A ideia original de metabolismo social se deve à Karl Marx (FOSTER, 2011). O metabolismo,
segundo sua concepção, corresponde ao processo de trabalho pelo qual a sociedade humana
transforma a natureza externa e, ao fazê-lo, transforma sua natureza interna. Os efeitos do
processo de trabalho sobre a natureza interna condicionam as relações sociais de produção.
Em suas palavras, Marx ensina que acima de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e
a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu
metabolismo com a natureza (MARX, 1983, p. 149). Essa fecunda intuição no emprego de um
conceito oriundo das ciências naturais para a análise dos sistemas econômicos foi
desenvolvida nas últimas décadas por economistas ecológicos, sobretudo após as
formulações de Geogescu-Roegen (1973) sobre a natureza entrópica dos sistemas
econômicos convencionais. Segundo a perspectiva do metabolismo social, as relações entre a
humanidade com o restante da natureza são analisadas como um sistema econômico-
ecológico composto por cinco principais processos metabólicos: apropriação, transformação,
circulação, consumo e excreção. O emprego de enfoque analítico descortinou novas
perspectivas para a articulação entre as ciências naturais e as ciências sociais, deixando claro
que a ideia de metabolismo não é uma simples metáfora. Entre outros aspectos, essa nova
perspectiva interdisciplinar tem contribuído para uma melhor compreensão dos processos
históricos, demonstrando objetivamente a forte correlação entre a insustentabilidade
ecológica e a desigualdade social nos modelos de desenvolvimento dominantes (MARTINEZ-
ALIER, 2005).
Codomesticação e coprodução
Analisando por esse prisma, a agricultura pode ser definida como a gestão social de
ecossistemas ecologicamente imaturos com o objetivo de explorar economicamente
as altas taxas de produtividade primária líquida encontradas nos estágios prematuros
de sucessão ecológica.i No entanto, essa vantagem econômica alcançada com a
manutenção da imaturidade dos ecossistemas entra em conflito com a desvantagem
ecológica gerada pela interferência nos processos naturais responsáveis pela
reprodução da integridade estrutural e da dinâmica funcional da natureza. Isso porque
bondades da naturezaii essenciais à agricultura, como a fertilidade do solo (e sua
contínua regeneração) e a regulação/controle de populações de espécies
espontâneas, são reduzidas ou mesmo eliminadas com o aumento da imaturidade
ecológica dos agroecossistemas.iii
A história das agriculturas no mundo pode ser interpretada à luz dessa contínua
tensão entre a economia e a ecologia dos ecossistemas cultivados. Mazoyer e
Roudart (2001) realizaram uma brilhante análise dessa perspectiva histórica,
demonstrando como diferentes agroecossistemas do planeta foram moldados e
evoluíram a partir de dinâmicas de coprodução socioecológica. Nessas dinâmicas, o
trabalho humano e o trabalho da natureza integram-se e influenciam-se mutuamente
no sentido de mobilizar e combinar as bondades da natureza para atender
simultaneamente a objetivos ligados à produção econômica e à reprodução ecológica.
Em seu livro seminal A Grande Transformação, Karl Polanyi (2000) analisou como as
trocas mercantis passaram a exercer crescente influência na regulação dos fluxos
metabólicos a partir do século XVIII em detrimento das relações de reciprocidade
(entre os seres humanos e destes com a natureza). O passo essencial para essa
mudança histórica foi a criação de instituições sociais que permitiram que parcelas
crescentes da natureza fossem valorizadas e intercambiadas através dos mercados.
Com isso, o trabalho humano e a terra passaram a ser concebidos como mercadorias,
ou seja, como se fossem produzidos para a venda. Nas palavras de Polanyi, o
pressuposto é tão utópico em relação à terra como em relação ao trabalho. A função
econômica é apenas uma das funções vitais da terra. Esta dá estabilidade à vida do
homem... separar a terra do homem e organizar a sociedade de forma tal a satisfazer
as exigências de um mercado imobiliário foi parte vital do conceito utópico de uma
economia de mercado (POLANYI, 2000 p. 214).
Não cabe aqui entrar em detalhes sobre as condições que proporcionaram a virada
institucional que abriu o caminho para a emergência histórica e a disseminação global
do capitalismo. Essa grande transformação não se processou como uma ruptura
histórica, mas veio se delineando desde o início do século XVI, quando começa a se
estabelecer, pela primeira vez, uma economia-mundo (WALLERSTEIN, 1974).
Para fazer frente à exaustão dos recursos e aos mecanismos de resiliência ecológica,
assegurando a continuidade da dinâmica expansiva do capital, um amplo repertório de
estratégias de apropriação das bondades da natureza foi (e permanece sendo)
desenvolvido.xi
Cabe aqui lembrar que o período de arranque desse novo modo de produçãoxii ocorreu
na era de expansionismo europeu (BRAUDEL, 1997), quando vastas extensões
territoriais foram incorporadas à fronteira de apropriação por meio do extrativismo
predatório (de madeira e de minerais) e da transformação de ecossistemas em
agroecossistemas monocultores de grandes extensões territoriais.xiii Além da
expansão geográfica das fronteiras de apropriação, fato até hoje presente em várias
regiões do planeta, como a Amazônia brasileira, esse repertório inclui o
desenvolvimento de novos conhecimentos e tecnologias voltados à identificação,
codificação e racionalização das bondades da natureza de forma a incorporá-las no
processo de produção de riquezas.xiv
A materialização dessa promessa se daria com o emprego racional das terras e dos
demais recursos produtivos, com a garantia da produção de alimentos necessários a
uma população mundial em acelerado crescimento vegetativo, com a geração de
divisas para as economias nacionais e regionais e com a articulação social e
econômica do setor agrícola à dinâmica geral de desenvolvimento das sociedades
modernas. Esses efeitos combinados seriam alcançados a partir da generalização de
uma nova matriz tecnológica que, em síntese, combina cinco práticas principais: 1) a
fertilização química e o emprego de rações industriais e hormônios de crescimento; 2)
o controle químico de insetos-praga e doenças; 3) o revolvimento intensivo dos solos;
4) a irrigação intensiva; e 5) a manipulação dos genomas de plantas e animais
domésticos.
Embora cada uma dessas práticas exerça funções específicas na dinâmica ecológica
dos agroecossistemas, elas só se tornam funcionais se empregadas em diferentes
combinações com as demais. Essa interdependência molda o desenvolvimento de
sistemas técnicos poucos flexíveis, desenvolvidos para serem disseminados de forma
universal na forma de pacotes tecnológicos (PETERSEN et. al., 2009).
A noção de agricultura moderna que se impõe reflete uma ativa negação da agricultura
tradicional e da arte da localidade (SHULTZ, 1965).xxi Com isso, o processo de
modernização passa a ser assimilado como um movimento progressivo em direção a
formas tecnológica e institucionalmente mais complexas e integradas da sociedade
moderna (LONG e PLOEG, 2011). A ideia de modernizar a agricultura assume o
sentido equivalente ao de integrar os agroecossistemas ao mercado a montante, pela
dependência de insumos e equipamentos industriais, e a jusante, pela ampliação da
escala de produção comercial. Dessa forma, tanto os produtos agrícolas como os
recursos necessários à sua produção assumem a racionalidade da mercadoria.
Frente aos novos arranjos institucionais que favoreceram a intensificação dos fluxos
globais de capital financeiro, os sistemas agroalimentares tornaram-se uma arena
propícia na qual empresas do setor agroindustrial passaram a disputar posição de
hegemonia. Valendo-se de oferta praticamente ilimitada de crédito no mercado
financeiro, grandes conglomerados transnacionais se estruturaram por meio de
aceleradas séries de apropriações de pequenas e médias empresas e fusões entre
grandes empresas.
Tendo recebido por parte dos Estados nacionais amplo apoio político, ideológico,
financeiro e, em muitas situações, militar, o projeto de modernização disseminou-se
territorialmente gerando acelerados processos de descampesinizaçãoxxvii tanto nos
países do Norte quanto nos do Sul. Para Hobsbawm (1994, pp. 288-9; apud
BERSTEIN, 2009) a mudança mais dramática na segunda metade deste século
[século 20], e aquela que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do
campesinato. Em sintonia com o eminente historiador inglês, amplos círculos
acadêmicos e políticos prognosticaram o fim dos camponeses (MENDRAS, 1967)
como um destino inelutável diante do avanço do capitalismo no campo.
A realidade empírica, no entanto, demonstra que a história agrária mundial não seguiu
os destinos teoricamente preestabelecidos com base nos supostos do paradigma da
modernização. No lugar de um roteiro único de desenvolvimento rural determinado
pelas forças dos mercados globalizados e globalizantes, o que se assiste em todas as
regiões do planeta é o desdobramento de trajetórias heterogêneas de
desenvolvimento dos agroecossistemas influenciadas por roteiros escritos localmente,
a partir das múltiplas e criativas formas de resistência e de luta por emancipação da
agricultura camponesa.xxviii Um elemento central nessas formas de resistência e luta é
a contínua construção, aperfeiçoamento, ampliação e defesa de bases de recursos
locais autocontroladas, compostas pela articulação recíproca entre bondades da
natureza e dispositivos institucionais de integração social.
Por mais irrelevantes que essas resistências possam parecer quando analisadas
isoladamente, em conjunto, suas práticas apontam caminhos consistentes para a
construção de soluções locais para os graves problemas globais gerados pelos
modernos sistemas agroalimentares. Essas práticas reproduzem metabolismos
agrários relativamente autônomos e sustentáveis, moldados por arranjos técnico-
institucionais que organizam o trabalho humano segundo fundamentos-chave também
presentes na organização do trabalho da natureza: diversidade; natureza cíclica dos
processos; flexibilidade adaptativa; interdependência; e vínculos de reciprocidade e de
cooperação.
Esse conjunto de fundamentos está inscrito nas memórias bioculturais (ou repertórios
culturais) de famílias e comunidades camponesas. Ao mesmo tempo em que colocam
em xeque os postulados econômicos, agronômicos e sociológicos da modernização,
sua aplicação prática no processo de trabalho agrícola favorece a reconciliação entre
as (agri)culturas e as naturezas como elementos que se estruturam dialeticamente,
revalorizando as dinâmicas descentralizadas de coprodução que alimentaram a
heterogênese do mundo por milênios (PETERSEN, WEID, FERNANDES, 2009).
Ao reatar os vínculos de reciprocidade nas trocas sociais e nas trocas com a natureza,
o enfoque agroecológico contribui para o enraizamento das economias rurais (sentido
Polanyi) no capital social e no capital ecológico, destruindo o poder imperial do capital
financeiro sobre o metabolismo dos sistemas agroalimentares. Desse ponto de vista, a
agroecologia aponta caminhos fecundos para o desenvolvimento rural endógeno
(PLOEG; DIJK, 1995).
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i
Ecossistemas ecologicamente imaturos possuem taxas de produtividade líquida superiores às dos
ecossistemas maduros. Nos estágios sucessionais mais avançados (maior maturidade), a energia solar
captada pela fotossíntese é canalizada principalmente para a reprodução do próprio ecossistema,
resultando em baixas taxas de acúmulo de biomassa.
ii
Para os povos originários andinos, as bondades da natureza correspondem ao que a economia
ambiental conceitua como recursos naturais e serviços ecológicos (ou ecossistêmicos).
iii
Quando comparados com ecossistemas de elevada maturidade ecológica, os ecossistemas imaturos
possuem ciclos de nutrientes mais abertos e exibem flutuações populacionais mais pronunciadas e
imprevisíveis (DOVER e TALBOT, 1992). Essas características ecológicas dos agroecossistemas desafiam a
inventividade de agricultores há milhares de anos no sentido de desenvolverem estratégias técnicas
voltadas à reposição da fertilidade ambiental e à manutenção da sanidade de cultivos e criações.
iv
Além de produzirem espécies localmente domesticadas (sobretudo cereais), a reposição de fertilidade
nos agroecossistemas de agricultura aluvial se fazia pela deposição de sedimentos carreados pelas
cheias dos rios.
v
Nesse caso, as vantagens da imaturidade ecológica dos ecossistemas são exploradas por um tempo
limitado, a partir do qual a produtividade econômica decresce. Esse é o momento no qual o ecossistema
é deixado em pousio para que o processo de sucessão ecológica recomponha a fertilidade ambiental.
vi
Embora sejam responsáveis pela conservação das paisagens rurais há gerações, muitas dessas
comunidades vêm sendo impedidas de adotar o sistema de pousio por legislações ambientais
concebidas segundo uma perspectiva preservacionista, ou seja, aquela que separa a natureza da
sociedade como estratégia de preservação ambiental. A contradição dessa estratégia vem do fato de ela
penalizar as comunidades que atuaram por gerações como guardiães da biodiversidade e dos serviços
ecológicos associados.
vii
Essa organização corresponde à coordenação dos movimentos de bens e serviços no interior da
sociedade visando superar o efeito dos diferenciais de tempo, espaço e ocupação... Segundo o autor as
diferenças regionais num território, o intervalo temporal entre o plantio e a colheita ou a especialização
do trabalho são superados por movimentos das colheitas, das manufaturas ou do trabalho, de modo a
tornar mais eficaz a sua distribuição (POLANYI, 2012, p. 83).
viii
As instituições são as regras do jogo em uma sociedade (NORTH, 1990) e correspondem à parte
intangível do metabolismo socioecológico (GONZÁLEZ DE MOLINA e TOLEDO, 2011). Isso significa dizer
que os padrões metabólicos em uma dada sociedade são condicionados pela combinação de um
hardware (a materialidade biofísica dos fluxos de matéria e energia) e de um software (as regras da
organização social).
ix
Cada sociedade define suas prioridades decidindo que coisas e que relações têm valor. Suas regras
para a produção de riqueza (e para a reprodução do poder) são condicionadas por esse julgamento
ético-político socialmente consensuado. No capitalismo, o valor é determinado pela produtividade do
trabalho remunerado na produção de mercadorias. A peculiaridade da economia de mercado é que o
reconhecimento social do trabalho e o valor dos seus produtos são determinados por uma estrutura
institucional que adota o dinheiro como o principal elo de integração social.
x
Após esse período, escalas equivalentes de desmatamento que ocorriam em séculos passaram a
ocorrer em décadas ou em anos. Para tomar um exemplo: duzentos anos foram necessários para
desmatar 12 mil hectares no norte da França a partir do início do século 12. Quatrocentos anos após,
por volta de 1650, a mesma superfície poderia era desmatada em apenas um ano para o plantio de
cana-de-açúcar na Mata Atlântica brasileira (MOORE, 2007).
xi
Além da apropriação do trabalho da natureza, a reprodução do capital depende da apropriação do
trabalho humano não-remunerado necessário ao funcionamento do sistema econômico como um todo.
Isso se aplica especialmente aos trabalhos dedicados à reprodução social que, em grande parte, são
executados pelas mulheres. Decorre daí a crítica ao capitalismo elaborada pela Economia Feminista
(MIES, 1986 apud MOORE, 2015). A apropriação dos frutos do trabalho camponês também exerce
função importante em uma economia de mercado (WANDERLEY, 1985). Portanto, a reprodução do
capital depende da permanente atualização das estratégias de exploração (do trabalho humano
remunerado) e de apropriação (do trabalho da natureza e do trabalho humano não-remunerado).
xii
Modo de produção, no sentido elaborado por Karl Marx (1867/2014), ou seja, o conjunto de relações
entre os agentes da produção e entre eles e a natureza.
xiii
Cabe relembrar igualmente que esse período de rápida ampliação das fronteiras de apropriação
ecológica ocorreu de forma concomitante com o aumento da fronteira de exploração social por
intermédio da mobilização trabalho escravo nas colônias europeias. Sem lugar a dúvida, a combinação
de largas fronteiras de apropriação ecológica e de exploração social proporcionou níveis sem
precedentes de acumulação de capital (e de poder), pavimentando o caminho para o desenvolvimento
das bases institucionais do capitalismo (BRAUDEL, 1997).
xiv
A imposição global de um sistema de pesos e medidas foi condição necessária para que as bondades
da natureza pudessem ser padronizadas e quantificadas, viabilizando a valoração e o intercâmbio das
mesmas por meio de regras mercantis. O alargamento das fronteiras de apropriação dependeu,
portanto, da criação e da imposição de linguagens universais para a racionalização da natureza, tais
como o sistema métrico (ALDER, 1995). É nesse sentido que Marx (1867/2014) reconhecia a ciência
moderna como uma força produtiva comandada pela lógica da reprodução do capital.
xv
Metaforicamente, os combustíveis fósseis correspondem à fotossíntese engarrafada há
milhões de anos. Segundo a Segunda Lei da Termodinâmica (lei da entropia), uma vez
utilizada, i.e, desengarrafada, a energia fóssil se dissipa, não podendo ser reaproveitada
posteriormente em outro processo de trabalho.
xvi
A revolução industrial pode ser compreendida como uma emergência histórica resultante da
interação de dois processos: a revolução burguesa e a revolução científica, sendo a primeira entendida
como a imposição da racionalidade instrumental dos mercados à organização da vida social e a última
como a predominância da visão da natureza como um sistema dotado de uma estrutura racional
(FURTADO, 1978).
xvii
A rápida disseminação desse projeto nos países do Terceiro Mundo ocorreu a partir nos
anos 1950, nos marcos da chamada Revolução Verde, processo cuja denominação não deixa
margem a dúvidas quanto ao seu caráter eminentemente político e ideológico. O verde dessa
revolução reflete uma contraposição ao perigo vermelho, sobretudo após a Revolução
comunista na China, em 1949, de traços marcadamente camponeses.
xviii
Informada pelo paradigma mecanicista, a Agronomia moderna concebe a natureza como o cenário de
um teatro cartesiano que pode ser decifrado e controlado com o auxílio de funções de produção (PLOEG,
2003). Fundamentadas no método paramétrico, essas funções especificam relações lineares entre o
emprego de níveis variados de insumos e a obtenção de níveis correspondentes de produção. Dessa
forma, buscam definir os níveis ótimos de utilização de insumos, tendo como objetivo a maximização
econômica dos resultados da produção. As práticas associadas à noção de agricultura de precisão são a
expressão máxima da influência do paradigma mecanicista à gestão dos agroecossistemas.
xix
As produtividades médias dos campos comerciais de milho norte-americanos mais que
quadruplicaram entre 1935 e 1980 com o emprego das variedades híbridas (KLOPPENBURG, 1988).
xx
Ao tornar supérfluas as variedades e raças locais, os pacotes tecnológicos da modernização
desencadeiam acelerados processos de erosão genética, destruindo verdadeiros patrimônios
bioculturais construídos no decorrer de milhares de anos em todas as regiões do planeta a partir do
trabalho parcimonioso de agricultores em sua íntima interação com as dinâmicas da natureza.
xxi
Theodore Shultz, um dos mais proeminentes teóricos do paradigma da modernização explicita essa
concepção já nas primeiras linhas de seu mais conhecido livro: o homem que exerce atividade agrícola
de maneira idêntica à de seus antepassados não pode produzir muitos alimentos, apesar da riqueza da
terra ou da intensidade de seu trabalho. […]O propósito deste estudo é mostrar que há uma base
econômica lógica, em razão da qual a agricultura tradicional, empregando apenas os fatores de
produção à sua disposição, é incapaz de crescimento... (SHULTZ, 1965: pp.15 e 17).
xxii
Além da continuidade da expansão horizontal das fronteiras de apropriação com a
incorporação de novos territórios à racionalidade econômica da agricultura capitalista, o
projeto de modernização permitiu que as fronteiras também se expandissem em sentido
vertical, com a mobilização de recursos minerais – combustíveis fósseis, água e rochas
fornecedoras de nutrientes – através dos fluxos metabólicos.
xxiii
Na prática, os impérios alimentares se materializam na conquista de territórios que mantinham
relativa autonomia na regulação de seus sistemas agroalimentares e os articula por meio dos fluxos
metabólicos comandados pela lógica do capital financeiro, assegurando dessa forma o controle e a
capacidade de apropriação das riquezas geradas nas etapas de produção, de processamento e de
distribuição de alimentos. Segundo Ploeg (2008), o que especifica e assegura o poder imperial sobre o
metabolismo dos modernos sistemas agroalimentares é a conjugação de dois princípios ordenadores: a)
os fluxos financeiros globais, viabilizados pela desregulamentação dos mercados internacionais; b) a
lógica de linha de montagem imposta no encadeamento entre a produção e o consumo de alimentos,
viabilizada pela normatização de procedimentos técnicos cientificamente caucionados e por regras
político-institucionais impostas de forma indiferenciada a distintos contextos socioambientais e
culturais.
xxiv
A mobilidade do capital possibilita a conversão do capital investido em bens materiais em
dinheiro para sua posterior transferência a outras aplicações. De acordo com Delgado (2012
pp. 45 e 46), a função básica da circulação financeira é a de retransformação do capital,
descongelando-o de suas aplicações fixas, para fazê-lo circular no circuito financeiro... Desse
ponto de vista, sob a égide do capitalismo, os fluxos de matéria e energia e os fluxos de capital
conformam uma totalidade orgânica, na qual um fluxo implica o outro.
xxv
O surgimento de plantas espontâneas tolerantes aos herbicidas e de microrganismos patogênicos
resistentes aos antibióticos talvez sejam os exemplos mais visíveis da capacidade de reação da natureza
aos mecanismos de dominação ecológica impostos pelas tecnologias da agricultura industrial. Diante
dessa rebelião da natureza, os agroecossistemas tornam-se cada vez mais dependentes de insumos (e
energia) externos para que as quedas de produtividade nas lavouras e criatórios comerciais sejam
evitadas (ao menos temporariamente).
xxvi
A intensidade energética – e química – do metabolismo industrial, bem como a eliminação da
cobertura vegetal nativa para a expansão de monoculturas em vastos territórios concorrem para os
altos níveis de contaminação tóxica, de eutrofização de corpos d’água e de emissão de gases de efeito
estufa.
xxvii
Os processos de descampesinização ocorrem quantitativa e qualitativamente. O primeiro caso
corresponde à disseminação agroecossistemas geridos pela lógica capitalista em territórios antes
ocupados por agroecossistemas geridos pela lógica camponesa. O segundo, refere-se à crescente
mercantilização dos agroecossistemas de gestão camponesa.
xxviii
Essa capacidade resistência camponesa ao avanço dos processos de mercantilização na agricultura
foi identificado ainda no primeiro quarto do século 20 por Chayanov (1981 [1924]), segundo o qual,
embora os agroecossistemas de gestão camponesa sejam influenciados pelo contexto capitalista em
que operam, não são diretamente governados por eles (PLOEG, 2013).
xxix
A Agroecologia fundamenta-se no emprego de genótipos adaptados aos contextos
socioecológicos locais para a estruturação de agroecossistemas biologicamente diversificados
e complexos, compostos por policultivos, sistemas agroflorestais, integração cultivos-criações
e outras estratégias voltadas ao estabelecimento de sinergias e complementariedades entre os
componentes bióticos. Por meio dessas estratégias, a radiação solar, a água e os nutrientes
localmente disponíveis e os processos naturais de regulação biótica (de populações de insetos-
praga, plantas espontâneas e microrganismos patogênicos) são valorizados no processo de
trabalho agrícola, reduzindo ou eliminando a necessidade do aporte de insumos externos para a
reprodução dos agroecossistemas.
xxx
O enfoque dominante nas ciências agrárias orienta-se para solucionar problemas específicos dos
agroecossistemas, tais como a incidência de insetos-praga e organismos patogênicos, as deficiências de
nutrientes, de água e de outros fatores de crescimento. Esses problemas específicos são considerados
fatores limitantes da produtividade física e devem ser resolvidos por tecnologias específicas passíveis de
generalização para os mais diversos contextos socioecológicos por meio dos pacotes tecnológicos. A
agroecologia parte da compreensão de que esses problemas não são causas, mas sintomas de
desequilíbrios sistêmicos. O enfoque do manejo agroecológico está voltado ao estabelecimento e à
manutenção de processos ecológicos locais capazes de reproduzir a fertilidade sistêmica. Desse ponto
de vista, a agroecologia fundamenta-se em uma crítica radical à epistemologia mecanicista responsável
pela consolidação de uma representação da natureza nas ciências agrárias incompatível com as
racionalidades econômico-ecológicas presentes da agricultura camponesa.
xxxi
Segundo a Perspectiva Multinível de análise de transições sociotécnicas, esses ambientes
sociais podem ser assimilados a nichos de inovação, ou seja, como redes sociotécnicas multi-
atores que se diferenciam dos ordenamentos prevalecentes no regime sociotécnico
dominante, configurando-se como espaços protegidos onde novidades podem amadurecer por
meio de ciclos sucessivos de experimentação e aprendizado (Wiskerke e Ploeg, 2004).
xxxii
A forma como a origem de uma crise é conceituada relaciona-se aos meios escolhidos para enfrentá-
la. É nesse sentido que MOORE (2015) chama a atenção para a imprecisão conceitual da chamada era do
Antropoceno, uma vez que essa designação contribui para ocultar as estruturas de poder efetivamente
responsáveis pelos efeitos negativos da emergência histórica e disseminação global do metabolismo
industrial. Colocando o dedo na ferida, o autor se pergunta se não seria mais adequado designar esse
período histórico de Capitaloceno. Segundo esse ponto de vista, a convergência e o alastramento de
crises não podem ser compreendidos sem que seja considerado o progressivo fechamento das
fronteiras de apropriação das bondades da natureza resultantes da acumulação ilimitada do capital. Se o
capitalismo é uma economia de custos não pagos, as contas estão vencendo (Idem p. 276).