloco Operário e Cam-
ponês (BOC). Isto quer dizer que, do ponto de vista da pr
de revolução defendida pelo O Combate, a classe operária toí
uma aliada desde que ela aparecesse representada numa ag
partidária cuja proposta de revolução pudesse se articula
do movimento de oposição. A partir daí, o BOC poderia (
a força política dessa imprensa para submeter tenc
94 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

que tivessem ainda representatividade junto à própria classe operá-


ria. O ataque contra as tendências anarquistas e anarco-sindicalistas
se fazia presente direta ou indiretamente na seção Movimento Ope-
rário organizada exclusivamente pelo BOC. Seja enfatizando a im-
portância do alistamento eleitoral do operariado em torno daquela
agremiação, seja vinculando a luta por direitos sociais e políticos
através do fortalecimento do BOC, o que O Combate definiu para
o acordo dos oposições o porta-voz legítimo da classe operária e
contribuiu para o fortalecimento daquela agremiação junto ao pro-
letariado.19
O processo político em São Paulo, a partir de 1928, engajava a
classe operária e qualificava-a no âmbito da própria luta.
A arregimentação operária vista sob o ângulo de uma proposta
específica da revolução — e O Combate abria espaço para sua pro-
paganda — supunha necessariamente um porta-voz para a classe
operária: O Bloco Operário e Camponês. Se até agora, foi possível
observar como cada proposta política de revolução definia o lugar da
própria produção da história qualificando, nessa medida, cada um
dos agentes políticos, não deixa de ser decisivo no âmbito do acordo
das oposições aquela proposta de revolução capaz de delimitar a
classe operária através de um único porta-voz.20
19 Não eram poucos os artigos do BOC, na secção Movimento Operário, que
clamavam pela arregimentação do operariado. Todos os artigos vinculavam o
problema da consciência de classe do proletariado com a noção de partido. Um
bom exemplo é o artigo do O Combate do dia 9/7/1928: "Bloco Operário e
Camponês — Apelo aos trabalhadores de São Paulo: Não nos cansaremos de
chamar a vossa atenção para a enorme responsabilidade que vos pesa sobre os
ombros. Tendes um partido e é a vós unicamente, que compete sustentá-lo.
Se amanhã fracassar o esforço da vanguarda não tereis o direito de protes-
tar ( . . . ) . Sereis, sim, os únicos culpados, pois a vanguarda nada pode fazer
sem o vosso apoio ( . . . ) , sem o concurso de vossa atividade. O proletariado
paulista tem permanecido numa inércia verdadeiramente lamentável ( . . . ) . Viva
o BOC! Viva a consciência da classe operária! Viva a organização dos traba-
lhadores paulistas". Como não é possível conceber passividade da classe ope-
rária, em 1928 ou em 1929, pois não são poucas as suas manifestações, a
"inércia" à qual se refere o BOC deve ser também um indicador da luta interna
de tendências que existiam no interior do operariado.
20 A partir de 1928, em São Paulo, sejam os setores da classe dominante, os
segmentos médios urbanos, ou a classe operária, todos eles encontravam-se re-
presentados no interior do acordo das oposições através das propostas de re-
volução dos "revolucionários", do Partido Democrático e do Bico Operário e
Camponês.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 95

Portanto, o Bloco Operário e Camponês encontrava no conjunto


das oposições ao governo do Partido Republicano uma força decisiva
para penetração e consolidação de suas posições junto à classe ope-
rária; e podia, a partir daí, falar também em nome de sua revolução,
a revolução democrático-burguesa. A própria imprensa da oposição
abria um caminho decisivo no interior do movimento operário, con-
solidando progressivamente uma concepção de luta do proletariado
que passava pela intermediação do partido político parlamentar —
posição esta que encontrava resistência, no período, por parte da
militância anarquista e anarco-sindicalista.21
O Combate, contudo, não abria espaço à classe operária apenas
através da seção Movimento Operário, como aliás, já havia enfatiza-
do. O seu trabalho de imprensa, altamente didático, não apenas dei-
xava o operário comum expressar as suas reivindicações, mas tam-
bém procurava angariar simpatias de outros setores da sociedade em
torno da causa operária — qualificada logo, em seguida, como causa
do BOC naquela seção especializada. Como jornal diário da chama-
da "grande imprensa", O Combate realizava exemplarmente o traba-
lho de generalizar para o conjunto da sociedade a sintonia da arregi-
mentação operária com uma proposta definida de revolução, cujo
programa visava a aliança dos "revolucionários", do Partido Demo-
crático e do Bloco Operário e Camponês.
Como até agora as coletâneas sobre a presença da classe operária
no Brasil limitaram-se à transcrição de seus manifestos e documentos,
tomo a liberdade de reproduzir, aqui, uma produção discursiva da
imprensa, na qual o operário não se define a partir do programa, mas
pelo inverso. A reprodução das vozes operárias na imprensa, princi-
palmente em 1928, representava uma estratégia decisiva para fazer
coincidir o nível imediato de suas reivindicações com os imperativos
mais gerais dos programas políticos. Estratégia, sem dúvida, funda-

21 lá em 1927 o jornal de tendência anarquista, A Plebe, publicava artigos


contrários à formação de "blocos operários", reafirmando sua posição à parti-
cipação político-partidária e eleitoral da classe operária
(A Plebe: 12/2/1927,,,
12/3/1927, 11/6/1927). Além disso, John W. F. Dulles, op. cit., p. 267, < B É | | f
centa que, nesse período, "os anarquistas brasileiros admitiram que os bafc^jgspp
vistas 'que se chamam revolucionários' vinham ganhando terreno
organizações operárias. A Plebe entreviu, na campanha de descrédito cantipj;
os anarquistas e na obra de absorção dos sindicatos, um plano geral; e v i l j | H |
nhoso concebido pela Internacional Sindical Vermelha".
96 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

mental no âmbito da luta de classes, já que a experiência imediata do


operariado servia de legitimação a uma dada posição política-parti-
dária que a seção Movimento Operário cuidava de definir.
Em 15/1/1929, a primeira página do O Combate abria manche-
te: "O Movimento Grevista — Os operários da fábrica "Serricho"
e "Ramenzoni", declaram-se em greve:

Férias! Férias!
Eis os brados quentes do operariado, as razões supremas invoca-
das por todos aquele que, no escuro das fábricas lutam afanosa-
mente, todo o ano.
E os patrões, sempre os patrões, contrariando esse motivo legal
da gente trabalhadora! E vem as greves, as paredes pacíficas; os
pedidos de justiça, as representações justas. A polícia aparece.
Soldados indisciplinados arreganham o focinho e guardas estran-
geiros mostram os dentes agitando as orelhas. Foi isso, pelo menos
o que vimos ontem. Às 10 h. e trinta, demos entrada na "Fábrica
Ramenzoni", sito à rua Lavapés, 192, de propriedade de Dante
Ramenzoni e Cia. ( . . . ) . Entramos no escritório da "Fábrica Ra-
menzoni". Recebidos pelo Sr. Ibsen Ramenzoni, que principiou
por nos dizer:
— Não houve e nem haverá nada.
— Então...
— Foi um mal entendido por parte dos operários descontentes.
— Quer dizer...
— Que nunca deixamos de dar férias regulamentares aos nossos
operários, concluiu aquele senhor.
A fim de completar a nossa reportagem, pedimos ao Sr. Ibsen
Ramenzoni licença para falar a um operário "qualquer". E ele,
inteligentemente, chamou um determinado operário, um velhinho
de 60 anos, Raimundo Alexandre, que nos disse:
— Estou satisfeito.
— E os colegas?
— Há entre eles, não resta dúvida, muitos descontentes.
— Quer dizer que continua o movimento?
— Parece, concluiu o nosso informante.
O relógio naquele momento, marcava 11 horas.
Era o instante da saída de 600 operários que trabalhavam na
"Fábrica Ramenzoni".
E nós esperamos.
Segundos depois eles saíam e nós procurávamos a comissão que
chefiara a greve, que nos disse:
— Voltamos, hoje, ao trabalho devido a uma promessa do patrão.
— De...
— Pagar-nos as férias atrasadas.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 97

— De que anos?
— De 1927.
— Quer dizer que, dadas as férias, ficarão satisfeitos?
— Não responderam-nos. Somos uns eternos explorados e, por,
cima de tudo, desconsiderados. Calcula o sr. que os patrões além
de nos terem tirado os médicos e a assistência farmacêutica, não
nos deram, no Natal, como era de costume, o nosso presente,
que consistia em dois chapéus..." 22

Definindo o lugar da classe operária na revolução, a partir de


sua agremiação partidária, o BOC, o O Combate abria também as
suas páginas para a defesa do Partido Democrático — incentivando-o
a uma tomada mais decisiva de posição — e defendia abertamente
as posições políticas dos "revolucionários", definidas pelo jornal atra-
vés da figura de Luis Carlos Prestes. A defesa do Partido Democrático
aparecia abertamente nos períodos de eleições:

"Vote em Marrey Júnior para prefeito, e permaneça no colégio


eleitoral até que a mesa forneça os boletins completos aos fiscais
democráticos, de acordo com a lei, que-aj/vitória será nossa."23

Além dessas situações, inúmeras vezes, O Combate procurava


definir o Partido Democrático em torno de sua proposta de revolução:

"Fomos dos que jamais negaram apoio à organização partidária


dos democratas, desde o dia de sua auspiciosa instalação como
força que se apresentava ao povo para operar a reforma moral
de nossos hábitos políticos ( . . . ) Num e noutro momento diver-
gimos dessa agremiação política, nas mais das vezes quando per-
cebíamos movimentos que não se coadunavam com o espírito de
quem combate ( . . . ) . Falando os democráticos do dissídio atual
reinante entre eles e alguns esquerdistas, dizem sem rebuços que

22 As tintas carregadas em torno dos industriais faziam parte da estratégia


política de determinadas propostas de revolução em 1928. Em torno deles,
definia-se a questão social como questão de polícia, tão cara ao fantasma da
oligarquia. Eficiente propaganda política que em última instância, não '
uma luta final entre o capital e o trabalho, mas sim a derrubada
quias — avessas aos clamores do povo — e a luta antiimperialista.
seguinte a esta notícia O Combate centrava seu fogo contra o pi
defendido pelos industriais, definindo mais uma vez a tarefa da
criar um sistema político capaz de controlar os desmandos do
destrui-lo. M
23 O Combate — 18/10/1928.
98 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

tentarão por mais aigum tempo o seu triunfo no âmbito da lei,


mas que o Partido não está longe de aceitar as idéias do Sr.
Maurício de Lacerda, francamente revolucionárias!
Essa atitude é uma definição positiva da corrente que orienta os
democráticos neste momento. Ainda há três dias, o "Correio
Paulistano", quase que num tom de ultimatum convidava o "O
Estado de São Paulo" a ter coragem de se declarar como órgão
da revolução, em face das afirmativas do sr. Maurício de Lacerda,
na imprensa do Rio. Quer dizer, o governo pretende que todos os
oposicionistas se definam, que positivem as suas atitudes e es-
clareçam as suas posições.
Parece que os democratas aquiesceram àquele convite e, num
gesto verdadeiramente patriótico ( . . . ) vieram a público e ( . . . )
proclamaram que por algum tempo ainda não poderão pleitear
a reforma de nossa mentalidade política pelos processos legais,
mas não estão longe de apelar para a revolução como finalidade
de um partido que se bate pela democracia." 24
A amplitude dessa proposta de revolução capaz de definir o cam-
po das alianças entre os "revolucionários", o Partido Democrático
e o Bloco Operário e Camponês, pode ser avaliada através de uma
campanha organizada pelo O Combate em prol dos "revolucionários"
exilados. Essa campanha articulada juntamente com a propaganda
de anistia os "revolucionários", levada a cabo pelo Partido Democrá-
tico, visava fundamentalmente mobilizar a população em torno de
Luis Carlos Prestes, constituindo progressivamente o sujeito político
de uma revolução que a cada passo explicitava a sua pluralidade de
encaminhamentos desde as diversas propostas políticas.
"De ordem do General Luís Carlos Prestes, chefe supremo da
Revolução Brasileira, a direção do "O Combate" comunica ao pú-
blico que a subscrição aberta por este vespertino para socorrer
aos soldados revolucionários, montou ao total de 12:931 $400 e
mais 5 pesos fortes do Paraguai, conforme publicação feita neste
jornal. A documentação da maneira porque "O Combate" aplicou
a quantia subscrita pela generosidade do público paulista é a
prova da honestidade indiscutível de Luis Carlos Prestes e ao
mesmo tempo, uma alta prova de confiança que esta folha me-
receu do chefe de 5 de julho, para ser ela o veículo da distribuição
das parcelas apuradas afim de minorar as dificuldades dos solda-
dos e suas famílias."35
24 O Combate — 8/2/1929 — Editorial.
25 O Combate — 18/10/1928. A presença da figura de Luís Carlos Prestes
não era apenas marcante nesse jornal, mas também em toda a imprensa do
movimento de oposição. Dentre os destaques mais interessantes, vale a pena
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 99

Espero ter encaminhado as condições de emergência política da


proposta de revolução do Bloco Operário e Camponês, interlocutor
aceito pelo acordo de oposições e o único porta-voz da classe ope-
rária considerado legítimo, em 1928. Sobre esse interlocutor tornou-
se possível a explicitação de uma outra proposta da revolução, a re-
volução democrático-burguesa e tal ocorrência se deve, principal-
mente, à eficácia de uma proposta política enunciada por Maurício
de Lacerda e pelo O Combate, em São Paulo, que qualificando a
presença da classe operária no movimento político, possibilitou a
emergência de uma de suas tendências.
Aqui alguns reparos. Normalmente, a parca bibliografia que tra-
tou do Bloco Operário e Camponês reduziu-o, simplesmente, a uma
extração eleitoral do Partido Comunista Brasileiro, criado em 1927
devido às repressões políticas do Governo de Washington Luís, que
jogou na ilegalidade o próprio PCB. Além de analisar o processo
histórico de maneira reflexa, isto é, partindo do suposto de que o
Bloco Operário e Camponês foi a única resposta possível do PCB
a partir da ilegalidade, essa bibliografia não leva em conta o fato de
que, na luta política, o conjunto das oposições definia como porta-
voz válido da classe operária, um partido parlamentar e eleitoral e
não qualquer outra forma de agremiação operária. Se sugeri, momen-
tos atrás, o respaldo que um setor da imprensa, em São Paulo, dava
ao BOC na sua luta contra as tendências anarquistas e anarco-sindi-
calistas, foi para enfatizar que algumas propostas políticas, deposi-
tando esse respaldo num interlocutor político capaz de falar em
nome da classe operária, ao mesmo tempo delimitava o âmbito de
ação e de reconhecimento dessa agremiação ao espaço da luta par-
lamentar. Em outras palavras, o BOC tornava-se aliado de uma
revolução que era definida fora dele, isto é, não lhe cabia realizá-la,
e sua força política junto a outras tendências do movimento operá-
rio, embora crescente, significava no final das contas o seu próprio
emparedamento.26 Se o Bloco Operário e Camponês foi para'

reproduzir um anúncio do Diário Nacional de 18/1/1929: "Luís Carlos


— importador — Produtos Brasileiros em geral: café, erva-mate, fu
ras, frutas, peles, fios de tecidos palhas, produtos farmacêuticos, etc» «
presentações, Comissões e Consignações. Buenos Aires (Repúb
Gallo, 1406, esquina Mausila, Casilla dei Correo, 756".
26 Desde o início venho sugerindo a questão da supressão das 1
no interior da luta de classes. Se a memória histórica da
100 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

Partido Comunista uma alternativa para quebrar por dentro um mo-


vimento operário pouco afeito à luta parlamentar, por outro lado,
em 1928, o BOC transformou-se também na entidade política re-
conhecida pelo conjunto das oposições como representante da classe
operária. Como já foi dito, emparedar a classe operária em torno da
luta parlamentar significava, principalmente, afastá-la da direção po-
lítica do movimento das oposições.
Cabe agora analisar a proposta de revolução do Bloco Operário
e Camponês. Como um partido eleitoral da classe operária, o Bloco
Operário e Camponês surgiu em São Paulo logo nos primeiros meses
de 1928. Embora tenha havido durante esse período a criação de
comitês do BOC em várias capitais do Brasil, acredito que a secção
paulista desse partido revestia-se de uma importância maior, não só
porque vivia em São Paulo o maior contingente operário, mas tam-
bém por existir aí uma luta parlamentar intensa com um crescimento
considerável das fileiras do Partido Democrático. Nesse sentido, con-
tando com uma classe operária numerosa, o BOC não só poderia
organizá-la em torno de seu programa através da incorporação das
suas reivindicações, como também poderia mobilizá-la como força
política parlamentar nova para a oposição ao Partido Republicano.
Entretanto, diferentemente do Partido Democrático, o BOC pene-
trava na luta parlamentar não para assumir uma revolução que pas-
sasse ao largo dessa atividade política. Aproveitando o espaço aberto
pelo Partido Democrático, o BOC entrava na luta política propondo
uma revolução que não dissociava as formas de luta, procurando
definir uma direção política para o movimento de oposição ao Par-
tido Republicano, capaz de fazer convergir num só lugar as propos-
tas dos "revolucionários" e do Partido Democrático, isto é, o lugar
definido pela revolução democrático-burguesa.

suprimiu as vozes dos dominados, mesmo quando elas se expressaram em torno


da revolução democrático-burguesa do BOC, não resta dúvida que a afirmação
histórica dessa proposta teórico-prática de revolução também foi responsável,
na sua efetivação, pela supressão das vozes do proletariado quando estas fa-
lavam a clara linguagem do anarquismo. São demandas de poder próprias da
luta de classes do período de 1928, que não se tornam perceptíveis à luz da
historiografia que analisa o processo histórico a partir da memória da Revo-
lução de Trinta. Para a historiografia, em geral, a luta de classes, se é que
existiu, esteve reduzida à crise das oligarquias e à açl^o do movimento te-
nentista.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 101

Aqui volto a discutir a problemática da revolução democrático-


burguesa, pois foi em torno dela que o Bloco Operário e Camponês
elaborou a sua estratégia de luta política. Apesar da tradição leninista
ter colocado a questão dessa revolução no âmbito da direção política
do partido do proletariado — e com isso outras tendências políticas
estavam de acordo, como foi o caso de Rosa Luxemburgo — não
resta dúvida que a ênfase dada ao problema da liberação das forças
produtivas sobre a base capitalista através de uma revolução agrá-
ria, permite um desdobramento nessas proposições a ponto de de-
primir, consideravelmente, o problema de sua direção política. Em
outras palavras, se para Rosa Luxemburgo a revolução burguesa de
1905, na Rússia, representa definitivamente a abertura de um ciclo
de revoluções proletárias, sob a ótica leninista, embora houvesse ên-
fase na direção política do proletariado, esboça-se uma teoria da
revolução cujos desdobramentos axiomáticos procuram dar conta de
inúmeras formações sociais onde o desenvolvimento das forças pro-
dutivas capitalistas está obstaculizado. Há, portanto, ao contrário das
proposições de Rosa Luxemburgo, um lugar nessa teoria onde a
revolução democrático-burguesa pode ser definida a partir da suspen-
são do conflito entre o capital e o trabalho, através de uma revolução
agrária anti-feudal capaz de fazer confluir temporariamente as de-
mandas da classe operária em prol da liberação das forças produtivas
capitalistas. Dependendo do estágio de desenvolvimento dessas for-
ças, a burguesia industrial pode se tornar uma aliada do proletariado,
e, em outros casos, devido à "debilidade" daquela burguesia, inexiste,
simplesmente, o conflito entre o capital e o trabalho como contradi-
ção fundamental.37

Nesses dois polos da teoria da revolução democrático-burguesa,


o BOC jogou a sua sorte, apesar de em 1928 estar praticamente de-

27 Se a revolução democrático-burguesa, de acordo com a tradição leninista,


é uma dada direção política do partido do proletariado, isto é, uma dada
relação de forças no âmbito do capital e do trabalho, como conceber essa,
relação favoravelmente à classe operária e seu programa está submetido à j
do capital ao procurar acelerar o desenvolvimento das forças produtivas i
da revolução agrária? Além disso, com o deslocamento do problemas
política da revolução, não resta no final apenas uma teoria capaz de i
objetivamente os processos históricos? Este último procedimentos
daquela objetividade e racionalidade próprias do pensamento
já falou Lukacs.
102 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

lineada a estratégia de luta por uma revolução democrático-burguesa


e antiimperialista levada a cabo, fundamentalmente, pelo proletariado
e pelo campesinato. Apesar dessas resoluções sobre o caráter da re-
volução democrático-burguesa terem sido tomadas apenas em 1929,
por ocasião do Congresso da secção Sul-Americana da Internacional,
o BOC através de seu programa de lutas já deslocava do bloco de
alianças a burguesia industrial, que, por ser "débil", associava-se aos
setores agrários e aos interesses imperialistas. Em outras palavras, a
luta contra o capital deixava de existir no âmbito da revolução demo-
crático-burguesa e o conflito fundamental da luta de classes passava
a ser definido a partir da luta contra o feudalismo e o imperialismo,
duas forças que obstaculizavam o livre desenvolvimento das forças
produtivas. Tal concepção aparece bastante clara nas resoluções do
referido Congresso:

"Quais as perspectivas da América Latina? Temos a perspectiva de


uma revolução democrático-burguesa. Esta revolução é dirigida,
essencialmente, contra o feudalismo, pela ruptura das relações feu-
dais no campo, pela entrega da terra aos camponeses. Mas em
nossos países semi-coloniais, trata-se também de uma revolução
contra o imperialismo e a reação. Nos países latino-americanos,
a escassa burguesia industrial está ligada aos imperialistas e ao
feudalismo. Por isso, não desempenhará um papel revolucionário.
As únicas forças antiimperislistas são: em primeiro lugar os ope-
rários, depois os camponeses e por último uma parte de pequena
burguesia. Claro está que esta pequena burguesia oscila entre a
revolução e a reação, e constitui um aliado pouco seguro; mas
se o proletariado segue a seu respeito uma linha justa, desempe-
nhará um papel revolucionário, em certos períodos da revolução
democrático-burguesa." 28

Fundamentalmente, essa proposta de revolução encontrava, em


1928, no Brasil, um campo propício para as suas articulações. Defi-
nida desde o princípio como uma revolução agrária, podia se ar-
ticular com o movimento de oposição ao Partido Republicano, num
eixo de alianças que se dava no espaço genérico de uma luta anti-oli-
gárquica. A partir daí o BOC realizava a sua leitura da história. Pri-
meiramente periodizando a revolução democrático-ourguesa desde os

28 "El movimiento revolucionário latino-americano, SSA da IC, Buenos Aires,


1929". Documento citado por Boris Fausto. A Revolução de 1930 — Histo-
riografia e História. São Paulo, Brasiliense, 1972, p. 14.
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 103

movimentos de julho de 1924, definidos no âmbito da oposição como


núcleo fundador do combate às oligarquias. Em segundo lugar, reco-
nhecendo na luta dos "revolucionários" de julho de 1924 o cumpri-
mento das tarefas da revolução agrária contra o feudalismo e enten-
tendo a Coluna Prestes como precursora das revoltas do campesinato.
Em terceiro lugar, interpretando a luta anti-oligárquica como a cria-
ção do espaço nacional, subtraído dos povos pela política do impe-
rialismo.
Sem dúvida alguma, a proposta política do BOC deu substância
à revolução anti-oligárquica tão genericamente definida desde os po-
sicionamentos dos diversos atores políticos, fossem eles "revolucio-
nários" ou Partido Democrático. A leitura de revolução do BOC
possibilitou a qualificação da luta anti-oligárquica como luta contra
o domínio dos grandes proprietários de terra, satisfazendo nessa me-
dida amplos setores da sociedade que viam no Partido Republicano
o representante, por excelência, dos "latifúndios". Produziu, como
nenhuma outra proposta de revolução, "os revolucionários" como
sujeito político capaz de levar a cabo a luta contra o domínio dos
grandes proprietários. Qualificou o conjunto da luta política do pe-
ríodo de J928 como uma aliança de classes para a criação do espaço
nacional na etapa do imperialismo. Por último, deu o acabamento
completo à revolução contra o fantasma da oligarquia, qualificando-a
como uma oposição ao feudalismo e ao inimigo estrangeiro (grande
capital), banindo do cenário da luta de classes, pela "debilidade"
da burguesia industrial, o conflito fundamental entre o capital e o
trabalho. Nessa perspectiva, a concordância com as outras propostas
de revolução foi completa; nenhuma delas concebia a revolução con-
tra o fantasma da oligarquia, como uma revolução cujo eixo passasse
pela contradição entre o capital e o trabalho.
Por isso mesmo, a leitura do processo político pelo BOC, em
1928, foi substantiva, pois a direção política do movimento tinha to-
das as nuanças exigidas pelo campo da teoria da revolução demr
tico-burguesa. De ponta a ponta a luta política extravasou prõ"~
de revolução qus suspenderam ou anularam o conflito entre
e o trabalho. Mesmo as propostas políticas mais radicais
BOC, a de Maurício de Lacerda e a de Luis Carlos Pi
deram realizar uma revolução que apenas indiret
ao proletariado.
Havia sugerido, anteriormente, uma leitura da rei
104 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

a partir da ótica em que ela lê a história e propõe suas formas de


luta. Nesse sentido, aquelas discussões sobre os textos de Lenin po-
dem apontar a direção de uma outra leitura da revolução burguesa,
assumindo-a fundamentalmente como produção histórica da luta de
classes, como estratégia efetiva de um discurso político que se pro-
põe como condutor das práticas do proletariado. Nessa medida, seu
aparecer na luta de classes responde a uma determinada efetivação
das relações históricas e, nesse aparecer, o elemento distintivo dessa
teoria é a suspensão do conflito entre capital e trabalho como con-
tradição fundamental. Portanto, desde os textos de Lenin, aos quais
Rosa Luxemburgo sempre se contrapôs, mesmo admitindo uma dire-
ção política do partido do proletariado no encaminhamento da revo-
lução burguesa, ela, ao realizar as tarefas de burguesia, não pode
estar desenvolvendo uma luta contra o capital.
Por isso, acredito que o BOC leu de maneira exemplar a história
do período de 1928, como revolução democrático-burguesa, pois na-
quele momento todo o desenrolar da luta de classes apontava para
a suspensão do conflito entre o capital e o trabalho e a revolução era
definida para todos os agentes sociais como a luta contra o fantasma
da oligarquia. Entretanto, apesar de o Bloco Operário e Camponês
oferecer o suporte ideológico mais consistente para o movimento de
oposição, a prática cotidiana no interior da classe operária obrigou-o
a reconhecer a dura realidade da convivência com o capital.
A partir de 1928, o Bloco Operário e Camponês, reconhecido pelos
outros agentes políticos como o porta-voz do proletariado, passaria a
desenvolver uma prática política que o distanciava daquela sua pro-
posta de revolução democrático-burguesa. Por um lado, trabalhando
politicamente com õ intuito de deprimir a importância de outras ten-
dências do movimento operário e, por outro, sendo obrigado a se
consumir no encaminhamento do conjunto de reivindicações operá-
rias na luta contra o capital. Nesse sentido, consolidar a sua posição
frente à classe operária representava também transgredir as próprias
regras do jogo político, já que o temário da revolução, em 1928, não
suportava uma prática política que definisse seu eixo de luta a partir
do conflito entre o capital e o trabalho. Por isso, o Bloco Operário
e Camponês foi sendo progressivamente deslocado do acordo das
forças políticas de oposição. Esse deslocamento não pode ser pen-
sado como um incompatibilidade da proposta política do BOC com
as outras, de tendências menos radicais, como se aquela contivesse o
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 105

perigo de submeter as últimas. Pelo contrário, o deslocamento do


BOC do acordo das oposições se deveu muito mais ao fato de que,
progressivamente, a prática política da classe operária, em 1928, ex-
plicitou para os outros setores da sociedade uma possibilidade de
revolução cujo alcance ia muito além da genérica luta anti-oligár-
quica. Não é por mero acaso que a memória histórica da revolução
de trinta, constituída, fundamentalmente, sobre a luta contra o fan-
tasma da oligarquia, deixa divisar aos poucos a construção de um
outro inimigo — o comunismo.
Justamente por transgredir as regras do jogo político, o BOC, indo
além da mera atividade parlamentar e da luta eleitoral, tornou-se
progressivamente um elemento incômodo tanto para o governo do
Partido Republicano como para as várias tendências políticas da
oposição. Esses momentos de transgressão às normas do jogo polí-
tico, tais como a arregimentação do operariado em torno dos sin-
dicatos, a defesa intermitente das leis sociais e dos direitos políticos,
a criação da Confederação Geral do Trabalho, as greves operárias
de 1929, fizeram balançar todo o temário da revolução, obrigando as
forças políticas a redefinirem suas posições com relação ao prole-
tariado.
Se durante algum tempo o BOC foi uma força importante no
conjunto das oposições como agremiação parlamentar e eleitoral da
classe operária, a partir do momento que ele transgrediu decidida-
mente as regras do jogo político, mobilizando o operariado numa
greve de mais de 70 dias em São Paulo e organizando uma Confe-
deração Ceral do Trabalho com mais de 60 000 operários sindicali-
zados, esse mesmo movimento de oposição que já o havia visto co-
mo um interlocutor, ampliou a sua luta contra o fantasma da oligar-
quia, atribuindo a este a responsabilidade de fazer vistas grossas ao
perigo comunista.89
Existem, portanto, dois movimentos que devem ser apreendidos.
O primeiro deles refere-se à leitura da revolução democrático-bur- J .

guesa do Bloco Operário e Camponês. Nesse movimento o BOC M.


liza de ponta a ponta a efetivação das relações históricas do

29 Em São Paulo, depois da greve dos gráficos de 1929, o jornal


progressivamente suprimiu a seção Movimento Operário, do Bloco
Camponês e, em 1930, fazia propaganda declarada da Carta dei
fascismo italiano.
106 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

lismo no Brasil, num momento em que o imperativo maior do con-


junto da sociedade era superar os marcos históricos delineados pelo
fantasma da oligarquia. Nessa medida, podemos entender a transfi-
guração da luta de classes como combate às oligarquias, e a suspensão
do conflito entre o capital e o trabalho torna-se o eixo fundamental
do campo dos conflitos. Por isso mesmo, desde as várias propostas
de revolução, seja dos "revolucionários", seja do Partido Democrá-
tico, seja do BOC, a suspensão do conflito entre o capital e o tra-
balho constitui-se no dispositivo ideológico mais eficiente no momen-
to mesmo da efetivação das relações sociais. Quer se trate de pro-
postas de conciliação e de paz social via leis trabalhistas, ou de pro-
postas de revolução que deslocam o eixo da luta de classes para o
combate ao feudalismo e ao imperialismo, o problema é que todas
elas cumpriram naquele momento as exigências da expansão do pró-
prio capital, suspendendo por tempo indeterminado o conflito entre
o capital e o trabalho. A insistência em se deter na proposta política
do Bloco Operário e Camponês justifica-se, principalmente, porque
nela a suspensão por tempo indeterminado dessa contradição deveria
orientar a prática do próprio proletariado. Portanto, nesse primeiro
movimento não deixa de ser estratégico o fato de que a luta de clas-
ses tenha se transfigurado numa genérica luta contra o fantasma da
oligarquia que carregava em si mesma as imagens do atraso, da arti-
ficialidade, da negação da nacionalidade, etc. — e a proposta da re-
volução democrático-burguesa dava substância a esse imaginário, qua-
lificando-o inclusive como agrário-feudal, antinacional e subserviente
às forças do imperialismo.
Num segundo movimento, a efetivação dessa proposta de revolução
democrático-burguesa, fazendo aparecer para o conjunto da socieda-
de a prática política da classe operária, através de sua movimentação
autônoma, desvendou para os diversos agentes sociais a outra dimen-
são da luta de classes. Nesse movimento, no qual a arregimentação
operária extravasava o nível parlamentar e eleitoral para alcançar,
principalmente, a organização nas fábricas, nos sindicatos indepen-
dentes, explicitando suas resistêndas à submissão ao capital, o Bloco
Operário e Camponês não poderia se constituir num aliado da luta
contra as oligarquias, e as demandas de poder, nesse momento, apro-
ximavam tanto o movimento de oposição como o próprio governo.
Uns e outros, incapazes de incorporar a classe operária quando ela se
manifestava expressamente contra o capital, desvendam um conflito
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 107

que a luta política no período procurava ocultar. A partir daí, a


mobilização da sociedade em torno do movimento de oposição ou do
governo do Partido Republicano reduzia-se à questão de como im-
pedir, no decurso de um processo político, a emergência incômoda
da classe operária em sua luta contra o capital.
Se o conjunto da sociedade apresentou-se dividido no posiciona-
mento frente a uma revolução que iria combater a oligarquia, o
mesmo não aconteceu quando um outro fantasma, o do comunismo,
invadiu a cena da história. Tanto o governo do Partido Republicano
como o movimento de oposição, sob perspectivas diferentes, mobili-
zaram a sociedade para deprimir, desde os primeiros movimentos, a
organização política da classe operária na sua luta contra o capital.

O movimento de memorização
Talvez agora seja possível avaliar a força da idéia de revolução de
trinta — constituída no interior da luta de classes — como um marco
divisor da história do Brasil, pelo qual os vencedores julgaram todo
o passado, definindo desde o princípio, inclusive, o inimigo que essa
revolução abateu: o fantasma da oligarquia. Lugar onde se ocultou
a luta de classes, essa memória histórica de um processo político em
curso pelo menos desde 1928, dificulta sobremaneira acompanhar o
percurso percorrido pelas classes sociais e definir o conjunto dos ven-
cedores da luta. Idéia elaborada no interior do processo político onde
as classes sociais entrechocaram-se e constituíram-se, a revolução de
trinta, como imaginário dessa sociedade, foi também parte do exer-
cício de dominação tanto no início do processo, quando ela se en-
gendrava na idéia de uma revolução contra a oligarquia, como no
.final quando apareceu apropriada pelo sistema de poder dos ven-
cedores.
Ao referir-me à dificuldade de se acompanhar o percurso das clas-
ses sociais e a composição política dos vencedores, não estou apenas
afirmando que a luta de classes não se explicita na revolução xde
trinta, porque esta é uma idéia constituída no interior da li
reforço também o fato de que as correlações de poder
no interior do processo político não são explicáveis se não
por dentro esse imaginário, ou essa memória histórica. Para
nas um exemplo, situo o problema da proposta de revol
108 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

Como criação, desde 1928, de novas demandas de poder no interior


do movimento operário e da sociedade, que novas correlações de
força engendrou a partir do momento em que se homogeneizava para
todos os agentes sociais a idéia de revolução de trinta? Como uma
proposta política de revolução democrático-burguesa, que deu con-
teúdo ao temário genérico da revolução contra as oligarquias, tor-
nando-se vitoriosa no interior do1 movimento operário, acabou sen-
do suprimida na memória histórica constituída no transcorrer daquele
processo histórico? Sob que ângulo é possível analisar no decorrer do
processo histórico, o campo dos vencedores e dos perdedores? Teria
sido possível a constituição tão sólida de um inimigo comum, as oli-
garquias, se não tivesse existido na luta uma proposta política como
aquela do Bloco Operário e Camponês? O sujeito político daquela
genérica revolução, contra as oligarquias, os "revolucionários" —
transfigurados pela historiografia no tema do tenentismo — poderia
ter existido sem a proliferação dos discursos sobre a revolução de-
mocfático-burguesa, emitidos pelo BOC e incorporados por outras
propostas, como aquela de Maurício de Lacerda? Teria o sistema
de dominação condições de homogeneizar a idéia de uma revolução
de trinta para todos os agentes sociais, inclusive para o proletariado,
se este não tivesse lutado pelo menos durante uma parte desse pro-
cesso por uma revolução que iria decretar o fim do domínio das
oligarquias?
Essas e u-^Mtras questões são suscitadas quando se caminha para
a desmontagem a*.'* memória histórica de revolução de trinta. E se
alguma resposta é possiv.: ,1 „ „ ss ,, s e outras questões, talvez seja aque-
la que aponte a memória histórica Gc,„ revoiução de ^ t a como 0
imaginárip de uma sociedade que, institua M{( S(jb Q s i g n Q d a d i v i s ã 0 j
colocou como imperativo uma "revolução reo->ntora» g n e s t a ^
cega, procurando dissimular o conflito entre o ca, ^ e q trabalho
fez de sua "vontade" uma contabilidade geral en ; f a y ( ) r d a s ^ ^
dominantes.
A revolução de trinta como memória hisl ó r i c a d o v e n c e d o r d a
luta, fazendo parte do exercício de dominaç? Í Q e d i f í c a Q ^ ^ aQ
mesmo tempo que refaz o passado, qualií i c a n d o t a n t Q o s a g e n t e s
como o seu próprio sentido. Toda a histórr a t r a n s c o r r i d a a t é t r i n t a é
memorizada pelo vencedor como uma lv i t a e n t r e d o i s a g e n t e s SQ_
ciais, os revolucionários e a oligarquia. Q s p r i m e i r 0 S ) d e s d e a m e .
nória histórica, como vitoriosos, decid i i n d o Q s e n t i d o d o p a s s a d Q (
O SILÊNCIO DOS VENCIDOS 60 62

estão do lado da história, e os últimos, como inimigos da revolução,


obstaculizam a própria história e, portanto, foram destruídos pela
"lógica da situação". Contudo, se esta memória histórica representa
não apenas o refazer do passado sob a ótica do vencedor, mas tam-
bém o seu fazer a política, como avaliar os perdedores da luta?
Seria possível imputar aos perdedores responsabilidades que te-
riam existido apenas na memória histórica que comanda o exercício
de dominação? Ou melhor, seria possível avaliar os perdedores pela
ótica de revolução de trinta, sabendo que esta é a reconstrução do
passado no momento mesmo que o poder decide sobre o futuro da
dominação?
No nível da própria história, parceiros e inimigos da revolução
de trinta já foram julgados por ela no sentido de que todos os agentes
sociais polarizados no campo dos "revolucionários" ou das oligar-
quias jogaram a favor ou contra o sentido da história que um sistema
de dominação começava a construir. Contudo, se esta é a lógica do
processo histórico em torno de trinta, em nada se justifica uma histo-
riografia que julga os agentes sociais a partir daquela memória his-
tórica.
Nesse sentido, as análises que julgam as classes sociais, principal-
mente o proletariado e a burguesia industrial, por não terem produ-
zido a revolução de trinta, cometem equívocos irreparáveis. Por um
lado, aceitando revolução de trinta como um "fato", quando esta é
a produção da memória histórica de um processo político e idéia
central do sistema de poder organizado pelos vencedores da luta.
Por outro, desconhecendo como o movimento operário, representado
pelo Bloco Operário e Camponês, ao contribuir para a construção
de uma idéia de revolução anti-oligárquica, solidificou também a
própria memória histórica, anulando a classe operária como agente
daquela revolução. Por último, desconhecendo que a burguesia in-
dustrial não poderia ter produzido a revolução de trintâ, pois na-luta
política do período a construção dessa idéia de revolução pass~
por fora dessa fração de classe.
Gostaria de chamar a atenção para este último problema. Inv
velmente, a historiografia julga a burguesia industrial a partir^
lução de trinta. Tomando revolução de trinta como um"'
divide cronologicamente a história do Brasil, num ante8 *
revolucionário — haja vista, inclusive, que o período?'"
nido como "República Velha", já que tal revolu^n
110 t.vGAR SALVADORI DE DECCA

vo" —, a historiografia realiza sobre este "fato" outras polarizações,


entre as quais a mais corrente é a da economia agro-exportadora x
industrialização. Assim, dependendo das aproximações analíticas que
se realizam em torno daquele "fato", a burguesia industrial aparece
como "progressista", pois direta ou indiretamente, ajudando a pro-
duzi-lo, ela contribui para a liquidação das oligarquias e da economia
agro-exportadora. Sob outros enfoques, a burguesia industrial apare-
ce longe desse "fato" e como ele é responsável — segundo alguns
autores — pela mudança do eixo da economia brasileira, essa fração
de classe vai aparecer qualificada como "débil" ou "não consti-
tuída".
Sem considerar que essas análises levam implicitamente um mo-
delo de sociedade e economia plenamente desenvolvidas e por isso
mesmo, como já discutiu Marilena Chaui, imputam aos agentes so-
ciais e a essa sociedade os qualificativos de "atrasado", "frágil", "dé-
bil", etc., ainda assim parece problemático o julgamento de todos os
agentes sociais pela ótica, ou se se quiser, pela memória histórica, do
vencedor da luta do período em torno de trinta.
Tal procedimento de análise dificulta, inclusive, perceber o per-
curso das classes sociais no desenrolar do processo histórico, pois o
mesmo fica reduzido à prática dos grandes agentes definidos naquela
memória histórica — tenentes e oligarquias.30
Portanto, depois dessas rápidas considerações, gostaria de suge-
rir uma análise da burguesia industrial em torno de trinta sem julgá-
la à luz da memória histórica de revolução de trinta e tentar perce-
ber a prática política dos industriais num processo que, embora tendo
ocultado o conflito entre o capital e ò trabalho, nem por isso deixou
de vivê-lo à luz de seus agentes sociais. Espero trazer à análise alguns
temas que polarizaram tanto a burguesia industrial como o opera-
riado e que, contudo, permaneceram submersos sob o espesso véu
da memória histórica de revolução de trinta.

30 Não é de se estranhar que boa parte da historiografia sobre Revolução de


Trinta venha carregada de "grandes personagens" pligárquicas ou "revolucioná-
rias": Antonio Carlos, Borges de Medeiros, Júlio Prestes, Arthur Bernardes,
Assis Brasil, Luis Carlos Prestes Isidoro Dias Lopes,e muitos outros, dando a
impressão de que a história do período não é produzida pelas classes sociais.

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