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Arjun Appadurai DEDALUS - Acervo - IGC CELINA 30900031236 A VIDA SOCIAL DAS COISAS As mercadorias sob uma perspectiva cultural ‘Tradugio Agatha Bacelar Revisdo Téet Leticia Veloso ‘stn snr te ‘gen tl ra 1 Ate do sora eprod aa EdUFF EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Niteréi, RJ 2008 I INTRODUCAO: MERCADORIAS EA POLITICA DE VALOR Arjun Appadurai Este ensaiotem dois objetivos: o primeiro ¢ apresentar ¢ estabelecer ‘ contexto dos artigos que compdem este livro; o segundo é propor uma nova perspectiva sobre a circulacdo de mercadorias na vida so- cial. Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca ‘econémica cria 0 valor; 0 valor é concretizado nas mercadorias que trocadas, em vez de apenas ras formas ¢ fungées da troca, possibilita a argumentagio de que que cria 0 vinculo entre a troca e 0 valor é a politica, em seu sentido ‘mais amplo. Este argumento, que sera elaborado no decorrer deste texto, justfien a tese de que as mercadorias, como as pessoas, \ém uma vida social Pode-se definir mercadorias, ainda que de um modo provisério, como objetos de valor econémico. Quanto ao significado da expressio “valor econdmico”, o melhor guia (embora nao seja o padrao) é Georg Sim- ‘mel. No primeiro capitulo de A filosofia do dinheiro (1907), Simme! fornece uma deserigdo sistemtica da methor forma de se definir 0 valor econémico. Pata ele, o valor jamais é uma propriedade inerente aos objetos, mas um julgamento que sujeitos fazem sobre eles. Mas, de acordo com Simmel, a chave para se compreender o valor reside em uma regio onde “essa subjetividade ¢ apenas provis6ria e, com efeito, no muito essencial” (SIMMEL, 1978, p. 63). ‘Ao explorar esse dominio dificil ~ nem totalmente subjetivo, nem exatamente objetivo, de onde o valor emerge ¢ onde cle ope~ ra ~, Simmel sugere que os objetos nao sio dificeis de se adquirir porque sio valiosos, “mas chamamos de valiosos aqueles objetos que opdem resistencia a nosso desejo de possuf-los” (1978, p. 67). ‘O que Simmel denomina, em particular, objetos econdmicos existe no cespago entre 0 desejo puro e a fruicao imediata, com alguma distancia centre eles e a pessoa que os deseja. Tal distancia pode ser ultrapassada, ‘0 que ocorre por meio da troca econémica, na qual se determina 1s perspectiva das mercadorias consttui um ponto de partida de grande ulilidade para o interesse na cultura material, renovado pela orienta- clo semidtica, ¢ que foi recentemente ressaltado e exemplificado em uma secio especial da RAIN (MILLER, 1983), Mas as mercadorias ‘io sio um interesse fundamental apenas dos antrop6logos. Também constituem um t6pico privilegiado na histéria econ6mica e social, na histéria da arte e, antes que nos esquecamos, na economia, embora cada diseiplina possa formularo problema de um modo diferente. As mercadorias representam, pois, um tema sobre o qual a antropologia Pode ter algo a oferecer as disciplinas afins, como também tem muito a aprender com estas disciplinas Os ensaios deste livro abrangem uma boa parte das questoes hist6ricas, etnogréficas e conceituais, mas nao pretendem fazer, absolut uma andlise cxaustiva das relagdes da cultura com as mercadorias. Entre os colaboradores, hd cinco antropélogos sociais, um arquedlogo © quatro historiadores sociais. Economistas e historiadores da arte nd esto aqui representados, mas suas idéias ndo foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principais reas do mundo nao foram abordadas (notadamente a China e a América Latina), mas a cober- 8 de uma extensao bem razoavel. Embora os artigos. tratem de uma série consideravel de bens, a lista de mercadorias nao discutidas aqui seria um tanto longa, havendo uma preferéncia por bens especificos ou de luxo, em vez.de mercadorias “em estado bruto” € de “primeira necessidade”. Enfim, a maioria dos autores dedica-se a bens em vez de servicos, embora estes também sejam importantes objetos de mercantilizacdo. Ainda que cada uma destas omissoes seja grave, pretendo sugerir, ao longo deste ensaio, que algumas tém ‘menos relevancia do que parecem. mente, rte no As cinco segdes que se sucedem neste ensaio dedica objetivos. A primeira, “O espirito da mercadoria’ critieo de definigo, na qual se argumenta que as mercadorias, devida- mente compreendidas, nao sio monopolio das economias industriais modernas. Em seguida, “Rotas e desvios” discute as estratégias (Sejam individuais ou institucionais) que fazem da criagdo de valor lum processo mediado pela politica. A secio subseqiiente, “Desejo € demanda”, articula modelos de longo e curto prazo na circulagio de mercadorias para mostrar que 0 consumo esta sujeito a0 controle social eA redefinicdo.politica. A tltima secao tao fundamental quanto fas demais, “Conhecimento mercadorias”, busca demonstrar que -Se 40s Seguintes 18 politicas de valor so, muitas vezes, politicas de conhecimento. A conclusio retoma a discussio sobre a politica como instncia mi diadora entre a troca € 0 valor. O ESPIRITO DA MERCADORIA Poucos negariam que a mercadoria € algo completamente socializado. Logo, em busca de uma definigio, a questio a ser colocada é: em que posta purista, que se tormou rotina consiste esta sociabilidade? A res atribuir a Marx, € que uma mercadoria é um produto destinado, so- bretudo, & troca e que tais produtos emergem, por definicao, sob as condigdes institucionais, psicol6gicas e econdmicas do capitalismo. Definiges menos puristas véem as mercadorias como bens destinados 4 troca, independentemente da forma de troca. A definigio purista «dé um fim prematuro & questio. As definig6es mais frouxas corem 6 risco de tomar equivalentes mercadoria, dédiva e diversos outros tipos de coisas. Nesta seco, por meio da critica a concepcio ma «da mercadoria, pretendo sugerir que mercadorias so coisas com um tipo particular de potencial social, que se distinguem de “produtos”, “ybjelus", “beus”, “aitefatos” c outros ~ mas apenas em alguns as- pectos e de um determinado ponto de vista, Se for convincente, meu argumento resultara no reconhecimento de que, com vistas a uma definigio, é de grande utilidade considerar as mercadorias como algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham uma forca e projec istas modernas), € de que ha uma convergéncia inesperada entre Marx e Simmel sobre 0 tépico das mercadorias. o especiais nas sociedades capit A discussdo mais elaborada e instigante acerca da idéia de mercadoria consta da primeira parte do primeiro livro de O Capital, de Marx, da que a idéia estivesse muito difundida nos debates sobre economia politica do século XIX. A revisio, feita pelo proprio Marx, do conc: de mercadoria foi uma parte fundamental de sua critica a economia politica burguesa e a base para a transigo que se verifica entre seu proprio pensamento inicial sobre o capitalismo (ver, em especial, MARX, 1973) ¢ a andlise mais madura de O Capital. Atwalmente, a centralidade conceitual da idéia de mercadoria foi substitufda pelo conceito neoclissico e marginalista de “bens”. A palavra “mercado- ria” € sada na economia neoclassica apenas com referéncia a uma subclasse especifica de bens primarios ¢ ja nao exerce um papel ana- 19 Petspectiva das mercadorias constitui um ponto de partida de grande ilidade para o interesse na cultura material, renovado pela orienta- glo semiotica, e que foi recentemente ressaltado e exemplificado em luma secao especial da RAZN (MILLER, 1983). Mas as mercadorias iio sio um interesse fundamental apenas dos antropslogos. Também constituem um t6pico privilegiado na hist6ria econémica e social, na hist6ria da arte e, antes que nos esquecamos, na cconomia, embora «cada diseiplina possa formular o problema de um modo diferente. As mercadorias representam, pois, um tema sobre o qual a antropologia pode ter algo a oferecer as disciplinas afins, como também tem muito 1 aprender com estas disciplinas. Osensaios deste livro abrangem uma boa parte das questdes histricas, etnograficas e conceituais, mas nao pretendem fazer, absolutamente, luma anélise exaustiva das relagdes da cultura com as mercadorias. Entre os colaboradores, hé cinco antropélogos sociais, um arquedlogo «quatro historiadores sociais. Economistas¢ historiadores da arte nao esto aqui representados, mas suas idéias nao foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principais dreas do mundo nao foram abordadas (notadamente a China e a América Latina), mas a cober- tura geogréfica ¢ de win extensdo bem razodvel. Embora os artigos tratem de uma série considerdvel de bens, a lista de mercadorias nao discutidas aqui seria um tanto longa, havendo uma preferéncia por bens especificos ou de luxo, em vez de mercadorias “em estado bruto” € de “primeira necessidade”, Enfim, a maioria dos autores dedica-se a bens em vez de servicos, embora estes também sejam importantes objetos de mercantilizagao. Ainda que cada uma destas omissoes seja grave, pretendo sugerir, ao longo deste ensaio, que algumas tém ‘menos relevincia do que parecem. Ascinco segdes que se sucedem neste ensaio dedicam-se aos seguintes objetivos. A primeira, “O espirito da mercadoria”, 6 um exercicio eritico de definigao, na qual se argumenta que as mercadorias, devida- mente compreendidas, nao sio monopélio das economias industriais vodernas. Em seguida, “Rotas e desvios” discute as estratégias (Sejam individuais ou institucionais) que fazem da criagio de valor lum proceso mediado pela politica. A secao subseqiiente, “Desejo © demanda”, articula modelos de longo e curto prazo na circulagao de mercadorias para mostrar que o consumo esti sujeito ao controle sociale d redefinicdo,palitica. A ultima secao tao fundamental quanto 4s demais, “Conhecimento © mercadorias”, busca demonstrar que 18 politicas de valor sao, muitas vezes, politicas de conhecimento. A concluso retoma a discussio sobre a politica como instincia m« diadora entre a troca ¢ 0 valor. O ESPIRITO DA MERCADORIA. Poucos negariam que a mercadoria ¢ algo completamente socializado. Logo, em busca de uma definico, a questio a ser colocada é: em que consiste esta sociabilidade? A resposta purista, que se tornou rotina atribuir a Marx, € que uma mercadoria € um produto destinado, so- bretudo, & troca e que tais produtos emergem, por definicdo, sob as condigdes institucionais, psicolégicas ¢ econdmicas do capitalismo, Definigdes menos puristas véem as mercadorias como bens destinados 8 troca, independentemente da forma de troca. A definicdo purista dé um fim prematuro & questéo. As definigdes mais frouxas correm o risco de tomar equivalentes mercadoria, dadiva e diversos outros tipos de coisas. Nesta secio, por meio da critica & concepcaio marxista da mercadoria, pretendo sugerir que mercadorias so coisas com um tipo particular de potencial social, que se distinguem de “produtos”, “objetos”, “bens”, “artefatos” © outros ~ mas apenas em alguns as- pectos e de um determinado ponto de vista. Se for convincente, meu ;gumento resultaré no reconhecimento de que, com vistas a uma definicdo, é de grande utilidade considerar as mercadorias como algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham uma forca e projecdo especiais nas sociedades capitalistas modernas), € dde que hi uma convergéncia inesperada entre Marx e Simmel sobre © t6pico das mercadorias. A discussio mais elaborada e instigante acerca da idéia de mercadoria consta da primeira parte do primeiro livro de O Capital, de Marx, a da que a idéia estivesse muito difundida nos debates sobre economia politica do século XIX. A revisio, feita pelo proprio Marx, do conceit de mercadoria foi uma parte fundamental de sua critica & economia politica burguesa e a base para a transigio que se verifica entre seu proprio pensamento inicial sobre o capitalismo (ver, em especial, MARX, 1973) a andlise mais madura de O Capital. Atualmente, a centralidade conceitual da idéia de mercadoria foi substituida pelo conceito neaclissico e marginalista de “bens”. A palavra *mercado- ria” é usada na economia neocldssica apenas com referéncia a uma subelasse especifica de bens primérios e jé nao exerce um papel ana: 19 Hitico central. & economi laro, esse ndo éo caso das abordagens marxistas na © na sociologia, ou das neo-ricardianas (como as de Piero Sraffa), nas quais a andlise da “mercadoria” ainda tem uma funcio \c6rica fundamental (SRAFFA, 1961; SEDDON, 1978). Todavia, na maioria das anélises modernas da economia (fora da ‘antropologia), 0 significado do termo mercadoria ficou restrito a repercutir apenas uma parte do legado de Marx e dos primeiros economistas politicos. Ou seja, na maioria dos usos contempora- hieos, as mercadorias so um tipo especial de bens manufaturados (ou servigos), que se associam somente aos modos de producao apitalista e, portanto, s6 podem ser encontradas onde penetrou © capitalismo, Assim, mesmo nos debates atuais sobre a proto- industrializagao (ver, por exemplo, PERLIN, 1982), a questio niio é se as mercadorias se associam ao capitalismo, mas se certas formas de organizagio e de técnicas associadas ao capitalismo tém luma origem exclusivamente européia. Mercadorias sio, em geral, vistas como tipicas representagdes materiais do modo de produgao capitalista, mesmo quando classificadas como triviais, e seu contexto capitalista como incipiente. Porém, ¢ evidente que tais andlises se valem de apenas uma parte da ‘concepcao de Marx da natureza da mercadoria. Pode-se dizer que 0 {ratamento dado a mercadoria nas primeiras cento e tantas pdginas de O Capital é uma das partes mais diffceis, contradit6rias e ambiguas da ‘obra de Marx. Inicia-se com uma definicéo de mercadoria extrema- mente vaga ("A mercadoria 6, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie”). Continua, entao, dialeticamente, com uma série de definigdes mais parcimoniosas, que possibilitam a claboragdo gra- dual da abordagem marxista basica do valor de uso e valor de troca, 0 problema da equivaléncia, a circulacio e a troca de produtos co signi- ficado do dinheiro. Ea elaboracao desta concepgio das relagdes entre ‘1 forma-mercadoria ea forma-dinheiro que permite a Marx estabelecet 8 famosa distingao entre as duas formas de circulagao de mercadorias (Mercadorias-Dinheiro-Mercadorias Dinheiro-Mercadorias~ Dinheiro) sendo a segunda a representacio da férmula geral do ‘apitalismo, No decurso deste movimento analitico, as mercadorias sio intricadamente atreladas a0 dinheiro, a um mercado impessoal ¢ a0 vallor de troca. Mesmo na forma mais simples de circulacio (ligada 20 valor de uso), as mercadorias relacionam-se por meio da capacidade 20 de camensuragio do diner. Hoje, a ligago entre mereaorias © formas pés-industrais, sejam tais formas sociais,financeiras ou de tuoca, é em geral um ponto pacifico, mesmo entre os que, noutros 0 levam Marx a sério, aspectos, Contudo, nos textos do proprio Marx, pode-se encontrar a base pai uma abordagem das mercadorias muito mais abrangente ¢ proficua de um ponto de vista intercultural e histérico, cujo espirito se vai at medida em que ele passa a estar envolvido nos detalhes de jtalismo industrial do século XIX. De acordo com esta primeira formulago, para produzir mercadorias, em vez de meros produtos, um homem tem de produzir valores de uso para 0s outros, alores de uso sociais (MARX, 1971, p. 48). Aesta passagem, Engels screscentou uma interessante glosa, inserida entre parénteses no texto de Marx, em que se reformula a idéia da seguinte forma: “Para se tor- ar mercadoria, o produto tem de ser transferido para outrem, a quem ind servir de valor de uso, por meio de troca” (MARX, 1971, p. 48). Embora Engels se contentasse com esta elucidagio, Marx prosseguiu com uma série extremamente complexa (¢ ambigua) de distingdes entre produtos e mercadorias, mas, para propdsitos antropol6gicos, 4 principal passagem merece ser citada na integra: ‘Todo produto do trabalho é, em todos os estados valor de uso; mas sem uma de- da sociedad terminada época do desenvolvimento histérico da sociedade o produto do trabalho se transforma em rmercadoria, saber, aquela em que o trabalho gasto na produgio de objetos tes se torna a expressio de uma das qualidades inerentes a esses objetos, ou seja, expresso de seu valor. Resulta daf que a forma-valorelementaré também a forma primitiva sob a qual o proto do trabalho surge historica ‘mente como uma mercadoriae que a transformacio gradual desses produtos em mercadorias prossegue asso a passo com 0 desenvolvimento da form: valor. (MARX, 1971, p. 67) A dificuldade em distinguir 0 aspecto légico do aspecto histérico nessa 'gumentagio foi observada por Anne Chapman (1980), em uma discus- siio que retomarei em breve. No excerto de O Capital citado acima, a passagem do produto a mercadoria€ tratada em ter 6 resultado final permanece muito esquemitico e € di ou testé-lo com alguma clareza. A questiio € que Marx ainda estava preso a dois apriorismos da episteme de meados do séeulo XIX: um estabelecia que s6 se poia observar a economia com referéncia as problemitic: gio (BAUDRILLARD, 1975), 0 outto eomderava mevinene diregio & produg4o de mercadorias como evolutivo, unidirecional © histérico. O resultado: mercadorias existem ou no existem e sio produtos de uma espécie particular, Cada uma dessas suposigées precisa ser modificada, A despeito dessas limitagdes epistémicas, em sua célebre discussio sobre 0 fetichismo das mercadorias, Marx de fato observa, como 0 faz em outras passagens de O Capital, que a mercadoria nao é uma invencdo do modo de producao burgués, mas se manifestava “em datas antigas da histéria, embora nao de um modo tio predominante caracteristico como nos dias de hoje” (MARX, 1971, p. 86). Ainda ue explorar as dificuldades do préprio pensamento de Marx sobre economias pré-capitalistas, sem Estado e no monetizadas, seja algo ue ultrapasse os limites do presente ensaio, poderiamos observar que Marx nio afastou a possibilidade de haver mercadorias, ao menos em luma forma primitiva, em muitos tipos de sociedade, A cstratégia de definicao que proponho aqui consiste em um retorno a versio da emenda feita por Engels & definicéo mais abrangente formulada por Marx, que inclui a produgio de valor de uso para 28 outros e possui pontos convergentes com a énfase de Simmel na troca como fonte do valor econémico. Comecemos com a idéia de ue uma mercadoria € qualquer coisa destinada a troca, 0 que nos liberta de uma preocupagiio exclusiva com 0 “produto”, a“‘producio” € a intencdo original ou predominante do “produtor”, e possibilita M08 concentrarmos nas dindmicas de troca. Para fins comparativos, entio, a questao deixa de ser “O que € mercadoria?” para ser “Que tipo de toca é a troca de mercadorias?”. Aqui, como parte de um esforgo em definir mercadorias da melhor forma possivel, temios de lidar com dois tipos de troca que séo convencionalmente contrast dos com a troca de mercadorias. O primeiro é a permuta (algumas vezes chamada de troca direta); 0 segundo é a troca de presentes, Comecemos com a permuta, permuta é uma forma de troca que Chapman (1980) analisou fecentemente, em um ensaio que, entre outras coisas, discorda da lanilise do proprio Matx sobre as relagdes entre a troca dircta e a 2 ? {roca de mereadorias. Combinando aspectos de diversas definigdes correntes da permuta (inclusive a de Chapman), sugiro que se {rata de uma troca miitua de objetos sem alusio a dinheiro e com a maxima reducio factivel nos custos sociais, culturais, politicos ou pessoais da transacao. O primeiro critério distingue a permuta da {roca de mercadorias num sentido estritamente marxista, enquan to 0 segundo a distingue da troca de presentes em pra qualquer definigao. mente Chapman tem razo ao afirmar que, na medida em que a teoria do valor de Marx é levada a sério, 0 tratamento nela dado & permuta apre- senta problemas te6ricos e conceituais que permanecem insoliveis (CHAPMAN, 1980, p. 68-70), pois Marx postulava que a permuta assumia a forma tanto de uma troca direta de produtos (x do valor de uso A = y do valor de uso B), quanto de uma troca direta de merca- dorias (% da mercadoria A = y da mercadoria B). Mas esta concep¢io da permuta, por mais problemética que seja para uma teoria marxista sobre a origem do valor de troca, tem a virtude de estar em harmonia com a reivindicagao mais persuasiva de Chapman, a saber, que a permuta, seja como forma de troca dominante ou secundaria, existe em uma grande variedade de sociedades. Chapman critica Marx por incluir a mercadoria na permuta pretende manté-las bem separadas, alegando que mercadorias assumem a funcao de objetos monetérios (e,portanto, de valor de trabalho congelado), nao apenas a funcao de unidade de célculo ou de medida de equivaléncia. Para Chapman, a troca de mercadorias $6 ocorre quando um objeto monetétio intervém na troca. Como, em seu modelo, a permuta exclui tal intervencao, \4 uma distingdo formal e completa entre a troca de mercadorias € a permuta, embora possam coexistir em algumas sociedades (CHAP- MAN, 1980, p. 67-68), Parece-me que Chapman, em sua critica a Marx, adota uma visio demasiado restritiva do papel do dinheiro na circulagio de merca- dorias. Marx, mesmo tendo encontrado dificuldades em sua propria anilise das relagdes entre permuta e troca de mercadorias,tinha razio em observar, como o fez Polanyi, que a permuta e a troca capitalista de mercadorias tinham um espirito coum, ligado (em seu ponto de vista) & natureza centrada no objeto, relativamente impessoal ¢ associal, de ambas as formas de troca. Em diversas formas simples de permuta, percebemos um esforco em trocar coisas sem as coer- .gbes da sociabilidade nem as complicacdes do dinheiro. No mundo 23 neo, a permuta esté em alta: hé uma estimativa de que movimente 12 bilhbes de d6lares em bens e servigos por ano apenas nos Estados Unidos. Permutas internacionais (por exemplo, xarope dde Pepsi por vodca russa; Coca-cola por palitos de dente coreanos ou por empilhadeiras bilgaras) estao-se transformando em uma complexa economia alternativa. Nestas circunstincias, a permuta € uma reacio ao néimero cada vez maior de barreiras impostas a0 ccomércio e as finangas internacionais e tem um papel especifico a exercer na economia global. Assim, como forma de comércio, a per- ‘muta articula a troca de mercadorias nas mais diversas circunstdncias Sociais, teenol6gicas e institucionais. Pode-se, portanto, consideré-la uma forma especial de troca de mercadorias, na qual, por uma série de razdes, 0 dinheito néo desempenha qualquer papel, ou um papel ‘muito indireto (como uma mera unidade de edlculo). Com esta defi- nico de permuta, seria praticamente impossivel encontrar qualquer sociedade humana em que a troca de mercadorias seja completamente inrelevante. A permuta parece ser a forma de troca de mercadorias em que a circulagio de coisas mais se divorcia das normas sociais, politicas ou culturais. Porém, onde quer que haja evidéncias dispo- niveis, a determinacdo do que pode ser permutado, onde, quando € por quem, assim como o que impulsiona a demanda por bens de ‘outrem”, € um fato social. Ha uma forte tendéncia de perceber tal regulamentacio social como uma questio em grande parte negati- va, de modo que a permuta em sociedades de pequena escala ¢ em periodos remotos é, com freqiiéncia, considerada uma forma de troca Festrita 4 relacdo entre comunidades em vez de no interior das comu- nidades, Neste modelo, a permuta é tomada como algo inversamente proporcional sociabilidade e, por extensao, o comércio exterior € visto como algo que “precedet io interno (SAHLINS, 1972). Mas ha bons motivos empfricos e metodolégicos para ques- tionar este ponto de vista A idéia de que 0 comércio em economias pré-industria netizadas no mo- , em geral, percebido como anti-social sob a perspectiva das comunidades de contato direto e, portanto, restringia-se com freqiiéncia a negociagdes com estranhos tem como contrapartida implicita a visio de que o espirito da dadiva e 0 da mercadoria so profundamente opostos. Sob tal ponto de vista, a troca de presentes ¢ it troca de mercadorias séo, por esséncia, contrastantes © excluem-se mutuamente, Apesar das tentativas recentes de amenizar o exagerado 24 contraste entre Marx e Mauss (HART, 1982; TAMBIAH, 1984), tendéncia de ver uma oposigéo fundamental entre estas duas mo- dalidades de troca continua sendo um trago distintivo do discurso antropolégico (DUMONT, 1980; HYDE, 1979; GREGORY, 1982; SAHLINS, 1972; TAUSSIG, 1980). A ampliacao e a reificacao do contraste entre ddiva e mercadoria na produgdo acacémica antropol6gica tém muitas fontes, entre as quais esto: a tendéncia de idealizar as sociedades de pequena escala de um ‘modo romantico; de confundir valor de uso (no sentido de Marx) com gemeinschaft (no sentido de Toennies); de esquecer que também as sociedades capitalistas operam de acordo com padroes culturais; de ‘marginalizar e minimizar os aspectos calculistas, impessoais e auto- enaltecedores das sociedades nio-capitalistas. Estas tendéncias, por sua vez, S40 0 produto de uma visdo demasiado simplista da oposicio entre Mauss e Marx, que, como observou Keith Hart (1982), deixa escapar aspectos importantes dos pontos em comum que se verificam centre Didivas ~€ 0 espitito de reciprocidade, sociabilidade e espontanei- dade em que sio normalmente trocadas ~ sia em geral postas em oposigdo ao espirito ganancioso, egocéntrico e calculista que anima a circulagao de mercadorias. Ademais, enquanto presentes vinculam coisas a pessoas ¢ inserem 0 fluxo de coisas no fluxo de relagdes sociais, mercadorias supostamente representam 0 movimento — em ‘grande parte livre de coercdes morais ou culturais ~de bens uns pelos outros, movimento mediado pelo dinheiro, néo pela sociabilidade, Muitos dos ensaios deste livro, assim como minha prépria argu- mentagio aqui, destinam-se a mostrar que esta série de contrastes é exagerada e simplista. Porém, por enquanto, apresento apenas uma importante propriedade comum & troca de presentes € a circulagio de mercadorias. © modo como compreendo o espirito da troca de presentes deve muito Bourdieu (1977), que expandiu um aspecto até entao negligenciado sobre a didiva (MAUSS, 1976, p. 70-73), no qual se enfatizam certos paralelos estratégicos entre a troca de presentes € as priticas salta a dindmica temporal do ato de presentear, empreende uma lise perspicaz do espirito comum subjacente & troca de presentes € A circulacdo de mercadorias: Se é verdade que 0 intervalo de tempo interposto € 0 que possibilita ao dom ou ao contra-dom ser Visto e experimentado como um ato inaugural de ‘generosidade, sem qualquer passado ou futuro, quer dizer, sem edeulo, eno fica claro que, a0 te © poittico 20 monotético, o objtivismo aniquila a ‘specifcidade de todas as prticas que, como a troca de presente, tendem a, ou pretendem, colocara lei do interesse préprio em suspenso, Por dissimular, estendendo no tempo, a transaglo que 0 contrato racional condensa em um instante, a troea de dons 6 semio o nia modo de cireulagao de mercadoras ser praticado, 0 menos otnico modo plenamen- te recomhecido, em sociedides que, como coloca Lukies, negam “o verdadeiro solo de suas vidas”, e que, como endo qusessem endo pudessem confetir is realdades econdmicas seu sentido puramente econdmico, tfm uma economia em si enio paras. (BOURDIEU, 1977, p. 171) Esse tratamento dado a troca de presentes como uma forma particular de circulagio de mercadorias procede da critica que Bourdieu dirige rio apenas a tratamentos “objetivistas” da acio social, mas a um tipo de etnocentrismo, em si mesmo um produto do capitalismo, que toma por incontestivel uma definicao demasiado restrita do interesse econdmico.* Bourdieu sugere que “a pratica jamais cessa de obedecer a0 célculo econdmico, mesmo quando dé uma impressio de completo desinteresse por escapar a l6gica do célculo interessado (no sentido estrito) ¢ estar norteada por apostas que sio imateriais e dificilmente quantificadas” (BOURDIEU, 1977, p. 177). ‘Suponho que esta sugestio converge, ainda que de um Angulo ligei- ramente diferente, com as propostas de Tambiah (1984), Baudrillard (1968, 1975, 1981), Sahlins (1976) e Douglas & Isherwood (1981), ‘Todas estas propostas so tentativas de restituir a dimensio cultural de sociedades quase sempre descritas apenas, em termos gerais, como economias, ¢ de resttuir a dimensiio calculista de sociedades quase sempre retratadas apenas em termos estritos de solidariedade. Parte das dificuldades que se encontram nas andlises interculturais de mercadorias, como também de outros dominios da vida social, reside no fato de a antropologia ser demasiado dualista: “ns ¢ cles”; “materialista e religioso”; “objetificacao de pessoas” versus “per. sonificagio de coisas”; “troca comercial” versus “reciprocidad: 26 assim por diante. Estas oposigoes sio caricaturas de ambos 0s polos e reduzem as diversidades humanas de um modo artificial. Um sintoma deste problema tem sido uma concepcio demasiado positivista da mercadoria como um determinado fipo de coisa e, portanto, restrin- zuindo, assim, o debate & questo de decidir de qual tipo de coisa se trata, Mas, quando se tenta compreender 0 que & especifico a troca de mercadorias, nao faz sentido distingui-Ia radicalmente da permuta nem da troca de presentes. Como sugere Simmel (1978, p. 97-98), é importante considerar a dimensio calculista em todas estas trés formas de troca, mesmo se variam as formas e intensidades de sociabilidade associadas a cada uma delas. Resta-nos, agora, caracterizar a troca de mercadorias de um modo comparativo e processval. Facamos uma abordagem das mercadorias como coisas em uma deter- minada situagao, situagio esta que pode caracterizar diversos tipos de coisas, em pontos diferentes de suas vidas sociais. Isso significa olhar para o potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vio ‘a magica distingo entre mercadorias € outros tipos de coisas. Também significa romper de um modo categ6rico com a visio marxista da mer- cadoria, dominada pela perspectiva da producio, e concentrar-se em 9, passando pela troca/distribuicao, é 0 consumo, Mas como deverfamos definir a situagio mercantil? Proponho que a situagdo mercantil na vida social de qualquer “coisa” seja definida ‘como a situacao em que sua trocabilidade (passada, presente ou {futura) por alguma outra coisa constitui seu traco social relevant. ‘Ademais, a situagdo mercantil, assim definida, pode ser decomposta ‘em: (1) a fase mercantil da vida social de qualquer coisa; (2) a can- didatura de qualquer coisa ao estado de mercadoria; (3) 0 contexto mercantil em que qualquer coisa pode ser alocada. Cada um destes, aspectos da “mercantilidade” exige alguma explicacao. A nogio de fase mercantil na vida social de uma coisa é uma forma de sintetizar a idéia central do importante ensaio de Igor Kopytoff que consta deste livro, em que se observam certas coisas transitando dentro ¢ fora do estado de mercadoria. Terei mais a dizer sobre esta abordagem biogratica das coisas na proxima segao, mas note-se, por tenquanto, que coisas entram e saem do estado de mercadoria, que ta movimentos podem ser rapidos ou lentos, reversiveis ou terminais, normativos ou discrepantes.’ Embora o aspecto biografico de algumas 27 coisas (lais como objetos herdados, selos postais e antiguidades) possa ser mais patente do que 0 de outras (tais como barras de aco, sal ou acticar) este componente nunca € de todo irrelevante. A candidatura de coisas ao estado de mercadoria € um trago mais con- ceitual do que temporal, e concemne 0s padrdes ¢ critérios (simbélicos, classificat6rios e morais) que determinam a trocabilidade de coisas em qualquer contexto social hist6rico em particular. A primeira vist, al rao pareceria mais bem expicado como o quatro cularal «em que coisas sio classificadas, e € uma das principais preocupagdes do artigo de Kopyioft nest iro, Poem, al explicagto ocala uma variedade de complexidades. F verdade que, na maioria das socieda- des estiveis, seria possfvel descobrir uma estrutura taxionémica que definisse 0 mundo das coisas, formando conjuntos de determinadas coisas, estabelecendo distingdes entre outras, vinculando significados valores a esses arranjos e fornecendo uma base para regras e prticas que governariam a circulagio desses objetos. No que tange a economia (ou seja,& troca), a deseri¢do de Paul Bohannan (1955) das esferas de troca entre 08 Tiv € um exemplo claro desse tipo de quadro cultural de toca. Mas hi dois tipos de situagdo em que os padroes e critérios que governam as trocas So 140 ténues, que parecem praticamente ausen- tes. O primeiro tipo € 0 caso de transagdes que transpéem fronteiras culturais, em que tudo o que se combina é o prego (monetirio ou nao) € um conjunto minimo de convencdes concernentes a transacdo em si.’ 0 outro € 0 caso daquelas trocas intraculturais em que, a despeito «de um amplo universo de conhecimentos compartilhados, uma troca specifica se baseia em percepcdes profundamente diferentes do valor dos objetos que esto sendo trocados. Os melhores exemplos de tal divergéncia de valor entre culturas podem ser encontrados em situagGes de extrema privacdo (como épocas de fome ou de guerra), quando a l6gica das trocas realizadas tem muito pouco a ver com a comensuragio de sactificios. Assim, um homem bengali que entrega sua esposa & prostituicéo em troca de uma refeicio, ou uma mulher turkana que vende algumas de suas melhores jéias pela comida de uma semana estio participando de transagdes que podem ser consideradas legitimas em circunstincias extremas, mas que jamais seriam vistas operando em um complexo quadro de valoragao compartilhado entre © Vendedor eo comprador. Outra forma de caracterizartais situagGes € dizer que, nestes contextos, valor e prego foram quase totalmente desatrelados, 28 Ainda, como mostrou Simmel, do ponto de vista do individuo e sua subjetividade, rodas as trocas podem conter este tipo de discrepancia entre os sacrificios do comprador ¢ do vendedor, discrepancias nor- ‘malmente postas de lado por causa das intimeras convengdes sobre toca que sdio cumpridas por ambas as partes (SIMMEL, 1978, p. 80), Podemos, pois, falar do quadro cultural que determina a candi: datura de coisas ao estado de mercadoria, mas devemos ter em mente que algumas situagées de troca, tanto inter quanto intracultural, se ‘erizam por uma gama mais superficial de padrdes de valor com- partilhados. Por conseguinte, prefiro usar 0 termo regimes de valor por ndo implicar que todo ato de troca de mercadorias pressuponha lum quadro cultural em que se compartilhe uma totalidade de crengas, Antes, o termo sugere que 0 grau de coeréncia valorativa pode ser altamente varidvel conforme a situagao, e conforme a mercadoria, Neste sentido, um regime de valor condiz tanto com graus muito altos «quanto com graus muito baixos de compartilhamento de padres pelas partes envolvidas em casos particulares de troca de mercadorias. Tais regimes de valor sao o fator determinante na constante transcendéncia de fronteiras culturais por meio do fluxo de mercadorias, entendendo- se cultura como um sistema de significados localizado e delimitado, Enfim, o contexto mercantil se refere & variedade de arenas sociais, no interior de ou entre unidades culturais, que ajuda a estabelecer 0 Vinculo entre a candidatura de uma coisa a0 estado de mercadoria e jase mercantil de sua carreira, Assim, em muitas sociedades, tran- sagdes de casamento podem constituir um contexto em que mulheres silo vistas com maior intensidade, e de modo mais apropriado, como valores de troca, Negociagdes com estrangeiros podem produzir contextos para a mercantilizacio de coisas que noutras ocasiGes es- {uriam protegidas da mercantilizagio. Leildes acentuam a dimensio mercantil de objetos (tais como pinturas) de um determinado modo {que pode muito bem ser percebido como extremamente inapropriado fm outros contextos. Bazares sio cendrios propensos a encorajar 0 fluxo de mercadorias, enquanto cenérios domésticos podem nao ser. ‘A variedade de tais contextos, no int de sociedad jproduz o vinculo entre o ambiente social da mercadoria e seu estado simbOlico © temporal. Como jé sugeri, o contexto mercantil, como luma questio social, pode reunir atores provenientes de ‘euliurais bem diferentes, que compartilhem apenas um minimo de fntenidimentos (em uma perspectiva conceitual) sobre os objetos em 29 questio ¢ estejam de acordo apenas acerca dos termos da negociagio. fendmeno conhecido por comércio silencioso é 0 exemplo mais bvio do minimo ajuste entre as dimens6es culturais e sociais da tro de mercadorias (PRICE, 1980), Portanto, a mercantilizaglo reside na complexa intersegio de fatores temporais, culturais e sociais. A medida que, numa determinada sociedade, algumas coisas, com freqiiéncia, se encontram na fase me anti, preencher os requisitos da candidatura ao estado de mereadoria © aparecer em contextos mercantis, tais coisas sao suas mercadorias mais tipicas. A medida que, numa determinada sociedade, um nimero consideravel de coisas, ou mesmo a maioria delas, algumas vezes Preenche estes critérios, pode-se dizer que a sociedade em ques € altamente mercantilizada. Nas sociedades capitalistas modernas, pode-se afirmar que hi uma tendéncia de que um nimero maior de coisas experimente uma fase mercantil em suas carreiras, que um rnlimero maior de contextos se torne mercantil e que os padres da candidatura ao estado de mercadoria abranjam uma parte maior do universo de coisas do que em sociedades nao-capitalistas. Embora Marx tivesse razio em ver 0 capitalismo industrial moderno como 0 sistema econ6mico que acarreta 0 tipo de sociedade mais intensamente intlizada, a comparacdo de Sociedades em relacio ao grau de ‘mercantilizacio” seria uma questo extremamente complexa, tendo «em vista a definicio de mercadorias que se abordou aqui. Segundo esta Aefinigio, 0 termo “mercadoria” passa a ser empregado no restante deste ensaio com referencia a coisas que, numa determinada fase de eiras ¢ em um contexto particular, preenchem os requisitos da candidatura ao estado de mercadoria. A andlise que Keith Hart (1982) fez recentemente sobre a importancia da crescente hegemonia das mercadorias no mundo estaria de acordo com a abordagem que sugerimos, exceto pelo fato de, aqui, a mercantilizacao ser considerada um proceso diferenciado (que envolve, de um modo diferenciado, questies de fase, contexto e categoriza¢ao) e © modo capitalista de mercantilizacdo ser visto em interacio com uma miriade de outras form: nativas de mercantilizagio, Tits séries de distingSes entre mercadorias merecem ser adiciona das aqui (outras serao apresentadas mais adiante). A primeira, uma aplic \cdo estabelecida originalmente or Jacques Maquet;em 1971, a respeito de produgées estéticas,? divide mereadorias nos quatro tipos que se seguem: (1) mercadorias 40 por destinagdo, ou seja, objetos destinados principalmente & troca pelos préprios produtores; (2) mercadorias por metamorfose, coisas estinadas a outros usos que se colocam no estado de mercadoria; (3) mercadorias por desvio um caso especial, mais acentuado, de mercadorias por metamorfose isto €, objetos que sao postos no estado cde mercadorias embora estivessem, em sua origem, esp protegidos de tal estado; (4) ex-mercadorias, coisas retiradas, quer tempordria ou permanentemente, do estado de mercadoria e postas num outro estado. Também ¢ vélido distinguir mercadorias gulares” de “homogéneas”, no intuito de diferenciar aquelas cuja candidatura ao estado de mercadoria é precisamente uma questio de caracteristicas de sua classe (uma barra de ago perfeitamente padronizada) daquelas cuja candidatura reside precisamente em seu carater nico no interior de uma classe (uma tela de Manet em vez de uma de Picasso; uma determinada tela de Manet em vez de outra do mesmo pintor). Intimamente relacionada com esta tiltima, mas no idéntica, é a distinc entre mercadorias primérias e secundari necessidades e futilidades; e 0 que chamo de mercadorias méveis versus mercadorias encaixadas.* Contudo, todos os esforgos em definir as mercadorias estio condenados & esterilidade, a nfo ser que clucidem mercadorias em movimento. Este € 0 principal objetivo da proxima secao ROTAS E DESVIOS {As mercadorias sto freqilentemente representadas como o resultado meciinico de regimes de produ pelas leis de oferta e procura, Recorrendo a certos exemplos etnogréficos, pretendo mos- trar, nesta segio, que o fluxo de mercadorias, em qualquer situagao determinada, é um acordo oscilante entre rotas socialmente reguladas « desvios competitivamente motivados. Como ressaltou Igor Kopytoff, pode ser stil considerar que as mer- cadorias tém historias de vida. De acordo com esta visio processual, 1 fase mercantil na historia de vida de um objeto nio exaure sua bio- sgrafia € culturalmente regulada e sua interpretagio admite, até certo onto, a manipulacio individual. Além disso, ainda de acordo com Kopytoff, a pergunta “Quais tipos de objeto devem ter quais tipos de biografia?” € uma questio mais de contestacao social e de gosto indivi- dual nas sociedades modernas do que nas sociedades proto-industriais, 31 nlo monetizadas e de pequena escala. Hé, no modelo de Kopytoff, lum cabo de guerra eterno ¢ universal entre a tendéncia de todas as ‘economias em expandir ajurisdigao da mercantilizagio e a tendéncia de todas as culturas em limité-la, Individuos, nesta concepeao, podem acompanhar qualquer uma destas tendéncias, conforme se ajustem 4 seus interesses ou condigam com seu senso de adequacao moral, ‘embora nas sociedades pré-modernas o espago para mudangas de rumo no sefa, em geral, muito grande, Das diversas virtudes do modelo de Kopytoff, a meu ver, a mais importante é a proposta de um modelo ico e processual da mercantilizagio, no qual os objetos podem ar dentro e fora do estado de mercadoria. Estou menos seguro jo entre singularizagao e mercantilizacao, uma vez que alguns dos casos mais interessantes (que, como o proprio Kopytoff concorda, situam-se na zona intermedisria de seu contraste ideal e tipificado) envolvem a mercantilizagao mais ou menos permanente de objetos singulares. E possivel levantar duas quesides sobre esse aspecto da argumenta- cio de Kopyloff. Uma seria que a propria definicdo do que constitu Objetos singulares em oposigio a lasses de objetos € uma que cultural, na medida em que podem existir exemplos tinicos de classes homogeneas (a barra de aco perfeita) ¢ classes de objetos singulares culturalmente estimados (tais como obras de arte ou pegas de vestu rio com a etiqueta do estilista). Por outro lado, uma critica marxista desse contraste sugeriria que é a mercantilizacéo, como um proceso hist6rico global, que determina, de maneira importante, as relagdes oscilantes entre coisas singulares e homogéneas em qualquer mo- mento da vida de uma sociedade. Porém, a principal questio aqui é que a mercadoria nio é um tipo de coisa, em vez de um outro tipo, ‘mas uma fase na vida de algumas coisas. Neste ponto, Kopytoff e eu estamos de pleno acordo. I concepgio da mercadoria ¢ da mercantilizagao traz diversas implicagdes importantes, algumas das quais sio mencionadas no decurso da argumentacao de Kopytoff. Outras serao discutidas mais adiante neste ensaio. Meu interesse imediato, porém, se volta para lum aspecto significativo dessa perspectiva temporal sobre a mercan- lilizagao das coisas, que concerne ao que denominei rotas e desvios. Devo estes dois termos, e certa parte de minha compreensio da Felagdes entre eles, ao ensaio de Nancy Munn (1983), publicado em luma coletiinea influente sobre um fendmeno de grande importin 32 jpara 0 assunto do presente livro, o célebre sistema kula do Pacifico Ocidental (LEACH; LEACH, 1983), © hula é 0 exemplo mais bem documentado de um sistema de troca Ivanslocal nao ocidental, pré-industrial e ndio monetizado, e, com a publicagio dessa recente coletinea, pode-se afirmar que se tornou 0 ‘exemplo mais completo e proficuamente analisado. Agora, revelou-se (que a clissica descrigao de Malinowski deste sistema (MALINO- WSKI, 1922) era parcial e problemitica, muito embora ele tenhi lancado os alicerces para as andlises mais recentes, inclusive as mais sofisticadas. As implicagdes desta recente reconsideragao do fondmeno kula para os interesses gerais do presente livro sio ind- eras. Embora os ensaios desta coletdnea que irei citar repercutam ilferentes pontos de vista, quer etnograficos, quer te6ricos, eles, de {ato, permitem algumas observagées gerais. 0 kula é um sistema regional extremamente complexo para a circu- lagio de tipos particulares de objetos de valor, normalmente entre homens de posses, no arquipélago Massim, ao longo da costa na xtremidade leste da Nova Guiné, Os principais objetos trocados ns pelos outros sio de dois tipos: colares e braceletes ornamentados (Guda um circulando em diregdes contrarias). Estes objetos de valor ‘ulquirem biografias muito especificas, conforme se movem de um Jugar a outro, e de uma mao a outra, & medida que os homens que os {iocam ganham e perdem reputagao ao adquirr, possuire se desfazer testes objetos de valor. O termo keda (estrada, via, rota ou trilha) & iysado em algumas comunidades Massim para descrever 0 percurso tlesses objetos de valor de uma ilha a outra, Mas keda também possui {um conjunto mais difuso de significados, que se referem aos vinculos Aociais, politicos e de reciprocidade mais ou menos estéveis entre os homens que fazem parte destas rotas. Em sua acepcao mais abstrata, Heda refere-se a rota (criada pela troca destes objetos de valor) que Joya a riqueza, a0 poder e & reputacao dos homens que negociam tais bjetos (CAMPBELL, 1983, p. 203-204). pois, um conceito polissémico, no qual a circulagio de ob- ‘construgio de mem6rias e reputacdes, e a busca de distingio jo de estratégias de parceria so evocadas todas de uma 'W) ver, Os vinculos delicados e complexos entre homens ¢ coisas, ‘entrais para as politicas do keda, sio captados no seguinte excerto, Hi partir da perspectiva da ilha de Vakuta: © eda bem-sucdido € forma por omens que siocapazes de mane parcrns ed eater tmipuadors, qu agem como una equip, cada tum interpetando os ovimentos do our. Toi, dhe os bmens se ealaiem eplarmte Alguns formam tpes de ede compltament diferentes, podem gure formar oo eda alicando novos Faricpantes. Anda ote podem jamais pata A kala movant, por sa fala de habia em formar oto kd em ao de ua ‘nd reputago na ave fl, Na ealdae, universe deo icon de valor feos em conch em qualquer kode E igratri,e compoigto social de um kd € enanoarevinago dos omens po moi de tesvanece no momen em ques conch pede ‘sa associagio com estes homens apés terem sido araidas com éxito para um outro keda, assumindo, Dortanto a identidade social (CAMPBELL, 1983, p. 218-219) Assim, a rota tomada por esses objetos de valor simultaneamente reflete ¢ constr6i parcerias ¢ contlitos sociais por proeminéncia, Mas hi um bom nimero de outros fatores que sao dignos de nota no que tange a circulagio destes objetos. O primeiro é que sua troca nao é facilmente categorizada como uma troca reciproca simples, distante do espirito da negociacio e do comércio. Ainda que as valora rias estejam ausentes, tanto a natureza dos objetos quanto uma variedade de fontes de flexibilidade no sistema possibilitam que exista af o tipo de troca calculada que sustento ser 0 ceme da troca de mercadorias. Estes complexos modos de valoracéo permitem que Parceiros negociem o que Firth (seguindo CASSADY JR., 1974) cha- mou de “troca por tratado particular”, uma situagao em que se chega ‘uma espécie de prego por meio da negociacao de alguns processos ue diferem das forcas impessoais de oferta e procura (FIRTH, 1983, P. 91). Assim, apesar da presenca de taxas de troca generalizadas © convencionais, existe um complexo céleulo qualitative (CAMP- BELL, 1983, p. 203-204) que permite a negociagéo competitiva de estimativas pessowis de valor & luz de interesses individuais tanto de longo quanto de curto prazo (FIRTH, 1983, p. 101). O que Firth Ey) ‘hums aqui de “engenharia da divida” € uma variedade da espécie We ioea calculada que, segundo minha definigao, toma turva a linha {jue separa a troca de mercadorias de variantes mais sentimentais. A diferenga mais importante entre a troca destas mercadorias e a troca de mercadorias em economias modernas e industrializadas € que 0 ilerencial que se busca nos sistemas como o kula esté na reputacio, Huome ou fama, de modo que pessoas so a forma crucial de capital fpr w produgio desse lucro, em vez. de outros fatores de produgao {STRATHERN, 1983, p. 80; DAMON, 1983, p. 339-340), O nao ter prego ¢ um luxo para poucas mercadorias. Iivez ainda mais importante que 0 aspecto calculista das trocas io hula seja 0 fato de esses estudos recentes tomarem muito dificil fbservar a troca de objetos de valor no kula como algo que ocorre Jypenas nas fronteiras entre comunidades, sendo as que se realizam no inlerior delas mais proximas da troca de presentes (DAMON, 1983, {p. 339). O conceito de kitoum fornece o vinculo técnico e conceitual fonire as longas rotas percorridas pelos objetos de valor € as trocas no Inlerior da ilha, mais intimas, regulares e probleméticas (WEINER, 1983; DAMON, 1983; CAMPBELL, 1983; MUNN, 1983). Aind {que 0 termo kitoum seja complexo € em certos aspectos ambiguo, uece claro que designa a articulacao entre o kula © outras modali- Hjdes de troca nas quais homens e mulheres transacionam em suas Jpfoprias comunidades. Kitoums sao objetos de valor que podem ser Posios ou legitimamenteretirados do sistema kul para se efetuarem ieonversdes” (no sentido de Paul Bohannan) entre niveis discrepantes We “transferéncia” (BOHANNAN, 1955). No uso de kitoum, vemos 10s cruciais vinculos conceituais e instrumentais entre as rotas mais {urs © mais longas que formam a totalidade do mundo das trocas J) Massim. Como mostrou Annette Weiner, & um equivoco isolar W prande sistema de trocas entre ilhas das transferéncias de objetos {jue ocorrem por causa de dividas, morte e afinidade ~ trocas mais {niimas, porém (para os homens) mais sufocantes (WEINER, 1983, . 164-165), O sistema kula confere um cardter dindmico e processual as idéias de Mauss no que tange & mistura ou troca de qualidades entre homens f coisas, como notou Munn em relacao as trocas kula em Gawa: Jimbora os homens paregam ser os agentes na definicao do valor is conchas, na verdade, sem conchas, eles nao podem definir seu Jpidprio valor; quanto aisso, conchas ¢ homens sio agentes reciprocos 35 ha definigio do valor de um ¢ de outro” (1983, p. 283). Mas, como observou Munn, na construcio reciproca de valor, as rotas no so is tinicas a exercerem um papel importante: os desvios também 0 fazem. As relagdes entre rotas e desvios sao cruciais para as politicas dde valor no sistema kula, e a orquestrago apropriada destas relacdes € a principal estratégia do sistema: Na verdade, o sistema de rotas implica o desvio, jd ‘que este € um dos mes de tragarnovas rota. Possuit mais de uma rota também indica a probabilidade {de outros desvios partir de uma rota estabelecida 8 outra, & medida que homens se tornam sujeitos a imeresese persuasivas de outros grupos de parceios [..] De fato, no Aaa, os homens de posses t2m de sdesenvolver alguma capacidade de equilibrar opera- es: desvios de uma rota devem ser repostos mais tarde para acalmar parceirs frstrados e evitar que rota desapareca, ou evitar que eles mesmos sejam suprimidos da rota. (MUNN, 1983, p. 301) Estas trocas de grande escala representam esforcos psicolégicos para transcender fluxos mais humildes de coisas, mas, nas politic de reputagao, ganhus na arena mals ampla tém implicagoes para as arenas menores, ¢ a idéia de kitoum assegura que tanto as transferén- cias quanto as converses tém de ser conduzidas com cuidado com vistas aos melhores ganhos no total (DAMON, 1983, p. 317-323). ula pode set visto como o paradigma do que proponho chamar de torneios de valor? Tornei de valor so complexos eventos periédicos que, de alguma forma culturalmente bem definida, se afastam das rotinas da vida cecondmica. A participagao nestes eventos tende a ser simultaneamente um privilégio daqueles que estdo no poder ¢ um instrumento de dis- puta de status entre eles. A moeda corrente destes tomeios também tende a ser distinguida por meio de diacriticas culturais muito bem ‘compreendidos. Finalmente, o que estd em pauta nestes tomeios nao é apenas 0 status, a posicdo, a fama ou a reputacao dos atores, mas adis- pposigio dos principais emblemas de valor da sociedade em questi." nfim, embora tais torneios de valor ocorram em épocas ¢ lugares especiais, suas formas ¢ resultados sempre trazem conseqiiéncias Para as mais mundanas realidades de poder e valor na vida comum. Como no kula, do mesmo modo que em tais torneios de valorem geral, habilidades estratégicas sio medidas culturalmente pelo sucesso com 36 {que 08 atores arriscam desvios ou subversdes das rotas culturalmente ‘eonvencionadas para o fluxo das coisas. A idgia de torneios de valor & uma tentativa de criar uma categoria oral, seguindo uma observacio recente de Edmund Leach (1983, 535), que compara o sistema kula com o mundo da arte no Ocidente moderno. A andlise de Baudrillard dos leildes de arte no Ocidente ‘contempordneo permite que se amplie ¢ aprofunde esta analogia. Haudrillard observa que o leilio de arte, com seus aspectos lidicos, 3rocos, se localiza fora do ethos da troca econémica convencional, e que “vai muito além do célculo econdmico diz Iespeito a todos os processos de transmutacéo de valores, de uma Jogica de valor a outra, que pode ser observada em determinados Iugares e instituigdes” (BAUDRILLARD, 1981, p. 121). A anélise {que Baudrillard faz do ethos do leilio de arte merece ser citada na Integra, j4 que poderia ser facilmente uma caracterizacao apropriada ‘outros exemplos de torneios de valor: ‘Ao contério de operagdes comerciais, que insti- tem uma relagio de rivalidade econdmica entre individuos em condigbes de igualdade formal, com cad um guiando seu proprio cileulo de apropriacio individual, o lili, como a festa ou 0 jogo institut uma verdadeira comunidade de troca entre pares. Independentemente de quem arrematar os lances, 1 fungio essencial do leilo € a instituigéo de ‘comunidade dos privilegiados que se autodefinem ‘como tais por meio da especulago agonitica sobre ‘um restrito corpus de signos. A competicio de tipo aristocrético legitima sua paridade (que nio tem nada a ver com a igualdade formal da competigio ‘ccondmica) , assim, sua privilegiada cata coletiva dante de todos os outros, de quem jé io se sepa- ram meramente pelo poder de compra, mas pelo ato suntuiri e coletivo de produzire trocar valores dos signos. (1981, p. 117) ‘Ao fazer uma anilise comparativa de tais torneios de valor, pode ser Jecomendivel nao seguir a tendéncia de Baudrillard de isolé-los, para fins analiticos, da troca econémica mais mundana, embora seja muito [piovivel que a articulacéo destas arenas de valor com outras arenas sondmicas apresente grandes variacoes. Terei mais a dizer sobre Homeios de valor na discussio acerca das relagdes entre conhecimento # mercadorias, mais adiante neste ensai © ula, de qualquer modo, representa um sistema muito complexo pra aintercalibragem das biografias de pessoas e coisas. Mostr-nos, as dificuldades de separar a troca de mercadorias da de presentes, mesmo nos sistemas ps is € no monetizados, além de nos lembrar dos riscos envolvidos em correlacionar, de modo demasiado rigido, zonas de intimidade social com formas distintas de troca. Po- rém, ¢ talvez.0 mais importante, trata-se do exemplo mais intricado da politica dos torneios de valor, em que os atores manipulam as rotas culturalmente definidas eo potencial estratéico dos desvios, de modo que o movimento das coisas torna mais altas suas proprias posighes, No entanto, desvios nao so encontrados apenas como partes de estratégias individuais em situacdes competitivas, mas podem ser institucionalizados de varias formas que removem ou protegem ob- jetos dos contextos mercantis socialmente relevantes. Monopolios de realezas sio,talvez, os exemplos mais conhecidos de tais “mercadorias encaixadas”, como aponta Kopytoff no Capitulo 2. Uma das discusses mais amplas ¢ interessantes sobre este tipo de restrigio monopolista a0 fluxo de mercadorias € a de Max Gluckman (1983), no contexto das propriedades reais entre os lozi da Rodésia do Norte. Em sua dis- cussio acerca das categorias de “dadiva’”,“tributo” e “coisas régias”, Gluckman mostra como, mesmo em um reino agricola com baixos cexcedentes, 0 fluxo das mercadorias possui implicagées muito diversas ¢ significativas. Em sua andlise das “coisas régias”, torna-se claro que al fungio destes monopélios reais era manter a exclusividade ia (como no monopélio real de espanta-moscas feito com pele inde), a primazia comercial (como com as presas de elefante) ¢ a exibigao da hierarquia. Tal restricdo de coisas retiradas das esferas de {roca mais indiscriminadas € parte do modo pelo qual, em liderancas modernos, a realeza podia assegurar a base material dda exclusividade suntuéria. Este tipo de processo pode ser chamado de desmercantilizacao “de cima para baixo”. Mas 0 caso mais complexo concerne a freas inteiras de atividade € produgao que sio destinadas a fabricar objetos de valor que nao poxlem ser mercantilizados por ninguém. O corpo da arte e do ritual fem sociedades de pequena escala é uma destas zonas encaivadas, onde o espfrito da mercadoria s6 adentra sob condigdes de mudancas culturais massivas. Para uma discussio mais longa deste fenomeno, 105 0 ensaio de William Davenport sobre a produgio de objetos idos ao uso ritual nas ilhas Salomio Orientais. ‘Os fendmenos discutidos no artigo de Davenport clucidam os aspectos nercantis da vida social precisamente por ilustrarem uma espécie de quadro moral e cosmolégico no qual a mercantilizacao ¢ restrita ¢ esguardada, Durante as observancias fiinebres desta regio, particu- Jurmente na celebragao de larga escala chamada murina, investem-se ‘muita energia e despesa na confeccio de objetos que desempenham \um papel central no ritual, mas so rigorosamente postos na categoria jorias “terminais” (KOPYTOFF, Cap. 2), ou seja, objetos que, devido ao contexto, ao propésito e ao significado de sua produ gio, fazem apenas um: trajeto da produgao ao consumo. Em seguida, sinda que algumas vezes tenham eventuais usos domésticos, jamais Ihes € permitido retornar ao estado de mercadoria. O que os torna desmercantilizados €, pois, uma complexa concepcao de valor (na qual se unem 0 estético, o ritual e o social), € uma biografia ritual especi fica, Podemos parafrascar as observagdes de Davenport e observar que 0 que se passa aqui ~ no centro de um conjunto extremamente complexo e calculado de investimentos, pagamentos ¢ créditos ~ é lum tipo especial de transvaloracao, no qual objetos so postos além da zona de mercantilizacio culturalmente demarcada. Este tipo de transvaloragio pode assumir formas diferentes em sociedades dife rentes, mas, em muitas sociedades, caracteristicamente os objetos que representam elaboracbes estéticas e aqueles que servem de sacra sio proibidos de ocupar o estado de mercadoria (quer social, definitiva ou lemporariamente) por muito tempo. No rigoroso compromisso dos ilhéus de Salomao de colocar seus produtos rituais mais estetizados fora do alcance da mercantilizacao, vemos uma variante de uma tendéncia muito difundida. Um exemplo um tanto diferente da tenslo entre a troca de sacra e de mercadorias pode ser visto na andlise de Patrick Geary acerca do inter- cambio de reliquias nos primérdios da Europa medieval. As reliquias descritas sio, obviamente, “encontradas” em vez de “fabricadas”, € sua circulagao repercute um aspecto muito importante da construc diaidentidade comunitéria, do prestigio local e do controle eclesisstico ¢ centralizado na Europa latina do periodo medieval inicial. Estas reliquias pertencem a uma economia particular de troca © demanda na qual a hist6ria de vida da reliquia em questo € essen- cial, em vez de incidente, a seu valor. A autenticagio desta hist6r € igualmente central para seu valor. Tendo em vista a abordagem rca entre diva e me neste ensaio, eu geral da 39 sugeriria que Geary talvez delineie um contraste por demais rigido entre ambas; na verdade, seu pr6prio material mostra que o presente, © roubo 0 comércio eram, todos, modos de movimentar os sacra no contexto mais amplo do controle eclesiastico, da competicao local e da rivalidade entre comunidades. Sob esta perspectiva, as reliquias medievais parecem estar menos cautelosamente protegidas dos riscos de mercantilizagao que os objetos rituais de Davenport. No entan- to, permanece a inferéncia de que modos comerciais de aquisigao das reliquias eram menos desejaveis que a dédiva ou o roubo, exatamente por uma antipatia direta & negociagao de reliquias, mas, ntes, por sSerem os outros dois modos mais emblemiticos do valor © da eficécia do objeto, Assim, também essas reliquias caem na categoria de objetos cuja ise mercantil é idealmente curta, cujo movimento é restrito e que aparentemente nao “recebem um preco” da mesma maneira que tras coisas. No entanto, a forea da demanda é tamanha que as faz circular com uma velocidade considersvel e de modo muito parecido ‘com o de suas contrapartes mundanas. Portanto, mesmo no caso de objetos “transvalorados”, que assumem as caracteristicas de me dorias encauxadas, em vez de méveis, ha variagdes consideraveis ‘nos motivos para, ¢ na natureza de, tal enclave. As “coisas régias” de Gluckman, as reliquias de Geary € os objetos rituais de Davenport so tipos diferentes de mercadorias encaixadas, objetos cujo potencial mercantilé cautelosamente resguardado. Pode, ainda, ser apropriado notar que uma forma institucional bem significativa de restringir zona da troca de mercadorias em si mesma 6 o “porto-de-comércio’ associado a muitos reinos pré-modernos (GEERTZ, 1980), embora tais restrigdes ao comércio na politica pré-moderna possam no ser Go radicais quanto se imaginou (CURTIN, 1984, p. 58). Os motivos para tal resguardo séo bem varidveis, mas, em cada caso, as bases morais da restricio tém implicacdes claras para enquadrar e facilitar {rocas politicas, sociais e comerciais de um tipo mais mundano. Tais mercadorias encaixadas guardam uma semelhanca familiar com outra classe de coisas, freqiientemente discutida na literatura antropol6gica ‘como “objetos de valor primitivos”, cuja especificidade se vincula diretamente a troca de mercadorias. Embora as mercadorias, em virtude de seus destinos de troca e de Sua comensurabilidade mitua, tendam a dissolver os vinculos entre pessoas e coisas, tal tendéncia é sempre equilibrada por uma contra- 40 Jondéncia, em todas as sociedades, de restringir, controlar e canalizar a ‘qoea, Em muitas economias primitivas, objetos de valor exibem estas {julalidades Socialmente restritas. Devemos a Mary Douglas (1967) a Iola dle que varios destes objetos de valor se assemelham a cupons e Higengas das economias industriais modernas. Ou seja, apesar de serem parecidos com dinheiro, nao sdo um meio generalizado de troca, mas /possuem as seguintes caracteristicas: (1) os poderes aquisitivos que opresentam sio altamente especificos; (2) sua distribuicao é contro- Juda de formas diversas; (3) as condigdes que gover {erlam uma série de relagoes do tipo patrono-cliente; (4) sua principal funcio € fornecer a condicao necesséria ao ingresso em posigdes de Alto status; ¢ (5) os sistemas sociais em que tais cupons ¢ licengas funcionam sao engrenados para climinar ou reduzir a.competicao ‘om favor de um padrao estavel de status (DOUGLAS, 1967, p. 69). Tecidos de réfia na Africa Central, wampum'' entre os indios do leste os Estados Unidos, dinheiro-concha entre os Yurok e a moeda- ‘eoncha da Itha Rossell e outras partes da Oceania sto exemplos de sis “cupons de mercadoria” (nas palavras de Douglas), cujo fluxo Iestrto estd a disposicio da reproducao de sistemas politicos e sociais. Coisas, nestes contextos, continuam sendo mecanismos de reprodueio das relagdes entre pessoas (ver também DUMONT, 1980, p. 231), Tais cupons de mercadorias representam um ponto intermedirio entre didivas “puras” e um comércio “puro”. Com a dadiva, eles npartitham uma certa indiferenea pela oferta e procura, um alto rau de codificacao em termos de etiqueta e apropri: ma tendéncia de seguir rotas socialmente estabele Pra permuta, sua troca compartilha o espirito do cilculo, uma joceptividade ao interesse proprio e uma preferéncia por transacoes n pessoas relativamente estranhas. Fim tai sistemas restritos de fluxo de mercadorias, nos quais objetos Ade valor exercem o papel de cupons ou licencas destinados a proteger Aistemas de status, vemos o equivalente funcional, que é também 0 Javerso técnico, da “moda” nas sociedades mais complexas. Se, num oterminado caso, sistemas de status sio protegidos e reproduzidos plas restrigdes de equivaléncias e trocas em um universo estdvel de hercadorias, em um sistema de moda, o que se restringe e controla 0 gosto, num universo de mercadorias em constante mutacdo, com f jlusio de um carster totalmente intercambivel e de acesso irres- io de Wito, Leis suntuérias constituem um mecanismo intermedi 4 regularizagio do consumo, apropriado a sociedades preocupadas com eexibigbes de staius estéveis em contextos mercantis de expansio ace- Jerada, tis como a india, a China e a Europa do periodo pré-moderno (Pprosseguirei com estas comparagies na proxima secio deste ensaio).!? Tais formas de restricao, e as mercadorias encaivadas que criam, as vezes fornecem 0 contexto ¢ as metas das estratégias de desvios. O que significa dizer que 0 desvio pode, em certas ocasides, envolver 4 remogio calculada e “interessada” de coisas de uma zona encai xada para alocé-las em uma zona onde a troca é menos limitada € mais lucrativa, num sentido de curto prazo. Onde 0 enclave atende aos interesses de grupos, em especial os grupos que detém o poder econdmico e politico em qualquer sociedade, os desvios so, com freqiiéncia, os recursos do individuo empreendedor. Mas, sejam grupos ou individuos os envolvidos em qualquer tipo de atividade, © contraste fundamental € que, enquanto o enclave busca proteget certas coisas da mercantilizacao, o desvio freqiientemente visa atrair coisas protegidas para a zona de mercantilizacéo, Em uma discussio extremamente interessante sobre 0 comércio britdnico no Havai em fins do século XVIII e inicia do século XIX, Marshall Sahlins mostrou como os chefes havaianos, ao estender concepg6es tradicionais de tabu para incluir novas classes de bens comerciais (adaptando-os a seus interesses cosmopoliticos), tive- ram éxito em transformar a “finalidade divina” até mesmo de tabus econdmicos em instrumentos de oportunismo (SAHLINS, 1981, p. 44-45). Assim, o que Sahlins denomina “pragmética do comércio” desgasta e transforma as fronteiras culturais no interior das quais $30 inicialmente concebidas. Em suma, as politicas de enclave, longe de serem uma garantia de estabilidade sistemitica, podem se tornar 0 cavalo de Troia da mudanca, O desvio de mercadorias para fora das rotasespecificadas é sempre um sinal de criatividade ow crise, seja estética ou econdmica. Tais crises podem assumir uma variedade de formas: adversidades econdmicas, em qualquer espécie de sociedade, podem levar familias a se desta zerem de objetos transmitidos por diversas geragées, de antiguidades © de memorabilia para mercantilizé-los. Isso ¢ tio verdadeiro para objetos de valor mais modemos quanto no kula. A outra forma de crise em que mercadorias so desviadas de suas rotas apropriadas, obviamente, é a guerra c a pilhagem que a acompanhou ao longo da 42 historia, Em tal pilhagem, e no espélio que dela deriva, vemos 0 inverso do comércio. A transferéncia de mercadorias em tempos de {querra sempre tem uma intensidade simbvlica especial, exempliticada a de enquadrar uma pilhagem mais mundana no transporte Na pilhagem pretensamente legitima que instaura o quadro propicio a saques mais mundanos, vemos 0 andlogo hostil do duplo processo de sobreposicao de camadas dos circuitos de troca mundanos mais personalizados em outros contextos (tais como o kula € 0 gi ‘wali na Mekinésia). 0 roubo, condenado na maioria das sociedades humanas, 6a forma mais simples de desvio de mercadorias de suas rolas predeterminadas. Mas hi exemplos mais suis de desvios de mereadorias de suas rotas Uma érea de grande abrangéncia é a que tem sido chamada de arte {uristica, em que objetos produzidos para usos estéticos, cerimoniais, ou suntuarios em pequenas comunidades de contato direto slo trans- formados cultur ate pelos gostos, mercados ¢ ideologias de economias maiores (GRABURN, 1976). Terei mais a dizer sobre a arte turstica na secao deste ensaio intitulada “Co- nhecimento e mercadorias”. Outra fea relaciona histo € da natureza das grandes colecdes de arte e arqueologia no mundo ocidental, cuja constituigio apresenta uma complexa mistura de pilhagem, venda e heranca, combinada com o gosto ocidental pelas coisas do passado e dos outros." Neste tréfego de artefatos, podemos ‘encontrar, hoje, a maioria das mais sérias questGes de debate cultural no fluxo internacional de mercadorias “auténticas” (ver SPOONER, cap. 7) ¢ “singulares” (ver KOPYTOFE, cap. 2). As disputas ‘dos museus e governos norte-americano e britinico com varios outros paises trazem a tona todos os embaragos politicos e morais que pas- sam a estar em jogo quando as coisas sao desviadas, repetidas vezes, de suas rotas minimas e convencionais, e sio transferidas por modos tio variados que fazem com que suas hist6rias de reivindicagdes e contra-reivindicagdes sejam extremamente dificeis de julgar. 0 desvio de mercadorias de sua rota costumeira sempre carrega uma aura arriscada € moralmente ambigua. Sempre que aquilo que Bohannan (1955) chamou de transferéncia dé lugar a0 que cle chamou de conversées, o espirito de empreendimento € 0 de corrupeao moral entram em cena simultaneamente, No caso das trocas kula na Melanésia, 0 movimento de mercadorias através de 43 esferas, ainda que de algum modo fora de ordem, também esté no ccerne da estratégia do participante kula bem-sucedido ¢ habilidoso Conversdes inapropriadas de uma esfera de troca a outra sio com freqiiéncia corroboradas, recorrendo-se a alegacio de crise econdmica, quer se trate de penéria ou de faléncia. Se tais alegacdes nio forem idas ou criveis, acusagses de motivos inapropriados ¢ venais se- rio manifestadas. Excelentes exemplos das implicacées politicas do desvio sio encontrados na arena de trocas de mercadorias ilegais ou quase-legais. Um caso de trocas deste tipo é abordado em seguida. O intrigante artigo de Lee Cassanelli que consta deste livro discute 4 alteragio na politica econdmica de uma mercadoria quase-legal amada gat (catha edulis), durante os gltimos 50 anos, no nordeste da Africa. Qat fornece um excelente exemplo de mudanga no que se pode denominar um ectimeno mercantil,* quer dizer, uma rede trans ccultural de relacionamentos que vineulam produtores, distribuidores e consumidores de uma mercadoria, ou conjunto de mercadorias, par- ticular. O que ¢ especificamente interessante, neste caso, é a drstica nsio da escala de consumo (e de produgio) de gat, claramente wda a mudangas na infra-estrutura técnica, assim como a economia Politica da regiao. Limbora.a expansio da producio parega condizente com condig6es que se ajustam a padres mais universais na comer- cializagio da agricultura, 0 que é mais intrigante é a expansio da demanda e a reacao do Estado — em especial na Somilia — ao sibito crescimento tanto na produgao quanto no consumo de gat, A recente proibigdo (1983), promulgada pelo governo somali, de plantar, importar e mascar gat é claramente 0 movimento mais novo da ambivaléncia estatal sobre uma mercadoria cujo consumo é percebido como um habito ligado a formas de sociabilidade impro- dutivas e potencialmente subversivas. No caso da proibicéo somali em vigor, parece que a gat (como o tecido na ret6rica de Gandhi) € vista como um problema de miltiplos niveis, que desafia néo somente ‘© controle do Estado sobre a economia, mas a autoridade do Estado sobre a organizagio social do lazer entre os cidadaos recém-ricos e em aascensio social da Somélia urbana. Com este exemplo, somos mais uma vez: lembrados que mudancas répidas nos habitos de consumo, quando nio reguladas petos que esto no poder, tendem a lhes parecer ameacadoras. Ainda, no caso da Somélia, temos um étimo exemplo da {ensio entre uma alteragao brusca na politica econémica de um eca- meno mercantil regional e a autoridade de um Estado nesse eciim 44 Hem entendido, os melhores exemplos de desvios de mercadoria dle suas conexdes originais devem ser encontrados no dominio da moda, da exibigéo doméstica ¢ das colecdes no Ocidente moderno. No visual high-tech inspirado por Bauhaus, a funcionalidade de fibricas, armazéns locais de trabalho 6 desviada para a estética doméstica. Os uniformes de varios oficios passam a fazer parte do Vocabulario da confecgao de roupas. Na I6gica dos objets trouvés, mercadorias cotidianas sio deslocadas ¢ estetizadas. Tudo isso exemplos do que podemos chamar de mercantilizacao por desvio, fem que o valor, seja no mercado de moda ou de arte, € catalisado ¢ intensificado, colocando-se objetos e coisas em contextos impro- vaveis. E na estética da descontextualizacdo (cla mesma motivada pela busca da novidade) que esta a esséncia da exibigao, nas casas ile ocidentais supostamente intelectualizados, de utensflios ¢ artefa- tos do “outro”: alforjes turcomanos, langas massais, cestos dinca.* Nestes objetos, vemos além de uma equivaléncia entre 0 auténtico © 0 cotidiano exético, a estética do desvio. Tal desvio nao é apenas lum insirumento de desmercantilizacao do objeto, mas também a (po- {encial) intensificagdo da mercantilizagao pelo aumento de valor que resulta deste desvio. Este aumento de valor por meio do desvio esté por trés da pilhagem de objetos de valor dos inimigos em tempos de guerra, da compra c exibigao de objetos utilitarios “primitivos”, do eslocamento dos objetos “encontrados”, da formacao de colecdes de qualquer espécic."* Em todos estes exemplos, o desvio das coisas combina o impulso estético, o vinculo empreendedor e um toque de choque moral. Todavia, desvios 56 sto dotados de significado se relacionados as rotas, de que foram extraviados. Na verdade, ao se observar a vida social de mercadorias em qualquer sociedade ou periodo determinados, parte do desafio antropolégico € definir as rotas relevantes e costumeiras, de sorte que a I6gica dos desvios possa ser entendida de um modo apropriado e relacional. As relagdes entre rotas e desvios so, em si mesmas, hist6ricas e dialéticas, como mostrou com mestria Michael Thompsom (1979) a respeito de objetos de arte no mundo ocidental moderno. Desvios que se tornam previsiveis estdo a caminho de se tornarem novas rotas, que, por sua vez, irdo inspirar novos desvios ou retornos a gas. Estas relacdes historicas sio répida e fa- cilmente verificiveis em nossa prépria sociedade, mas menos visiveis em sociedades em que tais alteragdes sio mais graduais. Na construgio cultural de mercadorias, a mudanga deve ser buscada as relagoes alternantes de rotas a desvios durante a vida das mer- cadorias. Seus desvios de rotas costumeiras fazem surgir 0 novo, Mas 0 desvio 6 com freqiiéncia uma funcao de desejos irregulares © demandas recentes. Passemos, ento, a considerar 0 problema do desejo e da demanda, DESEJO E DEMANDA A razio por que a demanda continua sendo em geral um mistério se deve, em parte, ao fato de supormos que ela possui alguma relacao, de um lado, com o desejo (por sua natureza supostamente infinita ¢ transcultural) e, de outro lado, com a necessidade (por sua natureza supostamente estivel). Seguindo Baudrillard (1981), sugiro que tra- temos a demanda ~e, portanto, o consumo ~ como um aspecto geral a politica econdmica das sociedades. Quer dizer, a demanda surge como uma funcio de uma série de praticas ¢ classificagdes sociais, em vez de uma misteriosa revelacao das necessidades humanas, de ‘Jo mecinica & manipulacdo social (como em um modelo dos efeitos da propaganda cm nossa socicdade), ou de uma redugdo de um desejo universal e voraz por qualquer coisa que, por acaso, esteja disponivel © magnifico retrato dos dilemas de consumo entre os gondes murias da india central, feito por Alfred Gell no Capitulo 4, discute questoes importantes e interessantes sobre as complexidades culturais do con- sumo € 0s dilemas do desejo em sociedades de pequena escala que esto passando por mudancas bruscas. Apés a leitura deste artigo, seria praticamente impossivel ver 0 desejo por bens como algo sem fundamentos ou independente da cultura, e a demanda como uma Feaco natural e mecanica A disponibilidade de bens e de dinheiro para compré-las. O consumo entre os gondes é intimamente ligado a exibicdes coletivas, a0 igualitarismo econdmico e a sociabilidade —0 ue gera um problema para os murias que, como conseqiiéncia de al- ‘ou menos ao longo do iltimo século, adquiriram uma riqueza consideravelmente maior que 0 resto de suas comunidades. O resultado é um padrao que, invertendo Veblen, po- deriamos chamar de “parciménia conspicua”, em que a simplicidade do estilo de vida e das posses é mantida contra as crescentes pressoes do aumento da renda. Quando despesas com mercadorias sao fei 46 endem a girar em torno de formas de mercadorias tradicionalmente aceitas, tais como cntaros de bronze, ornamentos cerimoniais ou casas, que concretizam valores compartilhados coletivamente. Nao se trata de um mundo dominado pelo ethos de bens limitados, como pode parecer 8 primeira vista, mas de um mundo onde nao hi interesse rea hha maioria das coisas que os mercados tém para oferecer. Identidade do grupo, homogeneidade suntuéria, igualdade econdmica ¢ socia- bilidade hedonistica compdem uma estrutura de valores no interior dda qual a maioria dos bens introduzidos de fora é desinteressante preocupante, A regulamentagao coletiva da demanda (¢, assim, do consumo) é, aqui, parte de uma estratégia consciente dos ricos para cconter as implicagées divisivas da diferenciagao. O exemplo muria é um caso impressionante de regulamentagao social do desejo por bens, mesmo quando as condigdes técnicas e logisticas para uma revolucio util e sugestiva das mudancas na economia moral e politica dos tecidos na India desde 1700."” O texto demonstra, de nodo muito claro, os lagos entre politica, valor e demanda na hist6ria social das coisas. De acordo com o argumento de Bayly, a produglo, a troca e o consumo txteis constituem o material de um “discurso politico” (um tanto como a gat na Somilia) que vincula a demanda régia, as estruturas de producio e solidariedades socia locais, ea construcio da legitimidade politica. & 0 aspecto do consu- imo presente neste discurso politico que explica a grande penetracao de tecidos ingleses nos mercados indianos durante o século XIX, e no meramente a I6gica bruta da utilidade e prego. Enfim, no movi- mento nacionalista do final do século XIX e comeco do século XX. cm especial na ret6rica de Gandhi, os intimeros fios do discurso politico acerca do tecido so reconstituidos e reempregados no que se pode chamar de uma linguagem de resisténcia mercantil, na qual significados mais antigos e mais recentes do tecido se voltam contra © império britdnico. O ensaio de Bayly (que, entre outras coisas, € tuma aplicagao extraordinariamente rica das idéias de Werner Som- bart), ao examinar os efeitos de longo prazo na vida social de uma mercadoria particular significativa, nos fornece duas elucidacdes de considerdvel importincia em termos comparativos: primeiro, que ts I6gicas do consumo habitual em comunidades pequenas se ligam 7 intimamente a regimes de valor mais amplos, definidos por sistemas politicos de grande escala; e que o vineulo entre processos de “singu- larizagao” e “mercantilizacao” (para usar os termos de Kopytoff) nas vidas sociais das coisas é, em si mesmo, dialético ¢ esta sujeito (nas mos de individuos como Gandhi) ao que Clifford Geertz chamaria de “jogo absorvente”. A demanda pois, a expresso econdmica da légica politica do consumo; logo, seu fundamento tem de ser buscado nessa Idgica. Se- guindo os rastros de Veblen, Douglas e Isherwood (1981) ¢ Baudrillard (1968, 1975, 1981) sugiro que o consumo 6 eminentemente social, relacional e ativo, em vez de privado, atémico ou passivo. Douglas tem uma vantagem sobre Baudrillard, a de nao restringir a sociedade capitalista contemporinea seu modo de ver o consumo como um ato de comunicacéo, mas estendé-lo igualmente a outras sociedades, Baudrillard, por sua vez, coloca a logica do consumo sob o dominio das I6gicas sociais tanto de produgio quanto de troca, ¢ de modo idéntico. Além disso, ele faz uma critica extremamente eficaz.a Marx € seus colegas economistas politicos no que diz respeito ao par de conceitos “necessidade” e “utilidade”, ambos vistos como enraizados ‘em um substrato primitivo, universal ¢ natural da condigao humana, Minha prOpria inclinaco € dar um passo a frente na desconstrugio ue Baudrillard faz dos conceitos de “necessidade”¢ “utilidade” (e 0 deslocamento dos mesmos em uma esfera mais ampla de producio e troca) estender sua idéia também a sociedades nao-capitalistas, Em que consiste esta visio do consumo? Em observar o consumo (e a demand que o torna possivel) como um ponto de convergéncia nio apenas de envio de mensagens sociais (como propés Douglas), mas, igua de recepedo destas mensagens. A demanda, portanto, oculta dois tipos diferentes de relacao entre consumo e produgao: 1) de uum lado, € determinada por forcas sociais e econdmicas; 2) de outro, pode manipular, dentro de certos limites, estas forcas econdmicas ¢ sociais. O ponto essencial é que, de uma perspectiva hist6rica, estes dois aspectos da demanda podem afetar um ao outro, Tome-se, por exemplo, a demanda régia, como na discussio de Bayly sobre a indi pré-moderna. Aqui, a demanda régia constitui uma forga que envia mensagens ou molda a producao, vista sob a perspectiva interna da sociedade indiana no século XVIII. Quer dizer, a demanda da realeza eslabelece os pardimetros tanto do gosto quanto da produgdo no campo de influéncia que The concerne. Mas a demanda real bém uma 48 forga de recepgao de mensagens, na medida em que tem suporte em uns relagdes com os estilos e produtos europeus contemporineos. Gostos da elite, em geral, tém essa fungdo de “torniquete”, fazendo selegdes a partir de possibilidades exdgenas e, entio, fornecendo modelos, assim como controles politicos diretos, para os gostos ¢ produgio interna, Um mecanismo que freqiientemente transpde 0 controle politico nna demanda de consumo é 0 das “leis suntuérias”, que caracteriza sociedades complexas pré-modernas, mas também sociedades de ppequena escala, pré-industriais pré-letradas. Sempre que vestimenta, comida, moradia, ormamentacao do corpo, nimero de esposas ou de eseravos, ou qualquer outro ato manifesto de consumo estio sujeitos ‘uma regulamentagdo extema, podemos persber que a demanda esti igualmente sujeita & definigio social e a0 controle. Desse ponto de vista, os intimeros “tabus” das sociedades primitivas, que profbem dleterminados tipos de casamento, de consumo de alimentos e de in- \eraglo (assim como suas injungGes cognatas positivas), podem ser considerados como estritos analogs morais das leis suntusrias, mais explicitas e legitimadas, de sociedades mais complexas e letradas. E por meio deste elo que podemos compreender melhor a perspicaz analogia que Douglas (1967) traca entre sistemas de racionamento primitivos” e “modernos”. para os meios de troca primitivos, assim como a moda esta para as primitivas regulamentagdes suntuérias. Ha similitudes morfol6gicas claras entre ambas, mas o termo “moda’ sugere alta velocidade, répida rotatividade, a ilusdo de um acesso total e de uma alta conversibilidade, a suposigao de uma democracia de consumidores e de objetos de consumo. Por outro lado, os meios de troca primitivos, como as leis suntusrias ¢ os tabus, parecem rigi- dos, de movimento lento, frageis em sua capacidade de comensurar, ligados a hierarquias, discriminagdes e posicoes da vida social. Mas, ‘como demonstraram tao bem Baudrillard (1981) Bourdieu (1984), as autoridades estabelecidas que controlam a moda e o bom gosto na sociedade ocidental contempordnea nao so menos eficazes em limitar mobilidade social, em demarcar a posicao social ea discriminacao, em colocar os consumidores em um jogo com regras constantemente alteradas, determinadas pelos que “ditam o gosto” e seus especialistas afliados, que habitam o topo da sociedade- Os consumidores modernos sio certamente tao vitimas da velocidade ‘da moda quanto os consumidores primitivos o sao da estabilidade da legislacao suntuéria. A demanda por mercadorias é drasticamente regulada por esta variedade de mecanismos que ditam os gostos, cuja origem social é compreendida de modo mais claro (tanto por Consumidores quanto por analistas) em nossa propria sociedade do que naquelas distantes de nés. Do ponto de vista da demand: a diferenca crucia i entre as sociedades capitalistas modernas ¢ as bbaseadas em formas de tecnologia e trabalho mais simples ndo € que nds possuimos uma economia totalmente mercantilizada, a0 passo que, na economia daquelas sociedades, dominaria a subsisténcia e a troca de mercadorias teria feito apenas incursées limitadas. Antes, tal diferenga reside no fato de, em nossa sociedade, as demandas de con- sumo das pessoas serem reguladas por critérios de “apropriabilidade” (moda) de alta rotatividade, em contraste com as alteragGes menos freqiientes nos sistemas de regulamentagao mais diretos, suntudrios u consuetudindrios. Porém, em ambos os casos, a demanda € um impulso gerado e regulamentado socialmente, ndo um artefato de caprichos ou necessidades individi Mesmo em sociedades capitalistas modernas, é claro, os meios ¢ 0 impulso de imitar (no sentido de Veblen) nao so 0s tinicos instru- mentos da demanda de consumo. A demanda pode ser manipulada por recursos politicos diretos, seja sob a forma especial de apelos para boicotar alfaces cultivadas em mis condicées de trabalho ou sob as formas generalizadas de protencionismo, “oficial” ou “ndo-oficial” Novamente, 0 tratamento dado por Bayly & manipulacdo que Gandhi faz.com o significado do tecido produzido na india é um arquiexemplo de politizacio direta da demanda. No entanto, esta manipulagao em larga escala da demanda por tecido na india do século XX s6 foi pos. sivel porque o tecido vinha sendo, em um nivel local, um instrumento para 0 envio de mensagens sociais sofisticadamente sintonizadas, Assim, podemos postular como uma regra geral que as comunidades ‘em que 0 consumo se vincula de um modo mais intricado com men- sagens sociais cruciais tendem a ser menos suscetiveis a alteragées bbruscas na oferta ou no preco, porém mais suscetiveis a manipulagio politica no nfvel da regulamentagio da sociedade. Do ponto de vista socia decisivos sido € a0 longo da histéria humana, os agentes tulagao da oferta e procura de mercadorias tém fio apenas 0s governantes, mas, 6 claro, os comerciantes. O 50 magnifico trabalho, recentemente publicado, de Philip Curtin sobre © comércio entre culturas no mundo pré-industrial sugere que mo: delos anteriores, como 0 de Polanyi, da administracio do comércio podem ter superestimado 0 controle do Estado sobre economias complexas pré-modernas (CURTIN, 1984, p. 58). O que fica claro é que as relagées entre governantes Estados variaram enormemente no tempo no espaco. Embora estudos como o de Curtin estejam comegando a demonstrar padrdes subjacentes a esta diversidade, 0 componente da demanda nessas dindmicas de comércio permanece ‘obscuro. As proprias ligagdes histricas estreitas entre gover comerciantes (sejam de cumplicidade ou de antagonismo) poderiam, parcialmente, ser a fonte das reivindicagoes de ambas as partes pelo papel principal na regulamentacdo social da demanda. As politicas de demanda encontram-se, com freqiiéncia, na origem da tensao entre comerciantes ¢ elites politicas; sempre que comerciantes apresentam uma tendéncia de ser os representantes sociais de uma equivaléncia irrestrita, de novas mercadorias € de gostos estranhos, as elites poli- ticas apresentam uma tendéncia de ser os zeladores da troca restrita, de sistemas mercantis estaveis ¢ de gostos estabclecidos ¢ normas Este antagonismo entre bens “estrangeiros” e estruturas suntuérias (e, portanto, politicas) locais 6, provavelmente, a razio fun- damental da tendéncia, muitas vezes notada, das sociedacles primitivas em restringir comércio a um conjunto limitado de mercadorias e a negociagdes com estranhos, em vez de parentes ou amigos. A idéia de que 0 comércio viola o espirito da dadiva pode, em sociedades complexas, ser apenas um subproduto, vagamente aparentado, deste antagonismo mais fundamental. Em sociedades pré-modernas, por- tanto, a demanda por mercadorias algumas vezes reflete dindmicas do Estado, ou, como no caso do kula, a funcao de ponto de articulacao nna competicdo de status entre elites masculinas ao ligar sistemas de {roca internos e externos. Esse pode ser um ponto apropriado para se observar que hé diferengas importantes entre a biografia cultural ea historia social das coisas. As diferengas dizem respeito a dois tipos de temporalidade, duas formas de identificar uma classe e dois niveis da escala social. A perspectiva a biografia cultural, formulada por Kopytoff,€ apropriada a cois espeefficas enquanto passam por mos, contextos € usos diferentes, acumulando, assim, uma biografia especifica, ou um conjunto de biografias. No entanto, quando observamos classes ou tipos de coisas, SI ¢ importante considerar alteragdes de longo prazo (muitas vezes na € dindmicas de larga escala que transcendem as biografias dle membros particulares dessa classe ou tipo. Assim, uma reliquia particular pode ter uma biografia especifica, mas a totalidade dos tipos de reliquia —c, ainda, a propria classe de coisas chamadas “reliquia” tem um fluxo e refluxo hist6rico mais amplo, no decurso do qual seu significado pode se alterar expressivamente. © enstio de Colin Renfrew, “Vara eo surgimento da rigueza na Europa", levanta uma série de questdes importantes, de cunho um longo periodo de tempo. Seu ensaio lebra-nos que a merce. doris so essenciais para algumas das altragdes mato atigas ¢ de sociedades elatvamentenao-dferenciadas de aga e cots Se Em primeiro lugar, observar as processos no decurso de periodes muito longos é, necessariamente, estar envolvido com modelos de nar processos de produo nos primordios da histra human implica observar mudancestecnologeas, Agu, Renfrew nos mostra teenogica (ruil para o desenvolvimento de noves mercadoras) 30 post, segue-e que, como Renfrew deixa lao, consideragds sobre valoredemandaorianrsecenais para Somprecnco de re 8 primeira vista, parecer saltosestitamentetenicos Assim, ao analisar 0 papel do ouro ¢ do cobre em Varna, como também de objetos similares de “valor primordial” em outros sitios pré-hist6ricos da Europa, Renfrew nos afasta das tentagdes de uma Visio reflexionista (segundo a qual objetos de valor refletem o alto status das pessoas que os usam) em prol de uma viso mais cons- trutiva, segundo a qual é 0 uso de objetos de alta tecnologia que crucial para alteragées na estrutura de status. Portanto, 0 que se deve explicar so nogées de valor mutaveis, que, por sua vez, implicam hhovos usos de descobertas tecnolégicas e novas formas de controle Politico dos produtos de tais inovacdes, A complexa argumentagio de Renfrew ilustra a questo de que mudancas no papel social de Objetos de exibigio (cles mesmos fundados no controle sobre mat riais de valor superior)-explicam alteragdes de longo prazo no valor demand: 52 ‘ena demanda. Ao mesmo tempo, seu ensaio nos lembra que o papel cultural das mercadorias (eonquanto tema central deste livro) nio pode ser, em iiltima instancia, separado de questdes de tecnologia, produgio ¢ comércio, Contudo, ainda que o problema arqueol6gico sirva para realcar a complexidade e a dimensao hist6rica das relaces entre valores, diferenciagio social e mudanca técnica, a auséncia de «documentos eseritos ou orais mais convencionais, na verdade,dificulta mais a reconstrugio da mudanca de valor que a da mudanca social e tecnolégica. O ensaio de Renfrew tema virtude de ir ao reves do que suas evidéncias confirmariam de um modo mais confortivel. Processos de longo prazo envolvendo o papel social das mercadorias. foram recentemente estudados em trés grandes obras, duas da autoria de historiadores (BRAUDEL, 1982; CURTIN, 1984) ¢ uma de um antropélogo (WOLF, 1982). Cada um destes estudos tem algumas virtudes particulares, mas também ha sobreposicdes significativas entre eles. O livro de Curtin € um audacioso estudo comparativo do que ele denomina “diasporas comerciais”, comunidades de comer- ciantes que moveram bens através das fronteiras culturais ao longo dda historia registrada e até a época da expansio industrial européi Ele se empenha em manter uma visio nao-curocéntrica do mundo do comércio antes da cra industrial e, nisso, possui muitos tragos em comum com 0s objetivos de Erie Wolf em seu livro recente. Contu- do, o estudo de Wolf, em parte por seu ponto de vista te6rico e por se ocupar de um capitulo bem mais recente da historia dos lagos da Europa com o resto do mundo, se orienta muito mais em direcao a Europa. Curtin e Wolf fazem um grande esforgo para demolir a idéia de fluxos de mercadoria como algo recente ou exclusivamente ligado ‘0 capitalismo metropolitano, e servem como lembretes importantes ddo pano de fundo institucional, logistico e politico a despeito do qual 0 ‘comércio aconteceu por eatre as fronteiras sociais e culturais, Mas, por diferentes motivos em cada caso, Curtin ¢ Wolf interessam-se menos pela questo da demanda e o problema da construcao cultural do valor. Os ensaios no presente livro, entdo, complementam e enriquecem 0 amplo panorama institucional, econdmico ¢ tecnol6gico dos fluxos de mercadoria apresentados nesses dois estudos. Braudel, o formidével decano da Escola dos Anais, € uma outra hist6- ria, No segundo volume de seu estudo magistral sobre o capitalismo a vida material de 1500 a 1800 4.C. , Braudel nio se contenta em nos dar uma descrigio densa e comovente da formacao do mundo 53 industial modero. Ness volume, xo ule em ings € The Wh cls of Commerce.” Braudel se cepa, tal come Curtin Wolf lea Na verdad, tomados em conunt, estes tes estos apesentam tmegando por volta de 150, liga diversas partes do mundo, Breage disutebrovemente parte da demande neste grand eaqvena, No cm uma ampla perspectva temporal (BRAUDEL, 1982. 172-83 pouco do qu diz nao havia si antcipado por emer Somat, oe ser dscuid logo abaxo,Tadavi, estes ts principals tatamenios recente do fuxo de mercadras na construgao de siema lata académica prévia nao tem A hist6ria social das coisas e suas biografias culturais ndo so assuntos de todo separados, pois ¢ a hist6ria social das coisas, no decurso de Jongos perfodos de tempo e em niveis sociais extensos, que constréi coercivamente a forma, os significados e a estrutura de trajetdrias de curto prazo, mais especificas ¢ particulares. Também hé casos, ainda ue tipicamente mais dificeis de documentar ou prever, em que muitas alteragdes pequenas na biografia cultural das coisas podem, com 0 tempo, levar a alteracées em suas hist6rias sociais, Exemplos destas Complexas relagdes entre trajet6rias de grande e pequena escala e padroes de longo e curto prazo no movimento das coisas ni si0 muito difundidos na literatura, mas podemos comecar a observar tais relagdes com referéncia as transformagées dos sistemas de troca Sob 0 impacto do regime colonial (DALTON, 1978, p. 155-165; STRATHERN, 1983) c is transformacdes da sociedade ocidental que levaram ao surgimento do souvenir, do objeto coleciondvel e da lem- branga (STEWARD, 1984), Neste livro, os ensaios de Bayly, Geary, 54 Cassanelli e Reddy sio discuss6es especialmente interessantes das relagdes entre estas duas dimensOes da temporalidade das coisas, 6 uma coincidéncia que estes estudiosos sejam, todos, historiadores sociais, interessados em processos de longa duraco. A melhor abor- dagem geral da relacéo entre demanda, citculacao de objetos de valor alteragdes de longo prazo na producao de mercadorias encontra-se no trabalho de Werner Sombart (SOMBART, 1967). Devemos a Sombart a importante observacio hist6rica, de que, no periodo entre 1300 e 1800 na Europa, que ele vé como 0 cerne do comego do capitalismo, a principal causa da expansio do comércio, inddstria e capital financeiro era a demanda por bens de luxo, sobre tudo da parte dos nouveaux riches, das cortes ¢ da aristocracia. Ele identifica a fonte deste aumento da demanda, por sua vez, na nova forma de compreender a venda de amor “livre”, nos refinamentos sensuais e na politica econdmica das relagdes de corte durante este periodo. O significado dessa nova fonte de demanda era que havia se tornado uma forca motriz para as classes mais altas, saciadas apenas por artigos de consumo em quantidades cada vez maiores e qualidades cada vez. mais diferenciadas. Esta intensificacdo da deman- da, sexual e politica em suas origens, assinalava o fim de um estilo de vida senhorial ao mesmo tempo em que estimulava a manufatura te, ¢ 0 comércio do capitalismo nast Embora a abordagem geral de Sombart da hist6ria social do capitalis- ‘mo tenha sido, durante e ap6s sua vida, legitimamente criticada por uma série de deficiéncias empiricas ¢ idiossincrasias metodoldgi ela permanece como uma alternativa potente (embora subterrinea) visdes de Marx e de Weber sobre as origens do capitalismo ocidental. Ao voltar-se para 0 consumo e a demanda, a obra pertence a u tradigdo minoritiria e opositiva, algo de que Sombart estava bem ciente, Neste sentido, Sombart é um dos primeitos criticos do que Jean Baudrillard chamou de “espelho da produgio”, no qual uma boa parte da teoria dominante da economia politica do Ocidente moderno tem se visto, Em sua énfase na demanda, em suas observagoes fundamentais sobre as politicas da moda, em sua colocagio das forcas econdmi- cas no contexto das transformagoes da sexualidade ¢ em sua visio dialética das relagoes entre luxtiria e necessidade, Sombart antecipa recentes abordagens semidticas do comportamento econdmico, tais como as de Baudrillard, Bourdieu, Kristeva e outros. ‘A abordagem de Sombart foi recentemente retomada em um estudo extremamente interessante das circunstincias que antecederam 0 comeco do capitalismo, da autoria de Chandra Mukerji (1983). 0 gumento de Mukerji, que converge para o meu em diversos pontos, € que, longe de serem resultado da revolugio tecnol6gica/industrial do século XIX, uma cultura materialista e um novo tipo de consumo voltado para produtos ¢ bens provenientes de todo o mundo foram pré-requisito para a revolucio tecnol6gica do capitalismo indus- trial. Nesta audaciosa critica & hipotese weberiana sobre o papel do ascetismo puritano de fornecer 0 contexto cultural para 0 célculo capitalist, Mukerji segue Nef (1958) ¢ outros. A argumentagao dela € uma sofisticada descricao histérica do pano de fundo cultural dos prim6rdios do capitalismo na Europa. Apresenta novas evidéncias e ‘argumentos para colocar 0 gosto, a demanda e a moda no centro de uma explicacao cultural das origens do capital assim como para a centralidade das “coisas” nessa ideologia na Europa Renascentista (ver também GOLDTHWAITE, 1983). Para os nossos propésitos, a importincia do modelo proposto por Sombart para as relagSes entre Iuxtiria e 0 comeco do capitalismo reside menos nas especificidades historicas e espaciais de sua argu- ‘mentagio (que é um problema para historiadores dos primérdios da Europa moderna) do que no cardter generalizante da ldgica de seu Argumento no que diz respeito a base cultural da demanda por, a0 menos, alguns tipos de mercadoria, aquelas que chamamos de luxos. Proponho que consideremos os bens de luxo nao exatamente em con- traste com necessidades (um contraste cheio de problemas), mas como bens cujo uso principal € retérico e social, bens que sao simplesmente simbolos materializados. A necessidade a que eles correspondem fundamentalmente politica. Ou melhor, jé que a maioria dos bens de Juxo é consumida (ainda que de formas especiais ea custos especiais), poderia fazer mais sentido ver luxos como um “registro Consumo (por analogia com o modelo lingiiistico) do que luma classe especial de coisas. Os tracos distintivos deste registro, em relacio as mercadorias, sio alguns dos ou todos os seguintes atributos: (1) restrigéo, quer por preco ou por lei, a elites; (2) complexidade de aquisicdo, que pode ou nao ser uma funcio de “escassez” real; (3) Virtuosidade semiética, isto é, a capacidade de assinalar, com legiti- midade, complexas mensagens sociais (como a pimenta na culinéria, 4 seda no vestudrio, as-j6ias em ornamentos ¢ reliquias em atos de 56 clto); (4) um conhecimento especializado como pré-requisito verem usados “apropriadamente”, isto é, regulamentaco pela moda; e (5) um alto grau de associagao entre seu consumo ¢ 0 corpo, a pessoa © a personalidade. Do ponto de vista do consumo, aspectos desse registro de luxo podem, de certa forma, convir a toda e qualquer mercadoria, mas algumas mer- cadorias, em certos contextos, passam a condensar o registro de luxo, podem ser vagamente descritas como bens de luxo. Vistas deste modo, lodas as sociedades apresentam alguma demanda por bens de luxo, ¢ poder-se-ia argumentar que foi apenas na Europa pés-1800 (aps o mento das leis suntuarias) que essa demanda se libertou da jo politica e foi legada ao jogo “livre” do mercado e da moda. Nessa perspectiva, a regulamentacdo suntuéria e a da moda sdo pélos jopostos na regulamentagao social da demanda, em particular daquela por bens com alto valor discriminat6rio. Em certas épocas, 0 fluxo de hens de luxo exibe uma poderosa tensio entre estas duas forgas: 05 lltimos séculos do Antigo Regime na Europa, por exemplo, mostram forcas que atuam em ambas as diregoes. As primeiras décadas do con- {ato colonial também exibem, por quase toda part, esta tensdo entre novas modas € regulamentacoes suntudrias preexistentes. A moda, nestes contextos, 6 0 impulso de imitar novas poténcias, ¢ esse impulso € muitas vezes integrado, para melhor ou pior, a imperativos suntusrios tradicionais. Esta tensio, no nivel da demanda e do consumo, liga-se, obviamente, as tenses entre os sistemas de produgao e bens nativos € 0 importados, entre meios de troca nativos e os trazidos de fora. Um estudo de caso extremamente interessante acerca das ligagdes entre comércio, moda, leis suntuérias e tecnologia é encontrado na discus- so de Mukerji sobre as conexdes entre a Inglaterra c a {ndia para 0 comércio do calicé no século XVII. (MUKERI, 1983, p. 166-209). A segunda questdo de importincia a que Sombart dirige nossa atent € a complexidade das ligagdes entre os bens de luxo € mercadorias ‘mais mundanas. No caso de que ele se ocupa, as ligagdes envolvem principalmente o processo de producio. Assim, nos pri Europa moderna, qu como pré-requisitos, processos de produgdo secundirios e tercidrios a manufatura do tear de seda da suporte aos centros de tecelagem de seda, que, por sua vez, dao suporte & criagdo de mobilirio e vestud- rio de luxo; a serraria produz madeiras essenciais para a produgio de escrivaninhas sofisticadas; quando a mad a, passa a haver 57 luma grande demanda por carvéo na indéstria do vidro e de outros luxos; a fundigio de ferro forneceu os encanamentos cruciais para as fontes de Versailles (SOMBART, 1967, p. 145-166). Visto que um cerescimento na demanda por bens de luxo primiirios é deci expansio da producio de instrumentos de segunda e ter ‘a demanda por luxos tem grandes implicagdes no sistema ecor Este 6 0 caso das economias modernas e complexas em seus principios. Porém, em economias diferentes quanto & escala, a estrutura e a oF: anizacao industrial, a conexao entre bens de luxo ¢ bens de outros stros de uso pode envolver nao as reverberacdes de um complexo Conjunto de meios e formas de produgo, mas, antes, os dominios da troca e do consumo. Assim, retornando ao sistema kula da Oceania, anilises recentes deixam claro que o “comércio” de objetos de valor do kula se relaciona com uma complexa dialéti com absorgdes de, ¢ drenagens em, outros registros de troca, que podem incluir casamento, morte, heranca, compra e venda, ¢ assim Por diante (ver, em especial, WEINER, 1983), Por iltimo, 0 comércio de luxos pode muito bem fornecer um quadro cordial, durdvel e sentimental para a condugio de trocas de outros bens € de outros modos: aqui, a ocorréncia de trocas gimwali, ou no estilo de mercado, em contraste com o pano de fundo do kula é, novamente, uum exemplo primitivo apropriado (UBEROI, 1962). Um exemplo bem moderno desse tipo de relacio entre o comércio no registro de luxo e em registros simbolicamente menos carregados é o relacionamento ‘comercial entre 0s Estados Unidos e a Unido Soviética. Neste caso, 68 acordos sobre a limitacdo de armamentos estratégicos podem ser vistos como tipos altamente competitivos de comércio de luxo, em que o luxo em questio é assegurar a restric a armas nucleares no lado oposto. Os altos e baixos desse comércio sio o pré-requisito para © movimento de outras mercadorias, tais como grios alimenticios alta tecnologia. E precisamente este tipo de relacionamento politi= camente mediado entre registros distintos de comércio que explora agressivamente a recente politica norte-americana de “vinculagao”, pela qual a intratabilidade soviética em uma esfera de troca é punida em outra esfera. Em sociedades e tempos mais simples, o equivalente ddos acordos SALT devia ser visto na diplomacia da troca de presentes entre comerciantes e chefes, ou simplesmente entre os chefes, situ- storno nas quais era possivel malograr o comércio em registros menos carregados. 58 [Em todas essas formas, podemos ver que a demanda pelos tipos de ‘objetos de valor que chamamos de luxos, ¢ 0 que chamei de registro ide luxo de qualquer fluxo particular de mercadorias, esta intimamente ligada a outros registros, mais cotidianos e de alta rotatividade, da linguagem das mercadorias na vida social Esse pode ser também 0 momento oportuno para fazer uma ob: servagdo mais geral acerca das mercadorias discutidas neste livro, das quais possuem uma dimensdo extremamente luxuosa © parecem, pois, compor uma amostragem que estaria destinada a favorecer uma abordagem cultural de um determinado modo que mercadorias mais comuns, produzidas em massa, nao 0 fariam. O fato {que a linha entre mercadorias luxuosas e cotidianas ndo apenas se altera historicamente, mas, mesmo em qualquer ponto determinado no tempo, algo que dé a impressio de ser um item homogeneo, em estado bruto e de um campo semiintico extremamente restrito pode se tomar muito diferente no decurso da distribuigao € do consumo. Talvez o melhor exemplo de uma mercadoria comum cuja historia é repleta de idiossincrasias culturais seja o acticar, como mostraram de modos bem diferentes Sidney Mintz (1979) e Fernand Braudel (1982, p. 190-194). A distingao entre mercadorias comuns e mercadorias mais ex6ticas nao é, portanto, uma diferenca de espécie, mas, com maior freqéneia, uma diferenca de demanda ao longo do tempo ou, algumas vezes, uma diferenca entre locais de producao € locais de consumo. Sob a perspectiva da escala, estilo e importincia econd- mica, Mukerji apresentou uma argumentacao clogiiente, a0 menos no caso dos primérdios da Europa moderna, para que ndo se tracem fronteiras rigidas entre consumo de massa ¢ de elite, bens de luxo ¢ bens mais comuns, bens de consumo e de capital, ou ainda, a estética da exibigdo em contraste com os modelos dos ambientes de producio priméria (MUKERII, 1983, cap. 1) Assim, a demanda nao é nem uma reagdo mecénica @ estrutura € a0 nivel de producdo, nem uma nsia natural insondavel. E um complexo mecanismo social que intermedeia padroes da circulacao de merca- dorias de longo e curto prazo. Estratégias de desvio de curto prazo (ais como aquelas discutidas na seco anterior) acarretariam pequenas alterages na demanda que podem transformar, gradualmente, os flu- xos de mercadorias com o correr do tempo. Porém, observados sob a perspectiva da reprodugao de padries de fluxo de mercadorias (em vez de alteragdes dos mesmos), os padrdes de demanda estabelecidos ha 59 muito tempo funcionam como mecanismos de coagéo sobre qualquer conjunto de rotas de mercadorias. Uma das razBes por que tais rotas ‘io increntemente vulnerdveis, em especial quando envolvem fluxos transculturais de mercadorias, € que elas se apdiam na distribuigao instivel de conhecimento, um assunto para o qual nos voltamos agora CONHECIMENTO E MERCADORIAS do se ocupa das peculiaridades do conhecimento que acompa- nha fluxos de mercadoria relativamentecomplexos, de longa distancia € interculturais—embora mesmo em loci de fluxos mais homogéneos, «de menor escala e menos tecnologia haja sempre um potencial para discrepancias no conhecimento acerca de mercadorias. Mas, confor- me aumenta a distancia, a negoci ‘entre conhecimento e ignorncia se torna, em si mesma, um determinante crucial do fluxo de mercadorias. Mercadorias representam formas sociais ¢ partilhas de conhecimento muito complexas. Em primeiro lugar, e grosso modo, tal conhecimento Pode ser de dois tipos: 0 conhecimenta (téenico, socal, estético etc.) ‘que integra a producao da mercadoria; e o conhecimento que integra ‘agio de consumir apropriadamente a mercadoria, O conhecimento de produgio interpretado em uma mercadoria ¢ bem diferente do conhecimento de consumo que ¢ interpretado a partir da mercadoria. E claro, essas duas interpretagdes irio divergir proporcionalmente ‘20 aumento da distancia social, espacial e temporal entre produtores € consumidores. Como veremos, pode nio set muito acurado ver 0 conhecimento no locus de produgao de uma mercadoria como exclu. sivamente técnico ou empitico, e 0 conhecimento na extremidade do consumo como exclusivamente avaliador e ideol6gico. O conheci- mento, em ambos os polos, tem componentes técnicos, mitolégicos ¢.avaliadores, e os dois pOlos so suscetiveis a interagbes muituas e diatétic # considerarmos que algumas mercadorias tém “histérias de vida” ou ntzo, torna-se til observar apaila de conhecimono om dieses moment dose ote carreiras atingem o grau mais alto de uniformidade no pélo da roducio, pois € provavel que, no momento da producio, a mercadoria ‘em questo mal tenha-tido oportunidade de acumular uma biografia idiossincratica ou de desfrutar uma carreira peculiar. Assim, 0 locus 60 dc produgio de mercadorias tende a ser dominado por prescrigoes de fabricagao culturalmente padronizadas. Portanto, fabri fundigbes, minas, oficinas e a maioria dos outros locais de producao siio, em primeiro lugar, depésitos de conhecimentos técnicos de produc de um tipo altamente padronizado. Todavia, vale notar que, mesmo aqui, © conhecimento técnico requerido pela producio de mercadorias primérias (gros, metais, combustivel, petréleo) tende a ser muito mais padronizado que o conhecimento requerido pela produgio de mercadorias secundérias ou de luxo, nas quais 0 gosto, 1 apreciagdo e a experiéncia individual tendem a criar variacdes, acentuadas no conhecimento de producio, Nao obstante, o impeto da mercantilizacio na extremidade da produgio se volta para a padron zacio do conhecimento técnico (como fazer). Obviamente, com todas, as mereadorias, primérias ou no, o conhecimento técnico sempre se mistura profundamente com suposicdes cosmol6gicas, sociol6gicas ¢ rituais que tendem a ser amplamente compartilhadas. Os oleiros azande de Evans-Pritchard (1937), 0s camponeses colombianos de ‘Taussig (1980), os fazedores de canoa Gawan de Nancy Munn (1977), os produtores de cana-de-acticar do Panamé de Stephen Gudeman (1984), todos combinam estratos tecnol6gicos ¢ cosmolégicos em seus discursos sobre a producao. Na maioria das sociedades, tal co- nhecimento de produgao esta sujeito a alguma descontinuidade em sua partilha social, seja pelos critérios mais simples de idade ou de nero, por critérios mais complexos que distinguem familias, castas ou aldeias de artesios do resto da sociedade, ou até por divisdes do trabalho ainda mais complexas que separam, em termos de papel a ser desempenhado, empreendedores ¢ trabalhadores de chefes de familia e consumidores, como na maioria das sociedades modernas. Mas hé outra dimensio do conhecimento de produgio, que € 0 conhecimento do mercado, do piblico consumidor, do destino da mercadoria. Em sociedades tradicionais de pequena escala, tal co- nhecimento € mais ou menos direto e completo no que diz respeito a0 consumo interno, porém mais irregular e incompleto em relagao A demanda exterior. Em contextos pré-capitalistas, é claro, a trans- posigio de demandas externas para produtores locais € da alcada do comerciante e seus agentes, que providenciam pontes logisticas e de preco entre universos de conhecimento que podem ter um contato direto mnimo. Assim, € praticamente certo que os habitantes tradi cionais da floresta Borneo tivessem 56 uma vaga idéia dos usos a que or Se destinavam, nas praticas médicas e culinérias chinesas, os ninhos dle pissaros que vendiam a intermedirios. Esse paradigma de pontes mercantis que atravessam grandes abismos de conhecimento entre Produtores © consumidores caracteriza a movimentagao de grande Parte de mercadorias por toda a hist6ria, até o presente. Hoje, essas Pontes persistem tanto por causa de abismos culturais intransponiveis (como entre os produtores de épio na Asia ¢ no Oriente Medio ¢ os ites em Nova York), quanto por causa da especiali- zacio infinitesimal da produgo de mercadorias ou o seu inverso ~ a distancia entre uma mercadoria em estado bruto (como, por exemplo, © cobre) ¢ as centenas de transformagées por que ir passar antes de chegar a0 consumidor. Observamos que esses grandes abismos de conhecimento do mercado final da parte do produtor conduzem, em eral, alucros altos no comércio ea uma relativa destituicio da rey ou da classe produtora em relagdo aos consumidores e o comerciante (ver Spooner, capitulo 7), Problemas que envolvam conhecimento, informagao ¢ ignorincia hao se restringem aos pélos de producio ¢ das mercadorias, mas caracterizam 0 troca. Em uma influente descriga Geertz colocou consumo das carreiras Préprio proceso de cireulacao do bazar Moroccan, Clifford a busca por informagdes confiveis no centro desta instituigéo © mostrou quao dificil é, para os atores nesse sistem (obt8-las seja sobre pessoas, seja sobre coisas (GEERTZ, 1979), Boa Parte da estrutura institucional e da forma cultural do bazar apresen- {a dois gumes, dificultando 0 acesso & informagéo confiével, mas também facilitando a busca por tal informacao. E tentador concluir ue labirintos de informago complexos e culturalmente organizados Como estes sejam um trago especial de economias do tipo bazar, e se ‘ausentem em economias simples sem mercado, assim como em eco. ‘omias industriais avangadas. Porém, como o proprio Geertz (1979, P. 224) sugere, © bazar como uma categoria analitica pode muito bem se aplicar ao mercado de carros usados (mas nao ao mercado de carros “zero”) nas economias industriais contempordneas, Podemos colocar a questio de uma forma mais geral; buscas de informacio no estilo do bazar tendem a caracterizar qualquer cenirio de troca onde a qualidade e a valoracdo apropriada dos bens nao sejam padronizadas, embora os motivos para a falta de padronizacio, para a flutuacio dos Pregos ¢ para a qualidade incerta de coisas especificas de um certo {ipo softam variagdes enormes. De fato, sistemas para a troca de ob. > + ainda jlos de valor do kul, de earos usados ede tapes orienta Que ococram em cenriosinsitucionas e culturais muito dipare, pradem envolver, todos, economias de informa no estilo do bazar. Mas os abismos no conhecimento e as dificuldades de comunicacio centre produtor ¢ consumidor nao so obstaculos reais para 0 vigoroso fluxo de mereadoris em estado bruto destinadas a milipls trans- formacdes industriais antes de chegar aos consumidores. No caso de {ais mercadorias (algumas vezes chamadas de mercadorias primérias), uuma série quase infinita de pequenos circulos de conhecimento que se sobrepoem pode ligar o produtor original eo consumidor terminal Mas nao 6 este 0 caso de mercadorias por destinacao, que sao ampla- mente “fabricadas”, no sentido de Nancy Munn, desde 0 principio de suas carreiras (MUNN, 1977). Estas exigem mecanismos mais diretos para uma negociagao satisfat6ria de prego e uma equiparacao do gosto do consumidorhabldade, a coneimentoe tradigo do produto. ilvez os me! smplos deste tipo de comunicagio mais direta inclu ocomco tnrmacional de Toupes prontas (SWALLOW, 1982) ¢ 0 de arte turstica no que Nelson Graburn (1976) chamou de quarto mundo. Sempre que hé descontinuidades no conhecimento que acompanha € de gosto, os tapetes oricntais cnvolvem, hoje, uma negociagio que é negociado, como observa Spooner de um modo incisivo, é a de pessoas no topo da sociedade ocidental se tornam mais marcados, 63 prestigio, instaura-se um crescente e irénico didlogo entre a necessi- dlade de critérios de autenticidade que se alteram constantemente no Ocidente e as motivagées econdmicas dos produtores e negociantes. © mundo dos negociantes, além disso, torna-se ele mesmo atado is Politicas de proficiéncia da formalizagio de um saber erudito sobre tapetes no Ocidente De uma forma geral, podemos sugerir que, em relagdo a merca- dorias de luxo como tapetes orientais, conforme a distancia entre consumidores ¢ produtores diminui, a questio da exclusividade dé lugar & questao da autenticidade. Quer dizer, em citcunstancias pr ‘modernas, o movimento de longa distancia das mercadorias preciosas implicava custos que faziam de sua aquisigao, em si mesma, um marcador de exclusividade e um instrumento de distingdo suntuéri Onde o controle de tais objetos nao estivesse sujeito a regulamentagio do Estado, eles eram regulamentados indiretamente pelo custo da aquisigao, de modo que permaneciam nas miios de poucos, Com as mudangas tecnolégicas, a reprodugio em massa destes objetos tornou- Se possivel, o didlogo entre consumidores ¢ a fonte original passa a ser mais direto, e consumidores de classe média foram capacitados (legal ¢ cconomicamente) a disputar estes objetos. A ‘nica forma de reservar a funcao destas mercadorias nas economias de prestigio do Ocidente moderno ¢ tomnar os critérios de autenticidade mais compli- cados. As extremamente complicadas competicio e colaboracao ent Peritos” do mundo da arte — negociantes, produtores, estudiosos consumidores ~ € parte da economia politica do gosto no Ocidente contempordneo. Esta economia politica tem sido, talvez, mais bem investigada na Franca, por Baudrillard (1981) e Bourdieu (1984), Huma série particular de quest0es que concernem a autenticidade e & expertise que incomoda 0 Ocidente modemno, ¢ esta série, que gira em torno de t6picos como bom gosto, conhecimento especializado, “originalidade” e distincao social, manifesta-se em especial no do- minio da arte e de objetos artisticos. Em seu famoso ensaio “A obra de arte na época de suas téenicas de reproducéo”,” Walter Benjamin (1968; edigdo original de 1936) reconhecia que a aura de uma obra de arte auténtica esta ligada & sua originalidade e que esta aura, que é © fundamento de sua autenticidade, € posta em risco pelas modernas tecnologias de reprodugio, Neste sentido, cépias, falsificagoes e ver- s6es “piratas”, que tém uma longa historia, nfo ameacam a esséncia do original, mas buscam compartilhar dela. Em uma nota de rodapé deste o4 perspicaz: “Na censaio, Benjamin fez a seguinte observacéo, muito perspi verdade, & época em que foi feita, uma pintura medieval da Virgem sinda ndo era ‘auténtica’, Tornou-se ‘auténtica’ durante os séculos seguintes e, talvez, sobretudo, no século XIX.” (BENJAMIN, 1936, p. 243) Em um ensaio sobre o conceito de “assinatura” no mundo da urte moderna, Baudrillard (1981, p. 103) prossegue com a questio: Aaté 0 século XIX, a eépia de uma obra original tinha seu proprio valor, era uma pritica letima, Em nossa época a pit €ilegitima, inauténtica: ja rio € mais “arte”. Da mesma forma, o canceto de falsfcacio modou~ou melhor, apareceu de repente ‘como advento da moderidade, Antes, pintores se serviam regulatmente de colaboradores ou negres um especialstacm drvores outro em animals. ato de pinta, assim como a assinatura no ostentava a mesma insitnca miolgkn sobre a autetldae— ‘este imperative moral aque aarte moderna se dedica «pelo qual ela se torna moderna ~ que foi posta em evidéncia desde que a relagio com a ilustraio e, Portanto, 0 proprio significado do objeto artstico ‘mudou com o ato mesmo da pintura moderno, no contexto das formulagées tedricas de Bauhaus (BAU- er ostrado recentemente DRILLARD, 1981, p. 185), embora se tenha mostra meio do qual objetos, no sentido de Baudrillard, se movem. Sontudo, problemas de autenticidade, pericia e avaliagao de mer- oun ani beget es fess Ose mencionamos 0 artigo de Patrick Geary, neste volume, sobre 0 inercimbio de eliguas na Earopacarolingia. Aqui, hé um proble ma eri no que dizrespeito a autenticagioe, também aq, est problema est lgado ao ftodereliguisctelarem por longo pe- Have de tompo, pssando por mulas mos eperorrendo grates distincias, Agu tambem hi uma preoeypagi cm falsengoes, uma 65 ‘obsessiio pelas origens. Mas o regime cultural da autenticacdo é um tanto diferente do regime moderno. Ainda que haja um pequeno grupo de procedimentos técnicos ¢ prerrogativas clericais comprometidos ha autenticacéo, trata-se, de um modo geral, de uma questio em que compreensdes populares sobre a eficédcia ritual e critérios comuns de ‘autenticidade desempenham um papel fundamental. A autenticidade ‘aqui nao € da algada de peritos e de critérios esotéricos, mas de espé- cies populares ¢ piblicas de confirmaciio e verificacao, problema do conhecimento especializado e da aut me ainda uma outra forma no faseinante esto de caso de Wiliam Reddy sobre a alleragdes na organiza de sabres espoificos a india txt da Fane, ants e depois da tevlugdo de 1789, dos na Frana, na década de 1720 er 189, Rody arguments qu, de sida da nite paso di, exten ona verdad, casa O vasa siscmas modernos defxo de mereadorias Red now most gus so muito complexase lets pra muda, Modos de saber ular de guilds, pregosu pci. Foi preciso uma sre mute compleca guadioepstemolgco susie para clsiiar produts camels; como produas eo “otha” (a sentido de Foucault) do consumilore do comeriant eulgar ad ol” do prodhtr, eds, opine tergo do sulo XIX, pussaram ae visis no que Baudrillard chara de “espelho da produgio™.Autentiidad, no Gomego dese cena indus, do 6 ma questo de pofcénia, mes de metodo de prego dads objtvamente. A pecs do negociantee do nani ugar pei da produciondsrialzada, O ena de Reno leis, fete aleragteséxemamentecomplcadasnaorganzagio 66 do conhecimento e dos modos de producao. Tais alteracdes tém uma dimensao cultural que nao pode ser deduzida a partir de, ou reduzida 2, mudangas na tecnologia ¢ na economia. Um diltimo exemplo da complexidade das relagdes entre autenticidade, gosto e as politicas das relagdes entre consumidore produtor concerne a0 que tem sido denominado arte étnica ou turistica. Essas foram tema de estudos antropol6gicos bastante rigorosos hé uma importante coletinea de ensaios sobre o assunto (GRABURN, 1976). Embora os fendmenos discutidos sob esses rétulos incluam uma desconcertante gama de objetos, como observa Graburn em seu ensaio introdutério, eles compéem talvez 0 melhor exemplo das diversidades entre pro- dutores ¢ consumidores em gosto, compreensao ¢ uso. No lado do produtor, podem-se ver as tradi¢Ges de fabricagao (novamente seguin- do Munn) mudando em reagio a imposigdes comerciais ¢ estéticas ou ‘a impetos de escalas mais largas e, algumas vezes, a consumidores distantes. No lado do consumidor, hd souvenirs, lembrancas, rarida- des, colegdes, objetos de exposicio, assim como a competigao por status, a pericia e © comércio em que permanecem. Entre as duas extremidades, uma série de lagos comerciais e estéticos, algumas vezes complexos, miltiplos e indiretos, outras vezes abertos, raros e diretos. Em ambos os casos, a arte turistica constitui um trafego de mercadorias especial, em que as identidades grupais de produtores so emblemas para as politicas de status dos consumidores. artigo de Alfred Gell, neste livro, traz algumas observagoes astu- tas sobre os complicados tipos de refracao na percepgao que podem acompanhar a interagao de pequenas populagoes tradicionais com economias e sistemas culturais de larga escala. Refletindo sobre 0 interesse muria por jogos de pratos em bronze produzidos fora de sua i0, Gell observa que “os murias, um povo tradicional sem um legado proprio de producao de artesanato e bens de prestigio, esto, na verdade, bem mais proximos dos ocidentais, que buscam aute cidade no exético, do que das tradicionais sociedades produtoras de artesanato, categoria & qual erroneamente se supde que eles perten- ‘cam”. Trabalhos recentes sobre exibigies e museus, empreendidos por antropélogos e historiadores (BENEDICT, 1983; BRECKENRIDGE, 1984), assim como por semidlogos e te6ricos da literatura, ampliam aprofundam nossa compreensio do papel exercido por objetos do “outro” na criagio do souvenir, da colecao, da exposicao e do troféu no Ocidente moderno (BAUDRILLARD, 1968, 1981; STEWART. 07 1984). De uma forma mais geral, poder-se-ia dizer que, conforme 0S percursos institucionais ¢ espaciais das mercadorias se tornam mais complexos e a alienacio mitua entre produtores, comerciantes € consumidores aumenta, hé uma tendéncia de surgirem mitologias culturalmente modeladas acerca do fluxo de mercadorias. Historias ¢ ideologias culturalmente construidas acerca de fluxos de mercadorias sio lugar comum em todas as sociedades. Mas tais historias adquitem qualidades especialmente intensas, novas € impressionantes quando as distincias espaciais, cognitivas ou insti- tucionais entre producdo, distribuicio e consumo sio grandes. Tal distanciamento pode ser institucionalizado no interior de uma tnica economia Complexa ou pode se uma fungio de novos tpos devine lo entre sociedades e economias 0 separadas. O divércio Papel) entre as pessoas envolvidas em diversos aspectos do fluxo de mercadorias gera mitologias especializadas. Nesta seco, analiso trés variantes de tais mitologias e os contextos em que surgem. (1) Mitologias produzidas por comerciantes ¢ especuladores que sio em grande parte indiferentes tanto as origens da produgio quanto & destinagao do consumo das mercadorias, exceto nos casos em que afetem as flutuagdes de prego. Os melhores exemplos desse tipo sio 0s mereados de futuro em ceonomias capitis complex, em a venda de gros na bolsa de Chicago no come¢o do século XX. @) Milologis prodizdes por consumidores (ou consuniores Potenciais) alienados do processo de produgio e de distribuicdo de mereadorias-chave, Aqui, os melhores exemplos vém dos “cultos da carga” da Oceania. (3) Mitologias construidas por trabalhadores envolvidos no processo de produgao que esto completamente divor- ciados da Iégica de distribuicao e de consumo das mercadorias que produzem. Os modernos mineradores de estanho da Bolivia descritos Por Michael Taussig em The Devil and Commodity Fetishism in South America (0 diabo e 0 fetichismo da mercadoria na América do Sul) sio um excelente exemplo tipico dessas mitologias. Nos proximos pardgrafos, discuto brevemente cada uma dessas variagdes, come- ando pelas bolsas de mercadorias capitalistas. Aesfera mercantil no sistema global do capitalismo moderno parece, {primeira vista, ser uma enorme maquina impessoal, governada por movimentos de prego em larga escala, complexos interesses insti- tucionais, e de um caréter totalmente desmistificado, burocratico e 68. auto-regulador. A impressio € que nada poderia estar mais afastado dos valores, mecanismos ¢ éticas dos fluxos de mercadorias em so- ci de pequena escala. Porém, essa impressao ¢ falsa. Neste momento, deveria estar claro que o capitalismo no representa apenas tum esquema tecnol6gico © econdmico, mas um complexo sistema cultural com uma hist6ria muito especial no Ocidente mo- dderno, Essa visio, que sempre teve adeptos eminentes na histéria social e econdmica (WEBER, 1958; SOMBART, 1967; NEF, 1958 BRAUDEL, 1982; LOPEZ, 1971; THRISK, 1978), ganhou um novo impulso a partir de estudos antropol6gicos e sociolégicos da cultura euro-americana (BAUDRILLARD, 1981; BOURIEU, 1984; DOU- GLAS; ISHERWOOD, 1981; MUKERI, 1983; SAHLINS, 1976). estudo do esquema cultural do capitalismo em sua forma norte- americana foi empreendido com grande vigor na dltima década; historiadores, antropélogos e sociGlogos estio comecando a reunir uma rica descrigio da cultura do capitalismo nos Estados Unidos (COLLINS, 1979; DIMAGGIO, 1982; LEARS, 1984; MARCUS prelo; SCHUDSON, 1984). Embora esse contexto mais amplo esteja fora do escopo da presente discusséo, est bem claro que o préprio jpitalismo € uma formacio cultural ehist6rica e que, nessa forma ‘asmercadorias e seus significados desempenharam um papel crucial ‘Um exemplo das expresses culturais do capitalismo moderno, pe- culiar e impressionante, 6 0 mercado de futuros nos Estados Unidos, que se desenvolveu na metade do século XIX e cujo paradigma é a Bolsa de Graos de Chicago. 0 comércio de mercadorias em estado bruto permanece, hoje, como ‘uma parte extremamente importante do comércio e do sistema econd- mico mundial (ver, por exemplo, ADAMS; BEHRMAN, 1982) esse intercdmbio de mercadorias em larga escala continua sendo, talvez, principal arena em que as contradigies do capitalismo internacional podem ser observadas, Entre essas contradigoes, é central aquela entre 4 ideologia de livre-comércio do capitalismo clissico e as formas variadas de protecionismo, cariéis e acordos reguladores que surgi- ram para restringir essa liberdade em favor de diversas coalizies de produtores (NAPPI, 1979). Mercados de futuros representam a arena institucional em que 0s riscos que acompanham os fluxos nacionais € internacionais dessas mercadorias sio negociados, com a diminuigio dos riscos da parte de alguns e puras especulagdes da parte de outros. o Mercados de futuros giram em torno de um grande mimero de transagdes que envolvem contratos para compra e venda de merca- dorias, em datas futuras. Esse comércio de contratos € um comércio de papel, que raramente inclui troc: reais das mercadorias entre os ‘comerciantes. Como a bolsa de valores, esses mercados sio torneios especulativos, nos quais 0 jogo dos precos, riscos e trocas aparece ‘otalmente divorciado, para 0 espectador, de todo 0 processo de Producio, distribuigio, venda e consumo. Poder-se-ia dizer que a especulagio sobre mercadorias futuras separa, drasticamente, prego € valor, sendo o tiltimo algo sem qualquer interesse. Nesse sentido, 4 Iogica do comércio de mercadorias futuras é, seguindo Marx, um tipo de meta-fetichismo em que no apenas a mercadoria substitui as relagdes sociais que esto por trés dela, mas o movimento de precos se ‘orna um substituto autGnomo dos fluxos das proprias mercadorias, Embora esse duplo grau de remogio das relagées sociais de produgdo € troca diferencie muito os mercados de futuros de outros torncios de valor, tais como os retratados no kula, hi alguns paralelismos ssantes € reveladores. Em ambos os casos, o torneio ocorre em uma arena especial, isolada da vida econémica pratica e sujeita a ‘egray especials. Em ambos os casos, trocam-se emblemas de valor que 86 podem ser transformados em outros meios por uma complexa ‘Série de etapas e em circunstancias inusuais. Em ambos os casos, ha formas especificas pelas quais a reproducao da economia mais ampla € articulada com a estrutura da economia do torneio, Além disso, avez o mais important, em ambos os casos hi um ethos agonistic, roméntico, indvidualistac com ares de Jone que conta com o ethos do comportmeno econdmio cotian, A de indivduos nas ia du Oceania ¢ patente. Maso mes scene nos mereados de futures. Na segunda meta do sEeulo XIX. a nia de igo” a Bolsa de Gros) em Chicago era claramenteocentio da ering eda quebra de reputagdes individu, ede eaorgosarogan tes da parte de determinados homens para monopotizaro merece (DIES, 1925, 1975), Esse ethos agonistic, rominticocobsewsivo nto desaparece das bolsas de mercadorias, como nos lembra inedent das rms Ht em relagio 3 pata (MARCUS, no pelo), ember 9 auadro mor, nsitvonalepoitico que govern acapeculgd sabre mercadorias tenha mudado bastante desde o século XIX. E claro, hi Imuitas diferencas entre o ula e 0 mercado de futuros quanto a escala, 70 10s recursos, 20 contexto e &s metas. Mas as similitudes sio reais. Como sugeri antes, muitas sociedades criam arenas especializadas pra torneios de valor, nos quais emblemas de mercadorias especificas siio comercializados e tal comércio afeta— por meio da economia de status, poder ou riqueza ~ fluxos de mercadorias mais mundanos. intercambio de relfquias, 0 mercado de futuros, 0 kula 0 potlacht e 0 buzashi da Asia Central (AZOY, 1982) sao, todos, exemplos de tais ‘orneios de valor”, Para eada caso, precisamos de um exame, mais completo do que € possivel empreender aqui, dos modos de articu- lagdo dessas economias de “torneio” com seus contextos merc mais rotineiros. A mitologia da circulagio criada em bolsas de mercadorias (assim ‘como, de outros modos, em bolsas de valores) mistura rumores com informagSes mais confidveis: com respeito a reservas de mercado, regulamentagoes governamentais, alteracdes sazonais, varidveis de consumo, crescimentos de mercados internos (inclusive os rumores sobre as intengdes ou motivagdes de outros especuladores) ¢ assim por diante. Tais informacdes compdem um cenério de varidveis in: cessantemente alternantes (e potencialmente infnitas) que afetam os pregos. Embora tenha havido melhorias consistentes nos fundamentos ‘éenicos para analisar e operar com éxito na bolsa de mercadorias, ppermanece a busca quase magica pela formula (divinat6ria em ver.de efetiva) que se revelard uma previsio a prova de falhas das alteragbes, de pregos (POWERS, 1972, p. 47). A base estrutural dessa mitologia da circulagio de mercadorias € 0 fato de ela jogar indefinidamente com a flutuagio de precos; de buscar exaurir uma série inexaurivel de varidveis que afetam os precos; e de seu interesse por mercado- rigs ser exclusivamente informacional e semidtico, completamente divoreiado do consumo. O desejo irracional de monopolizar 0 mer- cado de alguma mercadoria especifica, a busca (contraria ao senso comum) por férmulas magicas que facam previsoes das mudancas dde prego, a histeriacoletiva controlada, tudo isso é0 resultado dessa completa conversio das mercadorias em signos (BAUDRILLARD, 1981), que so, eles mesmos, capazes de render Iucros se forem manipulados apropriadamente. O correspondente primitivo desse tipo de construgio mitol6gica e generativa de mercadorias pode ser encontrado nesta matéria-prima antropol6gica que sio os “cultos da carga” que se multiplicaram, neste século, nas sociedades sem Estado do Pacifico. ‘Cultos da carga” sio movimentos sociais de ui intenso, centrados carter milenar e , iimbolismo de bens europeus. Surgiram sobretu- do no Pacifico desde os primeiros contatos coloniais, embora tenham. ante ten edentes e analogos pré-coloniais em outras sociedades. Foram a de andlises exaustivas de antropélogos, que os observaram como fendmenos psicol6gicos, rligiosos, econdmicos e politicos. Apesar das divergéncias considerdveis entre as interpretagées antropol6gi ccas desses movimentos, a maioria dos observadores concorda que © aparecimento de “cultos da carga” nos primérdios das sociedades coloniais do Pacifico tem algo a ver com atransformagao das relagoes de produgio nesse novo contexto, a falta de recursos entre os nativos para obter os novos bens europeus que desejavam, a che; novo sistema teol6gico ¢ cosmoligico por meio dos mission ‘Aconseqiiente ambivaléncia com respeito a formas rituas ind O resultado foi uma série de movimentos difundidos porto ania (e mais tarde pela Melanésia), de éxito, duracao e intensidade desiguais, que simultaneamente imitavam e protestavam contra as formas rituais e sociais européias e que assumiam posigdes tanto de forte oposicio quanto de intensa revivescéncia no que tange a seus pr6prios mitos e ritos de prosperidade © tuca. No simbolismo de muitos desses movimentos, teve um papel importante a promessa feita pelo lider/profeta da chegada de valiosos bens europeus em vides ou navios, que “choveriam vam no movimento e no profeta, sobre os que realmente acredita- il discordar da opinio de Worsely (1957) ¢ outros de que 0 simbolismo da chegada misteriosa de bens europeus tem muito a ver com a distorgio das relagdes indigenas de troca sob o regime colonial, com a percepgiio, da parte dos nativos, da contradigao patente entre a riqueza dos europeus (apesar da falta de esforco) e sua propria pobreza (apesar do trabalho érduo). Nao surpreende, tendo em vista ue foram subjugados, de sGbito, a um complexo sistema econémico internacional do qual viam apenas alguns aspectos misteriosos, que sua Teagdo fosse buscar, ocasionalmente, replicar o que eles cons deravam ser 0 magico modo de produgio desses bens. ‘Ao observar o simbolismo e as préticas rituais desses movimentos, é Possvel ver que eles nao sio simplesmente um mito acerca das origens das mercadorias européias, mas uma tentativa de replicar ritualmente ‘© que percebiam conto modalidades sociais da vida européia. Essa € a significagio do uso-de moldes, formas de falar, titulos ete. dos vy militares europeus. Ainda que frequentemente ordenados de acordo ‘com os modelos indigenas, a pritica ritual dos “cultos da carga” em muitos casos nao passava de um esforco enorme de imitar as formas sociais européias que Ihes pareciam mais conducentes & produgao de bens europeus. Numa espécie de fetichismo invertido, o que era reproduzido era 0 que era visto como as formas sociais ¢ lingiisticas curopéias mais potentes, em um esforco por aumentar a probabilidade da chegada das mercadorias européias. Porém, Glynn Cochrane (1970) nos lembra que esses cultos, por mais que distorcidos, nao buscavam todas as mercadorias européias, mas apenas aquelas que eram vistas, ‘em particular, como conducentes & manutencao de descontinuidades de status nas sociedades locais. “Cultos da carga” também ilustram uma mmitologia particular acerca da producdo de bens acabados europeus, criada por nativos enredados na produgao de mercadorias primérias destinadas a0 comércio mundial, assim como um ritual imitativo € revivescente, As mercadorias envolvidas no culto, tal como os objetos de valor do kula ¢ outras formas indfgenas de troca especializada, si0 vistas como metonimias de todo um sistema de poder, prosperidade e status. As erengas do “culto da carga” sio um exemplo extremado das tcorias que tendem a se proliferar quando consumidores permanecem completamente ignorantes das condigies de producio ¢ de distribuigio de mercadorias, ¢ incapazes de ter livre acesso a elas. Tal privagio cria as mitologias do consumidor alienado, da mesma forma que as bolsas de mercadorias propagam a mitologia do comerciante aliena- do, Finalmente, voltamo-nos para a terceira variante, as mitologias de produtores as ordens das forcas da demanda e da distribuigio que su controle e ultrapassam seu universo de conhecimento, fogema Para esse tipo de mitologia, o melhor relato que temos é a andlise de Taussig das mudangas no simbolismo do diabo entre os mineradores de estanho bolivianos desde a chegada dos espanhdis (TAUSSIG, 1980). Em resumo, a hist6ria se desenrola da seguinte maneira: antes dla chegada dos espanhois, a mineracdo era uma atividade de pequena escala administrada como um monopétio do Estado. Com a chega- dda dos espanhiis, « mineracio se tornou a base voraz da economia colonial, a causa de um deslocamento em massa ¢ do aumento da mortalidade entre a populagio indgena aimaré da Bolivia. A extragio die minérios sempre envolveu mégica e ritual, mas foi apenas apés a conquista espanhola que passou a incluir o espirito do mal, simbo- lizado por uma figura chamada de Tio, identificada no novo idioma 73 cristo com 0 diabo, a qual era considerada o es} Grist com o daha lerada 0 espitito proprietirio Essa figura diabélica passou a representar todas as forgas, estrangeiras da nova economia capitalist taneamente temia eres ere is emiam, odiavam e serviam, em contraste com suas formas radicionais de economia reciproca. Capturados entre 0 controle do Estado sobre a produgio e o mercado internacional, de um lado, ¢ 0 diabo do outro lado, eles elaboravam um ritual que reflete as ambi- gllidades e contradigies de uma pratica econdi dois mundos incompativeis. Ne ans Com efeito, a extensiva cadeia de trocas nos Andes € ¢sta: camponesestrocam divas com o esp am expo peo Prieto; oespiio proprietirio converte exsas divas, em metas preciosos, qu " : 5 “encontram” conquanto excoutem os tos de troca de divas com o espirito0 trabalho dos mineradores, concretizado no minéto de «stan, €vendido como ma mereadora sos propri. trios legaise patrdes; esses stimos vendem o minéio ‘no mercado internacional. Assim, tr adv teminam como wocas de mercadoris estando reo diabo eo Estado, os mineradores intermedeiam ss transformacio, Ess circuit sseeguraexteilidade ‘morte em vez de prosperidadee fer . « fertldade. Basin Se na transformacio da reciprocidade em troea de mereadorias, (TAUSSIG, 1980, p. 224) asin nose orou uma common econ cercar o diabo em ritos de reciprocid: peace lade. Isso ndo fetichismo das aa re no sentido marxstaelssi (em que produto dissimu- lam e representam relagdes sociais), mas um fetich nais lt avers , fetichismo mais literal, ae fiz com que a mercadoria, ela mesma transformada em do d ee de um conjunto de transagdes rituais ara compensar os riscos cosmolégicos ¢ fisicos da mineracao. Nessa mitologia de produtores/extratores fontes de controle impessoai mundo do mercado) sio metiforas sociais da Taussig tenda, alienados, as invisiveis (0 Estado) e de demanda (0 ‘alocados em um icone de perigo e gandincia, ‘onomia de mercado, Embora a descricé a a descricdo de assim como.a de Gregory e muitos outros, a exagerar "4 © contraste entre economias de presentes e de mercadorias, tra de uma andlise persuasiva do fetichismo literal de mercadorias que parece acompanhar a producio de mercadorias primérias para mer- ccados desconhecidos e nao-controlados. Em cada um dos exemplos que discuti, o mercado de futuros, “cultos da € mitologia da mineracdo, as compreensdes mitolégicas da circulagao de mercadorias sdo geradas por causa do isolamento, indiferenga ou ignorincia dos participantes com relagdo a todos os outros aspectos da trajet6ria econdmica da mercadoria que nao se- jam o tinico em que estéo envolvidos. Isolado em enclaves quer na producéo, quer no comércio especulativo ou no locus de consumo do fluxo das mercadorias, o conhecimento técnico tende a ser rapida- ‘mente subordinado a teorias subculturais mais idiossincraticas sobre 1s origens e destinagSes das coisas, Esses s4o exemplos das diversas formas que o fetichismo das mercadorias pode assumir quando hé descontinuidades acentuadas na partilha do conhecimento concernente a Suas trajet6rias de circulagio. Hé uma diltima questio a ser tratada sobre as relagoes entre conhe- cimento © mereadorias, uma que nos lembra que a camparacio de sociedades capitalistas com outros tipos de sociedades é um assunto complicado. Em sociedades capitalistas complexas, a questio nio se resume & segmentacéo (ou mesmo fragmentacio) do conhecimento como, por exemplo, entre produtores, distribuidores, especuladores € consumidores (e diferentes subcategorias de cada grupo). O fato € que © conhecimento sobre mercadorias esti sendo, ele mesmo, cada vez mais mercantilizado. Tal mercantilizacao do conhecimento relativo as mercadorias é, obviamente, parte de um problema mais amplo da economia politica da prépria cultura (COLLINS, 1979), em que a expertise, 0 credencialismo eo esteticismo intelectualista (BOUR- DIEU 1984) desempenham, cada um, papéis diferentes. Assim, ainda que haja, mesmo nas economias mais simples, um complexo trfego de coisas, & somente com a acentuada diferenciaco social, técnica e conceitual que se desenvolve 0 que podemos chamar de trdfego de critérios concemnente a coisas. Quer dizer, é somente nessa tiltima situagdo que a compra e venda de pericia relativa & apropriabilidade \éenica, social ou estética das mercadorias passa a se difundir am- plamente. E claro, tal trfego de critérios mercantis nao se restringe sociedades capitalistas, mas parece haver indicios consideraveis de que € nessas sociedades que tal trfego se revela mais denso. Ademais, é dificil distinguir, em economias capitalistas contempora- neas, a mercantilizagéo de bens da mercantilizacio de servigos. De fato, a combinagio rotineira do par “bens e servicos” é, ela mesma, ‘uma heranga da economia neoclassica. Isso nao equivale a dizer que servigos (sexuais, ocupacionais, rituais ou emocionais) permanecam. totalmente fora do dominio da mercantilizagao em sociedades nio- capitalistas. Mas € somente em economias p6s-industriais complexas que os servigos se tornam um trago dominante, até definitivo, do mundo da troca de mercadorias. Uma aniilise comparativa completa da dimensao do servico na mercantilizacdo, porém, é algo que uma coletinea como esta pode apenas ter esperancas de estimular Porém,talvez 0 melhor exemplo da relagio entre o conhecimento € 0 controle da demanda seja oferecido pelo papel da propaganda nas, sociedades capitalistas contemporincas. E: se t6pico importante ¢, nos Estados Unidos, reanimado sobre a eficicia funcional da propaganda. Em um estudo recente, que recebeu ampla publicidad, Michael Schudson (1984) 4questionow as andlises neomarxistas da manipulagao de consumidores pela propaganda na América. Ele prope que as imagens textuais e graficas criadas pela miquina da propaganda sao mais bem cons deradas como uma espécie de “realismo capitalista”, uma forma de representagao cultural das virtudes do estilo de vida capitalista, em vez de técnicas de seducio visando aatos especificos de consumo. A adulagio com a qual esse argumento foi acolhido pelos profissionais da propaganda € fonte de algumas objecdes circunstanciais & propria argumentagio. A questio € que, provavelmente, qualquer andlise decisiva dos efeitos da propaganda teria de passar a ver as imagens eveu-se muito sobre da propaganda em seqiéncia com as mudangas nas idéias sobre arte design, estilo de vida ¢ distingao, no intuito de elucidar o papel des se tipo de (HEBDIGI Porém, parece vilido fazer uma observacao, sobre a propaganda, que € relevante para a presente argumentacao. Independentemente da cficdeia da propaganda em assegurar 0 sucesso de qualquer produto particular, parece ser correto propor que os modos de representagio da propaganda contempordnea (em particular na televisio) compar- tilham uma determinada estratégia, que consiste em tomar o que n: maioria das vezes slo produtos perfeitamente comuns, produzidos em massa, baratos, até mesmo-inferiores, e fazer com que eles paregam de “realismo capitalista” na mobilizagao social da dem , 1983; BOURDIEU, 1984), nda 76 slouma forma desejveis ainda que acessiveis (no sentido de Simmel). Mercadorias perfeitamente comuns so colocados em uma espécie czona pseudo-encaixada, como se elas nao estivessem disponiveis qualquer um que possa pagar o preg. A maior parte das imagens sociais que eriam essa ilusio de exclusividade pode ser explicada Como o fetichismo do consumidor em vez. daquele da mercadoria As imagens de sociabilidade (pertencimento, apelo sexual, poder, distingao, sate, intimidade familiar, camaradagem) que subjazem ‘grande parte da propaganda visam a transformacio do consumidor 1 fal ponto que a mercadoria particular que esta sendo vendida fica ‘em segundo plano. Essa dupla inversdo das relagies entre pessoas & ‘coisas poderia ser vista como 0 movimento cultural crucial do capi- talismo avangado. A relagio entre conhecimento e mereadorias tem muitas dimensoes {que nao foram discutidas aqui. Mas a questao essencial para os meus propdsitos 6 esta: & medida que as mercadorias percorrem distincias Cada vez maiores (insttucionais, espaciais ou temporais), o conbeci mento sobre elas tende a se tomar parcial, contraditorio e diferenciado. Mas tal diferenciagao pode, ela mesma, (por meio dos mecanismos de torneios de valor, autenticagio ou desejo frustrado) levat a uma inten sificagio da demanda, Se observarmos 0 munclo das mereadorias como tuma série de alteragGes em rotas locais (culturalmente reguladas) de mercadorias, podemos ver que as politicas de desvio assim como as tie enclave se ligam com freqléncia a trocas, possiveis ou factuais, de inereadorias com outros sistemas mas distantes, No exato momento {im que um sistema menor interage com um maior, a interacio entre srateimenae ignorincia serve de tomiguste,fclitando oxo de ce obstruindo o movimento de outras. Nesse sentido, es ectimenos mercantis slo 0 resultado de complexas liticamente mediados. algumas coisi mesmo os mai interagdes entre sistemas de demanda locais pol CONCLUSAO: POLITICA E VALOR ‘Afora aprender alguns fatos relativamente inusuais ¢ consideri-los dde um ponto de vista pouco convencional, hé alguma vantagem mais {geral em observar a vida social das mercadorias do modo proposto io? © que essa perspectiva nos diz. sobre valor € troca ma I que ainda nao sabemos, ou que nio poderfamos deseo- brir de um modo menos complicado? relevante assumir a posi¢io neste € vida soci 7 tica segundo a qual as mercadorias existem por toda parte e 0 éspirito da trea mereanti no se divoria totalmente do espiito de outras formas de troca? Ao responder essas questdes, nd irei fazer um tedioso resumo das principais observagdes apresentadas no desenrolar deste ensaio, mas irei diretamente ao que é substancial em minha proposta. Este ensaio tomou como ponto de partida a visdo de Simmel de que a troca é a fonte do valor, e nao o contririo. Os artigos neste livro nos permitem acrescentar uma dimensao critica & intuigdo um tanto abstrata de Simmel acerca da génese social do valor. A politica (no sentido mais amplo de relagdes, suposigies e disputas relativas ao poder) é o que vincula valor e troca na vida social das mercadorias, Nas trocas (mundanas, cotidianas e de pequena escala) de coisas na vida comum, esse fato ndo é patente, pois a troca tem a aparéncia rotineira e convencional de todo comportamento costume ro, Mas essas iniimeras negociacdes ordinirias nao seriam possiveis se nao houvesse um amplo conjunto de acordos concernentes ao que desejavel, a em que consiste uma “troca de sacrificios” razoavel € 4 quem ¢ permitido exercer que tipo de demanda efetiva e em que circunstancias. O politico, nesse processo, nao se refere to-somente 0 fato de representar e constituir relagies de privilégio e controle social. O politico, nesse processo, se refere & tensio constante entre quadros cexistentes (de prego, barganha etc.) e a tendéncia das mercadorias Tomperem tais quadros. Essa propria tensio decorre do fato de nem todas as partes compartilharem os mesmos inferesses em qualquer regime especifico de valor, nem serem idénticos os interesses de qualquer uma das duas partes em uma determinada troca. No topo de muitas sociedades, temos as politicas dos torneios de valor e de desvios calculados que podem levar a novas rotas de fluxo de mercadorias. Como expressdes dos interesses das elites em relagio aos individuos do povo, temos as politicas da moda, de leis Suntudrias ¢ de tabus, que regulam, todos, a demanda. Porém, como ‘as mercadorias constantemente ultrapassam as fronteiras de culturas especificas (e, portanto, de regimes de valor especificos), tal controle politico da demanda é sempre ameacado por distirbios. Em uma gama surpreendentemente ampla de sociedades, € possivel testemunhar 0 Seguinte paradoxo comum. Em beneficio dos que esto no poder, 0 fluxo das mercadoria’ ¢'completamente congelado por meio da criacao dde um universo fechado de mercadorias ¢ de um conjunto rigoroso de regulamentagdes sobre como devem se movimentar. Contudo, a propria natureza das disputas entre os que esto no poder (ou dos que ispiram a um poder maior) tende a incitar um afrouxamento dessas as e uma expansiio da variedade de mercadorias. Esse aspecto da politica das elites 6 comumente 0 cavalo de Troia das alteragies de valor. Enquanto as mercadorias estiverem em questao, a fonte da politica serd a tensio entre essas duas tendéncias. Vimos que tal politica pode assumir muitas formas: politicas de Jesvios e de exibigao; politicas de autenticidade ¢ autenticacao; po- liticas de conhecimento ¢ ignoriincia; politicas de pericia e controle suntuéirio; politicas de proficiéncia e de demandas deliberadamente mobilizadas, Os altos e baixos das relacoes no interior de e entre essas diversas dimensdes da politica dao conta dos caprichos da demanda. E nesse sentido que a politica 6 0 vinculo entre regimes de valor e fluxos cde mercadorias especificos. Desde Marx ¢ os primeiros economistas politicos, no houve muito mistério sobre as relagoes entre pol foducao. Estamos, agora, em uma posicao melhor para desmistificar ‘oaspecto da vida econdmica relativo & demanda. INFORMAGOES COMPLEMENTARES. Este ensaio foi escrito enquanto 0 autor era membro do Centro de Estudos Avancados em Ciéncias Comportamentais (Centre for Ad- vanced Study in the Behavioral Sciences), em Stanford, na California, durante o ano letivo de 1984-85. Pelo apoio financeiro durante esse perfodo, agradego o auxilio n*, BNS 8011494 da Fundagao Nacional de Cincia (National Science Foundation) concedido ao Centro, assim ‘como a licenca concedida pela Universidade da Pensilvania, ‘Ao planejar e escrever este ensaio, acumulei muitas dividas de gra- tidao, que tenho o prazer de agradecer aqui. Durante 0 ano letivo de 1983-84, na Universidade da Pensilvania, além dos colaboradores deste livro, as seguintes pessoas apresentaram trabalhos sobre merca~ dotias que muito me ofereceram para reflexio: Marcello Carmagnani, Philip Curtin, Mary Douglas, Richard Goldthwaite, Stephen Gudeman, George Marcus, Jane Schneider, Anthony Walace e Anette Weiner. Os participantes e comentadores presentes nas diversas sessdes do workshop de Etno-hist6ria, realizado na Universidade da Pensilvania em 1983-84, e do Simpésio “Mercadorias e Cultura”, em maio de 79 1984, enriqueceram meu préprio pensamento. O trabalho de Igor Kopytoff publicado neste livro é a mais recente de uma longa série de contribuigdes feitas por cle as minhas idéias sobre as mercadorias, Verses anteriores deste ensaio foram apresentadas no Centro de Es- tudos Avancados em Ciéncias Comportamentais e no Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford. Nessas ocasides, os seguintes colegas fizeram valiosas criticas e sugestdes: Paul DiMag- gio, Donald Donham, Miche! Epelbaum, Uif Hannerz, Virginia Held, David Hollinger, Mary Ryan, G. William Skinner, Burton Stein, Denis ‘Thompson, Pierre van den Berghe e Aram Yengoyan. Enfim, Carol A. Breckenridge, como sempre, me proporcionou clareza, incentivo um olhar critico agucado. NOTAS ‘Ao comesar com toca, tenho plena consciacia de estar indo contra wa corrente da antropologascondmica mas recent, que tne a deslocar a alengSo ora pa pried ‘ora para 0 consumo, Essa corente foi um repos jastahexceaivapreocupucto ea, promete ‘enfadontos ou career cerlostpcos mo extuo dastocas que comecarum a parecer mistéionmsolives ‘Ver Alfred Schmit (1971, p. 69) para ums crc similar tendEaca “deals” noses . ‘marisa, que favorece dia de que “come Marx rez todas as categoria eondencan &relacionaments ete sees humahor, 0 mundo ¢ compost de relates ez de coisas matrnis e conreas, Obviamente, subscrigdes negligence ist podem levar a exageos da varedade “vulgar” se pono de Relat social espoatinea que se caratriza por igagtesrecipocas de aeihoe parentesco no interior de uma tadigio comm, Apalara 6 normalmentetradtzidapor“comunade IN. da} Rao consciacia de que o emprego de tems como “interest” “cileulo war problemas ‘onsierivels no que diz respeto a0 estudo comparativo da valoragio, tos «diva. Embora sc de export hipstesese modelo uli rximos, 0 individualism ero-americano eo economics) seja grave, & guslnente lendencioso reservar aos homens ockens dite de extarcen“nttesados no tana \Wsd-cé da vid material. O que se chama 3 cen, e nda nio existe, exeeo em ead mbrinirio (ver MEDICK; SABEAN, 1984), 6 um areabougo pur 0 caudo sommperave is economias em qu a variedade cultural de “self, “pessoa” on “nivdua” (opuindo (Gertz € Dumont s ales um estado comparativo dl elena (de acordo com Bourdieu) ¢ bo intrese (segundo Sali). Apens ao desenvolvimento de al aeabougo caren oe tos aestudar as motives instruments, fialidades eos ethos da aividadecoondnicn dum modo genuinsmente comparativo. os asim come sus parents ‘Simm (1978, p. 138), em umn context um tnt diferente, antecipa | mogdo de que cosas iran sem do estado de meteadoriascobverva que ali, tem espa em Arstes, 80 1y (1984) oferece uma excelente dscussio,tumibém inuencada por Simmel, sobre as lvorgéncie de valor que podem moder natura ds roca que ranspe fronts cultura sbrecs les de cordcros mas egies de fronts ente Inger c a Esa -m constitu uma ria iustragioetnografica do que cham de torneios de valor. ‘sa pratoa Grabura (1976), uj uso da terminolgis original de Mae. em sta classifica ste nics eta ispirou minha propria adapta (sea, xadas em um enclave [N. da]. ‘Cunhetotermo trneos de valor a partir do wo, feito por Marit em um context bem ferent, da concep de tories de posi Ey sua tecente discuss soe fei e exposigdes mundiais, Burton Benedict (1985-6) ous clement de dsp, de exiigi competitva ede politica de tas asocidos Cont feta de conch. [N. dT] Simmel (1957) raz uma dcusso seminal sobre gic cultural da moda, Ver tab fertcia A andlist de Bougl sobre os pads de consumo nas adel nda no artigo ‘de Chuistopher Bayly no present ivi, asim como Max Weber (1978). Um ctelene expo dete proceso €enonrdo em Hencten (198) Meu wo do temo ectmeno 6 ma modienso um tno idhsineitin do empregs do ‘ocd fe por Marsal Hodgson em The Ver of lam (1978). Compares, também, «nogé de Alsop (1961) de que colcio ancy cous queso colada de tvs concoe deus egal api de ‘ote tapes tums ope nanos uma pron i ‘mples, Os dois envolvem que pode or chamado de a intensficacdo do corte objet, Para um relat fascinate sobre o pope do tecdo em ums socilogis do conbeciment, colonial ¢evoutiva, na fain, ver Cohn (no pelo) ui tadugio da expresso “ep play” que consta d edigio brasileira do ford Gere (A inerpretagao das culuras, RigdeJaneitoc LTC, 989} [N. da] Na tradugo rasicra, publica pel edtora Martins Fontes, s jogos das roca [N. da] Tilo do ensio ma ado de José Lino Grinncwald publica em ia do cinoma Rio de Janeiro: Civilizaio Brasilia, 1969, ena coleS0 Os Pensadors,v. XLVI. S80 Pal: Abril Calter, 1975 [Nea T] REFERENCIAS, ADAMS, F G.; BEHRMAN, J.R. Commodity exports and economic development. Lexington, Mass.: Lexington Books, 1982. ALSOP, J. 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