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02/11/2017 Teoria da Não Conceitualidade – Introdução

COSMOS & CONTEXTO A REVISTA NESTA EDIÇÃO

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Teoria da Não
Conceitualidade
– Introdução
P O R L U I Z C O S TA L I M A E M 1 9 D E J U N H O D E 2 0 1 4

Trecho da introdução escrita para a tradução brasileira do

livro Teoria da Não Conceitualidade de Hans

Blumenberg**.

–––––

Embora eu próprio não pretenda conhecer a inteireza da

obra do autor, por certo, a obra mais famosa de


1
Blumenberg, A legitimidade dos tempos modernos , é um

confronto explícito com os que se opõem à originalidade

dos princípios constitutivos do pensamento moderno.

Nesta acepção, Blumenberg não é só um extraordinário

criador de novos campos de indagação, como, ao mesmo

tempo, um observador irônico da estabilidade que a

filosofia costuma procurar conceder à significação que

analisa.

Em benefício do leitor brasileiro damos a esta Introdução

um caráter bastante geral, falando pouco de sua obra mais

famosa e, a propósito da Theorie aqui traduzida,

assinalando apenas como a questão se punha no seu

antecedente, os Paradigmas.

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Dito de maneira esquemática, o princípio orientador de A

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legitimidade dos tempos modernos se contrapõe à tese

sustentada por Karl Löwith, com respaldo na Teologia

política de Carl Schmitt: a modernidade se funda na mera

secularização de postulados de ordem teológica. Dito de

maneira ainda mais sumária: à morte de Deus

correspondeu a divinização (e a demonização) do sujeito

humano – divinização pelo cogito cartesiano, simultânea (e

menos falada) demonização por sua exploração e

repressão sistemáticas. Mas o que Blumenberg intitulava

de “teorema da secularização” vai bastante além da

formulação grosseira:

Sugerindo que a suspensão das crenças no além é uma

condição talvez necessária, mas por certo insuficiente para

encontrar o mundo, Blumenberg inscreve-se na tradição

fenomenológica que sempre foi a sua. No Krisis, Husserl já

insistia no aparecimento especificamente moderno de um

mundo não secular na idealização matemática do real

operada pela física galilaica. Tanto quanto por sua

abstenção teológica, a modernidade caracterizar-se-ia

então por uma abstração do mundo, identificado à

natureza como sistema de legalidades.

Para recursar-se a ilegitimidade dos tempos modernos,

não é, por tanto, bastante o afastamento da explicação

teológica porque ainda é preciso encontrar uma

fundamentação imanente ao próprio mundo. Dizê-lo tem

como consequência imediata declarar insuficiente o

argumento formulado por Carl Schmitt, no interior de sua

luta contra o liberalismo, e bem antes de sua adesão ao

nazismo:

Todos os conceitos fundamentais da moderna teoria do

Estado são conceitos teológicos secularizados. Não só em

virtude de seu desenvolvimento histórico, por terem sido

transferidos da teologia para a teoria do Estado, na medida

em que, por exemplo, a onipotência divina foi convertida no

legislador todo poderoso, senão também em sua estrutura

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sistemática, cujo conhecimento é necessário para a

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consideração sociológica desses conceitos. O estado de

exceção (Ausnahmezustand) tem para a jurisprudência


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uma significação análoga ao milagre na teologia.

É nada menos que em Heidegger que Foessel encontra a

base para a formulação contrária:

O decisivo está em que o discurso da “secularização” é um

engano desvairado (eine gedankenlose Irrefuhrung); pois

para a “secularização”, “mundanização”, já é preciso um


3
mundo, em que e dentro do qual se mundanize.

É certo que Foessel faz de imediato uma observação cuja

relevância imporia o desdobramento que ele próprio não

realiza:

Dizer, como o faz Heidegger, que a “mundanização”

precede a “secularização” é dar primazia ao ontológico

sobre o epistemológico e conceder ao conceito de mundo

proeminência inclusive para uma interpretação de tipo


4
histórico.

Que significa tal primazia senão trazer o ontológico para a

dimensão da existência (Dasein), onde, coerentemente,

Heidegger situava a “ontologia fundamental”, e assim

manter em condições de estabilidade a ideia de verdade,

que, deixando de ser metafísica para se mundanizar, se

internaliza no Dasein, nele se oculta, para,

descontinuamente (historialmente), surgir de repente e de

novo desaparecer?

Sem que tais consequências sejam novidade para o leitor

de Heidegger, elas são de extrema importância para

acentuar a diferença em que o pensamento de Blumenberg

se põe; mais precisamente, para a reviravolta provocada

por sua reindagação da metáfora. Nesse contexto, assume

uma clareza espantosa a conclusão dos Paradigmas:

“Com frequência, a metafísica se nos revelou como uma

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metafórica tomada ao pé da letra; a dissolução da

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metafísica volta a conceder à metafórica o seu lugar.”
5

Em consequência, embora se deva a Heidegger o termo

“mundanização” (Verweltlichung), o sentido que lhe dava

não se adéqua à Legitimidade, que antes está de acordo

com a explicação dada por Kant ao que chamara de

“Antinomia da razão pura” – a postulação de inferências

opostas e, no entanto, igualmente justificadas. Foessel o

corrobora por meio de passagem de carta de Kant a

Garve, datada de 21 de setembro de 1798:

O meu ponto de partida não foi o exame da natureza de

Deus, da imortalidade, mas a Antinomia da razão pura. (…)

Foi essa Antinomia que me despertou de meu sono

dogmático e me levou à crítica da própria razão pura, afim

de suprimir a contradição aparente da razão consigo


6
mesma.

Em louvor daquele que captou a ponte decisiva, transcrevo

seu comentário:

Só, com efeito, as características essenciais do tempo (e

do espaço), definidas na estética transcendental, permitem

sair da arena das antinomias, exibindo a insanidade do

projeto que consiste em apreender a esfera dos

fenômenos por meio da categoria absolutizada de


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totalidade.

“Mundanização”, no sentido desontologizado de

Blumenberg, significa pois que a apreensão do mundo se

encerra com ele mesmo, sem recorrência a uma dimensão

teológico-metafísica extra. Daí, em suma,

(…) a referência a Kant permite-nos melhor alcançar as

modalidades de uma tal Verweltlichung: atenção concedida

à dimensão irredutivelmente sensível do mundo,

desimplificação do mundo da temática da criação,

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emancipação do pensamento da história e da “legibilidade

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do mundo” de todo fundamento teológico.
8

Não tendo tido o propósito de apresentar a Legitimidade,

reitero apenas a relação íntima entre a recusa da

deslegitimação do pensamento moderno e o realce da

metáfora. E, como falar em metaforologia implica pensar a

questão da tékhne e também da retórica, lembre-se a

passagem levemente irônica do Arbeit am Mythos

[Trabalho sobre o mito]: “Ter um mundo é sempre o

resultado de uma arte (Kunst), mesmo que ela não possa

ser em sentido algum uma obra de arte total


9
(Gesamtkunstwerk).” Mas não basta a referência. Dizendo

respeito ao relacionamento de Blumenberg com a Krisis,

ela não pode ser tão ligeira. No ensaio “O mundo da vida e

a tecnificação”, escrito nove anos depois da Habilitationss-

chrift, sua abordagem principia pela comparação entre as

concepções grega e moderna de mundo, e por suas

implicações para tékhne e a metáfora.

Ao passo que a concepção grega do mundo como cosmos

supunha a admiração por uma ordem que tinha lugar para

cada coisa – e, em consequência, não admitia lugar algum

para o homem como agente criador – , admiração e

harmonia que eram o substrato para a “contemplação”, isto

é, a especulação filosófica, a concepção moderna aparta a

técnica do menosprezo que secularmente a cobriu. Como

dirá nosso autor, apontando para o ensaio de Valéry sobre

Da Vinci, para o homem moderno o abismo, em vez de

provocar terror, motiva-o para o cálculo de uma ponte ou a

construção de um “pássaro mecânico”. A reconsideração

da técnica, no entanto, não se estende à tradição filosófica.

Assim, ao dizer que a “produtividade da empresa filosófica

ajuda, por seu lado, a gerar continuamente de novo aquele


10
mal-estar” , o autor tanto remete a Husserl quanto a

Heidegger. Para que, contudo, dispusesse do horizonte

suficiente para a consideração do conceito de “mundo da

vida” (Lebenswelt), Blumenberg precisava recordar o papel

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que a sofística desempenhara na valorização paradoxal da

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técnica:

Na segunda metade do século V, apresentou-se pela

primeira vez um tipo de “técnica” leve e isolada do campo

da política e do direito. A oferta sofística apresentava uma

formação conforme a qual bastava saber como se faz algo,

sem levar em conta os formulários relativos ao direito, ao


11
fundamento e à necessidade objetiva.

Contra a liberação assim concedida à técnica da retórica,

levantou-se o Sócrates platônico. Vitorioso, ele se tornou o

guia da tradição filosófica ocidental. E, com essa vitória,

impôs-se a separação entre filosofia e retórica.

Será aqui preciso dar um enorme salto no tempo para

então encararmos a proposta fenomenológica de Hursserl

(1859-1938). Seu apelo de vir às próprias coisas (Zu den

Sachen selbst!) se punha quando a autonomização e o

desenvolvimento das ciências, iniciados nos séculos XVI e

XVII, provocara o divórcio progressivamente drástico entre

a filosofia e o manejo técnico. Para combatê-lo, se não

com a ilusão de saná-lo – lembre-se o título da obra de

1911; Philosophie als strenge Wissenschaft [A filosofia

como ciência rigorosa] -, Husserl adotara o conceito de

intencionalidade de Brentano: ”Com esta expressão, a

fenomenologia se afastava de uma concepção atomista da

consciência, que interpretava os objetos como associações


12
de dados no fluxo da consciência.”

Em seu lugar, o fundador da fenomenologia partia de que

“toda consciência não só ‘tem’ seus objetos senão que se

funda na intenção de chegar o quanto possível à plenitude


13
de seus objetos.” E, estendendo o conceito à história,

rechaça que ela seja uma conexão de factualidades,

passando, em troca, a vê-la como um movimento de

intercomunicação e, quanto tal, relacionada à técnica, pois

“o problema da técnica essencialmente tem a ver com a

responsabilidade (Veranwortung) que a história assume,

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por meio do homem (…)”. Dessa maneira, Husserl se

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associava à herança cartesiana: “Como processo de

fundamentação e desenvolvimento de sentido, a história


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tem um começo (Anfang).”

Aí, na verdade, se concentra a razão de seu

questionamento do legado husserliano. Tento sintetizá-lo.

Assim decorre de que a intencionalidade da consciência

engendra o surgimento de uma inconsequência insanável.

Entendo-o assim: como é inconcebível que o começo da

história coincida com o início de um investimento teórico,

haveremos de supor que tal começo tenha sido precedido

por “uma fase heterogênea da naturalidade originária da


16
atitude humana perante o mundo”. Ora,

(…) se a consciência é intencionalidade, se a possibilidade


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de uma intuição plena, [isto é] , da evidência, determina a

unidade das coisas que lhe são dadas (die Einheit seiner

Gegegenbenheiten), então a representação de uma

primitividade (Urwuchsigkeit) natural e pré- histórica é uma


18
ficção mítica.

A “ficção mítica” assim estabelecida ainda se torna, mas

danosa pelo duplo sentido que a expressão “mundo da

vida” assume. Por um lado, ele é “o ponto de partida

histórico da transformação teórica, e, por outro, é o estrato

fundamental sempre presente da vida diferenciada em uma


19
hierarquia de interesses (…)”. Tal duplo sentido marca o

conceito com uma ambiguidade de que ele não consegue

se libertar. Para que a contradição fosse ultrapassada ter-

se-ia de supor que o estrato pré-teórico já se orientasse

em direção ao processo de fundamentação e

desenvolvimento do sentido pleno a ser alcançado pelo

plano teórico. O que equivaleria a dizer que Husserl

concebia que a intencionalidade da consciência humana é

teleologicamente orientada. Só assim a manipulação

técnica seria possível de manter-se coerente com o

investimento teórico.

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Dito de maneira menos rigorosa, apesar de toda sua

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admiração por Edmund Husserl e mesmo sabendo o que o

nazismo fez o filósofo de ascendência judaica sofrer – sua

Krisis, por exemplo, só pôde ser publicada na Alemanha

em 1954 -, Blumenberg notava que sua falha derivava de

não haver submetido sua indagação ao questionamento

radical de toda a herança acumulada desde a vitória

socrático-platônica. Por não o ter feito, seu diagnóstico da

crise da consciência europeia se tornava inconsciente. Por

essa razão, se mostra mais relevante entender como

Husserl entendera o papel da técnica dentro dessa crise, e

a correção que Blumenberg propunha.

Para Husserl, foi a “essência das ciências modernas da

natureza” que conduziu “à abstração que lhes é


20
fundamental”. Seu questionador respondia:

Não foi a transformação teórica que provocou a saída do

mundo da vida senão a consciência de sua condução que

contaminou todo processo (die Inkonsequenz ihrer


21
Durchfuhrungließ den Gesamtprozeß Kritisch werden).

O malogro da interpretação ante a crise constatada

resultava da ambiguidade, já aqui notada, no “mundo da

vida”. Para que a “abstração” das ciências da natureza, a

que Husserl se referia, não tivesse levado ao

descompasso entre o investimento teórico e a tecnificação

resultante seria preciso que o momento pré-teórico do

começo da história tivesse um caráter de inocência,

favorecedora do “bom sentido” que a abstração absorvera

e eliminara. Ora, argumenta Blumenberg, isso não

sucedeu porque a “tecnificação é ‘a metamorfose da

configuração de sentido originalmente vida’ em método,

que se transmite, sem ser acompanhada de ‘seu sentido


22
de fundamentação’(…)”.

A misinterpretation de Husserl derivava da manutenção do

mito moderno do “bom selvagem”. A correção de

Blumenberg consistia simplesmente em afastá-la. Em vez

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de o desenvolvimento das ciências da natureza ter

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provocado o divórcio entre teoria e práxis, promoveu sim o

que Husserl considerava sua aberração. Isso porquanto

toda ciência realizada termina por propor um método “e

todo método traz consigo uma irrepetitividade irrefletida,

um fundamento crescente de pressupostos, que sempre

entra em jogo, sem ser atualizado em cada oportunidade”.


23
Em palavras mais simples: o domínio da ciência supõe

“a renúncia de sentido” (Sinnverzicht) e não “a perda de


24
sentido” (Sinnverlust) como Husserl postulara. Ou ainda

mais diretamente: “A tecnificação, no sentido de uma perda

de autocompreensão e de autoresponsabilidade, é uma

transformação originada no seio de todo o processo


25
teórico”. Ou seja, a opção incondicional pela ciência levou

o Ocidente à situação que a Husserl parecia patológica,

sem que ele ou qualquer outro pensador pudesse saná-la.

Pela contra argumentação de Blumenberg, era uma

ingenuidade, alimentada pela erudição filosófica, supor que

a fenomenologia servisse de terapia ao quadro exposto.

Estabelecida a prioridade da ciência frente à ideia que a

filosofia guardava de si como preceptora do pensamento,

passava a não haver aberração, falseamento da

intencionalidade originária ou abstração. A crítica de

Heidegger à ciência por certo não repete a ingenuidade de

seu mestre, mas tampouco sua concepção de verdade,

como um ocultamento que se desvela de súbito e

descontinuamente, é capaz de oferecer alguma solução.

Desde que concentrou seu máximo potencial no

desenvolvimento das ciências, o Ocidente passou por certo

a viver uma crise. Mas, por terrível que ela seja, em vez de

patológica é a decorrência da própria opção feita. (O

fascínio que o marxismo então desenvolveu se associa à

promessa de oferecer uma alternativa. O marxismo

soviético se encarregou de logo desmanchá-lo.)

Em suma, é dentro desses parâmetros que se põe o

problema da metáfora em Blumenberg. Fique bem claro,

contudo, que seu questionamento não se propõe como

solução para uma crise que não deixa de ser verdadeira

porque fosse desarrozoado o entendimento que Husserl

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dele oferecia. Em ensaio que aqui não devolvemos, há

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uma frase que, em sua formulação irônica, contém a

dramaticidade com que Blumenberg encara nada menos

que a condição humana: “Tão logo deixa de haver o que se

tinha por ‘real’, as próprias substituições se tornam ‘o real’.”


26
Se o real, por tanto, é sempre a invenção fantasmal que

tranquiliza e, ao mesmo tempo, assombra o homem, o

requestionamento da metáfora ao menos franqueia uma

porta ante a completa oclusão a que os tempos modernos

e, mais precisamente, a modernidade, sucessiva ao

otimismo iluminista, nos tem submetido.

Comecemos por observar que semelhante

requestionamento supõe retirar a retórica do menosprezo,

posterior ao prestígio que o Renascimento lhe concedeu,

com que os tempos modernos a encararam, aumentando a

secundariedade a que ela esteve filosoficamente sujeita

desde Platão. De maneira sumária, pode-se dizer: desde

que se considera a linguagem como transmissora da

verdade, a retórica é tomada como ornamento e

superfluidade. Pois, se o enunciado é capaz de dizer o que

é, a fala deixa de ser honesta e verdadeira quando procura

explorar algum ângulo que não entre no que então se toma

por “real”.

Por si mesma, a retórica de imediato se destaca por dois

traços: “A retórica cria instituições onde faltam evidências”;


27 28
“tudo que permanece aquém da evidência é retórica”.

Por isso, para falar com Descartes, “ela é o órgão da


29
morale provisoire”. Ou seja, da moral passível de vigorar

enquanto o princípio do cogito não esteja plenamente e

seja de fato praticado. Aqueles traços não se confundem

com seu elogio senão que acentuam seu caráter

transitório, modificável e adverso à concepção da verdade

como permanente.

À mudança de concepção da retórica corresponde o

reposicionamento da metáfora. É ocioso repetir que a

secundariedade a ela concedida vinha desde a obra

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platônica (não esqueçamos que a mímesis fazia parte da

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tékhne – com a ressalva considerável, mas não absoluta

de Aristóteles) e que essa posição subalterna se acentua

nos tempos modernos, tanto com Bacon, quanto com

Descartes. Sua posição torna-se passível de mudança

apenas com Kant. Partindo, na Crítica da razão pura, da

afirmação de que não há conhecimento efetivo senão

precedido por uma intuição sensível, de que espaço e

tempo constituem suas formas puras e apriorísticas,

decorre que sem aquela intuição não há conceitos

empiricamente verificáveis. A seu lado, porém, se dispõem

os conceitos do entendimento, que se fundam no que em

Kant recebe o nome preciso de esquema. (Assim “o

esquema das categorias quantitativas é o número, ao

passo que os [esquemas] das categorias de qualidade são

ser no tempo (realidade), não-ser no tempo (negação) e o

mesmo tempo preenchido e vazio (limitação) CRP A 143/ B


30
182” ). Além deles, há ainda os conceitos puros da razão,

as ideias, que não constituem propriamente objetos do

entendimento, sem que, por tanto, haja possibilidade de

uma ciência das ideias.

Recorda-se a distinção Kantiana para, a seguir, lembrar-se

a significação que kant, usando a designação de “símbolo”,

empresta à metáfora:

A metáfora é claramente caracterizada como modelo em

função pragmática, pelo qual nos é fornecida uma regra de

reflexão, que se deve empregar no uso da “ideia de razão”,

sendo, por conseguinte, “um princípio não da determinação

teórica do objeto (…) no que ele é em si, senão da

determinação prática do que a ideia do objeto deve ser


31
para nós e por seu uso finalístico” (zweckmassig).

É a partir dessa sua dedução que Blumenberg extraía nos

Paradigmas, portanto já e, 1960, no momento em que

participava da elaboração do Dicionário histórico, o

princípio capital da metáfora absoluta:

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Serem essas metáforas chamadas absolutas significa

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apenas que resistem à exigência terminológica, que não

possam ser absorvidas pela conceitualidade, que uma

metáfora não possa ser substituída por outra, representada


32
ou corrigida por uma mais precisa.

Por si só, a passagem parece ocasional. Sua importância

só se mostra pela leitura paciente dos Paradigmas, dos

diversos ensaios em que a metáfora absoluta é referida e

da obra que aqui se traduz. Ela consiste em compreender

como Kant dava condições de ir-se além do conceito, sem

parar na especulação das ideias. Dito de maneira mais

direta, desde a Antiguidade clássica, confundindo-se a

metáfora com uma figura da linguagem, adequada,

portanto tão só a seu uso ornamental – outra vez,

Aristóteles seria a execeção, embora não sistemática -, o

conceito aparecia como o grau mais alto no uso da

palavra. Como Blumenberg a desencava da genialidade

kantiana, a metáfora absoluta assinala que o conceito,

mesmo o mais afastado das formas de intuição, não cobre

todo o nomeável da experiência humana. É o que sucede

tipicamente com a suposição da verdade. Blumenberg

passa em revista definições propostas para ela desde a

Antiguidade e a Idade Média, e destaca a formulada por


33
Tomás: cognitio est quidam veritatis effectus. Ela se

diferencia porque, em lugar de uma definição da verdade,

ela é apresentada como efeito da cognição. Ou seja,

Tomás renunciava a aprender sua causa formal e a

expunha enquanto causa eficiente. Em sua formulação,

não há qualquer expressão metafórica senão que o

enunciado alcança uma unidade de sentido pelo qual “se

pode aceder a uma produção metafórica diretora”, a partir


34
da qual “o enunciado pode ser comprovado (abgelesen)”.

Não haveria espaço para desdobrar-se o exame da

impossibilidade de conceituação da verdade. Recorro, por

isso, ainda apenas à observação de Hume, no Treatise of

Human Understanding:

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Quando estou convencido de um princípio qualquer, é

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apenas uma ideia que me atinge com mais força; quando

dou preferência a um conjunto de argumentos sobre outro,

não faço mais que decidir, partindo daquilo que sinto, sobre
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a superioridade da influência.

Apesar da distância de suas posições filosóficas, Tomás e

Hume são bastantes para a conclusão que Blumenberg

oferecia: “O destino da ‘verdade’ é cada vez mais entregue


36
ao jogo imanente das faculdades do sujeito.” Ou seja, a

verdade necessariamente é temporalmente modificável.

A passagem, que antes citamos sobre as “substituições”


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do real, permite-nos entender por que ao homem é

indispensável sempre dispor de algo como “verdade” e, em

consequência, como “real”, como essa admissão varia

historicamente e, por conseguinte, como se terá de admitir,

embora o próprio Blumenberg não o faça, a irredutibilidade,


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nas operações cognitivas, da subjetividade.

Reitere-se ainda: o princípio da metáfora absoluta, pondo

em xeque a imprescindibilidade e a superioridade do

conceitual, era, no seu início, pensado como um meio

auxiliar no estudo da formação dos conceitos. Esta, com

efeito, era a visada de Blumenberg, enquanto trabalhava

sob orientação de Rothacker. A obra inédita que nos

deixou e que agora se apresenta em tradução para o

português revela que já fora além daquela etapa. A

metáfora absoluta significa que, assim como Kant

descobrira que a Kritik der reinen Vernunft só dava conta

de uma parcela do mundo da experiência humana,

Blumenberg compreende que a metaforologia em que se

empenhara vai além da condição de coadjuvante dos

conceitos.

A ampliação de seu uso não poderá vir a servir para que

se rompa o impasse derivado da primazia concedida à

ciência sobre as demais formas discursivas? Isso não

ameaçará o império da ciência, mas daria condições para

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que a arte, as especulações filosófica e religiosa

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deixassem de se confundir com um incômodo resto, que

apenas dispersa talentos e encare o orçamento das

nações.***

Rio de Janeiro, abril de 2012.

***Com os agradecimentos do tradutor a Doris

Offerhaus, sem cuja prestimosa ajuda corri o risco de

desistir de entender várias passagens do original.

––––––

* Luiz Costa Lima é Teórico de Literatura e professor

emérito da PUC-RJ.

** Teoria da Não Conceitualidade, de Hans Blumenberg.

Tradução: Luiz Costa Lima. Editora UFMG, 2013.

Gentilmente cedida pela editora.

–––––

1Hans Blumenberg, Die Legitimität der Neuzeit [A

legitimidade dos tempos modernos], Frankfurt a. M.,

Suhrkamp Verlag, 1966 [ed. Revista em 1988].

2Carl Schimitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre

von der Souveränität, 8. Aufl., Berlin, Duncker & Humblot,

[1922] 2004, p. 43.

3Martin Heidegger, Nietzsche, 5. Aufl., Pfullingen, Verlag

Günter Neske, [1961] 1989, v. II, p. 146.

4Foessel, Le modèle dela secularization, p.31.

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5 Hans Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie

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[1960], Frankfurt a. M., Suhrkamp Verlag, 1998, p.193.

6 Apud Foessel, Le modèle de la secularization, p.33.

7 Ibdem, p. 37.

8Ibdem, p. 43.

9Blumenberg, Arbeit am Mythos, p.13.

10 Idem, Lebenswelt und Technisierung unten Aspekten

der Phänomenologie, p.9.

11Ibdem, p.13.

12Ibdem, p.18

13Ibdem.

14 Ibdem, p.21

15Ibdem.

16Ibdem, p.22.

17O colchete [], infiel ao texto original, foi por mim

introduzido com o propósito de assinalar que a “evidência”

esteja sendo considerada como a resultante de uma

“intuição plena”.

18Blumenberg, Lebenswelt und Technisierung unten

Aspekten der Phänomenologie, p. 22-23.

19 Ibdem, p.23.

20Ibdem, p.24.

https://cosmosecontexto.org.br/teoria-da-nao-conceitualidade-introducao/#sdfootnote9sym 15/17
02/11/2017 Teoria da Não Conceitualidade – Introdução

21Ibdem.

COSMOS & CONTEXTO


22Ibdem, p.31-32.

23Ibdem, p.42.

24Ibdem.

25Ibdem, p.40.

26Idem, Anthropologischen Annäherung an die Aktualität

der Rhetorik [1971], em Wirklinchkeiten in denen wir leben,

p. 120.

27Ibdem, p.110.

28Ibdem, p.111.

29Ibdem.

30Howard Caygill, Dicionário Kant, trad Álvaro Cabral, rev.

Técnica Valério Rohden, Rio de Janeiro, Jorge Zahar

Editor, [1995] 2000, p. 126.

31Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, p.

12.

32Ibidem, p.12-13, grifo meu.

33Ibidem, p.20.

34Ibidem.

35David Hume, Tratado da natureza humana, trad. de

Deborah Danowski, São Paulo, Editora UNESP, [1740]

2000, p. 133.

https://cosmosecontexto.org.br/teoria-da-nao-conceitualidade-introducao/#sdfootnote9sym 16/17
02/11/2017 Teoria da Não Conceitualidade – Introdução

36Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, p. 20

COSMOS & CONTEXTO


37Hans Blumenberg, Anthropologischen Annäherung an

die Aktualität der Rhetorik , p. 20

38Com isso, em vez de problemática oposição entre

sujeito e objeto, temos que a subjetividade é tão objetiva

como o objeto, restando ao sujeito confundir-se com a

consciência, sua ação na composição das posturas

adequadas aos frames e a diferenciação dos interesses a

que serve.

a d f v

Sobre Luiz Costa Lima


Luiz Costa Lima é Teórico de Literatura e
professor emérito da PUC-RJ.

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