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LIVRO 3

P r át i cas C o rp o r ais , C ul tur a e


D ive rs i da de

Marta Genú Soares


Meriane Conceição Paiva Abreu
Carla Loyana Dias Teixeira
Organizadoras

CCSE / UEPA
Belém - PA / 2018
© Todos os direitos reservados ao Grupo de Pesquisa RessignificaЯ.

Este livro ou parte dele pode ser reproduzido por


qualquer meio mantida a fonte de origem.

A responsabilidade pelas opiniões expressas nos


capítulos é exclusivamente incumbida aos autores assinantes.

C oleção For mação e Pro dução e m Educação


Diretora da Coleção: Marta Genú Soares
Coordenação Acadêmica do Livro 3: Marta Genú Soares
Organizadoras do Livro 3: Marta Genú Soares, Meriane Conceição
Paiva Abreu e Carla Loyana Dias Teixeira
Ilustração e Editoração: Emerson Duarte Monte
Revisão do Inglês: Carla Loyana Dias Teixeira
Comitê Científico:
Prof. Dr. Allyson Carvalho de Araújo (UFRN)
Prof. Dr. André Rodrigues Guimarães (UNIFAP)
Prof.ª Dr.ª Eugenia Trigo Aza (IISABER/ES)
Prof.ª Dr.ª Ilma Pastana Ferreira (UEPA)
Prof.ª Ma. Ivana Lúcia Silva (IFRN)
Prof.ª Dr.ª Joelma Cristina Parente Monteiro Alencar (UEPA)
Prof.ª Dr.ª Mirleide Chaar Bahia (UFPA)

Dad os In ternaciona is de C atalo gação -na- Pu blicação (C IP)


Sis te ma de Bibl ioteca s da U EPA / SIB IUE PA

P 912
Práticas corporais, cultura e diversidade / Marta Genú, Meriane Paiva
Abreu e Carla Loyana Teixeira (Organizadores). Belém, PA: Centro de
Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará, 2018.
238 p.: Formato Digital. (Coleção Formação e Produção em Educação,
dirigida por Marta Genú; n. 3).
Vários autores
ISBN Digital: 978-85-98249-32-2
1. EDUCAÇÃO FÍSICA – pesquisa. 2. EDUCAÇÃO FÍSICA – estudo e
ensino. 3. SEXUALIDADE. 4. DANÇA. 5. BALÉ. 6. SEXO – diferenças
(educação). I. Genú, Marta. II. Abreu, Meriane Paiva. III. Teixeira,
Carla Loyana. IV. Série.

CDD 22. ed. 613.7072

Contato: Universidade do Estado do Pará | Campus III


Avenida João Paulo II, 817, Sala NUPEP | RessignificaЯ
Bairro: Marco | CEP: 66.095-049 | Belém - Pará
E-mail: gressignificar@gmail.com | martagenu@gmail.com | emerson@uepa.br
SUMÁRIO
Apresentação 5
Marta Genú, Meriane Paiva Abreu e Carla Loyana Teixeira
1 A feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar: notas a
9
partir da separação de meninos e meninas
Priscila Gomes Dornelles
2 A Pedagogia Histórico-Crítica e o trato do gênero na Educação Física 27
Escolar
Carla Loyana Teixeira
Giselle dos Santos Ribeiro
Meriane Paiva Abreu
3 A prática artística do Ballet Clássico como construção do gênero nas
aulas de Baby Class 39

Alana de Moura
Roberta Costa
4 Corpo, dança e etnia: vivência das danças tradicionais brasileiras na 59
Comunidade Indígena Jenipapo-Kanindé
Klertianny do Carmo
Marcos Antônio Campos
Arliene Stephanie Pereira
5 Corpos negros nos aplicativos de relacionamentos gays: entre discursos,
75
dinâmicas e subjetivações
Delton Felipe
Samilo Takara
6 Danças e doenças psicológicas: um olhar para a diversidade cultural em
uma ala psiquiátrica em Belém do Pará 93

Rayanne Estumano
Luciane de Aguiar
Stefanie Franco
Vera Solange Souza
7 Diálogos sobre identidades de gênero e sexualidades: narrativas de
sujeitos descentrados e suas relações com a Educação Física Escolar 109

Sergio Cunha
Allyson Carvalho

3
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

8 Gênero, sexualidade e currículo na formação de professores de Educação


Física em instituições federais de ensino superior na Região Amazônica 125

Ângelo Pegorett
Antonio Hugo de Brito Júnior
9 Mostra de Ginástica Geral e Folclore: uma experiência de valorização da
145
diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação
Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC)
Natalia do Espírito Santo da Silva
10 O imaginário amazônico e a musicalidade do Maestro Waldemar
Henrique: uma proposta do ensino da dança na escola de acordo com a 167
Abordagem Crítico-Superadora
Giovelângela de Paula
Rayanne Estumano
Bruno Santa Brígida
11 Para além de desculpas: fatores que limitam o trabalho com a questão
étnico racial na Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Porto 185
Alegre
Gabriela Bins
Vicente Molina Neto
12 Relações de gênero nas aulas de Educação Física: a visão das professoras
e dos professoras da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA) 211

Daniella Bittencourt
Emerson Duarte

4
APRESENTAÇÃO

Eu não tive escolha.


Eu amei. Eu andei
nisso. Eu falei isso.
Eu sonhei isso.
Ivey Hayes (2000)

O Grupo de Pesquisa RessignificaЯ inaugurou, em 2017, a Coleção


Formação e Produção em Educação com temáticas que expressam os estudos e
as investigações realizadas na Grande Área da Educação e que articulam o
conhecimento especifico da Educação Física nos diferentes campos do
conhecimento e intervenção profissional. O intuito é refletir sobre a produção e
socializar com a comunidade acadêmico-científica.
Nesse sentido, apresentamos a produção do conhecimento sobre práticas
corporais imersas em cultura com expressão da diversidade, quer seja de
identidade, gênero e sexualidade, quer seja de códigos de crenças e saberes
sistematizados com princípios educativos.
Ao usar como ícone desse Livro 3 a obra Dancers of Black Skin do
artista Ivey Hayes, estadunidense da Carolina do Norte, negro e amante da
pintura e do jazz, tratamos, como o artista tratou, do cotidiano da vida simples,
e nem por isso forte, e em cores vibrantes, e expressamos nossa ocupação com o
dia a dia e a preocupação com o direito à singularidade em meio a sociedade.
A negritude, a mulher, o popular e a sonoridade cultural são expressões
de Hayes em cores quentes, que dançam nas tonalidades do arco-íris e
transmitem a força e a presença do diferente, do diverso na multidão de etnias,
de juventudes, de gênero e de formas de organização social que revelam a
complexidade do humano e da humanidade em sua essência, e que nenhuma
forma de opressão é capaz de calar.

5
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Falecido em 2012, Ivey Hayes deixa registrada a complexidade da vida


em sociedade, na simplicidade de cores, formas e sons que se misturam, de forma
singular e única, para falar em linguagem clara e direta da diversidade humana.

Obra: Dancers of Black Skin. Autor: Ivey Hayes (1948-2012).


Local: https://iveyhayesartworks.com. Ano: 2000.
Técnica: Óleo sobre tela. Tamanho: 80 x 100cm.

E é dessa forma singular, que reunimos nesse Livro 3 temas sobre cultura
e diversidade, que são investigados nas práticas corporais em diferentes
contextos. Do Norte ao Sul desse continente Brasil, podemos apreciar nesse
conjunto de produções ora apresentado, os estudos e reflexões que versam sobre
as cores, modos e formas de viver como tão bem registrou Hayes em suas obras.
O primeiro capítulo de autoria de Priscila Gomes Dorneles (BA) analisa
a feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar. A autora trata o
tema a partir da perspectiva pós-estruturalista, particularmente tomando os
Estudos Culturais, e finaliza o texto instigando a comunidade a exercitar o
olhar, suspeitar e duvidar de práticas comuns ao cotidiano da escola.
Carla Loyana Teixeira, Gisele dos Santos Ribeiro e Meriane Paiva Abreu
(PA) discutem o trato com o gênero na Educação Física Escolar e admitem que

6
a escola é base formadora da sociedade, e apostam na Pedagogia Histórico-
Crítica como ferramenta que possibilita superar a desigualdade social e
transformar a sociedade.
Com arte também se discute gênero e formação humana desde a escola, e
dessa forma Alana de Moura e Roberta da Costa (CE) escrevem sobre o assunto,
no capítulo sobre a prática artística do Ballet Clássico e a construção do gênero
nas aulas de Baby Class. Em corpo, dança e etnia, Klertianny do Carmo, Marcos
Antônio Campos e Arliene Stephanie Pereira (CE) analisam a vivência das
danças tradicionais brasileiras na Comunidade Indígena Jenipapo-Kanindé.
No quinto capítulo, refletimos com Delton Felipe e Samilo Takara (PR)
sobre as formas de relacionamento humano em redes sociais, em que os autores
usam a ousadia e de forma verdadeira e realista analisam como os corpos dos
homens negros são apresentados nos aplicativos – apps – de relacionamentos
gays.
Em grupo, as autoras Rayanne Estumano, Luciane de Aguiar, Stefanie
Franco e Vera Solange Souza (PA) traçam um olhar para as doenças
psiquiátricas a partir da dança e da cultura, com sujeitos de um hospital
psiquiátrico e anunciam que a proposta da dança na perspectiva da cultura
corporal, pode nortear os aspectos sociais, afetivos e cognitivos dos pacientes
com problemas psicológicos.
Sergio Cunha e Allyson Carvalho (RN) pesquisaram sobre a auto
percepção de sujeitos descentrados sobre a própria trajetória para perceber as
implicações de suas experiências no processo de educação escolarizada e
debatem os vínculos afetivos desenvolvidos no âmbito escolar.
Para falar de gênero, sexualidade e currículo na formação de professores
de educação física Ângelo Pegorett e Antonio Hugo de Brito Júnior (PA)
apresentam o resultado de discussões sobre a temática a partir da intervenção
docente nas aulas de Educação Física em instituições federais de ensino superior
na região amazônica. Enquanto que Natalia do Espírito Santo da Silva (PA) nos
apresenta a valorização da diversidade cultural tratada numa mostra de
ginástica e folclore por acadêmicos da graduação.
Da mesma forma que a música sempre foi valorizada pelo americano
Hayes, e na forma do lamento do Jazz, o Maestro paraense Waldemar Henrique é
estudado por Giovelângela de Paula, Rayanne Estumano e Bruno Santa Brígida

7
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

(PA), como possibilidade para o trato do conteúdo dança na perspectiva


Crítico-Superadora, nas aulas de Educação Física.
Sem desculpas para o trabalho com a questão etnicorracial, Gabriela
Bins e Vicente Molina Neto (RS) analisam os fatores limitantes para o ensino e
a superação das diferenças no trato com a temática na escola e concluem sobre a
necessidade de se materializar as políticas voltadas para o tema estudado.
O Livro 3 se despede com uma fotografia das relações de gênero,
reveladas por Daniella Bittencourt e Emerson Duarte (PA), produzida no
processo formativo e na prática pedagógica de professoras e professores de
Educação Física que atuam na Rede Municipal de Educação de Ananindeua
(PA).
É com essa rota, que cruza nossos Brasis, que convidamos você leitor
para refletir e analisar os temas e conclusões apresentados pelos autores,
admitindo-se que o olhar do outro enriquece e valoriza o diferente, que perpassa
pela alteridade em angulações que vão do político ao estético pela diversidade,
na vida forte, singular e vibrante que denúncia para anunciar possibilidades
societárias outras, num mundo furta-cor que tem sua tonalidade alterada de
acordo com nossas projeções. No entanto, essas projeções devem alcançar o
respeito ao outro, a diversidade com a qual somos seguindo no mundo.

Belém - Cidade das Mangueiras, Pará, Amazônia, Brasil / 2018


Marta Genú, Meriane Paiva Abreu e Carla Loyana Teixeira

8
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar: notas a


partir da separação de meninos e meninas
Priscila Gomes Dornelles (UFRB) 1

Resumo: Este artigo analisa aspectos da produção discursiva na Educação Física escolar
atravessados e constituídos pelo enunciado “feminilidade problema” nas aulas desta
disciplina. A partir de perspectivas pós-críticas e dos Estudos de Gênero, aciono o
conceito de gênero e trago elementos de uma pesquisa realizada com professores/as que
atuavam na disciplina de Educação Física, contudo esta pesquisa se articula com outras
produções apresentadas ao longo do texto, as quais movimentam o lugar do masculino
como referente e da feminilidade como problemática nos processos educativos
relacionados ao trato com as práticas corporais na escola.
Palavras-chave: Educação Física escolar. Gênero. Feminilidade problema. Separação de
meninos e meninas.

INTRODUÇÃO

A análise empreendida neste trabalho se constitui a partir da


perspectiva pós-estruturalista, particularmente tomando os Estudos Culturais,
Feministas e de Gênero. Dediquei-me a problematizar a separação de meninos e
meninas na Educação Física escolar na tentativa de compreender quais
argumentos e justificativas eram rearranjados, mobilizados e engendrados na
sustentação dessa prática, especialmente aqueles ligados a corpo e gênero – ver
Dornelles (2007). Dito de outra forma, como corpo e gênero atravessam os
discursos que constituem a separação como um recurso necessário e importante
nas aulas de Educação Física na escola.
Interessa-me visibilizar e discutir, neste artigo, como gênero atravessa e
constitui a Educação Física escolar conformando a feminilidade como um
“problema” ao ser significada como apática, lenta, lerda e que tem menos
habilidade. Desta forma, assumimos a posição de demarcar gênero como
conceito teórico e utilizá-lo como ferramenta analítica e filosófica para
visibilizar a separação como uma fabricação. Uma produção fundamental para
as aulas desta disciplina escolar mais por organizar, localizar e distribuir os
sujeitos em função de uma concepção de masculino e de feminino, e, menos, por
ser esta uma estratégia imprescindível para o trato pedagógico dos elementos da
cultura corporal – objeto de ensino da Educação Física escolar. Por último,

1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URFGS).
Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail:
prisciladornelles@gmail.com

9
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

importa destacar que, ao ser esta uma produção engendrada por determinadas
formas de conhecer os gêneros, sua atuação cotidiana na escola, efetivamente,
também as produz.

RASTROS GENERIFICADOS DA SEPARAÇÃO E DA ESCOLA


Na humanidade, como entre os animais superiores, as
qualidades mais essenciais são como que distribuídas
entre os dois sexos. [...] É impossível desconhecer e não
seria lícita na educação pôr de lado a constituição ou o
sexo e submeter a juventude, como em Esparta, e
agora na Escócia, aos mesmos exercícios [...]
Fernando de Azevedo (1960, p. 82)

O bojo argumentativo desta seção não se refere a descoberta de uma


origem, uma nascente ou um centro de erupção da separação na história da
Educação Física. Ao problematizar que a separação não é o “destino natural” de
meninos e meninas nas aulas desta disciplina, é possível tensionar o tom
naturalizado desta prática como consequência de uma produção discursiva que
constitui, configura e atualiza a separação na escola. Num sentido foucaultiano,
procuro extrair visibilidades e fazer aparecer as “engrenagens”, ou seja, o(s)
processo(s) de constituição da separação em outro tempo para tratar de uma
análise generificada da sua produção nos dias de hoje – proposição que será
tratada no decorrer deste texto.
Nesta seção, então, importa compreender como a separação, por
diversos argumentos e justificativas, atravessa a constituição histórica e
disciplinar das práticas corporais na escola em diferentes momentos. Interessa,
então, retomar a epígrafe acima para argumentar que, como diz Fernando de
Azevedo (1960), as diferenças “naturais” entre homens e mulheres se
apresentam como um quesito de fundamental importância na educação e,
principalmente, na Educação Física.
Historicamente, o enunciado das diferenças “naturais” entre homens e
mulheres esteve (e está) constituindo diferentes discursos no plano social de
forma a explicar as relações entre os sujeitos no âmbito da cultura. Discursos
religiosos, biológicos e científicos2 têm constituído este enunciado e sendo por

2
É possível compreender de forma mais consistente, por exemplo, a ciência como uma
produção generificada a partir do artigo de Marina Fischer Nucci (2010) premiado no

10
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

ele constituídos. No âmbito das discussões sobre o corpo e as práticas corporais,


os discursos da biologia têm força na definição sobre o que é um corpo, seus
limites e suas possibilidades. Ou seja, em função daquilo que se constitui como
características biológicas dos corpos e, de forma ímpar, em função da definição
de sexo, há uma articulação discursiva que configura uma rede de limites e
possibilidades dos sujeitos, especialmente com relação às práticas corporais,
constituindo “destinos” diferenciados para os corpos de homens e de mulheres.
Esta “amarra discursiva” definidora do corpo atravessa os muros da
escola e as áreas que, historicamente, compuseram e compõem o currículo
escolar. Portanto, é elegível o argumento de intelectuais e educadores defensores
da inclusão dos exercícios físicos nas escolas - ainda no final do século XIX e
início do século XX – que aponta e orienta: há de se respeitar a natureza dos
corpos nesse processo. Esta seria uma premissa política e pedagógica
condicionante dos benefícios e das vantagens das práticas corporais na
constituição física, moral e intelectual de homens e mulheres. “Se a educação
física não pode criar o que a natureza não lhe ofereceu, pode, certamente,
desenvolver, apurar e dirigir o que a natureza criou. O exercício tem, pois, de
contar com a natureza do indivíduo sobre o qual opera” (AZEVEDO, 1960, p.
38).
O respeito aos discursivamente construídos limites “naturais” de
homens e de mulheres é um elemento condicionante do grau de benefício das
práticas corporais. E, como assume Fernando de Azevedo, a entrada das
práticas corporais e esportivas no ambiente escolar se dá entrelaçada a esse
critério.
Separar meninos e meninas para as aulas de Educação Física, nesse
momento histórico, é parte de um aparato na composição e demarcação de
fronteiras entre as funções sociais diferenciadas e legitimadas como próprias
e/ou “naturais” desses sujeitos. A disciplina responsável por lidar com o corpo
na escola contribuía, assim, para preparar os sujeitos e seus corpos na assunção
de seus “distintos destinos”. Com base nestas discussões, ao fim e ao cabo, é
possível pensar na Educação Física como mais uma “peça de uma engrenagem
social” que, através de vários processos pedagógicos, ensinava meninos e

6º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - promovido pela Secretaria de Políticas


para as Mulheres do Governo Federal.

11
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

meninas a se constituírem como homens e mulheres de acordo com


representações hegemônicas de corpo, gênero e sexualidade, dentre outras
categorias.
Para adensar esta linha argumentativa sobre os processos pedagógicos
diferenciados de meninos e meninas e sua consequente separação nos momentos
de práticas corporais, acrescentamos as produções de alguns/algumas autores/as.
Tarcísio Mauro Vago (1999), ao analisar a instituição de um novo modelo
escolar associado com objetivos de produção – produção de ‘novos brasileiros’,
produção de cidadãos republicanos - na cidade de Belo Horizonte (MG) no
período de 1897 a 1920, discute sobre a importante participação da disciplina
de Exercícios Physicos3 nesse processo de educação intelectual, moral e física.
Sua organização se dava através da separação meninos e meninas,
diferenciando pátios e recreios, conteúdos e roupas, condutas e professores/as.
Para os meninos: roupas escuras, exercícios gymnasticos e militares, de
preferência, com professores homens e um objetivo específico - formação de um
corpo masculino forte e viril. Para as meninas: roupas brancas, exercícios
gymnasticos envolvendo movimentos de respiração, flexão, extensão e
exercícios rítmicos, professoras lecionando e visando a um corpo feminino
delicado e gracioso.
Ao analisar as relações de gênero na história do ensino da Educação
Física em Belo Horizonte entre 1897 e 1994, Eustáquia Salvadora de Sousa
(1994) discute sobre o ensino primário em parte do seu texto, percebendo
diferenças na proposta4 de Exercícios Físicos para meninos e meninas. Segundo
a autora, recomendavam-se exercícios à sombra, basicamente envolvendo
movimentos de flexão e extensão “por possibilitarem um desenvolvimento
muscular simétrico” (SOUSA, 1994, p. 28) para as meninas. Já para os meninos,
a proposta de exercícios se constituía a partir de um atravessamento militar,
pois eram ministradas, prioritariamente, atividades como marchas, posições,
evoluções, passos e movimentos militares.

3
Emprego as expressões exercícios physicos e gymnasticos preservando a forma
utilizada pelo autor em suas publicações.
4
Segundo Eustáquia de Sousa (1994), essa proposta de Exercícios Físicos foi
apresentada no Decreto do estado de Minas Gerais nº 1.947, de 30 de setembro de 1906.
Nesse decreto, encontram-se elementos importantes para a organização educacional,
como conteúdos das disciplinas, normas, horários, etc.

12
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A proposta diferenciada de práticas corporais para meninos e meninas


estava atrelada a um modelo educacional (e social) implantado com objetivos
higiênicos e eugênicos, cívicos e patrióticos, de regeneração e formação de um
“novo povo brasileiro”. A inserção dos Exercícios Físicos na escola tem a
função de contribuir nesse processo, desenvolvendo de formas diferenciadas
alunos e alunas. De acordo com Eustáquia de Sousa,

[...] se imaginava que os Exercícios Físicos fossem capazes de


higienizar a sociedade, formando homens de corpo e caráter fortes
para que servissem à Pátria e à família [...]. Além disso, os
Exercícios estavam encarregados de dar aos corpos frágeis das
mulheres, saúde para cumprir a “missão” da maternidade e
graciosidade e beleza para exercerem, a contento, seus papéis de
esposa [...]. (SOUSA, 1994, p. 28-29).

A separação de meninos e meninas, nos momentos destinados aos


Exercícios Físicos na escola, se dava em função de objetivos sociais
diferenciados para esses sujeitos, para esses corpos. Ou seja, “proposições
absolutamente naturalizadas e definitivas do que é ser homem e do que é ser
mulher” (GOELLNER; FRAGA, 2004, p. 165), consequentemente,
determinando práticas corporais diferenciadas.
Silvana Goellner e Alex Fraga (2004) analisam algumas obras de
Fernando de Azevedo para problematizar como intelectuais do início do século
XX defendem a prática de exercícios físicos pelas mulheres. Estes autores
apontam que, nessa acentuada convocação ao exercício (em atividades como
natação e dança clássica, por exemplo), encontra-se também uma intensa
regulação das possibilidades corporais dos corpos femininos.
Esse processo de incitação-controle, de prescrição de limites e de
exaltação às possibilidades torna-se evidente pelo destaque dado ao tema do
“exercício feminino” nas falas de educadores e intelectuais em livros e capítulos
de livros, assim como nos guias e regulamentos de práticas sistematizadas para
espaços militares e/ou civis, como o Método Francês, por exemplo. Fernando de
Azevedo (1960) dedica o capítulo intitulado “A educação física da mulher:
ginástica, natação e dança” para defender o exercício físico pelas mulheres e,
nesse propósito, ressaltar um aspecto superior nessa discussão, como comenta o
próprio autor da seguinte forma: “A questão, pois, está deslocada; já não se tem
a discutir a importância da educação física para a mulher; na tela do debate só

13
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

figura o problema sobre quais são os exercícios, que mais lhe convenham [...]”
(AZEVEDO, 1960, p. 82).
Contextualizando mais algumas produções que se dedicam, também, a
propor uma educação do corpo feminino, a publicação norteadora do ingresso e
da aplicação do Método Francês nas escolas de Educação Física do exército, o
Regulamento nº 7 – Regulamento de Educação Física (1934), apresenta uma
seção nomeada de “Educação Física Feminina. Esse manual orienta: “[...] evitar-
se-á a aplicar-lhe [à mulher], sem as devidas precauções, os processos da
educação física reservada aos rapazes” (1934, p. 16). Também prescreve as
seguintes atividades para as mulheres:

A marcha, os exercícios rítmicos e de suspensão de curta duração


com tempos de impulsão, o salto na corda, o lançamento de disco,
dardo e pesos (menores que os dos homens), os jogos de raquete
(pela e tênis), o transporte de pesos leves em equilíbrio na cabeça, a
esgrima dos dois braços, que exigem em definitivo apenas um
trabalho moderado e que põem em ação, sobretudo os músculos da
bacia, serão, em princípio, os exercícios próprios à mulher.
Qualquer exercício que seja acompanhado de pancadas, de choques
e de golpes, é perigoso para o órgão uterino. A higiene condena sua
prática pela mulher. (REGULAMENTO Nº 7, 1934, p. 16).

Nesse sentido, o binômio regulação-produção dos corpos femininos, de


certa forma, ganha centralidade nas discussões sobre as práticas corporais e as
suas possibilidades no universo escolar e esportivo. A mulher, protagonista que,
ao ser localizada como principal responsável pela saúde e regeneração da raça,
adquire centralidade nas discussões sobre a importância dos exercícios físicos
para o corpo individual e social, torna-se, consequentemente, “ponto
imprescindível” nos manuais, livros e propostas sistematizadas de ensino das
práticas corporais e esportivas.
Ao mesmo tempo, existem produções que demarcam atividades próprias
para os meninos. Carlos Cunha Júnior (2001) fala em Jogos Gymnasticos
Privativos do Sexo Masculino ao analisar uma seção do manual de gymnastica
publicado por Arthur Higgins em 1909 e 1934. Segundo o autor, havia uma
seção intitulada Jogos Gymnasticos que era subdividida em Jogos Gymnasticos
Communs aos Dois Sexos e Jogos Gymnasticos Privativos do Sexo Masculino .
Ao analisar esta última parte, o autor acentua que:

14
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

[...] o privativo dos Jogos Gymnasticos Privativos do Sexo


Masculino era um conjunto de valores relacionados ao masculino,
destacando-se entre estes o exercício da autoridade, o respeito à
hierarquia, o estímulo à recompensa, a distinção, o ato de desafiar,
atacar e defender, a resistência, o espírito militar, a violência e o
autocontrole. (CUNHA JÚNIOR, 2001, p. 122, grifo do autor).

Ao entender e trabalhar com gênero como uma norma, uma


heteronorma, efetivamente, compreendemos e analisamos essas produções de
forma a demarcar que o que se diz e o que se ensina sobre os limites e as
possibilidades das mulheres no universo das práticas corporais e esportivas
produz mutuamente fronteiras e demarcações sociais do que é possível para os
homens no campo dos exercícios físicos. A heteronormatividade funciona
produzindo o gênero como binário e com polos opostos e complementares. Deste
modo, este movimento relacional entre masculino e feminino é acionado
cotidianamente.
Tomando a citação acima como exemplo a ser problematizado,
entendemos que o que se diz sobre Jogos Privativos do Sexo Masculino é
produzido a partir dos discursos da época sobre masculinidade, sobre o mundo
masculino, sobre as (im)possibilidades de meninos, produzindo, assim, o que se
espera de meninas, isto é, passividade, delicadeza e certa fragilidade, por
exemplo.
Os exemplos apresentados anteriormente, de uma “Educação Física
feminina” ou “Jogos Privativos do Sexo Masculino”, referem-se à construção de
práticas corporais próprias para homens e para mulheres – produto de uma
construção discursiva atravessada por compreensões de corpo e gênero que, com
base em características ditas “naturais”, significam os “destinos” sociais desses
sujeitos. Com objetivos diferenciados, as práticas corporais destinadas aos
homens e às mulheres não se aproximam em proposições e características; suas
fronteiras devem ser muito bem preservadas, inclusive e especialmente, no
universo escolar – palco eleito para o “nascimento” de uma “nova” sociedade.
Dessa forma, a separação de meninos e meninas na disciplina destinada às
práticas corporais era um recurso coerente com as propostas diferenciadas de
educação e de formação de homens e mulheres.
Após este “rasgo histórico” focando a relação entre as práticas corporais
e sua legitimidade na escola de forma atravessa pelas normas de gênero, importa

15
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

problematizar como a feminilidade é discursivamente construída como um


“problema” para a Educação Física escolar.

“DE FORMA RECREATIVA, ELES FUNCIONAM MUITO BEM COM AS GURIAS”5

Professores/as entrevistados/as mobilizam a ideia de que as relações de


gênero são construções culturais. Entretanto, estas falas são enunciadas para
localizar que é fora da escola que os/as estudantes aprendem a se tornar meninos
e meninas. Ou melhor, que é fora da escola que as construções culturais
supostamente atuam sobre esses sujeitos, marcando-os como distintos.
Ao apresentar as razões da sua preferência pelo trabalho separado – pois
este professor trabalha apenas com os meninos de duas turmas –, o entrevistado
Sérgio explica que:

Eu prefiro trabalhar separado. [...] Não tem interferência. Porque os


meninos, eles já têm um certo adiantamento. Eles já estão
fisicamente mais preparados. A motricidade deles já está mais
adiantada por uma questão de formação, de educação de casa, isso
já vem... Os meninos estão soltos na rua há muito tempo. As
meninas estão sendo soltas agora, estão indo para a rua agora. [...]
Eu acho que homens e mulheres tem a mesma condição de se
desenvolver, só que, infelizmente, as gurias são guardadinhas em
casa, né, porque são femininas, são meninas e tem que ter um outro
tipo de tratamento. E tem uma educação que provavelmente tem
que fazer faxina em casa, lavar louça, cozinhar, ainda, infelizmente,
é assim. Isso está acabando. Eu acho que por aí tu vais conseguir
muito mais resultado se tu trabalhares separado. (Sérgio,
09/11/2006, p. 5).

No contexto dessa fala, é possível analisar que, apesar de atribuir à


cultura função importante na formação diferenciada de meninos e meninas,
rachando com possibilidades explicativas de ordem biológica sobre a
motricidade adiantada dos meninos, se configura uma concepção de gênero que
se refere ao aprendizado de papéis/funções sexuais iniciados e constituídos fora

5
Os títulos das seções deste artigo que recorrem ao uso das aspas estão assim dispostos
por serem fragmentos das falas dos/das professores/as de Educação Física da Rede
Municipal de Porto Alegre, colaboradores/as de uma pesquisa sobre a separação de
meninos e meninas na escola (DORNELLES, 2007). Esta pesquisa utilizou-se de
diferentes estratégias metodológicas, dentre as quais se destacaram o uso de
questionários e a realização de entrevistas com docentes da referida disciplina que
separavam meninos e meninas nas suas aulas.

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

da instituição escolar. O trecho apresentado introduz muito bem um argumento


acionado: a escola está isenta ou não repercute no processo de identificação e
constituição das identidades de gênero dos/das estudantes. De forma distinta,
operamos com gênero em sua articulação com educação. Essa relação, segundo
Dagmar Meyer (2003),

[...] amplia a noção de educativo para além dos processos familiares


e/ou escolares, ao enfatizar que educar engloba um complexo de
forças e de processos [...] no interior dos quais indivíduos são
transformados em – e aprendem a se reconhecer como – homens e
mulheres, no âmbito das sociedades e grupos a que pertencem.
(MEYER, 2003, p. 17).

Há, aqui, uma ruptura com as análises de papéis e/ou funções sexuais
que se remetem ao nível da individualização das diferenças de gênero para
problematizar como a Educação Física escolar fabrica diferenças e
desigualdades entre meninos e meninas. E, nesse processo, como constitui a
“feminilidade problema” para esta instituição formal de ensino. Na Educação
Física escolar brasileira, são criadas representações de feminilidade e de
masculinidade, fazendo com que meninos e meninas possam achar se eles/elas
são adequados/as ou não para a pratica de determinadas práticas corporais
(DORNELLES; TEIXEIRA, 2014).

As meninas são construídas como a diferença, como o outro, como


quem está fora do padrão de normalidade presumido para as aulas
de Educação Física, como quem está fora da medida e/ou não
alcança os níveis de movimento necessários para os jogos, para o
esporte, para o futebol, para a disciplina escolar e,
consequentemente, para a escola. (DORNELLES; TEIXEIRA, 2014,
p. 100).

Ao operarmos com gênero como um elemento organizador da cultura,


como propõe Dagmar Meyer (2003), há um paradoxo interessante de ser
analisado no âmbito das falas dos/das professores/as. É ao atravessar nos
conteúdos as concepções de gênero que constituem a Educação Física escolar
enunciadas nas falas que sinalizamos pistas das posições de poder ocupadas por
meninos e meninas. Isto é, ao mesmo tempo em que os/as professores/as
significam que as aprendizagens de gênero responsáveis por feminilidades
passivas e masculinidades ativas se concentram do lado de fora dos muros

17
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

escolares, longe da disciplina de Educação Física, há relatos generificados


dimensionando os conteúdos selecionados na disciplina para um determinado
grupo. O entrevistado Josué explica quais critérios utiliza na seleção dos
conteúdos a serem trabalhados com seu grupo de alunas:

Então, eu gosto de fazer assim, uma coisa atrativa, que seja do


interesse delas. No caso, porque eu trabalho com elas, é, hoje em dia,
o handebol. Elas têm uma facilidade maior em treinar o handebol do
que para outros esportes. E tem a competição, porque isso motiva
muito elas; motiva muito. E quando chega no início do ano, elas já
perguntam: “Vai ter competição esse ano, professor”. (Josué,
29/03/2007, p. 5).

Para pensar na produtividade desse excerto questiono: o que se entende


por meninas, seus corpos e feminilidades que torna possível afirmar que elas
têm mais condições e/ou facilidades com determinadas práticas do que com
outras? Se considerarmos o esporte como um dos elementos da cultura corporal,
objeto de ensino da Educação Física, como se fabrica esta relação entre meninas
e handebol?
Enumerando os conteúdos trabalhados durante o ano e explicando a
distribuição e/ou organização de suas aulas, a entrevistada Bruna enfatiza as
negociações que estabelece com os/as alunos/as. “Então, eu tenho dois períodos
semanais. Então, eu sempre tenho uma combinação com eles. Um período é o
futebol, que eles adoram, e o outro período é o trabalho que eu vou desenvolver”
(Bruna, 10/08/2006, p. 2).
Neste e em outros excertos, o futebol é localizado como conteúdo que
ocupa um lugar privilegiado na disciplina de Educação Física, pois, nas
entrevistas, se percebe que a maioria dos/das docentes confere ao futebol parte
significativa das suas aulas – seja em forma de aula dirigida ou não. Entretanto,
que grupo ocupa o lugar de “eles” (e/ou de “outros”) no trecho acima e nas várias
entrevistas realizadas?
Se, em nossa sociedade, “gostar de futebol é quase uma obrigação para
qualquer garoto ‘normal’ e ‘sadio’” (p. 75), como comenta Guacira Louro (2004),
provavelmente, tenhamos uma resposta para essa pergunta. Mesmo que, em
vários momentos, os/as docentes não tenham identificado a quem se referiam ao
utilizar o pronome “eles”, é possível pensar nas relações de poder entre os
gêneros no universo escolar, as quais tornam estas falas possíveis.

18
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Os meninos representam os/as estudantes; as meninas são construídas


como a diferença, como o outro, como quem está fora do padrão de normalidade
presumido para as aulas de Educação Física, como quem está fora da medida,
quem não alcança os níveis de movimento necessários para os jogos, para o
esporte, para a disciplina escolar e, consequentemente, para a escola. Ou seja, a
Educação Física não tensiona suas próprias medidas, suas formas de conhecer,
representar, classificar, categorizar meninos e meninas. Atribui-se à separação
uma necessidade a partir do atravessamento de concepções de corpo e gênero
que comparam meninos e meninas; nessa comparação, estabelecem-se juízos de
valor, sentidos que circulam naquele contexto e que dimensionam os “distintos
destinos” dos/das estudantes nas aulas dessa disciplina durante a vida escolar.
Tais “destinos”, por vezes, são rompidos, mas, na lógica da medida comum,
ocupam o lugar das exceções.
A fala de Josué relata, como consequência do trabalho misto, uma
suposta distância do que o entrevistado considera como principal aspecto da
Educação Física:

Só que aí o trabalho, a Educação Física, que é movimento, pra mim,


é isso, é importante, Educação Física é movimento. Eu acho que o
movimento é o mais importante. Eu, pra mim, dentro da área de
Educação Física, o movimento é o mais importante. A gente tem
que levar o movimento como o carro chefe, essa é a regra, porque, se
não precisa trabalhar o movimento, então, vamos trabalhar outra
coisa, vamos trabalhar em sala de aula, aí, qualquer professor pode
trabalhar, não precisa um especialista em Educação Física. (Josué,
29/03/2007, p. 3).

Numa perspectiva que enfatiza o caráter constitutivo da linguagem no


social, o ato de separar meninos e meninas está longe de ser apenas uma ação
corriqueira, ingênua e associada a aspectos como a falta de espaços nas escolas.
Interessa-nos, então, discutir a separação como processo de significação
constituído discursivamente. Segundo Guacira Louro, “a demarcação de
fronteira tem importantes efeitos simbólicos, sociais e materiais. É preciso
demarcar o lugar do outro – simbolicamente, indicando o que significa estar lá;
social e materialmente, excluindo e separando o sujeito que o ocupa” (LOURO,
2000, p. 70).
A partir da análise das entrevistas, afirmamos que, em geral, os

19
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

conteúdos trabalhados pelos/as docentes se voltam para as práticas corporais


esportivas. E é ao trabalhar o esporte que a necessidade de separar “aparece”.
Esportes como futebol, futsal, handebol, basquete e outras práticas corporais
que, de forma especial, envolvam contato físico são enumerados como
definidores de situações em que há dificuldade ou impossibilidade para o
trabalho misto. Isso se dá pela suposta natureza distinta dos corpos de meninos
e meninas e/ou pelos graus diferenciados de competitividade, movimentação,
interesse em determinadas práticas e habilidades a elas associadas. Produz-se e é
produzido, nesse contexto discursivo, o mito da fragilidade, apatia e lerdeza
feminina e dos meninos forçudos, agressivos e competitivos.

“PELA AGRESSIVIDADE DOS MENINOS, PELA POUCA ENERGIA DAS MENINAS”

Apresentamos alguns trechos das entrevistas para problematizar como


representações de gênero significam os argumentos utilizados pelos/as docentes
para separar meninos e meninas. No primeiro trecho, o entrevistado Josué
explica as suas justificativas para o trabalho separado, entrelaçando concepções
de masculinidade e feminilidade ao “princípio ativo da Educação Física” – o
movimento.

Eu acho muito mais vantajoso trabalhar com turmas separadas. O


rendimento é melhor, o entendimento é mais fácil. [...] O que
acontece: os guris têm muita mobilidade, se movimentam com
muita facilidade, com muito mais rapidez, e as gurias são muito
lentas, muito lerdas, então, elas não acompanham eles. Então, fica
um desequilíbrio muito grande, dá problemas de harmonia, dá uma
desarmonia nas aulas de Educação Física. Tudo em função disso.
Sim, aí, tu podes dizer: “É, mas tu poderias trabalhar outra coisa?”
É, poderia. Mas, no momento em que tu trabalhas uma coisa que
tem bastante movimento nos jogos, dá problema, sempre dá
problema. Aí, tem que estar equilibrando toda hora. [...] E os
interesses, também, dos guris é bem diferente dos das gurias. Então,
pra mim, é muito mais fácil trabalhar separado. (Josué, 29/03/2007,
p. 3).

O trecho acima sinaliza como os enunciados da feminilidade passiva e


da masculinidade ativa atravessam as justificativas para a separação, assim
como em outras dimensões do social e em diferentes formações discursivas. A
produção de Emily Martin (1996) sobre representações da reprodução humana
pode contribuir para compreendermos como estes significados são partilhados

20
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

no âmbito da cultura. A autora sinaliza que os sentidos atribuídos à fisiologia


reprodutiva masculina e feminina estão relacionados às representações culturais
do senso comum sobre o par binário macho/fêmea, em que o óvulo é descrito
como grande, passivo e imóvel. Já para o espermatozoide, utilizam-se as
expressões hidrodinâmico, ativo, veloz e com cauda forte.
Maria Cláudia Dal’Igna (2005), ao analisar como gênero é incorporado e
mobilizado no discurso pedagógico para definir o que se entende por
desempenho escolar, dá pistas de como fragmentar a noção de feminilidade
passiva como norma. Segundo esta pesquisadora, que analisou as falas de
professores/as dos anos iniciais de escolarização em sua dissertação, o termo
“agitado” era utilizado para descrever meninos e meninas. Entretanto, a
utilização desse adjetivo, no caso das meninas, permitia romper com uma
representação de feminilidade passiva, comedida e obediente. Ao mesmo tempo,
reiterava-se e repetia-se uma noção de feminino essencializada – quando as
meninas se agitavam, era porque elas fofocavam, gritavam ou se agarravam
pelos cabelos. A agitação, no caso das meninas, produzia comportamentos
inadequados no espaço escolar, enquanto que, para os meninos, significava um
elemento importante para o processo de aprendizagem.
Com relação às análises das entrevistas, em diversas situações, os/as
professores/as utilizam as seguintes expressões para descrever os meninos:
potência, força, velocidade, ação, energia, movimento, agressividade, ‘cavalões’,
mobilidade, se movimentam com mais facilidade, rapidez, mais duros e diretos,
raiva, agressividade, competitivos. Já para as meninas, as expressões incluem:
tem menos habilidade, são lentas, lerdas, não acompanham, tem que ter
paciência, meigas, calmas, delicadas, comedidas, menos energia e força. Essas
descrições sinalizam como gênero é mobilizado para definir a capacidade de
meninos e meninas como adequado/as ou não para determinados conteúdos,
para atividades mistas e/ou para as aulas de Educação Física.
A pesquisa de Adrian de Souza (2018) realizada na cidade de Amargosa
(BA), corroboram na apresentação de argumentos que explicam como “a
feminilidade problema” da Educação Física escolar funciona. Ao acionar as
narrativas de mulheres jogadoras de futsal e futebol da cidade de Amargosa
sobre as suas memórias com relação à Educação Física escolar, os relatos abaixo
indicam a força de alguns discursos e posições do feminino na escola e nesta

21
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

disciplina escolar.

as entrevistadas Joana e Maria alegam que “[...] quando eu pedia ao


professor pra poder jogar, ele falava que os meninos iriam me bater,
que os meninos não iriam querer que eu jogasse, que eu iria me
machucar” (Joana, 20 de dezembro de 2017, p. 5). Considero então
que por serem mulheres, os seus professores agiam como sujeito
auto protetores, os relatos das mesmas me faz entender, e também
me questionar, por que essa proteção somente com elas, meninas?
Exatamente o que foi tratado a cima, por serem caracterizadas
como pessoas menos capazes, delicadas e frágeis. Quando Maria diz
“[...] o professor não queria que eu descesse porque eu era menina,
ele achava que eu iria me machucar (risos), ele achava que isso não
era coisa de menina [...]” (Maria, 9 de fevereiro de 2018, p. 5) é
evidente que é determinado pelo professor funções para cada
gênero, produzindo e demarcando a diferença de gênero nas vidas
de meninos e meninas. (SOUZA, 2018, p. 40).

Aciono, aqui, um contexto de posições docentes a partir das falas de


diferentes colaboradores/as e a partir de distintos contextos regionais para
problematizar a “feminilidade problema” como constitutiva das aulas de
Educação Física. As tramas escolares e discursivas que acionam este enunciado
de uma feminilidade problema afirmam que as meninas constituem-se como o
grupo no qual há maiores dificuldades de participação, aprendizagem, interesse
e mobilidade. Nesse sentido, essa feminilidade pouco enérgica, passiva e
estática, representativa das meninas na Educação Física escolar, posiciona-as
como o problema, o outro, a diferença da escola. Segundo Louro (2001, p. 36),
“ninguém é essencialmente diferente, ninguém é essencialmente o outro; a
diferença é sempre constituída de um dado lugar que se toma como centro”. Isto
é, a diferença tem sua materialidade, mas esta é uma produção da cultura.
Dessa forma, é em relação aos sentidos atribuídos à masculinidade que a
feminilidade passiva é constituída como “o outro” da Educação Física escolar.
Trata-se de uma diferença que impossibilita o trabalho misto com meninos, que
tem potência, se movimentam com facilidade e são velozes - características
valoradas como positivas para as atividades esportivas. Entretanto, ao
operarem com naturalizações de características, comportamentos e
desempenhos de meninos e de meninas, os/as professores/as deixam de
contextualizar os sentidos atribuídos ao corpo e às práticas corporais como
construções culturais.

22
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Ao considerar a problemática das relações de gênero na Educação


Física escolar, entendemos que o processo de hierarquização acerca
do masculino e do feminino estão presentes nas aulas de Educação
Física, e se estabelecem a partir das relações de poder presentes
nesse ambiente; estas hierarquizações permeiam diferentes
momentos das aulas como as formas de organização e o tratamento
dos conteúdos, considerando-se sobretudo, as relações entre alunos e
alunas e professores(as) e alunos(as). Neste sentido, partimos da
hipótese de que durante as aulas de Educação Física são
desenvolvidos mecanismos que operam a favor das diferenças de
hierarquizadas (CORSINO; AUAD, 2012, p. 21-22).

O entrevistado Sérgio, professor de meninos de duas turmas, relata o


caso de um menino que foi direcionado para que fizesse aula com as meninas de
duas turmas – alunas de outro professor. Segundo ele, o menino não
demonstrava interesse pelas aulas de Educação Física e era muito infrequente,
mas se adequou ao grupo das meninas.

É, foi interessante, porque ele tinha que fazer aula comigo, porque
ele é homem, né. Mas ele sempre se excluía, porque ele não
conseguia se encaixar com aquela violência, né. E ele não tinha
aquela mesma habilidade dos guris, ele realmente era um guri
sensível. Era um menino que não tinha habilidade motora para
participar das atividades que eu oferecia, então, ele sempre saía
fora. Ele evitava ou ele não vinha na minha aula e estava se
prejudicando. [...] Está lá, as gurias até reclamam porque ele é
homem. Está se desviando, mas é homem, tem força. Então, as
gurias reclamam muito dele, porque ele, às vezes, vai e dá aquela
lançada de bola muito forte e pega nas gurias. Elas reclamam que é
muito forte. (Sérgio, 09/11/2006, p. 11).
Então, está lá, o menino se desenvolvendo com as meninas, dentro
da condição dele. Vai se igualar às meninas, está entendendo? Por
isso que dá para colocar meninos e meninas junto, está entendendo?
(Sérgio, 09/11/2006, p. 13).

Meninos mais sensíveis fazendo aula com as meninas ou a possibilidade


de meninas junto com os meninos “encarando porrada” são constituídos nas
entrevistas como exceções. Reitera-se, aqui, mais uma vez, a lógica de uma
masculinidade forçuda e enérgica em detrimento de uma feminilidade lerda e
apática. Estes seriam, apenas, desvios de uma norma sexo-gênero-sexualidade
em que, na produção discursiva até agora analisada, o sexo (macho/fêmea)
determinaria, respectivamente, uma identidade de gênero naturalizada
(masculinidade ativa/ feminilidade passiva) e, consequentemente, o desejo pelo
sexo oposto (mulheres/homens). No caso citado, as explicações para a ruptura

23
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

da sequência localizam-se “na condição do aluno”, isto é, no seu desvio da


norma heterossexual.
Desta forma, de forma concomitante à garantia de uma suposta
homossexualidade do aluno a partir de descrições com relação às formas
diferenciadas deste aluno viver a sua masculinidade - em relação ao que se
produz como próprio do masculino neste contexto discursivo -, o desvio da
heterossexualidade é significado como “causa” do seu jeito sensível e sem tantas
habilidades. Seu deslocamento para o grupo das meninas é considerado uma
readequação e, como tal, significa realocar o aluno a um contexto mais
adequado. Sua orientação homossexual se associa ao espaço feminino próprio de
sensibilidades, menos habilidoso e mais lento na Educação Física escolar.
Aqui, gênero e sexualidade se sobrepõem de forma perigosa, como se ao
se definir como homossexual, o aluno deixasse de ser homem. Nessa lógica, a
distinção entre gênero e sexualidade nem sempre é demarcada. E, apesar de nos
constituirmos a partir da articulação e da conflitualidade de diversas categorias
sociais como raça/etnia, idade e classe social, entendemos que, na Educação
Física escolar, o marcador gênero dimensiona de forma decisiva os discursos
que constituem a separação como uma prática pedagógica imprescindível neste
contexto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Proponho uma análise que incorpora o conceito de gênero e o utiliza


para problematizar as potencialidades do trabalho misto ou separado na
Educação Física escolar, priorizando tensionar a produção cotidiana de um
“feminilidade problema” nesta disciplina e na escola. Isto significa que a
separação foi apenas um mote para compreendermos e “lançarmos luz” às
questões de como o gênero constitui o espaço escolar.
Ao finalizar este texto, o interessante é instigar a possibilidade de
fazermos outras perguntas sobre gênero com relação à educação escolar. É
exercitar o olhar, suspeitar, duvidar de práticas comuns ao cotidiano da escola.
O que define a positividade desta produção é a possibilidade de fissurarmos o
sujeito escolar supostamente neutro e evidenciarmos como gênero é mobilizado
na produção de posições diferenciadas de sujeito neste espaço de educativo.
Esse movimento nos leva a atentarmos ao e questionarmos o que se constitui

24
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

como natural e in-corpo-rado para a educação e para a Educação Física


escolarizada.
Com esse propósito, essencializar as marcas corporais atribuindo-lhes a
determinação de como viver e ser masculino e feminino é significar que os
destinos de meninos e meninas não são culturais, sociais e históricos, e, sim,
definições naturais. A cristalização de representações de gênero, atribuindo à
feminilidade o lugar social de “problemático” para a escola, coloca em suspensão
o acesso, a permanência e o direito a uma educação, efetivamente, de qualidade
baseada na igualdade de condições. Portanto, deve ser um ponto de reflexão
sobre a atuação docente na Educação Física escolar no trato com a diferentes
práticas corporais.

The femininity as a "problem" in School Physical Education: notes from the separation
of boys and girls

Abstract: This article analyses the aspects of the discursive production in School
Physical Education crossed and constituted by the "femininity problem" in physical
education classes. From pos-critical perspectives and Gender Studies, it discusses the
concept of gender and brings elements of a research carried out with physical education
teachers. However, this research articulates itself with other productions presented
along with the paper, in which moves the place of masculine as the reference and of
femininity as problematic in the educative processes related to the corporal practices in
the school.
Keywords: School physical education. Gender. Femininity problem. Separation of boys
and girls.

REFERÊNCIAS

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

DORNELLES, Priscila Gomes. Distintos destinos? A separação entre meninos e


meninas na educação física escolar na perspectiva de gênero. 2007. 158 f. Dissertação

25
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

(Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande


do Sul, Porto Alegre, 2007.

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GOELLNER, Silvana V.; FRAGA, Alex B. O espetáculo do corpo: mulheres e


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autorizada pelo Estado-maior do Exército, 1934.

SOUSA, Eustáquia Salvadora de. Meninos, à marcha! Meninas, à sombra! A história do


ensino da Educação Física em Belo Horizonte (1897-1994). 1994. 265 f. Tese (Doutorado
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SOUZA, Adrian Pedra de. Conflitos de gênero durante a trajetória escolar de mulheres
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Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física) – Centro de
Formação de Professores, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Amargosa,
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VAGO, Tarcísio Mauro. Cultura escolar, cultivo de corpos: educação physica e


gymnastica como práticas constituintes de corpos de crianças no ensino público
primário de Belo Horizonte – 1870-1920. 1999. Tese (Doutorado em Educação).
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A Pedagogia Histórico-Crítica e o trato do gênero na Educação Física


Escolar
Carla Loyana Teixeira (UEPA) 6
Giselle dos Santos Ribeiro (FAM) 7
Meriane Paiva Abreu (SEDUC/PA) 8

Resumo: O presente artigo discute como a Pedagogia Histórico Crítica (PHC) dialoga
com as questões de gênero nas aulas de educação física. Como teoria do conhecimento,
adota o materialismo histórico-dialético. Realiza uma pesquisa bibliográfica, seguida de
uma análise de conteúdo para pautar as discussões. Compreende as diferenças entre os
gêneros como pontos de discussão para a proposição de respeito e tolerância diante das
diversidades. Conclui que a PHC contribui para a reflexão acerca do debate sobre gênero
nas aulas de educação física, de forma a recuperar as discussões e experiências que
favoreçam homens e mulheres, conscientes de classe trabalhadora, para superação de
quaisquer discriminações, para além de um capitalismo que utiliza as diferenças para
desigualar e estratificar o indivíduo, mascarando nesse processo, a sua condição de
classe.
Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica. Gênero. Educação Física Escolar.

INTRODUÇÃO

A realidade brasileira se encontra marcada por valores excludentes,


balizados em justificativas refutáveis – no que se refere às questões de gênero –,
que resultam em discursos de ódio, negação de oportunidades e perpetuação do
modelo decadente de estruturação social. As relações de gênero se inserem nesse
contexto, haja vista a discriminação baseada no sexo, que se concretiza em
papéis sociais pré-definidos e na divisão sexual do trabalho, além das diferenças
de tratamentos e salários entre homens e mulheres.
Diante disso, reflete-se a importância da escola como base formadora da
sociedade, a qual termina por servir aos interesses da classe dominante, ao
manter de forma mascarada a realidade, complexa e contraditória,
corroborando para reforçar as relações de poder também entre os sexos. A
Educação Física, como um ramo pedagógico da educação, compactua com essas

6
Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Especializanda em Pedagogia da Cultura Corporal na Universidade do Estado do Pará
(UEPA). E-mail: loyanateixeira@gmail.com
7
Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da
Faculdade de Educação e Tecnologia da Amazônia (FAM). E-mail:
giribeiroef@hotmail.com
8
Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da
Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA). E-mail:
meri_black@hotmail.com

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

práticas discriminatórias, ao reforçar padrões de comportamento e discursos.


Assim, elucida-se a relevância de introduzir efetivamente e motivar a
discussão de gênero na Educação Física escolar, a partir de uma leitura crítica
da realidade social e suas características históricas. Portanto, questiona-se:
Como a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) dialoga com as questões de gênero
nas aulas de educação física escolar?
Neste sentido, esse trabalho visa discutir as questões de gênero nas aulas
de educação física escolar, a partir da Pedagogia Histórico-Crítica, para pensar
práticas crítico-superadoras possíveis, na intenção de combater os princípios
excludentes de gênero e contribuir com a superação da segregação sexual.
Portanto, essa investigação adota como teoria do conhecimento, o
materialismo histórico dialético, pois segundo Triviños (1987), caracteriza-se
por situar o problema em nível mais amplo dentro de um contexto,
estabelecendo contradições possíveis de existir, entre os fenômenos que o
caracterizam.
O estudo é resultado de uma pesquisa bibliográfica, na qual houve
contato direto com um acervo de materiais previamente publicados sobre a
temática em questão (MARCONI; LAKATOS, 2003). Para analisar os dados,
elegeu-se a análise de conteúdo que é composta por um conjunto de técnicas,
que visam sistematizar os conteúdos das mensagens, para obter respostas que
permitam inferir sobre conhecimentos relativos à temática (TRIVIÑOS, 1987).
Desse modo, o artigo está organizado em duas seções: na primeira,
ocorre uma discussão sobre os fundamentos da PHC; e na segunda, uma análise
sobre as questões de gênero nas aulas de Educação Física, a partir de uma
perspectiva histórico crítica; além das conclusões correspondentes.

PARA UMA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

A Pedagogia Histórico-Crítica não atribui à escola o papel de redentora


da sociedade, nem a desacredita, mas sim confere a esta a qualidade de
mediadora, em função de seu caráter sócio histórico. Esta peculiaridade coloca a
PHC em um patamar diferenciado, instigando conhecer suas concepções e
proposições.
Saviani (2012) indica que para determinar uma compreensão de
educação a partir desta teoria, antecede consolidar um entendimento da

28
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

natureza humana. Para ele, partindo da compreensão marxiana da realidade, o


ser humano se diferencia dos demais animais pela capacidade de produzir a sua
própria existência, afinal esta não é dada de forma natural.
O ser humano precisa, para se adaptar à natureza, ajustar os elementos
disponibilizados, às suas necessidades de utilização, ou seja, é preciso
transformá-los conforme suas necessidades. Assim, observa a natureza e enxerga
nela as possibilidades de uso, e, desta forma, inicia o desenvolvimento do que,
segundo a teoria marxista, caracteriza a natureza humana: a possibilidade de
desenvolver trabalho. Dito isto, entende-se que a forma como se compõe o
trabalho conduz à maneira de como se organizam as demais características de
um grupo social.
Quanto à educação – a qual ontologicamente não se separa do processo
de trabalho – apresenta modificações históricas, que a separou do processo de
trabalho, pelo qual se criou uma educação formal em espaço próprio,
denominado escolar.
Ao determinar a natureza da educação, Saviani (2012) explicita sua
relação fundamental com o trabalho, identificando-a como trabalho imaterial.
Na relação com a natureza e sua transformação para garantia da sobrevivência,
o homem além de produzir ferramentas para utilizar na caça, pesca, abrigo,
entre outros elementos, produz conhecimento. Conhecimento este que vem sendo
acumulado e sistematizado por todo conjunto da humanidade, mas que no
desenvolvimento histórico desta, de sociedades divididas em classes, vem sendo
usurpado, distorcido e transmitido para atender aos interesses de uma classe
social parasita chamada de burguesia.
Não é nessa concepção de sociedade que a Pedagogia Histórico-Crítica
se assenta, mas reconhece que é sobre essa sociedade que deve atuar, pois é nela
que se coloca a problemática da negação do conhecimento, conferindo outras
contradições que a sociedade capitalista acumula.
Por isso, a PHC se motiva a ser:

[...] uma teoria que procura compreender os limites da educação


vigente e, ao mesmo tempo, superá-los por meio da formulação dos
princípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à
organização do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos
processos pedagógicos que põem em movimento a relação professor-
alunos no interior das escolas. (SAVIANI, 2012, p. 101).

29
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Saviani (2012) expõe que é imprescindível para a teoria Histórico-


Crítica conhecer os fatos da realidade histórico-social e do contexto no qual a
escola está inserida. É necessário o desenvolvimento da consciência, em relação
aos problemas expostos; a própria teoria caminha, no sentido de reconhecer os
limites impostos para si e sua implementação prática, não com intuito
exclusivo de explicar as condições postas, mas de compreender como é possível
combater, confrontar e solucionar as problemáticas, buscando criar as
condições necessárias para a investida qualitativa no trato com o conhecimento.
A partir disso, Gasparin (2007) elabora os momentos pedagógicos do
método didático, dividindo-os em:

1.1 Prática social inicial:


O momento de contato inicial com o tema é onde se faz uma leitura
prévia da realidade do aluno para identificar seu conhecimento sobre objeto em
questão. O professor deve partir dos próprios conceitos empíricos trazidos pelos
alunos e contextualizar quanto à totalidade social. Captar a prática que os
alunos têm sobre determinado objeto, significa extrair como este se apresenta
para eles e de que forma eles se relacionam com o objeto.
Portanto, cabe a este momento: estimular e desafiar os alunos de forma a
estes manifestarem tudo o que já sabem acerca da temática a ser tratada, além
de anotar, registrar as diversas percepções ali existentes, bem como possibilitar
o uso de materiais motivadores. A socialização das percepções sincréticas dos
diversos alunos por eles próprios já amplia suas visões sobre o objeto. Nesse
sentido, sobre os elementos importantes que não apareceram neste momento,
cabe problematizar.

1.2 Problematização:
Segundo Gasparin (2007, p. 35), a “problematização é um desafio, ou
seja, é a criação de uma necessidade para que o educando, através de sua ação,
busque o conhecimento”. Ora, se está posto o conhecimento e ali se identificam
lacunas do pensamento sincrético exposto, cabe ao professor interrogar e
colocar um problema sobre o qual o educando não havia pensado e/ou exposto
no procedimento anterior. Este momento consiste no questionamento da
realidade e do conteúdo e, portanto, colocados os problemas, estes precisam ser

30
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

resolvidos na prática social, seja no âmbito da escola ou da sociedade.


Assim, Gasparin (2007) diz que neste momento as problemáticas são
levantadas da prática social inicial e do conteúdo escolar, de maneira a explorar
as diversas dimensões (conceitual, científica, histórica e social) do conteúdo,
explicitando que estes aspectos compreendem a totalidade do conhecimento
sobre o conteúdo. Isto é feito por meio de elaboração de perguntas ou
afirmações, as quais devem ser anotadas e mantidas durante toda a fase do
estudo, fazendo sempre relação com a prática social inicial dos alunos.

1.3 Instrumentalização:
Passado por todo o processo inicial de processamento do conteúdo é
necessário, de acordo com Gasparin (2007), colocar o aluno para se confrontar
com o próprio conteúdo, visto que ele já foi colocado para falar sua
compreensão sobre tal. A "instrumentalização é o caminho pelo qual o conteúdo
é posto à disposição dos alunos para que o assimilem e o recriem, e ao
incorporá-lo, transformem-no em instrumento de construção pessoal e
profissional" (GASPARIN, 2007, p. 57). Nesse instante, o aluno faz a
comparação dos elementos cotidianos da prática social inicial com os
conhecimentos científicos trazidos pelo professor.

1.4 Catarse:
A catarse se caracteriza pelo momento no qual o educando expressa a
síntese do conhecimento, a sistematização do que foi assimilado. Portanto, é
significativo por representar o processo de abstração do sujeito, a capacidade
de compreensão sobre determinado tema, uma operação mental que, segundo
Vygotsky (1989, apud GASPARIN, 2007), está casada com a formação dos
conceitos, com o processo de análise anteriormente feita na instrumentalização.
Para o professor, a catarse pode ser entendida como um momento propício à
ação avaliativa, de verificação da compreensão, no plano teórico, por parte dos
alunos.

1.5 Prática social final:


Finalmente, este ponto é, indubitavelmente, uma recorrência à práxis do
marxismo que se busca construir numa pedagogia com perspectiva de classe,

31
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pois, após todo o processo de apreensão do conhecimento, cabe ao aluno


transpor a aprendizagem teórica para o campo prático, pois “é mister, ainda
que em pequena escala, possibilitar ao educando condições para que a
compreensão teórica se traduza em atos, uma vez que a prática transformadora
é a melhor evidencia da compreensão da teoria”. (GASPARIN, 2007, p. 145-
146).
Ainda, conforme o autor, se o aluno não for desafiado a colocar em
prática suas ações, em uma determinada direção política, esse método não dará
um passo além da sala de aula. Para isso, o professor pode instigar o aluno a
discorrer sobre suas intenções e propostas de ação.
Dito isto sobre a síntese dos momentos pedagógicos, sabe-se que o
conhecimento escolar, historicamente construído e sistematizado, bem como a
realidade, apresenta lacunas que se exibem aos olhos humanos de forma
sincrética, apontando as contradições do saber fragmentado que é organizado
para a transmissão, via a instituição regulada pelo estado capitalista, a escola.
Sendo assim, movido e sustentado pelas contradições, o conhecimento
escolar pode ser entendido como uma qualidade, formada por um conjunto de
saberes (propriedades) que, em determinadas, possibilitam consolidar a
compreensão de um conteúdo e uma concepção sobre o mesmo.
Assim, percebe-se a PHC, vide Saviani (2011), como defensora de uma
educação escolar compreendida como um mecanismo de luta contra-
hegemônica, ou seja, correspondente a um movimento que conduza à
desarticulação dos elementos que não são inerentes à lógica dominante, mas
estão a ela relacionados, para a articulação destes aos interesses populares.

O GÊNERO NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: PARA UMA APRECIAÇÃO CRÍTICA


DA REALIDADE

As condições que engendraram a desigualdade e


violência de gênero são históricas e ainda
condicionam as relações sociais, sendo reproduzidas e
consolidadas em diferentes espaços e instituições,
especialmente através da educação, seja na família ou
na escola. (BONFIM, 2018, p. 6)

Diante do exposto e assumindo a visão de mundo e de sociedade da


Pedagogia Histórico-Crítica, percebe-se a materialidade real da proposição

32
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

metodológica desta, como um elemento importante para a elevação da


capacidade de pensamento, apropriação do conhecimento real e o despertar
para o antagonismo sobre o qual se encontra a sociedade.
Sendo assim, deve-se compreender que os estudos sobre gênero
perpassam pela necessidade de apreensão das demandas históricas, as quais
homens e mulheres estiveram e estão sujeitos. É a partir da condição submissa
vivenciada pelo sexo feminino ao longo dos séculos que será travado o diálogo,
analisando-a.
Apesar de homens e mulheres apresentarem suas especificidades
fisiológicas, as diferenças entre ambos não podem ser analisadas de forma
simplista, considerando apenas fatores orgânicos e genéticos. Na realidade, tais
diferenças são primeiramente forjadas nas relações estabelecidas no dia-a-dia,
isto é, elas se manifestam em virtude de homens e mulheres viverem
experiências e processos de socialização diferenciados ou de serem
condicionados ou persuadidos a agir de maneiras diferentes.
No entanto, para compreender o desenvolvimento do antagonismo entre
os sexos, é importante refletir sobre a economia, pois os papéis sexuais e
identidades sociais construídos em cada momento histórico obedecem aos
modos de produzir a vida, ou seja, as relações homem-mulher sempre existiram
de maneira a atender aos interesses da existência em sociedade daquele
determinado grupo e período.
Sendo assim, conforme aponta Engels (2012) em estudos sobre a
evolução das formas de organização familiar, a subordinação feminina é um
ocorrido simultâneo à instauração da propriedade privada, portanto, os marcos
iniciais nas lutas de classes. Percebe-se que com a progressão temporal, as
relações perdiam o caráter primitivo por causa do desenvolvimento econômico,
e, desta forma, mais opressivas essas relações se tornavam para as mulheres, que
foram conduzidas ao matrimônio com um só homem – ou seja, renegando-se
qualquer resquício das relações entre grupos.
Com a monogamia, reforça-se a figura do verdadeiro pai, proprietário
das forças de trabalho, dos meios de produção e de escravos. Cada vez mais, sua
importância crescia devido ao aumento de riquezas, influenciando na ordem de
heranças e hereditariedades, e direcionando os direitos maternos ao
esquecimento.

33
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Como Marx e Engels (2007, p. 36) pontuam,

A divisão do trabalho repousa sobre a divisão natural do trabalho


na família e sobre a separação da sociedade em famílias isoladas e
opostas umas às outras, e esta divisão do trabalho implica ao
mesmo tempo na repartição do trabalho e de seus produtos;
distribuição desigual, na verdade, tanto em quantidade como em
qualidade; ela implica, pois, a propriedade; assim, a primeira forma,
o germe reside na família, onde a mulher e as crianças são escravas
do homem. A escravidão, ainda latente e muito rudimentar na
família, é a primeira propriedade privada.

Nessa perspectiva, tanto homens quanto mulheres se tornam “produtos


e vítimas da sociedade exploradora que os educou” (MACHEL, 1980, p. 26 apud
BONFIM, 2018, p. 18). Por este motivo, o real combate é contra esse sistema que
transforma homens em agentes opressores. E é dentro dessa concepção que se
intenciona discutir a opressão às mulheres, trazendo para os momentos áulicos
reflexões sobre a superioridade masculina construída histórica e culturalmente,
multiplicadas pelas diferentes formas de educar o feminino e o masculino,
conferindo determinadas competências e habilidades para cada sexo.
A Pedagogia Histórico Crítica não compreenderia uma teoria de cunho
marxista se não levasse em consideração a educação em sua totalidade e
advertisse sobre contradições notáveis do sistema capitalista que acaba por
despejar na educação escolar um dos caminhos estratégicos para a reprodução e
manutenção das formas de opressão, dentre elas, a de gênero.
Na Educação Física, também houve uma procura por alternativas às
pedagogias acríticas ou crítico-reprodutivistas consideradas hegemônicas.
Desse modo, Soares et al. (2012) conseguiu articular a prática pedagógica
dentro da área pautada na PHC. Uma tematização dos conteúdos de forma
crítico-superadora, conforme aponta Reis et al. (2013, p. 57), “abrange a
compreensão das relações de interdependência que os diferentes conteúdos da
cultura corporal têm com os grandes problemas sócio-políticos atuais”.
Para isso, a finalidade que os momentos pedagógicos irão conduzir deve
levar em consideração a composição materialista, histórica e dialética do real.
Além disso, conforme Goellner (2007), é preciso buscar as importantes
participações femininas na constituição de culturas e sociedades, rompendo
com uma história que considera e relata apenas sob uma ótica masculina, para

34
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

que se perceba que homens e mulheres não precisam seguir um determinado


roteiro de vida e obedecer a determinados papéis na sociedade.
Como o sexo feminino é constantemente alvo de preocupações, a partir
dos discursos das supostas fragilidades emocionais, físicas e sua capacidade
reprodutiva, sofrendo discriminação em todo o âmbito social, algumas vezes as
próprias mulheres acabam internalizando tais visões negativas, deixando de
questionar as condições que são submetidas.
Nesse contexto, a escola não pode reproduzir saberes supostamente
científicos e politicamente “neutros”, mas sim refletir sobre a realidade
socioeconômica, e nesse sentido, avaliar as barreiras culturais promovidas
socialmente em relação à representatividade que os corpos femininos e
masculinos adquiriram ao longo da história.
Nas aulas de Educação Física, as diferenças sexuais se tornam ainda
mais evidentes, pois é um espaço de vivência das práticas corporais, no qual os
educandos têm a oportunidade de descobrir movimentos e desenvolver a
criatividade, porém também é um ambiente de suposta superioridade
masculina.
Tal concepção é reforçada com ações docentes ao, por exemplo, dividir a
turma por sexo, para o desenvolvimento de atividades específicas e diferentes,
algumas vezes negando a técnica e o conhecimento para um dos grupos, e
favorecendo o desenvolvimento motor dos meninos em detrimento das meninas,
consequência de distintas atividades realizada por eles.
De acordo com o Soares et al. (2012), os conteúdos da cultura corporal
devem buscar uma nova compreensão da realidade social, ampliando as
referências e favorecendo a formação de um cidadão consciente e crítico, que
possa intervir na direção dos seus interesses de classe e, nesse caso, de grupo
excluído socialmente.
Sendo assim, as aulas de Educação Física não deveriam ser um espaço
propício para a manutenção de estereótipos, mas sim um ambiente facilitador
da reflexão pedagógica sobre as representações do mundo materializadas pela
expressão do corpo, construídas historicamente. (SOARES et al., 2012)
Por isso, considera-se de grande importância a ocorrência de aulas
mistas, que problematizem todas as formas de opressão, interdisciplinares e que
facilitem a associação dos educandos com a realidade em que se encontram

35
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

inseridos para favorecer meninos e meninas a aprenderem a ser mais solidários


e a respeitar as diferenças, além de proporcionar as mesmas condições de
desenvolvimento, combatendo a reprodução da estereotipia sexual.
Portanto, o professor deve garantir o acesso aos diversos conteúdos,
considerando a relevância social e a contemporaneidade dos mesmos, além de
proporcionar a participação de todos, na busca da assunção de posturas críticas
perante os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres na sociedade
atual.
Assim, a PHC pode contribuir para pensar as construções históricas,
logo, não naturais (mas, naturalizadas) sobre gênero, na educação física escolar,
a partir das condições, contradições e nexos, das práticas corporais, em uma
sociedade dividida em classes, com a realidade da qual são produzidas e
produzem. No desenvolvimento dessas práticas, no interior das aulas de
educação física, pensar a quem e para que interessa a confusão conceitual entre
gênero e sexo, na sociedade capitalista, e a partir delas, a construção de uma
gama de sentidos estereotipados, segregacionistas e preconceituosos, que
limitam o ser humano em suas potencialidades crítico-corporais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho enviesado por este estudo, inicialmente buscou os


pressupostos provenientes da pedagogia histórico-crítica para relacionar com a
discussão sobre gênero, no interior da escola e da Educação Física escolar.
Assim, os eixos selecionados durante a leitura e análise, restringiram-se à
apresentação das concepções construídas e às imbricações próprias entre o
materialismo histórico dialético – fundamentador da PHC – e as questões de
opressão à mulher.
A Pedagogia Histórico-Crítica é uma proposta que não pode ser
ignorada pelos intelectuais orgânicos da esquerda marxista, pois o maior de seus
esforços para as questões de avanço na luta dos trabalhadores e possível
superação do modelo capitalista de produção, está na educação, que tem relação
com a reprodução da força de trabalho nesse sistema, com o machismo, além do
racismo e a LGBTfobia. Todas estas expressões devem ser combatidas
cotidianamente, bem como a reprodução passiva da educação classista-
burguesa, que estão indistintamente relacionadas.

36
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Diante do exposto, reflete-se sobre o processo de transmissão dos papéis


de cada gênero que se fundamentam, em sua maioria, em argumentos de cunho
biológico e desencadeia uma acentuada diferença de experiências vividas por
meninos e meninas, interferindo no seu desenvolvimento físico e social.
Portanto, a práxis nas aulas de Educação Física escolar se resume a uma
prática discriminatória, a qual tem historicamente contribuído para a
perpetuação de valores excludentes de gênero, podendo influenciar na relação
entre educandos e educandas, não só durante as aulas de Educação Física, como
também nas relações sociais. Isto significa uma distorção do sentido de práxis,
que exprime um movimento dialético do real nas ações e reflexões humanas, no
caso das práticas corporais produzidas para a emancipação, distantes, portanto
da segregação do homem e da mulher para práticas condizentes a seus gêneros,
sob o discurso do sexo.
Desse modo, durante os momentos áulicos, as diferenças entre os sexos
devem ser compreendidas e respeitadas, não sendo consideradas obstáculos no
desenvolvimento de quaisquer atividades, mas sim pontos de discussão para a
proposição de igualdade de oportunidade a todos, respeito e tolerância diante
das diferenças, como indica a abordagem crítico superadora, ao visar uma
prática social final, que favoreça a reflexão pedagógica e promova
transformações na realidade da sociedade desigual e discriminatória.
Portanto, a PHC contribui para pensar as questões de gênero, nas aulas
de educação física, de forma a recuperar as discussões e experiências que
favoreçam homens e mulheres, conscientes de classe trabalhadora, para
superação de quaisquer discriminações, que sofrem pela burguesia. O interesse
não é eliminar as diferenças entre homens e mulheres, mas apresentar a riqueza
dessas diferenças, na busca de outro mundo possível, para além de um
capitalismo que utiliza as diferenças para desigualar e estratificar o indivíduo,
mascarando nesse processo, a sua condição de classe.

The Historical-Critical Pedagogy and the gender discussion in School Physical


Education

Abstract: The article discusses how the Historical-Critical Pedagogy (PHC) dialogues
with the gender questions in physical education classes. It adopts the historical-
dialectical materialism as the theory of knowledge, and it carries out a bibliographic
research, followed by content analysis to substantiate the discussion. It comprehends the
differences between genders as points of discussions for proposing respect and tolerance

37
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

in front of diversities. It concludes PHC contributes for the reflections about the gender
debate in physical education classes, in order to recover the discussions and experiences
favoring men and women, aware as working class, for overcoming of any
discrimination, to beyond the capitalism which uses the differences to unequal and
stratify the individual, masking on this process, its class condition.
Keywords: Historical-Critical Pedagogy. Gender. School Physical Education.

REFERÊNCIAS

BONFIM, Cláudia. A condição histórica da mulher: contribuição da pedagogia


histórico-crítica na promoção da educação sexual emancipatória. Uberlândia:
Navegando Publicações, 2018.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São


Paulo: Expressão Popular, 2012.

GASPARIN, J. C. Uma didática para pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores


Associados, 2007.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Feminismos, mulheres e esportes: questões


epistemológicas sobre o fazer historiográfico. Movimento, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p.
174 -196, 2007.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia


científica. São Paulo: Atlas, 2003.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

REIS, Adriano de Paiva et al. Pedagogia Histórico-Crítica e Educação Física. Juiz de


Fora: Editora da UFJF, 2013.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas:


Autores Associados, 2012.

SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo:
Cortez, 2012.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa


em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

38
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A prática artística do Ballet Clássico como construção do gênero nas


aulas de Baby Class
Alana Maria Alencar de Moura (FAMETRO) 9
Roberta Oliveira da Costa (FAMETRO) 10

Resumo: A dança está relacionada aos processos de linguagem que participam na


construção cultural do corpo, atuando como uma pedagogia cultural de gêneros, por
meio da qual as diferenças sociais de gênero são reproduzidas e através da afiguração de
diversas maneiras de utilizar o corpo masculino e feminino. O ballet infantil é
relativamente novo, o que justifica ainda não haver uma institucionalização com regras
e normas semelhantes aos outros níveis do ensino do ballet. Deste modo a presente
pesquisa objetiva investigar a influência do ballet clássico nas aulas de baby class como
construção do gênero dos praticantes. O cenário da pesquisa concedeu em uma
academia de dança, em um colégio privado no município de Fortaleza (CE). Trata-se de
um estudo de campo observacional descritivo, de modo longitudinal, com uma
abordagem qualitativa e quantitativa. Participaram da pesquisa 6 professores de baby
class, e 11 bailarinas efetivamente matriculadas na turma de baby class. Como
instrumento de coleta foi utilizado um diário de campo das aulas e um questionário
semiestruturado com cinco questões objetivas e descritivas. Os resultados apontam que
a maioria das professoras não reconhecem o ballet clássico como influência na definição
do gênero. Contudo, observou-se que as aulas de baby class, pode levar ao aprendizado
coexistente da técnica, assim como também fazendo parte na construção do gênero das
bailarinas.
Palavras-chave: Ballet clássico. Gênero. Baby class.

INTRODUÇÃO

A dança é uma área de conhecimento que compõe diversas


manifestações da cultura classificadas como modalidades. Está relacionada aos
processos de linguagem que participam na construção cultural do corpo. Atua
como uma pedagogia cultural de gêneros, por meio da qual as diferenças sociais
de gênero são reproduzidas e através da afiguração de diversas maneiras de
utilizar o corpo masculino e feminino.
O interesse por esse assunto em vincular o ballet clássico ao gênero surge
a partir das observações das aulas de baby class em uma academia de dança.
Assim tornam-se indispensáveis alguns questionamentos: Como o ballet clássico
influência no gênero dos praticantes? Sendo o ballet um estilo tradicionalista,
como são lidadas as situações que possa não se encaixar? Que padrões podem

9
Licenciada em Educação Física pela Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza
(FAMETRO). E-mail: alanamarialencardemoura@gmail.com
10
Mestra em Ciências Morfofuncionais pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Professora da Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO). E-mail:
rcosta.dance@hotmail.com

39
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

ser observados e retratados nas aulas?


É sabido que as aulas de ballet clássico nas turmas de baby class, se
utiliza de metodologia como articulação de gênero, são as técnicas de forma
lúdica, fazendo o uso de imagens e contos de fadas, por isso ainda hoje as aulas
dos níveis iniciais são quase que unicamente frequentados por meninas. Deste
modo a presente pesquisa objetiva investigar a influência do ballet clássico nas
aulas de baby class como construção do gênero dos praticantes. Inicialmente foi
realizado um estudo bibliográfico fundamentaram e estabeleceram bases sólidas
para a temática suscitadas. Necessitou-se então de uma subdivisão representada:
Histórico da dança e do ballet: do clássico ao contemporâneo; Conceito de
gênero: implicações na dança; Baby class e a articulação de gênero.
Trata-se de um estudo de campo observacional descritivo, de modo
longitudinal, com uma abordagem qualitativa e quantitativa, através de
observação não participante, utilizando com instrumento um diário de campo
para descrição das observações. A opção desta investigação configura-se devido
à carência de estudos relacionados à temática proposta. Aspiramos com este,
colaborar com conhecimento para compreensão do baby class e sua relação na
construção do gênero, despertando o interesse, colaborar com conhecimento e
compreensão da metodologia através de diferentes estratégias e abordagens,
legitimar as ferramentas para a articulação de gênero nas aulas de baby class.

HISTÓRICO DA DANÇA E DO BALLET: DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO

Na história da humanidade a dança sempre se manifestou, na sua forma


mais antiga eram sagradas, foram praticadas em diversos rituais, por meio de
cerimônias para consagrar deuses e suplicar por sucesso nas caçadas e lutas. No
decorrer da evolução humana a dança foi transformando seu formato e
destinações (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Para Portinari (1989) a
dança teve seu primeiro tratado em Milão entre 1435 e 1436. Além de ter sido
escrito para a nobreza, esse código criava diversas minúcias que só eram
acessíveis ao entendimento dos mestres de dança. (ASSUMPÇÃO, 2003)
Apesar de ter sofrido influências do renascentismo italiano, foi na
França que surgiu o ancestral do ballet clássico, o ballet da corte. Com o
contexto europeu, de sucessões políticas e guerras, na segunda metade do século
XVI (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Para Pereira (2008) Antes da

40
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

década de 1980, o que se encontrava de consistente dos achados da histórica da


Dança (mundial) no Brasil era produzida em por personagens e autores
estrangeiras, exatamente como a inserção das práticas da dança clássica
francesa e russa, em um país ainda dando seus primeiros passos. Os primeiros
escritos chegados aqui são livros estrangeiros, assim como determinadas
traduções.
Na dança, as modalidades mais encontradas na atualidade, pela à
facilidade despadronização do clássico e moderno, jazz, sapateado, entre outros.
Incluindo também, as danças folclóricas, que são vivenciadas nas escolas, ou em
determinadas comunidades, com objetivo de conservar as culturas (SILVA;
SCHWARTZ 1999). Deste modo as modalidades da dança são uma extensão
rica para investigar a transferência da cultura para mais adiante do campo da
cultura verbal ou escrita, já que nelas existe toda uma corporeidade que se
expressa diante dos modos de expressão, das gestualidades e das técnicas
corpóreas. (VALLE, 2017)
Segundo Caminada (1999), as expressões ballet, balet ou balleto,
significam pequeno baile. O ballet cortesão surgiu de uma dança coral, como
uma maneira de entreter a corte, foi introduzida em salões, revivia os mistérios
antigos da evolução e da vida das danças e máscaras. Neste contexto o ballet
clássico ou dança clássica tornou-se, no decorrer da história, o primeiro estilo
de dança a alcançar reconhecimento popular, como forma de arte internacional.
(SOUZA, 2010)
No século XVI na Itália o ballet clássico tem seu surgimento, mas em
1581 foi conduzido até a França e consolidado como categoria da dança, apesar
de ter suas origens à cultura camponesa, foi afirmado como hábito da nobreza,
acreditava-se que através dos padrões de gestos e etiquetas do ballet, ajudaria na
educação do corpo. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016)
No Renascimento o ballet assumiu uma característica de espetáculo
dançante, sendo apresentado em um teatro com uma plateia que habitualmente
pagava por seu ingresso; foi quando nasceu o ballet tal como o conhecemos hoje
(OSSONA, 1988). Inspirados nas posições dos pés na esgrima, voltados os dedos
para fora, chamado de “en dehors”, Pierre Beauchamps, no século XVII
estabeleceu as cinco posições básicas dos pés, com a intenção de permitir que os
bailarinos movimentassem rapidamente, em qualquer direção sem que

41
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

perdessem o equilíbrio. (AMARAL, 2009)


Para Amaral (2009) apud Stevens (1997) em meados do século XVIII, o
dançarino e coreógrafo Noverre, inaugurou o ballet de ação, fundamental para a
história da dança, uma arte teatral que busca a naturalidade, no conceito de
imitar a natureza. Depois surge o coreodrama, com Viganó, destacando o ballet
com maior expressão à emotividade e à plasticidade. Contrariando as duas
tendências naturalistas do ballet, surge o romantismo, com a coreografia de
Phillippe Taglione, estreada por sua filha Maria Taglione em La Silphide,
proporcionando enaltecimento a mulher. (ASSUMPÇÃO, 2003)
Com Marius Pepita (1822-1910), ballets conhecidos como clássicos de
repertório, como por exemplo, Copélia, Bela Adormecida e Lago dos Cisnes, os
quais chegam até nós, nos dias de hoje, exatamente como foram criados
(ASSUMPÇÃO, 2003). Ossona (1988) descreve nesse período as bailarinas
perderam-se, esquecendo-se da arte em si. Então logo, surgem Diaglev, Nijinsky
e Fokine, apresentando o ballet modernista, reforçando o ballet masculino, com
o objetivo de obter outras formas de dança e um público mais ansioso,
interessados em música, teatro e dança.

CONCEITO DE GÊNERO: IMPLICAÇÕES NA DANÇA

Na sociedade, as diferenças entre homens e mulheres são relacionadas


exclusivamente às distinções de sexo, com perceptíveis conotações biológicas.
Contudo, sexo refere-se à heterogeneidade física entre mulheres e homens,
nascemos com algumas características que são singularidades masculinas e
femininas (AQUINO, 1998). Assim a sociedade em que vivemos define o ser
humano ao nascer em menino ou menina, através dos órgãos genitais. No
entanto, a idealização da nossa identidade como homem ou como mulher não é
um fator biológico, mas sim social. Em razão que, a biologia não define a
conduta do homem ou da mulher, no entanto, a cultura que é responsável por
essa definição, e isso mudam de acordo com a civilização de que falamos.
(JESUS, 2012)
Para Scott (1995), gênero é o processo pelo qual as diferenças sexuais dos
corpos de homens e mulheres são trazidas para dentro das práticas sociais, de
forma a adquirirem significados culturais. Aponta para a implicação de pensar
a cultura e a sociedade como sendo constituídas e atravessadas por

42
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

representações de feminino e masculino, ao mesmo tempo em que produzem


e/ou ressignificam essas representações. (MEYER, 2004)
Por meio das relações com os outros, a identidade pessoal, a história e o
projeto de vida vai se configurando. Neste modo, o fato de se pertencer a um
gênero ou outro, também condizem com as referências iniciais no mundo,
tornando a identidade como consequência e condição da relação interpessoal
(ANDRADE, 2001). Segundo Louro (1995) a abordagem de gênero tem a
importante função de agir como uma ferramenta teórica para os avanços nos
estudos das ciências sociais, como também para análise crítica na história,
especificamente na história da educação.
Portanto, a dança por seus diversos estilos, pode ser definida como uma
ferramenta que faz uso do corpo marcado pelo gênero, analisando como
mecanismos de padronização, de aplicação das normas de gênero, que investem
na produção de determinados tipos de corpos masculinos ou femininos. No
entanto, a dança tem uma tarefa complexa, uma vez ocorre em cenários
culturais diversos, e é praticada por pessoas com histórias de vida distintas e
específicas. (ANDREOLI, 2010)
Em algumas escolas, a dança é uma das atividades exclusivamente
praticadas por meninas, enquanto os esportes são privilégios dos meninos.
Provavelmente está padronização ocorreu pela evolução do corpo durante a
Revolução Industrial, na qual a sociedade tinha a definição de masculinidade,
ligadas a produtividade, eficiência, aquisição de bens, provedor da família
(BARBOZA, 2016). Segundo Kleinubing apud Saraiva (2009) acredita-se que o
preconceito se associa à ideia de que a criatividade e a sensibilidade são
“habilidades” ligadas ao universo feminino, pensamento disseminado pela
sociedade moderna e, por tanto, a referência ou o imaginário da figura do
homem na dança é uma construção histórico-social na qual a lógica difundida
de que o homem que dança é homossexual, ainda que infundada, infelizmente,
flui no universo masculino.

BABY CLASS E A ARTICULAÇÃO DE GÊNERO


Denominada também de “turmas de iniciação à dança”, as aulas de baby
class recebe crianças de dois aos seis anos de idade, encontrando-se no período
pré-operatório, tendo como principal característica a iniciação à fala. O

43
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

aparecimento da linguagem nas crianças provoca mudanças essenciais nos


aspectos cognitivos, sociais e afetivos, pois ao comunicar-se com o outro, irá
permitir o desenvolvimento de novas características, como por exemplo, o
pensamento egocêntrico, inteligência simbólica e a construção de esquema
mental. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016)
O cenário do baby class como iniciação ao ballet infantil é
relativamente novo, o que justifica ainda não haver uma institucionalização
com regras e normas semelhantes aos outros níveis do ensino do ballet (WOLLZ;
CERQUEIRA; MULLER, 2016). Nestes primeiros anos o conteúdo aplicado é
estudado e desenvolvido através dos movimentos naturais da criança, da
utilização do simbolismo e da fantasia, permitindo estimular o desenvolvimento
da atividade criadora e da imaginação. (NABINGER, 2016)
Bartolo desenvolveu o método Prima Ballerina, que tem como finalidade
ensinar o ballet de forma lúdica, criando a possibilidade de aprendizado no
autocontrole, limites, autoestima, criatividade através do mundo imaginário,
aperfeiçoamento e rapidez aos movimentos, despertando sua inteligência
(WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Neste nível, o conteúdo é ministrado
durante as aulas estimulando a atenção e a concentração, através de histórias,
canções envolvendo fadas e robôs, procurando elementos que levem a
interpretação e ao melhor entendimento dos exercícios. (NABINGER, 2016)
De acordo com Almeida (2012) existem diferenças quanto ao gênero na
técnica clássica. Enquanto a bailarina tem uma imagem na magreza, leviandade
e ser etéreo, caracterizada pela técnica de sapatilhas de pontas, na saia tutu, no
equilíbrio, no giro e nos amplos saltos das coreografias, o bailarino necessitam
evidenciar em seus movimentos, força e agilidade na condução da bailarina na
dança.
O uso de princesas e fadas no baby class pode levar ao aprendizado da
técnica clássica, mas age também como articulação ao gênero feminino. O b allet
ainda é visto como uma arte especificamente feminina. Resultando, em um
público quase que exclusivamente feminino, nas aulas de iniciação, reforçando
na esfera infantil o estereótipo de apenas meninas na dança clássica (SANTOS,
2009). Dessa forma, nas aulas de baby class são utilizados contos de fadas,
permitindo o universo infantil feminino. Princesas, fadas e a imagem da
bailarina romântica, com o biótipo de sílfide, trajando tutu e sapatilhas de

44
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

ponta, são aproveitadas para o aprendizado dos aspectos de leveza. (WOLLZ;


CERQUEIRA; MULLER, 2016)

METODOLOGIA

A presente pesquisa classifica-se como um estudo de campo


observacional descritivo, de modo longitudinal, com uma abordagem qualitativa
e quantitativa, analisando a concepção do é clássico como desempenho artístico
convertida em desempenho do gênero. Assim o estudo observacional é uma
investigação em que a informação é sistematicamente colhida, mas o método
experimental não é utilizado, porque não há uma intervenção ativa do
investigador. Os estudos podem ser: descritivos e analíticos. Estudo
observacional descritivo é definido por descrever uma situação. (LUNA, 1998)
O cenário da pesquisa concedeu em uma academia de dança, em um
colégio privado no município de Fortaleza- CE após a autorização das
instituições através do Termo de Anuência. São ofertados os cursos de baby
class, ballet clássico, jazz, hip hop e zumba. Planejado para diversas faixas
etárias, a academia de dança é acessível para alunos, não alunos, pais e
funcionários do colégio. A pesquisa foi realizada entre os meses de março 2017
a outubro do ano de 2018.
A população foi composta por 208 alunos da academia, participantes
das modalidades de dança, desenvolvida com a amostra de 11 alunas do sexo
feminino. Já com relação as professoras a população do estudo integraram 9
professores da academia de dança, do turno manhã e tarde, no qual foi retirada
uma amostra de 6 profissionais de baby class. Os participantes exclusivamente
do sexo feminino, na faixa etária entre 3 a 4 anos, matriculadas na turma de
baby class. Os profissionais participantes do sexo feminino, na faixa etária
entre 25 a 47 anos, com o tempo de atuação na dança de 9 a 30 anos e efetivadas
na academia entre 3 a 23 anos.
Deste modo foram incluídos na amostra professoras alunas das turmas
de baby class, alunas matriculadas nas turmas de baby class I, porém foram
excluídos da amostra todos aqueles participantes que se recusaram a participar
da pesquisa ou ainda aqueles que porventura não assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A coleta de dados foi feita a partir de um diário de campo. O estudo

45
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

prosseguiu com observações de 50 horas aula aplicadas ao de baby class I. Para


registro da pesquisa foram observadas, registradas e analisadas as primeiras 10
horas-aulas e descritas 5 horas-aulas. Tais observações e registros deram-se por
intermédio da observação, que é uma técnica de coleta, da qual o pesquisador se
apropria de um diário de campo. Para cada aula, ressaltaram-se os
acontecimentos que se relacionavam com os objetivos da pesquisa (Quadro 1).
Para um melhor detalhamento da pesquisa também se utilizou para a
coleta a utilizou-se a aplicação de um questionário semiestruturado contendo
cinco questões. Antecedendo a aplicação do questionário foi apresentado e
assinado no cenário de pesquisa o TCLE. Os preceitos éticos regidos pela a
Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, referentes às pesquisas
científicas com serem humanos, foram priorizados pela pesquisadora. (BRASIL,
2012)
Os resultados, quando se trataram das questões objetivas, foram
analisados através da estatística descritiva e apresentados através de gráficos e
quadros programa Excel (2010) – Windows. As questões abertas, por meio da
análise de conteúdo das respostas, que foram categorizadas e discutidas a luz da
subjetividade.

Quadro 1 – Observações das Aulas


Aulas Observações das Aulas
 A aula iniciou-se na chegada das crianças em meia ponta e mãos
na cintura, a professora solicita a formação do círculo, sentadas para
realizar a frequência. Na posição de borboleta, nesse momento a professora
canta junto das bailarinas a música da borboletinha, alternando os
movimentos entre lentos e rápido. Ainda na borboletinha, é perguntado as
alunas: têm chulé?, as alunas colocam o nariz nos pés e voltando, com
repetição dos movimento. Ainda na posição de borboleta, é solicitado que
as crianças imaginem que estão no mar, seu corpo é um barco e para que
não afundem é preciso balançar de um lado para o outro, sem colocar as
mãos no chão.
Aula 1
 Em seguida, a professora pede que as bailarinas imaginem que
estão em uma floresta e as bolas de papel espalhadas pelo chão da sala são
as maçãs e elas agora são a chapeuzinho vermelho. Nesse instante uma de
cada vez pega as bolas de papel realizando o skip, demostrado antes pela
professora. Próximo do termino da aula, as bailarinas escolhem uma
música, dançam ou brincam pela sala, seguidamente a reúne-as, fazendo o
agradecimento e encerra a aula. Todas as aulas tinham duração de 50
minutos, e acompanhadas de músicas infantis ou do ballet clássico.

46
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

 A atividade de aquecimento inicia-se com a posição da borboleta,


a professora pergunta a cor da borboleta de cada bailarina, e em sua
maioria escolhem rosa ou lilás, fazem os movimentos das asas e cantam a
música da borboletinha. Ainda sentadas, com as pernas estendidas, as
meninas ficam em postura com a coluna reta, chamada de costas de
bailarina, logo após relaxam, deixando a coluna curvada, chamada pela
professora como costas de velhinha, depois trabalham o pé flex. e ponta,
como: pé de palhaço, pé de bailarina.
Aula 2  Formando uma fila, as bailarinas andam na meia ponta em
direção aos arcos que estão espalhadas pelo chão da sala, pulam dentro de
cada um fazendo o pas de chat, nomeado pela professora como o pulo do
gato. Faltando alguns minutos para o termino da aula, as bailarinas
recebem arcos para dançar, nesse momento a professora observa uma
dificuldade, pois a maioria tem resistência em aceitar o arco que não seja
da cor rosa, então a professora senta com todas em um círculo e faz uma
breve explicação sobre todas as cores são especiais, então elas escolhem
uma música, dançam e brincam, logo depois reúne-as, fazendo o
agradecimento e encerra a aula.
 Na terceira aula as crianças entram na meia ponta e mãos na
cintura, é solicita que formem um círculo sentadas para que realize a
frequência. Sentadas de pernas cruzadas de frente para outra aluna,
tentando dar um abraço na sua dupla e depois seguram nas mãos
realizando o movimento de ir para traz e frente, como um barquinho
navegando.
 Ainda sentadas, agora com as duas pernas paralelas na frente do
corpo, é solicitado que imaginem que são sereias, e suas pernas são a calda,
Aula 3 assim joguem a calda para ambos os lados, depois se ajoelham e levantam-
se sem tocar as mãos no chão. Em seguida realizam uma abdução dos
membros inferiores, formando uma piscina com as amigas, logo após
realizavam o movimento na frente sem abduzir os membros inferiores ou
flexiona-las, fazendo o movimento de mergulho. Com os membros
inferiores ainda em abdução, colocam-se os ouvidos nos joelhos para
escutar os joelhos, é importante destacar que todas as atividades propostas
aconteciam de forma lúdica. Ao termino da aula, os arcos no chão, as
alunas dançavam ao ritmo da música colocada, quando a música para elas
trocava de lugar na meia ponta.
 Na quarta aula, iniciando o alongamento das bailarinas, na
posição da borboletinha, a professora pede que elas cheirem os pés, e
balançam de um lado para o lado, como um barco em alto mar, em seguida
estendendo as pernas para frente, logo em tentam dar um beijo nos joelhos,
sem flexiona-los. Na diagonal da sala as alunas andam como vovozinha:
andam com o corpo todo relaxado, depois andam como bailarina: na meia
ponta, com as mãos na cintura, coluna reta e pescoço alongado, nomeado
Aula 4 como pescoço de girafa. Logo em seguida é contado uma história sobre os
sapos que viviam tranquilos no lago, um dia apareceram vários peixes
deixando o lago lotado. Para os sapos si movimentarem de um lugar para
outro precisam pular (saltar) por sobre os peixes até conseguir encontrar
um lago mais tranquilo, em seguida as alunas são estimuladas a
imaginassem que toda sala era um lago onde vivem vários sapos e peixes, e
as alunas eram os sapos, espalhadas pela sala, pulam todas as fitas no chão
que simbolizam os peixes, preparando o salto como o sapo (plié e

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

finalizando com plié).


 Para finalizar a aula, a professora distribui boias de espaguete
para as bailarinas e escolhe uma música, dançam ou brincam pela sala,
seguidamente a professora reúne-as, fazendo o agradecimento e encerra a
aula.
 Na quinta aula, na posição de borboleta, as alunas realizam os
movimentos das asas, nesse momento a professora canta junto das
bailarinas a música da borboletinha, alternando os movimentos em lento e
rápido. Ainda na borboleta, as alunas abracem uma perna como se fosse
um bebê e depois o coloque para dormir. Já deitadas, é solicitado que
imaginem que estão pedalando uma bicicleta, pergunta a cor da bicicleta
de cada uma, intervindo quando as alunas escolhem apenas rosa, pedindo
que escolha outra cor, em seguida realizam a tesoura com as pernas, depois
em duplas, juntam os pés e realizam a atividade de pedalar, tesoura e com
as pernas semi-flexionadas. Posteriomente ao ritmo da música é realizado
uma sequência de movimentos do ballet para estimular a memória das
alunas, como skips, chassés, sauttés, elevés e caminhadas na meia ponta,
Aula 5 mas sempre usando termos lúdicos para melhor memorização, como “abre
a janelinha” ao invés de “plié”, “braços de bailarina, mãos de princesa,
mãos de siri”. Em fila, foi explanada a sequência de movimentos que iriam
realizar skip até os arcos, para entrar realizaram o pulo do gato, imitava
uma pose de bailarina, reverenciava. Algumas crianças sentiam
dificuldades nos movimentos, mas sempre realizavam o que era proposto.
Em um círculo as alunas escutam a história do mágico de Oz, sempre
interagindo a professora pede que as bailarinas imaginem que estão com o
sapato da Dorothy e mostre a ponta da bailarina, imitam o espantalho,
boneco de lata e leão. Logo após a professora ordena as alunas e passa uma
sequência de passos ao som da música do filme mágico de Oz. Para
finalizar a aula, a professora permitiu que dançassem livres pela sala com
os arcos, fazendo o agradecimento e encerra a aula.
Fonte: Dados da pesquisa (2017).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados coletados e respectivas discussões da pesquisa, sendo as


respostas apresentadas em gráficos e tabelas para melhor visualização e
compreensão do leitor. É importante destacar que para o comprimento dos
preceitos éticos da pesquisa os sujeitos serão descritos por siglas para
preservação do anonimato.
Durante o processo do estudo foi possível observar a abordagem do
ballet clássico nas aulas de baby class, como iniciação da técnica do clássico
associado ao lúdico à professora empregava termos adaptados para a faixa
etária, utilizava-se instrumentos como, músicas infantis, histórias (contos de
fadas, princesas), adereços (arcos, boias espaguete, bexigas) que tornava as aulas
mais lúdicas e atraentes para as crianças. As vestimentas usadas pelas

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

bailarinas compreendiam em um collant justo, uma saia curta de tecido leve,


meia calça e sapatilhas de meia ponta, nas primeiras aulas observou-se a
preferência por cor rosa e lilás, algumas alunas também optavam por tutu (saia
de tule em formato de bandeja), e os cabelos penteados de forma clássica
conhecido como coques, sua importância consiste está relacionada a estética e
organização dos cabelos para que este não atrapalhe a execução dos
movimentos.
Observou-se que os praticantes das turmas baby class da academia de
dança eram exclusivamente meninas, pois, o ballet clássico continuamente é
reforçado como uma atividade “feminina”, mesmo que haja o interesse dos pais
ou do menino praticar, entendemos uma percepção social na figura da dança
clássica como contexto feminino. Marques (1997) destaque que não são poucos
os pais de alunos, e os próprios alunos, que ainda consideram a dança coisa de
mulher.
Para Andreoli (2010) estudos têm demonstrado que, num sentido geral, o
tipo de elação que a dança estabelece entre o corpo e o sensível, converge com a
noção de relação com o corpo, estabelecida pelas representações de feminilidade
hegemônicas. Em outras palavras, a estética corporal proporcionada pela dança
é considerada a mais própria de uma espécie e essência natural da mulher.
Trona-se importante destacar que em alguns momentos das aulas a
professora enfrentava dificuldades com as alunas, pois ao ser utilizados os
adereços lúdicos as mesmas desejavam os instrumentos das cores rosa e lilás. Ao
questionar os motivos por não querer as outras cores, estas indagavam que as
outras cores não eram de menina. Com isso a professora iniciava sempre uma
explicação que não existe essa distinção de cores, meninos e meninas podem
usar a cor que desejar, apesar da explicação observava-se uma resistência.
Hanna (1999) exemplifica que desde bebês existem padrões visuais que indicam
a diferença entre meninos e meninas; a cor rosa é destinada para meninas e a
cor azul para meninos.
Outros fatores de destaque nas aulas eram utilizados os aspectos de
leveza e graça, característicos no ballet clássico, a professora lidava com
imagens de contos de fadas e princesas, fazendo com que as bailarinas
correspondessem melhor. A professora explora em toda sua amplitude o
esquema corporal, na assimilação quanto a sons e movimentos, na descoberta da

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

colocação do corpo no espaço, e principalmente na percepção da imagem da


bailarina, por se tratar de uma arte que se constitui na estética e no
virtuosismo.
Para Cruz e Palmeira (2009), a construção social da distinção de Gênero
tem início desde o nascimento dos bebês. As pessoas nascem e são criadas e
educadas conforme o que a sociedade define como próprio de homem e de
mulher e essa educação diferenciada consistem entre outros procedimentos,
como formas de presenteio, de vestimentas, contar estórias, e ainda mais
sutilmente, nos aspectos como atitudes, trejeitos e expressões corporais.
Dando continuidade respectivas discussões dos resultados coletados
através da aplicação do questionário semiestruturas que obteve com sujeito as
professoras de baby class. A primeira pergunta indagou: Qual abordagem
utilizada nas suas aulas de baby class? Técnica do Ballet clássico; Prima
Ballerina; Outras.

Gráfico 1 - Abordagem utilizada nas aulas de baby class pelas professoras

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Diante dos resultados obtidos no gráfico 1, 100% das professoras


apresentam prima ballerina como a abordagem utilizada nas suas aulas de baby
class. A abordagem Prima Ballerina está fundamentada na pedagogia, na
psicomotricidade, na psicologia e na neurociência. Foi criada por Bartolo, com
a intenção de ensinar o ballet com o desempenho lúdico, proporcionando as
crianças a desenvolver seus limites, o controle do corpo, a autonomia e a

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

criatividade através do imaginar, da inteligência, da diminuição de tensões e de


insatisfações. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016)
Ao planejar as aulas, o professor deve fazer uma ligação dos princípios
básicos do ballet clássico como posições, direções, poses, exercícios, passos,
giros e saltos com a ludicidade como brincadeiras, narração de histórias,
tornando um ambiente agradável e divertido para as crianças (SOUZA, 2010).
Assim quando o professor utiliza a psicomotricidade no ensino do ballet
infantil, oportunizar crianças desenvolver-se de modo global, oportunizando a
tomar suas próprias decisões, distinguindo-as como criador de sua cultura e
arte, reconhecendo seu corpo no mundo. (OLIVEIRA, 2008)
Na segunda questão tinha com perspectiva identificar as ferramentas
utilizadas nas aulas de baby class pelas professoras.

Tabela 1 - Ferramentas utilizadas nas aulas de baby class


Ferramentas
Opções Qt. %
Histórias, músicas apropriadas, objetos e adereços 6 100%
Exercícios de repetição e composição de movimento 4 66,6
Barra, centro e diagonais 1 16,6%
Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Nos resultados da tabela 1, evidencia-se que 100% das professoras


utilizam histórias, músicas apropriadas, objetos e adereços, 66,6% usam
exercícios de repetição e composição de movimento e 16,6% usufruem da barra,
centro e diagonais. Os resultados evidenciam uma ligação direta com a
ludicidade.
Deste modo as ferramentas lúdicas, assim como as músicas e os
exercícios, deverão sempre estar presentes na aula de baby class, assim como
relacionados à idade e o objetivo específico para cada faixa etária. Devem ser
utilizadas músicas que encantem as crianças, tornando a aula mais divertida e
atrativa. Exploremos diferentes movimentos como pular, correr, deslizar e girar,
utilizando objetos como bolas, lenços, cordas, arcos. Movimentos que auxiliam a
musicalidade e coordenação. (SOUZA, 2010)
Utilizadas em aula como ferramentas da ludicidade, os contos de fadas,
princesas e a própria figura da bailarina romântica com o biótipo de sílfide,

51
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

vestida de tutu e sapatilha de pontas, que compõem o mundo das meninas, são
aplicadas no ensino do balé infantil para a introdução dos aspectos de leveza e
graça. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016)
A terceira questão quando indagados: Nas suas aulas de baby class, qual
o grau de dificuldade para lidar com situações que não se encaixam no estilo
tradicional do ballet clássico? Fácil; Médio; Difícil; Extremamente Difícil.

Gráfico 2 - Grau de dificuldade para lidar com situações que não se encaixam
no estilo tradicional do ballet clássico

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Nos resultados do gráfico 2, 17% das professoras lida com facilidade nas
situações que não se encaixam no estilo tradicional do ballet clássico e 87%
enfrenta dificuldade média. É importante destacar que não obtivemos
percentual para difícil e extremamente difícil.
Nas aulas de ballet, muitas vezes, as ações do professor determinam, de
certo modo o sucesso de seus alunos. Cabe a ele conduzir a técnica
fundamentada nos ideais artísticos do ballet, incentivando seu público a
apreciar a arte e frente as dificuldades e situações que não se encaixam
presentes na formação dos alunos, tenham motivação para enfrentar e
prosseguir. (RODRIGUES; LIMA, 2011)
O terceiro gráfico e representam a quarta questão que se destinou: Com
base nas suas experiências, o ballet clássico nas suas aulas pode influenciar na
definição de gênero dos participantes?

52
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Gráfico 3 - Influência do ballet clássico nas aulas de baby class na definição do


gênero

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Diante dos resultados obtidos, 17% das professoras afirmam que o ballet
influência diretamente na definição do gênero dos alunos do baby class, 33%
alegam que intervém parcialmente e 50% garantem que dificilmente influência.
Para justificar sua resposta o sujeito P1 diz que, “o que influência na
verdade não é o baby class propriamente dito, mas sim uma sociedade hipócrita
e preconceituosa como a nossa. O ballet em si, não deve ser alvo do preconceito,
ele é uma arte como todas as outras e merece todo nosso respeito”. Para o sujeito
P2, “quem dança, faz por amor, acredito numa identificação com a atividade e
não vejo uma influência no gênero”. O sujeito P3 “a dança não influencia nessa
questão de gênero.” O sujeito P4 defende que, “não é uma modalidade da dança
ou do esporte que irá definir ou influenciar na questão de gênero do praticante.”
Sujeito P5 acredita que, “se a criança já tiver no gene dela, a dança só irá afinar
o gênero.” O sujeito P6, o ballet no baby class “é usada mais para uma base do
clássico e não definição de gênero”.
Assim a dança pode ser analisada como uma dentre as muitas práticas
socialmente instituídas através das quais os corpos dos indivíduos são marcados
por gênero. O ballet ainda é visto como uma prática exclusivamente feminina e,
com isso, relacionado à feminilidade. É por esse motivo que, as aulas de ballet
infantil continuam recebendo somente o público feminino, o que reforça na
infância o estereótipo da bailarina no ballet clássico. (SANTOS, 2009)

53
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Para que não haja a influência do baby class na definição de gênero,


sugere-se que os professores abordem também o ballet contemporâneo, não se
baseando somente nos contos de fadas, para não firmar o ser menina a regra do
discurso de gênero como sendo formada somente para ser progenitora, mas sim
uma mulher multitarefa (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Segundo
Mora, o ballet clássico confere a feminilidade ao ser relacionada à suavidade, à
leveza, à delicadeza e à sensibilidade. Vale destacar que se trata de uma
idealização, de uma possibilidade cultural. (ABREU, 2017)
A quinta questão implica na opinião das professoras a qual modelo ideal
deve ser seguido nas aulas de baby class, visto que as crianças já sofrem as
influências midiáticas sobre a construção e o papel de cada gênero que devem
possuir na sociedade.

Gráfico 4 - Modelo ideal a ser seguido nas aulas de baby class

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

No gráfico acima, verificou-se que 33% das professoras assinalaram o


ballet clássico, 17% alegam ser o ballet contemporâneo e 50% defendem ser o
princípio aplomb o modelo ideal a ser seguido nas aulas de baby class.
A vinculação do ensino do ballet no baby class a princesas e fadas é
dada pelo princípio do aplomb, que ensina a técnica clássica e feminilidade com
graciosidade e leveza, mas na forma que não gere cobranças, por mais que se
utilizem outras referências nas aulas, as crianças não respondem tanto quanto
aos contos de fadas. (SANTOS, 2009)

54
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

É fundamental que nas aulas de baby class, o professor tenha um olhar


diferente ao escolher o modelo a ser seguido em suas aulas, tendo
responsabilidade de não usar exclusivamente referencias relacionado ao
universo dos contos de fadas e ballet de repertório (WOLLZ; CERQUEIRA;
MULLER, 2016). Devem ser oferecidas nas aulas de baby class elementos que
iniciam as técnicas do ballet clássico, contudo quem ocupa o lugar de destaque
das aulas são as brincadeiras e jogos, pois é na brincadeira que a crianças se
adapta dos códigos culturais, apropriando-se do seu corpo e facilita o
movimento no espaço. (LENGOS, 2007)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo teve como asserção investigar as aulas de baby class,


reconhecer o ballet clássico como atuação na construção do gênero dos
praticantes, como são lidadas as situações que não se encaixam nas aulas e os
padrões que podem ser observados e retratados nas aulas. Contudo, através
observou-se que o ballet clássico nas aulas de baby class, pode levar ao
aprendizado coexistente da técnica, assim como também fazendo parte na
construção do gênero das bailarinas. Ao analisar os dados da pesquisa com as
professoras, percebe-se em sua maioria não reconhecem o ballet clássico como
influência na definição do gênero, mas como ferramenta de iniciação a técnica.
Nesse processo foi identificada, a partir de um levantamento
bibliográfico, a escassez de estudos que abordam a prática pedagógica do ballet
clássico direcionada para crianças e evidências do ballet como composição no
gênero dos praticantes. Desse modo, nesse trabalho possibilita aos professores
de baby class, alunos da Educação Física e áreas afins, se apropriarem do
conhecimento do ballet clássico associado à ludicidade, contribuindo para que
os professores possam utilizar nas suas aulas o modelo ideal, trabalhando os
ballet contemporâneos. Deste modo novos estudos são necessários com
intensificação no assunto para melhor compreensão, de acordo com cada tipo de
contexto social, a fim de identificar a influência do ballet clássico na construção
do gênero no baby class.

The artistic practice of the classical Ballet the gender construction in Baby Classes

Abstract: Dance is related to the language processes that participate in the cultural

55
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

construction of the body, acting as a cultural pedagogy of gender, by which the social
differences of gender are reproduced and through the representation of different ways of
using the male and female body. Children's ballet is relatively new, which justifies the
absence of an institutionalization with rules and norms similar to the other levels of
ballet teaching. Therefore, the present research aims to investigate the influence of
classical ballet in baby classes as a construction of the student's gender. The research's
scenario was an academy of dance, in a private school in the municipality of Fortaleza
(CE). It is a descriptive observational field study, longitudinally, with a qualitative and
quantitative approach. Six baby class' teachers and 11 dancers effectively enrolled in the
baby class participated in the research. For data collection, it used field diary and a
semi-structured questionnaire composed of five objective and descriptive questions. The
results indicate that most teachers do not recognize classical ballet as an influence in the
definition of the gender. However, it observes that baby classes can lead to the
coexisting learning of the technique, as well as being part of the gender's construction of
the dancers.
Keywords: Classical ballet. Gender. Baby class.

REFERÊNCIAS
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Conjectura: filosofia e educação, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 107-118, jan./abr. 2010.

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ALMEIDA, Dóris Dornelles de. Identidade física, pessoal, institucional e espiritual:


etnografia embodied de uma companhia de ballet . 2012. 172 f. Dissertação (Mestrado
em Administração de Negócios) – Faculdade de Administração e Economia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

AMARAL, Jaime. Das danças rituais ao ballet clássico. Ensaio Geral, Belém (PA), v. 1
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ANDRADE, I. A. Serviço Social em revista. Londrina, v. 3, n. 2, 2001.

AQUINO, Julio Groppa (Org.). Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas


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ASSUMPÇÃO, Andréa C. Rufino. O balé clássico e a dança contemporânea na


formação humana: caminhos para a emancipação. Pensar a Prática, v.6, p. 1-19, jul./jun.
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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Corpo, dança e etnia: vivência das danças tradicionais brasileiras na


comunidade indígena Jenipapo-Kanindé
Klertianny Teixeira do Carmo (UFC) 11
Marcos Antônio de Almeida Campos (UFC) 12
Arliene Stephanie Menezes Pereira (IFCE) 13

Resumo: O texto apresenta o relato de uma proposta de práticas corporais sensíveis


representadas e valorizadas através da arte, na vivência de um trabalho junto a jovens
da comunidade indígena Jenipapo-Kanindé, na cidade de Iguape (CE). O relato traz a
denotação de revalorização de identidades por meio da dança e de corpos que fazem sua
própria história no mundo. Nos anos de 2013 e 2014, alunos bolsistas vinculados ao
programa de extensão (PROEXT) ‘Entre penas e contas”, proposto pelo Grupo Oré
Anacã da Universidade Federal do Ceará (UFC), atuaram na comunidade promovendo
oficinas semanais de danças tradicionais brasileiras. O programa buscou incentivar e
promover as culturas negra e indígena através da imersão na realidade de outras
culturas, buscando reconhecer elementos corpóreo-significativos, gestuais e musicais
através do contato direto com sujeitos ligados às manifestações culturais. Como
metodologia, os jovens indígenas construíram dinâmicas teórico-práticas juntos a dois
bolsistas do programa de extensão, em 25 encontros, nos quais foram desafiados a
pesquisar e praticar danças, enfatizando aquelas que tem influência étnica negra e
indígena.
Palavras-chave: Práticas corporais. Dança. Indígenas Jenipapo-Kanindé.

INTRODUÇÃO

O corpo sempre foi objeto de estudos no campo da Educação e da


Educação Física (BEZERRA; MOREIRA, 2013). “Quando estudamos e
escrevemos sobre o corpo e suas questões epistemológicas, na perspectiva de
pensar desafios para a educação, logo somos tomados por uma dificuldade, pois
várias questões nos parecem escapar pela complexidade e abstração que
suscitam” (ZOBOLI; ALMEIDA; BORDAS, 2014. p. 219). A corporeidade
humana, sempre se apresentou como indagação e questionamento entre diversas
áreas da ciência, como a filosofia, história, antropologia, sociologia, ciências da
saúde e as artes.

Em sua espacialidade própria, descontínua, o corpo disponibiliza

11
Mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
klertianny@gmail.com
12
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da
Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: marcosalmeidacampos@gmail.com
13
Mestranda em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN). Professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE). E-mail:
sephanie_ce@hotmail.com

59
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

desde componentes físico-químicos à signos que definem a condição


humana e as possibilidades de comunicação, que tem conformado o
interesse de diversas disciplinas científicas, filosofias e modelos de
educação. (NÓBREGA, 2006 p. 65).

O desafio está em pensar o corpo como campo de saberes polimorfos e


transmissor da cultura, e enquanto totalidade dialética da existência humana. O
corpo é a presença existencial do ser humano, e nos traz inúmeras significações
corporais, experiências vividas e tessituras de corpos que fazem sua própria
história no mundo. Os corpos-sujeito que buscam sua experiência do e no
mundo. Os corpos-estesiológicos que vivem e sentem. Um corpo, simplesmente
corpo. (SANTIN, 2001)
Com as diversas mudanças políticas e sociais no cenário nacional, a
questão do corpo e da cultura voltam à cena, como objeto de críticas, análises e
intervenções controladoras. A realidade atual brasileira nos remeteria à
questões político-partidárias sobre corpos acríticos em educação, em meio a
ideias do projeto escola sem partido; falar-se-ia das críticas do corpo na arte, em
meio a crianças e adultos que veem corpos nus como objeto artístico (tabu
ainda mistificado na nossa sociedade); dos corpos e suas relações de gênero, e
das discussões que nos embasaram recentemente com a vinda de Judith Butler
(criadora da teoria Queer), sobre discussões do mito da ideologia de gênero na
escola, dos beijos gays na mídia; do preconceito racial e da homofobia que anda
ganhando cada vez mais adeptos em nosso país, e de negação das manifestações
indígenas e afro-brasileiras. O corpo e a cultura sendo mistificados,
marginalizados e manipulados através de ideologias que chegam a beirar o
absurdo, mas que foram reproduzidas durante toda a história da humanidade. O
corpo perdendo sua identidade frente a tecnologia e sobre a alienação humana.
Assim entendemos que o corpo é o modo pelo qual a cultura é perpassada e apr
(e) endida.

As tradições culturais se acumulam sem quebras de continuidade.


Elementos culturais uma vez inventados, passam de um indivíduo
para o outro através do aprendizado. Eles são compartilhados de
uma geração a outra. Qualquer ruptura na corrente do aprendizado
levaria ao seu desaparecimento. (SANTAELLA, 2008. p. 46).

Como forma de dar um continuum a essas transmissões de saberes, o

60
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

presente texto apresenta o relato de uma proposta de corpo sensível


representado e valorizado nas artes, na vivência de um trabalho junto a jovens
indígenas da comunidade Jenipapo-Kanindé, na cidade de Iguape (CE),
compactuando com a revalorização de identidades por ora, muitas vezes
esquecidas.
Em 2013 e 2014, bolsistas vinculados a um programa de extensão ligado
ao PROEXT, proposto pelo Grupo Oré Anacã 14, atuaram na comunidade
indígena Jenipapo-Kanindé, promovendo oficinas semanais de danças
tradicionais brasileiras. Como metodologia, os jovens indígenas construíram
dinâmicas teórico-práticas juntos a dois bolsistas do grupo supracitado, em 25
encontros, nos quais foram desafiados a pesquisar e praticar danças,
enfatizando as que têm influência étnica negra e indígena.
Com o advento da tecnologia, que trouxe o acesso fácil à internet, a
globalização propagada pela mídia e a pouca presença dos temas ligados às
tradições em livros ou programas de televisão fazem com que as novas gerações
venham a se desinteressar pela manutenção das tradições orais e ritualísticas. O
estudo então, justifica-se pelo fato de em muitas comunidades indígenas haver
uma tendência de desvalorização das tradições por parte de muitos jovens,
inclusive para os rituais e danças típicas de cada etnia.

PROEXT COMO ESPAÇO DE POSSIBILIDADES DE VIVÊNCIAS CORPÓREAS

O Programa de Extensão (PROEXT) “Entre penas e contas” foi um


programa que buscou incentivar e promover as culturas negra e indígena,
alicerçando seu trabalho na dança popular brasileira por meio de três linhas de
ação: capacitação de professores da rede pública de Fortaleza; oficinas de
danças de ascendência negra e indígena para integrantes de escolas públicas e
comunidades quilombola e indígena; e criação de um espetáculo para estas
escolas e comunidades.
Um dos projetos que se uniu a esta ação foi o Oré Anacã, grupo que tem
seu funcionamento desde 2011, buscando por meio da dança popular a
formação artística de estudantes universitários. O PROEXT foi uma
possibilidade de ampliar a experiência dos estudantes em dança popular, para
14
Grupo de dança popular da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenado pelo
Professor Marcos Campos.

61
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

atuação como professores-pesquisadores desse processo.


É interessante compreender que o programa contou com viagens de
pesquisa in loco, com o objetivo de promover a imersão na realidade das outras
culturas, na busca de reconhecer elementos corpóreo-significativos, gestuais e
musicais através do contato direto com sujeitos ligados às manifestações, na
participação de oficinas, visitas a eventos, dentre outros.
Com este material, passava-se à experimentação gestual, montagem de
propostas coreográficas, de figurinos e outros elementos cênicos que compõem o
conjunto artístico da obra. Um dos frutos deste processo foi a montagem de um
espetáculo, ao final de 2013, intitulado “Entre penas e contas” apresentado na
comunidade Indígena juntamente com o grupo formado pelos jovens e o grupo
da Universidade Federal do Ceará (UFC), Grupo Oré Anacã. Em 2014, foi feito
o movimento inverso, os jovens foram trazidos da comunidade para a
universidade para se apresentarem juntamente com o Grupo Oré Anacã para os
professores que estavam participando da capacitação, culminando numa grande
roda de conversa entre todos os envolvidos.
Tanto no ano de 2013, quanto em 2014, foram selecionados 12 alunos
bolsistas da UFC que atuavam em duplas nas escolas/comunidades escolhidas
pelo próprio grupo de bolsistas, conforme aceitação da proposta apresentada.
Buscaram-se comunidades indígenas mais próximas de Fortaleza (capital do
Ceará) pela disponibilidade dos bolsistas para chegar ao local, os quais iam aos
locais de possível atuação para contato e explicitação da proposta.
Cada dupla de bolsistas tinha autonomia para desenvolver metodologias
de ensino das danças tradicionais, partindo de um repertório básico pré-
estabelecido e do contato com a realidade de cada local atendido.

SOBRE CORPOS ÉTNICOS: A IMPORTÂNCIA DA VALORIZAÇÃO DA CULTURA AFRO-


BRASILEIRA E INDÍGENA ATRAVÉS DA DANÇA

Apesar de tratarmos neste estudo de um projeto não-formal de ensino


que lida com as práticas corporais e as artes, é importante destacar elementos
que permeiam o meio escolar e que influenciam a sociedade, no que diz respeito
à valorização das culturas. Neste panorama, as danças tradicionais, ao terem
pouco espaço nas políticas de ensino e no cotidiano concreto das aulas e
projetos, acabam encontrando descrédito ou pouco interesse na sociedade como

62
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

um todo. Nossa memória cultural é muito rica, mas pouco valorizada, e acaba
por se perder no meio escolar, muitas vezes sendo lembrada apenas em datas
comemorativas.
Historicamente, as danças populares se veem diminuídas frente a outros
estilos de dança, como o balé clássico. Concordamos que o balé clássico é tão
importante quanto qualquer outro estilo, mas a realidade mostra que as danças
de rua, tradicionais, de salão, afro, dentre outras, encontram resistência e/ou
pouco espaço nos meios educacionais. Oliveira (1991, p. 28) afirma que a
“ideologia que acompanha o Balé é reforçada pelo fato da Dança Afro ser
exercida por pessoas de menor poder aquisitivo e negras, por isto, uma ‘arte
menor’”. Pode-se confirmar esta afirmação por uma simples investigação nas
escolas de qualquer cidade, a partir da quantidade de escolas de balé em
comparação com a quantidade de escolas de dança afro. A dança afro nas
escolas, muitas vezes, funciona a partir de projetos implantados por professores
negros ou por ações afirmativas de ONGs, ou como afirmado anteriormente em
datas comemorativas esporádicas como o dia da consciência negra, por
exemplo. Quando falamos em dança indígena, podemos categorizar uma quase
inexistência de trabalhos que toquem este tema.
Se observarmos a discussão acerca da Pluralidade Cultural, apontada nos
Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997),
observaremos já na introdução a questão da disparidade de importância de
certos conhecimentos em confronto com outros.

A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e à


valorização de características étnicas e culturais dos diferentes
grupos sociais que convivem no território nacional, às
desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais
discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira,
oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um
país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal. (BRASIL,
1997. p. 121).

O que se vê na prática é o desconhecimento, negação ou tratamento raso


e/ou equivocado sobre temáticas ligadas às tradições populares e às culturas
afro e indígena. Isto fica mais evidente quando se destaca a criação da Lei nº
11.645, de 10 de março de 2008, que “estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade

63
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’”, em que ainda se vê


muito pouco os espaços tratando da temática. A lei indica a necessidade de
trabalhar a cultura afro-brasileira e indígena em espaços educativos diversos,
como política de valorização étnica e promoção do sentido de identidade
brasileira. Tal lei traz as seguintes ordenações:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino


médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a
luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e
indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL,
2008).

Esta Lei foi uma importante ferramenta de luta para a entrada ou


reforço das temáticas afro e indígena na escola; entretanto, notamos que pouco
se avançou em estudos e práticas, apesar de sabermos que é primordial o
trabalho com a arte e da gestualidade corporal, a partir de elementos que
auxiliam no desenvolvimento da identidade cultural e do senso artístico dos
sujeitos. (BARRETO, 2004; MARQUES, 1999)

A gestualidade ou os cuidados com o corpo podem e devem ser


tematizados nas diferentes práticas educativas propostas nos
currículos e viabilizados por diferentes disciplinas. O desafio está
em superarmos o aspecto instrumental, que, em geral, caracteriza
boa parte das abordagens sobre o corpo na educação. (NÓBREGA,
2005, p. 610).

A Carta do Folclore Brasileiro é o documento que regulamenta qualquer


trabalho ligado às culturas tradicionais brasileiras, apontando a “[...]
importância do folclore como parte integrante do legado cultural e da cultura
viva, é um meio de aproximação entre os povos e grupos sociais e de afirmação
de sua identidade cultural” (1995, p. 1). Tanto na perspectiva pedagógica
quanto artística, a produção de trabalhos inspirados na dança popular, como
um dos domínios do folclore, ajuda a aproximar os indivíduos daquilo que os
identifica como pertencentes a um mesmo povo, mesmo que estas produções

64
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

estejam geograficamente distantes.


Os jovens indígenas da comunidade Jenipapo-Kanindé, com sua cultura
própria repassada de geração a geração, reconhecem-se como etnia a partir de
seus valores e rituais. Entretanto, ao terem contato com produções culturais de
outros povos passam a se reconhecerem como integrantes de uma cultura mais
vasta, uma cultura genuinamente brasileira. Passam a entender que sua cultura
também é importante para outros sujeitos fora de seu entorno; compreendem
que a troca de conhecimentos, o repasse desses saberes tradicionais, reforçam
sua própria cultura, ampliando sua presença e afirmação na cultura brasileira
como um todo.
Além disto, vale ressaltar o caráter vivo e dinâmico da cultura que se
mantém, se reconstrói, morre e renasce a partir dos anseios e intenções do seu
povo. Como nos diz Melo (1996):

[...] apenas através do movimento de valorização do ‘outro’ que se


pode superar as antigas concepções de folclore como simples
coleções de curiosidades, ou concepções que viam as práticas
culturais das camadas subalternas como sombras das ruínas da
cultura erudita. (MELO, 1996, p. 66).

Conhecer e valorizar o outro, assim como fazer-se reconhecido pelo


outro, promove a retroalimentação das culturas. Ter contato com as produções
culturais de outros povos, dentro do mesmo país, permite uma ampliação de
nossa identidade. Nesta “escola da vida”, dialogando com meus semelhantes e
com o diferente, que os jovens indígenas se sentem parte de algo maior,
ampliando seus saberes e concepções de mundo. (STACANELA, 2010)
Florestan Fernandes (1977) aborda a questão da educação e folclore,
chamando a atenção para o quanto o folclore ajuda a construir sentimentos e
valores simbólicos no indivíduo, a construir o “ser social”; a introjetar técnicas
e conhecimentos que se acham objetivados culturalmente. Ou seja, adquirem-se
experiências e possibilidades de atuação social, ajudando o sujeito a se ajustar
no meio e a corresponder à expectativa do outro.
Concretizar um programa como este, com qualidade e recursos materiais
e cênicos condizentes com a grandeza da arte representada, abre caminhos para
o desenvolvimento do respeito e da valorização das produções culturais negras e
indígenas; forma artisticamente os componentes da equipe executora; aumenta

65
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

a visibilidade das culturas tradicionais, em destaque a dança e as músicas


folclóricas; promove a capacitação de multiplicadores destes conhecimentos;
fomenta o interesse de crianças e adolescentes por temas tratados de forma rasa
no sistema escolar e/ou com poucos recursos em comunidades quilombolas e
indígenas; enfim, promove a concretização do acesso da cultura popular no
meio erudito do sistema escolar e nos grupos sociais de comunidades muitas
vezes marginalizadas, com qualidade, beleza estética e da pesquisa
fundamentada na experiência in loco. Todos ganham, principalmente os
participantes diretos (alunos, professores e membros das comunidades), a
cultura popular, em especial as culturas negra e indígena.

JOVENS: SUJEITOS PROTAGONISTAS DA TRANSFORMAÇÃO

Paulo Freire (1987) propõe uma perspectiva das ações culturais, não no
sentido de sobrepor uma cultura sobre a outra, mas de ampliar seu repertório, a
partir do momento que se parte do conhecimento anterior dos jovens e,
posteriormente, vê-se aquilo que é representativo para o mesmo, não havendo
desvalorização de sua cultura, mas a sua ampliação. Esta perspectiva de agir a
partir da invasão cultural foi e é algo muito forte em muitos projetos puramente
conteudistas, algo que pode interferir negativamente no processo de busca de
autonomia deste jovem, inclusive de jovens indígenas. Como afirma Duarte
Júnior (2001), há no Brasil um desprezo para com os conhecimentos
provenientes das nações indígenas há séculos, graças à arrogância e ao
sentimento de superioridade do branco colonizador para com os povos aqui
instalados. Isto faz com que a dita superioridade branca, no arcabouço de seus
conhecimentos eruditos, despreze ou destrua saberes milenares destes povos.
A catequização dos tempos coloniais e a atual demonização da
mitologia indígena e negra feita por alguns grupos evangélicos desprezaram um
imenso repertório de conhecimentos sobre a utilização de plantas medicinais,
sobre danças e lendas e sobre a tradição oral. Os meios de comunicação pouco
ou nada apresentam estas tradições, e quando o fazem, usam, na maioria das
vezes, a lógica do exótico ou primitivo ou ainda deturpando sua cultura.
Ainda é muito recente a atenção dada às línguas indígenas e a formação
de cursos pensados a partir das demandas destes povos. Com isto, podemos
inferir uma realidade pouco motivante para jovens manterem e cultivarem suas

66
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

tradições.
Como aponta Stacanela (2010, p. 21), “[...] há um educativo para além do
escolar, e os jovens aprendem fora da escola”, o que faz com que o tempo livre
destes jovens possa ajudar a manter ou a quebrar representações, alienações e
paradigmas. Vale ressaltar que a proposta de um projeto que busque o diálogo
entre culturas é primordial, ainda mais se pensarmos que a “[...] cultura consiste
num conjunto de normas, concepções etc. que são compartilhadas por um grupo
de pessoas [...] através de um processo de interação” (GOTTLIEB; REEVES,
1968, p. 68). Isto reverbera a crítica que Paulo Freire faz acerca da invasão
cultural. Como lidar com o ensino de danças tradicionais juntos a jovens
indígenas, frente ao fato que estes jovens também possuem danças dentro de
suas etnias como práticas rituais ancestrais? Como pode ser feito este trabalho,
numa perspectiva de diálogo, onde ambos os lados podem aprender uns com os
outros?

(DES) CAMINHOS DE UMA PROPOSTA

O grande desafio era encontrar uma comunidade indígena para


desenvolver as atividades. Nisto, dois dos alunos bolsistas resolveram visitar
uma comunidade que ficava há 46 km de distância da capital do Ceará, os
Jenipapo-Kanindé. Iniciaram por meio de uma visita informal através do
contato com a chefa do aldeamento, a cacique Pequena (como é conhecida a
senhora Maria de Lourdes da Conceição Alves) e com os líderes juvenis, já que,
eram o público alvo para o desenvolvimento das atividades. Com isso foi
firmado um novo encontro, este mais formal, para mostrar a intenção do mesmo
para toda comunidade (Ver figura 1). Dando início ao ciclo de atividades.
O processo de planejamento e execução dessas aulas partiam da
metodologia que os bolsistas escolhessem. Como não tinham experiência de
prática de ensino das danças tradicionais, mas tinham experiência como
dançarinos do grupo Oré Anacã e como acadêmicos do curso de Educação
Física (um em Licenciatura e o outro em Bacharelado), buscaram seu caminho a
partir dos seguintes questionamentos: “O que trabalhar com eles? Como fazer
essas oficinas? Porque tais danças?”

67
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Figura 1 – Contato inicial mostrando a proposta do projeto para os jovens


Jenipapo-Kanindé

Fonte: Acervo pessoal.

Como resposta para a primeira pergunta “O que trabalhar com eles?”,


organizaram as possibilidades dentro das danças contempladas pelo programa,
que eram inicialmente nove: Bumba-meu-boi de São Luís (MA); Maracatu,
Caboclinhos e Coco de Recife (PE); Carimbó de Santarém (PA); Boi Bumbá de
Parintins (AM); Afoxé e Samba de roda de Salvador (BA) e Congado – Dores do
Indaiá (MG). E, posteriormente, outras cinco danças foram acrescentadas
conforme solicitação do coordenador (Professor Marcos Campos) no curso de
capacitação de professores: Xote nordestino, Reisado de Juazeiro do Norte (CE)
e Danças gaúchas (Xote carreirinho, Balaio, Pezinho). Eles queriam oportunizar
aos jovens todas as danças; no entanto, precisavam da opinião deles para
trabalharem aquilo que sentiam e queriam.
Como resposta para a segunda pergunta “Como fazer essas oficinas?”, os
bolsistas começaram a refletir sobre um formato/metodologia de aulas, já que
quando iniciaram sabiam praticamente muito pouco sobre o assunto, pois
aprenderam apenas os passos básicos de algumas danças nas aulas do professor-
coordenador. Um recurso utilizado, então foi a busca de vídeos na internet.

68
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Assim, o contato inicial dos jovens com a temática era feito por meio de
uma conversa inicial sobre os conhecimentos que tinham a respeito da dança.
Em seguida eram passados vídeos e, a partir daí, iniciava-se a oficina prática
(Ver figura 2), na qual os jovens tinham contato com a base gestual e noções
coreográficas gerais, utilizando os métodos de ensino global, parcial e misto. A
cada encontro, embora fosse ensinado um ritmo diferente, sempre se retomavam
os ritmos anteriores, para que assim percebessem as diferenças e similaridades.

Figura 2 – Vivências corporais em dança feitas pelos alunos bolsistas com


jovens Jenipapo-Kanindé.

Fonte: Acervo pessoal.

Como resposta para a terceira pergunta “Porque trabalhar tais danças?”,


os bolsistas refletiram sobre os inúmeros benefícios que a dança trouxe para eles
e sobre o que queriam oportunizar aos adolescentes, que era uma maior vivência
corporal, além de aproximá-los de outras culturas, como a deles mesmos. Assim,
eles também tinham uma prática corporal física e outra cultural, já que muitos
desses jovens se encontravam em idade escolar e com tempo ocioso no contra
turno.

69
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Frente a estas questões e resposta iniciais, vale destacar os conteúdos


desenvolvidos. A primeira dança escolhida pelos jovens foi o Boi Bumbá de
Parintins (AM). Em dois encontros, os jovens aprenderam coreografias oficiais
dos bois Garantido e Caprichoso, sendo que houve grande motivação e excelente
adesão, com cerca de vinte índios, a maioria mulheres.
A partir do quarto encontro, os bolsistas encontraram quatro
“ferrolhos”, problemas que tentaram impedir sua atuação (OLIVEIRA, 2001). O
primeiro, choque de horário entre os bolsistas; o segundo, a falta dos integrantes
aos encontros semanais; o terceiro, a resistência na mudança da dança, pois
muitos queriam somente o mesmo, Boi Bumbá; e o quarto, a impossibilidade de
os jovens realizarem encontros extra, sem os bolsistas. Apesar disto, foi dado
prosseguimento às atividades, buscando minimizar estas questões que
dificultavam bastante a atuação.
Assim, na continuidade, foram trabalhadas danças como maracatu,
frevo, carimbó, coco e cabocolinho. Dos vinte alunos iniciais, apenas seis
continuaram até o fim destas aulas e com eles foi definido que a montagem
coreográfica seria feita com o carimbó (Ver figura 3) e o cabocolinho (Ver
figura 4). Ao final do processo, estas duas coreografias foram apresentadas na
própria comunidade, obtendo uma reação positiva tanto dos jovens quanto dos
outros índios.
Figura 3 – Apresentação de Carimbó

Fonte: Acervo pessoal.

70
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Figura 4 – Apresentação do primeiro espetáculo - Dança caboclinhos

.
Fonte: Acervo pessoal.

Para avançar na metodologia, desenvolveu-se um novo ciclo de oficinas


para o ensino de danças, intitulado de Projeto (MU) DANÇA. As atividades
foram desenvolvidas dentro de uma nova lógica, na qual a formação não tivesse
a técnica como eixo principal, mas sim o processo. Utilizou-se como referência
o conceito de emancipação de Ranciére (2002) e a teoria das inteligências
múltiplas de Gardner (1995).
O trabalho foi dividido em 4 fases: I) Fase de sensibilização:
visualização e reflexão do filme “Billy Elliot”, por trabalhar com a perspectiva
do gênero masculino na dança e a persistência para seguir nossos sonhos; II)
Fase de desconstrução: criação de composições coreográficas baseada no
repertório de passos-base já aprendidos; III) Fase de aproximação: incluiu-se
roda de conversa no início (com temas do cotidiano) e no final (sobre a
atividade do dia); a tarefa semanal de pesquisa sobre o ritmo ensinado e a
produção da narrativa de vida de cada um disparada por esta frase “Quem é
você? Quais são seus sonhos e tristezas? ”; e a última etapa, IV) Fase de
expansão: introdução de outras danças como balé e a contemporânea, na busca
de ampliar as possibilidades corporais deles.
Com essa iniciativa, conseguiram estreitar os laços sem perder o

71
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

respeito; houve uma melhora na assiduidade e se buscou incentivar a autonomia


por meio da produção de trabalhos coreográficos feitos pelos próprios
integrantes. Ou seja, de meros reprodutores dos conteúdos que eram passados
em 2013, os jovens indígenas se tornaram protagonistas nas próprias produções
coreográficas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desenvolver atividades corporais que tematizem as culturas afro-


brasileira e indígena torna-se primordial para a maior valorização da
identidade de qualquer jovem, seja no ensino formal ou em locais que abram
espaço para promover projetos numa perspectiva de ensino não-formal.
As oficinas desenvolvidas na comunidade indígena Jenipapo-Kanindé
partiram desta perspectiva na busca do diálogo, onde ambos os lados puderam
se aproximar de culturas tradicionais, o que também abriu espaço para se
pensar a própria tradição. Conhecer danças de influência indígena provenientes
de locais distintos e, ao mesmo tempo, pensar as danças de sua comunidade, fez
com que os jovens entendessem melhor o que os diferencia e o que os identifica
com uma cultura ampla. E ainda com um amplo repertório de vivências
intercorpóreas.

Considerando a extensão do conceito de corporeidade, as diferentes


disciplinas ou pedagogias, ao intervir sobre o corpo, precisam
considerar que o corpo que tenho é também o corpo que sou e que os
padrões de ser e de viver, colocados por nossa condição corpórea,
são bem mais flexíveis que os dispositivos normalizadores das
instituições. Assim, quem sabe por meio dessas práticas sociais
possamos transgredir, impulsionados pela paixão, para compor uma
nova perspectiva de vida, mais ética e mais estética. (NÓBREGA,
2005. p. 612).

A escolha do fazer pedagógico deste projeto pautou-se nas danças


tradicionais, entretanto, fica evidente que é possível trabalhar esta temática a
partir de diversos caminhos educativos. Vale ressaltar que o caminho criativo
do mesmo, inicialmente concretizado a partir de uma metodologia pré-
estabelecida, transformou-se numa trajetória conjunta, de corpos entrecruzados,
em que todos os sujeitos envolvidos tornaram-se agentes do conhecimento.

72
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Body, dance, and etnia: experience of traditional brazilian dances in the Jenipapo-
Kanindé indigenous community

Abstract: The text presents the report of a proposal of sensible corporal practices
represented and valued through the art, based on the experience of a work developed
with young people of the indigenous community Jenipapo-Kanindé, in the city of
Iguape (CE). The report reveals a denotation of revalorization of identities through
dance and bodies which make its own history in the world. Where, in 2013 and 2014,
scholarship students linked to the "Between Feathers and Accounts" extension program
(PROEXT), proposed by the Oré Anacã Group of the Federal University of Ceará
(UFC), worked in the community promoting weekly workshops of traditional Brazilian
dances. The program aimed to encourage and promote black and indigenous cultures by
immersion in other cultures' reality, seeking to recognize body-significant, gestural and
musical elements through direct contact with individuals linked to cultural
manifestations. As a methodology, the indigenous youths built theoretical and practical
dynamics together with two scholarship students in 25 meetings, in which they were
challenged to research and practice dances, emphasizing those with black and
indigenous ethnic influence.
Keywords: Corporal practices. Dance. Indigenous Jenipapo-Kanindé.

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74
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Corpos negros nos aplicativos de relacionamentos gays: entre discursos,


dinâmicas e subjetivações
Delton Aparecido Felipe (UEM) 15
Samilo Takara (UNIFAMMA) 16

Resumo: O presente texto analisa como os corpos dos homens negros são apresentados
nos aplicativos -apps- de relacionamentos gays. Utiliza o Grindr e o Scruff que são dois
dos aplicativos de dispositivos móveis populares no Brasil. Os apps promovem
encontros afetivos e/ou sexuais por meio de diálogos por mensagens, uso de imagens
fotográficas e permite o mapeamento de geolocalização dos usuários em rede. Uma das
principais características desses apps é visibilizar a diversidade de corpos em perfis em
busca de encontros. Utiliza-se para análise a descrição/apresentação oferecidas pelos
usuários que se identificam como negros em seus perfis no intuito de problematizar a
relação entre visibilidade, sexualidade, objetificação e empoderamento. Como lente
teórica adota conceitos vinculados aos Estudos Culturais com colaboração dos Estudos
Foucaultianos como, identidade, representação, discurso e biopolítica. Conclui que para
entender a forma como esses homens negros se apresentam é necessário discutir o
impacto que a interseção entre a raça, sexualidade, gênero como discursos constitutivos
da sociedade brasileira tem sobre a formação identitária dos homens negros gays.
Palavras-chave: Homens negros gays. Aplicativos de relacionamentos. Formação
identitária.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo problematizar como homens negros se


apresentam em aplicativos (apps) de relacionamento gays. No decorrer do texto
realizamos uma discussão ancorada nos Estudos Culturais com colaboração dos
Estudos Foucaultianos. Partimos do pressuposto que para entender a forma
como os corpos dos homens negros se localizam na teia discursiva veiculadas
nos apps de relacionamentos gays é necessária a intersecção entre raça,
sexualidade e gênero como elementos constituintes e constituidores das
representações das homossexualidades masculinas.
Os pesquisadores Couto, Souza e Nascimento (2013, p. 3) argumentam
que os aplicativos de relacionamentos gays são “vitrines virtuais” em que os
corpos ficam dispostos para consumo. Essa compreensão sugere leituras e
interpretações acerca da cultura homossexual, do erotismo e das percepções de
corpo, desejo e discursos das novas mídias sociais como os apps instalados nos
celulares e/ou computadores. Os aplicativos de relacionamento facilitam
15
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor da
Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: ddelton@gmail.com
16
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor da
Faculdade Metropolitana de Maringá (UNIFAMMA). E-mail: samitakara@gmail.com

75
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

encontros de parceiros sexuais, afetivos e/ou amorosos. Nestes processos, os


apps ensinam aos que ali estão, formas de ser, pensar e agir, no entanto, é
preciso ressaltar que os modelos de condutas instituídos nos apps não estão
desvinculados de uma construção sócio histórica.
Os apps escolhidos para um estudo exploratório foram os Grindr e
Scruff, pois de acordo com Couto, Souza e Nascimento (2013) são parecidos em
possibilidades de interação, organização de perfis e interesses disponíveis; os
dois aplicativos oferecem um serviço de contatos por geolocalização e dispõem
perfis por proximidade geográfica – ou no contato direto com outros perfis –
entre diferentes usuários que podem ou não se localizar próximos dos
interlocutores.
Ressaltamos que entendemos por estudos exploratórios, aqueles estudos
que visam delinear a temática que está sendo investigada, fornecendo pistas
para o encaminhamento da pesquisa, a seleção de sujeitos ou fontes, ou mesmo a
revisão das hipóteses inicialmente levantadas.
Também são dispostas nos aplicativos Informações como distância,
etnia, idade, altura, peso, interesses e grupos de socialização 17. Essas
características são atributos que podem ser visibilizados e disponibilizados por
interesse do usuário em registrá-las e disponibilizá-las nos perfis. Ao traçarmos
uma perspectiva sobre os contatos nos espaços dos apps também verificamos
que as relações sejam sexuais, amoras e/ou afetivas são mediadas por esses
marcadores culturais como peso, altura, raça e grupo que pertence dentro da
comunidade gay, o que os aplicativos chamam de “tribos”: bears, malhados,
magros, novinhos, pai, barbies e vários outros grupos disponíveis para escolha
do usuário.
Registramos que os grupos de socialização – ou as tribos – são
características aparentes em diferentes grupos na sociedade. No caso dos grupos
pertencente à comunidade gays, temos uma relação de atração/repulsão que é
desenvolvida por esses grupos. O Scruff, por exemplo, é um aplicativo que
utiliza diferentes nomenclaturas para as tribos, mas tem predominantemente

17
Por grupos de socialização, entendemos as chamadas “tribos” comuns aos grupos que
pertencem a cultura LGBT (Lésbica, Gay, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Esses
grupos são marcadores característicos por aspectos físicos, intelectuais, afetivos e/ou
sociais que apresentam diferenças e registram aspectos de interesse e/ou desinteresse
entre os sujeitos do grupo.

76
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

perfis que estão relacionados às tribos dos bears18. Outros grupos são registrados
por diferenças culturais, sociais ou mesmo aspectos corporais que podem ou não
ser características que delimitam o grupo. Assim como o Scruff, o Grindr
também atende a essa demanda de categorizar os grupos a partir de suas
características e preferências.
O Grindr foi criado em 2009 pelo jornalista israelense, residente nos
Estados Unidos Joel Simkhai, que afirma que o aplicativo foi desenvolvido com
a intenção de levar homens gays a conhecerem outros homens gays o mais
próximo possível19. Outra característica que chama atenção é o próprio do app
“Grindr” que significa moedor em inglês. O que faz que autores como Couto;
Souza e Nascimento (2013) afirmem que em aplicativos como esse

Cada sujeito pode moer e se deixar moer no mercado dos desejos


como quiser, como acontece com os vários grãos de café. Cada um
pode misturar os grãos e obter o café que quiser. Só que ao invés de
café, as pessoas se tornam moedoras de afetos, de amor e sexo,
explicou Simkhai em entrevista a G Magazine. (COUTO; SOUZA;
NASCIMENTO, 2013, p. 4).

Até meados 2012 o Grindr era o app mais popularizado no Brasil,


fazendo com que o país fosse o de acessos na América do Sul, posto que foi
perdido para o Scruff. O app foi desenvolvido em 2010 pelo norte americano
Johnny Skandros Scruff e também teve grande adesão de homens gays e
bissexuais brasileiros.
Padilha (2015) afirma que o Scruff se destacou em relação a outros
aplicativos a partir de 2010 por enfocar na imagem convencional do gay-urso,
ou bear, contendo imagens de homens fortes, fisicamente robustos, vestindo
trajes em couro ou jeans, com mais de trinta anos e peludos, mas sem fechar
espaço para outros públicos, perfil que de acordo com o autor está mais
próximo do imaginário do homem gay latino e brasileiro que por anos foi
alimentado pela indústria gay. Outro fator que devemos considerar é que a
interface do Scruff em seu início comparada ao Grindr era de mais fácil
interação.
A utilização dos apps permitiu o contato entre homens de diferentes
18
Ursos, em inglês.
19
Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2013-03-05/joel-simkhai-criador-do-grindr-sei-
que-e-complicado-conhecer-outros-homens.html>. Acesso em: 24 jan. 2018.

77
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

contextos sociais, possibilitaram falar sobre os seus desejos, assim como


intensificaram a trocar imagens e alimentar as suas fantasias. A interação entre
as pessoas, mediado pelos aplicativos colocou em circulação de uma forma sem
precedente os desejos sexuais, amorosos e afetivos construídos historicamente
que estão vinculados à identidade dos sujeitos que navegam por essas novas
mídias, como a preferência por um determinado tipo corpo, formato de
genitália e mesmo cor da pele.
Couto, Souza e Nascimento (2013, p. 14-15) visibilizam que estes
aplicativos registram uma ideia de que “[s]er consumível se tornou a maior
fonte de gozo”. Assim, entendemos com base nos/as autores/as que estes corpos
apresentam diferentes contextos, sugerem práticas de desejo e prazer e sugerem
uma lógica de sociabilidade respaldada pelo consumo e pela visibilidade de
corpos. Nas palavras dos/as autores/as, “[e]sses modos de viver apontam
pedagogias de excitação e gozo, revelam os nossos segredos em triunfantes
conexões humanas breves e, por isso mesmo, cheia de encantos”.
Entre essas diferentes formas de situar os corpos e os desejos, os
aplicativos nos interessam por registrar práticas subjetivas que foram educadas,
constituídas e que produzem sentidos e significados na sociedade
contemporânea. Entender os deslocamentos, as incitações e as produções de
sentidos que perpassam esses perfis, suas trocas e interações nos sugerem
indicações de possibilidades para pensar a masculinidade gay no
contemporâneo e as relações entre sexualidade, gênero e raça.
Kimmel (1998) nos apresenta a complexa relação de produção das
masculinidades e suas significações atribuídas no processo de relação entre
diferentes grupos sociais, políticos, econômicos e que perpassam a estrutura
raça/etnia, gênero e sexualidade por registrar que existem elementos que são
demarcados culturalmente e formulam possíveis valores, sentidos e significados
atribuídos na sociedade contemporânea.

[...] as masculinidades são socialmente construídas, e não uma


propriedade de algum tipo de essência eterna, nem mítica,
tampouco biológica [...] variam de cultura a cultura [...] variam em
qualquer cultura no transcorrer de um certo período de tempo [...]
variam em qualquer cultura através de um conjunto de outras
variáveis, outros lugares potenciais de identidade e [...] variam no
decorrer da vida de qualquer homem individual. (KIMMEL, 1998, p.
105).

78
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Desse modo, a rede de homens que sociabilizam está marcada por


valores culturais e nos aplicativos Grindr e Scruff são exigidos dados como o
usuário precisar de um acesso. É feita uma conta com dados como login, e-mail
e senha. Após essas prerrogativas, somos convidados a constituir um perfil. São
escolhidas informações que visibilizem aspectos físicos, sociais, culturais,
políticos, econômicos e afetivos/sexuais. Esses elementos são localizações que
apresentamos no perfil para sermos colocados às vitrines. Feitas essas
visibilidades, somos passíveis de sermos escolhidos por muitos rostos, corpos,
imagens disponíveis na rede.
A rede de sujeitos que estão em sociabilidade nesses aplicativos produz
diferentes (in) visibilidades. Entretanto, como nos avisa Silva (2009, p. 9), “[...] o
sujeito vaza por todos os lados”. Nesses gotejamentos de subjetividades,
percebemos a potencialidade teórica que nos sugerem os Estudos Culturais.

Os Estudos Culturais sobre raça e etnia denunciam, de forma


insistente, as relações espúrias entre, de um lado, o sujeito que é
privilegiado no discurso e nas instituições dominantes e, do outro, o
homem branco, de ascendência europeia. A análise pós-colonialista,
por sua vez, flagra o sujeito racional e iluminado em suspeitas
posições que denunciam as complexas tramas entre desejo, poder,
raça, gênero e sexualidade em que se vê, inevitável e
inequivocamente, envolvido. Reunidas, essas teorias mostram que
não existe sujeito ou subjetividade fora da história e da linguagem,
fora da cultura e das relações de poder. Sobra alguma coisa?
(SILVA, 2009, p. 9-10, grifo nosso).

Nas sobras do processo de subjetivação, os perfis de usuário tornam-se


elementos a serem escolhidos. Em nossas leituras percebemos que existem perfis
que utilizam do que foi constituído na linguagem e na cultura histórica como
elementos de valorização, empoderamento e práticas de visibilidade, bem como,
também, aparecem perfis que utilizam das estratégias de objetificação, do
discurso hegemônico e dos valores de uma sociedade machista, falocrática,
patriarcal, misógina e racista para interagir nos aplicativos.

HOMENS NEGROS GAYS NO MUNDO VIRTUAL: PERFIS, DISCURSOS, IMAGENS E


DINÂMICAS

Os homens negros ao se apresentam nos apps de relacionamento gay


estabelecem uma prática de representação identitária que sedimenta

79
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

significados, estabelece atributos físicos e culturais e defini papéis sexuais, que


muitas vezes são naturalizados no decorrer da história. Como argumenta Hall
(1996), as práticas de representação de identidade implicam em posições de
enunciação.
Ao nos referirmos às práticas sexuais dos homens negros gays nos
remetemos às categorias sexuais que podem referir se àqueles homens que fazem
sexo com outros homens, e cada uma delas pode implicar em aspectos
identitários particulares e descontínuos. Utilizamos as categorias “homossexual”
e “gay” basicamente como sinônimas, apesar de estarmos cientes que há
significações sociais diferentes para os termos. Trabalhos como o de Green e
Trevisan (2000) e Fry e Macrae (1983) demonstram que as discussões sobre
sexualidade e as caracterizações da homossexualidade são produzidas nas
relações históricas e suas significações atribuídas ao contexto contemporâneo.
Por escolhermos o referencial dos Estudos Culturais nos dispomos a reconhecer
nos aspectos históricos e políticos como foram significadas as diferenças de
raça/etnia e sexualidade, na cultura brasileira.
Os corpos de homens negros geralmente fetichizados são alvos de
significações sociais que geralmente se relacionam com virilidade, força,
violência, animalidade, entre outros. Essas significações estão dentro de uma
lógica política que, ora é utilizada para processos visibilidade, ora para
processos de objetificação e também processos de empoderamento de
identidade. A maioria da literatura acadêmica que se dedica a tratar das
temáticas gays, a visibilidade de corpos e práticas homossexuais entre homens
ou os lugares possíveis das práticas sexuais, por muito tempo localizou o corpo
negro como distante da homossexualidade.

[...] os negros iniciavam as primeiras investidas para discutir o


racismo, cultura e organização da população negra, fora do círculo
de ferro dos partidos e centralismos da velha esquerda [...] Se, para
essa esquerda, a sexualidade e o racismo eram temas
incomodamente discutidos fora dos parâmetros da luta de classes
(ou “luta maior”, em sua gíria), o aborto podia criar desagradáveis
atritos com a Igreja Católica progressista, sua aliada. [...] as
chamadas “minorias” apresentavam temas espinhosos. E, para nós
das “minorias”, a sensação era de estar prensados num círculo de
ferro, à direita e à esquerda. (TREVISAN, 2000, p. 338).

No excerto apresentado pelo autor e nas leituras de Green (2000) e Fry e

80
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Macrae (1983) a homossexualidade de homens negros fica silenciada e/ou é


discutida em contornos distantes das pautas gays. A apresentação da figura
emblemática do empoderamento gay e dos enfrentamentos das lógicas
oferecidas, como Madame Satã, são trazidas como ícone de resistência, mas sua
negritude e/ou homossexualidade não abrem espaços para criarmos condições de
problematizar a virilidade, a masculinidade e os sexismos que incidem sobre
esse grupo.
Existe uma lógica do corpo negro como ativo, viril, imenso, dominador
e nos distanciamos de uma oportunidade de problematizar como a raça/etnia,
gênero e a sexualidade ficam relegadas às distâncias das problematizações
conjuntas. A interseccionalidade também afeta outros estudos, como as
lesbiandades negras e outras formas de ser sujeito de gênero/sexualidade e
raça/etnia em nossas sociedades, porque historicamente o corpo negro e as
práticas homossexuais são visibilizados como incoerências ou não existente nas
leituras dessas discussões.
Uma das estratégias que propomos nesse texto para entendermos como a
homossexualidade negra discursa sobre si nos apps de relacionamentos afetivos
ou sexuais, é considerarmos que o conceito de raça tem sua vigência histórica,
que também perpassa por determinação da divisão social do trabalho, do
pensamento, do poder político e econômico estabelecendo marcas no tecido
social na atualidade como argumentam Fanon (1983) e Guimarães (1999).
O homem negro gay é um habitante de dois mundos distintos, o da
homossexualidade e o da raça. A sua negritude se constitui por meio da
normalização do negro heterossexual, representado pela emblemática virilidade
de sua força física, agressividade, violência, grande apetite sexual e pênis
potente. A imagem do homem negro, desse modo, remete à perspectiva do herói.
Um homem inabalável, que protegeria a si mesmo e aos subalternos mais frágeis
(mulheres e crianças) contra a opressão racial. Ou remete a um ser bestial que,
potencialmente, aplicará sua agressividade e violência contra o branco que o
violenta e humilha e contra aqueles mais frágeis, mulheres e crianças que
deveria proteger. (ROSA, 2006)
Dentro dessa lógica, o negro homossexual é tido como incapaz para
salvar a raça, tanto quanto é incapaz de proteger os mais fracos. Ao contrário,
representa a covardia, a fraqueza, a fragilidade e mesmo uma traição ao

81
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

estereótipo subumano assimilado pelo próprio homem negro. Afinal, como


explica Kimmel (1998, p. 116) “[o]s homens gays são bichinhas passivas e
efeminadas assim como são sexualmente insaciáveis e predatórios”. Embasados
nesta representação, percebemos que os corpos negros são visualizados em outra
dinâmica que tende a não fazer sentido nas representações dos gays negros nos
apps.
O homossexual negro experimenta também uma negação no mundo gay,
seus clubes, boates, espaços de confraternização, trajetórias pessoais modelares,
imagens, mídia LGBTIQ, sua perspectiva de poder e, o que é muito importante,
padrões de consumo, sempre têm como referência o homossexual branco. Ou
seja, ocorre uma afirmação da identidade homossexual que passa
necessariamente pelas perspectivas definidas por um mercado de consumo
voltado para o público homossexual urbano, branco, jovem e integrado às
relações de produção e trabalho estabelecidas pelo mundo branco, heterossexual
hegemônico.
Os corpos negros gays que conseguem entrar nesse mundo poderoso do
consumo são induzidos a adotar um referencial branco. O homossexual negro,
portanto, é deslocado do padrão identitário aceito, e dessa forma cede à pressão
por aceitação social dos homossexuais, desde que estes sejam brancos ou
embranquecidos.
Evidenciar os discursos desses sujeitos duplamente marginalizados, ao
se apresentarem nos aplicativos de relacionamento gay significa visibilizar as
estratégias discursivas e não discursivas que os homens negros gays utilizam
para conseguir um lugar em dois universos. Entendemos, tal como Foucault
(2016, p. 71-72) “[...] o papel da escrita é essencialmente um papel de colocação a
distância e de medida da distância”. Assim, as localizações estabelecidas neste
texto sugerem formas de percebermos os corpos negros nas relações
estabelecidas pelos aplicativos. Visualizar esses perfis é uma forma de indicar
sentidos acerca das narrativas apresentadas sobre esses corpos, suas estratégias
de visibilidade, as práticas de corpo e as condições de consumo que estes
suportes nos sugerem.
Nesse sentido, a constituição de imagens do corpo como prática de
visibilidade por meio dos aplicativos também sugere trajetos acerca da
corporalidade negra gay em nossa sociedade. Em verificações feitas nos

82
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

aplicativos no decorrer do mês de março de 2017 em uma região do interior do


Paraná20, encontramos 7 perfis.
Desses, um dos perfis não apresenta nickname, mas apresenta a frase no
perfil “No caminho te explicou”. Há detalhamentos sobre altura, peso, porte
físico, posição (se tem interesse por ser ativo, versátil e/ou passivo) e sobre o
que busca.
Os outros dois perfis apresentam nickname, também tem dados como o
primeiro perfil. No perfil de Mr., ele tem por descrição a palavra “go”, em inglês,
ir e o Bundudo que apresenta na descrição características corporais: “Bonito,
Roludo, Bundudo, sarado. Com local. Curto caras discretos e higiênicos. Obs.
Caras pauzudos que aguenta fuder são bem-vindos”. Além dessa apresentação,
há altura e peso descritos.
O perfil de Alan 20 traz a seguinte descrição “Versátil + ATV, procuro
algo sério e novas amizades, ou só ficar, sem foto nem chama. Gosto de rabudos,
porque padrãozinho não aceita levar fora? Vaza discreto fora do meio, aqui não
tem biscoito para vocês. Sou Negro, nem moreno nem mulato” (sic).
Ainda temos os perfis 20 cm grosso que enuncia o seguinte texto
“Macho discreto se for para fica de mimi nem perca seu tempo não curto
enrolados” sic, temos o Feio Fudedor 28 É macho? Obediente? Aguenta uma
surra de pica? Mamar, levar tapa, mijada. Ter o rabo esfolado? Se curte entre
em contato. Procura gato? Vaza! Sou cachorro, não curto miado! Bora marcar a
cachorrada?” (Sic) e ainda temos o Dotado de Fora 27.
Os perfis no Scruff e Grindr, por vezes, não apresentam a informação
etnia. Diferente do caso de homens negros nessa informação é quase sempre
publicizada e reforçada, a visibilidade dessa característica e a constituição de
um imaginário sobre o corpo negro como uma performance viril, forte e, por
vezes, violenta. Existe uma incitação ao sexo como prática que precisa ser
dificultosa para mostrar que o corpo negro precisa ser vencido em uma disputa,

20
Faz-se importante ressaltar que a população negra (soma de pretos e pardos) no
Paraná é, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (PNAD-Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), de 2016, é de 34.25%, uma das menores do Brasil. A cidade realizada
a pesquisa, da população negra é 25,7%. Esses dados são importantes porque os apps
utilizam a tecnologia de geolocalização, o que faz com que o número de perfis de
homens negros gays encontrados possam ter uma variação significativa de região para
região de acordo com o percentual de negros e negras.

83
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

tal como os perfis que mencionamos.


Essas características sugerem uma leitura cultural sobre corpos negros
gays nesses aplicativos. A indicação de um corpo preparado para a disputa
sexual e que seja forte e viril são indicativos nessas afirmações. Visibilizar essa
caracterização é uma forma de vislumbrarmos elementos da cultura machista na
leitura atuando nestes aplicativos.
Nosso intuito neste trajeto não é o de julgar ou avaliar a condição de
posicionamento, as interações e/ou outras possibilidades da masculinidade
homossexual negra, neste momento. Esses perfis são constituídos em condições
potenciais para percebermos a teia complexa de valores estabelecidos. Bundudo
convida “caras pauzudos”, também se intitula por “pauzudo”, mas seu nickname
sugere foco para a posição passivo no sexo entre homens. Existem caminhos
possíveis em uma análise deste e de outros perfis.
O que fica nítido neste processo é a constituição da leitura de corpos que
importam, a visibilidade do corpo negro e as possibilidades de interação entre
homens nesses aplicativos. As potencialidades deste estudo, ainda em
andamento, nos sugerem como a sociabilidade e a leitura dos corpos de homens
negros também se engendram ao biopoder e nos sugerem a leitura da
masculinidade homossexual negra como também produzida no contexto da
cultura, da política e da sociedade contemporânea.
Zago (2013) em seu estudo sobre a sociabilidade e as práticas
curriculares e educativas de corpos masculinos em um site de relacionamento
gay também percebe esses elementos complexos na constituição da
masculinidade e de suas formas socialização. Entendendo o corpo como
currículo, o autor situa as dinâmicas de valoração e desvalorização nas relações
e interações entre homens mediados por uma rede de relacionamento.

O “estereótipo gay” funciona, sobretudo, no, através do e para o


corpo, como se o corpo-que-importa fosse a assunção de tudo aquilo
que é pertinente de ser mostrado, e como se os anticorpos fossem a
materialidade que precisa ser subsumida e escondida enquanto algo
não pode, nem deve ser conhecido. (ZAGO, 2013, p. 155).

Essa lógica faz sentido ao percebermos que o anticorpo tem um viés


produtivo nas relações homossexuais. Fugir das representações que nos colocam
como sujeitos não interessantes para as práticas afetivas e/ou sexuais nos

84
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

espaços dos apps é uma das características que encontramos nos perfis. “A
afeminação é da ordem do insuportável”, como explica Zago (2013, p. 195). Os
perfis que localizamos não se aproximam em nenhum momento da feminilidade,
pelo contrário, vão estabelecer uma lógica de virilidade que sustenta a relação
homoerótica no contemporâneo, por meio dos valores culturais enquadrados na
sociedade.

CORPOS: RAÇA/ETNIA, PESO, ALTURA, CENTÍMETROS E OUTROS VALORES


CULTURAIS

Avisados por este flerte histórico com as relações raça/etnia e


gênero/sexualidade na história da homossexualidade no Brasil, recorremos a
Trevisan (2000, p. 472) para vislumbrar que “[...] ser homossexual reduz-se,
lamentavelmente, a fazer sexo”. Assim, uma lógica do corpo gay é sustentada
em diferentes perspectivas e favorece a construção de perfis de desejo que
registram como a homossexualidade tem sido infiltrada por valores sociais,
culturais e políticos que invisibilizam as problemáticas que aqui incitamos.
Esses movimentos históricos e culturais geram o que Zago (2013, p. 124)
caracterizou como “corpos-que-importam”, ou seja, corpos produzidos nos
valores machistas, misóginos, patriarcais, falocráticos, brancos, eurocêntricos e
consumíveis. Esses corpos, infelizmente, hierarquizam a relação de desejo e
prazer e sustentam uma valoração denominada pelo autor de anticorpos. Seriam
aqueles que “não se conformam às regulações da coerência entre sexo-gênero-
sexualidade, de geração, de morfologia corporal, de estética, de raça/etnia, entre
outras” (ZAGO, 2013, p. 124).
Os perfis desses aplicativos analisados nos oferecem lógicas que regulam
essa relação entre importantes/descartáveis e objetificados/empoderados. Em
uma lógica de consumo, as vitrines nos oferecem diferentes corpos, rostos,
performances, tamanhos genitais, imagens pornográficas e/ou eróticas que
localizam o desejo como um produto da lógica do consumo. Esse consumo está
marcado, também, pelo funcionamento de uma estrutura dinâmica constituída
pela ideia de um corpo que supere a biologia como aparato, um corpo pós-
orgânico. (SIBILIA, 2002)
Se nos tornamos sujeitos passíveis de um sistema biotecnológico, digital
e informatizado, nossos corpos e suas imagens também são criados em um “[...]

85
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

aperfeiçoamento permanente de tais ferramentas foram obtidos resultados


diversos, frutos das constantes lutas, resistências e negociações entre saberes,
poderes e prazeres” (SIBILIA, 2002, p. 10). A noção de corpo-que-importa
também é uma formulação que sugere uma lógica produtiva que nos incita a
valorar no sistema de consumo os corpos que nos interessam, porque somos
educados por essa dinâmica produtiva.
A constituição desses corpos, os diversos artifícios imagéticos e/ou
corporais são produzidos para que os corpos regulem um sistema visual.
Concomitante a este movimento, esses perfis produzidos precisam ser
visibilizados, desejados, cobiçados para que seus valores/produtos se tornem
passíveis de valor social. Como nos explica Sibilia (2002, p. 34), “o consumidor
passa a ser, ele mesmo, um produto à venda”.
Assim, a autora retoma as discussões feitas por Foucault (2014, p. 213)
acerca do biopoder que possibilita ao/à humano/a de “fazer a vida proliferar, de
fabricar algo vivo, de fabricar – no limite – vírus incontroláveis e
universalmente destruidores”. Não só apenas técnicas biotecnológicas, mas o
corpo e a subjetividade tornaram-se processos contínuos e, desse modo, o
imperativo produtivo sobre os corpos, suas marcas e seus valores tornaram-se
passíveis de consumo de sentidos, significados, práticas e valores que
transformaram as formas de viver e as resistências em “ slogans publicitários”
comercializáveis (SIBILIA, 2002, p. 170).
Como apresentado nos perfis selecionados vimos que a maioria destes
chama atenção para o tamanho de seu pênis, e como afirma Silva Júnior (2011,
p. 53), a “identidade sexual do homem negro é exaltada pelo modelo
hegemônico, como reprodutor, viril, bem-dotado”, ou seja, o pênis grande é
objeto de desejo de homens e mulheres, já que no imaginário do senso comum,
os homens negros têm um desempenho sexual considerado acima da média. A
sexualidade do homem negro estaria localizada na estrutura falocêntrica, o que
o posicionaria como superior aos homens de outras raças do ponto de vista
sexual, o que para os sujeitos dos perfis analisados é motivo de empoderamento,
tornando seus corpos desejáveis.
Desse modo, discutirmos a relação entre raça/etnia e gênero/sexualidade
é um modo de indicarmos localizações, estratégias e formas de atuar na
constituição de leituras acerca das condições contemporâneas e também são

86
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

marcadores sociais das subjetividades que permeiam as imagens e os corpos dos


homens negros gays da sociedade. Nos 7 perfis que passamos, encontramos
elementos que significam a constituição de corpo dos homens negros gays
dentro de uma lógica de masculinidade que favorece o desejo por uma
representação viril, forte e violenta.
Importante compreendermos que essa lógica não foi construída nos
apps, ela só ganhou potencial em sua difusão, visto que essa é uma
característica das novas mídias sociais, devido a sua interatividade. Souza
(2009) argumenta que no decorrer do processo histórico e de ocidentalização, a
masculinidade negra se tornou alvo de preocupações por parte da branquitude,
principalmente por parte de intelectuais das mais diversas áreas do pensamento
social, posto que a masculinidade negra se encontrava e ainda se encontra
associada ao perigo, ameaça, exótico, violência, estranho e dentre outros
sinônimos, passando, com isto, a ser necessário estudá-lo, dissecá-lo e,
consequentemente, aprisioná-lo para melhor compreendê-lo e contê-lo.
Desde o momento em que os europeus fizeram os primeiros contatos
com o continente africano, o pênis negro se tornou o ponto de referência das
relações que seriam estabelecidas, e a partir daí, entre homens negros e brancos.
O pênis negro foi medido, pesado e dissecado por diferentes cientistas, sendo
guardado em recipientes com formol e exibido por toda Europa, causando ao
mesmo tempo espanto e desejo. (FRIEDMAN, 2001)
A intelectual norte americana Hooks (2003) diz que esta concepção
reflete inúmeras problemáticas, tais como as questões de poder e subordinação
atreladas ao simbolismo do órgão masculino, e aqui cabe ressaltarmos que ao
falarmos dos corpos negros, a referência da hiperssexualização sempre se dará
pelo enfoque no falo, reduzindo o homem negro gay a um espaço de
objetificação e animalização, e assim retira desse qualquer possibilidade de
humanidade, posto que este homem seria apenas “um pênis”, o que leva os
homens negros gays que habitam os apps a se reduzirem a um pênis para ser
consumido, o que fica evidente na maioria dos perfis analisados.
Como afirma Fanon (2008) o homem negro não é um homem, uma vez
que, no imaginário ocidental, antes de ser homem ele é negro e como tal não tem
sexualidade, este negro tem sexo. Portanto, a construção da masculinidade negra
enquanto sinônimo de um animal é perceptível e representada nos mais

87
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

diferentes contextos, tais como no saber científico, na literatura, telejornais,


jornais, rede sociais, propagandas.
Estes espaços de socialização garantidos pelos apps, tornam-se também
territórios de uma normalização. A feminilidade, a delicadeza, a presteza e a
gentileza não são valores culturais bem vistos em um espaço que registra a ideia
de que para ser pertencente a este espaço, é necessária a rudeza e um agir bruto.
Percebemos também que a lógica dos apps é uma oportunidade para o encontro
casual, para trocas de imagens e textos que incitem e excitem aspectos da
virilidade, não interessadas, necessariamente, em estabelecer relações de outro
tipo.
Os corpos negros também entram em uma lógica da objetificação que os
localiza como sujeitos de desejo por reverberarem um discurso de corpo-que-
importa e por afastarem qualquer impressão ou resquício de feminilidade. O uso
de palavras e imagens que valorizem a força, a virilidade e a violência são aptos
e úteis nestes apps. Subjetividades e possibilidades identitárias são moídas,
picadas e utilizadas apenas quando necessárias. Os sujeitos que perpassam esses
espaços também estão interessados em pedações ou partes. O todo pode não
interessar.

CONSIDERAÇÕES

Este texto tem como intuito focar os olhares para as relações sexuais
e/ou afetivas entre homens negros gays e outras identidades ou na sociabilidade
entre iguais. Os valores culturais que registramos aqui são apenas indicativos de
que os estudos acerca das homossexualidades e das negritudes se fazem
necessários para problematizarmos diferentes relações, interações e
possibilidades de entender os corpos e as dinâmicas do prazer em apps.
Reconhecemos, neste movimento, que se aproxima de uma ideia de
passeio pelos perfis, a potencialidade de visibilizar de que modo as dinâmicas
das masculinidades constituem e são constituídas nos espaços de sociabilidade
gays. O machismo, a misoginia e a homofobia povoam estes territórios e
sustentam lógicas de virilidade e sexualidade que deslocam os anticorpos e os
corpos que importam nas dinâmicas do dispositivo de sexualidade.
Registramos, desse modo, que conhecer nos ajuda a perceber como os
corpos negros e gays podem corroborar para práticas de sociabilidade que

88
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

indicam a masculinidade como característica que nos territórios dos apps


precisam se comportar como elementos constituintes das práticas homoeróticas.
A sexualidade como espaço produtivo da vida de homens e mulheres ainda
precisa ser problematizada como espaço criativo das formas de ser e de agir.
Diferente da hipótese de que o sexo é tabu, seguimos pela lógica discutida
amplamente por Foucault que falar de sexo sempre foi possível em diferentes
sentidos da sociedade contemporânea.
Nosso olhar segue nesta lógica e vai por outro sentido. Entender a
sociabilidade erótica e/ou sexual de homens negros gays abre espaços para
problematizarmos elementos machistas, misóginos, sexistas e violentos que
comprimem, oprimem e fragilizam diferentes formas de ser, agir e pensar. A
lógica do desejo é plural, possível e provisória. Nossa ideia não é dizer a que
serve a sexualidade, mas como este espaço não precisa cumprir com os chavões
do machismo e da homofobia para ser uma prática diferente da que nos
deparamos nas redes dos apps.

Black bodies in the applications of gay relationships: between speeches, dynamics, and
subjectivations

Abstract: The paper analyzes how black men's bodies are presented in the gay
relationship applications - apps. It uses Grindr and Scruff, which are two of the popular
mobile device applications in Brazil. The apps promote affective and/or sexual
encounters through message dialogues, use of photographic images and allow the
mapping of the geolocation of networked users. One of the main features of these apps
is to visualize the diversity of bodies in profiles searching for encounters. The
description/presentation offered by users who identify themselves as black in their
profiles is used to analyze the relationship between visibility, sexuality, objectification,
and empowerment. Theoretically, it adopts concepts linked to Cultural Studies with the
collaboration of Foucaultian Studies such as identity, representation, discourse, and
biopolitics. It concludes that to understand the way these black men present themselves
it is necessary to discuss the impact that the intersection between race, sexuality, gender
as constitutive discourses of Brazilian society has on the identity formation of black
gay men.
Keywords: Gay black men. Relationship applications. Identity formation.

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91
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

92
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Danças e doenças psicológicas: um olhar para a diversidade cultural em


uma ala psiquiátrica em Belém do Pará
Rayanne Mesquita Estumano (UEPA) 21
Luciane Cristina Farias de Aguiar (UEPA) 22
Stefanie da Conceição Franco (UEPA) 23
Vera Solange Pires Gomes de Sousa (UEPA) 24

Resumo: Relata o que os sujeitos vivenciaram com os conteúdos da Educação Física na


Ala Psiquiátrica de um Hospital com o objetivo especifico de compreender a
contribuição do conteúdo dança circular nos aspectos sociais, afetivos e cognitivos no
tratamento de pacientes acometidos com doenças psicológicas. Partindo de um estudo
de campo, com abordagem qualitativa, ações descritivas, enfoque materialismo histórico
dialético e como instrumento de coleta e análise dos dados; as observações,
interpretações fotográficas e anotações nos diários de campo. Conclui que a dança
circular juntamente com os outros conteúdos ajudaram a diminuir o tempo de
internação dos sujeitos internados neste Hospital e, o mais importante, o respeito a
diversidade cultural depois das práticas propostas pelos pesquisadores.
Palavras-chave: Dança circular; Educação Física; Doenças Psicológicas.

INTRODUÇÃO

Este estudo está atrelado a vivências perpassadas por acadêmicos do


curso de Licenciatura Plena em Educação Física, da Universidade do Estado do
Pará (UEPA), durante a realização da disciplina Estágio Supervisionado III, os
quais, no primeiro semestre do ano de 2017, desenvolveram atividades de
estudos dirigidos e pesquisa de campo na Ala Psiquiátrica de um hospital
público do Estado do Pará. Considerado um hospital de referência em
Psiquiatria, Nefrologia e Cardiologia do Estado, o Hospital atende moradores da
Região Metropolitana de Belém e demais municípios desde 1987,
disponibilizando consultas e internações aos pacientes que necessitam de
tratamento nas clínicas Médica, Cirúrgica, Pediátrica, Ginecológica e
Obstétrica.
A partir das observações e estudos realizados neste período, os
pesquisadores puderam presenciar alguns conteúdos da cultura corporal, como o

21
Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
rayestumano@hotmail.com
22
Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
luciane.c.f.a@gmail.com
23
Graduanda em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
stefanie.franco.sf@gmail.com
24
Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da
Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: soldurui@hotmail.com

93
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

jogo, a dança e o esporte, sendo utilizado como recurso de intervenção no


tratamento destes pacientes. O conteúdo que mais chamou atenção dos sujeitos
foi a dança, em específico a dança circular.
Logo, a pesquisa descreve de forma geral o que os sujeitos vivenciaram
com os conteúdos da Educação Física, partindo da análise da produção
científica elaborada até então, as quais abordam a temática sobre as
intervenções pedagógicas de professores de Educação Física em âmbito
hospitalar, em meio a literatura estudada.
Diante disso, sintetizando as experiências vividas e dando continuidade
a esse processo, foram elaborados relatórios no decorrer do semestre letivo,
posteriormente, entregues à docente do curso responsável por ministrar a
disciplina em questão e socializados em sala por meio de seminários, como
parte integrante do processo avaliativo.
Em meio a esses achados, registros e memórias acumuladas, surgiram
algumas inquietações, instigando-nos a desenvolver o presente trabalho acerca
das implicações na utilização de um elemento observado: a dança circular.
Assim, este trabalho visa compreender quais são as possibilidades da
contribuição da dança circular nos aspectos sociais, afetivos e cognitivos no
tratamento de pacientes acometidos com doenças psicológicas.

METODOLOGIA

A referida pesquisa possui caráter qualitativo que conforme (MINAYO,


2007) trabalha com significados, valores e atitudes dos sujeitos envolvidos.
Apresenta como tipo de estudo, ações descritivas, pois segundo (TRIVIÑOS,
1987) o investigador tem uma série de informações dos fatos observados.
Atrelado a isto, optou-se por desenvolver um tipo de pesquisa de campo,
utilizando a perspectiva teórico-metodológica do materialismo histórico-
dialético, por almejar um potencial crítico-dialético no sentido de levar a
reflexão e análise da realidade perpassada pelos acadêmicos e propor uma
transformação no olhar das ações dos professores de Educação Física inseridos
na área da saúde. (GAMBOA; GAMBOA, 2009)
A coleta de dados se sustentou em observações dos conteúdos da cultura
corporal durante o Estágio Supervisionado III, que se encontra na grade
curricular do Curso de Educação Física da Universidade do Estado do Pará

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

(UEPA). O instrumento de coleta de dados, foi feito por meio de interpretações


fotográficas e anotações nos diários de bordo. Ocorreu a autorização para tirar
as fotos das atividades, porém, não foi permitido usar o nome e aparecer o rosto
dos sujeitos que constam nas imagens. Para o critério de inclusão, foram
considerados todos os sujeitos que tiveram interesse em participar das aulas,
haja vista ser um espaço diferenciado.
Este espaço chama Hospital de Clinicas Gaspar Vianna, que se situa na
cidade de Belém do Pará. O período de intervenção foi de março a junho de
2017 onde foram trabalhados os conteúdos jogos, esporte e dança,
respectivamente. Os acadêmicos do curso de Educação Física da Universidade
do Estado do Pará (UEPA) ficaram locados, como estagiários, em uma Ala
Psiquiátrica deste Hospital, convivendo com crianças, adultos e idosos do sexo
masculino e feminino que recebiam tratamento e acompanhamento de uma
Equipe Multiprofissional.
Esta Equipe era composta por médicos, psicólogos, enfermeiros,
terapeutas ocupacionais, técnicos em enfermagem e uma professora de educação
física. Estes profissionais exerciam suas atividades diárias em conjunto, a
partir da consulta à ficha de acompanhamento destinada a cada paciente. Nela
constava as atitudes, comportamentos e dosagens precisas dos medicamentos
destinados aos sujeitos que recebiam tratamento - desde o acolhimento até a alta
médica.
Sendo assim, a responsabilidade de registrar e acompanhar a evolução
ou regresso no tratamento dos sujeitos inseridos nesse ambiente, era de todos.
Dentre os responsáveis por tal registro, os estagiários, eventualmente, também
exerciam a função de auxiliar a professora de Educação Física, compartilhando
momentos de observação, registro e análise comportamental, os quais ocorriam
nos dias de quinta-feira, no período vespertino, durante quatro horas de
intervenção destes na Ala Psiquiátrica do Hospital.
A análise dos dados foi inspirada nas orientações de Bardin (2009), no
método de análise de conteúdo, o qual propôs três etapas para a construção da
análise: (1) pré-análise; (2) exploração do material e (3) o tratamento dos
resultados: a inferência e a interpretação.
Durante a pré-análise foi realizada a reunião dos materiais e diários de
campo elaborados pelos pesquisadores. No segundo momento, denominado “a

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

exploração do material”, realizamos a leitura flutuante dos dados selecionados


na etapa anterior. Por fim, promovemos a interpretação a partir da análise do
referencial estudado e dos resultados organizados e categorizados.

CONCEITO DE DANÇA CIRCULAR

Desenvolvida desde a antiguidade, as danças estiveram presentes em


várias culturas, os primeiros resquícios de danças presentes foram nos rituais de
iniciação, nos ritos e nas cerimônias, apresentando neste momento como
principal característica o caráter ritualístico. A dança primitiva é uma das
formas mais rústicas de danças que conhecemos na atualidade, conseguindo
através dos movimentos dançados estabelecer a sua importância. De acordo com
Berni (2002, p. 27), “a dança é uma forma de expressão primordial, uma
manifestação cultural das mais antigas, presente em todas as sociedades.”
Em sua forma mais simples ela já conseguia expressar um apanhado de
sentimentos, emoções e sensações, era um elemento de representação mística.
Segundo Nanni (2003, p. 8), “desde tempos imemoráveis a dança como
atividade humana é uma forma de manifestação, a primeira, também como
comunhão mística do homem com a natureza e com os deuses”.
Berni (2002, p. 10), nos diz que:

A dança circular sagrada é uma prática de dança contemporânea,


que procura resgatar sua função primordial no passado, enquanto
integrada no complexo Canto-Dança-Oração, fazendo-a agir como
uma forma prática de auto-conhecimento e transcendência.

A dança realizada em círculo ou em roda permite que todos os sujeitos


estejam voltados para o centro, com isso todas as pessoas conseguem visualizar
as demais, logo elas possuem um grau de importância equivalente. O círculo
proporciona equilíbrio, totalidade, diferenças e interdependência, permitindo
que os envolvidos não somente se sintam parte da dança, mas também que eles
consigam resgatar a existencialidade e a transcendência.
Desse modo, a dança circular rompe o conceito de individualidade; o elo
de ligação desta dança é a união, a interação, a soma, o autoconhecimento e a
espiritualidade. Nesta dança foi possível observar que o principal objetivo é
alcançar a superação, no sentido mais amplo, pois o foco principal são os

96
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sujeitos a partir da compreensão de uma totalidade e de uma singularidade.


Conforme descrito por Andrada e Souza (2015), os primeiros dados
encontrados sobre a dança circular, foram a partir do bailarino alemão Bernard
Woisen que visualizou o grande potencial das danças realizadas em grupo.
Segundo a definição do autor:

As danças circulares não são meramente danças folclóricas, mas


remetem a um trabalho que busca, por meio de dançar em roda, do
gestual, da coreografia, do ritmo e da música, acessar a
subjetividade humana e provocar vivências que possibilitem que o
sensível emerja e seja compartilhado por um grupo. (ANDRADA;
SOUZA, 2015, p. 360).

A interação que as danças circulares proporcionam aos sujeitos


dançantes são excepcionais, o simbolismo desenvolvido por esta dança de dar e
receber, de dançar em círculo e de agregação de valores é fundamental para
consagração entre os sujeitos. Segundo Catib et al. (2015), as danças circulares
têm o potencial para se tornar um recurso importante no contexto grupal, uma
vez que despertam o respeito ao outro, a integração, a inclusão e o acolhimento
às diversidades e estimulando a cooperação.
A dança por meio de gestos e movimentos traduzem os mais singelos
sentimentos, podendo exprimir variáveis sensações como, prazer, felicidade e
bem-estar, assim como a elevação de estado de espírito do ser dançante. Através
da prática da dança se percebe que os aspectos motores, cognitivos, sociais e
afetivos são constantemente melhorados, sendo os três últimos mencionados,
importantes para trabalhos realizados em grupo. Consequentemente, as suas
contribuições são de grande valia para os participantes da dança circular.
Portanto, sabendo-se de todos esses benefícios para os praticantes das
danças circulares, o Ministério da Saúde (2006) vem elaborando políticas nesta
área e em outras, e apoiando a incorporação das Práticas Integrativas e
Complementares no atendimento dos sistemas de saúde.
Este programa de Práticas Integrativas e Complementares ficou mais
forte após a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) na década de 1980. E
depois, a Conferência Nacional de Saúde legitimou e instituiu como Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC). Em
maio de 2006, o Ministério da Saúde, a partir dos artigos a seguir, inclui as
danças circulares como abordagem de cuidado para serem utilizados nas redes

97
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

de saúde em nível Federal, Estadual e Municipal:

Art. 1º Inclui na Política Nacional de Práticas Integrativas e


Complementares (PNPIC), instituída pela Portaria nº 971/GM/MS,
de 3 de maio de 2006, publicada no Diário Oficial da União nº 84,
de 4 de maio de 2006, Seção 1, pág. 20, as seguintes práticas:
Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação,
Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia,
Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e
Yoga apresentadas no anexo a esta Portaria.
Art. 2º Define que as práticas citadas nesta Portaria atendem as
diretrizes da Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares no SUS. (BRASIL, 2017).

DOENÇAS PSICOLÓGICAS

Algumas doenças psicológicas, que observamos, são recorrentes nos


pacientes do Hospital, identificação feita durante as observações e
acompanhamentos realizados pelos pesquisadores, no decorrer da realização do
estágio supervisionado, tais como: a depressão, esquizofrenia e transtornos
psiquiátricos oriundos do uso de substâncias psicoativas (álcool e drogas).
Ao longo deste estágio, a fim de aprofundar o conhecimento dos
acadêmicos e subsidiar a participação destes estudantes no auxílio às
intervenções da professora de Educação Física – tais patologias psicológicas
transformaram-se também em um objeto investigativo e, por isso, um relevante
dado a ser exposto neste estudo, buscando elencar as características das
patologias; principais alterações comportamentais perceptíveis no paciente
diagnosticado e possíveis tratamentos, conforme a literatura estudada.

Depressão
A Organização Mundial da Saúde aponta que mais de 300 milhões dos
indivíduos sofrem por depressão no mundo e mais de 260 milhões convivem
com crise de ansiedade. Estes distúrbios psicológicos são temas presentes em
toda a sociedade e recebem destaque em diferentes abordagens, seja na área
relacionada à saúde mental, na mídia ou em rodas de conversas informais,
justamente, por apresentarem um índice epidemiológico que tende a expandir.
Vejamos, então, a especificidade de cada uma destas:
A depressão é uma doença psicológica que pode desencadear diferentes
percepções nos indivíduos. Por tal motivo, utiliza-se este termo para designar

98
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

um estado emocional eventual, sintoma ou uma forma de síndrome patológica


(APÓSTOLO et al., 2011). Dentre as sensações que geralmente acometem os
portadores da depressão constam: os sentimentos de tristeza, desânimo,
desvalorização, raiva, fracasso, desmotivação, alterações no sono, fadiga,
ideação e/ou tentativa suicida25. Estes, causados em decorrência da presença
constante de pensamentos e sensações negativas, ocasionados pelas alterações
no humor e na vida social dos portadores.
Em pesquisa realizada por Moreira et al. (2013) verificou-se que o
desequilíbrio emocional promovido em pessoas acometidas pela depressão pode
acarretar no surgimento dos seguintes tipos de depressão: Transtornos
depressivos maior, depressão relativa, catatônicas, crônica, transtorno afetivo
bipolar e outros.
Estas variações estão diretamente relacionadas a fatores de diferentes
ordens, ou seja, demonstrando que não existe uma causa específica que
determine o motivo, período para surgimento e forma de manifestação desta
síndrome no organismo humano. Estes fatores, normalmente, podem ser
desencadeados em decorrência de alguma alteração orgânica, ocasionado por
crises de estresse emocional ou, até mesmo, pelo estilo de vida que o paciente
utilize.
O diagnóstico desta patologia está condicionado ao modo como se
observa o comportamental do sujeito, por isso, as pessoas mais próximas destes
- como familiares, amigos, colegas de trabalho, entre outros – geralmente,
possuem um papel fundamental na identificação inicial e encaminhamento aos
centros de tratamento.
Nestes espaços, os profissionais responsáveis têm a função de
diagnosticar qualquer alteração na maneira a qual o paciente se encontra,
consultando – primeiramente - os familiares e/ou responsáveis legais, com a
finalidade de reunir informações sobre as alterações que foram percebidas por
estes até então; e analisar o estado físico e psicológico em que se encontram,
utilizando escalas de avaliação contidas na 5ª edição do Manual de Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM–V (APA, 2013) ou na 10ª edição da
Classificação Internacional de Doenças - CID–10 (OMS, 1992).

25
Características apontadas no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
– DSM – IV, 2002.

99
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Além disso, é fundamental atentar a forma como os pacientes estão


organizando suas atividades cotidianas, investigando a maneira como se
alimentam, realizam a higiene pessoal, utilizam as vestimentas e desenvolvem
suas tarefas domésticas. Pois, dentre as características mais recorrente desta
patologia, encontra-se a modificação no modo como estes realizam suas ações
diárias, justamente, devido à intensidade do sofrimento ocasionado pela doença.
(APÓSTOLO et al., 2011)
O tratamento deverá agir de acordo com o nível da depressão
diagnosticada. Nos casos de depressão leve, recomenda-se apenas o
acompanhamento e tratamentos psicoterapêuticos, porque neste tipo de
depressão, normalmente, as atividades da vida cotidiana não são afetadas com
tanta intensidade. No entanto, os casos considerados graves – os quais
necessitam de maior cuidado e vigilância da equipe médica26 - o tratamento
com a intervenção medicamentosa com antidepressivos deverá ser utilizado.

Esquizofrenia
A Esquizofrenia é uma enfermidade psicológica crônica que afeta cerca
de 1% de indivíduos no mundo – 70 milhões de pessoas – segundo a
Organização Mundial da Saúde (2000). As causas desta patologia, a priori,
encontram-se ainda desconhecidas pela ciência, entretanto, entende-se que
fatores de ordem biológica, genética e ambiental podem influenciar o
desenvolvimento desta doença nos sujeitos.
De acordo com Oliveira et al. (2012, p. 310) “a mudança na maneira de
se referir aos portadores de esquizofrenia tem sido uma tentativa de fazê-los ser
considerados pessoas com um problema e não pessoas - problemas”. Essa
concepção mais ampla, que compreende as causas das doenças mentais
relacionadas aos aspectos biológicos e sociais, vem sendo considerada e
difundida entre a comunidade científica com o intuito de alterar os estereótipos
e termos pejorativos que muitos pacientes tendem a enfrentar.
Dentre as principais percepções promovidas em pacientes acometidos
com a Esquizofrenia estão: a incapacidade de organizar o pensamento, o
surgimento de delírios e alucinações mentais capazes de induzir a não
26
Devido ao paciente apresentar sintomas de delírios e alucinações e/ou predisposição a
cometer suicídio.

100
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

identificação a diferenças entre ações reais e imaginárias, tendo como principal


consequência o prejuízo da capacidade deste de se relacionar nas esferas
familiar, profissional e interpessoal. (GIRALDI; CAMPOLIM, 2014)
Conforme Giacon e Galera (2006), existem cinco subtipos desta doença,
que o profissional da saúde deverá buscar identificar e enquadrar o paciente
durante o início do tratamento - a partir da análise de seu estado
comportamental e a realização de consulta aos familiares. Os subtipos clínicos
desta patologia são: paranóide, catatônica, simples, residual e desorganizada ou
hebrefênica.
Após a diagnose inicial, os pacientes poderão receber tratamento
psicológico e psiquiátrico com o auxílio de medicamentos antipsicóticos ou
neurolépticos, de acordo com o comportamento, sinais e sintomas apresentados.
Em alguns casos, também, aplicam-se intervenções de eletroconvulsoterapia em
pacientes que não responderem ao tratamento medicamentoso (SOUZA et al.,
2013).

Transtornos psiquiátricos oriundos do uso de substâncias psicoativas


(álcool e drogas)
O consumo exacerbado de entorpecentes, como o álcool e outras drogas
(AOD) se tornou um dos principais problemas de saúde pública devido à
crescente difusão social e cultural do consumo destas substâncias na sociedade
moderna (WESTERMEYER, 1991). Estas – consideradas substâncias
psicoativas – afetam o aspecto emocional do usuário, de modo a modificar o
humor, a percepção e até mesmo dificultar o raciocínio.
Comumente são utilizadas com a finalidade de minimizar as pressões da
vida cotidiana e/ou possibilitar uma “fuga” da realidade aos usuários. Realidade
esta, muitas vezes, marcada por problemas de origem familiar, econômica e
legal, que afetam o aspecto psicológico do sujeito, influenciando-o a buscar
soluções fáceis, de curto prazo, como o consumo das drogas, em decorrência à
dificuldade de superá-los.
O consumo abusivo dos entorpecentes pode promover uma brusca
alteração no estado mental do usuário a ponto de provocar dependência,
problemas psicossociais como a perda de emprego, conflitos interpessoais,

101
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

dificuldade de aprendizagem e prejuízos à saúde como os transtornos


psiquiátricos. (OLIVEIRA, 2005)
Os critérios para o diagnóstico, a fim de detectar a dependência do
paciente a AOD, ainda não são específicos, porém os critérios a serem
analisados pelos profissionais da saúde para detectá-la, de acordo com a
Organização Mundial da Saúde (1993), parte da observação aos dados
fornecidos pelos próprios usuários, correspondendo à análise da presença de
intoxicação, uso nocivo e transtornos psicológicos. Dentre os tratamentos
médicos recomendados aos dependentes de drogas diagnosticados com
transtornos psiquiátricos não se encontra, ainda, um tratamento farmacológico
universal.
No entanto, para os pacientes que necessitam de tratamento
psicológicos, de modo geral, encontram-se à disposição os Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS)27 e demais redes de atenção à saúde, como o Hospital
Psiquiátrico (HP), estruturados pelo Ministério da Saúde, no Brasil, que seguem
algumas recomendações e princípios terapêuticos básicos em suas atividades
como: (1) Prestar atendimento e terapias individuais e coletivas; (2) Realizar
um tratamento multidisciplinar, com profissionais habilitados em nível médio
ou superior para desenvolver as terapias e oficinas (2) Possibilitar a realização
de atendimento familiar; (4) Promover visitas residenciais; (5) Atendimento de
desintoxicação; (6) Proporcionar atividades comunitárias com o intuito de
socializar os pacientes e integrá-los ao meio; (7) Garantir a oferta de refeições
aos participantes do tratamento.
Para isso ocorrer, as unidades devem obrigatoriamente atender 100% da
demanda de pessoas acometidas com transtornos mentais, possibilitar a
acessibilidade e disponibilidade do tratamento ao paciente, quando este optar
por realizá-lo, garantindo a existência de plantões técnicos durante todo o
funcionamento da unidade, e dispor de um agradável ambiente para o
acolhimento dos pacientes, conforme as recomendações.

27
Os Centros de Atenção Psicossociais são unidades de tratamento de pessoas
acometidas por transtornos psicológicos que prestam serviço público à comunidade
locada em seu território de atuação.

102
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

VIVÊNCIA NO HOSPITAL DAS CLÍNICAS GASPAR VIANNA

O grupo de alunos levou para a prática no Hospital vários conteúdos da


Cultura Corporal - dança, jogo e esporte – expressas nas figuras 1, 2, 3 e 4 -,
durante o período de vivências, sendo que o conteúdo que mais chamou atenção
e teve participação direta28 e indireta29 foi o conteúdo dança, em específico a
dança circular.
A dança circular foi relatada pelos pacientes com vários sentimentos de
sociabilidade, diversidade e lembrança de sua história e de seu lugar de origem.
A maioria dos internados na Ala Psiquiátrica deste Hospital é de interiores do
Estado. E quando íamos conversar com eles, percebíamos que os costumes,
atitudes e hábitos apresentavam uma diversidade cultural abrangente, e que às
vezes, essas diferenças atrapalhavam a convivência dentro da Ala Psiquiátrica.
Muitas observações foram feitas pela professora que ficava nesse
ambiente e durante as experiências com a dança circular, a professora
comentava a participação de cada paciente, e disse que com esse conteúdo ela
percebeu uma maior aceitação dos sujeitos. Percebemos que houve uma melhora
nos aspectos motores, sociais, afetivos e cognitivos, nas atitudes entre eles. Com
isso, o respeito foi o ponto chave para trabalhar a diversidade cultural dos
internados, a partir da Dança Circular.

Figura 1 – Dança Circular

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).


28
Número de pacientes envolvidos perto dos estagiários e professora.
29
Pacientes sentados, apenas observando e fazendo gestos com a cabeça e pernas.

103
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Logo, a participação leva à compreensão de um ser que ocupa a


sociedade e, assim se comunica com as suas próprias habilidades, capacidades e
possibilidades do seu corpo, com a dança. Portanto, os aspectos motores, sociais,
emocionais e cognitivos foram observados como forma de experimentar o seu
corpo com as diversas maneiras de manifestações pertencentes ao patrimônio
cultural.
E o envolvimento dos pacientes com a dança foi estimulante, pois alguns
pacientes passaram a propor ideias para serem praticadas, como foi o caso com
a dança da cadeira a pedido de pacientes que estavam envolvidos com a
atividade. E nesse momento, aproveitamos para fazer um diálogo sobre o
passado, família e amigos. Nessa atividade a expressividade foi significativa,
pois, os sujeitos lembraram das suas infâncias, dizendo que a brincadeira da
dança da cadeira era presente naquele período, que brincavam com os irmãos,
primos e amigos na cidade onde moravam.

Figura 2 – Brincadeira da dança da cadeira

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

Percebemos que houve um trato do senso perceptivo - ritmo, com essa


dança utilizava gestos espontâneos; ocorre um desenvolvimento e melhoramento
na noção de espaço, forma e tempo, em relação a si e na convivência com o
outro. Dessa forma, a diversidade de expressão desenvolve atitudes não
discriminatórias, ocorrendo a integração social e patrimônio cultural -
conforme a música que estava sendo tocada.

104
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Assim, observamos como a memória foi estimulada por essas propostas,


seja por palavras como: “eu brincava disso quando era criança”; “minha irmã
não gostava de perder pra mim quando a gente fazia isso”, “eras, professora eu
tô muito feliz!” “quando vamos ter de novo dança circular ou dança da
cadeira?”.
Tais atitudes são relevantes para o resgate do paciente com problema
psicológico, momento no qual ele consegue observar o valor da família, os pais,
irmãos e familiares que vão visitá-los e os que estão torcendo pela sua melhora e
volta para a casa.

Figura 3 – Conteúdo Jogo

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

O dominó tem nível de complexidade, e se pode observar nessa prática,


atitudes e valores das pessoas que estão jogando, sendo extremamente positivo
para tentar diminuir o tempo de internação dos pacientes na Ala Psiquiátrica,
haja vista que as dificuldades de concentração, organização espaço temporal e
sociabilidade é forte dentro das pessoas com problemas psicológicos e esses
aspectos são fundamentais para a alta médica.
O fundamental nessa experiência é a descontração, diversão,
desenvolvimento pessoal e a interação social dos pacientes, para assim, ajudar
na melhora no quadro psicológico dos internados. Percebe-se que a coordenação
dos movimentos e o ritmo dos pacientes não permitem utilizar uma
complexidade de comandos, sendo um dos motivos, o nível de dosagem de

105
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

medicamentos a que são submetidos. E com a prática da Educação Física, a


dosagem de medicamentos pode diminuir, pois alguns sistemas podem ser
ativados, assim como os hormônios corporais.

Figura 3 – Conteúdo Esporte

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

Com isso, pode-se interpretar que além do conteúdo dança, o jogo e o


esporte são bons instrumentos a serem utilizado neste ambiente. Que possa
então, ser estudado em pesquisas futuras para que busque o melhoramento de
outros sujeitos com problemas psicológicos, nos aspectos sociais, afetivos e
cognitivos dos mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Deve-se compreender a importância do professor de Educação Física


nas Equipes Multiprofissionais para atuar em espaços não formais, como os
hospitais. E com isso, a necessidade de trazer propostas de vivências da cultura
corporal, a partir dos conteúdos da cultura corporal, jogo, esporte, dança,
ginástica, e em alguns casos, as lutas, pois as características de agressividade
são presentes nas pessoas com problemas psíquicos.
Com isso, a proposta da dança na perspectiva da cultura corporal, tendo
alcance nas Políticas Integradas Complementares norteou os aspectos sociais,
afetivos e cognitivos dos pacientes com problemas psicológicos. Dessa forma,
pode-se concluir que a dança circular juntamente com os outros conteúdos da

106
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Educação Física ajudaram a diminuir o tempo de internação dos sujeitos


internados e o mais importante, o respeito a diversidade cultural depois das
práticas propostas pelos pesquisadores na Ala Psiquiátrica do Hospital.

Dances and psychological diseases: one look at cultural diversity in a psychiatric ward
in Belem/PA

Abstract: This study reports what subjects experienced with Physical Education
contents in a psychiatric ward of a hospital. Its specific objective is to comprehend the
contribution of circular dance content for the social, emotional and cognitive aspects in
the treatment of psychological diseases patients. It is a field study, with a qualitative
approach, descriptive actions, based on the materialism historical and dialectical. As an
instrument for data collection and data analysis, it used observations, photographic
interpretations, and notes in the field diary. It concludes that circular dance along with
other contents aids to reduce the hospitalization time of the admitted patients in this
hospital, and the most important, the respect to the cultural diversity after the practices
proposed by the researchers.
Keywords: Circular Dance; Physical Education; Psychological Diseases.

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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108
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Diálogos sobre identidades de gênero e sexualidades: narrativas de


sujeito s descentrados e suas relações com a Educação Física Escolar30
Sérgio Melo da Cunha (UFRN) 31
Allyson Carvalho de Araújo (UFRN) 32

Resumo: Este estudo buscou expor as relações sociais e escolares, bem como as
compreensões do próprio corpo de dois alunos do Ensino Médio do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) – Campus Parnamirim,
utilizando-se das histórias orais coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas,
tendo uma abordagem qualitativa. A partir das falas coletadas, esta pesquisa tem o
objetivo de identificar a auto percepção de sujeitos descentrados sobre sua trajetória e
perceber as implicações de suas experiências no processo de educação escolarizada pelo
qual passam, bem como debater acerca dos vínculos afetivos desenvolvidos no âmbito
escolar. As entrevistas foram categorizadas em quatro aspectos: (I) social – a maneira
como a pessoa se enxerga; (II) familiar, esclarecendo suas relações no meio doméstico;
(III) escolar - construção de vínculos com colegas e professores; (IV) da Educação Física
– ligação e importância da disciplina no decorrer da trajetória colegial. O discurso dos
entrevistados se equivaleu em alguns pontos, como no fato de ambos terem sido expulsos
de casa ou quando relatam que não precisaram expor suas orientações sexuais. Da
mesma maneira que os dois citam o IFRN como local de ajuda no desenvolvimento e
afirmação de suas personalidades. Somado a isso, temos ainda as expressões orais que
remetem às aulas de Educação Física enquanto espaço de desconforto por suas
condições.
Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação Física escolar.

INTRODUÇÃO

O corpo, enquanto condição de existência, pode ser visto como uma


construção histórica da relação entre o sujeito e sua experiência vivida
(MERLEAU-PONTY apud MENDES; NÓBREGA, 2004). Após o parto, ao
deixarmos a segurança do útero, entramos em contato com o mundo de
experiências que ampliam cada vez mais nossa compreensão de si e do mundo,
mesmo compartilhando de muitas situações semelhantes a outros indivíduos,
nunca será igual a qualquer um desses. Emoções, pensamentos e experiências
enriquecerão este ser recém-formado durante o seu crescimento.

30
Este trabalho trata de um recorte de trabalho de conclusão de curso a ser apresentado
ao Departamento de Educação Física (DEF) da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), como requisito para conclusão da graduação de Licenciatura em
Educação Física.
31
Graduando em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN).
32
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail:
allyssoncarvalho@hotmail.com

109
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Não devemos fixar nossa atenção apenas no crescimento da estrutura


física, mas também necessitamos falar desse corpo enquanto fenômeno que é
passível de transformações no decorrer da vida, que surgem a partir do meio em
que o indivíduo está inserido. Ou seja, o corpo está posto em determinado
espaço, porém os aspectos culturais que este atravessará serão determinantes na
sua condição.
Sobre isto, Louro (2007) nos coloca que:

Problematizar a noção de que a construção social se faz sobre um


corpo significa colocar em questão a existência de um corpo a
priori, quer dizer, um corpo que existiria antes ou fora da cultura.
A identificação ou a nomeação de um corpo (feita no momento do
nascimento, ou mesmo antes, através de técnicas prospectivas) dá-
se, certamente, no contexto de uma cultura, por meio das linguagens
que essa cultura dispõe e, deve-se supor, é atravessada pelos valores
que tal cultura adota. (LOURO, 2007, p. 209).

O corpo, portanto, configura-se a partir de agenciamentos diversos da


cultura e transforma-se continuamente e, entre as diversas alterações pelas quais
passa, sejam elas hormonais, estéticas ou sobre qualquer outra perspectiva,
temos as mudanças relacionadas à composição da sexualidade de cada sujeito.
Quando uma criança nasce, o único aspecto que podemos identificar se
ancora no sistema binário sexual, ou seja, a presença do órgão sexual masculino
ou feminino. Contudo, essa identificação não necessariamente corresponde que
este se tornará homem (no caso de possuir o pênis) ou mulher (no caso de
possuir a vagina). Ou seja, o sexo biológico apenas determinará se você nasceu
macho, fêmea ou intersexual – que pode se manifestar de formas diferentes, seja
por conta de as gônadas apresentarem características intermediárias entre os
dois sexos, ou o aparelho genital não condizer com o tipo cromossômico. Esse
último ocorre quando há indeterminação do sexo biológico.
Dado naturalmente o amadurecimento em virtude da idade, o ser passa
a enxergar-se, identificando-se, a partir de tal momento, como menino ou
meninas e, posteriormente, homem ou mulher, seguindo o modelo binário que
tradicionalmente se retificou em nossas sociedades. É o que diz respeito à
identidade de gênero, que é entendida por Goellner (2009) como:

A condição social através da qual nos identificamos como

110
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado para


identificar as características anatômicas que diferenciam os homens
das mulheres, e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está
dado, mas é construído social e culturalmente e envolve um
conjunto de processos que vão marcando os corpos, a partir daquilo
que se identifica ser masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o
corpo é generificado, o que implica dizer que as marcas de gênero
inscrevem-se nele. (GOELLNER, 2009, p. 76-77).

Quando a autora nos fala de um corpo generificado, isso quer dizer que
o sexo biológico não é determinante para a identificação de gênero, haja vista
que os aspectos socioculturais que permeiam o cotidiano do indivíduo podem
interferir nas suas escolhas em diversas perspectivas, inclusive a sexual.
Ao chegar à pré-adolescência os sujeitos, em sua maioria, começam a
despertar seu lado afetivo. É nessa fase em que se descobre o corpo do outro e
reconhece qual daqueles os atraem sexualmente. Com isso, o indivíduo inclina-se
a sua orientação sexual. Se este se sente atraído por alguém do gênero oposto
chamamos de heterossexual, se for do mesmo gênero, homossexual. Contudo,
temos ainda os sujeitos bissexuais que se sentem atraídos por ambos os gêneros,
ou o registro dos assexuais que diz respeito às pessoas que não sentem atração
por nenhum gênero, mas vale ressaltar que ainda é uma sexualidade em
construção, e por fim os pansexuais que se atraem por pessoas, independente do
gênero ou sexualidade.
A ampliação das possibilidades de se compreender o campo da
sexualidade considera ainda que este conceito não corresponde apenas a atração
sexual, mas amplia-se para outros campos, como nos explica Goellner (2009):

Com relação à sexualidade, é importante considerá-la, tal como


explicita Jeffrey Weeks (1999), como algo que envolve uma série de
crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente
construídas e historicamente modeladas que permitem a homens e
mulheres viverem, de determinados modos, seus desejos e seus
prazeres corporais. (GOELLNER, 2009, p. 77).

Acerca do que foi abordado até este ponto, mesmo diante desta
pluralidade, ainda nos deparamos com situações minimamente
incompreensíveis. Apesar das diferenças que dizem respeito tanto à orientação
sexual, quanto à identidade de gênero, nenhum indivíduo pode ser excluído das
práticas sociais, incluindo as corporais e esportivas. No entanto, não seguir os

111
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

padrões heteronormativos impostos pela sociedade acaba fazendo com que os


atletas das mais diversas modalidades, em diversos níveis (escolar, amador e/ou
profissional) sofram ataques preconceituosos como forma de diminuí-los, à
revelia de sua competência.
Isto nos leva a refletir os seguintes questionamentos: como a sociedade
interage com o sujeito que não se adéqua ao modelo tradicional de identidade de
gênero e sexualidade? De que forma esse indivíduo encara as diversas
manifestações de preconceito? E, em se tratando de escola, até quando haverá
espaço para pensamentos regressistas?
Diante dos questionamentos, adentrando um pouco mais o âmbito
escolar e nos atentando às políticas públicas de educação, a cidade do Natal,
capital do Rio Grande do Norte, é uma das cidades brasileiras onde,
acompanhando um movimento nacional conservacionista, não é permitido aos
professores em sala de aula o uso dos termos “orientação sexual” e “gênero”,
segundo o Plano Municipal de Educação (PME) de 2016. O motivo, como
colocado à época pelos parlamentares responsáveis pela votação do PME e que
pode ser constatado em matéria do jornal potiguar Tribuna do Norte33, é que o
verdadeiro sentido da família tradicional não seja deturpado. Os parlamentares
locais reproduzem um discurso conservador que ecoa desde 2015 no Senado e no
Congresso Nacional, quando estes pressionaram para que fossem excluídos do
Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) os temas citados acima. Sobre
isso, em reportagem do portal online IG34, educadores classificaram o ato como
um retrocesso no sistema educacional brasileiro.
Por se tratar de algo enraizado socialmente e defendido politicamente, o
preconceito adentra os espaços escolares e faz suas vítimas, que não seja por
homicídio, mas através do bullying, das reclusões, entre outras formas de
cercear o sujeito descentrado.
A respeito deste termo, que a rigor não tem tradição nos campos da
educação e educação física, esclarece-se que é uma aproximação com a noção de
sujeito descentrado do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall. Hall (2006), ao

33
Disponível em: <http://blog.tribunadonorte.com.br/politicaemfoco/na-camara-de-
natal-vereadores-aprovam-retirada-de-termos-que-indicam-discussao-de-genero-nas-
escolas/>.
34
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-12-26/exclusao-de-
genero-do-plano-nacional-de-educacao-e-retrocesso-diz-educador.html>.

112
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

tecer comentários sobre a identidade do sujeito na pós-modernidade atenta para


um “duplo deslocamento do sujeito, tanto de seu lugar no mundo social e
cultural quanto de si mesmos, constituindo uma ‘crise de identidade’”.
Reservadas as proporções dos debates realizados na obra de Hall (2006) e em
nossos propósitos, entendemos que os sujeitos marginalizados socialmente por
exercerem identidades de gênero desviantes do padrão binário e sexualidades
que questionam a heteronormatividade também sofrem esse deslocamento de um
lugar no mundo social e cultural, bem como de si mesmos. Esses sujeitos que
necessitam compreender-se em um mundo que os alijam são os que chamamos
de sujeitos descentrados.
À vista das problemáticas apontadas, este estudo traz como questão
central: Como se desenvolvem os relacionamentos dos sujeitos descentrados
consigo, enquanto indivíduos “em construção”, com a comunidade escolar como
um todo e, especificamente, nas aulas de Educação Física?
Buscando elucidar tal questionamento, este trabalho tem como objetivo
geral, identificar a auto percepção dos sujeitos descentrados sobre sua trajetória
e perceber as implicações de suas experiências no processo de educação
escolarizada pelo qual passam. Tendo ainda os seguintes objetivos específicos:
(a) expor como as dificuldades de relacionamentos (de si para si, e com os
demais) enfrentadas por uma pessoa em formação (principalmente psicológica)
interfere em seu cotidiano; (b) relatar o contexto histórico da esfera escolar
vivido pelo indivíduo; e (c) discutir os vínculos afetivos e sociais no contexto
das aulas de Educação Física, seja com os colegas ou com os professores da
disciplina.
A pesquisa é justificada por três enfoques distintos, além do pessoal já
exposto, o acadêmico-científico, tendo em vista que, dando-se a temática, há
uma produção de conhecimento limitada na Educação Física. E, por fim, a
terceira justificativa é a social, pois apesar de tratar-se de um lugar-comum em
diversos espaços de diálogo, o assunto “gênero e sexualidade” ainda leva pessoas
a cometerem alguns equívocos relacionados às suas terminologias. Por isso,
temos a intenção de esclarecer cada uma delas, bem como discutir o preconceito
presente no cotidiano escolar.

113
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

BASEADO EM HISTÓRIAS ORAIS

Na busca por narrativas que deponham sobre o tema, este estudo se


reconhece como de cunho qualitativo, utilizando-se da história oral como
método de pesquisa. Sobre a pesquisa qualitativa, Minayo (2001) defende que
esta lida com aspectos que se diversificam entre os sujeitos, acarretando em
uma discussão mais profunda das relações, dos processos e dos fenômenos que
não se resumem à operacionalização de variáveis.
Já de acordo com Alberti (1989), a história oral refere-se a um método
de pesquisa que se apoia em entrevistas com sujeitos que participaram ou
testemunharam acontecimentos a fim de aproximar-se do objeto de estudo. É
importante ressaltar, em concordância com Silva e Barros (2010), que a verdade
não é absoluta, não há itinerário coeso, e sim a versão particular de sentimentos
e acontecimentos históricos narrados por uma a pessoa.
Independentemente de haver críticas direcionadas à subjetividade da
história oral enquanto método de pesquisa, é válido reconhecê-la como, diversas
vezes, única maneira de acessar determinados fatos significativos para o
desenvolvimento do trabalho do pesquisador.
Durante a pesquisa qualitativa julgamos de suma importância o
trabalho de campo, ou seja, o fato de estar no meio em que o fenômeno acontece.
Sobre este fato Minayo (1994) afirma que o estudo não deve ser ponderado sem
que haja a presença do pesquisador no campo. O campo corresponde ao recorte
espacial que contém, de maneira empírica, a compreensão do recorte teórico
correspondente ao objeto da investigação. A interação sujeito-pesquisador com
o objeto de estudo, bem como as relações de intersubjetividade envoltas, são
essenciais para que se resulte conflito entre a realidade concreta e as hipóteses
teóricas. Romanelli (1998) enfatiza:

A subjetividade, elemento constitutivo da alteridade presente na


relação entre sujeitos, não pode ser expulsa, nem evitada, mas deve
ser admitida e explicitada e, assim, controlada pelos recursos
teóricos e metodológicos do pesquisador, vale dizer, da experiência
que ele, lentamente, vai adquirindo no trabalho de campo.
(ROMANELLI, 1998, p. 128).

No instante em que a pesquisa qualitativa se utiliza da fonte oral, na


busca por significados de multíplices aspectos do indivíduo (sociais,

114
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

profissionais, familiares, além de outros), é viável se aproximar da realidade


apoiado na concepção atribuída pelo pesquisado. Ademais, é admitida a escolha
de um quantitativo baixo de sujeitos, sob a condição de que os escolhidos
contribuirão para cumprimento dos objetivos do estudo (MARTINELLI, 2003,
p. 23-24). Com base nestes pressupostos, o trabalho que ora se apresenta reúne
discursos colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas com 02 (dois)
alunos do Ensino Médio do IFRN – Campus Parnamirim, com 19 e 20 anos de
idade.
O critério de escolha de tal amostra foi intencional. Considerando que
estar imerso no cotidiano escolar sempre nos leva a conhecer e presenciar a
espontaneidade dos alunos, foi determinante na escolha dos sujeitos da pesquisa
o fato da instituição de ensino dos entrevistados ser também nosso campo de
intervenção de estágio docente. Assim sendo, os dois alunos que compõem nossa
amostra de pesquisa foram selecionados por se tratarem de pessoas com
participação ativa nos movimentos estudantis da instituição de ensino, bem
como também o fato de se enquadrarem no conceito de descentramento tratado
anteriormente.
A história oral requer, como várias outras metodologias, o uso de
ferramentas e técnicas para a captação das fontes orais. Como falado
anteriormente, esta pesquisa aplicou entrevistas semiestruturadas que

Possibilitam a utilização de um roteiro com questões previamente


definidas, e acréscimo de novas perguntas na medida da
necessidade. Assim, pode-se esclarecer o que ficou duvidoso ou
auxiliar na recondução dos objetivos, caso o entrevistado tenha
“fugido” do assunto em pauta ou esteja com dificuldades. (BONI
apud BRISOLA; MARCONDES, 2011, p. 129).

E ainda, estas

Contribuem para a delimitação do volume das informações,


proporcionando alcance dos objetivos de forma mais eficaz, ao
mesmo tempo em que possibilita que a coleta de dados ocorra num
clima semelhante ao de uma conversa informal. Assim, o sujeito a
ser pesquisado terá liberdade para descrever realidades referentes ao
seu cotidiano, bem como explicá-lo situando-o dentro do contexto
relacionado ao tema da pesquisa. (BONI apud BRISOLA;
MARCONDES, 2011, p. 129).

115
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

As entrevistas foram gravadas mediante autorização das concedentes, e


ocorreram em datas previamente definidas entre o pesquisador e os alunos. As
conversas foram encaminhadas às discussões de gênero, como orientação sexual,
representatividade perante a sociedade, entendimento do corpo, entre outros,
além de relacionar os fatos com o contexto das aulas de Educação Física.
Este trabalho procurou refletir as manifestações das falas dos alunos
durante as entrevistas, que expuseram particularidades contidas nas
experiências diárias desses sujeitos. Originando-se dessa concepção
organizamos os discursos colhidos em quatro aspectos: (I) social, enfatizando
como os sujeitos se enxergam; (II) familiar, ilustrando as experiências (não)
vividas do meio doméstico; (III) escolar, relatar os vínculos afetivos
desenvolvidos durante o histórico acadêmico dos indivíduos; e (IV) da Educação
Física, explicitando a relevância ou não da disciplina no processo de construção
e afirmação de suas personalidades.

A VISTA DOS ENTREVISTADOS

As entrevistas foram realizadas na instituição de ensino dos alunos, em


uma sala reservada, apenas com a presença do pesquisador e do entrevistado. Os
participantes foram informados de sua liberdade em responder ou não aos
questionamentos. A partir desse ponto do nosso trabalho, os sujeitos foram
identificados como entrevistados A e B, para fins de preservação da identidade.
Os áudios capturados têm duração de dez minutos e três segundos e, treze
minutos e trinta e três segundos, respectivamente.

Aspectos Sociais
Enxergar-se como sujeito descentrado, mesmo não sabendo a
significância do termo, não foi tarefa simples para esses alunos, pois era
necessário que se entendesse a pluralidade de elementos que poderia adentrar
esse corpo, como nos mostra Goellner (2008) quando diz que

Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do


que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o
corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as
intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as
máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam,

116
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

os silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a


educação de seus gestos... enfim, é um sem limite de possibilidades
sempre reinventadas, sempre à descoberta e a serem descobertas.
Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem, mas
fundamentalmente os significados culturais e sociais que a ele se
atribuem. (GOELLNER, 2008, p. 28).

O extrapolar do código binário, tributário de uma visão biologicista de


corpo que restringe a experiência dos sujeitos aos discursos da diferença sexual
naturalizada foi de forma muito contundente questionada pelo entrevistado A,
que abraça a diversidade e a vive corriqueiramente quando fala que:

Eu sou uma pessoa assim [...], hoje eu quero estar de menina, eu vou
me vestir de menina. Hoje eu quero me vestir de roupas que as
pessoas possam me adequar ao gênero masculino, eu vou me vestir
assim.

Não se isentando dos embates sociais que suas atitudes implicam, o


sujeito transparece transitar entre identidades tradicionalmente dicotômicas, o
que gera estranheza social. Contudo, para compreender a situação como normal

É necessário, de antemão, rejeitar os rótulos que aprisionam,


engessam e fixam o sujeito, enredando-o em representações que o
nomeiam como feio ou bonito, apto ou inapto, saudável ou doente,
normal ou desviante, masculino ou feminino, heterossexual ou
homossexual. (GOELLNER, 2009, p. 78).

Diante das colocações depostas por ambos entrevistados, percebemos a


impossibilidade de rotular os corpos de forma simplista, validando assim
Chaves e Araújo (2015) que julgam necessário a ruptura da identidade fixa,
principalmente atrelada aos binarismos.
A respeito de suas sexualidades, apenas o entrevistado B declara sua
orientação, afirmando-a como bissexual. Este sujeito, contudo, tenciona sua
afirmação ao alertar que “Até mesmo para quem é desse gênero [sic]35 sente essa
dificuldade de se assumir.”
Isso porque, “As pessoas identificam ele, como sendo uma indecisão.”
Já o entrevistado A não fala em nenhum momento ser homossexual,
contudo afirma que “Sempre fui diferente.”
35
Nota de esclarecimento: O termo “bissexual” não diz respeito ao gênero, mas sim à
orientação sexual. Neste caso houve transcrição fiel à fala do entrevistado.

117
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A diferença emerge como elemento intrigante na fala do entrevistado


ou, na verdade, como elemento disjuntivo na expectativa social que investe ao
homem a narrativa do masculino heterossexual como pré-concebida e, portanto,
justificando o “ser diferente”, o deslocamento desta expectativa social. O mesmo
entrevistado ao ser perguntado se precisou comunicar à família sua
homossexualidade, este respondeu que “- não, mas com certeza eles já sabem”.
Isso nos leva à segunda categoria.

Aspectos Familiares
Para os indivíduos que vivem fora dos padrões heteronormativos e
convivem com relações pouco acolhedoras em diversos espaços sociais, imagina-
se que encontrariam a segurança e laços afetivos no seio familiar. Contudo, a
realidade relatada por nossos entrevistados é um tanto distintiva desta
expectativa.
Muitas vezes esses sujeitos, à margem da sociedade e do acolhimento
familiar, correm riscos severos nas ruas pelo simples fato de serem quem são.
Pensar que o fato de sair à noite, para esses sujeitos, é uma prática perigosa é
desvelar uma realidade cruel para os sujeitos descentrados. Especialmente
quando falamos do Brasil, que, segundo notícia do periódico Estado de Minas, é
o país que mais mata travestis e transexuais36, dados da Rede Nacional de
Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), e sendo a quinta maior taxa de
feminicídio37, segundo os números da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Para além dos fatos noticiados, as falas dos entrevistados corroboram
com a cena pouco animadora. O entrevistado A relata que “Atualmente eu fui
expulso de casa [...] pelo meu pai. Ele não aceitou. Então eu tive que sair.”
A aceitação referida pelo sujeito é atrelada à identidade de gênero e
sexualidade exercida pelo aluno. Enquanto desviante da expectativa, o sujeito se
percebe à mercê do julgamento e aceitabilidade do outro, neste caso, membros
da família.
Já o sujeito B voltou a morar com os pais, mas confessa que a mãe
36
Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especial-
dandara,852965/brasil-e-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml>.
37
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-
mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/>.

118
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Não quis entender, me colocou para fora de casa, eu tive que morar
com meu tio por dois meses, porque eles não queriam estabelecer
contato com uma pessoa que não estava de acordo com o modo de
vida deles [...]. Eles viam isso como doença.

As considerações do entrevistado remontam ao processo de


patologização de papéis de gênero e de condutas sexuais (FACCHINI;
FERREIRA, 2013) tributárias do discurso médico e que foram incorporados de
forma não reflexiva em diversos espaços sociais.
Pelo fato de ter retornado ao convívio dos pais, o entrevistado B foi
inquirido se a relação havia se normalizado. Ele respondeu que não havia
diálogo. Em suas palavras: “Eu saio de casa de sete horas da manhã, chego em
casa de oito da noite, já cansado vou me deitar. Isso tem se tornado um ciclo .”
Porém, tem convicção que a falta de conversa com aqueles que o rodeia
faz falta. O entrevistado complementa, dizendo: “Faz falta porque eu acho que
com diálogo a gente consegue resolver as coisas de um modo mais harmonioso. ”
Sob as circunstâncias apresentadas, os sujeitos passam a buscar a
compensação afetiva em outros ambientes, no convívio com outras pessoas que
os entendam. Para ilustrar isso trazemos uma fala do entrevistado A, que diz
que “Minha família são as pessoas que realmente me aceitam como eu sou.”
E nos casos desses alunos, essas pessoas estão na escola, o que nos leva à
próxima categoria.

Aspectos escolares
Atualmente, os participantes deste estudo estão rodeados por colegas
acadêmicos que os entendem e os aceitam, mesmo que com reservas oriundas de
um distanciamento da expectativa social. Todavia, essa é uma realidade ainda
nova, haja vista que na história de vida de nossos entrevistados habitam
passagens por escolas menores e no interior do estado do Rio Grande do Norte,
onde os pensamentos retrógrados e tradicionalistas ainda dominam as
discussões.
Como os estudantes relatam, o início de suas trajetórias acadêmicas foi
mais conturbado, pelo fato de ainda não se reconhecerem enquanto sujeitos
descentrados – percebiam-se diferentes, porém não entendiam o que se passava.
Ao comentar um ato preconceituoso sofrido no ensino fundamental, quando um

119
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

colega de escola se dirigiu ao entrevistado e disse que “– aquele não era o


banheiro que ele deveria entrar ”, o entrevistado B justifica seu destaque a este
episódio em sua vida, dizendo que “ Esse comentário dele me doeu mais porque
eu não tinha certeza do que eu gostava [...] a personalidade estava se formando.”
Do mesmo modo que o entrevistado A menciona, que

Como eu era muito besta, não entendia nada desse negócio de


gênero, essas coisas, e as pessoas também não tinham conhecimento
sobre isso, acabava muitas vezes os meninos tirando onda comigo,
porque eu tinha os meus trejeitos e por eles não conhecerem
exatamente, por eles acharem aquilo diferente do que era para ser,
eles acabavam tirando onda, mexendo comigo. Batiam em mim,
mexiam comigo, era uma coisa muito complicada.

Nessas falas, percebe-se que os recursos de agressões físicas, verbais ou


psicológicas, constituem-se como mecanismos comuns da negação da norma
heterocentrada e binária.
Com o ingresso no IFRN, temos a primeira disparidade nos discursos.
Enquanto que para o entrevistado B, o Instituto serviu como ambiente de
esclarecimento acerca da normalidade dos seus sentimentos e orientação, para o
entrevistado A, originou-se uma marca traumática. Este nos conta que foi ao
banheiro e um outro aluno jogou uma bolinha de papel molhada de urina, isso o
levou a ter receio de entrar no local, quando o mesmo está com outras pessoas.

Eu espero. Eu não sei o que é isso, por mais que seja “ah, é um
menino de boas”, mas eu não entro. Eu acho que eu já tenho no
psicológico “eu vou entrar e eles vão aprontar alguma coisa”. Eu
espero todos saírem.

Aspectos da Educação Física


A Educação Física é um componente curricular que, a depender da
maneira que é abordada, adiciona à formação do cidadão fatores éticos, morais
e estéticos, evidenciando princípios humanistas e democráticos. Com isso, os
profissionais da área devem contribuir para a superação da violência e das
discriminações, físicas ou psicológicas, que deixam marcas por vezes
irreversíveis. (CHAVES, 2006)
Quando questionados sobre a presença da Educação Física durante o
curso de suas mudanças físicas e psicológicas, os participantes da pesquisa

120
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

afirmaram que desde o ensino fundamental estão envolvidos nas práticas da


disciplina, porém fazendo algumas ressalvas. O entrevistado B nos dá exemplo
disso, quando relata que durante os anos finais do nível fundamental, sua escola
não possuía local apropriado às aulas, o que fazia com que ele e seus colegas
tivessem que se deslocar de ônibus até o ginásio mais próximo.
Durante as indagações quanto às aulas de Educação Física, tivemos
discursos homogêneos. Ambos confessaram que os professores sempre os
trataram com respeito e sem distinção. E em momentos que seus colegas de
turma ensaiavam algum tipo de ato preconceituoso, o profissional tinha a
atitude de cessar as ações.
Contudo, provavelmente devido à insegurança resultante do fato de
encontrar-se às margens dos padrões sociais exigidos, o entrevistado A nos
expõe um discurso de dúvida, ao afirmar que era tratado de maneira diferente
dos demais, durante as aulas e após o pesquisador perguntá-lo se o tratamento
distinto que recebia vinha dos colegas ou do professor, ele diz “Pelos professores
não. [...] Mesmo se eles tivessem um certo preconceito eles tinham que pelo
menos tratar o aluno educadamente.”
Percebemos no discurso que não há convicção por parte do aluno acerca
da posição do professor. Ou seja, não há segurança por parte do entrevistado em
recorrer ao profissional em casos de desrespeito pela sua condição, haja vista
que aquele não confia no posicionamento deste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi abordado e exposto neste trabalho pensamos que,


mesmo a passos curtos, estamos caminhando a uma sociedade mais igualitária.
No entanto, viver em um país que é comprovadamente o que mais mata a
população LGBT, e o quinto que assassina mais mulheres, deve nos deixar ainda
em alerta.
Constatamos que o conhecimento do próprio corpo ainda é algo
desafiador a todos os seres; entender que o meio sociocultural em que estamos
inseridos é diretamente ativo na nossa construção, seja nos aspectos físicos,
intelectuais e sexuais. E ainda, compreender que nosso sexo biológico, nossa
identidade de gênero, ou nossa orientação sexual não são escolhas, são
transformações do nosso corpo.

121
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Reconhecemos, através das falas dos alunos, a importância dos laços


afetivos no período de descobertas do sujeito descentrado. Em diversos casos,
incluindo os dois relatados nesta pesquisa, o indivíduo não recebe o apoio no
meio doméstico, transformando aquele lugar em mais um onde ele não se sente
seguro. A partir disso, inicia-se a procura por um ambiente em que esse corpo
possa ser quem deseja.
Diante dos discursos coletados, vemos que os sujeitos percebem suas
trajetórias de transformações psicossociais finalizadas, tendo completa
convicção daquilo que são. Estes foram capazes de demonstrar em suas falas de
que forma suas condições sexuais desencadearam experiências afetivas,
positivas ou não, nos âmbitos familiar, social e escolar, respondendo assim as
proposições gerais desse escrito.
Até então, inferimos que a escola ainda é local propício à prática do
bullying. A começar do momento em que um aluno não é escolhido para uma
atividade “masculina”, por conta de seus trejeitos afeminados, neste ponto já
iniciou o preconceito. Por isso, a importância de se fazer um acompanhamento
por parte do corpo docente e gestores.
Já acerca da Educação Física, compreendemos que os profissionais da
área podem ser mais próximos desses alunos que se encontram à margem da
heteronormatividade, ajudando no conhecimento sobre o corpo e com o
desenvolvimento de atividades inclusivas, ou seja, que não reforcem os padrões
de masculinidade e feminilidade.
Por fim, temos convicção que o estudo poderia ser mais direcionado aos
fazeres pedagógicos da Educação Física, contudo vimos aqui a necessidade de se
discutir de que forma a sociedade, a família e a escola lidam com um sujeito
descentrado e o seu corpo em transformação.

Dialogues about gender identities and sexuality: narratives of uncentered subjects and
its relations with School Physical Education

Abstract: This study aimed to expose the social and school relationships, as well as the
understandings of two students about their own body. These students are from the High
School of Federal Institute of Education, Science, and Technology of Rio Grande do
Norte (IFRN) - Campus Parnamirim. It used oral histories collected through semi-
structured interviews, therefore having a qualitative approach. Considering the
collected speeches, this research has as objective to identify the self-perception of
uncentered subjects about their own trajectory and to notice the implications of their
experiences in the education process they faced, as well as to discuss emotive bonds

122
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

developed in the school context. The interviews were classified into four aspects: (I)
social – the way the person sees her or himself; (II) family, explaining their relationships
in the domestic area; (III) school – construction of bonds with friends and teachers; (IV)
Physical education – connection and importance of the course during the school path.
The interviewees' speeches were similar in some parts, such as the fact they were both
expelled from their houses or when they affirm they didn't need to expose their sexual
orientations. The same way the two mention IFRN as a place of help in the development
and affirmation of their personalities. In addition, we still have the oral expressions that
send to the Physical Education classes like a space of discomfort for their conditions.
Keywords: Gender. Sexuality. School Physical Education.

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124
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Gênero, sexualidade e currículo na formação de professores38 de


Educação Física em Instituições Federais de Ensino Superior
na região Amazônica
Angelo de Aguiar Pegorett (UEPA) 39
Antonio Hugo Moreira de Brito Junior (UEPA) 40

Resumo: Este artigo é resultado das discussões e estudos desenvolvidos pelo Grupo de
Pesquisa Ressignificar – Conceição do Araguaia a respeito da intervenção docente em
educação física no que tange aos temas gênero e sexualidade. A investigação realizada
objetivou analisar a presença dos referidos temas nos currículos dos Cursos de formação
de professores de Educação Física em Instituições de Ensino Superior (IFES) da Região
Amazônica. A pesquisa caracterizou-se como documental, tendo em vista a adoção,
como fontes de informação, os currículos dos 19 Cursos de Educação Física das IEFS no
contexto supracitado. Neste estudo concluímos que os temas gênero e sexualidade não
são incorporado pela maioria dos currículos dos Cursos de Educação Física da IFES,
principalmente quando consideramos as ementas das disciplinas. Nos currículos que
apresentam os descritores gêneros e sexualidade, observamos determinada polarização
entre a área do conhecimento das Ciências humanas que concentra as disciplinas que
incorporam o referido tema e as demais áreas que carecem desta aproximação.
Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Currículo. Formação de Professores de Educação
Física.

INTRODUÇÃO

As discussões em torno dos temas gênero e sexualidade tem ganhado a


cena nos últimos anos, principalmente na área da educação, com o avanço da
produção do conhecimento sobre o assunto, com as iniciativas, mesmo que
pontuais, de inclusão desta pauta em políticas públicas educacionais, assim
como pela luta travada pelos movimentos sociais, especialmente os das mulheres
e LGBTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), em busca da
garantia e conquista de direitos.
No entanto, se por um lado este destaque é um fato, por outro o cenário
38
Assumimos, para efeito deste estudo, a posição que considera a formação profissional
em Educação Física no Brasil, a partir da identidade epistemológica da ação
desenvolvida nos diferentes campos de trabalho, isto é, a docência expressa pelo
trabalho pedagógico com os temas da cultura corporal nos diferentes ambientes
educacionais (escolares e não-escolares). Neste sentido, optamos por não desconsiderar
os Cursos de Bacharelado em Educação Física, tendo a vista a compreensão que a
natureza da intervenção profissional dos egressos destes cursos nos ambientes
educacionais não-escolares, queiramos ou não, é mediada pelo trabalho pedagógico com
as práticas corporais.
39
Graduando em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
angelopegorett@gmail.com
40
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professor da
Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: hugobritojr@hotmail.com

125
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

de crise estrutural do capital e acirramento da luta de classes, tem evidenciado


de maneira cada vez mais intensa as disputas entre diferentes projetos de
educação e sociedade.
No Brasil, o governo lança mão de reformas no intuito da intensificação
da exploração dos trabalhadores e, portanto, dos profissionais da educação. Tal
assertiva é evidenciada quando consideramos: 1) a Emenda Constitucional n. 95
que congela os investimentos na educação por 20 anos; 2) a Medida Provisória
n. 746 (“Novo” Ensino Médio) que promove o aligeiramento da formação neste
nível de ensino; 3) a proposição de uma Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) que visa homogeneizar os currículos, bem como suprime as expressões
“identidade de gênero” e “orientação sexual” de sua versão final; 4) o avanço do
Projeto Escola Sem Partido que ataca o pluralismo de ideias e concepções
pedagógicas, bem como veda aos professores abordarem questões sobre
identidade de gênero e orientação sexual em instituições de ensino e; 5) a lei das
terceirizações, a reforma trabalhista e o avanço da reforma da previdência.
Neste sentido, as mudanças em curso nas políticas educacionais expressam
tendências que ratificam a opressão como mecanismo da exploração das
mulheres e LGBTTs no mundo do trabalho.
Não obstante a estes fatos, acrescentam-se as diversas situações por que
passam mulheres e LGBTTs em decorrência da ideologia do machismo e da
LGBTTfobia que impera nos diferentes âmbitos, seja na escola, nos ambientes
de trabalho, nos espaços públicos e/ou no próprio seio familiar. De acordo com
a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil possui a 5ª maior taxa de
feminicídio do mundo e, segundo a Associação nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA) é o país em que mais se mata travestis e transexuais no
mundo.
Neste contexto, a formação de professores de Educação Física não se
encontra imune a dinâmica complexa e contraditória da realidade social,
política e econômica brasileira. Vários são os questionamentos que emergem
quando buscamos realizar reflexões a partir da Educação Física, como: de que
maneira os professores desta área estão intervindo no que tange às questões de
gênero e sexualidade? Como os Cursos de Educação Física em Instituições de
Ensino Superior têm assimilado este cenário? Que papel tem assumido a
formação dos professores nesta área?

126
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Das indagações levantadas, uma nos chamou a atenção, qual seja, aquela
relacionada à formação dos professores, culminando na delimitação da seguinte
pergunta-problema: Como os currículos dos Cursos de formação de professores
de Educação Física em IFES da Região amazônica, têm se apropriado dos temas
gênero e/ou sexualidade?
Perspectivando encontrar respostas a este problema, a pesquisa de
caráter documental, foi desenvolvida seguindo a mesma lógica pela qual
organizamos este trabalho. Inicialmente buscamos apreender o objeto
considerando o que até então havia sido produzido sobre o assunto,
principalmente em relação aos entendimentos do gênero e sexualidade como
categorias históricas, bem como da Educação Física como prática social
específica situada no âmbito da ação pedagógica. Num segundo momento,
pretendemos discorrer sobre gênero, sexualidade e formação de professores de
Educação Física, com enfoque no papel desta última na reprodução e/ou
transformação das relações estabelecidas socialmente, particularmente por meio
das práticas corporais, tendo em vista as dimensões de gênero e sexualidade. Por
fim, apresentamos os dados e análises dos currículos dos Cursos de Educação
Física da IFES existentes na Região Amazônica.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM DEBATE NECESSÁRIO: EDUCAÇÃO FÍSICA,


GÊNERO E SEXUALIDADE

A fim de situarmos de onde nos pronunciamos, buscamos aqui,


delimitar o enfoque teórico pelo qual escolhemos abordar o tema Educação
Física, gênero e sexualidade, a fim de contribuirmos para a tomada de
consciência das ideias que nos orientaram no desenvolvimento deste estudo.
Nesta direção, adotamos a compreensão de Educação Física como sendo
uma prática pedagógica que tematiza os elementos da cultura corporal, sendo
estes o jogo, a dança, a luta, o esporte e a ginástica. Tais elementos,
compreendem parte do acervo cultural de representações de mundo que o
homem produziu e, portanto, são historicamente criados, culturalmente
desenvolvidos e exteriorizados pela expressão corporal. Como prática
pedagógica, a Educação Física assume o caráter de ação intencional, que não é
destituída de pensamento, sendo algo que emerge de uma necessidade social no

127
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

plano da realidade concreta com o intento de se atingir um objetivo (SOARES


et al., 2009).
Pensarmos a cultura corporal como conhecimento tratado
historicamente e pedagogicamente pela Educação Física, impõem-nos o desafio
da assimilação da cultura como um fenômeno humano que possui sua gênese e
desenvolvimento no seio das relações estabelecidas com o mundo ao nosso
entorno, com o objetivo de satisfação de nossas necessidades, dentre as quais, a
própria produção de nossas existências.
Neste processo pelo qual nos produzimos como humanos e ao qual Marx
denomina de trabalho, são desenvolvidos sentidos e significados que norteiam as
próprias relações sociais estabelecidas, dentre as quais, situam-se as relações de
Gênero e sexualidade. Segundo Safiotti (2004), Gênero é compreendido como
categoria histórica, podendo esta ser percebida sob diferentes aspectos, dentre
os quais:

Como aparelho semiótico (Lauretis, 1987); como símbolos culturais


evocadores de representações conceitos normativos como grade de
interpretação de significados, organizações e instituições sociais,
identidade subjetiva (Scott, 1988); como divisões e atribuições
assimétricas de características e potencialidades (Flax, 1987); como,
numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não apenas
homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações
mulher-mulher (Saffioti, 1992, 1997b; Saffioti e Almeida, 1995) etc.
(SAFFIOTI, 2004, p. 44).

A autora afirma ainda, que as ênfases variam no entendimento desta


categoria histórica, porém, mesmo com limitações, percebe-se um espaço de
consenso, isto é, o gênero como sendo a construção social do masculino e do
feminino (SAFFIOTI, 2004). Tal entendimento, perpassa não apenas o âmbito
cultural, mas também o econômico, quando relacionado ao trabalho, como bem
afirma Engels (2012) ao discorrer sobre a divisão do trabalho entre o homem e a
mulher, evidenciando as responsabilidades atribuídas, a partir do papel
socialmente assumido pelos diferentes gêneros, no modo de produção.
É fundamental, porém, que entendamos que o conceito de gênero não
explicita ou fundamenta as desigualdades entre homens e mulheres, como
também afirma Safiotti (2004), a ideia, aqui defendida, perpassa
fundamentalmente as construções sociais que, simultaneamente, determinam e
são sancionadas pelas atribuições aos diferentes sexos no convívio em

128
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sociedade. Portanto, podemos entender gênero como um produto social, que


condiciona e é condicionado pelas relações e instituições sociais estabelecidas
em uma sociedade, como a família, religião, estado, etc. Entretanto, precisamos
ter em mente que essas instituições são diretamente condicionadas pelas
relações de produção dessa mesma sociedade, tendo em vista a maneira como o
homem produz e se apropria de bens e riquezas.
Se de um lado, compreendemos o gênero como a construção social que se
efetiva em torno dos sexos: feminino e masculino, no que tange à sexualidade,
partiremos das reflexões de Bona Júnior (2012), que baseado nos estudos
ontológicos de Lukács, discorre sobre a significação desta como uma dimensão
do ser humano social, cultural e historicamente construído, compreendendo-a
como a forma que o ser humano se relaciona com os outros e consigo mesmo.
Nas palavras de Bona Júnior (2012) observamos:

A natureza primeira do ser humano situa-se no nível orgânico do


ser. A cultura situa-se no nível social do ser. O corpo, lugar da
sexualidade, está marcado por esses dois níveis e é, por assim dizer,
a ligação entre ambos. Isto significa que corpo e a sexualidade são
compostos ou participam de duas realidades: o primeiro em relação
à natureza e a cultura e a segunda em relação à sociedade e o
indivíduo. Assim, a autêntica sexualidade deve partir da vivência
autônoma da corporeidade do indivíduo, nesse construir-se humano
com a natureza, com a cultura, com a sociedade e consigo mesmo
por meio do trabalho e do fazer-se sujeito. Em outras palavras, é
pela sexualidade que o ser humano se relaciona com os outros e, por
extensão, consigo mesmo. Ela é a ponte, estabelecida entre o
indivíduo e a sociedade, que possibilita o ir e vir dialético da
construção da personalidade; é o “lugar” da relação que, nos atos de
trabalho, constrói a subjetividade. (BONA JÚNIOR, 2012, p. 39).

Assim, temos a sexualidade também compreendida como um construto


social, porém, não desligada da dimensão biológica do ser humano, da
corporeidade, do corpo orgânico. Partindo deste pressuposto, “a sexualidade é
uma função que aparece sempre naturalmente fundada, mas se sociabiliza no
decurso da humanidade” (BONA JÚNIOR, 2012, p. 41). Portanto, “O homem
nunca é, de um lado, essência humana, social, e de outro, pertencente à
natureza; sua humanização, sua sociabilização não significa uma clivagem de
seu ser em espírito (alma) e corpo” (LUKÁCS, 2010 apud BONA JÚNIOR,
2012, p. 41).
Dessa forma, é necessário que possamos compreender as dimensões

129
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sociais e orgânicas do ser humano em conjunto, visto que uma exerce influência
sobre a outra. Quando partimos de uma concepção dialética do homem, onde
suas dimensões são historicamente conflitadas, podemos compreender as
construções e variações sociais das culturas e sociedades.
Adotamos, portanto, o entendimento de que o gênero é a construção
social em torno do sexo e, a sexualidade é

[...] uma dimensão inalienável do ser humano, que parte da condição


sexual – que é biológica – mas a transcende no decorrer da
constituição das relações sociais, tornando-se essencial na
construção da subjetividade e na formação plena do indivíduo
enquanto ser social. (BONA JÚNIOR, 2012, p. 19).

A Educação Física, enquanto uma prática pedagógica, isto é, ação


deliberada que tematiza elementos da cultura corporal, elementos estes
concebidos como formas de representação do mundo que os seres humanos
constroem, não se encontra imune aos condicionantes que reproduzem e/ou
rompem com as relações sociais hegemônicas (inclusive as pautadas sob o
gênero e a sexualidade) em determinado contexto histórico.
Tais compreensões, quando relacionadas ao trabalho pedagógico com os
jogos, os esportes, as danças, as ginásticas e as lutas no contexto educacional,
frequentemente manifestam-se carregadas de construtos sociais que se
conformam e/ou se confrontam com as ideologias que sustentam as relações de
gênero e sexualidade hegemônicas na sociedade do capital.
Muitas têm sido as situações e experiências na Educação Física em que
observamos a primazia de concepções que naturalizam determinadas práticas
corporais como exclusividade do gênero masculino, e outras como sendo
próprias ao gênero feminino. Quando indivíduos identificados com o gênero
não condizente socialmente atribuído a determinada prática corporal, a
sexualidade é frequentemente posta em suspeita, haja vista também os
estereótipos socialmente construídos na associação entre gênero e sexualidade
que desconsideram a diversidade no modo como os seres humanos usufruem a
própria sexualidade.
Reis (2015), ao apresentar estudo sobre a homofobia no ambiente
educacional, afirma que:

[...] ainda vivemos numa sociedade heteronormativa, na qual desde a

130
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

infância o gênero já determina o comportamento social e sexual que


se quer de uma pessoa do sexo masculino ou feminino. A norma é
ser heterossexual e cumprir os papéis social e culturalmente
atribuídos aos gêneros. A pressão existe para se conformar a esta
norma, mesmo quando a vontade, a orientação sexual e/ou
identidade de gênero da pessoa seja outra. (REIS, 2015, p. 49).

Em uma sociedade onde a sexualidade humana é hegemonicamente


orientada pela heteronormatividade, podemos compreender isso da seguinte
forma: Gênero masculino se relaciona com o Gênero feminino e vice-versa, da
mesma forma que o futebol e o balé como elementos da cultura corporal, são
socialmente associados ao gênero masculino e feminino, respectivamente.
Qualquer variação manifestada neste padrão entra em confronto com o
socialmente construído.
O que ocorre é um processo de generificação das práticas corporais,
entendido como a interpretação, com base no gênero, do que vem a ser, no
âmbito da cultura corporal, próprio de cada sexo (CORREIA; DEVIDE;
MURAD, 2017). Neste contexto, cabe, também, à Educação Física a
necessidade de reflexão sobre as questões de gênero, corpo e sexualidade na
formação de professores, na organização dos saberes, nas orientações
metodológicas e em espaços onde o futuro professor possa problematizar as
relações de gênero e sexualidade no usufruto dos elementos da cultura corporal,
tendo em vista a formação humana comprometida com a transformação social.

GÊNERO, SEXUALIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA


NA SOCIEDADE DE CLASSES: REPRODUZIR OU TRANSFORMAR? EIS A QUESTÃO!

Partindo das reflexões e delimitações conceituais desenvolvidas na seção


anterior, bem como de uma concepção crítica da história, o primeiro ponto que
aqui pode ser destacado para compreendermos as relações de gênero e
sexualidade como tema necessário de ser abordado pela formação de professores
de Educação Física, consiste no desvelamento do contexto sob o qual tem se
instituído as relações sociais, levando em consideração o próprio movimento
histórico da sociedade de classes.
Ao se debruçar sobre a origem da família, da propriedade privada e do
Estado, Engels (2012) afirma que o antagonismo entre a mulher e o homem,

131
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

principalmente, a partir da monogamia, é o primeiro antagonismo de classes


que aparece na história.
Para Federici (2004), “as hierarquias sexuais quase sempre estão a
serviço de um projeto de dominação que só pode se sustentar por meio da
divisão, constantemente renovada, daqueles a quem se procura governar.” Tal
pressuposto, explica as diversas formas sob as quais se expressa a divisão social
e sexual do trabalho na sociedade do capital.
Afirmamos, portanto, a necessidade do entendimento da categoria
gênero e da categoria sexualidade, a partir da noção de interseccionalidade, haja
vista que:

As hierarquias de gênero assumem formas diferenciadas segundo a


posição de classe e raça das mulheres. A divisão sexual do trabalho,
no entanto, não se detém nos limites das vantagens de classe e raça;
impacta também as mulheres privilegiadas, porém com
consequências distintas daquelas que se impõem à maioria das
mulheres. (BIROLI, 2018, p. 23).

Buscamos estender as ideias de Biroli (2018), na perspectiva de abranger


as relações hierarquizadas que também perpassam a compreensão da
sexualidade como identidade social. Portanto, nas relações estabelecidas no
mundo do trabalho, as LGBTTs vivenciam formas diferentes de opressão, pois
atravessadas por condicionantes relacionadas ao próprio lugar ocupado pelas
variadas formas de usufruir da sexualidade, inter-relacionando as identidades de
gênero, de raça e de classe.
Neste sentido, a violência como mecanismo de opressão sobre as
mulheres e LGBTTs não tem se dado como um aspecto isolado e/ou particular,
mas como mecanismo intrínseco à estrutura social da sociedade de classes. A
violência como mecanismo de opressão, é fatal. O Relatório do Grupo Gay da
Bahia (GGB), afirma que a cada 25 horas, um LGBT é assassinado brutalmente.
Segundo o mesmo relatório, publicado no ano de 2016, 343 LGBTTs foram
assassinados no país, colocando o Brasil como o país campeão mundial em
mortes de minorias sexuais em todo o mundo. Irônico que o país do futebol,
maior campeão mundial de títulos na Copa das Confederações, também seja
campeão em mortes de LGBTTs. De acordo com este relatório, quando
considerada a profissão/ocupação, o maior número de vítimas, encontra-se entre
a profissão/ocupação de “Professor” e “Estudante”. Como podemos observar no

132
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

gráfico 1 a seguir.

Gráfico 1 – Quantidade de mortes de LGBTTs por profissão/ocupação em 2016


16 VÍTIMAS POR PROFISSÃO
16 14
14
12
10
8 5
6 4 3 3 3 3
4 2 2 2 2 2 2 2 2
2
0

Fonte: Grupo Gay da Bahia (2016).

Conforme dados expressos no gráfico 1, das profissões/ocupações


observadas, predominam como vítimas os professores (17%) e estudantes (16%),
seguidos em menor número por comerciantes, padres, empresários, enfermeiros,
etc. Neste mesmo documento, aponta-se Manaus (AM), como sendo a cidade,
dentre as capitais brasileiras, que teve o maior número de vítimas no ano de
2016. Um dado que expõe o caráter contraditório da educação escolarizada no
Brasil, e em particular na Região Amazônica.
A problematização desta realidade, quando associada à Educação
Física, leva-nos à reflexão de que ao tematizar os elementos da cultura corporal,
os professores podem reforçar e/ou se chocar com as ideologias que naturalizam
as identidades de gênero, assim como com a noção de sexualidade assentada no
padrão heteronormativo, que marginaliza todas as outras variações que existem
no âmbito da sexualidade humana.
Correia, Devide e Murad (2017) ressaltam o processo de generificação
dos conteúdos nas aulas de Educação Física, a exemplo do que ocorre com o
esporte e as lutas, frequentemente considerados como pertencentes ao universo
masculino. Estes mesmos autores traçam considerações a respeito da
reprodução desses estereótipos, afirmando que tanto homens quanto mulheres

133
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

atuam como produtores e reprodutores da sociedade machista. Portanto, é


preciso considerar que o professor de Educação Física não se encontra à
margem desse contexto, mas inserido, seja pela indiferença ou intervenção
consciente (ou não) no rumo da formação humana das futuras gerações,
podendo contribuir para a reprodução ou superação das relações de opressão,
que alimentam a exploração das mulheres e LGBTTs trabalhadores no modo de
produção vigente.
Elevar a formação de professores de Educação Física a um papel central
no trato com os temas gênero e sexualidade, acaba por evidenciar o caráter
político inerente às decisões tomadas neste nível da educação escolarizada,
abrindo possibilidades para a superação da opressão e, portanto, da exploração
de mulheres e LGBTTs, no âmbito das relações sociais mais amplas. Assim
sendo,

É importante prestar atenção às formas pelas quais o


processamento diferencial do conhecimento está vinculado ao
processamento diferencial das pessoas. Diferentes currículos
produzem diferentes pessoas, mas naturalmente essas diferenças não
são meras diferenças individuais, mas diferenças sociais, ligadas à
classe, à raça, ao gênero. [...]. Nessa perspectiva o currículo deve ser
visto não apenas como a expressão ou a representação ou o reflexo
de interesses sociais determinados, mas também como produzindo
identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não
apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou
exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na
sociedade. (GOODSON, 2012, p. 10).

CAMINHOS PERCORRIDOS E INSTRUMENTOS UTILIZADOS: DESCREVENDO O


ESTUDO REALIZADO

O percurso que realizamos adotou como universo da pesquisa todos os


Cursos de Educação Física ofertados pelas Instituições Federais de Ensino
Superior (IFES) na Região Amazônica, de acordo com as informações contidas
no sistema e-MEC, do Ministério da Educação, até abril de 2018. Para efeito da
pesquisa consideramos apenas as IFES situadas nos limites territoriais da
Amazônia legal em consonância com a demarcação realizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como expresso pelo mapa 1 a
seguir.

134
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Mapa 1 – Limite territorial da Amazônia Legal

Fonte: IBGE (2014).

Como se observa no mapa 1, a Amazônia Legal compreende os Estados


do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins
e parte do Maranhão.
Das 20 IFES situadas na Amazônia Legal, foram selecionadas apenas 10
instituições que oferecem, 19 Cursos de Educação Física, abarcando desta forma
todos os Cursos de Educação Física ofertados em IFES no território delimitado,
conforme distribuído no quadro 1.
Dentre os aspectos que constituem a formação profissional, optamos por
adotar como fonte de informação os currículos escritos dos 19 Cursos de
Educação Física ofertados pelas instituições supracitadas e que se encontram,
respectivamente, disponibilizados nas páginas institucionais na internet. A
opção pelos currículos escritos, assenta-se nos pressupostos de que este “nos
proporciona um testemunho, uma fonte documental, um mapa do terreno
sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros oficiais para
a estrutura institucionalizada da escolarização” (GOODSON, 2012, p. 21).

135
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Quadro 1 – Relação de IFES e cursos de Educação Física ofertados

INSTITUIÇÕES CURSOS
IFRR Curso de Educação Física - Licenciatura
Curso de Educação Física - Licenciatura
IFTO
Curso de Educação Física - Licenciatura (PARFOR - Presencial)
Curso de Educação Física - Licenciatura
UFAC
Curso de Educação Física - Bacharelado
UNB Curso de Educação Física - Licenciatura (EaD)
UNIFAP Curso de Educação Física - Licenciatura
Curso de Educação Física - Licenciatura
Curso de Educação Física - Bacharelado em Promoção em Saúde e
UFAM
Lazer
Curso de Educação Física - Bacharelado em Treinamento Esportivo
Curso de Educação Física - Licenciatura
UFMA
Curso de Educação Física - Bacharelado
Curso de Educação Física - Licenciatura
UFMT
Curso de Educação Física - Bacharelado
Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Belém)
UFPA
Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Castanhal)
UNIR Curso de Educação Física - Licenciatura
Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Miracema)
UFT
Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Tocantinópolis)
Fonte: e-MEC (2018).

Nesta perspectiva, a investigação foi delineada como pesquisa de caráter


documental, sendo esta compreendida como aquela em que o investigador,
coleta e constrói os dados e informações a partir de “um procedimento que se
utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de
documentos dos mais variados tipos” (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI,
2009, p. 5), compreendidos como registros que ainda não receberam tratamento
científico, caracterizando-os como fonte primária de informação. (SÁ-SILVA;
ALMEIDA; GUINDANI, 2009)
Pautamo-nos no enfoque teórico-metodológico do materialismo
histórico-dialético, compreendendo este enquanto uma postura, método e
práxis, nos termos que nos aponta Frigotto (2008). Tomamos como parâmetro
as categorias realidade e possibilidades, no sentido de compreender a unidade
do fenômeno estudado, como bem propõe Richardson (2015) e, neste sentido,
analisar o fenômeno para além da pseudoconcreticidade (KOSIK, 2002) e,
portanto, sem desconsiderar as múltiplas determinações que incidem sob este,
num movimento complexo, contraditório e de conjunto.

136
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Para tanto, no intuito de organizarmos e iniciarmos o processo de


análise, realizamos a partir da leitura dos 19 Projetos Político-Pedagógico,
quadros matriciais em que consideramos duas categorias empíricas, construídas
a partir dos dados e informações contidas nos documentos. A primeira delas
denominada de “espaço ocupado pelos temas gênero e sexualidade nos
currículos escritos dos Cursos de Educação Física da IFES”, procuramos
verificar qual o “lugar” destinado à temática dentro do currículo escrito. A
segunda categoria empírica, denominou-se de “áreas de concentração dos temas
gênero e sexualidade nos currículos dos Cursos de Educação Física da IFES”, na
qual buscamos identificar as áreas do conhecimento em que a temática tem sido
abordada. Em seguida à categorização, realizaram-se as inferências e o diálogo
destas com o conhecimento até então produzido.

GÊNERO E SEXUALIDADE NOS CURRÍCULOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE


EDUCAÇÃO FÍSICA EM IFES DA REGIÃO AMAZÔNICA

Para efeito de análise, delineamos duas categorias empíricas quais


sejam: a) espaço ocupado pelos temas gênero e sexualidade nos currículos
escritos dos Curso de Educação Física da IFES, na qual objetivamos mapear a
presença e/ou ausência do tema nos currículos escritos, a partir dos descritores
gênero e sexualidade, assim como quando da presença destes, analisar como os
mesmos se encontram distribuídos nos documentos; e b) áreas de concentração
dos temas gênero e sexualidade nos currículos dos Curso de Educação Física da
IFES, na qual procuramos identificar, a partir da presença dos descritores
gênero e sexualidade nas ementas das disciplinas oferecidas pelos Cursos, em
que campos do conhecimento se concentram o trato com a temática em questão.
Vale ressaltar, que a decisão de utilização dos descritores gênero e
sexualidade, decorre da compreensão de que estes indicam de forma mais
significativa a intencionalidade de se pautar especificamente as problemáticas
acerca das identidades socialmente construídas e atribuídas aos diferentes
indivíduos. Para tanto, os termos que possuíam a mesma grafia, mas que eram
conferidos sentido e significado diferentes aos atribuídos para efeito deste
estudo, tratamos de desconsiderá-los (Exemplos: gêneros alimentícios, gênero
literário, etc.).
Apesar do foco direcionado aos descritores em questão, é importante

137
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pontuar a presença de outros descritores, que em certa medida, aproximam-se


e/ou oferecem a possibilidade de apropriação dos temas gênero e sexualidade,
mesmo que de maneira implícita pelos currículos escritos, mas que, no entanto,
pela não especificação acabam por depender quase que exclusivamente das
decisões pedagógicas dos que colocam o currículo em movimento. Dentre tais
descritores apareceram: diversidade, inclusão, minorias. Destes, damos destaque
ao termo diversidade pela sua predominância em relação aos outros dois, mas
que quase sempre aparece nos currículos de maneira genérica, quando não se
referindo especificamente à diversidade cultural. Vejamos, portanto, qual o
espaço ocupado especificamente pela temática gênero e sexualidade nos
currículos da IFES.
Dos dezenove (19) currículos analisados, onze (11) apresentaram pelo
menos um dos descritores utilizados, sendo o descritor “gênero” o que
predominou em todos eles, com destaque para os currículos do Curso de
Bacharelado em Educação Física da UFMA e do Curso de Licenciatura em
Educação Física da UNIR, por serem os únicos em que observamos a presença
conjunta do descritor “gênero” e do descritor “sexualidade”, como expresso no
quadro 2.
Diferentemente do estudo realizado por Correia, Devide e Murad (2017)
em um Curso de Educação Física de uma Instituição de Ensino Superior situado
na Região Sudeste do país, em que não se encontrou o termo “gênero” em
nenhuma das ementas analisadas, podemos verificar que dos 19 currículos
analisados 11 apresentam os termos “gênero” e/ou “sexualidade”; a partir do
quadro 2, identificamos que na maioria , os currículos incorporam os
descritores “gênero” às ementas de disciplinas, sugerindo em certa medida um
avanço em direção à apropriação do tema pela formação de professores de
Educação Física nestas IFES quando comparamos a currículos que situam os
termos gênero e/ou sexualidade apenas na dimensão das finalidades projetadas
na proposta de formação, mas sem indicativos que incidam na dimensão
estrutural de um currículo de formação de professores, a exemplo da inserção
dos temas gênero e sexualidade em ementas de disciplinas ou mesmo na
introdução de disciplina específica para abordar tal problemática.

138
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Quadro 2 – Dimensões do currículo das IFES que incorporam os termos gênero


e sexualidade
DIMENSÃO DO
INSTITUIÇÃO MODALIDADE DESCRITORES
CURRÍCULO
IFTO Licenciatura Gênero Objetivos
IFTO - PARFOR Licenciatura Gênero Objetivos
UFMA Bacharelado Gênero e sexualidade Ementa de disciplina
UFPA-BELEM Licenciatura Gênero Ementa de disciplina
UFPA-CAST Licenciatura Gênero Ementa de disciplina
UFAM Bacharelado Gênero Ementa de disciplina
UFT – Miracema Licenciatura Gênero Ementa de disciplina
UFT – Tocantinópolis Licenciatura Gênero Ementa de disciplina
UNB - EaD Licenciatura Gênero Objetivos
UNIR Licenciatura Gênero e sexualidade Ementa de disciplina
UFAC Licenciatura Gênero Ementa de disciplina
Fontes: Elaboração dos autores com base nos currículos objeto da pesquisa.

Todavia, quando consideramos a totalidade dos 19 Cursos de Educação


Física ofertados em IFES na Região Amazônica, percebemos que a maioria
destes ou não apresentam os termos gênero e/ou sexualidade em seus currículos,
ou não incluem tais termos em ementas de disciplinas, o que sugere, em termos
gerais, consonância tanto com os resultados do estudo inicialmente mencionado,
bem como com o estudo realizado por Santos e Silva (2015), ao concluírem que,
“na maioria das vezes, tratar desta temática depende da iniciativa e da
sensibilidade do professor, não sendo contemplada nas ementas e programas das
disciplinas oferecidas pelo curso”.
Este panorama nos possibilita refletir que, apesar da predominância do
distanciamento entre os currículos escritos e as temáticas “gênero” e/ou
“sexualidade”, já podemos perceber alguma intenção, mesmo que ainda com
limitações, de se pautar a discussão acerca das relações de gênero e/ou
sexualidade, sugerindo desta maneira o rompimento do silêncio dos currículos
da formação de professores de Educação Física frente a estes temas no contexto
das IFES da Região Amazônica.
Em relação às áreas do conhecimento, onde se concentram as disciplinas
que incorporam os descritores gênero e/ou sexualidade em suas ementas nos
currículos dos Cursos de Educação Física nas IFES, delineamos tal análise com
base na classificação realizada por Correia, Devide e Murad (2017) e que se
expressa em seis categorias, sendo estas: esportiva, biomédica, sócio humana,
não esportiva, didático-pedagógica e instrumental. A distribuição das

139
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

disciplinas por categoria e suas respectivas cargas horárias são apresentadas no


quadro 3.

Quadro 3 – Áreas do conhecimento em que se concentram as disciplinas que


incorporam os descritores gênero e/ou sexualidade em suas ementas e suas
respectivas cargas horárias
CARGA CARGA
HORÁRIA HORÁRIA
CATEGORIAS DISCIPLINAS/INTITUIÇÕES
POR POR
DISCIPLINA CATEGORIA
Nenhuma disciplina apresentou os
Esportiva - -
descritores nas ementas
Nenhuma disciplina apresentou os
Biomédica - -
descritores nas ementas
Antropologia e Sociologia Aplicadas a
Atividade Física e ao Esporte (UFMA 60h
– Bacharelado)
Estudos Antropológicos em Educação
68h
Sócio-Humana Física (UFPA – Belém) 248h
Antropologia Educacional (UFPA –
60h
Castanhal)
Fundamentos da Antropologia Cultural
60h
(UFAM – Bacharelado)
Danças Contemporâneas (UFPA –
30h
Não Esportiva Castanhal) 110h
Recreação Escolar (UNIR) 80h
Profissão Docente (UFT – Miracema)
60h
(Disciplina optativa)
Didático- Saúde e Sexualidade na Escola (UNIR); 40h
160h
Pedagógica Profissão Docente: Identidade, Carreira
e Desenvolvimento Profissional (UFAC 60h
– Licenciatura)
Nenhuma disciplina apresentou os
Instrumental - -
descritores em suas ementas
Fontes: Elaboração dos autores com base nos currículos objetos de pesquisa.

Observa-se no quadro 3, uma concentração dos descritores gênero e/ou


sexualidade em ementas de disciplinas associadas à categoria sócio humana,
como sendo aquela que agrega as disciplinas de filosofia e das Ciências Sociais.
Se considerarmos as demais categorias, podemos identificar que a apropriação
dos termos gênero e/ou sexualidade ocorre pelas ementas das disciplinas que se
concentram nas áreas compreendidas como Ciências humanas (a partir das
categorias sócio humanas, não esportivas e didático-pedagógicas). Por outro
lado, verifica-se também, a não incorporação dos descritores, aqui em questão,
por disciplinas relacionadas às áreas esportiva, biomédica e instrumental.

140
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Tal constatação sugere a centralização do trato dos temas gênero e/ou


sexualidade no currículo da formação dos professores de Educação Física em
determinadas áreas do conhecimento, manifestada principalmente pelo
protagonismo das Ciências Humanas em detrimento da carência de
pronunciamento das demais áreas do conhecimento sobre o tema em questão.
Neste sentido, a concentração em áreas do conhecimento que
protagonizam e as que manifestam carência de apropriação da temática gênero
e/ou sexualidade, expressam uma concepção de abordagem dessas questões nos
currículos dos cursos de Educação Física que se distancia de uma compreensão
transversal sobre o tema e, portanto, podem apresentar limitações na apreensão
dos indivíduos, que usufruem dos elementos da cultura corporal, em sua
integralidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, o estudo que inicialmente tem sua origem no


desconhecimento da apropriação dos temas “gênero” e/ou “sexualidade” pelos
currículos dos Cursos de formação de professores de Educação Física em IFES
da Região amazônica, oferece informações que, apesar de atestarem, em termos
gerais, o distanciamento entre os currículos escritos e as temáticas “gênero” e/ou
“sexualidade”, expressam possibilidades, ainda que não predominantes, de
ruptura com o silêncio dos currículos da formação de professores de Educação
Física frente aos temas em questão, no contexto dos Cursos de Educação Física
nas IFES da Região Amazônica.
Todavia, a concentração do tema “gênero” e/ou “sexualidade” em áreas
do conhecimento específicas, sugere uma compreensão do modo como tal
assunto tem sido tratado nos currículos dos cursos de Educação Física da IFES,
ou seja, de forma que desconsidera o caráter transversal das relações de gênero e
sexualidade, a partir das diferentes áreas do conhecimento, numa perspectiva
que considera a omnilateralidade dos indivíduos, que usufruem dos elementos da
cultura corporal.
Logo, na conjuntura atual marcada por reformas educacionais, tais
apontamentos nos colocam o desafio da apreensão dos nexos e determinações
que incidem na apropriação dos conhecimentos sobre gênero e sexualidade, pela
formação dos professores de Educação Física em IFES, considerando as

141
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

particularidades do contexto amazônico e seu papel na dinâmica do modo de


produção capitalista.

Gender, sexuality, and curriculum in Physical Education teacher's training in Higher


Superior Federal Institutions in the Amazon region

Abstract: This article is the result of discussions and studies developed by the research
group Ressignificar - Conceição do Araguaia regarding the teacher's intervention in
physical education with the themes gender and sexuality. The investigation aimed to
analyze the referred themes in the curricula of Physical Education Courses in Higher
Education Institutions (IFES) in the Amazon Region. It is a documental research,
based on the curricula of 19 Physical Education Courses. It concluded the themes gender
and sexuality are not included in the most curricula of Physical Education Courses,
especially when considered the disciplines' syllabus. In the curricula that presented the
descriptors gender and sexuality, we observed a polarization between the area of
knowledge of human sciences which centers the disciplines that include the referred
theme and the other areas that lack this discussion.
Keywords: Gender. Sexuality. Curriculum. Physical Education Teacher’s.

REFERÊNCIAS
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142
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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Distância - Projeto Pedagógico. Brasília, DF, 2016.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Projeto Pedagógico do Curso de


Bacharelado em Educação Física – UFMT. Cuiabá, 2011.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Projeto Pedagógico do Curso de


Licenciatura em Educação Física – UFMT. Cuiabá, 2011.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE. Currículo do Curso de Bacharelado em


Educação Física. Rio Branco, 2016.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE. Currículo do Curso de Licenciatura em


Educação Física. Rio Branco, 2008.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ. Projeto Político Pedagógico do Curso de


Licenciatura em Educação Física. Macapá, 2010.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso


de Educação Física – Licenciatura.

143
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso


de Educação Física – Bacharelado – Promoção em Saúde e Lazer.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso


de Educação Física – Bacharelado – Treinamento Esportivo.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Pedagógico “Curso


Bacharelado em Educação Física - Atividade Física e Saúde e Esporte”. São Luís, 2014.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Político Pedagógico do Curso


de Licenciatura em Educação Física da UFMA Campus do Bacanga. São Luís, 2014.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Projeto Político Pedagógico do Curso de


Educação Física Licenciatura. Belém, PA, 2011.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Projeto Pedagógico Curso de Licenciatura


em Educação Física do Campus de. Castanhal, 2010.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de


Graduação em Educação Física – Licenciatura. Miracema, 2014.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de


Licenciatura em Educação Física. Tocantinópolis, 2014.

144
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Mostra de Ginástica Geral e Folclore: uma experiência de valorização da


diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação
Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC)
Natalia do Espírito Santo Evangelista da Silva (ESMAC) 41

Resumo: Esta aproximação de ginástica e da própria cultura brasileira vem estabelecer


uma relação dialética da assimilação do outro com transformação, podendo criar novas
relações nas coreografias de ginástica geral e folclore, veiculando assim uma diversidade
cultural, proporcionando várias formas de comunicação e expressão. Acreditamos que
quando entendemos o sentido de um movimento do universo folclórico e é
contextualizado, alcançando dimensões que nos propomos ao trabalhar com ginástica
geral. Assim, surge a Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF) como um projeto de
Ensino, Pesquisa e Extensão de caráter interdisciplinar, realizado no Curso de
Licenciatura em Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC), desde
2008, onde apresenta à comunidade acadêmica e do entorno, os trabalhos
interdisciplinares de conclusão das disciplinas: Ensino da Ginástica (EG) e Ensino da
Cultura Corporal Amazônica (ECCA). Ambas ministradas no 4º semestre do curso.
Tendo como objetivo valorizar a diversidade cultural regional, com caráter
interdisciplinar, entre duas disciplinas, EG e ECCA, além de promover o tripé ensino –
pesquisa – extensão no Curso de Licenciatura em Educação Física da ESMAC. Nesse
sentido, este manuscrito tem como objetivo relatar uma experiência de valorização da
diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da Escola
Superior Madre Celeste (ESMAC). Como resultado desta experiência acadêmica,
observamos que o modelo utilizado como estratégia de ensino-aprendizagem permitiu
aos alunos compreender as manifestações tradicionais e sua diversidade, bem como se
reconhecerem sujeitos históricos da sua cultura. Além de promover uma reflexão critica
sobre sua práxis docente.
Palavras-chave: Educação Física; Ginástica Geral; Folclore; Diversidade Cultural.

INTRODUÇÃO

Em sua intervenção no contexto escolar, o professor de educação física


deve não só ensinar aos alunos os conhecimentos técnicos e científicos da área,
com base em um planejamento e organização do trabalho pedagógico
fundamentado, mas a cima de tudo fazer o diálogo com a realidade e a cultura
do aluno, para que o processo de ensino-aprendizagem seja significativo na
formação humana e educacional desse aluno.
No entanto, o que ainda presenciamos na realidade escolar são aulas de
educação física baseadas na esportivização, em especial os esportes coletivos, ou
como chama Almeida et al. (2010) a aula “rola bola”. Ou também pela falta de
material e estrutura física, a negação de outros conhecimentos como a ginástica

41
Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da
Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). E-mail: nataliafolclore@hotmail.com

145
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

e as lutas, reflexo da falta de habilidade e experiência motora nessas


modalidades. Ou ainda, o planejamento com base no esporte ser interrompido
para tratar do conteúdo dança na festa junina, no dia/semana do folclore ou
ainda na abertura dos jogos de maneira descontextualizada, sem sentido aos
alunos.
Essa (não) organização do trabalho pedagógico tem demonstrado que se
faz necessário que os cursos de formação de professores em educação física
abordem não só os conhecimentos técnicos e científicos da área, mas também
pensem em práticas pedagógicas em seus currículos de caráter interdisciplinar
que contribua na formação acadêmico-profissional desses futuros professores no
sentido de compreender as possibilidades de diálogo entre as manifestações da
cultura corporal e a realidade e cultura escolar, principalmente no que tange a
diversidade cultural, sem negligenciar os conteúdos específicos da área.
Nesse contexto surge a Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF)
como um projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão de caráter interdisciplinar,
realizado no Curso de Licenciatura em Educação Física da Escola Superior
Madre Celeste (ESMAC), desde 2008, onde apresenta à comunidade acadêmica e
do entorno, os trabalhos interdisciplinares de conclusão das disciplinas: Ensino
da Ginástica (EG) e Ensino da Cultura Corporal Amazônica (ECCA). Ambas
ministradas no 4º semestre do curso.
Esta aproximação de ginástica e da própria cultura brasileira vem
estabelecer uma relação dialética da assimilação do outro com transformação,
podendo criar novas relações nas coreografias de ginástica geral e folclore,
veiculando assim uma diversidade cultural, proporcionando várias formas de
comunicação e expressão. Acreditamos que quando entendemos o sentido de um
movimento do universo folclórico e é contextualizado, alcançando dimensões
que nos propomos ao trabalhar com ginástica geral.
Com a intenção de valorizar a diversidade cultural amazônica e de
proporcionar a interdisciplinaridade entre a Ginástica como manifestação da
cultura corporal e do Folclore enquanto manifestação de identidade cultural, o
projeto se materializa através do diálogo entre as linguagens artísticas, do
teatro e dança, além de envolver diversas práticas corporais, desenvolvidas a
partir temas socioculturais relacionados à cultura tradicional amazônica, tais
como: dança folclórica, manifestações religiosas, cotidiano amazônico, lendas e

146
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

mitos, manifestações de rua, dentre outros. Favorecendo dessa forma, uma


formação acadêmica sólida e efetiva dos acadêmicos do curso, referente aos
conhecimentos gímnicos e do folclore amazônico.
O objetivo deste manuscrito é relatar uma experiência de valorização da
diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da
Escola Superior Madre Celeste (ESMAC), faculdade de iniciativa privada, do
município de Ananindeua (PA).
Como base teórica para este trabalho utilizaremos Brandão (2006) e
Cascudo (2000) que tratam dos conceitos, características e objetos de estudo do
folclore; Santos (1994) que trata dos conceitos e características sobre cultura;
Soares et al. (2012) e Soares (2004) que tratam da Educação Física como área do
conhecimento, proposta metodológica e das manifestações da cultura corporal;
Freire (1996) que trata das práticas educativas e pedagógicas e Santos (2001),
Nunomura et al. (2005), Nunomura et al. (2009) que tratam da história, dos
conceitos e das características da Ginástica Geral.

EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO FÍSICA E CULTURA.

Partindo da origem da palavra, Cultura surge do latim e está associada


às atividades agrícolas. Vem do verbo latim Colore que significa cultivar. No
entanto, a partir das necessidades e interesses de grupos humanos ao se
relacionarem e explorarem outros grupos e, de constatarem a variedade de
modos de vida entre povos e nações, houve a necessidade de diferenciar-se.
Assim, pensadores romanos antigos, por exemplo, ampliaram esse conceito para
referir-se ao refinamento pessoal, a educação elaborada, ao nível de
conhecimento adquirido. Esse conceito de cultura foi bastante utilizado e ainda
na atualidade é utilizado para fazer referencia ao grau de instrução, a
quantidade de conhecimento acumulado por individuo, bem como suas
experiências nas diversas esferas da sociedade como: arte, música erudita,
turismo, culinária, etc. (SANTOS, 1994)
Historicamente, construiu-se uma visão dual de ser humano dividido em
corpo e mente/alma, onde o conhecimento nascia no individuo e que necessitava
ser revelado, logo esse corpo era reflexo da alma. A educação e a educação física
se construíram com base nessa perspectiva, onde o aluno era visto como um
individuo a-histórico, sem experiências ou qualquer tipo de contribuição, que

147
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

precisava ser educado com rigor e disciplina. E a educação por sua vez vinha
para “contribuir” na formação de individuo higienizado, domesticado, forte e
apto para a guerra e para o trabalho nas indústrias.

[…] A Educação Física será a própria expressão do físico da


sociedade do capital. […] torna-se receita e remédio para curar os
homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade, e, desse
modo, passa a integrar o discurso médico, pedagógico...familiar. […]
a Educação Física se ocupará de um corpo a-histórico,
indeterminado, um corpo anatomofisiológico, meticulosamente
estudado e cientificamente explicado. (SOARES, 2004, p. 6).

Hoje sabemos que o conhecimento é produzido na relação do homem


com a natureza e com outros homens, num processo dialético. A forma como
esse homem se organiza em sociedade, seus modos de vida, suas atividades
materiais, a forma como ele se relaciona com a natureza e com outros homens é
resultado de um processo histórico e cultural. Logo no processo de educação e de
formação, para que o conhecimento seja produzido é necessário que esse homem
situe-se como sujeito histórico, social e cultural, num movimento de construção,
desconstrução e reconstrução de si mesmo e do conhecimento.

O primeiro pressuposto de toda a história humana é naturalmente a


existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a
constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por
meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. […] Mas eles
próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a
produzir os seus meios de vida; passo esse que é condicionado por
sua organização corporal. (MARX; ENGELS, 1986 apud
FRIGOTTO, 2010, p. 82).

A Educação Física na década de 1980 rompe com a concepção


construída historicamente da dualidade entre corpo e mente, e com a base
técnica presente tanto no contexto escolar como nos cursos de formação, com o
discurso do corpo biologizado, para se fundamentar como disciplina que estuda
as manifestações da cultura corporal em toda sua diversidade, levando em
consideração as contradições, conflitos presentes na realidade escolar e na
cultura da sociedade, buscando a superação dos sujeitos históricos e
consequentemente a transformação da realidade.

Na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal [...] no âmbito


da Educação Física [...] [busca-se] desenvolver uma reflexão

148
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo


que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizada
pela expressão corporal: jogos, dança, lutas, exercícios ginásticos,
esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem
ser identificados como formas de representação simbólica de
realidade vividas pelo homem, historicamente criadas e
culturalmente desenvolvidas. (SOARES et al., 2012, p. 39).

Nesse sentido trabalhar com a educação física escolar hoje é organizar


uma intervenção que leve em consideração o ser humano e toda sua experiência
corporal, social e cultural com suas diversas formas de saber, sentir e agir no
mundo em que está inserido. É através do corpo que compreendemos nossa
realidade, nossa cultura, com suas manifestações, valores, símbolos e
organizações, pois é a partir dessa leitura da realidade que vamos construindo
nossa identidade e como sujeitos históricos. Diante disso, a educação física
escolar precisa levar em consideração todas as possibilidades de educação para
que ela seja significativa e transformadora ao individuo.

O corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos


específicos da sociedade da qual faz parte. O homem, por meio do
corpo, vai assimilando e se apropriando de valores, normas e
costumes sociais, num processo de incorporação (a palavra é
significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o individuo
adquire um conteúdo corporal, que se instala em seu corpo, no
conjunto de suas expressões. Cada gesto que fazemos, a forma como
nos sentamos, a maneira como caminhamos, os costumes com o
corpo da gestante [...] tudo isso é especifico de uma determinada
cultura, que não é melhor, nem pior que outra [...]. As brincadeiras,
os tipos de ginástica, os cuidados estéticos com o corpo... enfim,
tudo é influenciado pela cultura. (DAOLIO, 2003, p. 67 apud
NUNOMURA, 2009, p. 43).

Para uma educação significativa é fundamental que o professor tenha os


saberes necessários a pratica docente para adequar os conhecimentos
apreendidos à realidade em que está inserido. Mas para isso, conforme Freire
(1996), é necessário que o professor seja ético, não assuma a postura de detentor
da verdade absoluta, compreenda que o processo de ensino-aprendizagem é
continuo e uma via de mão dupla, apresentar teor critico em suas aulas e
respeitar os saberes experiências de seus alunos no planejamento e realização de
suas aulas.

149
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

GINÁSTICA E GINÁSTICA GERAL: MODALIDADE OU ATIVIDADE?

O termo ginástica tem origem grega que significa a “arte de exercitar o


corpo nu” (NUNOMURA, 2009) e sua história vai se confundir com a própria
história da humanidade e com a história da Educação Física.

A ginástica existe há milhares de anos como uma prática educativa


que visava à formação do corpo, conhecida também como educação
física ou Ginástica médica terapêutica, praticada nas antigas
civilizações com o objetivo de manter e melhorar a saúde. (PUBLIO,
1998 apud NUNOMURA, 2009, p. 18)

Na pré-história a ginástica era considerada toda e qualquer atividade


física com caráter natural, utilitário, guerreiro. Natural através dos movimentos
naturais ao ser humano como andar, correr, saltar, trepar, dentre outros;
Utilitário pela necessidade de caçar, pescar, cultivar e manter sua
sobrevivência; e Guerreiro pela necessidade vital de atacar e defender-se de
animais e outras tribos. (PAOLIELLO, 1997)
Na antiguidade, o discurso do culto ao corpo belo é exalto e a ginástica
assume finalidades estéticas, de educação corporal e de preparação para a
guerra, como os espartanos, sistematizada em forma de luta, natação, hipismo,
remo, arco e flecha, em jogos e rituais religiosos. Esse discurso será
materializado nas obras de arte espalhadas pelos museus em todo o mundo, com
estátuas de homens com corpos atléticos e esteticamente perfeitos.
(PAOLIELLO, 1997)
Na idade Média, com o controle da igreja e com o discurso de que o
corpo deveria ser controlado e negado para “não cair em tentação”, pois a
pratica corporal era considerada nesse período uma fonte de pecado e luxuria.
A ginástica então ganha característica especifica e utilitárias com o objetivo de
enobrecer o homem, fazendo-o forte e apto para a guerra e consequentemente
defender a igreja nas cruzadas. Nessa fase as atividades valorizadas eram as
lutas, esgrima e equitação. (PAOLIELLO, 1997)
Na idade Moderna, o renascimento trouxe luz ao período sombrio
construído na idade média fazendo ressurgir a ginástica em diversos países,
principalmente na Europa. Era preciso recuperar o corpo massacrado pelas
guerras, dos descuidos impostos pela igreja e pelos jejuns prolongados que
serviam para salvar o corpo do pecado. Esse período é marcado pelo inicio da

150
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sistematização da Ginástica a partir da valorização dos movimentos naturais e


ao ar livre. (NUNOMURA, 2009)
E no início do século XIX, já idade contemporânea, surge o movimento
ginástico em países da Europa como a Inglaterra, Alemanha, Suécia e França
tendo como base o discurso médico, higienizador e de natureza disciplinar com
a finalidade de adestrar o corpo, torná-lo forte, saudável, apto para guerra e
para o trabalho (indústria), regenerar a raça, melhorar a saúde e desenvolver a
moral (SOARES, 2004). Podemos afirmar que é a partir desse movimento que a
ginástica se organizou, da forma como a concebemos nos dias atuais, tanto na
escola, no lazer, no fitness e como modalidade esportiva.
As modalidades esportivas da Ginástica são aquelas reconhecidas e
regulamentadas pela Federação Internacional de Ginástica (FIG) a partir de
seus códigos específicos e organizadas em: Ginástica Artística, Ginástica
Rítmica, Ginástica Acrobática, Ginástica de Trampolim e Ginástica Geral.
Para este momento nos interessa compreender melhor a história, os
conceitos, os fundamentos e as características da Ginástica Geral, por ser
considerada: “[...] um campo bastante abrangente da Ginástica, valendo-se de
vários tipos de manifestações, tais como danças, expressões folclóricas e jogos,
apresentados através de atividades livres e criativas, sempre fundamentadas em
atividades ginásticas” (SANTOS, 2001, p. 23), e que utilizamos como base de
nosso trabalho de intervenção.
A Ginástica Geral (GG), também conhecida como Ginástica para Todos
(GPT), foi idealizada por Nicolas Cupérus no século XIX, por acreditar que a
ginástica deveria ser pensada fora do âmbito esportivo e competitivo. Para
Cupérus os praticantes de ginástica deveriam ficar satisfeitos em superar seus
limites corporais pelo esforço, força, agilidade e tenacidade, e consequentemente
pela manutenção da saúde. No entanto ele se vê obrigado a deixar de lado suas
concepções para ceder as pressões das Federações em sistematizar a Ginástica
enquanto esporte Olímpico. Mas após sua morte, J. J. Sommer (antigo vice-
presidente da FIG) resolve colocar em prática os anseios de Cupérus e organiza
a I Gymnaestrada, em 1953, em Roterdã (Países Baixos), caracterizada como
uma manifestação de ginástica que considerava o prazer da prática de atividade
física em beneficio da saúde, sem nenhuma finalidade competitiva.
(NUNOMURA et al., 2005)

151
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Devido ao seu caráter não competitivo, a Ginástica Geral apresenta


como características principais a liberdade e a criatividade e em sua
especificidade traz na base a acessibilidade para todas as idades, sexo, condição
física ou técnica, proporcionando uma gama infinita de experiências motoras, o
prazer do movimento, a superação individual e coletiva, além do resgate da
cultura de cada povo e a interação social. Pois, “[...] os indivíduos participantes
de um grupo de GG estão inseridos numa cultura e se manifestam por ela e com
ela, não sendo possível dissociar o Homem da Cultura.” (NUNOMURA et al.,
2009)
A liberdade, característica fundamental da Ginástica Geral, se
transforma também em dificuldade quando os estudiosos da área precisam
caracterizar ou conceituar esta manifestação e por esse motivo ela é
considerada tanto modalidade quanto atividade dentro da Ginástica. É
considerada uma modalidade por ser reconhecida e orientada pela FIG, no
entanto, por se apropriar dos elementos de outras modalidades através de
adaptações e reconstruções, transforma-se também em atividade capaz de
contribuir para a interação social, bem como para formação educacional e
humana do individuo. (SANTOS, 2001)
Por seu caráter de demonstração, de liberdade e criatividade, a Ginástica
Geral assume algumas características artísticas e estéticas, sistematizadas em
forma de coreografias dinâmicas, com liberdade na vestimenta, nos
movimentos, temas, trilhas sonoras, com a possibilidade de utilizar ou não
aparelhos, sento que estes podem ser infinitamente variados. No entanto, mesmo
sem o rigor técnico na execução dos movimentos, estes devem ser executados
com base nos elementos das outras modalidades da ginástica, dialogando com os
elementos da dança, folclóricos e da cultura de forma harmoniosa. (SANTOS,
2001)

A forma de atuar, o idealismo, a filosofia, o profissionalismo, a


pedagogia, a herança cultural individual e de cada grupo social,
enfim os vários elementos e valores que compões os pontos de vista
dos atores dessa grande cena que é a vida, permitem diferentes
posturas frente à própria vida e de outra forma não poderia ser
quando se trata da Ginástica Geral. (SANTOS, 2001, p. 26).

Nessa perspectiva, a Ginástica Geral é uma modalidade que pode e deve

152
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

estar presente nos cursos de formação de professores em educação física, nos


clubes, projetos sociais, academias, e principalmente, na realidade escolar,
valorizando a realidade dos alunos e suas manifestações da cultura corporal a
nível, local, regional e nacional. Segundo Santos, “[...] a Ginástica Geral está
inserida no contexto da Educação Física e é uma ferramenta importante da
educação geral.” (SANTOS, 2010, p. 26).

FOLCLORE: MANIFESTAÇÕES HISTÓRICAS E IDENTITÁRIAS DE UM POVO

Falar em Cultura é falar de história, identidade, diversidade, nesse


sentido a cultura de uma sociedade será resultado dos processos históricos, da
lógica interna existente em cada grupo humano, de suas necessidades e
interesses de mudanças (de ordem interna e externa), a forma de manipulação
de recursos naturais, a maneira de organizar e transformar a vida em sociedade,
de superar os conflitos de interesse, contradições e tensões geradas na vida
social, que se tornam heterogêneas. É o processo de produção cultural e que faz
com que os povos se diferenciem uns dos outros, cada um com as suas
particularidades, formando assim a diversidade cultural. Para Santos (1994, p.
15), “[...] a diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da
história humana, expressa possibilidades de vida social organizada e registra
graus e formas diferentes de domínio humano sobre a natureza”.
A partir das Ciências Sociais, surgem duas concepções básicas sobre
cultura: a primeira refere-se à Cultura como todos os aspectos de uma realidade
social, ou seja, tudo aquilo que explica a existência de um povo; já a segunda
concepção entende a Cultura especificamente ao conhecimento, as ideias e
crenças de um povo, ou seja, as maneiras como eles existem na vida social.
Assim, devemos entender que a cultura é dinâmica, passa por transformações de
acordo com a realidade vivida por cada sociedade.

Cultura é o conjunto de comportamentos, saberes e saber-fazer


característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada,
sendo essas atividades adquiridas através de um processo de
aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros.
(LAPLATINE, 1988, p. 120).

Em estudos elaborados sobre Cultura, verifica-se a existência ampla de


visões sobre seu conceito, sendo para alguns autores como Mello (2007), como

153
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

um processo de simbologia, pois é por meio dele que as experiências são


acumuladas e transmitidas; para Santos (1994) a Cultura é um conjunto da obra
humana, além de ser um território para as lutas das classes sociais para uma
condição de vida melhor; de acordo com Canclini (1983), além de ser simbólica
a cultura também é uma prática econômica, e englobam a administração, a
política, a economia, a tecnologia e outros; em Laraia (2006), a cultura é
dinâmica pelo simples fato de um sistema cultural ter contato com outros
sistemas ocasionando assim um “choque” de culturas.
Para os antropólogos a Cultura é uma obra do homem, que existe para o
homem, é uma tarefa social e não individual, pois a Cultura é formada pelo
conjunto de experiências vividas pelo homem.
Acreditamos que a Cultura é tudo aquilo que caracteriza um grupo
humano, seja na sua organização social, na arte, na política, na linguagem, pois
são esses elementos que explicarão a lógica existente em cada grupo. Além de
influenciar no comportamento do homem, a Cultura também é influenciada pelo
homem, por ser produto da coletividade humana. “Ou seja, a Cultura não é algo
natural, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a
Cultura é um produto coletivo da vida humana.” (SANTOS, 1994, p. 44).

Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente


transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas
aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das
comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica,
padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização
política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.
(SAHLINS et al., apud SANTOS, 1994, p. 59).

Assim percebemos relacionadas à cultura todas as instâncias e modelos


de comportamento de uma formação social (a organização econômica, as
relações sociais, as estruturas mentais, as práticas artísticas, etc.) sem construir
uma hierarquia que leve em consideração o peso de cada uma. Sendo que, todas
essas instâncias e modelos é que dão lógica ao sistema organizacional de uma
sociedade, por estarem em constante interação.
Ao falar de cultura falamos também de Folclore, que está diretamente
relacionado a historia e identidade de um povo/sociedade. É considerada toda e
qualquer manifestação tradicional relacionado aos bens materiais e imateriais,
transmitidos pela oralidade. No entanto, antes do surgimento da palavra

154
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Folclore, já haviam historiadores, literatos, músicos eruditos, arqueólogos,


antropólogos, antiquaristas, linguistas, sociólogos, outros especialistas e
curiosos que estudavam os costumes e as tradições populares. (BRANDÃO,
2006, p. 26). Somente em 1946, o termo Folclore foi criado por William John
Thoms e publicado pela revista The Atheneum, em Londres, no dia 22 de agosto.
Etimologicamente falando, Folclore é uma palavra oriunda do inglês
“Folk”, que significa povo, nação, raça; e “ Lore” que significa conhecimento,
saber, educação, instrução.
Inicialmente esse termo surge na tentativa de sistematizar e categorizar
as tradições populares pela cultura erudita, a fim de se apropriar dessas
manifestações para dominação sociopolítico de uma dada sociedade. Além
disso, o termo vem para dar conta do estudo e da preservação das chamadas
“antiguidades populares”, chamadas também de literatura popular, mas na
verdade essas antiguidades eram o próprio saber do povo, resultante de suas
experiência de vida e de outras gerações que vão para além de uma literatura.
Para Gramsci apud Arantes (1990, p. 22), “[...] o folclore é um
aglomerado indigesto de fragmentos”, pois ele é pensado como algo que está fora
da realidade das pessoas, como algo que está perdido no contexto social. Porém
o folclore não é uma manifestação do passado e que foi cristalizada no tempo,
“coisa arcaica”, velha. O Folclore está vivo no cotidiano das pessoas, está
presente nas coisas e nas tarefas mais simples do dia-a-dia.
No Brasil, o estudo do Folclore foi introduzido na segunda metade do
século XIX, por Celso de Magalhães (1849/1879), Silvio Romero (1851/1914) e
João Ribeiro (1860/1934). Seguiram-lhe Arthur Ramos (1903/1949), Amadeu
Amaral (1875/1929), Mario de Andrade (1893/1945), Renato Almeida
(1895/1981) e Edílson Carneiro (1912/1972). Posteriormente, Joaquim Ribeiro,
Alceu Maynard e Luis da Câmara Cascudo, considerado um folclorista mestre.
(FRADE, 2002, p. 2)
Os primeiros estudos no Brasil, voltaram-se para a poesia popular.
Porém, Almeida sugeriu, em 1974, no seu “A inteligência do folclore” que, além
da literatura, pudessem estudar aspectos da vida social, materiais e concretos
como o artesanato, as indumentárias, os instrumentos musicais, além das
formas de execução, as coreografias, os componentes rituais, e ainda as
considerações econômicas, políticas, históricas e geográficas. Percebemos que,

155
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

para Almeida, no entendimento do Folclore deve-se considerar “[...] o


comportamento do grupo social onde existe e as formas que revestem o fato”.
(ALMEIDA apud FRADE, 2002, p. 3).
Posteriormente, após circunstâncias históricas como a necessidade de
organizar estudos sobre o Folclore e o contexto pós-guerra, quando aumenta a
preocupação com o Folclore junto a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em prol da paz mundial, Almeida
resolve, então, assumir a presidência do Instituto Brasileiro de Educação,
Ciência e Cultura (IBECC), pertencente ao Ministério do Exterior e vinculado à
UNESCO, fundando assim, em 1946, a Comissão Nacional do Folclore (CNF).
Essa comissão tinha como objetivo favorecer o estudo e a valorização do
Folclore Brasileiro. Dessa forma, em 1951, é publicada uma documentação
intitulada Carta do Folclore Brasileiro, no I Congresso Brasileiro do Folclore,
realizado na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de sistematizar o conceito
e o objeto de estudo do Folclore. (FRADE, 2002, p. 3)

1. […] reconhece os estudo do Folclore como integrante das ciências


antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar
folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em
toda sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto
espiritual.
2. Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir
de um povo, preservadas pela tradição popular e pala imitação e
que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e
instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do
patrimônio cientifico e artístico humanos ou à fixação de uma
orientação religiosa e filosófica. (CARTA DO FOLCLORE
BRASILEIRO, 1951, apud WOLFFENBÜTTEL, 2004, p. 111-112).

Em 1995, aconteceu o VIII Congresso Brasileiro de Folclore, para a


atualização, considerando as contribuições das ciências humanas, bem como
adoção de novas tecnologias, decidindo-se (re)conceituar o Folclore e seu objeto
de estudo, definindo que:

Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade,


baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente,
representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de
identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva,
tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. (CARTA DO
FOLCLORE BRASILEIRO, 1995, apud WOLFFENBÜTTEL, 2004,
p. 131).

156
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Segundo Andrade (2002), Folclore significa, correlatamente, o estudo ou


ciência que tem por objeto de estudo a Cultura Popular. Já para outros autores
Folclore é sinônimo de Cultura popular, porém discutiremos isso mais adiante.
Para efeito sistematizador e analítico, o fato folclórico é dividido em 10
(dez) grupos, que são: festas, bailados, mitos e lendas, danças, recreação, música,
ritos, sabença, linguagem, artes populares e técnicas tradicionais.
Em sua obra O que é Folclore? Brandão (2006) caracteriza o fato
folclórico em tradicional, pois é através dela que prevalece a resistência contra a
dominação, a colonização, mantendo suas origens e tudo aquilo que caracteriza
um povo; coletivizado, onde através da aceitação é conhecido e reproduzido
sofrendo modificações de grupo para grupo, de acordo com cada realidade;
identidade de um povo, pois são os elementos folclóricos que irão diferenciar
um povo do outro, resistindo à dominação; criativo, sendo uma das maiores
capacidades do homem de criar, recriar, inovar, recuperar, incorporar o velho
no novo, retomar o antigo a tradição; anônimo, porque mesmo que saibamos
seus autores, depois de algum tempo sua autoria cai em domínio público, e
assim, a partir de cada realidade ele ganhará uma nova interpretação, um novo
significado; dinâmico, pois com o passar do tempo, a cada transformação social,
ele ganhará uma nova roupagem, uma nova maneira de representação como
estratégia para manter a preservação e a valorização do Folclore, pois as
pessoas só valorizam e cultivam aquilo que tem significado pra elas; persistente,
pois para manter-se vivo e significativo, o Folclore incorpora elementos novos
da realidade sendo recriado para continuar conservando-se de geração para
geração, de grupo para grupo; funcional, pois ele tem um significado, um valor
imensurável para quem o produz, é o caminho para fortalecer sua existência,
sua origem. Além disso, seu aprendizado ocorre através da oralidade e da
imitação, ou seja, não precisamos ir a uma Escola ou a uma Universidade, como
fazemos para nos apropriar da cultura erudita de forma sistematizada, para
aprendermos o Folclore e a Cultura Popular, pois seu aprendizado ocorre nas
relações interpessoais, nas situações que ocorrem no dia-a-dia das pessoas.
Desta maneira, entende-se que o Folclore está contido num processo
histórico, pois os elementos do fato folclórico existem para explicar nossa
origem, nosso passado e consequentemente, explicar o presente. Esses elementos
só continuarão a se perpetuar e fazer parte no nosso cotidiano, se neles

157
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

existirem valor e significado para quem os vive, pois, caso contrário, serão
deixados de lado, virando apenas uma lembrança em nossas memórias.

MOSTRA DE GINÁSTICA GERAL E FOLCLORE E A INTERDISCIPLINARIDADE NA


FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF) do curso de


Licenciatura em Educação Física da ESMAC vêm promovendo desde 2008,
através de um projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão, a valorização da
diversidade cultural amazônica, através da interdisciplinaridade entre as
disciplinas Ensino da Ginástica (EG) e Ensino da Cultura Corporal Amazônica
(ECCA), estimulando nos acadêmicos o ensino, através do exercício de sua
docência, elaborando planos de aulas com proposta de práxis superadora,
despertando o entendimento da Educação Física nos seus variados campos de
atuação. A pesquisa, estimulando os discentes por intermédio de pesquisas
bibliográficas, no acervo da própria instituição ou demais universidades locais,
ou em bibliotecas digitais. Extensão, desenvolvida pelos discentes através de
ações comunitárias, aulas abertas de Ginástica e Dança, aguçando o
desenvolvimento criativo para a elaboração coreográfica da mostra.
No segundo semestre 2017, foi realizada a 9ª edição da MGGF com o
envolvimento de 02 turmas do 4º semestre do curso de Licenciatura em
Educação Física, sendo 1 no período vespertino e 1 no período noturno,
envolvendo a participação de aproximadamente 80 alunos no total.
O processo de preparação transcorreu nos meses de agosto a novembro,
correspondentes do ano de 2017, ocorrendo através de debates das leituras
específicas de cada disciplina; de práticas corporais pedagógicas desenvolvidas
em sala de aula; com os estudos sobre os referenciais teóricos; utilizando-se
vídeos, filmes e pesquisas bibliográficas.
No final do mês de outubro iniciamos a organização dos trabalhos
dividindo as turmas em um total (06) equipes de 10 a 15 alunos. As equipes
pesquisaram e construíram seus trabalhos a partir dos temas com base nos
objetos de estudo do Folclore, estabelecidos pelos professores das disciplinas,
utilizando o critério de sorteio dos seguintes temas: danças folclóricas, ritmos
populares, lendas e mitos, manifestações de rua, manifestações religiosas e
folguedos populares. Os ensaios para elaboração coreográfica aconteceram sob

158
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

supervisão dos professores responsáveis sempre nos horários de aulas das


disciplinas, EG e ECCA.
Todo o processo de construção das apresentações da MGGF foi
organizado com base nas orientações de festivais de Ginástica Geral (SANTOS,
2010), partindo da observação da realidade do grupo no que tange a quantidade
de integrantes, experiência motora, nível técnico, habilidade, idade, capacidades
físicas, interesse musical e características pessoais. Em seguida, com a escolha
do subtema, a partir dos temas sorteados, para então escolher o tipo de
apresentação como tipo de aparelho, tipos de ginásticas, estilo de dança.
Partindo para a escolha dos movimentos, adequando para a realidade do grupo,
combinado com os movimentos ginásticos e folclóricos, com os
matérias/aparelhos escolhidos, além das formações humanas, geométricas e dos
planos (baixo, médio e alto), tendo como prazo de preparação o período de 30
dias (09 de outubro a 09 de novembro de 2018).
Cada equipe construiu seu trabalho a partir dos seguintes critérios:
Trabalho em equipe com apresentação coreográfica de 5 a 7 minutos. Tendo
como critérios de avaliação: Qualitativo – quanto ao compromisso,
responsabilidade, participação na produção coreográfica, assiduidade e
pontualidade, durante as aulas/ensaios para elaboração coreográfica. Técnico –
relacionado a criatividade, diálogo entre os conteúdos das disciplinas EG e
ECCA, ou seja, presença dos elementos ginásticos (movimentos primários da
ginástica artística, acrobática, rítmica e geral) e folclóricos (características
essências das manifestações folclóricas apresentadas), além da pesquisa
bibliográfica sobre o objeto de estudo. Artístico – quanto a organização da
equipe, referente a indumentárias, trilha sonora, coreografia/expressão corporal
e/ou cenário e estética da apresentação de maneira geral.
O resultado desse processo foi apresentado no dia 10 de novembro de
2017, das 19h às 21h na Praça da Bíblia, na cidade de Ananindeua (PA). Além
dos registros fotográficos feitos pelos professores das disciplinas envolvidas e
pelos próprios acadêmicos, temos também os relises (resumos) de cada
apresentação elaborados por cada equipe.

159
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

REGISTRO E RELISE DAS APRESENTAÇÕES

1. Ao som da Marujada (Manifestação religiosa)


O tema da apresentação é a Marujada de Bragança e temos como título
“Ao som do Marujada”. Trata da festividade em devoção a São Benedito na
Cidade de Bragança que teve sua origem na Marujada, sendo a mais conhecida
dança folclórica da região, temos vários tipos de danças da Marujada como o
retumbão, mazurca, valsa, xote, contra dança e bagré, e selecionamos algumas
para nossa apresentação. A apresentação vem demonstrar de maneira artística
uma releitura manifestação religiosa que ocorre no mês de dezembro em
Bragança, começando por uma procissão e logo em seguida finalizando com o
momento profano da manifestação, a dança da marujada.
Os elementos da ginástica que será utilizado é o girar, saltar e andar, o
folclore presente na apresentação é a dança em si e seus símbolos que se fazem
presentes na manifestação religiosa, conforme se visualiza na figura 1.

Figura 1 – Ao Som da Marujada

Fonte: Arquivo pessoal.

2. Boi – Bumbá: Cantando e Dançando a Arte do Norte (Folguedos


Populares)
Nessa apresentação, vamos apresentar uma das mais belas manifestações
culturais do Norte do país. Considerado um folguedo popular, o Boi-Bumbá é
uma espécie de opereta popular que acontece nas ruas de Belém (PA), no
período junino. Acompanhada de musica, dança e teatro.
A apresentação faz uma releitura artística desse folguedo trazendo ao
publico presente uma coreografia acompanhada por uma música regional,

160
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

acompanhada de dançarinos, representando a influencia indígena dessa


manifestação que dança e brinca de maneira alegre com o personagem
principal, o Boi. Além disso, temos como objetivo resgatar as traições culturais
e apresentá-la as novas gerações a fim de preservá-las.
Na Construção coreográfica utilizamos os elementos da Ginástica como:
o saltar, o girar, o pular. E como elemento Folclórico, os movimentos básicos do
ritmo Boi-Bumbá, traje, trilha sonora, e o símbolo maior da manifestação, o
Boi, como retratado na figura 2.

Figura 2 – Boi – Bumbá: Cantando e Dançando a Arte do Norte

Fonte: Arquivo pessoal.

3. Siriá: o milagre de Cametá para o Mundo (Dança Folclórica)


Trata-se de uma dança folclórica do município de Cametá chamada
Siriá que se apresenta com expressões de amor, sedução e gratidão em sua
coreografia, na qual a gratidão foi a principal justificativa do surgimento da
Dança do Siriá. O mito do surgimento conta que um milagre ocorreu fazendo
surgir centenas de siris na praia para os escravos pescarem, diante desse fato
eles criaram a dança como forma de agradecer.
A apresentação foi pensada e criada para retratar o mito da criação do
Siriá, onde são executados movimentos, que remetem aos que os indivíduos
faziam com as redes ao pescar o crustáceo que dá nome à dança. O trabalho tem
por objetivo apresentar a dança que faz parte da cultura paraense, uma vez que
não é uma dança comum nas manifestações culturais, e também desenvolver
elementos da ginástica que estão compondo a dança folclórica.
Os elementos da Ginástica apresentados na coreografia são: Andar;

161
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Saltar; Girar e a Ginástica natural. Já os elementos folclóricos são: Dança; trilha


sonora e traje.

Figura 3 – Siriá: o milagre de Cametá para o Mundo

Fonte: Arquivo pessoal.

4. Arraial do Pavulagem – Encanto do Boi (Manifestações de rua)


A apresentação do grupo foi inspirada no Arraial do Pavulagem,
manifestação de rua característica da cultura popular paraense, presente no
período junino, nas festas do Círio de Nazaré e no Carnaval. Trazendo com
tema Arraial do Pavulagem – O Encanto do Boi.
O Arraial do Pavulagem, criado em 1987, é um grupo musical paraense
que trabalha com a rítmica da música tradicional produzida na Amazônia
brasileira, formado pelos músicos Ronaldo Silva, Júnior Soares, Rui Baldez. A
coreografia traz em sua composição movimentos do boi-bumbá, e seus símbolos
como: personagem principal o Boi, o Cabeçudo e Estandartes.

Figura 4 – Arraial do Pavulagem – Encanto do Boi

Fonte: Arquivo pessoal.

162
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

5. Maldição da Matinta Perera (Lendas e Mitos)


A apresentação gira em torno da lenda amazônica da Matinta Perera,
onde uma velha toda de preto e cabelos cobrindo seu rosto, tendo também a
capacidade de se transformar em pássaro, mais conhecido como rasga mortalha,
que através de seus gritos e assobios assombram e amaldiçoam aqueles que não
atendem seu pedido de lhe deixar café e tabaco. A dança mostrará um grupo de
Ribeirinhos que se encontram com a Matinta Perera, e por não atenderem seu
pedido, serão amaldiçoados por ela.
A dança mostrará movimentos básicos da Ginástica Geral como correr,
saltar, girar, acrobacias, trabalhando também força e equilíbrio, representado
pela figura 5. Tem como objetivo mostrar uma forma moderna de tratar a dança
e a história de Lendas do nosso folclore.

Figura 5 – Maldição da Matinta Perera

Fonte: Arquivo pessoal.

6. Cronologia do Brega (Manifestações populares)


A composição coreográfica da equipe trata da Cronologia do Brega
apresentando as mudanças que ocorreram durante os anos. Passando desde o
brega romântico (música: Ao pôr do sol, Conquista) onde os casais dançavam
juntos, logo em seguida a entrada na batida do tecnomelody (música:
Fantasias). Apresentando em seguida as músicas mais atuais, como o treme e as
aparelhagens (músicas: Galera da Laje, Crocodilo).
Temos como principais elementos os movimentos básicos do brega,
braços alongados, giros, aviãozinho, estrelinha e pulos, característicos da
ginástica e da cultura popular. A apresentação mostra a diversidade da cultura

163
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

paraense, só no estado do Pará existe o tecnomelody ou tecnobrega. Pode ser


dançado sozinho ou em casal; a coreografia busca apresentar os momentos mais
marcantes que aconteceram durante as transições temporais do ritmo.

Figura 6 – Cronologia do Brega

Fonte: Arquivo pessoal.

Para complementação do processo avaliativo foi realizada a avaliação


dialogada com os grupos sobre e cada equipe apresentou aos professores seus
relatórios. As equipes levantaram pontos positivos sobre a necessidade de
conhecer e valorizar as manifestações tradicionais amazônicas, a importância
de respeitar a diversidade cultural, compreender as relações étnico-raciais e suas
contradições e, a contribuição da atividade para sua formação profissional.
Como pontos negativos os alunos apontaram o pouco conhecimento que
possuem da sua cultura e das manifestações folclóricas, como resultado de
lacunas na sua formação escolar e a dificuldade de trabalhar em coletivo a
partir de interesses, diversidade, contradições e limitações pessoais e cada
integrante do grupo.
A partir dessa avaliação percebemos a necessidade de continuarmos
com este projeto por considerarmos que o professor de educação física ao tratar
das manifestações da cultura corporal precisa conhecer e compreender a
totalidade da diversidade cultural de seus alunos para que haja uma educação
física superadora e transformadora na vida dos sujeitos envolvidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O corpo humano nos permite possibilidades de movimentos,


sobreposições de linguagens. Esta aproximação de ginástica e da própria

164
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

cultura brasileira vem estabelecer uma relação dialética da assimilação do outro


com transformação, podendo criar novas relações nas coreografias de ginástica
geral e folclore, a partir da diversidade cultural amazônica, proporcionando
várias formas de comunicação e expressão.
Estas diversidades culturais podem ser observadas intensamente através
dos estudos coreográficos realizados pelos alunos do Curso de Educação Física
da ESMAC. E assim, acreditamos que quando entendemos o sentido de um
movimento, de uma música, de uma dança, de um folguedo, de uma
manifestação popular ou religiosa, de uma lenda, de uma cantiga ou de uma
brincadeira do universo folclórico de maneira histórica e contextualizada, então
podemos realizar uma releitura e transformá-la em uma coreografia, em outro
universo, alcançando assim dimensões sociais, culturais a pedagógicas que nos
propomos a trabalhar com a ginástica geral e o folclore. Pois, é nos
reconhecendo como sujeitos históricos, com nossas relações e contradições, é
que poderemos aspirar a transformação da nossa realidade, do outro e da
educação do nosso país.

General Gymnastics and Folklore Festival: an experience of valorization of cultural


diversity in teacher’s training in the Physical Education Degree Course from Madre
Celeste Higher Education Institution (ESMAC)

Abstract: This approach to gymnastics and Brazilian culture itself establishes a


dialectical relation between the assimilation of the other with transformation and can
create new relationships in the choreography of general gymnastics and folklore, thus
transmitting a cultural diversity, providing various forms of communication and
expression. We believe that when we understand the meaning of a movement of the
folklore universe and is contextualized, reaching dimensions that we propose when
working with general gymnastics. Thus, the General Gymnastics and Folklore Festival
(MGGF) emerges as an interdisciplinary Teaching, Research and Extension project,
carried out in the Physical Education Degree Course of the Madre Celeste Higher
Education Institution (ESMAC), since 2008, where it presents to the academic
community the interdisciplinary works of completion of the disciplines: Teaching of
Gymnastics (EG) and Teaching of the Amazonian Body Culture (ECCA). Both taught
in the 4th semester of the course. The objective is to value the regional cultural
diversity, with an interdisciplinary characteristic, between two disciplines, EG and
ECCA, in addition to promoting the teaching-research-extension tripod in the ESMAC
Physical Education Degree Course. In this sense, this manuscript aims to report an
experience of appreciation of cultural diversity in the training of teachers of the
Physical Education Degree Course of the Madre Celeste Higher Education Institution
(ESMAC). As a result of this academic experience, we observed that the model used as a
teaching-learning strategy allowed the students to understand the traditional
manifestations and its diversity, as well as to recognize historical subjects of their
culture. In addition to promoting a critical reflection on their teaching praxis.
Keywords: Physical Education; General Gymnastics; Folklore; Cultural diversity.

165
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

REFERÊNCIAS
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Educação Física escolar. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 129-147, abr./jun.
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FRADE, Cáscia. Folclore/Cultura Popular: aspectos de sua história. In: ENCONTRO


COM O FOLCLORE, 10., 2005, Campinas. Anais... Campinas: UNICAMP, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

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São Paulo: Cortez, 2010.

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Phorte, 2005.

NUNOMURA, M.; HARUMI, M.; TSUKAMOTO, C. Compreendendo a Ginástica


Artística. Jundiaí: Fontoura, 2009.

SANTOS, José Carlos Eustáquio dos. Ginástica geral: elaboração de coreografias,


organização de festivais. Jundiaí: Fontoura, 2001.

SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo:
Cortez, 2012.

SOUZA, E. P. M. de. Ginástica Geral: uma proposta para a educação física escolar e
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WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Vivências e concepções de folclore e música


folclórica: um survey com alunos de 9 a 11 anos do ensino fundamental. 2004. 141 f.
Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

166
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

O imaginário amazônico e a musicalidade do Maestro Waldemar


Henrique: uma proposta do ensino da dança na escola de acordo com a
Abordagem Crítico-Superadora
Giovelângela Maria dos Santos Costa de Paula (SEDUC/PA) 42
Rayanne Mesquita Estumano (UEPA) 43
Bruno Luiz de Diniz Santa Brigida (UEPA) 44

Resumo: O artigo trata do conteúdo dança, tendo como suporte teórico a abordagem
crítico-superadora, adotando o materialismo histórico-dialético como parâmetro
científico. Realizou-se uma análise qualitativa, o qual se utilizou das ações
metodológicas descritivas, com uma coleta de dados sustentada a partir de observações e
interpretações dos momentos pedagógicos. O instrumento de coleta de dados, anotações
das falas dos alunos e a partir de observações de dimensões atitudinais do conteúdo
dança. O artigo tem como objetivo apresentar possibilidades do trato do conteúdo
dança, a partir de músicas do Maestro Waldemar Henrique, tendo como parâmetro
teórico-metodológico a abordagem crítico-superadora. Conclui-se que é possível tratar a
dança como conteúdo de aulas de Educação Física, orientada pela abordagem crítico-
superadora a partir da obra do Maestro Waldemar Henrique.
Palavras-chave: Cultura Amazônica. Educação Física. Abordagem Crítico-Superadora.
Dança.

INTRODUÇÃO

Como perspectiva pedagógica, a abordagem crítico-superadora, que


entende que a cultura corporal (jogos, esportes, ginásticas, danças e capoeira)
tem relação com os conteúdos que devem ser tratados nas aulas de Educação
Física. Nesse estudo, é tratado especificamente o conteúdo dança. Em um
clássico da Educação Física – Metodologia do Ensino de Educação Física
(SOARES et al., 2012) –, é apresentada uma proposta pedagógica para o ensino
da dança. Mas, o clássico não dá conta de todos os tipos de dança. Dessa forma,
o estudo contribui no preenchimento desta lacuna de conhecimento na
Educação Física.
Com isso, a questão central do trabalho investiga de que modo é possível
desenvolver o conteúdo dança, levando em conta o imaginário amazônico, a

42
Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da
Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA). E-mail:
cgiovelangela@yahoo.com.br
43
Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail:
rayestumano@hotmail.com.
44
Licenciado em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Especializando em Pedagogia da Cultura Corporal na Universidade do Estado do Pará
(UEPA). E-mail: brunosantabrigida@yahoo.com.br

167
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

partir da obra do Maestro Waldermar Henrique, em aulas de Educação Física,


na abordagem crítico-superadora, com questões norteadoras sobre os
fundamentos da abordagem crítico-superadora, a contribuição intelectual do
Maestro Waldemar Henrique no imaginário amazônico e, a possibilidade de
desenvolver o conteúdo dança, levando em conta o imaginário amazônico, a
partir da obra do Maestro Waldermar Henrique, em aulas de Educação
abordagem crítico-superadora?
Como referencial científico para a análise dos dados foi adotado o
materialismo histórico-dialético, realizando-se uma análise qualitativa, a partir
dos fundamentos da abordagem crítico-superadora e das observações e registros
das aulas.
Assim, o capítulo está organizado em três seções: 1) A abordagem
crítico-superadora; 2) Maestro Waldemar Henrique e Lendas Amazônicas e; 3)
O caminho da escola.
Na primeira seção, são apresentados os fundamentos da abordagem
crítico-superadora, apresentando sua origem, importância e metodologia no
ensino básico. Na seção seguinte, é apresentada a vida e obra do Maestro
Waldemar Henrique de modo que seja compreendido como sua obra influenciou
o imaginário amazônico. E, na terceira e última seção, é apresentada a análise
dos dados, explicitando uma possibilidade do conteúdo dança em aulas de
Educação Física, no ensino, a partir da abordagem crítico-superadora, levando
em conta a cultura popular paraense, mais especificamente as contribuições do
Maestro Waldemar Henrique.

A ABORDAGEM CRÍTICO-SUPERADORA

Esta seção tem como objetivo apresentar os fundamentos didático-


metodológicos da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e da Abordagem Crítico-
Superadora (ACS), e a necessidade da presença no ensino escolar.
Saviani (2009) adota a concepção marxista de homem, sociedade e de
projeto histórico. Para o autor a sociedade está dividida em duas classes
(burguesia e proletariado). Para Saviani (2009) a classe trabalhadora é a
responsável pela criação das condições materiais de existência da humanidade,
está subordinada aos interesses da classe burguesa e almeja a superação de sua

168
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

condição de classe subordinada, enquanto que a burguesia tem como objetivo a


manutenção do status quo, ou seja, a manutenção de sua soberania sobre a
classe trabalhadora, a partir da exploração da força de trabalho e da extração de
mais valia.
Com isso em vista, Saviani (2009) entende que uma forma de fortalecer
a classe trabalhadora e contribuir no processo de superação de classe
subordinada é através de uma educação que almeje a superação de classe, tendo
a escola um papel importantíssimo nesse processo.
Assim, Saviani (2009) acredita que é dever da escola oportunizar o
acesso aos conhecimentos científicos mais avançados para contribuir na
formação de cidadãos críticos, que entendam que a sociedade é dividida em
classes e que uma forma de superar sua condição de classe (trabalhadora) é
através de uma educação crítica. Para Saviani (2009) uma educação crítica é
aquela que permite perceber além das aparências, ou seja, que cultura, educação
e trabalho não são neutros, pois seguem uma direção (superação ou
subordinação da classe trabalhadora).
Para Saviani (2009), cultura é produzida pelo trabalho humano,
historicamente construída e acumulada e socialmente referenciada (ou seja,
segue uma direção de classe). Saviani (2009) entende como trabalho, o processo
pelo qual homens transformam a natureza para construção de produtos para
suprir suas necessidades e transformar outros homens, construindo a sociedade.
Ou seja, é através da produção cultural que os homens constroem a si mesmos.
Dessa forma, entende-se que a socialização da cultura é fundamental para que a
classe trabalhadora construa a si mesma e que supere sua condição de classe
subordinada.
Tanto a PHC quanto a ACS são teorias que se fundamentam no
Materialismo Histórico-Dialético (MHD), tendo a segunda se originado da
primeira. A PHC foi criada por Dermeval Saviani como uma maneira de
confrontar e superar as teorias pedagógicas não-críticas. (SAVIANI, 2009)
A PHC, de acordo com Saviani (2009) é estruturada em momentos
didático-metodológicos: 1) Prática Social Inicial, 2) Problematização, 3)
Instrumentalização, 4) Catarse e 5) Prática Social Final, compreendidas da
seguinte forma:

169
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

A prática social inicial é o primeiro contato com os estudantes,


momento que dá início ao entendimento sobre a realidade dos alunos. Acredita-
se que a prática social inicial ocorra antes do contato direto com os estudantes,
pois conhecer a escola e a comunidade que a cerca é fundamental para
compreensão sobre os alunos. De acordo com Taffarel (1985, p. 22):

Se faz mister que todas as opções e compromissos subsequentes


estejam baseados em um honesto e concreto equacionamento dos
problemas antropológicos, socioculturais. Considera-se que, quanto
mais se conhece detalhes do contexto de trabalho (pessoas, grupos,
instituições), maiores são as possibilidades de atuação para uma
mudança. Esta mudança é fruto da organização de situações que se
irradiam para além da escola, atingindo pessoas, grupo, instituições
e sociedade.

Sendo assim, “[...] quanto mais precisas forem às informações sobre as


condições para o ensino-aprendizagem, ou seja, as condições antropológicas e
sócio-culturais, maior é a possibilidade de o processo decisório ser coerente com
a realidade do aluno [...]” (TAFFAREL, 1985, p. 22-23). Portanto, o
entendimento detalhado sobre as condições sociais dos alunos é necessário para
construção de aulas coerentes com o real. Saviani (2009) conceitua a prática
social inicial como a compreensão das condições materiais objetivas às quais
professores e estudantes estão sujeitos.
A segunda etapa, problematização, de acordo com Saviani (2009),
consiste em, a partir dos conhecimentos obtidos através da prática social
inicial, levantar questões para serem discutidas ao longo da aula. Isso não quer
dizer que todas as questões levantadas serão discutidas em apenas uma aula,
podendo ser encaminhadas para os próximos encontros, sendo discutidas ao
longo do plano de ensino de acordo com as necessidades dos alunos.
Em seguida, na etapa intitulada instrumentalização, o professor
apresenta conhecimentos que os alunos necessitam para resolver as questões
levantadas na problematização. Tal conteúdo apresenta o direcionamento dos
fundamentos teóricos produzidos e acumulados historicamente pela
humanidade a partir da ciência moderna. (SAVIANI, 2009)
No quarto passo didático metodológico da PHC, catarse, os alunos
apresentam as estratégias que criaram para solucionar os problemas levantados
em sala de aula. Saviani (2009, p. 64) entende a catarse como o “[...] momento de

170
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se


ascendeu [...]. Trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais,
transformados em elementos ativos de transformação social”. Há diversas
formas que os alunos podem utilizar para expressar as estratégias, como
desenhos, apresentação de coreografias, textos falados e escritos, entre outras
formas, de acordo com o ciclo e outras características da turma.
E, na última etapa didático-metodológica, na prática social final, os
alunos apresentam de maneira concreta o que aprenderam nas aulas. Para
Saviani (2009) esta é a etapa em que os estudantes não mais compreendem o
conteúdo em termos sincréticos, mas sim de modo sintético. Nesse momento, os
estudantes conseguem compreender a prática social de modo tão elaborado
quanto era possível ao professor.
As etapas didático-metodológicas da Pedagogia Histórico-Crítica não
são lineares, ou seja, não seguem necessariamente essa ordem de forma rígida,
podendo, em determinadas situações, apresentar o predomínio de uma, duas ou
mais etapas. O que foi mostrado foi uma maneira didática de apresentar a
lógica do pensamento da PHC.
A metodologia didático-pedagógica da PHC pode ser desenvolvida a
partir de qualquer disciplina no ensino básico (Língua Portuguesa, Matemática,
Biologia, etc.), inclusive pela Educação Física. Na Educação Física, o Coletivo
de Autores se apropria da PHC e cria uma abordagem pedagógica para essa
área do conhecimento, intitulando-a de abordagem crítico-superadora (ACS),
expressa, inicialmente, no livro Metodologia do Ensino de Educação Física.
(SOARES et al., 2012)
A ACS, fundamenta-se filosófica e cientificamente no MHD e,
pedagogicamente, na PHC. É uma abordagem pedagógica específica da
Educação Física, conceituada por Soares et al. (2012) como uma contraposição
ao paradigma dominante na Educação Física, ao paradigma da aptidão física,
no qual o principal objetivo é o desenvolvimento de valências físicas (força,
velocidade, flexibilidade, etc.), deixando em segundo e terceiro planos, os
aspectos psicológicos e sociais. Tendo como base essa perspectiva, o Soares et al.
(2012, p. 61-62) entendem que “A que trata, pedagogicamente, na escola, do
conhecimento de uma área denominada aqui de cultura corporal [...]

171
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

configurada com temas [tais como]: jogo, esporte, ginástica, dança ou outras
[...]”.
Para Soares et al. (2012), essa abordagem surge para confrontar a
tradicional Educação Física, pautada essencialmente no desempenho prático
dos alunos, tendo como principal objetivo o desenvolvimento da aptidão física.
Contrapondo-se ao paradigma da aptidão física, a ACS entende que o principal
papel da Educação Física no ensino escolar é proporcionar o aprendizado da
cultura corporal (jogos, ginásticas, danças, esportes e capoeira).
A ACS não nega a necessidade dos aprendizados técnicos, mas
compreende que a cultura corporal é mais do que técnicas motoras, entendendo
que a prática pedagógica da Educação Física deve ser diagnóstica, judicativa e
teleológica. Diagnóstica, pois precisa constatar os dados da realidade.
Judicativa, pois necessita fazer julgamento, análises, interpretações da realidade
constatada. E teleológica, pois deve ter um alvo para alcançar, ou seja, deve ter
claro que projeto de homem e sociedade defende. (SOARES et al., 2012)
Outro aspecto característico da abordagem é considerar os ciclos de
aprendizagem no planejamento das aulas. Sendo uma teoria pedagógica
fundamentada no MHD, leva em conta que os conhecimentos no ensino escolar
devem ser organizados de acordo com uma espiral de conhecimento, que amplia
e aprofunda os conteúdos ao longo das etapas.
Para Soares et al. (2012), os ciclos de aprendizagem são uma maneira de
organizar os conteúdos do ensino escolar, distribuídos em quatro ciclos que
abrangem todo o ensino básico.
O primeiro ciclo (pré-escola à 3ª séries) é o ciclo de organização da
identidade dos dados da realidade, de modo que o aluno se encontra num estado
de síncrese, ou seja, compreendem os dados da realidade de forma caótica,
difusa, misturada, cabendo ao professor “[...] organizar a identificação desses
dados constatados e descritos pelo aluno para que ele possa formar sistemas,
encontrar as relações entre as coisas, identificando as semelhanças e as
diferenças.” (SOARES et al., 2012, p. 36).
No segundo ciclo (4ª à 6ª séries), denominado ciclo de iniciação à
sistematização do conhecimento, o aluno deve adquirir consciência de sua
atividade mental, ou seja, deve confrontar os dados da realidade com os seus

172
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pensamentos. O aluno salta qualitativamente quando estabelece generalizações


conceituais.
Em seguida, no terceiro ciclo (7ª à 8ª séries), ciclo de ampliação da
sistematização do conhecimento, “O aluno amplia as referências conceituais do
seu pensamento; ele toma consciência da atividade teórica, ou seja, de que uma
operação mental exige a reconstituição dessa mesma operação na sua
imaginação [...] (SOARES et al., 2012, p. 36)”. O aluno avança qualitativamente
quando reorganiza a constatação dos dados da realidade através do pensamento.
E, no quarto e último ciclo (1ª, 2ª e 3ª séries do ensino médio), ciclo de
aprofundamento da sistematização do conhecimento, o aluno inicia o processo
de percepção, compreensão e explicação das propriedades comuns e regulares
dos objetos. É nesse ciclo que o aluno lida com a regularidade científica,
podendo inclusive ser estimulado à produção de conhecimento científico. O
aluno avança qualitativamente ao estabelecer as regularidades dos objetos.
(SOARES et al., 2012)
Ao longo dos ciclos de aprendizagem, que compreendem o percurso dos
estudantes no ensino básico, os conteúdos da Educação Física, tendo como
referencial teórico-metodológico a ACS, são tratados pela cultura corporal, nas
aulas de Educação Física. Os jogos, ginásticas, danças, esportes e capoeira
podem ser organizados de diversas formas, tendo esta seção como objetivo
apresentarem os fundamentos que norteiam a teoria pedagógica adotada e não
apresentar fórmulas prontas, tendo em vista as variedades culturais das escolas
e dos alunos.
E levando em conta que, além de conhecimentos científicos, a escola
deve oferecer o contato com a cultura popular, este estudo trata de um conteúdo
específico da cultura corporal: a dança, mais especificamente, a dança popular
paraense. Desse modo, na próxima seção, será apresentada a vida e obra do
Maestro Waldemar Henrique, este importante intelectual e artista paraense.

O CAMINHO DA ESCOLA

A Escola Municipal Professora Palmira de Oliveira Gabriel, foi


inaugurada em novembro de 1985, na gestão do prefeito Almir José de Oliveira
Gabriel. O prédio fica localizado na Travessa Timbó n. 681, entre Antônio
Everdosa e Rua Nova, no Bairro da Pedreira em Belém do Pará.

173
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Foi construída em março de 1980, em terreno doado pela prefeitura de


Belém por meio do convênio entre o Ministério da Educação e a Classificação
Nacional de Atividades Econômicas (MEC/CNAE) e o Governo do Estado na
gestão do governador Cel. Alacid da Silva Nunes, para funcionamento de uma
repartição da Fundação de Amparo ao Estudante (FAE) denominada Cantina
II, posteriormente adaptada para escola. Autorizada a funcionar por meio das
Resoluções n. 515/89 e 002/90 do Conselho Estadual de Educação com ensino de
pré-escolar a 4ª série e supletivo.
A Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental
“Palmira de Oliveira Gabriel” está situada em áreas periféricas do Município de
Belém, no bairro da Pedreira. O bairro é conhecido como “Pedreira do Guamá”,
local escolhido pelo General Francisco José de Souza Soares para o desembarque
das forças imperiais que combateram os cabanos, durante a guerra dos cabanos
no Estado do Pará.
De acordo com informações fornecidas pela escola, os alunos
matriculados na instituição são moradores do bairro, matriculadas na escola
geralmente por vizinhos ou até mesmo fazem parte de uma mesma família.
Essas famílias, em sua maioria, são formadas por pessoas com grau de
escolaridade baixa, residentes em moradias simples. Um bairro com
vulnerabilidade social latente.
A maioria das famílias que fazem parte da comunidade escolar é
assalariada e com renda não fixa. As situações expostas comprometem de
maneira gradativa a participação dos pais no processo ensino aprendizagem
dos estudantes, pela ausência nas atividades escolares e na vida de seus filhos.
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de
Oliveira Gabriel, conta com cerca de 460 alunos, distribuídos nos turnos da
manhã, intermediário, tarde e noite, 40 professores e 14 funcionários dos setores
técnico-administrativos. A escola disponibiliza 6 salas de aula, laboratório de
informática, biblioteca, secretaria, sala de professores, sala de arquivo, sala
especializada e uma quadra poliesportiva.

DIÁLOGO DA PRÁXIS PEDAGÓGICA

O planejamento político pedagógico da escola se organiza de acordo


com a proposta da Secretaria Municipal de Ensino e estabelece seus objetivos de

174
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

acordo com as necessidades e realidade da escola, pontuando como objetivo:


escola, cultura e educação. Durante esse período de atuação pedagógica foram
utilizadas nas aulas, a cultura corporal: jogo, dança, esporte, lutas e ginástica,
proposta pelo Coletivo de Autores, como conteúdo das aulas de Educação Física
e destacando também a cultura popular como propulsora nas aulas, neste caso, a
riqueza da musicalidade do Maestro Waldemar Henrique.
O planejamento é feito por bimestre. Desta forma, confirma-se que
existe um planejamento organizado dos conteúdos a serem abordados e tais
conteúdos são diversificados, demonstrando a apropriação e preocupação em
passar para os alunos o vasto repertório da cultural corporal. (SOARES et al.,
2012).
Observa-se a existência do trabalho interdisciplinar com os conteúdos
da Educação Física, conforme Soares et al. (2012, p. 30):

Cada disciplina deve ser considerada na escola como um


componente curricular que só tem sentido pedagógico à medida que
seu objeto se articula aos diferentes objetos dos outros componentes
do currículo (Línguas, Geografia, Matemática, História, Educação
Física etc.).

A abordagem crítico-superadora serve como mola propulsora para o


desenvolvimento das aulas. Segundo Xavier Filho e Assunção (2005, p. 29) “é
uma abordagem propositiva, pois estabelece critérios para a sistematização
dessa disciplina no âmbito escolar. E se apresenta pautado em um projeto
histórico de sociedade que tem como princípio a superação da sociedade
capitalista”. Toda a abordagem teórica adotada pelo professor irá conduzi-lo
para o sucesso de sua prática.
No cotidiano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora
Palmira de Oliveira Gabriel, é utilizado a abordagem crítico-superadora
proposta Soares et al. (2012). No entanto, a pedagogia histórico-crítica é mais
um referencial de estudo, pois estudá-la e experimentá-la possibilitou que
levantassem questões acerca das possibilidades e dos limites dessa metodologia
na disciplina Educação Física.
Além de tudo, percebe-se o entendimento sobre a abrangência que a
Educação Física se propõe, como disciplina curricular na escola. Dispõe de
argumentos que determina a nova perspectiva sobre a Educação Física no que

175
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

concerne a perspectiva da formação humana. Logo, tem-se a compreensão da


Educação Física como uma disciplina que vai além da técnica, do treinamento
desportivo contextualizando a realidade e suas problemáticas com a cultura
corporal.
Exige-se, também, uma participação mais efetiva dos professores de
Educação Física na concepção do projeto pedagógico, pois ao considerá-la
como componente curricular, as suas práticas deverão ser orientadas pelas
diretrizes do Projeto Político-Pedagógico da Escola. Então, se os professores
ficarem ausentes dos momentos de planejamento escolar, será difícil imaginar
ações pedagógicas coerentes e pautadas nos eixos pedagógicos que organizam o
trabalho escolar nos diferentes componentes. Entende-se componente curricular
como a “forma de organização do conteúdo de ensino em cada grau, nível e
série, compreendendo aquilo sobre o qual versa o ensino, ou em torno do qual se
organiza o processo de ensino-aprendizagem” (SAVIANI, 2008, p. 142).
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de
Oliveira Gabriel, tem investido nas ações de novas propostas no âmbito da
Educação Física escolar para a efetivação e consolidação de uma atitude
consciente na busca de uma prática pedagógica mais coerente com a realidade.
Sabe-se que a realidade das aulas de Educação Física normalmente é
caracterizada por aspectos desanimadores, bem como falta de materiais,
estrutura física inadequada, falta de vontade dos alunos e, às vezes, até do
próprio professor ou professora, menosprezo à disciplina, e o não conhecimento
da importância da Educação Física no processo formativo do ser social. Por
isso, a necessidade de ressignificar o entendimento da função e do papel do
componente curricular Educação Física.
Observa-se, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora
Palmira de Oliveira Gabriel, que há necessidade de aquisição de novos materiais
e de reforma da quadra poliesportiva para a prática de uma nova Educação
Física. Deve-se repensar e organizar o espaço escolar a partir de uma
perspectiva pedagógica, política e coletiva, para que as ações possam ter sentido
e significado para os alunos e professores; diferentes abordagens teóricas são
dadas à disciplina, tais como: saúde, desenvolvimento motor, qualidade de vida
e o desenvolvimento da cultura corporal, no entanto, esquecemo-nos de tratar o

176
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

aluno como sujeito historicamente construído e um ser social que está inserido
no contexto educacional que privilegia somente interesses capitalistas.
A docência exige do professor conhecimentos, sensibilidades e
capacidades de reflexão e dedicação profissional. É necessário o preparo das
aulas, estudar o assunto e objetivar cada prática, assim como ensinar aos alunos
que a Educação Física proporciona diversas experiências e que todas as
atividades ministradas poderão auxiliá-los na sua caminhada escolar e,
consequentemente, nas escolhas que cada um fará futuramente.
O ponto positivo da relação aluno com o conteúdo dança na escola é o
de oportunizar a criatividade, fazendo com que ele também expresse suas
experiências corporais, enfatizando sempre o respeito à diversidade cultural
expressa na Obra do Maestro Waldemar Henrique, o que possibilitou o
conhecimento histórico e sua visão crítica acerca da musicalidade.
O planejamento do trabalho pedagógico, estruturou-se no estudo da
biografia do Maestro Waldemar Henrique e nas suas Obras: Foi Botô Sinhá,
Tamba-Tajá, Uirapuru, na visitação aos Teatros da Paz e Waldemar Henrique,
na criação de coreografias e na apreciação da música a partir da riqueza da
Obra do Maestro. As aulas foram sistematizadas pela proposta da pedagogia
histórico-crítica, dentro do método didático: prática social inicial,
problematização, instrumentalização, catarse e prática social final.
O Maestro Waldermar Henrique (1905-1995) foi um compositor
paraense e Diretor do Teatro da Paz, em Belém do Pará. Ele merece
reconhecimento pelas suas composições críticas e pelo olhar sensível que
retratou a Amazônia. Estudou música no Rio de Janeiro e obteve notoriedade
no Brasil e no exterior com mais de 150 composições.
Sendo assim, ao levarmos as canções do Maestro Waldemar Henrique
para a escola, estamos ampliando a compreensão do patrimônio cultural dos
alunos e o reconhecimento social de suas identidades. A partir disso, a
interpretação e a valorização que existe dentro da diversidade cultural que
compõem a Amazônia, visa promover atitudes de respeito e combate a
estereótipos e preconceitos contra as minorias, e segundo Neira (2008, p. 83), a
“[...] tematização do conhecimento popular potencializará novos métodos para
validar a oportunidade das vozes divergentes”. Dessa forma, o trabalho
pedagógico abrirá novos horizontes para a Educação Física nas escolas.

177
Quadro 1 – Nome, descrição e análise das canções do Maestro Waldermar Henrique
Nome da

178
Letra da canção Análise da Canção
canção
Tajá-Panema chorou no terreiro / E a virgem morena fugiu Este fato é um mito na região amazônica. Onde o boto
“Foi Boto no costeiro (bis) / Foi Bôto, Sinhá... / Foi Bôto, Sinhô! / Que transforma-se em um belo rapaz, que veste-se de branco e usa
Sinhá” veio tentá / E a moça levou / No tar dansará / Aquele douto / chapéu branco na cabeça. Este homem conquista facilmente
Foi Bôto, Sinhá / Foi Bôto, Sinhô! / Tajá-Panema se poz a moças jovens e bonitas, casadas ou não. Convida-as para
A Lenda do chorá / Quem tem filha moça é bom vigiá! ( bis) / O Bôto não dançar, namorar e passear para seduzi-las e engravidá-las
Boto dorme / No fundo do rio / Seu dom é enorme / Quem quer que depois disso, volta para o rio. Isso é mascarado muitas vezes
o viu / Que diga, que informe / Se lhe resistiu / O Bôto não pelos vizinhos ou padrastos que acabam assediando as
dorme / No fundo do rio... mulheres e colocam culpa no boto.
Tamba-Tajá / Me faz feliz / Que meu amor me queira bem... / Na tribo dos índios macuxis havia um índio que, por muito
Que seu amor seja só meu, / De mais ninguém, / Que seja amar sua esposa, levava-a sempre consigo para todo lugar.
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

“Tamba–Tajá” meu, / Todinho meu, / De mais ninguém... / Tamba-Tajá, / Me Certa vez, o índio teve que ir para a guerra, mas a esposa
faz feliz / Assim o índio carregou sua “macuxy” / Para o ficou doente, sem poder andar. Mas mesmo assim, o levou nas
A Lenda do roçado, para a guerra, para a morte... / Assim carregue o costas e durante o combate, sua amada foi ferida e morreu. O
Tamba - Tajá nosso amor a boa sorte / Tamba-Tajá / Tamba-Tajá, / Me faz índio, desesperado de amor, enterrou-se junto com ela. No
feliz, / Que mais ninguém possa beijar o que beijei, / Que lugar onde jaziam seus corpos, nasceu um tajá diferente. O
mais ninguém escute aquilo que escutei / Nem possa olhar tajá faz parte de algumas plantas da Amazônia que tem
dentro dos olhos que olhei / Tamba-Tajá... poderes curativos e mágicos.
Certa vez de “montaria” / Eu descia um “paraná” / O caboclo Havia uma tribo de índios cujo cacique era amado por duas
que remava / Não parava de falá(r) / Á, á... Não parava de jovens. Não sabendo qual escolher para esposa, o jovem
falá(r) / Á, á... Que cabôclo falador! / Me contou do cacique prometeu que iria escolher aquela com melhor
“lobisomi”/ Da mãi-d’água, do tajá, / Disse do jurutahy/ Que pontaria. Assim sendo, fez-se uma competição. A jovem que
se ri pro luar / Á, á... Que se ri pro luar / Á,á... Que cabôclo perdeu a prova se chamava Oribicy. Ela chorou tanto por ter
“Uirapuru” falador !/ Que mangava de visagem / Que matou surucucú/ E perdido seu amado, que suas lágrimas formaram um córrego.
jurou com pavulagem / Que pegou uirapuru / Á, á...Que Sua tristeza era tanta, que pediu a Tupã que a transformasse
A Lenda do pegou uirapurú/ Á, á... Que cabôclo tentador! / Cabôclinho num passarinho para que visitar seu amado sem ser
Uirapuru meu amor,/ Arranja um pra mi/m/ 21. Ando “rôxa” prá reconhecida. Tupã realizou o desejo da moça e Oribicy, com
pegar/ “Um zinho”assim; / O diabo foi-se embora / Não quiz sua nova forma, voou até o amado. Para sua grande tristeza,
me dar/ Vou juntar meu dinheirinho / Prá poder comprar. / viu que o cacique vivia muito feliz com sua esposa. É por
Mas, no dia que eu comprar / O caboclo vai sofrer / Eu vou isso que o uirapuru, o pássaro que não é pássaro, vive a
desassocêgar/ O seu bem-querer / Á, á... O seu bem-querer / Á, cantar e a atrair com seu canto todos os que o ouvem, fazendo
á... Ora deixa ele prá lá... com que a sua tristeza seja amenizada.

Fonte: Adaptado de Alivertine (2005).


Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Com isso, organizamos o trabalho pedagógico com o primeiro momento,


a prática social inicial, com o objetivo de perceber o que os alunos conheciam
sobre o Maestro. Perguntamos aos alunos: Vocês conhecem a Obra do Maestro
Waldemar Henrique? Alguma lenda amazônica? Sabem de onde veio essa
manifestação? E o que elas representam?
No segundo momento, a problematização, foram trabalhados temas
transversais como o preconceito racial e cultural, pois por um momento
percebemos expressões preconceituosas e desconhecimento histórico das fortes
influências negras e indígenas. Trouxemos alguns questionamentos: Quem pode
dançar? Quem pode dançar o imaginário amazônico? O porquê da
indumentária?45 Por que da Dança do Boto, Tamba-Tajá, Uirapuru?
Com o terceiro momento, a instrumentalização, foi feita uma
aproximação com o conteúdo, apresentando a biografia e Obra do Maestro;
perguntamos se conheciam ou tinham ouvido falar sobre algumas dessas
composições, falamos sobre o imaginário da Obra, utilizamos contações de
história para enfatizar a cultura ribeirinha e indígenas tão marcantes na Obra
do autor e destacamos sua contribuição na história de nosso povo. Então
falamos sobre a origem, a importância social, econômica e cultural da dança.
Na aula seguinte destacamos a Obra intitulada “Foi Botô Sinhá” e
pedimos que relatassem alguma experiência ou relato que conheciam sobre a
Lenda do Boto. Percebemos muitas narrativas dos alunos sobre o homem que
encanta e engravida a mulher, de acordo com as histórias contadas pela família,
principalmente a do interior do Estado.
Trabalhamos o tema a partir dessas informações e destacamos as
vestimentas utilizadas para compor esse enredo. Estas têm uma origem e
carregam diversos significados narrados por eles. Quanto às roupas utilizadas
na Dança do Boto, destacamos a beleza da roupa e chapéu branco ilustrado
pelos alunos. Partimos então, para a utilização da composição musical do
Maestro para que pudessem relacionar e perceber a narrativa, e eles foram
desafiados a mostrar o que conseguiam produzir com o corpo e suas impressões
com a obra do autor, usando a música do Maestro para motivá-los a mostrar
sua criação.

45
Arte relacionada com o vestuário.

179
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Numa roda de conversa, perguntamos aos alunos sobre o que acharam


da atividade proposta e o que sentiram com a atividade, utilizando o corpo
como instrumento de criação e criatividade. A partir disso, trouxemos outras
imagens da obra do Maestro como “Uirapuru” e “Tamba-Tajá”, para poderem
ampliar o conhecimento com a obra do autor, as quais não eram conhecidas
pela maioria dos alunos – em uma das turmas ninguém sabia do que tratava as
outras Obras.
Na aula seguinte, levamos para a turma um instrumento de sopro
representando o som de um pássaro para que os alunos experimentassem
aproximação com o som do Uirapuru, o que despertou curiosidade e alegria na
turma; partimos, a seguir, para o estudo sobre a Obra do Uirapuru e sua
experimentação com a movimentação do pássaro.
Depois, destacamos a obra Tamba-Tajá, trazendo a discussão sobre sua
história e musicalidade evidenciado no trato com o canto. Com isso,
apresentamos a Obra do autor e sua proposta com a dança, este momento
também foi utilizado para perceber quais informações os alunos traziam em
seus corpos sobre o tema em questão.
E ao definir o folclore, Cascudo (1967) diz que este é um patrimônio de
tradições que é transmitido oralmente e conservado pelo costume. Um
patrimônio que estaria presente em todos os países e em variados agrupamentos
sociais: “Todos os países do mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes
profissionais, possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e
é defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e
contemporâneo” (CASCUDO, 1967, p. 9). Dessa maneira, compreender o
folclore, suas origens universais, as fusões das culturas indígena, negra e
portuguesa e a convergência de inesperadas tradições que são formadas,
compreender-se-á melhor a vida nacional e as singularidades que a
caracterizam.
Logo, discutimos sobre a organização do espaço desta dança, sendo este
um elemento que compõe os fundamentos da dança de acordo com Soares et al.
(2012). Como produção, ainda fizemos mostra de vídeo sobre as danças
estudadas, para que os alunos pudessem perceber todo o assunto e
oportunizamos a eles ampliar esse conhecimento com visitas aos teatros, onde
constatamos o deslumbramento deles com os locais visitados.

180
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Como quarto momento, a catarse, a dança como elemento da cultura


corporal trouxe discussões sobre a nossa riqueza no imaginário amazônico e
como vem sendo executada nas propostas de aulas ministradas, este momento
serviu como avaliação do conteúdo em que os alunos foram indagados sobre os
conhecimentos trabalhados, e destes quais eles consideraram mais importantes.
Dentre as respostas, obtivemos uma grande incidência dos elementos da nossa
cultura, conhecer o que é nosso e a partir disso, trabalhamos a construção de
uma coreografia nas outras aulas.
No quinto momento, na prática social final fizemos o momento de
avaliação da aula, iniciamos a discussão sobre o quê de novo foi apreendido
com o conteúdo dança a partir da Obra de Waldemar Henrique. Assim, buscou-
se avaliar a aula e perceber a aceitação do tema, as discussões levantadas e os
interesses despertados com as informações trazidas pelos professores e pelos
alunos na troca de conhecimento.
A escola teve a oportunidade de vivenciar um festival junino
organizado pelo Departamento de Educação Física junto a Secretaria de
Educação de Belém (SEMEC) que reuniu várias escolas da rede municipal de
ensino com apresentação do tema “Festival Junino” e a Escola Municipal de
Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel levou a riqueza do
Lendário do Boto, construído nas aulas.
A experiência foi maravilhosa, tanto para os professores que puderam
ver a concretização e reconhecimento do trabalho, quanto para os alunos que
puderem conhecer a grandiosidade do Maestro Waldemar Henrique, mas agora
munidos de elementos que os tornam diferenciados, por entenderem não apenas
dos movimentos corporais da dança, mas também entenderem seu contexto
histórico, suas influências, raízes e densidade social.
Os ensinamentos sobre o imaginário amazônico devem ser abordados
como práticas pedagógicas desenvolvidas em um processo de ensino e
aprendizagem, levando em consideração o sujeito aluno, seu contexto e os
ambientes com os quais interagem na vida em sociedade, criando-se múltiplas
possibilidades para a construção desse conhecimento.
A partir disso, a dança como conteúdo da Educação Física, permite
uma leitura e uma releitura diferenciada de nós mesmos, dos outros e do mundo.
Por meio do corpo que dança, estabelecemos relações com os sons, as imagens,

181
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

as palavras e as narrativas que nos circundam e podemos dialogar com elas.


Portanto, a dança, inserida por meio da disciplina curricular de Educação
Física e compreendida como elemento da Cultura Corporal, cumpre um
importante papel na educação do sujeito crítico e transformador da realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo possibilitou muitas reflexões sobre a dança na escola como


perceber que é um conteúdo de ensino possível de ensinar de novas formas a
partir da cultura corporal, tendo como aporte teórico-pedagógico a abordagem
crítico-superadora, considerando a cultura amazônica a partir da obra do
maestro Waldemar Henrique para o ensino da dança no palco da escola.
Na escola Palmira Gabriel a dança faz parte das práticas inseridas como
conteúdo de ensino, que possibilita desenvolver a riqueza da cultura amazônica,
através da composição do maestro, em que destacaram-se as lendas da
Amazônia como molas propulsoras para o desenvolvimento das aulas,
apresentando a dança na dinâmica histórica e desenvolvendo os elementos
técnicos sem abrir mão do contexto histórico e social e da beleza da obra do
poeta da Amazônia, tratando-a como conteúdo de ensino da Educação Física
que amplia o conhecimento a identidade amazônica.
Dessa forma, conclui-se que é possível tratar a dança como conteúdo de
aulas de Educação Física, orientada pela abordagem crítico-superadora a partir
da obra do Maestro Waldemar Henrique de modo que os alunos compreendam o
conteúdo além dos aspectos técnicos, considerando o contexto histórico e social
da cultura amazônica, tomando consciência da dança a partir de uma
perspectiva ampla de cultura.

The Amazonian imaginary and Maestro Waldemar Henrique's musicality: a proposal of


the teaching dance in school according to the critical-surpassing approach

Abstract: The article deals with the dance content, theoretically based on the critical-
surpassing approach, adopting the historical and dialectical materialism as the
scientific parameter. It carried out a qualitative analysis, in which it used the
descriptive methodological actions, with a data collection sustained by observations and
interpretations of the pedagogical moments. The tools for data collection included notes
of students' speeches and observations of attitudinal dimensions of the dance content.
The article aims to present possibilities of dealing with the dance content, from Maestro
Waldemar Henrique's music, based on the critical-surpassing approach. It concludes it
is possible to treat the dance as content in Physical Education classes, guided by the

182
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

critical-surpassing approach from Maestro Waldemar Henrique's work.


Keywords: Amazonian Culture. Physical Education. Critical-Surpassing Approach.
Dance.

REFERÊNCIAS

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TAFFAREL, Celi Nelza Zülke. Criatividade nas aulas de Educação Física. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.

183
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

184
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Para além de desculpas: fatores que limitam o trabalho com a questão


étnico racial na Educação Física da rede municipal de ensino de Porto
Alegre
Gabriela Nobre Bins (SMED-Porto Alegre) 46
Vicente Molina Neto (UFGRS) 47

Resumo: Este artigo apresenta a analise dos limites para o trabalho com as questões
étnico-raciais na escola oriundos da triangulação dos dados da investigação
“Mojuodara: a educação física e as relações étnico-raciais na RME-POA”. A pesquisa,
de caráter qualitativo, é constituída de um questionário diagnóstico e um estudo de caso
etnográfico. Entre os limites apontados estão a dificuldade de se estabelecer um trabalho
coletivo, principalmente, que abranja esse tema; as dificuldades do dia a dia da escola e
sua rotina; a carência na formação para tratar do tema; o conceito de igualdade relatado
pelos professores e o fato de a Lei n. 10.639/03 e a Lei n. 11.645/08 serem políticas de
direito, mas ainda não serem políticas que se concretizem na prática.
Palavras-chave: Educação Física. Escola. Relações étnico-raciais.

INTRODUÇÃO

Esse artigo procede da investigação intitulada “Mojuodara: a educação


física e as relações étnico-raciais na rede municipal de ensino de Porto Alegre”.
Ao longo de mais de quinze anos de experiência docente em escolas públicas,
constatamos com frequência episódios em que o dispositivo escolar inviabiliza a
reflexão sobre as questões étnico-raciais nas quais os alunos e alunas negras
estão envolvidos. Na busca de compreender esse fenômeno, a pesquisa teve como
foco a educação física e as relações étnico-raciais na Rede Municipal de Ensino
de Porto Alegre (RME-POA).
A questão de pesquisa que norteou nossa análise e vertebrou esse texto
foi “quais os limites e as possibilidades para que o trabalho ou o
desenvolvimento das questões étnico-raciais aconteça nas aulas de Educação
Física da RME-POA”; e teve como objetivos identificar e compreender como os
professores de Educação Física das escolas municipais de Porto Alegre abordam
as questões étnico-raciais em suas aulas e quais dispositivos político -
pedagógicos Municipais, Estaduais e Federais interferem nessa abordagem. A

46
Doutoranda em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Professora da Secretaria Municipal de Educação de Porto
Alegre (SMED). E-mail: ganobre@hotmail.com
47
Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela Universitat de Barcelona (UB-
Espanha). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
vicente.neto@ufrgs.br

185
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pesquisa, de caráter qualitativo, é constituída de um questionário diagnóstico


(endereçado a todos os professores de Educação Física da rede e com um retorno
de 58%) e um estudo de caso etnográfico com um professor que pauta sua
prática pedagógica nos valores civilizatórios afro brasileiros.
Analisando os dados que emergiram da etnografia e dos questionários,
alguns limites para o trabalho com as relações étnico-raciais na escola ficaram
em evidência. Entre eles, a dificuldade de se estabelecer um trabalho coletivo,
principalmente que abranja esse tema; as dificuldades do dia a dia da escola e
sua rotina; os atos de fala dos professores de não terem formação para tratar do
tema; o conceito de igualdade relatado pelos professores e o fato de a Lei n.
10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008, serem
políticas de direito, mas ainda não serem políticas de fato, que se concretizem
na prática. Sendo assim, construímos as seguintes categorias para discutir esses
limites: a carência na formação; lei de direito, mas não de fato; a estrutura e
visão da escola; a solidão e os atropelos da escola e igualdade X equidade.

CARÊNCIA NA FORMAÇÃO

Muitos professores afirmam não trabalharem as questões étnicas por


falta de formação. Essa afirmação pode até servir como uma desculpa para a
falta de abordagem da temática, mas não podemos ignorar o fato de que
realmente não vemos essas questões abordadas nas universidades brasileiras,
sejam elas públicas ou privadas. Essa é uma realidade que perpassa não só as
faculdades de educação física, mas a maioria dos cursos de licenciatura das mais
diversas áreas. Esses cursos estão longe de tratar temas que reflitam o dia a dia
dos alunos e alunas e que estejam conectados com suas realidades.

Lamentavelmente, nas faculdades de educação do País, não será


difícil constatar a existência de uma estrutura curricular que sequer
inclui o debate sobre as demandas históricas dos movimentos
sociais pela educação. As análises presentes nas diferentes
disciplinas curriculares dos currículos de licenciatura e pedagogia
ainda tendem a privilegiar os conteúdos, desconectados dos sujeitos.
(GOMES, 2011, p. 43).

Examinando os currículos atuais de algumas das universidades gaúchas


de onde são oriundos os professores de educação física em exercício profissional
na RME-POA, entre elas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

186
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Pelotas


(UFPEL), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Instituto Porto Alegre
(IPA) e Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), percebe-se que ainda hoje,
onze anos após a promulgação da Lei n. 10.639/03, há poucas referências a esse
tema nos seus currículos. Com exceção da UFPEL, que, no seu projeto
pedagógico do curso de Educação Física de 2013 faz referência explícita à lei
10.639/03 e aponta que, “a Educação Física enquanto componente curricular da
Educação Básica, requer um professor conhecedor e atento às questões de
relações étnico-raciais (lei nº 10.639, 2003)” (UFPEL, 2013); e da UNISINOS,
que tem em seu currículo, além da disciplina de capoeira, as disciplinas de
“Cultura, diferença e educação”, “Afrodescendentes na América Latina”, “Povos
Indígenas na América Latina” e “Educação das relações étnico raciais e
culturais na escola básica”; nas outras instituições não encontramos, nas
ementas das disciplinas, nenhuma ênfase nessas questões.
No currículo para ingressantes, em 2014, do IPA e no da UFSM consta
apenas a disciplina de Capoeira; a UFRGS oferta uma disciplina denominada
“Seminário Educação e Movimentos Sociais” de 2 créditos eletivos; e nos
currículos das licenciaturas da PUC-RS e da ULBRA não consta nem uma
disciplina que aborde as questões étnico-raciais de alguma forma. Estes dados
vão ao encontro do que Gomes (2011) aponta:

[...] tal desequilíbrio nos currículos expressa o quanto a formação de


professores (as) ainda precisa avançar. Ele revela a tensão nas
relações de poder frente às diferentes interpretações e tendências
nos debates e nas práticas de formação inicial e continuada de
professores (as) da educação básica. Indo mais longe, a tensão
expressa o predomínio de um certo tipo de racionalidade, que
impera nos meios acadêmicos e afeta a formação docente. Trata-se
da concepção que considera e elege o conhecimento científico como
a única forma legítima de saber e menospreza os outros saberes
construídos na dinâmica social, sobretudo aqueles produzidos e
sistematizados pelos movimentos sociais. (GOMES, 2011 p. 44).

Os currículos analisados nesta pesquisa são currículos atuais, que


provavelmente não correspondem ao que os professores participantes desta
pesquisa tenham vivenciado; mas partimos da premissa que, ao longo dos anos,
os currículos tenham sido revisados e aprimorados; portanto, se nos atuais não
encontramos quase referência às questões étnicas, é de questionar se as

187
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

encontraríamos nos antigos.


Nas respostas aos questionários, encontra-se referência à falta de
formação em 26 questionários. Quando perguntados sobre se já haviam
realizado alguma formação sobre o tema, somente dois professores se referiram
à sua formação inicial; um deles afirmou “ter participado de algumas atividades
em eventos locais e regionais na época da graduação” e o outro na UNISINOS,
“sim, fiz formação na universidade quando da minha formação acadêmica”.
Além destes, mais duas respostas falam de formação em nível de pós-graduação;
uma na (Faculdade Porto-Alegrenses) FAPA, no pós em cultura afro-brasileira e
a outra na Faculdade de Educação da UFRGS em educação para a diversidade.
O restante das respostas trazem outros tipos de formação continuada.
Dentre as falas sobre a falta de formação nos questionários, duas delas
estão relacionadas à como as políticas para as relações étnico raciais se refletem
na prática pedagógica dos professores; “timidamente, por falta de formação” e
“não vejo, além das leis citadas, políticas claras para a educação inclusiva e
antirracista. Nunca tive uma formação específica para discutir essas questões,
nem soube que há políticas públicas que foram ou serão implementadas na
nossa secretaria”. As outras falas são encontradas em resposta à pergunta se os
professores trabalham algum conteúdo da cultura corporal afro ou indígena.
Nessas respostas, os professores alegam não trabalhar por falta de formação,
conhecimento e familiaridade com o tema; ou, mesmo que afirmem trabalhar
esses elementos, enfatizam não terem tido formação para tanto.
Deste segundo grupo, destacamos algumas respostas: “sim trabalho, mas
de modo teórico. Gostaria de fazer mais, mas tenho limitações de formação para
articular melhor a questão com práticas regulares”; “sim, já trabalhei capoeira,
embora não tenha formação para isso”; “não faço mais por desconhecimento de
elementos que me auxiliem em minha proposta pedagógica, falha minha e da
minha formação”; e “trabalho capoeira, maculelê, puxada de rede e samba de
roda. Trabalho com estes porque sou capoeirista há 16 anos e estes quatro
elementos compõem o universo da capoeira. Não tive formação a respeito na
graduação. Meu preparo foi fora dos bancos escolares e, por esse motivo,
compreendo a dificuldade dos meus colegas em trabalhar com a temática da
afro-descendência. A universidade não prepara para isso. Além da minha
formação como capoeirista, cursei a disciplina ‘Capoeira I’ na Universidade

188
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Federal da Bahia (UFBA) para tentar suprir falta de conhecimento teórico


gerado pela má formação propiciada pela maioria de nossas universidades no
que se refere à cultura corporal afro e indígena”. Essas respostas apontam para o
fato de que o discurso da falta de formação não é uma mera desculpa para os
professores não realizarem as atividades, pois muitos já vêm realizando, mas
sim uma dificuldade à inclusão desse conteúdo.
Os dados acima apresentados são similares aos encontrados em pesquisa
realizada há quase trinta anos. Em trabalho sobre o preconceito na escola, de
1988, a pesquisadora do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Vera Moreira
Figueira, constatou que todos os professores entrevistados,

[...] declararam não ter recebido qualquer tipo de orientação


pedagógica sobre a questão racial no Brasil por ocasião de seus
cursos de formação profissional ou nas escolas onde lecionaram. Ou
seja, os cursos de complementação pedagógica (nos casos de
professores com nível de escolaridade superior) ou os cursos de
formação (equivalente ao segundo grau) não dedicam qualquer
ênfase, ou ainda, desconhecem a especificidade da questão racial
brasileira. (SANT’ANA, 2005, p. 56).

Depois de tanto tempo, esse quadro não avançou muito, ainda


encontramos uma carência muito grande na formação quando o assunto são as
questões étnico-raciais. Autores como Gomes (2011) e Munanga (2005) vêm
alertando para essa falta de preparo para lidar com o desafio da problemática
da convivência com a diversidade. Após a promulgação das Leis n. 10.639/03 e
n. 11.645/08, muitos cursos e seminários sobre o tema foram implementados em
diferentes lugares. Os núcleos de estudos afro-brasileiros das universidades
públicas e privadas do País têm realizado diversos cursos e disciplinas, têm
organizado seminários, produzido materiais didáticos e pesquisas. “No entanto,
a movimentação não é suficiente para superar a situação de desequilíbrio
enfrentada pela discussão sobre a diversidade étnico-racial nos processos de
formação inicial e continuada de professores (as)” (GOMES, 2011, p. 41).
Se em algumas áreas já são encontrados materiais didáticos e pesquisas
que possam ajudar e respaldar a prática pedagógica dos professores, mesmo que
ainda em número insuficiente, na Educação Física esse panorama ainda é
deficiente. A pesquisa aos bancos de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Scientific Electronic Library Online

189
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

(SCIELO) e algumas revistas científicas da área, realizada em 2013, revelaram


números pouco animadores.
Nos bancos de teses e dissertações da CAPES há o registro de 167 teses
ou dissertações sob o descritor “relações étnicas e educação”. E sob o descritor
“relações étnico-raciais e educação física” constam 9 trabalhos, entre teses e
dissertações, sendo que somente 4 são específicos na área de conhecimento
Educação Física.
A dissertação de Bento (2012) tematiza a prática social de jogos de
origem ou descendência indígena e africana no contexto das aulas de Educação
Física, buscando compreender os processos educativos que aconteciam nessa
prática. No trabalho de Maranhão (2009), o autor apresenta uma experiência de
implementação da Lei n. 10.639/03, por meio da utilização de jogos de origem
e/ou descendência africana em aulas de Educação Física; Moreira (2008) faz um
estudo sobre os impactos da Lei n. 10.639/03 no ensino da Educação Física em
escolas de Salvador; por sua vez, Santos (2007) apresenta a perspectiva dos
alunos negros nas aulas de Educação Física.
Os demais versam sobre o livro didático e o ensino de ciências,
preconceito e discriminação nas aulas de geografia, abordagens da linguagem e
diálogos das relações étnico-raciais em sala de aula e as relações de famílias
negras da comunidade rural do Mato Grosso com a educação escolar. Nos
periódicos do Portal de Periódicos da CAPES, encontramos 26 artigos que se
relacionavam ao descritor “negro e educação” e também 26 artigos com o
descritor “educação e relações étnico-raciais”. Mas nenhum que relacionasse o
tema ao ensino da Educação Física.
No banco de dados do SCIELO, encontramos 14 artigos sob o descritor
“o negro e a educação”; apenas um voltado para a Educação Física (SANTOS;
MOLINA NETO, 2011). Pesquisando relações étnicas e educação, encontramos
11 artigos; e novamente entre esses apareceu o artigo de Santos e Molina Neto.
Quando o marcador usado foi “Educação Física e as relações étnico-raciais”,
dois artigos foram relacionados, mas somente um realmente tratava da área da
Educação Física. O outro artigo era sobre a relação entre corpo e educação na
análise de um filme.
Além dos bancos de dados da CAPES e SCIELO, realizamos uma busca
mais detalhada nas revistas integrantes do estrato superior do WEBQUALIS da

190
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

área de conhecimento Educação Física. Na revista Movimento, com relação às


questões étnico-raciais, encontramos somente um artigo, que fala dos
estereótipos raciais na sociedade brasileira a partir do futebol. Quando
buscamos sob o descritor “negro e a Educação Física”, 14 artigos foram
relacionados, mas com exceção de um artigo, que trata dos jogos e o preconceito
racial na pré-escola, não encontramos estudos específicos que tratem das
questões étnico-raciais na Educação Física escolar. Esse é um dado importante,
pois corrobora a constatação de falta de formação que afirmam os professores
das escolas.
Na revista Motriz, para o descritor “relações étnico-raciais” nenhum
item foi relacionado; enquanto para o descritor “o negro e a educação física”,
quatro itens apareceram. Desses quatro itens, dois eram os anais de congressos
de Motricidade Humana; e dos restantes, um falava sobre o comportamento das
torcidas organizadas e outro sobre o futebol feminino nas olimpíadas de
Pequim. Não foi encontrado nenhum artigo que relacionasse as questões étnico-
raciais e a Educação Física escolar. O que também aconteceu em relação à
revista Pensar a Prática. Dos quatro itens relacionados ao marcador “o negro e a
Educação Física”, um deles era relacionado ao futebol; um à capoeira, e os
outros dois relacionavam-se ao corpo. Na Revista Brasileira de Ciências do
Esporte (RBCE), não foi relacionado nenhum item sob os marcadores “relações
étnico-raciais”, “o negro e a Educação Física” ou “negritude”; quando o
marcador foi “o negro”, encontramos dois artigos: um sobre o negro no futebol; e
outro sobre a capoeira. Ainda pesquisamos na RBCE sob o descritor “racismo”,
onde o único item relacionado foi um artigo que aborda a trajetória de
Muhammad Ali.
O número irrisório de trabalhos sobre a temática racial na Educação
Física é mais um dado que corrobora a afirmação do professor Baobá (professor
experiente da RME-POA, um de nossos colaboradores e participante da
etnografia), de que estamos muito distante dessa discussão. Segundo ele,

[...] dentro da educação física nem se fala nisso, isso nem existe na
educação física, nas poucas formações que eu pude ir não tem
discussão é como se isso não passasse pela área; por que no meu
tempo de graduação isso passava longe da academia também, e na
realidade eu acho que isso está tão perto da educação física, são

191
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

diversos motivos, mas tem um que pra mim é o principal... porque


está no corpo. (Fragmento da entrevista com professor Baobá).

Analisando a revisão feita nos bancos de dados da CAPES e nas revistas


acima citadas, notamos que os Programas de Pós-Graduação da Educação Física
têm pouco interesse no estudo dessas questões na escola. O que é muito
preocupante, pois a diversidade étnico-racial faz parte do cotidiano das escolas.
Como diz o professor Baobá, ela está impressa nos corpos dos nossos alunos e
alunas, portanto precisamos de elementos que formem os professores para lidar
com essa diversidade e as problemáticas que possam decorrer dela.

UMA POLÍTICA DE DIREITO, MAS NÃO DE FATO

A Lei n. 10.639/03 é fruto de longas e intensas mobilizações dos


movimentos sociais, principalmente do movimento negro. A educação era um
elemento central de mobilização do movimento negro, que, principalmente após
a criação do Movimento Negro Unificado, em 1978, passa a pressionar o
governo para a implementação de políticas de valorização da população negra
(DORNELLES, 2010). Na época da formulação da Constituição Federal de
1988, apresentaram algumas propostas que não foram incorporadas no texto
final da Constituição.

Entre as propostas apresentadas pelo movimento negro, no que se


refere à educação, o principal debate em torno da educação é o de
que o currículo escolar deve incluir o negro como sujeito na história
do Brasil e a história do negro na África, atuando de forma crítica
em relação a lógica hegemônica da homogeneidade. Por isso, a
necessidade de que o texto constitucional garanta que a história e a
cultura do negro e do índio sejam tratadas nos níveis da educação
brasileira. (DORNELLES, 2010, p. 43).

Em 2003, finalmente, o governo brasileiro promulga a Lei n. 10.639, que


altera os artigos 26, 26A e 79B da LDB e institui a obrigatoriedade do ensino da
historia da África e de seus descendentes nas escolas. Gusmão (2008) afirma que
a legislação é uma produção social localizada no tempo e no espaço, e é
resultado de tencionamentos entre necessidades e interesses sociais e históricos.
A Lei n. 10.639/03 é fruto de um avanço histórico, tecnológico e social
(SOUZA, 2009). Segundo a autora “a lei 10.639/03 referenda uma conquista
histórica, de ativistas e militantes, que há muito vêm trabalhando para a

192
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

efetivação de políticas afirmativas” (SOUZA, 2009 p. 91).


Porém, o fato de termos uma lei sancionada não significa na sua
aplicação. Analisando os dados do trabalho de campo e as referências teóricas
sobre o tema, nos atrevemos a dizer que precisamos avançar muito ainda para a
implementação efetiva do ensino dessas questões nas escolas. Sobre essa
distância entre a legislação e sua implementação Souza (2009) afirma:

[...] a LDB é a maior lei da educação. E dela partem as demais leis


voltadas para as reformas educacionais. Mas quantas e quantas leis
são criadas e nunca conhecidas pela sociedade ou colocadas em
prática? Enquanto conteúdo, raramente qualquer lei é discutida em
sala de aula. Precisamos coletivamente despertar corações e mentes
para que as legislações não permaneçam só no papel por muitos e
muitos anos. (SOUZA, 2009 p. 35).

Nas escolas municipais de Porto Alegre, encontramos várias


experiências de professores que contribuem à implementação da lei; algumas
delas ficamos conhecendo a partir dos relatos de professores nas escolas. Mas
mesmo com essas várias experiências, a lei e o trabalho docente com as questões
étnico raciais ainda estão distantes da comunidade escolar como um todo e de
muitos professores especificamente.
Dos 131 professores que responderam aos questionários desta pesquisa,
36 afirmaram não conhecer a legislação federal (Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08,
o que representa menos de 30%. Esse número é relativamente pequeno,
demonstrando que os professores de Educação da Física da RME-POA que
participaram desta pesquisa, em sua maioria, conhecem as leis em questão,
porém quando se trata de pô-las em prática esse percentual não se mantém.
Somente 61 professores, o que corresponde a 46,5%, afirmaram trabalhar
elementos da cultura corporal afro ou indígena e abordam a temática étnico-
racial, o que caracterizaria uma experiência de implementação da lei.
Perguntamo-nos o que faz com que os restantes 23,5% dos professores
que conhecem as referidas leis não as coloquem em prática em suas aulas. Seria
somente pelos limites apontados ou também por falta de uma política clara da
gestão educacional do município de Porto Alegre?
Porto Alegre foi uma das cidades pioneiras na inclusão de leis com o

193
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

intuito de uma educação antirracista48. Em 2003, após a promulgação da Lei n.


10.639/03, foi criada na SMED-POA a Assessoria Pedagógica de Relações
Étnicas; e em 2006, mediante uma portaria, foi instituido o Grupo de Trabalho
em Relações Étnicas (GTRE). O grupo surgiu da necessidade, naquele momento,
de ter um grupo de formadores para dar continuidade à execução do projeto “A
Cor da Cultura”49 para a formação de professores.
Nesse período, a RME-POA teve um momento de investimento na
implementação e no acompanhamento do cumprimento das Leis n. 10.639/03 e
n. 11.645/08. Na época de criação do GTRE, a assessoria queria que o
cumprimento da legislação fosse um compromisso da escola e não só de alguns
professores; que fosse um compromisso de toda a RME-POA. Segundo a
assessora da época, o desenvolvimento de uma educação antirracista e o estudo
das relações etnico-raciais passa pelo estabelecimento e fortalecimento de
políticas públicas de estado.
O GTRE funcionou com reuniões períodicas, em que os professores
eram liberados de suas escolas para participarem das reuniões, até 2011, quando
houve uma desestruturação do GTRE. Desde sua criação até os dias de hoje, a
assessoria pedagógica de relações étnicas teve um total de quatro assessores.
Acompanhamos o inicio do trabalho do atual assessor 50 e a retomada dos
trabalhos do GTRE em agosto de 2012. Desde o início, o discursso do assessor
mencionava a necessidade de reestruturação do GTRE.

Segundo o discurso do assessor, essa é uma reestruturação do GT


das relações étnico-raciais, e ele pretende fazer uma abordagem
pedagógica, já que os assessores anteriores foram “saídos” da
assessoria por suas posições politicas e ele não pretendia que isso
acontecesse com ele. (Relato do diário de campo de 30/08/2012).

As Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08 são um fato, elas existem de direito e


estão para serem implementadas. A assessoria existe, pois é uma demanda da
48
Em 1999, a Lei municipal n. 8.423, de 28 de dezembro, institui o conteúdo "Educação
Antirracista e Antidiscriminatória" nas escolas de 1º e 2º grau do município.
49
A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira,
fruto de uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Centro de Informação e
Documentação do Artista Negro (CIDAN), o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e
a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Disponível em:
<http://www.acordacultura.org.br>.
50
Para fins desta pesquisa colocamos o codinome de Mestre Griot Aprendiz ao assessor
das relações étnico raciais da secretaria.

194
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

lei, mas na realidade ela não tem autonomia e muito menos apoio institucional
para viabilizar maiores ações em prol do ensino das questões étnico-raciais na
escola. Falta articulação com o setor pedagógico da secretaria e muitas vezes
interesse das escolas. A fala do assessor vem ao encontro do que observamos
durante o trabalho de campo:

Minha primeira observação e aprendizado foi entender que não


teria o apoio objetivo das estruturas hierárquicas da secretaria para
fazer o que tinha que ser feito. Assim como minhas colegas, iniciei
um processo de produzir e executar a ação, mesmo sem o recurso,
sem os materiais, sem instrumentos, sem "mailing" e não entrar no
“POLIQEIXUME”, como costumo dizer; que é quando a pessoa
reclama de tudo, mas não faz um mínimo de ação dentro do possível
para melhorar a realidade encontrada. (Trecho da entrevista do
Mestre Griô Aprendiz).

Da mesma forma, o professor Baobá avalia a política da secretaria para


essas questões e o trabalho do Mestre Griô Aprendiz:

Sabe, [...] como teoricamente é obrigatório esse trabalho, existem


sempre os departamentos, os setores, mas ele não está, por exemplo
aqui em Porto Alegre; ele está numa pessoa que faz o que pode ou o
que não pode, que rema contra a maré, mas ele está sozinho e não
está institucionalizado dentro da secretaria, apesar de ser
institucional o cargo dele, o fazer é instituído, o fazer não está
dado... o fazer é sempre algo que não está nos documentos oficiais,
os encontros sempre são algo que é ajeitado mas não é algo que está
dentro da política de formação [...]. (Fragmento da entrevista com o
professor Baobá).

As ações realizadas na RME-POA em direção à implementação das leis


são ações individualizadas. A lei é garantida, mas carece de legitimação, no
espaço institucional da escola. Nesse ambiente formal há um trabalho quase
heroico de muitos educadores e educadoras. E os resultados dos trabalhos desses
educadores e escolas são cooptados e acabam veiculados pela mantenedora como
propaganda política da gestão educacional.

A sua sistemática de referência a algumas ações da gestão em sua


comunicação “oficial” com movimentos institucionaliza uma
condição “fake” na ação dessa política. Abre agendas para
divulgações de ações isoladas de professores (militantes) que
aplicam, em atividades pontuais, durante datas comemorativas das
culturas dos povos indígenas e negros, durante o ano, na
demonstração de uma ou mais práticas de sala de aula e não de

195
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

contexto de escola; ações que incentivam criações de eventos


pontuais de mostra de relatos, entre outras visibilizações que são
incorporadas pelo governo como se fossem a ação da realização da
prática da lei. (Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

Para que as práticas dos professores que já vêm aplicando a lei e


promovendo uma educação antirracista e atenta à diversidade sejam
potencializadas, é necessária uma intenção política da secretaria de educação. É
preciso que a assessoria esteja dialogando como as direções e equipes
pedagógicas das escolas para que essas questões estejam presentes no dia a dia
de cada um. A distância entre a lei e sua materialização na prática precisa ser
diminuída.

O trabalho da Assessoria de Educação das Relações Étnico-Raciais


é uma ação que pode referir-se e relacionar-se com as práticas dos
professores, valorizá-las, respaldar ações dos professores nas suas
comunidades escolares, mas não reduzir-se apenas a uma
comunicação distante e dissociada de diálogos com os setores de
supervisão e planejamento de ações das escolas. A distância entre os
possíveis fazeres da Assessoria e o eixo da estrutura curricular
demonstra o grau de incompreensões da administração e dos
professores sobre o assunto das etnias ou da própria diversidade
cultural, multirracial e pluri-étnica que temos em nossa rede.
(Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

A temática étnico-racial e, consequentemente, a implementação das Leis


n. 10.639/03 e n. 11.645/08 acontece a partir do viés da resistência. Ela está
situada na resistência e quem amplifica a sua realização são os educadores e
suas práticas. Para o Mestre Griô Aprendiz, o que amplifica a realização do
trabalho com as questões étnicas são as capacidades físicas e essas capacidades
são fatores que limitam o avanço dos educadores, pois são cargas a mais para o
corpo aprender, assimilar, relacionar e defender a sua prática.

ESTRUTURA E VISÃO DA ESCOLA

O trabalho de campo ao lado de nossas experiências discentes e


docentes, evidenciou que outro limite imposto ao trabalho com as questões
étnico-raciais está ligado à estrutura e visão da escola. Na história da educação
no Brasil, desde o início da colonização desse país, a escola se constituiu sobre
um padrão europeu de educação. Com um modelo de ser humano e de sociedade

196
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

definidos. Esse modelo coloca corpo e mente em posições dicotômicas e dá


prioridade à dimensão intelectual. A escola se constitui, assim, como um espaço
de construção da mente e não do corpo. O corpo, nesse espaço, no máximo está
ali para ser civilizado, controlado. Ainda hoje, as nossas escolas se organizam
como uma instituição total, como fábricas, promovendo, como afirma Foucault
(2000), a docilidade dos corpos.
No pensamento ocidental, o corpo aparece conceitualmente separado da
mente. Oliveira (2009, p. 6) ressalta que

A construção do moderno Estado-nação supôs um processo


centralizador que implicava a monopolização dos meios de controle
ideológicos e normativos. Neste sentido, o controle praticado entre
indivíduos fomentou uma maior distância emocional entre sujeitos,
assim como a extensão de um sentimento de dualidade mente-corpo.

Na visão afro-brasileira, o corpo é visto como uma entidade físico-


biológica que atua sobre a sociedade e é suporte para a mente. A tríade corpo-
mente-sociedade são indissociáveis, ao falar de um, fazemos referência aos
demais. “A corporalidade é a identificação do ‘eu’ consigo mesmo, tão único e
tão original que faz igualmente a pessoa ser única, incomparável e inigualável,
ainda que necessite da coletividade como fator constitutivo da condição de
pessoa” (OLIVEIRA, 2009, p. 9).
O modelo eurocêntrico de escola, onde transita uma visão de ser
humano, de sociedade capitalista e individualista, estrutura sua organização
baseada na hierarquização dos saberes, na compartimentação, na meritocracia,
na competição. E esses valores são contrários aos valores existentes nas
cosmovisões africanas e indígenas como a cooperação, a solidariedade e o
comunitarismo.
Segundo Mazama (2009, p. 122), “a visão de mundo de um povo
determina o que constitui problema para ele, além de como resolve seus
problemas”. Sendo assim, a visão de mundo estrutura a escola e impõe um
modelo de educação. A autora afirma que, devido a seu potencial libertador, o
propósito e a forma de educação são uma prioridade do paradigma afrocêntrico.
Ela também apresenta uma distinção entre educação e escolaridade; discutindo
o caso dos negros nos Estados Unidos, a autora afirma:

197
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Enquanto o principal propósito da escolaridade é o controle social,


juntamente com a reprodução da hegemonia do segmento
populacional dominante euro-norte americano sobre a sociedade, a
educação assegura a transmissão à geração seguinte de valores e
atitudes que reflitam a cultura de determinado grupo. (MAZAMA,
2009, p. 126).

Então nos questionamos o que pode ser feito para pensarmos a escola
brasileira e, mais especificamente, a escola municipal de Porto Alegre como um
espaço não exclusivo de escolaridade e também como um espaço de educação
mais amplo, como aponta Mazama (2009).
Nossa escola não foi pensada para trabalhar com outros valores, outras
formas de aprendizagem, de tempos, espaços e organização. Desde seu formato
arquitetônico, dividido em salas, da mesma forma que estruturamos o
pensamento, tudo compartimentado nas suas respectivas gavetas. Essa escola
deriva da ciência ocidental, que, conforme Nascimento (2009, p. 182), “[...]
propõe a busca de regras e normas universais, aplicáveis às varias dimensões da
realidade compartimentadas em disciplinas específicas”. Como resultado disso,
nos deparamos com a segmentação da experiência humana, que é resultado da
separação do conhecimento em disciplinas especializadas, definindo espaços
fechados de investigação científica e construção de conhecimento. Em conversa
com o Mestre Griô Aprendiz sobre essa realidade, ele fala:

O corpo da escola não foi preparado para assimilar nossa natureza


de jeitos de aprender e ensinar... Viste nossa sala, ontem? Um
retângulo; espaços circulares, arquitetura que privilegie as relações
com a contemplação, com a natureza, o arejamento dos ambientes...
Não foram feitos para serem agregados aos valores arquitetônicos
da escola. (Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

Karenga apud Nascimento (2009) identifica algumas características


culturais africanas que fazem parte de sua cosmovisão e valores civilizatórios.
A centralidade da comunidade, o respeito à tradição, um alto nível de
espiritualidade e envolvimento ético, a harmonia com a natureza, a natureza
social da identidade individual, a veneração dos ancestrais e a unidade do ser.
Esses valores não são encontrados nas nossas escolas, pois estando elas
centradas em uma visão eurocêntrica, suas estruturas físicas, pedagógicas,
políticas e administrativas não contemplam essas dimensões. “A escola
consolida-se como um instrumento fabril e essa dinâmica, suas rotinas, suas

198
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

normatividades não são passíveis de uma performatividade possível para


flexibilização do currículo” (Entrevista com o Mestre Griô Aprendiz).
Portanto, a escola não está preparada para romper com a cosmovisão
eurocêntrica, o que se torna um limitador para o trabalho com as questões
étnico-raciais nela. Gomes (2007) também argumenta nesse sentido; para a
autora,

[...] assim como o tempo, o espaço da escola também não é neutro e


precisa passar por um processo de desnaturalização. O espaço
escolar exprime uma determinada concepção e interpretação de
sujeito social. Podemos dizer que a escola enquanto instituição
social se realiza, ao mesmo tempo, como um espaço físico específico
e também sociocultural. No que concerne ao espaço físico da escola,
é importante refletir que ele exprime uma determinada concepção e
interpretação de sujeito social. Como será a organização dos nossos
espaços escolares? Será que o espaço da escola é pensado e
ressignificado no sentido de garantir o desenvolvimento de um
senso de liberdade, de criatividade e de experimentação? Será que a
forma como organizamos o espaço possibilita ao aluno e à aluna
interagir com o ambiente, arranjar sua sala de aula, alterá-la
esteticamente, movimentar-se com tranquilidade e autonomia? Ou o
espaço entra como um elemento de condicionamento e redução
cultural de nossas crianças, adolescentes e jovens? (GOMES, 2007,
p. 39).

Segundo Sacristán (1995, p. 84), “a escola tem se configurado em uma


ideologia e em seus usos organizativos e pedagógicos, como um instrumento de
homogeneização e de assimilação à cultura dominante”. Uma das grandes armas
nessa homogeneização dentro da escola se dá por meio do currículo. O currículo
nas escolas silencia e nega as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas,
partindo do pressuposto de que a cultura hegemônica e dominante deva
prevalecer sobre as demais culturas consideradas minoritárias (ONOFRE,
2008). Como um instrumento de poder, o currículo e o silenciamento cultural
que ele efetiva na prática escolar são mais um limitador para uma educação das
relações étnico-raciais. Apple (1994, p. 59) afirma que

[...] o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de


conhecimentos que de algum modo aparece nos textos e nas salas de
aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma ‘tradição seletiva’
resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do
que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conflitos e
concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e
desorganizam um povo.

199
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

O currículo é reflexo do modelo de educação e de sociedade que temos.


Para construirmos uma sociedade mais justa, precisamos intervir no currículo
de modo a subverter a lógica do racismo, não o limitando a áreas, temas ou
conteúdos, como afirma Onofre (2008). Para o autor, precisamos de estratégias
de elaboração de currículos que contemplem a história do povo negro, bem
como metodologias de ensino e conteúdos voltados para tal fim.

SOLIDÃO E OS ATROPELOS DA ESCOLA

Refletindo sobre as escolas por onde já trabalhamos e sobre tantas


outras com que de uma forma ou de outra tenhamos tido contato, além de nos
basear no que observamos na escola Tinguerreiros 51, nos atrevemos a afirmar
que o trabalho coletivo é algo muito escasso. Poucas são as escolas em que
observamos um trabalho coletivo efetivo, não que não exista em nenhum lugar,
que alguns professores não estabeleçam pequenas parcerias, mas no geral é
muito difícil.
Esse foi um dos limites apontados pelo professor Baobá para o trabalho
com as questões étnico-raciais, segundo ele, o maior limite é “a falta de parceria
para abordar a temática, principalmente com uma fala presa ao discurso da
democracia racial. Que sabemos que é uma falácia e que serve como zona de
conforto” (Trecho da entrevista do professor Baobá). Ao descrever um trabalho
que estava realizando com uma turma, o professor lamentou a falta de parceria
para poder dar continuidade ao trabalho.

[...] A parceria com os colegas é algo que pra mim incomoda


abruptamente, muito, muito, por que ela passa sempre pelas
afinidades pessoais e não deveria, elas deveriam ser profissionais e
as afinidades nos facilitarem... o que que eu digo com isso... é que eu
acho que a parceria deveria ser algo quase que obrigatória, tu não
deveria trabalhar sozinho nunca, deveria estar sempre trabalhando
com os outros professores... isso não significa morrer de amores
pelos outros professores nem concordar com tudo... um dos grandes
problemas do Brasil é que se inventou essa história de que o conflito
é ruim... e o conflito é bom... se tu for ético se tu tiver na perspectiva
do trabalho, quando eu digo conflito, conflito teórico porque dai
parece assim se eu não concordo contigo 100% a gente não pode
trabalhar junto e eu discordo disso porque a gente não precisa fazer
tudo igual trabalhar junto não é isso... é trabalhar com as diferenças,

51
Tinguerreiros é o codinome dado à escola onde foi feita a etnografia.

200
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

com as divergências mas ter um objetivo comum que é a criança e


que é a proposta educacional [...]. (Trecho da entrevista do professor
Baobá).

Esse individualismo dos professores é chamado de “umbiguismo” na


investigação de Bossle e Molina Neto (2009); esses autores apontam o
umbiguismo como um individualismo em que o professor seria o centro das
ações e não os alunos ou a prática pedagógica. Os autores apresentam essa
noção trabalhada por Hargreaves (1996) que denomina essa atitude umbiguista
como um individualismo eletivo. Esse conceito corrobora para a solidão de que
fala o professor Baobá.
Se na prática pedagógica em geral na escola nos deparamos com o
individualismo e a solidão dos professores, quando nos referimos às questões
étnico-raciais esse individualismo é ainda maior. Nas escolas em que
encontramos trabalhos com essas questões, raramente é um trabalho do coletivo
da escola, mas normalmente são iniciativas individuais que às vezes contagiam
alguns poucos colegas. Segundo uma professora que trabalha em uma escola da
RME-POA que é conhecida pelo trabalho com as questões étnicas, esse
reconhecimento é falso, pois não é um trabalho da escola e sim o trabalho de
algumas pessoas.
Na escola Tinguerreiros, o trabalho com as questões étnico-raciais
também é realizado por alguns poucos professores. O diretor Mandela, falando
sobre o trabalho na escola com essas questões, aponta:

Olha... infelizmente, embora a gente tenha colocado no PPP,


infelizmente são ações mais pontuais, têm alguns professores que
trabalham isso. Já se colocou em reuniões pedagógicas, se tentou,
mas simplesmente é aquela coisa, é uma cultura que ainda está
difícil de mudar, que tem que ser pela persuasão, mas é difícil do
professor na sala de aula trabalhar. (Entrevista do diretor Mandela).

O segundo fator limitador para uma prática pedagógica que inclua as


questões étnicas denominamos de “os atropelos da escola”. São elementos que
fazem parte da rotina das escolas e que observamos tanto no trabalho de campo
da etnografia quanto na nossa prática pedagógica ou nas visitas às escolas. A
rotina das escolas municipais de Porto Alegre não difere muito entre elas. Nas
várias visitas que fizemos às escolas para a entrega e a coleta dos questionários,
observamos que quase todas convivem com a falta de professores. Na escola

201
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Tinguerreiros, esse problema também existe. Em um trecho do artigo sobre auto


etnografia, Bossle e Molina Neto (2009) descrevem uma cena em uma escola do
município de Porto Alegre e as consequências dessa falta de professores nas
aulas de Educação Física:

Estávamos sentados na sala dos professores esperando soar o sinal


para iniciar a aula, às sete horas e trinta minutos, quando a
coordenadora de turno nos falou que precisaríamos ficar com mais
duas turmas de estudantes além da prevista no horário. A
justificativa foi que faltariam quatro professores na escola pela
manhã. Assim, já no primeiro módulo de aula estávamos com três
turmas de mais ou menos vinte estudantes cada uma, esforçando-
nos para contornar o ‘caos’ em que estava nosso espaço de aula – o
pátio. (BOSSLE; MOLINA NETO, 2009 p. 139).

Na escola do professor Baobá não observamos esse problema, mas na


escola onde ensinamos já vivenciamos essa mesma situação mais de uma vez.
Para poder contornar a falta de professores e não dispensar turmas, muitas
vezes as aulas de Educação Física ficam sobrecarregadas com mais de uma
turma, o que compromete todo o planejamento e a prática pedagógica. Essa
prática também foi constatada por Molina Neto et al. (2013) no relato de
professores iniciantes.

A professora Julieta nos fez um relato que vem ao encontro de tal


constatação. Durante nossas visitas e observações, ela nos contou
que a escola sofre constantemente com a falta de professores. Desde
que iniciou a lecionar lá, é mais comum haver a falta de pelo menos
um professor por dia do que estarem todos na escola. Desta forma, o
quadro-horário das turmas e das aulas é sempre uma incógnita. Com
isto, muitas vezes Julieta entrou em sala de aula para preencher a
lacuna de um colega ausente, abrindo compulsoriamente mão dos
horários destinados ao planejamento do ensino e do tempo para
estudar. Em consequência de fatos como esse, ela planeja suas aulas
em casa, no seu tempo livre. Segundo suas próprias contas, nesse
ano, já acumula 43 períodos a mais de trabalho para dar conta de
aulas de um colega que esteve ausente do trabalho. Além disso, com
frequência, dado ao fato de ser uma professora iniciante, Julieta é
"convidada" a dar conta de duas turmas ao mesmo tempo.
(MOLINA NETO et al., 2013, s/p).

Se por um lado, durante os meses de trabalho de campo, não


presenciamos o acúmulo de turmas para o professor Baobá, por outro, mais de
uma vez chegamos na escola e ele não estava na turma que deveria estar, pois
tinham trocado seu horário.

202
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Falando sobre a escola, o professor comentou como é ruim e difícil, pois


dificulta o trabalho, o fato deles estarem sem horário fixo. Segundo ele, tu nunca
sabes se vai ter essa ou aquela turma, se tens um ou dois períodos, porque esse
ano a escola está sempre reorganizando os horários (Trecho do diário de campo
30/9/2013).

IGUALDADE X EQUIDADE

É importante ressaltar que igualdade não significa justiça. Essa é uma


confusão que muitas vezes atrapalha o trabalho com as questões étnico-raciais.
Nossa sociedade não é igual e nem justa, mas no discurso de muitos professores
o fato de tratarem os alunos com igualdade garantiria uma educação
antirracista. Pretendemos discutir neste tópico que, para além da igualdade
precisamos garantir a equidade nas nossas ações pedagógicas. E tratando-se das
questões étnico-raciais isso é extremamente relevante devido à desigualdade
construída ao longo dos anos. “Geralmente na escola trabalha-se como se não
houvesse diferenças, a partir de um discurso da igualdade entre as crianças,
apesar de ocorrerem práticas ostensivas de diferenciação, principalmente de
caráter racial e estético” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA; RODRIGES, 2010, p.
91).
Esse ocultamento da diversidade e uma visão distorcida das relações
étnico-raciais fomentam a ideia de que vivemos harmoniosamente integrados na
sociedade. Segundo Abramowicz, Oliveira e Rodrigues (2010), ocultar da
diversidade faz um brasileiro cordial, com igualdade, que ignora as nítidas e
contundentes diferenças.
O debate em torno da diferença entre igualdade e equidade é um tema
complexo e atual52 que perpassa diferentes áreas, entre elas o direito, a
economia, a sociologia, a filosofia, a saúde e a educação. Na área da saúde e da
educação “[...] a equidade [...] se traduz em focalização e discriminação positiva
de grupos de risco” (NOGUEIRA, 2004, p. 3). Esse dois conceitos
aparentemente semelhantes, podem apontar para visões diferentes nas políticas
públicas.
Kawachi et al. (2002) enfatizam o fato de que “igualdade e desigualdade

52
Cf. Nogueira (2004).

203
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

são conceitos mensuráveis, que se referem a quantidades passíveis de serem


medidas. Por sua vez, equidade e iniquidade são conceitos políticos, que
expressam um compromisso moral com a justiça social”. Discutindo as questões
de saúde e de políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), Pontes et al. (2009),
afirmam:

Por meio do princípio da equidade, objetiva-se diminuir as


desigualdades, porém não significa que seja sinônimo de igualdade,
apesar de todos terem direito de acesso aos serviços, independente
de cor, raça ou religião e sem nenhum tipo de privilégio, as pessoas
não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. (PONTES et
al., 2009, p. 501).

Aristóteles já dizia, “não há nada mais desigual do que tratar


igualmente aqueles que são diferentes”, sendo assim, a equidade significa tratar
diferentemente aqueles que são diferentes para garantir e promover uma
igualdade posterior.
Quando questionados se consideravam praticar uma educação
antirracista, vinte e cinco professores que responderam sim justificaram
praticar essa educação antirracista, pois usavam o critério da igualdade. Entre
eles, os exemplos a seguir: “tratando e exigindo que todos sejam tratados da
mesma maneira” (resposta questionário 91, professora autodeclarada branca,
com 7 anos de SMED); “promovendo a igualdade, o respeito e o diálogo”
(resposta questionário 128, professor autodeclarado branco, com 14 anos de
SMED); “todos têm os mesmos direitos e deveres” (resposta questionário 121,
professora autodeclarada branca, com 5 anos de SMED); “no tratamento
igualitário a todos os alunos em todas as situações” (resposta questionário 109,
professor autodeclarado branco, com 17 anos de SMED); “tratando todos da
mesma maneira” (resposta questionário 46, professora autodeclarada branca,
com 1 ano de SMED).
Refletindo sobre os conceitos de igualdade e equidade e analisando as
respostas dos professores considero que elas não são sinônimos ou não
caracterizam uma educação antirracista. É preciso mais do que tratar todos
com igualdade para se garantir um ambiente justo, livre de preconceitos e
discriminações, precisamos problematizar as questões e ter um olhar
diferenciado para cada aluno. Isso não significa dar privilégio a uns em
detrimento de outros, mas ter a sensibilidade de olhar e entender as diferenças e

204
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

histórias de cada aluno. O professor Baobá, ao conversar sobre o tema afirmou:

As pessoas sempre dizem que não importa a cor da pele, que todos
são iguais ou tratados com igualdade. Eu uso o conceito de equidade
do SUS. Nós não somos iguais e temos que ser tratados e vistos de
forma diferente. Eu não posso tratar a aluna X (aluna negra que a
mãe saiu agora da cadeia) igual aos outros, precisa de um olhar
diferente. (Trecho do diário de campo 23/09/2013).

Além disso, a escola produz um discurso baseado na igualdade de todos


os alunos. Por meio desse discurso, os agentes pedagógicos acionam mecanismos
de poder que fixam um determinado modelo de sociedade, todos aqueles que se
desviam desse modelo são punidos. (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA;
RODRIGUES, 2010)
Levando em consideração as colocações de Abramowicz, Oliveira e
Rodrigues, (2010), refletindo sobre a afirmação do professor Baobá e pensando
no conceito de equidade do SUS, onde se procura dar uma atenção especial para
as pessoas mais desfavorecidas, oferecendo mais e melhor para quem mais
precisa, buscando justiça social e igualdade, mas tendo em mente que partimos
de diferenças; pensamos que na escola também podemos usar esse conceito de
equidade. A escola precisa dar visibilidade às questões étnico-raciais, e para isso
é importante a equidade de representações.
Para o assessor das relações étnico raciais da SMED, o trabalho com a
noção de equidade está vinculado à formação. Enquanto não tivermos uma
formação que nos torne sensíveis para essas questões, continuaremos tornando-
as invisíveis.

Entendo que a instrução de nível superior não prepara os graduados


para que tenham uma atuação mais ligada às questões da ética e da
equidade na prestação do trabalho de educação no serviço público.
Infelizmente, a conduta dos professores, em suas graduações,
poderia ter uma abordagem mais profunda em disciplinas ligadas a
questões da ética e nos conceitos ligados a equidade,
principalmente, no que tange a políticas de reparação social e as
mazelas geradas por seu não fazer. (Entrevista com o assessor
mestre Griô Aprendiz).

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

Para além de desculpas para a falta de abordagem das questões étnico


raciais na Educação Física da RME-POA esse trabalho procurou discutir quais

205
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

aspectos servem como limitadores dessa prática. Mas é importante ressaltar que
apesar desses limites encontramos muitos professores que abordam a temática.
Ficou evidente que os cursos de graduação das universidades aqui localizadas
preparam de modo insuficiente os professores para lidarem com as questões da
diversidade, principalmente a diversidade étnico-racial. Na Educação Física,
essa questão é pouco debatida e nos currículos das universidades de onde são
oriundos os professores participantes desta pesquisa poucas são as disciplinas
que tematizam o assunto.
Precisamos refletir que garantir o direito em lei e garanti-lo entre as
pessoas funciona de modo diferente. Apesar de essas leis já terem anos desde sua
promulgação, elas ainda não existem de fato no cotidiano das escolas. A
implementação da lei como política pública é um processo lento e, por mais que
já possamos ver avanços, como mostram alguns dados dessa pesquisa, ainda
temos um longo caminho a trilhar.
A temática das relações étnico-raciais e da diversidade é uma temática
que, segundo o Mestre Griô Aprendiz, “se não tiver o respaldo institucional é
difícil de ser assimilada” (Fragmento da entrevista com o Mestre Grio
Aprendiz). A falta de uma política clara da SMED para a implementação do
ensino das questões étnico-raciais e o fato de ela ser ainda uma lei de direito,
mas não de fato, é mais um limitador para que se avance no trabalho com essas
questões na escola e, principalmente, na Educação Física, que é o foco desta
pesquisa.
Também devemos levar em conta que a estrutura da escola é reflexo da
visão de mundo onde ela é construída e que ela não favorece o trabalho com as
cosmovisões africanas, afro-brasileiras e indígenas. A escola é baseada na
dualidade corpo e mente, dando prioridade à mente e dividindo desde o seu
espaço físico até a organização dos seus tempos e conteúdos em dispositivos
pré-definidos. A escola ainda não está preparada para conviver e acolher outras
formas de aprender e ensinar.
De uma forma ou de outra, todos os aspectos discutidos neste texto,
tornam-se limites para que os professores realizem um trabalho com as questões
étnico-raciais nas aulas de Educação Física da RME-POA. Arriscamo-nos a
afirmar que essas limitações extrapolam a dimensão desta rede de ensino e
podem ser limitadores não só aqui, mas em diversas escolas do país. Porém,

206
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

esses limites não impossibilitam que o trabalho aconteça. Eles tornam a tarefa
mais difícil e cansativa e é possível que funcionem em alguns casos como
justificativa para a sua não realização.
Contudo, vários professores estão realizando boas práticas pedagógicas
que dão visibilidade ao corpo e à cultura corporal afro-brasileira e indígena.
Mas, ainda não é suficiente, urge ampliar a discussão para a maioria dos
professores que tem dificuldades em lidar com a temática em sua prática
pedagógica.
Nossas escolas propagam com frequência o discurso racista,
principalmente a partir das ações ou dos silenciamentos e invisibilidades da
cultura negra dentro de seus espaços. Assumindo isso, poderemos reverter a
situação e tornar a escola um núcleo de resistência ao racismo e uma semente
que plante a educação antirracista na mente e corpo de professores e estudantes.

Beyond excuses: limiting factors to the work with racial ethnic issue in the Physical
Education of Porto Alegre’s municipal schools

Abstract: This article presents the analysis of the limits to work with ethnic and racial
issues in the school arising from the data triangulation of the study entitled "Mojuodara:
physical education and ethnic and racial relations in RME-POA". It is a qualitative
research and uses a diagnostic questionnaire and an ethnographic case study. Among
the limits found it is: the difficulty of establishing a collective work to encompass this
subject; the difficulties of the school's daily routine; the lack of training to approach the
discussion; the concept of equality related by teachers; and the fact that Law 10.639/03
and 11.645/08 are legal rights, but still are not put into practice in the reality.
Keywords: Physical Education. School. Ethnic-racial relations.

REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana de; RODRIGUES, Tatiane Cosentino A
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207
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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etnografia em uma escola da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. Revista
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209
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Relações de gênero nas aulas de Educação Física: a visão das professoras


e dos professores da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA)
Daniella Rocha Bittencourt (SEMED-Ananindeua) 53
Emerson Duarte Monte (UEPA) 54

Resumo: Este estudo debate a compreensão das(os) professoras(es) de Educação Física


sobre as relações de gênero em suas aulas. Aborda gênero como uma construção
histórica e social que impõe padrões de comportamento e delimita atividades ao ser
mulher e ao ser homem de acordo com o sexo do sujeito. Para tanto, discute a
desnaturalização de concepções biologicistas de gênero, as quais servem como
justificativa para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres. Esta
investigação se fundamenta no materialismo histórico-dialético como teoria do
conhecimento para interpretar o real, e como instrumento de coleta de dados utilizou
um questionário com as(os) professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de
Educação de Ananindeua (PA). Conclui-se que, apesar dos inúmeros avanços no que diz
respeito aos direitos das mulheres nas aulas de Educação Física, ainda é possível
verificar discursos de inferioridade natural das meninas, neste sentido as questões
referentes as desigualdades entre os sexos precisa ser alvo de melhor entendimento
das(os) professoras(es) afim de conscientizar estas(es) profissionais que essa diferença é
fruto de uma construção sócio-histórico-cultural e não da biologia dos sujeitos.
Palavras-chave: Relações de Gênero. Feminismo. Educação Física. Docência.

INTRODUÇÃO

Historicamente a mulher foi secundarizada no âmbito público,


restringindo sua participação e atividades ao mundo privado, em especial a
atuação materna e doméstica. Esta situação lhe conferiu uma invisibilidade
social na construção da história da humanidade, dando aos homens,
principalmente brancos, ocidentais e da classe dominante, o mérito por todas as
conquistas (políticas, sociais, tecnológicas) até hoje alcançadas pelos seres
humanos.
Esta invisibilidade permanece, na maioria das vezes, justificada por um
determinismo biológico, assentado no entendimento de que as diferenças,
fisiológicas dos sujeitos é o que orienta seus comportamentos, gostos, profissões,
ou seja, é o sexo biológico que, em última instância, decide o papel social de
cada ser humano.
Partindo desse pressuposto, afirma-se que a mulher é o ser mais frágil,

53
Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da
Secretaria Municipal de Educação de Ananindeua (SEMED). E-mail: danny-
bittencourt@hotmail.com
54
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da
Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: emerson@uepa.br

211
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

emotivo e irracional e, portanto, com menor ou nenhuma habilidade para as


atividades que exigem maior dispêndio de força física, de grandes
responsabilidades ou de liderança, além disso, até o inicio do século XX, foram
consideradas aptas apenas para cuidar, educar as crianças e realizar trabalhos
detalhistas e monótonos, como os do lar.
Foram, e ainda são, necessárias muitas lutas e resistências (políticas,
sociais, ideológicas e da vida privada) para que a mulher adentrasse e ganhasse
espaço na vida pública. Essas lutas dizem respeito, principalmente, a
necessidade de entendimento de que as desigualdades geradas entre os sexos e os
papéis sociais impostos as mulheres e aos homens são de origem cultural, ou
seja, são construídos pelos próprios seres humanos na sua prática social e,
portanto, não são inatas. Como produção e reprodução social, elas assumem as
formas ideais das classes dominantes, tendo em vista que se configuram,
historicamente, como as ideias hegemônicas de uma determinada época.
(MARX; ENGELS, 2007)
As desigualdades afligem a todas as mulheres com severas disparidades e
graves discriminações, sendo que algumas delas têm, atingido, o próprio direito
a vida e outras dizem respeito às condições materiais de existência, com
contradições severas.
Neste aspecto, conforme os dados da Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (CEPAL), 29% das mulheres da região (América
Latina e Caribe) não possuem renda própria e 26% possuem renda inferior a 1
salário mínimo (CEPAL, 2016a). Além disso, as mulheres ganharam, em média,
16,1% menos do que os homens em condições semelhantes de formação e isso se
agrava quando amplia o tempo de estudo, alcançando a casa de 25,6% de
diferença salarial entre os indivíduos com mais de 13 anos de escolarização
(CEPAL, 2016a). O dado de maior gravidade é o que trata do volume de
feminicídeos que, em 2014, alcançou a marca de 12 mulheres assassinadas por
dia, pelo fato de serem mulheres. (CEPAL, 2016b)
Estes dados demonstram que, apesar dos inúmeros avanços
conquistados, como o direito ao voto, ao trabalho, a escolha de parceiros e
parceiras, as mulheres, ainda hoje, possuem um lugar de desprestígio na
sociedade, e sofrem preconceitos em todos os campos em que atuam.
No interior deste cenário, a escola pode ser percebida como um campo

212
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

de reprodução das desigualdades entre meninos e meninas. Ao longo do


processo formativo dessa pesquisadora, no interior do Curso de Educação Física
da Universidade do Estado do Pará (CEDF/UEPA), durante a disciplina de
Estágio Supervisionado, foi possível vivenciar esta desigualdade de forma
vívida. Na escola em que fora realizada as atividades do Estágio, as meninas
eram tratadas de forma bastante desigual em relação aos meninos, com nítida
reprodução do sexismo nas aulas de Educação Física.
Nas aulas as meninas não podiam usar shorts para as atividades
práticas da disciplina, e os meninos poderiam usar este tipo de vestimenta
livremente, a justificativa utilizada pelos coordenadores desta área era a de que
as meninas precisavam resguardar o corpo e não o podiam mostrar. Além disso,
foi possível observar que as aulas eram dominadas pelos meninos, pois enquanto
eles ocupavam dois terços da quadra (no melhor dos casos), às meninas eram
destinados os menores espaços; nestas ocasiões as(os) professoras(es) pareciam
achar natural as diferenças que ali estavam postas.
Dentro desta perspectiva, surgem as inquietações deste estudo e se
levantam os seguintes questionamentos: Qual a compreensão das(os)
professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Ensino de
Ananindeua (PA) sobre as relações de gênero? Em que medida as(os)
professoras(es) obtiveram acesso a esse debate em sua formação profissional –
inicial e continuada?
A partir disso, delimita-se como objetivo geral deste artigo analisar a
compreensão das(os) professoras(es) de Educação Física da educação básica
sobre as relações que se estabelecem entre meninos e meninas nas aulas desta
disciplina. Assim como, de modo específico, analisar as relações estabelecidas
entre o processo de formação inicial e as ações de formação continuada, no
interior da secretaria e fora dela, no que toca ao tema das relações de gênero na
disciplina curricular de Educação Física.
Este texto encara as relações de gênero como problemas latentes do
mundo presente e que, portanto, devem ser abordadas e discutidas pelos(as)
professores(as) no espaço educacional escolar.
Para discutir a respeito das questões aqui levantadas, este artigo
apresenta como suporte teórico a produção de Guacira Louro, Cecília Tôledo,
Alexandra Kollontai e Silvana Goellner. Louro (2003), aborda a emergência do

213
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

termo gênero e o conceitua como cultural e não natural, consequência da prática


social dos próprios seres humanos e necessidade central na educação formal.
Neste aspecto, Goellner (2015) corrobora com Louro (2003) e acrescenta
que a Educação Física é uma área biologicista, que trata as capacidades dos
alunos e alunas de acordo com o seu sexo, avalia que existe uma escassez de
debates desta temática nesta área, o que precisa ser superado, em busca de
igualdade entre os sujeitos da escola, especificamente, da Educação Física.
Tôledo (2005) e Kollontai (2011), no âmbito da produção do feminismo
marxista, fazem a discussão de gênero para além da certeza de que é uma
construção histórica e social. Elas analisam as desigualdades entre os sexos
como inerentes à divisão social do trabalho, expondo que o modo de produção
da vida material é o que condiciona o processo de vida social, política e
intelectual, portanto, as desigualdades decorrem, em última instância, da função
que é designada a homens e mulheres na produção geral de bens.
Do ponto de vista da teoria do conhecimento que fundamenta este
artigo, define-se pelo materialismo histórico-dialético por compreender que este
busca captar o movimento real das relações de gênero na visão das(os)
professoras(es) de Educação Física, analisando e explicando a realidade a partir
da compreensão das múltiplas determinações históricas que subsidiam a
caracterização das desigualdades percebidas entre homens e mulheres.
O método dialético tem como objetivo sintetizar a realidade concreta, a
partir da produção da teoria como produto do movimento real do objeto e,
nesse movimento, identificar as contradições inerentes a ela, com o intuito de
romper com a lógica de reprodução de estereótipos e imposições de
comportamentos que são feitas de forma diferente a cada um dos sexos. (KOSIK,
2002, p. 20)
No que concerne a natureza da pesquisa, trata-se de uma pesquisa de
campo com o objetivo de fornecer um nível de concretude e atualidade ao
objeto em questão. Possui caráter crítico-analítico na busca de investigar
criticamente as relações dialéticas entre o objeto e as condições dos sujeitos
direta ou indiretamente envolvidos na pesquisa. (MELLO, 2017, p. 8)
Utiliza-se como lócus de pesquisa a Secretaria Municipal de Educação
de Ananindeua (PA), pois é onde a autora tem vínculo como professora da rede
básica e, dessa forma, pôde acessar as(os) professoras(es) na ocasião da semana

214
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

pedagógica, do ano de 2018, da disciplina de Educação Física.


Como instrumento de coleta de dados este estudo utilizou um
questionário, que contém 16 questões, dividas em 4 eixos temáticos: 1. Visão
das(os) professoras(es) sobre as relações de gênero; 2. Conteúdos da Educação
Física na perspectiva de gênero; 3. Acesso ao tema gênero; 4. Violência contra a
mulher nas aulas de Educação Física.
O questionário foi aplicado a 30 professoras(es) de Educação Física da
Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA), que conta com uma média
de 100 docentes desta disciplina. O número de professoras(es) participantes está
diretamente relacionado aos presentes na ocasião da Semana Pedagógica
anteriormente citada. Deste quantitativo, 17 são professores e 13 são
professoras, que atuam da Educação Infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental.
Os dados coletados foram tabulados e geraram um banco de dados. A
sistematização dos dados ocorreu por meio do uso do software Statistical
Package for the Social Sciences (SPSS) – versão 20. Após este procedimento foi
realizado o cruzamento das questões para posterior análise.
Este artigo se organiza em 3 seções. A primeira seção trata da
desnaturalização de concepções biologiscistas que dizem que a mulher é inferior
ao homem por sua condição física, contesta-se que elementos históricos
permitem afirmar que a mulher não nasce oprimida, mas sim que ela se torna.
A segunda seção trata do reflexo que estas relações históricas e
desiguais, entre os gêneros, têm nas aulas de Educação Física, problematizando
o papel social do(a) professor(a) no desenrolar destas relações.
Na terceira seção, por fim, analisa-se a partir de questionários aplicados
às(aos) professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Educação de
Ananindeua (PA), qual a compreensão destes sujeitos sobre as relações de
gênero em suas aulas.

A MULHER NÃO NASCE OPRIMIDA, ELA SE TORNA


No que não é estranho, encontrem o estranho!
No que é comum, encontrem o inexplicável!
Com o que é normal, vocês devem se espantar.
O que á a Regra, reconheçam como abuso
E onde vocês reconhecerem o abuso,
Busquem remediar!
Bertolt Brecht (1967, apud MELLO, 2009)
Inicia-se com esta epígrafe, pois ela é a que melhor representa a intenção

215
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

desta seção, que é a de desmistificar (estranhar o que não é estranho) a


inferioridade “natural” da mulher (tomar como inexplicável àquilo que é
comum), destacando que as desigualdades geradas por esta afirmativa estão
enraizadas na história da humanidade e em suas relações e, portanto, não são
inatas (na busca por um remédio para o abuso).
É importante situar que as relações de gênero expostas neste artigo se
constroem a partir da emergência do termo em que Louro (2003) apresenta. A
autora salienta que este conceito se constrói a partir dos estudos feministas,
pela necessidade de acentuar o caráter social das diferenças percebidas entres os
sexos.
Gênero, ainda segundo a autora, refere-se às masculinidades e às
feminilidades. Estes termos se encontram no plural, pois visam desconstruir o
entendimento de que exista um sujeito universal, ou seja, há diversas formas de
se viver o masculino e o feminino. Estas se tratam de uma construção cultural
contínua e relacional, pois se supõe que para existir este processo de
diferenciação existem duas formas de viver o gênero que se relacionam.
(LOURO, 2003)
Neste cenário, as formas de viver o gênero não desfrutam do mesmo
prestígio e se constata que uns sujeitos são mais valorizados que outros. Gênero,
então, trata da necessária defesa da desnaturalização sobre as formas assumidas
pelo masculino e pelo feminino, por compreender que comportamentos não
nascem com os sujeitos e que, por isto, todos os indivíduos devem ter direitos
equivalentes.
No entanto, no interior desta sociedade há quem (homens e mulheres)
justifique as desigualdades entre os sexos, remetendo-as às características
biológicas. Utiliza-se, para isso, o argumento de que homens e mulheres por
serem diferentes biologicamente devem desempenhar papéis sociais
determinados pelas suas naturezas, em que a função da mulher é secundária e
complementar ao do homem, o que acaba por ter o caráter de argumento final,
imutável e, por vezes, infalível. Seja no senso comum, seja no meio acadêmico-
científico, o biologicismo serve para compreender, justificar, reproduzir e
perpetuar as desigualdades. (LOURO, 2003, p. 20)
Nessa esteira, Toledo (2005, p. 23) corrobora e afirma que uma das
ideias mais perigosas e bem articuladas de nossa época é a de que as mulheres

216
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

são inferiores por “natureza”, o que diz respeito a um determinismo biológico,


pelo qual se daria a condição de submissão da mulher na sociedade. Neste caso,
é difícil, ou mesmo impossível, ser transformada já que, supostamente, tem
origem em características inatas.
É necessário se contrapor a este argumento, pois a desigualdade que
percebem as mulheres, em especial as mulheres negras, LGBT e oriundas da
classe trabalhadora, está arraigada na história da humanidade e não em sua
“natureza”. Portanto, estas argumentações são forjadas em um determinado
tempo e espaço e são frutos de um meio social, das ideias sobre o papel das
mulheres nas sociedades.
Sendo assim, para desconstruir esta justificativa de origem biológica
sobre as desigualdades, Toledo (2005, p. 33) certifica que nem sempre foi assim,
ou seja, a análise rigorosa da história da opressão à mulher se configura como a
chave para encontrar as suas origens. Dessa forma, a mulher nem sempre viveu
oprimida e a origem desta opressão ocorreu pelas transformações nas relações
humanas já nas primeiras sociedades que se conhece.
Destaca Toledo (2005), que a antropologia permite afirmar que a mulher
não nasceu oprimida, mas passou a ser devido a inúmeras variáveis, dentre as
quais as relações econômicas assumem papel primordial. Isso reside no processo
de maturação da propriedade privada dos meios de produção e reprodução da
vida material, ao se impor uma ideologia de determinação de crenças, valores,
costumes, cultura e tudo que dissesse respeito ao comportamento dos sujeitos,
em que o homem passou a dominar o meio público tratando a mulher como
parte de suas propriedades.
Desse modo, torna-se necessário deslocar o debate para o âmbito social,
pois é lá que se produz e reproduz as relações (desiguais) entre os sujeitos. As
respostas para as desigualdades precisam ser buscadas não nas diferenças
biológicas, mas sim nas relações sociais, na história, na vida material dos seres
humanos e nas condições de acesso aos recursos construídos pela humanidade.
(LOURO, 2003, p. 22)
O que se observa é que, historicamente, foi concedido um papel às
mulheres e aos homens que não era os de sua “natureza”, mas imposto a eles e a
elas por meio da cultura, cultura determinada, em última instância, pelas
condições materiais de vida dos sujeitos. Esses papéis se transformaram ao

217
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

longo do tempo e redimensionaram o funcionamento da sociedade, dando ao


homem (branco) o poder de controlar a esfera econômica da sociedade e,
consequentemente, os demais segmentos.
Destaca-se aqui que as relações sociais gerais apresentam origem nas
relações econômicas, na produção social da vida material, no cotidiano das
relações de troca, enfim, no alicerce das sociedades humanas, tal como exposto
por Marx (2008):

[...] na produção social da própria existência, os homens entram em


relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade;
essas relações de produção correspondem a um grau determinado de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo de vida social, política e intelectual . Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o
seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2008, p. 47,
grifo nosso).

Portanto, a estrutura econômica da sociedade é a base para a opressão,


pois a partir dela o homem toma a mulher, que não produz (diretamente) seus
próprios meios de vida, como sua posse, estando a mulher sujeita a servi-lo, ou
ainda, mesmo quando a mulher trabalha, sua renda é vista como complementar
ao do homem. Isso se explica em virtude de que, historicamente, a maior parte
da produção da vida material foi construída pelos homens, tanto como
detentores dos meios de produção e dirigentes da superestrutura jurídica e
política, quanto pelos membros da classe trabalhadora no interior das fábricas e,
nesse processo, a ideia sobre a dominação do homem sobre a mulher, pelo papel
que o homem assumiu na produção material, ganha legitimidade, assume
vivacidade nas formas sociais determinadas de consciência.
Mesmo com esta problemática o acesso da mulher ao mercado de
trabalho melhorou muito suas condições de vida, permitindo que, a partir deste
ganho, ela obtivesse acesso a espaços de luta pela sua emancipação. É por este
motivo que o trabalho é crucial para a mulher, pois lhe dá o direito de se
politizar e enxergar a condição de submissão que é imposta pela condição de
dependência econômica, em síntese, pelo papel que ocupa na produção, não
apenas material, mas que adentra a mundo da produção intelectual.

218
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Kollontai (2011, p. 55) reafirma que um fator muito importante para o


fim da opressão contra a mulher é a transformação total de seu papel econômico
na sociedade, mesmo que isso não signifique condição suficiente para equidade
entre os sexos, mas é um importante passo.
Nota-se que em países com menor nível de desenvolvimento, uma
mulher que encontre um emprego pode aumentar em muito seu grau de
independência, de poder decisório, e, por conseguinte, ter acesso à educação, à
formação profissional. A diferença, simplesmente, entre saber ou não ler e
escrever, pode ser decisiva. Do ponto de vista da classe trabalhadora, uma
mulher que trabalha é uma mulher que pode participar do sindicato e dos
movimentos políticos, e pode se localizar no seio de sua classe. Isso significa um
ganho para a classe trabalhadora. (TOLEDO, 2005, p. 48)
Hoje, mesmo com os avanços alcançados pelas muitas lutas ao longo dos
séculos XX e XXI, a mulher ainda sofre com desigualdades. Estas desigualdades,
em muito, devem-se ao modelo de produção vigente – o capitalismo – que exclui,
segrega, explora e financia a continuidade de discursos de naturalização da
inferioridade da maioria dos seres humanos, em nome da manutenção da
estrutura econômica e do status quo. Em relação ao atual modo de produção
Toledo (2005, p. 51) afirma que a “Opressão feminina é desemprego, é
prostituição, é degradação, é violência, é morte por aborto sem assistência
médica, é tristeza, frustração, dor. Tudo isso tem um nome: capitalismo”.
Observa-se a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres, no
Brasil, quando se analisa o mundo do trabalho. Mesmo com todos os avanços, a
participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA)55, ainda
está distante da equiparação com os homens. Em 60 anos, considerando 1950, o
percentual de mulheres inseridas na PEA saltou de 13,6% para 49,9%, em 2010,
abaixo dos 67,1% dos homens. Apesar desse avanço na PEA, quando se
verificam os dados relativos à Taxa de Ocupação56, no último período (2004-
2014), observa-se uma estagnação na participação das mulheres. A Taxa de

55
A PEA compreende as pessoas ocupadas e desocupadas na semana da coleta de dados.
Define-se desocupadas as pessoas que na semana da coleta de dados estavam em busca
de trabalho. (IBGE, 2007)
56
A Taxa de Ocupação corresponde ao percentual de pessoas ocupadas na semana da
coleta de dados em relação às pessoas economicamente ativas nessa semana. (IBGE,
2007)

219
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Ocupação das mulheres salta de 51,2% para 52,0% nessa década, ou seja, as
mulheres não conseguem mais ampliar o quantitativo de vagas de emprego
considerando o total de mulheres na PEA. (ANDRADE, 2016, p. 10)
Contribui para esse panorama a manutenção da dupla jornada de
trabalho que as mulheres estão submetidas, como parte do processo de
naturalização das atividades destinadas às mulheres, produto dos valores da
sociedade patriarcal e da ideologia machista ai desenvolvida. Naturalizar os
afazeres e cuidados domésticos como atividades exclusivas das mulheres (tanto
em relações heterossexuais, quanto em relações homossexuais), configura-se
como fator que mantém a dependência e opressão da mulher em relação aos
homens (ou mesmo em relações homossexuais57).
Notam-se avanços quanto a dupla jornada de trabalho das mulheres nos
anos iniciais do século XXI, contudo sem impacto na dupla jornada dos
homens. De 2001 a 2015, o tempo gasto pelas mulheres com os afazeres e
cuidados domésticos regrediu em 23,5%, uma redução de 34 horas para 26 horas
semanais. No entanto, entre os homens, o quantitativo de horas despendidas
com afazeres e cuidados domésticos ficou estagnado em 11 horas semanais ao
longo do período em análise. (BARBOSA; COSTA, 2017, p. 25)
Os autores avançam, ainda, para a análise do impacto que a elevada

57
O Machismo aqui é encarado como uma opressão a mulher, independente do seu
agente. E isso ganha sustentação na realidade concreta, a partir da dinâmica das
relações heterossexuais, que são largamente permeadas pelo machismo, mas também no
interior das relações homossexuais, que reproduzem os elementos definidores do
machismo. Rodrigues (2017) apresenta relatos de mulheres que mantiveram relações
homoafetivas e vivenciaram, de suas companheiras, um conjunto de
ações/comportamentos/verbalizações machistas, inclusive violência doméstica, de
natureza física e/ou psicológica. Fomin (2015) em entrevista a uma ativista do
movimento LGBT, observa, a partir das falas de sua entrevistada, que o machismo entre
as mulheres nas relações homoafetivas se manifesta desde o controle sobre a vestimenta,
ao uso da maquiagem, até o controle do corpo permeado pela violência física. Sobre o
particular da violência doméstica nas relações homoafetivas entre mulheres, Avena
(2010) destaca que o “ciúme” se configura como o principal catalisador para a violência
contra a mulher nessas relações. Nessa trilha analítica, Almeida (2010) realizou
investigação empírica com famílias homoafetivas (três casais de mulheres e um casal de
homens) e a reprodução do machismo no interior da dinâmica familiar, e concluiu que
há reprodução do machismo a partir da divisão do trabalho doméstico desigual, da
monogamia e das questões que dela derivam e da negação do projeto de vida individual-
profissional de um dos membros da família em detrimento do projeto familiar como
defesa de um dos membros da relação.

220
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

jornada de trabalho realizada pelas mulheres com os afazeres e cuidados


domésticos tem entre mulheres que possuem filhos (entre 0 e 5 anos) e o acesso a
creche. A taxa de participação das mulheres com filhos na creche no mercado de
trabalho, no período de 2001 a 2015, obteve um crescimento importante e
mantém valores superiores a taxa de participação das mulheres com filhos fora
da creche. No primeiro caso a taxa ampliou de 63% para 68%, já entre as
mulheres com filhos fora da creche, a taxa saltou de 46% para 49%,
demonstrando que a ausência do acesso a creche se configura como uma das
barreiras para a maior inserção das mulheres no mundo do trabalho.
(BARBOSA; COSTA, 2017, p. 27)
No capitalismo, a mulher é a que mais sofre com a exploração em seus
postos de trabalho por obter menores proventos pelo mesmo trabalho realizado
por um homem, com o desemprego que assola a classe e, principalmente, as
mulheres, faz com que ela se torne ainda mais dependente, o que alimenta as
desigualdades de forma bastante reacionária.
Nessa direção, as diferenças salariais são significativas, apesar do nível
médio de escolarização (ensino médio e superior), em 2016, já ser superior entre
as mulheres. Apesar disso, em 2009, as mulheres receberam, aproximadamente,
60% dos rendimentos dos homens, considerando iguais grupamentos de
atividades e o tempo de formação acima de 11 anos (IBGE, 2010, p. 13). O valor
médio, por todos os tipos de trabalhos, em 2016, avançou para 76%. (IBGE,
2018, p. 5)
Apesar das diferenças salariais, mesmo as mulheres já possuírem maior
tempo médio de escolarização, o maior quantitativo de anos de escolaridade tem
se configurado como importante caminho para a ampliação da taxa de
participação das mulheres no mercado de trabalho. As mulheres com tempo de
escolarização acima de 11 anos, no período de 1992 a 2012, mantiveram alta
taxa de participação, na casa dos 75%, contudo as mulheres que possuem até 3
anos de escolarização, vivenciaram uma redução de 45% para 39% na taxa de
participação no período em análise. (BARBOSA, 2014, p. 33)
Além disso, pode-se perceber que existe um grande incentivo a
maternidade, mas sem o oferecimento das devidas condições de saúde. Na
mídia, vende-se a mulher como um objeto sexual, estas são apenas algumas
situações que servem para reforçar o lugar de desprestígio da mulher na

221
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sociedade.
Cabe lembrar que as relações de gênero estão permeadas por outros
fatores sociais, como a classe e a raça a que pertence uma mulher, ou seja, estas
relações se expressam de formas bastante diferentes na mulher burguesa e na
mulher proletária.
Ser pobre, com um emprego precário, com difícil acesso aos serviços da
seguridade social e a educação e com precárias condições de sobrevivência são
condições de classe, é a condição da classe trabalhadora no capitalismo. Uma
mulher, nessas condições, tem experiências diferentes do “feminino” vivido por
uma burguesa que reside em um bairro de luxo, é proprietária ou mulher de
empresário, frequenta todos os dias o cabeleireiro, possui empregados
domésticos e babá, etc. (TOLEDO, 2005, p. 118)
Destaca-se, ainda, que a luta pela equidade entre os gêneros, como
expressão da luta contra a opressão à mulher, deve se unir a luta contra o modo
de produção capitalista, pelo fim da exploração da classe trabalhadora. Dessa
maneira, as mulheres trabalhadoras fazem de sua luta de gênero, que é
necessária, mas limitada em seu alcance, uma luta de classes, a única que pode
abrir caminho, de fato, para a emancipação de todas as mulheres. (TOLEDO,
2005, p. 119)
Para Kollontai (2011, p. 92), a medida que a mulher intervém no
movimento da vida social, a medida que se torna ativa na vida econômica e na
luta pela sua classe, seu horizonte se alarga e, então, compreende as
desigualdades como mutáveis.
Como frisado anteriormente, o alcance da emancipação é limitado e não
depende somente da mulher, são necessárias políticas públicas que ofereçam
melhores condições de vida a mulher, ou seja, serviços públicos de boa
qualidade, creches, escolas, lavanderias, restaurantes. Portanto, é preciso o
comprometimento de toda a sociedade com as tarefas domésticas e não mais
concentrada nas mulheres, como observado a pouco nos dados nacionais.
(TOLEDO, 2005, p. 104)
É possível perceber que somente por meio de muitas lutas é que haverá
justiça social e igualdade de acesso as oportunidades. Contudo, este não é um
papel exclusivo da mulher, é necessária a mobilização de todos os sujeitos e
setores da sociedade.

222
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Na escola este é um papel fundamental, pois a partir da


instrumentalização é possível que se dê algum norte para uma nova prática
social, ou seja, é por meio de debates e de discussões sobre o caráter social e
histórico das relações de gênero que se fomenta a reflexão crítica e a mudança
do senso comum, cheio de preconceitos e estereótipos, para um novo
pensamento pautado na equidade, nutrido pela produção científica.

EDUCAÇÃO FÍSICA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO

Esta seção trata das relações históricas e desiguais entre os gêneros e seu
reflexo nas aulas de Educação Física, problematizando a necessidade de inserir
o debate sobre as relações de gênero, reiterando o papel social do(a) professor(a)
no desenrolar destas relações.
Compreende-se a Educação Física como “[...] matéria escolar que trata,
pedagogicamente, temas da cultura corporal, ou seja, os jogos, a ginástica, as
lutas, as acrobacias, a mímica, o esporte e outros. Este é o conhecimento que
constitui o conteúdo da Educação Física” (SOARES et al., 2012, p. 19). Nessa
direção, ela deve:

Buscar desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de


formas de representação do mundo que o homem tem produzido no
decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal [...] que
podem ser identificadas como formas de representação simbólica de
realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e
culturalmente desenvolvidas. (SOARES et al., 2012, p. 39).

Portanto, a Educação Física deve ser vivida de forma igual por todos os
estudantes, pois diz respeito a construção das práticas corporais que foram
elaboradas ao longo do tempo e traz consigo conhecimentos necessários para a
formação de sujeitos críticos, capazes de situar historicamente por meio dos
conhecimentos da cultura corporal e capazes, também, de lutar pelo fim das
desigualdades entre os seres humanos.
Todavia, a educação na sociedade capitalista, ocidental e moderna tem
caminhado em direção contrária a estes pressupostos e cumpre o papel de
apartar os sujeitos. Começou separando e marginalizando àqueles que a ela não
tinham acesso, logo após separou, também, os adultos das crianças, os católicos
dos protestantes, também se fez desigual para os ricos e para os pobres e, por

223
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

fim, separou os meninos das meninas. (LOURO, 2003, p. 61)


Neste aspecto, para Unbehaum (2014, p. 75), a educação se tornou uma
das instituições mais produtora e reprodutora de conceitos, habilidades e
competências construídas e ratificadas socialmente, logo, a escola é um espaço
marcado por relações de poder e por hierarquias sociais, culturais e econômicas.
No interior destas relações de poder, estão as relações de gênero que
permanecem imbricadas nas relações de ensino-aprendizagem da educação e da
Educação Física e influenciam, diretamente, na vida dos sujeitos envolvidos no
processo educacional, designando não só o espaço de atuação dos indivíduos,
mas também seus comportamentos, vestimentas, gostos, etc.
Para Louro (2003, p. 62) as instituições educacionais delimitam espaços,
servem-se de símbolos e códigos para afirmar o que cada um pode (ou não pode)
fazer; elas separam, instituem e informam o “lugar” dos pequenos e dos grandes,
dos meninos e das meninas.
Conforme Louro (2003, p. 72), nas aulas de Educação Física, a
constituição das relações desiguais de gênero é um processo, geralmente, mais
explícito e evidente do que nas demais disciplinas, mesmo que em várias escolas
e a partir do trabalho de alguns professores e professoras caminhem em via
contraria, na Educação Física, ainda hoje, parece existir uma maior resistência.
Para Silva et al. (2009, p. 171) a Educação Física parece se assumir como
uma disciplina que trata as crenças relacionadas aos gêneros como inatas e
imutáveis. As autoras utilizam como exemplo o fato de que as atividades são
modificadas e cindidas porque se presume que as meninas não são capazes de
participar com ou em oposição aos meninos.
Este quadro se deve, em larga escala, ao fato de que a Educação Física é
uma área historicamente vinculada à biologia, indicando o sexo dos sujeitos
como fundamento de suas habilidades físicas e psicológicas, em que se considera
o homem mais forte e a mulher mais frágil. (GOELLNER, 2015)
É como se nas aulas de Educação de Física as atividades fossem
preconcebidas como que umas para o masculino e outras para o feminino e, vale
lembrar, que o lugar dos meninos é, possivelmente, o lugar dos protagonistas, e
se destina um lugar secundário às meninas.
Para que este discurso não se reproduza, Silva et al. (2009, p. 172)
afirmam que a função principal das(os) professoras(es) é estarem atentos(as)

224
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

para que não construam suas aulas sobre os corpos individuais dos(as)
alunos(as), haja vista que isto pode ocasionar a legitimação de uma natureza
superior de alguns sujeitos sobre outros (classe, etnia, gênero, sexualidade).
Neste sentido, é possível que concepções de diferenciação entre o
masculino e o feminino possam negar às alunas, nas aulas de Educação Física, a
vivência dos conteúdos em sua totalidade, construindo a ideia de inabilidade
das meninas nas práticas corporais perante os meninos.
Esta atitude carece de reflexão, pois a formação escolar é direito de
todos os seres humanos, independentemente de suas características pessoais, é
preciso considerar alunos e alunas como sujeitos que possuem diferenças, mas
que possuem os mesmos direitos e devem acessar os mesmos conteúdos, as
mesmas oportunidades.
Isto se chama equidade e se identifica como a forma de respeito à
igualdade de direitos e deveres, igualdade de acesso às práticas corporais, é
somente assim que todos os sujeitos envolvidos nas aulas terão acesso a todos os
conteúdos histórica e culturalmente produzidos pela humanidade, tal como
defendido por Soares et al. (2012).
Nesta perspectiva, Louro (2003, p. 74) afirma que o processo de
diferenciação nas aulas de Educação Física, normalmente está vinculado a
reafirmação do feminino como um desvio do masculino, em que se utiliza o
discurso de que existem atividades que vão contra a feminilidade. Nas palavras
da autora, “que se opõem a um determinado ideal feminino heterossexual, ligado
à fragilidade, à passividade e a graça como o fato de que tais atividades podem
"machucar" os seios ou os órgãos reprodutores das meninas”.
É importante ressaltar que gênero é também uma categoria relacional,
pois diz respeito às relações entre homens e mulheres e, diante deste discurso, há
também que se preocupar com os meninos que também estão sujeitos a
estereótipos e preconceitos que os colocam em condições de só poderem praticar
atividades de grande vigor que exaltem o lado forte da masculinidade.
Neste sentido, é necessário repensar as aulas de Educação Física no
intuito de que se possam dar oportunidades iguais de escolhas a todos os alunos
e a todas as alunas, para que através das experiências das diversas práticas
corporais e da própria vida, eles e elas se sintam capazes de desenvolver atitudes
e escolhas próprias na construção de suas identidades e de suas trajetórias de

225
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

vida.
Para isto, o papel das(os) professoras(es) é fundamental. Conforme Silva,
Gomes e Goellner (2008, p. 398) o que deve estar em evidência na educação
escolar é o processo de ensino-aprendizagem e, por isso mesmo, a Educação
Física deve ser experimentada por todos e todas de forma positiva, para que
estas experiências não sejam estereotipadas pelo gênero.
Além disso, para Goellner (2015) é muito importante o processo de
apropriação teórica das questões que envolvem relações de gênero pelas(os)
professoras(es), pois algumas vezes, no campo da prática pedagógica, eles e elas
não identificam as desigualdades de gênero por conta da escassez de debate e
familiaridade com a teorização a respeito desta temática, o que pode ser feito
durante sua formação profissional (inicial e continuada).
Portanto, entende-se que a desnaturalização desse biologicismo presente
na Educação Física é uma necessidade central, pois somente por meio de um
novo entendimento acerca do tema, a partir da sua caracterização histórica, é
que se poderá consolidar uma formação justa e igualitária, com radicalidade
teórica.
Constitui tarefa para as(os) professoras(es) de Educação Física tratarem
sobre as desigualdades nas suas aulas, sem a divisão das aulas por sexo, assim
como elaborar atividades que despertem nos alunos e alunas uma atitude crítica
e reflexiva frente a estas problemáticas.

RELAÇÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: O QUE DIZEM AS(OS)


PROFESSORAS(ES)?

Esta seção analisa, a partir da coleta de dados por meio de questionários


junto às professoras e aos professores da Rede Municipal de Educação de
Ananindeua (PA), qual a compreensão destes sujeitos sobre as relações de
gênero e se percebem estas questões em suas aulas, bem como de que forma
lidam com esta temática.
Com o intuito de compreender qual o entendimento das(os)
professoras(es) do município de Ananindeua (PA) sobre as relações de gênero
nas aulas de Educação Física, os resultados aqui apresentados partem do
direcionamento dado por meio do questionário que foi dividido em 4 eixos
temáticos: 1. Visão das(os) professoras(es) sobre as relações de gênero; 2.

226
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Conteúdos da Educação Física na perspectiva de gênero; 3. Acesso ao tema


gênero; 4. Violência contra a mulher na escola.

1. Visão das(os) professoras(os) sobre as relações de gênero


A partir da análise dos dados dos questionários pôde-se constatar que do
total de participantes na pesquisa, 40,0% avaliaram que a mulher é, em parte,
mais frágil do que o homem e para metade dessas(es) professoras(es), esta
fragilidade se deve a fatores biológicos, ou seja, são os aspectos fisiológicos que
fazem a mulher mais frágil. Ainda nesse particular, conforme dados expressos
por meio da Tabela 1, é interessante destacar que a maioria das professoras
defendem a tese de que a mulher não é mais frágil que os homens, com um total
de 69,2%, no entanto, a maioria dos professores avalia que, em alguma medida,
essa fragilidade feminina existe.

Tabela 1 – Relações de gênero e percepção das(os) professoras(es) quanto as


habilidades na Educação Física, fragilidade e funções laborais das mulheres
Quem possui mais
A mulher é mais Há funções laborais que a
habilidades nas aulas
frágil que o homem? mulher não deve exercer?
Professores de Educação Física?
por Gênero
Em
Meninos São Iguais Não Não Em parte
parte
Masculino 17,6% 76,5% 41,2% 52,9% 70,6% 23,5%
Feminino 46,2% 53,8% 69,2% 23,1% 76,9% 7,7%
TOTAL 30,0% 66,7% 53,3% 40,0% 73,3% 16,7%
Fonte: Pesquisa de Campo (2018).

Importa aqui destacar que a crença de que são fatores biológicos que dão
a mulher o papel de mais frágil, desencadeia pensamentos de superioridade
masculina naturalizadas, o que torna as relações desiguais entre as meninas e os
meninos como imutáveis, além disso, é como se as pessoas já nascessem
predestinadas a serem de um modo único, como uma marca genética
intransponível, no qual elas não possuem escolhas, ou ainda, no qual as relações
sociais não interferissem nessa dinâmica.
Esse pensamento interfere na Educação Física de modo que impede a
participação efetiva das meninas nas práticas, uma vez que já está
predeterminado que elas são, em suma, mais frágeis e, portanto, não podem ser
inseridas nalgumas práticas da cultura corporal. E essa realidade ainda se

227
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

expressa, por exemplo, quando visualizamos que 46,2% das professoras


avaliaram que os meninos possuem mais habilidades nas aulas de Educação
Física.
Apesar disso, a maioria dos participantes na pesquisa, 66,7%,
compreendem que ambos são iguais, o que demonstra que o discurso em relação
à igualdade tem se efetivado aos poucos na escola, pois durante muito tempo as
mulheres não tiveram direito nenhum a educação formal, aprendendo somente
as tarefas do lar. Este estudo carece de maiores investigações no sentido de saber
se os discursos tem se efetivado na prática escolar.
Para Silva et al. (2009, p. 176) o ambiente vivido pela maioria das alunas
nas aulas de Educação Física não é convidativo para uma plena participação e
comprometimento com as atividades e carece de proporcionar iguais
oportunidades num plano de educação e formação de todas(os) as(os) jovens.
Isto pode, além de afastar as meninas das aulas, também culpabilizá-las
por não quererem participar das atividades. É preciso destacar que em um local
onde já se é estereotipada(o), em que seu potencial de aprendizagem perpassa
por uma questão que foge da sua capacidade de transformar o quadro em
questão, só pode mesmo resultar em desistência, por isso mesmo a ideia de que
as mulheres já nascem frágeis, já nascem menos habilidosas é tão perigosa, pois
acaba por desarticular a luta em busca da equidade.
Neste sentindo, pode-se dizer que a falta de experiências motoras, que
diz respeito a desistência anteriormente citada, é o que possivelmente dê conta
da inabilidade percebida nas meninas. Por isso é importante perceber que não
são as diferenças físicas que devem direcionar as aulas, mas a ideia de que as(os)
professoras(es) precisam dirigir suas aulas com as mesmas oportunidades,
gerenciando os questionamentos quanto a superioridade de uns sujeitos sobre
outros.
Estes dados demonstram o que Goellner (2015, p. 168) sinaliza que a
Educação Física é uma área que, historicamente, assentou os seus
conhecimentos e justificativa na biologia, indicando o sexo como o elemento
que define as capacidades e habilidades das pessoas. Nessa esteira,
contraditoriamente, a maioria dos participantes, com 73,3%, responderam que
não existe funções laborais em que as mulheres não podem se inserir; configura-
se como uma dissonância, quando se compara com as respostas as duas outras

228
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

questões.
É necessário destacar que 33,3% das(os) professoras(es), que
responderam que a mulher é, em parte, mais frágil que o homem, percebem esta
fragilidade como um fato histórico, cultural e/ou religioso, o que demonstra que,
para estas(es) professoras(es), as diferenças são algo construído pelos seres
humanos e, portanto, podem ser modificadas.
Pode-se concluir que, as(os) professoras(es) avaliam que as alunas são
iguais, em termos de habilidades, aos alunos, enquanto que quase metade das
professoras não as consideram, o que, de certo modo, foi uma surpresa, visto que
a luta pela equidade entre homens e mulheres está, historicamente, vinculada ao
feminismo e operada por mulheres, no entanto este fato não se confirma neste
estudo.
Neste aspecto é possível verificar que existe um grande conflito no que
diz respeito ao desempenho de meninas e meninos e, pode-se perceber que,
ainda é possível verificar uma visão androcêntrica da Educação Física, é
possível que isto se deva ao fato de que no curso das experiências, aprende-se
que os homens, por sua condição biológica, dominam a execução das atividades
físicas e as mulheres ficam relegadas a atividades secundárias neste campo.

2. Conteúdos da Educação Física na perspectiva de gênero


Quando as professoras e os professores foram questionados sobre se
todos os conteúdos podem ser trabalhados para meninos e meninas, 96,7%
responderam que sim, o que evidencia um avanço em relação aos conteúdos no
que diz respeito às relações de gênero, visto que há pouco tempo as aulas eram
separadas e extremamente sexistas, em que determinados conteúdos eram
específicos para as meninas e outros para os meninos.
Essa marca está presente, na Educação Física brasileira, desde a sua
introdução na escola até o processo formativo em nível superior. O Decreto n.
981, de 8 de novembro de 1890, aprovou o Regulamento da Instrução Primária e
Secundária do Distrito Federal, à época a cidade do Rio de Janeiro. Esse
Regulamento serviria como base para o desenvolvimento da Educação Nacional
e, em seu Art. 7º, ficou estabelecido que haveriam escolas de 1º e de 2º graus
divididas, categoricamente, por sexo. Com base no decreto supracitado, foi
aprovado o Regulamento do Gymnasio Nacional, por meio do Decreto n. 1.075,

229
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

de 22 de novembro de 1890, que tratava da formação de bacharéis.


O Regulamento do Gymnasio apresenta explícita formação para
homens, descartado qualquer possibilidade de mulheres acessarem esse espaço
formativo. Os conteúdos da Educação Física estavam presentes por meio da
gymnastica, das evoluções militares e da esgrima, assim como dos exercícios de
tiro ao alvo, de besta, tiro de flecha, exercícios gymnasticos livres, salto, jogo de
volante, e por meio dos jogos escolares, quais sejam: a barra, a amarela, o foot-
ball, a peteca, o jogo da bola, o cricket, o lawntennies, o crocket, corridas,
saltos, etc. (BRASIL, 1890b)
Essa diretividade para o processo de formação desde a escolarização
básica, lastreada pelo sexismo com o conteúdo da Educação Física, esteve
presente, também, no processo de formação de professoras e professores de
Educação Física. Os primeiros cursos de Educação Física têm origem na
estrutura militar, logo, tratava-se de uma formação específica para homens. A
partir da criação da Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD)
da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ), por meio do Decreto-Lei n. 1.212, de 17 de abril de 1939, é que iniciou o
processo formativo para civis.
Apesar do avanço, o ensino da Ginástica Rítmica era destinado “aos
alunos do sexo feminino”, conforme demarcado no Art. 8º do Decreto-Lei n.
1.212/39. Essa realidade, do ponto de vista do processo formativo, a partir do
quadro de disciplinas delimitadas para ENEFD, constituiu no principal
parâmetro para a estruturação de novos cursos de Educação Física no Brasil.
(BRASIL, 1939)
Acerca disso, Sousa (1994), ao tratar do processo formativo em
Educação Física na cidade de Belo Horizonte, destaca a formação dual no
interior da Escola de Educação Física de Minas Gerais, criada em 1953, com
base no projeto curricular da ENEFD. De imediato Sousa (1994) destaca que o
Curso de Educação Física Infantil, que tinha como foco a formação para o
ensino primário, ao longo da sua existência formou apenas mulheres, com uma
única exceção. Apesar disso, o curso possuiu “[...] grade curricular específica
para cada sexo” (SOUSA, 1994, p. 138). Mais do que isso, conforme a autora
frisa:

230
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Embora a maioria dos conhecimentos previstos por esse currículo


fosse comum aos dois sexos, aos homens negava-se a aprendizagem
da ginástica e do atletismo "femininos" bem como da dança e da
rítmica. E às mulheres não se permitia aprender a ginástica e o
atletismo "masculinos", o futebol, o judô e o boxe. (SOUSA, 1994, p.
138).

Portanto, é possível verificar que ainda persistindo a crença de que


meninos são mais habilidosos nas aulas de Educação Física, tem-se avançado no
que diz respeito ao direito de acesso aos conteúdos desta disciplina, o que
denota que as lutas, mesmo que de forma lenta, tem proporcionado às mulheres
participar das aulas.
Cabe destacar que esta é apenas uma parte da luta, pois é importante
que esta participação se dê de maneira qualitativamente efetiva, em um
ambiente educativo com igualdade e justiça.

3. Acesso ao tema gênero


Para que as(os) professoras(es) saibam se posicionar e reconhecer
situações de preconceitos e desigualdades entre os gêneros é necessário que entre
em contato, desde a sua formação inicial, com os debates acerca das relações
histórico-culturais de gênero. Neste sentindo, quando questionados sobre sua
relação com a temática, 56,7% dos sujeitos desta pesquisa, conforme dados
apresentados na Tabela 2, responderam que não tiveram acesso a este tema na
formação inicial.
Esse panorama de distanciamento do quadro de professoras(es) em
relação ao tema gênero é potencializado quando se analisam os dados referentes
à formação continuada oferecida pela Rede Municipal. Nesse particular, 73,3%
dos participantes responderam que não tiveram acesso a este tema nas
formações oferecidas pela Rede. Goellner (2015, p. 174) chama atenção para o
fato de que existe uma escassez de debates e familiaridade com a teorização já
produzida sobre as questões de gênero.
No que tange a formação continuada, este quadro se atenua, tendo em
vista que 40,0% afirmaram ter tido acesso a debates sobre relações de gênero e
20,0% afirmaram ter acessado, em parte, esse tema. Vale destacar, que o acesso
ao tema gênero a partir da formação continuada, foi maior entre as professoras,
com 53,8%, o que indica uma preocupação por parte das mulheres em dominar

231
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

a base teórica que permeia o tema.

Tabela 2 – Formação inicial e continuada das(os) professoras(es) e a


relação com o tema gênero
Na formação Na rede municipal de
Na formação inicial
continuada entrou em Ananindeua já ocorreu
entrou em contato
contato com o tema alguma formação com o
Professores com o tema gênero
gênero tema gênero
por Gênero
Sim Não Sim Não Sim Não

Masculino 35,3% 47,1% 29,4% 29,4% 29,4% 70,6%


Feminino 30,8% 69,2% 53,8% 38,5% 23,1% 76,9%
TOTAL 33,3% 56,7% 40,0% 33,3% 26,7% 73,3%
Fonte: Pesquisa de Campo (2018).

Ainda que este acesso esteja acontecendo é preciso questionar que tipo
de debates foram estes, visto que muitos problemas foram percebidos nos
posicionamentos das(os) professoras(es).
As situações aqui postas têm como finalidade desafiar as normatizações
e os estereótipos presentes na Educação Física. É necessário permanecer atento
para que os sujeitos não sejam silenciados, não apenas em suas representações,
mas em suas próprias experiências. Quando se fala em representações um
grande exemplo é a dificuldade que a autora encontrou em escrever todos os
sujeitos no masculino; é preciso romper com esta lógica, que parece ser de
ordem gramatical, mas que é de ordem social e cultural, de que os homens
representam as mulheres.
As mulheres precisam ser inscritas na vida pública, no campo político,
social e as formas de viver o feminino precisam ser encaradas como diversas,
uma vez que gênero não é uma categoria solitária, mas é atravessado por
diversos outros marcadores sociais, como raça, sexualidade e classe, e por isso
mesmo precisa estar em debate, tendo em vista que a luta pela equidade de
gênero é uma luta atrelada a diversas outras lutas, que permitem aos seres
humanos alcançarem a transformação da realidade e uma formação de matriz
omnilateral.

4. Violência contra a mulher na escola


Destaca-se aqui a importância que deve ser dar a este tópico – mesmo

232
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

que não seja o objetivo deste artigo discuti-lo em profundidade – uma vez que
os números de casos relatados pelas(os) professoras(es) são significativos.
Conforme a pesquisa, 60,0% das(os) professoras(es) disseram já ter presenciado
algum tipo de violência contra a mulher em suas aulas e, na maioria destes
relatos, aparecem mais de um tipo de violência contra a mulher.
Quando somados todos os casos de violência contra a mulher já
vivenciados pelas (os) professoras(es), tem-se uma predominância para a
violência psicológica58, com 36,6%, como atestam os dados expressos por meio
da Tabela 3. A partir da maior recorrência da violência psicológica, de modo
igual aparecem a violência física e moral, além de um pequeno percentual de
violência sexual. Todavia, a simples existência de relatos por parte dos
participantes da pesquisa de violência contra a mulher no espaço escolar,
demonstra a gravidade do problema, a magnitude que a opressão contra as
mulheres apresenta no interior do espaço de formação sistematizada dos seres
humanos.

Tabela 3 – Tipos de violência contra a mulher


Professoras(es) Física Moral Psicológica Sexual Não respondeu

TOTAL 26,7 26,6 36,6 6,6 40,0


Fonte: Pesquisa de Campo (2018).

58
Conforme demarcado por meio da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, em seu Art.
7º, os tipificação das formas de violência contra a mulher são: I - a violência física,
entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a
violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e
diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou
que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões,
mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer
conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou
anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial,
entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial
ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Esses dados caminham na mesma direção dos dados nacionais sobre


violência contra a mulher, e estão em um processo ascendente de casos, com
amplo destaque para a violência física. No período 2011-2016, o salto de casos
foi de 122,1%, ampliando de 82.049 para 182.287 de violência contra a mulher,
no Brasil. A violência física congrega o maior número de casos, com um
crescimento, nesse período, de 132,4%, ampliando de 43.559 para 101.218.
(SENADO, 2018, p. 12)
Este quadro desumano demonstra a necessidade urgente de propostas
que viabilizem debates sobre o respeito a equidade nas escolas, além disso é
necessária uma maior atenção aos cursos de formação de professoras(es), visto
que estes sujeitos precisam de formação adequada para lidar com estas
situações.
Para Louro (2011, p. 63) as questões que envolvem as relações de gênero
são muito importantes para o campo da Educação, pois é diante dele que
surgem os desafios de dar algum encaminhamento as dúvidas, as perguntas e as
situações que as(os) alunas(os) colocam as(aos) professoras(es).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste estudo é possível perceber a necessidade central de


colocar em suspeita a representação da fragilidade feminina, visto que quando
se naturaliza a inferioridade da mulher, isto torna as relações desiguais entre os
sexos como algo imutável, sendo a escola, aqui, especificamente a disciplina
curricular Educação Física, um fértil campo para se reafirmar ou se contrapor a
este determinismo biológico.
No interior das aulas de Educação Física, as(os) professoras(es) devem
estar atentos a reprodução de concepções que perpassem pela opressão de
gênero que tornem o processo de educação excludente. Devem, isto sim, oferecer
oportunidades de acesso aos conteúdos de forma igualitária e justa,
independentemente das condições físicas, psicológicas, sociais, culturais de
quaisquer alunas e alunos.
Nessa perspectiva, e diante dos limites e avanços dos resultados deste
artigo, é importante destacar que este é um estudo que possui um caráter de
diagnóstico inicial e que carece de mais investigações que contemplem as ações
efetivas das(os) professoras(es) de combate ao machismo nas escolas e nas aulas

234
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

de Educação Física.
Além disso, aponta-se para a necessidade de se pensar na formação
destas(es) profissionais que atuam na educação básica articulada com
perspectivas de superação dos preconceitos, dos estereótipos. Para isso, é
fundante o papel do Estado, com políticas públicas e novos estudos que
apontem melhores condições as(aos) professoras(es) lidarem com problemas que
envolvem as questões de gênero.
As(os) professoras(es) e a escola, de modo geral, têm um papel
primordial, pois deve ajudar a perceber, encaminhar e instruir as dúvidas
das(os) alunas(os) em relação a superação dos estereótipos, dos preconceitos e
das desigualdades. É necessário expor, falar sobre este assunto, pois somente
assim, pode-se desmistificar os conceitos já elaborados de fragilidade natural da
mulher.
Frisa-se que os apontamentos feitos até aqui, são de caráter provisório,
pois somente por meio de uma mudança radical (de raiz) nas estruturas desta
sociedade é que será possível alcançar, efetivamente, a emancipação dos seres
humanos, a partir de uma formação para a emancipação dos sujeitos, visto que
uma educação que aponta para a emancipação dos seres humanos,
consequentemente, deve subsidiar, também, a equidade de gênero para uma
formação omnilateral.

Gender relations in Physical Education classes: the view of teachers of the


Ananindeua (PA) Municipal Education System

Abstract: This study discusses the comprehension of Physical Education teachers


regarding gender relations in their classrooms. It considers gender as a historical and
social construct that imposes behavioral patterns and delimits activities to the being a
woman and being a man according to the subject's biological sex. For this purpose, it
discusses the denaturalization of biologicist conceptions of gender, which serve as
justification for maintaining inequalities between men and women. Methodologically, it
uses dialectical historical materialism as the theory of knowledge and a questionnaire,
applied to Physical Education teachers of the Ananindeua (PA) Municipal Education
System, as an instrument for data collection. It concludes that despite the many
advances in women's rights in Physical Education classes, it is still possible to verify
discourses of the natural inferiority of girls, in this sense, the issues regarding gender
inequalities need to be better understood by teachers in order to raise their awareness
about the source of this difference, which is not a result of the subject's biology, in fact,
it results from the social-historical construct.
Keywords: Gender Relations. Feminism. Physical Education. Teaching.

235
Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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